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A ESPADA DE FORTRIU / Juliet Marillier
A ESPADA DE FORTRIU / Juliet Marillier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Dois homens se encontraram em segredo numa passagem sombria, por baixo da fortaleza de Dalriada. O local ficava afastado dos olhos e dos ouvidos da corte celta ali presente, sendo pois apropriado a conversas secretas. A informação a ser transmitida era perigosa e, nas mãos erradas, seria mortal. Havia reinos cujo futuro dependia dela.
— O que tens para me dizer? — aquele tipo de encontro seguia um padrão. O homem mais jovem, um indivíduo magro e moreno, de expressão reservada, assumiu o papel com uma facilidade trazida pela prática.
— Um nome — replicou o outro, um indivíduo alto que envergava a túnica avermelhada dos servidores pessoais do rei Gabhran. — Bridei tem de agir depressa e com inteligência se não quiser ser encurralado a norte e a sul.
— Poupa-me às opiniões — disse o homem moreno. — Qual é o nome?
— E em troca?
O homem moreno comprimiu os lábios.
— Receberás a tua informação.
No curto silêncio que se seguiu, o indivíduo alto olhou de relance para ambos os lados da passagem sombria. Tudo estava sereno e o luar, que penetrava pela entrada distante, apenas permitia que os dois homens lessem indistintamente a expressão um do outro. Sob tal luz, era difícil perceber se um homem estava a mentir ou a dizer a verdade. Não era fácil saber o quanto se poderia confiar. Ambos eram peritos neste tipo de discernimento, pois a existência de um espião assentava no risco calculado.
— Um dos chefes Caitt — segredou o homem alto. — Alpin, de Briar Wood. Comanda um grande exército pessoal. A aliança poderá ser selada antes da próxima Primavera, a não ser que os vossos evitem que isso aconteça.
O homem moreno aquiesceu. — Quais dos outros chefes do norte o apoiariam? Umbrig?
— Não creio. Mas eles são próximos. Umbrig acolheu em sua casa um filho bastardo de Alpin. Quanto aos outros, não sei dizer. O líder de Briar Wood tem aliados e inimigos entre os seus.
— Compreendo.
— Seria prudente que o teu rei fizesse uma abordagem célere a Alpin — sugeriu o homem alto. — É melhor que avises Bridei.
A expressão no rosto do homem moreno permaneceu inalterada.
— Não me encontro em posição de fazê-lo — retorquiu, num tom de voz imperturbável. — Sou apenas o portador de informação, não um confidente do rei.
— Não foi isso que ouvi dizer.
— Então te informaram mal — redargüiu o homem moreno.
— Agora me diga o que sabe.
Os olhos do homem moreno tinham-se tornado mais frios.
— Gabhran devia ter em atenção as defesas a leste — avisou. — Caso esta questão do Caitt não lhe cause dificuldades, Bridei poderá estar preparado para uma grande investida contra os celtas na próxima Primavera. Está planejado um conselho para a Reunião e existem grandes esperanças de que Drust, o Javali, finalmente alinhe com Bridei.

 


 


O homem alto resmungou a sua aceitação. A troca de informação era justa. O que cada homem depois faria com ela era problema seu.
Os dois separaram-se sem qualquer despedida. O homem moreno tinha um longo caminho a percorrer. O homem alto encontrava-se mais próximo de casa, por isso abandonou a passagem e saiu para a rua, onde as árvores lhe serviam de abrigo, com o pensamento no jantar e numa noite quente na cama de uma certa mulher amável.
Foi encontrado alguns dias mais tarde por um rapaz, que se encontrava a pescar, o corpo inchado e deformado, por ter estado imerso num riacho e ter sido ferido pelas rochas sob as quais ficara parcialmente preso. Foi possível verificar que não morrera afogado, mas que fora habilmente estrangulado por algo resistente e fino, tal como uma corda de harpa.
Quanto ao homem moreno, por essa altura já há muito que saíra de Dunadd e atravessara a fronteira, abandonando o território gaélico de Dalriada e entrando nas terras do rei Bridei, dos Priteni. Escondera o saco de prata que recebera dos seus mestres de Dalriada e haveria mais um pagamento quando chegasse à fortaleza de Bridei, no Monte Branco. Uma riqueza considerável repousava agora no seu local secreto, recursos que seguramente nunca viria a utilizar, pois não tinha nem esposa, nem filhos, nem irmãos ou irmãs com quem gastá-los. Pelo menos, não se sentia preparado para reconhecer nenhum deles, nem mesmo para consigo próprio.
Viajava com a velocidade e a eficiência de um homem que não permite que nada o distraia do seu objetivo. Era lamentável, mas não inesperado, que tivesse havido necessidade de eliminar o seu contato. Pedar não era tolo e Faolan tinha noção de que ele acabaria por descobrir a verdade acerca da relação de proximidade que mantinha com Bridei. Permitira que o seu informante vivesse até ao momento em que o valor daquilo que Pedar tinha para lhe contar já não suplantava o perigo de ser exposto. Era necessário que os seus mestres de Dalriada acreditassem que Faolan era totalmente leal à sua causa. Esperava que Pedar tivesse cumprido os códigos delicados dos serviços secretos e não tivesse partilhado as suas suspeitas com ninguém. Em todo o caso, Faolan teria de se manter afastado de Dunadd durante algum tempo, por via das dúvidas. Talvez Bridei o mandasse juntar-se aos guerreiros de Carnach, os quais se preparavam para a grande guerra que se avizinhava. Talvez fosse enviado para a Fonte do Corvo, onde outro exército se aprontava para a investida final em direção a ocidente, a fim de entrar em Dalriada. Um pouco de combate leal seria bem-vindo. Há já muito tempo que dançava pelas cortes dos reis e começava a ficar cansado de disfarces. Enfim, com um bom ritmo e tempo ameno, deveria chegar ao Monte Branco antes que a lua voltasse a ficar cheia. Talvez, meditou Faolan enquanto percorria o caminho junto à beira do lago, em direção a nordeste sob o céu limpo de um dia fresco de Primavera, pudesse simplesmente regressar à sua antiga tarefa de guarda pessoal. Nos cinco anos que haviam passado desde que Bridei fora eleito rei, em circunstâncias algo incomuns, ninguém se aproximara o suficiente para tocar nele ou na esposa com um dedo que fosse. Faolan certificara-se de que assim fosse. Sempre que partia, instalava um sistema infalível de guardas que assegurassem o período da sua ausência. No entanto, nada era tão eficaz como a sua presença ao lado de Bridei. Para sua surpresa, descobriu que se sentia quase como se estivesse a regressar a casa.
Ana era refém na corte de Fortriu desde os dez anos e meio. Passados oito anos, reconhecia que aquilo que antes lhe parecera uma espécie de prisão, embora a prisioneira comesse na mesa do rei e dormisse em camas de puro linho e lã macia, se tornara mais semelhante a um lar. Quando Bridei construiu a nova fortaleza no Monte Branco e mudou a corte de Fortriu, Ana acompanhou-a. A esposa de Bridei, Tuala, era uma das suas amigas mais chegadas. Enquanto guiava a figura minúscula e cambaleante do filho do rei, Derelei, pelo jardim abrigado que ficava no interior dos muros da fortaleza, Ana pensava em como isso representava um problema para Bridei. O objetivo de fazer reféns era exercer pressão sobre a família. Ela encontrava-se ali como garantia contra uma possível revolta por parte do primo, rei das Ilhas Pequenas e rei vassalo de Bridei. Durante esses oito anos, não existira qualquer sinal de inquietação nas ilhas onde nascera, por isso parecia que o seu cativeiro tivera o efeito desejado. Por outro lado, a família mostrara pouco interesse pelo seu bem-estar. Parecia que a tinham esquecido. Atualmente, o Monte Branco era o seu lar e não podia imaginar que Bridei alguma vez viesse a magoá-la, fosse de que maneira fosse, caso os seus parentes, de repente, o atacassem.
— Ups! — Exclamou Ana, quando os joelhos de Derelei cederam e o pequeno caiu de repente sobre o traseiro almofadado. Por alguns instantes, pareceu ficar surpreendido, a ponderar se deveria ou não chorar, e depois ergueu os braços na direção dela, soltando um som que significava «Para cima!»
— Vamos lá então. — Ana pegou no menino, apoiando-o na anca. Era pequeno para a idade e tinha um pouco do aspecto sobrenatural da mãe, a tez pálida como leite, os olhos grandes e solenes. O cabelo era de Bridei, castanho como uma amêndoa e já muito encaracolado.
Quem diria, nos tempos de Banmerren, em que tinham estudado juntas? Tuala estava casada e era mãe e Ana ainda ali estava, em Fortriu, solteira. Muitas vezes, o fato de possuir o sangue real de Fortriu parecia-lhe mais uma maldição do que um privilégio, sobretudo sendo mulher. Nas terras dos Priteni, a descendência real seguia a linhagem feminina: os reis eram escolhidos, não de entre os filhos de reis, mas de entre os filhos de mulheres como Ana, aquelas que descendiam de uma linhagem pura de mulheres reais. Isso fazia dela um prêmio valioso no grande jogo da estratégia política. Quem casasse com ela poderia ser pai de reis. Um dia, seria Bridei, como rei de Fortriu, quem decidiria quando e para onde ela iria. Poderia existir um pedido de opinião simbólico ao primo mas, com ambos os pais já há muito falecidos e o parente longe nas ilhas, sabia que a escolha seria de Bridei. Em menina, com a cabeça repleta de histórias, tivera esperanças de um dia vir a conhecer o amor. Agora sabia como fora tola.
No entanto, para algumas pessoas, o amor podia ser tudo. Bridei e Tuala, por exemplo. O seu casamento parecera algo impossível. Não recebera a aprovação do poderoso Broichan, o druida do rei e pai adotivo de Bridei. Ana olhou para Derelei, que agarrara uma mão cheia do cabelo longo e agora exercitava nela os seus dentes. Ele devolveu-lhe o olhar, os olhos sérios como os de uma coruja. Não havia dúvidas de que era parecido com a mãe. A herança do Outro Mundo era evidente no rosto minúsculo, as mãos delicadas, a gravidade invulgar. Bridei fizera o impensável: casara por amor e, como resultado, Fortriu tinha um elemento da Boa Gente como rainha. Ana sorriu para consigo. Tuala era uma bela rainha, forte, corajosa e sensata. As pessoas tinham-na aceite, pesasse embora as suas diferenças e o marido amava-a com uma devoção que era visível de cada vez que a olhava. Contudo, Bridei era monarca de um reino cheio de homens poderosos e perigosos. Caso fosse necessário, Ana seria apenas mais uma peça útil ao jogo, preservada para o momento em que pudesse ser utilizada da melhor forma.
— Mamãe! — Declarou Derelei com ênfase, libertando o cabelo de Ana e virando a cabeça em direção à arcada na outra ponta do jardim. Estava um dia soalheiro de Primavera. A luz banhava as trepadeiras que se entrelaçavam no muro de pedra, formando um padrão de tons verdes. Não havia sinal de que alguém ali estivesse, nenhum som, exceto as vozes distantes dos soldados e, mais perto, o chilreio de pequenos pássaros que andavam à caça de materiais para construir os ninhos. A criança estava concentrada na arcada, o corpo agitado nos braços de Ana devido à antecipação. Ela ficou à espera. Pouco depois, Tuala surgiu através da arcada, seguida de outra mulher.
— Mamãe! — Proclamou a voz miúda e a criança inclinou-se para a frente num ângulo perigoso. Ana largou-o para os braços de Tuala.
— Ele sabia que tu vinhas — disse-lhe. — Parece que sabe sempre.
— Ana, vem ver quem está aqui! — Exclamou Tuala, sentando-se num banco de pedra, com o filho ao colo. A outra mulher avançou e só então Ana percebeu quem era.
— Ferada! Que bom ver-te! Conta-me as novidades todas! — Ferada, filha do influente chefe tribal da Fonte do Corvo, partilhara parte da educação com Ana e Tuala, antes de Bridei se tornar rei. Circunstâncias infelizes, grande parte das quais mantidas em segredo, obrigaram-na a regressar para tomar conta da casa do pai e educar os dois irmãos mais novos, e já há muito tempo que não visitava a corte de Bridei, no Monte Branco. Ferada parecia mais velha. Mais velha do que devia, pensou Ana. Os dois anos a mais que tinha em relação às amigas não deviam ser suficientes para causar as rugas de fadiga em redor da boca de Ferada, nem a palidez doentia da sua tez. Uma coisa permanecera inalterada: a túnica de Ferada encontrava-se imaculada, o cabelo cuidadosamente penteado, a postura ferozmente altiva.
— Novidades? — repetiu Ferada, apertando as mãos no colo.
— Receio que não tenha acontecido nada de especial. Aprendi a gerir uma casa. Consegui inculcar alguma sabedoria em Uric e Bedo, com a ajuda de estudiosos que iam até nossa casa... sim, Tuala, nesse aspecto inspirei-me em Broichan, pois sei o excelente trabalho que os vossos velhos tutores fizeram contigo e Bridei. Os rapazes estão bem. Bedo aprende bem e Uric tem vindo a fazer progressos. É claro que agora já se consideram homens, para além de tais passatempos sedentários. Hoje em dia passam a vida com os cavalos e com as armas. O Pai acredita que uma temporada na corte poderá ser bastante educativa.
— Sempre pensei que eram rapazes de boa índole — disse Tuala. Derelei estava no seu colo, com os dedos a agarrar uma prega da túnica. Enquanto falava, Tuala afagava-lhe o cabelo encaracolado com a mão pequena e branca. — Quer dizer que Talorgen busca pretendentes para ti, Ferada? Sabe que em breve vai ter lugar uma grande assembléia? Muitos chefes vão reunir-se no Monte Branco, para debaterem as estratégias para a guerra. É uma oportunidade...
— Imagino que todos os que mostraram interesse em mim quando tinha dezesseis anos já estejam casados — atalhou Ferada. — Se o Pai anda à procura, será entre os mais velhos, homens que já não se sentem desesperados por ter grandes hordas de filhos o mais depressa possível.
— Mirou Derelei e depois reparou nos olhos curiosos e na expressão divertida de Tuala. — Não te sintas ofendida, Tuala, sabe que não me refiro a ti e a Bridei. Vocês não esperaram dois anos de agonia desde o noivado até à cerimônia formal? O que é fato é que as mulheres como eu e Ana somos vistas como meras reprodutoras e, aos vinte anos, julgam que já somos velhas. Por falar nisso, surpreende-me que ainda aqui estejas, Ana. Fico contente, é claro. Senti muito a vossa falta. Mas esperava que tivesses casado há anos. Havia bastantes interessados. Eras tão bela aos treze anos como o és agora. Ana baixou o olhar para as mãos.
— Pelo que sei, Bridei tem alguém em vista. Um chefe do norte, diz ele. Talvez no próximo Verão. Sinto-me como se a minha espera não tivesse fim. — O comentário somos velhas perturbara-a, mas não queria que as amigas o percebessem. Uma filha da linhagem real deveria sempre colocar o dever em primeiro lugar, tal como Ferada fizera de modo admirável, ao regressar ao seu lar para cinco anos como dona da casa. Durante esse tempo, perdera inúmeras oportunidades. A continuar assim, ambas seriam velhas desdentadas, sem marido nem filhos.
— Na verdade — indicou Tuala —, houve alguns desenvolvimentos nessa frente. Faolan regressou e Bridei quer falar contigo mais logo, Ana. Julgo que tem a ver com Alpin, o seu chefe tribal. Não insisti em saber de pormenores. Ele queria falar sozinho com Faolan.
Ana estremeceu.
— Esse homem! De quem será o sangue que tem agora nas mãos, é o que penso sempre que o vejo. Em que buraco se terá andado a esconder? Não sei como Bridei é capaz de confiar nele.
Tuala fitou-a.
— Não me lembro de alguma vez o discernimento de Bridei ter sido errado — disse calmamente. — As informações erradas, os logros, a morte súbita. É essa a essência do trabalho de Faolan. É de grande valor, em boa medida por fazer essas coisas com tanta perícia e sem escrúpulos.
— Virou-se contra o seu povo — contrapôs Ana. — Não vejo como alguém pode fazer isso.
— Não? — Ferada arqueou as sobrancelhas. — Então e tu, que vives satisfeita na corte do povo que te aprisionou quando ainda não tinhas idade para saber o que se passava? Sentes-te em casa entre pessoas que te negaram a oportunidade de crescer com a tua família? Não é muito diferente de Faolan, quando reúne informações em Dalriada.
— Shh — silvou Tuala. — Ferada, admiro a tua franqueza, sempre admirei. Mas agora estás no Monte Branco e deves moderar a linguagem, mesmo quando te encontras entre amigas. Ana não deve julgar o assassino do rei e tu não deves julgar Ana. Muita coisa mudou nesta corte desde que Drust, o Touro, a tomou como refém. Com efeito, já não podemos considerá-la como tal. Para mim, é mais como uma irmã.
— Mesmo assim — acrescentou Ferada —, vejo que Bridei não a enviou para a sua terra.
A sua terra, pensou Ana, enquanto se sentia mergulhar na angústia. As Ilhas Pequenas. Ao início, desejara voltar ao reino onde os lagos refletiam a luz tênue do céu aberto e as colinas verdejantes davam lugar às pastagens. O local onde passara a infância encontrava-se repleto de dolmens vetustos e de misteriosas torres de pedra, falésias inesperadas e bandos de aves marinhas. Mas se Bridei decidisse enviá-la agora de volta, isso pareceria a Ana um novo exílio. Quanto à outra opção, a que se avizinhava, real e imediata, deixava-a gelada com o receio. Os Caitt tinham sangue Priteni, tal como o seu próprio povo ilhéu. Pensou no único chefe Caitt que vira desde a infância: Umbrig, de Storm Crag, um homem grande como um urso, violento e grosseiro. Umbrig surgira inesperadamente na eleição do rei e votara em Bridei, ajudando-o a derrotar Drust, o Javali, monarca de Circinn, reino Priteni do sul. Dizia-se que os Caitt eram todos assim, enormes e ferozes. Ana tremia ao pensar em partilhar a cama de um homem tão selvagem.
— Hoje Derelei andou pelo carreiro, agarrado às minhas mãos — mudou ela de assunto. — Em breve já vai andar sozinho. Muito te honra, Tuala.
— De vez em quando vejo Broichan a olhar para ele, sem dúvida à procura de talentos sobrenaturais, tentando descobrir quanto do meu sangue corre nas veias do nosso filho, e quanto de Bridei.
— Broichan não me engana — comentou Ana. — Ele gosta da criança, tanto quanto um druida do rei se permite mostrar afeto. Experimentem a observá-lo, quando ele julgar que estão distraídas. Derelei até parece seu neto.
— E tem? — perguntou Ferada, olhando para o bebê, sentado muito quieto no joelho da mãe, enquanto lhe analisava os dedos. — Esses talentos, quero dizer.
Ana fez menção de responder, mas Tuala foi mais rápida.
— Gostaria que conseguisse lançar um encanto que mitigasse o sofrimento dos dentes a nascer — comentou. — Todos andamos a dormir muito pouco. O teu olhar diz-me que tens mais novidades, Ferada. Diz-se por aí que Talorgen conheceu uma certa viúva donairosa. Ou serão apenas boatos?
Era interessante, pensou Ana, a mestria de Tuala em evitar discutir alguma capacidade especial que o filho pudesse exibir e, com efeito, até mesmo certos talentos que ela possuía em determinados ramos das artes mágicas. Enquanto rainha, parecia determinada a evitar esses assuntos, como se pudessem ser perigosos. Ana sabia do poder adivinhatório de Tuala, algo que se tornara lendário em Banmerren, a escola das mulheres sábias. E havia ainda uma narrativa bastante peculiar, de quando Tuala fugira e do que lhe acontecera e a Bridei na floresta de Pitnochie, uma história que nenhum deles alguma vez contara na totalidade. Mas era necessário satisfazer os desejos da rainha. Se queria ser normal, se preferia que o filho não fosse excepcional, ter-se-ia de fingir, pelo menos aparentemente, que assim era.
Ferada mudou ligeiramente de posição no banco.
— O Pai está a pensar obter autorização para dissolver o casamento — admitiu. — Não fazemos idéia se a Mãe continua viva, nem onde ela está. Apenas sabemos que viajou para lá do limite de Fortriu. O Pai tem bons motivos para fazê-lo. Segundo julgo, é o druida do rei quem toma essas decisões. Acredito que Broichan o permita.
— E? — incitou Ana.
— O Pai deseja voltar a casar. A viúva chama-se Brethana. É bastante jovem. Gosto dela, na medida em que uma rapariga consegue gostar da segunda esposa do pai. Os rapazes não estão preocupados. Nessa idade, apenas as suas próprias atividades lhes interessam. Quando o Pai se casar, nada mais me prenderá à Fonte do Corvo.
Seguiu-se uma pausa, durante a qual Tuala e Ana trocaram um olhar expressivo.
— Sabes — disse Tuala —, tenho quase a certeza de que o que Ferada nos quer contar de seguida não tem nada a ver com pretendentes ou casamentos. Vejo-lhe uma certa expressão no rosto.
— Mmm — meditou Ana —, a expressão que sempre exibiu antes de dizer qualquer coisa escandalosa.
— Não sei se vos devo contar já — disse Ferada. — Tenho de falar com Fola.
— Fola! Estás a querer dizer que vais regressar a Banmerren para te tomares uma mulher sábia? — O tom da voz de Tuala dava vazão à incredulidade sentida por Ana. Quaisquer que fossem os talentos da amiga, e eram muitos, Ferada nunca parecera destinada a um futuro ao serviço da deusa.
O rosto de Ferada enrubesceu.
— Vou a Banmerren. Ou, se Fola vier à assembléia, falarei com ela aqui no Monte Branco. E não, claro que não pretendo tornar-me sacerdotisa. Tenho uma proposta a fazer a Fola. Preocupa-me que tantas jovens de sangue nobre recebam, quando muito, uma espécie de meia educação e, o que é mais habitual, nenhuma, exceto nas artes domésticas. Sei que Fola lhes concede entrada em Banmerren, tal como fez com Ana e comigo. Mas o que lhes é oferecido peca por falta de estrutura e de profundidade. Assim que uma aluna começa a ficar interessada, é enviada de volta a casa, ou para a corte, a fim de ser exibida aos homens, ou para ser enfiada na cama de um indivíduo que lhe vai encher a barriga de herdeiros. Não me olhes assim, Tuala. Sei que a tua experiência foi diferente mas, acredita, para a maioria das jovens é um assunto brutal e arbitrário. Se houvesse um lugar onde as jovens pudessem ficar mais um pouco, onde pudessem aprender algo mais, ganhar alguma sabedoria, antes de serem lançadas para este mundo de homens, acredito que seria possível prepará-las melhor para se defenderem e para desempenharem um papel mais sério nos assuntos que as rodeiam. É isso que quero fazer. Fundar uma escola. Ou melhor, expandir a de Fola, para que se inclua um ramo para as raparigas que não vão tornar-se sacerdotisas, mas que passarão a vida no mundo. Tenciono pedir a Fola que me deixe organizá-la, que me deixe geri-la. Dei-me muito bem com Uric e com Bedo. Além disso, sou rápida a aprender. O que acham?
Tuala sorria.
— É uma idéia arrojada, algo que seria de esperar, vindo de ti, Ferada — comentou. — Muito me surpreenderia que Fola não se mostrasse interessada. E quanto ao teu pai?
— Não está muito à vontade, mas o novo casamento é o que mais o preocupa. Além disso, está em dívida para comigo. Fiz um bom trabalho a gerir a sua casa e a educar os rapazes. Dei-lhe cinco anos da minha vida.
— Vai deparar-te com alguma oposição, disso podes ter a certeza
— avisou Tuala. — É provável que Broichan se oponha a tal idéia, pois não acredita na educação das mulheres, exceto nas que se destinam a servir a deusa. Muitos homens vão considerá-lo desnecessário, uma perda de tempo. Outros vão encará-lo como um perigo. Nem todos os homens têm um espírito tão aberto como o teu pai, que sempre te encorajou a expressar as tuas opiniões.
— Então e o teu casamento? — perguntou Ana. — Como poderás levar este plano a bom termo, se tiveres de cuidar de um marido e de uma família? Imagino que não os queiras sacrificar?
— Sacrificar? — O tom de Ferada era severo. — Ó, Ana. Será que não concebe que uma mulher possa sentir-se realizada sem um homem?
Ana sentiu as faces a arder.
— Eu... — começou a dizer.
— Desculpa — atalhou Ferada, com um tom diferente. — Incomodei-te. Não era minha intenção. Há muito tempo que não tinha a oportunidade de falar livremente e tenho a mente cheia de idéias. Quero ensinar. Quero marcar a diferença. Quero ter a certeza de que não desperdicei a minha vida.
— Eu não pretendo desperdiçar a minha — replicou Ana, sem conseguir ignorar a insinuação.
— Nesse caso, deves rezar para que o pretendente que Bridei tem em mente seja o paradigma da virtude masculina — retorquiu Ferada.
— Tuala, podes falar com Bridei acerca da minha intenção? O seu apoio à noção geral seria de grande ajuda.
— É claro — asseverou Tuala. E também tu deverias pedir. Tenho a certeza de que ele o aprovaria. Bridei admira-te, Ferada.
Ferada quedou-se num silêncio enigmático e, nesse momento, o bebê contorceu-se e respirou fundo por várias vezes, o que deveria anteceder uma qualquer tempestade.
— É melhor entrarmos — indicou Tuala, que se levantou e apoiou a criança na anca. — Ele está a ficar com fome. Deve ser por ter andado tanto. Tens muito jeito, Ana.
— Gosto de vê-lo crescer — disse Ana. — De observar todas as pequenas mudanças.
— É muito bonito quando são de outra pessoa — observou Ferada.
— Podes devolvê-los quando gritam ou quando se sujam, ou se tiverem pesadelos. Dêem-se por felizes por não terem cinco ou seis agarrados às vossas pernas. Se nos tivessem casado quando começaram a falar de pretendentes, cada uma de nós já teria uma ninhada, por esta altura.
— Gostaria de ter outro filho — sorriu Tuala. — Se A Que Brilha me abençoar com uma filha, Ferada, vou enviá-la, para que a eduque.
— Isso, se Fola não se meter primeiro — comentou Ferada.
A corte do rei no Monte Branco fora erigida no local de uma fortaleza antiga, construída em pedra e madeira endurecida pelo fogo. Ainda existiam restos dessas muralhas na vegetação que rodeava as encostas inclinadas da colina. Aqui e ali, à sombra de pinheiros imponentes, um fragmento de pedra com uma forma artificial sugeria uma parede, uma fonte, uma extensão de pavimento. O ribeiro que ziguezagueava pelos flancos do Monte Branco abastecia lagos e bacias, naturais e construídos pela mão humana. O local era considerado impenetrável. A inclinação da própria colina, as muralhas perpendiculares e sólidas, a vista permitida pelas aberturas estratégicas protegidas pelas árvores, concediam aos ocupantes uma grande vantagem defensiva. A partir dali, era possível ver o oceano a norte e, a sul, as águas do Rio Serpente e as colinas sombrias do Grande Vale. A reserva natural de água doce e a vasta extensão de terreno plano no sopé do Monte Branco, agora coberto pelas habitações e outros edifícios, pelas hortas e oficinas da cidadela de Bridei, tudo dentro dos limites das novas muralhas imponentes, permitiriam que os ocupantes resistissem a um cerco até que os atacantes se fartassem, ou até à chegada de reforços.
Para leste, ao longo da costa, ficava o velho forte defensivo de Caer Pridne, que albergara a corte real de Fortriu durante o reinado do antecessor de Bridei e de muitos outros reis anteriores. Bridei era jovem quando chegara ao trono, mas possuía uma grande vontade de mudança. Aos vinte e um anos de idade, com dois anos de reinado, completara a edificação do Monte Branco e aí estabelecera o seu quartel-general, rompendo com a tradição. A primeira cerimônia da nova corte foi o casamento com Tuala, na altura com meros dezesseis anos de idade. Outras mudanças se seguiram. A mais arriscada foi a decisão por parte de Bridei de alterar a celebração de um certo ritual que marcava a entrada do ano na escuridão. Da última vez que isso fora tentado, o deus ofendido exercera uma terrível vingança. Mas os chefes tribais e os anciãos aceitaram a decisão de Bridei. Era sabido que tanto ele como o seu druida, Broichan, levavam a cabo ritos pessoais, em vez das práticas antigas, e que estes eram de uma natureza exigente. O povo não solicitou pormenores, pois a confiança que depositava no seu jovem rei era forte. O monarca tinha uma personalidade que arrebatava os outros, uma dedicação apaixonada e uma energia ardente, moderada por cautela, sutileza e inteligência. Afinal de contas, Bridei fora educado como filho adotivo de Broichan, e este era um mago poderoso, o principal conselheiro tanto do rei anterior como do novo.
Ao início houvera comentários. Broichan não era estimado. Muitos receavam o seu poder e desconfiavam da natureza esotérica do seu conhecimento. Havia quem tivesse dito que ter o filho adotivo de Broichan como rei seria o mesmo que ter o druida em pessoa no trono. Não era o jovem um títere, elevado a rei a fim de conduzir os assuntos de Fortriu segundo os desejos de Broichan? Contudo, desde o primeiro dia de reinado que se tornou óbvio que Bridei tinha idéias próprias e tencionava tomar as suas decisões de forma independente. Reuniu um conselho, composto por um equilíbrio ajuizado de homens mais velhos e experientes, e pelos chefes tribais mais jovens, preparados para tolerar idéias novas e para aceitar correr riscos calculados. Confrontou druidas com líderes guerreiros, estudiosos com homens de ação. Por vezes, incluía mulheres no seu grupo de conselheiros: não só a sacerdotisa mais velha, Fola, que dirigia o estabelecimento onde se treinavam as jovens para o serviço d'A Que Brilha, mas também Rhian de Powys, a viúva do rei anterior, e, ocasionalmente, a sua própria esposa, Tuala.
Embora a maior parte das decisões fossem tomadas no Monte Branco, Bridei mantinha baluartes noutros locais. Caer Pridne continuava a alojar uma guarnição, estábulos, campos de treino e um arsenal. A Fonte do Corvo, a sudoeste, e Thorn Bend, a sudeste, eram postos avançados estratégicos, liderados por chefes tribais influentes, leais ao rei. Todos sabiam que o plano de Bridei era fortalecer Fortriu, para depois carregar sobre os celtas. Todos sabiam que se aproximava a altura. O momento preciso servia de mote a apostas.
No dia seguinte ao regresso de Faolan ao Monte Branco, Ana foi chamada aos aposentos reais. Derelei estava no jardim com a ama. Na câmara usada para encontros informais, o rei e a rainha aguardavam em silêncio. As expressões sérias alarmaram Ana, que imaginava o que se avizinhava, mas esperara que, pelo menos, Bridei apresentasse as novidades como sendo algo positivo. Ban, o pequeno cão branco, eterno companheiro de Bridei, ergueu-se do seu pouso por baixo da cadeira do rei e assumiu uma postura alerta. Depois, ao ver uma amiga, voltou a deitar-se. Ana penetrou na câmara e viu uma quarta figura presente. Faolan, o assassino de Bridei, o espião do rei, o seu braço direito, estava encostado à parede junto à janela estreita, a forma envolta em sombras. Os olhos do homem perscrutaram-na enquanto a jovem se sentou à mesa. No rosto do assassino, Ana não viu a admiração oferecida por outros homens, mas uma avaliação fria: o celta calculava o seu valor enquanto bem de troca.
— Imagino que saibas por que motivo te chamamos — disse Bridei, enquanto Tuala servia hidromel.
De repente, Ana ficou tensa com os nervos. Anuiu brevemente. Eram seus amigos, pessoas com quem jantava todos os dias. Brincava com o filho deles. Mesmo assim, Bridei detinha tamanho poder sobre o seu futuro que, por breves instantes, ficou com medo.
— Pelo que sei, Faolan tem novidades de Alpin, um chefe Caitt — replicou, com um tom de voz calmo. — Terá evidenciado interesse em casar?
Seguiu-se um silêncio breve. Era óbvio que a opinião de Ana estava errada.
— Encontramo-nos numa posição difícil — explicou Bridei — e, como tal, vamos pedir-te a tua ajuda, Ana. Aquilo que precisamos que faças é difícil. Incômodo. Terá como resultado uma grande mudança.
Ana não fazia idéia do que Bridei queria dizer.
— A chamamos aqui, apenas nós quatro, para que te possamos dar a notícia em privado e para que disponhas de algum tempo para refletir — continuou Bridei. — Esta noite vai realizar-se um conselho formal, durante o qual seremos obrigados a tomar uma decisão sobre este assunto. As novidades de Faolan tornam-no urgente. Crítico.
— Bridei — atalhou Tuala —, de certeza que Ana prefere que lhe expliques tudo. O que vais pedir-lhe é muito importante. Ana precisa de todos os fatos.
Faolan pigarreou.
— Tens conhecimento, é claro — disse Bridei —, do grande empreendimento que estamos a planejar contra os celtas, dentro em breve. Com a ajuda dos deuses, todos os nossos velhos inimigos serão varridos das costas dos territórios Priteni de uma vez por todas, e a fé cristã com eles. Para esta demanda, precisaremos de todos os aliados que conseguirmos reunir. Tal como sabes, Circinn foi convidado para uma assembléia antes do Verão. Desta vez, temos esperança de conseguir a colaboração de Drust, o Javali, mesmo concedendo permissão para que os missionários da cruz atravessem o seu reino. Também pretendo estabelecer as alianças que conseguir com os reinos Priteni do norte.
— O meu parente das Ilhas Pequenas? — Talvez, contra todas as expectativas, Bridei a enviasse para casa.
— Enviei ao teu primo um pedido de homens armados. A mensagem também requisitava o seu consentimento formal para que eu desse a tua mão a determinado pretendente.
— Entendo.
— Ana — o tom de Bridei era gentil —, há muito tempo que sabes que isto ia acontecer. Tens dezenove anos. Já passaste da idade em que poderias esperar casar-te.
— Diz-lhe de uma vez, Bridei — incitou Tuala, com uma aspereza nada típica.
— Tencionava investigar o chefe que temos em vista para ti, Alpin, de Briar Wood, de forma mais aprofundada antes de o abordarmos — explicou Bridei. — Até agora, Umbrig foi o único chefe Caitt que garantiu o seu apoio contra os celtas. Os Caitt são uma casta estranha, são orgulhosos e agressivos. Alpin deverá ser o mais poderoso, mas também o mais difícil de contatar, uma vez que o seu território é distante e situa-se no meio de uma floresta impenetrável. As mensagens viajam com lentidão.
Ana cogitou profundamente.
— Os Caitt não costumam afastar-se das disputas alheias? — perguntou. — Dirigem-se de tempos a tempos às Ilhas Pequenas, nos seus barcos de guerra. Lembro-me deles, na corte de meu primo. Ele costumava suborná-los com oferendas.
— São da nossa raça — adiantou Tuala. — Partilham o mesmo sangue e a mesma língua de todos os Priteni, quer seja em Fortriu, em Circinn ou nas Ilhas Pequenas. E se Umbrig concede os seus guerreiros, também Alpin poderá fazê-lo. Isso pode marcar a diferença.
Ana esperou, julgando que poderia não ter compreendido alguma coisa.
— Faolan — indicou Bridei —, diga à senhora Ana o que descobriu. Pelo menos a parte que concordamos ser seguro revelar.
Faolan cruzou os braços e fitou a distância. Era um homem sem características excepcionais, de altura mediana e constituição seca, o tipo de homem que passaria despercebido numa multidão. A única característica distintiva era a falta de tatuagens faciais, fato que, uma vez que era evidente que não se tratava de um druida, nem de um sábio, o marcava como não sendo de sangue Priteni. Ana interrogou-se sobre se, enquanto espião, treinava continuamente o ser esquecível de imediato.
— Ouvi falar de um segundo território — disse. — Na costa oeste, com um ancoradouro abrigado. Se a informação for correta, a zona tem a localização ideal para se aceder por mar aos territórios de Dalriada. Essa é a primeira informação, o que significa que não devemos ser os únicos a tentar aliciar este líder Caitt com incentivos.
Um incentivo. Era um nome pelo qual Ana nunca tinha sido chamada.
— E a segunda informação? — perguntou-lhe ela com um tom frio.
— Deves compreender — indicou Faolan — que não poderás conhecer todos os pormenores. Nas mãos erradas, a informação pode tornar-se perigosa.
Ana sentiu-se ultrajada.
— Posso ser uma refém — replicou, no seu tom mais majestoso —, mas sou incondicionalmente leal a Bridei. Não me interessa a tua insinuação.
Faolan mirou-a.
— A lealdade do mais forte dos homens pode ceder sob tortura — disse, sem emoção. — Dir-te-ão o que precisas de saber e nada mais. Alpin é um jogador perigoso, muito mais do que julgas. Ouvi dizer que pode estar à beira de uma aliança com Gabhran, de Dalriada. Temos de agir depressa. Não podemos deixar que aquele ancoradouro ocidental caia em mãos celtas, nem que o exército privado de Alpin nos defronte em combate. É tão simples quanto isto.
— Estou a ver. — Ana esforçou-se por se acalmar. — Assim sendo, planeias oferecer-lhe uma noiva real? — perguntou a Bridei. — Deixá-lo ainda mais poderoso, concedendo-lhe a oportunidade de ser pai de um rei?
— Alpin é abastado — retorquiu Bridei. — Possui terras, homens, gado, prata. Não podemos tentá-lo com nada do que é habitual. A nossa vantagem assenta em dois fatos inferidos a partir das investigações de Faolan. Em primeiro lugar, Alpin deseja respeito e estatuto. A história antiga não o deixou muito bem visto pelos outros chefes Caitt, como Umbrig, por exemplo. Em segundo lugar...
— Não é casado — concluiu Ana.
— Exato. É viúvo, sem filhos legítimos. Podes ver a oportunidade que representa.
— Bridei compreende que tal te seja difícil, Ana. — A voz baixa e clara de Tuala tinha um tom apologético. — Embora há muito tempo o esperasses, sei que não deixa de ser assustador enfrentar a realidade. Coloca as questões que te aprouver. Imagino que seja mais fácil agora, de modo informal, do que no conselho desta noite.
Ana engoliu em seco.
— Para quê um conselho? — perguntou. — A decisão não é de Bridei? — Uma coisa era certa, as suas próprias escolhas não interessavam.
— Os meus conselheiros e líderes guerreiros têm de escutar as novidades de Faolan em primeira mão — explicou o rei. — É importante.
Parecia a Ana que todos lhe ocultavam alguma coisa.
— Há mais, não há? — indagou, enquanto fitava, à vez, os olhos grandes e perturbados de Tuala, os azuis honestos de Bridei e a expressão sombria e reservada de Faolan. — O quê?
— Tempo — tomou Faolan a palavra. — Não há tempo. Tens de partir já. Basicamente, é isso que importa.
Ana fitou-o. Bridei suspirou.
— Com efeito, é isso que temos de pedir-te que faças. A natureza da informação de Faolan é de tal ordem, que torna este assunto urgente. Enviei um mensageiro a Alpin, informando-o da nossa oferta. Contudo, é no nosso interesse que não esperemos por uma resposta escrita, enviando-te desde já para Briar Wood. Pelo Verão, precisamos de ti casada e de um acordo assinado. Temos de agir antes que Alpin se comprometa com uma aliança Celta.
— Ir já... mas... — Ana estava sem palavras. De súbito, voltara a ter dez anos, cheia de entusiasmo por ir de visita à corte de Fortriu, vindo depois a saber que era uma refém e que não voltaria a casa. — Mas, Bridei... Tuala... como podem fazer isto? Tal significa que estarei a caminho sem saber se ele aceitou! E se lá chegar e... — Nem era capaz de o dizer. E se ele não me quiser? A simples noção envolvia uma vergonha terrível.
— Ana — disse Bridei —, o homem seria um perfeito idiota para não ficar agradado com tal noiva. Acredita. Basta que olhe para ti. Afasta essas dúvidas da tua mente. Acreditamos que a tua presença física em Briar Wood será um dos nossos melhores argumentos.
As palavras não a fizeram sentir-se melhor.
— Decerto o assunto poderia ser tratado de forma um pouco mais gradual — protestou. — Mesmo que o avanço tenha lugar já na Primavera, não poderíamos esperar que o mensageiro chegue com a resposta de Alpin? — O chefe tribal de Briar Wood até poderia vir buscá-la em pessoa. Dessa forma, teria mais algum tempo para o conhecer antes da cerimônia formal. — Continuaria a haver bastante tempo para viajar até Briar Wood, antes do próximo Inverno — concluiu.
— Tem de ser agora. — O tom de Faolan era decisivo. — Razões estratégicas. Motivos que é melhor que não conheças na totalidade.
— Estou a ver. — Ana tremia. Cerrou os punhos, interrogando-se se o que sentia era raiva ou medo. — E quando, exatamente, é agora?
Os olhos de Bridei transbordavam de compaixão.
— Assim que estejas pronta — respondeu o rei. — Temos certos preparativos a fazer. Alguém da corte irá acompanhar-te e avaliar a situação em Briar Wood, antes que o acordo final seja estabelecido entre ti e Alpin. Vou preparar-te uma escolta adequada. Deves querer algum tempo para preparares as tuas roupas e objetos pessoais. Tuala vai garantir que tens a ajuda necessária. O terreno é difícil em certas zonas, por isso a bagagem terá de ser reduzida ao mínimo.
Seguiu-se um silêncio. Ana olhou para as mãos.
— Alguém da corte — acabou por dizer. — Será Faolan? — Não era possível afastar da voz um certo tom de aversão.
— Correto — asseverou Bridei. — Está preparado para avaliar os riscos, quando chegarem a Briar Wood, e é perito em assuntos de segurança pessoal.
Ergueu o olhar e viu uma expressão no rosto do assassino do rei que espelhava a sua. Sentiu alguma satisfação por, também para ele, aquela situação não ser agradável.
— Pareces cansada, Ana — comentou Tuala com brandura. — É muita informação de uma só vez.
A gentileza da amiga acabou por ser a gota de água. Ana sabia que estava à beira de rebentar em lágrimas ou de apresentar algum protesto irrefletido.
— Estou bem — disse alegremente. — Esse conselho... o que esperam de mim?
— O teu consentimento formal para o casamento. Certos membros do conselho poderão ter perguntas a fazer-te, ou tu a eles.
— Estou a ver. — E estava mesmo. Via um futuro em que as coisas aconteciam sem que as suas escolhas fossem tidas em conta. Um futuro em que seria completamente impotente. Dever: tudo se resumia a isso. Esperava que Alpin, de Briar Wood, fosse um homem bondoso. — Com a vossa licença. — Mantendo a cabeça erguida, conseguiu deixar a sala com a dignidade intacta. Esperou até chegar ao seu quarto para, sozinha, verter a primeira lágrima.
— Não gosto disto — disse mais tarde o rei de Fortriu à esposa, depois de Faolan ter partido, quando os dois ficaram sozinhos. — Sempre esperara encontrar para Ana não só o parceiro estratégico adequado, mas também um homem que soubesse que viria a ser bom para ela. Detesto esta necessidade de pressa.
— Ela está muito perturbada — disse Tuala. — Fez o possível por escondê-lo. Foi muito bem treinada, mas era óbvio que estava à beira das lágrimas. Se houver maneira de lhe tornar as coisas mais fáceis, temos obrigação de encontrá-la.
— Eu sei. — Bridei afagou Ban atrás das orelhas. Com um suspiro, Ban deitou a cabeça aos pés do rei. Desde que o cão surgira misteriosamente, junto ao lago das visões em Pitnochie, no Inverno grave da eleição do novo rei, raramente deixara Bridei sozinho. — Sei bem que é muito, o que lhe é exigido. Mas Ana já é uma mulher e nunca escondeu o fato de desejar filhos seus. Pelo menos não aconteceu quando ela tinha catorze, ou quinze anos, tal como poderia ter acontecido, caso tivesse surgido a oferta adequada.
— Mesmo assim — disse Tuala —, qualquer mulher na situação dela estaria a pensar, e se chegar a Briar Wood e descobrir que o meu noivo é um monstro, e se tiver sífilis, se for bêbado, se bater na mulher?
Seria melhor se Alpin pudesse vir à corte, para descobrirmos que tipo de homem é. Ana é nossa amiga, Bridei.
O monarca entreabriu os olhos. A esposa estava sentada muito direita na cadeira em frente da sua. O cabelo escuro, que ia fugindo das tranças perfeitas, enrolava-se em caracóis atraentes à volta do rosto. Os olhos eram como os de Derelei, grandes, claros e brilhantes.
— Eu sei — disse Bridei. — Se eu fosse apenas isso, um amigo, dir-lhe-ia para recusar o nosso pedido. Iria avisá-la que não deveria empreender uma viagem tão longa e perigosa, a fim de se entregar nos braços de um chefe tribal com a reputação de Alpin. Mas sou rei. As minhas decisões devem visar o bem de Fortriu.
— Bridei, sabe que não te culpo por esta escolha — disse Tuala, gentilmente. — Compreendo, tal como tu, que foi necessária para um bem maior. Ana também o sabe. Mas está chocada e com medo, como qualquer pessoa ficaria, nas mesmas circunstâncias. É mesmo essencial que ela parta antes de recebermos a resposta de Alpin?
— Segundo Faolan, sim. Consultei Broichan e ele concorda. Há anos que nos vimos a preparar para este assalto final contra os celtas. Tudo está a ser executado na perfeição. Fizemos por cobrir todas as eventualidades, até onde nos foi possível. Ou, pelo menos, assim pensamos. Ao que parece, Alpin é um fator imprevisível, o elemento que poderá fazer pender a balança para um lado ou para o outro. Até agora, não nos tínhamos apercebido da influência que ele detinha. Nem sabíamos se tencionava aliar-se a Gabhran. Ana é a nossa solução, Tuala, e, embora me custe dizê-lo, temos de enviá-la de imediato. Cada dia que passa em que esteja no Monte Branco é um dia a mais.
— É perigosa, não é? A viagem?
— Faolan vai garantir a segurança. Vai avaliar Alpin e o risco global. Estabeleceremos termos que exigem um certo espaço de tempo entre a chegada a Briar Wood e o casamento. Dessa forma, pelo menos, Ana terá oportunidade de conhecer melhor o noivo.
— Ela despreza Faolan. É estranho. Ana é uma criatura tão doce e gentil, sem mal a dizer de ninguém, mas, neste caso, não é capaz de abstrair-se da natureza da tarefa.
Bridei franziu o cenho.
— O sentimento parece mútuo. Faolan nunca recusaria uma comissão de serviço, é claro, mas deixou o mais claro que pôde que tomar conta de princesas mimadas e das suas roupas ao longo do território Caitt não é o tipo de tarefa que aprecia. Na verdade, apresentou-me razões bastante válidas para este trabalho ser mais adequado a outro homem qualquer.
— Mimada? — Tuala sorriu. — Não a conhece bem, pois não?
— Está a pensar em pô-la à prova a cavalo todos os dias até à partida. É óbvio que julga que ela mal deve ser capaz de trotar de uma ponta do pátio à outra sem se queixar de cansaço, ou de dores nas costas.
— Não gosto nada disto, Bridei. — O tom da voz de Tuala era sombrio. — Esta situação está repleta de incertezas. Podia ter confiado a Ana a verdadeira razão da urgência.
— Agi segundo o conselho de Faolan — justificou-se Bridei. — É sua opinião que, quanto menos ela souber, menos poderá dizer, caso existam problemas. É para o bem de Ana.
— Mm — disse Tuala. — É claro, ela é inteligente. Os homens tendem a esquecê-lo, quando uma mulher é tão bonita como Ana. Imagino que já o tenha percebido sozinha.
Era de noite. Ana vestira-se de forma simples, com uma túnica e uma saia de lã azul, com debruns creme, bordados a azul mais escuro. Cingira o cabelo louro e abundante numa única trança, que lhe caía pelas costas abaixo. Atravessava agora o jardim, cruzou-se com um par de guardas altos, percorreu uma passagem onde ardiam archotes em suportes de ferro, e subiu até à porta de carvalho de uma determinada câmara. Junto à porta encontrava-se um homem imponente, armado com uma lança: Breth, um dos guardas pessoais de Bridei.
— Estão à tua espera, minha senhora — indicou e abriu-lhe a porta pesada.
Os trabalhos pareciam estar a decorrer há já algum tempo. Sobre a mesa viam-se jarros e copos e, quando Ana entrou, várias pessoas que estavam a falar calaram-se de súbito. Ergueu o queixo e manteve as costas direitas, esforçando-se por acalmar o estômago que andava às voltas.
— Bem vinda, Ana — recebeu-a o rei, levantando-se. Do seu posto, ao lado da cadeira de Bridei, Ban rosnou o seu cumprimento. — Senta-te, por favor.
Ana percorreu o círculo de rostos com o olhar. Era um conselho pequeno e restrito, composto pelos mais poderosos conselheiros de Bridei. Tuala estava sentada ao lado do marido e sorriu a Ana, à laia de encorajamento. Fola, a mulher sábia que chegara nesse dia, mirou a jovem por detrás do nariz aquilino. Sempre recordara a Ana um pássaro selvagem e diminuto. Junto à lareira encontrava-se Broichan, o druida do rei, um homem alto, de vestes escuras, o cabelo uma miríade de tranças minúsculas, enroladas com fios coloridos. A expressão não revelava nada. Era sempre imperscrutável. Aniel e Tharan, conselheiros de Bridei, estavam sentados, os rostos máscaras de sobriedade. Os chefes Carnach e Morleo, juntamente com Talorgen, pai de Ferada, também se encontravam presentes. Atrás da cadeira do rei estava Faolan. Cruzaram o olhar, tendo Ana desviado o dela.
— Muito bem — disse Bridei —, já expus a situação aos membros deste conselho e Faolan relatou as suas viagens e as informações que recolheu. Lamento muito não ter podido dar-te mais tempo para refletir, Ana. Se concordares, o reino de Fortriu ficará para sempre reconhecido. Será que, depois de teres pensado, desejas colocar-nos alguma questão?
Ana pigarreou. Passara a tarde a debater-se com perguntas que não poderiam ser feitas, questões que não tinham nada a ver com estratégia, dizendo antes respeito às suas próprias dúvidas.
— Será que algum de vós conhece Alpin, de Briar Wood? Se alguém pudesse mostrar-me um retrato seu. — Olhou para Talorgen, para Carnach. Os chefes tribais guerreiros viajavam com freqüência e encontravam muita gente.
— Posso responder? — Era Aniel, o conselheiro grisalho. Bridei anuiu. — Infelizmente, a resposta terá de ser não, Lady Ana. Apenas conhecemos Alpin pela sua reputação. É temido e respeitado pelo seu povo. A fortaleza é isolada. Fica numa extensão de floresta densa. Tal localização pode facilmente dar azo ao tipo de conversas que alimentam a incerteza natural dos homens.
— Optar por viver numa floresta não é, necessariamente, algo mau — comentou Tuala. — Segundo sabemos, os territórios dos Caitt estão cheios desses locais ermos. Imagino que todos os chefes tribais enverguem o seu próprio manto de lendas.
— Mencionou-se uma história antiga — disse Ana, que descobrira pouco conforto nas palavras de Aniel. — Qual é essa história?
— Nada de específico — respondeu Aniel. — Algumas das fontes de Faolan sugeriram que Alpin é muito independente, nada mais. O isolamento cria esse tipo de homens. Podem tornar-se perigosos em tempos de guerra, pois as suas fidelidades mudam conforme o vento. Daí a necessidade urgente de estabelecer amizade com este homem. Um casamento no Verão, um herdeiro no prazo de um ano, será a melhor forma de criar um laço forte e duradouro.
— Ou isso, ou eliminar o indivíduo. — As palavras de Faolan não denotavam qualquer ênfase especial.
— Não desejarias fazer isso — replicou Ana —, se precisassem das suas forças do vosso lado e não do lado do inimigo.
Cruzaram o olhar por um momento e Ana arrepiou-se. Eram olhos mortos, os olhos de um homem que se esquecera de como sentir.
— Precisamente — interveio Talorgen. — Na verdade, é essencial impedir que junte as suas forças à resistência de Dalriada. Não podemos permitir que se alie a Gabhran.
— Compreendo — disse Ana. — Broichan, posso ouvir a tua opinião sobre o assunto? — Na qualidade de druida do rei, Broichan estava em contacto com os deuses. Em última análise, se fosse vontade das divindades que ela concordasse, teria de fazê-lo sem hesitar.
— Lancei um augúrio antes do regresso de Faolan — disse Broichan, com a sua voz grave e dominadora. — A minha interpretação revelou uma ameaça vinda do norte. Infelizmente, é muito difícil obter informações de confiança sobre os Caitt. É uma região cerrada, dura e montanhosa, sujeita a rigores que desafiam o mais experiente dos viajantes. — Observou os dedos longos e ossudos, onde brilhava um anel de prata, com a forma de uma serpente minúscula com jóias verdes como olhos. — As dúvidas suscitadas pela minha visão foram reforçadas pelas informações de Faolan. Enquanto celta, poderá chegar mais longe do que outros. Temos de agir rapidamente.
Ana apertou as mãos atrás das costas.
— Sei que tenho de fazer isto — disse, procurando manter-se hirta e digna. — Tal não significa que a situação me deixe satisfeita. Que devo fazer se Alpin me recusar, quando da minha chegada a Briar Wood? É uma viagem demasiado longa para um resultado negativo.
— Ele não vai recusar — garantiu Aniel, fazendo eco dos sentimentos de Bridei nesse dia. Os outros homens na sala anuíram ou murmuraram a sua concordância. Ana podia sentir os olhos no cabelo dourado, na figura de túnica azul, no rosto, o qual fora comparado a uma rosa selvagem por um pretendente fervoroso. Sentiu nas faces o rubor da humilhação.
— Deves compreender — disse Talorgen — que, se te casares com Alpin e ele se tornar nosso aliado, tal fato elimina a possibilidade arriscada de vir a enfraquecer grandemente a nossa estratégia de combate. Não vou enfadar-te com pormenores, mas imagino que tenhas noção que uma força levada por Alpin pelo mar em apoio de Dalriada poderia arruinar os nossos planos. Por outro lado, se tivermos algum controlo sobre o ancoradouro, seria uma grande vantagem.
Ana fitou-o. Seria de pensar que, enquanto pai de Ferada, se apercebesse do que a jovem sentia. Pelo menos não a considerava demasiado estúpida para ouvir pormenores estratégicos.
— Eu compreendo — disse. — Compreendo a guerra e a importância de garantir Alpin como aliado. Apenas me parece demasiado apressado. Mal tive tempo de me preparar...
— A viagem é longa. — O tom de Faolan era neutro, desligado.
— Haverá tempo mais do que suficiente para pensares sobre isso no caminho.
— Quão longa? — Ana franziu-lhe o cenho.
— Para um grupo com mulheres, mais de um ciclo da lua, mesmo que o tempo se mantenha estável. É mais rápido para guerreiros, ou mensageiros.
Ana voltou a encarar Bridei e dirigiu-se a ele formalmente.
— Senhor meu rei, na tua mensagem informaste Alpin de que eu estava a caminho? — perguntou. — Para que tenha alguns dias para pensar sobre o assunto antes da minha chegada?
— Foi essa a minha intenção — respondeu o rei.
Ana ficara sem questões. Todos pareciam aguardar que falasse. Tinha as palavras erradas na ponta da língua, palavras iradas, magoadas, palavras que não eram as de uma princesa Priteni, mas de uma rapariga assustada que se vê oferecida a um estranho. Engoliu-as.
— O meu consentimento, claro está, não passa de uma formalidade.
— Conseguia distinguir o tom duro na voz e forçou-se a moderá-lo.
— Começarei os preparativos pela manhã. Espero que venha a ser uma grande ajuda à causa de Fortriu. Detestaria que fosse um desperdício. — Apesar do esforço, a voz tremia-lhe.
Ninguém disse nada. Ana viu lágrimas nos olhos de Tuala e uma compaixão resignada nos de Fola.
— Boa noite — disse. — Irei retirar-me agora. Que A Que Brilha vos guarde os sonhos. — Até mesmo o rei se levantou quando a jovem saiu.
— Ela não quer ir — disse Tuala a Bridei. — As suas palavras deixaram-no bem claro. Está assustada. Quem sabe o tipo de homem que Alpin poderá ser?
Bridei estava sentado à lareira nos aposentos reais, com o filho pequeno adormecido sobre o joelho. O conselho terminara. A noiva real seria enviada assim que Faolan preparasse a escolta. Enquanto rei, Bridei habituara-se a tomar decisões tendo em conta os riscos e as vantagens. Aquela decisão fora uma das mais difíceis.
— Essa é uma das razões para enviar Faolan — disse. A cabeça começava a latejar-lhe com uma dor persistente. Fechou os olhos e recostou-se na cadeira, o corpo descontraído e quente do bebê uma presença reconfortante nos braços. — Ele pode considerar esta missão pouco digna, mas acredito que vá garantir que Ana ficará em segurança antes de deixá-la em Briar Wood. Tem capacidade de avaliar a verdadeira intenção de Alpin, de prever os movimentos futuros.
— Mas não tem capacidade de reconhecer se dará um bom marido — replicou Tuala em voz baixa.
— Ana compreende a situação — disse Bridei. — Será tão protegida quanto possível. Se por acaso as coisas correrem mal, a escolta irá trazê-la em segurança de volta ao Monte Branco. Faolan vai levar dez guerreiros. Sabes como ele é capaz.
— Ser capaz não chega. Estou preocupada, Bridei. Não me parece correto. Dá-me Derelei. Já devia estar na cama.
Bridei ergueu a criança adormecida e depositou-a nos braços da mãe.
— Ana vai ter saudades dele — disse Tuala. — Ela adora-o.
— Imagino que em breve venha a ter o seu próprio filho.
Tuala levou a criança. Quando regressou, algum tempo depois, Bridei viu o brilho das lágrimas que a esposa tinha nos olhos.
— Estás a chorar — exclamou, alarmado. Pesasse embora a aparência feérica e delicada, Tuala possuía uma força interior que o espantara, mesmo quando ela ainda era uma criança de cinco anos. Era raro que o deixasse ver as suas lágrimas. — Por causa de Ana? Sinto muito... venha cá. — Recebeu-a nos braços, a face contra os cabelos escuros. — Lamento muito a forma como está a ser feito, Tuala. Ao mesmo tempo, sei que tenho de fazê-lo. Se não tomar medidas imediatas para conquistar Alpin, arrisco a vida de centenas de homens.
— Parece tão injusto — disse Tuala, encostada ao marido, com os braços à volta da cintura dele. — Ela, e outras como ela, têm de se sujeitar a estes acordos sem amor, enquanto tu e eu... Quebramos tantas regras para ficarmos juntos, Bridei. Deixamos que o amor fosse o nosso guia. Desafiamos a opinião de Broichan e os protocolos da corte. E, contudo, não damos escolha a Ana. É uma das minhas amigas mais queridas, desde os dias em que aprendíamos o que era o amor.
— Em Banmerren? — Bridei sorriu. — Julgo que o aprendi muito antes disso. — A recordação de uma Tuala minúscula, o cabelo revolto com a brisa, a rodopiar na ponta de uma rocha, surgiu nítida na mente de Bridei, que apertou a esposa com mais força. — Além disso, os deuses abençoaram o nosso casamento. Até os druidas têm de ceder a essa autoridade maior. — Não obtendo resposta, disse: — Tuala? Sinto muito, deveras. Darei a Faolan instruções precisas. Se alguma coisa correr mal, deverá trazê-la de volta a casa. Até hoje, nunca deixou de cumprir uma missão com uma eficiência imaculada.
Tuala soltou-se, agarrou-lhe as mãos e olhou-o.
— Espero que a fé que depositas nele se justifique — disse. — É um bom amigo, reconheço-o, e é espantoso em diversos ofícios. Mas não sabe absolutamente nada sobre mulheres.

 

 

 


CAPÍTULO DOIS


Os longos exercícios matinais de Faolan, levados a cabo fizesse chuva ou sol, pareciam excessivos a Ana. Aprendeu a montar e a desmontar com um estalar de dedos e a parar instantaneamente o pônei com um assobio quase inaudível. Desconfiava que ele estivesse a descarregar a irritação em si. Era óbvio que o homem julgava que devia estar em qualquer outro lugar, talvez em batalha, a derramar o sangue dos outros, ou, o que era mais provável, oculto nas sombras, com um punhal grande nas mãos. Não era isso o que os assassinos deviam fazer? Este, contudo, possuía um talento singular para andar por ali, com os olhos semicerrados e os lábios comprimidos, a emanar uma hostilidade quase tangível.
Ana só precisou de um dia de viagem para se aperceber da necessidade do que ele fizera. Ao desmontar no limite da clareira onde iriam montar acampamento, sentiu a dor que se espalhava pela zona lombar. Conseguia andar, mas tinha as pernas bambas. Faolan dirigia as suas ordens aos homens da escolta e cruzou o olhar avaliador com o de Ana. A jovem susteve-lhe o olhar e depois virou-se, para tratar da montada. Não fora possível trazer o seu pônei, Jewel, do Monte Branco. Faolan declarara que a criatura não era suficientemente forte para suportar aquela viagem. Destinara-lhe um animal peludo e robusto, com um temperamento de uma certa impassibilidade, e Ana não dissera nada. Jurara a si própria não deixar transparecer qualquer descontentamento. Não lhe daria essa satisfação. O que ele pensava da jovem era bastante óbvio: que era mimada e fraca, pouco sabendo do mundo exterior às muralhas protetoras da corte.
Ali próximo, a serva que tinha como tarefa cuidar de Ana encontrava-se imóvel, um esgar de dor no rosto, as mãos pressionando as costas. Partilhara um cavalo com um dos homens e parecia exausta.
Ana manteve-se silenciosa. Tinham insistido que precisava de uma serva. Era lamentável que nenhuma das mulheres capazes de tratar do seu guarda-roupa soubesse montar. Mais valia que lhe tivessem atribuído uma camponesa. Não interessava que não soubesse limpar, nem remendar os belos trajes de uma dama, desde que se revelasse útil na altura certa.
— Não se preocupe, Darva — comentou Ana, com severidade.
— Acabas por habituar-te.
Darva respondeu com um gemido. Suspirando, Ana levou o pônei para junto dos outros, peou-o e começou a esfregá-lo. Um dos homens encontrava-se a alimentar e a dar de beber aos animais. A forragem não duraria muito, mas aquelas criaturas robustas estavam habituadas a aproveitar tudo o que podiam dos carreiros dos bosques e das montanhas vazias, pelo que resistiriam bem à viagem.
— Um de nós pode tratar da criatura, minha senhora — disse o homem, indicando a serapilheira com que Ana esfregava a pelagem úmida.
— Já estou a acabar — replicou.
— É melhor que seja um de nós a fazê-lo. — Retirou-lhe o pano da mão e Ana sentiu que quebrara uma das regras do acampamento. Sorriu e afastou-se, sem querer discutir.
Dois dos homens partiram de arco na mão, obviamente em busca do jantar. O acampamento fora erguido rapidamente: um pequeno abrigo semelhante a uma tenda para ela e para Darva, uma fogueira cercada por pedras, um local para as provisões e para as trouxas. Os homens dormiriam ao relento, em cima de um cobertor.
Ana teve uma dúvida, uma questão um pouco delicada para se colocar. Antes de ter tempo de pensar no assunto, Faolan surgiu a seu lado de repente, assustando-a. Mais uma das coisas em que os espiões eram bons, pensou amargamente.
— Deverás querer um lugar para realizar as tuas abluções em privado — disse. — Lá em baixo, junto às árvores, corre um ribeiro. Tenho um homem de guarda a cerca de trinta passos, no bosque. Vai enquanto há luz.
— Alguma vez fazes pedidos educados, ou limitas-te a desfiar ordens? — Arrependeu-se das palavras assim que as disse. Parecera grosseira e descontrolada. Aquele homem parecia capaz de invocar uma faceta que lhe era desconhecida. — Sinto muito — resmungou.
— Vai agora — indicou Faolan, como se ela não tivesse falado. — Leva a tua mulher contigo. Isso, claro está, se for capaz de andar. Sejam breves. — Virou-se e afastou-se pela clareira, a fim de orientar uma outra tarefa. Os guerreiros obedeceram prontamente.
Escavaram uma latrina improvisada nos arbustos, lavaram rapidamente o rosto e as mãos e compuseram sem grande preceito a roupa e o cabelo. Não tiveram oportunidade para mais nada. Darva viu-se obrigada a coxear, apoiada ao braço de Ana. Na manhã seguinte seria difícil voltar a montar. Tinham pela frente três dias como aquele e depois um descanso, pois na quarta manhã deveriam chegar ao baluarte de Abertornie, lar do chefe Ged. Aí teriam camas e água quente. Ana duvidava que Faolan permitisse uma estadia de mais do que uma noite.
Não se arriscava, mesmo no início da jornada. Era óbvio que teria de ser montada guarda durante a noite, a toda a volta do acampamento. Ana nem conseguia imaginar qual o perigo que os espreitaria a um mero dia de viagem do Monte Branco. Parecia-lhe melhor aproveitarem uma boa noite de sono enquanto ainda havia oportunidade para tal.
Tomaram a refeição à volta da fogueira, com o pão e o queijo trazidos do Monte Branco complementados por lebre cozinhada sobre as brasas. Pouco se falou. Faolan observou-a retirar um guardanapo limpo do saco e limpar a gordura da boca e dos dedos. Depois retirou-se com Darva para a cama, se é que se podia chamar cama àquilo. Pouco mais tinha do que uma manta dobrada entre ela e o chão duro e o corpo, que protestava do longo dia de viagem, parecia doer-lhe de uma ponta à outra. A exausta Darva adormeceu de imediato.
Ana espreitou por entre as pregas da abertura do abrigo. Cinco dos homens estavam deitados junto à fogueira, enquanto outros tantos se encontravam de guarda. Faolan, sentado, fitava as chamas, as feições sombrias transformadas num padrão tremeluzente de luz vermelha e dourada e de sombras. À medida que Ana se virava e mexia, agitada e desperta, Faolan manteve a pose inerte. A noite foi-se arrastando e, de tempos a tempos, Ana espreitava, mas não o viu mexer-se. Os olhos, talvez. Havia qualquer coisa, um olhar que ela não compreendia, uma frialdade que a gelava.
Foi dormitando, acordando sobressaltada de vez em quando. A meio da noite, quando as criaturas ganharam vida no bosque, com pios, guinchos, gritos, arrastando-se em volta do acampamento, viu-o levantar-se com um movimento ágil, espreguiçar-se e acordar os outros. O turno mudara. Cinco dos homens vieram acomodar-se nos seus cobertores e outros tantos afastaram-se, de facas ou lanças na mão. Faolan permaneceu junto às brasas, agora de pé, o rosto oculto pelas sombras. Ana percebeu que a tarefa daquele homem deveria ser guardá-la. Considerou que tal era deveras incômodo. Adormeceu perto da alvorada, ao som do ressonar contínuo de Darva.
Viajaram para norte e para o interior. No terceiro dia, atravessaram um rio de largura considerável, com a água a bater nas pernas dos cavalos e a ensopar as botas dos cavaleiros. Faolan atravessou a jusante de Ana, observando com atenção o pônei da jovem. Chegada à outra margem, desmontou para espremer a água da saia e, ao vê-lo por perto, disse, com um tom irritado:
— Fica sabendo que eu sei montar.
— Tanto melhor — replicou Faolan. — Foi apenas o primeiro. Voltou a montar o pônei e a jornada prosseguiu. Uma outra mulher poderia ter exigido uma fogueira para se secar, pensou, ou tempo para descansar, ou comida e bebida. Outra mulher poderia já estar a decidir que não iria mais longe do que Abertornie e que se Alpin, de Briar Wood, não a quisesse a ponto de vir buscá-la, bem poderia esquecê-la. Ana tinha a certeza de que Ferada, por exemplo, já teria batido o pé. Ana não o faria. Ao olhar para as costas direitas de Faolan, que pareciam mostrar-lhe a sua reprovação, à medida que o homem avançava, a fim de garantir a segurança do caminho, Ana sentiu que tinha algo a provar, não só a ele, como também a si própria. Fora educada com um profundo sentido de dever. Tinha um dever para com Bridei e Tuala, que lhe tinham proporcionado o que fora os substitutos de um lar e de uma família. Acima de tudo, tinha um dever para com Fortriu. Enquanto mulher de linhagem real, tinha a obrigação de se casar e produzir filhos, homens que pudessem contestar o trono em anos vindouros, mulheres que fizessem casamentos estratégicos, tal como o seu. Era o que a sua família nas Ilhas Pequenas esperaria dela. A sua família... Desde criança mal os vira. O primo, rei vassalo de Bridei. Os irmãos mais velhos, presenças distantes no mundo de infância. A tia que a criara depois de os pais morrerem. Uma irmã mais nova, Breda, de quem sentia mais falta, quando recordava os dias de Verão na praia, as duas a apanhar conchas debaixo de um céu vasto e pálido. As tardes de Inverno junto à lareira, a bordar lenços de linho. A tia a fingir que não dormitava na cadeira e Ana a emendar às escondidas os pontos desajeitados de Breda. A irmã teria agora dezesseis anos, idade para ter o seu próprio marido. O Monte Branco não distava muito das ilhas. Contudo, quando se era refém, ficava a um mundo de distância.
Ana passou a maior parte do dia a tentar esquecer o vento frio nas roupas úmidas e a dor nos ossos com histórias de heróis, de dragões e de estranhas criaturas da floresta. Cantava em voz baixa, para não pensar no seu suplício. Correu o repertório de melodias que cantara a Derelei: rimas, canções de embalar, cantigas para a semeação, para a colheita ou para a recolha das redes. As ilhas estavam repletas de tais melodias, cada uma com o seu objetivo específico.
A viagem prosseguiu. O caminho era agora mais íngreme, com os cavalos a avançar em terrenos pedregosos. Para oeste avistavam-se encostas cobertas de pinheiros. Além da floresta via montanhas altas e escuras, de picos solitários cobertos de neve. Ana começou a trautear uma peça mais longa, a balada de um viajante em terras distantes e do povo estranho e maravilhoso que encontrou na sua jornada. Com sorte, as dezenas de estrofes que a constituíam iriam estender-se até chegarem a terreno plano e Faolan decidir que chegara a altura de pararem.
Bastante tempo mais tarde, quando Ana chegava à parte onde o herói matava o dragão, alcançaram o sopé da colina e os homens detiveram as montadas, reunindo-se à volta de Faolan. Quando Ana se aproximou, ouviu o assassino a falar.
— ...Bom avanço. Imagino que se continuarmos a bom ritmo, sejamos capazes de chegar a Abertornie antes do pôr do Sol. Assim evitaremos a necessidade de voltar a montar acampamento. Isso significa que poderemos atravessar a fronteira com o tempo ainda bom.
Os homens aquiesciam. Ana olhou para Darva, pálida, sentada atrás de um guerreiro alto, num pônei robusto. Os olhos de Darva estavam rodeados por um tom púrpura. Mal parecia consciente.
— Temos de descansar um pouco — declarou Ana com firmeza. — Temos frio e estamos cansadas. Temos de esticar as pernas e comer e beber alguma coisa. Não é preciso demorar muito tempo. Compreendo que tenhamos de alcançar o nosso objetivo enquanto ainda é dia. Estamos a dar o nosso melhor, mas nem todos somos guerreiros.
Faolan olhou para Ana e depois para Darva, que oscilava na sela, voltando então a fitar Ana.
— Preferes acampar aqui? — perguntou, para surpresa da jovem. — Acrescentar mais um dia à viagem? Imagino que queiras acabar com isto o mais depressa possível.
Ana pestanejou, surpreendida. Briar Wood ainda ficava longe, a mais de uma lua de distância, segundo ele.
— Estás a dar-me a escolher? — indagou Ana, erguendo as sobrancelhas.
— Se continuarmos hoje, estaremos adiantados.
— E tenho a certeza de que estás ansioso por concluir este dever. A expressão de Faolan não se alterou.
— O teu repertório musical pode tornar-se monótono, se repetido demasiadas vezes — replicou.
Para seu profundo aborrecimento, Ana sentiu-se a enrubescer.
— Não deixes que isso te incomode — disse Faolan. — Quem sou eu para te julgar? O que decides? Acampamos ou continuamos?
— Continuamos — respondeu Ana, com um tom severo. — Desde que descansemos primeiro. A perspectiva de companhia civilizada faz com que Abertornie pareça cada vez mais apelativo.
— Se pudesse, dar-te-ia mais homens — explicou Ged, de Abertornie, com um tom apologético, enquanto voltava a encher a taça de Faolan com boa cerveja. — Nunca se sabe o que vão encontrar por aqueles lados. Clãs contra clãs, amigos contra amigos, irmão contra irmão. Por vezes parece que lutam simplesmente porque podem fazê-lo. Imaginas o que Bridei faria com tal poder a seu lado? Mas Umbrig é o único que parece demonstrar algum interesse em colaborar. Os outros mais parecem um bando de gatos selvagens. Ou seriam, se andassem em bandos. No norte, é cada um por si. É uma terra de caçadores solitários, cada um com o seu pequeno domínio a proteger. Mas, no caso de Alpin, é um domínio bem grande. Grande e bem defendido. A tua escolta é pequena, Faolan. A rapariga está vulnerável.
Faolan observou a taça, sem dizer nada. Os dois homens encontravam-se sentados numa antecâmara afastada do salão da casa de Ged, em Abertornie, depois da ceia. A porta estava trancada, com um guarda do outro lado.
— É como te digo — continuou Ged. — Ajudar-te-ia em qualquer outra altura. Tenho homens que conhecem muito bem o território, embora nenhum deles ainda tenha viajado até às terras de Alpin. São montanheiros de confiança. Precisas de alguém assim. Mas não te posso valer. Vou para sul daqui a dias. Os poucos que não vão comigo são necessários aqui, para guardar a casa, as mulheres e as crianças.
— Suspirou profundamente e bebeu uma golada de cerveja. Ged era um homem de constituição robusta e nessa noite vestia uma túnica e calças tecidas com um padrão intricado de quadrados e linhas, tingidas em tons de vermelho, verde e azul. Os seus homens, que tinham estado atarefados nos pátios de Abertornie com os preparativos de uma expedição guerreira, trajavam vestes de brilho semelhante. Se os montanheiros vestissem o mesmo tipo de roupa, pensou Faolan, pelo menos seriam visíveis à distância. Tal indumentária apenas serviria de camuflagem num jardim repleto de flores garridas.
— A escolha do grupo que me acompanha foi minha — explicou Faolan. — Foram todos escolhidos a dedo. Ela estará em segurança.
— Não subestimes a importância daquilo que transportas, meu rapaz — alertou Ged, olhando-o com seriedade.
— Bem feitas as contas — retorquiu Faolan, incapaz de afastar uma certa tensão da voz —, ela não passa de uma mulher. Todos nós somos dispensáveis.
— Disparates. Levar aquela jovem do Monte Branco para Briar Wood é a mesma coisa que escoltar uma carga de peças de ouro, ou uma arca de jóias preciosas. É ainda mais importante e decerto mais perigoso. Se o que me dizes é verdade, Alpin é uma grande ameaça à nossa causa. Os laços de parentesco que este casamento vai trazer vão conferir-lhe um estatuto com o qual nunca sonhou. Além disso, os encantos pessoais de Ana são... digamos que acima da média. Não duvido que isto o vá cativar. A rapariga vale literalmente o seu peso em ouro, Faolan. Ainda mais, por ser magra. Dispensável? Não creio. Esta é uma tarefa vital. Acredito que tenha sido por isso que Bridei a colocou nas tuas mãos.
Faolan respirou fundo. A sua opinião pessoal sobre a missão era irrelevante. Expressara-a a Bridei em privado e falar dela com outrem seria desleal. Aceitara e desempenharia a tarefa até ao fim, na perfeição.
— Assim fez e deu-me liberdade para escolher a segurança que considerasse necessária. Dez homens são suficientes. Espero estar de volta ao Monte Branco o mais tardar pelo solstício de Verão. É claro que, sem as mulheres, a viagem de regresso será bastante mais rápida.
— É claro. — Ged continuava a observá-lo com atenção, como se nada daquilo o convencesse. — E vais estar ansioso por regressar. Diz-me, a jovem sabe o que está planeado para o Outono?
— É mais seguro para ela que não o saiba. Bridei disse-lhe que certas razões estratégicas nos obrigavam a agir depressa. Ela fez poucas perguntas, o que foi assisado de sua parte.
— Mmm. Sinto-me solidário para com a jovem Ana — disse Ged. — É uma boa rapariga. Merece destino melhor.
Faolan não respondeu.
— Pelo menos podemos reabastecer-te — continuou Ged. — Carne seca, queijos, tudo o que os vossos animais de carga sejam capazes de levar. Têm noção de que não vão poder cavalgar durante todo o caminho? Certas zonas do percurso vão obrigar os homens a guiar os cavalos e as mulheres terão de andar. Se as coisas fossem diferentes, poderias tê-la levado pela zona baixa, ao longo dos lagos e pelas Cinco Irmãs. Mas não irias querer deparar-te com um qualquer exército que viesse na direção contrária. Vai ser uma temporada importante. Quem poderia imaginar que Bridei fizesse a sua jogada tão cedo, não é?
Faolan continuou sem responder, pois não havia nada a dizer. Dali a duas luas estaria em Briar Wood, a instalar uma noiva na casa de um estranho, e Bridei estaria prestes a liderar as suas forças pelo Grande Vale, para o confronto das suas vidas. Que Bridei o tivesse planeado assim, que pretendesse que Faolan não se encontrasse a seu lado no momento da verdade, tornava tudo ainda mais difícil. Era melhor concentrar-se nos fatos. Era um homem contratado e concederia o devido valor à prata que lhe pagavam.
A porta abriu-se com um rangido e o guarda espreitou.
— A jovem senhora deseja falar contigo, meu senhor.
Ana surgiu na entrada. Pouco tempo antes, quando entraram em Abertornie, estava pálida e suja. Agora vestia uma túnica e uma saia azuis claras, limpas e passadas, e o cabelo louro tinha sido penteado num pequeno círculo de tranças. Nem valia a pena o trabalho, pensou Faolan, pois teriam de partir na manhã seguinte.
Os dois homens levantaram-se, Ged de um salto, Faolan mais lentamente.
— Por favor, não se levantem — indicou Ana. — Não vou demorar. Ged instalou-a numa cadeira e serviu-lhe cerveja, com os olhos pregados na jovem em admiração. Casado ou não, era de conhecimento geral que se deleitava na companhia de mulheres bonitas, especialmente quando eram inteligentes.
— Obrigada. — Ana bebeu um gole de cortesia, pousou a taça e dirigiu a atenção a Faolan. — Trata-se de Darva — explicou. — Não pode continuar.
Era a pura verdade. Faolan vira a criada quando tinham chegado. Praticamente caíra do cavalo e fora levada para dentro.
— Ela não vai agüentar mais — prosseguiu Ana. — É melhor que descanse aqui e que regresse ao Monte Branco quando for conveniente.
— Decerto poderemos albergá-la em Abertornie — disse Ged —, mas...
— Espero — disse Faolan a Ana — que não estejas prestes a sugerir que atrasemos a nossa partida por causa disto. Imaginei que fosses escolher uma companheira que pelo menos soubesse montar. — Observou o tom rosado que nascia nas faces de Ana, algo que a jovem parecia capaz de fazer a seu belo prazer.
— Perdoa-me — replicou Ana. — Pensei que fosses tu, e não eu, o responsável por esta expedição. Treinaste-me bem antes de partirmos. Como é possível que a melhor das escoltas não tenha aferido a qualificação da minha companheira?
Estava certa, é claro. A responsabilidade era dele e cometera um erro de julgamento. Mirou-lhe o rosto e observou o ligeiro franzir entre as sobrancelhas elegantes. Desde o início que sabia que aquela noiva real queria tanto ir para Briar Wood como ele.
Ana estava agora a ignorá-lo, dirigindo-se a Ged.
— Esperava — disse-lhe — que houvesse alguma jovem aqui em Abertornie que pudesse substituir Darva na nossa viagem. A sua competência enquanto aia não é importante. Posso ensiná-la depois. Tem de saber montar, montar a sério, e deve ser capaz de sorrir, por mais irritante que seja a situação. — Como que para enfatizar o que dizia, virou-se para Faolan e ofereceu-lhe um sorriso de um brilho calculado, o qual conseguiu transmitir ao mesmo tempo aprovação e uma total falsidade. Faolan não foi capaz de impedir um trejeito dos lábios. Ged riu-se à gargalhada.
— Já falei com a tua mulher — disse Ana ao chefe tribal — e ela prometeu tentar encontrar uma rapariga solícita, alguém que goste da idéia de aventura. Só precisamos da tua aprovação. O problema é que partimos de manhã. Ela teria de preparar as coisas rapidamente e não iria dispor de muito tempo para se decidir.
Voltara a surpreender Faolan, que esperara, no mínimo, um pedido para que permanecessem mais uma noite, a fim de descansarem. Seria do agrado dos homens.
— Estão a impor a vós próprios um ritmo duro — resmungou Ged.
— Tenho a certeza que Loura te vai desencantar uma rapariga. Por estas bandas criamo-las fortes.
— Obrigada — agradeceu Ana. — Não é que precise de uma criada, pois sei tratar de mim sozinha. Não tenho muitos pertences que precisem de cuidados, uma vez que me ordenaram que deixasse o mais possível para trás. Preciso desta jovem, acima de tudo, por razões de decoro.
Ged sorriu.
— O quê, com este homem a comandar? Não há guerreiro que se atreva a ser indecoroso, ou a olhar para onde não deve. Mas tens razão. Já lhe disse que a escolta é demasiado pequena. Três ou quatro mulheres para te servirem e vinte guerreiros seria mais adequado. Há damas que teriam exigido uma lavadeira, uma costureira e um bardo da corte, por via das dúvidas.
— Ela não precisa de um bardo — deu Faolan consigo a dizer.
— A donzela providencia o seu próprio entretenimento.
Ana lançou-lhe um olhar furioso e Faolan garantiu que a sua expressão não revelava nada. Cantara em voz baixa, mas com um tom puro e afinado. Faolan descobrira que, após tê-la silenciado com palavras ditas sem intenção, palavras que sabia serem cruéis, as melodias permaneciam na sua mente, seguindo-o mesmo nos breves momentos em que dormia. Invocavam a memória de canções antigas numa outra língua, de uma música que pertencia a outra vida, a qual deveria ter esquecido. Ter-lhe-ia implorado que não cantasse, mas o código que se impusera a si próprio impedia tal honestidade.
— Tenho razão, não tenho? — perguntou-lhe Ana. O rubor desvanecera-se e os olhos cinzentos que o fitavam eram calmos e frios.
— Devíamos partir assim que possível, pois o mau tempo poderá atrasar-nos mais à frente.
Faolan meneou a cabeça.
— Amanhã — declarou. — Estarás ansiosa por conhecer o teu novo marido.
Os olhos de Ana cintilaram.
— Ansiosa — repetiu. — Não lhe chamaria isso. Tenho um dever a cumprir e, uma vez que me disseram que o tempo urge, seguirei qualquer calendário que seja considerado adequado. Nada mais.
Faolan não respondeu. A voz da jovem tornara-se fria e tensa, um tom diferente do que afastara o enfado com música. Compreendia o sentido de dever. Para ele, o dever era um assunto complexo.
— Talvez não seja assim tão mau, rapariga — comentou Ged, pousando a mão no joelho de Ana e, com um relance para Faolan, voltando a retirá-la. — Pelo menos este Alpin é rico. E relativamente jovem. Pode ser que te venhas a dar bem.
Era difícil perceber se Creisa, a nova rapariga, seria uma ajuda ou um estorvo à expedição. Trouxe o seu próprio pônei e um xale tecido nos tons variegados que destacavam a casa de Ged para onde quer que fosse. Creisa sabia montar, era um fato, e não ressonava. Foi o efeito que teve sobre os homens da escolta de Ana que deu azo a preocupação. Era jovem e tinha a frescura das primaveras: faces rosadas, lábios carnudos, olhos grandes e pestanudos. Tinha uma figura generosa, a qual era evidenciada quando montava o pônei, as costas e os ombros direitos, com a graciosidade natural de uma amazona. Ao serão, conversava com os homens à volta da fogueira, mantendo-os acordados. De dia, gracejava enquanto viajavam e a escolta selecionada a dedo respondia, competindo pela sua atenção, até que Faolan os silenciava com uma ordem breve. Seguia-se um período de calma e de paz, até que Creisa tecia um comentário jocoso ou fazia uma sugestão entre risadas, ao que tudo recomeçava.
Faolan desenvolveu uma linha estreita entre as sobrancelhas e a boca ficou ainda mais tensa do que antes. Para Ana, os gracejos da rapariga e as respostas dos homens eram divertidos e inofensivos. Todos sabiam que as coisas não poderiam ir mais longe numa jornada como aquela. Após os resmungos de Faolan para com os homens, sentiu-se tentada a comentar que para ele as tiradas deveriam ser mais interessantes do que a música, mas não disse nada, pois não queria dar a saber que o escárnio do assassino do rei a magoara. Embalara Derelei vezes sem conta e sentia falta do calor do bebê, dos seus sorrisos francos. Havia muito tempo, ensinara essas canções à irmã mais nova. A música era amor, família, recordações. Não sabia como alguém a poderia rejeitar daquela forma.
Abertornie fora a última casa aliada, a última noite passada no conforto proporcionado por quatro paredes. Considerou-se que seria demasiado perigoso procurar abrigo junto dos habitantes desconhecidos dos vales inóspitos do norte, por poucos que fossem. Uma visita inesperada ao baluarte de um chefe Caitt, especialmente com um dos viajantes sendo uma jovem de especial valor estratégico, poderia acabar com o grupo tomado como refém, ou pior. Era um risco que não valia a pena correr por uma noite abrigada, roupas limpas ou um jantar de maior qualidade.
E assim os viajantes continuaram, mantendo um bom ritmo, à medida que a lua ia passando de nova a crescente e a cheia, voltando depois a minguar. A cada dia, o caminho parecia mais íngreme e as florestas mais escuras, a vegetação mais densa e as encostas mais escarpadas. O tempo limpo ajudou-os, mantendo-se seco, embora frio. A noite, Ana e Creisa dormiam juntas debaixo dos cobertores que partilhavam, mantendo-se quentes uma à outra.
— É melhor do que nada, minha senhora — murmurou Creisa no pequeno abrigo enquanto, lá fora, os homens que não estavam de sentinela se acomodavam em redor da fogueira e as criaturas noturnas davam início aos seus diálogos misteriosos na floresta mais além. — Não que eu não preferisse partilhar a cama com um dos rapazes. Aquele Kinet, por exemplo, tem um belo par de ombros, e um sorriso adorável. Ou talvez o Wrad. Já viste a forma atrevida como me olha? Quando chegarmos ao nosso destino, tenho um pouco de prazer reservado para alguém. Mas até agora ainda não me decidi.
— Shh — silvou Ana, dividida entre a necessidade de repreender a serva, tal como competiria a uma senhora, de silenciar aquelas palavras insensatas, e uma certa inveja por a jovem poder falar tão abertamente, e com tal satisfação, sobre assuntos que permaneciam um mistério para Ana, mesmo quase com dezenove anos de idade. — Não deves falar assim, Creisa. É indecente.
— Desculpa, minha senhora — disse Creisa, em voz baixa. Ficou em silêncio durante alguns instantes e depois recomeçou. — Claro que os mais calados e reservados podem ser muito excitantes. Isso, se lhes conseguirmos despertar o interesse. Sei com quem gostaria de passar uma noite sozinha. Aposto que aquele Faolan é dos que se agüentam muito tempo.
Algo no silêncio no exterior da tenda após tais palavras disse a Ana que teria de apresentar uma resposta célere e que ao mesmo tempo mostrasse a sua admoestação. — Faolan é o emissário pessoal do Rei Bridei. É amigo de confiança do rei. Não voltarás a falar dele nesses termos, Creisa. Espero não ter de o repetir.
— Não, minha senhora. — O tom de Creisa mostrava claramente que estava a sorrir na escuridão. — Mesmo assim...
— Basta! — atalhou Ana, com um tom de voz audível para quem por acaso estivesse a ouvir. Creisa acabou por silenciar-se e, pouco depois, o som da respiração indicou a Ana que a serva adormecera.
Ana, por seu lado, não dormiu. Imaginou a vida de Creisa, enquanto crescia na casa de Ged, a trabalhar na cozinha e nas hortas e, ao que parecia, a formar alianças casuais com vários jovens lascivos. Foi assolada por dúvidas: não recearia Creisa engravidar? Será que tal comportamento dissoluto não lhe prejudicaria a oportunidade de atrair um marido decente? Acima de tudo, por entre a confusão de pensamentos e de sentimentos que as loucuras murmuradas de Creisa tinham despertado em si, Ana reconheceu que tinha inveja: inveja da facilidade com que Creisa falava de união entre homem e mulher, e ainda mais do fato de, a acreditar nas palavras da jovem, para ela tal união não ser uma coisa brutal e arbitrária a ser tolerada, mas algo perfeitamente agradável, simples e natural. Para uma mulher do seu estatuto, pensou Ana, nunca poderia ser assim tão simples. Casar por amor, como Tuala fizera, era uma oportunidade raramente concedida a quem nascia com sangue real. Ana quase desejava ter sido ela a desposar o amável e cortês Bridei, tal como muitas pessoas teriam preferido, entre elas Broichan, o druida do rei. Com efeito, ela própria considerara seriamente essa possibilidade durante algum tempo, mas apenas até ao momento em que ouvira Bridei a pronunciar o nome de Tuala, e esta o do rei. A partir de então, Ana reconhecera a inevitabilidade das coisas, pois entre aqueles dois existia um laço que transcendia o comum. Uma ínfima parte de Ana ainda sonhava com um amor como o das narrativas de outrora: poderoso, terno e apaixonado. Decidiu com severidade que antes de chegarem a Briar Wood teria de eliminar qualquer vestígio de tal anseio, pois uma fantasia assim tão insensata apenas poderia levar ao desgosto.
Com o avançar da jornada, todos iam ficando cada vez mais sujos, cansados e silenciosos, até mesmo Creisa. Não havia oportunidade para se lavar a roupa e poucas condições para a higiene pessoal. Para Ana, habituada a tomar banhos freqüentes em água quente e a ter quem lhe tratasse das túnicas, das saias e da roupa interior, os dias eram passados com a percepção desconfortável da camada de sujidade e de transpiração que se lhe colava à pele, da comichão desagradável, das manchas de lama na bainha da saia e, o que era pior, da textura gordurosa do cabelo longo. Apenas conseguia usá-lo entrançado e apanhado com alfinetes no cimo da cabeça, pois não suportava o seu toque no pescoço.
Certa tarde, pararam junto a um lago profundo na floresta, rodeado de pedras, e Ana sentiu uma necessidade irreprimível de se banhar. Creisa sugeriu que se despissem e mergulhassem de imediato, mas Faolan não o permitiu. Quando Ana tentou argumentar, o emissário do rei atalhou abruptamente.
— Pode ser Primavera, mas a água está fria. E se adoecessem? Não podemos correr esse risco. Além do mais, ficaríamos vulneráveis. Se fôssemos atacados enquanto estivessem a divertir-se, ficariam em desvantagem. Os homens já têm ocupações mais do que suficientes. Não lhes dificultem a vida.
— Os homens bem que precisavam de um banho, também — resmungou Creisa com um tom revoltado.
— Divertir-se? — repetiu Ana. — Só nos queremos limpar. Achas que causaria boa impressão se entrasse em Briar Wood com este aspecto, já para não falar do cheiro?
A boca de Faolan contorceu-se, mas controlou-se antes de esboçar um sorriso.
— Imagino que tenhas alguma roupa limpa de reserva, algures naquela trouxa que está a atrasar o cavalo de carga — disse. — Como deverá ser improvável que encontremos lavadeiras até Briar Wood, e como ainda temos muitos dias de viagem pela frente, sugiro que esperes até chegarmos mais perto. Volta a pedir-me nessa altura. Tens razão, é claro. Este é um empreendimento comercial, um fato de que arriscava esquecer-me. Enquanto líder, sou responsável pela entrega dos bens em boas condições.
Creisa deixou escapar uma risada. A raiva a fez enrubescer. A grosseria daquele homem e a sua própria frustração deixou-a com vontade de gritar como uma peixeira e de lhe cuspir no rosto arrogante. Para seu horror, a voz saiu-lhe trêmula e patética, como se estivesse à beira das lágrimas.
— Não é preciso ser desagradável. Tentei não vos dificultar a vida. Nunca julguei que este pedido fosse algo tão transcendente.
Seguiu-se um breve silêncio enquanto Faolan a fitava, os olhos sombrios a avaliá-la, e Ana fez o possível por suster-lhe o olhar. Tal como era habitual, não fazia idéia do que ele poderia estar a pensar. Imaginou que o seu próprio rosto estivesse vermelho, imundo e longe de evocar rosas frescas.
— Lamento — proferiu Faolan brevemente e, virando-se, foi atarefar-se para outro lado. Ana fitou-o enquanto o homem se afastava. Uma desculpa era a última reação que podia ter esperado.
— Podíamos ir à mesma, minha senhora — sussurrou Creisa. — Quanto a ti não sei, mas sou capaz de agüentar uma reprimenda daquele celta carrancudo pela oportunidade de lavar o cabelo e a minha roupa interior. Podia esfregar algumas coisas e pendurá-las em cima de um arbusto...
— Temos de fazer o que ele diz. — Mesmo com falta de educação, Ana não duvidava de que Faolan fosse um líder experiente e de confiança, alguém que sabia o que era melhor. — Seja como for, é verdade que tenho uma muda de roupa interior no meu saco grande, que o animal de carga transporta. Pode ser até que descubra alguma coisa para ti, se não tiveres nada. Vamos pelo menos lavar as calças e secamo-las onde pudermos. Talvez junto à fogueira...
Creisa soltou mais uma gargalhada.
— Isso vai dar que pensar aos homens, minha senhora. Vou buscar o teu saco e logo vemos.
— Ah, Creisa?
— Sim, minha senhora?
— Por favor, não te refiras a Faolan como celta carrancudo. Pode ser verdade, mas é pouco respeitoso. Lá porque ele se esqueceu das maneiras, isso não quer dizer que façamos o mesmo.
Os dentes brancos de Creisa brilharam num sorriso encantador.
— Sim, minha senhora.
Conseguiram despir as roupas interiores mantendo-se relativamente cobertas. Faolan devia ter dado ordens aos homens, pois estes mantiveram-se no cimo da colina a montar o acampamento, afastados, salvo por um guarda de costas voltadas. As duas mulheres lavaram o rosto, os braços e entraram na água até aos joelhos, aproximando-se o mais possível de um banho sem desobedecerem às ordens de Faolan.
Creisa não deixou que Ana lavasse a roupa interior. Executou ela própria a tarefa, batendo no linho macio com um seixo liso, esfregando o tecido com os dedos e enxaguando com tamanho vigor que conseguiu ensopar-se a si e a Ana. A jovem nobre estava sentada numa pedra chata, a observar Creisa a fazer maravilhas com a roupa suada. Eventualmente, os pequenos insetos que habitam tais sítios na Primavera e no Verão começaram a zumbir à volta da pele exposta das jovens, o que marcou a altura de regressar.
No acampamento recém montado, preparara-se uma refeição e alguém estendera uma corda entre arbustos, pronta a receber a roupa molhada. Creisa estendeu camisas e trajes mais íntimos sobre a linha sem uma ponta de embaraço. Os homens tentaram não olhar. Ana imaginou que em viagens tão longas, deveria ser habitual os guerreiros vestirem a mesma roupa todos os dias, sem se incomodarem. Interrogou-se sobre se Faolan alguma vez viajara com mulheres. Na verdade, nem sabia se ele as perceberia de todo. Em tempos deveria ter tido mãe, talvez irmãs. Esposa? Uma apaixonada? Poderia tê-la deixado para trás, quando se virara contra os seus. Quando decidira ser um traidor. Era quase impossível concebê-lo com uma família. Ana visualizou um Faolan minúsculo, do tamanho de Derelei, o filho bebê de Bridei, a quem ela embalara, cujas mãos segurara enquanto a criança aprendia a andar. Faolan nunca teria deixado que alguém lhe segurasse as mãos. Teria aprendido a andar sozinho.
Tuala estivera a dar ordens para a renovação do alojamento dos hóspedes do Monte Branco. Chamara a formidável Mara, a encarregada da casa de Broichan, de Pitnochie, para supervisionar o afluxo previsto de visitantes. Com a proximidade da assembléia, era importante que tudo corresse bem. Certas esposas reais teriam colocado a preparação do alojamento, das provisões e do entretenimento de tal evento antes de tudo o resto. Tuala, no entanto, sabia que o seu principal dever era ser um apoio sólido para Bridei. O rei era forte, capaz e detentor de uma maturidade espantosa para alguém da sua idade, mas tinha as suas vulnerabilidades. Tuala, que o conhecera e amara toda a vida, sabia de todas elas. Prometera estar sempre ao lado do monarca e Tuala nunca faltava com a sua palavra. De seguida, em ordem de importância, estava Derelei, seu filho. Como a sucessão real provinha da linhagem feminina, Derelei nunca seria rei, mas devia, mesmo assim, ser educado com amor e sabedoria, equilíbrio e discernimento, tal como qualquer criança merecia. Apenas vinha em segundo lugar pois naquele momento havia outros capazes de lhe providenciar tudo aquilo de que necessitava. Derelei era adorado por todos na casa real. As mulheres competiam pela oportunidade de brincar com ele e de lhe satisfazer a mais ínfima das necessidades. Os homens faziam dele uma mascote e era freqüente Tuala ter dificuldade em ficar sozinha com o filho, para falar com ele, cantar-lhe, murmurar-lhe segredos ou simplesmente ficar com ele ao colo, enquanto meditava sobre a nova bênção que os deuses lhe tinham concedido.
A sua união com Bridei estivera prestes a não ser concretizada. Tuala estivera à beira de entrar, ou de voar, para além da fronteira de um mundo sem dor nem mágoa. Se não tivesse hesitado por um momento, se Bridei a não tivesse chamado, ela teria viajado para onde permaneceria imortal. Fora isso que os habitantes do Outro Mundo lhe tinham dito, aqueles que lhe tinham seguido os passos e murmurado ao ouvido ao longo dos dias sombrios e das noites agitadas daquele período difícil. Que viveria para sempre. Teria deixado Bridei sozinho. E não haveria Derelei.
Agora era impensável. Na altura, Bridei fora atrás dela, salvara-a e tudo voltara ao rumo traçado pelos deuses. A Que Brilha estava satisfeita com as suas escolhas, pensou Tuala. Derelei viera ao mundo numa noite de lua cheia, o que parecia totalmente apropriado, pois aquela deusa interessara-se pela vida de Tuala desde o início.
Quanto a Bridei, este tivera um bom início como Rei de Fortriu. Com apenas cinco anos de reinado, reunia já as suas forças contra os Celtas. Quem teria imaginado que tal aconteceria tão cedo ? Também o Guardião das Chamas deveria estar feliz. Enquanto deus dos homens, da coragem, do combate virtuoso, de certeza que veria a sua encarnação física naquele jovem líder, cujos olhos brilhantes e palavras francas animavam a faúlha da inspiração no coração de cada homem.
Mas havia uma questão que permanecia sem resposta e que preocupava Tuala. Nunca descobrira quem era, na verdade. Os visitantes do Outro Mundo nunca lhe tinham dito quem, exatamente, decidira abandoná-la, ainda bebê, à porta de Broichan, em Pitnochie, no pino do Inverno. E Tuala queria sabê-lo. É certo que decidira não empregar os seus talentos mágicos de vidência e de transformação, de conversação com as criaturas da floresta, de conjuro de luz e sombras. No passado, quando tais fontes de informação apresentavam respostas, estas eram com freqüência enigmáticas, difíceis, mais como se fossem novas questões. Isso não significava que não sentisse o impulso de utilizar as suas artes, mas não o faria. Sabia como era perigoso o trajeto que uma mulher da Boa Gente percorria, enquanto Rainha de Fortriu. Haveria sempre quem procurasse minar a autoridade de Bridei e Tuala estava determinada a não deixar que a utilizassem como ferramenta. Tal não impedia que precisasse da verdade, algo que o filho, por sua vez, quereria saber quando crescesse.
Tuala nunca falava disto, nem mesmo com Bridei. Por vezes murmurava-o nas preces, julgando que A Que Brilha poderia ajudá-la, pois a deusa sempre fora benevolente para consigo. Até então, A Que Brilha não lhe concedera qualquer revelação. Quanto aos dois estranhos seres que tinham importunado e adulado Tuala, intimidando-a e assustando-a, a rapariga Teia, com seus olhos clarividentes e trajes esvoaçantes, e o jovem Madressilva, da pele cor de avelã e caracóis envolventes, nunca mais regressaram. Assim que Tuala escolhera ser humana, viver neste mundo, os dois desapareceram como se nunca tivessem existido. Por vezes, Tuala interrogava-se sobre se a estranha seqüência de acontecimentos não teria passado de uma espécie de sonho demente.
A tarde mal começara e Derelei estaria no jardim, a brincar com uma das jovens servas. Tendo as instruções sido dadas, Mara praticamente expulsara Tuala, como se esta voltasse a ter cinco anos, sendo rainha apenas no reino das suas fantasias. Mara pouco mudara com os anos. Preferia trabalhar sozinha e cumpria as tarefas com uma eficiência rígida. Mara não se deixava intimidar pela responsabilidade de uma casa real bastante maior do que a que geria em Pitnochie. Já enviara serviçais em todas as direções, a fim de trazer junco fresco, de esfregar os soalhos, de limpar as teias de aranha e de arejar cobertores.
Tuala atravessou os corredores do Monte Branco, passando em frente da porta onde Bridei consultava os chefes tribais. Preparavam-
-se para a chegada da delegação do reino de Circinn, a sul, o que era sempre um desafio e, dadas as presentes circunstâncias delicadas, transformava-se agora num teste exigente. Percorreu um carreiro de lajes por entre extensões de relva e canteiros de ervas de folhas cinzentas: absinto, camomila, alfazema. Viam-se bancos de pedra, dispostos por forma a apanhar o sol da tarde, e pequenas imagens de deuses e criaturas espalhadas à volta de tanques e em nichos na muralha que rodeava o jardim, abrigando-o dos ventos norte cortantes. Era um lugar de repouso. Ana gostara dele, tendo aí passado momentos felizes, a conversar com Tuala, a brincar com Derelei e a fazer os seus bordados complexos. Tuala sentia a falta da jovem. Tentou imaginar até onde Ana já chegara na sua viagem, e o que pensava dela. Talvez já estivessem em Briar Wood. Quem sabe, Alpin poderia ser um homem gentil, alguém como Bridei. Ana chorara na despedida, apesar do esforço óbvio para se controlar. Por mais que entendesse o sentido de dever, sentira-se triste e assustada. Tuala sabia bem o que isso era. Desejava de todo o coração que tal não tivesse sido preciso tão cedo, de forma tão cruel. Mas era necessário. Era essencial. Alpin teria de ser conquistado antes de as forças de Bridei entrarem em ação contra os Celtas de Dalriada. E, ao contrário do que se dizia, o ataque não teria lugar na Primavera seguinte. O conselho não iria ser realizado na Reunião, mas na festa do Renascimento, altura em que a Primavera se aproximava do Verão. Os homens de Fortriu avançariam no Outono, duas estações antes do esperado pelos inimigos. Iriam dirigir-se para oeste em grande número. Quando Gabhran, de Dalriada, fosse informado do avanço das tropas, seria demasiado tarde para os Celtas prepararem uma oposição forte, demasiado tarde para Gabhran convocar os parentes de Ulaid e de Tirconnell para que estes apoiassem os seus exércitos. Desta vez, os Celtas seriam derrotados. Seriam expulsos de Fortriu. Mesmo que Circinn se recusasse a ajudá-lo, Bridei iria concretizar o objetivo.
Deviam ter contado a Ana, pensou Tuala. Não tê-lo feito era agir como se aquela noiva real fosse demasiado insensata para manter a boca fechada no que dizia respeito a assuntos de importância estratégica. Mais do que isso, fazia com que a decisão de enviar Ana para o território dos Caitt parecesse cruel e desnecessária. Qual a noiva que deseja confrontar o futuro marido antes de este ter concordado em casar-se? Isso era buscar a humilhação. Qual a jovem que deseja casar-se com um homem sobre o qual não sabe nada, para além do fato de que existe uma questão no seu passado? Um casamento arranjado era uma coisa. Isto ia longe de mais.
Tuala cruzou a arcada e deteve-se. A criada não estava ali. Sentado direito na relva, o seu filho bebê Derelei agitava as mãozinhas no ar, imerso numa espécie de jogo. A sua frente, sentado de pernas cruzadas no seu manto escuro, estava Broichan, o druida do rei. Que o druida parecesse distante, grave e intimidante mesmo numa posição tão pouco digna, atestava o poder que dele emanava. Tuala nunca deixara de receá-lo. Sem ser vista, deixou-se ficar de pé, a observá-los. Pela primeira vez, Derelei não sentira que a mãe se aproximara. O druida e a criança encontravam-se profundamente concentrados. Quando Broichan agitou a mão à sua frente, os dedos curvados de determinada forma, Tuala apercebeu-se que o filho não agitava os braços ao acaso, tal como as crianças pequenas fazem quando descobrem o funcionamento do próprio corpo. Os olhos de Derelei estavam fixos nos de Broichan e copiava o gesto do druida. A mão minúscula de dedos roliços assumiu uma forma tão graciosa como a asa de uma gaivota, enquanto imitava os dedos compridos e esqueléticos de Broichan, que se esticaram e detiveram à frente do rosto do bebê. Um pássaro foi pousar no muro ao lado das duas figuras, onde eriçou as penas. Outro pássaro menor chegou momentos depois, indo fazer companhia ao primeiro com um ar confuso. Derelei pairou alegremente.
Broichan baixou a cabeça, as longas tranças caindo para a frente, com madeixas brancas por entre o cabelo negro e fitas coloridas entrelaçadas para cingi-lo, e falou ternamente com a criança na sua voz grave. Derelei não estendeu a mão como de costume, para agarrar algo interessante que se aproximasse. Ficou onde estava, a olhar para cima com atenção, e disse qualquer coisa no seu pairar misterioso. Até ao momento, o vocabulário inteligível do bebê era escasso.
— Faz um círculo, assim... — dizia-lhe Broichan, ao mesmo tempo que usava mais uma vez os dedos para demonstrar, fazendo um sinal discreto um palmo acima da relva. Derelei imitou-o, a mão pequena estendida e a descrever um círculo, tal como lhe era mostrado. A relva abateu-se prontamente, criando um anel perfeito no relvado.
Tuala ficou chocada. Furiosa. O primeiro instinto foi avançar e confrontar o druida, Quem te deu permissão para ensinar o meu filho?
Como te atreves? Mesmo com o terror que sentia por aquele homem, tê-lo-ia feito. A habilidade de Derelei não a surpreendia, pois já vira o que a criança conseguia fazer, o que o seu próprio sangue transmitira ao filho e, se desejasse que os talentos do pequeno se desenvolvessem assim tão cedo, tê-lo-ia ensinado ela própria. O fato de Broichan interferir sem a sua autorização ou a de Bridei, não era apenas injusto, era alarmante. A criança era filha deles, não do druida. No seu esforço de transformar o filho adotivo no rei perfeito, Broichan criara um jovem que era, em essência, profundamente solitário. Claro que Bridei nutria uma fé inabalável nos deuses antigos de Fortriu, era sábio e corajoso e perfeitamente apto a governar o seu reino. Quanto a isso, Broichan cumprira aquilo a que se propusera. Era de todo incapaz de perceber que cometera algum erro.
Tuala permaneceu onde estava, em silêncio, restringida por algo que não era capaz de identificar. Homem e criança repetiam na perfeição cada gesto. Transformaram flores em insetos brilhantes e misteriosos, fizeram sombras percorrer a relva e voltar a recuar. Uma rã saltou para o joelho de Derelei e desapareceu. Um rato correu pelo braço de Broichan acima e perdeu-se no capuz do manto. Não era a magia, a sua simplicidade, que fascinava Tuala. Era a semelhança extraordinária, o eco perfeito do movimento, da postura, da expressão, pesasse embora o contraste entre o mago alto no seu manto e o bebê de perninhas curtas na sua fralda volumosa. Era sinistro. Inquietante. O que via possuía uma beleza estranha, uma simetria peculiar, era a essência de uma lenda impossível ou de um sonho perturbador. Tuala sentiu um formigueiro na espinha, semelhante ao que a assolara na floresta, junto ao lago da visão, o Espelho Negro, da primeira vez que encontrara os Boa Gente.
— Mamãe — disse Derelei, que se virou para olhá-la, e o encanto quebrou-se. Os pássaros afastaram-se e Broichan levantou-se, embora sem a agilidade de dias passados. Tuala percebeu que já era capaz de avançar, de se ajoelhar ao lado do filho e de falar com o druida de forma civilizada.
— Onde está Orva, a criada?
— Está aqui perto. Sentou-se à beira do lago grande. Dei-lhe autorização para partir, mas não o quis perder de vista.
Derelei estava cansado e aninhava-se nos braços de Tuala. A prática da arte de forma tão concentrada era extenuante. Era demasiado para um bebê. Tuala respirou fundo, a fim de o dizer a Broichan. Mesmo agora precisava de toda a sua coragem para confrontá-lo.
— Ainda bem — disse Broichan, antes que a jovem tivesse oportunidade de falar — que ele nunca poderá ser candidato a rei. A criança tem futuro, talvez mesmo excepcional. Deveria ser educado nos santuários.
— Ele não vai a lado nenhum — retorquiu Tuala, agarrando o filho com tanta força que a criança começou a choramingar, assustada. — Pronto, pronto — murmurou, enquanto o acariciava. — Está tudo bem.
— Há tempo — lembrou Broichan. — Não tem de ir antes dos seis ou sete anos de idade. O treino é árduo e deverá esperar que ele tenha força suficiente para agüentá-lo. Não podes negar o talento inato da criança.
— Não o nego — asseverou. — Mas ainda é um bebê, e pode ser o que desejar, sábio, guerreiro, viajante, artesão. Druida, se for esse o caminho que escolher.
— Fará uma escolha assisada com seis anos? Não será melhor que os mais velhos lhe destinem o percurso a seguir?
Tuala pensou na criança Bridei e nas escolhas que lhe tinham sido recusadas.
— Compete ao pai e à mãe guiá-lo — declarou, com a firmeza de que foi capaz. — Não acredito que Bridei gostasse que o filho fosse mandado embora tão jovem. Para ele, a família é um bem precioso.
Broichan não respondeu de imediato. Durante alguns momentos revirou no dedo o anel de prata em forma de cobra e franziu o sobrolho. Nunca olhou para Tuala. Após alguns instantes, disse:
— Seria eu a ensiná-lo. Com a permissão de Bridei. E com a tua. Assim, não haverá necessidade de o enviar para longe, pelo menos até que tenha idade suficiente para se decidir.
Tuala ficou surpreendida, tanto pelo pedido de autorização, como pela proposta em si. Não tinha dúvidas de que o filho tinha à sua frente um futuro no qual os seus talentos especiais seriam de bastante uso. Com efeito, não queria que Derelei se tornasse um guerreiro. Vira os sobreviventes deploráveis e arruinados que regressavam a coxear, ou que eram trazidos dos confrontos de Fortriu com os inimigos, e não percebia como qualquer mãe poderia ficar satisfeita com um filho que fosse combatente. Mas havia um problema.
— Ele é filho do rei... — começou a dizer.
— Sim — admitiu Broichan, com gravidade —, e é teu filho, e ambos sabemos a minha opinião sobre o assunto, embora não a expresse claramente, uma vez que cumpro uma promessa feita a Bridei há muito. Não há razão para que o filho do rei não entre ao serviço dos deuses. Existem precedentes. E se o talento nessas artes que a criança aqui demonstrou hoje são um pouco... Sobrenaturais, digamos assim... que melhor forma de evitar chamar a atenção para as tuas próprias origens do que entregares-me a responsabilidade da educação do rapaz? Posso garantir que ele aprende a domar o seu poder, a dirigir essas habilidades para o fim certo. Posso ensiná-lo a controlar o que tem e a empregá-lo para o bem de Fortriu. Ao fazê-lo, protejo o teu filho e a tua reputação.
Tuala não respondeu. O druida estava a assumir o controlo, tal como sempre fazia. Ia roubar-lhe o filho, transformá-lo em algo dele. Um projeto pessoal, um novo Bridei.
— Não confias em mim. Isso não é uma novidade. O sentimento é recíproco. Há muito que assim é entre nós. Fala com o teu marido. Estabelece condições, se assim te aprouver. É importante, Tuala.
— Quero que o meu filho seja feliz — disse-lhe. — Quero que cresça com a família à volta dele, com irmãos e irmãs, se a deusa assim o entender. As crianças não precisam apenas de educação e de orientação. Precisam de amor.
Seguiu-se um breve silêncio.
— Tenho consciência — replicou Broichan com rigidez — da tua opinião sobre as minhas deficiências enquanto pai adotivo. Não posso levá-la a sério. Bridei é tudo quanto deveria ser.
Tuala aquiesceu.
— Sim — retorquiu. — Tornou-se perito em ocultar o quanto isso lhe custa. Roubaste-lhe a infância. Não permito que lhe leves também o filho.
— Não permites? — silvou Broichan e Tuala estremeceu ante a expressão nos olhos do druida. O ar pareceu faiscar à volta dele e a sua sombra aumentou. Derelei começou a chorar.
— Ele está cansado. Precisa da sesta — indicou Tuala, ao mesmo tempo que sentia um cansaço súbito no seu próprio corpo. Orva, a criada, aproximou-se rapidamente e fez menção de pegar na criança, mas Tuala dispensou-a de forma mais brusca do que o seu habitual. — Não, Orva, não preciso de ti. Vai-te embora. Mara vai pôr-te a tratar das roupas. Vou levá-lo para dentro — acrescentou, franzindo o cenho a Broichan.
— Bau-ta — pronunciou Derelei claramente, estendendo a mão ao druida. Aprendera um nome novo. Tuala arrepiou-se quando Broichan ergueu a mão, indo pousá-la nos caracóis castanhos do bebê, não exatamente uma carícia, mas o mais aproximado que um homem como ele seria capaz de fazer.
— Não o peço por desejar poder, Tuala — disse o druida calmamente. — Fala com Bridei, por favor.
— Por que falaste comigo primeiro e não abordaste Bridei diretamente? — perguntou Tuala.
— Porque sei que ele não vai concordar se fores contra. Preferes que o faça?
— Não. Já tem preocupações que bastem. E eu também. Em breve irá para a guerra. Partilho os receios comuns a todas as mulheres nestas alturas.
— Sim. — A voz de Broichan parecia uma sombra feita som, como se fosse um poço fundo, repleto de segredos. — Não te sentirás tentada a segui-lo, a procurar alguma segurança na taça das visões? Os homens estarão fora muito tempo, uma estação, ou mais. Decerto o apelo será forte.
— Não o suficiente para que não consiga resistir — respondeu Tuala com severidade. — Ao contrário do que possas imaginar, nunca esqueço a sorte que tive quando este povo me aceitou como esposa de Bridei. Não tenciono dar-lhes motivo para que duvidem da minha capacidade para essa tarefa. O meu marido precisa de mim. A minha lealdade é para com ele e para com o que ele tem de ser.
— Nesse caso, seria muito assisado que concordasses com o meu pedido. Não poderás treinar o rapaz, a menos que voltes a praticar as tuas artes secretas. Eu, no entanto, poderei fazê-lo sem dar azo a comentários. Tais práticas são o dia-a-dia de um druida.
— Não há pressa. Ele não passa de um bebê. — Tuala virou-se, pronta a afastar-se.
— Tuala. — Broichan falou com um tom muito leve. Nele havia qualquer coisa nova, algo que a fez estacar. — Não possuo tanto tempo para isto como gostaria — disse. — Deixa-me oferecer o que posso ao rapaz.
Olhando sobre o ombro para o druida, Tuala viu a palidez do rosto comprido, a forma como os ossos do nariz e das faces se encontravam protuberantes por baixo da pele, as rugas que nem sempre tinham marcado os lábios com tanta severidade. Parecia-lhe existir uma dor reprimida nos olhos sombrios e que ele se apoiava no bordão da mesma forma que um homem muito mais velho faria. Parecia que o usava como simples apoio e não como uma das principais ferramentas do seu ofício.
— Eu... — começou a jovem a dizer, silenciando-se com a expressão nos olhos do mago.
— Tal como dizes — a voz não passava de um murmúrio —, Bridei está muito ocupado com o esforço de guerra que se aproxima e com a assembléia. Não o sobrecarreguemos com outros assuntos numa altura tão crítica. Fala-lhe apenas do filho, daquilo que será melhor para Derelei.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO TRÊS


Faolan seguia um mapa mental, elaborado a partir do pouco que tinha observado dos territórios a norte do Grande Vale e do que vários informadores lhe tinham dito. Foi melhorado pela sensibilidade em relação aos sinais de aviso nas condições meteorológicas e geográficas. Conseguia sentir a umidade na mais leve das brisas, portentos numa sombra, no arrefecimento do ar. Em Abertornie, ficara até de madrugada com Ged e um dos guias do chefe tribal, com quem discutiu o percurso que a expedição deveria seguir através das montanhas. Falaram sobre os desfiladeiros estreitos, sobre as encostas íngremes onde não era possível montar a cavalo, sobre os locais onde o terreno facilmente cederia. Até agora, essa preparação fora bastante útil aos viajantes.
Havia certas zonas sombrias no mapa de Faolan, locais que não conseguia ver com clareza na sua mente. Vaus que tinham ceifado vidas. Encostas afamadas pelas avalanchas. Vales cercados, perfeitos para emboscadas. Por fim, chegariam à floresta: Briar Wood, um lugar conhecido pela sua singularidade.
Fez o grupo avançar o mais depressa que julgou serem capazes de agüentar. Os homens eram bons e a serva, Creisa, pelo menos era mais capaz do que a antecessora. Sabia montar e a competência enérgica quando em acampamento servia de alguma compensação pela língua ativa e pelo modo provocante. Não se podia esperar que uma noiva real viajasse sozinha entre homens.
Não sabia o que pensar de Ana. Por vezes desafiava-o, mostrando perspicácia e força. Regra geral era calada, dócil, tão resignada com o seu destino que esse fato incomodaria Faolan, caso esses assuntos lhe interessassem. Parecia uma criatura a caminho do matadouro, toda ela olhos enormes, cabelo dourado e uma atenção mesquinha com a limpeza, a pouco tempo de ser entregue a um guerreiro de reputação duvidosa, o qual provavelmente a utilizaria de forma tão brutal como qualquer criatura imunda da beira da estrada... Estava a deixar a mente vaguear, quebrava as suas próprias regras. Faolan adiantou-se ao grupo, fixando a mente no presente. Não se enganara, havia um leve toque de umidade no ar. Aproximava-se chuva, se não naquele dia, talvez no seguinte. Se não amanhã, um ou dois dias depois. Tinham feito bons progressos e imaginou que chegassem a Briar Wood perto da lua nova, ou pouco depois, mais oito ou nove dias. Se imaginara bem o mapa, havia um rio a noroeste, com um vau a que o homem de Ged se referira de forma preocupante. Quando a chuva chegasse, Faolan queria estar na outra margem.
Chamou Wrad e Kinet para que se aproximassem e conferenciaram brevemente. A julgar pelo território de mata densa que atravessavam, pela cadeia de pequenos lagos a sul e pelo contorno difuso das montanhas longínquas, concordaram que faltariam dois dias de viagem até ao lugar em questão. Talvez a chuva esperasse o suficiente. Talvez os cavalos mantivessem uma boa velocidade. Se Bridei ali estivesse, invocaria o auxílio dos deuses, para que atravessassem em segurança as águas e chegassem a Briar Wood a salvo. Faolan não acreditava em deuses, nem em sorte, apenas numa boa gestão. Reuniu todo o grupo à sua volta na estrada da floresta. Os pinheiros eram altos e nas sombras havia um silêncio estranho, como se o bosque estivesse a escutar, a respirar, à espera. Mal podia esperar que a missão chegasse a bom termo.
— Viajaremos até ao cair da noite — disse-lhes. — Hoje não caçamos. Vamos comer dos suprimentos, depois de escurecer. Partimos assim que o céu clareie.
— Mas... — começou Creisa a dizer, mas silenciou-se perante o olhar de Faolan.
— É importante que avancemos rapidamente — disse o emissário do rei. Não explicou o motivo, pois não valia a pena alarmar as mulheres. Os homens iriam perceber sozinhos.
— Corremos o risco de uma emboscada? — perguntou Ana, surpreendendo-o.
— Por que o sugeres?
Ana hesitou antes de falar. — A mata é densa. Imagino que seja uma boa cobertura. E dizem que existem tribos rivais, por aqui, chefes em guerra...
— Se for inteligente — disse Faolan, sem acreditar nas suas próprias palavras —, Alpin vai estar à nossa espera e terá tomado as providências necessárias para tornar a nossa viagem segura. Por esta altura, já deve ter recebido a mensagem do rei, a informá-lo da nossa jornada até Briar Wood.
— É claro.
Algo no tom da voz de Ana deixou-o alerta. Olhou-a com mais atenção e viu que estava mais pálida do que o habitual, parecendo cansada. — Percebeste? — indagou. — Temos de prosseguir até ao cair da noite, avançar o mais possível.
— É claro que percebi! — retorquiu Ana bruscamente, o que voltou a surpreendê-lo. A jovem tinha as boas maneiras de uma dama e raras eram as ocasiões em que as esquecia, mesmo se pressionada severamente, como no caso do banho. — Não sou idiota. Aproxima-se chuva e temos de atravessar um rio. Até uma criança era capaz de perceber.
Creisa fez menção de voltar a falar, mas desta vez foi Ana quem a silenciou com um gesto brusco.
— Nesse caso, avancemos — indicou Faolan. — Vamos aproveitar enquanto temos luz.
Quando o sol já se encontrava baixo no céu e as árvores escuras lançavam sombras compridas pelo carreiro estreito coberto de caruma, chegaram à margem de um rio. A estrada seguia o curso de água, serpenteando por entre amieiros e salgueiros. O leito do rio era amplo e pedregoso e a água corria rapidamente. Faolan mandou Kinet entrar no rio com um bastão. Viram-no dar dois passos cuidadosos, três, e entrar até à cintura, enquanto se debatia para se equilibrar contra a corrente. Faolan e Wrad ajudaram-no a sair da água.
— Quase de certeza que o vau fica a jusante — disse Faolan, ao mesmo tempo que tentava fixar esse ponto no mapa que imaginara.
— Mantenham o ritmo. Temos de atravessar antes do pôr do Sol.
— Não podia ser o rio sobre o qual o homem de Ged falara. Tinham mantido uma boa velocidade, mas não assim tão boa. Estava convencido de que o principal obstáculo se encontrava a dias de distância, estando situado num vale mais largo do que aquela divisória arborizada.
— Mexam-se! — ordenou, ao ver que as mulheres se demoravam, parecendo relutantes em retomar a marcha. Tinham desaparecido na mata enquanto Kinet experimentava a água e agora, regressadas, tardavam em montar. Trocaram algumas palavras em voz baixa e depois Creisa ajudou Ana a subir para a sela, antes de se dirigir ao seu próprio pônei. — Não se atrasem — avisou-as Faolan. — Não podemos ficar retidos depois do anoitecer. Temos de encontrar a passagem. Vejam se nos acompanham.
Creisa lançou-lhe um olhar mal-humorado. Ana avançou sem dizer palavra. Estaria Faolan a imaginar a lividez do aspecto da jovem? Maldita fosse aquela missão. Já abrandara o ritmo para adaptá-lo à fraqueza das mulheres. No mundo dos homens, teria sido uma viagem relativamente simples, sendo o maior perigo a eventualidade de uma emboscada.
Faolan era capaz de lidar com dificuldades. Aprendera bastante cedo que, quando comparados aos golpes fatais do destino, os assuntos práticos do dia-a-dia eram triviais. Em tempos houvera pessoas, passatempos, idéias que lhe transmitiam algum significado. Tudo isso desaparecera. No espaço de uma decisão única, de uma ação imediata, essa parte dele morrera. Durante bastante tempo, até conhecer Bridei, não existira nada para si, a não ser a necessidade de respirar e de pôr um pé à frente do outro para avançar. Bridei dera-lhe um objetivo, oferecera-lhe uma amizade que Faolan não tinha a capacidade de retribuir. Em vez disso, deu-lhe o que conseguiu: lealdade e um trabalho perfeito. Daí a presente missão. Poderia não ser a seu gosto, mas iria executá-la na perfeição. Não havia dúvida de que as mulheres estavam cansadas daquela vida dura, mas não podia conceber que ameaçassem o grupo deixando-as ficar para trás.
Acompanharam a margem do rio enquanto o sol descia no horizonte e o vale escurecia. Às árvores familiares juntaram-se outras, árvores estranhas cujos ramos e galhos retorcidos se estendiam para o carreiro, arranhando montadas e cavaleiros, numa tentativa de retardar o seu progresso. O solo tornou-se escorregadio, com a erva a dar lugar a uma superfície lamacenta e escorregadia. Ali já chovera. Faolan apertou o ritmo. Tinham de atravessar o vale e chegar a um lugar mais alto. Apenas um idiota passaria a noite em tal sítio.
As mulheres atrasaram-se uma ou duas vezes e Faolan enviou um homem para apressá-las. Refreou a língua com alguma dificuldade. Se a ira se revelasse na sua expressão, tanto melhor. Esperava não ser obrigado a explicar-lhes tudo: chuva, um rio a transbordar, um desfiladeiro estreito na escuridão. Um carreiro definido, encostas cobertas de árvores que ofereciam proteção, um lugar perfeito para uma emboscada a um grupo de viajantes.
— Mexam-se! — voltou a ordenar e, ao mesmo tempo, ouviu um grito mais à frente. Wrad, que avançara para garantir que o caminho estava livre, bradava: — O vau!
Após uma curva, o rio alargava-se, dividindo-se em quatro canais sobre uma vasta extensão de terreno plano coberto de pedras. Do outro lado, o carreiro serpenteava colina acima por baixo de árvores. O grupo parou. Kinet, o homem mais alto, desmontou e atravessou o vau, um, dois, três, quatro pequenos rios. Chegou ao outro lado molhado apenas até aos joelhos. Além dos pinheiros, o sol punha-se. O céu escurecia a caminho do anoitecer.
— Avancem — indicou Faolan. — Devagar. Quando atravessarem, subam o caminho até terreno mais elevado. — Olhou para trás e viu os pôneis das mulheres lado a lado. As jovens tinham desaparecido. Engoliu uma praga. — Onde...?
— Acabaram de entrar na mata — explicou um guerreiro chamado Benard. — Acho que a jovem senhora estava com dor de barriga. Pode ter sido a lebre que comemos ontem. A mim soube-me mal.
— Por tudo quanto é sagrado — resmungou Faolan, obrigando-se a respirar lentamente. — Wrad, esperas comigo. Os outros atravessem e subam a colina. Depois procurem um lugar para acamparmos esta noite. Em breve vai escurecer. Façam uma fogueira.
Esperou com Wrad pelo que pareceu uma eternidade. Homens, pônei e animal de carga atravessaram sem problemas e desapareceram caminho acima. As pedras do vau cintilavam levemente por entre as sombras. Quando as mulheres voltaram a surgir, pouco faltava para que Faolan perdesse a paciência.
— O vosso sentido de oportunidade deixa muito a desejar — disse. — Querem ficar para trás no bosque? Voltem aos pôneis! Temos de atravessar sem mais demoras. — Enquanto falava, Ana vacilou, os joelhos cederam e a jovem tombou para o piso lamacento junto à montada. Creisa, exclamando em alarme, agachou-se ao lado da jovem nobre e levou a mão à sua testa.
Faolan desmontou e dirigiu-se à serva com brusquidão. — Ela está doente? O que se passa?
O tom de Creisa era acusatório.
— Não a devias ter obrigado a continuar. Não se pode tratar uma senhora como se fosse apenas mais um guerreiro. Está com dores. E está cansada.
— Dores?
Na luz que se ia desvanecendo, o rosto de Creisa tingiu-se de vermelho com o embaraço.
— Coisas de mulheres. Ela é daquelas que sofrem bastante quando lhe chegam as regras. Em casa, deveria ficar pelo menos dois dias de cama, no mínimo. É complicado. É uma verdadeira senhora. A dor é muito forte, não que saibas o que isso é. Não a devias ter obrigado a montar.
Ana continuava inerte, a cabeça sobre o joelho da serva, o rosto uma forma oval pálida no lusco-fusco.
— Ela devia ter-me dito — acusou Faolan.
— Como poderia tê-lo feito? — silvou Creisa. — Uma senhora não fala destes assuntos com homens. Eu poderia ter-te dito, mas ela não me deixou. Já que pareces ter sempre resposta para tudo, e agora?
Faolan olhou-a.
— Agora tornas-te útil — respondeu. — Wrad, vem cá. A senhora vai ter de atravessar comigo. Ajuda-me a levantá-la... cuidado... isso mesmo. — Aos poucos, Ana voltava a si, mas não podiam esperar. Ergueram-na para o cavalo de Faolan, sentando-a de lado, e o emissário do rei sentou-se atrás dela, equilibrando-a contra o corpo com um braço e segurando as rédeas com o outro. — Vamos! — bradou. — Wrad, leva o pônei da senhora. Creisa, segue-o de perto e mantém a boca calada. Eu tenho de ir devagar. Não esperem por mim, vão ter com os outros. Quero sair deste vale.
Obedeceram em silêncio, os cavalos a afastarem-se gradualmente pelos canais do rio e pelos baixios pedregosos. Com os joelhos, Faolan guiou a sua própria montada para a frente.
Quando entraram na água, Ana estremeceu nos braços de Faolan e esticou a mão.
— O que... ? — murmurou hesitante, com os olhos fechados. Faolan apertou-a mais. Tinha de garantir que a jovem não os derrubava aos dois na sua confusão. Dores. Estivera a sangrar e ele obrigara-a a montar o dia inteiro. Lembrava-se de como estava pálida, de como optara por não lhe perguntar o que se passava. Recordou a facilidade com que o ignorara, como se não passasse de algo imaginado ou insignificante. Pouco sabia acerca daqueles assuntos, mas os sinais tinham estado à sua frente: o rosto da jovem de uma palidez cadavérica, as pálpebras roxas com as olheiras, as faces cavadas com a exaustão. O cabelo desentrançara-se parcialmente e caía-lhe à frente do peito e dos joelhos, uma cascata de luar prateado. — Como...? — murmurou ela.
— Está tudo bem — disse Faolan. — Estamos quase lá. — Ana ergueu a mão e agarrou-se a uma prega do manto dele, como uma criança que procura a coragem do pai, ou um bebê que busca a proteção da mãe contra o escuro. Não, não era de todo assim. Sentiu-a a aproximar-se, a virar a cabeça à procura do seu ombro. Ouviu-a a suspirar. Sentiu o seu próprio coração a bater mais depressa, o ritmo uma melodia de aviso, de um perigo inesperado. Assim, protegida no seu abraço, guiou o cavalo na penumbra e fez por se lembrar que era um homem que não se podia dar ao luxo de ter sentimentos. Tinha como tarefa levar aquela mulher a Briar Wood. Quando o fizesse, Bridei dar-lhe-ia outro trabalho. Um pé à frente do outro, passo a passo. Tal como se estivesse a atravessar um vau. Em si, havia espaço para isso e nada mais. Contudo, enquanto avançavam no crepúsculo e o corpo dela, abraçado contra o seu, era a única coisa quente no frio do vale, na mente de Faolan surgiu uma canção, uma melodia de outrora, do tempo que julgara ter conseguido esquecer... Como o Verão as suas madeixas, como o primeiro sinal da Primavera a sua pele... Da mente confusa de Fionnbharr fugiu o lar, a arte e o clã... Era a narrativa de uma fada, é claro, uma das daoine sidhe. Ana era real, estava viva, Faolan podia sentir a respiração leve da jovem, sentir-lhe o aroma, doce e agradável, mesmo com os rigores da viagem. Era real, e parte dele desejava atravessar aquele rio para sempre. Algo no seu íntimo queria que nada mais existisse do que aquele momento.
Ana estremeceu nos seus braços.
— Pronto — disse ele. — Fica quieta. Estamos quase em segurança.
— O que...?
— Desmaiaste. Não sabia que estavas doente.
— Oh... oh, pelos deuses, oh, sinto muito...
— Shh. — Mudou de posição, equilibrando o peso da jovem enquanto o cavalo saía do último curso de água e dava início à subida do carreiro íngreme da outra margem. A luz que restava mal iluminava o percurso.
— Estavas a cantar — disse Ana em voz baixa, como se não tivesse a certeza de ter estado a sonhar ou acordada.
— Eu? — replicou Faolan, interrogando-se sobre se teria mesmo pronunciado aqueles versos. — Nem por isso. Quem faz isso és tu. — Baixou a cabeça e encontrou os olhos cinzentos que retomavam a consciência, firmes e límpidos, pesasse embora os círculos escuros que os rodeavam. Pensou se os veria, mesmo na escuridão.
— Sinto muito — desculpou-se Ana, tentando endireitar-se. De certeza que lhe seria desagradável, imaginou Faolan, ver-se no seu abraço, como se fossem um casal de amantes a partilhar um cavalo apenas para que os corpos se tocassem, se aproximassem, a fim de sentir o calor inebriante como bom hidromel, a promessa das maravilhas que se seguiriam. — Atrasei-nos — continuou Ana. — Vou tentar acompanhá-los amanhã. Sei que é importante.
— Shh — repetiu Faolan. Ouvira a tensão na voz, a dor à beira da superfície. — Os homens estão a montar acampamento. Há tempo para decisões pela manhã. E se há desculpas a serem apresentadas, serão de minha parte. Fui desatento. Como líder, não posso dar-me a esse luxo. Lamento-o. — Enquanto pedido de desculpas, talvez deixasse um pouco a desejar. Não dissera o que queria. Mas eram palavras seguras. Era o que teria dito antes de atravessarem o rio.
— Somos os dois culpados — retorquiu Ana. — E nenhum de nós tem culpa, pois é óbvio que ambos gostaríamos de não estar aqui.
Faolan não teve o que dizer. Já não tinha a certeza de qual seria a resposta.
Noite. Os homens estavam cansados, com o esforço da jornada a começar a fazer-se notar. Faolan dividiu-os em três turnos para lhes permitir mais algum descanso. Os que não estavam ao serviço adormeciam assim que se deitavam ao lado da fogueira. O próprio Faolan descansaria perto da alvorada, enquanto Wrad e Kinet, os homens que considerava de maior confiança, mantinham guarda. A sua intenção fora partir cedo e fazer uma viagem rápida até ao rio seguinte. Esse plano tinha agora de ser alterado. Sentia o frio do ar na escuridão, o sabor da chuva. Ana estava deitada no abrigo, com um odre de água quente apertado contra a barriga. Apenas fingia dormir. Pela respiração, Faolan percebeu que estava acordada e em sofrimento. Creisa morrera para o mundo.
A noite arrastou-se. O primeiro turno regressou e acomodou-se para dormir. O segundo partiu para a escuridão. Havia muitos pássaros naquela parte da floresta. Quais, Faolan não sabia. Algo que caçava à noite, talvez corujas. Os gritos eram surdos e graves, o que lhe arrepiava os cabelos da nuca. Havia mais sons no bosque, ruídos estranhos que não conseguia identificar, mesmo com o conhecimento que possuía do reino selvagem: estalidos, silvos, murmúrios. Dirigiu a mente para o dilema imediato: a chuva, o vau, a mulher a quem não podia ser pedido que seguisse viagem pela manhã. Lamentou profundamente não ter deuses nos quais depositar a fé, não ter deidade ou espírito a quem pudesse solicitar que adiasse a chuva, apenas por um dia ou dois, para que chegassem em segurança à fronteira de Briar Wood.
Decidira-se quando atravessara o vau. Tinham de aguardar ali pelo menos um dia e deixar Ana repousar. Com ou sem chuva, não podia deixá-la montar até que terminassem os espasmos. A sua tarefa não era apenas viajar até ao baluarte de Alpin num certo espaço de tempo, mas sim entregar um tesouro de grande valor e alguma fragilidade. Chegar a tempo mas com essa carga danificada de alguma forma era não realizar o trabalho na perfeição, hipótese que não poderia ser considerada. Iriam aguardar. Ao fazê-lo, as opções tornavam-se mais limitadas. Se um dos rios subisse, o mesmo aconteceria a outros. Se a chuva os alcançasse, poderiam ficar encurralados, incapazes de avançar ou recuar. O formigueiro na pele de Faolan, o vago mal-estar na sua mente, diziam-lhe que não se encontravam sozinhos naquele bosque. Pouco crédito dava às histórias de presenças do Outro Mundo. O mais provável seria que um chefe local ambicioso, com o seu bando de guerreiros, estivesse a seguir os viajantes até um local onde pudesse fazer uma emboscada.
— Que cheiro é este? — A voz era de Ana, que se agitava. Viu-a pegar num xale, embrulhar-se e sair do abrigo, dirigindo-se em silêncio até junto da fogueira, por entre as formas adormecidas dos homens. O cabelo pálido brilhava à luz da lua minguante. O clarão do lume dava um rubor falso ao rosto esvaído e infeliz.
— Um dos homens tinha ervas na trouxa, uma mistura para suavizar a dor — explicou Faolan, que ergueu uma pequena taça de junto da fogueira, onde estivera a arrefecer. — Pensei que a infusão pudesse ajudar. Estás muito mal?
— Estou habituada. Não sei se vou ser capaz de beber. Por vezes, a dor faz com que não consiga manter nada no estômago.
Faolan verteu o chá para um copo de metal, sem dizer nada.
— Se quiseres, posso tentar — disse Ana. — Não consigo dormir. Talvez ajude.
Faolan passou-lhe o copo. Quando os dedos de ambos se tocaram, sentiu um arrepio no corpo. Respirou lentamente, tentando dirigir a atenção para o fogo. O que acontecera ao atravessar o vau não era apenas indesejado. Era intolerável.
— Sinto muito por ser um empecilho tão grande — apresentou Ana de forma educada, ao que deu um gole na bebida. Tinha os nós dos dedos brancos, um agarrando o copo, o outro mantendo apertado o xale à sua volta. O cabelo estava solto, completamente liberto do controlo habitual, uma torrente cintilante que lhe conferia uma aparência quase irreal: uma figura onírica. Faolan viajara com ela durante quase uma lua. Vira-a com freqüência na corte, ao longo dos anos desde que chegara a Fortriu, sem nunca ter pensado grande coisa da jovem. Era uma refém, uma rapariga de cabelo louro, amiga de Tuala. Nada mais. Não era de seu interesse. De súbito, tinha dificuldade em afastar da jovem o olhar.
— Pedes muitas desculpas. — As palavras saíram-lhe sem que o pretendesse.
— Que queres dizer com isso? — Não parecia ofendida, apenas cansada. Manteve o tom da voz baixo, tal como Faolan, para não acordar os homens.
— Dadas as circunstâncias, seria perfeitamente razoável que me tivesses solicitado que interrompesse a viagem, para que descansasses. Mas eu não sabia. Um homem não adivinha estas coisas.
Ana fitou-o. Os olhos da jovem pareciam a Faolan profundos, secretos, mas ao mesmo tempo límpidos como uma poça de maré no Verão, repletos de mistérios. Seria néscio da parte de um homem continuar a olhar. Arriscava-se a afogar-se.
— Julgas que sou tola e mimada — disse Ana. — Tenho noção disso. Deixaste-o bem claro desde o início, quando decidiste que precisava de aulas de equitação, mesmo sem me perguntares se já o sabia fazer. Não tive uma vida de homem. Não compreendo a existência de uma pessoa como tu, alguém que segue as suas próprias regras e toma as suas próprias decisões. Mas tenho alguma inteligência e uma certa dose de bom senso. Sei por que motivo temos de continuar. Cheirei a proximidade da chuva há dois dias. Ouvi os sons na floresta. Dizer-te que estava... indisposta... teria sido pouco razoável. Um ato egoísta. Ter-nos-ia feito perder tempo valioso. Faolan observou-a.
— Mesmo assim irei fazê-lo — adiantou.
— Pela manhã já serei capaz de seguir viagem... — Interrompeu-se, com um esgar de dor, pousou o copo e levou a mão à barriga.
— Disparates — censurou Faolan. — Não vou permiti-lo. É óbvio que não estás em condições. Vais precisar de um dia de descanso, pelo menos, talvez dois. Bem podias ter-me contado e poupado um dia de desconforto.
Ana não falou por alguns instantes.
— Que querias dizer — acabou por continuar — com desculpas? Ensinaram-me boas maneiras, algo que poderias utilizar com mais freqüência.
Faolan sentiu os lábios a contorcerem-se com o divertimento. Obrigou-se a pensar em Briar Wood, em Alpin, dos Caitt. O desejo de sorrir abandonou-o.
— Não quis ofender-te — garantiu. — Preocupa-me a forma como aceitas prontamente o teu destino, por mais inconveniente, por mais... desagradável que ele seja. Não gostas do caminho que os outros te traçaram, mas acabas por segui-lo docilmente. Demonstras pesar por atrasar a viagem, quando qualquer pessoa razoável teria exigido que eu parasse ao início do dia para montar acampamento.
— Sou uma mulher — limitou-se Ana a dizer. — Sou de sangue real, um bem de troca. Devo ao meu sangue, a Bridei, ao futuro de Fortriu, fazer o que me ordenam. Devo-o aos deuses.
Faolan ponderou sobre a questão.
— O que farias — perguntou-lhe —, caso não estivesses limitada por essas coisas? Pelo nascimento, pelo dever? Qual seria a tua escolha? Qual o caminho que seguirias?
Ana ficou em silêncio por algum tempo. Faolan atarefou-se com a fogueira, acrescentando lenha suficiente para a manter, sem criar uma chama exagerada. Quando voltou a erguer o olhar, viu o brilho das lágrimas nas faces da jovem.
— Não sei — respondeu, a voz um murmúrio. — Não seria este.
— Mas não fazes por mudar o percurso.
— Faço o que me é exigido. — Pestanejou algumas vezes, esfregou o rosto e endireitou os ombros. O sangue real tornava-se mais evidente do que nunca, pensou Faolan. Brilhava através das lágrimas, pela lividez do rosto, pelo cabelo por pentear e pelo xale lançado sem cuidado sobre os ombros. — No meu caso, não tenho escolha — prosseguiu Ana. — Imagino que seja diferente contigo. Podes determinar o teu futuro. Apenas tens de te justificar perante ti próprio.
Não havia resposta àquelas palavras. Não podia contar-lhe a verdade. Fazê-lo seria quebrar as regras graças às quais sobrevivia, os limites que lhe permitiam seguir em frente. Aquela conversa nunca deveria ter começado. Pensara que tinha conseguido atravessar o rio. Agora parecia-lhe que a travessia o fizera mergulhar de cabeça.
— O que foi? Que disse eu? — A jovem era perspicaz. Mesmo no escuro, percebera que algo mudara no rosto do emissário.
— Devias tentar dormir — sugeriu Faolan. — Há mais infusão. Passa-me o copo para voltar a enchê-lo.
Permaneceram algum tempo em silêncio, salvo pelo leve ressonar em seu redor e, fora da segurança da luz da fogueira, pelos ruídos misteriosos da floresta. Ana segurava o copo nas mãos elegantes e pálidas. Mesmo depois da viagem, daquela vivência árdua, tinha as unhas lustrosas, formas ovais perfeitas. As suas estavam partidas, imundas, roídas até ao sabugo. As mãos de um assassino. Houvera um tempo em que não fora assim. No passado, as suas mãos tinham exercido um ofício diferente.
— Quem foi Fionnbharr? — perguntou Ana, depois de um longo silêncio.
A questão apanhou Faolan desprevenido, tendo este respondido sem pensar. — Um viajante. Ficou encantado por uma mulher dos daoine sidhe, uma fada, e ausentou-se deste mundo durante noventa e nove anos.
— Percebeu demasiado tarde o que tanto pergunta como resposta tinham revelado.
— Compreendo. — Foi tudo o que Ana disse. Entre as mulheres, aquela destacava-se pelo comedimento. Por tal, encontrava-se profundamente grato.
— Falas gaélico? — perguntou-lhe Faolan, pensando que, no futuro, deveria ter mais cuidado com a língua.
— Apenas algumas palavras. No meu lar de origem falávamos a língua Priteni, mas havia monges cristãos nas ilhas. Tinham as mesmas origens que tu.
— Devias dormir — repetiu. — Se precisares de ir ao bosque antes de te retirares, eu fico de guarda. Não vale a pena acordar a rapariga.
Ana aquiesceu.
— Dorme como uma pedra, não é? Obrigada. Quando irás tu dormir?
— Não tens de te preocupar com isso.
— Não concordo. Afinal de contas, é suposto liderares este grupo. A nossa segurança depende da tua vigilância.
Momentos depois, Faolan percebeu que ela o espicaçava. Os lábios esboçavam um sorriso, uma pequena covinha num canto da boca. O rosto continuava marcado pelas lágrimas. A visão parecia deslocada, o que o fez sentir-se estranho. Possivelmente ela tinha razão. Apenas a exaustão poderia estabelecer tamanho caos na sua cabeça.
— Durmo quando o último turno ficar de guarda. Uma vez que só partimos daqui a um dia, tenho muito tempo.
— És humano — disse Ana. — Por vezes devias lembrar-te disso.
— Estás a dar-me ordens?
— Não me chamaste dócil? Os dóceis não dão ordens. Limito-me a frisar o que poderá vir a ser útil. O líder és tu. Vamos?
Penetraram alguma distância na floresta e Faolan aguardou, enquanto Ana desaparecia a fim de realizar as necessidades privadas. A dada altura esquivou-se, quando um pássaro lhe rasou a face, uma aparição tão súbita que nem lhe deu tempo para se desviar. A criatura pousou numa árvore próxima, um borrão de penas e de sombras. Tinha um bico ameaçador e os olhos estranhos e selvagens pareciam os de um vidente em transe.
Quando Ana regressou, disse:
— Viste aquilo? O pássaro, um corvo, ou algo do gênero. Voou tão próximo. Este lugar encontra-se repleto de presenças e ainda nem chegamos a Briar Wood.
— Ficarei satisfeito, se um pássaro for o pior que encontremos. De volta ao abrigo, Ana agradeceu-lhe com os seus modos corteses
e retirou-se para se deitar no cobertor, enquanto Faolan permanecia junto à fogueira. Sentia-se relutante em acordar Kinet e Wrad, os quais se tinham esforçado por ele, estando agora profundamente exaustos.
— Boa noite — disse ele em voz baixa, na direção do abrigo.
— Boa noite, Faolan. — A voz de Ana era baixa mas clara. Ele gostava da forma como a jovem pronunciava o seu nome. — Que A Que Brilha te guarde os sonhos.
Faolan sabia qual a resposta correta. Não era possível viver na corte de Bridei sem assimilar o padrão dos cumprimentos e despedidas formais, a condução da observância ritual entre os habitantes de Fortriu. A resposta correta era, Que o Guardião Das Chamas ilumine o teu despertar. Mas não acreditava em deuses, nem os do povo de Bridei, nem as deidades arrogantes e esquivas da sua pátria. Tais bênçãos não se adequavam ao seu caso. Não havia deus com o poder de eliminar as aparições negras das suas noites. Acompanhavam-no eternamente, um inferno de sua própria criação. Devia amaldiçoar Ana e não abençoá-la. A jovem despertara no seu íntimo algo que ele não queria, uma seqüência de recordações que passara longos anos a reprimir com todas as forças. Não precisava daquilo. Não podia permiti-lo. Tudo o que queria era as ordens, as tarefas, a sua execução minuciosa. Depois, as ordens seguintes.
— Dorme bem — acabou por dizer e viu-a enrolar-se debaixo dos cobertores, a cabeça loura com a mão como almofada. Esperou até ter a certeza que Ana adormecera e depois acordou o terceiro turno, que enviou para os postos de vigia. Acima deles, a partir do ramo de uma árvore contorcida e nodosa, a gralha de olhos brilhantes acompanhava-lhes os movimentos.
No dia seguinte, Ana permaneceu no abrigo a ouvir o tamborilar da chuva no tecido oleado e os sons do acampamento atarefado à sua volta. Não se desperdiçou um único momento da folga inesperada. Peças de caça foram apanhadas, limpas e cozinhadas. As armas foram afiadas. Encheram-se odres e cuidou-se dos cavalos. Alguns dos homens dormiram, mas apenas depois de conquistarem a permissão de Faolan. Ana dormitava ocasionalmente. A tisana acre que Faolan ia fazendo tinha um efeito soporífero óbvio. Ao pôr do Sol, fizeram um caldo de papas de aveia para Ana, que descobriu que estava com fome. Na manhã seguinte, levantaram acampamento e partiram para ocidente.
As cãibras tinham passado. Ana continuava a sentir-se fraca e cansada mas podia ver a expressão nos olhos de Faolan e fez o possível por aparentar estar confiante e forte. A chuva, por enquanto, ainda não era forte. Pelo menos ali. Mas o rio ainda se encontrava distante, caso a estimativa de Faolan estivesse correta, e, naquele terreno elevado cada vez mais sinistro, muitos ribeiros corriam vale abaixo, caindo sobre saliências rochosas, borbulhando através de abismos secretos, alargando-se aqui e além para formar pântanos movediços, à espera para sugar cavalos e cavaleiros. A norte, iam-se acumulando pássaros escuros. Acima dos cavaleiros, os pássaros lamentavam-se. Tantas aves. Aquele lugar estava a abarrotar, quer de espécies bem conhecidas de Ana, como peneireiros, busardos, cotovias, quer de outras novas para ela. De quando em vez, via um pássaro como o que a assustara na mata junto do vau, algo parecido com uma gralha, mas com algo de peculiar, pois os olhos tinham um brilho estranho. Eram conscientes, alerta. Quando os viajantes saíram das regiões mais densas da floresta e entraram num caminho estreito que atravessava baldios íngremes, já avistara um pássaro dessa espécie três vezes e começava a interrogar-se sobre se seria um único pássaro, a mesma ave, que os seguia, ora voando bem alto no céu, ora empoleirado num rochedo alto à beira da estrada, a observar com os seus olhos penetrantes o grupo que passava. Um dos homens puxou de uma funda e agarrou numa pedra. — Não — disse-lhe Faolan. — Já temos carne suficiente para uma refeição ou duas. Deixa-o.
Ouviram o rio antes de este se tornar visível. De início era um sussurro, depois um murmúrio, finalmente um troar insistente que ameaçava abafar-lhes as vozes. A pele de Ana ficou úmida com a ansiedade.
— Não te preocupes. — Faolan acercara-se dela. — Se a água for demasiado profunda, acampamos deste lado da margem e aguardamos. Não vou tentar atravessar até ter a certeza de que o conseguimos fazer em segurança. Não vale a pena arriscar a vida só para tentar chegar a tempo.
— Não é importante que o façamos? — perguntou Ana.
— Deixa-me decidir o que é importante — replicou Faolan. Voltara a assumir a antiga cautela na expressão, o que impossibilitava Ana de saber em que pensava. A estranha conversa, os dois sozinhos na escuridão, parecia cada vez mais o produto de um sonho. — Segundo o homem de Ged, podemos atravessar o rio desde que tomemos as precauções necessárias. Confia em mim. — Sem esperar por uma resposta, avançou até à cabeça do grupo.
— Conheço um nome para homens como aquele — observou Creisa, do seu lugar atrás de Ana. — Mas não ias gostar, minha senhora, por isso não o digo.
— Ele sabe o que está a fazer — retorquiu Ana. — Se continuarmos, será porque julga que é a melhor opção, depois de avaliar todas as alternativas.
— Sim, minha senhora. — O tom sugeria que Creisa não estava convencida. Puxara a saia mais do que o necessário para montar à amazona. Os homens que passavam por ela fitavam aquela porção interessante de perna bem modelada que era assim exibida. Se os cavalos avançavam com segurança pelo carreiro pedregoso, estreito e cada vez mais íngreme, pouco se devia aos cavaleiros. Ana desejou ardentemente que a viagem chegasse ao fim. As costas doíam-lhe e sentia-se tonta e enjoada. Só imaginava um banho quente, o cabelo limpo, roupas lavadas e uma cama confortável onde pudesse dormir debaixo de um telhado. Sozinha. Assim que chegasse sã e salva a Briar Wood, nunca mais daria tais trivialidades como garantidas. Algo dentro de si dizia-lhe que, uma vez casada com Alpin, não voltaria a ter oportunidade de dormir sozinha. Procurou esquecê-lo. Não suportava a idéia.
O carreiro percorria o flanco de um vale. O terreno voltava a ser arborizado, com pinheiros negros nas zonas mais altas e um aglomerado de árvores menors junto ao rio, ocultando-o. O som era forte. Algures lá em baixo, devia haver rápidos. Ana ouviu Faolan gritar uma ordem e, à sua volta, os homens estugaram o ritmo. O seu próprio pônei avançou, seguindo a deixa dos animais maiores.
— Que o Corvo Negro nos ajude — exclamou Creisa —, vou ficar com nódoas negras em sítios que nem sequer imaginava!
Depois Faolan voltou a gritar e não lhes restou fôlego para reclamações. Manterem-se no carreiro estreito exigia toda a energia. Ana sentia-se tonta. Cerrou os dentes e endireitou as costas. Não era altura para fraquezas
Um derradeiro cotovelo, uma descida íngreme e instável por uma encosta perigosa e coberta de cascalho, e avistaram o vau, delimitado por salgueiros. Pássaros voavam sobre a água, as suas rotas cruzando-se numa dança elaborada. Havia um único canal largo, sem rochas visíveis. A superfície da água era serena e o fluxo não parecia excessivamente rápido. Ana pensou que parecia mais seguro do que o curso de água pedregoso e traiçoeiro da primeira travessia. A chuva caía, de forma leve, mas persistente. Se queriam atravessar, a altura deveria ser aquela.
Kinet desmontou, pegou no bastão e, a um sinal de Faolan, entrou na água com cuidado. Tornou-se de imediato evidente que a corrente era mais forte do que aparentava. O guerreiro cambaleou, mergulhou com força o bastão na corrente e recuperou o equilíbrio. A água chegava-lhe às coxas.
— Continua — bradou Faolan sobre o troar da corrente. — Experimenta-o até ao outro lado, se conseguires.
Foi difícil. Por três vezes, Kinet esteve prestes a cair, e era um homem grande. Creisa mordia os nós dos dedos. Finalmente, Kinet arrastou-se para a outra margem, molhado quase até à cintura. Faolan fez-lhe sinal para que regressasse.
Os homens conferenciaram em voz baixa, enquanto as mulheres aguardaram. Sobre um ramo curvado, meio oculto pela folhagem delicada de um salgueiro, estava um pássaro, de olhos brilhantes e sinistramente quietos, por entre as sombras da floresta. Ana retribuiu-lhe o olhar. Tinha quase a certeza de que se tratava da mesma criatura que os seguia. Se tivesse as capacidades de Tuala, poderia saber o que a ave pensava, seria capaz de interpretar os seus gritos. Recordou o que as raparigas em Banmerren diziam da colega do Outro Mundo, a forma como Tuala lhes ensinara a escutar a voz da marta, da enguia, do escaravelho e da carriça. A compreender os pensamentos profundos e lentos de um carvalho. Ana não possuía tais capacidades. O pássaro incomodava-a.
— O que queres? — deu consigo a murmurar. — O que és tu, alguma espécie de espião? — O olhar não a deixou, intenso, fito. Era perturbador.
Viu Faolan a chamar e aproximou-se dos homens, com Creisa atrás de si.
— Muito bem — começou Faolan, a expressão severa. — Vamos... Ana nunca soube o que ele decidira, se atravessariam ou se iriam esperar. Ouviu-se um zumbido e um baque e Kinet, que voltara a sair do rio, tombou ao chão, os olhos arregalados e uma flecha de penas
azuis a sair-lhe do pescoço. Creisa gritou. Os homens moveram-se rapidamente, formando um círculo protetor à volta das mulheres, enquanto dois dos guerreiros desmontavam e agachavam-se junto ao homem caído. Ana ouviu Wrad dizer — Está morto — e Creisa proferir um soluço abafado. Momentos depois surgiu outra flecha, que se enterrou no braço de Faolan com um ruído seco. Olhou para ela e, com uma indiferença fria que impressionou Ana mesmo através do terror que sentia, segurou na haste e arrancou-a fora. A ponta reluzia, vermelha. Os homens mantiveram o círculo, as armas viradas para fora. Ouviam-se agora sons de movimentos na mata em seu redor, galhos que se partiam, o restolhar de arbustos, passos. Uma força considerável aproximava-se de várias direções, oculta, mortífera. Havia apenas uma saída.
— Vamos atravessar! — bradou Faolan. — Wrad, leva Creisa contigo. Ana, vens comigo. Vamos!
Alguém lhe atirara um pedaço de tecido e, enquanto falava, ia enrolando o braço. Numa questão de segundos, Ana regressava ao cavalo de Faolan, desta vez atrás dele, que guiava o animal com uma só mão. Entraram no rio. Como que escarnecendo da decisão tomada, as nuvens escuras encheram o céu e, de um chuvisco constante, a chuva transformou-se num dilúvio.
— Agarra-te bem. — Ana mal conseguia ouvir as palavras de Faolan sobre o troar do rio e o martelar da chuva. — O leito é irregular e a água está a subir.
Ana olhou por cima do ombro. Atrás deles, a certa distância, Wrad entrara no vau com Creisa agarrada às suas costas. Benard guiava o pônei de carga. Outro homem acompanhava a pé um cavalo sobre o qual fora atirada a forma inerte de Kinet. Os restantes continuavam na margem, as armas prontas, perscrutando a extensão da floresta. Os atacantes ainda não tinham surgido. Voltou a olhar em frente, através da cortina de chuva para as sombras escuras da colina na margem ocidental. Será que não poderiam estar mais homens à espera para os apanharem um a um, à medida que saíam do vau? Esperava que Faolan se tivesse lembrado de tal hipótese. A tremer, trauteou entre dentes, quase sem se aperceber de que canção se tratava, esperando apenas que a ajudasse a ser corajosa. Um dois três quatro, galinhas à porta do quarto. Cinco seis sete oito, um corvo a comer um biscoito... Fora útil em pequena, deitada sozinha na escuridão, à espera que o sono chegasse.
Voltou a olhar para trás. Já se encontravam todos dentro de água. Julgou ver figuras com trajes escuros por baixo das árvores, no lado oriental, que emergiam dos esconderijos para a margem. Pareciam trazer fitas azuis na cabeça. Através do dilúvio, pensou distinguir um homem a empunhar um arco e a preparar uma flecha.
— Estão atrás de nós — indicou. — Na margem.
Faolan aquiesceu brevemente. Com um sinal que Ana não detectou, o cavalo avançou mais depressa. O animal tropeçou e a água molhou-os. Faolan tinha o corpo tenso, enquanto se debatia para ajudar a equilibrar a montada. A corrente lembrava mãos ferozes a agarrá-los, como se de uma força inimiga se tratasse, a tentar arrastá-los para baixo. De repente, o animal cambaleou para a margem pedregosa, chegou à elevação coberta de erva e encontraram-se a salvo do outro lado.
Faolan saltou para o chão, um movimento desajeitado, em virtude do braço ferido. O sangue ensopava a ligadura improvisada, tingindo-lhe a manga da camisa de vermelho.
— Leva o cavalo. Vai para terreno mais elevado — indicou. — A água está a subir depressa. Toma. — Tirou qualquer coisa do cinto e enfiou-lha na mão: uma faca, desembainhada, uma arma de aspecto sério, com a lâmina serrilhada. — Fica com ela. Utiliza-a, se precisares. Esconde-te e espera por nós. Vai!
— O que vais...?
— Ana, vai!
A expressão no olhar de Faolan deixava como única alternativa a obediência. Por sobre o ombro, viu a extensa linha de cavaleiros que se alongava pela largura do vau. Avançavam com lentidão. A água estava já mais funda e os cavalos atravessavam sérias dificuldades. Observou Faolan regressar à margem e aguardar à vista de qualquer um que desejasse atirar outra flecha. A aguardar, até que todos os seus guerreiros completassem a travessia em segurança. Depois, Ana puxou as rédeas do cavalo e deu início à subida da encosta.
Pouco avançara quando um som lhe gelou o sangue nas veias. Não sabia de que se tratava, apenas que era a voz da catástrofe. Deu meia volta no carreiro, saindo da proteção dos arbustos cerrados, a fim de obter um bom panorama do vau. O barulho era um ronco troante e profundo, como que anunciando a chegada tumultuosa de um monstro imenso. Os homens na água olhavam para montante. Ana avistou-lhes os rostos no momento anterior ao embate: lívidos, estupefatos, os olhos conscientes da morte que se avizinhava. Depois chegou a onda, uma enchente que estivera aprisionada algures corrente acima e que fora libertada de uma vez, quando a barreira que a detinha cedeu à pressão, lançando a torrente de água rio abaixo. O seu poder arrebatava tudo à sua passagem: grossos troncos de árvores, com raízes como dedos esticados, pedras, terra, arbustos, criaturas esfaceladas, tudo num turbilhão confuso. Era uma chaga na terra que demoraria muito tempo a sarar. A onda varreu a zona mais baixa do rio perante os olhos incrédulos de Ana. Numa fração de segundos, homens, mulher e cavalos foram apanhados, os seus gritos perdidos na música feroz da torrente, levando-os na insanidade branca da onda. A chuva abrandara um pouco e Ana podia agora ver claramente a margem do outro lado, a qual fora arrancada, como que por uma dentada monstruosa do rio. Não havia ninguém. De um lado ao outro, o vale encontrava-se cheio de correntes de água.
Ana podia ouvir o som arrastado da sua própria respiração. Sentia o bater descompassado do coração. Por um momento, o terrível acontecimento deixou-a paralisada. Depois enrolou as rédeas do cavalo a um ramo e, prendendo a bainha da saia à cintura, correu percurso abaixo. A água fizera desaparecer os anteriores limites do rio. Rodeava os troncos das árvores, corria por entre a vegetação e submergia afloramentos rochosos. As coisas que arrastava representavam um novo perigo: troncos embatiam nas árvores que ainda resistiam à enchente e pedregulhos soltos rolavam ao acaso na corrente poderosa. Não conseguia avistar vivalma. Ninguém. A meio do curso de água, preso numa protuberância, algo pequeno e brilhante agitava-se na água em torvelinho: um pedaço do xale multicolorido de Creisa.
Não podia avançar sem fazer uma busca, por mais improváveis que fossem os resultados. As margens eram um pesadelo, todas elas terra a esboroar-se e pedras a deslizar, folhagem escorregadia e ramos quebrados. Ana seguiu a corrente do rio, procurando pontos de referência no terreno, à medida que avançava: aqui um carvalho solitário no cimo da colina, ali uma rocha branca com a forma de uma cabra, mais além um rasgo na terra, a contribuição de um ribeiro à devastação. Ana gritou, a voz fraca e solitária acima da canção triunfante do rio:
— Faolan! Wrad! Creisa! Está aí alguém? — Recusava-se a pensar no local onde estava, nos homens com as flechas, no fato de estar sozinha, fria, molhada, sem suprimentos e sem fazer idéia do caminho a seguir. Continuaria a procurar até que apenas lhe restasse tempo para regressar ao vau e ao cavalo antes de anoitecer. Não pensaria em mais nada.
O tempo deixou de ter significado. Encontrou uma passagem onde não parecia existir nenhuma. Ignorou os arranhões e as mazelas infligidas pelos arbustos espinhosos e partidos ou pelas pedras lascadas. Doía-lhe a garganta de tanto gritar. As lágrimas umedeciam-lhe as faces e faziam-lhe escorrer o nariz. Prosseguiu até que, mais à frente, avistou um obstáculo intransponível. O rio alargado mergulhava numa catarata branca de espuma e, de ambos os lados, grandes muralhas de pedra criavam uma barreira impressionante. Não valia a pena tentar subir. O que procurava, a ser encontrado, estaria na margem. Se alguém tivesse sido sugado para aquele caos remoinhoso de água branca, se alguém tivesse sobrevivido tanto tempo, estaria agora para além do seu alcance. Chegara a altura de regressar.
A percepção da derrota era algo esmagador. Ana sentou-se numa pedra, o olhar vidrado no rio. Se não tivesse desmaiado, se Faolan não lhe tivesse concedido um dia de descanso, teriam atravessado sãos e salvos. Creisa estaria viva, e Wrad e Kinet, e todos aqueles jovens. Tinham morrido por causa dela. Por ser fraca. E Faolan, que atravessara em segurança, que poderia ter sobrevivido, morrera por se preocupar com os seus homens. Esperara por eles e o rio levara-o consigo. A sua entrega ao dever custara-lhe a vida e salvara a dela.
Não havia escolha, teria de regressar. Nada mais podia fazer ali. Com severidade, começou a avaliar as questões práticas. O cavalo de Faolan tinha alforjes, talvez com algum suprimento essencial. Continuava a sangrar. Mesmo molhada, teria de rasgar a camisa, a fim de utilizar o tecido. Deixara tudo no pônei de carga, os sacos, os artigos pessoais, a roupa que trouxera para o casamento, as pequenas coisas que bordara ao longo dos anos, a pensar numa altura em que tivesse os seus próprios filhos. Tudo desaparecido. Tudo levado.
— Vai-te embora, Ana — ordenou a si própria, enquanto fungava e limpava as lágrimas das faces. Pôs-se de pé, trêmula, e, nesse momento, a gralha passou a voar à sua frente, tão próximo do seu rosto que deu um passo atrás com um arquejo. O pássaro dirigiu-se à beira da água com um grito rouco e, acompanhando-lhe o percurso, Ana reparou em algo que não vira antes, quando se arrastara ao longo da margem do rio. Havia qualquer coisa parcialmente submersa por entre um amontoado de detritos presos nas rochas fendidas. O rio açoitava aquela protuberância, como se irado por alguma coisa se atrever a agarrar-se a ela. Na margem, uma grande árvore que fora quase derrubada pela enchente inclinava-se sobre a ilhota de pedra, agarrando-se precariamente à terra. A água devastara a margem por baixo da árvore, deixando exposta uma massa contorcida de raízes. Mais detritos tinham sido empurrados contra elas, ramos e arbustos partidos, galhos e folhas. Ana voltou a olhar para as rochas. Quase por baixo delas, podia ver qualquer coisa escura na água: a túnica de um homem, ensopada e suja. E algo pálido: um rosto exaurido e semiconsciente. Uma mão agarrada a um ramo inclinado, tentando salvar a vida contra a força violenta da corrente.
Ana correu, a tropeçar nas pedras, alarmada. Faolan estava vivo. Ainda se agüentava. Alguma coisa podia ainda ser salva daquele pesadelo.
O pássaro empoleirou-se nos ramos mais altos da árvore tombada, os olhos fitos no homem dentro de água. Ana enfiou-se debaixo do tronco inclinado e arrastou-se ao longo da margem escorregadia que se ia desintegrando, a mente num rodopio. O lugar onde a mão desesperada de Faolan se agarrava ao pedaço de ramo ficava duas vezes o comprimento do seu próprio corpo afastado da margem. Apenas conseguiria alcançá-lo se entrasse na água em remoinho. Era fundo, pois obviamente ele não conseguira tocar no leito com os pés e sair por esse meio. Assim que os dedos se soltassem, Faolan desapareceria. Havia mais rochas a jusante. Quase de certeza que seria despedaçado antes de ter tempo de se afogar. A água agitava-se em seu redor, puxando-lhe as roupas e o cabelo. Tinha os olhos fechados e o rosto estava branco como a cal. Com o maxilar cerrado, a mão apertava, inflexível, o ramo. Se o chamasse, será que o assustaria? Largaria o que por enquanto o salvava? Lá em cima, o pássaro soltou um grito agudo e Faolan abriu os olhos.
— Faolan, estou aqui na margem! Posso chegar a ti! — gritou Ana, com falsa segurança. — Segura-te! — Olhou em seu redor, em busca de algo que estivesse à mão, qualquer coisa que atravessasse aquele espaço. Havia uma confusão de objetos que tinham sido lançados sobre o ressalto lamacento: ramos, raízes, pequenos arbustos, coisas mortas que não tinha vontade de examinar. E... sim! Um pedaço de madeira que em tempos fora parte de uma barraca, de um estábulo ou de uma casa. Madeira perfilada, uma tábua forte, talvez com um palmo de largura. Pensou que talvez o comprimento fosse o suficiente. Se conseguisse prender uma das extremidades entre as raízes que continuavam presas à margem e movesse a outra, por forma a criar uma espécie de ponte até ao local onde Faolan se encontrava, tinha a hipótese de lá chegar para ajudá-lo. Imaginou como estenderia os braços para segurar os dele. Que assim que ele se agarrasse a ela, a força da água os puxaria aos dois. Não iria resultar. Não seria capaz de resistir à corrente nem, mesmo que fosse, ele teria força para subir pelos seus próprios meios. Naquele momento, Faolan parecia ainda mais fraco do que ela. Pensou ver-lhe os dedos a escorregar, os olhos a começarem a ficar vidrados e a revirar-se, a caminho da inconsciência. A tábua seria suficientemente forte, se pelo menos a conseguisse colocar no sítio certo. Mas nada era mais forte do que o rio...
Já sabia o que fazer. Teria de utilizar aquela corrente destruidora em seu proveito. A ponte teria de ficar nas rochas a jusante de Faolan. Se pelo menos o conseguisse fazer, a pressão da água iria mantê-lo firme contra a madeira, enquanto ela o puxava. Voltou a perscrutar o rio, sempre receosa, não fosse Faolan desaparecer na água sem uma palavra, quando a atenção dela estivesse centrada noutra direção. Surgiu-lhe a imagem de como tudo podia correr mal. Não permitiu que ela se demorasse.
— Faolan! — chamou, erguendo o tom de voz acima do troar da corrente.
Estava demasiado exausto para responder. A cabeça moveu-se numa tentativa de aceno.
— Não te mexas! — gritou, sabendo como soaria tola. — Vou buscar-te!
Era fácil de dizer. A tábua era pesada, nem acreditava o quanto. Equilibrando-se nas sombras, esteve muito perto de escorregar para a água profunda antes de conseguir erguer e virar a madeira. Enfiou a extremidade por entre as raízes mais próximas do tronco, procurando o ângulo correto para que se agüentasse, o que a deixou com uma dor lancinante nos braços e nos ombros. Pronto, já estava. Agora a outra ponta. Teria de virar a madeira, mantê-la fora de água, afastada da cabeça de Faolan a qualquer custo...
— Ah! — gritou Ana, quando o pé lhe escorregou na lama e caiu sobre um joelho, batendo com a anca na tábua. A força do rio era impressionante. O coração martelava-lhe no peito. Esforçou-se por se pôr de pé, voltando a agarrar a tábua, e manobrou-a até que a extremidade assentasse com relativa segurança nas pedras menores em redor das quais a água espumava, pouco abaixo da posição de Faolan. Experimentou a ponte improvisada. Oscilou, mas não cedeu.
— Estou a ir!
A chuva ainda caía, deixando tudo molhado. Subiu para a tábua, as mãos agarradas aos lados, a saia subida o mais possível, e gatinhou para fora da margem. A madeira quase tocava na água e o peso da jovem afundava a tábua à medida que avançava. A corrente tentava puxá-la e Ana sentia o coração prestes a rebentar. Tentou não olhar para baixo. Atrás de si, sentia as coisas a deslizar, a gemer e a ranger com a tensão. Imaginou que a tábua não agüentasse muito mais tempo entre as raízes. Um pouco mais, só mais um pouco, mão, joelho, mão, joelho... O coração parecia agora um tambor, marcando o ritmo de uma música de puro terror. Mesmo assim, algures no seu íntimo, ardia uma força de vontade intensa. Ia salvá-lo. Ia consegui-lo.
Já lá estava. Empoleirada perigosamente na extremidade da ponte, a água a correr à sua volta, não se encontrava longe de Faolan. O rosto dele mal se via fora de água, parecia já quase afogado. Como poderia dizer-lhe para se largar? Provavelmente seria arrastado por baixo da tábua, rio abaixo. O salvamento parecia condenado desde o início. Não ia pensar nisso. Apenas havia uma oportunidade e, se não a aproveitasse em breve, nada mais restaria.
— Faolan — chamou —, escuta-me! Estou mesmo aqui, a duas braçadas de ti. Tenho uma tábua acima da água, apoiada na margem. Não te largues ainda. Se conseguires chegar à tábua e agarrar-te, sou capaz de te puxar. Espera pelo meu sinal. Consegues usar o braço esquerdo?
O braço ferido saiu lentamente da água. A mão surgiu, os dedos brancos e engelhados, indo-se agarrar debilmente às raízes.
Tinha de manter as instruções simples. — Ótimo. Tens de ser rápido. Prepara-te para te agarrares com as duas mãos. Ignora, se doer. Tens de me ajudar o mais possível.
— Tu... cais... — A voz de Faolan não passava de um murmúrio.
— Não sejas tonto! — Vacilou enquanto procurava equilibrar-se melhor. A ponte garantia um ponto de apoio mínimo e não havia mais nada para agarrar. Ana enfiou um pé numa fenda entre as pedras, debaixo de água, e equilibrou-se com a barriga na madeira, deixando ambos os braços livres. A água corria por todos os lados. — Agora, quando eu disser, vais respirar fundo e largar-te, e depois agarras-te com as duas mãos. Se conseguires esticar os braços vai ser mais fácil. Percebeste?
Um movimento tênue nas feições esbranquiçadas. Ana tinha de partir do princípio de que fora uma resposta afirmativa.
— Muito bem. Vou contar até três. — A jovem respirava como se tivesse acabado de correr. A água agitava-se em seu redor e mais de metade do corpo de Ana encontrava-se submerso. — Um, dois, três, agora!
Faolan largou-se. No instante seguinte, o corpo embatia na tábua e o braço ergueu-se, tentando prender-se. Ana agarrou-o e deu início à batalha contra o rio, um duelo cujo prêmio era a vida de um homem. Rezou, um grito silencioso ao Guardião das Chamas, vindo do fundo do coração. Os braços pareciam querer saltar-lhe do corpo. A perna ameaçava partir-se por onde se encontrava presa entre as rochas. Aguentou-se. Aquele momento pareceu durar uma eternidade. Puxou e sentiu o esforço desesperado por parte de Faolan de ajudar com o pouco que restava da sua força. Parecia que a qualquer momento seria arrastado por baixo da ponte improvisada, pois a água passava-lhe por cima da cabeça enquanto tentava envolver a madeira com ambos os braços. Ana segurava-o por onde podia, uma prega de roupa, uma mancheia de cabelo, variando freneticamente o ponto de apoio enquanto ele se arrastava ao longo da ponte, procurando onde pisar por entre as pedras e os detritos na ilhota minúscula, um refúgio precário que se desfazia, à medida que Ana lhe segurava o braço e o içava, sem saber bem como, para o seu lado. Faolan deitou-se de braços e pernas abertas em cima da tábua, os olhos fechados, o peito a subir e a descer. A respiração de Ana também estava acelerada. Sentiu o calor das lágrimas nas faces. Doíam-lhe as costas. As pernas eram uma massa de golpes ensangüentados. Os ombros latejavam e tinha os braços dormentes. No céu já sombrio devido às nuvens, a luz começava a desvanecer-se.
— Faolan!
Permanecia inerte, as mãos abertas na água, seguro apenas pelo peso do corpo e por Ana, que enfraquecia. A jovem sentiu o terror a renascer. Se ele desmaiasse naquele momento, estariam perdidos.
— Faolan, acorda!
Não obteve resposta. Ali perto, algo estalou e cedeu. A água começou a passar por cima de Faolan.
— Faolan! — Ana esbofeteou-lhe a face com força. — Acorda imediatamente! Estás de serviço, lembras-te?
Um gemido fraco. Um ligeiro estremecimento. Ana sofria por ele, mesmo quando invocava o seu tom mais real.
— Vá lá, Faolan! É quase de noite. Preciso de ti!
Rastejaram ao longo da ponte frágil, Faolan à frente, Ana atrás dele, incitando-o para que continuasse. O maior peso de Faolan fez a tábua curvar-se de forma ameaçadora, mas não cedeu. Quando pisaram a lama da margem destroçada, Faolan caiu de joelhos. Ana levantou-o, passando-lhe o braço que não estava ferido por cima dos seus ombros. Acima deles, a árvore inclinava-se agora para o rio num ângulo quase impossível. Recebia o seu destino iminente com uma canção gemente de angústia. Ana ouviu o som de asas e sentiu, mais do que viu, a gralha a levantar vôo do seu pouso e afastar-se. A sua missão, se disso se tratara, chegara ao fim. Ana gostaria de poder dizer o mesmo deles.
— Não podes deitar-te, aqui não — disse-lhe bruscamente. -— A menos que queiras uma árvore em cima de ti. Temos de andar. Anda, um, dois, vá lá! Temos de ir buscar o cavalo, encontrar um lugar seco para nos abrigarmos, fazer uma fogueira. — Pelos deuses, esperava que o cavalo ainda lá estivesse. Havia uma pederneira nos alforjes. Se pelo menos Faolan agüentasse a distância que os separava do animal. — Vamos, anda! — ordenou. — Eu ajudo-te, mas não posso fazer tudo sozinha. Não passo de uma princesa mimada, lembras-te? O líder é suposto seres tu. És tu que tens de cuidar de mim. Cuidado, esta zona é pantanosa...
Talvez a sua oração tivesse sido escutada. Talvez tivesse chegado aos ouvidos do Guardião das Chamas, um deus que valorizava a coragem e a tenacidade. A luz aguentou-se até cambalearem de volta ao carreiro junto ao lugar onde ainda nessa manhã existira um vau. A penumbra instalava-se quando subiram a colina e encontraram o cavalo de Faolan no sítio onde Ana o deixara, a aguardar pacientemente.
A escuridão manteve-se afastada enquanto subiam a passo, cada um deles de um dos lados do cavalo, reconfortados pelo calor do animal, pela sua solidez num mundo destroçado. Encontraram um lugar onde uma parede rochosa formava uma saliência. Onde, no seu interior, havia uma extensão seca de terreno plano, com arbustos de ambos os lados e um aglomerado de pinheiros à frente. O corpo de Faolan tremia com violência. Quando Ana soltou os alforjes, ele não conseguiu manter as mãos firmes o suficiente para a ajudar a esvaziá-los. Atrás da sela havia um cobertor enrolado. Foi buscá-lo, depois peou o cavalo e deixou-o procurar forragem. Havia bastante erva e o animal comeria melhor do que eles.
Ana já não pensava no que estava a fazer. O corpo limitava-se a executar as tarefas necessárias na ordem que parecia mais adequada. Faolan tinha o rosto lívido e tremia, ostentando uma expressão que a preocupava mais do que estava disposta a admitir. Soltou os laços que prendiam o cobertor. Estava quase seco na zona onde fora enrolado, de certeza a coisa mais seca que ambos possuíam. Todas as suas roupas estavam ensopadas e a noite ia arrefecendo.
— Toma — indicou. — Despe a camisa e a túnica. Enrola-te com isto. E diz-me que há uma pederneira algures nestes sacos.
— Tu...? — conseguiu Faolan dizer ao receber o cobertor.
— Tenho de fazer uma fogueira. Despe a roupa. Não estamos no Monte Branco. Se me queres ajudar, tens de te aquecer.
Fitou-a, os olhos negros no rosto ainda desprovido de cor. Não tentou despir as roupas molhadas.
— Será que tenho de te despir como se fosses um bebê? Deixa-me explicar-te. Não consigo chegar sozinha a Briar Wood, Faolan. Preciso de ti. Agora, faz o que te digo. Se conseguir fazer lume, pode ser que consigamos secar as nossas coisas. Pederneira? Onde?
Faolan apontou, as mãos a tremer.
— Madeira... molhada... — murmurou, fazendo um esgar de dor enquanto tentava passar a túnica pelo braço ferido.
— Cala-te! — disse Ana, encontrando a pederneira e, para seu grande alívio, mechas secas guardadas num saco impermeável. — Acontece que há uma reserva de lenha antiga ali em cima, debaixo da saliência da pedra. Já cá estiveram outros. Não sou estúpida.
Fazer lume exigiu uma série de tentativas. Também as suas mãos não estavam firmes e tinha os braços tão cansados que mal conseguiu reunir forças para fazer uma faísca. À medida que o Guardião das Chamas mergulhava no horizonte e a noite caía, a sua própria chama minúscula ganhou vida e o tronco seco que arrastara até ao centro daquele espaço aberto começou a arder. Procurou qualquer outra coisa que pudesse ser utilizada como combustível. Ao longo da caverna baixa havia galhos, ramos estreitos e caruma, talvez armazenados à pressa por outros, na eventualidade de um tal acampamento improvisado.
Faolan mal se mexera. As roupas encharcadas encontravam-se num monte. Ele estava sentado enrolado no cobertor, a fitar o lume. Ana interrogou-se se alguma vez voltaria a sentir-se quente. Faolan não dissera nada sobre o que acontecera. Não havia necessidade de o dizer, pensou Ana. Os olhos diziam tudo.
Os alforjes eram os de um viajante experiente. Ana retirou o que teria utilidade imediata: um odre cheio de água, um pacote com tiras de carne seca, escura e dura, uma camisa, de corte simples, feita do que parecia ser um linho de grande qualidade. Um par de calças de lã escura. Tinham estado bem enroladas com uma cobertura protetora e encontravam-se quase secas. Eram as suas roupas boas, para Briar Wood. Afinal de contas, era o emissário pessoal do rei.
— Tu — disse Faolan. — Veste-as. Secas.
— Eu? — Ana fitou-o. — São as tuas roupas especiais. Além disso...
— Havia um argumento nos recônditos da sua mente, algo que tinha a ver com o que era digno para uma dama e com o que as pessoas iriam pensar. Depois do que acontecera naquele dia, parecia irrelevante.
— Devias vesti-las — indicou. — Estás gelado.
— Veste-as — disse-lhe Faolan. — Tenho o cobertor. Veste-te.
— Acho que não... — começou ela a protestar.
— Veste-as, Ana. Eu não olho.
Ela assim fez e sentiu-se estranha por estar vestida como um homem, embora as calças permitissem uma liberdade de movimentos que facilitou bastante o recolher da lenha e o estender a roupa molhada junto à fogueira.
Ana instalou-se em frente do lume com a camisa ensopada numa mão e a faca que Faolan lhe dera na outra, começando a rasgar a peça de roupa em pedaços pequenos e utilizáveis. Pelo menos esses secariam depressa. Faolan observava-a, uma dúvida na expressão.
— Coisas de mulheres — disse ela, pensando que o que apenas no dia anterior fora algo demasiado embaraçoso para comentar não passava naquele momento de uma banalidade. — Vou precisar disto por mais um dia ou dois.
Seguiu-se um breve silêncio.
— Sinto muito — disse Faolan, com um tom de voz tão baixo que ela mal o ouviu.
— Pelo quê? Por agora termos de falar sobre tais assuntos de forma aberta? Por ser obrigada a rasgar as minhas belas roupas por uma razão tão mundana?
Não houve resposta. O que ficou por dizer pairou entre eles, uma sombra negra.
— A culpa não é tua, Faolan — disse Ana, com um tom diferente. A voz autoritária e brusca que mantivera durante tanto tempo desaparecera subitamente. — Aconteceu. Podia culpar-me por ter causado o atraso. Não vale a pena. Estamos aqui. Por qualquer razão que só os deuses sabem, sobrevivemos. Temos de continuar. Não há mais nada a fazer. Toma. — Entregou-lhe uma faixa do belo linho. — Segura isto para que seque. Vamos ter de enfaixar esse braço de forma adequada.
— Não é nada. É só um arranhão.
— Mesmo assim, prefiro que fique razoavelmente limpo. Imagino que queiras voltar a poder usar o braço como antes. Se deixas que entrem maus humores na ferida, nunca se sabe o que pode acontecer. Eu trato disso, quando a ligadura estiver seca.
Havia coisas a fazer, pequenas tarefas para adiar o momento em que nada mais haveria, a não ser a escuridão e as recordações desse dia. Forçaram-se a comer um pouco de carne seca, mesmo nenhum deles tendo apetite. Beberam do odre. A chuva formara poças por entre as pedras. Juntamente com a erva, o cavalo ficaria bem tratado. Ana enfaixou o ferimento de Faolan, apesar dos protestos do homem, que dizia ser capaz de o fazer sozinho.
— O que é isto? — perguntou Ana quando enrolava com cuidado o tecido em volta do braço musculoso e viu, acima da pele rasgada e da carne ensangüentada da nova ferida, uma cicatriz mais antiga, de um ferimento mais profundo, curado havia muito.
— Isso? Da primeira vez que encontrei Bridei, ele trespassou-me com uma flecha. Felizmente, não pretendia causar-me danos sérios, apenas atrasar-me.
— Bridei? Por que faria ele tal coisa? — Ana nem era capaz de imaginá-lo. Faolan era o mais leal apoiador de Bridei. No passado, considerara que essa era a única característica positiva de Faolan.
— Não gostou do som da minha voz. — O tom de Faolan foi brusco. A narrativa teria de esperar até poder falar pessoalmente com Bridei, ou com Tuala. Não. Isso não ia acontecer. Por momentos, esquecera onde estava e para onde teria de ir. Talvez se passassem anos, antes de voltar a ver os seus amigos. De repente, tudo voltou: Briar Wood, Alpin, o longo futuro entre estranhos. O fato de a sua própria família ter consentido o casamento, sem querer saber o que ela pensava. Era como se tivesse deixado de existir, salvo como peça de um jogo. Mas naquele dia, perante a mágoa e o horror, sentia-se mais real do que nunca.
— O que foi? — Faolan mirou-a, enquanto Ana atava as pontas do linho e voltava a endireitar-se.
— Nada. — Sentia-se à beira das lágrimas. Era tolo, depois de tudo o que acontecera, começar a chorar.
— Alguma coisa foi. Estás perturbada.
Não lhe diria a verdade. Pareceria fraca e patética. — Aqueles homens, os que nos atacaram... e se nos encontrassem aqui? Faolan pareceu meditar antes de responder.
— Poderia descansar-te com uma mentira — disse-lhe —, mas sei que o perceberias. Com toda a sinceridade, neste momento estou muito fraco para te defender, mesmo contra um único homem armado. Faria o melhor que pudesse. Amanhã já estarei mais forte. O mais provável é que eles não tenham homens de ambos os lados do rio. O homem de Ged identificou-o como sendo uma fronteira entre os territórios de chefes rivais.
— Oh. — Ana ponderou por momentos. — Quer dizer que já nos encontramos no domínio de Alpin? Em Briar Wood?
— Devemos estar perto. Era melhor que tentasses dormir, Ana. Estás exausta.
— Tu também. Mas a fogueira... temos de ficar alerta...
— Nunca durmo muito. Toma... — Estava a tirar o cobertor e a entregar-lho. Ana pensou que, dadas as circunstâncias, a visão do peito nu do homem não era nada com que se devesse preocupar. Imaginava o que Creisa diria. Creisa... tão vibrante, tão cheia de vida. Tão jovem...
— Deita-te — disse Faolan. — Tenta descansar.
Ana fitou-o, o cobertor nas mãos, e Faolan retribuiu o olhar. As chamas tremeluziam-lhe na pele. Procedia a um esforço disciplinado para não tremer.
— Faolan — disse Ana.
Envolveu o peito com os braços e, nesse momento, Ana viu um homem diferente, alguém jovem, cansado e profundamente solitário.
— Não acredito que agora te sintas melhor do que eu — comentou Ana. — Está muito frio. Seria estúpido morrer de frio só por causa do que é próprio. Acho que podemos partilhar o cobertor. Ninguém precisa de saber.
— Não tenho necessidade de dormir.
— Se acreditas nisso, não sei por que motivo Bridei te confiou esta missão. Pensa da seguinte forma. Estou gelada até aos ossos e preciso de ti e do cobertor para me aquecer. Por mais indecente e desagradável que isso seja, vais fazê-lo, se queres completar a missão e levar-me a Briar Wood.
— Falaste como uma verdadeira princesa. Ana sentiu a cor invadir-lhe as faces.
— Estou apenas a fazer o que a minha amiga Ferada faria, caso estivesse aqui. A outra Ana, a que gosta de bordar e de cantar, é essa a verdadeira. — Sentiu as lágrimas a escorrer e levou a mão ao rosto para limpá-las.
— Estou preparado para obedecer a ordens razoáveis — declarou Faolan. — Toma.
Ana ficou espantada. Era bom estar deitada com ele atrás de si, encolhido para a acomodar e com o cobertor sobre ambos. O chão era duro. A caverna baixa estava cheia de correntes de ar, mesmo com as árvores que a protegiam e com a fogueira. Visões indesejadas digladiavam-se por um espaço na sua mente, o que fazia com que as lágrimas jorrassem quentes. Mesmo assim, era bom. O braço por cima dela, o coração que batia nas suas costas pareciam forças protetoras de poder imenso.
Faolan dizia qualquer coisa.
— O quê?
— Como conseguiste? Como foste capaz de encontrar forças para me puxar, contra a corrente?
— Rezei. Os deuses ajudaram-me. O Guardião das Chamas não abandona facilmente um homem de grande coração. Foi ele quem te salvou, não fui eu.
Silêncio. Podia sentir a respiração de Faolan, um pouco irregular. Imaginou que as visões que o atormentavam fossem ainda mais sombrias do que as suas. Já sabia que a missão estava em primeiro lugar na mente dele. Chegara a utilizar esse fato para o incitar, quando as forças o abandonavam. Devia acreditar que fracassara profundamente. Que desapontara o seu rei. O seu amigo.
— Não confio nos deuses — disse Faolan.
— Isso não impede que eles te ajudem. Que te amem.
— Então os deuses são idiotas. O seu julgamento é errado. Não sou um homem de grande coração, Ana. Não sou um homem como Bridei.
— Espero que um dia venhas a perceber como estás errado. O que aconteceu foi um acidente, um terrível acaso. Não foi obra tua.
— Não existem deuses — murmurou, virando-se de costas. — Pelo menos para mim. Eles rejeitaram-me há muito.
— Mas...
— A responsabilidade do que aconteceu foi minha, de mais ninguém. Uma maldição, uma escuridão.
Ana não disse nada. Era óbvio que Faolan não se referia apenas ao dia que terminara, mas ao passado, a qualquer coisa que trouxera consigo, talvez o mesmo que o mantivera acordado junto ao lume todas aquelas noites, a velá-la enquanto os seus homens dormiam. Não lhe pediu que se explicasse.
— Tenho frio — disse, após uma pausa. — Importas-te de voltar a aproximar-te?
Quando ele o fez, voltando a envolvê-la com o braço protetor, a confusão de sentimentos que a assolava tornou-se demasiado forte. Começou a chorar como uma criança, a soluçar sem parar.
— Está tudo bem — consolou-a Faolan, e sentiu a mão dele a acariciar-lhe o cabelo. Voltou a falar, mas em gaélico, e o conhecimento limitado que tinha da língua impediram Ana de perceber mais do que uma palavra aqui e ali. Talvez lhe estivesse a contar uma história. O ritmo suave acalmou-a, mesmo fazendo com que chorasse com mais força. A seu tempo, sentiu que já não tinha mais lágrimas e deixou-se ficar, com o calor do toque dele, o som da sua voz uma proteção contra as incertezas da noite e da manhã que se seguiria.
Mais tarde, quando talvez ele pensasse que Ana adormecera, cantou um trecho da melodia que escutara dos seus lábios quando tinham atravessado o outro rio, a canção sobre um viajante e a sua amada do
Outro Mundo. Em casa, na corte do rei das Ilhas Pequenas, Ana escutara os melhores bardos. Ouvira as prestações de músicos talentosos na casa de Bridei, no Monte Branco. Mas nunca, até então, escutara uma voz como aquela, tão doce e cheia de mágoa. Pouco importava que não compreendesse a maioria das palavras. Sabia que ele cantava de esperanças desfeitas, de ideais de juventude dilacerados, de laços de amor severamente cortados. Mesmo assim, a canção era sedutora, como uma melodia para lá da fronteira, chamando-a para um mundo diferente. O som límpido e triste envolveu-a como um manto macio, e adormeceu.

