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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESPERANÇA REENCONTRADA / Andrew Mark
A ESPERANÇA REENCONTRADA / Andrew Mark

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Ben Minor não conseguia ver o que quer que fosse à sua frente. Uma chuva escura e gelada molhava o pára-brisas e esborratava a paisagem, caindo numa cascata que brilhava aos raios de luz dos seus faróis. A estrada secundária com pouco trânsito continuava a desenrolar-se à sua frente, mas a chuva pesada forçava-o a uma rigorosa vigilância. Os seus olhos procuravam sinais da linha branca de demarcação da estrada. Para companhia, sintonizara uma rádio local que recebia chamadas dos ouvintes e, de dez em dez minutos, o meteorologista interrompia para anunciar chuva gelada que se transformaria em neve nas terras altas. Ben compreendia agora que devia ter encostado à berma da estrada e esperado que a chuva passasse, mas, após sete horas de viagem, incluindo a hora de ponta em Boston e a má disposição provocada pelo hambúrguer que lhe revolvia o estômago, o que queria era chegar o quanto antes.

Ia a caminho de uma estância de esqui no coração das montanhas ocidentais do Maine para um fim-de-semana de Inverno. Mas este tempo deveria ter feito desaparecer a neve das encostas. Tudo o que restaria quando chegasse seria porventura alguns quilómetros de pistas de gelo e um parque de estacionamento enlameado. Talvez fosse apenas o novo clima, devido ao aquecimento global do planeta. O Inverno em Nova Iorque, seiscentos e quatro quilómetros a sul segundo o seu conta-quilómetros, tornara-se pouco mais do que um breve arrepio entre um Outono ardente e seco e uma Primavera completamente encharcada.

 

 

 

 

- Já chega - disse em voz alta, tentando abrir caminho pela estrada escura.

 

- A responsabilidade moral não tem nada a ver com o que sentimos - pregava um psiquiatra na rádio a um ouvinte perturbado. - Os Dez Mandamentos não nos dizem que façamos o que sentimos...

 

Ben apagou bruscamente o rádio para silenciar aquela voz aguda. Preferia ouvir o batimento regular dos limpa-pára-brisas. Detestava aquele palavreado da rádio que era emitido para quatro fusos horários via satélite. Será que as pessoas aprendiam alguma coisa com aqueles egocêntricos irados que lhes gritavam através do microfone?

 

O artigo da secção de viagens do Times prometera «pistas amplas e cuidadas, sem filas nos ascensores». Havia algo nas descrições da «neve fofa» que o atraía. Quando se imaginava a descer a toda a velocidade trilhos de esqui sinuosos, com o corpo transformado numa proa aerodinâmica, experimentava uma sensação de liberdade. Podia ter sucumbido à felicidade artificial do Prozac ou à harmonia neutralizadora do Zoloft, mas esses medicamentos forneciam apenas emoções farmacológicas.

 

Deixara, certamente, passar um desvio. Procurou no assento de veludo do seu Cadillac o mapa dobrado em harmónio. Travou numa longa curva que mergulhava e logo se erguia como uma onda e o carro atravessou pesadamente a água acumulada na base da encosta. Os seus dedos apertaram o volante quando sentiu que os pneus perdiam, por momentos, a aderência. Um leme seria melhor para percorrer estas estradas, pensou.

 

A pequena luz sobre a cabeça pouco o ajudava a encontrar a sua localização no mapa. Em vez disso, lançava um reflexo no pára-brisas que o distraía. Os seus olhos deixaram, por um instante, de observar a estrada para procurar no mapa um nome ou número de estrada conhecido. Isso entontecia-o e irritava-o, mas tinha de tentar orientar-se.

 

Nada parecia certo e pensou em dar meia volta e conduzir de regresso à última cidade que atravessara vinte minutos antes. Tudo o que lá existia, no entanto, era uma simples povoação em torno de uma velha estação de serviço da Mobil, que fechara havia já algum tempo. Ao planear o seu trajecto no mapa, antes de sair de casa, nunca esperara encontrar as derivações do tempo e das estradas secundárias mal sinalizadas e, às vezes, sem qualquer sinalização. Era sua característica não perder a cabeça, mas o cansaço da estrada estava a torná-lo crispado. Procurou um local para encostar a fim de, pelo menos, poder examinar o mapa mais cuidadosamente, mas receou que o carro ficasse atolado na berma da estrada de areia solta. Não queria correr o risco de ter de esperar até de manhã por um reboque para o retirar. Por conseguinte, enquanto a incerteza lhe roía o estômago, continuava a conduzir.

 

Ao deslizar numa curva, levantando um pouco o pé do acelerador, viu algo que o fez guinar bruscamente antes mesmo de tomar consciência do facto. De pé, no meio da sua faixa de rodagem, estava um homem a acenar com ambas as mãos. Segurava uma lanterna potente e fazia sinais, energicamente, como se estivesse a tentar fazer parar um comboio. O feixe de luz branca cortava a noite como um holofote.

 

Ben retomou o controlo do automóvel e travou. Carregou com força no pedal enquanto o carro se desviava para a faixa oposta. Uma onda de adrenalina provocou-lhe um choque nervoso como se de um impulso eléctrico se tratasse e, subitamente, o coração começou a bater descompassadamente. A mente e o corpo prepararam-se para a crise.

 

Guinando de novo o carro com força, avistou os feixes de luz de um par de faróis orientados para o céu. A estrada estava escorregadia, reflectindo arcos-íris de óleo, e, durante um momento confuso e aterrador, pensou que saíra da estrada e que aqueles eram os seus faróis apontados ao céu. Quando finalmente conseguiu parar, viu uma carrinha de rodas para o ar, numa vala escorregadia e lamacenta à beira da estrada, com os feixes de luz brilhando para cima na noite escura.

 

- A minha mulher... - soluçou o homem, aproximando-se a correr depois de Ben ter saído da estrada em segurança.

 

- Podia ter morrido - gritou-lhe Ben. Não estava realmente zangado, apenas nervoso. E que teria feito se tivesse atropelado o homem?

 

- A minha mulher, por favor... - repetiu. Os poucos fios de cabelo que atravessavam a cabeça do homem estavam ensopados devido à forte chuva que caía e também a um pequeno mas sangrento corte. A camisa molhada estava enrolada em torno da pesada barriga. As pernas esguias eram cingidas por calças de algodão encharcadas.

 

- Está bem, só um momento - respondeu Ben. - Deixe-me ir buscar a mala.

 

Procurou no assento de trás a mala de médico de cabedal preto, agarrando com a mão a pega já gasta. Rapidamente, correu atrás do homem no meio do dilúvio.

 

- Ao entrarmos naquela curva perdi o controlo - informou o homem. - Aconteceu tudo tão depressa... Ficámos a girar continuamente. Pensei que não ia mais parar.

 

Chegaram à carrinha capotada e Ben conseguiu ver uma mulher deitada à chuva. Estava coberta pelo casaco do homem com a cabeça protegida pela porta aberta. Uma das rodas dianteiras ainda girava, lentamente, no ar. Ben curvou-se sobre a mulher.

 

- Que aconteceu? - perguntou, verificando primeiro a respiração. Procurou a pulsação. Não conseguiu detectar nenhum sinal.

 

- A seguir ao acidente ela estava bem. E falava... Disse-me que me tinha portado bem. Não estávamos magoados. Obriga-me sempre a usar o cinto de segurança. Quando dei a volta para a tirar, desmaiou. Aconteceu há poucos minutos.

 

- Como é que arranjou esse corte na cabeça?

 

- Não sei! Ela terá tido algum problema de coração? Oh, meu Deus...

 

Segurava a lanterna por cima de Ben para que este pudesse ver o que fazia e o feixe de luz tremia devido ao medo do homem.

 

- Minha pobre Marge.

 

Ben não conseguia encontrar quaisquer ferimentos. A mulher não batera com a cabeça. Ele trabalhou rapidamente, deslocando o estetoscópio ao longo do peito, a pele manchada pela idade. A chuva caía-lhe na face, sulcando as rugas suaves como se fossem leitos de riachos secos e escorrendo para o cabelo cinzento-azulado. A luz da lanterna esbranquiçava-lhe a tez e tornava-lhe o rosto encovado e pálido como cera. Limpou-lhe a boca, num gesto rápido, e colocou uma mão debaixo do pescoço. Inclinando-lhe a cabeça para trás, pressionou com a sua própria boca os lábios finos e azuis da mulher.

 

Os rápidos sopros de ar dos pulmões de Ben faziam erguer o peito da mulher e ele deslocou-se para se inclinar sobre o esterno. Juntando as mãos, começou a fazer compressões torácicas.

 

- É o coração? - perguntou o homem com voz fraca e trémula.

 

Ben assentiu.

 

- Há quanto tempo ficou sem sentidos?

 

- Há uns dois minutos, talvez. Não mais do que isso.

 

Ben parou a fim de voltar a fazer respiração boca a boca, tentando manter um ritmo cadenciado: respirar, massajar, respirar.

 

- Não deveríamos ter saído esta noite - lamentou o homem, com clara angústia na voz. - Marge tem uma amiga que está doente, íamos visitá-la e o tempo virou-se contra nós.

 

- Precisamos de levá-la a um hospital - informou Ben, pressionando de novo os lábios sobre os dela. Estavam frios. Era como beijar mármore.

 

- Tentei chamar a Polícia Estadual, mas ninguém atendeu.

 

- Teremos que levá-la no meu carro.

 

Ben queria movê-la com cuidado. Não podiam, simplesmente, pegar-lhe pelas pernas e braços. Não conseguia encontrar sinais de ferimentos internos, mas não tinha forma de o saber ao certo. Ela podia ter uma lesão no baço ou qualquer fractura que se agravaria com um movimento imprudente. Preocupava-o a ideia de uma lesão na espinha dorsal. Havia sempre a possibilidade de uma vértebra fracturada ou lascada com fragmentos de osso perto da espinal medula. Uma torção ou uma volta errada podia enterrar esse osso na medula, paralisando-a ou até matando-a.

 

- Precisamos de qualquer coisa para a levar - comunicou Ben. - Uma espécie de maca.

 

O homem pensou por momentos e depois correu para a traseira da carrinha. Conseguiu abrir com um puxão a porta de trás e rebuscou no amontoado de ferramentas e serras mecânicas. Regressou com meia tábua de contraplacado.

 

- Isto serve?

 

Ben deu-lhe instruções para que colocasse a tábua no chão, paralelamente à mulher. Depois, amparando-lhe o corpo, Ben voltou-a cuidadosamente de lado. O marido fez deslizar o contraplacado por baixo das costas dela. Ben continuava a contar as compressões torácicas para manter o ritmo.

 

- Um e dois e...

 

Pretendia proporcionar a Marge a maior quantidade possível de oxigénio, para que circulasse no cérebro antes que tivessem de a privar dele por momentos preciosos enquanto a levavam para o carro.

 

Os dois transportaram-na com facilidade. Ben segurava a tábua do lado da cabeça e caminhava cautelosamente na neve derretida que se acumulava ao longo da estrada. O homem pestanejava devido ao fio de sangue que gotejava da ferida no couro cabeludo e os músculos do seu pescoço retesavam-se com o esforço. Ben compreendeu que este trabalho podia ser superior ao que o próprio coração do homem conseguiria aguentar. Tentou deslocar mais o peso da mulher na sua direcção. Não era uma mulher alta, mas, mesmo assim, as pernas pendiam de forma que os calcanhares roçavam a neve enlameada, deixando atrás deles sulcos rapidamente traçados. Os homens lutavam por manter o equilíbrio. Deixaram os sapatos da mulher onde caíram.

 

Colocando-a na beira da estrada, Ben continuou a pressionar o esterno, enviando maior fluxo de sangue oxigenado às artérias. O marido abriu a porta de trás do Cadillac de Ben e retirou a mala do assento macio.

 

- Deve haver gaze na mala - informou Ben. - Faça uma compressa e coloque-a por cima desse corte na cabeça.

 

O homem olhou para Ben como se nem tivesse reparado no sangue que lhe ensopava o cabelo grisalho por cima das orelhas. Tocou na cabeça e olhou para o sangue escuro nos dedos.

 

- E Marge?

 

- Trate agora de si - aconselhou Ben. - Estamos a ir bem. Ben não deixou de calcular as pausas entre as massagens e a respiração boca a boca. Sabia que as hipóteses eram poucas, mas Ben chegara minutos depois de Marge sofrer a sua paragem cardíaca. Em termos de reanimação, o tempo era o mais importante. O cérebro demorava apenas quatro a seis minutos a sucumbir à falta de oxigénio.

 

O homem inclinou-se para se ver num dos retrovisores laterais do carro de Ben. Com cuidado, centrou uma larga compressa de gaze sobre a ferida na cabeça, pressionando as extremidades sobre a pele pálida da testa.

 

- Não devíamos ter saído esta noite - insistiu, abanando a cabeça.

 

Finalmente, os dois levaram-na na tábua de contraplacado para o assento traseiro do carro. Ben acocorou-se ao lado dela no espaço entre os assentos. Teria que viajar de costas e receava-o. O movimento enjoava-o e, não tendo a visão desimpedida à sua frente, ia ficar maldisposto. Rapidamente sentiu as náuseas pesarem-lhe no estômago.

 

O marido de Marge, cujo nome Ben ainda não perguntara, conduziu até ao pequeno hospital para lá da fronteira estadual do New Hampshire. Seguiram pelas sinuosas estradas secundárias que se dirigiam para oeste através de uma zona remota da Floresta Nacional.


Ben era atirado de um lado para o outro em todas as curvas. Não era longe e o marido de Marge conhecia todos os atalhos. Quando pararam junto à porta das Urgências, a pulsação de Marge acentuava-se. Enquanto o pessoal do hospital a mudava para uma maca, Ben conseguiu ver, mesmo à luz brilhante e esbranquiçada da zona das ambulâncias, que a sua cor se tornara rosada. Podia ser que tivesse sorte desta vez.

 

Mas a sua própria cor desaparecera. Sentia-se como se a viagem o tivesse rodopiado e amassado. A chuvosa viagem para norte esgotara-o mesmo antes de chegar à cena do acidente e agora estava aniquilado. Agora estava com frio e encharcado. Encostou-se ao carro enquanto uma multidão de médicos e enfermeiros rodeava Marge, conduzindo-a através das portas duplas automáticas. O marido apressava-se atrás deles.

 

- Vai ficar bem? - ouviu-o Ben perguntar enquanto as portas duplas se fechavam atrás deles.

 

Fez-se de novo silêncio. Ben sentiu o sangue a latejar nos ouvidos. A chuva abrandara mas o ar ainda estava húmido da névoa. Inspirou profundamente algumas vezes para tentar acalmar-se: tinha a cabeça a andar à roda. Ouvia-se o som abafado e distante de sinos a tocar, como se fossem sinos de uma igreja longínqua. Levou algum tempo a perceber a verdadeira fonte do som repetitivo. Deu a volta ao carro até à porta aberta do lado do condutor e estendeu a mão para desligar o motor e as luzes. Fechou a porta. Os sinos pararam.

 

Ben ficou sozinho no parque de estacionamento, a tremer. O frio infiltrara-se-lhe nos ossos como se a humidade tivesse penetrado na sua pele. Agora queria ir-se embora e procurar um duche quente debaixo do qual se pudesse colocar e deixar a água bater nos seus ombros tensos. Queria descobrir uma cama limpa e quente e deitar-se com a coluna estendida, deixando que os pensamentos estonteantes da estrada escura fluíssem para fora de si até restar apenas a calma. Precisava que esta noite acabasse. Mas para onde ir a partir daqui?

 

Estar de novo tão próximo do ritmo palpitante de um hospital enchia-o de uma excitação ansiosa. Na sua mente, conseguia ouvir os sinais mecânicos dos monitores cardíacos e dos sensores do oxigénio. Conseguia ver o pessoal que se movimentava rapidamente nas suas rondas, distribuindo medicamentos, simpatia, conselhos e arrastadeiras. Mesmo neste pequeno hospital rural, a rotina conhecida não variaria. Os actos clínicos eram padronizados. Pensou no tempo que passara atravessando enfermarias de hospitais, no aroma das flores e dos produtos de limpeza que vinha ao encontro das suas narinas, seguido dos cheiros insidiosos, mais vis e fétidos, de corpos humanos em situação crítica: o cheiro penetrante e adocicado da cetose num doente com a diabetes descontrolada ou o odor picante a amoníaco da insuficiência renal. De vez em quando, uma baforada de café de uma sala de enfermeiros ou de médicos apenas refrescava o olfacto para o ataque seguinte. Mas, como qualquer médico, sabia bem que a doença podia ser «farejada».

 

A experiência dizia-lhe o que se passava no interior daquele pequeno hospital mesmo sem ter de passar pelas portas. Se fizera tudo certo e Marge tivesse uma sorte extraordinária, os médicos das Urgências veriam a pulsação do seu coração no ecrã do monitor. Provavelmente dar-lhe-iam também uma injecção de epinefrina para estimular o músculo cardíaco. Se a conseguissem estabilizar, fariam um electrocardiograma ou um ecocardiograma para verificar a extensão das lesões no coração, esperariam pelo acordo da companhia de seguros e conduzi-la-iam ao seu quarto semiparticular.

 

Nos dias seguintes calculava que executariam uma angioplastia para abrir a zona bloqueada que levara o coração a parar.

 

Esse era o procedimento habitual. Ben conhecia a forma como cada passo dava lugar ao seguinte. Um sintoma conduzia a um diagnóstico, para que a doença fosse tratada. Este era o ponto até onde a medicina evoluíra. Os sistemas eram simplificados. A electrónica tornava o diagnóstico mais preciso. As rotinas hospitalares interferiam nos planos de tratamento, mas tudo se resumia a ter ou não um médico que conseguisse ver como o sistema fundamental - o corpo - funcionava.

 

Estendeu a mão para o puxador da porta do carro no momento em que as portas automáticas das Urgências se abriram. O marido de Marge saiu a correr com um sorriso tão aberto que parecia preso por cima das orelhas como uma barba falsa. Estendeu a mão a Ben. Mas Ben não queria agradecimentos. Apenas fizera o que sabia fazer e agora queria partir - se alguém lhe pudesse apontar a direcção correcta.

 

- Aqui está ele - anunciou o marido, apontando-lhe um dedo grosso e espatulado. Uma enfermeira seguia-o com uma porção de papéis na mão. - É o médico que salvou a vida da minha Marge.

 

O homem agarrou a mão de Ben. E, num gesto desajeitado de braços entrelaçados que revelava como o homem tinha realmente falta de prática naquele acto, deu um caloroso abraço a Ben.

 

- Esperava que ainda estivesse aqui, doutor, nem sequer sei o seu nome.

 

- Ben - apresentou-se, sentindo a reticência sussurrar dentro de si. - Ben Minor.

 

- Doutor Minor, chamo-me Leo Pepitone.

 

- Bom trabalho, doutor - elogiou a enfermeira, acenando para Ben enquanto os seus brilhantes olhos verdes apanhavam um clarão de luz. - Senhor Pepitone, precisa de preencher estes papéis antes de podermos registar a sua mulher.

 

- Estão a tratá-la - repetiu Leo a Ben. - Teve qualquer coisa na artéria coronária... - disse, tropeçando nas palavras.

 

- Um bloqueio da artéria coronária? - perguntou Ben, tentando ajudar.

 

Ele assentiu rapidamente.

 

- Estabilizaram-na. Disseram que se não a tivessem tratado a tempo...

 

- Então deviam ser eles a receber os agradecimentos.

 

Ben estendeu a mão.

 

- Boa sorte - disse Ben, abrindo a porta do carro.

 

- Tem de entrar para a ver - pediu Leo. Colocou uma mão grossa e pesada no ombro de Ben. O corpo robusto de Leo estava arqueado numa curva larga e um rolo de carne comprimia-se na parte de trás do pescoço. A roupa ainda estava ensopada do tempo passado à chuva. O corte por cima da sobrancelha fora cuidadosamente suturado e ligado pelo pessoal das Urgências. Tinham-lhe dado cinco pontos, gabou-se Leo. A sua testa alta estava manchada de anti-séptico.

 

- Marge quer conhecer o médico que lhe salvou a vida. Por favor.

 

Ben hesitou durante um longo momento, até que, finalmente, deixou a porta do carro fechar-se. Tomara a decisão uma hora antes quando parara na estrada para ajudar. Fora então que escolhera envolver-se. Seguiu Leo Pepitone na direcção das luzes do hospital.

 

Uma sensação calma de contemplação invadiu Ben enquanto esperava numa dura cadeira de plástico que Marge pudesse ser visitada. Um médico falava com Leo, que estava irritantemente preocupado. Fazia demasiadas perguntas à equipa médica, pretendendo respostas que só poderiam ser dadas após novos exames. O médico parecia incomodado e na defensiva. No entanto, Ben admirou o sentimento de devoção na forma como Leo persistia, pois cada resposta conduzia apenas a uma nova pergunta. Os médicos detestavam isso.

 

Pelo que Ben conseguia ver, Marge ia ficar boa. Ainda que ficasse para sempre com a marca deste acontecimento, um endurecimento da parte do músculo atrofiada, o coração continuaria a bater como antes e talvez ela nunca viesse a notar uma diminuição da sua potência. Havia medicamentos para o músculo cardíaco, pois a medicina chegara pelo menos aí. Os cirurgiões conseguiam segurar o próprio órgão nas suas mãos e fazê-lo parar de bater enquanto, como uma equipa de construção civil, cortavam e laqueavam passagens arteriais bloqueadas. E, após terminarem as últimas suturas, conseguiam dar-lhe uma nova energia, reiniciar o fluxo da vida. Mas e o outro coração, aquele fantasma pertencente a poetas e não a médicos? Também esse podia estar doente, manifestando uma série de sintomas indefinidos.

 

O médico de Marge passou por ele ao sair. Era um homem magro, de olhos rosados e porcinos. Leo seguiu-o, longe de estar satisfeito.

 

- Ela vai ficar boa - assegurou-lhe Ben.

 

Uma criança gritou por trás de uma das cortinas. Uma enfermeira passou, apressada, com análises para enviar ao laboratório. Um auxiliar conduzia um carrinho carregado de material para uma sala de exames próxima. Ben espreitou por uma abertura na cortina para ver o técnico de ultra-sons tratar de Marge.

 

Parecia exausta, na cama, com o fino cobertor de algodão aconchegado até ao queixo. A face redonda tinha uma cor saudável, agora que a circulação fora restabelecida. O cabelo louro espalhava-se pela almofada como uma cama de palha. Os seus lacrimejantes olhos cinzentos percorreram ansiosamente o quarto. A pequena boca, segundo Leo sempre pronta para uma observação sarcástica e inteligente, estava agora calada. Os lábios estavam apertados e assustados. Com o ruído das máquinas, não havia ali verdadeiro repouso. Passara o efeito dos sedativos e ela começava a sentir-se em pânico, claustrofóbica. Mas também tinha tido muita sorte. As hipóteses de sucesso na reanimação de alguém que tinha tido um enfarte durante um acidente de viação eram baixas e Ben tinha consciência disso.

 

A imagem de ultra-som do coração de Marge aparecia no ecrã. A sua forma no monitor a cores do computador surgiu, depois cresceu e, finalmente, floresceu no escuro e pulsante coração de Marge em forma de punho. A imagem parecia materializar-se de uma forma que lhe recordava uma orquídea negra que vira uma vez numa exposição anual de flores num armazém de um cais do West Side. As delicadas pétalas recortadas da flor estavam viscosas com escorregadias gotas amarelas que ele sabia ser a cor dos glóbulos de gordura que se tinham acumulado ao longo dos anos nas artérias de Marge.

 

Ben fora à exposição de flores com Giselle. Lembrava-se de como ela tinha adorado ver todos os arranjos de espécies exóticas. O apartamento que partilhavam era demasiado escuro para criar orquídeas ou mesmo uma simples planta doméstica, embora ela tivesse tido alguma sorte com um pequeno vaso que colocara na saída de emergência. Da cama viam os amores-perfeitos na janela, que murchavam ao calor do Verão. A meio de um dia de Julho, um raio de sol atravessava o saguão entre os edifícios e atingia um pequeno vaso redondo de barro com funcho, equilibrado no peitoril da janela. Por breves instantes, o sol passava por cima da planta comprida e fina, alinhando-se perfeitamente de forma a brilhar através da janela da cozinha como se os edifícios que cercavam o quarteirão formassem uma espécie de Stonehenge urbano. Ben lembrava-se de que a própria planta do funcho parecia estranhamente sintonizada com a relação deles. Crescia aos arrancos, murchando quando o apogeu se movia no céu no fim do Verão.

 

E, durante todo esse tempo, o coração físico de Ben continuara a bater para lhe conservar a vida, para lhe dar cor às faces depois de uma das suas longas caminhadas ou para lhe alimentar o cérebro. O seu coração físico provara ser um órgão resistente. Os músculos macios continuavam a contrair-se, dando-lhe a vida através de válvulas tricúspides milhares de vezes por dia. Mas, por vezes, ao longo de tudo o que passara, até o ritmo do seu músculo cardíaco lhe parecia alterado e um estado de taquicardia emocional dominava-o - uma sensação galopante no peito que afastava a esperança de um sono descansado e o atraía, incessantemente, para épocas e lugares sombrios. Era então que o seu danificado coração fantasma se dava a conhecer. Nesses momentos, quase acreditava, apesar de tudo o que sabia em contrário, que o coração dos seus sentimentos se fundira com o coração que ele podia acompanhar com um simples estetoscópio.

 

De madrugada, a chuva transformara-se em neve. Caía do lado de fora da janela do hospital em flocos macios e leves como penas soltas de uma almofada. Leo passara a noite numa pequena cama junto da mulher e Ben sucumbira à exaustão e estendera-se no sofá cor-de-rosa no vestíbulo, virando-se e revirando-se contra o vinil pegajoso. Não era forma de conseguir descansar.

 

Depois do pequeno-almoço, Marge recuperara suficientemente as forças para ordenar a Leo que fosse para casa e a deixasse descansar. E Ben estava disponível para o levar.

 

Leo Pepitone pouco tinha a dizer. A noite esgotara-o e o momentâneo pico de excitação pelo bom prognóstico de Marge parecia ter acontecido há muito tempo. Era o que Ben esperara. O trauma conseguia virar as nossas emoções do avesso e Leo encontrava-se no meio da tempestade. O estado de Marge estabilizara e os médicos do hospital tinham-lhe assegurado que podia deixá-la descansar enquanto ia a casa tratar das suas coisas. Marge queria uma camisa de dormir e algo para ler e Leo precisava de ir buscar o segundo carro para o conduzir de volta ao hospital.

 

- A viagem deve ser bastante confortável - comentou Leo enquanto se remexia no assento da frente. - Mas pensei que um médico de Nova Iorque conduzisse um carro mais sofisticado. Um novo Saab ou um BMW.

 

- É um carro de família - esclareceu Ben. - Passado de pai para filho.

 

- A sério? Era do seu pai?

 

Ben assentiu. Parecia tolice conservar um carro por razões sentimentais, mas fizera-o.

 

Dirigiram-se para noroeste através da cordilheira que atravessava a fronteira entre o New Hampshire e o Maine. Uma vez no estado do Maine, a estrada nivelou-se e Ben conduziu por um vale ao longo de um rio semeado de seixos. Picos arredondados estendiam-se até ao horizonte como uma espinha dorsal longa e curva. Ao entrar e sair da sombra estriada dos altos pinheiros, Ben sentia uma vaga exaustão a zumbir-lhe no cérebro.

 

Tinha os braços doridos, particularmente a zona dos músculos flexores - ao longo dos antebraços e dos pulsos. Parecia que a dor viajava pelos tendões partindo dos dedos e envolvendo numa faixa apertada os braços até ao cotovelo. Tudo por culpa do prolongado movimento dos deltóides durante a massagem cardíaca que tinha praticado em Marge, pensou ele. Podia ver o mapa da sua dor, ainda claro, saído da aula de Anatomia. Era um exercício bastante fácil imaginar os antebraços sem pele e expostos até à fina malha dos nervos, a rede sinuosa dos músculos, o brilho pérola da cartilagem entre os ossos. Recordava-se ainda de Chester, o cadáver cujos interiores ele explorara na aula de Anatomia do primeiro ano para identificar as estruturas do corpo humano. Talvez fosse por isso que alguns médicos pareciam tornar-se tão frios, pensou; era aquela visão interna que transformava a dor mais simples numa análise anatómica. Outros poderiam sentir um amolecimento e pensar no trabalho que o causara ou nas mãos da amante que o aliviaria com uma massagem entre os lençóis.

 

Estava cansado. A sua mente divagava.

 

Ben não era alto, embora pudesse atingir quase um metro e oitenta quando se esticava. Mas era magro e isso fazia-o parecer alto. Os ossos das faces tornavam-se mais proeminentes devido às covas abaixo deles. O queixo espetava-se em ângulo recto com a pele esticada sobre o osso. Preocupava-se com a sua magreza, mas, de certa forma, parecia saudável. Os olhos escuros tinham tendência a fixar-se, não por má educação, mas pelo seu esforço de observação. Era o seu poder de observação que lhe permitia detectar a evolução de uma doença.

 

Tirou uma mão do volante e passou-a pelo espesso cabelo castanho. O cabelo tinha uma bela característica juvenil, parecendo querer levantar voo com qualquer brisa. Giselle costumava dizer que era a coisa mais descontraída nele. Os dedos prosseguiram para massajar uma zona contraída na base do pescoço. Estava certo de que a sua dor moderada não se comparava à dor do peito magoado de Marge. Pelo menos não lhe partira nenhuma costela. Ouvira histórias de massagens cardíacas feitas tão intensamente que as costelas se partiam, magoando o pericárdio ou mesmo perfurando um pulmão. Mas, por sorte, Ben não a magoara de nenhuma destas formas, mas não havia dúvida de que obrigar um coração a bater novamente por meio de uma pressão mecânica representava um forte trauma para o paciente.

 

A neve começou a atravessar a estrada enquanto subiam a cordilheira seguinte. O carro trepava junto a um rio largo que corria aprisionado sob uma camada de gelo fino e claro. Os recentes ciclos de congelação e degelo tinham coberto de neve e gelo os pedregulhos que ladeavam o rio, criando formas macias e fluidas, como lava fundida. Acumulados de cada lado do rio e da estrada encontravam-se montes de encostas suaves que desapareciam nas nuvens baixas. Passaram por várias cidades, incluindo a da estância de esqui onde Ben tinha feito a sua reserva de hotel. Enquanto passava, viu o pequeno aglomerado de restaurantes e bares. Passou pela estrada íngreme que conduzia ao hotel e ao quarto de que desistira. Esperava poder ainda ocupá-lo, mesmo com um dia de atraso.

 

Leo esfregou os olhos e bocejou ampla e ruidosamente. Os seus olhos eram de um cinzento deslavado que recordava a Ben o céu carregado de nuvens. O cabelo que lhe restava estava atirado para trás da cabeça em fios prateados na direcção do colarinho. A barriga redonda sobressaía do cinto de segurança. As mãos fortes agitavam-se.

 

- Feche os olhos um pouco. Provavelmente não descansou muito ontem à noite.

 

- Não quero que perca o desvio - disse Leo, forçando a cabeça a endireitar-se e olhando o cinzento nevado do céu baixo do Norte.

 

Noutra altura da sua vida, Ben teria ficado aborrecido por se ver forçado a conduzir um estranho exausto a uma qualquer cidade do interior muito desviada do seu caminho. Agora, havia uma espécie de necessidade premente que o impedia de se afastar de Leo e Marge. Mas a necessidade era deles ou sua? Sentia o poder de atracção suave e sedutor de alguém que precisava da sua ajuda. De qualquer maneira, ajudar parecia natural, como se estivesse a recomeçar onde parara. Era como se, de repente, a luz penetrasse num local escuro dentro de si.

 

Leo começara a ressonar quando Ben sentiu que ultrapassara o desvio. Todos os desvios da estrada principal pareciam ser o caminho estreito que Leo descrevera como conduzindo a Cottage Mills. Abriu o mapa, colocou-o sobre o volante e olhou para a estrada e para o mapa procurando algo familiar, mas não havia nada. Há quanto tempo dormia o homem? Meia hora? Uma hora? Tinha a sensação de que faltava pouco para alcançarem a fronteira canadiana. Talvez já estivessem naquela zona não cartografada do Norte do Maine onde o mapa estava dividido em quadrículas de cidades numeradas - demasiado selvagens para terem nome.

 

- Leo - chamou Ben, baixinho. - Leo.

 

Ouviu-se um resfolegar sonolento vindo do lugar do passageiro e depois a subida e a descida regulares da respiração recomeçaram. Pensou em chamar mais alto pelo homem ou tocar-lhe no ombro, mas Leo estava demasiado adormecido para reagir.

 

Ben conhecia bem aquele tipo de exaustão, o sono profundo e sem sonhos. No hospital barbeara-se frequentemente ao espelho do lavabo dos homens depois de dormir duas ou três horas num sofá de um corredor das traseiras. Alimentava-se das bolachas de manteiga de amendoim da máquina de venda automática ou de uma sanduíche de peru que devorava no restaurante antes de regressar ao drama da luta da vida contra a morte. Então, em momentos inesperados, sucumbia àquele sono profundo e sem sonhos. Era o seu único escape. Num táxi, preso no tráfego que atravessava a cidade, dormira uma vez até o taxímetro marcar trinta dólares. Acordara sobressaltado, pagara e saíra aos tropeções para ir a pé o resto do caminho. O motorista apenas encolhera os ombros e dissera-lhe, num inglês hesitante, que parecia que precisava de descansar.

 

Mais de uma vez, ao regressar a casa de comboio, tinha-se deixado embalar pelo leve movimento da marcha para só acordar quando uma voz anunciava: «Stamford, última paragem.» Então saía a cambalear, atravessava para o outro lado e esperava meia hora pelo comboio na direcção sul que o levaria outra vez à estação que deixara passar. Uma vez, no seu delírio, entrara aos tombos, por engano, num comboio expresso que o trouxera, sem paragens, de regresso a Nova Iorque. Não pôde fazer nada quando a sua estação passou como uma flecha pela janela ao viajarem como um foguete. Quando chegou à Grand Central Station, comprou o Times e um café demasiado caro, voltando ao hospital. Que mais podia fazer?

 

Ben olhou para Leo. Os olhos deste moviam-se rapidamente sob as pálpebras sulcadas por veias nos movimentos típicos da fase REM num sono profundo, caracterizado por rápidos movimentos oculares. Ben conseguia visualizar o arco lento e sinuoso traçado numa tira de papel pelas agulhas de um electroencefalograma, medindo as ondas cerebrais durante o sono. A alternância entre o sono e a vigília era regulada pelo hipotálamo, a parte inferior do encéfalo que controlava todos os estímulos corporais - desde a fome ao sexo - por meio de impulsos nervosos e de hormonas libertadas pela glândula existente sob o lobo frontal do cérebro. Leo estava, provavelmente, a sonhar. Se Ben o acordasse agora, a exaustão ainda o dominaria. Deixá-lo-ia acabar o ciclo, mesmo que isso significasse conduzir até ao Canadá e voltar.

 

A neve rodopiava em torno deles num grande espectáculo silencioso. Ben conduzia com cuidado pela estrada lamacenta, seguindo atrás de um limpa-neves sempre que aparecia um. De vez em quando passavam por uma estrada que ainda não fora limpa e a camada de neve recente encontrava-se sulcada por algumas marcas salientes de pneus.

 

- Tem que virar aqui - avisou Leo, acordando e espreguiçando-se longamente.

 

- Acordou. Pensei que ia dormir o resto do dia.

 

- Não. Não queria deixá-lo passar aquele desvio - esclareceu, apontando para uma estrada coberta de neve à esquerda.

 

Ben abrandou para fazer a curva.

 

- Não tem, por acaso, correntes para os pneus? - perguntou Leo.

 

- Porquê?

 

- Por causa de quinze centímetros de neve fresca. Avance e vejamos até onde chegamos.

 

Enquanto Ben começava a atravessar a estrada, Leo levantou a mão. Algo lhe chamara a atenção.

 

- Espere só um minuto.

 

Um limpa-neves amarelo brilhante com uma enorme pá curva montada na grelha deslizou pela curva e subiu a encosta gemendo e rangendo a cada mudança. Do depósito traseiro era espalhada areia sobre a estrada por meio de um pulverizador mecânico. Ben virou atrás dele, avançando pelo pavimento limpo e coberto de areia.

 

- Cá está. Não precisamos de correntes - observou Leo, sorrindo. - No Inverno sabemos graças a um sexto sentido quando o limpa-neves vai aparecer.

 

Seguiam por uma estrada estreita e sinuosa que formava um túnel sob os ramos dos pinheiros, áceres e carvalhos inclinados sob o peso da neve. À sua frente, o limpa-neves fez saltar para fora da estrada um veado que abanou a cauda branca, alarmado, precipitando-se depois por uma encosta arborizada, deixando atrás de si uma nuvem branca.

 

Leo observou o veado a correr aos saltos para a floresta.

 

- Marge detesta o que fazem ao jardim, mas eu não me importo. Acho que são engraçados.

 

- Viveu sempre aqui?

 

- Durante vinte e sete anos trabalhei como empreiteiro no Massachusetts - explicou Leo, rindo-se. - Viemos para aqui viver o resto da nossa vida. Faço alguns trabalhos. Nada de extraordinário, apenas para ganhar uns dólares. Passamos umas semanas na Florida no rigor do Inverno. Chegámos há poucas semanas explicou, e a sua voz apagou-se num silêncio pensativo. Ben calculou que, provavelmente, estaria a pensar em Marge.

 

- Ela vai ficar boa - disse Ben quando, de repente, o silêncio ansiou por ser preenchido. - Estou certo de que a estão a acompanhar de perto.

 

Leo cortou-lhe a palavra. Não queria falar sobre nada que forçasse as suas emoções a virem à superfície.

 

- Portanto, está de férias? Aquela matrícula de Nova Iorque dá realmente nas vistas.

 

- Estou. Parti ontem, já tarde, e ia a caminho de uma estância de esqui.

 

- Não caiu muita neve este ano, mas as estâncias fazem a suficiente - comentou Leo, estalando os nós dos dedos. - Precisa de telefonar a alguém... à sua namorada ou à sua mulher? Ou talvez a ambas? - perguntou, rindo. - Apenas para saberem onde está.

 

- Não tenho ninguém a quem telefonar - respondeu Ben, travando suavemente ao descerem uma longa encosta. - Parti sozinho.

 

- Nada de viagens a Aspen ou a uma praia nas Caraíbas?

 

- Isso não me diz nada.

 

- Bom - prosseguiu Leo. - Então é uma pessoa que vê as coisas como elas são.

 

- Por vezes não tenho tanta certeza.

 

- Há um ano - disse Leo - fui parar a um hospital na cidade. Era uma infecção qualquer que durava há demasiado tempo. Que hei-de dizer? Quando se vive tão longe de um médico, há tendência para deixar andar. - Encolheu os ombros. - De qualquer forma, o médico despendeu comigo talvez três minutos ao todo. Depois, tive de passar um dia ao telefone com a companhia de seguros a tentar convencê-los de que estava realmente doente e precisava que pagassem as despesas. - Agitou o dedo no ar. - É o que acontece quando se perde a noção das coisas.

 

- Ah, os serviços de saúde modernos... - observou Ben.

 

- O que quero dizer é que Marge ficou lá comigo todo o tempo. E esta manhã detestei ter de a deixar no hospital. Mas não se consegue discutir com uma mulher decidida.

 

Leo apontou para um desvio na estrada.

 

- Vire ali à direita encosta acima.

 

Ben virou e seguiu pela estrada acima até um pequeno pinhal cerrado. Passaram por um cemitério. Os topos arredondados das pedras tumulares sobressaíam através da neve, com a pedra coberta de líquen lançando sombras sobre a brancura, como cabeças solenes e curvas.

 

De repente, os pinheiros desapareceram e encontraram-se no centro de uma aglomeração de uma dúzia de casas de madeira brancas, situadas de ambos os lados da rua. A estação dos Correios, um edifício baixo de tijolo com a bandeira americana num alto mastro, agachava-se à sombra da Câmara Municipal, instalada num dos topos. Um letreiro chocalhava ao vento sobre a porta trancada de um barracão de jardinagem branco e amarelo no pátio da última casa antes do rio.

 

Atravessaram a pequena ponte sobre uma ravina íngreme onde um rio estava congelado. Uma centena de metros acima, em frente de um armazém fechado, encontrava-se um moinho vermelho.

 

- Acabámos de passar Cottage Mills - informou Leo. - Se pestanejar, não dará por ela - comentou, orientando Ben pelo caminho de terra curto e íngreme do moinho. - Entre.

 

Duas mós gigantescas, com as estrias cinzeladas gastas pelo uso, estavam sobrepostas no caminho até à casa. Dentro da casa, o espaço era pequeno. Ben curvou-se para evitar uma das vigas baixas que atravessavam o tecto. Pela janela conseguia ver a roda gigantesca, há muito tempo parada, que mergulhava atrás da casa no rio gelado.

 

- Serraram madeira aqui durante gerações - explicou Leo. - E, depois de terem cortado todas as árvores para fazer tábuas e aqueles pinheiros direitos com vinte e cinco metros para mastros de navios, mudaram de equipamento e tentaram moer cereais. As pessoas cultivavam cereais nos poucos hectares separados das pastagens recém-desbastadas. De vez em quando encontro um grão seco de cereal entre as tábuas do chão.

 

Leo telefonou para o hospital a fim de saber o estado de Marge, enquanto Ben apreciava a vista pela janela de sacada na sala de estar. Conseguia ver o rio para cima e para baixo. Havia árvores que tinham caído através da ravina cobertas de neve húmida. Pedregulhos retirados à terra por antigos glaciares forçavam o rio a curvas e contracurvas. Calculou que a inundação do degelo da Primavera libertaria, provavelmente, uma torrente assustadora de água branca.

 

Ben ouviu Leo falar com a mulher. As primeiras vinte e quatro a quarenta e oito horas eram cruciais depois de um ataque cardíaco, visto que o músculo danificado podia falhar de novo. As células do coração de Marge tinham sido privadas de oxigénio e todo o órgão estava ainda vulnerável, por conseguinte os médicos e enfermeiros estariam vigilantes, alerta a quaisquer alterações que indicassem outro enfarte. Ben esperava que Marge não tivesse mais preocupações.

 

A seguir, Ben ouviu Leo a sossegar alguns amigos ao telefone.

 

- Os médicos continuam a dizer que ela teve sorte - informava Leo, transmitindo calor com um riso exuberante que parecia regressar com toda a força após o susto da noite anterior. - Reze uma oração se souber alguma - pediu a alguém antes de desligar.

- Se não souber, bem, cante uma canção ou algo assim.

 

Leo ofereceu-se para fazer café na cozinha minúscula. Andou aos tropeções até, finalmente, conseguir retirar o café do armário. Mas, depois de várias tentativas para medir a quantidade certa de água para a máquina, pareceu derrotado.

 

- É Marge quem faz sempre o café.

 

- Deixe-me tratar disso - ofereceu-se Ben, pegando na colher do café para medir a porção para o filtro. - Devia preparar tudo para poder voltar ao hospital.

 

Ben ligou a máquina do café, enquanto Leo dizia:

 

- Vou lá acima buscar algumas coisas dela. Acho que nunca fiz uma mala para Marge desde que nasceu Jason. Estavam dez graus negativos, em meados de Fevereiro, vivíamos numa velha casinha, cheia de correntes de ar, num cabo do Massachusetts, e Marge estava tão volumosa que mal conseguia passar pelas portas estreitas. Ela adora casas velhas. Diz que consegue praticamente ouvir a sua história a meio da noite. E eu digo-lhe sempre que o que ela está a ouvir são os ratos nas paredes.

 

Ben saiu da cozinha enquanto esperava pelo café. Tentara deixar de beber café visto que lhe trazia uma recordação amarga de todas as chávenas que engolira por necessidade. Não gostava do impulso electroquímico que essa bebida enviava ao seu cérebro, nem da forma como dava às suas mãos um leve tremor. Embora fosse raro, ouvira falar de viciados em cafeína que tinham os batimentos cardíacos alterados ou violentos ataques de pânico.

 

Ben pôs-se a examinar as molduras que havia na parede: Leo e Marge abraçados e encostados à amurada de um navio de cruzeiro num local exótico qualquer e o filho, Jason, com o uniforme branco da Marinha, contraindo as suas feições de rapaz numa dura expressão militar. Por cima de si, Ben ouvia os passos de Leo e as velhas madeiras do tecto queixarem-se. Pensou no homem a tentar fazer uma mala para Marge, sem dúvida desconcertado quanto às roupas a levar. Ao ouvi-lo mover-se lá em cima, Ben recordou a forma como o chão gemia sobre a sua cama quando o pai, de repente acordado e confuso a meio da noite, começava a andar.

 

Um estremecimento de tristeza percorreu-o.

 

Quando Leo desceu a escada estreita e íngreme da casa parecia ter emalado todas as roupas de Marge. Serviu a ambos uma chávena de café e depois viu Ben de pé junto à fotografia do filho em uniforme.

 

- Está em silêncio rádio neste momento. Nem uma palavra entra ou sai quando estão em manobras. Submarino nuclear. Não lhe posso dizer o nome, pois, de outra forma, tipos de fatos escuros e óculos de sol que falam para os auriculares poderiam fazer-nos uma visita inesperada.

 

Leo olhou para o relógio da cozinha, uma pretensiosa galinha amarela com pernas de plástico vermelho a fazerem de pêndulo e uma cabeça que marcava o tempo com o bico.

 

- Se partir já consigo chegar a tempo do exame de Marge.

 

- O angiograma. Poderão ver quais são os vasos sanguíneos do coração que estão bloqueados. Devia estar com ela.

 

- É perigoso? - perguntou Leo, parecendo de novo preocupado.

 

- Não o fazer pode ser mais perigoso.

 

Saíram e dirigiram-se a um pequeno Toyota manchado de ferrugem que se encontrava estacionado na extremidade do caminho. A frente do carro estava encostada à porta da garagem e Leo espremeu-se entre as duas, tentando retirar a neve do pára-brisas. Felizmente, a equipa que lhe limpava a neve tinha retirado o carro que ficara enterrado. Por que não estacionara o carro no abrigo quente da garagem para não ficar ao relento? Ben não sabia, mas hesitou em colocar a pergunta com medo de revelar a sua ignorância em relação aos «hábitos de vida no campo». Ben tentou ajudar raspando o gelo das janelas com uma espátula de plástico que Leo lhe dera. Assim que acabaram, Leo colocou a mala no assento traseiro do carro.

 

Enquanto apertavam as mãos, uma carrinha prateada e manchada de ferrugem parou de repente no início do caminho. Uma mulher de cabelo castanho, curto e despenteado, saltou da cabina e correu pelo caminho acima, pisando com segurança a neve e o gelo, com o casaco justo de cabedal preto aberto.

 

- Oh, meu Deus, está ferido - disse, dirigindo-se a Leo e abraçando-o.

 

Leo tocou no penso da testa.

 

- É só um arranhão. Apenas três pontos.

 

- Não devia estar sozinho, Leo. Por que não me telefonou ontem à noite? - perguntou, batendo-lhe afectuosamente no ombro. - Já sabe mais alguma coisa de Marge?

 

- Vou agora voltar ao hospital. É um milagre, na verdade. Pensei que a tinha perdido.

 

A voz de Leo estrangulou-se. Já não tinha de se dominar. Ela deu-lhe outro abraço apertado, quase a chorar também. Ele fungou, acenou que estava bem e afastou-a com delicadeza, virando-se para Ben.

 

- Este é o homem que lhe salvou a vida.

 

A mulher atirou-se-lhe para os braços impulsivamente e apertou-o num abraço rápido.

 

- Obrigada - disse. - Marge e Leo são tudo para mim.

 

- O doutor sabia exactamente o que havia a fazer. Leo bateu com mão forte nos ombros de Ben.

 

- Annie Turnstone, este é o Doutor Minor.

 

Ela estendeu-lhe a mão e ele apertou-lhe os dedos, sentindo os ossos minúsculos da sua mão. Havia delicadeza mas também força na forma como os músculos se contraíram brevemente em torno dos seus.

 

- Trate-me por Ben, por favor - sugeriu ele. Parecia-lhe ainda sentir a pressão dos braços dela nas suas costas, o roçar da sua face e o peso que ela exerceu contra o seu peito; aquele gesto despertara nele emoções sensoriais há muito adormecidas. A surpresa aqueceu-lhe as faces e deixou-lhe a cabeça a andar à roda.

 

- Marge dá lições à filha de Annie - explicou Leo.

 

- Julia estuda em casa. Marge segue-a em todas as disciplinas, desde a Matemática à Leitura, e, por vezes, trocamos.

 

Annie fechou o casaco e bateu com os pés na neve brilhante do caminho.

 

- Mas hoje Julia está doente. Tem dor de ouvidos.

 

- Pede ao Doutor Minor que lhe dê uma olhadela - sugeriu Leo.

 

- Isso compete ao pediatra de Julia - argumentou Ben, desejando ter escapado mais cedo. Mas também desejava agarrar-se a qualquer razão para seguir esta mulher que entrara dentro de si inesperadamente, deixando uma marca nas suas células com um abraço impulsivo.

 

- O pediatra estava tão ocupado na última vez que o vimos que se limitou a passar o estetoscópio sobre Julia - replicou Annie, abanando a cabeça. - Mas não quero incomodá-lo, já é suficiente o que fez por Marge.

 

Os seus olhos azuis eram tão vívidos que pareciam ter energia eléctrica. Pediam, à sua maneira, com um cuidado preocupado. Não faria mal tirar algum tempo do seu dia para ir ver uma rapariguinha doente, pois não? Talvez pudesse ajudar.

 

- Não incomoda nada - afirmou. - Verei o que posso fazer. As suas palavras pareceram ficar suspensas entre eles no ar gélido. Ben sentiu um arrepio na espinha.

 

- Obrigada.

 

Os olhos de ambos encontraram-se e foi como se uma descarga eléctrica tivesse atravessado o sistema nervoso de Ben, difundindo-se

da coluna para os braços, até lhe provocar um formigueiro na ponta dos dedos: o milagre dos sentidos, pensou ele, o poder da pele de estimular uma reacção tão profunda.

 

Annie discutiu com Leo a ideia de irem juntos visitar Marge, mas acabou por ceder e deixou-o ir sozinho. Ela e Ben ficaram a vê-lo recuar pelo caminho e dar a volta.

 

- Sigo-a até sua casa? - perguntou Ben depois de terem visto desaparecer o fumo do escape do velho Toyota de Leo.

 

- Só se o seu Cadillac tiver tracção às quatro rodas. Ele encolheu os ombros.

 

- Tem quando saio e empurro.

 

Ben acompanhou Annie até à sua carrinha, onde ela lhe deu alguns conselhos:

 

- Pode levar o seu carro. Se ficar atolado, não será o primeiro que eu retiro de uma vala.

 

- Isso ajuda muito a minha confiança - comentou Ben, rindo. Ela conduzia depressa e Ben esforçou-se por acompanhá-la. Por duas vezes pensou que a perdera depois de ter demorado um pouco mais num sinal de stop, verificando o trânsito em sentido contrário, inexistente, ou procurando alces ou veados. Era um condutor urbano e demorava algum tempo a habituar-se à amplitude vazia do campo.

 

À sua frente, a carrinha prateada brilhava à luz do Sol da tarde como um peixe cintilando num rio. As montanhas estendiam-se contra o branco da neve e em poucos quilómetros encontraram-se num extenso vale. A distância, via-se o fumo a erguer-se sobre uma quinta na extremidade do campo coberto por um manto de neve. Ela virou subitamente, com uma rapidez que indicava o seu conhecimento de todas as curvas e contracurvas, altos e baixos da estrada. Tudo o que ele tinha a fazer era segui-la.

 

Sob a oblíqua luz azul do fim do Inverno, Ben abrandou no caminho gelado que subia até à casa de Annie. Ouviam-se cães a ganir no canil por detrás da casa de madeira branca. O som parecia erguer-se sobre o telhado de metal verde. Era um feroz grito protector que cortava como uma faca o ar calmo da tarde. Enquanto atravessavam o caminho, viu o celeiro que se erguia por detrás da casa, com as suas amplas portas fechadas contra a intempérie. Ao lado do celeiro, onde poderia ter havido porcos num curral lamacento, um grupo de buskies confundia-se numa massa prateada. O pêlo grosso das suas costas erguia-se no cachaço, os focinhos estavam levantados e as narinas aspiravam o ar à procura do cheiro do estranho que acabara de chegar.

 

O assobio agudo de Annie cortou o ladrar.

 

- Quietos! - ordenou com brusquidão. Os cães ergueram a cabeça e torceram as orelhas. Acalmaram-se num instante, soltando apenas alguns rosnidos baixos. - Tem que se lhes mostrar quem é que manda - afirmou Annie.

 

- Ser o líder da matilha, não é?

 

- Claro. Temos de ter a certeza de que sabem que sou eu quem traz a comida - disse ela.

 

Ben bateu com a mala de médico contra a perna para se recordar do motivo da sua visita. Olhou para o comprido trenó de madeira que se encontrava encostado ao lado do celeiro. Alguns dos cães lançaram-se contra a vedação, de narizes para cima e caudas encaracoladas como chicotes batendo o ar. Annie passou a mão por cima para dar uma palmadinha na cabeça a um deles. Os outros ficaram mais atrás, com a atenção aparentemente ocupada em coçarem-se ou lamberem-se, mas permanecendo sempre concentrados em Annie. Eram cães de trabalho e não animais domésticos.

 

- No celeiro há uma nova ninhada de quatro cachorrinhos com três semanas. Vou começar a treiná-los às doze semanas, mais ou menos. É o meu projecto de Verão.

 

Estalou os dedos para um dos buskies, fortemente musculado, com olhos cinzento-azulados como cristais de gelo.

 

- Misha - chamou-o. Ele abanou a cauda e estendeu o nariz por entre os outros. - Misha é o chefe da minha equipa.

 

Ben estava habituado a cães que dormem junto à lareira ou que ladram ao carteiro. Cães de trenó trabalhadores eram uma novidade invulgar.

 

- Nesta época ficámos em primeiro lugar em três corridas - explicou Annie. - Não há quem os impeça de correr uma vez arreados para puxar o trenó. É algo para que estão destinados.

 

Annie agarrou Misha pelo focinho de forma brincalhona, lutando com ele.

 

- A minha mãe teve um cão-d’água-irlandês quando eu era miúdo.

 

- É uma raça difícil.

 

- São cães lindos, com todo aquele pêlo comprido encaracolado e um porte quase real. E Beckett tinha, certamente, uma atitude a condizer - recordou Ben, abanando a cabeça. - Acho que nos suportava apenas porque queria ter um tecto e comida.

 

- Podia contar-lhe muitas histórias sobre cães teimosos - comentou Annie, rindo. Havia nela um brilho que dançava como uma chama. Aqueles intensos olhos azuis eram redondos sob a testa estreita. A boca era pequena de lábios cheios, e quando ria, o que era frequente e espontâneo, revelava dentes brancos ligeiramente salientes. A sua estrutura era compacta, o que sugeria uma força concentrada.

 

- Beckett era demasiado teimoso até para morrer - contou Ben. - Viveu quase vinte anos.

 

- Confio nos meus cães mais do que em qualquer pessoa, excepto Julia - asseverou ela.

 

Com um gesto distraído do pé, Annie varreu a neve de um toco de árvore e apoiou nele um pé.

 

- Não vivíamos aqui quando nos mudámos para Cottage Mills. Mas, passado algum tempo, foi aqui que nos instalámos. A nossa primeira noite neste lugar foi no sétimo aniversário de Julia. Tudo o que tínhamos eram as nossas roupas, um bom conjunto de facas de cozinha e uma caixa de laranjas que a minha mãe enviara da Florida. Estávamos em meados de Fevereiro, a fornalha apagara-se e só me apetecia chorar - interrompeu-se de repente como se tivesse atravessado uma linha, revelando mais do que tencionara. - Desculpe, depois de um longo Inverno deixamo-nos levar. Estou a maçá-lo com a minha conversa.

 

- De maneira nenhuma - o Sol brilhava agora, mas Ben sentiu um calafrio. - As pessoas dizem que sou um bom ouvinte.

 

Annie riu-se.

 

- Não gostaria de ouvir a minha história, acredite.

 

- Por que não? - perguntou, pensando na sua própria vida. Os pormenores vieram-lhe à mente num relâmpago, uma rápida sucessão de episódios expostos numa lâmina como células examinadas à lente de um microscópio. No laboratório, as diferentes estruturas celulares eram postas em evidência pelos corantes artificiais: eram imagens pintadas de azul-de-metileno ou de vermelho-vivo de eosina, e os diversos tons davam alguma ilusão de vida a uma secção de fígado, a um pedaço esponjoso de pulmão ou a uma mancha de bílis verde.

 

- A minha história pôr-lhe-ia os cabelos em pé - respondeu ela, passando a mão pelo seu próprio cabelo curto. - Venha, está a enregelar e eu preciso de ver como está Julia.

 

Ben seguiu-a até à casa. Mal dera seis passos, sentiu o terreno a deslizar sob os seus pés. Os braços abriram-se e a mala de cabedal abanou-lhe na mão, enquanto se sentia cair. Annie segurou-o por baixo dos braços para o tentar suster. Aterrou com uma pancada violenta que não foi mais graciosa do que uma queda teria sido apenas menos prejudicial.

 

- Ai! Isso foi quase acrobático - gracejou ela, ajudando-o a levantar-se. - Parecíamos um par de patinadores sobre o gelo. Tenho de deitar aqui alguma areia.

 

Ben ergueu-se com firmeza, sacudindo a neve da parte de trás das calças e endireitando as costas.

 

Parece estar tudo no seu lugar. Obrigado por ter impedido que partisse alguma coisa.

 

Ela levantou o pé direito e mostrou-lhe a bota de sola grossa com pitões.

 

Fiz o mesmo um milhão de vezes. Não tem graça nenhuma aterrar de costas.

 

- Nunca tem.

 

- Tudo o que se pode fazer é esperar que ninguém nos veja cair - disse ela, piscando-lhe o olho. - É o nosso segredo.

 

Segurou-lhe o braço durante os poucos metros que os separavam da casa. Os seus passos eram seguros e experientes. Ajudou-o a subir os dois degraus de granito da porta lateral, cautelosamente, como se estivesse a tentar evitar que um velhote partisse a anca. Algures no seu interior havia uma agitação que não tinha nada de velho, embora não a sentisse há muito tempo.

 

Entraram no vestíbulo, onde havia um banco e um cabide. Annie fez-lhe sinal para se sentar e depois descalçou as botas húmidas. Ben desapertou os sapatos citadinos de camurça preta e reparou numa pálida mancha de sal que subira formando um círculo debaixo dos atacadores. Teria de arranjar um par de sapatos apropriado para andar na neve, algo semelhante às usadas botas Timberland que Annie atirara para o tapete de trapos a fim de secarem. Ela massajou os dedos dos pés através das meias grossas de malha cor de abóbora antes de calçar umas pantufas de lã escandinavas.

