Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
As Crônicas de Bridei
Livro II / Segunda Parte
A ESPADA DE FORTRIU
— Que A Que Brilha lhes conceda bons sonhos, esta noite. Que o Guardião das Chamas lhes ilumine o despertar — disse Tuala, mas uma sombra encobria-lhe os olhos. Quantos seriam esses despertares, até que a Mãe de Tudo percorresse o campo do sangue e da dor, recolhendo os filhos chacinados e levando-os para o mais longo de todos os sonos?
Faolan bem podia estar a tocar a música da guerra, pois o coração batia-lhe ao ritmo desse entretenimento bélico. Tinha a pele úmida do suor nervoso. Seria difícil que os dedos fizessem soar devidamente as cordas da harpa. Os códigos rígidos, com os quais aprendera a dominar o comportamento e a refrear os sentimentos ao longo dos anos desde a noite fatídica em que a sua vida mudara, não lhe serviriam de nada. Assim que pegasse na harpa, no momento em que abrisse a boca para cantar, voltaria a ficar exposto. Como seria capaz de agüentar uma única canção, quanto mais um repertório suficiente para a demorada ceia que iria celebrar a caçada?
Ana fitava-o. Tinha um ar doente, a palidez mais acentuada, as faces encovadas, a boca adorável contraída, como se tentasse controlar a dor. Acenou-lhe gravemente com a cabeça. Faolan viu-lhe nos olhos o reconhecimento de que agira de forma errada e de que seria ele a sofrer, embora não fosse capaz de entender o motivo na totalidade, pois Faolan nunca lhe contara a história da sua vida, nem viria a fazê-lo. Faolan viu que ela lamentava e perdoou-a de imediato. Baixou a cabeça em resposta, o gesto cortês de um servo à sua senhora, rígido e formal, calculado para não ofender Alpin de forma alguma. Depois, Faolan pigarreou e começou.
Todos gostaram da canção sobre a caçada. Gerdic, fiel à sua palavra, decorou o refrão alegre e dava o mote à multidão ali reunida sempre que era altura de voltar a cantá-lo. Faolan fora extremamente cuidadoso na sua pesquisa. Nenhum dos comensais naquele salão poderia dizer que o bardo não estivera presente quando a lança de Lorde Alpin trespassara o coração do primeiro javali ou quando a segunda criatura surgira inesperadamente e quase castrara o batedor assistente de Briar Wood, antes de os cães atacarem. No final da canção longa, doze estrofes ao todo, Alpin cantava com os restantes e a expressão de Ana só podia ser descrita como de espanto.
A canção não tivera acompanhamento, salvo o bater dos pés e as palmas ritmadas. Faolan sentia a transpiração a escorrer-lhe pelo pescoço. Era como se tivesse acabado de travar uma batalha sozinho. De certa forma, tal fora exatamente o que acontecera, uma batalha contra si próprio. Contudo, tinha a sensação desagradável de que o verdadeiro teste estava ainda por vir.
— Vamos ouvir essa harpa, rapaz! — gritou Alpin, com um ar radiante. O chefe tribal estava satisfeito. Prova disso era o fato de não ter tratado Faolan por «Celta». — Dá-nos alguma coisa para as mulheres. Que tal uma canção de amor? Gostarias disso, minha querida, não é verdade? — Deu uma palmadinha na mão graciosa de Ana com a sua pata enorme.
Faolan obrigou-se a respirar lentamente. Apoiou a harpa no joelho e perdeu algum tempo a afiná-la, embora já estivesse perfeita, pois confirmara-a várias vezes antes de entrar no salão.
— Faolan — fez-se ouvir a voz de Ana, límpida e gentil no espaço apinhado —, gosto daquela balada sobre o homem que se apaixonou por uma fada, sabes a que me refiro? — Virou-se para Alpin. — É em gaélico, mas não te importas, pois não, meu querido? Gosto bastante da melodia, mesmo sem perceber o que é dito.
Julgou estar a ajudá-lo, mencionando uma canção que Faolan já conhecia, pois ouvira-o a trauteá-la no vau. Talvez pensasse que era a única outra trova no seu repertório.
Alpin teceu um comentário impaciente que dava o seu consentimento relutante e passou o braço pesado à volta dos ombros elegantes da noiva. As mãos de Faolan moveram-se. Detiveram-se. Voltaram a mover-se, com um floreado confiante pelas cordas. A canção fez-se ouvir, forte e afinada, silenciando todas as línguas naquele salão. O coração vibrava em uníssono com a harpa, com um fluxo de emoções que ameaçavam arrasá-lo, pois já havia muito tempo desde que fora assolado por sentimentos tão poderosos. Tinha de fazê-lo. Agora não podia esconder-se, não podia fugir. Faolan respirou fundo e começou a cantar.
Claro que Ana entendia gaélico, pelo menos o suficiente. Não fosse a necessidade de Faolan de invocar toda a sua força, a fim de impedir que as recordações se tornassem avassaladoras ao ponto de o fazerem ceder, e poderia ter aproveitado aquela oportunidade para falar com a jovem, para avisá-la de que era bem provável que Alpin fosse um mentiroso e que talvez precisassem de fugir. Para lhe elogiar a beleza e a coragem. Para lhe dizer o que nunca poderia ser dito para lá da segurança de uma narrativa fantástica de paixão e mágoa. Faolan deixou que a harpa falasse por ele, transmitindo no delicado arabesco de notas o maravilhoso amor de Fionnbharr por Aoife, a donzela dos sidhe, e o vazio doloroso que sentiu ao perdê-la. A canção fluía quase por vontade própria. Se a voz lhe fraquejou alguma vez, a audiência nem deu por isso. Copos ficaram suspensos entre a mesa e as bocas, ossos de javali imobilizaram-se nos dedos gordurosos. Os criados que serviam as mesas estacaram, de travessas cheias nas mãos. Junto à parede do outro lado do salão, um homem baixo e calvo de ombros largos ouvia com atenção, os olhos plácidos, a boca a esboçar um sorriso irônico.
Eventualmente terminou. A ovação estrondosa não se fez esperar, as palmas acompanhadas por assobios estridentes e murros nas mesas. Gerdic acercou-se de Faolan com uma palmada no ombro, quase deslocando a posição da harpa. Outro homem entregou-lhe um copo a transbordar de cerveja.
— Bebe e vamos ouvir mais uma. Mas não uma dessas canções lentas e chorosas, pois as mulheres ficaram perdidas... olha só a minha mulher, a carpir como se a mãe lhe tivesse morrido. Brinda-nos com alguma coisa com ritmo, uma canção de batalha, ou coisa do gênero. E depois canta outra vez a primeira, pois agora já conhecemos a melodia.
— Bardo! — chamou Alpin. — Já chega desses disparates celtas, não tenho paciência para eles. Pelos deuses, dá-nos palavras que possamos compreender. E uma melodia de homem, pois hoje derramamos o sangue de um javali e precisamos de entretenimento digno da ocasião. Toca qualquer coisa forte e mexida.
Faolan engoliu um trago de cerveja, pousou o copo e recomeçou. Não era difícil encontrar a melodia certa, pois conhecia centenas. Tocar não era um desafio de maior, mesmo que os dedos não se dedicassem a essa tarefa há mais anos do que gostava de recordar. As técnicas regressaram prontamente e a harpa negligenciada mostrou-se à altura. Se Faolan se tivesse conseguido abstrair da dor que estivera armazenada no coração, talvez pudesse ter realizado o que lhe pediam, saindo do suplício apenas com os dedos doridos. Prosseguiu com as melodias, satisfeito por a audiência mostrar uma preferência por canções alegres e triviais, pois seriam as melancólicas e profundas que teriam o condão de o arrasar.
A dada altura, Ana desculpou-se e retirou-se para os seus aposentos. A Faolan parecia óbvio que ela se debatia por ocultar o espanto e, pelo menos assim o imaginava, o alívio. A última coisa que a jovem teria esperado era que ele se revelasse um músico competente. Permitiram-lhe um breve descanso, durante o qual lhe serviram comida e bebida. Falou com Gerdic e com outros homens. Mais tarde, não recordaria uma única palavra trocada. Tentou respirar de forma ritmada, algo que observava Bridei a fazer em momentos de tensão, e descobriu que ajudava um pouco. A enxurrada de recordações continuava a assolá-lo, mas conseguiu reprimir as manifestações físicas: as mãos trêmulas, a voz instável, as lágrimas que ameaçavam brotar. O longo serão aproximava-se do fim e Alpin pediu uma última canção.
Ao levar os dedos às cordas, Faolan ainda não decidira a melodia que lhes iria apresentar. O bom senso aconselhava algo breve, inócuo e alegre, algo que os levasse para a cama com um sorriso nos lábios e que convidasse a sonhos agradáveis. No derradeiro momento, optou por ignorar o seu próprio bom conselho e deu início a uma canção mais grandiosa, o relato de uma batalha heróica, celta contra celta, na qual um grande líder inspirava as suas forças para uma vitória improvável. Não cantou na sua língua nativa, mas na da audiência e, em vez de um chefe tribal ruivo de Ulaid, o herói era um rei jovem de Fortriu, recém-chegado ao trono, um homem que tinha como símbolo a águia e cuja grande ventura era vista pelo Guardião das Chamas com orgulho e entusiasmo. Não nomeou Bridei, mas não havia homem ou mulher ali presente que não o entendesse. Cantou como os idosos depunham as bengalas e os copos de cerveja para saudar a passagem do jovem rei. Como os homens na flor da idade se lhe juntavam às centenas. Como os jovens, ainda mal com idade para largar as saias da mãe, empunhavam as espadas dos ancestrais falecidos e partiam a jurar a sua fidelidade ao novo rei. Cantou como a coragem, a sabedoria e a força do antepassado original, Pridne, pareciam renascer naquele jovem líder.
A canção terminou com uma melodia da harpa e uma nota solitária da corda mais aguda. Seguiram-se alguns momentos de silêncio, após o que Faolan curvou a cabeça em agradecimento da ovação que se fez ouvir em seu redor. Executara a canção sem que dela tomasse consciência. Parecera fluir sem necessidade da sua intervenção. Em tempos, quando era novo e se debatia com a técnica, teria dado muito por tal criação intuitiva. Naquela noite, só se apercebeu de como se sentia depois de tudo terminado. Era como se o corpo tivesse sido arrastado sobre pedras. Sentia-se dorido, desgastado como um cão vadio, o coração oprimido no peito, queixando-se do ataque que sofrera, pois fora aberta uma porta há muito trancada, que deixara entrar mais do que o suportável.
— Vem cá, bardo. — Alpin estava de pé, pronto para se retirar. Os bancos foram arrastados nas lajes quando os restantes membros da casa acompanharam o erguer do seu líder.
Os pés de Faolan executaram os movimentos necessários, levando-o pelo salão até à presença do líder de Briar Wood. Descobriu que os joelhos não estavam preparados para se dobrar. A máscara de subserviência já não lhe parecia possível. Conseguiu curvar a cabeça pois, se tivesse os olhos marejados de lágrimas, não queria que aquele homem as visse.
— Surpreendeste-me. — O tom de Alpin não era hostil, apenas curioso. — A última coisa de que estava à espera era que soubesses mesmo tocar. Afinal de contas, a dama dizia a verdade.
Faolan ergueu o olhar, as lágrimas esquecidas.
— Lady Ana não mente — disse, com um tom frio. Alpin carregou o sobrolho.
— Podes tocar bem — disse — e cantar melhor, e até nos proporcionaste um bom entretenimento, mas se fores um bardo, esfolo o próximo gato que se cruzar no meu caminho e como-o ao pequeno-almoço, com ossos e tudo.
— Sim, meu senhor. — As mãos de Faolan apertaram a estrutura da harpa.
— Vou deitar-me — indicou Alpin. — A senhora não está bem. Devo passar pelo seu quarto, para ter a certeza de que não precisa de nada. Espero que não venha a revelar-se enfermiça. Preciso de filhos, bardo. Não há canções bonitas que me ajudem a consegui-los. Podes ir. Pela virilidade do Guardião das Chamas, pareces tão pálido e trêmulo como a tua senhora. O que se passa com estes sulistas? Gerdic, leva-o para dormir, está bem, antes que ele desmaie e deixe cair o instrumento. Precisamos dele, e da harpa, inteiros. Imagino que amanhã as mulheres queiram mais baladas. Boa noite, rapazes. Que o Guardião das Chamas vos dê sonhos de bestas chacinadas e de batalhas ganhas. E uma mulher confortável na vossa cama.
Em tempos, havia mais de cinco anos, Faolan passara uma longa noite em branco ao lado de Bridei. Lembrava-se de como o rei vomitara até secar o estômago. A forma como dominara o tremor que se lhe tinha apoderado do corpo. Como conseguira manter-se em silêncio e reprimir as lágrimas. Todos o tinham acompanhado na noite terrível do sacrifício do Portal, Faolan, Breth e Garth, e velaram pelo futuro rei tanto por amor como por dever. Agora, era o próprio Faolan que se arriscava a tombar vítima de um excesso de emoções sombrias e, se ali tivesse um camarada que lhe oferecesse conforto, tê-lo-ia repelido. Não acreditava que um homem como ele pudesse ter amigos. Não os merecia, pela sua natureza. Não havia alma no mundo a quem permitisse que testemunhasse a sua fraqueza. Não havia homem sobre a terra a quem confessasse a sua história. Nem mesmo a Bridei. O que revelara a Drustan e a Deord era um mero fragmento da verdade, confidência essa que lamentava ter feito. Certas coisas deviam permanecer escondidas, por revelar. Quase, mas nunca completamente, esquecidas.
Por isso, desculpou-se perante Gerdic e os outros, desejosos de levar mais cerveja para os alojamentos e continuar a celebração da noite. Dirigiu-se sozinho ao mesmo terraço pequeno onde sabia que Ana se sentava à tarde, com os seus bordados. Havia guardas nos passadiços e mantinham-no debaixo de olho, como era seu dever, mas não tentaram detê-lo enquanto subia os degraus estreitos. Reprimiu os demônios interiores (ah, Dubhán, o melhor dos irmãos, e o sangue quente a jorrar, a manchar-lhe as mãos de vermelho) até chegar a um canto nas sombras, onde a luz dos archotes dispostos em suportes de ferro não cairia sobre ele. Agachou-se aí, passou os braços sobre a cabeça como uma criança perdida e chorou em silêncio.
— Estás com melhor aspecto, esta manhã — disse Alpin, a boca cheia de papas de aveia. Ana voltara a tomar o pequeno-almoço com ele assim que deixara de sangrar e ficara sem cãibras. — Tens as faces mais rosadas, assim é melhor. Tenho novidades.
— Sim? — Ana serviu-se de pão e de borrego assado frio. Desejava transmitir uma aparência de descontração e bem-estar, embora o coração tivesse disparado com os nervos. Tinha uma pergunta a fazer ao noivo e não sabia se ele gostaria de ouvi-la.
— Sim, o druida deve chegar dentro de um dia ou dois. Foi avistado ontem, a descer a colina do Vale das Tempestades e um dos meus homens enviou um corredor para me informar. Já não falta muito.
A expressão nos olhos de Alpin fê-la estremecer.
— Oh. Ainda bem — foi tudo o que conseguiu dizer. Dois dias. Tão cedo. A verdade era que, não interessava quantos dias faltassem para o casamento, para ela seria sempre demasiado cedo. Conseguia ouvir a voz doce de Drustan: Não quero que cases com o meu irmão.
— Sorri — disse Alpin, observando-a com atenção. — Convence-me de que estás satisfeita.
Ana sobressaltou-se. Seria o seu estado de espírito assim tão transparente?
— Estou satisfeita — disse, mas não foi capaz de sorrir. — Imagino que esteja um pouco nervosa. Peço desculpa se tal é evidente no meu humor.
— Imagino que já cá estejas há tempo suficiente para te teres instalado. — Alpin estava sentado de pernas abertas, os braços cruzados sobre o tampo da mesa, inclinado na direção da jovem. — E já tiveste oportunidade de te habituares à minha pessoa e à idéia de casamento. Tens de te descontrair um pouco. Não é preciso tanta formalidade quando estás sozinha comigo. Vem cá. Senta-te a meu lado, isso mesmo. Mais perto. — Um braço imenso envolveu-lhe os ombros e, de repente, a outra mão puxara-lhe a saia e insinuava-se com alguma ousadia pela coxa acima. Ana arquejou.
— Pronto, pronto — disse Alpin, como se tentasse acalmar um animal nervoso. — É só a praticar, não tem mal... Vai tornar as coisas mais fáceis, na noite do casamento, prometo... — A mão chegara rapidamente a um ponto onde seria obrigada a detê-la. A outra mão deslocara-se para o seio e apertava de modo desconfortável, e os lábios de Alpin estavam no pescoço da jovem, esfregando-se e sugando. A respiração do homem acelerara. Ana sentiu uma repugnância inflexível percorrer-lhe o corpo. Casaria com ele dali a dois dias, dois dias, e, se ele não parasse com aquilo, Ana iria gritar ou vomitar, sem que pudesse evitá-lo. O dever manteve-a imóvel e silenciosa, à medida que a repulsa lhe atravessava o corpo em ondas geladas. Tentou imaginar o que faria Ferada naquela situação, mas não conseguiu pensar em nada. Era óbvio que Ferada nunca teria deixado que as coisas chegassem àquele ponto. Se Ferada alguma vez permitisse que um homem a tocasse assim, seria alguém escolhido por ela após uma seleção rigorosa.
Os dedos de Alpin acariciavam, pressionavam, sondavam. Afastavam o tecido da roupa interior... Ana contorceu-se um pouco, tentando não fazer um esgar quando os dedos de Alpin tocaram a pele nua das suas partes íntimas. A jovem desviou-se e obrigou-se a beijá-lo nos lábios, um esforço breve mas não demasiado virginal, pois não queria que ele percebesse o quanto a situação a incomodava. Depois afastou-se dele, enquanto voltava a baixar a saia.
— Se me queres em boas condições, meu querido — disse, conseguindo esboçar um sorriso —, tens de me deixar terminar o pequeno-almoço.
Alpin riu-se. Agora era o seu rosto que estava corado.
— Pela virilidade do Guardião das Chamas, rapariga, depois de tanto tempo, nunca pensei que mais dois dias custassem tanto a passar. Espero que saibas como é difícil para um homem. Espero que saibas o quanto te desejo. Tenho umas belas noites à tua espera, prometo. Toma, sente só. — Agarrou-lhe na mão e, antes que Ana se apercebesse do que ele fazia, levou-a ao baixo-ventre e pressionou-a, fazendo com que a forma ereta da sua virilidade enchesse a palma da mão da jovem.
— Dizem que tenho a constituição de um touro — comentou Alpin com um tom presunçoso. Largou-a e voltou a dedicar-se às papas.
— Vou dar-te filhos com fartura. E um prazer como nunca sonhaste. Vais ter algumas nódoas negras daqui a duas noites, mas vão ser agradáveis. Come. Tens razão, precisamos das nossas forças.
Se pensara que iria conseguir reconfortá-la, saíra-se muito mal. Comeram em silêncio durante algum tempo, após o que Ana respirou fundo e deu início ao que pretendia dizer.
— Espero que não fiques irritado comigo, meu querido, mas tenho um pedido a fazer-te.
— Ah sim? Qual é?
— Continuo um pouco... perturbada com a situação familiar presente. Com o teu irmão, que está preso, mas continua aqui na casa. Quer-me parecer que isso lança uma certa tristeza sobre Briar Wood, uma sombra do passado que nos cobre a todos. Isso preocupa-me, Alpin. Falas de filhos. Preocupa-me que os meus filhos cresçam num lugar que esconde um segredo tão terrível.
Alpin continuou a comer, algo que Ana interpretou como sendo um bom sinal.
— Que queres que eu faça? — perguntou. — Que o mande embora?
— Claro que não, não quis dizer nada disso — apressou-se Ana a replicar. — Apenas quero entender melhor a situação e talvez remendar alguns laços quebrados. Disseram-me que dispensaste a maior parte das pessoas que aqui trabalhava quando... quando aconteceu aquela coisa horrível.
— Disseram-te. Quem te disse? — Havia um tom novo na voz de Alpin que não agradou a Ana.
— Passo as tardes a coser com as outras mulheres, Alpin. As mulheres falam.
— Umpf. Era melhor que se dedicassem a temas mais apropriados. Ninguém tem nada a ver com quem dispenso ou mantenho nesta casa.
— Ouvi dizer que existe uma idosa que tomou conta de ti, do teu irmão e da tua irmã quando eram crianças. Que ela vive algures na floresta, sozinha.
— Mm-mm.
— Parece-me triste que não tenhas uma serva tão leal debaixo do teu teto. Não será perigoso viver sozinha?
Alpin olhou-a com curiosidade. — O que queres? — perguntou.
— Gostaria de visitá-la — respondeu Ana, as palmas das mãos suadas com o nervosismo. — De falar com ela, tentar perceber um pouco da família à qual vou pertencer. Se a tua irmã aqui estivesse, ou se a tua mãe ainda fosse viva, seria a elas que perguntaria. Se Orna estivesse disposta a falar, obteria informações com ela. Mas recusa-se a comentar o assunto.
— Não podes visitar Bela. — Alpin pegou na faca e voltou a pousá-la, bebeu um gole de hidromel e serviu-se de mais. — Há anos que ninguém a vê. Pode ter morrido, ou abandonado a floresta.
— Não tem uma casa? Uma barraca? Como pode sobreviver sozinha? — continuou Ana a insistir, sem querer aceitar que a última esperança de obter provas se desvanecesse.
— Não faço idéia. — Alpin fitou-a. — Porquê este interesse súbito pela velha Bela?
— Eu... — Ana raciocinou apressadamente. — Estou a pensar nos nossos filhos, aqueles que viremos a ter. Vamos precisar de uma ama e, uma vez que se trata de uma serva de confiança da família...
— É uma velha senil — atalhou Alpin, com desdém. — Teremos uma nova ama para os nossos filhos. Alguém jovem e enérgica. Não podemos deixar que te canses, minha querida. Quero-te fresca e ardente. Pelos deuses, é como se tivesse esperado a vida toda por isto. Se me tratares bem, terás um bom marido, juro. Não há nada que não te dê.
Ana não foi capaz de cruzar o olhar de Alpin, pelo que fitou o prato.
— Espero vir a agradar-te, meu senhor — disse, por entredentes cerrados. — Tal como sabes, sou inexperiente no que diz respeito aos assuntos do quarto.
— Exatamente o que um marido espera da nova esposa — retorquiu Alpin. — Vais aprender. Vou mostrar-te o que fazer e ensinar-te a gostar. Acontece o mesmo com tudo quanto seja novo, montar a cavalo, caçar com falcão, usar um arco. Não há nada a recear. Mas tens medo, não é? E porquê?
Não podia dizer-lhe que o toque dele a perturbava e enojava.
— Estou um pouco aborrecida — disse-lhe. — Sinto-me triste por não ter ninguém dos meus para o casamento.
— Tens o teu bardo.
— Um servo não substitui a família — replicou Ana, satisfeita por Faolan não poder ouvi-la.
— Virei a compensar-te por isso — garantiu Alpin. — A seu tempo, iremos visitá-los. E também vou convidá-los. Seria benéfico, muito benéfico.
— Creio que devíamos tentar encontrar Bela — insistiu Ana —, para que seja bem tratada. Talvez se possa enviar alguém à sua procura? Gostaria de falar com ela, Alpin. Não resta quase ninguém que me possa contar sobre os tempos idos.
Alpin Semicerrou os olhos.
— E por que haverias de querer saber sobre eles?
— Eu só... Imagino que tenha a ver com Drustan. — Esperava que a voz não revelasse o calor súbito que a preenchera ao dizer o nome. — Com a maleita de que padece. Esperava que essa velha ama pudesse falar-me de Drustan enquanto criança. Se vou ter filhos teus, tenho de saber como essa doença se manifesta.
— Para fazeres o quê? Abatê-los como cachorros débeis?
Ana estremeceu. — Não, claro que não. Mas, pelo menos, obter conselhos atempados de um curandeiro.
— Nem o melhor caçador de Briar Wood seria capaz de encontrar a velha, Ana. Ela escondeu-se. Não há casa. Não há lareira de onde brote uma coluna de fumo que nos indique o seu paradeiro. Ninguém sabe onde ela está e estes bosques são traiçoeiros.
— Oh.
— Quanto a Drustan, a história dele conta-se rapidamente. Desde pequeno, sempre foi uma criança diferente. Obstinado. Estranho. Difícil. Não podíamos tê-lo aqui. Aos sete anos, foi enviado para casa do nosso avô. Lá cresceu, isolado, onde não me colocaria em perigo, ou à minha irmã. O nosso avô morreu tinha Drustan vinte anos. Deixou-lhe todo o domínio do Vale dos Sonhos, incluindo as águas de uma enseada profunda e abrigada. Foi um ato perfeitamente disparatado, pois nessa altura a loucura do meu irmão aproximava-se do auge. Podia fazer o que quisesse, no seu próprio domínio. Deixá-lo partir fora um erro. Os anos passaram-se. A minha irmã casou-se e partiu. O meu pai morreu e eu tornei-me mestre de Briar Wood. Raramente via Drustan, o que me agradava. Cheguei a pensar que pudesse vir a ter uma vida normal. O meu casamento apenas veio fortalecer essa convicção. Fui feliz durante algum tempo, mais feliz do que alguma vez tinha sido. Foi então que Drustan chegou, à primeira vista com o objectivo de discutir o uso pelas minhas forças do seu ancoradouro profundo. E aconteceu.
Ana obrigou-se a manter-se calma.
— Matou a tua esposa — disse. — Sem qualquer razão. Sem mais nem menos.
— Sim, sem mais nem menos. Perseguiu Erisa pela floresta, até Drift Falls, onde o ribeiro cai para a zona mais profunda da floresta, para um local onde o bosque é tão cerrado que não há caminhos de acesso. Escorregou nas pedras à beira do precipício e caiu. Num abrir e fechar de olhos, Drustan desapareceu de vista.
— Ele... — Ana engoliu as palavras. Ele diz que não se lembra.
— Não entendo por que faria ele tal coisa.
— Procuras explicações onde elas não existem. — Alpin guardou a faca com um movimento súbito.
— Só mais uma coisa. — Ana viu as sobrancelhas espessas de Alpin inclinarem-se numa expressão carregada. Teria de concluir rapidamente o assunto. — Como foi Erisa capaz de ser mais rápida do que Drustan a chegar a esse local... Drift Falls? Estava em fim de gravidez. Ele era... imagino... um homem apto, como tu. Decerto poderia tê-la alcançado.
— Ele não quis alcançá-la. — O tom de Alpin era sombrio.
— Queria que ela caísse. E foi exatamente o que aconteceu. Bela estava lá e foi esse o relato que me fez, antes de desaparecer na floresta. Drustan nunca o negou.
Uma mão gelada apertou o coração de Ana.
— Não gosto de contar esta história — disse Alpin, com pesar.
— Mas tens razão. Já que nos vamos casar, mereces saber todos os pormenores. Estás perturbada. Compreendo. Se quiseres que o mande embora quando tivermos os nossos filhos, assim o farei. Pareceu-me mais adequado tê-lo aqui. Afinal de contas, é meu irmão. Posso vigiá-lo melhor desta forma.
— Deves fazer o que achares melhor — declarou Ana, apercebendo-se do som tenso e magoado da própria voz. Não fazia sentido. Como poderia Drustan ser duas pessoas, o homem gentil que ela conhecia e aquele outro, violento e imprevisível? Mas por que mentiria Alpin sobre tal assunto?
Alpin dizia qualquer coisa. Ana não o ouvira.
— O que disseste?
— Que é melhor teres um dia sossegado. Não te queremos cansada no dia do casamento.
— É uma boa idéia, Alpin.
— Podemos ter uma ceia rápida esta noite, só nós dois.
— Mal posso esperar — mentiu Ana. O que fazer agora? Escolher a opção mais simples e cruel, e simplesmente nunca mais voltar a falar com Drustan? Nunca mais regressar ao pequeno terraço, local de sussurros e segredos? Ou usar a tarde para falar com ele, para lhe dizer... o quê? Que a única testemunha não poderia ser encontrada e que ela era obrigada a considerá-lo culpado por falta de provas em contrário? Uma coisa era certa. Quando casasse, não poderia voltar a haver diálogos secretos, os momentos doces e tão ansiados de canções e narrativas partilhadas, de conversas ternas. Os pássaros teriam de cessar as visitas, com os seus olhos brilhantes e pequenas oferendas. Iria limitar os bordados a imagens de cães. Mesmo assim... mesmo assim amava-o... Pronto, fora dito. Era tolo, ridículo, perigoso, mas mais sincero do que qualquer verdade. Aparentemente era um assassino, sujeito a ataques de fúria enlouquecida, e, mesmo assim, era o único homem que alguma vez amaria, o único homem que desejava que a tocasse da maneira que um marido toca a esposa...
Ana fechou os olhos por um momento e respirou fundo, deixando sair o ar com um suspiro. Estava a ser injusta para com Alpin, muito injusta. Ele perdera a mulher e o filho. Talvez fosse rude e de mão demasiado pesada, mas tudo o que queria era outra oportunidade de constituir família. Era uma pretensão razoável. Fora enviada com o único objetivo de casar com ele e não levantara qualquer objeção. Se acabara por se apaixonar por outro homem, o mais inadequado que poderia ter encontrado, a culpa era apenas sua. Não iria arruinar a oportunidade de Alpin ser feliz com algo impossível de concretizar, por um amor sem futuro. A maioria das mulheres casava sem amor. O grosso dos casamentos sobrevivia. Afinal de contas, as mulheres tinham os filhos e a casa para gerir. A tolerância e a amizade eram bases aceitáveis para uma sociedade vitalícia. Nem todos podiam ser como Bridei e Tuala, que tinham tudo isso, para além de um verdadeiro amor.
Contudo, pesassem embora todos esses argumentos assisados e práticos, era Drustan quem lhe preenchia alma e coração. Queria-o, precisava dele, desejava-o. Nem mesmo o casamento com o irmão alguma vez mudaria esse fato. Imaginava que o futuro não lhe reservava o lar aconchegante com que em tempos sonhara, mas um pesadelo de promessas quebradas e corações despedaçados.
Faolan criara um sistema com o qual era informado das movimentações em Briar Wood. Um dos tratadores dos cães não tinha motivos para gostar de Alpin, pois sentira a força da sua cólera ao salvar um cachorro que não se encontrava à altura das exigências do líder de Briar Wood. O rapaz não afogara a criatura, tal como lhe fora ordenado, tendo-a criado às escondidas, e agora a cadela seguia-o para todo o lado, como um acólito embevecido. Dovard prestara-se de imediato a ser os olhos de Faolan no que dizia respeito à pequena saída ao lado dos canis. Em troca, era apenas necessário coçar o animal atrás das orelhas pendentes e comentar a beleza da criatura.
Foi assim que Faolan veio a saber, antes do mestre da casa, que uma certa visita chegara sem aviso. Era um encapuzado, um homem pálido, de aparência e sotaque celtas. Dovard não lhe conhecia o nome, apenas sabia que já estivera em Briar Wood em várias ocasiões e que era regra que ninguém soubesse da sua presença, exceto Alpin ou Dregard. Segundo Dovard, o visitante seguia um padrão habitual: esperava nos aposentos do chefe tribal e tinha uma reunião privada quando Alpin regressava da cavalgada matinal. Ao fim do dia, o indivíduo partia sem ser visto.
Um celta. Por momentos, Faolan desejou um poder semelhante ao de Drustan, que lhe permitisse transformar-se em mosca ou escaravelho e escutar a conversa na parede da sala de reuniões de Alpin. Isso poderia revelar-lhe a informação de que precisava para dar a volta à situação, declarar nulos o contrato de casamento e o tratado e levar Ana de Briar Wood antes que fosse demasiado tarde. O druida era esperado nessa noite. No dia seguinte, Ana seria esposa de Alpin e não havia regresso.
Não havia regresso... Faolan não queria regressar, pelo menos à parte da sua própria história que se encontrava repleta de sangue, de terror e de escolhas impossíveis. Mas o Monte Branco oferecia-lhe uma casa e um objectivo. Há mais de cinco anos que estava com Bridei e sabia que o laço que o unia ao jovem rei era mais profundo do que alguma vez desejara que viesse a ser. Agora o casamento estava prestes a acontecer e, se tudo corresse segundo os desígnios de Bridei, dali a dois dias Faolan poderia estar a caminho do Monte Branco, com o relato do tratado concluído, Ana levada para a cama pelo bronco do marido e o pormenor da perda da escolta como única mácula do sucesso total. Afinal de contas, que provas tinha que sugerissem que a pronta garantia de paz por parte de Alpin não seria cumprida? Ao longo de dois ciclos da lua dera o seu melhor na busca de informações, e Faolan era bom no que fazia. Contudo, tudo o que tinha era as palavras de um homem supostamente insano, que lhe dissera que Alpin faria a sua escolha sem consideração por tratados, e a insinuação subtil de Deord, um homem que apenas falava quando bem lhe interessava. Não era suficiente. Bridei precisava daquele casamento. Precisava de se unir a Alpin por laços de parentesco. O processo não poderia ser interrompido sem uma boa razão. Não podia ser detido sem provas concretas e Faolan era forçado a admitir que tal parecia não existir. Tivera muito tempo para desenterrar a verdade, caso ela existisse. Podia jurar que, se Alpin pretendia trair o rei de Fortriu, ninguém o sabia, a não ser o próprio chefe tribal. A existir tal conluio, fora bem oculto.
Até àquele momento. Um celta, um encontro às escondidas, um de entre vários. Alguma coisa deveria estar a passar-se. Infelizmente, nem mesmo o melhor dos espiões de Fortriu seria capaz de entrar nos aposentos privados de Alpin, vigiados por um guarda armado. Claro que havia a outra porta, a que dava acesso ao alojamento de Deord e Drustan. Faolan considerou a hipótese de tentar uma variante do que planeara antes, escalar a muralha, entrar pelo telhado gradeado da prisão e pedir a Deord que lhe permitisse escutar através da pequena porta. Descartou essa possibilidade. As muralhas estavam apinhadas de guardas nesse dia. Além disso, as mulheres deveriam estar no terraço, com o seu trabalho. Conseguia imaginar a reação delas se surgisse de repente a saltar a muralha do pátio isolado. Era um plano demasiado arriscado. Nem tinha a certeza de ser capaz de ouvir o que seria dito, uma vez atrás da porta. Praguejou entre dentes e baixou-se para fazer uma festa à cadela, que parecia ter gostado dele, só os deuses sabiam porquê.
— Gosta de ti — observou Dovard, o qual ia cortando carne para os cães de caça. No cercado na retaguarda dos canis, os animais ganiam em antecipação.
— Tolera-me — replicou Faolan. — És tu a luz da vida dela.
— Bem — era óbvio que o comentário agradara ao rapaz, ao mesmo tempo que o embaraçara —, é um bom cão. — Com um encolher de ombros, Dovard virou-se e dirigiu-se às traseiras dos canis, onde foi recebido por latidos excitados. A cadela aproximou-se da carne e surripiou um pedaço. O olhar do animal implorava a Faolan que apreciasse aquele gesto de esperteza.
— É melhor ir-me embora — disse Faolan. — Obrigado pela tua ajuda. Fica atento a este festim, caso contrário não tarda nada desaparece.
Ao sair para o pátio, ocorreu-lhe que seria possível uma outra variante do plano, algo que exigiria apenas que Deord decidisse vir ao salão e regressar à prisão pelo menos uma vez antes de o encontro secreto ter início. Isso e uma oportunidade de falar com ele sozinho. Simples. Perfeito. Poderia conseguir a informação que desejava sem arriscar ninguém. E, se o que na verdade queria era que o tratado de Bridei fracassasse para que a mais bela mulher de Fortriu não precisasse de se casar com aquele rufião, ninguém precisava de o saber, para além dele próprio. Pensar assim não era digno do emissário do rei. Qualquer que viesse a ser o futuro de Ana, não seria ele o homem ao lado da jovem. Ele não era ninguém. Não passava de uma ferramenta para suprir as necessidades dos outros. Ana mostrara-lhe que o escudo que levantara não era impenetrável. Não tinha controlo sobre os seus sonhos. Mas sempre dominara palavras e ações na perfeição. Era o que tinha de fazer naquele momento e esquecê-la e ao casamento.
O rei de Fortriu encontrava-se na Fonte do Corvo, o domínio de Talorgen junto ao Lago da Donzela. A natureza específica da sua missão significava que seriam a última peça a encaixar-se no grande jogo da guerra. Enquanto Talorgen iria juntar-se a Uerb num ataque por mar às colônias costeiras de Dalriada, Ged uniria as suas forças às de Morleo e iriam deslocar-se pela calada, a fim de contornar e atacar Gabhran no centro do território. A força principal de guerreiros Priteni, sob o comando de Carnach, já avançara para ocidente e dividira-se em grupos menores. Por aquela altura, deveriam estar acampados nas colinas, preparados para descer sobre as fortalezas e as colônias celtas menores, entre o baluarte de Gabhran, em Dunadd, e as fronteiras do norte. Bridei iria aguardar até que todos os outros estivessem posicionados. Numa data previamente marcada, contada a partir do solstício de Verão, o seu grupo marcharia até Galany's Reach, a fim de se unir aos combatentes de Fokel e tomar o acampamento fortificado que fora palco da primeira batalha de um Bridei mais jovem, havia mais de cinco anos. A partir daí, avançariam para sul, encontrando-se primeiro com Talorgen e depois com Carnach. Os guerreiros Caitt reunidos por Umbrig iriam juntar-se a eles no caminho. Das Ilhas Pequenas não tinham sido enviados guerreiros. O rei vassalo de Bridei ignorara o pedido de ajuda. Seria necessário outro refém. Mesmo assim, quando o exército de Fortriu marchasse sobre Dunadd, seria uma força poderosa.
Bridei estava no terraço da Fonte do Corvo, a partir de onde olhava para os pinheiros negros e para o brilho gelado do Lago da Donzela. Sentiu um arrepio. Era o reconhecimento da passagem do tempo e a consciência de que, no grande ciclo que era o nascimento, a vida, a morte e o renascimento, surgiam outros ciclos, outras repetições. Não aprender alguma coisa com eles, era a garantia de uma vida desperdiçada. Estivera naquele mesmo lugar com um velho e verdadeiro amigo, alguém que, pouco tempo depois, morrera no lugar de Bridei. Nunca conseguira deixar de se sentir culpado. Mandara Faolan embora. Faolan, o único que se aproximara de substituir o lugar de Donal na sua vida. Recordava ter dito a Faolan que esperava que se tornassem amigos, bem como a resposta fria do celta, que lhe dissera não ter a capacidade de ser mais do que alguém que desempenhava uma tarefa e recebia um pagamento. Fora Bridei quem estivera correto, embora Faolan nunca o tivesse reconhecido. Aceitara a missão que o levara a Briar Wood tal como um servo acata uma ordem. O desagrado fora óbvio. Bridei interrogava-se por que motivo enviara Faolan. É verdade, desejara poupar ao celta a decisão entre combater o seu próprio povo e falhar na proteção do seu rei e empregador. A verdadeira razão talvez fosse protegê-lo. Ao longo da perigosa jornada que aguardava os homens de Fortriu naquele Outono, havia a possibilidade muito real de que o guarda pessoal do rei viesse a tombar ao serviço do monarca. Talvez, pensou Bridei, os motivos fossem menos altruístas. Recusava-se a juntar o sacrifício de mais um amigo ao fardo que já carregava.
Mesmo assim, naquele momento desejava que Faolan estivesse com ele. Breth era eficaz, forte, desempenhava bem o seu trabalho. À sua maneira, também ele era um amigo. Mas fora o celta que vira Bridei nos momentos mais fracos, nas alturas em que estivera mais exposto. Quando estavam longe de casa, no mundo masculino que eram as campanhas, não tinha Tuala a seu lado para escutar os receios e os problemas e para oferecer os conselhos graves e assisados de que tanto dependia. Nessas alturas, era com Faolan que abria o coração, sempre que era assolado pela dúvida e pela incerteza. As respostas de Faolan podiam ser secas. Muitas vezes, transmitia a aparência de um homem sem emoções. Contudo, não duvidava da sua completa sinceridade. Era irônico que as ferramentas do seu ofício de espião fossem a dissimulação e o subterfúgio. Com Bridei, Faolan era escrupuloso com a sua honestidade.
Os ouvidos argutos de Bridei detectaram movimento colina abaixo: aproximava-se alguém a pé, dois ou três homens. Sabendo que Bridei desejava estar sozinho, Breth ficara de guarda a alguma distância. Bridei fez-lhe sinal para que se aproximasse. Juntos, olharam para a colina banhada pelo luar, mas pouco conseguiram ver.
— É muito tarde para que alguém se aproxime — murmurou Bridei. Momentos depois, os cães começaram a ladrar, os guardas gritaram para que os desconhecidos se dessem ao reconhecimento e vozes responderam do carreiro por baixo dos pinheiros sombrios.
— Somos mensageiros de Umbrig, dos Caitt! — bradou um. — Vimos em paz. Fomos atrasados pelos lobos. Sou Orbenn e o meu companheiro é Hargest, ambos da casa de Umbrig. Podem dar-nos abrigo?
— Aproximem-se do portão! — ordenou o guarda. — Mais perto. Coloquem-se à luz. Agora, larguem as armas. Todas. Virem-se. Agora, ajoelhem-se e não se mexam até que lhes digam.
Era o procedimento normal. Estando a Fonte do Corvo muito próxima do território de Dalriada, os espiões freqüentavam as terras a ocidente. Era raro o visitante da fortaleza de Talorgen que fosse admitido livremente.
Bridei entrou para a sala de audiências, acompanhado por Breth. Não tardou que os guardas trouxessem dois jovens. Dois homens muito novos, que Bridei teria chamado de meninos, não fossem o seu tamanho e aspecto feroz. Poucos seriam os que se atreveriam a insultar dessa forma a masculinidade daqueles guerreiros. Envergavam os mantos de pele tão do agrado dos Caitt e os rostos juvenis e escanhoados estavam já decorados com as primeiras tatuagens de batalha, cujo pormenor intricado do padrão identificava desde logo os seus portadores como homens do norte que afirmavam ser. Um dos rapazes tinha um rosto largo, ombros possantes e era musculoso como um touro. O outro era ligeiramente menor. Ambos tinham um ar irritado, o que parecia surgir naturalmente.
Bridei não ostentava qualquer sinal de estatuto, nem diadema, nem torque, nem broche de prata. Mesmo assim, mal o viram, ambos os jovens inclinaram a cabeça em sinal de respeito.
— Senhor meu rei — resmungaram os dois em uníssono. Fora bem ensaiado.
— Ao que parece, a viagem foi difícil — comentou Bridei. — Falaram em lobos?
— Sim, meu senhor. — O jovem menos imponente endireitou os ombros e alisou a túnica. — Sou Orbenn, da casa de Umbrig. Devo transmitir-te a sua mensagem e regressar ao local onde está acampado. O meu senhor disse que saberias onde é.
Umbrig já estava a posicionar-se.
— E aqui o teu amigo? — perguntou Bridei. — Será a tua mensagem tão pesada que exija dois para a transportar? — Esperara deixar o ambiente mais leve, pois o maior dos dois jovens parecia tenso a ponto de rebentar, se tocado. As faces do rapaz enrubesceram e Bridei lamentou o comentário.
— Sou Hargest — resmungou o jovem. — Estou aqui... Vim para...
— Tinha os punhos cerrados. Os olhos, de um tom azul claro pouco comum, estavam semicerrados e hostis.
— Veio sem que o convidassem — atalhou Orbenn, o que provocou um franzir de cenho no companheiro.
— Sei falar por mim — retorquiu Hargest. Depois, respirou fundo e disse: — Peço desculpa, senhor meu rei. Posso explicar.
— Então trata de o fazer — indicou Bridei, com frieza. — É tarde e estamos ocupados. Decerto compreendes que atravessamos uma fase em que uma casa não pode receber de braços abertos qualquer um que surja à porta. O que te trouxe aqui?
— Eu pretendo... quero eu dizer... — O jovem fitou o companheiro, olhou para Breth, armado e perigoso, ao lado direito do rei, mirou os guerreiros dispostos de forma estratégica na sala de audiências.
— Não quero falar à frente deles — disse Hargest, as faces escurecendo ainda mais.
— Julgas que o rei é um idiota? — desafiou-o Breth. — O rei não concede audiências privadas a estranhos, nem mesmo em alturas de paz. Agora, diz a que vens, ou vais tentar mais uma vez a sorte com os lobos. Chega de desperdiçar o tempo do rei.
— É Breth, o meu guarda pessoal — explicou calmamente Bridei.
— O que diz é verdade. Contudo, imagino que vos possamos alimentar enquanto falamos. Por mais imponentes que sejam, encontram-se cercados pelos melhores guerreiros de Fortriu e julgo que vos retiraram as armas, antes de receberem autorização para entrar. Enfret? — Dirigiu-se a um dos guardas pessoais, um homem de Pitnochie que pertencia à escolta pessoal do rei. — Precisamos de comida para estes viajantes. Tratas disso? E diz aos homens para recuarem um pouco. Dá-lhes espaço para respirar.
Assim que se viram sentados num banco, com taças de caldo de borrego nas mãos e copos de cerveja ao lado, a expressão dos jovens suavizou-se ao de leve. A mensagem de Orbenn não era secreta e o rapaz apresentou-a por entre grandes colheradas de caldo.
— O meu senhor Umbrig diz que se vai encontrar contigo, tal como planeado. Diz também que, se queres um número, são trezentos e vinte, mais ou menos.
Bridei arregalou os olhos. Trezentos e vinte guerreiros. Era uma força considerável e, sob a liderança de Umbrig, algo a ter em conta.
— Obrigado — disse calmamente. — Mais alguma coisa? Mencionou outros chefes? — Comentara-se que Umbrig poderia vir a reunir-se a Fokel, de Galany. Ambos tinham experiência em transportar homens e suprimentos por terrenos aparentemente intransponíveis. Bridei esperara também que, por aquela altura, Alpin, de Briar Wood, fizesse já parte do plano, embora não o fosse comentar, pelo menos à frente daquele jovem de quem não sabia nada.
— Não, senhor meu rei — respondeu Orbenn, seguido de um gole profundo de cerveja. — Pela virilidade do Guardião das Chamas, é uma bela pinga. Foram as únicas palavras da mensagem. Referes-te a Fokel, de Galany? Esperas que ele se venha juntar?
Instalou-se um silêncio desconfortável.
— Ao que parece, julgas saber muito — disse Breth —, para um miúdo que ainda cheira a leite. Quem és tu para fazeres perguntas dessas ao rei? — Havia quem dissesse que por vezes era possível ouvir o raspar de uma espada a ser desembainhada na voz do guarda-costas de Bridei. Essa foi uma dessas vezes. A mão de Orbenn imobilizou-se com o copo de cerveja a meio caminho dos lábios.
— Como sabes — disse Bridei —, tais assuntos estão reservados aos encontros privados entre chefes e druidas. Enquanto mensageiro, o teu dever é transportar as palavras e repeti-las com precisão, nem mais, nem menos.
— Sei disso — resmungou Orbenn, pousando o copo.
— Imagino que seja a primeira vez que Umbrig te encarrega de tal dever? — acrescentou Enfret com um sorriso.
Não houve resposta. Não se podia dizer que o mensageiro tivesse amuado. Mesmo jovem, era uma presença demasiado formidável para isso. Apenas pareceu fechar-se em si mesmo.
Bridei aguardou que os dois saciassem a fome. Depois, enviou Orbenn com Enfret, a fim de encontrar um canto que albergasse os viajantes. Com um breve gesto, indicou a Hargest que ficasse.
— Agora — disse-lhe —, vamos escutar o que tens para dizer. Terás de falar perante Breth. É o meu guarda pessoal e está sempre a meu lado. Os outros não estão interessados, acredita. Quem és tu e por que estás aqui? Não desejo irritar Umbrig, só por teres teimado em viver uma aventura. Qual é a tua posição em sua casa?
— Sou um combatente. — As palavras foram ditas com um tom de desafio, como se esperasse menosprezo ou, pelo menos, palavras que o contradissessem.
— Mm-mm — disse Bridei. — Não há dúvida que tens a constituição necessária. Quer dizer que és um dos seus guerreiros?
Hargest fitou as botas.
— Por assim dizer — replicou, com as palavras atabalhoadas.
— Por que vieste? Proteger um amigo? Porque a união faz a força? O rapaz não respondeu.
— Fala! — Breth cruzou os braços, com um ar furioso. — Se não consegues explicar a tua presença, seremos obrigados a prender-te até descobrirmos a verdade. Neste momento, não tenho motivos para confiar em ti.
Hargest voltou a erguer o olhar. Recuperara um pouco da compostura, mas tinha os olhos irados. A pose lembrava a de um jovem touro, uma mistura de agressividade e de incerteza.
— Quero trabalhar — disse. — Um trabalho a sério, que me teste. Quero um trabalho como o teu — disse, olhando para Breth, que o fitou, verdadeiramente surpreendido.
— Em que termos? — Bridei encontrava-se dividido entre o divertimento pela ousadia do rapaz e a verdadeira admiração pela abordagem. Enquanto guerreiro, decerto Hargest seria o primeiro a investir, sem pensar na sua própria segurança. — Se és o combatente que afirmas, não terás já um lugar com Umbrig?
Um lampejo de emoção cruzou as feições largas do jovem.
— Ele não me deixa combater — respondeu Hargest. — Apenas uma escaramuça breve, foi tudo, e depois voltou a colocar-me no meu antigo trabalho. Cuidar dos cavalos.
— Quer dizer que não és um guerreiro, mas um cavalariço? — sorriu Breth.
— Julgas que não sei lutar? — rosnou Hargest. — Experimenta!
— Ah... não há necessidade — interveio Bridei calmamente. — Diz-me, Hargest, quantos anos tens? — Interrogou-se sobre se o rapaz mentiria e, nesse caso, se conseguiria notá-lo.
— Quinze, senhor meu rei. — Era, de certeza, a verdade, mesmo sendo o rapaz quase tão alto como Carnach e tendo duas vezes a sua largura.
— E qual, exatamente, é o teu lugar na casa de Umbrig? Creio que ainda não nos disseste.
— Cresci lá, senhor meu rei. Sou parente de Umbrig. Uma espécie de parente. — O rubor voltou a invadir as faces de Hargest, fazendo-o parecer mais novo.
— Uma espécie de parente. Nasceste fora do casamento? — Embora comuns, tais assuntos eram delicados. Os homens reconheciam os filhos naturais, mas raras vezes lhes atribuíam terras, ou outros privilégios. Regra geral, um lugar na sua casa era tido como suficiente.
— Sim, meu senhor. O meu pai é primo afastado de Umbrig. Nasci quando ele ainda só tinha catorze anos. Fui enviado para Storm Crag com sete anos. Julgou-se que seria o mais adequado, pois ele, o meu pai, ia casar-se. Tinham-me como um embaraço.
— Compreendo. — Bridei, ele próprio educado em casa alheia, conhecia bem a solidão, a confusão, os sentimentos de perda que tal decisão acarretava. Por mais admirável que Broichan tivesse sido ao dotar de conhecimentos o jovem de que fora encarregue, ter sido educado pelo druida não lhe providenciara a mais alegre das infâncias.
— E agora Umbrig utiliza-te como criado de estábulo?
— Gosto de cavalos — limitou-se Hargest a dizer. Pela primeira vez, parecia sincero, como se esquecendo temporariamente a sua máscara protetora de agressão. — Sou bom a tratar deles. Se não fosse, não teria vindo nesta expedição. Mas sou melhor com uma espada, um bordão ou os meus punhos, e é isso que desejo fazer, senhor meu rei. Quero ser o melhor guerreiro de todas as terras do norte. Quero provar que sou capaz de viver mais do que o meu adversário.
— Os olhos jovens eram ferozes, as costas muito direitas.
Bridei aguardou um momento, apreciando a coragem verdadeira por detrás das palavras combativas, ao que disse com um tom brando:
— Provar a quem? Ao teu pai? Hargest pareceu encolher um pouco.
— Talvez — resmungou.
— Não me parece que tenhas mencionado o seu nome — disse Bridei.
— Alpin — respondeu Hargest. — Alpin, de Briar Wood.
— Ah.
— Conhece-o?
— Sei algumas coisas sobre ele — replicou Bridei. — Costumas lá regressar, agora que tens idade para sair do teu lar adotivo? Vê-lo com freqüência?
— Não, meu senhor. Umbrig disse-me que poderia ficar em Storm Crag e foi essa a minha escolha. É satisfatória para o meu pai. Prefere que eu fique longe do seu caminho.
— Deveras? Um jovem capaz como tu? — O tom de Bridei não era trocista. Na verdade, aquele era um rapaz que deixaria orgulhoso qualquer pai, um espécime físico comparável a um carneiro ou a um varrão de primeira categoria.
— Ele tem as suas razões.
— Hargest — Bridei escolheu as palavras com cuidado —, mencionaste o casamento de Alpin, quando foste para a casa de Umbrig, em Storm Crag. Segundo sei, ele poderá voltar a casar-se em breve, talvez ainda este Verão. Ouviste falar disso? Talvez tenhas recebido um convite?
— Umpf! — fungou Hargest, com desdém. — Sou a última pessoa que ele esperaria ver nessa cerimônia. É verdade que existe uma nova esposa. Umbrig foi convidado, mas o casamento foi adiado e agora ele não pode estar presente, pois encontra-se em campo. Espero que desta vez o meu pai tenha mais sorte.
— Desta vez?
— A primeira mulher foi assassinada. Morta pelo meu tio louco. Briar Wood é um lugar amaldiçoado, pelo menos é o que diz a minha mãe. Não há lá nada que bata certo. Ninguém no seu perfeito juízo iria querer lá ficar.
Bridei sentiu um gelo no coração. Esperava que o rapaz estivesse a exagerar. Já fora difícil enviar Ana para um marido desconhecido. Sabia que a refém doce e honrada merecia melhor. Desejava que aquele reino de loucos e de maldições fosse apenas o resultado da imaginação demasiado fértil de um jovem ofendido.
— Onde está a tua mãe, neste momento? — perguntou a Hargest. — Ainda vive na casa de Alpin?
— Não, meu senhor. Saiu de lá pouco tempo depois de eu ter partido. Regressou à sua colônia natal a ocidente e casou com um velho amor. Por vezes recebo mensagens, que retribuo. Sei que está bem.
— Ótimo — disse Bridei. — Agora diz-me, o que pensará Umbrig desta deserção? Se o teu amigo Orbenn regressar sozinho com a notícia de que vais aqui ficar, será que o teu pai adotivo não vai ficar zangado com essa atitude? Quem manterá os cavalos em condições durante a longa viagem para sul?
— Existem outros criados de estábulo, senhor meu rei.
— Mesmo assim, não deixará de ficar zangado. Deves-lhe mais do que isso. Ele deu-te um lar e segurança.
— Não ficará zangado se Orbenn lhe disser que me ofereceste um lugar entre os teus homens, senhor meu rei.
A audácia deixou Breth de queixo caído. Por momentos, Bridei ficou sem palavras.
— E que lugar seria esse? — O tom de Breth era brutal. — Pela virilidade do Guardião das Chamas, tens muita...
— Obrigado, Breth — atalhou Bridei. — Responde à pergunta dele, Hargest. É óbvio que tens qualificações como cavalariço. Não creio que seja um trabalho que te agrade. Tens de ser mais específico.
— Desejo servir-te, meu senhor. — Hargest deixou-os a ambos surpreendidos ao ajoelhar-se com graciosidade. Apesar do seu tamanho, mostrava uma rapidez e fluidez de movimentos espantosas. — Treinar como guerreiro. Talvez aprender com um homem tão capaz como o teu guarda-costas.
— Reconheces, então, que podes ainda ter algo a aprender. — Mais uma vez, Bridei encontrava-se dividido entre o divertimento e a admiração pois, com quinze anos, o rapaz exibia uma certeza que falava de um futuro brilhante, caso tivesse as oportunidades certas.
— Sou um bom lutador, meu senhor. Bom, mas inexperiente, eu sei. Os teus homens poderiam conceder-me o aperfeiçoamento de que necessito, os segredos do ofício. Deixa-me ficar. Deixa-me entrar em combate ao lado das tuas forças.
Bridei olhou o rosto corado, os olhos brilhantes.
— Se Umbrig quisesse que combatesses — replicou —, ter-te-ia colocado entre os seus próprios guerreiros.
— Ele não percebe que já sou um homem...
— Julgo que estás errado a seu respeito. Imagino que o teu pai adotivo queira apenas manter-te a salvo. Quer ver-te a sobreviver até seres adulto e conseguires alguma coisa na vida. Os pais adotivos preocupam-se com os filhos adotivos, Hargest, embora por vezes nós não o vejamos.
— Nós?
— A minha situação foi igual à tua. Só que o meu pai adotivo foi um druida, o que tornou tudo ainda mais difícil. Só entrei na minha primeira batalha com dezoito anos.
— Posso ficar? Recebes-me? Breth pigarreou.
— Veremos — disse Bridei, com frieza. — Tu e Orbenn podem ficar na Fonte do Corvo uma ou duas noites. Preciso de tempo para refletir. E tens de te mentalizar que, ao fugir assim, deixaste Umbrig bastante preocupado. Esse fato chega para me dizer que ainda não atingiste a maturidade. Não... — disse, quando Hargest, ainda de joelhos, fez menção de protestar. — É verdade e, a seu tempo, vais aperceber-te do que fizeste. Talvez seja apenas quando tiveres filhos mas, acredita, vai atingir-te como um raio. Agora levanta-te e vai deitar-te. Um dos homens vai indicar-te o caminho. Levantamo-nos cedo, por aqui. A ver se estás pronto para o novo dia.
— Sim, meu senhor. — O rosto de Hargest transbordava esperança, a fúria desaparecida. — Que A Que Brilha te conceda bons sonhos, senhor meu rei. E a ti — disse, inclinando a cabeça perante Breth, um gesto surpreendente.
— Que o Guardião das Chamas ilumine o teu despertar — disse Bridei, e observou o jovem a ser acompanhado pelos guerreiros.
— Tantos músculos e boas maneiras, quando se lembra delas — comentou Breth. — Mesmo assim, se estivesse no teu lugar, não me precipitaria a decidir. Aquele tem mais que se lhe diga.
Uma carrada de juncos frescos acabara de ser entregue e Faolan encontrou Gerdic com dois outros servos a limpar os restos sujos dos anteriores, a fim de dispor os novos. Em cima das mesas via-se uma série de gatos, pretos, brancos, listados, malhados, todos eles concentrados nas movimentações. Ao fundo do salão, um indivíduo familiar com a sua túnica dispunha um feixe de juncos novos, os quais atava com uma corda.
— Precisas de ajuda? — perguntou Faolan a Gerdic, enquanto olhava em seu redor, a fim de garantir a ausência de guerreiros ou de quaisquer outras pessoas que pudessem observá-los com algum interesse.
Já estavam habituados ao bardo. Desenvolvera a reputação de excêntrico, algo que combinava com a profissão de músico, e a maioria dos servos aceitava sem espanto que se prontificasse a ajudar na mais reles das tarefas, com o único intuito de ocupar o tempo. Era incrível a quantidade de informação que as pessoas deixavam escapar enquanto arranjavam peixe, escavavam latrinas ou amassavam pão.
De forquilha na mão, foi avançado gradualmente até Deord, ao mesmo tempo que removia da sua frente a camada pestilenta de juncos. Erguiam-se nuvens de pequenos insetos e sentia picar constantemente nos tornozelos. Mais atrás, Gerdic percorria a mesma área com uma vassoura de milho painço, após o que um terceiro homem espalhava os juncos frescos. Em breve, o motivo da atenção dos gatos tornava-se óbvio: a forquilha de Faolan descobria um rato aqui, uma ratazana acolá, mais além uma família de escaravelhos de carapaça escura, correndo em busca de abrigo. Para a população felina de Briar Wood, era um dia de festim.
Ao lado dos pés de Deord, Faolan baixou-se para soltar da forquilha um molho de material apodrecido e apresentou o seu pedido com o mínimo de palavras possível. — Celta, hoje, reunião com Alpin. Preciso de um relatório.
Deord ocupava-se a cingir o molho de juncos.
— Brincas com o fogo — resmungou.
— Preciso disto — silvou Faolan. — Esta noite, se puderes.
— Devias ir para casa. Deixar tudo isto. — Deord ergueu o feixe volumoso para os ombros largos e virou as costas. — Farei o que puder.
Quando o homem se afastou, Faolan voltou ao trabalho com a forquilha.
— É um sujeito estranho, aquele Deord — comentou Gerdic, que ganhara terreno durante a troca de palavras. — Deve ser o pior trabalho do mundo.
— Consigo lembrar-me de mais uns quantos igualmente desagradáveis — replicou Faolan, coçando a perna e olhando para as marcas imundas onde o tapete de juncos se encontrava com as paredes de pedra caiada. — O que fazemos com isto? Vai lá para fora para ser queimado?
— Os rapazes tratam disso quando acabarmos. Toma, fica agora com a vassoura, alivia-te as costas.
— Gerdic?
— Mm?
— Este casamento. Tenho de providenciar entretenimento para a ceia. Já o preparei. Mas, o que mais acontece durante o dia? Qual é a ordem das coisas? Ritual, festa, dança?
— É melhor perguntares a Orna. São as mulheres que gostam destes festivais. Hã muito tempo que não temos nada do gênero. Lorde Alpin não aprecia música, flores e roupas vistosas. Sei que os homens vão fazer uma celebração própria de manhã, muita cerveja e alguns desportos e jogos. Assim, as mulheres ficam com tempo para acabar o festim e para se embelezarem. A tarde tem lugar a cerimônia. Se for como no casamento da minha irmã, é nessa altura que temos as orações e essas coisas. E, mais tarde, dança. Dança e festa. É nessa altura que vão precisar de ti, Faolan. Pensei que soubesses disso. Já deves ter tocado em casamentos.
Faolan continuou a varrer.
— Sim, já toquei — replicou. — Mas nunca entre os Caitt. As pessoas daqui têm uma maneira muito própria de fazer as coisas.
— Drustan?
— Ana?
— Vim sem Ludha. Quis falar contigo sozinha.
Drustan ficou em silêncio durante alguns instantes. Começara a cair uma chuva leve. Ana, agachada nas pedras do terraço, passou o xale pela cabeça. Nesse dia, nem sequer tentara retirar o material de trabalho do cesto.
— É o último dia — disse Drustan. — Amanhã vais casar-te com o meu irmão.
Ana sentiu um nó na garganta. Tinha dificuldade em falar.
— Sim — confirmou. — O druida já chegou. Já não há motivos para adiar a cerimônia. Está a registrar por escrito os termos do acordo, que será assinado pela manhã.
Drustan não disse nada.
— Drustan, pensei que... queria encontrar aquela idosa, Bela. Ludha disse-me que ela podia estar ainda na floresta, algures. Esperava que ela pudesse contar-me ...
— O quê, Ana?
— Se a encontrássemos... se ainda estiver viva... pensei que pudesse contar-me a verdade. Que não o fizeste. Não acredito que fosses capaz de tal ato, mesmo num... num estado que te deixasse alheio ao que estavas a fazer. Mas ninguém sabe onde ela está, e agora é demasiado tarde. Agora tenho de me casar com Alpin, mesmo que... mesmo que...
— Diz-me, Ana. O que se passa?
— Mesmo que o toque dele me repugne. — As palavras saíram num tom muito baixo. Sentia-se envergonhada por estar a dizê-lo. — Não suporto as mãos dele em mim. Não sei como poderei... não sei como serei capaz de... — Não pretendera dizer-lhe aquilo, nunca a Drustan, mas não fora capaz de se conter.
— Não o faças, Ana. — O tom da voz de Drustan era intenso.
— Tenho de o fazer.
— Ele vai magoar-te. E eu não poderei ajudar-te. — As palavras eram um murmúrio.
— Drustan?
Não houve resposta.
— Não posso dizer-te o que na verdade desejo. Mas, se tenho de me casar com o teu irmão, gostava que te fosses embora, quando Deord te der a próxima oportunidade. Foge para a floresta, deixa Briar Wood para trás, procura uma vida noutro lugar. Mesmo que... mesmo que tenhas feito o que dizem, não devias ser condenado a este encarceramento para sempre. Como poderei aqui viver, sabendo que estás do outro lado da parede, acorrentado? Se pelo menos aproveitasses a oportunidade para fugir, saberia que estavas livre, feliz, mesmo que nunca mais voltasse a ver-te. — Ana fungou e procurou um lenço. As lágrimas misturavam-se com a chuva nas suas faces.
— Preferia estar acorrentado e perto de ti, meu amor — disse Drustan —, do que na floresta, livre e distante. Além disso... — A voz assumira um tom sombrio, que fez com que Ana se arrepiasse.
— Além disso o quê, Drustan? Devias aproveitar a oportunidade que tens de fugir. Como podes escolher o cativeiro? Isso é... bem, é uma loucura, e até agora ninguém foi capaz de convencer-me de que estás demente, embora o tenham tentado.
— Se cometi aquele ato — era a primeira vez que o ouvia exprimir alguma dúvida em relação ao assunto —, não poderei voltar a ser livre. Se matei um inocente, posso voltar a matar. É um risco que não me atrevo a correr.
— Afinal de contas, não seria o amor a manter-te perto de mim — disse Ana —, mas o medo. Medo de ti próprio.
— Não digas que não te amo. És a minha lua e as minhas estrelas, a minha Primavera e o meu Verão, Ana. Soube-o no momento em que te vi no vau, tão só, tão corajosa. És a constante, no caos que é o meu mundo.
— É como te sentes? — murmurou Ana. — Um caos? Mas, quando te perguntei como era, o... o delírio, não o descreveste como um aceso de loucura, mas como uma espécie de viagem, quase o mesmo que os druidas sentem quando se encontram em transe profundo, quando viajam de mundo em mundo. És assim tão infeliz, em cada momento do dia? Desculpa, foi uma pergunta estúpida. Qualquer homem afastado do mundo como tu deve ficar fora de si com a frustração.
— Manter a sanidade em tais circunstâncias exige uma certa força de vontade. Ajuda ter um guarda como Deord. Esse tipo de homem é raro. Ana?
— Sim?
— Se a tivesses encontrado, a Bela, se a tivesses encontrado e ela te tivesse dito que a história era mentira, que eu estava inocente, continuarias obrigada a casar com o meu irmão. O tratado não depende disso?
— Sim — respondeu, angustiada. — Mas...
— Mas o quê? Diz-me. Deord deve regressar em breve. Só foi buscar juncos frescos e água limpa.
— Não devia dizê-lo. Mas direi. Se julgasse possível a mínima hipótese de tu e eu... se um dia pudéssemos ter um futuro diferente, faria tudo o que estivesse ao meu alcance para evitar este casamento. Sabes que não quero casar-me com ele. Desde o primeiro momento que me arrepio com o seu toque e que tenho medo da sua companhia. Sabes bem o que eu quero.
— O que querias — retorquiu gentilmente —, até descobrires que o que dizem de mim é verdade.
— Não! — Negou com mais veemência do que pretendia e levou a mão à boca. Quase esquecera onde se encontrava. — Não, Drustan. Mesmo que seja verdade, mesmo que tenhas feito o que dizem, isso não altera o fato de...
— Diz.
— De te amar. De, para mim, seres o único homem no mundo. — Dissera-as, por fim, as palavras doces e perigosas.
— Ahh... — O respirar fundo de Drustan continha mais dor do que prazer.
— Quero que tenhas esperança, Drustan. A esperança de que venhas a provar-te inocente. Esperança de que possas voltar ao mundo. Confia na tua bondade. Ela emana de ti.
— Se casares com o meu irmão, não voltarei a ter esperança.
— É demasiado tarde. — A chuva continuava a cair, molhando-lhe o xale e o cabelo, e começando a formar poças junto à saia. — Não há como fugir, se quisermos que o tratado de Bridei se mantenha. E julgo não poder voltar aqui para falar contigo, Drustan. Julgo que é o adeus. Vou continuar a tentar descobrir a verdade, juro...
— Ana, não... não o faças...
— Adeus, meu amor. Tem esperança. Não a percas. Pelos deuses, não posso fazer isto, é demasiado cruel...
— Ana...
— Estarás para sempre no meu coração... Adeus...
Se Drustan respondeu, Ana não o ouviu, pois levantou-se às cegas e dirigiu-se à escada, ao mesmo tempo que afastava o cabelo molhado do rosto. Uma sombra moveu-se, um súbito lampejo escuro mais abaixo, como se uma figura corresse a esconder-se. Ana gelou. Um som, talvez um passo furtivo na pedra. Estaria ali alguém?
— Ludha? — chamou Ana, com a chuva a engrossar, já não um aguaceiro, mas um dilúvio, lágrimas suficientes para afogar uma mulher. — Está aí alguém?
Os degraus encontravam-se vazios. Ana não viu sinais de vida ao percorrer apressadamente o caminho até à sala de costura. A porta, contudo, estava entreaberta e a jovem tinha a certeza de a ter fechado. No interior, Orna, Sorala e outras duas mulheres trabalhavam. Um pequeno bando de gatos dormitava à frente do lume. A atmosfera estava tranqüila.
— Não é um bom dia para estar ao ar livre — comentou Orna, o olhar a percorrer o xale ensopado de Ana, o cabelo revolto e a bainha da saia, escurecida pela chuva.
— Começou de repente — disse Ana. — O nosso passeio matinal foi brindado com bom tempo. Parece ser normal por aqui, sorrisos e depois lágrimas. É melhor ir mudar de roupa.
— Esqueceste-te do teu cesto. — O tom de Orna mudara.
— Oh... Oh, céus, pois foi, que tolice...
— Não te preocupes, minha senhora, vou mandar um rapaz buscá-lo. Estava um aqui, mesmo agora, talvez o tenhas visto? Vai e despe essas roupas molhadas. Alpin vai querer que estejas em condições.
As restantes mulheres ostentaram sorrisos entendidos e Ana sentiu um arrepio gelado, uma sensação fria e profunda que não tinha nada a ver com a chuva.
— Obrigada — conseguiu dizer, após o que saiu.
Quando o irmão de Drustan vinha fazer uma visita, as regras tinham de parecer ser acatadas na totalidade. Em outras ocasiões, era raro Deord acorrentar o cativo. Naquele dia, não havia alternativa. Deord reconheceu, com alguma relutância, que, na qualidade de homem de Breakstone, se sentia na obrigação de apresentar a Faolan o relatório que este lhe pedira, embora julgasse que daí somente adviriam problemas. Num dia bom, poderia ter deixado Drustan o tempo que fosse necessário para escutar a reunião privada e ficar com uma idéia geral dos assuntos tratados. Imaginava que Drustan tivesse encontrado uma nova forma de se divertir, à tarde. Já ouvira o som de uma conversa murmurada, rapidamente concluída sempre que se aproximava. Por vezes, a melodia de uma canção chegava ao alojamento escuro. Nesses momentos, parecia a Deord que Drustan ficava satisfeito por estar sozinho.
Nesse dia, não. Deord atrasara-se pela manhã, quando trouxera os juncos e os outros suprimentos, tendo sido detido por um dos guerreiros, que queria a sua opinião sobre um arco novo. Ao regressar, Drustan encontrava-se desvairado. Esmurrava as paredes com as mãos ensangüentadas e bradava a necessidade que sentia de mudar o rumo dos acontecimentos. O discurso era confuso, mas o nome Ana encontrava-se presente e Deord voltou a amaldiçoar a chegada daquela noiva de sangue nobre e do seu escudeiro celta, que tanto agitara o cativo desesperado. Na verdade, Drustan era o pior inimigo de si próprio. Após sete anos, não importava a Deord se o homem que vigiava era culpado ou inocente. Apenas via que, se o encarceramento durasse muito mais, chegaria a um ponto em que até mesmo o seu cuidado, a quebra controlada das regras, a fim de permitir os breves momentos de sol e de exercício, e as oportunidades raras de aquela estranha criatura executar a sua transformação não chegariam para impedir que Drustan atravessasse a fronteira entre a estranheza dotada e a loucura total. Devia deixá-lo partir. Devia deixá-lo voar para longe e arcar com as conseqüências, as quais, sendo Alpin o homem que era, seriam terríveis, com toda a certeza.
Acalmara Drustan o melhor que pôde, mas não fora fácil. Não iriam sair para gastar alguma daquela terrível energia acumulada com treino de combate ou a voar. Havia visitas em Briar Wood e um casamento no dia seguinte. Não podiam arriscar-se a chamar a atenção. Drustan já não esmurrava a pedra, nem tentava arrancar o portão de ferro, mas tinha os olhos gelados e a expressão atormentada e perdida. O corpo tremia-lhe, um tremor rápido e constante, e tinha a pele coberta por uma película de suor. Deord já vira um ar semelhante em criaturas selvagens presas, à espera da morte. Nunca deixara Drustan sozinho, a menos que este se encontrasse relativamente calmo.
Explicou-lhe que teria de voltar a sair e Drustan submeteu-se às grilhetas sem protestar, estendendo o punho enquanto olhava para o outro lado, como se pouco importasse.
— Espero que não tenhas acreditado que ela alguma vez poderia ser tua — disse Deord calmamente. — É algo que nunca poderia vir a acontecer. — Drustan girou na direção do guarda com a rapidez de um predador a atacar, os olhos brilhantes com a fúria súbita, os dedos da mão livre, retorcidos como garras, a investir para o rosto de Deord. A mão deteve-se à frente dos seus olhos. Drustan baixou o braço.
— Tenho um pouco de bom senso, caso a ti te falte, rapaz — disse Deord, invocando a sua calma habitual. — Estou preocupado contigo.
— Confirmou a corrente que unia a bracelete de ferro de Drustan ao banco de pedra. — Infelizmente, encontro-me obrigado à tarefa que tenho de desempenhar. O nosso passado em comum faz daquele celta uma espécie de irmão de sangue e tenho de honrar o pedido que me fez. São poucos os que saem de Breakstone. Esse lugar devora os homens. Sempre que possível, os sobreviventes têm obrigação de se ajudar uns aos outros.
— Então vai. — Drustan começara a andar, puxando a corrente a espaços. — Julgas que não sou digno dela. Expões ao ridículo o próprio conceito. Tu e o resto do mundo, sem dúvida. Ela diz-me para ter esperança. Tu dizes-me para ter esperança. A uma só voz, ambos condenam-me ao desespero. Vai, não te atrases.
— Vou ter de mudar isto. — Deord voltou a soltar o grilhão.
— Não vou deixar-te tanto tempo com a corrente inteira. Queres ficar lá dentro ou cá fora? A chuva está a piorar.
— Não me interessa. Troca-a, se tem de ser. Julgas que vou enrolá-la à volta do pescoço e acabar com tudo?
— Já me deste alguns sustos — replicou Deord com um tom severo, enquanto prendia as algemas de outra maneira, deixando o cativo mais próximo da parede, com a corrente reduzida. Drustan podia sentar-se no banco de pedra. Podia olhar pela janela. Não podia afastar-se, nem enrolar a corrente à volta do pescoço.
— Sinto muito, meu rapaz. — Deixou Drustan de pé, as costas voltadas, a encarar a parede. Repetir aquele procedimento cinqüenta vezes não o tornara mais fácil, nem mesmo cem, mas não podia arriscar-se a deixar o prisioneiro solto quando este se encontrava naquele estado de espírito. Os pássaros estavam escondidos. As formas encolhidas mal se viam no parapeito elevado.
A reunião de Alpin com o visitante celta demorou mais do que Deord previra e deixou-o com uma dor no pescoço e a sensação de desastre iminente no estômago. A conversa significava problemas, para o bardo, para a dama, problemas, segundo imaginava, que em breve envolveriam todos os habitantes de Briar Wood. Assim que transmitisse essa informação a Faolan, de certeza que o bardo iria precisar de outro favor, algo muito mais difícil de providenciar. Deord praguejou entre dentes, enquanto regressava em silêncio pela arrecadação e ao longo da passagem descendente que levava ao encarceramento. O bardo estava em perigo. Se Faolan não agisse em conformidade, a sua vida pouco mais valeria do que um resto de palha na estrumeira. Claro que, se o que aquele indivíduo contara a Alpin fosse verdade, talvez Faolan merecesse tudo o que lhe viesse a acontecer. Mas Deord tinha a obrigação de ajudá-lo. O problema era que não havia forma de o alertar. Se Alpin fizesse o que Deord imaginava, o bardo estaria preso antes da ceia.
Drustan continuava de pé junto à parede. O bracelete de ferro estava agora cercado por um vergão largo e ressumbrante, no local onde puxara pela grilheta, arrancando a pele. Havia sangue por todo o lado. Os olhos de Drustan estavam vermelhos, o rosto manchado pelas lágrimas. Os pássaros tinham vindo empoleirar-se nos seus ombros, os sons que faziam ecoando de forma lúgubre nas sombras do encarceramento escurecido. Deord soltou as grilhetas sem um comentário.
— Julgo que vou precisar da tua ajuda — indicou. — Preciso que estejas em ti, Drustan. Calmo, lúcido, arguto. Se te disser que a senhora e o seu bardo poderão correr perigo, talvez seja mais fácil escutares o que tenho para dizer.
— Perigo? Ana em perigo? O que foi? — Drustan agarrou o braço de Deord, soltando-o de imediato, com um esgar de dor.
— Vem, entra, é melhor ligar-te esses ferimentos. Tens de ouvir esta história. Não sei como poderemos avisá-lo. Mas sei que este é o único lugar a que poderá recorrer.
A harpa deveria trabalhar mais nos dias que se avizinhavam, do que nos últimos anos, pensou Faolan, sentado a um canto do pátio, enquanto pensava no repertório que lhe seria exigido para as festividades associadas a um casamento: cinco ou seis baladas, dez ou doze canções para beber, um sortido de outras peças narrativas e uma variedade de danças, embora desconfiasse que a voz do instrumento pouco seria ouvida no salão repleto de homens e mulheres a divertirem-se. Divertir. Tal não seria o caso de Ana. A menos que, na véspera da assinatura do tratado, Deord lhe trouxesse informações que pudesse utilizar a fim de declarar o acordo nulo, Ana iria casar-se com aquele homem no dia seguinte e ele teria de passar o dia a tocar música festiva, música alegre, música para amantes. Pobre harpa, pensou, enquanto dedilhava as cordas, contar mentiras tão amargas quando a música deveria ser empregue na verdade mais profunda, na mais intensa das mágoas, nos atos de coragem mais inspiradores e na bondade. Bom, em breve o instrumento voltaria a silenciar-se e Faolan partiria daquele lugar.
O mais simples, claro estava, seria Deord regressar sem qualquer informação relevante. Nesse caso, o casamento e o tratado poderiam ser selados de imediato e Faolan regressaria ao Monte Branco com as novidades. Teria a sua dose de sucesso, mesmo que amargo a nível pessoal. A alternativa estava recheada de dificuldades. Se Deord descobrisse uma traição, qual seria o próximo passo? Aquele chefe tribal queria a noiva real. A expressão no olhar, as mãos irrequietas, eram prova de que o desejo carnal tinha um certo peso. A respeitabilidade trazida pela união, sem dúvida, era o motivo principal. Encontravam-se na sua fortaleza, guardados pelos seus homens, cercados por uma floresta vasta cujos percursos, se assim podiam ser chamados, eram traiçoeiros e cujos rios estariam ainda cheios e rápidos. Para lá das muralhas não teriam cavalos, nem suprimentos. Enquanto trauteava uma canção repetitiva, a mente de Faolan fervilhava. A concentração era intensa. A tal ponto que não viu os guardas de Alpin até chegarem a seu lado e lhe levarem as mãos rudes aos ombros.