 

 

 


CAPÍTULO QUATRO


— O Rei Bridei deve julgar que sou um idiota — observou Alpin de Briar Wood, apoiando a face corada na mão, enquanto fitava a taça de cerveja. — A oferta não te deixa curioso em relação ao motivo de tanta pressa?
O companheiro franziu os lábios e as sobrancelhas.
— Não há dúvida de que se trata de uma resposta a alguma informação que recebeu — disse Odhar. — Provavelmente vinda de Dalriada. Quem andará a falar? Pensei que ninguém soubesse das nossas negociações, para além de nós e dos senhores dos Uí Néill. Poderá haver um espião Priteni no coração de Dunadd? Será o Rei Bridei um mago que consegue descobrir segredos onde mais ninguém é capaz de penetrar?
— Diz-se que foi criado por um mago — replicou Alpin com um tom sério. — Um homem chamado Broichan, poderoso e desleal. O que significa que esta história tem muito que se lhe diga. Será possível que pretendam avançar mais cedo? Talvez antes do degelo da Primavera?
— Ou ainda mais cedo — sugeriu Odhar, um homem magro com os farrapos de um vagabundo. Era o tipo de pessoa para quem nunca se olhava duas vezes, uma aparência conquistada com muito esforço.
As sobrancelhas negras de Alpin ergueram-se, descrentes.
— Antes do Inverno? Não pode ser. Pelo que ouvi, Fortriu tem um conselho marcado para a Reunião. Estão à espera do Rei de Circinn em pessoa. Qual poderia ser o objetivo de tal encontro, a não ser planear um assalto concertado contra Gabhran, a ocidente? Bridei não estará a planear o ataque para o Outono, se Drust, o Javali, só vai ser consultado na altura das colheitas.
Odhar aquiesceu. Estava a beber pouco, pois tinha um caminho longo à sua frente.
— O que dizes faz sentido, Alpin. Mesmo assim, tens de pensar que isto pode ser uma tentativa deliberada de te confundir. Um estratagema imaginado pelos conselheiros de Bridei, druidas, magos e mulheres sábias, todos eles inimigos difíceis. Ele chegou mesmo a casar com uma mulher dos Boa Gente. Qual o rei que faria isso? Parece um ato de um jovem tolo.
— Mas?
— Sabes o que tem sido dito, que este rei despertou qualquer coisa em Fortriu, algo velho e perigoso. Que o povo se junta à sua bandeira. Que pode ser ele a conseguir o que nenhum outro rei dos Priteni alcançou até agora: uma vitória total sobre os Celtas de Dalriada.
— E oferece-me uma noiva, assim, sem mais nem menos. Apresenta-me uma iguaria para me levar a afastar-me da aliança com Gabhran. Dezoito anos de idade e dona de uma beleza rara, assim rezava a mensagem. Um exagero, sem dúvida. Se é uma beleza rara, por que não se casou nos últimos seis anos, ou mais?
— Vais recusar, é claro — disse Odhar, com um tom de declaração. — Vais enviá-la de volta de imediato.
Os lábios carnudos de Alpin curvaram-se num sorriso.
— Não necessariamente — replicou. — Primeiro vou examiná-la. Afinal de contas, não sou casado, não tenho herdeiros legítimos e, se a mensagem for verdadeira, esta rapariga tem uma ascendência impecável, nada menos do que a linhagem real de Fortriu. Posso decidir aceitar a generosa oferta de Bridei.
— Mas... — começou Odhar a dizer, mas acabou por reconsiderar.
— Não tires conclusões precipitadas, meu caro amigo celta — disse Alpin. — Sou um homem mais subtil do que este menino rei. Se fizer a jogada certa, irei alcançar o meu objetivo e, ainda por cima, ficarei com o direito a ser pai de um futuro rei dos Priteni. Se gostar do aspecto desta rapariga, experimento-a, para ver se ela dá à luz rapazes. Se não me agradar, envio-a para casa, com uma mensagem para Bridei, a dizer-lhe que não se meta onde não é chamado. Não vejo como posso sair a perder. Assim que tiver levado a rapariga para a cama, Bridei não poderá reclamá-la de volta, quando decidir que já não se importa que eu faça amigos novos.
— A carta dele exige alguma coisa em relação a Dalriada? A oferta está dependente do teu afastamento total do conflito?
— Foi mais implícito do que declarado. Se Bridei não tivesse já enviado a rapariga...
Uma batida rápida numa pequena porta interior sobressaltou os dois homens. A sua conversa era secreta, com um guarda posicionado no exterior da câmara onde falavam acompanhados de cerveja. As visitas de Odhar a Briar Wood eram secretas e poucos da casa alguma vez lhe tinham visto o rosto.
— Não quero ser incomodado — resmungou Alpin. Voltaram a bater.
— Eu disse para não me interromperem! — Alpin levantou-se, um homem imponente, com a cabeleira espessa e a barba exuberante a acentuarem o efeito. Tirou uma chave do bolso, dirigiu-se à pequena porta ao fundo da sala, destrancou-a e abriu-a ligeiramente. Atrás dele, Odhar puxou o capuz para a frente, a fim de ocultar as feições. — É bom que seja importante — disse Alpin com um tom brusco. — Estou em reunião.
— Lamento a interrupção, meu senhor. — O homem à porta era baixo, calvo e possuía ombros largos e um peito vasto. Vestia uma túnica escura comprida, aberta de lado, o que deixava ver calças largas, e trazia um bordão. — O teu irmão deseja ver-te. Diz que é urgente.
— O meu irmão pode esperar — silvou Alpin, enquanto olhava sobre o ombro para o visitante. — Sabes que não podes vir à minha procura sempre que ele o deseja, Deord. Falo com ele depois do jantar, como sempre faço. Pode esperar.
Deord ergueu o olhar para Alpin. A postura descontraída e a expressão calma faziam-no parecer bastante mais alto do que era.
— Ele diz que não, meu senhor. De outra forma, não te viria incomodar. Diz que viu uma coisa que tem de ser imediatamente...
— Não me ouviste? Mais tarde!
— Viajantes — disse Deord calmamente, enquanto a porta se fechava na sua cara. — Um homem e uma rapariga loura de beleza invulgar. A escolta foi atacada pelos Azuis, em Breaking Ford.
A porta deixou de se mover.
— E? — questionou Alpin.
— Drustan poderá contar-te — replicou Deord. — Não fui eu que o vi. Eles estão em perigo.
Alpin praguejou entredentes. Deord aguardou, silencioso e imóvel.
— Diz ao meu irmão que irei ter com ele daqui a pouco — resmungou o chefe tribal.
Deord fez uma vênia e afastou-se. A porta foi fechada.
— Malditos criados — disse Alpin. — Receio ter de te deixar. Já acabamos?
— Quer tenhamos acabado ou não, terei de partir — respondeu Odhar. — Quero estar a caminho do sul antes que chegue a noite. A tua mensagem permanece inalterada? Esta oferta de Bridei não vai interferir com a tua decisão?
Alpin sorriu, os olhos frios.
— De todo, exceto que talvez prepare os meus homens um pouco mais cedo do que imaginava. A frota estará pronta. Vão trabalhar nos barcos ao longo do Verão. Espero ter mais informações em breve. Com efeito, a fonte pode encontrar-se mais próxima do que alguma vez esperei.
— Imagino que não nos voltaremos a encontrar nos tempos mais próximos — declarou Odhar, levantando-se. — A minha esfera de influência não inclui os campos de batalha.
— Nunca se sabe. — O tom de Alpin era ligeiro. — Adeus. Boa viagem.
Com a partida do convidado, o chefe de Briar Wood dirigiu-se, com passos longos e impacientes, à zona distante da fortaleza onde o seu irmão Drustan se encontrava. Era uma grande caminhada, através de telheiros e de passagens estreitas, todos eles acessíveis somente pela entrada trancada nos seus aposentos privados. Ninguém encontraria Drustan por acaso. O último troço levou Alpin a descer um percurso entre muralhas altas, perfuradas por janelas minúsculas. Através delas, viam-se lampejos do mundo exterior: uma faixa de verde pintalgado, um aglomerado escuro de pinheiros, o brilho da água sob o sol primaveril. Acima das muralhas, os imponentes ulmeiros de Briar Wood ofereciam as suas coroas a um céu pálido. Pássaros voaram a gritar e o som arrepiou a pele de Alpin. Detestava ir ali, pois era acometido por recordações. As mãos começaram a tremer-lhe e cerrou os punhos. Se pelo menos conseguisse fazê-lo, se pudesse acabar com tudo aquilo. Avançar, começar de novo. Uma esposa. Uma bela esposa jovem. Seria uma ferramenta poderosa para mudar. Mas não com o irmão preso a si. Não com Drustan ali enclausurado, sempre a arrastá-lo. Por que fora assim amaldiçoado? O que fizera para enfurecer de tal maneira os deuses?
As paredes curvavam-se, acompanhando o trajeto, e avistou o portão de ferro, o portão trancado que dava acesso ao lugar onde Drustan vivia com o seu guardião. Alpin pensou que, bem vistas as coisas, fizera o melhor pelo irmão. Os aposentos interiores eram limpos, privados e de tamanho razoável. Lá fora, havia uma extensão de relva, um banco, um pequeno lago. A área encontrava-se murada, é claro, e encimada por uma grade de ferro. Isso tornava sombrio o pequeno jardim. Drustan nunca mais veria A Que Brilha no seu esplendor, salvo esquartejada pela barras daquela cela aberta. Mas ainda bem. Na lua cheia era quando se tornava mais instável.
Alpin sabia que podia ter sido muito menos generoso. Decerto haveria quem encerrasse o seu irmão numa masmorra, para nunca mais ver a luz do dia. O crime que ele cometera era uma boa razão para tal. Mas Alpin não o fizera. Apesar de todo o mal e da sua estranheza, Drustan era do mesmo sangue. Ele que visse o céu, desde que não pudesse voar para longe.
Deord destrancou a porta de ferro a pedido de Alpin e voltou a trancá-la depois de o chefe ter entrado.
— Onde está ele? — Alpin já se encontrava inquieto. — Não tenho muito tempo.
— Ali, junto à parede.
Alpin espreitou para o canto sombrio do recinto, seguindo o bordão apontado de Deord.
— Está acorrentado?
Um lampejo de expressão percorreu o rosto do homem mais baixo.
— Cumprimos as tuas exigências, meu senhor, como sempre. Alpin fitou-o com severidade, desconfiado do tom obediente, mas
Deord parecia calmo e descontraído, tal como era habitual. Para um homem tão musculoso, alguém cujo menor gesto revelava um poder controlado, o guarda de Drustan exibia um temperamento bastante estável. Alpin julgava que esta combinação era a ideal para o guarda do irmão. Por vezes interrogava-se sobre se Deord seria algo mais do que aparentava, mas o indivíduo nunca exibia grande coisa. Alpin dirigiu-se ao canto onde se encontrava a figura de Drustan, um homem alto, tal como o irmão, mas magro e nodoso, sem a imponência de Alpin. Uma madeixa de cabelo arruivado caía entre os ombros de Drustan. Tinha os punhos cerrados. Estava encostado à parede de pedra, a cabeça inclinada para trás, os olhos fechados. Num nicho próximo, três pássaros estavam empoleirados ao lado uns dos outros, fitando Alpin: uma gralha, um cruza-bico e uma carriça minúscula. Alpin retribuiu-lhes o olhar. Detestava as criaturas que pareciam assombrar aquele lugar, e que entravam e saíam pelas aberturas ínfimas da grade. A sua imobilidade sobrenatural perturbava-o. Drustan mexeu-se quando o irmão se aproximou e ouviu-se o retinir do metal.
— Finalmente! — exclamou Drustan, abrindo os olhos de repente para fitar o irmão com a selvajaria que arrepiava sempre Alpin. — Ela está em perigo... perdida e assustada... precisa de ajuda...
— Então, vá lá. — Alpin procurou usar um tom apaziguador, como o que utilizaria com uma criança assustada, ou com um cavalo temperamental. — Vamos com calma, Drustan. Anda, vem sentar-te no banco, respira fundo e...
— O vau... Breaking Ford... foram apanhados pelos Azuis e um homem tombou, e depois o rio levou-os...
— Drustan! — O tom mudara. Alpin falava agora como se estivesse a dirigir-se a um cão desobediente, uma ordem brusca, e apontou para o banco. O irmão deslocou-se. Foi seguido por uma melodia metálica quando a corrente fina que unia as grilhetas de metal que tinha nos pulsos, seguindo depois até uma argola presa ao banco, se moveu a seu lado. Drustan não se sentou, talvez por não ser capaz, pois encontrava-se tomado por uma energia vibrante, uma agitação profunda, e mudou o peso de um pé para o outro, movendo as mãos e fazendo soar o metal.
— Pára com isso! — disse Alpin bruscamente, irritado. — O que viste? Diz-me com palavras simples, como se fosse uma história. Quem lá estava? Uma mulher, segundo Deord. Que mulher? Tenho de saber tudo. Devagar, Drustan.
— Um grupo de viajantes. Um ataque. Não consegui ajudá-los. Não consegui avisá-los, tentei, mas não fui capaz... os Azuis chegaram. Um homem morto, outro ferido. Uma enchente... uma onda, terrível e repentina, como a fúria da Mãe de Tudo... tantos tombados, desfeitos, espalhados... todos arrastados, arrastados para o fundo...
— E depois? — incitou Alpin, com um suspiro.
— Ela foi corajosa. Tão corajosa. Tão bela. Como a princesa de uma canção. Salvou um homem. Desapareceu tudo, cavalos, homens, bagagem... não sobrou nada. Fria... molhada... solitária... Tens de ajudá-la, Alpin. Vai. Agora!
— Essa mulher. Dizes que era bela como uma princesa. Era jovem? Bem vestida?
Drustan ficara em silêncio. O olhar alterou-se, aqueceu.
— Drustan!
— Uma princesa. — O tom da voz era mais baixo. — O cabelo parece um rio de ouro. Os olhos cheios de coragem. Jovem, sim. E triste.
— Onde estão agora?
— A caminho de Briar Wood, pela estrada velha. Um homem, uma mulher e um cavalo exausto. Um pequeno lume à noite. Tens de ir, Irmão, vai e encontra-a. Ela tem frio.
— Um homem. Que homem? Drustan não respondeu.
— Que homem, Drustan? Que o Corvo Negro nos ajude, tens sempre muito para dizer quando te interessa. Por que não és capaz de dar respostas simples?
Deord moveu-se ligeiramente. Observava à distância, a expressão impassível, o bordão nas mãos. Alpin agradeceu o fato. Nunca sabia o que o irmão poderia fazer, ou para onde se deslocaria. E Drustan era rápido. Sempre o fora.
— Um homem sombrio — disse Drustan. — O seu companheiro.
— Um guarda?
— O seu companheiro.
— Bem vestido? Armado? Um guerreiro? Um cortesão?
— Um homem sombrio — repetiu Drustan. — Vai, Alpin! Ajuda-a!
— Por estranho que pareça — disse Alpin, levantando-se —, desta vez concordo contigo. Trata-se, decerto, da noiva escolhida para mim pelo Rei Bridei, de Fortriu. Jovem, bela e a dirigir-se para cá... não consigo pensar em mais nenhuma explicação. Vou enviar um grupo ao seu encontro. Ou... por que não? Vou buscá-la pessoalmente.
Passaram seis noites em acampamentos miseráveis, seis noites aquecidas por pequenas fogueiras e pelo corpo um do outro debaixo do cobertor partilhado. Faolan começara a recuperar as forças. O braço sarava bem, ajudado pelas ligaduras novas que Ana insistia em aplicar todas as manhãs. O fato de já não sentir o desespero esgotante da primeira noite era, de certa forma, um inconveniente. Assim que a exaustão desaparecera, o desejo físico começou a tornar-se evidente. Os esforços para ocultá-lo de Ana, enquanto esta adormecia encolhida contra ele, mantinham-no acordado até de madrugada. Não podia recusar-se a deitar-se junto dela, pois as noites eram frias. Não podia, de todo, explicar-lhe o que se passava. Mesmo com dezenove anos, pensou, era uma inocente e ficaria chocada e assustada se lhe contasse a verdade. Naquelas circunstâncias, seria demasiado fácil aproveitar-se dela. Ser obrigado a pensar nisso mostrava o ponto onde chegara a sua autodisciplina.
Certa manhã, nenhum deles se sentiu obrigado a continuar. A medida que viajavam, o torpor do choque que se seguira às suas perdas no vau fora gradualmente substituído por uma tolerância entre eles, pela aceitação de que o que lhes acontecera viera alterar a fundo as regras e o constrangimento da missão. A conversa tornara-se mais simples e surgira uma nova confiança na partilha das responsabilidades diárias.
Tinham acampado numa depressão relvada junto a um pequeno ribeiro e o sol nascera trazendo consigo a promessa da Primavera: os pássaros cantavam nas árvores que rodeavam a água; pequenas flores garridas floresciam em maciços aqui e além, no meio da erva, e o ar estava fresco com o aroma da renovação. Mas o coração de Faolan encontrava-se mais uma vez pesado, algo que não desejava exprimir em palavras, nem mesmo para si próprio. Pelos seus cálculos, estavam perto do baluarte de Alpin. Mais um dia ou dois e chegariam, dando por concluída a maior parte da missão. Com tais perdas, nunca poderia considerá-la um sucesso. Mas entregaria aquela noiva ao futuro marido. Selaria a aliança para Bridei e regressaria ao Monte Branco com a novidade. Ao olhar para Ana, sentada do outro lado da fogueira, a soltar os nós do cabelo longo com o pequeno pente de osso que trazia no saco, reconheceu dentro de si o desejo poderoso de não ter de fazê-lo. Não queria entregá-la a um homem desconhecido e deixá-la o resto da vida entre estranhos.
Ana ergueu o olhar, talvez ciente de estar a ser observada.
— Faolan?
— Mmm?
— Quanto tempo julgas que deve faltar? Estamos perto da orla de Briar Wood, não é?
Faolan tentou sorrir.
— Estás a ficar com fome? Ana fitou-o.
— Aceitaria de bom grado uma refeição diferente daqueles pedaços de couro, isso é verdade. Mas não é por isso que pergunto.
— Talvez dois dias — respondeu ele. — Temos de atravessar florestas densas. Os caminhos podem enganar-nos e tornar a viagem mais longa. Sinto muito pela comida. Se tivesse trazido um arco...
— Não serviria de grande coisa com o braço nesse estado — atalhou Ana, com severidade. — Nunca esperei que me desses refeições faustosas e uma cama de penas fofas, Faolan. Cresci na ilha. Não foi uma existência mimada.
— Mesmo assim — replicou. — Gostaria de tas poder dar. Até agora não me saí muito bem.
— Se ajudar — retorquiu Ana —, deixa-me dizer-te que, de todas as pessoas que conheço, é a ti que escolheria para me acompanhar e ser meu protetor numa viagem como esta. Não queria mais ninguém.
Faolan permaneceu em silêncio.
— Não era assim quando partimos do Monte Branco. Não gostei daquelas aulas de equitação. Tinhas um ar de censura e eu não gosto de ser julgada por pessoas que não se tenham dado ao trabalho de me conhecer. Tenho pena que não possas ficar muito tempo em Briar Wood.
— Eu não — disse ele, profundamente desgostoso por ter de vê-la casar-se com um homem que apenas a valorizava pela linhagem. Imaginou que a viagem o tivesse enlouquecido, pois tais pensamentos não tinham lugar na mente de um guarda contratado. E, ao escolher ignorar todo o seu passado, era exatamente isso que ele era.
— Oh — disse Ana, deixando a cabeça pender como uma flor murcha.
— Não era isso que eu... o que eu queria dizer...
— Eu compreendo, Faolan — interrompeu Ana, com uma cortesia ponderada, voltando a agarrar no pente. — Tens de voltar ao Monte Branco. Tens de levar a Bridei a notícia das nossas terríveis perdas, e dizer-lhe que a aliança com Alpin está selada.
— Vou ficar pelo menos um ciclo da lua. As instruções de Bridei foram claras. Não quer um acordo formal até que eu esteja certo da lealdade de Alpin.
Para isso, Ana não teve resposta.
— Ou se tu... se por acaso tu... — Não. Não iria transformá-lo em palavras.
— Se não gostar dele? Acho que isso nunca se pôs em questão — disse Ana, com a voz tensa.
— Ana...
— O que foi?
Faolan ia revirando uma folha entre os dedos.
— Já to perguntei antes, mas vou perguntar mais uma vez. Se tu... se não houvesse dever, se fosses livre de escolher, o que farias agora?
Ana ficou em silêncio por alguns instantes, enquanto ponderava a questão. Depois respondeu num murmúrio:
— Não vou mentir-te. Iria pedir-te que me levasses para casa. Para o Monte Branco. Acho que preferia envelhecer como a tia solteirona de Derelei a concluir esta viagem. No fundo, não passo de uma cobarde. E quanto a ti?
— Eu?
— O que farias, se tivesses liberdade de escolha?
— Não posso dizer-te — respondeu. — Além disso, não posso ter liberdade de escolha. Sacrifiquei-a há muitos anos.
— Para servir Bridei, queres tu dizer? Abanou a cabeça.
— Oh, não. Isso foi uma espécie de libertação. Refiro-me a algo muito anterior. Quando era um rapaz.
— Contas-me essa história?
A voz dela era doce aos seus ouvidos. Sentiu o perigo e reprimiu-se.
— Não vale a pena contá-la — retorquiu. — Temos dois dias. Depois voltas a ser Lady Ana e eu misturo-me no anonimato da casa de Alpin para fazer o trabalho pelo qual Bridei me paga.
— Ainda bem que vais ficar, mesmo que por pouco tempo. Bridei disse-me que eras um bom amigo e na altura respondi-lhe que tal me custava acreditar. Agora acredito.
— Bridei é demasiado rápido a conceder o estatuto de amigo a quem não passa de um servo leal.
— Isso é um disparate e sabe-lo bem — replicou Ana. — Ele confia nos teus conselhos, na tua força, no teu apoio. Vê-te através das muralhas que erigiste em teu redor. Quanto a ti, julgo que estiveste a seu lado em alturas difíceis.
Faolan recordou o Inverno em que pela primeira vez estivera ao serviço de Bridei. Ele e os seus camaradas guardas vigiaram um jovem nobre abalado e doente, após a sua primeira e única observância do sacrifício do Portal, na Fonte das Sombras. Recordou a viagem desesperada pela neve, desde Caer Pridne até Pitnochie, e o velho e bravo cavalo que o levara até Bridei, a tempo de retirar o futuro rei, já meio afogado, do lago da visão. Ana era perspicaz. Vira o que ele julgara ter ocultado.
— Quero pedir-te um favor — disse Ana.
— O quê?
— Se vamos chegar daqui a dois dias, devia tentar limpar-me. Gostaria de estar apresentável quando Alpin me vir. Há um lago a jusante e o dia parece vir a ser quente. Quero tomar banho, lavar o cabelo e vestir as minhas roupas. Podes ficar com estas de volta. Estão mais limpas do que as que estás a usar. E não fazia mal se te lavasses.
Olhou-a então, imaginando-se na pele de Alpin quando os viajantes saíssem do bosque e se dirigissem ao portão da fortaleza. A pele de Ana era pálida como um lírio e tinha o rosto manchado com cinza da fogueira. Com a túnica e as calças, com o cinto apertado em redor da cintura estreita, parecia mais do que nunca uma mulher. As vestes demasiado largas não lhe ocultavam as curvas graciosas do corpo, os seios redondos, a curva das ancas, as coxas bem moldadas. Estava a voltar a entrançar o cabelo. A poeira da viagem escurecera-o até à cor do mel e reduzira-lhe a exuberância, mas não deixava de ter uma beleza rara, era uma catarata sedosa, um feixe de luz viva, um manto primaveril. Fitou-lhe os olhos, cinzentos e límpidos, que pareciam apelar-lhe diretamente ao coração.
— Os teus receios são infundados — disse-lhe. — Alpin vai ficar satisfeito, acredita. — E queria dizer-lhe, És linda, mas silenciou essas palavras antes que lhe deixassem os lábios.
Um rubor delicado deu cor às faces de Ana. Susteve-lhe o olhar, como se procurasse discernir se ele era, deveras, capaz de mentir, simplesmente para lhe agradar.
— Mesmo assim, gostava de lavar-me — disse. — Tanto por mim, como por Alpin. Estar com o melhor aspecto possível, ou pelo menos tentar, dar-me-ia coragem.
— Depois de tudo o que fizeste, precisas de coragem para o que se segue? Depois de tudo o que fizeste no vau? Arriscaste a tua vida para me salvar. — Estava incrédulo.
Ana olhou para as mãos. Quando respondeu, a voz parecia a de uma criança.
— Tenho muito medo disto, Faolan. Preciso de toda a ajuda que consiga.
Deixaram-se ficar junto ao ribeiro. Pouco falaram, descansando em silêncio, satisfeitos com a companhia um do outro. O cavalo pastava solto. Naquela extensão de terra, as ervas cresciam em abundância e o animal não tinha razões para se afastar. Faolan pensou que seria um dia a guardar na memória, a ser usado como um talismã precioso que o encorajaria quando tudo aquilo terminasse. Sabia que, para ele, não voltaria a ter um dia assim, um curto espaço de tempo que parecia destacar-se da vida normal de um homem ou de uma mulher. Um dia que não fazia parte dos afazeres turbulentos, sendo, simplesmente, uma dádiva.
Ao meio-dia, o tempo aqueceu o suficiente para ele descalçar as botas e despir a túnica, e deitou-se na erva com a camisa e as calças sujas da viagem. Ana estava sentada nas pedras junto ao ribeiro, com os pés descalços na água e a trautear uma melodia. Faolan levantou-se, pretendendo dizer a Ana que, se fazia questão de tomar banho, aquela seria uma boa altura. Tinha dado um passo na sua direção, quando um som o fez estacar. Ana ficou muito quieta. Também o ouvira. Havia movimento no bosque mais além do seu pequeno santuário: vozes, o bater de cascos, o tilintar de arneses.
Tinham ensaiado a situação, por mais exaustos que estivessem nos primeiros dias após o desastre no vau. Quando os cavaleiros se deixaram ver por entre os pinheiros na encosta, Faolan assumira uma posição forte e de desafio, uma faca de arremesso na mão esquerda e a espada curta na direita. Ana estava atrás dele, a segurar a arma que lhe fora dada.
Os cavaleiros avançaram em fila única. Aqueles homens não usavam as faixas azuis dos primeiros atacantes. A sua cor parecia ser o vermelho, presente nas túnicas sob a forma de um cão escarlate, identificando-os como membros de uma casa cujo chefe utilizava aquele símbolo. Eram homens grandes, tal como era habitual entre os Caitt, altos, de ombros largos e possuidores de cabelos longos e barbas cerradas característicos, alguns com tranças, outros em estado natural. Desceram a colina e pararam, dispondo-se por forma a que o líder ficasse com um homem de cada lado. Ambos os cavaleiros empunhavam lanças e as extremidades dessas armas apontavam o coração de Faolan. O emissário descontraiu-se, enquanto calculava a trajetória a ser tomada pela faca, mesmo sabendo que não a utilizaria, pelo menos com Ana ali. Tentar uma defesa era garantir o seu extermínio e a captura da jovem.
— Ora, ora — disse lentamente o homem ao centro, a sorrir —, o que temos nós aqui? — Não fez menção de desmontar. — Qual o teu nome e ao que vens? — A pergunta surgiu num tom diferente, brusco e perigoso.
— Posso fazer-te a mesma pergunta — replicou Faolan calmamente. — Como vês, tenho uma dama comigo, e estamos a atravessar algumas contrariedades, pois acabamos de ter um contratempo sério no vau a alguma distância daqui. A senhora está fraca e aflita. Precisamos da vossa ajuda e não de um interrogatório.
O líder Caitt observou-o ainda com mais atenção, com um ar nada amistoso.
— Apenas um idiota cruza aquela passagem na altura do degelo da Primavera — indicou. — Qual é a vossa demanda? Onde estão as tuas marcas de guerreiro? Tens aspecto e pronúncia de Celta. E que história é essa de uma senhora?
— Eu sou... — começou Faolan a dizer, mas nesse momento Ana surgiu de trás dele, de faca na mão, e a atenção de todos centrou-se na jovem. O olhar do líder Caitt percorreu-a de alto a baixo, analisando, avaliando. Ergueu as sobrancelhas em desprezo e franziu o nariz, como se atingido por um cheiro incômodo. Uma fúria cega apoderou-se de Faolan, que agarrou a faca com mais força.
— Apresento-te os meus cumprimentos — disse Ana, com uma voz doce. — Sou familiar de Bridei, rei de Fortriu, e dirijo-me a Briar Wood. O acidente de que fomos vítimas não teve nada a ver com o degelo. Fomos atacados e não tivemos alternativa, a não ser tentar atravessar o vau. Houve uma... — A voz fraquejou-lhe.
— Uma enchente repentina — completou Faolan. — A nossa escolta foi arrastada.
O líder Caitt desmontou, com os dois guardas a manterem a posição das lanças, ao mesmo tempo que outros se aproximavam, de armas em riste.
— Prefiro falar com a senhora — indicou o líder, com uma ligeira ênfase na última palavra, o que a tornava profundamente ofensiva. Os dedos de Faolan tremiam com a vontade de silenciar aquele homem com um golpe rápido na garganta. Não precisaria de mais do que um instante. — O teu nome, minha querida? — perguntou o indivíduo. Ana respirou fundo.
— Ofendes-me — retorquiu calmamente. — Não sou «querida» de ninguém. O meu nome é Ana, filha de Nechtan, princesa da casa real das Ilhas Pequenas. Dirijo-me a Briar Wood como futura noiva do chefe Alpin. Preciso da vossa ajuda. Agradeço a vossa escolta até ao baluarte de Alpin, se a puderes conceder. Viajamos desde o vau com alguma dificuldade. Perdemos a nossa bagagem e o meu companheiro está ferido.
— O teu companheiro. E quem é ele, exatamente? Faolan e Ana responderam ao mesmo tempo.
— Eu sou...
— Eleé...
Cruzaram o olhar. Faolan percebeu em Ana a mesma dúvida que ele começara a sentir. Não podiam ser homens de Alpin, os quais saberiam que se esperavam viajantes de Monte Branco. A situação era perigosa. Ana identificara-se, arriscando-se a ser feita prisioneira enquanto potencial refém, uma moeda de troca importante. E Faolan era uma fonte de informação. Sabia, por experiências passadas, o que tal poderia significar.
— O meu músico da corte — disse Ana, sem alterar o tom, o que o horrorizou profundamente, embora de seguida tivesse reconhecido, mesmo com relutância, a perspicácia que o tornara desde logo inofensivo. — Chama-se Faolan. Foi o único elemento da minha escolta que sobreviveu. — A voz que lhe vacilava não era fruto do artifício.
— Não deves magoá-lo, pois não representa uma ameaça.
O líder Caitt olhou para as armas nas mãos de Faolan, para a pose adotada, as pernas afastadas, os ombros direitos.
— Não me parece um bardo — resmungou.
— Não me resta outra proteção — comentou Ana, sem hesitar.
— Faolan está a fazer o melhor que pode. Por favor, recolhe as lanças. Estão a assustar-nos.
Era desconfortável ser emasculado com meia dúzia de palavras bem escolhidas, mas a artimanha de Ana parecia estar a resultar. O líder acenou brevemente e os guerreiros ergueram as armas um palmo ou dois.
— Se não vais ajudar-nos — continuou Ana —, pelo menos espero que nos deixes passar incólumes. Seguiremos pelos nossos próprios meios até Briar Wood. Isso, se nos encontrarmos no caminho certo.
— Esboçou um sorriso apaziguador. Faolan pôde ver o quão assustada estava, e furiosa.
De repente, o líder Caitt sorriu, os dentes brancos a reluzir no rosto que, acima da barba exuberante, se encontrava coberto por tatuagens elaboradas. Os braços, sólidos como ramos de árvores, ostentavam braceletes com o mesmo tipo de decoração, espirais, tranças e criaturas a correr, cenas de batalha e pássaros em vôo.
— Goban! Encontra um cavalo para a senhora. Erdig! Ajuda-a a recolher os seus pertences. Tu — ordenou, olhando para Faolan —, não te mexas. Larga as armas.
— Não recebo ordens de um homem que não se identifica — retorquiu Faolan calmamente, mesmo sabendo que essa não seria a resposta correta de um músico contratado, mas incapaz de fazer uso de palavras mais servis.
— Mas que pena — disse o líder, aproximando-se e levando a mão à espada.
— Faolan! — interveio Ana bruscamente. — Faz o que ele diz! Com o coração repleto de amargura, Faolan largou a faca e a espada curta e ergueu as mãos.
— Assim está melhor — exclamou o líder Caitt. — Mordec, guarda estas facas num lugar seguro. Não queremos que o nosso bardo se magoe, não é verdade? Espero que mais tarde possamos gozar de um bom entretenimento... um pouco de harpa, talvez? Ouvi dizer que os Celtas têm bastante talento. — Seguiu-se uma gargalhada geral.
— Não temos muito disso, por estas bandas.
— Ele está ferido — disse Ana. — Não haverá música durante algum tempo, pelo menos até que... — silenciou-se. Um dos homens guiava um pônei trazido da retaguarda, uma criatura bem tratada de um tom pérola, cuja sela e cabeçada eram de um couro fino e decoradas com prata elaborada. A crina fora entrançada e a longa cauda escovada e deixada a brilhar. Era, sem dúvida, a montada de uma senhora. Faolan viu-a fitar o líder Caitt, nos olhos uma expressão acusatória.
— Sabias que vínhamos a caminho — disse ela. — Quem és tu? Por que estás a brincar conosco?
O líder voltou a sorrir, como se bastante satisfeito consigo próprio, e acercou-se para agarrar a mão de Ana na sua pata enorme. Faolan obrigou-se a permanecer imóvel.
— Ah, descobriste a minha pequena brincadeira! Sou Alpin, minha querida, e estes são os homens de Briar Wood. Agora estás em segurança. Pensamos que talvez já estivesses perto da nossa fronteira e tomamos a liberdade de te vir receber. Não imaginamos que te viéssemos a encontrar sem escolta e num tal estado de desalinho.
— Percorreu-a mais uma vez de alto a baixo com os olhos. Agora que estava mais próximo, a sua expressão alterara-se um pouco. Faolan gostou ainda menos do novo ar do que do desprezo que o homem exibira antes. — Imagino que o teu bardo tenha sido obrigado a emprestar-te as roupas dele. Ainda bem que não passa de um músico inofensivo. Como teu futuro marido, poderia sentir-me ofendido por tal gesto de familiaridade.
— Esse tipo de jogo não me diverte, meu senhor — replicou Ana.
— Depois de ouvires a narrativa da minha viagem até aqui, talvez percebas que esse tipo de brincadeira não é apropriada. Questões tão mesquinhas como a necessidade de vestir roupas inadequadas são de somenos importância, depois de vermos os nossos companheiros a afogarem-se à nossa frente. É claro que gostaria de ter comparecido na tua presença vestida como uma senhora. Os deuses não o permitiram. Agradeço-lhes que a minha vida tenha sido poupada, bem como a de Faolan. O rio levou dez almas nesse dia, e os homens que nos emboscaram mataram uma outra. O que significa a perda da arca de uma noiva, quando comparada com o que nos aconteceu? O que importa um pouco de humilhação?
— Talvez o nosso humor seja demasiado grosseiro para a parente do Rei Bridei — disse Alpin, já sem sorrir. — Com o tempo vais acostumar-te. Quanto à outra questão, a amenidade da minha casa será posta a tua disposição, bem como trajes mais adequados. Não somos bárbaros. Ainda bem que viemos ao vosso encontro. As profundezas de Briar Wood não se deixam atravessar facilmente por estranhos. Os caminhos podem ser enganadores. Deixa-me ajudar-te a montar. Essa é uma vantagem da roupa masculina, claro está. É mais fácil montar a cavalo.
Faolan ouviu um dos homens gracejar com outro em voz baixa, qualquer coisa sobre a senhora ser boa cavaleira por ter um bardo dócil com quem praticar durante a noite. Viu as faces de Ana tingirem-se de um vermelho-escuro devido à humilhação e sentiu as mãos formarem punhos. No instante seguinte, Alpin estava ao lado do ofensor, as mãos nas ancas, fulminando-o com o olhar.
— Desmonta! — ordenou.
O indivíduo assim fez. Também era um homem grande, mas o chefe agigantava-se.
— Repete o que acabaste de dizer — vociferou Alpin.
— Meu senhor, eu...
— Repete! — Um punho abateu-se na face direita do homem, que cambaleou para trás, contra o flanco do cavalo.
— Sinto muito, meu senhor. Eu...
— És surdo, Lutrin? Repete as tuas palavras imundas para que os deuses as ouçam. Será que ficaste com medo, agora que te apercebeste que o veneno que andaste a espalhar se refere à minha esposa? — Outra pancada, desta vez do lado esquerdo. Parecia que Alpin era destro com ambos os punhos. A volta deles, os guerreiros Caitt montavam os cavalos em silêncio, a observar com o que parecia um ar de apreciação.
— Teci um comentário imundo sobre a senhora e o seu bardo, meu senhor — disse Lutrin debilmente, enquanto cambaleava. — É óbvio que era falso. Lamento-o.
— Não chega — rosnou Alpin, e voltou a espancar o servo. Dessa vez, a vítima foi lançada pelo ar com a força do golpe, caindo imóvel sobre a erva. O cavalo empinou-se nervosamente.
— Fica com este cavalo, bardo — indicou Alpin. — E lembra-te que é a única carne que vais montar no futuro. Deixem-no! — bradou, quando dois dos seus homens tentaram ajudar Lutrin. — Ele que regresse sozinho, se a floresta o permitir. E acautelem-se, todos vocês. Insultem a minha esposa e ficam no mesmo estado. — Virou-se para Ana, cujo rosto continuava vermelho de embaraço. Faolan sabia que tal se devia quer às palavras de Alpin, quer à brincadeira precipitada de Lutrin. — Vem, minha querida — disse Alpin. — Vamos levar-te para casa.
Grassava uma doença no Monte Branco. Revelara-se pouco depois do festival da Harmonia e não parecia ter pressa em deixar a casa real, apesar do recitar de preces, das ervas curativas que eram queimadas e dos remédios antigos. Nos homens e nas mulheres, manifestava-se sob a forma de alguns dias de febre, a par de uma inflamação na garganta que fazia com que fosse difícil engolir. Nas crianças, chegava a ser fatal.
A filha mais nova do porteiro chefe de Bridei morreu no quinto dia de doença. A Mãe de Tudo regressou três dias mais tarde para levar o bebê de uma das mulheres da cozinha. Aquela enfermidade apoderava-se cruelmente dos mais novos, assolando os seus pequenos corpos com ataques de tosse dolorosos e violentos. Havia oito crianças com menos de dez anos a viver no Monte Branco, pelo menos até à chegada da doença. Os gêmeos de Garth, o vassalo de Bridei, e sua esposa Elda foram afetados, mas recuperaram. Eram crianças robustas, com a constituição do pai. Duas meninas tinham sido enviadas para Ban-merren aos primeiros sinais da doença na casa. Agora, era Derelei quem estava doente.
Com pouco mais de um ano de idade e a constituição da mãe, Derelei parecera um pouco corado num dia e no outro encontrava-se deitado numa enxerga, a arder de febre e a respirar com dificuldade. Não chorava muito. Tuala gostaria que ele chorasse. Desejava que lutasse. Seria fácil para a Mãe de Tudo levá-lo, uma criança tão pequena que a deusa poderia enfiá-la no bolso e desaparecer num abrir e fechar de olhos.
Certas coisas podiam ser feitas e Tuala fê-las com a mente confusa, o coração paralisado pelo terror. Fez poções curativas. Manteve um braseiro abastecido de ervas curativas e umedeceu o pequeno corpo do filho com água fria. Cantou-lhe e acariciou-lhe a testa quente. Sempre que ele não conseguia respirar, encostava-o ao ombro a andava de um lado para o outro, pois isso parecia aliviar-lhe o peito. Rezou em desespero À Que Brilha, orações de todo formais: Não sabes o quanto o amamos? Ele não passa de um bebê! Não o magoes mais!
Quando Bridei estava presente, sempre que conseguia afastar-se dos preparativos finais para o grandioso conselho, Tuala procurava ocultar o seu pânico do marido. Havia um bando de servas para ajudar, mas poucas eram aquelas em quem Tuala confiava, a ponto de entregar Derelei numa altura de tanto risco. Mara, a caseira de Pitnochie, continuava no Monte Branco. Não se ofereceu para ajudar a velar sobre Derelei, pois as crianças pequenas nunca tinham sido o seu forte. Limitou-se a assumir a maioria das outras responsabilidades de Tuala, dedicando-se à gestão da casa com a mesma eficiência com que dirigira o domínio de Broichan durante os anos em que Bridei e Tuala tinham sido, eles próprios, crianças. À noite, surgia à porta de Tuala com uma bebida condimentada, ou uma travessa com fatias de pão e queijo, e ordenava à Rainha de Fortriu que descansasse.
— Não vais ajudar ninguém, se ficares esgotada por não dormires.
Também Bridei andava exausto. Passava os dias fechado com os conselheiros, não só a preparar a assembléia iminente, a qual, ao contrário daquilo que os seus espiões espalhavam, não teria lugar por altura das colheitas, mas sim antes do solstício de Verão, mas também a ultimar o grande empreendimento a realizar no Outono, com ou sem o apoio do rei de Circinn. A assembléia seria vital. Fora a primeira vez que Drust, o Javali, se deixara convencer a visitar a corte de Bridei, desde que este derrotara o cristão Drust na eleição para o trono de Fortriu. Drust esperara alargar o seu governo a ambos os reinos. Tal fato teria resultado na tão esperada reunião dos reinos de Fortriu e Circinn, mas sob a fé cristã de Drust. Teria sido uma catástrofe impensável, a negação da fé antiga dos Priteni, uma fé à qual Bridei se mantivera profundamente leal desde os dias de infância na casa de Broichan.
Ao longo dos cinco anos de reinado, Bridei trabalhara com afinco, em busca de uma paz cautelosa com Drust, o Javali. Fazer com que aquele rei do sul concordasse em viajar até à assembléia fora um golpe de mestre e era normalmente aceito como indicador da disposição de Drust em apoiar o combate armado com Dalriada, um inimigo comum. O rei de Circinn seria acompanhado por outros, em especial o seu influente conselheiro Bargoit. Os chefes tribais de Fortriu planeavam o que poderia ser dito e por quem, até ao mais ínfimo pormenor. Trabalhavam horas a fio. Até mesmo Tharan parecia cansado.
A noite, quando Derelei se debatia com a tosse, Bridei e Tuala ficavam acordados com o filho. Bridei andava de um lado para o outro com o filho nos braços, dando palmadinhas nas costas da criança. Tuala embalava Derelei sobre o joelho, sentada ao lado de uma bacia com água quente, onde tinham sido mergulhadas folhas aromáticas, calaminta e funcho. O vapor ajudava a criança a respirar. Quando as pálpebras de Derelei se fechavam por alguns momentos, nenhum dos pais se atrevia a dormir, com medo que acontecesse alguma coisa sem que dessem por nada. Ouviam o som leve da respiração e davam as mãos. Sabiam que, de todos os testes impostos pelos deuses no passado, nada era mais difícil do que aquela provação.
No terceiro dia da maleita de Derelei, Bridei foi obrigado a viajar até Caer Pridne. Estaria ausente alguns dias. A fortaleza costeira era agora o quartel-general dos esforços militares do rei, orientados pelo seu parente e líder militar, Carnach, de Thorn Bend. Era ali que se preparava a grande empresa contra os Celtas de Dalriada. Tornara-se necessário que o rei surgisse em pessoa, a fim de encorajar, inspirar e desafiar aqueles que em breve derramariam o sangue por aquela causa. Tuala sabia que Bridei não queria ir, não naquele momento. Mas também sabia que ele tinha de partir. Descansou-o o melhor que pôde.
— Derelei parece um pouco melhor, esta manhã. Já respira melhor. As ervas ajudam. Tenta não te preocupares demasiado, meu querido.
Bridei inclinou-se para lhe beijar a testa, para levar o dedo à face do filho, onde a pele macia estava corada com a febre. Depois partiu. Tinha o rosto exausto e pálido. Parecia a Tuala que ele chegara ao ponto da exaustão em que se deixa de perceber o que os outros dizem, e em que também as próprias palavras fazem pouco sentido. Pelo menos em Caer Pridne dormiria um pouco.
A questão de Broichan não fora discutida entre eles. Sendo um druida, Broichan era bastante entendido em ervas. Mantivera o velho rei vivo durante muitas luas além do que parecera a todos os outros a altura do seu falecimento. Garantira assim que o filho adotivo Bridei estaria pronto a reinar quando tal oportunidade se apresentasse. Tuala sabia que Broichan tinha vindo a cuidar de outras vítimas da maleita. Era um vidente poderoso e os deuses ouviam-no. Por que não pedir-lhe ajuda? Mas Bridei não o sugerira, mesmo com o filho a arder de febre nos seus braços. Não havia necessidade de o dizer. Tuala tinha medo de Broichan. Havia razões para tal, motivos novos e antigos. Não era capaz de confiar nele, especialmente no que dizia respeito ao filho. Não iria pedir-lhe e, sabendo disso, também Bridei não o faria.
Com Bridei fora, Tuala sentiu-se muito sozinha, mesmo com o Monte Branco cheio de gente. Sentia a falta de Ana. A presença da jovem era repousante. Tratava dos seus assuntos em silêncio, espalhando uma sensação de calor e de paz, e adorava Derelei como se fosse seu próprio filho. Se Ana ali estivesse, Tuala poderia ter cedido às lágrimas, sem julgar que desapontava todos em seu redor. Desejava do fundo do coração que Bridei não a tivesse mandado embora. E gostaria também que não tivesse enviado Faolan. Breth viajara para Caer Pridne como guarda-costas de Bridei, mas Tuala nunca tinha como garantida a segurança pessoal do marido a menos que Faolan estivesse por perto. Com a assembléia tão próxima, receava adagas na escuridão, flechas súbitas, copos envenenados. Até o mais adorado dos reis tinha os seus inimigos. Era um mau dia. Derelei não comia, e o peito de Tuala doía-lhe, de tão cheio de leite. Usou um trapo para espremer algumas gotas de água fresca para a boca da criança, mas o que foi engolido saiu pouco depois num espasmo ansioso e doloroso, que o deixou inerte e exausto. Mara chegou e dessa vez permaneceu, garantindo uma reserva de panos frescos e cuidando do lume enquanto Tuala andava de um lado para o outro com Derelei nos braços. Do quarto emanava um cheiro enjoativo, o odor do desespero. De vez em quando, Tuala voltava a dar o peito à criança, e de vez em quando o menino fungava e movia a cabeça, como se estivesse com fome. A esperança renascia no íntimo de Tuala, apenas para voltar a desvanecer-se quando o bebê desviava a cabeça, a pequena boca demasiado cansada para sugar. Tentaram mais uma vez a água. Lavaram-no, com Tuala a segurá-lo, enquanto Mara passava com o pano úmido sobre a pele quente. Tuala podia ver a alteração nas feições do filho, os olhos cada vez mais encovados e distantes, a pele a assumir um tom cinza, as faces rechonchudas a mirrar. Parecia o fantasma de uma criança. A água na bacia de Mara agitou-se quando a caseira mergulhou o pano. Tuala evitou-lhe rapidamente o olhar. Mara não disse nada, mas pareceu a Tuala ver-lhe uma mensagem nos olhos. Pede-lhe. És tonta se não o fizeres, pois não tens nada a perder. E Tuala percebeu que, se não fizesse mais nada para além das caminhadas pacientes, dos banhos, das ervas, o filho não veria outra manhã.
— Vou chamar Broichan — disse. — Assim que voltarmos a vestir Derelei.
— Sim — replicou Mara. — Faz isso. O mais certo é ele estar à tua espera. Vai-te embora, eu trato da criança. Já esperaste de mais. Nunca pensei que fosses tola ao ponto de deixar que o orgulho te roubasse o teu único filho.
E quando Tuala a fitou, gelada com o choque, Mara disse:
— Abre os olhos, rapariga. Não és a única que gosta do miúdo. Se não soubesse que eras contra, Bridei já teria mandado chamar Broichan há dois dias. Não fiques com esse ar. Vá, vai buscá-lo. Talvez ainda haja tempo.
Foi o mais longo discurso que Tuala alguma vez ouvira da boca de Mara. Reprimiu a confusão de sentimentos que a assolavam e dirigiu-se dos seus aposentos à câmara privada de Broichan, sem se aperceber de estar a andar.
Não foi preciso bater à porta. Abriu-se quando Tuala se aproximou, e lá estava o druida, alto e sombrio no seu manto escuro, com um cesto pendurado no braço, onde vários artigos estavam arrumados: um molho de ervas, velas, ramos de vidoeiro, pequenos frascos e potes rolhados. Tuala olhou para ele e viu nas feições do druida o mesmo ar de exaustão e de ansiedade que ensombravam o rosto de Bridei quando da partida do rei. Viu que Mara tinha razão. Broichan estava a espera que ela pedisse ajuda, aguardava, desesperado, que ela não chegasse demasiado tarde, impossibilitando-o de salvar o filho de Bridei.
— Preciso da tua ajuda. — As palavras saíram num murmúrio. Broichan aquiesceu sem falar e acompanhou-a, quando Tuala se virou, dirigindo-se aos seus aposentos.
— Fiz tudo o que pude — disse ela. — Tudo. E ele não melhora.
— Tudo? — O tom de Broichan era calmo. — Olhaste para o teu espelho das visões para examinar o futuro dele? Atreveste-te a fazer isso?
Tuala sentiu um arrepio.
— Não. Isso não. Sabes que já não uso essas artes. Não é apropriado que uma rainha chame a atenção dessa forma. Além disso, não era capaz. Não para isto. Não, podendo ver... — Uma noção terrível apoderou-se dela. Teria sido por isso que Broichan ainda não tinha aparecido? — Tu... tu fizeste-o? Viste... ? — Não o diria em voz alta. Viste a morte do meu filho e não queres enfrentar o desejo da Mãe de Tudo.
— Não, Tuala. — A voz de Broichan era uma melodia sombria, grave e ressonante. — Não sou assim tão forte. Se devo travar uma batalha para esta criança, irei armado com esperança. A minha taça das visões está tapada. Assim permanecerá, até que este flagelo desapareça do Monte Branco.
— Podes salvá-lo? — Tuala ouviu a voz a fraquejar. Estavam à porta do quarto. Lá dentro, podia ouvir-se Mara a atarefar-se, resmungando entre dentes. Derelei não se fazia ouvir.
— A questão não é se o posso salvar — disse Broichan, enquanto abria a porta —, mas se vais permitir que o trate para que possa ser salvo. Sei que o que está no nosso passado é causa de grande desconfiança entre nós. Por que outra razão esperadas tanto tempo, até à doença ser quase irreversível? — Estava agora junto à enxerga onde o bebê se revirava num sono inquieto. Mara, que espremia um pano, observou com uma expressão cuidadosamente neutra. Broichan levou a mão à fronte de Derelei. — Já ultrapassamos a fase das ervas e das poções — indicou. — As chamas desta febre estão a queimá-lo. O coração foi levado ao limite. Confias em mim?
— Sim. — Um murmúrio.
— Muito bem. Preciso de adormecer a criança, um sono tão profundo que vai parecer-te que Derelei está prestes a deixar-nos. Não fiques alarmada. Vou permanecer a seu lado e manter o controlo. Isso vai conceder ao seu pequeno corpo o descanso de que precisa, Tuala. Quase que exauriu as forças a combater a doença. Vou deixá-lo nas mãos d'A Que Brilha durante algum tempo. Pode ser difícil de ver. Podes retirar-te e descansar um pouco. Mara ajudar-me-á no que for preciso.
— Não — gemeu Tuala. — Não vou deixá-lo.
Broichan observou-a sobriamente. — Muito bem. Vais ver uma sombra a passar. Poderás sentir um certo frio. Será de esperar. Confia em mim, Tuala. Não vou perdê-lo.
A rainha voltou a mirar as feições resguardadas, os olhos escuros e impenetráveis, a superfície dura e lisa das faces e do queixo. Broichan raramente mostrava o que sentia. Pousava agora as mãos compridas de cada lado do rosto corado do bebê e falava numa voz doce e baixa, quase como se estivesse a cantar.
— Derelei. Dorme agora, pequenino. Pomba e mocho voam contigo. Salmão e lontra nadam a teu lado. Veado e lebre mostram-te os caminhos secretos. Dorme, Derelei. A Que Brilha vela por ti e dá-te bons sonhos. — Moveu os polegares contra o pequeno rosto. Os olhos estavam diferentes, meigos com o amor, mas brilhantes com o poder do encanto. Ao observá-lo, Tuala percebeu como fora cruel ao mantê-lo afastado. Viu que a criança era, com efeito, tão querida a Broichan como a ela e a Bridei. Não sabia qual a razão para tal, mas sabia que não tinha nada a ver com poder, com ambição ou com jogos. Era algo verdadeiro, algo honesto, e ela não tinha o direito de se intrometer.
— Dorme agora, meu valente. Descansa da tua grande batalha. Descansa agora, abrigado e seguro. Poupa a tua força. Terás bons tempos à tua frente.
Derelei estava descontraído, os olhos fechados, a boca perfeita entreaberta. Tinha os braços esticados, as mãos pequenas fechadas como se contivessem segredos. Broichan começou a desenhar símbolos no ar por cima do rosto da criança e a entoar um cântico rápido numa língua que Tuala não conhecia. O quarto escureceu e o ar arrefeceu, como se um bafo gelado tivesse penetrado através das paredes sólidas. Tuala cerrou os dentes, recordando uma noite durante o Portal, em que a coisa escura que vira na taça das visões fora quase insuportável. Broichan não era infalível. E se estivesse enganado quanto a tudo aquilo? Quase podia sentir as garras do Corvo Negro no quarto silencioso. Era como se ouvisse o bater das asas negras. Deitado indefeso na enxerga, Derelei parecia tão pequeno. O rosto pareceu tornar-se lívido, como se a vida estivesse a ser sugada perante os seus olhos, e viu o movimento ofegante do peito abrandar até que mal se conseguia distinguir a respiração. Uma a uma, as velas do quarto apagaram-se. Na obscuridade, a pele de Derelei parecia acinzentada e morta. Já não transmitia um ar descontraído e calmo, parecendo antes uma vítima à espera do punhal. Mara atiçou o lume, cuja luz irregular mal tocava os cantos escuros do quarto.
O cântico de Broichan prosseguiu, introduzindo-se na cabeça de Tuala, enchendo-lhe a mente com o seu poder insidioso, até que também ela sentiu uma exaustão avassaladora, um desejo profundo de se entregar à guarda da deusa, de descansar, de se curar, de entrar num tempo de escuridão que fosse como uma morte breve. As pernas já não a suportavam.
— Toma, rapariga — disse Mara, empurrando um banco até aos pés da enxerga, e Tuala desfaleceu sobre o assento, à medida que a invocação continuava. Agora, ao mesmo tempo que entoava o cântico, Broichan executava um ritual em volta do bebê adormecido. Espalhava ervas no peito, no baixo-ventre de Derelei e sobre as mãos, untava-lhe a fronte com um óleo pungente e colocava uma pequena flor em cada pálpebra. Tuala estremeceu, pensando na morte. Tinha de ter confiança. Vira o amor nos olhos de Broichan.
O druida abriu um pote minúsculo e, retirando uma pitada de um pó avermelhado, contornou a forma adormecida da criança, formando uma proteção contra intrusos, uma barreira de segurança. O cheiro da erva fez Tuala ter vontade de espirrar. Derelei não se mexeu. Continuou deitado como se nunca mais fosse voltar a mover-se. Na penumbra, Tuala não conseguia distinguir o leve movimento da respiração do filho. Estendeu a mão para lhe tocar, em busca de uma garantia, pois a criança parecia um brinquedo rejeitado, inerte e indefeso. A mão de Broichan saltou, agarrando-lhe o pulso, mantendo-a afastada. O cântico continuou sem interrupção. Tuala sentiu as lágrimas quentes escorrerem-lhe pelas faces. Fechou os olhos e dedicou a sua própria oração À Que Brilha. A deusa sempre velara por ela, sempre, mesmo numa altura em que se julgara completamente só. Como poderia A Que Brilha fazer menos por Derelei? Esperança, dissera Broichan. Irei armado com esperança.
O cântico abrandou, entrando no ritmo de uma canção de embalar, e Broichan, com o seu ritual completo, ajoelhou-se ao lado da criança. Mara encostou um pavio ao lume e começou a acender as velas, uma a uma. Em breve, um brilho quente iluminava o quarto, imerso em silêncio.
— Agora devemos permitir que a criança descanse — indicou Broichan. Não lhe toques. Estás a ver, ainda respira, mas lentamente. Este é um sono mais profundo do que qualquer outro que homem ou mulher conheçam, um sono à beira da morte. Temos de esperar. Velarei por ele. Devias descansar. Não há nada que possas fazer aqui, até que ele se agite.
Tuala tinha palavras de fúria na ponta da língua, mas reprimiu-as, engolindo a mágoa.
— Mesmo assim, eu fico — disse, em voz baixa. — Não tens de velar por ele sozinho.
Broichan mirou-a e desviou o olhar. Os olhos do druida não deixavam transparecer qualquer emoção.
— Quanto tempo? — perguntou Tuala.
— Não te sei dizer. Pareces exausta. Foi um período bastante duro. Descansa enquanto podes.
— Também tu pareces cansado — replicou Tuala. — Acho que não fomos apenas eu, Bridei e o nosso filho a termos sido postos à prova. Ficarei contigo. Mara, importas-te de pedir a uma das mulheres que nos traga hidromel e alguma comida? E obrigada por teres estado aqui. Por teres sido tão paciente. Recolhe à tua cama, agora.
— Paciente? — repetiu Mara. — Não sei se lhe chamava isso. Sei quando devo falar e quando devo calar a boca, só isso. Então vou-me embora. Há quem saiba que não deve recusar o descanso quando lhe é oferecido. Vou mandar alguém trazer-lhes de jantar.
Nas profundezas da fortaleza de Caer Pridne, antiga sede dos monarcas de Fortriu, havia um local de rituais negros. O deus cujo poder habitava aquela caverna negra não tinha nome, ou pelo menos um que pudesse ser pronunciado. Encontrava-se atrás do panteão de deidades que regiam a vida diária do povo de Bridei: A Que Brilha, cuja jornada no céu noturno comandava as marés em todas as coisas vivas; o Guardião das Chamas, que adorava homens corajosos e leais; a bela donzela Todas-as-Flores e a Mãe de Tudo, guardiã dos sonhos. Este deus tinha um pequeno reflexo no íntimo de todos os homens, oculto numa parte recôndita que poucos admitiam ter. Era o outro lado do Guardião das Chamas, a sombra sem a qual a substância não poderia existir, o caos sob a ordem, o tumulto no centro da existência. Ano após ano, a Fonte das Sombras testemunhara a morte de uma jovem em reconhecimento da fome d'O Que Não Tem Nome. Ano após ano, a sacerdotisa chefe de Banmerren preparara a vítima e o rei de Fortriu, com o seu druida ao lado, procedera ao sacrifício. Até que Bridei se tornou rei.
Assistira à cerimônia somente uma vez. Vira-a, participara e percebera que nunca mais a deixaria voltar a acontecer. O ritual do Portal tinha agora lugar no Monte Branco e não havia derrame de sangue, desperdício de uma vida jovem, nem a terrível exigência que era colocar o dever antes do mais desesperado clamor do coração humano. Poucos duvidavam que essa alteração teria o seu custo. Em tempos, um rei desafiara o deus negro. Fora levada a cabo uma vingança chocante, um castigo que quase exterminara os Priteni para sempre. Bridei, mesmo mergulhado na tradição e profundamente leal aos deuses dos ancestrais, sabia, no seu íntimo, que a opção fora a correta. Se houvesse conseqüências, arcaria com elas.
A Fonte das Sombras fora encerrada e um portão de ferro barrava o caminho estreito e íngreme que mergulhava para o interior da colina. Bridei esperou que Breth lhe abrisse o portão. Entrou, seguido do pequeno cão Ban, e voltou a aguardar que Breth fechasse a grade.
— Esperas por mim? — perguntou ao guarda-costas. — Não sei quanto tempo vou demorar.
— Estarei aqui. — Breth instalou-se junto ao portão, uma presença sólida e tranqüilizadora. Mais acima no carreiro, no topo de uma das
rampas ascendentes, ardia uma tocha. A brisa fresca vinda do mar fazia-o crepitar e bruxulear. Bridei desceu os degraus, com um archote menor na mão. A fonte encontrava-se nas profundezas da colina e aquela entrada precipitosa era o único acesso. Os níveis inferiores encontravam-se imersos numa escuridão absoluta e um frio sobrenatural subia da caverna lá em baixo. Ban parou nos degraus, a tremer. Bridei olhou para ele.
— Fica de guarda! — ordenou, concedendo a Ban a dignidade de executar uma tarefa. À pequena criatura não faltava coragem, com provas dadas na sua já longa história. Todavia, entrar na câmara da fonte era mais do que poderia ser esperado de qualquer criatura. Ban sentou-se, uma sombra branca nos degraus de pedra escura, e manteve a sua guarda fiel. Bridei prosseguiu.
Não podia ali entrar sem recordar a primeira vez: a água negra, os archotes, os homens de trajes escuros e a rapariga solitária, como uma flor pálida na sua túnica cerimonial. O velho rei, doente à beira da morte, a sua vontade de ferro esforçando-se para controlar o corpo frágil. Broichan, alto e sombrio, o receptáculo do poder terrível do deus sem nome. E o momento em que o rei Drust pedira ajuda e ele, Bridei, foi o único a oferecer-se. O momento em que ele ajudara a afogar uma jovem...
Deixou a tocha no encaixe de ferro à entrada e foi ajoelhar-se junto à água. O tanque retangular era rodeado por uma estreita saliência de pedra, um palmo acima da superfície escura. O ar era frio, uma presença de morte que sussurrava nos cantos daquele espaço. Bridei fechou os olhos e esticou os braços para os lados, assumindo uma pose de meditação. Imobilizou-se. Permaneceu ajoelhado numa vigília silenciosa, à medida que o céu no exterior da câmara profunda assumia o tom violeta do crepúsculo e o cinza de uma noite primaveril. Tanto Bridei como Broichan cumpriam aquela observância sempre que visitavam Caer Pridne, na convicção de que a obediência silenciosa do rei e do seu druida pudesse aplacar, pelo menos em parte, a fúria da deidade por já não receber os seus tributos sob a forma de sangue quente e carne viva.
Bridei era versado na condução de rituais. Broichan mantivera-o acordado na véspera do solstício de Verão desde os quatro anos de idade, e garantira que o filho adotivo mergulhasse tanto na tradição como qualquer druida. Mas aquela noite representava um desafio particular. Derelei estava a morrer, Bridei sabia que assim era, mesmo com as palavras de conforto de Tuala. Tinha de apresentar orações especiais, palavras sob a forma adequada ao mais perigoso dos deuses, mas o coração de Bridei estava cheio de preces incoerentes, nada que tivesse alguma coisa a ver com práticas rituais. Esforçou-se por reprimi-las, controlando a respiração, mantendo a pose imóvel, fixando a mente na seqüência de frases que Broichan lhe ensinara serem as adequadas ao momento e ao local onde se encontrava:
Respiro na escuridão
Respiro na quietude
Respiro no centro da escuridão
Vergo-me conto o trigo ao vento
Vergo-me como o vidoeiro na tempestade
Vergo-me ante o sopro
Do mais velho de todos...
Mas, sob as palavras solenes, outras ansiavam por serem ouvidas. Sob o movimento do seu peito, jazia o fulgor caótico do pânico. Sob o ritmo calmo do coração que meditava, estava o lamento agressivo da perda iminente, o dilacerar, o pranto, as coisas que um rei não dizia, nem mesmo sendo um pai jovem, com um filho pequeno à beira do longo abraço da Mãe de Tudo.
Debaixo da terra jaz a grande pedra Debaixo da pedra jaz o fogo Debaixo do fogo jaz a cinza e o pó Debaixo do pó, o sopro Ergue-se e baixa.
As palavras saíam livremente, firmes e seguras. Fora bem treinado. As lágrimas que lhe escorriam pelas faces não faziam parte dos ensinamentos de Broichan.
Purifica, Fogo
Limpa até ao osso
Afoga, Enchente
Mais funda do que a baleia
Flagela, Vento
Arrasta amigos e parentes
Engole, Pedra
Silencia toda a história
Que se abra o teu caminho: Mestre das Sombras.
Mais velho de todos.
As palavras ajudaram-no. O padrão fora tão bem aprendido que fluíam quase sem que desse por isso. Ao longo da infância, percebera que tal disciplina resistia ao mais poderoso dos assaltos. As palavras foram ditas e apenas restou a câmara, a água e o silêncio. Bridei manteve a pose, as costas direitas, os braços estendidos. O archote lançava a sua sombra pela caverna, uma águia, o punho de uma espada, uma cruz. As correntes de ar frio deslocavam-se em seu redor, murmurando-lhe aos ouvidos. Morto. Morto. Está morto. E ouviu a própria voz a responder. O tom diferente do cântico firme das preces formais, mas sem ser ainda o grito angustiado do seu coração, mantinha-se um murmúrio.
— Não quero negociar. Sei que isso não é possível. Apenas quero que saibas que sou leal. Amo os deuses de Fortriu e jurei manter o meu povo fiel à tradição antiga. Não peço favores. Por que haveria a vida do meu filho de ser mais valiosa do que as vidas das crianças que a praga já levou? Apenas te digo que é meu filho e que o amo. E que é inocente. Não é só meu, mas também de Tuala. Também ela está ferida de morte, ela que sempre foi a filha adorada d'A Que Brilha. — Na sua mente, Bridei ouviu em resposta: Desde o início que ela sabia que serias rei. Compreendeu o que estaria destinado por te amar.
Bridei engoliu em seco e prosseguiu. — Digo-te que se este é o castigo que escolheste por não ter mantido a tradição, devo aceitá-lo. E digo-te que rivaliza em crueldade com o sacrifício, pois ambos exigem a destruição de uma vida nova, fresca e boa. A obediência que me exiges é um fardo difícil. Mas sou rei e vou suportá-lo.
CAPÍTULO CINCO


Fora tola ao dizer que Faolan era um bardo, pensou Ana. O emissário pessoal do rei deveria apresentar a Alpin os termos de Bridei e ter a certeza de que o chefe Caitt não se aliaria aos Celtas. Era suposto preparar o caminho para Ana e garantir que o casamento não se efetuava, a menos que o tratado fosse assinado. Agora não poderia fazer nada disso. Ana não gostara do olhar daqueles homens, pois dava a entender uma execução sumária, ou o arrancar de uma confissão através de quaisquer meios por eles escolhidos. Apenas quisera proteger Faolan. Estavam quase em Briar Wood e, com uma sensação de desânimo, Ana percebeu que teria de ser ela própria a negociar.
Os pinheiros naquela região eram altos como torres, as encostas irregulares e o solo marcado por aglomerados rochosos bizarros, que se assemelhavam a criaturas apenas encontradas nas narrativas: um trasgo sorridente, um dragão, um cão infernal, um monstro agachado. Por vezes, Ana pensava vê-las mover-se, esticando um dedo, uma cauda hirsuta, um par de orelhas peludas. Noutras alturas, ouvia coisas a voar de árvore em árvore, coisas que de certeza não eram aves, pois gemiam e chiavam ao passar. Também havia pássaros, muitos, muitos pássaros, de todos os tipos. Corvos empoleirados ao longo do caminho, a saudar os viajantes com os gritos trocistas. Cotovias e carriças saltitavam por entre a vegetação. Mais acima, ouvia-se por vezes o chamado dos pintassilgos e dos cruza-bicos. Os arbustos restolhavam constantemente e Ana viu criaturas peludas subirem e descerem os pinheiros, os pequenos corpos ágeis como flechas. No ar, zumbia um sem número de insetos. Não era de admirar que os pássaros se reunissem ali.
Os caminhos eram traiçoeiros. Era freqüente os homens pararem para trocar opiniões antes de prosseguirem, mesmo conhecendo a floresta. Por vezes, não parecia haver um verdadeiro caminho, apenas uma inclinação íngreme e pedregosa, ou uma vasta extensão de pântano atulhado de árvores derrubadas, ou um percurso estreito por entre arbustos contorcidos e espinhosos. A zona tinha uma beleza selvagem. Ana interrogou-se sobre como ela e Faolan teriam sido capazes de encontrar o caminho.
Não conseguia ver Faolan. Alpin insistira que ela viajasse na frente do grupo, logo atrás dele, tendo sido o bardo relegado para o fundo da comitiva. No Monte Branco, bem como na corte do primo, nas Ilhas Pequenas, os músicos talentosos eram bastante estimados, pois não eram eles tecelões de sonhos e contadores de verdades? Dos melhores dizia-se que tinham a atenção dos deuses. Era óbvio que as atitudes em Briar Wood eram diferentes. Os Caitt eram tidos como um povo selvagem e guerreiro. Talvez não tivessem música. Ana estremeceu. Os ombros largos e protegidos com ombreiras de couro nunca deixavam a sua vista enquanto ele cavalgava mais à frente. O cabelo castanho-escuro, comprido e denso, caía-lhe pelas costas, não exatamente desleixado, mas sugerindo uma certa qualidade que Ana já percebera no interrogatório a Faolan e nas tentativas grosseiras de fazer gracejos. Não parecia um homem de grande finura. Ana interrogou-se sobre quantas mulheres poderia haver em Briar Wood, e quem elas seriam. Talvez Alpin tivesse irmãs, uma mãe. Alguns daqueles guerreiros poderiam ter esposas. Talvez elas lhe dissessem como suportar a vida entre tais homens.
A floresta crescia espessa em redor das muralhas do baluarte de Alpin. Telhados de colmo surgiram quando os viajantes chegaram ao cimo de uma colina e avistaram o reluzir súbito de um lago próximo, que desapareceu quando voltaram a descer. Mais perto da fortaleza, os pinheiros deram lugar a carvalhos escuros e a ulmeiros imponentes, as folhas novas viçosas ao sol da Primavera. Ana teve uma visão: Faolan deitado na erva em mangas de camisa, ela sentada com os pés descalços no ribeiro, como se fosse uma criança de folga das aulas. Era espantoso que isso tivesse acontecido no mesmo dia que aquela viagem, com aqueles guerreiros estranhos, até muralhas tão altas e ameaçadoras. Com um estranho grosseiro, a quem seria obrigada a tolerar. Com quem, em breve, seria obrigada a partilhar a cama.
Chegaram aos portões, os quais foram abertos a partir do interior a uma ordem de Alpin, e entraram num pátio cercado por edifícios de pedra: uma casa de habitação grande, um estábulo, locais para armazenamento de provisões e, imaginou Ana, tudo o necessário para manter uma casa tão grande num lugar tão remoto. As muralhas envolviam tudo, afastando a floresta, embora aqui e ali os ulmeiros espreitassem por cima da última fileira de pedras.
Alpin ajudou-a a desmontar. Ana não se importou com a forma como as mãos dele lhe permaneceram no corpo ao fazê-lo, nem com o modo como ele sorriu perante a cedência. Deixou-se ficar muito quieta, à espera que Alpin retirasse as mãos. Tentou não cruzar o olhar com o do homem. Dirigiu a atenção aos outros cavaleiros, que já não se encontravam em linha, tendo-se aproximado. Captou o olhar de Faolan, cuja expressão a perturbou, pois aquele era um homem que sempre dominara as feições. Ana sabia, pois Tuala explicara-lhe, que um homem cujo mister era o de espião e assassino, tinha de aprender a tornar-se invisível. Podia ter sentimentos, mas aprendia a ocultá-los. Naquele momento, Faolan não seguia essas regras. Tinha os olhos brilhantes de fúria.
Ana desviou o olhar. O companheiro teria de aprender a seguir o novo jogo. Teria de se adaptar às novas regras que ela criara ao nomeá-lo seu bardo, retirando-lhe assim a autoridade. Era ela a única culpada.
— Estou muito cansada — disse. Alpin largara-lhe finalmente a cintura e olhava-a de forma um pouco trocista. Suja, desalinhada e exausta como estava, já para não falar nos trajes masculinos que envergava, parecia-lhe importante tomar cedo a iniciativa. — Se for possível ter a assistência de uma serva... um quarto sossegado... um pouco de água quente...
— Os meus aposentos estão ao teu dispor, é claro — adiantou Alpin, com um tom melífluo. Sob a delicadeza das palavras havia traços de irrisão que deixaram Ana desconfortável.
— Obrigada, mas isso não seria próprio. Mais tarde irei apresentar-te os termos de Bridei, mas só depois de tomar banho, de mudar de roupa e de descansar. Necessito de aposentos próprios. Um quarto de tamanho razoável. Uma porta com tranca. E espero que o meu homem seja bem tratado. Foi ferido e quase se afogou. Quero a tua garantia de que ele não só estará em segurança, mas que também será bem alimentado e confortavelmente instalado.
— Estás muito preocupada com o seu bem-estar.
— Meu senhor Alpin — declarou Ana. — Parti da corte de Bridei, no Monte Branco, com um escolta de doze pessoas. Este homem é o único que me resta. É claro que estou preocupada. Ficarei bastante desagradada se não quiseres, ou não puderes, satisfazer este meu desejo. E o outro. — Não esperara que fosse necessário apresentar-lhe exigências e descobriu que as mãos lhe tremiam. O medo e a raiva faziam com que fosse cada vez mais difícil manter uma expressão calma.
— Uma tranca, não é? E seria por dentro? — Alpin olhou para os homens que o rodeavam. — Rapazes, ela conhece-me nem há uma tarde e já desconfia de mim! — Os guerreiros soltaram uma gargalhada. — Pois é, o mais certo é que eu já tenha esquecido como se trata uma senhora. Depois de tomares banho e de termos deitado essa roupa para o lixo, talvez seja mais fácil voltar a apanhar-lhe o jeito. — Os serviçais tinham começado a surgir da casa e Alpin estalou os dedos na direção deles. — Orna! Esta senhora precisa da tua assistência. Leva-a para dentro e trata das suas necessidades. Descobre-lhe uma criada. A senhora deseja um quarto próprio. Aloja-a a meu lado.
— Sim, meu senhor. — Orna era alta e larga como os homens, com feições igualmente desagradáveis. Tinha o cabelo apanhado com um lenço de linho de asseio duvidoso.
— Obrigada — agradeceu Ana educadamente.
— É um prazer agradar-te, minha querida. — O tom de Alpin era demasiado lisonjeiro, o que lhe causou um arrepio. Sem saber o que dizer, Ana virou costas e seguiu Orna até ao quarto.
Algum tempo depois, sentada num banco com uma rapariga nervosa a pentear-lhe o cabelo acabado de lavar, Ana foi obrigada a admitir que o futuro marido lhe providenciara, com efeito, tudo o que ela pedira. Exigira. Agora sentia-se embaraçada com a sua própria brusquidão. Uma vez dentro da casa, que se revelou composta por inúmeras divisões e possuir uma escala grandiosa, embora escura e fumarenta, Orna bradara uma série de ordens e os criados apressaram-se a cumpri-las. Ana fora levada para uma câmara com uma cama de tamanho considerável, uma arca de carvalho para arrumação e dois bancos. A única janela era uma abertura minúscula e não havia lareira, mas o quarto estava razoavelmente quente, graças a forras de lã poeirenta penduradas nas paredes, com um padrão que se desvanecera até assumir uma cor parda uniforme.
Foi trazida uma banheira de ferro e um copioso fornecimento de água, quente e fria. Sabão áspero e toalhas ainda mais ásperas. Um pente, óleos perfumados, velas em castiçais pesados. Ervas para o banho: camomila e hortelã. Por fim, uma criada, tímida e a gaguejar. Ludha veio a provar ser bastante destra com os cântaros e esfregou a pele de Ana até arder. Era maravilhoso sentir-se finalmente limpa, mas não tão bom como imaginara ao longo dos dias cansativos da viagem, quando a antevisão de água quente e de uma cama macia a ajudara a suportar os rigores da jornada. Como poderia entregar-se ao prazer de ser penteada, à sensação de roupa limpa contra a pele, ao doce aroma da alfazema nas têmporas, onde Ludha lhe esfregara uma gota de óleo, quando tinha tanto que a preocupava? O tratado, a mentira que contara, Faolan. E Alpin. Como poderia casar-se com um homem cujo toque a enojava?
— Ludha? — perguntou Ana.
— Sim, minha senhora? — A voz não passava de um murmúrio. O pente deslizava com suavidade, desfazendo os nós.
— O homem que veio comigo, Faolan, o meu bardo... sabes onde ele está?
— Não, minha senhora. Queres que o mande chamar?
— Não, Ludha. — Ana esforçou-se por conseguir um tom de autoridade. — É claro que ele não pode vir aos meus aposentos privados. Apenas quero ter a certeza de que ele está em segurança.
— Em segurança? — Ludha parecia espantada. — Ah, sim, minha senhora, aqui estará a salvo. Briar Wood é muito bem defendida. O meu... — um rubor — o meu amigo, Foldec, diz que ninguém consegue chegar até nós. Lorde Alpin tem o maior exército de toda a região norte.
— Ludha silenciou-se de repente.
— Conta-me mais — incitou Ana. — Esse Foldec, é um guerreiro?
— Sim, minha senhora. — Orgulhosa, Ludha ostentou um sorriso encantador. — É um arqueiro das forças do meu senhor. Encontra-se no ocidente. Foldec já tem as marcas de guerreiro há três anos. Conquistou-as quando ainda só tinha quinze.
— Deve ser muito corajoso — comentou Ana, com um sorriso encorajador.
— É, sim, minha senhora.
— E o que fazes enquanto aguardas que ele regresse a casa, Ludha?
— Coso, minha senhora. Há muitas mulheres que podem fazer os trabalhos simples, bainhas e remendos, túnicas e outras roupas para os homens. Mas eu aprendi com a minha mãe, que era costureira de uma senhora. Dão-me os trabalhos mais delicados para fazer.
— Foste tu quem fez isto? — A roupa que fora dada a Ana era simples mas de boa qualidade, uma túnica e uma saia de lã castanho-avermelhada, com guarnições de flores bordadas. Também havia roupa interior e chinelos de peliça.
— Não, minha senhora. Estas estavam guardadas e Orna encontrou-as. Eram de uma rapariga que costumava viver aqui, uma criada da primeira esposa de Lorde Alpin. — Ludha hesitou. — Sinto muito, minha senhora — murmurou.
— Não são precisas desculpas — asseverou Ana. — Sei que Lorde Alpin já foi casado. Diz-me, ele tem família, para além do filho natural de que falam e que, segundo dizem, não mora aqui em Briar Wood? Sei que não tem filhos do primeiro casamento, mas talvez Alpin tenha irmãs, ou irmãos.
Sem razão aparente, Ludha assumiu um rubor profundo.
— Não tenho a certeza, minha senhora. — Voltou a atarefar-se com o pente. Desta vez foi menos cuidadosa e Ana fez um esgar de dor.
— Eu termino, Ludha. Estou habituada a pentear-me sozinha. Espero que venhas a mostrar-me o teu trabalho. Interesso-me por bordados. Tinha uma série de camisas pequenas e outras roupas de bebê. Perderam-se todas na travessia do rio, quando a minha escolta foi arrastada. Não devia ter importância. Comparada com a perda de tantas vidas, tal coisa torna-se insignificante. Mas fiquei com pena, mesmo assim. Aqueles pontos foram feitos com muito amor.
Ludha aquiesceu.
— Sim, minha senhora. Mas uma mãe ama o seu filho, mesmo que apenas tenha trapos com que vesti-lo. Pelo menos é isso que penso.
De repente, Ana sentiu-se à beira das lágrimas.
— Sim, pois — disse com vivacidade —, talvez possamos coser juntas. Tal como vês, não tenho nada para vestir. Nada que seja meu.
— Será um prazer ajudá-la, minha senhora — replicou Ludha.
— Onde posso encontrar rolos de tecido e outros materiais?
— Podes falar com Orna — indicou Ludha. — Ela parece antipática, mas vai ajudar-te no que puder. Todos vão. Todos dizem... — hesitou.
— O que dizem eles?
— Não me compete repeti-lo, minha senhora, mas dizem que uma nova esposa para o meu senhor Alpin pode ser a melhor coisa dos últimos anos em Briar Wood. Orna faz tudo na casa. Dá as ordens todas, mas até mesmo ela preferia trabalhar para uma senhora. E vimos logo que era isso que eras.
Ana pensou no que ouvira.
— Já cá estavas na altura em que a primeira esposa de Lorde Alpin ainda era viva, Ludha? Podes falar-me sobre ela?
— Vim para cá depois de ela ter morrido, minha senhora. Tive de encontrar uma nova casa, quando a minha mãe foi levada por uma doença. Quando viu o trabalho que eu sabia fazer, Orna contratou-me.
— Sinto muito pela tua mãe. Há muitas pessoas que a tivessem conhecido? A primeira esposa?
De repente, Ludha encontrava-se ocupada com a limpeza dos aprestos do banho, a dobrar toalhas, tudo a que pudesse deitar a mão.
— Ludha?
— As pessoas não falam muito sobre isso.
— Como morreu ela?
Não houve resposta. Ludha começou a despejar a água do banho para dentro dos jarros e dos baldes, para uma remoção mais fácil.
— Como morreu ela, Ludha?
— Não tenho a certeza, minha senhora. Estava à espera de bebê, é o que dizem. Os dois morreram juntos. Foi há muito tempo, seis ou sete anos, pelo menos.
— Oh. — Era a explicação mais plausível, é claro. Embora duplamente triste, esse tipo de morte era bastante comum. Ana conseguiu nutrir um laivo de simpatia por Alpin. Deveria tê-la amado muito e sofrido longamente, uma vez que esperara vários anos antes de procurar outra esposa, outra hipótese de ter filhos. Mas também não fora ele que procurara Ana. Fora o inverso.
— Deves querer descansar — disse Ludha. — Vou chamar um rapaz para levar estas coisas e depois deixo-te sozinha, se o preferires.
— O quê? — Ana não estivera a ouvir. — Ah, sim, é claro. Vens chamar-me quando for horas da refeição? Tens razão, estou muito cansada.
Mesmo com o colchão macio e com os bons lençóis, não conseguiu dormir. Não era capaz de deixar de pensar no vau, na onda, nos corpos destroçados e no terror abjeto que sentira ao ficar sozinha. Ana imaginou que isso a acompanhasse para o resto da vida. Havia também os assuntos mais imediatos. Ensaiou, vezes sem fim, o que teria de dizer a Alpin e o modo como o faria. O casamento estava dependente de uma aliança com Bridei e não com Gabhran, de Dalriada. Bridei não lhe pedia que combatesse ao lado dos homens de Fortriu, embora outro chefe Caitt, Umbrig, tivesse disponibilizado um grupo de guerreiros para esse fim. Essa informação em particular talvez não devesse ser adiantada. Mas Alpin teria de entender que era exigido um acordo solene, de preferência escrito, em como ele e os seus homens não pegariam em armas contra Bridei, nem por terra nem por mar. O mais importante era a parte do «por mar». Era o acesso à rota marítima ocidental para Dalriada que fazia de Alpin um elemento tão importante. Se Alpin concordasse com os termos de Bridei, Faolan deveria regressar ao Monte Branco com essa informação e a união teria lugar.
Ana gostaria muito de ter oportunidade de discutir o assunto em privado com Faolan, antes de falar com Alpin, pois apenas tinha conhecimento das linhas gerais. Havia muitos mais pormenores, decerto de extrema importância, e que o emissário pessoal de Bridei guardava na mente. O destino de exércitos estava dependente na execução célere e perfeita daquele acordo. Quanto mais Ana pensava no assunto, mais irritada ficava consigo, pela tentativa desastrada de proteger Faolan com uma mentira. Estragara tudo. A partir daquele momento, teria de garantir que tudo corria na perfeição.
Tentou imaginar o que Alpin poderia desejar saber. Questões sobre estratégias. Teria de responder com sinceridade e dizer que pouco sabia de tais assuntos. E se lhe perguntasse sobre a alternativa? Se ele recusasse a oferta, que faria ela? Não poderia sair de Briar Wood com Faolan e tentar fazer a longa viagem de regresso apenas com um cavalo para os dois e com o vau submerso, já para não falar dos atacantes de azul. Teria de ali permanecer pelo menos até que os rios baixassem de caudal, e seria obrigada a pedir a Alpin uma escolta através das zonas de perigo.
Talvez o melhor fosse contar a verdade: confessar que mentira e porquê e deixar que Faolan desempenhasse a tarefa que viera cumprir. Não havia dúvida de que seria o mais acertado. Era provavelmente o que a sua amiga Ferada iria sugerir. Não sejas tola, Ana, diz a verdade ao homem. Ele não te come. Mas Ana hesitava. A parte o fato de Alpin a vir a considerar mentirosa e estúpida, os modos do homem perturbavam-na. Havia ali perigo, podia senti-lo.
Um som vindo da ranhura que servia de janela interrompeu-lhe o devaneio. Virou a cabeça. No peitoril encontrava-se um pássaro minúsculo, uma carriça, bonita com a sua plumagem castanha e creme. Estava imóvel, a cabeça inclinada para o lado, um olho brilhante fito na jovem. Ana sentiu-se cativada. A criatura parecia tão desprovida de medo. Decerto não haveria pássaro do bosque que se aventurasse tão perto de habitação humana e ali ficasse, tão calma. Com efeito, aquela construção era um local especialmente improvável onde encontrar pássaros. No caminho desde a entrada da fortaleza até ao seu quarto, Ana vira nada menos do que nove gatos, a maioria semelhante aos homens e mulheres de Briar Wood, robustos e musculosos.
Ana sentou-se na cama, os braços em redor dos joelhos, enquanto olhava a pequena visita. Assobiou baixinho. A carriça moveu-se ligeiramente, sem que os olhos deixassem a jovem. Agora que pensava nisso, Ana recordava-se daquele olhar, concentrado, alerta, como se a criatura tivesse um objetivo ao procurá-la. A gralha no vau não lhe dirigira o olhar penetrante com a mesma dose de concentração? Na altura sentira-se incomodada. Mas a gralha revelara-se uma amiga. Sem a sua ajuda, teria perdido Faolan.
— Que coisa és tu? — murmurou, enquanto saía da cama o mais lentamente possível, para não assustar o pássaro minúsculo com um movimento repentino. — De onde vieste?
A carriça saltitou ao longo do peitoril. Não chegou longe, pois a janela era muito estreita. Ana ainda não espreitara para o exterior. Aproximou-se. A carriça ficou onde estava. A jovem poderia ter esticado a mão e tocado nas penas macias. Ana perguntou-se se a ave em tempos teria sido o animal de estimação de uma dama. Provavelmente não. A expressão nos olhos brilhantes não poderia ser considerada mansa.
— Quem te enviou? — sussurrou, enquanto olhava pela janela, para a nesga de panorama que lhe era oferecida. O quarto ficava bem alto e Ana subira degraus de pedra para lá chegar. A partir dali, podia ver uma extensão de floresta, carvalhos e ulmeiros, uma faixa de céu claro e, desviando-se para o lado, parte da muralha alta e comprida que aparentava envolver a fortaleza. Ludha dissera que Briar Wood era bastante segura. Tal parecia inquestionável, pois, sem a autorização de Alpin, ninguém entrava ou saía. Ana sentiu um frio repentino.
A carriça chilreou e, tão depressa quanto aparecera, lançou-se da janela e afastou-se. Ana inclinou o pescoço para a ver a voar ao longo da muralha, sempre a direito, baixando depois para fora do seu campo de visão. Para onde quer que se dirigisse, não entrara na mata, encaminhando-se antes para um local na fortaleza de Alpin.
— Estranho — disse Ana para consigo. — Muito estranho. — Interrogou-se sobre se Alpin teria druidas ou mulheres sábias na sua casa. Isso poderia explicá-lo. Tais praticantes das artes da cura, da adivinhação e da magia podiam ser muito chegados às suas criaturas. Em tempos, Fola tivera um gato enorme, Shade, que não aparentava ser propriamente mágico, mas com quem a mulher sábia partilhava laços bastante fortes. Se aqueles pássaros fossem os companheiros do druida ou da sacerdotisa de Alpin, Ana esperava conseguir obter uma explicação para o motivo por que pareciam buscá-la.
À hora do jantar, Faolan já se familiarizara com a disposição do baluarte de Alpin. A fortaleza de Briar Wood possuía três níveis: caves para armazenamento, zonas de habitação e de trabalho ao nível do chão e algumas câmaras mais altas onde se incluíam os aposentos do chefe tribal. Ana fora instalada ao lado de Alpin. Faolan recebera uma enxerga no quarto dos criados. Assim que fora apresentado como bardo, os guerreiros de Alpin tinham começado a tratá-lo como se fosse uma novidade divertida, em vez de uma pessoa de verdadeiro interesse. Partilhar os aposentos com criados e cozinheiros poderia vir a ser útil. Muitas vezes, tal companhia era uma fonte de boas informações.
O pátio central era delimitado por edifícios colados à enorme muralha que rodeava a fortaleza de Alpin. Havia um ferreiro, uma alcaçaria, uma casa de forno, um canil repleto de cães de caça de aparência temível, um silo para cereais, um arsenal. Mais abaixo, viam-se vacarias e estábulos. Parecia que poucos eram os assuntos daquela casa que tivessem lugar fora da proteção das muralhas. Faolan traçou um novo mapa mental: o perímetro da muralha, os edifícios por ordem, os pontos onde as árvores eram altas o suficiente para serem vistas acima da barreira, e que recordavam os habitantes que se encontravam a um pulo da grande floresta. Procurou entradas e saídas. Algures deveria haver uma abertura menor na muralha, uma porta das traseiras, por assim dizer. Um escoadouro, talvez? Um local por onde se recebessem mercadorias, sem que fosse necessário abrir os portões imensos?
As perguntas que fez não abordaram tais assuntos. As questões foram estruturadas com cuidado, a fim de parecerem inócuas, para que fossem rapidamente esquecidas. Destinavam-se a encorajar as pessoas a darem-lhe aquilo de que precisava, sem que se apercebessem que o tinham feito. Há muito que Faolan era um espião, sendo bom no que fazia.
Não foi possível ir muito longe no primeiro dia. Tinham chegado a Briar Wood ao fim da tarde, com o derradeiro trecho da viagem mais rápido do que julgara, graças à escolta de Alpin que indicava o caminho, e, quando Faolan se instalou e visitou o estábulo para confirmar o cavalo e trocar algumas palavras com os homens que lá trabalhavam, já escurecia. Guardaria as explorações noturnas para uma altura em que os habitantes já se tivessem habituado à sua presença.
Um canto da fortaleza chamou-lhe a atenção, um local onde a muralha parecia dividir-se, criando um espaço apertado, ladeado por altas barreiras de pedra. A primeira vista não havia entrada para a área, mas a muralha exibia uma ligeira curvatura para o interior, ao longo de cerca de quinze passos. Faolan imaginou que atrás dela houvesse espaço para um pátio ou para uma câmara oculta. O que poderia ser valioso a ponto de ser guardado daquela forma? Um depósito de armas? Um carregamento de especiarias ou sedas que pudessem ser oferecidas a um inimigo poderoso como suborno? Ou talvez existisse algo de uma natureza completamente diferente por detrás da estranha construção. Podia não ser um baluarte contra uma invasão, mas uma barreira para conter algo, qualquer coisa demasiado perigosa para ser alojada num cativeiro vulgar, tal como o estábulo, os canis ou a cave. Uma prisão? Não podia ser. Qual o prisioneiro que exigiria uma dissimulação tão elaborada? Grilhetas e um ou dois guardas robustos era tudo de que um chefe competente necessitaria para manter homens presos. É verdade, já por uma ou duas vezes o próprio Faolan escapara desse tipo de segurança, mas não se considerava um prisioneiro normal. O seu dever era estar um passo à frente, um nível acima. Era um dos seus códigos de sobrevivência. Bem, havia tempo para descobrir a verdade sobre aquele e outros assuntos interessantes. Havia tempo, desde que Ana conseguisse fazer passar a mensagem de que o futuro marido só a poderia ter se cumprisse os termos de Bridei. Teria de encontrar forças para insistir num protelamento e frustrar qualquer tentativa por parte de Alpin de a levar para a cama antes de Faolan ter oportunidade de confirmar a promessa de tal indivíduo. Enquanto bardo, não seria difícil obter informações. Nesse aspecto, Ana fizera-lhe um favor. Apenas esperava que ninguém lhe pedisse para tocar.
O que não podia era ajudar Ana com as negociações iniciais. Faolan planeara com Bridei as informações exatas que apresentaria em resposta às questões inevitáveis de Alpin. Parte seria falso e enganador, concebido para reforçar a informação que já veiculara no baluarte celta de Dunadd, antes de conhecer um homem chamado Pedar, o qual fora obrigado a silenciar. Bridei queria que os Celtas tivessem noção da eventualidade de um ataque antecipado. Pretendia que acreditassem que o encontro com Drust, de Circinn, estava marcado para o festival das colheitas da Reunião, e que o avanço propriamente dito fora planeado para a Dança das Virgens, a celebração dos primeiros indícios da Primavera. O boato tinha como objetivo ocultar a verdadeira data do empreendimento, muito mais cedo. Dalriada sentiria os dentes de Fortriu no dia em que as folhas ficariam douradas. A campanha chegaria ao fim antes que a Mãe de Tudo depositasse o seu abraço gelado nas colinas de Grande Vale. A estratégia fora boa, pois não havia nada melhor para esconder a verdade do que informações muito próximas do real, mas imprecisas quanto a um detalhe crucial. Faolan duvidava que o rei Gabhran de Dalriada imaginasse que Bridei estava prestes a atacar.
Ana era uma atriz perigosa naquela representação, pois não podia deter informações cuja importância estratégica não compreendia. Os nomes dos aliados de Bridei, por exemplo, incluindo o chefe Caitt, Umbrig. Faolan estava satisfeito que tivessem ocultado de Ana a verdadeira extensão dos fatos. Sabia bem os métodos que poderiam ser aplicados tanto a homens como a mulheres para extrair informações. Mas a jovem tinha uma vantagem nas negociações. Pelos olhos ávidos e pelas mãos inquietas do maldito Alpin, era óbvio que a desejava. Essa idéia enojava Faolan.
Lavara-se debaixo de uma bomba de água e vestira as roupas simples que um dos criados lhe trouxera, trajes caseiros em tons pardo e cinzento, rústicos e práticos. As suas botas tinham sido deixadas na floresta. Deram-lhe um par de sapatos velhos, de cabedal estalado e pontos grosseiros, os quais calçou sem um queixume. Como a mentira fora contada e não podia ser desdita, iria utilizá-la em seu proveito.
Quanto menos parecesse um emissário real, melhor. Naqueles atavios, seria fácil passar despercebido. Era uma coisa boa. Serviria para que se recordasse de que mulheres como Ana pertenciam a um mundo diferente do dos homens como ele.
Ao jantar, sentaram-no numa mesa comprida, quase do lado oposto onde Ana se encontrava, ao lado direito de Alpin, pálida e de ar cansado nas suas roupas limpas. Tinha o cabelo entrançado em coroa no topo da cabeça e o pescoço muito direito, procurando transmitir um porte real. Alpin mal tirava os olhos de cima da jovem. Faolan, que nunca bebia cerveja durante o serviço, esvaziou a taça de um gole e permitiu que uma mulher voltasse a enchê-la. Alpin ria-se. Dava palmadinhas na mão de Ana com a pata grande e rude. Faolan viu-a estremecer. Concentrou-se na travessa de cabrito assado à sua frente. Espetou uma fatia com o punhal que lhe tinham emprestado e começou a mastigar. Olhou para quem o rodeava. Observou também os cantos do salão de Alpin, as entradas tapadas com colgaduras soltas, as lareiras amplas nos extremos da sala. Dizia-se que os Invernos eram frios de morte no reino dos Caitt.
As pessoas eram barulhentas e pareciam gostar das suas piadas, muitas das quais tinham a ver com as suas proezas na cama de mulheres roliças, ou com a vitória numa qualquer escaramuça. Comiam e bebiam com apetite e, ao início, assediaram Faolan com perguntas: como se chamava, de onde era, se tinha mulher e o que fazia um celta a viver na corte de Fortriu. Apresentou respostas breves, educadas e perfeitamente inócuas. Para sua satisfação, a conversa rumou a outros assuntos. Contou o número de guerreiros ali presentes, imaginou quantos poderiam estar de guarda e comparou o total com a capacidade dos alojamentos destinados aos soldados, uma zona que ele investigara discretamente algum tempo antes. Na casa de Alpin havia espaço para um contingente de oitenta homens. Encontravam-se presentes cerca de trinta, já contando com os que estavam de sentinela. Sabia-se que Alpin tinha um posto avançado na costa ocidental, onde tinha os barcos ancorados, mas não havia informações recentes sobre a sua dimensão ou recursos. Isso era algo que Faolan precisava de descobrir. Algures, encontraria um ponto fraco em Briar Wood. Era perito em descobri-los: um homem com ressentimentos, uma mulher solitária de língua solta, uma criança que escutara algo que deveria ser mantido em segredo. A seu tempo, obteria o que precisava.
Olhou para Ana, no outro lado da mesa, que ao mesmo tempo o fitou, nos seus olhos uma expressão apologética. Faolan permitiu-se um ligeiro aceno de cabeça à laia de tranquilização. Viu nos lábios da jovem um breve esboço de sorriso.
Ana voltara-se para Alpin e gesticulava com uma expressão séria. Esforçava-se por cumprir a sua própria missão: negociar o seu futuro pela causa dos reis que a tinham mantido refém ao longo de metade da vida. Era injusto, profundamente injusto. Ana parecia uma princesa de uma narrativa antiga, que deveria encontrar a felicidade ao conquistar o seu próprio reino, ou com uma vitória transcendente sobre a adversidade. Aquilo não era um triunfo. Cada menear da bela cabeça, cada mirar dos olhos cinzentos e límpidos, cada movimento expressivo das mãos era mais um passo para a entrega ao imbecil sentado ao lado dela. Nenhum dos presentes tinha a capacidade de lhe reconhecer o seu verdadeiro valor...
— Quer dizer — disse alguém — que és um bardo da corte? Há por aí uma harpa velha. Era de um indivíduo que a tocava, há muito tempo, como é que ele se chamava? Umas canções depois da refeição, era uma boa idéia.
Uma harpa. Faolan gelou.
— Daqui a algum tempo, talvez — respondeu, à cautela. — Fui ferido no braço durante a viagem. Ainda vai demorar até que volte a tocar. E se o instrumento não é usado há muito tempo, deve precisar de cuidados.
— Vou mandar um rapaz à procura dela. Podes dar-lhe uma vista de olhos. Não há muita diversão por aqui, sabes? Os bardos não costumam visitar-nos. As mulheres iam gostar de uma canção ou duas.
— Trabalho para a senhora — indicou Faolan. — Se ela concordar, é claro que o farei. Mas vai demorar. Um homem de fita azul na cabeça trespassou-me com uma flecha. Deve ter pensado que era um guerreiro. Se calhar era míope.
Os comensais riram à gargalhada.
— Mostra-nos a tua cicatriz — pediu alguém.
— Está ligada.
— Mostra-nos.
Não havia escolha a não ser fazer o que lhe era pedido. Faolan teve o cuidado de arregaçar a manga apenas até ao novo ferimento, sem revelar a outra cicatriz mais antiga. Que um músico tivesse sido lesionado daquela forma seria plausível enquanto acidente infeliz. Ostentar as marcas de dois iria levantar suspeitas.
— Os Azuis, an? — comentou um homem mais idoso cuja face esquerda estava adornada com fileiras esbatidas de marcas de guerreiro.
— Diz-se por aí que eles atacaram o grupo da tua senhora no vau. Alpin não vai deixar que uma afronta dessas passe em branco.
— Os Azuis? — Faolan simulou ignorância no assunto. — Quem são eles? Vizinhos?
— Podemos chamar-lhes isso. O território de Dendrist, o Lago Azul, fica a leste de Briar Wood. É um homem que nunca parece satisfeito com as fronteiras existentes.
— Ah.
— Viajar por Breaking Ford não é a forma mais segura de cá chegar — comentou um homem de olhar arguto. — O líder do teu grupo devia ser um idiota. Era melhor que tivessem ido pelos lagos e pelos caminhos ocidentais.
— Não percebo nada de tais assuntos — replicou Faolan, cuja observação constante do salão agitado em busca de algo significativo acabara por ser recompensada. Numa bancada de pedra a um lado havia travessas e, entre os servos que as levavam e retiravam da mesa, um homem servia uma pequena travessa, comida e bebida suficiente para dois. O fato não era estranho, talvez levasse comida a alguns dos homens de guarda, ou atendesse às necessidades dos idosos ou dos enfermos. Foi o próprio indivíduo que chamou a atenção de Faolan. Era baixo, com um peito poderoso e ombros muito largos, sendo a sua figura acentuada pela túnica até aos tornozelos que usava. Era calvo e, ao contrário dos guerreiros Caitt hirsutos, tinha o rosto escanhoado e as faces decoradas com marcas de batalha, mas não de clã. Seria um guerreiro experiente e de sangue Priteni, mas não de ascendência nobre. A pose deixava transparecer poder. Nessa energia restringida, havia um controlo que deixou Faolan sem fôlego. Por que estava tal homem a servir pequenas travessas de carne assada e de cerveja como se fosse um criado normal? A cabeça calva virou-se e Faolan reparou numa marca atrás da orelha direita, uma tatuagem pequena e toscamente realizada com a forma de uma estrela. Os olhos claros e impenetráveis cruzaram-se brevemente com os de Faolan, ao que o indivíduo pegou na travessa e saiu. Faolan apercebeu-se da porta que usou, a mais próxima dos aposentos privados de Alpin.
— Bardo! — chamou o chefe tribal.
Com uma pontada de apreensão, Faolan levantou-se.
— Vem cá!
Dirigiu-se ao topo da mesa e fez uma vênia baixa e servil ao chegar a Alpin. — Meu senhor.
— Hoje não há música? — perguntou Alpin com um sorriso.
— Não há melodias para nos divertir?
— Meu senhor... — começou Ana a dizer.
— Deixa que o homem fale, minha querida. Ele tem língua. Já o ouvi a utilizá-la.
— Espero divertir-te a seu tempo, meu senhor Alpin — disse Faolan, com o que esperava ser um tom subserviente. — Seria o mínimo que poderia fazer para recompensar a tua consideração por teres ido ao nosso encontro. Infelizmente, o meu braço está ferido e não posso tocar. Além disso, os meus instrumentos perderam-se no acidente que nos vitimou.
— Não precisas dos teus instrumentos para cantar, nem do teu braço — resmungou Alpin.
— Com efeito, meu senhor. Mas estou deprimido. Não creio que Lady Ana me exija música, tendo em conta as nossas perdas recentes. É difícil invocar melodias belas quando o nosso coração está cheio de mágoa.
— É claro que não precisas de cantar esta noite, Faolan — interveio Ana. — Talvez depois.
— Não estás a pensar manter este indivíduo para sempre, pois não? — desafiou Alpin. Não tenho celtas na minha casa. Só serve para deixar as pessoas desconfiadas.
As faces de Ana assumiram um tom rosa.
— Faolan é de confiança, meu senhor. Um músico afasta-se das questões políticas. Espero que ele permaneça aqui durante algum tempo. Pelo menos até que as nossas negociações estejam concluídas. Gostaria que ele tocasse...
— No casamento — atalhou Faolan por entre dentes cerrados.
— Depois regressarei ao Monte Branco.
Seguiu-se um breve silêncio, após o que Ana ocultou um bocejo com a mão. — Poderás desculpar-me, meu senhor? Estou muito cansada e gostaria de me retirar.
— Com certeza. — Os olhos de Alpin não a largavam. Faolan conseguia ler-lhe o pensamento, ver a imagem de Ana deitada na cama, descontraída de camisa de noite, as curvas do corpo sedutoras, a luz da vela a dançar-lhe na pele clara e no cabelo cintilante. — Bons sonhos, minha querida.
— Só mais uma coisa — disse Ana, enquanto se levantava. — Preciso da tua garantia em como em breve teremos oportunidade de discutir os termos de Bridei para o casamento. Desejo resolver esse assunto antes de tomar uma decisão. Preferia que Faolan estivesse presente durante as negociações, pois é o único homem da minha escolta que sobreviveu. Mesmo não sendo perito em tais assuntos, imagino que seja ele o portador do resultado da nossa conversa ao rei Bridei. Não seria assisado enviar outro mensageiro, tendo Faolan de viajar para lá.
Alpin fitou-a, os lábios carnudos contorcidos num sorriso sardônico. Parecia dividido entre o divertimento e a irritação.
— Não estou habituado a ter mulheres a darem-me ordens — disse.
— Não é uma ordem, meu senhor — replicou Ana. — A enchente levou-me o negociador, a par de muitos amigos. Imagino que não queiras que o rei Bridei saiba que te aproveitaste de mim nas negociações devido a tão infeliz acontecimento. É claro que farás algumas concessões, em virtude da posição desconfortável em que me encontro.
Faolan reprimiu a vontade de aplaudir. Fora muito bem dito. A jovem possuía uma extraordinária capacidade para surpreendê-lo. A conversa atraíra a atenção de todos os homens e mulheres sentados junto a Alpin. Moviam o olhar de um interveniente para o outro, com o interesse ávido dos espectadores de um bom combate. Faolan, ainda de joelhos, assumiu uma pose inexpressiva.
— Discussões, negociações, para que serve isso? — Alpin abriu os braços. — Eu sei o que quero. — Piscou o olho aos homens sentados perto dele. — Minha querida, acho que não terias feito esta viagem tão longa sem teres noção do que vai acontecer no fim, com ou sem escolta. Só precisamos de um dia ou dois para nos conhecermos, e de um druida para a cerimônia, e aqui o teu homem pode voltar ao Monte Branco antes mesmo de ter oportunidade de tocar.
— Faolan — disse Ana —, levanta-te, por favor. Meu senhor, estou demasiado cansada para pensar devidamente. Apenas sei que Bridei estabeleceu termos precisos para este acordo. É meu dever apresentá-los. Se não puderes aceitá-los, não terei... teremos... alternativa, a não ser regressar de imediato ao Monte Branco.
Um novo silêncio. Alpin palitava os dentes com uma lasca de osso de cabrito.
— Deveras — acabou por dizer. Atrás da palavra estava o rio transbordado, os atacantes, a longa e solitária viagem de regresso a sudeste. Uma mulher a viajar apenas com um músico que a protegesse. O fato de que ali em Briar Wood, Alpin era rei e senhor.
— Sim, meu senhor — replicou Ana. O tom cortês era apenas traído pelos punhos cerrados.
— Pois bem — disse Alpin —, já é tarde. Tiveste uma viagem longa. É boa idéia retirares-te. Não te esqueças da tranca, minha querida. Não se pode confiar num bardo, estão sempre a pensar nos acontecimentos impossíveis das histórias, aqueles em que os porqueiros se tornam reis e os escravos vão para a cama com as princesas. — Os homens riram-se. — Boa noite, minha querida. Não me olhes assim, estava só a brincar. Bardo, estás dispensado. Espero que tenhas canções na nossa língua e não só naquele maldito gaélico.
— Farei o possível por agradar o meu senhor, caso a oportunidade se preste. — Faolan regressou ao seu lugar humilde à mesa, enquanto Ana saiu, com a criada atrás dela. Esperava que ela se lembrasse mesmo da tranca. Aquele indivíduo era esperto, muito mais do que o sugerido pelas maneiras grosseiras. Teria de ser vigiado. Agora era Alpin quem se levantava e, com uma palavra ou duas aos homens, seguiu Ana através da porta que dava para os aposentos da família. Aloja-a a meu lado. Se aquele homem julgava que ela a deixaria entrar, estava muito enganado.
— O meu senhor retira-se cedo — murmurou Faolan um pouco depois para Gerdic, o servo que o ajudara nessa tarde com as roupas e a cama, e que agora se sentava a seu lado à mesa.
— Ele volta — retorquiu Gerdic.
E assim Faolan aguardou, enquanto observava as movimentações no salão e ouvia as conversas. Alguns dos homens trouxeram tabuleiros de jogo, o que indicava que não eram todos perfeitos idiotas, e Faolan observou e fez sugestões úteis, mas não jogou. Mais tarde, teve lugar uma série de combates em frente à lareira, com os homens a apostarem na destreza dos adversários. Faolan juntou-se às apostas, embora garantisse que perdia sempre. Não que houvesse alguma coisa a perder, pois não tinha posses materiais, exceto um cavalo que não era seu.
— Há pouco vi um indivíduo que daria um belo oponente nestes combates — comentou, a dada altura. Gerdic parecia afável e pensou que valeria a pena tai observação casual. — Um careca com grandes ombros. Parecia um lutador. Acho que já cá não está. — Olhou à volta, como se procurasse o homem.
— Deve ser Deord. — Nada mais foi adiantado.
— Deord? Quem é ele, um guerreiro?
— Não exatamente. — Gerdic pareceu ficar pouco à vontade. — É o guarda especial de Alpin. Não o vemos muito. É bastante reservado. Ninguém iria desafiar Deord para um combate, a menos que fosse suicida.
— Mm-mm. — Faolan não perguntou, O que guarda ele? De onde veio? Sabia quando pressionar e quando devia calar-se. Havia uma certa reticência. De manhã, procederia a mais investigações, e acabaria por descobrir a informação que Bridei desejava. Imaginou, também, que seria obrigado a tentar reparar uma harpa.
Não conseguiu dormir. Era estranho que ele, que durante tanto tempo passara as noites sozinho ou velara por um Bridei acordado, estivesse agora na escuridão, a sentir a ausência de Ana sob a forma de uma dor aguda no peito. Durante seis noites tivera-a nos braços, protegera-a e aquecera-a, embalara a força e a suavidade da jovem de encontro ao coração. Na altura, ansiara pelo fim da viagem, para que não fosse obrigado a confessar o quanto a desejava. Ao mesmo tempo, gostaria que a jornada fosse eterna, que se desvanecesse na forma de uma melodia, uma narrativa, uma recordação de prazer lancinante e de lamento profundo. Chegara ao fim e a perda daquela mulher fazia da enxerga a cama mais solitária em que alguma vez se deitara. Não, talvez não tanto. Em tempos, houvera uma noite em que teria implorado aos deuses que o deixassem morrer, caso não tivesse já aprendido a lição amarga de que tais escolhas nunca se encontravam ao alcance dos homens. Agora não queria morrer. Ainda havia trabalho a fazer.
O Sol foi-se erguendo no céu pálido e limpo. Enquanto a maré subia com um murmúrio suave e contínuo em redor da base da fortaleza costeira, os guerreiros começaram a reunir-se no espaço aberto do nível superior de Caer Pridne, a fim de ouvirem o seu rei. Tinham chegado homens de muitos postos avançados para aquela ocasião. O lugar estava repleto de guerreiros e cintilava com as armas. Alguns estavam instalados, no exterior das muralhas, em abrigos semelhantes a tendas e podiam ver-se inúmeros cavaleiros nos terrenos entre a fortaleza e a casa das mulheres sábias de Banmerren, ao longo da baía. A visita fora planeada havia muito. Bridei nunca poderia desapontá-los.
O rei de Fortriu não dormira. Após a vigília, deitara-se um pouco em silêncio na cama, com Ban enrolado a seus pés, enquanto Breth aproveitara um breve período de sono exausto. Em tempos, Faolan comentara que a principal qualificação dos guarda-costas de Bridei era a capacidade de passar sem dormir. Bridei tinha a noção desconfortável de que era exatamente isso que os três faziam. Eram amigos leais que ultrapassavam o dever na preocupação que sentiam pelo monarca. Com Faolan ausente e Garth no Monte Branco com a esposa e os filhos (o guerreiro oferecera-se para viajar até Caer Pridne e Bridei recusara), Breth tinha somente o apoio dos homens de Pitnochie, nenhum dos quais um guarda-costas treinado, e o homem robusto estava exausto. Bridei tentou imaginar como Faolan estaria a sair-se com a sua missão, se o chefe tribal Caitt se encontrava preparado para aceitar a oferta rara que lhe tinham enviado. Faolan. Ah, Faolan, o seu amigo misterioso e relutante... Nunca poderia levar Faolan consigo pelo Vale, não seria capaz de exigir que um homem combatesse o seu próprio povo, independentemente da lealdade mostrada. E claro que Faolan sabia desse fato. Percebera-o de imediato. Nada escapava àquele homem. Mesmo assim, aceitara a missão. Ao escolher não ser mais do que um guarda contratado, nunca poderia recusar-se a cumprir a ordem do rei. Quando Faolan e os outros regressassem de Briar Wood, Bridei já teria partido. O exército estaria a dirigir-se para ocidente e a grande empresa já teria sido iniciada. Quando as folhas assumissem os tons castanho, vermelho e dourado da Medida, o sangue dos Celtas banharia a terra que tinham roubado. Quando fosse altura de outro Portal, a guerra teria chegado ao fim. A vitória teria de ser digna de todos os que haviam depositado nele a sua confiança. Os deuses tinham-lhe entregue esta missão, a qual teria de ser cumprida segundo a sua vontade. Teria de acreditar com todo o coração que seria capaz. Que os Priteni triunfariam, por fim, sobre a praga celta que se espalhava através das terras ocidentais desde há três gerações. Que seriam capazes de rechaçar a ameaça insidiosa que era a nova religião. O custo em vidas seria enorme. Só podia rezar para que não fosse demasiado elevado.
Bridei suspirou, ao pensar em Ana e na cruel necessidade de enviá-la para longe. Esperava que o novo lar fosse acolhedor e o marido se encantasse com a bela e jovem esposa. Recusou-se a pensar que, assim que a guerra chegasse ao fim, precisaria de uma nova refém que a substituísse.
Permaneceu imóvel, enquanto lá fora o sol nascia e as canções dos pássaros se transformavam de pios solitários em coros estrondosos de boas vindas. Pensou em Derelei, na deslumbrante manhã em que nascera, no primeiro choro débil, nas pequenas mãos fechadas e nos olhos brilhantes. Na madeixa de cabelo escuro e úmido. Na fragilidade do pequeno crânio. No sorriso de Tuala, exausto e triunfante. Nas suas próprias lágrimas. Sentia ainda o peso quente do filho nos braços. Conseguia sentir o aroma doce do hálito do bebê e ouvir a respiração leve durante a noite. Lembrava-se do grito de espanto de Derelei, quando rebolara pela primeira vez. O ar de espanto nos olhos arregalados quando Bridei o levou para o exterior, para ver a lua cheia a cruzar o céu da noite. Os bravos esforços cambaleantes para andar. O rosto em descanso, a forma adormecida, enroscada no colo de Tuala. O corpo devastado pela febre, as faces afogueadas, a voz transformada no crocitar áspero de um corvo. Tão pequeno na enxerga. Tão pequeno.
Quando o dia amanheceu por completo, Bridei levantou-se e lavou do rosto os vestígios das lágrimas. Breth despertou rapidamente, um hábito adquirido há muito, e foi buscar as roupas boas de que o rei necessitaria, bem como pão fresco, fruta seca e uma infusão de ervas que Broichan garantira que todos os guardas de Bridei sabiam como preparar e quando administrar. Bridei não tinha apetite, mas comeu e bebeu mesmo assim, pois sabia que Breth ali ficaria até que fizesse o que lhe era exigido.
— Ele ainda pode recuperar — comentou Breth em voz baixa. — Os filhos de Garth recuperaram.
Bridei não respondeu. Os filhos de Garth eram grandes para a idade, fortes e robustos. Mesmo eles tinham estado perto da morte.
— Sentes-te bem para esta manhã? — Em privado, os guarda-costas de Bridei não observavam as formalidades quando se lhe dirigiam.
— Tenho de sentir. — O pão sabia a cinzas, a bebida era-lhe amarga na boca.
— Se partirmos logo assim que acabar — disse Breth —, ainda podemos chegar a casa antes de anoitecer.
Bridei conseguiu esboçar um sorriso e deu os restos do pão a Ban, que estava debaixo da mesa.
— Logo veremos — replicou. — Vamos, então, imagino que estejam à minha espera.
Nesse momento, Carnach, o alto chefe tribal, surgiu à porta. Envergava os trajes formais que tal acontecimento exigia: uma túnica de boa lã escura, cingida com cabedal e prata, uma camisa por baixo, de linho claro, calças de lã, botas enceradas. A túnica tinha um debrum bordado, preto sobre vermelho, um padrão de cavaleiros minúsculos, e o broche quase circular que prendia o manto curto do chefe tribal estava decorado com um garanhão empinado em prata. O manto era de um azul muito escuro, a cor da família. Tal como Bridei, Carnach descendia da linhagem real de Fortriu. O cabelo ruivo de Carnach caía-lhe pelas costas em tranças. O rosto exibia agora um padrão impressionante de tatuagens pois, desde que era o chefe militar do rei, liderara os homens de Bridei e os seus próprios guerreiros em inúmeras escaramuças contra os inimigos, tanto Celtas como vizinhos incômodos mais próximos.
— Os homens estão reunidos, senhor meu rei — declarou Carnach com as palavras formais que tal ocasião exigia. — Estão um pouco desalentados desde que se soube que um grupo de homens de Fokel foi emboscado no norte. Perderam-se nove guerreiros. Havia quem tivesse amigos entre os falecidos. A tua visita vai dar-lhes coragem renovada.
Bridei aquiesceu enquanto Breth o ajudava a prender o manto com a águia de prata que o velho rei lhe dera havia anos, em reconhecimento da sua coragem. Interrogou-se sobre como alguém poderia servir de encorajamento, tendo o seu próprio coração partido e ensangüentado. Como poderia sair e unir os homens na causa de Fortriu quando, em boa verdade, lhes estava a pedir que marchassem e morressem por ele? Fechou os olhos.
— Vamos, então — disse Breth em voz baixa. — Quanto mais depressa começares, mais depressa estaremos a caminho de casa. Meu senhor.
Ban estava sentado no pé de Bridei. O rei baixou-se. Olhos ansiosos fitaram-no e uma pequena língua veio lamber-lhe os dedos.
— Lamento pelo teu filho, Bridei — disse Carnach, com um tom de voz diferente. — Soube esta manhã o quanto ele estava doente. É uma coisa terrível.
— Sim. — Naquele momento, era tudo o que Bridei conseguia dizer.
— É melhor irmos. Estão à tua espera.
— Sim.
— Homens de Fortriu! — A voz do rei ecoou clara e límpida através do pátio onde os guerreiros se amontoavam. Por todo o acesso elevado que rodeava o nível superior da fortaleza, mais homens olhavam em silêncio o patamar de pedra onde Bridei se encontrava de pé, com os líderes a seu lado, uma figura elegante de ombros largos nas suas roupas simples e de qualidade. Era um guerreiro entre guerreiros. O rosto jovem ostentava uma boa porção de marcas de guerra, destacando-se entre elas as do primeiro grande confronto em Galany's Reach, onde as suas proezas tinham sido a base de uma série de poemas épicos e de canções arrebatadoras. Era seu rei, mas também era um deles, e os homens gostavam disso. — Estou hoje entre vós para vos rogar que se preparem para o maior empreendimento das vossas vidas. Saúdo-vos como vosso líder e como vosso irmão. Todos somos filhos desta bela terra que é Fortriu, nascidos do seu solo, criados no seu ar puro, mantidos pela doce água das suas muitas fontes e inspirados pelo fogo vivo do Guardião das Chamas, cuja luz arde no coração de todos os homens de coragem. O deus olha-vos com amor e orgulho, meus irmãos. Vejo a sua força nos vossos olhos. A sua firmeza no vosso porte. O seu valor nos vossos corações.
— Em breve, partiremos numa demanda que nos levará ao limite. O parasita insidioso que é Dalriada impôs a sua presença repugnante nas nossas terras durante tempo suficiente. — Fez-se ouvir um pequeno coro de assobios de apoio. — Demasiados dos nossos melhores e mais bravos homens tombaram durante o conflito com esse inimigo. Demasiadas almas valentes pereceram nessa luta. — Aos pés de Bridei, Ban mantinha-se muito quieto, a cauda hirta, as patas firmes, os olhos na multidão. — Chegou a altura da derradeira resistência, de dizer chega. É altura de expulsar o invasor da nossa pátria de uma vez por todas. Homens, chegou a altura da nossa maior batalha e da nossa maior vitória.
O pátio estremeceu com os brados. Os pés bateram, as mãos aplaudiram, as vozes foram elevadas em saudação.
— Tenho fé em cada um de vós — continuou Bridei — e nos vossos líderes. Carnach vai garantir que estão preparados a todos os níveis para levar o combate até à porta do inimigo e para saírem vencedores. Ficará a vosso lado até que do seu corpo exale o último fôlego. Não duvidem: nem ele, nem eu, nem qualquer um dos líderes de Fortriu permitirá que os Celtas assombrem as nossas terras para além da próxima Medida. O ocidente voltará a ser nosso e os estandartes das nossas grandiosas casas voltarão a agitar-se sobre os territórios pilhados pelo nosso inimigo. Iremos vê-los ao vento: as cores de Longwater e da Fonte do Corvo, de Thorn Bend e de Abertornie, a estrela e a serpente da antiga casa de Galany e o bravo branco e azul dos reis de Fortriu. Gabhran de Dalriada irá ajoelhar-se perante mim. Vai renunciar aos territórios que roubou. Abandonará estas costas para sempre.
— Isso é bom de mais para ele! — gritou alguém, o que suscitou uma onda de concordâncias iradas.
— Talvez seja — disse Bridei. — Mas não deixarei que no futuro se cante que os homens de Fortriu não foram magnânimos para com os inimigos. Que chacinaram a sangue frio um inimigo já rendido e indefeso. Os que nos encontrarem no campo de batalha irão deparar-se com a sua morte. Não duvidem, guerreiros de Fortriu. Marchamos para a batalha com os nomes dos nossos pais assassinados, dos nossos irmãos perdidos, dos nossos camaradas estropiados e arruinados nos lábios, uma canção de sangue e de vitória. Avançaremos com as vozes dos nossos deuses antigos no coração. Os seus cânticos serão o nosso alento e irão levar-nos aos anais das lendas dos Priteni. E se morrermos, será com as almas cheias de coragem, lealdade e amor, pois somos a personificação da vontade do Guardião das Chamas, e cada um de nós, novo ou velho, guerreiro endurecido de muitas batalhas ou rapaz de olhos vivos e tácticas de guerra acabadas de aprender, é filho do deus.
Um brado de aclamação. Alguns homens bateram nos ombros dos amigos. Não foram poucos os que limparam os olhos.
— Trabalharam muito — prosseguiu Bridei, num tom mais baixo, o que obrigou a multidão a silenciar-se para escutar as palavras do rei.
— Dos vossos líderes apenas ouço bons comentários sobre a conduta neste campo e nos outros locais de reunião. São um grupo excelente, unidos na amizade, na competição, na vontade de se excederem e de serem bem-sucedidos na grandiosa missão que nos espera. Por isso, apresento-vos os meus sentidos agradecimentos. E digo-vos, em cada mestre espadachim, em cada bravo lanceiro, em cada arqueiro de vista apurada, existe um marido com uma esposa jovem que ficou para trás, um pai com um bando de crianças a crescer, um homem com um campo de cevada que tem de ser cuidado, ou um barco de pesca que tem de ser restaurado. Todas essas coisas são reais, são a vossa vida, meus homens, fazem mais parte de vós do que qualquer carga inebriante em batalha alguma vez poderá vir a ser. Mas por agora têm de esquecê-las. Guardem-nas no vosso coração. Elas estarão à vossa espera, quando tudo terminar. Peço-lhes uma estação. Uma estação de heroísmo, de combate e de sangue. Alguns irão morrer. Verão o vosso camarada ser abatido ao vosso lado, o vosso irmão trespassado por uma lança celta, o vosso amigo de infância a sufocar nos vossos braços e a implorar um fim célere. Homens, nós somos guerreiros. Somos o exército leal do Guardião das Chamas, e a nossa coragem não vai fraquejar. Vamos fechar os olhos dos que tombarem e deitá-los em silêncio, e depois avançaremos, de armas nas mãos, e nos lábios o brado dos nossos antepassados: Fortriu!
O rei ergueu o punho e, em uníssono, uma floresta de braços levantou-se à sua frente. O brado de mil vozes parecia o grito do próprio deus, no ar límpido da Primavera:
— Fortriu!
Tornou-se óbvio que não seria possível uma partida rápida de Caer Pridne e um regresso ligeiro ao Monte Branco. Os homens juntaram-se em redor do palanque, o que fez com que Ban começasse a ladrar freneticamente e Breth tentasse abrir caminho à força de ombros, interpondo o próprio corpo entre Bridei e todos os que procuravam aproximar-se demasiado.
— Deixa-os vir — interveio Bridei. — Querem falar comigo, nada mais. — Avançou para a multidão e apertou uma mão aqui, tocou um ombro ali, admirou uma bela arma, recordou uma refeição partilhada, ouviu narrativas de um casamento, de um feito de armas e de um cavalo aleijado com o interesse e atenção de que cada homem precisava. Breth fez o melhor que pôde para manter algum espaço aberto em redor do rei. Ban rosnava para os joelhos e mordia os tornozelos. Quando os homens de Caer Pridne ficaram satisfeitos e começaram a dispersar do pátio, o sol já passara do seu ponto mais alto. Não haveria tempo para chegar a casa antes do anoitecer, nem mesmo com os melhores cavalos de Fortriu.
— Talvez seja pelo melhor — resmungou Breth, enquanto voltavam a entrar com Carnach. — Pelo menos podes dormir um pouco.
Bridei aquiesceu. Não podia dizer o que lhe ia na alma. Por mais idiota que pareça, sinto que se fechar os olhos, por um momento que seja, vou perdê-lo para sempre.
— Ser-me-ia bastante útil se partisses somente amanhã — admitiu Carnach. — Quero discutir algumas idéias contigo, umas tácticas novas que tenho vindo a desenvolver. E os homens esperavam que os visses a treinar as manobras. Planearam uma certa exibição...
Enquanto Bridei mantinha a sua vigília solitária junto à Fonte das Sombras, também outros velavam pela noite fora. Nos aposentos do rei, no Monte Branco, Broichan e Tuala tinham permanecido à cabeceira de Derelei, os sentidos alerta para a mais ínfima alteração do estado da criança. Mas a única mudança ocorreu nos padrões das paredes de pedra, imagens de luz e sombra invocadas pelo tremeluzir da lareira e pela luz das velas. Por duas ou três vezes foi trazida água e comida e Broichan e Tuala tinham-se incitado mutuamente para que se alimentassem. Tuala adormecera e viera a acordar sentada no chão ao lado da cama, a cabeça encostada ao colchão de palha, o pescoço dorido. Broichan não dormira. Ficara de pé, sentado ou ajoelhado onde pudesse ver Derelei, e por vezes recitara orações ou contara trechos de histórias, o tipo de narrativa que uma criança pequena gostaria de ouvir. Mas, durante a maior parte do tempo, o druida mantivera uma pose de imobilidade extrema, uma imobilidade que parecera impossível a um homem normal. Rezara em silêncio. Tuala sentira na câmara o poder de tais preces.
Havia questões que poderia ter colocado. Como era possível que uma criança tão pequena sobrevivesse sem se alimentar durante um dia e uma noite inteiros? A dor que sentia nos peitos cheios era indicadora da fome que o filho deveria ter. Por que motivo Broichan não tapara Derelei, com ou sem febre? A noite arrefecera o quarto.
Não deviam umedecer o corpo do bebê, ou embalá-lo, ou pegar-lhe ao colo? Será que o filho não se perderia na estrada negra que seguia, sem o conforto do toque? Será que a Mãe de Tudo não iria chamá-lo, com um sorriso, o que levaria o pequeno viajante a cambalear de braços estendidos na sua direção? Tuala não o perguntara. Fazê-lo seria duvidar não só de Broichan, como também dos deuses em que ele depositava a sua confiança.
A luz surgiu por fim, um amanhecer pálido, visível através do buraco que servia de chaminé por cima da lareira. Com ela chegou Mara, com uma bacia de água tépida nas mãos e uma toalha limpa sobre o braço. Não disse nada. Limitou-se a depositar a sua carga junto ao lume e aproximou-se para olhar a criança. Broichan e Tuala estavam de pé, cada um de seu lado da cama, os olhos fitos nas pálpebras tapadas de Derelei, no botão de rosa que era a boca, nos bracinhos estendidos. Mara estendeu o braço ao lado de Tuala e levou a mão áspera e avermelhada à testa do bebê. Broichan não tentou impedi-la.
— A febre passou. — A voz da mulher assumia um tom de uma firmeza louvável. — Quando acordar vai ser um rapazinho esfomeado. Imagino que dês graças por isso. Quando eles estão a amamentar as coisas podem tornar-se dolorosas. Já o vi com Brenna, quando tu ainda eras uma coisinha insignificante.
Broichan deixou escapar um suspiro profundo e virou-se de repente. Não queria que Tuala visse a expressão que tinha no rosto. A rainha voltou a olhar para o filho e viu-lhe as pálpebras a estremecer, os braços a moverem-se, as pequenas estrelas que eram as mãos a abrir e a fechar. O bebê agitou-se, esperneou e a linha de pó colorido que Broichan desenhara à sua volta foi quebrada. As flores caíram-lhe das pálpebras, e o azul delicado foi substituído por uma cor ainda mais doce, a dos olhos do bebê, ensonados, mas límpidos e brilhantes. Derelei estendeu os braços à mãe, que lhe pegou ao colo quando o bebê começou a chorar. Nos momentos que precisou para deslocar o banco até junto do lume, desapertar o corpete e levar a criança esfomeada ao peito, Broichan desapareceu.
Assistira a uma exibição enérgica de combate corpo a corpo com varapaus, um concurso de tiro ao alvo e a uma demonstração de equitação. Visitara estábulos, armarias e ferreiros, e elogiara os que se dedicavam a essas profissões. Ceara com Carnach e os seus capitães e escutara um grupo de guerreiros com talento para o canto. O longo dia chegara ao fim e A Que Brilha pairava, estreita como uma foice, no campo escuro que era o céu noturno. Bridei estava na passagem que conduzia aos seus aposentos, os mesmos que partilhara com os seus guardas durante a visita momentosa antes da eleição do rei. As recordações enchiam o lugar. A sombra do pai adotivo, Broichan, era particularmente forte. Broichan, sem o qual nunca viria a tornar-se rei. Broichan, que no fim quase fizera com que tal não se concretizasse. Broichan, o que mais próximo tinha de um pai. Broichan, que nunca compreendera na totalidade o homem que criara. E Tuala... pelos deuses, estava fora havia apenas um dia e a sua falta já se fazia sentir na forma de uma dor lancinante no peito. Como podia tê-la deixado sozinha a lidar com tudo? Derelei...
— Meu senhor. — Era Gwrad, o guarda-costas de Carnach, que descia os degraus do nível superior. — Um mensageiro. Do Monte Branco.
No íntimo de Bridei houve algo que se contraiu, um aperto forte e gelado, em preparação para um golpe mortal. Não conseguia falar. Atrás da figura robusta de Gwrad estava outra, um dos homens de Pitnochie, Uven, que se encontrava ao serviço do Monte Branco. De imediato, Breth chegou ao lado de Bridei. Os guardas escolhidos por Carnach mantiveram a distância.
— Diz-nos, então — indicou Breth, com um tom de voz cuidadosamente firme.
— O teu filho... — Uven estava ofegante.
Bridei manteve-se imóvel, enquanto a coisa gelada no seu interior estendia lentamente os tentáculos para o coração do rei.
— Pelo amor dos deuses — disse Breth com brusquidão —, desembucha de uma vez, homem!
— Meu senhor, a febre do teu filho cedeu — arquejou Uven. — Está muito melhor e deve recuperar...
De súbito, Bridei sentiu os joelhos a fraquejarem-lhe. Tinha a cabeça às voltas. Estendeu a mão, à procura do apoio da parede, e sentiu o braço de Breth em redor dos ombros.
— Que o Guardião das Chamas seja louvado — disse Breth em voz baixa. — São notícias muito bem-vindas. É melhor ires descansar, Uven.
Deve ter sido uma viagem difícil. Se houver mais, talvez possas voltar mais tarde, para falar com o rei.
Quando o mensageiro foi levado por Gwrad até um lume e algum alimento, Breth envolveu o braço de Bridei e fez menção de o levar para dentro.
— Não — disse Bridei. — Não, vou ficar aqui fora mais um pouco, sob o olhar d'A Que Brilha. São necessárias orações...
— Podes ser rei, mas não deixas de ser um homem — retorquiu Breth. — Desabafa. Ri-te, chora, grita, faz o que quiseres. Sou o único que vai ver-te. Não tenho filhos, mas imagino o que possas estar a sentir.
— Estou bem — asseverou Bridei, deixando-se cair de repente. Ficou sentado com as costas contra a parede, as mãos a taparem os olhos. — Estou bem...
Ban levou as patas ao ombro do dono e tentou lamber-lhe o rosto.
— O que eu sempre pensei — disse o guarda-costas corpulento, ignorando a sua posição —, é que os deuses sabem o que nos vai no coração sem que seja preciso dizê-lo. Imagino que em ti, mais do que em qualquer outro, isso seja verdade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


