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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Espada Encantada / Marion Zimmer Bradley
A Espada Encantada / Marion Zimmer Bradley

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Espada Encantada

 

CAPÍTULO UM

Ele seguira um sonho, e o sonho o levara até ali para morrer.

Meio inconsciente, estava caído sobre as rochas e o musgo fino da fenda na montanha, e tinha a impressão de que a moça que vira no sonho anterior se encontrava à sua frente. Você deve estar rindo, disse Andrew Carr ao rosto imaginado. Se não fosse por você, eu já teria agora atravessado a metade da galáxia.

E não estendido aqui, meio morto, numa massa congelada de terra, à beira do nada.

Mas ela não ria. Parecia parada à própria beira do penhasco, o vento forte da montanha soprando a túnica azul em torno do corpo esguio, os cabelos vermelhos, longos e reluzentes, esvoaçando em torno das feições delicadas. Como ele a vira antes, no sonho, só que ela não estava rindo. O rosto era pálido e solene.

E dava a impressão de que falava, embora o homem agonizante soubesse - tivesse certeza - que sua voz não podia ser outra coisa que não o eco do vento em seu cérebro febril.

- Estranho, estranho, não tive a intenção de lhe causar qualquer mal; não foi por meu chamado ou ato que veio para este desfiladeiro! É verdade que o chamei... ou melhor, chamei alguém que pudesse me ouvir, e foi você. Mas aqueles por cima de nós sabem que não lhe quero qualquer mal. Os ventos, as tempestades, tais coisas não se encontram sob o meu comando. Farei o que puder para salvá-lo, mas não tenho poder nestas montanhas.

Andrew Carr teve a impressão de que respondeu com palavras iradas. Estou louco, pensou ele, ou talvez já tenha morrido, estendido aqui, trocando insultos com uma moça-fantasma.

- Diz que me chamou? E os outros na minha nave? Também os chamou? E trouxe-os para morrer aqui, em meio aos ventos cruzados das Hellers? A morte por atacado lhe proporciona algum prazer, espírito maligno?

- Isso não é justo!

As palavras imaginárias eram como um grito de angústia, e o rosto fantasmagórico, ao vento, contraiu-se como se estivesse prestes a chorar.

- Não os chamei; eles vieram pelo caminho por onde os levava seu trabalho e seu destino. Só você tinha a opção de vir, ou de não vir, por causa do meu chamado; optou por vir e partilhar qualquer coisa que o destino lhes reservasse. A você eu posso salvar, se quiser me ouvir, mas deve despertar. Vamos, levante! - Era como um grito selvagem de desespero. - Morrerá se continuar deitado aqui por mais tempo! Levante-se e procure um abrigo, pois os ventos e tempestades não obedecem às minhas ordens...

Andrew Carr abriu os olhos e piscou. Como soubera desde o início, estava sozinho, estendido na platibanda da montanha, junto aos destroços do avião de mapeamento. A moça - se é que existira alguma moça - desaparecera.

Levante-se e procure um abrigo, pois os ventos e tempestades não obedecem às minhas ordens. Claro que era uma boa idéia, se ele pudesse conseguir. Onde se encontrava, sob um fragmento da cabine destroçada do avião de mapeamento, não era lugar para suportar a noite inclemente daquele estranho planeta. Fora advertido sobre o clima ali, assim que chegara a Cottman IV - só um lunático passaria uma noite ao relento durante a época das tempestades.

Ele tentou de novo, com um último e desesperado esforço, libertar o tornozelo preso, como a perna de um animal acuado, em metal retorcido. Desta vez sentiu o metal ranger e ceder um pouco, embora a dor se tornasse ainda maior, dilacerando a pele e a carne. Com uma expressão sombria, continuou a puxar o pé preso entre o metal, na escuridão. Agora, já podia se mexer o suficiente para se inclinar e deslocar a perna com as duas mãos. A roupa rasgada e a carne dilacerada se achavam escorregadias com o sangue, que já começava a endurecer com o frio intenso. No contato com o metal irregular, as mãos nuas ardiam como fogo, mas agora podia guiar a perna ferida para cima, evitando as pontas mais aguçadas. Ao final, com um ofego misto de agonia e alívio, o pé ficou livre; ensangüentado, bota e roupa rasgadas, com ferimentos profundos, mas livre; não estava mais preso. Fez um esforço para se levantar, mas foi derrubado, caiu de joelhos, por uma rajada de vento gelado, cheia de granizo, que soprou pelo canto do penhasco.

Rastejando, para expor menos superfície do corpo ao vento, ele entrou na cabine do avião. Balançava perigosamente ao vento, e no mesmo instante Andrew abandonou toda e qualquer idéia de se abrigar ali. Se o vento aumentasse, tudo poderia ser lançado por uma altura de no mínimo trezentos metros, para o vale invisível lá embaixo. Uma parte, refletiu ele, já caíra no vale, ao primeiro impacto. Mas descobrindo-se ainda vivo, além de todas as expectativas, ele precisava ter certeza de que não havia mais nenhum sobrevivente.

Stanforth morrera, é claro. Devia ter morrido no primeiro choque; ninguém poderia sobreviver com aquele buraco na testa. Andrew fechou os olhos contra a visão sinistra do cérebro do homem consolado e derramado sobre o rosto. Os dois mapeadores

- um se chamava Mattingly; ele jamais soubera o nome do outro

- se achavam no chão, inertes, os corpos retorcidos. Quando ele rastejou até lá, cauteloso, no equilíbrio precário da cabine, a fim de verificar se ainda restava alguma centelha de vida em qualquer dos dois, descobriu que os corpos já haviam se tornado gelados e duros, na rigidez cadavérica. Não havia sinal do piloto. Ele devia ter caído com o nariz do avião no abismo pavoroso.

Portanto, Andrew estava sozinho. Recuou, com o maior cuidado, e saiu da cabine. Um momento depois, respirando fundo, tornou a entrar. Havia comida no avião - não muita coisa, rações para um dia, o estoque de balas e chocolates de Mattingly, que os oferecera na maior generosidade, e que todos recusaram, rindo; os suprimentos de emergência num painel por trás da porta. Andrew pegou tudo. Depois, com um estremecimento de pavor, empenhou-se em tirar o enorme capote do cadáver rígido de Mattingly. Deixou seu estômago embrulhado - roubar dos mortos! -, mas o capote de Mattingly, de pele, bem grosso, de nada poderia servir agora a seu dono, e poderia representar a diferença entre a vida e a morte na noite terrível que se aproximava.

Quando deixou a horrenda e balouçante cabine pela última vez, Andrew tremia todo, nauseado, e a perna dilacerada, não mais dormente, começava a latejar em pontadas de dor. Foi recuando, encostado na beira interna do penhasco, empilhando as provisões, obtidas com tanto esforço, contra o paredão rochoso.

Ocorreu-lhe que deveria efetuar uma tentativa final de entrar no avião. Stanforth, Matüngly e o homem anônimo carregavam identificações, seus discos do Serviço do Império Terráqueo. Se ele sobrevivesse, se voltasse à base, serviriam como provas de que haviam mesmo morrido, e poderiam significar alguma coisa para suas famílias. Exausto, Andrew tornou a se arrastar para a frente.

E lá estava a jovem outra vez, o fantasma, o espírito que o trouxera até ali, pálida de terror, parada bem na sua frente. Sua boca parecia contraída num grito.

- Não! Não!

Numa reação involuntária, Andrew recuou. Sabia que ela não estava ali, sabia que era apenas ar, mas mesmo assim recuou, e o pé ferido cedeu sob o seu corpo; caiu contra o paredão rochoso, no instante mesmo em que uma violenta rajada de vento soprava pelo desfiladeiro, uivando como uma criatura danada. A moça desapareceu, não se podia mais vê-la em parte alguma, mas antes que ele pudesse se erguer, houve uma nova rajada uivante de vento e granizo, com um som que parecia uma trovoada. Com um solavanco final, a cabine do avião destroçado se soltou do lugar em que ficara presa, inclinou-se, escorregou pela rocha e caiu com um estrépito no abismo. O estrondo foi terrível, como uma avalanche, como o fim do mundo. Andrew comprimiu-se, ofegante, contra o paredão rochoso, os dedos tentando penetrar na rocha.

E depois tudo se aquietou, restou apenas o rugido suave da tempestade, o murmúrio da neve caindo. Andrew, aconchegado no capote de Mattingly, esperou o coração retornar ao normal.

A moça o salvara de novo. Impedira-o de entrar na cabine, no último instante.

Isso é um absurdo, pensou ele. Inconscientemente, devo ter percebido que estava prestes a acontecer.

Andrew arquivou o pensamento para uma análise posterior. Agora, devia pensar apenas que escapara, pela segunda vez, numa sucessão de milagres, mas ainda se encontrava muito longe da segurança.

Se aquele vento era capaz de arrancar um avião da beira do penhasco, poderia lançá-lo também para o abismo, foi o seu  raciocínio. Precisava encontrar algum abrigo mais seguro para descansar.

Com toda a cautela, sempre no lado de dentro, ele foi se arrastando pelo paredão rochoso. Três metros além do lugar em que se encontrava, numa direção, a platibanda se estreitava para o nada, e terminava num precipício, a área escorregadia com o granizo que caía. Sentindo muita dor, o pé irradiando pontadas de angústia, Andrew voltou. A escuridão parecia se adensar ainda mais, e o granizo se transformava em neve branca e macia. Dolorido e cansado, ele desejou poder se deitar, envolto pelo capote de pele, e dormir ali mesmo. Mas o sono seria a morte, seus ossos sabiam disso, e resistiu à tentação, arrastando-se pela platibanda na direção oposta. Teve de evitar os fragmentos de metal que haviam prendido seu pé. Mais adiante, bateu com a canela da perna boa numa pedra oculta, o que o fez se dobrar, gemendo de dor.

Mas conseguiu percorrer toda a platibanda, e na outra extremidade descobriu que se alargava, subindo de forma suave para um espaço plano, no qual se destacavam algumas moitas. Olhando para cima, na escuridão cada vez mais densa, Andrew balançou a cabeça. A folhagem espessa resistiria ao vento - era evidente que os arbustos se achavam enraizados ali havia anos. Qualquer coisa para crescer ali precisava ser capaz de suportar o vento forte, tempestade, nevasca. Agora, se o pé ferido lhe permitisse subir até lá...

Não era fácil, com o peso do capote e dos suprimentos, o pé ferido e sangrando, mas antes da escuridão se tornar total ele conseguiu se arrastar, com o pequeno estoque de provisões - engatinhando, ao final, apoiado nas duas mãos e num joelho -, para baixo das árvores, arriando sob seu abrigo. Pelo menos ali o vento uivante soprava com um pouco menos de violência, o ímpeto reduzido pelos galhos. Entre os suprimentos de emergência, havia uma pequena lanterna, e à sua luz fraca ele encontrou alimento concentrado, um cobertor fino, do tipo "espacial", que isolaria o calor do corpo, e tabletes de combustível.

Prendeu o cobertor e o capote para formar uma tenda tosca, usando os galhos cruzados mais grossos para sustentá-los. Acomodou-se numa pequena depressão entre as raízes, cercada por galhos, onde os flocos de neve quase não o alcançavam. Agora, queria apenas se enroscar e dormir, mas antes que as últimas forças se esvaíssem cortou a perna da calça congelada e o que restava da bota do pé machucado. Doeu mais do que jamais imaginara que alguma coisa poderia doer quando passou o anti-séptico do estojo de emergência e prendeu as ataduras, bem apertado, mas conseguiu de alguma forma, embora gemesse como um animal selvagem. Finalmente arriou esgotado no buraco e pegou um dos chocolates de Mattingly. Forçou-se a mastigar, sabendo que o açúcar esquentaria o corpo trêmulo, mas no próprio ato de engolir mergulhou num sono extenuado, como a morte.

Por um longo tempo, o sono foi o dos mortos, escuro e sem sonhos, a mente e a vontade se apagando por completo. E depois, por outro período longo, teve uma vaga consciência da febre e da dor, da tempestade ao redor. Depois que a tormenta diminuiu, Andrew despertou, ainda na sonolência da febre, morrendo de sede, e saiu do abrigo, quebrando os pingentes de gelo para chupá-los. Afastou-se cambaleando por alguns passos, a fim de atender às necessidades fisiológicas. Voltou ao abrigo, arriou exausto, engoliu algum alimento, tornou a mergulhar num sono profundo, sacudido por espasmos de dor.

Já era de manhã quando acordou de novo. Ele se encontrava lúcido agora, vendo a claridade e ouvindo apenas um ligeiro murmúrio do vento nas alturas. A tempestade passara; o pé e a perna ainda doíam, mas dava para suportar. Quando sentou para trocar o curativo, constatou que o ferimento se achava limpo, sem qualquer infecção. Acima dele, o enorme sol vermelho de Cottman IV ainda pairava baixo no céu, e subia lentamente. Arrastou-se até a beira do penhasco e olhou para o vale, coberto por uma neblina. Era uma região isolada, parecia intacta a mãos humanas.

Contudo, aquele era um mundo habitado, um mundo povoado por criaturas humanas que, até onde ele sabia, em nada se diferenciavam dos terráqueos. Sobrevivera de alguma forma à queda do avião de Mapeamento e Exploração; o retorno ao espaçoporto não deveria ser uma impossibilidade total. Talvez os nativos fossem amigos e o ajudassem, embora tivesse de admitir que isso não parecia provável.

Ainda assim, enquanto havia vida, havia esperança... e ele ainda tinha vida. Muitos homens já haviam se perdido antes, em áreas selvagens e inexploradas de mundos estranhos, e voltaram com vida, para relatar suas aventuras ao Centro Imperial, na Terra. A primeira providência era recuperar a perna para andar de novo, e a segunda, sair daquelas montanhas. Hellers. Um nome apropriado, derivado do inglês. Eram mesmo montanhas infernais. Ventos cruzados, ascendentes, descendentes, tempestades soprando do nada - ainda não fora inventado um avião capaz de voar ileso pelo mau tempo. Ele especulou como os nativos atravessavam as montanhas. Em mulas ou em algum animal local equivalente, concluiu. De qualquer forma, devia haver passos nas montanhas, estradas, trilhas.

A medida que o sol subia, a neblina foi se dissipando, e ele pôde avistar os vales lá embaixo. A maioria das encostas era coberta por árvores, mas no fundo do vale corria um rio, atravessado por uma mancha escura, que só podia ser uma ponte. Portanto, no final das contas, não se tratava de uma região totalmente desabitada, Havia manchas que podiam muito bem ser terras aradas, campos quadrados, hortas, uma região rural aprazível e pacífica, com casas e fumaça se elevando de chaminés... mas muito longe; e entre aquela área e o lugar em que Andrew se encontrava, havia léguas aparentemente intermináveis de penhascos e abismos.

De alguma forma, porém, ele desceria até lá, e voltaria ao es-paçoporto. E depois deixaria aquele planeta fantasmagórico e inóspito, para o qual nunca deveria ter vindo; e já que viera, deveria abandoná-lo em quarenta e oito horas. Mas agora tinha de iniciar a jornada.

E a moça?

Ora, que se dane a moça. Ela nunca existiu. Fora um sonho provocado pela febre, um fantasma, um símbolo de sua solidão...

Isso mesmo. Sempre fui solitário, em uma dezena de mundos.

É bem provável que cada homem solitário sonhe que um dia chegará a um mundo em que haverá alguém à sua espera, alguém que lhe estenderá a mão e falará ao seu íntimo, dizendo "Estou aqui, estamos juntos..."

Já tivera mulheres em sua vida, é claro. Mulheres em cada espaçoporto - qual era mesmo o antigo ditado, iniciado com os marujos, e transferido para os espaçonautas, sempre uma mulher em cada porto? E havia homens, Andrew sabia, que achavam que essa situação era invejável.

Mas nenhum deles jamais encontrara a mulher certa. Andrew sabia de cor todas as coisas que a Divisão Psicológica dizia a respeito. E tinha certeza de que os outros também sabiam. Procura-se a perfeição numa mulher como uma defesa contra um relacionamento real. O homem se refugia em fantasias para não enfrentar as duras realidades da vida. E assim por diante. Alguns até lhe disseram que era inconscientemente homossexual e considerava insatisfatórios os relacionamentos sexuais normais porque no fundo não eram as mulheres que ele desejava, apenas não podia admiti-lo para si mesmo. Andrew ouvira tudo, uma centena de vezes, mas ainda assim o sonho persistira.

Não apenas uma mulher para sua cama, mas para seu coração, um coração solitário, faminto de amor...

Talvez fosse uma projeção do que lhe dissera a idosa adivinha na Cidade Velha. Talvez tantos homens partilhassem aquele sonho romântico, que ela repetia a mesma coisa a todos, assim como os analistas charlatões da Terra falavam às adolescentes românticas sobre um estranho alto e moreno que encontrariam um dia.

Não. Era uma moça. real, eu a vi, e ela... me chamou.

Tudo bem. Pense a respeito agora. Analise com cuidado...

Chegara a Cottman IV a caminho de uma nova missão, era apenas uma escala, uma das muitas encruzilhadas do universo, em que cruzavam as rotas da vasta rede do Império Terráqueo. O espaçoporto era grande, assim como a Cidade Comercial ao redor, que atendia às necessidades do pessoal de serviço e dos viajantes; mas não era um mundo do Império, com um comércio amplo, viagens, excursões turísticas. Era um mundo habitado, mas com a maior parte vedada aos terráqueos. Ele nem mesmo sabia como os nativos chamavam o planeta. O nome nos mapas do Império lhe bastava, Cottman IV. Não tencionava permanecer ali por mais de quarenta e oito horas, apenas o suficiente para providenciar o transporte para seu destino final.

E, depois, fora à Cidade Velha, com três outros homens do Serviço Espacial. A comida nas espaçonaves acabava cansando; sempre tinha um gosto de máquinas, com um sabor forte de temperos, para encobrir o travo inevitável de água e hidrocarbonetos reciclados. A comida na Cidade Velha pelo menos era natural, uma boa carne grelhada, do tipo que ele não comia desde a última vez em que estivera baseado num planeta, frutas frescas e fragrantes. Apreciara-a mais do que qualquer outra refeição que já provara em meses, acompanhada pelo vinho doce, de uma tonalidade dourada. Depois, por curiosidade, Andrew e seus companheiros passearam pelo mercado, comprando lembranças, examinando tecidos estranhos de uma textura áspera, peles macias. Chegara à barraca da adivinha e, também por curiosidade, parara para ouvir suas palavras.

- Alguém espera por você. Posso lhe mostrar o rosto do seu destino, estranho. Gostaria de ver o rosto daquela que espera por você?

Andrew jamais imaginara que pudesse ser algo mais que um discurso padronizado em troca de algumas moedas; divertido, sorrindo, dera as moedas que a velha encarquilhada pedira, e entrara em sua pequena barraca de lona. Lá dentro, ela olhara em sua bola de cristal - era estranho como em todos os mundos que ele conhecia a bola de cristal era o instrumento eleito dos que fingiam adivinhar o futuro - e depois, sem dizer nada, empurrara a bola em sua direção. Ainda meio risonho, meio contrafeito, prestes a se retirar, Andrew se inclinara para ver o rosto bonito, os cabelos vermelhos flamejantes. Um contato para uma prostituta de alta classe, pensara ele, cínico. Já ia perguntar à velha quanto custava a garota, e se havia um preço especial para terráqueos. Nesse momento, porém, a moça na bola de cristal levantara os olhos, fitara os de Andrew, e...

E acontecera. Não havia palavras para expressar. Ele permanecera ali, debruçado sobre o cristal, imóvel, por tanto tempo que acabara com cãibras nos músculos do pescoço.

Ela era muito jovem, parecia ao mesmo tempo assustada e sentindo uma dor imensa. Dava a impressão de que gritava por uma ajuda que só ele poderia conceder, e tocara, deliberada, em algo secreto, que só os dois conheciam. Mais tarde, no entanto, Andrew não fora capaz de compreender o que era, sabia apenas que ela o chamara, que precisava desesperadamente de sua ajuda...

E quando o rosto da moça desaparecera, ele sentira uma terrível dor de cabeça. Segurara a beira da mesa, tremendo, ansioso em chamá-la de volta.

- Onde ela está? Quem é ela?

A velha o fitara com um rosto impassível.

- Como posso saber o que você viu, homem de outro mundo? Não vi nada, não vi ninguém, e há outros à espera. Deve se retirar agora.

Ele saíra, tropeçando, atordoado em desespero.

Ela me chamou. Precisa de mim. Está aqui...

E partirei dentro de seis horas.

Não fora muito fácil romper o contrato e ficar, mas também não fora difícil demais. Os lugares do mundo para onde ele seguiria eram muito procurados, e não se passariam mais que três dias para preencherem sua vaga. Teria de aceitar uma redução de dois graus em seu novo cargo, mas Andrew não se importava com isso. Por outro lado, como lhe dissera o diretor de pessoal, não era fácil encontrar voluntários para Cottman IV. O clima era péssimo, quase não havia comércio, e embora o pagamento fosse bom, nenhum profissional de carreira queria se exilar ali, nas margens do Império, num planeta que se recusava obstinadamente a ter maiores contatos, permitindo apenas o arrendamento do espaçoporto. Ofereceram-lhe a opção de trabalhar no centro de computação, ou em Mapeamento e Exploração, uma atividade muito bem remunerada, mas de alto risco. Por algum motivo, os nativos daquele mundo nunca haviam efetuado um levantamento cartográfico do planeta. O Império Terráqueo achava que apresentar mapas definidos, que a tecnologia nativa não podia ou não queria realizar, era uma boa iniciativa de relações públicas.

Andrew optara por Mapeamento e Exploração. Já sabia - na primeira semana vira todas as moças e mulheres que trabalhavam no espaçoporto - que ela não se encontrava ali. Mapeamento e Exploração contava com algumas concessões, e seu pessoal podia viajar além dos limites restritos impostos ao Império. Em algum lugar, naquele mundo, ela o aguardava...

Era uma obsessão, e ele sabia disso, mas não era capaz de romper o encantamento, e também não queria.

E na terceira vez em que saíra no avião, o desastre... e agora ali estava ele, mais longe do que nunca da moça do sonho. Se é que ela existia, o que Andrew duvidava.

Exausto pelo longo esforço de recordação, ele voltou ao abrigo para descansar. Amanhã haveria tempo suficiente de formular um plano para descer a encosta. Comeu das rações de emergência, chupou um pouco de gelo, caiu num sono irrequieto...

Ela surgiu de novo, parada à sua frente, ao mesmo tempo dentro e fora do pequeno abrigo escuro, um fantasma, um sonho, uma flor escura, uma flama em seu coração...

Não sei por que foi com você que fiz contato, estranho. Procurei por meus parentes, aqueles que me amam e poderiam me ajudar...

Uma dama. em perigo, posso apostar, pensou Andrew. O que quer comigo?

Apenas uma expressão de dor, o rosto contraído em angústia.

Quem é você? Não posso chamá-la de moça-fantasma.

Callista.

Agora sei que estou mesmo maluco, disse Andrew a si mesmo. Este é um nome da Terra.

Não sou uma feiticeira da Terra, meus poderes são do ar e do fogo...

Aquilo não fazia sentido. O que você quer comigo?

Neste momento, apenas salvar a vida que involuntariamente pus em perigo. E lhe dizer uma coisa: evite as terras escuras.

Ela sumiu de repente de sua vista e audição, e Andrew ficou sozinho, piscando.

"Callista" significa apenas "bela", pelo que me lembro, pensou Andrew. Talvez ela seja apenas um símbolo da beleza em minha mente. Mas o que são as terras escuras? Ora, mas que absurdo, estou tratan-do-a outra vez como se fosse real.

Enfrente a verdade. Essa mulher não existe, e se quiser sair daqui, terá de cuidar de tudo sozinho.

E, no entanto, ao se recostar para descansar e fazer planos, Andrew descobriu-se a tentar, mais uma vez, invocar o rosto diante de seus olhos...

 

CAPÍTULO DOIS

A tempestade ainda assolava nas alturas, mas ali no vale brilhava a luz do dia, os raios do sol inclinados; só as densas nuvens em forma de bigornas, a oeste, indicavam onde os picos das montanhas ainda sofriam com a tempestade.

Damon Ridenow cavalgava com a cabeça baixa, inclinado contra o vento que enfunava seu manto de montaria, e dava a impressão de que voava. Como se fugisse de uma tempestade iminente. Tentou argumentar consigo mesmo, O tempo está afetando meus nervos, talvez já não seja mais tão jovem assim, mas sabia que era mais do que isso. Era uma inquietação, algo se agitando, assediando sua mente, algo errado. Algo sórdido.

Ele percebeu que mantinha os olhos desviados das colinas baixas, cobertas de árvores, que se estendiam ao leste. Delibera-damente, tentando romper a estranha inquietação, virou-se na sela e contemplou as colinas, de alto a baixo.

As terras escuras.

Absurdo, disse a si mesmo, irritado. Houvera guerra ali, no ano anterior, com o povo-gato. Alguns de seus homens haviam sido mortos e outros expulsos, forçados a irem para o território de Alton, em torno dos lagos. O povo-gato era implacável e cruel, massacrara, queimara e torturara, deixara expostos os mortos que não foram devorados. Talvez o que sentia agora fosse apenas a lembrança de todos os sofrimentos ali durante a guerra. Minha mente está aberta às mentes de todos os que sofreram...

Não, era pior do que isso. As coisas que ele ouvira sobre o que o povo-gato fazia.

Olhou para trás. Sua escolta - quatro espadachins da Guarda - começava a se juntar e a murmurar. Damon sabia que deveria determinar uma parada, deixar os cavalos descansar. Um dos guardas esporeou seu cavalo e veio para o seu lado. Ele puxou as rédeas de seu animal para fitá-lo.

- Lorde Damon - disse o homem, com a deferência devida, mas parecendo irritado -, por que cavalgamos como se os inimigos estivessem em nosso encalço? Não tenho notícias de nenhuma guerra ou emboscada.

Damon Ridenow diminuiu um pouco o ritmo, mas foi um esforço. Sua vontade era esporear o cavalo com toda a força, correr para a segurança de Armida...

- Acho que estamos sendo perseguidos, Reidel.

O guarda, cauteloso, correu os olhos de horizonte a horizonte-a cautela era seu dever e treinamento -, mas com um ceticismo ostensivo.

- Em que moita, na sua opinião, a emboscada nos aguarda, Lorde Damon?

- Sei disso tanto quanto você - respondeu Damon, suspirando.

O homem parecia obstinado.

- É um Lorde Comyn e as decisões lhe cabem, meu dever é apenas cumprir suas ordens. Mas há um limite para o que homem e cavalo podem fazer, Lorde, e se formos atacados, com os cavalos cansados e ferimentos da sela, não lutaremos tão bem.

- Acho que tem razão - murmurou Damon, suspirando outra vez. - Determine uma parada, se considera necessário. Aqui, em campo aberto, pelo menos o perigo de um ataque de surpresa é menor.

Ele estava cansado e dolorido, e ficou satisfeito por desmontar, embora a urgência do pesadelo ainda o atormentasse. Quando Reidel lhe trouxe a comida, aceitou-a sem sorrir, o agradecimento foi distraído. O guarda permaneceu ao seu lado, com o privilégio de um conhecimento antigo.

- Ainda fareja o perigo por trás de cada árvore, Lorde Damon?

- Isso mesmo, mas não sei explicar por quê. Desmontado, ele tinha pouco mais que a estatura mediana,

magro e pálido, com os cabelos de fogo de um Lorde Comyn dos Sete Domínios; como a maioria de sua estirpe, andava desarmado, exceto por uma adaga, e sob o manto de montaria usava a túnica leve de um estudioso.

- Não está acostumado a cavalgar tanto, Lorde, e ainda por cima com tanta pressa. Por que a necessidade de viajar assim?

- Não sei explicar. Só posso dizer que minha parenta em Armida enviou-me uma mensagem... uma mensagem secreta... pedindo-me que fosse ajudá-la, o mais depressa possível. Ela não é do tipo que se assusta com facilidade, que estremece com as sombras e passa noites acordada temendo bandidos no pátio, quando seus homens se ausentam. Um chamado urgente de Dama Ellemir não pode ser menosprezado, e por isso parti imediatamente. Pode ser algum problema de família, uma doença em sua casa; mas o que quer que seja, o assunto é grave, ou ela resolveria tudo sozinha.

O guarda balançou a cabeça, devagar.

- Já ouvi dizer que a dama é brava e engenhosa. Tenho um irmão que trabalha em sua casa. Posso contar isso a meus companheiros, Lorde? Talvez resmunguem menos se souberem que se trata de um problema grave, e não de um capricho seu.

- Claro que pode contar. Não é segredo. Eu já o teria feito, se percebesse que seria melhor.

Reidel sorriu.

- Sei que não é líder de homens, mas nenhum de nós ouvira qualquer rumor, e este não é um lugar que qualquer homem goste de percorrer sem necessidade.

Ele já se virava, mas Damon deteve-o, segurando-o pela manga.

- Não é um lugar para se percorrer sem necessidade... o que isso significa, Reidel?

Agora que lhe era formulada uma pergunta direta, o homem hesitou, mas acabou dizendo:

- Todos acham que dá azar. É como se estivesse sob uma sombra. Chamam agora esta região de terras escuras, e nenhum homem viaja por aqui se não precisar, e ainda assim só vem com fortes escoltas.

- Isso é bobagem.

- Pode rir, Lorde, já que todos do Comyn são protegidos pelos Grandes Deuses.

Damon suspirou.

- Não o julgava supersticioso, Reidel. É um guarda há mais de vinte anos, foi servidor de meu pai. Ainda crê que nós, do Comyn, somos diferentes dos outros homens?

- Têm mais sorte - respondeu o guarda, sombrio. - O problema é que, agora, os homens que viajam pelas terras escuras desaparecem, ou voltam com a mente avariada. Não, Lorde, não ria de mim. Aconteceu com o irmão de minha mãe, há duas luas. Ele seguiu pelas terras escuras para visitar uma donzela que pretendia converter em sua segunda esposa, tendo pago o dote quando ela tinha cerca de nove anos. Não voltou na ocasião em que se esperava. Quando me disseram que ele se perdera para sempre nas sombras, também ri, e disse que podia apostar que apenas se retardara na cama com a jovem, a fim de deixá-la com uma criança. Até que uma noite, Lorde, depois de dez dias de atraso, ele entrou na sala da guarda em Serre. Não sou um homem fantasioso, Lorde, mas seu rosto... seu rosto...

Reidel desistiu, depois de um momento, de procurar pelas palavras apropriadas, e acrescentou:

- Ele dava a impressão de que havia descido ao sétimo inferno de Zandru. E não disse qualquer coisa que fizesse sentido, Lorde. Delirava, falando em enormes fogueiras, a morte no vento, plantações murchas e jovens bonitas que lhe arrancaram a alma com garras de gato. Chamaram a feiticeira, mas ele morreu, delirando, antes que sua mente pudesse ser curada.

- Alguma doença das montanhas - sugeriu Damon. Mas Reidel balançou a cabeça.

- Como lembrou, Lorde, sou guarda nestas colinas há vinte anos, e meu tio o foi por quarenta. Conheço as doenças que atacam os homens, e posso garantir que não era uma delas. Nem conheço qualquer doença que ataque um homem só numa direção. Andei um pouco pelas terras escuras, Lorde, e vi as plantações murchas, os pomares abandonados e as pessoas que lá vivem agora. É verdade que vivem de alimento enfeitiçado, Lorde.

Damon tornou a interrompê-lo:

- Alimento enfeitiçado? Isso não existe, Reidel.

- Pode dizer o que quiser, mas não é um alimento feito de grãos, raízes, bagas ou frutas de uma árvore saudável, nem de carne de qualquer coisa viva. Por nada eu tocaria naquela comida, e acho que foi por isso que escapei ileso. Vi quando surgiu do ar.

- Pessoas que conhecem seu ofício podem fazer comida de coisas que parecem não-comestíveis, Reidel, e sai um alimento saudável. Um técnico de matriz... como posso explicar?

Ele decompõe a matéria química que não pode ser comida com absoluta segurança e muda sua estrutura para que possa ser digerida e se torne nutritiva. Não é suficiente para sustentar a vida por muitos meses, mas pode mantê-la por um prazo curto, numa situação de emergência. Eu mesmo posso fazer isso, não é nada de mais. Reidel franziu o rosto.

- Bruxaria de sua pedra-da-estrela...

- Não tem nada de bruxaria - insistiu Damon. - É apenas uma habilidade.

- Então por que só pode ser feito pelo pessoal do Comyn? Damon suspirou.

- Não sou capaz de tocar um alaúde; meus ouvidos e dedos não nasceram com esse talento, nem receberam o treinamento necessário. Mas você, Reidel, nasceu com os ouvidos para isso, e seus dedos foram treinados desde a infância, e por isso pode criar música como deseja. É o que também acontece em meu caso. O Comyn nasce com o talento, da mesma forma que outros nascem com o talento para a música. Na infância, somos treinados a mudar a estrutura da matéria, com a ajuda das pedras matrizes. Só consigo fazer umas poucas coisas pequenas; os que são bem treinados podem fazer muito mais. Talvez alguém venha fazendo experiências com imitações de alimento naquelas terras, e sem ter muita habilidade acabou criando veneno em vez disso, um veneno que provoca o desvario nos espíritos dos homens. Mas isso é problema para uma das Guardiãs. Por que ninguém levou o assunto ao conhecimento delas, Reidel?

- Diga o que bem quiser - murmurou o guarda, o rosto contraído e obstinado expressando receio. - As terras escuras se encontram sob algum encantamento maligno, e os homens de bem devem evitá-las. E agora, se me dá licença, Lorde, devemos montar de novo, se queremos alcançar Armida antes do escurecer. Pois mesmo que nos mantenhamos à distância das terras escuras, esta não é uma estrada para se percorrer à noite.

- Tem toda a razão.

Damon tornou a montar e esperou que a escolta se aprontasse. Tinha muito em que pensar. Já ouvira rumores sobre as terras nos limites do território do povo-gato, mas ainda nada como aquilo. Seria tudo superstição, boatos baseados na imaginação de ignorantes? Não; Reidel não era fantasioso, nem o fora seu tio, um soldado com muitos anos de experiência, que jamais seria presa fácil de vagos rumores. Algo muito concreto o matara; e podia-se apostar que o velho lutara.

Chegaram ao topo da colina, e Damon contemplou o vale lá embaixo, alerta a qualquer sinal de emboscada; pois a sensação de que era observado, perseguido, aumentara agora para uma obsessão. Aquele seria um bom lugar para uma emboscada, quando começassem a descer a encosta.

Mas a estrada e o vale se estendiam vazios à frente, ao sol, e Damon franziu o rosto, tentando relaxar os músculos tensos por um ato de vontade.

Está chegando a um ponto em que quase se assusta com sombras. Desse jeito, de nada servirá a Ellemir, a menos que possa recuperar o controle.

A mão enluvada subiu para a corrente em torno do pescoço; ali, envolta em seda, dentro de uma pequena bolsa de couro, pôde sentir a forma dura, o estranho calor da matriz que carregava. Recebera-a quando aprendera a usá-la, a "pedra-da-estrela" a que Reidel se referira. Estava sintonizada com sua mente de uma maneira que ninguém mais poderia compreender, a não ser um darkovano, e ainda por cima telepata do Comyn. O longo treinamento ensinara-o a ampliar as forças magnéticas de seu cérebro com a insólita estrutura cristalina da pedra; e agora o simples contato levou sua mente a se acalmar, na disciplina do telepata treinado.

Raciocine, ponha todas as coisas em ordem, ele disse a si mesmo. A medida que a inquietação se reduzia, sentiu a pulsação tranqüila e a lenta euforia, indicando que o cérebro passara a funcionar no que o Comyn chamava de ritmo básico, ou de "repouso". Desse momento de calma, além de si mesmo, Damon avaliou seus medos e os de Reidel. Havia ali algo a ser analisado, sem dúvida; mas não para ser remoído com inquietação, a partir de relatos confusos, durante uma viagem. Em vez disso, devia ser isolado, ponderado, investigado de forma sistemática, com fatos em vez de temores, eventos concretos em vez de rumores.

Um grito frenético penetrou em sua mente, espatifando a serenidade artificial como uma pedra destruindo uma vidraça. Foi um choque doloroso e atordoante, e Damon soltou um grito, ao impacto do medo e da agonia em sua mente, uma fração de segundo antes de ouvir o berro rouco de um homem - um berro assustador, que só costuma sair de lábios agonizantes. Seu cavalo relinchou e empinou; a mão ainda segurando o cristal na garganta, Damon puxou as rédeas, desesperado, tentando controlar o animal. Um instante depois o cavalo parou, as pernas rígidas, o corpo tremendo todo, enquanto Damon olhava, espantado, Rei-del deslizar lentamente para o solo, inerte, com certeza morto, a garganta aberta por um único e comprido talho, do qual o sangue ainda esguichava, numa fonte escarlate.

E não havia ninguém perto dele! Uma espada surgindo do nada, uma garra de aço que rasgava a garganta de um homem vivo.

- Aldones, Senhor da Luz, salvai-nos! - sussurrou Damon para si mesmo, levando a mão ao punho de sua adaga, com um tremendo esforço para manter o controle.

Os outros guardas lutavam, as espadas descrevendo longos arcos contra os atacantes invisíveis.

Damon apertou o cristal entre os dedos, travando uma batalha silenciosa pelo domínio daquela ilusão... porque só podia ser uma ilusão! Pouco a pouco, como se através de um véu espesso em sua mente, ele divisou formas vagas, estranhas, quase inumanas. A luz parecia brilhar através delas, e os olhos de Damon entravam e saíam de foco, no empenho árduo de mantê-las em sua visão.

E ele estava- desatinado! Além do mais, não era um espadachim...

Apertou as rédeas do cavalo, contendo o impulso para se lançar contra os oponentes invisíveis. Uma fúria intensa pulsava em seu sangue, mas uma onda gelada de razão lhe dizia que se encontrava desarmado, que poderia apenas arriscar-se a morrer com seus homens, e que o dever para com a parenta estava em primeiro lugar. A casa de Ellemir estaria assediada por aqueles terrores invisíveis? Por acaso permaneciam à espreita, a fim de impedir que qualquer dos seus parentes fosse socorrê-la?

Seus homens lutavam com bravura contra os atacantes invisíveis. Damon, segurando a matriz, virou o cavalo e afastou-se dos atacantes, a galope, descendo pela trilha. Sua garganta parecia obstruída. Por tudo o que sabia, alguma lâmina invisível podia a qualquer momento surgir do ar vazio e separar sua cabeça dos ombros. Os gritos roucos de seus homens lá atrás eram como uma faca em seu coração, sufocando-o, corroendo sua consciência. E continuou a galopar, de cabeça baixa, o manto esvoaçando ao seu redor, como se de fato houvesse demônios em seu encalço; e não diminuiu o ritmo até parar de todo, o cavalo tremendo, com o suor escorrendo, sua própria respiração ofegante, no início da encosta seguinte, a três ou quatro quilômetros da emboscada, avistando os portões altos de Armida.

Desmontando, ele tirou o cristal da bolsa de couro protetora e desenrolou a seda. Exposto, isto poderia ter salvo a todos nós, pensou Damon, olhando desesperado para a pedra azul, com os estranhos arabescos de fogo no interior; seu poder telepático treinado, muito ampliado pelos campos magnéticos ressonantes da matriz, seria capaz de dominar a ilusão; seus homens ainda teriam de lutar, mas combateriam sem ilusões, contra inimigos que poderiam ver, que poderiam enfrentar em condições de igualdade. Damon baixou a peça. Nunca se levava uma matriz exposta; as vibrações ressonantes deviam ser isoladas do que havia ao redor. E quando conseguisse tirá-la, se permanecesse no campo de batalha, seus homens já teriam sido mortos, de qualquer maneira, e ele também pereceria.

Suspirando, tornando a envolver o cristal com a seda, ele afagou o flanco do cavalo exausto. Sem montar, a fim de poupar o animal ofegante e trêmulo de qualquer esforço adicional, foi puxando-o lentamente pela subida, até os portões. Armida não se encontrava sitiada, ao que tudo indicava. O pátio estava tranqüilo e vazio, à luz do sol poente, e o nevoeiro noturno já começara a se aproximar, das colinas ao redor; os serviçais se aproximaram para pegar seu cavalo, e se mostraram alarmados pelo estado do animal.

- Foi perseguido, Lorde Damon? Onde está sua escolta? Ele balançou a cabeça devagar, sem tentar responder.

- Mais tarde, mais tarde. Cuidem de meu cavalo, e não o deixem beber até que esfrie, pois galopou por muito tempo. E alguém vá avisar a Dama Ellemir que cheguei.

Se esta missão não for de grande importância, pensou Damon, sombrio, vamos brigar. Quatro de meus fiéis servidores morreram, e de uma maneira horrível. E ela não se acha sitiada, parece não ter qualquer problema.

E só depois é que ele percebeu o silêncio sinistro que pairava no pátio. E havia manchas de sangue nas pedras. Uma estranha apreensão, uma lúgubre inquietação - que Damon sabia estar em sua mente, apreendida de algo que não era do nível material - o envolveu.

Um momento depois, levantou os olhos para deparar com Ellemir Lanart parada à sua frente.

- Parente - murmurou ela, a voz quase inaudível -, ouvi alguma coisa... não o suficiente para ter certeza. Pensei que você também...

A voz lhe faltou por um instante, e ela se jogou nos braços do visitante.

- Damon, Damon, pensei que você também tivesse morrido!

Damon Ridenow abraçou a moça gentilmente, afagando os ombros trêmulos. A cabeça brilhante pendeu pesada contra ele. Ellemir suspirou, lutando para recuperar o controle, e ergueu a cabeça. Era alta e esguia, os cabelos flamejantes proclamando que pertencia à casta telepata de Damon, as feições delicadas, os olhos de um azul brilhante.

- Ellemir, o que aconteceu aqui? - perguntou ele, sua apreensão aumentando. - Foi sitiada? Houve um ataque?

Ela tornou a baixar a cabeça.

- Não sei. Tudo o que posso dizer é que Callista desapareceu.

- Desapareceu? Em nome de Deus, o que isso significa? Foi seqüestrada por bandidos? Saiu de casa? Fugiu para casar?

