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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESPOSA DO GUERREIRO / Margaret Moore
A ESPOSA DO GUERREIRO / Margaret Moore

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Lady Alice Dugall preocupava-se mais com questões marciais do que maritais. Mesmo assim, era a mulher que sir George de Gramercie desejava. Ele tinha certeza de que debaixo daquela aparência inabalável havia uma mulher ardente a ser despertada...

   Ela lamentava o destino que a unia a sir George de Gramercie, um cavaleiro que parecia mais interessado nos luxos da vida do que na mecânica da guerra. Mas, quando ele a olhou de modo ardente, ela não pensou em mais nada a não ser em se render...

 

 

 

 

   Inglaterra, 1227

   Com um sinal de alto para a coluna que encabeçava, sir George de Gramercie estacou seu cavalo na estrada lamacenta e olhou curioso para a beirada. Já ouvira palavrões antes, mas nada como aquela criativa sequência vinda do outro lado da sebe. Aparentemente, alguém fora atirado da sela e abandonado por sua montaria.

   Contudo, não foram os palavrões, tampouco o desejo de ser útil, que fizeram surgir em seu belo rosto um sorriso irônico, mas o fato de a voz rouca, zangada e intrigante pertencer a uma moça!

   Sem desmontar, o capataz, sir Richard Jolliet, apro¬ximou-se com expressão igualmente curiosa.

   - O que será isso, senhor?

   George não teve tempo de responder, pois foi como que capturado por um por um belo par de olhos castanhos. Através de uma falha na sebe, a moça acidentada o apre¬ciava com uma expressão inescrutável.

   Já não era nenhuma adolescente, concluiu George. Inú¬meros fios de cabelo encaracolado também castanho esca¬pavam de uma grossa trança, enfeitando um rosto leve¬mente sardento. Ela vestia uma espécie de túnica de tecido grosseiro, mas cujo corpete delineava um busto perfeito.

   George aproximou o cavalo da abertura na sebe.

   - Uma boca tão bela não comporta palavrões - ad¬moestou, bem-humorado.

   A moça reagiu à crítica com uma expressão brava. George tentou consertar rápido:

   - Será que encontrei uma donzela em apuros? Nenhuma resposta, só a mesma mudez impertinente. George prosseguia em seu tom despreocupado:

   - Ou será que é uma ladra de cavalos? A moça expressou escárnio.

   - Ah, já entendi! - exclamou George. - Você veio aqui para um encontro secreto!

   Com os olhos castanhos cheios de ira, a moça protestou indignada:

   - Como se atreve a dizer tal coisa, seu... O capataz se adiantou ao senhor.

   - Dobre a língua, mocinha! - advertiu. - Sabe com quem está...

   - Richard, por favor - interrompeu George. - Não precisa assustar os aldeões.

   - Não, não precisa - reforçou a moça, ensaiando um sorriso traquinas.

   O capataz se afastou, não sem antes olhar contrariado para a jovem.

   - Diga-me - retomou George, em seu tom mais charmoso -, falta muito para chegarmos ao castelo de sir Thomas Dugall?

   - Pouco mais de um quilômetro - informou, gracio¬samente, a aldeã.

   - Você trabalha lá?

   - Sim, meu senhor.

   - E foi seu cavalo que a abandonou, não um namorado?

   - Sim, meu senhor. Ele fugiu, mas eu o pego num instante. Bom dia, meu senhor.

   Com isso, a aldeã o dispensava. Mas George não era homem de ser dispensado. Por ninguém.

   - Podemos ajudar?

   A moça respondeu com a risada mais sonora que Geor¬ge já ouvira de uma mulher.

   - Devo entender que não precisa - concluiu ele.

   - Isso mesmo, meu senhor. Ele vai direto para casa. George bem que gostaria de continuar conversando com aquela jovem incomum, mas a tropa já demonstrava impaciência. De qualquer modo, iria revê-la no castelo Dugall.

   - Bem, já que não está em dificuldade, desejo-lhe um bom dia - despediu-se, por fim, inclinando-se polida¬mente, satisfeito em ver a aldeã ensaiar uma mesura antes de sumir para além da sebe.

   O capataz se aproximou de novo.

   - Mas que camponesa atrevida, sir George! - res¬mungou. - Ela deveria saber que estava falando com um nobre. - Indicou a flâmula que tremulava à brisa levada por um soldado. - E afirma trabalhar no castelo Dugall! Seria mais fácil acreditar que passa o tempo pas-torando carneiros. Sozinha.

   Sir George de Gramercie sorriu para o empregado an¬tes de ordenar à coluna a retomada da jornada.

   - Ora, Richard. É uma moça impertinente, mas le¬vemos em conta as necessidades do castelo.

   - Levemos...

   Sabia-se que faltava um toque feminino no castelo de sir Thomas Dugall. Sua esposa falecera havia muitos anos, após dar à luz a única filha do casal. Desde então, o lar se compunha quase que totalmente de homens, tanto os da família, sir Thomas e seus seis filhos, quanto os da criadagem.

   - Mas bonitinha, apesar de tudo - reconheceu o capataz.

   - Creio que sim, sem aquela camada de lama - con¬cordou George.

   A verdade era que apreciara aquele encontro inesperado. Não estava acostumado a falar com gente tão rude e a experiência valera.

   - Graças a Deus que não temos criadas assim em Ravensloft.

   George olhou perspicaz para o capataz.

   - Cuidado no trato com essa moça no castelo Dugall - aconselhou. - Embora represente bem, ela não é uma aldeã. Aquela era Alice, a filha de sir Thomas.

   O empregado deixou cair o queixo.

   - Aquela... aquela... ela, a filha de sir Thomas?

   - Tenho certeza absoluta - reiterou George. - Ela cresceu desde a última vez que a vi, mas reconheci seus olhos quase que de imediato.

   Sim, como esquecer aqueles faiscantes olhos casta¬nhos? Fazia muito tempo, mas jamais esqueceria os olhos de Alice Dugall.

   - Aquela é a mulher com quem seu pai queria que o senhor se casasse?

   - É.

   - Aquela criatura... mesmo sabendo que sir Dugall não abre mão nem de um pedacinho de terra? O que faria um homem aceitá-la?

   - Talvez um gosto por desafios - sugeriu George.

   - Acho que é isso mesmo que ela é...

   - Não é como se Alice Dugall fosse uma completa estranha - explicou George. - Nós nos conhecemos na infância.

   - Mas esteve raras vezes no castelo Dugall, meu senhor - observou Richard. - E eles nunca estiveram em Ravensloft... - Confuso, questionou: - Por que ela se faria passar por aldeã?

   - Só para fazer troça, suponho. - George deu de ombros. - Será que ela também me reconheceu?

   - Deve ter reconhecido, pelas flâmulas.

   - Ah, é mesmo - murmurou George. E o que teria achado dele?

   - Mas, meu senhor... se me perdoa a intromissão... por que se casaria com ela? Pode escolher qualquer uma dentre várias damas de boas famílias abastadas.

   - Meu pai via com bons olhos uma aliança com sir Thomas e seus filhos, considerando a rebeldia destes. Se não formos aliados, quem sabe o que podem fazer, uma vez livres da autoridade do pai?

   De fato, os irmãos de Alice mais pareciam um bando de palermas briguentos prontos para quebrar os ossos uns dos outros.

   Sir Richard se mexeu desconfortável na sela.

   - Certamente não o atacariam!

   - Duvido... Não obstante, já que nenhuma donzela me chamou a atenção até agora, por que não fazer uma visita a sir Thomas? Mal não há...

   - Nem bem - replicou o empregado. Notando a contrariedade de George, adotou um tom mais respeitoso. - Desculpe-me por perguntar, meu senhor, mas... con¬siderando que seu pai já é falecido, por que... - Hesi¬tante, não completou.

   - Agora que meu pai está morto, por que realizar seus desejos, após rejeitar o casamento e ignorar a sugestão dele durante quase quinze anos? - completou George.

   - Bem, sim, meu senhor.

   - Talvez para realizar o desejo que manifestou ao morrer - ponderou George, já pondo fim ao sentimen¬talismo. - Mas não há nada confirmado, nem assinado. Trata-se de uma visita de boa-vizinhança, apenas.

   - Se não fosse seu empregado, mas um amigo, eu o aconselharia a tomar cuidado com essa proposta de ca¬samento - finalizou Richard.

- Você é meu amigo, tanto quanto empregado - de¬clarou George. - Pode deixar, que tomarei o máximo cuidado.

   - Folgo em saber.

   - A neblina está enfraquecendo - observou George, respirando fundo o ar fresco na manhã primaveril. - Logo chegaremos à bifurcação com a estrada que leva a Londres. Acha que consegue resolver a questão dos impostos?

   - Creio que sim, meu senhor.

   - Ótimo. Caso contrário, serei obrigado a assumir a administração da minha propriedade, o que vai me matar de tédio.

   A medida que avançavam pelo caminho em silêncio, George pensou no recente encontro com a mulher que seu pai escolhera para sua esposa. Sabia pouco sobre Alice, mas devia ter esperado o inesperado. Ela nunca se assemelhara às outras meninas.

   Jamais esqueceria o dia em que a perseguira por atirar maçãs nele, quando sua saia se enganchara num galho baixo e ela a rasgara para se livrar, expondo as belas e esguias pernas.

   Seriara ainda belas e esguias? E será ela que ainda corria ágil como uma gazela? Nesse caso, já devia estar em casa agora, anunciando a chegada dele.

   George passou a mão pelo cabelo um tanto comprido. Se Alice não se envergonhava de aparecer diante dele vestida como uma camponesa, ele se constrangia em che¬gar como um mascate ao castelo Dugall. Somente por esse motivo, e por nenhum outro, escolhera para aquela visita sua melhor túnica escarlate, com a capa debruada de arminho, bem como selecionara os melhores soldados para sua guarda.

   Chegaram a uma encruzilhada com uma placa mos¬trando o caminho para Londres. George fez sinal de alto para a coluna.

   - Bem, Richard, aqui nos despedimos.

   - Sim, meu senhor.

   - Vá com Deus.

   - Que Deus o acompanhe, meu senhor. - Sir Richard sorriu caloroso. - Já que fez a gentileza de me chamar de amigo, permita-me um conselho de amigo: não tome nenhuma decisão precipitada com relação a casamento.

   George riu.

   - Tenho me saído bem - lembrou. - Acredite-me quando digo que é preciso mais do que o desejo de meu pai para eu tomar tal decisão.

   Sir Richard aquiesceu e, com uma escolta de dez ho¬mens, tomou a estrada rumo a Londres, enquanto sir George de Gramercie seguia para a imponente construção que emergia das brumas.

   Com as botas cobertas de lama, Alice desceu pelo dique e atravessou o charco até a margem oposta. Então, em¬brenhou-se no bosque pela trilha que levava à aldeia junto ao castelo de seu pai. A relva úmida e escorregadia a impedia de se deslocar tão rápido quanto gostaria, mas mesmo assim estaria em casa antes que sir George alcançasse o moinho.

   Apressada, afastava destramente os ramos de carva¬lho, de castanheiro e de faia, detendo-se somente para prender de novo no largo cinto de couro a saia, a qual suspendera tão logo se afastara da sebe à beira da es¬trada, após o inusitado encontro com o homem que seu pai desejava para seu marido.

   Reconhecera George de Gramercie de imediato, com seu cabelo loiro ondulado, sérios olhos azuis e sorriso charmoso, ainda que, de certa forma, ele estivesse bas¬tante diferente do garoto do qual se lembrava. O rosto se tornara mais afilado e anguloso e o corpo, bem mais musculoso; contudo, mesmo sem vê-lo, teria reconhecido sua voz, muito mais masculina agora, mas ainda melo¬diosa e tão polida quanto sempre fora.

   De fato, no que se referia ao comportamento, George não mudara nada. Ele sempre fora educado, inclusive com os aldeões, e andava muito bem vestido, tanto que ela se vira tentada a sujar-lhe as roupas nas poucas vezes em que ele visitara o castelo Dugall com seu pai. Jamais esqueceria a ocasião em que lhe atirara maçãs até que ele a perseguisse pelo pomar.

   Nossa, como ele ficara zangado! Tivera muito medo dele, tanto que preferira rasgar o vestido a enfrentar sua ira se a agarrasse. Mas ele não a alcançou e, quando se viram de novo, agiu como se nada houvesse acontecido.

   Estava certa de que ele não a reconhecera lá na beira da estrada... embora jamais imaginasse o que se passava na cabeça de George de Gramercie. Talvez ele houvesse descoberto seu joguinho e decidido participar, sem que ela soubesse.

   Perto da aldeia, venceu mais um pouco de vegetação rasteira e saiu à estrada principal. Desenganchou a saia do cinto e analisou a lama, contente ao reconhecer umas marcas de ferradura. Seu cavalo Demon passara por ali havia pouco, de volta ao castelo, após atirá-la para fora da sela.

   Aquele fora seu castigo por executar a idéia maluca de ir espionar sir George de Gramercie antes que ele chegasse ao castelo Dugall.

   Em sua marcha rápida, Alice chamava a atenção de alguns aldeões, mas não a ponto de tirá-los de suas tarefas, pois estavam acostumados a vê-la por ali sozinha. Como de hábito, ela contemplou as muralhas e torres do castelo, certificando-se de que os sentinelas estavam a postos. Não sofriam um ataque armado havia muitos anos, mas seu pai insistia em manter as tropas de prontidão.

   Fora também seu pai que ampliara a fortaleza, a partir da construção redonda com capela anexa que herdara. Na grande área cercada por muros e torres circulares, havia agora um pavilhão interno com estábulos, celeiros, depósito de armas, cavalariça e uma grande cozinha. Aposentos para hóspedes constituíam a benfeitoria mais recente.

   Os guardas na portaria a saudaram, ao mesmo tempo que lhe davam passagem.

   - Viram meu...?

   - Sim, lady Alice - respondeu um dos homens, adian¬tando-se. - Ele já está no estábulo.

   - Ótimo! - festejou ela, sabendo que já tratavam do cavalo.

   Estava livre para procurar Rufus!

   Percorreu a área das torres até chegar ao amplo e plano gramado em que os homens costumavam treinar. Logo avistou a cabeça ruiva de sir Rufus Hamerton em meio aos demais e chamou seu nome.

   Sorrindo largamente, Rufus destacou-se dos compa¬nheiros, que mal acusaram a presença da filha do senhor do castelo, e a passos largos atravessou a grama úmida ao encontro de Alice. Tinha as faces tão avermelhadas quanto o cabelo, devido ao esforço físico, e trajava só calça e botas, a túnica de couro pendurada num dos om¬bros musculosos. O suor escorria por seu peito maciço e, à medida que se aproximava, o odor que desprendia con¬firmava que estivera mesmo dando duro.

   - Deus do céu, estou pregado! - anunciou com sua voz sonora, coçando-se descontraído. - E apertado! Se não chegar logo ao vestiário, vou explodir! - Seguiu para o depósito de armas. - Mas por que a aflição, Alice? - indagou, por fim. - Estamos sendo atacados?

   - Não - retorquiu ela. - Não exatamente. O cavaleiro olhou-a curioso e ela esclareceu:

   - Teremos visitas daqui a pouco.

   - Ah, é? - Rufus estacou e vestiu a túnica, sorrindo para Alice. - Quem?

   - Sir George de Gramercie.

   O nome não disse nada a Rufus, que deu de ombros e retomou a caminhada.

   - O filho de nosso vizinho, aquele que passou os úl¬timos dez anos passeando pelo país feito um trovador andante - lembrou ela, esforçando-se para acompanhar o amigo. - Agora que o pai morreu, ele voltou para casa.

   Rufus respondeu com um grunhido desdenhoso.

   Aproximaram-se do depósito de armas, uma grande estrutura de madeira com as paredes de taipa, mas Rufus não aguentaria chegar ao vestiário. Entrando no pequeno beco entre o estábulo e o depósito, suspirou satisfeito enquanto se aliviava.

   - Graças a Deus, agora, sim! - festejou, tomando novamente o rumo do depósito. - Mas por que o estar¬dalhaço? - quis saber, obviamente desinteressado. - Sempre temos visitas.

   Alice estava incrédula.

   - É o homem com quem meu pai quer que eu me case! - desabafou.

   Rufus riu alto ao mesmo tempo que empurrava a pe¬sada porta de madeira do depósito.

   - Aquele que, segundo você, gasta mais em roupas do que em armas?

   - É - confirmou ela, segurando a porta antes que se fechasse em sua cara, seguindo o amigo.

   No salão frio, a mobília consistia tão-somente em catres de palha com cobertores grosseiros, uma mesa com uma bacia e jarro e baús de madeira: uma para cada cavaleiro, escudeiro ou pajem. Em ganchos nas paredes pendura¬vam-se todo tipo de roupas, armaduras e armas. Num canto jazia um urinol quebrado.

   Havia vários homens lá, descansando após ou antes de seus turnos, que saudaram Alice.

   - Parece que vamos ter um almofadinha por aqui, pessoal! - anunciou Rufus. - Tirem do baú os colchões de penas e os lençóis limpos!

   Alice só podia sorrir ante a gozação do amigo. Tão logo visse George, ele perceberia que ela jamais poderia se casar com um homem como ele. Além de fútil, era magro demais, sem atributos de cavaleiro. Com certeza, não aguentava uma luta. E, apesar da família rica, devia ser preguiçoso e negligente em seus deveres como senhor de uma propriedade.

   De qualquer forma, não discutiria seu futuro diante de uma platéia. Olhou autoritária para os homens.

   - Não está quase na hora da troca de guarda? - ques¬tionou. - E não deveriam estar limpando suas armas? Se meu pai vir uma manchinha de ferrugem que seja...

   Todos entenderam rápido, pegaram seus apetrechos e foram saindo, despedindo-se com mesuras.

   - Estou pensando em mandar remendar minha espada velha em vez de comprar uma nova - comentou Rufus, pendurando o cinto da espada num gancho.

   - O quê? - Alice pôs as mãos na cintura. - Que absurdo! Essa espada já foi remendada demais, pode se partir a qualquer momento!

   - Sai caro mandar fazer uma espada nova - choramingou o cavaleiro. - Além disso, o cabo da velha se encaixa perfeitamente na minha mão.

   Alice cansou-se daquela conversa sobre espadas velhas e novas.

   - E o sir George? - murmurou. - E se meu pai insistir em que eu me case com ele?

   Rufus atirou-se no primeiro catre de palha que viu e olhou-a zombeteiro.

   - Esse é o tal que vem negligenciando seus deveres há anos?

   - É!

   - Mas por que seu pai quer que você se case com um janota desses?

   - Porque nossas terras são vizinhas.

   - Bem... - Apoiando a nuca nas mãos entrelaçadas, o cavaleiro fitou as vigas no teto. - Você seria a senhora de uma grande propriedade. Podia ser pior...

   Alice conteve o impulso de chutá-lo. Será que não percebia que era ele o homem perfeito, o guerreiro perfeito? E seria o marido perfeito também.

   Quão cego um homem podia ser?

   - Eu o vi, na estrada - completou ela, acomodando-se de pernas cruzadas num catre próximo. - Tenho certeza de que continua tão fútil quanto antes. Devia ver sua túnica. Era bordada. Acho que ele chora se cair um respingo nela.

   Rufus riu solidário.

   - Mal posso esperar para conhecê-lo.

   Alice também mal podia esperar que os dois se conhecessem.

   Só então Rufus entenderia que ela jamais poderia des¬posar um homem como sir George de Gramercie.

  

   Pelo que George podia ver, nada mudara no castelo Dugall durante os anos que passara longe. As muralhas de pedra cinzenta continuavam sólidas e imponentes e os soldados nos portões mantinham-se nu¬merosos e atentos, como se uma horda de inimigos pudesse, de repente, esgueirar-se do fosso e atacar.

   No pavilhão interno, não havia um animal, fardo de feno, barril ou bastão fora do lugar. Vários homens trei¬navam com espada ou praticavam o uso da maça e cor¬rente. Até os criados executavam suas tarefas de um jeito militar, e nenhum deles era mulher.

   Longe de fazer George sentir-se seguro, era como se o castelo estivesse sitiado, com todas as mulheres eva¬cuadas em segurança. De fato, tudo ali transmitia uma curiosa sensação de tensão e destruição iminente, que não o agradava.

   A aldeia ao pé das muralhas também tinha esse ar de expectativa reprimida, um tanto desnecessária, con¬siderando o pacifismo geral na região e a amizade dos vizinhos de sir Thomas.

   Ao desmontar e passar as rédeas a um pajem que correra para recebê-los, George considerou que poderia sentir-se insultado, ou mesmo ameaçado, por aquele es¬tado de alerta no castelo, mas então lembrou-se da ba¬gunça nas moradas de certos nobres. Ali, tudo estava organizado e arrumado, diferentemente de outras forta¬lezas em que viviam só homens, sem mulheres encarre¬gadas dos confortos domésticos.

   Então, o próprio sir Thomas saiu marchando do pavi-ihão. Tinha o rosto marcado por várias cicatrizes obtidas em batalhas e torneios, mas a postura continuava ereta, e o olhar, tão arguto quanto o de um falcão. Como de hábito, trajava sobre a armadura um sobretudo idêntico ao que usara anos antes durante uma Cruzada.

   Sir Thomas sempre o fizera sentir-se um garotinho malcriado e, aparentemente, quinze anos não tinham sido suficientes para eliminar essa impressão.

   Estacando, sir Thomas tomou o visitante pelos ombros para dar-lhe o beijo de boas-vindas, a armadura tilin¬tando levemente.

   - Bem-vindo, sir George! - declarou, dando uma olhada nos soldados que o acompanhavam. - Que bom revê-lo!

   - Ao senhor também, sir Thomas - retrucou George.

   - Vamos entrar e tomar um vinho. Já é tarde. Devem ter vindo devagar, ou então pegaram a estrada do norte... - especulou o anfitrião, em tom que o repreendia por uma eventual morosidade injustificada.

   George imaginou então se Alice ainda não retornara ao castelo, ou se ela simplesmente não comentara o encontro deles na estrada sul. Bem, considerando sua conduta im¬pertinente, como saber o que se passava em sua cabeça?

   Adentraram o salão imenso e muito frio, cuja lareira permanecia apagada. Não havia tapeçarias nas paredes, nem nada que sugerisse algum tipo de decoração. Ne¬nhum toque feminino na mobília velha, gasta e sem trato, nenhum soldado ou cavaleiro refazendo seu bem-estar.

   Sir Thomas sentou-se na maior cadeira sobre a pla¬taforma de carvalho ricamente entalhada e convidou George a acomodar-se a seu lado. O assento era tão duro, frio e desconfortável quanto parecia, e os detalhes no espaldar eram como pontas de punhal enterrando-se em suas costas.

   - Como vai lady Alice? - perguntou George, polido, decidido a não comentar que se haviam encontrado na es¬trada se ela não o fizesse. - Eu esperava vê-la ao chegar.

   Sir Thomas deu um grunhido indiferente.

   - Continua tão forte quanto aquele cavalo dela. Foi galopar. Logo estarão de volta.

   Mesmo sabendo da ausência de sentimentalismo de sir Thomas, George espantou-se com sua despreocupação quanto à única filha, que, pelo jeito, costumava cavalgar sozinha.

   - Tenho certeza de que é uma excelente amazona - comentou.

   - A melhor que já vi. Eu mesmo a ensinei a montar - gabou-se sir Thomas. - Ela é melhor do que os irmãos, e eles são excelentes.

   Um pajem de expressão temerosa surgiu à porta que devia levar à cozinha.

   - Vinho! - ordenou sir Thomas, e o garoto saiu correndo.

   - Imagino que ela aprecie cavalos ariscos... - conti¬nuou especulando George.

   - Ariscos? O cavalo dela é um demônio! Já a preveni de que irá quebrar o pescoço qualquer dia desses, mas ela não escuta. Tem um gênio péssimo...

   - Mas ela cavalga escoltada, não? Sir Thomas arregalou os olhos.

   - Escoltada?! - Riu alto. - Ela faria qualquer escolta comer poeira! Cavalga sozinha, sempre cavalgou. Nas minhas terras, está em segurança.

   - Sem dúvida...

   Nem sempre bandoleiros respeitavam os limites da propriedade de um senhor, e ver uma moça sozinha podia ser tentador para tais tipos, mas George não discutiria o assunto com sir Thomas.

   - E o raio do vinho? - vociferou o anfitrião, olhando bravo para a porta da cozinha. Voltou-se para George outra vez.- Ela é como a mãe. Vê esta cicatriz? - Referia-se a uma pequena marca em forma de lua cres¬cente na testa. - Ela me fez isto na primeira vez em que tentei beijá-la. - Cerrou as espessas sobrancelhas grisalhas de forma ameaçadora. - Alice é capaz de fazer bem pior a qualquer homem que tome liberdades.

   - Sem dúvida.

   Sir Thomas recostou-se na cadeira, o que só era pos¬sível porque usava armadura, concluiu George.

   O pajem voltou com uma garrafa de vinho e duas taças de prata, nas quais despejou o líquido, tremendo o tempo todo. Então, postou-se ao lado, atento à tarefa de manter as taças cheias.

   - Lamento quanto a seu pai - manifestou-se sir Tho¬mas, após um gole de vinho.

   George saboreou a bebida de ótima qualidade e retrucou:

   - Sim, era um bom homem.

   - Um bom vizinho. Um tanto negligente, mas confiável. George suprimiu um ar de descontentamento.

   - Sir Richard Jolliet ainda é o capataz? - quis saber o anfitrião.

   - Sim, e seu irmão, Herbert, administra a casa. Ri¬chard está a caminho de Londres para resolver uma ques¬tão de impostos lá da propriedade.

   - Nenhum problema com o fisco, espero - replicou o homem mais velho, desconfiado.

   - De jeito nenhum. Apenas terei de pagar um pouco mais este ano. Estamos nos saindo melhor do que o esperado.

   - Ah, bom saber! Foi um inverno rigoroso, mas quem estava preparado suportou muito bem.

   George concordou, embora duvidasse de que alguém pudesse se preparar melhor do que sir Thomas para tem¬pos difíceis. Seu pai comentava que o vizinho vivia na expectativa de uma repetição dos sete anos de fome ci¬tados na Bíblia.

   - Boa gente, os Jolliet - elogiou sir Thomas, franco.

   - De confiança.

   - Total confiança.

   - Os negócios de seu pai devem estar na mais absoluta ordem.

   - Estão, sir Thomas.

   - Pena que não tenha voltado para casa mais cedo... George tinha na ponta da língua a justificativa lou¬vável para não ter assistido o pai em seu leito de morte:

   - Voltei o mais rápido que pude. Eu estava de serviço com o barão DeGuerre até a Festa da Purificação da Virgem Maria.

   Sir Thomas aquiesceu e tomou outro gole.

   - Mesmo assim, foi lamentável.

   George degustou o vinho, tentando não se perturbar cora o tom impiedoso do anfitrião.

   - Então, você quer se casar com Alice - disparou sir Thomas, de repente.

   George quase engasgou.

   - Eu resolvi me casar - confirmou.

   - Por que Alice?

   Parecia não ocorrer a sir Thomas que houvesse outras damas com quem George poderia se casar.

   - Meu pai achava que era uma boa opção para mim - justificou, honesto.

   - Ela não levará terras quando se casar - declarou o homem mais velho.

   - Não é minha exigência - afirmou George, azedo.

   - Ótimo. Mas ela tem um dote, é claro. Bens móveis.

   - Bom... mas o maior prêmio é a própria Alice! Sir Thomas olhou carrancudo para George.

   - Poupe-a desse tipo de lisonja, rapaz, mesmo porque ela provavelmente riria na sua cara. Ela é um prêmio, principalmente se você estiver sitiado. Dê-lhe um arco e mande-a para as batalhas, e não irá se arrepender.

   George mordeu a língua para não declarar que jamais enviaria uma mulher para uma batalha, muito menos sua esposa.

   - Tenho certeza de que é uma mulher valorosa - limitou-se a dizer.

   - Ah, é mesmo! - Sir Thomas fitou-o argutamente. - Serei franco com você, George, porque sempre gostei de seu pai. Eu espero que ela o aceite, mas, se ela disser não, conversa encerrada.

   - Eu jamais faria uma mulher sentir-se obrigada a se casar comigo - replicou George, mal disfarçando a contrariedade.

   Foi quando Alice entrou no salão. George aliviou-se ao vê-la sã e salva, mas sua apresentação, considerando que havia visitantes, era deplorável. O cabelo estava mais desgrenhado do que lã na beira da estrada, e ele nunca vira uma mistura mais bizarra de roupas femininas e masculinas.

   Em seus olhos castanhos ainda brilhava a travessura, mas ela parecia mais submissa agora, talvez devido à presença do pai, ou à companhia daquele grandalhão rui¬vo que certamente se alimentava só de cerveja e bife malpassado.

   Mas então ela lançou um olhar cúmplice ao acompa¬nhante, seguido de um sorriso discreto.

   Será que ela nutria algum sentimento por aquele tipo grosseirão, que parecia desconhecer a existência do sa¬bonete, quanto mais seu uso?

   Só que o grandalhão a ignorava, concentrado em en¬carar de modo hostil o visitante de sir Thomas. George ficou tentado a sacar a espada e ensinar-lhe boas ma¬neiras na marra.

   - Filha, este é sir George de Gramercie - apresentou sir Thomas. - Sir George, lady Alice.

   - Bem-vindo, sir George - retrucou a jovem, gentilmente.

   De pé, George deu-lhe seu sorriso mais encantador e inexpressivo, do tipo que reservava aos nobres cabeça-oca na corte real.

   Alice estreitou o olhar e endireitou os ombros, desafiadora.

   - Este é Rufus Hamerton... sir Rufus Hamerton - emendou.

   George dedicou ao homem o mesmo sorriso.

   Era imenso o contraste entre o sorrisinho inócuo de George e o escárnio que transbordava de seus olhos azuis, constatou Alice. Só havia uma explicação: ele a reconhe¬cera lá na estrada, mas fizera seu jogo, comportando-se como um gentil-homem. Agora, vingava-se com aquela atitude insípida, arrogante, inclusive para com Rufus, a quem obviamente desprezava.

   - Traga mais duas taças - ordenou sir Thomas ao pajem. - Sente-se, Rufus, Alice, junte-se a nós.

   O silêncio reinou enquanto o menino, nervosamente, despejava vinho nas quatro taças.

   - Lembra-se de sir George, Alice? - indagou sir Thomas.

   - Sim, pai, eu me lembro.

   Ela lançou um olhar demorado ao visitante, observan¬do a elegância com que segurava a taça de vinho, os dedos esguios junto ao suporte. Todos os homens que conhecia agarravam a taça como se fosse uma arma.

   - Passou muito tempo longe - comentou Rufus, sor¬vendo a bebida em grandes e sonoros goles.

   - Sim, estava de serviço com o barão DeGuerre - informou Sir George, de um jeito lânguido. - Quando me chamaram para casa, não imaginava que meu pai estivesse tão mal. Aliás, depois que ele pareceu falecer, apertei meu punhal na ponta de seu dedo para ter certeza de que o padre não se enganara. Mas meu pai estava mesmo completa mente morto...

   Seu tom era tão prosaico que Alice nem soube o que pensar. Rufus apenas o encarou, boquiaberto, ao passo que sir Thomas estava quase perplexo.

   - Estou certo de que concordará, sir Thomas, em que teria sido negligência minha faltar em meu serviço com o barão voltando para casa cedo demais - retomou George, indiferente às reações da platéia. - O senhor não quereria que seus filhos, todos a serviço de vários senho¬res nobres, corressem para sua cabeceira, a menos que estivesse em perigo iminente de morrer...

   Sir Thomas limpou a garganta.

   - Não, não quereria.

   - Foi o que pensei. Agora, se puder fazer a gentileza de mostrar meus aposentos, gostaria de me recolher e trocar de roupa para o jantar, o qual, tenho certeza, estará delicioso. - George deu uma boa olhada em Rufus. - Acho que deveria se banhar.

   - Claro, claro, como quiser - concordou sir Thomas, estalando os dedos para o pajem. - Ei, você, aí! Conduza sir George aos aposentos na torre oeste.

   George já se levantava.

   - Aposentos separados para hóspedes? - comentou. - Que moderno! - Executou uma profunda e graciosa reverência. - Sir Thomas, agradeço a amável recepção. Sir Rufus, bom dia. Lady Alice, foi um prazer. Espero revê-los à ceia.

   Alice observou sir George afastar-se. Tão logo ele de¬sapareceu na curva da escadaria de pedra que levava ao alto da torre, voltou-se para sir Thomas.

   - Como alguém pode falar assim da morte do pró¬prio pai?

   O castelão não respondeu de imediato. Tudo indicava que também imaginava que tipo de homem convidara para visitar seus domínios. Mas logo superou a incredu¬lidade e retomou a costumeira expressão severa.

   - Ele esteve afastado muitos anos - procurou justi¬ficar. - A serviço do barão DeGuerre, conforme informou.

   Alice estava cada vez mais confusa. Pelo que sabia do barão, este não suportaria a presença de um bufão como sir George por muito tempo.

   Rufus deu-lhe um sorriso cúmplice e ponderou:

   - Quem aguentaria ura cretino desses por perto?

   - Trata-se do melhor lutador saído destas terras, com exceção de meus filhos, é claro - explicou sir Thomas. - Não se iluda por sua compleição pequena. Ele é magro, mas resistente... e o melhor corredor que já vi.

   - Francamente, pai, é difícil acreditar que ele seja algo mais do que acabamos de ver.

   - É aí que se engana - replicou o castelão. - George não é nenhum idiota, embora pareça. - Pousou a taça.

   - Rufus, transmita aos homens a senha para esta noite. E aliança.

   O grande cavaleiro ruivo levantou-se, curvou-se para pai e filha e retirou-se do salão.

   Alice também se levantou, mas o pai ordenou-lhe que se sentasse outra vez, inquirindo:

   - O que acha dele para marido?

   - E perfeito... para outra mulher! - esbravejou ela.

   - Quero que se case com ele, - Não era um desejo, nem uma opinião. Era uma ordem. - As terras dele fazem divisa com as nossas, e ele é o grande favorito de DeGuerre. Para completar, é rico, com amigos poderosos, apesar das maneiras.