CAPÍTULO SEIS


Na manhã após a chegada de Ana, pouco depois de a jovem se ter levantado, lavado e vestido com a ajuda de Ludha, a figura imponente da encarregada da casa surgiu-lhe à porta.
— O meu senhor deseja que tomes o pequeno-almoço com ele nos seus aposentos — informou Orna. — Com a tua criada a acompanhar-te, é claro. Ludha, vais com a senhora e sentas-te em silêncio a um canto. Leva a tua costura contigo.
Era um pedido razoável. Ana interrogou-se sobre se Alpin pretendia resolver o assunto das exigências de Bridei enquanto comiam um prato rápido de papas de aveia. Esperava sinceramente que não. Dormira mal e encontrava-se a braços com uma dor de cabeça.
Os aposentos de Alpin eram espaçosos, com duas janelas estreitas, semelhantes à do seu quarto, na porta ao lado. Havia uma cama de tamanho generoso, com as cobertas ainda amarrotadas, e uma mesa de carvalho com dois bancos compridos. Aí era possível sentarem-se oito pessoas em conferência ou durante uma refeição. Ardia um fogo na lareira. Nas paredes estavam penduradas colgaduras, com cenas de batalha e de caçada, as cores brilhantes, à luz das candeias assentes em duas enormes arcas de carvalho. Junto à lareira havia uma pequena porta, que Ana imaginou desse para uma latrina ou para uma arrecadação. Ficou aliviada por encontrar Alpin já levantado e vestido. Estava de pé junto à mesa, à conversa com outros dois homens. Todos se silenciaram quando a jovem entrou.
— Ah, Ana, minha querida! Espero que tenhas dormido bem. A jovem obrigou-se a sorrir.
— O quarto é muito confortável, meu senhor. Ainda não me encontro recomposta da viagem, mas tal não se deve a qualquer falha na tua hospitalidade.
Alpin riu-se com gosto, deixando-lhe a cabeça a latejar.
— As tuas maneiras também são imaculadas — replicou. — Mordec, Erdig, já têm as vossas ordens. Encontramo-nos no pátio, quando eu terminar este assunto. Preparem-se para sair de imediato.
Após a saída dos dois homens, Alpin dirigiu Ana à mesa.
— Senta-te, minha querida. É claro que deves estar cansada. Devia ter-te deixado dormir em paz.
— Estou acordada desde que amanheceu. — Não lhe diria que outro pequeno pássaro chegara ao peitoril da janela do seu quarto aos primeiros raios de sol: um cruza-bico, resplandecente na sua plumagem de um vermelho intenso e que a olhava com o ar de avaliação ousada que se habituara a esperar daquelas visitas aladas. Ana observara-o a afastar-se. Vira-o desaparecer no mesmo local que a outra ave, ao fundo da muralha do lado norte. — Mas tenho uma ligeira dor de cabeça. Talvez passe se comer alguma coisa.
Sobre a mesa havia papas de aveia, bem como pão e uma tigela de mel. As mãos enormes de Alpin eram firmes e destras enquanto lhe serviam a papa.
— Prova isto — disse Alpin, olhando-a de esguelha. — Espero que te traga alguma cor ao rosto. Imagino que te deva um pedido de desculpas.
— Ah, sim?
— Estou a ver que és uma senhora e que não estás habituada aos nossos modos. Há muito tempo que não temos uma verdadeira senhora entre nós. Habituei-me a viver entre homens. A falar de uma certa maneira, sem ter o tento na língua a que talvez devesse obrigar-me.
Ludha sentara-se num banco a um canto e fingia estar a coser.
— Mas — argumentou Ana — há muitas outras mulheres aqui em Briar Wood. Não só as servas, mas as esposas dos teus guerreiros, algumas das quais se sentaram à mesa conosco, ontem à noite. E quanto aos teus familiares?
Alpin demorou um pouco a responder. Franzia o cenho quando atacou a papa.
— Só tenho uma irmã — acabou por dizer — e ela casou com um chefe tribal do norte. Há anos que não a vejo. Quanto às esposas, creio que nos habituamos a fazer as coisas de uma certa maneira e elas limitam-se a aturar-nos. Não são como tu. És uma jóia, uma estrela, algo tão raro como a seda fina.
Levou a mão à de Ana, sobre a mesa, e a jovem reprimiu o impulso de retirar os dedos.
— Estou habituada a palavras bonitas — disse — e sei bem julgar a sinceridade dos homens que as proferem. Não me conheces, Alpin. Não te sintas obrigado a dizer essas coisas só porque julgas que me podem agradar.
Com um trejeito no rosto, Alpin retirou a mão.
— Esqueces-te — indicou — de um certo assunto, relacionado com um casamento.
— De um possível casamento. Existem pormenores a serem discutidos antes que se decida a sua viabilidade.
— Ah, vai ser viável. — Alpin arrancou um naco de pão e usou a faca para barrar um pouco de mel. — Imagino que te esteja a apressar. Volto a esquecer-me da princesa que és. Nunca te deitaste com um homem, pois não?
Ana sentiu o calor invadir-lhe as faces. Ficou sem palavras, tal era a humilhação. Do seu canto, Ludha arquejou, chocada.
— Estou a ver que não — comentou Alpin, com um tom de satisfação. — Isso concede-te um maior poder de negociação. Nem pensaste nisso, pois não? Coras com facilidade. — Levou a mão à face da jovem, que fechou os olhos e ficou muito quieta, como se fosse uma criatura a tentar evitar ser notada por um predador. O coração martelava-lhe no peito. Os dedos de Alpin moveram-se de encontro à pele quente, numa carícia. — Estou a gostar — murmurou ele. — Mesmo com os teus modos delicados, existe paixão dentro de ti. Não é preciso teres medo do casamento. Já tens idade para ser levada para a cama. Já tens idade para sentir muito prazer com isso. Tens medo de mim?
Era uma pergunta difícil. Não era medo que sentia ao toque de Alpin, mas nojo. Não lhe podia dizer isso.
— Depois de tudo aquilo por que passamos na viagem — disse-lhe —, não sei se ainda sou capaz de sentir receio. Além disso, vim enquanto noiva. Seria uma tolice ter escrúpulos agora. Mas preciso de tempo para me instalar em Briar Wood. E, para ser sincera, o modo como falas tão abertamente sobre esses... assuntos íntimos... não me soam próprios. Parece-me muito cedo para isso. — Pelos deuses, esperava que Ludha não fosse uma alcoviteira. Aquela conversa seria bastante apreciada no alojamento dos criados.
— Já há muito tempo que a minha primeira esposa morreu — disse Alpin. Retirou a mão do rosto de Ana e voltou ao pequeno-almoço.
— Gosto de ter uma mulher na minha cama. Não gosto de acordar sozinho. Talvez os anos me tenham deixado grosseiro. — Ostentou um sorriso, o que lhe transformou as feições largas nas de um menino apanhado a meio de uma traquinice. Por um momento, quase parecia ser possível gostar-se dele. — Como já não és uma noiva jovem de doze ou treze anos, pensei que pudéssemos avançar mais depressa. Se a decisão fosse minha, casávamos ainda hoje. Estou impaciente. Agora que estás limpa, és uma rapariga muito bonita. E gosto da forma como me rejeitas, como se fosses tu a rainha e eu o mais reles dos criados. Desde, é claro, que percebas quem é o mestre de Briar Wood.
Ana pigarreou e esforçou-se por encontrar as palavras corretas por entre um turbilhão de emoções, das quais a mais intensa parecia ser a irritação.
— Mas tenho novidades que te vão agradar — continuou Alpin.
— O ataque sofrido pelo teu grupo em Breaking Ford ofendeu-me. As pessoas que me ofendem têm de pagar um preço. Vou partir esta manhã numa missão de represália. Cinco ou seis dias devem chegar. Talvez esta ação te deixe satisfeita
— Eu... — Ana debateu-se com a falta de palavras. — Vocês são vizinhos belicosos, no território Caitt — comentou.
— Orgulho-me de tomar decisões rápidas e de proceder a uma justiça célere. Faço isto por ti, pelas perdas e dificuldades que sofreste. Aceita-o como prova da minha genuína consideração, com ou sem palavras bonitas. Prezo-te bastante. Quero-te bastante. É tão simples e belo quanto isso.
Ana não era capaz de olhá-lo.
— Não estou habituada a dotes pagos com sangue humano — conseguiu dizer.
— Aqui no norte — retorquiu Alpin —, somos homens a sério. Ana perdera o apetite. Deu um gole no hidromel e tentou não pensar no futuro. Com Alpin e muitos dos seus homens fora, decerto seria capaz de falar com Faolan sozinha. Ele poderia aconselhá-la. Ela poderia desculpar-se por ter contado uma mentira idiota para protegê-lo. Com o líder de Briar Wood ausente, Faolan teria oportunidade de recolher informações de forma discreta.
— Ah, é verdade — disse Alpin, enquanto limpava a boca com as costas da mão —, vou levar aquele teu bardo comigo, como é que ele se chama, Finian? Pode vir a ser-lhe útil.
Ana tentou ocultar o alarme que sentiu.
— Não creio que seja boa idéia de todo — apressou-se a dizer. — Eu sei que Faolan fingiu muito bem, quando nos encontraste na floresta, mas ele não é um guerreiro. A sua presença só vai servir para vos atrapalhar...
— Deixa-me ser eu a julgá-lo. — Alpin levantou-se e estendeu a mão para ajudá-la. — Obrigado, minha querida, gostei muito destes momentos. Coras de uma forma linda. Põe-te à vontade, enquanto eu estiver fora. Dá uma vista de olhos por aí, decide as alterações que gostarias de fazer, aproveita para conhecer as pessoas. Orna é muito competente. Ela trata de tudo o que precisares.
— Mas... — Aos lábios aflorou-lhe uma derradeira súplica.
— Partimos muito em breve — disse Alpin. — Gostaria que te fosses despedir ao pátio. A ver se o teu beijo de despedida é para o teu prometido e não para aquele teu bardo sedutor. Pareces demasiado ligada ao sujeito.
— Não é nada disso... — Ana deteve-se. Por que estava a justificar-se perante aquele rústico?
— Folgo em sabê-lo. Se o teu comportamento à frente do meu povo refletir isso, não vai haver problemas, certo?
Ana ficou nos degraus enquanto os homens se despediam e, quando Alpin inclinou a cabeça na sua direção, a jovem deu-lhe um beijo afetado na face. Alpin pareceu considerar o gesto divertido e, a julgar pelos sorrisos e pelas piscadelas de olho, o mesmo se passou com os elementos da casa ali reunidos. Esforçou-se por não olhar para Faolan mais do que o que seria considerado próprio. Estava montado no cavalo que lhe tinha sido atribuído, uma expressão vazia nos olhos. Parecia não ter qualquer arma consigo. Entre os guerreiros Caitt, fortemente armados, de cabelos soltos, barbas cerradas e tatuagens ameaçadoras, parecia um cordeiro entre lobos. Quando deram a volta ao pátio e atravessaram os portões enormes com Faolan entre eles, pareceu a Ana que o seu bardo era um prisioneiro com uma escolta armada e não um visitante com assuntos reais. Mesmo assim, raciocinou Ana,
Faolan sabia, melhor do que ninguém, tomar conta de si próprio. Na sua ausência, a jovem tinha um trabalho a fazer. Já que ele fora privado dessa oportunidade, Ana iria dedicar-se a um pouco de espionagem.
— Orna — perguntou Ana casualmente —, onde vai dar aquela porta pequenina, ao lado da lareira no quarto de Alpin?
Era normal as mulheres de Briar Wood passarem as tardes numa sala comprida, destinada à costura e à fiação. A sala de trabalho era uma estrutura independente que dava para um pátio isolado, onde tinham sido dispostos bancos de pedra, por forma a aproveitar a luz fria do sol do norte. Era completamente diferente dos jardins cuidados do Monte Branco. Ali, pouco mais crescia do que ervas secas, que se esforçavam por surgir por entre as lajes, e uma pereira raquítica, que se erguia num pedaço enfezado de solo. De um lado, agigantava-se a muralha exterior da fortaleza. Uma parede menor, mas ainda assim alta o suficiente para impedir que se visse o exterior, curvava-se vinda da muralha, até encontrar a pedra da sala de costura.
A atmosfera da sala de trabalho pareceu a Ana desanimadora. As mulheres demoravam a dar-se à confiança, o que dificultava a obtenção de informações úteis. Era o terceiro dia após a partida de Alpin e Ana descobrira que, no interior da fortaleza, certos caminhos eram guardados e certas barreiras se encontravam trancadas. Esgueirara-se para o quarto de Alpin ainda de madrugada, antes que os elementos da casa se tivessem levantado, e tentara abrir a pequena porta mas, sem chave, revelara-se impossível. Isso despertou-lhe a curiosidade. O lugar onde os pássaros tinham desaparecido no interior da muralha ficava para lá da zona da casa destinada à família, algures mais abaixo. A porta em questão parecia dar acesso, mais ou menos, a essa direção.
— Não há aí nada que te interesse. — Orna mantinha os lábios comprimidos, enquanto trabalhava numa bainha. — Despensas, anexos, todas as habitações têm zonas do gênero.
— Quem tem a chave? — perguntou Ana. Os dedos de Orna pararam.
— Alpin — respondeu. — Acredita, não é uma parte da casa que queiras ver.
Algo no silêncio das outras mulheres indicava que Ana se encontrava em terrenos perigosos.
— Deve haver mais alguém que a tenha — disse, com o tom mais majestoso que foi capaz de invocar. — Vi um homem baixo e calvo, aquele de túnica comprida, a entrar nos aposentos de Lorde Alpin com uma travessa de comida, mesmo estando o meu senhor ausente. Parece uma coisa estranha de se levar a um anexo. Como se chama o homem?
— Deord, minha senhora — adiantou alguém.
— Deord — repetiu Ana. — Talvez vá falar com ele. Alpin sugeriu que deveria conhecer todos os elementos da casa. Orna, talvez possas pedir a esse Deord que venha falar comigo.
Seguiu-se um silêncio pesado, durante o qual ninguém trocou olhares. As atenções mantinham-se na roca e no fuso, na agulha e na linha, nas armações de tecelagem ou nos pentes de cardar, mas pouco trabalho se adiantava.
— Orna? — perguntou Ana em voz baixa. — Mora alguém nessa parte da casa?
— É melhor perguntares a Alpin, minha senhora — replicou Orna com um tom sério. — Ele tenciona contar-te a seu tempo.
— Contar-me o quê?
— É melhor que seja ele a dizê-lo. Lorde Alpin regressa daqui a alguns dias. Nessa altura conta-te.
— Nesse caso, por agora falarei com Deord.
— Sim, minha senhora. — Após alguns instantes: — Regra geral, Deord não tem grande coisa a dizer. Duvido que te possa ajudar.
— O que é ele? Um guerreiro? Anda como um lutador.
— É um guarda, minha senhora. Um guarda especial.
— O que guarda ele?
— Guarda algo que é melhor que fique onde está, fora da vista e longe de perguntas. — O tom de Orna era quase de irritação. — Sinto muito, minha senhora, mas às vezes é melhor não perguntar. Tenho estado para te dizer que encontramos um rolo de lã de qualidade, de um azul muito bonito. Ia ficar-te bem. Pensei em pedir aqui à Sorala que te fizesse uma túnica, e par de saias, e Ludha pode fazer os acabamentos. O que dizes?
Se pensavam que a conseguiam distrair com tanta facilidade, estavam muito enganadas.
— Parece ideal — replicou Ana. — Obrigada. Vocês têm sido muito generosas. Gostava de falar com Deord hoje, Orna, antes da ceia. Podes dizer-lhe que vá aos aposentos de Alpin? Também preciso que lá estejas, Ludha.
— Verei o que posso fazer — respondeu Orna. — É Deord quem faz os seus próprios horários e estabelece as suas próprias regras. Por vezes, não pode vir.
— Mesmo assim.
Ana esperou à hora marcada, mas Deord não apareceu. Orna, quando questionada mais tarde, disse que sim, tinha falado com ele, mas que nesse dia não se encontrava disponível.
— Amanhã, então — indicou Ana, sentindo-se bastante aborrecida com a falta de respostas sistemática.
— Se ele puder, minha senhora.
— Isto parece-me estranho — disse Ana, ao mesmo tempo que fitava a responsável pela casa. — Será que os guardas não atendem aos pedidos do seu mestre? Não será razoável que, enquanto futura esposa de Alpin, espere que os habitantes de Briar Wood me satisfaçam os pedidos? Estou a dar-lhe um dia inteiro de prazo.
— Minha senhora — disse Orna —, acredita, todos estamos satisfeitos por teres vindo para cá. Há muito que esperávamos que Lorde Alpin voltasse a casar-se e endireitasse a vida. Foi um golpe terrível, o que aconteceu a Lady Erisa. Não deves sentir-te inquieta ou indesejada entre nós. Mas temos os nossos costumes e podem nem sempre condizer com o que estavas habituada na corte do rei Bridei. Acredita, não passa de uma porta minúscula e de umas velhas arrecadações cheias de pó. Tudo aquilo que precisas saber sobre isso, ou sobre Deord, compete ao meu senhor responder-te. Tenho a certeza de que o fará.
— Muito bem, Orna. Obrigada. Sei que estás a tentar ajudar.
— Sim, minha senhora.
Ainda não escurecera. Os dias aumentavam e as copas altas dos ulmeiros, pontilhadas com ninhos de gralhas, destacavam-se contra a palidez do céu fresco do entardecer. Ana estava à janela a pentear o cabelo e a observar os pássaros da floresta a regressar aos pousos da noite. Talvez, afinal de contas, não importasse de todo: a porta ínfima,
as chaves guardadas com tanto zelo, Deord e a travessa com jantar para dois. Parecia algo retirado de uma narrativa, o pequeno mistério, o pormenor deslocado que se alonga na mente e que custa a esquecer. Iria parecer tola, se insistisse em abrir a porta, apenas para encontrar nada mais do que o sugerido por Orna: arrecadações empoeiradas, anexos negligenciados. E Alpin estaria de regresso dali a poucos dias. Nos contos, normalmente, as jovens que se deixavam apoderar pela curiosidade viam-se a braços com destinos abruptos e desagradáveis. Estava a ser tonta. Devia concentrar-se no tipo de informação que Faolan gostaria de levar a Bridei, observações feitas a homens^ armamento e posições. Não devia preocupar-se com o que aquela casa queria, como era óbvio, manter em segredo.
Ouviu-se o rufiar de asas e, no peitoril à sua frente, a menos de dois palmos, surgiu uma gralha, decerto a mesma que os ajudara em Breaking Ford e que os seguira pela floresta. Parecia andar à cata de materiais para o ninho, pois tinha no bico afiado um fio de qualquer coisa macia e brilhante.
— Então voltaste — disse Ana, em voz baixa. — Estás atrasada com o teu ninho. Ao que parece, aquelas gralhas já fizeram os delas há muito tempo. O que será que tu queres? Que estás a tentar dizer-me, tu e os teus amigos?
O pássaro deu um salto, entrou no quarto e acomodou-se sobre a arca junto à janela. A plumagem aprumada dava-lhe um ar composto. Os olhos eram de um brilho penetrante e pareciam questionar Ana.
— Mesmo que soubesse o que querias, não tenho respostas para te dar — disse-lhe. — Tudo o que tenho são as minhas próprias interrogações.
O pássaro baixou a cabeça e largou sobre a arca a carga que trazia no bico, ao que voltou a olhar a jovem.
— O que tens aí? — Ana inclinou-se para ver com mais atenção. O exame minucioso por parte dos olhos brilhantes não vacilou. A jovem pegou no que a ave largara e ergueu-o contra a luz que se ia desvanecendo. Fios de cabelo, diferentes de todos os que vira nas cabeças de Briar Wood, pois possuíam um tom arruivado pouco comum, eram ondulados e fortes e tinham reflexos brilhantes quando vistos ao sol. Os fios eram compridos e enrolaram-se em volta dos seus dedos. — De quem são? — perguntou Ana, mesmo sabendo que não obteria resposta, pelo menos até buscá-la pelos seus meios.
A gralha olhava-a, a cabeça inclinada. Aguardava. Ana percebeu que apenas poderia haver uma resposta àquele desafio estranho. Arrancou três fios do seu próprio cabelo, de um dourado claro e duas vezes tão compridos como os outros, e apresentou-os na palma da mão. Como um raio, a gralha arrebatou os cabelos e levantou vôo, saindo pela janela. A palma da mão de Ana ardia-lhe. O pássaro tinha um bico afiado.
Nessa noite, os sonhos da jovem encontraram-se repletos de corredores escuros e de presenças intuídas, de degraus para nenhures e de trancas que não podiam ser abertas. Acordou de madrugada com a boca seca e o coração aos pulos. Decidiu passar o dia embrenhada em tarefas domésticas e sem mais curiosidade.
Para sua surpresa, quando regressou ao quarto após uma manhã passada a falar com os inúmeros artesãos que se dedicavam aos seus variados ofícios na casa de Briar Wood, a quem Orna a apresentara, e de uma tarde a provar as roupas novas, Deord esperava por ela no corredor à porta dos aposentos de Alpin. Ana já dispensara Ludha e encontrava-se sozinha.
— Querias falar comigo. — O tom da voz de Deord era estável. Era o homem de aspecto mais calmo que Ana já vira. Ao mesmo tempo, parecia perigoso. Tinha uma constituição poderosa como um javali, o corpo musculoso e sólido por baixo da túnica larga.
— Sim, queria. — Agora que o homem ali estava, não tinha a certeza por onde começar. Sem a presença de Ludha, não poderia falar sozinha com um homem nos aposentos de Alpin. Teria de questioná-lo no corredor. — Desejava conhecer todos os habitantes de Briar Wood. Imagino que saibas que existe a possibilidade de vir a casar com Lorde Alpin. O teu nome é Deord?
O homem inclinou ligeiramente a cabeça calva, sem falar.
— Pelo que sei, és um guarda especial.
— Um guardião, sim, minha senhora. — Tinha os olhos claros e serenos. O ar de serenidade tinha algo em comum com o modo habitual de Faolan, o que deixava Ana incomodada.
— Reparei que o teu local de trabalho parece situar-se para lá daquela pequena porta nos aposentos privados de Lorde Alpin. Estou correta?
— Sim, minha senhora.
Ana pigarreou. — Orna disse-me que é uma zona de arrecadação. Anexos antigos. Será que existem pássaros nesses anexos?
Um lampejo de expressão cruzou as feições controladas. — É possível, minha senhora.
— São teus? Deord sorriu.
— Não, minha senhora.
— Deord — disse Ana —, tenho vindo a deparar-me com alguma dificuldade em obter respostas diretas sobre aquela porta e aquilo a que dá acesso. Poderás dar-me essas respostas?
Olhou-a calmamente.
— Quando não posso dizer a verdade — replicou — permaneço em silêncio. Existem anexos. Há também aposentos, incluindo os meus. E o meu local de trabalho. Alpin contratou-me para garantir a segurança entre aquela parte da casa e esta, e tenho vindo a desempenhar bem essa tarefa ao longo dos sete anos que passei em Briar Wood. É tudo o que posso dizer-te. Se queres saber mais, terás de perguntar ao teu marido.
Ana arrepiou-se com o tom da voz.
— Foi o que Orna me disse. E ele não é meu marido.
— Ainda não.
— Ainda não e talvez não venha a ser de todo. O acordo está dependente de certas condições. — Por que estaria a dizer-lhe isso, a justificar-se perante um servo? — Muito bem, Deord, uma vez que deixaste bem claro que não tencionas dizer-me mais nada, podes ir. Imagino que tenhas de tratar de uma bandeja para a ceia.
— Sim, minha senhora. — Virou-lhe as costas e afastou-se.
— Entra — indicou Deord. — Tens de comer alguma coisa. Há cerveja e bons queijos. Vem, Drustan. Por que estás aí fora? — Dispusera a refeição frugal sobre a pequena mesa. Os aposentos eram compostos por duas divisões, uma com a lareira, o banco e a arca de arrumação, e outra por trás, com duas camas. Tinham uma natureza simples. Não havia tapeçarias e apenas uma candeia. Juncos cobriam o piso de terra. Uma pequena alcova na parede interior albergava uma latrina, escavada no chão, com um balde de cinzas e uma pá sobre uma pedra. Deord mantinha tudo escrupulosamente limpo. Fazia parte da sua disciplina pessoal, aprendida a custo e nunca esquecida.
— Drustan! — voltou a chamar. — A sopa está a arrefecer.
Aquele a quem vigiava surgiu à porta, sem um som, a gralha pousada num ombro e o cruza-bico no outro. A carriça estava empoleirada na cabeça, quase escondida pelo exuberante cabelo brilhante. Os olhos de Drustan deixaram o guardião alarmado, tal era a excitação neles reprimida.
— O que foi? — perguntou Deord, enquanto o observava.
— Nada — respondeu Drustan. Enfiou a mão no bolso e foi sentar-se à mesa. — Deord?
— Sim?
— Tenho de sair. Hoje, amanhã. É como uma torrente que me enche, um fogo que se alastra cada vez mais. É como um grito que tenta soltar-se. Quando podemos voltar a sair?
Deord olhou-o calmamente.
— É fácil ver que tens vindo a planeá-lo — disse. — Hoje, não. Estou cansado de passeios no escuro e a lua está a minguar. E fácil perdermo-nos de vista no bosque. Sabes o que pode acontecer, se não seguirmos as regras que estabelecemos. Amanhã, talvez, se o tempo se mantiver estável.
— Viste-a? — perguntou Drustan. Segurava um pedaço de queijo nos dedos, mas não o comeu. A gralha desceu-lhe o braço.
— Não vou buscar boa comida só para ver essas criaturas a devorá-la — comentou Deord, num tom brando. — Come, Drustan. Tens de manter as forças.
— Para quê? — A boca assumiu de repente uma expressão solene. O brilho nos olhos estranhos desvaneceu-se.
— Para o futuro. Algum dia, qualquer coisa há-de mudar. Isto não é eterno.
— Alpin não vai mudar. Eu não vou mudar. Como posso alguma vez ser mais do que um prisioneiro?
Deord mastigou uma côdea de pão de aveia. — A vida é mudança — replicou. — Sim, vi-a, e ao indivíduo que a acompanhou. Aqueles dois são uma fonte de problemas. Ela com o cabelo dourado e as perguntas, e ele...
— E ele o quê? — A gralha pegara no queijo e regressara ao ombro de Drustan para comê-lo.
— Ele tem uma natureza que não esperava ver aqui em Briar Wood
— explicou Deord.
— Que natureza? É um feiticeiro? Um sacerdote?
— Não — respondeu Deord. — Tem a mesma natureza que eu. Drustan olhou-o em silêncio. Pouco depois, começou a comer a sopa.
— O significado, não o sei — continuou Deord. — Alpin levou-o com um grupo de ataque.
— Viste-a — disse Drustan. — Está melhor? Feliz? Falaste em perguntas. Que perguntas?
Deord assumiu uma expressão zombeteira.
— Então, Drustan — disse. — Não estarás em melhor posição do que eu para o dizeres, com esses teus espiões? Têm andado especialmente atarefados, nos últimos dias.
— Diz-me — insistiu Drustan. — Que perguntas?
— Chamou-me para um breve interrogatório. É razoável que o tivesse feito, pois será esposa do teu irmão, e senhora de Briar Wood. Perguntou-me sobre portas e chaves, e sobre quem vivia nesta parte da fortaleza. Ainda não lhe contou, como é óbvio, e eu também não o fiz. Ah, e colocou uma questão ocasional sobre pássaros.
Drustan sorriu, o que lhe iluminou as feições e lhe instalou um brilho cintilante nos olhos.
— Drustan — disse-lhe Deord em voz baixa. — Tenho de te avisar. Não te envolvas nisto. Não te metas nesta situação, entre Alpin e esta mulher, no casamento, no tratado que procuram, no indivíduo que obviamente não é o bardo que alegam. É um terreno perigoso para ti. O teu irmão fez o que lhe pediste. Salvou a rapariga. Contenta-te com isso e afasta-te, de agora em diante. Pensa nela, se ajudar. É jovem e cheia de esperanças, e não faz idéia do que aconteceu aqui, no passado. É a melhor oportunidade que o teu irmão tem de conseguir um futuro decente. Não ponhas isso em perigo com a tua intromissão.
— Como se chama? — perguntou Drustan, com brandura.
— Ana. É das Ilhas Pequenas e chegou da corte de Bridei. Tem uma linhagem impecável, é de sangue real e, sou obrigado a admiti-lo, não só é bela e aparentemente virtuosa, como também perspicaz. O único defeito parece ser um excesso de curiosidade. Quando Alpin lhe contar a verdade, o problema deixará de existir. Esperemos que o faça em breve.
— Ana... — Os dedos de Drustan, dentro do bolso, tocaram na pequena oferenda que a gralha lhe trouxera na noite anterior.
— Portanto — concluiu Deord —, esperemos que o dia de amanhã nos traga bom tempo. Agora, come o resto da ceia, ou não terás força para chegar à cama, quanto mais para andar pelo bosque.
O grupo de Alpin cavalgou para nordeste e, quando atravessaram o rio, não foi pelo vau, mas sobre uma ponte frágil, construída bem alto sobre um local onde o curso de água se estreitava entre margens rochosas. Os cavalos foram vendados e levados à vez. Parecia um local ideal para uma surpresa por parte do inimigo, mas Faolan não teceu qualquer comentário. Manteve os ouvidos atentos e a boca fechada.
O andamento foi rápido. Ao terceiro nascer do sol, o confronto antecipado com os Azuis era iminente. Os homens de Alpin não falavam muito, mas nos seus olhos havia uma expressão que Faolan reconhecia: os caçadores tinham farejado sangue. Ninguém lhe oferecera uma arma com que se defender, e ele não a pedira. Em vez disso, foi delineando estratégias contra a possibilidade bastante real de Alpin o ter trazido com o único intuito de se ver livre dele, longe da vista de Ana. O teu bardo tombou em combate, minha querida. Tal como seria de esperar, as suas capacidades guerreiras não eram de todo adequadas.
Alcançaram os Azuis numa clareira junto a um ribeiro. A aproximação foi feita a pé, em silêncio. Naquele terreno, um ataque a cavalo seria caótico, com as vantagens da altura e da velocidade sobrepujadas pela capacidade do inimigo de se esconder por entre a vegetação, de se esquivar por caminhos que as montadas não poderiam seguir com facilidade. Tinham deixado os cavalos a alguma distância. Faolan ainda esperara ser incumbido da tarefa de os guardar, mas Alpin, com um esgar selvagem, incitara-o a acompanhar os guerreiros.
— Vamos dar-te inspiração para fazeres canções, bardo! — Continuaram sem lhe oferecer um punhal ou uma faca.
Assim que a investida começou, não houve tempo para pensar em canções. O ataque foi rápido e sangrento. O grupo de Azuis, apanhado desprevenido num acampamento improvisado, tentou defender-se com garra, mas não podiam igualar as espadas e as maças, as lanças de arremesso e os punhais da tropa de Alpin. A clareira encheu-se de novos sons: o raspar de metal contra metal, o gorgolejar de um homem a sufocar no seu próprio sangue, o grito de outro que perdera a mão. Faolan esforçou-se por seguir a ação, ao mesmo tempo que fingia esconder-se atrás de uma árvore, grato por as suas roupas andrajosas de criado o tornarem inócuo.
Os sons alteraram-se passado algum tempo, com menos gritos e gemidos de feridos. Agora prevalecia o ruído sistemático das espadas e das lanças dos guerreiros de Alpin a trespassar os restos dos inimigos. Faolan viu o líder de Briar Wood erguer o punho no ar e soltar uma espécie de brado de vitória. E depois ouviu-se algo que lhe arrepiou os cabelos. De todos os lados vinha o som de passos em corrida. O retinir de metal aproximava-se por entre as árvores. Os reforços tinham chegado.
Havia apenas uma escapatória, para cima e para longe da vista. Faolan saltou, agarrou um ramo com ambas as mãos e içou-se grosseiramente para a faia que lhe proporcionara o abrigo. Subiu no momento em que um grito de guerra lancinante se fez ouvir de todas as direções, quando um novo grupo de Azuis, imaginou que vinte ou mais, carregou vindo da mata com as lanças em riste.
Os homens de Alpin já tinham formado um círculo apertado, as armas apontadas para fora. Não eram um bando de bárbaros, mas uma força de combate disciplinada. Não admirava que os Celtas o procurassem como aliado. Faolan mudou de posição no ramo e espreitou por entre as delicadas folhas novas da faia. Libertou uma mão, que teria de estar pronta para o que desse e viesse. Em caso de necessidade, subiria ainda mais. Não havia razão para que um bardo não possuísse alguma capacidade física.
O pequeno grupo de Alpin resistiu aos atacantes durante algum tempo, mas os homens de Briar Wood não tinham para onde ir. Todo aquele que se afastasse dos camaradas e corresse para o círculo de Azuis seria abatido de imediato. Os Azuis estavam furiosos. A clareira encontrava-se repleta de corpos de camaradas, chacinados no primeiro ataque. Não sairiam dali até que arrancassem uma retribuição em sangue.
Naquelas circunstâncias, um bardo deveria permanecer na árvore em silêncio e deixar que os acontecimentos se desenrolassem. Deveria esperar até que os homens de Alpin se cansassem e começassem a cometer erros, após o que os veria a serem, eles próprios, chacinados. Não fazer nada, ver Alpin a morrer. Levar Ana de volta a casa... Não era possível. O tratado vinha em primeiro lugar. Por isso, era necessário agir. Salvar Alpin. Conquistar a sua aprovação e, com ela, a liberdade para procurar informações. Afinal de contas, era esse o seu trabalho. E tinha uma pequena ferramenta ao seu dispor...
Involuntariamente, Alpin ajudou-o. O líder de Briar Wood, afogueado e a suar, empunhava com as duas mãos a espada pesada e gritava insultos a um dos Azuis, um indivíduo entroncado de barba arruivada.
— Resolveste começar a atacar viajantes inocentes, Dendrist? Aquela que tu quase mataste em Breaking Ford era a minha esposa! Foi a escolta dela que os teus rufiões atacaram! Vais pagar por esse erro, pagar bem caro! Ninguém faz pouco de Alpin, de Briar Wood!
O líder dos Azuis estava um pouco atrás dos seus homens, com a espada embainhada. Parecia satisfeito em deixar que os subalternos lhe fizessem o trabalho sujo.
— Esposa? O quê, mais uma? — troçou. — Então, ainda bem que ela se afogou. É preferível uma morte rápida na água ao tipo de destino que as esposas encontram naquele antro a que chamas casa. Bem podes poupar o fôlego, Alpin. Eu próprio perdi dez homens naquela enchente. Já agora, ouvi dizer que iam duas raparigas naquele grupo. Quem era a outra, uma mulher para o teu irmão?
Os homens de Dendrist receberam este comentário com uma gargalhada trocista. Alpin soltou um rosnado de puro ódio e investiu com a espada. Um dos Azuis avançou com a lança, o que fez com que Alpin recuasse para fora de alcance. Até àquele momento, ainda não deixara que a fúria se sobrepusesse ao bom senso.
— É isso que andas a ensinar ao teu filho? — disse Alpin, à laia de provocação, enquanto mirava o jovem com a lança. — Como matar mulheres inocentes, como travar batalhas com insultos reles? Não é de admirar que esteja a crescer à tua imagem, Dendrist, um cobarde de coração empedernido e sem nada na cabeça, a não ser a ganância pelo que não é dele. Um pai miserável, um filho desprezível.
O jovem voltou a investir, desta vez de forma algo descontrolada. Alpin encontrava-se agora imóvel, e os seus homens também se tinham silenciado, à espera de uma reação. Faolan aproveitou a oportunidade. Puxou do objeto que escondera na bota antes de terem deixado Briar Wood, Semicerrou os olhos e atirou-o.
O jovem caiu de joelhos e deixou cair a lança. Num abrir e fechar de olhos, a espada de Alpin estava nas mãos do guerreiro a seu lado, Mordec, e o chefe tribal tinha o filho de Dendrist imobilizado à sua frente, com um punhal encostado à garganta, enquanto o sangue escorria de um ferimento no ombro do rapaz, que lhe tingia a túnica de vermelho. O rosto do jovem estava pálido com o choque.
— Que tal um acordo? — perguntou Alpin calmamente. Após um breve relance na direção dos ramos da faia, não voltara a olhar para Faolan.
Dendrist deu um passo em frente. A sua própria expressão tinha o seu quê de palidez. — Larga-o! — ordenou. — Os teus homens não têm para onde fugir! Estão em desvantagem, quer numérica quer táctica. Larga o meu filho!
— Por que haveria de o fazer? Repara como ele está a sangrar. De certeza que queres que ele seja visto, ou pelo menos que se ponha uma ligadura para estancar o sangue. E não pode demorar muito.
— Alpin, seu canalha...
— Posso acabar com ele rapidamente, se preferires. Tenho os meios para isso, e também tenho jeito para a coisa. Estás a ver? — O punhal traçou uma estreita linha vermelha no pescoço do rapaz, que inspirou, um fôlego entrecortado e sonoro.
— Não te atrevias! — A voz de Dendrist soou distorcida pela raiva e pelo medo.
— Experimenta, Dendrist. Serei conhecido por me retrair? Não, não digas aos teus homens para atacarem. Se o fizeres, sou obrigado a cortar a garganta ao rapaz para ter os dois braços livres para me defender. Pelos deuses, isto é um trabalho sujo. Estou coberto de sangue. Bem, quanto ao tal acordo.
— Seu porco, Alpin — resmungou Dendrist. — Estabelece as tuas condições, mas liberta o rapaz. Por tudo quanto é sagrado, Alpin, juro que vais pagar por isto.
— Ficas com ele e vais-te embora tratar dele — disse Alpin. — Não envias metade dos teus homens para nos chacinarem assim que virarmos costas. Não começas a matar-me os homens assim que eu libertar o rapaz. Ao ritmo que está a perder sangue, não tens tempo para isso. Tenho a tua palavra?
— Tens a minha palavra — garantiu Dendrist, por entre dentes cerrados. — Agora solta-o.
— Diz aos teus homens que guardem as armas e que dêem cinco passos atrás. Abre espaço para que possamos sair daqui. — Alpin não afrouxara o controlo sobre o jovem. Também o anel defensivo das armas das suas tropas não tinha perdido a disciplina.
— Façam o que ele diz.
Os guerreiros dos Azuis praguejaram e lançaram olhares furiosos enquanto embainhavam as armas.
— Liberta o meu filho!
— Ainda não — disse Alpin. — Acho que não confio em ti, Dendrist. Quero dois dos teus homens. Vamos levá-los e ao rapaz conosco até Beacon Rise. Depois seguimos para casa e os teus soldados podem trazer-te o teu filho. Isso vai reduzir a possibilidade de jogo sujo de tua parte.
— Nessa altura pode já estar morto! — gritou Dendrist, os olhos no rosto do filho, do qual a cor se esvaíra.
Alpin sorriu.
— E nessa altura como te vais arrepender de ter demorado tanto tempo para te decidires. Será que vais querer prolongar muito mais esta agradável conversa?
— Domnach, Omnist, vão com ele. A segurança do meu filho está acima de tudo. Esperamos por vocês na passagem Deeprill. Vou enviar um homem para alertar os curandeiros. Agora, vão!
O círculo de Azuis recuou ainda mais. Alpin e os seus homens começaram a retirar, mantendo sempre uma formação defensiva, com o rapaz ferido amparado por dois dos guerreiros de Briar Wood. Não ia esvair-se em sangue. Faolan sabia-o e imaginou que Alpin também o soubesse. A posição do ferimento significava que haveria uma quantidade espetacular de sangue ao início mas, desde que fosse estancado em breve, o jovem deveria recuperar na totalidade.
Agora, os Azuis encontravam-se de um lado da clareira e os homens de Briar Wood do outro. Estes afastavam-se por entre as árvores, com os guardas na retaguarda a recuarem com as lanças sempre apontadas ao inimigo. Faolan pigarreou. As cabeças viraram-se para ele e um arqueiro Azul levou a mão às flechas.
— Ah — disse Alpin tranqüilamente —, quase que nos esquecíamos do nosso bardo. Desce daí, Finian. Já acabou tudo.
Faolan saltou para o chão e acercou-se do grupo de Alpin, sempre com a pose de um homem em estado de choque, após ter testemunhado a sua primeira batalha. Sentiu-se aliviado por ninguém se ter rido. Enquanto o grupo de Alpin, acompanhado pelos Azuis designados, retiravam em direção a casa, os homens de Dendrist deram início à tarefa macabra de recolher os camaradas tombados. A vingança de Alpin daria azo a uma retaliação posterior, sem dúvida, o que forçaria
o líder de Briar Wood a responder à letra mais uma vez. Dizia-se que fazia parte da natureza dos Caitt guerrearem assim. Naquele dia, Faolan vira com os seus próprios olhos que assim era.
O grupo fez alto no local onde os cavalos estavam presos. Rasgaram a túnica e a camisa do jovem e examinaram o ferimento. Erdig retirou a arma que continuava alojada no ombro do rapaz e um homem que parecia saber o que estava a fazer aplicou uma compressa de linho e uma ligadura apertada. O jovem cerrou os dentes, sem produzir qualquer som. Parecia que no norte os criavam robustos.
Alpin segurava a arma ensangüentada nas mãos e franzia o sobrolho. Ergueu o olhar e cruzou-o com o de Faolan.
— É uma das tuas facas de cozinha — disse Mordec, surpreendido. — Vês a tua marca no cabo, meu senhor?
— Foi-me dada para usar à mesa — comentou Faolan, com um tom de voz propositadamente trêmulo.
— Está um pouco mais afiada do que as costumamos ter — observou Alpin.
— Não tinha ferramentas com que reparar a harpa, meu senhor — justificou-se Faolan. — Um músico não consegue manter os seus instrumentos em condições com uma faca romba.
— E onde é que um bardo aprendeu a lançar com tanta destreza? Faolan tentou soltar uma gargalhada nervosa.
— Até eu fiquei surpreendido, meu senhor. Estou espantado que a minha contribuição tenha sido útil. Para dizer a verdade, limitei-me a fechar os olhos e... bem, atirei.
Os homens riram-se. Alpin sorriu, mas os seus olhos mantinham um escrutínio cerrado.
— Bom, conseguiste material para fazeres uma canção, quando voltarmos. E o rapaz está ligado? Erdig, ele pode montar à tua frente até Beacon Rise. Os outros vão ter de correr, se nos quiserem acompanhar. Depois é sempre a andar até casa. Tenho uma jovem formosa à minha espera e uma inquietação que tem de ser satisfeita.
Faolan lamentou profundamente não ter apontado noutra direção e lançado a faca para a garganta de Alpin. A noção era atraente, salvo pelo fato de que, se o tivesse feito, provavelmente teriam sido todos chacinados.
— Belo lançamento, bardo — elogiou um dos guerreiros. — De olhos fechados? Duvido.
— Se foi um golpe de sorte — comentou Mordec —, como a manta do meu cavalo. A distância ainda era grande.
— Detesto ter de admiti-lo — disse o outro homem —, mas aqui o nosso músico de falinhas mansas salvou-nos a todos.
Chegaram ao local chamado Beacon Rise antes de o Sol atingir o zênite. Os dois homens de Dendrist, que seguiam a pé, tinham ficado muito para trás, à medida que o grupo de Alpin avançava. O filho de Dendrist foi lançado do cavalo sem cerimônias e cambaleou até às rochas que ladeavam o caminho, onde desfaleceu. Estava branco como a cera, os lábios comprimidos, silencioso.
— Diz ao teu pai — indicou Alpin — que é altura de ele aprender a tirar as mãos daquilo que é meu: terra, gado, mulheres. Já devia saber que eu acerto as contas com sangue. — De adaga em riste, desmontou e acercou-se do jovem. — Se a minha futura esposa se tivesse afogado, os homens do teu pai não iam encontrar aqui um rapaz ferido, mas sim um monte de carne com o nome de Alpin, de Briar Wood, gravado. Ela sobreviveu, portanto tu vives. Desta vez. — O punhal estava a um palmo do rosto do jovem e firme como uma rocha. Faolan susteve a respiração. — Pelos vistos, vais aguardar sozinho. Espero que não demorem. Já estás a sangrar pela ligadura. Vamos, homens! Quero estar a meio caminho da ponte ao anoitecer. Só vou descansar quando estivermos do outro lado da fronteira.
— Podíamos esperar — sugeriu Mordec. — Fazer daqueles dois indivíduos um exemplo.
— Desta vez, não — opôs-se Alpin. — Já tivemos a nossa retribuição. Claro que iria gostar de atar aqueles dois e treinar um pouco de tiro ao alvo. Mas não quero deitar mais lenha para a fogueira. Em breve teremos coisas maiores entre mãos. Dendrist e a laia dele podem esperar.
Enquanto se dirigiam a casa, Faolan foi meditando sobre o que ouvira. Coisas maiores. Parte ativa na guerra que se avizinhava? De que lado? A chave estava nas terras de norte, tinha a certeza disso. Com as condições do tratado de Bridei ainda por expor a Alpin, Faolan desconfiava de jogos duplos, mentiras e traição. O tempo o diria. Quanto mais tempo conseguisse manter o disfarce de músico inofensivo, maiores as hipóteses de descobrir a verdade, antes que fosse tarde de mais.
No dia a seguir a ter falado com Deord, a gralha trouxe a Ana uma chave. O pássaro chegou cedo. Acordou-a pouco depois de o Sol nascer, com o saltitar e o raspar da sua passagem do peitoril da janela para a arca, e com a pancada seca que se ouviu quando largou a oferenda sobre a madeira polida, para que a jovem a inspecionasse.
— O que...? — Meio a dormir, Ana esfregou os olhos. O visitante crocitou na sua voz arrastada. Ana endireitou-se na cama e viu o que a ave lhe trouxera. Despertou de imediato. Não tinha dúvidas quanto à porta que a chave abriria.
Pegou no xale, a mente a fervilhar.
— Alguém quer que eu vá visitar arrecadações. — A gralha meneou a cabeça, numa pose como que expectante. — Devo enviar uma mensagem em resposta? Não faço idéia o que pode ser. — Ia acabar por ficar careca como um ovo, se a troca de cabelos fosse o único meio de comunicação com aquela entidade desconhecida. Devia enxotar o pássaro e entregar a chave a Alpin, quando este regressasse. Seria exatamente isso que faria uma rapariga sensível, educada na corte de um rei. Ana estendeu a mão e pegou na chave. — Pronto — disse. — Mas não prometo nada. — Como que satisfeita com as palavras da jovem, a gralha voltou a saltar para o peitoril e, batendo as asas escuras, desapareceu na manhã.
Agora, pensou Ana, com o coração a bater desenfreado. Era o momento ideal. Era tão cedo, que até mesmo os serviçais da cozinha ainda estariam a levantar-se. Quanto a Deord, por mais intimidador que fosse, não passava de um servo. Se Ana lá entrasse e o encontrasse, limitar-se-ia a exigir que o homem lhe mostrasse o local de trabalho. Fora apresentada a todos os artesãos de Briar Wood. Isto não seria diferente, disse para consigo, mesmo sem acreditar. Poderia entrar e sair, antes que alguém desse pela sua falta. Alpin estava fora, o mesmo se passando com Faolan. Enquanto se vestia rapidamente e calçava as macias botas de interior que lhe tinham dado, ocorreu-lhe que Faolan não aprovaria o que estava prestes a fazer. O que se encontrava do outro lado da porta poderia ser verdadeiramente perigoso.
Voltou a pegar na chave e saiu do quarto, apercebendo-se que, antes da viagem até Briar Wood, nunca sonharia em fazer aquilo. Algo mudara em si, algo profundo e vital. Caminhou em silêncio ao longo do corredor até à porta de Alpin, abriu-a e entrou. Esforçou-se por assumir a expressão de quem tinha todo o direito a fazê-lo. A última coisa que queria era que dissessem ao futuro marido que andara a esgueirar-se pela casa, a espiar segredos e a quebrar as regras.
A chave girou sem ruído na fechadura da pequena porta interior. Ana respirou fundo, abriu a porta e entrou.
Encontrou-se numa câmara de pedra cheia de pilhas de sacas, velhos baldes de cabedal e alfaias de ferro enferrujado. A luz era pouca. Dos cantos projetavam-se sombras, e teias de aranha enfeitavam as vigas do telhado como grinaldas. Um gato preto dormia em cima de uma das sacas, a cauda a agitar-se em sonhos. Podia avistar-se outro debaixo de um banco partido, um par de olhos cintilantes, a sugestão de listas. Ana sentiu uma pontada de desapontamento. Não tinha a certeza do que esperava, mas não era daquilo.
Ouviu-se um pássaro a chilrear e o bater de asas algures para lá da arrecadação. O gato preto levantou a cabeça, subitamente desperto.
— Nem penses — murmurou Ana e, seguindo os sons, abriu caminho por entre a confusão até uma segunda sala minúscula, com pouco mais do que prateleiras vazias e montes de pó. A luz tornou-se mais forte. Chegou a uma entrada aberta que dava para um lance inclinado de degraus de pedra, que mergulhava por entre paredes imponentes. Na muralha exterior viam-se janelas ínfimas. Ana contou-as ao passar por elas. Uma: a visão distante de água, um espelho prateado à luz da alvorada. Duas: os troncos dos ulmeiros, tingidos de um dourado quente pelo sol nascente. As copas habitadas pelas gralhas podiam ser vistas acima das pedras. Tornava-se óbvio que aquela era a muralha exterior da fortaleza. Mas, o que era a outra parede interior, tão alta, tão sólida? Qual a sua necessidade, e daquele espaço apertado e estranho entre elas? Três: descia rapidamente e agora avistava as sombras de um verde-escuro por baixo dos pinheiros, onde a floresta quase se colava ao baluarte de Alpin. Imaginou que estivesse a aproximar-se no nível dos edifícios dispostos ao longo do pátio, o salão de jantar, o quarto de costura, os locais destinados à confecção de alimentos e ao fabrico da cerveja, o armeiro e o ferreiro. Quatro: ainda mais baixo, a janela ao mesmo nível do solo no exterior, arbustos espinhosos a crescer de encontro à parede, os seus dedos aguçados a tentar penetrar naquele caminho solitário, as mãos fortes a agarrar-se à pedra, como que a testar até que ponto as defesas de Alpin resistiriam ao poder da flora selvagem. Aquela última abertura seria invisível do exterior. Cinco: uma espécie de janela secreta, que abria para uma depressão no solo. Ali, a folhagem era mais macia, com gavinhas em espiral, frondes e folhas delicadas. O cruza-bico aguardava no peitoril, uma mancha vermelha contra o verde luxuriante. O gato não se aventurara para além da última passagem.
— Estou aqui — disse Ana em voz baixa. — Para onde me levas?
Ao fundo da escadaria, o carreiro prosseguia. Acompanhava a curvatura da muralha exterior e descia cada vez mais, as barreiras de ambos os lados de uma altura formidável. Ana recordou certas narrativas antigas. De cativas presas em torres altaneiras ou por trás de sebes impenetráveis, de heróis que escalavam muralhas ou que abriam caminho por entre sarças e espinheiros, para libertarem o verdadeiro amor. Imaginou que, por cada lenda de demandas cumpridas, existisse uma outra, habitada por prisioneiras esquecidas e solitárias, e por belas donzelas envelhecidas e mirradas, de tanto esperar pela libertação nunca concretizada.
O cruza-bico indicava-lhe o caminho. Um vôo breve, uma pausa para esperar, olhar, garantir que ela ainda o seguia. Acabaram por contornar outra curva do percurso e, à sua frente, surgiu um portão de ferro gradeado, mais alto do que um homem de estatura elevada, tão largo como o caminho e, aparentemente, trancado. Atrás da vedação ficava uma espécie de pátio, ou jardim.
A ave pousou numa das aberturas do portão. Olhou para ela e depois voou para o interior, uma mancha vermelha no ar. No instante seguinte, a carriça tomou o seu lugar.
Ana sopesou a chave na mão. Aproximou-se das grades e espreitou. A carriça saltou-lhe para o ombro. Havia um pequeno pátio fundo, ladeado pela muralha curva e com um telhado de barras de ferro muito juntas. O interior encontrava-se na penumbra, pois o lugar ficava abaixo no nível do solo e pouca era a luz da manhã que ali conseguia penetrar. A custo, conseguiu distinguir uma pequena mancha de erva, um banco de pedra, lajes. Junto à parede interior havia uma qualquer construção, a entrada protegida por uma colgadura de lã de aspecto grosseiro. Seria aquela habitação subterrânea a casa de Deord? Se assim fosse, para quê tal portão, tal telhado? Parecia uma jaula. Ana pensou em animais selvagens. Talvez Alpin fosse um daqueles excêntricos, que mantinham animais exóticos por prazer, na esperança de enaltecer o seu estatuto graças ao domínio aparente de tais criaturas. Um gato selvagem, um dragão, uma manticora... De certeza que não. Será que aqueles pássaros teriam uma tal liberdade, caso a morte se encontrasse à distância de um fechar de mandíbulas? Por outro lado, abrir o portão, partindo do princípio de que o conseguiria fazer, e entrar sem mais demoras seria, talvez, um ato demasiado ousado.
— Está aí alguém? Deord? — chamou, sem a certeza de como agir, caso alguém lhe respondesse. A voz soava-lhe estranha, grave e ressoante, como se aquele lugar recebesse poucas visitas e não se conseguisse adaptar à presença da jovem. — Olá?
Não houve resposta. A carriça alisava a plumagem junto da sua orelha e o cruza-bico desaparecera de vista.
— Olá? — voltou a chamar, mas ninguém apareceu. Experimentou a chave na fechadura. O portão abriu-se com facilidade e Ana entrou, fechando-o atrás de si.
Não precisou de muito tempo para percorrer a extensão daquele recinto triste. Tudo naquele espaço encontrava-se privado da luz do sol, a erva seca e amarelada, o pequeno lago atulhado de vegetação viscosa, as bordas entremeadas com cavidades onde musgo negro cobria a superfície. As lajes de pedra encontravam-se limpas. Ana dirigiu-se ao banco e tropeçou num obstáculo. Ouviu-se o retinir de metal e os pássaros gritaram em uníssono, como se em resposta. Ana olhou para baixo. Uma corrente longa estava presa a um anel de ferro, fixo no banco. A corrente estava em cima do pé de Ana e chegava à muralha, onde uma abertura minúscula fazia as vezes de janela, na parede tão grossa como o comprimento do braço de um homem. A corrente terminava num bracelete de ferro de concepção inteligente. Um mero olhar mostrou que podia ser apertado para se adaptar na perfeição ao pulso ou ao tornozelo de um homem, sendo fechado com uma chaveta. A forma como outro homem o poderia soltar, concedendo a liberdade ao cativo. Ana sentiu um arrepio. Quem vivia ali? Quem seria, que Alpin guardava com tanto zelo? E onde estaria esse guarda naquele momento? Fora burra em ter ido ali, uma perfeita idiota...
Estranhou a posição das grilhetas, esquecidas por baixo da abertura da janela, como se o prisioneiro ali tivesse estado, a observar o mundo para lá da sua cela. O que veria? Colocou-se em bicos de pés e espreitou pela abertura minúscula. Aquele lugar era tão baixo, que a parte inferior da janela ficava soterrada. Através do espaço estreito podia avistar-se, numa elevação, um único carvalho belo, a folhagem da Primavera transformada pela luz da manhã no mais puro dos verdes. Nos seus ramos trinava um coro de pássaros. A sua música era um hino à liberdade. Enquanto olhava, viu-os alçar vôo em bando para o céu aberto, dando as boas-vindas ao novo dia. Será que alguém ali chorara, bradara, implorara aos deuses, ao ver os pássaros? Estava a fantasiar, a colocar os seus pensamentos na mente de outrem. E o tempo ia passando. Daria uma vista de olhos rápida e depois regressaria aos seus aposentos, antes que Ludha chegasse para ajudá-la a lavar-se e a vestir-se.
Uma mesa, uma prateleira, um banco. Um recipiente para água. Na parede, outro anel de ferro à altura da cintura de um homem. Será que o cativo tomava as suas refeições acorrentado? Uma vassoura de cerdas de milho, um balde, panos dobrados, tudo arrumado de forma ordeira. Não havia provisões, apenas um tabuleiro vazio, uma travessa, duas taças, dois copos, duas Colheres. Não havia faca. Ana aventurou-se até à divisão interior, a carriça no ombro direito, à qual se juntara agora o cruza-bico, no esquerdo. Havia tão pouca luz que Ana voltou à divisão da entrada para afastar a colgadura antes de avançar. Uma candeia, apagada, numa prateleira de pedra, com um panelo ao lado, para o azeite. Duas camas rudimentares, com colchões de palha e cobertores de lã, com um ar puído. Estava tudo bem ordenado e o chão fora coberto com uma camada espessa de juncos frescos. Obra de Deord, sem dúvida. Por cima de uma das camas estava mais um anel de ferro. Ana sentiu um arrepio ao vê-lo.
— É um homem que aqui guardam — disse aos pássaros. — Não se alberga um animal selvagem numa cama com mantas, nem se lhe dão restos em louça que se parte. Imaginem: dormir agrilhoado, para que nem sequer nos sonhos possa correr em liberdade... Decerto ficaria insano com a necessidade do céu aberto e do vento no rosto. — A sua maneira, aquele quarto ordeiro era tão miserável como a clausura sombria lá fora. A chave que lhe tinham dado não revelara nada mais, para além de novas questões. Chegara a altura de sair dali. Ana fez menção de se virar e os dois pássaros voaram em par até os juncos ao canto, onde começaram a debicar em frenesi.
— O que foi...? — Ana deu um passo na direção das aves. De repente, o chão desapareceu-lhe debaixo dos pés. Cambaleou para trás, ajoelhou-se e afastou os juncos, o coração aos saltos.
Uma abertura estava tapada com tábuas. Desviou-as e espreitou lá para dentro. Era um túnel. Não um buraco escavado à pressa, mas uma saída bem construída, larga o suficiente para um homem robusto como Deord atravessar sem dificuldade. A abertura e a sua cobertura tinham sido ocultadas pelo generoso tapete de juncos. Ao que parecia, deveria ali estar há muito tempo. As paredes eram forradas a pedra, não fazendo parte da construção original da fortaleza, segundo julgou, mas algo edificado mais tarde, por alguém que sabia o que fazia. A luz entrava naquele caminho subterrâneo pela outra extremidade. Era uma passagem para o mundo exterior, uma travessia sob a grande muralha da fortaleza de Alpin, provavelmente com uma saída no abrigo criado pela mata cerrada. Deveras ousado. O prisioneiro tinha a opção de fugir quando quisesse. A situação tornava-se cada vez mais bizarra.
Ana hesitou à beira da descida. Ainda era cedo, mas não tanto que um ou dois servos não estivessem prestes a levantar-se, para acender lumes, ou tratar dos cães e dos cavalos. Ela tinha a chave. Talvez fosse melhor esperar por outro dia. Mas...
A forma minúscula da carriça lançou-se para baixo, desaparecendo no caminho subterrâneo. O cruza-bico remexeu-se, cofiando as penas.
— Até lá fora, seja — murmurou Ana. — Só até ao outro lado, nada mais. Imagino que esta gente tenha bons motivos para muralhas tão fortes.
A jovem era bastante alta, mas a abertura fora criada a pensar em homens grandes, e atravessá-la foi fácil. O pássaro voava à sua frente e, em breve, chegaram ao exterior, a uma depressão aos pés da muralha da fortaleza, um local coberto de silvas e trepadeiras, e ainda mais oculto por um amontoado de pedras, talvez restos de uma construção anterior, agora em ruínas. Ana estava ofegante, tanto pela antecipação como pelo esforço físico. Pouco passava da alvorada e a luz era suave na folhagem acima dela. O cruza-bico e a carriça estavam empoleirados lado a lado num ramo espinhoso, no extremo da depressão, pelos vistos à espera. Não podia simplesmente regressar, tal como prometera a si própria. Decerto aqueles dois iam levá-la às respostas que procurava. Trepou a inclinação, sempre a olhar para o topo da muralha enquanto subia. Podia haver guardas de patrulha lá em cima, com uma visão ampla da floresta. Naquele momento, não se via ninguém.
— Muito bem — murmurou. — Levem-me onde têm de levar, mas sejam rápidos, ou vou ter problemas.
Se havia um carreiro pela floresta, os pés que o percorriam eram leves, pois mal se via. Ana avançou por entre os arbustos de espinhos afiados, as sarças de pontas salientes e os espinheiros perigosos, sempre a seguir a mancha vermelha que era o cruza-bico. A carriça mal podia ser vista entre a tapeçaria de folhas e luz do sol em constante mudança. Rapidamente o caminho ficou envolto em sombras. Passavam por baixo de carvalhos e a luz era filtrada por uma cobertura de um verde luxuriante. A vegetação espinhosa transformou-se em musgo e fetos, onde se cruzavam fios de água sinuosos. Uma miríade de plantas minúsculas atraídas pela água espalhava pequenas mantas sobre ramos e troncos caídos. Os restos das folhas do Outono tinham criado uma mistura rica e escura e Ana podia sentir criaturas rastejantes nas profundezas, trazendo uma abundância de vida ao solo. Um bando de pintassilgos voava por entre as árvores, chilreando sem parar.
O carreiro começou a subir por entre grandes rochas, onde se tinham espalhado amoreiras, entrelaçando-se até formarem sebes densas. Mais para o fim da estação dariam uma boa colheita. Se ainda estivesse em Briar Wood no Verão, viria apanhar amoras com Ludha. Se casasse com Alpin... A mente de Ana afastou a possibilidade. Franziu o cenho, levantou a saia e subiu até ao topo da elevação.
Os pássaros estavam mais uma vez à espera, lado a lado sobre um ramo. Ana fez uma pausa para escutar. A floresta estava cheia de sons, chilreios, gritos, restolhar, o murmúrio da água. Mas havia mais alguma coisa, um arrastar, um grunhido que não era produzido pelas criaturas pequenas da mata na sua vida normal. Lembrou-se de javalis e pensou no que faria se lhe surgisse um desses animais, todo ele presas e cerdas, uma força impetuosa de músculos poderosos. Gritar? Fugir? Subir a uma árvore e esperar por socorro? Corou ao imaginar o que Faolan pensaria dela, a vaguear por ali sozinha. Nem sequer levara a faca que ele lhe dera.
Os sons vinham de algures ao fundo do carreiro, onde o caminho descia, acompanhando a inclinação daquela encosta. Era um local bem longe da vista das sentinelas de Alpin. O contorno natural do terreno e as árvores cerradas faziam do lugar um território ideal para movimentações secretas. Os homens da expedição de Faolan tinham ouvido inúmeras histórias sobre viajantes perdidos nas florestas dos Caitt, e que nunca mais foram vistos, de mortes súbitas e inexplicáveis, de caminhos que se iniciavam amplos e direitos e que acabavam por se revelar pesadelos contorcidos, levando os incautos a andar em círculos, até morrerem de frio, de sede ou do mais puro terror. Era verdade que tinham perdido a vida, todos eles, mas os únicos culpados eram os Azuis e a estação inclemente. Mas Ana vira com os seus próprios olhos como Briar Wood distava de outras colônias. Ouvira Alpin falar sobre a natureza mutável da floresta e acreditara nele.
Permaneceu imóvel, a tentar identificar os sons, até que os pássaros voltaram a alçar vôo, guiando-a colina abaixo. Avançou com cuidado. Não importava o que aguardasse mais à frente, não desejava vê-lo antes de ter oportunidade de avaliar o perigo.
Saiu para uma clareira rodeada por árvores menores. Cresciam ali amieiros e salgueiros, e o gorgolejar de um ribeiro oculto fazia-se ouvir, vindo de algures na sombra das árvores. Ana deu mais um passo, ao que se deteve de forma súbita. Dois homens lutavam no terreno aberto, os corpos unidos num abraço terrível, músculos retesados contra músculos, as cabeças baixas como se fossem veados em luta, as pernas firmes, à medida que cada um tentava derrubar o adversário. De tronco nu, os corpos cintilavam com o suor do esforço. Na erva próxima estava uma túnica e outras peças de roupa, cintos e camisas. Reconheceu um dos homens, pois era entroncado e calvo, de ombros largos e peito vasto: Deord. Talvez fosse altura de uma folga do guarda especial de Alpin e de um dos seus homens. Era a túnica de Deord e o cinto meio escondido pela roupa trazia as chaves, incluindo, quase de certeza, a que se encontrava segura no bolso da jovem. A gralha estava empoleirada num ramo baixo próximo dos artigos, como se os guardasse.
O segundo homem era alto, pôde vê-lo quando eles se largaram e, com movimentos rápidos dos membros, se rodearam e voltaram a agarrar. Este segundo homem era gracioso, de ombros largos e cintura estreita, pernas compridas e movimentos ágeis. Era rápido. A perícia no esquivar mantinha-o fora do alcance do abraço poderoso de Deord até que estivesse preparado para o receber. O homem tinha um rosto de feições vincadas que lhe pareciam familiares. A pele não tinha marcas, nem de clã, nem de batalha. Tal como Deord, estava escanhoado, mas ostentava uma cabeleira farta, de um tom castanho avermelhado como as penas de uma águia, ou o sol de Outono nos carvalhos, ou a pelagem de uma raposa. Os olhos eram brilhantes. Quer se devesse à manhã amena ou ao prazer que sentia naquele desporto, quer ele fosse um homem naturalmente alegre, aqueles olhos capturavam o esplendor da alvorada, o que lhe deixava as feições radiantes. Ana teve de se obrigar a respirar. Ele era, muito simplesmente, a coisa mais bela que alguma vez vira.
De repente, a necessidade de evitar ser vista tornou-se premente. Fora até onde não devia. Intrometera-se em algo extremamente privado. Recuou para o abrigo dos arbustos.
A gralha crocitou com a sua voz rouca. A carriça e o cruza-bico alçaram vôo no mesmo instante e dirigiram-se aos homens. Seguiu-se uma quietude repentina. Os combatentes soltaram-se e endireitaram-se, virando-se para Ana enquanto a carriça pousava na cabeça do homem alto e o cruza-bico no seu ombro. Era demasiado tarde para fugir. Teria de enfrentar a situação, justificar-se de alguma forma. Estava ofegante e tinha as palmas das mãos úmidas. Deord caminhava na sua direção e dizia alguma coisa, mas ela não sabia o quê, pois o outro homem olhava-a e a expressão daqueles olhos eliminava tudo o resto, salvo a necessidade de retribuir o olhar, olhar, olhar, até sentir que se ia afogar... Ah, como ele a fitava! Eram como estrelas, como lagos ao luar, como fontes cheias de sonhos. Não conseguia desviar-se. Era obrigada a parecer uma rapariga tola, ali de pé, incapaz de dizer uma palavra que fosse, de se recompor e comportar como seria digno de uma mulher de sangue real. Sentia aquele olhar no seu íntimo, fazendo-a arder, derreter, tremer. O que seria ele, um feiticeiro, para exercer tamanho poder sobre ela?
— Minha senhora — dizia Deord quando chegou junto dela —, não devias estar aqui. Como é que...? — Estava bem controlado, mas Ana sentia a raiva e o alarme no tom da voz.
— Eu... — Ainda não conseguia falar. Apertou as mãos e lutou por recuperar o autocontrole. O homem de cabelo fulvo aproximou-se, ficando atrás de Deord, a menos de três passos de Ana. Nunca deixou de fitá-la. Pesasse embora a luz naqueles olhos cintilantes, maravilhosos, espantosos, tinha uma boca severa, os modos cautelosos.
— Encontraste-nos — disse calmamente. Deord retesou-se.
— Drustan — disse bruscamente —, o que andaste a fazer? — Dirigiu-se então a Ana: — Como chegaste aqui? Por que vieste?
A atitude não era de todo a de um servo para com uma dama. Ana, no entanto, tinha bem noção das regras quebradas naquela manhã.
Retirou a chave do bolso e apresentou-a na mão aberta. Deord fez menção de agarrá-la, mas Ana fechou os dedos.
— Como a conseguiste? Decerto que não foi Alpin que ta deu...
— Imagino que seja tua — replicou Ana. — Foi-me entregue de madrugada, por uma pequena visita. Alguém queria que eu viesse aqui.
— Voltamos para o interior — O tom de Deord foi brusco, uma ordem. — Drustan, vai buscar as tuas coisas. Disse-te que não te metesses. Este disparate custou-te tempo ao sol e poderá trazer-te uma pena ainda mais grave. A senhora deve regressar à casa de imediato.
O companheiro não se moveu.
— Apressa-te. Não há discussão. — Quando o outro homem foi buscar as roupas, com uma obediência que surpreendeu Ana, Deord voltou a dirigir-se à jovem. — Uma vez que chegaste até aqui, imagino que tenhas questões. Irei responder-lhes, se puder, mas não aqui, nem agora. Se formos descobertos no exterior da muralha, ou se mencionares este encontro a Alpin, perderemos a pouca liberdade que conquistamos. Drustan e os pássaros dele também são culpados. Temos de regressar imediatamente à nossa clausura.
— Mas...— Ana não terminou. O homem chamado Drustan vestira a camisa à pressa, sem se preocupar em apertá-la, e pegava agora numa corrente ligada a uma bracelete de ferro. A outra ponta alongava-se pelo chão e terminava numa segunda algema. Enquanto ela fitava, horrorizada, o homem de cabelo ruivo colocou um dos anéis em redor do pulso e esperou em silêncio que Deord o apertasse e trancasse. Depois o guarda vestiu a túnica, apertou o cinto e colocou a outra algema no seu próprio braço. Ana permaneceu muda. Era aquele o animal selvagem, o cativo perigoso, aquele jovem belo de feições sinceras, de voz tímida e olhos brilhantes como estrelas. Um prisioneiro que, ao que parecia, deixava livremente o ar fresco e a luz do sol para se dirigir à sua prisão escura, o lugar onde as muralhas vedavam a entrada da manhã. Vira como os olhos mudaram de expressão quando se sujeitou às grilhetas.
— Ainda não — pediu ela, levando a mão ao braço de Deord. — Por favor. Deixa-o gozar o sol mais um pouco. Não queria...
A boca de Deord ficou tensa.
— Isto não é um jogo para jovens nobres, foste tola em vir aqui. Deixar Alpin zangado é um risco muito grande.
De repente, Ana conseguiu voltar a erguer a cabeça, a respirar fundo e a falar como uma filha real.
— Alpin ainda não é meu marido — disse com frieza. — Sou dona de mim própria. Não era minha intenção prejudicar ninguém. Na verdade, foi Alpin quem me disse para estar à vontade na sua ausência. Para explorar o que quisesse.
— Ele não vai gostar que andes sozinha na floresta, nem que abras portas privadas — replicou Deord. — Estás a meter-te em assuntos perigosos. Podes causar um mal muito grande. Temos de regressar.
— Deord. — Drustan ainda falava com uma voz calma, mas o tom fez Ana deter-se. Qual seria a relação entre aqueles dois? Decerto um prisioneiro não usaria um tom como aquele para com o guardião. — Só mais alguns momentos. Ainda temos tempo.
Deord ficou em silêncio. Após um instante, virou as costas e fitou a floresta.
— Sê rápido — disse. — Sabes qual a minha opinião. Por tudo quanto é sagrado, no que estavas a pensar para fazer isto? E não me digas que um daqueles teus amigos levou a chave sem que o soubesses. Está escrito no teu rosto que não foi assim.
— Estava a abrir uma porta — replicou Drustan.
A corrente estava esticada entre os dois homens. Deord segurava uma volta com a mão livre, como se estivesse pronto a puxar Drustan, caso este se aproximasse demasiado da jovem. Ana olhou para o prisioneiro e este retribuiu o olhar. Os seus olhos eram inconstantes, com a cor a refletir os tons variegados da floresta, as folhas pontilhadas pela luz do sol, as distâncias acinzentadas. Não disse mais nada. Talvez, como ela, tivesse perdido a fala por momentos. Ana considerou a atitude próxima da de uma criatura selvagem preparada para voar, fascinada mas cautelosa.
— Sinto muito — conseguiu ela dizer, o coração acelerado a deixar-lhe a voz instável. Era tudo tão estranho, como se os habituais códigos de conduta tivessem subitamente sido eliminados. — Lamento muito, se vos coloquei aos dois em perigo... não sabia...
— Estás bem? — perguntou Drustan, a voz tão pouco controlada como a dela. Pigarreou e voltou a tentar. — Foi uma coisa terrível, quando os teus companheiros se perderam no vau. Um dia negro para ti.
— Sabes o que aconteceu?
Seguiu-se um instante de pausa, ao que Drustan disse:
— Eu e Deord falamos sobre o assunto.
— Enviaste-os? — perguntou-lhe Ana. — Os pássaros?
Um aceno da cabeça, um sorriso passageiro que revelou uma covinha no canto da boca.
— Por que o farias? — Ana procurava saber o que perguntar. Havia tantas questões que nem sabia por onde começar.
Drustan não respondeu. Ana começou a interrogar-se sobre se o homem estaria no seu juízo perfeito. Mesmo com toda a inteligência que os olhos deixavam transparecer, os seus modos eram um pouco estranhos. Será que o cativeiro prolongado o tinham levado a esquecer as convenções de uma casa como a de Alpin, falando apenas quando o decidia, sem as restrições do comportamento reconhecido por todos? Ou existiria Drustan a um nível que se encontrava fora desses padrões, o que o levava a não se importar com as convenções?
— Estás zangada, Ana? — murmurou.
Ao ouvir o seu nome, a jovem sentiu algo a agitar-se no seu íntimo, onde o sangue corria com mais força.
— Não — respondeu. — Apenas confusa. És um druida, ou um feiticeiro, para usares as criaturas desta forma? Por que estás ali fechado?
Drustan baixou o olhar. Os dedos remexeram nos grilhões. Já não tinha os ombros direitos.
— Por necessidade — respondeu. — Não estar seria perigoso. — Depois, após um momento, perguntou: — Tens medo de mim?
Como responder de forma honesta? Não podia dizer-lhe que os seus olhos a deixavam quente, fria e fraca, que a arrebatavam e a levavam para sonhos. Se havia algo que a assustava, era isso.
— Não posso responder a isso, Drustan... é esse o teu nome? — disse, e viu-lhe o corpo a ficar tenso ao pronunciá-lo. — Não sei nada sobre ti, para além do que vejo.
Drustan voltou a erguer o olhar.
— O que vês? — perguntou-lhe. Eram águas perigosas.
— Não posso dizer-te.
Regressaram ao túnel em silêncio, uma procissão estranha. Deord fez Ana entrar primeiro. Seguiu-a, com o prisioneiro em último, a corrente esticada entre os dois homens. Ao olhar para trás, pareceu a Ana que os dois teriam repetido a situação com tanta freqüência que seguiam certos comportamentos de forma inconsciente. Era-lhe evidente que Deord preferia que Drustan não se aproximasse muito dela. Tendo em conta as algemas, as portas trancadas, o cativeiro oculto, teria de supor que o cativo era perigoso, mas era-lhe impossível imaginá-lo como sendo violento. Será que a carriça minúscula se aninharia no seu cabelo e as outras criaturas escolheriam os seus ombros como poleiros, caso ele fosse dado a acessos de fúria?
De volta à clausura sombria, Deord prendeu o recluso às grilhetas no banco, antes de soltar a algema e a corrente que unia os dois homens. Drustan já não olhava para ela. Estava nas sombras junto à parede, a cabeça pendida e sem dizer palavra.
— Vamos — indicou Deord. — Vou acompanhar-te à porta e garantir que não és vista. Dá-me a chave.
Ana fitou-o.
— Sem ela — explicou Deord calmamente — ficamos os dois aqui presos, sem poder ir buscar as nossas refeições, ou água fresca. Não saímos muito. Estas viagens além da muralha não são conhecidas. Talvez não o tivesses percebido.
— Pediste-me para não contar a Alpin — disse Ana. — Imagino que esperes que te devolva a chave e fique de boca fechada, como se não tivesse visto nada. Não o farei, Deord.
Os modos do homem permaneceram inalterados.
— Vou tirar-te a chave, se a tal for obrigado. Preferia que a entregasses de livre vontade. Ele precisa de proteção. Estás a interferir num assunto que não entendes de todo.
— Então explica-me — replicou Ana. — Diz-me quem é ele, e por que razão está aqui fechado. Qual o crime que um homem terá de cometer para merecer tal encarceramento?
— Aqui não. Tens de ir. — Já a empurrava na direção do portão de ferro. Atrás deles, Drustan não se mexera. Vê-lo assim derrubado, a luz nos olhos extinguida, perturbava Ana. Privado do sol e da floresta, parecia a sombra do homem que vira na clareira, uma criatura bela como um pássaro em pleno vôo.
— Muito bem — disse ela. — Vou, mas terás de me contar a história mais tarde. E tens de me deixar voltar aqui.
— As pessoas não vêm aqui — retorquiu Deord, sem emoção na voz. — Não é seguro. É a lei de Alpin. Se queres alterá-la, fala com ele. Agora vai.
Ana não estava habituada a ser tratada assim e sentiu-se ofendida, mas Deord tinha razão em apressá-la, pois o Sol ia subindo no céu. Já estivera ali demasiado tempo.
— Dá-me um instante — pediu Ana e, sem esperar uma resposta, percorreu rapidamente o recinto, indo colocar-se ao lado do Drustan silencioso, à distância de um toque.
— Não — disse Deord bruscamente, mas Ana ignorou a voz. Pegou na mão acorrentada. O toque enviou-lhe um arrepio pelo corpo, surpreendente e inebriante.
— Tenho de ir — disse, olhando para o prisioneiro. — Sinto muito por ter reduzido o teu período de liberdade. Se houver alguma coisa que possa fazer para te ajudar...
— Chega — interrompeu Deord e agarrou no braço de Ana para afastá-la. A mão de Drustan surgiu tão rapidamente que Ana arquejou. A mão do cativo segurou o pulso de Deord, até que os seus dedos se abriram, libertando-a. Naquele momento, reconheceu a força espantosa de Drustan.
— Não lhe toques — disse Drustan calmamente. — Ela vai de livre vontade. Não há necessidade de força. Adeus, Ana. Fiquei feliz por te ver.
Ana sentiu uma estranha sensação de perda. Não a compreendeu. Eram estranhos.
— Adeus — disse. — Espero poder voltar a falar contigo. Não interessa o que fizeste, de certeza que não merecias este destino. — Fez menção de se retirar. Drustan levantou-lhe a mão, levou-a aos lábios e fechou os olhos por um instante. Ana sentiu o sangue subir-lhe às faces e viu um rubor nas feições de Drustan, um reflexo perfeito. Depois soltou-a e virou-se. O encontro bizarro chegara ao fim.
— Não posso falar contigo agora — disse Deord em voz baixa quando chegaram à porta nos aposentos de Alpin. Com um suspiro, Ana depositou a chave na mão estendida. — Vão reparar, se alterar os hábitos do meu dia. Irei ter contigo antes da ceia.
— Com a minha criada presente, não poderei ter as respostas de que preciso — queixou-se Ana.
— A escolha é tua.
— Não — contrapôs a jovem —, parece ser a escolha de Alpin. Trancar este prisioneiro e ocultá-lo atrás de uma teia de segredos. Não interessa o «que tenha feito, decerto Drustan poderia ter visitas. Não parece um homem perigoso.
— Não, não parece — assentiu Deord. Abriu a porta e saiu antes da jovem, para garantir que não havia ninguém por perto. — Mas eu conheço-o. És uma estranha.
— Muito bem — disse Ana. — Falarei contigo mais tarde. Podes contar com a minha discrição. Por favor, diz a Drustan que lamento que tivessem de entrar por minha causa. Compreendo como estas saídas devem ser preciosas.
Deord inclinou a cabeça educadamente. No instante seguinte, desaparecera através da porta e fechara-a.

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO SETE


Era de tarde. Ana estava sentada na sala de costura com as outras mulheres e tentava concentrar-se nos debruns, mas era difícil focar a mente em qualquer outra coisa que não fossem os olhos luminosos de Drustan, a voz calma, as mãos poderosas. A recordação do seu toque voltou a trazer-lhe o sangue às faces. As mãos tremeram-lhe e quase deixou cair a agulha.
— Estás bem, minha senhora? — perguntou Ludha em voz baixa, os olhos ansiosos.
— Estou muito bem, Ludha, apenas um pouco cansada. Dormi mal, esta noite.
— Posso acabar o que estás a fazer...
— Eu acabo! — Ana percebeu o tom de irritação na sua própria voz. Não era justo que a criada sofresse por ela não ser capaz de se concentrar no que estava a fazer. Por estar a agir como uma miúda tola, que não conseguia olhar para um homem bem apessoado sem que lhe fraquejassem os joelhos. Ana endireitou as costas e falou para consigo com a voz de uma descendente real. Não se acorrentam pessoas por nada. Drustan deve ter feito algo de muito errado. Não parecia ajudar. O corpo continuava inquieto, a mente centrada na imagem dele. Voltou a tentar. Estou aqui para conseguir uma aliança para Bridei. Não devia permitir que me distraísse. Depois pensou, Faolan ficaria chocado com o que fiz. O que pensaria de mim? Depois disso, conseguiu voltar a concentrar-se no trabalho por uns instantes. Viu como os últimos pontos tinham ficado tortos. Com um suspiro, começou a desfazer os pontos e viu a peça de roupa ser-lhe retirada das mãos.
— Por favor — disse Ludha. — Deixa-me ajudar. É um vestidinho tão bonito, era uma pena estragá-lo.
Ana aquiesceu.
— Pensei em começar a substituir as roupas de bebê, as que foram perdidas no vau. Mas hoje os meus pontos estão terríveis.
— Não importa, minha senhora. — Ludha estava já a desfazer o trabalho mal feito, os lábios franzidos em concentração, os olhos semicerrados. — Podia acabá-lo com uma guarnição trabalhada, se o aprovares. Tenho umas linhas coloridas muito bonitas, castanho, azul, verde-escuro. Talvez umas flores?
Ana sorriu distraidamente.
— Que tal pássaros? — sugeriu.
— Pássaros? Que tipo de pássaros?
Uma carriça, um cruza-bico, uma gralha. — Deixo à tua consideração — disse Ana. — Tenho a certeza de que vais fazer um bom trabalho, Ludha.
— Obrigada, minha senhora.
Os nós dos dedos de Drustan estavam brancos da força com que agarrava o portão gradeado, os dedos entrelaçados nas barras. O som ritmado do metal enchia o pequeno recinto, um rufar de dor. Os pássaros estavam escondidos lá em cima, ocultos num nicho minúsculo por baixo do telhado de ferro. Sempre que Drustan batia com a cabeça no ferro, os pássaros estremeciam, como se sentissem o golpe nos pequenos corpos frágeis. Do outro lado da clausura, Deord varria calmamente. Vigiava de perto o cativo.
O portão estremecia nas dobradiças. Drustan era forte. Um dia conseguiria arrancá-lo. Não que lhe servisse de muito. Raras vezes Deord fora obrigado a usar de toda a sua força, mas fora contratado pela sua capacidade de lidar com tal situação e era o que faria, se ela surgisse. Esperava que não. Havia outras maneiras de controlar aquele prisioneiro, formas melhores de lhe manter a mente e o corpo razoavelmente sãos durante o longo encarceramento. Deord ia varrendo e observando e, após algum tempo, as pancadas abrandaram e cessaram, ficando apenas o som da respiração de Drustan, um arquejar como o de uma criança que gastou todas as lágrimas.
A vassoura parou.
— Drustan? — perguntou Deord em voz baixa.
Drustan virou-se. Tinha nos olhos uma expressão caótica. A dor que deles emanava atingiu Deord como um golpe no peito.
— Sair! — A voz de Drustan era rouca e insegura. — Quero sair daqui! Quero que isto acabe! — Dirigiu-se a passos largos a Deord, as mãos erguidas à sua frente como se quisesse agarrar o outro homem pelo pescoço.
— Anda — disse Deord, que pousou a vassoura e se aproximou do banco. — Senta-te aqui. Respira devagar. — Pegou nos braços de Drustan e guiou-o para que se sentasse. — Estás a assustar os pássaros.
Drustan ocultou o rosto nas mãos. Os dedos apertavam as madeixas do cabelo cor de fogo. Todo o seu corpo estremecia com a tensão.
— Respira devagar, tal como treinamos — insistiu Deord. — Isso vai passar. — Não tentou manietar o cativo. A algema e respectiva corrente jaziam por baixo do banco. — Fica sossegado. Deixa que a respiração te acalme. Confia em mim, Drustan. Isto vai passar. — Disse mais algumas palavras reconfortantes, a voz com um tom baixo, sempre sentado ao lado do outro homem.
Minutos depois, a respiração de Drustan tornou-se menos esforçada, menos entrecortada. Era óbvio que o homem ruivo se esforçava por recuperar o controlo. Bastante tempo depois, Drustan ergueu a cabeça, sentou-se direito e largou o cabelo, abraçando o próprio corpo como se estivesse gelado. Sem dizer nada, Deord levantou-se e foi buscar um cobertor ao quarto. Quando voltou, os três pássaros estavam empoleirados na cabeça e nos ombros de Drustan.
— Toma — disse Deord e embrulhou o outro homem com a manta. Os pássaros esvoaçaram com uma agitação de asas e voltaram a acomodar-se. — Esta rapariga deixou-te perturbado. Não lhe devias ter espicaçado a curiosidade. O mais certo é que o teu irmão vá ficar irritado, não só conosco, mas também com ela.
— Ela não vai contar-lhe.
— A tua confiança é infantil, Drustan. Pode não ter intenção, mas vi o ar dela quando me devolveu a chave. Um olhar honrado. Ela acredita que o teu encarceramento é injusto e duvido que não confronte o marido com a situação. Como poderá explicá-lo a Alpin, se ele julga que ela não faz idéia que existes?
Drustan encarou-o com um ar grave.
— Ele não é marido dela — disse.
— Mas vai ser — recordou-o Deord. — Ele deseja-a. Dizem que não faz por ocultá-lo. É uma jovem mais atraente do que o habitual. E está aqui para selar um acordo entre Alpin e Bridei, de Fortriu. O casamento terá lugar.
Drustan ergueu a mão e a carriça saltou-lhe para o dedo. Com a outra mão afagou-lhe levemente a plumagem.
— Deord?
— O que foi?
— Ana não devia casar com o meu irmão.
— Não devia? O que é isso? Sabes que tais decisões têm a ver com estratégias, alianças, vantagens territoriais. É evidente que tanto Bridei como o teu irmão julgam que a situação deverá prosseguir. Não te devias ter envolvido com ela.
— Não devia casar com ele. A sua luz vai ser eclipsada. O seu espírito vai ser quebrado.
Deord olhou-o com curiosidade.
— Foste tu quem enviou Alpin para ir buscá-la à floresta — lembrou-o.
Um lampejo da fúria anterior tornou as feições de Drustan subitamente perigosas.
— De que outra forma poderíamos tê-la ajudado? — argumentou. — Se fosse dono de tal liberdade, eu próprio teria ido... tê-la-ia avisado...
— Chega — atalhou Deord. — Estás a ir longe de mais. O teu irmão tem uma oportunidade. Deverão ficar bem, juntos. Concordo, parece demasiado nobre para se sentir em casa por estes lados, mas não lhe falta perspicácia e já mostrou que sabe defender-se. Além disso, as nossas opiniões não contam para nada em tais assuntos. Não devias ter-te envolvido.
— Ela não vai dizer nada.
— Na verdade, a senhora pediu-me para te transmitir uma mensagem nesse sentido — disse Deord, com um tom inseguro. — Que podíamos contar com a sua discrição.
Drustan sorriu, a fúria acalmada.
— Ela tem boas intenções — continuou Deord. — É a sua capacidade de manter essa discrição quando Alpin lhe começar a contar a verdade que me preocupa. O teu irmão vai querer mantê-la o mais possível afastada de ti. Não seria de esperar o contrário.
Drustan não respondeu. O sorriso desvanecera-se rapidamente. Após uns instantes, disse:
— Seria incapaz de magoá-la. — O tom da voz soava constrangida.
— Nunca o faria. Ela sabe-o.
Deord olhou o cativo com compaixão.
— Se avalia os homens com tal rapidez, é muito ingênua — disse.
— Talvez acredite que o sabe. Mas tu não sabes. Não podes ter a certeza, nem o teu irmão. Por esse motivo, tens de te manter afastado. Tens de os deixar viver as suas vidas e deixá-los cometer e reparar os seus próprios erros.
Drustan fitou o guardião.
— E tu, em que acreditas? — perguntou, com a voz calma. — Acreditas que seria capaz de magoá-la? O que vês em mim?
— Um homem de inúmeras qualidades.
— Mas não confias em mim.
— No fundo, nem tu próprio confias. Fizeste o que fizeste. Alpin acredita que possa voltar a acontecer. Se não fosses do seu sangue, há sete anos teria mandado matar-te. Os meus serviços não seriam necessários.
Drustan olhou para as mãos, abertas sobre o colo, e para a carriça minúscula pousada sem receio na palma.
— Isto é uma espécie de morte — disse. — Se tivesse um punhal, hoje estaria à beira de acabar com este encarceramento, de cortar as veias e deixar que a Mãe de Tudo me levasse. Agüentei sete Invernos. Não sou capaz de continuar assim para sempre.
— Ficarias surpreendido com o que um homem consegue suportar — disse Deord. — És forte. Vais suportá-lo. — Após um momento, acrescentou: — Não julgues que não me senti tentado, nas noites de lua cheia, no bosque. Cheguei a pensar em virar as costas um instante a mais e deixar-te desaparecer.
— Depois ele iria castigar-te. Ele matava-te.
— Não sou totalmente desprovido de certas capacidades físicas. Foi por isso que me contratou.
— O meu irmão conta com muitos homens leais, e todos eles adoram caçar. Nem mesmo tu serias capaz de fugir.
— A questão é irrelevante — atalhou Deord. — Tu regressavas. É o que fazes sempre.
— Cem anos não chegariam como retribuição por aquilo que fiz.
— A voz de Drustan reduzira-se a um murmúrio. — Não posso arriscar-me a repetir tal ato. — Drustan ergueu as mãos e o pássaro minúsculo voou pelo recinto, indo pousar no portão de ferro. — Por que não te vais embora, Deord? Nem mesmo uma bolsa pesada de prata chega para pagar tal existência. Guardar-me também te condena a um encarceramento perpétuo.
— Cala-te — disse Deord, enquanto se levantava. — Faço o que faço e, tal como tu, sonho que um dia isto chegará ao fim. Um fim que não terá nada a ver com punhais e veias.
Drustan ficou em silêncio durante algum tempo. O cruza-bico e a gralha mantiveram a vigília, um em cada ombro. Deord foi atarefar-se com o quarto de dormir. O sol percorreu o céu. A luz pálida cruzou brevemente as lajes, a água escura e as paredes de pedra, desaparecendo quase sem ter tempo de tocar aquele espaço fundo. Drustan acabou por levantar-se e dirigiu-se à pequena janela, através da qual fitou a árvore emoldurada por muralhas criadas para resistir ao assalto de armas de cerco. A copa larga do carvalho brilhava com a luz.
— Uma flor apanhada sem cuidado e deixada a murchar — disse em voz baixa. — Um pássaro selvagem preso a um poleiro e forçado a cantar. Como podemos assistir a isso sem interferir? Ela não devia casar-se com ele. — Mas não havia ninguém para ouvi-lo, para além dos dois pássaros e, se estes tinham opinião sobre o assunto, não a deram.
Enquanto o grupo de Alpin regressava a Briar Wood, Faolan foi trabalhando a sua personagem de bardo: um pouco abalado, mas surpreendido e contente por ter podido ajudá-los na escaramuça. Improvisaram um acampamento para a noite e depois apressaram-se a seguir os percursos mal definidos que serpenteavam pela mata labiríntica. Quando se detiveram para confabular antes de atravessarem a ponte difícil que marcava o limite do território de Alpin, Faolan reparou que o nível da água, embora ainda perigosamente elevado, baixara desde a última passagem, quatro dias antes. Em breve, Break-ing Ford voltaria a ser seguro, caso a enchente não tivesse aberto demasiados buracos no leito do rio.
Quando o grupo atravessou os portões da fortaleza, Ana esperava o futuro marido. Parecia absorta quando cumprimentou Alpin, como se a sua mente se encontrasse noutro lugar qualquer. Não olhou para Faolan. O agora bardo deixou que um criado levasse o cavalo, ao que se dirigiu para o quarto onde dormia.
Alguém encontrara a harpa, que se encontrava sobre a enxerga que lhe tinha sido destinada. Era um instrumento de aspecto miserável, cujas cravelhas partidas e cordas a menos revelavam uma longa negligência. Faolan imaginara outra harpa, uma cujas curvas e linhas eram bem conhecidas das mãos de um bardo, cujas cordas reconheciam o seu toque como o de um amante, cuja estrutura tremia nos seus braços, à medida que o instrumento cantava sobre paixão, morte ou prazer. Aquele pobre resto do passado nunca tocaria tal melodia.
— Consegues repará-la? — Gerdic ia a passar, um balde em cada mão, com destino à bomba.
— Dependendo dos materiais, talvez consiga fazer alguma coisa dela. — O desejo de apresentar uma negativa imediata era forte, mas era preciso pensar em Alpin e na importância de lhe conquistar a confiança. — Tenho de substituir pelo menos três cordas e também vai ser preciso fazer um par de cravelhas. Se houver madeira de qualidade e ferramentas que possa usar, começo o trabalho pela manhã. Onde posso encontrar tripa de ovelha?
Faolan não conseguiu falar sozinho com Ana durante a ceia, nem depois. Ficou no seu lugar entre os serviçais de Briar Wood e observou-a discretamente a participar na refeição. Escutava Alpin e os favoritos deste a narrar a história da sua vitória sobre os Azuis. Parecia uma pequena ilha de tranqüilidade entre a companhia barulhenta que eram os Caitt, com os seus gracejos ruidosos, os gestos exuberantes e o entusiasmo que mostravam pela cerveja e pela carne. Faolan interrogava-se sobre se ela alguma vez se sentiria em casa naquele sítio. Imaginou-a idosa. Seria ainda bela. Ficaria sentada em silêncio, enquanto o resto da casa arrotava, gritava e gargalhava à sua volta. Veria os filhos e os netos a tornarem-se parte daquele grupo desordeiro e indisciplinado. Indisciplinado: não, isso não era verdade. No campo de batalha, aqueles guerreiros não eram assim. Tinham um líder astuto e decidido, os homens eram corajosos, controlados e capazes. Poderiam constituir uma ameaça a Bridei, ou uma mais-valia significativa. Não podia esquecê-lo.
Faolan concentrou a atenção na forma de ombros largos do servo calvo, Deord, que entrara com a pequena travessa, a qual enchia junto à mesa de apoio. Um pão pequeno, um jarro baixo, um prato de carne assada, qualquer coisa a fumegar numa tigela. Deord era eficiente e metódico e a tarefa não demorou muito a ser completada. Quando se virou para regressar mais uma vez aos aposentos da família da casa, cruzou por um instante o olhar com o de Faolan e os olhos deixaram transparecer reconhecimento, a compreensão de algo partilhado. Momentos depois, já desaparecera.
Quando a refeição chegou ao fim, as mesas e os bancos foram afastados. Teve lugar uma sessão de combate e, depois desta, uma luta de cães. Faolan obrigou-se a permanecer no salão e a assistir. Fingiu beber a cerveja. Fez o possível por ignorar os gritos e os rosnados, enquanto o cão mais forte despedaçava lentamente o outro. Juntou-se aos aplausos ao dono do animal vitorioso, um indivíduo com aspecto de pugilista, de pescoço largo e uma rede intrincada de cicatrizes no rosto, que se sobrepunha às marcas de batalha.
Ana permanecera no salão. Estava com o rosto lívido, as feições oprimidas pelo horror. A maioria das restantes mulheres tinha saído antes da luta dos animais, apenas com uma ou duas a deixar-se ficar, para acompanhar os homens no círculo ávido e ululante à volta dos combatentes. Faolan vira a mão de Alpin a fechar-se em redor do braço de Ana quando esta tentara ausentar-se. O fato deixara-o gelado de fúria. O líder de Briar Wood não era apenas um rude, era cruel.
Com o fim do entretenimento, a palha ensangüentada foi retirada. Faolan deixou-se ficar com Gerdic e os outros, meditando sobre o que haveria no íntimo de um homem que tais atividades despertavam. Pensou em Bridei e no deus da Fonte das Sombras, um deus que exigia um sacrifício anual como demonstração da obediência do seu povo. Um sacrifício que não assumia a forma de uma galinha ou de uma cabra, mas de uma mulher jovem e inocente. Bridei não falava muito sobre o assunto. A lei da observância dos rituais dos Priteni proibia que se discutisse sobre essa deidade específica e suas exigências. Mas Faolan vira o rosto de Bridei, na noite em que uma rapariga morrera às mãos do velho rei e do seu druida, para aplacar O Que Não Tem Nome. E Bridei dissera-lhe que aquilo que os homens sentiam quando o deus despertava com o seu poder negro não era apenas medo, terror e repulsa, mas também entusiasmo, uma sensação emocionante que tinha tanto de prazer como da mais pura vergonha. Todos os homens tinham esse sentimento dentro de si, dissera Bridei, embora normalmente se encontrasse bem no fundo dos seus corações, e poucos reconhecessem a sua existência. Faolan duvidava que Bridei alguma vez tivesse sentido prazer em derramar o sangue dos indefesos. Bridei era a personificação de tudo o que era justo e bom, equilibrando a autoridade de um rei com a bondade e a generosidade. Com efeito, ele acabara com aquela forma extrema de sacrifício no Portal. Para ele, uma vez fora mais do que suficiente.
Quanto aos outros homens, Faolan já sabia da escuridão que residia no seu íntimo, o desejo não só de derramar sangue, mas também de revirar o punhal enquanto o faziam. A sua lição pessoal sobre a barbaridade humana fora inesquecível. Naquela noite, enquanto assistia ao povo de Briar Wood a gritar e a aplaudir a morte lenta de um cão, sentiu o desejo profundo de estar no Monte Branco. Queria paz. Queria tempo para pensar. Acima de tudo, não queria estar ali sentado a ver a aflição de Ana, sem poder fazer nada para ajudá-la. Quanto à harpa que aguardava a sua perícia, tentou esquecê-la, pois isso, à sua maneira, era o maior de todos os problemas.
— Bardo! — bradou Alpin, de repente.
Faolan dirigiu-se ao lugar onde o chefe tribal estava sentado ao lado de Ana e ajoelhou-se em sinal de deferência.
— Meu senhor.
— A tua presença será necessária pela manhã — disse-lhe Alpin. — A senhora quer que estejas presente quando iniciarmos a discussão formal sobre a questão do casamento. Não vejo qual a necessidade, mas temos de fazer a vontade às mulheres, não é? — Deu uma palmadinha na mão de Ana e piscou o olho.
Faolan manteve uma expressão neutra.
— Uma vez que serei o portador da tua resposta ao rei Bridei, o pedido da senhora parece-me apropriado.
Alpin carregou o sobrolho.
— Não precisamos das tuas opiniões, bardo. É tudo. Serás chamado na devida altura. — Era óbvio que qualquer gratidão que o líder de Briar Wood pudesse ter sentido pela faca lançada naquele momento estratégico se tinha evaporado assim que regressara a casa.
— Sim, meu senhor. — Faolan retirou-se. Sentiu-se observado pelos homens de Alpin enquanto se afastava, não exatamente hostis, apenas interessados. Talvez estivessem mais interessados do que o que seria desejável. Mas isso não importava. Estava satisfeito por as negociações terem lugar tão cedo. Se o assunto ficasse resolvido, poderia ter uma hipótese de regressar ao Monte Branco antes da partida de Bridei. Planeara ficar até que Ana se instalasse, se não feliz, pelo menos em segurança. O seu entusiasmo por tal incumbência, que nunca fora forte, ia-se desvanecendo a cada momento que passava. Apenas queria retirá-la imediatamente de Briar Wood, voltar a casa e nunca mais regressar. Era um sonho insano, impossível por tantas razões que nem queria acreditar que parte de si ainda pensava nele. Se não era capaz de separar os sentimentos pessoais da situação, a jovem passaria bem sem ele.
Reuniram-se na pequena sala do conselho que fazia parte dos aposentos de Alpin. Faolan não apreciou sobremaneira o local do encontro. Não era capaz de olhar para a cama enorme com as exuberantes cobertas de pele sem imaginar Alpin a divertir-se com a esposa nova, o que fez com que fosse difícil concentrar-se na pose que julgava ser a mais adequada à reunião: calmo, calado, talvez um pouco intimidado, pois o que percebe um simples músico de assuntos estratégicos importantes? Pelo menos, seria isso que Alpin iria pensar. Aquele simplório não estabeleceria a ligação lógica entre o repertório bárdico e o conhecimento dos assuntos do mundo. E isso, pensou Faolan, seria pelo melhor. Quando finalmente o forçassem a cantar, apresentaria uma qualquer melodia alegre, cheia de caçadas, bebida e mulheres casadoiras. Com um pouco de sorte, tal espetáculo iria satisfazê-los.
Foi deixado entrar por um guarda. Alpin, sentado à mesa, reconheceu a presença com um ronco, mas não o convidou a acomoda-se. Faolan ficou descontraído, as mãos atrás das costas, o olhar num plano médio. Havia um segundo guarda de pé atrás do chefe tribal e outro homem sentado à mesa.
Aguardaram. Foi servida cerveja. Alpin não ofereceu um copo a Faolan. Após bastante tempo, ouviu-se bater à porta e Ana entrou, acompanhada pela criada.
— Não precisas da rapariga — disse Alpin, com dureza. — Ludha, é tudo...
— Fica, Ludha. — O rosto de Ana estava pálido, os olhos nublados por uma noite acordada, ou atormentada por sonhos indesejáveis. O tom firme era o de uma princesa. — É uma questão de decoro, meu senhor. Não é próprio que assista a uma reunião de homens sem a presença da minha criada. Estou acostumada a certos padrões de comportamento e não tenciono perdê-los, agora que estou num novo lar. — Obrigou-se a esboçar um sorriso educado.
— Muito bem, minha querida, não queremos que percas esses padrões, não é verdade? — bradou Alpin. — Estás atrasada. Perdoo-te por isso. Vejo que não desperdiçaste o tempo. — Os olhos percorreram-na com admiração, desde o cabelo com tranças elaboradas e da túnica e saia impecáveis aos chinelos de pele. Era óbvio para Faolan que o homem avaliava as curvas e linhas gentis da figura em parte oculta pelo traje recatado. Viu a expressão satisfeita no rosto de Alpin. O chefe tribal tinha a vitória como garantida e não escondia o desejo que sentia pelo prêmio. Faolan desviou o olhar.
— Podes sentar-te naquele banco ao lado da porta — indicou Ana a Ludha, ao que se juntou a Alpin, à mesa. — Estes homens vão ficar aqui, meu senhor?
— Parece-me justo — respondeu Alpin, com um sorriso. — Tens o teu bardo, eu tenho Dregard para me aconselhar. Não podemos deixar que o celta vá dizer a Bridei que os assuntos foram conduzidos de forma imprópria.
— E os outros? — Ana olhou para os guardas.
— Deves estar habituada a vigilantes — replicou Alpin. — Não foste uma refém desde criança? A mensagem codificada de Bridei deu-me essa informação. Assumi que fosse a garantia velada de que a minha noiva me chegaria intacta às mãos.
Aos lábios de Faolan subiu um protesto, que foi engolido quando Ana lhe franziu as sobrancelhas.
— Qual o perigo que nos pode ameaçar neste baluarte, meu senhor? — perguntou a Alpin, ao mesmo tempo que lançava um olhar casual à porta interior.
Seguiu-se uma breve pausa, em que Faolan detectou na sala uma certa tensão que não foi capaz de identificar, algo que não era explícito, mas muito perigoso.
— Os guardas são para tua segurança, minha querida — disse Alpin.
— E minha. Não gostamos de surpresas por estas bandas, mas pelo menos sabemos estar preparados. Bom, onde é que nós íamos?
Ana pigarreou.
— Como sabes, o porta-voz oficial de Bridei afogou-se em Break-ing Ford. Trazia mensagens escritas com ele. Todas elas se perderam...
— Qual era o nome desse homem? — A pergunta fora astuta.
— Kinet — disse Faolan, antes que Ana conseguisse responder.
— Kinet, da casa de Fortrenn. Caiu vítima da flecha de um Azul.
— Eu digo-te, quando quiser que fales — disse Alpin, bruscamente.
— A senhora não precisa da tua ajuda para responder a perguntas simples. Esse emissário era parente de Bridei? Um guerreiro?
— Este encontro tem como objetivo discutir os termos para um acordo — retorquiu Ana calmamente. — Não é uma inquisição. Kinet era um bom homem, ao mesmo tempo guerreiro e cortesão, amigo do rei e meu. E está morto. Passarei a expor os termos de Bridei o melhor que conseguir, meu senhor. Peço que me deixes fazê-lo sem interrupções. Será necessário que Faolan me ajude com alguns pormenores. Viajamos algum bastante tempo na companhia do porta-voz do rei e falamos de certos assuntos com ele. Além disso, sou amiga pessoal da Rainha Tuala e...
— Falamos? — Os olhos de Alpin endureceram de repente, os lábios carnudos formando uma linha perigosa.
— O trabalho de um bardo é entreter a sua senhora — replicou Ana. — Animá-la e diverti-la. Éramos um grupo de treze, ao todo. Não era grande. Tornou-se inevitável que Faolan ficasse ao corrente de certas informações.
— Estou a ver.
— Posso continuar com os termos?
— Com certeza. — Alpin recostou-se na cadeira e cruzou os braços. Dregard, o conselheiro, apoiou os cotovelos na mesa.
— Faolan, podes sentar-te — indicou Ana e, por breves instantes, o calor dos olhos da jovem repousou nele. Sentou-se, sem dizer palavra.
Tendo em conta os aspectos da situação de que não tinha conhecimento, Ana fez um bom trabalho. Explicou que Bridei, inimigo de longa data dos Celtas de Dalriada, estava ansioso por garantir o apoio de Alpin. Que desejava assegurar que a lealdade de Briar Wood se encontrava com ele e não com os invasores de ocidente. O rei tinha noção, disse Ana, de que a localização do território de Alpin, tão próxima da zona até onde os Celtas se tinham aventurado em terras Priteni, deveria fazer do chefe tribal um alvo a cortejar por Gabhran. No entanto, como os Caitt e o povo de Fortriu eram ambos de sangue Priteni, descendentes da mesma linhagem e partilhando uma língua e uma fé únicas, Bridei julgou que seria provável que Alpin se mostrasse receptivo a uma aproximação com o Monte Branco.
— Quantos dos outros chefes Caitt já conseguiu ele convencer? — perguntou Alpin. O olhar tornara-se mais arguto. Faolan voltou a sentir que havia uma boa mente estratégica por detrás do exterior rude. Não menciones Umbrig, tentou transmitir a Ana em pensamento. Não havia forma segura de avisá-la. Alpin seguia cada movimento por parte de ambos.
— Não posso responder-te a isso — retorquiu Ana.
— Não podes ou não queres? — O tom de Alpin raiava agora o descortês. Faolan viu Ana vacilar e interveio rapidamente.
— Lady Ana não deverá poder conceder-te esse tipo de informação — disse. — Há muito tempo que os vossos companheiros de tribo não visitam o Monte Branco. Nem imaginas...
— Cala-te! — disse Alpin, com um tom seco. — Estás aqui contra minha vontade e quando quiser que abras a boca eu digo. A questão foi bastante simples, mesmo para uma mulher. E então?
— Não te posso dizer, porque não sei. — A voz de Ana estava menos firme e tinha as feições marcadas pela aversão. — O mensageiro de Bridei não teceu quaisquer comentários sobre esse assunto. E, afinal de contas, só havia uma noiva para enviar. — Conseguiu esboçar um sorriso, respondendo com finura e encanto à grosseria de Alpin. Após um momento de silêncio espantado, o líder de Briar Wood soltou uma gargalhada.
Faolan ficou rígido, num esforço para não deixar que a fúria se sobrepusesse à necessidade de continuar a representar o seu papel. Sentia-se prestes a revelar a verdade a Alpin, pois era incapaz de assistir àquele homem a insultar e a menosprezar a futura esposa. Não veria o que Ana era, uma mulher mais bela e preciosa do que qualquer outra que alguma vez tivesse percorrido os vales de Fortriu, tão justa, honesta e bondosa que merecia o mais elevado dos reis como parceiro e não um miserável que nem sequer era capaz de mostrar educação? As mãos de Faolan cerraram-se em punhos. Respirou fundo e descontraiu-se, ao mesmo tempo que desejava ter à sua disposição alguns dos truques do druida de Bridei.
— Tenho uma pergunta. — Fora Dregard quem falara. Trajava uma batina de lã cinzenta, ao contrário da túnica, calças e botas de um guerreiro. A expressão era a de alguém cuja ocupação o mantinha no interior, pois tinha uma tez pálida e um leve franzir de cenho constante, o que lhe vincara uma ruga dupla na testa alta.
— Faia, Dregard — incitou Alpin. — Imagino que Ana nos queira dizer tudo o que sabe, por menos que seja.
— Bridei procura reforços para as suas tropas? — inquiriu o homem de túnica cinzenta. — É de conhecimento geral que os exércitos dos Caitt são formidáveis, em especial o de Lorde Alpin. Abordagens como esta não são uma novidade. Trata-se então de um pedido de homens e de armas para apoiar um ataque por parte de Fortriu? Uma investida contra Dalriada, por exemplo? Quando teria lugar tal expedição?
Ana respirou fundo.
— São pelo menos quatro perguntas — disse. — Pelo que sei, e o meu senhor tem razão, quando diz que é pouco, julgo que Bridei apenas procura a garantia de que os homens de Briar Wood não vão pegar em armas contra ele. Não espera qualquer contribuição dos Caitt para as suas forças. Não sei dizer qual a empresa planeada, nem quando terá lugar. Tentei, com efeito, fazer algumas perguntas sobre o assunto quando vim a saber que teria de viajar até Briar Wood. Não obtive quaisquer respostas satisfatórias.
Estava muito perto da verdade. Faolan não imaginara que ela viesse a desempenhar um papel tão perigoso.
— És dona de uma grande curiosidade — comentou Alpin, com o esboço de um sorriso. — Mas talvez não seja algo surpreendente numa jovem.
Ana não respondeu.
— Se estivesse no teu lugar — prosseguiu Alpin —, teria perguntado a Bridei por que motivo não esperou por uma resposta à sua mensagem, antes de te enviar. Para quê tanta pressa? É estranho. Estranho e pouco simpático para contigo. Não dizem que esse jovem rei é um modelo de justiça e bondade, como se fosse a personificação do Guardião das Chamas, ou coisa do gênero? — Cofiou a barba. — Ou será uma história criada pelos seus amiguinhos, como o druida Broichan e os outros, para nos recordar de quem detém o verdadeiro poder sobre os territórios Priteni? Pelo que me constou, o druida manobrou bem a eleição.
Ana olhou para Faolan, uma súplica nos olhos.
— Posso falar? — Faolan dirigiu a questão à jovem.
— Por favor, Faolan — respondeu Ana. Depois, virando-se para os outros: — Faolan passou algum tempo na corte de Bridei. Teve oportunidade de observar o rei na companhia do povo.
— O que dizem de Bridei é verdade — atestou Faolan, calmamente. — Por alguma razão lhe chamam a Águia. É possuidor de uma força prudente e de uma devoção profunda aos velhos deuses dos Priteni. Mais recentemente, os homens começaram a dar-lhe outro nome, mais adequado aos planos que tem para o futuro do povo.
— E que nome é esse? — Alpin não conseguia deixar de se sentir interessado.
— Chamam-lhe a Espada de Fortriu, meu senhor. Aquele que vai limpar os territórios ocidentais do invasor Celta.
— Compreendo. — Alpin observou-o com atenção. — Dizes isso com o tom de um homem a quem não lhe interessa o que vai acontecer. E, no entanto, és celta. Se não estou enganado, um celta de origens nobres. Por que não estás a dedilhar as tuas cordas e a soprar as tuas flautas na corte do rei de Dalriada, em Dunadd, ou do outro lado das águas, em Ulaid? Imagino que os senhores dos Uí Néill valorizassem bastante os teus serviços.
— Estou às ordens de Lady Ana, meu senhor, até que ela se encontre instalada em Briar Wood. Nessa altura, à falta de outro mensageiro, levarei ao Monte Branco as informações sobre o que aqui se passou. O meu passado não é relevante. Deixei o ocidente há muito e não faço tenção de regressar. — Alpin estivera próximo da verdade, dolorosamente próximo. Aquele tipo de questões teria de ser eliminado com brevidade.
— Quanto à outra pergunta — acrescentou Ana —, fiquei desconcertada com a necessidade de viajar para cá antes de o rei ter em sua posse a tua resposta. Acredito que devas imaginar o que sente uma jovem em tal situação. — Estava a corar. Por um breve instante, Faolan imaginou que ela tivesse percebido a sua própria confusão e falado para desviar a atenção de Alpin. — Uma mulher prefere saber que é bem-vinda — continuou a jovem. — Prefere casar-se com a certeza da aprovação do futuro marido. Não fazer idéia daquilo que sentias acerca do assunto perturbou-me bastante durante a viagem. É claro que, quando se deu a enchente e perdemos tantas vidas... percebi a irrelevância dessas preocupações mesquinhas... sinto muito... — Ergueu a mão para limpar as lágrimas dos olhos. Num instante, Ludha, a pequena criada, estava junto de Ana com um lenço limpo e algumas palavras murmuradas. — Obrigada, Ludha. Peço desculpa, meu senhor. — Ana endireitou os ombros e ergueu a cabeça. — Como vês, ainda não me recuperei daquela experiência.
— Devias conceder mais tempo à senhora. — Faolan não conseguiu ficar calado. — Decerto que a conversa pode esperar...
— Não, Faolan — atalhou Ana. — Devemos, pelo menos, apresentar já as condições de Bridei. Devemos isso aos que pereceram para que completássemos esta missão.
— Missão? — repetiu Dregard. — Desde quando uma viagem nupcial é uma missão?
— Desde que o casamento está dependente de um tratado assinado e testemunhado — replicou Ana com firmeza. — É o que Bridei exige. As condições deverão ser registradas por um escriba e confirmadas por uma parte independente, como seja um druida. Uma vez que terás de mandar chamar um druida para a cerimônia, tal deverá ser fácil de concretizar. Lorde Alpin concorda que Briar Wood não pegará em armas contra Bridei, nem irá aliar-se aos Celtas. É o que terá de constar. Em troca, terá lugar o casamento entre Lorde Alpin e eu própria.
A voz perdera de súbito o tom confiante, mas Ana prosseguiu com severidade.
— Não pensei ter de ser eu a expor o meu caso, mas parece que assim tem de ser. Faço parte da linhagem real dos Priteni, através do ramo dos reis dos Folk, sujeitos ao domínio do Rei de Fortriu. O meu primo é rei das Ilhas Pequenas. Venho de uma família saudável e fértil. Tenho dezenove anos e vivi na corte de Fortriu desde que era uma criança de dez. Quanto aos motivos de Bridei para enviar o nosso grupo nesta altura, nunca tive conhecimento deles. Enquanto refém real de longa data, aprendi a obedecer às ordens do rei e a não fazer muitas perguntas, meu senhor. Talvez seja dona de uma curiosidade excessiva, mas nunca permitiria que tal colocasse em perigo a vida de outras pessoas, nem a minha.
Seguiu-se um momento de silêncio, ao que Alpin uniu as mãos num aplauso lento.
O rubor de Ana tornou-se mais intenso.
— Troças de mim, meu senhor? — A voz tremia-lhe.
Faolan sentiu a tensão em cada parte do corpo. Não sabia o que era mais forte, se a necessidade de abraçá-la e reconfortá-la, se o desejo de torcer o pescoço hirsuto daquele rufião. Deixou-se ficar imóvel, mantendo uma expressão calma. No seu trabalho, a capacidade de não atrair a atenção era uma ferramenta essencial. Não havia muito que pudesse fazer quanto ao torvelinho que lhe ia no coração, mas podia garantir que ali permanecia, invisível.
— De todo, minha querida — respondeu Alpin. — Deixa-me oferecer-te um pouco de cerveja. Pareces desolada. A minha admiração é genuína. Estás numa situação particularmente constrangedora e, lamento admiti-lo, ver-te a debater-te com ela proporciona um certo divertimento. Mas estás a sair-te bem, para uma mulher jovem. Claro que não espero que tenhas grande conhecimento dos jogos dos homens, especialmente no que toca ao teu Bridei. Imagino que a pouca educação que te deram se tenha limitado aos bordados e à conservação de fruta em mel.
Ana observou-o em silêncio por um momento. Faolan recordava-se que ela fora educada por Fola, em Banmerren, juntamente com um grupo de jovens excepcionais, onde se incluíam Tuala e Ferada, a filha de Talorgen. Fola era venerada pela sua erudição e pela severidade intelectual.
— Os bordados são um dos meus interesses particulares, meu senhor — disse Ana com frieza. — Em relação ao tratado, precisas de algum tempo para te decidires? Tens alguma questão? — Ergueu as sobrancelhas numa atitude nobre e, nesse momento, Faolan sentiu uma admiração especial, pois a jovem transformara a humilhação em triunfo. Cruzaram o olhar por um instante. Faolan permitiu-se um breve aceno, a sugestão de um sorriso.
— Posso falar, minha senhora? — voltou a perguntar à jovem.
— Com certeza, Faolan.
— Creio que existe um pormenor que tem de ser clarificado — disse, erguendo ao de leve os ombros, na pose de um homem pouco habituado a falar na presença de superiores. Esperava não estar a exagerar.
— Que pormenor? — interveio Alpin com brusquidão.
— Continua, Faolan — disse Ana, que entrara no jogo. — Podes ter ouvido alguma coisa importante no Monte Branco, algo que não me foi revelado. Sei que os homens discutem estes assuntos com mais profundidade quando as mulheres se encontram ausentes.
— Foi algo mencionado por Kinet — disse Faolan, num raciocínio rápido. — Algo sobre a outra propriedade do meu senhor Alpin, na costa ocidental, e sobre a necessidade de garantir que a lealdade de ambas as casas seja conseguida com este tratado.
— Na costa ocidental? — meditou Ana, que sabia muito bem a importância do fato. — Mas por que... ah, estou a ver. Providenciaria uma rota marítima até Dalriada... sim, tenho a certeza de que Bridei deseja que o acordo se estenda a todos os teus territórios, meu senhor. Não sabia que tinhas mais terras, para além de Briar Wood. A costa ocidental fica muito longe, não é?
— Fica longe quanto baste — replicou Alpin com brevidade. O tom da voz tornara-se frio. — Esse local, o Vale dos Sonhos, não é meu, é do meu irmão.
Faolan conseguiu ocultar a surpresa. No Monte Branco nunca se falara de um irmão. Se tal fosse conhecido, Bridei teria investigado o caso antes de estabelecer as suas condições. Continuava a pensar na questão certa a colocar quando Ana falou.
— Tens um irmão? Não o mencionaste quando te perguntei pela tua família. Ou talvez não me tenha apercebido. Encontra-se na costa ocidental, imagino. Alpin, o casamento terá de aguardar até que este irmão possa ser consultado. É óbvio que Bridei precisa do consentimento de ambos. Lamento dizê-lo, mas parece que vos vê como uma ameaça em potencial ou, esperemos, um aliado importante.
A jovem era arrojada. Faolan esperava que ela não tivesse ido longe demais, pois julgava não ser capaz de se controlar, caso Alpin reagisse de forma irada. Mas, quando surgiu, a resposta surpreendeu Faolan. O líder de Briar Wood soltou uma gargalhada amarga.
— Consultar o meu irmão? Não creio. Só lhe conseguirias arrancar disparates. Falo por ele, quanto a esses assuntos.
Seguiu-se um silêncio. Ana e Faolan olharam-no, à espera de mais. Pela primeira vez, Alpin parecia desconfortável. As faces largas estavam afogueadas e não olhava para ninguém. Passeava os dedos pela taça de cerveja, uma bela peça com pedras vermelhas incrustadas perto da borda e um padrão de cães em arame.
— Não compreendo — disse Ana, quando se tornou evidente que Alpin não estava disposto a oferecer mais explicações. — Dizes que falas por ele mas, se esse sítio, o Vale dos Sonhos, é dele, decerto controlará as forças aí existentes. A que te referias, meu senhor?
— Briar Wood era a terra do nosso pai — disse Alpin. A sua relutância em adiantar-se sobre o assunto era óbvia. Estava pouco à vontade, remexia-se na cadeira, os dedos num movimento constante. — A outra terra passou para o meu irmão diretamente através da nossa avó materna. Um acordo especial. Mas, infelizmente, o meu irmão não se encontra em condições de assumir a responsabilidade pelas terras, ou pelos homens. Ele está... muito mal.
— Lamento que assim seja — disse Ana. — Espero que melhore em breve. Talvez se possa enviar um mensageiro para ocidente, a fim de obtermos o seu consentimento para o acordo. Imagino que não possa viajar, é claro. Um caminho tão longo e difícil...
— Eu posso ir — ofereceu-se Faolan com um modo diligente. Dregard pigarreou, como se prestes a falar.
— Este não é um assunto que seja discutido abertamente em Briar Wood — disse Alpin, num tom sombrio. — Preferia ter aguardado e transmitido esta informação a Ana em privado. É um assunto de família e de natureza bastante delicada.
Ana e Faolan mantiveram o silêncio, à espera de mais.
— Na verdade — continuou Alpin —, o meu irmão não se encontra no Vale dos Sonhos. Está aqui. Sempre esteve, ao longo dos vários anos da sua... maleita. O que o aflige vai acompanhá-lo toda a vida e é incurável.
— O teu irmão encontra-se aqui? — exclamou Ana. — Nesse caso por que... está demasiado enfermo para ter companhia? Deve ser lamentável para ti! — A jovem já não representava. Falava com uma compaixão genuína. — De que se trata, da doença comicial?
Alpin esboçou um sorriso severo.
— Antes fosse uma maleita tão facilmente suportável, minha querida. Receio que Drustan tenha um problema que o torna uma ameaça, quer para ele, quer para os outros. Foi necessário mantê-lo... enclausurado. Ele... não sei como dizê-lo. Não é bom da cabeça, e nunca foi.
A atenção de Faolan foi desviada para o rosto de Ana, pois durante o último discurso algo mudara na expressão da jovem. Parecia-lhe estranhamente consternada com as palavras de Alpin.
— Perdoem-me — disse, de repente. — Sinto-me um pouco indisposta. Podemos voltar a falar mais tarde? Ludha, vem comigo. — Virou as costas e saiu do quarto, com a criada apressada atrás de si.
Ninguém falou durante alguns momentos. Depois, Alpin pegou no jarro de cerveja, voltou a encher o seu copo e o de Dregard e, após uma breve hesitação, serviu um terceiro e empurrou-o na direção de Faolan.
— Perturbei a donzela — disse o chefe tribal. — Este tipo de notícias nunca é bem recebida, muito menos por uma jovem noiva. Qual a rapariga que deseja saber que vai entrar numa família com membros insanos? Há formas de contar estas coisas às pessoas, e esta não foi das melhores.
— Lamento — disse Faolan em voz baixa, com sinceridade. Não que se preocupasse com a sensibilidade de Alpin, mas iria a extremos para evitar perturbar Ana. A reação da jovem surpreendera-o. Lidara com os insultos velados de Alpin com o discernimento de um conselheiro e as boas maneiras de uma dama. Mas aquela notícia deixara-a abalada.
— Ela vai acabar por aceitá-lo, meu senhor — disse Dregard.
— Espero bem — replicou Alpin, bebendo um gole de cerveja —, pois confesso sentir um grande desejo, um bardo poderia chamá-lo um desejo ardente, de consumar este matrimônio. Esta mulher poderá dar-me belos filhos e muito prazer em concebê-los. É fácil de ver que é mais viva do que sugerem os seus modos recatados. Esperara concluir o assunto rapidamente. Já mandei chamar um druida, logo no dia em que vocês chegaram — indicou, olhando para Faolan. — Deve chegar na próxima lua, talvez mais cedo, caso o tempo o permita. Não existem muitos nas terras do norte e costumam escolher locais um pouco inconvenientes para viver: cavernas a meio de falésias, ilhotas a que mal se consegue aceder, ou buracos nas profundezas das florestas. Há uma pequena comunidade no extremo norte do território de Umbrig. Foi para lá que enviei a minha mensagem. Esperemos conseguir alguém que saiba escrever. Não tenho um escriba em minha casa. A palavra de honra é penhor quanto baste, entre os Caitt.
— Pelo que sei, as condições do Rei Bridei foram bastante específicas, meu senhor — disse Faolan. — Um acordo escrito e com testemunhas, que deverá ser remetido para o Monte Branco.
— Quem assinaria em nome de Bridei? — Alpin Semicerrou os olhos.
— Julgo que vais descobrir que a minha senhora percebe Latim e sabe escrever. — A expressão no rosto de Alpin enquanto ouvia estas palavras deu um grande prazer a Faolan. — Recebeu uma instrução bastante extensa. Para mulher.
— Estou a ver. Uma erudita, não é? Mesmo assim, espero conseguir ensinar-lhe uns quantos truques novos.
— Sim, meu senhor — disse Faolan, por entre dentes cerrados.
— Vocês são muito próximos — comentou Alpin.
— Já há bastante tempo que me encontro ao seu serviço, meu senhor. Mas, afinal de contas, não passo de um servo.
— Mmm. Muito bem, podes ir. Não tenho vontade de continuar a discutir este assunto. Irei concordar com o acordo em nome de Drustan, que não tem capacidade para tais decisões. Para mim, a senhora é mais valiosa do que uma aliança mesquinha. Se Bridei quer que deixemos as suas forças em paz, assim o faremos. Já temos problemas territoriais que nos cheguem, sem termos de nos envolver também com o sul. Assim que o druida chegar, procederemos à conclusão do assunto e poderás regressar a casa, rapaz. Conserta aquela harpa e podes divertir-nos enquanto esperamos que ele chegue. Uma canção nova todas as noites vai manter-te em forma.
— Sim, meu senhor.
Alpin levantou-se. O homem agigantava-se sobre os restantes presentes na sala.
— Afasta-te da senhora — avisou e na voz ouvia-se um tom novo. — Nada de encontros privados. Não passo de um servo não me chega. Ela é minha e qualquer homem que lhe toque com um dedo que seja, ou que olhe para ela de uma forma que eu não goste, vai acabar pendurado numa corda por cima dos portões, com as partes privadas enfiadas na boca. Faço-me entender?
— Sim, meu senhor. — Faolan fervia de raiva.
— Podes ir.
Faolan conseguiu manter uma pose servil enquanto saía do quarto de Alpin. Toda uma lua, pensou, ao passar em frente da porta onde sabia que Ana estava instalada. Ia ser um teste difícil. Talvez a proibição de se encontrar a sós com ela fosse mesmo pelo melhor, pois o seu coração poderia levar a sua avante, levando-o a dizer palavras que lamentaria profundamente. Quem sabe, talvez lhe implorasse que regressasse a casa com ele. Podia fazer por convencê-la a não casar com um homem que nunca a faria feliz.
Faolan encontrou um lugar onde ficar sozinho, no terraço no cimo da muralha, e aí ficou de pé, a pensar, enquanto o sol ia avançado no céu e as sombras se iam alterando no padrão de verdes, castanhos e cinzentos que era Briar Wood. O tratado estava quase garantido, a missão quase completa. Por que seria, então, que apenas desejava voltar atrás, sentir-se cansado, com frio e fome, sentado a uma fogueira minúscula na escuridão da noite, apenas com Ana por companhia? O desejo era tão forte que lhe transmitia uma sensação de dor física. Não podes tê-la, disse para consigo. Não podes agora, nem nunca pudeste. Esquece-a. Faz o teu trabalho. Faz a única coisa que podes fazer.
Após algum tempo, regressou aos aposentos, procurou o material de que necessitava e lançou-se, de faca e madeira em riste, à tarefa de esculpir cravelhas.
Ana passou o dia no quarto, apenas com a companhia de Ludha. Não tinha vontade de ouvir as explicações de Alpin, muito embora ele tivesse batido por três vezes à porta da jovem, a perguntar como ela estava. Irmão dele. Drustan era irmão de Alpin. Como podia ser? Como era possível que aquele homem maravilhoso, de olhos brilhantes e modos gentis, fosse parente de um chefe tribal rude, cujos gostos a nível de divertimento incluíam os desportos sanguinários e o atormentar de mulheres? Mesmo que Drustan sofresse de uma doença mental, como seria Alpin capaz de o manter acorrentado como a um cão selvagem, afastado da luz? Além disso, Drustan não parecia doente. Não parecia insano. Embora com um modo de falar um pouco estranho, mostrara-se tão racional como ela. Enquanto andava pelo quarto, dividida entre a confusão e a indignação, apercebeu-se de que um encarceramento longo acabaria, eventualmente, por deixar os efeitos na mente de um homem. Não estaria Drustan magoado, zangado, ressentido, receoso? Vira-o com um brilho nos olhos quando estava no bosque, livre, com a possibilidade de sentir o sol no rosto e de se movimentar à vontade. Testemunhara a sombra que se abatera sobre ele como um manto negro quando voltara a entrar na clausura subterrânea. Talvez, afinal de contas, o que se passava com ele não fosse nada de anormal. Por que motivo não estaria Alpin a tentar ajudá-lo, em vez de fingir que o irmão não existia? Por que não estaria em busca de uma cura?
Deord podia ter-lhe dado respostas, deveria tê4o feito, tal como prometera quando recuperara a chave. Evitara-a até ao momento, sempre a resmungar que Drustan precisava dele, e que não tinha tempo. E, agora que Alpin regressara, Ana perdera a oportunidade de interrogar o guardião de Drustan.
— O que foi, minha senhora? — indagou Ludha pela décima vez, enquanto fitava a ama com um alarme crescente. — Não te sentes bem? Custa-me ver-te assim.
Ana fez menção de voltar a dizer que não era nada, mas hesitou. Não era justo envolver Ludha naquele assunto, mas não havia mais ninguém que a ajudasse. Faolan encontrava-se fora do seu alcance. Era óbvio que Alpin não permitiria qualquer encontro privado entre a sua senhora e o bardo da jovem.
— Ludha — disse —, imagino que tenhas ouvido o que Lorde Alpin nos contou sobre o prisioneiro, o seu irmão Drustan. — Pronunciar o nome era uma sensação estranha, ateava-lhe um calor no peito.
— Sim, minha senhora. — Ludha não a olhava, dedicando uma atenção fervorosa ao bordado. Uma grinalda delicada de verde-escuro e azul violeta decorava agora a bainha da veste minúscula que Ana entregara à criada para que fosse completada.
— Tinhas conhecimento deste prisioneiro? Sabias que o irmão de Alpin estava fechado em Briar Wood?
— Toda a gente sabe, minha senhora. Disseram-nos para não o comentar até que Lorde Alpin o pudesse explicar-te. Para que não ficasses perturbada, nem assustada. É seguro. Aquele homem, Deord, toma conta dele.
— Não é a minha segurança que me preocupa, Ludha. Fico chocada e incomodada por Alpin tratar desta forma o irmão. Fechá-lo num... — Ana deteve-se. Não revelaria o que vira, nem mesmo a Ludha. Havia uma conspiração de silêncio, da qual a criada fizera parte. Quem podia garantir que não iria a correr ter com Orna, ou com o próprio Alpin, relatar tudo o que Ana lhe dissesse? — É cruel manter um homem prisioneiro a vida toda. Imagino que esteja naquele sítio para onde Deord vai, atrás dos aposentos de Alpin.
— É o que dizem, minha senhora.
— Como é ele, esse Drustan? Alpin disse que ele era... incapaz. Que apenas dizia tolices. — E, uma vez que tal já se provara ser falso, talvez o resto da história também fosse uma mentira.
— Não sei, minha senhora. Nunca o deixam sair. Dizem que é maluco. Violento. Tem ataques, como se fosse possuído por uma espécie de delírio. Deord é o único com força suficiente para lidar com ele. E o que dizem.
Ana sentiu-se gelada.
— Mas estás em Briar Wood há, quantos, seis anos? Estás a dizer-me que durante esse tempo o irmão de Alpin nunca saiu da cela? Nem uma única vez?
— Não, minha senhora. Orna diz que é muito arriscado. Pessoalmente não o posso dizer. Não há por aqui muitas pessoas que o tenham conhecido antes.
— Antes do quê?
Ludha ficara em silêncio. Debruçou-se sobre o trabalho, os lábios franzidos.
— Antes do quê, Ludha? — Talvez, pensou Ana, exasperada, se continuasse a perguntar, eventualmente aquela gente acabasse por dizer-lhe o que precisava de saber. — Fala! — Quando Ludha ergueu a cabeça e revelou os olhos marejados de lágrimas, Ana, embora demasiado tarde, percebeu o quão brusco o seu tom se tornara. — Desculpa, Ludha. Não estou zangada contigo, apenas me irrita que tratem desta forma um homem que não tem culpa da sua condição. Não estou habituada a que as pessoas tenham tantos segredos. Por favor, diz-me o que sabes. Gostaria de ajudar Drustan, se puder. Na verdade, se devo aqui ficar como esposa de Alpin, acredito que seja meu dever fazê-lo.
— Ele fez algo muito mau quando estava em delírio — murmurou Ludha. — Por isso Alpin fechou-o. A maior parte das pessoas que aqui moravam nessa altura já cá não estão. Quase ninguém sabe o que realmente aconteceu e os habitantes não falam sobre o assunto. Mas foi terrível o suficiente para que o irmão de Lorde Alpin não possa sair, nunca mais. É tudo o que sei.
Ana meditou sobre o que ouviu.
— Então e antes? — ponderou. — Quando era criança, um jovem? Quem poderia saber sobre essa altura?
Ludha abanou a cabeça.
— Ninguém. Apenas Lorde Alpin e a irmã, que nunca vem cá. E...
— E quem?
— Falam de uma velhota, que vive sozinha, algures na floresta. Bela, é como se chama. Costumava ser a ama deles, quando eram crianças, Lorde Alpin, o irmão e a irmã. Mas ninguém sabe onde ela está, nem se continua viva.
— Pensei que estes bosques fossem perigosos. Cheios de presenças sobrenaturais, já para não falar dos vizinhos agressivos. Por que não vive essa aia na segurança das muralhas da fortaleza?
— Não sei, minha senhora. Os velhos podem ser muito teimosos. O meu avô, no fim dos seus dias, tornou-se muito difícil. Estava sempre a trazer galinhas para dentro de casa. Dava cabo da cabeça da minha mãe. Talvez esta senhora se tenha fartado de viver no meio das pessoas.
Ana tomou uma decisão.
— Ludha?
— Sim, minha senhora?
— Tenho de saber se posso confiar em ti. Preciso de ter a certeza que não vais falar com Orna nas minhas costas, nem com Lorde Alpin, nem com ninguém com quem eu te diga para não falares. Agora trabalhas para mim. És minha criada e amiga. O que dizes?
— Minha senhora... — Ludha calou-se, olhando para a janela estreita atrás da ama. Ouviu-se um bater de asas e, quando Ana se virou, o cruza-bico voou a pousar-lhe no ombro. Trazia no bico uma pequena flor azul.
— Oh — disse Ludha em voz baixa, ao mesmo tempo que fazia o sinal de proteção com os dedos. As faces rosadas tinham empalidecido. — Dizem... que ele...
— Que os pássaros são enviados por Drustan? — indagou Ana. Ludha aquiesceu, os olhos arregalados, enquanto o cruza-bico alisava as penas e se aninhava, confortável.
— Não é a primeira destas visitas que recebo no meu quarto. Estas criaturas andam em liberdade pela casa?
— Não, minha senhora. As pessoas falam deles. Dele e dos seus pássaros. Nunca tinha visto um deles. Há muitos gatos por aqui e são todos bons caçadores.
— Muito bem, Ludha, responde à minha outra pergunta. Tenho de saber se és capaz de manter a boca fechada. Se a resposta for sim, quero que me ajudes. Sei que és boa rapariga, prestável, e espero que acedas, pois não tenho mais ninguém.
Ludha pousou o bordado.
— Sim — disse. — O que tenho de fazer?
— Nada de perigoso. Primeiro, quero que digas a Orna que estou com dor de cabeça e que vou ficar no meu quarto o resto do dia. Vais buscar-me o jantar numa travessa. Acima de tudo, não quero ver Lorde Alpin.
— Sim, minha senhora.
— E depois, enquanto a casa estiver a cear, preciso que fiques de vigia.
— De vigia? Onde?
— À porta do quarto de Lorde Alpin. Não te preocupes, Ludha, não fiques tão chocada. Só vou fazer umas perguntas que já deviam ter sido respondidas há muito tempo.
Havia bons motivos para que Deord tivesse sido indigitado como guarda especial. Quando abriu a pequena porta interior e entrou no quarto de Alpin, de bandeja na mão, Ana colocou-se à sua frente vinda das sombras. A jovem deu consigo virada, com os dois braços presos atrás das costas, num aperto esmagador. A travessa caiu com estrépito, o conteúdo espalhado. Deord movera-se tão depressa que ela ficara sua prisioneira antes de conseguir respirar. Instantes depois, o homem libertou-a. Ana esfregou os pulsos com um esgar de dor. O pássaro voara na direção do recinto de Drustan no momento em que a porta se abrira.
— Isso foi uma tolice de tua parte. — O tom da voz de Deord era calmo. — Sou obrigado a reagir de imediato a qualquer ameaça. Não houve tempo para te identificar. Não devias aqui estar.
— No quarto do meu futuro marido? Também és obrigado a reagir a isso?
Deord olhou-a sem pestanejar.
— Tenho um dever enquanto guarda — disse. — Protetor. Por esta altura, Alpin já te deve ter concedido a explicação que procuravas. Tenho de ir. Os meus deveres são precisos e devem seguir um horário.
— É de ti que procuro respostas.
— Naquela noite Drustan ficou incomodado. Não esteve bem. Eu avisei-te. Não posso ausentar-me por muito tempo.
— Talvez seja o cativeiro que o perturba. Acredito que períodos tão longos na penumbra devam perturbar o mais equilibrado dos homens.
Deord não disse nada. Baixou-se para apanhar os objetos caídos, travessa, taças, Colheres.
— Por favor — disse a jovem. — Alpin ainda não me disse nada, apenas que Drustan é seu irmão e que ele padece de uma maleita que o impede de ter uma vida normal. Quero que me digas porquê. Por que motivo está trancado? É mesmo perigoso? O que aconteceu que levou a isto? — Ana pegou nos dois copos e pousou-os na travessa.
— Por favor, Deord. Quero ajudar Drustan. Não acredito que a doença dele seja incurável. Parece tão cortês, tão... tão bom.
— É um homem bem apessoado — comentou Deord, sem qualquer ênfase particular.
As faces de Ana tingiram-se de vermelho.
— Isso não tem nada a ver com o caso! — replicou com brusquidão.
— Agora, responde às minhas perguntas.
— As ordens que recebo são-me dadas por Alpin.
— Responde-me, caso contrário digo-lhe que te vi no exterior da muralha. — Tinha a voz a tremer. Esperava que ele não percebesse que não tinha qualquer intenção de fazer o que dizia, pois tal resultaria no fim dos breves momentos de liberdade do prisioneiro.
— Vem. — Deord pousou a bandeja, abriu a pequena porta, puxou Ana pelo braço e fechou a porta atrás deles, pelo que ficaram na arrecadação escura. — Tem de ser rápido. Estás a arriscar a nossa segurança e a tua por te meteres assim. Alpin sabe tudo o que há para saber. É com ele que te vais casar. As respostas de que precisas são as dele.
— Quero as tuas.
— Por quê? — indagou Deord, sem expressão na voz.
— Porque acredito que se me disseres alguma coisa, será a verdade. Porque acredito que és amigo de Drustan. Está mesmo doente? Insano?
Deord hesitou.
— A mente dele não é como a tua, nem como a minha — disse.
— Há pessoas que vêem isso como sendo loucura.
— E como é que tu o vês, Deord?
— Sou um guarda contratado. As minhas opiniões são irrelevantes. Era como estar a falar com Faolan, nos momentos mais difíceis.
— Achas que Drustan está desorientado? Julgas que tal é óbvio?
— Desorientado, ou mais orientado do que nós, pessoas comuns. Partilhamos este lugar há muito tempo. Estar fechado... isso muda a forma como encaramos o mundo e as pessoas que o habitam. Talvez ninguém seja são. Talvez apenas existam níveis diferentes de loucura. Não devias interferir. Esta é uma questão muito profunda, entre ele e Alpin. O estado presente talvez seja o melhor que se consegue. O melhor para ambos.
— O melhor? — Ana sentia-se indignada. — Fechar um homem num buraco escuro, vedar-lhe o sol e a liberdade, mantê-lo afastado das outras pessoas como se fosse um animal perigoso... é um melhor bastante medíocre.
— Sabes muito pouco sobre tais assuntos — comentou Deord —, se julgas que esta é uma forma de cativeiro cruel. Pergunta ao teu amigo bardo o que ele sabe sobre prisões.
— Perguntar a Faolan? O que queres dizer com isso? Conhecê-lo?
— Nunca o tinha visto antes de chegar a Briar Wood. Mesmo assim, temos um passado comum. Estou certo de que Faolan compreende que, dadas as circunstâncias, o que Alpin criou para o irmão é tão generoso quanto possível. Fala com o teu bardo sobre uma prisão chamada Breakstone Hollow, em Ulaid. Um lugar que ambos conhecemos profundamente, do lado de dentro.
— Não posso falar com Faolan — disse Ana secamente. — Alpin não permite que nos encontremos em privado. — Sentia-se desapontada por aquilo ser tudo o que Deord lhe podia oferecer. Parecera-lhe, na manhã na floresta em que vira luz a dançar na pele nua e o desporto que ambos partilharam, que havia um laço entre guardião e cativo que ultrapassava a mera familiaridade. Pensara que ele e Drustan fossem amigos. Quanto ao encarceramento, não achou surpreendente que no passado de Faolan existisse tal história.
— Não posso ajudar-te — declarou Deord, mais uma vez sem expressão. — É melhor que nos deixes em paz. A tua chegada agitou Drustan. Sonha acordado, coisas que não pode dar-se ao luxo de imaginar. Isso faz com que tudo seja ainda mais difícil...
A porta escancarou-se. Alpin surgiu à entrada, as mãos nas ancas, o rosto distorcido pela fúria. Quando Ana recuou, viu Ludha no quarto, encolhida contra a parede, a marca vermelha de um golpe na face. O líder de Briar Wood deu um passo para o interior do corredor estreito, estendendo a mão como que para agarrar Ana pelo ombro. Num abrir e fechar de olhos, Deord encontrou-se entre os dois, a figura robusta de pé, com uma mão aberta contra cada parede, a criar uma barreira entre Alpin e a futura esposa. O coração de Ana martelava-lhe no peito. Sentiu a pele cobrir-se de suor. Deord movera-se em silêncio absoluto.
— O que se passa aqui? — bradou Alpin. — O que fazes aqui com ele? Quem te deu a chave?
Ana engoliu em seco e falou por trás da linha protetora do braço musculoso de Deord.
— Quis fazer uma pergunta ao teu guarda especial — disse.
— Deord não tem culpa. Envidou todos os esforços para não falar comigo, meu senhor. Disse que terias de ser tu a responder-me. Talvez agora o faças. Estaríamos muito mais confortáveis à mesa. E podemos deixar que Deord volte aos seus afazeres. O teu irmão deve estar com fome. — Pelos deuses, tremia como varas verdes. Alpin abria e fechava os punhos como se prestes a atacar Deord, ou Ana, ou ambos ao mesmo tempo. A jovem não sabia o que fazer, para além de agir como se se tratasse de uma situação normal. — Obrigada, Deord. Agora fico bem. Podes ir.
Deord baixou lentamente os braços, os olhos calmos presos nas brasas de fúria que eram os de Alpin. O líder de Briar Wood recuou um passo.
— Vem, meu senhor, ainda não me sinto bem e prefiro sentar-me
— conseguiu Ana dizer, enquanto se dirigia à mesa. — Ludha, vai pôr uma toalha fria no rosto. Pede a Orna que te ajude. Fico bem até que regresses. — Ludha saiu rapidamente. Deord, de bandeja na mão, saiu em silêncio do quarto, o roçagar das vestes compridas nas lajes. Alpin continuou no centro do quarto, as pernas afastadas, um olhar furioso no rosto.
— Agrediste a minha criada? — perguntou Ana, procurando assumir um ar de superioridade. Os dentes batiam-lhe. Cerrou o maxilar, ergueu as sobrancelhas e procurou a expressão majestosa que tantas vezes lhe trouxera confiança.
— O que estavas a fazer ali dentro com ele? — exigiu Alpin, ignorando a questão. Não fez menção de se sentar à mesa com a jovem.
— A minha mulher não está sozinha com nenhum homem, a não ser comigo, qualquer homem, seja ele bardo, cortesão ou servo, percebeste? Se aquele indivíduo não fosse tão valioso, tê-lo-ia vergastado por quebrar essa regra...
— Alpin, senta-te. — Ana reprimiu a fúria e conseguiu esboçar um sorriso. — Por favor. Fiquei incomodada, quando falaste do teu irmão e da sua doença. Ter-te-ia pedido que o explicasses mas... não me senti à vontade. Por isso, perguntei a Deord, pois não pude deixar de reparar na sua rotina como guarda especial. Sinto muito se transgredi alguma regra de que não tinha conhecimento. Pouco deves confiar em mim, se julgas necessário impor tamanha restrição à minha liberdade. Não estou habituada a ser tratada como se fosse falsa.
Alpin sentou-se à frente da jovem, as mãos grandes sobre a mesa, o sobrolho carregado.
— Gostaria que me explicasses tudo — continuou Ana. — Mas primeiro, tenho de te dizer que, agora que Ludha trabalha como minha criada pessoal, ela responde-me a mim, não a ti. Isso significa que, caso seja necessária alguma repreensão, alguma... disciplina... serei eu a ministrá-la. Sei como lidar com os servos, Alpin. Cresci numa casa real e passei muitos anos na corte de Drust, o Touro, em Caer Pridne, e mais tarde com Bridei, no Monte Branco. — Onde, escusou-se a acrescentar, os servos eram tratados com cortesia e justiça em todas as ocasiões. Não se lembrava de um único caso de violência física.
— Não é em ti que não confio, minha querida — resmungou Alpin —, é nos homens. Não vês os teus próprios encantos, mas eles vêem, todos eles. Sempre que passas, aquele teu Faolan ficar com um olhar inflamado. E, afinal de contas, é um celta. Deles pode esperar-se tudo. Quanto a Deord, imagino que sinta uma certa dose de frustração, tal como seria de esperar com qualquer homem que é obrigado a passar a maior parte do tempo longe da companhia feminina. Não quero que nenhum deles fique sozinho contigo. Nem agora, nem nunca.
Ana refreou-se de frisar que o casamento ainda não fora consumado. Havia perguntas a fazer e, se queria respostas, deveria agir com cuidado e mantê-lo calmo.
Ludha regressou com um pedaço de tecido apertado contra a face. Ana ofereceu-lhe um sorriso tranqüilizador. A rapariga era corajosa. Alpin era um homem imponente e a sua fúria assustadora.
— Comentaste a maleita do teu irmão — disse Ana. — Devo dizer-te que, durante a tua ausência, observei Deord com as travessas e fui informada pelas mulheres que ele é um guarda especial. Tornou-se evidente que aquela pequena porta deveria conduzir a um local onde se guardam prisioneiros. Talvez apenas um prisioneiro, pois as bandejas tinham alimentos para dois. Já antes tentara questionar Deord, mas ele nunca falou comigo. Orna disse-me que devia aguardar e obter as respostas da tua pessoa.
— Orna deu-te um bom conselho. É pena que não o tenhas acatado. Podias ter-nos poupado contrariedades a todos. — Alpin dirigiu o olhar à criada silenciosa, regressando depois a Ana. — Por que entraste na área de Deord? Por que estavas no meu quarto? Foi mentira, não foi, o teres passado o dia indisposta. A mim pareces-me muito bem. O que estás a tentar fazer? — Voltava a irritar-se. Era visível no maxilar tenso, nos punhos cerrados, no tom de voz que ameaçava transformar-se em grito.
Ana levou a mão à de Alpin, o que teve o condão de o acalmar de imediato.
— É verdade que te enganei, meu senhor — comentou, tornando a voz hesitante. — Pensei que gostasses desse tipo de jogos, os que as mulheres e os homens jogam entre eles. Fiquei muito perturbada, esta manhã. Uma rapariga não gosta desse tipo de informação sobre a futura família. Mas tenho de confessar que deixei Ludha de guarda à porta e depois abordei Deord, tencionando perguntar-lhe se era deveras o teu irmão que se encontrava encarcerado aqui em Briar Wood, somente por ter tido o infortúnio de padecer de uma maleita para a qual ainda ninguém procurou a cura. Lamento se te ofendi, Alpin. — Apertou a mão dele, meneou a cabeça e sorriu, esperava que de uma forma apaziguadora. Parecia-lhe óbvio que ele perceberia de imediato a insinceridade e rebentaria em nova fúria mas, em vez disso, Alpin pousou a outra mão na de Ana e falou calmamente.
— Pede à tua criada que vá buscar hidromel e alguma comida. Não comes desde manhã.
— É claro. Ludha, pedes a um dos homens que nos traga algo? Obrigada.
Aguardaram. Era óbvio a Ana que ele não iria falar até que não fossem interrompidos. Alpin limitou-se a segurar-lhe a mão, algo que Ana considerou ainda mais difícil de suportar do que a fúria, pois o toque daquele homem não lhe era de todo agradável, mesmo quando oferecido gentilmente. Saber que desta vez fora ela quem o proporcionara dava-lhe uma sensação desagradável, como se, de algum modo, se tivesse conspurcado.
Um servo trouxe comida e bebida. Pouco depois, Deord voltou a atravessar o quarto com a bandeja da ceia, agora cheia, ao que desapareceu pela pequena porta sem olhar para o casal. Ludha voltou ao seu lugar.
— Não me surpreende que isto te perturbe — retomou Alpin. — Vais pensar nos teus filhos, num possível mal de família. Receias que a tua linhagem pura seja maculada por algo feroz e imprevisível. É possível. Não posso negá-lo. Como sabes, já fui casado. Devia terum filho. Não viveu o suficiente para nascer. Nunca vim a saber o que poderia ter sido, um futuro líder ou um demente. — Baixou a cabeça.
— Sinto muito — disse Ana. — Sei que perdeste um filho, bem como a tua primeira esposa. É muito triste. E, vais perdoar-me se for um assunto incômodo, julgo que tens um filho natural.
Alpin aquiesceu.
— Foi enviado para outro lar. Não pode herdar, claro está. Não há necessidade de te preocupares com ele. Tem o que precisa. Não há sinais de loucura, se é a isso que te referes.
— Tenho de admitir que não é a ameaça de uma herança maculada que me preocupa — disse Ana. — É... é pensar no teu irmão, ali fechado, há tantos anos, sem a menor esperança de liberdade. O que se passa com ele, exatamente? Não há nada que possa ser feito?
— Não há ajuda que lhe valha.
O tom de Alpin encerrava uma finalidade tremenda, mas Ana prosseguiu.
— Já procuraste o conselho de curandeiros experientes? O druida do rei, Broichan, é conhecido pela sua capacidade...
As palavras de Ana foram interrompidas quando Alpin bateu com o punho na mesa, fazendo estremecer copos e facas.
— Não me venhas com conversas de curas e de conselhos! Drustan é uma ameaça a todos os que vivam! Nunca poderá ser libertado!
Ana respirou fundo e esperou que o coração deixasse de lhe martelar no peito.
— Compreendo — disse, embora Alpin ainda não lhe tivesse explicado nada.
— A pior altura é na lua cheia — resmungou Alpin. — Perde a cabeça, fica totalmente imprevisível. Não há como chegar-lhe à razão. E é forte. Na lua cheia, tem de ser encerrado, para que não possa ver o céu. Há alturas em que o ataque não é tão forte, mas é sempre difícil. E chega sem aviso. Deixá-lo sair seria irresponsável. Ninguém sabe o que pode fazer. — Bebeu um gole longo do hidromel. — Não queria dizer-te tudo isto. Não queria entrar em pormenores. Imaginei que, quanto menos soubesses, mais feliz serias.
Ana não o contradisse. Sentia a mágoa no coração. Pensou, finalmente, ver-lhe a verdade nos olhos e descobriu que, afinal de contas, não a queria.
— Mas... — arriscou — podias, ao menos, deixar-lhe a prisão mais tolerável. Durante o dia, decerto poderia ficar onde visse o céu, a floresta... onde o sol chegasse a ele, sem barras entre eles. Ser encerrado naquele lugar escuro por uma maleita que o aflige sem que tenha culpa... é cruel, Alpin. É bárbaro. Ele é teu irmão. — Acabou por calar-se. Os olhos de Alpin estavam fitos nela, duros, e a expressão no rosto aterrorizava-a.
— Mas não sabes nada sobre os seus aposentos. — A calma na voz era ameaçadora. — Tu própria me disseste que ninguém te dera respostas. Por que falas de um sítio onde o cativo não pode ver a floresta, um lugar onde o céu apenas é visível através de barras? Tudo o que viste foi uma porta e a passagem para a arrecadação. Ou será que me mentiste?
— Eu... quer dizer... — As palavras expeditas de que precisava tinham-na abandonado.
— Responde-me! — bradou Alpin, fazendo menção de se levantar. Ergueu o punho.
As palavras chegaram-lhes: as palavras erradas. Se me bateres, Faolan vai matar-te.
— Sou obrigada a dizer-te — esforçou-se a dizer, no tom mais senhoril que foi capaz de invocar — que se me levantares a mão, destróis qualquer hipótese de me veres a concordar com o casamento. Não faço tenção de ser o bode expiatório da tua raiva para com as injustiças do mundo. Senta-te, por favor.
— Diz-me a verdade! — gritou Alpin, mas já baixara a mão. — Quem te deixou entrar? Viste-o, não foi? Estiveste com ele!
Ana sentiu um inexplicável rubor a subir-lhe às faces, talvez o pior que poderia ter acontecido naquele momento. Que Todas-As-Flores a ajudasse, estava prestes a destruir o tratado de Bridei e a colocar-se e a Faolan numa posição ainda mais precária, já para não falar do pobre Drustan e do leal Deord.
— Não estive — replicou —, mas tenho uma pequena confissão a fazer. Espero que me perdoes, meu querido. — Conseguiu não se engasgar com as palavras.
— O quê? — bradou Alpin.
— Durante a tua ausência, aventurei-me por aquela porta e desci ao lugar onde o teu irmão está aprisionado. Não estava ninguém à vista. O teu irmão e o seu guarda deviam estar recolhidos, nesse dia. Saí rapidamente de lá, não querendo ir onde não devia.
— Estás a mentir — disse Alpin sem expressão.
— Não, meu senhor.
— Como conseguiste entrar? Deord tem uma chave e eu a outra. Não me digas que ele deixou a porta destrancada.
— N-não, meu senhor. Foi muito estranho. Um pássaro levou-me a chave. Entrou pela minha janela e deixou-a junto à cama. Não espero que acredites, mas é a mais pura verdade.
Alpin empunhou a faca da carne e espetou-a com violência na mesa de carvalho.
— Aquela maldita aberração! — resmungou — Como se atreve a meter-se!
— Deixei a chave junto ao portão de ferro — disse Ana —, onde sabia que Deord a encontraria. Espero não ter feito mal.
Alpin encarou-a.
— Ainda bem que foi Deord que a encontrou — retorquiu — e não o meu irmão. É óbvio que não fazes idéia do perigo envolvido.
— Sinto muito, meu senhor. Devo culpar a curiosidade feminina. Não volto a fazê-lo.
— O que é isso de «meu senhor»? — perguntou Alpin de repente. — Acho que preferia o outro tratamento.
Tornava-se cada vez mais difícil forçar um sorriso.
— Preciso de tempo para me acostumar, meu querido. Nunca me dirigi assim a um homem. Tudo isto é novidade para mim.
— Mmm — resmungou Alpin. — Tens de refrear a tua curiosidade, aqui em Briar Wood. Isto não é um jogo, é uma tragédia, e os perigos são bem reais. Deixa-me ser honesto contigo. Se Drustan não fosse meu parente, tê-lo-ia enforcado em frente aos portões, pelo que ele fez.
— O q-que fez ele? — Ana sentiu um arrepio na espinha. Tinha a certeza de que não queria saber o que ia ser dito.
— Ele matou-os — disse Alpin, com um tom de voz que agora parecia calma, dormente, muito além da raiva ou da mágoa. — A minha mulher, Erisa. O meu filho por nascer. No meio do delírio, levou-os à morte. Perseguiu Erisa pela floresta. Ela caiu de um local onde um penhasco se agiganta sobre uma catarata. Partiu o pescoço. Foram precisos três dias para recuperarmos o corpo.
Ana sentiu um calafrio.
— Mas... porquê? — murmurou.
— Com um louco, não há motivos. Ana debateu-se, em busca de palavras.
— Houve testemunhas? Tens a certeza de que ele...?
— Apenas uma. Estava lá uma velha, a nossa ama. Bela já não está entre nós. Mas não houve qualquer dúvida. Ele próprio admitiu o que fizera.
Ana ficou em silêncio.
— Tranquei-o no dia em que trouxeram o corpo da minha mulher. O nosso filho teria nascido daí a uma lua. Tive vontade de enfiar a minha adaga no coração de Drustan e acabar com ele. Mas um homem não mata o irmão. Em vez disso, construí aquela prisão e contratei Deord como guardião. Os laços de sangue são fortes. Será o meu fardo para o resto da vida.
Ana estava horrorizada. Queria protestar, dizer que nada daquilo era verdade, não podia ser, Drustan seria incapaz de um ato de tamanha violência. Mas recordou as palavras de Deord: Dadas as circunstâncias, o que Alpin criou para o irmão é tão generoso quanto possível. As referências veladas ao perigo por parte de Deord indicavam que o caso era verídico. E, algures, havia uma testemunha. Alpin tinha toda a razão, ela interferira no que não devia e apenas viera agitar as águas da perda e da angústia.
— Não sei o que dizer — murmurou Ana. — Lamento mais do que alguma vez poderei dizer. — Junto à parede, Ludha estava paralisada. Pela expressão, era óbvio que nunca antes ouvira a narrativa completa.
— Imagino que Bridei não te teria enviado tão rapidamente caso soubesse da nossa triste história — disse Alpin. — Não duvido que tivesses inúmeras ofertas bem melhores, de chefes tribais sem segredos tão sombrios.
— Tive, é verdade — asseverou Ana. — Contudo, estou aqui em Briar Wood, e devo aproveitá-lo. Obrigada por me contares a verdade. Prefiro a honestidade, por mais desagradáveis que possam ser os fatos. Não irei interferir neste assunto, meu senho... meu querido. Em troca, espero que não me mantenhas outros segredos. Não, quando for tua esposa. — Falou por entre dentes cerrados. O fato de Alpin ter sido honesto para com ela não ajudou a mitigar a repulsa física. Agredira Ludha e teria agredido a própria Ana. A perspectiva de vir a partilhar a cama com aquele homem causava-lhe arrepios.
— Vamos beber a isso — declarou Alpin, que serviu mais hidromel. — Ao casamento. Ao futuro. Se os deuses nos sorrirem, na próxima Primavera teremos um filho.
Ana sorriu e tentou ignorar a visão que não a abandonava: Drustan, na floresta, o corpo elegante e forte, o cabelo exuberante que parecia fogo, os olhos brilhantes com o prazer de viver. Os pássaros, aninhados junto a ele, tão confiantes. A voz doce. Aquele homem era um assassino insano. Ana daria tudo para que não fosse verdade. Mas o desejo não chegava para transformar os fatos numa mentira. Alpin dissera que o irmão confessara. Com efeito, o próprio Drustan fizera-o novamente quando Ana lhe perguntara por que motivo estava preso, embora na altura a jovem não o tivesse percebido. «Não estar seria perigoso.» Por isso, deveria ser verdade. Mesmo assim, o seu coração gritava-lhe que não podia ser. Ferada sempre dissera que o coração era um guia falível e que as pessoas assisadas seguiam os ditames do intelecto. Desejava que Ferada ali estivesse naquele momento.
— Ao casamento — disse Ana com um tom severo, e ergueu o copo.