Mesmo enquanto falava, Damon refletiu que aquilo era uma loucura; Callista, a irmã gêmea de Ellemir, era uma Guardiã, uma das mulheres treinadas para manipular todo o poder de um círculo de telepatas habilitados; faziam o voto de virgindade, e eram cercadas por uma aura de respeito, de tal forma que nenhum homem são em Darkover se atreveria a levantar os olhos para uma.

- Conte tudo, Ellemir! Pensei que ela se encontrava sã e salva na Torre de Arilinn. Onde foi? O que aconteceu?

Ellemir ainda lutava para recuperar o controle.

- Não podemos falar aqui - murmurou ela, afastando-se. Damon sentiu um momento de pesar - a cabeça de Ellemir

em seu ombro parecia ser o lugar a que pertencia. Disse a si mesmo, incrédulo, que aquele não era o momento nem o lugar para tais pensamentos, e resistiu ao impulso de tocar em sua mão de leve, outra vez. Seguiu-a pelo vasto vestíbulo. Mal entraram, Ellemir se virou para ele.

- Callista veio fazer uma visita - disse Ellemir, a voz trêmula. - A Dama Leonie deseja largar seu posto de Guardiã e voltar para sua casa em Valcron. Callista deveria substituí-la na Torre, mas resolveu me visitar primeiro. Queria me persuadir a ir para Arilinn em sua companhia, a fim de não se sentir tão sozinha ali. Seja como for, para me visitar ela deve ter-se isolado do vínculo do Círculo da Torre. Tudo correu bem, embora ela parecesse apreensiva. Não sou uma telepata treinada, Damon, mas Callista e eu somos gêmeas, e nossas mentes podem entrar em contato, pelo menos um pouco, quer o desejemos ou não. Por isso, senti sua inquietação, mas ela se limitou a dizer que tivera pesadelos com o povo-gato, plantações murchas e flores definhando. Até que um dia...

Ellemir empalideceu e, mal percebendo o que fazia, pegou a mão de Damon, apertando-a em desespero, como se quisesse apoiar todo o seu peso nele.

- Despertei ouvindo-a gritar; mas ninguém mais ouvira qualquer som, nem sequer um sussurro. Quatro dos nossos se achavam mortos no pátio, inclusive... nossa velha mãe de adoção, Bethiah. Amamentara Callista, e sempre dormia num catre ao pé de sua cama. Estava caída ali, com os olhos... os olhos arrancados das órbitas, ainda viva - Ellemir soluçava alto agora. - E Callista desaparecera! Não consegui encontrá-la... nem mesmo fazer contato com ela através da mente! Minha irmã gêmea... sumiu por completo, como se Avarra a tivesse arrebatado viva e levado para algum outro mundo.

A voz de Damon soou dura; ele a manteve assim com um supremo esforço.

- Acha que ela morreu, Ellemir? A jovem fitou-o nos olhos.

- Não. Não a senti morrer; e minha irmã gêmea não poderia morrer sem que eu partilhasse sua morte. Quando nosso irmão Coryn morreu, numa queda nas colinas, Callista e eu o sentimos passar da vida para a morte; e Callista é minha gêmea. Ela continua viva.

Depois, Ellemir perdeu o controle e desatou a chorar.

- Mas onde? Onde? Ela sumiu, desapareceu por completo, como se nunca tivesse vivido! E apenas sombras se movem desde então... apenas sombras. Damon, Damon, o que vou fazer?

 

CAPÍTULO TRÊS

Ele nunca teria imaginado que a descida pudesse ser tão difícil.

Durante o dia inteiro, Andrew Carr escalara, contornara e descera por rochas escarpadas na encosta. Olhara para uma ravina de incrível profundidade, onde estavam os destroços do avião, e renunciara a qualquer esperança que ainda lhe restasse de recuperar alimentos, trajes protetores, ou os discos de identificação de seus companheiros. Agora, enquanto a escuridão aumentava e uma nevasca leve começava a cair sobre a encosta, ele se aconchegou dentro do capote de pele e chupou as últimas balas de que dispunha. Esquadrinhou o horizonte abaixo, à procura de luzes ou de qualquer outro sinal de vida. Devia haver alguém. Afinal, aquele era um planeta densamente povoado. Só que ali, nas montanhas, podia haver quilômetros, ou até mesmo centenas de quilômetros, de intervalo entre as áreas habitadas. Mas ele divisou um brilho pálido no horizonte, um agrupamento de luzes, que podia ser uma aldeia, talvez uma pequena cidade. Portanto, seu único problema era descer até lá. Mas isso podia não ser fácil. Nada sabia - menos do que nada, na verdade - da vida no mato, ou da arte da sobrevivência. Acabou se lembrando de algo que lera, cobriu-se parcialmente com uma pilha de folhas mortas e puxou a aba do capote por cima da cabeça. Não ficou aquecido, e descobriu os pensamentos vagueando ansiosos por comida, enormes travessas fumegantes, até que dormiu; até certo ponto, despertando quase de hora em hora para estremecer e se aconchegar ainda mais na pilha de folhas, mas dormiu. Também não viu, em qualquer momento de seus sonhos confusos, o rosto da moça-fantasma que identificava com sua visão.

Durante todo o dia seguinte, e no outro, desceu com a maior dificuldade por uma encosta longa, coberta por moitas espinhosas, por duas vezes perdeu o rumo no vale cheio de árvores no fundo, mas finalmente subiu pela encosta no outro lado. No fundo do vale, não tinha como determinar que rumo deveria seguir, e também não avistou por ali qualquer sinal de habitação humana. Encontrou os remanescentes de uma cerca e desperdiçou umas duas horas a caminhar por sua extensão - a existência de uma cerca geralmente representava algo a ser isolado, ou impedido de entrar. Mas levou-o apenas a algumas trepadeiras secas, espessas e emaranhadas, e Andrew concluiu que qualquer que fosse o estranho animal que era mantido ali havia muito que fora embora, junto com seu guardião. Perto do lugar em que deparara com a cerca estendia-se um leito seco de córrego, e ele presumiu que descia as montanhas. As civilizações, em particular as terras agrícolas, sempre construíam seus povoados à margem de cursos d'água, e aquele planeta dificilmente seria exceção. Se seguisse o córrego por seu curso natural, era certo que sairia das colinas e talvez encontrasse as habitações das pessoas que haviam construído a cerca e criado os animais. Depois de uns poucos quilômetros, no entanto, o leito seco fora coberto por uma avalanche; e, por mais que tentasse, Andrew não conseguiu descobrir a continuação no outro lado. Talvez fosse aquele o motivo pelo qual os construtores da cerca haviam transferido seus animais para outro lugar.

Quase ao final do segundo dia, ele encontrou algumas frutas murchas, pendendo de uma árvore toda retorcida. Pareciam e tinham o gosto de maçãs, secas e duras, mas comestíveis; Andrew comeu a maioria e guardou o resto para mais tarde. Sentia-se na maior frustração. Era bem provável que houvesse outras coisas comestíveis ao seu redor, da casca de certas árvores aos cogumelos ou fungos que via em troncos caídos. O problema era que não podia distinguir as plantas saudáveis das venenosas, e por isso tinha de se abster, angustiado só de pensar a respeito.

Tarde daquela noite, ao procurar um abrigo em que pudesse dormir, a neve recomeçou a cair, com uma firmeza estranha e persistente que o deixou apreensivo. Já ouvira falar das nevascas nas colinas, e sentiu-se apavorado com a perspectiva de ser apanhado em uma, sem comida, roupas protetoras ou abrigo. Não demorou muito para que a neve se tornasse tão densa que ele mal podia ver a mão diante do rosto. Os calçados ficaram úmidos, cobertos por uma massa pegajosa e fria.

Estou liquidado, pensou ele, sombrio. Já me encontrava perdido quando o avião caiu, apenas não tive o bom senso de aceitar.

A única chance que eu tinha era o bom tempo, e agora essa possibilidade acabou.

Só uma coisa fazia sentido agora, escolher um lugar confortável, de preferência a salvo do vento, que uivava como uma alma penada nos penhascos acima, deitar e adormecer na neve. Seria o fim de tudo. Considerando como era deserto aquela parte do planeta, era possível que muitos anos se passassem antes que alguém tropeçasse em seu corpo, o que faria com que ninguém pudesse determinar se era um terráqueo ou um nativo.

Droga de vento! Uivava como uma dúzia de túneis de vento, como um coro de almas penadas no Inferno de Dante. Havia uma curiosa ilusão no vento. Parecia que alguém chamava o seu nome, muito longe.

Andrew Carr! Andrew Carr!

Não passava de uma ilusão, é claro. Ninguém, num raio de quinhentos quilômetros, sequer sabia onde ele se encontrava, à exceção da moça-fantasma que vira quando o avião caíra. Se é que ela se encontrava de fato num raio de quinhentos quilômetros. E ele não tinha a menor idéia se a moça conhecia ou não o seu nome. De qualquer forma, era uma garota desgraçada, se é que existia. O que ele duvidava.

Andrew tropeçou e caiu na neve profunda. Começou a se levantar, mas pensou: Ora, de que adianta? E tornou a arriar na neve.

Alguém gritava o seu nome.

Andrew Carr! Venha por aqui, depressa! Posso lhe mostrar o caminho para o abrigo, mas não sou capaz de fazer mais do que isso. Você mesmo tem de ir até lá.

Ele se ouviu dizer, impaciente, como a voz vaga, que era como um eco dentro de sua mente:

- Não. Estou cansado demais. Não posso continuar.

- Carr! Levante o rosto e olhe para mim!

Ressentido, protegendo os olhos contra o vento uivante e os flocos de neve, Andrew Carr ergueu o rosto. Já sabia o que veria.

Era a moça, claro.

Só que não estava realmente ali. Como podia se encontrar ali, usando um vestido azul fino que parecia uma camisola rasgada, descalça, os cabelos nem sequer esvoaçando ao vento inclemente?

Ele se ouviu dizer em voz alta... e ouviu as palavras ser arrancadas de sua boca pelo vento e levadas para longe, de tal forma que a moça não poderia ouvi-las, mesmo que estivesse a três metros de distância:

- O que faz agora? Está mesmo aqui? Onde se encontra?

Ela respondeu naquela voz incisiva e baixa, que sempre parecia alcançar apenas o seu ouvido, sem se estender por um centímetro a mais:

- Não sei onde estou, ou já teria ido embora, pois se trata de um lugar que não me agrada. O importante é que eu sei onde você se encontra, e conheço o único lugar em que ficará a salvo. Siga-me, depressa! Levante-se, seu tolo, levante-se!

Andrew Carr se levantou cambaleante e comprimiu o capote em torno de si. A moça parecia se postar dois ou três metros à sua frente, no meio da tempestade. Ainda vestia a camisola frágil e rasgada, mas não tremia com o frio, embora estivesce descalça e os ombros brilhassem pálidos através dos rasgões no traje.

Ela fez um sinal - agora que tinha sua atenção, ao que parecia, não desperdiçaria mais esforço em tentar se fazer ouvir - e começou a andar sobre a neve. Andrew notou, com um estranho senso de irrealidade, que seus pés mal tocavam no solo. Era de esperar, se ela é um fantasma.

De cabeça baixa, ele cambaleou na esteira da moça se afastando. O vento entrava por dentro do capote, enfunava-o. Os calçados eram massas meio congeladas, os cabelos e a barba eram como filetes ásperos de gelo contra a pele. Agora que a neve cobrira o solo por completo, convertendo tudo numa brancura igual, escondendo buracos e moitas, ele tropeçou algumas vezes em raízes e depressões e se estatelou no chão; mas cada vez se levantou, com um tremendo esforço, e continuou a seguir a sombra à sua frente. Ela já salvara sua vida antes. Devia saber o que fazia.

A impressão foi a de que cambaleou e tropeçou pela neve por muito e muito tempo, embora concluísse depois que não deveria ter passado mais que quarenta e cinco minutos até esbarrar no que parecia uma parede de tijolos. Apalpou o obstáculo à sua frente, incrédulo.

Era mesmo uma parede de tijolos. Ou, pelo menos, assim parecia. Tateando, ele encontrou uma porta de madeira, alisada pelo tempo e presa com tiras de couro. Tinha uma tranca tosca de madeira. Andrew levou algum tempo para afrouxar o nó de couro úmido, e teve de tirar as luvas para trabalhar. Os dedos estavam roxos e sangravam quando o nó finalmente cedeu. A porta se abriu, rangendo, e Andrew entrou, cauteloso. Por tudo o que sabia, podia encontrar luz, fogo, pessoas sentadas em torno de uma mesa de jantar; mas o lugar estava escuro, frio e vazio. Mas não tão frio quanto lá fora, e pelo menos era seco. Havia algo que parecia palha no chão, e a claridade difusa, refletida da neve lá fora, mostrava contornos vagos, que podiam ser postes para gado, ou móveis. Não tinha como acender uma luz, mas o lugar era tão silencioso que ele compreendeu que não era mais habitado pelos antigos animais guardados ali, nem por seus guardiões.

Mais uma vez, a moça o levara à segurança. Andrew arriou no chão seco, juntou um punhado de palha, tirou os calçados encharcados, enxugou os pés enregelados e dormentes e deitou para dormir. Olhou ao redor, à procura do vulto da moça-fantasma que o guiara, mas ela desaparecera, como já esperava.

Despertou horas depois, de um sono profundo de exaustão, para um mundo todo branco, um inferno uivante de granizo e gelo arremetendo contra o prédio em que se encontrava. Mas filtrava-se claridade suficiente pelas persianas fechadas para que pudesse examinar o interior da construção: vazia, exceto pela palha e pelos postes de amarrar animais. Rescendia a estérco de animal há muito ressequido, com uma pungência intensa, mas não de todo desagradável.

No canto mais distante, uma massa escura atraiu sua atenção. Encontrou ali uns poucos trapos de roupas estranhas. Aproveitou uma delas, uma manta esfarrapada, de tartã desbotado, parecendo um cobertor, para se agasalhar. Sob as roupas empilhadas - esfarrapadas, mas livres de mofo, já que o prédio era seco - havia uma arca pesada, fechada com uma argola de cadeado, mas não trancada. Abriu-a, e descobriu alimentos; esquecidos, ou então, o que era mais provável, deixados ali para outra temporada pelos guardiões dos animais, quaisquer que fossem, outrora guardados ali. Havia uma fôrma de pão seco - na verdade, parecia mais com bolachas - envolta por papel oleado. Havia também uma coisa dura e irreconhecível, que ele acabou concluindo que devia ser carne seca, mas que nem seus dentes nem seu paladar conseguiram suportar. Uma pasta fragrante lembrou-o de manteiga de amendoim, e passou-a no pão, feito de sementes ou nozes moídas e pedaços de frutas secas. Havia ainda um tipo de fruta seca, com um cheiro apetitoso, mas era tão dura que ele decidiu que precisaria de algum tempo de molho na água, de preferência água quente, antes de se tornar comestível.

Andrew saciou a fome com o pão e a pasta. Procurou ao redor, e descobriu uma tosca torneira, que escorria para uma bacia, aparentemente usada para dar água aos animais. Bebeu a água fria, lavou o rosto. Era fria demais para uma lavagem maior, mas mesmo assim já deu para se sentir melhor. Depois, envolto pela manta de tartã, explorou todo o lugar. Sentiu-se aliviado ao descobrir mais um conforto, uma latrina, num canto da construção. Não lhe agradava a perspectiva de ter de sair outra vez para a tempestade, mesmo que apenas por um instante, ou de sujar o lugar. Ocorreu-lhe que aqueles confortos, inclusive as provisões, deviam ter sido providenciados para nevascas como aquela, quando nem homem nem animal podiam sobreviver sem um abrigo.

Portanto, aquele mundo não apenas era habitado, mas também civilizado, pelo menos até certo ponto. Todos os confortos do lar, pensou ele, voltando ao leito de palha empilhada. Agora, só precisava esperar que a nevasca passasse.

Sentia-se tão cansado, depois de tanto tempo andando nas montanhas, e tão aquecido na manta grossa, que não teve a menor dificuldade para pegar no sono. Ao despertar outra vez, a claridade declinava, e a tempestade amainara um pouco. Calculou, pela escuridão que se adensava, que dormira durante a maior parte do dia.

E ainda é o início do outono. Como deve ser aqui no inverno? Este planeta daria um grande centro de esportes de inverno, mas não serve para qualquer outra coisa. Tenho pena das pessoas que vivem aqui!

Andrew fez outra refeição frugal de pão e pasta (era bem saborosa, mas seria enjoativa para uma dieta regular), e como estava muito frio e escuro para fazer alguma outra coisa, tornou a se agasalhar e deitou na palha.

Já dormira o suficiente, não sentia mais frio, nem fome. Estava bastante escuro para ver qualquer coisa, mas não havia mesmo muito o que ver. Seus pensamentos vaguearam. É uma pena que eu não seja um xenólogo. Nenhum terráqueo jamais esteve antes à solta neste planeta. Andrew sabia que havia sociólogos e antropólogos experientes que poderiam, através dos artefatos que ele vira (e comera), analisar com precisão o nível da cultura daquele planeta, ou pelo menos das pessoas que viviam naquela região. As paredes de tijolos resistentes e pedras, unidos com uma sólida argamassa, os postes de madeira para os animais, a torneira que desaguava numa bacia de pedra, as janelas sem vidro, cobertas apenas por persianas de madeira, diziam uma coisa sobre aquela cultura, de acordo com as cercas e a latrina tosca: era uma sociedade agrícola de baixo nível. Só que ele não podia ter certeza. Afinal, aquele lugar não passava de um abrigo para pastores, um refúgio de emergência para o mau tempo, e nenhuma civilização desperdiçava muita capacidade tecnológica nessas circunstâncias. Por outro lado, havia o tipo de previsão sofisticada na construção de um prédio assim, abastecido com alimentos imperecíveis, para atender a eventuais necessidades, até mesmo a precaução para evitar as breves saídas para satisfazer as necessidades fisiológicas. A manta era muito bem-feita, uma obra de artesão rara naqueles dias, de fibras sintéticas e trajes descartáveis. E, assim, ele chegou à conclusão de que as pessoas daquele planeta podiam ser muito mais civilizadas do que imaginara.

Andrew mudou de posição na palha e piscou espantado, pois a moça surgira outra vez, na escuridão. Ainda usava o traje azul fino e rasgado que irradiava um brilho pálido, como o gelo. Por um momento, embora ainda acreditasse que ela não passava de uma alucinação, Andrew não pôde deixar de indagar, em voz alta:

- Não sente frio?

Não faz frio no lugar em que me encontro.

Andrew pensou que aquilo era um absurdo total.

- Não está aqui?

Como poderia estar no mesmo lugar que você? Se acha que estou aí - não, aqui - tente me tocar.

Hesitante, ele estendeu a mão. Parecia que devia tocar no braço nu e roliço, mas não havia nada palpável ali. Ele disse, obstinado:

- Não consigo entender. Você está aqui, e não está aqui. Posso vê-la, e é um fantasma. Diz que seu nome é Callista, mas esse é um nome do meu mundo. Ainda acho que enlouqueci, estou falando sozinho, mas adoraria saber como posso explicar tudo isso.

A moça-fantasma emitiu um som que era como uma risada infantil.

- Também não compreendo - murmurou ela. - Como já tentei lhe explicar antes, não era a você que eu tentava alcançar, mas minha parenta e meus amigos. Mas sempre que procuro, não os encontro. É como se suas mentes tivessem desaparecido deste mundo. Por um longo tempo, vagueei por lugares escuros, até que me encontrei a fitar seus olhos. A impressão era a de que já o conhecia, embora meus olhos nunca o tivessem contemplado antes. E, depois, alguma coisa em você continuou a me atrair. Em algum lugar, não neste mundo, já tivemos um contato anterior. Nada represento para você, mas levei-o ao perigo, e por isso me empenhei em salvá-lo. E voltei porque...

Ela fez uma pausa, parecendo estar à beira das lágrimas.

- Sinto-me muito solitária, e até mesmo um estranho é melhor do que nenhuma companhia. Quer que eu vá embora de novo?

- Não, Callista, fique comigo. Mas não estou entendendo nada.

Ela permaneceu em silêncio por um momento, como se avaliasse a situação. Por Deus, como ela parece real!, pensou Andrew. Podia vê-la respirando, a suave subida e descida dos seios, por baixo do traje rasgado. Um de seus pés parecia manchado; ele olhou bem, constatou que não era uma equimose, mas sim uma crosta de sangue ressequido, e perguntou:

- Está ferida?

- Não é nada de mais. Perguntou como eu posso estar aí com você. Creio que sabe que vivemos em mais de uma dimensão, e que o mundo em que se encontra agora é o mundo sólido, o mundo das coisas, o mundo de corpos concretos e criações físicas. Mas no mundo em que estou, deixamos nossos corpos para trás, como roupas que se tornaram pequenas, ou peles de cobra na muda, e o que chamamos de lugar não tem sentido. Estou acostumada a este mundo, fui treinada para percorrê-lo, mas de alguma forma venho sendo mantida numa parte dele em que nenhuma das mentes do meu povo pode alcançar. Enquanto vagueava pela planície cinzenta e informe, seus pensamentos fizeram contato com os meus, e o senti com clareza, como mãos se encontrando na escuridão.

- Está na escuridão?

- Onde meu corpo é mantido, estou na escuridão. Mas posso vê-lo no mundo cinzento, assim como você também pode me ver. Vi sua máquina voadora sofrendo o acidente, e sabia que cairia na ravina. E ao vê-lo perdido na tempestade percebi que se achava próximo deste abrigo de pastores. Vim até aqui para lhe mostrar onde os alimentos eram guardados, se não conseguisse encontrá-los.

- Já descobri - murmurou Andrew. - Não sei o que dizer. Pensei que era um sonho, mas você se comporta como se fosse real.

Outra vez o som que parecia uma risada.

- Posso lhe assegurar que sou tão real e de carne e osso quanto você. E daria tudo para estar com você neste abrigo frio e escuro, já que fica a poucos quilômetros de minha casa, e poderia voltar para lá, sentar junto ao fogo, assim que a tempestade passasse. Mas eu...

No meio da frase, ela desapareceu abruptamente. Por alguma estranha razão, isso contribuiu mais para convencer Andrew de sua realidade do que qualquer coisa que ela dissera. Se fosse apenas uma projeção de sua imaginação, se seu subconsciente a tivesse criado como uma alucinação, como homens sozinhos, com frio, em extremo perigo, costumavam fazer, atendendo a seus desejos mais profundos, era mais do que certo que a teria mantido ali; pelo menos deixaria que ela terminasse a frase. O fato de a moça ter sumido no meio de uma frase parecia indicar que não apenas ela estivera realmente ali, em algum sentido intangível, mas também que uma terceira parte desconhecida possuía um poder superior sobre suas idas e vindas.

Ela estava assustada, e triste também. Sinto-me muito solitária, e até mesmo um estranho é melhor do que nenhuma companhia.

Com frio e sozinho num mundo estranho e desconhecido, Andrew Carr podia muito bem compreender isso. Era mais ou menos como se sentia.

Não é que ela fosse uma companhia tão ruim, se é que de fato existia...

É verdade que não se encontrava muita satisfação numa companhia que não se podia tocar. E, no entanto... embora não pudesse tocá-la, havia algo surpreendentemente atraente na moça.

Andrewjá conhecera muitas mulheres, pelo menos no sentido bíblico. Conhecera seus corpos e um pouco de suas personalidades, e o que queriam da vida. Mas jamais se aproximara o suficiente de qualquer delas para se sentir mal quando chegava o momento de partirem em direções opostas.

Tenho de enfrentar a situação. Desde o momento em que vi a moça na bola de cristal, ela tem sido tão real para mim que me dispus a mudar minha vida pelo avesso, apenas pela possibilidade de que fosse mais do que um sonho. E agora sei que ela é real. Salvou minha vida uma vez; não, duas vezes. Eu não duraria muito tempo naquela nevasca. E ela está em apuros. Diz que a mantêm no escuro, e nem mesmo sabe onde se encontra.

Se eu sair daqui vivo, vou descobri-la, mesmo que leve o resto de minha vida. Deitado ali, envolto por seu capote e pela manta, sobre um monte de palha, sozinho num mundo estranho, Andrew Carr compreendeu subitamente que a mudança em sua vida, a mudança iniciada quando vira a moça na bola de cristal e renunciara a seu emprego e carreira para permanecer em seu mundo, era total e absoluta. Descobrira seu novo rumo, e este levava na direção da moça. A sua moça. Sua mulher, agora e pelo resto de sua vida. Callista.

Ele era bastante cético para escarnecer um pouco de si mesmo. Não sabia onde ela estava, quem era ou o que era; podia ser casada, com meia dúzia de filhos (é verdade que seria difícil, na sua idade); podia até ser uma sacana espectral... quem sabia como eram as mulheres naquele mundo? Tudo o que sabia a seu respeito era...

Tudo o que sabia a seu respeito era que a moça o comovera, alcançara o seu íntimo mais do que qualquer outra pessoa antes. Sabia que ela se encontrava solitária, angustiada e assustada, que não podia entrar em contato com sua própria gente, que por algum motivo precisava dele. Tudo o que sabia a seu respeito era tudo o que necessitava saber: a moça precisava dele. Por alguma razão, ele era tudo com que ela contava, e se quisesse sua vida, já poderia tê-la tirado. Haveria de procurá-la, de alguma forma, resgatá-la de quem a mantinha cativa no escuro, machucando-a, assustando-a. Haveria de libertá-la. (Isso mesmo, escarneceu o seu outro eu cético, o grande herói, abatendo dragões por sua bela dama, mas ele repeliu o protesto com vigor.) E depois, quando ela estivesse livre e feliz...

Depois, ora, depois cruzaremos a ponte quando a alcançarmos, disse Andrew a si mesmo, com firmeza, e enroscou-se para dormir de novo.

A tempestade se prolongou, até onde ele podia calcular (seu cronômetro ficara avariado no acidente, e não tornara a funcionar), por cinco dias. No terceiro ou quarto dia, ele despertou na semiescuridão para deparar com o vulto indistinto da moça, quieta, dormindo, ao seu lado; ainda desorientado, despertando para sua intensa percepção física - adorável, usando apenas o traje fino e rasgado, que parecia ser a única coisa de que dispunha -, ele se virou para abraçá-la; e depois, com um terrível choque de desapontamento, compreendeu que não havia nada para tocar. Como se a própria intensidade de seus pensamentos a alcançasse, a consciência aflorou no rosto adormecido da moça, os enormes olhos cinzentos se abriram; fitou-o em surpresa, com alguma consternação.

- Desculpe - murmurou ela. - Você... me assustou. Andrew balançou a cabeça, tentando se orientar.

- Sou eu que devo pedir desculpas. Acho que pensei que estava sonhando, e não tinha importância. Não tive a intenção de ofendê-la.

- Não me sinto ofendida - respondeu ela, fitando-o nos olhos. - Se fiquei ao seu lado assim, teria todo o direito de esperar... lamento ter despertado involuntariamente um desejo que não posso satisfazer. Devo ter pensado em você no sono, estranho... não posso continuar a pensar em você apenas como estranho.

Um brilho divertido surgiu nos olhos de Callista.

- Meu nome é Andrew Carr.

- Andrew... Sinto muito, Andrew. Devo ter pensado em você no sono, e fui atraída para o seu lado sem acordar.

Sem qualquer sinal de pressa ou afobação, ela ajeitou o traje sobre os seios e alisou as dobras diáfanas em torno das coxas roliças.

Sorriu, e agora havia quase um brilho de malícia nos olhos tristes.

- Ah, como é lamentável! A primeira vez em que deito com um homem, e nem mesmo posso aproveitar! Mas é condenável zombar de você. Por favor, não pense que sou tão maliciosa assim.

Profundamente comovido, tanto pela brava tentativa da moça de fazer uma piada, quanto por todo o resto, Andrew disse, com extrema gentileza:

- Eu não poderia pensar qualquer coisa que não fosse boa a seu respeito, Callista. Só gostaria... - Surpreso, ele descobriu que sua voz tremia, ao acrescentar: - ...só gostaria de poder lhe oferecer algum conforto verdadeiro.

Ela estendeu a mão - quase aturdida, pensou Andrew, por ter esquecido por um momento que a presença dele também não era física - e a pôs em seu pulso. Ele podia ver seu próprio pulso através dos dedos esguios de Callista, mas ainda assim a ilusão era confortadora.

- Acho que já é alguma coisa, que você possa me proporcionar companhia e... - A voz de Callista tremia; ela chorava. - ...e a sensação de uma presença humana, para alguém que se encontra sozinha no escuro.

Andrew observou-a chorar, desesperado pela visão de suas lágrimas. Assim que ela se recuperou um pouco, ele perguntou:

- Onde você está? Posso ajudá-la de alguma forma? Callista sacudiu a cabeça.

- Já lhe disse. Eles me mantêm no escuro, pois eu poderia escapar se soubesse exatamente onde me encontro. Como não sei com precisão, só posso deixar o lugar com o espírito; o corpo deve permanecer onde o confinaram, e eles devem saber disso. Amaldiçoados sejam!

- Quem são eles, Callista?

- Também não sei com certeza, mas desconfio que não são homens, já que não me causaram qualquer mal físico, além de socos e chutes. É a única coisa pela qual uma mulher dos Domínios pode agradecer quando é capturada pelos outros... ao menos com eles não precisa temer o estupro. Durante os primeiros dias, passei o tempo todo no terror do estupro; como não ocorresse, compreendi que não me encontrava em poder de mãos humanas. Qualquer homem nestas montanhas saberia como me deixar impotente para combatê-los... enquanto os outros não têm recursos além de me tirar as jóias, já que uma poderia ser uma pedra-da-estrela, e me manter no escuro, para evitar que os prejudique com a luz do sol ou das estrelas.

Andrew não entendeu nada. Não se encontrava em mãos humanas? Então quem eram os seus captores? Ele fez outra pergunta:

- Se está no escuro, como pode me ver?

- Posso vê-lo pela luz superior - respondeu ela, o que não constituía uma explicação para Andrew. - Da mesma forma que você pode me ver. Não a luz deste mundo... olhe só. Suponho que sabe que as coisas que chamamos de sólidas são apenas aparências, partículas mínimas de energia reunidas e turbilhonando, com muito mais espaço vazio do que solidez.

- Sei disso.

Era uma maneira estranha de explicar a energia molecular e atômica, mas ela se fez entender.

- Presos a seu corpo sólido, por essas teias de energia, há outros corpos, e se lhe for ensinado, pode usá-los no mundo desse nível. Como posso explicar? Do nível de solidez em que você está. Seu corpo sólido caminha neste mundo, neste planeta sólido sob seus pés, e você precisa da luz sólida de nosso sol. É acionado pela mente, que movimenta seu cérebro sólido, e o cérebro sólido envia mensagens que movimentam seus braços e pernas, e assim por diante. A mente também aciona seus corpos mais leves, cada um dos quais possui sua própria rede elétrica-nervosa de energia. No mundo da luz superior, onde estamos agora, não existe escuridão, porque a luz não provém de um sol sólido. Deriva da rede de energia do corpo do sol, que pode brilhar... como se pode dizer?... através da rede de energia do corpo do planeta. O corpo sólido do planeta pode obstruir a luz do sol sólido, mas não a luz da rede de energia. Entendeu?

- Acho que sim - respondeu Andrew, tentando absorver tudo.

Parecia a história antiga de duplicatas astrais e planos astrais, só que na linguagem de Callista, que ele supunha alcançava sua mente diretamente da mente dela.

- Seja como for, o importante é que você pode vir até aqui. Já houve ocasiões em que desejei sair de meu corpo, deixá-lo para trás.

- Pode fazer isso. É O que acontece com todo mundo no sono, quando as redes de energia se rompem. Mas você não foi treinado para fazê-lo no momento em que desejar. Algum dia talvez eu possa ensiná-lo. - Callista soltou uma risada triste. - Se ambos sobrevivermos, é claro, se ambos sobrevivermos...

 

CAPÍTULO QUATRO

Além das paredes espessas da grande casa em Armida, a tempestade branca desabava, arremetendo e uivando pelas alturas, como se animada por uma fúria pessoal contra o obstáculo de pedra que a mantinha a distância. Mesmo lá dentro, no enorme salão, as janelas eram obscurecidas, e o vento as alcançava com um rugido abafado. Irrequieta e transtornada, Ellemir andava de um lado para outro. Lançando um olhar nervoso para a tempestade, através de uma janela, ela disse:

- Nem mesmo podemos procurá-la com este tempo! E cada hora que passa ela pode se distanciar mais e mais! - Ela virou-se para Damon, furiosa. - Como pode sentar aí na maior calma, esquentando os pés, enquanto Callista está desaparecida no meio da tempestade?

Damon levantou a cabeça e disse suavemente:

- Sente-se, Ellemir. Podemos ter a certeza relativa de que Callista não se encontra exposta à tempestade, onde quer que esteja. Quem se deu tanto trabalho para seqüestrá-la não a deixaria morrer ao relento nas colinas. Quanto a procurá-la, mesmo que o tempo fosse o melhor possível, não poderíamos sair a cavalo pelas colinas Kilghard, gritando seu nome no meio das florestas.

Ele falou com um humor amargo, mas Ellemir fitou-o em profunda irritação.

- Está querendo dizer que não podemos fazer nada, que somos impotentes e que devemos abandoná-la ao destino que se abateu sobre ela?

- Não falei nada disso. Ouviu muito bem. Não podemos procurá-la ao acaso nestas colinas, mesmo que o tempo permitisse. Se ela tivesse sido levada para qualquer esconderijo comum, você já poderia ter feito um contato mental. Vamos aproveitar estes dias de tempestade para iniciar a busca de uma maneira racional, e a melhor maneira para se chegar a isso é sentar e pensar a respeito. Venha sentar, Ellemir. Andar de um lado para outro, com os nervos à flor da pele, não ajudará Callista. Só servirá para deixá-la em condições precárias quando chegar o momento de prestar a ajuda que se tornar necessária. Não comeu nada, e dá a impressão de que não tem dormido. Venha, parenta, sente aqui, ao lado do fogo. E deixe que eu lhe sirva um vinho.

Damon levantou-se, conduziu-a para uma cadeira. Ela fitou-o e murmurou, com os lábios trêmulos:

- Não seja gentil comigo, Damon, ou vou desmoronar e me desmanchar.

- Talvez seja melhor que isso aconteça.

Ele serviu um copo de vinho. Ellemir bebeu devagar. Damon ficou de pé junto da lareira, observando-a.

- Estive pensando, Ellemir. Disse que Callista queixou-se de pesadelos... plantações murchas, garras de gato?

- Isso mesmo.

Damon balançou a cabeça.

- Vim de Serrais com uma escolta. Reidel... um dos meus guardas... comentou o infortúnio que se abatera sobre um parente seu. Ele teria enlouquecido... preste atenção a isso... nas terras escuras, falou em grandes incêndios e ventos que traziam a morte, em mulheres que arrancavam a alma de um homem com garras de gato. Se partisse de outros homens, eu descartaria como bobagem, mera imaginação. Mas conheci Reidel por toda a minha vida. Ele não é de inventar coisas, e até onde sempre pude determinar, não tem mais imaginação do que seu cavalo. Ou melhor, não tinha, já que o pobre coitado morreu. Mas falava sobre o que vira e ouvira, e acho que é mais do que coincidência. E já lhe contei sobre a emboscada, quando fomos atacados por inimigos invisíveis, com armas invisíveis. Só isso seria suficiente para me dizer que algo muito estranho vem acontecendo nas alturas a que começaram a chamar de terras escuras. Como é bem pouco provável que possa haver duas sucessões diferentes de ocorrências insólitas na mesma região, faz sentido começar pela suposição de que a morte dos meus guardas se acha de alguma forma da associada ao que aconteceu com Callista.

- É o que parece - concordou Ellemir. - E isso me indica outra coisa. Não foi um ser humano que arrancou os olhos da velha Bethiah quando ela lutava para salvar sua filha de adoção.

Ela estremeceu, passou os braços em torno dos próprios ombros, como se sentisse muito frio, antes de acrescentar:

- Damon, será possível que Callista esteja em poder do povo-gato?

- Não parece impossível.

- Mas o que poderiam querer com Callista? E o que farão com ela? O que... o que...

- Como vou saber, Ellemir? Só poderia adivinhar. Conheço pouco o povo-gato, embora o tenha combatido. Nunca vi nenhum deles, exceto como cadáver, num campo de batalha. Há quem acredite que são tão inteligentes quanto os humanos, e há os que estão convencidos de que são pouco mais que animais. Creio que não há ninguém, desde os tempos de Varzil, o Bom, que saiba alguma coisa sobre eles com certeza.

- Há uma coisa de que temos certeza - murmurou Ellemir, sombria. - Lutam como homens, e às vezes até com mais fúria.

- É verdade.

Damon ficou em silêncio, pensando em seus guardas, emboscados e mortos numa encosta abaixo de Armida. Haviam morrido para que ele pudesse sentar ali, ao lado do fogo, em companhia de Ellemir. Sabia que nada poderia ter feito para salvá-los, e partilhar sua morte de nada serviria para ninguém, mas ainda assim o sentimento de culpa o dilacerava, e tão cedo não seria apaziguado.

- Assim que a tempestade passar, devo providenciar para que eles sejam enterrados - disse ele, para acrescentar com uma ligeira hesitação: - Se ainda restar deles o suficiente para ser enterrado.

Ellemir citou um conhecido provérbio das montanhas:

- O morto no céu sente-se feliz em lamentar as indignidades com seu cadáver; o morto no inferno tem muitas outras coisas para lamentar.

- Ainda assim, por seus parentes, farei o que for possível.

- É o destino de Callista que me perturba agora. Fala mesmo sério, Damon? Acha que Callista se encontra em poder de não-humanos? Além de todas as outras considerações, o que eles poderiam querer com ela?

- Quanto a isso, criança, sei tanto quanto você. Apenas é possível... e devemos aceitar todas as possibilidades... que eles a tenham levado por alguma razão inexplicável, compreensível apenas para não-humanos, que nós, sendo humanos, nunca poderemos saber ou entender.

- Mas isso de nada ajuda! - protestou Ellemir, exasperada. - Parece até com as histórias de horror que eu ouvia quando era criança. Alguma jovem era seqüestrada por monstros, e quando eu perguntava por que os monstros a levaram, a babá respondia que era porque eles eram monstros, e os monstros sempre eram maus...

Ela parou de falar por um momento, e a voz se tornara embargada quando continuou:

- Isto é real, Damon. Ela é minha irmã! Não me venha com histórias infantis!

Damon fitou-a calmamente.

- Nada podia estar mais longe de minha mente. Já lhe disse antes: ninguém realmente sabe coisa alguma sobre o povo-gato.

- Exceto que eles são maus!

- O que é o mal? - indagou Damon, cansado. - Diga que eles praticam o mal contra seu próprio povo, e concordarei plenamente com você. Mas se disser que são maus de uma forma intrínseca, sem qualquer motivo, apenas pelo prazer de fazer o mal, e os estará transformando naqueles monstros das histórias infantis a que se referiu. Comentei apenas que somos humanos e eles o povo-gato, e assim temos de aceitar que talvez não sejamos capazes de compreender, nem agora nem nunca, quais teriam sido os seus motivos para o seqüestro de Callista. Mas isso não passa de algo para termos sempre em mente... que os motivos que adivinharmos para o seqüestro talvez sejam meras aproximações humanas das verdadeiras razões deles, e não toda a verdade. Além do mais, por que roubariam mulheres, e por que Callista em particular? Nunca ouvi dizer que fossem canibais, comedores de carne; e de qualquer forma as florestas se encontram repletas de caça nesta época, e assim devemos presumir que não foi esse o motivo.

- Está tentando me deixar horrorizada? - perguntou Ellemir, ainda irritada.

- Claro que não. Ao contrário, tento dissipar os horrores. Se houve algum vago pensamento em sua mente de que ela pode ter sido morta e comida, creio que deve descartá-lo. Como mataram

seus guardas e estropiaram sua mãe de adoção, não era apenas qualquer humano que eles queriam, nem mesmo qualquer mulher. Levaram-na por isso, não porque ela era humana, não porque ela fosse mulher, mas porque era uma fêmea humana específica: porque era Callista.

- Bandidos e salteadores costumam roubar jovens donzelas, para escravas ou concubinas, às vezes para vender nas Cidades Secas...

- Acho que pode esquecer também essa possibilidade - declarou Damon, com firmeza. - Afinal, deixaram em paz todas as suas servidoras. Além do mais, para que o povo-gato ia querer uma fêmea humana? Há histórias sobre cruzamentos entre homem e chieri, nos tempos antigos, mas quase todas não passam de lendas, e nenhum homem vivo pode afirmar se têm ou não procedência. Quanto aos outros, nossas mulheres não servem para eles, tanto quanto as deles não servem para nós. É possível, sem dúvida, que tenham algum cativo humano que quisesse uma esposa, mas mesmo que fossem altruístas e generosos, a ponto de atender seu desejo, o que eu acho muito difícil de acreditar, havia uma dúzia de servidoras nos prédios externos, tão jovens quanto Callista, quase tão bonitas, e muito mais fáceis de capturar. Se queriam apenas mulheres humanas, como reféns ou para vender como escravas em algum lugar, eles as teriam levado também. Ou levariam apenas as servidoras, e deixariam Callista.

- Ou a mim. Por que arrancaram Callista de sua cama e me deixaram dormindo na minha?

- Isso também. Você e Callista são gêmeas. Eu sou capaz de distingui-las, mas também as conheço desde que tinham os cabelos curtos demais para fazerem tranças. Um estranho nunca conseguiria perceber a diferença, e poderia tomar Callista por você. Por outro lado, também é possível que quisessem uma refém, ou alguém para manter em troca de um resgate, e pegaram a primeira que apareceu.

- Não. Minha cama fica mais perto da porta, e eles tiveram de contorná-la em silêncio, com todo o cuidado, para chegar a Callista.

- Portanto, Ellemir, tudo se resume à única diferença entre vocês. Callista é uma telepata e Guardiã. Você não é. Só podemos presumir que, de alguma forma, eles sabiam qual era a telepata, e por algum motivo queriam seqüestrar a única mulher aqui que se ajustava a essa descrição. Por quê? Sei tanto quanto você, mas tenho certeza de que foi por isso que levaram Callista.