   Alice cerrou os punhos e encarou o pai desafiadora.

   - Pai, pensei que...

   - Por acaso perguntei o que pensou? - repreendeu o castelão. - Concordo em que o camarada está meio pregui¬çoso, mas algumas semanas aqui o farão recuperar a forma.

   - Sim, pai.

   - Cabe a mim decidir com quem você vai se casar. Lembre-se disso, Alice.

   - Sim, pai.

   - Vai usar seu melhor vestido esta noite, e dispensar a sir George toda a cortesia que alguém de sua posição merece.

   - Sim, pai.

   Em tom mais brando, sir Thomas finalizou:

   - Agora, pode ir.

   Alice não demonstrou o que sentia ao sair do salão, mas assim que pôde foi correndo ao encontro de Rufus, que falava com os guardas. Assim que ele saiu da guarita, agarrou-o pelo braço e puxou-o para um canto escuro.

   - Meu pai ordenou que eu me case com ele! - la¬muriou-se, desesperada. - Como se eu fosse criança!

   O cavaleiro fitou a moça zangada, cônscio de que tra¬tavam de um evento bastante passível de ocorrer. As ordens de sir Thomas sempre eram cumpridas.

   Incluindo o casamento da filha.

   Tinha de acontecer algum dia, evidentemente. Conhe¬cia Alice havia anos e sempre soubera disso, mas na verdade nunca a vira como mulher. Agora que era obri¬gado a vê-la como mulher casadoura, percebia que la¬mentaria muito perder uma amiga assim.

   Alice casada. Com aquele pavão do sir George.

   - Mas o que você acha dele? - indagou Rufus. Seria pior se se tratasse de um homem que ela não podia res¬peitar, quanto mais gostar.

   - Ele se veste muito bem - desdenhou ela.

   - Seu pai disse que ele é um bom lutador.

   - Só acredito quando vir com meus próprios olhos.

   - Ele tem amigos poderosos.

   - Todo bufão tem.

   - Ele é rico.

   - Não será por muito tempo se continuar gastando em roupas.

   - Acha mesmo que seu pai vai obrigá-la a se casar com ele?

   Alice não vacilou ao fitar o cavaleiro nos olhos.

   - A menos que alguém melhor me peça primeiro.

  

   Rufus sentiu-se mal de repente, pois não havia equívoco quanto ao significado das palavras de Alice, ou ao anseio em seus olhos.

   Ela queria que ele a pedisse.

   Mas ele jamais poderia casar-se com ela. De fato, nunca lhe ocorrera tal idéia em todos aqueles anos vivendo no castelo Dugall. E se houvesse ocorrido, teria parecido um despropósito. Era mais fácil considerar casar-se com sir Thomas do que com a filha dele!

   Rufus queria uma mulher feminina, uma criatura mei¬ga e terna que o acalmasse quando estivesse nervoso, em vez de puxar briga. Uma mulher que lhe servisse comida e bebida aguardando esperançosa um elogio, não alguém que devorasse pão, carne e cerveja como um sol¬dado faminto. Que o respeitasse como o chefe da casa, em vez de responder de modo impertinente. E que fosse dócil, amorosa e carinhosa na cama.

   Alice podia ser tal mulher? De jeito nenhum. Muito menos na cama. Seria como... dormir com um irmão mais novo. Mal conseguiu disfarçar o desgosto ante a imagem.

   - Eu... eu tenho umas tarefas a cumprir - tartamu¬deou, dando alguns passos para trás.

   Então, voltou-se e fugiu apressado, deixando Alice so¬zinha na sombra da muralha.

   George apreciou com vagar o aposento no qual passaria a noite. Era tão desguarnecido e desconfortável quanto uma cela de penitência. Nada de colchão de penas, só uma rede de cordas esticada entre as traves da cama. Uns poucos cobertores. Sem braseiro. Sem tapetes. Uma banqueta.

   - Serei martirizado nesse casamento? - murmurou, para si mesmo.

   - Como, meu senhor? - indagou timidamente o pajem a suas costas.

   George esquecera-se de sua presença.

   - Sir Thomas não põe fé no luxo, põe? - Vendo que o garoto não estendia nada, achou melhor dispensá-lo. - Pode ir.

   Sozinho, esfregou as mãos para aquecê-las e desfez a bagagem, satisfeito por ter incluído um colchão de penas, cobertas grossas, um braseiro, carvão e até um tapete. Conhecendo bem sir Thomas, prevenira-se a fim de não amanhecer congelado.

   Foi até a janela estreita e contemplou as colinas e prados além das muralhas da fortaleza. Do outro lado da torre, em dias bem claros, provavelmente conseguiria avistar seu próprio castelo.

   Ravensloft não era tão imponente quanto o castelo Du-gall, e nenhuma construção desse tipo dia ser considerada confortável, mas ao menos seus aposentos eram mais acolhedores do que aquele.

   O que Alice Dugall acharia de sua morada? Acharia bem diferente, mas se iria aprová-la ou não, não tinha idéia.

   Tampouco imaginava como ela reagiria à sugestão de que um bom banho e um vestido limpo melhorariam bas¬tante sua aparência. Ela devia ficar bonita, bem arrumada. De qualquer forma, havia um brilho sedutor em seus olhos e uma franqueza em sua atitude que a tornavam uma das jovens mais fascinantes que conhecera recentemente.

   Aliás, estava ficando excitado só de pensar nela. Nunca imaginara que Alice Dugall pudesse excitá-lo assim... considerando que nem estava presente.

   Talvez ainda estivesse no salão, com sir Rufus Hamerton.

   George ficou sério. Aparentemente, Alice preferia aque¬le grandalhão grosseiro, que ignorara a atenção dela, concentrado que estava nele, mas sem o menor sinal de in¬veja, ciúme ou mesmo preocupação quanto a ela. Trata¬ra-se mais de uma avaliação por parte de Hamerton da sua capacidade de luta como guerreiro.

   Que especulasse o quanto quisesse, pois tinha certeza de que, se um dia se confrontassem num combate ou num torneio, triunfaria. Por experiência, já adivinhara que tipo de lutador era Rufus: só músculos importavam, bem como tamanho e peso. No entanto, ao enfrentar um oponente mais racional, de raciocínio mais rápido e mo¬vimentos mais ágeis, a derrota era certa.

   Pobre Alice, se de fato nutria por Hamerton um sentimento não recíproco. O amor não correspondido constituía um jogo tolo que nunca experimentara. Na verdade, considerava-o uma humilhante falta de amor-próprio, e era incrível que uma mulher orgulhosa como Alice Dugall houvesse caído em suas malhas.

   Para completar, tinha quase certeza de que Rufus Ha¬merton era do tipo que bastava dar um tapa no bumbum de uma mulher para conquistá-la.

   Ou talvez fossem apenas amigos.

   Notando uma movimentação nas sombras lá embaixo, George inclinou-se pelo vão da janela e viu Rufus cami¬nhando a passos largos como se uma missão o aguar¬dasse. Segundos depois, Alice surgiu correndo na direção oposta, rumo ao portão principal do castelo.

   Mas o que significava aquilo? Um encontro de amigos... ou de amantes? Talvez, fosse dissimulada aquela falta de atenção de Hamerton pela filha do castelão, embora não pudesse imaginar o porquê disso.

   Cerrando o punho, considerou que talvez não houvesse errado tanto o alvo ao sugerir que Alice estava naquela beira de estrada para um encontro secreto com um amante.

   Golpeando com força o assento da banqueta, sorriu ao tomar uma decisão. Qual fora mesmo seu comentário com o capataz Richard? Que Alice Dugall atrairia um homem que apreciasse desafios?

   Um arrepio prazeroso percorreu-lhe o corpo, como sem¬pre acontecia quando entrava numa disputa que sem dú¬vida venceria.

E aproveitaria para mostrar àquele grandalhão ruivo como um cavalheiro seduzia uma dama.

  

   Sempre que estava chateada, Alice se refugiava no pomar. Ao passar pelos soldados de sir George enquanto descarregavam sua bagagem, notou a quantidade exagerada de baús e pacotes. Para que tanta roupa?, cogitou, desdenhosa.

   Rufus não ligava a mínima para roupas. Aliás, parecia não ligar para nada além de suas armas e lutas. E para ela. Apesar de sua reação lá no pátio, sabia que ele gostava dela.

   Subiu ao topo da macieira mais alta. Logo todas explodiriam em flores, mas por enquanto só se viam folhinhas novas.

   Apreciando o campo em torno, deteve o olhar na colina próxima ao castelo de sir George. Em dias claros, era visível dali. Se se casasse com ele, ao menos iria viver próxima ao castelo do pai.

   A propriedade da família de Rufus ficava distante, bem para o noroeste, quase na fronteira com o País de Gales. Não gostaria de se mudar para tão longe.

   A casca da macieira estava úmida e pegajosa, mas entre seus galhos sentia-se tão à vontade quanto em seus aposentos. Passando para um ramo ainda mais no alto, olhou melancólica para a torre oeste do castelo Dugall.

   Homens! Eram todos impenetráveis, incluindo seu pai!

   Será que ele não enxergava que ela preferiria casar-se com um pavão do que com sir George de Gramercie? Ele estava longe de seu ideal.

   Rufus era seu ideal de homem. Um guerreiro forte, valente, que a tratava como um igual. Ou como um es¬cudeiro, corrigiu-se. Bem, era melhor do que ser tratada como apenas uma mulher, uma criatura frágil e tola to¬talmente dominada.

   Se era aquele tipo de noiva que sir George estava pro¬curando, certamente entrara no castelo errado!

   Não era isso o que Rufus queria.

   Compenetrada, recordou a mudança de expressão do cavaleiro quando ela sugerira que ele pedisse sua mão. Ele ficara surpreso e... desalentado.

   A surpresa era compreensível, toda aquela conversa sobre casamento assustava-a também.

   Mas por que o desalento? Não era possível que ele nunca houvesse notado sua afeição. Ou será que achava que sir George tinha alguma chance de conquistá-la? Te¬meria que seu pai favorecesse George em detrimento dele? Evidentemente, o fato de as terras dele fazerem divisa com as de Dugall pesava, mas ao se compararem os atributos pessoais dos pretendentes...

   Por mais que refletisse, não conseguia amainar a afli¬ção. Não ousava desobedecer ao pai diretamente, não, teria de ser sutil. Provar-lhe-ia que sir George simples¬mente não servia.

   Oh, o que estaria havendo com Rufus? Sempre foram tão amigos, tão companheiros, a exemplo de seus irmãos...

   Irmãos. Rufus a tratava como a um irmão.

   Ele não pensava nela como mulher! Via-a como um escudeiro, um camarada, não como uma mulher a ser cortejada.

   Olhou para as roupas que trajava, a calça sob a saia, a túnica que seu irmão mais velho descartara. Tocou no cabelo, preso numa trança desgrenhada, e nas faces bronzeadas,

   Tinha que mudar. Tinha que mostrar a Rufus que era uma mulher. Uma mulher perfeita para ser sua esposa. Desejosa de ser sua esposa. Ansiosa por ser sua esposa.

   E viu-se assaltada por dúvidas. O que sabia sobre ser mulher, além das diferenças físicas básicas? Não sabia se vestir, nem arrumar o cabelo, nem caminhar do jeito gracioso que percebera nas poucas mulheres que um dia visitaram o castelo Dugall.

   Mas logo recuperou a confiança. Afinal, tinha dois belos vestidos. Um estava velho, mas o outro, seu pai lhe com¬prara no ano anterior. Estaria já pensando em casá-la?

   Bem, a idéia de casamento em si não a perturbava. Tinha apenas de garantir que se casasse com o homem certo.

   Ou seja, com Rufus Hamerton.

  

   Refrescado após o banho que o livrara da poeira da estrada e à vontade na túnica escarlate nova cuja barra roçava o topo de suas botas finas, George deteve-se à entrada do salão e apreciou a movimentação.

   Conforme imaginara, não se avistava nenhuma mulher.

   Viam-se, sim, vários cavaleiros de compleição e tem¬peramento semelhantes aos de Rufus, todos à espera da ceia. Conversavam sobre os treinos executados e a pro¬gramação de exercícios para o dia seguinte.

   Sir Thomas orgulhava-se de sua habilidade para des¬cobrir e treinar os melhores lutadores da Inglaterra e, apesar de não ser o único senhor a aspirar a tal honraria, sem dúvida era o que mais se empenhava nesse sentido.

   Ocorreu-lhe que Alice Dugall devia ter conhecido mui¬tos homens enquanto se criava ali, já que sir Thomas recusara-se a despachá-la para um colégio, numa quase demonstração de sentimentalismo pela filha única, o que não era pouco em se tratando do duro castelão. Lamen¬tável, não obstante, pois os ensinamentos de uma mulher teria beneficiado muito Alice.

   Talvez devesse voltar atrás na decisão de conquistar Alice Dugall, considerou George. observando os rudes ca¬valeiros ao redor. Se ela queria Rufus, que ficasse com ele. Quanto à possibilidade de Rufus não querê-la, não era de sua conta.

   Então, a suas costas, George ouviu o característico far¬falhar de uma saia. Voltando-se, viu Alice de pé no degrau.

   Ela trajava um vestido de veludo verde-escuro não mui¬to bem ajustado a seu corpo, a julgar pelo decote meio frouxo que expunha o topo dos seios perfeitos, ao passo que o resto do corpete a apertava demais até chegar à cintura fina. As mangas compridas debruadas com um tafetá verde-claro quase tocavam o chão, misturando-se aos panos da saia que descia acompanhando seus quadris estreitos.

   Ela prendera o cabelo castanho numa trança mais bem-feita desta vez, e alguém tentara entrelaçar uma fita verde, sem obter um bom resultado. Alguns fios de cabelo rebelde já escapavam, enfeitando-lhe as bochechas rosadas.

   Finalizando, ela calçara as mesmas botas enlameadas que ele já vira tantas vezes.

   Alice sorriu graciosa, e George se animou... até per¬ceber que o sorriso era para Rufus Hamerton, que inte¬grava um grupinho particularmente barulhento junto à lareira.

   Recuperando-se rápido, George aproximou-se e fez uma mesura.

   - Como está encantadora - sussurrou, em tom se¬dutor, dando-lhe seu sorriso mais charmoso. - Essa cor lhe cai com perfeição.

   Alice enrubesceu e George concluiu que estava no ca¬minho certo.

   - Aliás, pensei que um anjo houvesse caído quando a vi...

   Os olhos castanhos faiscaram de desdém.

   - Anjos vestem branco - sibilou.  

   George tentou se recuperar:

   - Claro! Acho que perdi o juízo ante sua beleza... - Ignorando a expressão brava dela, tomou-lhe a mão. - Minha senhora, permita-me escoltá-la a seu lugar na mesa.

   Ela se retraiu. Ele usou a mão livre para prender a dela.

   Rufus interrompeu a conversa com os amigos e deu um passo na direção deles.

   - Alice?

   - Boa noite, Rufus - cumprimentou ela, escapando de George.

   - Deus do céu, Alice! - exclamou o cavaleiro ruivo, percorrendo-a com o olhar de um jeito muito atrevido. - Eu não sabia que você tinha um vestido bonito assim!

   - Como pode ver, eu tenho - replicou Alice, lançando um olhar de desprezo a George antes de tomar o braço de Hamerton.

   Fingindo indiferença, embora fervesse por dentro, George passou à frente deles e foi se recostar à mesa principal.

   Nesse instante, entrou sir Thomas, acompanhado de um padre que parecia tão apto a manejar uma espada ou uma maça quanto qualquer cavaleiro no salão.

   - Alice? - chamou o castelão. Ela deu meia-volta.

   - Sim, pai?

   Nem o implacável sir Dugall conseguiu disfarçar a ad¬miração pela beleza da filha, mas repreendeu com energia:

   - Você não indicou ao nosso visitante seu lugar à mesa.

   - Ah, sim! - Ela se virou para George, seu rosto puro desdém. - O senhor se sentará à direita de meu pai - informou, indicando o lugar.

   - Claro - concordou ele, sem se mexer. - E a senhora...?

   - A seu lado - completou Alice, fria.

   George se endireitou e foi tomar seu lugar, cordial¬mente puxando a cadeira para a dama. Ela contornou a mesa e jogou-se no assento como uma criança rebelde, sem perceber que o decote arreganhado permitia uma bela visão de seus lindos seios.

   Rufus fez uma mesura rápida e foi se acomodar em outra mesa, para alívio de George.

   O padre conduziu uma breve oração, num singular tom sedento de sangue ao rogar a Deus que abençoasse os presentes e esmagasse os inimigos. Tão logo terminou, o salão foi tomado pela cacofonia, como se berros fossem o meio de comunicação preferido.

   A comida era simples, mas abundante. Após saboreá-la, George decidiu tomar a ofensiva junto a Alice:

   - Sir Rufus parece admirá-la, mas sem dúvida ficou surpreso quando entrou, como se não soubesse que era tão bonita...

   Alice arrancou um belo naco de pão e enfiou-o inteiro na boca, sujando as mangas do vestido no prato ao fazê-lo.

   - Acha mesmo? - retrucou, de boca cheia. George mal disfarçou o choque ante tantas grosserias, mas não desistiu do cortejo.

   - São amigos há bastante tempo, presumo.

   - Ele está aqui há dez anos - informou Alice, antes de limpar a boca nas costas da mão e arrotar.

   Nenhuma mulher da classe nobre podia ser tão mal-educada à mesa, concluiu George, servindo-se de uma fatia de pão.

   - Imagino que um sujeito forte como sir Rufus seja bom de luta...

   - Muito bom. Em todo tipo de luta. - Alice arrancou uma perna de um frango assado.

   - E ele sabe ler?

   Ela parou de mastigar e olhou-o pasma.

   - Ler? Para que ler? Ele não é padre...

   - E claro que o voto de castidade seria um pouco demais para ele - ironizou George. - É o tipo de sujeito que dorme com uma mulher diferente a cada noite, quan¬do tem dinheiro para pagá-las...

   Alice estreitou o olhar, e George concluiu que ultra¬passara o limite.

   - Perdão, lady Alice, por falar dessas coisas diante de uma senhora.

   Ela tentou engolir o que já mastigara, mas engasgou e começou a tossir. Ela deu-lhe um tapa nas costas e a carne entalada voou para fora da garganta.

   - O que foi que houve? - quis saber sir Thomas, contrariado por ter de interromper sua conversa com o padre Denziel.

   - Engasguei com um pedaço de frango, pai - explicou Alice.

   A mão de George continuava em suas costas. Parada. Apenas... presente. Quente e forte. Perturbadora.

   Sir Thomas voltou a conversar com o padre e Alice remexeu os ombros até o acompanhante tirar a mão.

   - Já estou muito bem, sir George - declarou, ainda sentindo os vestígios de pressão e calor no ponto em que ele a tocara.

   A culpa era daquele vestido, decotado demais na frente e nas costas! Nunca mais o usaria, apesar dos elogios de sir George, de Rufus e dos olhares de admiração dos demais cavaleiros e até de seu próprio pai.

   Então, olhando para Rufus, que ainda saboreava as carnes e a cerveja entre os amigos, concluiu que estava era decepcionada ante o rumo que os acontecimentos tomavam naquela noite, bem diferente do que planejara. E a culpa não era do vestido...

   A idéia era flertar com Rufus na cara de sir George, mas o grandalhão ruivo esquecia-se de tudo na hora da comida, e não olhara para ela nem uma vez desde o início da ceia! Como flertar com alguém assim?

   Não, Rufus não podia acreditar que ela preferia aquele almofadinha perfumado e engalanado em túnicas borda¬das que se alimentava com a delicadeza de uma freira!

   Ou será que sentia-se inferior porque George era rico? Teria concluído que não podia disputá-la devido à falta de riqueza de sua família?

   Mas que importância tinha isso se ele gostava dela assim como ela gostava dele? Deveria saber que não lhe interessavam riquezas, mas o homem em si.

   - Estou contente em ver que já se recuperou - co¬mentou sir George, gentil.

   Alice encarou-o detidamente, notando aquele terrível contraste entre o sorriso afetado e o olhar astuto, tão diferente do de Rufus, que era pura amizade.

   Correndo o olhar pelo salão, avistou Rufus outra vez e desejou juntar-se a seu grupo. Como gostaria que a chamasse para sua mesa. Como gostaria que ele ao menos a procurasse com o olhar.

   Qualquer coisa que a afastasse daquele sir George, com quem jamais simpatizaria!

  

   Na manhã seguinte, Alice, com seu costumeiro conjunto de camisa, saia encurtada, calça e túnica com cinto, subiu correndo a escadaria estreita que levava aos aposentos de Sir George levando uma pilha de lençóis limpos. Se alguém a visse, pensaria que ela se dispusera a trocar a roupa de cama do hóspede, embora fosse tarefa para um criado, e não desconfiaria de seu verdadeiro intento.

   Queria entrar no quarto e ver o que compunha sua bagagem tão volumosa, em busca de mais indícios de sua inadequação para tornar-se seu marido.

   Abafou um bocejo. Na noite anterior, risadas altas e vozes masculinas impediram-na de adormecer por um bom tempo após se recolher. Curiosa, fora espionar o saião e vira Sir George no meio de um animado grupo de soldados, divertindo-os com histórias de vários torneios dos quais participara.

   Não gostara nem um pouco de ver Rufus totalmente absorto pela voz melíflua do hóspede, que relatava com modéstia, e não com exibicionismo, verdadeiras façanhas. O grandalhão ruivo parecia até admirá-lo! Se bem que até ela permanecera uma hora ali nos degraus, ouvindo escondida...

   Precisava encontrar provas de que o distinto sir Geor¬ge, ainda que se destacasse nos torneios, estava acostumado demais a uma vida mansa para ser um marido adequado a Alice Dugall.

   Chegando ao quarto dele, esgueirou-se rapidamente para o interior e fechou a porta. O que surgiu diante de seus olhos a fez recostar-se e apertar os lençóis contra o peito, boquiaberta.

   Era como se, de repente, houvesse sido transportada para o palácio de um sultão. Sobre a espartana cama de cordas havia agora o colchão de penas mais espesso e de aparência mais macia que ela jamais vira, sobre o qual empilhavam-se cobertores grossos e uma colcha de pele, além de várias almofadas coloridas.

   No piso havia um tapete também multicolorido e tão espesso que qualquer um recearia pisar nele. Um braseiro de bronze, cheio de carvão, enfeitava um canto, e junto à janela havia agora uma mesinha entalhada com a bacia e a jarra essenciais. Num outro canto, uma grande ba¬nheira de madeira ainda exalava os resquícios de um banho perfumado.

   Então, ao lado da bacia e jarra sobre a mesinha, en¬controu a verdadeira origem daquele aroma tão gostoso. Embrulhado em tecido fino, um sabonete, que aproximou do nariz, deixando-se embriagar por seu perfume quase lascivo. Sem poder evitar, imaginou Sir George deslizan¬do-o sobre a pele ao longo de todo o corpo molhado, nu...

   Alice olhou de novo para a cama transformada. Qual a sensação de dormir num colchão tão macio, aconche¬gando-se nas cobertas quentes como um bebé num berço? Com um arrepio de languidez, lembrou-se de que não era mais um bebê, mas uma mulher...

   Então, pela abertura da janela, chegou o som carac¬terístico de espadas em treinamento, acompanhado das inevitáveis vozes masculinas incentivando a violência. Os cavaleiros iniciavam as atividades do dia.

   Pois iria agora mesmo ao pátio e contaria ao pai o que acabara de ver. Tinha certeza de que ele compartilharia seu desdém por um homem que se cercava de tamanha opulência decadente.

   Apesar do maravilhoso perfume de seus sabonetes!

  

   Infelizmente, sir Thomas não comparecera aos exercí¬cios naquela manhã, constatou Alice, olhando em torno enquanto se aproximava dos cavaleiros que se aglome¬ravam em torno de dois homens circundando um ao outro, prestes a iniciar combate.

   Tratava-se de Rufus, despido da cintura para cima e suando em bicas, e de sir George, também sem camisa, mas sem sinal de transpiração e com a calça tão bem ajustada que mais parecia uma segunda pele.

   Quando poderia imaginar que, sob a roupagem luxuo¬sa, Sir George ocultasse ombros tão largos e musculosos, braços esguios e rijos, cintura estreita e pernas tão fortes? E devia estar em ótima forma, uma vez que não demons¬trava o menor sinal de exaustão, contrastando com Rufus, que já bufava e parecia sucumbir ao próprio peso.

   Rufus era um dos melhores lutadores do castelo, capaz de manejar a larga espada como se fora um punhal e que costumava subjugar os oponentes em minutos, no entanto, agora parecia lento e desajeitado. Alice não demorou a descobrir por quê.

   Sir George deslocava-se com tamanha leveza e agilidade que era quase como se dançasse com Rufus, e não aguardasse sua investida. Quando o grandalhão ruivo descia a espada, sir George já não estava no local visado, mas em outro, arisco como um pássaro.

   Ao levantar sua espada, por sua vez, sir George o fazia com uma força e destreza que Alice jamais imaginou que ele possuísse. Sorrindo divertido, ele continuava "voando" de um ponto a outro com graciosas passadas. Era um dos melhores guerreiros que ela já vira.

   Aproximando-se um pouco mais da falsa contenda, Ali¬ce percebeu que não avaliara corretamente a expressão de sir George. Apesar do sorriso sempre presente em seus lábios, havia um inequívoco brilho de determinação em seus olhos.

   Sendo assim, a vitória importava-lhe, ainda que dis¬farçasse os sentimentos muito bem, ao contrário de Rufus, que ora berrava de frustração e investia como um urso com um espinho na pata. Longe de se expor ao ataque selvagem, sir George girou o corpo de repente e pôs o pé na frente do oponente, que se espatifou no chão.

   Antes que Rufus se levantasse, George embainhou a espada e estendeu-lhe a mão.

   - Não quero sua ajuda - grunhiu Rufus, erguendo-se com dificuldade. - Onde foi que aprendeu a fazer isso?

   - Um amigo de meu pai ensinou-me. Urien Fitzroy... já ouviu falar? - Sem esperar resposta, sir George deu de ombros. - Um sujeito formidável e ótimo instrutor, pode crer.

   Rufus aquiesceu com um grunhido. Por fim, sir George viu Alice.

   - Lady Alice! - exclamou, parecendo realmente con¬tente. - Não imaginei que... - Olhou para o próprio peito nu e tartamudeou: - Desculpe... - E foi vestir a túnica.

   - Alice, você viu aquele movimento? - indagou Rufus, ofegante, nem um pouco constrangido por estar seminu.

   E por que deveria estar? Ela já o vira, e a todos os cavaleiros do castelo, em trajes até mais sumários, mi¬lhares de vezes. Além disso, tinha seis irmãos, de modo que estava mais que familiarizada com o corpo masculino.

   Mas por que Rufus não a fitava nos olhos?

   Sem esperar a resposta dela, Rufus voltou-se para George, ordenando:

   - Explique como fez aquilo!

   Agora de túnica, sir George apresentou-se novamente, trazendo na mão o cinto com a espada embainhada.

   - Perdoe-me por aparecer tão mal vestido, minha senhora - pediu, com expressão pesarosa. - Preciso de um banho.

   Alice recordou o aroma de seu banho perfumado e co¬rou. Estranho como se enfraquecera de repente sua de¬terminação em desprezar o fútil sir George. Teria sido a exibição de músculos e destreza? Ou a visão da cama confortável em que ele dormira e da banheira em que refrescara o corpo que, agora sabia, podia levar qualquer mulher a um estado febril?

   - Eu... eu só vim saber se não gostariam de tomar um refresco - justificou-se, embaraçada.

   Rufus franziu o cenho.

   - É cedo ainda.

   - Ótima sugestão - replicou George. - Contanto que nos acompanhe, minha senhora.

   - Devemos treinar até o meio-dia - observou Rufus. Alice enrubesceu de novo. Seu pai era muito rigoroso quanto aos horários de treinamento.

   Sir George olhou reprovador para o cavaleiro ruivo.

   - E muito gentil da parte dela oferecer um refresco a um hóspede, que certamente não está sujeito às res¬trições de sir Thomas em suas atividades diárias. E, para ser franco - fitou Alice de modo galanteador -, estou bastante sedento.

   Alice desviou o olhar, desacostumada a esse tipo de atenção masculina.

- Oh... acabo de me lembrar... preciso falar com o falcoeiro. Um dos pajens pode lhe trazer uma taça de vinho. Tenho certeza de que encontrará algum deles no salão, ou na cozinha. E só pedir...

   - Enquanto isso, mostre-me como executou aquela movimento - insistia Rufus, ainda inconformado com a derrota.

   - Com prazer - cedeu George, educado, dedicando a Alice outro sorriso sedutor, os olhos azuis sempre penetrantes. - Uma vez que estarei despojado de sua com¬panhia, resta-me ensinar o pequeno truque a seu amigo... Alice decidiu afastar-se de sir George de Gramercie sem mais demora. Só então pararia de lamentar o fato de ele ter-se vestido e, talvez, seu coração voltasse ao compasso normal.

   - Após o almoço, podemos cavalgar juntos, se quiser, Sir George - sugeriu ela, arrependendo-se no mesmo instante.

   Não podia ficar sozinha com aquele homem, à mercê de seus sorrisos, de seus olhares e, principalmente, de seu corpo de Adónis!

   - Gostaria muitíssimo, minha senhora - aceitou George, sem pestanejar. - Até mais tarde, então.

   Alice afastou-se apressada, até não ouvir mais as vozes dos homens que se exercitavam. Recostada numa parede, reforçou a decisão de convencer o pai de que sir George não servia para seu marido, ainda mais agora, que ele ameaçava seduzi-la a cada passo.

   Para compensar o desatino que fora convidá-lo para uma cavalgada, iria tratá-lo com a máxima frieza e for¬malidade, deixando bem claro que, como filha do castelão, apenas cumpria a obrigação de entretê-lo como hóspede.

   Porque ela continuava querendo Rufus, apesar de to¬das as manobras de sir George.

  

   Após o almoço, George foi direto para o estábulo, muito bem-humorado, ao encontro de Alice. Sem dúvida, na¬quela manhã, provara-lhe sua perícia como espadachim, e agora ela sabia que, enquanto Rufus se valia de seu tamanho, ele impunha a habilidade e a experiência.

   Não que temesse qualquer tipo de competição com Ru¬fus. Não mais.

   Lembrou-se dos lençóis limpos que encontrara dobra¬dos sobre a banqueta em seu quarto. Alguém estivera lá, e podia adivinhar quem... alguém que se impressionara com seu sabonete, um artigo raro que fazia vir de Constantinopla.

   Os amedrontados pajens de sir Thomas ou qualquer outro criado jamais teriam se atrevido a tocar num objeto pessoal de um hóspede, quanto mais desembrulhá-lo. Já Alice não teria tido escrúpulos, aliás, ela provavelmente desobedecia toda regra que não se aplicava diretamente.

   Teria ela tocado em mais alguma coisa em seu quarto? O que achara da cama? Cogitara dividi-la com ele? Ima¬ginara a ambos afundando-se na maciez das penas en¬quanto ele a beijava, acariciava e amava?

   Deus do céu, devia controlar os pensamentos, ou ficaria muito desconfortável na cela durante a cavalgada!

   Assim que contornou o estábulo, viu Alice já montada num enorme garanhão negro. Apertou o passo e sorriu.

   - Essa é a besta que a abandonou lá na estrada on¬tem? - brincou.

   - Este é Demon - confirmou ela, gélida.

   George estava impressionado cora a facilidade com que Alice controlava o animal arisco.

   - Sentimos sua falta no almoço.

   - Eu não estava com fome.

   - Seu pai também não se juntou a nós.

   - Eu sei. Parece que ele foi perseguir uns caçadores e deve voltar só à noite.

   - Coitado daqueles que ousam caçar nas terras de sir Thomas.

   - Coitado mesmo - concordou Alice.

   - Se me der licença, vou preparar meu cavalo...

   Antes que George desse um passo, um cavalariço sur¬giu trazendo sua montaria, um garanhão castanho quase um palmo menor do que Demon.

   - Este é Apolo - apresentou George, subindo à sela. - Podemos ir?

   - Claro!

   Alice fincou as esporas nos flancos do garanhão e partiu a galope.

   Pasmo, George viu-a disparar na frente e atravessar os portões a uma velocidade alucinante, fazendo servos e soldados se espalharem à beira do caminho. Sem al¬ternativa, fez seu próprio cavalo acelerar, pedindo des¬culpas às pessoas enquanto seguia a trilha de Alice.

   Numa alegre corrida, Alice percorreu a estrada prin¬cipal através da aldeia, espantando aldeões assim como fizera no castelo, depois os prados enlameados, onde os camponeses lançavam as primeiras sementes, então, num galope mais aceitável, trilhou o caminho pela mata ao longo do rio.

   George conseguira acompanhá-la com dificuldade, de modo que se aliviou ao vê-la pôr fim àquela corrida ma¬luca. Devagar, atravessaram uma campina onde carnei¬ros pastavam, pelo menos até serem espantados pela che¬gada dos dois garanhões.

   Então, Alice arrancou de novo com Demon rumo a um bosque ao pé da colina. George seguiu-a até alcançar o local sombreado, mas então desistiu de arriscar a si próprio e ao cavalo numa competição sem sentido. Alice tinha a vantagem de conhecer bem o terreno, que vencesse, então.

   A trote, George percorreu a trilha sentindo menos ca¬lor, mas não conseguiu aplacar o aborrecimento ante o comportamento infantil de Alice. No outro extremo do bosque, viu Alice desmontar do garanhão negro e levá-lo para junto de uns salgueiros, para tomar água num ria¬cho, sem dúvida.

   Também estava sedento, e um gole de água fresca faria maravilhas no sentido de que recuperasse a serenidade. Desmontando, conduziu Apoio até o riacho, prendendo as rédeas num galho. Não avistava Alice em lugar nenhum.

   - Você monta bem.

   Surpreso, George se voltou e viu-a recostada no tronco de um dos salgueiros, o rosto meio oculto pelos ramos flexíveis, os braços cruzados e a expressão tão desgostosa quanto a voz.