 

- Tenho os pés frios - queixou-se ela. - Aproximemo-nos do fogão.

 

Ben seguiu Annie para o interior, caminhando com cuidado pelo soalho de madeira clara resplandecente. Foram até à cozinha e à sala de estar, que estavam divididas pela parede de tijolo à vista de uma chaminé elevada. As suas meias de náilon preto estavam embaraçosamente gastas e escorregavam tanto no chão encerado que receou cair outra vez. Patinou até parar, bruscamente, em frente da lareira, onde o calor se expandia a partir de um fogão de ferro fundido vermelho como um carro de bombeiros.

 

Não prestara atenção quando tinham entrado, mas agora apercebeu-se de que a TV estava ligada e no sofá em frente ao televisor estava sentada uma rapariga que seguia atentamente um programa, com os pés apoiados na mesinha.

 

- É Felicity, a filha dos meus vizinhos. E, em caso de necessidade, a minha baby-sitter. - Annie entrou na sala. - Como está a minha filha?

 

- Ainda tem febre, acho eu - respondeu Felicity, sem quebrar o contacto visual com o ecrã. O seu cabelo louro estava penteado de uma forma que se assemelhava a um ninho de pássaros. - Acabei de ir ver como está.

 

- Se a casa se incendiar, é melhor que seja durante um intervalo para publicidade - murmurou Annie a Ben com uma piscadela dos seus bonitos olhos. - Tirando isso, é boa miúda. - Abriu a pesada tampa do fogão com uma luva de couro rasgada e lançou outro tronco para o seu interior. - Quero manter o fogão quente para Julia.

 

Ben estendeu uma mão para o lume.

 

- Sabe bem.

 

Annie desapareceu pela escada que partia da extremidade da sala. Conseguia ouvi-la mexer-se lá em cima, falando à criança. Sentou-se em frente de Felicity num amplo e confortável sofá junto da lareira, com a mala sobre os joelhos. A rapariga mal olhou na sua direcção. Havia vários montes de livros: empilhados no chão, nas extremidades do sofá e ao lado de um cadeirão de couro castanho usado.

 

Finalmente, o programa interrompeu-se para um anúncio. Felicity pôs-se de pé num salto, sem uma palavra, e correu para as suas botas junto à porta.

 

- Queres chegar a casa durante o intervalo? - perguntou Ben, tentando iniciar uma conversa.

 

- Sim - murmurou a rapariga, sem se preocupar em atar as botas. - Adeus, Annie. Adeus, Julia - gritou enquanto saía precipitadamente pela porta.

 

- Obrigada, Felicity - gritou Annie. - Até à vista.

 

Ben espreitou pela janela e viu de relance a rapariga arrastando os pés pelo gelo até ao Chevette castanho-amarelado estacionado no caminho, que arrancou com uma tossidela e partiu num instante.

 

Ben abriu a boca larga da mala de cabedal preto para fazer um rápido inventário dos instrumentos e verificar se algum se teria partido devido à queda. Havia um estetoscópio, é claro, com uma cabeça de metal liso e frio e também um otoscópio para observar os ouvidos que, juntamente com a caneta-lanterna para observar a garganta, constituíam os melhores instrumentos para diagnosticar constipações e infecções. Numa caixa de metal rectangular cinzenta havia um aparelho para medir a tensão arterial, com a bomba e os tubos de borracha arrumados cuidadosamente. Havia também pequenos frascos de água oxigenada e de álcool. Uma caixa de luvas de borracha estava num canto da mala juntamente com um termómetro electrónico. A mala continha ainda compressas, algodão, gaze e pomadas. Um compartimento com uma aba de couro protegia um conjunto de instrumentos cirúrgicos básicos: bisturi, fórceps, agulhas curvas de metal e linha de suturar de seda, embora este material cirúrgico não estivesse esterilizado para ser usado com segurança. Ben encontrara-os ali quando comprara a mala.

 

A própria mala de cabedal tinha uma história independente da de Ben. Notara que o cabedal fora remendado cuidadosamente e que um pequeno conserto de uma das pegas curvas fora feito por um sapateiro. Descobrira a mala no mercado de antiguidades que havia num parque com vista para o estuário de Long Island. Levara lá o pai numa tarde de Verão. Podiam facilmente ir da casa até ao parque à beira-mar e um passeio vigiado por Ben diminuiria o vaguear que o pai tinha tendência a fazer, quer dentro dos limites da casa quer por toda a vizinhança.

 

Detectando a mala de médico, Ben ficara cheio de interesse, como se possuir aquela mala lhe recordasse os aspectos antiquados da prática da medicina - como tudo era baseado no toque e na intuição, a informação era recolhida através dos sentidos e sem uma confiança total na última tecnologia digital. A mala tinha bolsas finamente cosidas e escaninhos especiais para tudo o que um médico precisava de levar consigo. Os restantes instrumentos residiam no coração e no cérebro. Talvez essa visão fosse irremediavelmente ingénua, mas Ben não queria saber. Sabia apenas que chegara à sua epifania a partir de um sentimento de fracasso completo. Queria deixar para trás o mundo da junção genética e do corte a laser da tecnomedicina. Mas devia culpar a electrónica pela separação que sentia? Eram apenas instrumentos mais precisos, mas não queria nada com eles ou com a distância que sentia inspirarem. Um cheiro limpo e adstringente a linimento e gaze esterilizada evolava-se da mala. Acreditava no que esta mala representava, no que defendia tão seguramente como protegeria os belos instrumentos.

 

- O Doutor Markowitz era um excelente médico - dissera o vendedor de antiguidades. - Era o melhor das redondezas. Veja as iniciais: P. S. M. - O vendedor apontou para um monograma esbatido e sorriu abertamente. - Posso baixar até quarenta dólares, menos não.

 

Ben entregara ao homem duas notas de vinte dólares e, nesse mesmo instante, apercebera-se de que o pai desaparecera por um daqueles estranhos truques que aconteciam no mundo exterior. Em casa, George era um gigante cercado pelas paredes, uma presença constante e agitada, sempre lá. Em público, podia simplesmente desaparecer de repente. Desta vez, Ben apanhara-o quando ele ia a atravessar numa curva enquanto o semáforo mudava para verde na Post Road. Os travões guincharam. As buzinas soaram e um homem inclinou-se pela janela, agitando o punho para George.

 

- Eh - gritou -, é sempre idiota ou está só a praticar? George fuzilou o condutor com o olhar enquanto Ben o arrastava para o passeio.

 

- Qual é o problema dele? - perguntou o pai.

 

Ben tremeu durante meia hora enquanto o pai cantarolava Daisy, Daisy sem se dar conta de que tinha acabado de escapar à morte.

 

A mala representara um contraste estranho naquela tarde. Tinha um bom peso e era o tipo de artigo que já não se fazia pelos mesmos belos padrões. Agora ela estava de novo a uso, numa antiquada visita domiciliária, semelhante às visitas que os médicos costumavam fazer. Algo que o próprio Dr. Markowitz fizera, sem dúvida, muitas vezes.

 

A filha de nove anos de Annie, Julia, estava na cama encostada a duas grossas almofadas de penas, com o pijama de flanela abotoado até ao pescoço. Tinha um livro grande de papel brilhante com fotografias de cavalos aberto na cama e um pequeno romance de capa mole ao lado. A cama estava metida numa alcova confortável sob a inclinação gradual do tecto. Uma janela com nove vidraças de vidro ondulado antigo dava para as montanhas a oeste.

 

Julia, este é o Doutor Minor. Ajudou a tratar Marge.

 

Trata-me por Ben. Por favor. A tua mãe diz que tens dor de ouvidos.

 

Julia assentiu timidamente. Não se parecia nada com a mãe. O cabelo tinha uma surpreendente tonalidade vermelha e os fios encaracolados espalhavam-se pelas almofadas como chamas. A testa tinha um rubor de febre e algumas sardas ligeiras salpicavam a pele suave. Pensou como era belo aquele padrão casual de pigmentação que sarapintava a pele clara, uma reminiscência de horas ao sol de Verão.

 

- Estou doente - fungou.

 

- Que ouvido te dói mais?

 

- Este, acho eu - respondeu, tocando com um dedo no lóbulo carnudo da orelha esquerda. Ben viu que as unhas estavam pintadas de um cor-de-rosa de pastilha elástica.

 

Colocou a mala na mesa-de-cabeceira e inclinou-se para lhe ouvir a respiração. Nunca tivera muito contacto com crianças, mas a forma como Julia estava, tão graciosa e séria, mesmo doente, sensibilizava-o. Se tivesse podido abanar as mãos sobre ela e atrair a infecção para si próprio, tê-lo-ia feito sem hesitar. Em vez disso, lançou um bafo quente sobre a cabeça do estetoscópio para lhe retirar a frieza. Deslizou o estetoscópio pelas costas debaixo do pijama e pediu-lhe que inspirasse profundamente algumas vezes, ouvindo então o ruído do peito congestionado. Em seguida, verificou-lhe a temperatura.

 

- Tinha trinta e oito quando a verifiquei ao fim da manhã - informou Annie. - Dei-lhe então Tylenol infantil quando acordou e pareceu ajudar.

 

Ben examinou os ouvidos de Julia. O feixe de luz brilhante lançado pelo otoscópio penetrou no canal auditivo esquerdo e revelou uma zona avermelhada devido à infecção. A membrana do tímpano estava vermelha e inchada. Apesar da infecção, conseguia ver as sombras dos ossos minúsculos do ouvido interno: o martelo, a bigorna e o estribo. Sempre se maravilhara com esta precisa maquinaria em miniatura. Para transmitir sons ao cérebro, o estribo contactava com uma membrana oval sobre a qual estavam três canais semicirculares. Quando visualizava na sua mente aquela estrutura, Ben imaginava ser um mergulhador que explorava uma gruta subaquática, misteriosa e cheia de desfiladeiros e cavidades.

 

- Precisa de antibiótico? - perguntou Annie. Ele conhecia o suficiente sobre pediatria para saber que as mães queriam sempre antibiótico. Mas neste caso era mesmo necessário.

 

- Acho que sim.

 

- Se passar uma receita, posso ir buscá-lo. Ele hesitou.

 

- Não posso.

 

- Claro - concordou ela. - Provavelmente só pode exercer em Nova Iorque.

 

- Telefone ao pediatra e marque uma consulta. Julia tem uma infecção bastante grave.

 

Annie suspirou. Levou uma mão à testa, que ficara húmida de transpiração. A face estava estranhamente pálida.

 

- Contacte-o - insistiu Ben. - Veja o que ele pode fazer pelo telefone.

 

Ela assentiu.

 

- Se o conseguir apanhar - disse Annie, abandonando o quarto para fazer a chamada.

 

Ben virou-se para falar a Julia.

 

- Que estás a ler?

 

- Black Beauty, um livro sobre cavalos - respondeu, mostrando-lhe a capa do livro. - Já o li três vezes.

 

- Tens um cavalo? Ela abanou a cabeça.

 

- A mãe diz que já tem muito que fazer com os cães. Mas há espaço no celeiro e podíamos fazer uma cerca no campo para equitação.

 

Mesmo doente, não havia dúvidas quanto à sua paixão.

 

- Que género de cavalo gostarias de ter? - perguntou Ben.

- Um palomino, um appaloosa?

 

Ela encolheu os ombros.

 

- Qualquer coisa com quatro patas e uma cauda, certo? - riu-se Ben.

 

- Sim - respondeu Julia, pegando no lustroso livro de fotografias de cavalos. - Reconhecê-lo-ei quando o vir - afirmou, romanticamente.

 

- Ah, o verdadeiro amor - comentou Annie, voltando da sua chamada. Aconchegou Julia e fez-lhe cócegas nos pés por baixo da colcha. - A enfermeira ficou preocupada. Vai conseguir que o pediatra me telefone.

 

- Muito bem, Julia - disse Ben. - O meu conselho é: dormir, dormir e dormir.

 

Julia assentiu.

 

- Está bem.

 

- Óptimo.

 

- Posso fazer sopa de tomate - propôs Annie, dando-lhe um abraço rápido. - Consegues comer um pouco?

 

Ela assentiu. Quando tinham chegado à porta do quarto, Julia já abrira de novo o seu livro de cavalos.

 

Annie suspirou com força enquanto desciam a escada juntos.

 

- Sente-se bem?

 

- Óptima. Porquê?

 

- Parece que apanhou o mesmo vírus de Julia. Está com febre? Recusou o termómetro que ele lhe apontava.

 

- Estou óptima. Apenas com roupa a mais, é tudo - esclareceu, indicando a camisola grossa.

 

- Pelo menos deixe-me observar-lhe a garganta e os ouvidos.

 

- Não, obrigada - disse ela com firmeza. Entrou na cozinha e ele seguiu-a.

 

Annie tirou do congelador uma caixa de plástico de sopa caseira e colocou um tacho pesado no fogão. Este era um modelo de aço com seis queimadores que se acendeu logo que ela ligou o gás. Como o telefone começou a tocar, Ben avançou para mexer a sopa.

 

- Obrigada - agradeceu ela. - É um homem de muitos talentos.

 

Ben apercebeu-se, repentinamente, de que não só estava a oferecer auxílio médico a estranhos como também a cozinhar para eles: o café para Leo e o almoço tardio para Annie e Julia. Via isso como um bálsamo. Há muito tempo que não se sentia tão bem e tão útil, reflectiu ele, mexendo a sopa vivamente colorida.

 

A sua mãe, Joyce, também gostava de sopa de tomate quando estava doente. Gostava dela acompanhada de uma tosta de queijo, com picles escondidos entre o queijo derretido. Sentia um grande conforto naquelas refeições simples, pensou, quando nada no mundo poderia fazê-la sentir-se bem. Sempre que Ben via uma lata de sopa vermelha e branca, recordava-se imediatamente de Joyce Minor.

 

Annie desligou o telefone sem fios.

 

- O médico vai telefonar para a farmácia de modo a que me dêem um antibiótico. Como foi observada, ele achou que podia ser assim. Estarei pronta daqui a pouco.

 

Serviu uma tigela de sopa para Julia. O Sol baixava, deixando apenas uma mancha de luz por detrás de uma linha de nuvens a oeste que tornava a neve cinzenta. Ben estava preocupado quanto ao lugar onde passaria a noite. A aventura escapara ao seu controlo, tornando-se independente. O que começara como uma diversão de algumas horas ameaçava transformar-se numa estada nocturna algures, longe de onde planeara ficar. Apetecia-lhe ir esquiar e embriagar-se sozinho, sossegadamente, num banco do bar do hotel. No entanto, agora que pensava de novo nos seus planos, eles não lhe pareciam nada de especial.

 

Annie transportou escada acima um tabuleiro com a sopa e um prato de palitos de queijo caseiros. Ben sentou-se junto ao lume de lenha, estendendo-se e endireitando-se a seguir, preocupado por se estar a instalar, e subiu a escada para voltar a ver Julia.

 

- Como está ela?

 

- Acho que a temperatura ainda está elevada - respondeu Annie, sentada na borda da cama.

 

Ben observou que o tabuleiro com a sopa se encontrava intacto sobre a mesa-de-cabeceira. Julia dormitava e Ben palpou-lhe a testa. A rapariga virou-se e empurrou a colcha para baixo com os pés. Remexeu-se, agitada, com a pele macia seca e quente como terra ressequida e queimada, e abriu os olhos.

 

Havia o risco de que a infecção, não sendo tratada, pudesse afectar a audição ou atingir o osso. Mas era ainda uma clássica otite infantil. Conseguia ver, através do otoscópio, o pus viscoso, mas a situação não estava a piorar.

 

- Dói-me o ouvido, mãe - queixou-se, tentando corajosamente afastar as lágrimas. Os olhos ficaram vermelhos. Mordeu o lábio e o queixo tremeu-lhe.

 

- Eu sei, fofinha - murmurou Annie, pondo uma mão fria na testa da filha. - O que lhe faria bem? Uma botija de água quente? - perguntou a Ben.

 

- Talvez.

 

Acho que não tenho nenhuma - observou Annie.

 

- Há outra coisa que poderá ajudar. Um velho truque - disse Ben, procurando na mala até encontrar o que precisava. - Tem azeite?

 

Annie riu-se.

 

- Espanhol? Italiano? Extravirgem? Tenho-o de todos os tipos. Ben seguiu-a escada abaixo e ela abriu um armário perto do frigorífico recheado de pequenas garrafas verdes.

 

- Que tal este? - perguntou, entregando-lhe uma garrafa quadrada e baixa.

 

Ben pegou na garrafa e deitou um pouco de azeite num frasco de vidro transparente. Apanhou uma gota na ponta de um dedo e levou-a à língua.

 

- Devo fazer massa? - perguntou Annie.

 

- Mmm, com alho? - sugeriu Ben, deitando água muito quente numa chávena e colocando o frasco dentro dela para o aquecer enquanto voltavam a subir a escada.

 

Sentado na borda da cama de Julia, testou uma gota na parte de dentro do pulso como faria com leite para bebé. O azeite estava apenas alguns graus mais quente do que a temperatura da pele. Pediu a Julia que se voltasse de lado e deixou duas gotas de azeite quente caírem de um conta-gotas no minúsculo canal do seu ouvido esquerdo.

 

- Estás melhor? - perguntou Annie.

 

Julia assentiu e enroscou-se como uma bola sob a colcha.

 

- Óptimo - exclamou Ben, dando-lhe uma palmadinha no ombro. - Fica de lado durante uns minutos - aconselhou e tirou da mala um quadrado de gaze, com o qual lhe cobriu o ouvido. Em seguida, dobrou um pano cor-de-rosa macio sobre a orelha para conservar o calor.

 

- Isto deve ajudar a tirar a dor.

 

Julia fechou os olhos e o vinco que se lhe formara na testa desfez-se gradualmente, passados alguns minutos, enquanto adormecia. Ben arrumou as suas coisas em silêncio e saiu do quarto com Annie.

 

Esta encostou a porta e cambaleou no vestíbulo fracamente iluminado, agarrando-se à extremidade da ombreira da porta para se apoiar.

 

- Pelo menos, agora está a dormir - disse ela.

 

Ben sentia-se relaxar e já não estava habituado a essa sensação. Era como se o coração batesse mais regular e calmamente. Talvez fosse das montanhas e da forma como o ar cheirava tão frescamente a pinheiro. Ou do facto de precisarem dele.

 

- Não quero que se sinta obrigado - disse Annie. Estavam junto ao balcão da cozinha comendo os estaladiços palitos de queijo de um prato azul. - Posso lá ir eu.

 

- Ela agora precisa de si. E quero fazer isto por si e por Julia. Levo boas instruções. Voltarei dentro de uma hora.

 

- É um problema quando os antibióticos estão a cinquenta quilómetros de distância.

 

Ele encolheu os ombros.

 

- A vida no campo, não é? Ela sorriu.

 

- Então, quais são os seus planos? - Acompanhou-o à porta e vestiram os casacos. - Depois de voltar.

 

- Estava exactamente a pensar nisso. Como chego a Sugar Peak a partir daqui?

 

- Terei de ir buscar o mapa para lhe responder. É assim que Cottage Mills mantém a maior parte dos seus habitantes. Estamos todos demasiado perdidos para descobrirmos o caminho da saída.

 

Ben ficou de olhos arregalados.

 

- Descontraia-se, estou a brincar - exclamou Annie, rindo.

- Acompanho-o ao carro.

 

No canil, os cães uivaram e latiram com as caudas encaracoladas quando viram Annie sair de casa.

 

É sempre hora de comer para eles - disse Annie, olhando os cães agitados de relance. - Por falar nisso, quer ficar para a ceia quando voltar? É o mínimo que posso fazer. Depois do que fez por mim, por Julia e por Marge.

 

A resposta foi abafada pela explosão baixa e repentina do motor de um pequeno avião por cima deles. Era como se estivessem a ser bombardeados. Ben quase saltou para debaixo de uma árvore para se proteger.

 

Olá, Sonny - gritou ela, acenando. - É outro vizinho.

 

AS luzes vermelha e verde das asas do avião piscaram enquanto este fazia uma curva no crepúsculo que caía sobre as árvores. - Ele sabe que não deve fazer aquilo, mas não consegue resistir.

 

- É o suficiente para apanharmos um susto.

 

- Ameaço sempre chamar as autoridades, mas ele está só a brincar. Que se pode fazer? É apenas um miúdo grande que gosta de brinquedos caros. - Annie raspou a neve das botas no degrau de granito em frente da casa. - Então fica para jantar?

 

- Posso ficar.

 

- Óptimo! Terei alguém com quem partilhar uma garrafa de vinho. Detesto a forma como me sinto de manhã quando a bebo toda sozinha.

 

Ben pareceu ficar chocado. Annie riu-se e ele recuperou.

 

- Está a brincar?

 

- É claro! Há-de habituar-se.

 

Ben estendeu a mão para a porta do carro.

 

- Vou à farmácia. Envie um grupo de busca se não voltar até de manhã.

 

- Vai voltar.

 

Annie ficou no degrau da frente, vendo-o afastar-se no crepúsculo. Apanhou um monte de lenha dos troncos partidos no alpendre e levou-os para alimentar o lume. Enquanto Ben descia a estrada, sentia uma estranha agitação no peito. Inalou profundamente. O ar tinha um aroma característico. Sentia-se tão diferente do normal que levou os dedos ao pescoço para sentir a pulsação, que estava regular e forte. Percorreu a lista dos seus sintomas enquanto conduzia. Não havia um verdadeiro sinal de que uma parede arterial se estivesse a fechar. Não tinha palpitações, o braço esquerdo não ficara dormente e não sentia qualquer dor percorrendo-lhe o queixo. Havia apenas uma sensação vaga e indistinta. Talvez se tivesse constipado. Mas não era isso também. De repente, percebeu: era felicidade.

 

Duas horas mais tarde, e depois de se ter enganado no caminho umas duas vezes, Ben saboreava cada um dos pedaços do simples prato de massa que Annie preparara para o jantar. As delicadas rodelas de massa eram do tamanho da unha do seu polegar.

 

- Como se chama isto?

 

Em todos os seus anos de juventude a comer massa fresca da loja que pertencia à família na sua cidade natal, Ben nunca encontrara esta forma particular.

 

- Orecchiette - respondeu ela -, orelhinhas. Ele riu-se.

 

Annie sorriu abertamente.

 

- Temos de prestar homenagem a todas as combinações interessantes que a vida oferece.

 

Ele podia concordar com isso, pensou. A massa continha o molho de tomate fresco que ela fizera, temperado com o doce e acentuado sabor a vinagre balsâmico e a rosmaninho.

 

- Hoje em dia defendo a elegância simples - prosseguiu ela.

 

- Há por aqui alguma charcutaria que venda especialidades e que eu não tenha visto? Quero dizer, como arranja estas coisas aqui, Annie?

 

Ela riu-se e bebeu um gole de vinho.

 

- Devia ver a sua cara neste momento. Parece um antropólogo que acabou de descobrir que a tribo que o levou a atravessar a selva durante dez dias afinal tem TV por satélite.

 

- Desculpe, não era isso que eu queria dizer, mas estou surpreendido.

 

- Bem, acabaram-se-me o fiambre enlatado e os ovos - gracejou ela. - A sério, não conseguiria estes ingredientes se Sonny não voasse por toda a parte. Já telefonou três vezes desde que chegou a casa esta noite para saber de Julia... e de si.

 

- Protector?

 

- Está sempre preocupado connosco. A semana passada trouxe-me um salmão fumado escocês com cinco quilos. Nunca sei quando vai aparecer com algo maravilhoso metido em gelo no porão do seu avião. Uma vez trouxe do Japão um saco enorme de aperitivos de lula salgados. Estranhamente, Julia achou-os bastante bons, mas eu não gostei nada.

 

- A seguir vai dizer-me que tem tiramisu para sobremesa. Annie estremeceu.

 

- Sou assim tão previsível?

 

- Digamos apenas que é uma pessoa lógica.

 

- Normalmente sou eu mesma que o faço, mas este veio de uma pastelaria de Filadélfia. Sonny teve de parar para se reabastecer de combustível e como ficou com fome apanhou um táxi para o centro da cidade. Ele fica impaciente quando cá está e faz viagens de um dia apenas para fazer compras. Às vezes vou com ele para comprar as poucas coisas sem as quais não consigo viver.

 

- Como por exemplo?

 

- O básico: queijo fresco, vinagre balsâmico e pãezinhos doces de Nova Iorque, claro. O resto é fácil. Conseguimos arranjar muito peixe e todos os Outonos compro frangos a um agricultor que vive aqui perto e encho o congelador. - Annie sentia a curiosidade dele. - Após frequentar o Instituto Culinário, passei algum tempo em vários pequenos restaurantes no Upper West Side, depois estive num bom restaurante especializado em bifes no centro, em seguida num restaurante de peixe perto de Wall Street e, por fim, coroei a minha carreira na cozinha do La Petite Aubergine, em Aspen.

 

Então é uma cozinheira profissional. Isso explica a sopa caseira e o fogão industrial.

 

- É óptimo, não é? Comprei-o barato num leilão no Verão passado. Tive de o desmontar todo para o limpar, mas foi o melhor negócio que fiz.

 

- Tem uma vida agradável - comentou Ben.

 

Temos tido sorte até agora - confirmou ela, batendo com os nós dos dedos na mesa rústica de pinho.

 

Após o jantar, enquanto a máquina de lavar loiça ia zumbindo, mudaram-se para perto da lareira. Talvez fosse por causa do copo de vinho ou do café perfumado com amaretto, Ben estava ligeiramente tonto. Reclinou-se no cadeirão de cabedal enquanto Annie se estendia no sofá, ambos langorosos como gatos. Um tronco grosso de ácer crepitava e silvava no lume. Annie já se levantara duas vezes depois do jantar para ver como estava Julia. Tinham começado a dar-lhe o antibiótico e a temperatura já baixara.

 

A noite caiu sobre eles como um cobertor. A casa ficou silenciosa, os cães pararam de ladrar a cada veado que passava pela floresta e os canos do aquecimento gorgolejavam nas paredes.

 

- Ponha os pés em cima do pufe - sugeriu Annie.

 

Ele hesitou.

 

- Vá - insistiu ela.

 

O pufe estava colocado em frente da enorme cadeira de braços, estofada em couro cor de chocolate.

 

- É o conjunto mais confortável da casa. Aprecie-o.

 

- Vem de Sonny? - tentou adivinhar Ben.

 

Ela ergueu os olhos ao céu.

 

- Ele estava a redecorar a casa.

 

- É tão macio, sinto-me como se estivesse a ser engolido inteiro.

 

- Sonny mudou a decoração e agora só tem tapetes   tatami japoneses. Lindos dentro do género, mas não para mim.

 

Ben beberricou o seu descafeinado e ocorreu-lhe que, se tivesse tentado mais cedo perfumar o café com amaretto ou qualquer outro licor aveludado, talvez tivesse permanecido um apreciador de café. Precisara de alguma força de vontade para desistir, mas o café do hospital era tão amargo que parecia ter sido perfumado com estricnina.

 

A atenção de Annie estava centrada no andar de cima... pensava em Julia.

 

- A fofinha adora cavalos. Vou ver se lhe arranjo umas lições de equitação quando estiver melhor.

 

- Fui projectado por cima da cabeça de um cavalo quando tinha a idade de Julia - observou Ben. - Essa queda curou-me do meu interesse pela equitação, embora gostasse das botas porque me faziam cinco centímetros mais alto.

 

- Aposto que queria ser veterinário antes de isso acontecer.

 

- Não - respondeu Ben. - A medicina foi sempre a minha primeira escolha.

 

- Quando era louca por cavalos com a idade de Julia queria ser veterinária - contou, puxando por um borboto que se formara na sua grossa camisola cor de carvão.

 

- Sempre pensei que ser pediatra era muito parecido com ser veterinário, uma vez que devem receber mordidelas com a mesma frequência.

 

O riso alegre e melódico de Annie encheu o ar de uma forma agradável. E, ao mesmo tempo que Ben se sentia a abrir-se com ela, os seus pensamentos debatiam-se com a realidade da forma como a sua vida fora alterada, detida.

 

- Calculo que curar seja um dom, quer se trate de pessoas ou de animais - concluiu ela.

 

- Aprendem-se alguns truques.

 

- Mas o que fez por Marge...

 

- Uma simples massagem cardíaca, qualquer pessoa a poderia ter feito - retrucou Ben, encolhendo os ombros. - Os tipos que têm um verdadeiro dom são os cirurgiões que suturam o intestino de alguém ou os neurocirurgiões que conseguem localizar com precisão uma zona de tecido no lobo temporal.

 

Annie fez uma careta.

 

- Não consigo imaginar isso. Já tenho dificuldade em tirar os picos de um dos cães depois de um encontro com um porco-espinho.

 

- Isso exige realmente habilidade - reconheceu Ben. - É verdade que o porco-espinho consegue disparar as suas cerdas?

 

- Todos pensam isso - respondeu Annie, abanando a cabeça.

- Na verdade, as cerdas estão bastante soltas e, quando um dos cães persegue um deles, os espinhos ficam-lhe na boca. São farpados e, por isso, às vezes tenho de os tirar com alicate. Acredite, os cães só fazem isso uma vez. Depois aprendem a manter-se afastados.

 

- Como as doninhas? - perguntou ele.

 

- Banho de sumo de tomate.

 

- O Velho cão da minha família, Beckett, meteu-se uma vez com uma doninha. Acho que a única coisa que aprendeu com isso foi que gostava de sumo de tomate.

 

É normal fazerem isso. - Annie virou a cabeça para ver o relógio digital do fogão da cozinha. - Tenho de ir ver como está a minha fofinha - anunciou ela, subindo as escadas para ir ver Julia. Ao descer, a sua sombra projectava-se longamente na parede e tinha círculos profundos por baixo dos olhos. Mas havia alívio no seu rosto. - Acho que a febre passou.

 

Antes de poder pensar melhor, Ben colocou-lhe a mão na testa sob os cabelos caídos.

 

- Isso é bom. Pelo menos conseguirá descansar.

 

Obrigada - respondeu ela, tocando-lhe na mão e afastando-a.

 

- Nada tive a ver com isso. Agradeça ao antibiótico, aliás, à febre. Ter febre torna difícil a sobrevivência de um vírus.

 

- Tem a sua teoria e eu tenho a minha - replicou Annie.

- Tudo o que sei é que fez com que ela tivesse menos dores e com que eu me preocupasse menos.

 

- Um pouco do que todos nós procuramos?

 

Annie encolheu os ombros, deixou cair as mãos sobre as coxas e deixou-se cair na cadeira de couro macio perto do sofá, sentindo-se exausta. Ben ouvia o calor que crepitava e gemia nas paredes como um espírito impaciente pela noite. A casa era pequena mas funcional, pelo menos segundo os padrões do século XIX, com tectos baixos que ajudavam a conservar o calor nas noites frias. Em cima era acanhada, com dois pequenos quartos e uma casa de banho, enquanto em baixo havia um espaço aberto entre a cozinha e a sala de estar. Era encantadora e confortável, mas ele sabia que tinha de partir.

 

- Tenho de ir andando, é tarde.

 

Ben havia de conseguir descobrir o caminho de regresso à estrada principal e conduzir até encontrar um motel. Pensou a que distância estaria a estância de esqui e se ainda lhe manteriam a reserva.

 

- Tem algum sítio onde ficar?

 

- Conduzirei até encontrar um. Talvez ainda consiga o meu quarto no hotel.

 

- Isso representa mais de uma hora por estradas sinuosas - comentou Annie enquanto levava as chávenas do café para o lava-louça. - Pode ficar aqui. Tenho um divã no sótão que podemos trazer para baixo. Ou pode ficar no sofá, que é confortável.

 

- Não, não queria incomodá-la.

 

Na verdade, Ben estava tão cansado que poderia dormir no canil com os cães.

 

Annie bateu-lhe com a mão no braço.

 

- Fique, por favor. Não teria cá vindo se não fosse por minha causa. Não tenho por hábito convidar pessoas que não conheço para passarem cá a noite. Mas abro uma excepção para médicos de Nova Iorque que fazem visitas domiciliárias no Maine. E que são boa companhia.

 

Ben sorriu.

 

- Está bem. O sofá serve perfeitamente. Não quero dar trabalho.

 

- Trabalho que não me custa nada. Apenas quero que se descontraia. Vou buscar-lhe uma almofada e um cobertor.

 

Ele seguiu-a até ao armário da roupa no topo da escada.

 

- Almofada mole ou dura? - murmurou ela quando chegou ao armário da roupa no topo da escada. - Julia gosta de uma que a faça sentir que está a dormir numa nuvem e para mim um tijolo não daria o apoio suficiente.

 

- Sou do tipo médio.

 

- Calculei isso - comentou Annie, mostrando-lhe as duas opções.

 

- Qualquer uma serve, não faz diferença.

 

- Experimente as duas - propôs Annie, transportando ambas as almofadas e alguma roupa para baixo. Juntos, fizeram a cama no sofá.

 

Ben sabia que ela estava a pensar na sua menina antes mesmo de falar.

 

- A fofinha raramente adoece. Detesto que isso aconteça. Annie meteu as almofadas numa fronha azul.

 

Quando era miúdo, qualquer pequena constipação que tivesse degenerava numa verdadeira dor de ouvidos. Quando tinha a idade de Julia, acho que experimentei todos os antibióticos que havia na altura.

 

Entalou a extremidade de um grosso cobertor de lã sob uma das almofadas do sofá. Annie afofou-lhe as almofadas. Ele tentou reprimir um bocejo e sentiu a face contorcer-se, pelo que deixou, finalmente, de o evitar.

 

- Desculpe.

 

- Deve estar cansado.

 

- Devia tirar a minha mala do carro - disse ele calçando os sapatos e pegando no casaco.

 

Ela ligou a luz exterior e lembrou-lhe que tivesse cuidado com o gelo. Ben foi até ao carro, ouvindo o estalar da neve sob os pés no caminho. Não havia, praticamente, qualquer outro ruído. Vindo de um dos cães, ouviu um gemido inquiridor. Conseguia ver-lhes os olhos a brilhar na escuridão para além do feixe de luz da casa. O ar frio feria-lhe o nariz e a névoa da sua respiração pairava no ar como um véu fantasmagórico. No carro encontrou a mala com o computador portátil e também a pequena mala para passar a noite. Era um modelo clássico dos anos setenta, uma Samsonite dura, quadrada, cor-de-laranja, de um padrão minúsculo pontilhado como a casca de um fruto. Abria para os dois lados, revelando uma divisória de cor ocre que se prendia separadamente no topo de cada lado com grandes molas cromadas brilhantes. Estranhamente, fazia um bom efeito junto do Cadillac azul-metalizado, como se Ben estivesse pronto a partir para o último concerto de Elvis em Las Vegas.

 

Ainda não conseguira esvaziar a casa dos pais em Nova Iorque. Era um repositório de candeeiros antigos com abajures de tecido rasgado, quebradiços discos de vinil de 78 rotações, um bandolim desafinado, embora Ben não conseguisse recordar qual o parente há muito desaparecido que o tocava. Era um autêntico bazar de caridade e Ben não tivera ainda coragem para examinar todas aquelas coisas.

 

Junto ao carro exalou um longo bafo e inclinou a cabeça para o ver ascender como fumo. Inspirou novamente e depois libertou o ar.

 

De regresso a casa, Annie tinha algo para ele, dobrado cuidadosamente num saco de plástico. Era um conjunto comprido de roupa interior cujo tecido cor de marfim tremeluzia enquanto o sacudia para alisar as dobras.

 

- Não quero que tenha frio esta noite, pelo que lhe trouxe isto.

 

- É de seda - notou ele.

 

O tecido parecia tão leve nas mãos dela.

 

- Sonny disse que o encomendou para mim, mas veio o tamanho dele e não o meu - explicou ela, erguendo os olhos ao céu. - Gostaria que ficasse com ele. É apenas uma forma de lhe agradecer - concluiu, estendendo-lhe a camisa de decote redondo.

 

- Não posso aceitar.

 

Ben sentia-se cauteloso em relação a essa gentileza. Não por pensar que não a merecia, mas apenas porque passara muito tempo sem sentir as pequenas alegrias da generosidade de outrem. Magoava-o compreender como ficara empobrecido e como as suas emoções pareciam áridas, qual substância em pó, desidratada, que se poderia encontrar no fundo de um tubo de ensaio depois de uma experiência falhada.

 

- Por favor, aceite - insistiu ela, pondo-lhe o conjunto nas mãos. - Tem de usar coisas quentes nestas florestas do Norte.

 

Ele sentiu-se ligeiramente ridículo ao ter de suplicar ao seu próprio coração que prestasse homenagem à preocupação dela. Porém, incomodava-o a ideia de que este pequeno gesto significasse tanto. Reanimava uma parte quase atrofiada das suas emoções reprimidas. Annie estava a tomar conta dele. Aceitou a oferta e segurou o tecido leve nas mãos.

 

- Obrigado, Annie.

 

Na manhã seguinte, Ben teve a nítida sensação de que estava a ser observado e tentou despertar de um sono profundo. Durante a noite, ela colocara-lhe outro cobertor ou fora ele próprio? Não se recordava de ter o cobertor tão cuidadosamente colocado por cima de si, aconchegado junto ao queixo e aos pés. Mas sentia-se grato por isso, pois a sala agora estava fria. Apenas o nariz espreitava por entre a roupa e doía com o frio. O lume devia ter-se apagado no fogão. Quando abriu os olhos, tudo o que conseguia ver era uma sombra que o observava à luz púrpura do amanhecer.

 

- O que é? - gaguejou, sonolento.

 

A pequena figura inclinou-se para a frente, com o cabelo comprido caindo-lhe em torno da face.

 

- Sou só eu.

 

- Julia?

 

Ele levantou-se e sentiu o ar frio, que parecia parar mesmo junto à roupa interior que usava.

 

- Que se passa? - perguntou ele instintivamente estendendo a mão para a mala.

 

- Nada.

 

- Como te sentes? - perguntou, sentando-se e acendendo a luz.

 

- Melhor.

 

- Não tens dores? - quis saber Ben, bocejando. - Deixa-me ver.

 

- O último médico a que fui deu-me uma injecção.

 

- Doeu?

 

Observou-lhe os ouvidos com o otoscópio. Estava melhor. A infecção estava a ceder ao antibiótico.

 

- Foi como ficar com uma farpa.

 

- A injecção?

 

- Sim - respondeu ela, depois ficou a pensar durante uns momentos e alterou a sua opinião. - Bem, nem por isso. Uma farpa dói durante algum tempo, mas uma injecção dói apenas naquela altura.

 

- É uma boa maneira de explicar - concluiu ele, observando-lhe a garganta. - Diz: «Ahh.»

 

- Ahh - disse Julia, estendendo a língua.

 

- A garganta parece melhor - afirmou Ben enquanto apalpava as glândulas sob o queixo e no pescoço. O inchaço estava a diminuir, ela não tinha febre e a sua pele estava seca e fresca. - Diria que estás a recuperar bem.

 

- Acho que sim.

 

Os seus olhos pareciam demasiado grandes para o rosto, tal como os olhos de um veado. Era algo que não reparara nela quando a vira no dia anterior, sonolenta devido à febre. Uma franja encaracolada chegava até às sobrancelhas bem desenhadas.

 

Julia abriu o fogão a lenha e começou a fazer bolas de papel de jornal e a empilhar alguns gravetos. Colocou cuidadosamente em cima vários troncos finos partidos e acendeu um fósforo. Trabalhava com facilidade e confiança. A chama brilhou e ela fechou as portas do fogão.

 

- Quer tomar o pequeno-almoço? - perguntou, caminhando lentamente para a cozinha com os seus chinelos de carneira.

 

- Talvez.

 

Aquilo que realmente gostaria de fazer era dormir mais algumas horas, já que ainda não tinha fome, mas tirou os pés do sofá e vestiu as calças de ganga sobre os calções de seda do pijama. Em seguida, atravessou a sala de estar até à cozinha, onde Julia deitava cereais estaladiços numa tigela.

 

- A mãe não gosta que eu prepare o café. Diz que o faço demasiado forte. Mas, se quiser café, está no armário ao pé do fogão.

 

- Café não, talvez um sumo se tiverem.

 

- Veja no frigorífico - respondeu Julia. - Mas tem de abri-lo com cuidado porque a porta está partida. Sonny disse que nos compraria outro, mas a mãe quer poupar dinheiro para o comprar ela própria.

 

Ben abriu cuidadosamente a porta cor de abacate do frigorífico e sentiu-a oscilar nas dobradiças. Quando encontrou o sumo e fechou a porta, o compressor arrancou com um ruído áspero e arquejante.

 

Não soa nada bem.

 

Annie aparecera à entrada e estava a descalçar as botas.

 

O que fizeste para o pequeno-almoço, Julia? Estou esfomeada.

 

- Diz sempre isto - comentou Julia para Ben. - Eu como só cereais ao pequeno-almoço - disse, deitando leite na sua tigela.

 

A face de Annie estava corada do ar livre. Trazia, uma velha camisa de flanela vermelha sobre uma T-shirt branca e calças de ganga pretas. Lavou as mãos no lava-louça e secou-as na toalha da cozinha.

 

- Ainda baixa muito a temperatura durante a noite. Os cães não se importam, mas eu estou ansiosa pelo degelo da Primavera.

 

- Estão atrasados aqui nas montanhas. Em Nova Iorque, as pessoas já estão à espera que os narcisos amarelos floresçam - disse Ben, enquanto bebia o seu copo de sumo.

 

- Mãe, quando achas que Sonny nos levará a Nova Iorque?

 

- Em breve, acho eu - respondeu Annie, enchendo um copo de sumo. - Julia tinha apenas cinco anos quando deixámos Nova Iorque, mas diz que ainda se lembra. Deixar aquela cidade foi a coisa mais difícil que já fiz. Aluguei uma carrinha a um tipo de Nova Jérsia e, quando voltávamos para a cidade para a carregar junto ao apartamento, um pneu estoirou a meio da Ponte George Washington. Pum! De repente, vi-me a lutar com o volante para não me voltar e mergulhar no Hudson. Passaram três horas até conseguir que alguém fosse mudá-lo.

 

- Que horror! - exclamou Ben e olhou para Julia, cuja expressão se alterara abruptamente. Talvez fosse uma guinada de dor no ouvido. A última luta da infecção contra o antibiótico.

 

- Tê-lo-ia mudado eu mesma, mas aquelas carrinhas de aluguer não têm pneus sobresselentes. - Annie tirou uma frigideira própria para omeletas e colocou-a no fogão. - Ovos de qualquer maneira. Panquecas, torradas, diga o que quer.

 

- O que comer está bem para mim. No que respeita ao pequeno-almoço, tudo me serve.

 

- Então, ovos - disse ela, abrindo o frigorífico e tirando uma embalagem. - No restaurante de Aspen costumava fazer uns ovos segundo uma receita do Sudoeste com molho de chili e salsichas picantes. É o tipo de pequeno-almoço que nos acompanha todo o dia.

 

- E que se agarra às artérias toda a vida - concluiu Ben. - Demasiado pesado para mim.

 

- É exactamente o que penso.

 

- Não acabaste a história - lembrou Julia.

 

A sua voz estava lamurienta e suplicante.

 

- O quê? O pneu furado não foi suficientemente mau? - perguntou Annie, olhando para Julia.

 

- Conta-lhe do sangue - pediu Julia em tom casual. Em seguida, foi comer os cereais na mesa da sala de jantar.

 

- Houve sangue?

 

- Não foi nada - respondeu Annie e agitou a mão no ar de forma displicente. Em seguida, a mão desceu de repente e mergulhou como um falcão para tirar um ovo da embalagem, que segurou firmemente, para depois o bater com força na borda de uma taça misturadora amarela.

 

- Sangue de quem? - perguntou Ben, de novo. Não queria insistir, mas parecia uma história interessante. Encostou-se ao balcão da cozinha onde Annie estava a trabalhar.

 

- Não sei. Alguém assaltou a cabina da carrinha enquanto estava estacionada em frente do apartamento do pai de Julia... prosseguiu, baixando a voz por causa da filha. - Ele também é um chef. Um exaltado.

 

- Tem o cabelo ruivo como eu - interveio Julia da sala de jantar.

 

- Essa era a sua melhor característica - acrescentou Annie num murmúrio. Os tendões das costas da mão sobressaíam enquanto batia os ovos na taça.

 

- Então, de onde vinha o sangue? - perguntou ele, com ligeireza desta vez.

 

Julia levantou-se repentinamente. Estava perturbada.

 

- Vou ler o meu livro.

 

- Sentes-te bem, fofinha?

 

Ela assentiu, rápida e energicamente.

 

- Então vai ler - concordou Annie, observando Julia a subir a escada para o seu quarto com lentidão. A seguir, deitou os ovos na frigideira quente, o que os fez chiar na manteiga.

 

- Quebraram uma janela da carrinha, íamos partir de manhã cedo e, por isso, estacionei na rua durante a noite. A carrinha estava carregada. Devem ter-se assustado porque não faltava nada. Mas havia sangue no assento e na porta da carrinha. Havia mesmo muito sangue.

 

- Que trapalhada!

 

- Sim - concordou Annie. - O pai de Julia não ficou muito contente. Aluguei a carrinha com o cartão de crédito dele. - Estava de pé junto ao fogão e fechou os olhos com força, abanando a cabeça lentamente. - Tinha mau génio. - Por fim, baixou os olhos para a omeleta que se formava na frigideira. Então prestou atenção ao que estava a fazer. - Esqueci-me... Gosta de espinafres, tomate e queijo feta?

 

Annie correu ao frigorífico e retirou uma caixa com restos de espinafres cozinhados.

 

- Ao pequeno-almoço?

 

- Faz-lhe bem - disse Annie, agitando uma espátula na sua direcção.

 

- Não discuto.

 

Ela começou a fazer as omeletas.

 

- Café?

 

- Não, obrigado, Julia já mo ofereceu.

 

- Nunca aceite café feito por ela, a não ser que queira ficar com um nó no estômago. - Annie virou a omeleta para dentro de um prato e colocou-o em frente a Ben. O telefone tocou e ela levantou o auscultador. - Está? - Annie ouviu em silêncio por momentos. - Parece horrível, Lucille. Vou passar-lhe o telefone. - Tapou o bocal, suspirou e contou a Ben. - O filho de Lucille acordou com urticária esta manhã. Ela soube que estava aqui. Importa-se?

 

- Há algumas horas nem sequer sabia que ia ficar aqui - observou Ben, pegando no telefone.

 

- As notícias espalham-se depressa numa cidade pequena, acho eu. Não demora muito a saber-se que está um médico por cá.

 

Ben encolheu os ombros.

 

- Lucille, que posso fazer por si?

 

A voz da mulher era áspera do tabaco e Ben conseguia ouvir um ligeiro arquejar quando ela inspirava. Suspeitou que era asmática ou que tinha um enfisema.

 

- Não queria incomodá-lo, doutor - começou ela. - Mas o meu filho acordou esta manhã com urticária, que lhe cobre o peito, os braços e as costas. Diz que lhe faz comichão.

 

- É alérgico a alguma coisa? Amendoins ou morangos?

 

- Que eu saiba, não.

 

- Está com dificuldade em respirar ou com qualquer outro problema?

 

Ben imaginou que seria extremamente difícil fazer ali chegar uma ambulância para socorrer um doente com choque anafiláctico. Demora apenas segundos para a garganta inchar até se fechar durante uma reacção alérgica.

 

- Não, apenas não consegue parar de se coçar. Está nas costas todas, uma urticária vermelha intensa.

 

- Deve ter estado em contacto com alguma coisa. Um novo tipo de sabonete ou corante de roupa. Parece uma espécie de dermatite.

 

- Realmente, ele tem lençóis novos. Com um dos seus super-heróis preferidos - esclareceu, dando uma risada seca e inspirando fundo a seguir com um ruído áspero. - Então, o que faço? Tem estado a coçar-se toda a manhã.

 

- Já tentou um creme de cortisona? Isso aliviaria a comichão.

 

- Cortisona? Não tenho nada disso aqui.

 

Ele sabia que a farmácia era longe. Talvez conseguisse pensar em qualquer coisa que ela tivesse nos armários da cozinha.

 

- Tem bicarbonato de soda?

 

- Acho que sim.

 

Ben ouviu-a dizer ao filho que parasse de se coçar.

 

- Tente fazer uma pasta de bicarbonato de soda e água e espalhe-a sobre a urticária - sugeriu. - Isso poderá ajudar quanto à comichão, por agora.

 

- Parece algo que a minha avó usaria.

 

- por vezes é necessário utilizar o que temos à mão. Telefone-me se ele piorar - recomendou Ben, desligando o telefone.

 

- Vai ter de estabelecer um horário de atendimento - comentou Annie. - Não temos muitos médicos de passagem.

 

- Não me importo nada de responder a algumas perguntas.

 

Annie sentou-se a seu lado com a omeleta. Cortou para ambos grossas fatias de pão caseiro.

 

- Gostaria de ir dar um passeio? - perguntou Annie quando tinham acabado de tomar o pequeno-almoço, dirigindo-se até à porta e vestindo uma parca vermelha brilhante.

 

- Onde vamos ao certo? À Sibéria?

 

- Andar de trenó. Os cães estão preparados e com imensa vontade de correr. Vai adorar.

 

Saíram de casa e depararam com o ar tão seco e frio que queimava os pêlos do nariz a cada inspiração. Os cães estavam num frenesim quando Ben e Annie chegaram ao canil. Demorou algum tempo aparelhar os cães porque tremiam de excitação. Annie mostrou a Ben como passar a cilha de náilon amarela pelas patas dianteiras e pela cabeça de forma a apoiar-se por cima do lombo.

 

- Tenha cuidado para que a cilha não fique torcida, caso contrário aperta o cão e magoa-o.

 

Ben estava a ter problemas em seguir as instruções, pois o cão que estava a aparelhar lambia-lhe a cara como se ele fosse um chupa-chupa.

 

- Sven, calma.

 

Os olhos do cão - um cor de avelã, o outro azul - pareceram alegrar-se quando Ben o tratou pelo nome, o que provocou ainda mais lambidelas. Annie riu-se.

 

-- Cuidado, Ben, ele já é molengão. Mais alguns minutos consigo e perderá completamente a competitividade.

 

- Diga-lhe isso. Ele pensa que sou um osso gigante.

 

- Sven é assim mesmo. É um cão brincalhão e quando corre comporta-se da mesma maneira.

 

Os cães retesaram-se com a expectativa enquanto Annie os prendia nos seus lugares para puxarem o trenó. Ben arrastou Sven até ao trenó e Annie colocou-o no meio da matilha.

 

- Misha, vem.

 

Annie falava com eles o tempo todo com voz baixa e calma.

 

- Mikhail! Não dês problemas. - Ela debateu-se com um macho agressivo que se atirou a outro cão.

 

Misha era o líder do grupo e contemplava Annie com olhos atentos, observando a sua linguagem corporal, à espera do sinal. Quando Ben se instalou na frente do trenó, os cães começaram a ladrar. Annie ficou de pé na plataforma sobre os patins que se estendiam para trás do comprido trenó e agarrou as pegas. Explicou a Ben, recostado no comprido assento à sua frente, que dali utilizaria o seu peso para guiar.

 

- Vamos! - gritou Annie. A essa única palavra, os cães partiram.

 

Deixaram o campo por trás da casa com um solavanco. Os cães esforçaram-se e partiram. Annie incitava-os a avançar e eles corriam através do campo na direcção de uma pequena vereda na floresta. A neve voava pelo ar atrás dos cães. Os flocos rodopiavam em torno da cabeça de Ben, que, por momentos, temeu chocarem contra uma árvore e segurou-se com toda a força, mas Annie orientou-os facilmente por entre dois troncos para um caminho estreito.

 

- Está bem?

 

- Estou a aguentar-me - gritou-lhe. Tudo o que o rodeava era o som do vento a ecoar nos seus ouvidos e as rápidas passadas dos cães na neve.

 

O passeio não estava a ser dos mais confortáveis enquanto se precipitavam por entre os áceres e os pinheiros, saltando e balançando. Annie guiava com perícia pelas curvas e contracurvas do caminho. Passaram por vidoeiros grossos de casca branca parecida com papel da cor da neve. O caminho descia para uma clareira, depois atravessava outro campo, onde se via uma grande casa de tijolo à distância com uma espiral de fumo suspensa no ar por cima da chaminé. Num instante, foram de novo engolidos pela densa floresta. Passado algum tempo, ao chegarem a um pequeno pinhal junto às margens de um riacho, ela abrandou a marcha dos cães e narou o trenó com um travão, que se arrastou atrás deles na neve. Misha viu Annie afastar-se do trenó, abanou a cauda e sentou-se. Os outros cães seguiram o seu exemplo e instalaram-se na neve.

 

Tinham parado junto a um riacho por onde ainda corria um fio de água sob uma clara camada de gelo. O solo da floresta revelava-se sob o dossel dos pinheiros. Annie tirou com um pontapé a neve da extremidade de uma pedra lisa que se projectava sobre o riacho e olhou para a água que corria em baixo.

 

- Uf! - arfou Annie. - A corrida deixou-me sem fôlego. Devo estar a ficar velha - disse, pondo as mãos nas ancas e curvando-se numa extensão.

 

- Belo sítio - disse Ben ao ver o riacho que corria suavemente e observando a forma como a neve cobria os pinheiros e pesava nos ramos. As suas vozes eram abafadas pelo espesso manto que cobria o solo.

 

- Adoro vir aqui. O silêncio dá-me a oportunidade de pensar com clareza - disse, suspirando. - Por vezes penso nisto como se fosse a minha igreja. É sossegado e os pinheiros erguem os ramos para o céu. Posso estar sozinha a pensar e a reflectir.

 

- Pinheiros como catedrais - comentou Ben, olhando para cima e observando os gigantes à sua volta.

 

Aninhada numa pequena clareira pouco distante da casa de Annie, encontrava-se uma minúscula vivenda de madeira com uma baixa chaminé de tijolo que sobressaía do telhado muito inclinado. Na frente, a casa tinha desenhos decorativos que seguiam a linha do telhado. A neve derretera em algumas zonas, de forma que partes do telhado de lousa cinzenta brilhavam ao sol da manhã.

 

- Quem vive ali? - perguntou Ben, olhando a casa distante.

 

- Não é uma maravilha? Parece uma casinha de bonecas. Tem apenas duas divisões, pelo que era demasiado pequena para Julia e para mim, mas sempre adorei aquela vivenda. Está na extremidade da nossa estrada. Ninguém lá vive há anos.

 

- O terreno é todo vosso?

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Pertence tudo a Sonny Wood. Nem sei o que ele possui. Mas sei que é muito. Compra todas as propriedades contíguas em torno da montanha Sawtooth - explicou e apontou para o pico que se erguia a oeste. - Isto está a crescer rapidamente. Um dia quer transformá-la numa estância de esqui. Uma espécie de Aspen oriental, penso eu.

 

- Sonny Wood... - disse Ben, pensativo. - É o mesmo Sonny que ontem sobrevoou a vossa casa?

 

- O próprio.

 

- Tem um nome famoso.

 

- Bem, foi ele que o tornou famoso - esclareceu Annie, encolhendo os ombros.

 

- A sério? É Sonny Wood, o músico? Pensei que vivia em Londres.

 

- Às vezes vive. Mas a maior parte do tempo leva uma vida bastante sossegada aqui mesmo.

 

- Hamptons, Aspen, Mónaco, parecem locais para uma estrela do rock. Isto aqui parece um pouco afastado, não é?

 

- Que estamos todos a fazer aqui? - perguntou Annie, rindo. - Na verdade, ele afirma que sou a razão pela qual aqui fica. Mas não é verdade. Ele é a razão pela qual Julia e eu aqui estamos. Eu já não podia viver em Aspen e Sonny queria um novo local para se esconder, pelo que viemos para aqui.

 

- Tive uma namorada no liceu que conhecia todas as suas canções. Tinha retratos dele colados na porta do cacifo. Era só cabelo e barba com dois olhos escuros e penetrantes. No auge do disco, ela. ainda desejava que fosse o fim dos anos sessenta.

 

- Bem, não diga isso a Sonny. Ele detesta que pensem nele como uma espécie de relíquia arqueológica. Diz que a única coisa boa do envelhecimento é que agora é convidado para todos aqueles banquetes de atribuição de prémios, de forma que consegue encontrar todos os seus velhos amigos. E eles sabem bem que não devem estar sempre a perguntar-lhe se ele e o grupo alguma vez se voltarão a juntar.

 

- A resposta ainda é «não, nunca, em tempo algum», certo? - perguntou Ben.

 

- Olhe para si, parece um fã.

 

Ele encolheu os ombros com timidez.

 

- Não se falam excepto através dos advogados - suspirou Annie. - Sonny não é do tipo de pessoa de deixar a fama subir-lhe à cabeça. É claro que, quando Julia e eu vamos ao dentista ou ao supermercado, é a sua música que se ouve na estação Muzak. Ou metade das vezes que ligo o rádio do carro ouço-o a cantar para mim.

 

Misha espetou o nariz no ar, ficou subitamente alerta e levantou-se nas patas dianteiras. As orelhas e os narizes dos outros cães torceram-se.

 

- Olhe - murmurou-lhe Annie.

 

Lá longe, aproximava-se uma corça com a cabeça a empurrar a neve em busca de bocados de ervas tenras que tivessem sobrevivido ao longo e rigoroso Inverno. De repente, ergueu a cabeça, esforçando-se por detectar no ar os cheiros desconhecidos. Estacou, tentando avaliar o perigo. Misha gemeu de curiosidade. As orelhas da corça torceram-se, retesando-se. Por fim, abanou a cauda branca e afastou-se aos saltos.

 

- Os cães e os animais selvagens não se misturam, mas eles não são caçadores, limitam-se a brincar fingindo que o são - disse Annie, dando palmadinhas na cabeça de Misha.

 

Ben assentiu e puxou o fecho do casaco mais para cima. O casaco não fora feito para andar num trenó puxado por cães e passear pela floresta. Destinava-se àquilo a que ele largamente se destinava: esperar por comboios em plataformas cobertas e arrastar-se pelo estacionamento da estação à procura do carro.

 

- Está a ficar com frio?

 

- Um pouco - admitiu. O seu sangue ainda não se aclimatara à temperatura exterior. Pensou na forma como o sangue era atraído para o coração e para o cérebro com o frio, porque o corpo conserva o seu calor. Se a temperatura do corpo começasse a baixar, entrariam em acção mecanismos reflexos, como os tremores, que ajudariam a gerar calor a partir da actividade muscular. Se isto não conseguisse manter a temperatura do corpo, instalar-se-ia a hipotermia, causando letargia, discurso pouco claro e perda de consciência.

 

Para alguém que planeava esquiar, veio bastante mal equipado.

 

- A verdade é que, de qualquer forma, não costumo planear nada muito bem. Além disso, neste caso, foi uma decisão impulsiva. Não sei se já lhe aconteceu viver um daqueles momentos em que vemos a nossa vida a desenrolar-se à nossa frente sempre igual e percebemos que se não nos afastarmos nesse instante, se não fizermos qualquer coisa para quebrarmos a rotina, arriscamo-nos a ficar presos para sempre. Se tivesse planeado esta viagem com semanas de antecedência, nunca teria partido. - Ben sentira a sua vida abrandar, deixando-o subjugado e apanhado numa armadilha como a vítima de um vírus insidioso. - Fiz a reserva na manhã em que parti. Calculei que, quando aqui chegasse, alugaria o que faltasse.