- O que ainda nos deixa longe de uma solução - disse Ellemir, quase frenética. - Os fatos são que ela desapareceu, e não sabemos onde se encontra. E toda a sua especulação de nada adianta.

- De nada adianta? Pense um pouco. Sabemos que é bem provável que ela não tenha sido morta, exceto por um acidente; se eles tiveram tanto trabalho para seqüestrá-la, é mais do que provável que a tratem com o maior cuidado, alimentando-a bem, mantendo-a aquecida, considerando-a como um tesouro. Ela pode estar assustada e solitária, mas tudo indica que não sente frio, fome ou dor, e é mais do que improvável que tenha sofrido abusos físicos. Ou seja, não foi estuprada. Isso, pelo menos, deve tranqüilizá-la um pouco.

Ellemir levantou o copo com vinho esquecido e tomou um gole.

- Mas isso não nos ajuda a recuperá-la, nem mesmo a saber onde procurá-la.

De qualquer forma, ela parecia um pouco mais calma, o que deixou Damon satisfeito.

- Uma coisa de cada vez, menina. Talvez, depois da tempestade...

- Depois da tempestade, os rastros ou pistas que eles possam ter deixado estarão apagados.

- Por tudo o que sei, o povo-gato não deixa pistas que um homem possa perceber; talvez nem mesmo outro gato. Seja como for, não sou um rastreador. Se eu puder prestar alguma ajuda, não será assim.

Os olhos de Ellemir se arregalaram, e subitamente ela agarrou o braço de Damon.

- Damon! Você também é um telepata treinado... pode encontrar Callista assim?

Ela parecia feliz e animada com a perspectiva, a tal ponto que Damon sentiu um aperto no coração por ter de destruir essa esperança, mas sabia que não havia outro jeito.

- Não é tão fácil assim, Ellemir. Se você, irmã gêmea, não consegue entrar em contato com ela, deve haver algum motivo para o bloqueio.

- Mas também não tive qualquer treinamento, conheço muito pouco - insistiu Ellemir, esperançosa. - Você foi treinado na Torre...

O homem suspirou.

- Tem razão. E vou tentar. Sempre tive a intenção de tentar. Mas não espere muito, breda.

- Vai tentar agora?

- Farei o que puder. Primeiro, traga-me alguma coisa de Callista... uma jóia que ela use bastante, um traje que vista com freqüência, algo nesse gênero.

Enquanto Ellemir ia buscar o que ele pedira, Damon tirou a pedra-da-estrela da seda protetora e contemplou-a, pensativo. Telepata, é verdade, e treinado na Torre, onde estudara as antigas ciências telepáticas de Darkover... por algum tempo. E o dom hereditário, o laran ou poder telepático da família Ridenow, era a percepção psíquica de forças extra-humanas, embutido no material genético do Domínio de Ridenow séculos antes, para momentos como aquele. Naqueles dias, porém, as antigas ciências não-causais de Darkover haviam caído em desuso; por causa dos casamentos mistos, os antigos dons do laran quase nunca eram transmitidos por inteiro. Damon herdara o dom de sua família na totalidade, mas durante toda a sua vida o encarara como uma maldição, em vez de uma bênção, e abstivera-se de usá-lo até agora.

Como se abstivera de usá-lo - tinha de enfrentar o fato agora, assim como seu sentimento de culpa - para salvar seus homens. Pressentira o perigo. A viagem, que deveria ter sido pacífica, rotineira, uma missão de família, transformara-se num pesadelo, impregnada de ameaças. Contudo, não tivera coragem de usar sua pedra-da-estrela, a matriz que ganhara durante seu treinamento na Torre, sintonizada com os padrões telepáticos de sua mente, não podendo ser usada ou tocada por qualquer outra pessoa.

Porque ele a temia... sempre a temera.

O tempo voltou atrás, desapareceu por um momento, aniquilando quinze anos entre aquele instante e um Damon mais jovem, parado de cabeça baixa diante da Guardiã Leonie, a mesma Leonie, agora envelhecida, que Callista deveria substituir. Leonie já não era jovem naquele tempo, e estava longe de ser bonita, os cabelos flamejantes perdendo e viço e clareando, o corpo liso e magro, mas os olhos cinza gentis e compadecidos.

- Não, Damon, ninguém pode dizer que você fracassou, ou que me desagradou. E todos nós... eu inclusive... amamos você, e o apreciamos muito. Mas você é sensível demais, não consegue se resguardar. Se tivesse nascido mulher, num corpo de mulher, teria sido uma Guardiã, talvez uma das maiores. Mas como um homem... Leonie dera de ombros. - ...destruiria a si mesmo, seria dilacerado. Livre da Torre, talvez possa se cercar com outras coisas, tornar-se menos sensível, menos...

Ela hesitara, procurando pela palavra certa.

- ...menos vulnerável. É para o seu próprio bem que o mando embora, Damon; por sua saúde, por sua felicidade, talvez até por sua sanidade.

De leve, quase um sopro, seus lábios roçaram na testa de Damon, e ela acrescentara:

- Sabe que eu o amo; e, por isso, não quero destruí-lo. Parta agora, Damon.

Não podia haver apelação, e Damon fora embora, condenando a vulnerabilidade, o dom que possuía como uma maldição.

Lançara-se numa carreira nova, no Conselho do Comyn, e embora não fosse soldado, nem espadachim, até assumira o comando da Guarda; sempre impetuoso, precisava provar a todo instante a sua capacidade. Nunca admitira, nem para si mesmo, como aquela conversa com Leonie abalara profundamente o seu senso de virilidade. Passara a se abster, em horror e pânico, de qualquer trabalho com a pedra-da-estrela (embora ainda a carregasse, já que se tornara uma parte dele).

E agora tinha de fazê-lo, embora sua mente, os nervos, todos os sentidos protestassem em revolta...

Ele voltou com um sobressalto ao presente, quando Ellemir indagou, hesitante:

- Damon... está dormindo?

Ele sacudiu a cabeça, como se quisesse desanuviá-la dos fantasmas do passado, de fracasso e medo.

- Não, não... apenas me preparava. O que me trouxe de Callista?

Ela abriu a mão: havia ali uma borboleta de prata filigranada, com pedras de várias cores.

- Callista sempre usou isto nos cabelos.

Havia até alguns fios sedosos e compridos ainda presos no fecho.

- Tem certeza de que é dela? Imagino que vocês, como todas as irmãs, partilham os ornamentos... minhas próprias irmãs sempre se queixavam disso.

Ellemir virou-se para mostrar a travessa em formato de borboleta que prendia seus cabelos na nuca.

- O pai sempre mandou fazer os ornamentos de Callista em prata, e os meus em dourado, a fim de que pudéssemos distingui-los. Estas travessas foram fabricadas em Carthon, há muitos anos, e Callista a usa nos cabelos todos os dias, desde então. Não dá muita importância a jóias, e me deu a pulseira do conjunto, mas sempre usou a travessa.

Parecia detalhado e convincente. Damon pegou a travessa de prata entre os dedos, fechou os olhos e tentou sentir o que podia do objeto.

- Tem razão, é mesmo de Callista - murmurou ele, depois de um momento.

- Dá para sentir? Damon deu de ombros.

- Dê-me o seu por um momento.

Ellemir virou-se e tirou a travessa dos cabelos, um pouco de lado, recatada, de tal forma que ele só teve um vislumbre rápido de seu pescoço à mostra. Damon estava tão sensibilizado para ela naquele instante que até a visão fugaz provocou uma intensa reação sexual em seu corpo; tratou de repeli-la, com firmeza, para um nível mais profundo da consciência. Não era tempo para isso agora. Ellemir pôs o ornamento dourado em sua mão. Vibrava com a sensação de -eu ser. Damon respirou fundo, tornou a forçar a percepção abaixo do nível consciente.

- Feche os olhos - murmurou ele.

Como uma criança, ela fechou os olhos, apertou com toda a força.

- Estenda as mãos... - Damon pôs os ornamentos nas palmas rosadas. - Agora, se não for capaz de me dizer qual é o seu, não é filha do Domínio de Alton...

- Meu laran foi testado quando eu era criança, e me disseram que era quase nada, em comparação com Callista...

- Nunca se compare com ninguém - protestou Damon, com um súbito ímpeto de raiva. - Concentre-se, Ellemir.

Ela murmurou, com um tom de surpresa:

- Este é o meu... tenho certeza.

- Abra os olhos e veja.

Ellemir abriu os olhos azuis, contemplou atônita a borboleta dourada em sua mão.

- Mas é isso mesmo! A outra parecia estranha... Como fiz isso?

Damon tornou a dar de ombros.

- Esta... a sua... tem a impressão de sua personalidade, todas as suas vibrações. Seria ainda mais simples se você e Callista não fossem gêmeas, pois as gêmeas partilham muitas vibrações. Por isso é que eu queria ter certeza de que você nunca usara a travessa dela, já que é muito difícil distinguir uma gêmea de outra apenas pela impressão telepática. É verdade que Callista tem uma impressão mais definida, por ser Guardiã.

Ele parou de falar, com um novo ímpeto de raiva. Ellemir sempre vivera à sombra da irmã. Era muito boa e gentil para acalentar qualquer ressentimento. Por que tinha de ser tão humilde? Damon conteve o impulso irracional de irritação, e disse calmamente:

- Acho que você tem mais laran do que imagina, embora seja verdade que em gêmeas uma sempre pareça ter mais do que a sua quota normal do dom, enquanto a outra fica com menos. É por isso que as melhores Guardiãs costumam ter uma irmã gêmea, pois têm a sua quota e, ainda por cima, uma parte da quota de potencial psíquico da outra.

Damon ajeitou a pedra-da-estrela entre as mãos. Faiscou para ele, azul e enigmática, pequenas línguas de fogo se agitando em suas profundezas. Fogo para queimar sua alma em cinzas... Damon cerrou os dentes, contra a náusea fria de seu pavor, e disse em voz áspera:

- Você terá de ajudar.

- Como? Não conheço nada sobre isso.

- Nunca manteve vigília por Callista quando ela saía} Ellemir balançou a cabeça.

- Ela nunca me disse qualquer coisa sobre seu treinamento ou trabalho. Alegava que era muito difícil, e preferia esquecê-lo quando vinha para cá.

- Uma pena. - Damon ajeitou-se confortavelmente na cadeira e acrescentou: - Muito bem, terei de lhe ensinar agora. Seria mais fácil se já tivesse experiência, mas tem condições de fazer o que é preciso. É bem simples. Ponha suas mãos em meus pulsos, a fim de que eu ainda possa ver a pedra-da-estrela, mas... isso mesmo, neste ponto. E agora...

Ele se projetou, tentando fazer um contato telepático. Ellemir se encolheu fisicamente, e ele sorriu.

- Aí está, você pode perceber o contato. Agora, só precisa se manter de vigia sobre meu corpo, enquanto estou fora, à procura de Callista. Assim que eu sair, o contato se tornará frio, meu coração e pulsação vão diminuir um pouco. Isso é normal, não precisa sentir medo. Mas se formos interrompidos, não deixe que ninguém me toque. Acima de tudo, não deixe que ninguém me mude de posição. Se a minha pulsação acelerar e disparar, ou se as veias nas têmporas incharem, ou se o corpo se tornar muito frio ou muito quente, então deve me despertar.

- Como faço isso?

- Chame meu nome, e ponha toda a sua força por trás. Não precisa falar em voz alta, basta projetar seus pensamentos para mim, chamando meu nome. Se não conseguir me despertar, e se ficar pior... por exemplo, se eu apresentar alguma dificuldade para respirar... acorde-me imediatamente, não espere mais. Por fim, mas apenas se não conseguir me despertar por qualquer outro meio, toque na pedra.

Damon fez uma pausa ao dizer isso, estremecendo.

- Só como um último e desesperado recurso; é doloroso, e pode me lançar em estado de choque.

Ele sentiu que as mãos de Ellemir em seus pulsos tremiam, sentiu seu medo e hesitação, como um tênue nevoeiro, toldando a clareza de seu próprio pensamento.

Pobre criança. Eu não deveria fazer isso com ela. É muito azar. Se Callista tinha de se meter em alguma encrenca... Ele forçou-se a ser justo e tentou acalmar o coração, que batia forte. Também não era culpa de Callista. Deveria guardar suas imprecações para os seqüestradores. Ellemir murmurou, tímida:

- Não fique zangado, Damon.

Ele pensou: É um bom sinal, ela pode sentir que estou irritado. Em voz alta, ele declarou:

- Não estou zangado com você, breda.

Ele usou a palavra de intimidade que podia significar parenta, ou então querida. Ajeitou-se da forma mais confortável possível, concentrando toda a sensitividade na travessa de Callista entre suas mãos, por baixo da pedra-da-estrela, pulsando em ritmo inconsciente com suas próprias correntes nervosas. Tentou bloquear todo o resto, todas as outras sensações, o contato das mãos frias de Ellemir em seus pulsos, a respiração quente da moça em seu pescoço, a fragrância feminina que aspirava na proximidade; apagou tudo isso, e mais o brilho do fogo e das velas além, eliminou as sombras da sala, a visão mergulhando na vibração azul da pedra-da-estrela. Sentiu com a mente, mais do que fisicamente, o relaxamento dos músculos, à medida que o corpo se tornava insensível. Por um instante, nada existia ao redor, exceto o vasto azul da pedra-da-estrela, pulsando com as batidas de seu coração, e depois o coração parou, ou pelo menos ele deixou de ficar consciente para qualquer outra coisa que não fosse aquele azul em expansão: um clarão, uma chama azul, um mar avançando para engolfá-lo...

Com um choque breve e intenso, Damon saiu de seu corpo, pairou acima, olhando para baixo com uma certa isenção irônica, contemplando a figura magra, arriada na cadeira, a moça frágil e assustada, ajoelhada, segurando seus pulsos. Não estava de fato vendo, mas percebendo, de alguma estranha maneira, através das pálpebras fechadas.

A luz superior, formando-se ao seu redor, projetou outro rápido olhar para baixo. O corpo na cadeira usava um gibão surrado e um culote de couro, mas como sempre acontecia quando saía, sentia-se mais alto, mais forte, mais musculoso, movendo-se sem esforço, enquanto as paredes do grande salão se tornavam mais finas e se afastavam. Este corpo, se é que se podia chamar de corpo, usava uma túnica reluzente, dourada e verde, que cintilava com um brilho de fogo. Leonie lhe dissera uma ocasião que "é assim que sua mente o vê". Estava com os braços descobertos e descalço, sentiu um divertimento incongruente. Sair para a nevasca desse jeito? Mas é claro que a nevasca não caía aqui, embora se prestasse atenção pudesse ouvir o uivo distante do vento. Compreendeu que a violência da tempestade devia ser intensa, se o seu eco conseguia penetrar no mundo superior. Enquanto formulava esse pensamento, sentiu que começava a tremer, e no mesmo instante descartou o pensamento e a lembrança da nevasca; sua consciência podia solidificá-la naquele plano, trazê-la para cá.

Foi avançando, deslizando, sem ter noção de passos separados. Estava consciente da borboleta de Callista ainda entre suas mãos, palpitando como uma coisa viva, vibrando com a impressão de sua "voz" mental. Ou melhor, já que a jóia se encontrava nas mãos de seu corpo, "lá embaixo", o equivalente mental do ornamento que ele segurava "aqui". Tentou se tornar ainda mais sensitivo para as reverberações especiais daquela "voz", a que acrescentou seu chamado, um grito que lhe parecia como um berro estrondoso.

"Callista!"

Não houve resposta. E também não a esperava; se fosse tão simples assim, Ellemir já teria entrado em contato com sua irmã gêmea. Ao seu redor, o mundo superior ainda se mantinha tão quieto quanto a morte. Damon olhava ao redor durante todo o tempo, consciente de que o mundo e ele próprio não passavam de visualizações confortáveis para algum nível intangível de realidade... Que ele encarava como um "mundo" porque era mais conveniente ver e sentir assim do que como um reino mental intangível; que se visualizava como um corpo, avançando por uma vasta planície, vazia e árida, porque era mais fácil e menos desconcertante do que se visualizar como um ponto sem corpo de pensamento, à deriva em outros pensamentos. No momento, parecia-lhe um horizonte vasto e plano, estendendo-se difuso, vazio e silencioso por intermináveis espaços e céus. A distância, sombras pairavam, e atraíram sua curiosidade. Deslocou-se depressa nessa direção, sem a necessidade de dar passos.

Ao se aproximar, as sombras se tornaram mais definidas, adquirindo contornos humanos, que pareciam estranhamente cinza e desfocados. Damon sabia que desapareceriam se lhes falasse - se nada tivessem a ver com ele, ou com sua busca - ou no mesmo instante entrariam em foco. O mundo superior nunca era vazio; havia sempre mentes ali, no astral, por uma ou outra razão, mesmo que fossem apenas de adormecidos deixando seus corpos, as mentes cruzando com a dele no reino informe do pensamento. Divisou uns poucos rostos, indefinidos, como reflexos na

água, de pessoas que reconheceu vagamente. Sabia que eram parentes ou conhecidos seus, que dormiam ou se encontravam em meditação profunda, e que de alguma forma penetrara em seus pensamentos; e sabia também que alguns despertariam com a lembrança de tê-lo visto num sonho. Passou por eles sem tentar falar. Nenhum poderia ter qualquer relação com sua busca.

Mais longe, avistou uma estrutura grande e reluzente, que reconheceu de visitas anteriores àquele mundo, e sabia que era a Torre em que fora treinado, anos antes. Em geral, fazia um desvio, centornando-a, em tais jornadas, sem passar perto; agora, sentiu que se aproximava, cada vez mais. Nas proximidades, a Torre assumiu forma e solidez. Gerações de telepatas haviam sido treinados ali, explorando o mundo superior daquela base. Não era de admirar que a Torre sobressaísse como um ponto de referência no mundo superior. Era certo que Callista iria até ali, se estivesse naquele plano e livre, pensou Damon.

Ele parou na planície, logo abaixo da estrutura imponente da Torre. Relva, árvores e flores começaram a se definir ao seu redor, sua própria memória e as visualizações conjuntas de todos os que haviam partido da Torre para o mundo superior as mantendo relativamente sólidas ali. Damon caminhou entre as árvores familiares e as flores perfumadas, agora com um senso intenso de perda, de nostalgia, quase de saudade. Passou pelo portão brilhante, parou por um momento sobre as pedras lembradas. E de repente, à sua frente, surgiu uma mulher velada, mas mesmo através dos véus ele a reconheceu: Leonie, a Guardiã da Torre durante os anos que passara ali. Seu rosto era um pouco toldado; metade, ele sabia, o rosto de que se lembrava; e metade o rosto que ela tinha agora.

- Leonie.

A figura difusa se consolidou, assumiu uma forma mais clara e definida, até as pulseiras de cobre, no formato de serpentes, que ela sempre usava.

- Damon, o que faz neste plano, esta noite?

Ele estendeu a travessa de prata, sentindo-a fria e sólida entre seus dedos. Ao falar, ouviu a própria voz estranhamente fina:

- Procuro por Callista. Ela desapareceu, e sua irmã gêmea não consegue encontrá-la em parte alguma. Por acaso a viu?

Leonie parecia perturbada.

- Não, meu caro. Também a procuramos, e ela não se acha em qualquer plano que possamos alcançar. De vez em quando posso sentir em algum lugar sua presença viva; por mais que procure, no entanto, não consigo descobri-la.

Damon sentiu uma profunda inquietação. Leonie era uma telepata experiente e poderosa, e conhecia todos os níveis acessíveis do mundo superior. Percorria aquele mundo com a mesma facilidade com que andava pelo mundo sólido do corpo. O fato de que tinha conhecimento do apuro de Callista, mas não conseguia localizar sua discípula e amiga, era um mau presságio. Onde, em que mundo Callista se escondia?

- Talvez você possa encontrá-la onde eu não consigo - acrescentou Leonie, gentilmente. - O parentesco de sangue é um vínculo profundo, pode levar ao contato quando a amizade e a afinidade falham, tenho a impressão de que ela se encontra por ali.

Leonie apontou. Damon virou-se na direção indicada e viu apenas uma escuridão densa, enevoada.

- A escuridão é nova neste plano - informou Leonie -, e nenhum de nós pode penetrá-la, pelo menos por enquanto. Quando avançamos naquela direção, somos impelidos por alguma força desconhecida. Não sei quais são as novas mentes que entraram neste nível, mas não vieram para cá com a nossa permissão.

- E acha que Callista pode estar encerrada ali, incapaz de romper a sombra com sua mente?

- Receio que sim. Se ela estiver sendo mantida drogada ou em transe, ou se lhe tiraram a pedra-da-estrela, ou se a trataram tão mal que sua mente resvalou para as trevas da loucura, então pode nos parecer, neste nível, como se ela estivesse prisioneira numa vasta e impenetrável escuridão.

Com a rapidez do pensamento, Damon relatou a Leonie o que sabia sobre o seqüestro de Callista, de sua própria cama em Armida.

- Não gosto desta situação - declarou Leonie. - Assusta-me o que acabou de contar. Soube que há homens estranhos de outro mundo em Thendara, e que vieram até aqui autorizados pelos Hasturs. De vez em quando um deles se projeta num sonho para o mundo superior, mas suas formas e mentes são diferentes, e quase sempre desaparecem se alguém lhes fala. São apenas sombras aqui, mas parecem bastante inofensivos, homens como quaisquer outros, sem muita habilidade nos reinos da mente. Acho difícil acreditar que esses terráqueos... é assim que eles se chamam... pudessem ter alguma participação no que aconteceu com Callista. Que motivo poderiam ter? E já que estão em nosso mundo por consentimento, por que haveriam de nos hostilizar por tal comportamento? Não; parece haver um propósito maior.

Damon tornou-se consciente de que sentia frio outra vez, estremecia. A planície parecia tremer sob seus pés. Sabia que devia seguir adiante, se quisesse permanecer no mundo superior. Falar com Leonie fora um conforto, mas não podia continuar ali, se desejava prossseguir em sua busca por Callista. Leonie percebeu sua determinação e disse:

- Procure-a, com a minha bênção.

Mesmo enquanto ela erguia a mão, no gesto ritual, sua forma se desvaneceu, e Damon descobriu que se afastara muito, não mais se achava no pátio familiar da Torre, mas a uma grande distância, na planície cinzenta, a caminho das trevas.

O frio aumentou, ele estremecia com lufadas sucessivas, como se fossem ventos gelados, projetadas daquela área negra. As terras escuras, pensou ele, sombrio. Para se proteger do frio, visualizou-se com um grosso manto dourado e verde. O frio diminuiu, mas apenas um pouco, e seu movimento para a escuridão se tornou ainda mais lento, como se fluísse dali alguma pressão, empurrando-o para trás. Tinha de fazer um tremendo esforço para avançar, gritando o nome de Callista. Se ela se encontra em algum lugar por aqui, haverá de me ouvir, pensou ele. Mas se Leonie procurara em vão, como ele podia acalentar qualquer esperança de sucesso?

A escuridão fluía, como uma nuvem espessa turbilhonante, e parecia subitamente povoada por formas escuras e retorcidas, rostos ameaçadores, gestos de desafio de braços sem corpo, vislumbrados por um instante na escuridão, desaparecendo no momento seguinte. Damon sentiu um espasmo de medo, um anseio quase angustiado pelo mundo sólido, seu corpo sólido, a lareira em Armida... O mundo parecia repleto de ameaças e gritos entreouvidos. Volte! Volte, ou morrerá!

Ele continuou a seguir em frente, com a maior dificuldade, fazendo força contra a pressão. A travessa de Callista, entre suas mãos, parecia faiscar, vibrar, e Damon sabia que se aproximava dela, cada vez mais...

- Callista! Callista!

Por um instante, a nuvem densa e escura se entreabriu, e ele quase a viu, uma sombra, numa camisola fina e rasgada, os cabelos soltos e emaranhados, o rosto sombrio em dor ou lágrimas. Ela estendeu as mãos em sua direção, num apelo, a boca se mexeu, mas Damon nada ouviu. E depois a escuridão se fechou outra vez, e por um momento ele avistou lâminas de espadas, reluzentes, de estranhos formatos, golpeando.

Com um rápido pensamento, Damon transformou o manto quente numa brilhante armadura. Bem a tempo. Ouviu as lâminas meio invisíveis chocar-se com a armadura e experimentou uma pontada de dor terrível, perto do coração.

As espadas recuaram para a escuridão, e ele tentou se adiantar mais uma vez. A nuvem negra turbilhonou de novo, como um tornado, e do meio do redemoinho ecoou uma voz estridente e maligna:

- Volte. Não pode entrar aqui.

Damon manteve-se firme, empenhando-se para tornar sólida a superfície sob suas botas, para projetar pedras de calçamento familiares, a fim de enfrentar o antagonista invisível num terreno de sua escolha. Mas a superfície ondulava e fluía como água, até que se sentiu tonto, e a voz invisível tornou a falar, autoritária:

- Vá embora, estou lhe dizendo. Vá embora, enquanto ainda pode.

- Com que direito me manda embora? A voz indiferente respondeu:

- Nada sei sobre direito. Tenho o poder de fazê-lo ir embora, e o exercerei. Por que provocar uma luta sem necessidade?

Damon permaneceu no lugar, embora experimentasse a sensação de que oscilava para cima e para baixo, num ritmo vertiginoso, a cabeça latejando de dor.

- Irei embora se minha parenta for comigo.

- Partirá imediatamente, e não tenciono dizer mais nada. Damon sentiu uma enorme pressão, um golpe violento, que jogou sua cabeça para trás. Lutou para resistir, dentro da escuridão turbilhonante, e gritou:

- Apareça! Quem é você? Com que direito veio para cá?

A pedra-da-estrela - ou seu equivalente mental - ainda se achava entre seus dedos; ergueu-a por cima da cabeça, como uma lanterna, e a escuridão foi iluminada por um clarão azul ofuscante. à claridade, ele divisou um vulto alto, numa túnica estranha, com uma cabeça de gato selvagem e enormes garras...

E nesse momento foi atingido por outro golpe violento. A escuridão recuou, com uma ventania uivante, e Damon descobriu-se sozinho no que parecia ser uma encosta escorregadia. O vento soprava ao seu redor, o granizo cortante se chocava com seu rosto... a neve densa, a tempestade...

Ele fez um tremendo esforço para recuperar o equilíbrio, sabendo que deparara com algo que nunca encontrara antes naquele plano. Sua carne parecia formigar, ficou tenso, sabendo que tinha de lutar por sua sanidade, pela própria vida...

Os telepatas de Darkover eram treinados a trabalhar com a pedra-da-estrela, que tinha o poder, ajudada pela mente humana, de transformar energias de uma forma para outra. Nos reinos por que suas mentes viajavam, para realizar esse trabalho, havia coisas estranhas, inteligências que não eram humanas, nem materiais, que vinham de outros reinos de existência. A maioria nada tinha a ver com a humanidade. Outras eram propensas, quando recebiam o contato de mentes humanas explorando nos reinos a que elas, as inteligências alienígenas, pertenciam, a se intrometer com essas mentes humanas. Umas poucas, alcançadas por mentes humanas treinadas para atingir seus níveis, permaneciam em contato com os níveis humanos, e eram visualizadas como demônios, ou como deuses. O dom de Ridenow, o dom que Damon possuía, fora desenvolvido de forma deliberada, nas mentes de sua família, para lhes permitir encontrar e fazer contato com essas presenças alienígenas.

Mas ele nunca vira nenhuma que assumisse aquela forma... o grande gato... Era maligno, não apenas indiferente. Lançara-o ali, no nível da nevasca...

Damon forçou-se a procurar a racionalidade. A nevasca não era real. Era uma nevasca de pensamento, solidificada ali pelo pensamento, e podia se refugiar em outros reinos, onde não havia uma tempestade. Visualizou o sol quente, a encosta de uma montanha toda iluminada... por um momento, a neve quase  desapareceu, mas logo voltou a cair, com uma força renovada. Alguém a projetava contra ele... alguém ou alguma coisa. Os homens-gatos? Callista se encontrava em poder deles?

As rajadas de vento aumentaram, obrigando seu corpo cada vez mais fraco a cair de joelhos. Tentou se levantar, escorregou e estatelou-se no gelo duro, que o cortou. Sentiu que sangrava, congelava, perdia as forças...

Morrendo...

E pensou, com a razão fria: Tenho de sair deste nível, tenho de voltar a meu corpo.

Se ficasse preso ali, fora do seu corpo, seu corpo viveria por alguns instantes, impotente e indefeso, definhando aos poucos, e finalmente morreria.

Ellemir, Ellemir, seu chamado mais pareceu um gnincho. Desperte-me, traga-me de volta, tire-me daqui! Gritou várias vezes, sentindo o uivo do vento levar o som para longe, pelas trevas em que a neve caía. O rosto estava cortado, as mãos sangravam, enquanto tentava ficar de pé, no meio da neve, movimentar-se de quatro, até mesmo rastejar...

Seus esforços foram se tornando mais e mais fracos, foi dominado por um senso de desesperança total, quase de resignação. Nunca, deveria ter confiado em Ellemir. Ela não é bastante forte. Jamais sairei daqui. A sensação foi a de que deslizou, escorregou, na tempestade de pesadelo, por horas a fio...

A agonia envolveu-o, uma dor gelada comprimiu sua cabeça. Um clarão de fogo azul subiu ao seu redor, houve um choque como uma trovoada, e Damon, fraco, ofegante e exausto, descobriu-se arriado na cadeira de braços no grande salão em Armida. O fogo na lareira se apagara havia muito, o salão estava gelado. Ellemir, pálida e apavorada, os lábios roxos e trêmulos, fitava-o.

- Damon, oh, Damon! Acorde! Acorde! Ele ofegou, sentindo muita dor.

- Estou aqui. Já voltei.

De alguma forma, ela o alcançara no pesadelo do mundo superior, trouxera-o de volta. Sua cabeça e coração latejavam, os dentes batiam. Olhou ao redor. A luz do dia começava a se infiltrar pelas janelas compridas; lá fora, o pátio se achava silencioso e pacífico; a tempestade passara, por dentro e por fora. Ele piscou, sacudiu a cabeça e murmurou:

- A nevasca...

- Encontrou Callista?

- Não, mas encontrei seu captor, e ele quase me liquidou.

- Não consegui despertá-lo... e você ficou roxo, ofegante, gemia muito. Acabei pegando a pedra-da-estrela. Quando o fiz, pensei que você tinha sofrido uma convulsão. Achei até que o tinha matado...

E quase o matara mesmo, pensou Damon. Mas fora melhor do que deixá-lo morrer na nevasca furiosa no mundo superior. Ellemir chorara muito. Enlaçando-a, ele murmurou, com profunda ternura:

- Pobre criança... devo ter ficado muito assustada... Ellemir acomodou-se sobre seus joelhos, ainda tremendo;

Damon percebeu que ela estava quase tão fria quanto ele. Pegou uma manta de pêlo pendurada no encosto da cadeira e envolveu a ambos. Dali a pouco reacenderia o fogo; agora, era suficiente se aconchegar dentro daquele calor reconfortante, sentir a rigidez gelada da jovem diminuir um pouco, o tremor passar.

- Meu pobre e querido amor, eu a assustei, ficou quase morta de frio e medo...

Damon beijou as faces frias da jovem, molhadas de lágrimas, e compreendeu que fazia muito tempo que desejava fazer isso; e deixou que seus beijos se deslocassem devagar pelo rosto molhado, até alcançarem os lábios frios, tentando aquecê-los com os seus.

- Não chore, querida, não chore...

Ellemir remexeu-se um pouco contra ele, não em protesto, mas em retribuição consciente, e sussurrou, quase sonolenta:

- Os criados ainda dormem. Devemos reavivar o fogo, chamá-los...

- Esqueça os criados. - Ele não queria nenhuma interrupção naquela nova percepção, naquela nova e maravilhosa intimidade. - Não quero que saia daqui, Ellemir.

Ela ergueu os lábios, beijou-o na boca.

- Não precisa temer coisa alguma...

Permaneceram assim, envoltos pela manta, mal se tocando, mas aquecidos pela proximidade. Damon sentia um cansaço extremo, muita fome, o orrível esgotamento da força nervosa, que era a penalidade inevitável do trabalho telepático. Racionalmente, sabia que deveria se levantar, reacender o fogo, comer alguma coisa, ou teria de pagar em horas e dias de apatia e doença. Mas não podia se mexer, relutava em deixar que Ellemir saísse de seus braços. Por um momento, deixando a exaustão prevalecer, ele mergulhou num breve sono ou inconsciência.

Ellemir sacudiu-o, e podia-se ouvir agora o som de batidas, gritos estranhos. Ela murmurou, atordoada:

- Há alguém na porta... A esta hora? E os criados...? O que...

Damon desvencilhou-se da manta, levantou-se. Atravessou o salão até o pátio interno, cruzou-o para alcançar as enormes portas externas, trancadas. Com os dedos rígidos, sem prática, puxou a tranca, até conseguir soltá-la.

Havia um homem ali, vestindo um enorme capote de pêlo, de padrão desconhecido, tendo por baixo roupas esfarrapadas e esquisitas. Seu sotaque era estranho, alienígena.

- Sou um estrangeiro, perdido aqui. Participava de uma expedição de exploração, partindo da Cidade Comercial. Pode me oferecer abrigo e enviar uma mensagem a meu povo?

Damon fitou-o, confuso por um momento, e depois disse, lentamente:

- Claro. Entre, estranho; seja bem-vindo. Ele virou para Ellemir e acrescentou:

- É apenas um dos terráqueos de Thendara. Já ouvi falar deles. São inofensivos. É o desejo de Hastur que lhes ofereçamos hospitalidade, quando necessário, embora este se encontre de fato extraviado. Chame os criados, breda; ele precisa de comida e fogo.

Ellemir recuperou o controle.

- Entre, estranho. Seja bem-vindo a Armida e à hospitalidade do Domínio de Alton. Vamos ajudá-lo por todos os> meios que pudermos...

Ela parou de falar, pois o estranho a fitava com olhos arregalados e assustados, e balbuciou, a voz trêmula:

- Callista! Você é real, Callista! Atordoada, ela respondeu:

- Não sou Callista, e sim Ellemir. Mas o que você... o que pode saber de Callista?

 

CAPÍTULO CINCO

- Devo lhe dizer logo que não acredito em uma só palavra - declarou a moça que dissera se chamar Ellemir.

Ainda é difícil aceitar que ela não é Callista. As duas são parecidas demais!, pensou Andrew Carr. Ele se recostava no banco de madeira diante do fogo, absorvendo o calor crescente. Era bom estar outra vez dentro de uma casa de verdade, mesmo que a tempestade tivesse acabado. Podia sentir o cheiro de comida sendo preparada em algum lugar, e isso também era maravilhoso. Podia ser absolutamente maravilhoso se não fosse pela moça, que parecia demais com Callista, mas não era, por mais estranho que pudesse parecer; ela se mantinha de pé à sua frente, fitando-o com franca hostilidade, e repetiu:

- Não acredito.

O homem esguio, de cabelos vermelhos, agachado diante da lareira, para alimentar o fogo também parecia exausto, com muito frio, e Andrew especulou se ele não estaria doente), interveio, sem levantar a cabeça:

- Está sendo injusta, Ellemir. Sabe o que eu sou. Posso dizer quando ouço uma mentira, e garanto que ele não mente. Além disso, reconheceu-a. Portanto, deve ter visto antes você ou Callista. E onde um Terranan poderia ver Callista? A menos que sua história seja verdadeira.

O rosto de Ellemir manteve-se obstinado.

- Como sabemos que não foi o povo dele que aprisionou Callista? Ele nos aparece com uma história estranha, que Callista de alguma forma entrou em contato com sua mente, guiou-o quando se encontrava perdido nas montanhas e salvou-o da tempestade. Quer me fazer acreditar que Callista foi capaz de alcançar esse forasteiro, quando você não conseguiu encontrá-la no mundo superior, e quando ela não pôde fazer contato comigo, sua irmã gêmea? Sinto muito, Damon, mas não posso acreditar.

Andrew fitou-a nos olhos.

- Se quer me chamar de mentiroso, faça-o diretamente. A minha história, como a chama, não é das mais agradáveis de contar. Acha que gosto de parecer um louco? A princípio, pensei que a moça fosse um fantasma, como já falei; ou que tinha morrido, e via coisas na vida posterior. Mas quando ela me salvou de cair com o avião, e depois quando me guiou para um lugar seguro, a fim de esperar que a tempestade passasse, convenci-me de que era real. Tinha de acreditar. Não a culpo por duvidar. Eu mesmo duvidei, por um longo tempo. Mas é verdade. E suponho que vocês são parentes de Callista; o céu sabe que é bastante parecida para ser sua irmã gêmea.

É uma pena que esta não tenha um pouco da doce disposição de Callista, pensou Andrew. Mas pelo menos o homem parecia acreditar em sua história.

Damon levantou-se, deixando o fogo para aumentar por si mesmo, agora que pegara direito, e virou-se para Andrew.

- Peço desculpas pela falta de cortesia de minha prima, estranho. Ela tem passado por dias difíceis, desde que a irmã foi seqüestrada, durante a noite. Não é fácil para ela aceitar o que você disse, que Callista pôde entrar em contato com sua mente, quando não conseguiu alcançar a própria irmã gêmea; o vínculo entre gêmeas é considerado o mais forte que se conhece. Também não posso explicar, mas tenho idade suficiente para saber que há muitas coisas nesta vida que nenhum homem... ou mulher, diga-se de passagem... é capaz de compreender. Talvez possa nos contar mais alguma coisa.

- Não sei o que mais posso dizer. Também não compreendo.

- Talvez saiba alguma coisa que nem percebe que sabe - insistiu Damon. - Mas, por agora, pare de pressioná-lo, Ellemir. Quem quer ou o que quer que ele seja, ou quantas verdades existem em tudo o que nos contou, este homem é um hóspede aqui, está cansado e com frio, e até que sejam atendidas suas necessidades de calor e alimento, até que possa dormir o quanto quiser, é uma falha de hospitalidade interrogá-lo. Não faz honra ao Domínio de Alton, parenta.

Andrew acompanhou a conversa mais pelo sentido; havia palavras que não entendia, embora tivesse aprendido em Thendara a falar a língua franca da Cidade Comercial e fosse capaz de se

fazer entender. Deu para perceber que Damon censurava a moça parecida com Callista; ela corou até as raízes dos cabelos vermelhos e disse (falando bem devagar, para que ele pudesse compreender):

- Estranho, não tive a intenção de ofendê-lo. Tenho certeza de que qualquer mal-entendido será esclarecido com o tempo. Por enquanto, aceite a hospitalidade de nossa casa e Domínio. Aqui está o fogo; a comida lhe será trazida assim que ficar pronta. Tem alguma outra necessidade que me esqueci de atender?

- Eu gostaria de tirar este capote molhado.

Já começava a fumegar e a pingar, ao crescente calor do fogo. Damon ajudou-o a tirar, e comentou:

- Nenhuma de suas roupas é apropriada para as tempestades em nossas montanhas, e esses sapatos só servem agora para o lixo. Nunca foram feitos para viajar nas montanhas

Andrew fez uma careta amarga.

- Não planejei esta viagem. Quanto ao capote, pertence a um morto, mas tive a maior satisfação em poder usá-lo.

- Não me passou pela cabeça insultar sua maneira de vestir, estranho. Mas persiste o fato de que usa roupas inadequadas, mesmo para ficar dentro de casa, e ainda mais para uma eventual viagem de volta. Minhas próprias roupas não caberiam em você...

Damon soltou uma risada, fitando o terráqueo, pelo menos uma cabeça mais alto, e quase o dobro em corpulência, e depois acrescentou:

- Se não tiver objeções a usar roupas de um criado, creio que poderei encontrar alguma coisa que o mantenha aquecido.

- É muita gentileza sua. Venho usando estas roupas desde o acidente, e uma mudança não seria nada mal. E bem que preciso também de um banho.

- Posso imaginar. Bem poucos, mesmo entre os que habitam nas montanhas, sobrevivem ao serem surpreendidos pelas tempestades em nossas montanhas.

- Eu não teria sobrevivido se não fosse por Callista. Damon acenou com a cabeça.

- Sei disso. O próprio fato de que você, um estranho em nosso mundo, sobreviveu a uma tempestade constitui uma prova da veracidade do que nos contou. Venha comigo, e lhe providenciarei roupas limpas e um banho.

Andrew seguiu Damon pelos corredores largos e cômodos espaçosos e por um longo lance de escada. Foi levado à última suíte, com janelas grandes, cobertas por cortinas grossas contra o frio. Ao lado de um dos cômodos havia um banheiro grande, com uma enorme banheira de pedra afundada no chão. O vapor subia de uma fonte no meio do banheiro.

- Tome um banho quente e depois se enrole num cobertor - disse Damon. - Acordarei mais alguns criados e encontrarei roupas que lhe sirvam. Devo mandar alguém para ajudá-lo no banho, ou pode fazer tudo sozinho? Ellemir tem poucos criados, mas estou certo de que poderei encontrar alguém para atendê-lo.

Andrew assegurou que estava acostumado a tomar banho sozinho, sem qualquer ajuda, e o jovem se retirou. Ele tomou um banho longo e agradável, afundado até o pescoço na água quente (E eu pensava que este lugar era primitivo!), enquanto especulava sobre o sistema de aquecimento. Os antigos romanos e cretenses, na Terra, tinham os banhos mais requintados da história, então por que aquela gente não podia dispor de algo parecido? Precisariam ter lá embaixo enormes fogueiras de lenha, mas por que não? As lareiras eram consideradas o auge do luxo, mesmo em algumas sociedades que não precisavam delas. Talvez usassem fontes quentes naturais. De qualquer forma, a água quente era muito agradável, e ele se demorou no banho, livrando-se da rigidez dos dias que passara dormindo em chão de pedra, andando pelas montanhas. Ao final, sentindo-se incrivelmente revigorado, saiu da banheira, enxugou-se e envolveu-se com um cobertor.