   - Você também, mas não creio que os guardas, os aldeões ou os camponeses aprovem sua comportamento.

   Brava, ela se desencostou da árvore e avançou afas¬tando a cortina de galhos finos.

   - Não quero me casar com você - anunciou, franca.

   - Não? - retrucou George, com uma tranquilidade que não correspondia a seu estado de espírito.

   - Não. - Alice era toda desafio.

   - Bem, não posso acusá-la de tentar me seduzir fan¬tasiada de criada. Mas posso saber por que minha pro¬posta foi rejeitada antes mesmo que eu a apresentasse?

   - Não basta o fato de eu não querê-lo? Ele se esforçou para conter a raiva.

   - Seu pai faz gosto no casamento e existem alguns fatos a meu favor. - George foi até o riacho, pegou algumas pedrinhas e começou a atirá-las na água. - Sou rico. Sou generoso. Eu a trataria bem. Tenho boas relações com vários senhores poderosos. E não careço de certos atributos pessoais que as mulheres apreciam.

   - Esqueceu-se de dizer que é fútil e negligente - disparou Alice, com uma franqueza de fazer inveja a seu pai, postando-se a seu lado.

   Ele não disfarçou o espanto,

   - Trata-se de acusações sérias, minha senhora. Su¬ponho que me considere fútil por usar roupas finas e guarnecer meus aposentos com itens confortáveis, e ne¬gligente por não me dedicar aos treinos tanto quanto os demais cavaleiros.

   Voltou a atirar pedras na água.

   - Embora não veja por que me justificar se não vamos nos casar, declaro, em minha defesa, que não tenho dí¬vidas e posso gastar meu dinheiro como bem entender. Se sua família prefere uma existência espartana, não tenho nada com isso. Quanto aos treinos, creio que meu desempenho nesta manhã provou que me exercito o su¬ficiente para manter a forma.

   - Pois eu acho um pecado a forma como gasta seu dinheiro! - criticou Alice, raivosa.

   - Pense o que quiser, minha senhora. - George en¬carou a mulher que não o queria. - Mas, por favor, diga-me: o que é que deseja num marido? Compleição robusta? Peso respeitável? Braços grossos como troncos? Maneiras de um porco? Cabelo ruivo?

   Alice prendeu a respiração e cruzou os braços, mais desafiadora que nunca.

   - Eu quero um homem, não um palhaço!

   - Eu sou um homem. Ela fungou desdenhosa.

   - Imagino que possua as características físicas es¬senciais... mas é só.

   - Para a maioria das mulheres, isso é mais que suficiente.

   - Bem, não para mim! Quero um homem a quem possa respeitar. A quem possa admirar. Eu monto melhor do que você e com certeza atiro flechas com mais precisão do que você. Atrevo-me a sugerir que poderia até lutar melhor do que você, se precisasse.

   - Pode até ser, minha senhora - cedeu George, frio -, mas certamente cheiro melhor do que você.

   Ela engoliu em seco, chocada.

   Apoiando-se numa das pernas, ele a analisou lenta e atrevidamente.

   - Acho que sei qual tipo de homem a senhora acha que deseja para marido. Um homem incrivelmente forte, campeão nas artes masculinas cuja principal exigência seja a força bruta. Pois força é o que esse homem impõe em tudo o que faz, inclusive na cama conjugal. Força, não prazer, nem ternura. A princípio, a senhora de fato o respeitará, até perceber que ele lhe dispensa a mesma consideração que a seu cavalo, ou seu cão. - George impediu Alice de retorquir e prosseguiu: - Já vi o que acontece quando uma mulher é obrigada a se casar e não quero viver essa experiência. Portanto, acalme-se, minha brava Alice. Se não quer se casar comigo, sim¬plesmente diga isso a seu pai e assunto encerrado.

   Alice tentou falar de novo, mas George ainda não terminara:

   - E quanto àquele bruto ruivo que a senhora parece achar tão fascinante, lamento informar que o sentimento não é recíproco. Ele a abandonou.

   - O quê?

   - Ele foi embora do castelo logo após o almoço.

   Com isso, George foi até seu garanhão castanho e pegou as rédeas. Por sobre o ombro, viu Alice imóvel, não mais desafiadora, num misto de surpresa e desalento.

   Tomado por um impulso primitivo que nunca sentira antes e esquecido do próprio orgulho, George voltou para junto de Alice e tomou-a nos braços, impondo um beijo quente a seus lábios tentadores.

   Desejo puro percorreu-lhe as veias quando ela pareceu derreter-se contra seu peito, sem resistência. Apertou-a com mais força e introduziu a língua em sua boca agora complacente.

   Mas não era de seu feitio tomar sem pedir, ou agir com egoísmo, por mais enlouquecido que estivesse, por isso mudou o beijo, tornando-o mais gentil, mais cari¬nhoso, apenas sugestivo quanto à paixão que aguardava para ser liberada.

   Para seu deleite, Alice passou a corresponder com mais intensidade, como se o desejasse tanto quanto ele a ela.

   Então, lançando mão de todo o autocontrole que possuía, George a afastou. Indiferente, fitou-a nos olhos obscurecidos de desejo, satisfeito em vê-la ofegante.

   - Vá, Alice, e diga a seu pai que não vamos nos casar.

   Ela engoliu em seco e deu um passo atrás, as pernas bambas. Tocou os lábios com a ponta dos dedos. Parecendo desesperada, correu até o garanhão negro e puxou-o para fora da água. Montando agilmente, partiu a galope e desapareceu bosque adentro.

   George suspirou e sentou-se no chão à beira do riacho. O que acontecera ali? O que fizera?

   Nunca experimentara nada como aquele desejo repen¬tino e selvagem por Alice Dugall, e evitar aquele beijo teria sido tão impossível quanto parar de respirar.

Até que ponto?

   Ninguém jamais lhe abalara o autocontrole daquela maneira, e toda cautela era pouca. Alice Dugall era pe¬rigosa demais para ser sua esposa.

   Encontraria outra mulher. Uma dama serena e dócil, que não o excitasse dessa maneira. Uma pessoa gentil, que não o enfurecesse a todo instante.

   Eis o tipo de esposa de que precisava.

  

   Nervosa, Alice enxugou os olhos e o nariz com as costas da mão. Não choraria por causa do que sir George de Gramercie lhe dissera. Nem por causa de Rufus, se ele fora mesmo capaz de partir sem se despedir.

   Sentada num galho forte da macieira, abraçou o tronco fino e encostou o rosto na casca áspera.

   Por que Rufus iria embora assim, de repente? A sugestão de desposá-la causara-lhe aversão a ponto de fugir?

   - Alice! Desça já daí!

   Surpresa, ela olhou para baixo e viu o pai muito bravo, mãos na cintura, as sobrancelhas grisalhas compondo uma carranca.

   - O que foi, pai?

   - Desça!

   Ela obedeceu, bem devagar. Ao pé da árvore, mirou o chão.

   - Que diabo você disse para sir George? - inquiriu o velho, possesso.

   Então, seu pai já se encontrara com sir George e estava a par dos acontecimentos.

   - Ele me disse que acha que não deve haver casa¬mento - esclareceu sir Thomas. - Posso saber por quê?

   - Ele não apresentou um motivo?

   - Não! Disse apenas que eu devia falar com você!

   Alice deu de ombros.

   - Suponho que ele se ache inadequado... Sir Thomas era só fúria.

   - Inadequado? Que tipo de absurdo moderno é esse? Seria um casamento perfeito para ambos, qualquer um pode ver!

   - Mas, se ele tem outros planos, não devemos res¬peitá-lo? - aventou Alice, esperançosa. - Afinal, não é nenhuma criança que não sabe o que faz...

   O pai era mais astuto do que ela.

   - Mas certas mulheres parecem meninas que não sa¬bem o que é melhor para elas.

   - Pai, eu...

   - Ele é rico, tem amigos poderosos, possui uma ótima propriedade e os melhores administradores do sul da In¬glaterra a seu serviço. - Sir Thomas soltou um suspiro desalentado. - E tem boa aparência, se é que isso importa. O que mais você quer?

   Alice esfregou o dedão do pé na terra e deu de ombros, sem argumento.

   - Filha, sei que ele é diferente dos homens que está acostumada a ver, mas, creia-me, outros cavaleiros que pediram sua mão eram bem piores.

   Alice encarou o pai boquiaberta.

   - Outros homens pediram minha mão em casamento?

   - Um ou dois...

   Ela se encheu de esperança.

   - Rufus foi um deles?

   Sir Thomas olhou-a matreiro.

   - Não. - Vendo a decepção tomar conta da filha, abrandou-se. - Antes de partir, ele me pediu que lhe dissesse que lamentava se a levara a acreditar que... há algo com que eu deva me preocupar, Alice?

   Ela estufou o peito.

   - Não.

   - Ótimo. Mesmo porque, se ele houvesse pedido sua mão, eu lhe teria negado.

   Alice ficou boquiaberta de novo.

   - Mas por quê?

   - Trata-se de um bom homem e soldado de valor... mas também o tipo de sujeito que vive atrás de aventuras - explicou sir Thomas. - Ele não se sentiria satisfeito em casa, e a deixaria sozinha com frequência, por longos períodos.

   A contragosto, Alice reconheceu que o pai tinha razão, tanto quanto sir George, que descrevera quase que da mesma forma o tipo de marido que Rufus daria. Não obstante, continuava inconformada.

   - Sir George também viajou muito... - lembrou-o.

   - Mas agora está de volta ao lar e pretende ficar. Já teve seu quinhão de aventuras. Alice, ele será um bom marido, e creio que a fará feliz. - Sir Thomas nunca fora tão brando com a filha, mas sentia que era necessário nesse momento tão delicado de sua vida. - George parece meio indolente e fútil, mas, ainda que não sejam quali¬dades louváveis, são quase uma garantia de que ele sem¬pre a tratará bem. - Com um suspiro, finalizou: - E as terras dele ficam junto às nossas. Não gostaria que você se mudasse para longe de mim.

   Aquelas palavras ternas, tão inesperadas e tão raras, fizeram Alice chorar de emoção.

   - O que me diz, então, filha? - inquiriu o castelão, pela última vez. - Sim ou não?

   - Não pode me dar mais tempo para decidir? - pediu ela. - Mal conheço o homem.

   - Não. Ele já está se preparando para partir, pois jurou não se demorar mais, fazendo-nos perder tempo. - Sir Thomas já ficava impaciente. - Que mais precisa saber dele? Vocês brincaram juntos na infância...

   Sim, haviam brincado juntos quando crianças, despreo¬cupados, sem sequer imaginar o que era o casamento.

Fitou a relva úmida sob os pés e contemplou o futuro.

   Amava Rufus, não amava? Mas ele não a amava.

   Sir George também não a amava, nem ela a ele. Con¬tudo, aquele beijo à beira do riacho prometera tanto...

   Seu pai tinha uma ótima percepção dos homens, eis por que era tão bom comandante. Talvez houvesse des¬cartado sir George um tanto precipitadamente...

   - Diga-lhe...

   - O quê? - apressou sir Thomas.

   - Diga-lhe para não partir - sussurrou Alice, sem encarar o pai.

   - Agora você está sendo sensata - aprovou o pai -, mas não serei eu a detê-lo. Ele pode pensar que estou obrigando-a a se casar e não concordará.

   - Ele disse isso?

   - Não precisou. Conheci o pai dele. São ervilhas da mesma vagem.

   Alice fitou o pai parecendo revoltada.

   - E eu não estou sendo obrigada?

   - Alice, se não quer mesmo se casar com esse rapaz, diga-o agora e o assunto estará encerrado. Mas duvido de que consiga um pretendente melhor, aliás, acho que pode arranjar coisa bem pior.

   Ela aquiesceu lentamente, tentando decidir o que fazer. Era tentador deixar sir George partir, mas quais seriam as consequências?

   Outros pretendentes se apresentariam no castelo Dugall, certamente, mas e se nenhum deles a agradasse? Ficaria solteirona para o resto da vida?

   Poderia optar por algum outro cavaleiro parecido com Rufus, já que ele fugira dela como um covarde; no entanto, tanto seu pai quanto sir George praticamente a conven¬ceram de que esse tipo de homem não dava bom marido.

   E sir George tinha a seu favor o fato de já tê-la beijado, combinando de forma excitante paixão agressiva e carinho delicado, deixando-a de pernas bambas e corpo latejante...

   Deu meia-volta e tomou o rumo do castelo.

   - E então, Alice, como vai ser? - inquiriu o pai, exausto.

   - Vou pedir a sir George que fique.

  

   George batia o pé impaciente enquanto seus soldados levavam do quarto o restante da bagagem. Teriam que partir logo se quisessem alcançar a antes do fim do dia a hospedaria a meio caminho entre o castelo Dugall e o seu, Ravensloft.

   Não pretendia demorar-se nem um minuto mais do que o necessário, ainda que sir Thomas aparentasse não saber sobre as idéias da filha. De fato, o castelão mostrara-se bastante incrédulo quanto ao resultado do último encontro entre ele e Alice, certo de que ocorrera algum equívoco.

   De sua parte, deixara bem claro que, se era considerado um pretendente inadequado, partiria imediatamente. Que sir Dugall se esfalfasse procurando o homem que finalmente agradaria à filha caprichosa, se bem que a chance de sucesso era remota...

   - Sir George? - chamou uma tímida voz feminina. Surpreso, ele se voltou da janela e viu Alice de pé à soleira da porta, de cabeça baixa, parecendo apreensiva.

   - Sim? - atendeu ele, meio seco, considerando que não se cultivava a amabilidade por ali.

   - O senhor... está de partida?

   - Estou, minha senhora. Não vejo por que permanecer onde não sou desejado.

   Alice entrou no aposento e olhou para as paredes, a janela, o chão... menos para ele.

   - Espero que não tenha se ofendido por algo que eu disse.

   George riu alto.

   - Ofendido? Só porque uma dama reage à idéia de casar-se comigo como a uma tortura? Imagine...

   - Não foi o que eu quis dizer.

   - Mas foi o que deu a entender. Agora, se me der licença, irei ver se meus homens não deixaram cair ne¬nhum de meus pertences na lama.

   Surpreso, George viu Alice adiantar-se e bloquear a porta, os olhos castanhos agora fixos em seu rosto.

   - O senhor tem de ficar.

   Ele cruzou os braços e apreciou-a frio.

   - Não sou seu lacaio.

   - Por favor - emendou ela.

   George ergueu uma sobrancelha, mais brando.

   - Por que a mudança de atitude, minha senhora? Está obedecendo a uma ordem de seu pai?

   Ele a provocava para ver se reagia explosivamente, mas ela estava preparada para suportar a provação.

   - Eu gostaria que o senhor ficasse - declarou, no tom mais amável que pôde elaborar.

   Cruzando as mãos às costas. George deu alguns passos para lá e para cá.

   - Bem, bem, bem, o que devo concluir? - Parou e encarou-a. - Será que a jovem viu algum mérito em mim, afinal?

   - Desconsidera tal possibilidade? - retrucou Alice, num escárnio imperceptível de tão sutil.

   Ela se mostra estranhamente imune a meus galan¬teios - ponderou George, conformado. Então, pareceu lembrar-se de algo.

   - Ah, será que é porque o ruivo Rufus foi embora? - Mesmo vendo que ela sofria com o abandono do amado, decidiu não poupá-la. - Não cos¬tumo aceitar restos de outros homens...

   Ante tamanha ofensa, Alice normalmente teria reagido com uma fúria cega, esquecida do objetivo de convencer o ilustre hóspede a permanecer. No entanto, sentiu-se frágil, desamparada, como nunca lhe acontecera na vida, a desejou, do fundo do coração, que George ficasse e a confortasse, como fizera lá no bosque.

   - Por favor, fique - sussurrou, fitando-o nos olhos azuis. A natureza gentil de George finalmente prevaleceu, e foi difícil para ele não ceder ao impulso de tomar Alice noa braços e dizer-lhe que compreendia.

   - Por quê? - insistiu, brando.

   - Porque... porque estou pedindo.

   Ele girou nos calcanhares e foi até a janela, cerrando os punhos a fim de recuperar o autocontrole.

   Mal podia crer que a Alice desafiadora de outrora era a mesma mulher suplicante ali de pé em seu quarto. Pior era a necessidade e o desejo avassaladores que lhe provocava, reduzindo a nada tudo o que experimentara até então. Não obstante, sabia o que emoções fortes po¬diam causar e quão imperativo era dominá-las.

   Quando por fim acalmou-se o bastante para falar obje-tivamente, voltou-se e recostou-se no parapeito de pedra.

   - Apesar de honrado ante seu pedido inesperado, terei de partir, pois deveres me aguardam em casa. Perdão por não poder atendê-la.

   Alice respirou fundo.

   - Sir George, receio ter sido descortês. Por favor, per¬mita-me refazer sua impressão de mim. Quanto ao ca¬samento, não precisamos decidir com tanta pressa.

   - Que mais devo fazer para provar-lhe meu valor, minha senhora? - questionou ele. - Matar um dragão? Executar os trabalhos de Hércules? Talvez seu plano seja que eu pereça na tentativa, de modo a livrar-se de minha presença incômoda...

   Alice suprimiu um sorriso.

   - Não, não desejo impor-lhe missões impossíveis.

   - Mesmo porque já tenho uma...

   - Qual?

   - Fazer você gostar de mim.

   Ela baixou o olhar, encabulada como nunca se sen¬tira antes.

   George aproximou-se.

   - Alice, seja franca. Quer que eu vá embora e que esqueçamos essa idéia de casamento?

   Ela o fitou nos olhos azuis e, sem pensar, declarou:

   - Não entendo por que você quereria a mim.

   Ele a tocou no queixo, o olhar mais intenso do que nunca.

   - Jura que não?

   Alice balançou a cabeça.

   - Não sou como as outras mulheres.

   O sorriso que ele deu fez o coração dela disparar.

   - Exatamente, Alice - murmurou, tomando-lhe o rosto nas mãos. - Você não é como as outras mulheres... - Enlaçou-a entre os braços viris. - Eis porque a quero - sussurrou, antes de pousar os lábios sobre os dela. Não foi como o primeiro beijo, à beira do riacho. Foi gentil, terno... ainda que ela sentisse, sob a ternura, uma paixão mais intensa do que poderia esperar. Era como se sir George a houvesse encurralado, por ora.

   Uma excitação selvagem dominou-a, aquecendo-lhe o sangue, que percorria latejante todo o seu corpo de re¬pente sem peso.

   O beijo se aprofundou, George movendo a boca sobre a dela com mais segurança. Puxando-a pelas nádegas, ele afundou os quadris contra os dela, arrancando-lhe um gemido baixo.

   Quando ele a empurrou para que se separassem, ela quase gritou em protesto.

   - Minha primeira qualificação para ser seu marido, minha senhora - explanou George, sorrindo ante a ex¬pressão lânguida de Alice. - Serei um excelente amante! - Afagou-lhe os braços.

   - Imagino que sim...

   E!e a calou com um novo beijo e um abraço apaixonado que exigia uma reação idêntica.

   Interrompendo o beijo outra vez, ele deslizou os lábios por seu queixo, agora acariciando-lhe as costas.

   - Irei mimá-la como poucos nobres fazem com suas esposas.

   George levou as mãos para trás de sua cabeça e desatou a fita que lhe prendia a trança, desfazendo-a habilmente. A massa de cabelos castanhos derramou-se sobre seus ombros.

   - E serei um bom pai - garantiu. Alice apenas assentiu.

   - Há outro homem em seu coração - lembrou ele.

   - Sim... não...

   Ela já não tinha certeza do que sentira de fato por Rufus, nem do que sentia agora por sir George. Nunca ninguém lhe provocara sensações como essas, apenas com beijos!

   - Eu a farei esquecê-lo, Alice.

   Passou a beijá-la no pescoço, deslizando a boca ávida até o topo dos seios fartos, os quais tomou firmemente nas mãos.

   - Faça... - concordou ela, quase implorando.

   - Case-se comigo. Seja minha esposa. Venha para a minha cama.

   - Sim... - aceitou Alice, com um suspiro, incapaz de recusar.

   - Logo.

   - Sim...

   Então, George parou com tudo e deu um passo atrás, deixando-a ofegante, atónita.

   - Eu a quero, Alice.

   Ele queria uma resposta definitiva. Ela se esforçou para raciocinar, apesar das sensações assustadoras que ainda dominavam seu corpo excitado. Seria mais fácil se não olhasse para ele, para a ânsia em seus olhos azuis, para o desejo em seu rosto, para seus lábios sedutores...

   Fechando os olhos, recostou-se na porta. Em apenas um dia, sir George provara ser algo mais do que um almofadinha. Era um exímio lutador, um guerreiro va¬lente, e ao mesmo tempo um cavaleiro bonito e elegante como poucos.

   Alice respirou fundo. Decidira-se.

   - Acredito que seja melhor eu me casar com o senhor.

   - Não foi uma resposta muito lisonjeira, minha se¬nhora - lamentou sir George.

   Pois ele queria muito casar-se com ela... tanto que estava surpreso com a intensidade do desejo. Tratava-se da mulher mais intrigante que já conhecera, e pensar que tal criatura selvagem e indómita se entregaria a ele de livre e espon¬tânea vontade causava-lhe enorme excitação.

   - Creio que será um bom marido - emendou Alice, ainda sem muito entusiasmo,

   - Não existe mesmo nenhum outro motivo, minha senhora? - insistiu George, a fim de se certificar de que sir Thomas não a forçara.

   - Não - reiterou ela, as faces se afogueando. Diante disso, George não poderia duvidar de sua franqueza.

   - Gosta de mim, não gosta?

   - Gosto - confessou Alice, relutante, incapaz de en¬cará-lo. - Gosto de você.

   - Estou muito contente que tenha me aceito, Alice.

   - Eu... vou contar a meu pai o que decidimos.

   - E eu vou ficar, mas só esta noite, para assinar o contrato matrimonial.

   George conteve o impulso de abraçá-la novamente, te¬meroso de perder o que já conquistara. Ela o aceitara como marido, e isso teria de bastar, por ora.

   - Irei para casa amanhã, preparar-me para o casa¬mento... e para minha noiva.

   - Muito bem, sir George.

   A porta, Alice olhou-o por sobre o ombro, ainda domi¬nada pelo desejo, e então se foi.

   George sentou-se na cama e aos poucos recuperou o autocontrole. A seguir, foi procurar seus homens para carregarem de volta a bagagem.

   A noite, no salão, sir Thomas anunciou o noivado de sua filha com sir George de Gramercie. Serviu-se vinho à vontade, para deleite das tropas.

   Alice repetia a si mesma que tomara a decisão certa, enquanto George, a seu lado, imaginava o falecido pai sorrindo-lhe satisfeito.

  

   Refugiado na casa de um primo, bera longe do castelo Dugall, Rufus Hamerton soube do noivado de Alice Dugall alguns dias depois.

   E não conseguiu dormir naquela noite.

  

   Assim que avistou o séquito na estrada, Herbert Jolliet tentou fazer sua montaria galopar; contudo, desacostumada a grandes esforços, a égua limitou-se a trotar.

   A frente da escolta, sir Richard ficou apreensivo ao ver o irmão Herbert fustigando a montaria, evidente¬mente ansioso por encontrá-lo. Que notícia tão impor¬tante não pudera aguardar sua chegada a Ravensloft?

   Deteve o cavalo e fez sinal de alto para os soldados de túnica escarlate e verde.

   - Mano, o que o fez sair do castelo e correr ao meu encontro? - questionou, preocupado, quando Herbert por fim os alcançou.

   - Tenho algo muito importante para lhe contar! Sir Richard não gostaria que os homens ouvissem a conversa.

   - Você me conta enquanto seguimos viagem para Ra¬vensloft - sugeriu, adiantando-se vários metros à escol¬ta. Então, olhou zangado para o irmão, - Não sabe ser discreto, seu burro? Ninguém precisa saber dos nossos negócios.

   - Todos já sabem o que vou lhe contar, menos você - replicou Herbert. - Sir George vai se casar.

   Perplexo, sir Richard puxou as rédeas, detendo o cavalo tão bruscamente que quase caiu da sela.

   - O quê?

   O irmão confirmou.

   - Com Alice Dugall. Amanhã.

   Richard esporeou de leve os flancos da montaria, que seguiu em frente.

   - Mas isso é impossível!

   - Experimente dizer isso a ele - retrucou Herbert.

   - Está se preparando para a cerimônia desde que chegou do castelo Dugall.

   - O pai passou quinze anos tentando convencê-lo a se casar! - lembrou sir Richard, incrédulo. - Por que ele o faria agora que o pai está morto?

   O irmão deu de ombros.

   - Eu sei lá!

   Richard contemplou a estrada à frente.

   - Eu costumava temer que o velho se casasse de novo... Mas ele...

   - O que vamos fazer? - inquiriu Herbert. - Uma esposa em Ravensloft significa...

   - Significa problema - completou Richard, irritado.

   - Fique quieto enquanto penso.

   O irmão obedeceu, olhando-o de esguelha.

   - Sempre achei que Alice Dugall seria a última mu¬lher que George escolheria, se um dia resolvesse se casar - ponderou Richard, inconformado. - Ela é uma bár¬bara, como o pai.

   O irmão arregalou os olhos.

   - Como assim?

   - Ela não é maleável, como Lisette - explicou Ri¬chard. - É dura como ferro e resistente como couro velho. Todo cuidado com ela é pouco, até conhecermos a situação da propriedade. Está em entendendo?

   Herbert fez que sim.

   - Previna Elma. Devemos ter cautela e não fazer nada que levante suspeita, ou podemos acabar todos com uma corda no pescoço.

   Instintivamente, Herbert levou a mão ao pescoço, en¬quanto sir Richard Jolliet, empregado de confiança e ami¬go de sir George de Gramercie, tramava novos planos.

  

   George passou a mão nos cabelos, tentando entender a lista escrita no pergaminho. Era cedo ainda, mas já se encontrava à mesa escura em seu solar, um cômodo pequeno, porém confortável, repleto de tapetes e móveis finos. Uma agradável brisa primaveril entrava pelas ja¬nelas grandes de topo arredondado atrás de sua cadeira de carvalho forrada de almofadas macias.

   Mas George nem se dava conta do ambiente, preocu¬pado que estava em entender o problema a sua frente. O cozinheiro Gaston informara ao administrador Herbert Jolliet os itens de que precisava e agora reclamava de ter recebido apenas dezoito dúzias de ovos, quando pedira vinte dúzias.

   Incapaz de entender os garranchos do administrador, deu de ombros.

   - Vamos comer menos ovos - murmurou, levantan¬do-se entediado.

   Após espreguiçar-se como um gato, foi até uma das janelas e apreciou a estrada.

   Nenhum sinal de sir Thomas e seu séquito. Provavel¬mente, chegariam mesmo somente no dia seguinte, para a cerimónia de casamento, apesar de ter-lhes oferecido hospedagem. O futuro sogro recusava-se a passar mais do que um dia fora de seu castelo.

   Recostado na fria parede de pedra, suspirou pensativo.

   Onde estava com a cabeça ao pedir a mão de Alice Dugall em casamento? Sim, ela era diferente e excitante, mas o que sabia a seu respeito, além de que se vestia de forma grotesca e se comportava como um soldado?

   Bem, Alice era capaz de atiçar-lhe os sentimentos como nenhum ser humano jamais conseguira, o que não era bom sinal...

   Sem dúvida, houvera precipitação na assinatura do contrato matrimonial. Deveria ter passado mais tempo no castelo Dugall e conhecido melhor Alice antes de tomar qualquer decisão. Assim, não teria se deixado levar pela ideia de Alice Dugall em sua cama...

   - Tarde demais - murmurou, conformado.

   - Meu senhor?

   George olhou para a porta e viu a jovem criada Elma, que escolhera para servir a Alice por já ter sido camareira de uma senhora antes de se juntar ao pessoal de Ravensloft.

   - Sim?

   - Sir Richard acaba de chegar de Londres, junto com Herbert Jolliet.

- Ah, que ótimo! - alegrou-se George. - Preciso da ajuda deles. Sirva-nos vinho no salão. Vou recebê-los no pátio.

   - Sim, meu senhor - aquiesceu a criada, curvando-se.

   George desceu a escada correndo. Agora, presentes o capataz da propriedade e o administrador doméstico, poderia esquecer os probleminhas chatos e tratar de assuntos mais importantes, como impressionar sir Thomas. E Alice.

   - Bem-vindo, Richard! - exclamou, enquanto o ca¬pataz desmontava do cavalo. - Ponho fé em que tudo correu bem em Londres.

   - Muito bem, meu senhor - confirmou o empregado. - Teremos de pagar algo mais, mas nada que lhe fará falta.

   - É claro que devo a você o fato de ter de pagar tão pouco - reconheceu George. - Imagino que se irmão já lhe tenha contado a novidade.

   - Contou, meu senhor! - Sir Richard fez uma reve¬rência. - Meus parabéns.

   Sir George pareceu contrariado.

   - Não está surpreso? Imaginei que fosse levar um susto e tanto!

   O capataz sorriu.

   - De fato, pensei que Herbert houvesse enlouquecido quando me contou.

   - Ele ficou atónito, meu senhor, como todo mundo aqui, aliás - confirmou Herbert Jolliet.

   - Não mais do que eu mesmo - confessou George, liderando a pequena comitiva rumo ao salão.

   Com quase cinquenta metros de comprimento, o salão tinha teto alto e uma inovadora lareira junto à platafor¬ma. Tapetes de cores vivas cobriam quase que totalmente as paredes e três altas janelas estreitas de frente para o pátio garantiam uma boa iluminação natural.

   A criada Elma chegou com vinho e taças numa bandeja.

   George se acomodou em sua cadeira e degustou a bebida.

   - Com que então está surpreso por uma mulher ter aceitado casar-se comigo, Richard? - Seu tom era de galhofa. - Assim, você me magoa.

   Sentando-se a seu lado, sir Richard Jolliet também pegou uma taça.

   - Estou surpreso que tenha encontrado uma mulher que preenchesse suas altas exigências - corrigiu. - Eu começava a duvidar de que tal criatura existisse.

   Retraído, Herbert Jolliet tomava sua bebida meio afastado.

   George deixou-se escorregar no assento, indolente.

   - Bem, ela estava à mão, entende? Sir Richard balançou a cabeça.

- Meu senhor, será que nunca fala a sério?

   - Não, a menos que seja inevitável.

   - Bom, ela é bonita - comentou o capataz. George parou para pensar. Alice era bonita? Talvez sim, talvez não. Seu rosto não espelhava os traços da chamada beleza clássica, e sua tez, bronzeada demais, desafiava os padrões vigentes. Mas nenhuma outra mu¬lher tinha aquele brilho no olhar...

   - Sim, é.

   Sir Richard brincava com sua taça.

   - Boa parte de minha surpresa, meu senhor, deveu-se ao fato de o senhor fechar o acordo sem a minha assistência.

   George manifestou aborrecimento ante a reprimenda sutil.

   - Não era um contrato complicado - justificou-se. - Eu sabia que sir Thomas não cederia nenhuma porção de suas terras.

   - Nem mesmo parte da floresta?

   - Nem um metro.

   - Mas o senhor pediu? - insistiu Richard. George fitou o chão.

   - Não. Considerando que sir Thomas tem seis filhos homens, achei desnecessário.

   Sir Richard suspirou, mas não disse nada.

   - O dote dela, em bens móveis, vale quinhentos mar¬cos - informou George. - Mais do que eu esperava.

   - Que tipo de bens móveis? - indagou Herbert, na posição de administrador doméstico.

   - O enxoval costumeiro, acredito... baixelas, roupas de cama, tecidos etc.

   - Mas... o senhor nem perguntou? - questionou Herbert. Richard lançou-lhe um olhar intimidador, mas George estava longe de se amuar.

   - Não tem importância - finalizou, cansado do tema. - Ele é meu vizinho, e a aliança me interessa.

   - Sim, está absolutamente certo, meu senhor - apoiou sir Richard. - Trata-se de um excelente aliado, para todos os momentos de necessidade. Mal posso esperar para rever lady Alice. Tenho certeza de que não vai se fazer de aldeã no dia do casamento!

   George recordou a maneira bizarra como Alice costu¬mava se vestir e estremeceu. Mas não tinha o que temer. Sir Thomas providenciaria para que ela se apresentasse bem no castelo do noivo.

   - Conte-me as novidades da corte, Richard - pediu ao capataz. - Hubert de Burgh está em graça ou em desgraça?

   Passaram alguns minutos pondo em dia as fofocas da nobreza, até que a criada Elma entrou correndo no salão.

   - Meu senhor! - gritou, esbaforida.

   - O que foi? - quis saber George, espantado.

   - São eles!

   George pousou a taça bruscamente e levantou-se.

   - Eles quem?

   - Sir Thomas e sua comitiva! Estão no portão!

   - Deus do céu, eu sabia! - apavorou-se George. - Aquele velho...

   Richard e Herbert também pousaram as taças, en¬quanto George alisava a túnica e saía apressado do salão.

   Qualquer esperança que George nutrira quanto a Alice apresentar-se de maneira apropriada desvaneceu-se quando ele pôs os olhos sobre a comitiva que adentrava o portão de seus domínios.

   Montada como um homem, não de lado, como se re¬comendava às damas, ela trajava roupas femininas e masculinas numa combinação ainda pior do que no cas¬telo Dugall e vinha ao lado do pai, não atrás, como uma donzela modesta. Para completar, tinha um arco ao om¬bro, uma aljava às costas e uma braçada de faisões presa à sela, como se integrasse um grupo de caçadores em vez de uma procissão casamenteira.

   Um número razoável de soldados escoltava carroças contendo os bens móveis do dote de Alice, provavelmente.

   Sir Thomas ergueu a mão e toda a comitiva estacou. Desmontou, assim como a filha, que não precisava de ajuda, e apreciou as muralhas como um herói conquis¬tador examinando seu butim.

   George esforçou-se para não demonstrar o desagrado. Sir Thomas podia vistoriar Ravensloft o quanto quisesse, pois não encontraria nada de errado. Seu pai empreen¬dera a construção da fortaleza visando a eficiência máxima na defesa aos inimigos: as torres eram arredondadas, para desviar pedras, flechas e outros projéteis, e não se encontravam apenas nas quinas das muralhas, mas também a intervalos. O muro externo tinha um metro e oitenta de espessura e o interno, noventa centímetros.