— Ei... — protestou Faolan. A harpa tombou e, por instinto, conseguiu agarrá-la e pousá-la em segurança no banco antes de ser levantado à força. — O que se passa? Não é preciso magoarem...
— Poupa as palavras, bardo. Lorde Alpin quer ver-te. Já.
— Mas... — Não parecia adequado continuar os protestos, como seria apanágio de um simples músico dadas as circunstâncias, enquanto era arrastado para a casa e escadas acima até aos aposentos da família. Só podia haver uma explicação: Deord fora descoberto à escuta e, quando confrontado, incriminara-o. O que mais poderia ser?
— O que julgam que estão a... ? — As palavras foram interrompidas por um golpe na boca, desferido por uma mão enluvada. Sentiu o sabor do sangue e calou-se. Com o queixo a arder, esforçou-se por preparar uma justificação. Insistir que Deord estava a mentir. Não, não podia trair um homem de Breakstone, mesmo que Deord o tivesse feito. Oferecer-lhes a verdade, talvez, ou algo próximo, dizer que Bridei lhe pedira que garantisse por qualquer meio que Alpin era um homem de palavra. Que Ana não soubera que ele era mais do que um bardo. Alpin não gostaria de ouvi-lo, mas havia a possibilidade de vir a acreditar.
Estavam quatro homens no quarto de Alpin: o chefe tribal, Dregard, o conselheiro, um druida de vestes cinzentas e outro homem, pálido, sem características marcantes, que vestia um manto de capuz. Faolan sentiu a hostilidade que pairava na sala. A uma ordem de Alpin, os guardas soltaram o cativo e retiraram-se. Junto à porta interior, outro homem montava guarda, uma espada e uma adaga à cintura.
Faolan deu um passo na direção da mesa à qual se reuniam os quatro homens. Sobre ela estava aberto um pergaminho, os cantos seguros com pedras. Um jarro e copos aguardavam em cima de uma bandeja, mas ninguém estava a beber. Os olhares concentravam-se em Faolan. Sentiu um arrepio. A expressão no olhar daqueles homens não augurava nada de bom.
— Meu senhor — disse com frieza, segurando ao de leve as mãos atrás das costas e fazendo por parecer descontraído.
— Não fales sem que te dirijam a palavra, bardo — interrompeu Alpin, cujas feições largas estavam afogueadas. — Quero um relato de tua parte e é melhor teres cuidado. Não quero mais mentiras.
— Mentiras, meu senhor?
— Cala a boca. Não gosto da tua verbosidade. Tenho uma história para te contar e vais ficar em silêncio até ao fim. Mas talvez imagines do que se trata.
Faolan não disse nada. Lançara um breve olhar ao homem encapuzado, tendo ficado com a sensação inquietante de que já o vira antes. Não voltaria a olhar.
— Responde-me! — exigiu Alpin.
— Não consigo adivinhar, meu senhor.
— Diz-lhe o que o nosso convidado nos contou, Dregard. Tenho pouca vontade de repeti-lo. Esta duplicidade enoja-me.
Dregard pigarreou.
— Temos razões para crer... — começou.
— Diz-lhe de uma vez, sim? — Alpin estava impaciente, a voz tensa.
— O meu senhor foi informado de que, longe de seres o músico pessoal da senhora e ignorante em assuntos de política e estratégia, és na verdade bem versado em ambas as questões e extremamente capaz numa série de outras áreas que pouco têm a ver com música — disse Dregard.
— Tenho alguns talentos. — Faolan manteve um tom calmo. — Lorde Alpin já sabe que sou capaz de afiar facas e de usá-las. Julgo que também demonstrei que o meu talento enquanto músico é, pelo menos, aceitável. Sou um bardo. A senhora disse a verdade.
— Aqui o nosso amigo diz que viajas com freqüência. Mais, talvez, do que qualquer outro membro da corte de Bridei.
O gelo envolvia-lhe agora o coração, mas não deixou que os olhos revelassem o alarme.
— Faz parte da profissão de bardo — disse. — Trabalhei para inúmeros patronos, ao longo dos anos, tanto em Fortriu como para lá das suas fronteiras.
— E agora trabalhas para a senhora. — Alpin levantou-se, cruzou os braços e mirou Faolan com um olhar penetrante.
— Sim, meu senhor. É claro que, após o casamento, eu...
— Cala-te! Deixa-me contar-te uma história. Tem a ver com um jovem que parecia uma coisa mas, na verdade, era outra bem diferente. Um sujeito cujos talentos de bardo lhe garantiram uma desculpa bastante conveniente para entrar em salões de reis e de príncipes, chefes tribais e druidas. Um homem muito bem remunerado pelo patrono para o qual trabalhava, quer fosse o jovem rei de Fortriu ou uma bela dama que gostava de música e era refém no Monte Branco.
Faolan permaneceu em silêncio. Não fora Deord, mas sim o homem encapuzado, o mesmo, imaginou, que Dovard dissera ser um celta. Um espião. Um homem como ele, com o talento de passar despercebido. Talvez apenas um igual tivesse a capacidade de reconhecer outro. Pensou na melhor forma de responder.
— És, portanto, celta, músico e espião. Bridei enviou-te com determinadas ordens. Até aí, tudo bem. Não houve qualquer problema, dirias tu, talvez tenhas contado algumas mentiras, mas a dama está aqui, o tratado está pronto a ser assinado — Alpin apontou para o pergaminho — e depois poderás ir à tua vida. Cumpriste o teu dever, eu recebi a minha noiva, Bridei tem o seu acordo e não houve qualquer problema.
Instalou-se na câmara um silêncio de antecipação. Faolan tossiu, mas não fez menção de falar.
— Talvez tenhas reunido alguma informação enquanto desfrutavas da minha hospitalidade — continuou Alpin. — Tropas, armamento, planos... Qualquer informante digno desse nome aproveitaria a oportunidade.
Faolan manteve a expressão neutra, uma habilidade que aperfeiçoara havia muito.
— Contudo, há mais nesta história — prosseguiu Alpin. A posição denotava uma intensidade que lembrava um lince prestes a atacar. — Foste visto em Dunadd, ainda nem há uma estação. Tenho andado a pensar que me fazes lembrar alguém. Foi preciso aqui o meu amigo para identificar quem. Há um certo nobre do clã Uí Néill que tem mais do que uma leve semelhança contigo. Este homem — disse, meneando a cabeça na direção do celta encapuzado — viu-os a falar às escondidas mais do que uma vez. A semelhança é tal que poderiam ser parentes de sangue, primos, talvez, ou tio e sobrinho. Imagino que lá tenhas estado várias vezes e recebido bons pagamentos pelas informações que levaste. Informações que apenas alguém próximo do Rei Bridei poderia conseguir. Ser parente dos Uí Néill faz com que sejas parente do Rei de Dalriada, bardo. E faz-te inimigo jurado de Bridei. Aceitar prata dos senhores dos Uí Néill faz de ti um traidor.
A palavra pairou no ar como o estalar de um chicote. O fato de ser mentira não a suavizava. Por incrível que parecesse, a primeira coisa na mente de Faolan foi que o encapuzado merecia os parabéns. Imaginara que nem mesmo o melhor espião do mundo teria sido capaz de descobri-lo. Eliminara os vestígios de forma meticulosa.
— Ah — disse Alpin, com um esgar selvagem —, finalmente não tens nada a dizer em tua defesa.
— Não é bem assim, meu senhor. — As palavras corteses e o tom frio surgiram graças a uma qualquer fonte de energia. — Antes de deixar a minha pátria, anos atrás, já tinha cortado os laços que me uniam. Não devo qualquer fidelidade pelo sangue. Se este homem te levou a acreditar no contrário, ele está enganado.
— Negas ter estado na corte de Dalriada na Primavera? Aqui o meu amigo é uma fonte de informação de confiança. Nunca me enganou.
— Nesse caso, vossa senhoria é um homem de sorte — replicou Faolan. — As informações falsas fazem parte do trabalho de qualquer espião. O talento para a profissão é medido pela forma perspicaz como as utilizam.
Instalou-se um silêncio breve.
— Posso fazer uma pergunta? — aventurou-se Faolan. Olharam-no.
— Por que está este homem presente? — Apontou com a cabeça para o druida de cinzento, que escutava calmamente, a cabeça virando-se de um interveniente para o outro, os olhos envelhecidos brilhantes com o interesse.
— É uma testemunha imparcial — respondeu Dregard. — Devias estar satisfeito com a presença dele, bardo, pois significa que esta reunião poderá ser relatada noutros lugares sem acusações de que uma das partes distorceu os fatos.
— Relatada noutros lugares. O que queres dizer com isso?
— Por onde começar? — Alpin abriu os braços, como se pretendesse abarcar o mundo. — Por Bridei, talvez?
Faolan obrigou-se a pensar. Como fazer daquela situação uma oportunidade? Como assumir o controlo para ter a possibilidade de libertar Ana? Como descobrir exatamente o que se passava e usá-lo em seu próprio benefício? Era como fazer equilibrismo numa corda. Teria de avançar com delicadeza. Teria de fazer uso de toda a sua experiência, pois Alpin estava furioso, os olhos como os de um javali prestes a atacar. Decerto fora outra coisa que desencadeara aquela raiva, algo que não estavam a discutir naquele momento.
— É claro que — disse Faolan ao chefe tribal —, nestes tempos conturbados, qualquer líder com algum valor tem um informante qualificado à mão. O teu colocou-me em desvantagem, meu senhor. É interessante que também ele seja um celta.
— Ah. — Dregard aproveitou a oportunidade. — Quer dizer que o conheces.
— Para quem o saiba interpretar, até mesmo o silêncio tem algo a dizer.
O druida aquiesceu às palavras de Faolan. Parecia apreciar a noção.
— Diz-me — retomou Alpin a palavra, voltando a sentar-se —, por que razão um homem que renegou os laços de sangue tem tamanha ambição pela prata, para receber pagamentos de dois mestres ao mesmo tempo? Aposto que há uma pobre mãe, escondida algures, uma irmã sem dinheiro ou duas, que precisam de um dote. Ou também te livraste delas para tua conveniência?
Uma fúria cega tomou conta de Faolan e não foi capaz de se conter. Avançou de repente. Momentos depois, estava no chão, a cabeça a latejar de uma pancada e as costelas a doer devido a um pontapé. Dois dos homens de Briar Wood estavam em cima dele. A dor não era nada, quando comparada à consciência de que, em todos os anos desde que abandonara a terra natal, nunca perdera o controlo daquela forma. Não podia dar-se ao luxo de cometer outro erro. Estavam em jogo outras vidas, não apenas a sua.
— Toquei num ponto fraco — comentou Alpin, parecendo genuinamente surpreendido. — Os melhores espiões não devem tê-los. Talvez estejas a perder a garra, celta. Levanta-te e limpa esse sangue, que está a chegar-te ao olho. Não queremos que o nosso bardo fique com a carinha laroca arruinada. Temos um casamento, amanhã. Agora, dá-me uma boa razão para não te acorrentar como a um cão e enviar imediatamente um mensageiro à corte de Bridei, a dizer-lhe que a noiva imaculada que me enviou vinha acompanhada de um vira-casaca nojento, a soldo de Fortriu e de Dalriada? Por que não devo fazê-lo? Afinal de contas, vou assinar um tratado de apoio a este rei... ali está, redigido, à espera da minha assinatura e da da senhora.
Alpin começava a divertir-se, pensou Faolan, quer estivesse ou não zangado. Deveria ter muita confiança na sua autoridade, para utilizar tal argumento na presença de um espião celta à sua mesa.
— Sei o que estás a pensar — disse o líder de Briar Wood, com um trejeito de desdém no lábio. — Deixa-me recordar-te que esta noite temos a presença não de um, mas de dois celtas. E um deles serve dois mestres. Será que não é minha obrigação para com Bridei avisá-lo de que és um perigo e tens de ser detido?
Algures na cabeça de Faolan, um martelo batia numa bigorna. A visão toldou-se. A chama das velas tremeluziu.
— Tenho uma resposta, meu senhor. É uma resposta que terá de ser dada em privado, só nós dois.
— Hah! — As sobrancelhas de Alpin ergueram-se em descrença e Dregard soltou uma gargalhada. — Não creio, meu caro amigo. Esses teus dedos são destros o suficiente com uma faca para que essa seja uma opção inviável.
— Os teus homens que me atem, se preferires. Mantém a presença de um guarda, se assim tiver de ser, desde que seja de confiança e mantenha a boca fechada. Podes não querer que os teus homens saibam aquilo que tenho para te dizer. Não vou falar à frente do celta, nem deste druida, nem ali do teu conselheiro.
— Não te compete ditar termos... — protestou Dregard.
— Lorde Alpin é bastante astuto — disse calmamente Faolan. — Tal como qualquer bom líder, compreende a importância do momento e a necessidade de aproveitar as oportunidades que se apresentam. Atem-me os pulsos e os tornozelos. Os meus talentos não são assim tão prodigiosos que me levem a ser capaz de voar pela sala e atacar um homem com os dentes. — Vira os olhos de Alpin a cintilar, a noção de que havia qualquer coisa a ser proposta que talvez não devesse perder.
— O druida fica — disse Alpin. — É a minha salvaguarda no que diz respeito à senhora. Os restantes podem sair. Sim, tu também, Mordec, depois de atares bem este indivíduo. Goban, fica à porta e não deixes ninguém entrar.
A resmungar, Dregard acompanhou o encapuzado. Os dois guerreiros manietaram Faolan atrás das costas, talvez um pouco mais apertado do que o necessário, e ataram-lhe os tornozelos. Tentou gracejar, dizendo que esperava que fossem capazes de soltar os nós, o que lhe valeu uma pancada no joelho que lhe trouxe lágrimas aos olhos. A porta fechou-se. O druida estava sentado calmamente, com uma pose de atenção educada.
— Diz o que tens a dizer — indicou Alpin. — Não espero uma confissão. Julgo que ambos sabemos que o que o meu informante me contou está essencialmente correto, o que te deixa numa posição constrangedora. Ana sabe? É cúmplice da tua traição?
Faolan gelou. Havia algo de assustador no tom com que pronunciara o nome da jovem. Se a raiva se devia a ela, embora Faolan não conseguisse imaginar o motivo, a necessidade de a retirar dali era ainda mais premente do que antecipara.
— Ela não sabe de nada — disse, com um tom neutro. — Está completamente inocente de qualquer crime. Isto é uma ofensa...
— Cala a boca, bardo. Cinge-te aos fatos. Acontece que a senhora é muito menos inocente do que julgas. Ana deixou-me muito, muito zangado. Teve um comportamento não só desonesto e estouvado, como imagino que também se tenha aproximado do impudico. Não era exatamente o que desejava vir a saber na véspera do meu casamento. Também não me agradou descobrir que alberguei na minha casa um agente duplo, disfarçado de harpista cândido. O comportamento dela é tão virginal que me deixou convencido. Seria um estratagema para me distrair e enganar até descobrir, na noite de núpcias, que Bridei me enviara bens estragados? An? O que dizes? Viajaste sozinho com ela. Talvez tenhas experimentado a mercadoria?
Respira devagar. Pensa em amanhã.
— Não é verdade, meu senhor. Tenho a certeza de que Ana nunca foi tocada. Estás a difamá-la com essa tua sugestão. — Faolan conseguiu manter o tom da voz estável. Não podia voltar a perder o controlo.
— Veremos o que ela tem a dizer sobre o assunto. Decerto é capaz de alguns enganos. Não interessa. Se for preciso, faço-a falar à pancada. Um homem que não consiga controlar a mulher não é grande homem. Muito bem, celta, o tempo está a passar. O que me querias contar que não pudesse ser dito à frente do meu conselheiro mais próximo? Acima de tudo, o que não queres que o meu amigo de Dalriada ouça?
Faolan percebeu que estava a tremer e forçou-se a parar.
— Contaste-me uma história — disse. — Agora sou eu que te vou contar outra. O teu amigo de Dalriada conseguiu descobrir certos fatos sobre a minha pessoa. Posso fazer melhor.
— Tem de ser bom, celta. Seria bastante simples fazer-te desaparecer. Podia dizer à senhora que decidiste partir mais cedo para o Monte Branco. Os caminhos nesta zona são perigosos. Estão sempre a desaparecer viajantes. Continua.
— Tem a ver com um homem que teve a felicidade de controlar um par de territórios muito bem posicionados. De um lado, com alguns vizinhos pelo meio, ficava o reino de Fortriu e do outro Dalriada. As terras desse homem ficavam entre os dois e incluíam um ancoradouro muito útil, profundo, abrigado, com passagem até à costa do segundo território, o reino dos Celtas. Não era de admirar que líderes poderosos o cortejassem com ofertas: prata, gado, uma mulher. Não era uma mulher qualquer, mas uma noiva que lhe daria uma oportunidade única, pois através dela poderia vir a tornar-se pai de reis. Todos queriam ser seus amigos.
— Despacha-te — disse Alpin, mas estava já inclinado para a frente, os olhos semicerrados, a escutar com atenção.
— Ele tinha de fazer uma escolha — continuou Faolan. — A guerra estava iminente. Tinha de se aliar a um dos lados. Um informante pode receber pagamentos quer dos Priteni, quer dos Celtas. Esse trabalho exige que um homem não tenha consciência. Eventualmente, um chefe tribal terá de escolher um lado. Como poderia escolher? Um, oferecia uma noiva real. O outro apresentava-lhe uma coisa que também desejava: a oportunidade de se aliar àqueles que acreditava virem a dominar não só Dalriada, mas todas as terras dos Priteni. Queriam exclusividade do ancoradouro. Queriam o apoio da sua grande força de combate, conhecida por todo o norte pela sua excelência. Tudo o que o outro líder queria era uma marca numa folha de pergaminho. — Fez uma pausa. Era um caminho perigoso, baseado na imaginação, em boatos e na avaliação pessoal de onde residiria a preferência de Alpin. Por que haveria aquele chefe tribal de confiar nele?
— É isso que pensas? — perguntou-lhe Alpin, que cofiava a barba e franzia o cenho, já não tanto de raiva, mas em concentração. — Que os Celtas vão acabar por controlar todo o norte? Nós, os Caitt, nunca entregaremos os nossos territórios. Uma aliança é uma coisa, a cedência abjeta do controlo é outra completamente diferente. — Era como se estivesse a falar com Dregard, ou com outro dos seus conselheiros. O druida mexeu-se ligeiramente, como que a recordá-los da sua presença.
— É minha opinião — prosseguiu Faolan — que as ambições de Gabhran se estendem apenas até às fronteiras setentrionais de Fortriu, não para além delas. Muito me surpreenderia que os contactos contigo e com os outros chefes fossem mais além de um pedido de assistência contra Bridei. Vão querer, é claro, usar as vias marítimas do Vale dos
Sonhos. Se estivesse no teu lugar, não ficaria preocupado com uma eventual ameaça aos teus domínios. A reputação dos Caitt torna-o improvável. — Não acrescentou que pouco havia nesses territórios que apelasse a um invasor, a não ser que alguém procurasse vastidões de floresta cerrada onde perder-se. — Quanto ao outro assunto, a seu tempo Dalriada deverá prevalecer. Estou convencido disso. — Era um argumento que ouvira inúmeras vezes na corte de Dunadd, e em certas ocasiões, noutros lugares. Na verdade, não concordava com ele, mas sabia como torná-lo convincente. — O povo de Gabhran já se instalou no sudoeste de Fortriu. Os chefes tribais mais pragmáticos receberam-nos de braços abertos. Cultivam esses territórios e têm filhos com as mulheres Priteni. Se não avançarem no vale durante a vida de Gabhran, irão fazê-lo com o seu sucessor, ou com o seguinte. Bridei não o vê assim. É apaixonado na sua fidelidade aos deuses — neste ponto, Faolan aquiesceu de forma conciliatória na direção do druida —, pois foi criado por um druida. Apenas vê o dia em que Fortriu regressará aos costumes dos antepassados. — As palavras eram amargas, com o sabor da traição, mesmo que fosse pelo bem da causa de Bridei.
— Interessante — comentou Alpin. — E inconsistente. Esses sentimentos soam a falso, vindos dos lábios de um homem que, ainda há pouco tempo, cantava louvores aparentemente sinceros ao líder que chama... qual era o título?
— A Espada de Fortriu, meu senhor. Esqueces-te, talvez, que sou um bardo, e dos bons. Faz parte dos meus talentos ser capaz de transformar em herói qualquer patrono.
— Seu sapo traiçoeiro — disse Alpin. Talvez falasse com repulsa, ou com admiração. Talvez um pouco de ambos.
— Sim, meu senhor.
— Continua. Onde queres chegar com isto? Esquece a narrativa. Se tens alguma coisa a oferecer, di-lo claramente.
— Meu senhor, estou completamente à tua mercê. Estou detido e atado como um frango para o espeto. Como se tal não fora suficiente desvantagem, o segredo da minha duplicidade foi revelado à frente do teu conselheiro e deste druida. Amanhã, poderá já ter chegado mais longe. Poderias, tal como disseste, enviar um mensageiro ao Monte Branco a informar Bridei de que não só o tratado está assinado e a dama casada, mas que um dos elementos da comitiva pensava em apunhalá-lo pelas costas, por assim dizer. Torna-se óbvio que, neste confronto, deténs todas as armas. — Sente o teu próprio poder, incitou, em silêncio. Deleita-te com a minha submissão. Convence-te de que tens o controlo total. Depois vou dar-te uma razão para me soltares. Alpin aguardou.
— Dei-te a minha opinião informada sobre o futuro da região — disse Faolan, escolhendo as palavras com cuidado. — É claro que poderias já tê-lo ouvido de outras fontes. Comentaste que te fazia lembrar alguém. Talvez já tenhas visitado a corte celta de Dunnad? Qual foi o chefe tribal dos Uí Néill com quem te encontraste? Black Conor? Fionn, conhecido como o flagelo do norte? Ruaridh, o Ancião de Tirconnell? Podes ser próximo de qualquer um destes poderosos líderes de clã. Ou será possível que tenha em meu poder alguma informação que o teu celta de estimação não te revelou?
Alpin pigarreou ruidosamente. Tinha as faces vermelhas.
— O teu homem agiu bem, meu senhor. Mas eu sou o melhor do meu ramo. Permite-me que to prove.
— Julgo — disse Alpin, levantando-se e pousando a mão no ombro do druida — que afinal de contas não precisamos deter-te mais nesta reunião, Berguist. Fizeste uma viagem cansativa e amanhã vai ser um dia em cheio. Goban! — A porta abriu-se e o guarda espreitou.
— Leva o meu convidado druida até ao salão e dá-lhe de comer e de beber, sim? — Ao ver a expressão de protesto de Goban, acrescentou:
— Eu fico bem, a menos que já não saibam fazer nós. Quando terminares, volta e fica lá fora até que te chame. — Depois, quando ficou sozinho com Faolan, exclamou: — Não acredito. Tens a ousadia de me ofereceres os teus préstimos depois de chegares aqui na escolta de Lady Ana.
— Sim, meu senhor. — O peixe mordia o isco. Tinha de puxá-lo com o maior dos cuidados. Obrigou-se a respirar lentamente. As cordas estavam a começar a magoá-lo, tendo sido atadas sem atenção ao conforto do prisioneiro. Por momentos, pensou em Drustan e nos grilhões de ferro.
— Por estranho que pareça, dou um certo valor à vida.
Alpin recompusera-se. Sentou-se e bebeu uma golada de cerveja.
— Imagino que devas ter bastante prata guardada. Se és tão bom como afirmas, os teus dois mestres devem pagar-te bem. E se eu não puder comprar o que tens para me oferecer?
— O preço não é muito elevado. Quero a minha vida e a minha liberdade. Envia-me de volta ao Monte Branco, tal como é esperado.
Confia-me a informação que desejas que Bridei ouça. Comprometo-me a apresentá-la na íntegra. — Não mencionou que, quando chegasse, Bridei teria partido havia muito.
— Por que haveria de confiar em ti? Diz-me uma razão para fazê-lo. Faolan sorriu. Era algo que raramente fazia e sempre de forma calculada.
— Quando te der a informação que tenho, saberás que não estou a mentir. Sou mais próximo de Bridei do que imaginas. Ele escuta-me e conheço todos os seus planos. Desde há cinco anos que me considera um amigo chegado. Poderás utilizar o que ficarás a saber como te aprouver: para fortaleceres os laços com Gabhran, ou simplesmente para o guardares até que precises de moeda de troca. O tratado mantém-se. Imagino que será assinado. Claro que me interrogo, uma vez que tens um celta pessoal, se tencionas honrá-lo.
— Pelos tomates do Guardião das Chamas! — Alpin Fitou-o. — Estás a tentar ser executado sem apelo nem agravo, bardo?
— Faz parte da natureza da minha profissão estar à vontade com o risco, meu senhor — disse Faolan, com frieza.
— E quanto à senhora? Podia jurar que a tua devoção era genuína. Repudia-a assim, sem pensar duas vezes?
— Lady Ana é uma mercadoria de grande valor. Entreguei-a intacta. Completei a minha missão. Bridei não poderá exigi-la de volta depois de a levares para a cama, meu senhor. As alianças mudam. As fronteiras mudam. Aconteça o que acontecer entre Alpin e Fortriu, terás sempre os teus filhos reais. Quando crescerem, o poder de Bridei talvez já tenha desaparecido. — Sentia-se enojado com as suas próprias palavras, mas manteve o olhar firme e as feições calmas. — Dizendo-o por outras palavras — acrescentou —, deves querer a noiva sem a bagagem atrelada.
Alpin assobiou baixinho. — Surpreendes-me — disse.
— Obrigado, meu senhor. Em parte, lamento que ela tenha sido trocada por menos do que o seu valor mas, no fim de contas, não passa de uma mulher. Teremos chegado ao ponto em que os meus tornozelos podem ser soltos?
— Só depois de ouvir a informação que mencionaste. Quero datas, rotas, números. Quero-o já. Se cumprires as tuas promessas loucas, poderei ter em conta o que pedes. Imagino que tal dependa da minha garantia de que Bridei não ficará a saber a verdade sobre o amigo traiçoeiro que tem. Se concordar, algo que está condicionado à qualidade do que me ofereceres, há uma condição. Quero que recolhas certas informações e que as tragas aqui. Tanto do Monte Branco, como de Dunadd. Disseste que eras um viajante.
— Queres que trabalhe para ti? — Faolan apercebeu-se de uma nota de triunfo na voz e esperou que tal passasse despercebida ao chefe tribal. — Nesse caso, teríamos de chegar a um acordo quanto ao pagamento.
— Tem calma — disse Alpin. — Dá-me provas do que disseste, ou não hesitarei em livrar-me de ti ainda esta noite. Tenho um ou dois homens que gostariam de executar essa ordem. Lentamente e com a mesma dose de arte que depositas nas tuas baladas.
— Um verdadeiro elogio fúnebre — murmurou Faolan.
— Diz-me, então. O que anda Bridei a tramar?
Enquanto assassino e espião, Faolan estava habituado a correr riscos. Não se lembrava de uma altura em que o risco fosse tão elevado. Teria de providenciar informações que fossem novas para Alpin, pormenorizadas e totalmente convincentes. Teria de ser o mais próximo da verdade possível. Se jogasse com cuidado, as mentiras poderiam livrá-lo de Briar Wood, e Ana consigo. Seria obrigado a calcular até onde poderia ir, sem colocar em perigo Bridei e os exércitos de Fortriu. Era estranho que, quando expôs o avanço antecipado, as rotas a seguir, os números, se sentisse o mais reles dos traidores. Queria enrolar-se sobre si próprio como um ouriço ou, tal como uma lesma, rastejar para baixo de uma pedra e fazer-se esquecer pelo mundo. Mas manteve o tom desligado e os olhos calmos. Contara a verdade, quando dissera que era o melhor.
Quando terminou, Alpin uniu as mãos, com os dedos virados para cima, e suspirou.
— Quer dizer que está pronto a avançar tão cedo — disse em voz baixa. — Vai partir na Medida, an? Desconfiei que fosse o caso, quando recebi a mensagem a informar-me da chegada iminente desta noiva. Mas não pensei que fosse possível. Vai arriscar-se com o tempo? Talvez aquele druida dele esteja a pensar fazer uma oração pelo bom tempo.
Faolan não disse nada. O peixe tinha sido fisgado.
— Amanhã — disse Alpin. — Tens de ser visto. Tens de cumprir as tuas obrigações, tal como é esperado por todos. Tens de estar presente quando esta coisa for assinada. Tens de nos divertir, à noite. Quero que o meu povo acredite que és apenas o que aparentas. Quero que partas na manhã seguinte, tal como planeado, com as boas novas para Bridei. Assim, poderás confirmar ao rei de Fortriu que o casamento foi consumado. Até te deixo ver os lençóis.
Faolan cerrou o maxilar e os punhos, mesmo cingidos. O fato de Alpin não ter falado com a intenção de provocá-lo, estando apenas a fazer uma piada grosseira, não alterava a fúria que sentia. Liberta-me, pensou, e os teus lençóis vão continuar de um branco puro. Tiro-a daqui para longe das tuas mãos imundas antes que o sol se ponha no dia do teu casamento.
— Vou ter de te prender esta noite — continuou Alpin. — Um ou dois dos meus homens ouviram a nossa discussão anterior e não ficaram contentes. Preciso de tempo para pô-los ao corrente da situação, isto se quisermos que tenhas os dedos todos para as danças do dia do casamento. Há uma barraca fechada nos canis. É útil quando temos um animal insano. Às vezes acontece, uma falha na ninhada. Fica de boca calada quando lá estiveres. Pensa nisto como mais algum tempo de vida. Por enquanto, não pensaremos mais adiante, em sacos de prata e um terreno para quando te reformares. Primeiro, tens de dar provas.
— Obrigado, meu senhor. Não irei decepcionar-te.
— Mordec!
A porta abriu-se e o guarda entrou.
— Solta-o — indicou Alpin. — Foi domado. Leva-o para os canis, às escondidas, percebes, e tranca-o como rafeiro que é. Não lhe batas muito. Temos um casamento amanhã e há falta de harpistas.
Ana passou o resto da tarde sozinha. Ludha não viera ao seu quarto e a jovem não tinha vontade de ir procurar a criada, pois isso significaria ser vista pela casa com o nariz a escorrer e os olhos inchados devido às lágrimas. O que fizera fora o mais acertado, disse para consigo, enquanto olhava pela janela estreita, para as gralhas que se atarefavam no topo dos ulmeiros do outro lado da muralha. A chuva caía sem parar, uma morrinha que dava à floresta uma aura nebulosa pontilhada de prata. Não tivera escolha, a não ser cortar os laços. Dizer-lhe adeus. O vestido de casamento estava disposto sobre a cama, um par de chinelas de peliça junto à bainha bordada. Continuar a falar com ele, manter as breves trocas de palavras que eram a razão da sua existência seria colocar Drustan em perigo. Isso, não podia fazer.
Ana estremeceu. Dirigiu-se à cama e ajoelhou-se. Passou a mão pelo belo trabalho que a criada fizera na roupa. Uma fita bordada dava a volta à saia de cintura alta, com um estilo formal, adequado à ocasião, de padrões regulares de frondes e de folhas, em tons de verde e de azul claro. Aqui e ali via-se uma flor delicada. Também ocasionalmente, viam-se pequenas criaturas de olhos redondos pois, tal como todos os verdadeiros artistas, Ludha não resistira a aplicar o seu toque pessoal no trabalho: ratos, martas e salamandras, pintassilgos, sapos e libelulinhas surgiam por entre os fetos e as outras plantas. O tecido era de uma lã fina, fiada e tecida por Sorala, a mais talentosa das mulheres de Briar Wood nessas artes. A pedido de Ana, a roupa tinha um corte modesto, com mangas compridas e estreitas e um decote redondo. A saia caía em pregas suaves a partir de uma faixa de lã tingida de azul, logo abaixo do peito. Sabia que era um traje adorável e que ficaria muito bem nele. Mesmo assim, sentiu um arrepio de repulsa quando lhe pegou e o dobrou cuidadosamente, a fim de o guardar na arca.
O vestido representava Alpin. Não era capaz de olhar para a roupa sem imaginá-lo a soltar os atilhos, a descê-lo pelos ombros e a fazer o que teria de fazer com ela, na noite seguinte. Como seria capaz de o suportar? Como poderia fingir? E como seria capaz de deter as lágrimas incessantes, que pareciam querer afogá-la?
Deitou-se na cama e tentou pensar em coisas felizes. Meio a dormir, vagueou por um reino que não era exatamente o lar da infância, nem o jardim no Monte Branco, mas uma mistura dos dois, no qual passeava, brincava e ria com um par de crianças. Pertencia à cena, mas ao mesmo tempo estava afastada, tal como acontece nesses sonhos. Era uma das meninas e, em simultâneo, observava-as à distância. O jogo era complicado e envolvia duas bonecas de madeira muito apreciadas, imundas por aventuras sem fim, que tinham de escalar um muro de pedra, antes de iniciarem a travessia ousada de um campo repleto de vacas. As saias das meninas estavam ainda mais imundas do que as das bonecas.
É a minha vez, Ana.
Não, é a minha.
Eu já a tinha.
Sou mais velha, tens de fazer o que te digo.
Não tenho nada.
Depois, a menina Ana empurrou e a irmã caiu, ficando com a túnica e com os braços cobertos com a lama negra e espessa do campo. Breda começou a chorar. Regressadas a casa: a Tia a ir buscar a chibata de salgueiro, Ana encolhida contra uma parede. Estende a mão. A vontade de dizer, A culpa não foi minha, ela obrigou-me, enquanto ouvia Breda a fungar e a soluçar na cozinha, onde era acalmada com bolos de mel. Escolheu não dizer nada. As costas direitas, a cabeça erguida, a mão estendida com firmeza, sem um único tremor. Sou uma princesa. Depois o golpe.
Ana endireitou-se sobressaltada, a pestanejar. Lá fora, a luz desvanecia-se. Adormecera. Era quase hora da ceia e não havia ainda sinal de Ludha. Teria de se lavar e trocar de roupa sozinha, embelezar-se para o festim íntimo com Alpin. Cerrou os dentes e dirigiu-se à privada que servia os aposentos da família. Reparou no guarda à porta de Alpin e no segundo no cimo das escadas. Não se preocupou. Habituara-se à proximidade de vigilantes armados durante os primeiros anos como refém real. Normalmente, as viagens a Banmerren eram feitas na companhia de quatro homens imponentes. Guardas que vieram a provar-se desnecessários, pois o primo, o rei das Ilhas Pequenas, nunca tentara libertá-la, quer através da força das armas, quer pela diplomacia. Agora, estava reduzida àquilo: ia unir-se a um marido que desprezava e viver ao lado do homem que amava e nunca poderia vir a ter.
Ao regressar à porta do quarto, a figura alta de Orna esperava-a. — Deves precisar de ajuda para te vestires para a ceia.
— Onde está Ludha?
— Não está muito bem. Não virá, esta noite. — A governanta entrara no quarto de Ana e deslocava-se com à-vontade. Abriu a arca e procurou a roupa adequada. Retirou cuidadosamente o vestido de casamento e pousou-o ao lado. — Qual destes a minha senhora prefere? O azul?
Ana tinha vontade de bater o pé numa birra infantil e dizer que não queria nenhum.
— O cinzento, por favor — disse, num tom educado. — O que se passa com Ludha? Esta manhã parecia-me muito bem.
— Nada de grave. Umas dores, nada mais. Tens a certeza quanto ao cinzento? — Orna ergueu a túnica e franziu a sobrancelha. Mirou a saia condizente. De todos os conjuntos que tinham sido fornecidos a Ana, aquele era o mais simples.
— Sim. — Uma rapariga trouxera água quente. Ana lavou as mãos e o rosto na bacia que lhe trouxeram, secou-se e, virando as costas à governanta, despiu a roupa de cima. Ficou imóvel enquanto Orna lhe passava a túnica cinzenta pela cabeça. Vestiu a saia e submeteu-se ao apertar da cinta levado a cabo pela outra mulher. Acabada de se vestir, Ana olhou para o espelho de bronze que estava na prateleira e viu a sua imagem esbatida na superfície irregular, com a luz tremeluzente das velas a destacar o reflexo vago e fantasmagórico.
— Vou arranjar-te o cabelo, minha senhora.
— Não, eu trato disso, Orna. — Não lhe parecia correto que aquela criada severa, pouco mais do que porta-voz de Alpin, realizasse uma tarefa tão íntima. Orna não respondeu. Começou a selecionar e a dobrar os trajes soltos. Com uma disciplina cruel, Ana escovou, entrançou e domou o cabelo louro volumoso, enfiando-o numa rede ornada com fitas. Nem uma madeixa teve autorização de fugir. As feições inchadas e coradas que a fitavam a partir do bronze não eram as de uma noiva feliz, na antecipação dos momentos idílicos que passaria sozinha com o amado. Parecia um farrapo.
— Não podes ir ter com ele assim — disse Orna, sem cerimônias.
— Já basta a roupa. Estás tão coberta, que mais valia teres uma túnica de mulher sábia vestida. Bem, a escolha é tua. Mas, pelo menos, é melhor que deixes o cabelo solto, caso contrário ele vai perceber logo que passaste a tarde a chorar.
Orna tinha razão. Ana retirou os alfinetes que espetara no emaranhado de tranças, tirou a rede e deixou que os longos cabelos dourados lhe caíssem pelas costas, com uma pequena madeixa entrançada sobre a testa. Continuava com os olhos vermelhos e feios, mas não seria para aí que Alpin olharia em primeiro lugar.
— Sim, está melhor. — O tom de Orna não era hostil. — Um conselho, minha senhora. Espero que não o leves a mal.
— Se tens algo a dizer, é melhor que o digas de uma vez, Orna.
— Ana não tinha vontade de ser intimidada e o comentário parecia-lhe exatamente isso. Estava também preocupada com Ludha, que não mostrara quaisquer sinais de doença.
— É bem visível que não estás feliz — disse Orna. — Que ainda não te ambientaste. Todos nós aprendemos uma lição aqui em Briar Wood, minha senhora, isso se queremos viver em paz e segurança. Temos de ficar de boca calada em relação a certos assuntos. Dessa forma, não temos problemas.
— Que estás a querer dizer, Orna?
— Isso mesmo. Dá-lhe as respostas que quer ouvir e ele fica feliz. E, se ele estiver feliz, também nós estamos. — A expressão severa da governanta não convenceu Ana de que se tratava de um bom conselho. Na verdade, deixou-a bastante perturbada.
— Orna — disse a jovem —, estavas cá quando a primeira esposa de Lorde Alpin ainda estava viva, não é verdade?
— Estava. — Orna dirigiu-se à porta, pronta para chamar um rapaz que levasse a bacia e o cântaro da água.
— O que achas que aconteceu naquele dia? No dia em que ela morreu? Acreditas que...?
— Cala-te! — O tom de Orna era um silvo cortante. — Não tornes as coisas ainda piores, minha senhora. Imagino que ele já te tenha contado a história, o que significa que não precisas de voltar a ouvi-la por mim. Faz parte do passado e é melhor esquecer o passado.
— Mesmo que isso signifique que um homem possa ser falsamente acusado e injustamente preso? — O coração de Ana batia desenfreado.
Orna fechou a porta de repente.
— Sei que a minha senhora não é tola. Ainda não te habituaste aos nossos costumes, só isso. Esse é um assunto sobre o qual não se fala. É melhor que cumpras essa regra, para teu próprio bem, pelo menos. Ele não está no melhor dos humores, ouvi-o a gritar. O meu conselho é que faças o que tiveres de fazer para caíres nas boas graças dele. Agrada-lhe, se conseguires. Agora vou-me embora, tenho outras coisas para fazer. Ele espera-te assim que estiveres pronta. Só digo para teres cuidado. — E, com estas palavras, saiu.
O rapaz chegou e levou consigo os aprestos de limpeza. Nada impedia Ana de se deslocar à porta ao lado. Alpin estaria à sua espera, talvez com impaciência. Não havia motivo para Orna lhe ter dado aquele conselho gratuito. Ana ia casar-se com aquele homem no dia seguinte. É claro que tinha de agradar-lhe. Devia ir de imediato e começar a tratar do assunto, mas os pés não queriam mover-se. Deixou-se ficar junto à janela, a testa contra a pedra fria, os olhos fechados. Amo-te, disse em silêncio. Mais do que o lar e a família, mais do que a beleza, a sabedoria e a bondade, mais do que a própria vida. Para sempre, para todo o sempre.
Um leve bater de asas. Abriu os olhos. A carriça, que ele chamara de Ânimo, estava empoleirada no parapeito, ao lado da sua mão. Quando murmurou o seu nome, o pássaro minúsculo voou-lhe para o ombro. Com a plumagem de um castanho dourado, não destoava do abrigo proporcionado pelo cabelo brilhante.
— Não — murmurou Ana, agarrando na pequena criatura, que não tentou fugir. — Hoje, não. Não posso levar-te comigo. — Estendeu a mão para fora da janela e libertou o pássaro na luz pálida do fim de tarde de Verão. Esvoaçou junto à abertura e, quando Ana recuou, voltou a entrar.
— Vai — disse-lhe. — Vai para casa, volta para junto dele. Se pode ouvir a tua voz, se consegue ver através dos teus olhos, diz-lhe que o amo. Irei amá-lo para sempre. Mostra-lhe as minhas lágrimas. Mas não fiques comigo. Alpin não pode ver-te.
Pousou a ave no parapeito e o pássaro ali ficou, a observá-la, um monte frágil de penas, os olhos brilhantes com um discernimento selvagem que nunca entenderia.
— Diz-lhe — murmurou e saiu a porta antes que a carriça pudesse segui-la. Depois ergueu o queixo, endireitou os ombros, assumiu a postura de uma rainha e dirigiu-se à porta de Alpin. O guarda deixou-a entrar.
A coragem durou apenas até ver os olhos do futuro marido. Mesmo com a ceia festiva disposta sobre a mesa, as velas nos candelabros de prata, os belos copos e as Colheres ornamentadas, a expressão de Alpin deixava-a gelada até aos ossos.
— Demoraste — disse ele. — Senta-te e deixa-me servir-te um pouco de hidromel. Estou a ficar com fome.
— A minha criada ficou doente. Precisei de mais algum tempo para me vestir.
— Ficou doente, não é? — Alpin passou-lhe um copo e recostou-se na cadeira, as pernas cruzadas, as mãos cerradas em volta da sua taça. Tinha os nós dos dedos brancos. — Imagino que se lhe possa chamar isso.
O gelo intensificara-se. — A que te referes? O que se passa com Ludha? O que estás a dizer-me?
— A tua criada voltou a precisar de um castigo. Desde que ta entregamos, tornou-se bastante descuidada em certas coisas. A tal ponto, que julgo sermos obrigados a dispensar os seus serviços. É pena, pois, ao que sei, a rapariga não tem família. Mas é isso que se passa.
— Estás a dizer-me que alguém a magoou? Que foi espancada? Isso é completamente inaceitável! Disse-te que trataria eu própria de qualquer castigo... e, afinal de contas, que fez ela? Tem vindo a comportar-se perfeitamente em tudo. Passou dias a fio a trabalhar no vestido de casamento...
— Se fosse a ti, tinha cuidado. — Alpin levantou-se, o tom da voz perigosamente calmo. — Muito cuidado. Talvez a tua serva não tenha cometido o tipo de ofensa mais comum, como o roubo, o desleixo ou a devassidão. Mas é culpada de algo ainda pior do que isso. Quebrou uma das minhas regras, as minhas regras, que regem esta casa. Se o castigo não passou de uma tareia, bem pode considerar-se afortunada.
— Que regra? — Ana esforçou-se por manter um tom firme.
— Não vamos falar sobre isso ainda. Tenho vontade de comer esta bela ceia, embora deva dizer que esperava poder apreciar a minha bela noiva. Ver-lhe a pele dos braços e dos ombros, e talvez uma sugestão de peito, favorecido por um vestido adequado à véspera de casamento.
O azul, talvez. Estás horrível, com isso. O que vejo à minha frente é a lua coberta pelas nuvens. Pareces uma viúva de luto. — Enquanto falava, passava-lhe uma travessa de peixe cozido e outra de cebolas e queijo, como se fosse uma ocasião normal. Emudecida, Ana serviu-se de ambas e depois fitou as mãos. Não se sentia como a lua, nem como uma viúva. Sentia-se como uma criatura presa numa armadilha, sozinha e aterrorizada.
— Meu senhor... — A voz saiu-lhe como um gemido. Pigarreou, bebeu um gole de hidromel e voltou a tentar. — Meu senhor, não posso apreciar uma refeição, quando acabo de saber que a minha serva foi espancada. E... — Hesitou, sabendo que era irrefletido, e depois aventurou-se, subitamente incapaz de conter as palavras. — Não me sinto confortável com as regras que impões nesta casa. Os assuntos que não podem ser discutidos, a restrição à saída para lá das muralhas. Se vier a ser a senhora desta casa, preciso de disposições adequadas à lida com os servos. Gostaria de ter tido oportunidade de falar com Faolan, sendo ele a única pessoa que aqui tenho que pertence à casa de onde vim. Alpin, eu... penso que é estranho que o crime do teu irmão esteja envolto em tanto segredo. Isso sugere-me uma... irregularidade.
— Continua — incitou Alpin. Falava com um tom baixo.
— Seria terrivelmente injusto, se Drustan tivesse estado preso todos estes anos por um crime que não cometeu.
Alpin ergueu as sobrancelhas. — Que teoria apresentas em alternativa?
— Não tenho qualquer teoria.
— Acusas-me de mentir? É isso que estás a fazer?
— Não, meu senhor — respondeu Ana, vacilando perante a força gelada que lhe surgira nos olhos. — Como não estavas presente quando Lady Erisa morreu, o teu relato terá de ser baseado em palavras alheias. Tenho a certeza de que acreditas que é verdade, tal como as outras pessoas com quem falei.
— Que outras pessoas? Esse é um assunto proibido na minha casa. Quem andou a falar?
Ana engoliu em seco. — Perguntei a Orna. Ela não me contou a história, apenas disse que a tua versão era a correta. Não há mais ninguém a quem perguntar. Os teus antigos servos parecem ter desaparecido todos.
— Achas que isso é estranho? — Agora, também Alpin ignorara a ceia.
— Invulgar, pelo menos.
— Quero tão poucas recordações desse dia à minha volta quanto possível.
— Mas ele está aqui.
— Ele?
— O teu irmão. Tem-no aqui, em Briar Wood.
O olhar de Alpin era intenso. Parecia a Ana que ele tentava ler-lhe os pensamentos. Que lhe arrancaria os segredos, se tal fosse necessário.
— Interrogo-me — disse Alpin calmamente — como essa idéia te entrou na cabeça, a idéia de que poderia haver outra história. A noção de que o louco poderia não ser culpado do seu crime. Tens-me em tão pouca consideração que gastas as tuas energias a vasculhar a minha tragédia pessoal, a desenterrar essa angústia quase esquecida do meu passado? Será que te esqueces que nos vamos casar amanhã?
— De todo, meu senhor. — O comportamento de Alpin assustava-a e podia ouvir a hesitação na sua própria voz. — É por esse motivo que invoco esta questão. Deve haver confiança entre marido e mulher, confiança e honestidade. Estou preocupada com o futuro...
— Mentiras! — Alpin esmurrou a mesa. Já não estava calmo e controlado. — Não estás preocupada com nada disso. É Drustan que te preenche os pensamentos e que te consome a energia. Se não tivesse havido alguém a contar-te outra história em que acreditar, nunca terias desenvolvido esta obsessão. A maioria das mulheres teria fugido dele. A maioria das noivas estaria satisfeita por ele estar fechado, incapaz de voltar a fazer mal. Tu, não. Explica-te.
Ana respirou fundo. — Não faço idéia do que estás a falar, meu senhor.
— Mentes. — Alpin levantou-se e contornou a mesa até ao lado da jovem. Agigantava-se sobre ela, as mãos nas ancas, as pernas afastadas e um olhar furioso. — Aquele louco, aquele selvagem enfiou-te isto na cabeça... teceu um ardil de falsidades que te envolveu completamente. Estou mesmo a ver, tu, com essas maneiras senhoris, seria de esperar que te derretesses por todos os cães vadios, por qualquer animal ferido ou miserável com uma narrativa de injustiça. Ele sempre foi sedutor. Distorce as palavras até assumirem a forma que deseja. Quanto a mim, tenho pensamentos sinceros e conversas diretas. Não admira que te encolhas quando tento tocar-te.
Ana fez menção de protestar, mas a expressão no rosto de Alpin manteve-a muda e quieta.
— Não admira que penses que eu não sirvo para uma dama de sangue real. É tudo por causa dele, não é? Aquele desgraçado envenenou-te a mente e virou-te contra mim. Seduziu-te com palavras bonitas. Quer voltar a destruir a minha oportunidade de um futuro. Admite! Diz-me! — Alpin segurou-a pelos braços e pô-la de pé. As mãos apertavam-na de forma dolorosa.
— Não é verdade — murmurou Ana. — Larga-me, estás a magoar-me.
Apertou com mais força e a jovem não foi capaz de reprimir um grito de dor.
— É verdade — rosnou Alpin, o rosto barbado perto do dela, a raiva dando-lhe à pele um tom escuro. — Sei que é verdade. Sei das tuas tardes de costura, dos vossos encontros secretos no terraço, com aquela tua criada, e das conversas que tiveram. Ao que parece, uma falha na construção do encarceramento. Como pude não ter reparado?
Ana não julgava poder sentir-se ainda mais assustada. Contudo, ao olhar por cima do ombro de Alpin enquanto ele falava, viu um pássaro minúsculo a pousar no parapeito da janela, uma presença corajosa em tons creme e castanho. Ana desviou rapidamente o olhar.
— Senta-te, meu senhor, por favor — disse-lhe, recordando o conselho de Orna.
— Não tentes dar-me ordens na minha própria casa. — Abanou-a e a jovem sentiu a cabeça a andar à roda. — Tive conhecimento de certas coisas e enviei um rapaz lá acima para confirmar. Ele ouviu-te. És uma mentirosa e de certeza que não és a princesa casta que afirmas ser! Como te atreves a fazer-te passar por uma senhora, a torturares-me com a tua falsa modéstia, quando passas os dias a falar de amor com o meu irmão? Pelos deuses, responde-me, ou arranco-te as palavras de outra forma!
— Larga-me, por favor. Estás a assustar-me.
— Diz-me, maldita sejas! — Voltou a abaná-la. Os dentes de Ana pareceram-lhe vibrar na cabeça. Mal conseguia encontrar as palavras.
— Sim, falei com ele. Mas não o que dizes. Foram conversas banais. Tive pena dele. E muito tempo de solidão. Uma vez que ele fala como um homem racional, pensei... acreditei... Foi por isso que castigaste Ludha? Ela disse-te... obrigaste-a...?
— Bááá! — Com um brado de repulsa, Alpin empurrou-a de volta ao banco. — Aquele cão, aquela desculpa esfarrapada de homem! Devia ter acabado com ele há sete anos. Devia ter encontrado coragem. Os laços de parentesco não passam de amarras, quando se cometem tais atrocidades. Se não fosse do meu sangue, teria sido eliminado no dia seguinte. A cabeça seria exibida por cima dos meus portões e o cadáver teria servido de festim aos corvos. Como pudeste dar-lhe ouvidos? Como pudeste ser tão burra?
Ana levantou-se e tentou invocar a dignidade régia que tantas vezes provara a sua utilidade em alturas de aflição, ou de medo. O terror abjeto não lhe abandonou o coração.
— Não pretendo continuar aqui, a ouvir gritos e a ser magoada — declarou, com tanta altivez quanto a que foi capaz de demonstrar. — Antes de me deitar, desejo falar com a minha criada, a fim de garantir que não foi maltratada. E quero ver Faolan. — A voz fraquejou-lhe ao dizer o nome. — Quero falar com o meu bardo sem a tua presença. Não me importo que outra pessoa assista. Talvez o druida.
— Vamos com calma. — Voltou a agigantar-se perante Ana. A jovem interrogou-se sobre quantos passos distariam a porta e se valeria a pena correr para o quarto e trancar-se. — Não estás em posição de fazer exigências — continuou Alpin. — O que o meu informador ouviu lá em cima não foram conversas para passar o tempo. Descreveu-as como sendo muito mais do que isso. Aquilo que me contou deixou-me muito infeliz, Ana. Muito infeliz e bastante zangado.
— Não desejas avançar com o casamento? — A questão oscilava entre o reconhecimento de um fracasso estratégico e a esperança impossível.
— O quê, e arruinar o tratado do rei Bridei? De todo. Além do mais, seria um desperdício do trabalho de costura. É pena que a tua criada não esteja presente para te ver nas roupas que te fez. Mas eu irei ver-te. Irei ver-te a sorrir e fazer os votos, e irei ver a expressão no teu rosto quando te despir e reclamar aquilo que não queres dar-me por guardares as tuas palavras doces, o teu desejo, para aquele maldito lunático que é Drustan!
— Como te atreves! — A injustiça preencheu o coração de Ana e, por breves momentos, a fúria sobrepôs-se à cautela. — O teu irmão é cem vezes o homem que tu és!
O punho de Alpin surgiu como um raio, esmurrando-lhe o queixo. Ana caiu sobre a mesa, a cabeça e o pescoço uma bola de dor quente. Enquanto se esforçava por voltar a erguer-se, a carriça voou-lhe para o ombro, o piar baixo do pássaro misturando-se com o som arrastado da respiração ofegante de Alpin.
— Eu disse-te — arquejou Ana — que se me batesses, não casaria contigo, com ou sem tratado. Mandas chamar o druida e Faolan. Não vou tolerar mais esta situação. — O pássaro não tentara ocultar-se. Ana desejou que ele voasse para longe.
— És uma rameira, mesmo que apenas em pensamento — disse Alpin, o tom severo. — Foste ouvida e a defesa que fizeste do meu irmão é prova. Não estás em posição de ditar o que vai ou não acontecer.
— Esqueces-te que sou eu que devo assinar o tratado em nome de Bridei. — Todo o corpo lhe tremia. — Quero falar com Faolan. Não vou...
— Podes calar-te. — Os olhos de Alpin estavam fitos no pássaro. Ana recuou. — Para ti, não há «não posso», nem «não vou». Quebraste as regras. Falaste com o meu irmão. Deixaste que ele se insinuasse no teu coração e, se não estivesse atrás das grades, de certeza que também se teria insinuado na tua cama, e compensado todos os anos em que as mulheres apenas existiam em sonhos loucos.
— Não vou continuar a ouvir isto. Se Faolan soubesse que me tinhas magoado, ele...
— Cala a boca! — O punho voltou a erguer-se e Ana silenciou-se. A sua coragem não era infinita. Tentar fugir seria inútil, pois era óbvio que Alpin poderia alcançá-la. Além disso, estava um guarda à porta. Será que aquelas pessoas sabiam o tipo de homem que Alpin era? Talvez, no mundo dos Caitt, tal comportamento fosse normal.
— Verás que Faolan não poderá ajudar-te, esta noite — disse Alpin. — Quanto a ti, minha querida, não há volta atrás no tratado, nem no casamento, agora que está tão perto. Por mais devassa que sejas, mentirosa e hipócrita, possuis um determinado sangue e vais dar-me filhos. Não quero saber se vais gostar ou não. Se quiseres pensar em Drustan enquanto te possuo, pode ser que ajude. E vais assinar. O teu bardo parte depois de amanhã, com a notícia para Bridei. Está tudo combinado.
— Não o farei. — Ana falava por entre dentes cerrados. Vai-te embora. Já. Voa até ele.
— Farás, sim — garantiu Alpin e, com um movimento tão rápido e certeiro como o de um gato a apanhar a presa, estendeu a mão e agarrou na carriça que estava no ombro de Ana. No punho enorme, o corpo da ave era quase invisível. A jovem mal conseguia ver-lhe o bico delicado, os olhos brilhantes e aterrados.
— Por favor... — foi o murmúrio estrangulado que lhe saiu dos lábios.
— Vais fazê-lo. Vais fazer exatamente o que te vou dizer e não vais a correr para o teu celta, nem para mais ninguém com lástimas e queixumes. A partir de agora, vais afastar-te do meu irmão. Acabaram-se as canções, os sussurros e as visitas destas malditas criaturas. — Olhou para o pássaro encurralado. Ana viu a cabeça mexer-se num frenesi, em busca da liberdade, mas a mão segurava-o bem. — Vais assinar o tratado, vais casar-te sem quaisquer sinais de relutância e vais abrir as pernas quando, onde e como eu quiser.
— Não...
— Sim — contrapôs Alpin. — Porque se não o fizeres, espremo a vida de Drustan tão rápida e garantidamente como isto. — Fixou-a com o olhar, agora calmo e frio, e apertou o punho.
A carriça morreu em silêncio. Foi o grito de Drustan que ecoou por cada canto de Briar Wood naquele momento, o brado de sofrimento de um homem a quem arrancaram um pedaço do coração.
Alpin lançou o pequeno cadáver para a lareira e limpou a mão à túnica. Um fragmento de pena flutuou no ar. Ana ficara sem palavras. Algures no seu íntimo, uma criança repetia, num murmúrio angustiado, Quero que isto seja um sonho, quero acordar já.
— Senta-te — indicou Alpin.
Ana sentou-se. Após o grito de angústia, o silêncio imperava no exterior.
— Julgo que devemos proceder a uma mudança de planos. Podemos assinar já o tratado. Todas as partes deverão estar disponíveis. Perdi o apetite por esta bela ceia. E podes falar com o teu bardo. Creio que será adequado que testemunhe a assinatura, uma vez que irá levar o documento ao rei Bridei. É uma oportunidade de se despedirem. O druida pode estar presente, tal como pediste. Mas eu também lá estarei. Não confio em ti, Ana, e, depois disto, talvez nunca mais volte a confiar.
— És um homem mau — disse a jovem. — Cruel e bárbaro. Por que odeias tanto Drustan?
— Só fazes essa pergunta porque te recusas a aceitar a verdade. Drustan matou o que eu mais amava. É claro que o odeio. Desde o início que esteve maculado. Devia ter sido afogado à nascença. Nunca foi como nós. Não devia ter regressado para aqui.
— Se não tivesse vindo — a voz de Ana tremia com o choque e com a fúria, e com a noção gelada da derrota —, não controladas os cursos de água no Vale dos Sonhos. E ele nunca teria sido preso.
— Não vamos discutir esse assunto. — Alpin falou num tom sem qualquer ênfase. Tinha os olhos gelados. — A partir de agora, vais ficar de boca calada no que diz respeito a assuntos de guerra, estratégia ou alianças. São coisas de homem e é melhor que não deixem as reuniões dos homens. Sabes o que te espera se me desobedeceres.
— Ao que parece, a tua esposa vai ficar em silêncio a maior parte do tempo, tendo a conversa limitada à carne assada da ceia e à apreciação do tempo.
— Desde que me satisfaças na cama, não tenho problemas quanto a isso. — Alpin dirigiu-se à porta, chamou o guarda e deu-lhe uma ordem rápida, em voz baixa. Voltou a fechar a porta e ali ficou, a observar Ana. O cheiro a carne queimada pairava no ar. Ana sentiu-se enjoada.
— Quando Faolan vir esta marca no meu rosto — disse —, vai perceber que me bateste. Não é uma informação digna de ser levada ao Monte Branco.
Alpin ergueu as sobrancelhas.
— Em Fortriu não disciplinam as mulheres?
— Posso jurar que Bridei nunca levantou a mão contra a esposa. Tal idéia nunca lhe passaria pela cabeça.
— Mm-mm. Segundo ouvi dizer, ela própria é um pouco estranha, não é? Vem do povo da floresta. Isso pode ser um ponto fraco na armadura de um homem.
— Tuala pertence a outra raça — disse Ana em voz baixa. — É uma das minhas amigas mais queridas.
— Tens uma tendência para o exótico, não tens? Não consigo imaginar alguém a querer o meu irmão como amante. Tal noção é perversa. Desde criança que a situação de Drustan é um embaraço para a nossa família, muito antes de se ter dedicado ao crime. E esperas que a minha casa fale livremente sobre o assunto. És uma idiota.
Ana não disse nada. A partir aquele momento, pensou apaticamente, haveria muitos silêncios. Se fossem necessários para evitar outro sacrifício, refrearia a língua e verteria as lágrimas no seu íntimo.
Faolan entrou seguido por um guarda alto e ladeado por outro entroncado. Tinha marcas vermelhas em redor dos pulsos, como se tivesse sido manietado. Por cima de um olho via-se uma crosta de sangue e um hematoma roxo no queixo. Por baixo dos sinais de violência, o rosto estava pálido. Tinha as defesas erguidas, tal como era freqüente no Monte Branco, as feições ostentando o ar indiferente de um homem que não deseja chamar a atenção. Não disse nada.
— Faolan — disse Ana. — Estás bem? — A pergunta cortês pairou no silêncio entre os dois, tendo atrás dela tudo o que a jovem não poderia dizer, tudo o que nunca diria.
— Sim, minha senhora. — A voz era calma e sem expressão. Os olhos procuravam tudo menos o rosto da jovem, onde, sem dúvida, se espalharia agora uma equimose a acompanhar a dor que sentia na face e no queixo. Depois, como se não fosse capaz de se controlar, constatou: — Magoaram-te.
Ouviu-se um leve som metálico, quando Alpin deslocou uma faca sobre o tampo da mesa.
— Foi um acidente idiota — disse Ana, a olhar o chão. — A minha criada abriu a arca no momento em que estava a baixar-me. Coisas que acontecem. — Faolan tinha os pulsos em carne viva. Também se viam marcas nos tornozelos, reveladas acima dos sapatos puídos que lhe tinham dado. Ana percebeu que estava a fitá-lo e obrigou-se a desviar o olhar. — O meu senhor disse-me que vais partir para o Monte Branco depois de amanhã. Tão cedo. — A voz saía-lhe incerta. Tinha de ser forte, pois já o tendo feito, poderiam voltar a magoá-lo. A ele e a Drustan. Teria de controlar cada palavra, cada olhar, cada gesto.
— Não há necessidade de mais adiamentos — disse Faolan. — Ao que sei, o tratado vai ser assinado esta noite. O casamento terá lugar amanhã. Partirei de imediato, pois deixarei de ser necessário em Briar Wood.
— Terás de fazer o que julgares mais assisado, é claro — replicou Ana, com a voz tensa. — Que sei eu, de tais assuntos? — Todos observavam e escutavam, Alpin, os guerreiros, Dregard, sempre do lado direito de Alpin, o druida, que entrara na sala com uma pena e um tinteiro. A jovem ansiava por alguns momentos a sós com Faolan, mesmo que não pudesse contar-lhe a verdade, estando em jogo a segurança de Drustan. Se os outros não estivessem ali, pelo menos teria a oportunidade de lhe agarrar a mão, de lhe desejar felicidades e agradecer-lhe pela coragem e pela amizade. Poderia dizer-lhe que fizera um bom trabalho.
— Tem uma boa viagem, Faolan — disse calmamente. — Imagino que amanhã não teremos tempo de falar. Transmite os meus votos mais calorosos a Bridei. E a Tuala. — Estava à beira das lágrimas, que engoliu.
— E abraça Derelei por mim. Tenho saudades dele.
— Sim, minha senhora. — Sempre a recusa obstinada de olhá-la. Estaria sob a mesma pressão que ela? A representar um papel, a fim de não invocar a fúria de Alpin?
— Muito bem — disse Alpin —, estamos todos aqui, por isso podemos tratar deste assunto. Peço-lhes que se sentem. Tu não, bardo, podes ficar onde estás. E talvez Berguist nos possa ler o termos do acordo, para que todos saibamos aquilo com que estamos a concordar.
— Dirigiu um sorriso superior a Ana. A jovem endireitou as costas e meneou educadamente a cabeça em resposta. Em cima da mesa, junto à sua mão, uma pena castanha agitava-se na corrente de ar.
O druida Berguist apresentou os termos do tratado de forma clara e simples. Pelo menos para ele, não havia razão para não estar calmo. Fora tudo traduzido para latim e redigido no pergaminho, o qual foi apresentado para que Ana o lesse, para o caso de ter havido erros. A jovem deu-lhe uma vista de olhos, mas tal era a desolação na sua alma que poderia estar a olhar para um rol de gado ou para uma oração cristã, pelo pouco que apreendeu.
— A minha futura esposa tem uma veia erudita — dizia Alpin.
— Inteligente, para além de bonita. Todos os homens deviam ter a felicidade de encontrar tal perfeição, não acham? Terminaste, minha querida?
— Parece que está tudo em ordem, meu senhor — disse Ana.
— Até mesmo a referência ao Vale dos Sonhos, pedida por mim e por Faolan. Foste meticuloso.
Alpin Semicerrou os olhos.
— Então assina — disse-lhe.
Ana pegou na pena e, no lugar indicado pelo druida, escreveu o nome: Ana, filha de Nechtan, Princesa das Ilhas Pequenas. E, por baixo, em nome de Bridei, filho de Maelchon, Rei de Fortriu. Impaciente, Alpin retirou-lhe a caneta dos dedos antes de a tinta secar e colocou a sua marca ao lado da assinatura de Ana. O druida pegou no pergaminho para registrar o nome completo de Alpin por cima da cruz que este fizera e para anexar os pormenores enquanto testemunha. Estava feito.
— Ah — exclamou Alpin, enquanto o druida salpicava sobre o documento areia retirada de um pequeno saco para acelerar a secagem da tinta —, um final bastante satisfatório para um dia particularmente cansativo. O rei Bridei vai ficar satisfeito. Isto pode marcar a diferença nos seus planos futuros.
— Uma grande conquista, meu senhor — disse Dregard.
— Darás um guia a Faolan até à fronteira do teu território, ou talvez mais além? — perguntou Ana a Alpin. — Imagino que Breaking Ford continue intransponível. E temos ainda o caso dos teus vizinhos agressivos...
— Não tens de te preocupar com isso — atalhou Alpin, o humor de súbito alterado. — São...
— Assunto de homens, eu sei. — Cuidado. Muito cuidado. Passos cautelosos. — Apenas queria recordar-te o quanto é importante que as notícias cheguem a Bridei. Lembra-te que, embora tenhamos chegado há dois ciclos da lua, ainda não lhe foi dito que a escolta se perdeu. E que o seu emissário se afogou — acrescentou rapidamente, sem saber se essa mentira inicial contava para alguma coisa, depois dos acontecimentos desse dia, mas ansiosa por tentar que Faolan chegasse a casa em segurança. A atitude de Faolan preocupava-a. Não parecia ele.
— O teu celta de estimação partirá em segurança, não te preocupes — garantiu Alpin. — Temos razões para o querermos fora daqui. Claro que poderá não ser por muito tempo.
A atmosfera na sala mudou sutilmente. O ar pareceu gelar.
— A que te referes, meu senhor? — perguntou Ana.
Alpin parecia saborear o que se avizinhava. Voltara a assumir aquela expressão, a tensão de um lince prestes a atacar. — Podia contar-te — disse. — Mas vamos deixar que o bardo explique. Desde o início, sempre foste bastante solícita em relação à sua segurança. Mais vale ficares a saber da boca dele o vira-casaca que trouxeste para minha casa. A narrativa da sua história vai servir para desenjoar daquelas canções de amor com que gosta de nos entreter. Vá lá, bardo! Conta-lhe!
— Faolan? — perguntou Ana. — O que se passa? Que está ele a dizer?
— Meu senhor... — Faolan dirigiu-se a Alpin, a protestar.
— Conta-lhe! — bradou Alpin. Faolan pigarreou.
— Vá lá!
— Eu... — Faolan parecia incapaz de continuar. Fitou o chão. A sala ficou em silêncio. Era óbvio que ninguém ia ajudá-lo. Alpin trocou um olhar com os guerreiros, que dizia claramente, Se for preciso, batam-lhe.
— Faolan — incitou Ana —, conta-me, por favor, seja o que for. A que se refere Lorde Alpin, com vira-casacas? — Antes do vau, já vira Faolan sem defesas, mas nunca daquela maneira. — Diz-me — insistiu, enquanto reprimia o medo crescente.
Faolan ergueu a cabeça e os olhos que se encontraram com os dela voltavam a ser os originais: frios, desligados, como se nada lhe interessasse. Ouviu-o respirar fundo por duas vezes antes de falar.
— Lorde Alpin recebeu informações — disse Faolan. Respirou fundo novamente. — Fui visto na corte de Dalriada na Primavera passada. O que esse homem viu levou-o a acreditar que estou ao serviço quer de Bridei, de Fortriu, quer de Gabhran, de Dalriada.
Ana permaneceu em silêncio, à espera de mais. Uma mentira. Tinha de ser um dos truques de Alpin.
— A dedução foi que eu trabalho para Bridei apenas até ao limite dos meus interesses — continuou Faolan, com um tom neutro. — Sendo eu próprio de origens celtas, devo, claro está, certa fidelidade a Dalriada, à minha raça. Contudo, Lorde Alpin foi generoso ao ponto de me deixar regressar ao Monte Branco com o relato da nossa viagem e da sua conclusão bem-sucedida. — Olhou para Alpin. — É isto que gostarias que eu contasse, meu senhor?
— Não é verdade. — Ana tremia de raiva. — Só pode ser um equívoco! — Faolan, que fora o braço direito de Bridei, guarda-costas de confiança e conselheiro ao longo dos últimos cinco anos... Faolan, um espião de Dalriada? Era um disparate. Sabia que ele estivera em Dunadd. Onde mais poderia ter reunido a informação que a levara a Briar Wood? Mas Faolan a soldo de Gabhran... era impossível e a menção a tal coisa ofendia-a. — Não posso acreditar, meu senhor — disse a Alpin, que ostentava um sorriso pretensioso. — Não é preciso tirar conclusões precipitadas, só porque Faolan é de origem celta...
— É verdade, Ana. — O tom de Faolan era neutro.
— O quê? — murmurou a jovem.
— O que disse é verdade. Já trabalhava para Gabhran antes de chegar à corte de Fortriu. Forneço informações a ambos os lados. — Olhou-a nos olhos. Ana poderia jurar que ele estava a dizer a verdade.
— Dá bom dinheiro.
Ana tentou encontrar palavras.
— Não pode ser... Bridei... Bridei confiava em ti... não entendo...
— Na sua mente soavam as palavras que Faolan dissera, no Monte Branco e durante a terrível viagem. A sua força, a gentileza relutante, a gestão eficaz de todas as crises. A maneira como falava com Bridei e velava, incansável, por ele e por Tuala. A sua miséria no vau, quando acreditara que tinha fracassado na missão. Tinha de estar a representar, de fazer parte de um plano estratégico por parte de Faolan, o qual exigia que mentisse daquela forma a Alpin. Ou... — Faolan — obrigou-se a perguntar, mesmo sob o olhar intimidativo de Alpin —, extraíram-te essa confissão à força? Foste agredido?
— Julgas que trataria dessa forma um hóspede da minha casa? — indagou Alpin, com um tom casual. — Depois de todas aquelas baladas? A informação foi oferecida de livre vontade pelo celta, depois de se ver encurralado.
O queixo de Ana ainda lhe doía. Via ainda o punho de Alpin a apertar, a espremer a vida do prisioneiro minúsculo.
— Não acredito — disse, o coração a saltar-lhe no peito com o medo.
— Não? — Alpin não parecia incomodado. — Nesse caso, ainda bem que temos uma testemunha. Berguist, confirma à senhora que o relato deste sujeito é verdadeiro.
O druida parecia desconfortável. Afinal de contas, fora a Briar Wood com o único objetivo de servir de escriba e invocar a bênção dos deuses para um casamento.
— Minha senhora — disse em voz baixa —, lamento informar-te que o celta confessou prontamente assim que se soube da narrativa do informante. Faolan não foi coagido. Embora as suas ações passadas não sejam louváveis, a verdade é que acabou por escolher ser sincero.
— É tudo — disse Alpin com dureza. Faolan meneou a cabeça, sem olhar para Ana, e depois, ladeado pelos guerreiros, virou-se e saiu do quarto. — Que pena — continuou Alpin, servindo-se do jarro de hidromel. — Era um bom harpista. Quando se souber, imagino que venha a ter dificuldades em conseguir algum patrono.
— Com a vossa licença. — Ana duvidava que as pernas a conseguissem levar até à porta. — Vou retirar-me. Amanhã será um dia longo.
Alpin levantou-se cortesmente.
— Boa noite, minha querida. Precisas do teu sono de beleza, é claro. Queres ajuda para te despires? — Agarrou-a pela nuca e beijou-lhe a face, com os lábios a demorarem-se. Ana sentiu-se enojada. O corpo inteiro pareceu gelar. — Por mais que eu gostasse, não é uma oferta pessoal. — O tom perdera a qualidade afável. — Mas, uma vez que a tua criada está indisposta, talvez queiras outra serva?
— Não, obrigada. — Queixo erguido... costas direitas... Nunca fora tão difícil recordar-se de quem era. Queria gritar, fugir, esconder-se, estar em qualquer lado, menos ali. — Desejo a todos uma boa noite. Que A Que Brilha vos conceda bons sonhos.
— Que o Guardião das Chamas ilumine o teu despertar. — O druida murmurou a resposta formal. Uma pequena ruga surgira-lhe na testa.
Já no seu quarto, com a porta trancada, Ana vestiu a camisa de noite e deitou-se na cama, a fitar as teias de aranha no teto. Sentia-se oca, vazia. O futuro apresentava-se como um percurso sombrio e infindável, sem uma única luz que o iluminasse, um futuro de opressão, agressão e mentiras desesperadas. Um futuro em que os amigos se transformavam em inimigos e vidas inocentes eram eliminadas por capricho. Aquele homem seria o pai dos seus filhos. E Faolan, em quem aprendera a confiar, em cujos braços se abrigara na escuridão profunda da floresta selvagem, Faolan, cujas canções se encontravam tão repletas de mágoa, de desejo e de esperança, que levavam guerreiros endurecidos às lágrimas. Seria possível essa traição a Bridei? Como se transformara a vida de Ana naquela miséria, sem que lhe restasse um farrapo de verdade? No passado, interrogara-se sobre como alguém poderia escolher acabar consigo próprio, pois a vida era a dádiva mais preciosa dos deuses a cada homem e mulher. Era obrigação de cada um percorrer o seu caminho com coragem e determinação, segui-lo ao longo do tempo destinado, até que a Mãe de Tudo acolhesse de volta o viajante exausto. Naquela noite, na escuridão, quase lhe fazia sentido a perspectiva de uma faca afiada, um fim rápido e sangrento.
A luz pálida e fria da noite de Verão entrou pela janela estreita. Os dedos de prata d'A Que Brilha roçaram as pedras e duas pequenas formas surgiram no parapeito, como se trazidas ali pela mão gentil da deusa. Com o sussurro de asas, voaram até à arca ao lado da cama. Depois, quando Ana se sentou, deslocaram-se, uma após a outra, para os ombros da jovem, o cruza-bico à esquerda e, à direita, o maior peso da gralha.
Não podia partir. Drustan precisava dela. E ela precisava de Drustan, mesmo que não pudesse vê-lo, mesmo que nunca mais voltasse a ouvir-lhe a voz. Encontrava-se unida a ele de forma tão profunda como aquelas criaturas e, se o deixasse, partindo por este ou por qualquer outro mundo, ficaria irremediavelmente destroçada. Era a maior das verdades, brilhando com firmeza numa teia de sombras e de enganos. Enquanto Drustan vivesse, teria de ficar em Briar Wood, não interessava o que tivesse de suportar. Encontraria a verdade, por mais que demorasse. De alguma forma, iria libertá-lo.
O chão dos canis era uma cama dura, embora Faolan já tivesse passado por pior. Fosse como fosse, os pensamentos mantinham-no acordado. Sabendo que não se podia entregar a distrações, afastou da mente a expressão nos olhos de Ana quando lhe ouvira a confissão. Sentira-se ferida, traída. Dedicou-se ao esboço do seu plano. Tinha apenas uma coisa a seu favor, a tradição dos homens Caitt, que passavam boa parte da manhã de um dia de casamento numa celebração tumultuosa. Gerdic contara-lhe sobre a cerveja que corria a rodos, os jogos e os testes de força e de habilidade, as lutas de cães e entre cães e porcos, e outras atividades que decorriam no dia da cerimônia. Quando os jogos terminassem, por volta do meio-dia, teria lugar o casamento, no pátio. Os druidas preferiam realizar a cerimônia no exterior, para que os olhos d'A Que Brilha e do Guardião das Chamas pudessem observá-la diretamente e garantir que os votos eram proferidos à boa-fé.
Faolan avaliou cada obstáculo à vez. Teria de agir quando a maioria dos homens de Briar Wood estivesse no pátio, absorta com o entretenimento da manhã. Não estava manietado, o que era um começo. Teria de atravessar uma grelha de ferro trancada. Dovard dormia a um canto com a cadela e um guarda vigiava a pequena entrada discreta para a fortaleza. Seria necessário passar à frente do nariz do guarda. Depois teria de atravessar o pátio apinhado de gente, passar por mais guardas nos aposentos da família e talvez deparar-se com o fato de, mesmo que Ana estivesse no quarto, a porta estar trancada. Se as previsões de Gerdic estivessem certas, a jovem estaria a vestir-se para a cerimônia. Talvez lá estivessem mulheres. O que fazer com elas? Derrubar um homem armado era uma coisa. Outra completamente diferente seria eliminar uma criada indefesa com uma pancada no crânio. A julgar pela reação de Ana às suas palavras, possivelmente não ficaria surpreendida por vê-lo deixar um rasto de sangue e de morte atrás de si, o que seria justo. Certas missões no seu passado tinham exigido tais atos.
Até ali, tudo bem. Na sua imaginação, tinham chegado ao quarto de Alpin e à pequena porta trancada. Não tivera notícias de Deord. O mais provável seria que o guarda não soubesse onde ele estava. O que teria Deord conseguido ouvir e até que ponto chegaria o elo tácito entre os homens de Breakstone? Poderia levá-los ao recinto do louco e depois ao exterior da muralha? Se assim não fosse, estariam em apuros. Se pensasse muito no que fariam uma vez lá fora, poderia correr o risco de desperdiçar aquela oportunidade única. Isso não podia acontecer. Iria retirá-la dali e levá-la em segurança de volta a casa, mesmo que morresse a tentar. Mais depressa decepada a própria mão direita a vê-la casar-se com o miserável. O fato de Alpin ser um vigarista e um mentiroso e não Lazer tenção de honrar o tratado de Bridei, parecia quase secundário.
Faolan obrigou-se a descansar brevemente. Não teria utilidade com os instintos debilitados pelo cansaço. Era Verão e a alvorada chegava cedo. Com a primeira luz do dia, os cães acordaram e deram início a movimentos impacientes, ansiosos por serem libertados. Os ganidos e rosnadelas acordaram Dovard, que foi à bomba passar a cabeça por baixo de água, antes de se dirigir à pequena cela reservada aos cães perigosos, os que se tornavam selvagens.