Damon voltou pouco depois. Dava a impressão de que também aproveitara o tempo para tomar um banho e vestir roupas limpas; parecia mais jovem e menos exausto. Trazia um punhado de roupas, e disse, quase como se pedisse desculpas:

- Estes são trajes pobres para oferecer a um hóspede; é a roupa de festa do intendente do salão.

- Pelo menos são roupas limpas e secas - respondeu Andrew. - Agradeça a ele por mim, quem quer que seja.

- Desça para o salão assim que se aprontar. Haverá comida ali à sua espera.

Sozinho, Andrew vestiu a "roupa de festa do intendente do salão". Consistia de uma camiseta e de uma cueca de linho cru que descia até os joelhos; por cima havia uma calça de um material parecido com camurça, que se alargava dos joelhos até os tornozelos; uma camisa de mangas compridas e largas, presas nos pulsos, toda bordada; e um gibão de couro. Havia meias de tricô, que prendiam nos joelhos, e botas de feltro de cano curto, revestidas com pele. Naqueles trajes, que eram mais confortáveis do que julgara ao vê-los, sentiu-se aquecido, pela primeira vez em muitos dias. Sentia fome também, e quando abriu a porta para descer, só precisou seguir o aroma delicioso que vinha lá de baixo. Perguntou-se, um pouco tarde, se isso o levaria à cozinha, em vez de ao salão; mas a escada terminava num corredor, através do qual podia ver a porta do grande salão, onde fora recebido.

Damon e Ellemir sentavam a uma mesa pequena, e havia uma terceira cadeira, vazia. Damon ergueu a cabeça em cumprimento e disse:

- Perdoe-nos por não tê-lo esperado, mas passei a noite inteira acordado e sentia muita fome. Junte-se a nós.

Andrew instalou-se na terceira cadeira. Ellenmir fitou-o com alguma surpresa quando ele sentou, e comentou:

- Parece um de nós nessas roupas. Damon me contava alguma coisa sobre o povo da Terra. Sempre pensei que os homens de outro mundo seriam diferentes de nós, mais parecidos com os não-humanos das montanhas. Você é humano, sob todos os aspectos?

Andrew riu..,

- Pareço bastante humano para mim mesmo. Seria mais racional perguntar se vocês também são humanos. A maioria dos mundos do Império é habitada por gente que parece mais ou menos humana, pelo menos até onde o observador casual pode determinar. Muitos acreditam que todos os planetas foram colonizados por ancestrais humanos comuns, há milhões de anos. Há uma adaptação considerável ao meio ambiente, mas em planetas como a Terra o organismo humano parece permanecer relativamente estável. Não sou biólogo, e por isso não posso responder a perguntas sobre cromossomos e coisas assim, mas antes de vir para cá fui informado de que a raça dominante em Cottman IV era basicamente humana, embora houvesse algumas pessoas sa-pientes que não eram.

Com um choque, ele recordou o que Callista lhe dissera: que se encontrava em poder de não-humanos. Com toda a certeza, ela gostaria que seus parentes soubessem disso. Mas deveria estragar a refeição? Haveria tempo para contar mais tarde.

Damon estendeu um prato em sua direção, e ele serviu-se do que parecia ser - e tinha o gosto, como logo constatou - uma omelete. Continha ervas e outros vegetais desconhecidos, mas era saborosa. Havia também frutas - a analogia mais próxima com frutas a que estava acostumado eram maçãs e ameixas - e uma bebida que ele já provara na Cidade Comercial, com o gosto de chocolate amargo.

Andrew notou, enquanto comia, que Ellemir o observava furtivamente. Especulou se suas maneiras à mesa eram horríveis, pelos padrões deles, ou se o problema era mais complicado.

Ellemir ainda o perturbava. Era muito parecida com Callista, mas ao mesmo tempo, de uma maneira sutil, bastante diferente. Podia examinar cada detalhe de seu rosto, sem encontrar nada que a diferenciasse de Callista: a testa larga, com os primeiros fios de cabelo curtos demais para serem puxados para trás e reunidos às tranças que caíam pelas costas; os malares salientes e o nariz pequeno e reto, com umas poucas sardas cor de âmbar; o lábio superior curto, a boca pequena e determinada; e o queixo arredondado, com uma covinha. Callista fora a primeira mulher que ele vira naquele planeta que não usava uma abundância de trajes grossos, exceto pelas mulheres que trabalhavam nos escritórios no espaçoporto, dotados de aquecimento central, e essas eram mulheres do Império.

Havia de fato uma sutil diferença. Callista, em todas as ocasiões em que a vira, se encontrava quase despida, em sua camisola azul. Andrew já contemplara quase tudo o que havia para se ver de seu corpo. Se qualquer outra mulher se apresentasse a ele naquele tipo de traje... ora, Andrew sempre fora, por toda a sua vida, o tipo de homem que aproveitava a diversão onde a encontrava, sem qualquer envolvimento mais profundo. E, no entanto, quando despertara e descobrira Callista aparentemente adormecida a seu lado, e estendera as mãos para pegá-la, sentira-se consternado e partilhara o embaraço da moça. Sem qualquer dúvida, não a queria naquelas circunstâncias. Não, não era bem assim. Claro que a queria. Parecia a coisa mais natural do mundo que a desejasse, e ela aceitara isso. Mas ele queria algo mais. Queria conhecê-la, compreendê-la. Queria que ela o conhecesse e  compreendesse, que gostasse dele. Ao mero pensamento de que ela poderia ter motivos para temer algum comportamento mais grosseiro ou insensato de sua parte, Andrew suara frio e quente ao mesmo tempo, como se pudesse estragar por suas reações desajeitadas algo muito terno e precioso, algo perfeito. Mesmo agora, ao recordar o bravo gracejo de Callista ("Ah, como é triste! A primeira vez que deito com um homem, e não posso aproveitar!"), ele sentiu um aperto no coração, uma ternura profunda, que até então desconhecera por completo.

Por aquela moça, Ellemir, ele não sentia nada parecido. Se acordasse e a encontrasse adormecida em sua cama, haveria de tratá-la como a qualquer outra mulher bonita que descobrisse ali, a menos que ela opusesse uma resistência vigorosa... e nesse caso era mais do que provável que ela nunca fosse parar ali. Mas não significaria nada mais do que isso para ele, nada mais do que as outras mulheres que conhecera e desfrutara por algum tempo. Como irmãs gêmeas podiam ter uma diferença tão sutil? Seria apenas o intangível conhecido como personalidade} Mas, no final das contas, ele quase nada sabia sobre a personalidade de Ellemir.

Então, como Callista podia atraí-lo de uma forma tão intensa e irrestrita, numa auto-rendição absoluta, enquanto Ellemir lhe era indiferente? Foi nesse instante que Ellemir largou sua colher e indagou, contrafeita:

- Por que me olha desse jeito, estranho? Andrew baixou os olhos.

- Não percebi que a fitava fixamente. Ela corou até as raízes dos cabelos.

- Não precisa se desculpar. Eu também o observava. Quando soube que homens de outros planetas haviam chegado aqui, mais ou menos esperava que fossem estranhos, esquisitos, como as criaturas das histórias de horror, com chifres e caudas. E aqui está você, igual a qualquer um de nós. Mas sou apenas uma jovem do campo, não estou acostumada às coisas novas, como as pessoas que vivem nas grandes cidades. Era por isso que o observava, como um camponês que nunca vê outra coisa além de suas vacas e ovelhas.

Pela primeira vez, Andrew sentiu uma tênue semelhança com Callista: a franqueza gentil, a honestidade pura, sem  coquetismo ou cautela. Despertou sua simpatia, apesar de toda a hostilidade que ela demonstrara antes. Damon inclinou-se para a frente, pondo a mão sobre a de Ellemir, e disse:

- Criança, ele não conhece nossos costumes. Não teve a intenção de ofendê-la... Estranho, entre nosso povo é ofensivo olhar fixamente para as moças. Se fosse um de nós, eu seria obrigado pela honra a desafiá-lo. A ignorância pode ser perdoada numa criança ou num forasteiro, e sinto que não é um homem que ofenda deliberadamente as mulheres. Por isso lhe explico, sem ofensa.

Ele sorriu, como se ansioso em assegurar a Andrew que não havia mesmo qualquer ofensa. Contrafeito, Andrew desviou os olhos de Ellemir. Era um costume infernal; precisaria fazer um esforço para se acostumar.

- Espero que seja polido fazer perguntas - disse ele. - Preciso de algumas respostas. Vocês vivem aqui...

- É a casa de Ellemir - informou Damon. - Seu pai e irmãos foram para o Conselho do Comyn.

- E você é irmão dela? Marido? Damon sacudiu a cabeça.

- Um parente; quando seqüestraram Callista, ela me chamou. E nós também gostaríamos de fazer algumas perguntas. É um terráqueo, da Cidade Comercial; o que fazia em nossas montanhas?

Andrew falou sobre a expedição de Mapeamento e Exploração, e arrematou:

- Meu nome completo é Andrew Carr.

- Andra - murmurou Ellemir, lentamente, com uma ligeira inflexão. - Ora, não é um nome tão diferente assim; há Anndras e MacAnndras nas colinas Kilghard, Arans e MacArans...

E isso é outra coisa estranha, os nomes neste planeta, pensou Andrew. São muito parecidos com os nomes terráqueos. E, no entanto, até onde ele sabia, aquele mundo não era uma das colônias povoadas pelas naves e sociedades do Império Terráqueo. Mas isso não era importante agora.

- Já comeu o suficiente? - perguntou Damon. - Tem certeza? O frio aqui pode reduzir suas reservas muito depressa; deve comer bem para se recuperar.

Ellemir, mastigando uma fruta seca parecida com passas, comentou:

- Damon, você comeu como se tivesse passado dias na nevasca.

- Foi assim que me senti, acredite - respondeu Damon, num tom amargo, estremecendo. - Não contei tudo, porque ele apareceu, e nossa atenção foi desviada, mas fui lançado num lugar em que havia uma tempestade violenta, e se você não me trouxesse de volta...

Ele fez uma pausa, olhou para Andrew e a moça, como se visse alguma coisa invisível, antes de sugerir:

- Por que não vamos para junto do fogo, onde ficaremos mais confortáveis? Ali, conversaremos à vontade. Agora que se encontra aquecido... e confortável, eu espero...

Damon parou de falar. Andrew, adivinhando que se esperava um comentário formal, apressou-se em declarar:

- Muito. Obrigado.

- Agora é o momento de ouvir sua história de novo, desde o início, e com detalhes.

Foram para a frente da lareira. Andrew sentou num dos bancos de encosto alto, Ellemir numa cadeira baixa, e Damon acomodou-se no tapete, aos pés da moça, dizendo:

- Conte-nos tudo. Quero ouvir em particular cada palavra que trocou com Callista; mesmo que não tenha compreendido, pode haver alguma indicação para nós. Disse que a viu pela primeira vez depois que seu avião caiu...

- Não, essa não foi a primeira vez.

Andrew falou sobre a adivinha na Cidade Comercial, a bola de cristal, como vira o rosto de Callista. Hesitou ao pensamento de tentar explicar como fora profundo o contato casual, e acabou deixando sem comentários. Ellemir indagou:

- Aceitou-a como real na ocasião?

- Não. Pensei que era uma armadilha... da adivinha. Talvez a velha fosse uma intermediária, mostrando-me mulheres pelas razões de sempre. A arte da adivinhação é em geral uma trapaça.

- Como é possível? - disse Ellemir. - Qualquer mulher que simulasse poderes psíquicos que na verdade não possui seria tratada como uma criminosa. É um crime dos mais graves.

Andrew respondeu secamente:

- Meu povo não acredita que haja poderes psíquicos que não sejam simulados. Na ocasião, achei que a moça era um sonho. A realização de um desejo, se preferirem assim.

- Contudo, ela parecia bastante real para que mudasse seus planos e decidisse permanecer em Darkover - comentou Da-mon.

Andrew sentiu-se constrangido sob o seu olhar sugestivo.

- Eu não tinha nenhum lugar especial para onde ir. Sou... como é mesmo o ditado antigo? "Sou o gato que sempre andou sozinho, e todos os lugares são iguais para mim." Portanto, este planeta era tão bom quanto qualquer outro, e melhor do que a maioria.

(Ao dizer isso, Andrew recordou o comentário de Damon, de que podia reconhecer uma mentira, mas não podia explicar, e se sentiria um tolo se tentasse.)

- Seja como for, fiquei aqui. Parecia uma boa idéia na ocasião. Podem até chamar de um capricho.

Para alívio de Andrew, Damon não fez qualquer ressalva às suas palavras, limitando-se a dizer:

- Seja como for, quaisquer que tenham sido os motivos, você ficou. Quando foi isso exatamente?

Andrew indicou a época, e Ellemir balançou a cabeça em perplexidade.

- Nessa ocasião, Callista se encontrava sã e salva na Torre. Dificilmente transmitiria qualquer mensagem psíquica por ajuda e conforto, muito menos para um forasteiro!

Andrew insistiu, obstinado:

- Não peço que me acredite. Tento apenas relatar com exatidão o que aconteceu, como eu o senti. Vocês é que devem compreender essas coisas psíquicas

Outra vez seus olhos se encontraram naquela estranha hostilidade. Damon interveio:

- No mundo superior, o tempo muitas vezes se torna desfocado. Pode haver um elemento de precognição, para ambos.

Ellemir ficou furiosa.

- Está se comportando como se acreditasse na história dele, Damon.

- Eu lhe concedo o benefício da dúvida, e sugiro que você faça a mesma coisa. Devo lembrá-la de uma coisa, Ellemir: nem você nem eu conseguimos alcançar Callista. Se este homem foi capaz, é bem possível que ele seja a nossa única ligação com ela. Seria melhor não irritá-lo.

A moça baixou os olhos e disse, em tom brusco:

- Continue. Não tornarei a interromper.

- Vamos em frente, Andrew. Seu contato seguinte com Callista foi na ocasião em que o avião caiu...

- Depois da queda do avião. Eu estava caído na platibanda, meio inconsciente, e ela me chamou, disse-me para procurar um abrigo.

Devagar, tentando recordar cada palavra que Callista lhe dissera, ele contou como a moça o salvara, no momento em que tentava retornar ao avião, um momento antes de o aparelho cair no fundo da ravina.

- Acha que poderia encontrar o lugar? - perguntou Ellemir.

- Não sei. As montanhas aqui são desconcertantes, ainda mais quando não se está acostumado. Acho que poderia tentar, embora a viagem numa única direção já tenha sido horrível demais.

- Não creio que seja necessário - declarou Damon. - Continue. Quando foi a próxima vez em que ela lhe apareceu?

- Depois que a neve começou a cair. Para ser mais preciso, mais ou menos na ocasião em que aumentava para as proporções de uma grande nevasca, e eu me sentia disposto a desistir de tudo, achando que não havia mais qualquer esperança, e a melhor coisa era encontrar um lugar confortável para deitar e morrer.

Damon pensou a respeito por um momento.

- Sendo assim, a ligação entre vocês funciona nos dois sentidos. Foi a necessidade de Callista que levou ao primeiro contato com você, mas foi a sua necessidade e perigo que a trouxe de volta nessa ocasião.

- Mas se Callista está livre no mundo superior - protestou Ellemir -, por que não se encontrou com você ali, Damon? E por que Leonie não foi capaz de alcançá-la? Não faz sentido!

Ela parecia tão aflita, tão frenética, que Andrew não pôde mais suportar. Era parecido demais com o lamento de Callista.

- Ela me disse que não sabia onde se encontrava... que era mantida no escuro. Se isso serve de algum conforto, Ellemir, ela só me procurou porque já tentara e não conseguira alcançá-la.

Ele tentou reconstituir tudo com as palavras exatas. Não era fácil, e já começava a desconfiar que Callista fizera um contato direto com sua mente, sem muita necessidade de palavras.

- Ela disse que parecia... se bem me lembro... que as mentes de seus parentes e amigos haviam sido apagadas da superfície deste mundo, e que vagueara por muito tempo no escuro, à sua procura, até se descobrir em comunicação comigo. E depois disse que voltaria a me procurar, porque se sentia assustada e sozinha... - Andrew percebeu que sua voz se tornava embargada. - ...e porque um estranho era melhor do que nada. Disse que achava que era mantida numa parte daquele nível... vocês chamam de mundo superior, não é?... em que as mentes de seus parentes e amigos não podiam alcançá-la.

- Mas como? - indagou Ellemir. - Por quê?

- Lamento, mas não sei nada a respeito - respondeu Andrew, humilde. - Sua irmã teve a maior dificuldade para me explicar até isso, e ainda não tenho certeza se entendi direito. Se o que eu digo não é acurado, não é porque eu esteja mentindo, mas porque não tenho a linguagem para expressar. Creio que entendi quando Callista me falou, mas é diferente tentar lhes explicar em sua linguagem.

O rosto de Ellemir abrandou um pouco.

- Não creio que esteja mentindo, Ann’dra - disse ela, outra vez pronunciando o nome errado, naquela maneira estranha e suave. - Se viesse aqui com propósitos insidiosos, tenho certeza de que seria capaz de contar melhores mentiras. Mas, por favor, tente nos dizer de qualquer maneira tudo o que tenha a falar sobre Callista. Ela foi ferida, maltratada, sente alguma dor? Chegou a vê-la? Como ela parecia? Ah, claro, deve tê-la visto, se me reconheceu.

- Ela não parecia ferida, embora tivesse uma cquimose no rosto. Usava um traje azul muito fino, que parecia uma camisola; ninguém em seu juízo perfeito teria saído no frio com uma roupa assim. Tinha... - Andrew fechou os olhos, a fim de visualizá-la melhor. - Tinha um bordado em torno da bainha, em verde e dourado, mas estava rasgado, e não pude ver qual era o desenho.

Ellemir estremeceu.

- Conheço essa camisola. Tenho uma igual. Callista a usava na noite em que... fomos atacadas. Conte-me mais, depressa!

- Uma confirmação para o relato - disse Damon. - Eu a vi, apenas por um breve instante, no mundo superior. Ela ainda usava essa camisola. O que me diz duas coisas. Ele viu mesmo Callista. E... um pouco mais sinistro... ela não pode, por algum motivo, embora ande pelo mundo superior como se fosse seu pátio, vestir-se com algo mais apropriado, mesmo em pensamento. Quando a encontrei antes disso, no mundo superior, ela se vestia como convém a uma leronis, em túnica escarlate, e velada, como uma Guardiã deve se apresentar.

Uma pausa e ele repetiu, involuntariamente, o que Leonie dissera:

- Se ela foi drogada ou se encontra em transe, ou se tiraram sua pedra-da-estrela, ou se foi tão maltratada que sua mente mergulhou nas trevas da loucura...

- Não acredito - interrompeu-o Andrew. - Tudo o que ela fez comigo foi... muito sensato, muito determinado. Guiou-me para um lugar específico, no meio da nevasca, e voltou para me indicar onde encontrar os alimentos guardados ali para uma emergência. Perguntei se não sentia frio, e ela respondeu que não fazia frio no lugar em que se encontrava. Perguntei também sobre a equimose em seu rosto, e ela respondeu que não fora ferida nem maltratada.

- Tente se lembrar de tudo o que ela lhe disse - pediu Damon.

- Informou que a cabana de pastores em que me abriguei durante a tempestade não ficava a muitos quilômetros daqui. Disse que desejava estar ali comigo em seu corpo, a fim de que pudesse, assim que a tempestade passasse... - Andrew franziu o rosto, tentando recordar uma comunicação que agora lhe parecia ter sido mais em pensamentos do que em palavras. - ...ficar aquecida, segura e em casa.

- Conheço o lugar - comentou Damon. - Coryn e eu dormíamos ali quando éramos meninos e saíamos em expedições de caça. Já é alguma coisa que Callista tenha podido ir até lá em pensamento. O que mais ela lhe disse?

Foi depois disso que acordei e a encontrei dormindo quase em meus braços, pensou Andrew. Mas não vou contar essa parte. Só diz respeito a Callista e a mim. E, no entanto, se alguma coisa no que ela dissera pudesse proporcionar a Damon uma pista sobre seu paradeiro... Ele hesitou, indeciso.

Damon percebeu o conflito em seu rosto, e acompanhou-o com mais clareza do que Andrew poderia imaginar. Disse gentilmente, tentando poupá-lo:

- Posso muito bem imaginar que sozinhos, no escuro, ambos em lugares estranhos e hostis, tenham trocado...

Ele fez uma pausa, e Andrew, sintonizado com seu ânimo, compreendeu que Damon procurava por uma palavra que não invadisse demais suas emoções.

- ...trocado confidencias. Não precisa nos falar sobre isso.

É curioso como essas pessoas podem penetrar na sua intimidade, quase saber o que você está pensando. Andrew estava consciente da tentativa de Damon de não violar sua privacidade, ou as coisas mais íntimas que partilhara com Callista. íntimas... uma palavra engraçada, quando nunca a vi pessoalmente. É estranho ter-me tornado tão íntimo de uma mulher que nunca vi. Ele também percebeu a expressão contrariada de Ellemir, e compreendeu que ela sentia a sua intimidade com a irmã gêmea, e não aprovava a situação. Damon também notou o ressentimento de Ellemir, e se apressou em dizer:

- Criança, deve se sentir grata pelo fato de alguém ter conseguido entrar em contato com Callista. Só porque não foi capaz de alcançá-la e confortá-la, não vai se ressentir por um estranho tê-lo feito, não é? Preferia que ela ficasse sozinha em sua prisão?

Ele virou-se para Andrew e acrescentou, como se pedisse desculpas por Ellemir:

- Ela é muito jovem, e são gêmeas. Mas por sua gentileza com minha parenta, estou ansioso em me tornar seu amigo. Agora, se puder me contar alguma coisa sobre o que ela disse a respeito de seus captores...

- Callista disse que estava no escuro, e não sabia exatamente onde se encontrava; se soubesse com precisão, poderia encontrar um meio de sair de lá. Por não saber, seu corpo tinha de permanecer no lugar em que fora confinado. E ela os amaldiçoou.

- Disse quem eram eles? - perguntou Damon.

- O que ela disse não fez sentido para mim. Falou que não eram homens.

- E explicou como sabia disso? Por acaso informou que os vira?

- Não. Disse que não os vira, que desconfiava que a mantinham no escuro para que não pudesse vê-los. E suspeitava que não eram homens porque...

Andrew tornou a hesitar, tentando encontrar a melhor maneira de formular, mas logo pensou: Ora, se Callista não se importou de falar a respeito com um estranho, não pode ser uma coisa tão embaraçosa.

- Ela' disse que sabia que não eram homens porque nenhum deles tentara estuprá-la. Considerava que qualquer homem teria feito isso, o que constitui uma estranha revelação sobre os homens de seu planeta.

- Já sabíamos que quem quer que se rebaixara a seqüestrar uma leronis, uma Guardiã, não podia ser amigo do povo dos Domínios - disse Damon. - Presumo que ela foi seqüestrada não pelos motivos habituais por que se arrebata uma mulher, por vingança ou escravidão, mas por ser uma telepata treinada. Não poderiam esperar que fosse possível obrigá-la a usar seus poderes de Guardiã contra seu próprio povo. Mas se ela fosse mantida prisioneira e tirassem sua pedra-da-estrela, também não poderia usá-la contra eles. E os seqüestradores, se fossem homens, saberiam que uma Guardiã é sempre virgem; que havia uma maneira mais simples e menos perigosa de deixar uma Guardiã incapaz de usar seus poderes contra eles. Uma Guardiã em poder de inimigos de seu povo não permaneceria virgem por muito tempo.

Andrew estremeceu em repulsa. Que mundo infernal é este, onde se considera normal esse tipo de guerra contra as mulheres? Mais uma vez, Damon acompanhou seus pensamentos, e comentou, com uma expressão amarga:

- Não é tão fácil nem tão unilateral assim, Andrew. O homem que tenta estuprar uma leronis não encontra uma vítima fácil ou inocente. Ao fazê-lo, arrisca a própria vida, para não falar da sanidade. Callista é uma Alton, e se atacar com toda a força de seu dom, pode paralisar, se não mesmo matar. O estupro pode ser consumado, isso já aconteceu, mas é uma batalha mais igual do que imagina. Nenhum homem são põe as mãos numa feiticeira do Comyn, a não ser que ela permita. Mas para qualquer um que tenha bons motivos para temer que os poderes de uma Guardiã sejam usados contra ele, pode parecer que o risco vale a pena.

- Mas ela não foi tocada, pelo que você diz - interveio Ellemir.

- Ela disse que não.

- Nesse caso, creio que minha primeira suposição é verdadeira - continuou Damon. - Callista se encontra em poder dos homens-gatos, e agora sabemos o motivo. Calculei antes, quando conversei com Reidel, que em algum lugar das terras escuras alguém ou alguma coisa vem fazendo experiências proibidas com pedras matrizes, tentando desenvolver poderes telepáticos, querendo controlar essas forças, além da tutela do Comyn e dos Sete Domínios. Muitos homens já tentaram isso antes. Mas até onde eu sei, é a primeira vez que uma raça não-humana se empenha nessa tentativa.

Damon estremeceu subitamente, como se estivesse com frio ou medo. Pegou a mão de Ellemir, como se quisesse se tranqüilizar com algo sólido e quente.

Parece que ele está na escuridão e no medo, como Callista, pensou Andrew.

- E eles conseguiram! Tornaram as terras escuras inabitáveis para a humanidade! Podem nos atacar com armas invisíveis, e nem mesmo Leonie foi capaz de encontrar Callista, depois que a esconderam em suas trevas! E eles são fortes, que Zandru os amaldiçoe com escorpiões! São mesmo fortes. Sou treinado na Torre, mas mesmo assim me expulsaram de seu nível, com uma tempestade que não pude superar. Dominaram-me como se eu fosse uma criança! Deuses! Deuses! Somos impotentes contra eles? Não há esperança?

Ele baixou o rosto para as mãos, tremendo. Andrew fitou-o em surpresa e consternação. E depois falou devagar, pondo a mão no ombro de Damon:

- Não fique assim. Essa atitude não ajuda ninguém. Pense um pouco. Acaba de ressaltar que Callista ainda conserva seus poderes, quaisquer que sejam. E pôde entrar em contato comigo. Talvez, apenas talvez... nada sei sobre esse tipo de coisa, sobre as guerras e rivalidades que existem em seu mundo, mas sei alguma coisa sobre Callista e... e me importo muito com ela. Talvez haja alguma maneira de eu descobrir onde ela se encontra... e ajudá-la a voltar para vocês.

Damon ergueu o rosto, pálido e contraído, e fitou o terráqueo, surpreso.

- Tem razão. Eu não tinha pensado nisso. Você ainda pode alcançar Callista. Não sei por que ou como, mas o fato é que aconteceu. Nem mesmo sei se podemos tirar algum proveito disso, mas é a nossa única esperança. Você pode entrar em contato com Callista. E ela pode alcançá-lo, quando outra Guardiã não é capaz de encontrá-la, quando sua própria irmã gêmea permanece inacessível. Talvez, no final das contas, a situação não seja tão desesperadora.

Ele se inclinou e pegou as mãos do terráqueo. Andrew sentiu que para Damon isso era uma coisa excepcional, que aquele contato entre os telepatas, era reservado para a mais profunda intimidade. E o contato que mantiveram, por um instante, foi quase insuportável - a exaustão e o medo de Damon, a preocupação desesperada com as jovens primas, as dúvidas e terrores mais profundos sobre sua incapacidade de enfrentar o desafio, as dúvidas angustiadas sobre sua virilidade... Por um momento, Andrew quis se retirar, rejeitar aquela intimidade desesperada que Damon, ao final de sua resistência, lhe impusera; e depois ele fitou os olhos de Ellemir, e eram agora muito parecidos com os de Callista, suplicantes, não mais desdenhosos, transbordantes de medo por Damon. (Ela o ama, pensou Andrew, num súbito lampejo. Ele também não me parece grande coisa como um homem, mas ela o ama, embora não saiba disso), a tal ponto que não podia recusar aquela súplica. Eram parentes de Callista, e ele amava Callista, estava envolvido em seus problemas, para o melhor ou para o pior. É melhor eu me acostumar a isso agora, refletiu Andrew; e num ímpeto desajeitado, um sentimento que era quase de afeição, ele passou o braço pelos ombros de Damon e apertou-o com uma certa rudeza.

- Não fique tão preocupado. Farei tudo o que puder. E agora trate de sentar, antes de desmaiar. Afinal, o que andou fazendo para ficar nesse estado?

Ele empurrou Damon para o banco na frente do fogo. O contato insuportável diminuiu, rompeu-se. Andrew sentia-se  confuso, um pouco transtornado, pela intensidade da emoção que o dominara. Era como ter um irmão caçula, pensou, vagamente. Ele não é bastante forte para esse tipo de coisa. Ocorreu-lhe que Damon era mais velho, e muito mais experiente naqueles estranhos contatos, mas ainda assim sentia-se como o irmão mais velho, protetor.

- Desculpe - murmurou Damon. - Passei a noite inteira no mundo superior, procurando por Callista... e fracassei.

Ele suspirou, com um senso de profundo alívio, e acrescentou:

- Mas agora sabemos onde Callista se encontra, ou pelo menos como entrar em contato com ela. Com a sua ajuda...

Andrew advertiu:

- Nada sei sobre essas coisas.

- Ah, isso... - Damon descartou a objeção com um dar de ombros. Parecia na mais absoluta exaustão. - Eu deveria ter sido mais sensato, pois há muito que me desacostumei ao mundo superior. Terei de descansar, antes de tentar de novo. Neste momento, não disponho de forças suficientes. Mas quando puder tentar outra vez... - Ele empertigou as costas. - ...será melhor os malditos homens-gatos se cuidarem! Acho que sei agora o que podemos fazer.

E isso é muito mais do que eu sei, pensou Andrew. Mas creio que Damon sabe o que faz, o que é o suficiente para mim, por enquanto.

 

CAPÍTULO SEIS

Damon Ridenow acordou e passou um momento olhando para o teto. O dia chegava ao fim; depois da busca extenuante no mundo superior, durante a noite inteira, e a confrontação com Andrew Carr, dormira durante a maior parte do dia. O cansaço desaparecera, mas a apreensão ainda persistia, lá no fundo. O terráqueo era sua única ligação com Callista, e parecia improvável demais, tão insólito, que um daqueles homens de outro mundo fosse capaz de efetuar aquele sutil contato telepático com sua prima. Terráqueos com os poderes de laran do Comyn! Impossível! Não, não impossível: acontecera.

Ele não sentia repulsa por Andrew pessoalmente, apenas pela idéia de que o homem era um alienígena, de outro mundo. Quanto ao homem em si, sentia-se propenso a gostar dele. Sabia que era, pelo menos em parte, uma conseqüência do contato mental que haviam partilhado por um momento. Na casta telepática, era muitas vezes o acidente de possuir o laran, o dom telepatico específico, que determinava a intimidade de um relacionamento. Casta, família, posição social, todas essas coisas se tornavam irrelevantes com esse único fato fundamental; uma pessoa tinha ou não tinha esse poder inato, e como resultado era parente ou estranho. Só por esse critério, o mais importante em Darkover, Andrew Carr era um deles, e o fato de ser um terráqueo não contava muito.

E Ellemir também assumira uma nova importância em sua vida.

Sendo o que era, um telepata nato, treinado na Torre, o contato entre as mentes criava uma intimidade acima e além de qualquer outra coisa. Sentira isso por Leonie - vinte anos mais velha, obrigada por lei a permanecer virgem e desprovida de beleza. Durante o seu período na Torre, e por muito tempo depois, Damon a amara, com uma paixão intensa e sem esperança que o prejudicara para outras mulheres. Se Leonie soubesse


dificilmente poderia deixar de saber, sendo o que era -, não teria feito a menor diferença para ela. As Guardiãs eram treinadas, por métodos incompreensíveis a homens e mulheres normais, a ignorar a sexualidade.

A lembrança levou-o a pensar de novo em Callista... e em Ellemir. Conhecera-a durante a maior parte de sua vida, mas era quase vinte anos mais velho. Seus pais muitas vezes exortaram-no a casar, mas a primeira devoção da juventude se transformara no calor branco da chama sem fumaça pela inacessível Leonie. Depois, nunca pensara em si mesmo como tendo muita coisa a oferecer a qualquer mulher. A intimidade que privara com homens e mulheres no Círculo da Torre, mentes e corações abertos - sete pessoas reunidas numa intimidade em que nada podia ser escondido, por menor que fosse, e nada podia ser rejeitado ou recusado -, estragara-o para qualquer contato menor. Saindo da Torre, conhecera uma solidão desolada, que nada podia dissipar.

Solitário, sempre solitário, sozinho por toda a minha vida. E nunca sonhei... Ellemir, minha parenta, apenas uma criança, nada mais que uma criança...

Levantando-se, ele foi até a janela e olhou para o pátio. Ellemir não era mais tão jovem assim. Já tinha idade suficiente para cuidar daquele vasto Domínio, quando seus parentes se ausentavam, a fim de participarem no Conselho do Comyn. Devia ter quase vinte anos. Idade suficiente para ter um amante; e para casar, se assim decidisse. Ela era Comynara, por direito próprio, podia fazer o que quisesse.

Mas bastante jovem para merecer alguém melhor do que eu, torturado pelo medo e incompetência...

Damon especulou se Ellemir já pensara nele como um amante, se já teria conhecido outros amantes. Esperava que sim. Se Ellemir o quisesse, a atração deveria se basear na percepção, experiência, conhecimento dos homens; não na paixão de uma jovem adormecida, que poderia se desvanecer quando ela conhecesse outros homens. Mas Damon tinha dúvidas. Irmã gêmea de uma Guardiã, era bem possível que Ellemir tivesse absorvido um pouco da indiferença condicionada aos homens de Callista.

De qualquer forma, era agora algo desabrochado que tinham de encarar. A sensitividade, a percepção quase sexual  entre os dois, não podia mais ser ignorada; e é claro que não havia razão alguma para ignorar. Também aumentaria a capacidade de trabalharem em conjunto no que havia pela frente; estavam empenhados em descobrir Callista, e a intimidade entre os dois aumentaria seu contato e força. Depois... ora, nunca mais poderiam ficar livres um do outro. Sorrindo, Damon confrontou o conhecimento de que provavelmente teriam de casar; nunca mais poderiam se manter apartados. Mas isso não o desagradava, a menos que Ellemir, por algum motivo, se sentisse infeliz com a perspectiva.

Essa percepção ainda persistia na superfície de sua mente quando desceu; e no momento em que avistou Ellemir, no grande salão, a apreensão desapareceu. Antes mesmo que ela levantasse os olhos sérios para fitá-lo, Damon teve certeza de que tudo aquilo era algo que ela já compreendera e aceitava. Ellemir largou a costura que tinha nas mãos, levantou-se e aninhou-se em seus braços, sem dizer nada. Damon respirou fundo, em alívio absoluto. Só depois de um longo tempo, durante o qual nenhum dos dois falou em voz alta, é que ele disse, os dois parados diante do fogo, os dedos entrelaçados:

- Não se importa, breda... que eu já tenha quase idade suficiente para ser seu pai?

- Você? Oh, não, não... apenas seja for velho demais para gerar filhos, como aconteceu com a pobre Liriel, quando a casaram com o idoso Dom Cyril Ardais; isso me incomodaria um pouco. A verdade é que nunca parei para pensar se você era velho ou jovem. Só acho que não gostaria de ter um amante que não pudesse me dar filhos. Seria muito triste.

Damon sentiu um impulso incongruente de rir. Isso era uma coisa em que nunca pensara; podia-se confiar numa mulher para se lembrar das coisas importantes. Até que era uma idéia atraente, e deixaria sua família na maior satisfação.

- Creio que não precisaremos nos preocupar com isso, preciosa, quando chegar o momento oportuno.

- O pai não ficará muito satisfeito, já que Callista foi para a Torre. Tenho a impressão de que esperava que eu permanecesse aqui, cuidando da casa, enquanto ele vivesse. Mas já completei dezenove anos, e pela lei do Comyn sou livre para fazer o que bem quiser.

Damon deu de ombros, pensando no velho formidável que era o pai das gêmeas.

- Nunca soube que Dom Esteban me detestasse, e se ele não suporta a idéia de perdê-la, não fará muita diferença onde vamos viver. Amor... - Ele parou de falar, com uma súbita apreensão. - Por que está chorando?

Ela se enroscou em seus braços e murmurou, desolada:

- Sempre pensei que Callista seria a primeira pessoa a quem contaria quando chegasse o momento de minha escolha.

- É tão chegada assim a Callista, minha amada?

- Não tanto quanto outras gêmeas desde que ela foi para Torre e fez seu voto. Eu sabia que nunca poderíamos, como fazem tantas irmãs, partilhar um amante, ou um marido. Mas mesmo assim é triste que ela não saiba de uma coisa que tanto significa para mim.

Ele apertou-a.

- Ela saberá, pode estar certa. Lembre-se de que agora sabemos que continua viva, e há alguém que pode alcançá-la.

- Acha mesmo que esse terráqueo, esse Ann'dra, pode nos ajudar a encontrá-la?

- Espero que sim. Não será fácil, mas também nunca pensamos que seria fácil. Mas agora pelo menos sabemos que é possível.

- Como pode ser? Ele não é um de nós. Mesmo que tenha alguns poderes ou dons, como o nosso laran, não sabe como usá-los.

- Teremos de ensinar - respondeu Damon.

O que também não seria fácil, pensou ele, fechando a mão sobre a pedra-da-estrela pendurada em seu pescoço. Tinha de ser feito, se quisessem manter alguma esperança de encontrar Callista; e ele, Damon, teria de assumir o encargo. Mas o temia, pelos infernos de Zandru, e como o temia! Mas disse calmamente, tentando incutir confiança a Ellemir:

- Até a noite passada, você mesma nunca imaginou que pudesse usar o laran; mas usou-o, e com isso salvou minha vida.

O sorriso de Ellemir foi hesitante, mas pelo menos ela voltava a sorrir.

- Assim, vamos aproveitar o que podemos ter agora de felicidade, Ellemir, sem estragar com preocupação. Quanto à lei e às formalidades, espero que Dom Esteban retorne em breve.

Enquanto falava, a percepção fria tornou a envolvê-lo, e prendeu a respiração por um instante. Mais cedo do que imagino, e não ficará bem para nenhum de nós, pensou ele, mas tratou de fechar a mente, torcendo para que Ellemir não tivesse captado o pensamento, e acrescentou:

- Quando seu pai chegar, poderemos lhe contar nossos planos. Agora, temos de ensinar a Andrew tudo o que pudermos. Onde ele está?

- Creio que dormindo. Também estava muito cansado. Devo mandar chamá-lo?

- Acho que sim. Não temos tempo a perder, embora eu preferisse passar algum tempo a sós com você, agora que nos encontramos.

Ele sorriu ao falar. Já partilhavam mais do que ele jamais conhecera com qualquer outra mulher, e não havia urgência para o resto. Não era um jovem açodado, agarrando sua namorada às pressas, e podiam esperar. Por um instante, captou um rápido pensamento de Ellemir, Mas não por muito tempo, e isso o animou; mas deixou passar, e disse:

- Há tempo suficiente. Mande um criado pedir que ele desça para se encontrar conosco, se já descansou o suficiente. Agora, preciso pensar.

Damon afastou-se de Ellemir, ficou olhando para as chamas azul-esverdeadas que se elevavam do combustível tratado com resina na lareira.

Andrew Carr era um telepata, e potencialmente poderoso. Encontrara e mantivera contato com uma estranha, uma pessoa que nem mesmo era parente sangüínea. Uma parte do mundo superior, barrada até mesmo a telepatas treinados na Torre, podia lhe ser acessível. Contudo, ele não tinha qualquer treinamento, nenhuma disciplina, e até era propenso a não acreditar muito naqueles estranhos poderes. Com toda a força de seu coração, Damon desejou que outra pessoa estivesse presente para ensinar ao homem. O despertar dos poderes psíquicos latentes não era uma tarefa fácil, nem mesmo para as pessoas treinadas, e para um forasteiro, com uma formação estranha, sem convicção e confiança para ajudá-lo, deveria ser um aprendizado difícil e angustiante. Damon esquivara-se de tais contatos desde que fora dispensado do Círculo da Torre. Também não seria fácil para ele retomá-los, baixar as barreiras para aquele estranho. Mas não havia mais ninguém. Ele correu os olhos pelo salão e perguntou:

- Tem algum kirian aqui?

Kirian, uma droga poderosa feita do pólen de uma planta rara das montanhas, tinha uma tendência, em doses reguladas com o maior cuidado, a reduzir as barreiras contra o contato telepático. Ele não sabia se pretendia dá-la a Andrew Carr, ou tomar pessoalmente, mas de um jeito ou de outro poderia facilitar o contato com um estranho. O treinamento telepático intensivo era realizado pelas próprias Guardiãs, mas o kirian podia aguçar os poderes psíquicos, em caráter temporário, o suficiente para tornar possível o contato mesmo entre não-telepatas.

- Acho que não - respondeu Ellemir, hesitante. - Pelo menos desde que Domenic passou do limiar da doença. Callista nunca precisou, nem eu. Vou verificar, mas é quase certo que não temos.

Damon sentiu um calafrio de medo. Um pouco amortecido pela droga, poderia ser capaz de suportar a tarefa difícil de orientar e disciplinar o despertar do laran num estranho. A perspectiva de fazê-lo sem qualquer ajuda era quase intolerável. Mas se era a única chance de Callista...

- Você tem uma pedra-da-estrela - acrescentou Ellemir. - Usou-a para me mostrar o pouco que eu podia fazer...

- Criança, é minha parenta de sangue e somos muito ligados em termos emocionais... mas mesmo assim sentiu uma agonia quando pôs a mão na pedra, maior do que posso descrever. Sabe se Callista tem outras pedras matrizes sem uso?

Se conseguisse arrumar para Andrew uma pedra ainda não sintonizada, talvez o trabalho se tornasse mais fácil.

- Não sei. Ela tem muitas coisas que nunca vi, nem perguntei, porque são de seu trabalho como Guardiã. Sempre estranhei por que ela as trouxe para cá, em vez de deixar na Torre.

- Talvez porque...

Damon hesitou. Era difícil falar de seus dias no Círculo da Torre; sua mente se esquivava e refugava, como um cavalo assustado. Mas precisava, de alguma forma, superar esse medo.