   Além dos sólidos portões de madeira com ferrolhos, havia ainda uma ponte levadiça, sobre a qual, através de uma janela, podiam-se atirar pedras ou líquidos fer¬ventes, se necessário. O salão era espaçoso, os aparta¬mentos, amplos, e até o depósito de munição se apresen¬tava mais confortável do que qualquer dependência do castelo Dugall.

   Sir Thomas não parecia bem impressionado, entretanto.

   - Essas paredes são caiadas? - indagou, incrédulo.

   - Exatamente - confirmou George. - Bem-vindo a Ravensloft, sir Thomas. - Fez uma profunda reverência ao homem mais velho, e então à dama. - Bem-vinda, lady Alice.

   Ela pendurou o arco e a aljava na sela.

   - Uma bela fortaleza, sir George. Construí-la deve ter custado uma fortuna.

   - Não se deve economizar quando se trata de proteção - observou George, cortês. - Tenho certeza de que con¬cordará, sir Thomas. Gostaria de apresentar-lhes meus colaboradores: sir Richard Jolliet, o capataz da proprie¬dade, e seu irmão Herbert, administrador doméstico.

   Os dois homens se curvaram. Alice não simpatizou com nenhum deles, muito menos com sir Richard, que a olhou de um jeito malicioso, talvez reconhecendo-a do encontro à beira da estrada nas proximidades do castelo Dugall. Evidentemente, ele não se atreveria a comentar a respeito, agora que ela era noiva de seu patrão.

   Sir Thomas não aprovava, tampouco, o excesso de con¬fiança que seu futuro genro parecia depositar naqueles dois empregados. Em sua opinião, ninguém cuidava me¬lhor de seus bens do que o próprio dono. Em se tratando de dinheiro, nenhum empregado, por mais fiel, era ab¬solutamente confiável.

   - Achei que, chegando um dia antes, Alice se prepararia melhor para a cerimônia - explicou o velho castelão.

   - Qualquer que tenha sido o motivo, é um grande prazer - bajulou George, curvando-se mais uma vez para a prometida.

   Fitaram-se por um breve instante e Alice lembrou-se dos abraços e beijos que já haviam partilhado, sentindo o corpo se excitar.

   Desde o noivado, pensara muito em sua decisão de aceitar sir George de Gramercie. Embora não se arre¬pendesse, não podia deixar de cogitar se não se precipi¬tara. O que sabia a respeito dele, afinal? Quase nada.

   Felizmente, os preparativos para o casamento haviam ocupado seus dias. Somente à noite, com dificuldade para dormir, era obrigada a refletir e se convencer de que fizera a escolha certa e seria feliz.

   Contudo, não sentira curiosidade pela morada de sir George até a comitiva aproximar-se devagar das mura¬lhas e torres imponentes, reluzentes ao sol, como se es¬culpidas numa única rocha gigantesca. Não imaginara um castelo tão grande, uma aldeia tão próspera a seus pés, sua localização perfeita com vista do rio e do vale, tampouco a riqueza que comandava tudo aquilo.

   - Vamos para o salão tomar um vinho? - convidou George aos visitantes. - Ou preferem conhecer seus aposentos primeiro?

   - É cedo ainda - opinou sir Thomas. - Fazia anos que não vinha aqui. Parece que fizeram reformas. Gostaria de ver...

   - Certamente, sir Thomas. Mas talvez lady Alice quei¬ra trocar a roupa de viagem.

   - Gostaria de tomar um vinho - declarou ela, pois haviam parado para descansar só uma vez desde a partida, ao amanhecer. - Estes faisões devem ir para a cozinha.

   - Perfeitamente. - George chamou um pajem com um gesto.

   Espantada com a lentidão do garoto, Alice resolveu mostrar como se davam ordens.

   - Fitzgibbon! - gritou, e um atarracado sargento de meia-idade se apresentou. - Cuide dos cavalos e depois veja com este senhor... - Apontou para Herbert Jolliet. - ...aonde levar a bagagem.

   Ao se voltar, Alice viu George com uma expressão di¬vertida. A alguns passos de distância, seu pai conversava com sir Richard Jolliet.

   - O que foi? - inquiriu, cruzando os braços.

   - O castelo inteiro ouviu suas ordens - explicou ele.

   - Pelo menos nossos homens as cumprem mais rápido do que o seu pessoal.

   George disfarçou o aborrecimento quanto à crítica e mudou de assunto:

   - Eu pedi a uma prima, lady Margot de Pontypoole, que me ajudasse nos preparativos para recebê-la, mas você chegou antes dela.

   - Tenho certeza de que tudo estará satisfatório - declarou Alice, não muito propensa a tolerar palpites.

   - Espero que sim, mas receio que falte em minha casa um toque feminino... Alice riu.

   - O que é toque feminino, eu posso saber?

   - São centenas de coisinhas em que ninguém repara até que estejam faltando - explicou George, em tom decididamente sedutor.

   De pernas bambas, ela engoliu em seco. Corada, murmurou:

   - Eu... eu não sei do que está falando.

   - Espero que lady Margot a ajude a aprender. Ora, ela não precisava de que ninguém lhe ensinasse coisa alguma!

   - Considerando que sou mulher, com certeza já possuo tal capacidade - afirmou, mais desafiadora do que nunca.

   George parecia cético, então, deu um daqueles sorrisos que costumavam desarmá-la.

   - Bem, trata-se de uma viúva sem filhos e, portanto, sem muito com que ocupar seu tempo, coitada - relatou, numa nova aproximação. - Achei que nosso casamento seria uma boa desculpa para que ela visitasse Ravensloft. Deve sentir-se muito só em sua casa...

   Alice compadeceu-se, ao mesmo tempo que admirava a iniciativa de George quanto a confortar uma pobre alma solitária. Ainda que qualquer conversa que não versasse sobre cavalos e armas lhe parecesse extremamente ma¬çante, aceitaria a companhia da mulher.

   Bastante satisfeito, sir George adiantou-se:

   - Vamos todos entrar, então!

   Alice deixou-se conduzir por George, sentindo a pele queimar no ponto em que ele tocava.

   Ao adentrarem o salão, ela não pôde evitar o espanto. Esperara encontrar luxo, mas era como se conhecessem o palácio de um rei! Uma profusão de tapetes ornava as paredes com cores e cenas maravilhosas, uma enorme lareira garantia iluminação e calor à noite e os móveis pareciam ser novos. Para completar, reinava no ambiente um delicioso aroma de ervas e madeira lustrada.

   - Bem-vinda ao meu lar - sussurrou George, só para ela ouvir. - Logo será seu lar também, Alice.

  

   Após degustar o bom vinho oferecido por sir George, Alice foi conduzida ao aposento que lhe fora reservado. Ao abrir a porta, a criada informou:

   - Este é o quarto de sir George. Ele achou melhor que se hospedasse aqui, para não termos que transferir a bagagem após o casamento. Ele já pegou as coisas de que vai precisar até amanhã.

   - Oh...

   Fazia sentido, mas Alice nunca dormira no quarto de um homem antes e fazê-lo na véspera de seu casamento tanto a excitava quanto amedrontava.

   Suas emoções mais pareciam uma massa de confusão, devido ao cansaço da viagem e à novidade do ambiente, mas temia levar algum tempo antes que conseguisse ana¬lisar com clareza os últimos acontecimentos em sua vida. Desde a chegada a Ravensloft, mostrara-se sensível demais à presença de sir George para manter a compos¬tura. Sempre que ele a tocava ou mesmo roçava sua man¬ga, aquecia-se e enrubescia numa intensidade nunca ex¬perimentada. Só esperava que ninguém houvesse notado. A criada pusera-se de lado para que ela entrasse primeiro. Afundando os pés num espesso tapete, Alice constatou que o aposento era pelo menos três vezes maior do que qualquer cômodo do castelo Dugall. Belos ta¬petes cobriam as paredes de pedra e pelas amplas ja¬nelas ladeadas por cortinas de linho branco entrava uma fresca brisa primaveril.

   Entre as duas janelas, que davam para o pátio interno, havia um conjunto de mesinha e banqueta delicadamente entalhadas. Mais para o canto, uma mesa mais robusta sustentava uma bacia e jarro de bronze muito bem tra¬balhados. Um grande candelabro com doze velas de cera de abelha garantiam a iluminação á noite e um braseiro com bastante carvão devia manter o ambiente aquecido nas horas mais frias.

   A cama enorme era de carvalho já bem escurecido e contava com um colchão de penas ainda mais grosso do que aquele que sir George levara para pernoitar no cas¬telo Dugall. Os cobertores eram grossos e belos, em tons de vermelho, azul e verde, brilhantes como um lago ao sol. As quatro colunas apresentavam entalhes de vinhas e folhas e pesadas cortinas de linho adamascado, ora afastadas, protegiam do ar noturno.

   - Algum problema, minha senhora? - indagou a criada.

   Alice se voltou para a entrada.

   - Não, pode ir agora.

   A moça parecia hesitante e sem jeito.

   - É que... sir George disse que eu seria sua camareira de agora em diante, se me permitir, minha senhora.

   Alice não sabia o que dizer. Nunca tivera uma cama¬reira, seu pai achava um desperdício. Mas quem mandava ali era sir George.

   - Bem, se é uma ordem de seu senhor, aceito seu serviço. Como se chama?

   - Elma, minha senhora. - A criada entrou e ficou diante de Alice. - Já trabalhei como camareira de uma senhora, mas ela morreu e então voltei para casa. Sir George teve a bondade de colocar-me para servir no salão, mas não é o serviço a que estou acostumada.

   - Entendo - murmurou Alice, percebendo que tam¬bém demoraria um pouco para se acostumar à vida em Ravensloft.

   - Agora, vou ajudá-la a trocar de roupa - prontificou-se a criada, abrindo o baú de Alice. - Qual vestido vai usar?

   Alice não estava tão animada.

   - Isso é mesmo necessário? Estou bem com estas roupas... Elma observou-a criticamente e reparou:

   - A saia está suja de sangue.

   Devia ter pingado dos faisões que ela levara amarrados à sela do cavalo.

   - Oh, não tinha visto... Bem, o verde, então. - Em¬bora detestasse aquela roupa, tivera de incluí-la na bagagem por falta de opção.

   A criada puxou o vestido e sacudiu-o.

   - Quem quer que tenha arrumado seu baú, minha senhora, não sabia o que estava fazendo - comentou, severa. - Está todo amassado. - Examinou os punhos das mangas. - E devia ter sido limpo, também.

   - Eu arrumei o baú - esclareceu Alice. E3ma corou.

   - Perdão, minha senhora. Eu não devia...

   - Bem, não vou poder usar esse, então - concluiu Alice, encerrando o assunto. - Vou continuar com a mesma roupa.

   - Incluindo a calça, minha senhora? - questionou a criada, timidamente.

   - Não, vou tirar.

   - Mas sua saia está...

   Alice tentou entender o problema. Encurtara a saia para poder andar sem tropeçar, bem como montar a ca¬valo. Sem a calça, porém, suas pernas ficariam expostas.

   - Bem, Elma, como camareira experiente, diga-me o que é pior: pernas à mostra ou um vestido amassado com manchas de comida nos punhos?

   A criada nem pestanejou.

   - Pernas à mostra.

   Alice não concordava, mas a moça parecia entender mais do assunto.

   - O vestido verde, então.

   Nesse instante, um grito vindo do portão chamou a atenção e Alice correu à janela.

   Chegava a comitiva de uma mulher, montada num cavalo elegante. Mesmo de capa com capuz cor de ameixa debruada de arminho sobre o vestido amarelo, podia-se ver que era esbelta. Os cinco homens que compunham a escolta traja¬vam malhas de ferro e túnicas azul-safira. A visitante bai¬xou o capuz revelando um rosto belo e jovem.

   - É lady Margot - reconheceu Elma, olhando por sobre o ombro de Alice.

   - Lady Margot?! Mas não é uma viúva idosa?

   - Oh, não! Ela se casou muito cedo, coitada, com um homem escolhido por seu pai. - A criada adotou um tom confidencial. - Eles não eram felizes. Todos acharam bom quando ele caiu do cavalo e morreu.

   - Oh! - Alice ficou chocada, mas logo superou, fasci¬nada com a elegância da recém-chegada. - Mas ela não parece empobrecida. Seus homens estão bem vestidos...

   - Empobrecida? - Elma divertiu-se. - Ela herdou uma bela fortuna. Dizem que o pai ficou com pena dela antes do casamento e tomou providências para que assim fosse. - Passou a sussurrar: - E comenta-se que há um dedinho dela na morte do marido, mas eu não creio. É uma senhora gentil e sir George a adora!

   Alice olhou apreensiva para a criada,

   - Como primo, é claro! - esclareceu Elma. - Ah, ei-lo! Pela janela, viram-no correr ao encontro da visitante.

   - George! - exclamou lady Margot, a voz doce e feminina.

   Ele respondeu com um riso sonoro e um caloroso sorriso.

   - Pensei que fosse perder meu casamento! - comen¬tou, ajudando-a a saltar. - É claro que você ia me culpar por não avisá-la a tempo, e continuaríamos discutindo até o fim da vida!

   Na ponta dos pés, a prima beijou-o nas duas faces.

   Alice cerrou os punhos.

   - Você está com ótima aparência, Margot - observou George. - Andar a cavalo lhe faz muito bem.

   - Engano seu - replicou ela. - Acho muito desconfortável.                                                        

   Alice expressou desprezo. Qualquer um que não apre¬ciasse cavalgar era idiota.

   A bela lady Margot riu e pegou no braço de George. Caminhando pelo pátio, ambos passaram a falar baixo, os rostos bem próximos. Naquela atitude íntima, entra¬ram no salão.

   Sentindo as mãos tímidas, Alice limpou-as na saia. - Alise esse vestido o máximo que puder, Elma - ordenou à criada, como um general.

   Alice Dugall preparava-se para a batalha.

  

   George inspecionou o salão, já arrumado para a ceia. As mesas cobertas com toalhas brancas estavam postas e deliciosos aromas fluíam da cozinha. Os cavaleiros a seu serviço, em trajes de gala, também começavam a chegar e tomar seus lugares.

   O espartano sir Thomas certamente consideraria tanto a decoração quanto o banquete extravagantes, um des¬perdício pecaminoso, ainda que providenciados em honra ao casamento de sua filha.

   O som de passos arrancou-o do devaneio. Sir Richard Jolliet aproximou-se e apreciou sua indumentária para a ceia: camisa de linho branca, túnica escarlate bordada, calça escarlate e botas pretas.

   - Pensei que ainda estivesse se vestindo, meu senhor - comentou. - Vejo que escolheu uma túnica discreta para esta noite.

   - Não quero deslumbrar demais a noiva - retrucou George, vaidoso. Era evidente seu entusiasmo quanto ao casamento.

   - Claro - concordou o capataz, rindo. - Mas tenho certeza de que ela já está subjugada por sua magnificência.

   - Ela não é o tipo de mulher que se subjuga facil¬mente... - George não ocultava uma certa preocupação quanto a esse traço de Alice.

   O capataz ergueu o sobrolho, mas mudou um pouco de assunto:

   - Não obstante, creio que a senhora teve boa impres¬são de Ravensloft.

   - Creio que sim. Fez muitas perguntas durante a turnê, e eu elaborando as respostas... ou as evasivas, quando necessário.

   - Precisou de evasivas?

   - Não creio que sir Thomas e Alice aprovassem a quantia gasta nas últimas reformas, de modo que forneci números um tanto aquém dos verdadeiros...

   Sir Richard balançou a cabeça, parecendo desolado.

   - Não é um bom prenúncio. O casamento exige ho¬nestidade, desde o início...

   - Para alguém que nunca teve uma esposa, você fala em tom conhecedor - brincou George.

   - Tem razão! Entretanto, meu senhor, não é preciso muita sensibilidade para perceber que trata-se de uma das mulheres mais francas que já vi e, portanto, duvido de que tolere evasivas. Mesmo do senhor.

   George deu de ombros.

   - Sou da opinião de que nenhum homem deve ser completamente sincero com a esposa caso queira garantir a tranquilidade doméstica.

   - E a esposa também não deve ser completamente sincera com o marido, meu senhor?

   - É claro que deve.

   - Não me parece justo.

   - Não estamos falando de justiça, sir Richard - repreendeu George. - Estamos falando de casamento. Além disso, por que ela quereria mentir? Não vejo vantagem em mascarar o preço de um vestido, de fitas para cabelo, ou de roupas de cama.

   O capataz sorriu perspicaz.

   - Receio que esteja enganado quanto às representan¬tes do sexo frágil, sir George. Acredito que a maioria delas mente o tempo todo. Aprendem a fazê-lo desde o berço, seja para preservar a tranquilidade doméstica, seja por temer castigos.

   Foi a vez de sir George sorrir com ironia.

   - Perdoe minha impertinência, meu senhor, mas creio que deveria apreciar a franqueza de lady Alice. Deve ser terrível estar casado com uma mulher em quem não se pode confiar, ainda mais se ela for supervisionar os trabalhos domésticos e as despesas.

   - Tem toda a razão, Richard. - George pôs a mão no ombro do empregado. - Tenho certeza de que uma filha de sir Thomas Dugall jamais sonharia em ser de¬sonesta, ainda que se vista de um jeito esquisito.

   A conversa foi interrompida por um chamado aflito:

   - Sir George!

   Era Herbert Jolliet, entrando esbaforido.

   - O que foi? - inquiriu George.

   - É o dote, meu senhor. Não é o que esperávamos e... George não disfarçou o aborrecimento.

   - Eu devia ter adivinhado que a idéia de bens móveis de sir Thomas não bate com a minha - resmungou, imaginando as quinquilharias que Herbert encontrara no baú. - Vale quinhentos marcos?

   - Vale, mas...

   - Então, serve.

   De repente, o salão foi tomado pelo silêncio, tanto que a voz de sir Richard soou como um trovão ao anunciar:

   - Ei-la, meu senhor.

   George deu meia-volta e viu Alice ao pé da escadaria da torre. Estava com aquele vestido verde que já conhecia, mas agora seu cabelo castanho ondulado estava solto, quase alcançando a cintura, grosso e luxuriante, do tipo em que os homens gostavam de enterrar as mãos. Seus intrépidos olhos castanhos brilhavam à luz dos archotes, e sua expressão orgulhosa e desafiadora caberia no rosto de uma rainha. Tratava-se, sem dúvida, de uma mulher de paixão, fogo e espírito.

   O silêncio no salão implicava que os outros homens pre¬sentes também estavam boquiabertos ante a inesperada e incomum visão. A culpa era daquele vestido verde de Alice, que expunha mais do que devia e era apertado onde não podia ser. Para completar, estava com os punhos sujos!

   Será que ela não tinha outro vestido?

   O olhar de Alice ao encarar o salão revelou algo além de orgulho e desafio, como se ela percebesse quão ridícula se apresentava. George não permitira que sua noiva se sentisse humilhada em seu próprio salão!

   - Lady Alice! - exclamou, em tom respeitoso e com um sorriso sincero. - Está linda.

   - Sir George - cumprimentou ela, friamente, enter¬rando fundo a dor do constrangimento.

   Já fora vítima de zombarias antes. Nenhuma mulher com seis irmãos mais velhos podia escapar delas, de modo que era perfeitamente capaz de disfarçar o pesar ante a péssima escolha de vestuário sob uma aparência de dig¬nidade austera.

   Não obstante, não podia evitar sentir-se contente com o tom respeitoso de sir George, ainda que fosse dispensável a piedade em seus olhos, a qual alfinetava seu orgulho. Eis por que, enquanto ele a conduzia através do salão, revelou estar ciente das deficiências de sua apresentação.

   - Sei exatamente como estou - sussurrou-lhe, tentando não tropeçar, desacostumada como estava a saias longas.

   George ia replicar qualquer coisa, mas lady Margot surgiu no outro extremo do salão, trajando um lindo ves¬tido de seda branco com bordados em vermelho, a cintura bem marcada por um cinto dourado e um finíssimo lenço de seda mal ocultando os bastos cabelos negros.

   - Venha - chamou George. puxando-a pelo braço de um jeito quase rude. - Quero que conheça minha prima.

   - A pobre viúva idosa? - ironizou Alice.

   Ele lhe lançou um olhar curioso, mas já alcançavam o centro do salão, bem como a outra visitante.

   - Lady Alice Dugall, permita-me apresentar-lhe mi¬nha prima, lady Margot de Pontypoole.

   Lady Margot fez uma graciosa reverência, que Alice esforçou-se ao máximo para copiar.

   - Estou encantada em conhecê-la - declarou lady Margot, sorrindo com amizade sincera.

   - Sir George levou-me a acreditar que fosse bem mais idosa - alfinetou Alice.

   George mostrou-se constrangido.

   - Eu nunca...

   - Ah, ele disse que se tratava de uma velha viúva, pois não? - provocou a prima, brincando. - Bem, com¬parada com você, minha querida, sou de fato velha.

   Alice enrubesceu e George achou melhor mudarem de assunto.

   - Nunca a vi mais bela, Margot - comentou. - Estou chocado que nenhum nobre tenha pedido sua mão ainda.

   - Quem disse que não? - questionou a bela viúva, falsamente ofendida. - No entanto, como você não se dignou cortejar-me, nenhum outro pareceu valer a pena.

   - Ora, minhas maneiras são rudes demais para o seu gosto -justificou-se George.

   Lady Margot riu graciosamente, enquanto Alice só ou¬via, fascinada. Como alguém podia considerar "rudes" as maneiras de sir George?

   - E são mesmo! - confirmou a prima. - Como pode permitir que permaneçamos de pé por tanto tempo?

   - Perdão! - exclamou George, estendendo a mão para a prima. - Eu a conduzirei a seu lugar... assim que lhe apresentar um certo cavaleiro - antecipou-se, dando-lhe uma piscadela. - Queira se acomodar Lady Alice. Vol¬tamos num instante.

   Vendo seu noivo afastar-se alegremente na companhia de outra mulher, Alice deu meia-volta e seguiu para a plataforma. Mal dera dois passos, o capataz da proprie¬dade interpelou-a:

   - Eles são como irmãos, minha senhora - declarou sir Richard Jolliet, estendendo a mão a fim de escoltá-la o resto do caminho até a mesa.

   - Ah, são? - replicou ela, ignorando a oferta.

   - Permita-me escoltá-la até seu lugar - insistiu ele. Alice não poderia ser ainda mais rude, por isso aceitou.

   À mesa, quis acomodar-se no lugar à esquerda da cadeira central, reservada a sir George.

   - Perdão, minha senhora, mas esse lugar é de sir Thomas - esclareceu o capataz. - A senhora se sentará à direita de sir George.

   Surpresa com a honraria, Alice acomodou-se na cadeira indicada. Satisfeita, viu que sir Richard não faria a ceia à mesa principal. Havia algo naquele homem de que não gostava, mas não saberia precisar o quê.

   Sir Thomas adentrou o salão seguido por seus homens e sir George correu a recepcioná-lo, abandonando a prima à própria sorte. De fato, seu noivo tomava atitudes gros¬seiras, às vezes.

   A cena que se seguiu provou, contudo, que sir George de Gramercie executava algum plano seu muito bem ela¬borado. Conduzindo sir Thomas até a prima Margot, fez as devidas apresentações e pareceu satisfeito com as rea-ções de ambos.

   O sorriso de sir George podia ser classificado como maquiavélico.

  

   Alice nunca se sentira tão chateada em toda a vida.

   Não era ela a noiva ali? Entretanto, todos os homens presentes pareciam embasbacados por lady Margot de Pontypoole, incluindo seu pai e seu noivo. Bem poderia estar em outro país, considerando a atenção que dispen¬savam à beldade durante a ceia.

   Correu o olhar pelo salão, ao longo dos ricos tapetes que balançavam levemente no ar quente, por sobre os rostos que brilhavam como estátuas de bronze à luz dou¬rada dos archotes e velas. Sobre as toalhas brancas re¬luziam taças de prata e travessas de madeira polida.

   Aromas deliciosos desprendiam-se dos pratos condi¬mentados que chegavam sem parar em meio ao burbu¬rinho e às risadas. Apesar do barulho, os menestréis com seus instrumentos seguiam apresentando sua arte.

   Se ao menos pudesse deixar a mesa principal e jun¬tar-se aos homens do castelo Dugall. Entre eles, ficaria bem mais à vontade do que exilada ao lado do próprio noivo, como estava.

   Como iria se sentir no dia seguinte, quando seu pai houvesse partido? Ele não participaria da festa. Concor¬dara em chegar a Ravensloft um dia antes sob tal con¬dição, pois não gostava de passar mais de um dia fora de seu castelo.

   Arrancou uma perna do pato assado e devorou-a, em¬purrando-a goela abaixo com a ajuda do vinho. Mais uma vez, o punho da manga resvalou na travessa, ganhando mais uma mancha de gordura.

   Pensou em limpar a sujeira com o guardanapo de linho, mas ficou com dó de sacrificar um artigo tão fino. Que importância tinha sua aparência? Ninguém ligava.

   Dali a dois dias, quando estivesse casada, iria se vestir como bem quisesse.

   Se o casamento acontecesse.

   Enquanto mastigava um naco de pão branco, olhou de soslaio para lady Margot. Nunca se sentira tão inadequada como agora, diante dela. Além de não se vestir como lady Margot, e de não se comportar como ela, também não comia como lady Margot e sir George. Eles só beliscavam os alimentos, como se comer fosse muito menos importante do que exercitar-se em conversas educadas e perspicazes.

   Sentia-se completamente deslocada, ainda que George lhe dedicasse um sorriso charmoso de vez em quando, ao qual deveria corresponder, se conseguisse pensar em algo brilhante para dizer.

   Urna contagiante risada feminina chamou a atenção para o trio a sua esquerda.

   - Se faz questão, sir Thomas - dizia lady Margot, divertida. - Mas tenho certeza de que os homens de George podem cuidar dos seus cavalos.

   Sir Thomas mal lembrava o castelão severo que cos¬tumava encarnar.

   - De qualquer forma, tenho por hábito verificar se os animais foram devidamente alimentados e acomodados para a noite.

   De fato, mesmo tratando-se da menor tarefa, sir Tho¬mas não confiava cegamente em ninguém, a não ser em seus filhos.

   - Se me der licença, volto num minuto - declarou sir Thomas, já de pé, curvando-se para a senhora.

   No meio do salão, chamou dois de seus homens com um sinal de cabeça e retiraram-se.

   - Nossa, ele tem presença, não? - elogiou lady Mar¬got, inclinada para sir George. - Poderoso.

   Cônscio de que Alice não dissera três palavras desde o início da refeição, George moveu o rosto na direção dela, ao mesmo tempo que lançava à prima um olhar significativo.

   Lady Margot entendeu de imediato.

   - Um homem muito gentil, também - completou, amigável.

   Alice fingiu não ouvir, mas George já a conhecia bem. Via a tensão em seus ombros, o cenho franzido e o cuidado para não encostar nem o cotovelo nele. Nas poucas vezes que captara seu olhar, ela se mostrara tão séria que ele cogitou se estava para se casar com um sargento, não com a mulher que se revelara tão apaixonada e fogosa. Talvez fosse a presença de seu pai, mas a saída dele não a descontraíra nem um pouco.

   Margot decidiu fazer nova tentativa:

   - Sabe, George, quero manifestar meu protesto quanto a esse casamento.

   Esperando que Alice percebesse tratar-se de brinca¬deira, George incentivou a prima:

   - Por quê?

   - Sei de boa fonte que várias donzelas casadouras ficaram bastante desoladas quando souberam de suas núpcias.

   - Cite uma.

   - A filha do conde de Dunstable.

   - Nem imagino quem seja...

   Alheia à conversa, Alice concentrava-se em esvaziar mais uma taça do fino vinho francês. Nesse ritmo, não conseguiria levantar-se da mesa ao final da ceia.

   - Margot adora me atormentar com essas fofocas - comentou George com a noiva.

   - O senhor parece gostar - replicou Alice, friamente. Fitou-o com expressão desaprovadora, tão parecida com o pai que ele se refugiou tomando um gole de bebida. Qual o problema dela? Enquanto Margot mostrava-se simpática e amigável, Alice a tratava com uma descor¬tesia até embaraçosa. Não permitiria que sua prima se sentisse pouco à vontade em seu castelo.

   - Não se lembra mesmo de Isobel de Barlough? - insistiu Margot, aparentemente imune à hostilidade de Alice, ou colocando-se acima. - Ela vai ficar arrasada com seu esquecimento.

   - Isobel de Barlough? É aquela que funga o tempo todo? Margot divertiu-se.

   - Ela vive resfriada - explicou. Então, curvou-se para Alice, que finalmente a encarara. - Aliás, minha que¬rida, posso enumerar várias moças que provavelmente ensoparam o travesseiro quando souberam que você havia capturado este valoroso cavaleiro. Certa vez, num torneio, duas jovens se engalfinharam por causa dele.

   Alice deu de ombros e concentrou-se num grupo de homens de seu pai empenhado em interpretar uma can¬ção bem alegre.

   George achou melhor ignorar Alice como a uma criança emburrada. Sua grosseria desconcertara Margot e ele agora temia que a prima se recusasse a permanecer em Ravensloft após o casamento, o que era absolutamente necessário.

   - Quem eram mesmo as duas? - indagou, tentando consertar a situação.

   - Deixe-me ver... - Margot arqueou as belas sobran¬celhas. - Não eram Lady Jane Pomphrey e sua amiga? Ao menos, eram amigas até então. Nunca mais se falaram.

   De repente, Alice empurrou a cadeira para trás e le¬vantou-se com surpreendente majestade para alguém que secara cinco taças de vinho.

   - Não se sente bem? - quis saber George, levantan¬do-se também.

   - Preciso de ar - declarou ela, lançando a Margot um olhar frio. - Ar fresco.

   Afastou-se com passos firmes. Tropeçou ao descer da plataforma, mas endireitou-se rápido e saiu do salão. O silêncio dominou o salão por um instante.

   - Acho melhor ir atrás dela - decidiu George, en¬quanto os convivas começavam a cochichar.

   - George, desculpe-me! - pediu Margot. - Não foi minha intenção aborrecê-la.

   - Eu sei. - Ele tranquilizou a prima com um sorriso. - Trata-se da mulher mais temperamental que já vi.

   - É melhor ir atrás dela.

   - Sim, seria terrível encontrar sua noiva desmaiada no pátio...

   Margot segurou-o pela manga.

   - Diga-lhe que não precisa ter ciúme de mim.

   George encarou a prima perplexo.

   - Mas, então é isso?

   Margot balançou a cabeça afirmativamente.

   - Pode crer.

   Ele fez uma mesura galante.

   - Farei como recomenda, minha senhora, e lá vou eu atrás de minha noiva temperamental.

  

   - Psiu! - Elma alertou os companheiros com os quais conspirava no beco escuro entre os estábulos e o depósito. - Vem vindo alguém.

   Viram sir Thomas passar e Herbert suspirou aliviado.

   - Ainda bem que ele vai embora amanhã.

   - Mas a filha fica - lembrou sir Richard Jolliet.

   - Será? - duvidou Herbert. - Ela não parece muito feliz. E quando sir George vir o dote dela...

   - No que consiste, afinal? - quis saber Richard.

   - Não são itens domésticos. - Vendo Elma e Richard impacientes, esclareceu: - São armas. Espadas, arcos e flechas, lanças.

   - Deus do céu! - espantou-se Elma. - Que tipo de senhora vamos ter?

   - Talvez a moça geniosa se zangue o bastante para ir embora e ele se case com Margot de Pontypoole.

   - Lady Alice não irá embora - opinou Elma. - Ela o quer.

   - Como pode estar tão certa? - questionou Herbert. A criada deu de ombros.

   - Ora, eu a observo. E ela tem ciúme de lady Margot também.

   - Foi o que imaginei - comentou Richard. - Podemos tirar proveito, se ela está insegura de seu lugar aqui. Vamos fazer o que planejamos: ganhar a sua confiança e mantê-la, principalmente você, Elma.

Ela aquiesceu.

   - E se a esposa de sir George quiser examinar os registros de despesas? - questionou Herbert. - É um direito dela; não terei como negar.

   - Que examine - decidiu Richard. - Não vai en¬contrar nada de errado, a menos que você tenha sido negligente. - Engrossou a voz: - E você não foi, correto?

   - Claro que não!

   - Então, não temos nada a temer. Ela é só uma mu¬lher, afinal. O importante é manter a cabeça fria e ver para que lado o vento sopra. Se o casamento apresentar problemas, tanto melhor para nós e nossos planos.

   - Concordo. - Elma verificou a saída do beco. - É melhor eu voltar. Algo me diz que a senhora vai se recolher cedo esta noite.

   - E você será uma criada amiga e prestativa - acres¬centou Richard.

   - Claro!

   Abafando o riso, a criada se misturou às sombras rumo ao salão.

   Os dois homens aguardaram um pouco; então, seguiram cada qual seu caminho.

  

   George não imaginava onde poderia estar Alice, ao menos, desmaiada no pátio não a encontrara. Por fim. avistou-a caminhando ao luar prateado perto da capela, parecendo mais um soldado de guarda do que uma mulher na véspera de seu casamento.

   - Alice? Você está bem?

   Ela estacou e encarou-o amuada.

   - O que é que o senhor quer?

   - Eu estava preocupado com você. Achei que podia estar enjoada, com todo aquele vinho...

   Ela se enrijeceu, parecendo ainda mais enfezada.

   - Acha que estou bêbada?

   - Não!

   - Ah, bom! E preciso um barril daquele vinho fraquinho para me derrubar.

   George não duvidava nem um pouco.

   - Perdoe-me - pediu, com uma mesura cortês.

   - Agora que cumpriu seu dever, pode voltar para sua fascinante companhia.

   - A qual está muito preocupada com o fato de você estar com ciúme dela, quando não deveria - completou George.

Alice ficou desconcertada, como se lhe houvessem atin¬gido um ponto fraco, mas não o demonstraria.

   - Ela está enganada. Não estou com ciúme de ninguém. George acercou-se mais.

   - Receio que esteja interpretando mal minha relação com minha prima.