— Tens fome? — perguntou o tratador. — Estou a preparar-lhes a ração e vou fazer papas de aveia. Se quiseres, partilhamos. Lamento não poder deixar-te sair. Ficaria em sarilhos. — Dovard revolvia já barris e sacas, a fim de acender o lume, e passava com um trapo num caldeirão meio carbonizado. O clamor dos cães intensificou-se.
— Obrigado — agradeceu Faolan, enquanto olhava para o molho de chaves pendurado numa cavilha na porta exterior e tentava discernir aquela de que iria precisar. — Parece-me que agora sou eu que estou em sarilhos.
Dovard acrescentava galhos e molhos de palha na lenha que dispusera na lareira central. — O que fizeste? — perguntou, sem grande interesse.
— Devo ter feito asneira. Fiz Lorde Alpin perder a paciência. Vai soltar-me mais logo. Não há mais ninguém para tocar na celebração. Se vais fazer pequeno-almoço, não vou negar-me. — Faolan esfregou as mãos e soprou-as para se aquecer. Tinha os pulsos e os tornozelos magoados dos laços da noite anterior.
— Primeiro tenho de soltá-los um pouco — disse Dovard e abriu o portão do cercado principal. Uma torrente de sabujos avançou, empurrando-se, tropeçando nas próprias patas na pressa de esticar as pernas e saborear o sol. Uma taça de água foi lançada pelos ares. — Não demoro. É só uma volta pelo pátio. É melhor despachar-me, antes que haja muita gente a pé.
O silêncio voltou a instalar-se no canil. Faolan mirou as chaves. Como fazê-lo sem magoar o rapaz ou deixá-lo à mercê da fúria de Alpin? Não, isso era estúpido. Estava a pensar como uma mulher, cheia de boas intenções e compreensão. Naquele dia, havendo tanto em jogo, não podia dar-se ao luxo de ter escrúpulos. A única coisa que interessava era levar Ana para longe, em segurança.
Quando o pássaro chegou, Faolan demorou alguns instantes a reagir. Empoleirou-se na cerca do canil e fitou-o. Depois, voou até à cavilha onde as chaves estavam penduradas. Faolan observou a gralha começar a retirar uma das chaves da argola, com movimentos delicados e controlados do bico forte. Recordou que fora naquele lugar que vira um pássaro a transformar-se em homem embora, naquele momento, isso já lhe parecesse um sonho, algo imaginado. O anel de ferro com as chaves tinha uma pequena abertura, por onde se poderiam acrescentar mais. O pássaro levara a chave selecionada até esse espaço, uma tarefa difícil por causa das restantes, que a gralha tinha de evitar. Faolan apercebeu-se de que estava a suster a respiração enquanto desejava com todas as forças que a criatura conseguisse o seu intento antes que Dovard regressasse com a matilha exuberante. Vá lá, vá lá, está quase... Um chocalhar, quando as chaves regressaram ao fundo do anel. Sentiu um aperto no coração. Não devia haver tempo para recomeçar. Seguiu-se um bater de asas e a gralha chegou à porta da cela, o prêmio transportado com orgulho no bico. Emudecido, Faolan estendeu a mão e a ave largou-lhe a chave para a palma. Momentos depois, a gralha desaparecera e a liberdade de Faolan estava oculta na bolsa que tinha no cinto.
Comeu a papa. Os cozinhados de Dovard deixavam muito a desejar, mas pelo menos a mistela aguada estava quente. De seguida, veio a espera que pareceu dias, tempo suficiente para lhe encher a mente de pensamentos indesejáveis. O risco que estava a correr, não tanto por si, mas por ela. Os outros que poderiam ser arrastados para o perigo devido à sua decisão, inocentes como Dovard. Deord, a quem forçara a ajudá-lo. O incompreensível Drustan, que ainda não identificara como sendo aliado ou inimigo. O futuro: um futuro onde, independentemente do que acontecesse, Ana se casaria com um homem que não ele próprio. Nada era mais certo do que isso. Seria ele um idiota? Tinha a oportunidade de sair em liberdade, de ver pelas costas aquele lugar desprezível e regressar sem entraves ao Monte Branco. Esse era um ponto em que Alpin mostrara sinceridade. Podia sair, a salvo, e prosseguir com a sua vida. O que planeava poderia representar a morte de todos eles e sem uma recompensa que o justificasse. Se Faolan fosse bem-sucedido e conseguisse resgatar a noiva de Alpin, passaria o resto da vida à espera de uma faca nas costas. Veria o rosto maléfico do chefe tribal em sonhos. Começou a desejar que Bridei o tivesse enviado não só como emissário e espião, mas também como assassino.
Finalmente, os sons de uma atividade crescente no exterior indicaram a Faolan que os homens começavam a reunir-se no pátio para os divertimentos daquela manhã. Era óbvio que Dovard se sentia tentado, pois dirigiu-se várias vezes à porta, mas não se juntou à celebração.
— Os jogos são bons, mas não gosto das lutas de cães — resmungou. — Aquele indivíduo, Cradig, não deixo que guarde aqui as criaturas dele, nem mesmo nesse canto onde estás. Os animais dele não prestam. Treinou-os para odiar e isso é algo que os cães não fazem por natureza. Não faz parte deles. Se aquelas bestas enfiam aqui o nariz que seja, incomodam os cães. Ficam com pesadelos.
— Imagino. — Faolan escutava com atenção, não o tratador, mas os ruídos do exterior. Aguardava a sua oportunidade. Continuava a haver movimentos de pessoas à frente da porta do canil. Só poderia avançar quando algo lhes prendesse a atenção. Ao recordar uma determinada ceia, imaginou que seria na altura das lutas de cães.
Quando chegou a altura, não houve como enganar, pois a multidão começou a gritar e a ulular, como que insana. Os cães de Dovard, pelo contrário, ficaram muito quietos. O tratador ocupou-se a limpar as coleiras de caça da matilha e murmurava à cadela, que estava sentada a seus pés e que tremia com o som que vinha em ondas do pátio. Aqueles homens tinham sentido o cheiro do sangue, o qual lhes despertara um apetite que teria de ser saciado.
— Pronto — disse Dovard com um tom tranqüilizante. — Pronto, menina, mais logo vamos passear, quando isto acabar. Maldito Cradig — acrescentou, enquanto esfregava graxa no cabedal com alguma violência. Momentos depois, caía do banco, com uma expressão de surpresa no rosto antes de ficar inconsciente. Não ouvira a chave, nem Faolan a aproximar-se pelas costas, com um tronco na mão. A cadela, distraída pelo barulho do exterior, só depois começou a ladrar freneticamente, sendo acompanhada pelos restantes sabujos. Numa ocasião normal, o canil teria ficado cheio de guardas. Naquele dia, o rebuliço foi abafado pelos brados vindos do exterior.
Faolan arrastou o tratador para dentro do pequeno cercado e trancou-o. A cadela mostrou-lhe os dentes mas, quando Faolan lhe rosnou, o animal recuou. Quando Faolan se dirigiu à saída para o pátio, o bicho instalou-se junto à grade de ferro, a partir de onde observou o dono inconsciente, ganindo de tempos a tempos. Dovard não deveria ficar com mais do que uma grande dor de cabeça. Com sorte, só voltaria a si mais tarde.
Faolan espreitou cuidadosamente lá para fora. A multidão encontrava-se reunida no centro do pátio. Os guardas nas muralhas só tinham olhos para o espetáculo sangrento que decorria lá em baixo. Faolan olhou na outra direção, para os alojamentos. O homem que guardava a pequena entrada traseira, junto aos canis, saíra do posto isolado e assistia à ação, esticando o pescoço para ver acima do ajuntamento. Estava no local para onde Faolan tinha de ir.
Não houve tempo para pensar. Faolan avaliou a distância e depois saiu a correr do canil, dando três passos antes de se atirar ao guarda, que derrubou para o caminho estreito que dava para o portão. Seguiu-se uma luta breve mas difícil. O guarda tinha a vantagem da maior altura e do peso, de um par de adagas e de um corpete de couro. Faolan tinha a seu favor o elemento surpresa, pelo menos enquanto durou. Tinha experiência. E uma corda de harpa a postos na mão. Matou o guarda rapidamente e, por necessidade, em silêncio. Aquele homem foi mais difícil de arrastar para um esconderijo. Enrolou-o o melhor que pôde e enfiou-o num canto escuro. Guardou as adagas e esgueirou-se até ao pátio.
A luta estava quase no fim. Os gritos tinham-se transformado numa combinação de aplausos e assobios de vitória. Outros cães esperavam, seguros na ponta de cordas esticadas por servos enervados. Se agisse depressa, haveria tempo.
Não havia ninguém na proximidade dos alojamentos. Todos estavam atentos à luta. Correu de sombra em sombra, através do pátio aberto. Assim que se encontrou no interior, atravessou a passagem que dava acesso ao salão e às cozinhas, à direita, e que subia com largos degraus de pedra até aos aposentos privados de Alpin. Estava um guarda no cimo. Faolan encostou-se à parede. Ao fundo das escadas, uma mulher levava uma espécie de bacia. Não o viu e dirigiu-se às cozinhas. O guarda virou-se, pronto para voltar a percorrer o patamar superior. Não havia dúvida de que estaria enfadado, desejoso de poder juntar-se à diversão. Diversão. Pelos deuses, quem, se não os Caitt, escolheriam tal desporto para celebrar um dia de casamento? Faolan agarrou a pedra que escondera na bolsa e começou a subir a escada em silêncio. Estaria à vista de qualquer pessoa que cruzasse o corredor de baixo. O momento seria tudo. Isso e a mão certeira.
Chegou ao topo das escadas na altura em que o guarda terminou o curto passeio até ao fundo do corredor, depois da porta dos aposentos de Alpin. O homem virou-se. A pedra acertou-lhe exatamente no meio da testa. Levava as mãos às armas no momento em que Faolan a atirou. O guarda caiu de joelhos, aturdido. Faolan aproximou-se e usou a adaga, num golpe rápido e certeiro no coração. Era mais limpo do que cortar um pescoço. Quanto mais tempo demorasse até que lhe encontrassem o rasto, melhor.
A porta de Ana, enquanto ponderava as suas opções, Faolan hesitou. Poderia estar trancada, o que exigiria que fizesse barulho, alertando as mulheres no piso inferior, ou outros guerreiros. A jovem poderia não se encontrar ali. Talvez estivesse um grupo de mulheres ali dentro, prontas a gritar e a fugir. Havia formas de lidar com cada uma dessas possibilidades, embora não gostasse exatamente de nenhuma delas. Não era altura para ter escrúpulos. Estendeu a mão e empurrou a porta.
Não estava trancada. Abriu-se parcialmente, bem oleada e silenciosa, e, pela abertura estreita, viu Ana à janela, a olhar para além da muralha. O tempo parou por alguns instantes. Faolan sabia que aquela imagem iria acompanhá-lo para sempre e nunca perderia a capacidade de lhe mexer com o coração. Ana tinha o cabelo solto, a cascata feérica prateada a cair-lhe pelas costas abaixo, transformada pelo sol da manhã em milhares de fragmentos luminosos. Envergava o que deveria ser o vestido de noiva. As linhas curvavam-se em redor dos ombros e agarravam-se ao peito, antes de caírem em pregas graciosas, as quais indiciavam sutilmente, aqui e ali, a figura modelada por baixo da roupa. O rosto pálido estava iluminado pela luz do sol. Os olhos de Faolan absorveram as sobrancelhas delicadas, a boca doce, as linhas perfeitas das faces e do queixo. O hematoma que lhe maculava a pele não chegava para diminuir-lhe a beleza, mas pesava no coração de Faolan. Aqueles olhos cinzentos, em tempos tão serenos, observavam agora o mundo com uma tristeza desesperada. Mesmo assim, mantinha as costas erguidas. Era o que mais o impressionava. Por mais que aquela criatura fosse delicada, tinha uma disciplina férrea. Talvez lembrasse a princesa de uma história fantástica mas, logo desde o primeiro momento, Faolan percebeu as qualidades que o tinham feito apaixonar-se: a coragem e a honestidade. Reconheceu que não havia no mundo outra mulher como ela.
— Ana — disse, em voz baixa.
Ana deu meia volta, pois estava absorta.
— Segura-me a porta.
Sobressaltada, a jovem fez o que lhe era dito, os olhos arregalados enquanto Faolan puxava o morto e o colocava atrás da porta. Não havia como ocultar o rasto de sangue nas lajes.
— Vamos embora — disse Faolan. — Imediatamente. Não há tempo para falar. Precisas de botas e de um manto.
— O quê? — Ana estava presa ao chão, primeiro a fitar o cadáver, depois o próprio Faolan, que abrira a arca e verificava o conteúdo. — Faolan, o que se passa? O que estás a fazer?
— Botas! — disse bruscamente. — Encontra-as, calça-as e vem comigo. Depressa!
— Ir contigo? — Ana recuou para a janela. — Não sejas estúpido! Faolan encontrou um manto, avistou as botas de rua aos pés da cama e agarrou em ambas as coisas.
— Vamos para casa — disse-lhe. — Confia em mim, Ana. Agora despacha-te, está bem? — Estendeu a mão. Ana encostou-se à parede, como se tivesse medo dele. — Vou levar-te de volta ao Monte Branco. Mas temos de partir já, ou não teremos oportunidade de fugir.
— Não vou.
— O quê?
— Disse que não vou. É o dia do meu casamento, Faolan. Agora, sai do meu quarto, antes que os guardas apareçam. — Ambos olharam o homem caído.
— Isto é de loucos! — O corpo de Faolan estava tenso, devido à percepção do tempo a passar, tempo que não podiam desperdiçar. — Não vais dizer-me que queres casar-te com aquele bronco do Alpin, pois não? Se é o tratado que te preocupa, esquece-o. Alpin não faz tenção de honrá-lo. Vamos. Depressa!
— Não vou, Faolan. Não posso. — O tom era frio. Havia nas palavras uma força que dizia que não se tratava de um protesto vão.
— Ana, não sejas tola... — Fez menção de lhe agarrar o braço, para a arrastar, se fosse preciso, pois nunca poderia deixá-la ali. Seria uma loucura.
— Não me toques! — Ana encolheu-se e Faolan estacou. O que se passava? Acreditaria mesmo que ele era um traidor? — Já te disse que não vou! Tenho de ficar aqui! Não posso e não vou deixá-lo!
Faolan obrigou-se a respirar fundo.
— Imagino que não estejas a referir-te a Alpin — disse, com a sensação estranha de que tudo estava prestes a sofrer uma reviravolta.
— Faolan, vai-te embora, sim?
— Não vais deixá-lo. — Não podia ignorar o assunto, mesmo com o tempo a escassear. — A quem?
— Drustan — murmurou Ana e, nos seus olhos, Faolan viu algo que o aterrorizou ainda mais do que as ameaças de Alpin, do que um rio transbordado ou do que bandos de guardas armados a persegui-los: viu a determinação implacável de uma mulher apaixonada.
Um homem experiente nas profissões de assassino e espião está habituado a executar tarefas que podem ser desagradáveis a nível pessoal, mas que são essenciais a uma missão. Era irônico, pensou
Faolan, que depois de ter imaginado com tanta freqüência o prazer de tocar Ana com paixão, a agarrasse pelos ombros antes que pudesse fugir, antes de sequer pensar em gritar, a voltasse e, com o braço a prender-lhe o pescoço, lhe aplicasse a pressão necessária para deixá-la inconsciente. Confirmou que tinha o manto e as botas, depois colocou-a sobre o ombro, como se fosse uma saca de trigo, e dirigiu-se à divisão ao lado: o quarto de Alpin. Não ficou surpreendido quando encontrou a porta secundária destrancada. Esgueirou-se, equilibrando o peso de Ana ao passar por baixo do lintel e usando o pé para fechar a porta. Houve qualquer coisa que se mexeu na penumbra da arrecadação. Sobressaltou-se, com a consciência desagradável de que estava vulnerável, com aquele fardo ao ombro. Como ela estava indefesa, e como assim continuaria, a menos que abrisse mão daquela determinação idiota de não querer ser salva. Até onde esperaria chegar, se ela não colaborasse? Fortriu era um destino longínquo e o terreno não era fácil. Contara com a ajuda da jovem.
Outra vez o movimento, agora para as sombras ainda mais escuras. Faolan viu que se tratava de um gato. Seguiu-o por um labirinto de passagens estreitas até um corredor enterrado entre muralhas imponentes, onde a criatura se sentou e não avançou mais.
Dez passos mais à frente, encontrou-se com Deord, que vinha da direção oposta. O homem calvo pareceu apreender a situação com um mero olhar. Não deixou transparecer qualquer sinal de espanto.
— Está ferida?
— Não. Não queria vir comigo. Podemos sair por aqui?
— Segue em frente. Vou trancar a porta.
O portão para o encarceramento sombrio ao fundo do corredor estava aberto. Lá dentro, via-se a figura imponente de Drustan a andar com impaciência. Naquele dia, até mesmo o fingimento de segurança parecia ter sido ignorado. Ao ver Faolan, salpicado de sangue e com o corpo inerte de Ana ao ombro, Drustan avançou de repente e Faolan desejou que Deord não tivesse deixado o portão aberto daquela forma.
— Está ferida! O que fizeste?
Depois, antes que Faolan mal tivesse tempo de respirar, o peso de Ana desaparecera-lhe dos ombros e a jovem encontrava-se no colo de Drustan, que se sentou no banco, um braço a apoiar-lhe o corpo e a outra mão a aninhar-lhe a cabeça de encontro ao ombro.
— Ana! — A voz de Drustan estava carregada de ansiedade. — Ana, acorda! — Depois olhou para Faolan com uma expressão acusadora. — O que aconteceu?
Não se tratava da reação de um mero conhecido, preocupado com o bem-estar da jovem. O tom feroz, o olhar furioso, a maneira como os dedos de Drustan se moviam na pele e no cabelo de Ana, tudo denotava os sentimentos de um amante. Faolan interrogou-se sobre como poderia aquilo ter acontecido. Como lhe teria passado ao lado, a ele, o melhor espião de Fortriu.
— Não a acordes — disse. — Recusou-se a vir comigo. Preciso que fique assim, até que estejamos a salvo fora daqui.
— Magoaste-a. O que é esta ferida?
Faolan suspirou. Onde estava Deord? Tinham de partir rapidamente. Em breve alguém descobriria as marcas que tinham sido deixadas para trás.
— Vai acordar com uma ligeira dor de cabeça e vai estar zangada. Não tive alternativa, Drustan. Quanto à marca, não foi obra minha. Seja como for, por que te interessa isso?
Drustan ignorou a questão. Deixara de tentar reanimar Ana. Em vez disso, abraçara-a com mais força e levara os lábios aos cabelos da jovem, fechando os olhos.
— Vais levá-la embora — murmurou.
Faolan odiava-o. Odiava as mãos de Drustan, que a seguravam com o toque confiante de quem tem todo o direito de o fazer. Odiava a pretensão de Drustan, de lhe poder fazer o que os costumes e o dever nunca permitiriam que Faolan fizesse. Sonhara em acariciá-la daquela forma. Drustan entregava-se a isso sem pensar no quão errado era.
— Uma vez que a alternativa é deixar que Ana se case com o teu irmão — disse Faolan com a voz tensa —, sim. Vou levá-la embora. O tratado não vale nada, o próprio Alpin admitiu que assim era. E ela tem medo dele. Agrediu-a. Não vou tolerá-lo. Temos de partir esta manhã. Esperava que Deord...?
— Tem suprimentos à tua espera. — Drustan não abrira os olhos. Embalava Ana nos braços. Faolan percebeu que a respiração se alterara, sinal de que recuperava a consciência. — Não esperávamos que a fosses levar contigo. É demasiado perigoso. Alpin vai perseguir-te com os cães. Como serás capaz de protegê-la?
— Quanto mais demorarmos, menos provável se torna que o consiga fazer — retorquiu Faolan. — Estarei certo, há uma saída deste lugar, um sítio por onde possa evitar os guardas?
— Responde-me — insistiu Drustan e, embora os olhos continuassem fechados, o tom exigia uma resposta.
— Ana é mais desembaraçada do que pareces acreditar — disse Faolan. — Salvou-me a vida a caminho de Briar Wood, colocando a dela em perigo. Ajuda-nos a fugir. Nós tratamos do resto. — Apercebeu-se que era também a oportunidade ideal para a fuga de Drustan. Ao ver as mãos do cativo, entrelaçadas no cabelo dourado de Ana, Faolan não disse nada.
O portão de ferro rangeu e fechou-se. Para grande alívio de Faolan, Deord apareceu, com passos rápidos, mas calmo, como sempre.
— Posso dar-te provisões, uma arma, um par de botas. Com isso não vais longe — comentou, olhando os sapatos puídos de Faolan.
— Não posso conseguir-te um cavalo. Além do mais, talvez avances com mais facilidade a pé. Mas a senhora... não estava à espera.
— O que ouviste ontem? — perguntou Faolan, enquanto Deord foi buscar um embrulho pequeno e bem acondicionado à divisão onde dormiam e lhe entregou um par de botas usadas, mas aptas.
— O suficiente. Alpin descobriu o teu segredo. Talvez te tenha forçado a trair Bridei. Por algum motivo, decidiu prender-te. Ninguém sabia se irias fugir ou fazer o que ele queria. Sendo um homem de Breakstone, fizeste o que eu teria feito, dadas as circunstâncias. Acabamos sempre por ser os nossos próprios mestres.
— O teu mestre é Alpin, decerto — disse Faolan, olhando em redor do espaço sombrio. No banco, Drustan estava imóvel. O cabelo claro de Ana criava um manto tremeluzente sobre o peito e o ombro do homem, que parecia desgostoso, como se estivesse à beira de perder o seu único bem precioso.
— Alpin deu-me trabalho e um lugar para viver — replicou Deord.
— Nada mais do que isso. Se fiquei, não foi por ele. Faolan, não podes levá-la contigo. Não terás a mínima hipótese de fugir.
— Vou levá-la. É por isso que parto. Não vou permitir que se case com aquele homem.
— Tu não vais permitir?
— Não há tempo para isto. — Faolan colocou o embrulho às costas.
— Onde está a saída, o lugar por onde vocês dois saem para a floresta?
Matei dois homens esta manhã e atordoei outro. Tenho de partir.
— Dirigindo-se a Drustan: — Vou levá-la.
Ana gemeu e mexeu a cabeça. Estava a acordar. Os dedos de Drustan acariciaram-lhe gentilmente o cabelo. Murmurou palavras de conforto.
— Tenho uma infusão — comentou Deord, com alguma relutância.
— Usamo-la nos nossos dias piores. Um pouco dessa bebida vai deixá-la assim por mais algum tempo, o suficiente para chegarem a uma zona mais profunda da floresta.
— Agradeço. — A noção de drogar Ana era repugnante, mas Faolan sabia que Deord tinha razão. A possibilidade de fuga era, no mínimo, diminuta, e teria de conseguir toda a ajuda possível. Esperou que Deord fosse buscar um pequeno frasco, que o desarrolhasse e administrasse o que parecia ser uma dose muito pequena.
As feições de Drustan endureceram.
— Dá um sono prolongado — disse. — E sonhos incômodos. Vai acordar confusa e com medo.
Faolan não respondeu. Limitou-se a ajoelhar-se ao lado de Deord, pronto para receber mais uma vez Ana ao ombro. A jovem estava em silêncio, tendo a droga já começado a fazer efeito.
Drustan ergueu o olhar.
— Deord — disse —, tens de ir com eles. Não és obrigado a ajudar este homem? A garantir que ele permanece em liberdade?
Silêncio.
— Não posso — respondeu Deord, sem expressão na voz. — Não poso sair daqui e deixar-te sozinho.
Drustan esboçou um sorriso triste.
— O meu irmão há de encontrar-me outro guarda. Quero que o faças. Faolan tem razão, Ana tem de regressar a casa. Não pode casar-se com o meu irmão. Juntos, podem conseguir. Vai, Deord. Quero que vás.
— Sabes o que estás a dizer? — Deord agachou-se junto a Drustan e olhou-o nos olhos. — Isto vai deixar o teu irmão furioso. Vai partir atrás de Faolan como um lince no rasto de um coelho. Se eu também for e conseguirmos fugir-lhe, será em ti que vai descarregar a sua ira. Sou responsável por ti, Drustan. Desde há sete anos que sou. Não vou abandonar-te. — Depois olhou para Faolan. — A não ser...
Faolan teve de se obrigar a dizer as palavras, aquilo que sabia ser o correto.
— Por que não vens também, Drustan? Vai em liberdade. Deixa Briar Wood para trás.
Dois pares de olhos fitaram-no. Seguiu-se um breve silêncio.
— Realmente, por que não? — concordou Deord. — Voa. Não voltes mais. É o sonho de todos os homens de Breakstone. Fugir e começar uma vida nova. Poucos foram os que o conseguiram.
— Não posso fazê-lo. — O tom de Drustan era neutro.
— Todos nós matamos, alguns mais do que uma vez — disse Faolan. — Já pagaste por isso. Foi um preço mais do que justo. O teu irmão decreta castigos severos. Serias tolo se ficasses. — Ao não obter resposta dos dois homens, declarou: — Têm de decidir agora.
— E se eu for e voltar a matar? — Drustan olhava para Ana, que tinhas as pálpebras pesadas, o rosto pálido, à exceção da marca roxa na face e no queixo.
— Em tempos — recordou-o Deord — disseste que nunca a magoarias. Falavas verdade, ou não?
— Nunca magoaria Ana. Ela é a minha esperança.
— Então, vem conosco. Alpin vai perseguir-nos pelos caminhos conhecidos, por mais difíceis que sejam. São esses os caminhos que os sabujos vão seguir. Mas existem outras formas, outras rotas apenas conhecidas do veado e o escaravelho, da lebre e da raposa. Podes guiar-nos. Podes mostrar-nos como fugir dele. — E, quando o ruivo ergueu a cabeça com algo diferente no olhar, Deord concluiu: — Podes salvá-la, Drustan.
Drustan olhou em seu redor, para o cativeiro familiar, como se estivesse em pânico. — Nessa altura ela ficaria a saber. Iria saber o que sou.
— Não há tempo para discutirmos esse assunto — disse Faolan com frieza, passando Ana para o ombro. — Mostrem-me a saída. — Por alguns momentos, julgou que Drustan não fosse largá-la. A mão só largou a dela no último instante.
— Ela não tem de saber — sugeriu Deord em voz baixa. — Assume a tua outra forma. Já controlas as mudanças. Não é preciso mostrares-te. Por aqui, Faolan. — Quando entrou para o espaço onde dormiam, Deord olhou por cima do ombro.
— Vai, Deord — indicou Drustan. — Se conseguir, sigo-os.
— Faz por conseguires — disse Deord. — Não quero a tua morte na minha consciência. Não te atrases muito. — Tirou um saco de uma prateleira e pendurou-o ao ombro. Depois, disse a Faolan: — É melhor que me deixes levá-la. Tenho os ombros mais largos. Aqui está, a nossa toca para o exterior. Sabíamos que virias, por isso está aberta. Baixa a cabeça.
— Ele vem? — perguntou Faolan, olhando para trás enquanto descia para a passagem subterrânea.
— É melhor que venha — disse Deord. — Caso contrário, fará de mim um desertor, um homem que abandonou um amigo. Se ficar para trás, o irmão vai matá-lo. Agora silêncio, até entrarmos na floresta. Espera pelo meu sinal para correres. Sei bem os movimentos daqueles guardas. Pronto?
— Estou pronto — declarou Faolan.
Entre os poucos que tinham conhecimento de causa, dizia-se que um homem que sobrevivesse ao encarceramento em Breakstone Hollow perdia a capacidade de ter medo. A natureza do lugar era tal que os terrores mais tarde encarados na vida assumiam um caráter insignificante. Um sobrevivente de Breakstone era forte de corpo e alma. Tinha de o ser, caso contrário estaria morto ou demente antes de poder voltar a exibir as suas cores ao sol.
Mesmo assim, naquele dia era o medo que impelia a fuga de Faolan pela floresta, não pela sua segurança, mas pela de Ana. Não era preciso uma imaginação muito fértil para adivinhar o que Alpin lhe faria, caso fossem apanhados. Quanto à sua própria sobrevivência, uma vez que esse fator era essencial para que a jovem regressasse são e salva ao Monte Branco, teria de garantir que não seria capturado e que manteria a capacidade de protegê-la. Não havia tempo para pensar mais além. Era um passo de cada vez, correndo em percursos irregulares, subindo encostas rochosas, ocultando-se atrás de penedos ou arbustos, antes de uma corrida em campo aberto. Por vezes, era Deord quem transportava Ana. Outras vezes Faolan levava-a ao ombro, sentindo-se obrigado a fazer a sua parte.
A poção de Deord devia ser forte. Foram correndo, esforçando-se o mais que podiam antes da inevitável descoberta por parte de Alpin de que a noiva desaparecera. Ana continuava inerte, incapaz de ajudá-los ou a ela própria. Incapaz de protestar. Ao olhar para a figura incansável de Deord, enquanto desciam sob um aglomerado de carvalhos, Faolan agradeceu aos deuses que assim fosse. Ainda assim, ficaria aliviado quando ela abrisse os olhos, mesmo que as primeiras palavras da jovem viessem a ser, quase de certeza, um protesto irado.
Quanto ao misterioso Drustan, ainda não aparecera. Faolan pensou em certos homens que vira na prisão dos Uí Néill, homens que estavam tão desesperados por liberdade como ele, mas que nem sequer consideravam a hipótese de fuga. Homens para quem a crueldade e a degradação, a dolorosa rotina diária se tornara uma noção mais segura do que o sonho aterrador do mundo exterior, com a sua multiplicidade de escolhas. A prisão fazia isso a um homem. Se lá ficasse tempo suficiente, o encarceramento toldava-lhe o discernimento, transformando a liberdade em algo a ser receado, demasiado inconcebível e difícil para ser contemplado, mesmo com o caminho aberto. Tais homens ficavam à porta, a olhar para o Sol, para os campos verdes e para as montanhas agrestes, após o que se retiravam para a sua caverna escura. Faolan vira o pânico nos olhos de Drustan quando se viu perante a hipótese de deixar o encarceramento, de abandonar Briar Wood para sempre. Sete anos eram muito tempo.
Era melhor que não hesitasse muito mais. O mais provável seria que o alarme já tivesse sido dado. Ao encontrar o quarto de Ana vazio, de certeza que Alpin iria procurar em todos os cantos. Faolan e Deord estariam marcados. E, caso se deixasse ficar para trás, Drustan seria alvo da fúria do irmão. Mesmo assim, Faolan não conseguia desejar que o homem-pássaro se juntasse a eles. Enquanto seguia Deord encosta abaixo até um ribeiro baixo, para onde entrou atrás do outro homem, numa tentativa de despistar os cães, via as mãos de Drustan no corpo de Ana, os lábios de Drustan contra o cabelo dourado. Ouvia a voz desafiadora de Ana: Não vou. Era ridículo, impossível. O homem podia não ser louco, mas era... era o que era, uma aberração, alguém único e, quanto mais se afastassem dele, mas satisfeito Faolan se sentia. Não que desejasse mal a Drustan. Apenas esperava que ele voasse na direção oposta, de regresso ao seu domínio a ocidente. Faolan olhou para o céu, por entre a cobertura verde proporcionada pelos carvalhos.
— Não há sinais — indicou Deord, enquanto fazia uma pausa para equilibrar Ana nos ombros largos. O cabelo da jovem, que tinham enfiado no manto, soltava-se. As madeixas longas, claras como o trigo no Verão, mergulhavam no ribeiro. O guarda continuava calmo, como sempre, mas tinha uma certa tristeza no olhar.
— A escolha foi dele. — Faolan colocou-se atrás de Deord e ajudou-o. Agarrou no cabelo de Ana e voltou a enfiar as madeixas por baixo do manto. — Ele queria que o fizesses. E já é crescido.
— Precisamos dele — disse Deord. — Alpin tem vantagem sobre nós, a menos que consigamos encontrar caminhos que ele não conhece. Esperemos que Drustan nos alcance antes do irmão. Já acabaste?
— Mm — resmungou Faolan. Para sua infelicidade, pensou, enquanto chapinhavam ribeiro acima, ao contrário das mãos de Drustan, que tinham acariciado aquelas madeixas sedosas, as suas limitavam-se a afastá-las do caminho de forma atabalhoada e rápida. O trajo de Ana não era adequado àquele empreendimento. A túnica e as calças emprestadas da viagem para Briar Wood teriam sido melhores. Tinha de obter alguma coisa para ela durante o caminho, tomar emprestado ou roubar em fazendas, ou colônias. Ana não podia correr de vestido de noiva. E as noites eram frias. Parecia agora impensável oferecer-se para aquecê-la como fizera antes, com o seu próprio corpo.
Deord saíra da água e começara a subir uma encosta coberta de árvores, onde os carvalhos davam lugar aos vidoeiros. Pequenas aves voavam nas alturas, chamando-se entre si nas suas vozes pipilantes. Fragmentos de casca de árvore e galhos caíam aos pés dos homens. Houve um movimento na vegetação: apenas uma criatura em busca de alimento. Depois, à distância, um som novo: os uivos dos cães de caça. Deord parou e olhou para Faolan.
— Podemos ter de voltar à água — indicou. — Sabes nadar?
— Se for preciso. Não posso falar por Ana.
— Onde está Drustan, agora que precisamos dele? — resmungou Deord, tendo encontrado um local onde podiam subir a encosta, dividindo o peso de Ana entre os dois. Quando chegaram ao topo, o vestido de casamento era mais castanho do que creme. O cabelo voltara a soltar-se e emaranhava-se em tudo. Deord retirou o punhal do cinto e, com três golpes rápidos e destros, cortou as longas madeixas louras ao nível dos ombros. Faolan ficou sem palavras.
— Guarda isto no teu saco — indicou Deord. — Podemos não conseguir fugir dos cães, mas pelo menos evitamos deixar-lhes um rasto. Não fiques aí parado. Vá, guarda-o e vamos embora.
Correram. Deord encontrou caminhos que Faolan mal conseguia ver, canais enlameados cobertos de folhagem pendente, pequenos espaços entre pedregulhos enormes, carreiros íngremes mais adequados a cabras do que a homens. Escolheram percursos sobre alpondras e, onde estas não existiam, atravessaram ribeiros com água pelos joelhos. Caminharam pela lama de depressões pantanosas e equilibraram-se sobre pontes de troncos instáveis. Deord não estava a brincar quando ordenara um ritmo mais forte. Mesmo com Ana aos ombros, a sua velocidade e resistência eram formidáveis. Faolan vedou a mente às distrações e concentrou-se em acompanhá-lo.
Chegaram à margem de um lago isolado, atrás do qual se erguiam encostas íngremes que formavam uma impressionante linha de picos. Os cumes eram de pedra pálida e nua. Pareciam tão implacáveis como uma irmandade de deuses vetustos. Do outro lado, o lago estava orlado de pinheiros. A água cintilava ao sol. Perto do local onde os homens tinham surgido das árvores, uma catarata alta formava uma faixa branca graciosa, espalhando-se por entre as pedras até ao lago. O ribombar da queda de água não abafava na totalidade o clamor dos sabujos de Alpin. Aproximavam-se rapidamente, seguidos, sem dúvida, por homens a cavalo.
Escolher um percurso ao longo da margem pedregosa seria demasiado lento. Onde quer que um homem pudesse ir, um cão seria capaz de segui-lo. Além do mais, qualquer caminho em redor daquela extensão de água terminaria numa encosta demasiado íngreme para ser escalada. O lago assentava numa depressão rochosa, com apenas um acesso, o caminho por onde tinham chegado. O caminho por onde Alpin se aproximava.
— Por onde é que um homem pode ir, que um cão não consiga acompanhar? — resmungou Deord.
Seguiu-se um momento de pausa, pontuado por um gemido de Ana. Os dois homens entreolharam-se. Juntos, viraram-se para a catarata.
— Penhasco acima — disse Faolan, enquanto na floresta se fazia ouvir um corno de caça. — Melhor ainda, penhasco acima, por baixo de água. — Começaram a correr. — Por tudo quanto é sagrado... se alguma vez contarem esta história, os protagonistas vão ser dois loucos e nenhum deles vai ser Drustan...
— Poupa o fôlego — resmungou Deord.
Ana voltava a si. Fazia débeis tentativas para se debater e gemia como se tivesse a cabeça em chamas. Deord, com a jovem aos ombros, segurou-lhe firmemente os joelhos e as costas com os braços. Em breve, pensou Faolan, não interessava o ruído que faria. A julgar pelos latidos, os cães iriam avistá-los antes que um homem pudesse contar cinco vezes cinqüenta.
Abriram caminho por entre pedras e ervas altas. O barulho da catarata era ensurdecedor. A sua voz cantava um desafio poderoso: Assaltem-me por vossa conta e risco! Na base encontrava-se uma lagoa e, mesmo sendo um local isolado, havia oferendas presas aos arbustos, faixas de linho, fitas andrajosas, pedaços desfiados de lã. Quem não desejaria aplacar a deidade selvagem que reclamava para si aquela violenta torrente de água? Faolan sentiu um arrepio. A recordação de Breaking Ford ainda estava bastante viva. Pelo bem de Ana, esperava que a jovem continuasse inconsciente por mais algum tempo.
— Para cima — indicou Deord. — Temos de subir e abrigar-nos antes que eles apareçam. Toma, fica com ela.
Faolan olhou para cima. Bem no alto do penhasco, parcialmente ocultos por uma névoa de gotas de água, podia ver pássaros a entrar e a sair. Havia uma caverna ou uma reentrância por trás da queda de água. A subida era íngreme, com as pedras escorregadias e cobertas de musgo. Não podia negar-se a transportar Ana. Mas lá para cima? Será que Deord pensava que ele era um esquilo?
— Depressa! Vai! — Deord passou o corpo de Ana para as costas do companheiro. Faolan ergueu os braços para a manter firme. Como seria capaz de subir? — Ajudo-te ao início — disse Deord. — Segura-a com uma mão e trepa com a outra. Vais conseguir.
Parecia impossível. Faolan cerrou os dentes, posicionou a forma inerte de Ana sobre o ombro, com a cabeça pendurada para as suas costas, e deu início à subida lenta. Era de loucos. Todo aquele dia fora insano. A dada altura, o pé de Faolan escorregou e ficou com Ana a balançar sobre o precipício, a água a fustigá-lo e o coração a bater-lhe com força no peito. A mão de Deord surgiu por trás deles, equilibrando Ana e corrigindo a posição de Faolan com um gesto seguro. Chegaram a um rebordo e Faolan respirou fundo.
— Continua — gritou Deord sobre o clamor da catarata. — Lá para cima. Deve haver uma caverna. Esconde-te e espera.
— Até nos matarem de fome? — gracejou Faolan com um tom sombrio, enquanto olhava para cima e tentava convencer-se de que era capaz de ver uma gruta, algures por trás da torrente de água.
— Não é preciso tanto. — Deord voltava a descer. — Vou despistá-los. Vou dar outro rasto aos cães. Se não regressar até ao pôr do Sol, continua sem mim. Sugiro que continues a subir e que procures um caminho ao longo das colinas.
— O quê...? — Era suicídio. O homem era completamente doido.
— Vai, Faolan. — Deord olhou para trás, os olhos firmes, a expressão calma. — Se não for assim, vamos ficar aqui encurralados como ratos, enquanto eles esperam que desistamos. Agora chega lá acima antes que te vejam. Tu és capaz. Cuida bem dela, bardo. Se Drustan aparecer, dá-lhe cumprimentos meus.
Faolan ficou estupefato. Antes que fosse capaz de pensar numa resposta, já Deord desaparecera penhasco abaixo. Era demasiado tarde para dizer obrigado, adeus ou qualquer outra coisa.
Faolan concluiu a subida quase sem consciência do que estava a fazer. Em si, não havia espaço para o medo de cair, nem para mais nada, a não ser a tentativa de equilíbrio, o local onde se agarrar e a busca da melhor posição que o levasse a subir sem deixar cair Ana e sem perder a firmeza. Não olhou para baixo. Não tentou ver o que fazia Deord, nem procurou ouvir os cães, os cavalos, os caçadores. A dada altura, bastante mais perto do topo, havia uma reentrância mais larga, que formava uma concavidade profunda por baixo de uma laje aguçada. A água caía sobre a rocha protuberante e a caverna ressoava com o som do impacto. A área tinha um piso de pedra e não estava totalmente molhado. Do interior, Faolan olhou através da película branca da água que caía, iluminada pelo sol. A voz da catarata era ensurdecedora. Pousou Ana, com um esgar pela dor nas costas, nos joelhos, nas mãos feridas. A luz na caverna era fantasmagórica, um brilho débil que atravessava a água em movimento. Fazia com que as feições de Ana parecessem lívidas. A jovem estava a mexer-se. Tremia. Tinha as vestes ensopadas e a roupa de Faolan não estava mais seca. Tomou as medidas práticas que pôde, desfazendo a trouxa, à procura de algo quente e seco. O que tinha Deord ali guardado, um manto? Ah, um cobertor dobrado. Enrolou a jovem com ele. Garantiu que Ana estava numa posição segura, para que não caísse, se acordasse confusa e com medo. A imagem de Deord nunca lhe abandonou a mente: Deord a descer o penhasco, Deord perseguido através da floresta, Deord, na verdade, a entregar-se para que eles se salvassem. Porquê? O homem mal os conhecia. O elo de Breakstone não exigia tal sacrifício. Não devia ter deixado que Deord partisse, devia ter insistido... Mas, nesse caso, todos eles teriam sido apanhados, até mesmo Ana. Talvez Deord soubesse o que estava a fazer. Esperar até ao pôr do Sol, dissera. O fim do dia ainda vinha longe. Bastante falta lhes tinha feito alguma ajuda. Pelos deuses, onde estaria Drustan?
Como que em resposta à pergunta imaginada, surgiu uma pequena forma a voar pela cortina de água. Aterrou numa protuberância e sacudiu as gotas das penas vermelhas. Não era a criatura de aspecto de falcão de que precisavam, apenas o cruza-bico. Faolan mirou o pássaro com aversão.
— Faolan? — A voz de Ana era fraca, mas ouviu-a por entre a música poderosa da água. — Faolan, onde estamos?
Explicou-o da forma mais simples e clara que conseguiu, com Ana sentada, enrolada no cobertor, as feições macilentas e os olhos toldados. Não lhe disse o quanto ficara magoado por ela ter acreditado que seria capaz de trair Bridei. Nem sequer comentou o assunto. Cingiu-se ao desprezo para com o tratado e à necessidade de fugir antes que ela se entregasse ao arremedo de casamento. Lamentou-se por tê-la deixado inconsciente. Explicou que Deord os ajudara e que agora o homem desaparecera.
— Porquê esse ar, Faolan?
— Que ar? — Estava agachado ao lado dela, a vigiá-la, pois a sombra dos sonhos do narcótico ainda lhe ensombravam os olhos, e Faolan receava que ela tentasse fugir. Ali, nada era seguro. A caverna era o melhor refúgio que tinham. A sua frente, do outro lado da água que os ocultava, havia uma queda para uma morte súbita. No penhasco, ficariam à vista dos homens de Alpin, assim que estes emergissem das árvores. Poderiam ainda estar ao alcance das flechas.
— Como se sentisses o bafo gélido da Mãe de Tudo — disse Ana.
— Eu... — Hesitou, incomodado por ela conseguir lê-lo com tanta facilidade. — Não vejo como Deord possa sobreviver — admitiu, pois sabia que ela iria querer a verdade. — Alpin anda por aí com os sabujos. Um homem, por mais apto que seja, não será capaz de fugir aos cães e aos guerreiros a cavalo. Eventualmente vão apanhá-lo. Depois vão matá-lo, ou tentar extrair-lhe informações, o que acaba por ser a mesma coisa. Por que será que fez isto?
Faolan não esperava resposta e Ana não a apresentou. Baixara a cabeça, os ombros curvados em derrota. O cruza-bico saiu do poleiro e pousou no ombro de Ana. A jovem sobressaltou-se violentamente.
— Oh! — Olhou em redor da caverna, como se houvesse fantasmas nos cantos. Uma das mãos largou o cobertor e foi afagar o pássaro, o que pareceu acalmá-la. Faolan manteve a vigília. Naquele estado parecia-lhe que ela seria capaz de tudo.
— Sinto muito pelo teu cabelo — disse. — Deord cortou-o. Não consegui impedi-lo.
Os dedos de Ana deixaram o pássaro e dirigiram-se às pontas cortadas. Mal pareceu assimilar a ofensa à sua beleza.
— Faolan, tenho de regressar — disse, fitando a cortina de água, como se disposta a saltar, caso fosse essa a única alternativa. — Tive sonhos... sonhos tão cruéis... Quando acordei e estávamos aqui, pensei que talvez...
— O quê? — perguntou Faolan com um tom calmo.
— Pensei que talvez não passasse de um sonho. Que talvez ainda estivéssemos nos dias após o vau... Na floresta, a procurar abrigo onde o encontrássemos e com tudo molhado... vi tanta morte... morte, sangue e crueldade... parece que não consigo distinguir os sonhos da realidade, Faolan. Isso assusta-me.
— Foi a bebida que Deord te deu. Tem esse efeito. A confusão vai passar quando o efeito desaparecer.
— Porque é que Deord... Oh. Ah, sim, já me lembro... eu não queria... e tu mataste um guarda... Faolan?
— Sim? — Agora ela ia perguntar e ele teria de engolir a mágoa e encontrar uma resposta.
— Não posso ir contigo — declarou, num tom neutro.
— Por que não? Porque acreditas que apunhalaria o rei de Fortriu pelas costas?
— Não, eu... Talvez por um momento tenha acreditado. Tu próprio disseste que era verdade.
— Deves ter-me em muito baixa consideração, para acreditares tão depressa que sou um traidor. — Conseguia aperceber-se do som tenso da própria voz.
Seguiu-se uma pausa, ao que Ana disse:
— Descartei essa idéia quase no mesmo momento em que me surgiu, Faolan. De certeza que tens uma boa explicação para o que disseste. — Segurava agora o cruza-bico entre as mãos. Faolan interrogou-se sobre se Drustan sentiria alguma coisa quando os dedos de Ana acariciavam as criaturas daquela maneira. Sobre ele, Ana não perguntara nada.
— Bridei tem conhecimento do trabalho que faço para Gabhran, de Dalriada — disse Faolan. — Por outro lado, Gabhran não faz idéia que sou fiel a Bridei. Recusar o pagamento de Gabhran iria levantar suspeitas. Tem sido um acordo útil a Fortriu. Agora que Alpin me descobriu, vai ter de acabar.
Ana olhou-o com gravidade, um ar que o tranqüilizou.
— Compreendo — disse-lhe. — É pena haver a necessidade de tais subterfúgios e desonestidade, mas a minha própria posição deu-me consciência dos jogos que têm de ser levados a cabo pelos reis e seus poderosos conselheiros. Nunca seria capaz de fazer um trabalho como o teu, Faolan. Bridei exige-te muito.
Voltara a surpreendê-lo.
— E a ti — disse-lhe. — Por que dizes que tens de regressar? Não vais dizer-me que continuas a pensar em casar-te com Alpin. Depois disto?
— Pensei... pensei que podia regressar sozinha. Posso dizer-lhe que me raptaste. Não deixa de ser verdade. Podes voltar ao Monte Branco. Tenho de estar em Briar Wood, Faolan. Já to tinha dito e falava a sério. — Arrepiou-se. A saia do vestido estava escura devido à água. Devia estar gelada. O cobertor que a envolvia era a única coisa seca que Faolan tinha para lhe dar. Se não pudesse fazer mais nada, ela morreria de frio antes de chegarem à fronteira do domínio de Alpin. Malditos fossem os Caitt. Maldito fosse aquele lugar.
Ocorreu-lhe uma idéia sombria. Se lhe mentisse, poderia fazer com que ela desistisse do seu intento louco. Só tinha de dizer que Drustan decidira não se juntar a eles. Que pedira a Faolan que levasse Ana para casa e que escolhera voar para o seu território a ocidente, onde seria livre. Não, não poderia dizer voar. Drustan obrigara-o a jurar que não lhe contaria aquela verdade e Faolan honraria a sua promessa. Mas, se conseguisse convencer Ana de que o homem-pássaro preferia gozar sozinho a nova liberdade, ela não teria motivo para regressar numa missão de salvamento demente. Até poderia ser verdade. Se Drustan queria acompanhá-los, por que não estava ali? Parecia mesmo que o indivíduo lhe virara as costas. Se fosse outra mulher, seria isso que Faolan lhe diria.
— Faolan? — Ana observava-o com atenção. — Compreendes, não é? Não posso deixar Drustan. Se Deord o abandonou, ele está sozinho. Drustan não vai deixar Briar Wood. Está convencido de que vai magoar mais alguém, caso seja libertado. Ele não tem ninguém, Faolan. Consegues imaginá-lo?
Ouviu a mudança na voz quando Ana disse o nome de Drustan. Viu como ergueu o pássaro e levou a plumagem à face. Naquele momento, sentiu um ódio de morte por Drustan. Mas não era capaz de odiar Ana.
— Deord apenas partiu porque Drustan lhe disse que deveria fazê-lo — explicou. — Tanto Deord como eu tentamos convencê-lo a acompanhar-nos. Ele parecia não conseguir decidir-se. Disse que viria mais tarde. Imagino que não seja tolo a ponto de enfrentar sozinho a fúria do irmão. Se regressasses, ias cair nos braços de Alpin. Na cama de Alpin. Se é isso que queres, enganei-me profundamente a teu respeito. — Talvez fosse grosseiro, mas tinha de chocá-la para que esquecesse aquela idéia. — Se Drustan já partiu, seria tudo em vão.
— Não valia a pena enumerar as outras razões que faziam com que o que sugerira fosse tolo e ridículo: que tinha a roupa molhada, que não sabia o caminho, que já era tarde. Que o terreno fora difícil, até mesmo para Deord. Sabia que Ana não daria ouvidos a tais argumentos.
— Mesmo assim, ele pode não ter partido — disse Ana lentamente.
— Acredita que é culpado. Receia o que possa vir a fazer. Falta-lhe fé em si próprio.
— Mas a ti não.
— A mim não o quê?
— A fé que depositas nele é espantosa. É óbvio que decidiste que é inocente, mesmo com todas as dúvidas que ele tem.
Seguiu-se um silêncio.
— Já cá estaria, não é ? — A voz de Ana não passava de um sussurro.
— Se viesse, já cá estaria.
— Quem sabe? A decisão cabia-lhe a ele. Deixamos a porta aberta.
— E, se não está aqui, é porque não quis vir conosco.
Faolan não disse nada. Viu-lhe as lágrimas começarem a cair, escorrendo das faces pálidas para o cobertor. Recordou a boca de Drustan no cabelo dela e endureceu o coração.
— Não sei dizer. Mal conheço o homem. Mas sei que, se estivesse no lugar dele, fugia dali se a oportunidade me surgisse. Não faço idéia de como a sua mente funciona. Dizem que é louco. Talvez seja verdade. Talvez prefira estar trancado.
— Não — disse Ana, a fungar. — Ele adora o Sol. Adora a floresta e o ar livre. Ninguém iria preferir um sítio escuro e úmido como aquele. Por que não veio?
— Talvez julgue que é suficiente enviar as suas criaturas. Ana não disse nada. Os olhos eram um espelho de desolação.
— Ana?
A jovem olhou-o.
— Como aconteceu isso? Tu e ele? Deord disse-me que os conheceste, mas foi apenas um encontro. Como...?
— Há um sítio. Um lugar onde murmuramos e ouvimo-nos um ao outro. Costumava falar com ele. Ludha e eu o encontramos por acaso. Ludha... Faolan, temos de regressar! Alpin castigou-a. Está em perigo, e a culpa é minha!
Faolan pensou em Dovard, inconsciente no canil, outra vítima inocente, que talvez fosse espancada, ou pior, por ter deixado o prisioneiro fugir.
— Não há nada que possamos fazer — disse. — Estão todos sob o jugo de Alpin. Se tentares intervir agora, serás apenas mais uma das miseráveis na lista dele. Lamento.
— Mas...
— Pensa, Ana. Não podes regressar. Temos de esperar por Deord e depois tentar chegar a Fortriu. Deord pode ajudar-nos, é forte e capaz. Quando estivermos longe das garras de Alpin, será mais fácil procurarmos suprimentos. Chegou a altura de voltarmos a casa. — Pensou em Bridei, que deveria estar já a caminho de Dalriada. Bridei, que não sabia que Alpin já se aliara aos Celtas.
— A pé? — perguntou Ana. Segurou no cruza-bico com uma mão e usou a outra para limpar as lágrimas das faces, como se fosse uma criança.
— Agora percebes por que insisti nas botas — disse Faolan. — Será mais lento mas, por um lado, mais fácil. Podemos usar caminhos que nem passariam pela cabeça de Alpin.
Ana não disse nada. Talvez percebesse a verdade por detrás das palavras confiantes. Era uma viagem longa por terreno difícil e o único caminho que ele conhecia era aquele que não poderiam seguir. E o homem que mais os poderia ajudar, era aquele que Faolan esperava que nunca regressasse.
— Ana? — Não conseguia deter a estúpida da língua. Tinha de lhe perguntar.
— Sim?
— Tu e Drustan. O que é que... como é que... como é que vocês? — Pelos deuses, parecia um miúdo de quinze anos, perdido de amores por uma namorada da aldeia. Desejava nunca tê-la visto. Fizera-o gostar dela. Fizera-o voltar a sentir. Deixara-o exposto e miserável, enfraquecido pela fenda que lhe abrira no coração. Despertara-lhe as mais negras recordações e levara-o a chorar, a odiar, a amar. Queria voltar a ser o velho Faolan, aquele que as pessoas descreviam como sendo duro e insensível, um homem incapaz de sentir. — Esquece — disse. — É melhor ir ver o que se passa lá fora. Se alguém resolver subir, não o ouvimos por causa da água. O mais certo é que Deord não tenha enganado todo o grupo de Alpin. Se por acaso se dividiram, não será difícil encontrarem o nosso rasto. Imagino que não tenhas contigo aquela faca que te dei?
— Não era algo que imaginasse vir a precisar no dia do meu casamento, Faolan — retorquiu Ana.
Faolan não pôde deixar de sorrir.
— Consigo imaginar alguns usos interessantes que lhe poderias dar. Tenho aqui outra, menor. Fica com ela. Com sorte, não está ninguém lá fora, mas tens de estar preparada.
Ana olhou para a pequena faca na bainha de couro. Ao tirá-la, revelou uma lâmina imaculadamente limpa que parecia muito afiada.
— É de Deord — disse Faolan. — Não faças nenhuma tolice, preciso da tua ajuda.
— Uma tolice — repetiu Ana. — Como cortar os pulsos, queres tu dizer? — Seguiu-se um silêncio, cortado apenas pela voz da água. Depois, Ana disse:
— Não me conheces, pois não, Faolan? Respeito a vida, mesmo quando ela traz crueldade e tristeza. Vai lá. Se tens de espreitar, vai. E vê se não morres. Parece que és o único amigo que me resta.
Parecia a Broichan que sentia o veneno a corroer-lhe o corpo, devorando-o de dentro para fora, como os vermes fazem às rosas e as minhocas às maçãs. Havia muito tempo, um inimigo atacara-o com uma dose bastante inteligente de ingredientes tóxicos, uma mistura que o druida do rei apenas detectara quando os sintomas começaram a fazer-se sentir: dores de cabeça lancinantes, o esvaziar das entranhas num fluxo líquido, dores de morte nas articulações. Suportara tudo isso sem queixumes, pois era dotado de uma autodisciplina rígida. O mais difícil fora o toldar da mente. Nos primeiros dias após o atentado distante à sua vida, era incapaz de concentrar-se por mais do que breves períodos de tempo. Assim que tinha um pensamento, uma idéia, desaparecia. Esforçara-se por se recordar até dos ensinamentos que lhe estavam entranhados nos ossos, conquistados com dificuldade ao longo dos dezenove anos do seu noviciado: os ensinamentos druídicos, as narrativas, as orações e os rituais. Até mesmo o saber das árvores o tinha abandonado, durante o período negro em que lutara contra as substâncias estranhas que lhe percorriam o corpo, e implorara à Mãe de Tudo para que não o levasse ainda, não com a educação de Bridei no início e com o futuro de Fortriu dependente disso. A deusa escutara-o. Poupara-o, para que regressasse a Pitnochie e ao pequeno filho adotivo. Agora Bridei era um homem, ele próprio com um filho. Era rei de Fortriu. E Broichan sabia que a Mãe de Tudo não anulara a sentença de morte proclamada havia tantos anos. Limitara-se a adiá-la.
Claro que a morte não devia ser receada, mas aguardada com uma certa dose de maravilha. Morrer era atravessar uma fronteira para um mundo novo, desconhecido, inimaginável. A experiência continha em si todo um reino de ensinamentos. A viagem deveria ser recebida com esperança e antecipação, especialmente no caso de um druida. Broichan recordava o velho Erip, que ensinara a Bridei assuntos mais mundanos do que os abrangidos pelas lições de Broichan. Erip estivera pronto para morrer. Pareceu atravessar para o outro lado mesmo antes de o último fôlego lhe ter deixado o corpo. E Erip, mesmo sendo um erudito, não era druida. Enfrentara a Mãe de Tudo sem medo e ela recebera-o carinhosamente. Fora uma morte calma.
Broichan não imaginava um fim semelhante para si próprio. A dor que lhe assolava o corpo talvez pudesse ser atenuada por infusões soporíficas. O elemento a ser receado era a névoa que lhe envolvia a mente, negando-lhe o bom funcionamento do intelecto e destruindo-lhe o controlo da arte da magia. Os sintomas eram-lhe familiares. Parecia-lhe que o veneno ingerido havia tantos anos não lhe deixara o corpo, tendo ficado adormecido, à espera para atacar novamente. Pelo menos assim pensava. Não imaginava outra causa para a sua maleita e era bastante entendido nas artes da cura. Não tomaria infusões. Ordenara a Fola que deixasse de tentar ser prestável. Tinha de manter viva a última chama. Não podia desbaratar os poderes que lhe restavam. Havia uma criança a ser ensinada. E havia Bridei, já longe, sem vidente a seu lado para aconselhá-lo.
Esse fora o pior dos golpes. Ver o filho adotivo, o jovem rei que criara, partir para a guerra sem que ele estivesse a seu lado, para protegê-lo de formas que o mais apto dos guarda-costas nunca seria capaz. Quem mais, se não o druida do rei, poderia lançar um augúrio na véspera de uma batalha, a fim de determinar se deveriam avançar ou esperar? Quem mais poderia utilizar as ferramentas da visão à medida que viajavam e transmitir a sabedoria dos deuses? Sem essa orientação, a grande vitória sobre as forças de Dalriada dependia inteiramente do julgamento dos homens, e esses eram sempre falíveis, mesmo que fossem bons, inteligentes, corajosos e profundos conhecedores da tradição, como não havia dúvida que Bridei era.
Fora o orgulho que impedira Broichan de convocar outro druida da floresta para assumir o seu lugar ao lado de Bridei. Orgulho e uma esperança patética, pois até ao dia da partida do rei, rezara para que voltasse a sentir-se bem e forte o suficiente para acompanhá-los. Por esse motivo, Broichan enviara sozinho o homem que amava como a um filho, para enfrentar os Celtas sem as garantias adequadas. Garantira que observaria à distância, usando as ferramentas da visão. Não dissera a Bridei, nem a Fola, nem a ninguém, que até isso parecia fora do seu alcance.
Trancou por dentro a porta do quarto, acendeu uma candeia com a vela que tinha na mão e dirigiu-se à arca de carvalho, em busca do espelho das visões. Era um belo objeto, oferecido pelo seu antigo professor. Um disco de obsidiana polida, cercada por criaturas forjadas em prata: uma coruja, um sapo, uma marta, uma lontra, uma libélula. Adorável. Planeara mostrá-lo a Derelei em breve e ver a reação da criança. Se o menino possuísse o talento inato de Tuala enquanto vidente, teria de ser guiado nessa arte, para que o seu desenvolvimento fosse gradual e controlado. Era tão novo... Quanto tempo, pensou o druida, quanto tempo tenho, diz-me, para que possa planeá-lo. Um ano? Dois? Apenas uma estação? Era impensável. Não ver Bridei conquistar a sua grande vitória, não ver a fé verdadeira restaurada por todos os territórios Priteni, não ver o pequeno a seu cargo crescer, aprender e florescer... Como seria capaz de suportá-lo? Mas era o que faria, caso fosse a vontade dos deuses. A obediência fazia parte do íntimo de Broichan. A obediência levara-o a encenar o sacrifício do Portal ano após ano, até que Bridei declarou o fim dessa observância. A obediência manteve-o de joelhos noite após noite, à escuta da voz dos deuses, enquanto o frio e a dor lhe transformavam o corpo num suplício. A obediência impedia-o de procurar ajuda... Talvez não. Ouvia a voz decidida de Fola a dizer qualquer coisa sobre orgulho, sobre arrogância, sobre pensar que ele é que sabia. Procurar ajuda seria, talvez, descobrir que não havia ajuda possível. E isso era o que mais receava.
Broichan retirou o espelho da cobertura de lã macia e segurou-o entre as palmas das mãos, sem tocar na superfície polida. Respirou mais devagar, esperando não se engasgar. Uma inspiração mais profunda fazia-lhe os pulmões arder como o lume de uma forja. Obrigou o corpo a descontrair-se na dor, deixou que a agonia fluísse por ele. Olhou para a obsidiana negra com os olhos desfocados, algo que não era difícil, nesse dia, e deixou a mente vaguear. Um a um, expulsou os pensamentos e as imagens que se emaranhavam na sua cabeça: Bridei; a batalha que se avizinhava; Derelei a crescer na corte sem ele, tão vulnerável, tão facilmente explorado. Tudo o que não fizera e agora não teria tempo de fazer... Afugentou-os para o vazio, para longe da câmara sombria onde a luz da candeia mal lançava um brilho débil sobre o equipamento da sua arte, disposto ordeiramente em prateleiras de pedra: as ervas e os remédios, os pergaminhos e as tintas, o bordão de carvalho, de pé a um canto. E os objetos mais secretos, os quais se lembrava de o menino Bridei observar espantado, da primeira vez que o pai adotivo o deixara entrar no quarto privado em Pitnochie. Parte de Broichan queria arrumar tudo e regressar. Aí, poderia deixar de fingir e deixar que tudo acontecesse. Mara trataria dele. Ferat, o cozinheiro, iria tentar o apetite cada vez mais reduzido. Fidich e os outros aceitariam calmamente a presença do druida e continuariam a garantir o bom funcionamento da casa e da fazenda. Em Pitnochie, poderia morrer em casa, entre o seu povo.
A candeia tremeluziu, fazendo Broichan pestanejar. Estava a recordá-lo. Afasta Pitnochie do pensamento. Afasta tudo... Flutua... Deixa a consciência vaguear... Deixa a visão toldar... Esquece o medo onipresente de que, também hoje, o poder vai falhar...
Ficou sentado muito tempo. Nos cantos superiores do quarto, aranhas teciam as suas teias. No chão, escaravelhos remexiam-se. Dentro das paredes, os ratos andavam na sua vida. Finalmente surgiu uma visão, não na superfície escura do espelho, mas na sua mente, a mais clara visão que lhe fora concedida em muitas luas. Esperara ver
Bridei ou os outros líderes Priteni, ou os Celtas, ou um padrão de acontecimentos ou objetos que pudessem ser ordenados de forma útil. O que surgiu foi inesperado.
Um homem corria através de uma floresta cerrada. Mantinha um bom ritmo, com uma velocidade espantosa para alguém tão robusto. O corredor tinha ombros largos, um peito possante e era calvo como um ovo. Uma matilha de sabujos seguia no seu encalço e atrás dos cães vinha um grupo de cavaleiros armados com arcos, lanças e punhais. Eram todos homens grandes, com jubas de cabelo revolto e barbas a condizer. Trajavam mantos de pele e nas faces largas viam-se tatuagens elaboradas. Guerreiros dos Caitt. O fugitivo tinha marcas de batalha numa face, feitas da mesma forma que as dos outros. Era um deles. Tinha punhais no cinto, mas não trazia mais nenhuma arma. As feições não exibiam o terror habitual dos perseguidos, parecendo calmo e controlado. Broichan podia ver que estava a controlar a respiração, poupando as forças para o confronto que se avizinhava. Alguém treinara muito bem aquele homem.
A visão foi mudando. Sempre o corredor, ora a equilibrar-se em cima de um tronco para atravessar um desfiladeiro, ora a descer uma encosta rochosa a um ritmo que deixava os membros em risco de se partirem e criava uma chuva de pedras atrás de si. Não parecia muito preocupado com o barulho que fazia. Era quase como se quisesse atrair a perseguição.
Os cães e os cavaleiros aproximaram-se. O líder encontrou um caminho em redor do desfiladeiro e um percurso que contornava a ladeira íngreme. Os cães avistaram o corredor e deram sinal. O líder levou um corno aos lábios. Broichan reconheceu uma sede de sangue nos olhos desse homem e, embora não pudesse ouvi-lo, a mente do druida imaginava o que o chefe tribal estaria a bradar aos seus homens. — Refreiem os cães! Ele é meu!
Encurralaram contra uma parede de pedra o homem calvo, o qual agarrara um ramo caído, que agitava à sua frente à altura do peito, para um lado e para o outro, num arco selvagem. Os cães não conseguiam aproximar-se e os tratadores avançaram a uma ordem do chefe tribal, prendendo cordas às coleiras dos animais, que arrastaram para longe. Os guerreiros formaram um semicírculo em redor do perseguido, mantendo uma distância segura do ramo balançante. Os braços do homem tinham os músculos retesados. Broichan reconheceu a força espantosa que era necessária para segurar uma braçada de madeira grossa e úmida àquela altura e controlá-la de tal forma. Observou o líder a dar outra ordem e quatro dos guerreiros a levar flechas aos arcos.
O druida abriu-se às vozes na visão. Não havia qualquer som no quarto tranqüilo onde estava sentado com o espelho, pois aquela imagem existia apenas na sua mente, conjurada pela abertura ao que os deuses tinham para lhe oferecer naquele determinado momento. Utilizava o espelho como ferramenta para abstrair a mente da miríade de pensamentos que a povoava, para a limpar de distrações, a fim de abrir espaço para as visões que viessem a ser concedidas. Ouvir, ao mesmo tempo que via, exigia um maior grau de concentração. Ao abrandar ainda mais a respiração, Broichan atingiu-o.
— Onde está ela? — exigiu saber o líder do grupo, a voz dura de fúria. — Para onde a levaram?
Era óbvio que o homem encurralado não fazia tenção de responder. Limitou-se a repelir os atacantes com o ramo, ao mesmo tempo que observava os arqueiros.
— Esperem! — bradou o líder aos seus homens, que baixaram ligeiramente os arcos. — Primeiro, quero as respostas dele. Depois podem praticar o vosso desporto. Baixa essa coisa, miserável, e fala comigo! Onde está Ana? Onde está o maldito do celta e onde está o meu irmão? Pelos deuses, como pudeste libertar Drustan? Dei-te comida e abrigo e um fornecimento constante de peças de prata durante sete anos. Confiei em ti e deixaste fugir o assassino!
O ramo continuava o varrimento. Era a única coisa que separava o fugitivo dos atacantes. Falou, então, calmamente, como se não tivesse acabado a maior corrida da sua vida.
— Estou pronto a lutar. Envia os teus homens um a um, ou dois a dois. Se queres acabar comigo, que seja num combate justo. Serias capaz de abater um homem como um verme?
— E verme é o que tu és. Sou eu quem escolho a forma como vais morrer. Responde às minhas perguntas e podes ter a tua luta. Julgo que terão de ser três ao mesmo tempo. Os homens conhecem a tua reputação. Se não responderes, o teu fim será mais lento. E mais doloroso. Agora responde-me! Onde está Ana? Onde está aquele bardo vira-casacas? E onde está o meu irmão, sua desculpa miserável de servo? Para onde é que ele voou?
À falta de resposta, o líder acenou aos arqueiros. Uma flecha de penas vermelhas deixou o arco, gemendo pelo ar até rasar o ombro do alvo, pois este esquivara-se mesmo a tempo. Outro aceno. Um segundo míssil, agora melhor apontado, em antecipação a outro movimento. Acertou no braço esquerdo da presa, alojando-se profundamente no músculo desenvolvido. O fugitivo gemeu. Não podia alcançar a haste sem largar a arma improvisada.
— Onde estão eles? Onde os escondeste? Fala, a minha paciência está a esgotar-se.
— Algures na floresta — replicou calmamente o fugitivo. — Se procurares bem, pode ser que os encontres. Ou podem fugir-te, Alpin. Não me importo com eles. Bardos fracotes, damas de cabelo dourado, que têm eles a ver comigo? Quanto ao teu irmão, o desgraçado já cumpriu a sua pena. Duvido que o voltes a ver.
— Mentes. Ajudaste-os a fugir. Encontramos o teu túnel e descobrimos a forma inteligente como o ocultavas. Ajudaste o celta a fugir. Ajudaste-o a roubar-me a mulher. Ele a quer para si próprio, estava bem visível nos seus olhos. Deve estar a possuí-la neste momento, com Drustan à espera dos restos. Quando encontrar o bardo, faço tenção de o despedaçar, membro a membro. Desembucha, Deord! Diz-me onde estão e deixo-te morrer como um lutador e não como uma ratazana num buraco.
O homem chamado Deord fitou o outro, os olhos serenos. O ramo que segurava parou o movimento e a ponta baixou lentamente até ao solo da floresta.
— Faça o que fizer desde agora até ao momento da minha morte — declarou, enquanto o sangue do ferimento ia manchando a manga da camisa —, não vou trair confianças. Não julgues que prevaleces com ameaças, Alpin. Já assisti demasiadas vezes às tuas tácticas. O teu irmão desapareceu. Está livre. Quanto aos outros, nada tenho que ver com eles. — Quando o líder desembainhou um punhal longo da cintura e deu um passo em frente, Deord acrescentou: — Sempre pensei que um homem é avaliado pela forma como morre. Pretendo que o meu fim seja um espelho daquilo que sou, enquanto homem.
— Um homem não grita, não geme, nem implora que o libertem — disse Alpin. — Acredita, antes de acabar contigo, vais estar a fazer essas três coisas e a conspurcares-te até às botas.
Deord não respondeu mas, quando Alpin se aproximou, rodopiou subitamente e a perna direita surgiu num golpe poderoso que lançou um homem inanimado ao chão, enquanto o braço ileso apanhou um segundo no peito, deixando o guerreiro sem fôlego. Alpin, que recuara para fora do alcance de Deord, estalou os dedos. Flechas voaram e acertaram no alvo. Deord, ao erguer-se, recebeu-as profundamente no ombro e na coxa. Cambaleou e voltou a equilibrar-se. Uma faca surgiu em cada mão.
— Diz-me a verdade! — bradou Alpin. — Fala agora, ou vais pagar! Para onde levaste a minha mulher?
Deord parecia nem tê-lo ouvido. A posição que assumira, as pernas afastadas, os joelhos ligeiramente dobrados, prontos a executar qualquer movimento necessário, era a de um guerreiro experiente. Os dardos alojados no corpo pareciam um inconveniente menor. Os olhos permaneceram calmos. A sua volta, o semicírculo de caçadores tornou-se mais cerrado, mas havia uma certa margem para além da qual ninguém se atrevia a avançar, nem mesmo o líder. Para Broichan, que observava com os olhos de um vidente experimentado, parecia que a mão do Guardião das Chamas pairava sobre aquele lutador solitário, dotando-o de uma pureza que eliminava qualquer traço de receio e o transformava num instrumento de força mortífera. Qual o homem, em tal desvantagem, que seria capaz de encarar o inimigo com tamanha serenidade, a não ser alguém bafejado pelos deuses? O Guardião das Chamas respeitava os feitos corajosos. Adorava o fogo que ardia no coração dos seus filhos intrépidos. Talvez aquele estivesse destinado a um lugar ao lado direito do deus. A cena na mente de Broichan não podia ter como final o triunfo daquele guerreiro, nunca em tamanha desvantagem. O druida apercebeu-se de que continha a respiração, desejando o que não poderia acontecer. Obrigou-se a descontrair-se e voltou a controlar a respiração, pois se perdesse o controlo, a visão arriscava-se a desaparecer de vez. Fora enviada com um propósito. Teria de ver o fim, inevitavelmente sangrento, e esperar conseguir fazer sentido do acontecido.
Alpin chamou os homens que tomavam conta dos cães. Ordenou aos lanceiros que avançassem. Os arqueiros prepararam as flechas, uma, duas, três e quatro. Deord manteve a pose, com mais sangue a manchar-lhe a roupa no ombro, no braço e na coxa.
— É a tua última oportunidade — gritou Alpin, sobre os latidos dos cães. — Diz-me o que quero e deixo que o teu fim seja o de um lutador. Diz-me qual a direção, qual o caminho. De certeza que encontraram um abrigo algures. A senhora não seria capaz de chegar muito longe neste terreno. Responde-me e a tua morte não terá de ser longa e dolorosa. Não terá de ser vergonhosa. Norte? Leste? Para onde foram?
— Traz os cães — foi a resposta de Deord. — Traz as lanças. Estou pronto.
Broichan deu consigo a rezar para que o fim chegasse depressa. Pouco importava que as visões oferecidas pelo espelho pudessem ser passadas, presentes ou futuras, ou apenas a representação simbólica de uma qualquer verdade interior. A urgência do que via era cativante. Ficou sentado, imóvel, enquanto desejava que os deuses concedessem um fim rápido e misericordioso àquele guerreiro.
Não seria o caso. As probabilidades eram impossíveis e ele devia ter noção disso. Mesmo assim, fez da última batalha algo belo, um poema de controlo e graciosidade, com o corpo a mover-se na perfeição, bloqueando, atacando e virando-se, à medida que utilizava os membros feridos e intactos da melhor forma. Era como um brado de coragem, a celebração do que era ser um homem. Broichan estava angustiado.
Claro que, no fim, Deord não conseguiu prevalecer contra tantos. Incapazes de o deter com ataques com espadas, lanças e punhais, e vendo cães e homens espalhados num círculo sangrento em redor da figura desvairada e quase mágica do guerreiro solitário, os homens de Alpin voltaram a recorrer às flechas. Trespassaram o alvo com tantas flechas que por fim começou a abrandar e a vacilar, enfraquecido pela perda de sangue. Nenhum míssil lhe acertara no coração, nem nos olhos. Nenhuma seta individual foi responsável por um golpe fatal. Deord trazia couro por baixo da camisa e tinha prática em esquivar-se, mesmo limitado como estava.
Demorou muito tempo. Demasiado. Broichan observou o rosto do lutador a empalidecer. Deord estava agora macilento, o corpo alagado em suor e as mãos quase incapazes de segurar as armas. Viu os três ferimentos passarem a sete, a dez, a doze. Viu o sangue a correr, até que a roupa do homem se tornou completamente vermelha. Por fim, viu Deord cair sobre um joelho, a arquejar. Viu a expressão nos olhos do guerreiro, calmos, uma calma sobrenatural, e nesse controlo sublime reconheceu um pouco da técnica que se esforçara por alcançar nos primeiros anos do treino como druida. Que disciplina. Que maravilha. O deus teria de chamar aquele favorito em breve, teria de recompensar aquele autocontrole perfeito com as maiores das honras no mundo após a morte. Era como se o homem estivesse prestes a ser consumido pela chama da sua coragem impossível.
No fim, Broichan mal conseguia olhar, pois a visão era a um tempo bela e horrível. Deord caíra. Estava exausto, mas vivo. A luz de uma vontade férrea ainda brilhava nos olhos tranqüilos. Qualquer um dos outros poderia tê-lo eliminado naquele momento mas, curiosamente, os caçadores deixaram-se ficar para trás, ao que pareciam relutantes em desferir o golpe fatal. Foi o líder, o chefe tribal chamado Alpin, quem se aproximou do homem caído, após um período em que Broichan se apercebeu de um silêncio incômodo, quebrado apenas pela respiração entrecortada de Deord. Depois, nas alturas, os pássaros começaram a falar, uma troca de pios e de assobios. Ao lado do homem tombado, Alpin sacou de uma pequena faca de lâmina estreita.
— Disse-te que ias implorar antes do fim. — O tom da voz era frio. — O fim ainda não chegou. Que parte da tua carne ainda não foi tocada? Preciso de uma recordação, algo para levar comigo, no caso de mais alguém da minha casa resolver desobedecer-me. Goban, Mordec, levantem-no. Vá, ele já não pode magoá-los, está acabado. Erdig, Lutrin, tratem dos nossos mortos. Coloquem-nos nos cavalos e preparem-se para partir. — Dois guerreiros corpulentos agarraram em Deord e ergueram-no. Deord tentou afastá-los, com bravura, mas os homens mantiveram-se firmes, as mãos e os braços em breve ensopados com o sangue do ferido.
— Continuas sem respostas. — Alpin falou calmamente, os olhos nos de Deord. — Não só és um traidor, como também és um idiota. O meu irmão deve ter-te pegado um pouco da sua maleita. Bem, pouco importa. Não me apetece continuar. Vou só fazer um corte aqui — tinha as mãos nas virilhas de Deord e Broichan fez um esgar —, e aqui, e levar comigo um pequeno troféu, e agora vamos embora. Graças a ti, um louco perigoso está à solta nesta floresta. Graças a ti, um espião fugiu-me por entre os dedos. Graças a ti, vou passar a minha noite de núpcias sozinho. Mas amanhã — ergueu o prêmio horrendo em frente do rosto branco de Deord —, amanhã vou caçá-los. Amanhã o celta vai estar pendurado à frente dos portões da minha fortaleza. Amanhã vou fazer um filho à mulher que me traiu com o meu próprio irmão. E amanhã, quando encontrar aquele assassino do Drustan, vou castigá-lo tal como deveria ter feito há sete anos: com a morte.
Deord suportara a mutilação sem um único som. As feições eram as de um crânio, sombras e osso. Broichan ouviu-lhe o murmúrio rouco.
— Nunca irás encontrá-lo. Vai ultrapassar-te, em destreza e em inteligência. Só lamento que não tenha aproveitado a oportunidade mais cedo.
— Maldito! — O punho de Alpin golpeou o queixo do outro homem. A cabeça de Deord foi arremessada para o lado. — Que tenho de fazer para que a tua língua arrogante implore misericórdia? O quê? — Desferiu um segundo golpe do outro lado. O sangue escorreu pelo queixo de Deord, vermelho contra branco.
— Misericordioso? — sussurrou o guerreiro, os olhos fitos nos de Alpin. — Não sabes... significa... misericórdia. É tão estranho para ti como... amor... dever... coragem...
Alpin ergueu o joelho, acertando entre as pernas do cativo, de onde o sangue já escorria devido à cirurgia grosseira. Deord não foi capaz de impedir-se de arquejar.
— Implora! — gritou Alpin. — Rasteja, miserável! És de carne e osso, como todos nós! — Outro golpe, desta vez com a bota. Deord reprimiu um grito. — Berra! — ordenou Alpin. — Vá, deixa que saia! Isto dói? E isto? E isto?