 


CAPÍTULO OITO


Na véspera do festival do Renascimento, Drust, o Javali, monarca do reino sul de Circinn, chegou ao Monte Branco acompanhado dos conselheiros e de uma modesta escolta de guerreiros, a fim de participar na assembléia de Bridei. No segundo dia, já todos da casa de Fortriu sabiam que as negociações tinham fracassado. Drust não fazia tenção de conceder apoio contra Dalriada, nem sob a forma de guerreiros, nem de uma forma menos prática, mais simbólica. Não importava que ao longo dos últimos dois anos tivesse vindo a trocar mensagens com Bridei, aproximando-se lentamente de interesses comuns. Alguém lhe fizera a cabeça, alguém influente, e agora o rei de Circinn encontrava-se irredutível.
A questão territorial com os Celtas era um problema local, disse aos chefes tribais de Fortriu ali reunidos. Teriam de o resolver sozinhos. As suas forças já tinham o suficiente com que se ocupar no seu próprio território, sem que fossem chamados para marchar até ao ocidente. Além do mais, o projeto estava condenado à partida. Os Celtas encontravam-se demasiado enraizados para serem expulsos. Era já a terceira geração que nascia nas suas colônias. Bargoit, o conselheiro de Drust, deitou sal na ferida, adiantando a opinião de que os habitantes das regiões ocidentais que tinham deixado de resistir e permitido que os invasores se instalassem, se casassem com mulheres Priteni e gerassem filhos mestiços, tinham revelado bom senso. Chegara a altura de aceitar que os Celtas tinham vindo para ficar, e a fé cristã com eles.
Era ultrajante e apenas com dificuldade Bridei foi capaz de manter a compostura que a sua posição lhe exigia. Outros houve que exibiram menos rodeios. Broichan quase lançara uma maldição. Talorgen ergueu a voz e o punho. O conselho chegara ao fim quase antes de ter começado.
Ainda assim, Drust, o Javali, ficaria mais algum tempo na corte de Bridei. O gesto de ter empreendido a longa viagem desde Circinn deveria ser reconhecido, mesmo tendo a decisão tomada sido desfavorável. A comitiva teria, mesmo assim, de ser acomodada no Monte Branco, e havia outros assuntos a discutir, questões comerciais e fronteiriças. Mas a verdade era que, com o objetivo principal perdido tão rápida e decididamente, os conselheiros de Bridei não tinham grande vontade de prosseguir com os pontos de trabalho da assembléia.
Durante o dia, os representantes dos dois reinos encontravam-se à mesa de reuniões e cumpriam os ditames da diplomacia. Foram organizadas outras atividades: caça, equitação, desporto. Ao serão, havia banquetes e música. Ao mesmo tempo, o rei de Fortriu encontrava-se à porta fechada com o seu círculo interno de líderes, a fim de tomar uma decisão crucial. O avanço fora planeado para a altura da Reunião, o ritual das colheitas. A escala monumental do empreendimento implicava o movimento, em breve, das forças. Não seria uma deslocação em massa pelo vale, nem um avanço arrojado por barco. O exército Priteni seria composto por várias forças numerosas, cada uma com os seus próprios líderes e, quando chegasse o momento do assalto, Dalriada ver-se-ia atacada por várias frentes ao mesmo tempo, sendo pressionada cada vez mais para sudoeste. Mesmo que o segredo não fosse essencial, tal empresa nunca poderia ser preparada rapidamente.
Avançar sem o apoio de Circinn seria um risco. O fracasso não custaria a Bridei apenas a vida de homens e talvez mais territórios para Dalriada. A longo prazo, seria um retrocesso na sua causa, no seu sonho: ver os Celtas expulsos de vez de Fortriu e todos os territórios Priteni mais uma vez unidos sob os deuses antigos. O fracasso macularia a imagem brilhante que o povo tinha do monarca, diminuindo assim as hipóteses de um sucesso futuro. A questão era se, caso atrasassem a investida um ou dois anos, seriam capazes de convencer Drust, o Javali, a vir em seu auxílio. Com os exércitos de Circinn ao lado dos de Fortriu, haveria uma maior probabilidade de vitória.
— Ele não vai recuar — disse Talorgen, sem emoção na voz. Estavam reunidos numa pequena sala sem janelas. Tinham sido dispostas candeias pela câmara, o que transformava o rosto dos homens em máscaras tremeluzentes, o de Bridei composto, o de Talorgen furioso, o de Aniel pensativo. As feições de Broichan estavam impassíveis, os olhos, como sempre, inescrutáveis. Tharan, o outro conselheiro, a par de Aniel, estava inquieto. Cruzava os braços, trocava a perna, pegava em coisas e volta a pousá-las. Carnach, o líder de guerra de Bridei, estava de pé, com as mãos nas ancas. Para ele, a decisão implicava a escolha entre uma estação em marcha e um confronto sangrento à chegada, ou o destroçar das forças que ele preparara de todo o coração para a causa de Fortriu. Se as coisas tivessem sido diferentes cinco anos antes, Carnach poderia agora ser rei, enquanto Bridei viveria uma existência pacífica como erudito. Os deuses, contudo, tinham resolvido sorrir a Bridei nessa época de mudança. Ninguém sabia o que os deuses tramavam naquele momento.
— É Bargoit quem está por trás disto. — O tom de Tharan era amargo. — Há muito que aquele miserável manipula as opiniões de Drust a seu bel-prazer. Além disso, se as nossas informações estiverem corretas, em Circinn há missionários cristãos por todo o lado. Os conselheiros religiosos de Drust terão dado ouvidos aos argumentos de Bargoit. Terão pressionado Drust a abster-se dos conflitos com os Celtas, seguidores da mesma fé disparatada. Esperava que o rei de Circinn tivesse conseguido forças para tomar as suas próprias decisões. Se pelo menos se tivesse libertado da rede envenenada que o aperta cada vez mais.
— Houve algo que mudou — disse Bridei. — Ainda nem há duas estações estava à beira do acordo. Recebi uma mensagem sua de apoio provisório. Apenas verbal, lamento dizê-lo. Seria difícil Drust honrá-lo, agora. Será que pesa sobre ele uma nova influência?
— Devíamos analisar esse caso a seu tempo — disse Aniel. — Entretanto, a questão é: será que nos arriscamos a prosseguir sem eles? Há muito a perder.
Na mente de Bridei estavam os olhos brilhantes e os rostos ansiosos e determinados dos soldados a quem se dirigira em Caer Pridne, todos eles prontos a lutar e a morrer pela nobre causa do seu rei. Alguns eram pouco mais do que rapazes, outros jovens pais, outros ainda veteranos de inúmeros conflitos. Se não ponderasse bem, estaria a pedir-lhes que pagassem o maior de todos os preços pelo seu próprio orgulho. Mas, se cancelasse o avanço, poderia estar a desperdiçar a melhor das oportunidades de garantir o futuro de Fortriu. Era sabido que, a seu tempo, Gabhran de Dalriada sonhava em conquistar todas as terras do norte. Ter Gabhran como rei significava um jugo estrangeiro. Com a fé cristã a disseminar-se rapidamente em Circinn, governada com pulso fraco por Drust, e com os Celtas a implantarem as suas cruzes a ocidente, Fortriu já se encontrava cercada. Se deixassem que Gabhran avançasse mais, não seria apenas o território que perderiam. O domínio celta viria a significar a morte dos deuses antigos.
— A estação está a chegar ao fim — disse. — Seja qual for, a decisão terá de ser tomada rapidamente.
— Se desistirmos agora — disse Carnach —, não só perdemos a força conseguida por uma temporada de preparação dedicada, como podemos também sacrificar o elemento surpresa que os nossos espiões e a nossa segurança apertada nos concederam. Se esperarmos um ano, o inimigo tem esse ano de oportunidades para conseguir informações sobre a data, a forma e a escala da nossa operação.
— É verdade — asseverou Talorgen. — Não nos podemos dar ao luxo de manter os homens nesta incerteza muito mais tempo. Estão à espera de uma iniciativa no prazo de uma lua que os leve aos variados destinos. Esperam um assalto total por altura da Reunião. Já estão impacientes. Se não avançarmos tal como planeado, não nos resta outra alternativa que não seja fazer destroçar os exércitos e enviar os homens de volta a casa. Se isto não der em nada, da próxima vez vai ser ainda mais difícil preparar as armas de guerra.
— Se os enviarmos para casa, viverão mais um ano para fazer uma colheita, para serem pais, para trabalharem nos seus ofícios. — O tom de Bridei era calmo. Fora bem treinado na arte de ocultar o que sentia. — Se avançarmos e o nosso grande empreendimento falhar, quantos regressarão inteiros à sua aldeia, à sua fazenda, ao salão do seu chefe tribal? É possível que as forças que reunimos, por mais impressionantes que sejam, não cheguem para cumprir os objetivos.
— Temos o apoio dos Caitt — lembrou Aniel. — Umbrig prometeu uma força considerável, e sabem bem qual a sua reputação.
— Começo a lamentar não ter pedido a Alpin, de Briar Wood, o seu empenho com homens armados, em vez de ter limitado os meus termos à garantia de tréguas — lastimou-se Bridei. — Agora é demasiado tarde, a menos que o grupo de Faolan regressasse depressa. Apenas podemos esperar que o acordo tenha sido assinado. Se adiássemos o ataque até ao próximo ano, ou até ao ano seguinte, teríamos tempo de garantir ajuda mais prática desse quadrante. Por essa altura, queiram os deuses, já Ana terá dado um filho a Alpin.
— Falei com Ged, esta manhã — disse Talorgen. — Com Morleo, também. Nenhum deles ficou satisfeito por faltar a esta reunião, mas frisei-lhes que alguém teria de manter Drust, o Javali, e seus lacaios ocupados enquanto falávamos em privado. Julgo que os levaram a pescar. Ged está de acordo em que avancemos como planeado. Acredita que o entusiasmo dos homens é a nossa maior valia e que um atraso tornaria difícil o alcançar da mesma disposição. Morleo foi mais cauteloso, mas acredita que somos em número suficiente.
— Qualquer que seja o entusiasmo, não desejo levá-los à morte certa — contrapôs Bridei. — Conhecemos os pontos estratégicos. Ponderamo-os bastante durante o longo período da nossa preparação. Agora precisamos de algo mais, algo que nos guie para além do nosso conhecimento de riscos e oportunidades. Talvez Broichan seja quem melhor nos possa aconselhar.
Olharam para o druida, uma figura alta e pálida nas suas vestes escuras. Permanecera invulgarmente calado ao longo do debate.
— Devia ser lançado um augúrio. — A voz de Broichan, sempre a mais grave e elevada no Monte Branco, parecia quase hesitante naquele dia. Só por si, esse fato sugeria presságios menos favoráveis. — Devemos buscar a sabedoria dos deuses. Até agora, a sua orientação levou-nos a este conflito. A luz do Guardião das Chamas brilhou sobre Bridei e sobre toda a empresa. É difícil de acreditar que a sua vontade mude de direção só porque o rei de Circinn não tem coragem de nos acompanhar.
— Podes lançar as varas de vidoeiro aqui? — perguntou-lhe Bridei. — Dessa forma, todos nós poderemos observar o padrão que vão assumir e testemunhar a tua interpretação de imediato.
Broichan demorou alguns momentos a responder. Os restantes anuíam, pois tal augúrio geralmente representava uma forma poderosa de compreender a intenção do Guardião das Chamas e d'A Que Brilha, cujos desejos tinham orientado os passos dos Priteni durante toda a sua longa história.
— Agora não — respondeu o druida. — É uma questão demasiado importante para ser determinada por apenas um vidente, mesmo sendo ele druida do rei. É melhor que seja lançado sob o olhar d'A Que Brilha, com a presença de Fola. Acredito que a deusa mostre com mais clareza o caminho a seguir, se a sua sacerdotisa principal tomar parte no ritual. Depois da ceia, quando Drust, o Javali, estiver ocupado com o melhor hidromel e com a mais bela música do Monte Branco, lançaremos as varas no pátio superior. Esperemos que os deuses nos mostrem respostas claras, pois precisamos delas com urgência.
As nuvens cruzavam o rosto brilhante d'A Que Brilha, obscurecendo o padrão lançado sobre a mesa de pedra. A deusa esforçava o druida e a mulher sábia até ao limite das suas vastas capacidades. Broichan servira como druida pessoal de dois reis e era conhecido por todos os territórios dos Priteni como sendo sábio, competente e extremamente poderoso. Fola liderava a escola de Banmerren, onde as mulheres aprendiam tudo o que precisavam para servir A Que Brilha como sacerdotisas. Era inteligente, discreta e reputada pela honestidade inabalável. Se aqueles dois velhos amigos, entre eles, não conseguissem ler uma mensagem dos deuses, teria de se partir do princípio de que as deidades recusavam deliberadamente a sua sabedoria.
Tuala já olhara para o padrão e formara a sua própria opinião quanto ao significado. Precisara apenas de um momento. Era algo para o qual possuía uma habilidade natural, semelhante à facilidade com que via o futuro: as respostas pareciam surgir-lhe completamente formadas na mente, antes mesmo de elaborar as questões. Manteve o silêncio. Mais tarde, quando estivesse sozinha com Bridei, iria transmitir-lhe o que os deuses tinham dito.
Um grupo seleto observou Broichan e Fola rodearem a mesa, olhando com atenção para a disposição das varas. Cada pequeno ramo de vidoeiro estava entalhado com símbolos antigos, tendo estes uma série de possíveis significados. Cada lançamento oferecia uma série de interpretações possíveis. A verdadeira habilidade do vidente consistia na identificação da que mais se adequava à pergunta colocada. Os deuses de Fortriu eram criaturas complexas e os conselhos que ofereciam raras vezes assumiam uma forma simples e clara.
Fola trouxera a sua assistente, Derila. Fora um acaso feliz que ambas se encontrassem já presentes no Monte Branco. Para além delas, do druida, de Tuala e do próprio Bridei, os únicos presentes eram Garth, o guarda-costas de Bridei, e Wid, o velho estudioso, que se apoiava no bordão enquanto olhava com esforço para as varas, à luz irregular. Wid nunca dissera ser um canal da voz dos deuses. A sua perícia tinha a ver com capacidades mais mundanas, tais como a leitura do olhar e dos gestos dos homens e a interpretação dos silêncios entre as palavras.
Tanto Bridei como Tuala tinham aprendido com ele. A seu tempo, ensinaria também Derelei, que passava agora parte das tardes na companhia de Broichan, e que tinha por hábito adormecer à noite a trautear sozinho, o que instava as sombras a dançar de forma estranha aos cantos, e fazia aparecer sapos do cesto da madeira.
— É bastante obscuro — disse Fola. — Segundo a minha interpretação, vejo um par de caminhos, cada um deles que volta a dividir-se. Por minha fé, não consigo decidir qual o predominante. Só vejo cães e pássaros. Não há exércitos à vista. O que dizes, velho amigo?
O luar concedera uma palidez fantasmagórica ao rosto de Broichan. Tuala conseguia discernir as rugas, mais do que as prováveis num homem da idade do druida, que ainda não era velho.
— Vejo morte, neste aqui — indicou. — Mas isso seria de esperar. A nossa questão trata de guerra, e as guerras vencem-se com a perda de vidas. Concordo, Fola, parecem ver-se pássaros ao fundo. A águia estende-se de oriente para ocidente. Isso só pode ser visto como sendo um sinal positivo. A sombra está atrás dela. A frente... à frente temos uma série de caminhos e aí a mensagem transforma-se num desafio.
— Talvez seja caótico simplesmente por as guerras o serem sempre.
— Fora Derila, a jovem sacerdotisa, quem falara. Subira rapidamente entre as mulheres sábias de Fola e era respeitada pela sua erudição.
— Vejo o sol e a lua a ocidente. Apesar de a águia estar cercada por estas outras varas, vejo essa disposição como um sinal de que tanto o Guardião das Chamas como A Que Brilha favorecem um avanço contra os Celtas.
— Concordo com a tua interpretação, Derila. — Bridei aproximou-se para examinar o padrão com mais atenção. — Mas não vejo nada que nos diga se o empreendimento deverá ter lugar agora, ou mais tarde. — Lançou um olhar a Tuala sobre o ombro. Não lhe pediria que comentasse.
— Tuala — disse Fola. — Estando entre amigos, não nos poderás dar a tua opinião? És jovem e arguta. Talvez vejas algo que nos escapa.
Broichan abriu a boca, voltando a fechá-la com a força de uma armadilha.
— Estou muito próxima — disse Tuala, reprimindo um arrepio. Manteve a voz calma, pois aprendera com a Rainha Rhian a dominar o tom e a expressão. — Qual a esposa, concedida que fosse tal oportunidade, não se pronunciaria de modo a manter o marido em casa, longe do perigo? Vocês são peritos. Talvez apenas precisem de mais tempo para pensar.
— Não há tempo! — disse Broichan, com brusquidão. A irritação mostrada não era habitual e Bridei fitou-o, surpreendido.
— Temos esta noite, pelo menos — disse o rei calmamente. — Se não há mais respostas a serem encontradas aqui, então que cada um de nós procure a sabedoria dos deuses sozinho. Veremos o que nos surge. Amanhã, depois de nos voltarmos a encontrar, tomarei a minha decisão.
Mais tarde, já sozinhos, Tuala contou a Bridei o que vira: um sinal claro d'A Que Brilha de que deveria avançar de imediato e, em contrapartida, a referência inegável a um risco maior do que poderiam imaginar, caso o fizesse.
— Havia qualquer coisa oculta — disse, em frente ao lume, nos seus aposentos privados —, algo que não era para os nossos olhos. Talvez ainda esteja oculto dos próprios deuses. Seja o que for, é um risco que vai além dos perigos inerentes a um conflito armado. Gostava que pudesses levar Faolan contigo.
— Julgas que esse sinal representa perigo para a minha pessoa? É preferível ao tipo de perigo que poderá afligir as minhas forças. Uma grande tempestade, talvez, ou uma praga, ou a fuga de informações essenciais ao nosso inimigo.
— Não fiques tão contente — replicou Tuala, com um tom seco. — Podes não te preocupar com a tua segurança, mas outros há que estimam bastante a tua vida.
— Se julgasse que isso traria o ocidente de volta a Fortriu — declarou Bridei —, daria de bom grado a minha vida.
— Sem ti, eles não terão sucesso — disse Tuala. — És o seu coração, Bridei. És a Espada de Fortriu. Sei que existem outros líderes fortes, homens que te poderiam substituir, Carnach, em especial. Mas é a ti que estes homens adoram. É a ti que vão seguir até à morte. A deusa colocou-te perante um teste difícil. Deseja que vás de encontro ao perigo. Ao fazê-lo, podes recuperar os nossos territórios perdidos, ou poderás perder tudo e ser recordado como um rei de cinco belos Verões. Não podia dizê-lo em frente dos outros, mas parece-me que as varas apresentaram dois caminhos possíveis, e ambos começam da mesma forma: com um movimento para ocidente no fim do Verão. Fizeste a pergunta errada aos deuses. Não te apresentaram alternativas para a data da tua empresa, apenas te deram a saber que, antes que as folhas caiam dos carvalhos, irás triunfar, ou irás morrer.
A lua cresceu e voltou a minguar. Os dias voavam, todos iguais. A cada alvorada, Ana percebia com mágoa que o casamento com Alpin estava um dia mais próximo. Agradecia à deusa cada dia em que o druida voltava a não chegar. Rezava para que nunca aparecesse.
Alpin tentava fazê-la sentir-se em casa. Oferecia-lhe presentes, tomava com ela o pequeno-almoço todas as manhãs e fez um esforço por moderar a linguagem, algo nem sempre bem sucedido. Ana tentou ocultar o fato de que o toque dele ainda a gelava e que as suas conversas a enfadavam ou ofendiam. Agüentou os seus beijos com uma determinação severa, desviando o rosto para que não lhe chegassem à boca. Escutou com paciência os relatos contínuos sobre as caçadas a veados imponentes e as derrotas infligidas a inimigos ferozes. Comeu frugalmente das refeições copiosas e fez por melhorar o conforto da sala de costura e dos seus próprios aposentos. Seria essencial manter um espaço privado depois de casar. Sem um refúgio de Alpin, decerto ensandeceria. Decidiu esquecer Drustan e Deord e todo esse assunto, e aproveitar ao máximo as coisas.
Não tivera oportunidade de falar a sós com Faolan. Já só o via à mesa, durante a ceia, e, uma vez que Alpin ameaçara qualquer homem que se limitasse a olhá-la, Ana esforçou-se por evitar o olhar do seu bardo. Até então, ainda não lhe fora ordenado que cantasse. Começou a pensar que Alpin poderia tê-lo esquecido e ficou satisfeita, embora, se possível, gostasse de uma oportunidade de procurar os conselhos de Faolan. Tornara-se um amigo, durante a viagem. Sabia que poderia confiar nele. Imaginou que, em Briar Wood, lhe fossem faltar os amigos. E queria perguntar-lhe sobre Breakstone Hollow.
Tentou esquecer a lamentável investida como espiã e respectiva conclusão perturbante. Havia outras coisas para mantê-la ocupada. Era preciso fazer um vestido de casamento, a par de outros trajes para si própria e uma nova túnica elegante para o futuro marido, com uma bainha bordada de cães, a qual Ana começara a fazer com as próprias mãos. Após ter completado a veste do bebê, Ludha fazia o trabalho delicado no vestido de casamento. A expressão nos olhos da criada quando lhe entregou a peça de roupa minúscula e maravilhosamente trabalhada disse a Ana, sem qualquer necessidade de palavras, que Ludha entendia a ambivalência sentida pela ama em relação ao casamento iminente.
Os pássaros continuavam a surgir. Com eles vinha uma série de pequenas oferendas: uma flor delicada, uma pena cinzenta, fios de lã de um cobertor, entrançados com delicadeza em forma de anel. Ana resistiu à tentação de enviar algo em troca. Aquele homem era um assassino e ela jurara manter-se afastada do assunto. Por vezes, a gralha, o cruza-bico ou a carriça limitavam-se a entrar e a ficar empoleirados no peitoril da janela ou nas costas da cadeira, e observavam-na durante algum tempo com os olhos brilhantes. Em certas alturas, quando Ludha se encontrava ausente, Ana dava consigo a falar com as visitas e obrigava-se a parar, pois sentia que tais conversas eram o mesmo que estar a falar com Drustan, e que estaria a brincar com o fogo, se o fizesse.
O desenho da túnica de casamento de Alpin não saía bem. Ana executou uma série de amostras em pequenos quadrados de linho, a fim de aperfeiçoar o motivo com o cão, mas os pontos não fluíam e os pequenos sabujos saíam-lhe repelentes. Ludha observava e mantinha-se calada, embora fosse óbvio que ansiava poder ajudar. Aquela noiva oferecera-se para fazer a roupa do marido com as próprias mãos. O simbolismo presente no gesto era bastante claro e Ana não podia falhar na sua tarefa. Com severidade, continuou a produzir um desenho medíocre atrás do outro até que, numa tarde quente um ciclo da lua depois de ter chegado a Briar Wood, ela e Ludha levaram o seu trabalho para um pequeno terraço reservado, no nível superior da fortaleza. Era um lugar cujo acesso se fazia por um lance de escadas estreito e íngreme, cuja natureza implicava que as mulheres se afastassem do local, apesar da atração proporcionada pela vista das árvores e pelo espaço abrigado e solarengo onde poderiam trabalhar e falar.
Instalaram-se com um silêncio confortável, cada uma reservando para si e para o cesto de lavoures um banco de pedra. Podia ouvir-se as canções de uma miríade de pássaros, vindas das profundezas de Briar Wood, do outro lado das muralhas. Ludha começou a trautear baixinho, uma melodia que Ana reconheceu como sendo uma narrativa de amantes há muito separados e reunidos por fim. Não havia dúvida que a rapariga pensava em Foldec, o seu arqueiro ausente. Quando Ludha voltou ao refrão, Ana acompanhou-a, cantando em voz baixa. Ludha sorriu com prazer e atacou outra estrofe.
Durante algum tempo, foi possível esquecer tudo: o casamento, a perspectiva terrível de partilhar a cama de Alpin, o futuro ao lado daquele homem, na companhia dos seus amigos rudes. Drustan e a sua maleita, o assassinato da inocente, o encarceramento atrás de muralhas de pedra e grades de ferro. Bridei e o tratado crucial. Faolan, cuja segurança não lhe saía da mente. Faolan, com quem estava proibida de falar sozinha. Ana continuou a cantar e, enquanto o fazia, as mãos trabalhavam com a agulha e a linha e criou mais um pequeno motivo noutro pedaço de tecido. Desta vez, a imagem não era a de um cão. Os pontos eram vermelhos e castanhos-escuros e, quando a canção e o bordado foram concluídos, a criatura de olhos brilhantes que a fitava do linho era um cruza-bico com uma madeixa de cabelo ruivo no bico. Ana mirou-o, chocada consigo própria. Quando Ludha olhou para ela, o seu instinto foi enfiar o pequeno quadrado no cesto, escondê-lo como se fosse uma prova incriminatória. Reprimiu o impulso. Não tinha de se sentir culpada. Não havia qualquer motivo para tal.
— Que belo desenho! — exclamou Ludha, que se aproximou para ver. — Ficava uma maravilha numa camisa de criança. Podia ficar no peito e acompanhar o vermelho do remate.
— Mm — disse Ana à cautela, escolhendo uma linha mais clara para fazer a bainha das extremidades da criação minúscula. Não estava concentrada. A mente pregava-lhe partidas arriscadas, pois a criança que imaginara com essa pequena camisa tinha cabelo ruivo flamejante e olhos brilhantes como estrelas. — Devia estar a fazer cães, mas não me saem bem. E o tempo está a passar, Ludha. Está a passar muito depressa. O druida pode chegar a qualquer momento.
— O pássaro é uma maravilha — disse Ludha em voz baixa.
— Tens um grande dom, minha senhora. Posso mostrar-te uma coisa em que tenho vindo a trabalhar?
— Por favor.
Ludha tirou do cesto uma faixa de tecido meticulosamente dobrada.
— Fiz isto à noite, à luz das velas. É claro que não tens de usar o meu desenho, mas pensei que pudesse ajudar. Sei que não me compete, mas...
E lá estava, o desenho do cão, executado na perfeição e muito bonito, com uma regularidade nobre que seria exatamente o que Alpin desejaria para representar o símbolo do clã. Espirais e tracejados ligavam os pequenos animais, formando uma guarnição equilibrada e fluida. Era apenas uma amostra, dois cães, três elos, mas era óbvio como ficaria bem no tecido vermelho da túnica nova do noivo.
Ana suspirou.
— Espero que não fiques ofendida, minha senhora, é só... vi que andavas incomodada com isto. Às vezes acontece-me. Sei que consigo fazer uma coisa, mas não sou capaz de começar.
Ana sorriu.
— Não estou ofendida, sinto-me muito grata, Ludha. Se me deixares usar o teu desenho, começo a trabalhar na guarnição amanhã.
Ludha aquiesceu.
— Sabes que há três pássaros? — aventou, enquanto observava a agulha de Ana atravessar o quadrado minúsculo. — Podias... isto é, se quisesses...
— Mm — disse Ana, pensando que era bom que estivessem as duas sozinhas naquela zona remota da fortaleza de Alpin. — É para meu divertimento, apenas, claro está. Sabes que, com as coisas como estão, um desenho destes nunca poderia surgir na roupa de uma criança de Briar Wood.
— Não, minha senhora. Embora seja uma pena, não é? — Depois, quando Ana completou a bainha e cortou o fio com os dentes, perguntou: — Conheces a canção do Grande Fergal, que era uma espécie de gigante, e de como ele domou o Dragão Monstruoso?
— Costumava cantá-la com a minha irmã, há muito tempo. Começa, e vamos ver aquilo de que me lembro.
Com as canções, com o calor e a privacidade do terraço, a mente de Ana acalmou-se e as mãos começaram a executar um segundo quadrado, desta vez em tons de preto e cinzento. Para o fim da terceira balada, a história de uma rapariga que se apaixonou por um sapo, sentiu um arrepio na espinha e a agulha imobilizou-se. Olhou para Ludha, imóvel no banco oposto. Silenciaram as vozes, deixando apenas a do terceiro cantor, cuja versão mais grave e hesitante de «A dama do lago» chegava até elas de sob o piso de lajes do seu santuário, o que parecia impossível. Quando pararam de cantar, a voz prosseguiu mais um pouco — «E ela suspirou, que pena para mim! O meu amor jaz nas trevas.» — Depois, quando o cantor se apercebeu que era o único que continuava, também ele se silenciou repentinamente.
Ana pigarreou. Ludha tinha as mãos a tapar a boca, como se demasiado chocada para falar. Rapidamente, Ana calculou a posição dos vários aposentos em Briar Wood e o movimento do sol. Olhou mais uma vez sobre a muralha e viu, enquadrada pelos ramos altos dos ulmeiros, uma elevação coroada por um único carvalho majestoso. Pássaros alçavam vôo e pousavam na copa ampla. Engoliu em seco.
— Ludha? — disse, num murmúrio.
— Mm?
— Quais os aposentos que estão por baixo deste terraço?
— Somente arrecadações, minha senhora. Uma parte restrita da casa. E...
— E os aposentos de Deord. Mesmo por baixo de nós. — Tinha de ser. Mesmo que a rápida estimativa da distância não o tivesse deixado claro, sabia de quem era aquela voz, uma voz que ouvia todas as noites em sonhos. O telhado gradeado da prisão de Drustan deveria ficar abaixo delas, para oeste, oculto pela muralha daquele lado do terraço. A divisão onde dormiam devia estar diretamente por baixo delas. Um qualquer pormenor da construção fazia com que fosse possível ouvir claramente, mesmo com a diferença considerável de altura. O coração de Ana incomodava-a, batendo como se tivesse acabado uma corrida. Sentia as faces afogueadas. O bom senso dizia com nitidez, Arruma as coisas e vai-te embora. Sai daqui em silêncio. Nas mãos tinha ainda o pequeno quadrado onde a forma da gralha começara a ser bordada, a bela plumagem brilhante com o seu melhor fio de seda. Afagou a imagem do pássaro com um dedo que não se encontrava tão firme como deveria.
— Minha senhora! — silvou Ludha, abanando a cabeça na direção dos degraus. Ficara pálida, o medo estampado nos olhos.
— Ainda não, Ludha — disse Ana. — Estaremos em segurança por mais algum tempo. Vamos pelo menos acabar a canção, e reunir Linia com o seu amor verrugoso. Onde é que nós íamos?
— «Uma bela manhã ela se pôs a caminho...» — Ludha parecia cantar por entre dentes cerrados, mas recomeçara o trabalho e cosia com uma determinação severa.
— «De ramo em ramo as aves a esvoaçar...» — cantou Ana, sem saber o motivo do nó na garganta e das lágrimas nos olhos.
— «E o dedo espetou na ponta de um espinho...» — fez-se ouvir a voz hesitante lá em baixo, não um tom sonoro e bem colocado, como o de Faolan, mas o de um homem quase esquecido de como fazer música, tanto era o tempo passado desde que sentira vontade ou tivera oportunidade.
— «E à vista de todos o sangue foi espalhar» — cantaram as três vozes em coro, unindo-se numa melodia doce que ecoou pelo terraço solarengo. A balada prosseguiu e narrou a forma como Linia voltou a conquistar o amante graças a uma dose de abnegação e a um pequeno feitiço caseiro. Enquanto cantavam, Ana identificou o local onde a terceira voz era mais audível, uma racha entre as lajes e a muralha interior, e, quando terminaram, foi ajoelhar-se junto da abertura estreita.
— Drustan? — perguntou em voz baixa. Ludha fitava-a, impressionada ou aterrada, Ana não o sabia dizer.
— Ana? — O tom era inseguro. Talvez ele acreditasse que, sabendo que ali estava, a jovem fugiria para nunca mais voltar.
— Onde estás?
Uma pausa. — Onde poderia estar, se não aqui? — respondeu.
— Onde, exatamente? Deord está aí?
— Estou no nosso quarto. Ouvi-te a cantar. E a falar. Lamento se te ofendi...
— E Deord?
— Foi buscar água. Darei pelo seu regresso. O portão range. Então, de repente, Ana ficou sem palavras. A única questão na sua mente era, Foste mesmo tu que os mataste? Era uma pergunta que não podia ser feita, não de forma tão direta. Não podia ser feita de todo.
— Estás bem? — sussurrou Drustan. — Deord contou-me que Alpin ficou zangado. Que poderia ter-te magoado.
— Deord fez um bom trabalho a evitá-lo — conseguiu dizer —, embora o teu irmão já tivesse agredido a minha criada. O teu guarda é um homem muito capaz. Alpin tinha razão para estar zangado comigo, mas não com Ludha. Fui eu quem quebrou uma regra. Mais do que uma. Contou-me a tua história, Drustan.
A declaração não obteve resposta. Ao olhar para Ludha, Ana surpreendeu uma expressão que tinha mais de fascínio do que de horror. Já fora longe de mais. Teria de esperar que a criada fosse de confiança.
— Contou-me uma coisa terrível, sobre o que aconteceu há tantos anos.
Mais silêncio.
— Drustan, fala comigo.
— O que posso dizer? — Era um tom abatido.
As lágrimas voltaram aos olhos de Ana. A verdade surgiu de repente, por mais que tentasse evitar.
— Creio que estou à espera que me digas que é mentira. Que não o fizeste. É algo em que não quero acreditar.
Foram precisos alguns instantes para que ele dissesse:
— Estás perturbada. Será melhor que não fales comigo. É a opinião de Deord.
Ana sentiu a raiva a crescer.
— Essa decisão é minha, não é de Deord, nem de mais ninguém. A não ser, é claro, que não queiras falar...
— Não quero deixar-te triste. Não desejo assustar-te. Foi um dia negro. Lançou sobre Briar Wood uma sombra que nunca será levantada.
O coração de Ana estava ainda acelerado. Obrigou-se a respirar fundo.
— Podes falar sobre isso? Contas-me? É verdade, o que Alpin disse?
— O que te contou o meu irmão?
Ana cerrou os dentes. Não queria dizer as palavras em voz alta.
— Ana? O que disse ele?
— Disse-me que... sofres de uma espécie de delírio. Que te acomete de tempos a tempos, e que nessas alturas ages como se estivesses insano. Disse que lhe mataste a esposa. Que tu... a levaste à morte.
— Um homem não mente sobre um assunto que lhe diz tanto ao coração. — O tom da voz perdera a expressão.
— O-o que estás a querer dizer, Drustan?
— Quem me dera poder dizer-te que o meu irmão está enganado. Mas não posso.
A jovem tinha o coração pesado como o chumbo. Fechou os olhos, incapaz de falar. Não fazia idéia por que motivo tudo aquilo lhe interessava tanto. Mal conhecia aquele homem. No entanto, parecia-lhe o mais duro dos golpes.
— Obrigada pela tua sinceridade — disse, após recobrar a voz. — Fico triste. Não acreditava que pudesse ser verdade. Não me pareces um... um...
— Monstro? Louco? Já me chamaram muito nomes, alguns bem piores do que esses. O meu irmão tratou-me melhor do que aquilo que merecia.
Ana ia guardando o trabalho, agulha e linho, no cesto de vime. No outro banco, Ludha fazia o mesmo. O silêncio prolongou-se.
— A tua canção foi como luz — ouviu-se o murmúrio de Drustan. — Obrigado. Já esquecera esses sons tão belos.
Ana reprimiu a vontade que sentia de fazer mais perguntas. Algo no seu íntimo continuava incapaz de aceitar a verdade sobre aquele prisioneiro, mesmo depois de ouvir a sua confissão. Não podia deixar que esses pensamentos suplantassem o bom senso.
— Temos de partir — disse-lhe a jovem. — Já é tarde e está a ficar frio, aqui em cima.
— Regressas? — A palavra soara triste, como se ele soubesse que a resposta seria não.
— E-eu... não sei — murmurou Ana, sentindo ódio da fraqueza que não lhe permitia conceder-lhe uma resposta firme, Não posso voltar.
— Admite. — A voz de Drustan alterara-se. Sugeria agora um desafio. — Diz-me a verdade. Não voltarás porque me desprezas. Porque tens medo de mim. Admite!
— Não é verdade! Não te desprezo! — Os olhos marejaram-se subitamente de lágrimas.
— Então voltas?
— E Deord? — Pelos deuses, por que não ficava de boca calada e se afastava como qualquer mulher de juízo faria?
— Por vezes está aqui, outras vezes vai até à casa. Tem de ir buscar o que faz falta. Se cantares, ficarei a saber que aí estás. Se eu falar, saberás que é seguro.
Ana olhou para a criada. Havia muito que dependia da lealdade da jovem aia. A rapariga aquiesceu brevemente.
— Em tempos — disse Ana ao seu interlocutor oculto —, uma amiga aconselhou-me a confiar no intelecto e não nas emoções. Foi um conselho assisado. Se o seguisse, dir-te-ia que não posso regressar aqui. O teu irmão prometeu castigar de forma rápida e cruel qualquer homem que sequer olhe para mim de um modo que ele não goste. Imagino o que pensaria deste nosso encontro. Repeti-lo seria insensato, arriscado e totalmente impróprio.
O silêncio indicava que Drustan aguardava algo mais.
— Virei, se puder, Drustan.
— Estarei à tua espera — replicou Drustan. — Adeus, Ana.
Nessa noite, Ana deu ao cruza-bico o seu retrato feito com finas sedas e recebeu em troca a oferta de uma pequena lasca de pedra, na qual, desenhado de forma tosca, estava o contorno de um coração. Se, até então, ela se recusara a admitir que o seu interesse por Drustan ia mais além da curiosidade, da compaixão e da necessidade de ver ser feita justiça, foi obrigada a fazê-lo no momento em que a ave deixou a oferenda na mesa do seu quarto. Ludha retirara-se para a noite. A criatura entrara pela janela vinda da escuridão da rua e aguardara a uma distância segura da vela que Ana colocasse a oferta debaixo da almofada.
Quando o pássaro saiu, Ana deitou-se na cama a pensar em Alpin, que a encostara à parede após a ceia e lhe dera um beijo descaradamente longo. Suportara-o, enquanto imaginava como seria se fosse outro o homem que a agarrava, alguém cujo beijo seria tão gentil quanto aquele era rude, tão terno quanto aquele era brutal. O abraço de Alpin gelava-a e assustava-a. Sabia que o outro beijo lhe lançaria um calor ardente pelo corpo, enfraquecendo-lhe os membros e acelerando-lhe o coração com o entusiasmo. Era algo que nunca viria a acontecer, o produto de sonhos insanos. Desejava-o como nunca desejara qualquer outra coisa na vida.
O druida tardava em chegar. Quando um ciclo lunar se transformou em dois, Ana reconheceu o atraso como sendo uma dádiva e iniciou uma espécie de dança delicada, uma dança com um parceiro invisível. Cada passo, cada movimento, estava cheio de perigos. Muitas vezes o ritmo era interrompido, pois Ana não podia fugir todos os dias para o pequeno terraço sem atrair atenções indesejadas. Quando lá se dirigia, com freqüência Drustan permanecia em silêncio, o que significava que Deord estava presente. Ana imaginou que Deord estivesse desconfiado, pois se alguma vez tivesse estado naquele quarto com pessoas a conversarem lá em cima, decerto teria conhecimento do segredo da construção. Mas o guarda especial de Alpin ia e vinha com as bandejas da ceia e mantinha os olhos tranqüilos afastados da futura noiva do chefe tribal. Deord nunca deu a entender que algo fora do normal se passava e, graças a isso, o coração de Ana batia com mais calma.
Os dias da jovem giravam em redor daqueles momentos breves, os momentos breves e mágicos em que podia falar com Drustan, podia murmurar-lhe ao ouvido escondido e agachar-se junto à parede para escutar as respostas doces. Terminou o segundo quadrado de tecido e enviou-o pela gralha, quando o pássaro a visitou. Chegou a planear fazer um terceiro, mas não o começou, pois não tinha as cores certas para reproduzir com exatidão a plumagem da ave menor. Além disso, tinha de acabar as roupas de casamento de Alpin e, agora que Ludha lhe dera o desenho, não havia desculpa para não prosseguir com o trabalho. Era essa a obra que tinha consigo na tarde em que Ludha se esqueceu de guardar uma determinada fita no cesto e foi obrigada a regressar à sala de costura.
Era a primeira vez que Ana estava sozinha com Drustan. Até então, tivera cuidado com o que lhe dizia. Não tinham comentado o encontro na floresta, nem o fato de ele e Deord terem forma de escapar ao encarceramento. Se Ludha desconfiara de algo estranho na forma como Ana se tornara tão rapidamente amiga do futuro cunhado, não o comentara. Muitas vezes, cantavam os três juntos e, ocasionalmente, trocavam velhas histórias e rimas de infância. Em dada ocasião, Ana perguntou a Drustan sobre os pássaros, como se tinham tornado tão próximos, como viviam em segurança numa casa cheia de gatos. A resposta foi enigmática. Era difícil interpretar as suas palavras. Ana contou-lhe um pouco sobre a infância passada nas Ilhas Pequenas, sobre como se tornara refém e como se sentira.
Com o avançar do Verão, as conversas que mantinham eram mais fluidas. A jovem perguntou-lhe sobre a infância, vindo a saber de um menino que muitas vezes estava sozinho, mas nunca solitário. Tinha as criaturas por companheiros, os sonhos por sustento. Vivera em Briar Wood com o irmão e a irmã até aos sete anos. Depois partira para ocidente, para a casa do avô, uma casa que mais tarde viera a pertencer ao próprio Drustan, antes de ser encarcerado.
— É um lugar que se chama Vale dos Sonhos — disse-lhe com um orgulho tímido. — É banhado por uma luz suave, que não se vê em mais nenhum local do território Caitt. É como uma bênção de outro mundo. Sempre pensei que naqueles montes protetores, naquela água plácida, se encontrava o toque dos deuses. Existem dois lagos perto de minha casa. Tinha os meus próprios nomes para eles, nomes que lhes dera logo quando o meu avô me levara com ele.
— Quais eram os nomes?
— O primeiro lago, perto da casa, é cercado por vidoeiros trêmulos. Parece refletir um brilho superior ao do sol ou da lua, como se criasse o seu próprio fulgor. Chamei-lhe a Taça do Céu. O outro é um lugar onde a névoa se mantém ao de cima da água, mesmo durante o calor do dia. Tem plantas de grandes folhas à superfície, com flores brancas no Verão, e pássaros de pernas compridas entram e saem do vapor como se fossem visitas de outro plano. Esse lago era a Taça do Orvalho. Nomes de criança.
— Esses nomes pintam-me um quadro. Um dia, adorava ver o Vale dos Sonhos. Drustan, por que foste enviado para lá viver ainda tão jovem?
— Não havia lugar para mim em Briar Wood. Era uma vergonha para os meus pais. Os meus irmãos afastavam-se. O meu avô criou-me um lar.
Drustan perguntou sobre o casamento e Ana ofereceu respostas prudentes. Não sabia se a comoção de sentimentos no seu íntimo, o desejo de vê-lo, de tocá-lo, algo impossível e ridículo, era audível na sua voz. Pensou ouvir um eco desses sentimentos na voz de Drustan, mas Ana atribuiu-o ao desejo de companhia que o ajudasse a suportar os dias intermináveis do encarceramento.
Naquele dia, Ludha não estava presente e, de repente, Ana sentiu-se diferente.
— Drustan?
— Sim, Ana?
— Ludha foi à casa buscar uma coisa. Temos alguns momentos sozinhos.
Uma pausa.
— Alguns momentos mal chega para começar — disse a voz dele.
— Para encontrar as palavras com que começar.
— Eu sei — replicou Ana com doçura. Sentara-se nas lajes junto à base da muralha, os joelhos puxados para baixo da saia. Mesmo naquele dia de Verão, as pedras eram frias. Lá em baixo deveria ser gelado.
— Gostava de falar contigo devidamente. Gostava de poder ver-te.
— Isso não pode acontecer.
— Eu sei. Sei o que aconteceu aqui. Ouvi-o dos lábios de Alpin e dos teus. Creio... creio que gostaria de refazer o passado. Mas nem mesmo os deuses podem levar a cabo tal tarefa.
— Gostavas de nunca ter vindo para Briar Wood? Quem sabe ter casado com um homem das Ilhas Pequenas ou de Fortriu e nunca ter visto estes dois tristes irmãos dos Caitt?
— Não — garantiu-lhe Ana, abraçando-se em busca de conforto. — Não o desejo de todo. Apenas que o que aconteceu pudesse ser reparado. Sei que é uma tolice, mas ainda gostava de ouvir que o que me contaste não é verdade. Mas, mesmo que seja, nunca irei lamentar ter-te conhecido, Drustan. Se cometeste aquele ato, parece-me que já pagaste por ele. Parece-me que mudaste. Não acredito que o homem que conheço agora fosse capaz de tal ação. — Sentiu o rubor nas faces e ficou satisfeita por ele não poder vê-la.
— O que tenho para te oferecer é pobre — disse Drustan. — Se pudesse, dar-te-ia tesouros feitos de luz e de riso, de cor e de sombra, de vida e fôlego. Iria envolver-te num manto de luar e calçar-te com as ondas do mar. Eu... — A voz fraquejou. Ana permaneceu imóvel, enfeitiçada. — Tocava-te e despertaria a alegria — murmurou. — Soube-o assim que te vi, sozinha no rio furioso, no rosto uma máscara de terror e de coragem. Soube-o quando te vi adormecida junto ao teu pequeno fogo, com o corpo de outro homem a aquecer-te. Quis ser esse homem, abraçar-te como ele. Soube-o quando nos encontraste na floresta, no dia em que tinhas de saber o que eu fizera. Era uma esperança vã. Mesmo assim, não consegui matar esse desejo. Permanece em mim sempre que estou acordado. Acompanha-me em sonhos.
Ana não era capaz de falar.
— A tua amiga vai regressar em breve — indicou Drustan. — Não desperdices este tempo com silêncio. Fala comigo. Diz alguma coisa. Deixa-me ouvir a tua voz.
A mente de Ana fervilhava com tudo o que lhe queria dizer, as mensagens do coração, mas os hábitos inculcados por uma vida passada em casas reais custavam a desaparecer. Não podia dizer o que sentia. Estava prometida a outro homem e havia a questão do tratado.
— Eu... como me viste, em Breaking Ford? — perguntou. — A gralha estava lá, mas...
— Em determinadas alturas vejo através de olhos diferentes — respondeu. — Estamos unidos, eu e os meus amigos. Ajudamo-nos mutuamente. Sem eles, sem os meus pequeninos, teria perecido neste lugar, mesmo com a atenção paciente de Deord. Envio-os e eles permitem-me viajar para longe da minha jaula.
— Os teus pássaros têm nome? — Pelos deuses, estava a desperdiçar tempo precioso.
— Esperança — respondeu Drustan. — Chama. Ânimo.
— É lindo, Drustan.
— Fazem parte de mim. E tu és parte de mim, Ana. Não quero que cases com o meu irmão.
A jovem arquejou.
— Não devias dizer tais coisas — alertou-o. — O casamento firma um tratado. Foi por isso que o rei Bridei me enviou. Não tenho escolha.
— Não cases com ele, Ana. — O tom tornara-se mais duro e transmitia um aviso. — Se fosses um pássaro, diria para voares para longe enquanto podes.
— Drustan, estou aqui sentada com a túnica de casamento do teu irmão a meu lado. Vem um druida a caminho para realizar a cerimônia e registrar o tratado por escrito. Se tivesse chegado quando devia, já estaria casada. Alpin aceitou todas as condições exigidas pelo rei. Não posso mudar esse fato.
— É isso que queres? Ver a tua luz extinta, o teu coração cingido, a tua liberdade perdida? Casar com um homem que não vais conseguir amar?
Ana fechou os olhos.
— Aquilo que eu quero nada tem a ver com isto — disse. — Sempre soube que este seria o meu futuro. O sangue que trago comigo é demasiado valioso para me permitir liberdade de escolha. Uma mulher de linhagem real não casa por amor. — A voz vacilou-lhe com a última palavra. — Creio que estou a ouvir Ludha a regressar. Temos de parar com este assunto.
— Ludha continua na sala de costura, à procura da fita — replicou Drustan, calmamente. — Há tempo para me dizeres o que pensas, o que sentes. Ainda há tempo para me contares a verdade.
— Como podes saber... Oh! Um pássaro. Isso deixa-me transtornada. A tua carriça tem pousado na minha janela e vê-me a despir, à noite. Observa-me enquanto adormeço. O teu cruza-bico tem recebido o meu despertar com ofertas. Parece que não consigo fugir à tua vigília, onde quer que esteja, faça o que fizer. Isso... é outra forma de cativeiro.
— Não é verdade, Ana. Nunca te observaria, se tal te fizesse infeliz. Apenas quando há necessidade. Dizes que não gostarias de te despir à minha frente?
— Eu... — A questão ousada, apresentada com um tom de extrema delicadeza, inflamou-lhe cada parte do seu ser. Sentiu o sangue acorrer-lhe à face e não foi capaz de responder.
— Não te agradaria?
— Não posso responder a essa pergunta, Drustan. É... indecorosa. Existem inúmeras razões para não prosseguir uma conversa sobre tais assuntos contigo, mesmo partindo do princípio de que o desejaria. — Respirou fundo, obrigando-se a calar-se, antes de dizer algo profundamente inadequado. — Desejo fazer-te uma pergunta. Verás que ainda te será mais difícil responder. Mas, como falas em honestidade, preciso que o sejas comigo.
— Nunca te menti. Sei que desejas que o tivesse feito.
— Então conta-me o que aconteceu naquele dia, quando Erisa morreu. Diz-me por que fizeste o que fizeste.
Houve um silêncio, ao que Drustan indagou:
— Se responder com sinceridade à tua pergunta, responderás depois à minha?
— Parece-me justo — replicou Ana, fremente com a antecipação, pois estava prestes a ouvir a verdade, toda a verdade por fim. Não sabia se tudo acabaria por fazer sentido, ou se apenas serviria para lhe partir o coração. — Temos de ser rápidos. Ludha não vai precisar da tarde toda para ir buscar uma fita. Sei que é difícil para ti. Conta-me apenas os fatos.
Ouviu Drustan respirar fundo, soltando depois um suspiro entrecortado.
— Não sei por onde começar — disse.
— Começa no dia em que aconteceu e diz-me o que fizeste. — O coração de Ana martelava-lhe no peito. A verdade era que estava a pedir um relato em primeira-mão de um assassino. Era um acordo profundamente injusto.
— Primeiro, devo explicar que... quando lá entro, nem sempre me recordo das coisas. Por vezes tenho uma recordação clara, mas outras vezes perde-se e nunca recupero essa memória.
— A que te referes? Não entendo. Entras onde?
— No outro sítio.
— Que sítio?
— Para onde vou, quando... o delírio, como lhe chama o meu irmão... se apodera de mim. Está errado ao chamar-lhe isso. Não diria que é um delírio, mas uma jornada. Mesmo assim, seja o que for, fico à sua mercê. Se me deixa louco, como as pessoas dizem, sou o último a poder argumentar o contrário, pois tudo o que digo tem de ser colocado em dúvida.
— Como acontece? O que sentes? Seguiu-se um silêncio longo.
— Drustan? Podes contar-me?
— É como se ganhasse vida — disse, num murmúrio. — É como acordar de um sono longo. É como água fresca para um homem a morrer de sede. E como o primeiro toque do sol. É como ser libertado. Mas fez-me realizar um ato terrível. Torna-me perigoso. Dizem que voltaria a matar se fosse libertado. Devo acreditar neles. Por que mentiriam sobre uma coisa dessas?
Ana sentia-se profundamente confusa.
— Mas Deord libertou-te — replicou. — Quando te vi estavas no bosque, sem correntes. — Quando te vi e pensei que eras o homem mais belo do mundo.
— Deord é muito forte e rápido — argumentou Drustan. — Arrisca-se muito. Sabe que perderia o juízo de vez, se não tivesse estes breves momentos de liberdade. Ele espera que eu regresse ao interior e, ao longo de sete anos, nunca o desiludi. Ele sabe o que é ser um prisioneiro. Sem ele, há muito que o desespero se teria apoderado de mim.
— Eu... — Ana obrigou-se a esperar e a recuperar a calma. — Não vou fingir que entendi tudo o que acabaste de dizer, Drustan. Perturba-me e deixa-me perplexa. Lembras-te do que se passou no dia em que ela morreu? Podes narrar-me o que aconteceu?
— Chegara da minha casa, a ocidente, de visita ao meu irmão. Estava na floresta. Saí de manhã. Havia uma neblina, que envolvia as árvores e entrava nos covis dos lobos e dos texugos, que velava o caminho das martas e das lebres. Estávamos quase no Inverno. Ela estava a gritar. A correr. Caiu. Ausentei-me. Quando regressei da jornada, tinham encontrado o seu corpo.
Respira com calma, disse Ana para consigo.
— Foi isso que te disseram quando regressaste? Apenas isso?
— É aquilo de que me lembro.
— E antes? Por que estava Erisa a gritar? Alpin disse que tu... — não, não era capaz de dizê-lo.
— O meu irmão disse que levei a sua esposa à morte. Que fiz com que ela caísse. Foi esse o relato dele.
— E qual é o teu relato, Drustan? É isso que eu quero e parece que te é difícil apresentá-lo em palavras simples.
— Imagino que a narrativa do meu irmão seja verdadeira.
— Que estás a dizer-me? Que não te lembras do que aconteceu?
— Algures dentro de Ana, despertara uma esperança impossível.
— Estava no outro sítio. Aquilo de que me lembro é... diferente. Quando lá estou, não vejo da mesma forma. Não consigo explicá-lo com palavras que te façam sentido, ou a Alpin, ou a qualquer homem ou mulher que me pergunte. Não posso ter a certeza das minhas ações antes de ouvir os gritos de Erisa, antes de a ver fugir pela floresta. Não me lembro de a ter magoado. Mas há coisas de outras jornadas das quais não me lembro. Dizem que a matei. Dizem que a velha o viu e que ficou tão perturbada que pouco depois fugiu para a floresta. O que Alpin te contou é verdade.
Ana sentiu as lágrimas quentes correrem-lhe pelo rosto.
— Drustan — disse —, como podes fazer isto? Como podes dizer-me que queres... tocar-me, estar junto a mim, para logo a seguir dizeres que és demasiado perigoso para estar em liberdade? O que esperas que faça? Qual esperas que seja a minha reação?
— Não sei, Ana — respondeu gentilmente. — Talvez a forma como te ponho à prova seja mais um sinal da minha insanidade. Respondes agora à minha pergunta? Ouço o portão a ranger. Deord vem aí.
— Oh, pelos deuses, Drustan, como podes esperar que te responda, depois... Muito bem, a resposta é, se não estivesse prometida ao teu irmão, o que sugeriste iria agradar-me bastante, assim que me habituasse à idéia. Mas, uma vez que vou desposar Alpin, não posso sequer imaginar tal coisa, e muito menos prolongar a sua discussão. Temos de parar com isto. Adeus, Drustan.
— Adeus, minha luz.
Ana fechou os olhos. Era demasiado. Era muito difícil. Queria regressar ao Monte Branco e que tudo não passasse de um pesadelo. Ainda assim... o que lhe dissera era verdade. Assassino ou louco que fosse, nunca poderia desejar não ter conhecido Drustan, mesmo que tudo viesse a terminar em mágoa. Já não se conseguia imaginar realmente viva até ao momento em que o conhecera.
— Adeus, meu querido — murmurou Ana, num tom baixo o suficiente para que fosse impossível a Drustan ouvi-la. Depois levantou-se e regressou ao banco. Quando, pouco depois, Ludha subiu os degraus, a ama encontrava-se ocupada a bordar os pequenos cães na túnica nova do prometido. Se os olhos de Ana pareciam avermelhados, a criada não teceu qualquer comentário.

 

 


CAPÍTULO NOVE


O tempo estava ameno. A floresta estival adornava a fortaleza de Alpin com uma veste suave de inúmeros tons de verde e o líder de Briar Wood anunciou à ceia que, pela manhã, a sua casa ia caçar.
Faolan mantivera-se ocupado. A falta de comparência do druida concedera-lhe mais tempo para investigar do que o antecipado, ao longo do qual conquistara a confiança de vários membros da casa de Alpin. Garantiu que a harpa fosse difícil de reparar e fugiu à exigência de cantar, desenvolvendo uma tosse cavernosa, a qual foi atribuída à prolongada imersão na água fria de Breaking Ford. Passou muito tempo a escutar e ainda mais a pensar. Os habitantes de Briar Wood eram como avelãs: difíceis de partir e, mesmo então, pouco gratificantes. Faolan não se recordava de outra ocasião em que demorasse tanto a extrair informação de valor tão reduzido.
Ana estava infeliz, nervosa, irritável. Era visível no rosto da jovem e, devido ao olhar atento de Alpin e à garantia de punição de qualquer homem que chegasse sequer a olhar para ela com mais atenção, Faolan era incapaz de ajudá-la. A mesa da ceia, observando-a sem que fosse visto, Faolan deduziu que Ana estivesse a pedir a Alpin que fosse libertada da obrigação de acompanhar a caçada do dia seguinte. Deveria estar a dizer que os desportos sangrentos não eram a sua opção de passatempos ao ar livre, a explicar que outras tarefas a prendiam à casa. A amargura tomou conta de Faolan, quando viu Alpin a soltar uma gargalhada, a pousar a mão pesada no ombro delicado da futura esposa e a abanar a cabeça. Dizia-lhe que teria de acompanhá-los, ia gostar e, além do mais, que melhor oportunidade de apreciar a extensão do domínio do novo marido?
— Cuidado, amigo — aconselhou Gerdic do banco ao lado de Faolan. — Estás a espetar a faca no queijo como se ele estivesse prestes a atacar-te. Cuidado com os vossos dedos, companheiros, hoje o nosso bardo não está na melhor das disposições.
— Só tem uma disposição — comentou outro homem. — Carrancudo. É um celta típico.
Faolan não respondeu e a conversa dirigiu-se para outros assuntos, nomeadamente a caçada prevista. Haveria caça para a panela. Gerdic e os outros auxiliares da cozinha bem podiam esperar um dia de trabalho longo. Os guerreiros, sentados mais acima na mesa, trocavam teorias sobre o que poderia ser encontrado naquele início de estação. Veados não, com toda a certeza, mas os cães talvez farejassem um javali ou dois e, com a ajuda dos falcões, talvez se pudesse espantar galos silvestres, ou outras aves, embora não devessem ter grande carne nos ossos, naquela altura do ano.
Faolan fez grande alarde a fatiar queijo, a partir pão e a cortar uma cebola. Pelo canto do olho, viu o braço de Alpin rodear a cintura estreita de Ana e depois erguer a mão, a fim de tocar a curva do seio através da fina lã cinzenta da túnica da jovem. Uma mancha vermelha surgiu em cada face de Ana.
— Caçar, não é? — disse Gerdic, com um tom meditativo. — Imagino que não seja uma ocupação para bardos.
— Ah, ele vai fazer questão que eu vá. — O tom de Faolan era tão sombrio como a disposição. — Espera para veres. Não tarda nada vai chamar-me para que me ajoelhe e vai dizer-me que tem a generosidade de me incluir na expedição e que espera uma canção sobre a caçada quando regressarmos.
— Sshh — silvou Gerdic. — Não o deixes ouvir-te a falar assim, nem aos guerreiros dele.
— Ele não me ouve. E tu não vais repeti-lo. Gerdic olhou-o com nervosismo.
— Podes ter a certeza que não, contigo a olhar-me dessa maneira. Mas tem cuidado.
— Eu tenho.
— E se fizer o que disseste? Tens a harpa pronta?
— Não há mais nada que lhe possa fazer — comentou Faolan, com um tom acrimonioso. — Só tenho de me afastar do caminho das lanças para javalis, amanhã, e de usar esta faca com cuidado, esta noite, e pode ser que fique com dedos suficientes para tocar uma melodia ou duas sobre os feitos do nosso chefe, atrás do maior javali das terras do norte. Quanto à voz, isso já é outra questão.
— Faz um bom refrão — aconselhou Gerdic, a expressão séria. — Cria uma melodia daquelas que são fáceis de recordar, do tipo que não nos sai da cabeça, sabes? Assim, todos nós podemos acompanhar-te e ajudar-te.
Faolan esboçou o que parecia um sorriso.
— Obrigado — disse-lhe. — Vou precisar de toda a ajuda que conseguir encontrar.
Tudo fazia parte de um jogo bem treinado, é claro. Faolan executava as suas missões sem a ajuda de ninguém. Era mais simples dessa forma. Preferia confiar apenas em si próprio, o que minimizava os riscos. Se servisse o objetivo de agradar a Gerdic, o qual ocasionalmente deixava escapar pequenas informações que não poderiam ser obtidas noutro lugar, assumia um comportamento agradável. Como nessa noite era necessário ser um bardo, sê-lo-ia. Ana nunca teria imaginado a provação a que o submetera quando mentira de forma tão expedita na floresta. Faolan preferiria enfrentar nu e desarmado os guerreiros mais ferozes de Alpin a ser obrigado a tocar harpa perante um salão repleto. Seria como arrancar-lhe o coração. Precisaria de todo o seu vasto autocontrole para sobreviver à experiência com a máscara intacta. A culpa não era de Ana. Como poderia ela saber que tal exposição lhe escoriaria o próprio espírito? No Monte Branco, dera o seu melhor para se tornar uma criatura fria, uma ferramenta eficiente, um homem cuja única aliança era com o mestre que lhe oferecesse a mais pesada bolsa de prata. Com o passar dos anos, ele próprio viera a acreditar nessa personagem cuidadosamente inventada. A máscara protegera-o. Mantivera-o a salvo das recordações. A harpa iria trazê-las de volta, numa enxurrada.
Mas isso seria nessa noite. Antes, era a caçada, e uma oportunidade que teria de ser aproveitada. Encontrava-se fora da muralha, tinha um cavalo, só para si, dessa vez, e a natureza da caçada iria permitir-lhe afastar-se sem ser visto, caso agisse devidamente. Havia algo que ainda não investigara e o dia apresentava uma oportunidade para fazê-lo. Não podia regressar ao Monte Branco sem a certeza absoluta da lealdade de Alpin para com Bridei. Uma marca num pergaminho, uma promessa sob juramento, nada disso tinha valor se o homem que as tivesse feito não conhecesse a honra.
As estranhas disposições familiares de Alpin intrigavam Faolan e espicaçavam-lhe a desconfiança. Dois irmãos, duas propriedades. Um dos irmãos acusado de um crime horrendo e fechado para o resto da vida em condições decididamente bizarras. O outro irmão a controlar ambos os territórios, sendo que um deles com um porto estratégico. A situação levantava dúvidas e o comportamento de Alpin não ajudava a mitigá-las. Uma vez que nenhum dos elementos da casa estava disposto a falar sobre Drustan, Faolan teria de se dirigir à fonte.
E depois havia Deord. Um homem de Breakstone. Tal como ele próprio, um dos poucos sobreviventes do poço negro que era a Hollow. Se um homem conseguisse sair daquele sítio, tal como acontecera com Faolan, decerto a última ocupação que escolheria seria a de guarda de uma prisão. Foi meditando enquanto descia uma encosta íngreme por baixo de abetos imponentes, à medida que seguia o grupo de caça de Alpin. Diziam que o indivíduo lá estava há sete anos. Sete anos de recordações sombrias. Sete anos de pesadelos. Por que não se instalara Deord noutro local, com uma mulher com quem criar família? Por que não escolhera um ofício num lugar seguro, o mais afastado possível dos Uí Néill? Voltar a estar atrás das grades era a atitude de um louco. Bem, se o que se dizia era verdade, Deord guardava um louco. Talvez fossem uma boa companhia um para o outro.
Nesse dia, a floresta pregava as suas partidas. As narrativas que Faolan ouvira sugeriam presenças mais do que humanas, mais do que animais: criaturas de osso e escuridão, monstros de longas presas e braços estendidos, velhas ressequidas com pequenas bolsas de encantos perigosos, guerreiros tombados com armas mortíferas e invisíveis. Havia ainda as próprias árvores, os caminhos tortuosos e as névoas sobrenaturais. Quem ouvisse o povo a falar, poderia pensar que as próprias pedras tinham olhos, pernas e uma tendência para a maldade. Faolan pouco caso fazia dessas lendas, pois sabia bem como os medos dos homens se alimentavam a si próprios, criando um monstro poderoso a partir de um ruído no escuro, um demônio furioso de uma sombra. Na sua opinião, os atos dos homens eram bastante mais assustadores do que os fantasmas surgidos de um pesadelo ou do excesso de hidromel. Ainda assim, aqueles caminhos eram traiçoeiros. A intervalos cada vez mais regulares, o grupo parava numa clareira ou junto à margem de um ribeiro e debatia qual a bifurcação a seguir, qual o caminho a tomar.
Ana viajava à frente com Alpin. Faolan encontrava-se ao fundo, com os últimos cavaleiros do grupo, na sua maioria servos da casa que guiavam cavalos de carga, cuja tarefa seria transportar a caça de volta a Briar Wood em triunfo. Faolan cavalgava em silêncio, tentando passar o mais despercebido possível e memorizando cada volta, cada ramificação do caminho. Com sorte, mal dariam pela sua falta, caso se ausentasse durante algum tempo. Assim que os cães encontrassem o rasto de um javali, a última coisa em que alguém pensaria seria no número de homens do grupo e a sua localização exata. Esperava que não tivessem de avançar muito antes de lhe surgir tal oportunidade. A sua presa não se encontrava na floresta, mas sim em Briar Wood. Pretendia encontrar Deord e sacar-lhe algumas verdades. A sua espécie estava ligada por laços forjados na adversidade e na sobrevivência. Eram obrigados a entre ajudar-se, quer lhes conviesse ou não. Se o guarda não falasse, talvez Drustan o fizesse.
Quando o grupo voltou a parar, avistou Ana, montada no seu cavalo, aguardando pacientemente que Alpin explicasse qualquer coisa aos homens. Os cães de caça rodeavam as pernas dos cavalos, voltando as cabeças na direção de cada restolhar nos fetos. Eram criaturas hirsutas e de pernas compridas, mais altas do que os sabujos do Monte Branco, com olhos implacáveis e mandíbulas que sugeriam que um javali seria presa fácil. Ana tinha um ar pálido e cansado.
A medida que avançavam, Faolan permitiu que os cavaleiros o ultrapassassem, até que ficou atrás das bestas de carga. Não demorou muito até que os cães dessem início a uma cacofonia ululante de sons e o monteiro principal de Alpin os libertasse. Os cães desapareceram na floresta, cada animal um aríete de poder muscular. Os cavaleiros lançaram-se em perseguição. Os carreiros eram estreitos e rodeados de vegetação. Rapidamente, o grupo ficou espalhado a ponto de não ser possível a cada indivíduo ver mais do que um ou dois cavaleiros, com os cães bem mais adiantados, levando a presa a um ponto em que seria obrigada a voltar-se e a enfrentá-los no seu último reduto.
Os homens com os animais de carga encontraram uma pequena clareira e instalaram-se a aguardar. Enquanto descarregavam os materiais e prendiam os cavalos para que estes pastassem, Faolan esgueirou-se por entre as árvores, a montada obediente ao toque do cavaleiro. Regressou em silêncio por onde viera. Até ali, tudo bem. Não tinha qualquer vontade de participar na caçada. Vira demasiadas mortes violentas durante a sua carreira, chegando mesmo a infligir muitas delas com as próprias mãos. A batalha de um javali contra a matilha rapace não lhe interessava. Tinha a sua própria caçada e teria de ser rápido, pois deveria voltar a juntar-se ao grupo tão discretamente como o deixara, a fim de obter o relato do sucesso, para compor uma canção.
Assim que se encontrou a distância suficiente dos caçadores de Alpin, começou a trautear em voz baixa o início de uma melodia que ficava no ouvido. Gerdic tinha razão. Aquelas pessoas ficariam satisfeitas com qualquer coisa simples e aquele bardo bastante mais seguro ao apresentar tal música, algo insignificante, sem grande emoção, nem temas elevados. Mas a canção que o perseguia, insinuando a sua forma na melodia que trauteava, era a balada que cantara quando atravessara um vau com a noiva de Alpin: a narrativa de um homem enfeitiçado por uma fada, um homem que nunca mais voltaria a ser o mesmo.
Deord estava cansado. Quando Drustan tinha uma noite má, nenhum deles dormia. Aquela fora uma das piores, com o cativo a percorrer a prisão no escuro, a bater no portão de ferro, a esmurrar as paredes com os punhos cerrados, até ficar com as mãos em carne viva, a agachar-se com os braços sobre a cabeça, a saltar para se agarrar ao telhado gradeado da jaula, como se planeasse ultrapassar a barreira apenas com a força de vontade. Mais tarde, Drustan rasgara um cobertor em tiras e começara a atá-las umas às outras com um qualquer objetivo sombrio. Deord sentira-se tentado a manietá-lo, para evitar que se magoasse a si próprio. Mas não o fizera. Talvez as más noites fossem o resultado de uma mente perturbada, mas era o encarceramento que as provocava. Imobilizar Drustan enquanto estivesse naquele estado, seria particularmente cruel. A prisão do louco em Briar Wood era espaçosa e confortável, segundo os padrões de Deord. Qualquer homem que tivesse vivido a experiência do inferno que era Breakstone Hollow veria o que Alpin concedera ao irmão como sendo generoso e justo. Mas Drustan não era um homem normal e aquele aprisionamento era para ele uma tortura tão medonha como as celas geladas e fétidas da prisão secreta dos chefes Uí Néill tinham sido para
Deord. Recusar a Drustan o sol, o céu, a liberdade do bosque era tão mau como os espancamentos, os desnudamentos, a humilhação e o aviltamento que Deord suportara às mãos dos captores celtas.
Um homem nunca esquecia tais experiências. Tinham-lhe recusado a luz, fazendo-o perder a noção do dia e da noite. Tinham-no mantido acordado, dias a fio, com archotes, barulhos e súbitos dilúvios de água gelada. Tinham-no pendurado pelas mãos, pelos pés. Tinham-lhe feito outras coisas, as quais enterrara nas profundezas da memória, cercadas por barreiras impenetráveis. Se alguém fosse suficientemente forte para sobreviver, para fugir, não podia dar-se ao luxo de sucumbir à amargura. Poucos eram os que regressavam ao mundo com a marca de Breakstone. Aprendera uma lição, que lhe dizia como era fácil um homem deixar-se possuir pelo mal, quando detinha demasiado poder sobre outra pessoa. Vira-o nos guardas em Hollow. A forma como começavam por ser indivíduos comuns e bem-intencionados, e a rapidez com que isso mudava. Após algum tempo, Deord deixara de se esforçar por fazer amizades entre os novos prisioneiros. Deixara de tentar ajudá-los a sobreviver. Ver os camaradas a tombar, um a um, enfraquecera a sua própria determinação. Por fim, na sua mente havia espaço para apenas uma coisa: um intenso desejo egoísta de sobreviver. Esqueceu o passado. Não via um futuro além do único pensamento, o seu talismã: fugir. Tornou-se cego para o presente, cheio de sangue, gritos e desespero silencioso. Por fim, surgira-lhe uma oportunidade e ele aproveitara-a. Sabia que, se tivesse desperdiçado a pouca energia que lhe restava a ajudar os outros, nem ele nem mais ninguém viveria para ver a liberdade. Não se permitiu sentir remorsos.
E Drustan: pobre, belo e triste Drustan, a gritar e a chorar na noite, Drustan, que não podia ficar sozinho por mais do que um breve momento, não fosse acabar com tudo... O que poderia ser feito por Drustan? Toda a compaixão que Deord suprimira como prisioneiro, deixava agora fluir enquanto carcereiro. Sabia o que o cativo fizera, um ato hediondo e imperdoável. Sabia da selvajaria de Drustan, da sua diferença, como talvez mais ninguém soubesse. Deord aprendera a ser forte de corpo e mente. Desenvolvera um autocontrole temível. Usava agora a sua força para conceder ao prisioneiro a pouca liberdade que podia ser obtida. Quebrava as regras de Alpin, mas com prudência, para que não fosse ministrado um castigo ainda mais duro àquele prisioneiro infeliz, o qual, apesar da maleita de que padecia, era um homem de raros talentos, grande encanto e vasto intelecto. Interrogou-se sobre se Alpin, em sete anos de visitas noturnas, alguma vez teria considerado a hipótese de consultar Drustan em assuntos de comércio, alianças, guerra ou gestão dos dois territórios bastante extensos que o irmão mais velho agora controlava. Nunca os ouvira a falar sobre tais questões. Parecia que Alpin decidira que os delírios do irmão significavam uma mente confusa, um certo grau de idiotia, apesar dos modos gentis e de um discurso habitualmente racional. Tornara-se cego à humanidade de Drustan.
Antes do amanhecer, Deord conseguiu levar Drustan a um estado de calma razoável. Levou-o para dentro, passou-lhe um cobertor sobre os ombros e convenceu-o a beber um copo de água. Para o conseguir, fora obrigado a prometer uma saída das muralhas, um breve rasgo de liberdade. Alpin estaria ausente, a caçar, bem como a maioria dos seus homens. Seria tão seguro como sempre, contanto que o passeio fosse breve e respeitasse as regras a que se obrigavam. Após a promessa, Drustan acalmara-se consideravelmente, a ponto de os pássaros terem descido do esconderijo a um canto do telhado, vindo alojar-se mais uma vez junto ao homem ruivo. Era um sinal infalível de que o ataque passara.
Nesse dia, o sol estava quente. Deord dobrara as vestes e deixara-as no chão, pousara o bordão ao lado das roupas e treinava os movimentos de uma forma de combate desarmado que aprendera havia muito com um marinheiro de pele dourada, num porto do sul. O exercício era fundamental para manter o corpo pronto a entrar em ação e para conservar a argúcia do espírito. No seu trabalho, nunca se sabia quando surgiriam problemas. Ensinara os movimentos a Drustan, a par de outras técnicas, pois sabia a rapidez com que um homem perdia a esperança quando deixava que o cativeiro lhe enfraquecesse o corpo. Não admirava que Drustan se conseguisse movimentar tão rapidamente, a ponto de assustar o irmão. Dada a força dos membros, não surpreendia que fosse capaz de saltar e agarrar-se à grade de ferro do telhado e depois içar-se. Talvez tivesse sido um erro permitir que Drustan aprimorasse o corpo de modo tão eficaz. Quando a frustração o enlouquecia, a força do cativo permitia que se prejudicasse ainda mais. Tal como fazia com todas as suas decisões, Deord ponderara sobre a que tomara. Sem a disciplina que praticavam juntos, Drustan teria morrido de desespero ao fim do terceiro Verão de cativeiro. Pelo menos era essa a opinião de Deord.
Quanto a Deord, tinham sido muitas as ocasiões, logo ao início, em que estivera prestes a desistir, a dizer a Alpin que não seria capaz de continuar o trabalho. Depois de Breakstone, estivera em casa apenas uma vez. Tentara. Um homem tinha de tentar. Mas não era capaz. <O período de trevas destruíra-lhe algo, qualquer coisa essencial para que um homem conseguisse ser marido, pai, irmão. Vagueara durante algum tempo. Depois surgiu Briar Wood e aquela incumbência estranha e imprevisível, e Deord nunca fora capaz de desistir. Drustan precisava dele e, para sua surpresa, ele próprio parecia necessitar de Drustan. Depois do sangue e do desespero de Breakstone Hollow, os deveres em Briar Wood davam-lhe algo que provar. O quê, não sabia ao certo. Talvez que, mesmo nas trevas, pudesse existir compaixão. Talvez apenas que os carcereiros não tinham de perder a capacidade para a bondade, nem os prisioneiros a esperança.
Deord rodopiou, pontapeou, bloqueou com um braço. Agora para o outro lado, baixando-se, rolando, erguendo-se ao mesmo tempo que se contorcia, a fim de se esquivar ao adversário imaginário. Nesse dia não se digladiaria com Drustan, pois era um momento de liberdade para o ruivo. Os grilhões jaziam no chão ao lado das vestes dobradas, da corrente meticulosamente enrolada. Dois pássaros estavam pousados lado a lado no ramo de um sabugueiro, a observar Deord a ensaiar os graciosos passos de combate. Não havia sinal de Drustan. Ele regressaria. Era esse o acordo. O prisioneiro reconhecia o perigo que representava para os outros. Não tardaria a voltar de livre vontade para as correntes e para a escuridão.
Faolan não teve a certeza de quem primeiro viu o outro. Estava a guiar o cavalo, avançando com bastante cuidado, agora que voltava a estar à vista das muralhas da fortaleza de Alpin, pois nelas continuava de guarda um certo número de guerreiros. O seu plano era utilizar uma certa abertura que descobrira, uma conduta de drenagem revestida a pedra que atravessava a muralha no lado sul. A partir daí, treparia um pouco, a fim de emergir, pelo menos assim o esperava, por cima do telhado gradeado das divisões que o irmão de Alpin partilhava com o guarda especial. A partir daí, improvisaria e esperaria que Deord não o trespassasse com uma lança antes de ter oportunidade de se identificar. Era arriscado, mas não em demasia. Faolan estava habituado a confrontar o perigo com as oportunidades.
Por alguns instantes, o sol cegou-o quando avançava por entre os vidoeiros. Levou a mão aos olhos para protegê-los e viu um relance de movimento na clareira ao fundo do carreiro, seguido da imobilidade repentina do outro homem, quando este se apercebeu de que já não se encontrava sozinho. Mais três passos e Faolan reconheceu o homem no espaço solarengo entre as árvores: Deord, com calças largas práticas e o tronco nu, e uma adaga de lâmina comprida na mão, que estivera vazia um instante atrás. Faolan continuou a aproximar-se, mas ergueu as mãos, continuando a segurar as rédeas do cavalo, em sinal de intenções pacíficas. A adaga permaneceu imóvel. O olhar sereno que sustinha o de Faolan era o de um homem tão ciente das suas capacidades que pouco ou nada receia.
— O que pretendes daqui? — perguntou Deord, quando Faolan se deteve junto ao bordão e à roupa dobrada. — A caçada já terminou?
— Alpin continua atrás dos javalis — respondeu Faolan, que prendia as rédeas a um ramo de um arbusto. — Fui o único a regressar, mas voltarei ao seu encontro assim que puder. Mais cedo do que esperava. Poupaste-me um percurso dentro de água fétida e a escalada de uma muralha. Podes baixar a adaga. — Enquanto falava, Faolan afastou o cabelo e virou-se um pouco, para que o outro homem pudesse ver a minúscula tatuagem em forma de estrela atrás da orelha direita, idêntica à marca que o próprio Deord ostentava no mesmo lugar.
Deord baixou a adaga e embainhou-a no cinto. Foi buscar a túnica.
— Já a tinha visto — disse. — Procurei-a quando vi a tua pose e uma certa expressão no olhar. Quando lá estiveste?
— Há muito tempo. Era jovem. E tu?
— Pouco antes de vir para cá. Há oito anos. Devo lá ter estado depois de ti. Não estás a fazer-me nenhum favor, vindo aqui. E se Alpin perceber que te vieste embora e enviar um grupo atrás de ti?
Faolan olhou-o calmamente.
— Por que haverias de ficar preocupado? — indagou. — Um homem pode dar um passeio no bosque no seu dia de folga, sem que tenha necessidade de olhar por cima do ombro não é verdade?
— Não sabes do que falas — replicou Deord. — Sejamos breves. Não tenho grande vontade que aqui estejas, mas parece que vieste falar comigo. Ou com Drustan. O que queres?
— Não te vou colocar em perigo. Espero que me ajudes, enquanto homem de Breakstone. O que me puderes dar, retribuirei na medida do possível. Quero informações. As minhas questões têm a ver com o teu mestre, Alpin, de Briar Wood. Tenho de confirmar se ele é um homem de palavra.
— Mestre? Não é o termo que utilizaria, bardo.
— O meu nome é Faolan. Deord Semicerrou os olhos.
— Eu sei. E és celta, da mesma raça dos que governam o inferno que ambos vivemos. Na verdade, és parecido com um ou dois dos indivíduos cujas gargantas vou abrir, se por acaso voltar a cruzar o meu caminho com o deles. Isso incomoda-me, Faolan. E acho interessante que tenhas vindo como músico de corte. Se essas mãos alguma vez usaram algum pedaço de tripa, acho mais provável que tenha sido para estrangular um inimigo do que para produzir boa música.
— Tenho vários talentos — replicou Faolan. — Quanto à minha linhagem, ela é irrelevante. Apenas devo lealdade ao homem que me estiver a pagar e, neste momento, esse homem é Bridei, Rei de Fortriu. Disseste que tinhas pressa. Enganei-me quando falei em dias de folga?
Deord exibiu um sorriso severo.
— Não tenho dias assim. Não há ninguém que me substitua.
— Percebo. — Faolan olhou para os grilhões no chão, para a corrente enrolada. — Não os tens, mas o teu prisioneiro sim?
— Sei o que estou a fazer — retorquiu Deord. — Não está longe e vai regressar em breve. Isso, se não tiveres metade dos homens de Alpin atrás de ti. O líder desta casa tem-te debaixo de olho, celta. Já deves tê-lo percebido.
— É verdade. Esta noite tentarei distrair esse olho, ao apresentar as minhas qualidades como bardo.
Deord sorriu. Parecia agora verdadeiramente divertido.
— Vai ser uma ceia interessante. Diz-me, onde é que a dama se encaixa, no meio de tudo isto?
Faolan sentiu-se a carregar o sobrolho, apesar do esforço que fazia para evitá-lo.
— Ela é exatamente o que parece — disse. — E sou eu que tenho as questões prementes. Imagino que tenhas conhecimento do tratado de cuja validade depende este casamento. És o único homem de
Breakstone que alguma vez encontrei fora daquele lugar. O único, para além de mim, que sei ter sobrevivido. Posso confiar na tua discrição? Que não vais falar desta conversa a Alpin?
— Surpreendes-me — disse Deord. — Se houve algo que aprendi naquele sítio, por certo não foi o altruísmo.
— Saímos de lá. Sobrevivemos. Continuar a sobreviver é o mínimo que devemos um ao outro.
Houve um silêncio, ao que Deord declarou:
— Tens a minha palavra.
Faolan aquiesceu em reconhecimento. Estava a ser assaltado por uma sensação cada vez mais estranha, como se o bosque em seu redor tivesse olhos fitos na sua pessoa. Talvez pudesse ignorar as lendas de bruxas, monstros e sortilégios, mas não havia dúvida de que Briar Wood era um local inquietante. Ficaria satisfeito quando tudo terminasse.
— O meu dever para com Bridei é garantir que Alpin vai cumprir os termos do acordo.
— Ele já concordou, não foi? Faolan não respondeu.
— Estás a perguntar-me se ele é um mentiroso? A mim, um guarda contratado? Decerto viste o pouco que convivo. Mal tive oportunidade de saber se ele prefere carne a queijo, quanto mais ter conhecimento das suas tendências políticas. Como posso julgar tal coisa?
— Talvez não possas. Mas, e quanto a Drustan? Um irmão deve conhecer bem o outro. Alpin não visita Drustan todas as noites, depois da ceia? Decerto terá algumas idéias.
— O meu trabalho é a segurança — indicou Deord. — O que se passa entre eles não me diz respeito.
Faolan suspirou.
— É pena — murmurou. — Se tivesses respostas, poderia sair daqui rapidamente e ter uma maior possibilidade de regressar antes que o grupo perceba a minha ausência. Não desejo atrair atenções indevidas, por razões que acredito que compreendas, guarda contratado ou não. Mas parece-me que terei de aguardar aqui até que o teu prisioneiro regresse. Se ele regressar. Quero saber o que ele tem a dizer-me sobre o líder de Briar Wood.
Deord era um homem cuja expressão e pose eram sempre de um controlo exemplar, mesmo nos momentos em que era obrigado a entrar em ação. Mas agora, pela primeira vez desde que Faolan aparecera, o homem parecia ansioso.
— Não podes ficar aqui — disse-lhe. — Há quanto tempo chegaste a Briar Wood? Pelos meus cálculos, vai para dois ciclos da lua. Tempo suficiente para que um homem do teu calibre se aperceba do temperamento de Alpin. És tolo se pensas que a tua ausência não vai ser notada. És um tolo suicida se ficares aqui mais do que o necessário.
— Então é bastante inconveniente que o homem por que és responsável não esteja aqui. Que as grilhetas que o prendem tenham sido abertas no dia em que o irmão se ausentou de casa.
— Espero que não nos estejas a ameaçar, bardo. — O tom de Deord era muito calmo. — A dama já tentou usar esse método para me extrair informações e não me preocupei muito. Se contares a Alpin onde nos encontraste hoje, vais estar a quebrar a tua própria regra. Acabaste de invocar Breakstone como razão para te ajudar. Agora estás a sugerir que vais trair-me.
Faolan não ouvira nada a partir de dada altura.
— O que disseste sobre a dama? — Percebeu a ansiedade na própria voz. — Como é que ela...?
— Andou a fazer um pouco de espionagem por conta própria — explicou Deord. — Pensei que te tivesse contado. Isso, é claro, se as damas e os seus bardos forem tão próximos como as pessoas dizem. Mas Alpin é um homem ciumento. Não prepares os punhos, celta. Tenho noção do teu caráter. Vocês dois deviam manter-se afastados da vida de Drustan. Ela já o instigou quanto baste, deixou-o agitado e imprevisível. Não venhas tornar as coisas ainda piores. Agora quero que partas.
— Quando? — exigiu Faolan. — Quando é que Ana andou a espiar? Onde esteve? Estás a dizer-me que falou com o prisioneiro? O que te perguntou? — Por tudo quanto era sagrado, como podia não ter percebido?
— Teve acesso a uma chave do local onde habitamos, pouco tempos depois da vossa chegada. Veio aqui, uma manhã cedo. Viu-me e a Drustan. Garanti que poucas fossem as palavras trocadas. Fiquei com a chave e disse-lhe que não regressasse, também pelo bem dela. Tenho a certeza de que Alpin nunca o veio a saber.
Faolan escutava, emudecido. Em redor da clareira havia movimentos: pássaros iam chegando e pousando nos ramos curvados dos amieiros, nas copas dos ulmeiros, não um bando homogêneo, mas muitas aves de espécies diferentes. Enquanto Faolan observava, uma carriça minúscula passou por ele, indo pousar ao lado dos outros dois pássaros que permaneciam imóveis no ramo perto de Deord, um cruza-bico e uma gralha. O cavalo de Faolan estava inquieto, revirando as orelhas e mexendo as patas na vegetação rasteira. Acima deles, nos ramos de um carvalho jovem, moveram-se asas de maior envergadura e uma plumagem castanho-avermelhada brilhou por momentos ao sol. Um falcão, os olhos de um brilho penetrante, fitava-os, instalado lá em cima. Os pássaros menores pareciam estranhamente ignorantes do perigo. Faolan sentiu os cabelos da nuca a eriçarem-se.
— A visita dela incomodou Drustan — dizia Deord. — Ele tem um humor instável. Perturbou-o. Não o quero novamente agitado. Não podes falar com ele. Da segunda vez, dei à senhora a informação que pude.
— Segunda vez — repetiu Faolan. — Quando foi isso?
— Há algum tempo, pouco depois de se terem encontrado. Ameaçou expor o nosso segredo se não lhe contasse a história toda. Ficou chocada por Alpin ter condenado o irmão a um encarceramento perpétuo. As mulheres têm o coração fraco. Não entendem tais assuntos.
— Ana ameaçou-te? Não pode ser verdade.
Deord recolhia a corrente e as grilhetas, parecendo fazer tenção de partir de imediato.
— Mesmo assim — disse —, foi o que ela fez, e acreditei que a ameaça fosse real, caso contrário não lhe teria dado o que queria. Não conheço a senhora como tu. Drustan contou-me que ela dormiu nos teus braços durante a viagem desde Breaking Ford. Talvez fosse uma ameaça vã.
— Drustan contou-te...?
— O teu segredo está a salvo conosco — declarou Deord com severidade. — Drustan vê o que os outros não conseguem. Fizeste o que tinhas de fazer. As noites são frias, aqui no norte. Ambos possuímos segredos perigosos, tu e eu, e agora temos conhecimento deles. Talvez Breakstone nos obrigue à ajuda mútua, mas não te darei informações que ponham Drustan em risco. Peço-te que vás. A tua sobrevivência depende disso, tal como a minha e a dele. Se tiveres oportunidade, pede à senhora que se afaste. Ele sonha com ela. Isso não o ajuda.
— Como pôde ele saber... ?
— Vai — ordenou Deord, as feições de súbito ameaçadoras. — Vai-te embora, celta. A tua presença coloca-nos a todos em risco.
Novamente aquela sensação terrível, de olhos à volta da clareira, a observar, à espera, tensos com a antecipação. Faolan apercebeu-se de que sustivera a respiração. Abriu a boca para falar e depois recuou quando o falcão mergulhou até ficar a um palmo do seu rosto, com um sussurro das asas graciosas, todo ele bico e garras afiadas. Faolan levantou as mãos involuntariamente, fechou os olhos e deu um passo atrás. O cavalo relinchou. Quando Faolan voltou a abrir os olhos, havia um segundo homem ao lado de Deord. A gralha e o cruza-bico continuavam imperturbáveis no seu poleiro. A carriça minúscula que vira antes fora instalar-se nas madeixas ruivas revoltas do recém-chegado. Do falcão, não havia sinais. Faolan respirou fundo a custo, sem saber se o que acontecera não passara de imaginação, de um truque bem feito ou de algo que nunca julgara possível: a manifestação de magia verdadeira. Estava sem palavras.
— Senta-te um pouco, Drustan — indicou Deord calmamente. — Recupera o fôlego. Como podes ver, temos uma visita. Não é uma ameaça. Na verdade, estava mesmo de partida. — Depois, virou-se para Faolan enquanto o homem de cabelo ruivo se sentava num ramo caído, as pernas compridas esticadas à sua frente. — É melhor partires. Ele vai estar enfraquecido e confuso durante algum tempo. Não vai ser capaz de falar contigo. Isto exige-lhe muito. Assim que recuperar, teremos de voltar. Peço-te novamente que partas. Como homem de Breakstone, deves compreender a importância destes preciosos momentos de liberdade, e o que significaria perdê-los. — Deord inclinou-se e levou a mão ao ombro de Drustan, ao que disse algumas palavras reconfortantes. O ruivo tremia, uma vibração rápida e febril que lhe percorria o corpo. Mas, quando ergueu a cabeça e se voltou para olhar Faolan, os olhos tinham um brilho penetrante e uma inteligência quase assustadora.
Faolan não conseguiu invocar uma única palavra. A sua mente esforçava-se por explicar o que acontecera ali, por unir as peças, a fim de lhe permitir encaixar o que se passara na sua visão pessoal do mundo. Foi invadido por recordações: o encanto de ocultação de Bridei, um feitiço invocado para retirá-los de uma fortaleza, durante a madrugada. Uma visita arrepiante a um local conhecido por Espelho Negro e o estranho surgimento de um pequeno cão, vindo das águas profundas.
Com efeito, não era o seu primeiro encontro com forças para além do explicável. Mas era algo mais do que as anteriores manifestações. Delírio, ataques de insanidade, isso conseguia entender. Mas, um pássaro que se transformava em homem? Isso era matéria de narrativas fantasiosas, de baladas antigas de maravilha e feitiçaria. Tinha a sua conta dessas histórias. No folclore da sua terra natal havia relatos de princesas transformadas em cisnes, de uma bela dama enfeitiçada na forma de uma mosca, ou de criaturas que eram parte uma coisa e parte outra completamente diferente. Mas aquilo, ali, naquele momento, à frente dos seus olhos... Uma revelação era bastante óbvia: fosse o que fosse, não era loucura.
— Eu espero — disse, e agachou-se ao lado do homem ruivo. Drustan esforçava-se por controlar a respiração e por evitar cãibras, esticando os membros, movendo os dedos, rodando os ombros com cuidado. Faolan sentiu uma pontada momentânea de inveja: qual o homem que nunca sonhara em voar?
— És o companheiro de viagem dela — disse Drustan. A voz era calma mas forte. Parecia totalmente controlada, embora continuasse a exercitar o corpo, flexionando os braços e as pernas e movendo o pescoço, tal como faz um homem após um exercício violento. — O protetor nas pequenas fogueiras, à noite. Parte músico, parte espião, parte assassino. Protegeste-a bem.
— Drustan. — A voz de Deord oferecia um tom de aviso. — Temos de nos apressar. Aqui o nosso amigo Faolan deixou o grupo do teu irmão às escondidas e tem de regressar antes de chamar a atenção. Nós dois temos de voltar ao interior das muralhas, antes que alguém venha à procura.
Drustan olhou-o e depois virou a cabeça na direção dos dois pássaros empoleirados ali perto.
— Vão — disse e, num abrir e fechar de olhos, ambos alçaram vôo na direção das profundezas sombrias de Briar Wood. Olhou para Faolan. — Vão trazer-nos avisos, se forem necessários — indicou. — Aqui a menor — disse, apontando para a carriça que continuava instalada no seu cabelo — vai acompanhar-te. Arriscaste-te.
— Tal como tu e o teu guardião — replicou Faolan, interrogando-se sobre como poderia alguém considerar louco aquele homem cortês e de palavras gentis. — Diz-se que Alpin declarou que nunca poderias sair. Que estás acorrentado dia e noite.
— Quando me vê, estou acorrentado. Quando me vê, estou no interior daquelas paredes que ordenou que me rodeassem. O que queres de mim, Faolan?
— Já sabes o meu nome. Imagino que não devas ficar surpreendido com isso. Pareces saber mais do que deveria ser possível. O que és tu, uma espécie de mago?
Drustan sorriu. O rosto assumira uma beleza rara, transformado por uma luz quase sobrenatural. Faolan não tinha por hábito avaliar as pessoas ou os objetos segundo padrões de beleza, com talvez uma única exceção. Regra geral, julgava as suas experiências unicamente pela posição que assumiam na balança dos riscos e das oportunidades da missão que tivesse entre mãos. Em tempos, valorizara a beleza. Em determinada altura da vida, deixara de ter qualquer significado. Por tudo isso, as feições daquele homem eram cativantes. Por instantes, faziam com que as pessoas se esquecessem de respirar.
— Não sou mago. Possuo certas capacidades. Vejo por mais olhos do que os meus. De certo modo, viajo, mesmo limitado pelas paredes de uma prisão. Quando Deord o permite, aproveito os meus momentos de voo. Entro no outro lugar apenas nessas ocasiões. Mudar de forma dentro das barreiras apertadas impostas pelo meu irmão poderia ser desastroso. Eu e Deord concordamos que deveríamos evitar tal risco. Estas transformações estão cheias de riscos. Se Deord fosse menos compassivo, não as permitiria. Nesse caso, enlouqueceria mesmo, pois fazem tão parte de mim como a minha mente ou o meu coração. Gostaria de te pedir um favor, Faolan.
— Um favor? — Faolan nem imaginava o que poderia ser. Ainda se esforçava por apreender o fato de que a sua própria existência e a daquele ser de olhos brilhantes e palavras gentis, parte homem, parte criatura, pudessem coexistir no mesmo mundo. — Pede-o. De minha parte, tenho algumas perguntas a fazer-te.
— Irei ajudar-te, se puder. — Drustan levantou-se, um pouco hesitante. Era mais alto do que Faolan por uma cabeça. Com efeito, assemelhava-se ao irmão, que era um homem imponente. Mas tudo o que era grosseiro, rude e carregado na aparência de Alpin parecia assumir uma diferença subtil na do irmão: os olhos de Drustan eram maiores, o nariz mais estreito, a boca mais delicada. A juba de cabelo exuberante, ruivo, enquanto a de Alpin era de um castanho-baço, parecia refletir o Sol, brilhante de vida e cobrindo os ombros largos. Embora alto, não era um homem robusto como Alpin, mas muito bem proporcionado e de constituição atlética. Os músculos eram impressionantes. Como teria um homem aprisionado havia sete anos conseguido desenvolvê-los, interrogava-se Faolan.
— O que desejas perguntar? — continuou Drustan. — Temos de ser rápidos. Os avisos de Deord são assisados.
Deord silenciara-se, dando por findos os protestos. O equilíbrio do poder alterara-se com as primeiras palavras de Drustan. Faolan já não tinha dúvidas de que era o ruivo quem controlava a situação. Isso fê-lo hesitar.
— Desejas questionar-me sobre o meu irmão?
O indivíduo era astuto. Na verdade, havia uma questão que destronava as restantes.
— Vi o que aconteceu, a forma como mudaste. Se consegues transformar-te de homem em pássaro, de pássaro em homem, a teu bel-prazer, por que razão ficas aqui? Por que não voas para longe do teu irmão? Ninguém poderia encontrar-te.
A expressão de Drustan alterou-se, parecendo fechar-se em si próprio.
— Não posso — retorquiu. — O que fiz aconteceu comigo na outra forma. Por vezes, quando regresso, não me lembro claramente dessas alturas. Quando estou no outro lado, muitas vezes apenas tenho recordações vagas do meu estado humano. Seria uma irresponsabilidade arriscar a repetição de tal ato. Não posso ser libertado mais do que os breves momentos que Deord me concede.
— Segundo me pareceu, tens consciência suficiente para regressar a Deord, e para fazê-lo de imediato. Talvez estejas a subestimar-te.
— Desenvolvi um controlo maior, é verdade — admitiu Drustan. — Mas não vou arriscar a segurança dos inocentes pelo bem da minha própria liberdade. Matei uma vez e regressei sem memória do fato. Qual o homem que poderá garantir que não voltará a acontecer? Além disso, não sou uma criatura selvagem, sou um homem com uma certa... diferença. Não posso viver o resto da vida na outra forma.
— Percebo — disse Faolan, dividido entre a admiração pela força de vontade de Drustan e o espanto por ele ter feito tal escolha.
— Não é essa a questão que desejavas colocar — indicou Drustan.
— É sobre Alpin — disse Faolan. — Concordou com um tratado. Conheces a situação entre Fortriu e Dalriada? Já devias ter sido feito prisioneiro quando Bridei foi eleito rei...
Drustan anuiu com gravidade.
— Sei em que ponto está a situação. O meu território, o Vale dos Sonhos, a ocidente, possui uma localização estratégica em relação ao domínio Celta. Isso faz do meu irmão uma pessoa muito popular. Tanto Dalriada como Fortriu têm motivos para o adular, para lhe oferecer incentivos.
— Com efeito — concordou Faolan, aliviado por o seu instinto se mostrar correto. Aquele homem tinha consciência do que perdera quando o irmão o declarara insano e o fechara. — Desta vez é um incentivo raro, na forma de uma jovem com o sangue real dos Priteni, o que significa que o filho de Alpin poderá um dia vir a ser rei de Fortriu. Em troca desta noiva, o teu irmão aceitou um tratado. A garantia de que não atacará Bridei a partir de qualquer um dos territórios, Briar Wood e o Vale dos Sonhos, a par da promessa de não se aliar a Gabhran, de Dalriada.
— É o que se poderia esperar — acrescentou Deord. — É óbvio onde reside a ameaça a Bridei: no ancoradouro ocidental.
— Os Celtas estiveram aqui? — perguntou Faolan sem rodeios, pois o tempo escasseava. Não seria preciso uma eternidade para encurralar e matar um javali e levar a carcaça de volta ao acampamento. — Também apresentaram uma proposta?
Deord e Drustan trocaram olhares.
— Não posso dar-te essa informação — disse Drustan. — Alpin é meu irmão. O sangue implica uma certa lealdade. Espero que não me peças que o deixes vulnerável.
— Se recebemos a visita de um emissário de Gabhran — indicou Deord —, ocorreu em segredo. Alpin não é burro. — A expressão no seu olhar convidava Faolan a interpretar as palavras cuidadosas como bem lhe aprouvesse.
— Entendo. Devem compreender que tenha de garantir que Alpin vai cumprir a sua palavra. Não deixarei Lady Ana aqui até ter a certeza de que ele cumprirá os termos do acordo.
— Tu não vais deixar? — indagou Deord, calmamente.
— Sou o emissário de Bridei — explicou Faolan. O instinto dizia-lhe que podia confiar na palavra de Deord, a palavra de um homem de Breakstone, selada pelo sofrimento. No caso de Drustan, seria obrigado a arriscar. — Quando chegamos, as circunstâncias levaram Ana a dotar-me de outra identidade. Os modos de Alpin não transmitiam uma garantia de segurança. A dama acreditou que a minha vida corria perigo.
— Tal como neste momento, caso não regresses à caçada — adiantou Deord.
— As regras de Alpin são duras para quem visita a sua casa.
— O que farias... — a voz de Drustan assumira um tom muito baixo e o ruivo já não olhava Faolan, fitando agora a floresta. — O que farias, se te dissesse que julgo que o meu irmão fará as suas escolhas independentemente de qualquer juramento? Levarias Ana para longe de Briar Wood?
— Drustan... — Deord tentou interromper, mas a atenção de Faolan encontrava-se no rosto de Drustan. De repente, a expressão transformara-se na de um homem desesperado. Sentiu um arrepio na espinha.
— Se tivesse a certeza de que tal era verdade, garantiria que o casamento nunca teria lugar — declarou cuidadosamente. — Sim, iria levá-la de volta ao Monte Branco. Não deixaria que se sacrificasse por uma aliança que não passaria de um embuste.
— Sacrificasse... — o tom de Drustan transformara-se num murmúrio.
Faolan não disse nada. Não confessaria, nem mesmo a um homem de Breakstone, que parte de si queria que Alpin fosse um vira-casaca, desejava que o tratado se revelasse inútil, para ter uma razão para impedir o casamento. Não admitiria o quanto ansiava por levar Ana de regresso a casa, onde poderia sorrir, cantar e rir-se, onde teria uma cama à sua espera, que não seria obrigada a partilhar com aquele imbecil rude que apenas a magoaria e aviltaria. Esses pensamentos nunca seriam postos em palavras, pois menosprezavam a missão que Bridei lhe confiara. No fim de contas, a lealdade a Bridei era tudo o que interessava.
— Ama-a — disse Drustan, os olhos brilhantes presos aos de Faolan. Faolan sentiu as palavras gelarem-lhe o coração. Pela primeira vez, a expressão que via no rosto de Drustan era claramente perigosa.
— Conta-nos a verdade — disse Drustan. — Não te ajudaremos se nos mentires. Não temos paciência para esses jogos.
Faolan respirou fundo.
— Sou um guarda-costas contratado — explicou, olhando para Deord. — Trabalho para ganhar a vida. Bridei paga-me. Aceitei esta viagem como protetor da senhora e como emissário pessoal do rei pois, por estranho que pareça, ele parece julgar-me adequado ao trabalho. Que um homem como eu nutra o tipo de sentimentos a que te referes, especialmente quando a donzela em questão é do sangue real dos Priteni é... — Não tinha a certeza do termo mais adequado: risível? Patético?
— É a verdade — concluiu Drustan. — Tens as tuas próprias razões para quereres ver este casamento impedido. O teu instinto está correto. Mas não te direi que o meu irmão é um mentiroso. Lesei-o profundamente. Não agravarei as coisas espetando-lhe uma faca nas costas.
— Alguma vez te ocorreu — aventou Faolan, irado por o seu interlocutor ter aberto uma ferida numa parte de si que julgava intocável —, que é muito conveniente ao teu irmão que sejas considerado incapaz de gerir os teus bens? Que lhe é bastante favorável ter-te afastado do mundo da estratégia, do comércio e das alianças? Que lhe é útil controlar aquele domínio tão bem situado na costa ocidental, bem como o seu próprio território vasto e exército poderoso? Não admira que os poderosos o adulem com ofertas. Isso não te incomoda, quando acordas durante a noite, Drustan?
Drustan fitou-o, os olhos límpidos como lagos florestais a céu aberto. A fúria desaparecera.
— Tenho vontade de regressar — disse. — Que tudo volte a ser como antes. Mas o passado não pode ser desfeito. Depois de amarmos, o nosso coração não volta a mirrar. Depois de matarmos, o nosso espírito carrega em si essa mácula eterna. Nunca regressarei à minha casa do ocidente. Bani-a de vez dos meus sonhos.
A gralha fez um vôo rasante e Faolan conseguiu não recuar. O pássaro aterrou no ombro esquerdo de Drustan com um dobrar de asas gracioso.
— Parte agora — indicou Drustan — e terás tempo de voltar ao grupo sem ser visto. Se esperares mais, Alpin vai decerto notar a tua ausência e o teu regresso. Não te arrisques. Ele é um homem violento.
Faolan não quis saber que tipo de comunicação silenciosa tivera lugar entre homem e pássaro. Tal ia muito além da sua compreensão. Montou a cavalo e depois lembrou-se de qualquer coisa.
— Disseste que tinhas um favor a pedir-me — disse a Drustan.
— Peço-te que não contes a Ana o que viste aqui — rogou Drustan, os olhos de súbito sem expressão. — Não quero que ela saiba desta... maleita.
Foi algo inesperado e bastante estranho.
— Duvido que tenha oportunidade de dizer seja o que for de relevante à senhora — indicou-lhe Faolan —, pois Alpin não aceita que um homem sequer olhe para ela de forma incauta. Desde que estamos em Briar Wood que ainda não falei com ela a sós.
— Não lhe contes. Quero a tua palavra. — A voz de Drustan assumiu de repente um tom férreo. A mudança era alarmante.
— Muito bem, prometo. Se ela passar a viver aqui como esposa do teu irmão, eventualmente acabará por descobrir, mesmo que eu não veja que isso seja importante... Mas sim, tens a minha palavra. — Era o mínimo que poderia conceder, pois Drustan dera-lhe melhores respostas do que as esperadas. Mesmo assim, o encontro deixara-o perturbado e isso não se devia apenas à estranheza do que testemunhara. — Disseste que o assassínio macula um homem — continuou, respirando fundo. — Deixaste claro que julgas que ficar preso o resto da vida é um castigo justo pelo que fizeste. Estive algumas luas encarcerado. Antes de Breakstone, apenas tinha morto um homem. Apenas um. Mas o que fiz destruiu a minha família. Acabou com tudo o que dava sentido à minha vida. Foi um crime inenarrável. A seu lado, o teu delito é algo menor. Na verdade, a minha estadia na prisão dos Uí Néill não se deveu ao crime, mas simplesmente à minha recusa em colaborar. Aqui o teu guardião — indicou, com um aceno para Deord, um sinal de respeito e de reconhecimento — sabe pela experiência que partilhamos como é fácil um homem cair em desgraça ante os poderosos chefes de Ulaid. Carrego comigo a marca do que fiz. Mudou-me para sempre. Não me impediu de viver um certo tipo de vida. Talvez te julgues com demasiada severidade. Talvez o teu irmão seja menos justo do que pensas.
— Vai — foi tudo o que Drustan replicou. — Vai, enquanto ainda podes.
À medida que se dirigia à floresta, o coração de Faolan martelava-lhe no peito como um tambor de guerra. Esforçou-se por abrandar o seu ritmo, por acalmar a respiração e por se preparar para o ressurgimento discreto entre o grupo de caça de Alpin. Fez por voltar a encerrar os fantasmas na zona mais profunda da sua mente, a parte que estivera tanto tempo fechada que o levara a pensar que talvez pudesse ter começado a esquecer. Fora a primeira vez em muitos anos que falara sobre aquele dia, a única vez. Agora estavam todos a seu lado, a mãe, lívida, o pai, em silêncio, Aine, os olhos arregalados e aterrorizada, na sua camisa de noite. E Dubhán. Dubhán a sorrir e a dizer, Fá-lo, e depois o sangue.
Regressavam finalmente a casa, levando em triunfo as carcaças de dois javalis, as bocas escancaradas e a pelagem coberta de sangue. Ludha acercara-se da ama, montada num pônei robusto. As feições jovens ostentavam um ar preocupado.
— Estás muito pálida, minha senhora. Sentes-te indisposta? Tendo em conta o espetáculo horrendo e agitado da matança, as manchas de sangue no rosto de todos os homens envolvidos e as cãibras que começava a sentir na barriga, Ana pensou que não seria de espantar que tivesse uma aparência menos aprumada. Felizmente, ainda não começara a sangrar. Pelo menos, seria capaz de regressar à fortaleza antes que a dor se tornasse excruciante.
— Estou bem — garantiu e, quando Alpin se virou para elas, conseguiu esboçar um sorriso franco para o futuro marido.
— Esta noite deverá ter lugar um belo festim, meu senhor — observou Ana.
— Apreciadora de javali assado? — As manchas de sangue nas feições de Alpin estavam a secar e assumiam um tom de castanho quase idêntico ao da barba. — Sim, vai ser uma noite de grande festividade. É pena que não possa acabar com uma celebração mais pessoal, só nós dois, um lume agradável no quarto, um cobertor ou dois, um jarro de hidromel condimentado... Por uma noite assim, esquecia de bom grado o porco assado e os acompanhamentos. O que dizes? — Estendeu o braço e levou a mão enorme à coxa de Ana, que apertou. A jovem conseguiu não gritar de dor.
— Parece-me... agradável, meu senhor. Infelizmente, receio que deva estar indisposta. Começo a sentir cãibras na barriga. O habitual...
— Mm-mmm — resmungou Alpin, claramente embaraçado. — É pena. Se tiveres de faltar à ceia, vais perder a música. O teu bardo... onde é que ele está, ah, ali, com os outros criados... prometeu-me uma bela descrição da caça e da matança de hoje, cantada com acompanhamento da harpa. Há anos que não temos esse tipo de entretenimento por aqui. Não que eu não prefira o outro. És uma mulher bela, Ana. Gostava que o malfadado do druida chegasse. Estou a ficar cansado de esperar.
— Vou fazer um esforço por comparecer no salão para a ceia — disse Ana, que não gostou da expressão nos olhos de Alpin. — É merecido, pela coragem que demonstraste na caçada. É óbvio que és excelente nessa atividade.
Alpin exibiu um sorriso rasgado e deu uma palmada na coxa. — Sou mesmo, minha querida. E em breve vais descobrir que não é o único passatempo para o qual tenho talento. Não é verdade, rapazes?
Ana mal ouviu as gargalhadas dos homens. Pouco espaço tinha na mente para Alpin, para o casamento ou para o tão importante tratado. Pesasse embora a sóbria avaliação feita por Deord no que dizia respeito à situação de Drustan, e o reconhecimento de culpa por parte do próprio Drustan, Ana continuava sem acreditar que o irmão de Alpin tivesse feito tal coisa. Ana sempre se considerara uma pessoa equilibrada, que tomava as decisões de forma calma e ponderada. Sabia que estava a pensar como uma jovem tola que desperdiça a vida por amor. Contudo, era incapaz de parar de pensar em toda a situação: Drustan, o assassinato, aquele dia estranho... Havia uma testemunha. Bela, a idosa, estivera lá. Se pelo menos a encontrassem... Se Bela confirmasse o relato de Alpin, Ana iria aceitá-lo. Acomodar-se-ia, casaria com Alpin e dar-lhe-ia os filhos que ele desejasse. Teria o futuro que sempre soubera estar à sua espera. Se Bela contasse uma história diferente... arrepiou-se. O seu futuro era imutável. A culpa ou a inocência de Drustan não afetaria o casamento, nem o tratado, nem o fato inegável de que o druida chegaria em breve e que não haveria desculpa para adiar mais a cerimônia. Se, por algum motivo, Drustan viesse a provar-se inocente, seria libertado do encarceramento. Tal seria um alívio para o coração da jovem. Mas não lhe mudaria o futuro, não poderia fazê-lo. Tinha de deixar de pensar no outro futuro, no doce e maravilhoso futuro que via nos sonhos que tinha desde que o irmão de Alpin a cativara com a sua voz gentil e os seus olhos brilhantes. Com o corpo elegante. Tais pensamentos eram deveras arriscados. Teria de eliminá-los.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO DEZ