- Talvez porque uma leronis, ou mesmo um técnico de matriz, prefira manter seus instrumentos de trabalho sempre a mão. Não sei direito como explicar, mas parece melhor estar sempre ao alcance. Não costumo usar minha pedra-da-estrela mais do que duas vezes por ano, mas a conservo sempre aqui, pendurada no pescoço, porque se tornou uma parte de mim. É desconfortável, até fisicamente doloroso, deixá-la longe de mim.

Ellemir sussurrou, confirmando a impressão de Damon de que sua sensitividade se desenvolvia bem depressa:

- Oh, pobre Callista! Ela disse a Andrew que tiraram sua pedra-da-estrela...

Ele balançou a cabeça, com uma expressão sombria.

- Portanto, mesmo que não tenha sido estuprada ou maltratada, está sofrendo agora. - Por que não devo arcar com um pouco de dor e agonia, para poupá-la de um sofrimento ainda maior? - Leve-me ao quarto de Callista. Quero dar uma olhada em suas coisas.

Ellemir obedeceu, sem hesitar; mas quando se encontravam no meio do quarto que as gêmeas partilhavam, as duas camas estreitas em lados opostos, ela disse, num murmúrio assustado:

- Callista não vai sofrer se você tocar... nas coisas que ela usa como Guardiã?

- É uma possibilidade, mas não será pior do que ela já sofreu, e talvez seja nossa única chance.

Meus homens morreram porque fui covarde demais para aceitar o que sou: um telepata treinado na Torre. Se deixar Callista sofrer porque tenho medo de usar meu dom... então sou indigno de Ellemir, sou inferior a qualquer forasteiro... mas tenho medo, muito medo... Abençoada. Cassilda, mãe dos Sete Domínios, esteja comigo agora... A voz calma e neutra de Damon nada deixava transparecer quando ele indagou:

- Onde Callista guarda seus pertences? Posso distinguir os seus pelo contato, mas prefiro não desperdiçar tempo nem força com isso.

- Aquela penteadeira, com as escovas de cabo de prata, é de Callista. A minha é a outra, com os lenços bordados e as escovas de cabo de marfim.

Ele podia sentir a tensão e o medo na voz de Ellemir, mas ela tentava imitar seu comportamento frio e imparcial. Damon examinou a penteadeira, vasculhou as gavetas.

- Não tem nada de importante aqui. Apenas umas poucas pedras matrizes pequenas, de primeiro nível ou menos, que não nos ajudarão em nada. Tem certeza de que nunca viu onde ela guarda o resto?

Antes mesmo de vê-la sacudir a cabeça, Damon já sabia a resposta.

- Nunca. Sempre tentei não... me intrometer nessa parte de sua vida.

- É uma pena que eu não seja o terráqueo - comentou Damon, amargurado. - Poderia perguntar a ela diretamente.

Ele estendeu a mão para sua pedra-da-estrela, com alguma relutância, tirou-a da bolsa de couro, fechou os olhos, tentando sentir alguma coisa. Como sempre acontecia quando tocava a pedra fria e lisa, foi invadido por uma estranha pontada de medo. Depois de um momento, hesitante, aproximou-se da cama de Callista. Continuava desarrumada, as roupas de cama emaranhadas e amarrotadas, como se ninguém tivesse tido ânimo de remover a última impressão de seu corpo ali. Damon passou a língua pelos lábios, inclinou-se e estendeu a mão sob o travesseiro. Recuou no instante seguinte, levantando o travesseiro, cauteloso. E ali, sobre o lençol de linho, estava uma bolsinha de seda. Dava para perceber os contornos da pedra através da seda.

- A pedra-da-estrela de Callista - murmurou ele. - Portanto, não foi tirada por seus captores.

Ellemir fez um esforço para recordar as palavras exatas de Andrew.

- Ele disse... Callista não falou que tiraram sua pedra-da-estrela, mas sim que pegaram todas as suas jóias, achando que uma delas poderia ser a pedra-da-estrela. Ou algo parecido. Mas estava aqui o tempo todo.

- Se eu a tivesse, talvez pudesse vê-la no mundo superior. Damon balançou a cabeça no mesmo instante. Callista era a única que podia usar sua pedra. Mas explicava uma coisa. Sem sua pedra-da-estrela, ela podia ser encerrada na escuridão. Se a tocasse, era bem provável que ela pudesse localizar o lugar em que era mantida; e Damon poderia, focalizando sua própria pedra... Mas não adiantava pensar nisso agora. Ele estendeu a mão para pegar a bolsa de seda, mas retirou-a antes de alcançá-la.

- Pegue você. - Como Ellemir hesitasse, ele acrescentou: - É sua irmã gêmea, tem as vibrações mais próximas. Pode pegar a pedra com menos sofrimento para ela do que qualquer outra pessoa. Mesmo com a bolsa de seda, há algum perigo, mas é menor no seu caso.

Com extrema cautela, Ellemir pegou a bolsa de seda e enfiou no decote do vestido. Por tudo o que isso pode adiantar, pensou Damon. Callista, com sua pedra-da-estrela, poderia resistir melhor a seus captores. Ou talvez não. Ele começava a presumir que era bem possível que Callista fosse prisioneira de alguém que usava uma matriz, alguém mais forte do que ela, que desejava mantê-la impotente; alguém que sabia que Callista, livre e armada, seria um perigo.

Os homens-gatos. Os homens-gatos, que Zandru cuidasse de todos eles! Mas como e onde os homens-gatos haviam adquirido habilidade e poder necessários para fazer experiências com uma matriz? A verdade é que nenhum de nós sabe muita coisa sobre os homens-gatos, mas cometemos o grave erro de subestimá-los. Um erro fatal? Quem podia saber?

Mas pelo menos a pedra-da-estrela não estava em mãos não-humanas.

Eles estavam no meio da escada quando ouviram a comoção no pátio, os sons de cavaleiros chegando, o sino repicando. Ellemir soltou uma exclamação aturdida e levou a mão ao coração. Damon sentiu por um instante um arrepio de medo e tensão, mas logo relaxou.

- Não pode ser outro ataque - murmurou ele. - Devem ser amigos ou parentes, caso contrário o alarme teria soado.

Além do mais, pensou ele, sombrio, não senti nenhuma advertência!

- Acho que é Lorde Alton de volta - acrescentou ele.

- Enviei uma mensagem para o pai quando o chamei - explicou Ellemir. - Mas não pensei que ele viria, durante o Conselho do Comyn, qualquer que fosse a necessidade.

Ela desceu correndo o resto da escada, erguendo a saia cinza até os joelhos; Damon seguiu-a mais devagar e atravessou a porta para o pátio.

Era uma cena de caos. Homens armados, ensangüentados, balançavam nas selas. Bem poucos homens, pensou Damon, no mesmo instante. Dom Esteban nunca viajaria com uma escolta tão pequena. Numa maça de galhos improvisada, atada a uma parelha de cavalos, jazia o corpo imóvel de um homem.

Ellemir estacara nos degraus do pátio. A palidez de seu rosto foi como um golpe para Damon, quando ele se aproximou. As mãos de Ellemir se contraíam nos lados do corpo, as unhas se cravando nas palmas. Damon pegou-a gentilmente pelo braço, mas ela parecia não saber onde se encontrava, paralisada em choque e horror. Damon desceu para o pátio, fitando os rostos pálidos e tensos dos homens feridos. Eduin... Conan... Caradoc... onde está Dom Esteban? Só por cima de seus cadáveres... E foi então que ele vislumbrou o rosto aquilino e moreno, de cabelos grisalhos, do homem na maça, e foi como se levasse um golpe no plexo solar, de tão doloroso que foi o choque físico. Dom Esteban! Por todos os infernos... que hora para perder o melhor espadachim e comandante em todos os Domínios!

Criados corriam de um lado para outro, na maior confusão. Dois homens ensangüentados desmontaram e soltaram a maça, com todo o cuidado. Os dois cavalos se afastaram - Nunca vão se acostumar ao cheiro de sangue! - e soou um grito estridente; o homem na maça desatou a praguejar, em quatro línguas.

Portanto, ele continua vivo. Mas até que ponto os ferimentos são graves?, pensou Damon.

- Pai! - gritou Ellemir, correndo para a maça.

Damon deteve-a, antes que ela se jogasse em cima da maça. As imprecações cessaram, como uma torneira fechada.

- Callista, minha criança... A voz era trêmula com a dor.

- Ellemir, pai...

Puseram a maça no chão, e Damon divisou a curandeira abrindo caminho entre a multidão de criados, enquanto dizia, incisiva:

- Recuem todos, este é um trabalho meu. - A mulher olhou para Ellemir. - Domna, também não deve ficar aqui.

Ellemir ignorou-a, ajoelhando-se ao lado do pai ferido. Ele contraiu os lábios, numa careta que pretendia ser um sorriso.

- Estou aqui, chiya. - As sobrancelhas hirsutas se franziram. - Só que eu deveria ter vindo com mais homens.

Olhando por cima de Ellemir, Damon divisou no rosto do homem as marcas de uma longa luta com a dor, e algo pior. Algo que se parecia com o medo. Como nenhum homem vivo jamais vira o medo no rosto de Esteban-Gabriel-Rafael Lanart, Lorde Alton, ninguém sabia a que o medo se assemelharia naquele rosto sombrio e controlado...

- Afaste-se agora, criança. Cenas de batalha e sangue... não são apropriadas para uma pequena donzela. É você, Damon? Parente, tire a criança daqui.

Afinal, você não pode. praguejar até ela se retirar, pensou Damon, irônico, percebendo que o velho mordia o lábio, e conhecendo seus preconceitos..Ele pôs a mão no ombro de Ellemir, enquanto a cüiandeira se ajoelhava no outro lado e'.e Dom Esteban. Depois de um momento, Ellemir permitiu que ele a levasse do local.

Damon correu os olhos pelo pátio e constatou que Dom Esteban não era o único ferido, nem mesmo o mais grave. Um dos homens foi ajudado a descer de seu cavalo por dois outros e carregado até o banco de pedra no meio do pátio, onde o deitaram. Tinha uma perna envolta por toscas bandagens, encharcadas de sangue; Damon sentiu o estômago revirar ao pensamento do que devia haver por baixo.

Ellemir, muito pálida, mas controlada agora, dava ordens rápidas para que trouxessem água quente, ataduras, almofadas.

- A sala da guarda está muito fria - disse ela a Dom Cyril, o velho e grisalho coridom, ou intendente-chefe. - Leve-os para o grande salão, e mande levarem camas da sala da guarda para lá, onde poderão receber melhores cuidados.

- Uma boa idéia, vai domr.a - respondeu o velho.

Ele se encaminhou para o líder da guarda - agora que Esteban se encontrava ferido -, o seconde; Eduin era o seu nome. Era de baixa estatura, ombros largos, e um talho comprido e ensangüentado proporcionava a seu rosto uma expressão de ferocidade. As mangas de sua túnica exibiam vários cortes.

- ...invisíveis! - Damon ouviu-o dizer. - Sei que não é possível, mas juro que foi isso mesmo. Não podiam ser vistos até que morressem, e depois... desapareciam em pleno ar! Juro que é verdade! Podiam-se ouvir seus movimentos, ver as marcas que deixavam na neve, vê-los sangrando... mas não estavam ali!

O homem tremia todo na reação tardia, o rosto estava muito pálido, sob as manchas de sangue.

- Se não fosse pelo vai dom... - Ele falou o nome de Dom Esteban em seu dialeto das montanhas, chamando-o de Istvan. - Se não fosse por Lorde Istvan, todos estaríamos mortos.

- Ninguém duvida de você - declarou Damon, adiantando-se para segurá-lo pelos braços, pois o homem parecia prestes a cair. - Também os encontrei, ao atravessar as terras escuras. Como conseguiram escapar?

Não como eu, fugindo e abandonando meus homens para morrer. E de repente a repulsa por sua covardia dominou-o. Sentiu que sufocava. Forçou-se a manter a calma, a fim de escutar as palavras de Eduin.

- Não sei direito. Cavalgávamos tranqüilos, e subitamente as montarias começaram a relinchar e a empinar. Enquanto tentava controlar meu cavalo, ouvi um... uivo. Dom Istvan sacara sua espada, e havia sangue na lâmina. E aquele homem-gato... materializou-se em pleno ar e caiu morto. No instante seguinte, vi Marcos ser derrubado de seu cavalo, com a garganta cortada, e ouvi Dom Istvan gritar "Usem os ouvidos!". Caradoc e eu ficamos de costas um para o outro, passamos a golpear o ar com nossas espadas. Ouvi um silvo, desferi um golpe, senti a lâmina penetrar, e apareceu na minha frente um homem-gato, morrendo na neve... Puxei a espada, continuei a atacar qualquer barulho que ouvia. Era como uma luta noturna...

Ele fechou os olhos, como se tivesse adormecido por um momento ali, antes de acrescentar:

- Posso tomar um trago, Lorde Damon?

Damon rompeu a estranha paralisia que o dominava. Criados entravam correndo no pátio, com baldes de água quente, mantas, ataduras, jarros fumegantes. Damon fez sinal para um deles, especulando quem tivera o bom senso de ordenar que se providenciasse um firi quente àquela hora. Encheu uma caneca e entregou-a a Eduin. O homem tomou a bebida forte de um só gole, como se fosse o vinho fraco de um banquete, estremecendo todo.

- Vá para o grande salão, homem - disse Damon. - Seus ferimentos poderão ser mais bem cuidados ali.

Eduin balançou a cabeça.

- Não sofri muita coisa, mas Caradoc... - Ele gesticulou na direção do homem corpulento, de barba castanha, estendido no banco de pedra, com os punhos cerrados. - Ele recebeu um ferimento profundo na perna.

Eduin aproximou-se do amigo e inclinou-se.

- Lorde Alton... - murmurou Caradoc, os dentes semicerrados. - Ele ainda está vivo? Ouvi-o gritar ao ser atingido.

- E!e continua vivo - respondeu Damon.

Eduin levou uma caneca de firi aos lábios de Caradoc. Enquanto o ferido bebia, sôfrego, Eduin murmurou:

- Ele vai precisar quando o levantarmos. Ajude-me, vai dom. Ainda tenho forças suficientes para ajudar a carregá-lo, e prefiro cuidar disso pessoalmente a deixar ao encargo dos criados. Ele recebeu um golpe que me era destinado.

Com o máximo de cuidado, Damon ajudou Eduin a sustentar o enorme peso de Caradoc até o grande salão. Caradoc gemia e murmurava, meio incoerente, como se a bebida tivesse eliminado seu controle.

- Dom Esteban lutava com os olhos fechados... matou quase uma dúzia deles... muitos dos nossos morreram, mas ainda mais deles... ouvi quando fugiram... não posso culpá-los... também tinha vontade de fugir... mas um deles atingiu-o... e Dom Esteban caiu na neve... pensamos que tinha morrido... até que começou a praguejar com a gente...

A cabeça de Caradoc pendeu para o peito, ele perdeu os sentidos. Com a ajuda de Damon, Eduin acomodou seu companheiro numa cama de campanha, armada às pressas no salão, e cobriu-o com várias mantas. Recusou ajuda para si mesmo, quando Dom Cyril ofereceu bandagens e ungüentos, alegando que se encontrava quase ileso.

- ...mas Caradoc sangrará até a morte se alguém não o ajudar imediatamente! Já fiz o que podia, mas não foi muita coisa naquele frio.

- Farei o que puder - prometeu Damon, rangendo os dentes. Sentia-se nauseado, mas como todos os homens do Comyn

no comando de guardas, até mesmo de pequenos destacamentos, recebera um treinamento de primeiros socorros; talvez soubesse mais do que a maioria, porque suas deficiências com a espada levaram-no a pensar que devia adquirir uma habilidade especial, como compensação. Pelo canto dos olhos, viu que Andrew Carr entrara no grande salão e contemplava a cena com espanto e horror. Captou um pensamento: Espadas e facas, em que lugar vim me meter! No momento seguinte, porém, esqueceu-o por completo.

- A curandeira está com Dom Esteban, mas isto não pode esperar. Dom Cyril, ajude-me com as bandagens.

Durante uma hora, Damon não teve tempo para dispensar qualquer pensamento a Andrew Carr, ou mesmo a Callista. Cara-doc tinha um ferimento na panturrilha e outro na parte superior da coxa, do qual o sangue vazava lentamente, apesar do torniquete feito por Eduin. Foi uma luta para estancar a hemorragia, e o local era difícil para uma atadura de pressão; um dos vasos sangüíneos na virilha fora cortado. Ao final, ele achou que conseguira, e concentrou-se em suturar o ferimento na panturrilha, algo que sempre o deixava tonto e nauseado. Quando acabou, a hemorragia recomeçara no ferimento na virilha. Olhou para o homem, amargurado, e pensou: Mais uma vítima dos malditos homens-gatos! Ao olhar suplicante de Eduin, Damon balançou a cabeça.

- Não há mais nada que eu possa fazer, com 'ii. O local do ferimento é o pior possível.

- Foi treinado na Torre, Lorde Damon. Já vi uma leronis curar um ferimento pior do que esse com sua pedra-da-estrela. Não pode fazer a mesma coisa?

Eduin resistira a todas as sugestões para que descansasse um pouco, comesse alguma coisa ou saísse do lado do amigo.

- Não tenho a habilidade nem a força... é um trabalho delicado. Poderia parar seu coração, matá-lo...

- Tente assim mesmo - insistiu Eduin. - Ele morrerá de qualquer maneira, dentro de poucos minutos, se a hemorragia não for estancada.

Não!, Damon teve vontade de gritar. Deixe-me em paz, já fiz tudo o que podia...

Caradoc não fugiu dos homens-gatos. Provavelmente salvou a vida de Dom Esteban. Graças a ele, Ellemir não é uma órfã agora. Será que ele continua vivo? Não tive um momento sequer para saber como ele está! Relutante, ele murmurou:

- Tentarei, mas não tenha muita esperança. É uma chance mínima.

Com os dedos tensos, ele pegou a pedra pendurada no pescoço e tirou-a da proteção. Agora devo fazer o trabalho de uma feiticeira, pensou, amargurado. Leonie disse que, se eu fosse uma mulher, seria uma Guardiã...

Damon olhou para a pedra azul, concentrando-se em controlar os campos magnéticos. Pouco a pouco, focalizou a percepção psíquica ampliada, levando-a com extremo cuidado ao nível molecular e além, sentindo a pulsação das células sangüíneas, as palpitações do coração... cuidado, cuidado... Por um instante, sua mente se fundiu com o inconsciente do homem, um súbito turbilhão de medo e agonia, uma crescente fraqueza, enquanto o sangue precioso vazava... alcançando as células, as moléculas... o vaso sangüíneo cortado, rompido, o jorro de sangue, a pressão...

Pressione, agora, diretamente contra o vaso rompido... a força psíquica telecinética, para unir... células se juntando; com cuidado, não deixe o coração parar; calma, calma... Damon sabia que não mexia um único músculo, mas podia sentir suas mãos dentro do corpo do homem, apertando o vaso cortado. Sabia que empregava a energia pura contra o fluxo de sangue... Com um longo suspiro, ele se retirou. Eduin sussurrou:

- Acho que a hemorragia parou.

Damon acenou com a cabeça, exausto, e murmurou, a voz rouca:

- Não deixe ele se mexer durante uma hora, até que a coagulação possa agüentar sozinha. Ponha sacos de areia ao seu redor, para evitar qualquer movimento acidental. - Estancada a hemorragia, o ferimento já não era tão grave. - Um local horrível, mas podia ser pior. Um centímetro para o lado, e ele seria castrado. Mantenha-o imóvel, e ele ficará bom. Ora, homem, levante-se! O que está...

Eduin caíra de joelhos. Murmurou a fórmula ritual:

- Há uma vida entre nós, vai dom. Damon disse, em tom ríspido:

- Haverá muitas ocasiões, daqui por diante, em que precisaremos de homens bravos como vocês dois. Salve sua vida por isso! E agora, se não se levantar, comer alguma coisa e descansar, vou derrubá-lo no chão e sentar em cima de você! Vamos logo, tenente... isto é uma ordem!

Eduin murmurou, meio tonto:

- Dom Istvan...

- Verei como ele está. E agora trate de cuidar de seu próprio ferimento.

Damon olhou ao redor, recuperando o foco. Ellemir, muito pálida, ainda supervisionava a instalação de leitos e mantas para os feridos e levava comida para os que tinham condições de engolir. A curandeira continuava sentada ao lado de Dom Esteban. Damon adiantou-se, lentamente, e notou que cambaleava, como se seu corpo pertencesse a outra pessoa. Não estou mais acostumado a essas coisas. A curandeira levantou a cabeça à sua pergunta.

- Ele está dormindo; não poderá responder às suas perguntas hoje. O ferimento não atingiu o rim por uma fração, mas acho que afetou os nervos da espinha. Ele não pode mexer as pernas, nem mesmo balançar um dedo do pé. É possível que seja o choque, mas receio coisa pior. Quando ele despertar... estará completamente curado, ou passará o resto de sua vida morto da cintura para baixo. Os ferimentos na espinha não curam.

Damon afastou-se, atordoado, sacudindo a cabeça. Não, Dom Esteban não morrera. Mas se de fato ficasse paralítico da cintura para baixo, era bem provável que preferisse ter morrido. Damon não invejava quem seria incumbido de contar ao formidável velho que o resgate de sua filha teria de ser entregue a outros.

Mas quem seriam esses outros? Eu? Damon compreendeu, com um choque, que, desde que soubera que Dom Esteban vivia, esperava que o parente mais velho - afinal, ele era o pai de Callista, seu parente mais próximo, e assim obrigado pela honra a vingar qualquer agressão a filha - assumisse a missão assustadora. Mas não fora assim que acontecera.

A salvação de Callista cabia a ele... e ao terráqueo, Andrew Carr.

Ele virou-se, determinado, e deixou o grande salão, à procura de Andrew Carr.

 

CAPÍTULO SETE

Afinal, que tipo de mundo é este? Espadas e facas... bandidos, batalhas, seqüestros. Andrew vira os feridos, mas logo percebera que só atrapalhava, que seus anfitriões não tinham tempo ou pensamento para ele naquele momento, e por isso subiu para o quarto que lhe fora reservado. Estranhara não ter oferecido ajuda, mas o lugar se encontrava repleto de pessoas, e todas sabiam o que fazer mais do que ele. Assim,- concluiu que a melhor coisa era não atrapalhar.

O que aconteceria agora? Ele já sabia, pelo pouco que pudera entender da conversa dos criados - a maior parte num dialeto que mal pudera acompanhar -, que aquele era o lorde da propriedade, o pai de Ellemir. Com o proprietário de volta, Damon ainda permaneceria no comando da operação de resgate de Callista? Era em Callista que ele pensava, quase que com a exclusão de todo o resto. E depois, quase como se seus pensamentos a atraíssem (o que talvez ocorresse, pois ela parecia pensar que havia um vínculo profundo entre os dois), ele a viu parada na frente de sua cama.

- Agora está são e salvo, Andrew. Meus parentes foram hospitaleiros?

- Não poderiam ser mais gentis. Mas se vem a esta casa, por que eles não conseguem vê-la?

- Eu bem que gostaria de saber o motivo. Não posso vê-los, não posso sentir seus pensamentos; é como se a casa estivesse vazia, sem sequer um fantasma para assombrá-la! Ou como se eu fosse o fantasma a assombrar... minha própria casa! - O rosto de Callista se desmanchou numa expressão de choro. - De alguma forma, alguém conseguiu obstruir meu contato com toda e qualquer pessoa que eu conhecia. Vagueio pelo mundo superior, e só vejo rostos estranhos, jamais encontro com alguém familiar. E me pergunto se não enlouqueci...

Andrew disse, lentamente, tentando explicar as coisas que Damon lhe falara:

- Damon acha que você está em poder dos homens-gatos; parece que atacaram outros, e a mantêm prisioneira para que não possa usar sua pedra-da-estrela contra eles.

- Antes de eu deixar a Torre, Leonie fez um comentário a respeito. Disse que havia algo errado nas terras escuras, e desconfiava que algumas pedras não controladas eram usadas... ou abusadas... ali. Você é um terráqueo... sabe o que são as pedras?

- Não.

- É o conhecimento antigo... a ciência, você diria... deste mundo. As matrizes, pedras-da-estrela, como as chamamos entre nós, podem ser sintonizadas com a mente humana, e ampliam o que vocês chamam de poderes psíquicos. Podem ser usadas para mudar a forma de energia. Toda matéria, toda energia e força são vibrações, e assumem outra forma se você muda o ritmo das vibrações.

Andrew acenou com a cabeça. Até aí, podia entender. Parecia que ela tentava explicar, sem o treinamento científico do Império Terráqueo, a teoria do campo atômico de matéria e energia; e o fazia melhor do que ele poderia com os conhecimentos científicos de que dispunha.

- E você pode usar essas pedras?

- Posso. Sou treinada na Torre, e uma Guardiã, líder de um círculo de telepatas que usa essas pedras para a transmutação de energia. E todas as pedras que usamos, sintonizadas com nossos cérebros individuais, são monitoradas por uma das Torres; ninguém tem permissão para usá-las, a menos que tenha sido treinado por uma Guardiã ou técnico mais velho, e estejamos certos de que não causará danos. As pedras são muito poderosas, Andrew. As de nível mais alto, as maiores, poderiam destruir este planeta com a maior facilidade. É por isso que ficamos assustados ao descobrirmos que alguém, ou alguma coisa, provavelmente usava, nas terras escuras, uma pedra muito poderosa, ou pedras, sem qualquer controle e sem treinamento.

Andrew tentou recordar o que Damon lhe contara.

- Ele disse que homens já tinham feito isso antes, mas nunca não-humanos.

- Damon esqueceu a história. É sabido que nossos antepassados receberam as pedras do povo chieri, que já sabia como usá-las quando ainda éramos selvagens, e se aprofundaram tanto na ciência que não mais precisam delas. Mas os chieri não têm nada a ver com a humanidade hoje em dia, e poucos homens vivos sequer viram um deles. Eu gostaria de poder dizer a mesma coisa dos homens-gatos, amaldiçoados sejam!

Callista deixou escapar um suspiro longo e cansado, antes de acrescentar:

- Estou exausta, Andrew. Bem que gostaria que Evanda me permitisse tocar em você. Acho que acabarei enlouquecendo, sozinha na escuridão. Não, não tenho sido maltratada, mas me sinto esgotada, não agüento mais a pedra fria, a água gotejando, e não sou capaz de ingerir a água ou a comida que me servem, de tão fétidas com o cheiro deles...

Andrew ficou angustiado ao ouvi-la chorando, incapaz de alcançá-la, tocá-la, confortá-la de alguma forma. Queria abraçá-la, apertá-la, enxugar suas lágrimas. E Callista se postava à sua frente, parecendo sólida e real, dava para sentir sua respiração, ver as lágrimas rolando pelas faces, e ainda assim não podia tocá-la. Ele murmurou, angustiado:

- Não chore, Callista. De alguma forma, Damon e eu a encontraremos; e se ele não puder, eu tentarei sozinho!

Virando a cabeça, ele avistou Damon parado na porta, com os olhos arregalados. Aspirando o ar em espanto, Damon perguntou:

- Callista está aqui}

- Não-posso acreditar que você não seja capaz de vê-la - murmurou Andrew.

Ele sentiu outra vez aquele estranho contato, como se fosse uma infiltração direta em sua mente... e não ficou ressentido. Pelo menos Damon podia saber que ele dizia a verdade.

- Nunca duvidei de você.

- Damon está aqui? - indagou Callista. - Damon! Diz que ele está aqui, e não posso vê-lo. Como um fantasma, um fantasma em minha própria casa, no quarto de meu irmão...

Ela fez uma tentativa desesperada de conter as lágrimas. Andrew sentiu a angústia de seu esforço para permanecer calma.

- Diga a Damon que ele deve encontrar minha pedra-da-estrela. Eles não a descobriram, pois eu não a usava na ocasião. Avise-o de que não a uso pendurada no pescoço, como ele faz com a sua.

Andrew repetiu em voz alta para Damon. Sentia-se contrafeito como um médium em transe, transmitindo mensagens de um espírito desencarnado. O pensamento fê-lo estremecer; tais espíritos quase sempre tinham morrido. Damon tocou na tira de couro em seu pescoço e disse:

- Esqueci que ela sabia disso. Diga a ela que Ellemir está com sua pedra, encontrou-a debaixo do travesseiro, e pergunte...

Andrew repetiu as palavras, mas Callista interrompeu-o antes que chegasse ao final:

- Isso explica por que... eu sabia que alguém a tocara, mas se foi Ellemir...

A forma espectral tremeu, como se o esforço de permanecer ali a exigisse além de sua capacidade de resistência. Ao grito imediato de preocupação de Andrew, ela balbuciou:

- Estou muito fraca... sinto-me como se estivesse morrendo... ou talvez... Observem a pedra.

Callista desapareceu. Andrew ficou imóvel, olhando em terror para o lugar em que a vira um instante antes. Quando repetiu suas palavras, Damon saiu em disparada pelo corredor, gritando por Ellemir.

- Onde você estava? - perguntou ele, irritado, quando a moça finalmente apareceu.

Ela fitou-o, espantada e contrariada.

- O que há com você? Minhas roupas estavam encharcadas de sangue, pois ajudei a cuidar dos feridos. Não tenho o direito de tomar um banho e trocar de roupa?

Como ela é parecida e ao mesmo tempo diferente de Callista!, pensou Andrew; e experimentou um ressentimento irracional pelo fato de Ellemir circular em liberdade, podendo desfrutar um banho e roupas limpas, enquanto a irmã se encontrava sozinha e chorando, na escuridão, em algum lugar.

- A pedra-da-estrela, depressa! - pediu Damon. - Podemos ver nela se Callista continua viva e bem.

Ele explicou a Andrew que quando um trabalhador treinado de matriz morria, sua pedra-da-estrela também "morria", perdendo a cor e o brilho. Ellemir pegou-a, dentro da seda isolante: continuava a pulsar com a mesma intensidade de antes.

- Ela pode estar exausta e assustada, mas o corpo continua forte, ou a pedra não brilharia assim - comentou Damon. - Quando ela tornar a lhe aparecer, Andrew, diga-lhe que deve fazer um esforço para comer e beber, a fim de ficar forte. Precisa manter as forças até o momento em que possamos salvá-la. Por que será que ela insistiu tanto para que encontrássemos sua pedra-da-estrela?

Andrew estendeu a mão para a pedra.

- Posso...?

- Não é seguro - respondeu Damon, hesitante. - Ninguém pode usar uma pedra sintonizada para outra pessoa.

E depois ele se lembrou. Callista era uma Guardiã, e elas eram tão treinadas que às vezes podiam se sintonizar na pedra de outra pessoa. Leonie segurara a dele muitas vezes, enquanto o toque de Ellemir, embora salvando sua vida, fora uma intensa agonia. O contato de Lconie em sua pedra não o machucara, da mesma forma que a mão da Guardiã em seu rosto. Durante seu treinamento, antes de aprender a sintonizar sua própria pedra-da-estrela com o ritmo de seu cérebro e energias, praticara com a pedra da Guardiã; e durante esse período, ele e Leonie estiveram totalmente abertos um para o outro. Mesmo agora, basta um pensamento para trazê-la à minha presença, refletiu Damon.

Andrew sabia o que Damon pensava. É como se ele estivesse irradiando seus pensamentos para mim. Será que ele sabe disso?

- Se Callista e eu não tivéssemos algum tipo de sintonia, acho que ela não continuaria a me aparecer - comentou Andrew.

Ele hesitou, relutante em revelar mais, depois concluiu que para o bem de Callista, para o bem de todos, era injusto reter até o que deveria ser privado e pessoal; e acrescentou, tentando manter a voz sob controle:

- Eu... eu a amo. Farei qualquer coisa que julgarem melhor para ela, não importa o sacrifício que se tornar necessário. Sabem mais do que eu sobre esse tipo de coisa. Podem me orientar.

Por um instante, Damon sentiu uma pontada de repulsa. Esse alienígena, esse estranho, até mesmo seus pensamentos profanam uma Guardiã!), mas depois forçou-se a ser justo. Andrew não era mais estranho. Não importava como era possível, a verdade é que aquele terráqueo possuía o laran. Quanto a amar uma Guardiã, ele próprio amara Leonie durante toda a sua vida, e ela  nunca se mostrara zangada por isso, nunca sentira que era uma intromissão indevida, apesar de não reagir a seu desejo; aceitara o amor de Damon, embora de uma forma assexuada. Era bem provável que Callista também fosse capaz de se defender, se assim quisesse, contra as emoções daquele terráqueo.

Andrew começava a se cansar de ver tudo o que acontecia através dos olhos de Damon.

- Há uma coisa que eu não entendo - disse ele. - Por que uma Guardiã deve se manter virgem? É uma lei? Algo religioso?

- Sempre foi assim, desde o passado mais remoto - respondeu Ellemir.

O que não constituía uma razão, pensou Andrew. Damon sentiu sua insatisfação, e disse:

- Não sei se posso explicar direito... é uma questão de energia nervosa. As pessoas só dispõem de uma quantidade limitada. Aprende-se a proteger sua corrente de energia, a usá-la da maneira mais eficaz, a relaxar para poupar sua força. E o que mais consome a energia humana? O sexo, é claro. Pode-se usá-lo, às vezes, para canalizar energia, mas há limites para esse tipo de coisa. Quando se está sintonizado com uma pedra-da-estrela... a energia que ela contém é ilimitada, mas a carne e o sangue humanos, as ondas cerebrais só podem suportar até um certo ponto. Para um homem, é muito simples. Não se pode sobrecarregar com o sexo, porque se isso acontecer será incapaz de ter qualquer função sexual. Os telepatas de matriz descobrem isso logo no início. É preciso ter apenas rações mínimas de sexo, se quiserem conservar energia suficiente para realizarem seu trabalho. Para uma mulher, é mais fácil ter uma sobrecarga. Por isso, a maioria das mulheres tomam a decisão de permanecerem castas, ou então tomam o maior cuidado para não sintonizarem com os padrões mais complexos da matriz. Porque isso pode matá-las, bem depressa, e não é uma morte das mais agradáveis.

Ele se lembrou de uma história que Leonie lhe contara, logo no início do treinamento.

- Já lhe disse que não é fácil estuprar uma Guardiã, contra sua vontade... mas pode acontecer, e já aconteceu. Houve uma Guardiã... era uma princesa da Casa de Hastur... e ocorreu durante uma das guerras, quando tais mulheres eram usadas como peões. Dama Mirella I Iastur foi seqüestrada, e depois a largaram nos portões da cidade, achando que ela não teria mais condições de trabalhar contra eles. Mas a outra Guardiã na Torre foi morta, e não havia mais ninguém para agir contra os invasores que atacavam Arilinn. Por isso, Dama Mirella escondeu o que lhe haviam feito, foi para a Torre, e lutou durante horas contra as forças inimigas. Ao final da batalha, quando todos os invasores estavam mortos ou agonizantes, ela desceu da Torre e caiu morta, apagando como uma tocha consumida. A avó de Leonie era uma rikhi e Subguardiã na ocasião, viu Dama Mirella morrer, e contou que não apenas sua pedra-da-estrela escureceu e explodiu, mas também que suas mãos foram queimadas por um fogo intenso, o corpo destruído pelas energias que ela não podia mais controlar. Há um monumento a ela em Arilinn. Nós lhe prestamos uma homenagem todos os anos, na Noite do Festival, e acho que é uma advertência a todas as Guardiãs que não levam a sério seus poderes... ou sua castidade.

Andrew estremeceu, pensando: Talvez tenha sido melhor que eu não fosse capaz de tocar em Callista por um momento sequer. Mas será que Damon não contou essa história só para me impedir de ter idéias mais tarde? Damon gesticulou para Ellemir.

- Dê-lhe a pedra, criança. Toque-a de leve a princípio, Andrew. Bem de leve. Sua primeira lição. Jamais aperte uma pedra-da-estrela em suas mãos. Sempre a manuseie como se fosse uma coisa viva.

Devo também trabalhar como uma Guardiã? Treiná-lo, como Leonie me treinou?

Andrew pegou a pedra dos dedos estendidos de Ellemir. Captara o pensamento ressentido de Damon, e especulou qual seria o motivo da raiva do magro Lorde do Comyn. Será que só as mulheres eram telepatas, e por isso Damon sentia-se diminuído como homem? Não, não podia ser isso, caso contrário ele não teria uma das pedras; mas Andrew sentiu que havia alguma coisa. A pedra-da-estrela parecia quente, mesmo através da seda. Esperava que fosse como qualquer outra pedra, fria e dura. Em vez disso, havia o calor de uma coisa viva em sua palma. Damon disse, em voz baixa:

- Agora tire a seda. Com todo o cuidado, bem devagar. Não olhe imediatamente para a pedra.

Andrew abriu a seda protetora e viu Ellemir se encolher. Ela murmurou:

- Senti isso.

Não poderíamos usar Ellemir como um barômetro para as reações de Callista -, pensou Andrew.

- Não chegou a doer - acrescentou Ellemir, franzindo as sobrancelhas, obviamente tentando ser precisa na descrição de suas reações. - Apenas... senti. Como se uma mão me tocasse. Não sei direito onde. Nem mesmo foi desagradável. Apenas... de certa forma, um contato íntimo.

Foi a vez de Damon franzir o rosto e comentar:

- Você começa a desenvolver o laran. Isso é evidente. E pode ser muito útil.

Ela parecia assustada.

- Damon... é perigoso para mim? Não sou virgem.

Gêmea de uma Guardiã e tão ignorante"?, pensou Damon, exasperado. Mas ele logo percebeu que o medo de Ellemir era genuíno, e se apressou em dizer:

- Não, breda. Só há perigo para as mulheres que trabalham nos mais altos níveis nas Torres, ou com as pedras mais poderosas. Pode ter, se houver uma sobrecarga... e se estiver exausta de fazer amor, ou grávida... uma dor de cabeça muito forte ou um desmaio. Nada pior. Há mulheres trabalhando na Torre que não precisam viver pelas leis de uma Guardiã.

Ela parecia aliviada e um pouco embaraçada. Andrew refletiu que não era o tipo de coisa que as moças daquele mundo costumavam confessar na presença de estranhos. Ao que tudo indicava, os tabus sexuais aqui eram diferentes dos que existiam entre os terráqueos, mas parecia haver muitos. Damon disse:

- Ellemir, toque em minha pedra por um instante... de leve, com todo o cuidado.

Ele rangeu os dentes enquanto desembrulhava a pedra. Andrew, observando, achou que Damon se preparava para um golpe violento. Ellemir encostou a ponta do dedo na pedra, e Damon apenas deixou escapar um pequeno suspiro.

Isso significa que Ellemir e eu estamos sintonizados de alguma forma, pensou ele. É compreensível. Sempre acontece em casos assim. Se pudermos nos tornar ainda mais íntimos, se eu a levar para minha cama, talvez até ela possa aprender a usar a pedra. Se eu precisava de um bom motivo... Damon soltou uma risada breve, brusca, consciente de que, mais uma vez, irradiara seus pensamentos, tanto para a mulher que era seu alvo quanto para o homem ali presente, que ainda era, pelos padrões normais, um estranho. Ora, era melhor que todos se acostumassem. Seria pior, antes de melhorar.

- Pelo que vale - disse ele, em voz alta, e Andrew percebeu a tensão e o medo em sua voz -, parece que Ellemir pode manusear minha pedra sem me machucar. O que ajuda muito. Quanto a você, Andrew, eu acho que pode sintonizar a pedra de Callista sem perigo para ela. É um risco que teremos de correr. Você é o nosso único vínculo com Callista. Para o que teremos de fazer...

Andrew lançou um olhar inquisitivo para o homem mais velho.

- E o que exatamente vamos fazer?

- Ainda não sei direito. Não posso fazer planos definitivos até Dom Esteban acordar. O pai tem o direito de partilhar todos os planos que fizermos.

Além do mais, pensou Damon, sombrio, a esta altura saberemos se ele pode ou não participar do resgate.

- Mas qualquer coisa que fizermos, Callista terá de ser informada. E mesmo que ela fique ferida ou morra... - Ele viu Ellemir se encolher. - ...ainda teremos de agir contra quem está fazendo isso nas terras escuras.

Andrew pensou: Sou o único empenhado nisso apenas por Callista; não quero ter qualquer participação no resto. Mas diante da expressão angustiada de Damon, ele não foi capaz de dizer isso expressamente. Ainda segurava a pedra embrulhada. Damon suspirou e disse:

- Desembrulhe de novo... e toque de leve. Ellemir? Ele olhou para a moça, que acenou com a cabeça.

- Ainda sinto quando ele toca na pedra.

Com todo o cuidado, Andrew ajeitou a pedra entre as palmas. Sentava numa cadeira baixa, perto da janela, com Damon de pé à sua frente.

- É melhor eu me precaver contra o que aconteceu na última vez - murmurou Damon.

Ele sentou de pernas cruzadas no tapete grosso, puxou Ellemir para se acomodar ao seu lado. Observando o rosto de  Damon, Andrew pensou: Ele tem medo. Será tão perigoso assim? Os olhos cinza de Damon se encontraram com os do terráqueo, e ele disse:

- Não se iluda: é mesmo perigoso. As pessoas que usam esse dom sem o treinamento adequado podem causar um mal imenso. Devo adverti-lo de que há riscos para você também. Em geral, o trabalho de sintonizar alguém com uma matriz é conduzido por uma Guardiã. Não estou plenamente habilitado a isso.

Leonie disse que eu seria uma Guardiã se nascesse mulher. Pela primeira vez, esse pensamento não provocou em Damon uma reação de autodesprezo, uma dúvida sobre sua virilidade. Em vez disso, sentiu-se até um pouco grato. Poderia salvar as vidas de todos. Andrew inclinou-se para ele, a pedra de Callista aninhada em suas mãos, e murmurou:

- Sabe o que está fazendo, não é mesmo, Damon? Se não confiasse em você, nunca o deixaria começar isso. Vamos assumir o risco como inevitável e seguir em frente.

Damon suspirou.

- Creio que é a única coisa que podemos fazer. Eu gostaria...