Broichan implorou a intervenção dos deuses com todas as fibras do seu ser. Usou o que lhe restava de fôlego para solicitar à Mãe de Tudo que avançasse, que albergasse o guerreiro no manto negro do doce nada e lhe levasse o espírito. O druida rezou para que o Guardião das Chamas dissesse, Chegou a altura. Traz-me o meu filho.
Os golpes sucederam-se, mas não se ouviu mais sons de Deord e, pouco depois, Alpin pareceu cansar-se do passatempo e recuou, as roupas salpicadas de sangue. Um dos outros homens falou, talvez a perguntar se poderia aplicar o golpe final, de misericórdia. Mas Alpin montava já a cavalo. A sua volta, os guerreiros que tinham sobrevivido ao combate desigual tinham já colocado os corpos dos camaradas tombados nas suas selas e estavam prontos para o regresso sombrio.
Os dois homens que seguravam Deord largaram-no. O corpo caiu ao chão, onde ficou, de lado, um monte imóvel de trapos ensangüentados. Broichan voltou a respirar. Os deuses, por fim, tinham resolvido apiedar-se. A uma ordem do líder, os cavaleiros picaram as montadas e desapareceram na floresta. O sol estava baixo sobre as copas dos pinheiros escuros e dos vidoeiros prateados. Os pássaros trinavam enquanto voavam para os ramos.
Broichan sabia que a visão estava perto do seu fim natural. Sentia-o nos dedos das mãos e dos pés, nas costas e no pescoço, no regresso gradual do corpo à forma do barro diário. Não seria capaz de mantê-la muito mais. Quando as imagens começaram a desvanecer-se e a escurecer na sua mente, viu movimento onde julgava que a vida fora extinta. A mão do homem caído estendeu-se e agarrou o solo escuro da floresta. Meios cegos pela dor, os olhos de Deord fitaram o céu aberto, mais além da cobertura de verde. Rebolou e arrastou-se pelo chão até conseguir erguer-se e sentar-se contra um emaranhado de raízes que formavam um arco. Aí ficou, espraiado como uma boneca de trapos. O sangue escorria e fluía por uma miríade de ferimentos. A terra recebeu-o em silêncio. Os pássaros continuaram as canções, um hino à vida, à beleza, à liberdade, e Deord, moribundo, escutou, os olhos brilhantes de dor, mas firmes e calmos. Enquanto a visão se desvanecia, Broichan percebeu que o guerreiro aguardava. Pelo quê, não sabia. Talvez nem mesmo a mais brava das almas quisesse morrer sozinha.
A infusão de papoula afetara Ana profundamente. À medida que o dia avançava lentamente, ia flutuando num torpor inquieto, a cabeça apoiada numa posição estranha sobre a trouxa úmida. De vez em quando acordava num sobressalto, o olhar confuso. A cada novo despertar de consciência, ela parecia menos disposta a falar. Faolan observava-a, uma tensão crescente a corroer-lhe as entranhas. Deord não regressara. Faolan não desejava a morte de um sobrevivente de Breakstone na sua consciência, pois esta já se encontrava pesada o suficiente. A vontade de partir em busca dele era cada vez maior à medida que, no exterior do esconderijo onde se encontravam, o Sol se movia em direção a ocidente e, algures, um homem corajoso arriscava a vida por causa de um par de estranhos. Pouco importava que ter Faolan atrás de si fosse a última coisa que Deord desejava. Faolan sabia que se não fizesse alguma coisa, iria arrepender-se até ao fim dos seus dias.
— Se queres ir, vai — disse Ana, com um mau humor nada habitual nela, após Faolan ter saído e regressado pela vigésima vez. Encontrava-se deitada de bruços, com o antebraço erguido a fim de proteger os olhos, como se mesmo a luz filtrada da caverna os ferisse.
— Não posso — replicou Faolan, num tom inexpressivo. — Volta a dormir. Vais precisar de todas as tuas forças pela manhã.
Seguiu-se um silêncio breve.
— Estou a ser um estorvo, não estou? — O tom de voz mudara. — Estou a atrasar-te.
Faolan não foi capaz de a contradizer, embora Ana não tivesse culpa da situação difícil em que se encontravam.
— Por piedade, Faolan, vai. Estás a fazer-me sentir ainda pior.
— A minha missão é garantir a tua segurança. Claro que não posso ir. — Estava tão tenso como uma corda de harpa, cada parte do seu corpo rígida. A sua imaginação encontrava-se repleta de sangue e morte. Deord não ia voltar. Tinha a certeza. Não regressaria, a menos que alguém fosse à procura dele e o encontrasse rapidamente, antes que Alpin o matasse. Faolan tentou ficar tranqüilo e dirigir a sua atenção para o conforto de Ana. Contudo, depressa se levantou outra vez, impelido a sair novamente da caverna.
Os salpicos da queda de água faziam com que fosse difícil ver claramente, mas fez o seu melhor para perscrutar as encostas, a floresta, os lagos, tentando descortinar o menor indício de algo fora do normal. Não se via nada, para além do verde dos pinheiros, do pálido lençol de água, dos cumes nus e intimidantes que se elevavam a norte e a leste. Pela posição do sol, calculou que o dia já fosse bem avançado. Se Alpin ainda se encontrasse a caçar, em breve teria de dar a atividade por encerrada, para que os seus homens chegassem a casa ao anoitecer. Havia tempo suficiente para uma operação de salvamento, mas não muito. E ele não podia ir. Como poderia deixar Ana sozinha?
Um som súbito e áspero acima e atrás de si fez Faolan sobressaltar-se. O pé escorregou-lhe na beira da rocha e agarrou-se a uma trepadeira, com o coração aos saltos. Mais um crá e ele viu a gralha, pousada no ramo esguio de um salgueiro minúsculo e atrofiado que alojara as suas raízes num pequeno buraco no solo. As folhas delicadas da pequena árvore assumiam um tom prateado devido ao orvalho. Por cima da gralha, pousado numa saliência, encontrava-se um pássaro maior, de um castanho fulvo, os olhos brilhantes, um bico curvo formidável. O seu olhar estava preso a Faolan.
— Por fim — murmurou, o alívio a invadi-lo apesar de todos os seus receios. — Por tudo quanto é sagrado, onde é que estiveste? Bem, não interessa. Ana está ali, na caverna... pelos deuses, é bom que eu esteja certo em relação a ti e que não esteja a falar com um pássaro qualquer que decidiu fazer-nos uma visita ao passar por aqui. Preciso de chegar a Deord. Tens de guardá-la, de a manter em segurança.
O falcão não se mexeu. O seu olhar fixo era desconcertante.
— Eu não lhe contei — acrescentou Faolan. — Quer dizer, sobre ti. De alguma forma, ela terá de ser convencida de que isto é aceitável, de que os pássaros são uma escolta adequada. A não ser que tenciones contar-lhe a verdade.
Não obteve resposta mas, quando Faolan baixou a cabeça e entrou na pequena caverna, tanto o falcão como a gralha o seguiram, pousando de cada um dos lados, onde o contorno da rocha concedia poleiros precários. O cruza-bico já estava entre as mãos de Ana. Mesmo enquanto dormia, segurava a ave na palma das mãos.
— Ana — chamou Faolan, acocorando-se ao lado dela —, vou sair agora. Estão aqui três pássaros, estás a ver? Ficarás segura. Tenho de encontrar Deord.
A jovem parecia perplexa.
— Três... mas...
— O cruza-bico, a gralha e o falcão — disse-lhe Faolan, observando-a à medida que os olhos dela se dirigiam ao maior dos pássaros, arregalando-se. — Parecem todas ser criaturas de Drustan. Que pássaro selvagem entraria aqui conosco de livre vontade? Aquela coisa tem um bico letal e um bom par de garras. Irá defender-te, caso seja necessário. — Esperava que tal fosse verdade. — Fica dentro da caverna e espera por mim. Voltarei antes de escurecer. Não te aproximes demasiado da beira. — Olhou para ela mais atentamente. — Lamento — disse. — Lamento muito.
— Vai.
A voz de Ana foi abafada pela água a cair. Recordou-se de Breaking Ford, onde ela devia ter acreditado encontrar-se totalmente sozinha com o rio impetuoso, sozinha num mundo que enlouquecera.
— Vai, Faolan — disse ela. — Encontra-o enquanto ainda há tempo.
Faolan continuou a percorrer o trilho até já há muito ter passado a altura em que deveria regressar para terminar a viagem antes do anoitecer. Por fim, encontrou Deord numa pequena clareira, estendido ao comprido junto de um carvalho muito antigo. Parecia já estar morto. O sangue ensopara-lhe as roupas e desenhara um largo círculo no solo em seu redor. Os braços e as pernas encontravam-se inertes contra um emaranhado de raízes. Aproximando-se mais e ajoelhando-se ao lado da figura imóvel, Faolan ouviu o som débil e arrastado da respiração superficial de Deord e viu, por entre as pálpebras semicerradas, o olhar familiar dos seus olhos serenos.
—,.. Tu... aqui? — murmurou Deord. — Embora... deves... embora. — E depois, enquanto Faolan tentava colocá-lo numa posição melhor: — Não...não vale a pena...
Faolan praguejou em voz baixa, percorrendo com os olhos experientes o que conseguia ver das feridas do homem caído através dos farrapos que eram as suas roupas. Deord sofrera muitos golpes. Uma flecha, a haste toscamente quebrada, estava alojada profundamente no seu braço. Outras encontravam-se partidas no chão, junto das suas pernas. Havia sinais de uma luta descomunal: arbustos esmagados, ervas rasteiras espezinhadas, o solo com bocados de terra solta devido ao movimento de botas e cascos de cavalos. Uma lança encontrava-se despedaçada em dois, uma espada partida fora lançada para os arbustos. No meio da vegetação rasteira, Faolan avistou as formas inertes de vários cães de caça.
Pegou no odre de água que trazia consigo e, colocando um braço em redor dos ombros de Deord, ergueu-o ligeiramente. A pele de Deord estava fria e úmida e sentiu o cheiro a sangue e a suor. Susteve a respiração quando Faolan lhe tocou.
— Bebe — disse Faolan —, só um gole. Ótimo — embora Deord não tivesse engolido coisa alguma. Não conseguia engolir. — Onde está a tua trouxa? — Encontrou-a, retirou lá de dentro uma qualquer peça de vestuário e colocou-a sobre o peito e ombros de Deord.
—,.. Senhora...? — perguntou Deord. A voz era apenas um murmúrio.
— Drustan está com ela. Parti assim que ele chegou. Pelos deuses, homem, não há dúvida de que os obrigaste a uma bela perseguição. — Faolan manteve o tom de voz animado, pois não valia a pena sobrecarregar Deord com a sua mágoa. Era mais do que evidente que chegara tarde demais.
— Drustan... ótimo. Faolan...?
— Sim?
— Drustan... vir a ser... importante. Leva-o para longe... longe... em segurança...
— Depois de hoje — disse Faolan —, a minha espada tem o nome de Alpin. Primeiro termino esta missão, depois transformo-me de caçado em caçador. Não posso permitir que aquele canalha viva.
— Drustan... importante, Faolan... olha por ele... e por ela... Faolan não conseguiu evitar um franzir de sobrancelhas.
— Dá-me a tua palavra...
— Está bem, prometo, os dois ficarão em segurança, nem que isso me mate. Malditos sejam os deuses de Fortriu, tão cruéis e injustos. Devia ser dada a um homem de Breakstone a oportunidade de fazer alguma coisa com a sua liberdade. Mereces mais tempo do que isto. Por que o fizeste?
Deord tremia agora convulsivamente. O sorriso que tentava esboçar era um trejeito de morte. — Fiz... algo... bom... no fim...
— Por nós. Por estranhos.
— Tu... agora... continua... faz bem... ti...
— Eu? Eu deitei fora as minhas hipóteses de conseguir alguma coisa muito antes de entrar em Breakstone. Eu é que devia ter servido de engodo.
— Disparate... Faolan...?
— Diz-me o que queres.
— Mensagem... casa...
— Onde é a tua casa?
— Diz... família...
— Onde, Deord?
— Cloud... Hill... perto do lugar dos reis...
— Em Laigin? — Um arrepio percorreu Faolan. O que estava ele a prometer? — Mas...?
— Irmã... casou com um dos teus... diz-lhe primeiro...
— Ela casou com um celta?
— Diz-lhes... desculpa... diz... acabou... bem...
Faolan assentiu. Tinha um nó na garganta e era-lhe difícil falar.
— Faolan?
— Sim, Deord?
A cabeça calva estava agora encostada ao ombro de Faolan. Uma mão tocou-lhe no braço.
— Canta — sussurrou Deord. — Canta...
E assim, Faolan cantou. Cantou enquanto o sol se punha lentamente por detrás das árvores e a luz na clareira se ia desvanecendo, de rosa para violeta, de violeta para o cinzento pálido e sombrio da noite de Verão. Cantou e uma infinidade de pássaros cantou com ele, despedindo-se do dia em que aquele guerreiro travara a sua derradeira e mais corajosa batalha. Cantou uma história de guerra arrebatadora, cuja letra era sobre os atos admiráveis de homens, a sua coragem e nobreza, os sacrifícios altruístas para um bem maior. Deord estava encostado a ele, pesado e inerte, um pequeno movimento dos dedos de vez em quando, ao ser acometido por um espasmo de dor, o único sinal de que ainda continuava agarrado à vida. Isso e os olhos. Semicerrados, encontravam-se presos ao rosto de Faolan enquanto este entoava a sua música com lágrimas a correrem-lhe incessantemente pelo rosto. Lágrimas que eram não só pela perda de um bom homem, mas por todos os habitantes de Breakstone, aqueles que, de uma forma ou de outra, ali tinham sido destruídos e aqueles que tinham sobrevivido para trilhar o seu caminho estropiado no mundo. E porque também ele era um homem de Breakstone, algumas das lágrimas eram por si próprio.
Quando o fim se aproximou, a respiração de Deord começou a ficar mais entrecortada como se o sangue estivesse a acumular-se nos pulmões, na traquéia. A dor fazia com que o corpo estivesse tenso e trêmulo. Faolan segurou no homem enorme como se este fosse uma criança, com mãos firmes e delicadas. Como não havia muito mais que pudesse fazer, continuou a cantar. Naquela situação extrema, outro homem que não Deord teria implorado aos seus companheiros por uma faca afiada e pelo esquecimento. Deord suportou tudo, dentes cerrados, punhos fechados, em silêncio, salvo pela respiração difícil.
Algures nas profundezas da sua memória, Faolan encontrou os vestígios de uma canção de embalar. A melodia doce e simples instalou uma calmaria na clareira, que aquietou até o canto dos pássaros enquanto a noite caía e a Mãe de Tudo estendia os seus braços para levar, por fim, o seu guerreiro solitário.
Dorme, meu filho, valente e tão belo Que a noite te traga um sonho singelo.
Uma coruja solitária piou nas profundezas dos bosques. Deord moveu um pouco a cabeça, encostando-se ao braço de Faolan.
Pássaros noturnos cantem a vossa canção de embalar Sob o manto do céu.
Os punhos de Deord, com os nós dos dedos brancos, descontraíram-se e a sua respiração abrandou. Algures para além dos carvalhos, a luz pálida da lua lançou um manto de prata através da orla do céu.
Danu leva-te pela mão
Leva-te para a terra das sombras.
Descansem pernas cansadas e olhos pesados
E despertem para um novo dia.
A voz de Faolan cedeu e ele olhou para baixo. Deord sorria. Um instante depois, os olhos serenos tornaram-se fixos, as feições relaxaram e ele partiu.
Faolan continuou a segurá-lo e a cantar por alguns momentos. Depois, durante muito tempo, ficou sentado em silêncio. Parecia adequado que fosse ali feita uma espécie de vigília: quem mais havia para reconhecer a morte heróica daquele homem a não ser ele próprio, o espião vira-casacas cujo modo de vida era cortar pescoços? Mais tarde, quando a lua já ia alta no céu, fez o que pôde para preparar Deord, a fim de ser enterrado. Limpou-lhe o rosto, endireitou os farrapos que eram as suas roupas e fez um inventário aterrador dos golpes que o grupo de caça de Alpin lhe tinha infligido. A seguir, cavou uma sepultura rasa, utilizando a espada partida como pá. Deitou o guerreiro com os braços cruzados por cima do peito, os punhais a seu lado, e cobriu-o com o seu próprio manto curto. Não proferiu quaisquer orações, pois Faolan não acreditava em deuses, nem sabia quais Deord tinha venerado. Se Breakstone não convencesse um homem de que as divindades não existiam ou não se importavam com eles, fazia o oposto: levava a que um prisioneiro acreditasse nelas a um tal ponto que raiava a obsessão. Morriam homens lá dentro a gritar pela intervenção divina. Faolan ouvira-os. Desconfiava que Deord era o tipo de homem que se enquadrava no primeiro caso, um homem não muito diferente de si próprio, embora ele jamais fizesse o que Deord fizera naquele dia. Estaria preparado para morrer por Bridei. Arriscaria a sua vida por Ana. Mas nunca se sacrificaria por desconhecidos. E isso era estranho. Há pouco tempo atrás, pensara que a sua vida não possuía qualquer valor. Continuara a viver simplesmente porque lhe parecera um sinal de fraqueza optar pela outra alternativa. Algo mudara. Talvez estivesse a mudar há já algum tempo. Todos eles tinham desempenhado um papel nisso: Bridei, Ana, Deord. E agora Faolan tinha mais missões a cumprir do que alguma vez desejara. Manter o miserável Drustan em segurança; levar Ana a casa; acabar com Alpin. Apresentar-se a Bridei ou ao seu representante no Monte Branco. Regressar a Laigin e dizer a uma mulher que o seu irmão fora golpeado até à morte para que um par de estranhos pudesse viver e ser livre.
Nas sombras da noite de Briar Wood, cobriu a figura imóvel de Deord com terra e depois, sob o luar, procurou pedras, dispondo-as num dólmen tosco para afastar os necrófagos do corpo. Ficou de sentinela à sepultura provisória, à espera do raiar do dia, a fim de poder dar início à longa caminhada de regresso à queda de água. A Ana, que ele confiara toda a noite ao inconstante Drustan. Nas longas horas desde as profundezas da noite ao primeiro sopro da madrugada, Faolan pensou em lealdade e honra, em escolhas feitas e oportunidades aproveitadas, em sangue e traição. Com o coração repleto de terror, pensou na sua casa.
Fola regressara à casa das mulheres sábias em Banmerren. Bridei encontrava-se muito longe do seu alcance. Uist já não deambulava pelo mesmo mundo que os seus velhos amigos, avançando antes deles para o local para além das margens. Aniel, embora astuto em questões de estratégia, não compreendia de todo a matéria das visões e dos portentos. Não havia ninguém com quem Broichan pudesse falar. Não havia ninguém a quem pudesse contar. A vontade de partilhar o que vira era enorme. Na verdade, era seu dever fazê-lo, caso aquelas imagens de um homem a suportar uma morte indescritível com uma coragem divina pudessem, de alguma forma, revelar-se úteis para os futuros esforços do rei de Fortriu e do seu exército. Mas ele não poderia contá-lo, não até que a sua interpretação se tornasse clara. Era um mau presságio para a aliança com Alpin de Briar Wood. Parecia desastroso para a refém real e talvez também para o braço direito de Bridei. Mas Broichan conhecia bem a natureza enganosa de tais visões, a sua distorção do tempo e do espaço, a sua mescla entre o real e o simbólico.
Amaldiçoada fosse aquela doença! A sua mente encontrava-se toldada pela incerteza e os braços e as pernas doíam-lhe por ter estado imóvel durante tanto tempo, enquanto mantinha a visão. Outrora, seria capaz de ficar ajoelhado durante toda a noite, os braços estendidos numa pose de meditação, e levantar-se de madrugada sem qualquer vestígio de cãibras. Outrora... isso fora antes de a maleita começar a dominá-lo outra vez. Que A Que Brilha o ajudasse, sentia-se um velho senil, fraco, dorido e confuso. Não conseguia suportá-lo. Será que aquela visão fora enviada apenas para lhe dizer que devia aceitar a morte de braços abertos? Que tinha de enfrentá-la sem pesar, como aquele guerreiro solitário parecera fazê-lo?
De repente, sentindo-se desesperado por encher os pulmões de ar puro, Broichan destrancou a porta e saiu para o jardim. Foi um choque ver o sol a brilhar, ver a sua luz tocar as filas ordenadas de legumes, ervas aromáticas e flores medicinais com uma benevolência cálida. No pedaço de relva ao lado do canteiro de alfazema, encontrava-se Derelei, sentado a brincar com o seu pequeno cavalo de pedra, as feições infantis solenes devido à concentração. A sua frente estava a mãe, de pernas cruzadas e costas direitas, observando a criança com os olhos tão grandes e tão misteriosos como os de uma coruja. Poder-se-ia pensar que era irmã de Derelei, cogitou Broichan, tão jovem e delicada parecia. Foi acometido por um calafrio, um arrepio fugaz e indesejado que era parte recordação, parte mau presságio. O que Fola dissera sobre a criança era um disparate. Ninguém com inteligência poderia dar importância a tal idéia. A linhagem de Derelei era evidente no seu cabelo castanho aos caracóis e cândidos olhos azuis (ambas de Bridei) e, uma bênção mais confusa, a palidez e os talentos invulgares que herdara da mãe. E, caso fosse a linhagem de Bridei que estivesse em causa, também essa se encontrava para além de qualquer controvérsia. Qualquer pessoa que tivesse conhecido Maelchon, de Gwynedd, conseguiria ver a sua marca no rosto largo e postura ereta e ver algo da presença poderosa de Maelchon na autoridade do seu filho sobre os homens. O rei de Gwynedd era um líder nato. Bridei era isso e mais ainda. Além disso, Anfreda não era o tipo de mulher que traísse o marido. Mas, mesmo assim... mesmo assim, existia um mal-estar profundo na mente de Broichan enquanto caminhava em direção a Tuala e ao filho e viu ambos os rostos alterarem-se ao virarem-se para ele. A expressão de Tuala tornou-se circunspecta e cautelosa, enquanto Derelei levantou os braços, radiantes.
— Posso juntar-me a vós? — Broichan sentou-se na relva, o manto escuro aberto à sua volta. Depois, seguindo um impulso súbito e inesperado, disse: — Tuala, quero pedir-te um favor.
— A mim? — duvidou, visivelmente surpreendida. — Claro, se puder ajudar.
Sem se deter para pensar muito, relatou-lhe aquilo que os deuses lhe tinham mostrado. Ela permaneceu sentada, em silêncio, os olhos sérios fixos nele, enquanto Broichan lhe falava do homem em fuga, da caçada, da derradeira e inacreditável prova de resistência. Derelei fazia o pequeno cavalo saltar por cima do braço estendido.
Tuala não disse nada até a história terminar, com o guerreiro estendido no chão, moribundo, sozinho na floresta. Depois declarou:
— De fato, foi uma visão sinistra, não admira que estejas tão pálido.
Pensei que estivesses doente. Isto é profundamente inquietante. Alpin, disseste tu? E ele falou em Ana. Esse caçador cruel que mutila homens moribundos é o chefe tribal a quem a enviamos, para que se casassem. Achas que pode ser uma visão do presente? Ou talvez seja o que poderá vir a acontecer se não tomarmos medidas para o evitar?
— De bom grado ouviria a tua própria interpretação.
— Eu... se assim o desejas. — O motivo para a hesitação de Tuala era óbvio. Desde que fora colocada na casa dele, recém-nascida, havia muitos anos, Broichan nunca pedira a sua opinião sobre tais assuntos, embora soubesse bem os talentos que ela possuía. — E claro — disse —, que não fui eu que vi essas imagens. Isso significa que tenho de analisá-las indiretamente, através dos teus olhos. Se tivesse estado ao teu lado, usando o mesmo instrumento de adivinhação, talvez os meus olhos me tivessem oferecido a mesma visão, mas da forma como os deuses quisessem que eu a visse. Isso seria mais útil.
— De qualquer maneira, diz-me. — Broichan estalou os dedos e o cavalo de pedra virou a cabeça na sua direção.
Ainda assim, Tuala hesitou.
— O que se passa? — perguntou ele.
— Tenho de dizer-te algo, mesmo que te ofenda. Se eu falar, tu não... não usarias as minhas palavras contra mim? Existem pessoas na corte, e para além dela, que se apossariam de quaisquer meios disponíveis para minar o poder de Bridei, sobretudo agora, enquanto ele está fora. Tenho de ser cuidadosa, Broichan.
— Só te pergunto isto por mim, Tuala.
— Fola seria capaz de te responder melhor.
— Tu estás aqui. Fola não.
Tuala pigarreou, com nervosismo. Seria possível que, mesmo já sendo mulher adulta e rainha, continuasse a ter medo dele? Derelei fora para junto de Broichan e o pequeno cavalo seguira-o, levantando os cascos de pedra numa seqüência ordenada.
— Pareceu-me muito... atual — disse Tuala. — A floresta, a luz, isso parece ser semelhante ao local para onde Ana se dirigia e à estação do ano em que estamos. Não sei quem era esse guerreiro. Talvez não seja uma pessoa real, antes uma personificação do ideal de coragem masculina. Afinal de contas, os Priteni vão para a guerra este Verão. Os deuses podem estar a dizer-nos que muitos poderão tombar antes de alcançarmos a vitória. Mas... tu ouviste esse chefe tribal, Alpin, a falar de Ana, que ela tinha fugido ou sido raptada... que o traíra com o próprio irmão... isso não pode ser verdade. Conheço Ana. Ela preza o dever e a propriedade acima de todas as coisas. Seria a última pessoa a agir de forma tão impulsiva e com uma tal desconsideração pelas convenções sociais. Alpin falou num celta. Poderia estar a referir-se a Faolan, embora por esta altura a escolta certamente esteja já a regressar a casa...
— Ele disse que o celta era um bardo — ponderou Broichan.
— Nesse caso, não era Faolan. Se essa era uma imagem verdadeira do presente ou do futuro próximo, algo de terrivelmente errado se passou com Ana. Temo por ela, por todos eles. E... se o casamento não teve lugar, isso pode significar que o tratado de Bridei não foi assinado. Esse Alpin, de Briar Wood, nunca concordou com ele. São novidades perigosas para Bridei.
— Quer dizer que não consideras a visão como sendo puramente simbólica? — Broichan sentiu a tensão do seu próprio corpo e obrigou-se a respirar mais devagar. — Uma mensagem sobre, digamos, a natureza da morte e do morrer?
Seguiu-se um longo silêncio e os olhos estranhos e muito abertos de Tuala observaram-no com uma expressão solene.
— Por que motivo haveria A Que Brilha de te enviar uma tal mensagem? — acabou por perguntar.
A resposta surgiu, mesmo sabendo que não devia dizê-lo.
— Para me indicar que devo aceitar o que me está reservado — disse. — Que não devo continuar a implorar-lhe mais tempo. Consigo suportar a dor, ensinei a mim próprio uma forma de a ignorar. Mas é demasiado cedo. Tenho tantas coisas para fazer... — Derelei trepara para o colo de Broichan e brincava com as longas tranças do cabelo do druida, retorcendo-as e atando-as umas às outras. Broichan colocou o braço em redor do pequeno corpo da criança e olhou para Tuala. O que viu no rosto dela não foi choque nem pesar, nem sequer a satisfação de observar o abalo de um antigo inimigo. Em vez disso, os seus olhos sobrenaturais faiscavam de determinação e o seu maxilar delicado encontrava-se tão firme como um de um guerreiro.
— É uma visão de coisas verdadeiras — disse-lhe ela —, e que, muito provavelmente, estão a ocorrer neste momento, o que significa pouca sorte para o guerreiro caído, mas boas notícias para ti. A Que brilha confiou-te a educação de Bridei e, de certa forma, a minha. A deusa considera-te um filho favorito e um canal para a sua sabedoria. Não deves esquecer-te que, enquanto druida, és o servo dos deuses. E já que estamos a falar em confiança, confiei-te o meu tesouro mais precioso: o meu filho. Tens para com os deuses e para comigo a dívida de sobreviveres até teres ensinado a Derelei o que ele precisa de saber. Sem essa aprendizagem, o caminho dele ao longo da vida será deveras perigoso. Foi-me muito difícil dar-te essa confiança. Tens de cumprir a tua parte do acordo.
Tuala surpreendera-o. Era mais forte do que supunha. Poderia ser Fola a falar.
— Infelizmente — retorquiu, enquanto os braços de Derelei lhe envolviam o pescoço e a criança aconchegava a cabeça de encontro ao seu ombro —, não posso evitar os efeitos de um veneno que me foi administrado há anos atrás e que me fez mal. Agora, está a exercer o seu efeito dentro de mim. Na verdade, os meus dias estão contados.
— Que ajuda procuraste para o mal de que padeces? — perguntou Tuala. — Sei que estás doente e a sofrer. A medida que a estação vai avançado, isso tem vindo a ser cada vez mais evidente. Percebi que desejavas ir com Bridei. Tentei certificar-me de que ele não soubesse a verdade, pois teria sido um grande peso para ele durante a campanha. Ele gostaria que o tivesses acompanhado.
Broichan abraçou a criança e não disse nada.
— A Fola ofereceu-se para te ajudar? Ou os druidas da floresta? Não houve resposta.
— Muito bem. Pediste-me ajuda e eu vou ajudar-te. Mas tens de aceitar que, neste caso, poderás não conseguir curar-te a ti próprio.
— Pedi-te ajuda na interpretação de uma visão, não para isso.
— És o druida do rei. Por que motivo precisarias que te explicasse as mensagens da taça das visões? — O tom de voz era suave e, através dele, Broichan percebeu que ela já sabia a resposta. De repente, tornou-se possível dizer a verdade e tudo jorrou em catadupa: as dores de cabeça, a cegueira temporária, o entorpecimento gradual dos seus poderes, de tal forma que, muitas vezes, mesmo as tarefas mais simples da sua arte pareciam encontrar-se para além das suas capacidades. O terror de, em breve, poder perder o seu dom por completo.
Tuala escutou-o calmamente e Broichan apercebeu-se de como ela era boa nisso. Não havia qualquer crítica nos seus olhos. Quando terminou de falar, Tuala respirou fundo e disse:
— Deve ser bastante assustador para ti. Deves ter-te sentido muito só.
— Estou habituado a estar só.
— Mesmo assim. Deixas-nos ajudar-te?
— Deixas-nos? Não quero que isto seja do conhecimento público, Tuala. Isso só serviria para alertar os inimigos de Bridei para uma fraqueza na sua corte. Todos devem continuar a acreditar que ainda sou capaz de desempenhar o meu papel aqui.
— Só precisam de ficar a saber as pessoas em quem confias. Fola, claro está, e os seus curandeiros experientes. Talvez Aniel, pois ele pode substituir-te no caso de te ausentares. E eu. Sei que nunca confiaste em mim, mas agora constaste-me e Bridei gostaria que eu te ajudasse.
Broichan analisou-lhe o rosto pequeno e em forma de coração, com a pele de uma alvura de neve e olhos grandes e brilhantes.
— Ofereces-me ajuda por causa de Bridei?
— E por mim, também — respondeu ela. — Salvaste a vida de Derelei. Ele precisa de ti. Todos nós precisamos de ti, Broichan. Se lutarmos o melhor que conseguirmos, todos juntos, talvez sejamos capazes de vencer essa maleita. Certamente que a visão é um bom sinal. O teu relato foi lúcido e detalhado.
— Já passou muito tempo desde que fui visitado por tais imagens e mais tempo ainda desde que a interpretação me ocorreu, de forma imediata e verídica. Sou o melhor curandeiro de todas as terras dos Priteni, Tuala. Se não consegui deter o avançar desta doença, quem conseguirá?
— Não sei — respondeu ela. — Talvez aquilo de que precisas se encontre para além dos esforços de um só homem, seja ele o druida do rei ou não. Só sei que vale a pena salvar-te e que, caso sejamos capazes, o faremos. Talvez a visão estivesse a dizer-nos simplesmente isso: sê forte, sê corajoso, sê o melhor que consegues. E que não percamos a esperança, mesmo no pior dos momentos.
O coração de Broichan batia acelerado. Sentia-se como se tivesse saltado de um precipício, aterrando, para sua surpresa, em mão seguras. Sentia o sangue a correr-lhe nas veias. Para lá do relvado onde se encontravam sentados, druida, jovem mulher e criança, as flores do jardim do Monte Branco resplandeciam em cores que, de repente, pareciam mais vivas e mais reais do que quaisquer outras que ele vira até então.
— Ainda assim — acrescentou Tuala, num tom de voz sério —, devíamos enviar uma mensagem a Bridei. Ele tem de ser avisado de que nem tudo vai bem no norte.
— Pensas em tudo.
— Não é bem assim — respondeu ela. — Enquanto esposa do rei, ainda estou a aprender. Agora vou mandar buscar Fola. Ou, melhor ainda, acho que vamos visitá-la a Banmerren.
Ana estivera imersa num sonho maravilhoso, um sonho no qual estivera nos braços de Drustan, o corpo dele a aquecer o seu, as mãos dele a movimentarem-se sobre a sua pele com uma paixão e uma ternura que despertaram nela sensações de surpresa e prazer, às quais depressa se seguiu um desejo premente e latejante. A não concretização dolorosa desse desejo permanecia com ela agora, enquanto acordava com a alvorada na pequena caverna, com a sua cortina de água impetuosa. O poder das sensações físicas espantou-a. Certamente que, se o corpo vacilava daquela forma na iminência da libertação, alguma coisa devia transparecer no rosto, nos olhos ou nas faces coradas. Graças aos deuses que Faolan não estava ali para lhe ler os pensamentos. Nas saliências da parede rochosa da caverna encontravam-se apenas três pássaros, o cruza-bico, alisando com o bico as penas escarlates, a gralha, usando o bico para retirar uma pequena criatura qualquer de uma fenda, e o outro, o que parecia ser um falcão, embora diferente de qualquer espécie que Ana alguma vez vira, fitando-a simplesmente, um olhar vivo e resoluto.
O sonho desvaneceu-se e a realidade inundou-a. Havia luz. Era dia e Faolan não regressara. Isso só podia significar uma coisa: Alpin tinha-o encontrado antes de ele alcançar Deord. Os dois tinham sido capturados, feridos ou mortos. Estava completamente sozinha na floresta, rodeada de quilômetros de território desconhecido, envergando um vestido de casamento úmido e possuindo apenas a pequena faca de Deord. E os pássaros, claro, mas Ana acreditava que esses não seriam de grande ajuda, se Drustran em pessoa não estivesse por perto. O seu papel principal fora sempre o de mensageiros, como prolongamento do próprio homem. Sem ele, o que poderiam as aves fazer para ajudá-la?
Estremeceu, cingindo o pequeno cobertor em redor dos ombros e tentando pensar de forma prática. Podia tentar regressar à fortaleza de Alpin. Se seguisse o curso de um riacho, este deveria acabar por conduzi-la ao lago perto das muralhas de pedra. Poderia colocar-se à sua mercê. Lá, pelo menos, haveria calor e abrigo. Alpin... Alpin, que originara aquela expressão encurralada no rosto de Faolan ao obrigá-lo a contar-lhe uma meia-verdade, a qual acreditava que iria virá-la contra o seu amigo de confiança. Alpin, que lhe batera. Alpin, que ficaria muito, muito zangado com ela. Alpin que, ao que parecia, não tinha qualquer intenção de honrar o tratado de Bridei, mas que, contudo, pretendia ser pai dos filhos dela. Murmurava para si própria, revendo as opções que tinha, à medida que a luz se ia tornando mais intensa do lado de fora da caverna, pressagiando o nascer do Sol e um dia em que ela, de uma forma ou de outra, teria de abandonar aquele refúgio temporário, pois uma coisa era certa: não fazia tenção de morrer à fome ali, como uma ratazana apanhada numa ratoeira
— Drustan foi-se embora, não foi? — Dirigiu a questão aos três pássaros, uma vez que eram a única audiência que tinha. — Regressou a ocidente. Ele adora aquele lugar, o Vale dos Sonhos. Era o seu único e verdadeiro lar, o único sítio em que as pessoas não o rejeitavam. Claro que foi para lá... — Cruel. Tão cruel, depois daquele sonho nítido, que fora tão real. Será que fora tola e ingênua, iludida pela sua idéia do que era o amor? Acreditara nas palavras doces de paixão e desejo de Drustan. Recordou o comentário seco de Deord, Ele é um homem apessoado, e a perplexidade muda de Faolan ao tentar perguntar-lhe como é que tudo acontecera. — Pensei que ele me amasse — murmurou para os pássaros. — Pensei que estivesse a falar a sério. Mas ele não vem... — Engoliu as lágrimas que ameaçavam assolá-la. Ali estava o dia que tinha de enfrentar, bem como todas as outras noites e dias de uma viagem impossível, de regresso ao Monte Branco. De alguma forma, ela teria de a empreender sozinha.
— Ana?
Faolan encontrava-se à entrada da caverna, a roupa manchada de sangue, o rosto branco e exausto. Sentiu-se inundada por uma sensação de alívio, à qual se seguiu uma terrível apreensão. — Faolan! Estás ferido? E Deord? E... Drustan?
O olhar dele dirigiu-se para os pássaros e depois novamente para ela. — Não há uma forma suave de dizer isto. Deord morreu. O grupo de caça de Alpin matou-o. — E, ao ouvir o murmúrio de horror de Ana, acrescentou: — Alcancei-o tarde de mais para poder ajudá-lo. Tudo o que pude fazer foi sentar-me junto dele enquanto morria.
— Como...?
— Não queres saber, acredita em mim. Morreu corajosamente e levou uma série de guerreiros com ele. Estás bem? Não pude voltar ontem à noite, ele já estava muito longe...
— Estou sã e salva, Faolan. Claro que tinhas de cuidar de Deord. É terrível. Tão triste. Ele era um bom homem. — Lembrou-se de como Deord fora rápido a protegê-la quando Alpin estava prestes a colocar as suas mãos violentas em cima dela. Recordou-o na floresta, num combate amigável de pugilismo com Drustan, uma imagem incrível de força e graça. — Interroguei-me muitas vezes sobre qual seria o seu passado e como veio parar a Briar Wood. Suponho que agora nunca saberemos.
Faolan não disse nada. Tinha nas mãos uma pequena trouxa, provavelmente de Deord, na qual remexia, dispondo de forma organizada o que ia encontrando: uma pederneira, um rolo de linho para ligaduras, um saco encerado que poderia conter mechas, tiras de carne seca e um odre. Uma luva de pele, espessa e forte.
— Viste sinais de Drustan? — Ana teve de obrigar-se a perguntar. Sofreria tanto ao ouvi-lo dizer não.
— Deord estava convencido de que ele deixou a fortaleza — respondeu Faolan, olhando-a com um ar trocista. — Pediu-me que ajudasse Drustan a fugir em segurança. E que tomasse conta de ti. Pensou em toda a gente, exceto em si próprio. Ele morreu por nossa causa, Ana. Uma perda cruel. Alpin pagará por isto.
Nunca o vira assim. Havia algo de assustador nos seus olhos.
— Não será uma perda totalmente em vão — disse-lhe Ana —, se fizermos o nosso melhor para usar a oportunidade que Deord nos deu. Escapar ilesos e viver as nossas vidas com coragem e bondade. Vivê-las por ele, bem como por nós próprios.
— A seu tempo, talvez eu aprenda a ser filosófico — retorquiu Faolan, num tom seco. — Não viste o que o Alpin lhe fez. Agora vamos, vamos embora. Não duvido de que, esta manhã, Alpin e os seus homens voltem a estar no nosso encalço. Quando cá chegarem, quero estar bem longe daqui. Sugiro que entales a saia ou, melhor ainda, lhe arranques um bocado, para que possas trepar. Vamos subir o penhasco e depois aqueles montes.
Em silêncio, Ana pegou na pequena faca e utilizou-a para cortar a saia delicadamente bordada do seu vestido, até esta ficar dois palmos acima dos tornozelos. Enrolou a tira de tecido úmido e enfiou-a na trouxa. Faolan não teve de lhe dizer que não deveriam ser deixadas para trás quaisquer provas da sua presença ali. Sem uma palavra, seguiu-o para fora da caverna.
— Fica com esta trouxa — disse Faolan. — É mais leve. Coloquei a maior parte daquilo que precisamos na minha. É melhor ires à frente, para que eu possa apanhar-te se caíres. Sobe devagar. A rocha é lábil.
— Como saberemos para onde ir, sem Deord? — Ana olhava para cima. A face íngreme do penhasco agigantava-se acima dela, a superfície lisa e escura suavizada aqui e ali por manchas minúsculas de verde. No ar pairava uma nuvem de gotículas.
— Tenho esperança de já termos um guia — disse Faolan, enquanto o cruza-bico, a gralha e o falcão voavam, um a um, para fora da caverna, subindo em espiral à frente deles, indicando o caminho. — Numa situação destas, é preciso confiar. Toca a subir. Estou mesmo atrás de ti.
Passaram o resto do dia a trepar e a escalar, a equilibrarem-se e a saltar, a correr por cima de pedras soltas e de rochas, a percorrer trilhos lamacentos no meio da floresta e a atravessar pântanos lodosos e escuros. Quando achava que não era capaz de dar mais um passo, quando o peito lhe doía de cada vez que tentava respirar e os joelhos lhe tremiam a cada passo que dava, Faolan encontrava um esconderijo e deixava que ela descansasse por alguns instantes, bebesse um pouco de água e comesse um pouco da detestável carne seca. Tudo isso era-lhes bastante familiar, devido à última viagem que tinham feito. Apesar da expressão alarmante dos seus olhos, Faolan tinha palavras gentis, palavras de elogio e encorajamento. Sem elas, Ana tinha a certeza de que teria sido impossível continuar àquele ritmo. Sem dúvida que Alpin e os seus homens deviam já estar muito atrás deles. Sem dúvida que, nessa noite, poderiam parar sem receio de serem atacados.
O falcão ia à frente. Faolan seguia os trilhos que a ave escolhia, mesmo quando pareciam ser menos do que prometedores. Viajavam em terreno mais elevado. As manchas de floresta estavam agora bem abaixo deles e caminhavam mais expostos, tanto a outros olhos, como ao vento que soprava gelado nas encostas, mesmo naqueles dias de Verão. Flores minúsculas desabrochavam em fendas, erguendo para o sol os rostos brilhantes como jóias. As sombras das nuvens altas dançavam pelos flancos despidos dos montes e as ervas pálidas curvavam-se perante a brisa. A distância, surgiam cumes intimidantes, púrpuras, cinzentos e de um azul profundo. Não havia quaisquer sinais de habitação humana, mas os veados e as lebres tinham deixado os seus rastos na encosta. A noite, deveriam andar por ali lobos.
À medida que o sol se encaminhava para oeste e as sombras se alongavam, o falcão conduziu-os encosta abaixo, de volta a uma extensão de pinhal. Pela primeira vez, Ana viu Faolan hesitar, enquanto a gralha e o cruza-bico seguiam o pássaro maior para a sombra cada vez mais longa das árvores altas.
— Aqui estamos para lá das fronteiras de Briar Wood? — arquejou Ana, aproveitando-se da paragem curta para recuperar o fôlego.
— Não sei — disse Faolan. — Preferia não voltar à floresta. Pode oferecer encobrimento, mas dá-me uma sensação de desconforto, como se este fosse o território natal de Alpin. Já vi a rapidez com que ele atravessa este terreno, acompanhado pelo grupo de caça. Ele conhece-o bem. — À frente deles, a gralhava soltou o seu crá familiar e o cruza-bico voava de arbusto em arbusto. O falcão desaparecera. — Creio que temos de confiar nele. Pronta para continuar?
— Nele? — perguntou Ana.
— No pássaro. Ele é tudo o que temos. Anda, dá-me a mão. Estás a sair-te bem. Agora corre.
Naquela primeira noite não fizeram fogueira alguma. Sentaram-se junto um do outro, mas sem se tocarem. Dormiram um pouco e escutaram os sons da floresta: o restolhar na vegetação rasteira, o chiar na folhagem, os pios sobrenaturais e cavernosos das corujas e, uma vez, à distância, um uivo arrepiante. Nenhum deles fez qualquer sugestão sobre o que poderia ser.
As três aves guardiãs permaneciam por perto. O cruza-bico encontrava-se, por norma, sobre o ombro de Ana, a gralha estava pousada no ramo de uma sorveira-brava e o pássaro maior podia ser avistado na copa cheia de agulhas de um pinheiro escuro. Sempre que Ana olhava para cima, encontrava o seu olhar vivo e desconcertante. Era um estranho substituto para o pássaro que Drustan perdera, a minúscula carriça de penas macias. Interrogou-se sobre a sua origem, quer ele fosse capaz de as conjurar quando precisava delas ou de lançar um encantamento sobre as criaturas selvagens da floresta, a fim de as enfeitiçar. Como fizera com a própria Ana... Talvez apenas tivesse jogado uma qualquer espécie de jogo com ela. Os homens pareciam apreciar esse tipo de coisas: Alpin, por exemplo. Talvez Drustan nunca tivesse pensado seriamente que os dois pudessem vir a ter um futuro juntos.
— Estás a chorar? — A voz de Faolan era suave, quase hesitante.
— Claro que não. — Ana fungou e, à falta de algo melhor, limpou o nariz à manga. — Por que razão haveria eu de estar a chorar?
— Poderia enumerar umas cinco ou seis.
— Eu só... só não compreendo por que motivo Drustan não quis vir conosco — explodiu, incapaz de se conter, pois aquela idéia andava às voltas na sua cabeça. — Sei que ele achava que poderia magoar alguém se saísse... Mas se o Deord estava certo, se Drustan deixou Briar Wood de livre vontade, por que razão ainda não nos alcançou? Pensei que ele o quisesse... pensei que gostasse de mim... — As palavras soaram-lhe patéticas. Engoliu mais palavras, mas não foi capaz de conter as lágrimas. — Espero que tenha conseguido fugir — disse, trêmula.
— E se Alpin também o apanhou? E se ele estiver...
— Pára com isso, Ana. — Faolan não parecia zangado, apenas muito cansado. — Pensa apenas em chegar a casa e começar de novo. E fica contente por ainda estares viva. Já se perderam demasiadas vidas nesta nossa malfadada missão. Se servir de alguma coisa, digo-te que não acredito que o teu precioso Drustan tenha sido uma delas. — Olhou de relance para o falcão e este devolveu-lhe o olhar, os olhos fitos.
— O meu instinto diz-me que sobreviveu e saiu de Briar Wood. O que decidiu fazer a partir daí não é da minha conta.
Fez-se silêncio. O tom de voz dele fora algo repressor.
— É da tua conta, sim, Faolan — acabou Ana por dizer. — E da minha. Deord não te pediu para te certificares de que Drustan se encontrava em segurança? Ele passou-te a sua própria responsabilidade. Passou-a a nós.
A voz de Faolan estava tensa.
— O que estás a sugerir que façamos? Que voltemos a Briar Wood para ver se o encontramos? Que caminhemos direitinhos aos braços abertos de Alpin?
— O que se passa contigo, Faolan? Drustan é um homem decente, um bom homem. Nunca acreditei que fosse culpado do crime de que o acusam. Tenho a certeza de que jamais faria tal coisa. Não hesitaste em voltar atrás para ir à procura de Deord, a quem não conhecias melhor. Drustan corre um enorme perigo. Pode estar a vaguear pela floresta, sozinho, com Alpin atrás dele.
— Tai como nós — retorquiu Faolan. — E se tiver juízo, sairá do alcance de Alpin o mais rápido que conseguir, tal como nós estamos a fazer. Tenho a certeza de que ele está bem, Ana. Acho que sabe tomar conta de si mesmo. Provavelmente é muito mais autoconfiante do que imaginas.
— Faolan?
— Mm?
— Quando o viste, quando saíste com Deord da fortaleza, Drustan disse alguma coisa? Sobre para onde iria ou... disse alguma coisa sobre mim? — Podia imaginar o que Faolan iria pensar, que estava obcecada, perdida de amores, mas era impossível não perguntar.
Faolan demorou algum tempo a responder.
— Era melhor que colocasses isso para trás das costas — disse, por fim. — Deves tentar esquecer o assunto.
— Responde à pergunta, Faolan. Se Drustan não disse nada sobre mim, é melhor que eu o saiba, não é assim?
Ouviu o suspiro do companheiro.
— Ele pensava em ti mais do que em qualquer outra coisa. Não queria perder-te, mas fê-lo, pois o que mais queria era que estivesses em segurança. Ele mais ou menos ordenou a Deord que viesse conosco.
— Oh.
— Na altura, não tive a certeza de que Drustan sairia de Briar Wood. Pareceu-me que estava quase receoso de deixar a sua prisão. O encarceramento prolongado faz isso a alguns homens. Deord parecia confiante que Drustan iria em frente com a sua fuga, e ele conhecia-o melhor do que qualquer um de nós. — Faolan parecia embaraçado, como se estivesse relutante em contar-lhe aquilo e, de vez em quando, olhava de relance para os pássaros.
— Estás preocupado com o fato de ele te poder ouvir? — perguntou Ana.
Faolan fitou-a, semicerrando os olhos.
— Quero dizer — continuou Ana —, já houve alturas, no passado, em que Drustan enviava criaturas e, quando elas regressavam, ele sabia o que tinham visto. Não me apercebera de que o sabias.
— Já vi — replicou ele. — É um dom estranho.
— Faolan?
— Mm?
— Não gostas dele, pois não? Quero dizer, do Drustan.
— Não o conheço — murmurou Faolan entre dentes. — Sei que Deord está morto e que tu estás muito infeliz. Drustan teve a sua dose de responsabilidade em ambos os casos. Que razão teria eu para gostar dele?
— Podias manter um espírito aberto — respondeu Ana. — Não culpes Drustan por aquilo que nos aconteceu. A culpa é de Alpin. Devia ter recusado o tratado e enviado-nos para casa. Essa seria a atitude digna a tomar, se tiveres razão e ele estiver mesmo aliado aos celtas.
— Diz-me — perguntou Faolan —, se Drustan aparecesse agora, como esperarias que o futuro se desenrolasse? Recordando, claro está, a nossa fuga da fortaleza do irmão dele sob circunstâncias duvidosas, a traição de Alpin à confiança de Bridei e o fato de, sem dúvida, termos granjeado a inimizade eterna deste poderoso chefe tribal. Por último, mas não menos importante, há o pequeno pormenor de Drustan ser... diferente. Nitidamente diferente dos outros homens. Tens noção de que, quando regressarmos ao Monte Branco, Bridei procurará outro chefe tribal ou um qualquer rei insignificante para te oferecer? Claro que da próxima vez terá mais cuidado. Mas de certeza que existe um outro qualquer líder respeitável de interesse estratégico à procura de uma noiva real, mesmo que ela agora possua a fama de se meter em sarilhos.
Ana inspirou profundamente e depois exalou, antes de responder.
— Não posso evitar o que aconteceu entre mim e o Drustan, Faolan. Parece que me desprezas. Tudo o que fiz foi apaixonar-me.
Isto pareceu silenciá-lo.
— Quanto à pergunta que me fizeste — continuou Ana —, se Drustan aparecesse aqui agora, ficaria tão feliz que não haveria em mim espaço para mais nada. Mas mesmo que não venha, mesmo que opte por deixar-me e partir para ocidente, nunca consentirei um casamento combinado. Agora não. Simplesmente já não é possível. Teria de dizer a Bridei que não poderia fazer o que ele queria.
— Achas que Bridei concordaria com a tua união com um... um...
— Um quê, Faolan? Um louco? Um assassino? Drustan não é uma coisa nem outra. Tenho a certeza de que tudo isso é mentira, ou um equívoco.
— Lembras-te do que me disseste a caminho de Briar Wood? — perguntou-lhe. — Que querias ir para casa, mas que o dever deve sempre vir em primeiro lugar, pois tinhas em ti o sangue real de Fortriu?
— Eu estava errada — respondeu Ana, interrogando-se sobre o que o teria tornado tão cruel naquela noite. — Nessa altura, eu não sabia o que era o amor. Não compreendia que mudava tudo. Pensava que só acontecia nas histórias... encontrar a única pessoa no mundo que nos completa de modo perfeito, a pessoa que nos torna inteiras. Mas é verdade. Como poderia eu rejeitar isso, se fosse suficientemente afortunada para que ele voltasse para me vir buscar? Não espero que compreendas. Só espero que, um dia, tenhas a sorte de encontrar alguém que te faça sentir assim.
— Miserável e infeliz?
— É difícil explicar. Sim, neste momento sinto-me péssima, como se o meu coração tivesse sido esfrangalhado. Mas jamais poderia desejar não o ter conhecido. Não poderia desejar que nunca tivesse acontecido. Mesmo que aquelas conversas sussurradas venham a ser tudo o que tivemos, valeu a pena.
Faolan não disse nada.
— Faolan? Continuamos amigos?
Passado algum tempo, ele estendeu a mão e fechou-a sobre a dela, quente e forte.
— Sempre — disse. Por cima deles, na árvore, o falcão mexeu-se, inquieto, erguendo as asas fulvas na escuridão.
— Foste mesmo um bardo?
— Mm-mm.
— Surpreendeste-me.
— Não vão haver mais espetáculos. Fiz o que tinha de fazer. Mais não.
— Porquê? — perguntou-lhe Ana. — Custa assim tanto demonstrares os teus sentimentos? Cantas tão bem. E a harpa, foram os acordes mais encantadores que alguma vez ouvi. É triste não partilhar isso com outras pessoas. Certamente que é uma ocupação melhor para um homem do que...
— Do que espiar e assassinar? — O tom de voz era amargo. — Aquilo que faço combina comigo. Combina com o homem que sou agora.
— Mas mostraste-me que também és o outro homem, aquele que conjura magia com os dedos. Aquele cuja voz faz chorar os mais duros dos guerreiros.
— Esse homem desapareceu. Desempenhei um papel durante algum tempo porque era necessário. Não faço quaisquer intenções de voltar a repeti-lo. E sim, custa. Enfraquece-me. Não posso dar-me a esse luxo.
Ficaram sentados em silêncio durante algum tempo e depois Faolan disse: — Ana, devias tentar dormir um pouco. Temos de continuar de madrugada e estás exausta.
— Não quero dormir. Está frio e escuro e... não quero sonhar.
— Tiveste pesadelos? A droga pode ainda estar a afetar-te...
— Foram sonhos bons — respondeu Ana. — Não gosto é de acordar. Não te preocupes com amanhã. Farei o que tiver de fazer. Agora preferia conversar a descansar. Mas não estou a ser justa, deves estar esgotado. Creio que não deves ter dormido grande coisa, ontem à noite.
— Estou habituado a não dormir, lembras-te? — Ana sentiu o sorriso dele na escuridão e isso tranqüilizou-a. — Fala, se quiseres. Ajuda o tempo a passar.
— Uma vez, Deord disse-me que eu devia fazer-te perguntas sobre prisões. — Ana tentou instalar-se de forma mais confortável no chão duro, aconchegando as pernas debaixo da saia lastimosamente cortada. Qualquer tentativa de decoro era ridícula. Sentia-se satisfeita por as sombras esconderem, por agora, a extensão de perna visível acima do cano das botas. — O que quis ele dizer?
— Não é uma coisa sobre a qual eu fale. Estivemos presos num local chamado Breakstone Hollow, em Ulaid, embora não ao mesmo tempo. Digamos apenas que é muito invulgar alguém sair inteiro de Hollow. Deord foi o único outro sobrevivente que alguma vez conheci. Havia uma ligação, quer nós gostássemos, quer não, uma obrigação de nos ajudarmos um ao outro. Deord levou isso ao extremo. Não lhe pedi que morresse por mim. — O tom de voz era sombrio.
— Por que foste preso?
— Tive complicações com uma certa família influente. Os dois ramos desse clã estão num estado de rixa mais ou menos permanente e fui apanhado mo meio. Recusei-me a desempenhar uma determinada tarefa. Como conseqüência, fui enviado para um local onde eles acreditavam que deixaria de ser uma ameaça.
Ana hesitou.
— Uma vez disseste-me que te aconteceu algo... algo terrível que te mudou para sempre. Foi isso, ser preso nesse lugar?
— Não. — Mudou de posição, inquieto. Ana desejou que ele se sentasse mais perto de si e colocasse o braço em redor dos seus ombros, pois estava frio e as suas roupas continuavam úmidas. Enroscou-se mais no cobertor. Faolan recusara a oferta dela para o partilharem.
— Então há outra história? Aconteceu quando eras bardo?
— É uma parte da minha vida que opto por não revisitar — respondeu Faolan. — Não tocava harpa desde... desde antes disso. Não voltarei a fazê-lo e agradeço-te que não menciones os meus dotes musicais quando regressarmos ao Monte Branco. Tocar, cantar... despertam recordações que não posso evocar, não se desejo preservar as minhas faculdades mentais.
— Contas-me o que aconteceu? Não te faz bem guardar tudo isso dentro de ti...
— Aceitei conversar, não revelar as minhas recordações mais sombrias. Isto não é adequado aos teus ouvidos, ficarias indisposta. Tiveste uma vida de privilégio e proteção, apesar da tua posição como refém. Isto foi... foi inenarrável.
— Privilégio e proteção — repetiu. — As palavras tinham-na aguilhoado. Era como se, agora que tinham deixado Briar Wood, ele tivesse voltado a relegá-la à categoria de princesa mimada. Pensou que a conhecesse melhor. — Talvez isso seja verdade. Não posso evitar o fato de a minha mãe possuir o sangue real de Fortriu. Nem pude evitar que ambos os meus pais morressem antes de eu completar cinco anos de idade, nem evitar ser levada de casa antes dos onze. Não vejo a minha irmã mais nova há nove anos. Por esta altura, Breda pode estar casada e ser mãe. Pode ser a próxima refém. Eu era tudo o que ela tinha, Faolan. Fui pai e mãe para ela. Depois aconteceu isto: Alpin e o que aconteceu aqui... e D-Drustan... — Deuses, ela ia chorar outra vez e mostrar-lhe como era fraca. — Não gosto de falar nestas coisas. Creio que podia tentar esquecê-las, porque me fazem sentir triste e culpada e zangada. Mas fazem parte de mim. Fizeram-me aquilo que sou.
Por instantes, Faolan permaneceu em silêncio. Continuava a segurar-lhe a mão, o que Ana encarou como um sinal encorajador.
— Eu... — Vacilou e depois tentou outra vez. — Nessa noite, na primeira noite em que toquei harpa, lembrei-me de tudo. De tudo, de cada som, de cada cheiro, de cada momento hediondo. Os homens queriam celebrar depois de tu e Alpin se terem retirado. Por vontade deles, eu tocaria a noite inteira. Queres saber onde eu estava? Ana esperou.
— Enrolado, como uma criança assustada, escondido na escuridão, num choro convulsivo. Um homem que faz aquilo que eu faço não pode dar-se ao luxo de uma tal fraqueza. Expõe-no aos seus inimigos.
— Eu não sou tua inimiga, Faolan. Estamos sozinhos na floresta e só os pássaros e os insetos podem ouvir o que dizemos. Talvez se me contares, essa memória deixe de exercer um peso tão grande sobre ti.
— Seria... seria repugnante para uma senhora. Chocante... angustiante... não posso.
— Uma senhora usaria a saia tão curta, já para não falar do cabelo? Pensa em mim como tua amiga, uma boa amiga a quem podes fazer confidências. Conta-o como se fosse uma história, se assim for é mais fácil. Como uma história de outro homem, da forma que o farias, caso a transformasses numa canção.
— Essa seria a mais vil das canções.
— Talvez. Talvez só precises de contar a história uma vez. És um bom homem, Faolan, independentemente do que está encerrado no teu passado. Estivemos ao lado um do outro em alguns momentos assustadores. Se alguma vez te vais libertar disso, agora é a altura de começar. Vamos, tenta. — Ana colocou a outra mão sobre o joelho dele. Faolan sobressaltou-se violentamente quando ela lhe tocou. Estava tão tenso naquela noite, que Ana pensou que aquilo seria o mais perto que poderia aproximar-se dele. Depois, em voz baixa, ele começou a contar-lhe a história.
— Existe... existe um clã poderoso na minha terra natal, conhecido como os Uí Néill, provavelmente já ouviste falar neles. Tanto os altos reis, em Tara, como os reis dos Celtas, nesta terra, vêm dessa família. Tem dois ramos, um a noroeste e outro concentrado a leste. Existem muitos chefes tribais e muitas disputas pelas terras e pelo domínio. A história diz respeito a um... a um sub-ramo da família, intimamente relacionado com um chefe belicoso chamado Echen, mas liderado por um homem cujo desejo principal era manter a sua família e comunidade em segurança e em paz. Não queria envolver-se nas guerras territoriais. Era aquilo a que chamamos um brithem, um profissional da lei, um ancião na sua comunidade e muito respeitado. Tinha uma família grande: a esposa, os pais idosos, dois filhos e... e três filhas. A família era bastante próspera. A sua região tinha conseguido evitar o envolvimento nas disputas dos Uí Néill durante tempo suficiente para se tornar quase feliz. As crianças brincavam ao ar livre, as jovens colhiam bagas e ordenhavam vacas sem ser necessário serem vigiadas por guardas armados, os jovens aprendiam ofícios e misteres que não a guerra.
— Tal como a música? — arriscou Ana, com suavidade. Faolan olhou-a.
— O filho mais jovem do brithem tinha talento para a música. Quando atingiu uma certa idade, o seu pai encontrou um mestre bardo que precisava de um rapaz para instruir e o menino partiu, a fim de refinar os seus dotes no ofício, pois, é claro, viajar faz parte da natureza de um bardo. Esteve ausente durante alguns anos. Quando voltou a casa, já não era um menino, mas sim um jovem. E as coisas na comunidade tinham-se alterado.
Na escuridão, fracamente iluminada pela lua baixa além das árvores, Ana viu o rosto de Faolan como um padrão de sombra e osso, os olhos buracos negros. Apertou-lhe a mão com força, mas não disse nada.
— O... o pai dera uma sentença que ia contra Echen Uí Néill — prosseguiu Faolan. — Um dos homens de confiança do chefe tribal foi considerado culpado de vários crimes, cuja natureza não interessa, e, como conseqüência, Echen acreditava ter perdido importância na região. O homem culpado foi exilado. Fora útil a Echen e o chefe ressentiu-se pelo fato de ele ter sido afastado. A vingança dos Uí Néill é rápida. Começaram a acontecer coisas, coisas cruéis. Ardeu uma casa. Gado foi roubado, ovelhas foram chacinadas e deixadas nos campos. A mulher do homem da lei perdeu cinco das suas estimadas vacas destinadas à reprodução. Depois o marido da filha mais velha foi encontrado no celeiro, enforcado. Algumas pessoas disseram que se matou, mas ele não faria isso. Ela estava grávida do primeiro filho. Perdeu o bebê. O choque foi demasiado para ela.
— Mas... não disseste que essas pessoas eram parentes do Uí Néill? Como é que ele...?
— Isso só piorou as coisas. Echen não podia acreditar que o meu... que o brithem tivesse dado uma sentença desfavorável aos seus. Alguns homens não compreendem de todo os princípios da lei, da honra e da justiça. O meu... este brithem era escrupuloso em tais assuntos. Foi isso que... foi isso... — balbuciou.
— A família tomou alguma providência contra Echen, depois dos atos de violência? A comunidade não se uniu para apoiar? — perguntou Ana, tentando ajudá-lo.
— Imagina Echen como um homem como Alpin, que usa o medo como instrumento principal. Um homem com controlo total dentro do seu território. Se Alpin se depara com alguém que se lhe oponha, simplesmente corta um homem aos bocados e pendura-o, como uma lição para qualquer pessoa que possa ser tola o suficiente para o desafiar. Echen era a mesma coisa. Mas o território que chefiava era muito maior do que o de Alpin. Que hipóteses tinha um brithem local contra tal poder? No entanto, a família não cruzou os braços e aceitou o inevitável. Tomaram uma posição.
— Como?
— O... o... acho que não consigo ir para a frente com isto. — Estava a tremer.
Ana tirou o cobertor e colocou-o em volta dos ombros dele.
— Não — protestou Faolan. — Vais ficar com frio...
— Então divide-o comigo. É uma questão de bom senso. — Nesse momento, Faolan olhou para cima, na direção do falcão ainda pousado, sem pestanejar, em cima dos ramos altos da árvore. — Sentes-te constrangido por estares a contar isto na presença destes pássaros?
A boca de Faolan retorceu-se.
— Por estranho que pareça, as únicas pessoas que alguma vez me ouviram falar naquilo que aconte au foram Deord e Drustan. Espero que Drustan não me julgue, se puder ouvir-me.
— Conta-me o resto da história. O que é que a família fez?
— Quando o filho mais novo regressou a casa, os homens do distrito já tinham formado uma força popular para vigiar a sua terra, os seus bens e os seus entes queridos. As armas eram gadanhas e forquilhas. Aquilo que sabiam sobre a arte de lutar era o que tinham aprendido em pelejas amigáveis, em dia de feira. O filho mais velho do brithem era o líder. Era esperto e estava zangado. Vira o desespero que invadia o pai, após a perda daquele que seria o primeiro neto. Este jovem, ele...
— Como se chamava ele, Faolan?
— Dubhán. — Teve de se obrigar a dizer o nome. A palavra soou áspera, devido à dor. — Ele planeou um golpe. Ouviram dizer que Echen iria visitar o distrito, a fim de obter pagamentos de rendas dos agricultores que trabalhavam as suas terras. Enquanto Echen jantava em casa de um dos mais abastados donos de terras local, o jovem roubou dez cavalos de sela do seu acampamento, bem como algumas armas. Um guarda foi morto, o outro pendurado, para que o seu amo assim o encontrasse. Dubhán saía ao pai. Em troca de uma vida, a do cunhado, tirou uma vida. Uma subtileza que, infelizmente, se perdera em Echen. Quando os homens dos Uí Néill deram início às buscas, os cavalos já tinham desaparecido do distrito. Foi um triunfo, audacioso, inteligente, de acordo com a idéia que a população local tinha de Dubhán. Ele sempre foi... ele era...
— O irmão mais novo admirava-o?
Faolan aquiesceu, incapaz de falar por alguns instantes.
— Sei que a narrativa deve acabar em tragédia, Faolan. Contas-me o resto?
A voz dele tornara-se um monólogo hesitante.
— Echen capturou alguns dos jovens da comunidade, aqueles que suspeitava terem participado. Os seus métodos eram brutais. Um deles acabou por ceder e indicou o nome de Dubhán como sendo o cabecilha. Nessa noite... nessa noite, a família encontrava-se reunida à lareira, como era seu hábito, a cantar e a contar histórias. Mãe, pai, irmãos, irmãs, pessoas idosas. Echen apareceu, acompanhado de homens armados, muitos homens. Atacaram o brithem e o filho mais velho. Ao ser acusado do crime, Dubhán não negou ter sido o responsável. Permaneceu de queixo erguido e tentou expor os crimes de Echen contra o seu pai, tentou usar a lógica contra a fúria vingativa. O pai, seguro por um par de facínoras, observava-os com lágrimas de orgulho nos olhos. O irmão mais novo, cujas mãos eram mais hábeis a dedilhar cordas de harpa do que a manejar uma espada, cuja voz mais depressa se erguia para entoar uma canção do que para proferir palavras valentes de desafio, desejou, nesse momento, ser Dubhán, pois aquela era uma demonstração de verdadeira coragem. Então os homens de Echen espancaram Dubhán em frente da sua família, da mãe que chorava, da irmã mais nova que gritava em protesto, do pai silencioso e pálido. O irmão mais novo não sabia qual o sentimento que prevalecia dentro de si: medo, ódio ou orgulho.
Ana apertou-lhe a mão, mas não disse nada.
— Dubhán não vergou. Ferido e a sangrar, a respirar com dificuldade, não ofereceu a Echen as desculpas que este procurava.
Echen deve ter-se apercebido que a sua táctica não estava a resultar, por isso começou a ameaçar os outros.
Ana sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.
— Não é o que estás a pensar — disse Faolan —, que, caso Dubhán não pedisse desculpas, ele iria magoar o pai ou outro membro da família. Talvez tivesse visto, nos olhos de todos eles, a integridade que era o verdadeiro pilar da educação que o pai lhes dera, o âmago daquilo que tornava aquela família pacata tão forte. E talvez tivesse visto um... um elo fraco. Os seguidores de Echen entraram na casa. De repente, um homem armado estava ao lado de cada um deles, da avó, da jovem viúva, da irmã mais nova. Foram encostados punhais aos seus pescoços e facas posicionadas de modo a penetrarem os seus corações. Não havia qualquer arma apontada a Dubhán, que se encontrava ajoelhado no meio da sala, as mãos presas atrás das costas. Não havia qualquer arma apontada ao irmão mais novo, aquele que partira para ser um bardo e regressara a casa para um pesadelo. Depois... depois Echen deu um passo em frente para se dirigir ao músico. Colocou uma faca na mão do jovem. Ele... ele ofereceu-lhe uma escolha. Dubhán, disse Echen, estava destinado a morrer. Era preciso dar o exemplo, para que mais ninguém pensasse em desafiar os Uí Néill, achando que conseguiria sair impune. Assim sendo, a questão não era se o miserável iria ou não morrer, mas sim quantos iria levar consigo. Ao dizer isto, os olhos de Echen percorreram a sala. O jovem bardo seguiu o olhar do chefe tribal, vendo o rosto exangue da mãe, a avó com as roupas elegantes amarrotadas e o cabelo branco desgrenhado, o punho grande de um homem agarrando-a cruelmente pelo ombro. A irmã mais velha cobria o rosto com as mãos. Um sujeito de rosto vermelho segurava a irmã mais nova, de catorze anos de idade, que tremia de raiva e vergonha enquanto as mãos do patife lhe percorriam o corpo através do vestido discreto. O avô tentava manter a dignidade, os olhos presos à esposa angustiada. O maxilar do pai estava rígido, os olhos escuros pela premonição de horror. Talvez tivesse percebido antes dos outros o que iria acontecer.
— A escolha não é minha, rapaz — disse Echen ao irmão mais novo — mas sim tua. Corta o pescoço do teu irmão e eu ordenarei aos meus homens que soltem todas as pessoas presentes nesta sala e que nunca mais lhes façam mal, a não ser que a tua família se volte a meter nos meus assuntos. Recusa-te e eu farei o trabalho por ti. A seguir, os meus homens acabarão com todos os outros.
A mãe soltou um grito terrível, um gemido vindo das profundezas das entranhas. O avô praguejou e foi recompensado com um golpe seco no queixo, que o fez cair de joelhos.
— Talvez não todos — acrescentou Echen, os olhos postos na irmã mais nova, doce e rosada como uma maçã da nova estação. — Vamos levá-la a ela para nos fazer companhia esta noite. Seria uma pena desperdiçar uma promessa assim tão óbvia. E tu serás poupado, é claro —, disse, olhando para o trêmulo jovem bardo, de pé ao lado do irmão, a faca a tremer de forma tão violenta na mão que dificilmente conseguiria usá-la, mesmo que essa fosse a sua vontade. — Mata-o e salvas as vidas deles. Recusa-te a fazê-lo e irás vê-los a morrer, um por um. Continuarás a viver para o ver, vezes sem conta, todas as noites, nos teus sonhos. Mostra-nos do que és feito, lindinho.
Desvairado, o bardo olhou para o pai em busca de orientação, mas este fechou os olhos. O brithem mais sábio de todo o mundo não era capaz de pronunciar tal sentença. Lágrimas rolavam pelas faces empalidecidas do homem da lei. Os seus lábios moviam-se numa oração.
— Não o faças, Faolan! —, gritou a irmã mais nova. — Não dês essa satisfação ao miserável! — Depois também ela foi silenciada com uma pancada.
O bardo olhou para a faca. Não conseguia mantê-la imóvel. Ela sacudia-se e balançava na sua mão, à medida que uma onda de náuseas o invadia.
Nesse momento, o irmão falou.
— Põe-te atrás de mim. Coloca a ponta da faca por baixo da minha orelha esquerda. Dá aí um golpe preciso e certifica-te de que a empurras com força. Tu és forte, Faolan. És capaz de o fazer.
— Mas... — O bardo não foi capaz de dizer mais nada, a não ser libertar um gemido estrangulado. Sentia um nó na garganta, parecia-lhe que a cabeça ia explodir, o coração batia com tanta força que poderia partir-se ao meio. As palmas das mãos estavam escorregadias devido ao suor. A mente buscava desesperadamente por soluções: atacar Echen, fugir, virar a faca contra si próprio... era evidente que nenhuma dessas coisas salvaria a sua família. Mas aquele... aquele era Dubhán.
— Despacha-te —, disse Echen e fez um sinal com a cabeça em direção a um dos seus homens. Um instante depois, a avó caiu bruscamente no chão, com uma faca espetada no meio das costelas.
— És um homem, Faolan —, murmurou Dubhán. — Fá-lo agora. Ana tinha os dentes de tal forma cerrados que a cabeça lhe doía. O bardo... o bardo olhou nos olhos do irmão, brilhantes de coragem. Dubhán era o seu herói. Tê-lo-ia seguido pelos portões do inferno. Sempre fizera o que o irmão lhe pedira. Por isso, agarrou a faca com mais força e golpeou a garganta de Dubhán. O sangue jorrou quente e vermelho sobre as suas mãos. Ouviu a irmã gritar, ouviu o som que a mãe emitiu. O pai estava silencioso. O jovem permaneceu no centro da sala, com o corpo do irmão a seus pés, e esperou que Echen e os seus homens saíssem.
Mas Echen ainda não tinha terminado. Os homens libertaram a família quando ele lhes ordenou que o fizessem, mantendo-se a postos com as armas preparadas, enquanto as mulheres cuidavam da avó moribunda. Para Dubhán, era já tarde demais.
— Revistem a casa —, ordenou o chefe dos Uí Néill, de modo frívolo, como se só naquele momento lhe tivesse ocorrido a idéia. — Procurem as facas e os arcos que nos faltam e tragam outras coisas que interessem, está bem?
A família permanecia imóvel, em silêncio. Esperaram. O sangue da avó ensopou os panos que tinham colocado sobre o seu peito. O avô segurava-lhe a mão de encontro à sua face. Passado pouco tempo, os homens de Echen regressaram, segurando, um de cada lado, a terceira irmã, a que tinha ido para a cama cedo naquela noite... Áine, a mais nova, uma criança vestida com uma camisa de dormir comprida, os olhos escuros e assustados, o cabelo caído sobre os ombros.
— Ah —, exclamou Echen, com um sorriso cruel, — um tesouro escondido. Vamos levá-la. Lembro-me de ter prometido poupar todos os que estavam nesta sala, não mencionei nada sobre o resto da casa. Uma pequena pérola. Que idade tem ela, doze? Fresca. Inebriante. Vai buscar uma capa para a boneca, Conor, não pudemos deixar que se constipe. Adeus, brithem. Acho que aqui o teu filho tem futuro, e não é como músico. Ao olhar para o bardo, a sua expressão era de surpresa, quase de admiração. Era óbvio que o resultado da experiência não tinha sido aquele que esperara. Virou-se para o pai.
— Que eu não volte a ouvir falar de ti. Da próxima vez serei menos generoso.
Quando saíram, arrastando com eles a rapariga, o jovem correu disparado pela sala atrás deles, desesperado por, de alguma forma, remediar as coisas, pelo menos salvar a irmã, embora o pesadelo, de fato, ficasse com ele para sempre. Echen riu-se. Consigo ouvi-lo neste momento. Depois, alguém desferiu um golpe violento na cabeça do rapaz e, por algum tempo, sentiu o alívio da inconsciência.
Não havia nada que Ana pudesse dizer. Paralisada, permaneceu sentada por um instante e depois colocou um braço em redor dele e encostou a cabeça ao seu ombro.
— Faolan, isso é... isso é impensável. Nunca ninguém devia ser obrigado a... ninguém... — Um pouco depois, acrescentou: — O que aconteceu a seguir? O que fizeste?
— Fiquei dominado pelo ódio. — Desistira de fingir que estava a contar a história de outra pessoa. — Quando recuperei os sentidos, só conseguia pensar em salvar a minha irmã e espetar uma faca no coração de Echen. Mas não pude fazê-lo. Saí do quarto e vi os meus pais à minha espera. A minha mãe fizera uma pequena trouxa com comida e bebida para o caminho. O meu pai deu-me um anel que herdara do avô, de prata com uma pedra. A minha harpa estava pronta dentro do estojo. Devia partir. Partir e não voltar. Não disseram grande coisa. Vi no rosto da minha mãe que, depois do que eu fizera, ela não me queria na sua casa. De repente, o homem parecia um velho. Protestei. Se não fosse eu, quem salvaria Áine? O meu pai proibiu-me de tentar. Disse que a violência tinha de acabar. Disse que já seria demasiado tarde para ela. Havia uma distância no seu tom de voz que eu nunca tinha ouvido antes. As minhas outras irmãs não apareceram quando eu me vim embora. Antes de o Sol nascer, já eu atravessara as fronteiras das terras de Echen. Dei o pão e o queijo da minha mãe a um mendigo que encontrei à beira da estrada e atei o pano a um teixo, embora não fosse qualquer oferenda aos deuses. A partir daquela noite escura, não confiaria nem em deuses nem nos homens. Troquei o anel do meu pai por uma passagem para Fortriu. Deixei-os a todos para trás. Desde essa altura que não tenho notícias deles. Mas nunca estão muito longe. Quando toco harpa, vejo a minha irmãzinha nas mãos daqueles homens. Ouço o grito da minha mãe. Quando vou para a cama, à noite, sinto o sangue de Dubhán nas minhas mãos e ouço o meu pai falar comigo como se eu fosse um estranho.
— Oh, Faolan... lamento tanto, tanto... não sei o que dizer...
— Não há nada a dizer. O que fiz foi imperdoável. Fiz a opção errada. Destruí tanto a minha família como Echen o teria feito com o seu bando armado.
— Por que é que nunca regressaste? Não gostarias de fazer as pazes com a tua família? De descobrir o que lhes aconteceu?
O tom de voz de Faolan era amargo.
— Eu venerava Dubhán. Era o meu irmão mais velho. Obedeci-lhe até ao fim. E obedeci ao meu pai, quando ele me disse para partir e nunca mais voltar. Desde aí, não ganho a vida a tocar música, mas sim a fazer as duas coisas que provei ser capaz de fazer naquele dia: seguir ordens e cortar gargantas.
O ódio por si próprio, que a voz deixava transparecer, silenciou Ana.
— Eu regressei — disse Faolan —, não a casa, mas a Laigin. Os homens de Echen tentaram recrutar-me. Talvez lhe tivesse chegado aos ouvidos que o lindinho desenvolvera certas habilidades úteis. Recusei. Daí Breakstone. Houve homens que morreram de desespero naquele lugar. Eu sobrevivi. Já me encontrava para lá do desespero, perdera qualquer capacidade de sentir. Isso fez de mim um bardo pior, mas um assassino melhor. Não trabalhava para Echen, mas trabalhava para qualquer outra pessoa: os chefes tribais dos Uí Néill, tanto do norte como do sul, os príncipes de Ulaid, o Rei de Dalriada. E agora, para Bridei.