O rei Bridei e o seu druida Broichan celebraram o festival do solstício do Verão no Monte Branco. O povo falaria desse ritual como um dos maiores e mais arrebatadores alguma vez vistos. Que melhor altura do ano para invocar o poder da guerra do que o dia em que o Guardião das Chamas atingia o auge e a forma do ritual honrava todos os homens pela sua bravura, sabedoria e vigor?
Completada a cerimônia, o ano dirigia-se rapidamente ao festival da Reunião, mas seriam os idosos, os rapazes e as mulheres a trazer a colheita da estação. De todos os cantos de Fortriu, grupos de guerreiros deram início a um movimento rigidamente controlado em direção a Dalriada. Era como uma maré que se deslocava para ocidente, regulada com a subtileza possível aos vários líderes, pois quanto mais os Celtas permanecessem ignorantes dos planos de Bridei, maiores as hipóteses de um sucesso retumbante quando por fim os dois velhos inimigos se encontrassem.
A envergadura da demanda de Bridei era de tal ordem que até mesmo um líder guerreiro experiente hesitaria ante a sua visão. Carnach liderou uma enorme força conjunta a partir de Caer Pridne, antiga sede dos reis de Fortriu. Os seus próprios guerreiros de Thorn Bend, na fronteira com Circinn, encontravam-se entre os que marchavam sob o seu comando, mas um grande número de outros chefes tribais viera juntar-se a ele, trazendo consigo guerreiros bem treinados. Esses homens tinham apenas precisado do treino ministrado no acampamento a norte para ficarem prontos para a batalha. Wredech, primo do velho rei, partiu ao lado de Carnach, com um bando de arqueiros excepcionais que envergavam as suas cores.
Talorgen regressara a casa, na Fonte do Corvo, às margens do Lago da Donzela. Na altura combinada, levou o exército pessoal na direção oposta à que os Celtas poderiam esperar, dirigindo-se para noroeste, por entre passagens desertas e vales solitários, até um certo domínio costeiro, onde um líder tribal chamado Uerb tinha vindo a preparar navios e a treinar homens para os navegar. Nas terras inóspitas a norte de Grande Vale, erguiam-se os imponentes desfiladeiros chamados as Cinco Irmãs. De um acampamento remoto nessa região, Fokel de Galany, líder deposto de um território dominado agora pelos Celtas, enviou a sua força mais reduzida, com uma missão específica. Esses guerreiros tinham desenvolvido capacidades particulares durante os longos anos de exílio: perícia como caçadores e batedores, capacidade de percorrer grandes distâncias em terrenos difíceis rápida e secretamente, o dom de encontrar soluções originais para problemas aparentemente impossíveis. Havia quem julgasse questionáveis os métodos de Fokel. Os resultados falavam por si.
Bridei partiu sem fanfarra. Haveria tempo para discursos inflamados e para ações heróicas e, nessa altura, invocaria ambos. Um rei tinha de estar pronto para isso. A partir do momento em que tomou a decisão e deu ordem para iniciar o avanço, tornou-se mais um líder de guerra do que um monarca, tendo partido da forma que um guerreiro experiente o faz, com o mínimo de alarido. A maior parte do exército de Fortriu já se encontrava em andamento. O rei partiu com uma companhia de doze homens de armas, muitos deles velhos amigos da casa de Broichan, em Pitnochie, e vários outros homens de habilidades especiais. Bridei levou Breth como guarda pessoal. Os homens de Pitnochie providenciariam apoio. Garth implorara para ir, dando como argumentos que a sua capacidade de combate seria desperdiçada no Monte Branco, que fora um servidor leal durante mais de cinco anos, que qualquer verdadeiro homem de Fortriu devia aos deuses a participação em tal empresa. Que o braço que empunhava a espada tinha sede de um pescoço celta ou três. Bridei frisou, gentil mas firmemente, que, se Garth também o acompanhasse, não restaria um único dos seus homens de confiança no Monte Branco para proteger Tuala e Derelei. Não poderia avançar descansado se Garth ou Breth não cumprissem esse dever, pelo menos até que Faolan regressasse, e ninguém sabia quando tal viria a acontecer. Garth não teve de perguntar por que motivo fora Breth o escolhido. Garth tinha mulher e filhos. Breth não tinha ninguém.
— Confio em ti como amigo. Sei que és o homem adequado a esta tarefa especial — dissera o rei calmamente. — Guarda bem os meus amados e protege os teus.
— Sim, meu senhor. — O guarda-costas dera um abraço breve ao monarca. Eram velhos amigos. Assim ficou concluído.
Abaixo das muralhas íngremes do complexo fortificado do rei, as encostas do Monte Branco eram densamente arborizadas. Do ponto onde Tuala se encontrava com o filho nos braços, observando com os olhos secos a partida do marido para os perigos e incertezas da guerra, o carreiro apenas se deixava ver por uma curta distância. Viu Bridei olhar na sua direção e erguer a mão em despedida. O rei sorriu. No instante seguinte desaparecia, o cavalo, Snowfire, a tornar-se uma mancha pálida por entre o verde. Ban corria de um lado do terraço para o outro, a ganir em angústia. Era óbvio que só queria desobedecer à ordem do dono e segui-lo. O seu coração, bem maior do que o corpo diminuto, tê-lo-ia feito correr ao lado de Bridei para o meio da batalha.
— Papai — disse Derelei, enquanto se debatia para que o pousassem.
— O papai foi-se embora — disse-lhe Tuala. — Agora vamos para dentro, sim? — E, sem esperar por uma resposta, virou-se de repente e percorreu o terraço, o filho nos braços.
— Não vai chorar à frente de ninguém — comentou Fola com o velho amigo Broichan, de pé a seu lado a observar o grupo de Bridei a desaparecer na sombra dos pinheiros. — Ferada deve chegar esta tarde. Mandei chamá-la. Vem de Banmerren com uma escolta. Não é bom que Tuala guarde tudo dentro dela. Precisa de uma amiga.
— Mm — murmurou Broichan. Era evidente que não escutara uma palavra do que a companheira dissera.
— Surpreendes-me. — O tom de Fola era neutro.
— O quê? — Agora estava a ouvir.
— Estava certa de que irias com ele. Não é apenas o sonho dele que está a ser realizado, mas também o teu. Este empreendimento é tudo por que trabalhaste durante os anos em que o educaste. Entraste em combate muitas vezes, ao lado de Drust, o Touro, e deste-lhe bons conselhos. Nestas alturas, um rei precisa do seu druida.
— Passaram-se anos desde que Drust foi rei e ainda mais desde que entrou em combate — disse Broichan, com um tom definitivo.
— E contudo — replicou Fola, apoiando as mãos pequenas e delicadas no muro à sua frente —, não és velho.
Broichan permaneceu em silêncio, enquanto fitava a distância por cima das árvores. Sempre fora um homem que se obrigava a um controlo rígido, cujos pensamentos e sentimentos ocultava mesmo dos que lhe eram próximos. Poucos o eram. O filho adotivo, Bridei, era uma dessas pessoas, e Fola era outra.
— Se tivesses dado a saber antes que não ias acompanhar Bridei — disse-lhe a mulher sábia —, os druidas poderiam ter encontrado um homem mais jovem e mais apto para te substituir.
— Mais apto?
Fola olhou o velho amigo. Os olhos escuros eram perspicazes, sendo pouco o que lhes escapava.
— Não creio que seja a idade que te impede de fazer parte desta investida heróica para ocidente — disse gentilmente —, mas algo diferente. Algo que ocultaste até mesmo de Bridei e que tens relutância em assumir publicamente, pois considera-o uma forma de fracasso.
Outro silêncio. Fola reparou na ligeira tensão das mãos de Broichan nas ameias.
— Conhecemo-nos há muito tempo, meu caro — disse Fola. — Se estás enfermo devias contar-me. Talvez possa ajudar-te. Temos uma herbolária muito competente em Banmerren. Gostava que Uist continuasse conosco. Tirando as tuas, as mãos dele não tinham rival a curar.
— Estou muito bem. Não fiques agitada, Fola.
— Agitada? — repetiu, as sobrancelhas erguidas. — Alguma vez me viste agitada? Apenas sugiro que reconheças o que tem vindo a tornar-se cada vez mais evidente para mim e para Tuala, e que tomes medidas quanto a isso.
— Tuala? O que tem isto a ver com ela?
— Não fales assim, Broichan. Ainda não fizeste as pazes com a rapariga, depois de tantos anos?
— Nem me apercebi de que estávamos em guerra.
Fola suspirou. — Já há bastante tempo, Tuala comentou que julgava que estivesses em sofrimento. Que talvez a tua saúde não estivesse bem. Tinha noção de que o querias ocultar de Bridei. Nunca falou do caso com ele.
— Trocamos algumas palavras sobre Derelei e o eventual treino da criança. Parece que ela me compreendeu melhor do que julguei.
— Por que será que, ainda agora, vocês dois não confiam um no outro? Por que não se tornam amigos?
— Não há necessidade. Somos de mundos completamente diferentes.
— Tolices — retorquiu Fola com brusquidão. — Receiam-se mutuamente, não por isso, mas exatamente pela razão oposta. Nela reside um grande talento. Tive um breve vislumbre do seu potencial quando esteve entre nós, em Banmerren. Devido à posição que detém aqui, nunca vai permitir-se empregar os seus poderes em público, algo que eu compreendo, pois tem de se proteger, e a Bridei, da influência corrosiva dos boatos e das insinuações. Por tua causa, não utiliza as capacidades de adivinhação e de augúrio, nem mesmo em privado ou entre amigos de confiança. Receio que isso nos prive de uma ferramenta que faria toda a diferença no futuro.
— Disparates. Então e tu e as mais capazes das tuas sacerdotisas em Banmerren? Então e os druidas da floresta? Por que precisaríamos da intervenção de uma... uma dos Outros?
— Nem mesmo eu sou capaz de invocar as visões de uma taça de vidência a meu bel-prazer — replicou Fola. — A minha escolha limita-se à interpretação do que me é mostrado. A capacidade de Tuala vai mais além. Há uma certeza inquestionável no que faz. Nessas alturas, é possível pensar-se nela como um canal direto para a deusa.
Broichan cruzou os braços, as feições ossudas a formar uma máscara implacável. — É um talento natural — disse —, sem controlo, ingênuo e perigoso. Reconheço a sua lealdade para com Bridei e para com a criança. Não irei negar esse laço. Mas não podemos ignorar as suas origens. Não pertence à nossa espécie. A sua própria natureza é imprevisível. Mais valia confiar nas visões de um fogo-fátuo.
— Onde julgas que Derelei foi buscar as habilidades sobrenaturais, Broichan? Por que razão consegues encontrar espaço no coração para ele, já para não falar do tempo que lhe dedicas todos os dias, se tratas a mãe com palavras de desprezo? Se Tuala não teve acompanhamento, de quem é a culpa? Esteve conosco em Banmerren menos de um ano. Esteve em tua casa perto de treze. Pensa no que lhe poderias ter ensinado.
Após um momento, o druida disse:
— O que tenho para transmitir iria perder-se numa rapariga. Elas absorvem conhecimentos durante algum tempo mas depois, quando têm idade para marido e filhos, perdem o interesse. — O tom da sua voz era desdenhoso.
— A filha de Talorgen já provou que estás errado — retorquiu Fola. — Possui ambições para a sua escola e para ela própria e está empenhada em recuperar o tempo perdido. Neste momento tem construtores a trabalhar e espera as primeiras alunas no Outono. Ferada poderia ter-se casado, e um bom casamento, por sinal. Escolheu outro caminho.
Broichan ergueu as sobrancelhas numa expressão de desdém.
— Se fosse homem de jogos — disse —, apostaria uma mancheia de peças de prata em como Ferada vai aceitar a proposta de um chefe bem apessoado em menos de dois anos e abandonar o projeto da educação das mulheres. Se acreditasse que levaria o seu intento a bom porto, nunca teria consentido o plano dela. As jovens são todas iguais: no fundo, o que mais querem é um lar e uma família.
— Não foi essa a minha escolha.
Broichan meneou a cabeça em sinal de cortesia.
— É claro que excluo dos meus argumentos aquelas que entram ao serviço d'A Que Brilha. Além disso, Ferada não é apenas de boas famílias, também é jovem e bonita.
Seguiu-se uma pausa.
— Revelas muito tacto na maneira de te expressares, Broichan — disse Fola. — Acredites ou não, na nossa juventude eu e Uist estivemos a isto — ergueu a mão, com o polegar e o indicador quase juntos — de abandonarmos o dever por amor. Todos nós fomos jovens e atraentes, em tempos. Imagino que até mesmo tu.
Broichan não respondeu ao comentário mas, pouco depois, disse:
— Falaste em abrir o coração. Preciso de melhor razão para ensinar a criança, do que o fato de ser filho de Bridei?
Fola fez menção de falar, mas deteve-se. Passou a capa pelos ombros, como se tencionasse partir.
— O que foi? — O tom de Broichan era ríspido. — O que ias dizer?
Fola suspirou.
— Há coisas que é melhor que não sejam ditas. Vamos, o vento está frio. Já o vimos a caminho. O empreendimento está agora nas mãos do Guardião das Chamas.
— Fola — insistiu Broichan —, o que ias dizer?
— Algo que não vais querer ouvir.
Broichan aguardou, alto e pálido no seu manto negro.
— Muito bem. Ele é filho de Bridei. Mesmo com os seus caracóis castanhos e os olhos claros, é também igualzinho a ti. Imita os teus gestos como se fossem um único ser. Copia o tom da tua voz, mesmo sendo demasiado jovem para formar palavras. Até se senta como tu. Esta semelhança vai tornar-se mais acentuada quando a criança ficar mais velha e as pessoas vão começar a falar, pessoas que sejam menos perspicazes do que Tuala ou do que eu.
Broichan não falou, nem se moveu. Era quase como se não a tivesse ouvido.
— Sabia que não ias gostar — disse Fola, num tom seco. — Lembra-te disso, é tudo o que te digo. Pode não ser mau, se a criança decidir tornar-se druida. A corte poderá não ser o melhor lugar para ele. Não duvido que a promessa inicial venha a transformar-se num talento prodigioso, um talento semelhante ao teu. Terá de ser protegido.
Ao ver que o druida não teceria qualquer comentário, Fola virou costas e dirigiu-se bruscamente aos aposentos que lhe tinham sido destinados, interrogando-se sobre se atiçara o que a seu tempo poderia vir a tornar-se um incêndio.
— Pronto — disse Tuala, enquanto se assoava a um pedaço de linho. — Já chorei o suficiente para uma noite. Todos sabíamos que esta altura chegaria. A sério, estou tão orgulhosa do que Bridei está a fazer, que é ridículo chorar por ele ter de partir. Ridículo e egoísta.
— De todo — garantiu Ferada, que estava sentada à frente da amiga, nos aposentos privados do rei. Deitado sobre um tapete de pele de borrego à frente da lareira, Derelei examinava uma bola ruidosa presa a um cordel, a qual herdara dos gêmeos de Garth e Elda. — É perfeitamente natural que as mulheres sofram quando os seus homens partem para a guerra. Ainda mais quando a mulher em questão possui poderes divinatórios. Imagino que tenhas visto alguma coisa no futuro de Bridei que te deixou perturbada e que estás a tentar não comentá-lo com ninguém.
Tuala procurou sorrir.
— É assim tão óbvio?
— Só para os teus amigos. Não te preocupes, não tens de me contar. Sei que desejas apresentar-te ao povo de Fortriu como sendo uma mulher comum, igual a qualquer esposa e mãe, sem talentos especiais. E, enquanto esposa e mãe comum, tens direito a algumas lágrimas com a partida do teu marido para uma expedição tão perigosa. Fico satisfeita por não ter um homem com que me preocupar, não contando o meu pai, e ele já sobreviveu a tantas batalhas que perdi o hábito de me preocupar com ele. Agradeço aos deuses que os meus irmãos, com doze e treze anos, sejam ainda muito novos para a guerra.
— Desta vez, Bridei corre um perigo acrescido. — Tuala falou com um tom muito baixo. — Não sei de que se trata, mas existe a possibilidade de o preço da expulsão dos Celtas ser a sua própria vida. Foi o que vi no augúrio que Broichan lançou. Também vi a vitória.
— Deste a conhecer o que viste?
— Contei a Bridei. A mais ninguém.
— E, mesmo assim, ele partiu?
— Dá mais valor à liberdade de Fortriu do que à própria vida. Tenho de confiar n'A Que Brilha para o guardar nos seus braços e para o trazer de volta a casa quando tudo terminar. — Tuala olhou para o filho, que segurava a bola de madeira nas mãos imóveis. O objeto chocalhava alegremente. — Diz-me o que tens andado a fazer, Ferada. Como vai a construção?
— Muito bem, obrigada. Ah, por falar nisso... trouxe um presente a Derelei. Deixa-me ir buscá-lo ao saco. — Ferada levantou-se e dirigiu-se à trouxa que deixara sobre a arca junto à abertura estreita que servia de janela. Vestia roupas mais práticas do que os trajes elegantes de outrora e tinha o cabelo ruivo mais simples, mas Tuala reparou, com um sorriso, que os preparos da amiga continuavam imaculados como sempre, a postura ereta. As novas alunas ficariam demasiado intimidadas para pisar em ramo verde.
— Olha — disse Ferada, retirando um pequeno objeto dos recônditos do saco. — Pensei que ele fosse gostar. Foi Garvan quem o fez. Está a realizar alguns trabalhos para Fola e não quis desperdiçar os restos de pedra. Posso dá-lo a Derelei?
— É claro. — Tuala observou a amiga a ajoelhar-se no chão e a esconder o cavalo minúsculo debaixo da saia, fazendo-o aparecer e desaparecer até que Derelei, depois de abandonar a bola ruidosa, o agarrou com um grito triunfante de «Cãozinho!» Talvez, afinal de contas, as alunas não fossem recear Ferada assim tanto, pelo menos depois de a conhecerem.
— É uma estatueta muito bonita — comentou Tuala —, que faz jus ao talento do gravador real. Olha só o xairel, todo coberto de símbolos pequeninos. E a expressão do cavalo. Faz-me lembrar o velho Lucky. Até parece que a criatura vai começar a relinchar de prazer. Não fazia idéia que Garvan possuía tal sentido de humor. Nem que tinha tempo de fazer brinquedos para crianças. — Olhou da criança com o brinquedo novo para Ferada, que continuava no chão. Em redor do pescoço, a jovem trazia um ornamento pendurado de um belo cordão, uma raposa minúscula esculpida ao mais ínfimo pormenor. Não era de pedra, mas de madeira escura, talvez carvalho. Tuala tinha a certeza de que Ferada nunca antes trouxera aquela miniatura encantadora para a corte. No passado, a filha de Talorgen preferira jóias em prata, incrustadas com pedras preciosas.
— Garvan começou a esculpir madeira também? — perguntou Tuala. Os dedos de Ferada cobriram bruscamente a pequena raposa, após o que voltou a pousar as mãos no regaço.
— Não tires conclusões precipitadas, Tuala — disse, com severidade. — Julgo que posso ter um amigo homem, sem que as pessoas comecem a mexericar.
— Quem é que está a mexericar? — replicou Tuala, com um sorriso. — Não digo nada, prometo. Que está ele a fazer para Fola, estátuas de deuses e criaturas?
— Está a gravar símbolos numa arcada que liga o jardim principal de Banmerren à área exterior da nova ala — explicou Ferada. — A minha ala, quero eu dizer. A maior parte do trabalho de alvenaria está completo. Garvan e o assistente estão a fazer a decoração. E algumas estátuas. É uma grande empreitada.
— Mm-mm — disse Tuala.
— Não faças isso! — disse Ferada com brusquidão. — Estou demasiado ocupada para pensar em homens. Nunca os quis e continuo sem querê-los. Tenho coisas melhores onde gastar as minhas energias.
— Desculpa — disse Tuala. — A sério. E não me referia a homens, mas a um homem em particular.
— Se te referes a Garvan, a única mulher por quem alguma vez se interessou foste tu, Tuala. Depois de o recusares, escolheu dedicar a energia ao trabalho.
— Recusá-lo? Eu mal tinha treze anos. Sinto-me afortunada por Fola me ter oferecido uma alternativa ao casamento. Na altura, achei Garvan um homem bondoso e perspicaz, embora não pudesse ser considerado atraente.
Ferada sorriu.
— Dito com muito tacto, Tuala. É um homem normal. Garvan seria o primeiro a admiti-lo. A nossa amiga Ana diria que não é o aspecto que interessa, mas o que reside no interior.
— E tu, o que dizes?
Ferada não respondeu. Concentrara-se em Derelei, o qual estava agora deitado de bruços no tapete, as duas mãos estendidas na direção do pequeno cavalo de pedra. A seu lado, a roca vibrava levemente para si própria, mostrando que não fora esquecida, mas a atenção da criança estava na criatura esculpida. Ao seu sinal, a estátua levantou um casco delicado, depois outro, ergueu a cabeça e relinchou suavemente, começando depois a mordiscar a pele de borrego.
— Ele costuma fazer este tipo de coisas — disse Tuala, com um tom apologético.
— Foi Broichan quem lhe ensinou? — sussurrou Ferada, que observava a pequena criatura a contornar o tapete a trote.
— Broichan está a dar-lhe os meios para controlar os talentos naturais — explicou Tuala. — Não interessa o que eu pense desse homem, reconheço a sua sabedoria em relação à necessidade de tal aprendizagem. Derelei faz o que faz sem pensar. Pode ser extraordinariamente dotado para a arte, mas isso não muda o fato de ter menos de dois anos de idade.
Ferada observou, concentrada, o cavalo minúsculo completar o circuito em redor da pele de borrego e regressar à criança. Afagou-lhe a face com uma pancadinha do focinho. Derelei riu-se. Momento depois, a mão moveu-se com um gesto controlado, de todo pertencente a uma criança, e o pequeno garanhão voltou a ser um mero artefato esculpido em pedra lisa.
— Tuala — começou a jovem a dizer, à cautela, mas deteve-se.
— Deixa-me servir-te uma taça de hidromel — ofereceu a rainha de Fortriu. — Tenho aqui uma bela mistura, feita para ocasiões especiais. Vou dar-te um jarro para levares para casa contigo. Podes partilhá-lo com o teu mação. Imagino que um dia longo passado com cinzel e maço deixem um homem sedento.
— Pára! — Ferada levantou-se e voltou a instalar-se na cadeira.
— Sim, partilhemos uma bebida. Quase não a temos, em Banmerren. O teu filho faz-me lembrar alguém, mas não sei exatamente quem.
— Imagino que seja Bridei. O cabelo é o mesmo.
— É mais uma sensação, não é nada assim tão óbvio. Pode ter herdado os caracóis e a calma de Bridei, mas o que me intriga é o que veio do teu lado. Os talentos que pareces ansiosa por não revelar. Quando for mais velho, Derelei vai perguntar-te sobre as suas origens, Tuala. O que tencionas dizer-lhe?
Tuala servia o hidromel para copos de vidro azul, uma oferta de um chefe tribal do sul que os visitara.
— Não tenho respostas para lhe dar — replicou. Nunca contara a Ferada sobre o par de visitantes do Outro Mundo que a tinham consolado e atormentado no final da infância. Como lhe tinham prometido que descobriria a verdade sobre os pais, esperança essa que lhe fora roubada quando escolhera ficar com Bridei e esquecer o mundo para além das fronteiras. Desde que ouvira o filho a tagarelar com o que pareciam ser companheiros invisíveis, os seres marcavam presença nos seus pensamentos. O vocabulário de Derelei era ainda limitado, dizendo palavras como Papai, Mamãe, Broichan e poucas mais. Ouvira-o utilizar cada vez com mais freqüência dois nomes novos, que a língua infantil pronunciava como Tia e Massilva. Tuala reconhecera-os de imediato. Era prova de que os Boa Gente, que tinham brincado de forma inteligente e cruel com a sua vida e a de Bridei, interferiam já na do filho. Derelei ainda era um menino. Pesasse embora o talento prodigioso, era completamente vulnerável.
— Tenho de acreditar que Broichan vai protegê-lo enquanto cresce — disse a Ferada. — Garth está conosco para afastar os perigos mundanos e Faolan deverá regressar em breve. O druida do rei tem o poder e o talento para rechaçar os outros tipos de ameaças. Mas é claro que me preocupo com o meu filho. Tenho perfeita noção de que lhe abri um caminho difícil nesta vida. Fui eu quem lhe transmitiu os poderes sobrenaturais. Devido às minhas opções, terá de viver entre os humanos. Enquanto filho do rei, vai andar nos olhos do mundo. As pessoas vão falar.
— Se queres que seja invisível, é melhor que o envies aos druidas. Tuala assumiu uma expressão carregada e envolveu-se com os braços.
Derelei rebolara, ficando deitado de costas, e parecia estar a adormecer.
— Não quero que se vá embora — disse. — Bridei precisa da presença da família. Somos a sua força. Até mesmo Broichan prefere que Derelei receba a educação na corte. Parece gostar muito dele. Quase como um avô. Nunca imaginei que tivesse essa capacidade.
— Interessante — comentou Ferada. — Talvez as coisas venham a ser mais fáceis quando tiveres mais filhos.
— Não, se forem como Derelei. — O menino ia cantando sozinho, um trauteio sem palavras no seu tom infantil. Embora as mulheres não o tivessem visto a mover-se, o cavalo de pedra assumira a postura equídea para dormir, com as pernas recolhidas debaixo do corpo e os olhos fechados. A roca vibrava lentamente, a um palmo do braço estendido de Derelei.
— Bem, lembras-te do que te disse. Quaisquer meninas que tenhas com Bridei serão bem-vindas à minha escola. Se os talentos vierem a revelar-se mágicos, entrego-as a Fola.
— Nessa altura talvez já tenhas um ou dois filhos teus — sorriu Tuala.
— Queres o hidromel pela cabeça abaixo?
— Prefiro bebê-lo. Prometo não voltar a falar desses assuntos. Pelo menos esta noite. É um prazer ver-te feliz, Ferada. Não resisto a provocar-te para ver esse brilho nos teus olhos, aquele que tinhas antes de... antes de tudo acontecer. — Tuala assumiu de repente uma expressão solene.
— Sim — replicou Ferada, com um tom sóbrio. — É estranho dizer isto, mas imagino que se a minha mãe pudesse ver o que estou a fazer, ficaria orgulhosa. Não sei se deva ficar satisfeita ou com medo.
— Não és como ela — asseverou Tuala. — Só nas características positivas, a tua força e determinação. E no teu inegável sentido de estilo.
Ferada tinha a mão fechada em redor da pequena raposa de madeira.
— Tinha tanto medo dela — disse, a expressão de súbito gelada. — Se eu tivesse uma filha, seria terrível que sentisse o mesmo em relação a mim.
Tuala não respondeu. Derelei estava quase a dormir. Pegou-lhe ao colo e levou-o para a cama. Quando regressou, Ferada voltara a servir os dois copos e parecia mais calma.
— Sabes — disse Tuala —, foi a primeira vez que te ouvi a falar sobre a maternidade, mesmo como sendo uma possibilidade remota.
— Não estava a falar a sério. Tenciono envelhecer sozinha e feliz, tal como Fola.
— Mm-mm. Uma coisa é certa. Serás tu própria a fazer as tuas escolhas. Não precisas de ter medo de ser como a tua mãe, Ferada. Tens uma personalidade forte, és bondosa e inteligente. Uma verdadeira amiga.
— Obrigada — disse Ferada, passados alguns momentos, com um tom de verdadeira surpresa. — Imagino que seja Ana a próxima a ter filhos. Será que nos virá visitar, com o belo chefe tribal do norte ao lado e um rancho de guerreiros Caitt em miniatura agarrados às saias?
— Vejo Ana com filhas — disse Tuala, que olhava com um ar pensativo para o hidromel.
Ferada olhou-a fixamente.
— Dizes isso por ela ser uma rapariga doce e feminina? Ou viste alguma coisa no seu futuro? Sabes se está feliz?
Tuala hesitou.
— Não sei. Um relance, algo estranho... não sei dizer, a sério. Já não faço este tipo de coisas. — Não olhou para Ferada.
— Devido ao que poderias ver? Por Bridei?
— Não é assim tão simples. Às vezes tenho rasgos acidentais de visão. Estou muito preocupada com Ana. Os poucos vislumbres mostram-na a chorar, ansiosa, com medo. É claro que podem ser imagens do passado, ou do presente, ou de um tempo ainda por vir. E... e vi Faolan a tocar harpa.
Ferada soltou uma gargalhada breve.
— Ora aí está uma coisa que só pode ser imaginação. Talvez se deva a hidromel a mais. É óbvio que tenho de te ajudar a acabar com este jarro. Vamos fazer um brinde? Aos amigos ausentes: que os deuses velem por eles e que os tragam de volta em segurança.
— Que A Que Brilha lhes conceda bons sonhos, esta noite. Que o Guardião das Chamas lhes ilumine o despertar — disse Tuala, mas uma sombra encobria-lhe os olhos. Quantos seriam esses despertares, até que a Mãe de Tudo percorresse o campo do sangue e da dor, recolhendo os filhos chacinados e levando-os para o mais longo de todos os sonos?
Faolan bem podia estar a tocar a música da guerra, pois o coração batia-lhe ao ritmo desse entretenimento bélico. Tinha a pele úmida do suor nervoso. Seria difícil que os dedos fizessem soar devidamente as cordas da harpa. Os códigos rígidos, com os quais aprendera a dominar o comportamento e a refrear os sentimentos ao longo dos anos desde a noite fatídica em que a sua vida mudara, não lhe serviriam de nada. Assim que pegasse na harpa, no momento em que abrisse a boca para cantar, voltaria a ficar exposto. Como seria capaz de agüentar uma única canção, quanto mais um repertório suficiente para a demorada ceia que iria celebrar a caçada?
Ana fitava-o. Tinha um ar doente, a palidez mais acentuada, as faces encovadas, a boca adorável contraída, como se tentasse controlar a dor. Acenou-lhe gravemente com a cabeça. Faolan viu-lhe nos olhos o reconhecimento de que agira de forma errada e de que seria ele a sofrer, embora não fosse capaz de entender o motivo na totalidade, pois Faolan nunca lhe contara a história da sua vida, nem viria a fazê-lo. Faolan viu que ela lamentava e perdoou-a de imediato. Baixou a cabeça em resposta, o gesto cortês de um servo à sua senhora, rígido e formal, calculado para não ofender Alpin de forma alguma. Depois, Faolan pigarreou e começou.
Todos gostaram da canção sobre a caçada. Gerdic, fiel à sua palavra, decorou o refrão alegre e dava o mote à multidão ali reunida sempre que era altura de voltar a cantá-lo. Faolan fora extremamente cuidadoso na sua pesquisa. Nenhum dos comensais naquele salão poderia dizer que o bardo não estivera presente quando a lança de Lorde Alpin trespassara o coração do primeiro javali ou quando a segunda criatura surgira inesperadamente e quase castrara o batedor assistente de Briar Wood, antes de os cães atacarem. No final da canção longa, doze estrofes ao todo, Alpin cantava com os restantes e a expressão de Ana só podia ser descrita como de espanto.
A canção não tivera acompanhamento, salvo o bater dos pés e as palmas ritmadas. Faolan sentia a transpiração a escorrer-lhe pelo pescoço. Era como se tivesse acabado de travar uma batalha sozinho. De certa forma, tal fora exatamente o que acontecera, uma batalha contra si próprio. Contudo, tinha a sensação desagradável de que o verdadeiro teste estava ainda por vir.
— Vamos ouvir essa harpa, rapaz! — gritou Alpin, com um ar radiante. O chefe tribal estava satisfeito. Prova disso era o fato de não ter tratado Faolan por «Celta». — Dá-nos alguma coisa para as mulheres. Que tal uma canção de amor? Gostarias disso, minha querida, não é verdade? — Deu uma palmadinha na mão graciosa de Ana com a sua pata enorme.
Faolan obrigou-se a respirar lentamente. Apoiou a harpa no joelho e perdeu algum tempo a afiná-la, embora já estivesse perfeita, pois confirmara-a várias vezes antes de entrar no salão.
— Faolan — fez-se ouvir a voz de Ana, límpida e gentil no espaço apinhado —, gosto daquela balada sobre o homem que se apaixonou por uma fada, sabes a que me refiro? — Virou-se para Alpin. — É em gaélico, mas não te importas, pois não, meu querido? Gosto bastante da melodia, mesmo sem perceber o que é dito.
Julgou estar a ajudá-lo, mencionando uma canção que Faolan já conhecia, pois ouvira-o a trauteá-la no vau. Talvez pensasse que era a única outra trova no seu repertório.
Alpin teceu um comentário impaciente que dava o seu consentimento relutante e passou o braço pesado à volta dos ombros elegantes da noiva. As mãos de Faolan moveram-se. Detiveram-se. Voltaram a mover-se, com um floreado confiante pelas cordas. A canção fez-se ouvir, forte e afinada, silenciando todas as línguas naquele salão. O coração vibrava em uníssono com a harpa, com um fluxo de emoções que ameaçavam arrasá-lo, pois já havia muito tempo desde que fora assolado por sentimentos tão poderosos. Tinha de fazê-lo. Agora não podia esconder-se, não podia fugir. Faolan respirou fundo e começou a cantar.
Claro que Ana entendia gaélico, pelo menos o suficiente. Não fosse a necessidade de Faolan de invocar toda a sua força, a fim de impedir que as recordações se tornassem avassaladoras ao ponto de o fazerem ceder, e poderia ter aproveitado aquela oportunidade para falar com a jovem, para avisá-la de que era bem provável que Alpin fosse um mentiroso e que talvez precisassem de fugir. Para lhe elogiar a beleza e a coragem. Para lhe dizer o que nunca poderia ser dito para lá da segurança de uma narrativa fantástica de paixão e mágoa. Faolan deixou que a harpa falasse por ele, transmitindo no delicado arabesco de notas o maravilhoso amor de Fionnbharr por Aoife, a donzela dos sidhe, e o vazio doloroso que sentiu ao perdê-la. A canção fluía quase por vontade própria. Se a voz lhe fraquejou alguma vez, a audiência nem deu por isso. Copos ficaram suspensos entre a mesa e as bocas, ossos de javali imobilizaram-se nos dedos gordurosos. Os criados que serviam as mesas estacaram, de travessas cheias nas mãos. Junto à parede do outro lado do salão, um homem baixo e calvo de ombros largos ouvia com atenção, os olhos plácidos, a boca a esboçar um sorriso irônico.
Eventualmente terminou. A ovação estrondosa não se fez esperar, as palmas acompanhadas por assobios estridentes e murros nas mesas. Gerdic acercou-se de Faolan com uma palmada no ombro, quase deslocando a posição da harpa. Outro homem entregou-lhe um copo a transbordar de cerveja.
— Bebe e vamos ouvir mais uma. Mas não uma dessas canções lentas e chorosas, pois as mulheres ficaram perdidas... olha só a minha mulher, a carpir como se a mãe lhe tivesse morrido. Brinda-nos com alguma coisa com ritmo, uma canção de batalha, ou coisa do gênero. E depois canta outra vez a primeira, pois agora já conhecemos a melodia.
— Bardo! — chamou Alpin. — Já chega desses disparates celtas, não tenho paciência para eles. Pelos deuses, dá-nos palavras que possamos compreender. E uma melodia de homem, pois hoje derramamos o sangue de um javali e precisamos de entretenimento digno da ocasião. Toca qualquer coisa forte e mexida.
Faolan engoliu um trago de cerveja, pousou o copo e recomeçou. Não era difícil encontrar a melodia certa, pois conhecia centenas. Tocar não era um desafio de maior, mesmo que os dedos não se dedicassem a essa tarefa há mais anos do que gostava de recordar. As técnicas regressaram prontamente e a harpa negligenciada mostrou-se à altura. Se Faolan se tivesse conseguido abstrair da dor que estivera armazenada no coração, talvez pudesse ter realizado o que lhe pediam, saindo do suplício apenas com os dedos doridos. Prosseguiu com as melodias, satisfeito por a audiência mostrar uma preferência por canções alegres e triviais, pois seriam as melancólicas e profundas que teriam o condão de o arrasar.
A dada altura, Ana desculpou-se e retirou-se para os seus aposentos. A Faolan parecia óbvio que ela se debatia por ocultar o espanto e, pelo menos assim o imaginava, o alívio. A última coisa que a jovem teria esperado era que ele se revelasse um músico competente. Permitiram-lhe um breve descanso, durante o qual lhe serviram comida e bebida. Falou com Gerdic e com outros homens. Mais tarde, não recordaria uma única palavra trocada. Tentou respirar de forma ritmada, algo que observava Bridei a fazer em momentos de tensão, e descobriu que ajudava um pouco. A enxurrada de recordações continuava a assolá-lo, mas conseguiu reprimir as manifestações físicas: as mãos trêmulas, a voz instável, as lágrimas que ameaçavam brotar. O longo serão aproximava-se do fim e Alpin pediu uma última canção.
Ao levar os dedos às cordas, Faolan ainda não decidira a melodia que lhes iria apresentar. O bom senso aconselhava algo breve, inócuo e alegre, algo que os levasse para a cama com um sorriso nos lábios e que convidasse a sonhos agradáveis. No derradeiro momento, optou por ignorar o seu próprio bom conselho e deu início a uma canção mais grandiosa, o relato de uma batalha heróica, celta contra celta, na qual um grande líder inspirava as suas forças para uma vitória improvável. Não cantou na sua língua nativa, mas na da audiência e, em vez de um chefe tribal ruivo de Ulaid, o herói era um rei jovem de Fortriu, recém-chegado ao trono, um homem que tinha como símbolo a águia e cuja grande ventura era vista pelo Guardião das Chamas com orgulho e entusiasmo. Não nomeou Bridei, mas não havia homem ou mulher ali presente que não o entendesse. Cantou como os idosos depunham as bengalas e os copos de cerveja para saudar a passagem do jovem rei. Como os homens na flor da idade se lhe juntavam às centenas. Como os jovens, ainda mal com idade para largar as saias da mãe, empunhavam as espadas dos ancestrais falecidos e partiam a jurar a sua fidelidade ao novo rei. Cantou como a coragem, a sabedoria e a força do antepassado original, Pridne, pareciam renascer naquele jovem líder.
A canção terminou com uma melodia da harpa e uma nota solitária da corda mais aguda. Seguiram-se alguns momentos de silêncio, após o que Faolan curvou a cabeça em agradecimento da ovação que se fez ouvir em seu redor. Executara a canção sem que dela tomasse consciência. Parecera fluir sem necessidade da sua intervenção. Em tempos, quando era novo e se debatia com a técnica, teria dado muito por tal criação intuitiva. Naquela noite, só se apercebeu de como se sentia depois de tudo terminado. Era como se o corpo tivesse sido arrastado sobre pedras. Sentia-se dorido, desgastado como um cão vadio, o coração oprimido no peito, queixando-se do ataque que sofrera, pois fora aberta uma porta há muito trancada, que deixara entrar mais do que o suportável.
— Vem cá, bardo. — Alpin estava de pé, pronto para se retirar. Os bancos foram arrastados nas lajes quando os restantes membros da casa acompanharam o erguer do seu líder.
Os pés de Faolan executaram os movimentos necessários, levando-o pelo salão até à presença do líder de Briar Wood. Descobriu que os joelhos não estavam preparados para se dobrar. A máscara de subserviência já não lhe parecia possível. Conseguiu curvar a cabeça pois, se tivesse os olhos marejados de lágrimas, não queria que aquele homem as visse.
— Surpreendeste-me. — O tom de Alpin não era hostil, apenas curioso. — A última coisa de que estava à espera era que soubesses mesmo tocar. Afinal de contas, a dama dizia a verdade.
Faolan ergueu o olhar, as lágrimas esquecidas.
— Lady Ana não mente — disse, com um tom frio. Alpin carregou o sobrolho.
— Podes tocar bem — disse — e cantar melhor, e até nos proporcionaste um bom entretenimento, mas se fores um bardo, esfolo o próximo gato que se cruzar no meu caminho e como-o ao pequeno-almoço, com ossos e tudo.
— Sim, meu senhor. — As mãos de Faolan apertaram a estrutura da harpa.
— Vou deitar-me — indicou Alpin. — A senhora não está bem. Devo passar pelo seu quarto, para ter a certeza de que não precisa de nada. Espero que não venha a revelar-se enfermiça. Preciso de filhos, bardo. Não há canções bonitas que me ajudem a consegui-los. Podes ir. Pela virilidade do Guardião das Chamas, pareces tão pálido e trêmulo como a tua senhora. O que se passa com estes sulistas? Gerdic, leva-o para dormir, está bem, antes que ele desmaie e deixe cair o instrumento. Precisamos dele, e da harpa, inteiros. Imagino que amanhã as mulheres queiram mais baladas. Boa noite, rapazes. Que o Guardião das Chamas vos dê sonhos de bestas chacinadas e de batalhas ganhas. E uma mulher confortável na vossa cama.
Em tempos, havia mais de cinco anos, Faolan passara uma longa noite em branco ao lado de Bridei. Lembrava-se de como o rei vomitara até secar o estômago. A forma como dominara o tremor que se lhe tinha apoderado do corpo. Como conseguira manter-se em silêncio e reprimir as lágrimas. Todos o tinham acompanhado na noite terrível do sacrifício do Portal, Faolan, Breth e Garth, e velaram pelo futuro rei tanto por amor como por dever. Agora, era o próprio Faolan que se arriscava a tombar vítima de um excesso de emoções sombrias e, se ali tivesse um camarada que lhe oferecesse conforto, tê-lo-ia repelido. Não acreditava que um homem como ele pudesse ter amigos. Não os merecia, pela sua natureza. Não havia alma no mundo a quem permitisse que testemunhasse a sua fraqueza. Não havia homem sobre a terra a quem confessasse a sua história. Nem mesmo a Bridei. O que revelara a Drustan e a Deord era um mero fragmento da verdade, confidência essa que lamentava ter feito. Certas coisas deviam permanecer escondidas, por revelar. Quase, mas nunca completamente, esquecidas.
Por isso, desculpou-se perante Gerdic e os outros, desejosos de levar mais cerveja para os alojamentos e continuar a celebração da noite. Dirigiu-se sozinho ao mesmo terraço pequeno onde sabia que Ana se sentava à tarde, com os seus bordados. Havia guardas nos passadiços e mantinham-no debaixo de olho, como era seu dever, mas não tentaram detê-lo enquanto subia os degraus estreitos. Reprimiu os demônios interiores (ah, Dubhán, o melhor dos irmãos, e o sangue quente a jorrar, a manchar-lhe as mãos de vermelho) até chegar a um canto nas sombras, onde a luz dos archotes dispostos em suportes de ferro não cairia sobre ele. Agachou-se aí, passou os braços sobre a cabeça como uma criança perdida e chorou em silêncio.
— Estás com melhor aspecto, esta manhã — disse Alpin, a boca cheia de papas de aveia. Ana voltara a tomar o pequeno-almoço com ele assim que deixara de sangrar e ficara sem cãibras. — Tens as faces mais rosadas, assim é melhor. Tenho novidades.
— Sim? — Ana serviu-se de pão e de borrego assado frio. Desejava transmitir uma aparência de descontração e bem-estar, embora o coração tivesse disparado com os nervos. Tinha uma pergunta a fazer ao noivo e não sabia se ele gostaria de ouvi-la.
— Sim, o druida deve chegar dentro de um dia ou dois. Foi avistado ontem, a descer a colina do Vale das Tempestades e um dos meus homens enviou um corredor para me informar. Já não falta muito.
A expressão nos olhos de Alpin fê-la estremecer.
— Oh. Ainda bem — foi tudo o que conseguiu dizer. Dois dias. Tão cedo. A verdade era que, não interessava quantos dias faltassem para o casamento, para ela seria sempre demasiado cedo. Conseguia ouvir a voz doce de Drustan: Não quero que cases com o meu irmão.
— Sorri — disse Alpin, observando-a com atenção. — Convence-me de que estás satisfeita.
Ana sobressaltou-se. Seria o seu estado de espírito assim tão transparente?
— Estou satisfeita — disse, mas não foi capaz de sorrir. — Imagino que esteja um pouco nervosa. Peço desculpa se tal é evidente no meu humor.
— Imagino que já cá estejas há tempo suficiente para te teres instalado. — Alpin estava sentado de pernas abertas, os braços cruzados sobre o tampo da mesa, inclinado na direção da jovem. — E já tiveste oportunidade de te habituares à minha pessoa e à idéia de casamento. Tens de te descontrair um pouco. Não é preciso tanta formalidade quando estás sozinha comigo. Vem cá. Senta-te a meu lado, isso mesmo. Mais perto. — Um braço imenso envolveu-lhe os ombros e, de repente, a outra mão puxara-lhe a saia e insinuava-se com alguma ousadia pela coxa acima. Ana arquejou.
— Pronto, pronto — disse Alpin, como se tentasse acalmar um animal nervoso. — É só a praticar, não tem mal... Vai tornar as coisas mais fáceis, na noite do casamento, prometo... — A mão chegara rapidamente a um ponto onde seria obrigada a detê-la. A outra mão deslocara-se para o seio e apertava de modo desconfortável, e os lábios de Alpin estavam no pescoço da jovem, esfregando-se e sugando. A respiração do homem acelerara. Ana sentiu uma repugnância inflexível percorrer-lhe o corpo. Casaria com ele dali a dois dias, dois dias, e, se ele não parasse com aquilo, Ana iria gritar ou vomitar, sem que pudesse evitá-lo. O dever manteve-a imóvel e silenciosa, à medida que a repulsa lhe atravessava o corpo em ondas geladas. Tentou imaginar o que faria Ferada naquela situação, mas não conseguiu pensar em nada. Era óbvio que Ferada nunca teria deixado que as coisas chegassem àquele ponto. Se Ferada alguma vez permitisse que um homem a tocasse assim, seria alguém escolhido por ela após uma seleção rigorosa.
Os dedos de Alpin acariciavam, pressionavam, sondavam. Afastavam o tecido da roupa interior... Ana contorceu-se um pouco, tentando não fazer um esgar quando os dedos de Alpin tocaram a pele nua das suas partes íntimas. A jovem desviou-se e obrigou-se a beijá-lo nos lábios, um esforço breve mas não demasiado virginal, pois não queria que ele percebesse o quanto a situação a incomodava. Depois afastou-se dele, enquanto voltava a baixar a saia.
— Se me queres em boas condições, meu querido — disse, conseguindo esboçar um sorriso —, tens de me deixar terminar o pequeno-almoço.
Alpin riu-se. Agora era o seu rosto que estava corado.
— Pela virilidade do Guardião das Chamas, rapariga, depois de tanto tempo, nunca pensei que mais dois dias custassem tanto a passar. Espero que saibas como é difícil para um homem. Espero que saibas o quanto te desejo. Tenho umas belas noites à tua espera, prometo. Toma, sente só. — Agarrou-lhe na mão e, antes que Ana se apercebesse do que ele fazia, levou-a ao baixo-ventre e pressionou-a, fazendo com que a forma ereta da sua virilidade enchesse a palma da mão da jovem.
— Dizem que tenho a constituição de um touro — comentou Alpin com um tom presunçoso. Largou-a e voltou a dedicar-se às papas.
— Vou dar-te filhos com fartura. E um prazer como nunca sonhaste. Vais ter algumas nódoas negras daqui a duas noites, mas vão ser agradáveis. Come. Tens razão, precisamos das nossas forças.
Se pensara que iria conseguir reconfortá-la, saíra-se muito mal. Comeram em silêncio durante algum tempo, após o que Ana respirou fundo e deu início ao que pretendia dizer.
— Espero que não fiques irritado comigo, meu querido, mas tenho um pedido a fazer-te.
— Ah sim? Qual é?
— Continuo um pouco... perturbada com a situação familiar presente. Com o teu irmão, que está preso, mas continua aqui na casa. Quer-me parecer que isso lança uma certa tristeza sobre Briar Wood, uma sombra do passado que nos cobre a todos. Isso preocupa-me, Alpin. Falas de filhos. Preocupa-me que os meus filhos cresçam num lugar que esconde um segredo tão terrível.
Alpin continuou a comer, algo que Ana interpretou como sendo um bom sinal.
— Que queres que eu faça? — perguntou. — Que o mande embora?
— Claro que não, não quis dizer nada disso — apressou-se Ana a replicar. — Apenas quero entender melhor a situação e talvez remendar alguns laços quebrados. Disseram-me que dispensaste a maior parte das pessoas que aqui trabalhava quando... quando aconteceu aquela coisa horrível.
— Disseram-te. Quem te disse? — Havia um tom novo na voz de Alpin que não agradou a Ana.
— Passo as tardes a coser com as outras mulheres, Alpin. As mulheres falam.
— Umpf. Era melhor que se dedicassem a temas mais apropriados. Ninguém tem nada a ver com quem dispenso ou mantenho nesta casa.
— Ouvi dizer que existe uma idosa que tomou conta de ti, do teu irmão e da tua irmã quando eram crianças. Que ela vive algures na floresta, sozinha.
— Mm-mm.
— Parece-me triste que não tenhas uma serva tão leal debaixo do teu teto. Não será perigoso viver sozinha?
Alpin olhou-a com curiosidade. — O que queres? — perguntou.
— Gostaria de visitá-la — respondeu Ana, as palmas das mãos suadas com o nervosismo. — De falar com ela, tentar perceber um pouco da família à qual vou pertencer. Se a tua irmã aqui estivesse, ou se a tua mãe ainda fosse viva, seria a elas que perguntaria. Se Orna estivesse disposta a falar, obteria informações com ela. Mas recusa-se a comentar o assunto.
— Não podes visitar Bela. — Alpin pegou na faca e voltou a pousá-la, bebeu um gole de hidromel e serviu-se de mais. — Há anos que ninguém a vê. Pode ter morrido, ou abandonado a floresta.
— Não tem uma casa? Uma barraca? Como pode sobreviver sozinha? — continuou Ana a insistir, sem querer aceitar que a última esperança de obter provas se desvanecesse.
— Não faço idéia. — Alpin fitou-a. — Porquê este interesse súbito pela velha Bela?
— Eu... — Ana raciocinou apressadamente. — Estou a pensar nos nossos filhos, aqueles que viremos a ter. Vamos precisar de uma ama e, uma vez que se trata de uma serva de confiança da família...
— É uma velha senil — atalhou Alpin, com desdém. — Teremos uma nova ama para os nossos filhos. Alguém jovem e enérgica. Não podemos deixar que te canses, minha querida. Quero-te fresca e ardente. Pelos deuses, é como se tivesse esperado a vida toda por isto. Se me tratares bem, terás um bom marido, juro. Não há nada que não te dê.
Ana não foi capaz de cruzar o olhar de Alpin, pelo que fitou o prato.
— Espero vir a agradar-te, meu senhor — disse, por entredentes cerrados. — Tal como sabes, sou inexperiente no que diz respeito aos assuntos do quarto.
— Exatamente o que um marido espera da nova esposa — retorquiu Alpin. — Vais aprender. Vou mostrar-te o que fazer e ensinar-te a gostar. Acontece o mesmo com tudo quanto seja novo, montar a cavalo, caçar com falcão, usar um arco. Não há nada a recear. Mas tens medo, não é? E porquê?
Não podia dizer-lhe que o toque dele a perturbava e enojava.
— Estou um pouco aborrecida — disse-lhe. — Sinto-me triste por não ter ninguém dos meus para o casamento.
— Tens o teu bardo.
— Um servo não substitui a família — replicou Ana, satisfeita por Faolan não poder ouvi-la.
— Virei a compensar-te por isso — garantiu Alpin. — A seu tempo, iremos visitá-los. E também vou convidá-los. Seria benéfico, muito benéfico.
— Creio que devíamos tentar encontrar Bela — insistiu Ana —, para que seja bem tratada. Talvez se possa enviar alguém à sua procura? Gostaria de falar com ela, Alpin. Não resta quase ninguém que me possa contar sobre os tempos idos.
Alpin Semicerrou os olhos.
— E por que haverias de querer saber sobre eles?
— Eu só... Imagino que tenha a ver com Drustan. — Esperava que a voz não revelasse o calor súbito que a preenchera ao dizer o nome. — Com a maleita de que padece. Esperava que essa velha ama pudesse falar-me de Drustan enquanto criança. Se vou ter filhos teus, tenho de saber como essa doença se manifesta.
— Para fazeres o quê? Abatê-los como cachorros débeis?
Ana estremeceu. — Não, claro que não. Mas, pelo menos, obter conselhos atempados de um curandeiro.
— Nem o melhor caçador de Briar Wood seria capaz de encontrar a velha, Ana. Ela escondeu-se. Não há casa. Não há lareira de onde brote uma coluna de fumo que nos indique o seu paradeiro. Ninguém sabe onde ela está e estes bosques são traiçoeiros.
— Oh.
— Quanto a Drustan, a história dele conta-se rapidamente. Desde pequeno, sempre foi uma criança diferente. Obstinado. Estranho. Difícil. Não podíamos tê-lo aqui. Aos sete anos, foi enviado para casa do nosso avô. Lá cresceu, isolado, onde não me colocaria em perigo, ou à minha irmã. O nosso avô morreu tinha Drustan vinte anos. Deixou-lhe todo o domínio do Vale dos Sonhos, incluindo as águas de uma enseada profunda e abrigada. Foi um ato perfeitamente disparatado, pois nessa altura a loucura do meu irmão aproximava-se do auge. Podia fazer o que quisesse, no seu próprio domínio. Deixá-lo partir fora um erro. Os anos passaram-se. A minha irmã casou-se e partiu. O meu pai morreu e eu tornei-me mestre de Briar Wood. Raramente via Drustan, o que me agradava. Cheguei a pensar que pudesse vir a ter uma vida normal. O meu casamento apenas veio fortalecer essa convicção. Fui feliz durante algum tempo, mais feliz do que alguma vez tinha sido. Foi então que Drustan chegou, à primeira vista com o objectivo de discutir o uso pelas minhas forças do seu ancoradouro profundo. E aconteceu.
Ana obrigou-se a manter-se calma.
— Matou a tua esposa — disse. — Sem qualquer razão. Sem mais nem menos.
— Sim, sem mais nem menos. Perseguiu Erisa pela floresta, até Drift Falls, onde o ribeiro cai para a zona mais profunda da floresta, para um local onde o bosque é tão cerrado que não há caminhos de acesso. Escorregou nas pedras à beira do precipício e caiu. Num abrir e fechar de olhos, Drustan desapareceu de vista.
— Ele... — Ana engoliu as palavras. Ele diz que não se lembra.
— Não entendo por que faria ele tal coisa.
— Procuras explicações onde elas não existem. — Alpin guardou a faca com um movimento súbito.
— Só mais uma coisa. — Ana viu as sobrancelhas espessas de Alpin inclinarem-se numa expressão carregada. Teria de concluir rapidamente o assunto. — Como foi Erisa capaz de ser mais rápida do que Drustan a chegar a esse local... Drift Falls? Estava em fim de gravidez. Ele era... imagino... um homem apto, como tu. Decerto poderia tê-la alcançado.
— Ele não quis alcançá-la. — O tom de Alpin era sombrio.
— Queria que ela caísse. E foi exatamente o que aconteceu. Bela estava lá e foi esse o relato que me fez, antes de desaparecer na floresta. Drustan nunca o negou.
Uma mão gelada apertou o coração de Ana.
— Não gosto de contar esta história — disse Alpin, com pesar.
— Mas tens razão. Já que nos vamos casar, mereces saber todos os pormenores. Estás perturbada. Compreendo. Se quiseres que o mande embora quando tivermos os nossos filhos, assim o farei. Pareceu-me mais adequado tê-lo aqui. Afinal de contas, é meu irmão. Posso vigiá-lo melhor desta forma.
— Deves fazer o que achares melhor — declarou Ana, apercebendo-se do som tenso e magoado da própria voz. Não fazia sentido. Como poderia Drustan ser duas pessoas, o homem gentil que ela conhecia e aquele outro, violento e imprevisível? Mas por que mentiria Alpin sobre tal assunto?
Alpin dizia qualquer coisa. Ana não o ouvira.
— O que disseste?
— Que é melhor teres um dia sossegado. Não te queremos cansada no dia do casamento.
— É uma boa idéia, Alpin.
— Podemos ter uma ceia rápida esta noite, só nós dois.
— Mal posso esperar — mentiu Ana. O que fazer agora? Escolher a opção mais simples e cruel, e simplesmente nunca mais voltar a falar com Drustan? Nunca mais regressar ao pequeno terraço, local de sussurros e segredos? Ou usar a tarde para falar com ele, para lhe dizer... o quê? Que a única testemunha não poderia ser encontrada e que ela era obrigada a considerá-lo culpado por falta de provas em contrário? Uma coisa era certa. Quando casasse, não poderia voltar a haver diálogos secretos, os momentos doces e tão ansiados de canções e narrativas partilhadas, de conversas ternas. Os pássaros teriam de cessar as visitas, com os seus olhos brilhantes e pequenas oferendas. Iria limitar os bordados a imagens de cães. Mesmo assim... mesmo assim amava-o... Pronto, fora dito. Era tolo, ridículo, perigoso, mas mais sincero do que qualquer verdade. Aparentemente era um assassino, sujeito a ataques de fúria enlouquecida, e, mesmo assim, era o único homem que alguma vez amaria, o único homem que desejava que a tocasse da maneira que um marido toca a esposa...
Ana fechou os olhos por um momento e respirou fundo, deixando sair o ar com um suspiro. Estava a ser injusta para com Alpin, muito injusta. Ele perdera a mulher e o filho. Talvez fosse rude e de mão demasiado pesada, mas tudo o que queria era outra oportunidade de constituir família. Era uma pretensão razoável. Fora enviada com o único objetivo de casar com ele e não levantara qualquer objeção. Se acabara por se apaixonar por outro homem, o mais inadequado que poderia ter encontrado, a culpa era apenas sua. Não iria arruinar a oportunidade de Alpin ser feliz com algo impossível de concretizar, por um amor sem futuro. A maioria das mulheres casava sem amor. O grosso dos casamentos sobrevivia. Afinal de contas, as mulheres tinham os filhos e a casa para gerir. A tolerância e a amizade eram bases aceitáveis para uma sociedade vitalícia. Nem todos podiam ser como Bridei e Tuala, que tinham tudo isso, para além de um verdadeiro amor.
Contudo, pesassem embora todos esses argumentos assisados e práticos, era Drustan quem lhe preenchia alma e coração. Queria-o, precisava dele, desejava-o. Nem mesmo o casamento com o irmão alguma vez mudaria esse fato. Imaginava que o futuro não lhe reservava o lar aconchegante com que em tempos sonhara, mas um pesadelo de promessas quebradas e corações despedaçados.
Faolan criara um sistema com o qual era informado das movimentações em Briar Wood. Um dos tratadores dos cães não tinha motivos para gostar de Alpin, pois sentira a força da sua cólera ao salvar um cachorro que não se encontrava à altura das exigências do líder de Briar Wood. O rapaz não afogara a criatura, tal como lhe fora ordenado, tendo-a criado às escondidas, e agora a cadela seguia-o para todo o lado, como um acólito embevecido. Dovard prestara-se de imediato a ser os olhos de Faolan no que dizia respeito à pequena saída ao lado dos canis. Em troca, era apenas necessário coçar o animal atrás das orelhas pendentes e comentar a beleza da criatura.
Foi assim que Faolan veio a saber, antes do mestre da casa, que uma certa visita chegara sem aviso. Era um encapuzado, um homem pálido, de aparência e sotaque celtas. Dovard não lhe conhecia o nome, apenas sabia que já estivera em Briar Wood em várias ocasiões e que era regra que ninguém soubesse da sua presença, exceto Alpin ou Dregard. Segundo Dovard, o visitante seguia um padrão habitual: esperava nos aposentos do chefe tribal e tinha uma reunião privada quando Alpin regressava da cavalgada matinal. Ao fim do dia, o indivíduo partia sem ser visto.
Um celta. Por momentos, Faolan desejou um poder semelhante ao de Drustan, que lhe permitisse transformar-se em mosca ou escaravelho e escutar a conversa na parede da sala de reuniões de Alpin. Isso poderia revelar-lhe a informação de que precisava para dar a volta à situação, declarar nulos o contrato de casamento e o tratado e levar Ana de Briar Wood antes que fosse demasiado tarde. O druida era esperado nessa noite. No dia seguinte, Ana seria esposa de Alpin e não havia regresso.
Não havia regresso... Faolan não queria regressar, pelo menos à parte da sua própria história que se encontrava repleta de sangue, de terror e de escolhas impossíveis. Mas o Monte Branco oferecia-lhe uma casa e um objectivo. Há mais de cinco anos que estava com Bridei e sabia que o laço que o unia ao jovem rei era mais profundo do que alguma vez desejara que viesse a ser. Agora o casamento estava prestes a acontecer e, se tudo corresse segundo os desígnios de Bridei, dali a dois dias Faolan poderia estar a caminho do Monte Branco, com o relato do tratado concluído, Ana levada para a cama pelo bronco do marido e o pormenor da perda da escolta como única mácula do sucesso total. Afinal de contas, que provas tinha que sugerissem que a pronta garantia de paz por parte de Alpin não seria cumprida? Ao longo de dois ciclos da lua dera o seu melhor na busca de informações, e Faolan era bom no que fazia. Contudo, tudo o que tinha era as palavras de um homem supostamente insano, que lhe dissera que Alpin faria a sua escolha sem consideração por tratados, e a insinuação subtil de Deord, um homem que apenas falava quando bem lhe interessava. Não era suficiente. Bridei precisava daquele casamento. Precisava de se unir a Alpin por laços de parentesco. O processo não poderia ser interrompido sem uma boa razão. Não podia ser detido sem provas concretas e Faolan era forçado a admitir que tal parecia não existir. Tivera muito tempo para desenterrar a verdade, caso ela existisse. Podia jurar que, se Alpin pretendia trair o rei de Fortriu, ninguém o sabia, a não ser o próprio chefe tribal. A existir tal conluio, fora bem oculto.
Até àquele momento. Um celta, um encontro às escondidas, um de entre vários. Alguma coisa deveria estar a passar-se. Infelizmente, nem mesmo o melhor dos espiões de Fortriu seria capaz de entrar nos aposentos privados de Alpin, vigiados por um guarda armado. Claro que havia a outra porta, a que dava acesso ao alojamento de Deord e Drustan. Faolan considerou a hipótese de tentar uma variante do que planeara antes, escalar a muralha, entrar pelo telhado gradeado da prisão e pedir a Deord que lhe permitisse escutar através da pequena porta. Descartou essa possibilidade. As muralhas estavam apinhadas de guardas nesse dia. Além disso, as mulheres deveriam estar no terraço, com o seu trabalho. Conseguia imaginar a reação delas se surgisse de repente a saltar a muralha do pátio isolado. Era um plano demasiado arriscado. Nem tinha a certeza de ser capaz de ouvir o que seria dito, uma vez atrás da porta. Praguejou entre dentes e baixou-se para fazer uma festa à cadela, que parecia ter gostado dele, só os deuses sabiam porquê.
— Gosta de ti — observou Dovard, o qual ia cortando carne para os cães de caça. No cercado na retaguarda dos canis, os animais ganiam em antecipação.
— Tolera-me — replicou Faolan. — És tu a luz da vida dela.
— Bem — era óbvio que o comentário agradara ao rapaz, ao mesmo tempo que o embaraçara —, é um bom cão. — Com um encolher de ombros, Dovard virou-se e dirigiu-se às traseiras dos canis, onde foi recebido por latidos excitados. A cadela aproximou-se da carne e surripiou um pedaço. O olhar do animal implorava a Faolan que apreciasse aquele gesto de esperteza.
— É melhor ir-me embora — disse Faolan. — Obrigado pela tua ajuda. Fica atento a este festim, caso contrário não tarda nada desaparece.
Ao sair para o pátio, ocorreu-lhe que seria possível uma outra variante do plano, algo que exigiria apenas que Deord decidisse vir ao salão e regressar à prisão pelo menos uma vez antes de o encontro secreto ter início. Isso e uma oportunidade de falar com ele sozinho. Simples. Perfeito. Poderia conseguir a informação que desejava sem arriscar ninguém. E, se o que na verdade queria era que o tratado de Bridei fracassasse para que a mais bela mulher de Fortriu não precisasse de se casar com aquele rufião, ninguém precisava de o saber, para além dele próprio. Pensar assim não era digno do emissário do rei. Qualquer que viesse a ser o futuro de Ana, não seria ele o homem ao lado da jovem. Ele não era ninguém. Não passava de uma ferramenta para suprir as necessidades dos outros. Ana mostrara-lhe que o escudo que levantara não era impenetrável. Não tinha controlo sobre os seus sonhos. Mas sempre dominara palavras e ações na perfeição. Era o que tinha de fazer naquele momento e esquecê-la e ao casamento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


CAPÍTULO ONZE


O rei de Fortriu encontrava-se na Fonte do Corvo, o domínio de Talorgen junto ao Lago da Donzela. A natureza específica da sua missão significava que seriam a última peça a encaixar-se no grande jogo da guerra. Enquanto Talorgen iria juntar-se a Uerb num ataque por mar às colônias costeiras de Dalriada, Ged uniria as suas forças às de Morleo e iriam deslocar-se pela calada, a fim de contornar e atacar Gabhran no centro do território. A força principal de guerreiros Priteni, sob o comando de Carnach, já avançara para ocidente e dividira-se em grupos menores. Por aquela altura, deveriam estar acampados nas colinas, preparados para descer sobre as fortalezas e as colônias celtas menores, entre o baluarte de Gabhran, em Dunadd, e as fronteiras do norte. Bridei iria aguardar até que todos os outros estivessem posicionados. Numa data previamente marcada, contada a partir do solstício de Verão, o seu grupo marcharia até Galany's Reach, a fim de se unir aos combatentes de Fokel e tomar o acampamento fortificado que fora palco da primeira batalha de um Bridei mais jovem, havia mais de cinco anos. A partir daí, avançariam para sul, encontrando-se primeiro com Talorgen e depois com Carnach. Os guerreiros Caitt reunidos por Umbrig iriam juntar-se a eles no caminho. Das Ilhas Pequenas não tinham sido enviados guerreiros. O rei vassalo de Bridei ignorara o pedido de ajuda. Seria necessário outro refém. Mesmo assim, quando o exército de Fortriu marchasse sobre Dunadd, seria uma força poderosa.
Bridei estava no terraço da Fonte do Corvo, a partir de onde olhava para os pinheiros negros e para o brilho gelado do Lago da Donzela. Sentiu um arrepio. Era o reconhecimento da passagem do tempo e a consciência de que, no grande ciclo que era o nascimento, a vida, a morte e o renascimento, surgiam outros ciclos, outras repetições. Não aprender alguma coisa com eles, era a garantia de uma vida desperdiçada. Estivera naquele mesmo lugar com um velho e verdadeiro amigo, alguém que, pouco tempo depois, morrera no lugar de Bridei. Nunca conseguira deixar de se sentir culpado. Mandara Faolan embora. Faolan, o único que se aproximara de substituir o lugar de Donal na sua vida. Recordava ter dito a Faolan que esperava que se tornassem amigos, bem como a resposta fria do celta, que lhe dissera não ter a capacidade de ser mais do que alguém que desempenhava uma tarefa e recebia um pagamento. Fora Bridei quem estivera correto, embora Faolan nunca o tivesse reconhecido. Aceitara a missão que o levara a Briar Wood tal como um servo acata uma ordem. O desagrado fora óbvio. Bridei interrogava-se por que motivo enviara Faolan. É verdade, desejara poupar ao celta a decisão entre combater o seu próprio povo e falhar na proteção do seu rei e empregador. A verdadeira razão talvez fosse protegê-lo. Ao longo da perigosa jornada que aguardava os homens de Fortriu naquele Outono, havia a possibilidade muito real de que o guarda pessoal do rei viesse a tombar ao serviço do monarca. Talvez, pensou Bridei, os motivos fossem menos altruístas. Recusava-se a juntar o sacrifício de mais um amigo ao fardo que já carregava.
Mesmo assim, naquele momento desejava que Faolan estivesse com ele. Breth era eficaz, forte, desempenhava bem o seu trabalho. À sua maneira, também ele era um amigo. Mas fora o celta que vira Bridei nos momentos mais fracos, nas alturas em que estivera mais exposto. Quando estavam longe de casa, no mundo masculino que eram as campanhas, não tinha Tuala a seu lado para escutar os receios e os problemas e para oferecer os conselhos graves e assisados de que tanto dependia. Nessas alturas, era com Faolan que abria o coração, sempre que era assolado pela dúvida e pela incerteza. As respostas de Faolan podiam ser secas. Muitas vezes, transmitia a aparência de um homem sem emoções. Contudo, não duvidava da sua completa sinceridade. Era irônico que as ferramentas do seu ofício de espião fossem a dissimulação e o subterfúgio. Com Bridei, Faolan era escrupuloso com a sua honestidade.
Os ouvidos argutos de Bridei detectaram movimento colina abaixo: aproximava-se alguém a pé, dois ou três homens. Sabendo que Bridei desejava estar sozinho, Breth ficara de guarda a alguma distância. Bridei fez-lhe sinal para que se aproximasse. Juntos, olharam para a colina banhada pelo luar, mas pouco conseguiram ver.
— É muito tarde para que alguém se aproxime — murmurou Bridei. Momentos depois, os cães começaram a ladrar, os guardas gritaram para que os desconhecidos se dessem ao reconhecimento e vozes responderam do carreiro por baixo dos pinheiros sombrios.
— Somos mensageiros de Umbrig, dos Caitt! — bradou um. — Vimos em paz. Fomos atrasados pelos lobos. Sou Orbenn e o meu companheiro é Hargest, ambos da casa de Umbrig. Podem dar-nos abrigo?
— Aproximem-se do portão! — ordenou o guarda. — Mais perto. Coloquem-se à luz. Agora, larguem as armas. Todas. Virem-se. Agora, ajoelhem-se e não se mexam até que lhes digam.
Era o procedimento normal. Estando a Fonte do Corvo muito próxima do território de Dalriada, os espiões freqüentavam as terras a ocidente. Era raro o visitante da fortaleza de Talorgen que fosse admitido livremente.
Bridei entrou para a sala de audiências, acompanhado por Breth. Não tardou que os guardas trouxessem dois jovens. Dois homens muito novos, que Bridei teria chamado de meninos, não fossem o seu tamanho e aspecto feroz. Poucos seriam os que se atreveriam a insultar dessa forma a masculinidade daqueles guerreiros. Envergavam os mantos de pele tão do agrado dos Caitt e os rostos juvenis e escanhoados estavam já decorados com as primeiras tatuagens de batalha, cujo pormenor intricado do padrão identificava desde logo os seus portadores como homens do norte que afirmavam ser. Um dos rapazes tinha um rosto largo, ombros possantes e era musculoso como um touro. O outro era ligeiramente menor. Ambos tinham um ar irritado, o que parecia surgir naturalmente.
Bridei não ostentava qualquer sinal de estatuto, nem diadema, nem torque, nem broche de prata. Mesmo assim, mal o viram, ambos os jovens inclinaram a cabeça em sinal de respeito.
— Senhor meu rei — resmungaram os dois em uníssono. Fora bem ensaiado.
— Ao que parece, a viagem foi difícil — comentou Bridei. — Falaram em lobos?
— Sim, meu senhor. — O jovem menos imponente endireitou os ombros e alisou a túnica. — Sou Orbenn, da casa de Umbrig. Devo transmitir-te a sua mensagem e regressar ao local onde está acampado. O meu senhor disse que saberias onde é.
Umbrig já estava a posicionar-se.
— E aqui o teu amigo? — perguntou Bridei. — Será a tua mensagem tão pesada que exija dois para a transportar? — Esperara deixar o ambiente mais leve, pois o maior dos dois jovens parecia tenso a ponto de rebentar, se tocado. As faces do rapaz enrubesceram e Bridei lamentou o comentário.
— Sou Hargest — resmungou o jovem. — Estou aqui... Vim para...
— Tinha os punhos cerrados. Os olhos, de um tom azul claro pouco comum, estavam semicerrados e hostis.
— Veio sem que o convidassem — atalhou Orbenn, o que provocou um franzir de cenho no companheiro.
— Sei falar por mim — retorquiu Hargest. Depois, respirou fundo e disse: — Peço desculpa, senhor meu rei. Posso explicar.
— Então trata de o fazer — indicou Bridei, com frieza. — É tarde e estamos ocupados. Decerto compreendes que atravessamos uma fase em que uma casa não pode receber de braços abertos qualquer um que surja à porta. O que te trouxe aqui?
— Eu pretendo... quero eu dizer... — O jovem fitou o companheiro, olhou para Breth, armado e perigoso, ao lado direito do rei, mirou os guerreiros dispostos de forma estratégica na sala de audiências.
— Não quero falar à frente deles — disse Hargest, as faces escurecendo ainda mais.
— Julgas que o rei é um idiota? — desafiou-o Breth. — O rei não concede audiências privadas a estranhos, nem mesmo em alturas de paz. Agora, diz a que vens, ou vais tentar mais uma vez a sorte com os lobos. Chega de desperdiçar o tempo do rei.
— É Breth, o meu guarda pessoal — explicou calmamente Bridei.
— O que diz é verdade. Contudo, imagino que vos possamos alimentar enquanto falamos. Por mais imponentes que sejam, encontram-se cercados pelos melhores guerreiros de Fortriu e julgo que vos retiraram as armas, antes de receberem autorização para entrar. Enfret? — Dirigiu-se a um dos guardas pessoais, um homem de Pitnochie que pertencia à escolta pessoal do rei. — Precisamos de comida para estes viajantes. Tratas disso? E diz aos homens para recuarem um pouco. Dá-lhes espaço para respirar.
Assim que se viram sentados num banco, com taças de caldo de borrego nas mãos e copos de cerveja ao lado, a expressão dos jovens suavizou-se ao de leve. A mensagem de Orbenn não era secreta e o rapaz apresentou-a por entre grandes colheradas de caldo.
— O meu senhor Umbrig diz que se vai encontrar contigo, tal como planeado. Diz também que, se queres um número, são trezentos e vinte, mais ou menos.
Bridei arregalou os olhos. Trezentos e vinte guerreiros. Era uma força considerável e, sob a liderança de Umbrig, algo a ter em conta.
— Obrigado — disse calmamente. — Mais alguma coisa? Mencionou outros chefes? — Comentara-se que Umbrig poderia vir a reunir-se a Fokel, de Galany. Ambos tinham experiência em transportar homens e suprimentos por terrenos aparentemente intransponíveis. Bridei esperara também que, por aquela altura, Alpin, de Briar Wood, fizesse já parte do plano, embora não o fosse comentar, pelo menos à frente daquele jovem de quem não sabia nada.
— Não, senhor meu rei — respondeu Orbenn, seguido de um gole profundo de cerveja. — Pela virilidade do Guardião das Chamas, é uma bela pinga. Foram as únicas palavras da mensagem. Referes-te a Fokel, de Galany? Esperas que ele se venha juntar?
Instalou-se um silêncio desconfortável.
— Ao que parece, julgas saber muito — disse Breth —, para um miúdo que ainda cheira a leite. Quem és tu para fazeres perguntas dessas ao rei? — Havia quem dissesse que por vezes era possível ouvir o raspar de uma espada a ser desembainhada na voz do guarda-costas de Bridei. Essa foi uma dessas vezes. A mão de Orbenn imobilizou-se com o copo de cerveja a meio caminho dos lábios.
— Como sabes — disse Bridei —, tais assuntos estão reservados aos encontros privados entre chefes e druidas. Enquanto mensageiro, o teu dever é transportar as palavras e repeti-las com precisão, nem mais, nem menos.
— Sei disso — resmungou Orbenn, pousando o copo.
— Imagino que seja a primeira vez que Umbrig te encarrega de tal dever? — acrescentou Enfret com um sorriso.
Não houve resposta. Não se podia dizer que o mensageiro tivesse amuado. Mesmo jovem, era uma presença demasiado formidável para isso. Apenas pareceu fechar-se em si mesmo.
Bridei aguardou que os dois saciassem a fome. Depois, enviou Orbenn com Enfret, a fim de encontrar um canto que albergasse os viajantes. Com um breve gesto, indicou a Hargest que ficasse.
— Agora — disse-lhe —, vamos escutar o que tens para dizer. Terás de falar perante Breth. É o meu guarda pessoal e está sempre a meu lado. Os outros não estão interessados, acredita. Quem és tu e por que estás aqui? Não desejo irritar Umbrig, só por teres teimado em viver uma aventura. Qual é a tua posição em sua casa?
— Sou um combatente. — As palavras foram ditas com um tom de desafio, como se esperasse menosprezo ou, pelo menos, palavras que o contradissessem.
— Mm-mm — disse Bridei. — Não há dúvida que tens a constituição necessária. Quer dizer que és um dos seus guerreiros?
Hargest fitou as botas.
— Por assim dizer — replicou, com as palavras atabalhoadas.
— Por que vieste? Proteger um amigo? Porque a união faz a força? O rapaz não respondeu.
— Fala! — Breth cruzou os braços, com um ar furioso. — Se não consegues explicar a tua presença, seremos obrigados a prender-te até descobrirmos a verdade. Neste momento, não tenho motivos para confiar em ti.
Hargest voltou a erguer o olhar. Recuperara um pouco da compostura, mas tinha os olhos irados. A pose lembrava a de um jovem touro, uma mistura de agressividade e de incerteza.
— Quero trabalhar — disse. — Um trabalho a sério, que me teste. Quero um trabalho como o teu — disse, olhando para Breth, que o fitou, verdadeiramente surpreendido.
— Em que termos? — Bridei encontrava-se dividido entre o divertimento pela ousadia do rapaz e a verdadeira admiração pela abordagem. Enquanto guerreiro, decerto Hargest seria o primeiro a investir, sem pensar na sua própria segurança. — Se és o combatente que afirmas, não terás já um lugar com Umbrig?
Um lampejo de emoção cruzou as feições largas do jovem.
— Ele não me deixa combater — respondeu Hargest. — Apenas uma escaramuça breve, foi tudo, e depois voltou a colocar-me no meu antigo trabalho. Cuidar dos cavalos.
— Quer dizer que não és um guerreiro, mas um cavalariço? — sorriu Breth.
— Julgas que não sei lutar? — rosnou Hargest. — Experimenta!
— Ah... não há necessidade — interveio Bridei calmamente. — Diz-me, Hargest, quantos anos tens? — Interrogou-se sobre se o rapaz mentiria e, nesse caso, se conseguiria notá-lo.
— Quinze, senhor meu rei. — Era, de certeza, a verdade, mesmo sendo o rapaz quase tão alto como Carnach e tendo duas vezes a sua largura.
— E qual, exatamente, é o teu lugar na casa de Umbrig? Creio que ainda não nos disseste.
— Cresci lá, senhor meu rei. Sou parente de Umbrig. Uma espécie de parente. — O rubor voltou a invadir as faces de Hargest, fazendo-o parecer mais novo.
— Uma espécie de parente. Nasceste fora do casamento? — Embora comuns, tais assuntos eram delicados. Os homens reconheciam os filhos naturais, mas raras vezes lhes atribuíam terras, ou outros privilégios. Regra geral, um lugar na sua casa era tido como suficiente.
— Sim, meu senhor. O meu pai é primo afastado de Umbrig. Nasci quando ele ainda só tinha catorze anos. Fui enviado para Storm Crag com sete anos. Julgou-se que seria o mais adequado, pois ele, o meu pai, ia casar-se. Tinham-me como um embaraço.
— Compreendo. — Bridei, ele próprio educado em casa alheia, conhecia bem a solidão, a confusão, os sentimentos de perda que tal decisão acarretava. Por mais admirável que Broichan tivesse sido ao dotar de conhecimentos o jovem de que fora encarregue, ter sido educado pelo druida não lhe providenciara a mais alegre das infâncias.
— E agora Umbrig utiliza-te como criado de estábulo?
— Gosto de cavalos — limitou-se Hargest a dizer. Pela primeira vez, parecia sincero, como se esquecendo temporariamente a sua máscara protetora de agressão. — Sou bom a tratar deles. Se não fosse, não teria vindo nesta expedição. Mas sou melhor com uma espada, um bordão ou os meus punhos, e é isso que desejo fazer, senhor meu rei. Quero ser o melhor guerreiro de todas as terras do norte. Quero provar que sou capaz de viver mais do que o meu adversário.
— Os olhos jovens eram ferozes, as costas muito direitas.
Bridei aguardou um momento, apreciando a coragem verdadeira por detrás das palavras combativas, ao que disse com um tom brando:
— Provar a quem? Ao teu pai? Hargest pareceu encolher um pouco.
— Talvez — resmungou.
— Não me parece que tenhas mencionado o seu nome — disse Bridei.
— Alpin — respondeu Hargest. — Alpin, de Briar Wood.
— Ah.
— Conhece-o?
— Sei algumas coisas sobre ele — replicou Bridei. — Costumas lá regressar, agora que tens idade para sair do teu lar adotivo? Vê-lo com freqüência?
— Não, meu senhor. Umbrig disse-me que poderia ficar em Storm Crag e foi essa a minha escolha. É satisfatória para o meu pai. Prefere que eu fique longe do seu caminho.
— Deveras? Um jovem capaz como tu? — O tom de Bridei não era trocista. Na verdade, aquele era um rapaz que deixaria orgulhoso qualquer pai, um espécime físico comparável a um carneiro ou a um varrão de primeira categoria.
— Ele tem as suas razões.
— Hargest — Bridei escolheu as palavras com cuidado —, mencionaste o casamento de Alpin, quando foste para a casa de Umbrig, em Storm Crag. Segundo sei, ele poderá voltar a casar-se em breve, talvez ainda este Verão. Ouviste falar disso? Talvez tenhas recebido um convite?
— Umpf! — fungou Hargest, com desdém. — Sou a última pessoa que ele esperaria ver nessa cerimônia. É verdade que existe uma nova esposa. Umbrig foi convidado, mas o casamento foi adiado e agora ele não pode estar presente, pois encontra-se em campo. Espero que desta vez o meu pai tenha mais sorte.
— Desta vez?
— A primeira mulher foi assassinada. Morta pelo meu tio louco. Briar Wood é um lugar amaldiçoado, pelo menos é o que diz a minha mãe. Não há lá nada que bata certo. Ninguém no seu perfeito juízo iria querer lá ficar.
Bridei sentiu um gelo no coração. Esperava que o rapaz estivesse a exagerar. Já fora difícil enviar Ana para um marido desconhecido. Sabia que a refém doce e honrada merecia melhor. Desejava que aquele reino de loucos e de maldições fosse apenas o resultado da imaginação demasiado fértil de um jovem ofendido.
— Onde está a tua mãe, neste momento? — perguntou a Hargest. — Ainda vive na casa de Alpin?
— Não, meu senhor. Saiu de lá pouco tempo depois de eu ter partido. Regressou à sua colônia natal a ocidente e casou com um velho amor. Por vezes recebo mensagens, que retribuo. Sei que está bem.
— Ótimo — disse Bridei. — Agora diz-me, o que pensará Umbrig desta deserção? Se o teu amigo Orbenn regressar sozinho com a notícia de que vais aqui ficar, será que o teu pai adotivo não vai ficar zangado com essa atitude? Quem manterá os cavalos em condições durante a longa viagem para sul?
— Existem outros criados de estábulo, senhor meu rei.
— Mesmo assim, não deixará de ficar zangado. Deves-lhe mais do que isso. Ele deu-te um lar e segurança.
— Não ficará zangado se Orbenn lhe disser que me ofereceste um lugar entre os teus homens, senhor meu rei.
A audácia deixou Breth de queixo caído. Por momentos, Bridei ficou sem palavras.
— E que lugar seria esse? — O tom de Breth era brutal. — Pela virilidade do Guardião das Chamas, tens muita...
— Obrigado, Breth — atalhou Bridei. — Responde à pergunta dele, Hargest. É óbvio que tens qualificações como cavalariço. Não creio que seja um trabalho que te agrade. Tens de ser mais específico.
— Desejo servir-te, meu senhor. — Hargest deixou-os a ambos surpreendidos ao ajoelhar-se com graciosidade. Apesar do seu tamanho, mostrava uma rapidez e fluidez de movimentos espantosas. — Treinar como guerreiro. Talvez aprender com um homem tão capaz como o teu guarda-costas.
— Reconheces, então, que podes ainda ter algo a aprender. — Mais uma vez, Bridei encontrava-se dividido entre o divertimento e a admiração pois, com quinze anos, o rapaz exibia uma certeza que falava de um futuro brilhante, caso tivesse as oportunidades certas.
— Sou um bom lutador, meu senhor. Bom, mas inexperiente, eu sei. Os teus homens poderiam conceder-me o aperfeiçoamento de que necessito, os segredos do ofício. Deixa-me ficar. Deixa-me entrar em combate ao lado das tuas forças.
Bridei olhou o rosto corado, os olhos brilhantes.
— Se Umbrig quisesse que combatesses — replicou —, ter-te-ia colocado entre os seus próprios guerreiros.
— Ele não percebe que já sou um homem...
— Julgo que estás errado a seu respeito. Imagino que o teu pai adotivo queira apenas manter-te a salvo. Quer ver-te a sobreviver até seres adulto e conseguires alguma coisa na vida. Os pais adotivos preocupam-se com os filhos adotivos, Hargest, embora por vezes nós não o vejamos.
— Nós?
— A minha situação foi igual à tua. Só que o meu pai adotivo foi um druida, o que tornou tudo ainda mais difícil. Só entrei na minha primeira batalha com dezoito anos.
— Posso ficar? Recebes-me? Breth pigarreou.
— Veremos — disse Bridei, com frieza. — Tu e Orbenn podem ficar na Fonte do Corvo uma ou duas noites. Preciso de tempo para refletir. E tens de te mentalizar que, ao fugir assim, deixaste Umbrig bastante preocupado. Esse fato chega para me dizer que ainda não atingiste a maturidade. Não... — disse, quando Hargest, ainda de joelhos, fez menção de protestar. — É verdade e, a seu tempo, vais aperceber-te do que fizeste. Talvez seja apenas quando tiveres filhos mas, acredita, vai atingir-te como um raio. Agora levanta-te e vai deitar-te. Um dos homens vai indicar-te o caminho. Levantamo-nos cedo, por aqui. A ver se estás pronto para o novo dia.
— Sim, meu senhor. — O rosto de Hargest transbordava esperança, a fúria desaparecida. — Que A Que Brilha te conceda bons sonhos, senhor meu rei. E a ti — disse, inclinando a cabeça perante Breth, um gesto surpreendente.
— Que o Guardião das Chamas ilumine o teu despertar — disse Bridei, e observou o jovem a ser acompanhado pelos guerreiros.
— Tantos músculos e boas maneiras, quando se lembra delas — comentou Breth. — Mesmo assim, se estivesse no teu lugar, não me precipitaria a decidir. Aquele tem mais que se lhe diga.
Uma carrada de juncos frescos acabara de ser entregue e Faolan encontrou Gerdic com dois outros servos a limpar os restos sujos dos anteriores, a fim de dispor os novos. Em cima das mesas via-se uma série de gatos, pretos, brancos, listados, malhados, todos eles concentrados nas movimentações. Ao fundo do salão, um indivíduo familiar com a sua túnica dispunha um feixe de juncos novos, os quais atava com uma corda.
— Precisas de ajuda? — perguntou Faolan a Gerdic, enquanto olhava em seu redor, a fim de garantir a ausência de guerreiros ou de quaisquer outras pessoas que pudessem observá-los com algum interesse.
Já estavam habituados ao bardo. Desenvolvera a reputação de excêntrico, algo que combinava com a profissão de músico, e a maioria dos servos aceitava sem espanto que se prontificasse a ajudar na mais reles das tarefas, com o único intuito de ocupar o tempo. Era incrível a quantidade de informação que as pessoas deixavam escapar enquanto arranjavam peixe, escavavam latrinas ou amassavam pão.
De forquilha na mão, foi avançado gradualmente até Deord, ao mesmo tempo que removia da sua frente a camada pestilenta de juncos. Erguiam-se nuvens de pequenos insetos e sentia picar constantemente nos tornozelos. Mais atrás, Gerdic percorria a mesma área com uma vassoura de milho painço, após o que um terceiro homem espalhava os juncos frescos. Em breve, o motivo da atenção dos gatos tornava-se óbvio: a forquilha de Faolan descobria um rato aqui, uma ratazana acolá, mais além uma família de escaravelhos de carapaça escura, correndo em busca de abrigo. Para a população felina de Briar Wood, era um dia de festim.
Ao lado dos pés de Deord, Faolan baixou-se para soltar da forquilha um molho de material apodrecido e apresentou o seu pedido com o mínimo de palavras possível. — Celta, hoje, reunião com Alpin. Preciso de um relatório.
Deord ocupava-se a cingir o molho de juncos.
— Brincas com o fogo — resmungou.
— Preciso disto — silvou Faolan. — Esta noite, se puderes.
— Devias ir para casa. Deixar tudo isto. — Deord ergueu o feixe volumoso para os ombros largos e virou as costas. — Farei o que puder.
Quando o homem se afastou, Faolan voltou ao trabalho com a forquilha.
— É um sujeito estranho, aquele Deord — comentou Gerdic, que ganhara terreno durante a troca de palavras. — Deve ser o pior trabalho do mundo.
— Consigo lembrar-me de mais uns quantos igualmente desagradáveis — replicou Faolan, coçando a perna e olhando para as marcas imundas onde o tapete de juncos se encontrava com as paredes de pedra caiada. — O que fazemos com isto? Vai lá para fora para ser queimado?
— Os rapazes tratam disso quando acabarmos. Toma, fica agora com a vassoura, alivia-te as costas.
— Gerdic?
— Mm?
— Este casamento. Tenho de providenciar entretenimento para a ceia. Já o preparei. Mas, o que mais acontece durante o dia? Qual é a ordem das coisas? Ritual, festa, dança?
— É melhor perguntares a Orna. São as mulheres que gostam destes festivais. Hã muito tempo que não temos nada do gênero. Lorde Alpin não aprecia música, flores e roupas vistosas. Sei que os homens vão fazer uma celebração própria de manhã, muita cerveja e alguns desportos e jogos. Assim, as mulheres ficam com tempo para acabar o festim e para se embelezarem. A tarde tem lugar a cerimônia. Se for como no casamento da minha irmã, é nessa altura que temos as orações e essas coisas. E, mais tarde, dança. Dança e festa. É nessa altura que vão precisar de ti, Faolan. Pensei que soubesses disso. Já deves ter tocado em casamentos.
Faolan continuou a varrer.
— Sim, já toquei — replicou. — Mas nunca entre os Caitt. As pessoas daqui têm uma maneira muito própria de fazer as coisas.
— Drustan?
— Ana?
— Vim sem Ludha. Quis falar contigo sozinha.
Drustan ficou em silêncio durante alguns instantes. Começara a cair uma chuva leve. Ana, agachada nas pedras do terraço, passou o xale pela cabeça. Nesse dia, nem sequer tentara retirar o material de trabalho do cesto.
— É o último dia — disse Drustan. — Amanhã vais casar-te com o meu irmão.
Ana sentiu um nó na garganta. Tinha dificuldade em falar.
— Sim — confirmou. — O druida já chegou. Já não há motivos para adiar a cerimônia. Está a registrar por escrito os termos do acordo, que será assinado pela manhã.
Drustan não disse nada.
— Drustan, pensei que... queria encontrar aquela idosa, Bela. Ludha disse-me que ela podia estar ainda na floresta, algures. Esperava que ela pudesse contar-me ...
— O quê, Ana?
— Se a encontrássemos... se ainda estiver viva... pensei que pudesse contar-me a verdade. Que não o fizeste. Não acredito que fosses capaz de tal ato, mesmo num... num estado que te deixasse alheio ao que estavas a fazer. Mas ninguém sabe onde ela está, e agora é demasiado tarde. Agora tenho de me casar com Alpin, mesmo que... mesmo que...
— Diz-me, Ana. O que se passa?
— Mesmo que o toque dele me repugne. — As palavras saíram num tom muito baixo. Sentia-se envergonhada por estar a dizê-lo. — Não suporto as mãos dele em mim. Não sei como poderei... não sei como serei capaz de... — Não pretendera dizer-lhe aquilo, nunca a Drustan, mas não fora capaz de se conter.
— Não o faças, Ana. — O tom da voz de Drustan era intenso.
— Tenho de o fazer.
— Ele vai magoar-te. E eu não poderei ajudar-te. — As palavras eram um murmúrio.
— Drustan?
Não houve resposta.
— Não posso dizer-te o que na verdade desejo. Mas, se tenho de me casar com o teu irmão, gostava que te fosses embora, quando Deord te der a próxima oportunidade. Foge para a floresta, deixa Briar Wood para trás, procura uma vida noutro lugar. Mesmo que... mesmo que tenhas feito o que dizem, não devias ser condenado a este encarceramento para sempre. Como poderei aqui viver, sabendo que estás do outro lado da parede, acorrentado? Se pelo menos aproveitasses a oportunidade para fugir, saberia que estavas livre, feliz, mesmo que nunca mais voltasse a ver-te. — Ana fungou e procurou um lenço. As lágrimas misturavam-se com a chuva nas suas faces.
— Preferia estar acorrentado e perto de ti, meu amor — disse Drustan —, do que na floresta, livre e distante. Além disso... — A voz assumira um tom sombrio, que fez com que Ana se arrepiasse.
— Além disso o quê, Drustan? Devias aproveitar a oportunidade que tens de fugir. Como podes escolher o cativeiro? Isso é... bem, é uma loucura, e até agora ninguém foi capaz de convencer-me de que estás demente, embora o tenham tentado.
— Se cometi aquele ato — era a primeira vez que o ouvia exprimir alguma dúvida em relação ao assunto —, não poderei voltar a ser livre. Se matei um inocente, posso voltar a matar. É um risco que não me atrevo a correr.
— Afinal de contas, não seria o amor a manter-te perto de mim — disse Ana —, mas o medo. Medo de ti próprio.
— Não digas que não te amo. És a minha lua e as minhas estrelas, a minha Primavera e o meu Verão, Ana. Soube-o no momento em que te vi no vau, tão só, tão corajosa. És a constante, no caos que é o meu mundo.
— É como te sentes? — murmurou Ana. — Um caos? Mas, quando te perguntei como era, o... o delírio, não o descreveste como um aceso de loucura, mas como uma espécie de viagem, quase o mesmo que os druidas sentem quando se encontram em transe profundo, quando viajam de mundo em mundo. És assim tão infeliz, em cada momento do dia? Desculpa, foi uma pergunta estúpida. Qualquer homem afastado do mundo como tu deve ficar fora de si com a frustração.
— Manter a sanidade em tais circunstâncias exige uma certa força de vontade. Ajuda ter um guarda como Deord. Esse tipo de homem é raro. Ana?
— Sim?
— Se a tivesses encontrado, a Bela, se a tivesses encontrado e ela te tivesse dito que a história era mentira, que eu estava inocente, continuarias obrigada a casar com o meu irmão. O tratado não depende disso?
— Sim — respondeu, angustiada. — Mas...
— Mas o quê? Diz-me. Deord deve regressar em breve. Só foi buscar juncos frescos e água limpa.
— Não devia dizê-lo. Mas direi. Se julgasse possível a mínima hipótese de tu e eu... se um dia pudéssemos ter um futuro diferente, faria tudo o que estivesse ao meu alcance para evitar este casamento. Sabes que não quero casar-me com ele. Desde o primeiro momento que me arrepio com o seu toque e que tenho medo da sua companhia. Sabes bem o que eu quero.
— O que querias — retorquiu gentilmente —, até descobrires que o que dizem de mim é verdade.
— Não! — Negou com mais veemência do que pretendia e levou a mão à boca. Quase esquecera onde se encontrava. — Não, Drustan. Mesmo que seja verdade, mesmo que tenhas feito o que dizem, isso não altera o fato de...
— Diz.
— De te amar. De, para mim, seres o único homem no mundo. — Dissera-as, por fim, as palavras doces e perigosas.
— Ahh... — O respirar fundo de Drustan continha mais dor do que prazer.
— Quero que tenhas esperança, Drustan. A esperança de que venhas a provar-te inocente. Esperança de que possas voltar ao mundo. Confia na tua bondade. Ela emana de ti.
— Se casares com o meu irmão, não voltarei a ter esperança.
— É demasiado tarde. — A chuva continuava a cair, molhando-lhe o xale e o cabelo, e começando a formar poças junto à saia. — Não há como fugir, se quisermos que o tratado de Bridei se mantenha. E julgo não poder voltar aqui para falar contigo, Drustan. Julgo que é o adeus. Vou continuar a tentar descobrir a verdade, juro...
— Ana, não... não o faças...
— Adeus, meu amor. Tem esperança. Não a percas. Pelos deuses, não posso fazer isto, é demasiado cruel...
— Ana...
— Estarás para sempre no meu coração... Adeus...
Se Drustan respondeu, Ana não o ouviu, pois levantou-se às cegas e dirigiu-se à escada, ao mesmo tempo que afastava o cabelo molhado do rosto. Uma sombra moveu-se, um súbito lampejo escuro mais abaixo, como se uma figura corresse a esconder-se. Ana gelou. Um som, talvez um passo furtivo na pedra. Estaria ali alguém?
— Ludha? — chamou Ana, com a chuva a engrossar, já não um aguaceiro, mas um dilúvio, lágrimas suficientes para afogar uma mulher. — Está aí alguém?
Os degraus encontravam-se vazios. Ana não viu sinais de vida ao percorrer apressadamente o caminho até à sala de costura. A porta, contudo, estava entreaberta e a jovem tinha a certeza de a ter fechado. No interior, Orna, Sorala e outras duas mulheres trabalhavam. Um pequeno bando de gatos dormitava à frente do lume. A atmosfera estava tranqüila.
— Não é um bom dia para estar ao ar livre — comentou Orna, o olhar a percorrer o xale ensopado de Ana, o cabelo revolto e a bainha da saia, escurecida pela chuva.
— Começou de repente — disse Ana. — O nosso passeio matinal foi brindado com bom tempo. Parece ser normal por aqui, sorrisos e depois lágrimas. É melhor ir mudar de roupa.
— Esqueceste-te do teu cesto. — O tom de Orna mudara.
— Oh... Oh, céus, pois foi, que tolice...
— Não te preocupes, minha senhora, vou mandar um rapaz buscá-lo. Estava um aqui, mesmo agora, talvez o tenhas visto? Vai e despe essas roupas molhadas. Alpin vai querer que estejas em condições.
As restantes mulheres ostentaram sorrisos entendidos e Ana sentiu um arrepio gelado, uma sensação fria e profunda que não tinha nada a ver com a chuva.
— Obrigada — conseguiu dizer, após o que saiu.
Quando o irmão de Drustan vinha fazer uma visita, as regras tinham de parecer ser acatadas na totalidade. Em outras ocasiões, era raro Deord acorrentar o cativo. Naquele dia, não havia alternativa. Deord reconheceu, com alguma relutância, que, na qualidade de homem de Breakstone, se sentia na obrigação de apresentar a Faolan o relatório que este lhe pedira, embora julgasse que daí somente adviriam problemas. Num dia bom, poderia ter deixado Drustan o tempo que fosse necessário para escutar a reunião privada e ficar com uma idéia geral dos assuntos tratados. Imaginava que Drustan tivesse encontrado uma nova forma de se divertir, à tarde. Já ouvira o som de uma conversa murmurada, rapidamente concluída sempre que se aproximava. Por vezes, a melodia de uma canção chegava ao alojamento escuro. Nesses momentos, parecia a Deord que Drustan ficava satisfeito por estar sozinho.
Nesse dia, não. Deord atrasara-se pela manhã, quando trouxera os juncos e os outros suprimentos, tendo sido detido por um dos guerreiros, que queria a sua opinião sobre um arco novo. Ao regressar, Drustan encontrava-se desvairado. Esmurrava as paredes com as mãos ensangüentadas e bradava a necessidade que sentia de mudar o rumo dos acontecimentos. O discurso era confuso, mas o nome Ana encontrava-se presente e Deord voltou a amaldiçoar a chegada daquela noiva de sangue nobre e do seu escudeiro celta, que tanto agitara o cativo desesperado. Na verdade, Drustan era o pior inimigo de si próprio. Após sete anos, não importava a Deord se o homem que vigiava era culpado ou inocente. Apenas via que, se o encarceramento durasse muito mais, chegaria a um ponto em que até mesmo o seu cuidado, a quebra controlada das regras, a fim de permitir os breves momentos de sol e de exercício, e as oportunidades raras de aquela estranha criatura executar a sua transformação não chegariam para impedir que Drustan atravessasse a fronteira entre a estranheza dotada e a loucura total. Devia deixá-lo partir. Devia deixá-lo voar para longe e arcar com as conseqüências, as quais, sendo Alpin o homem que era, seriam terríveis, com toda a certeza.
Acalmara Drustan o melhor que pôde, mas não fora fácil. Não iriam sair para gastar alguma daquela terrível energia acumulada com treino de combate ou a voar. Havia visitas em Briar Wood e um casamento no dia seguinte. Não podiam arriscar-se a chamar a atenção. Drustan já não esmurrava a pedra, nem tentava arrancar o portão de ferro, mas tinha os olhos gelados e a expressão atormentada e perdida. O corpo tremia-lhe, um tremor rápido e constante, e tinha a pele coberta por uma película de suor. Deord já vira um ar semelhante em criaturas selvagens presas, à espera da morte. Nunca deixara Drustan sozinho, a menos que este se encontrasse relativamente calmo.
Explicou-lhe que teria de voltar a sair e Drustan submeteu-se às grilhetas sem protestar, estendendo o punho enquanto olhava para o outro lado, como se pouco importasse.
— Espero que não tenhas acreditado que ela alguma vez poderia ser tua — disse Deord calmamente. — É algo que nunca poderia vir a acontecer. — Drustan girou na direção do guarda com a rapidez de um predador a atacar, os olhos brilhantes com a fúria súbita, os dedos da mão livre, retorcidos como garras, a investir para o rosto de Deord. A mão deteve-se à frente dos seus olhos. Drustan baixou o braço.
— Tenho um pouco de bom senso, caso a ti te falte, rapaz — disse Deord, invocando a sua calma habitual. — Estou preocupado contigo.
— Confirmou a corrente que unia a bracelete de ferro de Drustan ao banco de pedra. — Infelizmente, encontro-me obrigado à tarefa que tenho de desempenhar. O nosso passado em comum faz daquele celta uma espécie de irmão de sangue e tenho de honrar o pedido que me fez. São poucos os que saem de Breakstone. Esse lugar devora os homens. Sempre que possível, os sobreviventes têm obrigação de se ajudar uns aos outros.
— Então vai. — Drustan começara a andar, puxando a corrente a espaços. — Julgas que não sou digno dela. Expões ao ridículo o próprio conceito. Tu e o resto do mundo, sem dúvida. Ela diz-me para ter esperança. Tu dizes-me para ter esperança. A uma só voz, ambos condenam-me ao desespero. Vai, não te atrases.
— Vou ter de mudar isto. — Deord voltou a soltar o grilhão.
— Não vou deixar-te tanto tempo com a corrente inteira. Queres ficar lá dentro ou cá fora? A chuva está a piorar.
— Não me interessa. Troca-a, se tem de ser. Julgas que vou enrolá-la à volta do pescoço e acabar com tudo?
— Já me deste alguns sustos — replicou Deord com um tom severo, enquanto prendia as algemas de outra maneira, deixando o cativo mais próximo da parede, com a corrente reduzida. Drustan podia sentar-se no banco de pedra. Podia olhar pela janela. Não podia afastar-se, nem enrolar a corrente à volta do pescoço.
— Sinto muito, meu rapaz. — Deixou Drustan de pé, as costas voltadas, a encarar a parede. Repetir aquele procedimento cinqüenta vezes não o tornara mais fácil, nem mesmo cem, mas não podia arriscar-se a deixar o prisioneiro solto quando este se encontrava naquele estado de espírito. Os pássaros estavam escondidos. As formas encolhidas mal se viam no parapeito elevado.
A reunião de Alpin com o visitante celta demorou mais do que Deord previra e deixou-o com uma dor no pescoço e a sensação de desastre iminente no estômago. A conversa significava problemas, para o bardo, para a dama, problemas, segundo imaginava, que em breve envolveriam todos os habitantes de Briar Wood. Assim que transmitisse essa informação a Faolan, de certeza que o bardo iria precisar de outro favor, algo muito mais difícil de providenciar. Deord praguejou entre dentes, enquanto regressava em silêncio pela arrecadação e ao longo da passagem descendente que levava ao encarceramento. O bardo estava em perigo. Se Faolan não agisse em conformidade, a sua vida pouco mais valeria do que um resto de palha na estrumeira. Claro que, se o que aquele indivíduo contara a Alpin fosse verdade, talvez Faolan merecesse tudo o que lhe viesse a acontecer. Mas Deord tinha a obrigação de ajudá-lo. O problema era que não havia forma de o alertar. Se Alpin fizesse o que Deord imaginava, o bardo estaria preso antes da ceia.
Drustan continuava de pé junto à parede. O bracelete de ferro estava agora cercado por um vergão largo e ressumbrante, no local onde puxara pela grilheta, arrancando a pele. Havia sangue por todo o lado. Os olhos de Drustan estavam vermelhos, o rosto manchado pelas lágrimas. Os pássaros tinham vindo empoleirar-se nos seus ombros, os sons que faziam ecoando de forma lúgubre nas sombras do encarceramento escurecido. Deord soltou as grilhetas sem um comentário.
— Julgo que vou precisar da tua ajuda — indicou. — Preciso que estejas em ti, Drustan. Calmo, lúcido, arguto. Se te disser que a senhora e o seu bardo poderão correr perigo, talvez seja mais fácil escutares o que tenho para dizer.
— Perigo? Ana em perigo? O que foi? — Drustan agarrou o braço de Deord, soltando-o de imediato, com um esgar de dor.
— Vem, entra, é melhor ligar-te esses ferimentos. Tens de ouvir esta história. Não sei como poderemos avisá-lo. Mas sei que este é o único lugar a que poderá recorrer.
A harpa deveria trabalhar mais nos dias que se avizinhavam, do que nos últimos anos, pensou Faolan, sentado a um canto do pátio, enquanto pensava no repertório que lhe seria exigido para as festividades associadas a um casamento: cinco ou seis baladas, dez ou doze canções para beber, um sortido de outras peças narrativas e uma variedade de danças, embora desconfiasse que a voz do instrumento pouco seria ouvida no salão repleto de homens e mulheres a divertirem-se. Divertir. Tal não seria o caso de Ana. A menos que, na véspera da assinatura do tratado, Deord lhe trouxesse informações que pudesse utilizar a fim de declarar o acordo nulo, Ana iria casar-se com aquele homem no dia seguinte e ele teria de passar o dia a tocar música festiva, música alegre, música para amantes. Pobre harpa, pensou, enquanto dedilhava as cordas, contar mentiras tão amargas quando a música deveria ser empregue na verdade mais profunda, na mais intensa das mágoas, nos atos de coragem mais inspiradores e na bondade. Bom, em breve o instrumento voltaria a silenciar-se e Faolan partiria daquele lugar.
O mais simples, claro estava, seria Deord regressar sem qualquer informação relevante. Nesse caso, o casamento e o tratado poderiam ser selados de imediato e Faolan regressaria ao Monte Branco com as novidades. Teria a sua dose de sucesso, mesmo que amargo a nível pessoal. A alternativa estava recheada de dificuldades. Se Deord descobrisse uma traição, qual seria o próximo passo? Aquele chefe tribal queria a noiva real. A expressão no olhar, as mãos irrequietas, eram prova de que o desejo carnal tinha um certo peso. A respeitabilidade trazida pela união, sem dúvida, era o motivo principal. Encontravam-se na sua fortaleza, guardados pelos seus homens, cercados por uma floresta vasta cujos percursos, se assim podiam ser chamados, eram traiçoeiros e cujos rios estariam ainda cheios e rápidos. Para lá das muralhas não teriam cavalos, nem suprimentos. Enquanto trauteava uma canção repetitiva, a mente de Faolan fervilhava. A concentração era intensa. A tal ponto que não viu os guardas de Alpin até chegarem a seu lado e lhe levarem as mãos rudes aos ombros.
— Ei... — protestou Faolan. A harpa tombou e, por instinto, conseguiu agarrá-la e pousá-la em segurança no banco antes de ser levantado à força. — O que se passa? Não é preciso magoarem...
— Poupa as palavras, bardo. Lorde Alpin quer ver-te. Já.
— Mas... — Não parecia adequado continuar os protestos, como seria apanágio de um simples músico dadas as circunstâncias, enquanto era arrastado para a casa e escadas acima até aos aposentos da família. Só podia haver uma explicação: Deord fora descoberto à escuta e, quando confrontado, incriminara-o. O que mais poderia ser?
— O que julgam que estão a... ? — As palavras foram interrompidas por um golpe na boca, desferido por uma mão enluvada. Sentiu o sabor do sangue e calou-se. Com o queixo a arder, esforçou-se por preparar uma justificação. Insistir que Deord estava a mentir. Não, não podia trair um homem de Breakstone, mesmo que Deord o tivesse feito. Oferecer-lhes a verdade, talvez, ou algo próximo, dizer que Bridei lhe pedira que garantisse por qualquer meio que Alpin era um homem de palavra. Que Ana não soubera que ele era mais do que um bardo. Alpin não gostaria de ouvi-lo, mas havia a possibilidade de vir a acreditar.
Estavam quatro homens no quarto de Alpin: o chefe tribal, Dregard, o conselheiro, um druida de vestes cinzentas e outro homem, pálido, sem características marcantes, que vestia um manto de capuz. Faolan sentiu a hostilidade que pairava na sala. A uma ordem de Alpin, os guardas soltaram o cativo e retiraram-se. Junto à porta interior, outro homem montava guarda, uma espada e uma adaga à cintura.
Faolan deu um passo na direção da mesa à qual se reuniam os quatro homens. Sobre ela estava aberto um pergaminho, os cantos seguros com pedras. Um jarro e copos aguardavam em cima de uma bandeja, mas ninguém estava a beber. Os olhares concentravam-se em Faolan. Sentiu um arrepio. A expressão no olhar daqueles homens não augurava nada de bom.
— Meu senhor — disse com frieza, segurando ao de leve as mãos atrás das costas e fazendo por parecer descontraído.
— Não fales sem que te dirijam a palavra, bardo — interrompeu Alpin, cujas feições largas estavam afogueadas. — Quero um relato de tua parte e é melhor teres cuidado. Não quero mais mentiras.
— Mentiras, meu senhor?
— Cala a boca. Não gosto da tua verbosidade. Tenho uma história para te contar e vais ficar em silêncio até ao fim. Mas talvez imagines do que se trata.
Faolan não disse nada. Lançara um breve olhar ao homem encapuzado, tendo ficado com a sensação inquietante de que já o vira antes. Não voltaria a olhar.
— Responde-me! — exigiu Alpin.
— Não consigo adivinhar, meu senhor.
— Diz-lhe o que o nosso convidado nos contou, Dregard. Tenho pouca vontade de repeti-lo. Esta duplicidade enoja-me.
Dregard pigarreou.
— Temos razões para crer... — começou.
— Diz-lhe de uma vez, sim? — Alpin estava impaciente, a voz tensa.
— O meu senhor foi informado de que, longe de seres o músico pessoal da senhora e ignorante em assuntos de política e estratégia, és na verdade bem versado em ambas as questões e extremamente capaz numa série de outras áreas que pouco têm a ver com música — disse Dregard.
— Tenho alguns talentos. — Faolan manteve um tom calmo. — Lorde Alpin já sabe que sou capaz de afiar facas e de usá-las. Julgo que também demonstrei que o meu talento enquanto músico é, pelo menos, aceitável. Sou um bardo. A senhora disse a verdade.
— Aqui o nosso amigo diz que viajas com freqüência. Mais, talvez, do que qualquer outro membro da corte de Bridei.
O gelo envolvia-lhe agora o coração, mas não deixou que os olhos revelassem o alarme.
— Faz parte da profissão de bardo — disse. — Trabalhei para inúmeros patronos, ao longo dos anos, tanto em Fortriu como para lá das suas fronteiras.
— E agora trabalhas para a senhora. — Alpin levantou-se, cruzou os braços e mirou Faolan com um olhar penetrante.
— Sim, meu senhor. É claro que, após o casamento, eu...
— Cala-te! Deixa-me contar-te uma história. Tem a ver com um jovem que parecia uma coisa mas, na verdade, era outra bem diferente. Um sujeito cujos talentos de bardo lhe garantiram uma desculpa bastante conveniente para entrar em salões de reis e de príncipes, chefes tribais e druidas. Um homem muito bem remunerado pelo patrono para o qual trabalhava, quer fosse o jovem rei de Fortriu ou uma bela dama que gostava de música e era refém no Monte Branco.
Faolan permaneceu em silêncio. Não fora Deord, mas sim o homem encapuzado, o mesmo, imaginou, que Dovard dissera ser um celta. Um espião. Um homem como ele, com o talento de passar despercebido. Talvez apenas um igual tivesse a capacidade de reconhecer outro. Pensou na melhor forma de responder.
— És, portanto, celta, músico e espião. Bridei enviou-te com determinadas ordens. Até aí, tudo bem. Não houve qualquer problema, dirias tu, talvez tenhas contado algumas mentiras, mas a dama está aqui, o tratado está pronto a ser assinado — Alpin apontou para o pergaminho — e depois poderás ir à tua vida. Cumpriste o teu dever, eu recebi a minha noiva, Bridei tem o seu acordo e não houve qualquer problema.
Instalou-se na câmara um silêncio de antecipação. Faolan tossiu, mas não fez menção de falar.
— Talvez tenhas reunido alguma informação enquanto desfrutavas da minha hospitalidade — continuou Alpin. — Tropas, armamento, planos... Qualquer informante digno desse nome aproveitaria a oportunidade.
Faolan manteve a expressão neutra, uma habilidade que aperfeiçoara havia muito.
— Contudo, há mais nesta história — prosseguiu Alpin. A posição denotava uma intensidade que lembrava um lince prestes a atacar. — Foste visto em Dunadd, ainda nem há uma estação. Tenho andado a pensar que me fazes lembrar alguém. Foi preciso aqui o meu amigo para identificar quem. Há um certo nobre do clã Uí Néill que tem mais do que uma leve semelhança contigo. Este homem — disse, meneando a cabeça na direção do celta encapuzado — viu-os a falar às escondidas mais do que uma vez. A semelhança é tal que poderiam ser parentes de sangue, primos, talvez, ou tio e sobrinho. Imagino que lá tenhas estado várias vezes e recebido bons pagamentos pelas informações que levaste. Informações que apenas alguém próximo do Rei Bridei poderia conseguir. Ser parente dos Uí Néill faz com que sejas parente do Rei de Dalriada, bardo. E faz-te inimigo jurado de Bridei. Aceitar prata dos senhores dos Uí Néill faz de ti um traidor.
A palavra pairou no ar como o estalar de um chicote. O fato de ser mentira não a suavizava. Por incrível que parecesse, a primeira coisa na mente de Faolan foi que o encapuzado merecia os parabéns. Imaginara que nem mesmo o melhor espião do mundo teria sido capaz de descobri-lo. Eliminara os vestígios de forma meticulosa.
— Ah — disse Alpin, com um esgar selvagem —, finalmente não tens nada a dizer em tua defesa.
— Não é bem assim, meu senhor. — As palavras corteses e o tom frio surgiram graças a uma qualquer fonte de energia. — Antes de deixar a minha pátria, anos atrás, já tinha cortado os laços que me uniam. Não devo qualquer fidelidade pelo sangue. Se este homem te levou a acreditar no contrário, ele está enganado.
— Negas ter estado na corte de Dalriada na Primavera? Aqui o meu amigo é uma fonte de informação de confiança. Nunca me enganou.
— Nesse caso, vossa senhoria é um homem de sorte — replicou Faolan. — As informações falsas fazem parte do trabalho de qualquer espião. O talento para a profissão é medido pela forma perspicaz como as utilizam.
Instalou-se um silêncio breve.
— Posso fazer uma pergunta? — aventurou-se Faolan. Olharam-no.
— Por que está este homem presente? — Apontou com a cabeça para o druida de cinzento, que escutava calmamente, a cabeça virando-se de um interveniente para o outro, os olhos envelhecidos brilhantes com o interesse.
— É uma testemunha imparcial — respondeu Dregard. — Devias estar satisfeito com a presença dele, bardo, pois significa que esta reunião poderá ser relatada noutros lugares sem acusações de que uma das partes distorceu os fatos.
— Relatada noutros lugares. O que queres dizer com isso?
— Por onde começar? — Alpin abriu os braços, como se pretendesse abarcar o mundo. — Por Bridei, talvez?
Faolan obrigou-se a pensar. Como fazer daquela situação uma oportunidade? Como assumir o controlo para ter a possibilidade de libertar Ana? Como descobrir exatamente o que se passava e usá-lo em seu próprio benefício? Era como fazer equilibrismo numa corda. Teria de avançar com delicadeza. Teria de fazer uso de toda a sua experiência, pois Alpin estava furioso, os olhos como os de um javali prestes a atacar. Decerto fora outra coisa que desencadeara aquela raiva, algo que não estavam a discutir naquele momento.
— É claro que — disse Faolan ao chefe tribal —, nestes tempos conturbados, qualquer líder com algum valor tem um informante qualificado à mão. O teu colocou-me em desvantagem, meu senhor. É interessante que também ele seja um celta.
— Ah. — Dregard aproveitou a oportunidade. — Quer dizer que o conheces.
— Para quem o saiba interpretar, até mesmo o silêncio tem algo a dizer.
O druida aquiesceu às palavras de Faolan. Parecia apreciar a noção.
— Diz-me — retomou Alpin a palavra, voltando a sentar-se —, por que razão um homem que renegou os laços de sangue tem tamanha ambição pela prata, para receber pagamentos de dois mestres ao mesmo tempo? Aposto que há uma pobre mãe, escondida algures, uma irmã sem dinheiro ou duas, que precisam de um dote. Ou também te livraste delas para tua conveniência?
Uma fúria cega tomou conta de Faolan e não foi capaz de se conter. Avançou de repente. Momentos depois, estava no chão, a cabeça a latejar de uma pancada e as costelas a doer devido a um pontapé. Dois dos homens de Briar Wood estavam em cima dele. A dor não era nada, quando comparada à consciência de que, em todos os anos desde que abandonara a terra natal, nunca perdera o controlo daquela forma. Não podia dar-se ao luxo de cometer outro erro. Estavam em jogo outras vidas, não apenas a sua.
— Toquei num ponto fraco — comentou Alpin, parecendo genuinamente surpreendido. — Os melhores espiões não devem tê-los. Talvez estejas a perder a garra, celta. Levanta-te e limpa esse sangue, que está a chegar-te ao olho. Não queremos que o nosso bardo fique com a carinha laroca arruinada. Temos um casamento, amanhã. Agora, dá-me uma boa razão para não te acorrentar como a um cão e enviar imediatamente um mensageiro à corte de Bridei, a dizer-lhe que a noiva imaculada que me enviou vinha acompanhada de um vira-casaca nojento, a soldo de Fortriu e de Dalriada? Por que não devo fazê-lo? Afinal de contas, vou assinar um tratado de apoio a este rei... ali está, redigido, à espera da minha assinatura e da da senhora.
Alpin começava a divertir-se, pensou Faolan, quer estivesse ou não zangado. Deveria ter muita confiança na sua autoridade, para utilizar tal argumento na presença de um espião celta à sua mesa.
— Sei o que estás a pensar — disse o líder de Briar Wood, com um trejeito de desdém no lábio. — Deixa-me recordar-te que esta noite temos a presença não de um, mas de dois celtas. E um deles serve dois mestres. Será que não é minha obrigação para com Bridei avisá-lo de que és um perigo e tens de ser detido?
Algures na cabeça de Faolan, um martelo batia numa bigorna. A visão toldou-se. A chama das velas tremeluziu.
— Tenho uma resposta, meu senhor. É uma resposta que terá de ser dada em privado, só nós dois.
— Hah! — As sobrancelhas de Alpin ergueram-se em descrença e Dregard soltou uma gargalhada. — Não creio, meu caro amigo. Esses teus dedos são destros o suficiente com uma faca para que essa seja uma opção inviável.
— Os teus homens que me atem, se preferires. Mantém a presença de um guarda, se assim tiver de ser, desde que seja de confiança e mantenha a boca fechada. Podes não querer que os teus homens saibam aquilo que tenho para te dizer. Não vou falar à frente do celta, nem deste druida, nem ali do teu conselheiro.
— Não te compete ditar termos... — protestou Dregard.
— Lorde Alpin é bastante astuto — disse calmamente Faolan. — Tal como qualquer bom líder, compreende a importância do momento e a necessidade de aproveitar as oportunidades que se apresentam. Atem-me os pulsos e os tornozelos. Os meus talentos não são assim tão prodigiosos que me levem a ser capaz de voar pela sala e atacar um homem com os dentes. — Vira os olhos de Alpin a cintilar, a noção de que havia qualquer coisa a ser proposta que talvez não devesse perder.
— O druida fica — disse Alpin. — É a minha salvaguarda no que diz respeito à senhora. Os restantes podem sair. Sim, tu também, Mordec, depois de atares bem este indivíduo. Goban, fica à porta e não deixes ninguém entrar.
A resmungar, Dregard acompanhou o encapuzado. Os dois guerreiros manietaram Faolan atrás das costas, talvez um pouco mais apertado do que o necessário, e ataram-lhe os tornozelos. Tentou gracejar, dizendo que esperava que fossem capazes de soltar os nós, o que lhe valeu uma pancada no joelho que lhe trouxe lágrimas aos olhos. A porta fechou-se. O druida estava sentado calmamente, com uma pose de atenção educada.
— Diz o que tens a dizer — indicou Alpin. — Não espero uma confissão. Julgo que ambos sabemos que o que o meu informante me contou está essencialmente correto, o que te deixa numa posição constrangedora. Ana sabe? É cúmplice da tua traição?
Faolan gelou. Havia algo de assustador no tom com que pronunciara o nome da jovem. Se a raiva se devia a ela, embora Faolan não conseguisse imaginar o motivo, a necessidade de a retirar dali era ainda mais premente do que antecipara.
— Ela não sabe de nada — disse, com um tom neutro. — Está completamente inocente de qualquer crime. Isto é uma ofensa...
— Cala a boca, bardo. Cinge-te aos fatos. Acontece que a senhora é muito menos inocente do que julgas. Ana deixou-me muito, muito zangado. Teve um comportamento não só desonesto e estouvado, como imagino que também se tenha aproximado do impudico. Não era exatamente o que desejava vir a saber na véspera do meu casamento. Também não me agradou descobrir que alberguei na minha casa um agente duplo, disfarçado de harpista cândido. O comportamento dela é tão virginal que me deixou convencido. Seria um estratagema para me distrair e enganar até descobrir, na noite de núpcias, que Bridei me enviara bens estragados? An? O que dizes? Viajaste sozinho com ela. Talvez tenhas experimentado a mercadoria?
Respira devagar. Pensa em amanhã.
— Não é verdade, meu senhor. Tenho a certeza de que Ana nunca foi tocada. Estás a difamá-la com essa tua sugestão. — Faolan conseguiu manter o tom da voz estável. Não podia voltar a perder o controlo.
— Veremos o que ela tem a dizer sobre o assunto. Decerto é capaz de alguns enganos. Não interessa. Se for preciso, faço-a falar à pancada. Um homem que não consiga controlar a mulher não é grande homem. Muito bem, celta, o tempo está a passar. O que me querias contar que não pudesse ser dito à frente do meu conselheiro mais próximo? Acima de tudo, o que não queres que o meu amigo de Dalriada ouça?
Faolan percebeu que estava a tremer e forçou-se a parar.
— Contaste-me uma história — disse. — Agora sou eu que te vou contar outra. O teu amigo de Dalriada conseguiu descobrir certos fatos sobre a minha pessoa. Posso fazer melhor.
— Tem de ser bom, celta. Seria bastante simples fazer-te desaparecer. Podia dizer à senhora que decidiste partir mais cedo para o Monte Branco. Os caminhos nesta zona são perigosos. Estão sempre a desaparecer viajantes. Continua.
— Tem a ver com um homem que teve a felicidade de controlar um par de territórios muito bem posicionados. De um lado, com alguns vizinhos pelo meio, ficava o reino de Fortriu e do outro Dalriada. As terras desse homem ficavam entre os dois e incluíam um ancoradouro muito útil, profundo, abrigado, com passagem até à costa do segundo território, o reino dos Celtas. Não era de admirar que líderes poderosos o cortejassem com ofertas: prata, gado, uma mulher. Não era uma mulher qualquer, mas uma noiva que lhe daria uma oportunidade única, pois através dela poderia vir a tornar-se pai de reis. Todos queriam ser seus amigos.
— Despacha-te — disse Alpin, mas estava já inclinado para a frente, os olhos semicerrados, a escutar com atenção.
— Ele tinha de fazer uma escolha — continuou Faolan. — A guerra estava iminente. Tinha de se aliar a um dos lados. Um informante pode receber pagamentos quer dos Priteni, quer dos Celtas. Esse trabalho exige que um homem não tenha consciência. Eventualmente, um chefe tribal terá de escolher um lado. Como poderia escolher? Um, oferecia uma noiva real. O outro apresentava-lhe uma coisa que também desejava: a oportunidade de se aliar àqueles que acreditava virem a dominar não só Dalriada, mas todas as terras dos Priteni. Queriam exclusividade do ancoradouro. Queriam o apoio da sua grande força de combate, conhecida por todo o norte pela sua excelência. Tudo o que o outro líder queria era uma marca numa folha de pergaminho. — Fez uma pausa. Era um caminho perigoso, baseado na imaginação, em boatos e na avaliação pessoal de onde residiria a preferência de Alpin. Por que haveria aquele chefe tribal de confiar nele?
— É isso que pensas? — perguntou-lhe Alpin, que cofiava a barba e franzia o cenho, já não tanto de raiva, mas em concentração. — Que os Celtas vão acabar por controlar todo o norte? Nós, os Caitt, nunca entregaremos os nossos territórios. Uma aliança é uma coisa, a cedência abjeta do controlo é outra completamente diferente. — Era como se estivesse a falar com Dregard, ou com outro dos seus conselheiros. O druida mexeu-se ligeiramente, como que a recordá-los da sua presença.
— É minha opinião — prosseguiu Faolan — que as ambições de Gabhran se estendem apenas até às fronteiras setentrionais de Fortriu, não para além delas. Muito me surpreenderia que os contactos contigo e com os outros chefes fossem mais além de um pedido de assistência contra Bridei. Vão querer, é claro, usar as vias marítimas do Vale dos
Sonhos. Se estivesse no teu lugar, não ficaria preocupado com uma eventual ameaça aos teus domínios. A reputação dos Caitt torna-o improvável. — Não acrescentou que pouco havia nesses territórios que apelasse a um invasor, a não ser que alguém procurasse vastidões de floresta cerrada onde perder-se. — Quanto ao outro assunto, a seu tempo Dalriada deverá prevalecer. Estou convencido disso. — Era um argumento que ouvira inúmeras vezes na corte de Dunadd, e em certas ocasiões, noutros lugares. Na verdade, não concordava com ele, mas sabia como torná-lo convincente. — O povo de Gabhran já se instalou no sudoeste de Fortriu. Os chefes tribais mais pragmáticos receberam-nos de braços abertos. Cultivam esses territórios e têm filhos com as mulheres Priteni. Se não avançarem no vale durante a vida de Gabhran, irão fazê-lo com o seu sucessor, ou com o seguinte. Bridei não o vê assim. É apaixonado na sua fidelidade aos deuses — neste ponto, Faolan aquiesceu de forma conciliatória na direção do druida —, pois foi criado por um druida. Apenas vê o dia em que Fortriu regressará aos costumes dos antepassados. — As palavras eram amargas, com o sabor da traição, mesmo que fosse pelo bem da causa de Bridei.
— Interessante — comentou Alpin. — E inconsistente. Esses sentimentos soam a falso, vindos dos lábios de um homem que, ainda há pouco tempo, cantava louvores aparentemente sinceros ao líder que chama... qual era o título?
— A Espada de Fortriu, meu senhor. Esqueces-te, talvez, que sou um bardo, e dos bons. Faz parte dos meus talentos ser capaz de transformar em herói qualquer patrono.
— Seu sapo traiçoeiro — disse Alpin. Talvez falasse com repulsa, ou com admiração. Talvez um pouco de ambos.
— Sim, meu senhor.
— Continua. Onde queres chegar com isto? Esquece a narrativa. Se tens alguma coisa a oferecer, di-lo claramente.
— Meu senhor, estou completamente à tua mercê. Estou detido e atado como um frango para o espeto. Como se tal não fora suficiente desvantagem, o segredo da minha duplicidade foi revelado à frente do teu conselheiro e deste druida. Amanhã, poderá já ter chegado mais longe. Poderias, tal como disseste, enviar um mensageiro ao Monte Branco a informar Bridei de que não só o tratado está assinado e a dama casada, mas que um dos elementos da comitiva pensava em apunhalá-lo pelas costas, por assim dizer. Torna-se óbvio que, neste confronto, deténs todas as armas. — Sente o teu próprio poder, incitou, em silêncio. Deleita-te com a minha submissão. Convence-te de que tens o controlo total. Depois vou dar-te uma razão para me soltares. Alpin aguardou.
— Dei-te a minha opinião informada sobre o futuro da região — disse Faolan, escolhendo as palavras com cuidado. — É claro que poderias já tê-lo ouvido de outras fontes. Comentaste que te fazia lembrar alguém. Talvez já tenhas visitado a corte celta de Dunnad? Qual foi o chefe tribal dos Uí Néill com quem te encontraste? Black Conor? Fionn, conhecido como o flagelo do norte? Ruaridh, o Ancião de Tirconnell? Podes ser próximo de qualquer um destes poderosos líderes de clã. Ou será possível que tenha em meu poder alguma informação que o teu celta de estimação não te revelou?
Alpin pigarreou ruidosamente. Tinha as faces vermelhas.
— O teu homem agiu bem, meu senhor. Mas eu sou o melhor do meu ramo. Permite-me que to prove.
— Julgo — disse Alpin, levantando-se e pousando a mão no ombro do druida — que afinal de contas não precisamos deter-te mais nesta reunião, Berguist. Fizeste uma viagem cansativa e amanhã vai ser um dia em cheio. Goban! — A porta abriu-se e o guarda espreitou.
— Leva o meu convidado druida até ao salão e dá-lhe de comer e de beber, sim? — Ao ver a expressão de protesto de Goban, acrescentou:
— Eu fico bem, a menos que já não saibam fazer nós. Quando terminares, volta e fica lá fora até que te chame. — Depois, quando ficou sozinho com Faolan, exclamou: — Não acredito. Tens a ousadia de me ofereceres os teus préstimos depois de chegares aqui na escolta de Lady Ana.
— Sim, meu senhor. — O peixe mordia o isco. Tinha de puxá-lo com o maior dos cuidados. Obrigou-se a respirar lentamente. As cordas estavam a começar a magoá-lo, tendo sido atadas sem atenção ao conforto do prisioneiro. Por momentos, pensou em Drustan e nos grilhões de ferro.
— Por estranho que pareça, dou um certo valor à vida.
Alpin recompusera-se. Sentou-se e bebeu uma golada de cerveja.
— Imagino que devas ter bastante prata guardada. Se és tão bom como afirmas, os teus dois mestres devem pagar-te bem. E se eu não puder comprar o que tens para me oferecer?
— O preço não é muito elevado. Quero a minha vida e a minha liberdade. Envia-me de volta ao Monte Branco, tal como é esperado.
Confia-me a informação que desejas que Bridei ouça. Comprometo-me a apresentá-la na íntegra. — Não mencionou que, quando chegasse, Bridei teria partido havia muito.
— Por que haveria de confiar em ti? Diz-me uma razão para fazê-lo. Faolan sorriu. Era algo que raramente fazia e sempre de forma calculada.
— Quando te der a informação que tenho, saberás que não estou a mentir. Sou mais próximo de Bridei do que imaginas. Ele escuta-me e conheço todos os seus planos. Desde há cinco anos que me considera um amigo chegado. Poderás utilizar o que ficarás a saber como te aprouver: para fortaleceres os laços com Gabhran, ou simplesmente para o guardares até que precises de moeda de troca. O tratado mantém-se. Imagino que será assinado. Claro que me interrogo, uma vez que tens um celta pessoal, se tencionas honrá-lo.
— Pelos tomates do Guardião das Chamas! — Alpin Fitou-o. — Estás a tentar ser executado sem apelo nem agravo, bardo?
— Faz parte da natureza da minha profissão estar à vontade com o risco, meu senhor — disse Faolan, com frieza.
— E quanto à senhora? Podia jurar que a tua devoção era genuína. Repudia-a assim, sem pensar duas vezes?
— Lady Ana é uma mercadoria de grande valor. Entreguei-a intacta. Completei a minha missão. Bridei não poderá exigi-la de volta depois de a levares para a cama, meu senhor. As alianças mudam. As fronteiras mudam. Aconteça o que acontecer entre Alpin e Fortriu, terás sempre os teus filhos reais. Quando crescerem, o poder de Bridei talvez já tenha desaparecido. — Sentia-se enojado com as suas próprias palavras, mas manteve o olhar firme e as feições calmas. — Dizendo-o por outras palavras — acrescentou —, deves querer a noiva sem a bagagem atrelada.
Alpin assobiou baixinho. — Surpreendes-me — disse.
— Obrigado, meu senhor. Em parte, lamento que ela tenha sido trocada por menos do que o seu valor mas, no fim de contas, não passa de uma mulher. Teremos chegado ao ponto em que os meus tornozelos podem ser soltos?
— Só depois de ouvir a informação que mencionaste. Quero datas, rotas, números. Quero-o já. Se cumprires as tuas promessas loucas, poderei ter em conta o que pedes. Imagino que tal dependa da minha garantia de que Bridei não ficará a saber a verdade sobre o amigo traiçoeiro que tem. Se concordar, algo que está condicionado à qualidade do que me ofereceres, há uma condição. Quero que recolhas certas informações e que as tragas aqui. Tanto do Monte Branco, como de Dunadd. Disseste que eras um viajante.
— Queres que trabalhe para ti? — Faolan apercebeu-se de uma nota de triunfo na voz e esperou que tal passasse despercebida ao chefe tribal. — Nesse caso, teríamos de chegar a um acordo quanto ao pagamento.
— Tem calma — disse Alpin. — Dá-me provas do que disseste, ou não hesitarei em livrar-me de ti ainda esta noite. Tenho um ou dois homens que gostariam de executar essa ordem. Lentamente e com a mesma dose de arte que depositas nas tuas baladas.
— Um verdadeiro elogio fúnebre — murmurou Faolan.
— Diz-me, então. O que anda Bridei a tramar?
Enquanto assassino e espião, Faolan estava habituado a correr riscos. Não se lembrava de uma altura em que o risco fosse tão elevado. Teria de providenciar informações que fossem novas para Alpin, pormenorizadas e totalmente convincentes. Teria de ser o mais próximo da verdade possível. Se jogasse com cuidado, as mentiras poderiam livrá-lo de Briar Wood, e Ana consigo. Seria obrigado a calcular até onde poderia ir, sem colocar em perigo Bridei e os exércitos de Fortriu. Era estranho que, quando expôs o avanço antecipado, as rotas a seguir, os números, se sentisse o mais reles dos traidores. Queria enrolar-se sobre si próprio como um ouriço ou, tal como uma lesma, rastejar para baixo de uma pedra e fazer-se esquecer pelo mundo. Mas manteve o tom desligado e os olhos calmos. Contara a verdade, quando dissera que era o melhor.
Quando terminou, Alpin uniu as mãos, com os dedos virados para cima, e suspirou.
— Quer dizer que está pronto a avançar tão cedo — disse em voz baixa. — Vai partir na Medida, an? Desconfiei que fosse o caso, quando recebi a mensagem a informar-me da chegada iminente desta noiva. Mas não pensei que fosse possível. Vai arriscar-se com o tempo? Talvez aquele druida dele esteja a pensar fazer uma oração pelo bom tempo.
Faolan não disse nada. O peixe tinha sido fisgado.
— Amanhã — disse Alpin. — Tens de ser visto. Tens de cumprir as tuas obrigações, tal como é esperado por todos. Tens de estar presente quando esta coisa for assinada. Tens de nos divertir, à noite. Quero que o meu povo acredite que és apenas o que aparentas. Quero que partas na manhã seguinte, tal como planeado, com as boas novas para Bridei. Assim, poderás confirmar ao rei de Fortriu que o casamento foi consumado. Até te deixo ver os lençóis.
Faolan cerrou o maxilar e os punhos, mesmo cingidos. O fato de Alpin não ter falado com a intenção de provocá-lo, estando apenas a fazer uma piada grosseira, não alterava a fúria que sentia. Liberta-me, pensou, e os teus lençóis vão continuar de um branco puro. Tiro-a daqui para longe das tuas mãos imundas antes que o sol se ponha no dia do teu casamento.
— Vou ter de te prender esta noite — continuou Alpin. — Um ou dois dos meus homens ouviram a nossa discussão anterior e não ficaram contentes. Preciso de tempo para pô-los ao corrente da situação, isto se quisermos que tenhas os dedos todos para as danças do dia do casamento. Há uma barraca fechada nos canis. É útil quando temos um animal insano. Às vezes acontece, uma falha na ninhada. Fica de boca calada quando lá estiveres. Pensa nisto como mais algum tempo de vida. Por enquanto, não pensaremos mais adiante, em sacos de prata e um terreno para quando te reformares. Primeiro, tens de dar provas.
— Obrigado, meu senhor. Não irei decepcionar-te.
— Mordec!
A porta abriu-se e o guarda entrou.
— Solta-o — indicou Alpin. — Foi domado. Leva-o para os canis, às escondidas, percebes, e tranca-o como rafeiro que é. Não lhe batas muito. Temos um casamento amanhã e há falta de harpistas.
CAPÍTULO DOZE


Ana passou o resto da tarde sozinha. Ludha não viera ao seu quarto e a jovem não tinha vontade de ir procurar a criada, pois isso significaria ser vista pela casa com o nariz a escorrer e os olhos inchados devido às lágrimas. O que fizera fora o mais acertado, disse para consigo, enquanto olhava pela janela estreita, para as gralhas que se atarefavam no topo dos ulmeiros do outro lado da muralha. A chuva caía sem parar, uma morrinha que dava à floresta uma aura nebulosa pontilhada de prata. Não tivera escolha, a não ser cortar os laços. Dizer-lhe adeus. O vestido de casamento estava disposto sobre a cama, um par de chinelas de peliça junto à bainha bordada. Continuar a falar com ele, manter as breves trocas de palavras que eram a razão da sua existência seria colocar Drustan em perigo. Isso, não podia fazer.
Ana estremeceu. Dirigiu-se à cama e ajoelhou-se. Passou a mão pelo belo trabalho que a criada fizera na roupa. Uma fita bordada dava a volta à saia de cintura alta, com um estilo formal, adequado à ocasião, de padrões regulares de frondes e de folhas, em tons de verde e de azul claro. Aqui e ali via-se uma flor delicada. Também ocasionalmente, viam-se pequenas criaturas de olhos redondos pois, tal como todos os verdadeiros artistas, Ludha não resistira a aplicar o seu toque pessoal no trabalho: ratos, martas e salamandras, pintassilgos, sapos e libelulinhas surgiam por entre os fetos e as outras plantas. O tecido era de uma lã fina, fiada e tecida por Sorala, a mais talentosa das mulheres de Briar Wood nessas artes. A pedido de Ana, a roupa tinha um corte modesto, com mangas compridas e estreitas e um decote redondo. A saia caía em pregas suaves a partir de uma faixa de lã tingida de azul, logo abaixo do peito. Sabia que era um traje adorável e que ficaria muito bem nele. Mesmo assim, sentiu um arrepio de repulsa quando lhe pegou e o dobrou cuidadosamente, a fim de o guardar na arca.
O vestido representava Alpin. Não era capaz de olhar para a roupa sem imaginá-lo a soltar os atilhos, a descê-lo pelos ombros e a fazer o que teria de fazer com ela, na noite seguinte. Como seria capaz de o suportar? Como poderia fingir? E como seria capaz de deter as lágrimas incessantes, que pareciam querer afogá-la?
Deitou-se na cama e tentou pensar em coisas felizes. Meio a dormir, vagueou por um reino que não era exatamente o lar da infância, nem o jardim no Monte Branco, mas uma mistura dos dois, no qual passeava, brincava e ria com um par de crianças. Pertencia à cena, mas ao mesmo tempo estava afastada, tal como acontece nesses sonhos. Era uma das meninas e, em simultâneo, observava-as à distância. O jogo era complicado e envolvia duas bonecas de madeira muito apreciadas, imundas por aventuras sem fim, que tinham de escalar um muro de pedra, antes de iniciarem a travessia ousada de um campo repleto de vacas. As saias das meninas estavam ainda mais imundas do que as das bonecas.
É a minha vez, Ana.
Não, é a minha.
Eu já a tinha.
Sou mais velha, tens de fazer o que te digo.
Não tenho nada.
Depois, a menina Ana empurrou e a irmã caiu, ficando com a túnica e com os braços cobertos com a lama negra e espessa do campo. Breda começou a chorar. Regressadas a casa: a Tia a ir buscar a chibata de salgueiro, Ana encolhida contra uma parede. Estende a mão. A vontade de dizer, A culpa não foi minha, ela obrigou-me, enquanto ouvia Breda a fungar e a soluçar na cozinha, onde era acalmada com bolos de mel. Escolheu não dizer nada. As costas direitas, a cabeça erguida, a mão estendida com firmeza, sem um único tremor. Sou uma princesa. Depois o golpe.
Ana endireitou-se sobressaltada, a pestanejar. Lá fora, a luz desvanecia-se. Adormecera. Era quase hora da ceia e não havia ainda sinal de Ludha. Teria de se lavar e trocar de roupa sozinha, embelezar-se para o festim íntimo com Alpin. Cerrou os dentes e dirigiu-se à privada que servia os aposentos da família. Reparou no guarda à porta de Alpin e no segundo no cimo das escadas. Não se preocupou. Habituara-se à proximidade de vigilantes armados durante os primeiros anos como refém real. Normalmente, as viagens a Banmerren eram feitas na companhia de quatro homens imponentes. Guardas que vieram a provar-se desnecessários, pois o primo, o rei das Ilhas Pequenas, nunca tentara libertá-la, quer através da força das armas, quer pela diplomacia. Agora, estava reduzida àquilo: ia unir-se a um marido que desprezava e viver ao lado do homem que amava e nunca poderia vir a ter.
Ao regressar à porta do quarto, a figura alta de Orna esperava-a. — Deves precisar de ajuda para te vestires para a ceia.
— Onde está Ludha?
— Não está muito bem. Não virá, esta noite. — A governanta entrara no quarto de Ana e deslocava-se com à-vontade. Abriu a arca e procurou a roupa adequada. Retirou cuidadosamente o vestido de casamento e pousou-o ao lado. — Qual destes a minha senhora prefere? O azul?
Ana tinha vontade de bater o pé numa birra infantil e dizer que não queria nenhum.
— O cinzento, por favor — disse, num tom educado. — O que se passa com Ludha? Esta manhã parecia-me muito bem.
— Nada de grave. Umas dores, nada mais. Tens a certeza quanto ao cinzento? — Orna ergueu a túnica e franziu a sobrancelha. Mirou a saia condizente. De todos os conjuntos que tinham sido fornecidos a Ana, aquele era o mais simples.
— Sim. — Uma rapariga trouxera água quente. Ana lavou as mãos e o rosto na bacia que lhe trouxeram, secou-se e, virando as costas à governanta, despiu a roupa de cima. Ficou imóvel enquanto Orna lhe passava a túnica cinzenta pela cabeça. Vestiu a saia e submeteu-se ao apertar da cinta levado a cabo pela outra mulher. Acabada de se vestir, Ana olhou para o espelho de bronze que estava na prateleira e viu a sua imagem esbatida na superfície irregular, com a luz tremeluzente das velas a destacar o reflexo vago e fantasmagórico.
— Vou arranjar-te o cabelo, minha senhora.
— Não, eu trato disso, Orna. — Não lhe parecia correto que aquela criada severa, pouco mais do que porta-voz de Alpin, realizasse uma tarefa tão íntima. Orna não respondeu. Começou a selecionar e a dobrar os trajes soltos. Com uma disciplina cruel, Ana escovou, entrançou e domou o cabelo louro volumoso, enfiando-o numa rede ornada com fitas. Nem uma madeixa teve autorização de fugir. As feições inchadas e coradas que a fitavam a partir do bronze não eram as de uma noiva feliz, na antecipação dos momentos idílicos que passaria sozinha com o amado. Parecia um farrapo.
— Não podes ir ter com ele assim — disse Orna, sem cerimônias.
— Já basta a roupa. Estás tão coberta, que mais valia teres uma túnica de mulher sábia vestida. Bem, a escolha é tua. Mas, pelo menos, é melhor que deixes o cabelo solto, caso contrário ele vai perceber logo que passaste a tarde a chorar.
Orna tinha razão. Ana retirou os alfinetes que espetara no emaranhado de tranças, tirou a rede e deixou que os longos cabelos dourados lhe caíssem pelas costas, com uma pequena madeixa entrançada sobre a testa. Continuava com os olhos vermelhos e feios, mas não seria para aí que Alpin olharia em primeiro lugar.
— Sim, está melhor. — O tom de Orna não era hostil. — Um conselho, minha senhora. Espero que não o leves a mal.
— Se tens algo a dizer, é melhor que o digas de uma vez, Orna.
— Ana não tinha vontade de ser intimidada e o comentário parecia-lhe exatamente isso. Estava também preocupada com Ludha, que não mostrara quaisquer sinais de doença.
— É bem visível que não estás feliz — disse Orna. — Que ainda não te ambientaste. Todos nós aprendemos uma lição aqui em Briar Wood, minha senhora, isso se queremos viver em paz e segurança. Temos de ficar de boca calada em relação a certos assuntos. Dessa forma, não temos problemas.
— Que estás a querer dizer, Orna?
— Isso mesmo. Dá-lhe as respostas que quer ouvir e ele fica feliz. E, se ele estiver feliz, também nós estamos. — A expressão severa da governanta não convenceu Ana de que se tratava de um bom conselho. Na verdade, deixou-a bastante perturbada.
— Orna — disse a jovem —, estavas cá quando a primeira esposa de Lorde Alpin ainda estava viva, não é verdade?
— Estava. — Orna dirigiu-se à porta, pronta para chamar um rapaz que levasse a bacia e o cântaro da água.
— O que achas que aconteceu naquele dia? No dia em que ela morreu? Acreditas que...?
— Cala-te! — O tom de Orna era um silvo cortante. — Não tornes as coisas ainda piores, minha senhora. Imagino que ele já te tenha contado a história, o que significa que não precisas de voltar a ouvi-la por mim. Faz parte do passado e é melhor esquecer o passado.
— Mesmo que isso signifique que um homem possa ser falsamente acusado e injustamente preso? — O coração de Ana batia desenfreado.
Orna fechou a porta de repente.
— Sei que a minha senhora não é tola. Ainda não te habituaste aos nossos costumes, só isso. Esse é um assunto sobre o qual não se fala. É melhor que cumpras essa regra, para teu próprio bem, pelo menos. Ele não está no melhor dos humores, ouvi-o a gritar. O meu conselho é que faças o que tiveres de fazer para caíres nas boas graças dele. Agrada-lhe, se conseguires. Agora vou-me embora, tenho outras coisas para fazer. Ele espera-te assim que estiveres pronta. Só digo para teres cuidado. — E, com estas palavras, saiu.
O rapaz chegou e levou consigo os aprestos de limpeza. Nada impedia Ana de se deslocar à porta ao lado. Alpin estaria à sua espera, talvez com impaciência. Não havia motivo para Orna lhe ter dado aquele conselho gratuito. Ana ia casar-se com aquele homem no dia seguinte. É claro que tinha de agradar-lhe. Devia ir de imediato e começar a tratar do assunto, mas os pés não queriam mover-se. Deixou-se ficar junto à janela, a testa contra a pedra fria, os olhos fechados. Amo-te, disse em silêncio. Mais do que o lar e a família, mais do que a beleza, a sabedoria e a bondade, mais do que a própria vida. Para sempre, para todo o sempre.
Um leve bater de asas. Abriu os olhos. A carriça, que ele chamara de Ânimo, estava empoleirada no parapeito, ao lado da sua mão. Quando murmurou o seu nome, o pássaro minúsculo voou-lhe para o ombro. Com a plumagem de um castanho dourado, não destoava do abrigo proporcionado pelo cabelo brilhante.
— Não — murmurou Ana, agarrando na pequena criatura, que não tentou fugir. — Hoje, não. Não posso levar-te comigo. — Estendeu a mão para fora da janela e libertou o pássaro na luz pálida do fim de tarde de Verão. Esvoaçou junto à abertura e, quando Ana recuou, voltou a entrar.
— Vai — disse-lhe. — Vai para casa, volta para junto dele. Se pode ouvir a tua voz, se consegue ver através dos teus olhos, diz-lhe que o amo. Irei amá-lo para sempre. Mostra-lhe as minhas lágrimas. Mas não fiques comigo. Alpin não pode ver-te.
Pousou a ave no parapeito e o pássaro ali ficou, a observá-la, um monte frágil de penas, os olhos brilhantes com um discernimento selvagem que nunca entenderia.
— Diz-lhe — murmurou e saiu a porta antes que a carriça pudesse segui-la. Depois ergueu o queixo, endireitou os ombros, assumiu a postura de uma rainha e dirigiu-se à porta de Alpin. O guarda deixou-a entrar.
A coragem durou apenas até ver os olhos do futuro marido. Mesmo com a ceia festiva disposta sobre a mesa, as velas nos candelabros de prata, os belos copos e as Colheres ornamentadas, a expressão de Alpin deixava-a gelada até aos ossos.
— Demoraste — disse ele. — Senta-te e deixa-me servir-te um pouco de hidromel. Estou a ficar com fome.
— A minha criada ficou doente. Precisei de mais algum tempo para me vestir.
— Ficou doente, não é? — Alpin passou-lhe um copo e recostou-se na cadeira, as pernas cruzadas, as mãos cerradas em volta da sua taça. Tinha os nós dos dedos brancos. — Imagino que se lhe possa chamar isso.
O gelo intensificara-se. — A que te referes? O que se passa com Ludha? O que estás a dizer-me?
— A tua criada voltou a precisar de um castigo. Desde que ta entregamos, tornou-se bastante descuidada em certas coisas. A tal ponto, que julgo sermos obrigados a dispensar os seus serviços. É pena, pois, ao que sei, a rapariga não tem família. Mas é isso que se passa.
— Estás a dizer-me que alguém a magoou? Que foi espancada? Isso é completamente inaceitável! Disse-te que trataria eu própria de qualquer castigo... e, afinal de contas, que fez ela? Tem vindo a comportar-se perfeitamente em tudo. Passou dias a fio a trabalhar no vestido de casamento...
— Se fosse a ti, tinha cuidado. — Alpin levantou-se, o tom da voz perigosamente calmo. — Muito cuidado. Talvez a tua serva não tenha cometido o tipo de ofensa mais comum, como o roubo, o desleixo ou a devassidão. Mas é culpada de algo ainda pior do que isso. Quebrou uma das minhas regras, as minhas regras, que regem esta casa. Se o castigo não passou de uma tareia, bem pode considerar-se afortunada.
— Que regra? — Ana esforçou-se por manter um tom firme.
— Não vamos falar sobre isso ainda. Tenho vontade de comer esta bela ceia, embora deva dizer que esperava poder apreciar a minha bela noiva. Ver-lhe a pele dos braços e dos ombros, e talvez uma sugestão de peito, favorecido por um vestido adequado à véspera de casamento.
O azul, talvez. Estás horrível, com isso. O que vejo à minha frente é a lua coberta pelas nuvens. Pareces uma viúva de luto. — Enquanto falava, passava-lhe uma travessa de peixe cozido e outra de cebolas e queijo, como se fosse uma ocasião normal. Emudecida, Ana serviu-se de ambas e depois fitou as mãos. Não se sentia como a lua, nem como uma viúva. Sentia-se como uma criatura presa numa armadilha, sozinha e aterrorizada.
— Meu senhor... — A voz saiu-lhe como um gemido. Pigarreou, bebeu um gole de hidromel e voltou a tentar. — Meu senhor, não posso apreciar uma refeição, quando acabo de saber que a minha serva foi espancada. E... — Hesitou, sabendo que era irrefletido, e depois aventurou-se, subitamente incapaz de conter as palavras. — Não me sinto confortável com as regras que impões nesta casa. Os assuntos que não podem ser discutidos, a restrição à saída para lá das muralhas. Se vier a ser a senhora desta casa, preciso de disposições adequadas à lida com os servos. Gostaria de ter tido oportunidade de falar com Faolan, sendo ele a única pessoa que aqui tenho que pertence à casa de onde vim. Alpin, eu... penso que é estranho que o crime do teu irmão esteja envolto em tanto segredo. Isso sugere-me uma... irregularidade.
— Continua — incitou Alpin. Falava com um tom baixo.
— Seria terrivelmente injusto, se Drustan tivesse estado preso todos estes anos por um crime que não cometeu.
Alpin ergueu as sobrancelhas. — Que teoria apresentas em alternativa?
— Não tenho qualquer teoria.
— Acusas-me de mentir? É isso que estás a fazer?
— Não, meu senhor — respondeu Ana, vacilando perante a força gelada que lhe surgira nos olhos. — Como não estavas presente quando Lady Erisa morreu, o teu relato terá de ser baseado em palavras alheias. Tenho a certeza de que acreditas que é verdade, tal como as outras pessoas com quem falei.
— Que outras pessoas? Esse é um assunto proibido na minha casa. Quem andou a falar?
Ana engoliu em seco. — Perguntei a Orna. Ela não me contou a história, apenas disse que a tua versão era a correta. Não há mais ninguém a quem perguntar. Os teus antigos servos parecem ter desaparecido todos.
— Achas que isso é estranho? — Agora, também Alpin ignorara a ceia.
— Invulgar, pelo menos.
— Quero tão poucas recordações desse dia à minha volta quanto possível.
— Mas ele está aqui.
— Ele?
— O teu irmão. Tem-no aqui, em Briar Wood.
O olhar de Alpin era intenso. Parecia a Ana que ele tentava ler-lhe os pensamentos. Que lhe arrancaria os segredos, se tal fosse necessário.
— Interrogo-me — disse Alpin calmamente — como essa idéia te entrou na cabeça, a idéia de que poderia haver outra história. A noção de que o louco poderia não ser culpado do seu crime. Tens-me em tão pouca consideração que gastas as tuas energias a vasculhar a minha tragédia pessoal, a desenterrar essa angústia quase esquecida do meu passado? Será que te esqueces que nos vamos casar amanhã?
— De todo, meu senhor. — O comportamento de Alpin assustava-a e podia ouvir a hesitação na sua própria voz. — É por esse motivo que invoco esta questão. Deve haver confiança entre marido e mulher, confiança e honestidade. Estou preocupada com o futuro...
— Mentiras! — Alpin esmurrou a mesa. Já não estava calmo e controlado. — Não estás preocupada com nada disso. É Drustan que te preenche os pensamentos e que te consome a energia. Se não tivesse havido alguém a contar-te outra história em que acreditar, nunca terias desenvolvido esta obsessão. A maioria das mulheres teria fugido dele. A maioria das noivas estaria satisfeita por ele estar fechado, incapaz de voltar a fazer mal. Tu, não. Explica-te.
Ana respirou fundo. — Não faço idéia do que estás a falar, meu senhor.
— Mentes. — Alpin levantou-se e contornou a mesa até ao lado da jovem. Agigantava-se sobre ela, as mãos nas ancas, as pernas afastadas e um olhar furioso. — Aquele louco, aquele selvagem enfiou-te isto na cabeça... teceu um ardil de falsidades que te envolveu completamente. Estou mesmo a ver, tu, com essas maneiras senhoris, seria de esperar que te derretesses por todos os cães vadios, por qualquer animal ferido ou miserável com uma narrativa de injustiça. Ele sempre foi sedutor. Distorce as palavras até assumirem a forma que deseja. Quanto a mim, tenho pensamentos sinceros e conversas diretas. Não admira que te encolhas quando tento tocar-te.
Ana fez menção de protestar, mas a expressão no rosto de Alpin manteve-a muda e quieta.
— Não admira que penses que eu não sirvo para uma dama de sangue real. É tudo por causa dele, não é? Aquele desgraçado envenenou-te a mente e virou-te contra mim. Seduziu-te com palavras bonitas. Quer voltar a destruir a minha oportunidade de um futuro. Admite! Diz-me! — Alpin segurou-a pelos braços e pô-la de pé. As mãos apertavam-na de forma dolorosa.
— Não é verdade — murmurou Ana. — Larga-me, estás a magoar-me.
Apertou com mais força e a jovem não foi capaz de reprimir um grito de dor.
— É verdade — rosnou Alpin, o rosto barbado perto do dela, a raiva dando-lhe à pele um tom escuro. — Sei que é verdade. Sei das tuas tardes de costura, dos vossos encontros secretos no terraço, com aquela tua criada, e das conversas que tiveram. Ao que parece, uma falha na construção do encarceramento. Como pude não ter reparado?
Ana não julgava poder sentir-se ainda mais assustada. Contudo, ao olhar por cima do ombro de Alpin enquanto ele falava, viu um pássaro minúsculo a pousar no parapeito da janela, uma presença corajosa em tons creme e castanho. Ana desviou rapidamente o olhar.
— Senta-te, meu senhor, por favor — disse-lhe, recordando o conselho de Orna.
— Não tentes dar-me ordens na minha própria casa. — Abanou-a e a jovem sentiu a cabeça a andar à roda. — Tive conhecimento de certas coisas e enviei um rapaz lá acima para confirmar. Ele ouviu-te. És uma mentirosa e de certeza que não és a princesa casta que afirmas ser! Como te atreves a fazer-te passar por uma senhora, a torturares-me com a tua falsa modéstia, quando passas os dias a falar de amor com o meu irmão? Pelos deuses, responde-me, ou arranco-te as palavras de outra forma!
— Larga-me, por favor. Estás a assustar-me.
— Diz-me, maldita sejas! — Voltou a abaná-la. Os dentes de Ana pareceram-lhe vibrar na cabeça. Mal conseguia encontrar as palavras.
— Sim, falei com ele. Mas não o que dizes. Foram conversas banais. Tive pena dele. E muito tempo de solidão. Uma vez que ele fala como um homem racional, pensei... acreditei... Foi por isso que castigaste Ludha? Ela disse-te... obrigaste-a...?
— Bááá! — Com um brado de repulsa, Alpin empurrou-a de volta ao banco. — Aquele cão, aquela desculpa esfarrapada de homem! Devia ter acabado com ele há sete anos. Devia ter encontrado coragem. Os laços de parentesco não passam de amarras, quando se cometem tais atrocidades. Se não fosse do meu sangue, teria sido eliminado no dia seguinte. A cabeça seria exibida por cima dos meus portões e o cadáver teria servido de festim aos corvos. Como pudeste dar-lhe ouvidos? Como pudeste ser tão burra?
Ana levantou-se e tentou invocar a dignidade régia que tantas vezes provara a sua utilidade em alturas de aflição, ou de medo. O terror abjeto não lhe abandonou o coração.
— Não pretendo continuar aqui, a ouvir gritos e a ser magoada — declarou, com tanta altivez quanto a que foi capaz de demonstrar. — Antes de me deitar, desejo falar com a minha criada, a fim de garantir que não foi maltratada. E quero ver Faolan. — A voz fraquejou-lhe ao dizer o nome. — Quero falar com o meu bardo sem a tua presença. Não me importo que outra pessoa assista. Talvez o druida.
— Vamos com calma. — Voltou a agigantar-se perante Ana. A jovem interrogou-se sobre quantos passos distariam a porta e se valeria a pena correr para o quarto e trancar-se. — Não estás em posição de fazer exigências — continuou Alpin. — O que o meu informador ouviu lá em cima não foram conversas para passar o tempo. Descreveu-as como sendo muito mais do que isso. Aquilo que me contou deixou-me muito infeliz, Ana. Muito infeliz e bastante zangado.
— Não desejas avançar com o casamento? — A questão oscilava entre o reconhecimento de um fracasso estratégico e a esperança impossível.
— O quê, e arruinar o tratado do rei Bridei? De todo. Além do mais, seria um desperdício do trabalho de costura. É pena que a tua criada não esteja presente para te ver nas roupas que te fez. Mas eu irei ver-te. Irei ver-te a sorrir e fazer os votos, e irei ver a expressão no teu rosto quando te despir e reclamar aquilo que não queres dar-me por guardares as tuas palavras doces, o teu desejo, para aquele maldito lunático que é Drustan!
— Como te atreves! — A injustiça preencheu o coração de Ana e, por breves momentos, a fúria sobrepôs-se à cautela. — O teu irmão é cem vezes o homem que tu és!
O punho de Alpin surgiu como um raio, esmurrando-lhe o queixo. Ana caiu sobre a mesa, a cabeça e o pescoço uma bola de dor quente. Enquanto se esforçava por voltar a erguer-se, a carriça voou-lhe para o ombro, o piar baixo do pássaro misturando-se com o som arrastado da respiração ofegante de Alpin.
— Eu disse-te — arquejou Ana — que se me batesses, não casaria contigo, com ou sem tratado. Mandas chamar o druida e Faolan. Não vou tolerar mais esta situação. — O pássaro não tentara ocultar-se. Ana desejou que ele voasse para longe.
— És uma rameira, mesmo que apenas em pensamento — disse Alpin, o tom severo. — Foste ouvida e a defesa que fizeste do meu irmão é prova. Não estás em posição de ditar o que vai ou não acontecer.
— Esqueces-te que sou eu que devo assinar o tratado em nome de Bridei. — Todo o corpo lhe tremia. — Quero falar com Faolan. Não vou...
— Podes calar-te. — Os olhos de Alpin estavam fitos no pássaro. Ana recuou. — Para ti, não há «não posso», nem «não vou». Quebraste as regras. Falaste com o meu irmão. Deixaste que ele se insinuasse no teu coração e, se não estivesse atrás das grades, de certeza que também se teria insinuado na tua cama, e compensado todos os anos em que as mulheres apenas existiam em sonhos loucos.
— Não vou continuar a ouvir isto. Se Faolan soubesse que me tinhas magoado, ele...
— Cala a boca! — O punho voltou a erguer-se e Ana silenciou-se. A sua coragem não era infinita. Tentar fugir seria inútil, pois era óbvio que Alpin poderia alcançá-la. Além disso, estava um guarda à porta. Será que aquelas pessoas sabiam o tipo de homem que Alpin era? Talvez, no mundo dos Caitt, tal comportamento fosse normal.
— Verás que Faolan não poderá ajudar-te, esta noite — disse Alpin. — Quanto a ti, minha querida, não há volta atrás no tratado, nem no casamento, agora que está tão perto. Por mais devassa que sejas, mentirosa e hipócrita, possuis um determinado sangue e vais dar-me filhos. Não quero saber se vais gostar ou não. Se quiseres pensar em Drustan enquanto te possuo, pode ser que ajude. E vais assinar. O teu bardo parte depois de amanhã, com a notícia para Bridei. Está tudo combinado.
— Não o farei. — Ana falava por entre dentes cerrados. Vai-te embora. Já. Voa até ele.
— Farás, sim — garantiu Alpin e, com um movimento tão rápido e certeiro como o de um gato a apanhar a presa, estendeu a mão e agarrou na carriça que estava no ombro de Ana. No punho enorme, o corpo da ave era quase invisível. A jovem mal conseguia ver-lhe o bico delicado, os olhos brilhantes e aterrados.
— Por favor... — foi o murmúrio estrangulado que lhe saiu dos lábios.
— Vais fazê-lo. Vais fazer exatamente o que te vou dizer e não vais a correr para o teu celta, nem para mais ninguém com lástimas e queixumes. A partir de agora, vais afastar-te do meu irmão. Acabaram-se as canções, os sussurros e as visitas destas malditas criaturas. — Olhou para o pássaro encurralado. Ana viu a cabeça mexer-se num frenesi, em busca da liberdade, mas a mão segurava-o bem. — Vais assinar o tratado, vais casar-te sem quaisquer sinais de relutância e vais abrir as pernas quando, onde e como eu quiser.
— Não...
— Sim — contrapôs Alpin. — Porque se não o fizeres, espremo a vida de Drustan tão rápida e garantidamente como isto. — Fixou-a com o olhar, agora calmo e frio, e apertou o punho.
A carriça morreu em silêncio. Foi o grito de Drustan que ecoou por cada canto de Briar Wood naquele momento, o brado de sofrimento de um homem a quem arrancaram um pedaço do coração.
Alpin lançou o pequeno cadáver para a lareira e limpou a mão à túnica. Um fragmento de pena flutuou no ar. Ana ficara sem palavras. Algures no seu íntimo, uma criança repetia, num murmúrio angustiado, Quero que isto seja um sonho, quero acordar já.
— Senta-te — indicou Alpin.
Ana sentou-se. Após o grito de angústia, o silêncio imperava no exterior.
— Julgo que devemos proceder a uma mudança de planos. Podemos assinar já o tratado. Todas as partes deverão estar disponíveis. Perdi o apetite por esta bela ceia. E podes falar com o teu bardo. Creio que será adequado que testemunhe a assinatura, uma vez que irá levar o documento ao rei Bridei. É uma oportunidade de se despedirem. O druida pode estar presente, tal como pediste. Mas eu também lá estarei. Não confio em ti, Ana, e, depois disto, talvez nunca mais volte a confiar.
— És um homem mau — disse a jovem. — Cruel e bárbaro. Por que odeias tanto Drustan?
— Só fazes essa pergunta porque te recusas a aceitar a verdade. Drustan matou o que eu mais amava. É claro que o odeio. Desde o início que esteve maculado. Devia ter sido afogado à nascença. Nunca foi como nós. Não devia ter regressado para aqui.
— Se não tivesse vindo — a voz de Ana tremia com o choque e com a fúria, e com a noção gelada da derrota —, não controladas os cursos de água no Vale dos Sonhos. E ele nunca teria sido preso.
— Não vamos discutir esse assunto. — Alpin falou num tom sem qualquer ênfase. Tinha os olhos gelados. — A partir de agora, vais ficar de boca calada no que diz respeito a assuntos de guerra, estratégia ou alianças. São coisas de homem e é melhor que não deixem as reuniões dos homens. Sabes o que te espera se me desobedeceres.
— Ao que parece, a tua esposa vai ficar em silêncio a maior parte do tempo, tendo a conversa limitada à carne assada da ceia e à apreciação do tempo.
— Desde que me satisfaças na cama, não tenho problemas quanto a isso. — Alpin dirigiu-se à porta, chamou o guarda e deu-lhe uma ordem rápida, em voz baixa. Voltou a fechar a porta e ali ficou, a observar Ana. O cheiro a carne queimada pairava no ar. Ana sentiu-se enjoada.
— Quando Faolan vir esta marca no meu rosto — disse —, vai perceber que me bateste. Não é uma informação digna de ser levada ao Monte Branco.
Alpin ergueu as sobrancelhas.
— Em Fortriu não disciplinam as mulheres?
— Posso jurar que Bridei nunca levantou a mão contra a esposa. Tal idéia nunca lhe passaria pela cabeça.
— Mm-mm. Segundo ouvi dizer, ela própria é um pouco estranha, não é? Vem do povo da floresta. Isso pode ser um ponto fraco na armadura de um homem.
— Tuala pertence a outra raça — disse Ana em voz baixa. — É uma das minhas amigas mais queridas.
— Tens uma tendência para o exótico, não tens? Não consigo imaginar alguém a querer o meu irmão como amante. Tal noção é perversa. Desde criança que a situação de Drustan é um embaraço para a nossa família, muito antes de se ter dedicado ao crime. E esperas que a minha casa fale livremente sobre o assunto. És uma idiota.
Ana não disse nada. A partir aquele momento, pensou apaticamente, haveria muitos silêncios. Se fossem necessários para evitar outro sacrifício, refrearia a língua e verteria as lágrimas no seu íntimo.
Faolan entrou seguido por um guarda alto e ladeado por outro entroncado. Tinha marcas vermelhas em redor dos pulsos, como se tivesse sido manietado. Por cima de um olho via-se uma crosta de sangue e um hematoma roxo no queixo. Por baixo dos sinais de violência, o rosto estava pálido. Tinha as defesas erguidas, tal como era freqüente no Monte Branco, as feições ostentando o ar indiferente de um homem que não deseja chamar a atenção. Não disse nada.
— Faolan — disse Ana. — Estás bem? — A pergunta cortês pairou no silêncio entre os dois, tendo atrás dela tudo o que a jovem não poderia dizer, tudo o que nunca diria.
— Sim, minha senhora. — A voz era calma e sem expressão. Os olhos procuravam tudo menos o rosto da jovem, onde, sem dúvida, se espalharia agora uma equimose a acompanhar a dor que sentia na face e no queixo. Depois, como se não fosse capaz de se controlar, constatou: — Magoaram-te.
Ouviu-se um leve som metálico, quando Alpin deslocou uma faca sobre o tampo da mesa.
— Foi um acidente idiota — disse Ana, a olhar o chão. — A minha criada abriu a arca no momento em que estava a baixar-me. Coisas que acontecem. — Faolan tinha os pulsos em carne viva. Também se viam marcas nos tornozelos, reveladas acima dos sapatos puídos que lhe tinham dado. Ana percebeu que estava a fitá-lo e obrigou-se a desviar o olhar. — O meu senhor disse-me que vais partir para o Monte Branco depois de amanhã. Tão cedo. — A voz saía-lhe incerta. Tinha de ser forte, pois já o tendo feito, poderiam voltar a magoá-lo. A ele e a Drustan. Teria de controlar cada palavra, cada olhar, cada gesto.
— Não há necessidade de mais adiamentos — disse Faolan. — Ao que sei, o tratado vai ser assinado esta noite. O casamento terá lugar amanhã. Partirei de imediato, pois deixarei de ser necessário em Briar Wood.
— Terás de fazer o que julgares mais assisado, é claro — replicou Ana, com a voz tensa. — Que sei eu, de tais assuntos? — Todos observavam e escutavam, Alpin, os guerreiros, Dregard, sempre do lado direito de Alpin, o druida, que entrara na sala com uma pena e um tinteiro. A jovem ansiava por alguns momentos a sós com Faolan, mesmo que não pudesse contar-lhe a verdade, estando em jogo a segurança de Drustan. Se os outros não estivessem ali, pelo menos teria a oportunidade de lhe agarrar a mão, de lhe desejar felicidades e agradecer-lhe pela coragem e pela amizade. Poderia dizer-lhe que fizera um bom trabalho.
— Tem uma boa viagem, Faolan — disse calmamente. — Imagino que amanhã não teremos tempo de falar. Transmite os meus votos mais calorosos a Bridei. E a Tuala. — Estava à beira das lágrimas, que engoliu.
— E abraça Derelei por mim. Tenho saudades dele.
— Sim, minha senhora. — Sempre a recusa obstinada de olhá-la. Estaria sob a mesma pressão que ela? A representar um papel, a fim de não invocar a fúria de Alpin?
— Muito bem — disse Alpin —, estamos todos aqui, por isso podemos tratar deste assunto. Peço-lhes que se sentem. Tu não, bardo, podes ficar onde estás. E talvez Berguist nos possa ler o termos do acordo, para que todos saibamos aquilo com que estamos a concordar.
— Dirigiu um sorriso superior a Ana. A jovem endireitou as costas e meneou educadamente a cabeça em resposta. Em cima da mesa, junto à sua mão, uma pena castanha agitava-se na corrente de ar.
O druida Berguist apresentou os termos do tratado de forma clara e simples. Pelo menos para ele, não havia razão para não estar calmo. Fora tudo traduzido para latim e redigido no pergaminho, o qual foi apresentado para que Ana o lesse, para o caso de ter havido erros. A jovem deu-lhe uma vista de olhos, mas tal era a desolação na sua alma que poderia estar a olhar para um rol de gado ou para uma oração cristã, pelo pouco que apreendeu.
— A minha futura esposa tem uma veia erudita — dizia Alpin.
— Inteligente, para além de bonita. Todos os homens deviam ter a felicidade de encontrar tal perfeição, não acham? Terminaste, minha querida?
— Parece que está tudo em ordem, meu senhor — disse Ana.
— Até mesmo a referência ao Vale dos Sonhos, pedida por mim e por Faolan. Foste meticuloso.
Alpin Semicerrou os olhos.
— Então assina — disse-lhe.
Ana pegou na pena e, no lugar indicado pelo druida, escreveu o nome: Ana, filha de Nechtan, Princesa das Ilhas Pequenas. E, por baixo, em nome de Bridei, filho de Maelchon, Rei de Fortriu. Impaciente, Alpin retirou-lhe a caneta dos dedos antes de a tinta secar e colocou a sua marca ao lado da assinatura de Ana. O druida pegou no pergaminho para registrar o nome completo de Alpin por cima da cruz que este fizera e para anexar os pormenores enquanto testemunha. Estava feito.
— Ah — exclamou Alpin, enquanto o druida salpicava sobre o documento areia retirada de um pequeno saco para acelerar a secagem da tinta —, um final bastante satisfatório para um dia particularmente cansativo. O rei Bridei vai ficar satisfeito. Isto pode marcar a diferença nos seus planos futuros.
— Uma grande conquista, meu senhor — disse Dregard.
— Darás um guia a Faolan até à fronteira do teu território, ou talvez mais além? — perguntou Ana a Alpin. — Imagino que Breaking Ford continue intransponível. E temos ainda o caso dos teus vizinhos agressivos...
— Não tens de te preocupar com isso — atalhou Alpin, o humor de súbito alterado. — São...
— Assunto de homens, eu sei. — Cuidado. Muito cuidado. Passos cautelosos. — Apenas queria recordar-te o quanto é importante que as notícias cheguem a Bridei. Lembra-te que, embora tenhamos chegado há dois ciclos da lua, ainda não lhe foi dito que a escolta se perdeu. E que o seu emissário se afogou — acrescentou rapidamente, sem saber se essa mentira inicial contava para alguma coisa, depois dos acontecimentos desse dia, mas ansiosa por tentar que Faolan chegasse a casa em segurança. A atitude de Faolan preocupava-a. Não parecia ele.
— O teu celta de estimação partirá em segurança, não te preocupes — garantiu Alpin. — Temos razões para o querermos fora daqui. Claro que poderá não ser por muito tempo.
A atmosfera na sala mudou sutilmente. O ar pareceu gelar.
— A que te referes, meu senhor? — perguntou Ana.
Alpin parecia saborear o que se avizinhava. Voltara a assumir aquela expressão, a tensão de um lince prestes a atacar. — Podia contar-te — disse. — Mas vamos deixar que o bardo explique. Desde o início, sempre foste bastante solícita em relação à sua segurança. Mais vale ficares a saber da boca dele o vira-casaca que trouxeste para minha casa. A narrativa da sua história vai servir para desenjoar daquelas canções de amor com que gosta de nos entreter. Vá lá, bardo! Conta-lhe!
— Faolan? — perguntou Ana. — O que se passa? Que está ele a dizer?
— Meu senhor... — Faolan dirigiu-se a Alpin, a protestar.
— Conta-lhe! — bradou Alpin. Faolan pigarreou.
— Vá lá!
— Eu... — Faolan parecia incapaz de continuar. Fitou o chão. A sala ficou em silêncio. Era óbvio que ninguém ia ajudá-lo. Alpin trocou um olhar com os guerreiros, que dizia claramente, Se for preciso, batam-lhe.
— Faolan — incitou Ana —, conta-me, por favor, seja o que for. A que se refere Lorde Alpin, com vira-casacas? — Antes do vau, já vira Faolan sem defesas, mas nunca daquela maneira. — Diz-me — insistiu, enquanto reprimia o medo crescente.
Faolan ergueu a cabeça e os olhos que se encontraram com os dela voltavam a ser os originais: frios, desligados, como se nada lhe interessasse. Ouviu-o respirar fundo por duas vezes antes de falar.
— Lorde Alpin recebeu informações — disse Faolan. Respirou fundo novamente. — Fui visto na corte de Dalriada na Primavera passada. O que esse homem viu levou-o a acreditar que estou ao serviço quer de Bridei, de Fortriu, quer de Gabhran, de Dalriada.
Ana permaneceu em silêncio, à espera de mais. Uma mentira. Tinha de ser um dos truques de Alpin.
— A dedução foi que eu trabalho para Bridei apenas até ao limite dos meus interesses — continuou Faolan, com um tom neutro. — Sendo eu próprio de origens celtas, devo, claro está, certa fidelidade a Dalriada, à minha raça. Contudo, Lorde Alpin foi generoso ao ponto de me deixar regressar ao Monte Branco com o relato da nossa viagem e da sua conclusão bem-sucedida. — Olhou para Alpin. — É isto que gostarias que eu contasse, meu senhor?
— Não é verdade. — Ana tremia de raiva. — Só pode ser um equívoco! — Faolan, que fora o braço direito de Bridei, guarda-costas de confiança e conselheiro ao longo dos últimos cinco anos... Faolan, um espião de Dalriada? Era um disparate. Sabia que ele estivera em Dunadd. Onde mais poderia ter reunido a informação que a levara a Briar Wood? Mas Faolan a soldo de Gabhran... era impossível e a menção a tal coisa ofendia-a. — Não posso acreditar, meu senhor — disse a Alpin, que ostentava um sorriso pretensioso. — Não é preciso tirar conclusões precipitadas, só porque Faolan é de origem celta...
— É verdade, Ana. — O tom de Faolan era neutro.
— O quê? — murmurou a jovem.
— O que disse é verdade. Já trabalhava para Gabhran antes de chegar à corte de Fortriu. Forneço informações a ambos os lados. — Olhou-a nos olhos. Ana poderia jurar que ele estava a dizer a verdade.
— Dá bom dinheiro.
Ana tentou encontrar palavras.
— Não pode ser... Bridei... Bridei confiava em ti... não entendo...
— Na sua mente soavam as palavras que Faolan dissera, no Monte Branco e durante a terrível viagem. A sua força, a gentileza relutante, a gestão eficaz de todas as crises. A maneira como falava com Bridei e velava, incansável, por ele e por Tuala. A sua miséria no vau, quando acreditara que tinha fracassado na missão. Tinha de estar a representar, de fazer parte de um plano estratégico por parte de Faolan, o qual exigia que mentisse daquela forma a Alpin. Ou... — Faolan — obrigou-se a perguntar, mesmo sob o olhar intimidativo de Alpin —, extraíram-te essa confissão à força? Foste agredido?
— Julgas que trataria dessa forma um hóspede da minha casa? — indagou Alpin, com um tom casual. — Depois de todas aquelas baladas? A informação foi oferecida de livre vontade pelo celta, depois de se ver encurralado.
O queixo de Ana ainda lhe doía. Via ainda o punho de Alpin a apertar, a espremer a vida do prisioneiro minúsculo.
— Não acredito — disse, o coração a saltar-lhe no peito com o medo.
— Não? — Alpin não parecia incomodado. — Nesse caso, ainda bem que temos uma testemunha. Berguist, confirma à senhora que o relato deste sujeito é verdadeiro.
O druida parecia desconfortável. Afinal de contas, fora a Briar Wood com o único objetivo de servir de escriba e invocar a bênção dos deuses para um casamento.
— Minha senhora — disse em voz baixa —, lamento informar-te que o celta confessou prontamente assim que se soube da narrativa do informante. Faolan não foi coagido. Embora as suas ações passadas não sejam louváveis, a verdade é que acabou por escolher ser sincero.
— É tudo — disse Alpin com dureza. Faolan meneou a cabeça, sem olhar para Ana, e depois, ladeado pelos guerreiros, virou-se e saiu do quarto. — Que pena — continuou Alpin, servindo-se do jarro de hidromel. — Era um bom harpista. Quando se souber, imagino que venha a ter dificuldades em conseguir algum patrono.
— Com a vossa licença. — Ana duvidava que as pernas a conseguissem levar até à porta. — Vou retirar-me. Amanhã será um dia longo.
Alpin levantou-se cortesmente.
— Boa noite, minha querida. Precisas do teu sono de beleza, é claro. Queres ajuda para te despires? — Agarrou-a pela nuca e beijou-lhe a face, com os lábios a demorarem-se. Ana sentiu-se enojada. O corpo inteiro pareceu gelar. — Por mais que eu gostasse, não é uma oferta pessoal. — O tom perdera a qualidade afável. — Mas, uma vez que a tua criada está indisposta, talvez queiras outra serva?
— Não, obrigada. — Queixo erguido... costas direitas... Nunca fora tão difícil recordar-se de quem era. Queria gritar, fugir, esconder-se, estar em qualquer lado, menos ali. — Desejo a todos uma boa noite. Que A Que Brilha vos conceda bons sonhos.
— Que o Guardião das Chamas ilumine o teu despertar. — O druida murmurou a resposta formal. Uma pequena ruga surgira-lhe na testa.
Já no seu quarto, com a porta trancada, Ana vestiu a camisa de noite e deitou-se na cama, a fitar as teias de aranha no teto. Sentia-se oca, vazia. O futuro apresentava-se como um percurso sombrio e infindável, sem uma única luz que o iluminasse, um futuro de opressão, agressão e mentiras desesperadas. Um futuro em que os amigos se transformavam em inimigos e vidas inocentes eram eliminadas por capricho. Aquele homem seria o pai dos seus filhos. E Faolan, em quem aprendera a confiar, em cujos braços se abrigara na escuridão profunda da floresta selvagem, Faolan, cujas canções se encontravam tão repletas de mágoa, de desejo e de esperança, que levavam guerreiros endurecidos às lágrimas. Seria possível essa traição a Bridei? Como se transformara a vida de Ana naquela miséria, sem que lhe restasse um farrapo de verdade? No passado, interrogara-se sobre como alguém poderia escolher acabar consigo próprio, pois a vida era a dádiva mais preciosa dos deuses a cada homem e mulher. Era obrigação de cada um percorrer o seu caminho com coragem e determinação, segui-lo ao longo do tempo destinado, até que a Mãe de Tudo acolhesse de volta o viajante exausto. Naquela noite, na escuridão, quase lhe fazia sentido a perspectiva de uma faca afiada, um fim rápido e sangrento.
A luz pálida e fria da noite de Verão entrou pela janela estreita. Os dedos de prata d'A Que Brilha roçaram as pedras e duas pequenas formas surgiram no parapeito, como se trazidas ali pela mão gentil da deusa. Com o sussurro de asas, voaram até à arca ao lado da cama. Depois, quando Ana se sentou, deslocaram-se, uma após a outra, para os ombros da jovem, o cruza-bico à esquerda e, à direita, o maior peso da gralha.
Não podia partir. Drustan precisava dela. E ela precisava de Drustan, mesmo que não pudesse vê-lo, mesmo que nunca mais voltasse a ouvir-lhe a voz. Encontrava-se unida a ele de forma tão profunda como aquelas criaturas e, se o deixasse, partindo por este ou por qualquer outro mundo, ficaria irremediavelmente destroçada. Era a maior das verdades, brilhando com firmeza numa teia de sombras e de enganos. Enquanto Drustan vivesse, teria de ficar em Briar Wood, não interessava o que tivesse de suportar. Encontraria a verdade, por mais que demorasse. De alguma forma, iria libertá-lo.
O chão dos canis era uma cama dura, embora Faolan já tivesse passado por pior. Fosse como fosse, os pensamentos mantinham-no acordado. Sabendo que não se podia entregar a distrações, afastou da mente a expressão nos olhos de Ana quando lhe ouvira a confissão. Sentira-se ferida, traída. Dedicou-se ao esboço do seu plano. Tinha apenas uma coisa a seu favor, a tradição dos homens Caitt, que passavam boa parte da manhã de um dia de casamento numa celebração tumultuosa. Gerdic contara-lhe sobre a cerveja que corria a rodos, os jogos e os testes de força e de habilidade, as lutas de cães e entre cães e porcos, e outras atividades que decorriam no dia da cerimônia. Quando os jogos terminassem, por volta do meio-dia, teria lugar o casamento, no pátio. Os druidas preferiam realizar a cerimônia no exterior, para que os olhos d'A Que Brilha e do Guardião das Chamas pudessem observá-la diretamente e garantir que os votos eram proferidos à boa-fé.
Faolan avaliou cada obstáculo à vez. Teria de agir quando a maioria dos homens de Briar Wood estivesse no pátio, absorta com o entretenimento da manhã. Não estava manietado, o que era um começo. Teria de atravessar uma grelha de ferro trancada. Dovard dormia a um canto com a cadela e um guarda vigiava a pequena entrada discreta para a fortaleza. Seria necessário passar à frente do nariz do guarda. Depois teria de atravessar o pátio apinhado de gente, passar por mais guardas nos aposentos da família e talvez deparar-se com o fato de, mesmo que Ana estivesse no quarto, a porta estar trancada. Se as previsões de Gerdic estivessem certas, a jovem estaria a vestir-se para a cerimônia. Talvez lá estivessem mulheres. O que fazer com elas? Derrubar um homem armado era uma coisa. Outra completamente diferente seria eliminar uma criada indefesa com uma pancada no crânio. A julgar pela reação de Ana às suas palavras, possivelmente não ficaria surpreendida por vê-lo deixar um rasto de sangue e de morte atrás de si, o que seria justo. Certas missões no seu passado tinham exigido tais atos.
Até ali, tudo bem. Na sua imaginação, tinham chegado ao quarto de Alpin e à pequena porta trancada. Não tivera notícias de Deord. O mais provável seria que o guarda não soubesse onde ele estava. O que teria Deord conseguido ouvir e até que ponto chegaria o elo tácito entre os homens de Breakstone? Poderia levá-los ao recinto do louco e depois ao exterior da muralha? Se assim não fosse, estariam em apuros. Se pensasse muito no que fariam uma vez lá fora, poderia correr o risco de desperdiçar aquela oportunidade única. Isso não podia acontecer. Iria retirá-la dali e levá-la em segurança de volta a casa, mesmo que morresse a tentar. Mais depressa decepada a própria mão direita a vê-la casar-se com o miserável. O fato de Alpin ser um vigarista e um mentiroso e não Lazer tenção de honrar o tratado de Bridei, parecia quase secundário.
Faolan obrigou-se a descansar brevemente. Não teria utilidade com os instintos debilitados pelo cansaço. Era Verão e a alvorada chegava cedo. Com a primeira luz do dia, os cães acordaram e deram início a movimentos impacientes, ansiosos por serem libertados. Os ganidos e rosnadelas acordaram Dovard, que foi à bomba passar a cabeça por baixo de água, antes de se dirigir à pequena cela reservada aos cães perigosos, os que se tornavam selvagens.
— Tens fome? — perguntou o tratador. — Estou a preparar-lhes a ração e vou fazer papas de aveia. Se quiseres, partilhamos. Lamento não poder deixar-te sair. Ficaria em sarilhos. — Dovard revolvia já barris e sacas, a fim de acender o lume, e passava com um trapo num caldeirão meio carbonizado. O clamor dos cães intensificou-se.
— Obrigado — agradeceu Faolan, enquanto olhava para o molho de chaves pendurado numa cavilha na porta exterior e tentava discernir aquela de que iria precisar. — Parece-me que agora sou eu que estou em sarilhos.
Dovard acrescentava galhos e molhos de palha na lenha que dispusera na lareira central. — O que fizeste? — perguntou, sem grande interesse.
— Devo ter feito asneira. Fiz Lorde Alpin perder a paciência. Vai soltar-me mais logo. Não há mais ninguém para tocar na celebração. Se vais fazer pequeno-almoço, não vou negar-me. — Faolan esfregou as mãos e soprou-as para se aquecer. Tinha os pulsos e os tornozelos magoados dos laços da noite anterior.
— Primeiro tenho de soltá-los um pouco — disse Dovard e abriu o portão do cercado principal. Uma torrente de sabujos avançou, empurrando-se, tropeçando nas próprias patas na pressa de esticar as pernas e saborear o sol. Uma taça de água foi lançada pelos ares. — Não demoro. É só uma volta pelo pátio. É melhor despachar-me, antes que haja muita gente a pé.
O silêncio voltou a instalar-se no canil. Faolan mirou as chaves. Como fazê-lo sem magoar o rapaz ou deixá-lo à mercê da fúria de Alpin? Não, isso era estúpido. Estava a pensar como uma mulher, cheia de boas intenções e compreensão. Naquele dia, havendo tanto em jogo, não podia dar-se ao luxo de ter escrúpulos. A única coisa que interessava era levar Ana para longe, em segurança.
Quando o pássaro chegou, Faolan demorou alguns instantes a reagir. Empoleirou-se na cerca do canil e fitou-o. Depois, voou até à cavilha onde as chaves estavam penduradas. Faolan observou a gralha começar a retirar uma das chaves da argola, com movimentos delicados e controlados do bico forte. Recordou que fora naquele lugar que vira um pássaro a transformar-se em homem embora, naquele momento, isso já lhe parecesse um sonho, algo imaginado. O anel de ferro com as chaves tinha uma pequena abertura, por onde se poderiam acrescentar mais. O pássaro levara a chave selecionada até esse espaço, uma tarefa difícil por causa das restantes, que a gralha tinha de evitar. Faolan apercebeu-se de que estava a suster a respiração enquanto desejava com todas as forças que a criatura conseguisse o seu intento antes que Dovard regressasse com a matilha exuberante. Vá lá, vá lá, está quase... Um chocalhar, quando as chaves regressaram ao fundo do anel. Sentiu um aperto no coração. Não devia haver tempo para recomeçar. Seguiu-se um bater de asas e a gralha chegou à porta da cela, o prêmio transportado com orgulho no bico. Emudecido, Faolan estendeu a mão e a ave largou-lhe a chave para a palma. Momentos depois, a gralha desaparecera e a liberdade de Faolan estava oculta na bolsa que tinha no cinto.
Comeu a papa. Os cozinhados de Dovard deixavam muito a desejar, mas pelo menos a mistela aguada estava quente. De seguida, veio a espera que pareceu dias, tempo suficiente para lhe encher a mente de pensamentos indesejáveis. O risco que estava a correr, não tanto por si, mas por ela. Os outros que poderiam ser arrastados para o perigo devido à sua decisão, inocentes como Dovard. Deord, a quem forçara a ajudá-lo. O incompreensível Drustan, que ainda não identificara como sendo aliado ou inimigo. O futuro: um futuro onde, independentemente do que acontecesse, Ana se casaria com um homem que não ele próprio. Nada era mais certo do que isso. Seria ele um idiota? Tinha a oportunidade de sair em liberdade, de ver pelas costas aquele lugar desprezível e regressar sem entraves ao Monte Branco. Esse era um ponto em que Alpin mostrara sinceridade. Podia sair, a salvo, e prosseguir com a sua vida. O que planeava poderia representar a morte de todos eles e sem uma recompensa que o justificasse. Se Faolan fosse bem-sucedido e conseguisse resgatar a noiva de Alpin, passaria o resto da vida à espera de uma faca nas costas. Veria o rosto maléfico do chefe tribal em sonhos. Começou a desejar que Bridei o tivesse enviado não só como emissário e espião, mas também como assassino.
Finalmente, os sons de uma atividade crescente no exterior indicaram a Faolan que os homens começavam a reunir-se no pátio para os divertimentos daquela manhã. Era óbvio que Dovard se sentia tentado, pois dirigiu-se várias vezes à porta, mas não se juntou à celebração.
— Os jogos são bons, mas não gosto das lutas de cães — resmungou. — Aquele indivíduo, Cradig, não deixo que guarde aqui as criaturas dele, nem mesmo nesse canto onde estás. Os animais dele não prestam. Treinou-os para odiar e isso é algo que os cães não fazem por natureza. Não faz parte deles. Se aquelas bestas enfiam aqui o nariz que seja, incomodam os cães. Ficam com pesadelos.
— Imagino. — Faolan escutava com atenção, não o tratador, mas os ruídos do exterior. Aguardava a sua oportunidade. Continuava a haver movimentos de pessoas à frente da porta do canil. Só poderia avançar quando algo lhes prendesse a atenção. Ao recordar uma determinada ceia, imaginou que seria na altura das lutas de cães.
Quando chegou a altura, não houve como enganar, pois a multidão começou a gritar e a ulular, como que insana. Os cães de Dovard, pelo contrário, ficaram muito quietos. O tratador ocupou-se a limpar as coleiras de caça da matilha e murmurava à cadela, que estava sentada a seus pés e que tremia com o som que vinha em ondas do pátio. Aqueles homens tinham sentido o cheiro do sangue, o qual lhes despertara um apetite que teria de ser saciado.
— Pronto — disse Dovard com um tom tranqüilizante. — Pronto, menina, mais logo vamos passear, quando isto acabar. Maldito Cradig — acrescentou, enquanto esfregava graxa no cabedal com alguma violência. Momentos depois, caía do banco, com uma expressão de surpresa no rosto antes de ficar inconsciente. Não ouvira a chave, nem Faolan a aproximar-se pelas costas, com um tronco na mão. A cadela, distraída pelo barulho do exterior, só depois começou a ladrar freneticamente, sendo acompanhada pelos restantes sabujos. Numa ocasião normal, o canil teria ficado cheio de guardas. Naquele dia, o rebuliço foi abafado pelos brados vindos do exterior.
Faolan arrastou o tratador para dentro do pequeno cercado e trancou-o. A cadela mostrou-lhe os dentes mas, quando Faolan lhe rosnou, o animal recuou. Quando Faolan se dirigiu à saída para o pátio, o bicho instalou-se junto à grade de ferro, a partir de onde observou o dono inconsciente, ganindo de tempos a tempos. Dovard não deveria ficar com mais do que uma grande dor de cabeça. Com sorte, só voltaria a si mais tarde.
Faolan espreitou cuidadosamente lá para fora. A multidão encontrava-se reunida no centro do pátio. Os guardas nas muralhas só tinham olhos para o espetáculo sangrento que decorria lá em baixo. Faolan olhou na outra direção, para os alojamentos. O homem que guardava a pequena entrada traseira, junto aos canis, saíra do posto isolado e assistia à ação, esticando o pescoço para ver acima do ajuntamento. Estava no local para onde Faolan tinha de ir.
Não houve tempo para pensar. Faolan avaliou a distância e depois saiu a correr do canil, dando três passos antes de se atirar ao guarda, que derrubou para o caminho estreito que dava para o portão. Seguiu-se uma luta breve mas difícil. O guarda tinha a vantagem da maior altura e do peso, de um par de adagas e de um corpete de couro. Faolan tinha a seu favor o elemento surpresa, pelo menos enquanto durou. Tinha experiência. E uma corda de harpa a postos na mão. Matou o guarda rapidamente e, por necessidade, em silêncio. Aquele homem foi mais difícil de arrastar para um esconderijo. Enrolou-o o melhor que pôde e enfiou-o num canto escuro. Guardou as adagas e esgueirou-se até ao pátio.
A luta estava quase no fim. Os gritos tinham-se transformado numa combinação de aplausos e assobios de vitória. Outros cães esperavam, seguros na ponta de cordas esticadas por servos enervados. Se agisse depressa, haveria tempo.
Não havia ninguém na proximidade dos alojamentos. Todos estavam atentos à luta. Correu de sombra em sombra, através do pátio aberto. Assim que se encontrou no interior, atravessou a passagem que dava acesso ao salão e às cozinhas, à direita, e que subia com largos degraus de pedra até aos aposentos privados de Alpin. Estava um guarda no cimo. Faolan encostou-se à parede. Ao fundo das escadas, uma mulher levava uma espécie de bacia. Não o viu e dirigiu-se às cozinhas. O guarda virou-se, pronto para voltar a percorrer o patamar superior. Não havia dúvida de que estaria enfadado, desejoso de poder juntar-se à diversão. Diversão. Pelos deuses, quem, se não os Caitt, escolheriam tal desporto para celebrar um dia de casamento? Faolan agarrou a pedra que escondera na bolsa e começou a subir a escada em silêncio. Estaria à vista de qualquer pessoa que cruzasse o corredor de baixo. O momento seria tudo. Isso e a mão certeira.
Chegou ao topo das escadas na altura em que o guarda terminou o curto passeio até ao fundo do corredor, depois da porta dos aposentos de Alpin. O homem virou-se. A pedra acertou-lhe exatamente no meio da testa. Levava as mãos às armas no momento em que Faolan a atirou. O guarda caiu de joelhos, aturdido. Faolan aproximou-se e usou a adaga, num golpe rápido e certeiro no coração. Era mais limpo do que cortar um pescoço. Quanto mais tempo demorasse até que lhe encontrassem o rasto, melhor.
A porta de Ana, enquanto ponderava as suas opções, Faolan hesitou. Poderia estar trancada, o que exigiria que fizesse barulho, alertando as mulheres no piso inferior, ou outros guerreiros. A jovem poderia não se encontrar ali. Talvez estivesse um grupo de mulheres ali dentro, prontas a gritar e a fugir. Havia formas de lidar com cada uma dessas possibilidades, embora não gostasse exatamente de nenhuma delas. Não era altura para ter escrúpulos. Estendeu a mão e empurrou a porta.
Não estava trancada. Abriu-se parcialmente, bem oleada e silenciosa, e, pela abertura estreita, viu Ana à janela, a olhar para além da muralha. O tempo parou por alguns instantes. Faolan sabia que aquela imagem iria acompanhá-lo para sempre e nunca perderia a capacidade de lhe mexer com o coração. Ana tinha o cabelo solto, a cascata feérica prateada a cair-lhe pelas costas abaixo, transformada pelo sol da manhã em milhares de fragmentos luminosos. Envergava o que deveria ser o vestido de noiva. As linhas curvavam-se em redor dos ombros e agarravam-se ao peito, antes de caírem em pregas graciosas, as quais indiciavam sutilmente, aqui e ali, a figura modelada por baixo da roupa. O rosto pálido estava iluminado pela luz do sol. Os olhos de Faolan absorveram as sobrancelhas delicadas, a boca doce, as linhas perfeitas das faces e do queixo. O hematoma que lhe maculava a pele não chegava para diminuir-lhe a beleza, mas pesava no coração de Faolan. Aqueles olhos cinzentos, em tempos tão serenos, observavam agora o mundo com uma tristeza desesperada. Mesmo assim, mantinha as costas erguidas. Era o que mais o impressionava. Por mais que aquela criatura fosse delicada, tinha uma disciplina férrea. Talvez lembrasse a princesa de uma história fantástica mas, logo desde o primeiro momento, Faolan percebeu as qualidades que o tinham feito apaixonar-se: a coragem e a honestidade. Reconheceu que não havia no mundo outra mulher como ela.
— Ana — disse, em voz baixa.
Ana deu meia volta, pois estava absorta.
— Segura-me a porta.
Sobressaltada, a jovem fez o que lhe era dito, os olhos arregalados enquanto Faolan puxava o morto e o colocava atrás da porta. Não havia como ocultar o rasto de sangue nas lajes.
— Vamos embora — disse Faolan. — Imediatamente. Não há tempo para falar. Precisas de botas e de um manto.
— O quê? — Ana estava presa ao chão, primeiro a fitar o cadáver, depois o próprio Faolan, que abrira a arca e verificava o conteúdo. — Faolan, o que se passa? O que estás a fazer?
— Botas! — disse bruscamente. — Encontra-as, calça-as e vem comigo. Depressa!
— Ir contigo? — Ana recuou para a janela. — Não sejas estúpido! Faolan encontrou um manto, avistou as botas de rua aos pés da cama e agarrou em ambas as coisas.
— Vamos para casa — disse-lhe. — Confia em mim, Ana. Agora despacha-te, está bem? — Estendeu a mão. Ana encostou-se à parede, como se tivesse medo dele. — Vou levar-te de volta ao Monte Branco. Mas temos de partir já, ou não teremos oportunidade de fugir.
— Não vou.
— O quê?
— Disse que não vou. É o dia do meu casamento, Faolan. Agora, sai do meu quarto, antes que os guardas apareçam. — Ambos olharam o homem caído.
— Isto é de loucos! — O corpo de Faolan estava tenso, devido à percepção do tempo a passar, tempo que não podiam desperdiçar. — Não vais dizer-me que queres casar-te com aquele bronco do Alpin, pois não? Se é o tratado que te preocupa, esquece-o. Alpin não faz tenção de honrá-lo. Vamos. Depressa!
— Não vou, Faolan. Não posso. — O tom era frio. Havia nas palavras uma força que dizia que não se tratava de um protesto vão.
— Ana, não sejas tola... — Fez menção de lhe agarrar o braço, para a arrastar, se fosse preciso, pois nunca poderia deixá-la ali. Seria uma loucura.
— Não me toques! — Ana encolheu-se e Faolan estacou. O que se passava? Acreditaria mesmo que ele era um traidor? — Já te disse que não vou! Tenho de ficar aqui! Não posso e não vou deixá-lo!
Faolan obrigou-se a respirar fundo.
— Imagino que não estejas a referir-te a Alpin — disse, com a sensação estranha de que tudo estava prestes a sofrer uma reviravolta.
— Faolan, vai-te embora, sim?
— Não vais deixá-lo. — Não podia ignorar o assunto, mesmo com o tempo a escassear. — A quem?
— Drustan — murmurou Ana e, nos seus olhos, Faolan viu algo que o aterrorizou ainda mais do que as ameaças de Alpin, do que um rio transbordado ou do que bandos de guardas armados a persegui-los: viu a determinação implacável de uma mulher apaixonada.
Um homem experiente nas profissões de assassino e espião está habituado a executar tarefas que podem ser desagradáveis a nível pessoal, mas que são essenciais a uma missão. Era irônico, pensou
Faolan, que depois de ter imaginado com tanta freqüência o prazer de tocar Ana com paixão, a agarrasse pelos ombros antes que pudesse fugir, antes de sequer pensar em gritar, a voltasse e, com o braço a prender-lhe o pescoço, lhe aplicasse a pressão necessária para deixá-la inconsciente. Confirmou que tinha o manto e as botas, depois colocou-a sobre o ombro, como se fosse uma saca de trigo, e dirigiu-se à divisão ao lado: o quarto de Alpin. Não ficou surpreendido quando encontrou a porta secundária destrancada. Esgueirou-se, equilibrando o peso de Ana ao passar por baixo do lintel e usando o pé para fechar a porta. Houve qualquer coisa que se mexeu na penumbra da arrecadação. Sobressaltou-se, com a consciência desagradável de que estava vulnerável, com aquele fardo ao ombro. Como ela estava indefesa, e como assim continuaria, a menos que abrisse mão daquela determinação idiota de não querer ser salva. Até onde esperaria chegar, se ela não colaborasse? Fortriu era um destino longínquo e o terreno não era fácil. Contara com a ajuda da jovem.
Outra vez o movimento, agora para as sombras ainda mais escuras. Faolan viu que se tratava de um gato. Seguiu-o por um labirinto de passagens estreitas até um corredor enterrado entre muralhas imponentes, onde a criatura se sentou e não avançou mais.
Dez passos mais à frente, encontrou-se com Deord, que vinha da direção oposta. O homem calvo pareceu apreender a situação com um mero olhar. Não deixou transparecer qualquer sinal de espanto.
— Está ferida?
— Não. Não queria vir comigo. Podemos sair por aqui?
— Segue em frente. Vou trancar a porta.
O portão para o encarceramento sombrio ao fundo do corredor estava aberto. Lá dentro, via-se a figura imponente de Drustan a andar com impaciência. Naquele dia, até mesmo o fingimento de segurança parecia ter sido ignorado. Ao ver Faolan, salpicado de sangue e com o corpo inerte de Ana ao ombro, Drustan avançou de repente e Faolan desejou que Deord não tivesse deixado o portão aberto daquela forma.
— Está ferida! O que fizeste?
Depois, antes que Faolan mal tivesse tempo de respirar, o peso de Ana desaparecera-lhe dos ombros e a jovem encontrava-se no colo de Drustan, que se sentou no banco, um braço a apoiar-lhe o corpo e a outra mão a aninhar-lhe a cabeça de encontro ao ombro.
— Ana! — A voz de Drustan estava carregada de ansiedade. — Ana, acorda! — Depois olhou para Faolan com uma expressão acusadora. — O que aconteceu?
Não se tratava da reação de um mero conhecido, preocupado com o bem-estar da jovem. O tom feroz, o olhar furioso, a maneira como os dedos de Drustan se moviam na pele e no cabelo de Ana, tudo denotava os sentimentos de um amante. Faolan interrogou-se sobre como poderia aquilo ter acontecido. Como lhe teria passado ao lado, a ele, o melhor espião de Fortriu.
— Não a acordes — disse. — Recusou-se a vir comigo. Preciso que fique assim, até que estejamos a salvo fora daqui.
— Magoaste-a. O que é esta ferida?
Faolan suspirou. Onde estava Deord? Tinham de partir rapidamente. Em breve alguém descobriria as marcas que tinham sido deixadas para trás.
— Vai acordar com uma ligeira dor de cabeça e vai estar zangada. Não tive alternativa, Drustan. Quanto à marca, não foi obra minha. Seja como for, por que te interessa isso?
Drustan ignorou a questão. Deixara de tentar reanimar Ana. Em vez disso, abraçara-a com mais força e levara os lábios aos cabelos da jovem, fechando os olhos.
— Vais levá-la embora — murmurou.
Faolan odiava-o. Odiava as mãos de Drustan, que a seguravam com o toque confiante de quem tem todo o direito de o fazer. Odiava a pretensão de Drustan, de lhe poder fazer o que os costumes e o dever nunca permitiriam que Faolan fizesse. Sonhara em acariciá-la daquela forma. Drustan entregava-se a isso sem pensar no quão errado era.
— Uma vez que a alternativa é deixar que Ana se case com o teu irmão — disse Faolan com a voz tensa —, sim. Vou levá-la embora. O tratado não vale nada, o próprio Alpin admitiu que assim era. E ela tem medo dele. Agrediu-a. Não vou tolerá-lo. Temos de partir esta manhã. Esperava que Deord...?
— Tem suprimentos à tua espera. — Drustan não abrira os olhos. Embalava Ana nos braços. Faolan percebeu que a respiração se alterara, sinal de que recuperava a consciência. — Não esperávamos que a fosses levar contigo. É demasiado perigoso. Alpin vai perseguir-te com os cães. Como serás capaz de protegê-la?
— Quanto mais demorarmos, menos provável se torna que o consiga fazer — retorquiu Faolan. — Estarei certo, há uma saída deste lugar, um sítio por onde possa evitar os guardas?
— Responde-me — insistiu Drustan e, embora os olhos continuassem fechados, o tom exigia uma resposta.
— Ana é mais desembaraçada do que pareces acreditar — disse Faolan. — Salvou-me a vida a caminho de Briar Wood, colocando a dela em perigo. Ajuda-nos a fugir. Nós tratamos do resto. — Apercebeu-se que era também a oportunidade ideal para a fuga de Drustan. Ao ver as mãos do cativo, entrelaçadas no cabelo dourado de Ana, Faolan não disse nada.
O portão de ferro rangeu e fechou-se. Para grande alívio de Faolan, Deord apareceu, com passos rápidos, mas calmo, como sempre.
— Posso dar-te provisões, uma arma, um par de botas. Com isso não vais longe — comentou, olhando os sapatos puídos de Faolan.
— Não posso conseguir-te um cavalo. Além do mais, talvez avances com mais facilidade a pé. Mas a senhora... não estava à espera.
— O que ouviste ontem? — perguntou Faolan, enquanto Deord foi buscar um embrulho pequeno e bem acondicionado à divisão onde dormiam e lhe entregou um par de botas usadas, mas aptas.
— O suficiente. Alpin descobriu o teu segredo. Talvez te tenha forçado a trair Bridei. Por algum motivo, decidiu prender-te. Ninguém sabia se irias fugir ou fazer o que ele queria. Sendo um homem de Breakstone, fizeste o que eu teria feito, dadas as circunstâncias. Acabamos sempre por ser os nossos próprios mestres.
— O teu mestre é Alpin, decerto — disse Faolan, olhando em redor do espaço sombrio. No banco, Drustan estava imóvel. O cabelo claro de Ana criava um manto tremeluzente sobre o peito e o ombro do homem, que parecia desgostoso, como se estivesse à beira de perder o seu único bem precioso.
— Alpin deu-me trabalho e um lugar para viver — replicou Deord.
— Nada mais do que isso. Se fiquei, não foi por ele. Faolan, não podes levá-la contigo. Não terás a mínima hipótese de fugir.
— Vou levá-la. É por isso que parto. Não vou permitir que se case com aquele homem.
— Tu não vais permitir?
— Não há tempo para isto. — Faolan colocou o embrulho às costas.
— Onde está a saída, o lugar por onde vocês dois saem para a floresta?
Matei dois homens esta manhã e atordoei outro. Tenho de partir.
— Dirigindo-se a Drustan: — Vou levá-la.
Ana gemeu e mexeu a cabeça. Estava a acordar. Os dedos de Drustan acariciaram-lhe gentilmente o cabelo. Murmurou palavras de conforto.
— Tenho uma infusão — comentou Deord, com alguma relutância.
— Usamo-la nos nossos dias piores. Um pouco dessa bebida vai deixá-la assim por mais algum tempo, o suficiente para chegarem a uma zona mais profunda da floresta.
— Agradeço. — A noção de drogar Ana era repugnante, mas Faolan sabia que Deord tinha razão. A possibilidade de fuga era, no mínimo, diminuta, e teria de conseguir toda a ajuda possível. Esperou que Deord fosse buscar um pequeno frasco, que o desarrolhasse e administrasse o que parecia ser uma dose muito pequena.
As feições de Drustan endureceram.
— Dá um sono prolongado — disse. — E sonhos incômodos. Vai acordar confusa e com medo.
Faolan não respondeu. Limitou-se a ajoelhar-se ao lado de Deord, pronto para receber mais uma vez Ana ao ombro. A jovem estava em silêncio, tendo a droga já começado a fazer efeito.
Drustan ergueu o olhar.
— Deord — disse —, tens de ir com eles. Não és obrigado a ajudar este homem? A garantir que ele permanece em liberdade?
Silêncio.
— Não posso — respondeu Deord, sem expressão na voz. — Não poso sair daqui e deixar-te sozinho.
Drustan esboçou um sorriso triste.
— O meu irmão há de encontrar-me outro guarda. Quero que o faças. Faolan tem razão, Ana tem de regressar a casa. Não pode casar-se com o meu irmão. Juntos, podem conseguir. Vai, Deord. Quero que vás.
— Sabes o que estás a dizer? — Deord agachou-se junto a Drustan e olhou-o nos olhos. — Isto vai deixar o teu irmão furioso. Vai partir atrás de Faolan como um lince no rasto de um coelho. Se eu também for e conseguirmos fugir-lhe, será em ti que vai descarregar a sua ira. Sou responsável por ti, Drustan. Desde há sete anos que sou. Não vou abandonar-te. — Depois olhou para Faolan. — A não ser...
Faolan teve de se obrigar a dizer as palavras, aquilo que sabia ser o correto.
— Por que não vens também, Drustan? Vai em liberdade. Deixa Briar Wood para trás.
Dois pares de olhos fitaram-no. Seguiu-se um breve silêncio.
— Realmente, por que não? — concordou Deord. — Voa. Não voltes mais. É o sonho de todos os homens de Breakstone. Fugir e começar uma vida nova. Poucos foram os que o conseguiram.
— Não posso fazê-lo. — O tom de Drustan era neutro.
— Todos nós matamos, alguns mais do que uma vez — disse Faolan. — Já pagaste por isso. Foi um preço mais do que justo. O teu irmão decreta castigos severos. Serias tolo se ficasses. — Ao não obter resposta dos dois homens, declarou: — Têm de decidir agora.
— E se eu for e voltar a matar? — Drustan olhava para Ana, que tinhas as pálpebras pesadas, o rosto pálido, à exceção da marca roxa na face e no queixo.
— Em tempos — recordou-o Deord — disseste que nunca a magoarias. Falavas verdade, ou não?
— Nunca magoaria Ana. Ela é a minha esperança.
— Então, vem conosco. Alpin vai perseguir-nos pelos caminhos conhecidos, por mais difíceis que sejam. São esses os caminhos que os sabujos vão seguir. Mas existem outras formas, outras rotas apenas conhecidas do veado e o escaravelho, da lebre e da raposa. Podes guiar-nos. Podes mostrar-nos como fugir dele. — E, quando o ruivo ergueu a cabeça com algo diferente no olhar, Deord concluiu: — Podes salvá-la, Drustan.
Drustan olhou em seu redor, para o cativeiro familiar, como se estivesse em pânico. — Nessa altura ela ficaria a saber. Iria saber o que sou.
— Não há tempo para discutirmos esse assunto — disse Faolan com frieza, passando Ana para o ombro. — Mostrem-me a saída. — Por alguns momentos, julgou que Drustan não fosse largá-la. A mão só largou a dela no último instante.
— Ela não tem de saber — sugeriu Deord em voz baixa. — Assume a tua outra forma. Já controlas as mudanças. Não é preciso mostrares-te. Por aqui, Faolan. — Quando entrou para o espaço onde dormiam, Deord olhou por cima do ombro.
— Vai, Deord — indicou Drustan. — Se conseguir, sigo-os.
— Faz por conseguires — disse Deord. — Não quero a tua morte na minha consciência. Não te atrases muito. — Tirou um saco de uma prateleira e pendurou-o ao ombro. Depois, disse a Faolan: — É melhor que me deixes levá-la. Tenho os ombros mais largos. Aqui está, a nossa toca para o exterior. Sabíamos que virias, por isso está aberta. Baixa a cabeça.
— Ele vem? — perguntou Faolan, olhando para trás enquanto descia para a passagem subterrânea.
— É melhor que venha — disse Deord. — Caso contrário, fará de mim um desertor, um homem que abandonou um amigo. Se ficar para trás, o irmão vai matá-lo. Agora silêncio, até entrarmos na floresta. Espera pelo meu sinal para correres. Sei bem os movimentos daqueles guardas. Pronto?
— Estou pronto — declarou Faolan.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