Mas ele não terminou a frase. Eu gostaria que houvesse tempo para chamar Leonie, trazê-la para cá. Ela aprovaria o que estou fazendo... sintonizando um estranho, um terráqueo, com uma Guardiã? Mesmo para salvar a vida de Callista? Afinal, Callista sabia dos riscos que uma Guardiã deve assumir, antes de ocupar sua posição na Torre. Leonie não conhece este terráqueo tanto quanto eu, tanto quanto Callista.

Nunca fiz nada contra a vontade de Leonie, em toda a minha vida. Contudo, ela me deu liberdade para usar meu próprio julgamento, e é exatamente o que devo fazer agora.

- O que tenho de fazer exatamente? - indagou Andrew, em voz baixa. - Não esqueça que não sei nada sobre essas coisas psíquicas.

Seus dedos manuseavam apreensivos a pedra-da-estrela; recordando a advertência de Damon, fez um esforço para relaxar, pensando: É como se... Devo me manter cauteloso, como se fosse a própria vida de Callista que estivesse em minhas mãos. O pensamento encheu-o com uma ternura profunda. Ellemir levantou a cabeça, e seus olhos se encontraram num breve momento de simpatia. Ela é mais parecida com Callista do que imaginei. Damon disse:

- Vou entrar em sua mente,., fazer com que minhas ondas cerebrais, o campo de força elétrica de meu cérebro, vibrem no mesmo comprimento que as suas, se for mais fácil compreender assim...e depois tentarei ajustar o campo de seu cérebro ao da pedra de Callista, a fim de que possa operar na mesma freqüência. Isso o deixará em contato maior com ela, e talvez possa nos levar ao lugar em que eles a mantêm prisioneira.

- Não sabe onde ela está?

- Sei apenas em termos gerais. Disse que ela falou em água gotejando e escuridão. Ao que parece, só pode ser nas cavernas Corresanti, as únicas a um dia de viagem daqui, e eles não ousariam mantê-la na superfície, à luz do sol. E a aldeia de Corresanti fica nos limites das terras escuras. Mas se você estiver sintonizado com a pedra-da-estrela de Callista, poderá usá-la como um farol, e descobrir com precisão onde a esconderam. E depois nos informará.

Andrew acompanhou a explicação com alguma dificuldade.

- É evidente que você é um perito nessas pedras. Por que não pode encontrá-la pessoalmente?

- Por dois motivos. Quem a mantém prisioneira não apenas tem seu corpo cativo, e no escuro, mas também conseguiu isolar sua mente num nível do mundo superior que nenhum de nós é capaz de alcançar. Não me pergunte como conseguiram isso. É óbvio que o responsável usa uma matriz muito poderosa.

O Grande Gato que eu vi, pensou Damon. Mas talvez possamos escaldar seu pêlo.

- O segundo motivo. Não pode haver a menor dúvida de que Callista mantém um profundo contato emocional com você. Assim, metade do nosso trabalho já está feito. Se tivéssemos uma pedra intacta para você, eu poderia sintonizar suas freqüências nela, e nos levaria a Callista porque já se encontra em contato com ela. Mas como devemos usar a pedra de Callista, sintonizada com ela, com seu corpo e cérebro, devemos levar em consideração que só alguém com um relacionamento profundo poderia usá-la sem perigo. Sem você, eu poderia tentar com a irmã gêmea. Mas o fato de que Callista entrou em contato direto com você significa que é a escolha lógica.

Damon fez uma pausa, depois acrescentou, abruptamente:

- Estou irradiando de novo. Olhe para a pedra.

Andrew baixou os olhos para a luminosidade azul cintilante. No fundo da pedra, havia faixas de cor em movimento lento, como um coração batendo... o coração de Callista.

- Ellemir, você terá de monitorar a nós dois.

Damon ansiava, de uma forma quase física, por mulheres treinadas do Círculo da Torre, que conheciam aquele trabalho e podiam se manter em contato, de um modo quase automático, com sete ou oito telepatas operando ao mesmo tempo. Ellemir acabara de despertar para o laran, não tinha qualquer treinamento.

- Se um dos dois se esquecer de respirar, se der a impressão de que se encontra em alguma aflição física profunda, terá de nos trazer de volta.

Ela também parecia assustada.

- Tentarei.

- Tem de fazer mais do que tentar. Possui o dom. Use-o, Ellemir, na medida em que preza a vida de sua irmã. Ou a minha. Se tivesse o treinamento, poderia intervir e regular nossa respiração e batimentos cardíacos; mas darei um jeito de superar tudo, se ao menos conseguir nos trazer de volta à superfície caso aconteça alguma coisa.

- Não a assuste - protestou Andrew, gentilmente. - Tenho certeza de que ela fará o melhor que puder.

Damon respirou fundo e concentrou-se na pedra. O medo aflorou como uma chama na pederneira; ele sentiu o coração acelerar, mas forçou-o a se acalmar. Posso fazer isso. Já fiz. E Leonie sempre disse que eu era capaz. Sentiu a respiração se normalizar, enquanto relaxava, sentiu o coração se aquietar no ritmo lento de pulsação da pedra. Começou a tentar formular as instruções para Andrew. Observe as luzes na pedra. Tente aquietar sua mente, sentir todo o corpo pulsando nesse ritmo.

Andrew sentiu o pensamento - captou o ritmo - e se perguntou como exatamente isso ocorria. Poderia mudar sua própria pulsação assim? Aprendera no Centro Médico e Psíquico a usar o aparelho de retorno biológico para iniciar o ritmo alfa, no sono ou em relaxamento profundo. Aquilo não era muito diferente. Tentou relaxar, sentir a pulsação rítmica exata da pedra. E como sentir as batidas do coração de Callista. Tornou-se consciente das batidas de seu próprio coração, do ritmo do sangue nas têmporas, de todos os pequenos ruídos interiores, sensações e ritmos. A pulsação da pedra-da-estrela entre suas palmas foi aumentando e se tornando mais brilhante, enquanto ele se tornava mais e mais consciente de seus ritmos internos, num contraponto definido. Acho que preciso apenas combinar os ritmos. Passou a respirar fundo, bem devagar, tentando manter a respiração no ritmo exato da pedra-da-estrela. O ritmo de Callista? Não pense. Concentre-se. Conseguiu igualar o ritmo da respiração. Titubeou por um instante, sentiu o ímpeto de adrenalina invadi-lo - Callista? - e percebeu que Ellemir respirava fundo, audível, quase um ofego. Fez um esforço para se aquietar de novo, tentou conter o ritmo irregular, pouco a pouco voltou ao normal. Para seu espanto, constatou que à medida que sua respiração se aquietava, a pulsação na pedra-da-estrela também se aquietava.

Agora, a respiração e a pulsação da pedra tinham o mesmo ritmo, mas as batidas do coração ainda se mantinham em contraponto. Concentre-se. Entre no ritmo. Os olhos doíam, uma onda de náusea percorreu-o. A pedra girava - ele fechou os olhos, lutando contra a vertigem, mas a luz e as cores em movimento continuaram a passar por suas pálpebras.

Gemeu alto, e o som rompeu o ritmo crescente em fragmentos. Damon ergueu a cabeça no mesmo instante, e Ellemir fitou-o apreensiva.

- Qual é o problema? - indagou Damon. Andrew murmurou, com alguma dificuldade:

- Enjôo.

O quarto parecia rodar em círculos lentos, ele estendeu uma das mãos para se amparar. Ellemir também parecia pálida. Damon umedeceu os lábios e disse:

- Isso acontece. Você é inexperiente demais. Eu gostaria... Por Aldones, como eu gostaria que tivéssemos um pouco de kirianl Falta isso... Ellemir, tem certeza de que não há nenhum aqui?

- Acho que não.

Damon pensou: Também não me sinto muito bem. Não vai ser fácil.

- Por que tem esse efeito? - indagou Andrew.

Ele sentiu o ímpeto de impaciência de Damon: Isso é hora de fazer perguntas tolas? Sua raiva, pensou Andrew, incrédulo, parecia um pálido clarão vermelho a envolvê-lo.

- O quarto está... torto - murmurou ele, inclinando-se para trás, com os olhos fechados.

Damon forçou-se a manter a calma. Não seria fácil, mesmo que todos estivessem em total harmonia. Se começassem a discutir, nem sequer seria possível. E ele não podia esperar que Andrew, fazendo um trabalho difícil e inesperado, com estranhos, lutando contra a vertigem e a angústia de ter os centros psíquicos sem uso do cérebro abertos, fosse capaz de permanecer no controle. A função de manter o controle era exclusivamente sua. Cabia à Guardiã manter todos em contato. Um trabalho de mulher. Ora, homem ou mulher, neste momento é minha responsabilidade. Damon se acalmou, deliberado, aquietou a respiração e disse:

- Desculpe, Andrew. Todos passam por isso, em alguma ocasião. Lamento que tenha sido tão difícil para você, e gostaria de poder ajudar. Sente uma vertigem porque, em primeiro lugar, está usando uma parte de seu cérebro com que geralmente não opera. E, segundo, porque seus olhos, os centros de equilíbrio, e todo o resto, reagem ao esforço de impor... um controle deliberado e voluntário a algumas funções automáticas. Não tive a intenção de me irritar, mas há um certo grau de irritabilidade física que também não posso controlar. Tente não focalizar os olhos em coisa alguma, se puder evitar, e recoste-se nas almofadas. A vertigem deve passar em poucos minutos. Faça o melhor que puder.

Andrew permaneceu imóvel, os olhos fechados, até que a vertigem diminuiu um pouco. Ele está tentando me ajudar. As sensações físicas eram como os efeitos colaterais ruins de alguma droga, uma náusea que nem mesmo era bastante definida para ser aliviada com o vômito, apenas uma sensação estranha de for-migamento em suas entranhas, insólitos lampejos de luz dentro de seus olhos. Não o mataria; já tivera ressacas bem piores.

- Estou bem agora - anunciou ele, percebendo o olhar surpreso e de agradecimento de Damon.

- Para ser franco, é um bom sinal que você tenha sentido uma vertigem neste estágio - comentou Damon. - Significa que algo está de fato acontecendo. Pronto para recomeçar?

Andrew acenou com a cabeça e, sem instruções desta vez, tentou se concentrar no ritmo dentro da pedra matriz. Foi mais fácil agora. Ele compreendeu que não precisava olhar para a pedra; podia sentir a pulsação através das pontas dos dedos. Não, a sensação não era exatamente física; tentou determinar de onde vinha e a perdeu de novo. Tinha alguma importância de onde vinha? O importante era se manter aberto à pulsação. Tornou a captá-la (Uma parte de meu cérebro que nunca usei antes?) e sentiu a rapidez com "que a respiração entrava em sincronia com a pulsação invisível. Depois de algum tempo, durante o qual experimentou a sensação de que tateava no escuro à procura de um ritmo esquivo, as batidas do coração também aderiram ao ritmo.

Lutou no escuro pelo que lhe pareceu um longo tempo contra os ritmos cruzados, que agora davam a impressão de estar dentro dele, não fora. Assim que controlava um ritmo da orquestra de múltiplas percussões, submetendo-o à harmonia difusa, outro escapava ao seu controle e iniciava um padrão rebelde; tentava escutar e analisar, determinar com extremo cuidado de que parte do corpo vinha o ritmo rebelde, para sintonizar um a um, enquadrar todos na harmonia apropriada. Depois de um longo momento, teve consciência de que todos os ritmos batiam na mesma pulsação, subindo e descendo, como se aninhados dentro de um vasto coração, oscilando num mar incessante, o corpo e o cérebro, o sangue fluindo, o movimento interminável das células dentro dos músculos, a pulsação lenta e gentil nos órgãos sexuais, tudo pulsando no mesmo ritmo... Como se eu estivesse dentro da pedra, fluindo com todas as pequenas luzes...

Andrew... o mais delicado dos sussurros, parte do grande ritmo.

Callista? Não era uma pergunta. E não havia necessidade de resposta. Como se estivéssemos aninhados juntos, numa vasta e oscilante escuridão. É verdade, isso também virá. Aninhados como gêmeos no útero. Ele não tinha pensamentos conscientes naquele momento, pois se encontrava muito abaixo do nível de pensamento, onde havia apenas uma percepção desfocada. Com um pequeno e desligado nível de pensamento fragmentado, especulou se aquilo era de fato a sintonia com a mente de outra pessoa. Não consciente da resposta como uma coisa separada, ele compreendeu que se encontrava mesmo em íntimo contato com a mente de Callista. Por um instante, sentiu Ellemir também, e sem realmente desejá-lo, um pensamento aflorou em sua mente, um lampejo de intimidade um tanto perturbadora, como se naquela escuridão vibrante estivesse nu, despido como nunca ficara antes, envolvido numa intimidade que era como um ritmo vigoroso de sexo. Estava consciente das duas mulheres, e parecia absolutamente natural, uma parte da realidade, sem surpresa ou embaraço. E depois se deslocou para um ponto acima na percepção, e ele compreendeu que seu corpo se achava presente outra vez, frio e encharcado de suor. Nesse instante, sentiu a presença de Damon, numa intimidade desconcertante, não de todo bem-vinda, porque se intrometia em seu intenso vínculo emocional com Callista. Não queria ficar tão íntimo assim de Damon: não era a mesma coisa, ele tinha uma textura diferente, que o incomodava. Lutou e sentiu que ofegava, quase vomitava, e era como se o coração em suas mãos também resistisse, batesse forte por um momento, e depois, abruptamente, houve um súbito e breve clarão, uma fusão. (Divisou o rosto de Damon num relance, e foi assustador, como se olhar no espelho.) E logo, sem transição, voltou a sentir seu corpo, e Callista desapareceu.

Andrew permaneceu recostado na cadeira, consciente de que ainda se sentia nauseado. Mas a vertigem intensa passara. Damon ajoelhava-se ao seu lado, fitando-o nos olhos, com uma preocupação ansiosa.

- Você está bem, Andrew?

- Estou... - ele conseguiu balbuciar, sentindo um constrangimento tardio. - O que foi...

Ellemir - Andrew descobriu que ela segurava sua mão, e a outra apertava a de Damon - apertou seus dedos de leve.

- Não pude ver Callista, mas sei que ela esteve aqui por um momento. Perdoe-me por duvidar de você, Andrew.

Andrew sentiu um estranho embaraço. Sabia muito bem que não saíra da cadeira, que não tocara em coisa alguma, a não ser nas pontas dos dedos de Ellemir, que Damon não o tocara em nenhum momento, mas tinha a nítida sensação de que algo profundo e quase sexual ocorrera entre todos, inclusive Callista, que nem se achava presente.

- Quanto do que senti foi real? - perguntou ele. Damon deu de ombros.

- Defina seus termos. O que é real} Tudo e nada. Ah, sim, as imagens... - Ele parecia ter captado a essência do constrangimento de Andrew. - Tentarei explicar. Quando o cérebro... ou a mente... tem uma experiência diferente de tudo o que já conheceu, visualiza em termos de coisas familiares. Perdi o contato por alguns segundos... mas imagino que você sentiu uma forte emoção.

- É verdade - balbuciou Andrew, quase inaudível.

- Foi uma experiência inédita, e por isso no mesmo instante sua mente associou-a com algo familiar, mas também forte, que por acaso era sexual. Minha imagem é como andar numa corda bamba sem cair, e depois encontrar algo em que me segurar, encontrar o equilíbrio. Mas... - Damon sorriu subitamente. - ...muitas pessoas pensam em imagens sexuais. Assim, não precisa se preocupar. Estou acostumado, o que também acontece com todos que já estabeleceram um contato direto. Cada pessoa tem o seu conjunto individual de imagens; muito em breve poderá reconhecê-las como vozes individuais.

Ellemir disse, quase num sussurro:

- Fiquei ouvindo vozes em tons diferentes, que de repente entraram em harmonia e começaram a cantar juntas, como um enorme coro.

Damon inclinou-se e roçou os lábios em seu rosto, murmurando:

- Então foi essa a música que ouvi?

Andrew compreendeu que em algum ponto no fundo de sua mente também ouvira vozes distantes se fundindo. Imagens musicais, refletiu ele, um tanto irônico, eram mais seguras e menos reveladoras do que as sexuais. Olhou hesitante para Ellemir, sondando os seus próprios sentimentos, e descobriu que pensava em dois níveis ao mesmo tempo. Num nível sentia intimidade com Ellemir, como se tivesse sido seu amante por um longo tempo, uma boa vontade compreensiva, um ânimo de simpatia e proteção. No outro nível, ainda mais nítido, estava consciente de que aquela moça lhe era desconhecida, que nunca a tocara além das pontas dos dedos, e não tinha a menor intenção de ir além disso, o que o deixou confuso.

Como posso sentir essa aceitação quase sexual de Ellemir, e ao mesmo tempo não ter o menor interesse sexual por ela, como uma pessoa? Talvez Damon tenha razão, e apenas visualizei sentimentos desconhecidos em termos conhecidos. Porque tive o mesmo tipo de intimidade e aceitação em relação a Damon, o que é muito desconcertante, perturbador. E ele sentiu uma terrível dor de cabeça.

- Também não vi Callista, e não cheguei a fazer contato com ela, mas senti que Andrew a encontrara - comentou Damon.

Ele suspirou, com o cansaço da fadiga física, mas seu rosto estava sereno.

Mas o interlúdio pacífico foi de curta duração. Damon sabia que, até agora, Callista se achava sã e salva. Se alguém lhe fizesse mal, Andrew saberia. Mas por quanto tempo ela continuaria segura? Se seus captores soubessem que Callista entrara em contato com alguém no exterior, alguém que podia orientar um grupo de resgate... havia uma maneira óbvia de evitar isso. Andrew não poderia alcançá-la se ela estivesse morta. E era algo tão simples, tão evidente, que Damon sentiu um aperto na garganta, em pânico. Se tivessem o menor indício do que ele tentava fazer, se percebessem que o socorro se achava a caminho, os seqüestradores não permitiriam que Callista vivesse por tempo suficiente para ser resgatada.

Por que a mantinham viva por tanto tempo? Outra vez Damon se advertiu a não julgar os homens-gatos pelos padrões humanos. Não sabemos realmente nada dos motivos pelos quais eles fazem qualquer coisa.

Ele se levantou, um pouco trôpego, sabendo que depois do extenuante trabalho telepático precisava de comida, sono e sossego. A noite já avançara bastante. A necessidade de urgência o pressionava. Fez um esforço para não cair e olhou para Ellemir e Andrew. Agora que as coisas voltaram a andar, devemos estar prontos para agir com toda a presteza, pensou ele. Se vou agir como se fora uma Guardiã, é uma responsabilidade minha... cuidar para que eles não entrem em pânico. Estou no comando, tenho de zelar pelos dois.

- Todos precisamos comer e dormir - declarou ele. - E não podemos fazer nada até sabermos da gravidade dos ferimentos de Dom Esteban. Agora, tudo depende disso.

 

CAPITULO OITO

Quando desceu para o grande salão, na manhã seguinte, Damon encontrou Eduin andando de um lado para outro, o rosto pálido e contraído. A pergunta de Damon, ele acenou com a cabeça.

- Caradoc passa bem agora, Lorde Damon. Mas Lorde Istvan...

Isso revelou a Damon tudo o que precisava saber. Esteban Lanart despertara... e ainda era incapaz de fazer qualquer movimento da cintura para baixo. Então era isso. Damon experimentou uma sensação angustiante, como se estivesse em areia movediça. E agora? E agora"?

Agora, tudo dependia dele. Percebeu, empinando o queixo, que sabia disso desde o início. Desde o momento de premonição {Você o verá mais cedo do que imagina, e não será agradável para ninguém), tinha certeza de que, ao final, a missão seria sua. Ainda não podia imaginar como, mas pelo menos sabia agora que não poderia transferir o fardo para os ombros mais fortes de seu parente.

- Ele já sabe, Eduin?

O rosto de falcão de Eduin contorceu-se numa expressão de compaixão.

- Acha mesmo que alguém precisaria lhe contar? Claro que ele já sabe.

E se não soubesse, perceberia no instante em que me visse. Damon fez menção de empurrar a porta para entrar, mas Eduin segurou seu braço.

- Não .pode fazer pelo ferimento dele o que fez por Caradoc, Lorde Damon?

Consternado, Damon balançou a cabeça.

- Não sou milagreiro. Estancar o fluxo de sangue não é nada. Com esse problema resolvido, Caradoc ficaria bom. Só fiz o que o ferimento de Caradoc poderia fazer por si mesmo, se  alguém fosse capaz de alcançá-lo. Mas se a medula espinhal é cortada... nenhum poder neste mundo pode repará-la. Eduin fechou os olhos por um instante.

- Era o que eu temia. Tem alguma notícia de Dama Callista, Lorde Damon?

- Sabemos que ela se encontra sã e salva neste momento, mas há necessidade de pressa. Por isso, devo falar imediatamente com Dom Esteban, formular os planos.

Ele empurrou a porta. Ellemir se achava ajoelhada ao lado da cama do pai; os outros feridos haviam sido transferidos para a sala da guarda, à exceção de Caradoc, deitado sob cobertores no outro lado do salão, em sono profundo. Esteban Lanart estava estendido de costas, o corpo enorme imobilizado por sacos de areia, para que não pudesse se virar de um lado para outro. Ellemir o alimentava, sem muita habilidade, com uma colher de criança. Era um homem alto e corpulento, de cara vermelha, com as feições aquilinas de seu clã, costeletas compridas e sobrancelhas espessas já grisalhas, mas a barba ainda era de um vermelho brilhante. Parecia furioso e incongruente, com fragmentos do mingau na barba; os olhos irados deslocaram-se para Damon, que lhe disse:

- Bom-dia, parente.

- Bom dia? Quando estou deitado aqui como uma árvore derrubada por um raio... e minha filha... minha filha... - Dom Esteban ergueu o punho cerrado em raiva, batendo na colher, o que derrubou mais mingau ainda. - Leve essa porcaria nojenta! Não é minha barriga que está paralítica, menina!

Ele percebeu que Ellemir ficou desconsolada e estendeu a mão para afagar seu braço, desajeitado.

- Desculpe, chiya. Tenho motivos suficientes para sentir raiva. Mas traga-me uma coisa decente para comer, não essa porcaria de criança.

Ellemir levantou os olhos, impotente, para a curandeira, de pé a seu lado. A mulher deu de ombros, e Damon interveio:

- Sirva qualquer coisa que ele quiser, Ellemir, a menos que esteja com febre.

A moça levantou-se e saiu. Damon aproximou-se da cama. Parecia inconcebível que Dom Esteban nunca mais fosse se levantar daquela cama. O rosto rude não devia se manter sobre um travesseiro, aquele corpo poderoso deveria estar de pé, em movimento, no estilo militar vigoroso habitual.

- Não vou perguntar como se sente, parente - disse Damon -, mas apenas gostaria de saber se ainda está com muita dor.

- Quase nenhuma, por mais estranho que possa parecer. Como um ferimento tão pequeno pode me deixar prostrado? Pouco mais que um arranhão. E, no entanto... - Os dentes comprimiram o lábio. - Fui informado de que nunca mais tornarei a andar.

Os olhos cinza procuraram os de Damon, numa agonia de súplica tão grande que o homem mais jovem ficou constrangido.

- É verdade? Ou essa mulher é tão tola quanto parece?

Damon baixou a cabeça, sem responder. Depois de um momento, o homem mais velho balançou a cabeça, numa resignação cansada.

- A tragédia ronda nossa família. Coryn morto antes de completar quinze anos, e Callista, Callista... e por isso devo pedir ajuda, humildemente, como convém a um aleijado, a estranhos. Não tenho ninguém do meu sangue para ajudar.

Damon abaixou-se ao lado do velho, apoiado num joelho, e disse, em tom incisivo:

- Que os deuses impeçam que procure ajuda entre estranhos. Reivindico esse direito... meu sogro.

As sobrancelhas espessas se ergueram quase até a linha dos cabelos. Só depois de um longo silêncio é que Dom Esteban falou:

- Então é desse lado que o vento sopra? Eu tinha outros planos para Ellemir, mas... - Uma breve pausa. - Creio que nada acontece como planejamos, neste mundo imperfeito. Pois que assim seja. Mas o caminho não será fácil, mesmo que você consiga encontrar Callista. Ellemir me contou uma história confusa sobre Callista e um estranho, um terráqueo, que conseguiu de alguma forma entrar em contato com ela, e ofereceu sua espada, ou seus serviços, qualquer coisa assim. Ele deve conversar com você, embora pareça esquisito que um Terranan demonstre o respeito devido a uma Guardiã.

Dom Esteban fez outra pausa e amarrou a cara.

- Amaldiçoadas sejam aquelas bestas! Damon, o que está acontecendo nestas colinas? Até poucas estações atrás, os homens-gatos eram tímidos, viviam isolados nas colinas, e ninguém os julgava mais inteligentes do que o povo pequeno das árvores. E de repente, como se algum deus do mal surgisse entre eles, passam a nos atacar como demônios, atiçam as Cidades Secas contra nós... e terras em que nossa gente viveu por gerações se encontram sob as trevas, como se estivessem encantadas. Sou um homem prático, Damon, e não acredito em encantamentos. Agora, eles se tornam invisíveis, como os magos das histórias antigas.

- É tudo real, infelizmente - disse Damon, sabendo que sua expressão era sombria. - Encontrei-os, quando cruzava as terras escuras, e só tarde demais compreendi que poderia torná-los visíveis com minha pedra-da-estrela.

Ele levantou a mão para a bolsa de couro pendurada do pescoço, antes de acrescentar:

- Massacraram meus homens. Eduin disse que você salvou os seus, que abriu caminho quase sozinho para escapar da emboscada. Como...?

Damon sentiu-se de repente contrafeito. Dom Esteban levantou da cama a mão enorme que empunhava a espada e contemplou-a, perplexo.

- Não sei direito - murmurou ele, ainda olhando para a mão, mexendo os dedos, virando-a para contemplar a palma, revirando. - Devo ter ouvido a outra espada no ar...

Ele hesitou, e um estranho tom de espanto se insinuou em sua voz quando voltou a falar:

- Não foi bem assim. Só ouvi depois que tinha sacado a espada, e me mantinha em guarda. - Ele piscou, aturdido. -Já tinha me acontecido antes. A gente se vira subitamente, bloqueia um golpe, descobrindo um ataque inesperado. - Ele riu, meio rouco. - Avarra misericordiosa! Escute só o velho se gabando!

Os dedos se contraíram em punhos. O braço tremeu em ira.

- Gabando-me? E por que não? O que mais pode fazer um aleijado?

De maior espadachim dos Domínios a inválido impotente - uma tragédia! E, no entanto, pensou Damon, relutante, havia um elemento de justiça nisso. Dom Esteban nunca fora tolerante com a menor fraqueza física nas outras pessoas. Fora para provar sua coragem ao pai, subindo às alturas que tanto temia, que Coryn caíra para a morte...

- Pelos infernos de Zandru! - exclamou o velho, depois de um momento. - Da maneira como minhas articulações endureciam, nestes três últimos invernos, não ia mesmo demorar para me tornar um inválido de qualquer maneira. Melhor ficar assim num derradeiro combate.

- Não será esquecido tão depressa. - Damon virou o rosto, para que o velho não percebesse a compaixão em seus olhos. - Pelos infernos de Zandru, bem que poderíamos aproveitar sua espada agora, na luta contra os amaldiçoados homens-gatos!

O velho soltou uma risada sem qualquer humor.

- Minha espada? Isso é fácil... pode pegá-la, e tire bom proveito! - Ele contraiu o rosto numa careta amargurada, que passava por um sorriso. - Mas receio que terá de usá-la pessoalmente. Não posso ir junto para ajudar.

Damon captou o desdém silencioso - Jamais foi forjada nenhuma espada que possa convertê-lo num espadachim -, mas no momento não sentiu raiva. A única arma restante de Dom Esteban era sua língua. Além do mais, Damon nunca se orgulhara de sua habilidade nas armas.

Ellemir voltou com uma bandeja de alimentos sólidos para o pai; ajeitou-a ao lado da cama, começou a cortar a carne. Dom Esteban perguntou:

- Quais são seus planos, Damon? Você não está planejando atacar os homens-gatos, não é?

- Não vejo alternativa, meu sogro.

- Seria preciso um exército para liquidá-los, Damon.

- Haverá tempo para isso no próximo ano. Agora, nosso problema é tirar Callista das mãos deles, e para isso não há tempo de mobilizar um exército. E se chegássemos lá com um exército, a primeira providência deles seria matá-la. O tempo urge. Agora que sabemos onde ela se encontra...

Dom Esteban fitou-o aturdido, esquecendo-se de mastigar um pedaço de carne com molho. Engoliu, engasgou um pouco, gesticulou para que Ellemir lhe servisse água e perguntou:

- Como conseguiu descobrir?

- Por intermédio do Terranan. E também não sei como aconteceu. Nunca soube que algum deles tivesse o nosso laran. Mas ele o possui, e vem mantendo contato com Callista.

- Não duvido. Conheci alguns em Thendara, quando negociavam a construção da Cidade Comercial. São muito parecidos conosco. Ouvi uma história de que a Terra e Darkover foram povoados por ancestrais comuns, no passado distante. Mas eles raramente deixam sua cidade. Como este chegou aqui?

- Mandarei chamá-lo, e poderá ouvir a história de seus próprios lábios - disse Ellemir.

Ela chamou um criado e deu o recado. Pouco depois, Andrew Carr entrou no grande salão. Observando o terráqueo fazer uma reverência para Dom Esteban, Damon pensou que pelo menos eles não eram selvagens.

A pedido de Damon, Andrew fez um breve relato de como entrara em contato com Callista. Esteban assumiu uma expressão grave e pensativa.

- Não posso dizer que aprovo isso - declarou ele. - É inédito e escandaloso uma Guardiã manter um contato tão íntimo com um estranho, fora de sua casta. Nos velhos tempos dos Domínios, guerras foram travadas em Darkover por muito menos. Mas os tempos mudam, quer as mudanças nos agradem ou não, e talvez, nas circunstâncias, seja mais importante salvá-la dos homens-gatos do que da desgraça desse contato.

- Desgraça? - repetiu Andrew Carr, o rosto vermelho. - Não tenciono causar qualquer mal ou desonra à sua filha, senhor. Só lhe desejo o melhor, e me proponho a arriscar a vida para libertá-la.

- Por quê? - indagou Dom Esteban, em tom brusco. - Ela nada pode se tornar para você, pois deve permanecer virgem, como uma Guardiã.

Damon torceu para que Andrew tivesse o bom senso de não dizer coisa alguma sobre sua ligação emocional com Callista; mas não confiando que o terráqueo fosse capaz de se controlar, ele se apressou em interferir:

- Dom Esteban, ele já arriscou sua vida para entrar em contato com ela; não é pouca coisa para um homem de sua idade, sem qualquer treinamento, trabalhar com uma pedra-da-estrela.

Ele franziu o rosto para Andrew, tentando transmitir um recado: "Não diga mais nada, deixe as coisas como estão." De qualquer forma, Dom Esteban, por dor ou preocupação, não insistiu no assunto; em vez disso, virou-se para Damon e perguntou:

- Quer dizer que sabem onde Callista se encontra?

- Temos motivos para acreditar que ela se encontra nas cavernas de Corresanti - respondeu Damon. - Andrew pode nos levar a ela.

Dom Esteban soltou uma risada desdenhosa.

- Há muito chão daqui a Corresanti, e todo ele ocupado por homens-gatos e aldeias incendiadas. Fica a meio dia a cavalo pelas terras escuras.

- É algo que não podemos evitar - comentou Damon. - Você conseguiu passar por eles, o que prova que é possível. E pelo menos não poderão nos atacar protegidos pela invisibilida-de enquanto eu tiver minha pedra-da-estrela.

Esteban pensou a respeito, balançou a cabeça lentamente.

- Esqueci que você foi treinado na Torre. O terráqueo vai acompanhá-lo?

O próprio Andrew respondeu:

- Claro que vou. Parece que sou o único elo com Callista. Além do mais, jurei para ela que a salvaria.

Damon sacudiu a cabeça.

- Não, Andrew. Não pode ir, meu amigo. Justamente porque é o único elo com Callista, não podemos permitir que corra qualquer risco. Se fosse morto, mesmo que acidentalmente, é possível que nunca conseguiríamos encontrá-la, ou resgatássemos apenas o seu cadáver, tarde demais. Deve ficar em Armida e manter contato comigo através da pedra-da-estrela.

Andrew insistiu, obstinado:

- Irei de qualquer maneira. Sou muito maior e mais duro do que você imagina. Já vivi em meia dúzia de mundos. Sei cuidar de mim, Damon. Afinal, dou dois de você!

Damon suspirou e pensou: Talvez ele seja mesmo capaz; conseguiu chegar aqui através da nevasca. Eu nunca teria feito isso, se estivesse perdido num mundo estranho.

- Talvez você tenha razão, Andrew. Sabe lutar com uma espada?

O rosto do terráqueo exibiu alguma surpresa e hesitação.

- Não sei. Meu povo não as usa, exceto como esporte. Mas posso aprender... e aprendo depressa.

Damon franziu as sobrancelhas.

- Não é tão fácil assim.

Seu povo só usa espadas como esporte? Então como eles se defendem? Com facas, como os habitantes das Cidades Secas, ou com os punhos? Se assim for, talvez eles sejam mais fortes do que nós. Ou será que os terráqueos foram além, da Aliança e baniram toda e qualquer arma que possa matar?

- Eduin - chamou Damon.

O enorme guarda, refestelado perto da porta, levantou-se no mesmo instante.

- Vai dom?

- Vá até o arsenal e pegue duas espadas de exercício.

Eduin não demorou a voltar, trazendo duas espadas de madeira e couro, usadas em treinamento. Damon pegou uma, estendeu a outra para Andrew. O terráqueo examinou curioso a espada comprida de madeira flexível, a ponta e a beirada cobertas por couro trançado, e ajeitou-a na palma da mão, para senti-la. Damon, franzindo o rosto para a maneira inexperiente de pegar a espada, perguntou bruscamente:

- Alguma vez em sua vida já tinha empunhado uma espada?

- Pratiquei um pouco de esgrima por esporte. Não sou um campeão.

Posso muito bem acreditar nisso, pensou Damon, ajeitando o protetor de couro na cabeça. Ele ficou de lado e olhou para Andrew através do couro trançado que cobria seu rosto. As espadas de treinamento eram bastante flexíveis para que não houvesse um perigo maior de afetar um osso ou um órgão interno, mas os olhos e os dentes eram mais vulneráveis. Andrew postou-se de frente. O peito exposto, pensou Damon, e ele ainda segura a espada como se fosse atiçar o fogo.

Andrew adiantou-se; Damon ergueu sua espada apenas um pouco, golpeando para o lado. Enquanto Andrew perdia o equilíbrio, a ponta de couro atingiu-o no peito. Damon relaxou, baixou sua espada para o chão e balançou a cabeça.

- Está vendo, meu amigo? E não sou um espadachim. Não resistiria a meia dúzia de golpes contra alguém que tivesse um mínimo de competência. Dom Esteban ou Eduin teriam arrancado a espada de minha mão antes que sequer a levantasse.

- Tenho certeza de que posso aprender - insistiu Andrew.

- Não a tempo. Comecei a treinar com estas espadas antes dos oito anos de idade, Andrew. A maioria dos garotos começa pelo menos um ano mais cedo. Você é forte... dá para perceber. E é bastante rápido com os pés. Mas não conseguiríamos lhe ensinar o suficiente, em uma semana, para que possa evitar que o matem. E não dispomos nem de uma semana. Não temos sequer um dia. Esqueça, Andrew. Tem algo mais importante a fazer do que empunhar uma espada.

- E acha que você pode comandar uma expedição de espadachins contra o povo-gato? - indagou Dom Esteban, sardônico. - Eduin poderia fazer o que você fez com o terráqueo em segundos.

Damon olhou para o homem estendido na cama. Esteban gesticulara para que a bandeja com comida fosse retirada e observava-os com um brilho nos olhos que só podia ser de raiva.

- Demonstre um pouco de bom senso, Damon - acrescentou ele. - Eu o mantenho na guarda porque é um bom organizador e administrador. Mas esse trabalho é para um mestre espadachim. É tão cego aos fatos que acha que pode enfrentar espadachins que foram capazes de derrotar toda a guarnição aqui em Armida e seqüestrar Callista direto de sua cama? Vou casar minha filha com um tolo?

Ellemir interveio, numa explosão de ira:

- Pai, como se atreve? Não pode falar desse jeito com Damon!

Damon gesticulou para que ela ficasse quieta. Fitou o homem mais velho nos olhos e disse:

- Sei disso, parente. Provavelmente conheço minhas deficiências melhor do que você. Seja como for, nenhum homem pode fazer mais do que o melhor de que é capaz, e tenho esse direito. Sou agora o parente mais próximo de Callista, à exceção de Domenic, que ainda não tem dezessete anos.

Esteban sorriu, carrancudo.

- Admiro seu espírito, meu filho; só gostaria que tivesse a habilidade para acompanhá-lo. - Ele ergueu os punhos e bateu no travesseiro, em fúria. - Pelos infernos de Zandru! Aqui estou, inválido e tão inútil quanto o burro de Durraman, e toda a minha habilidade e conhecimento...

O acesso chegou ao fim, e ele acrescentou, a voz mais fraca do que antes:

- Se eu tivesse tempo para lhe ensinar, não é um caso perdido... mas não há tempo, não há tempo. Pode usar sua pedra-da-estrela para dissipar a ilusão de invisibilidade?

Damon acenou com a cabeça. Eduin adiantou-se e ajoelhou-se ao lado da cama.

- Lorde Istvan, devo uma vida a Lorde Damon. Deixe-me acompanhá-lo a Corresanti.

Damon ficou profundamente comovido.

- Está ferido, homem - protestou ele. - E acaba de sair de uma batalha.

- Mas disse que minha habilidade com a espada é maior do que a sua. Posso protegê-lo, Lorde Damon; sua missão é levar a pedra-da-estrela.

- Misericordiosa Avarra - disse Dom Esteban, quase inaudí-vel -, essa é a solução!

- Terei o maior apreço por sua companhia e sua espada, se estiver em condições - murmurou Damon, pondo a mão no ombro de Eduin.

No estado de extrema sensibilidade em que se encontrava, ele sentiu-se quase constrangido com a manifestação de lealdade e gratidão do homem, mas ressalvou:

- Deve seus serviços a Lorde Esteban; cabe a ele lhe conceder permissão para me acompanhar.

Os dois se viraram para Esteban, que estava imóvel, os olhos fechados, as sobrancelhas unidas, como se imerso em profundo pensamento. Por um momento, Damon se perguntou se haviam esgotado demais o velho, mas percebeu que por trás dos olhos fechados o pensamento era muito ativo. E, subitamente, Esteban abriu os olhos.

- Até que ponto você é bom com essa pedra-da-estrela, Damon? Sei que possui laran e passou anos na Torre, mas Leonie não o dispensou? Se foi por incompetência, não vai dar certo, mas...

- Não foi por incompetência - declarou Damon, calmamente. - Leonie jamais se queixou de minha habilidade, apenas achou que eu era sensitivo demais, e minha saúde sofreria.

- Fite-me nos olhos. Isso é verdade ou vaidade, Damon?

Havia ocasiões, pensou Damon, em que detestava o velho impertinente e brutal. Ele fitou Dom Esteban nos olhos, sem titubear.

- Pelo que me lembro, você também tem laran suficiente para descobrir por si mesmo.

Os lábios de Esteban tornaram a se contrair num sorriso sem humor.

- De algum lugar, você extrai coragem suficiente para me enfrentar, parente, e isso é um bom sinal. Quando garoto, tinha medo de mim. É porque nunca mais sairei desta cama que tem coragem de me enfrentar agora?

Ele sustentou o olhar de Damon por um instante e depois disse, a voz tensa:

- Minhas desculpas por duvidar de você, parente, mas isso é importante demais para poupar os sentimentos de alguém, até os meus. Acha que gosto de confrontar o fato de que outro homem terá a incumbência de resgatar minha filha predileta? Mas não importa. Você é hábil com a pedra-da-estrela. Já ouviu a história de Regis V? Os Hasturs eram reis naquela época; foi antes da coroa passar para a linhagem de Elhalyn.

Damon franziu o rosto, vasculhando a memória à procura das histórias do passado distante.

- Ele não perdeu uma perna na batalha do Passo de Dam-merung?

- Não. Ele perdeu uma perna por traição, quando estava na cama, e foi atacado por assassinos. Assim, ele não poderia lutar num duelo e ficaria sem a metade das terras dos Hasturs. Mas ele mandou o irmão Rafael para a batalha; e Rafael, que levava uma vida monacal, quase sem conhecimento de esgrima, mesmo assim lutou sozinho contra sete homens, e matou a todos. Até hoje, o Castelo Hastur, nas montanhas, continua com a família por causa disso. E aconteceu porque Regis, na cama, ainda incapaz de se levantar e cambalear em muletas, fez contato através da pedra-da-estrela do irmão com sua espada. Rafael foi para o combate com a espada de Regis e lutou com toda a habilidade do irmão.

- Uma lenda - murmurou Damon, mas sentiu um arrepio subir pela espinha.

Dom Esteban deslocou a cabeça ao máximo que podia, por causa dos sacos de areia, e disse com veemência:

- Pela honra do Domínio de Alton, Damon, não é uma lenda. A habilidade era conhecida nos velhos tempos, mas nos dias de hoje poucos do Comyn têm a força ou o desejo de ousar tanto. Agora, as pedras-da-estrela são usadas quase que apenas por mulheres. Mas se eu achasse que você possui a habilidade de nossos antepassados com a pedra...

Com algum espanto, Damon compreendeu o que Dom Esteban sugeria.

- Mas...

- Sente medo? Acha que poderia suportar o contato do Dom de Alton? E se assim pudesse combater os homens-gatos, com a minha habilidade?

Damon fechou os olhos e murmurou, com toda a sinceridade:

- Teria de pensar a respeito. Não seria fácil. Mas... não poderia ser a única chance de Callista?

Dom Esteban era o único homem vivo a escapar pela espada de uma emboscada dos homens-gatos. O próprio Damon fugira como um coelho assustado, deixando seus homens entregues à morte. Mas precisava ter certeza. Sabia que era o tipo de decisão que ninguém mais poderia tomar por ele. Por um momento, só Damon e Dom Esteban se encontravam no salão. Ele aproximou-se da cama e olhou para o homem prostrado.