 

- Ou pediria emprestado - disse Annie, puxando suavemente a gola da camisola interior que lhe aparecia no pescoço.

 

- Resultou, não acha?

 

- Se não me tivesse encontrado, poderia ter morrido de frio.

 

- As probabilidades eram bastante grandes - concordou.

 

- Suba. Vamos voltar para eu ir ver como está Julia. Tem quase dez anos, mas não gosto de a deixar sozinha.

 

Ben ocupou o seu lugar no trenó e os cães entraram de novo numa enorme excitação. Sob as ordens de Annie, partiram a toda a velocidade. Na posição baixa que Ben ocupava no trenó, a viagem era emocionante, com as árvores a passarem rapidamente por ele. Parecia que a qualquer solavanco poderia ser lançado por terra. Segurou-se bem, com as mãos bem agarradas aos rebordos do trenó. Por muito que desejasse, não conseguia fechar os olhos para não ver como passavam rentes às árvores, pedras e cepos: era uma viagem que, de facto, exigia grande atenção.

 

De regresso a casa pelo caminho mais longo, percorreram campos ondulados e conduziram o trenó através de uma estrada limpa de neve e coberta de areia até chegarem a outro campo. Acenaram ao carteiro que passava ao longo da estrada num velho e gasto jipe verde. As luzes de travagem brilharam e o jipe parou bruscamente. Um homem baixo e de cabelo branco saiu para a neve a coxear e acenou a Annie. Esta baixou o travão que estabilizava o trenó. O homem caminhou com dificuldade até eles.

 

- Não os queria fazer parar, mas onde está o médico que anda a esconder?

 

- Ben, este é Albert, o nosso carteiro.

 

- Especialista em entregas postais, se não se importa - gracejou Albert com um brilhozinho nos olhos. - Oiça, doutor, já ouvi falar de si. Que me pode dar para isto? - Sentou-se na extremidade do trenó, tirou a bota e descalçou a meia de lã. Um pedaço de gaze preso ao calcanhar estava ensopado. Puxou o adesivo que segurava o penso. Por baixo encontrava-se uma úlcera a escorrer com o tamanho de uma moeda.

 

Ben ficou preocupado e examinou a ferida cuidadosamente.

 

- Há quanto tempo é diabético?

 

- Desde os dezoito anos.

 

- Tem de ter acompanhamento. Tem um médico assistente?

 

- Morreu.

 

- Precisa de um especialista, Albert. Alguém que o ajude a controlar a diabetes. Este tipo de problemas exige uma ida às Urgências antes que as coisas piorem. Fica com os pés frios?

 

- Os meus dedos dos pés são como cubos de gelo. Pergunte à minha mulher.

 

- Vá às Urgências do hospital mais próximo, é tudo o que lhe posso dizer. O mais depressa possível.

 

- Acho que a minha mulher me pode levar quando eu acabar o serviço.

 

- Eu não deixaria passar outro dia.

 

- Bem, obrigado pela ajuda.

 

Albert abanou a cabeça, calçou a meia e a bota e arrastou-se para o seu jipe. Foi coxeando ao longo da estrada e acenou sem olhar para trás.

 

- Pobre Albert. Deve doer-lhe realmente muito para pedir ajuda.

 

- Ele tem de tratar aquilo.

 

Annie soltou o travão, ordenou aos cães que avançassem e partiram de novo. O caminho serpenteava por entre campos abertos paralelos à estrada e, na estrada principal do lado oposto, passava uma carrinha desportiva prateada com vidros fumados, mantendo a mesma velocidade. O condutor buzinou duas vezes. Annie estendeu um braço e acenou.

 

- É Sonny - gritou. A carrinha prateada mudou de direcção e afastou-se. - Parece que vai para casa.

 

Quando finalmente fizeram a última curva e passaram pela última árvore, Ben estava contente por regressar. Não que lhe tivesse desagradado o passeio, mas tinha o traseiro dorido da forma como o trenó saltava. Annie tinha a melhor posição de viagem, de pé na traseira do trenó, contorcendo-se e virando-se para utilizar o seu peso na condução. De regresso ao celeiro de Annie, saiu aliviado do trenó.

 

- Obrigado - agradeceu. - Foi...

 

- Excitante?

 

- Exactamente.

 

Ben levou uma das mãos ao fundo das costas para massajar os músculos e restaurar a circulação.

 

- A neve estava um pouco resistente, mas, de qualquer maneira, fizemos uma boa corrida - comentou Annie, desaparelhando os cães. - Por vezes, quando o piso está gelado, chegamos quase a voar.

 

- Isso quer dizer que continua a usar o trenó enquanto houver neve?

 

- Exacto. Tenho corrido no trenó com os cães até meados de Abril. A neve é fraca, mas aproveitamos o melhor que podemos.

 

Julia esperava-os quando entraram em casa. Ainda não tinham tirado os sapatos quando ela os atacou. Primeiro, fez uma pergunta sobre um dos problemas de matemática do seu livro, em que Ben a ajudou com facilidade.

 

- Álgebra! - exclamou ele. - Só tive isso quando cheguei ao liceu.

 

- Ela avança ao seu próprio ritmo - notou Annie, gabando-se.

 

- Sim, a toda a velocidade! - brincou Ben, fazendo-a sorrir.

 

- Agora, os telefonemas - informou Julia. - A Senhora Murphy telefonou. Ula Higby telefonou. E Sonny também. Do carro. - Ia contando pelos dedos. - Falei com Sonny durante um bocado, mas depois ele disse-me que era melhor desligar e ir fazer os trabalhos.

 

- Que quereriam todos eles? - perguntou Annie, pondo uma chaleira com água ao lume.

 

- Queriam falar consigo - respondeu Julia, fitando Ben.

 

- Comigo?

 

- A Senhora Murphy quer saber se tem acordo com a Cruz Azul. A Senhora Higby diz que o marido tem «brontolite» ou qualquer coisa assim pela terceira vez este ano - explicou Julia, franzindo a testa.

 

Ben riu-se.

 

- Deves querer dizer bronquite.

 

Julia assentiu.

 

- Ela ficou mesmo desapontada por não o encontrar.

 

- E quanto a Sonny? - quis saber Ben. - Que tem ele?

 

- Acredite em mim, nem queira saber - respondeu Annie, rindo com uma rápida sacudidela de cabeça. Mas as suas palavras soaram um pouco cortantes enquanto tirava as canecas para o chá, que fizeram um ruído seco de porcelana contra porcelana.

 

Julia deu uma risadinha.

 

Sonny está sempre a telefonar. «É só para conversar, querida» imitou Julia, com o seu melhor sotaque inglês. - É o que ele diz sempre.

 

- Tem um telefone por satélite que utiliza para comunicar de toda a parte por onde viaja. Uma vez estava a descer o Amazonas.

 

- Acabara de ver um pássaro espantoso - explicou Julia. - Todo cor-de-rosa e azul com grandes olhos verdes. Até tirou uma fotografia com uma máquina digital e mandou-a por e-mail para o nosso computador.

 

- Parece-lhe normal alguém fazer um telefonema de uma canoa escavada num tronco de árvore, a milhares de quilómetros de distância, numa selva do Brasil? Quero dizer, pense só no custo daquela chamada - riu Annie.

 

- Talvez quisesse que vocês estivessem lá com ele - disse Ben, pensando que não parecia ser um delito assim tão grave, embora fosse certamente extravagante.

 

- Bem, telefono-lhe depois - disse Annie, puxando um pequeno tabuleiro de verga cheio de diversos tipos de chá. - Há chá inglês, é claro, chá do Ceilão, chá de hortelã-pimenta e chá chinês. E à sua escolha.

 

- O chá chinês sabe a meias velhas - murmurou Julia.

 

- Bolas, era esse o que eu queria - murmurou-lhe Ben.

 

- Julia, só estou a dar-te alguma folga hoje porque estiveste tão doente ontem, mas tens trabalhos para fazer.

 

O sorriso desapareceu dos lábios de Julia e esta espetou o queixo.

 

- Eu sei, eu sei - disse Julia, depois voltou-se e foi arrastando os pés pela escada acima até ao seu quarto.

 

O telefone tocou de repente.

 

- Vou deixar o gravador atender.

 

Ben sorriu abertamente.

 

- De qualquer maneira deve ser para mim - disse ele, tirando uma saqueta de chá do Ceilão. Annie escolheu o chá chinês.

 

- Acho que a culpa é minha - disse Annie, deitando água a ferver sobre as folhas de chá. - Pedi-lhe que viesse ver Julia. Acontece-lhe isto onde quer que vá?

 

- Não, de maneira nenhuma. Geralmente ninguém repara sequer em mim.

 

- Bem, aqui se precisamos de um médico é melhor andar de gatas porque a nossa única escolha é o veterinário e eu não lhe confiaria um peixe-vermelho doente. É por isso que a sua presença não passa despercebida.

 

Annie franziu os lábios e soprou o chá.

 

Então, o que é que eu devo fazer?

 

- Não sei, Ben. Mas, seja o que for, parece provável que vá estar muito ocupado.

 

Ben concordou. O tempo não era problema para ele e, se esta era a forma como ia passar as suas férias, a tratar de sofrimento e dor, tudo bem. Se pudesse ajudar alguém que se encontrava demasiado longe de um médico, era a coisa certa a fazer. Mas fazer a coisa certa fora a fonte dos seus problemas até agora.

 

Ben sempre se esforçara de mais. Pelo menos, Giselle assim pensava. Dizia, de forma mordaz, que o auto-sacrifício era o único sentimento a que ele cedia completamente.

 

Encontrara Giselle, pela primeira vez, numa festa para a qual não fora convidado. Tinha sérias dificuldades para se aguentar financeiramente na escola médica e, quando se cansava da comida do refeitório, ele e o seu amigo Marty entravam sem convite nas festas do Upper West Side em busca de acepipes gratuitos. Marty, um estudante do primeiro ano de rosto fino e marcado e cabelo escuro apanhado num longo rabo-de-cavalo à moda, conseguia fazê-los entrar em qualquer local. Quer se tratasse da festa de uma agência de publicidade num bar ou de uma festa de celebridades num restaurante, Marty não só conseguia fazê-los entrar como engolia um tabuleiro inteiro de folhados de camarão antes de que alguém suspeitasse.

 

- Avança e alimenta-te - incitou Marty numa festa em que tinham conseguido entrar numa livraria da Broadway. Empurrou Ben para um tabuleiro de aperitivos com natas enquanto ele se dirigia ao bar.

 

Quando Ben a vira pela primeira vez, Giselle retirava delicadamente dos dedos a gordura do rolo de legumes que estivera a mordiscar. Era alta, tinha o pescoço comprido como o gargalo de uma garrafa e a cabeça coroada pelo longo cabelo ruivo. Observou-a do outro lado da sala sentindo um nó formar-se na garganta. Lembrava-se de ter pensado que, se isso era amor, ele não queria sentir tal coisa. Não queria todas as complicações de uma relação e a distracção que isso representaria para os seus estudos. Haveria tempo suficiente para relações mais tarde. Como lhe seria possível ter êxito em anatomia e fisiologia se a sua mente estivesse entorpecida e distraída com as mulheres? Por isso esforçou-se por permanecer o mais longe possível daquela rapariga. Quando se apercebeu de que ela estava tão consciente da sua presença como ele da dela, começaram a circular em torno um do outro. Foi Marty quem o empurrou para a frente com uma cotovelada na direcção de uma bandeja de pequenas almôndegas. Ben apresentou-se.

 

Não quisera apaixonar-se por Giselle. Lutou contra os seus sentimentos, mas não podemos escolher o amor, é ele que nos escolhe a nós. A felicidade durou mais de um ano... antes de se tornar um triângulo: ele, ela e o fardo esmagador das suas obrigações.

 

A ela faltavam apenas alguns exames e uma dissertação para terminar o doutoramento em psicologia. Ben pensou que devia ouvir a sua análise da situação, pois geralmente ela acertava. Assim, ele esperou ouvir o seu veredicto, esperou pelas suas palavras honestas de dissuasão, mas a tal análise nunca surgiu. A pele de porcelana do seu rosto levemente salpicado de sardas empalidecera, acentuando a cor de cereja dos lábios.

 

- Tenho medo de te perder, de não estar à altura das tuas expectativas - dissera-lhe suavemente.

 

- Isso é ridículo - replicara ele, pegando-lhe na mão e levando-a aos lábios. - Quero estar contigo - assegurara-lhe, afastando assim as suas preocupações.

 

Giselle não tinha chegado a compreendê-lo verdadeiramente, pensou Ben, nunca se tinha dado conta de que para o conquistar devia ter usado a razão e não o sentimento. De resto, naquele campo, nunca poderia competir com uma adversária formidável como era a sua mãe, que, aproveitando-se de um sentimento fortíssimo de amor filial, conseguia sempre fazer prevalecer o seu próprio ponto de vista. Não havia maneira de contrabalançar uma força daquele género.

 

- As raparigas vêm e vão - dissera-lhe a mãe na altura - A família é que interessa. É a família que nos une.

 

Agora Ben estava sentado em frente de Annie, na cozinha, diante das canecas de chá e descobriu que não conseguia desviar os olhos dela. Subitamente, ficou embaraçado por estar a fitá-la.

 

Utilizou um guardanapo de tecido grosso para limpar uma arca de chá que ficara na mesa de pinho encerado quando ergueu a caneca e suspirou sem querer, tentando disfarçar com um soluço.

 

Annie passou um guardanapo pela face. Tinha o rosto corado.

 

- O chá está quente - disse ela, depois tentou ajudá-lo, dando-lhe a hipótese de recusar estas visitas ao domicílio. - Não tem obrigação nenhuma. Nem sequer conhece as pessoas.

 

- Não é assim que eu vejo as coisas.

 

O tom de Annie suavizou-se.

 

- Lamento, Ben, coloquei-o numa posição desagradável.

 

- De maneira nenhuma. Vou até lá de carro e vejo o que se passa. Na minha opinião, situações como esta só têm uma resposta: «Vou já.»

 

- Mas devia estar de férias e, afinal, está a trabalhar.

 

- De cada vez que examino alguém aprendo qualquer coisa. Os corpos não são todos iguais. Há variações subtis, características diferentes aqui e ali. Tudo, desde a química sanguínea aos sons intestinais.

 

- A culpa é minha. Meti-o nisto por tê-lo trazido para ver Julia. Agora, todas as pessoas daqui até ao Canadá querem um médico. Por vezes, esta vida de cidade pequena torna-se demasiado pequena.

 

- Annie, com franqueza. Por favor - riu Ben. A parte das suas férias por que mais ansiara fora apenas afastar-se de casa. E conseguira isso, não conseguira?

 

- Talvez me sinta um pouco culpada por ter pedido a sua ajuda. Mas fi-lo por Julia.

 

- Vou contar-lhe uma história. Talvez ajude. Quando tinha uns nove ou dez anos recebi um estetoscópio pelo meu aniversário. Era mais um brinquedo do que um instrumento profissional, mas funcionava bastante bem e deu-me a oportunidade de brincar aos médicos com um pouco mais de credibilidade. - Sorriu. - Era tudo muito inocente. Um dia estava a fazer um exame médico à minha amiga Sharon com o meu novo estetoscópio. Ouvi-lhe o coração e soava diferente do meu. Em vez da batida normal, ouvi outra coisa. E sabia que algo não estava certo. Descobriu-se que tinha um sopro cardíaco. Uma semana mais tarde, quando estava a fazer o exame médico para o acampamento de Verão, o médico dela confirmou-o. Foi então que soube o que queria fazer. Portanto, não há qualquer problema em ir ver duas pessoas que não podem ir ao médico. Essa é a minha maneira de ser.

 

Annie mostrou o brilho branco dos dentes no rápido sorriso que lhe dirigiu.

 

- Sei o que quer dizer. Tudo o que sempre quis foi ter o meu próprio restaurante. Ou apenas um pequeno café. - As suas sobrancelhas escuras juntaram-se. - Pensei que estava mesmo a conseguir quando cozinhava em Aspen. Mas não poupava nada e Julia passava o tempo no infantário. Nada corria bem.

 

- Então, por que não tentou realizar o seu sonho quando veio para aqui?

 

Annie ia começar a falar e, de repente, fechou a boca com força.

 

- Quase conseguia caçar o meu segredo.

 

- Tentei - riu Ben. - Conte-me, pelo menos, alguma coisa.

 

- Não seria capaz - respondeu, sorrindo tristemente. - O doutor é demasiado simpático. - Pegou no bloco de notas perto do telefone e mudou de assunto. - Não vai conseguir encontrar os seus novos pacientes se não lhe der indicações.

 

- Dê-me apenas muitos pontos de referência.

 

- Iris Murphy vive numa casa baixa de um rancho com uma vedação cor de café com leite, na Estrada Trinta e Seis. - Começou a escrever indicações para Ben. Quando acabou, tinha preenchido ambos os lados da folha. - Ao chegar a casa de Iris, é fácil encontrar a dos Higby. Estará praticamente a meio caminho.

 

Ben observou-a enquanto ela escrevia ainda mais indicações noutra folha.

 

- Há mais?

 

- Estou apenas a tentar dar-lhe pormenores suficientes para ir e voltar.

 

Quando acabou, ela deu-lhe as folhas e ele reparou que no topo de cada página estavam impressos o nome e a morada de um armazém de rações e artigos para animais. Annie dirigiu-se ao escritório nas traseiras da casa.

 

- Deixe-me verificar o gravador para ver quem telefonou.

 

O gravador apitou e a cassete rebobinou. Ouviu-se a voz de um homem com um claro sotaque britânico.

 

- Era outra vez Sonny - disse ela ao voltar. - Quer encontrar-se consigo ao jantar. De facto, foi praticamente uma ordem!

 

- As notícias correm depressa quando há um estranho na cidade, minha senhora - gracejou Ben, fazendo a sua melhor imitação de John Wayne.

 

- Ninguém lhe disse que é assim que as coisas funcionam? Mal tinha descarregado as nossas caixas aqui quando começaram a aparecer pessoas de carro para dar uma olhadela.

 

- Acho que a bisbilhotice é uma qualidade que posso aceitar se for apoiada por um convite para jantar.

 

Annie riu-se.

 

- Os amigos que cá fiz são-me queridos, mas é um pouco de mais quando todos parecem saber exactamente a que horas apagamos as luzes.

 

- Vai cozinhar esta noite? - perguntou Ben, esperando que ela o fizesse. Duas refeições e ficara apaixonado também pelos cozinhados dela.

 

- E o meu trabalho aqui - disse ela, ajudando Ben a vestir o casaco e dando-lhe uma palmadinha reconfortante nas costas, antes de lhe acenar, enquanto ele descia o caminho até ao carro.

 

Conduzindo até à estrada, Ben deu consigo a sorrir. E não era apenas por Annie, embora esta o intrigasse, a sua casa fosse reconfortante e estivesse contente por ter um pretexto para passar mais algum tempo com ela. Era em parte por Annie, mas também por se sentir útil, útil para desafios que podia enfrentar. Sabia o que era ser verdadeiramente necessário e inútil... por exemplo, às três da manhã quando uma dor inexorável atacava. Por vezes, ser indispensável implicava um pesado sacrifício, tendo de abdicar de coisas irrecuperáveis. Em comparação, isto era fácil, esta ronda de visitas ao domicílio feitas a partir de um mapa escrevinhado.

 

Havia a medicina que curava e a medicina que não curava. Os efeitos secundários podiam ser tão devastadores como a própria doença. Na sua carreira tinha assistido a casos terríveis. Por vezes sentia-se como um mercenário que escolhe sempre uma nova batalha em vez de um local pacífico. Não estava interessado em procurar o afluxo de adrenalina das Urgências, mas sentia-se reconfortado ao observar o funcionamento do corpo humano. Por exemplo, o batimento cardíaco. Ficava sempre fascinado com a pausa imperceptível entre um batimento e o outro quando o coração se enche de sangue antes de iniciar um novo ciclo.

 

Se alguma coisa o podia consolar, eram os sons e ritmos do corpo... o modo como ele conseguia compreender o tamanho e a forma do fígado percutindo o abdómen com as pontas dos dedos, procurando ouvir uma mudança de um som cheio para outro oco. Ou compreender a paisagem dos pulmões ouvindo os sons da respiração através do estetoscópio. Ou detectar a verdade no gorgolejar lento e peristáltico do sistema digestivo. Quando as coisas funcionavam bem, havia uma harmonia de notas tocadas como uma rapsódia agradável. Quando as coisas não funcionavam bem, era uma equação matemática, um cálculo para resolver. Mas procurar a solução deixava-o tranquilo.

 

Enfim, tudo isto e a agradável companhia de Annie constituíam razão de sobra para ali permanecer mais um dia.

 

Não tinha sido difícil encontrar a estrada para a casa de Iris Murphy, mas, fosse como fosse, Ben conseguiu embater na caixa do correio. O raspar de metal contra metal pareceu fundir-se com o gemido que passou pelos seus lábios. Quando saiu para examinar os prejuízos, encontrou um longo risco na tinta do pára-choques dianteiro do lado direito.

 

É claro que não tinha a certeza de que a caixa do correio tivesse ficado danificada: o metal galvanizado estava amolgado e o poste inclinava-se num ângulo excêntrico. Passou um dedo por uma aresta afiada que agora estava coberta de restos de tinta azul-metalizada. Levou o carro pelo caminho acima e tentou esquecer o assunto. Era apenas um prejuízo cosmético, de qualquer forma.

 

Apressou-se pelo caminho de pedra até à vivenda de telhado inclinado de Iris Murphy e tocou à campainha. Um terrier cinzento ladrou-lhe estridentemente da janela da sala de estar. Não tendo resposta, deu a volta e encontrou uma mulher baixa e curvada com cerca de oitenta anos, que se esforçava por carregar até à casa um monte de lenha por um caminho escorregadio.

 

- Pareceu-me ter ouvido alguém - disse ela. - É o Doutor Minor, não é?

 

Chame-me Ben. - Pegou-lhe na braçada de lenha e caminharam ambos até à casa. - Está escorregadio.

 

Demoro um bocado a chegar a casa com este tempo, mas tenho de ter paciência. Partir uma anca não me ajudaria em nada.

 

Farripas de cabelo branco escapavam-se do gorro de lã preta e tombavam-lhe sobre os olhos. A face estava marcada por rugas profundas que davam à pele o aspecto de uma pedra desgastada. Passou uma pequena mão sulcada de veias azuis pelo braço dele.

 

- Carrega tudo isto todos os dias?

 

- Tem de ser, se quiser manter o lume aceso.

 

Iris abriu a porta das traseiras para ele entrar e o terrier saltou para mordiscar os calcanhares de Ben.

 

- Ricky, larga.

 

Mas o cão persistiu e seguiu-os para o interior. A cauda hirsuta abanava, enquanto ele farejava e rosnava.

 

- Parece que não consegue decidir-se a meu respeito.

 

- Ricky - chamou Iris. - Quieto!

 

O cão farejou fatigantemente e, por fim, desistiu, amuou e foi deitar-se sobre algumas peças de roupa empilhadas num canto escuro da cozinha.

 

Ben colocou os troncos junto do fogão a lenha na extremidade da cozinha. Era um fogão de ferro gigantesco, uma relíquia do século passado, com enormes cantos curvos e pés de ferro forjado. Ela abriu a fornalha e empilhou alguns ramos em cima das cinzas quentes.

 

- Agora, deixe-me dizer-lhe por que o chamei - informou ela. - Tenho tido uma dor terrível no ombro direito, que desce até ao cotovelo. Nada do que faço parece ajudar.

 

- Quantas vezes por dia carrega assim lenha?

 

- Não sei. As vezes que preciso. Talvez três vezes por dia. Não é fácil quando há uma tempestade de neve. - Iris deitou água numa chaleira e colocou-a no fogão eléctrico do outro lado da cozinha. - Quer um café? - perguntou, pegando num frasco de café instantâneo que estava sobre o balcão e procurando numa gaveta uma colher para o medir.

 

- Não, obrigado. Mas posso dar uma vista de olhos a esse ombro, se quiser.

 

Ben fez sinal para ela se sentar à mesa da cozinha, colocando-se atrás dela e movendo-lhe suavemente o braço para trás e para a frente com a mão na articulação do ombro. Não havia sinais de artrite na articulação, caso contrário teria sentido um rangido quando ossos e articulações raspassem uns nos outros.

 

- Que acha que pode ser?

 

- É pior de manhã ou à noite?

 

- Dói sempre.

 

- Diria que é bursite. Precisa de descansar esse ombro. Talvez esteja a carregar demasiada lenha. Pare alguns dias para ver se fica melhor.

 

Iris pareceu preocupada.

 

- Mas não posso. O fogão mantém a casa aquecida-

 

- Não há ninguém que a possa ajudar com a lenha?

 

Ela lançou-lhe um olhar quase de pânico.

 

- Não - respondeu. - Vivo sozinha.

 

Em menos de vinte minutos, Ben acabara de levar uma grande pilha de lenha para o pequeno alpendre da porta das traseiras e arrumara-a cuidadosamente. Era uma mistura de troncos pesados de ácer e carvalho, pinheiro pegajoso de resina e vidoeiro que parecia embrulhado para presente com a sua casca branca como papel. Agora, tudo o que Iris tinha a fazer era ir lá fora e apanhar um tronco de cada vez. Depois, empilhou no chão de tijolo junto do fogão um abastecimento de lenha para dois dias, pelo menos.

 

- Portanto, descanse esse braço, mantenha-o quente e não faça esforços - aconselhou, recapitulando o simples tratamento. Quanto a ele, soubera-lhe bem acarretar a lenha. Sentia-se bem quando podia fazer um pouco de exercício físico que lhe permitia verificar o funcionamento da sua musculatura.

 

- Obrigada, Doutor Minor - agradeceu, indo buscar a carteira a outra sala. - Quanto lhe devo? Tenho o cartão Medicaid - disse, mostrando-lhe o cartão que tinha na carteira.

 

Ele abanou a cabeça, recusando.

 

- Está a brincar? O último médico que consultei obrigou-me a preencher papelada durante uma hora - informou ela, rindo-se.

 

- Está desapontada porque não tenho papelada para si?

 

- Não! - exclamou ela, pousando-lhe uma mão no braço.

 

Ben apertou-lhe a mão em sinal de despedida. O cão aproximou-se saltitando e abanou-lhe a cauda. Quando ia quase a chegar ao carro, Iris Murphy gritou-lhe da porta das traseiras.

 

- Por favor - chamou e deu-lhe um prato de tarte. - Leve isto. É tarte de amoras. Ainda está quente. Fi-la com as amoras congeladas que apanhei no Verão passado.

 

Ben abanou a cabeça.

 

- A sério, não é preciso.

 

- Por favor, aceite. Só a faço porque o meu marido gostava muito dela e sentir o odor de uma tarte no forno faz-me recordá-lo.

 

Ben acreditara sempre que a Cadillac construía os seus automóveis para percorrerem o asfalto liso dos estacionamentos dos clubes de campo e as entradas suaves das estações de serviço com restaurante. O seu modelo era dotado de quatro amortecedores hidráulicos que equilibravam as vibrações do chassi. As rodas moviam-se independentemente para absorver os impactes da estrada enquanto a carroçaria flutuava mais acima, suspensa num intricado sistema de molas lubrificadas e suspensão em T. Trabalhando em conjunto, estes componentes formavam a base daquele andamento cuidadosamente arquitectado que se apresentava como um passeio num carro de luxo que Ben viera a desprezar.

 

Agora, o automóvel que o pai mimara e que deixara ao partir deste mundo estava a ser estragado pelo filho. Depois de cair no primeiro buraco ao dar a curva para sair da estrada pavimentada, Ben não parecia conseguir evitá-los. A neve fora afastada da estrada de terra mas os ciclos de congelação e degelo tinham tornado a estrada quase impraticável - pelo menos para os pneus do carro de Ben. Logo que escapava a um buraco, caía noutro, até que, por fim, uma roda enterrou-se quase até ao eixo.

 

Ben parou o carro e saiu para ver a roda que se enterrara profundamente na estrada. Depois passou um dedo ao longo do risco comprido provocado pelo choque com a caixa de correio de Iris Murphy e abanou a cabeça. Verificou as indicações que Annie lhe dera. Reviu os seus pontos de referência: um pinheiro que fora partido por um raio e a que tinham nascido quatro ramos e um velho celeiro cinzento que se inclinava tanto para um lado que parecia que o vento o poderia deitar abaixo com uma boa rabanada. Era aqui que deveria estar. Pusera o seu conta-quilómetros a zero ao virar e preparou-se para percorrer quatro quilómetros até encontrar Fritz e Ula Higby na sua cabana de troncos.

 

No buraco que engolia o pneu direito dianteiro do Cadillac, a tarte de amoras que estava no lugar da frente inclinou-se para o lado. Pingos de molho espesso e doce deslizavam por baixo da camada superior com orifícios de ventilação decorativos, caindo no assento de veludo. Ben endireitou a tarte e lambeu um pouco do doce da palma da mão. Tentou arrancar de novo. As rodas mal rodopiaram na estrada escorregadia. Abanou o carro a partir do pára-choques traseiro, empurrando-o com as costas, até os pés lhe escorregarem. Caiu para trás, ficando sentado.

 

- Raios! - exclamou. A neve ensopava-lhe as calças de ganga. O fumo do escape soprava-lhe para a cara.

 

Voltou para o carro, desligou o motor e permaneceu sentado ao volante. Pelo conta-quilómetros viu que apenas andara quatrocentos metros. Nem sequer estava perto do local onde precisava de estar. Pelo menos tinha a tarte para combater a fome e podia derreter neve sobre o motor quente para beber água se tivesse que ser. Pensou na história que vira num daqueles noticiários televisivos ubíquos sobre um homem que ficara preso numa remota estrada de montanha encerrada devido a uma tempestade de neve. Mantivera um diário dos quarenta e três dias que vivera de bolachas de água e sal enquanto esperava que o salvassem. Descobriu-se que poderia ter percorrido oitocentos metros estrada abaixo e ser socorrido. Em vez disso, escolheu ficar sentado e esperar que a salvação chegasse. Ben não ia render-se tão facilmente.

 

Tudo estaria bem se ele não tivesse parado logo que atingira o buraco, perdendo o impulso que o teria levado até ao outro lado. A frustração, tão familiar, estrangulava-o. Não havia nada que pudesse fazer. Era como naqueles longos meses em que assistira a conferências importantes através da Internet, tentando manter-se a par, envolvido. E, nas altas horas em que o sono lhe fugia porque sabia que haveria outra ronda de comprimidos a dar, perdera-se em livros, que cobriam tudo, desde a endocrinologia até à cardiologia. Na televisão, sintonizara programas sobre medicina numa estação por cabo. Aí, os médicos debatiam actos clínicos durante horas: a litotripsia por ultra-sons, uma técnica que utilizava ondas sonoras para fragmentar pedras no rim em vez da cirurgia tradicional que deixa uma cicatriz da costela à anca. Havia até verdadeiros actos cirúrgicos em que os cirurgiões se exibiam perante os seus colegas. Ben fantasiava, amargamente, que um dia poderiam organizar um concurso televisivo para premiarem a intervenção cirúrgica mais rápida.

 

O manto de neve que cobria o solo criava um vazio em torno dele enquanto caminhava pela estrada em direcção à casa dos Higby. Tudo o que ouvia eram os seus próprios passos. De repente, ouviram-se corvos ao longe na floresta, erguendo-se do topo das árvores. Viu vários cruzarem o céu à sua frente. Os enormes pássaros crocitavam, produzindo entre si um som forte e áspero. As penas pretas e sedosas pareciam esticadas para trás numa espécie de rolo. Deviam ser cinco ou seis aves que circularam sobre ele, prestando-lhe uma curiosa atenção. Deslizaram, com as asas bem esticadas, de forma que as penas da ponta das asas pareciam estender-se, distinta e individualmente, como dedos. Depois, com uma viragem rápida para apanhar a brisa ascendente, bateram as asas ruidosamente em direcção ao Sol.

 

Quatro quilómetros não era muito para andar, pensou. O que era um quilómetro afinal? Doze quarteirões urbanos. Era isso, não era? Tudo o que tinha a fazer era andar cinquenta quarteirões. Muitas vezes fizera isso e mais, caminhando desde o hospital, no East Side, até ao apartamento de Giselle, entre a Broadway e a Amsterdam. O passeio fazia-lhe bem e permitia-lhe deixar o dia para trás. Mas este passeio inesperado pela floresta agora iniciado não contribuía em nada para lhe baixar a tensão arterial.

 

Escolheu o caminho até à estrada gelada, dando pequenos passos sobre o gelo - já caíra de costas uma vez e estava dorido. Mas o avanço era lento. Olhou por cima do ombro para ver o carro, cerca de duzentos metros atrás de si, com uma roda enterrada num buraco. Do que ele precisava era de areia para lançar sob os pneus, a fim de obter alguma tracção. De repente, algo lhe atingiu a cara. Virou a cabeça e verificou que chocara contra alguns ramos baixos de um pinheiro. As agulhas verdes arranharam-lhe muito a cara e, quando empurrou o ramo para o lado, este partiu-se. Sentiu um ímpeto de raiva e ficou ainda mais aborrecido ao ver como lhe era fácil irritar-se. Apanhou o ramo e atirou-o para a estrada. No entanto, a forma como o ramo aterrou deu-lhe uma ideia, pelo que quebrou mais ramos baixos da árvore.

 

Quando voltou para o carro, escavou com as mãos protegidas pelas suas luvas de cabedal e meteu um ramo em frente do primeiro pneu. Assegurou-se de que cada ramo era empurrado o mais possível para debaixo das rodas, mesmo que isso significasse estragar as luvas com resina de pinheiro. Depois ligou o carro e pisou, cautelosamente, o acelerador. Sentiu as rodas girarem de novo e acelerou um pouco mais, deixando o carro balançar para trás e para a frente e dando-lhe mais aceleração. Muito mais. Por fim carregou no pedal a fundo. De repente, os pneus agarraram, o carro movimentou-se para a frente e a roda saiu do buraco. Funcionara como ele pensara. Os ramos tinham fornecido a tracção de que precisava. Estava a caminho.

 

Após cerca de quilómetro e meio, a estrada descia para uma garganta estreita e Ben abrandou cuidadosamente encosta abaixo para atravessar um rio gelado por uma ponte de madeira de uma só faixa. Enquanto seguia a estrada encosta acima, sentiu os pneus patinarem de novo e acelerou, arrastando-se até ao cimo. As rodas traseiras andaram de um lado para o outro na estrada e a tarte balançou no assento ao seu lado. A encosta estava voltada a oeste e estivera totalmente exposta ao Sol durante a tarde. Agora, o Sol ia tão baixo que a neve derretida estava a converter-se outra vez em gelo. Este era o tipo de coisas em que nunca se pensava na cidade. Finalmente, a estrada tornava-se plana no topo do monte. Prosseguiu.

 

Fritz e Ula Higby viviam no meio de um pequeno bosque de vidoeiros numa cabana de madeira que eles próprios tinham construído. Liam à luz de um candeeiro de querosene, preparavam conservas com os seus próprios legumes do jardim no fogão de cozinha a lenha, matavam um alce ou um veado todos os Outonos para terem carne e tiravam água do seu próprio poço. A sua única concessão ao século XX parecia ser a velha carrinha Chevy, datada de finais dos anos sessenta. Numa mesa de ácer polido na grande sala comum da cabana, Ula serviu-lhe uma chávena de chá feito de folhas de hortelã-pimenta secas. Era uma mulher gorducha, de pele clara, de meia-idade, que o fitava com inexpressivos olhos verdes.

 

Fritz era um fanático. Era baixo mas forte, com um tronco poderosamente desenvolvido e um aperto de mão que podia partir uma noz. De facto, os seus movimentos rápidos e serpenteantes pareciam mais adequados a um esquilo do que a um homem. Sentou-se à mesa e discursou para Ben, com as sobrancelhas brancas farfalhudas em movimento constante. Estas juntavam-se como pedaços de corda quando ele se sacudia com tosse. Dava frequentemente socos no ar com as mãos fortes quando defendia alguma ideia.

 

- Não preciso de um médico - insistiu. - Ela é que conduziu até à cidade para o chamar.

 

O desprezo tresandava das suas palavras como o cheiro de alguma coisa morta na floresta.

 

- Tu é que me mandaste lá comprar os teus estúpidos cigarros e, quando ouvi que havia um médico de passagem, chamei-o - replicou ela com um sotaque monótono que tinha raízes nas línguas do Norte da Europa. Era evidente que a experiência utópica de vida primitiva estava a ficar seriamente desgastada.

 

- Desculpe - proferiu Fritz, virando-se para Ben. - Mas não vou ao médico há quarenta anos. Passo bem sem eles.

 

As palavras estrangularam-se-lhe na garganta devido a um ataque de tosse.

 

Ula mostrou a sua preocupação, pondo-lhe a mão nas costas enquanto ele tossia.

 

- Tinha de fazer alguma coisa, Fritz. Isto prolonga-se há demasiado tempo. Diga-me, doutor, é bronquite?

 

Ben abriu a sua mala e colocou o estetoscópio ao pescoço. A tosse de Fritz abrandou e este pegou nos cigarros que estavam na mesa da cozinha. Sacudiu o maço, tirou um cigarro e passou-o entre os dedos com desejo, esperando o momento em que o pudesse acender.

 

Ben auscultou-lhe os pulmões. Apoiou o estetoscópio nas costas de Fritz sob a camisa e moveu-o da esquerda para a direita e vice-versa, descendo ao longo de cada omoplata. Procurou identificar a fricção rouca de uma infecção ou o crepitar grosseiro da bronquite na base dos pulmões. Conseguia ouvir o fluxo de ar aspirado pela traqueia, semelhante ao rumor do vento assobiando por baixo de uma porta. Porém, ouvia-se um sibilo, subtil mas detectável. Seguiu o som mentalmente enquanto o ar se ramificava pelos brônquios, enchendo os sacos alveolares, onde em cada inspiração se dava a troca vital entre o oxigénio e o dióxido de carbono no sangue.

 

- Tem de se tratar se sofre de bronquite crónica, porque isso pode conduzir a um enfisema - informou Ben.

 

Fritz olhou-o fixamente até Ben desviar o olhar para começar a procurar uma caneta-lanterna na mala.

 

O cão, um velhote com o pêlo encaracolado, os olhos enevoados por cataratas leitosas e cheio de artrite, foi até à porta e ladrou uma vez de forma tímida como se se sentisse embaraçado pela sua necessidade. Ula abriu a porta para o deixar sair e, enquanto estava no alpendre de madeira na frente da cabana, curvou-se para apanhar um monte de lenha. Ben examinou a garganta de Fritz: para além dos dentes gastos e manchados de nicotina, havia um ponto inflamado em frente de uma amígdala e um inchaço de um lado da língua, tudo lesões pré-cancerosas. Ben desligou a luz da lanterna. Fritz puxou Ben para si.

 

- Às vezes, quando tusso, acho que não vou conseguir parar - murmurou.

 

Ben mal teve tempo de respirar antes de Ula voltar para dentro de casa e de Fritz o empurrar, já que não pretendia queixar-se em frente da mulher. Ben precisava de levá-lo a um especialista, mas não conhecia nenhum nesta floresta do Norte.

 

- Tenho setenta e oito anos. Quer saber por que não fui ao médico durante mais de quarenta? - perguntou Fritz com brusquidão, passando a sua disposição do medo à bravata.

 

- Porquê? - quis saber Ben, enquanto colocava de novo os instrumentos na mala.

 

- Porque levam muito dinheiro, raios! - cacarejou Fritz, o que desencadeou um ataque de tosse. - Está tudo bem - prosseguiu, com dificuldade em respirar. - Ainda não estou a morrer.

 

Ula partiu um ramo grosso sobre o joelho, junto à lareira, e agitou no ar uma extremidade denteada.

 

Fritz... - gritou. - Pára com isso - ordenou ela, olhando depois para Ben e novamente para Fritz, antes de baixar os olhos, voltar-se e ir ao fogão mexer novamente a sopa de feijão na panela.

 

- O meu último doente pagou-me com uma tarte - disse Ben. - Se isso lhe serve de algum consolo.

 

- Que diabo, não, eu pago - ripostou, precipitando-se para uma simples secretária cheia de pássaros talhados à mão com alguns centímetros de altura e pintados de cores vivas. Quando Ben chegara à casa e dera uma olhadela à sala, reparara que havia dúzias, talvez mesmo centenas, de minúsculos pássaros esculpidos, que o fitavam das prateleiras e dos nichos embutidos nas paredes de madeira da sala. Aquelas criaturas estavam por toda a parte.

 

- Quer dinheiro ou prefere uma destas belezas? - perguntou Fritz, pegando num dos seus pássaros de madeira pelo pescoço.

- Dou-lhe a escolher, herr doktor. Cinquenta dólares ou esta encantadora reprodução de um gentil chapim.

 

- Primeiro, acho que devia ir a um hospital fazer uma radiografia ao tórax. Dessa forma saberá com o que está a lidar.

 

- Uma radiografia ao tórax? - admirou-se Ula. - Quase tive de o amarrar a uma cadeira para o manter aqui até o senhor chegar.

 

Fritz deu um pulo e correu na direcção do casaco pendurado num cabide ao pé da porta. Em seguida, segurou o cigarro entre os lábios, pegou no machado que estava junto ao fogão, levou o machado ao ombro e precipitou-se para a mesa, fazendo com que Ben se levantasse de um pulo e saltasse para trás.

 

- Calma, doutor - articulou Fritz. - Só queria agradecer-lhe por ter vindo.

 

Com uma mão, acendeu um fósforo com perícia contra a áspera parte inferior da mesa da cozinha e levou-o à ponta do cigarro. Este brilhou quando Fritz inspirou, antes de estender a mão a Ben, com o cigarro firmemente apertado entre os lábios.

 

- Fritz, ouve o que o doutor te está a dizer.

 

O homem esforçou-se por reprimir um acesso de riso seco.

 

Ben descobriu que se encostara a um armário antigo e empurrara um gaio-azul de madeira. Fritz agarrou o pássaro no ar como pôde.

 

- Bem, se é o gaio que quer, é o gaio que terá - sentenciou, acariciando o pássaro na palma da mão e colocando-o na mão de Ben com grande cerimónia. - Obrigado, doutor, desejo-lhe melhor sorte com o próximo doente.

 

Fritz piscou o olho ao voltar-se, pôs o machado ao ombro e saiu porta fora. Vou cortar lenha, querida. Volto para o jantar.

 

Ula suspirou pesadamente.

 

- Lamento se ele o assustou. Anda sempre zangado e tem sido teimoso toda a sua vida. Eu era apenas uma rapariga de uma pequena cidade da Holanda quando casei com ele a seguir à guerra e não tinha a noção da sua excentricidade. Ele era um grande soldado americano que distribuía chocolates e pastilhas elásticas.

 

- Ele vai acabar por concordar, dê-lhe tempo - tranquilizou-a Ben. - Se conseguisse que ele deixasse de fumar, isso já seria uma grande ajuda.

 

- Não há qualquer hipótese - lamentou ela, abanando a cabeça. - Acho que é um hábito horrível. Fritz fumaria agulhas de pinheiro se lhe faltasse o tabaco. - Ula pigarreou algumas vezes. - Desculpe, mas com toda aquela tosse acho que me pegou. - Ula tossiu delicadamente e depois beberricou o seu chá. - Tenho apenas uma comichão no fundo da garganta - explicou, engolindo com dificuldade.

 

O gaio-azul esculpido repousava sobre o assento de veludo entre Ben e a tarte de amoras. Ben estava a acumular uma autêntica colecção de artigos. Mais um doente ou dois e teria o carro cheio de ofertas. Estava uma noite como ele nunca tinha visto, com a floresta e o céu tão negros que era como se conduzisse através de um túnel. Sentia-se cansado e com fome e a estrada dos Higby ficara traiçoeiramente gelada como uma pista de tobogã. Irritado, concluiu que fora demasiado solícito, como de costume. De alguma forma, as suas boas intenções de ajudar Annie e Julia tinham-se transformado, como uma bola de neve, em algo que já não conseguia controlar. Não podia culpar ninguém senão a si próprio. Agora, decidiu, continuaria apenas a conduzir e, uma vez chegado à estrada principal, segui-la-ia até esta se juntar à auto-estrada. Seguiria esse duro caminho até Nova Iorque. Não se sentia à vontade entre estes estranhos da floresta que viviam como se o resto do mundo pudesse desaparecer e eles não se importassem nada.

 

Se alguém lhe tivesse dito que sentiria a falta de Nova Iorque após apenas duas noites passadas fora, teria pensado que era um louco. Mas sentia, realmente, a falta do barulho e do movimento apressado da sua vida. Recordava aqueles longos passeios de Inverno que ele tinha feito com Giselle, deambulando pelo parque a sul do museu, passando pelo zoo, sob o arco do relógio e ao longo da álea com os bustos de bronze de Shakespeare, Robert Burns e outros grandes poetas. Seguiam este percurso, levando Giselle o casaco de lã trabalhada abotoado dos joelhos até ao queixo e ele, que habitualmente usava pouca roupa, com um fino casaco de cabedal, tremendo mas feliz. Ambos enfrentavam o vento que os chicoteava no Parque de Sheep’s Meadow. Giselle aconchegar-se-ia ao seu ombro com o braço enfiado no dele e com os longos cabelos soprados para trás.

 

Agora que vivia sozinho na casa dos pais, colocara o local à venda e decidira encontrar um pequeno estúdio, talvez num bairro sossegado da cidade - Tribeca ou Chelsea. Ou instalar-se-ia, pensou, mesmo no centro do Upper West Side e desafiaria Giselle a encontrar-se com ele em frente da secção de massa fresca e queijo do supermercado da zona.

 

Com a mente vagueando, chegou ao topo do monte dos Higby com uma rapidez que o surpreendeu. Teve de pensar um instante para se recordar onde estava. O carro parecia flutuar no espaço pairando sobre a brancura pura do gelo e da neve. Tentou manobrar, mas, ao girar o volante, não obteve qualquer reacção. Foi então que se apercebeu de que as rodas do Cadillac já não obedeciam ao seu controlo. Olhou pelo pára-brisas e viu a estrada que parecia precipitar-se à sua frente e os faróis inundaram de luz a curva antes da ponte estreita. O tempo movia-se lentamente e o pânico surgiu apenas quando compreendeu que não conseguiria fazer aquela curva para a ponte. Ben tentava agora conduzir um trenó com mil e quatrocentos quilos de peso que descia o monte a toda a velocidade apesar de ir quase de pé em cima do travão.

 

Nunca recordou por completo o momento do impacte, mas lembrava-se claramente do ruído das árvores raspando e batendo no carro enquanto atravessava o bosque de vidoeiros e mergulhava com o carro no rio gelado.

 

Algo estranho o distraiu enquanto sentia o cinto de segurança empurrar com força a sua clavícula. O carro datava da época anterior à introdução do air bag, pelo que não havia nenhum saco de náilon a explodir no ar para amortecer o impacte. (Além disso era um Cadillac - feito de forte aço americano.) O que lhe chamou a atenção no momento em que o carro parou foi a forma muito realista como o gaio-azul de madeira que Fritz lhe dera levantou voo, flutuando em frente da sua cara antes de aterrar no banco de trás. E a tarte que tinha ao seu lado... aquela querida tarte cheia de amoras silvestres envolvidas numa massa grossa também levantou voo. Mas, como a tarte não tinha as mesmas possibilidades aerodinâmicas do pássaro, quando aterrou, Ben sentiu uma humidade que se lhe espalhava pelo colo. Olhou para baixo e viu o brilho do prato de estanho da tarte reflectir-lhe a cara. Passou algum tempo a orientar-se e a tentar colocar a maior parte da tarte no devido lugar, embora ainda ficasse com pedaços de massa e amoras agarrados.

 

Ben ficou sentado no carro durante algum tempo depois de o motor parar. Encontrava-se num ângulo estranho. Os faróis do carro apontavam para baixo, na direcção da neve, e um brilho branco surreal espalhava-se em torno do veículo. Verificou se teria fracturas e contusões, mas não encontrou nenhuma. Tinha o sabor metálico do sangue na boca e tacteou o interior do lábio onde havia um pequeno corte. Devia ter mordido o lábio no impacte.

 

- Raios!

 

Aquele carro. Para o pai fora a marca do seu sucesso nos negócios. Ben ainda o conseguia ver a passar uma camurça macia sobre o capô, depois de o ter lavado numa tarde de domingo. O pai de Ben acreditava que o Cadillac era, simplesmente, o melhor carro do mundo. E agora o guarda-lamas da frente estava amachucado, o pára-choques estava amolgado e até um dos pneus da frente estava furado.

 

Estava uma noite traiçoeiramente fria para alguém ficar perdido na floresta. Ben remexeu no porta-luvas à procura da lanterna de emergência do pai. Teria de continuar a pé e depois conseguir que alguém na cidade rebocasse e reparasse o carro. A luz amarela da pequena lanterna, seguiu as marcas dos pneus na neve que saíam da estrada. Acima dele encontrava-se a ponte de madeira de uma só faixa que atravessava a pequena garganta. Era espantoso que não tivesse embatido num dos grandes pinheiros ou carvalhos que salpicavam a encosta do monte. Perto de uma árvore, cerca de quatro metros atrás, encontrou um dos retrovisores na neve. Havia um corte largo e profundo na casca e resina escorria da madeira clara do interior. Se a árvore fosse carne, poderia ter enfiado uma agulha fina e feito suturas de seda através das camadas de madeira e casca, como se fossem músculo e pele, para fechar a ferida. Uma simples sutura teria reparado o músculo subjacente, enquanto um trabalho de costura mais refinado, o toque de um cirurgião plástico, teria dissimulado a cicatriz superficial. Apanhou o espelho e, cedendo à sua fúria fervilhante, atirou a peça pelo ar na direcção do carro. Quando o atingiu, e ele nunca tencionara fazê-lo, partiu um dos farolins vermelhos da retaguarda.

 

- Raios!

 

Agitou a mala no ar, enfiou o punho com força no bolso do casaco e trepou pelo monte.

 

Estava mais próximo da estrada principal e, por isso, virou nessa direcção. Apenas a hipotermia o teria forçado a voltar aos Higby. Neste preciso momento, não estava com vontade de suportar as suas peculiaridades. Se conseguisse fazer parar alguém na estrada principal, talvez o pudessem levar de regresso à cidade e de regresso a Annie e Julia, que o ajudariam a resolver tudo.

 

Apesar do seu mau humor, pensar em Annie e Julia fê-lo sentir-se um pouco melhor. Perguntou-se se a infecção no ouvido de Julia já teria desaparecido por completo, já que naquela manhã parecia certamente muito melhor. Sentia uma verdadeira ternura quando pensava em Julia. Talvez fosse porque ela parecia tão à vontade no seu mundo e porque havia uma proximidade enternecedora entre ela e a mãe, presente mesmo nos momentos em que se atacavam uma à outra. Esta relação mãe-filha que parecia tão natural e única apanhara-o de surpresa. Havia uma corrente suave entre Annie e Julia. De certa forma, Ben invejava-a.

 

Quando atingiu a estrada principal, esperou que alguém passasse. Eram quase sete horas e estava agora cheio de fome e de frio.

 

Gostaria de ter comido parte da tarte. É claro que ainda tinha migalhas agarradas às calças de ganga, mas devia ter comido alguma coisa quando podia. Não tinha nada com que saciar a fome ou a sede. E começava a parecer que estava metido em sarilhos. Não passavam quaisquer carros. Olhou para cima e para baixo à procura de faróis, mas não viu nenhum. Uma dúzia de soluções relampejou-lhe na mente - podia voltar para o carro, comer os restos da tarte estragada e fazer lume para se aquecer. Mas não tinha fósforos. Porém, se o isqueiro funcionasse, podia utilizá-lo para queimar algumas folhas secas e fazer lume. Estava a tremer e tinha de encontrar alguma maneira para se aquecer. O frio penetrava-lhe dolorosamente pelas solas finas dos sapatos. Balançou-se e bateu com os pés no chão, esperando que o movimento muscular gerasse um pouco de calor dentro do seu corpo para ajudar a manter a temperatura. O frio chamava a atenção para a urgente e extraordinariamente perturbadora necessidade da sua bexiga. Sentia-se infelicíssimo.

 

Esperou junto a um monte de neve depositado por limpa-neves de passagem. O Inverno não costumava ser fácil, pensou. Mas, estranhamente, o Inverno nesta floresta do Norte parecia mais grave do que nas estradas de betão a que estava habituado na cidade.

 

Ben nunca urinara na floresta, mas já não podia esperar mais. Não era assim tão mau. Meteu a mala de médico debaixo do braço, escolheu uma posição encosta abaixo com o vento pelas costas e preparou-se. Logo que começou, nem conseguia acreditar no seu imediato bem-estar. Era como se se sentisse mais leve, de facto, e até o campo nevado à sua volta parecia mais alegre. Nessa altura, ouviu um carro.

 

Enquanto puxava o fecho das calças, a zona em torno dele ficou iluminada como se fosse dia. Quando se voltou, tudo o que viu foi um forte feixe luminoso de halogéneo. Isto fê-lo pensar naqueles estranhos raptos alienígenas que tinham lugar em estradas solitárias. Talvez ele fosse levado para algum sistema solar distante como um espécime do planeta Terra. Foi então que ouviu uma voz característica.

 

Ben Minor? - chamou um homem.

 

- Sim - respondeu, procurando afastar-se do foco de luz para poder ver quem lhe falava. Mesmo assim, tudo o que conseguia ver era a figura escura de um homem debruçado da porta aberta da sua carrinha.

 

- Que diabo, homem, que aconteceu?

 

- O meu carro... tive um acidente com o meu carro ali atrás - informou, apontando vagamente para a escuridão.

 

- Partiu alguma coisa? Torceu, forçou ou distendeu algum órgão vital?

 

- Não, estou bem.

 

- E andou este caminho todo?

 

Ben assentiu.

 

- Pareceu-me um bom plano na altura.

 

- Claro, claro. Bem, é melhor deixar-me dar-lhe uma boleia antes que morra de frio. Que diabo, homem! Entre.

 

Ben dirigiu-se, apressadamente, para o lugar do passageiro, entrando para um veículo gigantesco com tracção às quatro rodas. O cheiro a cabedal envolveu-o logo que fechou a porta. Era óptimo sentir-se quente de novo. O painel de instrumentos da carrinha tinha um brilho pálido verde-azulado e na consola central havia um ecrã de sensores com leituras digitais da temperatura e do funcionamento do veículo. Parecia mais a cabina de um Boeing 747 do que de um carro. Virou-se para o condutor que lhe sorria de forma suave e compreensiva. O homem tinha um bigode espesso, caído preguiçosamente sobre o lábio, que tornava a sua face magra e angulosa ainda mais comprida. Já devia ter passado a meia-idade, mas a sua cara tinha uma jovialidade de rapaz que parecia escapar ao tempo. Talvez tivesse algo a ver com os seus olhos castanhos ou com a forma como o cabelo, seco com o secador de mão, lhe caía para trás tão espesso a partir da testa.

 

- Annie estava preocupada - informou o homem. - Eu próprio admito ter sentido algumas pontadas. Isto é, de preocupação. - Tinha uma voz profunda que ressoava com familiaridade devido a vestígios de um sotaque e à forma única como construía as frases. - Vou telefonar-lhe a dizer que o encontrei. - Marcou um número no telemóvel. - Águia um à base - falou para o telefone, erguendo uma sobrancelha na direcção de Ben - Encontrei o bom doutor. Vou levá-lo. - Passou o telefone a Ben enquanto virava a carrinha para a estrada. - Ela quer falar consigo.

 

- Annie?

 

- Que aconteceu? Estava quase a chamar a Polícia Estadual. A sua voz soava-lhe bem. A preocupação era genuína. - Perdeu-se? Eu sabia que devia ter ido consigo.

 

- As suas indicações eram óptimas - disse ele. - Tive problemas com o carro.

 

- Esse carro não serve para conduzir no Inverno, Ben.

 

- Isso sei eu - concordou. - De manhã vou mandar rebocá-lo para a cidade. Isto é, se o conseguirem tirar do leito do rio, claro. - Tinha a boca tão seca e áspera que só conseguia falar com esforço.

 

- Só um segundo, Julia quer falar consigo - pediu ela, passando o telefone à filha.

 

- Ben?

 

- Como te sentes, Julia?

 

- O meu nariz ainda pinga um bocado, mas já não me dói o ouvido.

 

- Ainda bem.

 

De repente ouviu-se estática na linha.

 

- Julia? - chamou, mas a ligação caíra.

 

- Houve um corte?

 

- Acho que sim.

 

Às vezes acontece. Quase sempre, na verdade. Maldita tecnologia imperfeita.

 

Ben passou-lhe o telefone.

 

- Estou contente por ter aparecido. Ia deitar fogo ao meu lenço ou às meias. Tudo para obter algum calor.

 

- Ao menos tinha fósforos?

 

Ben abanou a cabeça.

 

- Podia ter esfregado paus, calculo.

 

- Nunca Saio de casa sem um kit de sobrevivência completo. Sabe, um cobertor espacial, fósforos, rações de emergência. Para o caso de acontecer alguma coisa.

 

- Bem, acho que hoje aprendi essa lição.

 

Seguiram ao longo da estrada. Ben afundou-se no calor macio do assento de cabedal aquecido do carro. Não ficara realmente assustado lá fora sozinho, mas atingira, decerto, os limites máximos do desconforto. Na rádio, uma canção pop indiana com traços melodiosos de cítara e tabla parecia envolver o som monótono de uma cantora cuja voz se erguia acima de tudo o resto como incenso. A melodia fazia com que a cabeça de Ben zumbisse e, no seu cansaço, sentiu que estava a adormecer.

 

- Não me apresentei como devia - disse o homem. Baixou o volume do rádio, tocando com o dedo em determinado local do ecrã. - Sou Sonny Wood - disse, tirando a mão do volante e apertando a de Ben.

 

- Calculei isso - replicou Ben, encolhendo os ombros.

- Que posso dizer? Parece que o conheço.

 

- Engraçado, é o que a maioria das pessoas diz. Se viajar pelo Nepal ou estiver a pescar tubarões numa ilha do Pacífico, é claro que há sempre uma voz que se ergue acima das outras e diz: «Sonny Wood.» Agora já não me surpreendo.

 

Sonny voltou a aumentar o volume do rádio e, uma vez mais, a cantora começou a gemer e a lamentar-se. Era uma melodia de som agradável e recordou a Ben a música tocada nos restaurantes indianos de Manhattan onde costumava comer por pouco dinheiro com Giselle. Havia algo de incongruente naquela música enquanto atravessavam as florestas do Maine. Isto não queria dizer que devessem estar a ouvir músicas dos lenhadores canadianos, era apenas outra combinação estranha. Por enquanto, começou a compreender, teria que suspender as suas expectativas porque estavam todas a demonstrar-se muito erradas. Relaxou-se no assento. Agora, não havia nada a fazer senão render-se à corrente que o puxava para a frente.