— Não perdeste a capacidade de sentir — disse Ana. — Nem de despertar sentimentos nos outros. E a tua música? Até os caçadores de Alpin tinham lágrimas nos olhos.
— Até te conhecer — replicou, calmamente. — Perdera-a. Não volto a tocar. É errado usar as minhas mãos para fazer música, quando elas estão manchadas com o sangue do meu próprio irmão.
— Que disparate! — ripostou Ana, sem conseguir conter-se. — Disseste antes que tornaste a opção errada, mas Faolan, não havia uma opção certa. Como homem de lei, o teu pai sabia isso. Fosse qual fosse a escolha que fizesses, tinha de acabar em sofrimento e morte. Eras muito jovem. Aquele homem não tinha o direito de colocar um peso tão terrível sobre os teus ombros.
— Não devia ter-te contado. Agora também tu sonharás com isto.
— Eu tenho os meus próprios sonhos perturbadores. Estou contente por me teres contado, Faolan. Foi preciso coragem para colocar isto em palavras. És o homem mais corajoso que conheço.
Não respondeu.
— Faolan?
Um aceno de cabeça.
— Tens de voltar. Sabes isso, não sabes? Se alguma vez quiseres resolver o assunto, tens de te reconciliar com eles.
— Não é um conto de fadas.
— Não estou a dizer que as recordações vão desaparecer ou que todas as feridas serão imediatamente saradas. Compreendo que seja demasiado complicado para isso. Mas sei que gostariam de te ver: o teu pai e a tua mãe, as tuas irmãs... já passou muito tempo desde que partiste. Pelo que me contaste, eles são boas pessoas, fortes e justos. Agora irão compreender a escolha impossível que enfrentaste e por que motivo fizeste o que fizeste. Foste obrigado a fazê-lo por amor. Tens de voltar. A tua ausência durante tanto tempo deve tê-los feito sofrer, sobretudo ao teu pai.
— Nunca regressarei.
— Então és menos corajoso do que eu pensava. A maior coragem é seguir em frente e fazer o que tem de ser feito, mesmo quando a idéia nos transforma as entranhas em gelatina.
— Foi o que Sentiste quando me puxaste para fora da água, em Breaking Ford?
Ana estremeceu com a recordação.
— Por um instante, sim. Assim que te vi, não me pareceu existir outra alternativa. Tinha de salvar a única coisa que restava, a única coisa boa. Se eu fosse uma mulher mais cruel, diria que estavas em dívida para comigo, bem como para com Deord, e que essa dívida seria a tua reconciliação com o passado. Para concederes a ti próprio um futuro.
— Eu tenho um futuro. Continuo a ser o homem de Bridei.
— Sem isso, nunca serás verdadeiro para contigo mesmo.
— Quando te contei a minha história, não estava à espera de ordens sobre como viver a minha vida. — Afastou-se dela, libertando-lhe a mão.
— Somos amigos, Faolan — disse Ana, com suavidade. — Amigos verdadeiros. Jamais te daria ordens. Mas existe um caminho que eu quero ver-te a percorrer, para que não sejas devorado pelo ódio por ti próprio. Vejo o homem por baixo da armadura da indiferença. Quero que o mundo também o veja. Quero que te sintas realizado e feliz.
Sob o luar, viu o esgar retorcido de um sorriso. — Pedes o impossível — disse Faolan.
— Pensei — murmurou ela —, que fosses o tipo de homem para quem nada é impossível. Tenho esperança de que, a seu tempo, proves que estou certa.
No final do terceiro dia de buscas, Alpin reuniu o grupo de caça e partiu em direção a casa. Aí, encheu um saco com mantimentos para que um homem viajasse sozinho uma longa distância e colocou os assuntos da casa nas mãos da competente Orna. Deu certas ordens a Dregard e outras a Mordec, que chefiava os seus guerreiros. Pegou na espada, nas facas e na besta e, sozinho, regressou à floresta na alvorada da manhã seguinte. Onde um grupo de caçadores com cães e cavalos não conseguia ir com facilidade, sozinho, um homem hábil podia caminhar rápida e silenciosamente, seguindo os rastos de outro. O celta e a noiva real poderiam ter atravessado a fronteira das suas terras e o seu irmão podia ter desaparecido no esconderijo proporcionado pela floresta, mas Alpin ainda não estava derrotado. Queria Ana, por mais desonrada que pudesse estar por aquela altura. Pertencia-lhe, fora-lhe enviada para ser sua esposa e tê-la-ia, quaisquer que fossem os meios necessários. Devia a si próprio vingar-se da aberração que era Drustan e daquele miserável celta vira-casacas e, por fim, do arrogante rei de Fortriu, que desencadeara tudo aquilo com a sua tentativa precipitada de fazer uma aliança com Briar Wood.
Bem, a aliança iria manter-se, pensou Alpin, enquanto avançava rapidamente ao longo dos trilhos traiçoeiros do coração da floresta, seguindo o seu próprio caminho até ao local onde Deord morrera. Aí, observou com um certo divertimento o cuidado com que o homem fora sepultado e depois retomou um novo trilho em direção ao pequeno lago altaneiro por baixo da queda de água, um local que o seu grupo de caça ignorara como não tendo qualquer saída que uma mulher pudesse arriscar. Apanhara-os. Estava quase a alcançá-los.
Demoraria algum tempo a encontrar o rasto dos fugitivos e a atacá-los pela calada. Não importava. Podia dar-se ao luxo de ausentar-se de casa durante algum tempo. Já não havia necessidade de mobilizar o seu exército, a sua frota, as suas tropas consideráveis. Ainda não. Talvez não fosse preciso de todo. Tinha a sensação que a resposta a esse problema não residia num assalto armado mas sim no seu plano alternativo, um que ele concebera há algum tempo atrás: a utilização da arma secreta que todos desconheciam, à excepção de si próprio, de Dregard e dos seus guerreiros de maior confiança. E, claro, do filho que, contra todas as probabilidades, finalmente se revelara de alguma utilidade.
Tinha-se tornado cada vez mais óbvio, quando primeiro Ana, e depois Faolan, falaram da presença poderosa de Bridei, da sua liderança, do seu estatuto icónico para o seu povo, que o sucesso de qualquer investida Priteni contra Dalriada dependia bastante deste único homem, deste chamado Espada de Fortriu. Demasiado, de acordo com a opinião de Alpin. Se Bridei fosse eliminado, tudo o resto se desmoronaria, tinha a certeza disso.
Por isso, enviara ao jovem rei um pequeno presente. Que conveniente fora que o rapaz já se tivesse ligado às tropas de Umbrig. Hargest estava ansioso por lhe agradar, sentia-se desesperado por conseguir a aprovação de Alpin. Provavelmente, via-se a si próprio como o herdeiro legítimo de Briar Wood. Pela forma como as coisas tinham resultado com Ana, no momento era o único herdeiro. Isso em breve mudaria, pensou Alpin, de modo sinistro. Recuperaria a noiva real e mantê-la-ia. Ela dar-lhe-ia tantos filhos quantos desejasse e, através desses filhos, iria deter um poder sem igual em todas as terras do norte.
— Que grande comitiva — comentou Fola ao observar o séquito de Tuala desmontar junto aos portões de Banmerren. A rainha trouxera não só um Broichan de rosto de cera, mas também o guarda-costas Garth, a sua esposa Elda e os filhos gêmeos, bem como uma jovem criada. E, claro está, Derelei, que agora era ajudado a descer do carro que transportara a ama e as crianças. — Recordas-te, espero eu, que os druidas são os únicos homens a quem é permitida a entrada no nosso lugar sagrado?
Tuala sorriu para o velho professor.
— Como poderia esquecer-me? — respondeu, recordando uma altura em que Bridei escalara a parede por uma corda, a fim de a visitar. Teriam passado apenas cinco anos? Parecia ter acontecido há séculos: os dois lá em cima, empoleirados no carvalho, e aquele primeiro beijo... — Pensei que os restantes poderiam ficar alojados na casa de Ferada. Vou falar com ela enquanto Garth e Elda descarregam a bagagem. — Ao virar-se para o pequeno caminho que rodeava o alto muro de pedra, viu Fola pegar no braço de Broichan e conduzi-lo através do portão para o santuário da mulher sábia.
No final do carreiro, o muro fora alargado para abrigar um novo recinto, onde se encontrava uma comprida casa de habitação no meio de um jardim recente. Um portão de ferro embutido no muro abriu-se quando Tuala o empurrou. Do outro lado de uma extensão de relva, abriu-se um arco na parede lateral, dando acesso aos terrenos onde ficava a escola de Fola. Tuala entrou silenciosamente no novo jardim. Não estava sozinha. Ferada encontrava-se sentada num banco, com um pequeno livro aberto nas mãos e, junto ao arco, podia ver-se a figura musculosa do escultor de pedra real, Garvan, equilibrado sobre uma plataforma de madeira, ao lado de um bloco de rocha enorme, a fazer algo de delicado com um cinzel. Um jovem, que parecia ser seu assistente, ordenava ferramentas sobre um banco. Estava um belo dia. A cena silenciosa e diligente encontrava-se banhada pela luz quente de Verão. No meio da relva, pequenas flores formavam pontos vivos de cor-de-rosa e azul. Os pés de Ferada estavam descalços e tinha uma perna dobrada por baixo do corpo, sobre o banco, enquanto o outro pé l dançava. Tinha o cabelo solto, que lhe caía pelas costas numa torrente ígnea. Garvan. um homem cujas feições possuíam elas próprias o aspecto de um bloco de pedra intacto, assobiava baixinho enquanto trabalhava.
— Peço desculpa por interromper uma cena tão pacífica — disse Tuala, avançando pela relva com um sorriso. — Receio que tenhas visitas: quatro adultos e três rapazinhos bastante ativos. Vamos tentar mantê-los afastados das ferramentas.
Não existiam caminhos fáceis entre Briar Wood e o Monte Branco. Onde não havia floresta sem trilhos ou carreiros, erguiam-se altas montanhas rochosas e cumes escarpados, sobre os quais ventos gelados açoitavam de forma constante, mesmo durante o Verão. Onde não havia riachos largos e quedas de água turbulentas para atravessar, havia penhascos e ravinas e escarpas a desmoronar-se. Havia pântanos. Havia javalis. A noite, havia lobos.
Assim que Faolan se convenceu de que Alpin lhes perdera o rasto, deixou que se fizesse uma pequena fogueira à noite. Passado pouco tempo de terem feito a primeira, enquanto Ana usava a faca para dividir uma tira de carne de carneiro seca que era a única comida que tinham, o falcão foi-se embora, regressando algum tempo depois, ao crepúsculo, com um coelho gordo a balançar-lhe das garras. Faolan interrogou-se sobre o quanto Drustan compreenderia quando assumia aquela forma, se percebia totalmente o discurso humano, se formava opiniões, se sentia alegria ou tristeza, se planeava e delineava estratégias e sonhava da mesma forma que enquanto homem. Interrogou-se sobre o quanto Drustan se recordaria quando se transformava novamente em ser humano. Naquele momento, era de maior utilidade para eles sob a forma de pássaro, capaz de voar bem alto e descobrir trilhos onde um homem não conseguiria, capaz de caçar sem quaisquer armas, para além do bico e das garras. Quando é que Drustan decidiria que chegara a altura de se mostrar a Ana? De lhe revelar toda a verdade sobre si próprio? Estaria tão receoso que ela o rejeitasse que permaneceria assim durante todo o caminho até ao Monte Branco? Faolan considerou que faltava alguma coisa fundamental a um amante que não era capaz de confiar. Ainda assim, era algo estranho, algo bizarro. Não havia forma de adivinhar como ela iria reagir quando soubesse.
Ana fez um bom trabalho ao cozinhar o coelho na fogueira. Deixou uma parte da carne crua, colocando-a sobre uma árvore caída, onde o pássaro facilmente conseguiria apanhá-la. O falcão comeu com precisão, a parte traseira do coelho segura por uma pata enquanto o bico terrível despedaçava a carne, uma tira de cada vez. A gralha e o cruza-bico observavam à distância. A fome não parecia ser um problema para eles. Faolan imaginou que o ritmo lento dos pés humanos dava às duas aves bastantes oportunidades de se alimentarem pelo caminho. Por uma ou duas vezes, à medida que caminhavam e um dia começava a fundir-se no seguinte, Faolan sentiu-se tentado a apanhar o falcão sozinho, a confiar que ele conseguia compreender, e sugerir a Drustan que contasse a Ana a verdade e acabasse com o seu sofrimento. Por uma ou duas vezes, retirou da trouxa a luva que Deord transportara no seu saco e experimentou-a na mão direita. Mas não levou a idéia mais adiante. Para quê apressar as coisas? Quanto mais tempo Drustan deixasse as coisas assim, mais provável seria que Ana visse que os seus sentimentos por ele eram apenas entusiasmo e não amor. A generosidade impulsiva de uma mulher que considera demasiado fácil ter pena dos que são injustamente tratados. Quanto mais tempo Drustan demorasse a revelar-lhe o seu segredo, se alguma vez o chegasse a fazer, mais tempo Faolan passaria sozinho com ela. Embora a sua mente compreendesse muito bem que nunca poderia existir mais do que amizade entre eles, o seu coração acarinhava aqueles dias preciosos como uma flor recebe o calor do sol. Não importava que os dois estivessem sujos, frios e exaustos, nem que as suas casas nunca tivessem parecido estar tão distantes. Por enquanto, durante aquele curto período de tempo, tinha-a só para si. Agora sentia-se mais cansado, não confiando em si próprio para se deitar junto dela à noite, mas podia olhá-la, falar com ela, guardar cada momento para um futuro em que, tão certo como o Sol se punha à noite, seguiriam por caminhos distintos. Abrira-lhe a parte mais negra de si próprio, a parte que pensara vir a permanecer fechada para sempre. Ela aceitara a sua oferta e, mesmo sabendo o ato terrível que cometera, permanecera sua amiga leal. Se aquela felicidade frágil tinha de ser destruída pelo regresso de Drustan, que não fosse já.
Ana estava a sair-se bem, acompanhando o passo e não se queixando, mesmo quando os pés lhe doíam. Quando tirou as botas e Faolan viu as bolhas, este exigiu que descansassem por um dia. Ela protestou e ele insistiu. Era evidente para Faolan que não chegariam ao Monte Branco até ao final do Verão. Esperava que Drustan soubesse o que estava a fazer. Talvez estivesse a jogar um jogo só seu.
A chuva afrouxara o seu avanço e o Verão caminhava velozmente em direção ao seu término. O fato de o seu guia ter o hábito desconcertante de desaparecer sem avisar não ajudava, deixando-os à espera por um ou dois dias, até voltar e reiniciarem a viagem.
Por duas noites, ficaram na cabana abandonada de um pastor, situada bem alto, numa cavidade na encosta da montanha, à espera que o falcão regressasse de uma das suas ausências. Faolan não fazia idéia do caminho a seguir e o terreno era perigoso. Contudo, estava à beira de perder completamente a paciência e assumir o papel de guia a partir daquele momento. Ana estava cada vez mais introvertida e ele reparara que o seu rosto estava mais cavado e notara uma mudança no seu olhar que o inquietava. Estava muito mais magra, o que não era de admirar devido a uma refeição de carne por dia. Desta vez, o falcão deixara-lhes um par de lebres antes de desaparecer, como se soubesse que estaria ausente por algum tempo.
— Esperamos mais uma noite — disse Faolan a Ana, ao sentarem-se no abrigo de um pedregulho, olhando por cima da encosta, sob o estranho céu quase escuro da noite de Verão. — Se nessa altura ele não tiver voltado, consigo encontrar um caminho. Se nos dirigirmos mais ou menos para sudeste, devemos acabar por ir ter à costa perto de Abertornie.
— Faolan?
— Mm?
— Vai demorar muito tempo, não vai? Quero dizer, percorrer o caminho todo até casa.
Faolan pensou em todas as coisas que não lhe contara: a dificuldade em obter comida sem um arco ou uma lança, o fato de a carne seca durar, na melhor das hipóteses, mais sete dias, a verdade inegável de que, mesmo no Verão, haveria rios enormes para atravessar.
— Vamos demorar mais tempo do que se fôssemos a cavalo, claro — respondeu ele. — Mas vamos conseguir. Como estão as tuas botas? Ana mostrou-lhe. A esquerda tinha um buraco na sola, a direita estava a abrir, onde a gáspea encontrava o salto. Não era de admirar que tivesse os pés doridos. O vestido de noiva estava manchado e esfarrapado. A sua própria roupa pouco melhor estava.
— Mm — disse ele. — Que linda figura nós dois vamos fazer, quando chegarmos ao Monte Branco.
Fez-se silêncio e depois o som inconfundível de um choro reprimido.
— Desculpa — murmurou Ana.
— É ele, não é? — perguntou Faolan, de forma inexpressiva.
— Drustan. Ainda estás a chorar por causa dele. Maldito homem.
— Não consigo evitar, Faolan. Queria que ele estivesse aqui, connosco. Comigo. Eu esperava... esperava que assim fosse...
Faolan notou que o cinto que ela trazia lhe estava de tal forma largo, que teve de o enrolar várias vezes para mantê-lo em redor da cintura. O cabelo caído estava liso, fios sem vida sobre os ombros. Já não tinha a postura erguida de uma rainha. O desejo de envolvê-la nos braços e abraçá-la era tanto, que lhe doía.
— Preocupo-me com ele, Faolan — disse Ana, em voz baixa. — Ele é tão vulnerável. Se regressou a casa, ao Vale dos Sonhos, pode ser preso outra vez, até mesmo morto. Quem controla esse lugar agora são os homens de Alpin. E se...
— Ana — afirmou Faolan —, não podemos fazer nada quanto a isso. Confia nele, é capaz de resolver os seus próprios problemas. — Secretamente, começava a duvidar. Não fazia a mínima idéia de onde Drustan estava naquele preciso momento, nem do que andava a fazer.
— Quis ajudá-lo. — Ana fitava o céu nocturno como se este lhe pudesse fornecer alguma resposta. — Ainda quero. Ele está terrivelmente sozinho. Seja para onde for que ele decida ir, seja o que for que decida fazer, queria estar com ele, a seu lado, para que já não tivesse de estar sozinho. Deve ser tanto uma bênção como uma maldição nascer diferente. O avô dele percebeu isso, mas parece que mais ninguém o fez. Talvez Deord.
— Diferente? — Faolan interrogou-se sobre o que Drustan lhe teria contado.
— Como um vidente, acho eu. Aqueles momentos que tem, a que Alpin chamou de delírios ou ataques, parece que quando é acometido por eles, Drustan tem uma espécie de visão, caminha num mundo diferente durante algum tempo. Tem-nos desde criança. Algumas pessoas não conseguem tolerar tal excentricidade.
— De fato — concordou Faolan, pensando que ela não fazia idéia do quão estranho o homem era. Como se sentiria em relação à idéia de ter filhos aos quais, a qualquer momento, poderiam nascer bicos e penas?
— Faolan? Ele esperou.
— A cada dia que caminhamos, a cada passo que damos em direção a leste, sinto-me como se o meu coração se despedaçasse mais um pouco. Pensei que, passado algum tempo, começasse a passar, que não doesse tanto. Mas está cada vez pior. Como pude deixá-lo para trás? Algo está errado. Ele não partiria sem mim. Estava a dizer a verdade quando disse que me amava, ouvi-o na sua voz. Por que razão mentiria ele sobre uma coisa dessas?
— Os homens fazem-no — respondeu Faolan. — Fazem-no a todo o instante.
— Drustan não.
— Um exemplo de perfeição. — Não era capaz de esconder a sua amargura.
— Pára com isso, Faolan. Qualquer pessoa pensaria que estás com ciúmes.
Fez-se silêncio. Quanto mais este se prolongava, mais intensamente Ana lhe observava o rosto e, a certa altura, teve de desviar o olhar para evitar uma qualquer resposta tola, uma recusa falsa, uma declaração dos seus sentimentos, uma resposta fulminante que iria magoá-la. Não valia a pena dizer nada. Para ele, era óbvio que, finalmente, ela compreendera o que lhe ia no coração.
— Desculpa — acabou ela por dizer, num tom de voz baixo e caloroso. — Lamento tanto, Faolan.
— Ora! — Tentou esboçar um sorriso. — Afinal de contas, não passo de um guarda contratado. Não me compete desenvolver sentimentos pessoais. Esquece o assunto. A tua vida já é complicada o suficiente.
— Para mim, és um amigo querido — disse Ana —, e o meu protec-tor leal durante a viagem. Devia ter percebido mais cedo, não consigo imaginar como é que me escapou. Sabes que confio em ti, Faolan, que te respeito e que dependo de ti... nunca imaginei encontrar um amigo assim e graças aos deuses estiveste a meu lado durante tudo isto. Mas... aquilo que sinto por Drustan é muito diferente. É demasiado forte para ser negado. É como uma... uma onda, uma maré...
— Destrutivo, queres tu dizer.
— Talvez. Ele desapareceu e eu sinto-me como se estivesse a despedaçar-me. Lamento que esteja a tornar as coisas tão difíceis para ti. Quando falo dele e daquilo que sinto... devo ter-te magoado muito.
As palavras amenizaram o estado de espírito de Faolan. Mesmo numa situação extrema como aquela, ela permanecia uma dama.
— Quero que me faças um favor e experimentes uma coisa — disse ele.
— O quê?
Levou a mão ao saco e retirou lá de dentro a pesada luva de couro. — Põe isto e levanta-te.
— Porquê? — Fez o que lhe pedia, com uma expressão perplexa.
— Agora chama-o. O falcão. Chama-o para ti.
— Não sei como fazê-lo. Não sei o tipo de som que devo fazer.
— Sabes assobiar?
— Não muito alto. Posso tentar. Mas não olhes para mim, caso contrário não serei capaz.
O som que ela produziu foi mínimo, na imensidão dos montes ondulados que se estendiam à sua frente, uma pequena melodia de duas notas, que caía sem parar. Era o tipo de chamamento que uma dama poderia fazer a um gatinho adorado ou a um cão de colo bem treinado. Parou durante algum tempo, à escuta, e depois tentou outra vez. Era como se a noite se silenciasse em redor dela, sustendo a respiração.
Depois ouviu-se um movimento de asas na penumbra, uma subtil deslocação do ar, e o pássaro saiu a voar da noite para pousar na mão dela, as garras agarrando a luva, os olhos bravios encontrando os de Ana, brilhantes, inescrutáveis. Ana tinha o braço estendido com força, suportando o peso do falcão e os seus olhos estavam cheios de assombro.
— Ele voltou — ofegou. — Como sabias que faria isso?
— Chama-lhe um palpite — respondeu Faolan, apercebendo-se da mudança no tom de voz dela. Será que pressentia a verdade? — Intuição.
Os dedos de Ana afagaram a plumagem do falcão, as penas longas e fortes das asas, o veludo que lhe cobria o peito. A mão dela encontrava-se perigosamente próxima daquele bico lacerante. Pareceu não lhe ocorrer que a criatura tinha a capacidade de lhe arrancar a mão. Faolan conteve-se para não dizer nada. Não iria colocar os seus próprios dedos em perigo, se pudesse evitá-lo, mas sabia que aquele pássaro jamais faria mal a Ana.
— Isto significa que podemos continuar — alvitrou ela. — Estamos a ficar sem comida, não estamos?
— Eu arranjaria comida para ti, fosse de que maneira fosse — retorquiu Faolan, sem olhar para o pássaro, para o caso da antipatia ser demasiado óbvia nos seus olhos. Claro que Ana tinha razão. Era a presença de Drustan que os levaria a casa sãos e salvos.
— Sinto-me um pouco melhor — disse Ana, encostando por um instante a face às penas da ave. — Se os três estão connosco, isso quer dizer que Drustan não se esqueceu totalmente de mim, mesmo que não possa estar aqui. Se permanecem juntos, acho que deve querer dizer que ele ainda está vivo e em segurança. Agora vou tentar dormir, Faolan.
— Então boa noite.
— Que A Que Brilha te dê bons sonhos.
— Desejas-me o impossível. Suponho que vás sonhar com uma única coisa.
Ana estava a instalar-se no chão sob o abrigo rudimentar de uma pequena saliência, com o cobertor em volta dos ombros. Os três pássaros ficaram perto dela, pousados sobre as rochas, um trio de guardas em miniatura, evocando visões de uma qualquer história mítica de magia. Durante algum tempo fez-se silêncio e ele pensou que a jovem estava a dormir. Então ela falou outra vez.
— Não troces dos meus sonhos, Faolan — disse ela. — Para além dos pássaros, são tudo o que me resta dele.
— Desculpa — disse Faolan, mas Ana não respondeu.
Muito mais tarde, quando teve a certeza de que ela dormia, Faolan pegou numa rocha e sopesou-a. Ouviu a respiração de Ana, lenta e regular. A gralha e o cruza-bico estavam junto dela, imóveis, as cabeças enfiadas debaixo das asas. O falcão mantinha-se alerta, empoleirado a um palmo do seu ombro. Faolan considerou a trajectória possível da pedra que tinha na mão e avaliou a velocidade e a distância. Se fosse rápido, tudo poderia acabar num instante. Nunca mais teria de os ver juntos, nunca mais teria de ver as mãos daquele homem em cima dela e ficar quieto como se não fosse nada consigo. As trevas invadiram-lhe o coração. Os dedos fecharam-se sobre o projéctil. Ana suspirou, virando-se no sono.
— Diz-lhe — ordenou Faolan, deixando cair a pedra. — Conta-lhe a verdade, deixa que seja ela própria a decidir. Não podes deixar as coisas assim. Vais partir-lhe o coração.
O falcão mirou-o, os olhos ilegíveis.
— Transforma-te. Mostra-lhe o que és. Se não tens coragem para isso, não a mereces. Bem podes voar daqui para fora e deixar-nos. Nós aguentamo-nos. Já conseguimos antes e podemos voltar a conseguir.
Não houve qualquer resposta, à excepção daqueles olhos resolutos fixos em si, um olhar que parecia a Faolan profundamente perigoso. Aquele homem era uma criatura selvagem. Carregava perigo na sua própria natureza.
— Do que estás à espera? — desafiou Faolan. — Ela está aqui, ama-te, é a mulher mais perfeita que qualquer homem poderia desejar. O que é que te impede?
Não houve qualquer reacção, nenhum sobressalto de surpresa, nenhuma transformação. O pássaro virou a cabeça.
— Tens medo, não é? — disse Faolan. — Tens medo que quando ela souber te vire as costas. Por isso, castiga-la, coloca-la sob tortura, preocupando-se com a tua segurança, com o teu futuro, com a razão pela qual a abandonaste, mesmo enquanto ela se extenua a caminhar e se transforma em pele e osso por não se alimentar o suficiente. Se és mesmo um homem, comporta-te como tal. Confia nela e conta-lhe a verdade.
Alpin tinha a constituição de um urso. Ainda assim, o fato de ter crescido em Briar Wood dera-lhe uma série de habilidades invulgares num homem tão grande. Na floresta abundava boa caça e ele aprendera cedo a deslocar-se em silêncio e a percorrer com rapidez território agreste. Aprendera a detectar um rasto e a não o perder, embora a fuga solitária de Deord pela floresta o tivesse afastado por algum tempo daquele rasto específico. Agora recuperara-o e avançava atrás dos fugitivos de forma silenciosa e eficiente, com um objectivo mortal. Enquanto corria, trepava e avançava com dificuldade em direção a nordeste, a sua mente não se encontrava no terreno, nem no tempo, nem nos sinais de por ali ter passado alguém: absorvia estas pistas sem pensar. Em vez disso, dentro dele entoava um hino feroz e violento de vingança, uma canção de ódio, de luxúria, de vontade de atormentar e obliterar. Via Ana de braços e pernas abertos, com o seu irmão em cima dela, e depois o celta, e depois novamente Drustan, aquela miserável aberração. Quando ele a levasse para casa, se tivesse um filho na barriga, este teria de ser eliminado. O seu herdeiro tinha de ser incontestavelmente do seu sangue. Por todos os deuses, era melhor que lhe desse filhos, depois de todo aquele trabalho. Em breve extinguiria nela a desobediência. Certificar-se-ia... Por outro lado, teria de se controlar durante algum tempo. Precisaria de moderar a sua fúria após o castigo inicial que Ana sofreria durante o regresso à fortaleza. Perdera a paciência com Erisa demasiadas vezes e o que tinha acontecido? A estúpida da mulher tentara fugir dele e, ao cair, matara-se a si própria e ao filho dele. Se, por acaso, a aberração do irmão não estivesse lá para fornecer um álibi, poderia ter perdido tudo. Drustan... pelos deuses, por que motivo tinha sido tão generoso para com o homem? Devia ter-se livrado logo dele e não deixar que os laços de sangue o refreassem. Agora Drustan escapara e se ele se lembrasse, se ele contasse... não, isso era uma fantasia. As pessoas julgavam que Drustan era louco, ninguém acreditaria nele. Não restava ninguém em Briar Wood que o apoiasse, ninguém que se recordasse dos tempos em que ele era racional. A velha Bela fugira assim que aconteceu. Provavelmente já morrera e o resto das pessoas tinha desaparecido, à excepção de Orna, que sabia ficar de boca fechada. Alpin fora minucioso. Ainda assim, não ficaria satisfeito até colocar as mãos em volta do pescoço do irmão e ouvir o seu último suspiro. Quanto ao celta... esse não era de confiança. Podia ter sido útil enquanto espião, contudo seria necessário livrar-se dele agora. Alpin pensava na forma como colocaria isto em prática enquanto subia uma extensão de encosta rochosa, detendo-se para observar vestígios de habitação recente numa cabana em ruínas. Cinzas de uma pequena fogueira, fios de cabelo loiro, os ossos de uma pequena criatura, cuja carne fora totalmente consumida. Tinham estado ali e não há muito tempo. As suas mãos estavam ansiosas para infligir o castigo. Primeiro, trataria dos dois homens. Depois possuiria Ana onde quer que a encontrasse. Havia outra parte dele ansiosa e só havia uma maneira de satisfazê-la.
Há muito que Bridei aprendera a ser cauteloso. A primeira vez que atentaram contra a sua vida era ele ainda uma criança e Donal impedira que fosse bem-sucedida. Anos mais tarde, quando aqueles que se opunham à sua subida ao trono fizeram uma nova tentativa, Donal morrera no seu lugar. Da terceira vez fora Faolan que o trouxera para a margem. Aprendera a não confiar demasiado depressa, mesmo quando os seus instintos o faziam inclinar-se para a amizade.
Gostava de Hargest. Revia-se de certa forma na insegurança do rapaz e nos seus esforços constantes por ser excelente no que fazia. Preso entre um pai que prontamente se dispôs a mandá-lo embora e um pai adotivo que fora, talvez, demasiado cauteloso no trato, parecia a Bridei que Hargest tentava equilibrar-se numa ponte estreita para a maturidade e masculinidade. O rapaz era um poço de contradições: o desejo de agradar, o terror de parecer fraco ou tolo, a vontade de provar que era superior. Sob tudo isso, havia uma necessidade terrível de amor: o amor de um pai.
Bridei fez com que Breth e os outros incluíssem o jovem no seu treino de combate diário e que o levassem nas suas sortidas até às fronteiras do território de Dalriada. Hargest era sempre vigiado atentamente, embora não o deixassem aperceber-se disso. Nunca ficava a sós com Bridei, mas o rei habituara-se a inclui-lo nas conversas e era freqüente fazer perguntas em relação aos seus progressos. Gradualmente, durante o tempo que passaram na Fonte do Corvo, Hargest foi aceite pelos homens, que deixaram de se referir a ele como se fosse um estranho. Um ou dois deles afirmaram que, caso Hargest fosse com eles para a guerra, seria uma mais-valia. Para começar, teria o dobro do tamanho de qualquer celta no campo de batalha e a forma como manejava a espada era algo a ter em conta.
Bridei pedira a Orbenn que levasse consigo uma mensagem, na qual pedia a opinião do pai adotivo de Bridei no que dizia respeito à preparação do rapaz para ir para a guerra. A resposta de Umbrig, quando, por fim, chegou, deixava a decisão a cargo de Bridei. Se achasse que o rapaz seria de alguma utilidade, deveria levá-lo, caso contrário, poderia enviar Hargest de volta a Storm Crag, onde este ficaria a aguardar. Não fazia qualquer menção ao regresso de Hargest para casa do pai, em Briar "Wood, embora já fosse um jovem.
Assim, quando o Verão se aproximou do fim e eles partiram da Fonte do Corvo na primeira etapa da longa caminhada, Hargest assumiu o seu lugar no pequeno exército pessoal do rei de Fortriu, uma figura orgulhosa e de ombros largos, mais alto do que a maioria dos homens e empunhando a lança, a espada, o arco e a aljava, como se fosse algo que fazia todos os dias, muito à vontade. Breth, que cavalgava ao lado do rei, sentia-se inquieto por causa do rapaz. Nunca confiara nele totalmente e não fazia segredo do seu mal-estar devido à célere aceitação de Hargest nas fileiras dos homens de armas de Bridei. Corria o boato de que o guarda-costas do rei se sentia ameaçado. Algumas pessoas diziam que Hargest, por ser jovem, ágil e forte, era a escolha óbvia para assumir o papel do guarda-costas de maior confiança de Bridei.
Bridei tinha conhecimento do boato e considerava-o um disparate. Breth sabia que a sua posição era tão segura como a de qualquer homem em direção a uma batalha. No que dizia respeito a Hargest, Bridei tinha-o mais controlado do que as pessoas imaginavam. O desejo desesperado do jovem em agradar-lhe era o controlo mais eficaz que tinha e utilizá-lo-ia para evitar que o rapaz fosse morto antes de ter a oportunidade de crescer e descobrir a matéria de que era feito.
Finalmente estavam a caminho, atravessando o mesmo território através do qual Bridei marchara enquanto modesto peão no exército de Talorgen, a caminho de experimentar pela primeira vez o que a guerra faz aos homens. Apesar de toda a fanfarronice de Hargest, estava à espera que ele ficasse profundamente perturbado. Bridei esperava ter tempo para conversar com o rapaz depois, para ouvir o que ele tinha para dizer sobre o que vira, o que fizera. O que tinha sido obrigado a fazer. A guerra podia despertar o que de melhor havia num homem. Infelizmente, havia aqueles nos quais atiçava a crueldade e outros que simplesmente cediam sob o seu terror. Se aquele grande empreendimento corresse da forma planeada, talvez, durante algum tempo, não houvesse necessidade de os homens de Fortriu terem de passar por tudo aquilo outra vez. Talvez existissem muitos anos de paz, os Celtas longe da costa dos Priteni, Circinn pronto para dizer coisas acertadas e homens capazes para tratar do gado, plantar colheitas, manejar a sovela, a tenaz e o martelo no exercício da sua profissão novamente, sem estarem à espera que lhes batessem à porta para irem para a guerra. Rezava para que assim fosse, não por si próprio, não para sua glória, mas pelo bem do seu povo. Se derrotasse os celtas, poderia voltar a sua atenção para a outra grande tarefa que os deuses lhe imputavam: unir Circinn e Fortriu na prática da fé antiga.
Enquanto o exército de Bridei se dirigia para ocidente, em direção às fronteiras do território de Gabhran, por todos os lados de Dalriada outros grupos de guerreiros Priteni cercavam os Celtas. Gabhran e os seus chefes tribais nunca teriam imaginado um ataque tão maciço e complexo, uma tal união de esforços, uma tal sincronização.
Bridei e os seus líderes de guerra tinham tomado medidas para aumentar as hipóteses de não serem detectados até ao último momento. Tiveram em consideração atrasos: uma doença, mau tempo, uma emboscada. Cada chefe tribal tinha outro homem que o poderia substituir, caso fosse morto ou capturado. A armadilha na qual planeavam apanhar o rei celta assemelhava-se a uma mão cheia de garras a fechar-se em redor de Dalriada. Cada dedo tinha de estar no seu lugar, cada um deles dependia dos outros para que não fosse deixado qualquer espaço aberto, qualquer ponto fraco através do qual Gabhran e os seus chefes tribais pudessem escapar. Os líderes de Bridei e as suas tropas estavam a dias de distância uns dos outros e, no entanto, no final, cada um deles dependia dos outros para que a armadilha se fechasse com êxito. Há já cinco anos que Bridei fomentava os laços de amizade entre eles. Conheciam-se bem uns aos outros. Eram um grupo de irmãos, cada um orgulhosamente independente, cada um muito senhor de si, desde o feroz Fokel, de Galany, ao equilibrado Talorgen, desde o flamejante Ged ao reservado Morleo, cada um deles parte de uma equipa que se dedicava ao futuro de Fortriu e ao grande objectivo do seu rei. Já antes tinham sido derrotados por Dalriada. Os chefes tribais mais velhos, Talorgen e Ged, tinham assistido a muitas batalhas ao longo dos anos. Desta vez, as coisas pareciam diferentes. Mesmo enquanto falavam de alternativas e contingências, tinham nos olhos a luz da vitória certa.
Bridei estremeceu. Por vezes, era assustador ver e saber que tudo isso era responsabilidade sua. Ele era o rei. Fora escolhido pelos deuses e pelos homens para guiar Fortriu para a vitória. Aqueles homens, aqueles líderes maduros e cautelosos acreditavam que seria capaz de o fazer. Acreditavam que o próprio Bridei marcava a diferença entre outra derrota dolorosa e a queda final do invasor, há muito desejada. Tentara dar-lhes aquilo que eles esperavam. Concebera o plano o mais estanque possível. Acreditava, quando rezava ao Guardião das Chamas ao amanhecer ou A Que Brilha ao crepúsculo, que os deuses continuavam a sorrir-lhe. Ainda assim, era um grande peso aquele que tinha sobre os ombros e alturas havia em que o desejo de estar em casa era tão forte que o coração lhe doía. Queria sentar-se junto à lareira com Tuala, vendo-a enquanto ela escovava o cabelo, em movimentos demorados e regulares. Queria segurar o filho nos braços e ver o pequeno e estranho sorriso de Derelei, os olhos grandes cheios de segredos. Queria estar perto de Broichan, cujos conselhos assisados tantas vezes o tinham ajudado a encontrar o caminho através de uma ou outra situação difícil. Mas ele era o rei, cavalgava para a guerra e passaria muito tempo até que voltasse a ver a sua casa, os seus entes queridos. A celebração da Medida há muito teria passado, mesmo que tudo corresse bem. Interrogou-se sobre se o filho se recordaria dele. Certa noite, acamparam na floresta acima de Fox Falls, à espera que Fokel de Galany se juntasse a eles. Depois de terem comido, uma espécie de caldo de carne que incluía lebre, pombo-bravo e ouriço-cacheiro, Bridei percorreu o acampamento com Breth, falando com o maior número possível de homens. Naquele momento, não necessitavam de discursos inflamados. Caso estivessem a sentir-se como ele, aquilo que desejavam era uma palavra amiga e de coragem. Ouviu as suas preocupações com uma atenção cortês, dando a cada um deles o seu tempo e fazendo-lhes saber, esperava ele, que tinham a confiança do rei. Já era tarde e a maior parte dos homens adormecera enrolada em mantos ou cobertores. Os que estavam de vigia permaneciam no perímetro do acampamento, sombras silenciosas sob uma lua crescente. Bridei e Breth regressaram ao pequeno abrigo que fora erguido para o rei, onde um dos homens de Pitnochie, Uven, estava de guarda.
— Breth, vai dormir — disse Bridei. — Deixa que Uven faça o primeiro turno aqui. Tenho de me reconciliar com os deuses antes de me deitar. Não estarei muito longe.
— Se tens a certeza. — Breth estivera a reprimir um bocejo.
— Tenho. Agora vai. Assim que Fokel chegar, e isso poderá acontecer só amanhã, vamos descansar ainda menos. Acorda-o quando for horas de trocar, Uven.
— Sim, meu senhor. — Os homens de Pitnochie conheciam Bridei desde os quatro anos. Os seus modos para com ele eram quase de posse, mas nunca lhe faltando ao respeito. Conquistara a lealdade que tinham para com ele.
Bridei caminhou até um pequeno outeiro não muito longe do acampamento, um lugar onde a luz d'A Que Brilha penetrava através dos ramos largos dos carvalhos, iluminando fracamente uma extensão de pedras musgosas e as folhas em forma de coração de uma planta rasteira que trepava pelas fendas da rocha. Aí, ajoelhou-se para rezar e Uven, respeitando o laço entre deus e rei, permaneceu para lá da luz, de lança na mão e olhos atentos.
Para um homem educado por um druida e alimentado, por assim dizer, com o saber antigo, Bridei fez uma oração simples. No dia seguinte, nos próximos, e nos muitos que se seguiriam, em todos os lados de Dalriada, iriam morrer homens porque ele decidira que tinha chegado a altura da guerra, homens como as boas almas com quem conversara naquela noite. Enquanto rei, era a sua confiança que os impelia para ocidente, com a luz de uma demanda nos seus rostos vulgares e honestos. Muitos não regressariam. Haveria esposas, mães, filhos, cujo tempo de espera duraria uma vida inteira. Outros receberiam de volta um homem destroçado. Mesmo que as tropas dos Priteni alcançassem uma grande e nobre vitória, seria assim, pois a guerra era cruel e imparcial. No calor da batalha, no campo, não eram homens bons nem homens maus, eram simplesmente dois exércitos de pais, filhos e irmãos, que colocam a sua vida em risco porque o seu líder os convence de que é a coisa acertada a fazer. Ele, Bridei, era esse líder.
Não pediu À Que Brilha que lhe retirasse dos ombros o peso que carregava, um fardo que se tornaria cada vez mais pesado com cada dia de conflito. Pediu-lhe somente que lhe desse forças suficientes para o suportar. Não lhe pediu que poupasse os seus amigos mais chegados, Breth, Talorgen, os homens de Pitnochie. Apenas que, se morressem, pudessem morrer de forma limpa e com um objectivo. Quanto a si próprio, esperava regressar a casa, no Monte Branco, e voltar a abraçar a sua esposa e o seu filho novamente. Mas não o mencionou na oração. Não pediria para si próprio aquilo que sabia não poder ser concedido a todos os homens do seu exército. Rezou para que o caminho que tinha escolhido fosse bom. Pediu que a deusa cuidasse de Tuala e pediu
À Que Brilha que desse ao seu filho bons sonhos. Depois permaneceu ajoelhado durante algum tempo, tornando a sua respiração mais calma. Algo se mexeu mesmo atrás de si. Bridei colocou-se de pé de um pulo e pegou no punhal. Um momento depois, Uven atravessou rapidamente a clareira, de lança na mão.
— Está tudo bem, Uven. — Com esforço, Bridei manteve a voz firme. — É só Hargest. Pelos deuses, rapaz, para um homem tão grande tens pezinhos de lã.
— Que idéia foi essa, de apareceres assim de repente? — perguntou Uven, num rosnido furioso. — Mais um segundo e ter-te-ia trespassado!
— Um segundo é tempo suficiente para um assassino atacar — observou Hargest, apontando para a faca que trazia no cinto. — Senhor meu rei, os teus guarda-costas não estão à altura.
— Seu...
— Deixa estar, Uven — disse Bridei. — Falarei com Harvest sobre os seus modos, não aconteceu nada. Se eu não o ouvi, com certeza que tu também não poderias fazê-lo. Fui treinado por Broichan. Esta noite deixá-lo-ia envergonhado. Vem, Hargest. Já terminei. Conversa um pouco comigo enquanto regressamos ao acampamento.
Ficaram junto à pequena fogueira que ardia perto da tenda de Bridei: Uven tenso, devido à irritação e mal-estar, Hargest de braços cruzados e uma expressão beligerante e Bridei mantendo uma calma tantas vezes treinada. Hargest não pediu desculpa. Talvez não compreendesse o quão perto realmente estivera de ter o coração trespassado por um punhal, pensou Bridei. Se assim fosse, o rapaz tinha aprendido menos do que devia durante o tempo que passara com os homens de armas do rei.
— Hargest — disse ele, num tom de voz sereno —, não é sensato testar as reacções dos meus guardas, aproximando-te de mim furtivamente. Eles não só têm ordens para matar, mas treinaram-me para que me defenda. O meu pai adotivo ensinou-me a usar os meus ouvidos tal como o faz um animal selvagem. Se eu não estivesse em meditação profunda, ter-te-ia apunhalado o coração antes de ter oportunidade de ver quem eras.
— Então quando estás a rezar, os teus guardas devem encontrar-se duplamente alerta.
— Não culpes Uven — disse Bridei, suspirando. — Ele estava a fazer o seu melhor para encontrar um equilíbrio entre a discrição e a vigilância. Os meus homens conhecem-me bem, Hargest. Há alturas em que preciso de manter a ilusão de isolamento, nem que seja apenas pela minha própria paz de espírito.
— Diz-se que adoras os deuses. Que o Guardião das Chamas considera-te o seu filho favorito.
— Espero que todos os homens aqui presentes adorem os deuses. Quanto a filhos favoritos, só me resta ter fé que o Guardião das Chamas apoie o nosso empreendimento e me considere digno que o liderar. Agora diz-me, por que razão estás aqui e não a dormir com o grupo que te foi atribuído? Por que motivo me abordaste daquela maneira? Suponho que não tenha sido apenas para chamar a atenção para um ponto fraco nas minhas defesas pessoais.
— Desejo falar contigo a sós — resmungou Hargest, lançando um olhar feroz em direção a Uven. — Assuntos particulares.
— Nem penses — disparou Uven.
— Ele tem razão — declarou Bridei, mirando os punhos e o maxilar cerrados do jovem. — Tendo em conta o que acabaste de nos dizer, deves tomar o teu rei por um tolo, se pensas que ele mandaria embora o seu único guarda e teria uma conversa em privado durante a noite, no meio da floresta, com um homem que conhece há apenas, o quê, uma lua? Nem tanto, penso eu.
Seguiu-se um silêncio constrangido.
— Por favor, meu senhor? — A voz de Hargest suavizara-se um pouco. Olhava para as botas.
— Recua alguns passos, Uven. Bom, Hargest, o que se passa? Estás preocupado com a batalha? Tomei a decisão errada, ao permitir que te juntasses ao meu exército?
— Não, meu senhor. — O jovem endireitou os ombros. — Estou em condições de combater, assumirei o meu lugar. É sobre o que se seguirá que desejo falar-vos.
— O que se seguirá? Irá seguir-se outra batalha, Hargest, e mais uma marcha, e depois outra batalha. A guerra é assim. É sangrenta e repugnante. Fazemo-la porque assim tem de ser. Acredita em mim, com deuses ou sem eles, nada disto me agrada. Quando terminar, se tiveres a sorte de sobreviver, regressarás a Storm Crag e reconhecerás que cada dia de paz que os deuses te concederem é uma dádiva preciosa.
— Eu... e se...?
— Seja o que for, Hargest, diz. Já é tarde e tenho pelo menos de fingir que descanso esta noite ou Breth ficará aborrecido comigo.
— Um dos teus guardas pessoais poderá ser morto ou ferido na batalha. Caso isso aconteça, há alguma possibilidade que...
Bridei não conseguiu evitar um sorriso.
— Refinamos as tuas técnicas de combate na Fonte do Corvo e os homens não se cansam de te elogiar. Parece que não te exercitamos na diplomacia. Tens assim tanta vontade de assumir os deveres de guarda-costas? Dizem-me que é um trabalho ingrato: dormem pouco, sofrem de ansiedade permanente, não têm tempo para eles próprios. E o salário não é melhor do que a média, a menos que tenhas algo especial para oferecer. O meu guarda principal, o que está no norte, é um tradutor excelente e possui uma série de outras capacidades. Quanto a Breth, não vou desafiar os deuses ao predizer o seu destino na batalha. Tenho vários outros homens a quem posso recorrer, tal como Uven. Homens de confiança.
— Podes confiar em mim, meu senhor. — A voz de Hargest estava rouca de ansiedade. Parecia muito jovem. — Vi o que és para estes homens: um rei, um líder, um amigo. Eles vêem-te como seu irmão, seu pai. Olham-te nos olhos e vêem o olhar do Guardião das Chamas. Sabes que sou um bom lutador, meu senhor. Sou capaz. Sou rápido. Sou destemido. Dá-me uma oportunidade e provar-te-ei o quanto posso ser bom como guarda-costas. Serei melhor do que qualquer um deles.
— Não preciso disso — disse Bridei, num tom de voz suave. — Estou mais do que satisfeito com os homens que tenho. Provaram o seu valor durante muito tempo. No caso de Uven, durante quase uma vida inteira.
— Toda a gente tem de começar por algum lado, meu senhor. Por favor, põe-me à prova. Não irás arrepender-te. — A voz do jovem tremia de emoção. Tão jovem, tão cheio de paixão.
— Um dos atributos requeridos é a capacidade de permanecer totalmente calmo na mais difícil das provas — disse Bridei.
— Põe-me à prova então.
— És arrojado, isso é evidente. Demasiado arrojado, diriam os meus conselheiros.
— Por favor, senhor meu rei. Dar-te-ei provas do meu valor. Juro-o pela virilidade do Guardião das Chamas.
— Primeiro vamos tomar Galany 's Reach — disse Bridei, interrogando-se sobre se aquela mistura explosiva de juventude, ambição e culto dos heróis seria despedaçada no dia da sua primeira batalha a sério ou se sobreviveria para ganhar o futuro pelo qual parecia ansiar. — Veremos como te sais e talvez considere pôr-te à prova. Terás de lidar com a reprovação de Breth.
— Sim, meu senhor. — Os olhos do jovem brilhavam com a luz da esperança e a boca esboçou um sorriso de puro prazer, substituindo por momentos a sua atitude habitual de beligerância carrancuda. — Obrigado, meu senhor. Juro que não te arrependerás...
— Deixa-nos sobreviver a Galany. — De súbito, Bridei sentiu-se exausto. — Não subestimo de forma alguma a tua oferta, Hargest. Que isto fique claro. Honro a tua coragem e sinceridade e espero que o Guardião das Chamas te segure na sua mão quando avançarmos para a batalha. Contudo, precisas de aprender a ter um pouco mais de tacto ao lidar com os meus homens. Também deves recordar-te de que sou rei de Fortriu. Quando conversam comigo em privado, Breth, Uven e os outros fazem uso de uma certa familiaridade. Ganharam o direito a fazê-lo ao longo de muitos anos de serviço leal. Talvez, a seu tempo, também tu ganhes esse direito. Agora, boa noite. Que A Que Brilha te dê bons sonhos.
— Boa noite, senhor meu rei. — Hargest fez uma vênia breve. Ao endireitar-se, o seu sorriso constrangido era como o de um filho traquinas a desfrutar de uma piada pessoal com um pai severo mas carinhoso. Bridei não conseguiu evitar devolver-lhe o sorriso.
No longo crepúsculo de uma noite de Verão, Faolan e Ana acamparam na orla de um pinhal, bem acima de um lago comprido e solitário. Ao início do dia, tinham avistado um casal de águias a sobrevoá-los, dirigindo-se para os picos desolados que se erguiam para lá das colinas rochosas e Ana disse a Faolan que aquele era um sinal auspicioso.
— É o símbolo da realeza de Bridei e um par é uma mensagem especialmente forte da parte dos deuses — disse ela, enquanto apanhavam madeira para a pequena fogueira e tratavam da oferenda nocturna do falcão, um pássaro gordo de uma qualquer espécie não identificável. O cruza-bico e a gralha permaneciam imperturbáveis, observando Ana a depenar e a esvaziar a presa: mais um indício da sua profunda diferença, pensou ela.
— Mm-mm — grunhiu Faolan, fazendo uma faísca ao bater com a faca na pederneira. — Ficaria mais satisfeito se soubesse exactamente onde estamos e quanto ainda teremos de andar. Se os deuses quisessem ajudar-nos, poderiam dizer-nos isso. Ali o nosso guia está a conduzir-nos numa dança sinuosa. É quase como se a criatura não quisesse que cheguemos a casa. Talvez seja altura de dispensarmos os seus serviços.
— Se não sabes onde estamos, isso não seria muito boa idéia, Faolan. Além disso... — Ana calou-se. Ele não estava no melhor dos humores e ela sabia como ele ficava aborrecido quando falava de Drustan. Drustan... a dor da ausência aumentava a cada passo que dava para longe de Briar Wood. O tempo não estava a sarar aquela ferida no seu coração.
— Além disso, os pássaros é tudo o que te resta dele, eu sei, eu sei. — Faolan soprou a mecha em chamas e começou a colocar-lhe galhos em cima. — Não podem ficar connosco para sempre e não estão a ser de grande ajuda. Tenho a certeza de que estamos demasiado a norte e provavelmente vamos perder-nos, se tivermos de atravessar estas florestas a caminho da costa. Sinto-me inclinado a procurar o caminho por mim próprio, a deixá-los ir.
— Como é que os farias partir? Com certeza que só obedecem a Drustan.
— Dir-lhes-ia que se fossem embora. Ou melhor ainda, serias tu a dizer-lhes isso. Lembra-te da forma como o falcão vem para a tua luva, obediente como um pássaro de caça bem treinado. Ordena-lhe que parta e aposto que os três se vão embora nesse mesmo dia.
Ana não disse nada. O troféu do falcão, espetado num pau, estava pronto a ser cozinhado. As mãos dela estavam uma confusão de sangue, entranhas e penas. Se alguma vez regressasse ao Monte Branco, fá-lo-ia com capacidades que jamais esperara adquirir. Quanto aos seus três guardiães, tinham-se tornado tão familiares, cada dia moldado pelo voo elegante da luva para o céu, pelo toque macio das penas aveludadas na face ou nos dedos, pelos pequenos sons que faziam à noite e pela sabedoria misteriosa nos seus olhos selvagens e brilhantes, que ela sabia que agora a sua vida seria incompleta sem eles. Eram seus companheiros e amigos. Se o falcão estava a conduzi-los em círculos, devia existir uma razão para tal. Talvez fosse perigoso percorrer um caminho mais a direito, talvez não houvesse um caminho mais curto para além daquele que eles não podiam tomar, aquele que atravessava Breaking Ford. A terra dos Caitt era tão difícil como rezavam as histórias, repleta de vales profundos e montanhas assustadoras, florestas densas e escuras e lagos imensos, açoitados pelo vento. Era imponente, vasta e, na sua maioria, vazia da presença humana. Ali, o eco de um grito de socorro poderia soar sem resposta por todo o sempre. Ali, os veados, os javalis e os lobos viviam e morriam sem chegar a conhecer o que era sentir medo dos caçadores. Ana pensou que se a mão de qualquer divindade se estendia sobre aquele notável lugar selvagem, certamente seria a da Mãe de Tudo, deusa dos sonhos, guardiã da terra antiga. Estremeceu e aproximou-se da fogueira. A Mãe de Tudo regia o portal entre este mundo e o próximo, as suas escolhas determinavam a duração de uma vida. Na vasta e solitária extensão daquela terra do norte, a deusa poderia extingui-los tão facilmente como a um par de velas ao lado da cama. Simplesmente desapareceriam, a sua passagem por ali passaria despercebida, os seus corpos nunca seriam encontrados. A sua carne escureceria, iria desfazer-se e transformar-se em solo sob aquelas árvores e os seus ossos seriam espalhados em todas as direções, um festim para os corvos.
— O que se passa? — perguntou Faolan, olhando para ela enquanto equilibrava o pássaro no espeto sobre a fogueira.
— Nada — murmurou Ana. A distância ouviu-se um grito vindo da floresta, uma saudação e um desafio: a música sinistra dos lobos. De vez em quando, ao longo dos últimos dias, Ana tivera a sensação de estar a ser seguida, observada. Não ouvira o som de passos, nem um restolhar na vegetação rasteira, contudo sentira-o. Esperava que Faolan fizesse um dos seus comentários tranquilizadores, tal como «Estão mais longe do que parece», mas ele não disse nada.
Naquelas noites de Verão, as encostas eram banhadas por uma luz pálida e fria até quase à meia-noite e o tempo de escuridão era curto. Normalmente, no final de um dia de caminhada, Ana estava tão exausta que adormecia pouco depois de terem feito a fogueira e comido. O desconforto de uma cama feita sobre rocha, terra ou sobre o solo da floresta já não era suficiente para impedir que mergulhasse no poço escuro do sono. Sabia que estava muito mais magra. Sentia a pressão da cama dura nos joelhos e cotovelos, nas ancas e ombros que tinham perdido o enchimento protetor da carne saudável e sentia-se satisfeita por não existirem quaisquer espelhos ali. Via em Faolan algo parecido. Com as faces escavadas e a barba escura, adquirira uma expressão tensa e perigosa, o ar de um homem que teme estar a perder o controlo da situação.
Naquela noite, o sono não viria. Depois de roerem o parco jantar até os ossos ficarem limpos, sentaram-se perto da fogueira e escutaram os uivos. Havia neles um padrão: um chamamento, uma resposta. Uma intimação, um consentimento. A alcatéia aproximava-se. A lua estava baixa no céu, quase cheia, uma presença pálida mais adivinhada do que vista contra o frio cinzento-azulado da noite de Verão. Os pinheiros pareciam mais escuros, mais altos, mais ominosos do que quaisquer outros que Ana alguma vez vira. Os espaços por baixo deles eram cavidades secretas, bocas escancaradas habitadas por presenças desconhecidas, prontas a engolir qualquer intruso. Ana olhou para os pássaros. O falcão estava pousado muito acima do solo. Naquela noite estava inquieto, movendo-se de um lado para o outro sobre o ramo, um par de olhos, um monte indistinto de penas. A gralha e o cruza-bicos estavam aninhados um no outro como dois passarinhos. Vindo das profundezas da floresta, imaginou ouvir o som de algo a restolhar, a rosnar, o som de muitos pés.
— Devíamos aumentar a fogueira. — Era de louvar como Faolan mantinha a voz firme. — Precisamos de madeira suficiente para a manter em chamas até ao amanhecer. Vais ter de ficar acordada e ajudar-me a ficar de vigia.
Sem proferir uma palavra, ela levantou-se para ajudá-lo a apanhar madeira, não se aventurando a ir até demasiado perto da orla da floresta. Ao movimentarem-se de um lado para o outro, as botas faziam com que os galhos se quebrassem e a vegetação rasteira restolhasse. A floresta pareceu silenciar-se e os uivos dos lobos deixaram de se ouvir. Quando Ana e Faolan regressaram para junto da fogueira, tendo terminado a sua tarefa, as criaturas recomeçaram a sua canção de caça, a qual se encontrava mais próxima.
— E se eles... — Ana estava a bater os dentes e cerrou o maxilar para impedi-lo.
— A fogueira fará com que não se aproximem.
— Mas e se vierem, se atacarem?
— Faca numa mão e fogo na outra. Agarra numa tocha, assim... — Pegou num pau em chamas, agarrando-o pela ponta por queimar. Ana viu que ele fizera a fogueira de modo a que muitos daqueles ramos ficassem à mão. Afinal, apesar da sua calma, já o esperava. Também ele pensava que os lobos atacariam naquela noite.
— Acho que podíamos subir a uma árvore — disse ela, muito a sério.
Faolan olhou para os pinheiros altos, cujos troncos eram desprovidos de ramos até bem acima da sua cabeça. — Pelo aspecto desta floresta — disse ele —, acho que prefiro arriscar com os lobos. Ana?
— O que foi?
— Está alguma coisa a mexer-se debaixo daquelas árvores, atrás de ti. Mantém a calma. Pega numa tocha. Quando te virares, segura-a à tua frente. Lembra-te, ela é a barreira entre ti e o lobo. Não te sintas tentada a correr. Mantém a fogueira atrás de ti. Não uses a faca a menos que não haja outra alternativa. Preparada?
Preparada? Como é que poderia estar preparada para aquilo?
— Sim — respondeu. Virou-se e viu-os. Movendo-se com cautela sob as árvores, a menos de vinte passos de distância, podiam ser distinguidos quando a luz da fogueira transformava os seus olhos em pontos brilhantes, formas que se misturavam com a escuridão da floresta noturna, uma centena de tons de cinzento. Tentou contá-los e, mergulhada no terror, descobriu que eram demasiados, deslocando-se, movimentando-se, agrupando-se e separando-se como inúmeros bailarinos num desfile de longas patas graciosas e dentes afiados. O falcão soltou um grito áspero nos ramos acima das suas cabeças e os lobos recuaram um ou dois passos, para depois voltarem a avançar num uníssono silencioso e expectante. O falcão investiu, num movimento súbito e indistinto e, de garras estendidas, passou velozmente a um palmo dos olhos espantados do animal que chefiava o grupo. O lobo tentou abocanhá-lo e voaram penas. O pássaro voou para cima, para fora de alcance, e depois voltou a precipitar-se em direção ao lobo.
— Estão a movimentar-se atrás de nós. — Faolan estava ao lado dela, também ele com um ramo em chamas na mão. — Lembra-te...
— Tenho de ficar de costas para a fogueira — murmurou Ana, o medo despedaçando-lhe as entranhas. Um momento depois, uma das formas compridas e cinzentas correu na sua direção e ela abanou a tocha à sua frente, a certeza de que iria ter de lutar pela vida opondo-se à irrealidade, à qualidade de pesadelo de tudo aquilo. O pássaro investiu e desta vez as garras encontraram um alvo. Ouviu-se um uivo de dor e o lobo que a atacara caiu para trás.
Não via Faolan. Atrás de si, do outro lado da fogueira, ouviu-o tropeçar e praguejar e depois começar a gritar, como se pudesse manter os animais à distância com a sua voz. Outro lobo lançou-se sobre Ana, tentando abocanhá-la, e a jovem agitou a tocha à frente do corpo, esforçando-se por manter o equilíbrio e a posição, para que os animais não conseguissem esgueirar-se entre ela e a fogueira. O falcão desaparecera de vista. A gralha e o cruza-bico não se viam em lado nenhum.
Ana gritou algo, uma coisa qualquer, dando estocadas com o pau em chamas e ouvindo como a sua voz era ínfima e estridente, como era totalmente ineficaz. Era o pequeno chiar de um rato antes de a coruja o engolir, o guincho de um coelho quando as mandíbulas do cão de caça se firmam no seu crânio frágil. Rodopiar, estocar, gritar. Esquivar-se, investir, gritar. Primeiro havia um, depois dois, depois três a virem sucessivamente na direção dela, cada vez mais rápidos, uma tentativa de abocanhar, uma corrida, uma dentada, um salto... Deuses, se um deles se atirasse à sua garganta, tudo aquilo terminaria num instante. O cheiro fétido e selvagem dos animais envolvia-a, as suas rosnadelas enchiam-lhe os ouvidos. Podia sentir o martelar do coração em cada parte do corpo, os joelhos estavam moles como água. Desviar, virar, estocar, gritar...
Ouviu-se um rugido enorme e Faolan apareceu a seu lado, brandindo a tocha e fazendo recuar três dos lobos, quando o rasto de lume os chamuscou. Depois desapareceu e Ana ouviu os sons do seu jogo particular de ataque e defesa atrás de si. Ana arquejou e agarrou melhor no ramo. O fogo estava a consumi-lo depressa. Em breve teria de encontrar uma oportunidade para pegar noutro. Os três lobos já estavam novamente a avançar na direção dela, muito lentamente, cada movimento uma obra-prima de tensão refreada e as vozes em uníssono num rosnar terrível e feroz.
Faolan emitiu um som, um palavrão sufocado, e ela percebeu de imediato que tinha sido ferido. Não podia virar-se, nem sequer podia olhar para ele, quanto mais ajudá-lo. Deu uma estocada com a tocha na direção de um dos animais, depois de outro, e golpeou loucamente o ar com a faca. Na orla exterior do círculo, os lobos corriam, e agora eram muitos. A armadilha estava a fechar-se. Ana podia ouvir o som da sua própria respiração, entrecortada, áspera, já demasiado fraca para agüentar um grito de desafio. Já não era sequer suficiente para uma derradeira oração desesperada. Foi com um joelho ao chão, a faca apontada para a frente, e retirou uma tocha da fogueira. O líder da matilha baixou as patas traseiras, pronto para saltar.
— Drustan! Aparece e ajuda-nos! — rugiu Faolan, surgindo de novo ao alcance da vista de Ana e arremessando algo (seria uma pedra?) na direção dos que a atacavam. — Sê um homem!
Não havia tempo para pensar na estranheza daquilo. Ele fizera com que Ana tivesse a oportunidade de que necessitava para se levantar, a fim de enfrentar os lobos com uma tocha nova. Esperou, com o archote estendido, enquanto eles se empurravam, andavam de um lado para o outro e se colocavam novamente numa postura de ataque.
— Drustan! — A voz de Faolan era um grito poderoso vindo das profundezas do seu ser. — Fá-lo! Fá-lo agora! Aparece e ajuda-nos, ou morremos os dois! De que te valerão os escrúpulos nessa altura, seu idiota?
E, nesse momento, oh, nesse momento... De repente, vinda de lado nenhum, havia uma terceira figura a correr, a esquivar-se, a virar, com uma tocha em cada mão, confundindo a alcatéia até esta ficar numa quietude surpreendida, com os seus movimentos rápidos e fluidos, uma figura alta e de ombros largos, com um cabelo tão selvagem e vermelho como o fogo que trazia nas mãos. As palavras de Faolan tinham-no conjurado do nada. O coração de Ana parou-lhe no peito e a respiração ficou-lhe presa na garganta. Drustan estava ali. Voltara e o mundo renascera.
O ruivo não deteve as criaturas por muito tempo, que recomeçaram a movimentar-se no seu ritual circular, com os dentes arreganhados e as vozes um estrondo de ameaça. Contudo, com três pessoas junto à fogueira era muito mais difícil para os lobos escolherem um alvo, esquivarem-se e atacarem. Perante a investida do remoinho de fogo, das formas que mudavam sob a luz trêmula, os animais recuaram, alguns subindo de modo furtivo a colina, a fim de se agacharem junto de um aglomerado de pedras sombrias, outros deslocando-se para o primeiro abrigo dos pinheiros onde se colocaram em linha, à espera.
— Pega numa tocha nova. — A voz de Faolan estava tensa. Parecia ter sido ferido na perna e no ombro. — Em breve estarão de volta. — Olhou para Drustan, que se encontrava um pouco afastado, dobrado sobre o corpo e a tentar recuperar o fôlego. — Demoraste algum tempo — disse Faolan.
O coração de Ana transbordava de tal forma de felicidade, que não havia espaço para o medo. Não era altura de perguntas: onde é que ele tinha estado? Como é que Faolan soubera que estava por perto? Drustan estava vivo e ali. Nada mais importava. Ana foi até junto dele e o homem endireitou-se. Estendeu a mão, assolada por uma timidez curiosa, e tocou-lhe no rosto. Drustan levou-lhe os dedos aos seus lábios, durante apenas um segundo, depois soltou-a e deu um passo atrás. Sob a luz irregular da fogueira, não era possível confirmar a sua desconfiança de que ele estava a corar.
— Mais lenha — disse Faolan, de forma brusca. — Aumentem a fogueira. Se encontrarem mais alguma coisa que arda, tragam-na. Ana, fica junto do lume, não te mostres como alvo.
— Quero ajudar.
— Descansa enquanto podes, Ana — aconselhou Drustan. O seu nome nos lábios dele era o mais doce dos bálsamos para o coração. Cruzaram o olhar e Ana sorriu. A boca dele curvou-se numa resposta estranhamente hesitante, antes de dar meia volta e afastar-se para ir ajudar Faolan a procurar lenha. Os dois homens em conjunto conseguiram arrastar um pesado ramo de pinheiro até à fogueira. Arderia durante muito tempo. Dispuseram mais paus para serem usados como tochas e limparam o solo em redor, para se livrarem de quaisquer obstáculos que pudessem fazer com que um deles tropeçasse, tornando-se assim vulnerável. Os lobos atacam o mais fraco e Ana não duvidava de que seria ela.
— Agora esperamos — disse Faolan, regressando para junto dela. Tinha uma mão apertada sobre o ombro e tentava disfarçar que coxeava.
— Faolan, estás ferido! Deixa-me ver...
— É um arranhão. Não vou morrer por causa disto. Mas eles sentiram o cheiro a sangue. Isso vai fazer com que não saiam daqui, com ou sem fogo, até ao amanhecer. Fica calma e permanece alerta. Agora que o nosso amigo decidiu dar-nos a honra da sua presença, temos alguma hipótese de sobreviver até de manhã.
Os seus modos eram estranhos, quase ofensivos. — Foste tu que o chamaste — disse Ana.
— Vejo-os a movimentarem-se — murmurou Drustan. — Ana, não quero que tentes lutar. Fica atrás de mim. Eu não deixo que eles te façam mal...
— Não lhe dês ordens. — A voz de Faolan era fria como o gelo. — Ela é capaz de nos ajudar. Deixa-a fazê-lo.
Seguiu-se um curto silêncio. Ana olhou para a encosta na semi-escuridão. As formas indistintas tinham ganho terreno. Ana podia ver o reflexo vermelho das chamas nos olhos deles. O medo voltou a inundá-la. Ainda faltava muito tempo até ao amanhecer.
— Por favor, não discutam — disse ela baixinho, inclinando-se para a frente para retirar outro pau da fogueira.
O líder da alcatéia avançou, uivando, e tudo recomeçou. Ana perdeu a noção do tempo. Pareceu-lhe uma eternidade: uma cacofonia de rosnados e gemidos, de pragas e gritos dos dois homens, da sua própria tentativa patética de deter os animais com uma voz já rouca e ofegante. A tocha era pesada e ela sentia as lascas da madeira na mão. O suor queimava-lhe o rosto. Via Drustan, não muito longe, com uma tocha em cada mão, atirando-as ao ar e apanhando-as num remoinho que parecia desconcertar os animais que o rodeavam. Dos três, era ele quem parecia correr menor risco de ser atacado. Ana deslocou-se, lenta e cuidadosamente, para o lado da fogueira onde estava Faolan. Três lobos enfrentavam-no, de focinhos compridos, dentes à mostra, línguas a salivar e corpos tensos de antecipação. Faolan mantinha-se de pé de uma forma algo estranha, apoiando-se numa perna e, com as duas mãos, agitava a tocha à sua frente. Os lobos observavam-no atentamente. Pareciam estar a avaliar qual o melhor momento para um ataque. Ana deu uma estocada com a tocha, semicerrando os olhos perante uma chuva de faúlhas. O nariz doía-lhe, os olhos picavam-lhe e a visão estava a tornar-se indistinta.
— Deixem-no em paz! — gritou para os atacantes. — Vão-se embora! Vão! Vão! — e agitou a tocha de um lado para o outro. O olhar dos lobos fixou-se nela, decidido, sério e bastante impiedoso.
— É melhor fazeres o que ele disse — arquejou Faolan. — Deixa que ele te defenda... melhor hipótese...
— Estás ferido — murmurou Ana. — Mal consegues aguentar-te de pé.
— Vai... outro lado... Drustan...
— Pára com isso! — cortou ela. — Somos amigos, não somos? Companheiros. Agüenta mais um pouco. O sol mais cedo ou mais tarde terá de nascer.
Durante algum tempo, pareceu-lhes que isso fosse possível, manter a luta até que a aurora viesse em seu auxílio. Por vezes, os lobos recuavam e eles tinham a oportunidade de recuperar o fôlego, de empurrar o tronco mais para o interior da fogueira, de pegar numa tocha nova. Mas esses intervalos breves eram cada vez mais curtos e menos freqüentes. Faolan fazia um esforço cada vez maior, a sua respiração arrastada e difícil, a perna ferida menos firme, à medida que cada onda de atacantes avançava. Drustan parecia esgotado. O seu rosto estava branco como cal ao luar, os olhos sombrios. Ana sentia a exaustão a invadir cada parte do seu corpo. Respirar era um esforço, era difícil manter-se de pé, uma provação reunir forças até para retirar um ramo da fogueira. Para lá do círculo de luz lançado pela pequena fogueira, o número de lobos parecia maior de cada vez que olhava. O céu estaria a começar a ficar mais claro? Disse a si própria que havia um laivo de uma cor mais quente no cinzento da noite de Verão. Sabia que não era verdade.
Tinham-se preparado para mais uma investida quando começou a chover. Era uma chuva miudinha e leve que banhava aqueles montes uma ou duas vezes quase todos os dias, mesmo no Verão. A fogueira começou a silvar. No interior da floresta, os pássaros emitiam sons inquietos da sua miríade de poleiros. Os lobos começaram a aproximar-se novamente, acercando-se em silêncio por todos os lados, numa maré cinzenta e faminta. Morrer daquela forma seria, de fato, cruel. O jogo que os deuses tinham com eles era muito estranho. Por que razão tinham ela e Faolan sobrevivido a Breaking Ford, por que tinha Drustan escapado ao irmão, por que motivo lhes tinha sido permitido amarem-se, se estavam destinados a morrer de forma bárbara e dolorosa, sem nenhum outro objectivo a não ser servir de jantar a um animal qualquer?
— Isto não pode continuar — murmurou Drustan, retirando uma tocha nova da fogueira. — Tem de haver outra maneira.
— Se nós três conseguíssemos voar — respondeu Faolan amargamente, à medida que a chuva aumentava de intensidade —, sem dúvida que haveria. Não sendo possível, temos de continuar a lutar o melhor possível.
Drustan olhou para ele.
— Não seremos capazes de continuar, se a fogueira se extinguir — disse ele. — Vou tentar outra coisa. Dá-me a tua tocha.
— O que...
Antes que Faolan pudesse dizer mais alguma coisa, Drustan tirara-lhe a tocha da mão e afastava-se sozinho, em direção à floresta, mesmo para o meio do anel de lobos.
— Não! — gritou Ana, lançando-se atrás dele e detendo-se abruptamente quando Faolan lhe agarrou no braço.
— Não faças isso — sibilou. — Se ele quer matar-se, muito bem, mas não vai levar-te com ele.
Nesse momento, Ana ouviu o seu próprio soluçar sem palavras. Podia sentir a firmeza da mão de Faolan no seu braço, à medida que os lobos se começaram a movimentar por todos os lados. Seguiam em torrentes o homem ruivo, enquanto este se dirigia às árvores, fazendo malabarismo com as tochas com as mãos habilidosas. O que estava ele a fazer? Certamente não iria sacrificar a sua própria vida para que ela e Faolan se salvassem, tal como Deord fizera? O que poderia incitar um homem a uma tal coragem temerária?
Observaram Drustan até a figura alta do homem quase se fundir com a sombra dos pinheiros. Apesar da chuva que apagava a fogueira, as tochas ainda ardiam ao subir e descer, o padrão ora uma roda, ora uma teia, ora uma flor, deslumbrante e estranho. Os lobos encontravam-se reunidos em volta dele e Ana podia ouvi-los uivar. Esperou que o primeiro saltasse e que os outros o imitassem. Esperou que o homem que amava fosse dilacerado à frente dos seus olhos. Quando acabassem com ele, podiam levá-la. Nessa altura, já não se importaria.
Os lobos pressentiram o que estava prestes a acontecer antes de Ana ouvir ou ver o que quer que fosse. Os uivos transformaram-se num gemido débil, os lobos baixaram as barrigas até estas ficarem rentes ao chão e baixaram as orelhas. Ouviu-se um som terrível vindo da floresta, uma agitação imensa e um restolhar como se as próprias árvores estivessem prestes a arrancar as raízes do solo e a seguir em frente. Um instante depois, voando dos pinheiros escuros, apareceram pássaros: um bando enorme e denso de pássaros, mais do que Ana alguma vez vira antes, mesmo na chegada dos gansos na Primavera aos pântanos perto de Banmerren. Formavam uma nuvem vibrante, um coro de vozes estridentes, o movimento imponente e perigoso do manto de um feiticeiro. Desceram a pique, num voo rasante sobre as cabeças dos lobos agachados, desenhando um círculo fluido cujo centro era o homem de pé com o fogo nas mãos, o homem que, de alguma forma, conjurara aquele estranho exército de corujas e andorinhas, carriças e verdilhões, tordos e piscos para vir em seu auxílio.
A mão de Faolan afrouxou o aperto firme. Colocou o braço sobre os ombros de Ana, talvez para a tranqüilizar, talvez apenas para manter o equilíbrio. Enquanto ela olhava fixamente para aquela cena, estupefacta e em silêncio, os pássaros desenharam novamente um círculo e desapareceram nas profundezas da floresta. Na escuridão da encosta, podia ver Drustan a regressar, as tochas a fumegarem sob a chuva. Não havia qualquer sinal dos lobos. Ana olhou para o outro lado, pela encosta acima até aos afloramentos rochosos onde mais animais se tinham abrigado, prontos a atacar. Nada se mexia. O silêncio era absoluto.
Depois, tão de repente como o sol a espreitar por entre as nuvens, duas pequenas formas voaram da noite e pousaram nos ombros de Ana: o cruza-bico no direito e a gralha no esquerdo. Esperou pelo falcão, mas ele não veio, apenas Drustan, que caminhava em direção à fogueira moribunda com gotas de chuva no cabelo ruivo. Tinha os ombros caídos com o peso da exaustão pura.
— Foram-se embora — murmurou e, um instante depois, a sua figura alta estava dobrada no chão, a cabeça nas mãos.
— Drustan! Estás ferido?
— Não, Ana. Preciso de algum tempo, só isso.
A chuva estava a parar e o tronco de pinheiro ainda ardia. O que fazer primeiro: cuidar dos ferimentos de Faolan, tentar reacender a fogueira ou ficar de guarda para o caso dos lobos regressarem? Começar a fazer a Drustan todas as perguntas que se revolviam na sua cabeça ou simplesmente abraçá-lo e agradecer-lhe por ter salvo as suas vidas?
— O fogo — murmurou Faolan, como se lhe tivesse lido os pensamentos. Tirou o braço de cima dos ombros dela e fez tenção de mudar a posição do tronco, a fim de avivar as brasas que crepitavam devido à chuva. Ana ouviu o arquejar de dor quando ele se baixou. A luz do fogo iluminou as manchas de sangue na roupa esfarrapada.
— Foste mordido? É muito grave? Devíamos tentar limpar as feridas, ligá-las...
— Não é nada.
— Mostra-me.
— Primeiro a fogueira — disse Faolan. — Se ela se apagar, os lobos voltarão certamente.
Tentaram abrigar do grosso da chuva o âmago do lume enfraquecido. Passado pouco tempo, Drustan levantou-se e foi buscar mais madeira ao sopé da colina, perto da orla da floresta, onde poderia estar mais seca. Desta vez, Ana não tentou impedi-lo, simplesmente ficou a vê-lo ir, maravilhada.
— Eles nem sequer tentaram feri-lo — disse ela.
— Ele tem jeito para o fogo, isso concedo-lhe. — Havia um tom rígido na voz de Faolan e ela não podia atribuí-lo totalmente ao fato de estar com dores.
— Tu chamaste-o — disse Ana. — Eu ouvi-te. Chamaste-o e, de repente, ele estava aqui. Como pode isso ser? De onde é que ele veio?
— Não é a mim que deves fazer essa pergunta. — Faolan enrolara a perna das calças para cima e inspeccionava o ferimento à luz irregular. Uma ferida escura tingia a pele do interior da coxa, juntamente com uma profusão de sangue seco. Ana sentiu náuseas. Era difícil tratar as mordidas de cães, mesmo tendo água limpa e ervas medicinais à mão. Era freqüente os humores malignos penetrarem naquele tipo de feridas e a febre que os acompanhava era, por norma, fatal.