   Ela reagiu cora uma risada meio amarga.

   - Receio ter entendido bem demais, meu senhor. - Viu-o cerrar os punhos, frustrado, e questionou: - Diga-me, sir George, por que não se casa com ela?

   - Se eu quisesse me casar com Margot, já o teria feito. Mas eu quero você.

   - Por quê?

   Em vez de responder com palavras, George tomou-a nos braços, fitando-a intensamente nos olhos escuros, até ceder ao implacável desejo de beijá-la.

   Por um instante, ele pensou que ela o rejeitaria... mas não rejeitou. Estava correspondendo na mesma intensi¬dade, com aquela urgência que já sentira nela antes, uma urgência que o contagiava e ameaçava liberar algo que sempre reprimira.

   Seguro, introduziu a língua no calor úmido da boca dela, o contato excitando de uma maneira que lhe era inédita. Abraçando-o com força, ela pressionou o corpo contra o dele e deixou escapar um gemido baixo.

   Ele interrompeu o beijo e deslizou os lábios pela curva delicada de seu queixo, passando pelo pescoço rumo ao decote generoso.

   - Eu a quero, Alice - murmurou, febril. - Céus, eu a quero.

   Apenas meio consciente do que fazia ao tomar-lhe a boca outra vez, ele a prendeu de costas contra a parede da capela.

   Para choque dele, Alice introduziu a mão por sob sua túnica e camisa e acariciou-lhe de leve os mamilos.

   - Oh, Alice... - gemeu ele, inclinando-se para beijar a pele exposta de seus seios, ansioso por retribuir parte do prazer que ela lhe proporcionava.

   - Vocês aí! Não tem respeito, não?

   Alice engoliu em seco e George deu meia-volta para enfrentar sir Thomas Dugall.

   Acompanhado de dois homens, o indignado castelão ordenou-lhes que o esperassem e aproximou-se da filha e do futuro genro.

   - Alice, o que significa isto? George se adiantou:

   - Sir Thomas, eu...

   - Como se atreve a abordar minha filha como se fosse uma vadia qualquer? - vociferou o velho nobre. Então, colérico, ergueu a mão enluvada e o esbofeteou violentamente.

   Temendo que sir George reagisse, e nesse caso seu pai puxaria a espada e o mataria, Alice se colocou entre os dois.

   - Pai, a culpa não foi dele!

   - Perdoe-me pela total falta de compostura, sir Tho¬mas - pediu George, já recuperado e no exercício da cortesia. - Atribuo à impaciência de noivo as liberdades que andei tomando.

   - Creio que não é o homem certo para minha filha, afinal de contas - opinou sir Thomas.

   George procurou uma saída.

   - Devo lembrar, sir Thomas, que já assinamos o acor¬do matrimonial. O senhor deu-me sua palavra.

   - Mas que impertinência!

   - Eu sou sir George de Gramercie, e estou noivo de sua filha!

   Sir Thomas estreitou o olhar e voltou-se para a filha.

   - Você ainda o quer?

   Alice sustentou o olhar do pai, cônscia de que estava novamente diante de uma escolha muito importante em sua vida. Mas não teve dúvida.

   - Quero.

   - Então, case-se com ele! - concordou o pai. - Mas se ele um dia bater em você ou lhe causar qualquer pesar, volte para casa imediatamente. Não se prenda pela culpa.

   Alice aquiesceu e sir Dugall ordenou:

   - Agora, vá para o seu quarto!

   Assim que ela se afastou, sir Thomas pousou os olhos fulminantes sobre George.

   - Se você um dia a magoar, eu o mato. Entendeu?

   - Perfeitamente, sir Thomas.

   Dando o assunto por encerrado, sir George seguiu des¬contraído para o salão.

  

   - Está se sentindo bem, minha senhora? - indagou a criada Elma, quando Alice entrou no quarto em total desconsolo.

   - Estou.

   - Está um pouco corada.

   - Estou cansada.

   A criada esperava alguma confidência.

   - Gostaria de tomar um pouco de vinho?

   - Acho que já tomei o bastante. Por favor, quero ficar só.

   - Mas vai precisar de ajuda para...

   - Posso me despir sozinha. Boa noite.

   A criada fez uma reverência e retirou-se.

   Alice soltou um longo, fatigado e trêmulo, suspiro e se atirou na cama.

   Que diabo estava acontecendo, afinal?

   Sir George queria casar-se com ela ou não?

   Queria casar-se com ele?

   Importava o que ambos desejavam, uma vez que o contrato matrimonial já fora assinado?

   Levantou-se e foi até a janela. Que tal pular a janela e fugir daquele lugar? Assim, não teria que se preocupar em tomar uma atitude da qual talvez se arrependesse pelo resto da vida.

   Considerando a altura da torres, era bem provável que escorregasse e quebrasse o pescoço.

   O que poria fim ao seu dilema, pensou, com um sor¬riso triste.

   Apoiou os cotovelos no peitoril de pedra e apreciou os arredores do castelo sob o manto noturno. Tudo parecia tão tranquilo em contraste com o barulho no salão, onde os homens ainda comemoravam. Na aldeia, luzinhas tí¬midas escapavam de algumas portas e janelas humildes. Em algum lugar, uma coruja arrulhou.

   Logo depois, dois homens surgiram no pátio e ela os reconheceu pelas vozes. Eram sir George e sir Richard, que meramente se despediram e tomaram cada qual seu caminho.

   Por que ele a queria? Não podia acreditar que ele a quisesse somente por ela. Era diferente demais do tipo de mulher que ele sem dúvida preferia, sendo o melhor exemplo a bela, charmosa e perspicaz lady Margot.

   Seria só para formar a aliança com seu pai? Podia até ser, ainda que não levasse terras e seu dote, embora não fosse pequeno, também não era de impressionar. Certa¬mente, um homem com tantos atributos podia escolher dentre muitas moças mais ricas, mais bonitas e mais bem-educadas. Por que ela?

   Se conhecesse tal resposta, poderia sentir-se integrada ali, e não como se não pertencesse ao lugar. Sabia que era diferente. Passara tempo demais na companhia dos irmãos e dos soldados de seu pai para ser como as outras mulheres. Sir George a fazia sentir-se mulher, principalmente quando a tomava nos braços e a beijava. Com certeza, era um bom presságio para o casamento...

   Quantas vezes não ouvira, às escondidas, os relatos das aventuras amorosas de seus irmãos e dos outros homens? Ao se afastar da janela, tinha um sorriso diferente no rosto. Era um sorriso de prazer. Um sorriso de triunfo. Talvez não tivesse etiqueta à mesa. Talvez não se ves¬tisse como lady Margot de Pontypoole. Talvez fosse uma completa ignorante com respeito a inúmeros fatos da vida social que as moças de sua classe conheciam tão bem.

   No entanto, conhecia fatos que aquelas moças refina¬das nem imaginavam, exatamente por ter passado tanto tempo na companhia de homens. Sem dúvida, seu marido faria vista grossa a suas deficiências em virtude de seu excepcional conhecimento...

  

   No dia seguinte, ao meio-dia em ponto, com o sol brilhando num céu sem nuvens, George chegou bem sorridente à capela. Não queria que ninguém duvidasse de sua satisfação quanto ao passo que estava para dar.

   Tratava-se de mais um passo na jornada iniciada por ocasião da morte de seu pai, quando se tornara o senhor de Ravensloft, com todos os privilégios e deveres decorrentes.

   A cerimônia de casamento aconteceria na capela, na presença dos convidados. Os soldados e demais colabo¬radores aguardariam no pátio e então acompanhariam o cortejo até o salão, para a festa. Vários de seus homens e de sir Thomas já perambulavam por ali, sem dúvida ansiosos pelos comes e bebes.

   Bem que gostaria de poder pensar somente no bom da festa também. Tendo comparecido a inúmeros casa¬mentos, conhecia a sensação. Agora que era o noivo, po¬rém, sentia-se completamente diferente.

   Não podia deixar de pensar se não fora precipitado ao escolher Alice. Talvez devesse ter optado por uma moça mais nova e dócil, menos desafiadora e orgulhosa, que se curvaria mais facilmente às determinações do marido. Que soubesse vestir-se e portar-se à mesa de forma apro¬priada e que só falasse quando lhe dirigissem a palavra.

   Uma que gritasse horrorizada à visão de um homem nu e tivesse que ser seduzida na noite de núpcias, mas que se deixaria possuir rígida e aterrorizada, não importava quão gentil fosse o marido.

   Que não se encontraria com ele em excitante paixão febril.

   Mas que tampouco lhe provocaria a ira mais fulminante que sentira em anos.

   Entrou na pequena construção de pedra tomada pelo aroma de incensos. A iluminação agradável provinha de algumas velas no altar simples e dos raios de sol que atravessavam os vitrais das janelas altas e estreitas, pa¬recendo sagrados, não naturais, em seus tons de amarelo, ; vermelho e azul.

   Massageou as têmporas, tentando pensar com mais clareza. Talvez orar ajudasse...

   - Cansado, George?

   Só então ele viu Margot de pé próxima à estátua da Virgem Maria.

   Estava linda, como sempre. Trajava um vestido sim¬ples, porém elegante, de seda verde-claro, e uma túnica cor de esmeralda. Também esverdeado, o lenço finíssimo se agitava à mais leve respiração. Mas era evidente, em seu semblante, o cansaço da viagem. A distância era sua justificativa para não visitá-lo mais vezes.

   - Um pouco - respondeu ele, por fim, com um sorriso caloroso. - Receio ter-me excedido ante as iguarias no jantar.

   - Falou com ela?

   - Falei.

   - Você a tranquilizou?

   Ele fez uma expressão conformada.

   - Tentei.

   A prima pareceu satisfeita.

   - Bom.

   - Margot?

   - Sim?

   - Preciso de um grande favor seu. Ela sorriu.

   - Sim?

   - Gostaria que se hospedasse aqui por algum tempo, para ajudar Alice.

   - Ajudá-la no quê?

   - Você a viu ontem à noite - esclareceu. Ao menos com Margot, podia ser franco e objetivo. - Ela come como o homem mais grosseiro da minha tropa. Não se veste adequadamente... aliás, costuma usar a mais in¬crível combinação de calça, túnica e saia que você poderia imaginar. Não tem noção de decoro ou etiqueta. Quero que a ensine a ser uma dama.

   - Ela é uma dama - observou Margot, voltando-se para a estátua.

   - É filha de um nobre.

   - Não é hora de evasivas, Margot! - repreendeu Geor¬ge. - Falo de uma dama adequada. Uma dama respeitável.

   - Então, quer que eu seja sua professora, como uma freira num convento?

   - Margot, por favor, você tem de me ajudar. Não há mais ninguém a quem possa pedir. Não pode fazer isso por mim?

   A prima se voltou e encarou-o, o rosto inescrutável.

   - Por que não ensina você mesmo? Ele olhou para um vitral.

   - Não posso. Não tenho paciência.

   - Mas você sempre foi um apaziguador - lembrou Margot.

   - É fácil quando não se sente nada especial pelas partes envolvidas na briga.

   A prima se aproximou e tomou-lhe a mão; ele sentiu então o perfume de rosas que era sua marca registrada.

   - Quer dizer que sente algo especial por Alice Dugall? George baixou o olhar, encabulado.

   - Acho que sim - confessou.

   - Fico feliz em saber, considerando que vão se casar.

   - E vai fazer o que estou pedindo?

   - Sim, George, farei o que me pede.

   - Obrigado, prima.

   George estava aliviado. Km poucas aulas, Margot con¬seguiria corrigir as imperfeições de Alice.

Então, pela porta lateral, chegou o baixinho e gorducho padre Adolphus seguido do coroinha.

   - Minha senhora, meu senhor, chegaram um pouco cedo - comentou, à guisa de cumprimento.

   Pela porta principal, entraram Richard e Herbert Jolliet.

   - Um pouco, talvez - concordou George. - Acho que estou nervoso, coroo todo noivo.

   - E eu vim pedir à Virgem Maria que abençoe meu primo e sua esposa - explicou Margot, meiga como sempre.

   - Uma atitude louvável, minha senhora - aprovou o religioso.

   Margot acomodou-se no banco ao lado dos Jolliet, en¬quanto outros convidados adentravam a capela. Por fim, faltavam apenas a noiva e seu pai.

   A espera durou ainda vários minutos, até que mur¬múrios excitados anunciaram o início do grande evento.

   No altar, George olhou para a porta e seu queixo quase caiu.

   Aparentemente, Alice tinha ao menos um vestido que se lhe ajustava bem. O vestido branco de tecido brocado exibia um decote quadrado perfeito, ornado por borda¬dos em ouro. Uma guirlanda de flores primaveris co¬roava-lhe a cabeleira castanha; de seus quadris estrei¬tos, pendia um cinto de couro com trabalhos em relevo que lhe destacava a feminilidade ao avançar pausada¬mente pelo corredor.

   Céus, ela mais parecia uma ninfa do bosque ou algum outro espírito da natureza vindo à terra na forma de noiva deslumbrante! Já não tinha mais dúvida de que Alice Dugall era a mulher certa para ele.

  

   De braço dado com o pai, Alice estava acanhada com toda aquela gente olhando para ela. Aliás, ficara tentada a fugir, até que viu George no altar, maravilhado.

   Ante o sorriso ele, toda sua incerteza desvaneceu-se.

   - Meus senhores e minhas senhoras... - começou o pároco, quando a noiva e o noivo se encontraram diante do altar. - Estamos aqui reunidos para pedir a bênção de Deus à união de sir George de Gramercie e lady Alice Dugall sob os sagrados laços do matrimônio...

  

   O salão era só barulho de conversas, risos e música. Antes de ser servida a segunda rodada de bebidas, os soldados já estavam embriagados e as criadas circulavam com desenvoltura entre as mesas, evitando os inconve¬nientes avanços masculinos. Os representantes da no¬breza eram servidos por pajens sorridentes. Na galeria, os menestréis, certos do generoso pagamento, tocavam e cantavam com todo o talento e empenho.

   George estava mais generoso do que nunca, feliz com o casamento, alegre com o vinho, satisfeito com a decisão do sogro de não participar da festa e ansioso pela noite de núpcias.

   - Gostaria muito de ter podido convidar todos os ca¬valeiros meus amigos - comentou, dando à esposa um sorriso maroto. - Para exibi-la, minha senhora.

   Alice enrubesceu.

   - Seriam centenas, meu senhor - adivinhou ela. - Com certeza, tal banquete custaria uma fortuna!

   - E daí? - questionou George, brincando com a taça de vinho. - Todos me invejariam.

   - Creio que não teríamos condições...

   - Podemos perguntar a Richard, se quiser.

   - Agora?

   George a encarou e sentiu a mão dela em sua coxa, numa atitude ousada e inesperada.

   - É... acho melhor não. Acho que não conseguiria me concentrar nesse assunto.

   - Nem eu, meu senhor.

   - Mais tarde, quando se puser a par das despesas da casa com Herbert, constate que posso dar um ou dois banquetes por ano.

   Alice retirou a mão.

   - Despesas da casa? Com Herbert?

   - Oh, eu sei, isto não é hora para falarmos disso. Venha! - Ele a puxou pela mão, fazendo-a levantar-se. - Abram espaço! - berrou aos convivas. - Minha esposa e eu queremos dançar!

   - George, eu...

   Vendo uma pista de dança surgir no centro do salão, Alice ficou pálida. Não sabia dançar. Cavalgava tão bem quanto qualquer homem, disparava flechas melhor do que a maioria, usaria uma espada e até uma maça se necessário, mas nunca aprendera a dançar.

   - Músicos! - gritou George. - Uma carola bem alegre, pois hoje tenho asas nos pés! - Sempre puxando Alice pela mão, indicou a formação de um círculo. - Sei que faltam damas, cavalheiros, mas mesmo assim, juntem-se a nós, pois quero que todos dancem no dia do meu casamento!

   - George, por favor! - implorou Alice, mas o líder dos músicos ensaiou os primeiros acordes.

   Sem perder tempo, sir Richard Jolliet convidou lady Margot para dançar e ambos preencheram uma fração do círculo imaginário. Outros convidados foram chegando para dar início à dança de roda. Alice era só desespero agora.

   - George, eu não creio que...

   Prontos, os menestréis começaram a executar a carola. Alice jamais saberia explicar como conseguiu chegar ao fim da dança. George puxava-a para lá e para cá, então a fazia rodopiar como uma maluca. Inúmeras vezes ameaçara escorregar como um osso atirado aos cães ou cair de cabeça numa mesa. Quando a carola finalmente se encerrou e os demais participantes retornaram a suas mesas, teve de se agarrar aos ombros de George para não cair de tontura. Ele a olhava sério.

   - Nunca tinha feito isso, não é?

   - Não. Era isso o que eu estava tentando lhe dizer.

   - Não conhece dança nenhuma?

   - Não.

   George pareceu se conformar.

   - Bem, não faz mal.

   Então, tomou-lhe a mão e ela sentiu toda a frustração se esvair ao toque de seus dedos esguios e fortes.

   - Gostaria de se recolher?

   O coração de Alice, ainda acelerado do exercício da dança, palpitou ainda mais.

   - Como quiser, meu senhor.

   Com o corpo latejando e o coração disparado, conseguiu fazer uma reverência ao marido. Tão calma e regiamente quanto possível, seguiu para a escadaria da torre com toda a dignidade que pôde reunir.

   Assim que escapou à visão dos convivas no salão, porém, riu traquinas e agarrou a saia, subindo dois degraus de cada vez. Estava para experimentar aquilo de que seus irmãos e todos os outros homens do castelo Dugall viviam falando. E que dominara seus pensamentos durante toda aquela noite, por mais que tentasse evitar, quando não mais se preocupava em integrar-se a Ravensloft.

   A exemplo de todos os que se criavam na zona rural, Alice aprendera cedo como ocorria a procriação entre os animais. Depois, ouvindo as conversas dos irmãos e dos soldados, percebeu que não era só a procriação que mo¬tivava machos e fêmeas, ao menos tratando-se de pessoas.

   Eles não eram explícitos, contudo, obrigando-a a imaginar o resto. Aparentemente, existiam inúmeras varia¬ções e posições, mas o básico era simplesmente aquilo... o básico. Tudo o que era básico, de uma arma a um móvel, podia ser aprimorado de acordo com a criatividade. Mas, o que quer que fosse aquilo que faziam com as mulheres, os homens apreciavam demais, e asseguravam-se de que elas haviam apreciado também. E certas mu¬lheres eram muito estimadas, e até admiradas, por suas habilidades na cama.

   Agora, recordando todas aquelas conversas, uma ava¬lanche de imagens selvagens invadia-lhe a mente, todas retratando seu belo e sedutor marido. Iria se mostrar tão entusiasmada e criativa quanto aquelas mulheres de que ouvira falar.

   Ansiosa, escancarou a porta do quarto e assustou a criada Elma, que a aguardava sentada numa banqueta.

   - Minha senhora! Pensei que ainda fosse se demorar um pouco.

   - Não, eu não sei dançar! - explicou Alice, dando um rodopio que contrariava a afirmação.

   - Quer que a ajude com o vestido?

   - Quero. E guarde-o com cuidado, embora só Deus saiba quando precisarei dele novamente.

   Embora impaciente, teve de manter-se quieta enquan¬to a criada lhe desatava os cordões e baixava o vestido. Por fim, viu-se só com a camisola transparente.

   - Está quente demais aqui, não está? - reclamou, indo à janela abrir as cortinas. - Você pôs carvão demais no braseiro.

   - Perdão, minha senhora.

   - Está tudo bem, Elma. Já está quente demais para se usar o braseiro, de qualquer forma.

   - Suponho que sir George não quisesse que passasse frio, minha senhora,

   - Ou pensava nele mesmo. Olhe para a quantidade de cobertas na cama. - Alice enrubesceu ao olhar para o móvel sugestivo. - Bem, não faz mal. Vamos guardar a maior parte, amanhã.

   - Como quiser, minha senhora.

   - E todas essas velas acesas! - Uma a uma, Alice apagou as velas do candelabro. - Não são necessárias, Elma.

   - Quer que a ajude com o cabelo?

   - Não, obrigada. Posso me arranjar sozinha agora. Por que não se junta aos outros na cozinha? Tenho certeza de que sir George reservou boa comida e bebida para todos vocês, também.

   A criada aquiesceu e foi para a porta.

   - Boa noite, minha senhora.

   - Boa noite, Elma.

   Assim que a porta se fechou, Alice contemplou a cama por um bom tempo antes de ceder a uma irresistível ten¬tação. Valendo-se de uma corridinha e um salto, caiu na maciez do colchão de penas, rindo feliz como uma criança.

   - Um pecado! - constatou, em voz alta, passando a mão pelo cobertor acetinado.

   - Perfeitamente redimíveí com uma ajuda aos pobres. Surpresa, Alice viu o marido recostado à porta com uma taça de vinho na mão. Era como se aparecesse num passe de mágica.

   - Eu... eu não o ouvi entrar.

   - Posso ser silencioso como um gato, quando quero, rainha senhora. - George terminou o vinho e pousou a taça. A caminho da cama, foi tirando o cinto. - Receio ter sido rude e abandonado nossos convidados lá no salão.

   Alice só conseguiu engolir em seco. Ele lhe apreciava o corpo sem pudor, e ela percebeu que estava com as pernas à mostra. Como virgem recatada, deveria cobrir-se toda.

   Mas não se cobriu. Fascinada, observava-o desatando os cordões da túnica, sem tirar os olhos azuis de cima dela.

   - Gosta do meu castelo? - indagou ele, a expressão inescrutável.

   Alice fez que sim.

   - E deste quarto? Aprovou-o?

   Ele puxou a túnica por cima e atirou-a de lado. A fina camisa branca chegava-lhe ao meio das coxas apertadas na calça.

   Ver a cara peça de vestuário no chão tirou Alice da imobilidade. Saindo da cama, ela pegou a túnica e dobrou-a com capricho, sentindo sua textura e o cheiro de George.

   - Perdão, minha senhora - sussurrou ele, parecendo em transe. - Fiz sem pensar.

   Ela também. Igualmente sem pensar, levou a túnica até um dos baús do marido. Ao se voltar, ele já despira e dobrara direitinho a camisa.

   Lá estava George, nu da cintura para cima, o peito brilhando à luz fraca do braseiro, o cabelo roçando-lhe os ombros largos.

   Ele era maravilhoso, magnífico, e seu semblante era de puro desejo primitivo. Já não se tratava do frio, cal¬culista e desenvolto sir George de Gramercie. Tratava-se de um homem ansiando por uma mulher. Por ela.

   Não importava quantas mulheres ele já possuíra, ela lhe proporcionaria sensações que nunca sequer imagina¬ra. Mostraria a ele que, embora não soubesse dançar, nem comer com etiqueta, possuía outros conhecimentos que fariam aqueles parecerem vãos.

   Tinha em mente tudo o que ouvira e queria fazer tudo de uma vez. Com ele. Para ele. Aproximou-se lépida, não como uma virgem tímida, hesitante e acanhada, mas como uma mulher em necessidade urgente. Um desejo forte, arrebatador e primitivo como nunca sentira amea¬çava esmagá-la.

   Como se George sentisse o que ela queria, encontra- ram-se consumidos pelos mesmo fogo e paixão.

   Colando ó corpo ao dele, ela o beijou com toda a avidez que ele lhe inspirava. Dessa vez, foi ela quem invadiu-lhe a boca com a língua insaciável. Suas mãos acariciavam-no e apertavam-no sem parar. De início, parecendo perplexo, ele não reagiu, mas então correspondeu com igual fervor. Com um gemido, agarrou-a pelas nádegas e investiu-se contra ela, deixando-a sentir sua excitação.

   Alice sabia tantas coisas para fazer. Tantas maneiras de dar-lhe prazer. E era o que mais queria naquele mo¬mento: dar-lhe prazer.

   George grunhiu enlouquecido ao sentir a língua dela em seus mamilos. As mãos de guerreira massageavam-no incessantemente, nas costas, no peito, nas coxas. Provo¬cando-o. Bajulando-o. Inflamando-o.

   Baixando-lhe a calça.

   Mesmo sem fazer força, ela o imobilizou, afagando gen¬tilmente. Então, ajoelhou-se.

   Ele engoliu em seco quando ela o tomou na boca.

   - O que você...

   Suas palavras terminaram num grunhido enquanto ela prosseguia, sentindo a tensão nele aumentar. Ele começou a se introduzir com investidas fortes, ofegando.

   Mas aí ele parou e se afastou, os olhos obscuros de desejo. Livrando-se da calça, puxou-a para que se levantasse.

   Mais uma vez, ele tomou-lhe a boca, possessivo, an¬sioso, e despiu-a da camisola. Erguendo-a nos braços, depositou-a na cama e cobriu-a com seu próprio corpo, reiniciando o beijo apaixonado.

   Alice já não se lembrava do que ouvira às escondidas, agindo por conta própria ao apartar as pernas e arquear o corpo de encontro ao dele. Quando ele a penetrou, mordeu o lábio ante a leve dor, para não gritar e interromper aquele momento.

   Tratava-se de um breve desconforto, que logo seria esquecido. Numa cadência ritmada, ele se movia dentro dela, excitando-a cada vez mais também. Tinha o corpo enrijecido por uma doce e sublime tensão, que se inten¬sificava sob o carinho das mãos e da boca dele.

   Ela fechou as pernas em torno dele e apressava-o murmurando súplicas, mal percebendo o que dizia. Não pôde evitar o grito quando a tensão finalmente se acabou como um trovão em meio à tempestade. Então, ele também emitiu um grito gutural e desabou sobre ela, aquecendo-lhe os seios com a respiração ardente.

   Satisfeitos e esgotados, partilharam um sono puro e profundo, com os corpos entrelaçados sobre uma massa de cobertores misturados.

  

   George acordou com um suspiro longo e feliz. Já ama¬nhecera, pois percebia luz diante dos olhos fechados.

   Mas não estava com pressa para se levantar. Deixou a mente vagar preguiçosamente, recordando a noite de núpcias.

   Um sorriso espalhou-se por seu rosto ao se lembrar com que pressa e avidez fizera amor com sua noiva. Céus, nunca se unira a uma mulher com tanta paixão, fervor, excitação e... choque.

   Esperara que fossem mais devagar, gentilmente. Mas já ao entrar no quarto perdera o controle, vendo-a na cama com a camisola erguida, expondo as pernas perfei¬tas. Custara-lhe muito manter-se calmo e composto.

   De fato, sua compostura durara bem pouco, pois cada movimento dela injetava-lhe nas veias novas doses de de¬sejo apaixonado, como quando ela se abaixara para pegar sua túnica no chão, os seios sob a camisola fina se revelando bem delineados contra a luz do braseiro. Fora como se nunca houvesse desejado uma mulher antes.

   Qual não fora seu deleite quando ela fora seu encontro, ousadamente. E então ela se ajoelhara e... bem, entre todas as coisas que esperara da noiva na noite de núpcias, aquela não se encontrava. Vira-se ao mesmo tempo so¬brepujado e descontrolado.

   Descontrolado.

   Enrijeceu-se instintivamente. O rosto do pai surgiu-lhe com expressão decepcionada.

   Abriu os olhos e fitou o teto do dossel. Dessa vez fora diferente, afirmou a si mesmo. Sentira amor, não raiva. Paixão, não fúria.

   Estendendo os braços, puxou Alice de encontro a si. Queria fazer amor com ela de novo, mas bem devagar, e dando-lhe prazer.

   Mas Alice não estava ali. Seu lugar na cama estava vazio. Sentou-se e olhou em torno pelo quarto. Não viu a camisola dela. Sua calça, da qual se livrara tão apressadamente horas antes, estava dobrada sobre seu baú junto com a camisa e a túnica.

   Deveria saber que a filha de sir Thomas não se com¬portaria como a maioria das noivas no primeiro dia de casada. Ao nascer do sol, levantara-se, vestira-se e saíra sem acordar o marido, o que era um bom sinal.

   Assobiando alegre enquanto se vestia, parabenizou a si mesmo por ter escolhido uma mulher tão atenciosa.

  

   George saiu do quarto e desceu a escadaria de pedra.

   Alice não estava no salão dando ordens à criadagem, conforme esperara. Aliás, o amplo recinto ainda apresentava todos os vestígios do banquete servido no dia anterior e vários de seus homens haviam sucumbido ali mesmo à exaustão e ao excesso de bebida, sentados no chão e re¬costados nas paredes ou esparramados pelos bancos.

   Eis que alguns criados surgiram com vassouras, baldes de água e esfregões. No entanto, ainda que dispostos ao trabalho duro, pareciam sem saber por onde começar, ta¬manha a bagunça. Questionados por George, deixaram bem claro que agiam por iniciativa própria. A nova senhora de Ravensloft não dera uma ordem sequer a ninguém.

   Faminto e confuso, George foi para a cozinha, cujo aspecto era pior que o do salão. Se a criadagem houvesse se revoltado, o lugar não estaria tão ruim. Pilhas de louça suja atravancavam as pias, enquanto sobre as me¬sas acumulavam-se restos de comida. Deitado no chão, o cozinheiro Gaston dormia roncando, um odre de vinho apertado ao peito rechonchudo.

   Sir George pegou um pedaço de pão e saiu ao pátio, imaginando aonde sua esposa poderia ter ído. Pela po¬sição do sol no céu, já passara da hora da missa, de modo que ela não devia estar na capela.

   Olhou para o estábulo. Alice só podia ter ido ver seu garanhão.

   Ao cruzar o pátio, notou que havia apenas um homem, meio relaxado, de guarda no portão. Ao vê-lo, endireitou-se tão abruptamente que deixou a lança cair. Ao se abaixar para pegá-la, foi seu elmo que caiu e rolou pelo chão. Apressado em recuperar o acessório, quase tropeçou na espada.

   - Menos cerveja da próxima vez! - censurou George, brincando. - Fico satisfeito que esteja a postos, ao menos.

   O soldado sorriu ante a camaradagem do senhor e o saudou.

   No fundo, porém, George se preocupava com a falta de segurança no castelo. Se seu sogro estivesse ali, certamente o repreenderia pelo desleixo.

   Apertou o passo. Alice não cometeria a imprudência de cavalgar sozinha, pois não? Ainda que suas terras não apresentassem perigo, nenhuma mulher podia se ar¬riscar tanto.

   Abriu a porta do estábulo e entrou, levando alguns segundos para adaptar a visão à penumbra. Um raio de sol de refletia no pó de feno em suspensão. Um cavalo relinchou. Era o garanhão de Alice.

   - Tom?

   Ouviu-se um gemido num ponto alto do celeiro e então surgiu, pela portinhola, o rosto do cavalariço de meia-idade.

   - Meu senhor? - murmurou, parecendo tonto.

   Em meio à palha, um pé feminino começou a brincar com a orelha do empregado.

   - Pare com isso! - ralhou ele, empurrando o pé.

   - Contratou uma ajudante? - ironizou sir George.

   - Não, meu senhor.

   - É Elma, por acaso?

   A moça mostrou o rosto, por fim, e George viu que se tratava de uma das lavadeiras.

   - Sou Tilda, meu senhor.

   - Você não tem toalhas de linho para lavar, Tilda? - indagou George, percebendo que seria difícil colocar a criadagem para trabalhar naquele dia.

   A lavadeira baixou os olhos.

   - Tenho, sim, meu senhor.

   - Algum de vocês viu lady Alice hoje? Ambos fizeram que não.

   - E, parece que o noivo já perdeu a noiva - murmurou George, mais para si mesmo. - Agora, ao trabalho, os dois!

   De novo no pátio, George pensava no próximo lugar em que procuraria quando risos escaparam do alojamen¬to. Dentre as vozes dos soldados, pensou distinguir um timbre feminino familiar.

   Com o sangue se aquecendo, marchou até a construção de taipa e escancarou a porta para ver com seus próprios olhos a cena que imaginara. No meio de um bando de homens, Alice contava histórias sentada numa banqueta, um tornozelo apoiado no joelho.

   - E então ele disse: "Da próxima vez, veja onde mira!" - concluía ela, arrancando mais gargalhadas sonoras dos companheiros.

   George estava em choque. O que Alice estava fazendo? Era a esposa de um castelão agora e não tinha nada que confraternizar com a soldadesca, ainda que seu pai nunca houvesse reprovado tal comportamento.

   - Ah, uma vez o escudeiro de sir Ralph perdeu a bota...

   - Creio que já distraiu os soldados o bastante - in¬terrompeu George, severo.

   Alice levantou-se num salto e viu o marido muito bravo à soleira da porta, com as mãos na cintura.

   Os homens pareciam surpresos em ver o senhor no alojamento, como se sir George nunca houvesse aparecido de surpresa a fim de inspecionar suas armas, uniformes e armaduras.

   Fitando-o no rosto sério, ela mergulhou por um instante na lembrança de acordar em seus braços pela manhã, quan¬do os primeiros raios de sol tingiam as nuvens de rosa.

   Achara-o tão jovem, com uma mecha do cabelo loiro caída na testa lisa, os cílios escuros contrastando com a pele clara, a boca tentadoramente entreaberta. Quisera muito beijá-lo, mas contivera-se, certa de que ele preci¬sava repousar dos esforços. E que esforços.

   Então, rápida e silenciosamente, banhara-se, eliminan¬do inclusive as manchas de sangue nas coxas. Levantara o lençol que cobria George e, com um risinho, limpara-o também. E ainda dera um beijinho.

   A seguir, vestira as roupas de sempre, ou seja, a calça com a saia encurtada por cima, a camisa e a túnica, embora os tecidos encorpados causassem certo descon¬forto à pele sensibilizada pelo excesso de atenções.

   - Você já acordou! - comentou ela, descontraída. - Pensei que fosse dormir o dia todo.

   Sem se dignar responder, sir George lançou um olhar feroz aos homens.

   - Deveria haver mais alguém de guarda no portão.

   - Derek e Baldwin estão lá - adiantou-se Alice, que os designara. Aliás, fora ao alojamento justamente para tomar tal providência.

   - Vi só um.

   - Baldwin devia estar na guarita - afirmou ela, segura. - Sabia que ninguém estava de guarda pela manhã? O castelo podia ter sido invadido. Por sorte, sou madrugadora.

   - A segurança não é sua responsabilidade - observou George. - O salão é.