 

O quente e exótico aroma a caril saudou Sonny e Ben quando entraram pela porta. As panelas ferviam no fogão, a mesa estava posta, as velas cónicas estavam acesas e uma garrafa de vinho arrefecia num balde cromado. O rádio tocava Jazz, o lume crepitava no fogão a lenha. Sonny tirou as botas forradas a pele, que caíram no chão, e gritou que tinham chegado. Ben afastou com um piparote os leves sapatos de camurça preta, ensopados pela neve húmida.

 

- Sonny! - gritou Julia enquanto descia a escada batendo com os pés e correndo para os seus braços.

 

- Olá, batatinha frita! Onde está a tua mãe?

 

- Lá em cima. Já desce.

 

- O jantar cheira muito bem - elogiou Ben, entrando na cozinha e tirando um copo do armário. - Posso beber um copo de água? - perguntou. Sentia-se terrivelmente desidratado pelo vento e pelo frio.

 

Julia deixou correr a água.

 

- Se esperar um minuto, a água fica mesmo fria.

 

Ben encheu o copo e bebeu a fria água do poço que tinha um ligeiro sabor a ferro. A sensibilidade voltou-lhe à boca e à língua e sentiu-se um pouco menos exausto. Sabia tão bem tirar os sapatos e aquecer os dedos enregelados perto do fogão a lenha. Sonny estava na cozinha temperando a comida ao lume.

 

- Não o ponhas picante de mais - recomendou Julia.

 

- Tem de ficar forte ou então não é autêntico - observou Sonny. - Além disso, pensei que gostavas de picante.

 

- Não quando me deixa a língua toda «ricante».

 

- «Ricante»? Que tipo de palavra é essa?

 

- Inventei-a - riu-se Julia.

 

- Parece um termo médico, não parece?

 

Ben instalara-se confortavelmente no sofá e esfregava os dedos dos pés. Pensava no carro e se o seguro o reembolsaria pelo reboque. Meu Deus, pensou, valeria mesmo a pena salvar aquela coisa? Mas ainda havia uns óculos de sol do pai no porta-luvas. Ele próprio os usara por vezes. Eram óculos de aviador de metal pintado com lentes polarizadas, que tinham estado muito na moda nos anos setenta.

 

- Chamam o Doutor Minor - anunciou Sonny.

 

Ben levantou o olhar para ele.

 

- A minha amiga Julia não quer comer a comida demasiado picante porque diz que lhe torna a língua toda «ricante». Nos anais da história médica, sabe se alguém sofreu da doença da língua «ricante»?

 

Ben colaborou.

 

- É extremamente rara - esclareceu. - De facto, acho que não há um caso dessa doença neste país desde a grande epidemia de gripe belga de mil oitocentos e noventa e nove. - Tirou a caneta-lanterna da mala e pediu a Julia que se aproximasse. - Abre bem a boca. - Examinou-a e recuou com horror fingido. - Vê-se a característica linha negra na língua. Tens a doença da língua «ricante». Isolem as portas e as janelas, teremos que ficar de quarentena.

 

- Deixe-me ver - pediu Julia. Tirou-lhe a lanterna e correu a examinar a língua no espelho da casa de banho.

 

- Acho que a apanhámos - murmurou-lhe Sonny. Ela voltou para a sala a correr.

 

- Não tenho nenhuma linha preta na língua.

 

Ben olhou de novo.

 

- Tens razão. Diagnóstico errado. Acontece muito. Estás cem por cento saudável.

 

Annie desceu a escada e Julia correu até ela.

 

- Aqueles dois estão a ser maus para mim - queixou-se.

 

- É verdade, rapazes?

 

Ben e Sonny olharam timidamente um para o outro.

 

- Era apenas uma brincadeira - justificou-se Sonny.

 

- Como se hoje não tivéssemos já tido entretenimento suficiente. - disse Annie e abraçou Julia. O seu rosto empalidecera desde que Ben a vira ao início da tarde, os seus lábios tinham-se apertado e a cor natural da face desaparecera. - Ben, que aconteceu?

 

- Encontrei-o a andar pela estrada - explicou Sonny. - Embora estivesse a fazer um intervalo quando cheguei, não foi?

 

Ben não se deixou apanhar.

 

- Perdi o controlo do carro no topo de um monte, na floresta. Havia uma minúscula ponte de madeira sobre um rio e percebi, a meio caminho pelo monte abaixo, que não conseguiria fazer a curva. Foi como se o carro fugisse.

 

- Mas não se magoou nem nada?

 

Annie tocou-lhe no ombro, genuinamente preocupada.

 

- Não, estou óptimo. Porém, o carro precisa de algum trabalho.

 

- Não se preocupe. Amanhã arranjo alguém para tratar disso - ofereceu Sonny. - Olhe lá, o que está a escorrer pela parte da frente das calças?

 

- A única vítima do acidente foi a tarte da Senhora Murphy. Ben olhou para a mancha pegajosa que tinha na parte da frente das suas calças de ganga. Felizmente, pensou, graças à crosta superior, o recheio não se tinha entornado de todo.

 

- Provavelmente foi melhor assim •- gracejou Annie, reprimindo o riso. Julia e Sonny juntaram-se-lhe.

 

- Porquê? Parecia uma oferta agradável.

 

- Não comeu, pois não? - perguntou Julia.

 

- Não, não tive oportunidade.

 

- As tartes da Senhora Murphy são intragáveis - disse Annie. - Não sei como se arranja, mas consegue transformar as amoras mais doces nas tartes mais pastosas e de sabor mais horrível. Acho que utiliza algum tipo de margarina artificialmente aromatizada para a cobertura. - Annie estremeceu. - E deve usar montes de farinha, porque é como se as amoras estivessem metidas em betão.

 

- Horrível - uivou Sonny. - É a única palavra para as descrever. A primeira vez que tentou impingir-me uma, provei-a, julgando que aquela doce velhinha sabia fazer tartes. Uma dentada! e pensei que algo de errado se passava com a minha boca. Pensei que a minha língua se tinha tornado «ricante».

 

- «Ricante»! - gritou Julia, saltitando e rindo.

 

- Bem, algo de bom tinha de acontecer hoje... - concluiu Ben, remexendo na mala que estava onde ele a deixara, num canto do sofá, até encontrar um par de calças caqui.

 

Ben mudou de calças no pequeno lavabo do vestíbulo. Sentia-se como um rapaz, tirando as calças de pé sobre o felpudo tapete azul. Annie bateu à porta.

 

- Ben - chamou. - Deixe essas calças na cesta, vou lavar roupa mais tarde e junto-as.

 

- Está bem.

 

Agora, sentia bem mais do que uma simples humilhação. Puxou o fecho, lavou as mãos e secou-as na toalha que ela lhe oferecera. Quando saiu do lavabo, Sonny estava à espera.

 

- Tudo a postos?

 

- Acho que sim.

 

- Assim é que é - disse, fazendo um gesto na direcção de Ben que estava ainda em frente da porta. - Posso passar? Preciso de entrar rapidamente.

 

Baixou a voz num murmúrio.

 

- Não fiz nenhuma paragem para urinar ao ar livre como o doutor.

 

Sonny fechou a porta atrás de si e Ben foi até à cozinha, onde Annie estava junto do fogão, debruçada sobre uma panela, deitando triângulos de massa em óleo quente. Julia estava sentada num dos bancos altos ao balcão do pequeno-almoço que se estendia numa das extremidades da cozinha, transformando bolas de massa em rodelas.

 

- Meu Deus! - exclamou Ben. - Deve ter estado a cozinhar toda a tarde.

 

- Não, preparei uma refeição rápida.

 

Annie piscou-lhe um olho, retirou com uma escumadeira algumas chamuças do óleo quente e escorreu-as em guardanapos de papel.

 

- Mmm - apreciou Ben. - Parecem óptimas.

 

- Faço-as uma vez por mês e congelo-as. São o prato preferido de Sonny. - Desligou um dos queimadores do fogão. - Tome cerveja e dê-me outra já agora. Vamos comer daqui a nada.

 

Enquanto se dirigia ao frigorífico, sorriu a Julia e esta continuou a transformar a massa em rodelas.

 

- Mãe, posso beber uma cerveja?

 

Annie abanou a cabeça.

 

- Sonny deixa-me sempre beber um pouco da sua cerveja.

 

- Então devias pedir-lhe a ele - comentou Annie, rindo abafadamente. - Sonny bebe daquela cerveja sem álcool - murmurou a Ben enquanto este abria as garrafas no balcão. - Não suporto aquilo. Parece gasosa com sabor a cerveja.

 

- Annie - começou Sonny, aparecendo na cozinha -, desta vez excedeste-te! - exclamou, abrindo uma das suas cervejas sem álcool e bebendo-a. Depois aproximou o nariz de um prato que estava sobre o balcão e fungou. - Fizeste a tua beringela agridoce.

 

- Porque sei que a adoras.

 

- Fantástico, minha querida.

 

Sonny levou Ben para a sala de jantar.

 

- Vamos, saiamos do caminho.

 

- Levem isto para a mesa. E vou pôr o pão no forno - anunciou Annie, dando a Sonny um prato cheio de chamuças e pilhas de fatias de pão papadum estaladiças. Na mesa estavam dispostas taças com molhos picantes e doces.

 

- Falei com Leo esta tarde - comunicou Annie. - Todos os tratamentos estão a correr bem. Diz que o filho, Jason, está a tentar obter uma licença para vir a terra, de emergência, para os visitar.

 

- Fizeram a angioplastia? - perguntou Ben.

 

- Era dessa que Leo não se conseguia lembrar. Chamou-lhe sempre o tratamento do balão. Ela ainda está na Unidade de Cuidados Intensivos Coronários.

 

- Aí podem mantê-la sob vigilância.

 

- Então, como correram hoje as suas rondas, doutor?

 

Sonny sentou-se à cabeceira da mesa e fez um gesto na direcção de Bem para que este se sentasse à sua direita.

 

- Bem, a Senhora Murphy tem apenas uma leve bursite...

 

- Pois é, a pobre velhota - corroborou Sonny. Enrugando a cara, inclinou-se e fez tremer a cabeça e as mãos. Julia divertiu-se.

 

Ben bebeu um pouco mais de cerveja.

 

- Mas depois fui até aos Higby.

 

- Os quem? - perguntou Sonny, levando uma mão atrás da orelha e fingindo ser um velho tonto e surdo.

 

- Os Higby.

 

- Sabes quem são. O casal idoso que vive na cabana de madeira do outro lado do monte Hemlock - esclareceu Annie, trazendo um prato com arroz de açafrão e lançando a Sonny um olhar fulminante.

 

- Desculpa, estava só a tentar ser engraçado.

 

- Estão longe. Muito longe - comentou Ben, deitando molho picante no prato.

 

- Mudaram-se para aqui para voltar à terra, construíram aquela cabana e criaram os filhos - disse Annie. - Ela nunca foi feliz aqui. •

 

- Ele parece ser um pouco nervoso.

 

- Nunca ouviu falar dos sapatos Higby? - perguntou Annie.

 

Ben abanou a cabeça.

 

- Fritz Higby mudou-se para aqui, deixou o irmão a dirigir a empresa no Ohio e recebe um cheque todos os meses - explicou Annie. - Guarda o dinheiro todo. Tem mais do que muitas pessoas da zona.

 

- Portanto, não são exactamente o que parecem - concluiu Ben.

 

- De maneira nenhuma - afirmou Annie. - Mas alguém será? - Encolheu os seus pequenos ombros. - Que se passa com Fritz? Para além do que já sabemos.

 

- Apenas uma radiografia ao tórax o dirá. Fuma de mais.        

 

- Já passei por isso - interveio Sonny, desviando a conversa.

 

- Fumava dois maços por dia até conhecer Annie. Ela convenceu-me de que estava a destruir a voz. Quero dizer, nem todos os tipos • de meia-idade podem ganhar a vida cantando como Bob Dylan.  

 

- Sonny ergueu as suas longas e ossudas mãos para mostrar o que queria dizer. - Dez sessões de acupunctura com aquela deliciosa chinesa, minúscula, parecida com um pardal. E fiquei curado.

 

- Deixou alguém espetar-lhe agulhas? - perguntou Julia.

 

Estava sentada em frente de Ben.

 

- Montes delas, querida - informou, partindo um pedaço de papadum e passando-o pelo molho acre. - Era como uma almofada humana de alfinetes. Estavam por toda a cara e nas orelhas, até tinha uma agulha minúscula mesmo no alto da cabeça.

 

- Não magoava?

 

- Quase não a sentia. Mas fez-me deixar de fumar - acrescentou Sonny, mastigando um pedaço do pão estaladiço. - E de coser também, agora que penso nisso. Nunca mais dei um ponto,

 

Piscou o olho a Julia.

 

- Os Chineses usam a acupunctura para anestesiar as pessoas para a cirurgia - disse Ben.

 

- Só para pequenas operações, não é? - perguntou Annie.

 

- Já ouvi falar de dentistas que a utilizam para brocar dentes - gabou-se Sonny, exibindo-se.

 

- Usam-na mesmo em grandes intervenções, como ao coração e à vesícula biliar. Estranhamente, as agulhas bloqueiam a dor.

 

- Sempre me interessei por isso - observou Annie.

 

A comida estava na mesa e Annie fez um gesto na direcção de Ben para que este se começasse a servir. Havia pão caseiro, recheado de cebola cortada e hortelã, que ela cozera no forno. Era um festim. E ele estava esfomeado.

 

- Isto é óptimo - elogiou Ben. - Os sabores parecem estar todos reforçados.

 

- É uma cozinheira extraordinária, não é? - gabou Sonny, piscando o olho. - Bate qualquer outra, de longe! Soube-o logo que a conheci.

 

- E como se conheceram?

 

- É tão romântico - interveio Julia, que procurava, com muito cuidado, evitar que os diferentes alimentos no seu prato se misturassem.

 

- Não, não é nada. A sério.

 

Annie não queria que se contasse a história, mas Sonny ia fazê-lo de qualquer maneira.

 

Estava em Aspen a dar um concerto de Inverno. Já estava farto de viajar há muitos anos, mas aventurara-me outra vez e não estava a gostar nada. Depois do espectáculo, saí já tarde para jantar com um livro por companhia, The Autobiography of a Yogi, uma leitura extraordinária. Foi então que conheci Annie. Era tão tarde que o restaurante estava a fechar, mas ela manteve-o aberto e cozinhou para mim.

 

- Pois foi. Contra todo o bom senso... - confirmou Annie rindo um pouco dolorosamente. - Bem, o resultado até não foi muito mau. Fiz-te enchiladas de legumes grelhados, que disseste adorar.

 

- Sou vegetariano desde que fui à Índia em sessenta e sete - explicou ele a Ben. - Mas Annie sabia exactamente o que fazer. Depois, veio à minha mesa com uma fatia de bolo de chocolate e...?

 

- Amêndoas moídas e canela - respondeu ela.

 

- Amêndoas e canela - repetiu ele, sorrindo-lhe de forma pessoal e tímida. - Conversámos a noite toda.

 

- O pessoal do turno da manhã vinha a entrar quando saímos.

 

- Nunca acabei de ler o meu livro.

 

- Mas não passaste fome - brincou Annie.

 

- Isso é verdade e nunca mais faltei a uma refeição desde que nos conhecemos.

 

Ben tentava concentrar-se no que estavam a dizer e não na outra corrente que fluía entre eles, a ligação de que não falavam, e perguntou:

 

- Então, quando é que se mudaram para aqui?

 

Annie olhou para Sonny. Um relógio tocou na cozinha e fê-la dar um salto. Parecia oportuno.

 

- Esqueci-me de desligar aquilo.

 

Enquanto Ben mergulhava numa segunda dose de tudo, reparou que Annie não comia muito. Comera algum arroz e umas poucas garfadas, mas o prato parecia praticamente intacto.

 

- Não come os seus próprios cozinhados?

 

Ela baixou os olhos para o prato.

 

- Sabe como é, o cozinheiro está sempre a petiscar na cozinha. Nunca tenho fome quando estive a cozinhar todo o dia. Estranho, não é? Além disso, sabe-me sempre melhor no dia seguinte.

 

- Então, Doutor Minor, fale-nos um pouco de si - sugeriu Sonny, mudando de assunto.

 

- Que posso dizer? - Não gostava de falar de si próprio, especialmente agora que tantas emoções se revolviam no seu interior. - Vim para aqui arrumar as ideias.

 

- Este é um bom sítio para isso - disse Annie, sabiamente.

 

Sonny acrescentou:

 

- Todo o ambiente aqui faz maravilhas pela minha meditação. Acho que é uma daquelas zonas geomagnéticas onde tudo está alinhado correctamente.

 

Annie sorriu.

 

- Sonny gosta de andar pelo mundo e depois voltar para aqui, onde ninguém presta atenção a quem ele é.

 

- Não tenho de me preocupar com a Nikon de um fotógrafo italiano a tirar um instantâneo da minha cara. Já tentou atravessar um aeroporto ou andar por uma rua quando as pessoas estão a tentar fotografá-lo?

 

- Não posso dizer que sim.

 

- É um maldito inferno. Eu e a terceira Senhora Wood fomos uma vez fotografados juntos no banho. Nem sei que lente telescópica estaria aquele tipo a usar.

 

- No banho?

 

- Sim, no raio da banheira.

 

Annie fez um sinal quase imperceptível a Sonny e ele virou-se para Julia, que o fitava de olhos arregalados.

 

- Estavam nus? - perguntou ela.

 

- Sim, batatinha frita, tal como no dia em que nasci.

 

- Então é esse o atractivo deste lugar, a privacidade? - perguntou Ben.

 

- Quando quero brilho, tenho um apartamento no Mónaco. Se quero sol, vou para Montserrat. Quando tenho saudades e sinto a falta da velha Inglaterra, tenho uma casa nos arredores de Londres. Mas quando preciso de um pouco de paz e amor e de todas essas coisas boas venho para aqui.

 

Olhou por cima da mesa para Annie e esboçou um leve sorriso triste e derrotado.

 

Então, viajam juntos? - perguntou Ben, tentando trazer Annie de novo para a conversa. Já não conseguia suportar mais os queixumes de Sonny.

 

- Quando podemos - respondeu Annie. - Julia tem lições durante as viagens e Leo toma conta dos cães.

 

- Fomos a Nova Iorque pelo Natal - contou Julia. - Sonny levou-nos no seu avião e ficámos num grande hotel, comemos num restaurante onde nos tínhamos de vestir bem para nos deixarem entrar e vimos as Rockettes.

 

- Isso foi muito agradável - recordou Annie. - Não ia a Nova Iorque há anos. De certa forma, conseguimos divertir-nos mais lá como turistas. Quando lá vivia, estava demasiado ocupada para me divertir.

 

- Foi onde conheceste o pai, não foi?

 

Annie empalideceu.

 

- Conheci o pai de Julia quando andava a estudar. Não foi a melhor das relações, mas deixou-me algo de bom. - Sorriu para a filha. - Estás sempre a recolher material, Julia. Vais ser detective ou escritora.

 

- Acho que preferia ser escritora - decidiu. - Os detectives têm de matar pessoas. - Sorriu abertamente e prendeu um caracol do seu cabelo frisado atrás da orelha.

 

- Raios! - exclamou Sonny, olhando para o relógio, uma máquina aeronáutica de ouro polido que registava três fusos horários. - O Dow fechou hoje mais cedo, mas tenho grandes esperanças no Nikkei. Vou até ao escritório tratar de alguns negócios matutinos. Não te importas, querida?

 

Annie encolheu os ombros.

 

- Não me demoro - avisou, correndo da mesa para o escritório.

 

- Algumas pessoas perdem o seu dinheiro nos casinos, mas Sonny prefere jogar nas bolsas do mundo. Compra e vende pelo computador, registando as acções que sobem, descem ou andam de lado.

Um grito ergueu-se do escritório por onde Sonny desaparecera.

 

- Subiram quatro pontos! Inacreditável.

 

- Quero ver isso - gritou Julia, enquanto se afastava a correr.

 

Annie suspirou.

 

- Para mim, é tão excitante como ver erva a crescer. Sonny gritou de novo.

 

- Subiram mais um oitavo!

 

- Parece que está a ter êxito.

 

- Bem, podemos ir ver o que se está a passar. Não é? - perguntou Annie, levantando-se da mesa.

 

- Gosto imenso de fazer os meus próprios negócios e de mexer no mercado japonês. Há uma tal sensação de excitação, sabe, aqui é de noite mas do outro lado do mundo está um pandemónio. Além disso, é bastante bom saber que, no piscar de um electrão, acabei de ganhar dez mil dólares - confessou Sonny.

 

Os seus lábios encurvaram-se com a extrema autoconfiança de um homem cujas canções melodiosas lhe tinham conquistado tantos discos de ouro. De repente, perante eles estava um homem que se tornara famoso por, habilidosamente, tocar alguns acordes numa guitarra e criar harmonias complexas. Mas o que se erguera tão depressa caíra de forma igualmente precipitada. No apogeu, a sua banda desentendera-se e depois dissolvera-se. As pessoas lamentaram-no. Agora, era alimento bem conhecido de revistas de mexericos que a carreira a solo de Sonny tivera mais altos e baixos que a bolsa russa.

 

Entretanto, Sonny preenchera o seu tempo construindo casas em florestas, aprendendo a pilotar o seu próprio avião e gerindo as suas contas de investimento. Ben sabia bem o que significava ter de preencher o tempo. Talvez Sonny tivesse descoberto o mesmo que ele: corresponder às expectativas dos outros e às obrigações não é, realmente, uma boa forma de vida.

 

Ben observou Annie enquanto esta recuava para a mesa da sala de jantar onde todo o seu trabalho estava a arrefecer. Começou a levantar os pratos e a recolher os talheres. Tinha os ombros caídos e ouviu-a suspirar enquanto arrastava os pés até à cozinha. Dirigiu-se à mesa para levar alguns pratos para a cozinha enquanto Sonny se alegrava de novo com os seus ganhos na bolsa. Quando ela virou a esquina, não o viu e, por um momento desprevenido, ele viu a forma como os seus olhos tinham mudado. Pareciam magoados e perturbados. Quando ela levantou os olhos e deparou com ele, tentou apagar a preocupação tão evidente na sua face.

 

- Mais uma vez, obrigado pelo jantar - disse ele, sentindo que nunca agradeceria o suficiente a forma como ela o estimulara, a forma como se dedicava aos seus cozinhados.

 

- Tem de se vender quando as acções estão em alta e comprar quando estão em baixa, batatinha frita.

 

Ben ouvia Sonny a falar com Julia.

 

- O nosso amigo está mesmo a divertir-se - comentou Ben.

 

- Na verdade, é como se eu, por vezes, tivesse dois filhos. Um deles tem cinquenta e quatro anos mas, não se deixe enganar, ainda é uma criança - afirmou, erguendo os olhos ao céu.

 

Ben sentiu os pêlos eriçarem-se nos braços enquanto estava próximo dela. Provocava-lhe pele de galinha. Era como se o seu corpo estivesse a fazer tudo o que era possível para se aproximar dela, reagindo de maneira estranha na presença daquela mulher.

- Tem frio, Ben? - perguntou ela, passando-lhe a mão desde o pulso até ao cotovelo. O toque era quente na sua pele. - Fique ao pé do lume um bocado.

 

- Não tenho frio - respondeu-lhe. Não era frio o que ele estava a sentir. - Quero apenas ajudá-la a levar os pratos.

 

- Vamos vender todo o maldito lote! - gritou Sonny na outra sala, cada vez mais irritado.

 

- Se a cotação descer, ficará amuado durante dias.

 

- Não vejo como poderia ficar triste por um instante consigo... - Ben sentiu de repente que as emoções lhe escapavam. Tentou recuperar. - Quero dizer, consigo a cozinhar para ele.

 

Ela sorriu-lhe de forma um pouco forçada e os seus olhos semicerraram-se quando ela lhe passou uma taça de molho de caril.      

 

- Está bem, se me quer ajudar, veja se consegue encontrar qualquer coisa na cozinha para guardar isto.

 

Marge estava a ser uma paciente péssima. Pelo menos fora o que Leo dissera quando telefonara para falar com Ben. Em primeiro lugar, não gostava da comida. Em segundo lugar, não suportava todos aqueles tubos que a ligavam a monitores para controlarem todos os fluidos que entravam e saíam do seu corpo.

 

- O que ela quer é sair dali - disse Leo.

 

- São tratamentos invasivos, mas todas essas coisas que ela detesta vão ajudá-la a melhorar.

 

- Acordam-na de duas em duas horas para lhe medir a tensão arterial - queixou-se.

 

- O hospital é, na verdade, o melhor local para ela neste momento.

 

Ben tentou explicar a Leo que os hospitais se agarravam aos doentes que podiam ser ajudados. Para os casos terminais havia as clínicas ou então os pacientes eram enviados para casa. E existiam agências que forneciam pessoal especializado em assistência ao domicílio quando se tratava de doentes terminais. Enquanto falava, recordou que a sua mãe ainda possuía a lista que lhe tinham dado no hospital quando enviaram o seu marido para casa, já que nada podiam fazer por ele. Porém, quando a sua altura chegou, dissera que não queria nenhuma enfermeira, já que tinha o filho para a ajudar. Leo disse então que tentaria falar com Marge para lhe explicar que era bom sinal o facto de a manterem no hospital.

 

Depois de desligar, Ben ficou de pé no silêncio da pequena casa. Todos se tinham retirado para o andar de cima a fim de se deitarem.

 

Ben subiu a escada vagarosamente. Annie aconchegou Julia na cama e deu-lhe o beijo de boa-noite enquanto Sonny inventava uma história para lhe contar. Sentindo-se tímido e furtivo, Ben escutou à porta enquanto Sonny contava a história de um pirata que percorria os céus montado num cavalo mágico com quatro cabeças.

 

- Um cavalo voador com quatro cabeças? - perguntou Júlia, céptica.

 

- Para poder olhar nas quatro direcções da bússola ao mesmo tempo - esclareceu Sonny. - Dessa forma, nada lhe podia escapar.

 

Passado algum tempo, Annie desceu a escada com Ben e ajudou-o a fazer a sua cama no sofá. Os olhos pareciam parados pela exaustão mas não a tornavam menos atenta.

 

- Sonny consegue contar umas belas histórias - comentou Annie. - Costumavam provocar pesadelos a Julia e, por isso, ele atenuou-as um pouco, mas ainda são bastante surreais.

 

- Tem a certeza de que não há problema se eu ficar outra noite? - perguntou Ben, prendendo a ponta de um cobertor por baixo de uma almofada.

 

- Depois do dia que teve, não o vou enviar para o frio. Ou para casa de Sonny. Obrigá-lo-ia a fazer-lhe companhia a noite toda. É uma verdadeira coruja.

 

- Bem, muito obrigado - agradeceu Ben, ouvindo Sonny descer a escada.

 

- Vinha convidá-lo a dormir em minha casa, doutor.

 

Ben olhou para o sofá já preparado. Não queria ir mas talvez fosse mais apropriado. Annie interveio:

 

- Ele fica bem. Deixa-o estar. Irias mantê-lo acordado toda a noite a filosofar.

 

Sonny encolheu os ombros.

 

- Oh, bem, amanhã salvaremos o   Cadillac e seguirá o seu caminho.

 

- Não o apresses, Sonny. Talvez comece a gostar de Cottage Mills.

 

- Não, não devo ficar mais tempo - declarou Ben. Mas por dentro sabia que a última coisa que queria era deixar Annie. Já sabia que ela, e não Cottage Mills, se enraizara dentro de si.

 

Bem, vou para casa. Estou estafado, já que não fiz a minha meditação esta tarde por andar pelos montes à procura deste tipo- gracejou, batendo nas costas de Ben e inclinando-se depois para dar a Annie um beijo nos lábios e um abraço prolongado. Ela soltou-se de forma desajeitada.

 

Boa noite, amor - despediu-se. - Olha, parece um bom título para uma canção - comentou e estalou os dedos. - Ou talvez o transforme numa canção de protesto: que tal «Boa noite, Gov»?

 

Boa noite, Sonny - correspondeu Annie e acompanhou-o à porta, onde murmuraram qualquer coisa por breves instantes, sem serem ouvidos.

 

Ben sentou-se na extremidade do sofá. Observou as iniciais da sua mala de médico. O Dr. P. S. Markowitz podia estar orgulhoso de si, pensou. Fizera um bom trabalho naquela tarde. Era uma vida de que ele poderia aprender a gostar.

 

Não era apenas a mala com as iniciais gravadas em relevo que o parecia confortar, mas a forma como tão vividamente imaginava o médico incitando-o por um caminho que o ajudaria a recuperar a sua vida. Ben construíra na sua mente um retrato do velho médico. Tornara-se quase um mentor imaginário. Agora, com o cansaço, o retrato tornara-se tão vívido que Ben conseguia cheirar o tabaco do cachimbo do médico e quase sentia a lã áspera do seu casaco de tweed. E conseguia ouvir a voz do velho médico ressoando na sua cabeça, repetindo uma sequência de um conselho sábio de Hipócrates que exortava todos os médicos, acima de tudo, a não praticarem o mal.

 

Annie voltara.

 

- Sonny fica com uma corda... - queixou-se ela, parecendo perturbada.

 

- Ele não gosta que eu fique aqui, pois não?

 

- A casa não é dele - retorquiu, indignada. - Bem, ele é o proprietário, mas eu paguei a renda este mês.

 

- Desculpe.

 

- Não tem nada que pedir desculpa. Gosto que fique cá - disse, suspirando. - Estou apenas cansada. Exausta, na verdade.

 

- Posso fazer alguma coisa? - perguntou Ben, pegando no estetoscópio.

 

Annie deixou as pálpebras semicerrarem-se e abanou a cabeça.

 

- Eu e os médicos não nos damos bem.

 

- Estou a ver. - Ben sentiu-se magoado e desviou o olhar.

 

- Meu Deus, não me refiro a si - esclareceu ela, atravessando o espaço entre ambos para lhe afagar a mão. Depois, retirou a mão e colocou-a sobre a sua boca. - De maneira nenhuma. É só... Desculpe, não pensei no que disse.

 

- Tudo bem.

 

- Tem tudo o que precisa?

 

- Tudo.

 

- Então, despeço-me por esta noite.

 

- Boa noite, Annie.

 

Quando ficou só na sala sombria, Ben começou a reflectir. Pensou nos últimos dias, na forma como Annie tinha ocupado um lugar dentro de si desde o primeiro encontro casual. Já não podia negar o sentimento de profunda afinidade que o ligava a ela e que ultrapassava a simples atracção física.

 

Estava convencido de que grande parte da medicina se baseava na intuição e que os melhores médicos tinham uma reacção natural aos sinais exibidos pelo corpo de um doente nos primeiros trinta segundos de uma consulta. A palidez do rosto, as olheiras, um aperto de mão fraco, todos estes eram sintomas que conduziam a uma patologia específica. De facto, Ben lera que os médicos chineses inspeccionavam diferentes partes da língua de um doente para chegarem a um diagnóstico.

 

No entanto, apesar de não existirem quaisquer sinais evidentes, Ben sentia qualquer coisa de indefinível em Annie, uma espécie de mal-estar recôndito e subtil, se bem que tenha sido praticamente a única naquela terra a não solicitar uma consulta médica. E até isso era estranho. Não sabia o que pensar, mas estava certo de que, qualquer que fosse a natureza do problema que a afligia, e certamente não se tratava de uma simples estranheza passageira, ela fazia de tudo para o dissimular, para o ocultar.

 

Na manhã seguinte, o Cadillac de Ben não parecia tão mal como ele se recordava, mas seria necessário muito trabalho para voltar a pô-lo no estado quase de novo em que o pai o mantivera. Annie não quis ficar à espera que Sonny chamasse o seu mecânico para ajudar.

 

- Quer que o façam depressa, não é? - perguntara ela. O céu estava cinzento. O vento agitava as copas das árvores, soando a Ben como a suave corrente de sangue que flui pela carótida. Ele e Annie murmuravam porque as suas vozes se transmitiam facilmente na atmosfera fina e fria. O ar estava seco e Ben quase sentia um estalido de estática no espaço entre ambos. Os seus pés pisavam a neve enquanto se arriscavam juntos pelo monte gelado abaixo.

 

Junto ao riacho gelado, Ben conseguia ver como o carro abrira caminho até uma árvore numa espécie de abraço trágico. Apesar de ter evitado por pouco grandes prejuízos, o guarda-lamas dianteiro do lado direito nunca mais seria o mesmo. Havia um pneu furado, mas isso fora causado pelo impacte contra um bloco de granito que sobressaía do solo.

 

- É canja, Ben - afirmou ela enquanto olhava pela encosta acima para a sua carrinha na estrada. Franziu os lábios e observou a distância entre os veículos. - Meu Deus, é um milagre não ter batido com a cabeça.

 

Andei às voltas, mas estava preso pelo cinto - respondeu Bem. - Sabe, tenho um seguro contra todos. Talvez seja agora uma boa altura para telefonar à minha seguradora.

 

- Nós estamos aqui. Além disso, o tipo a quem comprei a carrinha garantiu a qualidade daquele guincho. Está-me a apetecer experimentá-lo.

 

Annie deu um pontapé na neve e o gaio-azul esculpido que Fritz dera a Ben voou. Ben recordou o voo da criatura no acidente; estranhamente, fora aqui mesmo que aterrara.

 

- Um original Fritz Higby - observou Annie, apanhando o pássaro da neve e segurando-o à sua frente.

 

- Pagamento por serviços prestados - esclareceu Ben.

 

- Fique com ele - aconselhou Annie, fazendo voar o pássaro pelo ar e empoleirando-o no ombro dele. - As pessoas daqui dizem que traz boa sorte.

 

- Não me ajudou muito ontem na estrada - retrucou Ben, com o pássaro aninhado nas mãos.

 

- Pelo menos foi apenas o carro que se magoou - comentou Annie, erguendo uma sobrancelha na sua direcção.

 

- Ah, os mistérios da vida.

 

Ela ligou o motor da carrinha. Ben arranjou alguns pedaços de lenha que Annie tinha na traseira da carrinha e bloqueou com eles as rodas dianteiras. Ela calçou umas grossas luvas de couro e accionou as alavancas do guincho montado sobre o pára-choques da carrinha. Juntos, desenrolaram o cabo suficiente para descer o monte e prender a outra extremidade a um gancho de reboque de aço debaixo do Cadillac.

 

Ele observou-lhe as mãos enquanto mexiam no equipamento com perícia. Annie rangeu os dentes e meteu a mão debaixo do carro para verificar o trabalho antes de subirem juntos o monte até à carrinha.

 

- Porquê esse sorriso? - perguntou Annie.

 

- Eu? Não me apercebi.

 

- Está muito sorridente.

 

- Não é nada - disse ele, tentando ficar sério. O carro estava danificado mas, na verdade, ele não queria saber. Somente tinha consciência de uma sensação de leveza dentro de si.

 

- Hum, não acredito - ripostou Annie. - É engraçado. E gosto de tê-lo aqui comigo.

 

- A sério? - perguntou Ben com um estranho tom de voz cheio de uma esperança adolescente. Para dissimular o entusiasmo, declarou que a subida da colina o tinha deixado sem fôlego.

 

- Mas, Ben, tem de ficar lá em baixo ao pé do carro. Para garantir que ele se solta.

 

Certo. É claro - respondeu, correndo pelo monte abaixo e segurando-se ao cabo por cima da neve para evitar cair.

 

- Mantenha-se afastado do cabo e do carro - gritou-lhe ela.

 

O meu treino de primeiros socorros não ultrapassa a aplicação de pensos rápidos.

 

Ele ouviu o motor da carrinha mudar de tom e viu o cabo esticar-se entre a carrinha e o carro. Aplicou o seu peso contra a lateral do carro e tentou libertá-lo, balançando-o. De repente ouviu-se o estalido de metal sob tracção e o carro começou a afastar-se da árvore. Ele fez sinal a Annie, que estava no topo do monte, erguendo os dois polegares. Ben caminhou lentamente pelo monte acima enquanto o guincho puxava o Cadillac do pai para a estrada. Quando as rodas traseiras chegaram ao topo do monte, Annie desligou o guincho e deixou o carro engatado. Em seguida, saltou para dentro da carrinha e engrenou a marcha-atrás para rebocar o carro de volta à estrada.

 

- Ora esta, funcionou! - exclamou ela. - Ligue o carro e veja se trabalha.

 

Ben deu a volta à chave e o velho Cadillac arrancou à primeira tentativa.

 

- Da próxima vez terei que encontrar um penhasco mais alto.

 

Ben olhou para a velha ruína, com a frente esmagada, sem o espelho retrovisor e com o farolim traseiro partido. Se, ao menos, algum laureado com o Nobel desse uso prático ao seu génio e criasse um carro que se autocurasse... Teria sido uma forma muito útil de aplicar a investigação em genética, pensou ele. Afinal, já se cruzaram genes animais e vegetais para criar tomates resistentes à geada, às pragas e à seca. Se os ossos e os tecidos se curam tão rapidamente, por que não o aço e o vidro? Eram apenas moléculas.

 

Vejamos se conseguimos mudar esse pneu.

 

- Nisso é que sou perito - gabou-se Ben, entrelaçando os dedos e dobrando-os para trás. - Um campeão na mudança de pneus.

 

- A sério? Vou cronometrá-lo.

 

- Quatro minutos foi o meu melhor tempo, vejamos se o consigo ultrapassar.

 

- Está bem.

 

Ela puxou a manga do casaco e olhou para o relógio.

 

- Está bem, vai cronometrar-me? Bem, vamos?

 

- O relógio está a contar, Ben! Vamos, vamos, vamos! - gritou-lhe Annie e, quando ele escorregou na neve depois de partir a correr para ir buscar o pneu sobresselente ao porta-bagagens, ela curvou-se num ataque de riso.

 

Ben desperdiçou um tempo valioso a libertar o macaco dos grampos que o prendiam à mala, mas em breve rolava o pneu sobresselente em direcção à frente do carro. Tirou com uma alavanca o tampão de raios cromados e desapertou as porcas. Depois, colocou o macaco por baixo do carro e fê-lo subir com a manivela, Tirou a roda e colocou a nova com esforço. Apertou as porcas e baixou a roda até ao chão.

 

- Como me portei?

 

Ela olhou-o com timidez.                                                                

 

- Oito minutos e trinta segundos.

 

- O início foi um pouco lento.

 

- Claro! - exclamou Annie, piscando-lhe o olho. - Campeão na mudança de pneus, uma ova!

 

- Da próxima vez avise-me quando começar a contar. Ben colocou o pneu na mala.

 

- É demasiado fácil brincar consigo, Ben.

 

Ele levantou a cabeça acima da tampa da mala para a contemplar.

 

- Corre como um animalzinho.

 

- O quê? Como um esquilo?

 

- Um esquilo engraçado - respondeu ela e bateu-lhe no braço por brincadeira.

 

- Obrigado, acho eu.

 

- Venha, vamos embora - pediu Annie. - Tenho frio.

 

Ben sentou-se ao volante do seu carro e conduziu até à estrada principal enquanto Annie o seguia na sua carrinha. Havia um novo ruído áspero sob o capô e ele sentia que a direcção puxava para a direita à medida que o carro acelerava. Mas, desde que tudo funcionasse debaixo do capô, o trabalho na carroçaria era apenas uma operação de cosmética.

 

Quando regressaram a casa de Annie, viram que Leo deixara uma mensagem para Ben: Marge estava com problemas. Quando Ben telefonou para o quarto do hospital, não houve qualquer resposta. Não queria dizer a Annie que ninguém tinha atendido o telefone. Ligou outra vez o número para ter a certeza de que o marcara correctamente. Meneou a cabeça, preocupado, enquanto desligava o telefone da cozinha. Julia estava sentada à mesa observando-o com olhos penetrantes e concentrados. Segurava uma sanduíche triangular de manteiga de amendoim e doce de framboesa cuidadosamente elaborada. Annie espreitou para a cozinha, atraída pelo silêncio.

 

- Que disse Leo ao certo? - perguntou Annie a Julia.        

 

Julia olhou para o prato.

 

- Disse apenas que Marge estava com problemas. Só isso.        

 

- Talvez fossem só tomar ar - alvitrou Ben. - Dar um passeio pelo corredor. Tentam pôr a pé os doentes cardíacos logo que podem.

 

Annie suspirou profundamente.

 

- Devia lá ter ido esta manhã.

 

O telefone tocou, Julia quase saltou e deu um grito. Annie pareceu aborrecida ao atender o telefone.

 

- É Leo, quer falar consigo - disse, passando-lhe o telefone.

 

- Leo? - disse Ben.

 

Queria apanhá-lo antes que partisse - informou.

 

- Que se passa?

 

- É Marge.

 

Ben virou as costas a Annie e a Julia, preparando-se para más noticias. Leo queria, provavelmente, que Ben lhas transmitisse.

 

- Como está ela?

 

- A pô-los malucos. Olhe, os médicos dizem que não a posso levar para casa a não ser que tenha ajuda especializada.

 

Annie roía a ponta da unha do polegar.

 

- Ela está bem?

 

- Acho que sim - murmurou-lhe Ben.

 

- Se estiver aí para olhar por ela até eu encontrar alguém, deixam-na sair - informou Leo. - Detesto ter que lhe pedir, mas a pobre mulher não suporta estar ligada a todas aquelas máquinas. Quer apenas dormir na sua própria cama.

 

- Não posso culpá-la por isso.

 

- Há alguma hipótese de poder prolongar a sua estada? Serão apenas alguns dias até eu encontrar alguém permanente. Faz isso por Marge?

 

Talvez ele não tivesse que partir tão rapidamente, afinal. Olhou para Annie, consumida pelos nervos.

 

- Está tudo bem - tranquilizou-a.

 

- Desculpe, Doutor Minor - prosseguiu Leo, tentando ler a resposta na pausa de Ben. - O doutor é a única pessoa a quem poderia pedir isto. Mas provavelmente tem de voltar para casa.

 

- Não, posso tirar algum tempo. Não há problema.

 

Podia ter dito que não e ter-se posto a caminho, mas parecia certo ficar onde era preciso. Haveria medicamentos a ministrar, alterações dietéticas a negociar e, provavelmente, algum trabalho de reabilitação física a fazer. E também havia Annie e ele não a queria deixar. Pelo menos até perceber a quem pertencia o seu coração.

 

Annie sentara-se numa cadeira ao lado de Julia e apoiava a cabeça nas mãos enquanto ouvia Ben ao telefone. Ela movia o corpo de uma forma graciosa mas deliberada. Os seus dedos compridos e esguios repousavam num arco perfeito contra o malar enquanto apoiava a extremidade do queixo na palma da mão. Deliciava-o a forma como ela punha para trás das orelhas as suas madeixas escuras. Havia uma expressão de alívio na forma preguiçosa como o seu corpo parecia pender da coluna enquanto estava sentada à mesa. Os seus olhos levantaram-se, fitaram-no e, daquele ângulo, pareceu por momentos a Ben que poderia cair dentro deles. E eram tão azuis, pensou ele, que seria como cair no céu.

 

Que maravilha, devaneou, como a luz conseguia transportar uma imagem tão agradável até si. Como a cor da íris dela - nada mais do que uma membrana que tinha a função de dilatar e contrair a pupila - lhe podia provocar uma tal atracção. Não conseguia compreender como é que a luz que passa através do negro da pupila é focalizada pelo cristalino, uma lente biconvexa suspensa no humor vítreo, incita as células receptivas da retina e depois é transformada em impulsos nervosos, continuando o seu caminho até ao córtex cerebral. O mistério do funcionamento do olho humano sempre exercera um fascínio particular sobre Ben e, ao fixar os olhos límpidos e intensos de Annie, ele agora até conseguia compreender que fossem realmente o espelho da alma.

 

- Então, posso dizer aos médicos que toma conta dela?

 

- Tomo conta dela, Leo. O tempo que for preciso.

 

Ben pressionou o telefone contra o ouvido para evitar que a alegria que emergia dentro de si se tornasse demasiado evidente na sua cara e na sua voz.

 

- Que aconteceu? - perguntou-lhe Annie quando ele desligou.

 

- Parece que vou ficar cá mais algum tempo.

 

Julia ergueu os olhos para Ben, pousando a sua sanduíche, enquanto ele explicava o que Leo lhe pedira. A boca abriu-se-lhe com uma expressão que Ben interpretou como desapontamento. Sentiu-se magoado, quase o suficiente para o fazer reconsiderar a sua decisão. Mas, ao ver como Annie parecia encantada com os seus planos, qualquer pensamento de mudança de ideias se desvaneceu.

 

- É claro que terei que encontrar um lugar para ficar - afirmou Ben.

 

- Isso não é problema - replicou Annie, parecendo sincera.

 

Julia suspirou profundamente.

 

- Mas, pensando bem, deve precisar de outras coisas além de um sofá para dormir - lembrou Annie.

 

- Fico com Leo e Marge.

 

- Marge ressona - informou Julia. - Muito.

 

- Como sabes isso?

 

Julia encolheu os ombros.

 

- Podia ficar na vivenda.

 

- Sim, se gosta de aranhas - observou Julia. Agitou os dedos no ar e ergueu os olhos para o céu.

 

Annie tentou oferecer algo melhor.

 

- O local precisa de limpeza. Mas tem uma cozinha e um fogão a lenha. Podemos ligar a electricidade e pôr a fornalha a trabalhar de novo.

 

- E uma casa de banho com uma banheira onde parece que alguém foi assassinado.

 

- Julia! Onde vais buscar essas coisas?

 

- Foi o Sonny - respondeu ela, timidamente.

 

- Então a casa precisa de algum trabalho - admitiu Ben, encolhendo os ombros. - A mim parece-me encantadora.

 

- Como quiser - resmungou Julia. Em seguida agarrou a sanduíche, com os olhos reduzidos a minúsculas fendas pelo aborrecimento, e, sem uma palavra, subiu lentamente a escada até ao seu quarto.

 

- Tem nove anos - lembrou Annie. - Que hei-de dizer? Com ela por perto nunca me aborreço.

 

Annie levantou-se da mesa e cambaleou um pouco. Agarrou-se à mesa, inclinando-se. Ben pegou-lhe no braço para a ajudar a equilibrar-se. Segurou-o com força, por momentos, até que ela se afastou em direcção ao lava-louça.

 

- O chão fugiu-me dos pés de repente. Levantei-me demasiado depressa, foi só isso.

 

- Tem a certeza...?

 

- Não vá a correr buscar a sua mala - disse ela, abrindo a torneira para beber um copo de água. - Por vezes, uma tontura é apenas uma tontura.

 

- Tem razão.

 

Ben foi até à porta da frente e calçou as botas.

 

- Acho que vou dar uma vista de olhos à casa.

 

- Com certeza. Veja o que lhe parece - concordou Annie, enxugando as mãos a um pano da louça. - A chave está por cima da porta.

 

- A sério?

 

- Não se esqueça de que agora está no campo - comentou Annie, piscando-lhe o olho. - E tenha cuidado com as aranhas, Ben.

 

Aquela simples vivenda branca seria perfeita para ele. Podia facilmente deslocar-se até Marge, Annie estava perto e podia utilizar o tempo para encontrar o equilíbrio interior e o seu lugar no mundo outra vez. Começara a adorar o tempo passado na floresta com Annie e a forma como ela lhe mostrara como era possível levar uma vida mais simples. Era uma vida que deixava a sua natureza perturbada cair como pó. Com o tempo poderia regressar à sua antiga vida, mas por agora via a hipótese de deixar o passado cicatrizar.

 

Pisou as camadas inclinadas de neve à beira da estrada estreita e subiu até à casa, ao longo do caminho por limpar, para espreitar pelas janelas. Passou os dedos pela madeira lascada da ombreira da porta, encontrou a chave onde Annie lhe indicara, abriu a porta de madeira e entrou.

 

O chão de madeira estava coberto de pó e Ben foi deixando um rasto enquanto atravessava a sala e andava em torno do fogão preto e bojudo com o cano de metal da chaminé saindo através do telhado. Havia uma cozinha estreita que ocupava o comprimento de uma parede, com um lava-louça de ardósia e espaço para um fogão. Na extremidade da cozinha estava um frigorífico antigo com a porta aberta. O quarto das traseiras tinha uma grande janela com vista para a montanha Sawtooth a oeste, podendo ver-se a sul as montanhas do New Hampshire. Havia uma casa de banho com azulejos pretos e brancos, um lavatório de pé e uma banheira com pés em forma de garras. Na banheira, que estava tão manchada como Julia avisara, encontrou um rato morto deitado de costas, de focinho para o ar.

 

Se ia permanecer aqui algum tempo, precisava de um lugar para morar e era na vivenda branca que ele queria ficar. Com excepção do rato morto, era perfeita.

 

Ben calculou que a sua primeira noite na vivenda seria como se fosse acampar. Pelo menos fora o que dissera a si próprio para se preparar para a experiência. A casa era rústica e não era tão confortável como a sua cama quente habitual. Sonny arranjara uma equipa para pôr de novo a trabalhar a bomba do poço e a fornalha. Leo cobrara um favor a um amigo da companhia da electricidade e conseguira que fizessem a ligação rapidamente. No dia da mudança, ele e Annie fizeram a limpeza e alguns pequenos arranjos o melhor que puderam. Ele até deitou fora o rato morto da banheira.

 

- Os gatos passarão um bom bocado a brincar com ele comentou Annie. - Provavelmente vou encontrá-lo na minha almofada quando chegar a casa.

 

Annie trouxera alguns canos de aço novos para o fogão. Assegurou-se de que tudo ficava estanque e de que a velha chaminé de tijolo não tinha ninhos nem bloqueios. Usou uma lanterna e um espelho para espreitar para dentro da chaminé a partir do pequeno orifício de limpeza exterior. Estava cheia de pedaços de resina endurecida, preta e brilhante, de fumos passados, pelo que tiveram de raspá-los, à vez, das paredes da chaminé com uma escova de aço com cabo. Os resíduos encheram um balde de metal, que despejaram na floresta.

 

- Gostava que a angioplastia de Marge tivesse sido assim tão fácil.

 

Ben segurava a direito o novo cano do fogão para que Annie encaixasse uma curva em cotovelo no orifício redondo da chaminé. Ele suspirou.

 

Veias e artérias, canos e chaminés. Todos aqueles bocados de creosoto acumulados ao longo dos anos, tal como a gordura numa aorta.

 

Nada bonito, mas faz sentido - observou Annie. Deu ao cano do fogão um último empurrão para o seu lugar e depois recuou para limpar a fuligem das mãos com um trapo. - Acho que está bem. Vamos acender o lume. Não o deixo ficar cá se o fogão não o aquecer até ter de sair daqui.

 

Annie encheu o pequeno fogão de ferro com papel e achas, acendeu um fósforo e fechou a porta de dobradiças. Ajustou a entrada de ar e esperou que a lenha pegasse.

 

- Estou contente por terem voltado a ligar a luz - comentou ela.

 

- Para que vou precisar de electricidade? - perguntara Ben. - Não tenho medo do escuro.

 

Annie riu com ar entendido.

 

- Costumava dormir com todas as luzes exteriores acesas apenas para me sentir segura - contou-lhe. - Não faz ideia de como uma noite sem luar consegue ser escura quando se vive na floresta.

 

Depois de ela o deixar, a noite tornou-se mais escura do que alguma vez vira. De certa forma parecia mais escura do que quando estivera em casa de Annie. As estrelas eram apenas alfinetadas de luz no escuro. E a Lua, que brilhara amarela e cheia durante as últimas noites, desaparecera repentinamente do céu. Para lá das janelas de pequenos vidros, não havia nada.

 

Foi para a cama, mas o sono não vinha. Remexeu-se no divã que Annie lhe emprestara e observou o brilho do lume através da grelha do fogão. Finalmente, apoiou a cabeça nas almofadas e acendeu a luz. Folheou um dos seus livros de referência: um manual sobre os sinais e sintomas das várias doenças. A letra pequena forçava-lhe os olhos sob a luz esbatida da lâmpada do tecto. Reviu com interesse a secção sobre o reflexo de Babinski, um movimento característico do dedo grande do pé provocado pela pancada de uma tampa de caneta ou da extremidade arredondada de uma sonda metálica. Um Babinski positivo é um indicador de danos neurológicos sérios - tumor cerebral, enfarte e lesão espinal. Mas não se recordava que o reflexo positivo também ocorria nos doentes com raiva.

 

Antes de tentar dormir novamente, alimentou com mais troncos as brasas quentes do fogão. O lume aquecera a pequena casa e o calor transmitia também um sentimento de vida. No escuro, as soldaduras do velho fogão brilhavam vermelhas devido às chamas no interior. Ouvia-se o zumbido e os estalidos de madeira seca e seiva crepitando. Fechou os olhos. O silêncio fazia com que os seus ouvidos tinissem. Por breves momentos, preocupou-se com o facto de o tinido poder ser zumbido, um sintoma de sobredosagem de aspirina ou o efeito permanente de exposição a ruídos elevados. Mas, como nenhum deles se lhe aplicava, pensou se não estava apenas a ouvir o zumbido de contentamento que sentia no coração.

 

Ben conduziu até à aldeia para se encontrar com Marge, que ia ter alta e regressar a casa. O carro parecia funcionar perfeitamente, apesar do acidente. Havia um pequeno ruído áspero dentro do motor - a corrente da ventoinha solta, suspeitava ele -, mas qualquer dano real encontrava-se meramente à superfície.

 

Não se avistava nenhum carro quando Ben entrou no caminho de acesso à casa de Leo e Marge. Leo dissera-lhe que planeava seguir a ambulância particular que a traria para casa. Ben sentia-se perturbado ao abrir a porta do carro, pegando na mala que estava no assento, mas pensava sobretudo na forma como Annie lhe acenara naquela manhã quando passara. Vira-a à janela da cozinha com o sol a entrar por detrás enquanto a luz viajava pela casa. Agitara a mão num gesto delicado e sorrira-lhe. Naquele momento, sentiu o coração a bater irregularmente, como se tivesse tido um episódio de taquicardia, que o deixara a sentir-se tonto. Subitamente, Ben ouviu o raspar forte de metal contra a porta do carro. Leo deixara um caixote do lixo de metal à beira do caminho e Ben embatera nele, acidentalmente, com a porta do carro.

 

Não era grave, na verdade. A porta tinha agora uma ruga ondulada riscando o acabamento polido. De forma estranha, Ben pensou que a nova mossa equilibrava o modo como a extremidade da frente estava dobrada e deformada. O caixote do lixo, porém, ficara comprimido entre a porta e uma árvore.

 

Annie passou quando Ben examinava os estragos. Parou na curva e baixou o vidro da janela.

 

- Não sou um condutor assim tão mau.

 

Claro, é o que todos dizem - gracejou Annie.

 

Bateu com os nós dos dedos no ombro dele a brincar. - Já chegaram?

 

- Acho que não.

 

Ela estacionou e saiu da carrinha.

 

- Então quero mostrar-lhe uma coisa.

 

Atravessaram a rua juntos até ao velho armazém da esquina. Era uma construção simples de madeira, pintada de um verde rico e viçoso, com janelas a todo o comprimento de cada lado.

 

- Como dormiu a noite passada?

 

- Assim-assim - respondeu Ben. - Estava muito escuro e muito silencioso. Mas habituar-me-ei.

 

Ela riu-se e abriu a porta do edifício.

 

- Entre.

 

- O quê? Também dirige o armazém?

 

- Só o Café Turnstone - replicou, levantando os braços.

 

- O seu próprio estabelecimento! Gosto.

 

No interior viam-se ainda velhos letreiros publicitários de metal. Havia um balcão largo de carvalho polido, gasto e escurecido nas extremidades pelos clientes que, durante décadas, ali se tinham apoiado para apontar o que desejavam das prateleiras na parede. As compridas tábuas de madeira do chão estavam vergadas e raspadas pelo uso. Ben pensou se teriam sido cortadas de árvores serradas na cidade. O tecto de estanho prensado estava pintado de um prateado brilhante.

 

- Vou começar devagar, abrindo por agora apenas aos fins-de-semana.

 

- Sonny? - perguntou Ben, lamentando de seguida a insinuação.

 

Ela não pareceu ofendida.

 

- Falámos nisto durante anos, mas só recentemente decidiu que era altura de avançar.

 

- Então são sócios?

 

- Não diria tanto. Mas certamente não poderia fazer nada disto sem ele. De facto, agora está fora numa missão secreta qualquer ligada ao restaurante. Vai ser óptimo.

 

Caminhou com ela até ao comprido balcão junto à porta.

 

- Acha?

 

Saíram para a rua ensolarada e ela fechou a porta. Annie olhou para o outro lado da rua à procura do carro de Leo.

 

- Parece que ainda não chegaram. Mas está bom cá fora, talvez pudéssemos dar um passeio...

 

No exterior, o tempo balançava entre o Inverno e a Primavera. O Sol ia baixo no céu e havia no ar o cheiro doce da vida que regressava aos rebentos que surgiam nos ramos nus das árvores. Fazia-o pensar como isto era estranho, este renascer da natureza após o Inverno. Havia nisto um sentimento de cura, o calor do sangue circulando até às pontas e os nervos vibrando de novo com a actividade. Era como recuperar os sentidos após o verde sono químico da anestesia. Os seus olhos pareciam ver novos pormenores no mundo, os padrões inconstantes da luz cinzenta tinham dado lugar a uma explosão de cor que lhe excitava os olhos. Havia um sincronismo que aguçava o estado turvo dos seus pensamentos. Talvez, devaneou, Aristóteles tivesse razão quando afirmara que o cérebro era o órgão responsável pelo arrefecimento do sangue. Pensava que as artérias estavam cheias de ar. Seria isso responsável pela leveza que Ben sentia agora?

 

Olhou para Annie que caminhava à sua esquerda. Havia força na sua passada, um sinal de confiança que tanto admirava. Conseguia ver que ela não admitira que o desapontamento e a mágoa dominassem a sua mente. Ao contrário do que Ben fizera. Ela esquecera e vivia com os olhos virados para a frente e sem tentar olhar para trás.

 

- O que é? - perguntou Annie, olhando-o.

 

- Nada - respondeu Ben.

 

Não fora capaz de evitar fitá-la.    

 

Annie despiu o casaco acolchoado e atou-o em torno da cintura. Caminharam ao longo da cidadezinha, evitando os montes de neve que diminuíam com a brandura do dia. Na Câmara Municipal e nos Correios, Ben reparou numa pequena bandeira hasteada num mastro montado na parede lateral do edifício de tijolo. Viraram para uma rua que conduzia ao cemitério, onde a base das pedras tumulares estava enterrada na neve. Não ficava longe a extremidade do lago donde a neve tinha sido retirada durante todo o Inverno para a patinagem. Pararam juntos à beira do gelo salpicado de neve que fora esculpida pelo vento em dunas ondeadas.

 

- Se achar que não me diz respeito, diga-o e não se fala mais nisso - começou Ben.

 

Se não perguntasse directamente, nunca saberia, mesmo que arriscasse denunciar o que sentia por ela.