Faolan deve ter visto a expressão dela.
— Nos meus tempos, já tive pior do que isto — disse ele. — Esquece. Já parou de sangrar. Ainda consigo andar. Fica contente por estarmos vivos. Foi por pouco.
— Faolan?
— Mm?
— O que é que quiseste dizer quando disseste que não era a ti que eu devia perguntar? Devias saber que ele estava por perto, para o chamares. Andas a esconder-me alguma coisa?
— Pergunta ao teu querido Drustan. Parece-me que irás descobrir que ele não foi totalmente honesto contigo. Agora está aqui, tens o que queres e está na altura de ele te contar tudo.
Aquilo era estranho. Mas talvez não fosse assim tanto, a menos que significasse que Faolan sabia alguma coisa sobre Drustan, que resolvera ocultar-lhe. Começava a ser invadida por uma desconfiança, estranha e assombrosa, que dava sentido a muitas coisas.
Fez-se silêncio enquanto observavam Drustan a aproximar-se sob a chuva fraca, a lua transformando em prata os caracóis molhados. Trazia nos braços uma carga pesada de ramos caídos.
— Ele é forte — observou Faolan. — Isso será útil.
— Estás tão zangado. Quase consigo senti-lo. Ele acabou de nos salvar a vida.
— Pede-lhe que te conte a verdade. Pergunta-lhe onde estava e por que não apareceu até sermos confrontados com a morte. Pergunta-lhe se um homem que realmente ama uma mulher a faz passar por isso.
Drustan aproximou-se, deixando cair o fardo e acocorando-se para ajudar a fazer a fogueira.
— Temos de mantê-la a arder — disse. — Não me parece que voltem, mas tu não tens roupa quente, Ana, e vocês os dois parecem esfomeados e exaustos. Toma... — Despiu a túnica e a camisa de pura lã que trazia por baixo, passou esta última a uma Ana silenciosa e voltou a enfiar a túnica. — Por favor, veste isto. O teu vestido está em farrapos e deves estar gelada. Receio que ainda haja um longo caminho a percorrer.
— Sabes o caminho? — perguntou-lhe Ana, sentindo mais uma vez aquela curiosa tensão entre eles, que era em parte a agitação do desejo físico, cuja intensidade não era totalmente diminuída pela fome, frio e choque, e em parte uma espécie de reticência, uma timidez que a impedia de proferir as palavras que ansiava dizer. De alguma forma, parecia-lhe perigoso revelar o que lhe ia no coração, o que despertava a cada instante no seu corpo. Era demasiado cedo.
— Posso guiar-vos até à costa leste — indicou Drustan. — Posso levar-vos até ao ponto em que dois rios se encontram, a partir de onde será fácil seguir para sul, até à corte de Bridei. Em breve encontrarei abrigo, boa comida e roupas quentes. Por estas bandas, não há nada. Lamento.
Ana vestiu a camisa, ainda quente do corpo dele e suficientemente comprida para lhe cobrir o corpo até à bainha puída e cortada do vestido esfarrapado. Olhou para Drustan, cujos olhos brilhantes a fitavam, solenes e um pouco circunspectos.
— Obrigada — agradeceu. — Isto é maravilhoso. E obrigada por nos salvares. Não sei como fizeste aquilo, mas foi... foi como magia. Belo e misterioso.
— Tens algo para contar à senhora. — Faolan olhou para o outro homem. — Uma explicação.
Drustan fitava agora o lume.
— Isso fica para amanha — escusou-se, calmamente. — É para outro lugar que não este, para um local seguro, sob a luz do Sol, depois de Ana ter descansado e comido. Irei contar-lhe. Mas não esta noite. Ainda não. — Estendeu o braço e apertou com firmeza a mão de Ana, puxando-a para que se sentasse a seu lado, junto à fogueira. A chuva amainara e as chamas lançavam um calor agradável sobre as suas mãos e rosto gelados. Faolan sentou-se desajeitadamente à frente deles, estendendo a perna ferida. Drustan abraçou os ombros de Ana. A jovem sentiu o toque dele percorrer-lhe o corpo, ela que durante tanto tempo se sentira demasiado cansada, triste e esfomeada para desejar algo mais que não fosse o parco jantar do dia seguinte, o sono desconfortável da noite seguinte. O sangue afluiu-lhe ao rosto. Encostou a cabeça ao ombro dele e fechou os olhos.
— Drustan — disse Faolan —, tenho de te dizer que Deord morreu. Alpin matou-o. Ele sucumbiu com bravura.
Drustan aquiesceu, como se já soubesse.
— Uma perda terrível — respondeu. — Ele merecia uma vida, merecia a liberdade que nos granjeou.
Passado algum tempo, Faolan disse:
— Falaste em guiar-nos até à costa. Isso quer dizer que não tencionas acompanhar-nos até ao Monte Branco?
— Depende. — A voz de Drustan tornara-se muito suave.
— De quê?
— Daquilo que Ana quer. Depende de amanhã.
Ana respirou fundo. Os dois homens pareciam embrenhados num qualquer jogo enigmático, o qual ela não compreendia. Não havia mais nada a fazer, a não ser falar abertamente.
— Quero que venhas connosco, Drustan — disse ela. — Nunca mais quero que voltes a partir.
Uma onda de tensão percorreu-o, assustadora pela sua intensidade. Depois respondeu:
— Se fores capaz de dizer isso amanhã, quando estivermos sentados junto à nossa fogueira a observar os pássaros a regressar às suas árvores ao anoitecer, então dir-te-ei que sim, que jamais te deixarei, por todos os dias e noites da minha vida. Se não o disseres, guiar-vos-ei ao caminho seguro rumo ao sul e depois regressarei a casa, ao Vale dos Sonhos, e cuidarei da minha terra sozinho. Não... — atalhou, ao ouvir o protesto da jovem —, agora não digas mais nada. Estamos todos exaustos. Vamos esperar pelo Sol e depois vamos para um lugar abrigado. Um local onde os lobos não conseguem chegar até nós.
Ao amanhecer, apagaram a fogueira e seguiram caminho. O cruza-bico e a gralha acompanharam-nos, partindo subitamente de vez em quando, como era seu hábito. Ana não perguntou pelo falcão. Ficara muito calada. Faolan interrogou-se sobre o que estaria a pensar e quanto teria adivinhado.
Não caminharam muito. Depois daquela noite em claro, uma noite de medo e de luta, todos se sentiam esgotados. A perna ferida de Faolan estava cada vez mais entorpecida e era-lhe difícil andar. Os passos trôpegos de Ana sugeriam que estava a dormir em pé.
Seguiram um riacho que gorgolejava através da floresta e, numa clareira onde o sol se infiltrava por entre o entrançado de amieiros e salgueiros, pararam para descansar. O joelho de Faolan não queria dobrar-se e, quando se deitou no chão, viu que os outros o fitavam.
— Não é nada — disse, de forma brusca.
— Mesmo assim — contrapôs Drustan —, uma cataplasma de ervas medicinais pode aliviar muito a tua condição. Ainda temos um longo caminho à nossa frente. É provável que encontremos uma série de plantas úteis nas margens deste ribeiro, incluindo algo para protelar a febre.
— Não há pressa. — Faolan estremeceu ao tentar retirar a trouxa. O ombro provocava-lhe uma dor intensa.
— Precisas disso agora, Faolan — disse Ana. — Não sejas tolo, a tentares ser corajoso. Deixa que Drustan te ajude.
— Sabes o que é necessário? — Faolan olhou cepticamente para Drustan.
— Sei o suficiente para não te fazer mal, sim — respondeu Drustan, sorrindo. — Agora descansa, não demorarei muito. Quando regressar, fico de vigia durante algum tempo. De todos nós, sou eu que menos necessidade tenho de dormir.
Afastou-se, os passos silenciosos no solo da floresta. Ana e Faolan instalaram-se o melhor que conseguiram. Devia ser fácil o suficiente permanecer acordado até o homem-pássaro voltar, pensou Faolan. Aquela dor era o bastante para manter enervado o mais sereno dos homens. Ouviu a respiração suave de Ana e olhou para a forma imóvel: a cabeça sobre as mãos, olhos fechados, o pequeno cobertor aberto em cima do corpo. Olhou para cima, para o dossel de folhas. Viu a gralha e o cruza-bico empoleirados juntos, totalmente imóveis. Um instante depois, estava a dormir.
Faolan acordou com um par de mãos a apertar-lhe o pescoço. Um homem estava escarranchado em cima dele, de joelhos no chão, murmurando numa voz rouca:
— Agora morre, celta! — Através do miasma do sono, sentiu um impulso súbito e feroz de sobreviver. Contorceu-se, com o coração aos pulos e o joelho em agonia. Saltou e deu pontapés, mesmo com o rosto furioso de Alpin ora nítido ora desfocado acima dele. Estava perto de perder a consciência. Fora lento a acordar. Para lá daqueles olhos loucos, daquela boca contorcida, viu movimento. Ana a acordar em silêncio. Ana pondo-se de joelhos, os olhos muito abertos pelo choque. Ana a agarrar num pedaço de madeira e a erguê-lo para desferir o golpe...
De repente, Faolan deixou-se cair. Contra todos os instintos, rolou os olhos para trás e depois fechou as pálpebras. Um momento depois, o atacante largou-o, pondo-se de pé num salto e esquivando-se à arma improvisada de Ana.
— Oh, quer dizer que agora tu vais lutar comigo? — troçou Alpin, virando-se para ela. — Bem, o teu celta está arrumado e o meu irmão desapareceu, por isso somos só nós dois, minha querida. Por todos os deuses, esperei demasiado tempo por isto... — Quando ela voltou a balançar o ramo, Alpin agarrou-o pela outra ponta e arrancou-lho.
Faolan, atrás dele, estendeu o braço para alcançar a faca. O joelho não lhe suportava o peso, não conseguia pôr-se de pé e não seria capaz de lutar. No momento em que Alpin se virasse e o visse, estaria acabado. A faca estava junto da trouxa, perto, tão perto... não seria capaz de a alcançar sem deslizar pelo chão, fazendo barulho... Se Alpin o ouvisse, se Alpin o matasse, Ana estaria perdida. Corre, pensou com todas as suas forças. Não tentes lutar, corre. Encontra Drustan. Foge.
Ela correu. Acordara depois de ter dormido muito pouco tempo para se deparar com um terror súbito e tropeçou. Por um instante, Alpin deixou-se ficar de pé, as mãos nas ancas, a rir-se dela, e depois disparou em sua perseguição. Faolan rolou para o lado e estendeu o braço. Só mais um pouco...
— Tu! — Era a voz de Drustan, um tom perplexo, e Faolan, os dedos fechando-se por fim em volta da arma, viu Drustan aparecer de entre as árvores com um molho de folhagem nas mãos e um pássaro em cada ombro. Fitava o irmão como que atingido por uma revelação obscura, como que olhando para um abismo.
No meio da clareira, Alpin alcançou Ana, agarrando-a por trás, um braço em redor da cintura e outro do pescoço.
— Mexe-te um milímetro, rapaz pássaro — ameaçou —, e parto-a ao meio.
— Tu... — Drustan imobilizou-se, a expressão semelhante à de um vidente em transe. — É o mesmo que em Drift Falls — ofegou —, exactamente igual... gritos... Erisa a correr... tu atrás dela... eu vi-te...
— De repente, os seus olhos focaram-se, a expressão tornou-se feroz e o tom de voz transformou-se num grito de guerra. — Por tudo o que é sagrado, era mentira! Foste tu que a mataste. Eu vi-te. Liberta Ana! Liberta-a já ou eu estrangulo-te com as minhas próprias mãos, sendo tu meu irmão ou não!
— Não estrangulas nada — disse Alpin, recuando com Ana ainda presa nos seus braços. — Não vais matar-me porque, se eu morrer, levo-a comigo. Quanto a Erisa, nunca provarás isso. Quem acreditaria na palavra de uma aberração demente contra a minha? Uma alucinação, nada mais.
Drustan deu um passo lento e intencional na direção dele, e depois outro. Os seus olhos estavam agora mortalmente calmos. Fá-lo recuar na minha direção, pensou Faolan, dá-me um alvo claro.
— Achas que não o faria? — perguntou Alpin. — Não a quero assim tanto como isso, irmãozinho. Não depois de vocês os dois terem lá estado antes de mim. Se te aproximares mais, vou apertá-la assim...
Drustan lançou-se para a frente, cortando o ar com as mãos estendidas como garras.
Um irmão não deve matar o outro. Essa mácula pesa demasiado no espírito de um homem. Faolan atirou a faca. Antes que Drustan conseguisse tocar-lhe, Alpin caiu no chão, a arma enterrada nas costas e Ana presa debaixo dele. Por um instante aterrador, Faolan pensou que a faca também perfurara o corpo dela. Depois, Drustan fez rolar o corpo flácido do irmão e, trêmula, Ana levantou-se. Havia uma mancha vermelha no seu vestido.
— Estou bem — disse, antes que qualquer um deles pudesse falar.
— Deuses... Como é que ele... Ele apareceu do nada... — Depois, tapando a mão com a boca, cambaleou até à orla da clareira e vomitou o que tinha no estômago para a vegetação rasteira.
— Um golpe certeiro — disse Faolan, conseguindo pôr-se de pé e avançar, coxeando e sentindo o joelho em fogo. — Melhor do que ele merecia. Uma morte mais piedosa do que a concedida a Deord. Devo-vos aos dois um pedido de desculpas. Adormeci quando devia estar de vigia. Não tenho qualquer perdão.
Os olhos de Alpin estavam abertos. Mesmo na morte, o olhar penetrante e feroz era perturbador. Drustan ajoelhou-se e fechou-os suavemente.
— Qualquer um de nós tê-lo-ia morto — disse. — Por Deord, por Ana, por Erisa...
— A que te referias? — Ana voltara, limpando a boca à manga. Tinha um aspecto deplorável, branca como a cal e olhos arregalados. — Sobre Drift Falls e Erisa? Lembraste-te finalmente? Disseste que ele foi o responsável?
— Ele mentiu. — Drustan continuava ajoelhado ao lado do irmão, como que incerto sobre o que deveria acontecer a seguir. — Durante todos estes anos, ele mentiu para salvar a própria pele. Quando eles me chamaram — disse, olhando para os dois pássaros —, quando voltei e o vi a correr atrás de ti... foi igual, exactamente igual... Eles discutiram, ela fugiu e ele foi atrás... e depois ela caiu. Não pretendia matá-la. Nem mesmo ele desejaria matar o filho por nascer. Foi um acidente. Mas foi ele. Ele e não eu... deuses, lembrar-me agora, passados tantos anos... ele tem razão. Quem acreditará em mim? Não há forma de provar a minha inocência.
— Há, sim — disse Ana. — Encontra a anciã, Bela. Ouve a história dela. Com Alpin morto, talvez ela esteja preparada para contá-la. Faz isso e as pessoas vão pelo menos escutar o que tens a dizer.
— Uma história extraordinária — disse Faolan. — Lamento que Deord não possa ouvi-la. Ele acreditava em ti, Drustan. Disse que podias ser incrível. Esta morte — tocou no corpo com a biqueira da bota —, ainda vai complicar mais as coisas para ti.
— O que fazemos agora? — perguntou Ana, trêmula. — Continuamos? Voltamos para trás?
Os dois homens olharam-na.
— Enterramo-lo — respondeu Faolan. — Depois continuamos. Tu e eu, seja como for. Nem morto eu regressaria àquele lugar. Quanto a Drustan, a opção é dele.
— Vou acompanhá-los, pelo menos até à costa — disse Drustan.
— Por agora, nada mudou. No futuro, tudo mudará. É demasiado para se aceitar. — Tomara a mão do irmão sem vida entre as suas. Faolan viu na sua atitude amor e repulsa, alívio e angústia.
— Em alturas como esta — declarou Faolan —, o trabalho prático é útil. Ainda preciso das ervas. Parece que o meu joelho se vai partir em dois. Ana provavelmente sabe como se faz uma cataplasma. Afinal de contas, foi educada por mulheres sábias. Tu e eu temos de abrir uma sepultura e Ana tem de descansar antes de continuarmos. Na verdade, todos nós devíamos fazê-lo. Talvez queiras dizer orações, proferir algumas palavras formais de despedida. Não sei. Não sei se és um homem de fé.
— Eu tê-lo-ia morto — asseverou Drustan, levantando-se. — Se não tivesses agido naquele momento, o sangue do meu irmão estaria nas minhas mãos. — Os olhos estranhos e brilhantes estavam fitos nos de Faolan.
— Exactamente. Dá-te por satisfeito que um dos meus ofícios seja o de assassino — retorquiu Faolan.
— E eu tê-lo-ia morto. — A voz de Ana deixava transparecer, ao mesmo tempo, terror e um certo orgulho. — Se eu fosse um pouco mais forte... Todos nós somos responsáveis por isto. Acho que devemos enterrá-lo, dizer uma oração e pôr-nos a caminho. Mais tarde, em Briar Wood, podemos contar o modo como descobrimos o corpo dele na floresta. As pessoas estão sempre a sofrer contrariedades por estas bandas.
Faolan estava perplexo com a frieza dela, com a sua presença de espírito.
— Não há dúvida de que esta viagem te mudou — comentou.
— Estás a sugerir que Drustan minta sobre o que aconteceu?
— Não exactamente — respondeu Ana, colocando a mão sobre o ombro de Drustan. — Existem alturas em que não é necessário contar toda a verdade. Momentos em que é melhor seguir em frente e deixar para trás certas coisas. Se Alpin tivesse seguido esse conselho ainda estaria vivo. — Estremeceu. — Vocês não acham que ele trazia outros consigo, pois não? Um grupo de caçadores, tão longe de Briar Wood?
— Isso seria provável — disse Faolan. — Mas parece que não, ou certamente já estariam aqui. Ainda assim, o teu conselho é sensato. É melhor despacharmos isto e continuarmos.
Depois disso, pouco foi dito. Drustan abriu uma sepultura rasa e Ana e Faolan recolheram pedras. Se foram ditas orações pelo homem falecido, tal foi feito em silêncio. Depois Faolan foi sujeito à aplicação de cataplasmas de ervas no joelho e no ombro. Mais tarde, Drustan afirmou que faria também uma infusão para protelar a febre e para que Faolan pudesse descansar. Mas não naquele momento. Já não desejavam ficar mais tempo naquele local.
Nesse dia, não caminharam muito mais. Era evidente para Faolan que estava a atrasá-los, por isso cerrou os dentes e fez o seu melhor para manter um passo regular, com um sucesso limitado. Quando alcançaram a orla da floresta, onde um vale aberto se estendia perante eles e as rochas os abrigavam do vento, pararam. Drustan fez uma fogueira e, fiel à sua palavra, fez uma tisana de ervas, a qual tinha um sabor amargo e um aspecto lamacento. Não saiu de junto de Faolan até este ter bebido tudo.
A medida que a sonolência se apoderava dele, misturando-se com as tonturas e a sensação de calor que tinha na cabeça, Faolan interrogou-se sobre qual seria a escolha de Drustan: deixar que Ana ficasse com fome ou revelar a sua outra forma para poder caçar e encontrar comida para ela. Antes que tivesse oportunidade de descobrir, o braço direito de Bridei mergulhou-se num sono profundo.
No dia seguinte, o sol brilhava, as nuvens tinham desaparecido e os viajantes puseram-se a caminho em direção ao vale. Drustan parecia incansável. Os tratamentos de ervas tinham suavizado o desconforto de Faolan e este conseguia caminhar mais livremente. Ainda assim, naquele dia quase que teria agradecido a dor, qualquer coisa que o distraísse para não ter de ver Drustan e Ana juntos. Observou-os ao longo de todo o dia e, ao anoitecer, chegaram a uma extensão abrigada na margem de um lago, onde a luz do sol banhava os troncos pálidos e a folhagem cintilante dos vidoeiros e espalhava o seu calor pela água prateada, como se de uma bênção se tratasse. A cada passo, Faolan tinha a sensação que a distância entre ele e os outros dois aumentava, uma distância que não se media em passos, mas em algo muito menos tangível. Drustan e Ana caminhavam num mundo diferente do dele, um mundo em que tudo era bom, alegre e fácil de compreender. Não conversavam muito, não andavam de mãos dadas, não se abraçavam.
Eram as menors das coisas que o incomodavam: o roçar de dedos que não era acidental, o breve toque dos corpos quando passavam um pelo outro, a forma como as mãos de Drustan se demoravam na cintura de Ana, quando a ajudava numa descida íngreme. A cor das faces e o brilho no olhar de ambos. Os olhares perdidos.
Por uma ou duas vezes, deixaram-no para trás, pois a perna continuava a abrandar-lhe o ritmo. O cruza-bico e a gralha permaneciam perto de Faolan. Interrogou-se, quando Drustan não estava de olho nele, se não seriam aqueles dois a desempenhar essa tarefa. Não era mau de todo, concedeu Faolan. Apesar dos ciúmes terríveis que Drustan lhe provocava, aceitar a sua ajuda era muito melhor do que ser deixado para trás como repasto dos lobos.
Ao fim da tarde, Drustan e Ana avançaram, ao longo da margem, a fim de procurarem um local para passar a noite, pois Drustan sugerira que parassem cedo e descansassem. Era bastante claro para ele que Faolan não conseguiria agüentar muito mais. Era uma sensação amarga tornar-se o elo mais fraco. Faolan esperava que os seus ferimentos sarassem depressa. Continuava a ser o emissário de Bridei. Já era mau o suficiente regressar ao Monte Branco com a notícia de que a missão fora um desastre. Preferia não ter de ser transportado, a arder em febre e a dever o fato de estar vivo àquele estranho homem-pássaro, uma criatura que naquele preciso momento estava a roubar-lhe Ana, passo inevitável a passo inevitável. Não, aquilo era uma palermice. Ana nunca teria sido dele. Era um celta. Era um assassino, um homem cuja própria existência assentava na sua obscuridade pessoal. Destruíra a sua família, prejudicara todos os que amava. E pertencia à família do rei de Dalriada. Quer gostasse quer não, era um Uí Néill. Aquela era uma lista impressionante de razões para que não pensasse nela da forma como pensava. Infelizmente, o coração desconhecia a lógica. O coração segredava-lhe que, quando tivera a oportunidade, deveria ter atirado aquela pedra.
Faolan contornou um aglomerado de vidoeiros e viu os dois junto à água, muito juntos mas sem se tocarem. Ambos tinham descalçado as botas e a água dava-lhes pelos tornozelos, molhando os pés cansados. Estavam a conversar, mas calaram-se quando ele se aproximou. Tentou coxear o menos possível.
— Olha, Faolan — disse Ana, a sorrir —, ao longo do lago, naquela direção. Vê-se fumo. Drustan acha que existe ali uma pequena povoação. Poderemos limpar as tuas feridas e dormir sob um tecto a sério. Já passou tanto tempo desde a última vez, que mal consigo lembrar-me da sensação. Estás bem? Dói-te muito?
Faolan abanou a cabeça, observando, maravilhado, a mudança que ela tinha sofrido. Embora magra e exausta, o rosto encontrava-se inundado de alegria e os olhos tinham recuperado a antiga serenidade. Até a postura estava diferente, as costas direitas, os ombros erguidos de forma orgulhosa. Fora Drustan que operara aquela magia. Drustan, que agora se encontrava ao lado dela, as faces coradas e o porte deixando perceber algo da mesma resplandecência calma.
— Vamos descansar um pouco — sugeriu Drustan. — Tens de descansar essa perna. Acho que vi algumas avelãs mais acima. Podemos elaborar uma refeição com alimentos variados.
— Desde que sejam boas para os homens e não só para os pássaros.
— São boas para os homens, Faolan. Alguma vez tentaria envenenar-te? Foste amigo de Ana, seu guardião, a sua tábua de salvação. Se não fosse por ti, eu e ela não estaríamos juntos. Honro-te como a um irmão.
Faolan estava sem palavras. O peso da morte de Dubhán e de Alpin e uma vida inteira de «poderia ter sido» pairava entre eles, reduzindo-o ao silêncio. Olhou para Ana, que se sentara na erva da margem do lago, com o cruza-bico de penas escarlates pousado na mão. Afagava-lhe a cabeça com um dedo e assobiava baixinho. O seu cabelo curto, apesar da falta de cuidados, possuía um brilho dourado escuro sob o sol da tarde. Estava de pernas cruzadas, os pés descalços e pálidos visíveis sob a camisa comprida que Drustan lhe dera. As faces ostentavam uma cor rosada e as pestanas escondiam-lhe os olhos ao virar a sua atenção para o pequeno pássaro.
Algo se alterou em Faolan. Reconheceu que a felicidade dela era mais importante do que tudo o resto. Ela amava Drustan. Pelo menos, amava o homem que pensava que ele era. A esperança de um futuro resplandecente devolvera-lhe o seu eu antigo: a mulher corajosa, serena e adorável que capturara o seu coração muito antes de chegarem a Briar Wood e darem consigo enredados naquela estranha história de irmão contra irmão. Estivera a ponto de desafiar Drustan outra vez, pois o dia estava quase a chegar ao fim, o sol brilhava e estavam perto de encontrarem abrigo. As palavras tinham estado nos seus lábios, Diz-lhe a verdade agora. Mas não podia proferi-las. Não podia destruir a alegria recém-encontrada. Como poderia suportar ver aquele pequeno sorriso desvanecer-se, as faces rosadas ganharem palidez, os ombros orgulhosos a curvarem-se em desespero?
— Vou à procura de avelãs — informou Drustan, distraidamente. A gralha voou para o seu ombro, enquanto se afastava sob as árvores.
À medida que o observava, o coração de Ana revelava-se-lhe nos olhos. Durante algum tempo, não se ouviu qualquer som, para além dos trinados dos pássaros acima das suas cabeças e o desafio ribombante e longínquo de um veado na encosta do outro lado do lago. Era uma lembrança inquietante de como a estação ia avançada. Será que tinham mesmo assistido ao final do Verão naquelas montanhas intermináveis?
— Faolan — disse Ana, calmamente —, ele contou-me. Ele fitou-a.
— Contou-me a verdade. Sobre as... as mudanças... e como esteve sempre connosco, desde a queda de água, e como pode transformar-se. Na verdade, eu já sabia. Os olhos do falcão eram os dele. Há já algum tempo que me tenho vindo a aperceber da verdade.
— Olhou para o pequeno pássaro pousado na mão, franzindo o sobrolho. — Não consigo acreditar que Alpin tenha feito o que fez. Foi tão cruel e maldoso. Prender o irmão pelo seu próprio crime, alimentar a mentira, deixar que Drustan acreditasse que era culpado... E o pior de tudo, chamar loucura a uma tal capacidade divina... não consigo compreender. Em casa, ela certamente seria encarada como algo raro e assombroso, como as transformações que os druidas passam anos e anos a aprender a fazer, mas tão mais poderosa e tão natural... existiram outros na família dele com talentos semelhantes, há muito tempo atrás. É o que ele diz... Sabias que Drustan só tinha sete anos quando fez isto pela primeira vez?
— Aceitas isto tão facilmente? Não estás... — Calou-se. Era bastante claro que não se sentia chocada nem receosa. Era evidente que não se importava se todos os seus filhos fossem uma estranha mistura de pássaros e homens, tão capazes de voar em busca de ratos gordos para comer, como de prestar atenção às amas e tutores. Nunca deixaria de o surpreender.
— Por que estás a sorrir, Faolan?
— Isto é digno de uma canção, isso posso garantir-te.
— Não me ponhas em quaisquer canções até eu ter um pente, água quente e algo mais para vestir do que farrapos — respondeu Ana, a sorrir.
— És perfeita, tal como estás — disse-lhe ele, num tom de voz suave. — Mas não vou compor nenhuma canção. Os meus dias de bardo acabaram. — Essa canção permaneceria no íntimo do seu ser, nos recantos escondidos do coração, simultaneamente uma alegria extrema e uma dor profunda. Ninguém, a não ser ele, alguma vez ouviria as suas doces palavras de amor. Ninguém, a não ser ele, choraria ao ouvir a história de necessidade, silêncio e perda. E era assim que devia ser. — Desejo-te toda a felicidade do mundo, Ana — disse-lhe.
Ela não respondeu e, pouco depois, Drustan regressou com uma folha larga nas mãos, sobre a qual se encontrava um pequeno monte de avelãs. Ocorreu a Faolan que o outro homem o deixara sozinho com Ana para que pudessem conversar. Engolindo o ressentimento, pensou que teria de acrescentar tacto a todas as outras virtudes de Drustan.
— Por que razão estavas sempre a desaparecer? — Esta pergunta tinha de ser feita, agora que o segredo fora revelado. — Por que nos abandonaste sem avisar? E por que motivo demoraste tanto tempo a encontrar-nos, depois de fugirmos de Briar Wood? Deord estava sozinho, a lutar contra um grupo inteiro de caçadores.
— Ele teria sobrevivido caso eu estivesse a seu lado? — quis saber Drustan, num tom de voz sombrio.
Faolan foi obrigado a responder honestamente. — Na minha opinião, não. Teriam ambos sido mortos. Ele não quereria que qualquer de nós lá estivesse. Mas pensei que o quisesses ajudar.
— Não pude. Nem sempre é fácil transformar-me. Estava aflito e confuso, com vontade de partir, com medo de partir, desesperado para estar com Ana, aterrorizado com o que poderia fazer se ficasse livre. Na outra forma, a minha mente é diferente. Não vejo, nem ouço ou penso da mesma maneira que um homem. Às vezes, nem sequer me lembro. Foi assim com a morte de Erisa. Eu estava sob a minha outra forma. Vi-os, mas, assim que voltei a ser eu próprio, a memória desapareceu. Até ontem. Por isso, depois de vocês partirem, fiz uma opção: Ana em vez de Deord. Era isso que ele teria desejado. Acabei por lhe causar a morte.
— Todos nós fomos responsáveis por isso — declarou Faolan, num tom sinistro. — E das outras vezes?
Drustan pigarreou. Parecia nervoso. Faolan descobriu que se sentia estranhamente solidário com ele. — Não posso manter uma das formas por demasiado tempo sem... sem ficar perturbado. Aflito. A necessidade de me transformar cresce dentro de mim e tem de ser libertada.
— Tornas-te violento?
— Faolan... — protestou Ana.
— Não faz mal, vocês têm de saber — asseverou Drustan. — Têm de saber tudo. Violento... Só se estiver preso e impedido de fazer o que o meu corpo e a minha mente me incitam a fazer. A prisão de Alpin era uma forma particular de tortura para mim. Ele sabia como um tal encarceramento me atormentava. Deord salvou-me. Compreendeu a necessidade de me deixar voar em liberdade. Mas havia períodos de tempo muito longos em que não podíamos sair. Deord partilhou as suas capacidades comigo. Manteve-me ocupado e em movimento. Por vezes, não era o suficiente.
— Alguma vez o atacaste? Ou a outros?
— Por uma ou duas vezes estive perto de o fazer, com o meu irmão. Daí a corrente. Se nessas alturas estiver preso, magoo-me a mim próprio e a mais ninguém.
— E antes? — O tom de voz de Ana era suave. — Antes de Alpin te prender?
— No Vale dos Sonhos eu ia e vinha à minha vontade. É o meu lugar, as pessoas conhecem-me. Alternava livre e facilmente entre uma forma e outra. Aprendi a reter a compreensão do discurso humano mesmo enquanto estava no outro mundo. Perdi algumas capacidades em cativeiro, mas estou a recuperá-las. Tive medo de te contar a verdade, Ana. — Lançou-lhe um sorriso tímido. — Julguei-te mal. Por isso, quando chegava a altura de me transformar outra vez em homem, escondia-me. Não havia forma de te tranqüilizar, de te dizer que voltaria.
Ana fez deslizar a mão para a de Drustan.
— Acho que vamos precisar dos dias todos até chegarmos ao Monte Branco — disse ela —, para escolher as palavras certas, a fim de apresentar esta história na corte.
Dizem os estrategistas que, caso não se perca mais do que um em cada três guerreiros na conquista de um objetivo, a ação pode ser considerada um sucesso. Entre os dois, Bridei e Fokel tinham perdido menos do que essa proporção na batalha decisiva por Galany's Reach. A antiga bandeira de Galany foi içada sobre a colônia, desta vez para voar eternamente. Foi conduzido um ritual de agradecimento ao Guardião das Chamas no monte cônico onde em tempos se erguera uma imponente pedra talhada, que marcava aquela terra como sendo dos Priteni. Naquela noite, Bridei realizou as orações em silêncio e o homem que guardava a sua solidão era Elpin, que já pertencera à casa de Broichan. Bridei permitira que Uven descansasse um pouco, um período que sabia que o guerreiro de meia-idade aproveitaria para passar com os outros homens, a rever as visões e os sons do conflito desse dia, a falar dos amigos perdidos, a ouvir a estranha mistura de dor, raiva e bravata, de determinação, coragem e incerteza que eram a marca constante de tais reuniões.
Quanto a Breth, nunca mais voltaria a guardar o seu rei e amigo. Um em três. Podia ser a vez de qualquer homem tombar sob uma flecha certeira, uma espada cortante, uma última lança. Bridei perdera o seu arqueiro de olhos de lince algures no meio do turbilhão sangrento à frente da paliçada de Galany's Reach. Veio a encontrá-lo caído, de olhos abertos, por entre os destroços humanos espalhados pelo campo antes que a Mãe de Tudo o tivesse varrido, levando consigo o espírito dos filhos tombados de Fortriu. Bridei conhecera Breth durante um concurso de tiro ao alvo, ainda Bridei era uma criança. Esse menino escolhera perder, permitindo assim ao guerreiro resgatar o orgulho perante uma audiência de combatentes. Um em três. Uma vitória. Não o parecia, nem mesmo com Galany a salvo nas mãos de Fokel.
Quando terminou as orações, Bridei mandou Elpin descansar e ficou um pouco com Hargest, a quem chamara pouco tempo antes. Sabia que em breve teria de voltar ao acampamento, encontrar palavras de ânimo e esperança para o exército, tomar decisões rápidas: quem ficaria a defender o território recém-conquistado e quem marcharia para o objetivo seguinte. Teria de determinar a melhor forma de lidar com os prisioneiros celtas, as mulheres e as crianças, os idosos. Iria fazê-lo. Mas ainda não. Ainda não.
— Sinto muito, meu senhor — disse Hargest com um tom pesaroso. Estavam sentados junto às sorveiras, no cimo da colina que em tempos albergara a Pedra Mágica. De dia, era possível ter uma vista abrangente do vale, da colônia, do campo ainda coberto de mortos celtas, das águas pálidas do Lago do Rei, a curta distância, que se espraiava para ocidente, até ao mar. — Por Breth, quero eu dizer.
— Mm. — Bridei pensou no quão jovem era Hargest, muito mais novo do que ele próprio, quando provara a guerra pela primeira vez, naquele mesmo território que os rodeava. — Dizem que te portaste com bravura, hoje. Que fizeste mais do que a tua parte.
Hargest não respondeu.
— É um negócio sujo — disse Bridei.
— São celtas. Merecem morrer. O meu coração bate com mais força a cada um que chacino.
Bridei olhou-o com curiosidade.
— Temos de fazer o que estiver ao nosso alcance para sairmos vencedores, é verdade — replicou. — Quando fores mais velho, duvido que vejas as coisas apenas em termos de branco e preto. — Não havia dúvida de que seria mais fácil se todos pensassem como aquele rapaz. Mitigaria a dor. Ele próprio nunca tivera essa certeza. As questões sobre o bem e o mal, sobre a justiça e a equidade, tinham-no atormentado desde que combatera o seu primeiro inimigo. Não duvidava da probidade da missão divina que era expulsar os Celtas das costas Priteni. O que lhe pesava era cada homem caído, fosse ele de Fortriu ou de Dalriada, a consciência dessa perda. Breth fora um bom homem, leal, honesto, um verdadeiro amigo. Mas quem poderia dizer que a morte daquele guerreiro, que por acaso lhe era tão querido, era mais ou menos importante do que o jovem celta com uma lança na barriga, ou o arqueiro de barba morena da companhia de Fokel? Só porque um homem não amava os deuses vetustos dos Priteni, por o pai de alguém ter nascido noutro lugar que não Fortriu, seria essa morte um sacrifício menor? Bridei pensou em Faolan e, no seu íntimo, percebeu que a um homem bom não interessava a origem, a fé, a condição.
— Senhor meu rei? — Hargest olhava-o com atenção, uma pequena ruga na testa larga. — Em que pensas? Pareces, absorto.
— Pensamentos perigosos, Hargest. Tenho de afastá-los até ao fim da campanha. E quanto a ti? Não ficaste perturbado com o que viste hoje? É um grande passo, de cavalariço de Umbrig a guerreiro na linha da frente.
— Perturbado? Não, meu senhor. Guerra é guerra. As pessoas morrem.
Bridei aquiesceu.
— Tenho algo a dizer-te e, embora pareça muito cedo, vou dizê-lo agora, antes que estejamos cercados por homens cheios de dúvidas. És um rapaz corajoso e competente. Perdi Breth. Para mim é lamentável mas, tal como afirmaste de forma tão direta, as pessoas morrem. Estamos a caminho de mais ação e os homens experientes vão querer estar no meio dela. Não vão gostar de uma tarefa que lhes exige que coloquem a segurança pessoal do rei à frente da sua oportunidade de ajustar contas com o inimigo.
Hargest esperou em silêncio.
— Não te posso oferecer o lugar de Breth — continuou Bridei com frontalidade, pois a antecipação nos olhos do rapaz era incômoda. — Podes ter competência, mas falta-te experiência. — Não acrescentou que ainda era cedo, demasiado cedo para confiar num jovem que se ligara ao rei de livre vontade, e que era conhecido entre os guerreiros pelo feitio volátil. — Tenciono dividir as responsabilidades de Breth entre os homens de Pitnochie. Vamos precisar de mais alguém, caso contrário terão pouco tempo para dormir. Não há serviço de guarda solitário. Como sabes, normalmente trabalham aos pares. A tua assistência vai permitir-me libertá-los de tempos a tempos, para que se dediquem ao combate sem que tenham de vigiar-me constantemente. Aceitas a incumbência, Hargest?
— Sim, meu senhor. — O sorriso do jovem era feroz. Bastava olhar para ele e qualquer pretenso assassino pensaria duas vezes.
— Vamos — disse Bridei. — Temos trabalho a fazer, esta noite. Espera-nos outra marcha, e outra batalha. Vais ficar no primeiro turno com Enfret.
— Sim, senhor meu rei. — A voz de Hargest estava plena de emoção, não a dúvida, o medo e a excitação que se esperariam após uma batalha, mas antecipação e um certo tom de orgulho quase presunçoso. — Não vais arrepender-te, meu senhor.
— Veremos — disse Bridei. Quinze anos. Estaria a ser tolo, ao confiar tamanha responsabilidade ao rapaz? Hargest era ingênuo, estouvado e tinha muito a aprender sobre os homens e o que os movia. Mas, no fundo, era bom rapaz. Só precisava de alguém que o guiasse. Alguém que zelasse por ele, até que a atitude infantil se equiparasse ao físico varonil. Pesasse embora os modos rudes e a insensibilidade de Hargest, Bridei gostava do rapaz.
Enquanto desciam o caminho em espiral colina abaixo, Bridei voltou a pensar em Faolan, um homem bastante mais esguio do que aquele jovem robusto, mas que tinha tanto para oferecer. Faolan, a quem se podia contar tudo e que sabia quando dar os seus conselhos tão frontais ou simplesmente escutar em silêncio. Faolan, que era quase como um irmão. Faolan, que era um celta. Um enigma, um dilema. Tinha de ignorar tais considerações até que se conquistasse a paz. Donal, seu velho amigo e tutor, dissera-lhe em tempos que um guerreiro não se podia dar ao luxo de ver o inimigo como um semelhante, caso contrário nunca seria bem-sucedido em combate. No momento do confronto, era preciso transformar-se numa máquina de matar eficiente, fria e mortífera. Era essencial convencer-se de que um em três era um bom resultado, pelo menos até ao fim da guerra. Que os deuses o perdoassem pelo que teria de vir a acontecer. Julgava nunca vir a ser capaz de se perdoar a si próprio.
Tuala planejara ficar em Banmerren apenas o tempo que fosse necessário para garantir que Broichan não sairia à porta antes que Fola e as suas mulheres pudessem começar a tentar ajudá-lo. O druida não fazia segredo do fato de duvidar da capacidade das mulheres de efetuarem uma cura. Se ele próprio não era capaz, como poderiam elas sê-lo? Tuala fora obrigada a apresentar argumentos que envolviam quer Derelei, quer Bridei, antes que o druida concedesse, com grande relutância, que estava preparado para experimentar.
Ferada recebera muito bem as visitas, alojando-as nas instalações que estavam prontas para a chegada das alunas, no Outono. Eram quartos simples e claros, que davam para o jardim acabado de plantar. Ainda assim, Tuala sabia que Ferada contava os dias até voltar a ter o lugar só para si. Garvan partiria em breve, agora que o trabalho em Banmerren estava completo e um novo projeto aguardava por ele mais a sul. Ferada não disse nada, nem o alvanel, mas Tuala conseguia ler-lhes os silêncios.
Disse a Garth e a Elda que se preparassem para regressar a casa dali a um ou dois dias. Seria bom voltar ao Monte Branco, onde poderia tratar das coisas na ausência de Bridei. Banmerren estava cheia de recordações, boas e assustadoras. A copa ampla do carvalho imponente parecia repleta de sussurros. Apressou-se ao longo do carreiro, tentando não ouvi-los.
Broichan e Fola estavam sentados num quarto sem janelas, um lugar iluminado por candeias, mesmo com o Sol bem alto no céu. As paredes estavam forradas com prateleiras de pedra, sobre as quais estavam dispostos de forma ordenada os materiais e as ferramentas da arte de Fola. Em cima de uma mesa central estava um objeto escondido por um pano grosso de lã negra. O jarro de água ao lado revelou a Tuala de que se tratava e o que tinham estado a fazer, e a rainha deu um passo atrás.
— Por favor — indicou Fola —, entra. Broichan e eu temos de falar contigo. Não vamos encurralar-te. Compreendemos a tua decisão de repudiar a taça das visões. Permanecerá escurecida, Tuala, a menos que decidas o contrário.
Tuala entrou no quarto e fechou a porta. Saber o que estava por baixo do tecido deixava-a nervosa. Mesmo através da cobertura grossa, a taça das visões chamava-a, deixando-a ansiosa pelo conhecimento. Habituara-se a desviar o olhar de poças de água, a evitar passeios à beira lago. A verdade era que o seu dom de visão era tão poderoso, que se tornava mais um tormento do que uma bênção.
Falou para preencher um silêncio que parecia conter um perigo vivo.
— Tenciono partir daqui a um dia ou dois. Tenho de estar no Monte Branco. Há tanto a fazer...
— Será que colocarias a hipótese de deixar Derelei conosco por algum tempo? — A voz de Broichan era baixa. Parecia exausto, com as rugas bem visíveis no rosto.
Tuala não pensara no que a sua partida iria significar para o druida.
— Derelei precisa de estar comigo — disse. — Ainda é muito pequeno. Decerto as suas lições podem esperar até que estejas melhor.
Raras eram às vezes em que Broichan permitia que alguém visse na sua expressão algo mais do que uma máscara de calma severa. Naquele momento, de repente, pareceu desgostoso.
— A criança já foi desmamada, não é verdade? — acrescentou Fola.
— Podias deixá-lo com a ama. Se estás preocupada com a sua segurança, os outros podem ficar também, além de Garth e a esposa.
— E deixar Ferada com três meninos a correr por aí, agora que as primeiras alunas estão prestes a chegar? — Tuala conseguiu esboçar um sorriso, mas sentia-se inquieta. O que tinham aqueles dois visionários sábios visto em Derelei? — Ele está em perigo, não é? — disse subitamente. — Viram alguma coisa. Digam-me!
Broichan suspirou.
— Falei-te sobre uma das visões, poderosa e perturbadora. Mas o comando que detenho sobre o espelho das visões já não é o que era. Aquele momento de clareza foi como uma flor num campo de ervas secas. Vejo fragmentos, momentos, passageiros e impenetráveis.
Tuala olhou para Fola.
— Infelizmente, nos últimos tempos A Que Brilha escolheu não me enviar aquilo de que preciso — disse a mulher sábia. — Velou o rosto brilhante e deixou-me nas sombras. Tuala, estes dois velhos amigos discutiram o conhecimento limitado que os deuses nos têm vindo a conceder. O que vimos deixa-nos bastante preocupados. Temos sérias dúvidas. Mas não poderemos agir, a menos que a taça das visões apresente mais respostas do que aquelas que conseguimos invocar.
Tuala forçou-se a perguntar.
— Se viram perigo para Derelei, têm de me dizer. Posso convocar mais guardas, posso...
A expressão de Fola deteve a torrente de palavras.
— Broichan está a pedir que Derelei fique, acima de tudo por não conseguir passar sem a criança — explicou calmamente a mulher sábia.
— Broichan irá sarar melhor se tiver Derelei por perto e puder continuar a ensiná-lo. Mas tu és a mãe da criança. A decisão é tua. Quem nos preocupa não é Derelei. É Bridei.
Tuala sentiu uma mão fria a apertar-lhe o coração.
— Digam-me — pediu.
— Tal como expliquei — continuou Fola —, as imagens são vagas e dispersas. Há já algum tempo que tanto Broichan como eu acreditamos que existe uma sombra sobre Bridei, uma qualquer ameaça que ultrapassa os perigos normais da guerra. Uma vez que não conseguimos invocar exatamente o que queremos da taça das visões, não podemos ir mais além. Vi um lince enorme a persegui-lo. Broichan avistou uma estranha ave de rapina a picar sobre ele. Numa outra visão, vi Ana com um archote na mão, a lutar com uma alcatéia.
— O quê?
— Pouco provável, e sei que é mais o tipo de fantasia que uma estudante jovem acredita ver na água, do que uma imagem que se revelaria a estes olhos velhos. Quando te disser que ela vestia uma túnica muito curta e tinha um jovem de beleza invulgar a seu lado, de certeza que vais dizer-me que estou na segunda infância. Mas foi o que vi.
Seguiu-se um breve silêncio.
— Se conseguirmos descobrir qual o perigo — disse Broichan —, teremos a oportunidade de intervir. Mas tu sabes que assim é, Tuala. Nós dois já agimos para o salvar.
Tuala aquiesceu. Fora a única altura em que os dois tinham partilhado algum tipo de entendimento, durante os anos em que Tuala crescia na casa de Broichan, em Pitnochie.
— Querem que volte a fazê-lo. — Ouviu o receio na sua própria voz, e o desejo.
— Estás em segurança — disse Fola. — Encontras-te num santuário, atrás de portas fechadas, com velhos amigos. Amigos poderosos. Nada do que aqui se passe será repetido por nós. Se for preciso contatar com Aniel, ou Tharan, se for necessário enviar um mensageiro, diremos que a visão foi de Broichan. Sei que nunca mais o tentaste desde que Bridei te foi buscar a Pitnochie. Julgo que chegou a altura de voltares a tentar.
Tuala aquiesceu, os olhos marejados de lágrimas.
— Vi que havia perigo — disse. — Antes de partir, quando Broichan lançou o augúrio. Vitória ou morte eram essas as possibilidades. Expliquei-lhe e ele decidiu partir.
— Por que não me disseste? — A voz de Broichan era um murmúrio chocado.
Tuala fitou-o.
— Não havia necessidade de ambos ficarmos dilacerados com a preocupação — disse. — O que o augúrio me mostrou foi como as vossas visões, fragmentado, vago. Ele terá mais cuidado. Vai garantir que os guardas estão alerta. Não lhe pude dizer qual era o perigo, a fonte da ameaça, ou quando poderia surgir. Não havia nada que pudéssemos fazer.
— Devia ter ido com ele — resmungou Broichan.
— Não — disse Tuala gentilmente. — O teu lugar é aqui, com Derelei e comigo. — Respirou fundo. — Muito bem, eu faço-o. Só esta vez. Há muito tempo que não o tento, e posso sair-me mal, tal como vós, mas... — Retirou o pano de cima da taça, que estava já cheia de água limpa. A câmara pareceu escurecer ainda mais, mas o recipiente estava cheio de luz, de cor, de uma espantosa confusão de imagens. Tuala inclinou-se para ver.
A visão envolveu-a de imediato. Mal se apercebeu que os outros dois se juntavam a ela à mesa, dando-lhe as mãos e unindo as suas, para formarem um círculo em redor da taça de cobre. A mão de Fola era pequena, quente e descontraída. Os dedos compridos de Broichan eram frios, os nós ossudos, mas apertavam-na com segurança. Na água, Tuala via-o numa forma mais jovem, um druida de cabelo escuro no auge da vida, a entrar profundamente na floresta, com o bordão de carvalho na mão e os olhos distantes, como se estivesse em transe. Tuala não sabia se estava a testemunhar uma jornada espiritual, uma viagem da mente a ter lugar durante uma meditação longa, ou uma aventura física no bosque.
Conhecia o lugar. Ficava acima de Pitnochie, próximo de uma catarata chamada o Véu da Senhora. Era o início da Primavera. As folhas verdes novas nasciam nos ramos curvados das faias e, nos carvalhos imponentes, os botões continuavam a crescer, à espera do toque libertador dos dias mais quentes. A luz entrava de viés por entre as árvores, pintalgando o manto branco do druida e fazendo reluzir o cabelo entrançado. Branco. Quando se vestira Broichan de branco? Devia ser altura da Harmonia e o druida devia ir a caminho dos três dias de vigília solitária sob o sol e as estrelas, os dias secretos da observância do equinócio da Primavera. Broichan levara-o a cabo fielmente, ano após ano. O que tal prática envolvia ao certo, apenas os druidas sabiam. Privações, jejum, resistência: tudo isso faria parte desse rito solitário.
Mas, naquela visão, Broichan não estava sozinho. Por detrás das faias, oculto no padrão de luz e sombra, alguém o observava. Tuala avistou uma túnica clara, uma mão branca delicada, um vislumbre de cabelos negros. Houve um tremeluzir, uma ondulação, uma mudança no ar. O druida deteve-se de imediato, à escuta. Continuou após um momento e, enquanto desaparecia ao longo do carreiro por baixo das árvores, alguém o seguiu, alguém pequeno e magro, mas com forma de mulher, uma pessoa com madeixas negras como a fuligem e olhos grandes e claros como o toque do sol num lago da floresta. Alguém extraordinariamente parecido com ela.
Antes que Tuala tivesse oportunidade de pestanejar, e muito menos começar a entender as implicações do que acabara de lhe ser mostrado, novas imagens substituíram as primeiras. De súbito, a taça encheu-se de corpos em movimento, de golpes e arremessos, bloqueios e fugas, de bocas rasgadas em gritos de agonia ou desafios primevos, de espadas, lanças e maças, flechas e punhais mortíferos. Uma grande batalha. O padrão encontrava-se em mudança constante, uma onda caprichosa e devoradora, e o melhor dos estrategas de Fortriu teria dificuldade em identificar as ordens que os homens seguiam, ou qual dos exércitos detinha a vantagem.
Tuala não tinha dúvidas de que estava a assistir ao grandioso culminar do empreendimento de Bridei, um confronto de escala impressionante e de importância estratégica decisiva. Pedira à deusa que lhe mostrasse uma imagem verdadeira e que lhe revelasse a natureza da ameaça que pesava sobre Bridei. A experiência dizia-lhe que A Que Brilha lhe mostraria o que precisava, ou não lhe mostraria absolutamente nada.
Aqui e ali, no meio da escaramuça, viam-se rostos familiares: Uven, com uma ligadura no braço, Carnach a cavalo, a bradar ordens, Talorgen a empunhar com as duas mãos uma espada enorme, a túnica suja de sangue. Enfret caído, ferido, e Cinioch a tentar arrastá-lo para a segurança de um pequeno bosque de salgueiros. A batalha tinha lugar nas margens de um ribeiro largo e pouco profundo. Muitos dos combatentes estavam dentro de água, até aos joelhos. Tuala viu pelo menos um homem a ser eliminado quando o oponente se limitou a manter-lhe a cabeça debaixo de água. O ribeiro corria vermelho. Os guerreiros lutavam sobre um tapete de camaradas tombados. Mais tarde, haveria grandes fogueiras. Tuala murmurou entre dentes:
— Mãe de Tudo dá-lhes a mão. Concede-lhes a paz — embora não houvesse forma de saber se o que via já acontecera ou estava a desenrolar-se. Talvez ainda estivesse por vir.
Finalmente viu Bridei e ficou com um nó na garganta. Estava caído, ferido, talvez já a morrer. O conflito desenrolava-se à sua volta, mas havia um pequeno espaço onde jazia, como se o rei de Fortriu houvesse tombado despercebido e pudesse morrer no campo de batalha, com a deusa a levá-lo com a mesma cerimônia atribuída a outro guerreiro. Mas Bridei não estava sozinho. Um jovem com aspecto dos Caitt, um rapaz muito grande com olhos azuis penetrantes, estava ajoelhado a seu lado, um braço por trás dos ombros de Bridei. O seu guarda, que o ajudava a erguer-se. Ou que o segurava enquanto morria. Era difícil manter presente que se tratava apenas de uma visão, ao mesmo tempo menos e mais do que a simples verdade. Tinha de respirar. Tinha de concentrar-se. Não podia perdê-lo.
A água pareceu redemoinhar e, de repente, Tuala olhava para os dois homens a partir de outro ângulo. Bridei estava branco como a cal, as mãos no peito, e o jovem tentava desviar os dedos cerrados, procurava ver o ferimento do rei, estava... Tuala ficou gelada. O jovem tinha uma faca na mão e a ponta encontrava-se no peito de Bridei. O guarda não tentava ajudar o mestre, estava a matá-lo. Os dedos de Bridei envolviam o punho do outro homem. A palidez, a expressão tensa, eram a de um homem que tentava repelir a morte certa. Assim que perdesse as forças, o punhal iria trespassar-lhe o coração.
Tuala arquejou em horror e a imagem na água começou a fragmentar-se e a desaparecer.
— Não... — murmurou. — Ainda não... — e tentou desesperadamente fixar-se em algo, qualquer coisa que lhe dissesse o quando, o onde e o quê, sem os quais não haveria maneira de o salvar. Um grupo de árvores, o contorno de picos distantes, um manto, um estandarte, a cor dos olhos, do cabelo... A água voltou a acalmar-se e a visão desapareceu.
Os outros soltaram-lhe as mãos. Sem uma palavra, Broichan voltou a cobrir a taça das visões com o pano negro. Fola posicionou um banco atrás de Tuala e ajudou-a a sentar-se. Broichan serviu-lhe um copo de água. Depois aguardaram. Ambos tinham uma vasta experiência naquela arte e sabiam que não deviam apressar a vidente, mesmo que o conhecimento a ser partilhado fosse de importância vital.
Tuala não conseguia parar de tremer. Após um momento, relatou atabalhoadamente o que vira, não a primeira parte com Broichan, pois isso poderia esperar, mas o que assistira da batalha, o sangue e o crime.
Forçou-se a recordar a cena, com tantos pormenores quanto possível, pois se pelo menos conseguissem identificar o local, talvez fossem capazes de determinar a altura. Quanto ao homem que empunhara o punhal contra o coração do marido, o jovem de estranhos olhos claros que mal pareciam ver a vítima, lembrar-se-ia dele para o resto da vida.
— Parecia um guarda-costas — disse Tuala. — Envergava uma túnica com as cores reais, tal como Breth, Garth e Faolan, quando partem para combate ao lado de Bridei. Parecia... parecia-me ser alguém em quem Bridei confiava. Isso explicaria a proximidade. E depois...
— Dizes que este jovem pertencia aos Caitt? Um dos homens de Umbrig?
— Tinha esse aspecto. Era muito jovem, mas de constituição poderosa. Parecia muito forte. Bridei tem muita força de vontade, mas não creio que pudesse...
— Pode estar ainda por acontecer — disse Fola, calmamente. — Ainda é cedo para as forças de Bridei entrarem numa batalha de tais dimensões. Disseste que Talorgen estava presente? Ainda não deve ter acontecido, só daqui a algum tempo, pois Talorgen ia avançar por mar. Primeiro, Bridei tem de tomar Galany's Reach e outra colônia a sul. Creio que ainda temos tempo.
— Se o matarem — disse Tuala, com um aperto no estômago —, os exércitos vão perder o ânimo. Carnach é um líder competente, tal como Talorgen e os outros. Mas vós Sabeis, assim como eu, que nenhum deles poderá ocupar o lugar de Bridei. Ele é a Espada de Fortriu. É a sua esperança e inspiração. Confiam nele. Pelo seu rei, irão até às profundezas da morte.
— Portanto — disse Broichan —, temos um inimigo que é extremamente intuitivo, ou que recebeu informações às quais está a dar bom uso. Alguém decidiu que a forma mais simples de derrotar os Priteni é eliminar o seu líder. Houve quem reconhecesse a importância de Bridei. Os Caitt, segundo dizes. Não estou a ver Umbrig a deixar um traidor a entrar nas suas hostes. É um homem astuto. Um guarda-costas. Imagino que Bridei não admitisse um homem novo numa altura tão crítica. Onde estaria Breth?
Nenhuma das mulheres adiantou uma resposta, pois a explicação mais provável não era do agrado de ninguém.
— Poderemos chegar a ele a tempo? — A mente de Tuala fervilhava, em busca de possibilidades. Era uma viagem longa pelo Vale e o local do confronto parecia mais além do Lago do Rei. Pensou ter vislumbrado uma grande massa de água à distância, uma extensão brilhante que deveria ser o mar ocidental. A cena na visão não coincidia com o que Bridei lhe contara de Galany's Reach, local do primeiro encontro com o inimigo. — Sei que não é fácil para um homem lá chegar a pé, ou a cavalo, e que encontrá-los poderá ser difícil. E perigoso. Mas talvez exista outra forma. — Olhou para Broichan.
— Maldita seja esta fraqueza! — exclamou o druida com amargura. — Houve um tempo em que eu poderia fazer essa viagem no espaço de um dia, indo por caminhos desconhecidos dos homens comuns. Poderia ter utilizado encantos de dissimulação e de transformação. Agora, estou reduzido a uma sombra impotente do que era. Nem sequer posso tentá-lo, Tuala. Duvido que tais capacidades voltem a estar ao meu alcance. E Uist, infelizmente, já não está entre nós. De toda a irmandade, nós dois fomos os únicos a dominar tais viagens, salvo aquele que nos ensinou, e que já partiu há muito.
— Fola?
A mulher sábia abriu os braços, impotente.
— Posso ser rápida para uma velha, mas não assim tanto. O melhor que consigo é o caminhar normal, e não compreendo as criaturas selvagens, como alguns. Se tivéssemos a égua de Uist, poderia ser uma solução. Mas Spindrift desapareceu, quando o velho nos deixou. Para onde quer que tenha ido, está fora do nosso alcance.
— Tuala — disse Broichan —, tens alguma fonte de ajuda que possas invocar, que não seja do nosso conhecimento? Isto está além das capacidades dos homens. A mais célere mensagem que Aniel ou Tharan pudessem enviar nunca chegaria a Bridei a tempo, a menos que o que viste venha a acontecer bastante mais tarde do que imagino. Temos de agir de imediato. Se conheces outra solução, espero que nos digas.
Tuala engoliu em seco.
— Não tencionava falar disso — admitiu. — Mas agora percebo que terei de fazê-lo. Tive algumas... visitas... quando era mais nova. Duas. Seres do outro lado, um rapaz e uma rapariga. Vinham com freqüência, mas não a meu pedido. Fizeram-nos passar por um jogo perigoso, a mim e a Bridei. Ambos estivemos perto da morte, naquela noite em Pitnochie, em que Bridei e Faolan me trouxeram da floresta. Mais tarde falamos sobre isso. Pensamos que talvez o objetivo tivesse sido avaliar a nossa força: a capacidade dele de vir a ser rei, a minha de ficar a seu lado. Imagino que tenhamos superado a prova.
Broichan não disse nada, limitou-se a observá-la, os olhos escuros inescrutáveis. Pouco depois, Fola disse: — E agora? Ainda te visitam? Poderiam ajudar-te, se lhes pedisses?
Tuala sentiu os lábios formarem um sorriso amargo.
— Nunca fizeram o que lhes pedi. Julgo que sejam mais amigos do que outra coisa, segundo o conceito de amizade da sua raça. Há anos que não os vejo. Por vezes ouço murmúrios. No carvalho, mesmo agora. Mas talvez fossem apenas as recordações a enganarem-me.
— Dizes que já não te procuram. — O tom de Broichan era quase hesitante. — Mas visitam Derelei.
Tuala anuiu, com um nó na garganta. — Julgo que sim. Ouviu-o a tentar pronunciar-lhes os nomes. Como sabes?
— Os meus poderes de observação não estão inertes a ponto de não conseguir identificar o esboço de uma conversa, mesmo que o interlocutor ainda não tenha dominado a linguagem. As presenças invisíveis com quem o teu filho fala não são amigos imaginários, são bem reais. Pelo menos, esperamos que sejam amigos.
— Ele tem de ser protegido dos seus truques cruéis.
— Talvez eles apenas queiram o bem da criança, tal como assim parecia, em relação a ti e a Bridei. Já comecei a ensinar-lhe as defesas que será capaz de usar. Esse povo não se encontra em harmonia com os costumes humanos. Os seus objetivos podem parecer obscuros. Muitas vezes, trabalham para poderes mais altos. Não duvido que A Que Brilha tenha influenciado o futuro de Bridei.
Tuala olhou-o, enquanto pensava na visão que tivera, a que não mencionara. Algures na sua mente esboçava-se uma idéia, um pensamento louco que não conseguia ignorar. Talvez a deusa tivesse mais influência sobre as coisas do que alguém imaginava.
— Não posso invocá-los — disse. — Apenas surgem quando lhes convém, nunca ao meu chamado. — Recordou a terrível jornada para Pitnochie, sozinha em pleno Inverno, uma viagem cujo final a teria levado para longe do mundo dos mortais para sempre, deixando Bridei para trás. Como a teriam Teia e Madressilva convencido a fazê-la? — Mas posso tentar.
— Então, tenta — disse Fola calmamente. — Ao que parece, se não conseguires enviar estes estranhos mensageiros pelo Vale para avisar Bridei a tempo, ele estará perdido, e com ele a guerra.
À medida que o Verão se transformava em Outono e as árvores do Grande Vale assumiam os tons escarlate e dourado, ocre e amarelo, os exércitos dos Priteni avançavam para sul pelas terras de Dalriada. Enquanto se deslocavam, iam-se unindo e formando uma força única e monumental. Bridei impusera regras severas para a conduta da ação e seu desenlace. Não queria que a vitória se transformasse numa orgia de incêndios, pilhagens e violações, deixando apenas uma terra desolada onde em tempos, antes da chegada dos Celtas, se encontravam fazendas Priteni florescentes, comunidades piscatórias seguras e postos avançados bem protegidos. Ao longo dos cinco anos de reinado, deixara bem claras as suas expectativas para a guerra, regras que todos os chefes tribais deveriam introduzir nos seus guerreiros. Não se podia esperar uma obediência cega, mas os que prevaricassem sabiam que viriam a ser punidos. Isso dava azo a um avanço ordeiro. Para os conquistados, aliava a dor da derrota. Durante o avanço, Bridei ia deixando ficar homens que manteriam a ordem e o controlo, homens que entendiam as regras impostas e que eram fortes o suficiente para as fazer cumprir.
Avançaram. Elpin tombou em combate num lugar chamado Dois Rios. Na mesma batalha, Uven recebeu um ferimento profundo no braço esquerdo, o qual ligou com firmeza e ignorou, prosseguindo com os camaradas. Podia ainda ajudar com os cavalos, os suprimentos e as armas, mas não guardaria o rei, nem iria combater durante algum tempo.
Tornou-se claro que a estratégia bem planeada era um sucesso retumbante. Os Celtas, que não estavam prontos para o avanço tão repentino dos exércitos de Fortriu, nem para a escala maciça e natureza complexa da investida, começaram a assumir posições defensivas assim que a notícia do primeiro ataque se espalhou por Dalriada. Mas era demasiado tarde para chamar auxílio poderoso do outro lado do mar, muito tarde para convocar chefes tribais do norte, como Alpin, de Briar Wood, e não houve tempo para salvar cada pequena colônia, cada posto avançado, cada fortaleza regional que cedia ao avanço disciplinado das forças combinadas de Bridei. Os guerreiros de Dalriada pereciam às centenas.
Por vezes havia rendições e, quando tal ocorria, Bridei dava a escolher aos Celtas: caso se submetessem à autoridade dos chefes tribais regionais e ao domínio do trono de Fortriu, poderiam ficar nos acampamentos e prosseguir a sua vida em paz. A alternativa seria a morte dos homens e o exílio, para além das fronteiras Priteni, das mulheres e das crianças.
Não pretendera ser tão magnânimo e tornou-se óbvio que tanto os Celtas derrotados como os Priteni vitoriosos ficaram surpreendidos com a medida. Tornara-se claro a Bridei que os deuses lhe exigiam isso, quando entraram na colônia de Dois Rios, a caminho do baluarte celta de Dunadd. Sem ele, os territórios ocidentais perderiam o ânimo.
Havia um homem em Dois Rios que tinha sido poupado pelos Priteni, uma vez que não era guerreiro, tendo ar de escriba, ou professor, trajava uma túnica comprida e não ostentava armas. Quando os habitantes da colônia se reuniram em espaço aberto para a rendição formal, Bridei viu o homem puxar uma mulher e crianças para junto de si, como que oferecendo o abrigo possível contra a onda devastadora do exército de Fortriu. Viu que, embora o homem tivesse as feições largas e o cabelo ruivo típico de tantos celtas, a esposa era magra e morena, uma mulher de sangue Priteni. Os olhos curiosos da menina, ainda inocentes, sem o conhecimento da morte, olhavam para os estranhos altos que tinham marchado sobre o seu lar, com o brilho da conquista nos rostos severos. Era como o pai, uma habitante de Dalriada rosada e de cabelo vermelho. O irmão, mais velho e mais consciente, era elegante e moreno como qualquer filho do Guardião das Chamas. A mulher agarrava o braço do marido. Este segurava a mão do rapaz e embalava a filha no outro braço, a cabeça baixa, a fim de murmurar palavras de conforto juntos aos caracóis brilhantes. Naquele momento, os deuses segredaram a Bridei que teria de chegar a um compromisso. Se varresse todos os Celtas da costa ocidental, destruiria a essência da comunidade, afastaria mãe de filho, marido de esposa, empurraria o território de volta a um tempo de caos e de incerteza. Os Celtas tinham-se instalado naquele território através das vidas de filho, pai e avô. Eram um povo. A partir daquele momento, o plano teria de ser alterado.
Por isso, poupou os que aceitaram a paz, mas garantiu que ficava claro que qualquer tentativa de revolta ou sublevação seria recebida com o ferro. Em cada comunidade foi deixada uma pequena força de homens armados e a garantia de que, assim que Gabhran abandonasse o trono de Dalriada, poderiam regressar à sua vida. Apenas uma coisa seria alterada: cada região passaria a ser governada por um chefe tribal de Fortriu. Bridei não lhes disse que não poderia haver observância pública do ritual Cristão. Havia tempo para isso, quando a derradeira batalha fosse ganha.
Foram avançando e, na véspera do festival da Medida, encontravam-se no centro do território de Dalriada. Tinham recebido informação de que Gabhran saíra da fortaleza em Dunadd com o que restava das suas forças e que se dirigia para norte, a fim de se encontrar com o exército de Bridei em campo aberto. Talvez o rei celta percebesse já que, mais cedo ou mais tarde, a Espada de Fortriu iria abatê-lo, a lâmina afiada pela certeza de uma missão predestinada pelos deuses. Ou talvez Gabhran acreditasse, nesciamente, que ainda seria capaz de derrotá-los. Talvez julgasse que tinham entrado no seu domínio como peixes que nadam para uma rede e que lhe bastaria cortar a fuga e retirá-la da água.
Bridei reuniu-se com os líderes guerreiros no que poderia ser o último encontro antes da batalha decisiva. A sua volta estava acampada a força combinada, que descansava, preparando-se para o dia seguinte. Tinham chegado às férteis terras baixas junto à costa sudoeste. Cada chefe tribal tinha a sua própria narrativa sobre a viagem até ali, os confrontos ganhos, os homens caídos, os seus mortos enterrados apressadamente, os inimigos empilhados e queimados, ou deixados aos corvos e às gaivotas.
A força marítima de Talorgen apanhara o baluarte costeiro de Donncha's Head de surpresa. Tinham aguardado ao largo até ao pôr do Sol, após o que afundaram a frota celta, antes que o inimigo pudesse lançar um contra-ataque. Fora quase demasiado fácil, uma vez que o posto avançado tinha poucos homens. Por essa altura, já os guerreiros de Gabhran tinham sido chamados para formar uma barreira defensiva em Dunadd, pois tinha-se espalhado por toda Dalriada a notícia de que os Priteni se aproximavam em força. A defesa do rei era prioritária.
Quanto à proteção de Bridei, Hargest assumia cada vez mais responsabilidades, pois Cinioch e Enfret eram os únicos homens de Pitnochie ainda ilesos. A força e a resistência do rapaz eram uma vantagem nas longas marchas, embora Hargest ainda não tivesse concretizado o desejo ardente de combater ao lado do rei. A noite, dois dos três guardas vigiavam, enquanto o terceiro dormia. Estando tão perto da vitória, o rei devia ser protegido com o maior dos cuidados. Quem sabia o que os Celtas poderiam tentar, com um assassino talentoso?
Hargest queixou-se de que Bridei não precisava de um guarda durante a noite, pois mal dormia. Por que não se deitava e descansava devidamente, em vez de desperdiçar o tempo precioso dos intervalos com meditações, ou a conversar com quem estivesse acordado na escuridão? Uven, frustrado por o seu ferimento o ter relegado para um papel secundário, admoestou o rapaz por ser tão direto, mas Bridei limitou-se a sorrir. O rapaz não podia entender o que significava ter sido educado por um druida, nem como as responsabilidades de um rei o privavam da capacidade de se entregar ao sono. Para Hargest, a vida era muito mais simples. Fazia lembrar a Bridei uma criatura selvagem, talvez um gato à caça. Os inimigos existiam para serem mortos. Se homens bons tombassem nesse processo, era assim a vida. Comer, dormir, avançar, voltar a matar. Em todos os longos dias de marcha, Bridei não fora capaz de convencer Hargest de que havia mais do que isso.
Naquela noite, os chefes tribais de Fortriu reuniram-se no centro de um círculo protetor formado pelos guardas pessoais e concluíram a estratégia para o derradeiro assalto. Juntamente com Carnach, Ged, Morleo, Wredech e Talorgen, estavam Fokel, de Galany, e a figura imponente e feroz de Umbrig. Bridei falara antes com o líder Caitt e obtivera o seu consentimento, para que Hargest permanecesse com o rei, caso o desejasse. Umbrig parecera mais aliviado do que preocupado e admitiu que nos últimos tempos considerava a atitude do rapaz desesperadora. Hargest irritava-se com as restrições da casa do pai adotivo, ao mesmo tempo que parecia relutante em testar a boa vontade do pai biológico, pedindo-lhe que o aceitasse de volta a Briar Wood. Umbrig tinha a certeza de que os talentos do rapaz eram mais adequados ao trabalho com os cavalos, mas tal era o que Hargest menos desejava fazer. Se Bridei o quisesse, podia ficar com ele. Quanto à autorização de Alpin, não havia necessidade. A verdade era que o pai do rapaz perdera o interesse havia muito tempo. Era pena. Umbrig considerava que Hargest precisava da autoridade firme de um pai. Ele próprio tentara-o, mas o rapaz era difícil: difícil de disciplinar e de gostar. Bridei agradecera ao líder Caitt e abstivera-se de comentar. Esperava que, quando tudo chegasse ao fim, pudesse transformar aquele jovem guerreiro instável num homem maduro. Decerto o tempo, a paciência e os bons exemplos trariam ao de cima o melhor que havia em Hargest.
Conceberam três planos: um, para um confronto em terreno aberto e elevado; outro, para um ataque colina acima a uma fortificação, o que esperavam não vir a ser necessário; e um terceiro para um ataque encosta abaixo, durante o qual a formação em cunha que tantas vezes haviam treinado poderia ser utilizada com efeitos devastadores. Numa situação de confronto em espaço aberto, a qual Carnach julgava ser da preferência de Gabhran, começariam com uma investida a cavalo, com os estandartes em riste. Assim que a linha da frente celta fosse quebrada, os guerreiros Priteni atrás dos cavaleiros investiriam contra o inimigo. O tamanho descomunal dos exércitos de Fortriu garantia a possibilidade de avançar sobre Dalriada a partir de três lados, desde que obtivessem a informação de onde a força de Gabhran se reuniria.
— Os homens estão ansiosos — indicou Talorgen. — Estão exaustos, é claro, depois de uma marcha tão longa e de tamanhas perdas, mas sentem a vitória. Sabem que o fim está próximo.
— Se pudermos ser rápidos — disse Carnach —, tanto melhor. Usar o entusiasmo que temos agora para alcançar a superioridade. Se conseguirmos capturar o próprio Gabhran, teremos o poder necessário para terminar o confronto. Acredito que os seus chefes estejam preparados para negociar.
— O que há para negociar? — O tom de Ged era incisivo.
— A vida do rei de Dalriada deve valer alguma coisa — acrescentou Morleo, com a sua barba negra. — O que pensas fazer, Bridei? Acabas com ele, se não cair no campo de batalha?
Bridei imaginava o que podia acontecer. As longas noites a pensar e as suas conversas silenciosas com os deuses tinham sido frutuosas. Não tinha a certeza de o querer pôr em palavras, mesmo perante os seus líderes guerreiros de maior confiança.
— Vamos ver como ele age — disse-lhes. — Não duvidem que, caso seja necessário, ordenarei a morte de Gabhran. Não duvidem que, se for obrigado a executar essa ordem, a fim de garantir a capitulação, fá-lo-ei de imediato e sem hesitar. Quero que ele se ajoelhe à minha frente e renuncie ao trono de Dalriada. Terá de render-se e de retirar os guerreiros dos nossos territórios. Se concordar, terei em consideração o seu futuro e o dos principelhos que o apoiam. Não haverá a chacina global de guerreiros capturados, a menos que não exista alternativa. Eles têm uma frota. Que velejem até à sua costa natal e nunca mais voltem a incomodar-nos.
Talorgen pigarreou.
— Na verdade — disse Carnach —, uma vez que Uerb e Talorgen se envolveram com uma batalha marítima muito própria, não resta grande coisa da frota celta. Mas ainda têm alguns navios a sul. Imagino que possam regressar a casa, caso recebam o encorajamento adequado.
— E se Gabhran decidir fugir e esconder-se em Dunadd? — perguntou Ged. — Pode ser um cerco demorado e estamos longe de casa.
— Pelo menos é fácil conseguirmos suprimentos — disse Umbrig. — As terras são férteis, por estas bandas. Não me importava de arrendar algumas. O gado tem duas vezes o tamanho do que tenho no meu domínio.
— Vamos ver como se desenrola — indicou Bridei. — Primeiro vou tratar de Gabhran e dos seus chefes. Depois teremos de fundar a nossa base e garantir que as terras permanecem estáveis e produtivas. É certo que vou procurar chefes que possuam uma autoridade inata e um bom julgamento, pois preciso de líderes fortes, aqui no ocidente. Falaremos sobre isso quando a guerra estiver ganha. Talorgen, quando e onde julgas que este confronto terá lugar?
— Em breve — respondeu Talorgen, com uma satisfação sombria. — Imagino que o encontremos no máximo daqui a três dias. Quanto ao lugar, deverá ser um sítio onde Gabhran não possa ficar cercado pela nossa força bastante superior. Existe um vale, a um dia de marcha, a sudoeste daqui. Em tempos idos, era conhecido por Dovarben, mas de certeza que neste momento deverá ter um nome qualquer em gaélico. Há um ribeiro, largo e baixo. Não existem grandes protecções, salvo nas extremidades do vale. Se eu fosse o rei celta, seria o lugar que escolheria. Temos de passar por aí, a caminho de Dunadd. Para levar a cabo a estratégia que preferimos, teríamos de estar em posição muito antes de eles surgirem, para além de tentar evitar sermos detectados pelos batedores de Gabhran. Com uma força de tais dimensões, é quase impossível.
Na penumbra, junto à pequena fogueira que Gwrad, o homem de Carnach, lhes fizera, os chefes de Bridei evitaram trocar olhares e o silêncio instalou-se, enquanto cada um tentava encontrar uma solução. Um terreno aberto, cobertura limitada, os Celtas alertados da sua chegada e da dimensão da força conjunta, caso os espiões de Gabhran fizessem bem o seu trabalho: tudo isso significava um desafio considerável.
— Pois é — suspirou Ged, pouco depois —, o Guardião das Chamas gosta de nos apresentar testes, cada um deles um pouco mais difícil do que o anterior. Ouvi dizer que os arqueiros celtas não são maus. Se forem avisados a tempo, podem eliminar-nos antes de termos oportunidade de lhes tocar.
Fokel, de Galany, tossicou. Os outros ficaram em silêncio. Todos os olhos se viraram na sua direção. Ao contrário de Ged, Fokel raramente gracejava. Na verdade, não falava de todo naquele tipo de reuniões, a menos que tivesse uma contribuição vital e, regra geral, surpreendente, a oferecer.
— Por acaso, um dos meus homens partiu nessa direção há umas duas noites — disse, com um tom casual. — Se tudo correr bem, deverá regressar esta noite com informações sobre a localização de Gabhran e a possibilidade de nos colocarmos atrás dele ou, pelo menos, de encontrar uma posição a partir da qual possamos lançar um ataque pelo flanco. Com a vossa concordância, Umbrig e eu levaremos os nossos homens ao abrigo da noite e assumiremos as nossas posições no terreno. Tenho outros homens destacados, com o único objetivo de eliminar os batedores e as sentinelas celtas antes de avançarmos. Posso não ter oportunidade de vos transmitir a nossa posição exata, mas estaremos prontos a apoiar o vosso ataque frontal. Isso, eu vos prometo.
Bridei olhou-o, as sobrancelhas erguidas. Tal empreendimento era típico de Fokel. Ousado era o mínimo que se lhe podia chamar. Mesmo não seguindo à risca as regras do jogo de equipa, o seu instinto táctico era brilhante. Umbrig estava radiante.
— Muito bem — disse Bridei. — Não preciso dizer-te que o inimigo não pode detectar a vossa presença tão próxima da sua posição final, uma vez que isso deixaria em perigo não só os teus homens, como também os nossos. A surpresa tem sido a essência do nosso sucesso até agora. Também sei que os vossos homens são bastante competentes no que fazem, capazes de assumir este empreendimento de forma independente e de suportar dias e noites com recursos escassos e pouco descanso. Esforçam-se até ao limite. O Guardião das Chamas aprecia a vossa coragem. Avisem-me quando o mensageiro chegar e quando estiverem prontos a partir. Com a ajuda dos deuses, esta será a última batalha da campanha. Os vossos homens devem avançar com a bênção dos deuses no coração e com a exortação do seu rei bem fresca na memória.