   Alice enrubesceu. De fato, não tomara nenhuma pro¬vidência para que o salão e a cozinha voltassem a se apresentar impecáveis.

   - Herbert pode cuidar disso hoje - decidiu ele. - Mas é você quem lhe dá ordens de agora em diante.

   Amuada, ela replicou:

   - Parece-me que sua casa segue bem sozinha, meu senhor, sem que alguém precise dar ordens.

   Sir George pegou-a pelo braço.

   - Acho melhor continuarmos esta discussão em outro lugar, minha querida.

   Constrangida, Alice saiu do alojamento, mas assim que se viu a sós com o marido protestou:

   - Você me fez parecer idiota na frente deles! Ele fitou-a condescendente.

   - Talvez você não devesse ter entrado lá, para começar. - Mas era preciso providenciar a segurança. Havia apenas um homem de guarda, e ainda está meio bêbado.

   - Entendo. Mas só teve vontade de ficar e entretê-los, em vez de voltar ao salão e comandar a limpeza.

   Alice baixou os olhos, subjugada.

   - Eu... eu só estava me divertindo um pouco, só isso. Compadecido, George resolveu pôr fim ao debate.

   - Eu devia ter imaginado que a filha de sir Thomas Dugall pensaria primeiro em segurança e vigília do que nas tarefas de uma castelã. Farei com que Richard se certifique de que os guardas estão sempre a postos.

   - Richard? Mas você deveria fazê-lo.

- Alice, seu pai sempre comandou o castelo e a família com mão de ferro, mas ele é uma exceção, não a regra. Richard é perfeitamente capaz de cuidar disso.

   Ela ia contestar, mas já tinham discutido demais para um dia. Havia tantas outras coisas agradáveis que po¬diam fazer juntos! Pensando nisso, abraçou-o e deu-lhe uma mordidinha na orelha.

   Conforme esperara, seu corpo revelava-se cada vez mais dolorido com o passar das horas, o que era normal, no primeiro dia após um "embate". Ora, que importava o desconforto, tendo mostrado a sir George que era uma noiva tão atenciosa?

   Na verdade, a realidade ultrapassara tudo o que ima¬ginara a partir de descrições imprecisas.

   Ele a afastou gentil mas firmemente, fazendo com que lhe tomasse o braço.

   - Você não devia fazer esse tipo de coisa em público - censurou, brando. - Não é apropriado.

   Com uma força incrível, Alice puxou-o para um recesso estreito no muro de pedra entre o alojamento e o depósito de armas, apertando-se contra ele num abraço febril.

   - Estamos no pátio de nossa casa e não vejo por que esconder o quanto estamos felizes na companhia um do outro - opinou, em voz rouca e apaixonada.

   - Alice...

   Ela olhou por sobre o ombro e sussurrou:

   - Oh, um pajem tirando água do poço viu que gosto de estar junto de meu marido! Que escândalo!

   George lutou contra o impulso de tomá-la naquele ins¬tante, apesar do local,

   - Você está me embaraçando, Alice. Pare de agir como um soldado. É esposa de um senhor e...

   - E você é meu senhor - murmurou ela, introduzindo os dedos por sob a túnica dele a fim de acariciar a pele nua. - Um senhor maravilhoso. O senhor dos amantes. E que amante... - A respiração dela o queimava no pes¬coço. - Pensei que fosse morrer quando me tomou, ou que já estava no céu...

   - Alice! - implorou ele, desesperado. - Por favor! Para seu alívio e também pesar, ela obedeceu. Levaram um minuto para se recompor.

   - Alice, uma dama não provoca o marido desse jeito, como uma vadia de beco - repreendeu George, severo.

   Ela ficou enfezada.

   - O quê?

   - Perdão, eu não devia ter usado essa linguagem. Ela relaxou então, abandonando o corpo contra o dele, obrigando-o a se conter para não tomá-la ali mesmo no pátio.

   - Aceito suas desculpas, pois sei que usa esses termos quando está com os amigos. Termos até piores...

   - Não uso, não! Alice ficou cética.

   - Quando está com seus companheiros, não conversam sobre mulheres? Nem planejam a próxima visita ao bordel?

   George estremeceu àquela última palavra.

   - Não.

   Alice estava incrédula.

   - Nossa, você é mesmo um homem raro.

   - Alice, tem hora que os homens conversam sobre essas coisas, mas nunca...

   - Com mulheres? - completou ela, curiosa. - Nem com a esposa?                              

   - Jamais.

Ela pareceu decepcionada, e ele tentou exemplificar:

   - Imagino que as mulheres também exponham assuntos pessoais quando estão sós, mas nunca... aquilo.

   Dando um sorriso maroto, Alice começou a acariciá-lo num ponto mais íntimo.

   - Tentarei não constrangê-lo mais. Não o tocarei na frente dos soldados ou criados. Não o beijarei na presnça do capataz e do administrador doméstico. Nem o acari¬ciarei em local onde os arrendatários possam ver...

   - Alice! - gemeu George, perdendo a batalha contra a excitação.

   Parecendo satisfeita, ela parou de acariciar, descolou- se dele e puxou-o pela mão.

   - Vamos andar a cavalo! Não aguento mais ficar presa neste castelo e quero ficar sozinha com você... Oh! - Cobriu a boca com a mão, mas seus olhos eram só di¬vertimento. - Eu não devo dizer essas coisas, não é?

   George balançou a cabeça. Era evidente que não do¬maria aquela mulher levada!

   - Um passeio rápido - concordou, e viu-a disparar rumo ao estábulo. - Depois, você vai distribuir as tarefas entre os criados e inteirar-se das contas com Herbert!

   Mas Alice já não ouvia. Ao alcançar a porta do estábulo, olhou para trás e mostrou-lhe a língua, desaparecendo na penumbra em seguida.

  

   - Sir George, perdão caso esteja perturbando... George despertou sobressaltado.

   - O quê?

   Herbert Jolliet estava diante de sua escrivaninha no solar.

   Cochilara, não mais que alguns minutos, ao voltar da cavalgada pelos campos na esteira de Alice. Voando baixo naquele garanhão, ela mais parecia uma guerreira amazona!

   Bem, ela tivera pena dele e dos cavalos no meio do passeio, pois concedera-lhes um breve repouso no bosque. Lá, falara-lhe dos irmãos, de todos os seis, do primeiro, vinte anos mais velho, ao mais novo, nascido apenas um ano antes dela.

   Deliciosamente franca e aberta, Alice contrastava com as demais mulheres, todas afetadas. Até a prima Margot parecia dizer-lhe apenas o que achava que ele queria ouvir e não o que realmente pensava.

   Quando o assunto se esgotou, acomodaram-se sob um frondoso carvalho e...

   Ao recordar a paixão ardente, George esfregou o queixo, disfarçando um sorriso. Se bem que o momento de amor não durara muito, devido ao desconforto do chão.

   - O que foi? - indagou ao administrador.

   - Meu senhor, está para chegar o mercador de Veneza, mas já sabemos que seus preços aumentaram novamente, em consequência de um clima muito desfavorável na Itá¬lia no ano passado.

   - Fala de Guido Valleduce?

   - Exatamente, meu senhor.

   - Pois pague o extra. O vinho dele é sempre muito bom.

   - Como quiser, meu senhor - replicou Herbert, com uma breve mesura. - Ah, lady Margot comunica pesarosa¬mente que não poderá juntar-se aos senhores no salão esta noite. Está muito cansada da festa e pede mil desculpas.

   George aquiesceu.

   - É claro que compreendo. Faça com que Elma ou alguma outra criada leve-lhe uma ceia leve. Ela gosta de pão, queijo e vinho quente, se não me falha a memória.

   - Como quiser, meu senhor. - O empregado limpou a garganta, como se preparasse para abordar um tema desagradável. - Pensei também em apresentar-lhe as contas de despesas.

   - Esse assunto deve ser tratado com minha esposa, de agora em diante - observou George, um tanto quanto irritado.

   Herbert adotou uma expressão ainda mais grave.

   - É que, infelizmente, meu senhor...

   - O quê? - vociferou George.

   - Parece que ela não quer falar comigo. Toda vez que me aproximo, ela me dispensa.

   Embora insatisfeito, George forçou um sorriso.

   - Talvez esteja cansada e não queria tratar desses assuntos agora - aventou. - E tenho certeza de que você não insistiria. - O empregado não confirmou, nem desmentiu. - Mas entendo sua relutância. Fique tranquilo, Herbert. Farei com que ela se compenetre de seus deveres como minha esposa e ambos tratarão das contas amanhã. Onde está ela agora?

   - Acredito que irá encontrá-la no depósito de armas, meu senhor.

   - No depósito de armas?

   - Sim. Ela queria certificar-se de que os itens de seu dote haviam chegado em bom estado. Meu senhor, eu...

   Sir George já estava de pé.

   - Meu sogro deve ter-me trazido uma espada como presente de casamento - adivinhou, passando pelo em¬pregado. - Obrigado, Herbert.

   Tão logo o patrão se retirou, Herbert Jolliet foi até um armário e pegou um pergaminho com a lista de armas do castelo.

   Espere só até ver o dote dela, sir George, pensou, com expressão sarcástica. Seria uma grande surpresa.

   Que tipo de pessoa era a nova senhora de Ravensloft, metida naquelas roupas e com aquele jeito masculino?

   Ao mesmo tempo, Alice era de uma beleza e simpatia inegáveis, e alguns homens apreciavam esse tipo de mulher, de modo que não espantava sir George tê-la escolhido.

   Mas seria inteligente? Iria se interessar a fundo pelas contas da casa, ou se dedicar apenas aos esportes e divertimentos? Para o bem dela, que fizesse a segunda opção.

  

   No instante em que George abriu a porta do depósito de armas, uma flecha acertou o olho de um nó na madeira a três centímetros de sua têmpora esquerda.

   Em reação à perplexidade do marido, Alice explodiu numa gargalhada.

   - Não creio que assassinar o marido seja uma maneira adequada de se iniciar a vida de casada - repreendeu George, adentrando o prédio de pedra sem janelas em que a iluminação se fazia por archotes.

   Lanças e arcos sem corda apoiavam-se contra as pa¬redes, e espadas, bainhas e aljavas com flechas de pena de ganso pendiam de ganchos nas proximidades.

   - Eu não estava mirando você - declarou Alice, que¬rendo se desculpar. - Senão, teria acertado.

   - Folgo em saber. Mas o que está fazendo aqui? - George deu mais alguns passos olhando o ambiente. - Tem o hábito de inspecionar as armas do pessoal?

   - Algumas - retrucou ela.

   Notando o grande número de caixas de madeira e bar¬ris no local, George cogitou o que conteriam. Perguntaria a Richard Jolliet, mais tarde.

   - Este local não me parece adequado a você - opinou, aproximando-se de Alice. A imagem de ambos fazendo amor sob o carvalho não lhe saía da cabeça.

   - Eu só estava testando este arco - explicou ela, erguendo a arma para ele ver. - É feito do melhor teixo, e o couro da corda é de primeira qualidade.

   - Nunca vi coisa igual - concordou ele, pousando as mãos em sua cintura fina.

   Alice o envolveu cora o braço direito, mantendo o arco na mão esquerda.

   - Nem vai ver - gabou-se. - Meu pai mantém seis galeses no castelo fazendo arcos, dos quais cedeu cem para o meu dote!

   Entusiasmada, ela se afastou e começou a desenrolar uma tira de couro em torno do pulso e antebraço esquerdos,

   A seguir, deu três passos para trás e fez um amplo gesto para as caixas, sorrindo feliz.

   - Só vim me certificar de que todo o meu dote estava aqui! Arcos e flechas para seus arqueiros. - Apontou para o canto onde se apoiava um comprido embrulho de   couro. - Dez lanças finíssimas para você. - Indicou uma pilha de grandes baús de madeira, -- Cinquenta espadas e o mesmo número de elmos e trajes de malha de ferro. - Escolheu uma flecha de uma aljava. - E mil flechas de pena de ganso.

   - Seu dote se compõe de armas? - questionou George, incrédulo.

   - O que você faria com mais roupa de cama? Ou louça? Ou tapetes? Já tem mais do que o suficiente de tudo isso. Aliás, acho que temos o bastante para muitos anos. Além disso, meu pai não lhe teria dado essas coisas inúteis.

   - Pensei que seu pai houvesse me enviado uma espada quando Herbert me disse que eu a encontraria aqui.

   Alice reagiu ao nome do empregado com uma expressão desgostosa.

   - Ele me disse também que você andou dispensando-o - repreendeu George.

   Devia ter imaginado que o administrador logo daria com a língua nos dentes. Deveria empenhar-se em evi¬tá-lo a todo custo, pois não tinha a menor vontade de se dedicar a maçantes assuntos domésticos.

   Pior era a tola sensação, da qual não conseguia se livrar, de que Herbert Jolliet era um homem mau, bem como seu irmão Richard.

   - Apenas não vi por que discutirmos sobre as despesas da casa imediatamente - explicou Alice, lançando ao marido um olhar sedutor na esperança de que ele es¬quecesse por algum tempo aquela história. - Afinal, é o primeiro dia do nosso casamento...

   Conforme ela esperava, George sucumbiu.

   - Está bem, nada de contas hoje. Mas amanhã vocês vão repassá-las juntos. E seu dever agora.

   - Conheço muito bem meus deveres - resmungou Alice. Ele a encarou sereno.

   - Mas preferiria não cumpri-los?

   Era tão verdade que ela corou. O fato era que carecia dos conhecimentos para cumprir os deveres de uma dona-de-casa. Nunca aprendera a respeito, nunca quisera aprender e, aparentemente, jamais ocorrera a seu pai providenciar para que aprendesse.

   - George... - sussurrou, meiga, pegando em seu bra¬ço. - Não vamos discutir esses assuntos hoje.

   Ante um sorriso tão sedutor, George convenceu-se de que realmente fora um erro exigir que Alice se ocupasse da casa no primeiro dia do casamento.

   - Bem, as contas das despesas podem esperar até amanhã, estou certo.

   Então, envolveu-a nos braços e beijou-a ternamente.

   Mas ela reagiu com uma paixão fogosa, avassaladora.

   Não estavam em público agora. Estavam a sós.

   A medida que o beijo se aprofundava, George sentia sua exaustão desaparecer, cedendo ao desejo. Pouco a pouco, empurrou Alice gentilmente até que se encostasse na pa¬rede. Impaciente, começou a desatar o cordão de seu cor-pete, ao mesmo tempo que lhe erguia a saia. Ela gemeu baixinho, correspondendo à urgência da paixão dele.

   Deslizando os lábios pela face de Alice, ele aproveitava para apertar nas mãos seus seios redondos, cheios. Tanto os lábios quanto as mãos foram descendo em sua explo¬ração, até que...

   - Não é possível!

   Lânguida, Alice abriu os olhos e viu a frustração nos olhos do marido.

   - Eu odeio essa sua mania de usar calça!

   - Eu também, agora - replicou ela, mais marota do que nunca.

   - Como é que eu vou...

   - Fazendo o mesmo que eu faço com você - murmurou Alice, ronronando. - Tirando-a.

   A expressão dele se abrandou, mas não as chamas do desejo em seus olhos.

   - Minha vontade é fazê-la em pedacinhos.

   - Pois então faça.

  

   - Nunca imaginei que um depósito de armas pudesse ser inspirador - comentou George, com um suspiro profundo. - Só que, in¬felizmente, receio que minhas costas jamais se recuperem.

   Alice era a amante mais estonteante que já conhecera. Parecia saber instintivamente como se mover, e quando. Descobrira, com incrível rapidez, como o excitava ao enlaçar-lhe a cintura com as pernas, bem como os pontos exatos em seu corpo em que um leve toque ou arranhão fazia seu sangue ferver.

   - Suas costas? - questionou ela, baixando as pernas ao chão. - As minhas é que estão contra a parede.

   George riu divertido.

   - Você me deixou quebrado.

   - Depois de dormir tanto? Terno, ele a beijou na testa.

   - Vamos para o salão comer alguma coisa antes que eu desmaie.

   Ela pegou do chão o que restara de sua calça.

   - Temo que não tenha mais conserto.

   - Que pena - ironizou George. - Jogue num canto. Serve como pano de chão.

   - Que desperdício!

   - Herbert vai gostar de ver como é económica. Vive dizendo que gasto demais.

   Alice lançou-lhe um olhar reprovador, mas jogou a peça esfarrapada de lado.

   George tomou-lhe a mão.

   - Vamos, antes que comecem a nos procurar.

   A caminho do salão, apreciaram os apartamentos des¬tinados aos nobres hóspedes.

   - Margot não se juntará a nós para a ceia esta noite - comentou ele. - Dançou demais na festa.

   - Ou bebeu demais - alfinetou Alice.

   - Margot nunca se excede - garantiu ele. - A não ser na dança. Quase sempre ultrapassa seu limite. - Notando a tensão nela. acrescentou: - Mas é claro que não chega aos pés da minha esposa em fascínio.

   Chegaram ao salão, já totalmente arrumado para a ceia e com a presença dos convivas. Os criados haviam realizado um ótimo serviço de limpeza e o local estava impecável. Aparentemente, Alice não precisaria dedicar muito de seu tempo supervisionando os trabalhos domésticos, assim como George não se preocupava quase nada com a administração da propriedade.

   - Acho que estamos atrasados - sussurrou Alice, vendo o padre Adolphus impaciente para iniciar a oração.

   - Quer que eu conte por quê? - brincou George. Tomaram seus lugares à mesa principal e todos acom¬panharam o padre na rotina religiosa.

   - Não fomos só nós que nos atrasamos - comentou George, enquanto saboreavam a refeição. - Estou sur¬preso que Richard não esteja aqui, nem Herbert. Mas devem estar chegando. Gostaria que você e Herbert já marcassem um horário amanhã para tratarem das des¬pesas domésticas.

   Alice tomou um gole de cerveja, a fim de disfarçar o desalento, e enxugou a boca com as costas da mão,

   - Não pode usar o guardanapo? - sussurrou-lhe George.

   - Não estou vendo nenhum. Ele franziu o cenho.

   - Pois então sua primeira ordem como castelã será que haja guardanapos na mesa principal em todas as refeições.

   - Todas?

   - Sim.

   - Mas não há necessidade de usarmos artigos tão finos diariamente - opinou Alice. - Com as lavagens, vão se desgastar logo.

   Ele apenas a encarou com um sobrolho levemente er¬guido, fazendo-a sentir-se muito tola e parcimoniosa.

   - Pois bem, meu senhor - cedeu. - Guardanapos em todas as refeições.

   - Um detalhe, reconheço - retrucou George, gentil. - Mas a etiqueta torna a vida tão mais civilizada e agradável...

   Ela fingiu ofender-se.

   - E minha falta de preocupação com tais detalhes torna-me bárbara e desagradável?

   - Alice, não foi isso o que eu quis dizer! Sorrindo, ela pôs a mão no colo dele.

   - Ontem à noite, ambos nos comportamos como bár¬baros, mas foi muito agradável.

   Ele engoliu em seco ao sentir o toque.

   - Alice, estamos em público!

   Emburrando, ela uniu as mãos no próprio colo. Seu marido era o primeiro homem de que ouvia falar que preferia tratar de etiqueta a brincar de sedução. Rufus e os demais sempre deixaram claro que tais brincadei-rinhas eram mais importantes do que comer, beber ou mesmo lutar.

   - Ah, eis Herbert que chega! - exclamou George.

   Alice viu o administrador doméstico adentrar o salão na¬quele seu passo esquisito, mais parecendo uma aranha. Mas era evidente que George não compartilhava seu sentimento.

   - Saudações, meu senhor - cumprimentou Herbert Jolliet, em voz tão arrastada quanto o andar. - Tenho fé em que o senhor e sua senhora estejam bem.

   - Melhor impossível! - confirmou George.

   - Mesmo sem guardanapos - replicou Alice, mau-humorada.

   George encarou-a sorridente, mas com olhar agudo. O empregado foi logo ao ponto:

   - Se for do seu agrado, senhor, poderemos conversar amanhã sobre os itens do dote.

   George refletiu um pouco.

   - Bem, considerando que estão no depósito de armas, acho melhor deixarmos isso para Richard.

   - Eu... creio que já sabe do que se trata, meu senhor. - Herbert não disfarçava o desgosto,

   - Parece que não aprova - alfinetou Alice. Vendo George se aborrecer com aquela picuinha, o em¬pregado tentou remendar:

   - Não é nada disso, minha senhora. Perdão por passar tal impressão.

   Cética, Alice nem se deu ao trabalho de responder. Continuava emburrada.

   Mas aquele lábio carnudo projetado para a frente só reforçava em George o desejo de beijá-la. Aquela implicância dela com Herbert Jolliet se acabaria assim que o conhecesse melhor; simplesmente não estava acostumada a seu jeito, que, de fato, não era o mais agradável da Inglaterra.

   - Portanto, não precisa se preocupar com os itens do dote, Herbert - concluiu George. - Amanhã, que tal mostrar a minha esposa as peças do enxoval?

   - O enxoval, meu senhor? - Herbert franziu ainda mais a testa permanentemente vincada. - Boa parte dele está na lavanderia.

   - Então... vejam com Gaston os mantimentos neces¬sários para a próxima quinzena.

   - Como quiser, meu senhor. Estarei à disposição, mi¬nha senhora, quando quer que achar conveniente.

   - Bom, esse assunto fica a cargo de vocês dois - festejou George. - Amanhã cedo vou falar com Rafe sobre a taxa do moinho.

   - Algum problema, meu senhor? - assustou-se o empregado.

   - Não, vamos só trocar idéias. Na semana passada, ele falou algo sobre aumentarmos a taxa...

   Herbert Jolliet fez uma reverência e deixou o patrão e sua arguta esposa. Foi procurar o irmão mais velho.

   Richard Jolliet lançou um olhar fulminante ao irmão Herbert à luz escassa das brasas na lareira de sua casa, uma construção espaçosa pouco além do portão principal de Ravensloft.

   - Ela não fala com você? Nada?

   - Não, ela fala... mas só para me rechaçar.

   - Você a ofendeu?

   - Eu não!

   - Então deve ser essa sua cara que a repugna.

   - Nem todos podem ser charmosos como você.

   - Podia ao menos tentar. Temos de evitar levantar suspeitas a todo custo.

   Herbert aquiesceu.

   - Conseguiu descobrir mais alguma coisa sobre ela? - cobrou Richard.

   - Apenas que é uma mulher muito peculiar.

   - A começar pelas vestes, não é? Mas parece que agrada a sir George...

   - Levantou-se à aurora, mas nem falou com os criados - relatou Herbert. - Foi direto ao alojamento.

   - Aonde?!

   - Ao alojamento. Parece que os homens também a adoram agora.

   - E como sir George reagiu a um comportamento tão reprovável?

   - Pelo que sei, não fez nada.

   - É um idiota! - Richard rangeu os dentes. - O que mais ela fez? Elma lhe fez companhia?

   - Não teve oportunidade. Foram cavalgar e, depois, ele cochilou no solar.

   - Onde estava ela enquanto ele cochilava?

   - No depósito de armas, parece. Conferindo o dote... as armas.

   Richard praguejou.

   - Nada de ouro?

   - Não que eu saiba.

   - O parcimonioso sir Thomas. Se a filha for igual a ele, não vai gastar como sir George.

   - Pode ter certeza. Já mandou os criados guardarem   vários candelabros, boa parte do carvão no braseiro e metade da roupa de cama do quarto deles.

   - Ah, é? - Richard ergueu as sobrancelhas peludas. - E quanto às contas? Acha que ela vai desconfiar de algo?

   - Não sei. Tomei todos os cuidados, mas ela não me parece burra.

   Richard riu irônico.

   - Falou o especialista em mulheres! Herbert corou.

   - Posso lidar com lady Alice.

   - É bom que saiba. Agora, quantas armas?

   - Não sei. Sir George disse que trataria disso com você. Vai também falar com Rafe sobre a taxa do moinho.

   - Por quê?

   - Parece que estão querendo aumentá-la. Richard se recostou, pensativo.

   - Faz sentido... O gasto extra com o banquete de ca¬samento implica uma renda menor, até um cabeça-oca como sir George sabe disso. Daí a idéia de aumentar a taxa do moinho. - Serenou a expressão. - Mas ainda não há motivo para preocupação, desde que todos mantenhamos a cabeça no lugar - completou, advertindo o irmão com um olhar. - É quase certo que um castelão recém-casado se mantenha ocupado demais com assuntos conjugais para se preocupar com a administração de sua propriedade.

   - Brindemos, então, a sir George e esposa! - ironizou Herbert. - Que se afoguem em luxúria de tal maneira que não consigam analisar as contas em detalhes!

   Os dois larápios ergueram as taças e entornaram a bebida.

   Ao fim de uma rodada de jogos com alguns de seus homens, George subiu a escadaria rumo a seus aposentos. Esperava que Alice, que se recolhera logo após servirem as frutas e queijos, já houvesse se recuperado de seu mau humor. Era preciso repreendê-la por sua atitude injusta para com Her¬bert Jolliet, mas dificilmente conseguia pensar em algo além de tê-la nos braços, quando se encontravam.

   Abriu a porta do quarto... e quase caiu de costas. Alice já estava na cama, obviamente nua, com o lençol esticado só até a cintura. Sem a menor intenção de se cobrir, deu-lhe um sorriso quase imperceptível.

   Como lidar com uma mulher assim?

   Fechou a porta e tentou pensar. Era importante controlar a paixão e deixar claro a Alice o que esperava dela.

   - Não gostei do modo como tratou Herbert Jolliet agora há pouco - declarou, firme.

   Ela suspirou profundamente, cansada do tema.

   - Já tínhamos concordado em que as contas domés¬ticas podiam esperar até amanhã, considerando que este foi nosso primeiro dia de casados.

   Céus, ela bem que podia se cobrir, pois a visão daqueles seios fartos impedia-o de se concentrar e prosseguir na reprimenda.

   - Eu não esperava que fosse gentil, mas não precisava ter sido descortês.

   Ela fez bico novamente, o que, aliado a seu estado de nudez, o excitou sobremaneira, tanto que foi até a janela apreciar o céu escuro e sem lua. Era preciso concluírem a questão.

   - Eu esperava mais de você, Alice.

   - Peço desculpas por ter sido rude com Herbert - disse Alice.

   George deu meia-volta e foi sentar-se na cama. Com as mãos entrelaçadas sobre o ventre, ela não o encarou.; - Quero que seja feliz aqui, Alice - declarou. Ela o fitou séria.

   - Não confio nem em Richard, nem em Herbert Jolliet.

   - O quê?! - George estava chocado. Ela enrubesceu, mas não se arrependeu.

   - Talvez não devesse ter dito, mas é o que penso.

   - Acaba de conhecê-los - argumentou George, incré¬dulo. - Concordo em que Herbert não causa uma boa impressão de imediato, mas trabalha aqui desde o tempo de meu pai e nunca deu motivo para desconfiança.

   - Não tenho nenhuma prova contra eles - reconheceu Alice. - Mas não me sinto à vontade em sua presença.

   - Garanto-lhe que são de total confiança. Quando os conhecer melhor, irá concordar comigo.

   - Espero que sim.

   Alice prometeu a si mesma afastar aquelas suspeitas quanto aos irmãos Jolliet. Já serviam aos senhores de Ravensloft havia muito tempo e deviam ser de confiança, afinal. Além disso, estava muito mais interessada no ma¬rido do que nos empregados do castelo. Afagou-lhe a mão.

   - Perdoe minhas palavras ásperas - sussurrou. - Prefiro que nos conheçamos melhor.

   - Em breve, Alice, você me conhecerá melhor do que ninguém.

   De pé, ele atirou a túnica de lado e puxou a camisa por sobre a cabeça. Ao soprar as velas, notou que havia poucas.

   - Onde estão os outros candelabros?

   - Pedi a Elma que os guardasse. Achei que era desperdício.

   - Hum... - George não se deixou aborrecer e apres¬sou-se em descalçar as botas e despir a calça. Acomodou-se sob o lençol. - Então, vou ter de me orientar de outra maneira...

   - Vou dar as instruções...

   Ele segurou sua mão insinuante e rolou para cima dela, jogando parte do peso sobre os cotovelos no colchão.

   - Esta noite, não, Alice. Esta noite eu estou no comando. Ela protestou.

   - Mas eu...

   - Não! - O tom de George era severo agora. - Esta noite, eu tomo a iniciativa.

   Alice se enrijeceu por um instante... mas só por um instante, pois as carícias levíssimas e os beijos cada vez mais apaixonados de George logo provocaram uma tensão daquele tipo maravilhoso, antes que mergulhasse em suas palavras inesperadas.

   A seguir, esqueceu-as, envolvida demais no desejo incandescente que lhe avassalava a carne para pensar em qualquer outra coisa.

  

   Mais tarde, porém, quando George desabou a seu lado, Alice recordou suas palavras, bem como a maneira como a amara, com incrível habilidade, e com prática, cálculo e lentidão, como se ela fosse outra pessoa, até quase o final. Então, voltara a ser o amante apaixonado que co¬nhecera na noite de núpcias.

   Ele queria comandar. Ele queria tomar a iniciativa.

   Será que ela não agira corretamente na noite anterior? Fora afoita ou desajeitada demais? Falhara em agradá-lo em sua estréia na cama?

   Falhara nisso também?

   Não sabia dançar. Não sabia cantar. Não sabia cos¬turar. Não tinha boas maneiras. E agora, descobria, não conseguia nem fazer amor direito.

   Como George reagiria ao descobrir que ela não sabia ler e escrever, tampouco. Que era esse o motivo para não querer repassar as contas domésticas com o administrador?

   Imaginava o que ele pensaria, ainda que, polido demais, não o dissesse. Logo ele começaria a perder a paciência com ela. Ficaria aborrecido, depois zangado. No fim, talvez até a odiasse. Concluiria que se casara com a pior mulher da Inglaterra. Lamentaria ter posto os olhos nela um dia. Podia até mandá-la de volta ao pai, em desgraça.

   Como suportaria tamanha humilhação? E como suportar separar-se de George, agora que sabia quão gentil e maravilhoso ele podia ser?

   Outro homem como George? Não, com certeza não existia. Sentindo as lágrimas quentes brotando nos olhos, apertou os punhos cerrados contra elas, como se pudesse em¬purrá-las de volta.

   Não choraria. Lágrimas eram para os tolos. Lágrimas representavam uma fraqueza à qual não se entregaria. Lágrimas eram para mulheres.

   Foi abrindo as mãos até que cobrissem todo seu rosto, como se quisesse esconder-se, e à sua vergonha, de espiões. No dia seguinte estaria forte novamente. Ninguém sa¬beria da dor que sentira. Ninguém descobriria que era uma desgraça como mulher. Esconderia o fato de não saber ler e escrever pelo tempo que pudesse. Era filha de sir Thomas Dugall e tinha orgulho.

   Mas as lágrimas escaparam por entre seus dedos, en¬quanto seus ombros estremeciam ao ritmo dos soluços sufocados.

  

   - George, está na hora de se levan¬tar - ordenou Alice, em alto e bom som. - Não pode ficar a manhã toda na cama.

   Ele abriu os olhos cansados e viu o rosto dela a poucos centímetros do seu. Estendendo os braços, puxou-a contra si para um lento e demorado beijo. Rígida e inflexível como uma tábua, levou algum tempo mais para se excitar do que na noite de núpcias, mas nada que causasse preo¬cupação. Uma vez acesa, sua paixão se revelava tão avas¬saladora quanto qualquer homem podia desejar.

   - George! - protestou ela, afastando-se contrariada. - Está na hora de se levantar.

   - Mas o sol mal despontou...

   - Como pode saber daí? - Alice escancarou a cortina do dossel, deixando que a intensa luz matinal invadisse o nicho, ao que George cobriu os olhos sensíveis de ime¬diato. - Já passa das seis, com certeza. Até a missa já deve ter-se encerrado.

   - As janelas dão para o leste - lembrou ele, querendo explicar o excesso de claridade. - Não ouvi os sinos.

   - Você continuou dormindo enquanto tocavam.

   - Só que você ouviu. Muito bem. Mas é de admirar que eu esteja cansado? Não sou Hércules, meu amor. Nem Eros.

   - Não, não é - concordou ela, num tom meio irônico. Apoiado num cotovelo, ele a viu ajustar um velho cinto de couro sobre uma túnica masculina igualmente gasta, desfiada na barra. As costumeiras calça e saia encurtada compunham a parte inferior de seu traje peculiar. Pla¬nejara sugerir-lhe que vestisse algo mais apropriado à esposa de um nobre senhor, mas dormira demais.

   - E tarde, já disse - fustigou Alice. - Levante-se. Ele decidiu arrancar-lhe aquelas roupas de qualquer ma¬neira e, mais tarde, fazê-la vestir um vestido adequado.

   - Volte para a cama, Alice - convidou, dando seu sorriso mais sedutor.

   Ela vacilou por um segundo, mas não cedeu à tentação.

   - Devemos ir à missa. E nosso dever.

   - Sei qual é o meu dever - declarou George, tentando disfarçar a frustração. Alice mais parecia uma égua ir¬ritada naquela manhã e não lhe seria condescendente.

   Saiu de baixo das cobertas. Assim que seus pés des¬calços tocaram o gélido chão de pedra, arrepiou-se e aper¬tou os braços em torno do corpo.

   - Céus, atice os braseiros!

   - Ah, não está tão frio assim! - replicou Alice. - Você tem apenas que se vestir.

   Conformado, ele foi até o urinol. Na volta, viu-a sen¬tada na cama estendendo sua calça mais velha, como se quisesse que a usasse.

   - Eu já tinha decidido descartar essa aí - informou, abrindo uma arca.

   - Mas não há nada de errado com ela - opinou Alice.

   - O quê? Eu não a doaria nem a um mendigo da aldeia.

   - Foi remendada só duas vezes! - insistiu ela. George tirou da arca uma camisa branca limpa.

   - E quantas vezes terei de lhe dizer que tenho muito dinheiro?

   - Não por muito tempo, se continuar a desperdiçar assim.

   - Não vou me vestir como um indigente.

   - Então, eu a usarei.

   George voltou-se para ela, ainda completamente nu.