CAPÍTULO TREZE


Entre os poucos que tinham conhecimento de causa, dizia-se que um homem que sobrevivesse ao encarceramento em Breakstone Hollow perdia a capacidade de ter medo. A natureza do lugar era tal que os terrores mais tarde encarados na vida assumiam um caráter insignificante. Um sobrevivente de Breakstone era forte de corpo e alma. Tinha de o ser, caso contrário estaria morto ou demente antes de poder voltar a exibir as suas cores ao sol.
Mesmo assim, naquele dia era o medo que impelia a fuga de Faolan pela floresta, não pela sua segurança, mas pela de Ana. Não era preciso uma imaginação muito fértil para adivinhar o que Alpin lhe faria, caso fossem apanhados. Quanto à sua própria sobrevivência, uma vez que esse fator era essencial para que a jovem regressasse são e salva ao Monte Branco, teria de garantir que não seria capturado e que manteria a capacidade de protegê-la. Não havia tempo para pensar mais além. Era um passo de cada vez, correndo em percursos irregulares, subindo encostas rochosas, ocultando-se atrás de penedos ou arbustos, antes de uma corrida em campo aberto. Por vezes, era Deord quem transportava Ana. Outras vezes Faolan levava-a ao ombro, sentindo-se obrigado a fazer a sua parte.
A poção de Deord devia ser forte. Foram correndo, esforçando-se o mais que podiam antes da inevitável descoberta por parte de Alpin de que a noiva desaparecera. Ana continuava inerte, incapaz de ajudá-los ou a ela própria. Incapaz de protestar. Ao olhar para a figura incansável de Deord, enquanto desciam sob um aglomerado de carvalhos, Faolan agradeceu aos deuses que assim fosse. Ainda assim, ficaria aliviado quando ela abrisse os olhos, mesmo que as primeiras palavras da jovem viessem a ser, quase de certeza, um protesto irado.
Quanto ao misterioso Drustan, ainda não aparecera. Faolan pensou em certos homens que vira na prisão dos Uí Néill, homens que estavam tão desesperados por liberdade como ele, mas que nem sequer consideravam a hipótese de fuga. Homens para quem a crueldade e a degradação, a dolorosa rotina diária se tornara uma noção mais segura do que o sonho aterrador do mundo exterior, com a sua multiplicidade de escolhas. A prisão fazia isso a um homem. Se lá ficasse tempo suficiente, o encarceramento toldava-lhe o discernimento, transformando a liberdade em algo a ser receado, demasiado inconcebível e difícil para ser contemplado, mesmo com o caminho aberto. Tais homens ficavam à porta, a olhar para o Sol, para os campos verdes e para as montanhas agrestes, após o que se retiravam para a sua caverna escura. Faolan vira o pânico nos olhos de Drustan quando se viu perante a hipótese de deixar o encarceramento, de abandonar Briar Wood para sempre. Sete anos eram muito tempo.
Era melhor que não hesitasse muito mais. O mais provável seria que o alarme já tivesse sido dado. Ao encontrar o quarto de Ana vazio, de certeza que Alpin iria procurar em todos os cantos. Faolan e Deord estariam marcados. E, caso se deixasse ficar para trás, Drustan seria alvo da fúria do irmão. Mesmo assim, Faolan não conseguia desejar que o homem-pássaro se juntasse a eles. Enquanto seguia Deord encosta abaixo até um ribeiro baixo, para onde entrou atrás do outro homem, numa tentativa de despistar os cães, via as mãos de Drustan no corpo de Ana, os lábios de Drustan contra o cabelo dourado. Ouvia a voz desafiadora de Ana: Não vou. Era ridículo, impossível. O homem podia não ser louco, mas era... era o que era, uma aberração, alguém único e, quanto mais se afastassem dele, mas satisfeito Faolan se sentia. Não que desejasse mal a Drustan. Apenas esperava que ele voasse na direção oposta, de regresso ao seu domínio a ocidente. Faolan olhou para o céu, por entre a cobertura verde proporcionada pelos carvalhos.
— Não há sinais — indicou Deord, enquanto fazia uma pausa para equilibrar Ana nos ombros largos. O cabelo da jovem, que tinham enfiado no manto, soltava-se. As madeixas longas, claras como o trigo no Verão, mergulhavam no ribeiro. O guarda continuava calmo, como sempre, mas tinha uma certa tristeza no olhar.
— A escolha foi dele. — Faolan colocou-se atrás de Deord e ajudou-o. Agarrou no cabelo de Ana e voltou a enfiar as madeixas por baixo do manto. — Ele queria que o fizesses. E já é crescido.
— Precisamos dele — disse Deord. — Alpin tem vantagem sobre nós, a menos que consigamos encontrar caminhos que ele não conhece. Esperemos que Drustan nos alcance antes do irmão. Já acabaste?
— Mm — resmungou Faolan. Para sua infelicidade, pensou, enquanto chapinhavam ribeiro acima, ao contrário das mãos de Drustan, que tinham acariciado aquelas madeixas sedosas, as suas limitavam-se a afastá-las do caminho de forma atabalhoada e rápida. O trajo de Ana não era adequado àquele empreendimento. A túnica e as calças emprestadas da viagem para Briar Wood teriam sido melhores. Tinha de obter alguma coisa para ela durante o caminho, tomar emprestado ou roubar em fazendas, ou colônias. Ana não podia correr de vestido de noiva. E as noites eram frias. Parecia agora impensável oferecer-se para aquecê-la como fizera antes, com o seu próprio corpo.
Deord saíra da água e começara a subir uma encosta coberta de árvores, onde os carvalhos davam lugar aos vidoeiros. Pequenas aves voavam nas alturas, chamando-se entre si nas suas vozes pipilantes. Fragmentos de casca de árvore e galhos caíam aos pés dos homens. Houve um movimento na vegetação: apenas uma criatura em busca de alimento. Depois, à distância, um som novo: os uivos dos cães de caça. Deord parou e olhou para Faolan.
— Podemos ter de voltar à água — indicou. — Sabes nadar?
— Se for preciso. Não posso falar por Ana.
— Onde está Drustan, agora que precisamos dele? — resmungou Deord, tendo encontrado um local onde podiam subir a encosta, dividindo o peso de Ana entre os dois. Quando chegaram ao topo, o vestido de casamento era mais castanho do que creme. O cabelo voltara a soltar-se e emaranhava-se em tudo. Deord retirou o punhal do cinto e, com três golpes rápidos e destros, cortou as longas madeixas louras ao nível dos ombros. Faolan ficou sem palavras.
— Guarda isto no teu saco — indicou Deord. — Podemos não conseguir fugir dos cães, mas pelo menos evitamos deixar-lhes um rasto. Não fiques aí parado. Vá, guarda-o e vamos embora.
Correram. Deord encontrou caminhos que Faolan mal conseguia ver, canais enlameados cobertos de folhagem pendente, pequenos espaços entre pedregulhos enormes, carreiros íngremes mais adequados a cabras do que a homens. Escolheram percursos sobre alpondras e, onde estas não existiam, atravessaram ribeiros com água pelos joelhos. Caminharam pela lama de depressões pantanosas e equilibraram-se sobre pontes de troncos instáveis. Deord não estava a brincar quando ordenara um ritmo mais forte. Mesmo com Ana aos ombros, a sua velocidade e resistência eram formidáveis. Faolan vedou a mente às distrações e concentrou-se em acompanhá-lo.
Chegaram à margem de um lago isolado, atrás do qual se erguiam encostas íngremes que formavam uma impressionante linha de picos. Os cumes eram de pedra pálida e nua. Pareciam tão implacáveis como uma irmandade de deuses vetustos. Do outro lado, o lago estava orlado de pinheiros. A água cintilava ao sol. Perto do local onde os homens tinham surgido das árvores, uma catarata alta formava uma faixa branca graciosa, espalhando-se por entre as pedras até ao lago. O ribombar da queda de água não abafava na totalidade o clamor dos sabujos de Alpin. Aproximavam-se rapidamente, seguidos, sem dúvida, por homens a cavalo.
Escolher um percurso ao longo da margem pedregosa seria demasiado lento. Onde quer que um homem pudesse ir, um cão seria capaz de segui-lo. Além do mais, qualquer caminho em redor daquela extensão de água terminaria numa encosta demasiado íngreme para ser escalada. O lago assentava numa depressão rochosa, com apenas um acesso, o caminho por onde tinham chegado. O caminho por onde Alpin se aproximava.
— Por onde é que um homem pode ir, que um cão não consiga acompanhar? — resmungou Deord.
Seguiu-se um momento de pausa, pontuado por um gemido de Ana. Os dois homens entreolharam-se. Juntos, viraram-se para a catarata.
— Penhasco acima — disse Faolan, enquanto na floresta se fazia ouvir um corno de caça. — Melhor ainda, penhasco acima, por baixo de água. — Começaram a correr. — Por tudo quanto é sagrado... se alguma vez contarem esta história, os protagonistas vão ser dois loucos e nenhum deles vai ser Drustan...
— Poupa o fôlego — resmungou Deord.
Ana voltava a si. Fazia débeis tentativas para se debater e gemia como se tivesse a cabeça em chamas. Deord, com a jovem aos ombros, segurou-lhe firmemente os joelhos e as costas com os braços. Em breve, pensou Faolan, não interessava o ruído que faria. A julgar pelos latidos, os cães iriam avistá-los antes que um homem pudesse contar cinco vezes cinqüenta.
Abriram caminho por entre pedras e ervas altas. O barulho da catarata era ensurdecedor. A sua voz cantava um desafio poderoso: Assaltem-me por vossa conta e risco! Na base encontrava-se uma lagoa e, mesmo sendo um local isolado, havia oferendas presas aos arbustos, faixas de linho, fitas andrajosas, pedaços desfiados de lã. Quem não desejaria aplacar a deidade selvagem que reclamava para si aquela violenta torrente de água? Faolan sentiu um arrepio. A recordação de Breaking Ford ainda estava bastante viva. Pelo bem de Ana, esperava que a jovem continuasse inconsciente por mais algum tempo.
— Para cima — indicou Deord. — Temos de subir e abrigar-nos antes que eles apareçam. Toma, fica com ela.
Faolan olhou para cima. Bem no alto do penhasco, parcialmente ocultos por uma névoa de gotas de água, podia ver pássaros a entrar e a sair. Havia uma caverna ou uma reentrância por trás da queda de água. A subida era íngreme, com as pedras escorregadias e cobertas de musgo. Não podia negar-se a transportar Ana. Mas lá para cima? Será que Deord pensava que ele era um esquilo?
— Depressa! Vai! — Deord passou o corpo de Ana para as costas do companheiro. Faolan ergueu os braços para a manter firme. Como seria capaz de subir? — Ajudo-te ao início — disse Deord. — Segura-a com uma mão e trepa com a outra. Vais conseguir.
Parecia impossível. Faolan cerrou os dentes, posicionou a forma inerte de Ana sobre o ombro, com a cabeça pendurada para as suas costas, e deu início à subida lenta. Era de loucos. Todo aquele dia fora insano. A dada altura, o pé de Faolan escorregou e ficou com Ana a balançar sobre o precipício, a água a fustigá-lo e o coração a bater-lhe com força no peito. A mão de Deord surgiu por trás deles, equilibrando Ana e corrigindo a posição de Faolan com um gesto seguro. Chegaram a um rebordo e Faolan respirou fundo.
— Continua — gritou Deord sobre o clamor da catarata. — Lá para cima. Deve haver uma caverna. Esconde-te e espera.
— Até nos matarem de fome? — gracejou Faolan com um tom sombrio, enquanto olhava para cima e tentava convencer-se de que era capaz de ver uma gruta, algures por trás da torrente de água.
— Não é preciso tanto. — Deord voltava a descer. — Vou despistá-los. Vou dar outro rasto aos cães. Se não regressar até ao pôr do Sol, continua sem mim. Sugiro que continues a subir e que procures um caminho ao longo das colinas.
— O quê...? — Era suicídio. O homem era completamente doido.
— Vai, Faolan. — Deord olhou para trás, os olhos firmes, a expressão calma. — Se não for assim, vamos ficar aqui encurralados como ratos, enquanto eles esperam que desistamos. Agora chega lá acima antes que te vejam. Tu és capaz. Cuida bem dela, bardo. Se Drustan aparecer, dá-lhe cumprimentos meus.
Faolan ficou estupefato. Antes que fosse capaz de pensar numa resposta, já Deord desaparecera penhasco abaixo. Era demasiado tarde para dizer obrigado, adeus ou qualquer outra coisa.
Faolan concluiu a subida quase sem consciência do que estava a fazer. Em si, não havia espaço para o medo de cair, nem para mais nada, a não ser a tentativa de equilíbrio, o local onde se agarrar e a busca da melhor posição que o levasse a subir sem deixar cair Ana e sem perder a firmeza. Não olhou para baixo. Não tentou ver o que fazia Deord, nem procurou ouvir os cães, os cavalos, os caçadores. A dada altura, bastante mais perto do topo, havia uma reentrância mais larga, que formava uma concavidade profunda por baixo de uma laje aguçada. A água caía sobre a rocha protuberante e a caverna ressoava com o som do impacto. A área tinha um piso de pedra e não estava totalmente molhado. Do interior, Faolan olhou através da película branca da água que caía, iluminada pelo sol. A voz da catarata era ensurdecedora. Pousou Ana, com um esgar pela dor nas costas, nos joelhos, nas mãos feridas. A luz na caverna era fantasmagórica, um brilho débil que atravessava a água em movimento. Fazia com que as feições de Ana parecessem lívidas. A jovem estava a mexer-se. Tremia. Tinha as vestes ensopadas e a roupa de Faolan não estava mais seca. Tomou as medidas práticas que pôde, desfazendo a trouxa, à procura de algo quente e seco. O que tinha Deord ali guardado, um manto? Ah, um cobertor dobrado. Enrolou a jovem com ele. Garantiu que Ana estava numa posição segura, para que não caísse, se acordasse confusa e com medo. A imagem de Deord nunca lhe abandonou a mente: Deord a descer o penhasco, Deord perseguido através da floresta, Deord, na verdade, a entregar-se para que eles se salvassem. Porquê? O homem mal os conhecia. O elo de Breakstone não exigia tal sacrifício. Não devia ter deixado que Deord partisse, devia ter insistido... Mas, nesse caso, todos eles teriam sido apanhados, até mesmo Ana. Talvez Deord soubesse o que estava a fazer. Esperar até ao pôr do Sol, dissera. O fim do dia ainda vinha longe. Bastante falta lhes tinha feito alguma ajuda. Pelos deuses, onde estaria Drustan?
Como que em resposta à pergunta imaginada, surgiu uma pequena forma a voar pela cortina de água. Aterrou numa protuberância e sacudiu as gotas das penas vermelhas. Não era a criatura de aspecto de falcão de que precisavam, apenas o cruza-bico. Faolan mirou o pássaro com aversão.
— Faolan? — A voz de Ana era fraca, mas ouviu-a por entre a música poderosa da água. — Faolan, onde estamos?
Explicou-o da forma mais simples e clara que conseguiu, com Ana sentada, enrolada no cobertor, as feições macilentas e os olhos toldados. Não lhe disse o quanto ficara magoado por ela ter acreditado que seria capaz de trair Bridei. Nem sequer comentou o assunto. Cingiu-se ao desprezo para com o tratado e à necessidade de fugir antes que ela se entregasse ao arremedo de casamento. Lamentou-se por tê-la deixado inconsciente. Explicou que Deord os ajudara e que agora o homem desaparecera.
— Porquê esse ar, Faolan?
— Que ar? — Estava agachado ao lado dela, a vigiá-la, pois a sombra dos sonhos do narcótico ainda lhe ensombravam os olhos, e Faolan receava que ela tentasse fugir. Ali, nada era seguro. A caverna era o melhor refúgio que tinham. A sua frente, do outro lado da água que os ocultava, havia uma queda para uma morte súbita. No penhasco, ficariam à vista dos homens de Alpin, assim que estes emergissem das árvores. Poderiam ainda estar ao alcance das flechas.
— Como se sentisses o bafo gélido da Mãe de Tudo — disse Ana.
— Eu... — Hesitou, incomodado por ela conseguir lê-lo com tanta facilidade. — Não vejo como Deord possa sobreviver — admitiu, pois sabia que ela iria querer a verdade. — Alpin anda por aí com os sabujos. Um homem, por mais apto que seja, não será capaz de fugir aos cães e aos guerreiros a cavalo. Eventualmente vão apanhá-lo. Depois vão matá-lo, ou tentar extrair-lhe informações, o que acaba por ser a mesma coisa. Por que será que fez isto?
Faolan não esperava resposta e Ana não a apresentou. Baixara a cabeça, os ombros curvados em derrota. O cruza-bico saiu do poleiro e pousou no ombro de Ana. A jovem sobressaltou-se violentamente.
— Oh! — Olhou em redor da caverna, como se houvesse fantasmas nos cantos. Uma das mãos largou o cobertor e foi afagar o pássaro, o que pareceu acalmá-la. Faolan manteve a vigília. Naquele estado parecia-lhe que ela seria capaz de tudo.
— Sinto muito pelo teu cabelo — disse. — Deord cortou-o. Não consegui impedi-lo.
Os dedos de Ana deixaram o pássaro e dirigiram-se às pontas cortadas. Mal pareceu assimilar a ofensa à sua beleza.
— Faolan, tenho de regressar — disse, fitando a cortina de água, como se disposta a saltar, caso fosse essa a única alternativa. — Tive sonhos... sonhos tão cruéis... Quando acordei e estávamos aqui, pensei que talvez...
— O quê? — perguntou Faolan com um tom calmo.
— Pensei que talvez não passasse de um sonho. Que talvez ainda estivéssemos nos dias após o vau... Na floresta, a procurar abrigo onde o encontrássemos e com tudo molhado... vi tanta morte... morte, sangue e crueldade... parece que não consigo distinguir os sonhos da realidade, Faolan. Isso assusta-me.
— Foi a bebida que Deord te deu. Tem esse efeito. A confusão vai passar quando o efeito desaparecer.
— Porque é que Deord... Oh. Ah, sim, já me lembro... eu não queria... e tu mataste um guarda... Faolan?
— Sim? — Agora ela ia perguntar e ele teria de engolir a mágoa e encontrar uma resposta.
— Não posso ir contigo — declarou, num tom neutro.
— Por que não? Porque acreditas que apunhalaria o rei de Fortriu pelas costas?
— Não, eu... Talvez por um momento tenha acreditado. Tu próprio disseste que era verdade.
— Deves ter-me em muito baixa consideração, para acreditares tão depressa que sou um traidor. — Conseguia aperceber-se do som tenso da própria voz.
Seguiu-se uma pausa, ao que Ana disse:
— Descartei essa idéia quase no mesmo momento em que me surgiu, Faolan. De certeza que tens uma boa explicação para o que disseste. — Segurava agora o cruza-bico entre as mãos. Faolan interrogou-se sobre se Drustan sentiria alguma coisa quando os dedos de Ana acariciavam as criaturas daquela maneira. Sobre ele, Ana não perguntara nada.
— Bridei tem conhecimento do trabalho que faço para Gabhran, de Dalriada — disse Faolan. — Por outro lado, Gabhran não faz idéia que sou fiel a Bridei. Recusar o pagamento de Gabhran iria levantar suspeitas. Tem sido um acordo útil a Fortriu. Agora que Alpin me descobriu, vai ter de acabar.
Ana olhou-o com gravidade, um ar que o tranqüilizou.
— Compreendo — disse-lhe. — É pena haver a necessidade de tais subterfúgios e desonestidade, mas a minha própria posição deu-me consciência dos jogos que têm de ser levados a cabo pelos reis e seus poderosos conselheiros. Nunca seria capaz de fazer um trabalho como o teu, Faolan. Bridei exige-te muito.
Voltara a surpreendê-lo.
— E a ti — disse-lhe. — Por que dizes que tens de regressar? Não vais dizer-me que continuas a pensar em casar-te com Alpin. Depois disto?
— Pensei... pensei que podia regressar sozinha. Posso dizer-lhe que me raptaste. Não deixa de ser verdade. Podes voltar ao Monte Branco. Tenho de estar em Briar Wood, Faolan. Já to tinha dito e falava a sério. — Arrepiou-se. A saia do vestido estava escura devido à água. Devia estar gelada. O cobertor que a envolvia era a única coisa seca que Faolan tinha para lhe dar. Se não pudesse fazer mais nada, ela morreria de frio antes de chegarem à fronteira do domínio de Alpin. Malditos fossem os Caitt. Maldito fosse aquele lugar.
Ocorreu-lhe uma idéia sombria. Se lhe mentisse, poderia fazer com que ela desistisse do seu intento louco. Só tinha de dizer que Drustan decidira não se juntar a eles. Que pedira a Faolan que levasse Ana para casa e que escolhera voar para o seu território a ocidente, onde seria livre. Não, não poderia dizer voar. Drustan obrigara-o a jurar que não lhe contaria aquela verdade e Faolan honraria a sua promessa. Mas, se conseguisse convencer Ana de que o homem-pássaro preferia gozar sozinho a nova liberdade, ela não teria motivo para regressar numa missão de salvamento demente. Até poderia ser verdade. Se Drustan queria acompanhá-los, por que não estava ali? Parecia mesmo que o indivíduo lhe virara as costas. Se fosse outra mulher, seria isso que Faolan lhe diria.
— Faolan? — Ana observava-o com atenção. — Compreendes, não é? Não posso deixar Drustan. Se Deord o abandonou, ele está sozinho. Drustan não vai deixar Briar Wood. Está convencido de que vai magoar mais alguém, caso seja libertado. Ele não tem ninguém, Faolan. Consegues imaginá-lo?
Ouviu a mudança na voz quando Ana disse o nome de Drustan. Viu como ergueu o pássaro e levou a plumagem à face. Naquele momento, sentiu um ódio de morte por Drustan. Mas não era capaz de odiar Ana.
— Deord apenas partiu porque Drustan lhe disse que deveria fazê-lo — explicou. — Tanto Deord como eu tentamos convencê-lo a acompanhar-nos. Ele parecia não conseguir decidir-se. Disse que viria mais tarde. Imagino que não seja tolo a ponto de enfrentar sozinho a fúria do irmão. Se regressasses, ias cair nos braços de Alpin. Na cama de Alpin. Se é isso que queres, enganei-me profundamente a teu respeito. — Talvez fosse grosseiro, mas tinha de chocá-la para que esquecesse aquela idéia. — Se Drustan já partiu, seria tudo em vão.
— Não valia a pena enumerar as outras razões que faziam com que o que sugerira fosse tolo e ridículo: que tinha a roupa molhada, que não sabia o caminho, que já era tarde. Que o terreno fora difícil, até mesmo para Deord. Sabia que Ana não daria ouvidos a tais argumentos.
— Mesmo assim, ele pode não ter partido — disse Ana lentamente.
— Acredita que é culpado. Receia o que possa vir a fazer. Falta-lhe fé em si próprio.
— Mas a ti não.
— A mim não o quê?
— A fé que depositas nele é espantosa. É óbvio que decidiste que é inocente, mesmo com todas as dúvidas que ele tem.
Seguiu-se um silêncio.
— Já cá estaria, não é ? — A voz de Ana não passava de um sussurro.
— Se viesse, já cá estaria.
— Quem sabe? A decisão cabia-lhe a ele. Deixamos a porta aberta.
— E, se não está aqui, é porque não quis vir conosco.
Faolan não disse nada. Viu-lhe as lágrimas começarem a cair, escorrendo das faces pálidas para o cobertor. Recordou a boca de Drustan no cabelo dela e endureceu o coração.
— Não sei dizer. Mal conheço o homem. Mas sei que, se estivesse no lugar dele, fugia dali se a oportunidade me surgisse. Não faço idéia de como a sua mente funciona. Dizem que é louco. Talvez seja verdade. Talvez prefira estar trancado.
— Não — disse Ana, a fungar. — Ele adora o Sol. Adora a floresta e o ar livre. Ninguém iria preferir um sítio escuro e úmido como aquele. Por que não veio?
— Talvez julgue que é suficiente enviar as suas criaturas. Ana não disse nada. Os olhos eram um espelho de desolação.
— Ana?
A jovem olhou-o.
— Como aconteceu isso? Tu e ele? Deord disse-me que os conheceste, mas foi apenas um encontro. Como...?
— Há um sítio. Um lugar onde murmuramos e ouvimo-nos um ao outro. Costumava falar com ele. Ludha e eu o encontramos por acaso. Ludha... Faolan, temos de regressar! Alpin castigou-a. Está em perigo, e a culpa é minha!
Faolan pensou em Dovard, inconsciente no canil, outra vítima inocente, que talvez fosse espancada, ou pior, por ter deixado o prisioneiro fugir.
— Não há nada que possamos fazer — disse. — Estão todos sob o jugo de Alpin. Se tentares intervir agora, serás apenas mais uma das miseráveis na lista dele. Lamento.
— Mas...
— Pensa, Ana. Não podes regressar. Temos de esperar por Deord e depois tentar chegar a Fortriu. Deord pode ajudar-nos, é forte e capaz. Quando estivermos longe das garras de Alpin, será mais fácil procurarmos suprimentos. Chegou a altura de voltarmos a casa. — Pensou em Bridei, que deveria estar já a caminho de Dalriada. Bridei, que não sabia que Alpin já se aliara aos Celtas.
— A pé? — perguntou Ana. Segurou no cruza-bico com uma mão e usou a outra para limpar as lágrimas das faces, como se fosse uma criança.
— Agora percebes por que insisti nas botas — disse Faolan. — Será mais lento mas, por um lado, mais fácil. Podemos usar caminhos que nem passariam pela cabeça de Alpin.
Ana não disse nada. Talvez percebesse a verdade por detrás das palavras confiantes. Era uma viagem longa por terreno difícil e o único caminho que ele conhecia era aquele que não poderiam seguir. E o homem que mais os poderia ajudar, era aquele que Faolan esperava que nunca regressasse.
— Ana? — Não conseguia deter a estúpida da língua. Tinha de lhe perguntar.
— Sim?
— Tu e Drustan. O que é que... como é que... como é que vocês? — Pelos deuses, parecia um miúdo de quinze anos, perdido de amores por uma namorada da aldeia. Desejava nunca tê-la visto. Fizera-o gostar dela. Fizera-o voltar a sentir. Deixara-o exposto e miserável, enfraquecido pela fenda que lhe abrira no coração. Despertara-lhe as mais negras recordações e levara-o a chorar, a odiar, a amar. Queria voltar a ser o velho Faolan, aquele que as pessoas descreviam como sendo duro e insensível, um homem incapaz de sentir. — Esquece — disse. — É melhor ir ver o que se passa lá fora. Se alguém resolver subir, não o ouvimos por causa da água. O mais certo é que Deord não tenha enganado todo o grupo de Alpin. Se por acaso se dividiram, não será difícil encontrarem o nosso rasto. Imagino que não tenhas contigo aquela faca que te dei?
— Não era algo que imaginasse vir a precisar no dia do meu casamento, Faolan — retorquiu Ana.
Faolan não pôde deixar de sorrir.
— Consigo imaginar alguns usos interessantes que lhe poderias dar. Tenho aqui outra, menor. Fica com ela. Com sorte, não está ninguém lá fora, mas tens de estar preparada.
Ana olhou para a pequena faca na bainha de couro. Ao tirá-la, revelou uma lâmina imaculadamente limpa que parecia muito afiada.
— É de Deord — disse Faolan. — Não faças nenhuma tolice, preciso da tua ajuda.
— Uma tolice — repetiu Ana. — Como cortar os pulsos, queres tu dizer? — Seguiu-se um silêncio, cortado apenas pela voz da água. Depois, Ana disse:
— Não me conheces, pois não, Faolan? Respeito a vida, mesmo quando ela traz crueldade e tristeza. Vai lá. Se tens de espreitar, vai. E vê se não morres. Parece que és o único amigo que me resta.
Parecia a Broichan que sentia o veneno a corroer-lhe o corpo, devorando-o de dentro para fora, como os vermes fazem às rosas e as minhocas às maçãs. Havia muito tempo, um inimigo atacara-o com uma dose bastante inteligente de ingredientes tóxicos, uma mistura que o druida do rei apenas detectara quando os sintomas começaram a fazer-se sentir: dores de cabeça lancinantes, o esvaziar das entranhas num fluxo líquido, dores de morte nas articulações. Suportara tudo isso sem queixumes, pois era dotado de uma autodisciplina rígida. O mais difícil fora o toldar da mente. Nos primeiros dias após o atentado distante à sua vida, era incapaz de concentrar-se por mais do que breves períodos de tempo. Assim que tinha um pensamento, uma idéia, desaparecia. Esforçara-se por se recordar até dos ensinamentos que lhe estavam entranhados nos ossos, conquistados com dificuldade ao longo dos dezenove anos do seu noviciado: os ensinamentos druídicos, as narrativas, as orações e os rituais. Até mesmo o saber das árvores o tinha abandonado, durante o período negro em que lutara contra as substâncias estranhas que lhe percorriam o corpo, e implorara à Mãe de Tudo para que não o levasse ainda, não com a educação de Bridei no início e com o futuro de Fortriu dependente disso. A deusa escutara-o. Poupara-o, para que regressasse a Pitnochie e ao pequeno filho adotivo. Agora Bridei era um homem, ele próprio com um filho. Era rei de Fortriu. E Broichan sabia que a Mãe de Tudo não anulara a sentença de morte proclamada havia tantos anos. Limitara-se a adiá-la.
Claro que a morte não devia ser receada, mas aguardada com uma certa dose de maravilha. Morrer era atravessar uma fronteira para um mundo novo, desconhecido, inimaginável. A experiência continha em si todo um reino de ensinamentos. A viagem deveria ser recebida com esperança e antecipação, especialmente no caso de um druida. Broichan recordava o velho Erip, que ensinara a Bridei assuntos mais mundanos do que os abrangidos pelas lições de Broichan. Erip estivera pronto para morrer. Pareceu atravessar para o outro lado mesmo antes de o último fôlego lhe ter deixado o corpo. E Erip, mesmo sendo um erudito, não era druida. Enfrentara a Mãe de Tudo sem medo e ela recebera-o carinhosamente. Fora uma morte calma.
Broichan não imaginava um fim semelhante para si próprio. A dor que lhe assolava o corpo talvez pudesse ser atenuada por infusões soporíficas. O elemento a ser receado era a névoa que lhe envolvia a mente, negando-lhe o bom funcionamento do intelecto e destruindo-lhe o controlo da arte da magia. Os sintomas eram-lhe familiares. Parecia-lhe que o veneno ingerido havia tantos anos não lhe deixara o corpo, tendo ficado adormecido, à espera para atacar novamente. Pelo menos assim pensava. Não imaginava outra causa para a sua maleita e era bastante entendido nas artes da cura. Não tomaria infusões. Ordenara a Fola que deixasse de tentar ser prestável. Tinha de manter viva a última chama. Não podia desbaratar os poderes que lhe restavam. Havia uma criança a ser ensinada. E havia Bridei, já longe, sem vidente a seu lado para aconselhá-lo.
Esse fora o pior dos golpes. Ver o filho adotivo, o jovem rei que criara, partir para a guerra sem que ele estivesse a seu lado, para protegê-lo de formas que o mais apto dos guarda-costas nunca seria capaz. Quem mais, se não o druida do rei, poderia lançar um augúrio na véspera de uma batalha, a fim de determinar se deveriam avançar ou esperar? Quem mais poderia utilizar as ferramentas da visão à medida que viajavam e transmitir a sabedoria dos deuses? Sem essa orientação, a grande vitória sobre as forças de Dalriada dependia inteiramente do julgamento dos homens, e esses eram sempre falíveis, mesmo que fossem bons, inteligentes, corajosos e profundos conhecedores da tradição, como não havia dúvida que Bridei era.
Fora o orgulho que impedira Broichan de convocar outro druida da floresta para assumir o seu lugar ao lado de Bridei. Orgulho e uma esperança patética, pois até ao dia da partida do rei, rezara para que voltasse a sentir-se bem e forte o suficiente para acompanhá-los. Por esse motivo, Broichan enviara sozinho o homem que amava como a um filho, para enfrentar os Celtas sem as garantias adequadas. Garantira que observaria à distância, usando as ferramentas da visão. Não dissera a Bridei, nem a Fola, nem a ninguém, que até isso parecia fora do seu alcance.
Trancou por dentro a porta do quarto, acendeu uma candeia com a vela que tinha na mão e dirigiu-se à arca de carvalho, em busca do espelho das visões. Era um belo objeto, oferecido pelo seu antigo professor. Um disco de obsidiana polida, cercada por criaturas forjadas em prata: uma coruja, um sapo, uma marta, uma lontra, uma libélula. Adorável. Planeara mostrá-lo a Derelei em breve e ver a reação da criança. Se o menino possuísse o talento inato de Tuala enquanto vidente, teria de ser guiado nessa arte, para que o seu desenvolvimento fosse gradual e controlado. Era tão novo... Quanto tempo, pensou o druida, quanto tempo tenho, diz-me, para que possa planeá-lo. Um ano? Dois? Apenas uma estação? Era impensável. Não ver Bridei conquistar a sua grande vitória, não ver a fé verdadeira restaurada por todos os territórios Priteni, não ver o pequeno a seu cargo crescer, aprender e florescer... Como seria capaz de suportá-lo? Mas era o que faria, caso fosse a vontade dos deuses. A obediência fazia parte do íntimo de Broichan. A obediência levara-o a encenar o sacrifício do Portal ano após ano, até que Bridei declarou o fim dessa observância. A obediência manteve-o de joelhos noite após noite, à escuta da voz dos deuses, enquanto o frio e a dor lhe transformavam o corpo num suplício. A obediência impedia-o de procurar ajuda... Talvez não. Ouvia a voz decidida de Fola a dizer qualquer coisa sobre orgulho, sobre arrogância, sobre pensar que ele é que sabia. Procurar ajuda seria, talvez, descobrir que não havia ajuda possível. E isso era o que mais receava.
Broichan retirou o espelho da cobertura de lã macia e segurou-o entre as palmas das mãos, sem tocar na superfície polida. Respirou mais devagar, esperando não se engasgar. Uma inspiração mais profunda fazia-lhe os pulmões arder como o lume de uma forja. Obrigou o corpo a descontrair-se na dor, deixou que a agonia fluísse por ele. Olhou para a obsidiana negra com os olhos desfocados, algo que não era difícil, nesse dia, e deixou a mente vaguear. Um a um, expulsou os pensamentos e as imagens que se emaranhavam na sua cabeça: Bridei; a batalha que se avizinhava; Derelei a crescer na corte sem ele, tão vulnerável, tão facilmente explorado. Tudo o que não fizera e agora não teria tempo de fazer... Afugentou-os para o vazio, para longe da câmara sombria onde a luz da candeia mal lançava um brilho débil sobre o equipamento da sua arte, disposto ordeiramente em prateleiras de pedra: as ervas e os remédios, os pergaminhos e as tintas, o bordão de carvalho, de pé a um canto. E os objetos mais secretos, os quais se lembrava de o menino Bridei observar espantado, da primeira vez que o pai adotivo o deixara entrar no quarto privado em Pitnochie. Parte de Broichan queria arrumar tudo e regressar. Aí, poderia deixar de fingir e deixar que tudo acontecesse. Mara trataria dele. Ferat, o cozinheiro, iria tentar o apetite cada vez mais reduzido. Fidich e os outros aceitariam calmamente a presença do druida e continuariam a garantir o bom funcionamento da casa e da fazenda. Em Pitnochie, poderia morrer em casa, entre o seu povo.
A candeia tremeluziu, fazendo Broichan pestanejar. Estava a recordá-lo. Afasta Pitnochie do pensamento. Afasta tudo... Flutua... Deixa a consciência vaguear... Deixa a visão toldar... Esquece o medo onipresente de que, também hoje, o poder vai falhar...
Ficou sentado muito tempo. Nos cantos superiores do quarto, aranhas teciam as suas teias. No chão, escaravelhos remexiam-se. Dentro das paredes, os ratos andavam na sua vida. Finalmente surgiu uma visão, não na superfície escura do espelho, mas na sua mente, a mais clara visão que lhe fora concedida em muitas luas. Esperara ver
Bridei ou os outros líderes Priteni, ou os Celtas, ou um padrão de acontecimentos ou objetos que pudessem ser ordenados de forma útil. O que surgiu foi inesperado.
Um homem corria através de uma floresta cerrada. Mantinha um bom ritmo, com uma velocidade espantosa para alguém tão robusto. O corredor tinha ombros largos, um peito possante e era calvo como um ovo. Uma matilha de sabujos seguia no seu encalço e atrás dos cães vinha um grupo de cavaleiros armados com arcos, lanças e punhais. Eram todos homens grandes, com jubas de cabelo revolto e barbas a condizer. Trajavam mantos de pele e nas faces largas viam-se tatuagens elaboradas. Guerreiros dos Caitt. O fugitivo tinha marcas de batalha numa face, feitas da mesma forma que as dos outros. Era um deles. Tinha punhais no cinto, mas não trazia mais nenhuma arma. As feições não exibiam o terror habitual dos perseguidos, parecendo calmo e controlado. Broichan podia ver que estava a controlar a respiração, poupando as forças para o confronto que se avizinhava. Alguém treinara muito bem aquele homem.
A visão foi mudando. Sempre o corredor, ora a equilibrar-se em cima de um tronco para atravessar um desfiladeiro, ora a descer uma encosta rochosa a um ritmo que deixava os membros em risco de se partirem e criava uma chuva de pedras atrás de si. Não parecia muito preocupado com o barulho que fazia. Era quase como se quisesse atrair a perseguição.
Os cães e os cavaleiros aproximaram-se. O líder encontrou um caminho em redor do desfiladeiro e um percurso que contornava a ladeira íngreme. Os cães avistaram o corredor e deram sinal. O líder levou um corno aos lábios. Broichan reconheceu uma sede de sangue nos olhos desse homem e, embora não pudesse ouvi-lo, a mente do druida imaginava o que o chefe tribal estaria a bradar aos seus homens. — Refreiem os cães! Ele é meu!
Encurralaram contra uma parede de pedra o homem calvo, o qual agarrara um ramo caído, que agitava à sua frente à altura do peito, para um lado e para o outro, num arco selvagem. Os cães não conseguiam aproximar-se e os tratadores avançaram a uma ordem do chefe tribal, prendendo cordas às coleiras dos animais, que arrastaram para longe. Os guerreiros formaram um semicírculo em redor do perseguido, mantendo uma distância segura do ramo balançante. Os braços do homem tinham os músculos retesados. Broichan reconheceu a força espantosa que era necessária para segurar uma braçada de madeira grossa e úmida àquela altura e controlá-la de tal forma. Observou o líder a dar outra ordem e quatro dos guerreiros a levar flechas aos arcos.
O druida abriu-se às vozes na visão. Não havia qualquer som no quarto tranqüilo onde estava sentado com o espelho, pois aquela imagem existia apenas na sua mente, conjurada pela abertura ao que os deuses tinham para lhe oferecer naquele determinado momento. Utilizava o espelho como ferramenta para abstrair a mente da miríade de pensamentos que a povoava, para a limpar de distrações, a fim de abrir espaço para as visões que viessem a ser concedidas. Ouvir, ao mesmo tempo que via, exigia um maior grau de concentração. Ao abrandar ainda mais a respiração, Broichan atingiu-o.
— Onde está ela? — exigiu saber o líder do grupo, a voz dura de fúria. — Para onde a levaram?
Era óbvio que o homem encurralado não fazia tenção de responder. Limitou-se a repelir os atacantes com o ramo, ao mesmo tempo que observava os arqueiros.
— Esperem! — bradou o líder aos seus homens, que baixaram ligeiramente os arcos. — Primeiro, quero as respostas dele. Depois podem praticar o vosso desporto. Baixa essa coisa, miserável, e fala comigo! Onde está Ana? Onde está o maldito do celta e onde está o meu irmão? Pelos deuses, como pudeste libertar Drustan? Dei-te comida e abrigo e um fornecimento constante de peças de prata durante sete anos. Confiei em ti e deixaste fugir o assassino!
O ramo continuava o varrimento. Era a única coisa que separava o fugitivo dos atacantes. Falou, então, calmamente, como se não tivesse acabado a maior corrida da sua vida.
— Estou pronto a lutar. Envia os teus homens um a um, ou dois a dois. Se queres acabar comigo, que seja num combate justo. Serias capaz de abater um homem como um verme?
— E verme é o que tu és. Sou eu quem escolho a forma como vais morrer. Responde às minhas perguntas e podes ter a tua luta. Julgo que terão de ser três ao mesmo tempo. Os homens conhecem a tua reputação. Se não responderes, o teu fim será mais lento. E mais doloroso. Agora responde-me! Onde está Ana? Onde está aquele bardo vira-casacas? E onde está o meu irmão, sua desculpa miserável de servo? Para onde é que ele voou?
À falta de resposta, o líder acenou aos arqueiros. Uma flecha de penas vermelhas deixou o arco, gemendo pelo ar até rasar o ombro do alvo, pois este esquivara-se mesmo a tempo. Outro aceno. Um segundo míssil, agora melhor apontado, em antecipação a outro movimento. Acertou no braço esquerdo da presa, alojando-se profundamente no músculo desenvolvido. O fugitivo gemeu. Não podia alcançar a haste sem largar a arma improvisada.
— Onde estão eles? Onde os escondeste? Fala, a minha paciência está a esgotar-se.
— Algures na floresta — replicou calmamente o fugitivo. — Se procurares bem, pode ser que os encontres. Ou podem fugir-te, Alpin. Não me importo com eles. Bardos fracotes, damas de cabelo dourado, que têm eles a ver comigo? Quanto ao teu irmão, o desgraçado já cumpriu a sua pena. Duvido que o voltes a ver.
— Mentes. Ajudaste-os a fugir. Encontramos o teu túnel e descobrimos a forma inteligente como o ocultavas. Ajudaste o celta a fugir. Ajudaste-o a roubar-me a mulher. Ele a quer para si próprio, estava bem visível nos seus olhos. Deve estar a possuí-la neste momento, com Drustan à espera dos restos. Quando encontrar o bardo, faço tenção de o despedaçar, membro a membro. Desembucha, Deord! Diz-me onde estão e deixo-te morrer como um lutador e não como uma ratazana num buraco.
O homem chamado Deord fitou o outro, os olhos serenos. O ramo que segurava parou o movimento e a ponta baixou lentamente até ao solo da floresta.
— Faça o que fizer desde agora até ao momento da minha morte — declarou, enquanto o sangue do ferimento ia manchando a manga da camisa —, não vou trair confianças. Não julgues que prevaleces com ameaças, Alpin. Já assisti demasiadas vezes às tuas tácticas. O teu irmão desapareceu. Está livre. Quanto aos outros, nada tenho que ver com eles. — Quando o líder desembainhou um punhal longo da cintura e deu um passo em frente, Deord acrescentou: — Sempre pensei que um homem é avaliado pela forma como morre. Pretendo que o meu fim seja um espelho daquilo que sou, enquanto homem.
— Um homem não grita, não geme, nem implora que o libertem — disse Alpin. — Acredita, antes de acabar contigo, vais estar a fazer essas três coisas e a conspurcares-te até às botas.
Deord não respondeu mas, quando Alpin se aproximou, rodopiou subitamente e a perna direita surgiu num golpe poderoso que lançou um homem inanimado ao chão, enquanto o braço ileso apanhou um segundo no peito, deixando o guerreiro sem fôlego. Alpin, que recuara para fora do alcance de Deord, estalou os dedos. Flechas voaram e acertaram no alvo. Deord, ao erguer-se, recebeu-as profundamente no ombro e na coxa. Cambaleou e voltou a equilibrar-se. Uma faca surgiu em cada mão.
— Diz-me a verdade! — bradou Alpin. — Fala agora, ou vais pagar! Para onde levaste a minha mulher?
Deord parecia nem tê-lo ouvido. A posição que assumira, as pernas afastadas, os joelhos ligeiramente dobrados, prontos a executar qualquer movimento necessário, era a de um guerreiro experiente. Os dardos alojados no corpo pareciam um inconveniente menor. Os olhos permaneceram calmos. A sua volta, o semicírculo de caçadores tornou-se mais cerrado, mas havia uma certa margem para além da qual ninguém se atrevia a avançar, nem mesmo o líder. Para Broichan, que observava com os olhos de um vidente experimentado, parecia que a mão do Guardião das Chamas pairava sobre aquele lutador solitário, dotando-o de uma pureza que eliminava qualquer traço de receio e o transformava num instrumento de força mortífera. Qual o homem, em tal desvantagem, que seria capaz de encarar o inimigo com tamanha serenidade, a não ser alguém bafejado pelos deuses? O Guardião das Chamas respeitava os feitos corajosos. Adorava o fogo que ardia no coração dos seus filhos intrépidos. Talvez aquele estivesse destinado a um lugar ao lado direito do deus. A cena na mente de Broichan não podia ter como final o triunfo daquele guerreiro, nunca em tamanha desvantagem. O druida apercebeu-se de que continha a respiração, desejando o que não poderia acontecer. Obrigou-se a descontrair-se e voltou a controlar a respiração, pois se perdesse o controlo, a visão arriscava-se a desaparecer de vez. Fora enviada com um propósito. Teria de ver o fim, inevitavelmente sangrento, e esperar conseguir fazer sentido do acontecido.
Alpin chamou os homens que tomavam conta dos cães. Ordenou aos lanceiros que avançassem. Os arqueiros prepararam as flechas, uma, duas, três e quatro. Deord manteve a pose, com mais sangue a manchar-lhe a roupa no ombro, no braço e na coxa.
— É a tua última oportunidade — gritou Alpin, sobre os latidos dos cães. — Diz-me o que quero e deixo que o teu fim seja o de um lutador. Diz-me qual a direção, qual o caminho. De certeza que encontraram um abrigo algures. A senhora não seria capaz de chegar muito longe neste terreno. Responde-me e a tua morte não terá de ser longa e dolorosa. Não terá de ser vergonhosa. Norte? Leste? Para onde foram?
— Traz os cães — foi a resposta de Deord. — Traz as lanças. Estou pronto.
Broichan deu consigo a rezar para que o fim chegasse depressa. Pouco importava que as visões oferecidas pelo espelho pudessem ser passadas, presentes ou futuras, ou apenas a representação simbólica de uma qualquer verdade interior. A urgência do que via era cativante. Ficou sentado, imóvel, enquanto desejava que os deuses concedessem um fim rápido e misericordioso àquele guerreiro.
Não seria o caso. As probabilidades eram impossíveis e ele devia ter noção disso. Mesmo assim, fez da última batalha algo belo, um poema de controlo e graciosidade, com o corpo a mover-se na perfeição, bloqueando, atacando e virando-se, à medida que utilizava os membros feridos e intactos da melhor forma. Era como um brado de coragem, a celebração do que era ser um homem. Broichan estava angustiado.
Claro que, no fim, Deord não conseguiu prevalecer contra tantos. Incapazes de o deter com ataques com espadas, lanças e punhais, e vendo cães e homens espalhados num círculo sangrento em redor da figura desvairada e quase mágica do guerreiro solitário, os homens de Alpin voltaram a recorrer às flechas. Trespassaram o alvo com tantas flechas que por fim começou a abrandar e a vacilar, enfraquecido pela perda de sangue. Nenhum míssil lhe acertara no coração, nem nos olhos. Nenhuma seta individual foi responsável por um golpe fatal. Deord trazia couro por baixo da camisa e tinha prática em esquivar-se, mesmo limitado como estava.
Demorou muito tempo. Demasiado. Broichan observou o rosto do lutador a empalidecer. Deord estava agora macilento, o corpo alagado em suor e as mãos quase incapazes de segurar as armas. Viu os três ferimentos passarem a sete, a dez, a doze. Viu o sangue a correr, até que a roupa do homem se tornou completamente vermelha. Por fim, viu Deord cair sobre um joelho, a arquejar. Viu a expressão nos olhos do guerreiro, calmos, uma calma sobrenatural, e nesse controlo sublime reconheceu um pouco da técnica que se esforçara por alcançar nos primeiros anos do treino como druida. Que disciplina. Que maravilha. O deus teria de chamar aquele favorito em breve, teria de recompensar aquele autocontrole perfeito com as maiores das honras no mundo após a morte. Era como se o homem estivesse prestes a ser consumido pela chama da sua coragem impossível.
No fim, Broichan mal conseguia olhar, pois a visão era a um tempo bela e horrível. Deord caíra. Estava exausto, mas vivo. A luz de uma vontade férrea ainda brilhava nos olhos tranqüilos. Qualquer um dos outros poderia tê-lo eliminado naquele momento mas, curiosamente, os caçadores deixaram-se ficar para trás, ao que pareciam relutantes em desferir o golpe fatal. Foi o líder, o chefe tribal chamado Alpin, quem se aproximou do homem caído, após um período em que Broichan se apercebeu de um silêncio incômodo, quebrado apenas pela respiração entrecortada de Deord. Depois, nas alturas, os pássaros começaram a falar, uma troca de pios e de assobios. Ao lado do homem tombado, Alpin sacou de uma pequena faca de lâmina estreita.
— Disse-te que ias implorar antes do fim. — O tom da voz era frio. — O fim ainda não chegou. Que parte da tua carne ainda não foi tocada? Preciso de uma recordação, algo para levar comigo, no caso de mais alguém da minha casa resolver desobedecer-me. Goban, Mordec, levantem-no. Vá, ele já não pode magoá-los, está acabado. Erdig, Lutrin, tratem dos nossos mortos. Coloquem-nos nos cavalos e preparem-se para partir. — Dois guerreiros corpulentos agarraram em Deord e ergueram-no. Deord tentou afastá-los, com bravura, mas os homens mantiveram-se firmes, as mãos e os braços em breve ensopados com o sangue do ferido.
— Continuas sem respostas. — Alpin falou calmamente, os olhos nos de Deord. — Não só és um traidor, como também és um idiota. O meu irmão deve ter-te pegado um pouco da sua maleita. Bem, pouco importa. Não me apetece continuar. Vou só fazer um corte aqui — tinha as mãos nas virilhas de Deord e Broichan fez um esgar —, e aqui, e levar comigo um pequeno troféu, e agora vamos embora. Graças a ti, um louco perigoso está à solta nesta floresta. Graças a ti, um espião fugiu-me por entre os dedos. Graças a ti, vou passar a minha noite de núpcias sozinho. Mas amanhã — ergueu o prêmio horrendo em frente do rosto branco de Deord —, amanhã vou caçá-los. Amanhã o celta vai estar pendurado à frente dos portões da minha fortaleza. Amanhã vou fazer um filho à mulher que me traiu com o meu próprio irmão. E amanhã, quando encontrar aquele assassino do Drustan, vou castigá-lo tal como deveria ter feito há sete anos: com a morte.
Deord suportara a mutilação sem um único som. As feições eram as de um crânio, sombras e osso. Broichan ouviu-lhe o murmúrio rouco.
— Nunca irás encontrá-lo. Vai ultrapassar-te, em destreza e em inteligência. Só lamento que não tenha aproveitado a oportunidade mais cedo.
— Maldito! — O punho de Alpin golpeou o queixo do outro homem. A cabeça de Deord foi arremessada para o lado. — Que tenho de fazer para que a tua língua arrogante implore misericórdia? O quê? — Desferiu um segundo golpe do outro lado. O sangue escorreu pelo queixo de Deord, vermelho contra branco.
— Misericordioso? — sussurrou o guerreiro, os olhos fitos nos de Alpin. — Não sabes... significa... misericórdia. É tão estranho para ti como... amor... dever... coragem...
Alpin ergueu o joelho, acertando entre as pernas do cativo, de onde o sangue já escorria devido à cirurgia grosseira. Deord não foi capaz de impedir-se de arquejar.
— Implora! — gritou Alpin. — Rasteja, miserável! És de carne e osso, como todos nós! — Outro golpe, desta vez com a bota. Deord reprimiu um grito. — Berra! — ordenou Alpin. — Vá, deixa que saia! Isto dói? E isto? E isto?
Broichan implorou a intervenção dos deuses com todas as fibras do seu ser. Usou o que lhe restava de fôlego para solicitar à Mãe de Tudo que avançasse, que albergasse o guerreiro no manto negro do doce nada e lhe levasse o espírito. O druida rezou para que o Guardião das Chamas dissesse, Chegou a altura. Traz-me o meu filho.
Os golpes sucederam-se, mas não se ouviu mais sons de Deord e, pouco depois, Alpin pareceu cansar-se do passatempo e recuou, as roupas salpicadas de sangue. Um dos outros homens falou, talvez a perguntar se poderia aplicar o golpe final, de misericórdia. Mas Alpin montava já a cavalo. A sua volta, os guerreiros que tinham sobrevivido ao combate desigual tinham já colocado os corpos dos camaradas tombados nas suas selas e estavam prontos para o regresso sombrio.
Os dois homens que seguravam Deord largaram-no. O corpo caiu ao chão, onde ficou, de lado, um monte imóvel de trapos ensangüentados. Broichan voltou a respirar. Os deuses, por fim, tinham resolvido apiedar-se. A uma ordem do líder, os cavaleiros picaram as montadas e desapareceram na floresta. O sol estava baixo sobre as copas dos pinheiros escuros e dos vidoeiros prateados. Os pássaros trinavam enquanto voavam para os ramos.
Broichan sabia que a visão estava perto do seu fim natural. Sentia-o nos dedos das mãos e dos pés, nas costas e no pescoço, no regresso gradual do corpo à forma do barro diário. Não seria capaz de mantê-la muito mais. Quando as imagens começaram a desvanecer-se e a escurecer na sua mente, viu movimento onde julgava que a vida fora extinta. A mão do homem caído estendeu-se e agarrou o solo escuro da floresta. Meios cegos pela dor, os olhos de Deord fitaram o céu aberto, mais além da cobertura de verde. Rebolou e arrastou-se pelo chão até conseguir erguer-se e sentar-se contra um emaranhado de raízes que formavam um arco. Aí ficou, espraiado como uma boneca de trapos. O sangue escorria e fluía por uma miríade de ferimentos. A terra recebeu-o em silêncio. Os pássaros continuaram as canções, um hino à vida, à beleza, à liberdade, e Deord, moribundo, escutou, os olhos brilhantes de dor, mas firmes e calmos. Enquanto a visão se desvanecia, Broichan percebeu que o guerreiro aguardava. Pelo quê, não sabia. Talvez nem mesmo a mais brava das almas quisesse morrer sozinha.

 

 

 


CAPÍTULO CATORZE


A infusão de papoula afetara Ana profundamente. À medida que o dia avançava lentamente, ia flutuando num torpor inquieto, a cabeça apoiada numa posição estranha sobre a trouxa úmida. De vez em quando acordava num sobressalto, o olhar confuso. A cada novo despertar de consciência, ela parecia menos disposta a falar. Faolan observava-a, uma tensão crescente a corroer-lhe as entranhas. Deord não regressara. Faolan não desejava a morte de um sobrevivente de Breakstone na sua consciência, pois esta já se encontrava pesada o suficiente. A vontade de partir em busca dele era cada vez maior à medida que, no exterior do esconderijo onde se encontravam, o Sol se movia em direção a ocidente e, algures, um homem corajoso arriscava a vida por causa de um par de estranhos. Pouco importava que ter Faolan atrás de si fosse a última coisa que Deord desejava. Faolan sabia que se não fizesse alguma coisa, iria arrepender-se até ao fim dos seus dias.
— Se queres ir, vai — disse Ana, com um mau humor nada habitual nela, após Faolan ter saído e regressado pela vigésima vez. Encontrava-se deitada de bruços, com o antebraço erguido a fim de proteger os olhos, como se mesmo a luz filtrada da caverna os ferisse.
— Não posso — replicou Faolan, num tom inexpressivo. — Volta a dormir. Vais precisar de todas as tuas forças pela manhã.
Seguiu-se um silêncio breve.
— Estou a ser um estorvo, não estou? — O tom de voz mudara. — Estou a atrasar-te.
Faolan não foi capaz de a contradizer, embora Ana não tivesse culpa da situação difícil em que se encontravam.
— Por piedade, Faolan, vai. Estás a fazer-me sentir ainda pior.
— A minha missão é garantir a tua segurança. Claro que não posso ir. — Estava tão tenso como uma corda de harpa, cada parte do seu corpo rígida. A sua imaginação encontrava-se repleta de sangue e morte. Deord não ia voltar. Tinha a certeza. Não regressaria, a menos que alguém fosse à procura dele e o encontrasse rapidamente, antes que Alpin o matasse. Faolan tentou ficar tranqüilo e dirigir a sua atenção para o conforto de Ana. Contudo, depressa se levantou outra vez, impelido a sair novamente da caverna.
Os salpicos da queda de água faziam com que fosse difícil ver claramente, mas fez o seu melhor para perscrutar as encostas, a floresta, os lagos, tentando descortinar o menor indício de algo fora do normal. Não se via nada, para além do verde dos pinheiros, do pálido lençol de água, dos cumes nus e intimidantes que se elevavam a norte e a leste. Pela posição do sol, calculou que o dia já fosse bem avançado. Se Alpin ainda se encontrasse a caçar, em breve teria de dar a atividade por encerrada, para que os seus homens chegassem a casa ao anoitecer. Havia tempo suficiente para uma operação de salvamento, mas não muito. E ele não podia ir. Como poderia deixar Ana sozinha?
Um som súbito e áspero acima e atrás de si fez Faolan sobressaltar-se. O pé escorregou-lhe na beira da rocha e agarrou-se a uma trepadeira, com o coração aos saltos. Mais um crá e ele viu a gralha, pousada no ramo esguio de um salgueiro minúsculo e atrofiado que alojara as suas raízes num pequeno buraco no solo. As folhas delicadas da pequena árvore assumiam um tom prateado devido ao orvalho. Por cima da gralha, pousado numa saliência, encontrava-se um pássaro maior, de um castanho fulvo, os olhos brilhantes, um bico curvo formidável. O seu olhar estava preso a Faolan.
— Por fim — murmurou, o alívio a invadi-lo apesar de todos os seus receios. — Por tudo quanto é sagrado, onde é que estiveste? Bem, não interessa. Ana está ali, na caverna... pelos deuses, é bom que eu esteja certo em relação a ti e que não esteja a falar com um pássaro qualquer que decidiu fazer-nos uma visita ao passar por aqui. Preciso de chegar a Deord. Tens de guardá-la, de a manter em segurança.
O falcão não se mexeu. O seu olhar fixo era desconcertante.
— Eu não lhe contei — acrescentou Faolan. — Quer dizer, sobre ti. De alguma forma, ela terá de ser convencida de que isto é aceitável, de que os pássaros são uma escolta adequada. A não ser que tenciones contar-lhe a verdade.
Não obteve resposta mas, quando Faolan baixou a cabeça e entrou na pequena caverna, tanto o falcão como a gralha o seguiram, pousando de cada um dos lados, onde o contorno da rocha concedia poleiros precários. O cruza-bico já estava entre as mãos de Ana. Mesmo enquanto dormia, segurava a ave na palma das mãos.
— Ana — chamou Faolan, acocorando-se ao lado dela —, vou sair agora. Estão aqui três pássaros, estás a ver? Ficarás segura. Tenho de encontrar Deord.
A jovem parecia perplexa.
— Três... mas...
— O cruza-bico, a gralha e o falcão — disse-lhe Faolan, observando-a à medida que os olhos dela se dirigiam ao maior dos pássaros, arregalando-se. — Parecem todas ser criaturas de Drustan. Que pássaro selvagem entraria aqui conosco de livre vontade? Aquela coisa tem um bico letal e um bom par de garras. Irá defender-te, caso seja necessário. — Esperava que tal fosse verdade. — Fica dentro da caverna e espera por mim. Voltarei antes de escurecer. Não te aproximes demasiado da beira. — Olhou para ela mais atentamente. — Lamento — disse. — Lamento muito.
— Vai.
A voz de Ana foi abafada pela água a cair. Recordou-se de Breaking Ford, onde ela devia ter acreditado encontrar-se totalmente sozinha com o rio impetuoso, sozinha num mundo que enlouquecera.
— Vai, Faolan — disse ela. — Encontra-o enquanto ainda há tempo.
Faolan continuou a percorrer o trilho até já há muito ter passado a altura em que deveria regressar para terminar a viagem antes do anoitecer. Por fim, encontrou Deord numa pequena clareira, estendido ao comprido junto de um carvalho muito antigo. Parecia já estar morto. O sangue ensopara-lhe as roupas e desenhara um largo círculo no solo em seu redor. Os braços e as pernas encontravam-se inertes contra um emaranhado de raízes. Aproximando-se mais e ajoelhando-se ao lado da figura imóvel, Faolan ouviu o som débil e arrastado da respiração superficial de Deord e viu, por entre as pálpebras semicerradas, o olhar familiar dos seus olhos serenos.
—,.. Tu... aqui? — murmurou Deord. — Embora... deves... embora. — E depois, enquanto Faolan tentava colocá-lo numa posição melhor: — Não...não vale a pena...
Faolan praguejou em voz baixa, percorrendo com os olhos experientes o que conseguia ver das feridas do homem caído através dos farrapos que eram as suas roupas. Deord sofrera muitos golpes. Uma flecha, a haste toscamente quebrada, estava alojada profundamente no seu braço. Outras encontravam-se partidas no chão, junto das suas pernas. Havia sinais de uma luta descomunal: arbustos esmagados, ervas rasteiras espezinhadas, o solo com bocados de terra solta devido ao movimento de botas e cascos de cavalos. Uma lança encontrava-se despedaçada em dois, uma espada partida fora lançada para os arbustos. No meio da vegetação rasteira, Faolan avistou as formas inertes de vários cães de caça.
Pegou no odre de água que trazia consigo e, colocando um braço em redor dos ombros de Deord, ergueu-o ligeiramente. A pele de Deord estava fria e úmida e sentiu o cheiro a sangue e a suor. Susteve a respiração quando Faolan lhe tocou.
— Bebe — disse Faolan —, só um gole. Ótimo — embora Deord não tivesse engolido coisa alguma. Não conseguia engolir. — Onde está a tua trouxa? — Encontrou-a, retirou lá de dentro uma qualquer peça de vestuário e colocou-a sobre o peito e ombros de Deord.
—,.. Senhora...? — perguntou Deord. A voz era apenas um murmúrio.
— Drustan está com ela. Parti assim que ele chegou. Pelos deuses, homem, não há dúvida de que os obrigaste a uma bela perseguição. — Faolan manteve o tom de voz animado, pois não valia a pena sobrecarregar Deord com a sua mágoa. Era mais do que evidente que chegara tarde demais.
— Drustan... ótimo. Faolan...?
— Sim?
— Drustan... vir a ser... importante. Leva-o para longe... longe... em segurança...
— Depois de hoje — disse Faolan —, a minha espada tem o nome de Alpin. Primeiro termino esta missão, depois transformo-me de caçado em caçador. Não posso permitir que aquele canalha viva.
— Drustan... importante, Faolan... olha por ele... e por ela... Faolan não conseguiu evitar um franzir de sobrancelhas.
— Dá-me a tua palavra...
— Está bem, prometo, os dois ficarão em segurança, nem que isso me mate. Malditos sejam os deuses de Fortriu, tão cruéis e injustos. Devia ser dada a um homem de Breakstone a oportunidade de fazer alguma coisa com a sua liberdade. Mereces mais tempo do que isto. Por que o fizeste?
Deord tremia agora convulsivamente. O sorriso que tentava esboçar era um trejeito de morte. — Fiz... algo... bom... no fim...
— Por nós. Por estranhos.
— Tu... agora... continua... faz bem... ti...
— Eu? Eu deitei fora as minhas hipóteses de conseguir alguma coisa muito antes de entrar em Breakstone. Eu é que devia ter servido de engodo.
— Disparate... Faolan...?
— Diz-me o que queres.
— Mensagem... casa...
— Onde é a tua casa?
— Diz... família...
— Onde, Deord?
— Cloud... Hill... perto do lugar dos reis...
— Em Laigin? — Um arrepio percorreu Faolan. O que estava ele a prometer? — Mas...?
— Irmã... casou com um dos teus... diz-lhe primeiro...
— Ela casou com um celta?
— Diz-lhes... desculpa... diz... acabou... bem...
Faolan assentiu. Tinha um nó na garganta e era-lhe difícil falar.
— Faolan?
— Sim, Deord?
A cabeça calva estava agora encostada ao ombro de Faolan. Uma mão tocou-lhe no braço.
— Canta — sussurrou Deord. — Canta...
E assim, Faolan cantou. Cantou enquanto o sol se punha lentamente por detrás das árvores e a luz na clareira se ia desvanecendo, de rosa para violeta, de violeta para o cinzento pálido e sombrio da noite de Verão. Cantou e uma infinidade de pássaros cantou com ele, despedindo-se do dia em que aquele guerreiro travara a sua derradeira e mais corajosa batalha. Cantou uma história de guerra arrebatadora, cuja letra era sobre os atos admiráveis de homens, a sua coragem e nobreza, os sacrifícios altruístas para um bem maior. Deord estava encostado a ele, pesado e inerte, um pequeno movimento dos dedos de vez em quando, ao ser acometido por um espasmo de dor, o único sinal de que ainda continuava agarrado à vida. Isso e os olhos. Semicerrados, encontravam-se presos ao rosto de Faolan enquanto este entoava a sua música com lágrimas a correrem-lhe incessantemente pelo rosto. Lágrimas que eram não só pela perda de um bom homem, mas por todos os habitantes de Breakstone, aqueles que, de uma forma ou de outra, ali tinham sido destruídos e aqueles que tinham sobrevivido para trilhar o seu caminho estropiado no mundo. E porque também ele era um homem de Breakstone, algumas das lágrimas eram por si próprio.
Quando o fim se aproximou, a respiração de Deord começou a ficar mais entrecortada como se o sangue estivesse a acumular-se nos pulmões, na traquéia. A dor fazia com que o corpo estivesse tenso e trêmulo. Faolan segurou no homem enorme como se este fosse uma criança, com mãos firmes e delicadas. Como não havia muito mais que pudesse fazer, continuou a cantar. Naquela situação extrema, outro homem que não Deord teria implorado aos seus companheiros por uma faca afiada e pelo esquecimento. Deord suportou tudo, dentes cerrados, punhos fechados, em silêncio, salvo pela respiração difícil.
Algures nas profundezas da sua memória, Faolan encontrou os vestígios de uma canção de embalar. A melodia doce e simples instalou uma calmaria na clareira, que aquietou até o canto dos pássaros enquanto a noite caía e a Mãe de Tudo estendia os seus braços para levar, por fim, o seu guerreiro solitário.
Dorme, meu filho, valente e tão belo Que a noite te traga um sonho singelo.
Uma coruja solitária piou nas profundezas dos bosques. Deord moveu um pouco a cabeça, encostando-se ao braço de Faolan.
Pássaros noturnos cantem a vossa canção de embalar Sob o manto do céu.
Os punhos de Deord, com os nós dos dedos brancos, descontraíram-se e a sua respiração abrandou. Algures para além dos carvalhos, a luz pálida da lua lançou um manto de prata através da orla do céu.
Danu leva-te pela mão
Leva-te para a terra das sombras.
Descansem pernas cansadas e olhos pesados
E despertem para um novo dia.
A voz de Faolan cedeu e ele olhou para baixo. Deord sorria. Um instante depois, os olhos serenos tornaram-se fixos, as feições relaxaram e ele partiu.
Faolan continuou a segurá-lo e a cantar por alguns momentos. Depois, durante muito tempo, ficou sentado em silêncio. Parecia adequado que fosse ali feita uma espécie de vigília: quem mais havia para reconhecer a morte heróica daquele homem a não ser ele próprio, o espião vira-casacas cujo modo de vida era cortar pescoços? Mais tarde, quando a lua já ia alta no céu, fez o que pôde para preparar Deord, a fim de ser enterrado. Limpou-lhe o rosto, endireitou os farrapos que eram as suas roupas e fez um inventário aterrador dos golpes que o grupo de caça de Alpin lhe tinha infligido. A seguir, cavou uma sepultura rasa, utilizando a espada partida como pá. Deitou o guerreiro com os braços cruzados por cima do peito, os punhais a seu lado, e cobriu-o com o seu próprio manto curto. Não proferiu quaisquer orações, pois Faolan não acreditava em deuses, nem sabia quais Deord tinha venerado. Se Breakstone não convencesse um homem de que as divindades não existiam ou não se importavam com eles, fazia o oposto: levava a que um prisioneiro acreditasse nelas a um tal ponto que raiava a obsessão. Morriam homens lá dentro a gritar pela intervenção divina. Faolan ouvira-os. Desconfiava que Deord era o tipo de homem que se enquadrava no primeiro caso, um homem não muito diferente de si próprio, embora ele jamais fizesse o que Deord fizera naquele dia. Estaria preparado para morrer por Bridei. Arriscaria a sua vida por Ana. Mas nunca se sacrificaria por desconhecidos. E isso era estranho. Há pouco tempo atrás, pensara que a sua vida não possuía qualquer valor. Continuara a viver simplesmente porque lhe parecera um sinal de fraqueza optar pela outra alternativa. Algo mudara. Talvez estivesse a mudar há já algum tempo. Todos eles tinham desempenhado um papel nisso: Bridei, Ana, Deord. E agora Faolan tinha mais missões a cumprir do que alguma vez desejara. Manter o miserável Drustan em segurança; levar Ana a casa; acabar com Alpin. Apresentar-se a Bridei ou ao seu representante no Monte Branco. Regressar a Laigin e dizer a uma mulher que o seu irmão fora golpeado até à morte para que um par de estranhos pudesse viver e ser livre.
Nas sombras da noite de Briar Wood, cobriu a figura imóvel de Deord com terra e depois, sob o luar, procurou pedras, dispondo-as num dólmen tosco para afastar os necrófagos do corpo. Ficou de sentinela à sepultura provisória, à espera do raiar do dia, a fim de poder dar início à longa caminhada de regresso à queda de água. A Ana, que ele confiara toda a noite ao inconstante Drustan. Nas longas horas desde as profundezas da noite ao primeiro sopro da madrugada, Faolan pensou em lealdade e honra, em escolhas feitas e oportunidades aproveitadas, em sangue e traição. Com o coração repleto de terror, pensou na sua casa.

Fola regressara à casa das mulheres sábias em Banmerren. Bridei encontrava-se muito longe do seu alcance. Uist já não deambulava pelo mesmo mundo que os seus velhos amigos, avançando antes deles para o local para além das margens. Aniel, embora astuto em questões de estratégia, não compreendia de todo a matéria das visões e dos portentos. Não havia ninguém com quem Broichan pudesse falar. Não havia ninguém a quem pudesse contar. A vontade de partilhar o que vira era enorme. Na verdade, era seu dever fazê-lo, caso aquelas imagens de um homem a suportar uma morte indescritível com uma coragem divina pudessem, de alguma forma, revelar-se úteis para os futuros esforços do rei de Fortriu e do seu exército. Mas ele não poderia contá-lo, não até que a sua interpretação se tornasse clara. Era um mau presságio para a aliança com Alpin de Briar Wood. Parecia desastroso para a refém real e talvez também para o braço direito de Bridei. Mas Broichan conhecia bem a natureza enganosa de tais visões, a sua distorção do tempo e do espaço, a sua mescla entre o real e o simbólico.
Amaldiçoada fosse aquela doença! A sua mente encontrava-se toldada pela incerteza e os braços e as pernas doíam-lhe por ter estado imóvel durante tanto tempo, enquanto mantinha a visão. Outrora, seria capaz de ficar ajoelhado durante toda a noite, os braços estendidos numa pose de meditação, e levantar-se de madrugada sem qualquer vestígio de cãibras. Outrora... isso fora antes de a maleita começar a dominá-lo outra vez. Que A Que Brilha o ajudasse, sentia-se um velho senil, fraco, dorido e confuso. Não conseguia suportá-lo. Será que aquela visão fora enviada apenas para lhe dizer que devia aceitar a morte de braços abertos? Que tinha de enfrentá-la sem pesar, como aquele guerreiro solitário parecera fazê-lo?
De repente, sentindo-se desesperado por encher os pulmões de ar puro, Broichan destrancou a porta e saiu para o jardim. Foi um choque ver o sol a brilhar, ver a sua luz tocar as filas ordenadas de legumes, ervas aromáticas e flores medicinais com uma benevolência cálida. No pedaço de relva ao lado do canteiro de alfazema, encontrava-se Derelei, sentado a brincar com o seu pequeno cavalo de pedra, as feições infantis solenes devido à concentração. A sua frente estava a mãe, de pernas cruzadas e costas direitas, observando a criança com os olhos tão grandes e tão misteriosos como os de uma coruja. Poder-se-ia pensar que era irmã de Derelei, cogitou Broichan, tão jovem e delicada parecia. Foi acometido por um calafrio, um arrepio fugaz e indesejado que era parte recordação, parte mau presságio. O que Fola dissera sobre a criança era um disparate. Ninguém com inteligência poderia dar importância a tal idéia. A linhagem de Derelei era evidente no seu cabelo castanho aos caracóis e cândidos olhos azuis (ambas de Bridei) e, uma bênção mais confusa, a palidez e os talentos invulgares que herdara da mãe. E, caso fosse a linhagem de Bridei que estivesse em causa, também essa se encontrava para além de qualquer controvérsia. Qualquer pessoa que tivesse conhecido Maelchon, de Gwynedd, conseguiria ver a sua marca no rosto largo e postura ereta e ver algo da presença poderosa de Maelchon na autoridade do seu filho sobre os homens. O rei de Gwynedd era um líder nato. Bridei era isso e mais ainda. Além disso, Anfreda não era o tipo de mulher que traísse o marido. Mas, mesmo assim... mesmo assim, existia um mal-estar profundo na mente de Broichan enquanto caminhava em direção a Tuala e ao filho e viu ambos os rostos alterarem-se ao virarem-se para ele. A expressão de Tuala tornou-se circunspecta e cautelosa, enquanto Derelei levantou os braços, radiantes.
— Posso juntar-me a vós? — Broichan sentou-se na relva, o manto escuro aberto à sua volta. Depois, seguindo um impulso súbito e inesperado, disse: — Tuala, quero pedir-te um favor.
— A mim? — duvidou, visivelmente surpreendida. — Claro, se puder ajudar.
Sem se deter para pensar muito, relatou-lhe aquilo que os deuses lhe tinham mostrado. Ela permaneceu sentada, em silêncio, os olhos sérios fixos nele, enquanto Broichan lhe falava do homem em fuga, da caçada, da derradeira e inacreditável prova de resistência. Derelei fazia o pequeno cavalo saltar por cima do braço estendido.
Tuala não disse nada até a história terminar, com o guerreiro estendido no chão, moribundo, sozinho na floresta. Depois declarou:
— De fato, foi uma visão sinistra, não admira que estejas tão pálido.
Pensei que estivesses doente. Isto é profundamente inquietante. Alpin, disseste tu? E ele falou em Ana. Esse caçador cruel que mutila homens moribundos é o chefe tribal a quem a enviamos, para que se casassem. Achas que pode ser uma visão do presente? Ou talvez seja o que poderá vir a acontecer se não tomarmos medidas para o evitar?
— De bom grado ouviria a tua própria interpretação.
— Eu... se assim o desejas. — O motivo para a hesitação de Tuala era óbvio. Desde que fora colocada na casa dele, recém-nascida, havia muitos anos, Broichan nunca pedira a sua opinião sobre tais assuntos, embora soubesse bem os talentos que ela possuía. — E claro — disse —, que não fui eu que vi essas imagens. Isso significa que tenho de analisá-las indiretamente, através dos teus olhos. Se tivesse estado ao teu lado, usando o mesmo instrumento de adivinhação, talvez os meus olhos me tivessem oferecido a mesma visão, mas da forma como os deuses quisessem que eu a visse. Isso seria mais útil.
— De qualquer maneira, diz-me. — Broichan estalou os dedos e o cavalo de pedra virou a cabeça na sua direção.
Ainda assim, Tuala hesitou.
— O que se passa? — perguntou ele.
— Tenho de dizer-te algo, mesmo que te ofenda. Se eu falar, tu não... não usarias as minhas palavras contra mim? Existem pessoas na corte, e para além dela, que se apossariam de quaisquer meios disponíveis para minar o poder de Bridei, sobretudo agora, enquanto ele está fora. Tenho de ser cuidadosa, Broichan.
— Só te pergunto isto por mim, Tuala.
— Fola seria capaz de te responder melhor.
— Tu estás aqui. Fola não.
Tuala pigarreou, com nervosismo. Seria possível que, mesmo já sendo mulher adulta e rainha, continuasse a ter medo dele? Derelei fora para junto de Broichan e o pequeno cavalo seguira-o, levantando os cascos de pedra numa seqüência ordenada.
— Pareceu-me muito... atual — disse Tuala. — A floresta, a luz, isso parece ser semelhante ao local para onde Ana se dirigia e à estação do ano em que estamos. Não sei quem era esse guerreiro. Talvez não seja uma pessoa real, antes uma personificação do ideal de coragem masculina. Afinal de contas, os Priteni vão para a guerra este Verão. Os deuses podem estar a dizer-nos que muitos poderão tombar antes de alcançarmos a vitória. Mas... tu ouviste esse chefe tribal, Alpin, a falar de Ana, que ela tinha fugido ou sido raptada... que o traíra com o próprio irmão... isso não pode ser verdade. Conheço Ana. Ela preza o dever e a propriedade acima de todas as coisas. Seria a última pessoa a agir de forma tão impulsiva e com uma tal desconsideração pelas convenções sociais. Alpin falou num celta. Poderia estar a referir-se a Faolan, embora por esta altura a escolta certamente esteja já a regressar a casa...
— Ele disse que o celta era um bardo — ponderou Broichan.
— Nesse caso, não era Faolan. Se essa era uma imagem verdadeira do presente ou do futuro próximo, algo de terrivelmente errado se passou com Ana. Temo por ela, por todos eles. E... se o casamento não teve lugar, isso pode significar que o tratado de Bridei não foi assinado. Esse Alpin, de Briar Wood, nunca concordou com ele. São novidades perigosas para Bridei.
— Quer dizer que não consideras a visão como sendo puramente simbólica? — Broichan sentiu a tensão do seu próprio corpo e obrigou-se a respirar mais devagar. — Uma mensagem sobre, digamos, a natureza da morte e do morrer?
Seguiu-se um longo silêncio e os olhos estranhos e muito abertos de Tuala observaram-no com uma expressão solene.
— Por que motivo haveria A Que Brilha de te enviar uma tal mensagem? — acabou por perguntar.
A resposta surgiu, mesmo sabendo que não devia dizê-lo.
— Para me indicar que devo aceitar o que me está reservado — disse. — Que não devo continuar a implorar-lhe mais tempo. Consigo suportar a dor, ensinei a mim próprio uma forma de a ignorar. Mas é demasiado cedo. Tenho tantas coisas para fazer... — Derelei trepara para o colo de Broichan e brincava com as longas tranças do cabelo do druida, retorcendo-as e atando-as umas às outras. Broichan colocou o braço em redor do pequeno corpo da criança e olhou para Tuala. O que viu no rosto dela não foi choque nem pesar, nem sequer a satisfação de observar o abalo de um antigo inimigo. Em vez disso, os seus olhos sobrenaturais faiscavam de determinação e o seu maxilar delicado encontrava-se tão firme como um de um guerreiro.
— É uma visão de coisas verdadeiras — disse-lhe ela —, e que, muito provavelmente, estão a ocorrer neste momento, o que significa pouca sorte para o guerreiro caído, mas boas notícias para ti. A Que brilha confiou-te a educação de Bridei e, de certa forma, a minha. A deusa considera-te um filho favorito e um canal para a sua sabedoria. Não deves esquecer-te que, enquanto druida, és o servo dos deuses. E já que estamos a falar em confiança, confiei-te o meu tesouro mais precioso: o meu filho. Tens para com os deuses e para comigo a dívida de sobreviveres até teres ensinado a Derelei o que ele precisa de saber. Sem essa aprendizagem, o caminho dele ao longo da vida será deveras perigoso. Foi-me muito difícil dar-te essa confiança. Tens de cumprir a tua parte do acordo.
Tuala surpreendera-o. Era mais forte do que supunha. Poderia ser Fola a falar.
— Infelizmente — retorquiu, enquanto os braços de Derelei lhe envolviam o pescoço e a criança aconchegava a cabeça de encontro ao seu ombro —, não posso evitar os efeitos de um veneno que me foi administrado há anos atrás e que me fez mal. Agora, está a exercer o seu efeito dentro de mim. Na verdade, os meus dias estão contados.
— Que ajuda procuraste para o mal de que padeces? — perguntou Tuala. — Sei que estás doente e a sofrer. A medida que a estação vai avançado, isso tem vindo a ser cada vez mais evidente. Percebi que desejavas ir com Bridei. Tentei certificar-me de que ele não soubesse a verdade, pois teria sido um grande peso para ele durante a campanha. Ele gostaria que o tivesses acompanhado.
Broichan abraçou a criança e não disse nada.
— A Fola ofereceu-se para te ajudar? Ou os druidas da floresta? Não houve resposta.
— Muito bem. Pediste-me ajuda e eu vou ajudar-te. Mas tens de aceitar que, neste caso, poderás não conseguir curar-te a ti próprio.
— Pedi-te ajuda na interpretação de uma visão, não para isso.
— És o druida do rei. Por que motivo precisarias que te explicasse as mensagens da taça das visões? — O tom de voz era suave e, através dele, Broichan percebeu que ela já sabia a resposta. De repente, tornou-se possível dizer a verdade e tudo jorrou em catadupa: as dores de cabeça, a cegueira temporária, o entorpecimento gradual dos seus poderes, de tal forma que, muitas vezes, mesmo as tarefas mais simples da sua arte pareciam encontrar-se para além das suas capacidades. O terror de, em breve, poder perder o seu dom por completo.
Tuala escutou-o calmamente e Broichan apercebeu-se de como ela era boa nisso. Não havia qualquer crítica nos seus olhos. Quando terminou de falar, Tuala respirou fundo e disse:
— Deve ser bastante assustador para ti. Deves ter-te sentido muito só.
— Estou habituado a estar só.
— Mesmo assim. Deixas-nos ajudar-te?
— Deixas-nos? Não quero que isto seja do conhecimento público, Tuala. Isso só serviria para alertar os inimigos de Bridei para uma fraqueza na sua corte. Todos devem continuar a acreditar que ainda sou capaz de desempenhar o meu papel aqui.
— Só precisam de ficar a saber as pessoas em quem confias. Fola, claro está, e os seus curandeiros experientes. Talvez Aniel, pois ele pode substituir-te no caso de te ausentares. E eu. Sei que nunca confiaste em mim, mas agora constaste-me e Bridei gostaria que eu te ajudasse.
Broichan analisou-lhe o rosto pequeno e em forma de coração, com a pele de uma alvura de neve e olhos grandes e brilhantes.
— Ofereces-me ajuda por causa de Bridei?
— E por mim, também — respondeu ela. — Salvaste a vida de Derelei. Ele precisa de ti. Todos nós precisamos de ti, Broichan. Se lutarmos o melhor que conseguirmos, todos juntos, talvez sejamos capazes de vencer essa maleita. Certamente que a visão é um bom sinal. O teu relato foi lúcido e detalhado.
— Já passou muito tempo desde que fui visitado por tais imagens e mais tempo ainda desde que a interpretação me ocorreu, de forma imediata e verídica. Sou o melhor curandeiro de todas as terras dos Priteni, Tuala. Se não consegui deter o avançar desta doença, quem conseguirá?
— Não sei — respondeu ela. — Talvez aquilo de que precisas se encontre para além dos esforços de um só homem, seja ele o druida do rei ou não. Só sei que vale a pena salvar-te e que, caso sejamos capazes, o faremos. Talvez a visão estivesse a dizer-nos simplesmente isso: sê forte, sê corajoso, sê o melhor que consegues. E que não percamos a esperança, mesmo no pior dos momentos.
O coração de Broichan batia acelerado. Sentia-se como se tivesse saltado de um precipício, aterrando, para sua surpresa, em mão seguras. Sentia o sangue a correr-lhe nas veias. Para lá do relvado onde se encontravam sentados, druida, jovem mulher e criança, as flores do jardim do Monte Branco resplandeciam em cores que, de repente, pareciam mais vivas e mais reais do que quaisquer outras que ele vira até então.
— Ainda assim — acrescentou Tuala, num tom de voz sério —, devíamos enviar uma mensagem a Bridei. Ele tem de ser avisado de que nem tudo vai bem no norte.
— Pensas em tudo.
— Não é bem assim — respondeu ela. — Enquanto esposa do rei, ainda estou a aprender. Agora vou mandar buscar Fola. Ou, melhor ainda, acho que vamos visitá-la a Banmerren.
Ana estivera imersa num sonho maravilhoso, um sonho no qual estivera nos braços de Drustan, o corpo dele a aquecer o seu, as mãos dele a movimentarem-se sobre a sua pele com uma paixão e uma ternura que despertaram nela sensações de surpresa e prazer, às quais depressa se seguiu um desejo premente e latejante. A não concretização dolorosa desse desejo permanecia com ela agora, enquanto acordava com a alvorada na pequena caverna, com a sua cortina de água impetuosa. O poder das sensações físicas espantou-a. Certamente que, se o corpo vacilava daquela forma na iminência da libertação, alguma coisa devia transparecer no rosto, nos olhos ou nas faces coradas. Graças aos deuses que Faolan não estava ali para lhe ler os pensamentos. Nas saliências da parede rochosa da caverna encontravam-se apenas três pássaros, o cruza-bico, alisando com o bico as penas escarlates, a gralha, usando o bico para retirar uma pequena criatura qualquer de uma fenda, e o outro, o que parecia ser um falcão, embora diferente de qualquer espécie que Ana alguma vez vira, fitando-a simplesmente, um olhar vivo e resoluto.
O sonho desvaneceu-se e a realidade inundou-a. Havia luz. Era dia e Faolan não regressara. Isso só podia significar uma coisa: Alpin tinha-o encontrado antes de ele alcançar Deord. Os dois tinham sido capturados, feridos ou mortos. Estava completamente sozinha na floresta, rodeada de quilômetros de território desconhecido, envergando um vestido de casamento úmido e possuindo apenas a pequena faca de Deord. E os pássaros, claro, mas Ana acreditava que esses não seriam de grande ajuda, se Drustran em pessoa não estivesse por perto. O seu papel principal fora sempre o de mensageiros, como prolongamento do próprio homem. Sem ele, o que poderiam as aves fazer para ajudá-la?
Estremeceu, cingindo o pequeno cobertor em redor dos ombros e tentando pensar de forma prática. Podia tentar regressar à fortaleza de Alpin. Se seguisse o curso de um riacho, este deveria acabar por conduzi-la ao lago perto das muralhas de pedra. Poderia colocar-se à sua mercê. Lá, pelo menos, haveria calor e abrigo. Alpin... Alpin, que originara aquela expressão encurralada no rosto de Faolan ao obrigá-lo a contar-lhe uma meia-verdade, a qual acreditava que iria virá-la contra o seu amigo de confiança. Alpin, que lhe batera. Alpin, que ficaria muito, muito zangado com ela. Alpin que, ao que parecia, não tinha qualquer intenção de honrar o tratado de Bridei, mas que, contudo, pretendia ser pai dos filhos dela. Murmurava para si própria, revendo as opções que tinha, à medida que a luz se ia tornando mais intensa do lado de fora da caverna, pressagiando o nascer do Sol e um dia em que ela, de uma forma ou de outra, teria de abandonar aquele refúgio temporário, pois uma coisa era certa: não fazia tenção de morrer à fome ali, como uma ratazana apanhada numa ratoeira
— Drustan foi-se embora, não foi? — Dirigiu a questão aos três pássaros, uma vez que eram a única audiência que tinha. — Regressou a ocidente. Ele adora aquele lugar, o Vale dos Sonhos. Era o seu único e verdadeiro lar, o único sítio em que as pessoas não o rejeitavam. Claro que foi para lá... — Cruel. Tão cruel, depois daquele sonho nítido, que fora tão real. Será que fora tola e ingênua, iludida pela sua idéia do que era o amor? Acreditara nas palavras doces de paixão e desejo de Drustan. Recordou o comentário seco de Deord, Ele é um homem apessoado, e a perplexidade muda de Faolan ao tentar perguntar-lhe como é que tudo acontecera. — Pensei que ele me amasse — murmurou para os pássaros. — Pensei que estivesse a falar a sério. Mas ele não vem... — Engoliu as lágrimas que ameaçavam assolá-la. Ali estava o dia que tinha de enfrentar, bem como todas as outras noites e dias de uma viagem impossível, de regresso ao Monte Branco. De alguma forma, ela teria de a empreender sozinha.
— Ana?
Faolan encontrava-se à entrada da caverna, a roupa manchada de sangue, o rosto branco e exausto. Sentiu-se inundada por uma sensação de alívio, à qual se seguiu uma terrível apreensão. — Faolan! Estás ferido? E Deord? E... Drustan?
O olhar dele dirigiu-se para os pássaros e depois novamente para ela. — Não há uma forma suave de dizer isto. Deord morreu. O grupo de caça de Alpin matou-o. — E, ao ouvir o murmúrio de horror de Ana, acrescentou: — Alcancei-o tarde de mais para poder ajudá-lo. Tudo o que pude fazer foi sentar-me junto dele enquanto morria.
— Como...?
— Não queres saber, acredita em mim. Morreu corajosamente e levou uma série de guerreiros com ele. Estás bem? Não pude voltar ontem à noite, ele já estava muito longe...
— Estou sã e salva, Faolan. Claro que tinhas de cuidar de Deord. É terrível. Tão triste. Ele era um bom homem. — Lembrou-se de como Deord fora rápido a protegê-la quando Alpin estava prestes a colocar as suas mãos violentas em cima dela. Recordou-o na floresta, num combate amigável de pugilismo com Drustan, uma imagem incrível de força e graça. — Interroguei-me muitas vezes sobre qual seria o seu passado e como veio parar a Briar Wood. Suponho que agora nunca saberemos.
Faolan não disse nada. Tinha nas mãos uma pequena trouxa, provavelmente de Deord, na qual remexia, dispondo de forma organizada o que ia encontrando: uma pederneira, um rolo de linho para ligaduras, um saco encerado que poderia conter mechas, tiras de carne seca e um odre. Uma luva de pele, espessa e forte.
— Viste sinais de Drustan? — Ana teve de obrigar-se a perguntar. Sofreria tanto ao ouvi-lo dizer não.
— Deord estava convencido de que ele deixou a fortaleza — respondeu Faolan, olhando-a com um ar trocista. — Pediu-me que ajudasse Drustan a fugir em segurança. E que tomasse conta de ti. Pensou em toda a gente, exceto em si próprio. Ele morreu por nossa causa, Ana. Uma perda cruel. Alpin pagará por isto.
Nunca o vira assim. Havia algo de assustador nos seus olhos.
— Não será uma perda totalmente em vão — disse-lhe Ana —, se fizermos o nosso melhor para usar a oportunidade que Deord nos deu. Escapar ilesos e viver as nossas vidas com coragem e bondade. Vivê-las por ele, bem como por nós próprios.
— A seu tempo, talvez eu aprenda a ser filosófico — retorquiu Faolan, num tom seco. — Não viste o que o Alpin lhe fez. Agora vamos, vamos embora. Não duvido de que, esta manhã, Alpin e os seus homens voltem a estar no nosso encalço. Quando cá chegarem, quero estar bem longe daqui. Sugiro que entales a saia ou, melhor ainda, lhe arranques um bocado, para que possas trepar. Vamos subir o penhasco e depois aqueles montes.
Em silêncio, Ana pegou na pequena faca e utilizou-a para cortar a saia delicadamente bordada do seu vestido, até esta ficar dois palmos acima dos tornozelos. Enrolou a tira de tecido úmido e enfiou-a na trouxa. Faolan não teve de lhe dizer que não deveriam ser deixadas para trás quaisquer provas da sua presença ali. Sem uma palavra, seguiu-o para fora da caverna.
— Fica com esta trouxa — disse Faolan. — É mais leve. Coloquei a maior parte daquilo que precisamos na minha. É melhor ires à frente, para que eu possa apanhar-te se caíres. Sobe devagar. A rocha é lábil.
— Como saberemos para onde ir, sem Deord? — Ana olhava para cima. A face íngreme do penhasco agigantava-se acima dela, a superfície lisa e escura suavizada aqui e ali por manchas minúsculas de verde. No ar pairava uma nuvem de gotículas.
— Tenho esperança de já termos um guia — disse Faolan, enquanto o cruza-bico, a gralha e o falcão voavam, um a um, para fora da caverna, subindo em espiral à frente deles, indicando o caminho. — Numa situação destas, é preciso confiar. Toca a subir. Estou mesmo atrás de ti.
Passaram o resto do dia a trepar e a escalar, a equilibrarem-se e a saltar, a correr por cima de pedras soltas e de rochas, a percorrer trilhos lamacentos no meio da floresta e a atravessar pântanos lodosos e escuros. Quando achava que não era capaz de dar mais um passo, quando o peito lhe doía de cada vez que tentava respirar e os joelhos lhe tremiam a cada passo que dava, Faolan encontrava um esconderijo e deixava que ela descansasse por alguns instantes, bebesse um pouco de água e comesse um pouco da detestável carne seca. Tudo isso era-lhes bastante familiar, devido à última viagem que tinham feito. Apesar da expressão alarmante dos seus olhos, Faolan tinha palavras gentis, palavras de elogio e encorajamento. Sem elas, Ana tinha a certeza de que teria sido impossível continuar àquele ritmo. Sem dúvida que Alpin e os seus homens deviam já estar muito atrás deles. Sem dúvida que, nessa noite, poderiam parar sem receio de serem atacados.
O falcão ia à frente. Faolan seguia os trilhos que a ave escolhia, mesmo quando pareciam ser menos do que prometedores. Viajavam em terreno mais elevado. As manchas de floresta estavam agora bem abaixo deles e caminhavam mais expostos, tanto a outros olhos, como ao vento que soprava gelado nas encostas, mesmo naqueles dias de Verão. Flores minúsculas desabrochavam em fendas, erguendo para o sol os rostos brilhantes como jóias. As sombras das nuvens altas dançavam pelos flancos despidos dos montes e as ervas pálidas curvavam-se perante a brisa. A distância, surgiam cumes intimidantes, púrpuras, cinzentos e de um azul profundo. Não havia quaisquer sinais de habitação humana, mas os veados e as lebres tinham deixado os seus rastos na encosta. A noite, deveriam andar por ali lobos.
À medida que o sol se encaminhava para oeste e as sombras se alongavam, o falcão conduziu-os encosta abaixo, de volta a uma extensão de pinhal. Pela primeira vez, Ana viu Faolan hesitar, enquanto a gralha e o cruza-bico seguiam o pássaro maior para a sombra cada vez mais longa das árvores altas.
— Aqui estamos para lá das fronteiras de Briar Wood? — arquejou Ana, aproveitando-se da paragem curta para recuperar o fôlego.
— Não sei — disse Faolan. — Preferia não voltar à floresta. Pode oferecer encobrimento, mas dá-me uma sensação de desconforto, como se este fosse o território natal de Alpin. Já vi a rapidez com que ele atravessa este terreno, acompanhado pelo grupo de caça. Ele conhece-o bem. — À frente deles, a gralhava soltou o seu crá familiar e o cruza-bico voava de arbusto em arbusto. O falcão desaparecera. — Creio que temos de confiar nele. Pronta para continuar?
— Nele? — perguntou Ana.
— No pássaro. Ele é tudo o que temos. Anda, dá-me a mão. Estás a sair-te bem. Agora corre.
Naquela primeira noite não fizeram fogueira alguma. Sentaram-se junto um do outro, mas sem se tocarem. Dormiram um pouco e escutaram os sons da floresta: o restolhar na vegetação rasteira, o chiar na folhagem, os pios sobrenaturais e cavernosos das corujas e, uma vez, à distância, um uivo arrepiante. Nenhum deles fez qualquer sugestão sobre o que poderia ser.
As três aves guardiãs permaneciam por perto. O cruza-bico encontrava-se, por norma, sobre o ombro de Ana, a gralha estava pousada no ramo de uma sorveira-brava e o pássaro maior podia ser avistado na copa cheia de agulhas de um pinheiro escuro. Sempre que Ana olhava para cima, encontrava o seu olhar vivo e desconcertante. Era um estranho substituto para o pássaro que Drustan perdera, a minúscula carriça de penas macias. Interrogou-se sobre a sua origem, quer ele fosse capaz de as conjurar quando precisava delas ou de lançar um encantamento sobre as criaturas selvagens da floresta, a fim de as enfeitiçar. Como fizera com a própria Ana... Talvez apenas tivesse jogado uma qualquer espécie de jogo com ela. Os homens pareciam apreciar esse tipo de coisas: Alpin, por exemplo. Talvez Drustan nunca tivesse pensado seriamente que os dois pudessem vir a ter um futuro juntos.
— Estás a chorar? — A voz de Faolan era suave, quase hesitante.
— Claro que não. — Ana fungou e, à falta de algo melhor, limpou o nariz à manga. — Por que razão haveria eu de estar a chorar?
— Poderia enumerar umas cinco ou seis.
— Eu só... só não compreendo por que motivo Drustan não quis vir conosco — explodiu, incapaz de se conter, pois aquela idéia andava às voltas na sua cabeça. — Sei que ele achava que poderia magoar alguém se saísse... Mas se o Deord estava certo, se Drustan deixou Briar Wood de livre vontade, por que razão ainda não nos alcançou? Pensei que ele o quisesse... pensei que gostasse de mim... — As palavras soaram-lhe patéticas. Engoliu mais palavras, mas não foi capaz de conter as lágrimas. — Espero que tenha conseguido fugir — disse, trêmula.
— E se Alpin também o apanhou? E se ele estiver...
— Pára com isso, Ana. — Faolan não parecia zangado, apenas muito cansado. — Pensa apenas em chegar a casa e começar de novo. E fica contente por ainda estares viva. Já se perderam demasiadas vidas nesta nossa malfadada missão. Se servir de alguma coisa, digo-te que não acredito que o teu precioso Drustan tenha sido uma delas. — Olhou de relance para o falcão e este devolveu-lhe o olhar, os olhos fitos.
— O meu instinto diz-me que sobreviveu e saiu de Briar Wood. O que decidiu fazer a partir daí não é da minha conta.
Fez-se silêncio. O tom de voz dele fora algo repressor.
— É da tua conta, sim, Faolan — acabou Ana por dizer. — E da minha. Deord não te pediu para te certificares de que Drustan se encontrava em segurança? Ele passou-te a sua própria responsabilidade. Passou-a a nós.
A voz de Faolan estava tensa.
— O que estás a sugerir que façamos? Que voltemos a Briar Wood para ver se o encontramos? Que caminhemos direitinhos aos braços abertos de Alpin?
— O que se passa contigo, Faolan? Drustan é um homem decente, um bom homem. Nunca acreditei que fosse culpado do crime de que o acusam. Tenho a certeza de que jamais faria tal coisa. Não hesitaste em voltar atrás para ir à procura de Deord, a quem não conhecias melhor. Drustan corre um enorme perigo. Pode estar a vaguear pela floresta, sozinho, com Alpin atrás dele.
— Tai como nós — retorquiu Faolan. — E se tiver juízo, sairá do alcance de Alpin o mais rápido que conseguir, tal como nós estamos a fazer. Tenho a certeza de que ele está bem, Ana. Acho que sabe tomar conta de si mesmo. Provavelmente é muito mais autoconfiante do que imaginas.
— Faolan?
— Mm?
— Quando o viste, quando saíste com Deord da fortaleza, Drustan disse alguma coisa? Sobre para onde iria ou... disse alguma coisa sobre mim? — Podia imaginar o que Faolan iria pensar, que estava obcecada, perdida de amores, mas era impossível não perguntar.
Faolan demorou algum tempo a responder.
— Era melhor que colocasses isso para trás das costas — disse, por fim. — Deves tentar esquecer o assunto.
— Responde à pergunta, Faolan. Se Drustan não disse nada sobre mim, é melhor que eu o saiba, não é assim?
Ouviu o suspiro do companheiro.
— Ele pensava em ti mais do que em qualquer outra coisa. Não queria perder-te, mas fê-lo, pois o que mais queria era que estivesses em segurança. Ele mais ou menos ordenou a Deord que viesse conosco.
— Oh.
— Na altura, não tive a certeza de que Drustan sairia de Briar Wood. Pareceu-me que estava quase receoso de deixar a sua prisão. O encarceramento prolongado faz isso a alguns homens. Deord parecia confiante que Drustan iria em frente com a sua fuga, e ele conhecia-o melhor do que qualquer um de nós. — Faolan parecia embaraçado, como se estivesse relutante em contar-lhe aquilo e, de vez em quando, olhava de relance para os pássaros.
— Estás preocupado com o fato de ele te poder ouvir? — perguntou Ana.
Faolan fitou-a, semicerrando os olhos.
— Quero dizer — continuou Ana —, já houve alturas, no passado, em que Drustan enviava criaturas e, quando elas regressavam, ele sabia o que tinham visto. Não me apercebera de que o sabias.
— Já vi — replicou ele. — É um dom estranho.
— Faolan?
— Mm?
— Não gostas dele, pois não? Quero dizer, do Drustan.
— Não o conheço — murmurou Faolan entre dentes. — Sei que Deord está morto e que tu estás muito infeliz. Drustan teve a sua dose de responsabilidade em ambos os casos. Que razão teria eu para gostar dele?
— Podias manter um espírito aberto — respondeu Ana. — Não culpes Drustan por aquilo que nos aconteceu. A culpa é de Alpin. Devia ter recusado o tratado e enviado-nos para casa. Essa seria a atitude digna a tomar, se tiveres razão e ele estiver mesmo aliado aos celtas.
— Diz-me — perguntou Faolan —, se Drustan aparecesse agora, como esperarias que o futuro se desenrolasse? Recordando, claro está, a nossa fuga da fortaleza do irmão dele sob circunstâncias duvidosas, a traição de Alpin à confiança de Bridei e o fato de, sem dúvida, termos granjeado a inimizade eterna deste poderoso chefe tribal. Por último, mas não menos importante, há o pequeno pormenor de Drustan ser... diferente. Nitidamente diferente dos outros homens. Tens noção de que, quando regressarmos ao Monte Branco, Bridei procurará outro chefe tribal ou um qualquer rei insignificante para te oferecer? Claro que da próxima vez terá mais cuidado. Mas de certeza que existe um outro qualquer líder respeitável de interesse estratégico à procura de uma noiva real, mesmo que ela agora possua a fama de se meter em sarilhos.
Ana inspirou profundamente e depois exalou, antes de responder.
— Não posso evitar o que aconteceu entre mim e o Drustan, Faolan. Parece que me desprezas. Tudo o que fiz foi apaixonar-me.
Isto pareceu silenciá-lo.
— Quanto à pergunta que me fizeste — continuou Ana —, se Drustan aparecesse aqui agora, ficaria tão feliz que não haveria em mim espaço para mais nada. Mas mesmo que não venha, mesmo que opte por deixar-me e partir para ocidente, nunca consentirei um casamento combinado. Agora não. Simplesmente já não é possível. Teria de dizer a Bridei que não poderia fazer o que ele queria.
— Achas que Bridei concordaria com a tua união com um... um...
— Um quê, Faolan? Um louco? Um assassino? Drustan não é uma coisa nem outra. Tenho a certeza de que tudo isso é mentira, ou um equívoco.
— Lembras-te do que me disseste a caminho de Briar Wood? — perguntou-lhe. — Que querias ir para casa, mas que o dever deve sempre vir em primeiro lugar, pois tinhas em ti o sangue real de Fortriu?
— Eu estava errada — respondeu Ana, interrogando-se sobre o que o teria tornado tão cruel naquela noite. — Nessa altura, eu não sabia o que era o amor. Não compreendia que mudava tudo. Pensava que só acontecia nas histórias... encontrar a única pessoa no mundo que nos completa de modo perfeito, a pessoa que nos torna inteiras. Mas é verdade. Como poderia eu rejeitar isso, se fosse suficientemente afortunada para que ele voltasse para me vir buscar? Não espero que compreendas. Só espero que, um dia, tenhas a sorte de encontrar alguém que te faça sentir assim.
— Miserável e infeliz?
— É difícil explicar. Sim, neste momento sinto-me péssima, como se o meu coração tivesse sido esfrangalhado. Mas jamais poderia desejar não o ter conhecido. Não poderia desejar que nunca tivesse acontecido. Mesmo que aquelas conversas sussurradas venham a ser tudo o que tivemos, valeu a pena.
Faolan não disse nada.
— Faolan? Continuamos amigos?
Passado algum tempo, ele estendeu a mão e fechou-a sobre a dela, quente e forte.
— Sempre — disse. Por cima deles, na árvore, o falcão mexeu-se, inquieto, erguendo as asas fulvas na escuridão.
— Foste mesmo um bardo?
— Mm-mm.
— Surpreendeste-me.
— Não vão haver mais espetáculos. Fiz o que tinha de fazer. Mais não.
— Porquê? — perguntou-lhe Ana. — Custa assim tanto demonstrares os teus sentimentos? Cantas tão bem. E a harpa, foram os acordes mais encantadores que alguma vez ouvi. É triste não partilhar isso com outras pessoas. Certamente que é uma ocupação melhor para um homem do que...
— Do que espiar e assassinar? — O tom de voz era amargo. — Aquilo que faço combina comigo. Combina com o homem que sou agora.
— Mas mostraste-me que também és o outro homem, aquele que conjura magia com os dedos. Aquele cuja voz faz chorar os mais duros dos guerreiros.
— Esse homem desapareceu. Desempenhei um papel durante algum tempo porque era necessário. Não faço quaisquer intenções de voltar a repeti-lo. E sim, custa. Enfraquece-me. Não posso dar-me a esse luxo.
Ficaram sentados em silêncio durante algum tempo e depois Faolan disse: — Ana, devias tentar dormir um pouco. Temos de continuar de madrugada e estás exausta.
— Não quero dormir. Está frio e escuro e... não quero sonhar.
— Tiveste pesadelos? A droga pode ainda estar a afetar-te...
— Foram sonhos bons — respondeu Ana. — Não gosto é de acordar. Não te preocupes com amanhã. Farei o que tiver de fazer. Agora preferia conversar a descansar. Mas não estou a ser justa, deves estar esgotado. Creio que não deves ter dormido grande coisa, ontem à noite.
— Estou habituado a não dormir, lembras-te? — Ana sentiu o sorriso dele na escuridão e isso tranqüilizou-a. — Fala, se quiseres. Ajuda o tempo a passar.
— Uma vez, Deord disse-me que eu devia fazer-te perguntas sobre prisões. — Ana tentou instalar-se de forma mais confortável no chão duro, aconchegando as pernas debaixo da saia lastimosamente cortada. Qualquer tentativa de decoro era ridícula. Sentia-se satisfeita por as sombras esconderem, por agora, a extensão de perna visível acima do cano das botas. — O que quis ele dizer?
— Não é uma coisa sobre a qual eu fale. Estivemos presos num local chamado Breakstone Hollow, em Ulaid, embora não ao mesmo tempo. Digamos apenas que é muito invulgar alguém sair inteiro de Hollow. Deord foi o único outro sobrevivente que alguma vez conheci. Havia uma ligação, quer nós gostássemos, quer não, uma obrigação de nos ajudarmos um ao outro. Deord levou isso ao extremo. Não lhe pedi que morresse por mim. — O tom de voz era sombrio.
— Por que foste preso?
— Tive complicações com uma certa família influente. Os dois ramos desse clã estão num estado de rixa mais ou menos permanente e fui apanhado mo meio. Recusei-me a desempenhar uma determinada tarefa. Como conseqüência, fui enviado para um local onde eles acreditavam que deixaria de ser uma ameaça.
Ana hesitou.
— Uma vez disseste-me que te aconteceu algo... algo terrível que te mudou para sempre. Foi isso, ser preso nesse lugar?
— Não. — Mudou de posição, inquieto. Ana desejou que ele se sentasse mais perto de si e colocasse o braço em redor dos seus ombros, pois estava frio e as suas roupas continuavam úmidas. Enroscou-se mais no cobertor. Faolan recusara a oferta dela para o partilharem.
— Então há outra história? Aconteceu quando eras bardo?
— É uma parte da minha vida que opto por não revisitar — respondeu Faolan. — Não tocava harpa desde... desde antes disso. Não voltarei a fazê-lo e agradeço-te que não menciones os meus dotes musicais quando regressarmos ao Monte Branco. Tocar, cantar... despertam recordações que não posso evocar, não se desejo preservar as minhas faculdades mentais.
— Contas-me o que aconteceu? Não te faz bem guardar tudo isso dentro de ti...
— Aceitei conversar, não revelar as minhas recordações mais sombrias. Isto não é adequado aos teus ouvidos, ficarias indisposta. Tiveste uma vida de privilégio e proteção, apesar da tua posição como refém. Isto foi... foi inenarrável.
— Privilégio e proteção — repetiu. — As palavras tinham-na aguilhoado. Era como se, agora que tinham deixado Briar Wood, ele tivesse voltado a relegá-la à categoria de princesa mimada. Pensou que a conhecesse melhor. — Talvez isso seja verdade. Não posso evitar o fato de a minha mãe possuir o sangue real de Fortriu. Nem pude evitar que ambos os meus pais morressem antes de eu completar cinco anos de idade, nem evitar ser levada de casa antes dos onze. Não vejo a minha irmã mais nova há nove anos. Por esta altura, Breda pode estar casada e ser mãe. Pode ser a próxima refém. Eu era tudo o que ela tinha, Faolan. Fui pai e mãe para ela. Depois aconteceu isto: Alpin e o que aconteceu aqui... e D-Drustan... — Deuses, ela ia chorar outra vez e mostrar-lhe como era fraca. — Não gosto de falar nestas coisas. Creio que podia tentar esquecê-las, porque me fazem sentir triste e culpada e zangada. Mas fazem parte de mim. Fizeram-me aquilo que sou.
Por instantes, Faolan permaneceu em silêncio. Continuava a segurar-lhe a mão, o que Ana encarou como um sinal encorajador.
— Eu... — Vacilou e depois tentou outra vez. — Nessa noite, na primeira noite em que toquei harpa, lembrei-me de tudo. De tudo, de cada som, de cada cheiro, de cada momento hediondo. Os homens queriam celebrar depois de tu e Alpin se terem retirado. Por vontade deles, eu tocaria a noite inteira. Queres saber onde eu estava? Ana esperou.
— Enrolado, como uma criança assustada, escondido na escuridão, num choro convulsivo. Um homem que faz aquilo que eu faço não pode dar-se ao luxo de uma tal fraqueza. Expõe-no aos seus inimigos.
— Eu não sou tua inimiga, Faolan. Estamos sozinhos na floresta e só os pássaros e os insetos podem ouvir o que dizemos. Talvez se me contares, essa memória deixe de exercer um peso tão grande sobre ti.
— Seria... seria repugnante para uma senhora. Chocante... angustiante... não posso.
— Uma senhora usaria a saia tão curta, já para não falar do cabelo? Pensa em mim como tua amiga, uma boa amiga a quem podes fazer confidências. Conta-o como se fosse uma história, se assim for é mais fácil. Como uma história de outro homem, da forma que o farias, caso a transformasses numa canção.
— Essa seria a mais vil das canções.
— Talvez. Talvez só precises de contar a história uma vez. És um bom homem, Faolan, independentemente do que está encerrado no teu passado. Estivemos ao lado um do outro em alguns momentos assustadores. Se alguma vez te vais libertar disso, agora é a altura de começar. Vamos, tenta. — Ana colocou a outra mão sobre o joelho dele. Faolan sobressaltou-se violentamente quando ela lhe tocou. Estava tão tenso naquela noite, que Ana pensou que aquilo seria o mais perto que poderia aproximar-se dele. Depois, em voz baixa, ele começou a contar-lhe a história.
— Existe... existe um clã poderoso na minha terra natal, conhecido como os Uí Néill, provavelmente já ouviste falar neles. Tanto os altos reis, em Tara, como os reis dos Celtas, nesta terra, vêm dessa família. Tem dois ramos, um a noroeste e outro concentrado a leste. Existem muitos chefes tribais e muitas disputas pelas terras e pelo domínio. A história diz respeito a um... a um sub-ramo da família, intimamente relacionado com um chefe belicoso chamado Echen, mas liderado por um homem cujo desejo principal era manter a sua família e comunidade em segurança e em paz. Não queria envolver-se nas guerras territoriais. Era aquilo a que chamamos um brithem, um profissional da lei, um ancião na sua comunidade e muito respeitado. Tinha uma família grande: a esposa, os pais idosos, dois filhos e... e três filhas. A família era bastante próspera. A sua região tinha conseguido evitar o envolvimento nas disputas dos Uí Néill durante tempo suficiente para se tornar quase feliz. As crianças brincavam ao ar livre, as jovens colhiam bagas e ordenhavam vacas sem ser necessário serem vigiadas por guardas armados, os jovens aprendiam ofícios e misteres que não a guerra.
— Tal como a música? — arriscou Ana, com suavidade. Faolan olhou-a.
— O filho mais jovem do brithem tinha talento para a música. Quando atingiu uma certa idade, o seu pai encontrou um mestre bardo que precisava de um rapaz para instruir e o menino partiu, a fim de refinar os seus dotes no ofício, pois, é claro, viajar faz parte da natureza de um bardo. Esteve ausente durante alguns anos. Quando voltou a casa, já não era um menino, mas sim um jovem. E as coisas na comunidade tinham-se alterado.
Na escuridão, fracamente iluminada pela lua baixa além das árvores, Ana viu o rosto de Faolan como um padrão de sombra e osso, os olhos buracos negros. Apertou-lhe a mão com força, mas não disse nada.
— O... o pai dera uma sentença que ia contra Echen Uí Néill — prosseguiu Faolan. — Um dos homens de confiança do chefe tribal foi considerado culpado de vários crimes, cuja natureza não interessa, e, como conseqüência, Echen acreditava ter perdido importância na região. O homem culpado foi exilado. Fora útil a Echen e o chefe ressentiu-se pelo fato de ele ter sido afastado. A vingança dos Uí Néill é rápida. Começaram a acontecer coisas, coisas cruéis. Ardeu uma casa. Gado foi roubado, ovelhas foram chacinadas e deixadas nos campos. A mulher do homem da lei perdeu cinco das suas estimadas vacas destinadas à reprodução. Depois o marido da filha mais velha foi encontrado no celeiro, enforcado. Algumas pessoas disseram que se matou, mas ele não faria isso. Ela estava grávida do primeiro filho. Perdeu o bebê. O choque foi demasiado para ela.
— Mas... não disseste que essas pessoas eram parentes do Uí Néill? Como é que ele...?
— Isso só piorou as coisas. Echen não podia acreditar que o meu... que o brithem tivesse dado uma sentença desfavorável aos seus. Alguns homens não compreendem de todo os princípios da lei, da honra e da justiça. O meu... este brithem era escrupuloso em tais assuntos. Foi isso que... foi isso... — balbuciou.
— A família tomou alguma providência contra Echen, depois dos atos de violência? A comunidade não se uniu para apoiar? — perguntou Ana, tentando ajudá-lo.
— Imagina Echen como um homem como Alpin, que usa o medo como instrumento principal. Um homem com controlo total dentro do seu território. Se Alpin se depara com alguém que se lhe oponha, simplesmente corta um homem aos bocados e pendura-o, como uma lição para qualquer pessoa que possa ser tola o suficiente para o desafiar. Echen era a mesma coisa. Mas o território que chefiava era muito maior do que o de Alpin. Que hipóteses tinha um brithem local contra tal poder? No entanto, a família não cruzou os braços e aceitou o inevitável. Tomaram uma posição.
— Como?
— O... o... acho que não consigo ir para a frente com isto. — Estava a tremer.
Ana tirou o cobertor e colocou-o em volta dos ombros dele.
— Não — protestou Faolan. — Vais ficar com frio...
— Então divide-o comigo. É uma questão de bom senso. — Nesse momento, Faolan olhou para cima, na direção do falcão ainda pousado, sem pestanejar, em cima dos ramos altos da árvore. — Sentes-te constrangido por estares a contar isto na presença destes pássaros?
A boca de Faolan retorceu-se.
— Por estranho que pareça, as únicas pessoas que alguma vez me ouviram falar naquilo que aconte au foram Deord e Drustan. Espero que Drustan não me julgue, se puder ouvir-me.
— Conta-me o resto da história. O que é que a família fez?
— Quando o filho mais novo regressou a casa, os homens do distrito já tinham formado uma força popular para vigiar a sua terra, os seus bens e os seus entes queridos. As armas eram gadanhas e forquilhas. Aquilo que sabiam sobre a arte de lutar era o que tinham aprendido em pelejas amigáveis, em dia de feira. O filho mais velho do brithem era o líder. Era esperto e estava zangado. Vira o desespero que invadia o pai, após a perda daquele que seria o primeiro neto. Este jovem, ele...
— Como se chamava ele, Faolan?
— Dubhán. — Teve de se obrigar a dizer o nome. A palavra soou áspera, devido à dor. — Ele planeou um golpe. Ouviram dizer que Echen iria visitar o distrito, a fim de obter pagamentos de rendas dos agricultores que trabalhavam as suas terras. Enquanto Echen jantava em casa de um dos mais abastados donos de terras local, o jovem roubou dez cavalos de sela do seu acampamento, bem como algumas armas. Um guarda foi morto, o outro pendurado, para que o seu amo assim o encontrasse. Dubhán saía ao pai. Em troca de uma vida, a do cunhado, tirou uma vida. Uma subtileza que, infelizmente, se perdera em Echen. Quando os homens dos Uí Néill deram início às buscas, os cavalos já tinham desaparecido do distrito. Foi um triunfo, audacioso, inteligente, de acordo com a idéia que a população local tinha de Dubhán. Ele sempre foi... ele era...
— O irmão mais novo admirava-o?
Faolan aquiesceu, incapaz de falar por alguns instantes.
— Sei que a narrativa deve acabar em tragédia, Faolan. Contas-me o resto?
A voz dele tornara-se um monólogo hesitante.
— Echen capturou alguns dos jovens da comunidade, aqueles que suspeitava terem participado. Os seus métodos eram brutais. Um deles acabou por ceder e indicou o nome de Dubhán como sendo o cabecilha. Nessa noite... nessa noite, a família encontrava-se reunida à lareira, como era seu hábito, a cantar e a contar histórias. Mãe, pai, irmãos, irmãs, pessoas idosas. Echen apareceu, acompanhado de homens armados, muitos homens. Atacaram o brithem e o filho mais velho. Ao ser acusado do crime, Dubhán não negou ter sido o responsável. Permaneceu de queixo erguido e tentou expor os crimes de Echen contra o seu pai, tentou usar a lógica contra a fúria vingativa. O pai, seguro por um par de facínoras, observava-os com lágrimas de orgulho nos olhos. O irmão mais novo, cujas mãos eram mais hábeis a dedilhar cordas de harpa do que a manejar uma espada, cuja voz mais depressa se erguia para entoar uma canção do que para proferir palavras valentes de desafio, desejou, nesse momento, ser Dubhán, pois aquela era uma demonstração de verdadeira coragem. Então os homens de Echen espancaram Dubhán em frente da sua família, da mãe que chorava, da irmã mais nova que gritava em protesto, do pai silencioso e pálido. O irmão mais novo não sabia qual o sentimento que prevalecia dentro de si: medo, ódio ou orgulho.
Ana apertou-lhe a mão, mas não disse nada.
— Dubhán não vergou. Ferido e a sangrar, a respirar com dificuldade, não ofereceu a Echen as desculpas que este procurava.
Echen deve ter-se apercebido que a sua táctica não estava a resultar, por isso começou a ameaçar os outros.
Ana sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.
— Não é o que estás a pensar — disse Faolan —, que, caso Dubhán não pedisse desculpas, ele iria magoar o pai ou outro membro da família. Talvez tivesse visto, nos olhos de todos eles, a integridade que era o verdadeiro pilar da educação que o pai lhes dera, o âmago daquilo que tornava aquela família pacata tão forte. E talvez tivesse visto um... um elo fraco. Os seguidores de Echen entraram na casa. De repente, um homem armado estava ao lado de cada um deles, da avó, da jovem viúva, da irmã mais nova. Foram encostados punhais aos seus pescoços e facas posicionadas de modo a penetrarem os seus corações. Não havia qualquer arma apontada a Dubhán, que se encontrava ajoelhado no meio da sala, as mãos presas atrás das costas. Não havia qualquer arma apontada ao irmão mais novo, aquele que partira para ser um bardo e regressara a casa para um pesadelo. Depois... depois Echen deu um passo em frente para se dirigir ao músico. Colocou uma faca na mão do jovem. Ele... ele ofereceu-lhe uma escolha. Dubhán, disse Echen, estava destinado a morrer. Era preciso dar o exemplo, para que mais ninguém pensasse em desafiar os Uí Néill, achando que conseguiria sair impune. Assim sendo, a questão não era se o miserável iria ou não morrer, mas sim quantos iria levar consigo. Ao dizer isto, os olhos de Echen percorreram a sala. O jovem bardo seguiu o olhar do chefe tribal, vendo o rosto exangue da mãe, a avó com as roupas elegantes amarrotadas e o cabelo branco desgrenhado, o punho grande de um homem agarrando-a cruelmente pelo ombro. A irmã mais velha cobria o rosto com as mãos. Um sujeito de rosto vermelho segurava a irmã mais nova, de catorze anos de idade, que tremia de raiva e vergonha enquanto as mãos do patife lhe percorriam o corpo através do vestido discreto. O avô tentava manter a dignidade, os olhos presos à esposa angustiada. O maxilar do pai estava rígido, os olhos escuros pela premonição de horror. Talvez tivesse percebido antes dos outros o que iria acontecer.
— A escolha não é minha, rapaz — disse Echen ao irmão mais novo — mas sim tua. Corta o pescoço do teu irmão e eu ordenarei aos meus homens que soltem todas as pessoas presentes nesta sala e que nunca mais lhes façam mal, a não ser que a tua família se volte a meter nos meus assuntos. Recusa-te e eu farei o trabalho por ti. A seguir, os meus homens acabarão com todos os outros.
A mãe soltou um grito terrível, um gemido vindo das profundezas das entranhas. O avô praguejou e foi recompensado com um golpe seco no queixo, que o fez cair de joelhos.
— Talvez não todos — acrescentou Echen, os olhos postos na irmã mais nova, doce e rosada como uma maçã da nova estação. — Vamos levá-la a ela para nos fazer companhia esta noite. Seria uma pena desperdiçar uma promessa assim tão óbvia. E tu serás poupado, é claro —, disse, olhando para o trêmulo jovem bardo, de pé ao lado do irmão, a faca a tremer de forma tão violenta na mão que dificilmente conseguiria usá-la, mesmo que essa fosse a sua vontade. — Mata-o e salvas as vidas deles. Recusa-te a fazê-lo e irás vê-los a morrer, um por um. Continuarás a viver para o ver, vezes sem conta, todas as noites, nos teus sonhos. Mostra-nos do que és feito, lindinho.
Desvairado, o bardo olhou para o pai em busca de orientação, mas este fechou os olhos. O brithem mais sábio de todo o mundo não era capaz de pronunciar tal sentença. Lágrimas rolavam pelas faces empalidecidas do homem da lei. Os seus lábios moviam-se numa oração.
— Não o faças, Faolan! —, gritou a irmã mais nova. — Não dês essa satisfação ao miserável! — Depois também ela foi silenciada com uma pancada.
O bardo olhou para a faca. Não conseguia mantê-la imóvel. Ela sacudia-se e balançava na sua mão, à medida que uma onda de náuseas o invadia.
Nesse momento, o irmão falou.
— Põe-te atrás de mim. Coloca a ponta da faca por baixo da minha orelha esquerda. Dá aí um golpe preciso e certifica-te de que a empurras com força. Tu és forte, Faolan. És capaz de o fazer.
— Mas... — O bardo não foi capaz de dizer mais nada, a não ser libertar um gemido estrangulado. Sentia um nó na garganta, parecia-lhe que a cabeça ia explodir, o coração batia com tanta força que poderia partir-se ao meio. As palmas das mãos estavam escorregadias devido ao suor. A mente buscava desesperadamente por soluções: atacar Echen, fugir, virar a faca contra si próprio... era evidente que nenhuma dessas coisas salvaria a sua família. Mas aquele... aquele era Dubhán.
— Despacha-te —, disse Echen e fez um sinal com a cabeça em direção a um dos seus homens. Um instante depois, a avó caiu bruscamente no chão, com uma faca espetada no meio das costelas.
— És um homem, Faolan —, murmurou Dubhán. — Fá-lo agora. Ana tinha os dentes de tal forma cerrados que a cabeça lhe doía. O bardo... o bardo olhou nos olhos do irmão, brilhantes de coragem. Dubhán era o seu herói. Tê-lo-ia seguido pelos portões do inferno. Sempre fizera o que o irmão lhe pedira. Por isso, agarrou a faca com mais força e golpeou a garganta de Dubhán. O sangue jorrou quente e vermelho sobre as suas mãos. Ouviu a irmã gritar, ouviu o som que a mãe emitiu. O pai estava silencioso. O jovem permaneceu no centro da sala, com o corpo do irmão a seus pés, e esperou que Echen e os seus homens saíssem.
Mas Echen ainda não tinha terminado. Os homens libertaram a família quando ele lhes ordenou que o fizessem, mantendo-se a postos com as armas preparadas, enquanto as mulheres cuidavam da avó moribunda. Para Dubhán, era já tarde demais.
— Revistem a casa —, ordenou o chefe dos Uí Néill, de modo frívolo, como se só naquele momento lhe tivesse ocorrido a idéia. — Procurem as facas e os arcos que nos faltam e tragam outras coisas que interessem, está bem?
A família permanecia imóvel, em silêncio. Esperaram. O sangue da avó ensopou os panos que tinham colocado sobre o seu peito. O avô segurava-lhe a mão de encontro à sua face. Passado pouco tempo, os homens de Echen regressaram, segurando, um de cada lado, a terceira irmã, a que tinha ido para a cama cedo naquela noite... Áine, a mais nova, uma criança vestida com uma camisa de dormir comprida, os olhos escuros e assustados, o cabelo caído sobre os ombros.
— Ah —, exclamou Echen, com um sorriso cruel, — um tesouro escondido. Vamos levá-la. Lembro-me de ter prometido poupar todos os que estavam nesta sala, não mencionei nada sobre o resto da casa. Uma pequena pérola. Que idade tem ela, doze? Fresca. Inebriante. Vai buscar uma capa para a boneca, Conor, não pudemos deixar que se constipe. Adeus, brithem. Acho que aqui o teu filho tem futuro, e não é como músico. Ao olhar para o bardo, a sua expressão era de surpresa, quase de admiração. Era óbvio que o resultado da experiência não tinha sido aquele que esperara. Virou-se para o pai.
— Que eu não volte a ouvir falar de ti. Da próxima vez serei menos generoso.
Quando saíram, arrastando com eles a rapariga, o jovem correu disparado pela sala atrás deles, desesperado por, de alguma forma, remediar as coisas, pelo menos salvar a irmã, embora o pesadelo, de fato, ficasse com ele para sempre. Echen riu-se. Consigo ouvi-lo neste momento. Depois, alguém desferiu um golpe violento na cabeça do rapaz e, por algum tempo, sentiu o alívio da inconsciência.
Não havia nada que Ana pudesse dizer. Paralisada, permaneceu sentada por um instante e depois colocou um braço em redor dele e encostou a cabeça ao seu ombro.
— Faolan, isso é... isso é impensável. Nunca ninguém devia ser obrigado a... ninguém... — Um pouco depois, acrescentou: — O que aconteceu a seguir? O que fizeste?
— Fiquei dominado pelo ódio. — Desistira de fingir que estava a contar a história de outra pessoa. — Quando recuperei os sentidos, só conseguia pensar em salvar a minha irmã e espetar uma faca no coração de Echen. Mas não pude fazê-lo. Saí do quarto e vi os meus pais à minha espera. A minha mãe fizera uma pequena trouxa com comida e bebida para o caminho. O meu pai deu-me um anel que herdara do avô, de prata com uma pedra. A minha harpa estava pronta dentro do estojo. Devia partir. Partir e não voltar. Não disseram grande coisa. Vi no rosto da minha mãe que, depois do que eu fizera, ela não me queria na sua casa. De repente, o homem parecia um velho. Protestei. Se não fosse eu, quem salvaria Áine? O meu pai proibiu-me de tentar. Disse que a violência tinha de acabar. Disse que já seria demasiado tarde para ela. Havia uma distância no seu tom de voz que eu nunca tinha ouvido antes. As minhas outras irmãs não apareceram quando eu me vim embora. Antes de o Sol nascer, já eu atravessara as fronteiras das terras de Echen. Dei o pão e o queijo da minha mãe a um mendigo que encontrei à beira da estrada e atei o pano a um teixo, embora não fosse qualquer oferenda aos deuses. A partir daquela noite escura, não confiaria nem em deuses nem nos homens. Troquei o anel do meu pai por uma passagem para Fortriu. Deixei-os a todos para trás. Desde essa altura que não tenho notícias deles. Mas nunca estão muito longe. Quando toco harpa, vejo a minha irmãzinha nas mãos daqueles homens. Ouço o grito da minha mãe. Quando vou para a cama, à noite, sinto o sangue de Dubhán nas minhas mãos e ouço o meu pai falar comigo como se eu fosse um estranho.
— Oh, Faolan... lamento tanto, tanto... não sei o que dizer...
— Não há nada a dizer. O que fiz foi imperdoável. Fiz a opção errada. Destruí tanto a minha família como Echen o teria feito com o seu bando armado.
— Por que é que nunca regressaste? Não gostarias de fazer as pazes com a tua família? De descobrir o que lhes aconteceu?
O tom de voz de Faolan era amargo.
— Eu venerava Dubhán. Era o meu irmão mais velho. Obedeci-lhe até ao fim. E obedeci ao meu pai, quando ele me disse para partir e nunca mais voltar. Desde aí, não ganho a vida a tocar música, mas sim a fazer as duas coisas que provei ser capaz de fazer naquele dia: seguir ordens e cortar gargantas.
O ódio por si próprio, que a voz deixava transparecer, silenciou Ana.
— Eu regressei — disse Faolan —, não a casa, mas a Laigin. Os homens de Echen tentaram recrutar-me. Talvez lhe tivesse chegado aos ouvidos que o lindinho desenvolvera certas habilidades úteis. Recusei. Daí Breakstone. Houve homens que morreram de desespero naquele lugar. Eu sobrevivi. Já me encontrava para lá do desespero, perdera qualquer capacidade de sentir. Isso fez de mim um bardo pior, mas um assassino melhor. Não trabalhava para Echen, mas trabalhava para qualquer outra pessoa: os chefes tribais dos Uí Néill, tanto do norte como do sul, os príncipes de Ulaid, o Rei de Dalriada. E agora, para Bridei.
— Não perdeste a capacidade de sentir — disse Ana. — Nem de despertar sentimentos nos outros. E a tua música? Até os caçadores de Alpin tinham lágrimas nos olhos.
— Até te conhecer — replicou, calmamente. — Perdera-a. Não volto a tocar. É errado usar as minhas mãos para fazer música, quando elas estão manchadas com o sangue do meu próprio irmão.
— Que disparate! — ripostou Ana, sem conseguir conter-se. — Disseste antes que tornaste a opção errada, mas Faolan, não havia uma opção certa. Como homem de lei, o teu pai sabia isso. Fosse qual fosse a escolha que fizesses, tinha de acabar em sofrimento e morte. Eras muito jovem. Aquele homem não tinha o direito de colocar um peso tão terrível sobre os teus ombros.
— Não devia ter-te contado. Agora também tu sonharás com isto.
— Eu tenho os meus próprios sonhos perturbadores. Estou contente por me teres contado, Faolan. Foi preciso coragem para colocar isto em palavras. És o homem mais corajoso que conheço.
Não respondeu.
— Faolan?
Um aceno de cabeça.
— Tens de voltar. Sabes isso, não sabes? Se alguma vez quiseres resolver o assunto, tens de te reconciliar com eles.
— Não é um conto de fadas.
— Não estou a dizer que as recordações vão desaparecer ou que todas as feridas serão imediatamente saradas. Compreendo que seja demasiado complicado para isso. Mas sei que gostariam de te ver: o teu pai e a tua mãe, as tuas irmãs... já passou muito tempo desde que partiste. Pelo que me contaste, eles são boas pessoas, fortes e justos. Agora irão compreender a escolha impossível que enfrentaste e por que motivo fizeste o que fizeste. Foste obrigado a fazê-lo por amor. Tens de voltar. A tua ausência durante tanto tempo deve tê-los feito sofrer, sobretudo ao teu pai.
— Nunca regressarei.
— Então és menos corajoso do que eu pensava. A maior coragem é seguir em frente e fazer o que tem de ser feito, mesmo quando a idéia nos transforma as entranhas em gelatina.
— Foi o que Sentiste quando me puxaste para fora da água, em Breaking Ford?
Ana estremeceu com a recordação.
— Por um instante, sim. Assim que te vi, não me pareceu existir outra alternativa. Tinha de salvar a única coisa que restava, a única coisa boa. Se eu fosse uma mulher mais cruel, diria que estavas em dívida para comigo, bem como para com Deord, e que essa dívida seria a tua reconciliação com o passado. Para concederes a ti próprio um futuro.
— Eu tenho um futuro. Continuo a ser o homem de Bridei.
— Sem isso, nunca serás verdadeiro para contigo mesmo.
— Quando te contei a minha história, não estava à espera de ordens sobre como viver a minha vida. — Afastou-se dela, libertando-lhe a mão.
— Somos amigos, Faolan — disse Ana, com suavidade. — Amigos verdadeiros. Jamais te daria ordens. Mas existe um caminho que eu quero ver-te a percorrer, para que não sejas devorado pelo ódio por ti próprio. Vejo o homem por baixo da armadura da indiferença. Quero que o mundo também o veja. Quero que te sintas realizado e feliz.
Sob o luar, viu o esgar retorcido de um sorriso. — Pedes o impossível — disse Faolan.
— Pensei — murmurou ela —, que fosses o tipo de homem para quem nada é impossível. Tenho esperança de que, a seu tempo, proves que estou certa.
No final do terceiro dia de buscas, Alpin reuniu o grupo de caça e partiu em direção a casa. Aí, encheu um saco com mantimentos para que um homem viajasse sozinho uma longa distância e colocou os assuntos da casa nas mãos da competente Orna. Deu certas ordens a Dregard e outras a Mordec, que chefiava os seus guerreiros. Pegou na espada, nas facas e na besta e, sozinho, regressou à floresta na alvorada da manhã seguinte. Onde um grupo de caçadores com cães e cavalos não conseguia ir com facilidade, sozinho, um homem hábil podia caminhar rápida e silenciosamente, seguindo os rastos de outro. O celta e a noiva real poderiam ter atravessado a fronteira das suas terras e o seu irmão podia ter desaparecido no esconderijo proporcionado pela floresta, mas Alpin ainda não estava derrotado. Queria Ana, por mais desonrada que pudesse estar por aquela altura. Pertencia-lhe, fora-lhe enviada para ser sua esposa e tê-la-ia, quaisquer que fossem os meios necessários. Devia a si próprio vingar-se da aberração que era Drustan e daquele miserável celta vira-casacas e, por fim, do arrogante rei de Fortriu, que desencadeara tudo aquilo com a sua tentativa precipitada de fazer uma aliança com Briar Wood.
Bem, a aliança iria manter-se, pensou Alpin, enquanto avançava rapidamente ao longo dos trilhos traiçoeiros do coração da floresta, seguindo o seu próprio caminho até ao local onde Deord morrera. Aí, observou com um certo divertimento o cuidado com que o homem fora sepultado e depois retomou um novo trilho em direção ao pequeno lago altaneiro por baixo da queda de água, um local que o seu grupo de caça ignorara como não tendo qualquer saída que uma mulher pudesse arriscar. Apanhara-os. Estava quase a alcançá-los.
Demoraria algum tempo a encontrar o rasto dos fugitivos e a atacá-los pela calada. Não importava. Podia dar-se ao luxo de ausentar-se de casa durante algum tempo. Já não havia necessidade de mobilizar o seu exército, a sua frota, as suas tropas consideráveis. Ainda não. Talvez não fosse preciso de todo. Tinha a sensação que a resposta a esse problema não residia num assalto armado mas sim no seu plano alternativo, um que ele concebera há algum tempo atrás: a utilização da arma secreta que todos desconheciam, à excepção de si próprio, de Dregard e dos seus guerreiros de maior confiança. E, claro, do filho que, contra todas as probabilidades, finalmente se revelara de alguma utilidade.
Tinha-se tornado cada vez mais óbvio, quando primeiro Ana, e depois Faolan, falaram da presença poderosa de Bridei, da sua liderança, do seu estatuto icónico para o seu povo, que o sucesso de qualquer investida Priteni contra Dalriada dependia bastante deste único homem, deste chamado Espada de Fortriu. Demasiado, de acordo com a opinião de Alpin. Se Bridei fosse eliminado, tudo o resto se desmoronaria, tinha a certeza disso.
Por isso, enviara ao jovem rei um pequeno presente. Que conveniente fora que o rapaz já se tivesse ligado às tropas de Umbrig. Hargest estava ansioso por lhe agradar, sentia-se desesperado por conseguir a aprovação de Alpin. Provavelmente, via-se a si próprio como o herdeiro legítimo de Briar Wood. Pela forma como as coisas tinham resultado com Ana, no momento era o único herdeiro. Isso em breve mudaria, pensou Alpin, de modo sinistro. Recuperaria a noiva real e mantê-la-ia. Ela dar-lhe-ia tantos filhos quantos desejasse e, através desses filhos, iria deter um poder sem igual em todas as terras do norte.