Quando chegou a altura, dirigiu-se a eles enquanto rei de Fortriu e camarada de armas. Reuniram-se à sua volta na escuridão, os combatentes esguios e argutos da tropa de Fokel e os imponentes guerreiros Caitt, todos eles armas afiadas, barbas desgrenhadas e mantos de pele. Falou-lhes como a um irmão, com honestidade e paixão. A aparência selvagem já não o deixava reticente. Tornara-se familiar nas longas marchas, nas noites tensas e desconfortáveis e nos dias esgotantes e sangrentos. Bridei vira os guerreiros de Pitnochie, da Fonte do Corvo e de Thorn Bend ficarem mais magros e desalinhados à medida que a campanha avançava. Sabia que se olhasse para o seu próprio reflexo numa poça ou num ribeiro, também ele ostentaria o mesmo ar. Tinha a barba por fazer, o cabelo solto até aos ombros e não cheirava melhor do que os outros. A disciplina mantinha as armas afiadas, as lâminas limpas, as flechas em bom estado. Mantinha as botas em boas condições e as armaduras de couro maleáveis. Os pormenores como o pentear, o barbear e a roupa interior limpa teriam de ser ignorados até que o exército pudesse regressar a casa para abraçar esposas, amadas ou filhos.
Manteve o discurso simples e os homens agradeceram o fato. Quando terminou, fez uma oração, onde pedia a vitória ao Guardião das Chamas. Em nome dos homens, rezou também pela sobrevivência e, para aqueles a quem tal bênção não pudesse ser concedida, uma morte honrada e misericordiosa. Depois, à luz do fogo, cada homem avançou até um local designado por Bridei e depositou uma pequena pedra. Quando todos os homens de Fokel se apresentaram, bem como os elementos da força de Umbrig que fariam parte da investida secreta, surgira um dólmen na clareira onde estavam reunidos. Quando a força principal se pusesse em marcha, também eles deixariam ali uma marca. Mais tarde, na viagem de regresso, cada sobrevivente levaria consigo uma pedra. Todos sabiam que, por fim, ainda restaria uma pequena mamoa. Cada pedra deixada para trás seria um filho de Fortriu. A clareira guardaria a sua memória ao longo do Verão e do Inverno, até que os rebentos dos vidoeiros crescessem e o musgo e os fetos a cobrissem gentilmente com um manto de verde. Quando os homens deixassem de narrar estas perdas, quando a sua história ficasse esquecida, as árvores tremeriam com a recordação. As pequenas pedras iriam guardá-la junto ao coração.
Dois dias mais tarde, a força principal avançou para a derradeira batalha. O tempo estava ameno e os sinais eram favoráveis. Um dos mais rápidos homens de Fokel correra a informá-los de que o exército celta estava a instalar-se exatamente onde Talorgen previra, e que o número de filhos de Dalriada era bastante mais substancial do que Bridei e os seus chefes tribais tinham imaginado. Teria Gabhran recebido informações a tempo de o rei celta convocar ajuda dos parentes Uí Néill, do outro lado das águas? Bridei podia jurar que Dalriada não fazia idéia da data do avanço até ao momento do primeiro ataque a uma colônia celta, pouco tempo atrás. Faolan procedera com mestria à divulgação de informações falsas na corte de Dunadd. Como poderiam sabê-lo?
Era demasiado tarde para uma análise mais profunda. O exército de Fortriu avançava para a batalha, nas profundezas do território inimigo, com tamanhas vitórias às suas costas que teriam de arriscar tudo e resolver o assunto, fosse qual fosse o seu desenlace. Os homens estavam animados, os olhos brilhantes com a antecipação do triunfo, mesmo que os rostos evidenciassem a exaustão da campanha longa e difícil. Tinham descansado bem, acampados por duas noites ao abrigo do bosque de vidoeiros. Estavam prontos e o coração de Bridei dizia-lhe que não havia escolha, a não ser avançar.
Cavalgava cercado pelos homens de Pitnochie, Uven com o braço ainda ligado, Enfret e Cinioch vigilantes. A retaguarda seguia Hargest, orgulhoso. Bridei sabia que todos eles sentiam as presenças de Breth e de Elpin, como sombras a seu lado. Os sobreviventes queriam vingança. Queriam cabeças celtas como paga dos camaradas tombados. Nessas alturas, o lugar de um verdadeiro filho de Fortriu era no meio da ação, desferindo os seus golpes pelo Guardião das Chamas e pela recuperação das terras ancestrais. Bridei sabia que não podia negar-lhes a oportunidade de intervir no que poderia vir a ser o conflito final. Iria deixá-los combater ao lado dos cavaleiros de Carnach, cada um à vez. Seria néscio entrar na batalha apenas com Hargest a seu lado, mas decerto o rapaz poderia partilhar esse dever com Enfret, ou Cinioch. Chegara a altura de lhe dar a sua oportunidade.
O instinto dizia-lhe que o rapaz sobreviveria. Aquele jovem guerreiro formidável era grande e feroz o suficiente para assustar um celta ou dois. Quando tudo terminasse, quando regressassem ao Monte Branco, Bridei planeava deixar o treino do rapaz nas mãos de Garth. Este acrescentaria autodisciplina à força e à perícia que Hargest já possuía. Ele próprio tentaria educar Hargest na arte do debate ponderado e nos muitos tons de cinzento que existiam entre o branco e o preto. Pediria a Wid, o seu velho tutor, que o ajudasse.
— Amanhã estarás a meu lado — disse, quando Hargest, que montava um dos pôneis robustos de Umbrig, se juntou a ele. — Enfret e Cinioch farão parte do ataque a cavalo. Precisamos da sua destreza como cavaleiros. Depois, vão ajudar-te à vez na minha guarda pessoal, dependendo do rumo da batalha. Sabes o que tens a fazer: ficar por perto, avisar-me do inesperado, colocar a minha sobrevivência à frente de qualquer oportunidade que tenhas de abater celtas. Mesmo assim, faremos parte do combate. Já estive em muitas batalhas com Breth e com os meus outros dois guardas pessoais e, entre nós, eliminamos um número considerável de adversários. Não fico para trás, a ver os meus guerreiros a morrer no meu lugar. O teu trabalho não é fácil. Vais querer atacar e esqueceres-te de mim. Não podes fazê-lo, por maior que seja o desejo. A sobrevivência do rei tem uma importância simbólica.
— Sim, senhor meu rei. — A expressão no rosto largo de Hargest era cativante. Os olhos, surpreendentes na sua cor estranha e clara, encontravam-se repletos de uma elevação que parecia desproporcionada em relação à oportunidade que Bridei lhe oferecia. Qual o jovem guerreiro que não preferiria ser lançado à batalha propriamente dita, testar o seu potencial contra os Celtas, tal como Cinioch e Enfret iam fazer? Bridei ficou impressionado com aqueles olhos, que pareciam cegos no seu fervor. Com a determinação feroz na expressão da boca e do queixo. O rapaz nem sequer era de Fortriu, mas de ascendência Caitt. A devoção que mostrava era quase assustadora.
— Calma, Hargest — disse Cinioch. — Guarda esse ar para os Celtas. Vai pô-los a fugir aos gritos antes de terem hipótese de empunhar a espada.
— Farei o que me é pedido. — O tom de Hargest equiparava-se à expressão. Parecia capaz de abater o próprio Cinioch com o seu punhal, tal como faria a um celta. — Presta atenção à tua missão e deixa-me com a minha.
Bridei não interveio. Os homens estavam tensos, nervosos. O Guardião das Chamas enchia-os não só com sangue quente, mas também com um excesso de agressividade que os levaria para a batalha com o nome de Fortriu nos lábios e no coração.
Os seus próprios pensamentos eram mais complexos. Não desejara tal dia desde que o Espelho Negro lhe concedera a primeira visão de crueldade e coragem? No dia seguinte, Gabhran, de Dalriada, poderia ajoelhar-se à sua frente no campo de batalha e abdicar dos territórios ocidentais. Centra-te nisso, disse Bridei para consigo, enquanto Snowfire o levava para sul e, à sua volta, os seus homens de maior confiança e de mais tempo ao seu serviço, a par do guarda mais jovem e recente, cavalgavam numa formação severa. Triunfo. Vitória. A vontade dos deuses. Mas só via a mamoa e uma fileira silenciosa de guerreiros, ensangüentados e feridos, cada um a passar pelo monumento e a levar consigo uma pedra. Homens de cujos olhos emanava a recordação dos camaradas perdidos, de pequenas escaramuças desesperadas, uma centena de momentos de receio, horror e impotência, cem golpes no coração, na mente e no espírito. Os dedos tocavam nas outras pedras: Esta foi deixada pelo meu irmão, esta pelo meu amigo. O homem que deixou esta não vai regressar. Bridei fechou os olhos por um momento, invocando a imagem de Tuala, que lhe dissera, com uma calma grave, que para o rei a morte estaria tão próxima, que poderia sentir o bater das suas asas negras. Ouviu-lhe a voz: Não percas a fé, meu querido. Os deuses sorriem-te. Avança com coragem e vence a tua guerra para Fortriu. Por ti, arde uma vela no Monte Branco. Regressa quando tudo terminar, verte as tuas lágrimas e recebe conforto.
Era Outono quando Ana e os seus companheiros chegaram a Abertornie, um trio de viajantes exaustos e desalinhados, escurecidos pelo sol e consumidos por tamanha jornada com suprimentos escassos. Tinham conseguido uma coisa por outra ao longo do caminho. Ana envergava os trajes práticos da esposa de um agricultor. Sentira-se aliviada por ter abandonado os restos puídos do que em tempos fora um vestido de casamento delicadamente bordado. A casa de Ged ficou chocada com o seu surgimento e com a narrativa que apresentou. Pelo menos, não entrara em farrapos.
Em Abertornie, mediante a insistência de Loura, a esposa de Ged, foi-lhe emprestado um vestido de melhor qualidade. Foi também lavada por um par de criadas enérgicas. Era estranho voltar a estar limpa. O cabelo crescera mais uma vez abaixo dos ombros. Depois de ser lavado com água de camomila e de ser dolorosamente penteado, transformou-se numa auréola de madeixas douradas. Olhou para o reflexo no espelho de bronze de Loura e não reconheceu a mulher estranha que a fitava, a pele bronzeada, a figura tão magra que o vestido caía à sua volta em pregas largas, os olhos cautelosos e cínicos. Aquela pessoa de ar capaz não era a noiva que partira do Monte Branco na Primavera. Ana agradeceu às criadas e saiu para o jardim. Após tanto tempo ao ar livre, era-lhe desconfortável permanecer entre paredes.
A casa estava pesarosa, pois fora necessário informar da perda da escolta, onde se incluía a jovem Creisa, e uma família estava de luto. Ged partira havia muito, acompanhado dos seus guerreiros. Por aquela altura, o exército de Bridei estaria no interior do território de Dalriada. Se tudo tivesse corrido de acordo com o planeado, a guerra estaria prestes a ser vencida.
Agora que estavam tão perto, Ana sentia uma certa relutância em chegar ao fim da viagem. No Monte Branco, teria de explicar tudo o que acontecera. Teria de contar a Broichan, a Aniel e a Tharan que a missão fracassara e que não havia qualquer aliança com Alpin. Seria obrigada a encarar a forte possibilidade de os detentores do poder na corte de Bridei lhe delinearem novos planos, que implicariam outro chefe tribal, outro casamento. Talvez tivesse conquistado alguma coragem na viagem. Talvez tivesse aprendido a impor-se. Mesmo assim, a tentação de adiar o dia em que teria de lhes contar que não voltaria a fazer o que lhe ordenassem era forte. Desejava ficar ali mais um pouco e descansar. Desejava passar algum tempo sozinha com Drustan.
Ana caminhou pela sombra das pereiras, a relva macia por baixo dos chinelos emprestados. O dia estava quente, o céu limpo. A canção dos pássaros enchia o jardim e os insectos faziam-se ouvir em cada canto. Uma gralha saltava por entre as raízes de uma árvore vetusta, em busca de escaravelhos. Um cruza-bico estava empoleirado nos ramos, a observar Ana com um menear de cabeça. Os homens tinham sido levados por um servo idoso quando ela fora tomar banho. Já deviam estar prontos.
Pensou em Drustan, e em como o Monte Branco seria difícil para ele. Teriam de ali ficar pelo menos até que Bridei regressasse a casa. Talvez ainda mais. Para além de terem de obter o consentimento do rei para o seu casamento, precisavam de tomar outras decisões. Com Alpin morto, em breve seria imperioso que Drustan regressasse ao norte e estabelecesse uma nova ordem em Briar Wood e no Vale dos Sonhos. Ana pensara na possibilidade de voltar a casa, às Ilhas Pequenas. Aí, o casal poderia instalar-se entre os parentes da jovem e criar uma vida livre do fardo do crime de Alpin e livre da dúvida e da desconfiança que seriam obrigados a enfrentar em Briar Wood. Não o sugeriu a Drustan. Fariam uma visita mais tarde e por fim ela veria a irmã. Sabia que, primeiro, Drustan tinha de enfrentar os seus demônios interiores e eliminá-los. Encontrariam Bela. Conseguiriam provar a inocência de Drustan perante todos.
Para ele, a corte de Fortriu seria um desafio. Passara sete anos encarcerado, apenas com um companheiro. Ser colocado no meio daquele círculo de poderosos, de intrigas, boatos e manobras, seria um choque. Teria de apresentar explicações por ele. Contar a Tuala e provavelmente a Broichan sobre as transformações, sobre o talento que fazia de Drustan o homem excepcional que era, e que precisava de estar em liberdade, para se deslocar entre os mundos. Teria de lhes contar que uma princesa do sangue real de Fortriu pretendia casar-se com alguém que conseguia mudar de forma.
— Ana?
A jovem girou sobre os calcanhares, desperta dos seus pensamentos com um sobressalto. Não era Drustan que ali estava sob as árvores, mas Faolan, escanhoado, o cabelo moreno penteado e apanhado, as roupas simples que lhe tinham emprestado a revelar como ficara magro. A luz do entardecer aprofundava as rugas da doença e da exaustão que lhe vincavam o rosto. Controlava perfeitamente a expressão, mas Ana viu tristeza e preocupação a um tempo. Tinha um saco às costas e botas de caminhante nos pés. Cruzaram o olhar sem trocar uma palavra.
O esboço de sorriso que Faolan ostentava troçava de si próprio, à medida que assimilava as mudanças na aparência de Ana.
— Não é esta a imagem que irei recordar — disse-lhe.
— O que queres dizer? — De repente sentiu-se apreensiva. — Estarei no Monte Branco e tu também, Faolan.
Olhou para as mãos, incapaz de fitá-la.
— Se estiveres lá com ele — disse-lhe —, não serei capaz de ficar no Monte Branco. Estou de partida. Vou contar o que aconteceu a Broichan e a Tuala. Fica aqui mais algum tempo com Drustan. Ele precisa de voltar a habituar-se a estar entre pessoas e será mais fácil aqui do que na corte. Regressem quando estiverem ambos prontos. Nessa altura já deverei ter partido. Ficou desolada.
— Mas, Faolan, então e Bridei? Não podes partir, ele precisa de ti. Compreendo que seja uma situação constrangedora, mas continuamos amigos, não é? Nós três fizemos uma longa viagem. Não podes deixar o Monte Branco.
Insistiu em desviar o olhar. Tinha as feições reservadas, a mesma máscara dos primeiros dias, em que ela acreditara que Faolan era um homem incapaz de sentir.
— Vais casar-te com ele, não é? — perguntou-lhe. — Isso, é claro, se conseguires convencer Bridei de que é uma boa idéia. Tencionas ficar na corte até que Drustan esteja pronto a regressar a ocidente e a reclamar as suas terras. Isso significa que terei de partir, Ana. Se tal me obrigar a abandonar o serviço de Bridei, é o que farei. Afinal de contas, sou uma espada de aluguer e posso ganhar a vida em qualquer lugar. Desde que pague bem, um mestre não é diferente do outro.
Seguiu-se um breve silêncio, ao que Ana se aproximou e segurou-lhe nas mãos.
— Fomos nós, não foi? — perguntou, com uma sensação de perda no coração. — Drustan e eu afastamos-te. Isto é terrível, Faolan, cruel e errado. Sei o que Bridei representa para ti. Não podes deixar que o que aconteceu estrague essa ligação. O teu irmão morreu e essa morte levou um pouco do teu espírito. Não deixes que a fúria te roube um amigo tão próximo como qualquer irmão. Talvez julgues que fracassaste na tua missão. Bridei não vai concordar. Pelo menos espera no Monte Branco, até que ele tenha oportunidade de to dizer.
Faolan soltou gentilmente as mãos, puxou o saco que tinha às costas mais para cima e virou-se.
— Por vezes há coisas que não devem ser ditas — indicou. — Às vezes é melhor guardar silêncio. Tenho de partir. Sinto uma urgência, uma necessidade de regressar à corte rapidamente, mesmo sabendo que Bridei estará fora. Isso impele-me ainda mais do que...
— Ainda mais do que a tua aversão a veres-me e a Drustan juntos?
— perguntou-lhe Ana, sem rodeios.
— Qual o casal de amantes que aprecia um observador permanente?
— O tom era amargo. — Desejo-te o melhor. Adeus, Ana. — Com alguns passos sob as árvores, Faolan desapareceu de vista antes que a jovem conseguisse ganhar fôlego para responder, embora não fizesse idéia de qual poderia ser a resposta.
Esperou por Drustan sentada na relva, as mãos à volta dos joelhos, tentando não aceitar a convicção cada vez mais forte de que, sem a presença de Drustan e de Faolan, faltar-lhe-ia sempre uma parte essencial do seu ser. A sua mente não o admitia, não podia ser verdade, estava longe de tudo o que esperara, era uma irregularidade num caminho futuro, que deveria estender-se de uma forma exata. Nunca acreditara que pudesse ter a felicidade de encontrar um homem que viesse a amar como a Drustan, uma paixão inebriante que apagava tudo o resto. Quase tudo. Havia Faolan: o seu amigo mais querido, o companheiro sempre presente e forte, o seu complemento. Amparara-a quando o caminho se desmoronara a seus pés. A sua música fizera-a chorar. Os seus braços tinham afastado as trevas. Os olhos disseram-lhe... Os olhos disseram-lhe que ele a amava tal como Fionnbharr amava Aoife, a fada, com uma paixão profunda e inabalável. Soubera-o desde o dia na floresta em que o acusara de ciúmes. Era a força dos seus próprios sentimentos que lhe parecia nova e chocante. Algo tomara conta dela sorrateiramente, algo cujo significado apenas percebera naquele momento, depois de Faolan se ter ido embora. A deusa brincara com ela, trazendo-lhe não um, mas dois homens para amar. E, por mais que lhe custasse admiti-lo, parecia a Ana que precisava dos dois. Tal nunca poderia ser. Faolan tinha razão. Naquele jogo cruel a três, um deles destinava-se a ficar sozinho.
— Ana?
Desta vez era Drustan quem se aproximava por baixo das pereiras, envergando uma túnica e calças de lã, tingidas com as múltiplas cores da casa de Ged, a cascata de cabelo brilhante apanhado, sem grande sucesso, com uma fita. O sorriso afugentou-lhe as dúvidas do coração de um momento para o outro. Ana levantou-se e correu para ele, que a abraçou, num aperto forte e quente. Ana sentiu o bater apressado do coração de Drustan, um eco do seu.
— Senti a tua falta — murmurou contra o cabelo da jovem. — Cheiras a flores silvestres e o teu cabelo é macio como a lanugem dos cardos.
— Mm — murmurou Ana, enquanto saboreava o momento. Tinham sido reservados durante a viagem, respeitando a presença de Faolan. Estar assim tão perto era libertar um sentimento que parecia um fogo a atear-se, um calor no corpo que se tornaria tão poderoso que restaria apenas uma forma de controlá-lo. Levou o rosto ao dele e, momentos depois, os lábios encontraram-se, hesitantes de início, um toque leve, uma impressão de uma pena. Depois voltaram a tocar-se, desta vez mais profundamente, a mão dele subindo até ao pescoço da jovem, os lábios a entreabrirem-se e a sensação primeva do contacto das línguas, que lhe lançou um arrepio até ao mais íntimo do ser. Sentia os membros fracos. O coração entregara-se a uma dança insana. Levou as mãos às costas largas, puxando-o para si.
A gralha crocitou. Ana caiu em si, afastou os lábios e baixou as mãos até ao coração de Drustan.
— Drustan?
— Mm? — Segurou-lhe na mão direita, baixando a cabeça para lhe beijar a palma, onde desenhou um círculo com a ponta da língua, o que a fez estremecer.
— É melhor parares. Não consigo pensar quando o fazes. Drustan imobilizou-se de repente. — O que foi, Ana?
— Faolan. Partiu sozinho. Drustan ficou em silêncio.
— E disse-me que não vai ficar no Monte Branco, se lá estivermos. Vai abandonar a vida que lá construiu, virar as costas a Bridei, seu patrono e amigo querido. Vai ganhar a vida como mercenário, assassino contratado. Não pode fazer isso. Não agora que cantou as suas canções e contou a sua história e recomeçou a viver. É... — Deteve-se abruptamente. Não conseguia pôr em palavras o terrível desperdício que era, o quão desolada a fazia sentir-se.
— Choras por ele. — O tom de Drustan era tão gentil como o dedo com que lhe limpou as lágrimas da face.
Ana aquiesceu, continuando incapaz de falar.
— Ele ama-te. A paixão cresceu tanto que já não consegue escondê-la. Fez o possível por ocultá-la.
— Sabias?
— Desde que o conheci. Desde que vi a expressão que tinha no rosto quando disse o teu nome. Vem, deixa-me abraçar-te. Também eu consigo refrear-me quando a isso sou obrigado, embora a chama que arde em mim seja um prazer cruel. Pronto, chora. Que devemos fazer? Esperava que passássemos alguns dias aqui. Ele partiu, creio, porque julgou que nós fôssemos... porque não queria estar aqui quando... — De súbito, também ele sentia a falta das palavras.
— Estás embaraçado — disse Ana, o espectáculo do rubor dele o suficiente para fazer surgir um sorriso por entre as lágrimas. — Não faz mal, Drustan, não estou chocada. Imagino que saibas que em mim arde o mesmo fogo. Cada toque teu inflama-o. É verdade, em tempos fui uma rapariga que seguia as regras: era obediente, respeitadora e correta em todos os aspectos. Essa rapariga nunca pensaria em desejar a noite de núpcias, especialmente antes de obter o consentimento do rei para a união. Seria incapaz de fazer este discurso sem ficar vermelha como tu.
Drusdan sorriu.
— Vejo um tom rosa muito atraente nas tuas faces, Ana. Pareces a Primavera. És como a bela Todas as Flores em forma humana. Se eu coro como um rapazinho nervoso, é porque tudo isto é novo para mim e não sei como irás responder.
— Responder? Qual é a pergunta?
Era óbvio que Drustan se sentia embaraçado pelo que tinha para dizer. Estava agitado, como um jovem de dezasseis anos, e Ana fez por lembrar-se de que ele estivera fechado sete anos, não tendo ainda recuperado o hábito de conviver com outras pessoas.
— Queres ir atrás de Faolan, não é? — perguntou.
— Tenho a certeza que não foi isso que te fez corar, Drustan, mas sim, quero. Não podemos deixá-lo fugir da corte e desaparecer das nossas vidas. Temos de ajudá-lo a enfrentar o passado e a aceitar o presente, mesmo que isso signifique que tem de aceitar a amizade, o amor e a dor. Já é tempo de admitir que é um homem, com as suas fraquezas, bem como as suas forças. Tem de aceitar que o amor dói, mas que acaba por sarar.
Drustan fitou-a com um ar grave.
— Então vamos pedir cavalos emprestados e vamos já atrás dele — disse.
— É o que devíamos fazer. — Ana ouviu a incerteza na própria voz. A mão de Drustan estava na sua nuca e afagava a pele por baixo do macio cabelo cortado. Essa sensação deliciosa fazia com que fosse difícil concentrar-se. — Imediatamente. Ele não vai gostar, mas...
— Sendo assim — murmurou Drustan, que voltara a tomá-la nos braços —, esta noite não?
A jovem não conseguia falar. Cada parte de si gritava por ele. O desejo que sentia era potente, assustador.
— Farei o que quiseres, Ana — disse Drustan. Baixou as mãos, uma até à cintura de Ana, a outra até às nádegas da jovem, e puxou-a contra si, encostando peito e ventre. A forma dura da sua virilidade era surpreendentemente clara e ainda mais espantosa foi a resposta de Ana, um calor que lhe latejava entre as pernas, fazendo-a chegar-se a ele de uma forma que, ainda há pouco tempo atrás, consideraria chocante, de tão indecorosa.
— Isto não é justo — arquejou. — Sabes o que eu quero... mas...
— Ana — atalhou Drustan —, partirei de imediato, se quiseres. Esta viagem uniu-nos aos três, tu, eu e Faolan. Para onde quer que vamos, o que quer que façamos, nunca poderemos fugir disso. Temos de fazer o que sugeres. Temos de segui-lo, encontrá-lo e convencê-lo. Não vou negar-te que me entreguei a certos pensamentos doces sobre o nosso descanso, aqui em Abertornie. Mas posso esperar. Em sete anos, devo, pelo menos, ter aprendido a fazer isso.
— Mm — disse Ana. Soltou-se com alguma relutância e voltou a sentar-se na relva. — Sabes, o problema não é a chegada de Faolan ao Monte Branco, mas a sua partida. Ofereceu-se para transmitir as notícias a Broichan. Terá de ficar na corte por três ou quatro dias para se reunir com os conselheiros de Bridei. É o mínimo que esperam dele. Além disso, e embora Faolan nunca venha a admiti-lo, estava tão exausto que deverá acampar daqui a pouco, partindo apenas amanhã de manhã. Isso significa...
— Significa que poderemos adiar a nossa partida até amanhã e ainda o vamos alcançar, minha princesa.
Ana sorriu-lhe. — Princesa? Não me senti uma grande princesa naqueles trapos, com lobos a toda a volta. E continuo sem me sentir assim, com ou sem banho.
— Para mim, e para ele — declarou Drustan, com solenidade —, nunca foste nada menos. Ficas esta noite?
A jovem aquiesceu, de súbito envergonhada.
Drustan tinha os olhos brilhantes, a expressão séria.
— Serás minha esposa? — perguntou-lhe.
Ana fitou-o. Conseguira surpreendê-la. — Também não era essa a pergunta que esperava — disse.
— Diz-me o que esperavas.
Ana pigarreou.
— Dormes... dormes comigo, esta noite?
— Sim — respondeu Drustan de imediato.
— A minha resposta também é sim. Loura vai ficar chocada.
— Duvido — riu-se Drustan. — Julgo que ela já espera o pior de nós. Mostraram-me os aposentos que nos prepararam e são ao lado um do outro. Oh, Ana. Não mereço tanta felicidade. Quero gritar, cantar, voar bem alto e bradar para todo o mundo ouvir. É tanta alegria que mal consigo agüentar. — Estava radiante. Parecia a Ana que as mágoas, as contrariedades, as crueldades dos últimos sete anos tinham sido eliminadas de um momento para o outro. Fora ela que o conseguira. Virara-lhe o mundo ao contrário e tornara-o novamente uno. Houvera um custo. No dia seguinte iriam pedir cavalos emprestado e tentar fazer alguma coisa quanto a isso. No dia seguinte.
— Honras-me — disse a Drustan, com alguma timidez na voz.
— Não — disse Drustan. — Se aceitares ser minha esposa, concedes-me uma dádiva acima da honra.
— Já aceitei.
Assustou-a ao cair de joelhos. Envolveu-a com os braços e encostou a cabeça ao seu colo, como se fosse uma criança. Ana sentiu uma tensão nova no corpo.
— Ele pode não consentir. Bridei. Pode julgar que não sou adequado. És a minha princesa. Mas também és uma princesa dos Priteni, uma noiva de imenso valor para o reino. E se...?
— Drustan?
Um silêncio. Tinha o rosto contra ela e Ana não conseguia ver-lhe os olhos.
— Drustan, olha para mim. Assim é melhor. Eu amo-te, meu querido. — Afagou a catarata exuberante de cabelo brilhante. — Mais do que a alvorada, mais do que o luar, mais do que a canção de um pássaro e do que a luz na água, mais do que um lume aconchegante no fim de uma viagem. Amo-te de todo o coração, agora e sempre. Quero que os meus filhos sejam os teus filhos. Quero envelhecer contigo, sempre deliciados quando nos olhamos. Sonhei com uma criança, cheguei a contar-te? Tinha o teu cabelo, os teus belos olhos. Era tua, Drustan. Sei que estávamos destinados um ao outro. Se Bridei não nos der o seu consentimento, deixarei a corte a teu lado. Os deuses vão compreender que o que nos une é mais forte do que a cerimônia efetuada por um druida.
— E Faolan? — A voz era um murmúrio. Ana suspirou.
— Faolan é-me muito querido. Num outro mundo, se nunca te tivesse encontrado, talvez... Não, não posso dizer isso. Faolan tem uma longa viagem à sua frente. Julgo que existe uma demanda que terá de seguir e com isso não posso ajudá-lo. Não nego que preferia tê-lo por perto. Mas julgo que o seu destino se afasta do nosso.
— E isso deixa-te triste, mesmo neste momento de alegria.
— Um pouco triste, mas irei esquecê-lo até amanhã. De manhã, iremos atrás dele e tentaremos fazer com que ele caia em si. Até lá...
Drustan levantou-se.
— Quanto tempo julgas que falta até ao pôr do Sol? — perguntou-lhe, a sorrir.
— Não tanto como nos vai parecer — disse Ana. — Imagino que, após tanto tempo, possamos esperar até lá. Espero que dispas essa túnica extravagante antes da hora de recolhermos. É mais do que berrante.
— Lembras-te — disse Drustan gentilmente — quando há muito tempo te perguntei se gostarias de te despir à minha frente? Julgo que a tua resposta foi sim. Ou porventura terás respondido talvez.
— Em breve vais descobri-lo — disse Ana. Deu-lhe o braço e dirigiu-se à casa. — Talvez devas mostrar-me esses quartos adjacentes. Não vou perguntar onde Faolan devia dormir. Nem quero saber o que ia na cabeça de Loura. Deve ser mais observadora e mais aberta do que eu imaginava. Mas é esposa de Ged. Imagino que já tenha visto um pouco de tudo.
Tuala vira-os a chegar na taça das visões. Desde que Fola e Broichan a tinham feito quebrar a promessa que fizera a si própria, começara a procurar as revelações todos os dias. Na sua mente não havia espaço para mais nada, a não ser Bridei. Enquanto percorria os corredores, as salas e os jardins do Monte Branco, fazia a sua viagem com ele, por entre vales, passagens e campos de cultivo entre a corte e Dalriada, entre batalha, descanso e nova batalha. Pouco dormia, pois sabia que Bridei estaria acordado, a avaliar a importância deste e daquele homem. Para ele, os territórios conquistados, as vantagens adquiridas nunca seriam o suficiente para equilibrar o custo em vidas humanas.
Tomara a decisão difícil de entregar Derelei na casa das mulheres sábias por algum tempo, onde ficara com Broichan. A ama tomaria conta dele com carinho, e druida e criança poderiam desfrutar da paz concedida por Banmerren. Tuala estava demasiado absorta para dar ao filho o tempo de que o menino precisava. Em breve iria trazê-lo de volta a casa. Entretanto, Ban, o pequeno cão de Bridei, começara a segui-la para todo o lado, instalando-se a seus pés quando ela procurava as visões na água e marchando a seu lado quando Tuala caminhava inquieta.
Tuala sabia que estava a ser vigiada sutilmente. Aniel tinha guardas que mantinham uma proteção discreta. Tharan surgia de vez em quando, perguntando-lhe com um acanhamento grave se a rainha estava bem. Aqueles dois conselheiros principais sabiam o que a taça das visões revelara. Tuala procurara o seu conselho no dia em que regressara ao Monte Branco, esperando, sem grande convicção, que houvesse algo em que não tivesse pensado, alguma forma de atravessar a tempo a distância que os separava do sul de Dalriada. Em breve os rostos sombrios deitaram por terra essa esperança. Mesmo que um mensageiro conseguisse atravessar Dalriada ileso, não chegaria a Bridei antes que o Outono estivesse bem avançado. Tuala sabia que então seria tarde de mais. Quanto às tentativas de invocar o povo do Outro Mundo em seu auxílio, tinham sido em vão. Tal como imaginara, as suas súplicas tinham-se deparado com o silêncio. Teia, Madressilva e os restantes da sua espécie apenas surgiam quando lhes convinha. A solução teria de passar por mãos humanas.
A visão de Broichan na floresta durante a Primavera, com uma mulher dos Boa Gente a observá-lo, não se repetira. Quem sabia o que os druidas faziam nas longas e solitárias vigílias na floresta, durante o festival da Harmonia? Era a deusa quem os comandava, de mente e espírito. E de corpo, também. Os membros da irmandade não passavam dias pendurados nas bifurcações dos ramos dos carvalhos, envoltos em peles de boi, à espera de visões proféticas? Talvez existissem outras formas do corpo de um homem apto ser chamado ao serviço d'A Que Brilha. Tuala queria saber a que ano pertencia aquela imagem. Imaginava que se tratasse do ano em que Broichan viajara até Caer Pridne e quase morrera envenenado: o ano do seu próprio nascimento.
A taça das visões não oferecera qualquer outro vislumbre de Bridei, mas nessa manhã, na água límpida, Tuala vira Ana a regressar a casa, uma Ana estranhamente alterada, como se tivesse atravessado uma fornalha, de onde saíra apenas a essência. A amiga de Tuala estava bastante magra e o belo cabelo fora cortado muito curto. Na visão, seguia ao lado de Faolan por um carreiro familiar, o caminho para Abertornie. Faolan tinha um ar miserável: enfermo, abatido. Algo correra muito mal, isso era óbvio. Eram apenas eles os dois, sem escolta, sem guardas, apenas o homem, a mulher, os dois cavalos. E...
E o falcão. Ana envergava uma luva pesada, onde se empoleirava uma criatura cuja magnífica plumagem ostentava todas as cores, desde o castanho-escuro dos carvalhos, passando pelo vermelho fogo, até ao dourado da cevada madura. Os olhos eram penetrantes, sábios, perigosos. A ave era de uma espécie desconhecida de Tuala. As cores ricas e o porte nobre pareciam distingui-la como sendo excepcional, única. Ana transportava o falcão com facilidade, apesar do tamanho da ave, com o braço e o ombro descontraídos. Os olhos cinzentos da jovem sempre tinham possuído uma serenidade profunda, ela sempre parecera calma, mas triste. Nesses olhos havia agora uma expressão que Tuala nunca vira. Pesasse embora a forma como regressavam, sinal claro de que a missão a Briar Wood não correra como Bridei desejara, os olhos de Ana brilhavam com uma alegria transcendente.
Tuala imaginou que se tratasse de uma visão do presente e mandou fazer preparativos para recebê-los ao fim do dia. A luz na imagem era a de um início de tarde, um brilho quente que reluzia na folhagem das faias, o sol a varrer os carreiros da floresta e a transformar o cabelo de Ana numa mancha dourada por entre o verde. As folhas começavam já a exibir os tons suaves do Outono. A guerra a ocidente poderia estar perto do fim. Se Bridei estivesse vivo. Se os deuses o poupassem. Se um jovem imponente de punhal na mão e uma missão no olhar conseguisse ser detido a tempo.
Tuala suspirou. O dom da visão era cruel. Afinal de contas, a vida estava repleta de possibilidades, perigos e decisões rápidas. Se um homem não morresse pela lâmina de um assassino, ninguém podia afirmar que não viria a perecer de outra forma no dia seguinte, ou no outro. Se alguém procurasse intervir por a água mostrar algo indesejado, arriscava-se a desencadear uma série de acontecimentos que, à sua maneira, poderiam ser ainda mais desastrosos do que a visão. Por outro lado, A Que Brilha mostrara aquelas imagens a Tuala por uma razão. Esse motivo era Bridei: não apenas o seu marido, o seu amigo, o mais querido dos amigos e pai do seu filho, mas também o rei de Fortriu, o grande líder do povo. O que seria a visão, se não um chamado para que agisse?
Com esse dilema a percorrer-lhe a mente, Tuala foi com Aniel para a muralha do nível superior do Monte Branco, de onde olharam encosta abaixo, em busca de sinais de cavaleiros que se aproximassem. Ban estava a seus pés, o pequeno corpo tenso com a expectativa. Tuala chamara Aniel assim que vira Faolan na água, pois o seu regresso era acompanhado por uma tênue esperança. Não fora o braço direito de Bridei sempre capaz de realizar a mais difícil das missões e de encontrar respostas para os problemas mais confusos? Faolan era arrojado, inventivo e capaz. Talvez encontrasse uma solução, onde até mesmo Broichan fracassara. Tuala manteve consigo a inquietude que sentia em relação ao aspecto de Faolan. Deixaria que os viajantes contassem a história deles antes de partilhar a sua.
Era quase ocaso quando os cavaleiros se deixaram avistar. Ao vê-los, Tuala abafou um arquejo de surpresa.
— Pensei que me tinhas dito que Ana e Faolan vinham sozinhos — comentou Amel, semicerrando os olhos para ver melhor. — Quem é aquele?
O tom era o eco da reação de Tuala. Não só Faolan e Ana eram acompanhados por um terceiro elemento, como este partilhava o cavalo de Ana, apoiando-a com um braço, tendo-a sentada de lado à sua frente, o cabelo dourado da jovem a misturar-se na sua própria massa de caracóis ruivos. Aqueles dois eram a imagem de uma narrativa antiga, uma imagem tão bela e cativante que fazia perder o fôlego.
— Não é um guarda — disse Tuala. — Imagino que se trate do marido, Alpin, de Briar Wood. Parece-me que ela se deu melhor do que todos nós esperávamos. — O companheiro de Ana era, sem dúvida, o mais atraente espécime de beleza masculina que já visitara o Monte Branco. Mesmo Tuala, que considerava Bridei o homem mais perfeito de toda Fortriu, era obrigada a reconhecê-lo. Tardiamente, recordou a visão narrada por Fola, que incluía uma batalha com lobos. Na altura, parecera improvável. Depois reparou na gralha que viajava no ombro direito do indivíduo e no pássaro mais diminuto empoleirado no esquerdo. A luva de Ana desaparecera, bem como o falcão. Havia qualquer coisa muito estranha em tudo aquilo. Ana estava encostada ao jovem como se este fosse o seu lar, o seu calor, o seu santuário. O braço que a apoiava curvava-se com delicadeza e ternura em redor do corpo magro, nas roupas demasiado largas. Talvez a missão tivesse acabado por ser um sucesso.
— Vamos — indicou Tuala ao conselheiro. — Temos de descer e recebê-los devidamente. Têm uma história a contar e imagino que seja bem estranha. Vamos, Ban. — O pequeno cão seguiu obedientemente, mas tinha as orelhas dependuradas. Tuala sofria por ele. — Tem paciência — sussurrou-lhe, baixando-se para afagar a pequena cabeça do animal. — Ele volta. — Que A Que Brilha assim o permita, acrescentou em silêncio. Que os deuses o tragam vivo, bem e vitorioso, para que não precisemos de passar por tudo isto durante algum tempo. Que o meu próximo filho nasça num mundo em paz.
Foi deveras uma narrativa estranha e triste, pois onze homens do Monte Branco tinham morrido em Breaking Ford e os familiares teriam de receber as notícias chocantes. Tuala sentiu que Faolan, que assumia o papel de narrador principal, não contara a história toda. Apresentara o estranho como sendo irmão de Alpin e Ana garantira-lhes serenamente que o líder de Briar Wood viera a provar-se bastante aquém daquilo que esperavam. Alpin, disse com frieza, estava morto, resultado de uma combinação infeliz de circunstâncias. Com a permissão do rei, iria casar-se com o irmão. O irmão: o estranho atraente de olhos brilhantes, cujos modos incomodavam Tuala, recordando-a de algo que não era capaz de identificar. Os dois pássaros mantiveram-se sempre perto dele, mesmo na sala de audiências, onde os viajantes se tinham reunido com Tuala, Aniel e Tharan, a fim de apresentarem o seu relato. Drustan não ocultava o fato de estar de mão dada com Ana. Olhavam com freqüência um para o outro, como se não conseguissem afastar-se. Salvo um cumprimento cortês, Drustan não dissera nada. Havia ali um mistério, mas teria de esperar.
— Há novidades de Bridei? — perguntou Faolan. — Onde está ele? Até onde chegou a força?
Tharan pigarreou. Aniel olhou intencionalmente para Drustan.
— Temos de falar contigo em privado, Faolan — disse Tuala. — Há um assunto sério e urgente que temos de discutir. Esperamos que possas ajudar.
— Que assunto? — O tom era severo.
— Em privado — insistiu Aniel. — Lady Ana, deves estar cansada da viagem desde Abertornie. Vou preparar um quarto para que...
— Ambos devem ficar — atalhou Faolan. — Tem a ver com Bridei, não é? Podem falar abertamente perante os dois. Com efeito, devem fazê-lo. Os vossos segredos podem ser confiados a Ana. Drustan é um amigo e um aliado.
Os dois conselheiros fitaram-no. O que sugeria era uma quebra total de protocolo. Havia boas razões para tais regras, especialmente em tempo de guerra. Faolan, acima de tudo, deveria ter noção dos riscos inerentes à divulgação de informações críticas.
— Não assumi qualquer posição nesta guerra, nunca o fiz. — Drustan falava calmamente. — O meu irmão decidiu sozinho empregar o meu território como base para as suas forças marítimas. Isso vai mudar quando do meu regresso ao Vale dos Sonhos. Agora que Alpin morreu, Briar Wood ficará também sob a minha alçada. Os amigos de Ana são meus amigos. Estou fora desta guerra.
— Digam-nos — indicou Ana. — O que aconteceu? O empreendimento de Bridei correu mal?
— Lamento. — De súbito, a voz de Aniel assumiu um tom proibitivo. — Tais assuntos encontram-se limitados a reuniões privadas. Seja qual for a opinião de Faolan, na ausência do rei e do seu druida, a decisão compete a mim e ao meu camarada conselheiro, com a sugestão da rainha. Um homem não poderá assistir a tais reuniões apenas com base num conhecimento de alguns minutos, ou na suposição de que virá a ser considerado um pretendente adequado a uma refém real.
As feições exaustas de Faolan assumiram uma expressão que apenas poderia ser descrita como assustadora. Cerrou as mãos em punhos.
— Drustan — disse Ana calmamente —, vamos retirar-nos um pouco. Aniel tem razão. Estou cansada e, além disso, quero mostrar-te o jardim antes que fique muito escuro. E quero apresentar-te a Derelei. Vamos?
— Obrigada, Ana — agradeceu Tuala. — Receio que Derelei não esteja presente. Está em Banmerren, com Broichan. Irei ter contigo assim que terminarmos. — E, quando Ana e o jovem extraordinário saíram, sempre de mão dada, continuou: — Faolan, senta-te, por favor. Não temos tempo para quizilas internas. Bridei está em perigo. Precisamos da tua ajuda.
Faolan sentou-se, os lábios cerrados.
— Conta-lhe, Aniel — indicou Tuala.
Aniel expôs a situação: a visão, sem especificar de quem, a batalha, a luta, o jovem imponente com o punhal. Tuala observou as faces de Faolan a empalidecer e o maxilar a contrair-se, à medida que a narrativa avançava.
— Imaginamos — acrescentou Tharan, gravemente —, que isto deverá ter lugar em breve, se é que já não ocorreu. Broichan diz-nos que não tem o poder de viajar rapidamente para oeste, como por vezes os seus pares fazem. Com efeito, não há em Fortriu um druida vivo com essa capacidade. Enviamos cavaleiros, é claro. Mas estamos convencidos de que não irão alcançar Bridei a tempo. O Outono está invulgarmente bom, com tempo bastante ameno, invulgarmente bom para o Outono. A descrição da cena, a luz, a cor das árvores, tudo sugere tais condições. Imaginamos que a localização da batalha condiga com o plano dos líderes guerreiros de Fortriu. Julgamos que está iminente.
— O augúrio lançado por Broichan, antes de Bridei partir, continha um aviso de morte. — Mesmo naquele contexto, cercada por homens de confiança, Tuala teve o cuidado de não mencionar o seu papel em tudo aquilo. — É um caso desesperado, Faolan.
— Devia lá estar — resmungou Faolan. — Devia ter ido com ele.
— Esperávamos — disse Tuala —, que conseguisses pensar em alguma coisa que nos tivesse escapado. Não acredito que os deuses o sacrificassem dessa maneira, nem que nos tivessem concedido esta visão, caso não houvesse forma de intervir. Temos de salvá-lo.
— Existe uma solução — disse Faolan. — Reside em Drustan, o homem em quem não confiam. Estariam a pedir-lhe que se colocasse em perigo. Estariam a pedir a Ana que arriscasse o futuro que tanto lhe custou a conquistar. Tal não me agrada, mesmo com a vida de Bridei em risco.
— Falas por enigmas — disse Tharan. — Como pode este homem ajudar-nos? É um estranho. É um Caitt, irmão de um homem que, ao que parece, era aliado de Dalriada. Como podemos confiar nele, mesmo partindo do princípio de que será capaz de fazer o impossível?
Faolan não respondeu.
— Faolan? — incitou Tuala. — O tempo urge. O que devemos fazer?
— Eu falo com eles. — O tom era relutante, o olhar esquivo. — Se quiserem ajudar, caberá a Ana e a Drustan explicar-lhes, contar-lhes a sua história. Ele pode chegar até Bridei a tempo. Se devemos entregar-lhe esta tarefa, isso já é outro assunto.
Esperaram somente até à alvorada. Drustan, reticente e nervoso agora que se encontrava no meio de estranhos, não quis efetuar a transformação em público. A própria Ana apenas a tinha testemunhado pela primeira vez um dia antes e tornara-se evidente que ele ainda via a sua capacidade como sendo, ao mesmo tempo, uma dádiva e um fardo, algo que o marcaria sempre como diferente, estranho e, para algumas pessoas, ameaçador. Ana considerara-o um espetáculo incrível e belo. Quando fizera amor com ela, Ana sentira a natureza dupla no poder vibrante do corpo de Drustan, o toque macio como uma pena das mãos, o júbilo fluido e inquieto que o possuíra depois. A energia da união fora de tal ordem que, na manhã seguinte, Drustan vira-se obrigado a entrar no outro mundo, a transformar-se por algum tempo no seu outro eu. Ana maravilhara-se com a visão daquele homem alto, de pé numa clareira, os braços esticados numa pose semelhante à oração, os olhos brilhantes abertos à terra, às árvores, ao céu azul. Depois, num remoinho de movimento súbito, o falcão alçou voo, em direção à infinita extensão de azul. Regressara a ela nessa outra forma. Ana acalmara-o com a voz e com a mão suave, e levara-o para casa na luva com tanto orgulho, reverência e ternura, que no seu coração não havia espaço para dúvidas.
Despediam-se agora na privacidade de um pequeno pátio do Monte Branco, ela com os braços em volta dele, forçando-se a acreditar que não seria a última vez. Deixou a voz o mais firme que conseguiu. — Voa em segurança, meu amor. Voa e encontra-o. Ficarei à tua espera.
Os lábios de Drustan estavam contra o cabelo de Ana. Não disse nada. O corpo aproximava-se já do estado em que teria a energia, a capacidade para a transformação. Abraçou-a por um momento, depois soltou-a e afastou-se. Ana observou-o em silêncio enquanto rodopiava uma, duas vezes, a extremidade do sol nascente a alimentar-se do fogo do cabelo ruivo. Viu as asas imensas a abrirem-se e a subirem e uma única pena brilhante a flutuar até às lajes a seus pés. Drustan contornou o topo do Monte Branco e voou para sudoeste, em direção a Dalriada. Nos momentos que Ana precisou para se baixar e apanhar a pluma de tons dourados e vermelhos e em que a gralha e o cruza-bico surgiram do nada para virem pousar nos seus ombros, Drustan desaparecera de vista.
Ana ficou no pátio, relutante em voltar para o interior, pesasse embora o frio do início da manhã. Sabia do constrangimento de Drustan em relação à missão. Imaginava qual a causa, embora ele não a tivesse comentado. Era apenas um mensageiro. Mesmo assim, ia voar para o meio de uma guerra, a fim de encontrar um homem que poderia estar a lutar pela vida. E havia mais uma coisa, a expressão nos seus olhos quando lhe descreveram o atacante. Ana não sabia o que era, mas sabia que, mesmo com tudo o que Deord lhe ensinara, Drustan não era um combatente. Drustan não sentia desejo de vingança, nem de retribuição. Apenas queria uma esposa, um lar, a sua liberdade.
Ana não conseguia obrigar-se a entrar. Se ficasse onde o vira, abraçara, onde se despedira, a distância até Dalriada não pareceria tão longa, nem os inúmeros perigos entre o Monte Branco e os campos de batalha a ocidente tão inultrapassáveis. Um pássaro era algo tão frágil, um milagre de penas e ossos e coração acelerado. Até mesmo um grande caçador, como o falcão ou a águia, era vulnerável às tempestades, ao frio, a uma flecha ou uma pedra. Além disso, ele teria não só de percorrer aquela longa distância, mas também de encontrar Bridei quando lá chegasse. Encontrá-lo no meio de um território em conflito, pejado de acampamentos de guerreiros. Talvez fosse obrigado a procurá-lo no turbilhão da batalha. Bridei era rei. Contudo, Bridei nunca levava os ornamentos do seu estatuto para combate. Como poderia Drustan saber quem ele era? Como seria capaz de identificá-lo? Era uma missão desesperada. Não admirava que Faolan tivesse tanta relutância em apresentá-la.
Drustan escutara calmamente enquanto Tuala descrevia o melhor possível a altura, o lugar, a aparência do rei e a do pretenso assassino. Drustan fizera perguntas sobre o jovem guerreiro Caitt, tais como o estilo do cabelo e a cor dos olhos, um azul claro e invulgar, e limitara-se a dizer que sim, aceitava a missão.
Ana sabia por que motivo ele concordara sem hesitar, pesasse embora o risco. Talvez fosse a vontade de ajudá-los, retribuir a Ana e a Faolan pela amizade e pela confiança. A outra razão era mais poderosa e apenas poderia ser enunciada no fim de tudo. Pronunciá-la demasiado cedo ia ser como escarnecer dos deuses. Mas Ana vira-o nos olhos de Drustan, no relance que dirigiu ao rosto da jovem assim que Faolan lhes contou o que Tuala e os outros desejavam. Drustan ia fazê-lo pelo seu próprio futuro e pelo de Ana, não pretendera revelar toda a verdade sobre si próprio logo após a chegada ao Monte Branco. Afinal, não houvera escolha.
Agora que ele desaparecera e que o sol nascia, e à medida que o dia se tornava dourado e brilhante, o coração de Ana ia ficando envolto em sombras. Talvez tivesse ousado em demasia, desejado mais do que deveria. Será que a decisão súbita de abandonar o dever virara os deuses contra ela? Talvez, naquele mesmo dia, a Mãe de Tudo a fosse privar da sua dádiva maravilhosa, da aventura grandiosa, da criatura vibrante que detinha o poder de lhe preencher cada fôlego com felicidade. Se a tal fosse obrigada, Ana julgava não ter a capacidade de ser estóica. Se o perdesse, o seu mundo iria transformar-se em cinzas.
— Estás triste. — Faolan subira os degraus de pedra até ao terraço. Ana sabia que ele esperara lá em baixo, a observar Drustan a partir, mantendo-se afastado para que os dois pudessem despedir-se. Ao aproximar-se, os dois pássaros foram empoleirar-se na parede. — Ele fica bem. É forte.
— Espero que sim, Faolan. E espero que ele consiga avisar Bridei a tempo. Será que a nossa vida será sempre assim? Um momento de segurança e depois, de repente, novamente mergulhada no terror, com os deuses sempre a testar-nos.
— Talvez — disse Faolan, que viera colocar-se ao lado da jovem e olhava agora os pinheiros escuros que cobriam a encosta. Mesmo brilhante, a manhã era varrida por uma brisa fria. Em breve, o mundo escureceria. — Para mim, há muito que assim é. Espero que o vosso percurso seja mais simples. Terão de enfrentar desafios antes que isso aconteça. Não vai ser fácil para Drustan recuperar os territórios perdidos.
— Tal como disseste, ele é forte. E podemos conceder algum tempo para que ele recupere e se adapte às mudanças. Não creio que fiquemos na corte, Faolan. Vamos procurar outro lar até que ele esteja pronto a regressar. Já perguntei a Tuala se Broichan nos deixará ficar em Pitnochie na sua ausência. Drustan não se sente à vontade em espaços fechados, nem junto de grandes aglomerados de pessoas. É possível que tal nunca mude.
Seguiu-se uma pausa.
— Espero que não abandonem a corte por minha causa — disse Faolan.
— As minhas razões são boas e baseiam-se no amor — replicou Ana, levando a mão ao braço dele. — Não partas ainda, Faolan, por favor. Bridei corre perigo. Se for morto, tudo irá mudar. Para todos nós. Fazes muita falta. A tua força é muito importante para Tuala. E, se Bridei regressar são e salvo, espera que aqui estejas. Ele confia em ti. Sabes como tem poucos amigos. — Ouvia a incerteza na voz. Sentia um nó na garganta. Não ergueu o olhar, mas sentia o peso de ser observada.
— Estás preocupada comigo, num momento como este? — O tom de Faolan era, ao mesmo tempo, incrédulo e terno. Ana não pôde continuar a reprimir as lágrimas e, pouco depois, sentiu os braços dele a envolvê-la. Encostou a cabeça ao ombro de Faolan e chorou. Se ele a abraçou como um amigo, como um irmão, ou como um amante que sabe que nunca mais voltará a sentir a preferida do seu coração tão perto, isso foi algo que nunca, ao longo de toda a vida, contou a ninguém. Quando as lágrimas cessaram, Faolan limpou-lhe a face com a mão, os olhos nos dela, e Ana percebeu que ele a bebia, guardando recordações que o acalentariam nos tempos solitários que se avizinhavam.
— Eu... — começou Faolan a dizer, mas deteve-se, a boca retorcida num esgar.
— Shh — disse Ana, tocando-lhe nos lábios com os dedos. — Não o digas. Já o sei. Agora vou entrar. Está a ficar frio e Tuala tem estado no jardim a observar-nos desde antes de Drustan ter partido. Não desças já. Espera um pouco e pensa nisso. Promete-me, Faolan. Fica, pelo menos até sabermos que eles estão bem, Bridei e Drustan.
Faolan esboçou um sorriso.
— Não sou capaz de te recusar um pedido — disse. — Ficarei no Monte Branco até que Bridei me conceda autorização para partir. Prometo-o. — Ergueu-lhe a mão, mas não a beijou. Limitou-se a segurá-la contra a face por um momento, depois largou-a e afastou-se. Ana sabia que recordaria a sua expressão para sempre: a boca com um trejeito de auto-irrisão, os olhos desolados.
— Ana! Faolan! — A voz de Tuala fez-se ouvir degraus acima, com um tom cuidadosamente leve, embora de todos, fosse ela quem mais tivesse a perder naquele momento desesperado. — Pensei em tomar o pequeno-almoço no jardim. Fazem-me companhia? Sem Derelei não consigo habituar-me ao silêncio. — Era uma tentativa corajosa de mostrar calma. Ana percebeu-o de imediato. Tuala estava desesperadamente preocupada e sentia-se muito só.
— É claro — disse Ana, enquanto descia os degraus para dar o braço à amiga. — Drustan está a caminho. Teremos de aguardar por notícias. Faolan e eu temos mais para te contar. O relato de ontem foi uma primeira amostra. Receio que venhas a sentir-te chocada comigo, Tuala. Parti uma pessoa e regressei outra completamente diferente.
Tuala e Faolan trocaram um olhar. Ana não conseguiu interpretá-lo.
— Eu não o poria nesses termos, Ana — disse Tuala, calmamente. — Parece-me que descobriste quem és.
— Todos mudamos — interveio Faolan. — Fomos moldados no fogo. Criados a partir do nada. Os nossos músculos foram esticados na forma de cordas de harpa e dos corações fizeram tambores. O destino cria uma melodia diferente em cada um. Amor, perda, traição, realização.
Tuala arregalou os olhos. — Pareces um bardo a falar, Faolan — comentou.
— O que atravessamos deixou-nos mais fortes — disse Ana. — Agora temos de rezar para que Drustan tenha a força para concretizar esta viagem, e para que os deuses continuem a sorrir a Bridei.
Dirigiram-se os três ao jardim e o longo período de espera teve início.
O exército de Fortriu avançou sobre os Celtas de madrugada. As forças de Gabhran estavam dispostas ao longo do flanco sul de um vale amplo, por onde corria um ribeiro de tamanho considerável, largo, pedregoso e rápido, mas raramente com água acima dos joelhos. Era inevitável que aquele curso de água fosse palco da ação mais intensa. Os homens de Bridei tinham avançado na escuridão e, à primeira luz do dia, deram início a um assalto frontal: uma carga a cavalo, uma retirada rápida, seguida de uma investida de homens a pé, em formação de cunha. A oposição, que ainda procurava assumir posições defensivas quando a linha de cavaleiros armados com lanças galopara pelo acampamento, sofreu baixas pesadas durante o primeiro ataque. A investida em cunha que se seguiu era disciplinada e mortífera, a primeira fileira com os escudos erguidos numa sólida parede defensiva, as lanças da segunda fileira protuberantes por cima dos ombros da primeira, como os espinhos de um ouriço, e a terceira fileira equipada com dardos de arremesso, que seriam lançados sobre esta barreira formidável para a massa da infantaria inimiga.
Carnach e Bridei, sentados lado a lado nos seus cavalos e ofegantes devido à primeira ofensiva e retirada, observaram a tripla fileira de homens a avançar, o troar dos brados de desafio — Fortriu! Fortriu! — pontuado pelo som das botas, o esmagar das lanças de ponta de ferro nos escudos de madeira, o gemido e o impacto das flechas celtas lançadas demasiado tarde sobre a onda imparável.
Hargest cavalgara ao lado do rei, a par de Cinioch, e eliminara o primeiro celta com um golpe eficiente da espada. Com o fim do ataque montado, Cinioch trocara de lugar com Enfret, onde os cavaleiros de Carnach se reagrupavam. Hargest aguardava, todo ele tenso com a febre da batalha, enquanto Bridei e Carnach observavam o progresso da batalha e analisavam a estratégia. Os Celtas voltavam a formar na elevação junto ao acampamento. Não tinham sido apanhados desprevenidos. O avanço Priteni limitara-se a surgir mais cedo do que o previsto. Não tardaria que formassem uma defesa corajosa. O seu número era substancial.
— A determinada altura vamos deixar que nos empurrem para o rio — dizia Carnach. — Estás de acordo? Os nossos homens não devem avançar para além daquela formação rochosa, ou correm o risco de serem encurralados. Isto, se os chefes de Gabhran souberem o que estão a fazer. Temos de dar vantagem aos Celtas, atraí-los para a frente.
— Mas não demasiado cedo — disse Bridei, os olhos fitos num determinado local, onde fora erguido um estandarte, talvez o do rei de Dalriada. — Tem de ser convincente. É capaz de demorar um pouco, Carnach.
— Vamos agüentar. — O chefe tribal de Thorn Bend olhou na direção de Hargest. — Guarda bem o rei, rapaz. As coisas vão ficar feias antes do fim da manhã.
— Sei o que estou a fazer! — retorquiu Hargest. Carnach ignorou-o. — Que A Que Brilha te proteja, Bridei.
— Que o Guardião das Chamas te escude, meu amigo. Partiram então, em direções opostas. Carnach, seguido pelo seu próprio guarda, Gwrad, avançou com os soldados até à zona de combate, onde a cunha se dividira em pequenos esquadrões de ataque compostos por seis ou sete homens que trabalhavam em uníssono, aproveitando a vantagem táctica contra a confusão de guerreiros celtas. Quando se aproximassem demasiado da formação rochosa, Carnach ordenaria a retirada. Os homens tinham sido alertados para essa probabilidade e reconheceriam na ordem do líder a execução de uma determinada estratégia. A necessidade de obediência imediata fora-lhes inculcada, pois o seu instinto iria levá-los a ignorar a ordem. Tomavam agora o freio nos dentes e avançavam quase mais depressa do que a vontade de Carnach.
— Por aqui! — ordenou Bridei, guiando Snowfire na direção dos guerreiros montados que tinham sobrevivido à primeira investida e avaliavam os danos infligidos a homens e cavalos, enquanto a infantaria se digladiava com o inimigo. Muitos tinham caído ante flechas ou lanças atiradas à pressa. Um cavalo debatia-se no chão, com uma perna dianteira partida. Lavado pelas lágrimas, um guerreiro corpulento afagava o pescoço da criatura com a mão esquerda, enquanto preparava um punhal com a direita. Uven aplicava uma ligadura improvisada no braço de um guerreiro jovem. Cinioch desmontara e cuidava de um cavalo sem dono. E Enfret...
— Perdemos Enfret, meu senhor. — Uven ergueu o olhar à passagem de Bridei e deu conta do sucedido com um tom calmo. — Uma flecha no pescoço. Tombou a lutar. Vi-o a rasgar o peito de um celta com a espada.
Mais outro. — Que A Que Brilha lhe conceda descanso — disse Bridei. — Sejam fortes, homens. Aguentem-se. Vamos ganhar por ele e por todos os que já perdemos. Estamos perto do fim e vamos conseguir.
— Meu senhor? — Da voz de Cinioch transparecia uma mágoa furiosa, perceptível sobre os sons de morte que lhes assaltavam os ouvidos vindos de todo o lado ao mesmo tempo. — Seria melhor que me tivesses a teu lado. Aquilo está mais confuso do que as entranhas de uma ovelha. Não estarás a salvo só com ele. — Meneou a cabeça na direção de Hargest, que lhe lançou um olhar furioso. — Mas... — Passou a mão furiosa pelo rosto manchado de sujidade e de lágrimas.
— Mas o teu amigo caiu e queres vingá-lo — concluiu Bridei. — Eu compreendo. Cinioch, precisamos de todos os homens experientes em ação, tu incluído. És o último homem de Pitnochie em condições que resta. Deves representar Breth, Elpin e Enfret nesta derradeira batalha. Uven, sei que também darás um contributo valioso, mesmo que apenas possas usar só um braço. Deixem-nos orgulhosos, homens. Pensem nisto como uma recompensa por todos os anos que Broichan vos obrigou a gelar em Pitnochie, a guardar um rapazinho que gostava de passear na floresta. Dadas as circunstâncias, terei de aguentar-me com o meu único guarda. É Gabhran quem será um alvo fácil. Consigo ver-lhe o estandarte daqui.
— Mesmo assim...
— Não discutas, Cinioch, avança. Quando ouvirem a ordem de Carnach, preparem-se para a investida dos Celtas. Vão julgar que estamos a bater em retirada. Tenham cuidado para não se magoarem ao recuar. Vamos embora. Uven, faz o possível por proteger estes feridos. Que os deuses nos acompanhem a todos.
Bridei explicara o seu próprio papel a Hargest numa manhã em que os primeiros raios de sol tinham despertado nos guerreiros mais jovens e menos experientes uma inquietude que era parte entusiasmo e parte receio. Todos já tinham a sua dose de experiências de combate. O norte de Dalriada tinha sido conquistado mediante combates duros e todos tinham assistido à sua dose de sangue e de morte. Aquela, contudo, seria a batalha decisiva. Nesse dia, cada exército fazia uso do seu rei. Para Hargest, que já dera provas da sua capacidade no manejo das armas, seria um novo desafio. Sem Bridei, Fortriu ficaria sem líder, à deriva, perderia a segurança da mão do Guardião das Chamas. Pouco interessava que outros pudessem substituir o lugar do rei como líder da batalha. Bridei era mais do que simplesmente o monarca de Fortriu. Com a couraça de couro simples e o elmo sem adornos, a túnica e as calças de lã azul e as botas práticas, pareceria a um estranho apenas mais um guerreiro de vinte e seis Verões, um jovem no seu auge, determinado e forte. Para além dos sinais de clã gravados no rosto, e que um celta não saberia interpretar, a única marca da sua identidade era o escudo quadrado de madeira, que ostentava o símbolo de uma águia azul em fundo branco. Os olhos refletiam esse azul. Eram os olhos de um líder e erudito, guerreiro e construtor de paz, pois Bridei esforçava-se por ser tudo isso. Espada de Fortriu. Como chegara a merecer tal título? Era de carne e osso. Em pleno campo de batalha, era tão vulnerável e tão anônimo como todos os outros.
O desejo de parecer um homem entre iguais agravava o trabalho dos guarda-costas. Tanto Breth como Garth tinham comentado, em diferentes alturas, como seria mais simples se aquele rei usasse um elmo de ouro ou um torque de prata em combate. Poderia levar o estandarte com ele, ou então ser protegido por uma barreira defensiva de guerreiros escolhidos a dedo. Pelo menos seria mais difícil perdê-lo de vista. Com um tom seco, Faolan comentara que, uma vez que aquele rei tinha a proteção do Guardião das Chamas, a presença de guerreiros era supérflua. Ele, contudo, era quem mais perto ficava de Bridei no auge da batalha.
Hargest dava o seu melhor mas, no tumulto da ação, por várias vezes Bridei sentiu a arma do jovem a aproximar-se perigosamente da sua própria cabeça. Certa vez, apenas a dança esquiva de Snowfire para o lado evitara que o rapaz cortasse a cabeça do monarca. Momento depois, a espada desferiu um golpe para a direita e um celta montado que preparava o lançamento de um machado caiu para o chão, agarrado ao flanco. Hargest ostentou um sorriso rasgado. Bridei viu-o e desviou o olhar. Surgiu outro celta, e depois mais outro, o que deixou claro que Carnach ordenara a retirada, pois uma onda de homens surgiu das linhas de Dalriada, dirigindo-se ao rio, Priteni e Celtas envolvidos numa centena de pequenos combates desesperados. Os homens caíam. Botas pisaram-nos e cascos abriram crânios, e o solo transformou-se numa mistura horrenda de lama, sangue e partes de corpos. Hargest manteve-se firme no pônei impassível, o corpo protegendo Bridei e Snowfire do pior daquela vaga humana. De vez em quando, baixava-se e espetava com o punhal ou ceifava com a espada. A ação parecia quase arbitrária a Bridei, como se estivesse a matar moscas ou a enxotar mosquitos. Interrogava-se sobre o que poderia atravessar a mente de Hargest quando matava.
Os Celtas ganhavam terreno. Iam abrindo caminho à força de espadas e maças, sempre em direção ao rio. Os chefes tribais de Gabhran deviam estar a pensar que, se empurrassem os Priteni para o outro lado do curso de água e os mantivessem aí, o dia estaria ganho. As forças de Carnach retiravam o mais ordeiramente possível. Aqui e ali, uma formação de seis ou sete escudos agüentava firme, com os homens a manterem a formação, mesmo com as lanças do inimigo a vergastá-los.
Os cavaleiros estavam nos flancos. A elite reduzida utilizava a vantagem da altura e da mobilidade para se aproximar, desferir alguns golpes esmagadores e voltar a afastar-se. Os pôneis de montanha de Fortriu, treinados ao longo da temporada em tais manobras, estavam a suar e de olhos arregalados, pois não havia treino, por mais rigoroso que fosse, que pudesse ensinar um cavalo ou um homem a estar pronto para os sons e as visões de uma cena como aquela. Os gritos, os gemidos, o raspar de metal contra metal e o horrendo esmagar dos corpos durante a investida. Era preciso ser uma criatura estranha para não ser afetado, para não sonhar com isso, noite após noite, nos tempos de paz. Hargest, pensou Bridei, era esse tipo de homem. O rapaz quase parecia estar a divertir-se. Talvez a realidade o atingisse mais tarde. Quanto a Bridei, contava cada celta que matava. Fitava esse homem nos olhos e fazia por ver o inimigo que lhe roubara a pátria e que instalara a ameaça da nova fé no coração do seu povo. Apenas via outro homem a cumprir o seu dever o melhor que podia. Mesmo assim, Bridei usava as armas de forma eficaz, tal como fora treinado pelo antigo tutor, Donal. Não poderia esperar que os seus homens combatessem, se ele próprio não o fizesse também. Nunca deixou de procurar o estandarte. Gabhran. Queria o rei de Dalriada vivo.
Tinham chegado ao rio. As forças Priteni estavam amontoadas, alguns homens estavam na água, outros na margem, agüentando a pressão das tropas de Dalriada. Nos flancos, os cavaleiros de Ged e de Morleo combatiam ferozmente os Celtas montados. Dalriada possuía um número mais elevado de cavaleiros e utilizava-os para conseguir uma vantagem devastadora. Os homens de Ged estavam a ser pressionados. Bridei observou as formas de trajes multicolores caírem, uma a uma. Viu os animais sem cavaleiro a atravessar o rio baixo e a fugir, as bocas cobertas de espuma e os olhos vítreos. Procurou Ged no meio da carnificina e avistou-o no seu cavalo robusto e escuro, o rosto tenso e pálido, a abrir caminho. Não viu Talorgen, mas as forças da Fonte do Corvo mantinham a sua posição entre o centro e o flanco, evitando que o inimigo rodeasse os soldados da infantaria Priteni e os encurralasse no rio. Carnach bradou outra ordem e os capitães transmitiram-na com vozes como a fanfarra de trompetas, e a massa de guerreiros estugou o passo na retirada pela água, aliviando a pressão contra os perseguidores. — Para trás! — gritava Carnach. — Pelo Guardião das Chamas, para trás!
Ao pressentir a chacina, os Celtas bradaram a uma voz. Os cornos de guerra fizeram-se ouvir. Os homens gritaram:
— Dalriada! Dalriada! — e avançaram como uma enxurrada, levando os Priteni à sua frente.
— Esperemos que resulte — resmungou Bridei, detendo Snowfire por um momento, para olhar para trás. — Esperemos que Fokel e Umbrig mantenham a palavra, ou perderemos a nossa vantagem. — Enquanto falava, dois Celtas a cavalo aproximaram-se a galope, um com uma lança pronta, o outro a empunhar uma maça. Não havia tempo para pensar. O treino de Donal apoderou-se do rei e Bridei conduziu Snowfire num movimento enganador, para um lado e para o outro, esquivando-se do homem com a maça, enquanto pelo canto do olho via Hargest a bloquear a lança com a espada e depois a executar um movimento destro e poderoso, que levou o oponente ao solo lodoso. O guerreiro com a maça contornava Bridei, voltando a atacar. Snowfire resfolegou e sacudiu a cabeça. Bridei deslocou-se na sela e segurou-se ao flanco do animal, passando ileso junto ao inimigo. Depois ergueu-se de punhal em riste, enquanto Snowfire executava uma volta apertada. Antes que o celta tivesse oportunidade de se aperceber do que acontecera, o punhal de Bridei entrou-lhe no pescoço e o sangue começou a jorrar sobre a túnica. O cavaleiro tombou e a sua montada deteve-se, a tremer, por entre o turbilhão que a cercava, talvez imobilizada pelo choque, talvez simplesmente à espera de instruções que nunca lhe seriam dadas.
Bridei desmontou e baixou-se para recuperar a arma. A pouca distância, também Hargest saltara do cavalo. Bridei observou o jovem enterrar a espada no peito do homem que derrubara, não uma única vez, mas sem parar, até que do adversário não restava mais do que uma massa disforme de carne ensangüentada. Quando Hargest ergueu o olhar, tinha o rosto branco como a cal, os olhos cintilantes como o luar a refulgir no gelo, de um azul estranho e inquietante. Bridei sentiu uma onda de desconforto. Era demasiado. Tinha de parar com aquilo. Tinha de retirar o jovem dali, antes que perdesse o controlo de vez.
— Hargest — disse com firmeza —, esse homem está morto. Volta a montar e segue-me.
Era difícil encontrar um espaço no meio daquela confusão de homens em confronto e de armas em riste. Bridei levou o guarda-costas ao longo da margem do rio e subiu uma pequena elevação até um pedaço de terreno plano entre rochas. Aí crescia um grupo de salgueiros atrofiados e o corpo de um guerreiro de Dalriada, a cabeça pendente num ângulo impossível, estava caído sobre a erva escurecida. A parte isso, o lugar estava vazio. A batalha prosseguia lá em baixo. Era possível ver o seu desenrolar por entre as árvores, o que concedeu a Bridei uma justificação para ter retirado Hargest do campo.
— Os teus olhos são mais novos do que os meus — disse ao jovem guerreiro Caitt, sem mencionar que os seus próprios olhos tinham sido treinados por um druida. — Olha lá para baixo e diz-me se vês os homens de Fokel ou de Umbrig. A batalha está bastante equilibrada. É um ponto de viragem. Se não aparecerem em breve, Gabhran fará com que as nossas forças recuem para a outra margem do rio.
— Por que estás a olhar para mim dessa forma? Por que não ficamos lá em baixo e lutamos? — A voz de Hargest era muito jovem e estridente de arrogância. Havia mais qualquer coisa nela que enervava Bridei: um tom estranho, o tom de um homem insuportavelmente frustrado. O rapaz parecia capaz de tudo, desde saltar de um penhasco a despedaçar um tesouro valioso.
— Porque estavas a divertir-te demasiado — respondeu Bridei, num tom de voz neutro. — Só tens quinze anos. Sou responsável por ti. Exigi-te mais do que deveria. Hoje já tiveste a tua dose de celtas.
— Olhou pela encosta, à procura do estandarte de Dalriada, e encontrou-o junto à água, onde a multidão de homens era maior. Já tantos tinham caído, que as suas formas imóveis uniam as duas margens, detendo o curso da água, que corria vermelha em volta delas. — Onde está...? — começou Bridei. As palavras perderam-se num arquejo ruidoso, quando um braço poderoso o prendeu em redor do peito. Um instante depois estava deitado de costas, com o atacante escarranchado em cima de si e um punhal apontado ao coração. Agarrou instintivamente os pulsos do agressor, cortando a palma da mão na lâmina, e depois segurou-o com firmeza, fazendo uma pressão tal, que esta se repercutiu nas costas, nas coxas, no maxilar cerrado e na cabeça. Não valia a pena chamar o guarda-costas. Fitando, incrédulo, aqueles olhos ávidos, interrogou-se sobre há quanto tempo Hargest planeava matá-lo.
— O que... — começou, mas a pressão da faca aumentou e ele sabia que não podia desperdiçar o fôlego em conversas. Hargest era grande, ágil e jovem. Mesmo que Bridei gritasse a plenos pulmões, quem o ouviria acima do estridor da batalha? No espaço de algumas inspirações difíceis, iria morrer. A cada inalação, em cada instante de resistência, uma pequena despedida... Tuala... Derelei... Broichan... Salva-me, orou com toda a força do seu ser. Salva-me por eles e salva-me por Fortriu...
— Chegou a altura de pagares o que deves — disse Hargest, num tom de voz baixo e frio, e Bridei sentiu o jovem tentar segurar melhor na faca, aliviando a pressão por momentos. — Já escapaste à minha espada demasiadas vezes, sua desculpa esfarrapada de rei. Agora chegou a altura de morreres. És um idiota se não consegues ver o inevitável: são os Celtas que irão triunfar. Já estarão por todo o Vale quando eu contar as notícias a meu pai. O teu reinado acabou, Rei Bridei.
Então, quando Bridei arqueou as costas e se contorceu numa tentativa de sair debaixo de Hargest, este empurrou-o novamente para baixo e a ponta da lâmina penetrou a carne. No momento em que ocorreu a Bridei que existia uma técnica que Faolan certa vez lhe mostrara, um truque que poderia ter utilizado se tivesse estado preparado naquela pausa momentânea, sentiu uma dor lancinante no peito e, deixando de controlar a respiração, sugou ar para os pulmões e gritou:
— Ajudem-me! Pelos deuses, ajudem!
Hargest sorriu. A faca cravou-se mais profundamente, à medida que os braços de Bridei, os músculos retesados pelos espasmos dolorosos e trêmulos, começavam a perder a força. Bridei sentiu as asas da deusa negra a baterem por cima de si. O seu sopro gelado tocou-lhe a fronte suada, a terrível canção de embalar segredava-lhe ao ouvido... depois um clarão de movimento, algo a roçar-lhe o rosto, penas, garras, bico, um olhar selvagem e um grito semelhante ao seu, o guincho de uma ave de rapina enorme. Também Hargest gritou, diminuindo de repente a pressão das mãos quando as garras do falcão lhe arranharam o rosto, desenhando um padrão de linhas sangrentas. Bridei, um homem educado por um druida, não perdeu tempo a considerar a estranheza daquela intervenção. Aproveitou a vantagem que o momento lhe proporcionou, rolarão, deslizando, assemelhando-se a uma cobra, uma enguia, uma Salamandra, enquanto o pássaro subia, ainda soltando o seu áspero grito de aviso, para depois mergulhar novamente sobre Hargest, que recuou a cambalear, braços erguidos para proteger o rosto dilacerado. Bridei pôs-se de pé com esforço, atento à faca que Hargest ainda empunhava. O jovem estava de pé e o sangue pingava-lhe sobre os olhos. Respirava com dificuldade, mas segurava a arma com firmeza e tinha os pés bem assentes no chão.
— Vá lá, anda! — desafiou, lançando a Bridei um olhar feroz. — Vem apanhá-la, vá lá, tira-me! — E depois: — Maldita criatura! — exclamou, golpeando furiosamente o ar quando o falcão efetuou mais um vôo rasante, ameaçando fazê-lo cair.
Salva-me, por Fortriu... Bridei precipitou-se para a frente, agarrando os pulsos de Hargest e, quando o falcão passou por eles mais uma vez, fazendo o jovem tropeçar e praguejar, empurrou-o com todas as forças que lhe restavam.
Hargest caiu. O som que se seguiu foi algo com que Bridei sonhou mais tarde, algo que ele daria muito para ser capaz de apagar da memória. Houve nele uma peremptoriedade hedionda e esmagadora. No entanto, após um momento de imobilidade horrorizada, Bridei baixou-se para ver o que acontecera, enquanto o falcão pousava sobre as rochas ali perto. Conseguiu conter-se, embora, ao olhar, tenha sentido náuseas. Fez por se recordar da velha máxima de Broichan, de que havia algo para aprender em tudo. Sim, até mesmo na visão de um rapaz prometedor, ali deitado com a cabeça esmagada como uma fruta demasiado madura que tivesse caído de uma árvore. Hargest tivera pouca sorte. Talvez os deuses tivessem colocado ali aquela pedra, com a intenção de que o jovem morresse quando batesse nela com a cabeça. Talvez aquela fosse a resposta simplista das deidades à oração de Bridei.
Ajoelhou-se para cruzar os braços de Hargest sobre o peito e para colocar o punhal ao lado do rapaz. Os olhos abertos fitavam o céu, grandes, azuis, inexpressivos. Bridei procurou uma oração. Por enquanto, não conseguia lembrar-se de nenhuma. Tudo em que conseguia pensar era, Porquê? Tudo o que conseguia ouvir era o martelar do seu próprio coração, um rufar de fúria e de pesar, de choque e de mágoa.
— Meu senhor! Bridei! O que...?