   - Não, não a usará.

   - Mas...

   - Não! - ordenou ele, vestindo a camisa. - Aliás, não devia usar calça nenhuma, como deve saber.

   - Sempre me vesti assim. Ele voltou a vasculhar a arca.

   - Enquanto vivia sob o teto de seu pai, era o pessoal dele que julgava seu vestuário. Agora você está sob o meu e essas roupas não são aceitáveis.

   - Não tenho nenhum vestido para usar de dia.

   - Use aquele verde. Elma pode fazer os ajustes ne¬cessários. - George esticou uma túnica de lã vermelha.

   - É social demais. Ele endureceu o queixo.

   - Não, não é.

   - Vou pensar - finalizou Alice.

   Dando meia-volta, ele a viu ainda segurando a calça velha.

   - Alice, tenho condições financeiras para jogar roupas velhas como essa pela janela e mandar confeccionar para você quantos vestidos quiser.

   - Você não faria nada tão ridículo e não gosto de usar vestido - teimou ela.

   Ele marchou até ela e tomou a ofensiva peça esfarrapada.

   - Não lhe perguntei se gostava de usar vestidos. Você tem de usá-los. - Dito isso, atirou a calça velha pela janela.

   Ela saltou da cama raivosa.

   - Como pôde cometer tal tolice?

   - Estou em meu castelo e faço o que bem entender! De olhar estreito e lábios contraídos, ela cruzou os braços sobre o peito.

   - Você parece criança... ou um de meus irmãos.

   - Acontece que sou seu marido e não gosto que me fale nesse tom. E estou certo de que o modo como se dirigia a seus irmãos não era o mais apropriado a uma nobre dama.

   - Se quer dizer que eu não era dissimulada, comedida e lamurienta, sempre concordando com eles, está abso-lutamente correto! - confirmou Alice, com as faces afo¬gueadas. - E não pretendo agir assim, como se não ti-vesse cérebro, com você! E esse tipo de mulher que pre¬fere... alguém como lady Margot?

   - Já disse que, se quisesse Margot, eu a teria pedido em casamento. - George lutava para controlar a fúria. De volta à arca, pegou sua melhor calça. De fato, era fina demais para o dia-a-dia, mas vestiu-a mesmo assim.

   - Talvez devesse tê-la pedido. Tenho certeza de que ela teria aceito. Agora, vou para a capela.

   - Não vestida assim!

   - Acha que pode me impedir? - Alice seguiu para a porta, esbarrando nele com o ombro ao passar.

   Ele levantou a mão, ofegante, mas se conteve, e viu-a fechar a porta atrás de si.

   Transtornado, respirou fundo e expirou lentamente, num esforço para recuperar o controle. Despejou água do jarro na bacia e molhou o rosto. Ainda inclinado, agarrou-se às beiradas da mesa até seus dedos ficarem brancos de tensão.

   Céus, quase batera em Alice!

   Respirou bem fundo mais uma vez. Tinha de dominar os impulsos violentos. Tinha de dominar a fúria.

   Ou controlava as emoções, ou as consequências seriam desastrosas. Para ambos.

   Fechou os olhos e reviu a pobre criatura morta em seus braços.

   A lembrança era tão nítida quanto se o incidente houvesse ocorrido no dia anterior, quando na verdade acontecera em sua infância, ao contar dez anos. O dia horrível se repassava em sua mente em detalhes assombrosos, lembrando-o das consequências de suas emoções descontroladas.

   Depois, como sempre, a terrível sensação de vergonha e perda cresceu até subjugá-lo, como se o esmagasse.

   Com um suspiro cansado, foi até a janela e contemplou o céu azul enfeitado de nuvens.

   Durante anos, a fim de proteger aqueles que o cercavam, evitara emoções fortes, tornando-se o homem que todos pensavam conhecer: o elegante, charmoso e jovial sir George de Gramercie. Aparentemente, um homem de bom gênio, tolerante e até meio indolente, que não repreendia os criados.

   Até conhecer Alice Dugall e casar-se com ela, descobrindo que os impulsos violentos continuavam lá, enterrados bem fundo, mas passíveis de explodir a qualquer momento. Era como se Alice houvesse aberto a tampa de sua caixa de Pandora, libertando os males que ele mantivera aprisionados só com força de vontade todo aquele tempo.

   Como fora ingênuo ao crer que poderia se controlar por completo, mesmo ao sentir aquela primeira onda de raiva ante a impertinência da amada e ao experimentar a pontadinha de ciúme ao vê-la com Rufus.

   Viu Alice caminhar firmemente pelo pátio rumo à ca¬pela. Ele não compareceria à missa naquela manhã.

   E quanto a seus deveres como esposa dele e castelã de Ravensloft?

   Aliás, por que ela se comportara de maneira tão dife¬rente na noite anterior e acordara tão irritadiça? Ele fizera algo errado ou tratava-se de um problema só dela? Encostou o rosto na pedra fria da parede. A peculiaridade do primeiro encontro de ambos como adultos devia tê-lo alertado a dar meia-volta antes mesmo de chegar ao castelo Dugall. Devia ter percebido que Ali¬ce, com aquele cabelo selvagem e maneiras insolentes, era a antítese da esposa que lhe convinha.

   No entanto, a curiosidade pela Alice que conhecera na infância o impelira a prosseguir com o plano. Quanto aos motivos para desposá-la... bem, tratara-se de uma fascinação perversa mesclada a um desejo físico avassa¬lador como nunca conhecera antes.

   Um desejo que ela parecia partilhar. Ela fazia amor como nenhuma mulher que conhecera antes, excitando-o com um abandono apaixonado e uma habilidade... Habilidade.

   Ela fazia coisas que se esperam de uma experiente cortesã, não de uma noiva virgem.

   Onde ela aprendera...?

   Foi até a cama e afastou as cobertas a fim de ver o lençol de baixo. Nenhum sinal de virgindade violada.

   Com um grunhido selvagem, arrancou a peça de linho como se estivesse contaminada.

   A criada Elma bateu na porta e entrou no aposento dos patrões, encontrando sir George sorridente junto à janela.

   - Vim...

   - Arrumar o quarto - completou ele, fazendo um gesto para a pilha de lençóis ao pé da cama. -Já adiantei um pouco o seu serviço.

   A criada aquiesceu e atravessou o quarto.

   George seguiu para a porta, mas voltou-se antes de sair.

   - Vai encontrar uma calça velha lá no pátio - in¬formou, descontraído. - Queime-a. Depois, recolha todas as roupas de lady Alice, exceto as camisolas e vestidos, e queime-as também. Faça o mesmo com esses lençóis aí.

   - Co... como, meu senhor?

   - Quero que queime tudo - repetiu ele, adotando um tom conspirador, - Parece que as pulgas tomam conta do castelo Dugall, por isso, gostaria também que colhesse um pouco daquela planta que repele pulgas... a pulicária, e a espalhasse no chão. E seria bom bater o colchão de penas.

   - Ah, como quiser, meu senhor.

- Obrigado, Elma.

   George fechou a porta delicadamente.

  

   Assim que lady Margot chegou à mesa principal para o almoço, George levantou-se. Ele mesmo acabara de che¬gar da visita ao moinho.

   - Ah, ei-la aqui, mais bela do que nunca!

   - Onde está lady Alice? - quis saber a prima, aco¬modando-se na cadeira ao lado dele. - Ela está bem?

   George não tinha a menor idéia de onde estava sua esposa. Era bem possível que distraísse os soldados no alojamento.

   - Está paparicando aquele garanhão dela - mentiu, agradávelmente.

   - Você parece cansado.

   - Estou tão cansado quanto um recém-casado deveria...

   - É sinal de felicidade futura - comentou Margot, suave.

   - Tinha dúvidas?

   A prima não o encarou, ocupada em separar um naco de pão.

   - Devo confessar que ela não é o tipo de mulher que eu imaginei que você escolheria.

   - Nem eu - retrucou ele, como se brincasse. - Ela tem os modos e o linguajar de uma aldeã, e se veste como um bufão.

   - Por que se casou com ela?

   George se inclinou para a prima e sussurrou:

   - Acho que estava enfeitiçado.

   - Sem gracinhas, George de Graniercie, estou falando sério - repreendeu Margot. - Por que se casou com ela?

   - Meu pai queria, o pai dela queria, e não vi por que não fazer-lhes a vontade.

   A prima apenas o encarou muito severa, e ele resolveu parar de brincar.

   - Está bem. Eu não queria uma esposa tediosa e Alice nunca pára de me surpreender.

   - Se não quer me dizer a verdade, está bem - desistiu a prima, chateada. - Mas voltarei imediatamente para casa.

   - Mas é a verdade - declarou George. Margot fitou-o preocupada.

   - Mas ela o fará feliz?

   George desviou o olhar e, para ganhar tempo, sorveu lentamente sua cerveja. Por fim, elaborou uma resposta.

   - O único problema é que ela não sabe dançar, nem se vestir adequadamente. Mas conto com você para ensinar-lhe essas coisas.

   - Ela não se veste tão mal assim - opinou a prima.

   - Quem está com gracinhas agora? - repreendeu George.

   - Concordo que ela usa a saia um tanto curta, mas é aceitável.

   - Ela usa roupas masculinas!

   - Porque está acostumada. Acho que ela nunca tenha contado com os serviços de uma boa costureira e, creia-me, George, não há nada mais desconfortável do que um vestido mal-feito.

   - Talvez uma armadura mal-feita - ironizou ele. Margot riu agradavelmente.

   - Tem razão. De qualquer modo, Alice aceitará melhor os vestidos quando os sentir bem-ajustados. Vamos man¬dar confeccionar?

   - Claro que sim. Aliás, com urgência, pois mandei queimar as roupas dela.

   A prima arregalou os olhos.

   - O quê?

   - Ordenei a Elma que as queimasse hoje pois, do contrário, ela não desistirá de usá-las - justificou-se George. - Além disso, deviam estar infestadas de pulgas.

   - E qual foi a reação dela?

   - Não sei se ela já soube. Margot balançou a cabeça.

   - Estou surpresa que tenha adotado tais medidas, George. Não combinam com você.

   Só ele sabia...

   - Alice é uma cabeça-dura, por isso, não tive escolha. - Ele tomou mais um gole de cerveja. - De qualquer forma, acho que ela vai reagir muito mal...

   - Diga-me, George, por acaso ela representou a virgem lamurienta diante de você no castelo do pai?

   - Não. Mas achei que...

   - Conseguiria domá-la? Ele encarou a prima.

   - É como se falássemos de um cavalo, ou um falcão - observou, desgostoso. - Achei que não seria difícil mudarmos seu guarda-roupa e abolirmos suas maneiras mais bárbaras.

   - Mas agora ela resiste a seus esforços.

   - Teimosamente.

   - E mandar queimar os pertences de alguém não pro¬va uma teimosia em impor sua vontade?

   George desviou o olhar e mudou de assunto:

   - Há alguma boa costureira na aldeia?

   - Deve haver pelo menos uma. Notei várias mulheres bem-vestidas no mercado.

   - Seria bom que ela viesse ainda hoje mesmo.

   - Pedirei a Elma que vá buscá-la - prontificou-se Margot. Então, olhou-o de soslaio. - George?

   - Sim?

   - Você me convidou para passar algum tempo aqui só para ensinar a Alice um pouco de etiqueta?

   - Claro.

   - Não foi para mostrar-lhe o que rejeitou em seu favor?

   George encarou-a surpreso.

   - Eu nunca rejeitei você, Margot!

   Ela lhe deu um tapinha na mão e sorriu solidária.

   - Não, nunca pensou em mim dessa maneira, eu sei. Eu também nunca pensei em você desse jeito - declarou, embora fosse mentira. - Só quero que perceba que ela pode interpretar minha presença de um jeito bem diferente do que você pretendeu.

   - Isso não justifica as grosserias dela, para com você ou qualquer outra pessoa aqui.

   - Eu não me importei. Foi compreensível. E, francamen¬te, George, prefiro ataques diretos a emboscadas traiçoeiras.

   - Bem, direta ela é.

   - E você a admira por isso.

   - É... acho que sim.

   Margot sorriu conhecedora.                                      

   - Sabe, George, você gosta dela mais do que está disposto a admitir.

   Ele a fitou cético.

   - Andou consultando aquele seu astrólogo de novo? Como pode saber o que se passa em meu coração?

   - Apenas o conheço bem demais, meu querido.

Sim, George amava sua esposa incomum. Estava es¬crito em seus olhos, mas somente uma mulher apaixo¬nada por ele podia ver.

  

   - O que está fazendo? - indagou Herbert Jolliet a Elma, ao lado de uma fogueira.

   - Queimando as roupas de lady Alice - informou a criada, com olhar matreiro. - Sir George ordenou.

   - Por quê?

   - Porque têm pulgas, segundo ele. Mas acho que ele quer que ela use roupas melhores e essa foi a maneira que encontrou para obrigá-la. Depois que terminar aqui, irei buscar a costureira.

   Sir Richard Jolliet contornou a torre mais próxima e, vendo o irmão com Elma, aproximou-se.

   - O que está havendo?

   A criada relatou aos cúmplices tudo o que se passara nos aposentos dos patrões naquela manhã enquanto estava lá.

   - Não é do feitio do nosso George - concluiu Richard, sarcástico. - Ele estava bravo?

   - Não. Estava frio como um riacho na primavera.

   - E lady Alice não se encontrava?

   - Não, tinha ido à capela para a missa. Eu mesma vi. - Elma remexeu a fogueira com uma vara.

   - E ele foi à missa?

   - Não sei. Tinha meu serviço para fazer. - Ela olhou para Herbert. - Ele foi?

   - Não. Foi até a aldeia. Já tinha dito que precisava falar com o moleiro, e deve ter feito isso.

   - Com Rafe? - Elma assustou-se. - Para quê?

   - Para discutirem a taxa do moinho - explicou Richard. - Tenho certeza de que não há com que nos preocuparmos.

   - Mas Rafe está ficando nervoso - alertou Herbert. - Teme que sejamos todos descobertos.

   - Por quê? Ele ouviu alguma coisa? - indagou Richard.

   - Nada específico - acalmou Herbert. - De qualquer forma, acho que foi um erro envolvê-lo. Podíamos ter-nos arranjado sem ele.

   - Sim, podíamos - concordou Richard. - Mas lucrando só metade. Sem a ajuda do moleiro, não teríamos conseguidos alterar as pesagens com tanta frequência. Além disso, ele podia descobrir e ir correndo contar a sir George. - Olhou para Elma. - Nem todos aproveitam uma oportunidade quando ela aparece...

   - Vocês dois deviam agradecer por eu ter descoberto seu plano - replicou a criada, insolente. - Precisavam de alguém para ouvir as fofocas dos empregados. E acho que Herbert tem razão. Não sei se podemos confiar no moleiro. É bem capaz de dizer a sir George que não sabia nada do golpe, só para salvar a pele.

   - Nesse caso, devemos nos assegurar de que ele não dará com a língua nos dentes, certo? - concluiu Richard.

   - O que quer dizer? - questionou Herbert.

   - Sabe muito bem.

   - Não vou cometer assassinato!

   - Prefere correr o risco de ver nosso esquema reve¬lado? - sibilou Elma.

   - Claro que não!.

   - Claro que não - imitou Richard. - Nesse caso, jamais conseguiria ter Lisette, e ela teria de arranjar outro pretendente.

   - Ela me ama! - protestou Herbert, sem muita con¬vicção, e Elma disfarçou um sorriso desdenhoso.

   - Ela ama seu dinheiro, Herbert - opinou Richard, cruel. - Sem o ouro, ela lhe dá as costas.

   - Mesmo assim, não vou matar ninguém - murmurou Herbert, novamente sem convicção.

   - Meu caro irmão, por acaso eu lhe pedi que matasse alguém? - questionou Richard. - Quero apenas que o alerte, por ora. Rafe é um covarde, de modo que uma boa surra deverá ser suficiente. Ou mesmo uma boa ameaça verbal. - Vendo Herbert aquiesceu, declarou:

   - E conheço os homens certos para o serviço. Vou lhe dizer onde encontrá-los.

   - Eu?

   - Sim, você - rosnou Richard. - A menos que queira bater no homem pessoalmente. Agora, os dois não têm mais o que fazer... repassar as contas de despesas com a nova castelã, por exemplo?

   Herbert despediu-se de ambos com expressão resigna¬da. Tão logo sumiu contornando a torre, Elma olhou brava para o outro cúmplice.

   - Eu sabia que não devíamos tê-lo incluído! Vai ar¬ruinar tudo!

   - Ele fará o que mandarmos e não há o que temer - aplacou Richard.

   - É um idiota sentimental.

   - Estou de olho nele.

   - É bom mesmo!

   Richard contemplou a figueira já quase extinta.

   - O que acha disso? Acha que o senhor e a senhora já estão se desentendendo?

   - Ainda é cedo para dizer. O motivo pode ter sido mesmo pulgas.

   - Seria vantajoso para nós que eles se separassem. Divida e conquiste, certo?

   - Ela não é do tipo que se abre - lamentou a criada.

   - Acho que nunca irá confiar a uma criada seus medos e preocupações.

   - Nesse caso, vamos nos concentrar em sir George - decidiu, já elaborando um plano. - Herbert e eu po¬demos semear dúvidas sobre a dignidade da esposa, de modo que um nobre senhor solitário e infeliz acabe requisitando a companhia de uma criada compreensiva. Talvez até passando as noites com ela...

   Ela olhou-o com desprezo.

   - Deitei-me com você, Richard, porque me pagou bem. Mas sir George é um homem honrado que não se envolve com criadas, como você bem sabe.

   Richard enrubesceu.

   - E, já que ele não pagaria para estar com você, não tem escrúpulo em roubá-lo.

   A expressão da criada era tão fria e dura quanto a parede a suas costas.

   - Todos temos nossos motivos. Agora, vá semear as tais dúvidas, mas tomando cuidado para que ninguém desconfie de nosso esquema.

  

   Disfarçadamente, Alice enxugou na saia as palmas das mãos suadas. Sentada à es¬crivaninha coberta de pergaminhos, no solar, sentia aci¬ma do ombro direito a presença da morte na figura pálida e carrancuda de Herbert Jolliet. A sua esquerda, Richard Jolliet dedicava-lhe sorrisos condescendentes.

   Na verdade, não imaginava por que Richard encon¬trava-se ali. Ele não tinha nada a ver com a adminis¬tração doméstica. Já era ruim o bastante tolerar Herbert tentando explicar-lhe o significado de todas as listas e de cada item nelas.

   Sentindo-se muito ignorante, desejava desesperada-mente encerrar aquela reunião. Aliás, deveria ter-se es¬condido no celeiro, onde permanecera no horário do al¬moço, ou no depósito de armas, ou mesmo se esgueirado para fora do castelo. Agora, a cabeça doía-lhe de tanto fingir entender toda aquela escrita indecifrável.

   Analisou mais um pergaminho desenrolado sobre a mesa. Conhecia os números, mas não compreendia as adições e subtrações, e todas as palavras eram um mistério.

   - Conforme pode ver, minha senhora, precisamos au¬mentar a quantidade de farinha de trigo - finalizou Herbert.

   Sir Richard pousou um dedo ao lado de uma linha escrita.

   - Ah, sim, naturalmente - murmurou Alice, olhando estrábica para o local apontado.

   - Creio que já discutimos tudo o que era necessário por hoje - informou o administrador doméstico.

   - Esse negócio vai sempre tomar tanto tempo? - resmungou Alice, massageando as têmporas latejantes.

   - Não. Como esta foi nossa primeira reunião, fui mais minucioso - explicou Herbert.

   - Agora que está a par da situação, vamos tratar apenas das mudanças e alterações necessárias - completou sir Richard.

   - Não se sente bem, minha senhora? - indagou Her¬bert. - Ou há algo que não tenha entendido?

   - Não... é claro que entendi tudo. É que... foram muitas horas cansativas, nada mais. - Ela deu um sorriso maroto.

   - Certamente, os senhores, sendo homens, não esperam que a esposa de sir George tenha noites tranquilas...

   Herbert corou como uma virgem e até sir Richard ficou meio constrangido, mas logo se recuperou, concordando:

   - Claro que não, minha senhora.

   A criada Elma surgiu à porta e fez uma reverência.

   - Caso esteja disposta, minha senhora, e tendo terminado com os administradores, a costureira encontra-se à disposição.

   - Costureira? Não quero costureira.

   Os Jolliet e a criada trocaram olhares apreensivos, o que enfureceu Alice.

   - Quem requisitou uma costureira?

   - Foi sir George, minha senhora - informou a criada. Então, lady Margot entrou no solar.

   - Ah, ei-la aqui! - saudou a bela hóspede, sorridente.

   - Que tal subirmos a seus aposentos para a costureira tirar suas medidas?

   Então, George queria que imitasse a prima Margot, concluiu Alice, encarando a outra mulher. A delicada, graciosa e educada lady Margot, com sua fala branda e olhos de orvalho. George queria que sua esposa, a quem considerava uma bárbara, ficasse como aquela dócil cria¬tura lindamente vestida.

   - Eu não quero que tirem minhas medidas - decla¬rou, levantando-se devagar, os braços cruzados de modo desafiador. Tinha a estranha sensação de ser vítima de uma conspiração.

   - Sir Richard, Herbert, poderiam nos dar licença, por favor? - pediu Margot, inabalável. Os homens se reti¬raram. - Elma, conduza a costureira aos aposentos de minha senhora.

   Por fim, eram só as duas no solar.

   - Lamento que esse pedido a perturbe, Alice - começou Margot, deslizando pelo chão de pedra. - Mas seu marido ordenou que providenciássemos uma costureira para lhe confeccionar vestidos novos, tantos quantos desejar.

   Alice fez uma carranca de dar medo, e Margot suprimiu um suspiro desalentado. Era evidente que já havia pro¬blemas entre os recém-casados.

   Sem conhecer os detalhes, não poderia apontar o cul¬pado, mas conhecia os defeitinhos de George. Para co¬meçar, ele parecia incapaz de falar a sério, e nunca se sabia o que pensava de fato sobre o que quer que fosse. Eis por que sempre invejara sua futura esposa, a quem ele certamente exporia sua reflexões mais íntimas.

   De qualquer forma, jamais lhe passara pela cabeça que ele imporia a ela o papel de apaziguadora.

   - Eu disse a meu marido que não queria nenhum vestido novo - rosnou Alice.

   Margot começou a enrolar os pergaminhos espalhados sobre a mesa.

   - Receio que não tenha muita escolha, minha queri¬da... a menos que não se incomode em andar nua.

   - O quê?

   - George ordenou que queimassem suas roupas. Alice bateu com força na escrivaninha.

   - Por quê?

   - Qualquer que seja a justificativa que ele apresentou à criada, acho que você sabe a verdadeira razão.

   Alice endireitou.o corpo, rígida.

   - Quer dizer que ele vai tentar transformar a esposa ignorante numa dama, com a sua ajuda - concluiu, des¬denhosa. - Que gesto nobre!

   Margot conteve o ímpeto de repreender Alice como a uma criança manhosa. Será que não via o quanto George a amava? Então, fitou-a nos olhos e entendeu.

   George não era o único que sofria naquela história. Ademais, conforme o ditado, quando um não queria, dois não brigavam.

   - Prefere que ele a repudie? - questionou Margot. - Ou que anule o casamento e a mande de volta a seu pai?

   - Ele não ousaria!

   Margot também pensava assim, mas não o disse.

   - Não permitirei que ele me culpe pela escolha que fez, caso esteja insatisfeito - declarou Alice. - Eu já era assim quando ele me escolheu. Se está arrependido, a culpa é só dele.

   Margot respirou fundo.

   - Alice, gostaria de deixar uma coisa clara. George me vê como irmã, não como mulher.

   - Foi o que ele disse.

   - E deve acreditar.

   - Afinal, você é tão... sem graça e geniosa, não é? - ironizou Alice.

   Margot lembrou-se de que estava ali como apaziguadora.

   - Se gostasse de mim como mulher, George poderia ter pedido minha mão há muito tempo, antes de eu me casar. Mas isso nunca aconteceu.

   - Talvez porque ele não estivesse pronto para o casamento.

   - Estou viúva há mais de cinco anos, Alice. Ele poderia ter-me pedido a qualquer tempo.

   - E você teria aceitado - replicou Alice. - Conforta-me muito, minha senhora!

   - Não - mentiu Margot, embora a constatação seguinte fosse verdadeira. - Porque ele nunca, nunca olhou para mim do jeito que olha para você.

   - Que jeito? - desdenhou Alice. - Com choque, porque não me visto de maneira convencional? Com pena e condescendência? Ou com a segurança de que pode me¬lhorar esta mulher cheia de defeitos?

   - Será que não enxerga o quanto ele gosta de você? - ralhou Margot. - Sua ignorância quanto a esse fato é que me faz ter pena de você.

   - Não quero sua pena!

   - Mas a tem, mesmo assim. - Num esforço supremo, Margot colocou a si mesma de lado, pois estava diante da mulher que George escolhera. - Você está tão cega que não vê o quanto George a quer, por isso tenho pena de você. É tão teimosa que não se sacrificaria por um amor como o dele, e por isso tenho ainda mais pena de você. E, se jogar fora o que ele está lhe oferecendo, será a criatura mais lastimável do mundo!

   - Não admito ser repreendida!

   Alice fez menção de se retirar, mas Margot segurou-a pelo braço com uma força impressionante.

   - Alice, não seja tola! Quero ajudá-la, não tomar seu lugar!

   Alice encarou a outra mulher por longos instantes, o rosto inescrutável. Concluiu que era sincera.

   - Pois bem, já que está tão determinada, e sendo ordem de meu senhor, seguirei suas instruções. Mas que fique bem claro, minha senhora: em certas coisas, não aceitarei tutela.

   Com as costas rígidas como uma lança nova e o queixo levemente protuberante, atirou-se na cadeira.

   - O que vamos fazer, minha senhora, depois que providenciarmos meu novo guarda-roupa? Tomar li¬ções de dança?

   - George não deu detalhes. Alice suspirou cansada.

   - Não me surpreende. Ele não costuma ser muito específico, não é?

   Fazer aquele casal se entender não seria fácil, concluiu Margot, desolada. Não obstante, era preciso fazer algo, pois estavam partindo o coração um do outro.

   - George já deve ter enfurecido você várias vezes - adivinhou, solidária. - Ele pode ser muito arbitrário, às vezes.

   Surpresa por ouvir a prima de George criticá-lo, Alice resolveu aproveitar a desabafar:

   - Tampouco é o senhor perfeito. Dá liberdade demais aos administradores, ainda que os considere de confiança, não supervisiona os homens a seu serviço. Evidentemente, tem maneiras perfeitas e se veste melhor do qualquer homem que eu já tenha visto, mas essas coisas não são importantes. Não de fato.

   - Acho que George não imagina o quanto são confor¬táveis suas roupas velhas - argumentou Margot, ten¬tando conquistá-la. - Ele nunca teve de dançar espre¬mido num espartilho!

   - Nem cavalgar de saia, sem calça por baixo! Lady Margot riu.

   - Claro que não! Infelizmente, George não tem muita imaginação.

   Alice recordou algumas da intimidades partilhadas com o marido e concluiu que a afirmação não procedia, mas não exporia tais detalhes à prima Margot.

   - Como a maioria dos homens, ele não entende o ponto de vista das mulheres. Poucos tentam.

   - De fato...

   - Ao passo que nós, mulheres, vemo-nos obrigadas, com frequência, a entender o ponto de vista deles.

   - Eu nunca faço isso - declarou Alice, mal-humorada.

   - Se me permite dizer, esse é o problema - explicou Margot.

   Alice olhou brava para a outra.

   - Por que eu consideraria o ponto de vista de um homem se ele não considera o meu?

   Margot franziu de leve o cenho de alabastro.

   - Por que você seria diferente da maioria das mulheres? Alice deu uma risada sarcástica.

   - Eu sou diferente das outras mulheres. Com certeza já notou. Eis por que George quer que você fique. Para me obrigar a mudar.

   - Não creio que...

   - Pois diga a meu marido que eu não vou mudar, a menos que me convenha! - Alice levantou-se para ir embora.

   Margot não se mexeu.

   - E acha que não irá lhe convir?

   Alice olhou fixamente para aquela mulher que era o seu oposto. Não queria mudar. Agindo assim, porém, po¬dia perder todas as esperanças de fazer George amá-la tanto quanto ela...

   Respirou ofegante, a verdade atingindo-a como um gol¬pe. Era isso o que sentia por ele? Amor?

   Nesse caso, tratava-se de um amor diferente daquele que sentira por Rufus, na verdade um amigo e confidente, e uma extensão da vida e da casa que conhecera.

   Talvez a emoção que experimentava se referisse ao que uma esposa sentia pelo marido, amante e compa¬nheiro numa nova vida e numa nova casa, construída por ambos juntos.

   Se não mudasse, perderia a ele e aquele sentimento. O amor. Seria como render-se sem travar nenhuma batalha.

   - Vamos ao encontro da costureira - decidiu Alice, em tom heróico, como se conclamasse às armas.

   Com um suspiro, Margot seguiu a esposa do primo. Se estava aliviada, ou resignada, não saberia dizer.

  

   Sir Richard Jolliet agarrou o braço do irmão herbert e puxou-o para dentro da despensa.

   - É bom demais! - festejou o cavaleiro, em voz baixa. - Temos muita sorte!

   - Como assim? - indagou o outro. - Pensei que ela nunca fosse entender. O que pretendeu ao parabenizá-la pela compreensão? Tenho certeza de que ela ficou total¬mente confusa a maior parte do tempo.

   - Totalmente confusa! - confirmou Richard. - Não percebeu que tínhamos de apontar-lhe cada item comentado?

   - Percebi. E daí?

   - E que ela se confundia ante as informações mais simples?

   - O que isso significa? - inflamou-se Herbert. - Vim buscar comida, não charadas!

   - Seu idiota - ralhou Richard. - Ela não sabe ler! E acho que não sabe nem somar e subtrair, tampouco.

   - Claro que sabe. É filha de um nobre senhor.

   - É filha de sir Thomas. Ele não desperdiçaria tempo e dinheiro na educação da própria filha.

   - Mas todas as mulheres da nobreza recebem alguma educação - argumentou Herbert, incrédulo.

   - Quer uma prova? Quando falávamos da farinha de trigo, apontei para a anotação referente ao vinho, e ela não disse nada!

   Herbert pensou.

   - É... talvez você esteja certo.

   - É claro que estou. Eis por que ela se recusava a repassar com você as contas domésticas. Trata-se da no¬bre mais ignorante que já vimos!

   - Acha que sir George sabe?

   - Não, ou teria comentado, feito alguma gozação. Ou ajudado-a. Acho que é orgulhosa demais para contar ao marido.

   - É bem provável - concordou Herbert, entusiasmado. - Nesse caso, ela vai acreditar em tudo o que lhe dissermos sobre a lista de mantimentos.

   Sir Richard esfregou as mãos, animado.

   - Um marido indolente e mergulhado na luxúria, uma esposa ignorante, incapaz de gerir contas... é quase bom demais para ser verdade.

  

   Assim que avistou a prima Margot adentrando o salão para a ceia, George soube que havia algo errado.

   - O que aconteceu? Onde está Alice?

   - Ela está com dor de cabeça e não descerá para jantar.

   Ela não se mostraria receptiva na cama conjugal, tam¬pouco, concluiu George, apreensivo.

   - Ela rejeitou a costureira?

   - Não. Tiramos as medidas e escolhemos os tecidos. Ele espirou lentamente, aliviado.

   - Temi que ela mandasse a pobre criatura escadaria abaixo.

   - Mas ela não gostou nem um pouco da atividade - esclareceu Margot. - Nunca vi uma mulher adulta tão impaciente.

   Pararam de conversar para acompanhar o padre Adol-phus na oração e deixar-se servir pelos criados. Entre¬meados pela segunda, terceira e quarta rodada de igua¬rias, conversaram sobre conhecidos mútuos, ainda que George não conseguisse se concentrar.

   - Sua cara faz jus à de sua esposa - observou Margot, numa pausa em que George se rendeu ao desalento. - Ela está muito zangada e decepcionada com você.

   - Eu sei...

   George disfarçava a ansiedade. Bem que gostaria de conhecer os detalhes da conversa entre Alice e a prima Margot, mas era orgulhoso demais para exter¬nar a curiosidade. Era também por orgulho que não interrogaria a esposa acerca de seus conhecimentos "especiais". Tentou afogar as dúvidas saboreando uma fatia de faisão com molho.

   - É um bom sinal, George - tranquilizou Margot. Ele se surpreendeu.

   - Como assim?

   - Todo sentimento forte é motivo de esperança. Se ela fosse indiferente a você, eu ficaria assustada. Ela gosta de fazer amor com você?

   - Margot!

   - George, se quer a minha ajuda, não posso ficar tropeçando no escuro. Nunca conheci uma mulher como a sua esposa e não quero piorar as coisas entre vocês.

   - E isso lhe dá o direito de especular sobre os detalhes mais íntimos de nossa vida?

   - Se prefere dispensar minha ajuda, é só dizer. George fitou o rosto plácido da prima, aplacando o ímpeto de revelar sua dúvida sobre a honra, ou falta de honra, da esposa.

   - No que concerne a mim, ela aprecia nossa intimi¬dade imensamente,

   A prima sorriu feliz.

   - Excelente! Maravilhoso!

   - Não posso discordar...

   George apenas imaginava com que frequência Alice se de¬leitara com tais... atividades, antes de se casar, e se houvera muitos homens em sua vida. Ou só aquele grandalhão ruivo.

   - Não obstante. George, não se pode construir um casamento feliz com base apenas no que acontece na cama nupcial - alertou Margot, com uma objetividade des-concertante. - Há que se considerar o resto do dia.

   - Eu já tentei retê-la na cama de dia, mas ela defende a ideia absurda de que bons castelões não permanecem na cama após o alvorecer.

   - Não é de admirar que ela esteja zangada com você, se é desse jeito arrogante que trata dos problemas entre vocês.

   - O que quer que eu faça? - questionou George.

   - Que tenha paciência com ela.

   - Mais do que já tenho?

   - Temo que sim. Não pode exigir que ela mude da noite para o dia, presumindo, naturalmente, que de fato queira que ela mude, pois ela está disposta a tentar.