 

 

 


CAPÍTULO QUINZE


— Que grande comitiva — comentou Fola ao observar o séquito de Tuala desmontar junto aos portões de Banmerren. A rainha trouxera não só um Broichan de rosto de cera, mas também o guarda-costas Garth, a sua esposa Elda e os filhos gêmeos, bem como uma jovem criada. E, claro está, Derelei, que agora era ajudado a descer do carro que transportara a ama e as crianças. — Recordas-te, espero eu, que os druidas são os únicos homens a quem é permitida a entrada no nosso lugar sagrado?
Tuala sorriu para o velho professor.
— Como poderia esquecer-me? — respondeu, recordando uma altura em que Bridei escalara a parede por uma corda, a fim de a visitar. Teriam passado apenas cinco anos? Parecia ter acontecido há séculos: os dois lá em cima, empoleirados no carvalho, e aquele primeiro beijo... — Pensei que os restantes poderiam ficar alojados na casa de Ferada. Vou falar com ela enquanto Garth e Elda descarregam a bagagem. — Ao virar-se para o pequeno caminho que rodeava o alto muro de pedra, viu Fola pegar no braço de Broichan e conduzi-lo através do portão para o santuário da mulher sábia.
No final do carreiro, o muro fora alargado para abrigar um novo recinto, onde se encontrava uma comprida casa de habitação no meio de um jardim recente. Um portão de ferro embutido no muro abriu-se quando Tuala o empurrou. Do outro lado de uma extensão de relva, abriu-se um arco na parede lateral, dando acesso aos terrenos onde ficava a escola de Fola. Tuala entrou silenciosamente no novo jardim. Não estava sozinha. Ferada encontrava-se sentada num banco, com um pequeno livro aberto nas mãos e, junto ao arco, podia ver-se a figura musculosa do escultor de pedra real, Garvan, equilibrado sobre uma plataforma de madeira, ao lado de um bloco de rocha enorme, a fazer algo de delicado com um cinzel. Um jovem, que parecia ser seu assistente, ordenava ferramentas sobre um banco. Estava um belo dia. A cena silenciosa e diligente encontrava-se banhada pela luz quente de Verão. No meio da relva, pequenas flores formavam pontos vivos de cor-de-rosa e azul. Os pés de Ferada estavam descalços e tinha uma perna dobrada por baixo do corpo, sobre o banco, enquanto o outro pé l dançava. Tinha o cabelo solto, que lhe caía pelas costas numa torrente ígnea. Garvan. um homem cujas feições possuíam elas próprias o aspecto de um bloco de pedra intacto, assobiava baixinho enquanto trabalhava.
— Peço desculpa por interromper uma cena tão pacífica — disse Tuala, avançando pela relva com um sorriso. — Receio que tenhas visitas: quatro adultos e três rapazinhos bastante ativos. Vamos tentar mantê-los afastados das ferramentas.
Não existiam caminhos fáceis entre Briar Wood e o Monte Branco. Onde não havia floresta sem trilhos ou carreiros, erguiam-se altas montanhas rochosas e cumes escarpados, sobre os quais ventos gelados açoitavam de forma constante, mesmo durante o Verão. Onde não havia riachos largos e quedas de água turbulentas para atravessar, havia penhascos e ravinas e escarpas a desmoronar-se. Havia pântanos. Havia javalis. A noite, havia lobos.
Assim que Faolan se convenceu de que Alpin lhes perdera o rasto, deixou que se fizesse uma pequena fogueira à noite. Passado pouco tempo de terem feito a primeira, enquanto Ana usava a faca para dividir uma tira de carne de carneiro seca que era a única comida que tinham, o falcão foi-se embora, regressando algum tempo depois, ao crepúsculo, com um coelho gordo a balançar-lhe das garras. Faolan interrogou-se sobre o quanto Drustan compreenderia quando assumia aquela forma, se percebia totalmente o discurso humano, se formava opiniões, se sentia alegria ou tristeza, se planeava e delineava estratégias e sonhava da mesma forma que enquanto homem. Interrogou-se sobre o quanto Drustan se recordaria quando se transformava novamente em ser humano. Naquele momento, era de maior utilidade para eles sob a forma de pássaro, capaz de voar bem alto e descobrir trilhos onde um homem não conseguiria, capaz de caçar sem quaisquer armas, para além do bico e das garras. Quando é que Drustan decidiria que chegara a altura de se mostrar a Ana? De lhe revelar toda a verdade sobre si próprio? Estaria tão receoso que ela o rejeitasse que permaneceria assim durante todo o caminho até ao Monte Branco? Faolan considerou que faltava alguma coisa fundamental a um amante que não era capaz de confiar. Ainda assim, era algo estranho, algo bizarro. Não havia forma de adivinhar como ela iria reagir quando soubesse.
Ana fez um bom trabalho ao cozinhar o coelho na fogueira. Deixou uma parte da carne crua, colocando-a sobre uma árvore caída, onde o pássaro facilmente conseguiria apanhá-la. O falcão comeu com precisão, a parte traseira do coelho segura por uma pata enquanto o bico terrível despedaçava a carne, uma tira de cada vez. A gralha e o cruza-bico observavam à distância. A fome não parecia ser um problema para eles. Faolan imaginou que o ritmo lento dos pés humanos dava às duas aves bastantes oportunidades de se alimentarem pelo caminho. Por uma ou duas vezes, à medida que caminhavam e um dia começava a fundir-se no seguinte, Faolan sentiu-se tentado a apanhar o falcão sozinho, a confiar que ele conseguia compreender, e sugerir a Drustan que contasse a Ana a verdade e acabasse com o seu sofrimento. Por uma ou duas vezes, retirou da trouxa a luva que Deord transportara no seu saco e experimentou-a na mão direita. Mas não levou a idéia mais adiante. Para quê apressar as coisas? Quanto mais tempo Drustan deixasse as coisas assim, mais provável seria que Ana visse que os seus sentimentos por ele eram apenas entusiasmo e não amor. A generosidade impulsiva de uma mulher que considera demasiado fácil ter pena dos que são injustamente tratados. Quanto mais tempo Drustan demorasse a revelar-lhe o seu segredo, se alguma vez o chegasse a fazer, mais tempo Faolan passaria sozinho com ela. Embora a sua mente compreendesse muito bem que nunca poderia existir mais do que amizade entre eles, o seu coração acarinhava aqueles dias preciosos como uma flor recebe o calor do sol. Não importava que os dois estivessem sujos, frios e exaustos, nem que as suas casas nunca tivessem parecido estar tão distantes. Por enquanto, durante aquele curto período de tempo, tinha-a só para si. Agora sentia-se mais cansado, não confiando em si próprio para se deitar junto dela à noite, mas podia olhá-la, falar com ela, guardar cada momento para um futuro em que, tão certo como o Sol se punha à noite, seguiriam por caminhos distintos. Abrira-lhe a parte mais negra de si próprio, a parte que pensara vir a permanecer fechada para sempre. Ela aceitara a sua oferta e, mesmo sabendo o ato terrível que cometera, permanecera sua amiga leal. Se aquela felicidade frágil tinha de ser destruída pelo regresso de Drustan, que não fosse já.
Ana estava a sair-se bem, acompanhando o passo e não se queixando, mesmo quando os pés lhe doíam. Quando tirou as botas e Faolan viu as bolhas, este exigiu que descansassem por um dia. Ela protestou e ele insistiu. Era evidente para Faolan que não chegariam ao Monte Branco até ao final do Verão. Esperava que Drustan soubesse o que estava a fazer. Talvez estivesse a jogar um jogo só seu.
A chuva afrouxara o seu avanço e o Verão caminhava velozmente em direção ao seu término. O fato de o seu guia ter o hábito desconcertante de desaparecer sem avisar não ajudava, deixando-os à espera por um ou dois dias, até voltar e reiniciarem a viagem.
Por duas noites, ficaram na cabana abandonada de um pastor, situada bem alto, numa cavidade na encosta da montanha, à espera que o falcão regressasse de uma das suas ausências. Faolan não fazia idéia do caminho a seguir e o terreno era perigoso. Contudo, estava à beira de perder completamente a paciência e assumir o papel de guia a partir daquele momento. Ana estava cada vez mais introvertida e ele reparara que o seu rosto estava mais cavado e notara uma mudança no seu olhar que o inquietava. Estava muito mais magra, o que não era de admirar devido a uma refeição de carne por dia. Desta vez, o falcão deixara-lhes um par de lebres antes de desaparecer, como se soubesse que estaria ausente por algum tempo.
— Esperamos mais uma noite — disse Faolan a Ana, ao sentarem-se no abrigo de um pedregulho, olhando por cima da encosta, sob o estranho céu quase escuro da noite de Verão. — Se nessa altura ele não tiver voltado, consigo encontrar um caminho. Se nos dirigirmos mais ou menos para sudeste, devemos acabar por ir ter à costa perto de Abertornie.
— Faolan?
— Mm?
— Vai demorar muito tempo, não vai? Quero dizer, percorrer o caminho todo até casa.
Faolan pensou em todas as coisas que não lhe contara: a dificuldade em obter comida sem um arco ou uma lança, o fato de a carne seca durar, na melhor das hipóteses, mais sete dias, a verdade inegável de que, mesmo no Verão, haveria rios enormes para atravessar.
— Vamos demorar mais tempo do que se fôssemos a cavalo, claro — respondeu ele. — Mas vamos conseguir. Como estão as tuas botas? Ana mostrou-lhe. A esquerda tinha um buraco na sola, a direita estava a abrir, onde a gáspea encontrava o salto. Não era de admirar que tivesse os pés doridos. O vestido de noiva estava manchado e esfarrapado. A sua própria roupa pouco melhor estava.
— Mm — disse ele. — Que linda figura nós dois vamos fazer, quando chegarmos ao Monte Branco.
Fez-se silêncio e depois o som inconfundível de um choro reprimido.
— Desculpa — murmurou Ana.
— É ele, não é? — perguntou Faolan, de forma inexpressiva.
— Drustan. Ainda estás a chorar por causa dele. Maldito homem.
— Não consigo evitar, Faolan. Queria que ele estivesse aqui, connosco. Comigo. Eu esperava... esperava que assim fosse...
Faolan notou que o cinto que ela trazia lhe estava de tal forma largo, que teve de o enrolar várias vezes para mantê-lo em redor da cintura. O cabelo caído estava liso, fios sem vida sobre os ombros. Já não tinha a postura erguida de uma rainha. O desejo de envolvê-la nos braços e abraçá-la era tanto, que lhe doía.
— Preocupo-me com ele, Faolan — disse Ana, em voz baixa. — Ele é tão vulnerável. Se regressou a casa, ao Vale dos Sonhos, pode ser preso outra vez, até mesmo morto. Quem controla esse lugar agora são os homens de Alpin. E se...
— Ana — afirmou Faolan —, não podemos fazer nada quanto a isso. Confia nele, é capaz de resolver os seus próprios problemas. — Secretamente, começava a duvidar. Não fazia a mínima idéia de onde Drustan estava naquele preciso momento, nem do que andava a fazer.
— Quis ajudá-lo. — Ana fitava o céu nocturno como se este lhe pudesse fornecer alguma resposta. — Ainda quero. Ele está terrivelmente sozinho. Seja para onde for que ele decida ir, seja o que for que decida fazer, queria estar com ele, a seu lado, para que já não tivesse de estar sozinho. Deve ser tanto uma bênção como uma maldição nascer diferente. O avô dele percebeu isso, mas parece que mais ninguém o fez. Talvez Deord.
— Diferente? — Faolan interrogou-se sobre o que Drustan lhe teria contado.
— Como um vidente, acho eu. Aqueles momentos que tem, a que Alpin chamou de delírios ou ataques, parece que quando é acometido por eles, Drustan tem uma espécie de visão, caminha num mundo diferente durante algum tempo. Tem-nos desde criança. Algumas pessoas não conseguem tolerar tal excentricidade.
— De fato — concordou Faolan, pensando que ela não fazia idéia do quão estranho o homem era. Como se sentiria em relação à idéia de ter filhos aos quais, a qualquer momento, poderiam nascer bicos e penas?
— Faolan? Ele esperou.
— A cada dia que caminhamos, a cada passo que damos em direção a leste, sinto-me como se o meu coração se despedaçasse mais um pouco. Pensei que, passado algum tempo, começasse a passar, que não doesse tanto. Mas está cada vez pior. Como pude deixá-lo para trás? Algo está errado. Ele não partiria sem mim. Estava a dizer a verdade quando disse que me amava, ouvi-o na sua voz. Por que razão mentiria ele sobre uma coisa dessas?
— Os homens fazem-no — respondeu Faolan. — Fazem-no a todo o instante.
— Drustan não.
— Um exemplo de perfeição. — Não era capaz de esconder a sua amargura.
— Pára com isso, Faolan. Qualquer pessoa pensaria que estás com ciúmes.
Fez-se silêncio. Quanto mais este se prolongava, mais intensamente Ana lhe observava o rosto e, a certa altura, teve de desviar o olhar para evitar uma qualquer resposta tola, uma recusa falsa, uma declaração dos seus sentimentos, uma resposta fulminante que iria magoá-la. Não valia a pena dizer nada. Para ele, era óbvio que, finalmente, ela compreendera o que lhe ia no coração.
— Desculpa — acabou ela por dizer, num tom de voz baixo e caloroso. — Lamento tanto, Faolan.
— Ora! — Tentou esboçar um sorriso. — Afinal de contas, não passo de um guarda contratado. Não me compete desenvolver sentimentos pessoais. Esquece o assunto. A tua vida já é complicada o suficiente.
— Para mim, és um amigo querido — disse Ana —, e o meu protec-tor leal durante a viagem. Devia ter percebido mais cedo, não consigo imaginar como é que me escapou. Sabes que confio em ti, Faolan, que te respeito e que dependo de ti... nunca imaginei encontrar um amigo assim e graças aos deuses estiveste a meu lado durante tudo isto. Mas... aquilo que sinto por Drustan é muito diferente. É demasiado forte para ser negado. É como uma... uma onda, uma maré...
— Destrutivo, queres tu dizer.
— Talvez. Ele desapareceu e eu sinto-me como se estivesse a despedaçar-me. Lamento que esteja a tornar as coisas tão difíceis para ti. Quando falo dele e daquilo que sinto... devo ter-te magoado muito.
As palavras amenizaram o estado de espírito de Faolan. Mesmo numa situação extrema como aquela, ela permanecia uma dama.
— Quero que me faças um favor e experimentes uma coisa — disse ele.
— O quê?
Levou a mão ao saco e retirou lá de dentro a pesada luva de couro. — Põe isto e levanta-te.
— Porquê? — Fez o que lhe pedia, com uma expressão perplexa.
— Agora chama-o. O falcão. Chama-o para ti.
— Não sei como fazê-lo. Não sei o tipo de som que devo fazer.
— Sabes assobiar?
— Não muito alto. Posso tentar. Mas não olhes para mim, caso contrário não serei capaz.
O som que ela produziu foi mínimo, na imensidão dos montes ondulados que se estendiam à sua frente, uma pequena melodia de duas notas, que caía sem parar. Era o tipo de chamamento que uma dama poderia fazer a um gatinho adorado ou a um cão de colo bem treinado. Parou durante algum tempo, à escuta, e depois tentou outra vez. Era como se a noite se silenciasse em redor dela, sustendo a respiração.
Depois ouviu-se um movimento de asas na penumbra, uma subtil deslocação do ar, e o pássaro saiu a voar da noite para pousar na mão dela, as garras agarrando a luva, os olhos bravios encontrando os de Ana, brilhantes, inescrutáveis. Ana tinha o braço estendido com força, suportando o peso do falcão e os seus olhos estavam cheios de assombro.
— Ele voltou — ofegou. — Como sabias que faria isso?
— Chama-lhe um palpite — respondeu Faolan, apercebendo-se da mudança no tom de voz dela. Será que pressentia a verdade? — Intuição.
Os dedos de Ana afagaram a plumagem do falcão, as penas longas e fortes das asas, o veludo que lhe cobria o peito. A mão dela encontrava-se perigosamente próxima daquele bico lacerante. Pareceu não lhe ocorrer que a criatura tinha a capacidade de lhe arrancar a mão. Faolan conteve-se para não dizer nada. Não iria colocar os seus próprios dedos em perigo, se pudesse evitá-lo, mas sabia que aquele pássaro jamais faria mal a Ana.
— Isto significa que podemos continuar — alvitrou ela. — Estamos a ficar sem comida, não estamos?
— Eu arranjaria comida para ti, fosse de que maneira fosse — retorquiu Faolan, sem olhar para o pássaro, para o caso da antipatia ser demasiado óbvia nos seus olhos. Claro que Ana tinha razão. Era a presença de Drustan que os levaria a casa sãos e salvos.
— Sinto-me um pouco melhor — disse Ana, encostando por um instante a face às penas da ave. — Se os três estão connosco, isso quer dizer que Drustan não se esqueceu totalmente de mim, mesmo que não possa estar aqui. Se permanecem juntos, acho que deve querer dizer que ele ainda está vivo e em segurança. Agora vou tentar dormir, Faolan.
— Então boa noite.
— Que A Que Brilha te dê bons sonhos.
— Desejas-me o impossível. Suponho que vás sonhar com uma única coisa.
Ana estava a instalar-se no chão sob o abrigo rudimentar de uma pequena saliência, com o cobertor em volta dos ombros. Os três pássaros ficaram perto dela, pousados sobre as rochas, um trio de guardas em miniatura, evocando visões de uma qualquer história mítica de magia. Durante algum tempo fez-se silêncio e ele pensou que a jovem estava a dormir. Então ela falou outra vez.
— Não troces dos meus sonhos, Faolan — disse ela. — Para além dos pássaros, são tudo o que me resta dele.
— Desculpa — disse Faolan, mas Ana não respondeu.
Muito mais tarde, quando teve a certeza de que ela dormia, Faolan pegou numa rocha e sopesou-a. Ouviu a respiração de Ana, lenta e regular. A gralha e o cruza-bico estavam junto dela, imóveis, as cabeças enfiadas debaixo das asas. O falcão mantinha-se alerta, empoleirado a um palmo do seu ombro. Faolan considerou a trajectória possível da pedra que tinha na mão e avaliou a velocidade e a distância. Se fosse rápido, tudo poderia acabar num instante. Nunca mais teria de os ver juntos, nunca mais teria de ver as mãos daquele homem em cima dela e ficar quieto como se não fosse nada consigo. As trevas invadiram-lhe o coração. Os dedos fecharam-se sobre o projéctil. Ana suspirou, virando-se no sono.
— Diz-lhe — ordenou Faolan, deixando cair a pedra. — Conta-lhe a verdade, deixa que seja ela própria a decidir. Não podes deixar as coisas assim. Vais partir-lhe o coração.
O falcão mirou-o, os olhos ilegíveis.
— Transforma-te. Mostra-lhe o que és. Se não tens coragem para isso, não a mereces. Bem podes voar daqui para fora e deixar-nos. Nós aguentamo-nos. Já conseguimos antes e podemos voltar a conseguir.
Não houve qualquer resposta, à excepção daqueles olhos resolutos fixos em si, um olhar que parecia a Faolan profundamente perigoso. Aquele homem era uma criatura selvagem. Carregava perigo na sua própria natureza.
— Do que estás à espera? — desafiou Faolan. — Ela está aqui, ama-te, é a mulher mais perfeita que qualquer homem poderia desejar. O que é que te impede?
Não houve qualquer reacção, nenhum sobressalto de surpresa, nenhuma transformação. O pássaro virou a cabeça.
— Tens medo, não é? — disse Faolan. — Tens medo que quando ela souber te vire as costas. Por isso, castiga-la, coloca-la sob tortura, preocupando-se com a tua segurança, com o teu futuro, com a razão pela qual a abandonaste, mesmo enquanto ela se extenua a caminhar e se transforma em pele e osso por não se alimentar o suficiente. Se és mesmo um homem, comporta-te como tal. Confia nela e conta-lhe a verdade.
Alpin tinha a constituição de um urso. Ainda assim, o fato de ter crescido em Briar Wood dera-lhe uma série de habilidades invulgares num homem tão grande. Na floresta abundava boa caça e ele aprendera cedo a deslocar-se em silêncio e a percorrer com rapidez território agreste. Aprendera a detectar um rasto e a não o perder, embora a fuga solitária de Deord pela floresta o tivesse afastado por algum tempo daquele rasto específico. Agora recuperara-o e avançava atrás dos fugitivos de forma silenciosa e eficiente, com um objectivo mortal. Enquanto corria, trepava e avançava com dificuldade em direção a nordeste, a sua mente não se encontrava no terreno, nem no tempo, nem nos sinais de por ali ter passado alguém: absorvia estas pistas sem pensar. Em vez disso, dentro dele entoava um hino feroz e violento de vingança, uma canção de ódio, de luxúria, de vontade de atormentar e obliterar. Via Ana de braços e pernas abertos, com o seu irmão em cima dela, e depois o celta, e depois novamente Drustan, aquela miserável aberração. Quando ele a levasse para casa, se tivesse um filho na barriga, este teria de ser eliminado. O seu herdeiro tinha de ser incontestavelmente do seu sangue. Por todos os deuses, era melhor que lhe desse filhos, depois de todo aquele trabalho. Em breve extinguiria nela a desobediência. Certificar-se-ia... Por outro lado, teria de se controlar durante algum tempo. Precisaria de moderar a sua fúria após o castigo inicial que Ana sofreria durante o regresso à fortaleza. Perdera a paciência com Erisa demasiadas vezes e o que tinha acontecido? A estúpida da mulher tentara fugir dele e, ao cair, matara-se a si própria e ao filho dele. Se, por acaso, a aberração do irmão não estivesse lá para fornecer um álibi, poderia ter perdido tudo. Drustan... pelos deuses, por que motivo tinha sido tão generoso para com o homem? Devia ter-se livrado logo dele e não deixar que os laços de sangue o refreassem. Agora Drustan escapara e se ele se lembrasse, se ele contasse... não, isso era uma fantasia. As pessoas julgavam que Drustan era louco, ninguém acreditaria nele. Não restava ninguém em Briar Wood que o apoiasse, ninguém que se recordasse dos tempos em que ele era racional. A velha Bela fugira assim que aconteceu. Provavelmente já morrera e o resto das pessoas tinha desaparecido, à excepção de Orna, que sabia ficar de boca fechada. Alpin fora minucioso. Ainda assim, não ficaria satisfeito até colocar as mãos em volta do pescoço do irmão e ouvir o seu último suspiro. Quanto ao celta... esse não era de confiança. Podia ter sido útil enquanto espião, contudo seria necessário livrar-se dele agora. Alpin pensava na forma como colocaria isto em prática enquanto subia uma extensão de encosta rochosa, detendo-se para observar vestígios de habitação recente numa cabana em ruínas. Cinzas de uma pequena fogueira, fios de cabelo loiro, os ossos de uma pequena criatura, cuja carne fora totalmente consumida. Tinham estado ali e não há muito tempo. As suas mãos estavam ansiosas para infligir o castigo. Primeiro, trataria dos dois homens. Depois possuiria Ana onde quer que a encontrasse. Havia outra parte dele ansiosa e só havia uma maneira de satisfazê-la.
Há muito que Bridei aprendera a ser cauteloso. A primeira vez que atentaram contra a sua vida era ele ainda uma criança e Donal impedira que fosse bem-sucedida. Anos mais tarde, quando aqueles que se opunham à sua subida ao trono fizeram uma nova tentativa, Donal morrera no seu lugar. Da terceira vez fora Faolan que o trouxera para a margem. Aprendera a não confiar demasiado depressa, mesmo quando os seus instintos o faziam inclinar-se para a amizade.
Gostava de Hargest. Revia-se de certa forma na insegurança do rapaz e nos seus esforços constantes por ser excelente no que fazia. Preso entre um pai que prontamente se dispôs a mandá-lo embora e um pai adotivo que fora, talvez, demasiado cauteloso no trato, parecia a Bridei que Hargest tentava equilibrar-se numa ponte estreita para a maturidade e masculinidade. O rapaz era um poço de contradições: o desejo de agradar, o terror de parecer fraco ou tolo, a vontade de provar que era superior. Sob tudo isso, havia uma necessidade terrível de amor: o amor de um pai.
Bridei fez com que Breth e os outros incluíssem o jovem no seu treino de combate diário e que o levassem nas suas sortidas até às fronteiras do território de Dalriada. Hargest era sempre vigiado atentamente, embora não o deixassem aperceber-se disso. Nunca ficava a sós com Bridei, mas o rei habituara-se a inclui-lo nas conversas e era freqüente fazer perguntas em relação aos seus progressos. Gradualmente, durante o tempo que passaram na Fonte do Corvo, Hargest foi aceite pelos homens, que deixaram de se referir a ele como se fosse um estranho. Um ou dois deles afirmaram que, caso Hargest fosse com eles para a guerra, seria uma mais-valia. Para começar, teria o dobro do tamanho de qualquer celta no campo de batalha e a forma como manejava a espada era algo a ter em conta.
Bridei pedira a Orbenn que levasse consigo uma mensagem, na qual pedia a opinião do pai adotivo de Bridei no que dizia respeito à preparação do rapaz para ir para a guerra. A resposta de Umbrig, quando, por fim, chegou, deixava a decisão a cargo de Bridei. Se achasse que o rapaz seria de alguma utilidade, deveria levá-lo, caso contrário, poderia enviar Hargest de volta a Storm Crag, onde este ficaria a aguardar. Não fazia qualquer menção ao regresso de Hargest para casa do pai, em Briar "Wood, embora já fosse um jovem.
Assim, quando o Verão se aproximou do fim e eles partiram da Fonte do Corvo na primeira etapa da longa caminhada, Hargest assumiu o seu lugar no pequeno exército pessoal do rei de Fortriu, uma figura orgulhosa e de ombros largos, mais alto do que a maioria dos homens e empunhando a lança, a espada, o arco e a aljava, como se fosse algo que fazia todos os dias, muito à vontade. Breth, que cavalgava ao lado do rei, sentia-se inquieto por causa do rapaz. Nunca confiara nele totalmente e não fazia segredo do seu mal-estar devido à célere aceitação de Hargest nas fileiras dos homens de armas de Bridei. Corria o boato de que o guarda-costas do rei se sentia ameaçado. Algumas pessoas diziam que Hargest, por ser jovem, ágil e forte, era a escolha óbvia para assumir o papel do guarda-costas de maior confiança de Bridei.
Bridei tinha conhecimento do boato e considerava-o um disparate. Breth sabia que a sua posição era tão segura como a de qualquer homem em direção a uma batalha. No que dizia respeito a Hargest, Bridei tinha-o mais controlado do que as pessoas imaginavam. O desejo desesperado do jovem em agradar-lhe era o controlo mais eficaz que tinha e utilizá-lo-ia para evitar que o rapaz fosse morto antes de ter a oportunidade de crescer e descobrir a matéria de que era feito.
Finalmente estavam a caminho, atravessando o mesmo território através do qual Bridei marchara enquanto modesto peão no exército de Talorgen, a caminho de experimentar pela primeira vez o que a guerra faz aos homens. Apesar de toda a fanfarronice de Hargest, estava à espera que ele ficasse profundamente perturbado. Bridei esperava ter tempo para conversar com o rapaz depois, para ouvir o que ele tinha para dizer sobre o que vira, o que fizera. O que tinha sido obrigado a fazer. A guerra podia despertar o que de melhor havia num homem. Infelizmente, havia aqueles nos quais atiçava a crueldade e outros que simplesmente cediam sob o seu terror. Se aquele grande empreendimento corresse da forma planeada, talvez, durante algum tempo, não houvesse necessidade de os homens de Fortriu terem de passar por tudo aquilo outra vez. Talvez existissem muitos anos de paz, os Celtas longe da costa dos Priteni, Circinn pronto para dizer coisas acertadas e homens capazes para tratar do gado, plantar colheitas, manejar a sovela, a tenaz e o martelo no exercício da sua profissão novamente, sem estarem à espera que lhes batessem à porta para irem para a guerra. Rezava para que assim fosse, não por si próprio, não para sua glória, mas pelo bem do seu povo. Se derrotasse os celtas, poderia voltar a sua atenção para a outra grande tarefa que os deuses lhe imputavam: unir Circinn e Fortriu na prática da fé antiga.
Enquanto o exército de Bridei se dirigia para ocidente, em direção às fronteiras do território de Gabhran, por todos os lados de Dalriada outros grupos de guerreiros Priteni cercavam os Celtas. Gabhran e os seus chefes tribais nunca teriam imaginado um ataque tão maciço e complexo, uma tal união de esforços, uma tal sincronização.
Bridei e os seus líderes de guerra tinham tomado medidas para aumentar as hipóteses de não serem detectados até ao último momento. Tiveram em consideração atrasos: uma doença, mau tempo, uma emboscada. Cada chefe tribal tinha outro homem que o poderia substituir, caso fosse morto ou capturado. A armadilha na qual planeavam apanhar o rei celta assemelhava-se a uma mão cheia de garras a fechar-se em redor de Dalriada. Cada dedo tinha de estar no seu lugar, cada um deles dependia dos outros para que não fosse deixado qualquer espaço aberto, qualquer ponto fraco através do qual Gabhran e os seus chefes tribais pudessem escapar. Os líderes de Bridei e as suas tropas estavam a dias de distância uns dos outros e, no entanto, no final, cada um deles dependia dos outros para que a armadilha se fechasse com êxito. Há já cinco anos que Bridei fomentava os laços de amizade entre eles. Conheciam-se bem uns aos outros. Eram um grupo de irmãos, cada um orgulhosamente independente, cada um muito senhor de si, desde o feroz Fokel, de Galany, ao equilibrado Talorgen, desde o flamejante Ged ao reservado Morleo, cada um deles parte de uma equipa que se dedicava ao futuro de Fortriu e ao grande objectivo do seu rei. Já antes tinham sido derrotados por Dalriada. Os chefes tribais mais velhos, Talorgen e Ged, tinham assistido a muitas batalhas ao longo dos anos. Desta vez, as coisas pareciam diferentes. Mesmo enquanto falavam de alternativas e contingências, tinham nos olhos a luz da vitória certa.
Bridei estremeceu. Por vezes, era assustador ver e saber que tudo isso era responsabilidade sua. Ele era o rei. Fora escolhido pelos deuses e pelos homens para guiar Fortriu para a vitória. Aqueles homens, aqueles líderes maduros e cautelosos acreditavam que seria capaz de o fazer. Acreditavam que o próprio Bridei marcava a diferença entre outra derrota dolorosa e a queda final do invasor, há muito desejada. Tentara dar-lhes aquilo que eles esperavam. Concebera o plano o mais estanque possível. Acreditava, quando rezava ao Guardião das Chamas ao amanhecer ou A Que Brilha ao crepúsculo, que os deuses continuavam a sorrir-lhe. Ainda assim, era um grande peso aquele que tinha sobre os ombros e alturas havia em que o desejo de estar em casa era tão forte que o coração lhe doía. Queria sentar-se junto à lareira com Tuala, vendo-a enquanto ela escovava o cabelo, em movimentos demorados e regulares. Queria segurar o filho nos braços e ver o pequeno e estranho sorriso de Derelei, os olhos grandes cheios de segredos. Queria estar perto de Broichan, cujos conselhos assisados tantas vezes o tinham ajudado a encontrar o caminho através de uma ou outra situação difícil. Mas ele era o rei, cavalgava para a guerra e passaria muito tempo até que voltasse a ver a sua casa, os seus entes queridos. A celebração da Medida há muito teria passado, mesmo que tudo corresse bem. Interrogou-se sobre se o filho se recordaria dele. Certa noite, acamparam na floresta acima de Fox Falls, à espera que Fokel de Galany se juntasse a eles. Depois de terem comido, uma espécie de caldo de carne que incluía lebre, pombo-bravo e ouriço-cacheiro, Bridei percorreu o acampamento com Breth, falando com o maior número possível de homens. Naquele momento, não necessitavam de discursos inflamados. Caso estivessem a sentir-se como ele, aquilo que desejavam era uma palavra amiga e de coragem. Ouviu as suas preocupações com uma atenção cortês, dando a cada um deles o seu tempo e fazendo-lhes saber, esperava ele, que tinham a confiança do rei. Já era tarde e a maior parte dos homens adormecera enrolada em mantos ou cobertores. Os que estavam de vigia permaneciam no perímetro do acampamento, sombras silenciosas sob uma lua crescente. Bridei e Breth regressaram ao pequeno abrigo que fora erguido para o rei, onde um dos homens de Pitnochie, Uven, estava de guarda.
— Breth, vai dormir — disse Bridei. — Deixa que Uven faça o primeiro turno aqui. Tenho de me reconciliar com os deuses antes de me deitar. Não estarei muito longe.
— Se tens a certeza. — Breth estivera a reprimir um bocejo.
— Tenho. Agora vai. Assim que Fokel chegar, e isso poderá acontecer só amanhã, vamos descansar ainda menos. Acorda-o quando for horas de trocar, Uven.
— Sim, meu senhor. — Os homens de Pitnochie conheciam Bridei desde os quatro anos. Os seus modos para com ele eram quase de posse, mas nunca lhe faltando ao respeito. Conquistara a lealdade que tinham para com ele.
Bridei caminhou até um pequeno outeiro não muito longe do acampamento, um lugar onde a luz d'A Que Brilha penetrava através dos ramos largos dos carvalhos, iluminando fracamente uma extensão de pedras musgosas e as folhas em forma de coração de uma planta rasteira que trepava pelas fendas da rocha. Aí, ajoelhou-se para rezar e Uven, respeitando o laço entre deus e rei, permaneceu para lá da luz, de lança na mão e olhos atentos.
Para um homem educado por um druida e alimentado, por assim dizer, com o saber antigo, Bridei fez uma oração simples. No dia seguinte, nos próximos, e nos muitos que se seguiriam, em todos os lados de Dalriada, iriam morrer homens porque ele decidira que tinha chegado a altura da guerra, homens como as boas almas com quem conversara naquela noite. Enquanto rei, era a sua confiança que os impelia para ocidente, com a luz de uma demanda nos seus rostos vulgares e honestos. Muitos não regressariam. Haveria esposas, mães, filhos, cujo tempo de espera duraria uma vida inteira. Outros receberiam de volta um homem destroçado. Mesmo que as tropas dos Priteni alcançassem uma grande e nobre vitória, seria assim, pois a guerra era cruel e imparcial. No calor da batalha, no campo, não eram homens bons nem homens maus, eram simplesmente dois exércitos de pais, filhos e irmãos, que colocam a sua vida em risco porque o seu líder os convence de que é a coisa acertada a fazer. Ele, Bridei, era esse líder.
Não pediu À Que Brilha que lhe retirasse dos ombros o peso que carregava, um fardo que se tornaria cada vez mais pesado com cada dia de conflito. Pediu-lhe somente que lhe desse forças suficientes para o suportar. Não lhe pediu que poupasse os seus amigos mais chegados, Breth, Talorgen, os homens de Pitnochie. Apenas que, se morressem, pudessem morrer de forma limpa e com um objectivo. Quanto a si próprio, esperava regressar a casa, no Monte Branco, e voltar a abraçar a sua esposa e o seu filho novamente. Mas não o mencionou na oração. Não pediria para si próprio aquilo que sabia não poder ser concedido a todos os homens do seu exército. Rezou para que o caminho que tinha escolhido fosse bom. Pediu que a deusa cuidasse de Tuala e pediu
À Que Brilha que desse ao seu filho bons sonhos. Depois permaneceu ajoelhado durante algum tempo, tornando a sua respiração mais calma. Algo se mexeu mesmo atrás de si. Bridei colocou-se de pé de um pulo e pegou no punhal. Um momento depois, Uven atravessou rapidamente a clareira, de lança na mão.
— Está tudo bem, Uven. — Com esforço, Bridei manteve a voz firme. — É só Hargest. Pelos deuses, rapaz, para um homem tão grande tens pezinhos de lã.
— Que idéia foi essa, de apareceres assim de repente? — perguntou Uven, num rosnido furioso. — Mais um segundo e ter-te-ia trespassado!
— Um segundo é tempo suficiente para um assassino atacar — observou Hargest, apontando para a faca que trazia no cinto. — Senhor meu rei, os teus guarda-costas não estão à altura.
— Seu...
— Deixa estar, Uven — disse Bridei. — Falarei com Harvest sobre os seus modos, não aconteceu nada. Se eu não o ouvi, com certeza que tu também não poderias fazê-lo. Fui treinado por Broichan. Esta noite deixá-lo-ia envergonhado. Vem, Hargest. Já terminei. Conversa um pouco comigo enquanto regressamos ao acampamento.
Ficaram junto à pequena fogueira que ardia perto da tenda de Bridei: Uven tenso, devido à irritação e mal-estar, Hargest de braços cruzados e uma expressão beligerante e Bridei mantendo uma calma tantas vezes treinada. Hargest não pediu desculpa. Talvez não compreendesse o quão perto realmente estivera de ter o coração trespassado por um punhal, pensou Bridei. Se assim fosse, o rapaz tinha aprendido menos do que devia durante o tempo que passara com os homens de armas do rei.
— Hargest — disse ele, num tom de voz sereno —, não é sensato testar as reacções dos meus guardas, aproximando-te de mim furtivamente. Eles não só têm ordens para matar, mas treinaram-me para que me defenda. O meu pai adotivo ensinou-me a usar os meus ouvidos tal como o faz um animal selvagem. Se eu não estivesse em meditação profunda, ter-te-ia apunhalado o coração antes de ter oportunidade de ver quem eras.
— Então quando estás a rezar, os teus guardas devem encontrar-se duplamente alerta.
— Não culpes Uven — disse Bridei, suspirando. — Ele estava a fazer o seu melhor para encontrar um equilíbrio entre a discrição e a vigilância. Os meus homens conhecem-me bem, Hargest. Há alturas em que preciso de manter a ilusão de isolamento, nem que seja apenas pela minha própria paz de espírito.
— Diz-se que adoras os deuses. Que o Guardião das Chamas considera-te o seu filho favorito.
— Espero que todos os homens aqui presentes adorem os deuses. Quanto a filhos favoritos, só me resta ter fé que o Guardião das Chamas apoie o nosso empreendimento e me considere digno que o liderar. Agora diz-me, por que razão estás aqui e não a dormir com o grupo que te foi atribuído? Por que motivo me abordaste daquela maneira? Suponho que não tenha sido apenas para chamar a atenção para um ponto fraco nas minhas defesas pessoais.
— Desejo falar contigo a sós — resmungou Hargest, lançando um olhar feroz em direção a Uven. — Assuntos particulares.
— Nem penses — disparou Uven.
— Ele tem razão — declarou Bridei, mirando os punhos e o maxilar cerrados do jovem. — Tendo em conta o que acabaste de nos dizer, deves tomar o teu rei por um tolo, se pensas que ele mandaria embora o seu único guarda e teria uma conversa em privado durante a noite, no meio da floresta, com um homem que conhece há apenas, o quê, uma lua? Nem tanto, penso eu.
Seguiu-se um silêncio constrangido.
— Por favor, meu senhor? — A voz de Hargest suavizara-se um pouco. Olhava para as botas.
— Recua alguns passos, Uven. Bom, Hargest, o que se passa? Estás preocupado com a batalha? Tomei a decisão errada, ao permitir que te juntasses ao meu exército?
— Não, meu senhor. — O jovem endireitou os ombros. — Estou em condições de combater, assumirei o meu lugar. É sobre o que se seguirá que desejo falar-vos.
— O que se seguirá? Irá seguir-se outra batalha, Hargest, e mais uma marcha, e depois outra batalha. A guerra é assim. É sangrenta e repugnante. Fazemo-la porque assim tem de ser. Acredita em mim, com deuses ou sem eles, nada disto me agrada. Quando terminar, se tiveres a sorte de sobreviver, regressarás a Storm Crag e reconhecerás que cada dia de paz que os deuses te concederem é uma dádiva preciosa.
— Eu... e se...?
— Seja o que for, Hargest, diz. Já é tarde e tenho pelo menos de fingir que descanso esta noite ou Breth ficará aborrecido comigo.
— Um dos teus guardas pessoais poderá ser morto ou ferido na batalha. Caso isso aconteça, há alguma possibilidade que...
Bridei não conseguiu evitar um sorriso.
— Refinamos as tuas técnicas de combate na Fonte do Corvo e os homens não se cansam de te elogiar. Parece que não te exercitamos na diplomacia. Tens assim tanta vontade de assumir os deveres de guarda-costas? Dizem-me que é um trabalho ingrato: dormem pouco, sofrem de ansiedade permanente, não têm tempo para eles próprios. E o salário não é melhor do que a média, a menos que tenhas algo especial para oferecer. O meu guarda principal, o que está no norte, é um tradutor excelente e possui uma série de outras capacidades. Quanto a Breth, não vou desafiar os deuses ao predizer o seu destino na batalha. Tenho vários outros homens a quem posso recorrer, tal como Uven. Homens de confiança.
— Podes confiar em mim, meu senhor. — A voz de Hargest estava rouca de ansiedade. Parecia muito jovem. — Vi o que és para estes homens: um rei, um líder, um amigo. Eles vêem-te como seu irmão, seu pai. Olham-te nos olhos e vêem o olhar do Guardião das Chamas. Sabes que sou um bom lutador, meu senhor. Sou capaz. Sou rápido. Sou destemido. Dá-me uma oportunidade e provar-te-ei o quanto posso ser bom como guarda-costas. Serei melhor do que qualquer um deles.
— Não preciso disso — disse Bridei, num tom de voz suave. — Estou mais do que satisfeito com os homens que tenho. Provaram o seu valor durante muito tempo. No caso de Uven, durante quase uma vida inteira.
— Toda a gente tem de começar por algum lado, meu senhor. Por favor, põe-me à prova. Não irás arrepender-te. — A voz do jovem tremia de emoção. Tão jovem, tão cheio de paixão.
— Um dos atributos requeridos é a capacidade de permanecer totalmente calmo na mais difícil das provas — disse Bridei.
— Põe-me à prova então.
— És arrojado, isso é evidente. Demasiado arrojado, diriam os meus conselheiros.
— Por favor, senhor meu rei. Dar-te-ei provas do meu valor. Juro-o pela virilidade do Guardião das Chamas.
— Primeiro vamos tomar Galany 's Reach — disse Bridei, interrogando-se sobre se aquela mistura explosiva de juventude, ambição e culto dos heróis seria despedaçada no dia da sua primeira batalha a sério ou se sobreviveria para ganhar o futuro pelo qual parecia ansiar. — Veremos como te sais e talvez considere pôr-te à prova. Terás de lidar com a reprovação de Breth.
— Sim, meu senhor. — Os olhos do jovem brilhavam com a luz da esperança e a boca esboçou um sorriso de puro prazer, substituindo por momentos a sua atitude habitual de beligerância carrancuda. — Obrigado, meu senhor. Juro que não te arrependerás...
— Deixa-nos sobreviver a Galany. — De súbito, Bridei sentiu-se exausto. — Não subestimo de forma alguma a tua oferta, Hargest. Que isto fique claro. Honro a tua coragem e sinceridade e espero que o Guardião das Chamas te segure na sua mão quando avançarmos para a batalha. Contudo, precisas de aprender a ter um pouco mais de tacto ao lidar com os meus homens. Também deves recordar-te de que sou rei de Fortriu. Quando conversam comigo em privado, Breth, Uven e os outros fazem uso de uma certa familiaridade. Ganharam o direito a fazê-lo ao longo de muitos anos de serviço leal. Talvez, a seu tempo, também tu ganhes esse direito. Agora, boa noite. Que A Que Brilha te dê bons sonhos.
— Boa noite, senhor meu rei. — Hargest fez uma vênia breve. Ao endireitar-se, o seu sorriso constrangido era como o de um filho traquinas a desfrutar de uma piada pessoal com um pai severo mas carinhoso. Bridei não conseguiu evitar devolver-lhe o sorriso.
No longo crepúsculo de uma noite de Verão, Faolan e Ana acamparam na orla de um pinhal, bem acima de um lago comprido e solitário. Ao início do dia, tinham avistado um casal de águias a sobrevoá-los, dirigindo-se para os picos desolados que se erguiam para lá das colinas rochosas e Ana disse a Faolan que aquele era um sinal auspicioso.
— É o símbolo da realeza de Bridei e um par é uma mensagem especialmente forte da parte dos deuses — disse ela, enquanto apanhavam madeira para a pequena fogueira e tratavam da oferenda nocturna do falcão, um pássaro gordo de uma qualquer espécie não identificável. O cruza-bico e a gralha permaneciam imperturbáveis, observando Ana a depenar e a esvaziar a presa: mais um indício da sua profunda diferença, pensou ela.
— Mm-mm — grunhiu Faolan, fazendo uma faísca ao bater com a faca na pederneira. — Ficaria mais satisfeito se soubesse exactamente onde estamos e quanto ainda teremos de andar. Se os deuses quisessem ajudar-nos, poderiam dizer-nos isso. Ali o nosso guia está a conduzir-nos numa dança sinuosa. É quase como se a criatura não quisesse que cheguemos a casa. Talvez seja altura de dispensarmos os seus serviços.
— Se não sabes onde estamos, isso não seria muito boa idéia, Faolan. Além disso... — Ana calou-se. Ele não estava no melhor dos humores e ela sabia como ele ficava aborrecido quando falava de Drustan. Drustan... a dor da ausência aumentava a cada passo que dava para longe de Briar Wood. O tempo não estava a sarar aquela ferida no seu coração.
— Além disso, os pássaros é tudo o que te resta dele, eu sei, eu sei. — Faolan soprou a mecha em chamas e começou a colocar-lhe galhos em cima. — Não podem ficar connosco para sempre e não estão a ser de grande ajuda. Tenho a certeza de que estamos demasiado a norte e provavelmente vamos perder-nos, se tivermos de atravessar estas florestas a caminho da costa. Sinto-me inclinado a procurar o caminho por mim próprio, a deixá-los ir.
— Como é que os farias partir? Com certeza que só obedecem a Drustan.
— Dir-lhes-ia que se fossem embora. Ou melhor ainda, serias tu a dizer-lhes isso. Lembra-te da forma como o falcão vem para a tua luva, obediente como um pássaro de caça bem treinado. Ordena-lhe que parta e aposto que os três se vão embora nesse mesmo dia.
Ana não disse nada. O troféu do falcão, espetado num pau, estava pronto a ser cozinhado. As mãos dela estavam uma confusão de sangue, entranhas e penas. Se alguma vez regressasse ao Monte Branco, fá-lo-ia com capacidades que jamais esperara adquirir. Quanto aos seus três guardiães, tinham-se tornado tão familiares, cada dia moldado pelo voo elegante da luva para o céu, pelo toque macio das penas aveludadas na face ou nos dedos, pelos pequenos sons que faziam à noite e pela sabedoria misteriosa nos seus olhos selvagens e brilhantes, que ela sabia que agora a sua vida seria incompleta sem eles. Eram seus companheiros e amigos. Se o falcão estava a conduzi-los em círculos, devia existir uma razão para tal. Talvez fosse perigoso percorrer um caminho mais a direito, talvez não houvesse um caminho mais curto para além daquele que eles não podiam tomar, aquele que atravessava Breaking Ford. A terra dos Caitt era tão difícil como rezavam as histórias, repleta de vales profundos e montanhas assustadoras, florestas densas e escuras e lagos imensos, açoitados pelo vento. Era imponente, vasta e, na sua maioria, vazia da presença humana. Ali, o eco de um grito de socorro poderia soar sem resposta por todo o sempre. Ali, os veados, os javalis e os lobos viviam e morriam sem chegar a conhecer o que era sentir medo dos caçadores. Ana pensou que se a mão de qualquer divindade se estendia sobre aquele notável lugar selvagem, certamente seria a da Mãe de Tudo, deusa dos sonhos, guardiã da terra antiga. Estremeceu e aproximou-se da fogueira. A Mãe de Tudo regia o portal entre este mundo e o próximo, as suas escolhas determinavam a duração de uma vida. Na vasta e solitária extensão daquela terra do norte, a deusa poderia extingui-los tão facilmente como a um par de velas ao lado da cama. Simplesmente desapareceriam, a sua passagem por ali passaria despercebida, os seus corpos nunca seriam encontrados. A sua carne escureceria, iria desfazer-se e transformar-se em solo sob aquelas árvores e os seus ossos seriam espalhados em todas as direções, um festim para os corvos.
— O que se passa? — perguntou Faolan, olhando para ela enquanto equilibrava o pássaro no espeto sobre a fogueira.
— Nada — murmurou Ana. A distância ouviu-se um grito vindo da floresta, uma saudação e um desafio: a música sinistra dos lobos. De vez em quando, ao longo dos últimos dias, Ana tivera a sensação de estar a ser seguida, observada. Não ouvira o som de passos, nem um restolhar na vegetação rasteira, contudo sentira-o. Esperava que Faolan fizesse um dos seus comentários tranquilizadores, tal como «Estão mais longe do que parece», mas ele não disse nada.
Naquelas noites de Verão, as encostas eram banhadas por uma luz pálida e fria até quase à meia-noite e o tempo de escuridão era curto. Normalmente, no final de um dia de caminhada, Ana estava tão exausta que adormecia pouco depois de terem feito a fogueira e comido. O desconforto de uma cama feita sobre rocha, terra ou sobre o solo da floresta já não era suficiente para impedir que mergulhasse no poço escuro do sono. Sabia que estava muito mais magra. Sentia a pressão da cama dura nos joelhos e cotovelos, nas ancas e ombros que tinham perdido o enchimento protetor da carne saudável e sentia-se satisfeita por não existirem quaisquer espelhos ali. Via em Faolan algo parecido. Com as faces escavadas e a barba escura, adquirira uma expressão tensa e perigosa, o ar de um homem que teme estar a perder o controlo da situação.
Naquela noite, o sono não viria. Depois de roerem o parco jantar até os ossos ficarem limpos, sentaram-se perto da fogueira e escutaram os uivos. Havia neles um padrão: um chamamento, uma resposta. Uma intimação, um consentimento. A alcatéia aproximava-se. A lua estava baixa no céu, quase cheia, uma presença pálida mais adivinhada do que vista contra o frio cinzento-azulado da noite de Verão. Os pinheiros pareciam mais escuros, mais altos, mais ominosos do que quaisquer outros que Ana alguma vez vira. Os espaços por baixo deles eram cavidades secretas, bocas escancaradas habitadas por presenças desconhecidas, prontas a engolir qualquer intruso. Ana olhou para os pássaros. O falcão estava pousado muito acima do solo. Naquela noite estava inquieto, movendo-se de um lado para o outro sobre o ramo, um par de olhos, um monte indistinto de penas. A gralha e o cruza-bicos estavam aninhados um no outro como dois passarinhos. Vindo das profundezas da floresta, imaginou ouvir o som de algo a restolhar, a rosnar, o som de muitos pés.
— Devíamos aumentar a fogueira. — Era de louvar como Faolan mantinha a voz firme. — Precisamos de madeira suficiente para a manter em chamas até ao amanhecer. Vais ter de ficar acordada e ajudar-me a ficar de vigia.
Sem proferir uma palavra, ela levantou-se para ajudá-lo a apanhar madeira, não se aventurando a ir até demasiado perto da orla da floresta. Ao movimentarem-se de um lado para o outro, as botas faziam com que os galhos se quebrassem e a vegetação rasteira restolhasse. A floresta pareceu silenciar-se e os uivos dos lobos deixaram de se ouvir. Quando Ana e Faolan regressaram para junto da fogueira, tendo terminado a sua tarefa, as criaturas recomeçaram a sua canção de caça, a qual se encontrava mais próxima.
— E se eles... — Ana estava a bater os dentes e cerrou o maxilar para impedi-lo.
— A fogueira fará com que não se aproximem.
— Mas e se vierem, se atacarem?
— Faca numa mão e fogo na outra. Agarra numa tocha, assim... — Pegou num pau em chamas, agarrando-o pela ponta por queimar. Ana viu que ele fizera a fogueira de modo a que muitos daqueles ramos ficassem à mão. Afinal, apesar da sua calma, já o esperava. Também ele pensava que os lobos atacariam naquela noite.
— Acho que podíamos subir a uma árvore — disse ela, muito a sério.
Faolan olhou para os pinheiros altos, cujos troncos eram desprovidos de ramos até bem acima da sua cabeça. — Pelo aspecto desta floresta — disse ele —, acho que prefiro arriscar com os lobos. Ana?
— O que foi?
— Está alguma coisa a mexer-se debaixo daquelas árvores, atrás de ti. Mantém a calma. Pega numa tocha. Quando te virares, segura-a à tua frente. Lembra-te, ela é a barreira entre ti e o lobo. Não te sintas tentada a correr. Mantém a fogueira atrás de ti. Não uses a faca a menos que não haja outra alternativa. Preparada?
Preparada? Como é que poderia estar preparada para aquilo?
— Sim — respondeu. Virou-se e viu-os. Movendo-se com cautela sob as árvores, a menos de vinte passos de distância, podiam ser distinguidos quando a luz da fogueira transformava os seus olhos em pontos brilhantes, formas que se misturavam com a escuridão da floresta noturna, uma centena de tons de cinzento. Tentou contá-los e, mergulhada no terror, descobriu que eram demasiados, deslocando-se, movimentando-se, agrupando-se e separando-se como inúmeros bailarinos num desfile de longas patas graciosas e dentes afiados. O falcão soltou um grito áspero nos ramos acima das suas cabeças e os lobos recuaram um ou dois passos, para depois voltarem a avançar num uníssono silencioso e expectante. O falcão investiu, num movimento súbito e indistinto e, de garras estendidas, passou velozmente a um palmo dos olhos espantados do animal que chefiava o grupo. O lobo tentou abocanhá-lo e voaram penas. O pássaro voou para cima, para fora de alcance, e depois voltou a precipitar-se em direção ao lobo.
— Estão a movimentar-se atrás de nós. — Faolan estava ao lado dela, também ele com um ramo em chamas na mão. — Lembra-te...
— Tenho de ficar de costas para a fogueira — murmurou Ana, o medo despedaçando-lhe as entranhas. Um momento depois, uma das formas compridas e cinzentas correu na sua direção e ela abanou a tocha à sua frente, a certeza de que iria ter de lutar pela vida opondo-se à irrealidade, à qualidade de pesadelo de tudo aquilo. O pássaro investiu e desta vez as garras encontraram um alvo. Ouviu-se um uivo de dor e o lobo que a atacara caiu para trás.
Não via Faolan. Atrás de si, do outro lado da fogueira, ouviu-o tropeçar e praguejar e depois começar a gritar, como se pudesse manter os animais à distância com a sua voz. Outro lobo lançou-se sobre Ana, tentando abocanhá-la, e a jovem agitou a tocha à frente do corpo, esforçando-se por manter o equilíbrio e a posição, para que os animais não conseguissem esgueirar-se entre ela e a fogueira. O falcão desaparecera de vista. A gralha e o cruza-bico não se viam em lado nenhum.
Ana gritou algo, uma coisa qualquer, dando estocadas com o pau em chamas e ouvindo como a sua voz era ínfima e estridente, como era totalmente ineficaz. Era o pequeno chiar de um rato antes de a coruja o engolir, o guincho de um coelho quando as mandíbulas do cão de caça se firmam no seu crânio frágil. Rodopiar, estocar, gritar. Esquivar-se, investir, gritar. Primeiro havia um, depois dois, depois três a virem sucessivamente na direção dela, cada vez mais rápidos, uma tentativa de abocanhar, uma corrida, uma dentada, um salto... Deuses, se um deles se atirasse à sua garganta, tudo aquilo terminaria num instante. O cheiro fétido e selvagem dos animais envolvia-a, as suas rosnadelas enchiam-lhe os ouvidos. Podia sentir o martelar do coração em cada parte do corpo, os joelhos estavam moles como água. Desviar, virar, estocar, gritar...
Ouviu-se um rugido enorme e Faolan apareceu a seu lado, brandindo a tocha e fazendo recuar três dos lobos, quando o rasto de lume os chamuscou. Depois desapareceu e Ana ouviu os sons do seu jogo particular de ataque e defesa atrás de si. Ana arquejou e agarrou melhor no ramo. O fogo estava a consumi-lo depressa. Em breve teria de encontrar uma oportunidade para pegar noutro. Os três lobos já estavam novamente a avançar na direção dela, muito lentamente, cada movimento uma obra-prima de tensão refreada e as vozes em uníssono num rosnar terrível e feroz.
Faolan emitiu um som, um palavrão sufocado, e ela percebeu de imediato que tinha sido ferido. Não podia virar-se, nem sequer podia olhar para ele, quanto mais ajudá-lo. Deu uma estocada com a tocha na direção de um dos animais, depois de outro, e golpeou loucamente o ar com a faca. Na orla exterior do círculo, os lobos corriam, e agora eram muitos. A armadilha estava a fechar-se. Ana podia ouvir o som da sua própria respiração, entrecortada, áspera, já demasiado fraca para agüentar um grito de desafio. Já não era sequer suficiente para uma derradeira oração desesperada. Foi com um joelho ao chão, a faca apontada para a frente, e retirou uma tocha da fogueira. O líder da matilha baixou as patas traseiras, pronto para saltar.
— Drustan! Aparece e ajuda-nos! — rugiu Faolan, surgindo de novo ao alcance da vista de Ana e arremessando algo (seria uma pedra?) na direção dos que a atacavam. — Sê um homem!
Não havia tempo para pensar na estranheza daquilo. Ele fizera com que Ana tivesse a oportunidade de que necessitava para se levantar, a fim de enfrentar os lobos com uma tocha nova. Esperou, com o archote estendido, enquanto eles se empurravam, andavam de um lado para o outro e se colocavam novamente numa postura de ataque.
— Drustan! — A voz de Faolan era um grito poderoso vindo das profundezas do seu ser. — Fá-lo! Fá-lo agora! Aparece e ajuda-nos, ou morremos os dois! De que te valerão os escrúpulos nessa altura, seu idiota?
E, nesse momento, oh, nesse momento... De repente, vinda de lado nenhum, havia uma terceira figura a correr, a esquivar-se, a virar, com uma tocha em cada mão, confundindo a alcatéia até esta ficar numa quietude surpreendida, com os seus movimentos rápidos e fluidos, uma figura alta e de ombros largos, com um cabelo tão selvagem e vermelho como o fogo que trazia nas mãos. As palavras de Faolan tinham-no conjurado do nada. O coração de Ana parou-lhe no peito e a respiração ficou-lhe presa na garganta. Drustan estava ali. Voltara e o mundo renascera.
O ruivo não deteve as criaturas por muito tempo, que recomeçaram a movimentar-se no seu ritual circular, com os dentes arreganhados e as vozes um estrondo de ameaça. Contudo, com três pessoas junto à fogueira era muito mais difícil para os lobos escolherem um alvo, esquivarem-se e atacarem. Perante a investida do remoinho de fogo, das formas que mudavam sob a luz trêmula, os animais recuaram, alguns subindo de modo furtivo a colina, a fim de se agacharem junto de um aglomerado de pedras sombrias, outros deslocando-se para o primeiro abrigo dos pinheiros onde se colocaram em linha, à espera.
— Pega numa tocha nova. — A voz de Faolan estava tensa. Parecia ter sido ferido na perna e no ombro. — Em breve estarão de volta. — Olhou para Drustan, que se encontrava um pouco afastado, dobrado sobre o corpo e a tentar recuperar o fôlego. — Demoraste algum tempo — disse Faolan.
O coração de Ana transbordava de tal forma de felicidade, que não havia espaço para o medo. Não era altura de perguntas: onde é que ele tinha estado? Como é que Faolan soubera que estava por perto? Drustan estava vivo e ali. Nada mais importava. Ana foi até junto dele e o homem endireitou-se. Estendeu a mão, assolada por uma timidez curiosa, e tocou-lhe no rosto. Drustan levou-lhe os dedos aos seus lábios, durante apenas um segundo, depois soltou-a e deu um passo atrás. Sob a luz irregular da fogueira, não era possível confirmar a sua desconfiança de que ele estava a corar.
— Mais lenha — disse Faolan, de forma brusca. — Aumentem a fogueira. Se encontrarem mais alguma coisa que arda, tragam-na. Ana, fica junto do lume, não te mostres como alvo.
— Quero ajudar.
— Descansa enquanto podes, Ana — aconselhou Drustan. O seu nome nos lábios dele era o mais doce dos bálsamos para o coração. Cruzaram o olhar e Ana sorriu. A boca dele curvou-se numa resposta estranhamente hesitante, antes de dar meia volta e afastar-se para ir ajudar Faolan a procurar lenha. Os dois homens em conjunto conseguiram arrastar um pesado ramo de pinheiro até à fogueira. Arderia durante muito tempo. Dispuseram mais paus para serem usados como tochas e limparam o solo em redor, para se livrarem de quaisquer obstáculos que pudessem fazer com que um deles tropeçasse, tornando-se assim vulnerável. Os lobos atacam o mais fraco e Ana não duvidava de que seria ela.
— Agora esperamos — disse Faolan, regressando para junto dela. Tinha uma mão apertada sobre o ombro e tentava disfarçar que coxeava.
— Faolan, estás ferido! Deixa-me ver...
— É um arranhão. Não vou morrer por causa disto. Mas eles sentiram o cheiro a sangue. Isso vai fazer com que não saiam daqui, com ou sem fogo, até ao amanhecer. Fica calma e permanece alerta. Agora que o nosso amigo decidiu dar-nos a honra da sua presença, temos alguma hipótese de sobreviver até de manhã.
Os seus modos eram estranhos, quase ofensivos. — Foste tu que o chamaste — disse Ana.
— Vejo-os a movimentarem-se — murmurou Drustan. — Ana, não quero que tentes lutar. Fica atrás de mim. Eu não deixo que eles te façam mal...
— Não lhe dês ordens. — A voz de Faolan era fria como o gelo. — Ela é capaz de nos ajudar. Deixa-a fazê-lo.
Seguiu-se um curto silêncio. Ana olhou para a encosta na semi-escuridão. As formas indistintas tinham ganho terreno. Ana podia ver o reflexo vermelho das chamas nos olhos deles. O medo voltou a inundá-la. Ainda faltava muito tempo até ao amanhecer.
— Por favor, não discutam — disse ela baixinho, inclinando-se para a frente para retirar outro pau da fogueira.
O líder da alcatéia avançou, uivando, e tudo recomeçou. Ana perdeu a noção do tempo. Pareceu-lhe uma eternidade: uma cacofonia de rosnados e gemidos, de pragas e gritos dos dois homens, da sua própria tentativa patética de deter os animais com uma voz já rouca e ofegante. A tocha era pesada e ela sentia as lascas da madeira na mão. O suor queimava-lhe o rosto. Via Drustan, não muito longe, com uma tocha em cada mão, atirando-as ao ar e apanhando-as num remoinho que parecia desconcertar os animais que o rodeavam. Dos três, era ele quem parecia correr menor risco de ser atacado. Ana deslocou-se, lenta e cuidadosamente, para o lado da fogueira onde estava Faolan. Três lobos enfrentavam-no, de focinhos compridos, dentes à mostra, línguas a salivar e corpos tensos de antecipação. Faolan mantinha-se de pé de uma forma algo estranha, apoiando-se numa perna e, com as duas mãos, agitava a tocha à sua frente. Os lobos observavam-no atentamente. Pareciam estar a avaliar qual o melhor momento para um ataque. Ana deu uma estocada com a tocha, semicerrando os olhos perante uma chuva de faúlhas. O nariz doía-lhe, os olhos picavam-lhe e a visão estava a tornar-se indistinta.
— Deixem-no em paz! — gritou para os atacantes. — Vão-se embora! Vão! Vão! — e agitou a tocha de um lado para o outro. O olhar dos lobos fixou-se nela, decidido, sério e bastante impiedoso.
— É melhor fazeres o que ele disse — arquejou Faolan. — Deixa que ele te defenda... melhor hipótese...
— Estás ferido — murmurou Ana. — Mal consegues aguentar-te de pé.
— Vai... outro lado... Drustan...
— Pára com isso! — cortou ela. — Somos amigos, não somos? Companheiros. Agüenta mais um pouco. O sol mais cedo ou mais tarde terá de nascer.
Durante algum tempo, pareceu-lhes que isso fosse possível, manter a luta até que a aurora viesse em seu auxílio. Por vezes, os lobos recuavam e eles tinham a oportunidade de recuperar o fôlego, de empurrar o tronco mais para o interior da fogueira, de pegar numa tocha nova. Mas esses intervalos breves eram cada vez mais curtos e menos freqüentes. Faolan fazia um esforço cada vez maior, a sua respiração arrastada e difícil, a perna ferida menos firme, à medida que cada onda de atacantes avançava. Drustan parecia esgotado. O seu rosto estava branco como cal ao luar, os olhos sombrios. Ana sentia a exaustão a invadir cada parte do seu corpo. Respirar era um esforço, era difícil manter-se de pé, uma provação reunir forças até para retirar um ramo da fogueira. Para lá do círculo de luz lançado pela pequena fogueira, o número de lobos parecia maior de cada vez que olhava. O céu estaria a começar a ficar mais claro? Disse a si própria que havia um laivo de uma cor mais quente no cinzento da noite de Verão. Sabia que não era verdade.
Tinham-se preparado para mais uma investida quando começou a chover. Era uma chuva miudinha e leve que banhava aqueles montes uma ou duas vezes quase todos os dias, mesmo no Verão. A fogueira começou a silvar. No interior da floresta, os pássaros emitiam sons inquietos da sua miríade de poleiros. Os lobos começaram a aproximar-se novamente, acercando-se em silêncio por todos os lados, numa maré cinzenta e faminta. Morrer daquela forma seria, de fato, cruel. O jogo que os deuses tinham com eles era muito estranho. Por que razão tinham ela e Faolan sobrevivido a Breaking Ford, por que tinha Drustan escapado ao irmão, por que motivo lhes tinha sido permitido amarem-se, se estavam destinados a morrer de forma bárbara e dolorosa, sem nenhum outro objectivo a não ser servir de jantar a um animal qualquer?
— Isto não pode continuar — murmurou Drustan, retirando uma tocha nova da fogueira. — Tem de haver outra maneira.
— Se nós três conseguíssemos voar — respondeu Faolan amargamente, à medida que a chuva aumentava de intensidade —, sem dúvida que haveria. Não sendo possível, temos de continuar a lutar o melhor possível.
Drustan olhou para ele.
— Não seremos capazes de continuar, se a fogueira se extinguir — disse ele. — Vou tentar outra coisa. Dá-me a tua tocha.
— O que...
Antes que Faolan pudesse dizer mais alguma coisa, Drustan tirara-lhe a tocha da mão e afastava-se sozinho, em direção à floresta, mesmo para o meio do anel de lobos.
— Não! — gritou Ana, lançando-se atrás dele e detendo-se abruptamente quando Faolan lhe agarrou no braço.
— Não faças isso — sibilou. — Se ele quer matar-se, muito bem, mas não vai levar-te com ele.
Nesse momento, Ana ouviu o seu próprio soluçar sem palavras. Podia sentir a firmeza da mão de Faolan no seu braço, à medida que os lobos se começaram a movimentar por todos os lados. Seguiam em torrentes o homem ruivo, enquanto este se dirigia às árvores, fazendo malabarismo com as tochas com as mãos habilidosas. O que estava ele a fazer? Certamente não iria sacrificar a sua própria vida para que ela e Faolan se salvassem, tal como Deord fizera? O que poderia incitar um homem a uma tal coragem temerária?
Observaram Drustan até a figura alta do homem quase se fundir com a sombra dos pinheiros. Apesar da chuva que apagava a fogueira, as tochas ainda ardiam ao subir e descer, o padrão ora uma roda, ora uma teia, ora uma flor, deslumbrante e estranho. Os lobos encontravam-se reunidos em volta dele e Ana podia ouvi-los uivar. Esperou que o primeiro saltasse e que os outros o imitassem. Esperou que o homem que amava fosse dilacerado à frente dos seus olhos. Quando acabassem com ele, podiam levá-la. Nessa altura, já não se importaria.
Os lobos pressentiram o que estava prestes a acontecer antes de Ana ouvir ou ver o que quer que fosse. Os uivos transformaram-se num gemido débil, os lobos baixaram as barrigas até estas ficarem rentes ao chão e baixaram as orelhas. Ouviu-se um som terrível vindo da floresta, uma agitação imensa e um restolhar como se as próprias árvores estivessem prestes a arrancar as raízes do solo e a seguir em frente. Um instante depois, voando dos pinheiros escuros, apareceram pássaros: um bando enorme e denso de pássaros, mais do que Ana alguma vez vira antes, mesmo na chegada dos gansos na Primavera aos pântanos perto de Banmerren. Formavam uma nuvem vibrante, um coro de vozes estridentes, o movimento imponente e perigoso do manto de um feiticeiro. Desceram a pique, num voo rasante sobre as cabeças dos lobos agachados, desenhando um círculo fluido cujo centro era o homem de pé com o fogo nas mãos, o homem que, de alguma forma, conjurara aquele estranho exército de corujas e andorinhas, carriças e verdilhões, tordos e piscos para vir em seu auxílio.
A mão de Faolan afrouxou o aperto firme. Colocou o braço sobre os ombros de Ana, talvez para a tranqüilizar, talvez apenas para manter o equilíbrio. Enquanto ela olhava fixamente para aquela cena, estupefacta e em silêncio, os pássaros desenharam novamente um círculo e desapareceram nas profundezas da floresta. Na escuridão da encosta, podia ver Drustan a regressar, as tochas a fumegarem sob a chuva. Não havia qualquer sinal dos lobos. Ana olhou para o outro lado, pela encosta acima até aos afloramentos rochosos onde mais animais se tinham abrigado, prontos a atacar. Nada se mexia. O silêncio era absoluto.
Depois, tão de repente como o sol a espreitar por entre as nuvens, duas pequenas formas voaram da noite e pousaram nos ombros de Ana: o cruza-bico no direito e a gralha no esquerdo. Esperou pelo falcão, mas ele não veio, apenas Drustan, que caminhava em direção à fogueira moribunda com gotas de chuva no cabelo ruivo. Tinha os ombros caídos com o peso da exaustão pura.
— Foram-se embora — murmurou e, um instante depois, a sua figura alta estava dobrada no chão, a cabeça nas mãos.
— Drustan! Estás ferido?
— Não, Ana. Preciso de algum tempo, só isso.
A chuva estava a parar e o tronco de pinheiro ainda ardia. O que fazer primeiro: cuidar dos ferimentos de Faolan, tentar reacender a fogueira ou ficar de guarda para o caso dos lobos regressarem? Começar a fazer a Drustan todas as perguntas que se revolviam na sua cabeça ou simplesmente abraçá-lo e agradecer-lhe por ter salvo as suas vidas?
— O fogo — murmurou Faolan, como se lhe tivesse lido os pensamentos. Tirou o braço de cima dos ombros dela e fez tenção de mudar a posição do tronco, a fim de avivar as brasas que crepitavam devido à chuva. Ana ouviu o arquejar de dor quando ele se baixou. A luz do fogo iluminou as manchas de sangue na roupa esfarrapada.
— Foste mordido? É muito grave? Devíamos tentar limpar as feridas, ligá-las...
— Não é nada.
— Mostra-me.
— Primeiro a fogueira — disse Faolan. — Se ela se apagar, os lobos voltarão certamente.
Tentaram abrigar do grosso da chuva o âmago do lume enfraquecido. Passado pouco tempo, Drustan levantou-se e foi buscar mais madeira ao sopé da colina, perto da orla da floresta, onde poderia estar mais seca. Desta vez, Ana não tentou impedi-lo, simplesmente ficou a vê-lo ir, maravilhada.
— Eles nem sequer tentaram feri-lo — disse ela.
— Ele tem jeito para o fogo, isso concedo-lhe. — Havia um tom rígido na voz de Faolan e ela não podia atribuí-lo totalmente ao fato de estar com dores.
— Tu chamaste-o — disse Ana. — Eu ouvi-te. Chamaste-o e, de repente, ele estava aqui. Como pode isso ser? De onde é que ele veio?
— Não é a mim que deves fazer essa pergunta. — Faolan enrolara a perna das calças para cima e inspeccionava o ferimento à luz irregular. Uma ferida escura tingia a pele do interior da coxa, juntamente com uma profusão de sangue seco. Ana sentiu náuseas. Era difícil tratar as mordidas de cães, mesmo tendo água limpa e ervas medicinais à mão. Era freqüente os humores malignos penetrarem naquele tipo de feridas e a febre que os acompanhava era, por norma, fatal.
Faolan deve ter visto a expressão dela.
— Nos meus tempos, já tive pior do que isto — disse ele. — Esquece. Já parou de sangrar. Ainda consigo andar. Fica contente por estarmos vivos. Foi por pouco.
— Faolan?
— Mm?
— O que é que quiseste dizer quando disseste que não era a ti que eu devia perguntar? Devias saber que ele estava por perto, para o chamares. Andas a esconder-me alguma coisa?
— Pergunta ao teu querido Drustan. Parece-me que irás descobrir que ele não foi totalmente honesto contigo. Agora está aqui, tens o que queres e está na altura de ele te contar tudo.
Aquilo era estranho. Mas talvez não fosse assim tanto, a menos que significasse que Faolan sabia alguma coisa sobre Drustan, que resolvera ocultar-lhe. Começava a ser invadida por uma desconfiança, estranha e assombrosa, que dava sentido a muitas coisas.
Fez-se silêncio enquanto observavam Drustan a aproximar-se sob a chuva fraca, a lua transformando em prata os caracóis molhados. Trazia nos braços uma carga pesada de ramos caídos.
— Ele é forte — observou Faolan. — Isso será útil.
— Estás tão zangado. Quase consigo senti-lo. Ele acabou de nos salvar a vida.
— Pede-lhe que te conte a verdade. Pergunta-lhe onde estava e por que não apareceu até sermos confrontados com a morte. Pergunta-lhe se um homem que realmente ama uma mulher a faz passar por isso.
Drustan aproximou-se, deixando cair o fardo e acocorando-se para ajudar a fazer a fogueira.
— Temos de mantê-la a arder — disse. — Não me parece que voltem, mas tu não tens roupa quente, Ana, e vocês os dois parecem esfomeados e exaustos. Toma... — Despiu a túnica e a camisa de pura lã que trazia por baixo, passou esta última a uma Ana silenciosa e voltou a enfiar a túnica. — Por favor, veste isto. O teu vestido está em farrapos e deves estar gelada. Receio que ainda haja um longo caminho a percorrer.
— Sabes o caminho? — perguntou-lhe Ana, sentindo mais uma vez aquela curiosa tensão entre eles, que era em parte a agitação do desejo físico, cuja intensidade não era totalmente diminuída pela fome, frio e choque, e em parte uma espécie de reticência, uma timidez que a impedia de proferir as palavras que ansiava dizer. De alguma forma, parecia-lhe perigoso revelar o que lhe ia no coração, o que despertava a cada instante no seu corpo. Era demasiado cedo.
— Posso guiar-vos até à costa leste — indicou Drustan. — Posso levar-vos até ao ponto em que dois rios se encontram, a partir de onde será fácil seguir para sul, até à corte de Bridei. Em breve encontrarei abrigo, boa comida e roupas quentes. Por estas bandas, não há nada. Lamento.
Ana vestiu a camisa, ainda quente do corpo dele e suficientemente comprida para lhe cobrir o corpo até à bainha puída e cortada do vestido esfarrapado. Olhou para Drustan, cujos olhos brilhantes a fitavam, solenes e um pouco circunspectos.
— Obrigada — agradeceu. — Isto é maravilhoso. E obrigada por nos salvares. Não sei como fizeste aquilo, mas foi... foi como magia. Belo e misterioso.
— Tens algo para contar à senhora. — Faolan olhou para o outro homem. — Uma explicação.
Drustan fitava agora o lume.
— Isso fica para amanha — escusou-se, calmamente. — É para outro lugar que não este, para um local seguro, sob a luz do Sol, depois de Ana ter descansado e comido. Irei contar-lhe. Mas não esta noite. Ainda não. — Estendeu o braço e apertou com firmeza a mão de Ana, puxando-a para que se sentasse a seu lado, junto à fogueira. A chuva amainara e as chamas lançavam um calor agradável sobre as suas mãos e rosto gelados. Faolan sentou-se desajeitadamente à frente deles, estendendo a perna ferida. Drustan abraçou os ombros de Ana. A jovem sentiu o toque dele percorrer-lhe o corpo, ela que durante tanto tempo se sentira demasiado cansada, triste e esfomeada para desejar algo mais que não fosse o parco jantar do dia seguinte, o sono desconfortável da noite seguinte. O sangue afluiu-lhe ao rosto. Encostou a cabeça ao ombro dele e fechou os olhos.
— Drustan — disse Faolan —, tenho de te dizer que Deord morreu. Alpin matou-o. Ele sucumbiu com bravura.
Drustan aquiesceu, como se já soubesse.
— Uma perda terrível — respondeu. — Ele merecia uma vida, merecia a liberdade que nos granjeou.
Passado algum tempo, Faolan disse:
— Falaste em guiar-nos até à costa. Isso quer dizer que não tencionas acompanhar-nos até ao Monte Branco?
— Depende. — A voz de Drustan tornara-se muito suave.
— De quê?
— Daquilo que Ana quer. Depende de amanhã.
Ana respirou fundo. Os dois homens pareciam embrenhados num qualquer jogo enigmático, o qual ela não compreendia. Não havia mais nada a fazer, a não ser falar abertamente.
— Quero que venhas connosco, Drustan — disse ela. — Nunca mais quero que voltes a partir.
Uma onda de tensão percorreu-o, assustadora pela sua intensidade. Depois respondeu:
— Se fores capaz de dizer isso amanhã, quando estivermos sentados junto à nossa fogueira a observar os pássaros a regressar às suas árvores ao anoitecer, então dir-te-ei que sim, que jamais te deixarei, por todos os dias e noites da minha vida. Se não o disseres, guiar-vos-ei ao caminho seguro rumo ao sul e depois regressarei a casa, ao Vale dos Sonhos, e cuidarei da minha terra sozinho. Não... — atalhou, ao ouvir o protesto da jovem —, agora não digas mais nada. Estamos todos exaustos. Vamos esperar pelo Sol e depois vamos para um lugar abrigado. Um local onde os lobos não conseguem chegar até nós.
Ao amanhecer, apagaram a fogueira e seguiram caminho. O cruza-bico e a gralha acompanharam-nos, partindo subitamente de vez em quando, como era seu hábito. Ana não perguntou pelo falcão. Ficara muito calada. Faolan interrogou-se sobre o que estaria a pensar e quanto teria adivinhado.
Não caminharam muito. Depois daquela noite em claro, uma noite de medo e de luta, todos se sentiam esgotados. A perna ferida de Faolan estava cada vez mais entorpecida e era-lhe difícil andar. Os passos trôpegos de Ana sugeriam que estava a dormir em pé.
Seguiram um riacho que gorgolejava através da floresta e, numa clareira onde o sol se infiltrava por entre o entrançado de amieiros e salgueiros, pararam para descansar. O joelho de Faolan não queria dobrar-se e, quando se deitou no chão, viu que os outros o fitavam.
— Não é nada — disse, de forma brusca.
— Mesmo assim — contrapôs Drustan —, uma cataplasma de ervas medicinais pode aliviar muito a tua condição. Ainda temos um longo caminho à nossa frente. É provável que encontremos uma série de plantas úteis nas margens deste ribeiro, incluindo algo para protelar a febre.
— Não há pressa. — Faolan estremeceu ao tentar retirar a trouxa. O ombro provocava-lhe uma dor intensa.
— Precisas disso agora, Faolan — disse Ana. — Não sejas tolo, a tentares ser corajoso. Deixa que Drustan te ajude.
— Sabes o que é necessário? — Faolan olhou cepticamente para Drustan.
— Sei o suficiente para não te fazer mal, sim — respondeu Drustan, sorrindo. — Agora descansa, não demorarei muito. Quando regressar, fico de vigia durante algum tempo. De todos nós, sou eu que menos necessidade tenho de dormir.
Afastou-se, os passos silenciosos no solo da floresta. Ana e Faolan instalaram-se o melhor que conseguiram. Devia ser fácil o suficiente permanecer acordado até o homem-pássaro voltar, pensou Faolan. Aquela dor era o bastante para manter enervado o mais sereno dos homens. Ouviu a respiração suave de Ana e olhou para a forma imóvel: a cabeça sobre as mãos, olhos fechados, o pequeno cobertor aberto em cima do corpo. Olhou para cima, para o dossel de folhas. Viu a gralha e o cruza-bico empoleirados juntos, totalmente imóveis. Um instante depois, estava a dormir.
Faolan acordou com um par de mãos a apertar-lhe o pescoço. Um homem estava escarranchado em cima dele, de joelhos no chão, murmurando numa voz rouca:
— Agora morre, celta! — Através do miasma do sono, sentiu um impulso súbito e feroz de sobreviver. Contorceu-se, com o coração aos pulos e o joelho em agonia. Saltou e deu pontapés, mesmo com o rosto furioso de Alpin ora nítido ora desfocado acima dele. Estava perto de perder a consciência. Fora lento a acordar. Para lá daqueles olhos loucos, daquela boca contorcida, viu movimento. Ana a acordar em silêncio. Ana pondo-se de joelhos, os olhos muito abertos pelo choque. Ana a agarrar num pedaço de madeira e a erguê-lo para desferir o golpe...
De repente, Faolan deixou-se cair. Contra todos os instintos, rolou os olhos para trás e depois fechou as pálpebras. Um momento depois, o atacante largou-o, pondo-se de pé num salto e esquivando-se à arma improvisada de Ana.
— Oh, quer dizer que agora tu vais lutar comigo? — troçou Alpin, virando-se para ela. — Bem, o teu celta está arrumado e o meu irmão desapareceu, por isso somos só nós dois, minha querida. Por todos os deuses, esperei demasiado tempo por isto... — Quando ela voltou a balançar o ramo, Alpin agarrou-o pela outra ponta e arrancou-lho.
Faolan, atrás dele, estendeu o braço para alcançar a faca. O joelho não lhe suportava o peso, não conseguia pôr-se de pé e não seria capaz de lutar. No momento em que Alpin se virasse e o visse, estaria acabado. A faca estava junto da trouxa, perto, tão perto... não seria capaz de a alcançar sem deslizar pelo chão, fazendo barulho... Se Alpin o ouvisse, se Alpin o matasse, Ana estaria perdida. Corre, pensou com todas as suas forças. Não tentes lutar, corre. Encontra Drustan. Foge.
Ela correu. Acordara depois de ter dormido muito pouco tempo para se deparar com um terror súbito e tropeçou. Por um instante, Alpin deixou-se ficar de pé, as mãos nas ancas, a rir-se dela, e depois disparou em sua perseguição. Faolan rolou para o lado e estendeu o braço. Só mais um pouco...
— Tu! — Era a voz de Drustan, um tom perplexo, e Faolan, os dedos fechando-se por fim em volta da arma, viu Drustan aparecer de entre as árvores com um molho de folhagem nas mãos e um pássaro em cada ombro. Fitava o irmão como que atingido por uma revelação obscura, como que olhando para um abismo.
No meio da clareira, Alpin alcançou Ana, agarrando-a por trás, um braço em redor da cintura e outro do pescoço.
— Mexe-te um milímetro, rapaz pássaro — ameaçou —, e parto-a ao meio.
— Tu... — Drustan imobilizou-se, a expressão semelhante à de um vidente em transe. — É o mesmo que em Drift Falls — ofegou —, exactamente igual... gritos... Erisa a correr... tu atrás dela... eu vi-te...
— De repente, os seus olhos focaram-se, a expressão tornou-se feroz e o tom de voz transformou-se num grito de guerra. — Por tudo o que é sagrado, era mentira! Foste tu que a mataste. Eu vi-te. Liberta Ana! Liberta-a já ou eu estrangulo-te com as minhas próprias mãos, sendo tu meu irmão ou não!
— Não estrangulas nada — disse Alpin, recuando com Ana ainda presa nos seus braços. — Não vais matar-me porque, se eu morrer, levo-a comigo. Quanto a Erisa, nunca provarás isso. Quem acreditaria na palavra de uma aberração demente contra a minha? Uma alucinação, nada mais.
Drustan deu um passo lento e intencional na direção dele, e depois outro. Os seus olhos estavam agora mortalmente calmos. Fá-lo recuar na minha direção, pensou Faolan, dá-me um alvo claro.
— Achas que não o faria? — perguntou Alpin. — Não a quero assim tanto como isso, irmãozinho. Não depois de vocês os dois terem lá estado antes de mim. Se te aproximares mais, vou apertá-la assim...
Drustan lançou-se para a frente, cortando o ar com as mãos estendidas como garras.
Um irmão não deve matar o outro. Essa mácula pesa demasiado no espírito de um homem. Faolan atirou a faca. Antes que Drustan conseguisse tocar-lhe, Alpin caiu no chão, a arma enterrada nas costas e Ana presa debaixo dele. Por um instante aterrador, Faolan pensou que a faca também perfurara o corpo dela. Depois, Drustan fez rolar o corpo flácido do irmão e, trêmula, Ana levantou-se. Havia uma mancha vermelha no seu vestido.
— Estou bem — disse, antes que qualquer um deles pudesse falar.
— Deuses... Como é que ele... Ele apareceu do nada... — Depois, tapando a mão com a boca, cambaleou até à orla da clareira e vomitou o que tinha no estômago para a vegetação rasteira.
— Um golpe certeiro — disse Faolan, conseguindo pôr-se de pé e avançar, coxeando e sentindo o joelho em fogo. — Melhor do que ele merecia. Uma morte mais piedosa do que a concedida a Deord. Devo-vos aos dois um pedido de desculpas. Adormeci quando devia estar de vigia. Não tenho qualquer perdão.
Os olhos de Alpin estavam abertos. Mesmo na morte, o olhar penetrante e feroz era perturbador. Drustan ajoelhou-se e fechou-os suavemente.
— Qualquer um de nós tê-lo-ia morto — disse. — Por Deord, por Ana, por Erisa...
— A que te referias? — Ana voltara, limpando a boca à manga. Tinha um aspecto deplorável, branca como a cal e olhos arregalados. — Sobre Drift Falls e Erisa? Lembraste-te finalmente? Disseste que ele foi o responsável?
— Ele mentiu. — Drustan continuava ajoelhado ao lado do irmão, como que incerto sobre o que deveria acontecer a seguir. — Durante todos estes anos, ele mentiu para salvar a própria pele. Quando eles me chamaram — disse, olhando para os dois pássaros —, quando voltei e o vi a correr atrás de ti... foi igual, exactamente igual... Eles discutiram, ela fugiu e ele foi atrás... e depois ela caiu. Não pretendia matá-la. Nem mesmo ele desejaria matar o filho por nascer. Foi um acidente. Mas foi ele. Ele e não eu... deuses, lembrar-me agora, passados tantos anos... ele tem razão. Quem acreditará em mim? Não há forma de provar a minha inocência.
— Há, sim — disse Ana. — Encontra a anciã, Bela. Ouve a história dela. Com Alpin morto, talvez ela esteja preparada para contá-la. Faz isso e as pessoas vão pelo menos escutar o que tens a dizer.
— Uma história extraordinária — disse Faolan. — Lamento que Deord não possa ouvi-la. Ele acreditava em ti, Drustan. Disse que podias ser incrível. Esta morte — tocou no corpo com a biqueira da bota —, ainda vai complicar mais as coisas para ti.
— O que fazemos agora? — perguntou Ana, trêmula. — Continuamos? Voltamos para trás?
Os dois homens olharam-na.
— Enterramo-lo — respondeu Faolan. — Depois continuamos. Tu e eu, seja como for. Nem morto eu regressaria àquele lugar. Quanto a Drustan, a opção é dele.
— Vou acompanhá-los, pelo menos até à costa — disse Drustan.
— Por agora, nada mudou. No futuro, tudo mudará. É demasiado para se aceitar. — Tomara a mão do irmão sem vida entre as suas. Faolan viu na sua atitude amor e repulsa, alívio e angústia.
— Em alturas como esta — declarou Faolan —, o trabalho prático é útil. Ainda preciso das ervas. Parece que o meu joelho se vai partir em dois. Ana provavelmente sabe como se faz uma cataplasma. Afinal de contas, foi educada por mulheres sábias. Tu e eu temos de abrir uma sepultura e Ana tem de descansar antes de continuarmos. Na verdade, todos nós devíamos fazê-lo. Talvez queiras dizer orações, proferir algumas palavras formais de despedida. Não sei. Não sei se és um homem de fé.
— Eu tê-lo-ia morto — asseverou Drustan, levantando-se. — Se não tivesses agido naquele momento, o sangue do meu irmão estaria nas minhas mãos. — Os olhos estranhos e brilhantes estavam fitos nos de Faolan.
— Exactamente. Dá-te por satisfeito que um dos meus ofícios seja o de assassino — retorquiu Faolan.
— E eu tê-lo-ia morto. — A voz de Ana deixava transparecer, ao mesmo tempo, terror e um certo orgulho. — Se eu fosse um pouco mais forte... Todos nós somos responsáveis por isto. Acho que devemos enterrá-lo, dizer uma oração e pôr-nos a caminho. Mais tarde, em Briar Wood, podemos contar o modo como descobrimos o corpo dele na floresta. As pessoas estão sempre a sofrer contrariedades por estas bandas.
Faolan estava perplexo com a frieza dela, com a sua presença de espírito.
— Não há dúvida de que esta viagem te mudou — comentou.
— Estás a sugerir que Drustan minta sobre o que aconteceu?
— Não exactamente — respondeu Ana, colocando a mão sobre o ombro de Drustan. — Existem alturas em que não é necessário contar toda a verdade. Momentos em que é melhor seguir em frente e deixar para trás certas coisas. Se Alpin tivesse seguido esse conselho ainda estaria vivo. — Estremeceu. — Vocês não acham que ele trazia outros consigo, pois não? Um grupo de caçadores, tão longe de Briar Wood?
— Isso seria provável — disse Faolan. — Mas parece que não, ou certamente já estariam aqui. Ainda assim, o teu conselho é sensato. É melhor despacharmos isto e continuarmos.
Depois disso, pouco foi dito. Drustan abriu uma sepultura rasa e Ana e Faolan recolheram pedras. Se foram ditas orações pelo homem falecido, tal foi feito em silêncio. Depois Faolan foi sujeito à aplicação de cataplasmas de ervas no joelho e no ombro. Mais tarde, Drustan afirmou que faria também uma infusão para protelar a febre e para que Faolan pudesse descansar. Mas não naquele momento. Já não desejavam ficar mais tempo naquele local.
Nesse dia, não caminharam muito mais. Era evidente para Faolan que estava a atrasá-los, por isso cerrou os dentes e fez o seu melhor para manter um passo regular, com um sucesso limitado. Quando alcançaram a orla da floresta, onde um vale aberto se estendia perante eles e as rochas os abrigavam do vento, pararam. Drustan fez uma fogueira e, fiel à sua palavra, fez uma tisana de ervas, a qual tinha um sabor amargo e um aspecto lamacento. Não saiu de junto de Faolan até este ter bebido tudo.
A medida que a sonolência se apoderava dele, misturando-se com as tonturas e a sensação de calor que tinha na cabeça, Faolan interrogou-se sobre qual seria a escolha de Drustan: deixar que Ana ficasse com fome ou revelar a sua outra forma para poder caçar e encontrar comida para ela. Antes que tivesse oportunidade de descobrir, o braço direito de Bridei mergulhou-se num sono profundo.
No dia seguinte, o sol brilhava, as nuvens tinham desaparecido e os viajantes puseram-se a caminho em direção ao vale. Drustan parecia incansável. Os tratamentos de ervas tinham suavizado o desconforto de Faolan e este conseguia caminhar mais livremente. Ainda assim, naquele dia quase que teria agradecido a dor, qualquer coisa que o distraísse para não ter de ver Drustan e Ana juntos. Observou-os ao longo de todo o dia e, ao anoitecer, chegaram a uma extensão abrigada na margem de um lago, onde a luz do sol banhava os troncos pálidos e a folhagem cintilante dos vidoeiros e espalhava o seu calor pela água prateada, como se de uma bênção se tratasse. A cada passo, Faolan tinha a sensação que a distância entre ele e os outros dois aumentava, uma distância que não se media em passos, mas em algo muito menos tangível. Drustan e Ana caminhavam num mundo diferente do dele, um mundo em que tudo era bom, alegre e fácil de compreender. Não conversavam muito, não andavam de mãos dadas, não se abraçavam.
Eram as menors das coisas que o incomodavam: o roçar de dedos que não era acidental, o breve toque dos corpos quando passavam um pelo outro, a forma como as mãos de Drustan se demoravam na cintura de Ana, quando a ajudava numa descida íngreme. A cor das faces e o brilho no olhar de ambos. Os olhares perdidos.
Por uma ou duas vezes, deixaram-no para trás, pois a perna continuava a abrandar-lhe o ritmo. O cruza-bico e a gralha permaneciam perto de Faolan. Interrogou-se, quando Drustan não estava de olho nele, se não seriam aqueles dois a desempenhar essa tarefa. Não era mau de todo, concedeu Faolan. Apesar dos ciúmes terríveis que Drustan lhe provocava, aceitar a sua ajuda era muito melhor do que ser deixado para trás como repasto dos lobos.
Ao fim da tarde, Drustan e Ana avançaram, ao longo da margem, a fim de procurarem um local para passar a noite, pois Drustan sugerira que parassem cedo e descansassem. Era bastante claro para ele que Faolan não conseguiria agüentar muito mais. Era uma sensação amarga tornar-se o elo mais fraco. Faolan esperava que os seus ferimentos sarassem depressa. Continuava a ser o emissário de Bridei. Já era mau o suficiente regressar ao Monte Branco com a notícia de que a missão fora um desastre. Preferia não ter de ser transportado, a arder em febre e a dever o fato de estar vivo àquele estranho homem-pássaro, uma criatura que naquele preciso momento estava a roubar-lhe Ana, passo inevitável a passo inevitável. Não, aquilo era uma palermice. Ana nunca teria sido dele. Era um celta. Era um assassino, um homem cuja própria existência assentava na sua obscuridade pessoal. Destruíra a sua família, prejudicara todos os que amava. E pertencia à família do rei de Dalriada. Quer gostasse quer não, era um Uí Néill. Aquela era uma lista impressionante de razões para que não pensasse nela da forma como pensava. Infelizmente, o coração desconhecia a lógica. O coração segredava-lhe que, quando tivera a oportunidade, deveria ter atirado aquela pedra.
Faolan contornou um aglomerado de vidoeiros e viu os dois junto à água, muito juntos mas sem se tocarem. Ambos tinham descalçado as botas e a água dava-lhes pelos tornozelos, molhando os pés cansados. Estavam a conversar, mas calaram-se quando ele se aproximou. Tentou coxear o menos possível.
— Olha, Faolan — disse Ana, a sorrir —, ao longo do lago, naquela direção. Vê-se fumo. Drustan acha que existe ali uma pequena povoação. Poderemos limpar as tuas feridas e dormir sob um tecto a sério. Já passou tanto tempo desde a última vez, que mal consigo lembrar-me da sensação. Estás bem? Dói-te muito?
Faolan abanou a cabeça, observando, maravilhado, a mudança que ela tinha sofrido. Embora magra e exausta, o rosto encontrava-se inundado de alegria e os olhos tinham recuperado a antiga serenidade. Até a postura estava diferente, as costas direitas, os ombros erguidos de forma orgulhosa. Fora Drustan que operara aquela magia. Drustan, que agora se encontrava ao lado dela, as faces coradas e o porte deixando perceber algo da mesma resplandecência calma.
— Vamos descansar um pouco — sugeriu Drustan. — Tens de descansar essa perna. Acho que vi algumas avelãs mais acima. Podemos elaborar uma refeição com alimentos variados.
— Desde que sejam boas para os homens e não só para os pássaros.
— São boas para os homens, Faolan. Alguma vez tentaria envenenar-te? Foste amigo de Ana, seu guardião, a sua tábua de salvação. Se não fosse por ti, eu e ela não estaríamos juntos. Honro-te como a um irmão.
Faolan estava sem palavras. O peso da morte de Dubhán e de Alpin e uma vida inteira de «poderia ter sido» pairava entre eles, reduzindo-o ao silêncio. Olhou para Ana, que se sentara na erva da margem do lago, com o cruza-bico de penas escarlates pousado na mão. Afagava-lhe a cabeça com um dedo e assobiava baixinho. O seu cabelo curto, apesar da falta de cuidados, possuía um brilho dourado escuro sob o sol da tarde. Estava de pernas cruzadas, os pés descalços e pálidos visíveis sob a camisa comprida que Drustan lhe dera. As faces ostentavam uma cor rosada e as pestanas escondiam-lhe os olhos ao virar a sua atenção para o pequeno pássaro.
Algo se alterou em Faolan. Reconheceu que a felicidade dela era mais importante do que tudo o resto. Ela amava Drustan. Pelo menos, amava o homem que pensava que ele era. A esperança de um futuro resplandecente devolvera-lhe o seu eu antigo: a mulher corajosa, serena e adorável que capturara o seu coração muito antes de chegarem a Briar Wood e darem consigo enredados naquela estranha história de irmão contra irmão. Estivera a ponto de desafiar Drustan outra vez, pois o dia estava quase a chegar ao fim, o sol brilhava e estavam perto de encontrarem abrigo. As palavras tinham estado nos seus lábios, Diz-lhe a verdade agora. Mas não podia proferi-las. Não podia destruir a alegria recém-encontrada. Como poderia suportar ver aquele pequeno sorriso desvanecer-se, as faces rosadas ganharem palidez, os ombros orgulhosos a curvarem-se em desespero?
— Vou à procura de avelãs — informou Drustan, distraidamente. A gralha voou para o seu ombro, enquanto se afastava sob as árvores.
À medida que o observava, o coração de Ana revelava-se-lhe nos olhos. Durante algum tempo, não se ouviu qualquer som, para além dos trinados dos pássaros acima das suas cabeças e o desafio ribombante e longínquo de um veado na encosta do outro lado do lago. Era uma lembrança inquietante de como a estação ia avançada. Será que tinham mesmo assistido ao final do Verão naquelas montanhas intermináveis?
— Faolan — disse Ana, calmamente —, ele contou-me. Ele fitou-a.
— Contou-me a verdade. Sobre as... as mudanças... e como esteve sempre connosco, desde a queda de água, e como pode transformar-se. Na verdade, eu já sabia. Os olhos do falcão eram os dele. Há já algum tempo que me tenho vindo a aperceber da verdade.
— Olhou para o pequeno pássaro pousado na mão, franzindo o sobrolho. — Não consigo acreditar que Alpin tenha feito o que fez. Foi tão cruel e maldoso. Prender o irmão pelo seu próprio crime, alimentar a mentira, deixar que Drustan acreditasse que era culpado... E o pior de tudo, chamar loucura a uma tal capacidade divina... não consigo compreender. Em casa, ela certamente seria encarada como algo raro e assombroso, como as transformações que os druidas passam anos e anos a aprender a fazer, mas tão mais poderosa e tão natural... existiram outros na família dele com talentos semelhantes, há muito tempo atrás. É o que ele diz... Sabias que Drustan só tinha sete anos quando fez isto pela primeira vez?
— Aceitas isto tão facilmente? Não estás... — Calou-se. Era bastante claro que não se sentia chocada nem receosa. Era evidente que não se importava se todos os seus filhos fossem uma estranha mistura de pássaros e homens, tão capazes de voar em busca de ratos gordos para comer, como de prestar atenção às amas e tutores. Nunca deixaria de o surpreender.
— Por que estás a sorrir, Faolan?
— Isto é digno de uma canção, isso posso garantir-te.
— Não me ponhas em quaisquer canções até eu ter um pente, água quente e algo mais para vestir do que farrapos — respondeu Ana, a sorrir.
— És perfeita, tal como estás — disse-lhe ele, num tom de voz suave. — Mas não vou compor nenhuma canção. Os meus dias de bardo acabaram. — Essa canção permaneceria no íntimo do seu ser, nos recantos escondidos do coração, simultaneamente uma alegria extrema e uma dor profunda. Ninguém, a não ser ele, alguma vez ouviria as suas doces palavras de amor. Ninguém, a não ser ele, choraria ao ouvir a história de necessidade, silêncio e perda. E era assim que devia ser. — Desejo-te toda a felicidade do mundo, Ana — disse-lhe.
Ela não respondeu e, pouco depois, Drustan regressou com uma folha larga nas mãos, sobre a qual se encontrava um pequeno monte de avelãs. Ocorreu a Faolan que o outro homem o deixara sozinho com Ana para que pudessem conversar. Engolindo o ressentimento, pensou que teria de acrescentar tacto a todas as outras virtudes de Drustan.
— Por que razão estavas sempre a desaparecer? — Esta pergunta tinha de ser feita, agora que o segredo fora revelado. — Por que nos abandonaste sem avisar? E por que motivo demoraste tanto tempo a encontrar-nos, depois de fugirmos de Briar Wood? Deord estava sozinho, a lutar contra um grupo inteiro de caçadores.
— Ele teria sobrevivido caso eu estivesse a seu lado? — quis saber Drustan, num tom de voz sombrio.
Faolan foi obrigado a responder honestamente. — Na minha opinião, não. Teriam ambos sido mortos. Ele não quereria que qualquer de nós lá estivesse. Mas pensei que o quisesses ajudar.
— Não pude. Nem sempre é fácil transformar-me. Estava aflito e confuso, com vontade de partir, com medo de partir, desesperado para estar com Ana, aterrorizado com o que poderia fazer se ficasse livre. Na outra forma, a minha mente é diferente. Não vejo, nem ouço ou penso da mesma maneira que um homem. Às vezes, nem sequer me lembro. Foi assim com a morte de Erisa. Eu estava sob a minha outra forma. Vi-os, mas, assim que voltei a ser eu próprio, a memória desapareceu. Até ontem. Por isso, depois de vocês partirem, fiz uma opção: Ana em vez de Deord. Era isso que ele teria desejado. Acabei por lhe causar a morte.
— Todos nós fomos responsáveis por isso — declarou Faolan, num tom sinistro. — E das outras vezes?
Drustan pigarreou. Parecia nervoso. Faolan descobriu que se sentia estranhamente solidário com ele. — Não posso manter uma das formas por demasiado tempo sem... sem ficar perturbado. Aflito. A necessidade de me transformar cresce dentro de mim e tem de ser libertada.
— Tornas-te violento?
— Faolan... — protestou Ana.
— Não faz mal, vocês têm de saber — asseverou Drustan. — Têm de saber tudo. Violento... Só se estiver preso e impedido de fazer o que o meu corpo e a minha mente me incitam a fazer. A prisão de Alpin era uma forma particular de tortura para mim. Ele sabia como um tal encarceramento me atormentava. Deord salvou-me. Compreendeu a necessidade de me deixar voar em liberdade. Mas havia períodos de tempo muito longos em que não podíamos sair. Deord partilhou as suas capacidades comigo. Manteve-me ocupado e em movimento. Por vezes, não era o suficiente.
— Alguma vez o atacaste? Ou a outros?
— Por uma ou duas vezes estive perto de o fazer, com o meu irmão. Daí a corrente. Se nessas alturas estiver preso, magoo-me a mim próprio e a mais ninguém.
— E antes? — O tom de voz de Ana era suave. — Antes de Alpin te prender?
— No Vale dos Sonhos eu ia e vinha à minha vontade. É o meu lugar, as pessoas conhecem-me. Alternava livre e facilmente entre uma forma e outra. Aprendi a reter a compreensão do discurso humano mesmo enquanto estava no outro mundo. Perdi algumas capacidades em cativeiro, mas estou a recuperá-las. Tive medo de te contar a verdade, Ana. — Lançou-lhe um sorriso tímido. — Julguei-te mal. Por isso, quando chegava a altura de me transformar outra vez em homem, escondia-me. Não havia forma de te tranqüilizar, de te dizer que voltaria.
Ana fez deslizar a mão para a de Drustan.
— Acho que vamos precisar dos dias todos até chegarmos ao Monte Branco — disse ela —, para escolher as palavras certas, a fim de apresentar esta história na corte.

 

 

 

 

 

 


CAPÍTULO DEZESSEIS


Dizem os estrategistas que, caso não se perca mais do que um em cada três guerreiros na conquista de um objetivo, a ação pode ser considerada um sucesso. Entre os dois, Bridei e Fokel tinham perdido menos do que essa proporção na batalha decisiva por Galany's Reach. A antiga bandeira de Galany foi içada sobre a colônia, desta vez para voar eternamente. Foi conduzido um ritual de agradecimento ao Guardião das Chamas no monte cônico onde em tempos se erguera uma imponente pedra talhada, que marcava aquela terra como sendo dos Priteni. Naquela noite, Bridei realizou as orações em silêncio e o homem que guardava a sua solidão era Elpin, que já pertencera à casa de Broichan. Bridei permitira que Uven descansasse um pouco, um período que sabia que o guerreiro de meia-idade aproveitaria para passar com os outros homens, a rever as visões e os sons do conflito desse dia, a falar dos amigos perdidos, a ouvir a estranha mistura de dor, raiva e bravata, de determinação, coragem e incerteza que eram a marca constante de tais reuniões.
Quanto a Breth, nunca mais voltaria a guardar o seu rei e amigo. Um em três. Podia ser a vez de qualquer homem tombar sob uma flecha certeira, uma espada cortante, uma última lança. Bridei perdera o seu arqueiro de olhos de lince algures no meio do turbilhão sangrento à frente da paliçada de Galany's Reach. Veio a encontrá-lo caído, de olhos abertos, por entre os destroços humanos espalhados pelo campo antes que a Mãe de Tudo o tivesse varrido, levando consigo o espírito dos filhos tombados de Fortriu. Bridei conhecera Breth durante um concurso de tiro ao alvo, ainda Bridei era uma criança. Esse menino escolhera perder, permitindo assim ao guerreiro resgatar o orgulho perante uma audiência de combatentes. Um em três. Uma vitória. Não o parecia, nem mesmo com Galany a salvo nas mãos de Fokel.
Quando terminou as orações, Bridei mandou Elpin descansar e ficou um pouco com Hargest, a quem chamara pouco tempo antes. Sabia que em breve teria de voltar ao acampamento, encontrar palavras de ânimo e esperança para o exército, tomar decisões rápidas: quem ficaria a defender o território recém-conquistado e quem marcharia para o objetivo seguinte. Teria de determinar a melhor forma de lidar com os prisioneiros celtas, as mulheres e as crianças, os idosos. Iria fazê-lo. Mas ainda não. Ainda não.
— Sinto muito, meu senhor — disse Hargest com um tom pesaroso. Estavam sentados junto às sorveiras, no cimo da colina que em tempos albergara a Pedra Mágica. De dia, era possível ter uma vista abrangente do vale, da colônia, do campo ainda coberto de mortos celtas, das águas pálidas do Lago do Rei, a curta distância, que se espraiava para ocidente, até ao mar. — Por Breth, quero eu dizer.
— Mm. — Bridei pensou no quão jovem era Hargest, muito mais novo do que ele próprio, quando provara a guerra pela primeira vez, naquele mesmo território que os rodeava. — Dizem que te portaste com bravura, hoje. Que fizeste mais do que a tua parte.
Hargest não respondeu.
— É um negócio sujo — disse Bridei.
— São celtas. Merecem morrer. O meu coração bate com mais força a cada um que chacino.
Bridei olhou-o com curiosidade.
— Temos de fazer o que estiver ao nosso alcance para sairmos vencedores, é verdade — replicou. — Quando fores mais velho, duvido que vejas as coisas apenas em termos de branco e preto. — Não havia dúvida de que seria mais fácil se todos pensassem como aquele rapaz. Mitigaria a dor. Ele próprio nunca tivera essa certeza. As questões sobre o bem e o mal, sobre a justiça e a equidade, tinham-no atormentado desde que combatera o seu primeiro inimigo. Não duvidava da probidade da missão divina que era expulsar os Celtas das costas Priteni. O que lhe pesava era cada homem caído, fosse ele de Fortriu ou de Dalriada, a consciência dessa perda. Breth fora um bom homem, leal, honesto, um verdadeiro amigo. Mas quem poderia dizer que a morte daquele guerreiro, que por acaso lhe era tão querido, era mais ou menos importante do que o jovem celta com uma lança na barriga, ou o arqueiro de barba morena da companhia de Fokel? Só porque um homem não amava os deuses vetustos dos Priteni, por o pai de alguém ter nascido noutro lugar que não Fortriu, seria essa morte um sacrifício menor? Bridei pensou em Faolan e, no seu íntimo, percebeu que a um homem bom não interessava a origem, a fé, a condição.
— Senhor meu rei? — Hargest olhava-o com atenção, uma pequena ruga na testa larga. — Em que pensas? Pareces, absorto.
— Pensamentos perigosos, Hargest. Tenho de afastá-los até ao fim da campanha. E quanto a ti? Não ficaste perturbado com o que viste hoje? É um grande passo, de cavalariço de Umbrig a guerreiro na linha da frente.
— Perturbado? Não, meu senhor. Guerra é guerra. As pessoas morrem.
Bridei aquiesceu.
— Tenho algo a dizer-te e, embora pareça muito cedo, vou dizê-lo agora, antes que estejamos cercados por homens cheios de dúvidas. És um rapaz corajoso e competente. Perdi Breth. Para mim é lamentável mas, tal como afirmaste de forma tão direta, as pessoas morrem. Estamos a caminho de mais ação e os homens experientes vão querer estar no meio dela. Não vão gostar de uma tarefa que lhes exige que coloquem a segurança pessoal do rei à frente da sua oportunidade de ajustar contas com o inimigo.
Hargest esperou em silêncio.
— Não te posso oferecer o lugar de Breth — continuou Bridei com frontalidade, pois a antecipação nos olhos do rapaz era incômoda. — Podes ter competência, mas falta-te experiência. — Não acrescentou que ainda era cedo, demasiado cedo para confiar num jovem que se ligara ao rei de livre vontade, e que era conhecido entre os guerreiros pelo feitio volátil. — Tenciono dividir as responsabilidades de Breth entre os homens de Pitnochie. Vamos precisar de mais alguém, caso contrário terão pouco tempo para dormir. Não há serviço de guarda solitário. Como sabes, normalmente trabalham aos pares. A tua assistência vai permitir-me libertá-los de tempos a tempos, para que se dediquem ao combate sem que tenham de vigiar-me constantemente. Aceitas a incumbência, Hargest?
— Sim, meu senhor. — O sorriso do jovem era feroz. Bastava olhar para ele e qualquer pretenso assassino pensaria duas vezes.
— Vamos — disse Bridei. — Temos trabalho a fazer, esta noite. Espera-nos outra marcha, e outra batalha. Vais ficar no primeiro turno com Enfret.
— Sim, senhor meu rei. — A voz de Hargest estava plena de emoção, não a dúvida, o medo e a excitação que se esperariam após uma batalha, mas antecipação e um certo tom de orgulho quase presunçoso. — Não vais arrepender-te, meu senhor.
— Veremos — disse Bridei. Quinze anos. Estaria a ser tolo, ao confiar tamanha responsabilidade ao rapaz? Hargest era ingênuo, estouvado e tinha muito a aprender sobre os homens e o que os movia. Mas, no fundo, era bom rapaz. Só precisava de alguém que o guiasse. Alguém que zelasse por ele, até que a atitude infantil se equiparasse ao físico varonil. Pesasse embora os modos rudes e a insensibilidade de Hargest, Bridei gostava do rapaz.
Enquanto desciam o caminho em espiral colina abaixo, Bridei voltou a pensar em Faolan, um homem bastante mais esguio do que aquele jovem robusto, mas que tinha tanto para oferecer. Faolan, a quem se podia contar tudo e que sabia quando dar os seus conselhos tão frontais ou simplesmente escutar em silêncio. Faolan, que era quase como um irmão. Faolan, que era um celta. Um enigma, um dilema. Tinha de ignorar tais considerações até que se conquistasse a paz. Donal, seu velho amigo e tutor, dissera-lhe em tempos que um guerreiro não se podia dar ao luxo de ver o inimigo como um semelhante, caso contrário nunca seria bem-sucedido em combate. No momento do confronto, era preciso transformar-se numa máquina de matar eficiente, fria e mortífera. Era essencial convencer-se de que um em três era um bom resultado, pelo menos até ao fim da guerra. Que os deuses o perdoassem pelo que teria de vir a acontecer. Julgava nunca vir a ser capaz de se perdoar a si próprio.
Tuala planejara ficar em Banmerren apenas o tempo que fosse necessário para garantir que Broichan não sairia à porta antes que Fola e as suas mulheres pudessem começar a tentar ajudá-lo. O druida não fazia segredo do fato de duvidar da capacidade das mulheres de efetuarem uma cura. Se ele próprio não era capaz, como poderiam elas sê-lo? Tuala fora obrigada a apresentar argumentos que envolviam quer Derelei, quer Bridei, antes que o druida concedesse, com grande relutância, que estava preparado para experimentar.
Ferada recebera muito bem as visitas, alojando-as nas instalações que estavam prontas para a chegada das alunas, no Outono. Eram quartos simples e claros, que davam para o jardim acabado de plantar. Ainda assim, Tuala sabia que Ferada contava os dias até voltar a ter o lugar só para si. Garvan partiria em breve, agora que o trabalho em Banmerren estava completo e um novo projeto aguardava por ele mais a sul. Ferada não disse nada, nem o alvanel, mas Tuala conseguia ler-lhes os silêncios.
Disse a Garth e a Elda que se preparassem para regressar a casa dali a um ou dois dias. Seria bom voltar ao Monte Branco, onde poderia tratar das coisas na ausência de Bridei. Banmerren estava cheia de recordações, boas e assustadoras. A copa ampla do carvalho imponente parecia repleta de sussurros. Apressou-se ao longo do carreiro, tentando não ouvi-los.
Broichan e Fola estavam sentados num quarto sem janelas, um lugar iluminado por candeias, mesmo com o Sol bem alto no céu. As paredes estavam forradas com prateleiras de pedra, sobre as quais estavam dispostos de forma ordenada os materiais e as ferramentas da arte de Fola. Em cima de uma mesa central estava um objeto escondido por um pano grosso de lã negra. O jarro de água ao lado revelou a Tuala de que se tratava e o que tinham estado a fazer, e a rainha deu um passo atrás.
— Por favor — indicou Fola —, entra. Broichan e eu temos de falar contigo. Não vamos encurralar-te. Compreendemos a tua decisão de repudiar a taça das visões. Permanecerá escurecida, Tuala, a menos que decidas o contrário.
Tuala entrou no quarto e fechou a porta. Saber o que estava por baixo do tecido deixava-a nervosa. Mesmo através da cobertura grossa, a taça das visões chamava-a, deixando-a ansiosa pelo conhecimento. Habituara-se a desviar o olhar de poças de água, a evitar passeios à beira lago. A verdade era que o seu dom de visão era tão poderoso, que se tornava mais um tormento do que uma bênção.
Falou para preencher um silêncio que parecia conter um perigo vivo.
— Tenciono partir daqui a um dia ou dois. Tenho de estar no Monte Branco. Há tanto a fazer...
— Será que colocarias a hipótese de deixar Derelei conosco por algum tempo? — A voz de Broichan era baixa. Parecia exausto, com as rugas bem visíveis no rosto.
Tuala não pensara no que a sua partida iria significar para o druida.
— Derelei precisa de estar comigo — disse. — Ainda é muito pequeno. Decerto as suas lições podem esperar até que estejas melhor.
Raras eram às vezes em que Broichan permitia que alguém visse na sua expressão algo mais do que uma máscara de calma severa. Naquele momento, de repente, pareceu desgostoso.
— A criança já foi desmamada, não é verdade? — acrescentou Fola.
— Podias deixá-lo com a ama. Se estás preocupada com a sua segurança, os outros podem ficar também, além de Garth e a esposa.
— E deixar Ferada com três meninos a correr por aí, agora que as primeiras alunas estão prestes a chegar? — Tuala conseguiu esboçar um sorriso, mas sentia-se inquieta. O que tinham aqueles dois visionários sábios visto em Derelei? — Ele está em perigo, não é? — disse subitamente. — Viram alguma coisa. Digam-me!
Broichan suspirou.
— Falei-te sobre uma das visões, poderosa e perturbadora. Mas o comando que detenho sobre o espelho das visões já não é o que era. Aquele momento de clareza foi como uma flor num campo de ervas secas. Vejo fragmentos, momentos, passageiros e impenetráveis.
Tuala olhou para Fola.
— Infelizmente, nos últimos tempos A Que Brilha escolheu não me enviar aquilo de que preciso — disse a mulher sábia. — Velou o rosto brilhante e deixou-me nas sombras. Tuala, estes dois velhos amigos discutiram o conhecimento limitado que os deuses nos têm vindo a conceder. O que vimos deixa-nos bastante preocupados. Temos sérias dúvidas. Mas não poderemos agir, a menos que a taça das visões apresente mais respostas do que aquelas que conseguimos invocar.
Tuala forçou-se a perguntar.
— Se viram perigo para Derelei, têm de me dizer. Posso convocar mais guardas, posso...
A expressão de Fola deteve a torrente de palavras.
— Broichan está a pedir que Derelei fique, acima de tudo por não conseguir passar sem a criança — explicou calmamente a mulher sábia.
— Broichan irá sarar melhor se tiver Derelei por perto e puder continuar a ensiná-lo. Mas tu és a mãe da criança. A decisão é tua. Quem nos preocupa não é Derelei. É Bridei.
Tuala sentiu uma mão fria a apertar-lhe o coração.
— Digam-me — pediu.
— Tal como expliquei — continuou Fola —, as imagens são vagas e dispersas. Há já algum tempo que tanto Broichan como eu acreditamos que existe uma sombra sobre Bridei, uma qualquer ameaça que ultrapassa os perigos normais da guerra. Uma vez que não conseguimos invocar exatamente o que queremos da taça das visões, não podemos ir mais além. Vi um lince enorme a persegui-lo. Broichan avistou uma estranha ave de rapina a picar sobre ele. Numa outra visão, vi Ana com um archote na mão, a lutar com uma alcatéia.
— O quê?
— Pouco provável, e sei que é mais o tipo de fantasia que uma estudante jovem acredita ver na água, do que uma imagem que se revelaria a estes olhos velhos. Quando te disser que ela vestia uma túnica muito curta e tinha um jovem de beleza invulgar a seu lado, de certeza que vais dizer-me que estou na segunda infância. Mas foi o que vi.
Seguiu-se um breve silêncio.
— Se conseguirmos descobrir qual o perigo — disse Broichan —, teremos a oportunidade de intervir. Mas tu sabes que assim é, Tuala. Nós dois já agimos para o salvar.
Tuala aquiesceu. Fora a única altura em que os dois tinham partilhado algum tipo de entendimento, durante os anos em que Tuala crescia na casa de Broichan, em Pitnochie.
— Querem que volte a fazê-lo. — Ouviu o receio na sua própria voz, e o desejo.
— Estás em segurança — disse Fola. — Encontras-te num santuário, atrás de portas fechadas, com velhos amigos. Amigos poderosos. Nada do que aqui se passe será repetido por nós. Se for preciso contatar com Aniel, ou Tharan, se for necessário enviar um mensageiro, diremos que a visão foi de Broichan. Sei que nunca mais o tentaste desde que Bridei te foi buscar a Pitnochie. Julgo que chegou a altura de voltares a tentar.
Tuala aquiesceu, os olhos marejados de lágrimas.
— Vi que havia perigo — disse. — Antes de partir, quando Broichan lançou o augúrio. Vitória ou morte eram essas as possibilidades. Expliquei-lhe e ele decidiu partir.
— Por que não me disseste? — A voz de Broichan era um murmúrio chocado.
Tuala fitou-o.
— Não havia necessidade de ambos ficarmos dilacerados com a preocupação — disse. — O que o augúrio me mostrou foi como as vossas visões, fragmentado, vago. Ele terá mais cuidado. Vai garantir que os guardas estão alerta. Não lhe pude dizer qual era o perigo, a fonte da ameaça, ou quando poderia surgir. Não havia nada que pudéssemos fazer.
— Devia ter ido com ele — resmungou Broichan.
— Não — disse Tuala gentilmente. — O teu lugar é aqui, com Derelei e comigo. — Respirou fundo. — Muito bem, eu faço-o. Só esta vez. Há muito tempo que não o tento, e posso sair-me mal, tal como vós, mas... — Retirou o pano de cima da taça, que estava já cheia de água limpa. A câmara pareceu escurecer ainda mais, mas o recipiente estava cheio de luz, de cor, de uma espantosa confusão de imagens. Tuala inclinou-se para ver.
A visão envolveu-a de imediato. Mal se apercebeu que os outros dois se juntavam a ela à mesa, dando-lhe as mãos e unindo as suas, para formarem um círculo em redor da taça de cobre. A mão de Fola era pequena, quente e descontraída. Os dedos compridos de Broichan eram frios, os nós ossudos, mas apertavam-na com segurança. Na água, Tuala via-o numa forma mais jovem, um druida de cabelo escuro no auge da vida, a entrar profundamente na floresta, com o bordão de carvalho na mão e os olhos distantes, como se estivesse em transe. Tuala não sabia se estava a testemunhar uma jornada espiritual, uma viagem da mente a ter lugar durante uma meditação longa, ou uma aventura física no bosque.
Conhecia o lugar. Ficava acima de Pitnochie, próximo de uma catarata chamada o Véu da Senhora. Era o início da Primavera. As folhas verdes novas nasciam nos ramos curvados das faias e, nos carvalhos imponentes, os botões continuavam a crescer, à espera do toque libertador dos dias mais quentes. A luz entrava de viés por entre as árvores, pintalgando o manto branco do druida e fazendo reluzir o cabelo entrançado. Branco. Quando se vestira Broichan de branco? Devia ser altura da Harmonia e o druida devia ir a caminho dos três dias de vigília solitária sob o sol e as estrelas, os dias secretos da observância do equinócio da Primavera. Broichan levara-o a cabo fielmente, ano após ano. O que tal prática envolvia ao certo, apenas os druidas sabiam. Privações, jejum, resistência: tudo isso faria parte desse rito solitário.
Mas, naquela visão, Broichan não estava sozinho. Por detrás das faias, oculto no padrão de luz e sombra, alguém o observava. Tuala avistou uma túnica clara, uma mão branca delicada, um vislumbre de cabelos negros. Houve um tremeluzir, uma ondulação, uma mudança no ar. O druida deteve-se de imediato, à escuta. Continuou após um momento e, enquanto desaparecia ao longo do carreiro por baixo das árvores, alguém o seguiu, alguém pequeno e magro, mas com forma de mulher, uma pessoa com madeixas negras como a fuligem e olhos grandes e claros como o toque do sol num lago da floresta. Alguém extraordinariamente parecido com ela.
Antes que Tuala tivesse oportunidade de pestanejar, e muito menos começar a entender as implicações do que acabara de lhe ser mostrado, novas imagens substituíram as primeiras. De súbito, a taça encheu-se de corpos em movimento, de golpes e arremessos, bloqueios e fugas, de bocas rasgadas em gritos de agonia ou desafios primevos, de espadas, lanças e maças, flechas e punhais mortíferos. Uma grande batalha. O padrão encontrava-se em mudança constante, uma onda caprichosa e devoradora, e o melhor dos estrategas de Fortriu teria dificuldade em identificar as ordens que os homens seguiam, ou qual dos exércitos detinha a vantagem.
Tuala não tinha dúvidas de que estava a assistir ao grandioso culminar do empreendimento de Bridei, um confronto de escala impressionante e de importância estratégica decisiva. Pedira à deusa que lhe mostrasse uma imagem verdadeira e que lhe revelasse a natureza da ameaça que pesava sobre Bridei. A experiência dizia-lhe que A Que Brilha lhe mostraria o que precisava, ou não lhe mostraria absolutamente nada.
Aqui e ali, no meio da escaramuça, viam-se rostos familiares: Uven, com uma ligadura no braço, Carnach a cavalo, a bradar ordens, Talorgen a empunhar com as duas mãos uma espada enorme, a túnica suja de sangue. Enfret caído, ferido, e Cinioch a tentar arrastá-lo para a segurança de um pequeno bosque de salgueiros. A batalha tinha lugar nas margens de um ribeiro largo e pouco profundo. Muitos dos combatentes estavam dentro de água, até aos joelhos. Tuala viu pelo menos um homem a ser eliminado quando o oponente se limitou a manter-lhe a cabeça debaixo de água. O ribeiro corria vermelho. Os guerreiros lutavam sobre um tapete de camaradas tombados. Mais tarde, haveria grandes fogueiras. Tuala murmurou entre dentes:
— Mãe de Tudo dá-lhes a mão. Concede-lhes a paz — embora não houvesse forma de saber se o que via já acontecera ou estava a desenrolar-se. Talvez ainda estivesse por vir.
Finalmente viu Bridei e ficou com um nó na garganta. Estava caído, ferido, talvez já a morrer. O conflito desenrolava-se à sua volta, mas havia um pequeno espaço onde jazia, como se o rei de Fortriu houvesse tombado despercebido e pudesse morrer no campo de batalha, com a deusa a levá-lo com a mesma cerimônia atribuída a outro guerreiro. Mas Bridei não estava sozinho. Um jovem com aspecto dos Caitt, um rapaz muito grande com olhos azuis penetrantes, estava ajoelhado a seu lado, um braço por trás dos ombros de Bridei. O seu guarda, que o ajudava a erguer-se. Ou que o segurava enquanto morria. Era difícil manter presente que se tratava apenas de uma visão, ao mesmo tempo menos e mais do que a simples verdade. Tinha de respirar. Tinha de concentrar-se. Não podia perdê-lo.
A água pareceu redemoinhar e, de repente, Tuala olhava para os dois homens a partir de outro ângulo. Bridei estava branco como a cal, as mãos no peito, e o jovem tentava desviar os dedos cerrados, procurava ver o ferimento do rei, estava... Tuala ficou gelada. O jovem tinha uma faca na mão e a ponta encontrava-se no peito de Bridei. O guarda não tentava ajudar o mestre, estava a matá-lo. Os dedos de Bridei envolviam o punho do outro homem. A palidez, a expressão tensa, eram a de um homem que tentava repelir a morte certa. Assim que perdesse as forças, o punhal iria trespassar-lhe o coração.
Tuala arquejou em horror e a imagem na água começou a fragmentar-se e a desaparecer.
— Não... — murmurou. — Ainda não... — e tentou desesperadamente fixar-se em algo, qualquer coisa que lhe dissesse o quando, o onde e o quê, sem os quais não haveria maneira de o salvar. Um grupo de árvores, o contorno de picos distantes, um manto, um estandarte, a cor dos olhos, do cabelo... A água voltou a acalmar-se e a visão desapareceu.
Os outros soltaram-lhe as mãos. Sem uma palavra, Broichan voltou a cobrir a taça das visões com o pano negro. Fola posicionou um banco atrás de Tuala e ajudou-a a sentar-se. Broichan serviu-lhe um copo de água. Depois aguardaram. Ambos tinham uma vasta experiência naquela arte e sabiam que não deviam apressar a vidente, mesmo que o conhecimento a ser partilhado fosse de importância vital.
Tuala não conseguia parar de tremer. Após um momento, relatou atabalhoadamente o que vira, não a primeira parte com Broichan, pois isso poderia esperar, mas o que assistira da batalha, o sangue e o crime.
Forçou-se a recordar a cena, com tantos pormenores quanto possível, pois se pelo menos conseguissem identificar o local, talvez fossem capazes de determinar a altura. Quanto ao homem que empunhara o punhal contra o coração do marido, o jovem de estranhos olhos claros que mal pareciam ver a vítima, lembrar-se-ia dele para o resto da vida.
— Parecia um guarda-costas — disse Tuala. — Envergava uma túnica com as cores reais, tal como Breth, Garth e Faolan, quando partem para combate ao lado de Bridei. Parecia... parecia-me ser alguém em quem Bridei confiava. Isso explicaria a proximidade. E depois...
— Dizes que este jovem pertencia aos Caitt? Um dos homens de Umbrig?
— Tinha esse aspecto. Era muito jovem, mas de constituição poderosa. Parecia muito forte. Bridei tem muita força de vontade, mas não creio que pudesse...
— Pode estar ainda por acontecer — disse Fola, calmamente. — Ainda é cedo para as forças de Bridei entrarem numa batalha de tais dimensões. Disseste que Talorgen estava presente? Ainda não deve ter acontecido, só daqui a algum tempo, pois Talorgen ia avançar por mar. Primeiro, Bridei tem de tomar Galany's Reach e outra colônia a sul. Creio que ainda temos tempo.
— Se o matarem — disse Tuala, com um aperto no estômago —, os exércitos vão perder o ânimo. Carnach é um líder competente, tal como Talorgen e os outros. Mas vós Sabeis, assim como eu, que nenhum deles poderá ocupar o lugar de Bridei. Ele é a Espada de Fortriu. É a sua esperança e inspiração. Confiam nele. Pelo seu rei, irão até às profundezas da morte.
— Portanto — disse Broichan —, temos um inimigo que é extremamente intuitivo, ou que recebeu informações às quais está a dar bom uso. Alguém decidiu que a forma mais simples de derrotar os Priteni é eliminar o seu líder. Houve quem reconhecesse a importância de Bridei. Os Caitt, segundo dizes. Não estou a ver Umbrig a deixar um traidor a entrar nas suas hostes. É um homem astuto. Um guarda-costas. Imagino que Bridei não admitisse um homem novo numa altura tão crítica. Onde estaria Breth?
Nenhuma das mulheres adiantou uma resposta, pois a explicação mais provável não era do agrado de ninguém.
— Poderemos chegar a ele a tempo? — A mente de Tuala fervilhava, em busca de possibilidades. Era uma viagem longa pelo Vale e o local do confronto parecia mais além do Lago do Rei. Pensou ter vislumbrado uma grande massa de água à distância, uma extensão brilhante que deveria ser o mar ocidental. A cena na visão não coincidia com o que Bridei lhe contara de Galany's Reach, local do primeiro encontro com o inimigo. — Sei que não é fácil para um homem lá chegar a pé, ou a cavalo, e que encontrá-los poderá ser difícil. E perigoso. Mas talvez exista outra forma. — Olhou para Broichan.
— Maldita seja esta fraqueza! — exclamou o druida com amargura. — Houve um tempo em que eu poderia fazer essa viagem no espaço de um dia, indo por caminhos desconhecidos dos homens comuns. Poderia ter utilizado encantos de dissimulação e de transformação. Agora, estou reduzido a uma sombra impotente do que era. Nem sequer posso tentá-lo, Tuala. Duvido que tais capacidades voltem a estar ao meu alcance. E Uist, infelizmente, já não está entre nós. De toda a irmandade, nós dois fomos os únicos a dominar tais viagens, salvo aquele que nos ensinou, e que já partiu há muito.
— Fola?
A mulher sábia abriu os braços, impotente.
— Posso ser rápida para uma velha, mas não assim tanto. O melhor que consigo é o caminhar normal, e não compreendo as criaturas selvagens, como alguns. Se tivéssemos a égua de Uist, poderia ser uma solução. Mas Spindrift desapareceu, quando o velho nos deixou. Para onde quer que tenha ido, está fora do nosso alcance.
— Tuala — disse Broichan —, tens alguma fonte de ajuda que possas invocar, que não seja do nosso conhecimento? Isto está além das capacidades dos homens. A mais célere mensagem que Aniel ou Tharan pudessem enviar nunca chegaria a Bridei a tempo, a menos que o que viste venha a acontecer bastante mais tarde do que imagino. Temos de agir de imediato. Se conheces outra solução, espero que nos digas.
Tuala engoliu em seco.
— Não tencionava falar disso — admitiu. — Mas agora percebo que terei de fazê-lo. Tive algumas... visitas... quando era mais nova. Duas. Seres do outro lado, um rapaz e uma rapariga. Vinham com freqüência, mas não a meu pedido. Fizeram-nos passar por um jogo perigoso, a mim e a Bridei. Ambos estivemos perto da morte, naquela noite em Pitnochie, em que Bridei e Faolan me trouxeram da floresta. Mais tarde falamos sobre isso. Pensamos que talvez o objetivo tivesse sido avaliar a nossa força: a capacidade dele de vir a ser rei, a minha de ficar a seu lado. Imagino que tenhamos superado a prova.
Broichan não disse nada, limitou-se a observá-la, os olhos escuros inescrutáveis. Pouco depois, Fola disse: — E agora? Ainda te visitam? Poderiam ajudar-te, se lhes pedisses?
Tuala sentiu os lábios formarem um sorriso amargo.
— Nunca fizeram o que lhes pedi. Julgo que sejam mais amigos do que outra coisa, segundo o conceito de amizade da sua raça. Há anos que não os vejo. Por vezes ouço murmúrios. No carvalho, mesmo agora. Mas talvez fossem apenas as recordações a enganarem-me.
— Dizes que já não te procuram. — O tom de Broichan era quase hesitante. — Mas visitam Derelei.
Tuala anuiu, com um nó na garganta. — Julgo que sim. Ouviu-o a tentar pronunciar-lhes os nomes. Como sabes?
— Os meus poderes de observação não estão inertes a ponto de não conseguir identificar o esboço de uma conversa, mesmo que o interlocutor ainda não tenha dominado a linguagem. As presenças invisíveis com quem o teu filho fala não são amigos imaginários, são bem reais. Pelo menos, esperamos que sejam amigos.
— Ele tem de ser protegido dos seus truques cruéis.
— Talvez eles apenas queiram o bem da criança, tal como assim parecia, em relação a ti e a Bridei. Já comecei a ensinar-lhe as defesas que será capaz de usar. Esse povo não se encontra em harmonia com os costumes humanos. Os seus objetivos podem parecer obscuros. Muitas vezes, trabalham para poderes mais altos. Não duvido que A Que Brilha tenha influenciado o futuro de Bridei.
Tuala olhou-o, enquanto pensava na visão que tivera, a que não mencionara. Algures na sua mente esboçava-se uma idéia, um pensamento louco que não conseguia ignorar. Talvez a deusa tivesse mais influência sobre as coisas do que alguém imaginava.
— Não posso invocá-los — disse. — Apenas surgem quando lhes convém, nunca ao meu chamado. — Recordou a terrível jornada para Pitnochie, sozinha em pleno Inverno, uma viagem cujo final a teria levado para longe do mundo dos mortais para sempre, deixando Bridei para trás. Como a teriam Teia e Madressilva convencido a fazê-la? — Mas posso tentar.
— Então, tenta — disse Fola calmamente. — Ao que parece, se não conseguires enviar estes estranhos mensageiros pelo Vale para avisar Bridei a tempo, ele estará perdido, e com ele a guerra.
À medida que o Verão se transformava em Outono e as árvores do Grande Vale assumiam os tons escarlate e dourado, ocre e amarelo, os exércitos dos Priteni avançavam para sul pelas terras de Dalriada. Enquanto se deslocavam, iam-se unindo e formando uma força única e monumental. Bridei impusera regras severas para a conduta da ação e seu desenlace. Não queria que a vitória se transformasse numa orgia de incêndios, pilhagens e violações, deixando apenas uma terra desolada onde em tempos, antes da chegada dos Celtas, se encontravam fazendas Priteni florescentes, comunidades piscatórias seguras e postos avançados bem protegidos. Ao longo dos cinco anos de reinado, deixara bem claras as suas expectativas para a guerra, regras que todos os chefes tribais deveriam introduzir nos seus guerreiros. Não se podia esperar uma obediência cega, mas os que prevaricassem sabiam que viriam a ser punidos. Isso dava azo a um avanço ordeiro. Para os conquistados, aliava a dor da derrota. Durante o avanço, Bridei ia deixando ficar homens que manteriam a ordem e o controlo, homens que entendiam as regras impostas e que eram fortes o suficiente para as fazer cumprir.
Avançaram. Elpin tombou em combate num lugar chamado Dois Rios. Na mesma batalha, Uven recebeu um ferimento profundo no braço esquerdo, o qual ligou com firmeza e ignorou, prosseguindo com os camaradas. Podia ainda ajudar com os cavalos, os suprimentos e as armas, mas não guardaria o rei, nem iria combater durante algum tempo.
Tornou-se claro que a estratégia bem planeada era um sucesso retumbante. Os Celtas, que não estavam prontos para o avanço tão repentino dos exércitos de Fortriu, nem para a escala maciça e natureza complexa da investida, começaram a assumir posições defensivas assim que a notícia do primeiro ataque se espalhou por Dalriada. Mas era demasiado tarde para chamar auxílio poderoso do outro lado do mar, muito tarde para convocar chefes tribais do norte, como Alpin, de Briar Wood, e não houve tempo para salvar cada pequena colônia, cada posto avançado, cada fortaleza regional que cedia ao avanço disciplinado das forças combinadas de Bridei. Os guerreiros de Dalriada pereciam às centenas.
Por vezes havia rendições e, quando tal ocorria, Bridei dava a escolher aos Celtas: caso se submetessem à autoridade dos chefes tribais regionais e ao domínio do trono de Fortriu, poderiam ficar nos acampamentos e prosseguir a sua vida em paz. A alternativa seria a morte dos homens e o exílio, para além das fronteiras Priteni, das mulheres e das crianças.
Não pretendera ser tão magnânimo e tornou-se óbvio que tanto os Celtas derrotados como os Priteni vitoriosos ficaram surpreendidos com a medida. Tornara-se claro a Bridei que os deuses lhe exigiam isso, quando entraram na colônia de Dois Rios, a caminho do baluarte celta de Dunadd. Sem ele, os territórios ocidentais perderiam o ânimo.
Havia um homem em Dois Rios que tinha sido poupado pelos Priteni, uma vez que não era guerreiro, tendo ar de escriba, ou professor, trajava uma túnica comprida e não ostentava armas. Quando os habitantes da colônia se reuniram em espaço aberto para a rendição formal, Bridei viu o homem puxar uma mulher e crianças para junto de si, como que oferecendo o abrigo possível contra a onda devastadora do exército de Fortriu. Viu que, embora o homem tivesse as feições largas e o cabelo ruivo típico de tantos celtas, a esposa era magra e morena, uma mulher de sangue Priteni. Os olhos curiosos da menina, ainda inocentes, sem o conhecimento da morte, olhavam para os estranhos altos que tinham marchado sobre o seu lar, com o brilho da conquista nos rostos severos. Era como o pai, uma habitante de Dalriada rosada e de cabelo vermelho. O irmão, mais velho e mais consciente, era elegante e moreno como qualquer filho do Guardião das Chamas. A mulher agarrava o braço do marido. Este segurava a mão do rapaz e embalava a filha no outro braço, a cabeça baixa, a fim de murmurar palavras de conforto juntos aos caracóis brilhantes. Naquele momento, os deuses segredaram a Bridei que teria de chegar a um compromisso. Se varresse todos os Celtas da costa ocidental, destruiria a essência da comunidade, afastaria mãe de filho, marido de esposa, empurraria o território de volta a um tempo de caos e de incerteza. Os Celtas tinham-se instalado naquele território através das vidas de filho, pai e avô. Eram um povo. A partir daquele momento, o plano teria de ser alterado.
Por isso, poupou os que aceitaram a paz, mas garantiu que ficava claro que qualquer tentativa de revolta ou sublevação seria recebida com o ferro. Em cada comunidade foi deixada uma pequena força de homens armados e a garantia de que, assim que Gabhran abandonasse o trono de Dalriada, poderiam regressar à sua vida. Apenas uma coisa seria alterada: cada região passaria a ser governada por um chefe tribal de Fortriu. Bridei não lhes disse que não poderia haver observância pública do ritual Cristão. Havia tempo para isso, quando a derradeira batalha fosse ganha.
Foram avançando e, na véspera do festival da Medida, encontravam-se no centro do território de Dalriada. Tinham recebido informação de que Gabhran saíra da fortaleza em Dunadd com o que restava das suas forças e que se dirigia para norte, a fim de se encontrar com o exército de Bridei em campo aberto. Talvez o rei celta percebesse já que, mais cedo ou mais tarde, a Espada de Fortriu iria abatê-lo, a lâmina afiada pela certeza de uma missão predestinada pelos deuses. Ou talvez Gabhran acreditasse, nesciamente, que ainda seria capaz de derrotá-los. Talvez julgasse que tinham entrado no seu domínio como peixes que nadam para uma rede e que lhe bastaria cortar a fuga e retirá-la da água.
Bridei reuniu-se com os líderes guerreiros no que poderia ser o último encontro antes da batalha decisiva. A sua volta estava acampada a força combinada, que descansava, preparando-se para o dia seguinte. Tinham chegado às férteis terras baixas junto à costa sudoeste. Cada chefe tribal tinha a sua própria narrativa sobre a viagem até ali, os confrontos ganhos, os homens caídos, os seus mortos enterrados apressadamente, os inimigos empilhados e queimados, ou deixados aos corvos e às gaivotas.
A força marítima de Talorgen apanhara o baluarte costeiro de Donncha's Head de surpresa. Tinham aguardado ao largo até ao pôr do Sol, após o que afundaram a frota celta, antes que o inimigo pudesse lançar um contra-ataque. Fora quase demasiado fácil, uma vez que o posto avançado tinha poucos homens. Por essa altura, já os guerreiros de Gabhran tinham sido chamados para formar uma barreira defensiva em Dunadd, pois tinha-se espalhado por toda Dalriada a notícia de que os Priteni se aproximavam em força. A defesa do rei era prioritária.
Quanto à proteção de Bridei, Hargest assumia cada vez mais responsabilidades, pois Cinioch e Enfret eram os únicos homens de Pitnochie ainda ilesos. A força e a resistência do rapaz eram uma vantagem nas longas marchas, embora Hargest ainda não tivesse concretizado o desejo ardente de combater ao lado do rei. A noite, dois dos três guardas vigiavam, enquanto o terceiro dormia. Estando tão perto da vitória, o rei devia ser protegido com o maior dos cuidados. Quem sabia o que os Celtas poderiam tentar, com um assassino talentoso?
Hargest queixou-se de que Bridei não precisava de um guarda durante a noite, pois mal dormia. Por que não se deitava e descansava devidamente, em vez de desperdiçar o tempo precioso dos intervalos com meditações, ou a conversar com quem estivesse acordado na escuridão? Uven, frustrado por o seu ferimento o ter relegado para um papel secundário, admoestou o rapaz por ser tão direto, mas Bridei limitou-se a sorrir. O rapaz não podia entender o que significava ter sido educado por um druida, nem como as responsabilidades de um rei o privavam da capacidade de se entregar ao sono. Para Hargest, a vida era muito mais simples. Fazia lembrar a Bridei uma criatura selvagem, talvez um gato à caça. Os inimigos existiam para serem mortos. Se homens bons tombassem nesse processo, era assim a vida. Comer, dormir, avançar, voltar a matar. Em todos os longos dias de marcha, Bridei não fora capaz de convencer Hargest de que havia mais do que isso.
Naquela noite, os chefes tribais de Fortriu reuniram-se no centro de um círculo protetor formado pelos guardas pessoais e concluíram a estratégia para o derradeiro assalto. Juntamente com Carnach, Ged, Morleo, Wredech e Talorgen, estavam Fokel, de Galany, e a figura imponente e feroz de Umbrig. Bridei falara antes com o líder Caitt e obtivera o seu consentimento, para que Hargest permanecesse com o rei, caso o desejasse. Umbrig parecera mais aliviado do que preocupado e admitiu que nos últimos tempos considerava a atitude do rapaz desesperadora. Hargest irritava-se com as restrições da casa do pai adotivo, ao mesmo tempo que parecia relutante em testar a boa vontade do pai biológico, pedindo-lhe que o aceitasse de volta a Briar Wood. Umbrig tinha a certeza de que os talentos do rapaz eram mais adequados ao trabalho com os cavalos, mas tal era o que Hargest menos desejava fazer. Se Bridei o quisesse, podia ficar com ele. Quanto à autorização de Alpin, não havia necessidade. A verdade era que o pai do rapaz perdera o interesse havia muito tempo. Era pena. Umbrig considerava que Hargest precisava da autoridade firme de um pai. Ele próprio tentara-o, mas o rapaz era difícil: difícil de disciplinar e de gostar. Bridei agradecera ao líder Caitt e abstivera-se de comentar. Esperava que, quando tudo chegasse ao fim, pudesse transformar aquele jovem guerreiro instável num homem maduro. Decerto o tempo, a paciência e os bons exemplos trariam ao de cima o melhor que havia em Hargest.
Conceberam três planos: um, para um confronto em terreno aberto e elevado; outro, para um ataque colina acima a uma fortificação, o que esperavam não vir a ser necessário; e um terceiro para um ataque encosta abaixo, durante o qual a formação em cunha que tantas vezes haviam treinado poderia ser utilizada com efeitos devastadores. Numa situação de confronto em espaço aberto, a qual Carnach julgava ser da preferência de Gabhran, começariam com uma investida a cavalo, com os estandartes em riste. Assim que a linha da frente celta fosse quebrada, os guerreiros Priteni atrás dos cavaleiros investiriam contra o inimigo. O tamanho descomunal dos exércitos de Fortriu garantia a possibilidade de avançar sobre Dalriada a partir de três lados, desde que obtivessem a informação de onde a força de Gabhran se reuniria.
— Os homens estão ansiosos — indicou Talorgen. — Estão exaustos, é claro, depois de uma marcha tão longa e de tamanhas perdas, mas sentem a vitória. Sabem que o fim está próximo.
— Se pudermos ser rápidos — disse Carnach —, tanto melhor. Usar o entusiasmo que temos agora para alcançar a superioridade. Se conseguirmos capturar o próprio Gabhran, teremos o poder necessário para terminar o confronto. Acredito que os seus chefes estejam preparados para negociar.
— O que há para negociar? — O tom de Ged era incisivo.
— A vida do rei de Dalriada deve valer alguma coisa — acrescentou Morleo, com a sua barba negra. — O que pensas fazer, Bridei? Acabas com ele, se não cair no campo de batalha?
Bridei imaginava o que podia acontecer. As longas noites a pensar e as suas conversas silenciosas com os deuses tinham sido frutuosas. Não tinha a certeza de o querer pôr em palavras, mesmo perante os seus líderes guerreiros de maior confiança.
— Vamos ver como ele age — disse-lhes. — Não duvidem que, caso seja necessário, ordenarei a morte de Gabhran. Não duvidem que, se for obrigado a executar essa ordem, a fim de garantir a capitulação, fá-lo-ei de imediato e sem hesitar. Quero que ele se ajoelhe à minha frente e renuncie ao trono de Dalriada. Terá de render-se e de retirar os guerreiros dos nossos territórios. Se concordar, terei em consideração o seu futuro e o dos principelhos que o apoiam. Não haverá a chacina global de guerreiros capturados, a menos que não exista alternativa. Eles têm uma frota. Que velejem até à sua costa natal e nunca mais voltem a incomodar-nos.
Talorgen pigarreou.
— Na verdade — disse Carnach —, uma vez que Uerb e Talorgen se envolveram com uma batalha marítima muito própria, não resta grande coisa da frota celta. Mas ainda têm alguns navios a sul. Imagino que possam regressar a casa, caso recebam o encorajamento adequado.
— E se Gabhran decidir fugir e esconder-se em Dunadd? — perguntou Ged. — Pode ser um cerco demorado e estamos longe de casa.
— Pelo menos é fácil conseguirmos suprimentos — disse Umbrig. — As terras são férteis, por estas bandas. Não me importava de arrendar algumas. O gado tem duas vezes o tamanho do que tenho no meu domínio.
— Vamos ver como se desenrola — indicou Bridei. — Primeiro vou tratar de Gabhran e dos seus chefes. Depois teremos de fundar a nossa base e garantir que as terras permanecem estáveis e produtivas. É certo que vou procurar chefes que possuam uma autoridade inata e um bom julgamento, pois preciso de líderes fortes, aqui no ocidente. Falaremos sobre isso quando a guerra estiver ganha. Talorgen, quando e onde julgas que este confronto terá lugar?
— Em breve — respondeu Talorgen, com uma satisfação sombria. — Imagino que o encontremos no máximo daqui a três dias. Quanto ao lugar, deverá ser um sítio onde Gabhran não possa ficar cercado pela nossa força bastante superior. Existe um vale, a um dia de marcha, a sudoeste daqui. Em tempos idos, era conhecido por Dovarben, mas de certeza que neste momento deverá ter um nome qualquer em gaélico. Há um ribeiro, largo e baixo. Não existem grandes protecções, salvo nas extremidades do vale. Se eu fosse o rei celta, seria o lugar que escolheria. Temos de passar por aí, a caminho de Dunadd. Para levar a cabo a estratégia que preferimos, teríamos de estar em posição muito antes de eles surgirem, para além de tentar evitar sermos detectados pelos batedores de Gabhran. Com uma força de tais dimensões, é quase impossível.
Na penumbra, junto à pequena fogueira que Gwrad, o homem de Carnach, lhes fizera, os chefes de Bridei evitaram trocar olhares e o silêncio instalou-se, enquanto cada um tentava encontrar uma solução. Um terreno aberto, cobertura limitada, os Celtas alertados da sua chegada e da dimensão da força conjunta, caso os espiões de Gabhran fizessem bem o seu trabalho: tudo isso significava um desafio considerável.
— Pois é — suspirou Ged, pouco depois —, o Guardião das Chamas gosta de nos apresentar testes, cada um deles um pouco mais difícil do que o anterior. Ouvi dizer que os arqueiros celtas não são maus. Se forem avisados a tempo, podem eliminar-nos antes de termos oportunidade de lhes tocar.
Fokel, de Galany, tossicou. Os outros ficaram em silêncio. Todos os olhos se viraram na sua direção. Ao contrário de Ged, Fokel raramente gracejava. Na verdade, não falava de todo naquele tipo de reuniões, a menos que tivesse uma contribuição vital e, regra geral, surpreendente, a oferecer.
— Por acaso, um dos meus homens partiu nessa direção há umas duas noites — disse, com um tom casual. — Se tudo correr bem, deverá regressar esta noite com informações sobre a localização de Gabhran e a possibilidade de nos colocarmos atrás dele ou, pelo menos, de encontrar uma posição a partir da qual possamos lançar um ataque pelo flanco. Com a vossa concordância, Umbrig e eu levaremos os nossos homens ao abrigo da noite e assumiremos as nossas posições no terreno. Tenho outros homens destacados, com o único objetivo de eliminar os batedores e as sentinelas celtas antes de avançarmos. Posso não ter oportunidade de vos transmitir a nossa posição exata, mas estaremos prontos a apoiar o vosso ataque frontal. Isso, eu vos prometo.
Bridei olhou-o, as sobrancelhas erguidas. Tal empreendimento era típico de Fokel. Ousado era o mínimo que se lhe podia chamar. Mesmo não seguindo à risca as regras do jogo de equipa, o seu instinto táctico era brilhante. Umbrig estava radiante.
— Muito bem — disse Bridei. — Não preciso dizer-te que o inimigo não pode detectar a vossa presença tão próxima da sua posição final, uma vez que isso deixaria em perigo não só os teus homens, como também os nossos. A surpresa tem sido a essência do nosso sucesso até agora. Também sei que os vossos homens são bastante competentes no que fazem, capazes de assumir este empreendimento de forma independente e de suportar dias e noites com recursos escassos e pouco descanso. Esforçam-se até ao limite. O Guardião das Chamas aprecia a vossa coragem. Avisem-me quando o mensageiro chegar e quando estiverem prontos a partir. Com a ajuda dos deuses, esta será a última batalha da campanha. Os vossos homens devem avançar com a bênção dos deuses no coração e com a exortação do seu rei bem fresca na memória.
Quando chegou a altura, dirigiu-se a eles enquanto rei de Fortriu e camarada de armas. Reuniram-se à sua volta na escuridão, os combatentes esguios e argutos da tropa de Fokel e os imponentes guerreiros Caitt, todos eles armas afiadas, barbas desgrenhadas e mantos de pele. Falou-lhes como a um irmão, com honestidade e paixão. A aparência selvagem já não o deixava reticente. Tornara-se familiar nas longas marchas, nas noites tensas e desconfortáveis e nos dias esgotantes e sangrentos. Bridei vira os guerreiros de Pitnochie, da Fonte do Corvo e de Thorn Bend ficarem mais magros e desalinhados à medida que a campanha avançava. Sabia que se olhasse para o seu próprio reflexo numa poça ou num ribeiro, também ele ostentaria o mesmo ar. Tinha a barba por fazer, o cabelo solto até aos ombros e não cheirava melhor do que os outros. A disciplina mantinha as armas afiadas, as lâminas limpas, as flechas em bom estado. Mantinha as botas em boas condições e as armaduras de couro maleáveis. Os pormenores como o pentear, o barbear e a roupa interior limpa teriam de ser ignorados até que o exército pudesse regressar a casa para abraçar esposas, amadas ou filhos.
Manteve o discurso simples e os homens agradeceram o fato. Quando terminou, fez uma oração, onde pedia a vitória ao Guardião das Chamas. Em nome dos homens, rezou também pela sobrevivência e, para aqueles a quem tal bênção não pudesse ser concedida, uma morte honrada e misericordiosa. Depois, à luz do fogo, cada homem avançou até um local designado por Bridei e depositou uma pequena pedra. Quando todos os homens de Fokel se apresentaram, bem como os elementos da força de Umbrig que fariam parte da investida secreta, surgira um dólmen na clareira onde estavam reunidos. Quando a força principal se pusesse em marcha, também eles deixariam ali uma marca. Mais tarde, na viagem de regresso, cada sobrevivente levaria consigo uma pedra. Todos sabiam que, por fim, ainda restaria uma pequena mamoa. Cada pedra deixada para trás seria um filho de Fortriu. A clareira guardaria a sua memória ao longo do Verão e do Inverno, até que os rebentos dos vidoeiros crescessem e o musgo e os fetos a cobrissem gentilmente com um manto de verde. Quando os homens deixassem de narrar estas perdas, quando a sua história ficasse esquecida, as árvores tremeriam com a recordação. As pequenas pedras iriam guardá-la junto ao coração.
Dois dias mais tarde, a força principal avançou para a derradeira batalha. O tempo estava ameno e os sinais eram favoráveis. Um dos mais rápidos homens de Fokel correra a informá-los de que o exército celta estava a instalar-se exatamente onde Talorgen previra, e que o número de filhos de Dalriada era bastante mais substancial do que Bridei e os seus chefes tribais tinham imaginado. Teria Gabhran recebido informações a tempo de o rei celta convocar ajuda dos parentes Uí Néill, do outro lado das águas? Bridei podia jurar que Dalriada não fazia idéia da data do avanço até ao momento do primeiro ataque a uma colônia celta, pouco tempo atrás. Faolan procedera com mestria à divulgação de informações falsas na corte de Dunadd. Como poderiam sabê-lo?
Era demasiado tarde para uma análise mais profunda. O exército de Fortriu avançava para a batalha, nas profundezas do território inimigo, com tamanhas vitórias às suas costas que teriam de arriscar tudo e resolver o assunto, fosse qual fosse o seu desenlace. Os homens estavam animados, os olhos brilhantes com a antecipação do triunfo, mesmo que os rostos evidenciassem a exaustão da campanha longa e difícil. Tinham descansado bem, acampados por duas noites ao abrigo do bosque de vidoeiros. Estavam prontos e o coração de Bridei dizia-lhe que não havia escolha, a não ser avançar.
Cavalgava cercado pelos homens de Pitnochie, Uven com o braço ainda ligado, Enfret e Cinioch vigilantes. A retaguarda seguia Hargest, orgulhoso. Bridei sabia que todos eles sentiam as presenças de Breth e de Elpin, como sombras a seu lado. Os sobreviventes queriam vingança. Queriam cabeças celtas como paga dos camaradas tombados. Nessas alturas, o lugar de um verdadeiro filho de Fortriu era no meio da ação, desferindo os seus golpes pelo Guardião das Chamas e pela recuperação das terras ancestrais. Bridei sabia que não podia negar-lhes a oportunidade de intervir no que poderia vir a ser o conflito final. Iria deixá-los combater ao lado dos cavaleiros de Carnach, cada um à vez. Seria néscio entrar na batalha apenas com Hargest a seu lado, mas decerto o rapaz poderia partilhar esse dever com Enfret, ou Cinioch. Chegara a altura de lhe dar a sua oportunidade.
O instinto dizia-lhe que o rapaz sobreviveria. Aquele jovem guerreiro formidável era grande e feroz o suficiente para assustar um celta ou dois. Quando tudo terminasse, quando regressassem ao Monte Branco, Bridei planeava deixar o treino do rapaz nas mãos de Garth. Este acrescentaria autodisciplina à força e à perícia que Hargest já possuía. Ele próprio tentaria educar Hargest na arte do debate ponderado e nos muitos tons de cinzento que existiam entre o branco e o preto. Pediria a Wid, o seu velho tutor, que o ajudasse.
— Amanhã estarás a meu lado — disse, quando Hargest, que montava um dos pôneis robustos de Umbrig, se juntou a ele. — Enfret e Cinioch farão parte do ataque a cavalo. Precisamos da sua destreza como cavaleiros. Depois, vão ajudar-te à vez na minha guarda pessoal, dependendo do rumo da batalha. Sabes o que tens a fazer: ficar por perto, avisar-me do inesperado, colocar a minha sobrevivência à frente de qualquer oportunidade que tenhas de abater celtas. Mesmo assim, faremos parte do combate. Já estive em muitas batalhas com Breth e com os meus outros dois guardas pessoais e, entre nós, eliminamos um número considerável de adversários. Não fico para trás, a ver os meus guerreiros a morrer no meu lugar. O teu trabalho não é fácil. Vais querer atacar e esqueceres-te de mim. Não podes fazê-lo, por maior que seja o desejo. A sobrevivência do rei tem uma importância simbólica.
— Sim, senhor meu rei. — A expressão no rosto largo de Hargest era cativante. Os olhos, surpreendentes na sua cor estranha e clara, encontravam-se repletos de uma elevação que parecia desproporcionada em relação à oportunidade que Bridei lhe oferecia. Qual o jovem guerreiro que não preferiria ser lançado à batalha propriamente dita, testar o seu potencial contra os Celtas, tal como Cinioch e Enfret iam fazer? Bridei ficou impressionado com aqueles olhos, que pareciam cegos no seu fervor. Com a determinação feroz na expressão da boca e do queixo. O rapaz nem sequer era de Fortriu, mas de ascendência Caitt. A devoção que mostrava era quase assustadora.
— Calma, Hargest — disse Cinioch. — Guarda esse ar para os Celtas. Vai pô-los a fugir aos gritos antes de terem hipótese de empunhar a espada.
— Farei o que me é pedido. — O tom de Hargest equiparava-se à expressão. Parecia capaz de abater o próprio Cinioch com o seu punhal, tal como faria a um celta. — Presta atenção à tua missão e deixa-me com a minha.
Bridei não interveio. Os homens estavam tensos, nervosos. O Guardião das Chamas enchia-os não só com sangue quente, mas também com um excesso de agressividade que os levaria para a batalha com o nome de Fortriu nos lábios e no coração.
Os seus próprios pensamentos eram mais complexos. Não desejara tal dia desde que o Espelho Negro lhe concedera a primeira visão de crueldade e coragem? No dia seguinte, Gabhran, de Dalriada, poderia ajoelhar-se à sua frente no campo de batalha e abdicar dos territórios ocidentais. Centra-te nisso, disse Bridei para consigo, enquanto Snowfire o levava para sul e, à sua volta, os seus homens de maior confiança e de mais tempo ao seu serviço, a par do guarda mais jovem e recente, cavalgavam numa formação severa. Triunfo. Vitória. A vontade dos deuses. Mas só via a mamoa e uma fileira silenciosa de guerreiros, ensangüentados e feridos, cada um a passar pelo monumento e a levar consigo uma pedra. Homens de cujos olhos emanava a recordação dos camaradas perdidos, de pequenas escaramuças desesperadas, uma centena de momentos de receio, horror e impotência, cem golpes no coração, na mente e no espírito. Os dedos tocavam nas outras pedras: Esta foi deixada pelo meu irmão, esta pelo meu amigo. O homem que deixou esta não vai regressar. Bridei fechou os olhos por um momento, invocando a imagem de Tuala, que lhe dissera, com uma calma grave, que para o rei a morte estaria tão próxima, que poderia sentir o bater das suas asas negras. Ouviu-lhe a voz: Não percas a fé, meu querido. Os deuses sorriem-te. Avança com coragem e vence a tua guerra para Fortriu. Por ti, arde uma vela no Monte Branco. Regressa quando tudo terminar, verte as tuas lágrimas e recebe conforto.
Era Outono quando Ana e os seus companheiros chegaram a Abertornie, um trio de viajantes exaustos e desalinhados, escurecidos pelo sol e consumidos por tamanha jornada com suprimentos escassos. Tinham conseguido uma coisa por outra ao longo do caminho. Ana envergava os trajes práticos da esposa de um agricultor. Sentira-se aliviada por ter abandonado os restos puídos do que em tempos fora um vestido de casamento delicadamente bordado. A casa de Ged ficou chocada com o seu surgimento e com a narrativa que apresentou. Pelo menos, não entrara em farrapos.
Em Abertornie, mediante a insistência de Loura, a esposa de Ged, foi-lhe emprestado um vestido de melhor qualidade. Foi também lavada por um par de criadas enérgicas. Era estranho voltar a estar limpa. O cabelo crescera mais uma vez abaixo dos ombros. Depois de ser lavado com água de camomila e de ser dolorosamente penteado, transformou-se numa auréola de madeixas douradas. Olhou para o reflexo no espelho de bronze de Loura e não reconheceu a mulher estranha que a fitava, a pele bronzeada, a figura tão magra que o vestido caía à sua volta em pregas largas, os olhos cautelosos e cínicos. Aquela pessoa de ar capaz não era a noiva que partira do Monte Branco na Primavera. Ana agradeceu às criadas e saiu para o jardim. Após tanto tempo ao ar livre, era-lhe desconfortável permanecer entre paredes.
A casa estava pesarosa, pois fora necessário informar da perda da escolta, onde se incluía a jovem Creisa, e uma família estava de luto. Ged partira havia muito, acompanhado dos seus guerreiros. Por aquela altura, o exército de Bridei estaria no interior do território de Dalriada. Se tudo tivesse corrido de acordo com o planeado, a guerra estaria prestes a ser vencida.
Agora que estavam tão perto, Ana sentia uma certa relutância em chegar ao fim da viagem. No Monte Branco, teria de explicar tudo o que acontecera. Teria de contar a Broichan, a Aniel e a Tharan que a missão fracassara e que não havia qualquer aliança com Alpin. Seria obrigada a encarar a forte possibilidade de os detentores do poder na corte de Bridei lhe delinearem novos planos, que implicariam outro chefe tribal, outro casamento. Talvez tivesse conquistado alguma coragem na viagem. Talvez tivesse aprendido a impor-se. Mesmo assim, a tentação de adiar o dia em que teria de lhes contar que não voltaria a fazer o que lhe ordenassem era forte. Desejava ficar ali mais um pouco e descansar. Desejava passar algum tempo sozinha com Drustan.
Ana caminhou pela sombra das pereiras, a relva macia por baixo dos chinelos emprestados. O dia estava quente, o céu limpo. A canção dos pássaros enchia o jardim e os insectos faziam-se ouvir em cada canto. Uma gralha saltava por entre as raízes de uma árvore vetusta, em busca de escaravelhos. Um cruza-bico estava empoleirado nos ramos, a observar Ana com um menear de cabeça. Os homens tinham sido levados por um servo idoso quando ela fora tomar banho. Já deviam estar prontos.
Pensou em Drustan, e em como o Monte Branco seria difícil para ele. Teriam de ali ficar pelo menos até que Bridei regressasse a casa. Talvez ainda mais. Para além de terem de obter o consentimento do rei para o seu casamento, precisavam de tomar outras decisões. Com Alpin morto, em breve seria imperioso que Drustan regressasse ao norte e estabelecesse uma nova ordem em Briar Wood e no Vale dos Sonhos. Ana pensara na possibilidade de voltar a casa, às Ilhas Pequenas. Aí, o casal poderia instalar-se entre os parentes da jovem e criar uma vida livre do fardo do crime de Alpin e livre da dúvida e da desconfiança que seriam obrigados a enfrentar em Briar Wood. Não o sugeriu a Drustan. Fariam uma visita mais tarde e por fim ela veria a irmã. Sabia que, primeiro, Drustan tinha de enfrentar os seus demônios interiores e eliminá-los. Encontrariam Bela. Conseguiriam provar a inocência de Drustan perante todos.
Para ele, a corte de Fortriu seria um desafio. Passara sete anos encarcerado, apenas com um companheiro. Ser colocado no meio daquele círculo de poderosos, de intrigas, boatos e manobras, seria um choque. Teria de apresentar explicações por ele. Contar a Tuala e provavelmente a Broichan sobre as transformações, sobre o talento que fazia de Drustan o homem excepcional que era, e que precisava de estar em liberdade, para se deslocar entre os mundos. Teria de lhes contar que uma princesa do sangue real de Fortriu pretendia casar-se com alguém que conseguia mudar de forma.
— Ana?
A jovem girou sobre os calcanhares, desperta dos seus pensamentos com um sobressalto. Não era Drustan que ali estava sob as árvores, mas Faolan, escanhoado, o cabelo moreno penteado e apanhado, as roupas simples que lhe tinham emprestado a revelar como ficara magro. A luz do entardecer aprofundava as rugas da doença e da exaustão que lhe vincavam o rosto. Controlava perfeitamente a expressão, mas Ana viu tristeza e preocupação a um tempo. Tinha um saco às costas e botas de caminhante nos pés. Cruzaram o olhar sem trocar uma palavra.
O esboço de sorriso que Faolan ostentava troçava de si próprio, à medida que assimilava as mudanças na aparência de Ana.
— Não é esta a imagem que irei recordar — disse-lhe.
— O que queres dizer? — De repente sentiu-se apreensiva. — Estarei no Monte Branco e tu também, Faolan.
Olhou para as mãos, incapaz de fitá-la.
— Se estiveres lá com ele — disse-lhe —, não serei capaz de ficar no Monte Branco. Estou de partida. Vou contar o que aconteceu a Broichan e a Tuala. Fica aqui mais algum tempo com Drustan. Ele precisa de voltar a habituar-se a estar entre pessoas e será mais fácil aqui do que na corte. Regressem quando estiverem ambos prontos. Nessa altura já deverei ter partido. Ficou desolada.
— Mas, Faolan, então e Bridei? Não podes partir, ele precisa de ti. Compreendo que seja uma situação constrangedora, mas continuamos amigos, não é? Nós três fizemos uma longa viagem. Não podes deixar o Monte Branco.
Insistiu em desviar o olhar. Tinha as feições reservadas, a mesma máscara dos primeiros dias, em que ela acreditara que Faolan era um homem incapaz de sentir.
— Vais casar-te com ele, não é? — perguntou-lhe. — Isso, é claro, se conseguires convencer Bridei de que é uma boa idéia. Tencionas ficar na corte até que Drustan esteja pronto a regressar a ocidente e a reclamar as suas terras. Isso significa que terei de partir, Ana. Se tal me obrigar a abandonar o serviço de Bridei, é o que farei. Afinal de contas, sou uma espada de aluguer e posso ganhar a vida em qualquer lugar. Desde que pague bem, um mestre não é diferente do outro.
Seguiu-se um breve silêncio, ao que Ana se aproximou e segurou-lhe nas mãos.
— Fomos nós, não foi? — perguntou, com uma sensação de perda no coração. — Drustan e eu afastamos-te. Isto é terrível, Faolan, cruel e errado. Sei o que Bridei representa para ti. Não podes deixar que o que aconteceu estrague essa ligação. O teu irmão morreu e essa morte levou um pouco do teu espírito. Não deixes que a fúria te roube um amigo tão próximo como qualquer irmão. Talvez julgues que fracassaste na tua missão. Bridei não vai concordar. Pelo menos espera no Monte Branco, até que ele tenha oportunidade de to dizer.
Faolan soltou gentilmente as mãos, puxou o saco que tinha às costas mais para cima e virou-se.
— Por vezes há coisas que não devem ser ditas — indicou. — Às vezes é melhor guardar silêncio. Tenho de partir. Sinto uma urgência, uma necessidade de regressar à corte rapidamente, mesmo sabendo que Bridei estará fora. Isso impele-me ainda mais do que...
— Ainda mais do que a tua aversão a veres-me e a Drustan juntos?
— perguntou-lhe Ana, sem rodeios.
— Qual o casal de amantes que aprecia um observador permanente?
— O tom era amargo. — Desejo-te o melhor. Adeus, Ana. — Com alguns passos sob as árvores, Faolan desapareceu de vista antes que a jovem conseguisse ganhar fôlego para responder, embora não fizesse idéia de qual poderia ser a resposta.
Esperou por Drustan sentada na relva, as mãos à volta dos joelhos, tentando não aceitar a convicção cada vez mais forte de que, sem a presença de Drustan e de Faolan, faltar-lhe-ia sempre uma parte essencial do seu ser. A sua mente não o admitia, não podia ser verdade, estava longe de tudo o que esperara, era uma irregularidade num caminho futuro, que deveria estender-se de uma forma exata. Nunca acreditara que pudesse ter a felicidade de encontrar um homem que viesse a amar como a Drustan, uma paixão inebriante que apagava tudo o resto. Quase tudo. Havia Faolan: o seu amigo mais querido, o companheiro sempre presente e forte, o seu complemento. Amparara-a quando o caminho se desmoronara a seus pés. A sua música fizera-a chorar. Os seus braços tinham afastado as trevas. Os olhos disseram-lhe... Os olhos disseram-lhe que ele a amava tal como Fionnbharr amava Aoife, a fada, com uma paixão profunda e inabalável. Soubera-o desde o dia na floresta em que o acusara de ciúmes. Era a força dos seus próprios sentimentos que lhe parecia nova e chocante. Algo tomara conta dela sorrateiramente, algo cujo significado apenas percebera naquele momento, depois de Faolan se ter ido embora. A deusa brincara com ela, trazendo-lhe não um, mas dois homens para amar. E, por mais que lhe custasse admiti-lo, parecia a Ana que precisava dos dois. Tal nunca poderia ser. Faolan tinha razão. Naquele jogo cruel a três, um deles destinava-se a ficar sozinho.
— Ana?
Desta vez era Drustan quem se aproximava por baixo das pereiras, envergando uma túnica e calças de lã, tingidas com as múltiplas cores da casa de Ged, a cascata de cabelo brilhante apanhado, sem grande sucesso, com uma fita. O sorriso afugentou-lhe as dúvidas do coração de um momento para o outro. Ana levantou-se e correu para ele, que a abraçou, num aperto forte e quente. Ana sentiu o bater apressado do coração de Drustan, um eco do seu.
— Senti a tua falta — murmurou contra o cabelo da jovem. — Cheiras a flores silvestres e o teu cabelo é macio como a lanugem dos cardos.
— Mm — murmurou Ana, enquanto saboreava o momento. Tinham sido reservados durante a viagem, respeitando a presença de Faolan. Estar assim tão perto era libertar um sentimento que parecia um fogo a atear-se, um calor no corpo que se tornaria tão poderoso que restaria apenas uma forma de controlá-lo. Levou o rosto ao dele e, momentos depois, os lábios encontraram-se, hesitantes de início, um toque leve, uma impressão de uma pena. Depois voltaram a tocar-se, desta vez mais profundamente, a mão dele subindo até ao pescoço da jovem, os lábios a entreabrirem-se e a sensação primeva do contacto das línguas, que lhe lançou um arrepio até ao mais íntimo do ser. Sentia os membros fracos. O coração entregara-se a uma dança insana. Levou as mãos às costas largas, puxando-o para si.
A gralha crocitou. Ana caiu em si, afastou os lábios e baixou as mãos até ao coração de Drustan.
— Drustan?
— Mm? — Segurou-lhe na mão direita, baixando a cabeça para lhe beijar a palma, onde desenhou um círculo com a ponta da língua, o que a fez estremecer.
— É melhor parares. Não consigo pensar quando o fazes. Drustan imobilizou-se de repente. — O que foi, Ana?
— Faolan. Partiu sozinho. Drustan ficou em silêncio.
— E disse-me que não vai ficar no Monte Branco, se lá estivermos. Vai abandonar a vida que lá construiu, virar as costas a Bridei, seu patrono e amigo querido. Vai ganhar a vida como mercenário, assassino contratado. Não pode fazer isso. Não agora que cantou as suas canções e contou a sua história e recomeçou a viver. É... — Deteve-se abruptamente. Não conseguia pôr em palavras o terrível desperdício que era, o quão desolada a fazia sentir-se.
— Choras por ele. — O tom de Drustan era tão gentil como o dedo com que lhe limpou as lágrimas da face.
Ana aquiesceu, continuando incapaz de falar.
— Ele ama-te. A paixão cresceu tanto que já não consegue escondê-la. Fez o possível por ocultá-la.
— Sabias?
— Desde que o conheci. Desde que vi a expressão que tinha no rosto quando disse o teu nome. Vem, deixa-me abraçar-te. Também eu consigo refrear-me quando a isso sou obrigado, embora a chama que arde em mim seja um prazer cruel. Pronto, chora. Que devemos fazer? Esperava que passássemos alguns dias aqui. Ele partiu, creio, porque julgou que nós fôssemos... porque não queria estar aqui quando... — De súbito, também ele sentia a falta das palavras.
— Estás embaraçado — disse Ana, o espectáculo do rubor dele o suficiente para fazer surgir um sorriso por entre as lágrimas. — Não faz mal, Drustan, não estou chocada. Imagino que saibas que em mim arde o mesmo fogo. Cada toque teu inflama-o. É verdade, em tempos fui uma rapariga que seguia as regras: era obediente, respeitadora e correta em todos os aspectos. Essa rapariga nunca pensaria em desejar a noite de núpcias, especialmente antes de obter o consentimento do rei para a união. Seria incapaz de fazer este discurso sem ficar vermelha como tu.
Drusdan sorriu.
— Vejo um tom rosa muito atraente nas tuas faces, Ana. Pareces a Primavera. És como a bela Todas as Flores em forma humana. Se eu coro como um rapazinho nervoso, é porque tudo isto é novo para mim e não sei como irás responder.
— Responder? Qual é a pergunta?
Era óbvio que Drustan se sentia embaraçado pelo que tinha para dizer. Estava agitado, como um jovem de dezasseis anos, e Ana fez por lembrar-se de que ele estivera fechado sete anos, não tendo ainda recuperado o hábito de conviver com outras pessoas.
— Queres ir atrás de Faolan, não é? — perguntou.
— Tenho a certeza que não foi isso que te fez corar, Drustan, mas sim, quero. Não podemos deixá-lo fugir da corte e desaparecer das nossas vidas. Temos de ajudá-lo a enfrentar o passado e a aceitar o presente, mesmo que isso signifique que tem de aceitar a amizade, o amor e a dor. Já é tempo de admitir que é um homem, com as suas fraquezas, bem como as suas forças. Tem de aceitar que o amor dói, mas que acaba por sarar.
Drustan fitou-a com um ar grave.
— Então vamos pedir cavalos emprestados e vamos já atrás dele — disse.
— É o que devíamos fazer. — Ana ouviu a incerteza na própria voz. A mão de Drustan estava na sua nuca e afagava a pele por baixo do macio cabelo cortado. Essa sensação deliciosa fazia com que fosse difícil concentrar-se. — Imediatamente. Ele não vai gostar, mas...
— Sendo assim — murmurou Drustan, que voltara a tomá-la nos braços —, esta noite não?
A jovem não conseguia falar. Cada parte de si gritava por ele. O desejo que sentia era potente, assustador.
— Farei o que quiseres, Ana — disse Drustan. Baixou as mãos, uma até à cintura de Ana, a outra até às nádegas da jovem, e puxou-a contra si, encostando peito e ventre. A forma dura da sua virilidade era surpreendentemente clara e ainda mais espantosa foi a resposta de Ana, um calor que lhe latejava entre as pernas, fazendo-a chegar-se a ele de uma forma que, ainda há pouco tempo atrás, consideraria chocante, de tão indecorosa.
— Isto não é justo — arquejou. — Sabes o que eu quero... mas...
— Ana — atalhou Drustan —, partirei de imediato, se quiseres. Esta viagem uniu-nos aos três, tu, eu e Faolan. Para onde quer que vamos, o que quer que façamos, nunca poderemos fugir disso. Temos de fazer o que sugeres. Temos de segui-lo, encontrá-lo e convencê-lo. Não vou negar-te que me entreguei a certos pensamentos doces sobre o nosso descanso, aqui em Abertornie. Mas posso esperar. Em sete anos, devo, pelo menos, ter aprendido a fazer isso.
— Mm — disse Ana. Soltou-se com alguma relutância e voltou a sentar-se na relva. — Sabes, o problema não é a chegada de Faolan ao Monte Branco, mas a sua partida. Ofereceu-se para transmitir as notícias a Broichan. Terá de ficar na corte por três ou quatro dias para se reunir com os conselheiros de Bridei. É o mínimo que esperam dele. Além disso, e embora Faolan nunca venha a admiti-lo, estava tão exausto que deverá acampar daqui a pouco, partindo apenas amanhã de manhã. Isso significa...
— Significa que poderemos adiar a nossa partida até amanhã e ainda o vamos alcançar, minha princesa.
Ana sorriu-lhe. — Princesa? Não me senti uma grande princesa naqueles trapos, com lobos a toda a volta. E continuo sem me sentir assim, com ou sem banho.
— Para mim, e para ele — declarou Drustan, com solenidade —, nunca foste nada menos. Ficas esta noite?
A jovem aquiesceu, de súbito envergonhada.
Drustan tinha os olhos brilhantes, a expressão séria.
— Serás minha esposa? — perguntou-lhe.
Ana fitou-o. Conseguira surpreendê-la. — Também não era essa a pergunta que esperava — disse.
— Diz-me o que esperavas.
Ana pigarreou.
— Dormes... dormes comigo, esta noite?
— Sim — respondeu Drustan de imediato.
— A minha resposta também é sim. Loura vai ficar chocada.
— Duvido — riu-se Drustan. — Julgo que ela já espera o pior de nós. Mostraram-me os aposentos que nos prepararam e são ao lado um do outro. Oh, Ana. Não mereço tanta felicidade. Quero gritar, cantar, voar bem alto e bradar para todo o mundo ouvir. É tanta alegria que mal consigo agüentar. — Estava radiante. Parecia a Ana que as mágoas, as contrariedades, as crueldades dos últimos sete anos tinham sido eliminadas de um momento para o outro. Fora ela que o conseguira. Virara-lhe o mundo ao contrário e tornara-o novamente uno. Houvera um custo. No dia seguinte iriam pedir cavalos emprestado e tentar fazer alguma coisa quanto a isso. No dia seguinte.
— Honras-me — disse a Drustan, com alguma timidez na voz.
— Não — disse Drustan. — Se aceitares ser minha esposa, concedes-me uma dádiva acima da honra.
— Já aceitei.
Assustou-a ao cair de joelhos. Envolveu-a com os braços e encostou a cabeça ao seu colo, como se fosse uma criança. Ana sentiu uma tensão nova no corpo.
— Ele pode não consentir. Bridei. Pode julgar que não sou adequado. És a minha princesa. Mas também és uma princesa dos Priteni, uma noiva de imenso valor para o reino. E se...?
— Drustan?
Um silêncio. Tinha o rosto contra ela e Ana não conseguia ver-lhe os olhos.
— Drustan, olha para mim. Assim é melhor. Eu amo-te, meu querido. — Afagou a catarata exuberante de cabelo brilhante. — Mais do que a alvorada, mais do que o luar, mais do que a canção de um pássaro e do que a luz na água, mais do que um lume aconchegante no fim de uma viagem. Amo-te de todo o coração, agora e sempre. Quero que os meus filhos sejam os teus filhos. Quero envelhecer contigo, sempre deliciados quando nos olhamos. Sonhei com uma criança, cheguei a contar-te? Tinha o teu cabelo, os teus belos olhos. Era tua, Drustan. Sei que estávamos destinados um ao outro. Se Bridei não nos der o seu consentimento, deixarei a corte a teu lado. Os deuses vão compreender que o que nos une é mais forte do que a cerimônia efetuada por um druida.
— E Faolan? — A voz era um murmúrio. Ana suspirou.
— Faolan é-me muito querido. Num outro mundo, se nunca te tivesse encontrado, talvez... Não, não posso dizer isso. Faolan tem uma longa viagem à sua frente. Julgo que existe uma demanda que terá de seguir e com isso não posso ajudá-lo. Não nego que preferia tê-lo por perto. Mas julgo que o seu destino se afasta do nosso.
— E isso deixa-te triste, mesmo neste momento de alegria.
— Um pouco triste, mas irei esquecê-lo até amanhã. De manhã, iremos atrás dele e tentaremos fazer com que ele caia em si. Até lá...
Drustan levantou-se.
— Quanto tempo julgas que falta até ao pôr do Sol? — perguntou-lhe, a sorrir.
— Não tanto como nos vai parecer — disse Ana. — Imagino que, após tanto tempo, possamos esperar até lá. Espero que dispas essa túnica extravagante antes da hora de recolhermos. É mais do que berrante.
— Lembras-te — disse Drustan gentilmente — quando há muito tempo te perguntei se gostarias de te despir à minha frente? Julgo que a tua resposta foi sim. Ou porventura terás respondido talvez.
— Em breve vais descobri-lo — disse Ana. Deu-lhe o braço e dirigiu-se à casa. — Talvez devas mostrar-me esses quartos adjacentes. Não vou perguntar onde Faolan devia dormir. Nem quero saber o que ia na cabeça de Loura. Deve ser mais observadora e mais aberta do que eu imaginava. Mas é esposa de Ged. Imagino que já tenha visto um pouco de tudo.