Um pequeno grupo de homens surgiu de repente ao seu lado, Cinioch e outros três, todos a pé com as espadas desembainhadas e rostos pálidos. Um instante depois ouviu um movimento sussurrante atrás de si e, ao virar-se, vislumbrou algo assombroso e inquietante: o falcão de olhos selvagens e penas fulvas a transformar-se, perante os seus olhos, num homem alto, de ombros largos, com olhos tão brilhantes como estrelas e uma cabeleira farta daquele mesmo ruivo dourado fulgurante
Cinioch voltou a gritar e os homens avançaram, as armas em riste. Um tropeçou no corpo do celta morto, ainda deitado nas ervas. O homem ruivo ergueu os braços. Não tinha consigo nem espada, nem faca, nem arco.
— Sou um amigo — disse, com uma calma admirável, e depois cambaleou, como que completamente exausto, e estendeu a mão para se apoiar nas rochas.
— Esperem, homens — ordenou Bridei. — Eu estou bem. Este homem veio em meu socorro, mas Hargest morreu. — Não conseguia dar mais explicações. Na verdade, não sabia o que pensar sobre o que tinha acontecido.
— Bridei, estás a sangrar.
Cinioch aproximou-se e, quando Bridei olhou para baixo, viu uma mancha de sangue a aumentar na sua camisa, através da incisão que o punhal de Hargest fizera na couraça de couro. A sua mão pingava sangue, onde a mesma arma a golpeara. A mente mostrava-lhe uma pequena imagem de Hargest sentado junto à fogueira, de noite, afiando a lâmina com uma concentração que o fazia enrugar a testa jovem e colocava nos seus olhos uma intensidade penetrante.
— Não é nada — disse Bridei, mas acedeu a que Cinioch inspecionasse os ferimentos e aplicasse ligaduras improvisadas, dizendo que Bridei fora, de fato, abençoado pelos deuses, pois caso o punhal penetrasse um pouco mais, ele teria partido nos braços da Mãe de Tudo antes que desse por isso. Um dos outros homens fazia rolar o corpo do celta, retirando-lhe as armas e dando-lhe um pontapé para confirmar que estava morto. Se não fosse pela presença do homem ruivo, não teria havido necessidade de falar sobre o que Hargest fizera. Mas aquele estranho testemunhara tudo. Intervirá como que em resposta à oração de Bridei. Em forma de pássaro. Um mensageiro do Guardião das Chamas? Aquele homem ajoelhava-se agora ao lado de Hargest, as suas feições belas com uma expressão sombria. Estendeu os dedos compridos para fechar os olhos do rapaz e a mão não se encontrava totalmente firme.
— Quem és tu? — perguntou-lhe Bridei.
— Um mensageiro. Enviado pela rainha, tua esposa.
— Por Tuala? Mas...
— Houve uma visão. Os teus amigos no Monte Branco sabiam que estavas a correr um perigo mortal e nenhum deles seria capaz de chegar a ti a tempo. Eu estava lá. Ofereci-me para vir.
Agora os outros homens fitavam-no, os seus rostos uma mistura de desconfiança e maravilha.
— És um druida? Um mago? — quis saber Bridei, ouvindo do sopé do monte uma alteração nos sons da batalha e sabendo que naquele momento havia pouco tempo para explicações.
— Sou Drustan do Vale dos Sonhos e de Briar Wood. Não sou mago nem druida. Vejo a mão do meu irmão nisto: Alpin, que era suposto ter casado com a tua refém real. Tenho de dizer-te que o meu irmão está morto e que nunca planeou honrar o vosso tratado.
Bridei ficou em silêncio por alguns instantes, olhando para o estranho, depois para o jovem falecido e regressando mais uma vez ao primeiro.
— Este é o filho dele, não é? — perguntou Drustan, os olhos sombrios. — Hargest. Não o vejo desde que ele era pequeno, mas reconheceria aqueles olhos em qualquer lugar. A rainha descreveu-me o atacante. Logo nessa altura, eu soube-o.
— Era teu parente — disse Bridei, e as palavras tio louco pairavam-lhe algures na mente. — Lamento. Esta foi uma escolha que nenhum homem deveria ser obrigado a fazer.
— Mas, senhor meu rei — protestou Cinioch —, o que estás a dizer? Que foi Hargest, o teu próprio guarda-costas, quem...?
— Por agora chega — decidiu Bridei. — Temos uma batalha para ganhar e creio ouvir o som dos cornos de batalha de Umbrig lá pelo meio. Drustan, deves aceitar as armas deste celta. Ele já não precisa delas. Quer tenciones ficar aqui ou lutar conosco ou... — Olhou para o céu, mas não verbalizou a terceira opção —, terás de ser capaz de te defender. Devo-te a minha vida. Não te deixarei ser chacinado pelo primeiro grupo de guerreiros que te encontrem, sejam eles Celtas ou homens de Fortriu.
Em silêncio, Drustan aceitou as armas, colocando o cinto da espada em volta da cintura e a besta ao ombro.
— Obrigado — disse. — Irei convosco. Uma vez que parece que os meus parentes te traíram duas vezes, cabe-me a mim compensar-te.
— És um guerreiro? — perguntou-lhe Cinioch diretamente.
— Sei cuidar de mim — respondeu-lhe Drustan, enquanto pegava nas rédeas do cavalo de Hargest. O animal estava nervoso e tinha os olhos arregalados. Drustan levou-lhe a mão ao pescoço e murmurou-lhe ao ouvido, palavras numa língua que Bridei não entendia. — Não vou procurar Celtas para matar, mas posso cavalgar ao lado do rei e ajudar a protegê-lo.
— Por que haverias de o fazer, se podes esperar pelo fim do confronto? — indagou um dos homens. — Se és parente dele — disse, lançando um olhar furioso ao corpo de Hargest —, e se ele é responsável pelo ataque a Bridei, deves ser louco, se julgas que te vamos confiar a segurança do rei.
— Dá-nos uma razão para o fazermos — acrescentou Cinioch, com um olhar ameaçador.
— Já vos dei uma — replicou Drustan, montando a cavalo com um movimento ágil. — Tento compensar a traição dos meus parentes. Dar-vos-ei mais duas. Sou amigo do guarda-costas principal do rei. Uma vez que Faolan não pode estar onde mais anseia, tomarei o seu lugar. E aquilo que mais desejo no mundo está nas mãos do rei Bridei. Se o prejudicar, ou se o deixar cair vítima das espadas celtas, perderei a minha lua e as minhas estrelas, a minha felicidade e a esperança de um futuro. Acreditem, irei protegê-lo bem.
Fitaram-no, silenciados por momentos. Depois Bridei disse:
— Temos de esperar para descobrir o que é esse teu tesouro. Enquanto falamos, a batalha vai sendo travada. Onde estão os vossos cavalos, homens? Ali debaixo das árvores? Encontrem-nos e voltem para lá. Vou entregar-me à guarda de Drustan. Um homem que viaja desde o Grande Vale para me avisar não pode ser menos do que um amigo. — Olhou para o homem ruivo. — Pronto?
Drustan aquiesceu com gravidade. — Sim, senhor meu rei. Avancemos.
Enquanto os dois emergiam da sua cobertura e se dirigiam à mole de guerreiros junto ao rio, ocorreu a Bridei que o homem ao seu lado quase poderia ser o próprio Guardião das Chamas em forma humana, de tão bem feito e apessoado, de expressão tão cativante, com olhos penetrantes e um cabelo brilhante como fogo. Logo quando Drustan surgira, uma criatura e depois um homem, Bridei questionara-se por um momento se o deus dos guerreiros escolhera responder ao seu pedido de ajuda de uma forma pessoal. Para onde quer que aquele homem fosse, o olhar das pessoas seria atraído por ele. Se não era um druida, o que era? Sendo irmão de Alpin, de Briar Wood, decerto era humano. Mas que homem normal possuía um tal poder de mutação? Não havia tempo para continuar a pensar no assunto. Estavam de regresso à contenda, embora com alguma cautela. A mão ferida era uma desvantagem em combate e era provável que a perda de sangue devido ao ferimento superficial no peito o enfraquecesse. O valor do enigmático Drustan era desconhecido. Bridei sabia que, a partir daquele momento, a sua sobrevivência deveria suplantar a capacidade dos dois homens de dar a sua contribuição enquanto guerreiros. Teria de esperar que o homem-pássaro lhe providenciasse uma proteção adequada.
O rumo da batalha voltara a alterar-se. As bem treinadas forças de Fokel e do chefe tribal Caitt Umbrig aguardavam desde antes da chegada dos Celtas ao vale, eliminando discretamente qualquer batedor de Dalriada que por acaso se aproximasse dos esconderijos nas zonas arborizadas do vale. Tinham escolhido bem o momento do avanço, subindo as margens do rio de ambos os lados enquanto os Celtas estavam ocupados a rechaçar o avanço de Carnach, e chegando à ação no momento em que Celtas e Priteni se concentravam junto à água, para onde a retirada encenada atraíra o inimigo. Os homens de Umbrig levaram os cornes enormes aos lábios. Os guerreiros de Fokel soltaram um brado de guerra ululante que gelou os ossos de Bridei, pois era como uma mensagem do Corvo Negro, um chamamento do outro lado do túmulo. As forças de Carnach, que até um momento atrás retiravam a toda a velocidade, cessaram a fuga, viraram-se, firmaram os pés e ergueram as armas, os olhos brilhantes com um novo fervor. Talorgen, com o guarda pessoal ao lado, acercou-se de Bridei. O líder da Fonte do Corvo ostentava um ar sinistro. Tinha sangue no rosto e nas roupas, mas estava muito direito na sela.
— Agora? — perguntou, olhando para Bridei, e depois relanceou Drustan com um franzir de cenho.
— Agora — disse Bridei, que foi invadido por uma estranha sensação de calma quando a cena à sua frente se transformou num novo espetáculo de metal a entrechocar-se e homens a gritar.
Sobran, o guarda de Talorgen, desembrulhou uma trouxa que se encontrava atada junto à sela, retirou de lá um rolo de tecido branco e três varas curtas, e montou o estandarte com uma eficiência garantida pela prática. Chegara finalmente a altura de o rei de Fortriu se dar a conhecer.
— Ergue-o, Sobran — disse ao homem de Talorgen. — Avançaremos juntos. — E, quando o estandarte branco foi levantado e o vento das ilhas ocidentais o desfraldou, revelando, em azul, o brasão da linhagem real e, por cima, a águia que Bridei escolhera como símbolo, o silêncio dominou os homens que se encontravam em seu redor. Depois Bridei ergueu o braço, cerrou o punho para o céu em honra do Guardião das Chamas e bradou com uma voz poderosa que parecia vinda de mais além do reino terreno:
— Fortriu! — E, de uma centena, cinco centenas, um milhar de bocas ressequidas pelo esforço dessa manhã, um milhar de corpos exaustos pelas provas ferozes do combate mortal, de um milhar de almas em que as visões da morte, da perda, da dor, permaneceriam pelos anos vindouros, partiu um brado que se instalou no coração de todos os Celtas ali presentes: — Fortriu! Fortriu!
Os homens de Dalriada lutaram com bravura e tenacidade mas, a partir daquele momento, estavam destinados ao fracasso. A chama que fora mostrada a Bridei numa visão, havia muito, que ainda ardia nos restos derrotados de um exército Priteni, rugia agora, crepitava e explodia naqueles homens exaustos, e julgou ver o esplendor do deus a brilhar no rosto de cada um, dos chefes tribais experientes de inúmeras batalhas ao mais humilde dos lanceiros. Todos eram filhos adorados do Guardião das Chamas, seguros nas suas mãos, em quem a deidade depositava a confiança e a estima. Alguns tombariam para não mais se levantarem. Outros morreriam vítimas dos ferimentos, pois estavam longe de casa. Muitos sobreviveriam para regressar a casa, vitoriosos, de volta ao lar e aos braços abertos dos entes queridos.
Talorgen e Bridei avançaram juntos. Sobran portava o estandarte. Para surpresa de Bridei, Drustan era um turbilhão de movimento, executando uma série de gestos eficientes, invulgares e mortíferos. Como resultado, não houve um único celta que se aproximasse para desafiar o rei, embora Talorgen tivesse sido obrigado a usar a espada com freqüência para abrir caminho até ao rio, fazendo-o com a perícia e a determinação esperadas de um líder guerreiro experiente.
Tal como acontece com todos os líderes no momento em que o conflito se torna inevitavelmente perdido, o rei de Dalriada teve de escolher. Há quem prefira a aniquilação no campo de batalha, o sacrifício de todo um exército, ao sabor amargo da rendição. Outro sopesam com cuidado as opções, mesmo nos instantes que o destino lhes concede, à medida que os homens morrem à sua volta, e vêem mais além da humilhação, pensando num futuro em que a negociação, a diplomacia, o reagrupamento e novas alianças poderão transformar a derrota em vitória. Gabhran acabou por tomar uma decisão e um mensageiro foi enviado por entre o turbilhão de combatentes e os cadáveres amontoados, a fim de transmiti-la ao rei Bridei, que aguardava impassível sob o seu estandarte, rodeado por um grupo de cavaleiros. O mensageiro envergava um pano branco atado à volta da testa, por cima do elmo de couro, sinal de que a sua passagem ilesa deveria ser permitida. Quando chegou a Bridei e apresentou sem fôlego a mensagem, a quietude começava a dominar o campo de batalha, pois a visão do rei de Fortriu à espera, os olhos azuis brilhantes, o cavalo cinzento orgulhoso e imóvel por entre a carnificina, e o movimento do mensageiro de fronte branca atraiu o olhar dos guerreiros ribeiro abaixo, até ao local onde outro rei aguardava, à sombra do estandarte vermelho e dourado de Dalriada, no rosto um ar que, mais do que exaustão, era de uma resignação digna. Uma centena de pequenas batalhas cessou. Os combatentes recuaram, embainharam as espadas e baixaram as lanças, sempre atentos aos adversários. Os
Celtas começaram a afastar-se na direção do acampamento original e foram detidos por uma linha implacável de homens de Fokel, que os tinham rodeado para bloquear a retirada. Estavam cercados. Se Gabhran escolhesse combater até à morte, levaria cada um dos homens consigo.
Havia outra figura que chamava a atenção. Quando o rei Bridei avançou e a escolta o acompanhou, os homens de Fortriu fitaram, pestanejaram e voltaram a olhar, e não foram poucos os que murmuraram uma oração dos tempos de infância. Parecia quase possível que a figura de olhos brilhantes e cabelos flamejantes que seguia a Espada de Fortriu fosse o seu adorado Guardião das Chamas personificado, aquele que desde há muito prezava o jovem rei, a sua natureza devota e o empenho para com a terra e o povo. O fato de aquele homem de aspecto impressionante parecer ter surgido de nenhures, apenas servia para dar força à teoria.
Bridei chegou a um ponto determinado, desmontou e aguardou que o rei celta se aproximasse. A seu lado, Talorgen empunhava agora o estandarte real e, por entre o caos cessante da batalha, cavalgavam outros líderes, Morleo, Carnach, que se juntavam ao grupo do rei.
Gabhran aproximou-se a pé, o porta-estandarte atrás dele, dois chefes tribais ao lado. Não havia grande necessidade de palavras. Chegou a quatro passos de Bridei, soltou o cinto da bainha e largou-o, juntamente com as armas, para o chão lamacento. Falou brevemente em gaélico.
Bridei aguardou. Compreendia o suficiente, mas a cautela fazia com que não confiasse no seu domínio daquela língua. Mais uma vez, lamentou a ausência de Faolan.
— Precisas de uma tradução — disse alguém na língua dos Priteni. Uma figura magra e tonsurada apareceu por detrás dos apoiadores do rei de Dalriada.
— Tu! — não pôde Bridei deixar de exclamar, ao ver o Irmão Suibne, conselheiro religioso de Drust, de Circinn, e um homem que contribuíra para a sua eleição como rei. — Estás em todo o lado!
Suibne sorriu.
— Apenas Deus está em todo o lado — replicou. — A minha posição na corte de Circinn foi tomada por outro. Um vento poderoso levou-me para ocidente, como arauto de um novo despertar para a luz, de uma nova alvorada para a fé. O rei deseja escutar as tuas condições para a rendição. Espera que sejas magnânimo e que poupes as vidas dos homens que ainda estão de pé.
— Não te vou perguntar como atravessaste ileso esta batalha — disse Bridei ao clérigo cristão —, pois já sei qual será a tua resposta. Diz ao rei Gabhran que estou disposto a falar. Ele terá de ordenar aos seus homens que larguem as armas imediatamente e que as coloquem no chão, tal como ele fez, e que recuem. Por meu lado, darei ordem às minhas forças para se limitarem a fazer a patrulha da área até que cheguemos a acordo. Os vossos homens poderão cuidar dos feridos. Os meus farão o mesmo. Um movimento em falso e o fim trará o sangue e não a paz. Garante que Gabhran o entende.
Suibne transmitiu com precisão a mensagem ao líder celta e obteve um consentimento mal-humorado. Foram dadas uma série de ordens, levadas a todos os cantos do vale. Talvez pudesse esperar-se uma certa relutância em obedecer. É estranho quando, depois de um duelo mortal, se vê o oponente desarmado a pouco mais de dois braços de distância e não se pode aproveitar a oportunidade para o eliminar. O grito de guerra mal acabara de deixar os lábios. O calor da inspiração divina ainda não se transformara em cinzas nos peitos. Quanto aos Celtas, como poderiam acreditar que, no momento em que se vissem privados das armas, não seriam de imediato chacinados pelos Priteni vitoriosos? A promessa de um antigo inimigo não podia ser aceite sem questão.
Aquela, todavia, fora apenas a derradeira batalha de uma guerra que durara quase um ciclo da lua. Os homens de Fortriu tinham-se submetido a uma marcha longa e esgotante para chegar a Dalriada. A medida que os guerreiros da Fonte do Corvo e de Storm Crag, de Pitnochie e de Thorn Bend, de Abertornie e de Longwater começavam a espalhar-se pelas suaves inclinações do vale, baixando-se aqui e ali para examinar um corpo espojado, agachando-se para erguer um homem que parecia ainda ter uma centelha de vida, e que os Celtas davam início ao mesmo processo, tornava-se óbvio que os exércitos já tinham agüentado provações que bastassem. Para os Priteni, a exaustão e a angústia começavam a fazer-se notar por entre o júbilo, pois as perdas tinham sido enormes. Para os Celtas, a sobrevivência assumia o lugar da vitória como o resultado que mais desejavam. Cuidariam dos feridos e depois, se fosse essa a vontade dos deuses, poderiam finalmente regressar a casa.
Em tempos, Bridei pensara que o momento em que Gabhran se ajoelhasse e entregasse o reino de Dalriada seria o concretizar de um sonho. O rei celta encontrava-se numa posição enfraquecida, com a parte norte do território já tomada por Fortriu e o que restava do exército em risco de ser aniquilado, caso não aceitasse as condições de Bridei. Contudo, Gabhran ostentava uma tal calma e dignidade na derrota, que Bridei teve de se questionar sobre o que aquele homem veria no futuro, que a ele estava vedado.
Os líderes dos Priteni expuseram as exigências. O Irmão Suibne traduziu-as para gaélico e apresentou a resposta de Gabhran. No exterior do pequeno pavilhão onde os líderes se encontravam reunidos, naquilo que fora o acampamento celta, cuidava-se dos mortos e dos moribundos e tratava-se o melhor possível dos feridos. Talorgen trouxera consigo o curandeiro de sua casa. Naquele momento, o homem cuidava de Ged. Pouco antes do encontro formal, Bridei fora informado de que o líder de Abertornie tinha sido gravemente ferido em combate e que não deveria sobreviver. Também Carnach tinha um perito na sua comitiva, competente no tratamento de ossos partidos. Cirurgiões Priteni cuidavam das baixas celtas e vice-versa, embora com algumas queixas resmungadas por parte dos homens.
Bridei garantiu a concordância de Gabhran em abdicar do título de rei de Dalriada e em retirar para Dunadd com os seus líderes Uí Néill, sob escolta armada. A seu tempo, todos deveriam abandonar os territórios Priteni. Os anciãos que controlavam as várias colônias de Dalriada, os líderes que governavam as fortalezas e as aldeias piscatórias teriam de se afastar. Qualquer discórdia seria recebida com o exílio ou com a morte. O povo normal, os homens chamados às armas somente para aquela guerra específica, poderiam regressar a casa e retomar a sua vida, desde que entendessem que o ocidente, a partir daquele dia, estaria sob o domínio de Fortriu.
Gabhran consultou os chefes tribais e depois, com um ar severo, apensou a sua marca ao documento que Bridei preparara havia bastante tempo.
— E — acrescentou Bridei — fica claro que a prática dos rituais cristãos cessará por todo o território. Os vossos sacerdotes vão regressar à pátria. O povo não observará os festivais da nova fé, nem vai reunir-se em orações públicas ao deus cristão. Isso terá de ficar entendido.
O Irmão Suibne inclinou-se e falou em voz baixa com o rei celta, ao que Gabhran respondeu.
— Aham — pigarreou Suibne. — Sei que tens noção da presença dos nossos homens santos em Circinn. O rei pergunta se também sabes que as Ilhas Pequenas abrigam um certo número de clérigos cristãos, os quais são tratados com tolerância e cortesia pelo rei e pelo seu povo. O rei Gabhran pede a garantia de que os membros dessa comunidade pacífica não serão molestados, nem expulsos. Pelo que sabemos, o Rei das Ilhas Pequenas está sujeito ao teu domínio.
— Não irei comentar esse assunto — disse Bridei. — Não entra no âmbito destas negociações e está para além da autoridade de Gabhran.
— Nesse caso — disse Suibne —, devo informar-te de outra complicação. — Dessa vez não consultou Gabhran, parecendo adiantar a informação de mote próprio.
— Continua — indicou Bridei.
— E quanto às ilhas ocidentais? — perguntou gentilmente o cristão. — Desejas que os celtas que aí residem, e são várias centenas, espalhados por uma série de pequenas colônias, abandonem essas costas? Irás, também aí, instalar líderes locais? Essas aldeias, e as fazendas e barcos de pesca que as sustentam, são irrisórios, mesmo com o número de pessoas que as habitam.
Seguiu-se uma pausa.
— Por que perguntas? — Bridei avançou com cautela. Já conhecia aquele homem. Vinda de Suibne, a pergunta teria algum significado.
Suibne voltou a trocar algumas palavras com Gabhran.
— Foi feita uma promessa — disse, dirigindo-se mais uma vez a Bridei. — Tem a ver com uma ilha pequena, baldia, ventosa, sem qualquer significado. O nome antigo dessa ilha é Ioua.
— A Ilha do Teixo. Já ouvi falar dela. — As lições de Geografia durante a infância de Bridei tinham sido bastante pormenorizadas.
— Segundo sei, é um lugar de grande beleza. Agreste, luminoso, remoto. Qual foi a promessa?
— O senhor meu rei foi abordado por um certo homem. Por um homem espantoso, Bridei, um sacerdote que até mesmo tu, caso tivesses a felicidade de o conhecer, reconhecerias como sendo poderoso na sua fé e radiante com a graça. O seu nome é Colm. Chamam-lhe Colmcille, que poderia ser traduzido como «a pomba da Igreja». — As feições rudes de Suibne ostentaram um brilho e o seu tom um calor que não passaram despercebidos a Bridei.
— Que promessa? — perguntou Carnach, as feições rígidas.
— Despacha-te. Sabes a nossa opinião sobre essa fé e os estragos que já causou nos territórios Priteni. É divisória e perigosa.
— O Irmão Colm procura um refúgio, um sítio tranqüilo onde ele e um pequeno grupo de irmãos possam fundar um lugar de oração, um eremitério, longe de certas influências da pátria. O rei Gabhran prometeu-lhes santuário em Ioua. É uma ilha minúscula.
Carnach sibilou. Talorgen produziu um esgar de desagrado. Morleo cerrou os punhos.
— Ioua não pertence ao rei Gabhran para ser oferecida por ele — disse Bridei calmamente. — A partir de hoje, não detém qualquer poder sobre os territórios Priteni. As ilhas ocidentais estão sob a minha alçada e eu decido quem entra e quem sai. Fortriu não quer mais cristãos zelosos a envenenar a mente do seu povo.
Suibne traduziu as palavras de Bridei e Gabhran apresentou uma resposta ponderada e grave.
— O rei diz que esta onda não vai ser detida por ninguém. Nem mesmo a Espada de Fortriu poderá impedi-la — disse Suibne. — Ele tem razão, Bridei. Se queres saber a que ele se refere, convida esse sacerdote para a tua corte no Monte Branco. Conhece-o, fala com ele. És tolerante e aberto, um homem que forma as suas próprias opiniões. Pelo menos ouve o Irmão Colm. Ninguém que o conheça permanece inalterado.
— Que está este individuo a querer dizer-nos? — Talorgen ficava inquieto. — Está aqui para traduzir e não para apresentar conselhos pessoais.
— Pode dizer-se que somos amigos — disse Bridei. — Mas têm razão. Irmão Suibne, diz ao rei que registei o seu pedido. Por agora terminamos. — Falou diretamente para Gabhran, enquanto o cristão traduzia em voz baixa as palavras. — Carnach, meu líder de guerra e parente, vai destacar-te uma guarda armada. Vai escoltar-te pessoalmente até Dunadd e fazer preparativos para o futuro. Temos trabalho a fazer aqui, homens a enterrar, um ritual para executar e decisões a tomar, sobre os homens que te acompanharão e os que poderão regressar às suas comunidades. Não tenho questões com os homens que desejem verdadeiramente instalar-se de vez nestes territórios, conquanto respeitem a lei e a fé Priteni.
— Senhor meu rei... — Fokel encontrava-se à entrada do pavilhão. Tinha o rosto pálido e a túnica coberta de sangue.
— Tenho de deixá-los, meus senhores. — Bridei levantou-se e fez uma vênia cortês. — Um amigo querido está a morrer. Tenho de falar com ele enquanto posso. Também vós devereis ter despedidas a fazer. Sejam breves. Quero-os fora daqui antes do fim do dia.
Ged estava deitado sobre uma maca improvisada, com o terrível ferimento que sofrera coberto por um manto garrido, disposto sobre o abdômen por um dos homens de armas da sua casa. À sua volta, encontravam-se outros guerreiros feridos. Os cirurgiões trabalhavam numa confusão de sangue e carne. Os homens que os ajudavam estavam lívidos e silenciosos. Havia pouco equipamento disponível. Precisavam de serras, de braseiros para a cauterização e de ervas curativas. Naquele local, que se transformara num país estrangeiro, apenas dispunham do pouco que cada curandeiro trouxera nos alforges. Os homens com ferimentos menores poderiam ser enviados para povoações de Dalriada e receber alguma atenção. Muitos pereceriam ali. Era essa a natureza da guerra travada em marcha.
— Ged — disse Bridei, que se ajoelhara ao lado do amigo e pegara na mão de Ged entre as suas. — É uma notícia terrível. — Não valia a pena fingir. Morleo descrevera-lhe o ferimento quando se preparavam para o encontro com Gabhran.
— Bridei... — arquejou Ged. — Foi uma boa luta, não? Os homens deixaram-nos orgulhosos...
— É verdade, meu amigo. Diz-me, queres que faça alguma coisa? Há mensagens que querias enviar?
Ged tentou sorrir e conseguiu esboçar um esgar contorcido.
— És um rei, e não... moço de recados... Mas, Bridei... o meu filho, Aled... Só tem doze anos, ainda é muito novo para assumir Abertornie, e as pequenas são todas raparigas... Loura não devia ser obrigada a gerir tudo sozinha... Poderás...?
— Falarei com a tua esposa. Faremos alguma coisa por ela, não te preocupes com isso. — Bridei notou uma alteração no fôlego de Ged e viu-lhe os olhos a tornarem-se vítreos. A Mãe de Tudo estava próxima. — Estamos todos aqui, Ged — disse em voz baixa. — Talorgen, Morleo, Fokel e um grande contingente dos teus homens. Lutaram tal como lhes ensinaste, com garra, com coragem, com inspiração. Que o Guardião das Chamas te aqueça o espírito e te guarde na tua viagem.
— Ah... — Ged inspirou. — Dói, Bridei. Dói mais do que pensei. Custa respirar... Mas é bom. Vencemos... Reconquistamos a nossa terra... Por isto, vale a pena morrer... — Os olhos deixaram de ver. O peito imobilizou-se. Um fio de sangue escorreu de um canto da boca de Ged e perdeu-se no escarlate, no amarelo e no verde da cobertura.
— Que a Mãe de Tudo te embale, meu velho — disse Talorgen, virando-se para limpar os olhos.
— Que a abençoada Todas-as-Flores te dê sonhos das mais belas jovens e dos mais floridos jardins de toda Fortriu — disse Fokel, tocando na testa do falecido com os lábios.
— Que A Que Brilha te ilumine o caminho até que entres numa nova alvorada. — Morleo ajoelhou-se e fechou os olhos de Ged. Bridei cruzou-lhe os braços sobre o peito, onde o sangue ensopara o manto emprestado. Não tinha mais palavras. Nada mais poderia ser feito. Os homens de Ged manteriam uma vigília, mas apenas até de madrugada, pois havia muitos corpos a enterrar e ninguém queria demorar-se naquele sítio. Para Bridei, havia coisas a fazer, pessoas com quem falar, notícias a transmitir. Ainda demoraria muito até que pudesse ficar sozinho e meditar sobre o que acontecera.
Encontrou Cinioch, chamou-o à parte e disse-lhe que o assunto que se desenrolara entre ele, Hargest e o misterioso estranho ruivo teria de ser mantido em segredo, pelo menos por enquanto. Cinioch devia garantir que os outros homens que tinham assistido compreendiam esse fato.
— Já falei com eles — disse Cinioch. — Mas comentei o assunto com Uven. Tive de o fazer. Ele não parava de fazer perguntas sobre o nosso visitante inesperado. Mas Uven sabe guardar silêncio. Sabias que ele matou três celtas só com um braço? Não perdeu um único dos feridos.
— A Uven não falta coragem — admitiu Bridei. — Quanto a ti, ouvi dizer que te saíste muito bem.
— O que vais dizer a Umbrig, meu senhor? — perguntou Cinioch sem rodeios. — Vais contar-lhe que o rapaz que enviou como guarda-costas acabou por revelar-se um assassino?
— Cala-te, Cinioch. Aquilo que direi a Umbrig diz respeito apenas a mim. — Bridei viu a preocupação genuína no rosto de Cinioch e acedeu. — Por acaso — acrescentou —, vou contar-lhe a verdade. — Em tempos, quase fora morto por um amigo que se voltara contra ele e mentira ao pai desse homem, a fim de evitar sofrimento. Quase de certeza que Talorgen imaginara a verdade, mas a mentira ajudara-o e aos dois filhos a lidar mais facilmente com a dor. Desta vez, Bridei não mentiria. — Mas o exército não precisa de ficar a saber. Vou procurar Umbrig. E onde está... ? — Olhou em redor da área onde os cavalos de Pitnochie tinham sido presos. Alguns homens conhecidos estavam sentados, a descansar, a tratar de ferimentos leves ou a arrumar equipamento. Alguém ateara uma fogueira e cozinhava o que cheirava a papas de aveia.
— Drustan? O homem-pássaro?
— Também devemos ficar calados em relação a isso. Continua por aqui, ou voou para longe enquanto chegávamos a acordo para a paz?
— Está lá em cima, meu senhor. Parece que não tem forças para voar, pelo menos por enquanto. Mas pela virilidade do Guardião das Chamas, aquele sujeito consegue lutar com mais destreza do que qualquer guerreiro que alguma vez vi em combate. Possui um talento raro. Gostava de aprender alguns daqueles movimentos. Durante algum tempo, cheguei a pensar que...
Bridei esboçou um sorriso.
— Talvez o mesmo se tenha passado com todos nós. Mas acredito que seja um homem mortal. O fato de se intitular amigo de Faolan atesta-o. Oferece-lhe de comer, sim? Fez uma longa viagem rapidamente para nos ajudar. E julgo que tem um pedido a fazer-me.
Umbrig surpreendeu Bridei ao derramar lágrimas e depois ao declarar que sempre o preocupara a possibilidade de o rapaz se tornar mau. O pai possuía um traço maligno e sempre se desconfiara que Hargest pudesse não degenerar. Quanto à notícia de que, aparentemente, também Alpin estava morto, Umbrig aceitou-a calmamente. O chefe tribal Caitt opinou que, se Hargest fizera uma tentativa de assassínio, isso seria obra de Alpin. Umbrig desconfiava que os dois poderiam ter-se encontrado por uma ou duas vezes, durante as longas expedições que o rapaz gostava de fazer a cavalo, dizendo que se destinava ao treino das novas montadas. O desprezo público do rapaz pelo pai nunca combinara com o seu desejo de reconhecimento e de um lugar no mundo.
— Creio que era o desejo de amor — disse Bridei num tom calmo, sentindo o seu próprio fracasso na forma de uma dor no peito. — Tentei ajudá-lo. Poderia ter feito muito por ele, se me tivesse dado tempo. Hargest era promissor. Só precisava de um bom encaminhamento, até que reconhecesse a sua humanidade.
— Eu tentei, Bridei — resmungou Umbrig, enquanto limpava o rosto com o debrum do manto largo. — Tentei durante sete anos. O sangue daquela família não é bom. Há relatos estranhos. Uma história sombria.
— Sabes que Drustan, o tio do rapaz, está aqui? Que foi ele quem trouxe a notícia da morte de Alpin?
Umbrig fitou Bridei. — O tio louco? A sério? De que lado está ele?
— Interveio para salvar-me a vida. Verás ferimentos no rosto do teu filho adotivo. Foi o tio que os infligiu. Mas o golpe mortal foi meu. Não queria matá-lo, Umbrig. Tentei apenas evitar que me trespassasse o coração com o seu punhal. Daria muito para voltar atrás, para o desviar da sua missão e guiá-lo para um futuro de possibilidades brilhantes.
— Independentemente do que muita gente pensa, Bridei, não és um deus. Não podes acertar sempre. Talvez Hargest estivesse destinado a partir hoje. O rapaz estava consumido pela raiva e pela frustração. Talvez nunca viesse a sentir-se satisfeito. Talvez nunca viesse a aceitar o fato de não ser filho legítimo e herdeiro de Alpin. Quem sabe? Perdemos muitos bons homens hoje, neste campo. O rapaz acaba por ser apenas mais uma vítima da guerra. — As lágrimas corriam livremente pelas feições largas e tatuadas.
— Obrigado, Umbrig — disse Bridei, baixando a cabeça. — Isto deixa-me em dívida para contigo, e irei honrá-la quando precisares. Diz-me rapidamente: este tio louco de que falamos, essa descrição foi conseguida pelo temperamento, ou por uma enfermidade? Drustan não me parece insano.
Umbrig franziu o sobrolho.
— Há anos que não o vejo — disse —, desde que éramos crianças. Na altura estava bem, era um pouco sonhador, mas nada de estranho. Diz-se que matou a mulher e o filho de Alpin, e o irmão declarou-o perigoso e trancou-o, por uma questão de segurança. Foi há sete anos, pouco depois de Hargest me ter sido enviado. Quer dizer que foi libertado? Vai ser interessante. Sabes que Drustan possui o ancoradouro a ocidente? Aquele que Alpin tem vindo a usar para as forças marítimas? Imagino que Briar Wood também passe para as suas mãos. Isso fará dele um dos mais poderosos chefes tribais do norte.
— Interessante — disse Bridei. — Tenho de perguntar a Talorgen se havia barcos Caitt entre os que foram afundados quando se dirigia para cá. Mas, primeiro, vou procurar este tio e colocar-lhe algumas questões. Adeus, Umbrig. Mais uma vez, não sou capaz de exprimir o quanto lamento pelo rapaz.
— Não é preciso — resmungou Umbrig. — É bem visível no teu rosto. Vai. Tenho homens para enterrar. É melhor começar já e terminar o assunto depressa.
Drustan estava sozinho, de pé, a alguma distância da fogueira que Uven fizera. O dia fora muito longo. Anoitecia e a brisa era agora um leve vento oeste, que trazia o cheiro salgado do mar. Muitos pássaros voavam lá em cima, gritando à noite que se aproximava, e o homem ruivo fitava-os, os braços cruzados sobre o peito. Quando Bridei se aproximou, viu que Drustan tremia e que tinha o maxilar cerrado, como se para impedir que os dentes batessem. Um prato de metal com comida fora pousada numa pedra chata nas proximidades. Parecia intacto.
— Drustan? — Bridei manteve o tom da voz suave. Não viera sozinho. Cinioch e Uven estavam por perto a vigiar. Mesmo nunca tendo perdido o desejo de poder movimentar-se sem a proteção constante, aceitava que o dia que findava era uma ocasião excepcional. Decidira confiar em Hargest e o rapaz quase que o matara. Naquele dia, o seu exército reconquistara Dalriada. A paz dependia dele.
— Senhor meu rei. — Drustan descruzou os braços e inclinou a cabeça de forma cortês. A voz não estava firme.
— Não me pareces bem. Vamos sentar-nos?
— Estou bem, dentro do possível. Mudar de forma é muito exigente. Entrar em conflito após o que aconteceu foi um teste bastante severo. Além disso... — Drustan hesitou.
— Vem, senta-te.
Acomodaram-se no chão, lado a lado. O campo proporcionava muito pouco conforto.
— Tal como imagino que tenhas visto, fui treinado para lutar — disse Drustan — e para o fazer bem. Fui prisioneiro, estive preso durante sete anos com apenas um guarda por companhia. Para passar o tempo e evitar que eu enlouquecesse, ele ensinou-me o que sabia. Os movimentos, as técnicas que possuo. São bons para exercitar o corpo e a mente. Entrar em combate e empregar essas técnicas para estropiar e matar é algo que não pertence à minha natureza. Perturba-me. Não estou habituado a estar entre pessoas. Sinto muito. Os teus homens devem ter pensado que sou rude e ingrato.
Bridei absorveu o discurso, o qual continha várias surpresas. Do modo como estavam as coisas, provavelmente não teria tempo para conhecer muito bem aquele homem intrigante, pelo menos durante algum tempo.
— Drustan — arriscou —, tenho uma série de perguntas a fazer-te. Na verdade, mal sei por onde começar. Umbrig disse-me que o teu irmão te prendeu por um crime grave. Um crime abominável.
— Desejas perguntar-me se é verdade? Por que razão acreditadas em mim em vez de em Umbrig, a quem já conheces?
— Umbrig apenas relata o que ouviu dizer. Estás em posição de contar a verdade.
— Estou inocente desse crime. — Drustan pousou em Bridei o seu olhar brilhante. — Confias em Faolan?
Aquilo era inesperado.
— Com a minha vida — respondeu Bridei.
— Ele sabe que sou inocente. Corroborará o que digo. E Ana também.
Algo no tom de voz de Drustan chamou a atenção de Bridei.
— Referes-te à refém real, Ana das Ilhas Pequenas, que enviamos para que desposasse o teu irmão?
Drustan baixou o olhar e um pequeno sorriso desenhou-se-lhe nos lábios.
— Ela nunca duvidou de mim — disse. — Mesmo quando eu próprio não tinha a certeza, ela acreditou na minha inocência. Os dois têm sido verdadeiros amigos.
— Surpreendes-me. Segundo Faolan, ele não tem amigos.
— Tu e eu sabemos que tem.
— Acho que é melhor contares-me a história toda — sugeriu Bridei. — Não temos muito tempo. Na ausência do meu druida, tenho de conduzir um ritual antes do anoitecer. E tenho um pedido a fazer-te, mas ele depende das respostas que deres às minhas perguntas.
— Desejo colocar-te uma questão antes de contar a nossa história: a minha, a de Faolan e... a de Ana. — Lá estava novamente, o nome proferido com uma tal delicadeza e paixão que não se podia ouvi-lo sem que o coração desse um pulo.
— Coloca-a.
— Hoje lutaste e mataste, tal como todos nós. Assumiste o teu lugar entre os teus guerreiros e lideraste dando o exemplo, tal como um verdadeiro rei deve fazê-lo. Na verdade, pareceu-me que optaste por te expores ao perigo, a fim de ocultar os sinais do teu estatuto real até ao fim, arriscando-te juntamente com os teus homens. Foste corajoso, decidido. Agora pareces calmo e controlado. Mas vi no teu rosto que lamentaste o derramamento de sangue tanto quanto eu. Isso interessa-me. O teu Faolan fala de ti quase como se fosses um deus... Não, isso é errado, ele não é um homem que deposite muita confiança nas coisas espirituais. Vê-te como um líder inigualável e como um homem cujo exemplo é superior em todos os aspectos. Também te considera um amigo, embora não o reconheça.
Fez-se silêncio. Depois Bridei indagou:
— Qual era a questão?
— Como é que concilias tudo isto? — perguntou Drustan, envolvendo os joelhos com os braços. — Como é que consegues suportar?
Bridei conseguiu esboçar um sorriso.
— Com muita dificuldade — respondeu —, em alturas como esta. Fui educado por um homem que compreendia o que um rei deve ser.
Preparou-me bem. Tenho pessoas no Monte Branco e chefes tribais aqui, no campo de batalha, que me apoiam com tudo o que têm para dar. E há a minha esposa. Sem Tuala, nada disto me faria sentido. Ela é a minha âncora, o meu porto seguro, o meu coração e a minha dádiva. — Era uma sensação estranha, confiar essas palavras a Drustan, que conhecia há tão pouco tempo. No entanto, parecia-lhe surpreendentemente certo. De uma forma curiosa, o homem-pássaro lembrava-o do velho druida, Uist, que sempre parecera repleto de um esplendor e sabedoria do Outro Mundo, mesmo no mais sombrio dos momentos, como se as vulgares questões do que estava certo e errado nos assuntos humanos não lhe dissessem respeito. Drustan sorria.
— Obrigado — disse. — Honro-te e tenho pena de ti. Ambos temos as nossas próprias grilhetas. Eu escapei às minhas com a ajuda de amigos extraordinários, mas tu jamais conseguirás fugir.
— Compreendes-me mal. Eu amo os deuses e amo o meu país. O dever da liderança desde sempre me chamou e eu sigo o caminho de boa vontade.
— O amor é o teu alento. Tuala é uma mulher notável. Agora conto-te a minha história.
O relato foi longo, sombrio e mais estranho do que alguma vez Bridei esperara. O papel de Ana parecia completamente em desacordo com aquilo que ele conhecia da sua natureza e algumas das escolhas de Faolan surpreenderam-no, mas a história era convincente e acreditou nela. Escutou em silêncio até Drustan chegar ao final com o pedido de Tuala para que agisse como mensageiro.
— E tive a certeza — disse o homem ruivo —, tive a certeza absoluta de que aquele assassino não era outro que não o filho do meu irmão. Assim que a rainha falou sobre os olhos dele, eu soube. Não lhes disse. Sobretudo para Faolan, não seria nada agradável pedir-me para intervir numa tal situação.
— Porquê sobretudo para Faolan?
— Aconteceu algo no passado dele, uma experiência que não posso partilhar contigo, pois foi-me contada em confidência. Faolan sentir-se-ia relutante em pedir a um homem que colocasse em perigo a vida de um parente. Isso era sempre possível, embora, tanto quanto sabíamos, tudo o que eu tinha de fazer era dar um aviso. Não quis revelar-lhe os laços de sangue existentes entre mim e Hargest.
— Lamento. Se eu soubesse...
— Não teria feito qualquer diferença, meu senhor. Fiz uma opção. A tua vida é muito mais importante do que a de Hargest. Tu és o sangue de Fortriu. Ele era...
— Apenas um rapaz confuso e revoltado? Não consigo ver as coisas dessa forma, Drustan. Para mim, um homem é um homem e cada pequena morte merece igual quantidade de lágrimas. Eu podia ter ajudado aquele rapaz, ele poderia vir a ser alguém. Tenho a certeza disso. Agora outro amigo confiou-me o seu filho e temo que estraguemos tudo mais uma vez. Um exemplo superior? Em alturas como esta, sinto-me como se andasse às cegas no meio da escuridão.
— Precisas da tua esposa a teu lado. Precisas de derramar lágrimas, tal como todos nós, reconhecer as tuas próprias fraquezas, e de tempo para recuperares a tua coragem. Mas não tens tempo.
Bridei fitou-o.
— Como é possível que saibas tudo isso? Como é possível que compreendas tão bem?
— Talvez porque eu próprio estive à beira do desespero... do desespero, da violência, da autodestruição... Sem Deord, não teria sobrevivido. Sem Faolan, não teria fugido. Sem Ana...
A torrente de palavras cessou. De algures do outro lado da fogueira do acampamento, alguém chamava o nome de Bridei.
— Continua — disse. — Imagino que desejes fazer o teu pedido. Drustan suspirou. — Não o farei. Agora não. Vamos esperar até que termines o que tens para fazer aqui e regresses para junto da lareira da tua casa e para os que te amam. É melhor não falar sobre tais assuntos num local de morte como este.
Bridei aquiesceu. Sentia-se relutante em fazer o seu próprio pedido, pois parecia-lhe ser demasiado. Drustan, apesar de toda a sua franqueza e compreensão, parecia exausto. Em vez disso, perguntou:
— Quais são os teus planos para o futuro? O Monte Branco receber-te-á de bom grado, caso desejes permanecer connosco durante algum tempo.
Drustan sorriu.
— Obrigado, meu senhor. A rainha também me ofereceu a hospitalidade da vossa corte. Preciso de tempo para digerir o que aconteceu. No entanto, tenho de regressar em breve a Briar Wood e depois tenho de ir para ocidente. Quero livrar a minha enseada pacífica dos barcos de guerra do meu irmão.
— Drustan...
— Pela manhã, levarei para casa as notícias da tua vitória — declarou o homem ruivo, antecipando a pergunta de Bridei. — Partirei de madrugada. Ao anoitecer, o teu povo saberá que estás em segurança.
— Não sei o que dizer.
— Não digas nada. Vi a expressão nos olhos da tua esposa. Desejava que vivesses com todas as forças do seu ser. Além disso, tenho o meu próprio motivo forte para regressar sem demora ao Monte Branco.
— Drustan?
— Sim, meu senhor?
— Há mais qualquer coisa que não me contaste, não há? Drustan ficou calado por um instante, e depois retorquiu:
— Relatei-te os fatos todos, tal como os conheço. Mas éramos três nesta viagem. Cada um de nós tem uma história a contar. Quando regressares a casa, pede a Faolan que te relate a dele. Isso se, nessa altura, ele ainda não tiver partido.
— Partido? Para onde?
— Creio que o vais achar muito mudado, tal como eu e Ana, na verdade. Ele possui espíritos inquietos para tranqüilizar antes de poder seguir em frente e um coração destroçado para sarar. Não deseja que o vejas abatido como está. Ana obrigou-o a ficar até ao teu regresso, mas ele poderá não ter forças para se manter fiel à sua promessa.
— Inquietas-me, Drustan. Tens a certeza de que estamos a falar do mesmo homem?
Drustan assentiu.
— É o mesmo, só que mudado. Tentará fugir aos seus amigos, até mesmo de ti. Tem cuidado ao falar com ele. Nós não queremos perdê-lo.
— Nós?
— Ana e eu. — Isto foi dito com suavidade e orgulho.
— Compreendo — respondeu Bridei, adivinhando que havia pelo menos um fato que Drustan ainda não partilhara consigo e que estava intimamente relacionado com a princesa das Ilhas Pequenas. — Espero chegar a casa antes da próxima lua, mas há muito a fazer aqui, no ocidente. Se puderes, peço-te que digas a Faolan para esperar por mim. Diz-lhe que é importante. Há uma questão sobre a qual desejo falar-lhe, sobre a qual ele é a melhor pessoa para me aconselhar.
— Dir-lhe-ei, senhor meu rei. Tens outras mensagens para eu transmitir?
— Tuala conhece o meu coração sem que haja necessidade de palavras. Quando estiverem a sós, diz-lhe apenas que tenho saudades suas e de Derelei e que conto os dias até regressar a casa. E agradece-lhe e a Broichan pela sua sagacidade em te terem enviado para me salvar.
— Não conheci o teu druida. Estava noutro sítio qualquer, bem como o teu filho. Mas transmitirei as tuas palavras.
— Podes dizer a Ana, só entre nós, que estou contente por ela ter voltado para casa e por não ter desposado o teu irmão. Nem é preciso dizer que este recado deve ser dado em privado.
— Obrigado, meu senhor. — O sorriso era agora menos hesitante e os olhos estavam muito brilhantes.
— Houve baixas aqui. Esperarei até ao nosso regresso para comunicar às famílias. Não te vou sobrecarregar com notícias tão tristes. Agora tenho de ir, estão a chamar-me. Estarás presente no nosso ritual pelos mortos?
Drustan abanou a cabeça.
— Espero que me perdoes. E melhor eu ficar sozinho esta noite. Vou descansar e preparar-me para amanhã. Desejo-te felicidades, senhor meu rei.
— Prefiro que me chames Bridei. Afinal de contas, és amigo de Faolan e é assim que ele me trata.
— Boa noite, Bridei. Es um bom homem, que merece a lealdade do nosso povo.
— Suponho que, no fim, tudo o que podemos fazer é dar o nosso melhor, e confiar que os deuses considerem isso suficiente. Boa noite, Drustan. Que o Guardião das Chamas proteja a tua viagem. E obrigado, do fundo do meu coração.
Na verdade, passou-se mais de uma lua antes que o rei de Fortriu regressasse ao Monte Branco, acompanhado pelos contingentes de Pitnochie e Abertornie e um grupo de homens-de-armas da corte. Naquele dia, não havia guardas junto aos portões. Estes encontravam-se abertos e, no pátio para lá deles, a casa inteira estava reunida para dar as boas-vindas a Bridei e aos seus guerreiros. As más notícias tinham chegado muito antes, através de mensageiros enviados a cada lar que perdera homens na guerra. Isso poupou as famílias dos homens que tinham perdido a vida ao serviço do Guardião das Chamas de terem de assistir ao regresso de cada pequeno grupo de sobreviventes sujos da viagem, com a esperança atormentada de ver entre eles um rosto amado, acabando por se aperceber de que um certo filho, pai, marido ou irmão não voltaria para casa.
Apesar de todas essas perdas, fora uma vitória tremenda. Naquele momento, montado orgulhosamente no seu cavalo na frente das alas, Cinioch erguia bem alto o estandarte real. Um dos capitães de Ged transportava a bandeira colorida de Abertornie em homenagem ao seu falecido chefe tribal. A seu tempo, seria realizada uma cerimônia formal e todos os líderes que tinham desempenhado um papel na reivindicação do ocidente seriam convidados para o Monte Branco, cada um para ser homenageado individualmente. Isso não aconteceria antes da Primavera. A estação já ia avançada e o Inverno aproximava-se, lançando os dedos gelados sobre a terra. Em breve, seria perigoso ou impossível viajar. Além disso, Carnach e Talorgen estavam ainda em Dunadd, acompanhando a partida dos celtas que eram tidos como perigosos e estabelecendo um domínio firme sobre aqueles territórios. Fokel e Umbrig encontravam-se no norte de Dalriada, a desempenhar uma tarefa semelhante, Fokel no seu lar ancestral de Galany's Reach e Umbrig na colônia fortificada costeira de Donncha's Head, à qual se afeiçoara. Haveria tempo para tudo, até para comemorar. Sem que o dissessem em voz alta, os líderes de Fortriu partilhavam a convicção de que as perdas eram ainda demasiado recentes, as mudanças demasiado esmagadoras para que tal fosse apropriado. Ia demorar algum tempo até mesmo para que compreendessem totalmente aquilo que tinham alcançado.
Faltava pouco para o ritual do Portal e as sombras dos mortos encontravam-se apenas a um sopro frio de distância. O Inverno permitia que houvesse espaço para a reflexão. Era a altura de pousio do espírito, durante a qual as sementes da sabedoria iniciavam a sua formação demorada e lenta. Não havia necessidade de aplausos e música, de festas e celebrações. Bastava saber que, na altura devida, uma nova Primavera surgiria.
Assim sendo, aquilo não era tanto a entrada triunfal de um rei, mas o regresso de uma família. O primeiro a sair pelos portões para ir ao encontro dos cavaleiros foi o cãozinho branco, Ban, latindo uma saudação frenética, o corpo tentando, em vão, acompanhar a cauda que abanava loucamente. Snowfire, disciplinado como sempre, entrou no pátio com aquele furacão em miniatura a executar uma dança de boas vindas em redor das suas patas. Depois, à medida que cada um dos cavaleiros ia entrando e desmontando, era rodeado pelos seus entes queridos, esposa, mãe, filhos, até o pátio ganhar vida com lágrimas e sorrisos, abraços, palmadas amigáveis nos ombros e, aqui e ali, podiam ver-se jovens pais a saudarem pela primeira vez os filhos recém-nascidos. Os homens cuja família vivia fora da corte recebiam beijos das criadas e cozinheiras, que não tinham mais ninguém a quem receber. Ouviam-se risos por toda a parte.
O rei, claro está, tinha de se comportar em público com mais alguma sobriedade, mesmo quando a sua dignidade ficava comprometida por um pequeno cão aos saltos, a tentar lamber qualquer parte do corpo a que conseguisse chegar. O grupo de boas vindas de Bridei estava nos degraus: Tuala, séria e calma, com Derelei nos braços. A criança parecia duvidosa, como se não estivesse muito certa de quem era aquele guerreiro sinistro e fatigado. Aniel também lá se encontrava, ostentando um sorriso raro, e Tharan, alto e atento. Do outro lado de Tuala, estava Broichan. Viam-se também Ana e Drustan, descaradamente de mão dada. Pelos deuses, faziam um belo par. Bridei viu Garth, empunhando uma lança e exibindo um sorriso rasgado. Não havia sinais de Faolan.
Bridei deu um passo em frente e Tuala desceu os degraus. Num abrir e fechar de olhos, abandonou o decoro e abraçou a esposa e o filho, pois sonhara com aquele momento todas as noites em que esteve longe, e agora não conseguia refrear-se. Derelei ficou imóvel. Assustado, abriu a boca para chorar.
— O papai está em casa, Derelei. — Era a voz de Broichan, vinda de trás deles. Assemelhava-se de tal forma a algo que Tuala diria, que Bridei se sentiu perplexo. A criança pestanejou, fechou a boca e, um instante depois, encostou o cabelo encaracolado ao ombro do pai.
Passado pouco tempo, Tuala recuou e esfregou as faces, sorrindo pesarosamente. — É melhor cumprimentares os outros, Bridei. Houve perdas tristes. O teu mensageiro deu-nos as notícias. Breth morreu, e
Elpin e Enfret... E Ged, um homem tão adorável... Foi uma coisa terrível. Os filhos ainda são pequenos. Bridei aquiesceu.
— Ele queria que nós os ajudássemos, e assim faremos. É tão bom ver-te. Não te posso dizer o quanto num local público como este. Aniel, Tharan, como estão? Muitos dos nossos chefes tribais ficaram para trás, no oeste. Há muito a fazer por lá. Amanhã convocarei um conselho e conto-vos tudo.
— Uma grande vitória, Bridei — disse Aniel, com satisfação.
— Caminhas sob a luz dos deuses.
— Broichan. — Bridei agarrou com força no braço do pai adotivo e, por momentos, as palavras fugiram-lhe. O druida parecia, ao mesmo tempo, muito mais velho e frágil, contudo muito mais ele próprio, os olhos escuros límpidos e extraordinariamente interrogadores. — Espero que estejas bem. Tenho de te agradecer pela intervenção de Drustan. Entre vocês dois, salvaram-me a vida.
Broichan abanou a cabeça.
— O mérito não é meu, mas sim da tua esposa — disse, num tom de voz sereno. — Aquece-nos o coração ver-te de volta são e salvo, Bridei.
Não disse mais nada e isso, só por si, era uma prova clara de que algo mudara. Nenhuma menção à vitória? Nenhuma menção à debandada dos Celtas e à tomada triunfante do ocidente? Esse fora o grande sonho de Broichan. Foi por isso que devotara quinze anos da sua vida a preparar Bridei para ser rei.
— Amanhã — disse Bridei —, se vos convier a todos, exporei perante vós certas questões. Não irão gostar de todas as decisões que tomei no que diz respeito ao futuro de Dalriada. Há assuntos para os quais necessito do vosso conselho. Suibne, o conselheiro espiritual de Drust, o Javali, surgiu ao lado de Gabhran. Forneceu-me algumas informações inquietantes.
Broichan assentiu.
— Amanhã — confirmou. — Esperamos muito tempo por notícias. Podemos esperar mais um dia, enquanto descansas um pouco e recuperas.
Garth levava Snowfire. Os outros homens conduziam as suas montadas para os estábulos e a multidão começava a dispersar.
— Esta noite não há qualquer celebração formal — disse Tuala.
— Foi dito a todos que o dia da chegada seria para reuniões particulares, cada um com os seus. Os nossos aposentos encontram-se vedados a visitas até, pelo menos, à hora do jantar. E há água quente já pronta. Suponho que um banho e roupa lavada serão do teu agrado.
Bridei aquiesceu. Os seus olhos dirigiram-se a Drustan, que se encontrava nos degraus, ao lado de Ana.
— Não vejo Faolan em lado nenhum — comentou.
— Ele tem estado fora. — Foi Ana quem respondeu. — E, claro está, não sabíamos o dia exacto em que regressarias. Ele voltará. Prometeu.
— Irá manter a sua promessa — assegurou Drustan.
Era inquietante. Bridei esperara que o seu amigo ali estivesse para cumprimentá-lo, de rosto sombrio e eficiente, ávido de novidades e com conselhos práticos e engenhosos para lhe dar. Sentira imenso a falta de Faolan e era desconcertante não o encontrar aquando do seu regresso a casa.
— Muito bem — disse, para depois continuar num tom diferente: — Vem, Derelei. Vamos levar Ban para o jardim. Suponho que agora consegues correr mais depressa do que ele. Por que não me mostras?
À medida que o crepúsculo ia caindo para lá da janela dos aposentos reais, Bridei encontrava-se deitado na cama, com Tuala dormitando nos seus braços, e deixou o pensamento vaguear, o contentamento daquele dia equilibrando, durante algum tempo, as dúvidas e incertezas que acompanharam os resultados da sua grande conquista. O corpo quente da esposa estava curvado contra o dele, leve e gracioso, a nuvem de cabelo escuro espalhada sobre o seu peito, e sentiu o pequeno sopro da respiração dela contra a pele. O desempenho fora algo menos do que satisfatório, tendo-se deixado dominar pelo desejo e feito amor com ela de forma breve e explosiva, em vez de meiga e gradual. Ele e Tuala tinham-se rido sobre o assunto e prometeram um ao outro que a próxima vez seria uma obra-prima de controlo. Derelei, exausto de andar a correr atrás do cão e depois da novidade de salpicar o pai durante o banho, dormia profundamente num quarto adjacente, sob o olhar atento de uma ama. Ban encontrava-se à porta, de sentinela.
— Bridei? — Tuala agitava-se.
Ele colocou-lhe a mão sobre o seio. O desejo ainda não voltara a despertar completamente, mas ele adorava o corpo dela, na sua perfeição esbelta e pequena. Tocar-lhe era como regressar a casa uma e outra vez.
— Mm?
— Tenho uma coisa para te contar. Não sei o que irás pensar.
— Parece intrigante. O que é?
Sentiu-a inspirar profundamente, como se necessitasse de ganhar coragem para falar.
— Bridei, isto vai parecer... insano. Na verdade, nem sei como dizê-lo, por isso creio que vou ter de o dizer e pronto. Bridei, acho que talvez Broichan seja o meu pai.
Bridei demorou um instante a reagir.
— O teu...? Mas...?
— Tem alguma lógica. Desconfio que Fola pensa o mesmo. Tive uma visão. Não consigo imaginar qualquer outra razão para a deusa me ter mostrado isto. E explica... explica a ligação dele com Derelei. Observa os dois juntos, os movimentos, as expressões, as inflexões no discurso. Uma tal semelhança não é somente a de um tutor e de um pequeno aluno. É a similitude dos laços de sangue.
— Mas... — começou Bridei, não conseguido apreender o que Tuala lhe dizia, pois abria uma visão para o passado que, quanto mais pensava nela, mais sombria e perturbadora se tornava. — Se assim for, quem é a tua mãe? Broichan não... quer dizer, ele não... É um druida, Tuala. Como é que ele podia...
— Um druida é um homem, apesar de oferecer a sua vida aos deuses. Se A Que Brilha exigisse a um homem uma expressão de amor carnal e mundana, como parte dos procedimentos de um ritual, não seria o dever desse homem obedecer? Sei pouco acerca da prática de um druida durante o retiro de três dias por alturas da Harmonia. Só sei que Broichan tinha por hábito ir sozinho para a floresta. A minha visão mostrou-mo como um homem no auge da vida, percorrendo trilhos na floresta durante a Primavera. Estava lá uma mulher, pertencente aos Boa Gente. Uma da minha espécie.
— Como é que sabes...?
— Não sei. Só Broichan poderia dizer-me e não fui corajosa o suficiente para lhe perguntar. Ficaria deveras perturbado com tais revelações. Provavelmente enojado.
— Mas, Tuala, se isso for verdade, ele decerto que o sabe. Provavelmente sempre soube.
— Talvez não. — A voz dela era baixa e calma.
— É claro que o saberia. Uma experiência desse gênero na Primavera e aparece-lhe um bebê à porta de casa no solstício de Inverno. Nenhum homem no seu perfeito juízo poderia deixar de estabelecer a ligação. Se estiveres certa, isso significa que, mesmo sabendo que eras carne da sua carne, te tratou como se representasses um perigo ou uma ameaça. Ainda assim, ele ter-te-ia escorraçado... — Agora estava sentado, a volúpia desaparecera e o coração martelava-lhe de choque e ultraje.
— Não devia ter-te contado. — Tuala deslizou para fora da cama, vestindo um robe. — Bridei, fica calmo. Tenho a certeza de que, se for verdade, ele nunca pensou nisso. Ficarias surpreendido se soubesses como as pessoas podem ser cegas às verdades que nem querem imaginar poderem ser possíveis. Creio que Broichan trancou o que aconteceu num qualquer recanto esquecido da sua mente. A última coisa que iria querer reconhecida publicamente é o fato de me ter como filha. Uma dos Boa Gente, a sua nêmesis, a criança que foi obrigado a aceitar em sua casa, por medo de ofender a deusa ou antagonizar o filho adotivo sobre o qual recaíam todas as suas esperanças. Pobre Broichan. Seria mais caridoso não lhe contar. Contudo, há boatos. Não disto, mas de uma possível irregularidade no teu nascimento ou no do nosso filho. Quanto mais velho for Derelei, mais as pessoas acreditarão nesses rumores. Isso preocupa-me. Essas histórias idiotas podem minar a tua autoridade enquanto rei. Dizer a verdade, por mais dolorosa que seja para Broichan, afastaria quaisquer suspeitas e aliviaria o fardo que pesa sobre ti e sobre o nosso filho. Filhos, possivelmente.
— Estás a dizer... — Bridei olhou para ela, encontrando os seus olhos grandes e estranhos, os olhos que a marcavam como algo mais do que humana.
— Se tudo correr bem, teremos outro filho ou filha no início da Primavera.
— Tuala! De verdade? Que notícias maravilhosas! — Levantou-se e envolveu-a nos braços, sentindo as lágrimas marejarem-lhe os olhos. — Há quanto tempo sabes?
— Antes de partires, eu já tinha uma leve desconfiança, nada mais que isso. Fui tendo maior certeza à medida que tua ausência ia aumentando e o meu medo por ti se tornava cada vez mais profundo. Fico contente que estejas satisfeito e mais contente ainda por estares em casa quando o bebê nascer. Espero que não haja mais guerras durante algum tempo.
— Também eu. Tuala, essa conversa sobre os boatos incomoda-me. Quem anda a dizer tais coisas? Aniel e Tharan deviam ter tomado providências...
— Shh, querido. Não há perigo, pelo menos por enquanto.
— Mas deves estar aborrecida...
— Um pouco. Mas eu sou a rainha, consigo lidar com essas coisas. O importante é aquilo que farei daqui para a frente
— Eu falo com Broichan, se preferires. Se for verdade, ele terá de se explicar.
— Não, Bridei. Cabe-me a mim falar com ele. Por estranho que pareça, acho que já não tenho medo de o fazer. Sinto-me apenas um pouco constrangida. Broichan esteve gravemente doente. Agora devia estar em Banmerren. Fola vigia-o atentamente. Mas ele sabia que tu regressarias a casa antes do Portal e insistiu em vir para cá a fim de te receber.
— Tuala?
— Mm?
Tuala atara o cinto do robe em redor da cintura estreita e começara a escovar o cabelo. Bridei observou o movimento regular e gracioso, o ondular dos cabelos longos e escuros. Interrogou-se sobre como fora capaz de suportar estar longe durante tanto tempo.
— És tão sensata — disse.
— Talvez essa seja outra prova de que a minha teoria está correta — respondeu-lhe, com um sorriso.
Ban deu um latido de aviso e, um instante depois, a voz de Garth fez-se ouvir do outro lado da porta.
— Meu senhor?
— O que foi, Garth?
— Faolan está de volta.
Bridei olhou para Tuala. Ela devolveu-lhe o olhar e disse:
— Não estejas com esse ar. Teremos muito tempo para nós mais tarde. É melhor ires falar com ele agora. Desde que eles voltaram que não é o mesmo.
— Obrigado, Garth — gritou Bridei. — Por favor, pede-lhe que espere. — Depois, ao começar a vestir-se, perguntou: — Não é o mesmo de que maneira? Ouvi o relato de Drustan sobre o que aconteceu, mas é bastante claro que aquela era apenas parte da história. O que tem Ana a dizer?
— Menos do que imaginas. Ela e Faolan parecem profundamente mudados pela viagem. Desde que regressaram que os três formam um grupo muito unido. Faolan, claro está, desempenha alguns dos seus deveres antigos, o que Garth certamente aprecia. Mas estou sempre a encontrá-los pelos cantos, embrenhados em conversas particulares. Entre Ana e Drustan, trata-se claramente de amor. Mas também é freqüente descobrir Drustan e Faolan imersos num debate intenso, ou Faolan e Ana, ao lado um do outro, num silêncio absoluto, olhando para a floresta. Faolan está inquieto. Ele não quer estar aqui. Espero que fale contigo.
Faolan estava à espera no jardim, onde lanternas tinham sido acesas para iluminar o crepúsculo. Trazia calçadas botas de montar e um manto pesado, como se tivesse acabado de chegar de uma viagem. Bridei atravessou o espaço que os separava e agarrou-lhe com firmeza o braço, para o puxar num abraço rápido. Por instantes, Faolan correspondeu, mas depois recuou.
— Senti a tua falta — disse Bridei, com simplicidade.
Faolan aquiesceu. Evitava os olhos do outro homem. Uma pequena trouxa estava encostada à parede, bem amarrada e, de repente, ocorreu a Bridei que o amigo não estava a chegar, mas sim de partida.
— Faolan — disse —, o que é isto?
— Estou feliz por estares em casa, são e salvo — respondeu Faolan. — Mas desejo ser dispensado dos teus serviços.
O choque, a mágoa e a preocupação deixaram Bridei incapaz de reagir.
— Meu senhor — acrescentou Faolan, tardiamente. Bridei respirou fundo.
— Como sabes, não é assim tão fácil — declarou. — Imagino que queiras o que te devo. Antes de te pagar, preciso de um relato da missão. Esta é uma exigência, Faolan. Entras e bebes um pouco de hidromel comigo junto à lareira? Está frio aqui.
— Não, meu senhor. — A voz de Faolan estava tensa. — Não vale a pena prolongar isto. Não preciso da prata, tenho mais do que suficiente guardada. Quanto ao relato, Drustan contou-te o que aconteceu. A missão foi um desastre. Perdi toda a escolta pelo caminho. Alpin desmascarou o meu papel na corte de Gabhran e ameaçou expor-me publicamente. Fui obrigado a dar-lhe informações sobre os teus progressos, que se encontravam perigosamente perto da verdade, embora tivesse conseguido convencê-lo de que irias avançar perto do Outono, nunca antes. O tratado foi assinado à má-fé. Fiz com que o guarda leal de Drustan fosse morto. Chega?
— No entanto — começou Bridei, mantendo um tom de voz regular, embora a amargura de Faolan o tivesse alarmado —, parece que ao trazeres Ana de volta, invalidando assim a aliança, nos fizeste um favor a todos: a Ana, a Drustan e, a longo prazo, a mim próprio como rei de Fortriu. Parece que Alpin teria sido um aliado perigoso.
— Sem dúvida. Se eu não tivesse quase a certeza de que ele já deduzira que irias avançar antes do Inverno, não teria corrido o risco de andar tão perto da verdade com ele. Era a segurança de Ana que estava em causa. Dei a Alpin aquilo que acreditei que me daria tempo para tirá-la de lá. Não me agradou fazê-lo.
— Bem — disse Bridei —, Ana está em segurança e a guerra está ganha, embora não sem algumas perdas terríveis. Ambos desempenhamos as nossas missões, de uma forma ou de outra. Afinal, parece que a nossa refém real sempre poderá vir a casar com o Chefe Tribal de Briar Wood.
— Assim é. — Faolan olhava ferozmente para o chão. O seu tom de voz mudara outra vez e controlava com firmeza as emoções.
— O que se passa, Faolan? Tal como tu, estou de luto pelos que perderam a vida. Mas saíste-te bem. Salvaste Ana de uma situação muito perigosa e trouxeste-a para casa. Ela parece satisfeita. Não encontro qualquer falha na forma como conduziste a missão. Uma inundação é um ato dos deuses. Assumir a responsabilidade por isso parece-me mais do que arrogante. Já não desejas trabalhar para mim? Para onde tencionas ir?
— Para um lado qualquer. Só não quero ficar aqui. Bridei respirou fundo.
— Sabes — disse —, nunca te ouvi dizer coisas tão infantis, Faolan. E nunca pensei que me mentisses, não a mim, que sou teu amigo. Não te liberto dos meus serviços até me responderes satisfatoriamente a duas perguntas.
Faolan ergueu a cabeça.
— Pergunta — acedeu.
— Por que não podes ficar aqui, e para onde desejas ir? Quero a verdade. — Interrogava-se sobre se Faolan se limitaria a negar-se a responder. Sabia, tal como Bridei, que poderia simplesmente virar as costas e afastar-se do Monte Branco. Bridei nada poderia fazer para impedi-lo, a menos que usasse de força contra um amigo estimado.
— Vais ficar chocado com a minha fraqueza, Bridei.
— Põe-me à prova.
— Não posso ficar, pois não suporto vê-los juntos. É uma tortura lenu. Só aqui estou neste momento porque ela, Ana, obrigou-me a prometer que esperaria até que regressasses.
— Quando falas deles, referes-te a Ana e Drustan? Mas pensei que vocês três fossem muito próximos. Tuala disse-me...
— Somos próximos. Somos amigos. Ela ama-o. Ele ama-a. Eu amo-a. É essa a verdade e imploro-te que me deixes partir.
Tais palavras de Faolan? Um homem que todos descreveriam como desprovido de sentimentos humanos? — Compreendo — disse Bridei, demasiado espantado para uma resposta mais profunda. — E a segunda questão?
— Vou regressar a casa — indicou Faolan, calmamente. — Volto a Laigin. Um homem morreu por nossa causa, um guerreiro magnífico, com uma generosidade excepcional. Confiou-me a entrega da notícia aos do seu sangue. Acredita, não tenho qualquer vontade de regressar, mas é um dever que terei de cumprir.
— E aproveitas para te reconciliares com o teu passado?
Os olhos sombrios semicerraram-se. Os lábios finos comprimiram-se.
— Quem te falou disso? — replicou Faolan.
— Drustan disse-me que havia um assunto que ainda te atormentava. Não entrou em pormenores, dizendo que lhe fora pedido segredo. Pensei que talvez quisesses visitar os teus familiares.
— Ana gostaria que o fizesse.
— Compreendo.
— Uma dama do sangue real de Fortriu, um assassino celta, sim, é claro que compreendes. O que vês à tua frente é um tolo iludido que não foi capaz de manter os sentimentos afastados da missão do rei, acabando por conduzi-la ao fracasso. Devias ficar satisfeito por te veres livre de mim.
— A sério? — replicou Bridei. — É isso mesmo que queres, que te diga, muito bem, vai, e que nunca mais nos voltemos a encontrar? Queres partir e esquecer tudo? Drustan e Ana não vão ficar aqui para sempre. E, muito sinceramente, ela não é a única mulher do mundo.
És mortal, Faolan. Esta maleita atormenta os homens e, com o tempo, eles acabam por recuperar.
— Não vou perguntar-te se dirias o mesmo, caso tivesses perdido Tuala naquela noite, na floresta. Desejas alegrar-me. Agradeço-te por isso. Não nego que tive saudades da tua companhia e que esta decisão é difícil. Acredito que deva partir, Bridei. A cada momento parece haver uma razão nova para que regresse. Sei que não posso ficar aqui. Se permanecer, cairei num fosso negro de ciúmes destruidores. Amo-a. Não posso fazer-lhe isso.
— Nem acredito que ainda há tão pouco tempo condenavas esta dama, dizendo que se tratava de uma princesa mimada com habilidades eqüestres limitadas, e que guardá-la não era digno dos teus talentos — disse Bridei, incapaz de se refrear. — Que fez ela para alterar de forma tão radical a tua opinião?
— Mostrou possuir uma verdadeira nobreza: é forte, corajosa, altruísta e assisada. — Seguiu-se um silêncio. Depois, Faolan acrescentou: — Deixa-me partir, Bridei.
— Diz-me — Bridei estivera a raciocinar, naqueles breves momentos —, e se te oferecesse uma nova missão, que te levasse perto do teu destino, mas te mantivesse ao meu serviço? Tuala e eu faríamos o possível por instalar Ana e o seu companheiro noutro lugar antes que regressasses ao Monte Branco. Já sei que a vida na corte não será do agrado de Drustan.
— Que missão?
— Estarias, pelo menos, disposto a ouvir?
— Não concordei com nada. Podes dizer-me do que se trata.
— Faolan, já ouviste falar de um sacerdote cristão, um compatriota teu, de nome Colm? Por vezes é chamado Colmcille, que se pode traduzir como...
— Pomba da Igreja.
— Conhece-lo? Faolan anuiu.
— É dono de uma certa reputação. Forte. Influente. Difícil. É familiar do Alto Rei de Tara. Entrou em conflito recentemente devido a um assunto secular. Intrometeu-se onde não devia, durante uma guerra territorial. O homem parece sinônimo de problemas. Na última Primavera falavam muito dele em Dunadd. O que ouviste dizer?
Era interessante, pensou Bridei, como a voz de Faolan se alterara e os olhos tinham ganho vida ao esquecer os problemas e dedicar-se a um novo desafio.
— Gabhran ofereceu-lhe uma ilha — explicou. — Uma das nossas. Houve quem me dissesse que este Colm é o líder de um grande avanço cristão a partir das costas da tua pátria. Em Dalriada diz-se que é uma força imparável. Por outro lado, pareceu-me que o sujeito apenas queria um pouco de terra a que pudesse chamar casa e isso já lhe foi prometido. Ioua é um local remoto. E Suibne, aquela raposa matreira, lembrou-se da minha inconsistência, ao deixar que os missionários se instalem nas Ilhas Pequenas, ao mesmo tempo que os expulso do ocidente. Quero saber mais sobre o que este Colm anda a tramar. Quero saber se, caso lhe ofereçamos a mão, ele nos vai arrancar o braço. Se estes irmãos cristão são a cobertura de uma nova invasão. A relação com Circinn. Tudo o que possas trazer-me.
Houve um longo silêncio, após o que, no crepúsculo, Bridei viu Faolan a sorrir.
— Imagino que em criança fosses um bom pescador — disse Faolan.
— Nem por isso. Porquê?
— Sabes perfeitamente o isco que deves usar e como puxar o peixe.
— Talvez. O meu objectivo não é matar, mas sim dirigir o talento de um homem para um bom uso. Farás isto por mim, Faolan?
— Tinha planeado partir de imediato...
— No escuro, com o Inverno a aproximar-se? Vá, ainda tenho um pouco de inteligência. Espera até de manhã e faz as tuas despedidas. Assim, posso relatar-te tudo o que ouvi e podemos chegar a um acordo em relação ao âmbito da missão e à altura do teu regresso.
— E ao pagamento — acrescentou Faolan, com o breve esboço de um sorriso.
— Isso também — disse Bridei. — E, se precisares de tempo para os teus assuntos pessoais, também podemos chegar a acordo. Não podes acusar-me de ser um patrono inflexível. Com efeito, estou a fazer o possível por manter-te, ao mesmo tempo que procuro ficar com um mínimo de dignidade. Já perdi Breth. Não quero perder-te também.
Por um momento, de pé junto aos grandes portões do Monte Branco, enquanto aguardava que os guardas o deixassem sair pela porta lateral menor, Faolan quase quebrou uma das suas regras mais sacrossantas: nunca perder o controlo em público. Cometeu o erro de olhar para trás. Podia fitar os olhos de Bridei com serenidade. Lamentava deixar tão depressa o amigo e patrono, mas compreendiam-se mutuamente. Bridei concedera-lhe a oportunidade de partir com dignidade e com um objectivo. A seu tempo, Faolan pagaria essa dívida com a execução perfeita da nova missão. E com o seu regresso. Queria voltar. Bastava para isso que eles tivessem partido.
Podia olhar para Drustan e manter as feições calmas. Não era possível odiar Drustan, apesar do ciúme que o consumia, da consciência da impossibilidade de se equiparar ao exemplo de tal homem. O fato era que Drustan roubara-lhe a única mulher que fora capaz de amar. Drustan roubara-lhe esse tesouro e, mesmo assim, não podia deixar de gostar desse homem. Era uma questão difícil e ficaria satisfeito por deixá-la para trás. Essa despedida não foi problemática.
Mas Ana... Ana de madrugada, segurando-lhe as mãos no frio do terraço, o brilho das lágrimas nas faces da jovem. Ana a tentar dizer-lhe algo que começava por «se por acaso» e detendo-se com as costas da mão na boca, a fim de bloquear as palavras traiçoeiras. Se por acaso o quê? Se por acaso fosse permitido a uma mulher amar dois homens? Se por acaso tivessem voltado para trás em Breaking Ford, nunca tendo chegado a um sítio onde o amor e a perda os aguardavam? Ou apenas, se por acaso Faolan não tivesse cantado uma melodia, e atravessado um rio, e entregue o coração, contra a sua vontade? Nunca viria a saber o que ela lhe queria dizer. Apenas sabia que tinha de partir, pelo bem de todos eles. Pelos três.
Assim, ao olhar para trás enquanto a pequena porta junto ao portão era aberta e já não havia desculpa para mais atrasos, cruzou o olhar de Ana, de pé ao lado de Drustan, e não fez qualquer esforço para ocultar o que lhe ia na alma. Permitiu que lhe visse o amor, a tristeza e a esperança no futuro. O futuro dela e de Drustan. E o que leu no rosto da jovem trouxe-lhe lágrimas quentes aos olhos. Mas não as deixou cair até virar as costas, até atravessar a porta e deixar que os pés o levassem pelo caminho para ocidente. Para oeste, até Laigin e até um local que em tempos fora o seu lar.
Juliet Marillier
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