 

- Se veio para aqui com Sonny, por que não vivem juntos? Ou vivem?

 

Annie encolheu os ombros suavemente arredondados. E foi então que ele o viu. Havia um inchaço de um nódulo no pescoço dela. Teria talvez um a dois centímetros de diâmetro como se fosse uma pastilha elástica sob a pele. Fixou-o, dominado pela preocupação. E então ela virou a cabeça noutra direcção e o nódulo desapareceu algures entre a corda da carótida e a saliência formada pela extremidade anterior do trapézio.

 

- Sonny gosta da sua casa e eu não - disse ela, respondendo à pergunta. - Julia e eu precisávamos de ter a nossa própria casa.

 

Outras perguntas mais importantes tinham surgido na mente de Ben, mas não a interrompeu. Annie continuou:

 

- Que hei-de dizer? Chame-lhe o perigo de tentar ter uma relação com alguém que já teve tudo o que se possa imaginar. A verdade é que o que tenho com Sonny é como perseguir fumo. Já casou três vezes. Tem quatro filhos crescidos que pouco vê. Decidi não cometer os mesmos erros que as mulheres um, dois e três e depois apercebi-me de que talvez não tivessem sido elas quem cometeu todos os erros.

 

- Ninguém se casa prevendo estragar tudo.

 

- Já foi casado? - perguntou-lhe ela, levantando uma sobrancelha.

 

Ben abanou a cabeça.

 

- Não. E a Annie?

 

O pai de Julia nunca mo pediu. E, de qualquer forma, teria respondido que não. - Inspirou profundamente. - Sonny contratou-me para vir com ele, sabe. Para ser o seu chef pessoal, o que constituiu uma grande oportunidade para mim e para Julia. Viajamos com ele quando precisa de nós. É por isso que Julia estuda em Casa Para que possamos partir a qualquer momento.

 

E os cães?

 

- Isso é apenas um divertimento. Leo toma conta deles quando não estamos e quando vendo alguns cachorros isso ajuda a pagar as rações.

 

- Parece um esquema inteligente.

 

- Tenho-me mantido firme em relação a Sonny, porém isso transtorna-o. Não era essa a minha intenção. Começámos por viver na ala de hóspedes da casa dele, mas... - parou e mudou de assunto. - Devo tudo a Sonny. É um bom homem e gosto dele mas já não resulta. - Annie voltou-se e fitou-o nos olhos.

 

- Respondi ao que quer saber?

 

- O suficiente.

 

Três miúdos saltaram de um carro que parara à beira do lago e a mãe correu atrás deles. Um rapaz de cabelo cor de areia com cerca de onze ou doze anos acenou a Annie enquanto a mãe se aproximava para lhe falar. Usava uma camisola cor-de-rosa que combinava com os seus ténis da mesma cor.

 

- Os miúdos ainda não estão preparados para deixar a patinagem por este ano, mas o gelo está - afirmou, voltando a cabeça. - Afastem-se do lago, meninos. - Suspirou, esgotada. - Por vezes, já nem sei quem é que manda.

 

- Sei o que quer dizer. Lindsay, este é Ben Minor.

 

- Oh, o médico!

 

Ben estendeu a mão.

 

- Vê, já está a provocar agitação na cidade - disse Annie.

 

- Tudo rumores, só rumores.

 

Lindsay verificou por cima do ombro os miúdos que lutavam para ver quem se sentaria no cepo perto do lago.

 

- Parece que os meus esforços de manutenção da paz são necessários. Prazer em conhecê-lo, Doutor Minor. Com aqueles três, tenho a certeza de que o voltaremos a ver.

 

Lindsay acenou enquanto corria em direcção aos miúdos. Annie e Ben viraram-se e desceram o monte até à cidade. O tráfego começara agora que a escola abrira. Viram de relance o autocarro amarelo da escola percorrendo a cidade nas suas rondas. Quando chegaram à ponte sobre o rio, ela parou por um momento.

 

- Espere, estou sem fôlego - pediu, respirando com esforço.

 

- Desculpe, estava a andar ao meu ritmo da cidade.

 

- Sim, algo semelhante a uma corrida.

 

- Acho que estou habituado - disse ele, voltando-se para olhar de novo a zona do pescoço onde vira o inchaço. Mas não havia lá nada agora que ele conseguisse ver.

 

Da ponte observaram a água que se agitava em baixo no rio. Corria, silenciosa e sonhadoramente, sob a crosta de gelo, fazendo poças por baixo de rochas onde a neve derretera, andando para cá e para lá.

 

- Qual vai ser a ementa no seu estabelecimento? - perguntou Ben, tentando esquecer a medicina por momentos. Não a queria ver doente, mas havia muitas razões, razões de pouca importância, para um nódulo linfático surgir sob a pele do pescoço. Era evidente que estava cansada. Talvez ele estivesse a exagerar.

 

- Tenho andado a trabalhar em muitas combinações diferentes - respondeu. - Todas as minhas preferidas.

 

- Óptimo. - Ficara irritado consigo mesmo por ter levado a conversa para um terreno tão banal, depois de já terem tratado de temas mais pessoais.

 

- Sabe, a minha razão para ficar não foi inteiramente desinteressada.

 

- Oh, não quer tratar de Marge? - brincou ela. - Tem idade suficiente para ser sua mãe.

 

- Não tinha pensado nisso - disse Ben, erguendo os olhos ao céu, um pouco embaraçado pela perspicácia dela. - Acredite ou não, não é ela quem realmente quero ver mais.

 

Ela sorriu, enfiando o braço no dele e afagando-lhe a mão com os dedos.

 

- Venha, já chegaram.

 

Leo estava a ajudar Marge a sair do carro. Marge movia-se devagar e arquejava devido ao esforço. Deslocando-se rapidamente, Ben passou para o outro lado para dar alguma ajuda.

 

- Que aconteceu ao vosso transporte? - perguntou Ben a Leo.

 

- Marge decidiu que era demasiado caro.

 

- Cem dólares por hora! - resmungou Marge. - Mesmo que

o seguro pague, é demais, bolas!

 

- Sempre a mesma Marge - comentou Annie, beijando-a na face. - Como está?

 

- Cansada, minha querida. E dorida de tanto ter sido espetada com agulhas.

 

- É claro, passou por uma experiência terrível.

 

- Tudo para ter um médico giro a olhar por mim - murmurou para Annie.

 

Annie deu uma risada curta e alegre e seguiu à frente enquanto Leo e Ben acompanhavam Marge, lentamente, até casa. O cabelo áspero de Marge estava puxado para trás de forma simples. O rosto estava sulcado pelas rugas de uma mulher de setenta e poucos anos e a maneira de andar era lenta e cautelosa. Leo apressou-se a aconchegá-la no sofá, colocando-lhe almofadas atrás das costas. O sofá, um exemplar de veludo castanho gasto nas almofadas, vergou-se como um cavalo velho.

 

- Deixa de te preocupar comigo, Leo.

 

- Desculpa, é uma tradição familiar dos Pepitone. Os homens gostam de olhar pelas mulheres.

 

- Jason devia vir visitar-nos, mas enviou uma mensagem de última hora a dizer que não o deixavam - explicou Marge, abanando a cabeça. - A Marinha exige demais do meu rapaz.        

 

- Os dólares dos nossos impostos.

 

- Queríamos ter ido vê-la ao hospital, Marge - observou Annie, dando-lhe palmadinhas no ombro. - Mas Leo disse que não queria visitas.

 

- Eu não o permitiria - disse ela. - Com todos aqueles fios e tubos. Não estava no meu melhor, sabe.

 

- Bem, Julia teve saudades suas. Todos tivemos.

 

Ben abriu a mala para tirar o estetoscópio. Colocou-o ao pescoço, consciente de como se tornara dependente deste simples instrumento de tubos de borracha e aço inoxidável. Seria, de facto, indispensável? - perguntou-se. Ou este instrumento servia apenas para estabelecer uma distância confortável entre o médico e um doente infectado? Os médicos já não tinham de pressionar o ouvido contra o peito do doente para ouvir um ruído suspeito nem de aplicar sanguessugas na pele para sugar a doença. Desde 1816, quando um médico francês utilizara um jornal enrolado encostado ao peito de um doente para amplificar o bater do coração, os médicos passaram a manter os doentes à distância. A ciência empírica requeria-o.

 

Sentou-se ao pé de Marge no sofá e encostou-lhe o estetoscópio ao peito sobre a blusa. Auscultou o batimento cardíaco, deslizando o instrumento pelo esterno para controlar os sons cardíacos de todas as posições. O coração humano bate mais de trinta milhões de vezes por ano, bombeando sangue através de veias e artérias frequentemente bloqueadas por placas de colesterol. Mas, graças à angioplastia, as coronárias neste caso tinham sido desobstruídas e, por agora, tudo parecia estar a funcionar como devia.

 

- Estou a funcionar bem?

 

- Como um relógio suíço.

 

Marge sorriu.

 

- Graças a si.

 

- Graças ao seu cardiologista.

 

- Oh, ele? Não tinha qualquer sentido de humor. Tentei todas as minhas melhores piadas, mesmo as ordinárias, e não consegui sequer que ele sorrisse.

 

- Mas fez o seu trabalho.

 

- Isso é verdade. Consertou-me como se faz a um velho automóvel.

 

Annie manteve Marge ocupada discutindo os trabalhos escolares de Julia, enquanto Leo e Ben foram falar para a cozinha.

 

- Esses pontos já deviam ter sido tirados - observou Ben, apontando-lhe a testa.

 

Leo assentiu.

 

- Disse-lhes no hospital que o doutor faria isso. - Escarranchou-se numa cadeira e puxou o penso da ferida provocada pelo acidente de automóvel. Enrolou a tira de adesivo e deixou-a cair na mesa da cozinha.

 

Ben esterilizou com álcool a minúscula tesoura e umas pinças que tirou da mala. Examinou os pontos negros junto à linha do cabelo de Leo e limpou-os com álcool. Cortou-os, puxou-os e, em poucos segundos, os três pontos tinham saído.

 

- Está pronto - informou Ben, admirando a minúscula cicatriz cor-de-rosa como se ele próprio tivesse aplicado os pontos. - Isso deve desaparecer quase por completo.

 

- Não era nada bom que a minha bela aParência ficasse danificada, pois não? - disse Leo, piscando o olho. Ouviu Marge e Annie rindo na outra sala. A sua expressão tornou-se séria. - Como está ela, sinceramente? - perguntou Leo num murmúrio, como se receasse a resposta.

 

- Acho que ela teve muita sorte.

 

Ben olhou para a meia dúzia de medicamentos que Leo estava a colocar em cima do balcão. Recordou como tratara dos medicamentos dos pais, os horários que elaborara e as rotinas que tinham seguido para que tudo fosse tomado a tempo, com os alimentos ou com o estômago vazio. Nunca compreendera por que razão o pai escondia os comprimidos debaixo da língua para os cuspir depois. No lava-louça da cozinha havia sempre uma cápsula de gel vermelha e branca a derreter-se no aço inoxidável. Era como se o pai se estivesse a revoltar contra a doença, como se quisesse jogar uma partida contra o filho, o seu carcereiro, procurando vencê-lo a todo o custo. A mãe, pelo contrário, colaborava totalmente, com um copo de sumo na mão, pronta a tomar os medicamentos logo que os ponteiros do relógio da cozinha chegassem à hora fixada.

 

- Pregou-me um grande susto - confessou Leo. - Estou feliz por tê-la em casa.

 

Ben assentiu.

 

Momentaneamente, perturbou-o sentir-se de novo na mesma situação, circundado pelo sofrimento da doença. Acalmou-se, recolheu os instrumentos e depois seguiu Leo até à sala de estar para se sentar junto de Marge.

 

No final do dia, regressou à vivenda na floresta. Passou pela casa de Annie e pensou em parar, mas estarem algum tempo separados, embora apenas por algumas horas, era sempre bom. Viu a carrinha no caminho e, através da janela da frente, conseguiu ver as longas sombras da tarde caindo sobre a mesa da sala de jantar onde Julia se debruçava sobre um livro aberto. Ergueu a cabeça ao ouvir o som do carro que passava chocalhando pela estrada de terra e acenou.

 

Uma vez dentro de casa, Ben descalçou as botas e estirou-se no divã estendido no chão. Era a sua única peça de mobiliário e, mesmo assim, emprestada. Teria que começar a procurar, em lojas de antiguidades locais, cadeiras, pratos, copos - tudo o necessário para uma casa. Marge não era o suficiente para o manter ali por mais de uma semana, mas não havia qualquer outro lugar onde desejasse estar neste momento. Além disso, não gostava de viver sem qualquer finalidade.

 

Folheou o manual da Merck que tinha colocado no chão perto da cama. Uma secção sobre as doenças do sistema nervoso periférico no capítulo da neurologia surgiu-lhe ao acaso. Finalmente, depois de ter lido o suficiente sobre hérnias discais e neuropatias, que o tornaram agudamente consciente de cada pontada no pescoço e costas, já não conseguia adiar mais. A pouco e pouco os pensamentos sobre Annie tornaram a insinuar-se dentro de si, escavando tenazmente um sulco no seu cérebro, entrando na sua circulação como um fluido aplicado Por via intravenosa. Não queria perder este amor. Tinha de ir vê-la, tinha de persuadi-la a deixá-lo examinar aquele nódulo saliente.

 

Levantara-se um vento de noroeste que soprava com força sobre a montanha Sawtooth. Ouvia-se um gemido baixo à medida que o vento passava por uma esquina da casa, assobiando pelos espaços entre as tábuas. Ouviu a extremidade de um ramo de árvore bater contra o telhado. Fechou bem o casaco. Ao abrir a porta da frente ouviu-se o som de madeira a partir-se. Olhou para cima a tempo de ver cair um pesado ramo de carvalho. Antes de aterrar, sabia exactamente onde iria cair e levou uma mão à cabeça quando ouviu o embate.

 

A mossa em forma de U que atravessava o tejadilho do Cadillac diminuiria, com certeza, o valor que o carro ainda tinha. E seria, provavelmente, a amolgadela mais difícil de consertar. Precisava de contratar os serviços de uma oficina. Com a sua sorte desgraçada, bem podia acontecer uma tempestade de granizo que acabasse com o carro de vez.

 

Ben retirou o grande ramo do tejadilho. Gradualmente, o querido do pai estava a ser destruído. Ben abriu com esforço a porta do lado do condutor e ligou o motor. Pelo menos podia levar o carro para um local seguro. Tentou fechar a porta, mas o tejadilho estava deformado. Levou o carro pelo caminho abaixo e empurrou a porta com força, mas só a conseguiu fechar parcialmente.

 

Levantou as mãos e afastou-se. Algumas coisas estavam simplesmente fora de controlo - casos de força maior, como os agentes de seguros gostavam de dizer. Quando chegou a pé a casa de Annie, esta estava no exterior a caminho do celeiro. O vento despenteava-lhe o cabelo.

 

- Ena, está a dar um passeio!

 

Ben encolheu os ombros. Decidira não a sobrecarregar com os problemas do carro.

 

- Bem, eu ia dar de comer aos cães.

 

- Acha que preciso de uma máscara e luvas de guarda-redes para isso?

 

- Venha, eles são uns gatinhos, na verdade.

 

Dentro do celeiro, Annie preparou a comida para os cães. Estavam inquietos, uivando pela refeição, impacientes. Ela misturou vitaminas líquidas e levedura de cerveja na comida. Ben ajudou-a a colocar as tigelas de aço. Os cães avançaram, abocanhando num frenesim.

 

- Pressentem as coisas, penso eu - observou Annie.

 

- Quer dizer a pressão baixa? As superfícies frontais?

 

- É muito pragmático - observou Annie, abanando a cabeça.

 

- Sei o que quer dizer - defendeu-se Ben.

 

- Há decididamente algo no ar, não há? Senti-o o dia todo. Alguma mudança ou corrente, não sei.

 

- O que lhe deu essa ideia? O meu carro destruído?

 

- Mais problemas com o carro? Que aconteceu?

 

- Tudo o que precisa é de algum trabalho na carroçaria e tudo ficará bem.

 

- É o que todos precisamos.

 

Fechou um saco vazio de vinte quilos de comida de cão, enrolando-o, e recebeu na cara uma nuvem de migalhas finas. Afastou o nó com as mãos e tossiu. A tosse continuou até que ficou sem fôlego.

 

- Annie?

 

Ela levantou uma mão para o afastar, para lhe fazer saber que não precisava da sua preocupação ou ajuda. Finalmente, arquejou com um grande e único tossido.

 

- Atchim! - espirrou. As suas pestanas estavam salpicadas de lágrimas, mas respirava agora mais facilmente.

 

Ben ligou a caneta-lanterna e apontou-lha aos olhos.

 

- Eh! - exclamou Annie, agarrando-lhe o pulso. - Engasguei-me. Foi só isso. Não há necessidade de entrar em pânico. Não estou a morrer nem nada do género.

 

- Claro que não. Estava só a tentar ajudar.

 

Ela pigarreou e limpou a boca com a mão. Ben tentou sentir-lhe a pulsação sem tirar os olhos dos dela. Pousou dois dedos no pulso, sentindo os tendões e as veias sob a pele fina e frágil. Mais fundo, sentiu a corrida da sua pulsação. E na cabeça sentiu a batida como se fosse a sua, o entrelaçar firme e rítmico da batida do sangue de ambos.

 

Por que razão é o sangue tão sagrado e misterioso? Tão cheio de superstição e medo, de poesia e desejo, com a sua composição ao mesmo tempo simples e complexa. Simples nos seus componentes: os glóbulos vermelhos que transportam oxigénio, os glóbulos brancos que absorvem os agentes patogénicos e o plasma amarelado, no qual flutuam as células. Complexo pela sua função, como um rio que corre no corpo, transportando a essência da própria vida. Enquanto mantinha os dedos sobre o pulso pensou no tortuoso percurso circular que o sangue completa nas veias e nas artérias de Annie.

 

Ele inclinou-lhe a mão para trás, tendo o cuidado de apoiar os dedos longos dela na sua própria mão. Annie não mostrou a menor vontade de se afastar. De facto, os seus olhos nem sequer se tinham afastado dos dele. Ben pressionou os lábios no interior do seu pulso, sentindo-lhe o calor do corpo contra a boca. Ela passou-lhe a mão pelo cabelo e encostou o corpo ao dele.

 

Muito longe, no céu que estava a ficar com os traços cor de laranja do pôr do Sol, ouviu-se um ronco baixo. Ben quase o tomou pelo bater do seu coração. O som aproximou-se. Annie e Ben olharam para fora pela porta do celeiro a tempo de verem o avião de Sonny mergulhar por cima das árvores, fazendo oscilar as asas enquanto sobrevoava a casa, para depois se desviar para a pista de aterragem. Julia saltou de dentro de casa quando ainda conseguiam ver o avião. De pé, à porta, com a silhueta recortada pela luz do Sol, Julia apontou para o céu.

 

- Sonny chegou - gritou.

 

O avião de Sonny era um pássaro elegante, de nariz aguçado pintado de vermelho e prata. Quando os três - Ben, Annie e Julia - chegaram ao exterior do hangar, Sonny observava o seu co-piloto, que usava o cabo de um reboque motorizado para colocar o avião no interior. O aeródromo era constituído por uma simples pista pavimentada que corria de leste para oeste, um hangar de tecto metálico e um depósito para abastecimento de combustível. As luzes azuis de orientação brilhavam ao longo da pista na neve que tinha sido afastada.

 

Julia mal se conseguia conter e passou por cima de Ben para sair da carrinha logo que pararam. Sonny estivera fora quase uma semana e pegou em Julia, fazendo-a rodopiar. Pousou-a na extremidade da asa baixa do avião e deu-lhe um beijo em cada face à maneira continental.

 

- Não poderia desejar melhor comissão de boas-vindas - disse ele. Deu a Annie um abraço rápido e depois apertou a mão a Ben.

 

- Que se passa, doutor? - perguntou, resfolegando e batendo-lhe nas costas. - Oh, Annie, adivinha o que te trouxe desta vez?

 

- Vindo de ti, tudo é possível, Sonny - respondeu ela.

 

- Um restaurante instantâneo. Só falta acrescentar o chef.

 

Sonny abriu a larga porta do compartimento de passageiros do avião. Os assentos estavam rebatidos e diversas caixas estavam armazenadas no interior.

 

- Tivemos de verificar os cálculos de peso e equilíbrio três vezes para termos a certeza de que não estávamos sobrecarregados. Mas aqui está. Tudo o que um restaurante precisa. Excepto as coisas grandes: fogões, equipamento de lavagem de louça, frigoríficos. Isso vem por correio fretado.

 

- Sonny, meu Deus! - exclamou Annie. - Quanto é que tudo isto custou? Ainda nem sequer fiz o orçamento. - Abraçou-o e beijou-o na face. - És maravilhoso.

 

- Exactamente a reacção que esperava, minha querida - afirmou ele, beijando-lhe os lábios. - Vem, anda ver o que te trouxe.

 

Ele abriu as caixas de forma teatral como se fossem arcas do tesouro individuais. Surgiram talheres de aço inoxidável, facas de cozinha alemãs, copos de vinho. Uma caixa estava cheia de especiarias, outras de bons vinhos.

 

- Onde...? - gaguejou Annie, com a voz trémula de emoção. Abriu uma caixa e gritou de alegria. - A porcelana, encontraste-a! Ben, sabe que percorri todos os catálogos à procura deste modelo? Vi-o num catálogo, há anos, e recortei a gravura. É simples, duradouro e perfeito. - Beijou Sonny outra vez.

 

- Um tipo que eu conheço conhece um tipo que conhecia um tipo. Foi fácil. Vendeu-me o que precisávamos, do princípio ao fim. Não houve qualquer negociação, pus um monte de dinheiro em cima da secretária, entraram uns tipos com muito músculo que empacotaram tudo e aqui está.

 

- É o que precisas para começar, não é? - perguntou Julia.

 

- Nunca esperei isto - disse Annie, abrindo outra caixa. Riu-se, deliciada, com o que encontrou no seu interior. Eram castiçais. - Hoje vou cozinhar algo incrível para ti.

 

- Então, então, poupa-te para a grande inauguração - sugeriu Sonny, piscando o olho a Ben antes de se virar para Julia e de lhe dar uma pequena caixa leve para transportar. - Isso não é equipamento de restaurante, batatinha frita. É para ti.

 

Julia abriu a caixa de cartão e encontrou outra caixa lá dentro cuidadosamente embrulhada em papel dourado. Olhou-o, pedindo autorização para a abrir, e Sonny fez-lhe sinal para avançar. Julia desfez o laço e tirou o papel. Dentro do embrulho estava uma pequena caixa de música de madeira esculpida.

 

- É linda - apreciou Annie.

 

- Descobri-a numa lojinha dirigida por um homem minúsculo. Talvez fosse uma espécie de duende, porque tinha orelhas finas e pontiagudas e pés como os de uma cabra. Muito estranho, achei eu. Mas, quando vi isto, soube que era para ti.

 

Julia estava quase sem fala, mas conseguiu introduzir algumas palavras por entre risadinhas deliciadas.

 

- Obrigada, Sonny.

 

- Abre-a e vê o que toca.

 

Ela levantou a tampa e soou uma conhecida música lenta. Inclinou um ouvido para a caixa e escutou.

 

- Sunny Days, não é? - perguntou Annie. Era uma das canções mais populares de Sonny.

 

- Cada vez que abrires essa caixa, recebo algum dinheiro de direitos. Por isso, ouve-a com frequência - gracejou Sonny, piscando o olho.

 

Julia pôs-lhe os braços em torno do pescoço e deu-lhe um abraço apertado.

 

- Que prenda tão bem escolhida - disse Annie.

 

Sonny estendeu os braços, envolvendo também Annie. Quando ele entrou de novo na cabina do avião, levando Julia para exibir alguns dos seus novos brinquedos electrónicos, Annie, Ben e o co-piloto fizeram uma cadeia para retirar as caixas do avião para a carrinha. Quando acabaram, Annie e Ben entraram na carrinha.

 

- Posso ir com Sonny? - pediu Julia.

 

- Claro que podes, fofinha - acedeu Annie, estendendo a mão para lhe tocar no rosto, mas a rapariguinha virou-se e correu para Sonny com a caixa de música apertada contra si. Sonny virou o Lexus e baixou a janela enquanto Julia subia para o lugar do passageiro.

 

- Vêm? - perguntou. - Depois do jantar, podemos pôr a tocar alguns discos velhos. As canções da minha juventude, sabem.

 

- Com certeza. Tudo o que temos a fazer é descarregar isto.

 

Annie e Ben dirigiram-se para a cidade enquanto Sonny e Julia seguiam em direcção oposta para a casa dele. Conduziram algum tempo com o céu a escurecer. Ben sentia-se irritado, talvez fosse fome.

 

- Ele trouxe-lhe uma caixa de música espantosa - comentou Annie.

 

- Não se consegue bater a canção que toca.

 

- Sonny adora dar presentes. Nem consigo acreditar no que fez por mim. - Parecia estonteada, mas depois algo nela se esvaziou repentinamente, embora de modo tão subtil que ele quase não notou. - Sabe, sempre pensei que metade do prazer de abrir um local novo seria a escolha de tudo. Mas devia estar grata, é menos uma coisa... Que diabo, são menos cem coisas com que me preocupar!

 

- Então está contente com tudo?

 

- Há alguma razão para não estar encantada? - riu-se Annie.

 

- Ele é muito querido com a Julia.

 

- Oh, sim, Sonny exerce o seu encanto com bastante intensidade.

 

Na cidade, chegaram às traseiras do edifício e começaram a descarregar. Annie queria colocar todas as caixas num canto, perto da entrada da cozinha, para poder examinar tudo cuidadosamente.

 

Já tinham transportado quase todas as coisas da carrinha quando Annie disse que tinha de parar. A sua cor desaparecera com o brilho das luzes do exterior que se tinham acendido ao crepúsculo. A sua pele tinha agora um tom azulado como leite desnatado aguado. Ben colocou-lhe a mão fria na testa.

 

- Parece que tem febre.

 

Ajudou-a a sentar-se na extremidade aberta da porta traseira da carrinha e fitou-a nos olhos.

 

- Sabe, tenho andado a arrastar-me esta semana - disse, rindo abafadamente. - Houve demasiada excitação na minha vida, acho eu.

 

Ben continuou a examiná-la, sentindo as glândulas sob o queixo. As pontas dos dedos tinham acabado de passar pelos nódulos linfáticos submaxilares e depois pelos cervicais, enquanto ela o olhava fixamente.

 

Que coisa era aquela que se via nos seus olhos?, perguntou-se Ben, mais uma vez. Era medo ou simplesmente cansaço? O azul das íris parecia mais claro sob a luz esbranquiçada da rua, mas não tinham perdido a sua intensidade. Prosseguindo o seu exame, apercebeu-se da pulsação débil sob a margem anterior do masséter, o músculo que controla o maxilar, mesmo sob o queixo.

 

Estava suficientemente próximo para sentir a sua pele perfumada com o aroma a resina do pinhal bem como a fumo do fogão a lenha. Era como se uma corrente tivesse penetrado no seu corpo e já não sentisse a fome no estômago nem o frio na face. Sentia simplesmente um calor irradiante que o percorria como vapor. Annie estremeceu de repente e afastou a cabeça com uma sacudidela quando ele lhe passou a mão pelo pescoço alto envolto pela camisola.

 

- Desculpe. Um ponto sensível? - perguntou, pensando que atingira alguma zona inflamada pela infecção no nódulo inchado. Ou seria embaraço? Teria Annie notado que ele não lhe tocara apenas como médico mas como homem, como qualquer homem?

 

- Não, não é nada. - Apertou o casaco. - Nada mesmo. - Saltou da parte de trás da carrinha e fechou a porta. - Vamos jantar. Deve ter fome.

 

- Já comia alguma coisa - disse Ben, tentando acompanhar a sua boa disposição. - E a Annie?

 

- O cozinheiro nunca tem fome.

 

- Sente-se e fique sossegada - ordenou Ben, transportando as duas últimas caixas para o interior. Annie subiu para a cabina da carrinha. A saúde dos outros não era da sua conta até lhe pedirem ajuda e ela não pedira. Mas não conseguia deixar de reparar nos sintomas. Ben entrou para o lugar do passageiro. - Há quanto tempo não vai ao médico, Annie?

 

Ela pôs o motor da carrinha a trabalhar e saiu da rua antes de responder.

 

- Não me dou bem com médicos. Excluindo os presentes. É melhor não falarmos disto.

 

- Então vai tentar levar uma vida mais calma?

 

Ela ergueu os olhos para o céu.

 

- Com tudo o que é preciso fazer? Os trabalhos escolares de Julia, os cães e este restaurante?

 

- Talvez seja altura de largar alguma coisa.

 

- Marge tem ajudado Julia, mas não posso pedir isso a uma mulher que acabou de ter um ataque cardíaco.

 

- Se não vai viajar com Sonny, por que não manda Julia para a escola?

 

Ben não gostava de dar conselhos e, depois de lhe sugerir isto, não queria falar mais do assunto.

 

- Talvez. Não sei. - Annie olhou-o de relance. - Olhe, eu agradeço, mas...

 

Ben estendeu o braço pelas costas do assento e pô-lo em torno dos ombros dela.

 

- Mas o quê?

 

Ela respondeu com um suspiro e um meneio de cabeça. Ben ficou irritado por ela o afastar assim. Mas exprimira a sua preocupação, oferecera a sua ajuda e pouco mais havia que pudesse fazer. Prosseguiram em silêncio sob um céu que ainda retinha traços púrpura a oeste muito depois de o Sol ter descido por trás da linha das montanhas.

 

A casa de Sonny era um edifício maciço de pedra que se erguia na floresta como a majestosa mansão de campo de um aristocrata francês. O telhado amplo tinha três chaminés de tijolo espetadas como as de uma fábrica. Todas pareciam vomitar fumo de lenha. Uma névoa espessa estava suspensa no ar frio. Um muro de pedras em bruto, cuidadosamente alinhadas, rodeava todo o complexo. Annie marcou um código na placa de teclas do portão da frente e a vedação de ferro forjado abriu-se para os deixar passar.

 

- Enganámo-nos no caminho e viemos parar a Beverly Hills? - perguntou Ben.

 

- Eu sei. É um pouco teatral.

 

- Quem consegue explicar os caprichos dos ricos? Sonny é contraditório. Quer a sua privacidade, mas, por outro lado, há nele aquele lado selvagem que quer tornar isto em mais um local de recreio para adultos: esqui, concertos de Verão, trilhos para bicicleta de montanha, multidões, sabe. Não precisamos mais disso. Trocar a beleza por dólares de desenvolvimento foi o que me fez sair do Oeste. Mais ou menos.

 

O caminho circular de cascalho era triturado, agradavelmente sob os pneus protuberantes da carrinha e Annie parou junto à porta da frente. Num dos lados da casa havia uma garagem para três carros e do outro lado, nos andares superiores, ficava o espaço para habitação. Annie abriu a pesada porta de carvalho e, à entrada, viu-se uma fonte donde jorrava água sobre seixos do rio. O chão era também todo de pedra, de lousa de tonalidades variadas. Julia correu para eles, vinda de um dos quartos das traseiras onde se ouvia música.

 

- Gosta da nossa casa? - gritou.

 

Ben olhou para Annie, pedindo uma explicação.

 

- Julia ainda pensa nela como se fosse a sua casa porque foi aqui que ficámos quando nos mudámos para cá.

 

- Onde posso pôr estas coisas? - perguntou ele, segurando dois sacos de compras cheios de mantimentos para o jantar que tinham ido buscar à cozinha de Annie.

 

- Venha que eu mostro-lhe.

 

Seguiu-a pelo comprido vestíbulo que abria para uma sala de jantar atapetada, pintada de salmão. Para lá da sala de jantar havia uma cozinha inteiramente equipada com armações para panelas de aço inoxidável, uma arca congeladora vertical, bancadas para a confecção dos alimentos e um fogão industrial. Ben pousou os sacos na mesa e Annie começou a esvaziá-los.

 

Havia cenouras, cebolas, batatas, caldo de vegetais caseiro, natas e funcho fresco. Do congelador retirou um pão cuidadosamente embrulhado.

 

- Este forno consegue fazer coisas fenomenais com um bocado de massa de pão.

 

Colocou o pão no forno para o aquecer e tirou uma panela da armação que estava por cima do fogão.

 

- Annie, se ainda não se sente bem, deixe-me cozinhar. Sei seguir uma receita.

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Sinto-me óptima.

 

- Está bem - disse ele, ainda céptico.

 

- Se quer ajudar, pode lavar essas cenouras.

 

- Não acredito que ele não tenha cá comida nenhuma - observou Ben, começando a esfregar as cenouras sob a água corrente do lava-louça.

 

- Digo sempre que, se não fosse eu, morreria de fome - comentou Annie, acendendo um bico do fogão.

 

- Antes de conhecer Annie, não tinha comido uma refeição caseira desde o tempo em que a minha tia cozinhava carne de conserva quando eu era miúdo - anunciou Sonny, entrando na cozinha com umas calças de algodão natural e uma T-shirt preta. Bem-vindo ao meu lar, Doutor Minor.

 

- Tem aqui uma bela casa - comentou Ben.

 

- Apenas uma vivendazinha na floresta, é tudo - replicou Sonny, desligando o lume da panela que Annie colocara no fogão. - Annie, desculpa, esqueci-me. Deve ter sido de toda aquela excitação no aeródromo. Mas o meu presente para ti esta noite é que não tens de cozinhar nada. Tenho tudo preparado.

 

- O quê? Paraste naquela loja vegetariana em Denver? Sonny, não tenho nada contra isso, mas posso cozinhar as mesmas coisas e fazer com que saibam bem. Dentro de trinta minutos comes a minha sopa de funcho e cenoura com bom pão - disse e voltou a acender o lume.

 

Sonny abriu o frigorífico e, no meio de garrafas de água e sumo, havia embalagens de um take-away.

 

- Que gostaria de comer, Ben? Um burrito de feijão e queijo? Escolha o que preferir.

 

- Onde foste arranjar tudo isto? - perguntou Annie. Tirou as embalagens do frigorífico e começou a desembrulhá-las.

 

Sonny tentou ligar o forno. Mexeu nos botões e acabou por ligar a ventoinha da ventilação.

 

- A mulher não falava muito inglês, mas acho que disse que se aqueciam bem.

 

Annie ocupou o lugar dele e meteu a comida no forno.

 

- Obrigada, não me apetecia muito cozinhar esta noite.

 

Ele abriu uma garrafa de água e atirou outra a Ben.

 

- Puseram o material no lugar?

 

- Está tudo onde deve estar.

 

- Chegam mais coisas amanhã.

 

Sonny encostou-se à ombreira da porta que dava para a sala de jantar. De repente, Julia passou por ele a correr.

 

- Mãe, adivinha? - disse, dirigindo-se a Annie. - Sonny está a ensinar-me a tocar guitarra.

 

Sonny riu-se.

 

- Com nove anos, sabe mais acordes do que aqueles que nós utilizámos no nosso primeiro álbum em sessenta e quatro.

 

- Uma aluna que aprende depressa, hã? - elogiou Ben, gracejando.

 

- É uma maravilha. Todos os meus filhos são rapazes e já crescidos. Sabe, estão um bocado irritados com o seu velho pai. Alguns pais vão para o escritório e outros vão em digressão. - Sorriu timidamente e o arco do seu bigode espesso nivelou-se por cima do lábio. - Então, gosta da vivenda branca?

 

- Adoro-a.

 

- Estou surpreendido por um homem da cidade querer viver aqui. Sem cinemas nem restaurantes.

 

- Excepto o de Annie, prestes a abrir.

 

- Bem, isso é verdade. E vai ser um sucesso extraordinário. Encarregar-me-ei disso se for preciso - disse Sonny, olhando para Ben e estreitando os olhos. - Ainda conduz aquela sucata?

 

Ben encolheu os ombros.

 

- Um ramo de árvore aterrou nele hoje. Agora não consigo fechar a porta.

 

- Tenho uma garagem cheia de carros para emprestar, se quiser.

 

- O meu ainda funciona bem.

 

Sonny levou Ben até à grande garagem ao lado da casa. Acendeu as luzes do tecto. Havia três carros estacionados, uma moto BMW preta e dois carros de neve vermelho brilhante.

 

Ben passou pelo Lexus SUV que Sonny usava na cidade.

 

- É um raio de uma beleza - gabou Sonny, seguindo-o até meio da garagem, onde Ben olhava para um velho jeep castanho. - É uma carcaça, mas o motor ainda zumbe. Escrevi algumas boas canções enquanto o conduzia através do campo. Lembra-se de Ashes of Love? Nada má, alcançou o topo das tabelas de êxitos em oitenta e oito.

 

- É um talismã - observou Ben.

 

- É verdade! Consigo sentir a inspiração a emanar dele como o calor.

 

Estendeu as suas compridas mãos sobre o capô como se estivesse à espera de apanhar alguns raios.

 

Ben caminhou até ao terceiro carro, um Range Rover creme.

 

- Encontrou o meu preferido. É barulhento e o aquecimento não trabalha muito bem, mas essa coisa consegue trepar por uma montanha acima - riu-se Sonny. - Se a sua carcaça decidir abandoná-lo, venha cá e leve-o.

 

Ben olhou pela janela do carro para a alavanca das mudanças que saía do chão entre os assentos.

 

- Transmissão manual.

 

- Outra característica magnífica. Lutar com aquelas mudanças dá uma verdadeira sensação de poder.

 

- Não consigo conduzir com uma alavanca fixa no chão.

 

- Apanha-lhe o jeito num instante.

 

Sonny piscou-lhe o olho e sorriu-lhe abertamente, fazendo brilhar os seus grandes dentes quadrados. Quantos milhares de dólares teriam sido necessários para arranjar os dentes daquela boca?

 

- Sinto-me bem com aquilo que conduzo.

 

- Bem, não se preocupe, doutor. Se precisar dele, está aqui.

 

De manhã e de tarde, Ben ia ver como se encontrava Marge Pepitone. As noites passava-as com Annie. Uma semana depois, Marge melhorara muito, fazendo exercício na escada e sentindo-se suficientemente forte para invectivar Leo quando este deixava algum prato no lava-louça.

 

- Talvez esteja a ficar bem demais, doutor - comentou Leo, uma tarde. Acabava de regressar da garagem onde estivera a trabalhar.

 

- Eu ouvi! - gritou Marge desde a sala de estar. Estava ali aninhada na sua cadeira de repouso fazendo as palavras cruzadas de uma revista.

 

- Um destes medicamentos deve ter-lhe aguçado a audição, Leo.

 

- A quem o diz - observou Leo, olhando pela janela da cozinha para o carro destruído de Ben parado à entrada. Ben conseguira fechar a porta do condutor com um arame, mas isso não lhe causava um grande transtorno porque se esgueirava pelo assento do passageiro até ao seu lugar.

 

- Meu Deus, Ben. Precisa de ajuda para aquele carro.

 

- A direcção está um pouco estranha mas ainda funciona bem - explicou Ben, olhando para o triste e amolgado Cadillac. - O meu pai sempre teve muito cuidado com ele.

 

- Esta zona é terrível para os carros. Sem dúvida. - Leo mudou de assunto. - Olhe, Jason enviou uma mensagem dizendo que tentaria vir ver-nos no próximo mês.

 

- Isso é óptimo.

 

- Estou ansioso por que se conheçam.

 

Ben assentiu. Ainda estaria aqui nessa altura? Parecia ainda muito distante e os seus planos eram tão incertos. Dependeria de Marge, calculou - e de Annie.

 

O movimento era essencial para o coração de Marge, mas esta estava tão apta a movimentar-se sozinha como um pedregulho de dez toneladas. Geralmente, após uma doença grave, há uma motivação para alterar os maus hábitos. Mas não no caso de Marge. Duas vezes por dia, Ben arrancava-a da cadeira para lhe fazer circular o sangue. Enquanto Leo trabalhava para Annie no restaurante ou se fechava na garagem, Marge tinha os seus próprios planos especiais para Ben. Toda aquela semana, este fizera várias cargas de roupa suja, lavara pratos, aspirara tapetes e até pregara um prego numa tábua do chão que chiava e que Marge dizia que a levaria à loucura.

 

- Ben - chamou-o. Ele estava na cozinha a encher um copo de água para ela tomar os medicamentos. - Traga essa embalagem de limpa-vidros que está debaixo do lava-louça, estas janelas estão nojentas.

 

Se não recordasse continuamente que estava ali por causa de Annie, não teria querido ficar. Estava ali para atender às necessidades médicas de Marge, não às suas necessidades domésticas. Mas, por vezes, sentia-se derrotado e pensava apenas em Annie.

 

- Marge - sugeriu Ben. - Vamos tentar alguns exercícios para fomentar a movimentação.

 

- Acabámos de fazer alguns exercícios. Estou cansada.

 

- Estes são diferentes. São novos.

 

Ela suspirou e abanou a cabeça. Deu-lhe o braço para se apoiar enquanto ela se levantava da cadeira com esforço.

 

- Que têm de diferente que não possam esperar? Estava a fazer as minhas palavras cruzadas.

 

Ele conduziu-a até à janela panorâmica da sala de estar donde se via o rio em baixo. Colocou um punhado de toalhetes de papel nas mãos dela. A seguir esguichou o limpa-vidros azul sobre a janela.

 

- Muito bem, mexa esses braços de um lado para o outro. Um, dois, três.

 

Marge ergueu os olhos ao céu e tocou no vidro com indiferença

 

- Não a posso ajudar se não colaborar.

 

- Está bem - concordou Marge. Esfregou com mais força. Ben esguichou para as janelas de novo. Passados alguns minutos Marge pusera o vidro a brilhar.

 

1Na noite da abertura do Café Turnstone de Annie, Ben foi a primeira pessoa para quem ela cozinhou. Era cedo quando o convidou para «jantar com a chef» na imaculada bancada da cozinha.

 

- Teria convidado Sonny também - confidenciou a Ben. - Mas já estou suficientemente nervosa.

 

Annie mal podia esperar por começar a trabalhar na cozinha dos seus sonhos. Vestiu a bata branca de chef e colocou um barrete com o desenho de um pimentão-de-caiena. Depois da visita guiada à cozinha, para lhe mostrar todos os seus novos utensílios, Annie retirou uma pesada frigideira de aço da barra por cima do fogão, acendeu um bico e deixou a chama azul lamber-lhe os lados.

 

- Que vai fazer? - perguntou-lhe Ben.

 

- Conchas de salmão com molho de natas e pepino. O prato especial de hoje.

 

Cortou uma cebola com a precisão de uma máquina e lançou os pedaços cortados sobre a manteiga que estava a aquecer na frigideira. Quando as cebolas ficaram prontas, adicionou pepinos cortados e acabou o molho com vinho e natas. Colocou pedaços de salmão ligeiramente enfarinhados noutra frigideira, que crepitaram e escureceram.

 

- Cheira muito bem.

 

- Uma boa refeição é uma bênção - observou ela.

 

Estavam sozinhos na cozinha. Sonny estava numa fase de isolamento e, ultimamente, enfiara-se na sua propriedade dias a fio. E Julia estava a ver um vídeo com Marge.

 

Annie tirou dois pratos da barra de aço. Eram brancos, com um filete simples, azul da cor do céu. Ela admirou a porcelana delicada e comentou:

 

- O esforço que Sonny teve de fazer para encontrar exactamente o que eu queria... Os pequenos pormenores. Adivinha sempre os meus pensamentos.

 

- É verdade, então, que o dinheiro pode comprar a felicidade?

 

Annie empalideceu.

 

- O dinheiro é segurança, mas sempre pensei que a felicidade

 

provém de um local mais profundo.

 

- Talvez do timo.

 

Annie franziu o nariz.

 

- O timo? Não quer dizer tomilho? A erva?

 

- Não, é uma glândula no peito por cima do coração. É maior nas crianças, mas encolhe à medida que envelhecemos, até quase não restar nada. Em tempos pensava-se que fosse acessório como o apêndice e costumavam extraí-la como se faz às amígdalas. Uma cirurgia inútil.

 

- Portanto, está a dizer que o segredo da felicidade é ter uma glândula do timo grande?

 

- Estou apenas a dizer que talvez não seja por acaso que a tal glândula está por cima do coração.

 

Ela abanou a cabeça.

 

- Glândulas! Só causam complicações. - A sua atenção desviou-se para a refeição. - O peixe está pronto.

 

Serviu a Ben um prato de salmão, tostado até ter uma crosta estaladiça, regado com o molho de pepino. Deu-lhe um garfo que tirou da caixa dos talheres.

 

Ben provou o salmão. Sentiu-o quente e delicado na boca.

 

- Perfeito - elogiou. O molho cremoso tinha uma acidez deliciosa. Saboreou-o por toda a língua. Dez mil minúsculos rebentos de paladar floresceram-lhe na língua, detectando o doce e o salgado à frente, o amargo atrás e o azedo dos lados. Pensou na forma como o paladar e o olfacto estavam ligados intimamente no cérebro e como muito do que encarávamos como paladar era, em grande parte, olfacto estimulado pelo bolbo olfactivo na parte superior da cavidade nasal.

 

- Então gosta?

 

Ben sorriu.

 

- Adoro.

 

- Óptimo.

 

Annie provou um pedacinho de peixe do seu prato. Um relógio tocou e ela pousou o garfo para ir verificar o pão no forno.

 

- Não posso perder tempo. Quero que tudo esteja perfeito desde o início.

 

Ben comeu rapidamente, sentindo a pressão que a oprimia.

 

- Então onde me vai pôr a trabalhar?

 

- O doutor? Não, está tudo bem. As raparigas virão para servir à mesa.

 

- Então com certeza vai precisar de alguém.

 

- Não há orçamento para mais ninguém.

 

Ele sorriu-lhe e disse:

 

- Quero entrar nisto, Annie. Quer que eu lave os pratos?

 

- Está a brincar? - zombou ela. - Não vou pedir a um médico que lave pratos na minha cozinha.

 

- Vai precisar de ajuda. Então e o bar? Tomo conta do bar se puder jantar consigo assim todas as noites. Que tal?

 

Annie limpou a testa com uma toalha de algodão branca. Estava calor junto dos fogões.

 

- Isso seria bom. Seria mesmo bom.

 

- Agora, se conseguíssemos que Sonny concordasse em lavar os pratos, estaria tudo bem - sugeriu Ben.

 

Annie tirou rapidamente a toalha do ombro e bateu com ela em Ben.

 

- Estou a brincar - defendeu-se ele, levantando uma mão para se proteger da toalha e rindo-se. - Só a brincar.

 

Antes de abrirem as portas, às cinco e meia, Ben ajudou Annie a acender velas minúsculas em castiçais de vidro fosco em cada uma das oito mesas. A luz das velas tornava a sala ainda mais íntima. As toalhas de mesa brancas estavam engomadas e os guardanapos dobrados em forma de leque junto de cada lugar. Ben colocou no CD alguns discos de jazz e diminuiu as luzes. As duas empregadas, Sara e Felicity, que tinham sido baby-sitters de Julia, desapareceram para verificar a maquilhagem no lavabo das senhoras. Entretanto, Julia, com um vestido de cerimónia de veludo preto, estava pronta à porta com as ementas.

 

- Todos prontos? - perguntou Annie, com a mão na porta.

 

- A Annie está? - perguntou Ben.

 

- Não sei. Estou enervadíssima, isso quererá dizer que estou pronta?

 

Girando o fecho da porta, abriu o Café Turnstone para o jantar. Depois dirigiu-se apressada para a cozinha, ansiosa pela chegada do primeiro cliente. Ben ocupou o seu lugar no bar atrás do comprido balcão. Assegurara o arrefecimento da cerveja e do vinho. E havia sumos para fazer coquetéis, embora a única bebida que ele sabia fazer fosse o que estava habituado a beber na universidade - um Screwdriver.

 

Às seis horas, Leo e Marge apareceram e Julia conduziu-os a uma mesa num canto sossegado. Ficou junto deles e fez-lhes companhia enquanto eles elogiavam o seu bonito vestido. Felicity trouxe-lhes um cesto de pão e anotou o pedido das bebidas. Gradualmente, as mesas encheram-se.

 

Annie oferecia uma variedade de pratos principais, desde as conchas de salmão a tenras costeletas de cordeiro grelhadas com molho de romã e maçã. Partia dela uma irradiação como luz do Sol reflectida. Estava a fazer o que gostava. Na sala de jantar ouvia-se o agradável murmúrio de conversação e as saudações de velhos amigos que se cumprimentavam após um Inverno rigoroso.

 

- Não há sinal dele? - perguntou Annie, mais tarde, quando Ben foi buscar outro balde de gelo à cozinha.

 

Ben fitou-a sem expressão.

 

- De Sonny?

 

Ele abanou a cabeça e apressou-se a voltar à sala de jantar. Alguém lhe pedira um Mai Tai e teve de o procurar num guia de bolso de empregados de bar escondido por trás do balcão.

 

A meio da noite, Annie deu uma volta pela sala de jantar, cumprimentando velhos amigos. Fez companhia a Lindsay e ao marido, que estavam sentados numa mesa junto à porta. Vestiam ambos camisas de sarja de algodão condizentes e bem engomadas.

 

- Está tudo maravilhoso, Annie - elogiou Lindsay. Ergueu o copo e fez-lhe um brinde com shiraz australiano. - Parabéns.

 

Mais tarde, Annie sentou-se por momentos no bar com Ben, esvaziada a excitação inicial.

 

- É mesmo dele não aparecer - comentou.

 

- Ele vem. Tenho a certeza.

 

Ben agitou para a frente e para trás um shaker prateado. Estava a apanhar o jeito de servir no bar. Recordava-lhe a aula de química orgânica com todos os aparelhos especializados para misturar e medir. Mas desta vez não tinha de memorizar todos os passos do ciclo de Krebs, o processo químico pelo qual as células metabolizam energia. Ben preparou um sumo de tomate picante para Annie e esta levou-o consigo para a cozinha.

 

- Art Tatum - disse Leo, referindo-se à música que estava a tocar. Inclinou-se sobre o bar para pedir a Ben que lhe aromatizasse o café com um pouco de uísque. - Não o acha fantástico? A forma como os seus dedos percorrem o teclado para cima e para baixo. Já ninguém toca assim.

 

Julia foi o verdadeiro centro da noite. Registou tudo com uma câmara de vídeo que Sonny lhe oferecera pelo seu aniversário no ano anterior. Assim, Julia circulava com a câmara, filmando a festa e entrevistando todos os que se prestassem a isso. Estava muito bem-disposta, fazendo uma panorâmica para apanhar toda a sala e disparando perguntas às pessoas como uma repórter de notícias da TV. Gostava de apanhar as pessoas desprevenidas e até filmou Marge de perto quando esta tinha a boca besuntada de molho da costeleta de cordeiro. (Ben pensou que o seu coração gostaria mais da massa com legumes grelhados, mas não se conseguem mudar os hábitos de algumas pessoas.)

 

Gradualmente, a festa foi esmorecendo e, uma a uma, as mesas ficaram livres e o restaurante esvaziou-se. Sara e Felicity, que eram irmãs, juntaram mesas e arranjaram-nas de novo com toalhas limpas. Transportaram os pratos para a cozinha, onde ajudaram Annie a limpar tudo.

 

Julia e Ben sentaram-se no sofá à entrada do restaurante vazio, onde comeram bolo de chocolate que Annie lhes dera na cozinha. Era um bolo leve com todo o peso no sabor intenso - meia chávena de café era o segredo. Julia acabou de comer o bolo e pegou na câmara.

 

- Então diga-me algo interessante - pediu ela, fazendo novamente de repórter.

 

Ben pensou por momentos e disse:

 

- Quem achas que tem mais ossos no pescoço, um ser humano ou uma girafa?

 

Julia franziu a boca suja de chocolate.

 

- Tem de ser a girafa.

 

- Acho que não. As girafas e os seres humanos têm ambos sete ossos no pescoço.

 

- Mas como é possível?

 

- A girafa apenas tem ossos maiores.

 

- Não acredito.

 

- É verdade. Um facto documentado. Verifica, se quiseres.

 

Ben pousou o prato. O bolo era demasiado forte para ele.

 

- Que tal se eu te entrevistar a ti? - perguntou.

 

Julia mostrou-lhe como trabalhar com a minúscula câmara, mas não era fácil colocar os dedos no lugar certo para premir a tecla de gravação e para fazer zoom. Ben levantou-se e olhou pelo visor, tentando ajustar a posição de forma a enquadrá-la.

 

- Use o zoom - disse ela, impaciente. - É essa tecla mesmo aí. Faça zoom. Não tem de se levantar.

 

- Esrá bem - aquiesceu Ben, sentando-se. Não havia nada que esmagasse mais o ego do que receber instruções de uma criança de nove anos. - Primeira pergunta - anunciou Ben. - Que tipos de coisas gostas de filmar?

 

Ben concentrava-se em manter a câmara firme. Ela repetiu a pergunta como se fosse a coisa mais tonta que já ouvira.

 

- Usei-a para filmar a mãe com os cães. Ela quer fazer um vídeo sobre treino de cães de trenó. Por isso filmei-a a prepará-los para correr e coisas assim.

 

Com o passar do tempo, Ben sentia-se mais confortável por estar do outro lado da câmara.

 

- Dizes-me que outras coisas filmaste?

 

Julia pensou por um momento, franzindo a cara. Depois, algo pareceu ocorrer-lhe. Parecia não ter a certeza se queria ou não dizer. Olhou para a pequena mesa e outra vez para a câmara.

 

- O que é? - perguntou Ben, preocupado por ela ir revelar algo de terrível.

 

- Filmei Marge.

 

- Porquê Marge?

 

- Não sei.

 

- Levaste a câmara para a escola?

 

- Sim, mas com Marge ou a mãe não é realmente escola. Na escola há um professor e uma sala de aula e amigos com quem nos encontramos no recreio no intervalo.

 

- Mas pensei que Marge e a tua mãe fossem boas professoras.

 

- A mãe é, mas Marge... - hesitou, parecendo à beira das lágrimas. - Marge adormece e eu tenho de fazer toda a leitura sozinha. - Levantou-se, repentinamente, e tirou a câmara a Ben. - Vou mostrar-lhe - afirmou, rebobinando o filme na câmara.

 

- Marge tem estado bastante doente, provavelmente não tem culpa de adormecer.

 

- Já o faz há muito tempo, mesmo antes de adoecer - replicou Julia, parando o filme e carregando na tecla de leitura. Olharam para o ecrã minúsculo da câmara e ali estava Marge profundamente adormecida na sua cadeira de repouso. Até conseguia ouvi-la ressonar. A câmara moveu-se ao longo da face, aproximando-se até da boca frouxa e aberta.

 

Se Julia não estivesse tão aborrecida, teria sido hilariante. Julia observou a imagem de Marge no ecrã a ressonar e uma expressão de angústia total atravessou-lhe o rosto. Outros miúdos ter-se-iam regozijado pelo tempo em que não tinham de trabalhar, mas ele conhecia Julia o suficiente para compreender que era uma aluna séria que sentia a sua própria pressão e impulso para avançar. E Ben conhecia bem esse sentimento. Aquela motivação estranha impelira-o também ao longo dos seus estudos. Era esta a fonte da sua estranha melancolia, a irritabilidade que a afectara. Ele parou o filme e pousou a câmara.

 

- Então o que fazes enquanto ela está a dormir? - perguntou-lhe, embora soubesse a resposta.

 

- Continuo a ler ou a estudar os meus livros.

 

- E se tens dúvidas?

 

- Espero até ela acordar ou pergunto à mãe quando chego a casa.

 

Julia balançou os pés, nervosa, de tal forma que os calcanhares dos sapatos de cabedal batiam com ritmo numa perna de madeira do sofá. Brincou com um comprido cabelo escarlate que se soltara da trança. Os dedos puxaram a gola redonda da blusa branca.

 

- Não sei o que fazer.

 

- Acho que deves dizer alguma coisa à tua mãe. De outra forma, nada mudará.

 

Julia suspirou e deixou cair os ombros. Pensou por um momento e pegou na câmara que Ben colocara na mesa. A sua disposição melhorou e disse, levantando-se de novo:

 

- Posso filmá-lo a operar alguém?

 

Ben não teve oportunidade de responder. Annie saiu, finalmente, da cozinha com Sara e Felicity. As duas raparigas tinham trocado os seus uniformes de empregadas por calças de ganga e sweatshirts. Felicity usava um boné preto de basebol puxado para baixo sobre os olhos. O cansaço tornara Annie tão pálida como o seu casaco de chef, desabotoado no pescoço.

 

- Olha, mãe, Ben vai deixar-me vê-lo a operar.

 

- Talvez possa operar-me à cabeça. Aceito tudo para me livrar desta dor.

 

Esfregou as têmporas.

 

- Venha, sente-se aqui - convidou Ben, conduzindo-a até ao sofá.

 

Julia pegou de novo na câmara de vídeo.

 

A mãe suspirou profundamente.

 

- Que noite!

 

Sara e Felicity vestiram os casacos, enquanto Julia se movimentava para filmar a mãe. Annie ergueu uma toalha de cozinha em frente da cara.

 

- Minha marota, não estou com disposição para ficar no teu filme - afirmou.

 

Bebeu alguns goles de água gelada.

 

- Está bem - aceitou Julia, parecendo desencorajada, mas deu ouvidos à mãe e afastou a câmara do olho.

 

- Já é tarde para ti, querida.

 

Felicity pegou na mão de Julia.

 

- Vem, levo-te a casa e meto-te na cama.

 

- Levo só meia hora a fechar - comunicou Annie a Felicity, beijando o alto da cabeça da filha.

 

Julia vestiu o casaco e manteve a câmara a trabalhar. Depois saíram as três.

 

- Quer outra bebida? - perguntou Ben. Gostava de preparar as bebidas no bar. Era apenas outra forma de ajudar as pessoas, ajudá-las a esquecerem-se de si próprias com a bebida.

 

- Quanto muito, um ginger ale, por favor.

 

- Correu bem esta noite - comentou Ben, servindo-lhe o refrigerante.

 

Annie gemeu.

 

- Acho que me entusiasmei.

 

- Bem, não ouvi queixas - replicou Ben, colocando a bebida na mesa.

 

Annie esfregou as têmporas e estendeu-se no sofá.

 

- Que receitaria para esta tremenda dor de cabeça que tenho agora?

 

- Vire-se - ordenou Ben, sentando-se na extremidade da pequena mesa.

 

Annie estendeu-se de barriga para baixo e Ben afastou-lhe para o lado o curto cabelo escuro, começando a massajar-lhe o pescoço. Ela suspirou.

 

- É isso. Mesmo aí.

 

- Toda a sua tensão está aqui concentrada entre os ombros. Foi descendo do alto do pescoço até ao meio e então sentiu-o perto do ombro. Era tão evidente como um berlinde ou um rebuçado duro sob a pele. As suas mãos pararam de friccionar e começou a apalpar o inchaço, cuidadosamente, com as pontas dos dedos.

 

- O que é? - perguntou Annie, sentindo a mudança do toque. Virou-se de repente, com pressa, como se se tivesse lembrado de uma panela de sopa que deixara no fogão.