- Se eu recusar, parente, não será por medo, mas porque duvido do seu poder para fazer isso, doente e ferido como está. Não sabia que possuía o Dom de Alton.

- Claro que possuo - respondeu Dom Esteban, com uma intensidade assustadora. - Mas nos dias em que vivemos, sempre achei que não precisava de outro dom que não minha força e habilidade com as armas. De onde acha que Callista herdou um dom tão forte que lhe permitiu ser escolhida para Guardiã, entre todas as moças dos Domínios? O Dom de Alton é a capacidade de forçar o contato, e recebi algum treinamento na juventude. Pode me experimentar, se quiser.

Ellemir adiantou-se e pegou a mão de Damon.

- Pai, não pode fazer essa coisa horrível.

- Horrível? Por que, criança?

- É contra a lei maior do Comyn. Nenhum homem pode dominar a mente e a alma de outro.

- Quem falou em mente e alma? - As sobrancelhas espessas e grisalhas subiram como lagartas enormes para a linha dos cabelos. - Estou interessado em dominar apenas o braço da espada e os reflexos, e sei que posso fazer isso. E terá de ser pela livre vontade e consentimento de Damon, ou não vai acontecer.

Ele fez menção de se inclinar para a frente, estremeceu e recostou-se entre os sacos de areia.

- A decisão é sua, Damon.

Andrew estava pálido e preocupado; o próprio Damon também se sentia assim, e a mão de Ellemir na sua tremia.

- Se é a melhor chance de Callista - murmurou ele -, eu concordaria em fazer até mais do que isso. Estou à sua disposição, Lorde Esteban, se acha que dispõe de força suficiente.

- Se conseguisse mover estas pernas inúteis, não teria problemas, porque já resisti a ferimentos muito piores. Pegue uma espada de treinamento. Eduin, pegue a outra.

Damon tornou a pôr a proteção na cabeça e virou-se para Eduin, expondo apenas o lado direito. O guarda fez uma saudação, numa posição casual, as pernas apartadas, a ponta da espada encostada no chão. Damon experimentou um espasmo de medo.

Não que Eduin possa me machucar com essa espada de madeira, não que eu me preocupe tanto com algumas equimoses. Mas durante toda a minha vida esse velho me provocou por causa da falta de habilidade com as armas. Bancar o tolo na presença de Ellemir... deixar que ele me humilhe mais uma vez... Esteban disse, numa voz estranha e distante:

- Sua pedra-da-estrela está coberta, Damon. Descubra-a.

Damon abriu a bolsa de couro e deixou que a pedra encostasse na base de sua garganta. Entregou a bolsa para Ellemir guardar, e o rápido contato de seus dedos quentes serviu para tranqüilizá-lo.

- Afaste-se, Ellemir - ordenou Dom Esteban. - E você também, terráqueo. Fique junto da porta e não deixe nenhum criado entrar. Eles não podem causar muitos danos com as espadas de treinamento, mas mesmo assim...

Os dois homens iniciaram o confronto, empunhando as pesadas espadas de madeira, circulando lentamente. Damon estava consciente da firmeza com que segurava a espada, o jeito de Dom Esteban (O que foi mesmo que eu disse a Andrew, que as pessoas podem ser reconhecidas por suas imagens, tanto quanto pelas vozes?), sentia um estranho zumbido nos ouvidos, uma sensação de intensa pressão. Viu a espada de Eduin levantar, e antes de saber o que fazia já flexionava os joelhos, o braço se deslocando sem o seu conhecimento num golpe rápido. Ouviu o barulho de couro e madeira se chocando, depois viu um turbilhão de imagens incongruentes: o rosto atônito de Eduin, com o ferimento costurado; a expressão de espanto de Andrew; seu próprio braço subindo, um passo para trás repentino, outro golpe; e a espada de Eduin saindo de sua mão, voando através do salão, para cair quase aos pés do terráqueo. Andrew abaixou-se e pegou-a, enquanto o zumbido na cabeça de Damon desaparecia de repente.

- Acredita em mim agora, parente? - murmurou Dom Esteban. - Alguma vez antes foi capaz de tocar em Eduin, muito menos desarmá-lo?

Damon percebeu que sua respiração era acelerada, o coração batia forte, como o malho de um ferreiro em cima da bigorna. E pensou: Nunca me movimentei tão rápido assim antes. Ele experimentou uma mistura de medo e ressentimento. A mão de outro, a mente de outro... no controle... no controle de meu próprio corpo.

E, no entanto... Para retaliar contra os homens-gatos que haviam matado seus guardas, Dom Esteban seria a escolha lógica para comandar os espadachins. E o faria, se pudesse.

Damon jamais desejara ser um espadachim. Não era o seu interesse. Mesmo assim, devia algo aos inimigos. Seus homens contavam com ele, e os deixara morrer. E Reidel era seu amigo. Se podia se vingar, com a ajuda de Dom Esteban, tinha o direito de recusar?

Esteban mantinha-se quieto, passivo entre os sacos de areia, apenas flexionando os dedos, pensativo. Não disse nada, apenas fitou Damon nos olhos, com uma expressão de triunfo.

Damon pensou: Ele bem que está gostando da situação. E por que não deveria gostar? Acaba de provar para si mesmo que, no final das contas, não se tornou completamente inútil.

Ele largou a espada de treinamento. A pedra em contato com sua garganta captava impressões sucessivas, espanto e terror de Eduin, um certo divertimento de Andrew, consternação de Ellemir. Tentou excluir tudo isso, tornou a se aproximar da cama, e disse, devagar, forçando as palavras:

- Concordo, parente. Quando podemos começar?

 

CAPÍTULO NOVE

Começaram naquele mesmo dia, perto do sol a pino, e Andrew, observando-os do telhado de Armida, achou que era um grupo muito pequeno para enfrentar um exército de não-humanos. Foi o que disse a Ellemir, que se encontrava ao seu lado, envolta por um xale axadrezado em verde e azul. Ela balançou a cabeça e murmurou, numa voz estranha e distante:

- Só a força não seria suficiente. Damon possui a única arma que importa... a pedra-da-estrela.

- Pois me parece que eles terão de travar violentos combates... ou seu pai terá.

- Não é bem assim. Isso servirá apenas... se tiver sorte... para evitar que ele seja morto. Muitos espadachins já fracassaram antes na tentativa de entrar nas terras escuras. Os homens-gatos sabem disso. Tenho certeza de que capturaram Callista na esperança de levar também sua pedra-da-estrela. Os homens-gatos que estão usando uma matriz devem ter descoberto que ela estava aqui... de um modo geral, um usuário de matriz pode espionar outro... e esperavam se apossar de sua pedra. Talvez até pensassem que poderiam obrigar Callista a usá-la contra nós. Os humanos saberiam que isso é impossível... que qualquer Guardiã morreria primeiro. Mas os homens-gatos, ao que tudo indica, só agora começam a perceber essas coisas... e é por isso que ainda resta alguma esperança.

Andrew pensou que isso era muita sorte; se soubessem mais sobre as Guardiãs, os homens-gatos não teriam seqüestrado Callista, mas a deixariam em sua cama, com a garganta cortada. Ele viu que Ellemir acompanhara seus pensamentos, pois seu rosto se contraiu em horror.

- Damon se culpa por ter fugido, deixando seus homens ser massacrados - murmurou ela. - Mas ele fez o que era certo. Se o capturassem com sua pedra-da-estrela... vivo...

- Pensei que ninguém podia usar a pedra de outra pessoa, a não ser em circunstâncias muito especiais.

- Não sem causar terríveis danos a seu dono. Mas acha que os homens-gatos teriam hesitado em fazer isso?

O tom de Ellemir foi de desdém, e ela se calou em seguida. Os cavaleiros quase haviam desaparecido agora, apenas três pontos mínimos no horizonte: Damon e dois espadachins da guarda.

Andréw pensou, amargurado: Eu deveria ter ido com eles. Resgatar Callista é uma missão minha; em vez disso, fico sentado aqui em Armida, sem mais utilidade do que Dom Esteban. Menos até. Ele lutará com os homens.

Ele bem que quisera ir. Pensara até o último momento que partiria junto, que seria necessário para guiá-los até Callista, pelo menos quando entrassem nas cavernas. Afinal, era o único que podia fazer contato com ela. Damon, mesmo com sua pedra-da-estrela, não podia. Mas Damon recusara, categórico:

- Não, Andrew, é impossível. O melhor guarda-costas do mundo não seria capaz de evitar que fosse morto acidentalmente. Você não tem condições de se defender, muito menos de ajudar os outros. Não é culpa sua, meu amigo. Devemos concentrar todas as nossas energias em entrar nas cavernas e tirar Callista de lá. Os minutos que teríamos de consumir para defendê-lo poderão constituir a diferença entre escapar com vida... ou não. E devo lembrá-lo de mais uma coisa: se nós morrermos, outros poderão tentar. Se você morrer, Callista também morrerá, no interior das cavernas, de inanição ou maus-tratos, ou com a garganta cortada, quando descobrirem que ela não tem o menor proveito para eles.

Damon pusera a mão no ombro de Andrew, pesaroso, e acrescentara:

- Sei como se sente, mas não há outro jeito.

- E como a encontrará se eu não estiver presente? Já disse que não pode fazê-lo, nem mesmo com a sua pedra-da-estrela!

- Através da pedra de Callista. Você tem acesso ao mundo superior. E pode também fazer contato comigo. Assim que entrarmos nas cavernas, poderá nos conduzir a ela, por intermédio da pedra-da-estrela.

Andrew ainda não sabia direito como isso seria feito. Apesar da demonstração do dia anterior, só tinha uma idéia muito nebulosa de como funcionava. Testemunhara a operação, sentira a operação, mas vinte e oito anos de descrença naquelas coisas não podiam ser eliminados em vinte e oito horas. Ao seu lado, no parapeito, Ellemir estremeceu e disse:

- Eles já sumiram. Não há sentido em continuarmos aqui, no frio.

Ela virou-se, e passou pela porta que levava ao corredor superior de Armida. Andrew seguiu-a, hesitante.

Sabia que Damon estava certo - ou, para ser mais preciso, tinha fé em que Damon sabia o que fazia -, mas ainda assim era angustiante. Há dias agora, desde que compreendera que se sobrevivesse à tempestade haveria de encontrar Callista e salvá-la, ele se sustentava com uma imagem mental da moça, sozinha, na escuridão de sua prisão, e ele próprio surgindo, tomando-a em seus braços e levando-a para a segurança... Um miserável sonho romântico, pensou Andrew, amargurado. Onde está o cavalo branco para carregá-la?

Nunca imaginara um mundo em que os homens levavam as espadas a sério. Para ele, uma espada era algo para se contemplar na parede de um museu, ou um instrumento para se fazer exercício. Desejara ter uma pistola de raios - e podia apostar que isso liquidaria qualquer homem-gato -, mas quando o mencionara, Damon o fitara com o maior horror, como se tivesse sugerido um estupro coletivo, canibalismo ou genocídio, e lembrara algo chamado de Aliança. Antes de assinar seu contrato com o Império para servir em Cottman IV, Andrew registrara vagamente que eles tinham um acordo chamado de Aliança, que até onde podia entender - não prestara muita atenção ao assunto, nunca se preocupava com os detalhes técnicos da cultura nativa - proibia armas letais que não expusessem o usuário a um risco igual de ser morto. Damon comentara a questão, dizendo que era universalmente aceito em Darkover, que parecia ser o nome que os nativos davam ao planeta, há algumas centenas ou mesmo milhares de anos. Andrew não sabia direito; seu domínio da língua melhorava cada dia, mas ainda não era perfeito. As armas de fogo eram proibidas, mas a esgrima se desenvolvera numa arte excepcional.

Não é de admirar que comecem a treinar os meninos em combate quando ainda usam calças curtas. Andrew especulou, tendo em vista o frio horrível daquele planeta, se as crianças usavam calças curtas, mas cortou o pensamento, impaciente. Entrou no quarto de hóspedes que lhe fora designado, foi até a janela e puxou as cortinas para verificar se ainda podia avistar a expedição de Damon. Mas era evidente que o grupo já passara além da crista da colina.

Deitou na cama, as mãos cruzadas na nuca. Mais cedo ou mais tarde deveria descer e trocar algumas palavras polidas com o anfitrião. Não gostava muito de Dom Esteban; afinal, ele tentara humilhar Damon, mas era um inválido, e seu anfitrião. Além disso, sentia que tinha alguma obrigação com Ellemir. Não sabia o que podia dizer a ela, dividida entre o medo por Callista, o medo por Damon e a ansiedade pelo pai. Mas se pudesse fazer ou dizer qualquer coisa, mostrar que partilhava sua preocupação, tinha esse dever.

Callista, Callista, pensou ele, é bem estranho o mundo para o qual me trouxe. Apesar disso, sentia uma curiosa aceitação por tudo o que poderia encontrar ali.

A pedra-da-estrela de Callista, pendurada em seu pescoço, irradiava um calor tranqüilizante, parecendo uma coisa viva. É como tocar na própria Callista, o mais próximo de um contato que já estive. Mesmo através da capa de seda, havia uma certa intimidade no contato em sua garganta. Andrew especulou se ela estaria chorando na escuridão, sozinha.

Damon parecia pensar que eu poderia alcançá-la através da pedra, refletiu Andrew. Tirou-a de dentro da camisa. A capa de seda protegia a pedra de um contato casual. Com todo o cuidado, uma infinita cautela, lembrando a advertência de Damon, ele desembrulhou a pedra, experimentando um curioso senso de hesitação. É quase como se eu despisse Callista, pensou, com um terno embaraço, ao mesmo tempo que quase explodia num riso histérico pela incongruência da idéia.

Ao aninhar a pedra em sua palma, viu-a subitamente. Ela estava deitada de lado, os cabelos adoráveis emaranhados - podia vê-la numa estranha claridade azulada, muito diferente da luz avermelhada do sol no quarto -, o rosto inchado, como se tivesse chorado de novo. Sem surpresa, Callista abriu os olhos e fitou-o.

- É você, Andrew? Já me perguntava por que demorava tanto para me procurar.

Ela sorriu. Andrew informou:

- Damon se encontra a caminho para resgatá-la.

Ele sentiu um ímpeto de ressentimento por não participar da expedição, por não ser ele quem iria encontrá-la. Tentou disfarçar, e compreendeu tarde demais que isso não era possível, que nenhum pensamento podia ser escondido naquele tipo de contato entre mentes. Callista murmurou, com imensa ternura:

- Não deve ficar com ciúme de Damon; ele tem sido como um irmão para mim desde que éramos crianças.

Andrew se envergonhou de seu ciúme. Não adianta fingir que não sinto ciúme. Terei de me projetar além de tais pensamentos. Ele tentou se lembrar do quanto gostara de Damon, como haviam sido íntimos por um momento, da maneira mais profunda que podia existir, como se sentia grato a Damon por fazer o que ele próprio não podia. Viu Callista sorrir gentilmente. Sentiu que, de certa forma, superara uma das maiores barreiras para a aceitação de uma cultura de telepatas, em seus próprios termos, tornando-se um deles, e por causa disso já não era tão estranho para Callista quanto antes.

- Pode agora me encontrar no mundo superior, Andrew. Ele fitou-a, desolado.

- Não sei como.

- Pegue a pedra e contemple-a. Posso vê-la, como uma luz na escuridão. Mas não deve me encontrar aqui, onde meu corpo está. Se meus captores o vissem, poderiam me matar para impedir o resgate. Irei ao seu encontro.

Abruptamente, sem transição, a moça deitada de lado na caverna escura, em completa exaustão, surgiu de pé à sua frente.

- Agora, Andrew, deixe seu corpo sólido para trás. Saia dele.

Andrew focalizou a pedra, resistindo à náusea interior, à onda perceptível de terror. Callista estendeu-lhe a mão, e de repente, com uma estranha sensação de formigamento, ele se descobriu de pé também (e não se mexera, pensou). Podia avistar seu corpo, ainda vestindo os trajes grossos que Damon lhe dera, estendido imóvel na cama, a pedra entre as mãos.

Estendeu sua mão no nível do mundo superior, e pela primeira vez tocou na mão de Callista. Foi uma sensação tênue, etérea, mal se podia chamar de contato físico, mas era um contato, dava para sentir, e ele constatou que Callista também sentia. Ela sussurrou:

- É verdade, você é real, está mesmo aqui. Oh, Andrew, Andrew...

Por um instante, Callista se aconchegou contra ele. Era como abraçar uma sombra, mas ainda assim Andrew sentiu seu peso, sentiu o calor e a fragrância do corpo em seus braços, o contato dos cabelos sedosos. Queria apertá-la em seus braços, cobri-la de beijos, mas alguma coisa em Callista - uma certa hesitação, um recuo mínimo - impediu-o de ceder a seu impulso.

Não devo sequer pensar numa Guardiã. Elas são sagradas. Intocáveis.

Callista ergueu os dedos, encostou-os gentilmente em seu rosto e murmurou:

- Haverá tempo suficiente para pensar em tudo isso mais tarde, quando eu estiver com você... realmente com você, ao seu lado.

- Sabe que eu a amo, Callista - disse ele, hesitante, a boca trêmula.

- Sei, sim, e é algo estranho para mim, acho que poderia até ser assustador, em outras circunstâncias. Mas você me encontrou quando eu estava numa terrível solidão, temendo a morte, a tortura ou o estupro. Homens já me desejaram antes, e é claro que fui ensinada, por meios que nem poderia começar a lhe explicar, a não reagir por qualquer forma, nem mesmo em fantasia. Com alguns homens, isso me fez sentir... repugnada, como se insetos rastejassem por meu corpo. Mas houve uns poucos que eu quase desejei... desejei como desejo você agora... e sabia como reagir ao desejo deles; e talvez mesmo soubesse como desejá-los em retribuição. Pode compreender tudo isso?

- Não muito bem, mas tentarei entender como se sente. Não posso evitar o que sinto, Callista, mas tentarei não sentir qualquer coisa que você não queira.

Para uma jovem telepata, pensou Andrew, um pensamento de desejo devia ter quase a qualidade de um estupro. Seria o  motivo para que fosse uma grosseria olhar para uma moça naquele planeta? Para protegê-las de seus pensamentos?

- Mas quero que continue assim - murmurou Callista, timidamente. - Não sei direito qual é a sensação... de amar alguém. Mas quero que sempre pense em mim. Faz com que eu me sinta menos solitária. No escuro, sozinha, tenho a impressão de que não sou real, nem sequer para mim mesma.

Andrew sentiu uma infinita ternura. Pobre criança; sofrera uma lavagem cerebral, fora condicionada contra qualquer emoção, em que a haviam transformado? Se ao menos ele pudesse fazer alguma coisa, qualquer coisa, para confortá-la... Estava impotente, a quilômetros e quilômetros de distância, enquanto Callista permanecia no escuro, sozinha e assustada. Sussurrou para ela:

- Mantenha a coragem, minha querida. Nós a tiraremos daí em breve.

No momento mesmo em que as palavras saíram, ele se descobriu de volta a seu corpo, estendido na cama, sentindo-se nauseado e tonto, um pouco esgotado. Mas pelo menos sabia que Callista ainda vivia e continuava bem - bem na medida do possível, apressou-se em corrigir - até que Damon a resgatasse.

Andrew continuou deitado, descansando. O trabalho telepático, sem a menor dúvida, era mais intenso do que a atividade física; percebera isso quando lutava na tempestade.

Lutar... Era Damon quem lutaria. Em algum lugar, Damon teria a missão de lutar contra os homens-gatos... e pelo que vira lá embaixo, quando o grupo de Dom Esteban chegara, os guardas feridos e exaustos, os homens-gatos eram adversários temíveis.

Damon dissera que caberia a ele conduzi-los até Callista, depois que entrassem nas cavernas. Calculou que poderia fazer isso, agora que sabia como sair de seu corpo - o que Callista chamara de corpo "sólido" - e ingressar no mundo superior. E foi então que lhe ocorreu um pensamento assustador.

Callista estava em algum nível do mundo superior em que não podia alcançar, nem mesmo ver, Damon, Ellemir ou qualquer de seus amigos. Ele, Andrew, podia alcançá-la, de alguma forma; mas isso significava que só podia ingressar nessa parte do mundo superior, a única a que os homens-gatos permitiam o acesso de Callista? Se assim fosse, então ele também não poderia fazer contato com Damon! E como, nesse caso, poderia conduzir Damon a qualquer lugar?

Depois que penetrou em sua mente, o pensamento não quis mais sair. Poderia alcançar Damon? Mesmo através da pedra-da-estrela? Ou se descobriria, como Callista, vagueando como um fantasma pelo mundo superior, incapaz de alcançar qualquer rosto humano familiar?

Bobagem. Damon sabia o que estava fazendo. Haviam mantido contato, na noite anterior, através das pedras. (E outra vez a lembrança daquele momento de estranha intimidade animou-o e perturbou-o.)

De qualquer forma... a dúvida persistiu, não queria se desvanecer. Andrew acabou chegando à conclusão de que só havia uma maneira de ter certeza. Tornou a tirar a pedra-da-estrela da proteção de seda. Agora, não tentou sair fisicamente do corpo e ingressar no mundo superior, apenas se concentrou, com toda a sua força, em Damon, repetindo seu nome.

A pedra ficou turva. Outra vez a estranha náusea e o arrepio (Algum dia passaria desse estágio? Algum dia se livraria da sensação?), e ele empenhou-se em manter o controle, tentando focalizar seus pensamentos em Damon. Nas profundezas da pedra azul - como vira o rosto de Callista, há tanto tempo agora, na Cidade Comercial - avistou figuras pequenas, parecendo cavaleiros. Compreendeu que era o grupo de Damon, o manto verde e dourado, as cores da família Ridenow, esvoaçando em sua esteira, um guarda alto em cada lado. Por cima deles, como uma ameaça, pairava uma nuvem escura, e uma voz vaga, que não era a sua, sussurrou nos pensamentos de Andrew: A fronteira das terras escuras. E, no instante seguinte, houve um clarão, o contato, Andrew sentiu que se fundia com outra mente... ele era Damon...

O corpo de Damon equilibrava-se no cavalo com uma habilidade descontraída, automática; ninguém que não o conhecesse bem teria percebido que seu corpo se encontrava vazio de percepção, que o próprio Damon seguia em algum lugar por cima, a mente esquadrinhando o terreno à sua frente, procurando, procurando...

A sombra se ergueu diante dele, uma espessa escuridão para sua mente, como fora para os olhos, e outra vez ele sentiu a lembrança do medo, a apreensão que experimentara ao levar seus homens para a emboscada, desprevenidos... Este medo é atual, ou a lembrança de outro medo? Por um instante, retornando a seu corpo, ele pôs a mão na espada de Dom Esteban, pendurada no lado direito. Refletiu que devia se controlar e reagir apenas a perigos reais. Era a espada de Dom Esteban, em vez da espada de Damon; e o próprio Dom Esteban explicara o motivo:

- Eu a empunhei em uma centena de batalhas. Nenhuma outra espada se ajustaria com tanta presteza à minha mão. Já conhece os meus jeitos e a minha vontade.

Damon acatara os desejos do velho, recordando como a borboleta de prata que Callista usava nos cabelos continha a impressão mental de sua personalidade. Não seria muito mais com a espada de que Dom Esteban dependera para salvar a própria vida, durante mais de cinqüenta anos consumidos em batalhas, pequenos combates, nas mais diversas expedições?

No punho da espada, Damon pusera uma das pequenas pedras de primeiro nível, não sintonizadas, que descartara, a princípio, como servindo apenas para botões; embora pequena, ressoaria em harmonia com sua própria pedra-da-estrela e permitiria que Dom Esteban mantivesse contato, não apenas com as teias de energia de seus músculos e centros nervosos, mas também com a própria espada.

A espada encantada, pensou ele, meio desdenhoso. Mas a história de Darkover era repleta de armas assim. Havia a lendária Espada de Aldones, na capela em Hali, uma arma tão antiga - e tão temível - que nenhum homem vivo sabia como manejá-la. Havia também a Espada de Hastur, no Castelo Hastur, da qual se dizia que se algum homem a empunhasse que não fosse para defender a honra dos Hasturs sua mão explodiria em chamas. O que o lembrou de Dama Mirella, cujas mãos e corpo ficaram enegrecidos, como se tivessem pegado fogo...

A mão de Damon tremeu um pouco no punho da espada de Dom Esteban. Ora,  estava tão bem preparado para a batalha quanto qualquer outro homem vivo poderia ficar; afinal, fora treinado na Torre, e era tão forte que Leonie disse que poderia ter-se tornado Guardiã se tivesse nascido mulher. Quanto ao resto... avançava em defesa de uma parenta, assumindo um dever por seu futuro sogro e salvaguardando assim a honra da família de sua futura esposa.

Quanto a ser virgem, pensou Damon, irônico, já deixei de sê-lo, mas ainda continuo tão casto quanto um homem de minha idade poderia ser. Nem mesmo fui para a cama com Ellemir, embora Evanda, a Justa, saiba que eu bem que gostaria. Ele recitou para si mesmo o Credo da Castidade, que aprendera no Mosteiro de Nevarsin, onde estudara na infância, como muitos filhos dos Sete Domínios. O credo era adotado por homens que trabalhavam nos Círculos das Torres: nunca pôr as mãos em mulher que não quisesse, nunca olhar com pensamentos libidinosos para criança ou virgem por promessa, nunca se consumir com mulheres que se entregam a todos os homens.

Aprendi tão bem na Torre que nunca desaprendi, e isso torna mais seguro para mim o que seria, basicamente, o trabalho de uma Guardiã... tanto melhor para mim, e tanto pior para os homens-gatos, que Zandru lance a todos em seu inferno mais frio!

De novo em seu corpo, Damon abriu os olhos e esquadrinhou o terreno à sua frente. Com todo o cuidado, bem devagar, tornou a elevar a percepção, deixando o corpo para reagir pela força do hábito aos movimentos do cavalo. Usou o elo dos olhos abertos para se projetar pela paisagem física adiante, ainda sob a névoa escura.

Foi como manchas mais escuras de escuridão, à beira dessa sombra, que ele os avistou pela primeira vez; e depois divisou a teia de força que os ligava a algum outro poder, oculto nas profundezas da sombra, que nem seus olhos nem a força da pedra-da-estrela podiam ainda penetrar.

Avistou os corpos peludos que aquelas forças ocultavam, agachados em silêncio, imóveis, entre arbustos que mal poderiam escondê-los, se estivessem visíveis.

Gatos. À espreita de camundongos. E nós somos os camundongos. Podia ver os três homens avançando para a emboscada. Começou a baixar de novo para seu corpo. Mude o rumo. Evite essa emboscada.

Não. Damon piscou, olhando entre as orelhas do cavalo. Se os homens-gatos estavam à espreita, com certeza os seguiriam; e se houvesse outra emboscada à frente, ficariam encurralados entre os dois grupos. Ele virou-se para Eduin e avisou:

- Homens-gatos à frente. É melhor nos prepararmos.

Depois, saiu de seu corpo mais uma vez, focalizando a pedra-da-estrela, e flutuou por cima do inimigo, estudando as tênues teias de força que escondiam seus corpos dos olhos físicos, notando a maneira como se espalhavam pela sombra. Onde e quando aquelas teias podiam ser rompidas?

Percebeu, refletido na tensão dos corpos que podia ver claramente do mundo superior, quando ele e seus homens apareceram. Viu-os sacar espadas curtas e curvas... como garras. E ainda esperou, até os homens-gatos se empertigarem e saírem correndo, sem fazer barulho, sobre a neve. Só então foi ao fundo da pedra-da-estrela e lançou um súbito jato de energia, como um relâmpago, focalizado na teia de energia, rompendo-a.

Retornou a seu corpo no momento em que os homens-gatos, ainda sem saberem que sua invisibilidade mágica não mais existia, desfechavam o ataque. Mas antes que recuperasse o pleno controle do corpo, seu cavalo empinou e relinchou em terror. Damon, reagindo uma fração de segundo tarde demais ao movimento do cavalo, foi lançado ao chão. Viu um dos homens-gatos saltando em sua direção e sentiu um ímpeto de alguma coisa - não chegava a ser medo - enquanto levava a mão ao punho da espada de Dom Esteban.

...A quilômetros de distância, no grande salão em Armida, Dom Esteban Lanart remexeu-se no sono. Os ombros empinaram, e os lábios se contraíram num sorriso - ou num rosnado - que já fora visto em incontáveis batalhas.

Damon descobriu-se a rolar sobre a neve e a se levantar no instante seguinte, a mão arrancando a espada da bainha. A ponta penetrou na barriga de pêlo branco, e havia sangue na lâmina estendida à frente, já apontada para um segundo homem-gato.

Quando este desferiu um golpe contra sua barriga, Damon viu e sentiu seu pulso virar um pouco, apontando para baixo, a fim de aparar a estocada; no instante em que os aços se chocaram, ele sentiu sua perna dar um passo para o lado, e no momento seguinte a ponta da espada cravou-se na garganta peluda.

Ele teve um rápido vislumbre de Eduin e Rannan, magníficos cavaleiros, como todos os homens do Domínio de Alton, girando em seus cavalos assustados, golpeando os corpos peludos que os cercavam. Um deles caiu sob um coice do cavalo de Rannan, mas Damon não dispunha de mais tempo para observá-los; olhos verdes arregalados o fitavam em fúria, uma boca de presas pontudas se abria num silvo ameaçador. Tufos de pêlo preto tremiam no alto das orelhas enormes, enquanto a criatura desferia um golpe de lado, na direção dos olhos de Damon. Ele sentiu um espasmo de terror, mas sua própria lâmina já se adiantara; as duas espadas se chocaram, soltando faíscas no frio. A cara de gato avançou, com as presas à mostra, e por um segundo Damon se descobriu a lutar contra o ar vazio.

O atacante aparecia e desaparecia; qualquer que fosse o poder que espreitava das profundezas da sombra, tentava ocultar outra vez os seus sequazes. Por um momento, Damon foi dominado pelo terror e desespero, com tanta intensidade que até pensou que fora ferido. Depois, respirando fundo, compreendeu o que tinha de fazer e focalizou a pedra-da-estrela. Ao entregar totalmente seu corpo à habilidade de Esteban, ele fez uma rápida oração para que o elo resistisse. E logo esqueceu seu corpo (ou estava seguro com Esteban ou não estava, e de qualquer forma não poderia fazer muita coisa), projetando-se para o mundo superior.

A sombra se estendia vazia e terrível à sua frente, e teias de energia se agitavam, procurando envolver as sombras vermelhas dos homens-gatos que ali lutavam.

Damon avançou às cegas para as teias de energia e descobriu que, sem pensamento consciente, trouxera na mão uma lâmina de força pura. Baixou-a contra as teias e viu os tentáculos de escuridão definhar e desaparecer. Os filamentos cortados tremiam, recuavam para a sombra, as pontas se desvanecendo. A sombra turbilhonou, recuou, e do meio da escuridão uma enorme e furiosa cara de gato o fitou.

Damon ergueu a lâmina faiscante e enfrentou a grande ameaça. Em algum lugar, perto de seus pés, percebeu vagamente formas pequenas empenhadas no combate, quatro gatos pequenos, três homens mínimos, e um daqueles homens... com certeza era Dom Esteban, dando um passo para o lado, golpeando...

A névoa escura tornou a turbilhonar, ocultando o enorme gato, e agora apenas os olhos flamejantes e o sorriso maligno o fitavam, e em algum lugar, no fundo de sua mente, um sussurro lunático, com a voz de Damon, comentou:

- Já vi muitas vezes um gato sem sorriso... mas um sorriso sem gato...?

E nessa fração de segundo, Damon se perguntou se não estaria enlouquecendo. Só dois dos homens-gatos ainda continuavam de pé e lutavam lá embaixo. Despreocupado, Damon viu um deles tombar, espetado na espada do homem que lutava por cima. Outro cavaleiro derrubou o segundo. A sombra turbilho-nante cobriu os olhos irados, o brilho verde mudou, por trás da muralha cinza de névoa, para um clarão vermelho, como carvões em brasa distantes; e depois a muralha cinza apagou até isso. Uma flecha negra de força foi lançada em sua direção, e ele aparou-a com a lâmina faiscante. Esperou, mas o cinza permaneceu inalterado, até o último vislumbre dos olhos de gato sumir. Damon finalmente permitiu-se descer para o solo, retornar a seu corpo...

Havia sangue em sua espada, e sangue no pêlo cinza-claro das criaturas mortas na neve. Ele apoiou a ponta da espada no chão e percebeu de repente que tremia todo.

Eduin virou seu cavalo e aproximou-se. O ferimento em seu rosto reabrira, e gotas de sangue pingavam do ungüento azul que era a proteção contra o frio; afora isso, ele parecia ileso.

- Eles estão liquidados. - Sua voz parecia estranhamente distante e cansada. - Matei o último. Quer que eu pegue seu cavalo, Lorde Damon?

O som de seu nome arrancou Damon de uma ira cega e insólita, dirigida contra Eduin, uma ira que ele não podia entender. Tremendo, percebeu que estivera prestes a insultar o homem, a gritar com ele por derrubar sua presa, uma raiva tão intensa que o fazia tremer da cabeça aos pés, com uma estranha e vaga lembrança de avançar para o último dos homens-gatos, e Eduin se antecipar para desfechar o golpe final.

- Lorde Damon! - A voz de Eduin era mais forte agora, impregnada de preocupação. - Está ferido? Qual é o problema.

Damon passou a palma suada pela testa. Descobriu que havia um arranhão, não maior do que um talho que se podia adquirir ao fazer a barba, no dorso da mão esquerda.

- Eu me cortei ao fazer a barba - murmurou ele.

E nesse instante...

...Nesse instante, Andrew Carr sentou na cama, balançando a cabeça, suado e trêmulo com a lembrança do que ele - ele? - fizera e vira. Vivera toda a batalha na mente e corpo de Damon.

Damon estava são e salvo. E Andrew podia manter contato com ele... e também com Callista.

 

CAPÍTULO DEZ

As nuvens da tarde se agrupavam quando Damon e seus homens desceram por um caminho estreito e coberto de relva, na direção de um pequeno amontoado de cabanas num vale, na base de um penhasco.

- Esta é a aldeia de Corresanti? - perguntou Eduin. - Não conheço muito bem esta região. Além do mais... - Ele fez uma careta. - ...tudo parece estranho nesta maldita neblina. Existem de fato... a sombra e a escuridão... ou apenas fizeram alguma coisa com as nossas mentes para a gente pensar que está mais escuro?

- Acho que é real - respondeu Damon. - Os gatos são animais noturnos, não gostam da luz do sol. É possível que o responsável pelo que vem acontecendo nestas terras sinta desconforto com a luz do sol, e espalhou essa neblina para aliviar os olhos de seu povo. Não é um trabalho dos mais complicados com uma pedra-da-estrela, mas é claro que nenhum dos nossos poderia fazer isso. Afinal, já temos pouco sol, mesmo no verão.

Não é um trabalho complicado, mas exige poder. Quem quer que seja o líder dos homens-gatos, ele tem poder, que aumenta cada vez mais. Se não pudermos desarmá-lo logo, ele pode se tornar poderoso demais para que alguém consiga destruí-lo no futuro. Nossa missão é resgatar Callista. Mas se a salvarmos e deixarmos estas terras sob o domínio da sombra, outras pessoas sofrerão. Só que não podemos atacá-lo enquanto Callista não estiver livre, ou sua primeira reação seria matá-la.

Ele estava mais ou menos preparado para o que veria, com a lembrança das palavras de Reidel - "plantações murchas" -, mas não esperava tanta destruição quanto a que contemplara ao passar pelas pequenas habitações e fazendas. Os campos não recebiam a luz do sol, as plantas murchavam no solo, as valas de drenagem se achavam entupidas e cheias de fungos, as grandes velas dos moinhos de vento estavam quebradas e rasgadas, completamente inúteis. Aqui e ali, partindo dos estábulos, podia-se ouvir o som triste de animais famintos e sem cuidados. No meio do caminho, quase sob os cascos do cavalo de Eduin, uma criança esfarrapada sentara, apática, roendo uma raiz imunda. Levantou os olhos quando os cavaleiros passaram, e Damon refletiu que nunca vira tanto terror e desesperança em qualquer outro rosto que pudesse ser chamado de humano. Mas a criança não chorou. Ou havia muito que deixara as lágrimas para trás, ou então, como Damon desconfiou, estava simplesmente fraca demais. As casas pareciam desertas, exceto por um ou outro rosto vazio e apático nas janelas, virando-se sem qualquer curiosidade ao som dos cavalos. Eduin levou as mãos ao rosto e sussurrou:

- Abençoada Cassilda, proteja-nos! Não vi nada igual desde que a última febre do mato assolou as terras baixas! O que aconteceu com essa gente?

- Fome e terror - respondeu Damon. - E um terror tão grande que nem mesmo a fome é capaz de levá-los aos campos escuros.

Ele sentia uma fúria que ameaçava extravasar em violentas imprecações, mas segurou a pedra-da-estrela e deliberadamente aquietou a respiração. Outra conta a acertar com o Grande Gato e seus asseclas, os homens-gatos, que ele lançara para se divertirem naquela aldeia inocente.

O outro guarda, Rannan, não dispunha de um acessório para acalmá-lo. Seu rosto parecia verde de náusea quando murmurou:

- Lorde Damon, não podemos fazer alguma coisa por essa gente... qualquer coisa?

Damon respondeu, dilacerado pela compaixão:

- Qualquer coisa que pudéssemos fazer não passaria de uma pequena atadura num ferimento mortal, Rannan, e logo o que os dominou se lançaria contra nós e acabaríamos do mesmo jeito, em total apatia, até morrermos em desespero. Talvez consigamos atacar o centro do câncer, mas só depois que minha parenta estiver sã e salva.

- Como podemos saber que ela ainda não morreu, Lorde?

- Saberei através da pedra. - Era mais fácil dizer isso do que explicar que Andrew daria um jeito de se comunicar. - E juro para vocês, lançaremos todas as nossas forças, se soubermos que ela morreu, para atacar e exterminar toda essa teia do mal... até a última garra!

Determinado, Damon desviou os olhos do horror da devastação, acrescentando:

- Vamos embora. Antes de mais nada, precisamos alcançar as cavernas.

E depois que chegarmos lá, pensou ele, sombrio, é bem provável que tenhamos dificuldades para entrar ou para descobrir em que lugar esconderam Callista.

Ele focalizou a mente na pedra e olhou através da encosta, onde se lembrava, de uma excursão na infância, há muitos e muitos anos, que ficava o acesso às cavernas de Corresanti. No passado, eram usadas como abrigo nos invernos mais rigorosos, quando a neve era tão profunda nas colinas Kilghard que nem homem nem animal podiam sobreviver; agora, eram usadas para guardar alimentos, para o cultivo de cogumelos comestíveis, para o envelhecimento de vinhos e queijos e para outras coisas similares. Isto, eram usadas para essas coisas até que o povo-gato surgira naquela parte do mundo. Ainda devia haver alimentos guardados- ali, pensou Damon, para sustentar aquelas pessoas famintas até a próxima colheita. A menos que o povo-gato tivesse destruído os estoques, por pura maldade. Podiam levar os aldeões até lá... presumindo, é claro, que eles próprios conseguissem passar.

Parecia-lhe agora que uma escuridão enorme e palpável se irradiava da beira escura do penhasco, a alguns quilômetros de distância, onde se escondia o acesso às cavernas de Corresanti. Portanto, ele acertara em sua conjetura. As cavernas eram o próprio cerne da sombra, o foco das terras escuras. Em algum lugar ali, uma inteligência monstruosa, não-humana, fazia experiências com um poder desconhecido. Damon era um Ridenow, e os Ridenows haviam sido preparados para sentir e lidar com inteligências alienígenas. O dom antigo em seu sangue e células fervilhava agora de percepção e terror. Mas ele tratou de se controlar e atravessou resoluto as ruas desertas da aldeia.

Olhou ao redor, à procura de qualquer rosto humano, qualquer sinal de vida. Todos ali haviam sido aterrorizados até a insensibilidade? Seus olhos foram atraídos para uma casa que conhecia; passara um verão ali, quando menino, fazia muito e muito tempo. Parou o cavalo, uma súbita angústia apertando seu coração.

Há anos que não vejo nenhum deles. Minha mãe de adoção casou com um dos MacArans, um servidor de Dom Esteban, e eu vinha aqui no verão. Seus filhos foram meus primeiros companheiros. Subitamente, Damon não pôde mais resistir. Precisava saber o que acontecera naquela casa!

Desmontou e amarrou o cavalo no poste. Eduin e Rannan lhe fizeram perguntas, mas ele não respondeu. Os dois também desmontaram, mas não o seguiram até os degraus da cabana. Damon bateu na porta; como o silêncio persistisse, ele abriu a porta. Depois de um momento, um homem aproximou-se da porta, meio agachado, os olhos vazios; encolheu-se todo, como por hábito. Damon pensou, confuso: Este é com certeza um dos filhos de Alanna. Brincamos juntos quando éramos meninos, mas como ele mudou! Procurou lembrar o nome. Hjalmar? Estill?

- Cormac - murmurou finalmente.

Os olhos vazios fitaram-no, um sorriso demente surgiu no rosto por um breve instante.

- Serva, dom.

- O que aconteceu com você? O que... o que querem de você? O que vem ocorrendo aqui? - As palavras saíam quase que por vontade própria. - Vê com freqüência os homens-gatos? O que eles...

- Homens-gatos? - balbuciou o homem, com uma insinuação de indagação na voz apática. - Não homens... mulheres! Bruxas-gatas... elas chegam de noite e dilaceram a alma da gente...

Damon fechou os olhos, repugnado. Com o rosto vazio, Cormac recuou pelo interior da cabana; os visitantes haviam cessado de existir para ele. Damon voltou meio trôpego para a rua, praguejando.

O som de cascos alcançou seus ouvidos; virando-se, avistou os cavaleiros, descendo depressa por um caminho na colina, em fila única, na direção da aldeia. Ali, na aldeia em ruínas, não haviam encontrado cavalos, gado ou qualquer outro animal doméstico.