 

 

 

 

CAPÍTULO DEZESSETE


Tuala vira-os a chegar na taça das visões. Desde que Fola e Broichan a tinham feito quebrar a promessa que fizera a si própria, começara a procurar as revelações todos os dias. Na sua mente não havia espaço para mais nada, a não ser Bridei. Enquanto percorria os corredores, as salas e os jardins do Monte Branco, fazia a sua viagem com ele, por entre vales, passagens e campos de cultivo entre a corte e Dalriada, entre batalha, descanso e nova batalha. Pouco dormia, pois sabia que Bridei estaria acordado, a avaliar a importância deste e daquele homem. Para ele, os territórios conquistados, as vantagens adquiridas nunca seriam o suficiente para equilibrar o custo em vidas humanas.
Tomara a decisão difícil de entregar Derelei na casa das mulheres sábias por algum tempo, onde ficara com Broichan. A ama tomaria conta dele com carinho, e druida e criança poderiam desfrutar da paz concedida por Banmerren. Tuala estava demasiado absorta para dar ao filho o tempo de que o menino precisava. Em breve iria trazê-lo de volta a casa. Entretanto, Ban, o pequeno cão de Bridei, começara a segui-la para todo o lado, instalando-se a seus pés quando ela procurava as visões na água e marchando a seu lado quando Tuala caminhava inquieta.
Tuala sabia que estava a ser vigiada sutilmente. Aniel tinha guardas que mantinham uma proteção discreta. Tharan surgia de vez em quando, perguntando-lhe com um acanhamento grave se a rainha estava bem. Aqueles dois conselheiros principais sabiam o que a taça das visões revelara. Tuala procurara o seu conselho no dia em que regressara ao Monte Branco, esperando, sem grande convicção, que houvesse algo em que não tivesse pensado, alguma forma de atravessar a tempo a distância que os separava do sul de Dalriada. Em breve os rostos sombrios deitaram por terra essa esperança. Mesmo que um mensageiro conseguisse atravessar Dalriada ileso, não chegaria a Bridei antes que o Outono estivesse bem avançado. Tuala sabia que então seria tarde de mais. Quanto às tentativas de invocar o povo do Outro Mundo em seu auxílio, tinham sido em vão. Tal como imaginara, as suas súplicas tinham-se deparado com o silêncio. Teia, Madressilva e os restantes da sua espécie apenas surgiam quando lhes convinha. A solução teria de passar por mãos humanas.
A visão de Broichan na floresta durante a Primavera, com uma mulher dos Boa Gente a observá-lo, não se repetira. Quem sabia o que os druidas faziam nas longas e solitárias vigílias na floresta, durante o festival da Harmonia? Era a deusa quem os comandava, de mente e espírito. E de corpo, também. Os membros da irmandade não passavam dias pendurados nas bifurcações dos ramos dos carvalhos, envoltos em peles de boi, à espera de visões proféticas? Talvez existissem outras formas do corpo de um homem apto ser chamado ao serviço d'A Que Brilha. Tuala queria saber a que ano pertencia aquela imagem. Imaginava que se tratasse do ano em que Broichan viajara até Caer Pridne e quase morrera envenenado: o ano do seu próprio nascimento.
A taça das visões não oferecera qualquer outro vislumbre de Bridei, mas nessa manhã, na água límpida, Tuala vira Ana a regressar a casa, uma Ana estranhamente alterada, como se tivesse atravessado uma fornalha, de onde saíra apenas a essência. A amiga de Tuala estava bastante magra e o belo cabelo fora cortado muito curto. Na visão, seguia ao lado de Faolan por um carreiro familiar, o caminho para Abertornie. Faolan tinha um ar miserável: enfermo, abatido. Algo correra muito mal, isso era óbvio. Eram apenas eles os dois, sem escolta, sem guardas, apenas o homem, a mulher, os dois cavalos. E...
E o falcão. Ana envergava uma luva pesada, onde se empoleirava uma criatura cuja magnífica plumagem ostentava todas as cores, desde o castanho-escuro dos carvalhos, passando pelo vermelho fogo, até ao dourado da cevada madura. Os olhos eram penetrantes, sábios, perigosos. A ave era de uma espécie desconhecida de Tuala. As cores ricas e o porte nobre pareciam distingui-la como sendo excepcional, única. Ana transportava o falcão com facilidade, apesar do tamanho da ave, com o braço e o ombro descontraídos. Os olhos cinzentos da jovem sempre tinham possuído uma serenidade profunda, ela sempre parecera calma, mas triste. Nesses olhos havia agora uma expressão que Tuala nunca vira. Pesasse embora a forma como regressavam, sinal claro de que a missão a Briar Wood não correra como Bridei desejara, os olhos de Ana brilhavam com uma alegria transcendente.
Tuala imaginou que se tratasse de uma visão do presente e mandou fazer preparativos para recebê-los ao fim do dia. A luz na imagem era a de um início de tarde, um brilho quente que reluzia na folhagem das faias, o sol a varrer os carreiros da floresta e a transformar o cabelo de Ana numa mancha dourada por entre o verde. As folhas começavam já a exibir os tons suaves do Outono. A guerra a ocidente poderia estar perto do fim. Se Bridei estivesse vivo. Se os deuses o poupassem. Se um jovem imponente de punhal na mão e uma missão no olhar conseguisse ser detido a tempo.
Tuala suspirou. O dom da visão era cruel. Afinal de contas, a vida estava repleta de possibilidades, perigos e decisões rápidas. Se um homem não morresse pela lâmina de um assassino, ninguém podia afirmar que não viria a perecer de outra forma no dia seguinte, ou no outro. Se alguém procurasse intervir por a água mostrar algo indesejado, arriscava-se a desencadear uma série de acontecimentos que, à sua maneira, poderiam ser ainda mais desastrosos do que a visão. Por outro lado, A Que Brilha mostrara aquelas imagens a Tuala por uma razão. Esse motivo era Bridei: não apenas o seu marido, o seu amigo, o mais querido dos amigos e pai do seu filho, mas também o rei de Fortriu, o grande líder do povo. O que seria a visão, se não um chamado para que agisse?
Com esse dilema a percorrer-lhe a mente, Tuala foi com Aniel para a muralha do nível superior do Monte Branco, de onde olharam encosta abaixo, em busca de sinais de cavaleiros que se aproximassem. Ban estava a seus pés, o pequeno corpo tenso com a expectativa. Tuala chamara Aniel assim que vira Faolan na água, pois o seu regresso era acompanhado por uma tênue esperança. Não fora o braço direito de Bridei sempre capaz de realizar a mais difícil das missões e de encontrar respostas para os problemas mais confusos? Faolan era arrojado, inventivo e capaz. Talvez encontrasse uma solução, onde até mesmo Broichan fracassara. Tuala manteve consigo a inquietude que sentia em relação ao aspecto de Faolan. Deixaria que os viajantes contassem a história deles antes de partilhar a sua.
Era quase ocaso quando os cavaleiros se deixaram avistar. Ao vê-los, Tuala abafou um arquejo de surpresa.
— Pensei que me tinhas dito que Ana e Faolan vinham sozinhos — comentou Amel, semicerrando os olhos para ver melhor. — Quem é aquele?
O tom era o eco da reação de Tuala. Não só Faolan e Ana eram acompanhados por um terceiro elemento, como este partilhava o cavalo de Ana, apoiando-a com um braço, tendo-a sentada de lado à sua frente, o cabelo dourado da jovem a misturar-se na sua própria massa de caracóis ruivos. Aqueles dois eram a imagem de uma narrativa antiga, uma imagem tão bela e cativante que fazia perder o fôlego.
— Não é um guarda — disse Tuala. — Imagino que se trate do marido, Alpin, de Briar Wood. Parece-me que ela se deu melhor do que todos nós esperávamos. — O companheiro de Ana era, sem dúvida, o mais atraente espécime de beleza masculina que já visitara o Monte Branco. Mesmo Tuala, que considerava Bridei o homem mais perfeito de toda Fortriu, era obrigada a reconhecê-lo. Tardiamente, recordou a visão narrada por Fola, que incluía uma batalha com lobos. Na altura, parecera improvável. Depois reparou na gralha que viajava no ombro direito do indivíduo e no pássaro mais diminuto empoleirado no esquerdo. A luva de Ana desaparecera, bem como o falcão. Havia qualquer coisa muito estranha em tudo aquilo. Ana estava encostada ao jovem como se este fosse o seu lar, o seu calor, o seu santuário. O braço que a apoiava curvava-se com delicadeza e ternura em redor do corpo magro, nas roupas demasiado largas. Talvez a missão tivesse acabado por ser um sucesso.
— Vamos — indicou Tuala ao conselheiro. — Temos de descer e recebê-los devidamente. Têm uma história a contar e imagino que seja bem estranha. Vamos, Ban. — O pequeno cão seguiu obedientemente, mas tinha as orelhas dependuradas. Tuala sofria por ele. — Tem paciência — sussurrou-lhe, baixando-se para afagar a pequena cabeça do animal. — Ele volta. — Que A Que Brilha assim o permita, acrescentou em silêncio. Que os deuses o tragam vivo, bem e vitorioso, para que não precisemos de passar por tudo isto durante algum tempo. Que o meu próximo filho nasça num mundo em paz.
Foi deveras uma narrativa estranha e triste, pois onze homens do Monte Branco tinham morrido em Breaking Ford e os familiares teriam de receber as notícias chocantes. Tuala sentiu que Faolan, que assumia o papel de narrador principal, não contara a história toda. Apresentara o estranho como sendo irmão de Alpin e Ana garantira-lhes serenamente que o líder de Briar Wood viera a provar-se bastante aquém daquilo que esperavam. Alpin, disse com frieza, estava morto, resultado de uma combinação infeliz de circunstâncias. Com a permissão do rei, iria casar-se com o irmão. O irmão: o estranho atraente de olhos brilhantes, cujos modos incomodavam Tuala, recordando-a de algo que não era capaz de identificar. Os dois pássaros mantiveram-se sempre perto dele, mesmo na sala de audiências, onde os viajantes se tinham reunido com Tuala, Aniel e Tharan, a fim de apresentarem o seu relato. Drustan não ocultava o fato de estar de mão dada com Ana. Olhavam com freqüência um para o outro, como se não conseguissem afastar-se. Salvo um cumprimento cortês, Drustan não dissera nada. Havia ali um mistério, mas teria de esperar.
— Há novidades de Bridei? — perguntou Faolan. — Onde está ele? Até onde chegou a força?
Tharan pigarreou. Aniel olhou intencionalmente para Drustan.
— Temos de falar contigo em privado, Faolan — disse Tuala. — Há um assunto sério e urgente que temos de discutir. Esperamos que possas ajudar.
— Que assunto? — O tom era severo.
— Em privado — insistiu Aniel. — Lady Ana, deves estar cansada da viagem desde Abertornie. Vou preparar um quarto para que...
— Ambos devem ficar — atalhou Faolan. — Tem a ver com Bridei, não é? Podem falar abertamente perante os dois. Com efeito, devem fazê-lo. Os vossos segredos podem ser confiados a Ana. Drustan é um amigo e um aliado.
Os dois conselheiros fitaram-no. O que sugeria era uma quebra total de protocolo. Havia boas razões para tais regras, especialmente em tempo de guerra. Faolan, acima de tudo, deveria ter noção dos riscos inerentes à divulgação de informações críticas.
— Não assumi qualquer posição nesta guerra, nunca o fiz. — Drustan falava calmamente. — O meu irmão decidiu sozinho empregar o meu território como base para as suas forças marítimas. Isso vai mudar quando do meu regresso ao Vale dos Sonhos. Agora que Alpin morreu, Briar Wood ficará também sob a minha alçada. Os amigos de Ana são meus amigos. Estou fora desta guerra.
— Digam-nos — indicou Ana. — O que aconteceu? O empreendimento de Bridei correu mal?
— Lamento. — De súbito, a voz de Aniel assumiu um tom proibitivo. — Tais assuntos encontram-se limitados a reuniões privadas. Seja qual for a opinião de Faolan, na ausência do rei e do seu druida, a decisão compete a mim e ao meu camarada conselheiro, com a sugestão da rainha. Um homem não poderá assistir a tais reuniões apenas com base num conhecimento de alguns minutos, ou na suposição de que virá a ser considerado um pretendente adequado a uma refém real.
As feições exaustas de Faolan assumiram uma expressão que apenas poderia ser descrita como assustadora. Cerrou as mãos em punhos.
— Drustan — disse Ana calmamente —, vamos retirar-nos um pouco. Aniel tem razão. Estou cansada e, além disso, quero mostrar-te o jardim antes que fique muito escuro. E quero apresentar-te a Derelei. Vamos?
— Obrigada, Ana — agradeceu Tuala. — Receio que Derelei não esteja presente. Está em Banmerren, com Broichan. Irei ter contigo assim que terminarmos. — E, quando Ana e o jovem extraordinário saíram, sempre de mão dada, continuou: — Faolan, senta-te, por favor. Não temos tempo para quizilas internas. Bridei está em perigo. Precisamos da tua ajuda.
Faolan sentou-se, os lábios cerrados.
— Conta-lhe, Aniel — indicou Tuala.
Aniel expôs a situação: a visão, sem especificar de quem, a batalha, a luta, o jovem imponente com o punhal. Tuala observou as faces de Faolan a empalidecer e o maxilar a contrair-se, à medida que a narrativa avançava.
— Imaginamos — acrescentou Tharan, gravemente —, que isto deverá ter lugar em breve, se é que já não ocorreu. Broichan diz-nos que não tem o poder de viajar rapidamente para oeste, como por vezes os seus pares fazem. Com efeito, não há em Fortriu um druida vivo com essa capacidade. Enviamos cavaleiros, é claro. Mas estamos convencidos de que não irão alcançar Bridei a tempo. O Outono está invulgarmente bom, com tempo bastante ameno, invulgarmente bom para o Outono. A descrição da cena, a luz, a cor das árvores, tudo sugere tais condições. Imaginamos que a localização da batalha condiga com o plano dos líderes guerreiros de Fortriu. Julgamos que está iminente.
— O augúrio lançado por Broichan, antes de Bridei partir, continha um aviso de morte. — Mesmo naquele contexto, cercada por homens de confiança, Tuala teve o cuidado de não mencionar o seu papel em tudo aquilo. — É um caso desesperado, Faolan.
— Devia lá estar — resmungou Faolan. — Devia ter ido com ele.
— Esperávamos — disse Tuala —, que conseguisses pensar em alguma coisa que nos tivesse escapado. Não acredito que os deuses o sacrificassem dessa maneira, nem que nos tivessem concedido esta visão, caso não houvesse forma de intervir. Temos de salvá-lo.
— Existe uma solução — disse Faolan. — Reside em Drustan, o homem em quem não confiam. Estariam a pedir-lhe que se colocasse em perigo. Estariam a pedir a Ana que arriscasse o futuro que tanto lhe custou a conquistar. Tal não me agrada, mesmo com a vida de Bridei em risco.
— Falas por enigmas — disse Tharan. — Como pode este homem ajudar-nos? É um estranho. É um Caitt, irmão de um homem que, ao que parece, era aliado de Dalriada. Como podemos confiar nele, mesmo partindo do princípio de que será capaz de fazer o impossível?
Faolan não respondeu.
— Faolan? — incitou Tuala. — O tempo urge. O que devemos fazer?
— Eu falo com eles. — O tom era relutante, o olhar esquivo. — Se quiserem ajudar, caberá a Ana e a Drustan explicar-lhes, contar-lhes a sua história. Ele pode chegar até Bridei a tempo. Se devemos entregar-lhe esta tarefa, isso já é outro assunto.
Esperaram somente até à alvorada. Drustan, reticente e nervoso agora que se encontrava no meio de estranhos, não quis efetuar a transformação em público. A própria Ana apenas a tinha testemunhado pela primeira vez um dia antes e tornara-se evidente que ele ainda via a sua capacidade como sendo, ao mesmo tempo, uma dádiva e um fardo, algo que o marcaria sempre como diferente, estranho e, para algumas pessoas, ameaçador. Ana considerara-o um espetáculo incrível e belo. Quando fizera amor com ela, Ana sentira a natureza dupla no poder vibrante do corpo de Drustan, o toque macio como uma pena das mãos, o júbilo fluido e inquieto que o possuíra depois. A energia da união fora de tal ordem que, na manhã seguinte, Drustan vira-se obrigado a entrar no outro mundo, a transformar-se por algum tempo no seu outro eu. Ana maravilhara-se com a visão daquele homem alto, de pé numa clareira, os braços esticados numa pose semelhante à oração, os olhos brilhantes abertos à terra, às árvores, ao céu azul. Depois, num remoinho de movimento súbito, o falcão alçou voo, em direção à infinita extensão de azul. Regressara a ela nessa outra forma. Ana acalmara-o com a voz e com a mão suave, e levara-o para casa na luva com tanto orgulho, reverência e ternura, que no seu coração não havia espaço para dúvidas.
Despediam-se agora na privacidade de um pequeno pátio do Monte Branco, ela com os braços em volta dele, forçando-se a acreditar que não seria a última vez. Deixou a voz o mais firme que conseguiu. — Voa em segurança, meu amor. Voa e encontra-o. Ficarei à tua espera.
Os lábios de Drustan estavam contra o cabelo de Ana. Não disse nada. O corpo aproximava-se já do estado em que teria a energia, a capacidade para a transformação. Abraçou-a por um momento, depois soltou-a e afastou-se. Ana observou-o em silêncio enquanto rodopiava uma, duas vezes, a extremidade do sol nascente a alimentar-se do fogo do cabelo ruivo. Viu as asas imensas a abrirem-se e a subirem e uma única pena brilhante a flutuar até às lajes a seus pés. Drustan contornou o topo do Monte Branco e voou para sudoeste, em direção a Dalriada. Nos momentos que Ana precisou para se baixar e apanhar a pluma de tons dourados e vermelhos e em que a gralha e o cruza-bico surgiram do nada para virem pousar nos seus ombros, Drustan desaparecera de vista.
Ana ficou no pátio, relutante em voltar para o interior, pesasse embora o frio do início da manhã. Sabia do constrangimento de Drustan em relação à missão. Imaginava qual a causa, embora ele não a tivesse comentado. Era apenas um mensageiro. Mesmo assim, ia voar para o meio de uma guerra, a fim de encontrar um homem que poderia estar a lutar pela vida. E havia mais uma coisa, a expressão nos seus olhos quando lhe descreveram o atacante. Ana não sabia o que era, mas sabia que, mesmo com tudo o que Deord lhe ensinara, Drustan não era um combatente. Drustan não sentia desejo de vingança, nem de retribuição. Apenas queria uma esposa, um lar, a sua liberdade.
Ana não conseguia obrigar-se a entrar. Se ficasse onde o vira, abraçara, onde se despedira, a distância até Dalriada não pareceria tão longa, nem os inúmeros perigos entre o Monte Branco e os campos de batalha a ocidente tão inultrapassáveis. Um pássaro era algo tão frágil, um milagre de penas e ossos e coração acelerado. Até mesmo um grande caçador, como o falcão ou a águia, era vulnerável às tempestades, ao frio, a uma flecha ou uma pedra. Além disso, ele teria não só de percorrer aquela longa distância, mas também de encontrar Bridei quando lá chegasse. Encontrá-lo no meio de um território em conflito, pejado de acampamentos de guerreiros. Talvez fosse obrigado a procurá-lo no turbilhão da batalha. Bridei era rei. Contudo, Bridei nunca levava os ornamentos do seu estatuto para combate. Como poderia Drustan saber quem ele era? Como seria capaz de identificá-lo? Era uma missão desesperada. Não admirava que Faolan tivesse tanta relutância em apresentá-la.
Drustan escutara calmamente enquanto Tuala descrevia o melhor possível a altura, o lugar, a aparência do rei e a do pretenso assassino. Drustan fizera perguntas sobre o jovem guerreiro Caitt, tais como o estilo do cabelo e a cor dos olhos, um azul claro e invulgar, e limitara-se a dizer que sim, aceitava a missão.
Ana sabia por que motivo ele concordara sem hesitar, pesasse embora o risco. Talvez fosse a vontade de ajudá-los, retribuir a Ana e a Faolan pela amizade e pela confiança. A outra razão era mais poderosa e apenas poderia ser enunciada no fim de tudo. Pronunciá-la demasiado cedo ia ser como escarnecer dos deuses. Mas Ana vira-o nos olhos de Drustan, no relance que dirigiu ao rosto da jovem assim que Faolan lhes contou o que Tuala e os outros desejavam. Drustan ia fazê-lo pelo seu próprio futuro e pelo de Ana, não pretendera revelar toda a verdade sobre si próprio logo após a chegada ao Monte Branco. Afinal, não houvera escolha.
Agora que ele desaparecera e que o sol nascia, e à medida que o dia se tornava dourado e brilhante, o coração de Ana ia ficando envolto em sombras. Talvez tivesse ousado em demasia, desejado mais do que deveria. Será que a decisão súbita de abandonar o dever virara os deuses contra ela? Talvez, naquele mesmo dia, a Mãe de Tudo a fosse privar da sua dádiva maravilhosa, da aventura grandiosa, da criatura vibrante que detinha o poder de lhe preencher cada fôlego com felicidade. Se a tal fosse obrigada, Ana julgava não ter a capacidade de ser estóica. Se o perdesse, o seu mundo iria transformar-se em cinzas.
— Estás triste. — Faolan subira os degraus de pedra até ao terraço. Ana sabia que ele esperara lá em baixo, a observar Drustan a partir, mantendo-se afastado para que os dois pudessem despedir-se. Ao aproximar-se, os dois pássaros foram empoleirar-se na parede. — Ele fica bem. É forte.
— Espero que sim, Faolan. E espero que ele consiga avisar Bridei a tempo. Será que a nossa vida será sempre assim? Um momento de segurança e depois, de repente, novamente mergulhada no terror, com os deuses sempre a testar-nos.
— Talvez — disse Faolan, que viera colocar-se ao lado da jovem e olhava agora os pinheiros escuros que cobriam a encosta. Mesmo brilhante, a manhã era varrida por uma brisa fria. Em breve, o mundo escureceria. — Para mim, há muito que assim é. Espero que o vosso percurso seja mais simples. Terão de enfrentar desafios antes que isso aconteça. Não vai ser fácil para Drustan recuperar os territórios perdidos.
— Tal como disseste, ele é forte. E podemos conceder algum tempo para que ele recupere e se adapte às mudanças. Não creio que fiquemos na corte, Faolan. Vamos procurar outro lar até que ele esteja pronto a regressar. Já perguntei a Tuala se Broichan nos deixará ficar em Pitnochie na sua ausência. Drustan não se sente à vontade em espaços fechados, nem junto de grandes aglomerados de pessoas. É possível que tal nunca mude.
Seguiu-se uma pausa.
— Espero que não abandonem a corte por minha causa — disse Faolan.
— As minhas razões são boas e baseiam-se no amor — replicou Ana, levando a mão ao braço dele. — Não partas ainda, Faolan, por favor. Bridei corre perigo. Se for morto, tudo irá mudar. Para todos nós. Fazes muita falta. A tua força é muito importante para Tuala. E, se Bridei regressar são e salvo, espera que aqui estejas. Ele confia em ti. Sabes como tem poucos amigos. — Ouvia a incerteza na voz. Sentia um nó na garganta. Não ergueu o olhar, mas sentia o peso de ser observada.
— Estás preocupada comigo, num momento como este? — O tom de Faolan era, ao mesmo tempo, incrédulo e terno. Ana não pôde continuar a reprimir as lágrimas e, pouco depois, sentiu os braços dele a envolvê-la. Encostou a cabeça ao ombro de Faolan e chorou. Se ele a abraçou como um amigo, como um irmão, ou como um amante que sabe que nunca mais voltará a sentir a preferida do seu coração tão perto, isso foi algo que nunca, ao longo de toda a vida, contou a ninguém. Quando as lágrimas cessaram, Faolan limpou-lhe a face com a mão, os olhos nos dela, e Ana percebeu que ele a bebia, guardando recordações que o acalentariam nos tempos solitários que se avizinhavam.
— Eu... — começou Faolan a dizer, mas deteve-se, a boca retorcida num esgar.
— Shh — disse Ana, tocando-lhe nos lábios com os dedos. — Não o digas. Já o sei. Agora vou entrar. Está a ficar frio e Tuala tem estado no jardim a observar-nos desde antes de Drustan ter partido. Não desças já. Espera um pouco e pensa nisso. Promete-me, Faolan. Fica, pelo menos até sabermos que eles estão bem, Bridei e Drustan.
Faolan esboçou um sorriso.
— Não sou capaz de te recusar um pedido — disse. — Ficarei no Monte Branco até que Bridei me conceda autorização para partir. Prometo-o. — Ergueu-lhe a mão, mas não a beijou. Limitou-se a segurá-la contra a face por um momento, depois largou-a e afastou-se. Ana sabia que recordaria a sua expressão para sempre: a boca com um trejeito de auto-irrisão, os olhos desolados.
— Ana! Faolan! — A voz de Tuala fez-se ouvir degraus acima, com um tom cuidadosamente leve, embora de todos, fosse ela quem mais tivesse a perder naquele momento desesperado. — Pensei em tomar o pequeno-almoço no jardim. Fazem-me companhia? Sem Derelei não consigo habituar-me ao silêncio. — Era uma tentativa corajosa de mostrar calma. Ana percebeu-o de imediato. Tuala estava desesperadamente preocupada e sentia-se muito só.
— É claro — disse Ana, enquanto descia os degraus para dar o braço à amiga. — Drustan está a caminho. Teremos de aguardar por notícias. Faolan e eu temos mais para te contar. O relato de ontem foi uma primeira amostra. Receio que venhas a sentir-te chocada comigo, Tuala. Parti uma pessoa e regressei outra completamente diferente.
Tuala e Faolan trocaram um olhar. Ana não conseguiu interpretá-lo.
— Eu não o poria nesses termos, Ana — disse Tuala, calmamente. — Parece-me que descobriste quem és.
— Todos mudamos — interveio Faolan. — Fomos moldados no fogo. Criados a partir do nada. Os nossos músculos foram esticados na forma de cordas de harpa e dos corações fizeram tambores. O destino cria uma melodia diferente em cada um. Amor, perda, traição, realização.
Tuala arregalou os olhos. — Pareces um bardo a falar, Faolan — comentou.
— O que atravessamos deixou-nos mais fortes — disse Ana. — Agora temos de rezar para que Drustan tenha a força para concretizar esta viagem, e para que os deuses continuem a sorrir a Bridei.
Dirigiram-se os três ao jardim e o longo período de espera teve início.
O exército de Fortriu avançou sobre os Celtas de madrugada. As forças de Gabhran estavam dispostas ao longo do flanco sul de um vale amplo, por onde corria um ribeiro de tamanho considerável, largo, pedregoso e rápido, mas raramente com água acima dos joelhos. Era inevitável que aquele curso de água fosse palco da ação mais intensa. Os homens de Bridei tinham avançado na escuridão e, à primeira luz do dia, deram início a um assalto frontal: uma carga a cavalo, uma retirada rápida, seguida de uma investida de homens a pé, em formação de cunha. A oposição, que ainda procurava assumir posições defensivas quando a linha de cavaleiros armados com lanças galopara pelo acampamento, sofreu baixas pesadas durante o primeiro ataque. A investida em cunha que se seguiu era disciplinada e mortífera, a primeira fileira com os escudos erguidos numa sólida parede defensiva, as lanças da segunda fileira protuberantes por cima dos ombros da primeira, como os espinhos de um ouriço, e a terceira fileira equipada com dardos de arremesso, que seriam lançados sobre esta barreira formidável para a massa da infantaria inimiga.
Carnach e Bridei, sentados lado a lado nos seus cavalos e ofegantes devido à primeira ofensiva e retirada, observaram a tripla fileira de homens a avançar, o troar dos brados de desafio — Fortriu! Fortriu! — pontuado pelo som das botas, o esmagar das lanças de ponta de ferro nos escudos de madeira, o gemido e o impacto das flechas celtas lançadas demasiado tarde sobre a onda imparável.
Hargest cavalgara ao lado do rei, a par de Cinioch, e eliminara o primeiro celta com um golpe eficiente da espada. Com o fim do ataque montado, Cinioch trocara de lugar com Enfret, onde os cavaleiros de Carnach se reagrupavam. Hargest aguardava, todo ele tenso com a febre da batalha, enquanto Bridei e Carnach observavam o progresso da batalha e analisavam a estratégia. Os Celtas voltavam a formar na elevação junto ao acampamento. Não tinham sido apanhados desprevenidos. O avanço Priteni limitara-se a surgir mais cedo do que o previsto. Não tardaria que formassem uma defesa corajosa. O seu número era substancial.
— A determinada altura vamos deixar que nos empurrem para o rio — dizia Carnach. — Estás de acordo? Os nossos homens não devem avançar para além daquela formação rochosa, ou correm o risco de serem encurralados. Isto, se os chefes de Gabhran souberem o que estão a fazer. Temos de dar vantagem aos Celtas, atraí-los para a frente.
— Mas não demasiado cedo — disse Bridei, os olhos fitos num determinado local, onde fora erguido um estandarte, talvez o do rei de Dalriada. — Tem de ser convincente. É capaz de demorar um pouco, Carnach.
— Vamos agüentar. — O chefe tribal de Thorn Bend olhou na direção de Hargest. — Guarda bem o rei, rapaz. As coisas vão ficar feias antes do fim da manhã.
— Sei o que estou a fazer! — retorquiu Hargest. Carnach ignorou-o. — Que A Que Brilha te proteja, Bridei.
— Que o Guardião das Chamas te escude, meu amigo. Partiram então, em direções opostas. Carnach, seguido pelo seu próprio guarda, Gwrad, avançou com os soldados até à zona de combate, onde a cunha se dividira em pequenos esquadrões de ataque compostos por seis ou sete homens que trabalhavam em uníssono, aproveitando a vantagem táctica contra a confusão de guerreiros celtas. Quando se aproximassem demasiado da formação rochosa, Carnach ordenaria a retirada. Os homens tinham sido alertados para essa probabilidade e reconheceriam na ordem do líder a execução de uma determinada estratégia. A necessidade de obediência imediata fora-lhes inculcada, pois o seu instinto iria levá-los a ignorar a ordem. Tomavam agora o freio nos dentes e avançavam quase mais depressa do que a vontade de Carnach.
— Por aqui! — ordenou Bridei, guiando Snowfire na direção dos guerreiros montados que tinham sobrevivido à primeira investida e avaliavam os danos infligidos a homens e cavalos, enquanto a infantaria se digladiava com o inimigo. Muitos tinham caído ante flechas ou lanças atiradas à pressa. Um cavalo debatia-se no chão, com uma perna dianteira partida. Lavado pelas lágrimas, um guerreiro corpulento afagava o pescoço da criatura com a mão esquerda, enquanto preparava um punhal com a direita. Uven aplicava uma ligadura improvisada no braço de um guerreiro jovem. Cinioch desmontara e cuidava de um cavalo sem dono. E Enfret...
— Perdemos Enfret, meu senhor. — Uven ergueu o olhar à passagem de Bridei e deu conta do sucedido com um tom calmo. — Uma flecha no pescoço. Tombou a lutar. Vi-o a rasgar o peito de um celta com a espada.
Mais outro. — Que A Que Brilha lhe conceda descanso — disse Bridei. — Sejam fortes, homens. Aguentem-se. Vamos ganhar por ele e por todos os que já perdemos. Estamos perto do fim e vamos conseguir.
— Meu senhor? — Da voz de Cinioch transparecia uma mágoa furiosa, perceptível sobre os sons de morte que lhes assaltavam os ouvidos vindos de todo o lado ao mesmo tempo. — Seria melhor que me tivesses a teu lado. Aquilo está mais confuso do que as entranhas de uma ovelha. Não estarás a salvo só com ele. — Meneou a cabeça na direção de Hargest, que lhe lançou um olhar furioso. — Mas... — Passou a mão furiosa pelo rosto manchado de sujidade e de lágrimas.
— Mas o teu amigo caiu e queres vingá-lo — concluiu Bridei. — Eu compreendo. Cinioch, precisamos de todos os homens experientes em ação, tu incluído. És o último homem de Pitnochie em condições que resta. Deves representar Breth, Elpin e Enfret nesta derradeira batalha. Uven, sei que também darás um contributo valioso, mesmo que apenas possas usar só um braço. Deixem-nos orgulhosos, homens. Pensem nisto como uma recompensa por todos os anos que Broichan vos obrigou a gelar em Pitnochie, a guardar um rapazinho que gostava de passear na floresta. Dadas as circunstâncias, terei de aguentar-me com o meu único guarda. É Gabhran quem será um alvo fácil. Consigo ver-lhe o estandarte daqui.
— Mesmo assim...
— Não discutas, Cinioch, avança. Quando ouvirem a ordem de Carnach, preparem-se para a investida dos Celtas. Vão julgar que estamos a bater em retirada. Tenham cuidado para não se magoarem ao recuar. Vamos embora. Uven, faz o possível por proteger estes feridos. Que os deuses nos acompanhem a todos.
Bridei explicara o seu próprio papel a Hargest numa manhã em que os primeiros raios de sol tinham despertado nos guerreiros mais jovens e menos experientes uma inquietude que era parte entusiasmo e parte receio. Todos já tinham a sua dose de experiências de combate. O norte de Dalriada tinha sido conquistado mediante combates duros e todos tinham assistido à sua dose de sangue e de morte. Aquela, contudo, seria a batalha decisiva. Nesse dia, cada exército fazia uso do seu rei. Para Hargest, que já dera provas da sua capacidade no manejo das armas, seria um novo desafio. Sem Bridei, Fortriu ficaria sem líder, à deriva, perderia a segurança da mão do Guardião das Chamas. Pouco interessava que outros pudessem substituir o lugar do rei como líder da batalha. Bridei era mais do que simplesmente o monarca de Fortriu. Com a couraça de couro simples e o elmo sem adornos, a túnica e as calças de lã azul e as botas práticas, pareceria a um estranho apenas mais um guerreiro de vinte e seis Verões, um jovem no seu auge, determinado e forte. Para além dos sinais de clã gravados no rosto, e que um celta não saberia interpretar, a única marca da sua identidade era o escudo quadrado de madeira, que ostentava o símbolo de uma águia azul em fundo branco. Os olhos refletiam esse azul. Eram os olhos de um líder e erudito, guerreiro e construtor de paz, pois Bridei esforçava-se por ser tudo isso. Espada de Fortriu. Como chegara a merecer tal título? Era de carne e osso. Em pleno campo de batalha, era tão vulnerável e tão anônimo como todos os outros.
O desejo de parecer um homem entre iguais agravava o trabalho dos guarda-costas. Tanto Breth como Garth tinham comentado, em diferentes alturas, como seria mais simples se aquele rei usasse um elmo de ouro ou um torque de prata em combate. Poderia levar o estandarte com ele, ou então ser protegido por uma barreira defensiva de guerreiros escolhidos a dedo. Pelo menos seria mais difícil perdê-lo de vista. Com um tom seco, Faolan comentara que, uma vez que aquele rei tinha a proteção do Guardião das Chamas, a presença de guerreiros era supérflua. Ele, contudo, era quem mais perto ficava de Bridei no auge da batalha.
Hargest dava o seu melhor mas, no tumulto da ação, por várias vezes Bridei sentiu a arma do jovem a aproximar-se perigosamente da sua própria cabeça. Certa vez, apenas a dança esquiva de Snowfire para o lado evitara que o rapaz cortasse a cabeça do monarca. Momento depois, a espada desferiu um golpe para a direita e um celta montado que preparava o lançamento de um machado caiu para o chão, agarrado ao flanco. Hargest ostentou um sorriso rasgado. Bridei viu-o e desviou o olhar. Surgiu outro celta, e depois mais outro, o que deixou claro que Carnach ordenara a retirada, pois uma onda de homens surgiu das linhas de Dalriada, dirigindo-se ao rio, Priteni e Celtas envolvidos numa centena de pequenos combates desesperados. Os homens caíam. Botas pisaram-nos e cascos abriram crânios, e o solo transformou-se numa mistura horrenda de lama, sangue e partes de corpos. Hargest manteve-se firme no pônei impassível, o corpo protegendo Bridei e Snowfire do pior daquela vaga humana. De vez em quando, baixava-se e espetava com o punhal ou ceifava com a espada. A ação parecia quase arbitrária a Bridei, como se estivesse a matar moscas ou a enxotar mosquitos. Interrogava-se sobre o que poderia atravessar a mente de Hargest quando matava.
Os Celtas ganhavam terreno. Iam abrindo caminho à força de espadas e maças, sempre em direção ao rio. Os chefes tribais de Gabhran deviam estar a pensar que, se empurrassem os Priteni para o outro lado do curso de água e os mantivessem aí, o dia estaria ganho. As forças de Carnach retiravam o mais ordeiramente possível. Aqui e ali, uma formação de seis ou sete escudos agüentava firme, com os homens a manterem a formação, mesmo com as lanças do inimigo a vergastá-los.
Os cavaleiros estavam nos flancos. A elite reduzida utilizava a vantagem da altura e da mobilidade para se aproximar, desferir alguns golpes esmagadores e voltar a afastar-se. Os pôneis de montanha de Fortriu, treinados ao longo da temporada em tais manobras, estavam a suar e de olhos arregalados, pois não havia treino, por mais rigoroso que fosse, que pudesse ensinar um cavalo ou um homem a estar pronto para os sons e as visões de uma cena como aquela. Os gritos, os gemidos, o raspar de metal contra metal e o horrendo esmagar dos corpos durante a investida. Era preciso ser uma criatura estranha para não ser afetado, para não sonhar com isso, noite após noite, nos tempos de paz. Hargest, pensou Bridei, era esse tipo de homem. O rapaz quase parecia estar a divertir-se. Talvez a realidade o atingisse mais tarde. Quanto a Bridei, contava cada celta que matava. Fitava esse homem nos olhos e fazia por ver o inimigo que lhe roubara a pátria e que instalara a ameaça da nova fé no coração do seu povo. Apenas via outro homem a cumprir o seu dever o melhor que podia. Mesmo assim, Bridei usava as armas de forma eficaz, tal como fora treinado pelo antigo tutor, Donal. Não poderia esperar que os seus homens combatessem, se ele próprio não o fizesse também. Nunca deixou de procurar o estandarte. Gabhran. Queria o rei de Dalriada vivo.
Tinham chegado ao rio. As forças Priteni estavam amontoadas, alguns homens estavam na água, outros na margem, agüentando a pressão das tropas de Dalriada. Nos flancos, os cavaleiros de Ged e de Morleo combatiam ferozmente os Celtas montados. Dalriada possuía um número mais elevado de cavaleiros e utilizava-os para conseguir uma vantagem devastadora. Os homens de Ged estavam a ser pressionados. Bridei observou as formas de trajes multicolores caírem, uma a uma. Viu os animais sem cavaleiro a atravessar o rio baixo e a fugir, as bocas cobertas de espuma e os olhos vítreos. Procurou Ged no meio da carnificina e avistou-o no seu cavalo robusto e escuro, o rosto tenso e pálido, a abrir caminho. Não viu Talorgen, mas as forças da Fonte do Corvo mantinham a sua posição entre o centro e o flanco, evitando que o inimigo rodeasse os soldados da infantaria Priteni e os encurralasse no rio. Carnach bradou outra ordem e os capitães transmitiram-na com vozes como a fanfarra de trompetas, e a massa de guerreiros estugou o passo na retirada pela água, aliviando a pressão contra os perseguidores. — Para trás! — gritava Carnach. — Pelo Guardião das Chamas, para trás!
Ao pressentir a chacina, os Celtas bradaram a uma voz. Os cornos de guerra fizeram-se ouvir. Os homens gritaram:
— Dalriada! Dalriada! — e avançaram como uma enxurrada, levando os Priteni à sua frente.
— Esperemos que resulte — resmungou Bridei, detendo Snowfire por um momento, para olhar para trás. — Esperemos que Fokel e Umbrig mantenham a palavra, ou perderemos a nossa vantagem. — Enquanto falava, dois Celtas a cavalo aproximaram-se a galope, um com uma lança pronta, o outro a empunhar uma maça. Não havia tempo para pensar. O treino de Donal apoderou-se do rei e Bridei conduziu Snowfire num movimento enganador, para um lado e para o outro, esquivando-se do homem com a maça, enquanto pelo canto do olho via Hargest a bloquear a lança com a espada e depois a executar um movimento destro e poderoso, que levou o oponente ao solo lodoso. O guerreiro com a maça contornava Bridei, voltando a atacar. Snowfire resfolegou e sacudiu a cabeça. Bridei deslocou-se na sela e segurou-se ao flanco do animal, passando ileso junto ao inimigo. Depois ergueu-se de punhal em riste, enquanto Snowfire executava uma volta apertada. Antes que o celta tivesse oportunidade de se aperceber do que acontecera, o punhal de Bridei entrou-lhe no pescoço e o sangue começou a jorrar sobre a túnica. O cavaleiro tombou e a sua montada deteve-se, a tremer, por entre o turbilhão que a cercava, talvez imobilizada pelo choque, talvez simplesmente à espera de instruções que nunca lhe seriam dadas.
Bridei desmontou e baixou-se para recuperar a arma. A pouca distância, também Hargest saltara do cavalo. Bridei observou o jovem enterrar a espada no peito do homem que derrubara, não uma única vez, mas sem parar, até que do adversário não restava mais do que uma massa disforme de carne ensangüentada. Quando Hargest ergueu o olhar, tinha o rosto branco como a cal, os olhos cintilantes como o luar a refulgir no gelo, de um azul estranho e inquietante. Bridei sentiu uma onda de desconforto. Era demasiado. Tinha de parar com aquilo. Tinha de retirar o jovem dali, antes que perdesse o controlo de vez.
— Hargest — disse com firmeza —, esse homem está morto. Volta a montar e segue-me.
Era difícil encontrar um espaço no meio daquela confusão de homens em confronto e de armas em riste. Bridei levou o guarda-costas ao longo da margem do rio e subiu uma pequena elevação até um pedaço de terreno plano entre rochas. Aí crescia um grupo de salgueiros atrofiados e o corpo de um guerreiro de Dalriada, a cabeça pendente num ângulo impossível, estava caído sobre a erva escurecida. A parte isso, o lugar estava vazio. A batalha prosseguia lá em baixo. Era possível ver o seu desenrolar por entre as árvores, o que concedeu a Bridei uma justificação para ter retirado Hargest do campo.
— Os teus olhos são mais novos do que os meus — disse ao jovem guerreiro Caitt, sem mencionar que os seus próprios olhos tinham sido treinados por um druida. — Olha lá para baixo e diz-me se vês os homens de Fokel ou de Umbrig. A batalha está bastante equilibrada. É um ponto de viragem. Se não aparecerem em breve, Gabhran fará com que as nossas forças recuem para a outra margem do rio.
— Por que estás a olhar para mim dessa forma? Por que não ficamos lá em baixo e lutamos? — A voz de Hargest era muito jovem e estridente de arrogância. Havia mais qualquer coisa nela que enervava Bridei: um tom estranho, o tom de um homem insuportavelmente frustrado. O rapaz parecia capaz de tudo, desde saltar de um penhasco a despedaçar um tesouro valioso.
— Porque estavas a divertir-te demasiado — respondeu Bridei, num tom de voz neutro. — Só tens quinze anos. Sou responsável por ti. Exigi-te mais do que deveria. Hoje já tiveste a tua dose de celtas.
— Olhou pela encosta, à procura do estandarte de Dalriada, e encontrou-o junto à água, onde a multidão de homens era maior. Já tantos tinham caído, que as suas formas imóveis uniam as duas margens, detendo o curso da água, que corria vermelha em volta delas. — Onde está...? — começou Bridei. As palavras perderam-se num arquejo ruidoso, quando um braço poderoso o prendeu em redor do peito. Um instante depois estava deitado de costas, com o atacante escarranchado em cima de si e um punhal apontado ao coração. Agarrou instintivamente os pulsos do agressor, cortando a palma da mão na lâmina, e depois segurou-o com firmeza, fazendo uma pressão tal, que esta se repercutiu nas costas, nas coxas, no maxilar cerrado e na cabeça. Não valia a pena chamar o guarda-costas. Fitando, incrédulo, aqueles olhos ávidos, interrogou-se sobre há quanto tempo Hargest planeava matá-lo.
— O que... — começou, mas a pressão da faca aumentou e ele sabia que não podia desperdiçar o fôlego em conversas. Hargest era grande, ágil e jovem. Mesmo que Bridei gritasse a plenos pulmões, quem o ouviria acima do estridor da batalha? No espaço de algumas inspirações difíceis, iria morrer. A cada inalação, em cada instante de resistência, uma pequena despedida... Tuala... Derelei... Broichan... Salva-me, orou com toda a força do seu ser. Salva-me por eles e salva-me por Fortriu...
— Chegou a altura de pagares o que deves — disse Hargest, num tom de voz baixo e frio, e Bridei sentiu o jovem tentar segurar melhor na faca, aliviando a pressão por momentos. — Já escapaste à minha espada demasiadas vezes, sua desculpa esfarrapada de rei. Agora chegou a altura de morreres. És um idiota se não consegues ver o inevitável: são os Celtas que irão triunfar. Já estarão por todo o Vale quando eu contar as notícias a meu pai. O teu reinado acabou, Rei Bridei.
Então, quando Bridei arqueou as costas e se contorceu numa tentativa de sair debaixo de Hargest, este empurrou-o novamente para baixo e a ponta da lâmina penetrou a carne. No momento em que ocorreu a Bridei que existia uma técnica que Faolan certa vez lhe mostrara, um truque que poderia ter utilizado se tivesse estado preparado naquela pausa momentânea, sentiu uma dor lancinante no peito e, deixando de controlar a respiração, sugou ar para os pulmões e gritou:
— Ajudem-me! Pelos deuses, ajudem!
Hargest sorriu. A faca cravou-se mais profundamente, à medida que os braços de Bridei, os músculos retesados pelos espasmos dolorosos e trêmulos, começavam a perder a força. Bridei sentiu as asas da deusa negra a baterem por cima de si. O seu sopro gelado tocou-lhe a fronte suada, a terrível canção de embalar segredava-lhe ao ouvido... depois um clarão de movimento, algo a roçar-lhe o rosto, penas, garras, bico, um olhar selvagem e um grito semelhante ao seu, o guincho de uma ave de rapina enorme. Também Hargest gritou, diminuindo de repente a pressão das mãos quando as garras do falcão lhe arranharam o rosto, desenhando um padrão de linhas sangrentas. Bridei, um homem educado por um druida, não perdeu tempo a considerar a estranheza daquela intervenção. Aproveitou a vantagem que o momento lhe proporcionou, rolarão, deslizando, assemelhando-se a uma cobra, uma enguia, uma Salamandra, enquanto o pássaro subia, ainda soltando o seu áspero grito de aviso, para depois mergulhar novamente sobre Hargest, que recuou a cambalear, braços erguidos para proteger o rosto dilacerado. Bridei pôs-se de pé com esforço, atento à faca que Hargest ainda empunhava. O jovem estava de pé e o sangue pingava-lhe sobre os olhos. Respirava com dificuldade, mas segurava a arma com firmeza e tinha os pés bem assentes no chão.
— Vá lá, anda! — desafiou, lançando a Bridei um olhar feroz. — Vem apanhá-la, vá lá, tira-me! — E depois: — Maldita criatura! — exclamou, golpeando furiosamente o ar quando o falcão efetuou mais um vôo rasante, ameaçando fazê-lo cair.
Salva-me, por Fortriu... Bridei precipitou-se para a frente, agarrando os pulsos de Hargest e, quando o falcão passou por eles mais uma vez, fazendo o jovem tropeçar e praguejar, empurrou-o com todas as forças que lhe restavam.
Hargest caiu. O som que se seguiu foi algo com que Bridei sonhou mais tarde, algo que ele daria muito para ser capaz de apagar da memória. Houve nele uma peremptoriedade hedionda e esmagadora. No entanto, após um momento de imobilidade horrorizada, Bridei baixou-se para ver o que acontecera, enquanto o falcão pousava sobre as rochas ali perto. Conseguiu conter-se, embora, ao olhar, tenha sentido náuseas. Fez por se recordar da velha máxima de Broichan, de que havia algo para aprender em tudo. Sim, até mesmo na visão de um rapaz prometedor, ali deitado com a cabeça esmagada como uma fruta demasiado madura que tivesse caído de uma árvore. Hargest tivera pouca sorte. Talvez os deuses tivessem colocado ali aquela pedra, com a intenção de que o jovem morresse quando batesse nela com a cabeça. Talvez aquela fosse a resposta simplista das deidades à oração de Bridei.
Ajoelhou-se para cruzar os braços de Hargest sobre o peito e para colocar o punhal ao lado do rapaz. Os olhos abertos fitavam o céu, grandes, azuis, inexpressivos. Bridei procurou uma oração. Por enquanto, não conseguia lembrar-se de nenhuma. Tudo em que conseguia pensar era, Porquê? Tudo o que conseguia ouvir era o martelar do seu próprio coração, um rufar de fúria e de pesar, de choque e de mágoa.
— Meu senhor! Bridei! O que...?
Um pequeno grupo de homens surgiu de repente ao seu lado, Cinioch e outros três, todos a pé com as espadas desembainhadas e rostos pálidos. Um instante depois ouviu um movimento sussurrante atrás de si e, ao virar-se, vislumbrou algo assombroso e inquietante: o falcão de olhos selvagens e penas fulvas a transformar-se, perante os seus olhos, num homem alto, de ombros largos, com olhos tão brilhantes como estrelas e uma cabeleira farta daquele mesmo ruivo dourado fulgurante
Cinioch voltou a gritar e os homens avançaram, as armas em riste. Um tropeçou no corpo do celta morto, ainda deitado nas ervas. O homem ruivo ergueu os braços. Não tinha consigo nem espada, nem faca, nem arco.
— Sou um amigo — disse, com uma calma admirável, e depois cambaleou, como que completamente exausto, e estendeu a mão para se apoiar nas rochas.
— Esperem, homens — ordenou Bridei. — Eu estou bem. Este homem veio em meu socorro, mas Hargest morreu. — Não conseguia dar mais explicações. Na verdade, não sabia o que pensar sobre o que tinha acontecido.
— Bridei, estás a sangrar.
Cinioch aproximou-se e, quando Bridei olhou para baixo, viu uma mancha de sangue a aumentar na sua camisa, através da incisão que o punhal de Hargest fizera na couraça de couro. A sua mão pingava sangue, onde a mesma arma a golpeara. A mente mostrava-lhe uma pequena imagem de Hargest sentado junto à fogueira, de noite, afiando a lâmina com uma concentração que o fazia enrugar a testa jovem e colocava nos seus olhos uma intensidade penetrante.
— Não é nada — disse Bridei, mas acedeu a que Cinioch inspecionasse os ferimentos e aplicasse ligaduras improvisadas, dizendo que Bridei fora, de fato, abençoado pelos deuses, pois caso o punhal penetrasse um pouco mais, ele teria partido nos braços da Mãe de Tudo antes que desse por isso. Um dos outros homens fazia rolar o corpo do celta, retirando-lhe as armas e dando-lhe um pontapé para confirmar que estava morto. Se não fosse pela presença do homem ruivo, não teria havido necessidade de falar sobre o que Hargest fizera. Mas aquele estranho testemunhara tudo. Intervirá como que em resposta à oração de Bridei. Em forma de pássaro. Um mensageiro do Guardião das Chamas? Aquele homem ajoelhava-se agora ao lado de Hargest, as suas feições belas com uma expressão sombria. Estendeu os dedos compridos para fechar os olhos do rapaz e a mão não se encontrava totalmente firme.
— Quem és tu? — perguntou-lhe Bridei.
— Um mensageiro. Enviado pela rainha, tua esposa.
— Por Tuala? Mas...
— Houve uma visão. Os teus amigos no Monte Branco sabiam que estavas a correr um perigo mortal e nenhum deles seria capaz de chegar a ti a tempo. Eu estava lá. Ofereci-me para vir.
Agora os outros homens fitavam-no, os seus rostos uma mistura de desconfiança e maravilha.
— És um druida? Um mago? — quis saber Bridei, ouvindo do sopé do monte uma alteração nos sons da batalha e sabendo que naquele momento havia pouco tempo para explicações.
— Sou Drustan do Vale dos Sonhos e de Briar Wood. Não sou mago nem druida. Vejo a mão do meu irmão nisto: Alpin, que era suposto ter casado com a tua refém real. Tenho de dizer-te que o meu irmão está morto e que nunca planeou honrar o vosso tratado.
Bridei ficou em silêncio por alguns instantes, olhando para o estranho, depois para o jovem falecido e regressando mais uma vez ao primeiro.
— Este é o filho dele, não é? — perguntou Drustan, os olhos sombrios. — Hargest. Não o vejo desde que ele era pequeno, mas reconheceria aqueles olhos em qualquer lugar. A rainha descreveu-me o atacante. Logo nessa altura, eu soube-o.
— Era teu parente — disse Bridei, e as palavras tio louco pairavam-lhe algures na mente. — Lamento. Esta foi uma escolha que nenhum homem deveria ser obrigado a fazer.
— Mas, senhor meu rei — protestou Cinioch —, o que estás a dizer? Que foi Hargest, o teu próprio guarda-costas, quem...?
— Por agora chega — decidiu Bridei. — Temos uma batalha para ganhar e creio ouvir o som dos cornos de batalha de Umbrig lá pelo meio. Drustan, deves aceitar as armas deste celta. Ele já não precisa delas. Quer tenciones ficar aqui ou lutar conosco ou... — Olhou para o céu, mas não verbalizou a terceira opção —, terás de ser capaz de te defender. Devo-te a minha vida. Não te deixarei ser chacinado pelo primeiro grupo de guerreiros que te encontrem, sejam eles Celtas ou homens de Fortriu.
Em silêncio, Drustan aceitou as armas, colocando o cinto da espada em volta da cintura e a besta ao ombro.
— Obrigado — disse. — Irei convosco. Uma vez que parece que os meus parentes te traíram duas vezes, cabe-me a mim compensar-te.
— És um guerreiro? — perguntou-lhe Cinioch diretamente.
— Sei cuidar de mim — respondeu-lhe Drustan, enquanto pegava nas rédeas do cavalo de Hargest. O animal estava nervoso e tinha os olhos arregalados. Drustan levou-lhe a mão ao pescoço e murmurou-lhe ao ouvido, palavras numa língua que Bridei não entendia. — Não vou procurar Celtas para matar, mas posso cavalgar ao lado do rei e ajudar a protegê-lo.
— Por que haverias de o fazer, se podes esperar pelo fim do confronto? — indagou um dos homens. — Se és parente dele — disse, lançando um olhar furioso ao corpo de Hargest —, e se ele é responsável pelo ataque a Bridei, deves ser louco, se julgas que te vamos confiar a segurança do rei.
— Dá-nos uma razão para o fazermos — acrescentou Cinioch, com um olhar ameaçador.
— Já vos dei uma — replicou Drustan, montando a cavalo com um movimento ágil. — Tento compensar a traição dos meus parentes. Dar-vos-ei mais duas. Sou amigo do guarda-costas principal do rei. Uma vez que Faolan não pode estar onde mais anseia, tomarei o seu lugar. E aquilo que mais desejo no mundo está nas mãos do rei Bridei. Se o prejudicar, ou se o deixar cair vítima das espadas celtas, perderei a minha lua e as minhas estrelas, a minha felicidade e a esperança de um futuro. Acreditem, irei protegê-lo bem.
Fitaram-no, silenciados por momentos. Depois Bridei disse:
— Temos de esperar para descobrir o que é esse teu tesouro. Enquanto falamos, a batalha vai sendo travada. Onde estão os vossos cavalos, homens? Ali debaixo das árvores? Encontrem-nos e voltem para lá. Vou entregar-me à guarda de Drustan. Um homem que viaja desde o Grande Vale para me avisar não pode ser menos do que um amigo. — Olhou para o homem ruivo. — Pronto?
Drustan aquiesceu com gravidade. — Sim, senhor meu rei. Avancemos.
Enquanto os dois emergiam da sua cobertura e se dirigiam à mole de guerreiros junto ao rio, ocorreu a Bridei que o homem ao seu lado quase poderia ser o próprio Guardião das Chamas em forma humana, de tão bem feito e apessoado, de expressão tão cativante, com olhos penetrantes e um cabelo brilhante como fogo. Logo quando Drustan surgira, uma criatura e depois um homem, Bridei questionara-se por um momento se o deus dos guerreiros escolhera responder ao seu pedido de ajuda de uma forma pessoal. Para onde quer que aquele homem fosse, o olhar das pessoas seria atraído por ele. Se não era um druida, o que era? Sendo irmão de Alpin, de Briar Wood, decerto era humano. Mas que homem normal possuía um tal poder de mutação? Não havia tempo para continuar a pensar no assunto. Estavam de regresso à contenda, embora com alguma cautela. A mão ferida era uma desvantagem em combate e era provável que a perda de sangue devido ao ferimento superficial no peito o enfraquecesse. O valor do enigmático Drustan era desconhecido. Bridei sabia que, a partir daquele momento, a sua sobrevivência deveria suplantar a capacidade dos dois homens de dar a sua contribuição enquanto guerreiros. Teria de esperar que o homem-pássaro lhe providenciasse uma proteção adequada.
O rumo da batalha voltara a alterar-se. As bem treinadas forças de Fokel e do chefe tribal Caitt Umbrig aguardavam desde antes da chegada dos Celtas ao vale, eliminando discretamente qualquer batedor de Dalriada que por acaso se aproximasse dos esconderijos nas zonas arborizadas do vale. Tinham escolhido bem o momento do avanço, subindo as margens do rio de ambos os lados enquanto os Celtas estavam ocupados a rechaçar o avanço de Carnach, e chegando à ação no momento em que Celtas e Priteni se concentravam junto à água, para onde a retirada encenada atraíra o inimigo. Os homens de Umbrig levaram os cornes enormes aos lábios. Os guerreiros de Fokel soltaram um brado de guerra ululante que gelou os ossos de Bridei, pois era como uma mensagem do Corvo Negro, um chamamento do outro lado do túmulo. As forças de Carnach, que até um momento atrás retiravam a toda a velocidade, cessaram a fuga, viraram-se, firmaram os pés e ergueram as armas, os olhos brilhantes com um novo fervor. Talorgen, com o guarda pessoal ao lado, acercou-se de Bridei. O líder da Fonte do Corvo ostentava um ar sinistro. Tinha sangue no rosto e nas roupas, mas estava muito direito na sela.
— Agora? — perguntou, olhando para Bridei, e depois relanceou Drustan com um franzir de cenho.
— Agora — disse Bridei, que foi invadido por uma estranha sensação de calma quando a cena à sua frente se transformou num novo espetáculo de metal a entrechocar-se e homens a gritar.
Sobran, o guarda de Talorgen, desembrulhou uma trouxa que se encontrava atada junto à sela, retirou de lá um rolo de tecido branco e três varas curtas, e montou o estandarte com uma eficiência garantida pela prática. Chegara finalmente a altura de o rei de Fortriu se dar a conhecer.
— Ergue-o, Sobran — disse ao homem de Talorgen. — Avançaremos juntos. — E, quando o estandarte branco foi levantado e o vento das ilhas ocidentais o desfraldou, revelando, em azul, o brasão da linhagem real e, por cima, a águia que Bridei escolhera como símbolo, o silêncio dominou os homens que se encontravam em seu redor. Depois Bridei ergueu o braço, cerrou o punho para o céu em honra do Guardião das Chamas e bradou com uma voz poderosa que parecia vinda de mais além do reino terreno:
— Fortriu! — E, de uma centena, cinco centenas, um milhar de bocas ressequidas pelo esforço dessa manhã, um milhar de corpos exaustos pelas provas ferozes do combate mortal, de um milhar de almas em que as visões da morte, da perda, da dor, permaneceriam pelos anos vindouros, partiu um brado que se instalou no coração de todos os Celtas ali presentes: — Fortriu! Fortriu!
Os homens de Dalriada lutaram com bravura e tenacidade mas, a partir daquele momento, estavam destinados ao fracasso. A chama que fora mostrada a Bridei numa visão, havia muito, que ainda ardia nos restos derrotados de um exército Priteni, rugia agora, crepitava e explodia naqueles homens exaustos, e julgou ver o esplendor do deus a brilhar no rosto de cada um, dos chefes tribais experientes de inúmeras batalhas ao mais humilde dos lanceiros. Todos eram filhos adorados do Guardião das Chamas, seguros nas suas mãos, em quem a deidade depositava a confiança e a estima. Alguns tombariam para não mais se levantarem. Outros morreriam vítimas dos ferimentos, pois estavam longe de casa. Muitos sobreviveriam para regressar a casa, vitoriosos, de volta ao lar e aos braços abertos dos entes queridos.
Talorgen e Bridei avançaram juntos. Sobran portava o estandarte. Para surpresa de Bridei, Drustan era um turbilhão de movimento, executando uma série de gestos eficientes, invulgares e mortíferos. Como resultado, não houve um único celta que se aproximasse para desafiar o rei, embora Talorgen tivesse sido obrigado a usar a espada com freqüência para abrir caminho até ao rio, fazendo-o com a perícia e a determinação esperadas de um líder guerreiro experiente.
Tal como acontece com todos os líderes no momento em que o conflito se torna inevitavelmente perdido, o rei de Dalriada teve de escolher. Há quem prefira a aniquilação no campo de batalha, o sacrifício de todo um exército, ao sabor amargo da rendição. Outro sopesam com cuidado as opções, mesmo nos instantes que o destino lhes concede, à medida que os homens morrem à sua volta, e vêem mais além da humilhação, pensando num futuro em que a negociação, a diplomacia, o reagrupamento e novas alianças poderão transformar a derrota em vitória. Gabhran acabou por tomar uma decisão e um mensageiro foi enviado por entre o turbilhão de combatentes e os cadáveres amontoados, a fim de transmiti-la ao rei Bridei, que aguardava impassível sob o seu estandarte, rodeado por um grupo de cavaleiros. O mensageiro envergava um pano branco atado à volta da testa, por cima do elmo de couro, sinal de que a sua passagem ilesa deveria ser permitida. Quando chegou a Bridei e apresentou sem fôlego a mensagem, a quietude começava a dominar o campo de batalha, pois a visão do rei de Fortriu à espera, os olhos azuis brilhantes, o cavalo cinzento orgulhoso e imóvel por entre a carnificina, e o movimento do mensageiro de fronte branca atraiu o olhar dos guerreiros ribeiro abaixo, até ao local onde outro rei aguardava, à sombra do estandarte vermelho e dourado de Dalriada, no rosto um ar que, mais do que exaustão, era de uma resignação digna. Uma centena de pequenas batalhas cessou. Os combatentes recuaram, embainharam as espadas e baixaram as lanças, sempre atentos aos adversários. Os
Celtas começaram a afastar-se na direção do acampamento original e foram detidos por uma linha implacável de homens de Fokel, que os tinham rodeado para bloquear a retirada. Estavam cercados. Se Gabhran escolhesse combater até à morte, levaria cada um dos homens consigo.
Havia outra figura que chamava a atenção. Quando o rei Bridei avançou e a escolta o acompanhou, os homens de Fortriu fitaram, pestanejaram e voltaram a olhar, e não foram poucos os que murmuraram uma oração dos tempos de infância. Parecia quase possível que a figura de olhos brilhantes e cabelos flamejantes que seguia a Espada de Fortriu fosse o seu adorado Guardião das Chamas personificado, aquele que desde há muito prezava o jovem rei, a sua natureza devota e o empenho para com a terra e o povo. O fato de aquele homem de aspecto impressionante parecer ter surgido de nenhures, apenas servia para dar força à teoria.
Bridei chegou a um ponto determinado, desmontou e aguardou que o rei celta se aproximasse. A seu lado, Talorgen empunhava agora o estandarte real e, por entre o caos cessante da batalha, cavalgavam outros líderes, Morleo, Carnach, que se juntavam ao grupo do rei.
Gabhran aproximou-se a pé, o porta-estandarte atrás dele, dois chefes tribais ao lado. Não havia grande necessidade de palavras. Chegou a quatro passos de Bridei, soltou o cinto da bainha e largou-o, juntamente com as armas, para o chão lamacento. Falou brevemente em gaélico.
Bridei aguardou. Compreendia o suficiente, mas a cautela fazia com que não confiasse no seu domínio daquela língua. Mais uma vez, lamentou a ausência de Faolan.
— Precisas de uma tradução — disse alguém na língua dos Priteni. Uma figura magra e tonsurada apareceu por detrás dos apoiadores do rei de Dalriada.
— Tu! — não pôde Bridei deixar de exclamar, ao ver o Irmão Suibne, conselheiro religioso de Drust, de Circinn, e um homem que contribuíra para a sua eleição como rei. — Estás em todo o lado!
Suibne sorriu.
— Apenas Deus está em todo o lado — replicou. — A minha posição na corte de Circinn foi tomada por outro. Um vento poderoso levou-me para ocidente, como arauto de um novo despertar para a luz, de uma nova alvorada para a fé. O rei deseja escutar as tuas condições para a rendição. Espera que sejas magnânimo e que poupes as vidas dos homens que ainda estão de pé.
— Não te vou perguntar como atravessaste ileso esta batalha — disse Bridei ao clérigo cristão —, pois já sei qual será a tua resposta. Diz ao rei Gabhran que estou disposto a falar. Ele terá de ordenar aos seus homens que larguem as armas imediatamente e que as coloquem no chão, tal como ele fez, e que recuem. Por meu lado, darei ordem às minhas forças para se limitarem a fazer a patrulha da área até que cheguemos a acordo. Os vossos homens poderão cuidar dos feridos. Os meus farão o mesmo. Um movimento em falso e o fim trará o sangue e não a paz. Garante que Gabhran o entende.
Suibne transmitiu com precisão a mensagem ao líder celta e obteve um consentimento mal-humorado. Foram dadas uma série de ordens, levadas a todos os cantos do vale. Talvez pudesse esperar-se uma certa relutância em obedecer. É estranho quando, depois de um duelo mortal, se vê o oponente desarmado a pouco mais de dois braços de distância e não se pode aproveitar a oportunidade para o eliminar. O grito de guerra mal acabara de deixar os lábios. O calor da inspiração divina ainda não se transformara em cinzas nos peitos. Quanto aos Celtas, como poderiam acreditar que, no momento em que se vissem privados das armas, não seriam de imediato chacinados pelos Priteni vitoriosos? A promessa de um antigo inimigo não podia ser aceite sem questão.
Aquela, todavia, fora apenas a derradeira batalha de uma guerra que durara quase um ciclo da lua. Os homens de Fortriu tinham-se submetido a uma marcha longa e esgotante para chegar a Dalriada. A medida que os guerreiros da Fonte do Corvo e de Storm Crag, de Pitnochie e de Thorn Bend, de Abertornie e de Longwater começavam a espalhar-se pelas suaves inclinações do vale, baixando-se aqui e ali para examinar um corpo espojado, agachando-se para erguer um homem que parecia ainda ter uma centelha de vida, e que os Celtas davam início ao mesmo processo, tornava-se óbvio que os exércitos já tinham agüentado provações que bastassem. Para os Priteni, a exaustão e a angústia começavam a fazer-se notar por entre o júbilo, pois as perdas tinham sido enormes. Para os Celtas, a sobrevivência assumia o lugar da vitória como o resultado que mais desejavam. Cuidariam dos feridos e depois, se fosse essa a vontade dos deuses, poderiam finalmente regressar a casa.

 

 

 

 

 

 

 


CAPÍTULO DEZOITO


Em tempos, Bridei pensara que o momento em que Gabhran se ajoelhasse e entregasse o reino de Dalriada seria o concretizar de um sonho. O rei celta encontrava-se numa posição enfraquecida, com a parte norte do território já tomada por Fortriu e o que restava do exército em risco de ser aniquilado, caso não aceitasse as condições de Bridei. Contudo, Gabhran ostentava uma tal calma e dignidade na derrota, que Bridei teve de se questionar sobre o que aquele homem veria no futuro, que a ele estava vedado.
Os líderes dos Priteni expuseram as exigências. O Irmão Suibne traduziu-as para gaélico e apresentou a resposta de Gabhran. No exterior do pequeno pavilhão onde os líderes se encontravam reunidos, naquilo que fora o acampamento celta, cuidava-se dos mortos e dos moribundos e tratava-se o melhor possível dos feridos. Talorgen trouxera consigo o curandeiro de sua casa. Naquele momento, o homem cuidava de Ged. Pouco antes do encontro formal, Bridei fora informado de que o líder de Abertornie tinha sido gravemente ferido em combate e que não deveria sobreviver. Também Carnach tinha um perito na sua comitiva, competente no tratamento de ossos partidos. Cirurgiões Priteni cuidavam das baixas celtas e vice-versa, embora com algumas queixas resmungadas por parte dos homens.
Bridei garantiu a concordância de Gabhran em abdicar do título de rei de Dalriada e em retirar para Dunadd com os seus líderes Uí Néill, sob escolta armada. A seu tempo, todos deveriam abandonar os territórios Priteni. Os anciãos que controlavam as várias colônias de Dalriada, os líderes que governavam as fortalezas e as aldeias piscatórias teriam de se afastar. Qualquer discórdia seria recebida com o exílio ou com a morte. O povo normal, os homens chamados às armas somente para aquela guerra específica, poderiam regressar a casa e retomar a sua vida, desde que entendessem que o ocidente, a partir daquele dia, estaria sob o domínio de Fortriu.
Gabhran consultou os chefes tribais e depois, com um ar severo, apensou a sua marca ao documento que Bridei preparara havia bastante tempo.
— E — acrescentou Bridei — fica claro que a prática dos rituais cristãos cessará por todo o território. Os vossos sacerdotes vão regressar à pátria. O povo não observará os festivais da nova fé, nem vai reunir-se em orações públicas ao deus cristão. Isso terá de ficar entendido.
O Irmão Suibne inclinou-se e falou em voz baixa com o rei celta, ao que Gabhran respondeu.
— Aham — pigarreou Suibne. — Sei que tens noção da presença dos nossos homens santos em Circinn. O rei pergunta se também sabes que as Ilhas Pequenas abrigam um certo número de clérigos cristãos, os quais são tratados com tolerância e cortesia pelo rei e pelo seu povo. O rei Gabhran pede a garantia de que os membros dessa comunidade pacífica não serão molestados, nem expulsos. Pelo que sabemos, o Rei das Ilhas Pequenas está sujeito ao teu domínio.
— Não irei comentar esse assunto — disse Bridei. — Não entra no âmbito destas negociações e está para além da autoridade de Gabhran.
— Nesse caso — disse Suibne —, devo informar-te de outra complicação. — Dessa vez não consultou Gabhran, parecendo adiantar a informação de mote próprio.
— Continua — indicou Bridei.
— E quanto às ilhas ocidentais? — perguntou gentilmente o cristão. — Desejas que os celtas que aí residem, e são várias centenas, espalhados por uma série de pequenas colônias, abandonem essas costas? Irás, também aí, instalar líderes locais? Essas aldeias, e as fazendas e barcos de pesca que as sustentam, são irrisórios, mesmo com o número de pessoas que as habitam.
Seguiu-se uma pausa.
— Por que perguntas? — Bridei avançou com cautela. Já conhecia aquele homem. Vinda de Suibne, a pergunta teria algum significado.
Suibne voltou a trocar algumas palavras com Gabhran.
— Foi feita uma promessa — disse, dirigindo-se mais uma vez a Bridei. — Tem a ver com uma ilha pequena, baldia, ventosa, sem qualquer significado. O nome antigo dessa ilha é Ioua.
— A Ilha do Teixo. Já ouvi falar dela. — As lições de Geografia durante a infância de Bridei tinham sido bastante pormenorizadas.
— Segundo sei, é um lugar de grande beleza. Agreste, luminoso, remoto. Qual foi a promessa?
— O senhor meu rei foi abordado por um certo homem. Por um homem espantoso, Bridei, um sacerdote que até mesmo tu, caso tivesses a felicidade de o conhecer, reconhecerias como sendo poderoso na sua fé e radiante com a graça. O seu nome é Colm. Chamam-lhe Colmcille, que poderia ser traduzido como «a pomba da Igreja». — As feições rudes de Suibne ostentaram um brilho e o seu tom um calor que não passaram despercebidos a Bridei.
— Que promessa? — perguntou Carnach, as feições rígidas.
— Despacha-te. Sabes a nossa opinião sobre essa fé e os estragos que já causou nos territórios Priteni. É divisória e perigosa.
— O Irmão Colm procura um refúgio, um sítio tranqüilo onde ele e um pequeno grupo de irmãos possam fundar um lugar de oração, um eremitério, longe de certas influências da pátria. O rei Gabhran prometeu-lhes santuário em Ioua. É uma ilha minúscula.
Carnach sibilou. Talorgen produziu um esgar de desagrado. Morleo cerrou os punhos.
— Ioua não pertence ao rei Gabhran para ser oferecida por ele — disse Bridei calmamente. — A partir de hoje, não detém qualquer poder sobre os territórios Priteni. As ilhas ocidentais estão sob a minha alçada e eu decido quem entra e quem sai. Fortriu não quer mais cristãos zelosos a envenenar a mente do seu povo.
Suibne traduziu as palavras de Bridei e Gabhran apresentou uma resposta ponderada e grave.
— O rei diz que esta onda não vai ser detida por ninguém. Nem mesmo a Espada de Fortriu poderá impedi-la — disse Suibne. — Ele tem razão, Bridei. Se queres saber a que ele se refere, convida esse sacerdote para a tua corte no Monte Branco. Conhece-o, fala com ele. És tolerante e aberto, um homem que forma as suas próprias opiniões. Pelo menos ouve o Irmão Colm. Ninguém que o conheça permanece inalterado.
— Que está este individuo a querer dizer-nos? — Talorgen ficava inquieto. — Está aqui para traduzir e não para apresentar conselhos pessoais.
— Pode dizer-se que somos amigos — disse Bridei. — Mas têm razão. Irmão Suibne, diz ao rei que registei o seu pedido. Por agora terminamos. — Falou diretamente para Gabhran, enquanto o cristão traduzia em voz baixa as palavras. — Carnach, meu líder de guerra e parente, vai destacar-te uma guarda armada. Vai escoltar-te pessoalmente até Dunadd e fazer preparativos para o futuro. Temos trabalho a fazer aqui, homens a enterrar, um ritual para executar e decisões a tomar, sobre os homens que te acompanharão e os que poderão regressar às suas comunidades. Não tenho questões com os homens que desejem verdadeiramente instalar-se de vez nestes territórios, conquanto respeitem a lei e a fé Priteni.
— Senhor meu rei... — Fokel encontrava-se à entrada do pavilhão. Tinha o rosto pálido e a túnica coberta de sangue.
— Tenho de deixá-los, meus senhores. — Bridei levantou-se e fez uma vênia cortês. — Um amigo querido está a morrer. Tenho de falar com ele enquanto posso. Também vós devereis ter despedidas a fazer. Sejam breves. Quero-os fora daqui antes do fim do dia.
Ged estava deitado sobre uma maca improvisada, com o terrível ferimento que sofrera coberto por um manto garrido, disposto sobre o abdômen por um dos homens de armas da sua casa. À sua volta, encontravam-se outros guerreiros feridos. Os cirurgiões trabalhavam numa confusão de sangue e carne. Os homens que os ajudavam estavam lívidos e silenciosos. Havia pouco equipamento disponível. Precisavam de serras, de braseiros para a cauterização e de ervas curativas. Naquele local, que se transformara num país estrangeiro, apenas dispunham do pouco que cada curandeiro trouxera nos alforges. Os homens com ferimentos menores poderiam ser enviados para povoações de Dalriada e receber alguma atenção. Muitos pereceriam ali. Era essa a natureza da guerra travada em marcha.
— Ged — disse Bridei, que se ajoelhara ao lado do amigo e pegara na mão de Ged entre as suas. — É uma notícia terrível. — Não valia a pena fingir. Morleo descrevera-lhe o ferimento quando se preparavam para o encontro com Gabhran.
— Bridei... — arquejou Ged. — Foi uma boa luta, não? Os homens deixaram-nos orgulhosos...
— É verdade, meu amigo. Diz-me, queres que faça alguma coisa? Há mensagens que querias enviar?
Ged tentou sorrir e conseguiu esboçar um esgar contorcido.
— És um rei, e não... moço de recados... Mas, Bridei... o meu filho, Aled... Só tem doze anos, ainda é muito novo para assumir Abertornie, e as pequenas são todas raparigas... Loura não devia ser obrigada a gerir tudo sozinha... Poderás...?
— Falarei com a tua esposa. Faremos alguma coisa por ela, não te preocupes com isso. — Bridei notou uma alteração no fôlego de Ged e viu-lhe os olhos a tornarem-se vítreos. A Mãe de Tudo estava próxima. — Estamos todos aqui, Ged — disse em voz baixa. — Talorgen, Morleo, Fokel e um grande contingente dos teus homens. Lutaram tal como lhes ensinaste, com garra, com coragem, com inspiração. Que o Guardião das Chamas te aqueça o espírito e te guarde na tua viagem.
— Ah... — Ged inspirou. — Dói, Bridei. Dói mais do que pensei. Custa respirar... Mas é bom. Vencemos... Reconquistamos a nossa terra... Por isto, vale a pena morrer... — Os olhos deixaram de ver. O peito imobilizou-se. Um fio de sangue escorreu de um canto da boca de Ged e perdeu-se no escarlate, no amarelo e no verde da cobertura.
— Que a Mãe de Tudo te embale, meu velho — disse Talorgen, virando-se para limpar os olhos.
— Que a abençoada Todas-as-Flores te dê sonhos das mais belas jovens e dos mais floridos jardins de toda Fortriu — disse Fokel, tocando na testa do falecido com os lábios.
— Que A Que Brilha te ilumine o caminho até que entres numa nova alvorada. — Morleo ajoelhou-se e fechou os olhos de Ged. Bridei cruzou-lhe os braços sobre o peito, onde o sangue ensopara o manto emprestado. Não tinha mais palavras. Nada mais poderia ser feito. Os homens de Ged manteriam uma vigília, mas apenas até de madrugada, pois havia muitos corpos a enterrar e ninguém queria demorar-se naquele sítio. Para Bridei, havia coisas a fazer, pessoas com quem falar, notícias a transmitir. Ainda demoraria muito até que pudesse ficar sozinho e meditar sobre o que acontecera.
Encontrou Cinioch, chamou-o à parte e disse-lhe que o assunto que se desenrolara entre ele, Hargest e o misterioso estranho ruivo teria de ser mantido em segredo, pelo menos por enquanto. Cinioch devia garantir que os outros homens que tinham assistido compreendiam esse fato.
— Já falei com eles — disse Cinioch. — Mas comentei o assunto com Uven. Tive de o fazer. Ele não parava de fazer perguntas sobre o nosso visitante inesperado. Mas Uven sabe guardar silêncio. Sabias que ele matou três celtas só com um braço? Não perdeu um único dos feridos.
— A Uven não falta coragem — admitiu Bridei. — Quanto a ti, ouvi dizer que te saíste muito bem.
— O que vais dizer a Umbrig, meu senhor? — perguntou Cinioch sem rodeios. — Vais contar-lhe que o rapaz que enviou como guarda-costas acabou por revelar-se um assassino?
— Cala-te, Cinioch. Aquilo que direi a Umbrig diz respeito apenas a mim. — Bridei viu a preocupação genuína no rosto de Cinioch e acedeu. — Por acaso — acrescentou —, vou contar-lhe a verdade. — Em tempos, quase fora morto por um amigo que se voltara contra ele e mentira ao pai desse homem, a fim de evitar sofrimento. Quase de certeza que Talorgen imaginara a verdade, mas a mentira ajudara-o e aos dois filhos a lidar mais facilmente com a dor. Desta vez, Bridei não mentiria. — Mas o exército não precisa de ficar a saber. Vou procurar Umbrig. E onde está... ? — Olhou em redor da área onde os cavalos de Pitnochie tinham sido presos. Alguns homens conhecidos estavam sentados, a descansar, a tratar de ferimentos leves ou a arrumar equipamento. Alguém ateara uma fogueira e cozinhava o que cheirava a papas de aveia.
— Drustan? O homem-pássaro?
— Também devemos ficar calados em relação a isso. Continua por aqui, ou voou para longe enquanto chegávamos a acordo para a paz?
— Está lá em cima, meu senhor. Parece que não tem forças para voar, pelo menos por enquanto. Mas pela virilidade do Guardião das Chamas, aquele sujeito consegue lutar com mais destreza do que qualquer guerreiro que alguma vez vi em combate. Possui um talento raro. Gostava de aprender alguns daqueles movimentos. Durante algum tempo, cheguei a pensar que...
Bridei esboçou um sorriso.
— Talvez o mesmo se tenha passado com todos nós. Mas acredito que seja um homem mortal. O fato de se intitular amigo de Faolan atesta-o. Oferece-lhe de comer, sim? Fez uma longa viagem rapidamente para nos ajudar. E julgo que tem um pedido a fazer-me.
Umbrig surpreendeu Bridei ao derramar lágrimas e depois ao declarar que sempre o preocupara a possibilidade de o rapaz se tornar mau. O pai possuía um traço maligno e sempre se desconfiara que Hargest pudesse não degenerar. Quanto à notícia de que, aparentemente, também Alpin estava morto, Umbrig aceitou-a calmamente. O chefe tribal Caitt opinou que, se Hargest fizera uma tentativa de assassínio, isso seria obra de Alpin. Umbrig desconfiava que os dois poderiam ter-se encontrado por uma ou duas vezes, durante as longas expedições que o rapaz gostava de fazer a cavalo, dizendo que se destinava ao treino das novas montadas. O desprezo público do rapaz pelo pai nunca combinara com o seu desejo de reconhecimento e de um lugar no mundo.
— Creio que era o desejo de amor — disse Bridei num tom calmo, sentindo o seu próprio fracasso na forma de uma dor no peito. — Tentei ajudá-lo. Poderia ter feito muito por ele, se me tivesse dado tempo. Hargest era promissor. Só precisava de um bom encaminhamento, até que reconhecesse a sua humanidade.
— Eu tentei, Bridei — resmungou Umbrig, enquanto limpava o rosto com o debrum do manto largo. — Tentei durante sete anos. O sangue daquela família não é bom. Há relatos estranhos. Uma história sombria.
— Sabes que Drustan, o tio do rapaz, está aqui? Que foi ele quem trouxe a notícia da morte de Alpin?
Umbrig fitou Bridei. — O tio louco? A sério? De que lado está ele?
— Interveio para salvar-me a vida. Verás ferimentos no rosto do teu filho adotivo. Foi o tio que os infligiu. Mas o golpe mortal foi meu. Não queria matá-lo, Umbrig. Tentei apenas evitar que me trespassasse o coração com o seu punhal. Daria muito para voltar atrás, para o desviar da sua missão e guiá-lo para um futuro de possibilidades brilhantes.
— Independentemente do que muita gente pensa, Bridei, não és um deus. Não podes acertar sempre. Talvez Hargest estivesse destinado a partir hoje. O rapaz estava consumido pela raiva e pela frustração. Talvez nunca viesse a sentir-se satisfeito. Talvez nunca viesse a aceitar o fato de não ser filho legítimo e herdeiro de Alpin. Quem sabe? Perdemos muitos bons homens hoje, neste campo. O rapaz acaba por ser apenas mais uma vítima da guerra. — As lágrimas corriam livremente pelas feições largas e tatuadas.
— Obrigado, Umbrig — disse Bridei, baixando a cabeça. — Isto deixa-me em dívida para contigo, e irei honrá-la quando precisares. Diz-me rapidamente: este tio louco de que falamos, essa descrição foi conseguida pelo temperamento, ou por uma enfermidade? Drustan não me parece insano.
Umbrig franziu o sobrolho.
— Há anos que não o vejo — disse —, desde que éramos crianças. Na altura estava bem, era um pouco sonhador, mas nada de estranho. Diz-se que matou a mulher e o filho de Alpin, e o irmão declarou-o perigoso e trancou-o, por uma questão de segurança. Foi há sete anos, pouco depois de Hargest me ter sido enviado. Quer dizer que foi libertado? Vai ser interessante. Sabes que Drustan possui o ancoradouro a ocidente? Aquele que Alpin tem vindo a usar para as forças marítimas? Imagino que Briar Wood também passe para as suas mãos. Isso fará dele um dos mais poderosos chefes tribais do norte.
— Interessante — disse Bridei. — Tenho de perguntar a Talorgen se havia barcos Caitt entre os que foram afundados quando se dirigia para cá. Mas, primeiro, vou procurar este tio e colocar-lhe algumas questões. Adeus, Umbrig. Mais uma vez, não sou capaz de exprimir o quanto lamento pelo rapaz.
— Não é preciso — resmungou Umbrig. — É bem visível no teu rosto. Vai. Tenho homens para enterrar. É melhor começar já e terminar o assunto depressa.
Drustan estava sozinho, de pé, a alguma distância da fogueira que Uven fizera. O dia fora muito longo. Anoitecia e a brisa era agora um leve vento oeste, que trazia o cheiro salgado do mar. Muitos pássaros voavam lá em cima, gritando à noite que se aproximava, e o homem ruivo fitava-os, os braços cruzados sobre o peito. Quando Bridei se aproximou, viu que Drustan tremia e que tinha o maxilar cerrado, como se para impedir que os dentes batessem. Um prato de metal com comida fora pousada numa pedra chata nas proximidades. Parecia intacto.
— Drustan? — Bridei manteve o tom da voz suave. Não viera sozinho. Cinioch e Uven estavam por perto a vigiar. Mesmo nunca tendo perdido o desejo de poder movimentar-se sem a proteção constante, aceitava que o dia que findava era uma ocasião excepcional. Decidira confiar em Hargest e o rapaz quase que o matara. Naquele dia, o seu exército reconquistara Dalriada. A paz dependia dele.
— Senhor meu rei. — Drustan descruzou os braços e inclinou a cabeça de forma cortês. A voz não estava firme.
— Não me pareces bem. Vamos sentar-nos?
— Estou bem, dentro do possível. Mudar de forma é muito exigente. Entrar em conflito após o que aconteceu foi um teste bastante severo. Além disso... — Drustan hesitou.
— Vem, senta-te.
Acomodaram-se no chão, lado a lado. O campo proporcionava muito pouco conforto.
— Tal como imagino que tenhas visto, fui treinado para lutar — disse Drustan — e para o fazer bem. Fui prisioneiro, estive preso durante sete anos com apenas um guarda por companhia. Para passar o tempo e evitar que eu enlouquecesse, ele ensinou-me o que sabia. Os movimentos, as técnicas que possuo. São bons para exercitar o corpo e a mente. Entrar em combate e empregar essas técnicas para estropiar e matar é algo que não pertence à minha natureza. Perturba-me. Não estou habituado a estar entre pessoas. Sinto muito. Os teus homens devem ter pensado que sou rude e ingrato.
Bridei absorveu o discurso, o qual continha várias surpresas. Do modo como estavam as coisas, provavelmente não teria tempo para conhecer muito bem aquele homem intrigante, pelo menos durante algum tempo.
— Drustan — arriscou —, tenho uma série de perguntas a fazer-te. Na verdade, mal sei por onde começar. Umbrig disse-me que o teu irmão te prendeu por um crime grave. Um crime abominável.
— Desejas perguntar-me se é verdade? Por que razão acreditadas em mim em vez de em Umbrig, a quem já conheces?
— Umbrig apenas relata o que ouviu dizer. Estás em posição de contar a verdade.
— Estou inocente desse crime. — Drustan pousou em Bridei o seu olhar brilhante. — Confias em Faolan?
Aquilo era inesperado.
— Com a minha vida — respondeu Bridei.
— Ele sabe que sou inocente. Corroborará o que digo. E Ana também.
Algo no tom de voz de Drustan chamou a atenção de Bridei.
— Referes-te à refém real, Ana das Ilhas Pequenas, que enviamos para que desposasse o teu irmão?
Drustan baixou o olhar e um pequeno sorriso desenhou-se-lhe nos lábios.
— Ela nunca duvidou de mim — disse. — Mesmo quando eu próprio não tinha a certeza, ela acreditou na minha inocência. Os dois têm sido verdadeiros amigos.
— Surpreendes-me. Segundo Faolan, ele não tem amigos.
— Tu e eu sabemos que tem.
— Acho que é melhor contares-me a história toda — sugeriu Bridei. — Não temos muito tempo. Na ausência do meu druida, tenho de conduzir um ritual antes do anoitecer. E tenho um pedido a fazer-te, mas ele depende das respostas que deres às minhas perguntas.
— Desejo colocar-te uma questão antes de contar a nossa história: a minha, a de Faolan e... a de Ana. — Lá estava novamente, o nome proferido com uma tal delicadeza e paixão que não se podia ouvi-lo sem que o coração desse um pulo.
— Coloca-a.
— Hoje lutaste e mataste, tal como todos nós. Assumiste o teu lugar entre os teus guerreiros e lideraste dando o exemplo, tal como um verdadeiro rei deve fazê-lo. Na verdade, pareceu-me que optaste por te expores ao perigo, a fim de ocultar os sinais do teu estatuto real até ao fim, arriscando-te juntamente com os teus homens. Foste corajoso, decidido. Agora pareces calmo e controlado. Mas vi no teu rosto que lamentaste o derramamento de sangue tanto quanto eu. Isso interessa-me. O teu Faolan fala de ti quase como se fosses um deus... Não, isso é errado, ele não é um homem que deposite muita confiança nas coisas espirituais. Vê-te como um líder inigualável e como um homem cujo exemplo é superior em todos os aspectos. Também te considera um amigo, embora não o reconheça.
Fez-se silêncio. Depois Bridei indagou:
— Qual era a questão?
— Como é que concilias tudo isto? — perguntou Drustan, envolvendo os joelhos com os braços. — Como é que consegues suportar?
Bridei conseguiu esboçar um sorriso.
— Com muita dificuldade — respondeu —, em alturas como esta. Fui educado por um homem que compreendia o que um rei deve ser.
Preparou-me bem. Tenho pessoas no Monte Branco e chefes tribais aqui, no campo de batalha, que me apoiam com tudo o que têm para dar. E há a minha esposa. Sem Tuala, nada disto me faria sentido. Ela é a minha âncora, o meu porto seguro, o meu coração e a minha dádiva. — Era uma sensação estranha, confiar essas palavras a Drustan, que conhecia há tão pouco tempo. No entanto, parecia-lhe surpreendentemente certo. De uma forma curiosa, o homem-pássaro lembrava-o do velho druida, Uist, que sempre parecera repleto de um esplendor e sabedoria do Outro Mundo, mesmo no mais sombrio dos momentos, como se as vulgares questões do que estava certo e errado nos assuntos humanos não lhe dissessem respeito. Drustan sorria.
— Obrigado — disse. — Honro-te e tenho pena de ti. Ambos temos as nossas próprias grilhetas. Eu escapei às minhas com a ajuda de amigos extraordinários, mas tu jamais conseguirás fugir.
— Compreendes-me mal. Eu amo os deuses e amo o meu país. O dever da liderança desde sempre me chamou e eu sigo o caminho de boa vontade.
— O amor é o teu alento. Tuala é uma mulher notável. Agora conto-te a minha história.
O relato foi longo, sombrio e mais estranho do que alguma vez Bridei esperara. O papel de Ana parecia completamente em desacordo com aquilo que ele conhecia da sua natureza e algumas das escolhas de Faolan surpreenderam-no, mas a história era convincente e acreditou nela. Escutou em silêncio até Drustan chegar ao final com o pedido de Tuala para que agisse como mensageiro.
— E tive a certeza — disse o homem ruivo —, tive a certeza absoluta de que aquele assassino não era outro que não o filho do meu irmão. Assim que a rainha falou sobre os olhos dele, eu soube. Não lhes disse. Sobretudo para Faolan, não seria nada agradável pedir-me para intervir numa tal situação.
— Porquê sobretudo para Faolan?
— Aconteceu algo no passado dele, uma experiência que não posso partilhar contigo, pois foi-me contada em confidência. Faolan sentir-se-ia relutante em pedir a um homem que colocasse em perigo a vida de um parente. Isso era sempre possível, embora, tanto quanto sabíamos, tudo o que eu tinha de fazer era dar um aviso. Não quis revelar-lhe os laços de sangue existentes entre mim e Hargest.
— Lamento. Se eu soubesse...
— Não teria feito qualquer diferença, meu senhor. Fiz uma opção. A tua vida é muito mais importante do que a de Hargest. Tu és o sangue de Fortriu. Ele era...
— Apenas um rapaz confuso e revoltado? Não consigo ver as coisas dessa forma, Drustan. Para mim, um homem é um homem e cada pequena morte merece igual quantidade de lágrimas. Eu podia ter ajudado aquele rapaz, ele poderia vir a ser alguém. Tenho a certeza disso. Agora outro amigo confiou-me o seu filho e temo que estraguemos tudo mais uma vez. Um exemplo superior? Em alturas como esta, sinto-me como se andasse às cegas no meio da escuridão.
— Precisas da tua esposa a teu lado. Precisas de derramar lágrimas, tal como todos nós, reconhecer as tuas próprias fraquezas, e de tempo para recuperares a tua coragem. Mas não tens tempo.
Bridei fitou-o.
— Como é possível que saibas tudo isso? Como é possível que compreendas tão bem?
— Talvez porque eu próprio estive à beira do desespero... do desespero, da violência, da autodestruição... Sem Deord, não teria sobrevivido. Sem Faolan, não teria fugido. Sem Ana...
A torrente de palavras cessou. De algures do outro lado da fogueira do acampamento, alguém chamava o nome de Bridei.
— Continua — disse. — Imagino que desejes fazer o teu pedido. Drustan suspirou. — Não o farei. Agora não. Vamos esperar até que termines o que tens para fazer aqui e regresses para junto da lareira da tua casa e para os que te amam. É melhor não falar sobre tais assuntos num local de morte como este.
Bridei aquiesceu. Sentia-se relutante em fazer o seu próprio pedido, pois parecia-lhe ser demasiado. Drustan, apesar de toda a sua franqueza e compreensão, parecia exausto. Em vez disso, perguntou:
— Quais são os teus planos para o futuro? O Monte Branco receber-te-á de bom grado, caso desejes permanecer connosco durante algum tempo.
Drustan sorriu.
— Obrigado, meu senhor. A rainha também me ofereceu a hospitalidade da vossa corte. Preciso de tempo para digerir o que aconteceu. No entanto, tenho de regressar em breve a Briar Wood e depois tenho de ir para ocidente. Quero livrar a minha enseada pacífica dos barcos de guerra do meu irmão.
— Drustan...
— Pela manhã, levarei para casa as notícias da tua vitória — declarou o homem ruivo, antecipando a pergunta de Bridei. — Partirei de madrugada. Ao anoitecer, o teu povo saberá que estás em segurança.
— Não sei o que dizer.
— Não digas nada. Vi a expressão nos olhos da tua esposa. Desejava que vivesses com todas as forças do seu ser. Além disso, tenho o meu próprio motivo forte para regressar sem demora ao Monte Branco.
— Drustan?
— Sim, meu senhor?
— Há mais qualquer coisa que não me contaste, não há? Drustan ficou calado por um instante, e depois retorquiu:
— Relatei-te os fatos todos, tal como os conheço. Mas éramos três nesta viagem. Cada um de nós tem uma história a contar. Quando regressares a casa, pede a Faolan que te relate a dele. Isso se, nessa altura, ele ainda não tiver partido.
— Partido? Para onde?
— Creio que o vais achar muito mudado, tal como eu e Ana, na verdade. Ele possui espíritos inquietos para tranqüilizar antes de poder seguir em frente e um coração destroçado para sarar. Não deseja que o vejas abatido como está. Ana obrigou-o a ficar até ao teu regresso, mas ele poderá não ter forças para se manter fiel à sua promessa.
— Inquietas-me, Drustan. Tens a certeza de que estamos a falar do mesmo homem?
Drustan assentiu.
— É o mesmo, só que mudado. Tentará fugir aos seus amigos, até mesmo de ti. Tem cuidado ao falar com ele. Nós não queremos perdê-lo.
— Nós?
— Ana e eu. — Isto foi dito com suavidade e orgulho.
— Compreendo — respondeu Bridei, adivinhando que havia pelo menos um fato que Drustan ainda não partilhara consigo e que estava intimamente relacionado com a princesa das Ilhas Pequenas. — Espero chegar a casa antes da próxima lua, mas há muito a fazer aqui, no ocidente. Se puderes, peço-te que digas a Faolan para esperar por mim. Diz-lhe que é importante. Há uma questão sobre a qual desejo falar-lhe, sobre a qual ele é a melhor pessoa para me aconselhar.
— Dir-lhe-ei, senhor meu rei. Tens outras mensagens para eu transmitir?
— Tuala conhece o meu coração sem que haja necessidade de palavras. Quando estiverem a sós, diz-lhe apenas que tenho saudades suas e de Derelei e que conto os dias até regressar a casa. E agradece-lhe e a Broichan pela sua sagacidade em te terem enviado para me salvar.
— Não conheci o teu druida. Estava noutro sítio qualquer, bem como o teu filho. Mas transmitirei as tuas palavras.
— Podes dizer a Ana, só entre nós, que estou contente por ela ter voltado para casa e por não ter desposado o teu irmão. Nem é preciso dizer que este recado deve ser dado em privado.
— Obrigado, meu senhor. — O sorriso era agora menos hesitante e os olhos estavam muito brilhantes.
— Houve baixas aqui. Esperarei até ao nosso regresso para comunicar às famílias. Não te vou sobrecarregar com notícias tão tristes. Agora tenho de ir, estão a chamar-me. Estarás presente no nosso ritual pelos mortos?
Drustan abanou a cabeça.
— Espero que me perdoes. E melhor eu ficar sozinho esta noite. Vou descansar e preparar-me para amanhã. Desejo-te felicidades, senhor meu rei.
— Prefiro que me chames Bridei. Afinal de contas, és amigo de Faolan e é assim que ele me trata.
— Boa noite, Bridei. Es um bom homem, que merece a lealdade do nosso povo.
— Suponho que, no fim, tudo o que podemos fazer é dar o nosso melhor, e confiar que os deuses considerem isso suficiente. Boa noite, Drustan. Que o Guardião das Chamas proteja a tua viagem. E obrigado, do fundo do meu coração.
Na verdade, passou-se mais de uma lua antes que o rei de Fortriu regressasse ao Monte Branco, acompanhado pelos contingentes de Pitnochie e Abertornie e um grupo de homens-de-armas da corte. Naquele dia, não havia guardas junto aos portões. Estes encontravam-se abertos e, no pátio para lá deles, a casa inteira estava reunida para dar as boas-vindas a Bridei e aos seus guerreiros. As más notícias tinham chegado muito antes, através de mensageiros enviados a cada lar que perdera homens na guerra. Isso poupou as famílias dos homens que tinham perdido a vida ao serviço do Guardião das Chamas de terem de assistir ao regresso de cada pequeno grupo de sobreviventes sujos da viagem, com a esperança atormentada de ver entre eles um rosto amado, acabando por se aperceber de que um certo filho, pai, marido ou irmão não voltaria para casa.
Apesar de todas essas perdas, fora uma vitória tremenda. Naquele momento, montado orgulhosamente no seu cavalo na frente das alas, Cinioch erguia bem alto o estandarte real. Um dos capitães de Ged transportava a bandeira colorida de Abertornie em homenagem ao seu falecido chefe tribal. A seu tempo, seria realizada uma cerimônia formal e todos os líderes que tinham desempenhado um papel na reivindicação do ocidente seriam convidados para o Monte Branco, cada um para ser homenageado individualmente. Isso não aconteceria antes da Primavera. A estação já ia avançada e o Inverno aproximava-se, lançando os dedos gelados sobre a terra. Em breve, seria perigoso ou impossível viajar. Além disso, Carnach e Talorgen estavam ainda em Dunadd, acompanhando a partida dos celtas que eram tidos como perigosos e estabelecendo um domínio firme sobre aqueles territórios. Fokel e Umbrig encontravam-se no norte de Dalriada, a desempenhar uma tarefa semelhante, Fokel no seu lar ancestral de Galany's Reach e Umbrig na colônia fortificada costeira de Donncha's Head, à qual se afeiçoara. Haveria tempo para tudo, até para comemorar. Sem que o dissessem em voz alta, os líderes de Fortriu partilhavam a convicção de que as perdas eram ainda demasiado recentes, as mudanças demasiado esmagadoras para que tal fosse apropriado. Ia demorar algum tempo até mesmo para que compreendessem totalmente aquilo que tinham alcançado.
Faltava pouco para o ritual do Portal e as sombras dos mortos encontravam-se apenas a um sopro frio de distância. O Inverno permitia que houvesse espaço para a reflexão. Era a altura de pousio do espírito, durante a qual as sementes da sabedoria iniciavam a sua formação demorada e lenta. Não havia necessidade de aplausos e música, de festas e celebrações. Bastava saber que, na altura devida, uma nova Primavera surgiria.
Assim sendo, aquilo não era tanto a entrada triunfal de um rei, mas o regresso de uma família. O primeiro a sair pelos portões para ir ao encontro dos cavaleiros foi o cãozinho branco, Ban, latindo uma saudação frenética, o corpo tentando, em vão, acompanhar a cauda que abanava loucamente. Snowfire, disciplinado como sempre, entrou no pátio com aquele furacão em miniatura a executar uma dança de boas vindas em redor das suas patas. Depois, à medida que cada um dos cavaleiros ia entrando e desmontando, era rodeado pelos seus entes queridos, esposa, mãe, filhos, até o pátio ganhar vida com lágrimas e sorrisos, abraços, palmadas amigáveis nos ombros e, aqui e ali, podiam ver-se jovens pais a saudarem pela primeira vez os filhos recém-nascidos. Os homens cuja família vivia fora da corte recebiam beijos das criadas e cozinheiras, que não tinham mais ninguém a quem receber. Ouviam-se risos por toda a parte.
O rei, claro está, tinha de se comportar em público com mais alguma sobriedade, mesmo quando a sua dignidade ficava comprometida por um pequeno cão aos saltos, a tentar lamber qualquer parte do corpo a que conseguisse chegar. O grupo de boas vindas de Bridei estava nos degraus: Tuala, séria e calma, com Derelei nos braços. A criança parecia duvidosa, como se não estivesse muito certa de quem era aquele guerreiro sinistro e fatigado. Aniel também lá se encontrava, ostentando um sorriso raro, e Tharan, alto e atento. Do outro lado de Tuala, estava Broichan. Viam-se também Ana e Drustan, descaradamente de mão dada. Pelos deuses, faziam um belo par. Bridei viu Garth, empunhando uma lança e exibindo um sorriso rasgado. Não havia sinais de Faolan.
Bridei deu um passo em frente e Tuala desceu os degraus. Num abrir e fechar de olhos, abandonou o decoro e abraçou a esposa e o filho, pois sonhara com aquele momento todas as noites em que esteve longe, e agora não conseguia refrear-se. Derelei ficou imóvel. Assustado, abriu a boca para chorar.
— O papai está em casa, Derelei. — Era a voz de Broichan, vinda de trás deles. Assemelhava-se de tal forma a algo que Tuala diria, que Bridei se sentiu perplexo. A criança pestanejou, fechou a boca e, um instante depois, encostou o cabelo encaracolado ao ombro do pai.
Passado pouco tempo, Tuala recuou e esfregou as faces, sorrindo pesarosamente. — É melhor cumprimentares os outros, Bridei. Houve perdas tristes. O teu mensageiro deu-nos as notícias. Breth morreu, e
Elpin e Enfret... E Ged, um homem tão adorável... Foi uma coisa terrível. Os filhos ainda são pequenos. Bridei aquiesceu.
— Ele queria que nós os ajudássemos, e assim faremos. É tão bom ver-te. Não te posso dizer o quanto num local público como este. Aniel, Tharan, como estão? Muitos dos nossos chefes tribais ficaram para trás, no oeste. Há muito a fazer por lá. Amanhã convocarei um conselho e conto-vos tudo.
— Uma grande vitória, Bridei — disse Aniel, com satisfação.
— Caminhas sob a luz dos deuses.
— Broichan. — Bridei agarrou com força no braço do pai adotivo e, por momentos, as palavras fugiram-lhe. O druida parecia, ao mesmo tempo, muito mais velho e frágil, contudo muito mais ele próprio, os olhos escuros límpidos e extraordinariamente interrogadores. — Espero que estejas bem. Tenho de te agradecer pela intervenção de Drustan. Entre vocês dois, salvaram-me a vida.
Broichan abanou a cabeça.
— O mérito não é meu, mas sim da tua esposa — disse, num tom de voz sereno. — Aquece-nos o coração ver-te de volta são e salvo, Bridei.
Não disse mais nada e isso, só por si, era uma prova clara de que algo mudara. Nenhuma menção à vitória? Nenhuma menção à debandada dos Celtas e à tomada triunfante do ocidente? Esse fora o grande sonho de Broichan. Foi por isso que devotara quinze anos da sua vida a preparar Bridei para ser rei.
— Amanhã — disse Bridei —, se vos convier a todos, exporei perante vós certas questões. Não irão gostar de todas as decisões que tomei no que diz respeito ao futuro de Dalriada. Há assuntos para os quais necessito do vosso conselho. Suibne, o conselheiro espiritual de Drust, o Javali, surgiu ao lado de Gabhran. Forneceu-me algumas informações inquietantes.
Broichan assentiu.
— Amanhã — confirmou. — Esperamos muito tempo por notícias. Podemos esperar mais um dia, enquanto descansas um pouco e recuperas.
Garth levava Snowfire. Os outros homens conduziam as suas montadas para os estábulos e a multidão começava a dispersar.
— Esta noite não há qualquer celebração formal — disse Tuala.
— Foi dito a todos que o dia da chegada seria para reuniões particulares, cada um com os seus. Os nossos aposentos encontram-se vedados a visitas até, pelo menos, à hora do jantar. E há água quente já pronta. Suponho que um banho e roupa lavada serão do teu agrado.
Bridei aquiesceu. Os seus olhos dirigiram-se a Drustan, que se encontrava nos degraus, ao lado de Ana.
— Não vejo Faolan em lado nenhum — comentou.
— Ele tem estado fora. — Foi Ana quem respondeu. — E, claro está, não sabíamos o dia exacto em que regressarias. Ele voltará. Prometeu.
— Irá manter a sua promessa — assegurou Drustan.
Era inquietante. Bridei esperara que o seu amigo ali estivesse para cumprimentá-lo, de rosto sombrio e eficiente, ávido de novidades e com conselhos práticos e engenhosos para lhe dar. Sentira imenso a falta de Faolan e era desconcertante não o encontrar aquando do seu regresso a casa.
— Muito bem — disse, para depois continuar num tom diferente: — Vem, Derelei. Vamos levar Ban para o jardim. Suponho que agora consegues correr mais depressa do que ele. Por que não me mostras?
À medida que o crepúsculo ia caindo para lá da janela dos aposentos reais, Bridei encontrava-se deitado na cama, com Tuala dormitando nos seus braços, e deixou o pensamento vaguear, o contentamento daquele dia equilibrando, durante algum tempo, as dúvidas e incertezas que acompanharam os resultados da sua grande conquista. O corpo quente da esposa estava curvado contra o dele, leve e gracioso, a nuvem de cabelo escuro espalhada sobre o seu peito, e sentiu o pequeno sopro da respiração dela contra a pele. O desempenho fora algo menos do que satisfatório, tendo-se deixado dominar pelo desejo e feito amor com ela de forma breve e explosiva, em vez de meiga e gradual. Ele e Tuala tinham-se rido sobre o assunto e prometeram um ao outro que a próxima vez seria uma obra-prima de controlo. Derelei, exausto de andar a correr atrás do cão e depois da novidade de salpicar o pai durante o banho, dormia profundamente num quarto adjacente, sob o olhar atento de uma ama. Ban encontrava-se à porta, de sentinela.
— Bridei? — Tuala agitava-se.
Ele colocou-lhe a mão sobre o seio. O desejo ainda não voltara a despertar completamente, mas ele adorava o corpo dela, na sua perfeição esbelta e pequena. Tocar-lhe era como regressar a casa uma e outra vez.
— Mm?
— Tenho uma coisa para te contar. Não sei o que irás pensar.
— Parece intrigante. O que é?
Sentiu-a inspirar profundamente, como se necessitasse de ganhar coragem para falar.
— Bridei, isto vai parecer... insano. Na verdade, nem sei como dizê-lo, por isso creio que vou ter de o dizer e pronto. Bridei, acho que talvez Broichan seja o meu pai.
Bridei demorou um instante a reagir.
— O teu...? Mas...?
— Tem alguma lógica. Desconfio que Fola pensa o mesmo. Tive uma visão. Não consigo imaginar qualquer outra razão para a deusa me ter mostrado isto. E explica... explica a ligação dele com Derelei. Observa os dois juntos, os movimentos, as expressões, as inflexões no discurso. Uma tal semelhança não é somente a de um tutor e de um pequeno aluno. É a similitude dos laços de sangue.
— Mas... — começou Bridei, não conseguido apreender o que Tuala lhe dizia, pois abria uma visão para o passado que, quanto mais pensava nela, mais sombria e perturbadora se tornava. — Se assim for, quem é a tua mãe? Broichan não... quer dizer, ele não... É um druida, Tuala. Como é que ele podia...
— Um druida é um homem, apesar de oferecer a sua vida aos deuses. Se A Que Brilha exigisse a um homem uma expressão de amor carnal e mundana, como parte dos procedimentos de um ritual, não seria o dever desse homem obedecer? Sei pouco acerca da prática de um druida durante o retiro de três dias por alturas da Harmonia. Só sei que Broichan tinha por hábito ir sozinho para a floresta. A minha visão mostrou-mo como um homem no auge da vida, percorrendo trilhos na floresta durante a Primavera. Estava lá uma mulher, pertencente aos Boa Gente. Uma da minha espécie.
— Como é que sabes...?
— Não sei. Só Broichan poderia dizer-me e não fui corajosa o suficiente para lhe perguntar. Ficaria deveras perturbado com tais revelações. Provavelmente enojado.
— Mas, Tuala, se isso for verdade, ele decerto que o sabe. Provavelmente sempre soube.
— Talvez não. — A voz dela era baixa e calma.
— É claro que o saberia. Uma experiência desse gênero na Primavera e aparece-lhe um bebê à porta de casa no solstício de Inverno. Nenhum homem no seu perfeito juízo poderia deixar de estabelecer a ligação. Se estiveres certa, isso significa que, mesmo sabendo que eras carne da sua carne, te tratou como se representasses um perigo ou uma ameaça. Ainda assim, ele ter-te-ia escorraçado... — Agora estava sentado, a volúpia desaparecera e o coração martelava-lhe de choque e ultraje.
— Não devia ter-te contado. — Tuala deslizou para fora da cama, vestindo um robe. — Bridei, fica calmo. Tenho a certeza de que, se for verdade, ele nunca pensou nisso. Ficarias surpreendido se soubesses como as pessoas podem ser cegas às verdades que nem querem imaginar poderem ser possíveis. Creio que Broichan trancou o que aconteceu num qualquer recanto esquecido da sua mente. A última coisa que iria querer reconhecida publicamente é o fato de me ter como filha. Uma dos Boa Gente, a sua nêmesis, a criança que foi obrigado a aceitar em sua casa, por medo de ofender a deusa ou antagonizar o filho adotivo sobre o qual recaíam todas as suas esperanças. Pobre Broichan. Seria mais caridoso não lhe contar. Contudo, há boatos. Não disto, mas de uma possível irregularidade no teu nascimento ou no do nosso filho. Quanto mais velho for Derelei, mais as pessoas acreditarão nesses rumores. Isso preocupa-me. Essas histórias idiotas podem minar a tua autoridade enquanto rei. Dizer a verdade, por mais dolorosa que seja para Broichan, afastaria quaisquer suspeitas e aliviaria o fardo que pesa sobre ti e sobre o nosso filho. Filhos, possivelmente.
— Estás a dizer... — Bridei olhou para ela, encontrando os seus olhos grandes e estranhos, os olhos que a marcavam como algo mais do que humana.
— Se tudo correr bem, teremos outro filho ou filha no início da Primavera.
— Tuala! De verdade? Que notícias maravilhosas! — Levantou-se e envolveu-a nos braços, sentindo as lágrimas marejarem-lhe os olhos. — Há quanto tempo sabes?
— Antes de partires, eu já tinha uma leve desconfiança, nada mais que isso. Fui tendo maior certeza à medida que tua ausência ia aumentando e o meu medo por ti se tornava cada vez mais profundo. Fico contente que estejas satisfeito e mais contente ainda por estares em casa quando o bebê nascer. Espero que não haja mais guerras durante algum tempo.
— Também eu. Tuala, essa conversa sobre os boatos incomoda-me. Quem anda a dizer tais coisas? Aniel e Tharan deviam ter tomado providências...
— Shh, querido. Não há perigo, pelo menos por enquanto.
— Mas deves estar aborrecida...
— Um pouco. Mas eu sou a rainha, consigo lidar com essas coisas. O importante é aquilo que farei daqui para a frente
— Eu falo com Broichan, se preferires. Se for verdade, ele terá de se explicar.
— Não, Bridei. Cabe-me a mim falar com ele. Por estranho que pareça, acho que já não tenho medo de o fazer. Sinto-me apenas um pouco constrangida. Broichan esteve gravemente doente. Agora devia estar em Banmerren. Fola vigia-o atentamente. Mas ele sabia que tu regressarias a casa antes do Portal e insistiu em vir para cá a fim de te receber.
— Tuala?
— Mm?
Tuala atara o cinto do robe em redor da cintura estreita e começara a escovar o cabelo. Bridei observou o movimento regular e gracioso, o ondular dos cabelos longos e escuros. Interrogou-se sobre como fora capaz de suportar estar longe durante tanto tempo.
— És tão sensata — disse.
— Talvez essa seja outra prova de que a minha teoria está correta — respondeu-lhe, com um sorriso.
Ban deu um latido de aviso e, um instante depois, a voz de Garth fez-se ouvir do outro lado da porta.
— Meu senhor?
— O que foi, Garth?
— Faolan está de volta.
Bridei olhou para Tuala. Ela devolveu-lhe o olhar e disse:
— Não estejas com esse ar. Teremos muito tempo para nós mais tarde. É melhor ires falar com ele agora. Desde que eles voltaram que não é o mesmo.
— Obrigado, Garth — gritou Bridei. — Por favor, pede-lhe que espere. — Depois, ao começar a vestir-se, perguntou: — Não é o mesmo de que maneira? Ouvi o relato de Drustan sobre o que aconteceu, mas é bastante claro que aquela era apenas parte da história. O que tem Ana a dizer?
— Menos do que imaginas. Ela e Faolan parecem profundamente mudados pela viagem. Desde que regressaram que os três formam um grupo muito unido. Faolan, claro está, desempenha alguns dos seus deveres antigos, o que Garth certamente aprecia. Mas estou sempre a encontrá-los pelos cantos, embrenhados em conversas particulares. Entre Ana e Drustan, trata-se claramente de amor. Mas também é freqüente descobrir Drustan e Faolan imersos num debate intenso, ou Faolan e Ana, ao lado um do outro, num silêncio absoluto, olhando para a floresta. Faolan está inquieto. Ele não quer estar aqui. Espero que fale contigo.
Faolan estava à espera no jardim, onde lanternas tinham sido acesas para iluminar o crepúsculo. Trazia calçadas botas de montar e um manto pesado, como se tivesse acabado de chegar de uma viagem. Bridei atravessou o espaço que os separava e agarrou-lhe com firmeza o braço, para o puxar num abraço rápido. Por instantes, Faolan correspondeu, mas depois recuou.
— Senti a tua falta — disse Bridei, com simplicidade.
Faolan aquiesceu. Evitava os olhos do outro homem. Uma pequena trouxa estava encostada à parede, bem amarrada e, de repente, ocorreu a Bridei que o amigo não estava a chegar, mas sim de partida.
— Faolan — disse —, o que é isto?
— Estou feliz por estares em casa, são e salvo — respondeu Faolan. — Mas desejo ser dispensado dos teus serviços.
O choque, a mágoa e a preocupação deixaram Bridei incapaz de reagir.
— Meu senhor — acrescentou Faolan, tardiamente. Bridei respirou fundo.
— Como sabes, não é assim tão fácil — declarou. — Imagino que queiras o que te devo. Antes de te pagar, preciso de um relato da missão. Esta é uma exigência, Faolan. Entras e bebes um pouco de hidromel comigo junto à lareira? Está frio aqui.
— Não, meu senhor. — A voz de Faolan estava tensa. — Não vale a pena prolongar isto. Não preciso da prata, tenho mais do que suficiente guardada. Quanto ao relato, Drustan contou-te o que aconteceu. A missão foi um desastre. Perdi toda a escolta pelo caminho. Alpin desmascarou o meu papel na corte de Gabhran e ameaçou expor-me publicamente. Fui obrigado a dar-lhe informações sobre os teus progressos, que se encontravam perigosamente perto da verdade, embora tivesse conseguido convencê-lo de que irias avançar perto do Outono, nunca antes. O tratado foi assinado à má-fé. Fiz com que o guarda leal de Drustan fosse morto. Chega?
— No entanto — começou Bridei, mantendo um tom de voz regular, embora a amargura de Faolan o tivesse alarmado —, parece que ao trazeres Ana de volta, invalidando assim a aliança, nos fizeste um favor a todos: a Ana, a Drustan e, a longo prazo, a mim próprio como rei de Fortriu. Parece que Alpin teria sido um aliado perigoso.
— Sem dúvida. Se eu não tivesse quase a certeza de que ele já deduzira que irias avançar antes do Inverno, não teria corrido o risco de andar tão perto da verdade com ele. Era a segurança de Ana que estava em causa. Dei a Alpin aquilo que acreditei que me daria tempo para tirá-la de lá. Não me agradou fazê-lo.
— Bem — disse Bridei —, Ana está em segurança e a guerra está ganha, embora não sem algumas perdas terríveis. Ambos desempenhamos as nossas missões, de uma forma ou de outra. Afinal, parece que a nossa refém real sempre poderá vir a casar com o Chefe Tribal de Briar Wood.
— Assim é. — Faolan olhava ferozmente para o chão. O seu tom de voz mudara outra vez e controlava com firmeza as emoções.
— O que se passa, Faolan? Tal como tu, estou de luto pelos que perderam a vida. Mas saíste-te bem. Salvaste Ana de uma situação muito perigosa e trouxeste-a para casa. Ela parece satisfeita. Não encontro qualquer falha na forma como conduziste a missão. Uma inundação é um ato dos deuses. Assumir a responsabilidade por isso parece-me mais do que arrogante. Já não desejas trabalhar para mim? Para onde tencionas ir?
— Para um lado qualquer. Só não quero ficar aqui. Bridei respirou fundo.
— Sabes — disse —, nunca te ouvi dizer coisas tão infantis, Faolan. E nunca pensei que me mentisses, não a mim, que sou teu amigo. Não te liberto dos meus serviços até me responderes satisfatoriamente a duas perguntas.
Faolan ergueu a cabeça.
— Pergunta — acedeu.
— Por que não podes ficar aqui, e para onde desejas ir? Quero a verdade. — Interrogava-se sobre se Faolan se limitaria a negar-se a responder. Sabia, tal como Bridei, que poderia simplesmente virar as costas e afastar-se do Monte Branco. Bridei nada poderia fazer para impedi-lo, a menos que usasse de força contra um amigo estimado.
— Vais ficar chocado com a minha fraqueza, Bridei.
— Põe-me à prova.
— Não posso ficar, pois não suporto vê-los juntos. É uma tortura lenu. Só aqui estou neste momento porque ela, Ana, obrigou-me a prometer que esperaria até que regressasses.
— Quando falas deles, referes-te a Ana e Drustan? Mas pensei que vocês três fossem muito próximos. Tuala disse-me...
— Somos próximos. Somos amigos. Ela ama-o. Ele ama-a. Eu amo-a. É essa a verdade e imploro-te que me deixes partir.
Tais palavras de Faolan? Um homem que todos descreveriam como desprovido de sentimentos humanos? — Compreendo — disse Bridei, demasiado espantado para uma resposta mais profunda. — E a segunda questão?
— Vou regressar a casa — indicou Faolan, calmamente. — Volto a Laigin. Um homem morreu por nossa causa, um guerreiro magnífico, com uma generosidade excepcional. Confiou-me a entrega da notícia aos do seu sangue. Acredita, não tenho qualquer vontade de regressar, mas é um dever que terei de cumprir.
— E aproveitas para te reconciliares com o teu passado?
Os olhos sombrios semicerraram-se. Os lábios finos comprimiram-se.
— Quem te falou disso? — replicou Faolan.
— Drustan disse-me que havia um assunto que ainda te atormentava. Não entrou em pormenores, dizendo que lhe fora pedido segredo. Pensei que talvez quisesses visitar os teus familiares.
— Ana gostaria que o fizesse.
— Compreendo.
— Uma dama do sangue real de Fortriu, um assassino celta, sim, é claro que compreendes. O que vês à tua frente é um tolo iludido que não foi capaz de manter os sentimentos afastados da missão do rei, acabando por conduzi-la ao fracasso. Devias ficar satisfeito por te veres livre de mim.
— A sério? — replicou Bridei. — É isso mesmo que queres, que te diga, muito bem, vai, e que nunca mais nos voltemos a encontrar? Queres partir e esquecer tudo? Drustan e Ana não vão ficar aqui para sempre. E, muito sinceramente, ela não é a única mulher do mundo.
És mortal, Faolan. Esta maleita atormenta os homens e, com o tempo, eles acabam por recuperar.
— Não vou perguntar-te se dirias o mesmo, caso tivesses perdido Tuala naquela noite, na floresta. Desejas alegrar-me. Agradeço-te por isso. Não nego que tive saudades da tua companhia e que esta decisão é difícil. Acredito que deva partir, Bridei. A cada momento parece haver uma razão nova para que regresse. Sei que não posso ficar aqui. Se permanecer, cairei num fosso negro de ciúmes destruidores. Amo-a. Não posso fazer-lhe isso.
— Nem acredito que ainda há tão pouco tempo condenavas esta dama, dizendo que se tratava de uma princesa mimada com habilidades eqüestres limitadas, e que guardá-la não era digno dos teus talentos — disse Bridei, incapaz de se refrear. — Que fez ela para alterar de forma tão radical a tua opinião?
— Mostrou possuir uma verdadeira nobreza: é forte, corajosa, altruísta e assisada. — Seguiu-se um silêncio. Depois, Faolan acrescentou: — Deixa-me partir, Bridei.
— Diz-me — Bridei estivera a raciocinar, naqueles breves momentos —, e se te oferecesse uma nova missão, que te levasse perto do teu destino, mas te mantivesse ao meu serviço? Tuala e eu faríamos o possível por instalar Ana e o seu companheiro noutro lugar antes que regressasses ao Monte Branco. Já sei que a vida na corte não será do agrado de Drustan.
— Que missão?
— Estarias, pelo menos, disposto a ouvir?
— Não concordei com nada. Podes dizer-me do que se trata.
— Faolan, já ouviste falar de um sacerdote cristão, um compatriota teu, de nome Colm? Por vezes é chamado Colmcille, que se pode traduzir como...
— Pomba da Igreja.
— Conhece-lo? Faolan anuiu.
— É dono de uma certa reputação. Forte. Influente. Difícil. É familiar do Alto Rei de Tara. Entrou em conflito recentemente devido a um assunto secular. Intrometeu-se onde não devia, durante uma guerra territorial. O homem parece sinônimo de problemas. Na última Primavera falavam muito dele em Dunadd. O que ouviste dizer?
Era interessante, pensou Bridei, como a voz de Faolan se alterara e os olhos tinham ganho vida ao esquecer os problemas e dedicar-se a um novo desafio.
— Gabhran ofereceu-lhe uma ilha — explicou. — Uma das nossas. Houve quem me dissesse que este Colm é o líder de um grande avanço cristão a partir das costas da tua pátria. Em Dalriada diz-se que é uma força imparável. Por outro lado, pareceu-me que o sujeito apenas queria um pouco de terra a que pudesse chamar casa e isso já lhe foi prometido. Ioua é um local remoto. E Suibne, aquela raposa matreira, lembrou-se da minha inconsistência, ao deixar que os missionários se instalem nas Ilhas Pequenas, ao mesmo tempo que os expulso do ocidente. Quero saber mais sobre o que este Colm anda a tramar. Quero saber se, caso lhe ofereçamos a mão, ele nos vai arrancar o braço. Se estes irmãos cristão são a cobertura de uma nova invasão. A relação com Circinn. Tudo o que possas trazer-me.
Houve um longo silêncio, após o que, no crepúsculo, Bridei viu Faolan a sorrir.
— Imagino que em criança fosses um bom pescador — disse Faolan.
— Nem por isso. Porquê?
— Sabes perfeitamente o isco que deves usar e como puxar o peixe.
— Talvez. O meu objectivo não é matar, mas sim dirigir o talento de um homem para um bom uso. Farás isto por mim, Faolan?
— Tinha planeado partir de imediato...
— No escuro, com o Inverno a aproximar-se? Vá, ainda tenho um pouco de inteligência. Espera até de manhã e faz as tuas despedidas. Assim, posso relatar-te tudo o que ouvi e podemos chegar a um acordo em relação ao âmbito da missão e à altura do teu regresso.
— E ao pagamento — acrescentou Faolan, com o breve esboço de um sorriso.
— Isso também — disse Bridei. — E, se precisares de tempo para os teus assuntos pessoais, também podemos chegar a acordo. Não podes acusar-me de ser um patrono inflexível. Com efeito, estou a fazer o possível por manter-te, ao mesmo tempo que procuro ficar com um mínimo de dignidade. Já perdi Breth. Não quero perder-te também.
Por um momento, de pé junto aos grandes portões do Monte Branco, enquanto aguardava que os guardas o deixassem sair pela porta lateral menor, Faolan quase quebrou uma das suas regras mais sacrossantas: nunca perder o controlo em público. Cometeu o erro de olhar para trás. Podia fitar os olhos de Bridei com serenidade. Lamentava deixar tão depressa o amigo e patrono, mas compreendiam-se mutuamente. Bridei concedera-lhe a oportunidade de partir com dignidade e com um objectivo. A seu tempo, Faolan pagaria essa dívida com a execução perfeita da nova missão. E com o seu regresso. Queria voltar. Bastava para isso que eles tivessem partido.
Podia olhar para Drustan e manter as feições calmas. Não era possível odiar Drustan, apesar do ciúme que o consumia, da consciência da impossibilidade de se equiparar ao exemplo de tal homem. O fato era que Drustan roubara-lhe a única mulher que fora capaz de amar. Drustan roubara-lhe esse tesouro e, mesmo assim, não podia deixar de gostar desse homem. Era uma questão difícil e ficaria satisfeito por deixá-la para trás. Essa despedida não foi problemática.
Mas Ana... Ana de madrugada, segurando-lhe as mãos no frio do terraço, o brilho das lágrimas nas faces da jovem. Ana a tentar dizer-lhe algo que começava por «se por acaso» e detendo-se com as costas da mão na boca, a fim de bloquear as palavras traiçoeiras. Se por acaso o quê? Se por acaso fosse permitido a uma mulher amar dois homens? Se por acaso tivessem voltado para trás em Breaking Ford, nunca tendo chegado a um sítio onde o amor e a perda os aguardavam? Ou apenas, se por acaso Faolan não tivesse cantado uma melodia, e atravessado um rio, e entregue o coração, contra a sua vontade? Nunca viria a saber o que ela lhe queria dizer. Apenas sabia que tinha de partir, pelo bem de todos eles. Pelos três.
Assim, ao olhar para trás enquanto a pequena porta junto ao portão era aberta e já não havia desculpa para mais atrasos, cruzou o olhar de Ana, de pé ao lado de Drustan, e não fez qualquer esforço para ocultar o que lhe ia na alma. Permitiu que lhe visse o amor, a tristeza e a esperança no futuro. O futuro dela e de Drustan. E o que leu no rosto da jovem trouxe-lhe lágrimas quentes aos olhos. Mas não as deixou cair até virar as costas, até atravessar a porta e deixar que os pés o levassem pelo caminho para ocidente. Para oeste, até Laigin e até um local que em tempos fora o seu lar.

 

 

                                                   Juliet Marillier         

 

 

 

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