 

- Tem um inchaço num dos lados do pescoço.

 

Ele estendeu a mão para o apalpar de novo, mas ela esquivou-se.

 

- Está mesmo na base do pescoço. Aqui, deixe-me mostrar-lhe.

 

Ela levantou-se abruptamente.

 

- Tenho de ir. Já é tarde e tenho mesmo que ir.

 

- Annie, tenho a certeza de que não é nada de grave, mas dê-me oportunidade de o verificar.

 

Ela afastou-se.

 

- Eu própria devia ter levado Julia para casa. Imagine, deixar a baby-sitter metê-la na cama e não eu. Que tipo de mãe faz isso? Terei que fechar mais cedo a partir de agora.

 

- Está a exagerar, provavelmente não é nada de especial.

 

- Desculpe, Ben. Desculpe mesmo.

 

Entrou em pânico e correu para a cozinha, deixando a porta a balançar atrás de si.

 

Ben queria segui-la, mas deixou-a partir. Sentiu bater a porta das traseiras. Ouviu-se o som de uma carrinha a arrancar na rua e Ben foi à janela a tempo de ver Annie partindo a toda a velocidade para casa. Observou as luzes traseiras da carrinha a desaparecer quando a estrada fazia uma larga curva em torno da montanha Sawtooth.

 

Ben deu uma volta e apagou as luzes. Assegurou-se de que tudo estava bem fechado na cozinha e depois empurrou as portas de batente de regresso à sala de jantar.

 

De início, ao ver a figura curvada sentada no bar, pensou que ela mudara de ideias e voltara. Esteve quase a chamá-la. Mas não era Annie sentada ali no bar quando as portas da cozinha se fecharam com um ruído surdo.

 

- Oh, é o doutor - disse Sonny. Levantou-se, mas parecia inseguro e inclinou-se na direcção do balcão de carvalho polido. Falou de forma arrastada e os seus olhos estavam avermelhados, mas parecia aliviado por Annie ainda poder estar ali. - Pensei que já não a encontrava. Seja simpático e diga-lhe que estou aqui.

 

- Diria, mas ela acabou de sair.

 

Os ombros de Sonny curvaram-se e apoiou a cabeça nas mãos.

 

- Merda! - Passou as mãos pelo cabelo.

 

Ben pegou no copo de Annie de cima da mesa e foi para trás do bar lavá-lo.

 

- Ela teve uma boa noite. Veio bastante gente.

 

- Perguntou por mim?

 

Ben assentiu.

 

- Algumas vezes.

 

- Raios! - bradou Sonny, cerrando os punhos até a pele em torno das articulações empalidecer. - É o que me acontece por ser um merdas - resmungou.

 

- Que tal uma chávena de café? Acho que ainda há uma cafeteira quente.

 

Os olhos de Sonny brilharam.

 

- Eu digo-lhe o que pode fazer com o seu café.

 

Ben preparou-se de repente para uma luta. Sentiu o estômago contrair-se e uma sacudidela nervosa percorrer-lhe o corpo. Mas uma luta com um bêbedo não lhe agradava.

 

- Se tem algum problema comigo, é melhor dizer.

 

- Doutor. Empregado de bar - começou Sonny, dramaticamente. - Não tenho nenhum problema consigo. Tenho um problema comigo. - Pousou a cabeça nas mãos por momentos e levantou-se, determinado. - Ouça. Encha um copo alto com gelo. Junte um pouco desse café que me quer impingir, creme de menta, brande e uma colher de açúcar, dizem que ajuda a tomar os medicamentos - acrescentou, piscando o olho.

 

- Acho que não devia beber mais nada.

 

- Cos diabos, já era bêbedo antes de o doutor ter nascido. Sabia fazer os melhores stingers de toda a Manchester. Com algumas bebidas nas traseiras do vestiário do clube, tocávamos melhor que ninguém. É esse o segredo para chegar ao topo, meu caro Ben - prosseguiu, inclinando a cabeça para a luz. - Aqueles malditos stingers!

 

- Posso dar-lhe uma boleia para casa ou algo assim?

 

- Não! Vim aqui para tomar um raio de uma bebida. O que é, afinal? Médico ou empregado de bar?

 

Ben recuou um passo.

 

- Esta noite não tenho a certeza de nada.

 

Preparou-lhe um gim tónico deliberadamente fraco. Não queria embriagá-lo ainda mais e esperava que a água tónica amarga encobrisse a ausência de álcool na bebida.

 

Sonny agarrou o braço de Ben.

 

- Achei que tinha toda a maldita coisa dominada. Um cerimonioso copo de vinho ao jantar uma vez por mês. Segurando apenas o pé do copo entre os dedos, sabe, o dedo mínimo espetado no ar, beberricando de um copo de fino cristal, como um culto homem efeminado. - Sentou-se de novo no banco do bar e pousou a cabeça nas mãos. - Agora perdi-a, não é?

 

- Alguma vez a teve?

 

Olhou para cima e tentou focar Ben.

 

- Tive-a mesmo aqui. - Pôs as mãos em concha. Depois soprou sobre as mãos e abriu os dedos como um mágico faria ao fazer desaparecer uma pomba. - A seguir já não a tinha.

 

Mas ela preocupa-se consigo. Talvez se possam resolver as coisas de alguma maneira.

 

- Achei que isto ajudaria. O Café Turnstone. É uma beleza de um raio o que ela fez. Mas eu próprio estraguei isto. Dir-se-ia que já devia ter apanhado o jeito. - Abanou a cabeça, perdido nalguma memória alimentada pelo álcool. - Não acreditaria em algumas das mulheres... Nas histórias...

 

- Está a desviar-se do assunto, Sonny.

 

Ele passou os dedos de uma mão pelo bigode.

 

- Por que só damos valor ao que perdemos?

 

- Não sei.

 

Ben tinha as suas próprias perdas a enfrentar.

 

- Quando se perde a nossa mulher, tudo vai para o diabo, mais cedo ou mais tarde. Não é?

 

- Fazer as contas pelos pontos perdidos não é grande maneira de ganhar o jogo.

 

- Aqui está um ianque, sempre a querer transformar a vida num jogo de críquete.

 

- Se não tivesse algum optimismo, há muito tempo que me teria afundado. É tudo o que estou a tentar dizer.

 

Sonny zombou.

 

- Por vezes, não há nada de atraente na esperança. É tudo apenas uma volta da roda cármica. Estás em cima, depois estás em baixo. Tudo está nas mãos do destino.

 

- Como as suas acções na bolsa?

 

- Quando conheci Annie, eu era um verdadeiro desastre. Estoirara a voz em digressão, não conseguia escrever uma canção que valesse alguma coisa e ali estava ela, a preparar-me o jantar no seu restaurante. Juro que as suas mãos me curaram. Um simples toque na minha pele e nada mais interessava, senti-me de novo livre. Conversámos a noite toda e a minha voz foi ficando cada vez mais forte.

 

- E foi quando...

 

- Me apaixonei como um raio pela rapariga. Por isso mudámo-nos todos para aqui: uma família feliz.

 

- Porquê aqui?

 

- Por causa de Annie. Sabe como eu sou, gosto da primeira classe. Chame-lhe um meio-termo. Procurava um sítio no campo com um aeródromo. A pobre rapariga detestava a sua vida. Não conseguia pagar a renda e certamente não me deixaria pagá-la. O seu maldito ex apareceu e não a deixava sossegada. Também lhe batia. O merdas - disse, abanando a cabeça. - Trabalhava o tempo todo. Preocupava-se o tempo todo. Não via Julia, não era feliz. - Sorriu. - A infelicidade aproximou-nos um do outro.

 

- Pelo menos vieram para um bom sítio.

 

Sonny passou os dedos pelo cabelo espesso e as madeixas grisalhas entre o cabelo escuro tornaram-se mais evidentes.

 

- Isso foi antes de ela descobrir o maldito inchaço - resmungou.

 

- O inchaço?

 

Sonny suspirou e, distraidamente, apalpou os bolsos do casaco com uma pancadinha rápida.

 

- Até matava por um cigarro. Tive de deixar tudo o que era divertido. Uma vez julguei que tinha encontrado um comprimido de ácido no bolso de um velho casaco e coloquei-o debaixo da língua, esperando que o espectáculo começasse, mas era apenas um pedaço de uma pastilha para o mau hálito.

 

- O que é isso do inchaço? - perguntou Ben de novo, esperando levar Sonny de volta ao assunto.

 

- Todas aquelas malditas viagens à clínica. Levava-a de avião para o tratamento durante a semana e depois voávamos para casa ou passávamos a noite num hotel para a pobre rapariga poder vomitar em paz. Para trás e para a frente durante semanas, quase me matou, mas fi-lo por ela. Maldita clínica. Mas isso foi há alguns anos, acho que a batatinha frita nem sequer se lembra.

 

Finalmente, Ben sabia por que razão ela o evitava. Inadvertidamente, Ben descobrira que o corpo de Annie a estava a trair. Agora, tudo fazia sentido, o seu cansaço, o seu comportamento furtivo - sintomas. O tratamento fizera-a entrar em remissão e agora a doença voltara. O seu coração sofria por ela quando pensava como devia estar assustada, sabendo que a sua vida estava de novo em perigo.

 

E o seu próprio medo regressou com um arrepio. Lutara com estes problemas anteriormente. No entanto, os pais tinham morrido. Apesar de todos os seus esforços, não conseguira evitar que morressem. Como poderia recomeçar o processo, mesmo que fosse por Annie? Podia simplesmente afastar-se. Era o melhor. Podia deixar o seu medo levá-lo desta pequena cidade onde encontrara uma tão grande paz.

 

Annie não queria que ele soubesse. Era o seu segredo e deixando-o intocado ele podia fugir. Ela queria a sua privacidade e Ben dar-lha-ia. Continuaria a sua vida e deixá-la-ia com a dela. Não era errado, pois não? Além disso, ele mal a conhecia. Amava-a, acreditava que a amava realmente, mas mal a conhecia. E, afinal, provara ser um médico completamente ineficaz, não provara?

 

Mas precisaria ela dele para se curar? Isso importava? Devia importar. Sentiu a amargura crescer-lhe na garganta como o borbulhar do quinino na água tónica que servira a Sonny com um pouco de gim.

 

Annie compreendia o que estava a acontecer ao seu corpo. Tinha de compreender. E preferia ignorar o inchaço dos nódulos linfáticos à medida que cresciam com células anormais. Essas células em breve circulariam pelas correntes lentas e pelos redemoinhos do sistema linfático, reproduzindo-se com virulência até o corpo ficar dominado.

 

Ben sentou-se junto de Sonny até ficar demasiado cansado para continuar sentado e então estendeu-se no sofá. Sonny dobrou as compridas pernas sobre um dos braços de uma cadeira confortável e, alimentado pelo prazer de ter assistência, que ele considerou erradamente interessada, conseguiu explicar toda a filosofia hindu da vida após a morte e da reencarnação com todos os pormenores. Num grande redemoinho de imagens vívidas, Sonny falou-lhe de Samsara, Maia, Vixnu, abandonando o mundo material. E, quando finalmente Ben adormeceu, lembrava-se de que Sonny lhe estava a contar como conseguira dominar a arte de tocar a cítara indiana.

 

- Não podia propriamente procurar nas malditas páginas amarelas alguém que me ensinasse a tocar aquela coisa em sessenta e cinco.

 

Enquanto se embalava nos altos e baixos entre o sono e a vigília, Ben conseguia ouvir aquelas notas metálicas e ressonantes. De início, não conseguia distinguir se Sonny colocara um CD na aparelhagem ou se estava a ser tão vívido nas suas descrições da forma de colocar os dedos de uma mão para premir as cordas, puxando-as com a outra. Antes de cair, finalmente, no sono mais profundo, Ben apercebeu-se de que as notas provinham dos lábios de Sonny. Este descalçara as botas e as meias e estava sentado no chão, de pernas cruzadas, com as plantas dos pés viradas para cima, entoando uma melancólica melodia indiana com um gemido nasal, balançando o corpo lentamente ao mesmo ritmo.

 

Quando Ben acordou, Sonny já partira. Ben sentia-se tonto. A cabeça doía-lhe. Não tencionara passar a noite no sofá do restaurante. Alguém, talvez Sonny, colocara uma toalha por cima dele.

 

Preparou uma chávena do chá chinês de Annie que encontrou na cozinha. Onde havia apenas gosto amargo, descobrira agora uma subtil profundidade de sabor. Tinha uma essência fértil, terrena, que parecia revelar-se e expandir-se na sua boca como um botão de flor abrindo-se à manhã. Quase conseguia sentir as pétalas sedosas na língua enquanto saboreava o chá quente.

 

A montanha Sawtooth foi a primeira coisa em que reparou quando abriu os olhos. Erguia-se, enchendo a janela da frente com a sua massa rochosa. O cume da montanha estava obscurecido pelas baixas nuvens brumosas que desciam em espiral desde o pico. Sobressaía dos montes circundantes como se fosse a carruagem principal de um comboio feito de picos e vales que conduzia, através da fronteira, até ao New Hampshire. Talvez a montanha Sawtooth fosse a última vaga da explosão geológica que lançara toneladas de rocha e terra em direcção ao céu para dominar este local. A forma como a pequena cidade estava situada no sopé da montanha era pitoresca, parecendo alpina. Os pinheiros que se erguiam acima das encostas nevadas estavam delineados contra o branco como se tivessem sido pintados ali.

 

Não era aqui que ele tencionara acordar. Começara a apreciar a simplicidade da sua vivenda com o divã colocado sobre armações de madeira que encontrara no celeiro de Annie. Não era luxo aquilo de que precisava ou queria, era a leveza do espírito.

 

De alguma forma, começara a reclamá-la - a vida que lhe escapara. Naquela pequena vivenda de troncos desbastados descobrira a consolação para reconstruir e voltar novamente a si. O sofrimento é vida, a vida é sofrimento, não era isso o que Sonny lhe estivera a dizer na noite anterior? Quando a bomba da casa começara a trabalhar, revelada por aquele primeiro jorro de água, fria e clara, vinda de uma nascente profunda, saída de jacto da torneira da cozinha e misturando-se com um salpicar poeirento de ar, Ben descobrira que não tinha qualquer sabor. Não havia qualquer eco ressonante de canos de ferro, sabor químico a cloro ou efervescência de sedimento. Para Ben, a água parecera o puro fluxo da vida que regressava a si.

 

Agora preocupava-se de novo - com Annie. Queria pedir desculpa - talvez por saber o seu segredo. Porém, como poderia pedir desculpa a sério quando o que ele queria realmente dizer era que ela precisava de ser vista por um especialista? Annie começara a significar renovação para ele, um novo começo. Uma Primavera. E era falso. Se ele compreendia os seus sintomas: aumento do nódulo linfático cervical, febre, suores nocturnos, perda de peso, então Annie estava seriamente doente. Até a morrer.

 

Saiu e foi até ao carro, descobrindo que este fora misteriosamente abalroado de lado durante a noite. Alguém embatera e fugira, deixando o pára-choques traseiro amolgado. Na extremidade do porta-bagagens, o metal estava amolgado. No azul-metalizado havia um risco de tinta bege onde o outro veículo chocara. Rastejou pelo lugar do passageiro até ao assento do condutor. O Cadillac do pai tornara-se, repentinamente, num íman de acidentes. Ben também o era, quando pensou nisso. A morte parecia acompanhá-lo para onde quer que fosse. Encontrava-se na sua própria sombra.

 

Não era muito longe até à casa de Annie. Nem era suficientemente longe para conseguir obter algum calor do motor frio. Ben lutou com os botões e alavancas e, mesmo assim, nada conseguiu quanto à fria corrente de ar que parecia soprar-lhe directamente para os pés.

 

Em casa de Annie, ouviu os latidos excitados dos cães e observou o caminho enquanto ela passava como uma brisa através do campo no seu trenó. Os cães corriam a toda a velocidade divertindo-se imenso e ela agarrava-se desfrutando da corrida. Nunca olhou para trás. Dirigia-se para a curva que seguia a encosta oriental da Sawtooth. Observou-a até desaparecer na floresta. Sentiu um anseio distinto, talvez pela graça ousada com que Annie vivia a vida, mesmo com o regresso da doença, pela forma como se recusava a olhar para trás, a repisar os erros do passado. Os seus olhos fitavam algum ponto no futuro. Agora, tinha o restaurante e a filha precisava dela. Ben precisava da lição que ela vivia. Mas Annie também precisava da dele.

 

Recuou pelo caminho e voltou à cidade. As coisas não estavam bem com o carro. Ouvia-se um som triturante que se estava a tornar mais evidente. Talvez Leo soubesse o que fazer. Além disso, era altura de ir ver como estava Marge. Encontraria Annie mais tarde, quando ela voltasse da sua corrida.

 

Havia uma carrinha em frente da casa de Leo e um motorista uniformizado que transportava caixas. Ben acenou ao motorista e caminhou na direcção da garagem de Leo, cuja porta lateral estava aberta. Ben saltou por cima da caixa que o motorista utilizara para manter a porta aberta e chamou Leo. Havia lá dentro prateleiras colocadas de cada lado e uma grossa cortina de veludo preto que bloqueava a vista para o interior.

 

- Leo? - chamou Ben, afastando a cortina. Dentro da garagem sem janelas, Leo fechava com fita adesiva a última das suas caixas. Pegou-lhe e virou-se.

 

- Esta é a última, Ar...

 

De repente apercebeu-se da presença de Ben.

 

- Não é o Arlen.

 

Ben não respondeu de imediato porque estava perturbado. Nas mesas contra a parede havia uma máquina de embalar e um equipamento de reprodução vídeo. Nas capas de cartão dos vídeos viam-se mulheres em atitudes provocantes, sós ou acompanhadas de homens ou de outras mulheres. Leo colocou o seu braço robusto sobre os ombros de Ben, tentando afastá-lo.

 

- Olhe - pediu. - Pegue numa caixa e leve-a ali ao Arlen. Ele tem um horário a cumprir.

 

- O que é tudo isto?

 

- Leo, é tudo? - perguntou Arlen do exterior da cortina.

 

- Só mais duas - gritou Leo, voltando-se depois para Ben.

 

- Ajude-me a levar isto lá para fora, depois explico-lhe.

 

Cada um levou uma caixa a Arlen, que esperava para as carregar na carrinha.

 

- Obrigado - agradeceu Leo.

 

- Até para a semana.

 

Leo esfregou a parte de trás do pescoço com os seus grossos dedos e olhou para o chão, timidamente. Fora apanhado.

 

- Regra geral, mantenho aquela porta fechada, mas recebi uma grande encomenda.

 

- Lamento, Leo.

 

- O meu segredo foi descoberto, acho eu. Raios - praguejou, batendo com o punho no ar. - Entre, jovem, e eu explico-lhe.

 

Voltaram à garagem. Enquanto respiravam o cheiro a plástico novo dos vídeos e caixas, Leo tentou contar-lhe o seu negócio.

 

- Há alguns anos que faço isto. Fiquei com pouco dinheiro quando me reformei. Por isso... nasceu um negócio caseiro.

 

- Parece uma fábrica. Marge também sabe disto? - perguntou Ben, pegando num vídeo que estava sobre a mesa intitulado Quanto Maior melhor. Olhou de relance para a imagem da capa e sentiu os olhos arregalarem-se, voltando a pousá-lo.

 

- Marge não tem nada a ver com isto. Não se preocupa com o que faço desde que a possa levar à Florida todos os Invernos.

 

- Tem um stock bastante grande.

 

Ben mal podia acreditar na colecção de vídeos que se viam por toda a garagem, com os títulos recheados de trocadilhos picantes e segundos sentidos obscenos, com pessoas fotografadas em atitudes que ele nunca pensara que o corpo humano pudesse tomar. Mas eram os nomes falsos o que mais sobressaía. As mulheres tinham nomes de aliciantes cidades sulistas, como Savannah ou Vidalia.

 

- Preciso de arranjar espaço para novos vídeos.

 

- Então o que é que faz? Não os filma, pois não?

 

- De maneira nenhuma. Uma vez obtida a matriz, reproduzo os que preciso para os meus clientes da costa leste, embalo-os profissionalmente e depois envio-os para as lojas. As matrizes vêm de uma empresa da Califórnia que faz toda a montagem final. Eu sou um simples distribuidor.

 

- De pornografia!

 

- Só do melhor. Lido com soft-core de classe. Trata-se quase sempre de filmes transmitidos por cabo. - Levou Ben até uma das prateleiras. - Olhe, até tenho vídeos educativos, sabe, talvez o suficiente para salvar o casamento de algum pobre tipo.

 

- Mas como pode fazer isso? Com Julia a vir aqui constantemente?

 

- As portas estão sempre fechadas e não há forma de entrar, nem mesmo por acaso.

 

Ben apontou para si próprio como exemplo.

 

- Foi a primeira vez que alguém me surpreendeu. Juro - afirmou Leo, suspirando. - Olhe, não tem nada de ilegal. O Ben ainda é jovem, talvez não saiba que, por vezes, temos de fazer concessões na nossa vida. Há coisas que um homem tem de fazer para sobreviver, para se manter de cabeça erguida. Nem sempre são coisas muito agradáveis.

 

Ben tentou mudar de assunto.

 

- Bem, esta sua actividade empresarial não é, realmente, da minha conta. Passei por aqui apenas para lhe pedir uma coisa... - Ben abanou a cabeça. - Mas esqueça.

 

- Perturbador, não é? - riu-se Leo.

 

- Um pouco - concordou Ben, sorrindo. - Ou melhor, muito.

 

- Costumava dar-me uma enorme dor de cabeça ter tudo isto por aqui, mas agora nem penso nisso. - Leo deu-lhe uma palmada nas costas. - Vamos manter isto entre nós, se pudermos. Ninguém tem de saber. Pois não?

 

A porta fechou-se com um estalido atrás dele.

 

Era uma manhã de sábado tão suave que Ben decidiu subir a rua principal para apreciar o ar saudável. Medir a tensão arterial de Marge podia esperar alguns minutos até que a sua acalmasse. A cabeça latejava-lhe, talvez por ter dormido tão pouco. Passou pela livraria, propriedade de Peggy, uma mulher magricela e de cabelo grisalho com uma energia fogosa e quase um metro e oitenta de altura. Estava a abrir as caixas de livros de capa dura usados. Talvez conseguisse vender um ou dois livros enquanto a neve derretia.

 

De repente, um carro bege com a parte da frente amolgada arrancou de uma rua lateral na extremidade mais distante do quarteirão e desceu velozmente a rua principal. Ben pensou que poderia ser o carro que embatera no dele. Ao passar, o condutor, um adolescente com cara de lua, olhou para eles. Tinha a cara imobilizada num esgar de pânico e os olhos esbugalhados. Conduziu mais meio quarteirão antes de carregar com força no travão. A frente do carro inclinou-se e os pneus guincharam. O condutor meteu a marcha-atrás e as rodas giraram para trás até parar de novo, bruscamente, junto à entrada da loja de Peggy. Baixou a janela, energicamente, e deitou a cabeça de fora.

 

- É o médico, não é? Venha depressa.

 

Ben saltou do passeio para dentro do carro. Não trazia a mala de médico e julgou o caso demasiado urgente para a ir buscar. O condutor inverteu a marcha e partiu com tal velocidade que Ben foi atirado para trás no assento antes de fechar a porta.

 

- Abrande - aconselhou Ben, conseguindo fechar a porta do carro e lutando com o cinto de segurança. - Que aconteceu?

 

O rapaz fez uma curva apertada, entrando para a estrada de terra que conduzia ao lago da floresta. Virou a cabeça para responder, até abriu a boca, mas não saíram quaisquer palavras. Quando chegaram ao lago, não eram necessárias quaisquer palavras.

 

Estava lá um homem com um grande bigode e longas suíças. Ben reconheceu-o vagamente como um dos amigos de Leo, um tipo chamado Dave. Agitava os braços para os apressar.

 

- Ele quebrou o gelo ali.

 

O homem estava de joelhos, tentando fazer com que o filho de Lindsay, de dez anos, respirasse.

 

- Acabei de o tirar.

 

Dave perdera os óculos escuros. Os grandes óculos de plástico de aviador tinham-lhe protegido os olhos e agora Ben via que estavam injectados de sangue. Afastou Dave para poder ouvir o peito do rapaz e verificar a sua respiração. Dave rolou no chão enlameado.

 

- Não devia ter ido para o gelo. Agora está demasiado fino.

 

Ben ajoelhou-se junto do rapaz, sentindo a humidade fria da terra ensopar-lhe as calças nos joelhos.

 

- Como é que ele se chama?

 

- Co-Colin - gaguejou Dave.

 

- Colin!

 

Não estava a respirar. Ben mal lhe conseguia sentir o pulso.

 

- Quanto tempo esteve dentro de água?

 

- Não sei. Não estava aqui quando aconteceu.

 

- Dêem-me os vossos casacos.

 

Dave e o condutor adolescente despiram os casacos e Ben embrulhou-os em volta do rapaz. Tirou o seu próprio casaco e pô-lo sobre as pernas de Colin. Começou a fazer respiração boca a boca ao rapaz, forçando-lhe o peito a erguer-se. Finalmente, Colin engasgou-se e água do lago começou a sair-lhe dos pulmões e a pingar-lhe da boca. De repente vomitou um jacto da água engolida. Ben voltou a cabeça de Colin para o lado.

 

- Temos de tentar aquecê-lo. Estas roupas molhadas não ajudam. Devíamos levá-lo para dentro de casa.

 

Os três levantaram Colin com grande cuidado e colocaram-no no assento traseiro do carro. Subiram a rua, lentamente, recomendando Ben ao adolescente que não acelerasse. Ao movimentar alguém em estado de hipotermia, era importante fazê-lo lentamente visto que o coração podia entrar em fibrilação.

 

No restaurante, Dave abriu a porta com a chave de Ben. Depois segurou-a enquanto transportavam Colin para o interior. Leo surgiu a correr do outro lado da rua.

 

- Que aconteceu? - Agarrou o braço esguio do adolescente.

- Bennett, se atropelaste este miúdo com o teu carro, juro que te parto a cara.

 

- Deixe-o, Leo. O rapaz caiu ao quebrar-se o gelo no lago.

 

Bennett caiu de joelhos quando Leo o largou. Então instalaram Colin no sofá grande e Ben começou a tirar-lhe as roupas molhadas.

 

- Precisamos de cobertores. Dave, veja na prateleira da roupa na cozinha e traga-me um monte de toalhas.

 

- Vou pedir alguns cobertores a Marge - disse Leo, correndo para a porta.

 

- Traga-me também a mala do meu carro - gritou-lhe Ben.

 

Peggy surgiu à porta trazendo um livro de primeiros socorros.

 

- Pensei que poderia precisar disto.

 

Colocou-o junto de Ben. Sabia, pela capa de tecido verde esmaecido e manchado pelo bolor, que devia ter sido publicado no tempo da Primeira Guerra Mundial.

 

- Obrigado - agradeceu Ben enquanto embrulhava Colin em toalhas de mesa. - Alguém ligue o aquecimento o mais alto possível.

 

Os aparelhos de aquecimento começaram a funcionar. Outros vizinhos aproximaram-se da porta do restaurante, cheios de curiosidade e preocupação.

 

- Alguém chamou a mãe? - perguntou uma mulher.

 

- É melhor ir dizer-lhe - respondeu Ben.

 

Colin gemeu e as suas pálpebras agitaram-se, mas ainda não recuperara totalmente a consciência. A sua cor estava, no entanto, um pouco melhor. Ben examinou as unhas do rapaz: o azul estava a tornar-se rosado. A imersão em água fria durante algum tempo despoleta um fenómeno conhecido como o reflexo do mergulho. O seu efeito foi inicialmente observado nos mamíferos marinhos, como golfinhos e focas, mas os seres humanos também o sofrem, e pode significar a diferença entre a vida e a morte, sobretudo nas crianças. As funções orgânicas são reduzidas e o sangue oxigenado é afastado das extremidades e enviado para o cérebro e para o coração. A água fria é, na verdade, preservadora da vida e Ben sabia que a vítima devia estar continuamente aquecida até retomar por completo a consciência. Havia um fio de pulsação e uma respiração muito ténue, mas Colin ainda não estava fora de perigo.

 

Leo apareceu de repente, seguido de Marge, transportando ambos cobertores e mantas. Era como se tivessem apanhado tudo menos o colchão da cama. Passaram por entre a multidão. Leo entregou a Ben a sua mala de médico.

 

Colocando o estetoscópio nos ouvidos, Ben auscultou o peito de Colin, onde o bater do coração era lento. A seguir verificou a temperatura do rapaz, que era ainda tão baixa que o termómetro não a registava. A escala começava nos trinta e cinco graus. Ben não tinha forma de saber a que ponto descera a temperatura; fez um novo esforço para a elevar ao normal. O rapaz já estava envolto como uma múmia, mas, de qualquer maneira, colocaram-lhe alguns cobertores em cima. A sala aquecia furiosamente com o aquecimento no máximo e a quantidade de pessoas presentes. Ben sentiu um fio de suor escorrer-lhe pela cara. Calor e nervos.

 

- Ele vai ficar bem?

 

Ben olhou para o lado e viu um rosto que o acalmou e lhe deu confiança. Annie estava ali, inclinada sobre o rapaz.

 

- Acho que sim.

 

Ela colocou a mão na face de Colin.

 

- Acho que os dentes dele estão a bater.

 

Ben olhou e viu que Colin começava a tremer.

 

- É um bom sinal. Vai ficar bom agora.

 

Um grito ergueu-se do exterior do restaurante. Era Lindsay e a multidão que se formara deixou-a passar. Correu para junto do filho.

 

- Colin! Colin!

 

O rapaz pestanejou algumas vezes para se tentar orientar.

 

- M-mãe? - gaguejou através dos dentes que batiam. A multidão aplaudiu. Leo bateu nas costas de Ben.

 

- Conseguiu. O miúdo está bem.

 

- Então que alguém baixe o aquecimento - pediu Ben, limpando a testa com as costas da mão.

 

A multidão riu-se.

 

- Bom trabalho - elogiou Annie, dando-lhe o braço.

 

Quando a multidão partira, também Annie o fizera. Ben despediu-se de Lindsay e Colin, que o abraçaram. O rapaz estava cansado e queria ir para casa dormir. Ben achou que era uma óptima ideia.

 

- Muita sopa quente e talvez um banho quente se conseguir aguentar.

 

- Obrigada - disse Lindsay, puxando-o para si. - Nem quero pensar no que poderia ter acontecido se não estivesse lá.

 

- Se Dave não estivesse lá...

 

Dave desaparecera quando a multidão saíra do restaurante.

 

- O doutor é uma dádiva dos céus.

 

Ele voltou a sua atenção para Colin.

 

- Tens a certeza de que estás bem?

 

- Tenho fome - respondeu o rapaz. Lindsay tentou abraçá-lo e ele deixou, embora já tivesse passado a idade em que os rapazes geralmente gostam de manifestações públicas de afecto. Encostou a cabeça nela, aninhando-se.

 

- Ele está óptimo! - declarou Ben, ajudando Colin a entrar no carro da mãe. Lindsay colocou os braços em torno de Ben e deu-lhe um abraço apertado.

 

- Telefone se precisar de alguma coisa.

 

Ela assentiu, estrangulada com o choque do medo e da gratidão. Não havia mais nada a dizer.

 

Ben acenou-lhes enquanto partiam e atravessou a rua até à casa de Leo, onde o seu carro ainda estava estacionado. Apercebeu-se de que Annie também partira. Talvez estivesse de regresso à cozinha, mas ele não a vira. Deixaria que fosse ela a procurá-lo, se tivesse alguma coisa a dizer-lhe.

 

- Olá, Doutor Minor - gritou Leo do cimo do caminho. Ele e Dave estavam sentados ao sol nas cadeiras de plástico do jardim, bebendo latas de cerveja.

 

- Venha cá e beba uma bem fria.

 

Dave ergueu a sua lata no ar para fazer um brinde.

 

- Formamos uma boa equipa, doutor.

 

- Não discuto isso.

 

- Aquele rapaz vai ficar como novo graças a si.

 

As palavras de Dave soavam um pouco mais arrastadas do que uma simples cerveja deveria provocar. O pobre homem esgueirara-se, provavelmente, para a floresta com uma embalagem de seis logo de manhã e começara a beber. Mais tarde ouvira por acaso a agitação no lago e chegara a tempo de ver que Colin passara através do gelo e mergulhara na água gelada. De alguma forma, Dave recompusera-se, correra até ao lago, manobrara por cima do gelo e colocara Colin em segurança. Era espantoso que Dave não tivesse ele próprio mergulhado. Acontecia constantemente que os salvadores caíam e tinham eles próprios que ser salvos.

 

- Tem a certeza de que não se quer juntar a nós para uma comemoração? - perguntou Leo, metendo a mão numa geleira cheia de gelo e oferecendo uma cerveja a Ben. - Uma bem fria entre amigos?

 

- É demasiado cedo para mim. Além disso, já tive frio suficiente por hoje.

 

- Brindo a isso - gritou-lhe Dave.

 

Ben conduziu até à vivenda na floresta. Queria um sítio para se retirar e deixar desvanecer a adrenalina que fervilhara pelo seu interior durante toda a manhã. Inspirou profundamente algumas vezes e massajou os músculos da parte de trás do pescoço. Passaram vinte minutos até que os efeitos da adrenalina fossem metabolizados pelo corpo. Gradualmente, a corrida do seu coração abrandaria e aquela sensação eléctrica de cafeína em excesso abandoná-lo-ia. Chegou ao sinal de stop antes da estrada principal e entrou sem olhar.

 

O brilho do crómio atraiu-lhe o olhar a tempo. Rolando na sua direcção, a cem quilómetros por hora, vinha um camião de transporte de madeira carregado até acima com troncos do tamanho de postes telefónicos. Ben conseguia sentir o som explosivo da buzina e a percussão do ar deslocado pelo pesado camião enquanto o contornava. O condutor lutou por manter o controlo, para impedir que os travões bloqueassem. Ben observou como o atrelado carregado de troncos abanava como a cauda de um peixe de um lado da estrada para o outro. Finalmente, o condutor conseguiu controlar o camião o suficiente para prosseguir, mas, durante todo o tempo, não deixara nem por um segundo de buzinar.

 

Um Lexus prateado de tracção às quatro rodas passou por ele a toda a velocidade a caminho da cidade. Sonny, usando óculos escuros, acenou-lhe com um dedo. Ben tentou acenar, mas os seus dedos estavam agarrados com tanta força ao volante que não o conseguiu fazer. Além disso, Sonny há muito que desaparecera, quando teve possibilidade de reagir.

 

Na vivenda, Ben molhou a cara com água fria no lava-louça da cozinha. Acendeu o lume no bojudo fogão de ferro para dar às suas mãos nervosas algo para fazer. No seu pequeno espaço, encontrou finalmente alguma segurança. Tinha um chão para si e um telhado, com ripas de cedro onde crescia um musgo verde-escuro.

 

Mas ele sabia que aquilo não ia durar. Na principal divisão da casa, viu onde parara de limpar no dia anterior. A maioria dos vidros ondulados das janelas tinha ainda uma névoa leitosa de pó.

 

Conseguira limpar vários com uma bola de jornal e vinagre branco antes de sair. Para quê continuar agora? Enquanto esborratava um vidro com o dedo, a carrinha de Annie aproximou-se.

 

Quando a encontrou à porta, ela não lhe disse nada. Não era do tipo de mulher que gostasse de despertar pena, por isso Ben esperou que ela falasse. Conseguia ver que os seus olhos estavam inchados e que o nariz tinha um brilho rosado, mas talvez fosse apenas do frio. Annie afastou os olhos e o seu corpo retesou-se, inclinando-se para o calor da vivenda. Ben convidou-a a entrar. Ela não iniciou uma conversa fútil sobre o tempo ou sobre os acontecimentos da manhã. Não houve qualquer tagarelice sobre o progresso de Julia no seu trabalho de História sobre a Guerra Civil ou como os cães tinham corrido naquela manhã. Nem sequer disse nada sobre o restaurante ou como Sonny a magoara. Não houve nenhuma daquelas palavras que animam a conversação. Não tinham tempo para isso.

 

Ela aproximou-se e encostou-se-lhe ao pescoço. As suas emoções pareciam turvar-lhe o íntimo. Mas não emitiu qualquer som. Agarrou-se-lhe apenas, envolvendo-lhe a cintura com os braços com uma força premente que o obrigou a respirar em fluxos pouco profundos.

 

- Está tudo bem - murmurou-lhe ele ao ouvido. A sua curva macia e cor-de-rosa recordava-lhe uma concha tropical. - Eu sei. Eu sei.

 

Ela não falou. A sua respiração fazia-se em arfadas curtas e desiguais. Os dedos de Ben subiram e rodearam-lhe os ombros. Agarrou-se a ela também. Quanto mais não fosse porque soube então como a amava e o que significaria perdê-la agora com a certeza, a maravilhosa certeza, de que ela também o amava. Tinha de o amar. A sua face contra o pescoço dele dizia-o, pele contra pele. O coração dela transmitia esse conhecimento ao dele. Isto não era apenas medo da morte, era medo de se perderem um ao outro, de perderem as bênçãos que a vida surpreendentemente nos reserva.

 

Annie virou a cabeça para a dele. Sentiu o calor - a vida - dos lábios dela na sua face. Não ousou mexer-se. Ela encostou o seu rosto ao dele, procurando-lhe a boca. Por fim, ele cedeu ao desejo que ela lhe provocava e beijaram-se.

 

Os médicos aprendiam com o passado. Começando pela história clínica do paciente, recuavam no tempo para determinar um diagnóstico ou um plano de tratamento. No gabinete do médico, o indivíduo tornava-se a soma de uma herança genética... o fígado cirrótico de um avô, a diabetes de uma tia, a tensão arterial elevada da mãe, sendo cada doença um testamento pessoal da fragilidade do nosso carácter genético.

 

A própria medicina, por muito que olhasse para a pesquisa brilhante do futuro e colocasse a sua fé na mais recente e espantosa tecnologia, dependia mesmo assim da História. Séculos e séculos de prática permitiram elaborar remédios que, apesar de modificados, são válidos ainda hoje, mesmo se as hipóteses que tinham inicialmente levado à sua descoberta tenham provado ser erradas com o tempo, porque na sua história milenar a medicina aprendeu mesmo com os próprios erros: os Egípcios acreditavam que o coração era o centro do pensamento, os Gregos julgavam que nas artérias fluía ar e até 1860, com Joseph Lister, ninguém pensava sequer em lavar as mãos entre dois pacientes. Ben meditava frequentemente nos disparates médicos que se fariam hoje e que seriam ridicularizados dentro de cem anos.

 

Tudo era um esforço para aprender como funcionávamos, o que impulsionava o sangue e oxigenava os tecidos. Os primeiros patologistas trabalharam em segredo e escreveram em código o que aprendiam para não serem acusados de heresia pelas autoridades eclesiásticas.

 

Talvez finalmente, naquele dia, Annie estivesse disposta a falar sinceramente daquilo que estava a suceder dentro do seu corpo. E ele faria o possível para estar atento e ser perspicaz.

 

Annie alimentou o lume, enquanto Ben colocava uma chaleira de estanho sobre o fogão. Levaram duas velhas cadeiras de madeira para junto do calor e sentaram-se. As juntas de madeira rangeram e protestaram.

 

- Acho que se ficar sem lenha... - disse Ben enquanto a sua cadeira chiava.

 

- Foi espantoso o que fizeste por Colin esta manhã.

 

Ben conseguia ver que Annie se sentia melhor. Estava a recompor-se.

 

- Felizmente chegámos a tempo. Mais um pouco e poderia não se ter salvo.

 

- Tempo... - observou ela, intencionalmente. - Parece estar sempre contra nós, não parece?

 

Ben assentiu.

 

- Quando me mudei para aqui com Julia para estar com Sonny pensei que tinha todo o tempo do mundo. A minha vida abrandou e eu instalei-me. Havia possibilidades que não tinha anteriormente.

 

- E agora?

 

Ela não respondeu.

 

- Tudo o que queria fazer era cozinhar num localzinho meu. Sonny sempre lutou contra isso. Costumava dizer que as pessoas não o apreciariam e que eu perderia tudo. Queria guardar-me para ele, acho eu. Mas agora tenho finalmente a minha hipótese.

 

Ele inclinou-se para a frente e agarrou-lhe a mão. Os dedos dela estavam frios na palma da sua mão. Queria tranquilizá-la e descobrir aquilo de que precisava.

 

A chaleira sobre o fogão a lenha deu sinal e ela pegou-lhe.

 

- Vou fazer chá.

 

- Não tenho nenhum - informou Ben, abanando a cabeça. - Nem sequer tenho chávenas de chá.

 

- Então por que puseste a água ao lume? - perguntou ela, rindo.

 

- Parecia acertado pôr algum vapor neste ar seco.

 

- Malditos britânicos. Sonny viciou-me nesta coisa do chá. Aquela chávena quente nas mãos é, por vezes, um conforto enorme.

 

Ele sabia muito do que calculava que ela lhe queria contar. A maior parte já Sonny lhe dissera. Mas não o sabia por ela. Não conhecia os factos nus e crus.

 

- Conta-me o que aconteceu, Annie.

 

- Não é uma das minhas histórias preferidas - respondeu, torcendo as mãos. - Não pensei que voltasse, sabes - continuou Annie, repentina e calmamente. Olhou para o chão e mordeu o lábio. - Mas voltou.

 

Olhou para Ben. Havia mais desilusão que medo nos seus olhos.

 

- Há quanto tempo está em remissão?

 

- Há dois anos e onze meses - respondeu, tentando ser corajosa. - Pensei que estava curada. Fui a Boston fazer tratamento, o que me fez sentir pior. Engordei devido aos medicamentos, caiu-me o cabelo, estava um horror. E agora tenho de recomeçar do início. Certo?

 

- Os tratamentos melhoraram.

 

Surpreendeu-o o facto de estar a jorrar, rapidamente, optimismo sobre a medicina e a cura depois de tudo o que passara. Era como se, ao falar de esperança, houvesse esperança. Muito no íntimo, conhecia a realidade, a realidade que ele ainda não conseguia enfrentar, a realidade de que não queria que Annie ficasse dependente. Ela estava com problemas.

 

Annie remexeu na bolsa de cabedal castanho que usava.

 

- Pensei que podia ter uma saqueta de chá escondida. Mas se nem sequer tens chávenas...

 

- Já foste ao médico?

 

- Para quê? Para ele olhar para este inchaço e dizer-me que tenho de fazer tudo de novo. Sei quais são as minhas hipóteses. - Suspirou longa e profundamente. - Doença de Hodgkin. Pensei que nunca mais teria que dizer isto.

 

Cá estava. A doença de Hodgkin. Já calculara.

 

- Quantos nódulos retiraram?

 

- Tenho uma cicatriz engraçada debaixo do braço. Uma espécie de meia-lua. Agora quererão trinchar-me o pescoço - prosseguiu, abanando a cabeça. - Estou apenas a ser cobarde? Quero dirigir o meu restaurante. Quero garantir que Julia aprende álgebra. Estar presente para treinar os cachorros de Misha.

 

Ele pegou-lhe na mão. Ela sorriu com ar triste e continuou:

 

- As boas notícias são que perdi três quilos, mas os suores nocturnos e as febres que aparecem e desaparecem dispensavam-se bem. E quando bebo um copo de vinho sinto uma dor mesmo neste inchaço do pescoço. Explica-me isso! - Abanou a cabeça. - Só vou piorar, não é?

 

- Aquilo que tu tens... não desaparece por si só.

 

- Desta vez quero fazê-lo à minha maneira. Antes... - engoliu em seco. - Acho que me fez alguma coisa. Com todo aquele veneno que me puseram nas veias... Pode ter-me mudado?

 

- Como?

 

- O que estou a dizer é que me sinto como se me tivesse tirado alguma coisa. Não sei o quê. Mas mudou-me. - Levantou-se e caminhou até à janela. - Fisicamente era um inferno. E, obviamente, estar tão doente altera a nossa forma de pensar. Talvez até mude toda a nossa visão da vida. - Parecia à beira das lágrimas. - Já não o amava depois de acabar os tratamentos. Isso é possível?

 

- Sonny?

 

Ela assentiu.

 

- E devia tê-lo amado ainda mais depois. Eu tentei. Quero dizer, eu queria amá-lo. Era o que ele merecia, não era?

 

- Não se pode amar alguém por obrigação. Ela afastou-se da janela e sentou-se junto dele. - Compreendi de repente que, depois de tudo o que ele fizera por mim, não estava   apaixonada por ele. Esse sentimento saiu simplesmente de mim como um espírito e desapareceu. Talvez fosse afastado pelas radiações ou arrancado pela quimioterapia. Aqueles tratamentos devem ter tido um efeito mais profundo do que apenas fazer-me vomitar.

 

Ben levantou-se e alimentou o lume com um pequeno tronco. A casca seca estalou ao ser colocada na cama de cinzas. Não tinha quaisquer respostas para ela. A doença, uma doença terrível, faz às pessoas exigências que as matam a pouco e pouco. É possível sobreviver, mas nunca mais ficar como antes. E não havia nada para conter os danos provocados no interior de alguém. O cancro pode comer uma pessoa a pouco e pouco até a matar, mas, enquanto avança, corrói também as almas dos que amam o paciente. De quem o ama e assiste impotente a tal devastação.

 

De onde provinha realmente a cura quando a medicina parecia oferecer tão poucas opções? Tentou, de qualquer forma, orientá-la no sentido de obter ajuda, ajuda séria.

 

- Neste momento, as coisas mudaram um pouco. Não se limitam a enchê-la de fármacos, usam agora doses fraccionadas e radiação de precisão. Podem ter as mesmas ferramentas, mas sabem como as usar melhor.

 

Ao dizer estas palavras, sentiu-se hipócrita. Vira como as doses mais baixas de químicos e a radiação de precisão não serviam para nada. A sua fé abandonara-o. E agora o desespero dela era também seu. O cancro dela também voltara a entrar em acção, já que estava a atacar a única razão que Ben encontrara para se arriscar a ter esperança de novo, para se arriscar a amar de novo.

 

- Não quero que aconteça outra vez, Ben. Outra vez não.

 

- Foi até à janela e olhou para o exterior, para a neve que derretia.

 

- Dizem que a Primavera é tempo de renovação. Bem, então como é que eu fico sempre tão deprimida? Estamos agora à beira da época da lama. Dêem-me antes um dia de Outubro com as folhas dos áceres em fogo contra aquele céu azul intenso. É quando sinto que não posso perder.

 

- Annie, devias ter a melhor cura.

 

Mas os seus pais tinham ambos tido o melhor, censurava-o o coração, médicos, testes, exames e o próprio filho para cuidar deles. Agora tinham o melhor monumento de granito sobre as suas campas num cemitério arborizado no Norte do estado. O nome de família esculpido em pedra estava lá para recordar a todos que o melhor, realmente, não era suficientemente bom.

 

Recompôs-se, recordou os factos, os factos autênticos que conseguia encontrar no cérebro e entregar-lhe para consideração. A doença de Hodgkin era diferente. As pessoas conseguiam mesmo ultrapassá-la - quase oitenta e cinco por cento conseguiam curar-se no início. Não ousou pensar em quanto a percentagem devia baixar naqueles em que a doença reaparecia.

 

Annie encostou-se à tinta descascada do caixilho da janela. Cruzou os braços sobre o peito. A luz do Sol bateu-lhe na cara.

 

- Está tão bonito lá fora, hoje. E o que eu tenho dentro de mim é tão... feio.

 

Ele aproximou-se, ficando atrás dela, abraçou-a e encostou o queixo ao seu ombro. A camisola dela arranhava-lhe a face. Cheirava levemente a lanolina.

 

- Não quero ficar sem ti, Ben.

 

Não havia nada de tímido em Annie. Mas havia timidez na forma como lhe falava agora. Fê-lo pensar em Julia. Ele suspirou.

 

- Também não quero ficar sem ti.

 

Annie virou-se para ele, com os olhos de repente mais brilhantes.

 

- Então ajuda-me.

 

- Ajudar-te como? - Ele começou a desconfiar do seu entusiasmo tão repentino.

 

- Há tratamentos que não são invasivos, li sobre eles na Internet. Há trabalhos com coisas como cartilagem de tubarão e...

 

Ele levantou as mãos para a fazer parar.

 

- Nada disso te ajudará - disse bruscamente.

 

- Mas...

 

- Annie, ouve-me. Por muito dolorosa que a tua experiência tenha sido, e reconheço que foi, a tua única esperança é tentar outra vez. A doença de Hodgkin não tem de ser uma sentença de morte.

 

A fúria parecia ter crescido dentro dela. Estava a actuar de forma irracional.

 

- Estás a dizer-me que não me ajudarás no que quero fazer com o meu corpo.

 

Ele fitou-a longamente. Conseguia ver-lhe a tensão nos olhos. A tensão da doença tornara as suas emoções voláteis. Tentou escolher as palavras com cuidado.

 

- Annie...

 

Ela não queria ouvir as suas desculpas.

 

- Estás a dizer-me que és um grande médico e só vês uma forma de lidar com isto, que é a tua, a tua tortura federalmente sancionada, aprovada pelo Estado. É isso que me estás a dizer, Ben?

 

- Estou a pedir-te...

 

- Pedir - bufou.

 

A própria fraqueza, dele era-lhe palpável. Era um peso sobre os ombros que lhe fazia o coração afundar-se no peito como se fosse um saco cheio de pedras. Annie precisava de mais atenção do que ele lhe podia dar. Se não recebesse ajuda em breve, não haveria nada a esperar. Não queria vê-la a cometer esse erro. Precisava de análises sanguíneas sofisticadas, de tratamentos cuidadosamente doseados e de outros recursos que só um grande centro médico pode oferecer.

 

E como suportaria ele ver desaparecer outra pessoa que amava? Como sobreviveria se ela não o fizesse?

 

Annie repeliu-o quando tentou abraçá-la. Ben vira como a medicina podia falhar. Mas que mais havia? A medicina ainda era a coisa mais próxima da fé que ele tinha, por muito abalada que a fé estivesse. Naquele momento parecia-lhe a única tábua de salvação.

 

- Tens de dar à medicina a hipótese de te ajudar.

 

- Não! - insistiu ela, olhando-o fixamente. - Estás comigo?

 

- Annie, não posso fazer isso - respondeu Ben. Era um pacto suicida o que ela queria. O seu coração não suportava a hipótese de a perder de qualquer outra forma que não segundo condições que ele compreendesse. - Lamento.

 

Por um instante, os olhos dela pareceram derreter-se. A luz obscureceu-se nas íris azuis como tinta de óleo vibrante que se tivesse transformado em aguarela límpida. Outro momento passou enquanto a confusão e a mágoa foram subsumidas. A expressão dela endureceu. Empurrou-lhe o peito com a mão.

 

- Não precisas de explicar. - Afastou-se dele como se os seus sentimentos recíprocos pudessem ser tão facilmente removidos. - Vou lidar com isto eu própria. É realmente assim que deve ser.

 

- Não...

 

Ela colocou-lhe um dedo nos lábios. E foi a última vez que lhe tocou. Quando estava na ombreira da porta para sair, declarou:

 

- Não te quero ver mais. Precisarei de toda a minha força para outras coisas.

 

A voz parecia alterada, mas foram os seus lábios que se mexeram e os seus olhos que não contrariaram as palavras.

 

Ben observou-a enquanto ela se afastava na sua carrinha. A mágoa doía-lhe profundamente, mas estava habituado a ela. Sabia como arcar com o sentimento e tentar proteger-se. Ficou na rua, sentindo o frio. Annie tinha razão. Precisava de toda a sua força. A floresta era tão densa que não conseguia ver a casa dela, mas sabia que estava ali, um quilómetro mais abaixo. O som viajava tão facilmente através das árvores num dia sem vento que ele podia gritar-lhe e ela ouvi-lo. Mas não o fez. Quando ouviu os cães ladrar, soube que ela chegara a casa.

 

Demorou apenas alguns minutos a reunir as suas coisas: os livros de medicina, o computador portátil, as roupas que transportava na mala cor de laranja. Não havia razão para ficar mais tempo. Regressaria para onde viera, seguiria a curva e a inclinação da estrada até esta o conduzir ao seu ponto de partida. Pensara ter encontrado um local para começar de novo. Mas não o encontrara. Passou pela casa de Annie, onde conseguiu vislumbrá-la à porta, vendo-o partir. Ela nem sequer ergueu a mão para lhe acenar. E então, tão rapidamente como chegara à cidade de Cottage Mills, Ben partiu.

 

Uma luz dourada era filtrada através dos rebentos avermelhados nos ramos mais altos dos áceres e dos carvalhos que se estendiam sob as sombras projectadas pelos pinheiros. O ar estava doce com o cheiro da vida que regressava à floresta. As espessas acumulações de gelo que travavam os rios libertavam-se, permitindo às águas retomar o seu curso. Sentia-se um renascimento palpável no interior.

 

Mas Ben não ia experimentá-lo. Acelerava para longe a cento e dez quilómetros por hora. O vento passava pela fenda da porta do carro que chocalhava nas dobradiças. Sentia-se como se não tivesse voltado a respirar desde que deixara Annie.

 

Deixara a estrada local e entrara numa via estadual que atravessava o coração do New Hampshire, serpenteando agradavelmente, rodeada de montanhas cobertas de neve. Mas em breve a paisagem azedou de uma forma que antes Ben não teria notado muito. Granito e pinheiros deram lugar ao asfalto e a centros comerciais. O tráfego fundia-se a partir de outras vias e, em breve, Ben seguia ao longo de uma ampla via rápida, pejada de outros viajantes. O Cadillac amolgado chocalhava e pendia para um lado devido à direcção desalinhada.

 

Verificava-se uma corrida desenfreada do tráfego em seu redor enquanto a paisagem se tornava mais densamente definida. Havia um fluxo entrançado e competitivo de carros que exigia concentração e expulsava os outros pensamentos do seu cérebro. Os seus olhos latejavam e as mãos estavam tão agarradas ao volante que lhe doíam as articulações. Precisava de gasolina e procurou orientar-se até uma saída, encontrando uma estação de serviço.

 

Ben encheu o depósito e pagou a uma funcionária de face marcada por bexigas. A mulher tinha um hematoma arroxeado sob um dos olhos e um lábio cortado. Estava sentada atrás de vidro à prova de bala, perto das bombas, com os olhos distraídos e perturbados, passando a ponta da língua pela crosta do lábio superior. Nem sequer ergueu os olhos quando Ben passou o cartão de crédito pelo guiché metálico.

 

Na esquina, Ben aproveitou para encher a carteira num Multibanco. As teclas estavam pegajosas como se algum miúdo com os dedos lambuzados tivesse tocado em todas elas. Três notas de vinte gastas saíram da máquina para a sua mão.

 

Era tarde e a fome dominava-o. Ben percorreu o congelador junto à parede procurando algo para comer. Escolheu uma sande, seleccionou um copo de plástico para encher de coca-cola e regressou ao carro. Equilibrou o copo entre as pernas - não havia suportes para copos nestes carros antigos - e conduziu de volta à interestadual. A sande era comestível e aparentemente saborosa, mas assim que a acabou sentiu um peso no estômago.

 

Ben sentiu a escuridão fechar-se à sua volta. Sintonizou uma estação noticiosa no rádio em vez de se arriscar a ouvir um dos grandes êxitos de Sonny numa estação FM de músicas antigas. De alguma forma, ir para casa era uma viagem mais fácil. Era sempre mais fácil ser aquele que partia.

 

A casa dos pais estava às escuras quando Ben chegou da sua viagem. Accionou o controlo remoto para abrir a porta da garagem preso à pala solar do Cadillac e a porta ergueu-se com estrondo. O carro entrou vagarosamente, quase parecendo cansado. Saiu do carro e transportou as malas pela escada acima. A cabeça latejava-lhe com uma dor entontecedora. Sentia um espasmo apertado que lhe rodeava o crânio, como se um fórceps estivesse a comprimir-lhe o cérebro. É claro que Ben sabia que o cérebro não tinha terminações nervosas e que a dor era percebida pelos músculos e ossos do crânio. Dirigiu-se à cozinha onde o amarelo-vivo lhe fez arder os olhos.

 

Remexeu no armário junto ao frigorífico que estava cheio de frascos de plástico com medicamentos. Não seria um ataque cardíaco. Parecia mais uma espécie de enxaqueca. A ideia de um aneurisma passou-lhe pela mente.

 

Procurou por entre os comprimidos. Havia restos de medicamentos para as lombrigas do Beckett, mas, certamente, não queria tomar aquilo. Havia três comprimidos ovais brancos do medicamento experimental do pai que de nada adiantara. Ben procurou outra coisa. Finalmente, encontrou um frasco cheio de minúsculos comprimidos brancos. Era um ligeiro soporífero, receitado à mãe. Perfeito, disse a si mesmo, engolindo dois com um copo de água. Em seguida, subiu as escadas e foi-se deitar. Os comprimidos fizeram-no mergulhar, quase imediatamente, num sono sem sonhos.

 

Já era manhã alta, talvez perto do meio-dia, quando ouviu a voz de uma mulher chamando-o pelo nome. Ben sentiu-se a emergir através das camadas de sono como um mergulhador nadando através de um leito submarino de algas. Estava de novo com Annie, passeando de trenó sobre um lago gelado, com os cães a correr a toda a velocidade. Olhou para Annie, mas os olhos desta olhavam sempre em frente, enquanto viajavam por uma paisagem incaracterística, plana e branca.

 

- Annie - chamou. Mas Annie, para quem ele imaginava estar a acordar, não responderia. Não tinha nada para ele. Tudo o que viu foi o halo de luz branca da manhã que entrava através das cortinas abertas.

 

- Não - gritou a voz de mulher. - Phyllis. Phyllis Woodcock. Da Imobiliária Downey and Woodcock. Não recebeu a minha mensagem de que eu iria mostrar a casa no sábado de manhã?

 

Ben tentou sentar-se com esforço.

 

- Phyllis?

 

Tentou, por um momento, focá-la.

 

Estava inclinada sobre a cama, com o rosto terrivelmente próximo do dele. O ninho do seu cabelo castanho-avermelhado tombava em torno da face estreita e chupada. Os dentes estavam manchados de batom. Um traço de rímel apressadamente aplicado salpicava a crista orbital ossuda sob as pestanas inferiores.

 

Ben inclinou-se para o lado oposto da cama. Por cima do ombro de Phyllis conseguia ver um casal com um filho e uma filha adolescentes. Estavam de pé à porta do quarto, fitando-o com enormes olhos negros através de óculos - quatro míopes. Os filhos mastigavam pastilha elástica como ruminantes de mandíbulas frouxas. Ben voltou a refugiar-se por trás de Phyllis, que o ocultava bastante bem.

 

- Os Burnham trouxeram o arquitecto - informou ela, arqueando as sobrancelhas. O arquitecto, um tipo magro e insignificante, estava por trás deles. - É a segunda visita. Estão muito interessados - declarou a Ben num murmúrio.

 

- Olá - cumprimentou Ben, espreitando cuidadosamente em torno de Phyllis. - Muito prazer em conhecê-los. Estejam à vontade.