Os cavaleiros já se encontravam bastante perto para poderem ser divisados com clareza; usavam camisas-mantas e culotes de um corte estranho, eram todos altos e magros, cabelos claros e desgrenhados. Mas eram humanos, não homens-gatos, a menos que fosse mais uma ilusão...

Damon focalizou através da pedra-da-estrela, através da neblina que parecia escurecer, como água turva, tudo o que não estava nas proximidades imediatas. Mas aqueles eram homens de verdade, em cavalos de verdade. Jamais nascera um cavalo que ficasse quieto para ser montado por um homem-gato. E também aqueles rostos não eram vazios como os dos aldeões, aterrorizados à imobilidade e apatia.

- Habitantes das Cidades Secas - murmurou Eduin. - Lorde da Luz, protegei-me!

Damon compreendeu agora onde já vira antes homens assim, altos, pálidos e magros. Os habitantes do deserto raramente se aventuravam por aquela parte do mundo, mas ele já vira uma ou outra caravana solitária, viajando em silêncio e apressada, a caminho de sua própria parte do mundo.

E nossos cavalos já estão cansados; se os homens das Cidades Secas forem hostis...

Ele hesitou. Rannan inclinou-se e pôs a mão em seu braço.

- O que estamos esperando? Vamos sair logo daqui.

- Talvez não sejam inimigos - murmurou Damon.

Seria possível que humanos se juntassem ao povo-gato para tanta devastação e terror? A boca de Eduin se contraíra numa expressão soturna.

- Havia pequenos bandos deles lutando junto com o povo-gato no passado, e também ouvi dizer que homens-gatos ajudaram a expedição das Cidades Secas naquele ataque na região de Carthon. Eles negociam com os homens-gatos. Só Zandru sabe o que oferecem e o que recebem em troca, mas o comércio entre eles é um fato.

Damon sentiu um aperto no coração. Deveriam ter escapado de imediato. Era tarde demais agora, e por isso ele tinha de encontrar a melhor saída.

- Talvez sejam apenas mercadores e não queiram lutar com a gente. - De qualquer forma, eles já estavam tão próximos que o homem na vanguarda parava sua montaria. - Teremos de blefar; fiquem firmes e não saquem suas espadas, a menos que eu dê o sinal, ou então se nos atacarem.

O líder do grupo das Cidades Secas fitou-os, com uma insinuação de desprezo em seu rosto... ou seria apenas o jeito normal de suas feições?

- Hali-imyn, por Nebran! - Ele correu os olhos pelas ruas vazias. - O que vocês ainda fazem aqui?

- Corresanti tem sido uma aldeia do Domínio de Alton há mais tempo do que Shainsa existe nas planícies. - Damon contou os cavaleiros por trás do líder. Seis, oito... eram demais! - Posso muito bem perguntar por que se desviou de suas rotas de comércio habituais e exigir que mostre o salvo-conduto de Lorde Alton.

- Os dias de salvo-condutos nas colinas Kilghard acabaram - respondeu o líder. - Não vai demorar muito para que vocês aprendam que devem pedir permissão para andar aqui.

Ele mostrou os dentes num sorriso indolente. Desceu do cavalo, e os homens por trás seguiram seu exemplo. Damon estendeu a mão para o punho da espada, e a pequena matriz ali era macia e quente em sua palma...

...Dom Esteban largou o pão-de-carne que estava comendo e recostou-se no travesseiro, os olhos arregalados. O criado que trouxera a comida lhe falou, mas ele não respondeu...

- Ainda vai demorar muito para que eu tenha de pedir permissão para andar nas terras de meus parentes - murmurou Damon. - Mas o que vocês estão fazendo aqui?

A voz soava estranhamente estridente e fraca a seus próprios ouvidos.

- Nós? Ora, somos mercadores pacíficos... não é mesmo, camaradas?

Houve um coro de assentimento dos homens por trás. Não pareciam muito pacíficos (É verdade que os homens das Cidades Secas nunca parecem pacíficos, pensou Damon, numa fração de segundo), as espadas projetando-se dos quadris num ângulo agressivo, prontas para serem sacadas, as poses arrogantes de valentões de tavernas. Os cavalos começaram a escarvar o solo, nervosos, e relinchos assustados povoaram o ar.

- Mercadores pacíficos - insistiu o líder, abrindo o fecho da camisa-manto. - Aqui estamos com permissão do senhor destas terras, que nos fez algumas pequenas encomendas.

A mão saiu da camisa-manto empunhando uma faca comprida, e depois ele desembainhou a espada reta.

- Larguem suas armas, e se são tolos bastante para pensar que podem resistir, olhem para trás!

Eduin estendeu a mão para o braço de Damon e apertou com força. Pelo canto dos olhos, lançando um rápido olhar para trás, Damon compreendeu o motivo. Da densa floresta à beira do caminho, espalhando-se para cortar a retirada da expedição, homens-gatos avançavam em silêncio sobre as patas enormes. Eram muitos. Nem dava para começar a contá-los, e Damon não tentou. Descobriu que a espada de Dom Esteban estava em sua mão, mas o desespero dominou-o. Nem mesmo Dom Esteban podia escapar de uma emboscada assim!

Os homens das Cidades Secas se adiantavam, devagar, uma faca na mão, a espada na outra. Damon esquecera a adaga pendurada em seu cinto; ficou surpreso quando sua mão esquerda a sacou, estendendo-a na direção do inimigo. Descobriu-se numa posição que era quase a oposta da que aprendera no treinamento, olhando por cima do ombro esquerdo para o inimigo além da ponta da adaga estendida, o punho da espada frio na face direita. Claro. Esteban viajara além das Cidades Secas, sabia como os homens do deserto lutavam...

Ele pensou, friamente, que deviam ter armado uma emboscada lá atrás. Se tivessem fugido, como os homens das Cidades Secas deviam esperar, seguiriam direto para o cerco dos homens-gatos.

- Peguem-nos! - ordenou o líder.

Não havia escapatória; as alternativas eram a morte ou a rendição. A mente de Damon permaneceu indecisa, sem saber o que fazer, mas o corpo sabia. Enquanto as duas lâminas do atacante se aproximavam, Damon viu a ponta de sua espada baixar de repente, passando entre a espada e a adaga do inimigo, empurran-do-as para os lados; e sentiu seus pés se deslocarem, o corpo se abaixar.

Então Dom Esteban acha que pode vencer dez homens e escapar, pensou ele, irônico e desligado, observando sem envolvimento sua espada e adaga arremeterem ao mesmo tempo para o flanco do líder da expedição das Cidades Secas. Ouviu o barulho de aço nos lados e viu outro homem circular para suas costas.

Virou a cabeça, desvencilhou a espada e girou-a, com um movimento rápido do antebraço. O outro homem, correndo, baixara a guarda. Damon sentiu seu próprio peso se deslocar subitamente, e sua espada penetrou entre as costelas do homem. Teve um vislumbre de Eduin, sua espada faiscando vermelha aos últimos raios do sol, ofuscados pela névoa, correndo ao encontro de outro atacante, que recuou, o medo estampado no rosto... e depois ele próprio girou, erguendo a adaga para aparar um golpe contra sua garganta. A espada acertou um cotovelo, e o homem caiu aos seus pés, gritando. O estômago de Damon revirou à visão horripilante do braço do atacante, cortado quase pelo meio...

- Eles são demônios! - berrou um dos homens das Cidades Secas. - Não são humanos...

Damon percebeu que os inimigos sobreviventes recuavam, comprimindo-se contra os cavalos irrequietos, que formavam um paredão por trás. Nunca tinham visto cinco homens morrer tão depressa...

Demônios... os habitantes das Cidades Secas eram conhecidos como muito supersticiosos...

Um deles gritou alguma coisa em sua língua, tentando reagrupar seus camaradas, e correu na direção de Eduin. Damon ignorou-o, mergulhando no foco da pedra-da-estrela, ainda notando que as mãos do homem estavam muito altas... O corpo de Damon virou-se e adiantou-se, a espada passou entre os cotovelos do atacante, cortando com tanta habilidade que não atingiu nenhum osso. O homem caiu. O próprio Damon nem percebeu. Foi ao fundo de seu subconsciente, ao recesso escuro em que encerrara os pesadelos da infância, e de lá trouxe um demônio. Era cinzento e escamado, com chifres e garras, fumaça e fogo saindo pelas narinas; projetou a imagem pela lente da pedra-da-estrela, situando-a entre ele e os homens das Cidades Secas...

Os atacantes gritaram e correram, tentando alcançar os cavalos desvairados, que agora galopavam a toda, enlouquecidos pelo cheiro de sangue e o odor de gato. Gritos estridentes se elevaram dos homens-gatos por trás. Sabendo que todos viam, Damon fez com que o demônio se virasse, avançasse pela rua da aldeia na direção dos homens-gatos, rugindo, o fogo saindo pela boca e narinas. Alguns homens-gatos fugiram. Outros, talvez sentindo que não era bem o que parecia, tentaram contorná-lo.

Damon estendeu a mão às cegas para as rédeas de seu cavalo, que empinava e relinchava. A mente ainda concentrada no demônio que lançara contra os homens-gatos (estava agora no meio deles, virando-se para um lado e para outro, com um fedor de pêlo queimado), Damon descobriu-se a afrouxar as rédeas, a se erguer na sela, com uma habilidade muito além do seu normal... com a habilidade de Dom Esteban.

Um dos homens-gatos se aproximou, e ele teve de se defender de um golpe da mortífera espada curva. Golpeou em resposta, viu a espada e a pata cair juntas, tendo uma última convulsão no chão, para depois ficar imóvel. Nunca viu o que aconteceu com o corpo do homem-gato, pois já virava seu cavalo.

Algo como um raio atingiu o monstro cinza escamado que Damon criara, fazendo-o se elevar numa coluna de poeira e fumaça cinza, para desaparecer em seguida. A mente de Damon vacilou com o terrível choque.

Mas era Esteban quem controlava o aterrorizado cavalo, quem golpeou os poucos homens-gatos que se adiantaram e tentaram derrubá-lo, quem conduziu o animal pela estrada que levava às cavernas. De uma maneira vaga e distante, Damon sabia o que Esteban fazia com seu corpo e cavalo, mas ele próprio flutuava no mundo superior, avançando contra a vontade pela névoa turbilhonante, cada vez mais densa, na direção do núcleo negro da sombra, no qual flamejavam, descobertos, como o fogo no centro de um vulcão, os olhos terríveis do Grande Gato.

Com os olhos, ardentes e escaldantes, havia garras, garras que se estendiam, atacavam Damon, que virava de um lado para outro, esquivando-se aos golpes. Damon sabia que se fosse atingido, mesmo que apenas pela ponta de uma daquelas garras letais, seria obrigado a retornar a seu corpo, e o Grande Gato poderia então fazer o que quisesse com ele, destruí-lo com um único sopro ardente.

Damon pensou: De que os gatos têm medo? Seu corpo, no mundo superior, se projetou; caiu de quatro, e no lugar em que antes fugira e se esquivara das garras do gato, surgiu agora e se consolidou a forma enorme de um lobo escuro. Avançou para o gato, ouvindo o uivo aterrador de lobisomem ressoar pelo inundo superior. Era um grito paralisante, e o Grande Gato hesitou por um instante. Um sopro escaldante atingiu os olhos do lobo, e ele uivou em raiva, enquanto Damon sentia-se tremer com a sede de sangue. Arremeteu para a garganta do gato, as enormes mandíbulas babando se fecharam, os dentes de lobisomem se cravaram na garganta do Grande Gato, o cheiro nauseante de gato...

A ameaça peluda desapareceu entre seus dentes; Damon ouviu-se uivar de novo, e tentou saltar para a escuridão, enlouquecido pela ânsia insana de rasgar, morder, sentir o sangue escorrer sob suas presas...

Mas o gato se fora, sumira, e Damon, trêmulo e esgotado, completamente tonto, vomitando com o gosto de sangue na garganta, sentou oscilando na sela. O Grande Gato fora expulso do plano astral pela forma de lobisomem de Damon. Pela primeira vez, parecia que o Grande Gato podia não ser invulnerável, no final das contas. O caminho para as cavernas se achava livre agora, sem nada para obstruí-lo além dos cadáveres do inimigo.

 

CAPITULO ONZE

Um choque breve e intenso, como o choque de uma queda, fez Andrew Carr despertar. O curto dia de inverno definhava, o quarto se tornara escuro, e à claridade mínima que entrava pela janela ele avistou Callista ao pé da cama. Constatou no mesmo instante, aliviado, que ela vestia uma blusa e uma túnica larga e tinha os cabelos trançados. Não, era Ellemir, e tinha uma bandeja com comida nas mãos.

- Você precisa comer alguma coisa, Andrew.

- Não estou com fome - murmurou Andrew, ainda desorientado pelo sono e sonhos confusos.

Gatos gigantescos? Lobisomens? Como andava Damon? Callista continuava ilesa? Como ele pudera dormir? Como Ellemir era capaz de falar em comida num momento como aquele?

- Precisa comer mesmo assim - insistiu Ellemir, acompanhando seus pensamentos com precisão.

Ele precisaria de algum tempo para se acostumar a isso. Mas é melhor se acostumar logo de uma vez, concluiu Andrew. Ela sentou na beira da cama.

- O trabalho com a matriz é extenuante. Deve manter suas forças, ou terá uma sobrecarga. Eu sabia que não sentiria fome, por isso trouxe sopa e outros alimentos fáceis de engolir. Sei como se sente, mas tente comer, Andrew.

Uma pausa, e Ellemir acrescentou a única coisa que seria capaz de persuadi-lo:

- Damon não pode fazer contato com Callista. Depois de entrar nas cavernas de Corresanti, talvez não consiga encontrá-la no escuro; é um labirinto horrível, sem qualquer iluminação. Já estive lá uma vez, e conheço a história de um homem que se perdeu e vagueou pelas cavernas durante meses; ao sair, estava cego e com os cabelos embranquecidos pelo medo. Por isso, você deve ficar preparado para o momento em que Damon precisar de sua ajuda para guiá-lo até Callista. Não será capaz, se não mantiver suas forças.

Relutante, mas convencido pela argumentação, Andrew pegou a colher. Era um caldo de carne com talharim, muito forte e saboroso. Havia também um pão de nozes e geléia. Depois de provar, ele descobriu que estava faminto, e comeu tudo na bandeja.

- Como está seu pai? - perguntou Andrew, por cortesia. Ellemir soltou uma risada.

- Devia ver a refeição que ele fez há cerca de uma hora, dizendo-me entre as mordidas quantos homens-gatos matara...

- Assisti a tudo - comentou Andrew, muito sério. - Estava lá. Eles são terríveis!

Um tremor percorreu-lhe o corpo, sabendo que parte do que julgara um sonho fora sua mente vagueando entre as aldeias devastadas pela sombra do Grande Gato. Engoliu o último pedaço de pão. Por um instante, concentrando a mente na pedra-da-estrela e no contato com Damon, ele os viu... aproximando-se das cavernas... a encosta vazia à frente...

Desta vez foi mais fácil ingressar no mundo superior. Como a claridade do dia de inverno se desvanecia, Andrew descobriu que podia ver melhor no difuso brilho azulado do que Callista chamara de "luz superior". Uma luz azulada? Seria porque as pedras eram azuis, e de alguma forma projetavam a luz através de sua mente? Ele olhou para baixo e avistou seu corpo na cama. Ellemir largou a bandeja no chão, ajoelhou-se ao seu lado e pôs a mão no pulso de seu corpo, como fizera com Damon.

Ele percebeu que, no mundo superior, deixara para trás os trajes pesados de pele e couro emprestados pelo servidor de Armida, e vestia a túnica e calça cinzentas de náilon que costumava usar dentro do quartel-general terráqueo, com as pedras na gola, oito no total, uma para cada planeta em que já servira.

Faz muito frio neste planeta. Oh, droga, este é o mundo superior. Se Callista pode circular por aqui em sua camisola rasgada sem congelar até a morte, que diferença isso faz? Ele compreendeu que se afastara bastante de Ellemir, deixara Armida, encontrava-se numa planície cinzenta e indefinida, com colinas distantes, tremeluzentes, parecendo uma miragem. Qual será o caminho para as cavernas de Coiresanã? Tentou se orientar nas distâncias cinzentas, e se descobriu transportado depressa pelos espaços, como se nas asas do pensamento.

Percebeu que ainda segurava entre os dedos a pedra-da-estrela, ou seu equivalente no mundo superior, que aqui brilhava como fogos de artifício, projetando centelhas reluzentes. Especulou se o levaria diretamente a Callista. Claro, estava se movendo, podia agora divisar as colinas com toda a nitidez. Uma vasta escuridão parecia emanar do seu centro. Fora por trás dessa escuridão que Damon vira o Grande Gato? Seria ele quem mantinha Callista cativa, por baixo da enorme matriz ilegal?

Andrew estremeceu, tentou não pensar no Grande Gato. Ou melhor, querendo transformá-lo, em seus pensamentos, no gato risonho das histórias infantis terráqueas, um gato inofensivo que vivia sorrindo, e era muito engraçado. Ou no Gato de Botas. Ele não passa de um personagem saído de um conto de fadas, disse Andrew a si mesmo. Não vou permitir que me deixe nervoso. Instintivamente, sabia que era a maneira mais segura de se proteger do poder do Grande Gato. Você não passa de um gatinho de botas, pensou ele. Espero que Damon não tenha de enfrentá-lo de novo...

Como se o pensamento de Damon lhe proporcionasse um rumo definido, ele descobriu que estava de pé (embora seus pés não tocassem no solo) numa encosta, junto da entrada enorme e escura de uma caverna. Um pouco abaixo, Damon e seus dois guardas, com as espadas desembainhadas, prontos para o combate, avançavam devagar para a entrada da caverna. Tentou acenar para Damon, fazer com que ele o visse, e no instante seguinte a estranha fusão ocorreu de novo; e, mais uma vez, ele via através dos olhos de Damon...

...Mal respirando, andando tão silenciosamente quanto era possível. Como tínhamos de fazer, nos reconhecimentos do terreno, durante as campanhas do ano passado...

Podia ver os imensos e indolentes gatos espalhados diante da entrada da caverna, cochilando em seus postos, seguros na fé de que o Poder a que serviam haveria de protegê-los em troca.

Mas ainda eram gatos, e as orelhas peludas se levantaram de repente, ao sussurro das botas na relva. Ergueram-se no mesmo instante, empunhando as espadas curvas, como garras. Damon se adiantou, a espada parecendo viva em sua mão, desferindo um golpe longo para o gato mais próximo. A lâmina curva do gato virou-se para baixo, na curiosa defesa em círculo que eles usavam, como uma meia-lua indistinta diante de seu corpo, a ponta descendo e se afastando. No instante seguinte, Damon viu o aço faiscar no seu lado.

E depois olhava para o dorso de seu pulso, enquanto o braço subia, e sentiu a lâmina tremer em sua mão, aparando a estocada; ouviu a espada do inimigo passar zunindo perto de seu ouvido, ao girar o corpo, e desferiu um golpe contra o ombro peludo. O homem-gato levantou sua espada para aparar o golpe; saltou para trás e viu a lâmina curva cortar o ar, a dois centímetros de seus olhos. Os golpes largos e em círculo da lâmina curva pareciam desajeitados, e mesmo assim parecia ser necessária toda a habilidade de Esteban para encontrar uma abertura naquela defesa. Eduin e Rannan empenhavam-se em combate ali perto - ele podia ouvir o choque de espadas por trás. Sentiu o braço se projetar para a frente numa Cinta; sabia que era uma cinta porque seus pés não se moveram. A espada curva baixou; a lâmina de Dom Esteban se desviou e subiu, atingiu o alvo, entre as orelhas peludas.

Ele arrancou a espada do crânio ensangüentado com um puxão hábil, correu para Rannan, que tinha a camisa rasgada e molhada de sangue, e recuava diante de uma das lâminas girando. Sua própria espada girou várias vezes, abrindo sucessivos talhos na cabeça da criatura. Ele pulou para trás, esquivando-se de um golpe que poderia tê-lo cortado ao meio, pela cintura, sentiu sua lâmina desferir outro círculo, pensou que causaria outro ferimento na cabeça, até que seu pulso virou para baixo, e a lâmina acertou o joelho do homem-gato. O braço tornou a subir, enquanto a criatura, berrando, tombava para a frente, espetando a garganta na ponta da espada. Eduin e Rannan estavam juntos do corpo sem vida do último guarda, e outra vez, por um instante, Damon sentiu o ímpeto estranho e sem motivo da raiva de Dom Esteban...

Damon sacudiu a cabeça. Sentia-se tonto, como se estivesse bêbado. O que estava fazendo? Abriu os olhos, guardou a espada na bainha, consciente ao fazê-lo dos músculos doloridos na base do polegar e do pulso: músculos que nunca imaginara que possuísse. Oscilando um pouco, virou as costas aos macabros corpos peludos caídos no chão e avançou para a entrada da caverna,  gesticulando para que Eduin e Rannan o seguissem. Enquanto corria, avistou um vulto de um homem estranho à sua frente, usando uma roupa cinza, leve e desconhecida. Demorou um momento para reconhecer Andrew Carr... e enquanto a mente de Damon percebia isso, Andrew retornou à sua própria mente, postando-se a poucos passos dele e fazendo sinal para que avançasse.

Pareceu um pouco estranho a Andrew que pudesse ver Damon, quando este não se encontrava no mundo superior, mas afinal também vira Callista "lá embaixo". Ele seguiu na frente, entrando na caverna. Era uma câmara enorme e escura, e por um instante, mesmo com a luz superior, foi difícil ver qualquer coisa. Damon passou pela entrada e gesticulou, impaciente, para que seus dois espadachins o acompanhassem; eles pareciam se defrontar com alguma barreira invisível para Andrew... e obviamente invisível também para Damon.

O darkovano teve um momento de perplexidade, e depois - Andrew nunca soube, nem naquele instante, nem depois, se Damon falou em voz alta, ou se o ouviu pensar- disse:

- Mas é claro! Há uma barreira de primeiro nível na entrada, o que significa que ninguém pode entrar ou sair se não estiver carregando uma matriz, ou se não tiver a permissão do operador.

Era isso mesmo, o tipo de recurso que o Grande Gato usaria. Mas podia acarretar uma vulnerabilidade extra. Ele não podia estar em toda parte ao mesmo tempo, nem mesmo com uma matriz. Se tivessem sorte, talvez ele ainda não soubesse da invasão.

Cauteloso, Damon foi avançando pela enorme câmara abo-badada, que era o acesso às cavernas. Em algum lugar, ao fundo, podia ouvir água escorrendo. Seus olhos divisavam apenas a claridade mínima da luz do dia na entrada da câmara, que diminuía ainda mais à medida que se adiantava. O terror frio da escuridão o envolveu, e ele hesitou, recordando: Quando vim aqui na infância havia tochas, havia, luzes que nos permitiam ver as paredes e as passagens. Foi então que ele tornou a avistar, aparentemente saindo da própria parede, a figura espectral de Andrew. O vulto do terráqueo parecia luzir com um tênue brilho azulado e carregava entre as mãos o que parecia ser uma enorme e cintilante tocha azul. A matriz, é claro. Mas isso não vai alertar o Grande Gato? Se preciso ir ao mundo superior, a fim de encontrar o caminho, ele não verá minha pedra-da-estrela ?

E agora ele teve a impressão de ouvir um zumbido, como se fosse uma gigantesca colmeia. No fundo de obscuras câmaras da memória, ele reconheceu o som: uma poderosa matriz, sem qualquer escudo. Um espasmo gelado de medo apertou seu coração, com tanta força que ele quase experimentou uma dor física. A criatura-gato deve estar louca! Louca ou é mais poderosa do que qualquer homem ou Guardiã! Seria preciso um Círculo de quatro mentes no mínimo para manipular uma tela de matriz desse tamanho!

Nunca eram encontradas assim na natureza. Haviam sido fabricadas artificialmente, no auge da tecnologia da pedra-da-estrela. O Grande Gato descobrira aquela, uma aberração, ou a teria fabricado? E Damon pensou: Pelos nove infernos de Zandru, como ele manipula a coisa? Eu não a tocaria, nem mesmo por minha vida!

Ele tornou a ver o vulto de Andrew, fazendo um sinal vago, na claridade azulada. A luz de sua pedra-da-estrela, Damon divisou enormes colunas cristalinas, estendendo-se do chão ao teto. Por toda parte havia a umidade escura, e o barulho de água caindo, sem falar no zumbido assustador da matriz. Damon pensou que poderia encontrar o caminho apenas pelo som. Mas só poderia cuidar disso mais tarde. Agora, era preciso encontrar Callista, e tirá-la dali, antes que o Grande Gato soubesse de sua presença e mandasse um dos seus asseclas cortar a garganta dela.

Duas passagens partiam do fundo da câmara, estendendo-se pela escuridão, para clarões difusos e distantes. Damon parou por um momento, indeciso, antes de perceber, na passagem à esquerda, o vulto de Andrew Carr. Seguiu a figura espectral, e depois de tropeçar duas vezes no chão rochoso - Andrew, no mundo superior, não precisava se preocupar com isso - focalizou sua própria pedra-da-estrela, quente, pesada, em contato com a garganta, para projetar uma bola de luz à sua frente. Era um avanço lento e penoso, e Damon desconfiou que seu poder era arrefecido pela força tremenda nas proximidades. Mesmo assim, foi capaz de focalizar energia suficiente para projetar a luz. Ainda bem. Como eu poderia lutar direito, caso se torne necessário, com uma das mãos ocupada a segurar uma tocha?

A figura de Andrew desapareceu outra vez, muito adiantada. Damon pensou: É assim que tem de ser. Ele deve encontrar Callista. Avisá-la de que a ajuda se aproxima.

Alguma coisa se mexeu na sombra além do clarão da pedra-da-estrela, e uma voz soou, na fala miada dos homens-gatos. A voz se transformou num súbito rosnado. Damon viu uma das lâminas curvas, além do círculo de claridade. O zumbido em seus ouvidos era angustiante, doloroso. Ele sacou sua espada, levantou-a, mas parecia um peso morto em sua mão. Dom Esteban... Ele procurou o contato, frenético, mas não havia nada, apenas o zumbido, a dor cada vez mais intensa.

A lâmina curva desceu, assoviando. De alguma forma, ele ergueu a coisa inerte de metal em sua mão no caminho da lâmina, uma barreira de aço. O medo sufocou-o, enquanto forçava o corpo exausto a assumir a posição de combate, aparando os golpes de uma forma automática, sem ousar correr o risco de um ataque. Estava sozinho, lutando apenas com sua reduzida habilidade!

A barreira na entrada! Dom Esteban não podia ultrapassá-la! E Damon pensou: Sou um homem morto!

Numa fração de segundo, ele recordou anos de tediosas lições - sempre o pior espadachim em seu grupo de idade, o garoto desajeitado, sem a menor vocação para as artes da guerra. O covarde. Sentindo-se lerdo com o terror, como se tivesse de arrastar a espada por uma calda grossa, Damon continuou a aparar os golpes, sempre em círculos, de extrema habilidade. Estava perdido. Não era capaz de se defender de modo adequado contra homens que lutavam no estilo em que fora treinado. Como poderia então resistir àqueles mestres de uma técnica completamente diferente? Recuou, frenético, percebendo pelo canto dos olhos que um segundo guarda se aproximava correndo, e logo teria de enfrentar dois adversários... se sobrevivesse por todo esse tempo. Viu a terrível lâmina curva girar num golpe que nunca poderia ter aparado, mesmo se soubesse como Esteban o bloquearia.

A lâmina subiu para o bloqueio que ele imaginara, e nesse instante, com um profundo alívio, Damon percebeu a abertura na defesa do homem-gato e arremeteu com sua espada. O segundo guarda alcançou-os no momento mesmo em que Damon,  ofegante, retirava a espada do corpo do primeiro. Ele se virou para o novo oponente, sabendo agora como Esteban atacaria este. Enquanto o pensamento se formava em sua mente, ele recuou o braço; a lâmina curva baixou, naquele círculo que todos pareciam usar. Damon desferiu um golpe longo, perfurando a garganta peluda, enquanto a lâmina curva invertia o movimento, numa tentativa inútil de defesa.

Ele puxou a espada, enquanto um terceiro guarda parava de repente, cauteloso, para depois começar a recuar, a lâmina curva erguida ao lado da cabeça, pronto para se lançar na estranha defesa em círculo. Damon adiantou-se, também cauteloso, e esperou...

Os segundos se arrastavam, e seu corpo não fazia nada que ele não mandasse. Focalizou o elo... nada. Apenas a pulsação, a sobrecarga vibrante da gigantesca matriz, em algum ponto no fundo das cavernas, fora de vista, quase fora de seu conhecimento, mas presente, assustadora. Dom Esteban não podia alcançá-lo ali dentro. Não havia contato desde que entrara nas cavernas. E Damon quase largou a espada ao choque da compreensão. Não tinha mais qualquer ligação com Dom Esteban, mas mesmo assim matara dois homens-gatos.

E mataria um terceiro. Agora.

Por que não? Sempre entendera todas as manobras, fora treinado por mestres espadachins, embora sempre se esquivasse à prática... talvez fosse esse o problema. Pensara sobre a vida mais do que a vivera, sempre mantivera o corpo e a mente separados; talvez o contato com Esteban tivesse ensinado seus nervos e músculos a reagir diretamente...

O homem-gato rosnou e atacou-o. Damon abaixou-se, a espada estendida à sua frente, apoiando-se no chão com a outra mão. A lâmina curva zuniu por cima de sua cabeça, e algo úmido e pegajoso esguichou em seu braço. Livrou sua espada, com um puxão brusco, e empertigou-se. Agora, que caminho seguir para chegar a Callista? Depressa, antes que o Grande Gato descubra...

Ele olhou ao redor, à procura de Andrew, e avistou-o, um relance de fração de segundo, na outra extremidade da passagem. E logo Andrew tornou a desaparecer...

Andrew, absorto, partilhando a batalha com Damon, ouviu de repente um som que parecia um grito e viu Callista num lampejo. Parecia que ela estava caída no chão, a seus pés... e ele compreendeu que descera para um nível mais profundo das cavernas, onde as paredes tinham uma pálida fosforescência verde. Callista se encontrava na escuridão, e no momento em que ela abriu os olhos apavorados, Andrew divisou, avançando em sua direção, apenas uma sombra nas trevas, a forma de uma das criaturas-gatos. Callista levantou-se às pressas, recuou, tentando se defender, desamparada, com os braços estendidos. A pata da criatura empunhava uma adaga curva, e Andrew correu em sua direção, impotente, querendo lutar.

Preciso do meu corpo. Não posso defendê-la do mundo superior... Por um instante, ele oscilou entre a caverna em que Callista fugia às cegas da adaga do homem-gato e o quarto em Armida, onde seu corpo deitava na cama, guardado por Ellemir. Não posso voltar, devo ficar com Callista... E nesse instante houve um clarão azul, um choque elétrico doloroso e ofuscante, e Andrew sentiu que caía com um grande impacto na caverna, em meio à escuridão, rompida apenas pelo brilho difuso dos fungos, o tornozelo torcido na queda.

Soltou um grito de advertência e correu às cegas para o homem-gato. {Como cheguei aqui? Como? Será que estou mesmo aqui?) Cambaleou, sentindo alguma dor ao esbarrar numa pedra solta. Pegou a pedra e o homem-gato virou-se, rosnando, mas Andrew ergueu a pedra e acertou com toda a força em sua têmpora. A criatura caiu, com um uivo ensurdecedor, ainda teve uma convulsão, depois ficou imóvel. A força do golpe espalhara seus miolos pelo chão. Andrew escorregou neles, quase caiu. E murmurou, atordoado:

- Acho que isso esclarece tudo. Estou mesmo aqui.

Ele correu para Callista, que se agachava contra a parede, fitando-o em espanto e terror.

- Querida! - exclamou Andrew. - Callista... minha querida... você está bem?

Ele tomou-a nos braços, e Callista arriou contra seu corpo. Era sólida, real e quente, e Andrew apertou-a com força, sentindo que ela tremia toda, em profundos soluços.

- Andrew... Andrew... é mesmo você?

Comprimindo os lábios contra o rosto molhado de Callista, ele murmurou:

- Sou eu mesmo, e você está segura agora, minha amada. Mas temos de tirá-la daqui em poucos minutos. Pode andar?

- Posso - respondeu ela, recuperando algum controle. - Não sei onde fica a saída, mas ouvi eles falarem que há cordas nas paredes. Podemos encontrar o caminho. E se me der a pedra-da-estrela, posso projetar uma luz.

Andrew entregou a pedra. Ela pegou-a entre as palmas, quase com ternura. À luz azulada da pedra, mais difusa que a luz do mundo superior, mas ainda suficiente para se ver com clareza, ele percebeu que as feições adoráveis de Callista se contraíam no medo.

- Damon... - sussurrou ela. - Oh, não... Andrew! Ajude-me, Andrew...

Os dedos de Callista se estenderam para os de Andrew e as mentes se uniram, como já acontecera antes.

E no momento seguinte, com outro daqueles choques elétricos violentos e dolorosos, ele se descobriu em uma enorme câmara, parcialmente iluminada, em cuja extremidade luzia, com uma radiância angustiante, uma pedra parecida com a pedra-da-estrela... mas enorme, faiscando como um arco voltaico, doendo em seus olhos. Damon, parecendo muito pequeno, avançava em sua direção. A mente de Andrew fluiu outra vez para a de Damon, e ele viu, através dos olhos de Damon, a figura agachada por trás da enorme pedra. Tinha as patas enegrecidas, os bigodes chamuscados e imensas chamas de pêlo queimado. Damon ergueu sua espada...

E se descobriu no mundo superior, tendo a sua frente, imponente e ameaçador, o Grande Gato, mais alto do que uma árvore, fitando-o em fúria, os olhos vermelhos, como gigantescos carvões em brasa, e rosnando, com um rugido que preencheu todo o espaço. Ergueu uma pata, e Damon se encolheu, sentindo que o golpe poderia arremessá-lo para longe, como um camundongo indefeso...

Nesse momento Callista gritou, e dois cachorros gigantescos - um com o pescoço enorme, o outro esguio e ágil -, com dentes reluzentes, saltaram para a garganta do gato, abocanhando-a. Andrew e Callista! Sem parar para pensar, Damon voltou a seu corpo e correu para a frente, erguendo a espada. Golpeou a criatura agachada e sentiu o zumbido se elevar para um grito, para uivos desvairados e latidos que se espalhavam por toda parte. Segurando-a bem firme, com toda a sua força, as mãos queimadas, Damon enfiou a espada de Dom Esteban no corpo do homem-gato.

A criatura se debateu e estrebuchou, gritando, na ponta da espada. A grande matriz piscou, projetou faíscas e enormes línguas de fogo. E depois, abruptamente, as luzes se desvaneceram, a caverna se tornou escura e silenciosa, exceto pelo brilho pálido da pedra-da-estrela de Callista. Os três estavam de pé, juntos, sobre o chão de pedra. Callista, soluçando e tremendo, se apoiava em ambos. Ali na frente jazia uma coisa enegrecida, fedendo a pêlo queimado, exibindo apenas uma ligeira semelhança com um homem-gato, ou com qualquer outra coisa que jamais vivera.

A grande matriz se encontrava diante deles, em sua armação, com um brilho opaco, consumido, morto. Rolou de repente, caiu no chão da caverna com um estrondo e se espatifou para o nada.

 

CAPÍTULO DOZE

- O que acontecerá agora com as terras escuras? - perguntou Andrew, enquanto voltavam lentamente, ao crepúsculo, para Armida.

- Não sei - respondeu Damon.

Ele estava exausto, arriado na sela, mas sentia-se em paz. Haviam encontrado comida e vinho nas cavernas - era evidente que os homens-gatos não se deram o trabalho de explorar os níveis inferiores - e comido e bebido bem. Também descobriram roupas, inclusive enormes mantos peludos, mas Callista estremecera ao contato, dizendo que nada a induziria a usar uma pele outra vez, enquanto vivesse. Ao final, Damon dera o manto de pêlo a Eduin e envolvera Callista com o capote de lã do espadachim.

Ela viajava agora na frente da sela de Andrew, enlaçando-o, a cabeça recostada em seu ombro. Ele mantinha a cabeça abaixada, o rosto roçando nos cabelos de Callista. A cena deixou Damon com saudade de Ellemir, mas isso podia esperar. Não sabia se Andrew prestaria atenção à resposta para sua pergunta, mas respondeu assim mesmo:

- Agora que a matriz foi destruída, os homens-gatos não têm mais as armas anormais do medo e da escuridão. Podemos enviar soldados contra eles e destruí-los. A maioria dos aldeões vai se recuperar com o desaparecimento da escuridão e do medo.

Lá embaixo, no vale, Damon podia avistar as luzes de Armida. Especulou se Ellemir sabia que ele estava voltando, com Callista sã e salva, e as terras escuras libertadas das trevas. Damon sorriu. O velho devia estar esperando com a maior impaciência, querendo saber o que acontecera depois que perdera o contato com Damon na barreira. Era bem provável que Dom Esteban acreditasse - há muito que desprezava Damon como um fraco - que ele fora retalhado. Bom, seria uma agradável surpresa para o velho, e Dom Esteban precisaria de umas poucas surpresas  agradáveis para contrabalançar o choque inevitável quando soubesse de Callista e Andrew. Não seria nada agradável, mas Dom Esteban lhes devia alguma coisa, e Damon tencionava pressioná-lo até que cedesse. Ele percebeu, com uma profunda satisfação, que aguardava ansioso por essa oportunidade, que não tinha mais medo de Dom Esteban. Não tinha mais medo de coisa alguma. Damon sorriu, diminuiu a marcha para seguir ao lado de Eduin e Rannan, que partilhavam o mesmo cavalo, tendo emprestado o outro a Andrew e Callista.

Andrew Carr nem notou que Damon se afastara. Callista irradiava um calor intenso entre seus braços e fazia seu coração palpitar tanto que nem podia pensar direito.

- Está com frio, minha amada? - sussurrou ele. Ela se aconchegou ainda mais.

- Um pouco, mas não se preocupe.

- Não vai demorar muito para chegarmos à sua casa, e Ellemir poderá cuidar de você.

- Prefiro sentir frio no ar puro a sentir o calor daquelas cavernas repulsivas! Ali, as estrelas! - murmurou ela, quase extasiada.

Andrew apertou-a ainda mais, consciente de que ela estava tão cansada que poderia até cair. Contemplou as luzes convidativas de Armida lá embaixo.

- Não será fácil - murmurou Callista. - Meu pai ficará furioso. Pensa em mim como uma Guardiã, não como uma mulher. E se enfureceria se eu decidisse renunciar a meu posto e casar, com qualquer um, ainda mais com você, que é um terráqueo.

Mas ela sorriu, enroscou-se contra Andrew e acrescentou:

- Pois ele terá de se acostumar com a idéia. Leonie estará do nosso lado.

Encaravam tudo como um fato consumado, pensou Andrew. De algum modo, teria de enviar uma mensagem à Cidade Comercial, informando que continuava vivo - isso até que seria fácil - e que não voltaria. Essa parte não seria tão fácil. Com a nova capacidade que descobrira... de um jeito ou de outro, teria de aprender a usá-la. Depois... quem podia saber o que aconteceria depois? Devia haver alguma coisa que ele poderia fazer para apressar o dia em que terráqueos e darkovanos não mais veriam uns aos outros como espécies alienígenas.

Não podiam mesmo ser alienígenas. Bastava os nomes para indicar isso. Callista. Damon. Eduin. Caradoc. Esteban. Podia admitir muitas coincidências, mas não tantas assim. Não era um lingüista, mas recusava-se a acreditar que aquelas pessoas pudessem ter desenvolvido de forma independente nomes tão parecidos com os terráqueos. Até mesmo Ellemir não era tão diferente assim; na primeira vez em que o ouvira, pensara que era Eleanor. E os nomes não eram apenas terráqueos, mas também europeus ocidentais, dos dias em que tais distinções se aplicavam na Terra.

Contudo, aquele planeta fora descoberto pelo Império Terráqueo havia menos de cem anos, e fazia apenas cinqüenta anos que a Cidade Comercial fora construída. O pouco que ele sabia sobre o planeta indicava que sua história era mais longa que a do Império.

Então qual era a resposta? Havia histórias de "Naves Perdidas", decolando da própria Terra, numa época anterior ao Império, milhares de anos antes, desaparecendo sem deixar qualquer vestígio. Acreditava-se que a maioria fora destruída - as naves daqueles dias eram engenhocas ridículas, com primitivos propulsores atômicos ou matéria-antimatéria. Mas uma delas poderia ter sobrevivido. Ele refletiu que provavelmente nunca saberia, mas tinha o resto da vida para tentar descobrir. Mas será que isso importava tanto? Ele já sabia de tudo o que precisava saber.

Apertou Callista em seus braços mais um pouco; ela fez um movimento involuntário de protesto, depois sorriu e comprimiu-se contra ele deliberadamente. Andrew pensou: Não sei nada a seu respeito. Mas recordando aquele momento incrível de fusão e total aceitação entre os quatro, ele compreendeu que também já sabia tudo o que precisava saber a respeito de Callista. Já notara que ela não mais se encolhia ao contato casual. E pensou, com uma profunda ternura, que se ela fora condicionada contra o desejo ou a reação sensual, pelo menos esse condicionamento não era irremediável, e teriam tempo suficiente para esperar. Desconfiava que o condicionamento já fora rompido pelos dias de terror, sozinha, na escuridão, e pela ânsia de Callista por qualquer outra presença humana. Mas já pertenciam um ao outro da maneira que mais importava. O resto viria com o tempo. Andrew tinha certeza disso, e se descobriu a especular, sorrindo, se a precognição seria um dos novos talentos psíquicos que exploraria.

Ao se aproximarem dos enormes portões de Armida, a neve começou a cair; e Andrew recordou que menos de uma semana antes estivera deitado numa platibanda nas montanhas, sob uma tempestade uivante, esperando a morte.

Callista estremeceu - será que ela também se lembrara disso? -, e ele inclinou-se e murmurou ternamente:

- Estamos quase em casa, minha amada.

E já não parecia tão estranho pensar em Armida como sua casa.

Ele perseguira um sonho, que o levara até ali.

 

                                                                                            Marion Zimmer Bradley

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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