 

- Venham por aqui, Senhor e Senhora Burnham - indicou Phyllis, erguendo-se do lado da cama de Ben. Virou-se para a família e para o arquitecto. - Vejamos a abertura da cozinha para a sala de jantar.

 

Voltou-se e bateu as mãos para enxotar Ben da cama e ralhar-lhe com um silvo:

 

- É quase meio-dia.

 

Ben arrastou-se para fora da cama, vestiu uma T-shirt e umas calças de ganga e tentou esgueirar-se pela estreita escada das traseiras até à cozinha. A meio caminho voltou a encontrar Phyllis, que conduzia os Burnham e o arquitecto de novo escada acima para tentarem visitar outra vez os quartos de dormir. Quando viu Ben a descer a escada, ela bateu palmas novamente para o apressar.

 

- É um bairro maravilhoso para crianças - fez notar Phyllis, continuando a sua narrativa. - Podem ir a pé para a escola e a todas as lojas.

 

Logo que Ben atravessou o andar de cima, viu a cúpula brilhante do arquitecto enquanto ele subia pela escada principal. Ben escondeu-se no quarto da frente onde a mãe passara os seus últimos dias. A luz do Sol atravessava as cortinas de renda e os grãos de poeira que o movimento de Ben agitara brilhavam no ar. Não estivera naquele quarto desde... Sentiu que lhe tinham sugado o ar e voltou-se, rapidamente, para fugir, mas conseguia ouvir Phyllis e os Burnham no vestíbulo.

 

- Nunca acabaram as alterações - explicava ela. - Houve uma doença na família.

 

Ele conseguia sentir a falsa simpatia na sua voz calma, mas ela alegrou-se de imediato.

 

- É o que a torna tão perfeita. Podem pegar onde eles pararam e torná-la vossa.

 

Ben sentou-se na extremidade da cama da mãe. Alisou a ponta do lençol branco lavado que estava dobrado sobre a parte de cima de uma manta de penas. Correu a mão pelo edredão de cetim creme. A manta pertencera à avó paterna e Ben recordava-se das noites frias, em criança, quando tinha febre, e lhe colocavam aquela nuvem penugenta sob o queixo. Era um consolo.

 

O pai também gostava. E, anos mais tarde, começara a arrastar a manta com ele e a colocá-la sobre os ombros nas manhãs frias. Para preservar as costuras puídas da velha manta, a mãe comprara-lhe um cobertor com uma cobertura de cetim. Mandara limpar a relíquia e depois levara-a para a sua própria cama, que o pai abandonara há muito pela preguiça fácil do sofá.

 

Assim, a mãe aprendera a deliciar-se com o calor macio da manta. Ben pressionou o fino cetim contra a cara. Cheirava levemente a bafio, mas sempre cheirara. A garganta apertou-se-lhe e os olhos começaram a arder. Suspirou profundamente. Sem pensar, puxou a cobertura da cama e meteu-se nela sob o peso da manta. Deitou-se de lado e encolheu as pernas contra o peito, puxando a coberta até ao queixo. Estava cansado de doenças - ficava doente só de pensar nelas. E as memórias que suscitavam estavam ali todas à sua volta. Vida, amor, saúde, eram tudo fios da mesma corda. E Ben sentia aquele laço atado à sua volta. O vapor circulava pelo interior do radiador sob a janela, batendo e soprando. As correntes de ar ascendentes faziam as cortinas ondular muito ligeiramente contra a janela. Ben observava os movimentos minúsculos e os rodopios das partículas que andavam no ar à luz do Sol.

 

A porta do quarto abriu-se de repente e ali estava Phyllis de novo com os Burnham. Phyllis olhou para Ben deitado na cama e deu um estalido com a língua.

 

Abanou a cabeça tristemente.

 

- Lamento muito tudo isto - murmurou, pedindo desculpa à família.

 

Ben ficou ali por um momento, furioso. Depois endireitou-se e saiu da cama. Alisou a parte da frente das calças de ganga. Se estes fossem compradores interessados, conseguiria vender esta casa por pura determinação.

 

- Este é o quarto principal. Há uma casa de banho completa ali - informou, apontando para a porta. - O quarto tem muita luz do Sol de tarde. É um sítio bom para passar o tempo se for caso disso.

 

Phyllis aproximou-se dele, enquanto a família se dirigia à casa de banho principal.

 

- Calma, não exagere.

 

Ben passou os dedos pelo cabelo.

 

- Certo.

 

- Está bem? - estranhou Phyllis.

 

- Porquê?

 

- Parece... Não sei. Perturbado? Preocupado?

 

- Eu? - perguntou Ben. Era-lhe assim tão difícil acreditar que perdera o rumo? Aqui estava ele, a vaguear como um fantasma pela sua própria casa, esgueirando-se de quarto para quarto, assombrando o ambiente familiar. Começou a ver a casa pelo que ela era: uma ruína vitoriana que fora mal remodelada. Havia mais coisas que ele começava a ver também. E gostava ainda menos disso do que da casa que tentava passar a esta família simples.

 

O arquitecto entrou no quarto, batendo com a extremidade de uma fita métrica de metal contra o bloco de esboços.

 

- Não sei. Assim que fizer alguns esboços preliminares, terei uma ideia mais clara. - Foi até à janela e examinou o estado da madeira esculpida. - Alguns pormenores de época maravilhosos. É claro que os preservaremos.

 

- Os meus pais adoravam esta casa.

 

Phyllis bateu palmas. O tempo acabara.

 

- Venham - cantou para os Burnham. - Deixem-me mostrar-lhes o local perfeito para acrescentarem um solário. Sempre pensei em algo extraordinário, Senhor Gadley.

 

Levou o arquitecto pelo cotovelo e depois, com a outra mão, o Sr. Burnham, conduzindo todo o grupo para fora, marchando numa estranha fila indiana. Enquanto desciam a escada, Phyllis meteu a cabeça pela porta e acenou com os dedos cruzados no ar.

 

- Acho que vão fazer uma oferta - murmurou.

 

Phyllis dissera-lhe isto todas as vezes que mostrara a casa. Não significava nada. Mas esta era a segunda visita dos Burnham. E tinham trazido um arquitecto, embora qualquer promessa de resolução da situação parecesse remota a Ben. A última coisa que sentia era optimismo em relação a qualquer coisa.

 

Nos dias seguintes, Ben pensou muito. Todas as tardes ia passear para uma faixa de areia isolada pertencente a um clube privado. Percorria toda a extensão da areia grossa enquanto as águas oleosas do estuário de Long Island batiam levemente na praia. Havia um pontão de rocha e cimento que se projectava na água. Terminava num mirante redondo com telhado de cedro. Ben podia sentar-se no banco e ver os barcos à vela a atravessarem rapidamente o braço de mar até Long Island. Uma vez trouxe os binóculos do pai. O estojo de cabedal estava a estalar, mas os binóculos eram de tipo militar, pesados. Levara-os aos olhos para observar as velas coloridas dos barcos a tremerem como chamas contra o horizonte. Sabia, quase instintivamente, que precisava de concentrar a sua mente no trabalho.

 

Regressou ao seu computador, instalado num sótão estreito do terceiro andar da casa. Da sua secretária via a rua através da névoa verde de folhas primaveris no topo das árvores. Nos dias seguintes concentrou-se no ecrã do computador, pesquisando índices de revistas, artigos médicos e contas pessoais.

 

Na sala de leitura principal da biblioteca pública da cidade, onde se sentia o cheiro limpo e reconfortante de papel fresco, Ben retirava artigos e fotocopiava-os na máquina a dez cêntimos por página. Não era uma biblioteca médica e, por isso, tinha de se contentar com material de fontes secundárias. Mas, de vez em quando, encontrava uma jóia, copiava o artigo e sublinhava as partes mais relevantes. A exploração encantava-o como se estivesse de regresso à Faculdade de Medicina.

 

No final do dia regressava a casa para organizar o trabalho. Colocava tudo em pastas, catalogadas e organizadas. Tudo podia ajudar.

 

Quando se estava a preparar para a noite, a campainha tocou com uma urgência que o fez saltar com o choque.

 

Quem quer que estivesse a tocar à campainha carregara com demasiada força, o que a fizera ficar presa. Os carrilhões tocavam repetidamente a partir de uma caixa na parede. Duas notas repetidas que ecoavam numa espiral enérgica.

 

- Está bem - gritou Ben. - Já vou.

 

Curvado à porta estava Sonny Wood. Tentava soltar o botão com as suas unhas cuidadosamente tratadas para tocar guitarra.

 

- Esta maldita coisa ficou presa.

 

Sonny bateu-lhe com a mão, mas sem resultado.

 

Ben deu-lhe uma ligeira pancada com o dedo e o toque parou. Ficou à porta olhando para Sonny. O seu estômago foi percorrido por um frio impulso nervoso... Annie! Ben tinha demasiado medo das respostas para fazer quaisquer perguntas.

 

Sonny aproximou-se dele devagar.

 

- É costume convidar as pessoas a entrar.

 

- Desculpe - disse Ben. - Não estava à sua espera.

 

Ben acompanhou Sonny e esfregou as mãos num gesto nervoso de expectativa ansiosa. Nunca devia ter deixado Annie.

 

Sonny entrou ruidosamente, despiu o casaco impermeável e tirou as botas de cabedal e pele hirsuta, cada uma do tamanho de um guaxinim adulto. Caminhou em meias de lã, batendo os calcanhares com força no chão de madeira da sala de estar de Ben. Suspirou e passou os dedos pelo espesso cabelo grisalho. Os óculos de sol estavam empoleirados no topo da cabeça, esquecidos, e prenderam-se no cabelo antes de caírem ao chão.

 

Ben receava que algo terrível tivesse acontecido. Por que outra razão teria Sonny percorrido todo este caminho? Sabia como a doença podia rapidamente destruir as defesas de uma pessoa. Uma semana podia ser o suficiente para conduzir à fase terminal. Ben aproximou-se devagar do sofá. Levou uma mão à boca num gesto de arrependimento. E então, de repente, sentiu-se enraivecido. Sentia vergonha pela forma como se comportara. Pela forma como deixara Annie.

 

- Que aconteceu? - perguntou Ben quando conseguiu falar. Podia ouvir o medo na sua própria voz.

 

Sonny ergueu as mãos. Os seus olhos estavam sombrios e orlados de veias injectadas de sangue. A face pendia-lhe frouxamente.

 

- Ela não me ouve - respondeu. - Tentei, mas não serviu de nada. Julia tentou, mas ela nem sequer ouve a batatinha frita.

 

- Então ela está bem?

 

Sonny suspirou profundamente.

 

- Não está pior, se é isso que quer dizer. Mas não quer fazer o necessário para se ajudar.

 

- Que posso fazer?

 

- Vá ajudá-la, homem. Faça alguma coisa. O senhor é que é o médico.

 

- Ela disse que não me queria ver mais.

 

- E vai deixá-la ficar na sua? - perguntou Sonny, abanando a cabeça. - Tenho estado fora de mim com ciúmes porque pensei que o doutor a amava. E arrasto a minha triste carcaça até aqui para lhe pedir que faça alguma coisa porque eu a amo. Se ela não quer ficar comigo, tudo bem, mas mesmo assim preciso que ela exista. E tudo para nada porque, de qualquer forma, o doutor não a ama.

 

- Eu nunca disse isso - afirmou Ben na defensiva.

 

- As acções falam mais alto do que as palavras.

 

- Ela mandou-me embora - recordou-lhe Ben.

 

Sonny deixou-se cair no sofá junto de Ben, com as pernas compridas esticadas de forma que os calcanhares pousavam no tapete.

 

- Não sabe nada sobre mulheres? - Suspirou, rolando distraidamente entre os dedos um cigarro por acender. - Quando as coisas ficavam demasiado pesadas, costumava conseguir distrair-me. Dialogava para comigo: «Liberta-te. Vive o momento.» Pensamentos simples para momentos emocionais difíceis. Mas desta vez não. Não posso virar costas a isto.

 

Sonny bateu o cigarro no isqueiro de prata e apertou-o entre os lábios. Acendeu o cigarro e deu uma fumaça. Encolheu os ombros.

 

- Nada de bebidas quando voo, algo tem de as substituir.

 

- Então ela não está a fazer nenhum tratamento?

 

- Não quer falar disso, pelo menos comigo - respondeu Sonny, exalando uma fita de fumo. - Até a chatearia saber que vim cá.

 

Ben suspirou profundamente.

 

- Quero apenas o que for melhor para ela, sabe. Nada mais me interessa - prosseguiu Sonny, olhando para Ben. - Tentei levá-la ao meu curandeiro pessoal. Ele acha que Annie tem uma área de energia bloqueada sobre um dos seus chakras. Se eu conseguisse que ela o visitasse para que ele fizesse o seu chi fluir novamente... Mas ela não quer ir. Acho que é o único que a poderá ajudar. - Sonny engasgou-se por um momento e os seus olhos encheram-se de lágrimas. Voltou-se de costas para Ben e assoou-se. - Malditos cigarros.

 

Ben levantou-se do sofá e procurou a informação que compilara. Entregou as pastas a Sonny.

 

- Isto é o que encontrei.

 

Sonny abriu uma pasta e folheou alguns papéis.

 

- Que é isto? Meu Deus, tirou esta porcaria da Internet?

 

- E de bibliografia médica. Não é o que está a pensar - replicou Ben, aproximando-se para apontar uma fonte importante.

 

- Que deve Annie fazer com isto? - perguntou Sonny, agitando os papéis no ar. - Artigos de revistas científicas não a vão ajudar.

 

- É apenas um primeiro passo. Ela pode ler tudo...

 

- Nada disto vai fazer sentido para ela - afirmou Sonny, fechando a pasta com força e atirando-a sobre a mesa.

 

- Eu explico-lhe - disse Ben. - Podemos falar pelo telefone.

 

- Não compreende? Ela quere-o a si, não à sua estúpida pesquisa. - Sonny olhou longa e fixamente para Ben como se estivesse a tentar adivinhar uma resposta na sua alma. Depois esmagou o cigarro no prato de cristal para doces que estava em cima da mesa de chá. - Maldição! Não devia ter vindo.

 

Sonny atravessou lentamente a sala até chegar à porta da frente. Saltitou num pé e depois no outro enquanto calçava as botas felpudas. Colocou o casaco impermeável sobre os ombros. A seguir virou-se para Ben.

 

- Como pode dizer que a ama?

 

O comboio para a cidade estava cheio, pelo que Ben teve de se acomodar num assento do meio. Os viajantes habituais iniciaram as suas rotinas, folheando jornais de negócios ou desdobrando secções do New York Times ou do Post. Do outro lado da coxia, um jogo de gin estava a ser disputado num tabuleiro improvisado - a parte lateral de uma caixa de cartão, colocada sobre os joelhos. Ao seu lado, um homem de fato de riscas beberricava café por um copo de papel.

 

Um mundo monótono, cinzento, húmido e escorregadio passava rapidamente pelas janelas do comboio. As luzes pareciam brilhar e reflectir-se nas ruas molhadas e o efeito através dos vidros grossos do comboio em movimento era quase hipnótico. Ben sentia a cabeça tombar e as pálpebras cerrarem-se. Uma sensação sufocante de exaustão dominara-o, dispersando a sua energia nervosa como uma mão cheia de pedras.

 

No comboio, o ar à sua volta parecia abafado. Estava rarefeito e viciado. Lutou contra a tentação de adormecer por completo. O seu companheiro de lugar abriu ruidosamente o jornal e Ben lançou-lhe uma olhadela casual. Reparou num artigo na secção desportiva - o obituário de um conhecido comentador desportivo que fora campeão de esqui na juventude. Via-se uma fotografia a preto e branco em que deslizava por uma encosta de esqui, quando rapaz, na década de quarenta, com um sorriso aberto e exuberante na face. O gorro de lã, com um pompom no alto, estava puxado para trás. A exuberância do rapaz na velha fotografia fê-lo pensar em Julia a brincar na neve. Pensou nela a descer um monte, de trenó, com amigos, numa manhã de domingo no final da sua estada quando se tinham reunido todos para um pequeno-almoço de panquecas.

 

Recordou a luz dourada daquele dia, a forma como se filtrava através dos pinheiros. A resina dos áceres corria, enchendo baldes de folha ou, por vezes, numa concessão moderna à limpeza, sacos de plástico grosso, especialmente desenhados, pendurados nos cortes feitos nas árvores (tinham recordado a Ben os sacos transparentes usados para recolha de sangue para transfusão).

 

Ben sentara-se com Annie e Julia numa mesa de piquenique por trás da quinta dos Toothaker, em Cottage Mills. O sol aquecia-lhes o rosto, mas ainda estavam agasalhados para o Inverno. Viola Toothaker e as duas filhas prepararam panquecas de soro de leite coalhado numa chapa a gás. Bill Toothaker, o patriarca da família, sentou-se no extremo da fila curta do bufê perto da mesa com jarros de xarope de ácer e manteiga batida da quinta.

 

- Não sejam avarentos - dizia ele, avisando-os. - Ponham o suficiente para ficar bom.

 

Ninguém ousou fazer de outra forma, o que significaria desafiar o homem de barba tão espessa e branca como a neve no topo da montanha Sawtooth. Todos os pratos acabaram com uma pilha de panquecas encharcadas em xarope.

 

O velho cão da quinta, um cão de pêlo curto, de focinho comprido e ar superior, não precisava de pedir migalhas; bastava-lhe aproximar-se, bater as longas pestanas e logo lhe atiravam um pedaço. Era uma técnica que aperfeiçoara com os anos, evidente na forma como as patas atarracadas se esforçavam para aguentar o seu corpo de salsicha demasiado cheia. Julia balançou em frente do cão uma tira de bacon curado com açúcar. Os seus grandes olhos redondos abriram-se ainda mais e, com um movimento astuto e friamente deliberado, enrolou a língua em torno do bacon e retirou-lho com suavidade.

 

- Julia - ralhou Annie -, não dês o teu pequeno-almoço ao Ranger. Sabes que o bacon não é bom para os cães.

 

- Mas ele gosta! - replicou ela, agitando outro bocado à frente do cão. - Ranger, vem cá.

 

De repente, a memória evaporou-se. O comboio de Ben foi engolido pela caverna de betão da Grand Central Station. O comboio parou com um solavanco e as portas abriram-se. Ben ainda estava embotado pelo desejo, com os pensamentos presos num local parecido com um labirinto sem ar. Desperto, recompôs-se e dirigiu-se para a multidão que saía.

 

Dentro do terminal foi apanhado pelo redemoinho dos viajantes habituais, tentando aguentar-se contra a maré. O estalido estático dos anúncios dos comboios disparava por cima da sua cabeça. Ficou perto da cabina de informações na grande confluência sob o tecto abobadado pintado com as constelações. Olhou para as estrelas que brilhavam devido aos candeeiros existentes no extenso tecto. Rodopiavam por cima dele, colocadas em órbita.

 

Tinha um aperto no estômago. Sentia o abdómen oprimido, os músculos contraídos num espasmo. Era como se todo o seu aparelho digestivo fosse vítima de uma cólica. Transpirava profusamente e tinha certamente ar de quem estava a ter um enfarte.

 

Enxugou a testa com um lenço e, lentamente, baixou o olhar. Através da multidão, uma única voz soava claramente por cima do ruído. Encostada a uma parede sob o arco coberto de azulejos estava uma mulher com uma guitarra pendurada no ombro. O cabelo era escuro como o de Annie, mas caía-lhe comprido e solto sobre os ombros. Vestia uma simples camisola e calças de ganga. O estojo da guitarra estava aberto para recolher as ofertas de quem passava. Ela olhou para Ben do outro lado da sala com olhos que pareciam atraí-lo para si.

 

Por algum truque, alguma maravilha da acústica do arco na estação de granito e mármore, Ben conseguia ouvir todas as palavras da canção. A sua sensação de enjoo pareceu desaparecer e enxugou a humidade que lhe restava na testa. A voz dela erguia-se sobre a barafunda, percorrendo o ar, cantando versos que pareciam tão estranhamente antiquados que ele não conseguia pensar em mais nada.

 

Ela repetia as palavras como se soubesse que tudo dependia disso. Era uma canção simples sobre a perda do amor, adequada a harmonizar-se ao piano numa sala do século XIX. Eram sentimentos de um tempo mais simples, mas atingiram fortemente Ben.

 

Enquanto tocava as notas na guitarra, ela cantava:

 

«Não virás mais, gentil Annie,

Como a flor cujo espírito partiu.

Que veio e se foi como muitas

Que floriram na primavera do meu coração.

Não te veremos mais

Nunca mais ouviremos a tua voz risonha?

Quando a Primavera chegar, gentil Annie

E as flores silvestres se espalharem pela Planície.

Passeámos e amámo-nos debaixo do caramanchão

Quando a tua face aveludada estava em flor

Agora ando só, por entre as flores

Enquanto estas misturam o seu perfume para ti, também.»

 

Ben dirigiu-se à cantora, caminhando em linha recta enquanto os viajantes habituais se desviavam e serpenteavam à sua volta na corrida matutina para os escritórios. Quando chegou perto dela, ficou parado durante um longo momento enquanto as últimas notas da canção morriam lentamente. Quando conseguiu falar, perguntou:

 

- Como se chama a canção?

 

- Gentil Annie - respondeu ela. - É de Stephen Foster. O meu avô ensinou-ma.

 

- É muito bonita - elogiou Ben, tirando várias notas da carteira e deixando-as cair no estojo da guitarra da mulher.

 

- Obrigada - agradeceu.

 

Mas era ela quem merecia o seu agradecimento.

 

Ben viera a Nova Iorque com um único fim. Viera para tentar salvar uma vida, a sua ou a de Annie já não tinha bem a certeza. Ambas se tinham fundido na sua mente. No vasto centro médico do East Side encontrou o seu velho amigo e colega Marty, que depois da licenciatura se especializara em neurocirurgia. Ben esperara que Marty escolhesse uma das especializações mais acessíveis - dermatologia, quiropodia ou mesmo, como tinham brincado em tempos, proctologia. Mas Marty desabrochara no internato e descobrira facilmente os seus talentos. Agora distinguia-se num hospital importante, onde estava a estagiar com um neurocirurgião famoso.

 

Naquela tarde de sábado, enquanto caía uma chuva cinzenta, Ben e Marty encontraram-se para almoçar na cafetaria do hospital. Marty cortara o seu rabo-de-cavalo e usava o cabelo quase rapado. Continuava esgalgado com braços compridos e dedos ágeis. A face era angulosa e brilhante. Usava uma bata de laboratório sobre a camisa e a gravata. Ao ver Ben no outro lado da sala, Marty lançou um grito e ergueu a sua grande mão. Quando se aproximou, envolveu Ben num grande abraço.

 

- Ben Minor! Depois de todo este tempo, ainda te orientas por aqui.

 

- Tenho ouvido boatos fantásticos sobre o teu sucesso, por isso vim ver se havia alguma verdade neles.

 

- Tudo mentiras - disse Marty. Atirou a cabeça para trás com uma risada maliciosa. - Eh, pensava que já tinhas feito as pazes com a Giselle.

 

- Isso já passou à história.

 

- Quando soube da tua mãe e depois do teu pai, pensei que se juntariam de novo. Pareciam entender-se bem.

 

- Ela encontrou outro. Essa é que é a verdade.

 

- Bem, as relações também nunca foram a minha especialidade. Colocaram-se na fila da cafetaria e empurraram os tabuleiros ao longo do balcão. Era como andar com o presidente da Câmara. Enfermeiros, médicos e auxiliares, todos paravam para cumprimentar Marty. Ben escolheu uma sanduíche de galinha embalada em plástico.

 

- Não, não, não - exclamou Marty, voltando a pôr a sanduíche no frigorífico. - Têm estas coisas aqui durante dias. Eu como sempre algo acabado de fazer - afirmou, acenando a um cozinheiro por trás do balcão. - Duas sanduíches de galinha, amigo.

 

O cozinheiro sorriu e piscou-lhe o olho enquanto começava a trabalhar.

 

- Gosto do novo corte de cabelo - comentou Ben, enquanto esperavam.

 

Marty passou uma mão pelo restolho de cabelo na sua cabeça.

 

- Faz com que eu sinta um pouco do que os meus doentes passam antes da cirurgia. Rapar a cabeça é um grande nivelador.

 

Sentaram-se a uma mesa junto a uma janela alta e larga. O estore - uma relíquia de contas metálicas do design industrial dos anos setenta - parecia alegrar artificialmente o manto de luz ténue da rua. Havia um ruído agradável de conversação em torno deles: médicos que se consultavam informalmente uns aos outros, internos debruçados sobre textos estudando actos clínicos. Soavam bips e anúncios pairavam através do sistema de altifalantes.

 

- Como vão as coisas? - perguntou Ben.

 

- Nunca estive tão ocupado na minha vida - respondeu Marty, sorrindo novamente, e Ben sentiu-se por momentos encandeado como se um flache tivesse actuado. - Bobby, o Professor Meltzman, tem marcadas cinco cirurgias por dia para a equipa. Esta manhã deixou-me abrir por ele. Pela primeira vez. Era para fazer a ressecção de um tumor pituitário. Já o vi fazer essa cirurgia mil vezes, ele é rápido e tem um toque fenomenal.

 

- À tua primeira abertura - brindou Ben, erguendo o copo de sumo de arando.

 

Ele rejeitou o brinde.

 

- Já abri antes, mas nunca para Meltzman. Ele é o melhor. Treina mentalmente todo o procedimento com antecedência, corte a corte, de forma que, quando está a olhar para a matéria cinzenta exposta, é como se já o tivesse feito antes.

 

- Visualização, certo?

 

- Exactamente! - exclamou Marty, espetando um dedo no ar.

 

Ben recostou-se e abanou a cabeça.

 

- O que é?

 

- É espantoso, não é?

 

Marty assentiu. Tinham entre eles uma história comum de boa amizade, um fio que podiam agarrar de novo.

 

- Quase desisti da Faculdade de Medicina - confessou Marty.

 

- Faltava-me o que tu tinhas, Ben. Nasceste para decifrar aqueles livros. - Afastou a ideia com uma risada e um encolher de ombros. - Foi uma pena o que aconteceu. Pertences aqui.

 

- Tenho saudades.

 

- Por vezes, no meio de uma intervenção, sinto que devias estar ali comigo, como quando dissecámos Chester na faculdade. - Se esta coisa da neuro não tivesse aparecido... Pelo menos, Meltzman acha que tenho talento.

 

- E ele é o melhor, certo?

 

- Se tivesse um vídeo só com as mãos dos dez melhores neurocirurgiões em acção, conseguiria identificar as mãos de Meltzman - afirmou Marty, erguendo as suas próprias mãos em frente da cara para as examinar. As unhas estavam cuidadosamente tratadas. A pele estava limpa e rosada.

 

- Estou contente por ti, Marty.

 

- Ele tem esta graça. É espantoso. E quando opera quer tudo em silêncio. Nada de música. Nada de   bips ou telefones. Portas fechadas. Dezassete graus no termóstato. Só sei que é hora de almoço quando o estômago da enfermeira da desinfecção resmunga.

 

- Parece um desafio.

 

- Todos os minutos o são com Meltzman. Até a descontracção é trabalho duro. Levou-me no seu veleiro no último fim-de-semana. Desde que deixámos o ancoradouro na Rua Setenta e Nove, foi como o comandante Ahab. Passou uma hora a gritar-me para eu içar esta vela, puxar aquele cabo, correr para baixo do convés para ir buscar um mapa. Mas depois de tudo feito foi uma perfeição. As velas estavam ajustadas. O vento era constante de oito nós enquanto deslizávamos sob a Ponte Verrazano em direcção ao mar. E disse-me algo tão simples que se me gravou na mente.

 

- O quê?

 

- Disse: «Ouve, rapaz. Só vou dizer isto uma vez.» Tem um tipo de voz grave. E é directo como tudo. Por isso disse: «Primeiro tens de descobrir do que gostas, depois descobrir de quem gostas e a seguir agarrares-te a isso durante toda a maldita vida.»

 

- Então vais velejar e recebes uma lição de filosofia.

 

- O mundo segundo Bob Meltzman! É espantoso que me recorde de alguma coisa - riu-se Marty abertamente. - Porque, logo que atingimos aquela ondulação ao largo da praia de Rockaway, comecei a vomitar por todo o convés.

 

- Enjoo?

 

- Ben, nunca estivera num barco, à parte algumas voltas no ferry de Staten Island para namorar. Atingiu-me de repente. Pedi-lhe que me deixasse nadar até uma praia qualquer. Talvez pudesse apanhar um táxi ou o comboio. Tudo para sair daquele maldito barco. Mas ele disse-me que tinha de aguentar. Por isso pendurei a cabeça do lado de fora até voltarmos à doca.

 

- Pobre Marty - lamentou Ben, abanando a cabeça.

 

Marty inclinou-se, preocupado.

 

- Que se passa contigo?

 

- Conheço uma pessoa que tem um problema - confidenciou-lhe Ben.

 

- É uma mulher, certo? Estou mesmo a ver - riu-se Marty. - Seu malandro!

 

- Tem a doença de Hodgkin. Em remissão há quase três anos e agora voltou.

 

Marty não se estava a rir. Agora estava a ouvir.

 

- Preciso de saber se conheces alguém - disse Ben. - Alguém que esteja avançado nisto. Preciso do melhor, Marty.

 

- Quem é ela?

 

- Uma amiga.

 

- Preciso de mais dados. Um nome, um historial clínico - pediu Marty. Observou a reacção do amigo. - Lamento, Ben, mas depois de tudo o que passaste pensei que ias concentrar-te em ti próprio.

 

- Acredita que tentei - retorquiu Ben. - Mas, quando conheci Annie, ela mudou tudo.

 

- Impressionou-te?

 

- Tudo nela me impressionou - respondeu Ben. - Foi como um raio.

 

Não lhe contou como Annie lhe dissera que não queria a sua ajuda. Como lhe pedira que partisse.

 

- A sério? - perguntou Marty, abanando a cabeça. - E é mais do que simples desejo, porque sinto isso duas, três... talvez seis vezes por dia.

 

- Quero ajudá-la. Está assustada.

 

- Olha, eu sei que nem sempre te acompanhei, mas tens a certeza de que estás em posição de ajudar alguém? Se eu falar de ti a Meltzman, talvez ele possa fazer alguns telefonemas. Ben, tens de voltar ao teu caminho.

 

- Não se trata de mim - disse ele. - Trata-se dela.

 

- Depois de tudo o que passaste, Ben. Os teus pais... doença de Alzheimer... cancro... Que mais consegues aguentar?

 

- Preciso de fazer isto.

 

Marty fixou os olhos em Ben e pareceu compreender.

 

- Está bem, Ben. Telefono-te esta noite com o que conseguir descobrir.

 

- Obrigado.

 

O bip de Marty apitou e ele olhou para o ecrã.

 

- É o Meltzman. Tenho de ir. - Marty apertou-lhe os ombros. - Depois falamos.

 

Após a partida de Marty, Ben acabou a sanduíche e a seguir utilizou o passe de visitante para dar uma volta pelo hospital. Era significativo para Ben ser arrastado de volta ao mundo que amava. Observou a forma descontraída como os médicos se movimentavam por entre os seus pacientes. Sentia-se uma pulsação no local. Tinha mesmo saudades.

 

Em casa tinha mensagens no gravador, mas Ben ignorou a urgência da luz vermelha intermitente. Passeou de quarto para quarto, impaciente e irritado. Depois apercebeu-se de que o pai passeara com a mesma inquietação e isso enervou-o. Subiu a escada até ao quarto dos pais. Abriu os armários e pensou na tarefa que tinha pela frente. Os fatos do pai estavam cuidadosamente pendurados. Havia velhos casacos de tweed que Ben nunca poderia usar, sapatos de número inferior ao dele, gravatas que já não estavam na moda e cintos demasiado largos para a sua cintura. No armário adjacente, as camisolas de lã, os vestidos de algodão e as saias de pregas da mãe estavam muito apertados criando uma extraordinária parede de roupa. Começou a colocar as roupas em caixas para oferecer a uma instituição de solidariedade. Quando o telefone tocou, atendeu. Era Marty.

 

- Ora bem, o que sei é isto - começou. Marty deu-lhe o nome de um médico de Boston. - Meltzman diz que é o melhor.

 

Houve uma longa pausa.

 

- O que é?

 

- Toma conta de ti desta vez, Ben.

 

- Está bem - respondeu.

 

Ben desligou e voltou à limpeza dos armários dos pais. Encontrava conforto nos seus esforços concentrados. Parecia um progresso, por pequeno que fosse, estar a trabalhar desta forma. Sorriu para si próprio ao pensar como a sua vida se tornara limitada, quando era assim que passava as suas noites. Mas o progresso real fora o telefonema de Marty. Isso era realmente útil.

 

Estava tão absorto no seu trabalho que nem sequer a ouviu entrar. De alguma forma, atravessara a casa e encontrara-o.

 

- Nunca verifica as suas mensagens? - perguntou. Estava à porta. - Tenho boas notícias.

 

Dirigiu-se-lhe, com os olhos fixos num ponto que parecia encontrar-se algures por cima da sua cabeça. Era um olhar altivo e desdenhoso que ele não esperara da sua parte.

 

- Phyllis - disse. Ben tentou esconder o seu desapontamento. Desejou não lhe ter dado a chave.

 

- Temos a nossa primeira oferta! Agora está contente por me ver?

 

- Os Burnham?

 

- Adoram o local, pura e simplesmente. Querem mudar tudo, é claro, mas gostam muito da casa. Tenho estado a trabalhar em casa por causa do bebé. Problemas de imigração com a ama - esclareceu, encolhendo os ombros. - Vim logo que o meu marido chegou a casa.

 

- Então qual é a oferta deles?

 

- Acho que vai ficar muito contente.

 

Desceram a escada até à sala para poderem falar. Ela sentou-se no sofá junto dele e abriu a pasta em cima da mesa de chá. Remexeu nalguns papéis. Finalmente, apresentou a oferta formal dos Burnham, redigida num formulário da imobiliária. Antes que Ben conseguisse ver os números, ela arrancou-lhe o papel.

 

- Lembre-se - avisou. - Pensam fazer uma remodelação bastante ampla.

 

- Lembrar-me-ei - respondeu Ben, tirando-lhe de novo a folha e olhando para a oferta. O número era um preço justo. E era tudo o que queria. Porque já não queria que esta casa fosse a sua. - Está bem, aceito - concordou.

 

O queixo dela descaiu na direcção da mesa de chá.

 

- Não quer fazer uma contraproposta?

 

- Isto é o que podem pagar - observou Ben, agitando o papel. Tirou uma caneta para assinar a aceitação da oferta. Phyllis tentou agarrar-lhe a mão para o impedir.

 

- Esta é uma zona muito desejada. Acho que pode pedir, pelo menos, mais vinte.

 

Ben lutou até Phyllis retirar a mão da sua.

 

- Apenas quero acabar com isto, Phyllis.

 

- Foram só alguns meses.

 

- Eu sei. Mas tenho de aceitar. Não posso ficar mais aqui concluiu, sentindo a garganta apertar-se em torno destas palavras. Não conseguia dizer mais nada. Phyllis fitava-o de novo, com a cabeça de lado, uma sobrancelha erguida e um estranho semblante de estupefacção.

 

Ele pegou na caneta e assinou.

 

- Tenho de fazer isto, Phyllis - insistiu. Pôs o ponto no «i» de Minor com força e, quando levantou o papel para o entregar a Phyllis, viu o seu nome gravado na madeira macia da mesa.

 

- Para onde pensa ir?

 

- Não sei. Para qualquer sítio diferente.

 

Phyllis abanou a cabeça.

 

- Espero que encontre um lugar de que goste. - Meteu os papéis numa capa, voltando a guardá-los na sua pasta. Levantou-se e Ben acompanhou-a à porta. - Entrarei em contacto consigo depois.

 

- Obrigado, Phyllis.

 

Ela sorriu-lhe, de lábios apertados, profissionalmente. Quando se virou para sair, Ben notou uma nódoa verde-amarelada no ombro da sua blusa. Tinha a cor e a consistência de ervilhas esmagadas. O bebé, pensou Ben.

 

Segundo os papéis que assinara, tinha sessenta dias para mudar a sua vida. Sessenta dias até os advogados se encontrarem e a casa passar a pertencer aos Burnham, e talvez fossem felizes nela, embora Ben achasse difícil imaginar os frios Burnham a serem felizes fosse onde fosse.

 

Ben foi até à cozinha e tirou uma lata de atum da prateleira. Passara um longo Inverno desde que a sua antiga vida chegara ao fim. Agora, uma estação mais tarde, parecia que poderia prosseguir intacto. Olhou para a escuridão fora da janela por cima do lava-louça da cozinha. Um ramo baixo da cicuta em frente da casa tremeu ao vento e embateu contra o vidro. A noite que caíra sobre a casa era protectora, silenciosa. Era como se o mundo tivesse desaparecido na escuridão sem luar.

 

Sentou-se sozinho, comendo lentamente uma sanduíche de atum. Annie, calculou, conseguiria sem dúvida transformar a sua magra despensa num jantar de quatro pratos. Ben suspirou e folheou um catálogo de roupa que chegara pelo correio. As suas páginas estavam cheias de parcas resistentes, casacos curtos de náilon fresco, casacos de lã. Não eram coisas que tivesse no seu guarda-roupa. Pensou se Annie teria recebido o mesmo catálogo e se precisaria de alguma coisa dele. Poderia enviar-lhe algo para a manter quente e segura? Não, pensou. Iria ter com ela e tratar disso ele próprio.

 

Naquela noite, Ben teve muita dificuldade para adormecer. Sentia uma angústia no peito e a cabeça ardia-lhe como se estivesse sobre uma fogueira. Duas semanas antes fugira de Annie quando esta mais precisava de si. Ao retirar-se da sua vida, esperara evitar complicações a ambos. Agora, a única complicação era estarem separados.

 

Ben sentia ainda os ecos das doenças dos pais. Observara os seus corpos e mentes a adoecerem e, finalmente, sucumbirem. Não soubera se devia elogiar a medicina por ter prolongado as suas vidas ou amaldiçoá-la por forçá-los a decair célula a célula. Há cinquenta anos, os doentes terminais morriam, por vezes, com a força da vida ainda nas faces. Mas agora, graças a fármacos cada vez mais sofisticados, era possível retardar o decurso da doença na esperança de que fosse descoberta uma nova cura. Se bem que tal não tivesse acontecido no caso dos seus pais.

 

Mas, quanto a Annie, Ben sentia que havia uma diferença. Não se tratava de a sua doença ser menos séria. Era como se, quando Ben cuidara dos pais, estivesse a cuidar do seu passado. Estava a acompanhá-los até ao fim. Quando pensava em Annie, porém, compreendia que havia uma diferença. Qualquer que fosse o tempo que lhes restasse, estava a caminhar para a frente. E era para aí que Ben queria ir.

 

Não compreendia por que invejara o seu amigo Marty - a forma como conseguia abrir o crânio de uma pessoa e localizar a fonte do seu problema. Usando um simples raspador de metal, conseguia retirar um tumor do tecido cinzento do cérebro como se estivesse a descascar uma banana. Esse tipo de medicina provocava mudanças extraordinárias e imediatas. Marty dissera-lhe que o neurocirurgião com quem trabalhava tinha o hábito de visualizar mentalmente os passos que teria a dar, enfrentando assim o bloco operatório com as ideias bem claras na sua cabeça.

 

Também Ben visualizou a tarefa à sua frente e os seus próximos movimentos. Via-se de novo com Annie em Cottage Mills. Não tinha qualquer controlo sobre a forma como ela o receberia. Na sua mente, porém, via-se a regressar a ela. Queria sentir a sua força ágil contra si. Beijar-lhe as faces salientes e encostar os seus lábios à riqueza dos dela. Queria sentir de novo o impulso quase eléctrico que viajava pelo seu corpo quando era atraído pela intensidade dos seus olhos azuis. Tal como desejava sentir o batimento do seu coração na sua pele.

 

Não tinha sido Sonny a convencê-lo. A decisão que tomara de deixar Annie fora errada. Soubera-o desde o princípio. Mas tinha escolhido a saída mais fácil, convencera-se a si próprio de que partia porque ela o obrigava. E voltar a ver Sonny recordara-lhe a necessidade de agir rapidamente. Pensara que a sua partida abrupta poderia levar Annie a procurar tratamento, por muito inflexível que se tivesse mostrado. Estando ele longe, Annie não vira que ele a amava tanto que se recusava a vê-la matar-se pela inacção? Não compreendera como era real e presente a ameaça à sua sobrevivência? As células do seu sistema linfático podiam sucumbir rapidamente. A doença podia espalhar-se. Annie não tinha tempo a perder.

 

Havia alguma verdade na teoria invulgar que o psicólogo vitoriano William James apresentara durante o apogeu daquela época severa? Que as emoções eram simplesmente a interpretação que o cérebro faria da nossa fisiografia exterior. Por outras palavras, as lágrimas surgiam primeiro, dando depois lugar à tristeza. Sentimos medo porque estamos a tremer e o nosso coração a bater? Em que medida são as emoções processadas ou trata-se simplesmente da nossa mente consciente interpretando uma reacção inconsciente? Há cem anos, as pessoas terão pensado que, vigiando rigidamente as reacções do corpo, as emoções podiam ser controladas. Mas já ninguém acreditava nisso hoje em dia. Ben sabia que havia algo mais envolvido além de nervos e músculos. Se os nervos faciais estavam paralisados e não conseguíamos sentir o canto da boca erguer-se de felicidade, conseguíamos com certeza sentir ainda um salto de alegria no coração. As emoções eram viscerais, uma síntese de interpretação e excitação hormonal. Eram a razão por detrás das decisões, certas ou erradas, que Ben tomara. O que sentia por Annie era o que o fazia voltar a Cottage Mills.

 

O Cadillac de Ben quase não conseguiu fazer a viagem. Era uma relíquia de uma época diferente da sua vida e estava a falhar rapidamente, incapaz de efectuar esta nova transição. Mas levou-o lá, soprando e arquejando pelas encostas acima até às montanhas. Utilizou as faixas lentas e, quando estas não existiam, o tráfego nas estradas de uma só faixa acumulava-se, impacientemente, numa longa fila atrás de si. Finalmente, desceu a rua principal de Cottage Mills, passou pela livraria, pela Câmara Municipal e pelos Correios. E então virou para a rua do Café Turnstone - o restaurante de Annie, onde havia um aviso na janela que dizia «Fechado». Passando pela casa de Leo, viu a carrinha da outra vez estacionada em frente e a porta lateral da garagem aberta. Não ia parar no dia em que Leo estava a despachar mercadoria. No entanto, sentiu uma sensação de alívio. Cottage Mills, onde havia pessoas por quem se interessava, parecia mais o seu lar do que a casa de Nova Iorque que deixara para trás.

 

Quando, por fim, entrou no caminho de acesso à casa de Annie, o pobre Cadillac amolgado estremeceu, arfou e libertou um fio verde de anticongelante sobre a estrada. Não andaria mais.

 

Ben não deixou que isso o aborrecesse. Respirou o ar doce e limpo das montanhas. Olhou para oeste para ver os picos de granito das White Mountains que se erguiam acima do pinhal, com os cumes ainda cobertos de neve. A neve desaparecera da paisagem à sua volta, substituída pelo pipilar de aves canoras minúsculas e o zumbido de insectos. Flores silvestres floresciam no campo alpino que se estendia pela encosta por detrás da casa de Annie. A montanha Sawtooth erguia-se a norte. Na sua encosta, os abetos pontiagudos eram menos visíveis quando estavam rodeados pela neve do último Inverno e pareciam agora uma pintura impressionista profundamente verdejante. Uma minúscula mosca preta desceu sobre ele e zumbiu-lhe ao ouvido, aproximando-se para o morder. Afastou-a e ela regressou ainda com mais ímpeto.

 

Havia uma velha carrinha estacionada à frente. Não era a de Annie. Tinha matrícula do Vermont. Ela tinha companhia. Gostava de poder ter com Annie o momento que ensaiara. Aquele primeiro momento era muito importante para ele. Podia estabelecer-lhes o rumo e dar a Ben a hipótese de dizer tudo o que tinha contido dentro de si. Observou a velha carrinha, onde a lama e a sujidade eram tão espessas no capô e nos pára-choques que nem sequer conseguia distinguir a sua verdadeira cor. Tinha nas traseiras caixas metálicas para o transporte de cães. Ben já vira outras semelhantes no celeiro de Annie. Esta carrinha percorrera um longo caminho e Ben receou que demorasse algum tempo até o estranho partir.

 

Tudo bem. Por muito que as palavras o queimassem por dentro, conseguiria ser paciente. Ouviu o latido dos cães enquanto caminhava em direcção ao celeiro, onde se ouvia um murmúrio de conversa. De repente sentiu-se nervoso devido à sua visita não anunciada. Mas acalmou-se, recordando a forma cuidadosa como ensaiara este momento na sua mente. É claro que imaginara que apenas ele e Annie estariam presentes e não um proprietário de cães de trenó do Vermont. Não interessa, disse para consigo. Annie ficaria contente por vê-lo e a altura certa surgiria para ele lhe dizer o que queria.

 

Atingiu a porta aberta do celeiro, mas o interior estava escuro e ele habituado à luz brilhante do Sol da tarde. Subitamente, ouviu-se um latido repentino de um dos cães e depois outro. Finalmente, uma explosão roufenha e feroz de latidos guturais e rangido de dentes rebentou no celeiro. Ouviu a voz de Annie. Depois, o grito de um homem. Annie correu para o exterior e agarrou uma mangueira pendurada perto da porta. Abriu a torneira e puxou a mangueira para dentro. Um dos huskies de Annie foi projectado para fora do celeiro pela ponta da bota de um homem. O cão sacudiu-se com força depois de aterrar, espalhando gotas de água por toda a parte. Seguidamente, encrespou-se para Ben e rosnou antes de se dirigir, de cabeça baixa, para a floresta.

 

Mesmo assim, havia uma sensação de urgência no ar. Ben correu para dentro do celeiro. Sentiu o ar frio na pele. Os seus olhos demoraram um pouco a adaptar-se à luz ténue. Então viu-os ao fundo do celeiro. No canil, os cães andavam de um lado para o outro, nervosos. Annie estava de joelhos no chão. A mangueira estava enrolada perto dela. O homem que ele ouvira gritar - o proprietário da carrinha coberta de lama - inclinava-se, preocupado, com o peso do corpo apoiado nas mãos agarradas aos joelhos. As suas silhuetas estavam recortadas contra o sol.

 

Enquanto Ben se aproximava, viu a figura com a qual estavam tão preocupados. Inicialmente, Ben pensara que fosse um cão estendido no chão. Tudo o que vira era um emaranhado de cabelos. Mas, quando se aproximou, viu que era Julia. Não estava a chorar. De facto, ele não tinha sequer a certeza de que estivesse a respirar. Ben correu para ela.

 

- Vá buscar a minha mala ao carro - gritou para o homem, que olhou para Ben com os olhos dardejando preocupação. A espessa barba do homem era irregular, as faces cavadas e escuras. A pala do boné estava caída para baixo sobre os olhos.

 

- Lamento muito - murmurou o homem, quase chorando.

 

- Despache-se - apressou-o Ben.

 

Ben inclinou-se sobre Julia. O seu rosto estava branco do choque, mas respirava.

 

- Foi o cão dele - disse Annie com a voz a tremer. - Nunca confiei naquele cão. Lutou com Misha. Julia foi apanhada no meio.

 

- Deixa-me ver isso, Julia.

 

Pegou-lhe nas mãos e ela resistiu devido à dor. Havia sangue por toda a parte. Ensopava-lhe as calças de ganga e a blusa. Annie aplicava uma velha toalha branca contra ela. Ben moveu a toalha para pressionar o braço. Tanto quanto podia dizer, havia várias dentadas graves na mão e nos dedos. Um dos dedos parecia quase solto. Ben fez um ruído involuntário ao aspirar o ar através dos dentes.

 

- É grave? - perguntou Annie.

 

- Vamos aumentar a pressão sobre o braço - disse Ben, elevando-lhe o braço. Julia gritou de dor. Ben tentou movê-lo mais suavemente.

 

- Raios! Onde está Warren com a tua mala?

 

Annie olhou por cima do ombro dele. Abanou a cabeça e depois inclinou-se para beijar Julia.

 

- Dói, mãe.

 

- Eu sei, fofinha.

 

Warren, com os seus membros secos e rígidos agitando-se como se ligados por molas, veio a correr com a mala de médico. Deixou-a cair ao lado de Ben.

 

- Posso chamar alguém?

 

.- Não sei - respondeu Ben, hesitante. Julia fitava-o com os olhos cheios de medo. Ele começou a enrolar gaze em torno das mãos dela. A sua mente não se estava a concentrar claramente. Sentia-se como se tivesse perdido o equilíbrio. Subitamente, a tarefa parecia ultrapassar as suas capacidades. Remexeu em busca de uma tesoura para cortar a gaze e depois mudou de ideias, decidindo continuar a enrolar. Perdeu de novo a concentração e sentiu o suor arder-lhe na testa.

 

- Não devíamos levá-la a um hospital? - perguntou Annie.

 

- Ce-certo - gaguejou Ben. - Precisa de um bom cirurgião.

 

Remexeu no equipamento da sua mala. De repente, tudo lhe parecia pouco familiar. As suas ferramentas eram apenas um monte de metal. As ligaduras e a gaze eram apenas fio de algodão. Era a emoção que causara isto? Enevoara-lhe o pensamento? Tentou pensar até que algo lhe surgiu na mente.

 

- Sonny está cá? - perguntou a Annie.

 

- Acho que sim.

 

- Bem, diga-lhe que prepare o avião. Temos de levar Julia a Boston.

 

Isto era tudo aquilo em que Ben conseguia pensar. Para as mãos de Julia ficarem curadas, precisava de um bom cirurgião vascular que conseguisse visualizar o que precisava de ser feito enquanto se desinfectava e depois executá-lo, impecavelmente, quando entrasse no bloco operatório para ligar os minúsculos vasos sanguíneos por microcirurgia.

 

- Warren, vá procurar Sonny.

 

O homem acenou para Annie e partiu, correndo na direcção da sua carrinha. Afastou-se de casa de Annie, deixando uma espessa nuvem de pó suspensa no ar.

 

- Voltaste - disse Annie dirigindo-se a Ben.

 

- E mesmo a tempo.

 

Ben assegurou-se de que Julia estava tapada para que não arrefecesse. Preocupava-o que estivesse a entrar em choque. Estava a ser corajosa, mas ele conseguia ouvir os soluços acumulando-se-lhe no fundo da garganta. Ela precisava de ajuda.

 

Sonny e o seu co-piloto, Joe, levaram quinze minutos a preparar o avião. Encheram os depósitos, calcularam o peso e o equilíbrio, enviaram um plano de voo e conferiram tudo sem perder tempo. Julia ia tão confortável quanto possível, reclinada sobre dois assentos, com ambos os braços elevados sobre cobertores por cima do peito. Ben ia virado para trás com Annie num dos fundos assentos de cabedal em frente de Julia. Partiram para sudoeste em direcção a Boston e, à medida que se afastavam de Cottage Mills, Annie tentou distrair Julia apontando-lhe a casa e a cidade lá em baixo. Mas deixar o que lhe era familiar apenas a perturbou.

 

O ar provocava solavancos, piorando a situação, enquanto Ben tentava verificar as ligaduras de Julia. O sangue já não ensopava a gaze, pelo menos a hemorragia estava sob controlo. Quanto ao que se passava sob a gaze, Ben deixaria isso para o cirurgião.

 

Estariam em Boston dentro de uma hora desde que o tempo ajudasse - a previsão meteorológica referia chuviscos dispersos. Sonny culpou o tempo que se aproximava pela viagem turbulenta que fazia com que o estômago de Ben desse saltos mortais.

 

Ben tratara de tudo. Uma ambulância iria ter com eles quando aterrassem em Logan, que era o aeroporto mais próximo do Massachusetts General Hospital. Ben utilizara o telefone por satélite de Sonny para contactar o hospital e Julia era esperada nas Urgências. Tudo estava preparado para tratar os seus ferimentos.

 

No avião, Annie puxou o cobertor até debaixo do queixo de Julia. Beijou-lhe o alto do cabelo ruivo encaracolado. Depois recostou-se e fechou os olhos azuis durante um longo momento. Faltava-lhe energia para este tipo de trauma. Ben via que ela não estava bem.

 

Não houve atrasos devido ao tempo e, quando chegaram a Boston e foram levados até à ambulância que os esperava, começava a chuviscar. Sonny pegou em Julia ao colo e beijou-a na face enquanto a transportava até à ambulância. Ela aconchegou a cabeça no seu pescoço. Annie seguiu a seu lado, agarrando-se ao casaco de camurça dele. Eram o retrato de uma família a recompor-se.

 

Julia foi levada para as Urgências, estabilizada e conduzida para a cirurgia reconstrutora dos dedos. Exaustos pela preocupação, Ben, Annie e Sonny deixaram-se cair no sofá da sala de espera. Sonny sentou-se junto de Annie.

 

- Não devia estar a desinfectar-se também? - perguntou a Ben, inclinando-se para a frente casualmente, apoiando os cotovelos nos joelhos e deixando os braços compridos balançar no espaço do meio.

 

Ben abanou a cabeça.

 

- É preciso ter autorização do hospital.

 

- Então que tal esta autorização? - inquiriu Sonny, exibindo o seu cartão platina American Express. - Ofereço eu.

 

- É essa a tua resposta para tudo? - perguntou Annie, falando-lhe bruscamente.

 

- Gostava que ele estivesse lá dentro com Julia. Aqui sentado connosco de que serve à batatinha frita?

 

- Tenho a certeza de que o médico está a fazer um bom trabalho - interveio Ben, tentando contemporizar.

 

- Sentir-me-ia melhor se estivesse ali dentro a vigiá-lo.

 

- Não lhe faria bem nenhum ter-me lá a observá-lo - asseverou Ben. - Ele sabe o que faz.

 

- Espero que sim.

 

Sonny levantou-se e espreguiçou-se, bocejando ruidosamente.

 

- Vou à procura de um café. Expresso duplo: a última droga socialmente aceite. Alguém quer alguma coisa?

 

Annie e Ben abanaram a cabeça. Sonny afastou-se, arrastando os pés, e colocou os óculos de sol e um boné mole.

 

Ficaram sentados em silêncio durante algum tempo. Annie fechou os olhos, inclinou a cabeça para trás e massajou a parte de trás do pescoço.

 

- Sentes-te bem?

 

- Cansada - respondeu ela. Ele sentiu o braço dela apertar-se à sua roda gentilmente. - Se não tivesses lá estado...

 

- Pensei que trabalhava melhor sob pressão - disse Ben - Mas já não tenho tanta certeza.

 

- Todos dizem que ela vai ficar boa.

 

Annie inclinou a cabeça na direcção de Ben e ele sentiu os lábios dela no seu ouvido.

 

- Obrigada por teres voltado - murmurou ela. Os seus olhos pareciam luminosos, mesmo naquelas circunstâncias e apesar da cor se ter evaporado da sua face. Ele ficou preocupado.

 

- Vou buscar-te um pouco de água.

 

- Acho que o que preciso é de um pouco de ar, Ben. Parece que as paredes nos estão a cercar.

 

- Vem - sugeriu. - Vamos lá para fora.

 

Ben levou-a através das portas automáticas da entrada do hospital. O ar da noite na pele reavivou-o. Tocou no ombro dela. Através da blusa conseguia sentir-lhe a dureza da clavícula.

 

Ela pegou-lhe na mão e fechou os olhos de novo como se afastasse assim a náusea e inspirou profundamente.

 

- Era disto que estava a precisar.

 

Ben conduziu-a até um banco sob uma luz fluorescente que zumbia, envolvendo-lhe as mãos nas suas. Estava tão perto do seu rosto que conseguia cheirar-lhe a pele, um maravilhoso e subtil aroma apimentado. À luz forte conseguia ver a penugem quase microscópica que se destacava na curva suave do seu queixo. Via-se o ponto minúsculo de um sinal castanho na sua nuca, mesmo por baixo da linha do cabelo. E sentiu que isso era como um segredo, uma parte escondida revelada apenas a ele.

 

- Annie, estamos aqui - disse ele. - Precisas de ajuda. Este é um dos melhores hospitais do mundo. Posso fazer um telefonema e serás vista por um grande médico. Todos os exames de que precisares podem ser feitos aqui mesmo.

 

- Foi por isso que voltaste? Para me dizeres o que preciso de fazer?

 

Ele abanou a cabeça.

 

- Não podia ficar mais tempo longe de ti.

 

- Já não consigo pensar claramente - afirmou ela, suspirando. - Tudo o que quero é sentir os teus braços à minha volta.

 

- Isso é fácil.

 

Ela encostou a cabeça ao seu ombro. Ele viu a pele de galinha que o frio da noite causara no braço de Annie. Puxou-a para si, tentando transmitir-lhe o seu calor. Durante todo o dia sentira-se quente com a adrenalina. Mas isso não conseguiu reconfortar Annie, que tremia como se nunca mais conseguisse aquecer.

 

Após a intervenção, esperaram que Julia recuperasse da ligeira anestesia. A microcirurgia religara os músculos e os vasos sanguíneos cortados no dedo indicador de Julia. Uma enfermeira do bloco operatório suturara habilmente as feridas dos outros dedos. Annie apoiava-se na grade metálica da cama de Julia. Uma certa fragilidade revelava-se agora nos movimentos de Annie. A sua confiança atlética diminuíra apenas o suficiente para o preocupar.

 

O Dr. Cutler, o cirurgião, era um homem duro, de meia-idade, com uma testa de onde brotavam cabelos grisalhos como ervas daninhas e fendas rosadas nos olhos. Ficou de pé ao lado da cama de Julia, verificou o soro administrado por via intravenosa e escrevinhou algumas notas no gráfico. Depois voltou-se para fuzilar Ben, a seguir Annie e finalmente Sonny.

 

- Parece-me que o conheço - disse bruscamente Cutler a Sonny.

 

Sonny balançou a cabeça de cima para baixo numa resposta resignada. Carregou no botão da caneta, pronto para assinar um autógrafo. Mas o médico não o pediu.

 

- Este é, realmente, o homem que merece o louvor - comunicou Sonny. Deu uma palmada no ombro de Ben.

 

- Ela parece ter reagido bem - disse Ben, procurando desviar o assunto.

 

O Dr. Cutler não tinha tempo reservado no seu dia para cavaquear com as famílias dos seus pacientes. Olhou para Ben por cima da cama através dos óculos em meia-lua empoleirados na ponta do nariz, piscando os olhos com força várias vezes como se estivesse a tentar desalojar um elemento irritante. Cruzou os braços sobre o peito.

 

- Então é o senhor!

 

- Eu o quê? - disse Ben. Annie lançou-lhe um olhar preocupado como se só ele pudesse decifrar-lhe algum termo médico complexo que o cirurgião acabara de utilizar.

 

- Quando o tempo urgia, por que a trouxe para aqui? Por pouco não chegava a tempo.

 

- Tem ideia de com quem está a falar? - perguntou Sonny.

 

Cutler ergueu as mãos e olhou para Sonny com indiferença.

 

- Não quero saber. Esta rapariga tinha um ferimento traumático que requeria actuação urgente.

 

Annie colocou uma mão no peito de Sonny para o impedir de começar a discutir com o médico.

 

- Ela vai ficar boa? - perguntou a Cutler, tentando desviar a atenção para o que era mais importante para si.

 

- Sim, mas esteve demasiado perto de não ficar boa.

 

Ela fixou Ben.

 

- Mas agora está e isso é que interessa.

 

Cutler tirou os óculos em meia-lua e meteu-os no bolso de cima da bata.

 

- A visita acabou há duas horas, de qualquer forma. Nem sequer deviam estar aqui.

 

- Obrigada, Doutor Cutler. Logo que Julia esteja instalada, sairemos.

 

Annie acenou e apertou os lábios enquanto Cutler seguia pelo vestíbulo em direcção ao balcão dos enfermeiros.

 

- Vou esclarecer as coisas com ele - informou Sonny, indignado. - Não sabe nada do que se passou - disse, avançando pelo corredor cor-de-rosa e verde atrás do Dr. Cutler.

 

Ben voltou-se para Annie.

 

- Lamento.

 

De repente, tudo parecia cercá-lo.

 

- Estou a perceber. Estamos aqui por minha causa?

 

A sua voz parecia muito fraca.

 

- Pensaste que me conseguias convencer a receber tratamento enquanto estivéssemos aqui?

 

- Não pensei nisso - negou Ben. - Foi uma decisão instintiva. Queria apenas levar Julia para o melhor hospital possível. Trazê-la para aqui foi o meu único pensamento.

 

Era verdade. Não pensara, em consciência, trazer Annie para este hospital no momento em que Julia estava ferida, embora tivesse pesquisado e planeado exactamente o tipo de ajuda que conseguiria obter para Annie. E estavam no hospital onde trabalhava o médico que Marty recomendara.

 

- Talvez te envolvas demasiado em tudo.

 

- Não.

 

Ben disse a palavra tão suavemente que parecia uma exalação. Talvez ele tivesse ficado dominado pelas suas emoções quando Julia se ferira. Mas sabia que essa não fora toda a razão por que falhara. Ao compreendê-lo, desejou afastar-se de Annie. A vergonha consumia-o. Uma fúria cega inflamou-se dentro de si por ter permitido que um inocente mal-entendido não fosse esclarecido quando se conheceram. Um mal-entendido que simultaneamente abençoara e amaldiçoara a sua vida.

 

Agarrou as grades da cama de Julia com ambas as mãos. O metal frio foi um choque. Teria conseguido dobrar aço com a fúria que sentia em relação a si próprio. Tinha os olhos húmidos, tanto devido à sua raiva como à sua loucura.

 

- Estavas a tentar ajudar Julia e a mim ao mesmo tempo. Tudo de uma só vez - disse ela, abanando a cabeça. - Estavas a ser um bom médico, Ben.

 

- Não estava.

 

- É claro que estavas.

 

Era demais para ele. Sentiu-se quebrar. A verdade brotou precipitadamente:

 

- Annie, não sou um bom médico. Nem sequer sou médico. Depois, num acto que parecia aumentar a terrível vergonha do seu embuste, Ben virou-lhe as costas. E, enquanto ela absorvia a sua confissão, deixou o hospital.

 

Não partiam autocarros de Boston a uma hora tão tardia. Ben chegou à central de autocarros muito depois da partida do último. Dirigiu-se em seguida à estação ferroviária e descobriu que o comboio para Nova Iorque também já partira. Mas não queria voltar a Nova Iorque sem as suas coisas. Teria de encontrar uma forma de recuperar o Cadillac, que estava estacionado com todos os seus pertences em frente da casa de Annie, em Cottage Mills. Se houvesse alguma forma de recuperar o carro e as coisas e esgueirar-se depois, era o que faria.

 

Ben deixou-se cair num banco de madeira da sala de espera cavernosa. O horror do que fizera dominou-o. Impedia-o de pensar com clareza. A sua consciência zumbia-lhe na cabeça. Apenas tentara ajudar. Nunca pisara o risco ao tratar os doentes, apenas dera conselhos. Mas, mesmo assim, sentia o sabor acre do engano. E do sofrimento que causara a Annie.

 

Não estava com disposição para se tratar bem, mas não podia passar a noite na estação com os bêbedos. Ben encontrou um quarto num hotel demasiado caro no porto de Boston. Tinha uma vista do aeroporto de Logan do outro lado da água, com as luzes dos aviões que chegavam e partiam. Era uma dança lenta de mecânica e precisão. Como desejava encontrar-se num daqueles voos para outro lugar e outra época... No quarto havia um cheiro abafado a desinfectante e, quando se aproximou da janela, descobriu que estava selada, o que o fez bater no vidro grosso.

 

Mais tarde, não se lembrava de ter dormido nessa noite. Mas quando abriu os olhos já era manhã. Durante toda a noite, ouvira o bater ritmado do coração nos ouvidos, sentira o fluir do sangue que lhe corria nas suas veias como se estivesse a usar um estetoscópio.

 

Na manhã seguinte, não encontrou no espelho qualquer perdão. No espelho, as suas pupilas pareciam dilatadas. Eram apenas pontos negros que enchiam as íris dos seus olhos. Lembravam-lhe os olhos sem vida de Chester, o cadáver que partilhara com Marty na aula de Anatomia, durante todos aqueles meses de dissecção para isolar nervos e músculos. Tinham bissectado e dissecado o corpo desde o cérebro até à falange distal - o dedo grande do pé. Ainda recordava na sua imaginação o cheiro fétido a formaldeído mesmo decorridos tantos anos. Era semelhante ao generalizado cheiro nauseabundo a desinfectante que contaminava o ar do seu quarto de hotel. E com aquele cheiro conseguia ainda recordar a sensação da pele embalsamada de Chester, solta como couro bem curtido, sob as suas luvas de borracha.

 

A sua vida fora permeada pela morte, reflectiu. Fizera tudo o que pudera pelos pais, deixando a Faculdade de Medicina para tratar de ambos. Calcara a sua ambição por eles e cortara a sua ligação a Giselle, tudo para fazer o que pensava estar certo. Agora quisera de novo fazer o que estava certo. Mas era demasiado tarde. Já estava tudo demasiado errado.

 

De manhã, Ben regressou à estação de autocarros. Decidira voltar a Cottage Mills. Tinha de enfrentar as suas acções. Depois recuperaria as suas coisas e deixaria aquele local para sempre. Perder Annie era o preço da sua loucura.

 

Na estação passou por um grupo de polícias que observavam a multidão. Um calafrio percorreu Ben, que se escondeu nas sombras junto a um quiosque de jornais. E se andassem à sua procura? Se Annie tivesse contado a Sonny a revelação de Ben, como tinha a certeza de que fizera, Sonny poderia ter ficado suficientemente zangado para chamar a polícia. A lei punia com severidade pessoas como Ben. Talvez houvesse uma caça ao homem.

 

Um dos cães-polícias, sentado sossegadamente com os agentes junto ao quiosque de jornais da estação, atirou-se de repente a uma mulher que transportava um gato siamês nos braços. O gato guinchou e saltou, levando vários polícias a correr atrás dele. Outros apressaram-se a ajudar a mulher. Ben aproveitou a oportunidade para se esgueirar e dirigir-se ao portão onde o autocarro esperava.

 

Evitou fitar o condutor nos olhos enquanto entregava o bilhete e entrava no autocarro. Escolheu um lugar junto à janela, ao fundo, agarrou num jornal esquecido num assento do outro lado do corredor e tentou ler a secção de Negócios. Havia cheiro a café no autocarro e o restolhar de sacos de papel enquanto à sua volta os passageiros tomavam o pequeno-almoço. Ben sentou-se desleixadamente, impaciente por fugir.

 

Logo que deixaram a estação, começou a passar nos pequenos monitores de vídeo por cima dos assentos uma comédia que distraía e se esquecia facilmente. Observou o tráfego enquanto o autocarro seguia o seu caminho para norte, em direcção ao New Hampshire. Desde a última paragem desta linha de autocarros, seguiria, de alguma forma, para leste, atravessando a fronteira estadual até Cottage Mills.

 

Pela janela do autocarro, larga e de vidros fumados, observou como os subúrbios de Boston davam lugar às pastagens verdes da extremidade sul do New Hampshire. Haveria outro preço para o seu embuste? Um preço legal? Nunca tencionara ser o que não era. Mas, naquela noite, na estrada gelada, Leo tirara as suas próprias conclusões e, como estas estavam tão intimamente ligadas aos sonhos perdidos de Ben para si mesmo, fora mais fácil, em vez de explicar, viver apenas por um momento ou dois a vida que devia ter sido a dele: uma vida em que era legalmente capaz de curar. E depois, à medida que o embuste passara como um mexerico através de Cottage Mills, ele fora atrás, grato de certa forma, enquanto apenas tentava ajudar quando podia e enviar para um profissional habilitado quando enfrentava algo que o requeria. Estivera sempre consciente da fronteira e nunca a atravessara. Nunca fizera mais do que teria feito um vizinho preocupado que tivesse tirado à noite um curso de reanimação e primeiros socorros. Nunca. Mas fora falso. Permitira às pessoas pensar que ele era algo que não era. Alguém que ele não era. Seria esse alguém que Annie amava?

 

Estava demasiado envergonhado para pedir perdão a Annie. Além disso, que direito tinha de lhe pedir tanto? Acontecera tudo demasiado depressa. O seu amor por ela tomara-o de surpresa de tal maneira que lhe afectara o juízo. Naquela tarde, junto à casa de Leo, quando encontrara Annie, os seus sentimentos tinham-se manifestado dentro de si, espontâneos e inesperados. Amá-la eclipsara-lhe a razão. Quisera ficar e o seu embuste dera-lhe um pretexto fácil.

 

O autocarro parou em várias cidades, mas Ben seguia até à última paragem. Após várias horas, começaram a subir as White Mountains. Picos rochosos erguiam-se por cima do pinhal com os cumes perdidos nas nuvens. Tentou distrair-se com a beleza exterior, mas o seu acto queimava-o por dentro. Era como uma bolha que surgia sob a pele, a dor e o calor de uma infecção que subia a partir de camadas bem fundas, ansiando pelo ar seco. Precisava de esclarecer tudo com aqueles cuja confiança traíra: os habitantes de Cottage Mills. Uma confissão pública talvez servisse para o purgar, pelo menos em certa medida, e ajudá-lo a encontrar o caminho da sua própria recuperação.

 

Ouviu-se um som semelhante a um tiro e o autocarro começou a inclinar-se para um lado como um navio a afundar-se, prestes a submergir sob as águas ondulantes do mar. O condutor guinou e procurou controlar a viatura. Ben sentiu-se atirado de um lado para o outro no seu assento e bateu com a parte de trás da cabeça na janela. Por momentos, isso fez-lhe ver cores. Finalmente, o condutor recuperou o controlo do autocarro, encostou à beira da estrada e saiu para verificar os danos.

 

Ben esfregou o alto que se formava na parte de trás do seu crânio. Ouviam-se os poucos passageiros murmurar entre si, com a preocupação evidente daqueles que verificavam o seu estado. Ninguém se magoara, excepto Ben, cuja pancada na cabeça não tinha realmente grande importância.

 

Um pneu traseiro rebentara e teriam que esperar pelo serviço de reparações da empresa de transportes. Ben desejaria ter algum gelo para a cabeça que latejava. Observou o condutor enquanto este inspeccionava os danos no exterior. Um reflexo na janela atraiu a sua atenção. Olhou para trás e viu as luzes coloridas de um carro da polícia que parara atrás do autocarro. Um polícia alto e musculoso com um chapéu de aba achatada saiu do carro. Falou com o condutor durante bastante tempo e, enquanto falava, olhava para as janelas do autocarro. Os seus óculos escuros espelhados brilhavam ao sol. Ben olhou para o polícia pela janela do autocarro, pensando no que poderiam estar a dizer durante tanto tempo. Não conseguia perceber o que diziam devido ao ruído do trânsito. Então apercebeu-se de que o polícia estava a olhar mesmo na sua direcção, embora os óculos espelhados tornassem difícil dizer exactamente para onde estava a olhar. De repente, Ben percebeu que não tinha onde se esconder.

 

Afastou-se da janela e agarrou o jornal. Com intervalos de alguns segundos, Ben espreitava por cima do jornal, observando o polícia e o condutor do autocarro. Era ridículo, mas, se Sonny estivesse suficientemente zangado com ele, poderia enviar toda a força policial estadual à sua procura. Podia ser enviado para a prisão pelo que fizera.

 

Não dormira o suficiente e a paranóia estava a dominar-lhe a razão. Tinha de se recompor. Os seus pensamentos estavam encerrados numa espiral autodestrutiva. Mentira a pessoas que confiavam nele. Abusara das regras da boa educação. E, pior que tudo, ainda fingira ser médico, passados todos estes anos. Não tinha mais direito a esse título do que quando era rapaz. Mas nunca fizera nada que qualquer pessoa não pudesse fazer, com ou sem credenciais, pois não? Fizera realmente algo tão errado que fosse ilegal? Uma fraude, talvez. Mas nunca envolvera dinheiro. Fora certamente errado deixar que uma mentira permanecesse entre ele e Annie quando compreendera que ela retribuía o seu amor. Mas a única pessoa que o podia condenar por esse erro era ela, não era?

 

O rádio do polícia grasnou de repente com uma voz alta e um pouco de estática. Ben conseguia distinguir uma ou duas palavras, mas nenhuma significava alguma coisa para si. O polícia respondeu pelo microfone do rádio preso à lapela no seu ombro. Acenou para o condutor do autocarro, olhou de novo para a janela onde Ben estava sentado e voltou para o seu carro. Ben observou o polícia a contornar o autocarro e seguir a toda a velocidade.

 

Passaram quase quatro horas até que o pneu fosse trocado e, nessa altura, a sua paciência esgotara-se. Estava com fome, cansado, e o autocarro ficara abafado e quente. Continuaram pela estrada principal e passou outra hora até chegarem à última paragem do outro lado das montanhas.

 

Ben foi o último passageiro a sair do autocarro quando este parou no estacionamento de uma estação de serviço no fim da linha. A viagem durara quase todo o dia. O autocarro partiu com uma baforada de cheiro a gasóleo. Ben endireitou as costas por um momento. Depois entrou na estação para ir ao lavabo e comprar um sumo para tirar da boca o sabor azedo da viagem.

 

Podia ter ficado à beira da estrada e espetado o polegar, esperando que alguém lhe desse boleia para Cottage Mills. Mas estava cansado e não lhe apetecia conversar com um estranho. Esse era geralmente o preço de uma boleia, não era? No balcão da estação de serviço, preso à caixa registadora, estava um cartão de um serviço local de táxis obscurecido pela gordura. Ben telefonou para combinar a viagem.

 

Uma mulher atendeu o telefone por volta do décimo terceiro toque. Ben explicou a sua situação.

 

- Ele está em Boston - informou ela, aclarando a garganta ruidosamente. - Pode levá-lo amanhã.

 

- Amanhã a que horas?

 

- Não sei qual é o horário dele.

 

Ben apoiou a cabeça nas mãos.

 

- Muito bem. Telefono amanhã.

 

Desligou o telefone. De repente sentiu-se completamente derrotado.

 

Havia um motel para onde se podia dirigir a pé. Tinha um pátio antiquado com alegres cestos dos primeiros amores-perfeitos primaveris suspensos de ganchos em frente de cada porta. Registou-se para passar a noite e instalou-se num quarto limpo e simples com uma pequena secretária, uma cama com uma colcha sarapintada e um velho televisor num suporte de metal junto da porta.

 

À medida que a tarde se tornava crepúsculo e este se transformava em noite, Ben escondeu-se no seu quarto. Depois alimentou-se com comida plástica e acalmou-se com a televisão. Quando, finalmente, desligou o televisor, fez-se silêncio. Bem, quase silêncio. Através da parede ouvia-se o imbecil do quarto ao lado a ressonar como se estivesse a ligar um motor a diesel e depois parara. Apneia do sono, pensou Ben.

 

Ben estava estendido na cama, no escuro. Sabia que o sono não viria em breve, especialmente com troncos a serem serrados no quarto ao lado. A preocupação esgotara-o, mas os pensamentos rodopiavam-lhe na mente, afastando qualquer possibilidade de sono. Os seus pensamentos voltaram-se para Annie sem sequer dar por isso.

 

Pouco tempo antes, quando Sonny comprara o equipamento do restaurante, fora Ben que a ajudara a colocar tudo no seu lugar. Trabalhavam bem juntos na montagem do restaurante. Ben apreciava os pormenores: dispor talheres num tabuleiro como instrumentos cirúrgicos, esfregar uma velha panela de cobre com uma pasta de fermento até a pôr a brilhar. Annie retirara de um caixote um enorme samovar de prata que estava manchado.

 

- Onde vais pôr isso?

 

- Não sei. Por trás do bar, talvez?

 

Colocou aquela coisa desengraçada no bar e fez uma careta.

 

- Onde diabo descobriu ele esta coisa? Refugo de uma sala de chá russa, calculo.

 

- Pensei que gostavas de tudo?

 

- E gosto, mas...

 

- Mas o quê?

 

- Bem, não sei.

 

Remexeu numa caixa com guardanapos de tecido vermelho.

 

- Ele tem estes grandes gestos e não me sinto bem a dizer nada. Não quero ser ingrata.

 

- Se não gosta das coisas, devolva-as.

 

Ela abanou a cabeça suavemente. Havia amargura a imiscuir-se no seu optimismo.

 

- Não se faz isso a Sonny. E não é que não goste destas coisas, embora o samovar seja bastante horrível.

 

- Podiam-se pendurar chapéus nesses bicos todos.

 

Ela riu-se.

 

- Não me tentes.

 

Atirou um dos guardanapos de poliéster vermelho-sangue na direcção do samovar, que ficou pendurado numa das torneiras.

 

Ben agarrou um guardanapo e lançou-o para cima, aterrando no topo pontiagudo e trabalhado do objecto.

 

Annie retirou outro guardanapo da caixa, fê-lo numa bola e lançou-o com força. Falhou o samovar por um quilómetro, deslizou pela parede, deu uma volta na ventoinha do tecto e embateu num candeeiro pendurado na parede oposta.

 

- Caramba! - gritou Ben. - Golo!

 

Annie deu uma risadinha, exactamente como Julia fazia quando Sonny lhe fazia muitas cócegas. Apoiou as mãos nos joelhos e recuperou o fôlego.

 

- Não conseguiria voltar a fazer isso nem num milhão de anos!

 

Inclinou-se na direcção dele, rindo ainda com vontade. O seu cabelo roçou-lhe pela face. Conseguia cheirar a doce fragrância dela. Queria abraçá-la. Queria beijar-lhe a parte de trás do pescoço esguio. Ela ergueu o rosto até ao dele e olhou-o nos olhos por um instante que pareceu durar uma eternidade. Ele moveu a cabeça para a frente muito ligeiramente. Era quase involuntária a forma como era atraído para ela. Mas esperava que ela se afastasse. Não o fez.

 

Annie colocou os braços em torno de Ben e beijou-o. Ele sentiu-lhe o calor dos lábios contra os seus. E quando ela se afastou, após aquele instante, sentiu-se como se tivesse perdido a fala. Ela dissera: «Não acredito como foi possível apareceres na minha vida.» Porém, fora incapaz de pegar naquele instante de intimidade e ligá-lo, para além da amizade, aos seus sentimentos mais profundos, e o instante passara. Em vez disso, voltaram às suas tarefas, trabalhando até depois da meia-noite, com a naturalidade de dois velhos amigos.

 

Dormiu de novo até tarde. Depressão, suspeitava. As cortinas negras do motel cortavam a luz do Sol e este brilhava já alto quando as afastou. Lá fora, o ressonador do quarto ao lado levava as malas para o seu carro. Era um homem franzino com um bigode da espessura de um lápis. Usava calças de xadrez e um casaco desportivo castanho. Ben sentou-se na extremidade da cama e telefonou de novo para o serviço de táxis, mas não teve qualquer resposta.

 

Quando Ben estava pronto para sair do hotel, voltou a telefonar e descobriu que ainda não havia resposta. Deixou o quarto, entregou a chave e caminhou até à zona comercial, onde podia tentar tomar um pequeno-almoço fora de horas. Num restaurante local, só serviam almoços, mas teria que esperar até depois das onze horas. Ben tinha a clara sensação de que estava encurralado. Estava preso numa cidade onde não queria estar.

 

Depois do almoço, tentou de novo o número e a mulher com quem falara no dia anterior atendeu.

 

- Fique aí - disse ela. - Ele vai buscá-lo.

 

O sol sabia-lhe bem na cara enquanto esperava em frente do restaurante. Observou o trânsito, atento ao táxi. Passavam pessoas de férias em carros com matrículas de uma dúzia de estados. Havia reformados pilotando caravanas gigantescas pela rua abaixo a caminho de parques de campismo. Um camião passou roncando, a abarrotar de troncos de árvore cortados. Mas não se via nenhum carro da empresa. Telefonou de novo. Não houve resposta. Tudo o que podia fazer era esperar.

 

Finalmente, quando estava prestes a tentar a sua sorte para arranjar uma boleia, uma carrinha parou na curva e o condutor acenou-lhe.

 

- Cottage Mills? - perguntou o condutor. Não apresentou qualquer desculpa por tê-lo feito esperar. Ben entrou para trás.

 

O condutor era um homem corpulento, parecido com um Buda, e que usava óculos de sol de plástico com lentes sujas. Tinha um grande sinal preto-avermelhado, de forma irregular, na têmpora e fios de cabelo oleoso que permaneciam agarrados à cabeça calva. Ben preocupou-se com o sinal de aspecto inflamado na cabeça do homem, já que podia ser grave. Mas calou-se, não iria mais dispensar conselhos médicos tão livremente.

 

Ben estava de novo prisioneiro de si próprio. Logo que esclarecesse as coisas, reuniria os seus pertences: o carro amolgado, os livros de medicina, o computador portátil e as roupas que transportava naquela feia mala cor de laranja. Depois regressaria para onde viera e seguiria a longa estrada que o conduziria de volta ao ponto de partida.

 

Não havia qualquer carro junto à entrada da casa de Annie quando chegaram naquele início de tarde do princípio do Verão. Certamente já tinham regressado do hospital. Mas não estava muito ansioso por vê-la. Tudo o que queria era meter-se no carro e conduzir para longe. O condutor parou junto à casa. No fim do caminho, perto do celeiro, estava uma máquina grande que não vira antes. Procurou o seu carro, mas não estava ali. Talvez tivesse estacionado por trás do celeiro. Tinham acontecido tantas coisas que não se conseguia recordar do que sucedera ao carro.

 

- Chegou - disse o condutor.

 

- O quê?

 

Percebera mal? Ben não estava realmente a ouvir.

 

- Chegámos - repetiu o condutor.

 

- Certo. Obrigado.

 

Ben pagou-lhe e saiu do carro. O condutor partiu rapidamente.

 

Ben estava só. Caminhou até à outra extremidade do celeiro, mas o seu carro não se encontrava lá. Os cães estavam a fazer grande algazarra desde que chegara no táxi. Os seus dentes brancos rangiam no espaço vedado junto ao celeiro.

 

- Calma! - gritou-lhes Ben, o que só pareceu tornar o seu ladrar mais insistente.

 

Chegou à frente do celeiro para examinar a estranha peça rectangular instalada na lama. Caminhando sobre o relvado, viu sulcos fundos de pneus na terra que cruzavam o caminho. Enormes tufos de terra e erva estavam arrancados perto daquilo. Examinou o bloco de metal. Passou um momento até os nervos fazerem as ligações e o pensamento avançar. Finalmente, a compreensão total do que estava a ver começou a ser absorvida.

 

Aqui estava o seu carro, o carro que o pai amara tão devotadamente. Uma tonelada e meia de aço de Detroit azul-metalizado fora bem comprimida num rectângulo do tamanho de uma mesa grande. Dobrou-se e correu o dedo pelo emblema do Cadillac que sobressaía no topo. Tinham tirado do carro o motor V8, os assentos de veludo, os pneus brancos e os tampões com raios cromados. Era apenas a carcaça de metal, esmagada, sem vida, a casca da vida que Ben deixara para trás.

 

- Raios! - exclamou Ben, dirigindo-se ao bloco de metal. - Lamento, pai.

 

Havia apenas uma pessoa suficientemente zangada para lhe fazer isto. Apenas uma, pensou Ben, teria este atrevimento.

 

Se esta era a forma de Sonny dizer a Ben que se fosse embora, não ia ser muito eficaz. Para onde podia ele ir sem um carro? Calculou que Sonny não esperava realmente que Ben ousasse voltar a Cottage Mills. Mas fizera-o.

 

Apareceu um carro na estrada e, à medida que se aproximava, Ben conseguiu ver o condutor. Percorreu-o um arrepio de medo. Mas tinha de suportar o que quer que acontecesse. Ben devia uma explicação a estas pessoas que tinham confiado nele.

 

Leo baixou a janela do seu minúsculo monovolume azul e acenou a Ben. Vestia uma velha camisola verde, gasta nos ombros.

 

- Os meus joelhos estão a doer-me como tudo hoje, deve ser da humidade, por isso não vou sair - disse Leo. Depois fixou Ben longamente. - É verdade?

 

Ben encolheu os ombros. Em seguida assentiu. Leo desabafou:

 

- Filho da mãe!

 

- Nunca tencionei...

 

- Entre - ordenou Leo.

 

Ben pensou que seria precipitado entrar no carro de Leo, cujos olhos se tornaram de repente ferozes.

 

- Eu não...

 

- Não tem escolha, Minor. Com joelhos ou sem joelhos, eu saio e meto-o cá dentro. Tem algumas explicações a dar.

 

Ben entrou para junto do homem. Leo estava encolerizado.

 

- Como teve coragem para o fazer?

 

- Nunca lhe disse que era médico, Leo. A ideia foi sua.

 

- Bem, pela forma como salvou Marge, eu só...

 

Caiu em si, parou a meio da frase e conduziu o resto do caminho até à cidade sem dizer uma palavra.

 

O edifício municipal de Cottage Mills abrigara, em tempos, uma dúzia de estudantes desde a primária ao secundário antes de o distrito passar a ter sede em edifícios centrais a cerca de trinta quilómetros. Ben já lá estivera uma vez com Annie para pagar um imposto local. Os corredores tinham tábuas de madeira escura que rangiam e estalavam com a idade. Algumas das salas ainda tinham quadros pretos e bandeiras em suportes nas paredes. Nos lavabos dos homens, os urinóis eram baixos - à medida de rapazes. Leo parou junto ao edifício, estacionando o seu carro entre muitos outros.

 

- Que se passa aqui? - perguntou Ben, com o pânico começando a fazer tiquetaque no seu interior.

 

- Lindsay convocou uma reunião para falar a seu respeito - informou Leo. - E agora, depois da bomba de Sonny, há muito de que falar.

 

Quando entraram pela porta do pequeno ginásio onde as reuniões da cidade se realizavam, o local barulhento ficou silencioso. Todos se viraram na sua direcção e Ben conseguia sentir as suas recriminações, embora desviassem logo o olhar. Ninguém o olhava de frente.

 

Leo descobriu o lugar que Marge lhe guardara e puxou Ben para junto de si. Ben sentia o olhar fixo de Marge, mas não conseguia virar-se na sua direcção. Observou a multidão, rápida e sub-repticiamente, esperando ver Annie, mas ela não estava ali.

 

A reunião começou em breve e Peggy, a proprietária da livraria, tomou a palavra para estabelecer a agenda. Era uma professora reformada e a sua atitude severa dava-lhe um controlo fácil da sala, pois o seu penteado, semelhante a uma colmeia, adicionava uns bons quinze centímetros à sua já elevada estatura. Apresentou Lindsay Mullen, cujo filho, Colin, fora salvo por Ben de se afogar.

 

- Pedi a Peggy que convocasse esta reunião para falarmos do Doutor Minor - Lindsay era uma mulher tímida, não habituada a falar em público; as suas mãos tremiam e a voz estremecia com os nervos. Continuou o melhor que podia. - Mas isso foi antes de sabermos que...

 

- Que ele é um aldrabão? - interrompeu um homem da parte de trás da sala. - E um mentiroso?

 

A assistência riu abafadamente das acusações. Ben manteve os ombros direitos.

 

- Ordem, por favor - interrompeu Peggy. Bateu palmas como se enfrentasse uma sala cheia de estudantes. - Haverá um período para discussão, posteriormente.

 

- Talvez devêssemos falar sobre isto agora - sugeriu Lindsay. - É óbvio que muitos de vós têm algo a dizer sobre o Doutor Minor.

 

- Porque é que continua a chamar-lhe doutor? - gritou a voz de outro homem. - Ainda não ouviu as notícias?

 

Lindsay abanou a cabeça.

 

- Foi sempre assim que lhe chamei.

 

Olhou para Ben com olhos compreensivos.

 

Um homem de cabelo escuro com cara de lua levantou-se no meio da sala.

 

- O que quero saber é se este Senhor Minor veio para aqui da cidade de Nova Iorque pensando que se safava fingindo-se médico para um bando de rústicos?

 

- Isso era o que eu queria saber - observou Leo a Ben, por cima do tumulto. Ben inspirou e expirou, para dentro e para fora, para dentro e para fora.

 

- Não somos uns simplórios - continuou o homem, satisfeito por ter atingido um ponto fraco na assistência.

 

- Acho que ele nunca sugeriu isso - interveio Lindsay.

 

- Como é que ele tem o descaramento de aparecer aqui outra vez? É o que eu gostava de saber - gritou uma mulher de voz aguda da fila da frente.

 

- Isso não abona a favor do seu carácter? - continuou Lindsay, defendendo-o de novo.

 

- Confiámos neste homem - afirmou a mesma mulher. - E se um de nós estivesse seriamente doente e ele não soubesse o que estava a fazer?

 

- Mas ninguém piorou. E muitos de nós foram ajudados. Ele nem sequer cobrou nada a ninguém - prosseguiu Lindsay na sua defesa.

 

- Bem, ninguém mais se importou em me ajudar com a minha artrite - concordou uma mulher de cabelo grisalho na fila de trás.

 

- E teve razão quando me mandou a um especialista - disse Alfred, o carteiro. - Provavelmente salvou a minha perna.

 

- E a minha úlcera deu-me problemas durante vinte anos acrescentou um homem sentado à frente. - Senti-me melhor até hoje.

 

- Até tentou ajudar-me - disse Fritz Higby de um canto escuro ao fundo. - Eu não queria, mas ele tentou de qualquer forma.

 

Leo olhou para Marge e depois para Ben.

 

- Quando Marge teve o ataque de coração, ele estava lá.

 

- Mesmo assim não está certo - gritou um homem do fundo da sala. - Enganou-nos a todos.

 

- Isso é verdade - concordou Leo, fuzilando Ben com o olhar.

 

- Parecia um homem tão simpático - observou a Sra. Murphy. - Até lhe dei uma das minhas tartes.

 

Ouviram-se alguns remoques daqueles que conheciam o sabor das tartes da Sra. Murphy.

 

- Se isso não o fez fugir para os montes... - sibilou uma mulher sentada perto de Marge.

 

Lindsay abriu um sobrescrito e tirou uma carta.

 

- Esta reunião foi inicialmente convocada porque recebi esta carta de Chicago. Em Março, quando o Doutor Minor salvou Colin, escrevi a história e enviei-a no último minuto para a Comissão de Nomeações, explicando o que ele fizera por nós em Cottage Mills.

 

Agitou a carta no ar.

 

- O Doutor Minor ganhou o prémio de Médico Rural do Ano.

 

A assistência rompeu de novo aos gritos.

 

- Impossível! - berrou alguém sentado atrás dele. - Eles não verificam essas coisas?

 

Ben desejou não ter regressado a Cottage Mills, desejou nunca ter vindo ao local. A comoção quebrou-se lentamente como uma onda diminuindo numa praia. Teve a vaga sensação de estar alguém de pé ao fundo da sala. Voltou-se e reparou na mulher de cabelo escuro que estava de pé na última fila de cadeiras. Era Annie.

 

Ela subiu a coxia até ele. A sala ficou silenciosa. A sua face estava preocupantemente pálida, mas caminhava, confiante, pela sala. Quando se aproximou da mesa da frente onde se encontrava Lindsay, hesitou e pareceu vacilar de repente. Ele ouviu-a arfar. Então, com um movimento fluido, os joelhos cederam e caiu no chão, desmaiada.

 

A assistência ergueu-se em seu redor. E quase de imediato todos os olhares se viraram para Ben. A multidão afastou-se para o deixar passar enquanto Ben corria para ela. Caiu de joelhos a seu lado e pegou-lhe na mão. A multidão fechou-se à sua volta.

 

- Por favor - pediu Ben. - Ela precisa de ar. Dêem-lhe espaço. Todos recuaram um passo.

 

Via-se uma nódoa negra surgir na face de Annie no sítio onde embatera contra o canto redondo de uma das cadeiras de metal. Enrolou um casaco que alguém lhe deu, levantou-lhe os pés e esfregou-lhe a mão.

 

- Annie - chamou-a.

 

Passado um longo momento, as suas pálpebras começaram a agitar-se. Moveu a cabeça. O fluxo de cor começou lentamente a regressar-lhe à face.

 

- Annie - chamou Ben de novo.

 

- Sim - respondeu ela, devagar. Abriu os olhos. Toda a sala se aproximou de novo para olhar.

 

- Ela está bem? - perguntou Lindsay. Ben não reparara que ela estava de pé junto dele.

 

- Estou óptima, óptima - disse Annie. - Que aconteceu?

 

- Desmaiaste - respondeu Ben, colocando-lhe uma mão fria na testa.

 

- Ajuda-me, Ben - pediu Annie, agarrando-lhe a mão e apertando-a. A sua força surpreendeu-o. Passou-lhe um braço pelas costas e ajudou-a a sentar-se. - Tira-me daqui - murmurou-lhe ao ouvido.

 

Ben pegou em Annie ao colo e ela colocou-lhe os braços ao pescoço. Parecia-lhe tão leve que era como se transportasse uma criança. O ar da noite estava frio enquanto a levava até à sua carrinha. Pousou-a e esperou até ela se sentir segura.

 

- Conduz tu - pediu ela. - Não estou em condições.

 

Ben pegou nas chaves, ajudou-a a sentar-se no assento alto da carrinha e subiu para o lado do condutor.

 

Annie orientou-o através da cidade até à estrada principal. No desvio para a sua casa, disse-lhe que continuasse.

 

- Só quero que conduzas um pouco mais - disse. - Leva-me até à casa de Sonny.

 

Seguindo a indicação de Annie, Ben virou para a estrada não identificada que passava pela floresta até à casa de Sonny. Este era o último lugar para onde ele desejaria ir.

 

Entraram pelo portão e Ben estacionou em frente à casa. Desligou o motor e permaneceu sentado no habitáculo silencioso enquanto os seus olhos se habituavam à escuridão da noite já eminente.

 

- Lamento - desculpou-se Ben de novo. - Não sei que mais possa dizer.

 

Ela moveu lentamente a mão pelo assento até encontrar a dele. O seu toque acalmou-o. Ela não disse nada. E, a pouco e pouco, ele apercebeu-se do que lhe chamara a atenção. Milhares de watts de lâmpadas de halogénio brilhavam dentro da casa de Sonny e eles sentiram a pulsação distante e muda da música vinda da sua potente aparelhagem. Observaram como Sonny dançava devagar com Julia. Erguera-a nos braços e apertava-a com força contra o peito, com a mão ligada pousada cuidadosamente sobre o ombro dele. Com ar triste, deslizava pela casa, de sala para sala, passando por todas as janelas com Julia nos braços.

 

Ben olhou para Annie.

 

- Estás mesmo disposta a desistir daquilo tão facilmente?

 

Ela suspirou.

 

- Annie, estás num momento crítico. Tens de receber tratamento - disse Ben.

 

- Mentiste-me - acusou ela com franca amargura.

 

- Deixa-me compensar-te - falou-lhe suavemente, tentando não a perturbar mais.

 

- Que aconteceu?

 

- Uma coisa levou à outra. Quero dizer, passava receitas de M&M durante os recreios no quinto ano. É assim que eu sou disse, suspirando gravemente. - Quando andava no liceu, a minha mãe costumava perguntar-me se o meu seguro de negligência estava pago. Apenas deixei isto ir longe demais desta vez. Ajudei Marge e depois foi uma bola de neve. Quando descobri que tinha ido longe demais, apenas deixei correr... Porque não queria deixar...-te.

 

Annie apertou-lhe a mão.

 

- Os meus pais estavam doentes, em fase terminal, e eu estava no último ano da Faculdade de Medicina, a circular pelos departamentos do Columbia Presbyterian, a candidatar-me ao internato. Não podia deixá-los sós.

 

- Oh, Ben! Desististe de tudo para cuidar deles?

 

Ele assentiu.

 

Desde a cabina da carrinha, observaram Sonny rodopiar com Julia, lentamente, através da cozinha.

 

- Sonny é o mais parecido com um pai que Julia já teve - comentou Annie, olhando-os.

 

- Ela também precisa da mãe - frisou Ben. - Que lhe aconteceria se a perdesse?

 

- Estou doente, Ben - lamentou-se, abatida. Virou-se para ele com as lágrimas humedecendo-lhe as faces. - Não quero isto.

 

Ele tomou-a nos braços e sentiu o calor da sua respiração no pescoço. Beijou-lhe as lágrimas que escorriam pelo rosto.

 

- Tens de o fazer por Julia - insistiu Ben. Sentia-se impelido a ajudá-la. - E por mim. Se me quiseres como parte da equação.

 

Annie voltou-se para ele.

 

- Não me deixes - pediu com energia. - Não me importa quem tu sejas.

 

- Nunca te deixarei - respondeu-lhe.

 

Ben não queria entrar. Não queria ver Sonny, pois haveria com certeza um confronto. Tudo o que queria era tomar conta de Annie. Precisava de pôr gelo na face magoada e achava que ela precisava de descansar um pouco.

 

Quando finalmente entraram em casa, Sonny e Julia tinham descido a escada até ao pequeno estúdio de gravação na cave. Ben sentou-se e colocou gelo na face inchada de Annie. Esta tirou-lhe o saco de gelo e foi reclinar-se numa cadeira de veludo vermelho da sala de estar. Ele sentou-se junto dela no chão, com as costas apoiadas na cadeira. A mão dela despenteou-lhe o cabelo e repousou no seu ombro.

 

- Bolas, Ben - disse, suspirando com suave ironia. - Tinha tudo planeado e agora voltaste para complicar as coisas. Fazes-me pensar demais.

 

Ben inclinou a cabeça para trás na direcção de Annie, cujos dedos brincaram com o seu cabelo. Como estaríamos sem os desafios que nos surgem das sombras? Como seríamos, pensou, se as nossas vidas flutuassem numa felicidade fácil? Por vezes, parecia que Ben media os dias pelos problemas que tinham atravessado a sua vida como nuvens de tempestade escurecendo um céu de Verão. Mas também tinha havido épocas em que conseguia ver de relance um pedaço de céu azul e sentir a leveza da esperança. Agora parecia que a esperança regressara, trazendo consigo a excitação da possibilidade. Mas receava este novo ânimo que sentia no coração. Como podia ele confiar em sentimentos tão pouco familiares?

 

- Vamos ver o que estão a fazer? - perguntou Annie. Levantou-se. A nódoa negra tornara-se uma dedada ligeiramente púrpura na face.

 

- E Sonny?

 

- É decididamente um caso de cão que ladra mas não morde - respondeu Annie, espreguiçando-se voluptuosamente como um gato. - Ele acalma-se.

 

- Alguém me estragou o carro.

 

- Que trapalhada, hã? - compadeceu-se Annie.

 

- Tens alguma pista? Foi quem eu penso?

 

- Oh, foi ele. Mas só mo confessou depois de o fazer.

 

- O carro pertencia ao meu pai - suspirou Ben. - Não posso acreditar que Sonny o tenha feito.

 

- Tem estado com ciúmes desde que apareceste. Pensou que, desta vez, te ia dar uma lição.

 

- Que posso fazer como retaliação? - encolerizou-se Ben.

 

- Cortar-lhe os pneus do   Lexus? Deitar bolas de naftalina no depósito da gasolina? Serradura na transmissão?

 

Ela sorriu-lhe e abraçou-o.

 

- Nunca ouviste dizer que a felicidade é a melhor vingança?

 

Ben seguiu Annie pela casa e desceu a escada espessamente alcatifada até à cave elaboradamente decorada. Deu aos seus olhos um momento para se adaptarem à luz ténue e viu que a fita estava a passar. Sonny estava inclinado sobre a consola de gravação. Julia estava sentada à sua direita. Pelos altifalantes, ouvia a voz ressonante de tenor de Sonny. Sons de guitarra envolviam um ritmo constante. Era um mosaico alegre e harmónico de som, rico de refrães ecoantes e de palavras sensuais cuidadosamente compostas.

 

Os olhos de Sonny estavam fechados. A cabeça agitava-se ao ritmo da canção. Ben ouviu atentamente as palavras, todas sobre a perda do amor. Ouvia-se a voz de Julia como pano de fundo, emprestando uma leve inocência à canção. Quando acabou, Sonny inclinou-se e beijou a face de Julia.

 

- Foi perfeito - elogiou.

 

Sentada num banco alto junto da consola, Julia estava tão radiante como se ela própria tivesse escrito a canção. Sonny virou-se e viu Annie e Ben ali de pé a ouvir.

 

- Olá, Annie - saudou Sonny, fuzilando Ben com o olhar.

 

- Olá, mãe, ouviste a canção? - perguntou Julia, saltando do banco. Amparava com cuidado os dedos ligados.

 

- Soou lindamente.

 

- A batatinha frita e eu já fizemos tudo - informou Sonny. Não ousava ser mal-educado em frente de Julia. Ben estava grato. - Ela é uma feiticeira. Tem uma voz espantosa. Lembra-me uma Dusty Springfield do tamanho de um pinto. Uma mini Aretha.

 

- Mas só posso tocar duas cordas - lamentou-se Julia.

 

- Em breve conseguirás melhor - disse Annie.

 

- Será uma boa fisioterapia quando o teu dedo se curar sugeriu Ben.

 

Sonny olhou para Ben, com a boca cerrada e a testa franzida numa carranca.

 

- Toca outra vez! - pediu Julia.

 

- Vamos mostrar-lhes todos os outros trechos que fizemos - disse Sonny, sentando-se à consola.

 

Sonny rebobinou a fita e a sua música tocou de novo. Accionou comandos deslizantes no quadro e fez ajustamentos no som.

 

- Este é o som de fundo que gravámos a semana passada - esclareceu Sonny enquanto a canção soava. Tocou nuns interruptores e as vozes fundiram-se. Ben conseguia ouvir a voz de Sonny em fundo na canção.

 

- E deixem-me acrescentar o teclado que incluí há algumas noites - prosseguiu, olhando para Julia. - Lamento, querida, mas a inspiração surgiu depois da tua hora de deitar.

 

Julia mal o ouviu pois estava a escutar a música extasiadamente. Deslocou-se junto do quadro para se situar entre os altifalantes, onde o som estava mesmo bem.

 

- A batatinha frita até sabe onde se deve sentar.

 

Todos se riram juntamente com Sonny.

 

- O que é? - perguntou Julia, girando e suspeitando que estavam a troçar dela.

 

- Ainda bem que não és membro de uma banda. Não sei se teria dinheiro para te estar agora aqui a ouvir.

 

- Podemos gravar uma fita para a mãe?

 

- Quando for altura. Não se tira um bolo do forno antes de estar cozido - explicou Sonny, mexendo nos mostradores do quadro.

 

Annie e Ben deslocaram-se para as sombras frescas da parte de trás do estúdio enquanto a canção tocava. Dificilmente podiam ter ficado mais juntos. E, no escuro, as suas mãos encontraram-se.

 

Quando a canção acabou, Annie levou Julia ao andar de cima para lhe dar uma dose do antibiótico que o cirurgião receitara. Ben ouviu Julia indagar sobre a nódoa negra da face de Annie e esta responder que não tinha importância. Sonny estava sentado à consola enquanto as fitas rebobinavam. Agora que estavam sós, Ben não tinha a certeza se Sonny o ignoraria ou se tentaria partir-lhe o nariz.

 

- Não devia estar na prisão? - perguntou Sonny.

 

- Talvez - respondeu Ben, saindo das sombras da parte de trás da sala. - E talvez se devesse juntar a mim. Que sentenças aplicam agora por destruição de propriedade?

 

- Propriedade de quem?

 

- O meu carro.

 

- Ia para a sucata, de qualquer forma - retorquiu Sonny.

 

- Sim, mas era o meu carro.

 

- E ela era tudo para mim - ripostou Sonny, girando para enfrentar Ben.

 

- Lamento - disse Ben. A sua simpatia era genuína. Sabia um pouco o que era perder Annie Turnstone.

 

- Bem pode lamentar - retrucou Sonny, de forma precipitada. - Não se aterra no meio da vida perfeitamente organizada de uma pessoa e se estraga tudo.

 

- Apenas queria ajudar.

 

- É bom que faça alguma coisa por ela - aconselhou Sonny. Recuou para o gravador de duas bobinas. Com ambas as mãos, retirou a bobina da máquina e atirou-a para uma caixa.

 

- Sabe, não sou o único na cidade com uma mancha na vida - insinuou Ben. Tinha de tentar chegar a uma trégua, pelo menos por Annie.

 

- Que quer dizer?

 

- Sabia do negócio que Leo mantém na garagem?

 

- O quê? Negoceia em mudanças de óleo ilegais? - escarneceu Sonny.

 

- Tem um negócio de gravações de vídeo. Vídeos para adultos.

 

- Raios, Leo Pepitone e pornografia? Está doido.

 

- Não. Eu próprio vi o sítio - afirmou Ben.

 

- Isso é suficientemente louco para eu acreditar em si. Mas Annie não pode mandar a batatinha frita para lá se isso for verdade.

 

- É claro que não - concordou Ben.

 

- Então onde quer chegar? - perguntou Sonny, espetando o queixo desafiadoramente.

 

- Talvez todos tenhamos um pouco de nós próprios que queremos esconder. Então e a forma como se refugiou aqui na floresta, isolando-se do mundo?

 

O génio de Sonny flamejou.

 

- Não vou passar a minha vida a autografar capas de discos e a tocar em concertos nostálgicos. Tenho direito à minha própria vida, quer faça a música que as pessoas querem ouvir quer não disse, accionando alguns interruptores que desligaram a energia da consola do estúdio.

 

- Acho que todos temos de fazer cedências.

 

- Cuidado, senão ainda fica com mais do que o seu carro esmagado.

 

Ben recuou.

 

- Estou apenas a dizer que sabe como é fácil as pessoas serem arrastadas pelo momento e pensarem que são algo que não são.

 

Sonny olhou-o longa e fixamente. Abanou a cabeça, levantou-se e começou a subir a escada. Levantou as mãos e virou-se para enfrentar Ben.

 

- Sabe, não me interessa se é um maldito canalizador, tudo o que importa agora é que a ajude. Percebe?

 

- Percebo.

 

Foram para o andar de cima, onde Annie e Julia estavam sentadas ao balcão do pequeno-almoço no canto da enorme cozinha de Sonny. Julia levava, com alguma dificuldade, a sopa à boca com a mão esquerda. Sonny remexeu no frigorífico à procura de uma salada. Ben ficou para trás e observou-os desde a ombreira da porta.

 

- Julia vai ter de aprender a fazer as coisas com a mão esquerda durante algum tempo.

 

- Isso tem algumas vantagens - observou Sonny.

 

- Quais vantagens?

 

- Podermos chamar-te Canhota.

 

Julia sorriu abertamente para Sonny.

 

Annie viu Ben de pé na ombreira da porta e fez-lhe sinal para entrar. Levantou-se e dirigiu-se ao fogão.

 

- Queres sopa, Ben?

 

- Eu vou buscá-la. Senta-te.

 

Encontrou uma tigela e encheu-a de sopa de caril.

 

Ben levou a tigela até ao balcão e sentou-se num banco perto de Julia. Havia um cesto com pão caseiro em cima da mesa e Ben pegou numa fatia grossa.

 

- É mesmo bom se o molhar - afirmou Julia.

 

- Assim? - perguntou Ben, molhando um canto do pão.

 

- Assim mesmo - respondeu Julia, sorrindo-lhe com todos os dentes. - Estou contente por ter voltado, Ben.

 

Ben olhou para Annie e sorriu.

 

- Eu também, Canhota.

 

Sempre tinha parecido a Ben que a medicina tentava elevar-nos acima da realidade da nossa própria carne, pedindo que nos entregássemos ao seu cuidado e prometendo que os médicos nos podem ajudar se ficarmos quietos e tomarmos o que nos dão. Por vezes, isso é suficiente, mas, muito frequentemente, não o é. Ben tinha a sensação de que apenas agora começávamos a sair da idade das trevas da medicina. Talvez tivéssemos realmente aprendido alguma coisa ao longo da viagem, desde cauterizar feridas com azeite a ferver na época medieval até às últimas novidades da cirurgia vascular. O ciclo avança certamente, mas com o passado, o presente e o futuro todos juntos. Ben lera recentemente que o último e mais bem-sucedido tratamento para hematomas graves consistia na aplicação de uma sanguessuga à ferida: algo antigo tornado novo.

 

Através da História, desde os filósofos-físicos gregos até aos toscos cirurgiões dos campos de batalha da Guerra Civil, cujo método de tratamento quase único era a amputação, curar era um mistério. O que faz com que pós e elixires funcionem num doente e noutro não? Talvez fosse por isso que os antibióticos pareceram ser um milagre, já que funcionavam, previsivelmente, em todos. É claro que, agora que a maioria das espécies bacterianas tinha evoluído no sentido de desenvolver resistências, os antibióticos já não funcionavam tão bem e o progresso voltou para trás, tornando novos os problemas antigos.

 

Ben conseguia ver uma coisa claramente. Via como o corpo era a soma das suas reacções ao mundo exterior. Os micróbios que se infiltravam na pele supuravam no interior. Ou uma bactéria ingerida pela boca fazia o seu trabalho corrompendo o tracto gastrintestinal. Ou células aberrantes cruzavam as membranas do cérebro para atacar as preciosas células nervosas. As células do sistema imunitário estavam sempre em guerra contra vírus e bactérias.

 

Era a química natural que tornava a vida possível, com as hormonas e os neurotransmissores abrindo caminhos nervosos como engenheiros mudando de via num estaleiro ferroviário. E a forma como os poetas rapsodiavam o coração e o cérebro? Eram apenas pedaços de músculo, gordura e tecido. Ben vira por si próprio. Tivera-os nas mãos na aula de Anatomia e seccionara-os para melhor analisar a sua estrutura interna. A beleza e a reverência pela carne que Ben sentira não se baseavam no fetichismo romântico dos poetas. A metamorfose de simples tecido embrionário em estruturas diferenciadas amadurecidas era miraculosa e poética por si só.

 

Sentia respeito pela lógica e pelo fluxo das ligações: a maravilha da engenharia de juntas que se movimentavam em tantas direcções diferentes; a eficiência do transporte de oxigénio para as células; até mesmo a estrutura interna dos ossos, tornando-os fortes e resistentes como uma peça de aço flexível.

 

Mas que deveríamos pensar do corpo quando não funcionava? Quando a cartilagem lisa e suave das juntas se parte e o osso raspa dolorosamente noutro osso? Ou quando uma infecção bacteriana enche os pulmões de fluido? Ou quando as células crescem loucamente sem controlo? A verdadeira cura ultrapassa os medicamentos patenteados e geneticamente fabricados. A tarefa daquele que cura, quer seja um xamã da selva pintado e com penas quer um mestre de Harvard, é devolver equilíbrio ao corpo, a homeostase.

 

Então que pensa um médico da doença do amor? Aquela sensação de delírio, a dificuldade de concentração, o bater do coração apressado e o estômago agitado. Aí estava o reino do poeta. Ben recordou que Shakespeare escrevera o soneto começado pelas palavras «O meu amor é uma febre, ansiando pela cura».

 

Eram estes os pensamentos de Ben enquanto passeava com Annie por Boston. Os narcisos amarelos estavam em flor ao longo das ruas estreitas de Beacon Hill. Segurava-lhe a mão enquanto caminhavam, mas não estava suficientemente próximo, pelo que ela enfiou o braço no dele de uma forma que os fazia parecer aninhados. Estava a adiar o inevitável.

 

Desceram uma rua pavimentada de pedra até uma avenida ladeada de árvores. O ar estava fresco sob as árvores, cujas folhas acenavam como bandeiras com a brisa.

 

Uma encantadora casa de pedra castanha estava à venda naquela rua. Tinha um portão de ferro baixo no pátio da frente e uma cerejeira com ramos pendentes que roçavam o chão preguiçosamente. Pararam ao verem a casa. Era um local que poderiam partilhar juntos. Mas Ben não ousou falar nisso a Annie. Não queria dar azar à possibilidade de ainda poderem ter um futuro a partilhar. Ben puxou Annie para si e beijou-a.

 

- Vem, vamos chegar atrasados.

 

Annie estava numa cadeira reclinável alta numa pequena sala de tratamentos particular, demasiado fresca, do Massachusetts General Hospital onde zumbia a electrónica dos monitores. Vestia uma bata de hospital atada atrás do pescoço. Tinha um cobertor à sua volta, preso por baixo dos braços. Uma agulha estava ligada a uma veia do seu braço esquerdo com um tubo de plástico ligado a um gotejador. Ben examinou as ligações, verificou as leituras dos monitores do computador, leu os números do monitor de oxigénio e confirmou o ajustamento do ritmo do gotejar no braço. Tomou-lhe o pulso no braço que estava livre. A seguir verificou a tensão arterial. Todas as leituras eram normais.

 

Ficou junto dela, segurando-lhe a mão. Ela suspirou, com os olhos fechados contra o brilho das lâmpadas fluorescentes no tecto.

 

- Ainda não te vou agradecer - murmurou Annie, suavemente. - Quero esperar para ver como me sinto. Mas achei que te devia dizer que o apreço estava na minha mente.

 

- Como te sentes?

 

- Não muito mal, bem vistas as coisas - suspirou. - Nada de efeitos secundários desta vez, foi o que prometeste.

 

- Este método está a anos-luz de qualquer outro - disse Ben, olhando para o líquido claro no gotejador intravenoso.

 

- Espero que sim.

 

- Queres que recite a pesquisa de memória? - riu Ben.

 

Annie sorriu e abanou a cabeça.

 

- Ainda há uma grande parte de mim que quer permanecer completamente alheada desta experiência.

 

Ben colocou um estetoscópio e ouviu o bater do coração de Annie.

 

- Está aos pulos?

 

- Está a andar muito bem - respondeu Ben. Sabia que ela estava assustada, mas fazia o que precisava de fazer, de qualquer forma. Tinha orgulho nela.

 

Uma enfermeira abriu a porta de repente e pediu desculpa pela interrupção. Era uma mulher forte como um tanque, com o cabelo escuro encaracolado.

 

- Desculpem. Procuro o Doutor Lionel.

 

- Foi responder a uma mensagem - informou Ben. - Já volta.

 

- Obrigada, doutor - disse a enfermeira dirigindo-se a Ben. Abanou a cabeça para cima e para baixo e fechou a porta atrás de si.

 

Ben tentou corrigi-la, mas era demasiado tarde.

 

- Tu tentaste - notou Annie. - Pela forma como as pessoas te vêem, Ben, era capaz de jurar que, provavelmente, se interrompesses uma cirurgia de peito aberto, deixar-te-iam prosseguir.

 

- Ela apenas se enganou - disse Ben, retirando o estetoscópio do pescoço e voltando a colocá-lo na mesa lateral cheia de instrumentos.

 

- Sai já daqui - ordenou ela, rindo-se. - Vai ser médico.

 

- Só se fores minha paciente.

 

- Chega de doenças.

 

Annie ergueu os olhos ao céu e sorriu-lhe.

 

- Num momento, estou a ter os meus campos de energia afinados pelo curandeiro de Sonny. No momento seguinte, estou aqui. E vê só o que me obrigaste a fazer. Todos estes fios e tubos. Parece que vou morrer a tentar melhorar.

 

- Nunca - garantiu Ben. Mas havia dúvida. Havia incerteza. Sabia que a podia perder. Era esse o risco que correra quando regressara. Talvez não tivessem um «para sempre». Tudo o que podiam partilhar era o «agora».

 

O Dr. Lionel abriu a porta. Era um homem esguio e curvado de cabelo grisalho que traía a aproximação da meia-idade. Ben afastou-se de Annie. O Dr. Lionel aproximou-se para verificar os seus sinais vitais. Era calmo e paciente, qualidades que contribuíam, sem dúvida, para o seu sucesso como médico investigador. Estava na linha da frente no desvendar dos segredos de todo um novo tipo de agentes quimioterapêuticos e de novos medicamentos que impediam o crescimento das células cancerosas bloqueando a sua capacidade de formar novos vasos sanguíneos. Annie estava a receber o melhor.

 

- Vês? É o melhor que há - disse Ben. Annie estava em boas mãos. Demoraria algum tempo, no entanto, até saberem se isso era suficiente.

 

O Dr. Lionel encolheu os ombros com modéstia.

 

- É tudo uma questão de restabelecer o equilíbrio. A alquimia molecular transforma as células más em boas.

 

- Equilíbrio. Gosto disso - interveio Annie, olhando para Ben.

 

O médico ajustou o ritmo do fluxo intravenoso e injectou no tubo um medicamento que retirou de um frasco. O medicamento cor de açafrão diluiu-se no líquido claro do gotejador. Ben observou a forma como rodopiava e viajava pelo tubo de plástico claro até ao braço de Annie. Esta era a substância sobre a qual lera e que dera muito bons resultados durante um ano de experiências em seres humanos. Se a luz do Sol pudesse fluir para o corpo de uma pessoa, parecia que as veias de Annie estavam a receber a verdadeira essência da vida.

 

Ben queria que ela vivesse, embora o facto de querer não fosse suficiente. Sabia isso e esse conhecimento alojou-se tão fortemente na sua garganta que mal conseguia engolir. Os seus olhos ardiam.

 

Annie apertou-lhe a mão, trazendo-o de novo para ela, para este momento. Sorriu-lhe. Ben sorriu-lhe também.

 

Agora Annie estava aqui. Estava com ele neste momento. E Ben sabia qual era o seu lugar - o seu lar era com ela. Ben apercebera-se de que estar em casa não tinha a ver com o passado. Nem sequer tinha muito a ver com o futuro. Ben mal conseguia imaginar que houvera um tempo em que não estivera com Annie ou em que poderiam deixar de estar juntos. Estavam entrelaçados agora como os fios de uma corda. E foi então que Ben percebeu que os médicos podiam aprender algo com os poetas: era o amor que suavizava a dor da vida. Era a única coisa que tornava a vida suportável. E esse bálsamo era o melhor medicamento que Ben jamais conhecera. 

 

                                                                                Andrew Mark 

 

 

                                         

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