   - É claro que quero que ela mude. A prima fitou-o severa.

   - Se ela de fato mudar de forma que lhe convenha, você a amará mais?

   George sustentou o olhar com sua expressão impenetrável.

   - Acredita que eu a amo?

   - Acredito.

   Ele refletiu por alguns segundos.

   - Seu comportamento atual é embaraçoso demais para que eu tolere.

   Margot cogitou se George via o perigo no que impunha, e se deveria alertá-lo quanto à possibilidade de um casamento desmoronar sob a tensão das expectativas frustradas. Aprendera-o ao falhar em dar ao marido o filho que ele tanto queria. Ele a amaldiçoara por sua esterilidade todos os dias após seu primeiro ano juntos, até a hora da morte.

   - Tentarei ensinar a ela, George. Mas você terá de se conter e deixar tudo por minha conta.

   - Serei um marido paciente exemplar - prometeu ele. - Não vai ser tão difícil assim.

   Margot não estava tão certa.

  

   Sentada sobre as pernas cruzadas no chão de pedra do quarto, as costas contra a pa¬rede, Alice pensava. Ali em Ravensloft não tinha seu pomar no qual se refugiar.

   Na verdade, escondia-se, porque estava na hora de repassar as contas de despesas domésticas com Herbert Jolliet novamente.

   Não queria estar perto de ninguém, nem mesmo da criada Elma, tentador que era fazer confidências. O pai sempre lhe dissera que os criados eram as últimas pes¬soas a quem se podia confiar o íntimo e não ignoraria o ensinamento, mesmo ali.

   Havia lady Margot, mas não exporia a ela seus medos e dúvidas, por mais bondosa que parecesse. Aliás, constrangia-se na presença da prima perfeita de George, quando seus próprios defeitos pareciam aumentar.

   Portanto, permaneceria a sós com seus pensamentos e, somente naquele dia, deixaria de lado o dever de dona-de-casa.

   Para completar, estava cada vez mais desconfiada da veracidade dos relatórios apresentados pelo administra¬dor doméstico. Toda vez que ele lhe apresentava os re¬gistros de compras de alimentos, bebidas e outros itens para a despensa, parecia-lhe que os números referentes ao dia anterior tinham sido alterados e algumas palavras, substituídas por outras.

   No entanto, como não sabia ler, bem podia estar enganada. Tantas palavras assemelhavam-se umas às outras!

   Oh, como era difícil suportar os Jolliet! Não podia evi¬tar a sensação de que não eram confiáveis. Até o mo¬mento, porém, não tinha nenhuma evidência concreta contra eles e não havia como expor sua desconfiança sem confessar que nunca fora alfabetizada. Todos saberiam que era uma ignorante.

   E havia o temor de que seu marido fosse um perdulário, embora o azedo Herbert houvesse lhe garantido que não havia motivo para preocupação.

   Abraçando as pernas, pousou o queixo nos joelhos. No castelo Dugall, aprendera a ser um excelente soldado, não uma excelente esposa. Ali em Ravensloft, nunca sabia ao certo o que fazer ou como fazer. Aos poucos, Lady Margot ensinava-lhe os deveres de uma castelã, como contar as peças do enxoval, por exemplo, mas achava tudo extremamente maçante.

   Sentia-se livre somente quando saía para cavalgar, mas não era como nos velhos tempos, tampouco. Para começar, acompanhava-a uma escolta armada. Até ten¬tara deixá-la para trás na primeira vez, mas não con¬seguira. George selecionara seus melhores homens para a função.

   E já não usava a confortável calça. Seus vestidos novos, com a barra da saia cobrindo-lhe os pés, eram incômodos e desprezíveis.

   Na hora das refeições, George observava cada movi¬mento seu, a ponto de tirar-lhe o apetite. Não raro, ele lhe chamava a atenção para os erros de etiqueta come¬tidos à mesa, e vivia lembrando-a de mastigar com a boca fechada. Lady Margot, a suposta professora, costu¬mava ser mais sutil.

   O fato era que começava a gostar da prima de George. Nunca tivera uma amiga e, às vezes, considerava que ela poderia ser a primeira.

   Se não fosse tão bonita e perfeita.

   Se George não parecesse preferia sua companhia à da própria esposa.

   Então, por mais que tentasse subjugá-lo, voltava-lhe o temor de que George houvesse convidado a prima a prolongar a estadia não porque sua esposa precisasse de professora, mas por ser ela uma dama bela e elegante que sem dúvida nutria por ele grande afeto. Talvez até o amasse.

   Será que não fizera o bastante, não fora o bastante? Vira-se ele tentado a procurar a cama de outra mulher? E essa outra mulher seria lady Margot? Seria ele capaz de tratar a esposa com carinho só para que ela não des¬confiasse de sua traição?

   Oh, que dúvida cruel! Queria tanto bani-la, mas alo¬jara-se em seu coração, junto com a certeza inequívoca de que desejava George mais do que um dia imaginara ser possível. Quando ele a tocava, só importava o amor e o desejo apaixonado que lhe tinha.

   Mas ele sabia? Estaria usando tal conhecimento para mantê-la cega quanto à verdadeira situação em Ravensloft?

   Olhou para a cama. Era ali que se sentia perdida, à deriva, desde a noite em que ele dissera que assumiria o comando. Agora, vivia receosa de fazer algo errado, de dizer algo errado, expondo sua ignorância, por mais que se esforçasse em ocultá-la.

   Tentara agir conforme supunha que uma esposa bem-educada se comportaria, deixando George tomar a ini¬ciativa, como era seu desejo, mas não conseguira. Sob seus toques e carícias excitantes, não podia ficar impas¬sível como uma estátua. Tinha também de tocar, acari¬ciar, afagar e mover-se.

   Mas a cada dia ele parecia afastar-se mais e mais. Em vez de conhecer melhor o marido, parecia estar perdendo-o.

   Por que ele se mostrava tão contido em sua presença, exceto quando faziam amor? Ele continuava tão educado, charmoso e sorridente quanto antes, mas havia algo di¬ferente. Era como se ele construísse uma parede entre ambos. Às vezes, até mesmo quando se achavam sozinhos, sentia que ele tentava fingir que ela não existia.

   Iria ele amá-la outra vez como na noite de núpcias, com aquela paixão selvagem que a avassalara por completo?

   O que fazer?, perguntou a si mesma, pela centésima vez. Sentia-se como que atada por cordas, cada dia mais apertadas e que, no final, a estrangulariam.

   Lentamente, levantou-se do chão e foi até um dos baús de roupas de George, passando os dedos sobre o couro trabalhado da tampa.

   Tentara agradá-lo. Esforçara-se para mudar, para satisfazê-lo. Enfiara-se nos vestidos justos e tomara aulas de dança. Estava sempre revisando as contas de despesas com o administrador doméstico. Permanecia dentro do castelo muito mais tempo do que teria apreciado. Experimentara todas as posições que ouvira seus irmãos e os demais soldados descreverem como prazerosas na companhia de uma mulher, para que George sentisse tanto prazer e desejo quanto ela.

   Tudo em vão. Já perdera a batalha e, provavelmente, a guerra. Que fazer agora? Deitar-se e morrer?

   Aceitar a derrota? Voltar para casa como um cachorro escorraçado?

   Nunca. Nunca! Seu pai sempre afirmara que era me¬lhor morrer com honra do que ser derrotado.

   Sendo assim, triunfaria... em seus próprios termos, não nos de George. Não se permitiria mais sentir-se constrangida e ansiosa. Nunca mais se sentiria igno¬rante e inepta.

   Determinada, escancarou o baú do marido e pegou a primeira calça que encontrou. Era grande, mas já usara muitas peças descartadas dos irmão. Precisava de um cinto. Vasculhou entre as próprias roupas e arrancou uma das fitas de um vestido novo. Levantando a saia, vestiu a calça e ajustou o cinto improvisado.

   Mal se via a calça, constatou, ao baixar de novo a saia. Soltou um suspiro desolado. Se tivera o coração despedaçado, agora teria de esconder isso também.

   Saiu do quarto e foi direto ao depósito de armas. Es¬colheu um bom arco e uma aljava de flechas.

   Ia caçar.

  

   O sino da igreja na aldeia acabara de anunciar as matinas quando George por fim recolheu-se para dormir. Após a ceia, em que serviram-se deliciosas codornas aba¬tidas pela castelã em pessoa, distraíra-se jogando xadrez com sir Richard Jolliet.

   Alice fizera a refeição em silêncio, um novo hábito seu, aparentemente. Nenhum comentário parecia diverti-la e, ainda que suas maneiras à mesa houvessem melhorado, aquela mudez obstinada já se tornava insuportável.

   Ao contrário da prima Margot, não considerava um bom sinal as impetuosas e inexplicáveis mudanças de comportamento de Alice. Começava a acreditar que ela o detestava, aceitando-se casar-se só porque o objeto de seu afeto, sir Rufus Hamerton, não pedira sua mão.

   Também não lhe saía da cabeça a quase certeza de que o grandalhão ruivo fora seu amante, ou um de seus amantes, de modo que ela não se casara virgem.

   Até Richard Jolliet já comentara, com tato, que lady Alice passava tempo demais entretendo os homens da tropa. E não faltavam críticas, veladas, a seu hábito de cavalgar pelo campo escoltada por vários homens, mas sem o marido.

   Para completar, o tratamento que ela lhe dispensava em nada contribuía para arrefecer os boatos. Ela sim¬plesmente o ignorava, deixando óbvio a todos no salão que a relação entre o senhor e a senhora do castelo estava em crise.

   Mas não o tempo todo. Não à noite. Por mais que as dúvidas o atormentassem durante o dia, quando se via sozinho com ela no quarto não conseguia pensar em nada além de amá-la. Bastava tocá-la para querê-la. Ao pri¬meiro, o desejo os engolfava.

   Seus sentimentos por ela esmagavam-no, obrigando-o à completa rendição.

   Agora, junto à porta do quarto, ouvia a respiração pro¬funda e regular de Alice. Percorrendo o chão banhado pelo luar, notou que o braseiro estava apagado e que não havia indícios de velas recém-apagadas denunciando que ela esperara por ele acordada.

   Junto à cama, contemplou-a deitada de lado, as feições relaxadas pelo sono, um braço estendido sobre o acol¬choado de cetim. A cabeleira selvagem esparramava-se sobre o travesseiro. Seu arco e aljava de flechas também repousavam contra a parede ao fundo.

   Como se mostrava pacífica naquele momento! Era a própria Diana, deusa da caça, em seu merecido repouso. Inclinando-se, afastou uma mecha de cabelo de seu rosto. Ela entreabriu os lábios, suspirou e acomodou-se de costas.

   Sentiu sua masculinidade se excitar e baniu as ima¬gens que o atormentavam, de um grandalhão ruivo dei¬tado sobre sua esposa. Tocando-a. Beijando-a. Amando-a. Concentrou-se apenas nela. Meio em transe, começou a desatar o cordão da túnica junto ao pescoço, sem tirar o olhar de cima dela. Partilhariam de novo o pra¬zer. A paixão.

   Quando suas roupas não passavam de uma pilha dis¬forme no chão, esgueirou-se por sob as cobertas, imedia¬tamente envolto pelo calor. Tomando a mão de Alice, beijou-lhe a palma e então, bem devagar, deslizou os lábios ao longo de seu braço nu.

   Ela recendia a ar fresco, tão diferente dos perfumes fortes que impregnavam a pele de outras mulheres. Ape¬sar dos músculos bem-desenvolvidos e tendões rijos, sua carne era tão macia e convidativa quanto a de qualquer mulher que já conhecera.

   Com a outra mão, começou a acariciar-lhe o corpo, apreciando as diferentes texturas que encontrava. Er¬guendo-lhe a camisola, achegou-se mais, sem nunca in¬terromper a indolente exploração. Era comum excitar-se demais e não dedicar ao corpo dela o tempo recomendável.

   Ela se mexeu de novo e suspirou.

   - George?

   - Sim, meu amor.

   - George... - Alice ergueu-se um pouco e enlaçou-o com os braços.

   Ele queria ser paciente, excitá-la aos poucos. Apesar de seus tormentos, gostaria de proporcionar-lhe um pouco do prazer que ela lhe dava. Esforçou-se para se conter e manter o controle, pois era necessário se quisesse re¬gozijá-la por completo.

   Assim que os lábios de ambos se encontraram para um beijo, porém, a decisão caiu por terra. Como sempre, a resposta imediata e apaixonada dela o inflamou ainda mais, além de tudo o que já experimentara um dia. Ela era só fogo, calor e luz; o corpo dela, a nave de seu prazer. Não conseguiria deixá-la nem que uma batalha o requisitasse junto à porta do quarto ou que sua alma dependesse disso.

   Rápido demais, o ápice chegou e passou. George dei¬tou-se de costas, exausto e ofegante, e Alice baixou a camisola para baixo da cintura.

   - Onde é que você esteve? - indagou ela, de chofre.

   - No paraíso... - declarou ele, de olhos fechados, o suor refrigerando o peito nu.

   - Sabe muito bem do que estou falando. Por que não veio logo para a cama?

   - Eu estava no salão.

   - Com quem?

   Ele detectou a desconfiança na voz dela.

   - Com Richard Jolliet.

   - E ninguém mais?

   George não estava gostando daquele interrogatório. Não fizera nada de errado desde de se casaram. Ela não tinha motivo para reclamação, a exemplo dele. Abrindo os olhos, apoiou-se num cotovelo para encarar seu rosto enraivecido.

   - Não tem o direito de me questionar. Faço o que quero, com quem bem entendo. Sou o amo e senhor aqui.

   - E eu sou sua esposa.

   - Sei muito bem disso. - Ele se deitou de novo.

   Cada vez mais zangada, Alice afastou-se dele abrup¬tamente. Arrepiando-se de frio, amaldiçoou a si mesma por não ter força de vontade. Não devia tê-lo recebido na cama tão pronta e calorosamente tendo ele demorado tanto a recolher-se.

   - Onde foi que esteve, meu marido?

   - Não tenho que responder, Alice - declarou ele, apenas levemente aborrecido. Saiu da cama e começou a vestir a calça. - Mas vou repetir: eu estava no salão, com Richard Jolliet. Depois, fiquei diante da lareira, mergulhado em pensamentos... confortando-me com a idéia de que minha ausência talvez a obrigasse a refletir sobre seus erros.

   - Meus erros? - Alice olhou-o pasma. - Do que está falando? Eu não desperdiço horas cora jogos inúteis! Nem deixo minhas responsabilidades a cargo de outros! Se acha que apresento defeitos como castelã, talvez devesse analisar os seus!

   Ele pegou a túnica.

   - Não desperdiço meu tempo inutilmente.

   - Oh, perdão por considerar o jogo de xadrez um tra¬balho importante - ironizou Alice. - E que, ao mandar o capataz visitar o moleiro ao saber que este foi espancado quase até a morte, em vez de investigar o incidente pes¬soalmente, tenha cumprido seu dever como senhor.

   - Deve ter sido vingança de uma amante ciumenta - desdenhou George.

   Alice mal continha a ira.

   - Como pode ser tão fútil?

   Ele a encarou furioso, a face rubra.

   - Diga-me: sou melhor amante do que sir Rufus Hamerton?

   De início, ela não percebeu a insinuação e respondeu sincera:

   - Não sei. - Então, ofendida, esclareceu: - Nunca fiz amor com ele.

   - Nesse caso, quem foi que lhe ensinou tão bem como agradar a um homem? - desabafou George. - Qual o felizardo que a deflorou?

   - Foi você! - afirmou Alice, quase num grito. Ele cerrou os punhos.

   - Não minta para mim.

   - Eu não estou mentindo! - protestou ela. - Nunca amei outro homem além de você!

   Tenso como a corda de um arco prestes a disparar a flecha, George perscrutou seu rosto em busca da verdade por um minuto inteiro. Então, voltou a ser o inabalável sir George de Gramercie, com uma diferença: era agora um homem tão frio e duro quanto granito.

   Naquele instante, Alice quis morrer. Fracassara com-pletamente. Como um homem que a amara podia fitá-la daquela maneira?

   Mas não o traíra. Não amara outro homem. Entrega¬ra-se a ele pura e honrada e não lhe permitiria dizer o contrário.

   - Com que direito insulta-me? - questionou, saindo da cama enrolada no lençol. - Com que prova me acusa?

   - Não havia sangue no lençol.

   - Havia em mim! E em você! Eu o limpei...

   - Muito conveniente.

   Alice passou para a ofensiva:

   - E você não ama sua prima, uma hóspede tão conveniente?

   Ele estreitou o olhar.

   - Amo minha prima como primo e nada mais.

   - Viu como é divertido ser acusado injustamente, meu senhor, que vive para diversões de todos os tipos?

   - E que tipo de diversões você aprecia, Alice? Parece bastante conhecedora... para uma noiva virgem.

   Tropeçando no lençol, ela foi até ele, a mão erguida e aberta, como se pretendesse esbofeteá-lo.

   Ele segurou-lhe a mão e, cego de ódio, preparou-se para golpeá-la. Ela se retraiu, certa de que não escaparia. Mas ele a soltou com um empurrão e caminhou resoluto para a porta. Sua batida ao sair foi tão estrondosa que mais pareceu um trovão.

   Alice correu e escancarou a porta, decidida a segui-lo e fazê-lo enxergar a verdade... quando o orgulho a deteve. O que todos diriam se a vissem perseguir o marido na calada da noite enrolada num lençol e descalça?

   Que não conseguira cativar o afeto do marido nem por um mês e, desesperada, tinha de correr atrás dele?

   Ainda deu mais um passo. Como ele se atrevia a acu¬sá-la de desonra?

   Casara-se virgem. Quanto aos conhecimentos que pu¬sera em prática, apenas ouvira seus irmãos e amigos relatarem, nada mais!

   Mas George não sabia disso. E imaginava... Alice recostou-se na fria parede de pedra e fechou os olhos. Devia ter previsto isso. George pensava que seus conhecimentos derivavam da prática!

   E tais suspeitas da parte dele deviam ter cavado um fosso entre ambos. Eis por que ele se afastara cada vez mais! Tinha de explicar-lhe!

   De repente, já não importava quem poderia vê-la, nem o que poderiam pensar se descobrissem sua ausência do quarto. Encontraria George e lhe contaria como apren¬dera sobre o amor.

   E então, com a bênção divina, recomeçariam.

  

   George desabou à sombra do poço, protegido do luar e da visão dos guardas que patrulhavam na passarela da muralha.

   Seu coração queria desesperadamente acreditar nos protestos de inocência de Alice, mas sua mente aconselhava cautela. Não seria o primeiro parvo a ser enganado por uma mulher persuasiva. O corpo inteiro tremia-lhe de raiva e vergonha ao abraçar as próprias pernas, a respiração curta e ofegante torturando-o enquanto o pouco autocontrole conquistado se estraçalhava e desaparecia.

   Podia tê-la matado. Ela o enfurecera de tal modo que podia tê-la matado, tivesse nas mãos uma espada, ou mesmo uma vara.

   Aquela fora sua arma, tanto tempo atrás, quando cheio de frustração e ira golpeara, golpeara e golpeara, insen¬sível a tudo, exceto ao ato de golpear.

   Até o cachorro prostrar-se semimorto a seus pés, cho¬rando pateticamente, os olhos castanhos tão acusadores quanto os de uma criança ferida. Horrorizado, gritara e livrara-se da vara antes de se ajoelhar e tomar o corpinho nos braços. Ainda podia sentir-lhe o peso abandonado, quente.

   E então seu pai chegara, olhando-o com expressão incrédula...

   Eis o que acontecera na última vez em que tentara ensinar, aos dez anos de idade.

   Lembrava-se da criaturinha tão bem, mesmo agora. O filhote mais quieto de uma ninhada da cadela favorita de seu pai, era lindo devido ao contraste das orelhas pretas com o corpinho castanho.

   Embora criança, George logo viu que tratava-se do me¬lhor da ninhada, a transformar-se no melhor caçador. E no mais leal.

   Decidira, então, ensinar-lhe um truque, para mostrar ao pai como o cãozinho era promissor e como ele mesmo era inteligente por percebê-lo. Chegara a imaginar a cena em que seu pai lhe diria:

   - E um excelente cão. Já que começou a treiná-lo, será seu para sempre.

   Oh, que pequeno bruto egoísta fora! E quão transpa¬rentes seus desejos, pois quisera o animalzinho para si desde o nascimento!

   Durante o que lhe parecera horas, tentara ensinar o filhote a pegar uma bexiga de porco cheia de ar. Mas ele era muito novinho e logo se cansara da brincadeira. Ante a insistência no treino, irritara-se e o mordera.

   Tomado pela raiva, perdera totalmente o controle e pegara a vara. O que fizera em seguida não fora regido pela consciência; não pretendera punir, nem compelir. Foi só ira, frustração e repetição. Até o animalzinho morrer.

   Seu pai envolvera-lhe os ombros com o braço, pergun¬tando o que acontecera. Ante a voz branda e terna, não teve como negar a atitude vergonhosa.

   Cometera assassinato, ou assim lhe parecera. Aos so¬luços, confessara-o, tentando explicar o inexplicável.

   O pai ouvira pacientemente. A seguir, com cuidado, tomara-lhe o cãozinho morto, esclarecendo que o remorso não o traria de volta à vida. Não havia como desfazer o erro. Eis por que um homem bom e honrado nunca su¬cumbia à fúria. Controlava-a, subjugava-a, comandava-a. Era seu mestre.

   Então, enxugando-lhe as lágrimas, observara que fora uma maneira dura de aprender tal lição.

   Seu pai o tratara com carinho, solidariedade e paciên¬cia, mas algo em seu olhar revelara-lhe que algo mudara entre eles, e que perdera algo para sempre.

   Anos depois, saberia exatamente o que perdera: o respeito de seu pai. Não por completo, mas o suficiente para que a relação entre ambos nunca mais fosse a mesma.

   A partir daquele episódio, George de Gramercie apren¬dera a esconder sua ira e frustração... aliás, toda emoção forte.

   Até apaixonar-se perdidamente por Alice Dugall.

   Ela era capaz de atiçar seus sentimentos como nin¬guém jamais conseguira, com suas maneiras diretas e aquela incrível paixão desimpedida.

   Ela lhe demolia cada barreira erguida cuidadosamente entre suas emoções e o mundo.

   Agora, escondido em seu próprio castelo, finalmente enfrentava a única emoção que continuava negando.

   O medo.

   Temia sua própria paixão, raiva, amor e ciúme. Temia o que podiam fazer dele e o que poderia perder se lhes desse rédea.

   Alice provocava todas aquelas emoções e ele não estava certo de poder subjugá-las totalmente. Seria prisioneiro delas, não seu senhor.

   Que fazer?

   Se permanecesse ali, naquele turbilhão em que mal conseguia raciocinar, quem saberia quando por fim per¬deria seu tênue autocontrole?

   Contudo, abandonar Alice, fugir como um covarde...

   Não tinha escolha. Deveria afastar-se, até ver-se no¬vamente senhor de si próprio, de posse da força para governar seus sentimentos. Precisava mesmo visitar várias de suas propriedades distantes a pretexto de resolver problemas pendentes.

   Decidido, levantou-se de trás do poço.

   Para ver Alice, envolta numa capa leve e descalça, esgueirar-se para o alojamento dos soldados.

  

   Alice espirrou violentamente ao acomodar-se no salão pela manhã, após a missa. Estava doente, e não apenas fisicamente, pois não con¬seguira encontrar George depois que ele a deixara, fu¬rioso, na noite anterior.

   Gastara um tempo enorme vasculhando o castelo dis¬cretamente, só com uma capa leve sobre a camisola e descalça, a fim de não fazer barulho. Eis agora o resultado da decisão irracional: um belo resfriado.

   Os olhos ardiam-lhe, o nariz escorria-lhe, a garganta latejava-lhe e, para completar, tossia. Seu corpo todo doía e temia vomitar ao comer qualquer coisa.

   Bem preferiria estar na cama, sozinha, em paz, e o que a levara ao salão fora a terrível necessidade de ex¬plicar a George que ele, precipitadamente, tirara uma conclusão desastrosa.

   De algum modo, iria convencê-lo de que entregara-se virgem na noite de núpcias. Quanto a seus sentimentos por Rufus... Estavam tão diferentes agora. Constrangia-a sobremaneira recordar como quase lhe implorara que a desposasse.

   Ainda nutria grande afeto pelo amigo de tantos anos, mas nunca sentira por ele o desejo apaixonado que tinha pelo marido.

   Tinha de haver uma maneira de fazer George acreditar!

   Alguém entrou no salão e Alice ergueu o olhar, esperançosa, mas era lady Margot, mais bela e elegante do que nunca num vestido de seda que parecia ter sido moldado sobre seu corpo. Completavam a indumentária o lenço e o véu dos quais ela nunca se separava.

   Alice olhou para seu próprio vestido cor de cereja. Também era de fina seda, mas seu corpo parecia rejeitar o contato com o tecido. Quanto a acessórios e adereços, sempre os dispensara, em especial o véu sobre os cabelos. Era tudo tão incômodo!

   - Minha querida, você não está bem! - assustou-se Margot, contornando a mesa apressada. Pós a mão na testa de Alice. - Você devia estar na cama! Vou chamar o farmacêutico.

   Alice espirrou de novo, mal resistindo à urgência de assoar o nariz no lenço de seda da outra.

   - Vou me recolher após o desjejum - declarou, em voz rouca. - Eu... preciso falar com George sobre algo.

   - Seja o que for, pode esperar - opinou Margot, sin¬ceramente preocupada.

   Alice estava quente, mas ainda não febril. Se permane¬cesse naquele salão, porém, poderia piorar rapidamente.

   - Não, não pode - teimou ela. Sem opção, Margot sentou-se à mesa.

   Logo a seguir, George chegou, com o padre Adolphus e sir Richard Jolliet a reboque.

   Até chegar à mesa principal, George não se dignou olhar para a esposa, notando seu aspecto somente ao acomodar-se a seu lado.

   - Você está doente - concluiu, surpreso.

   Alice teve de esperar o padre abençoar o alimento antes de replicar:

   - Preciso falar com você.

   - O que quer que tenha para me dizer pode esperar até eu voltar. Resolvi visitar algumas de nossas propriedades distantes.

   Margot e Alice reagiram à notícia com a mesma surpresa.

   - Acho que tenho relaxado um pouco na supervisão - completou ele, em tom sarcástico, olhando para Alice.

   - Não gostaria de que me acusassem de negligência. Lady Margot soltou um suspiro de compreensão. Alice devia ter feito alguma acusação do tipo.

   - Negligência, meu senhor? - questionou o capataz, confuso.

   - Exato. Não acha que tenho sido negligente?

   - Claro que não, meu senhor. Mas creio que uma visita em pessoa não seria um erro.

   - Então, partiremos hoje mesmo, antes do meio-dia - decidiu George.

   - Muito bem, meu senhor. - Sir Richard levantou-se, deixando a refeição pelo metade. - Vou tomar as providências.

   Fez-se um longo silêncio enquanto George tomava seu desjejum. Calada, Alice parecia concentrada na trama do linho da toalha de mesa.

   Quando já não aguentava mais aquele clima, Margot indagou em tom animado:

   - Quanto tempo vai ficar fora? George respondeu lacônico.

   - Não sei.

   Alice levantou-se cambaleante.

   - Meu senhor, gostaria de falar-lhe antes que partisse.

   - Não vou ter tempo. Como sabe, meus deveres me mantêm ocupado.

   - George! - repreendeu a prima, sussurrando para que os demais no salão não ouvissem. - Ela está doente! Vá com ela para o quarto.

   - Você daria uma enfermeira melhor, Margot, embora esteja certo de que o mal de minha esposa não passe de um resfriado, decorrente de seus passeios noturnos pelo castelos com vestes inadequadas.

   Alice ficou pálida como um lençol. Margot foi ampa¬rá-la, temendo que desmaiasse.

   George ergueu-se da cadeira, alarmado, mas só por um instante. Acomodou-se novamente e nunca se mos¬trara tão ríspido e frio ao pedir à prima:

   - Por favor, acompanhe minha esposa até o quarto. - Então, olhou para a criada Elma, a postos junto ao bufê. - Mande chamar o farmacêutico para cuidar de lady Alice.

   Margot ainda pensou em protestar, mas considerou que era mais importante colocar Alice na cama.

   Com certeza, não estavam casados por tempo bastante para estarem com dificuldades sérias, insolúveis. Seria possível fechar a brecha.

   Tampouco era impossível anular aquele matrimônio recente...

  

   Desalentado, Herbert observava o irmão mais velho atirar roupas raivosamente numa grande bolsa de couro.

   O amplo quarto de Richard era tão confortável e luxuoso quanto o de sir George, mas ninguém sabia disso, pois, além de Herbert, só entrava ali um criado, mudo, cuja discrição era muito bem recompensada. Tanta riqueza nas mãos de um capataz certamente despertaria suspeitas, em especial do patrão.

   Já os aposentos de Herbert, logo ao lado, chamariam a atenção pela simplicidade extrema. O luxo ele reservava à bela casa numa aldeia a dez quilómetros dali, na qual mantinha uma amante com todas as regalias.

   - Você disse que ele nunca visitaria as outras propriedades - resmungou Herbert, apreensivo. - E se ele quiser ver os livros de contas?

   - Acho que ele não vai se dar ao trabalho, idiota! - rosnou Richard, batendo a tampa do baú de roupas. - Nunca fez isso, por que faria agora? - Sentou-se em cima do baú. - E tudo culpa dela. Daquela mulher dele.

   O irmão entrelaçou as mãos nervosamente.

   - Acha que ela notou algo nas contas...

   - Como, se não sabe ler? - retorquiu Richard.

   - Por que a culpa, então?

   - Por que ela o deixa louco, seu idiota! - O capataz levantou-se tenso. - Por que acha que ele aparenta não ter uma noite decente há dias? - questionou, andando de um lado para o outro. - Por que acha que ele resolveu fazer essa viagem de repente? Aposto como ela o está rejeitando!

   - Você disse que não tínhamos o que temer com re¬lação a ela.

   - Diretamente, não, mas não posso pensar em tudo! - rosnou Richard. - Como ia adivinhar que ela seria uma esposa tão terrível que ele preferiria supervisionar suas propriedades a ficar em casa? Espero que ela morra!

   - Richard!

   - Ela já está doente...

   - Doente?

   - É. Mal se aguentava em pé quando deixei a mesa. Tomara que caia e quebre a cabeça.

   - Mas o que é que ela tem?

   - Não sei. Pareceu-me mais grave do que um resfria¬do. Mandaram chamar o farmacêutico.

   - Espero que não seja nada grave - declarou Herbert, sincero.

   - Espero que não seja nada grave - repetiu Richard, imitando o jeito retraído do irmão. - Parece até que está apaixonado por ela! Lisette adoraria saber disso...

   - Não é nada disso! Mas e se lady Alice morrer mesmo? Ele vai se casar de novo... talvez com uma mulher que saiba ler.

   Richard cruzou os braços e olhou-o matreiro.

   - O que significa isso? Não me diga que está começando a pensar pôr si mesmo.

   Herbert não respondeu.

   - Você vai estar no comando aqui enquanto eu estiver fora - lembrou Richard. - Não faça nada sem minha aprovação.

   - Sempre tomo cuidado.

   - Não faça nada sem minha aprovação... ou aqueles sujeitos simpáticos que estiveram com o moleiro podem lhe fazer uma visita também.

   Herbert ficou gelado ante a ameaça, apesar da certeza de que o irmão jamais o machucaria. Podia xingá-lo o quanto quisesse, mas jamais o machucaria!

   - Mantenha a mulher confusa, e não tome nenhuma decisão até eu voltar. Entendeu?

   O irmão aquiesceu.

   - Ótimo. Agora, acho melhor ir para o castelo. - Richard pegou a bolsa e se foi.

   Herbert aguardou alguns minutos e só então saiu de casa.

   Tudo parecera tão fácil e sem riscos quando começa¬ram. Umas moedinhas aqui, um soma inflacionada ali. O bastante para comprarem comida e vinhos melhores, além de presentes para mulheres. Nunca imaginara até que ponto Richard chegaria para conseguir mais dinheiro. Era só parar e considerar quão ingênuos eram sir George e seu pai, e quão ganancioso era Richard.

   Atravessou o mercado da aldeia, surdo ao burburinho dos vendedores e seus fregueses pechinchando, cego aos legumes, galinhas, cabeças de porco, cestos e outros produtos expostos. Pensou em comprar algo novo para Lisette numa das bancas de tecidos. Ou no ourives, onde sempre havia algo que podia agradá-la.

   Era inegável que, para manter Lisette, precisava de mais do que ganhava como administrador do castelo de sir George, ainda que contasse com a renda da propriedade dos Jolliet. Eis por que concordara em unir-se ao irmão Richard quando este lhe expusera seus planos iniciais. E quando ele lhe propusera outros esquemas, mais arriscados, mas com a certeza de mais lucros, concordara também... embora na época acreditasse que logo se cansaria de Lisette e arranjaria outra amante, uma de gostos e hábitos mais modestos.

   Não sabia que se apaixonaria pela pequena morena parisiense. Não imaginara que suas atenções o fariam sentir-se igual aos outros homens, igual a Richard. Ou que sucumbiria a seus encantos, negligenciando as responsabilidades. Agora, a idéia de perder Lisette era-lhe tão insuportável que arriscaria tudo para mantê-la. Aliás, já estava arriscando a vida, pois, se fossem pegos, com certeza seriam enforcados.

   De repente, ouviu alguém chamar seu nome. Olhando para um passagem estreita entre dois peixeiros, viu Elma acenando-lhe. Após se certificar de que ninguém o seguia, foi a seu encontro.

   - O que está fazendo aqui? - indagou à criada. - Não devia estar cuidando de lady Alice? Richard me con¬tou que ela está doente.

   - Vim chamar o farmacêutico. Ele foi para o castelo e eu disse que tinha de fazer umas compras para a senhora.

   - Mas é melhor voltar logo. Podem precisar de você.

   - Ela não está muito doente - garantiu a criada. - E só um resfriado, com um pouco de febre, nada mais. Mas, diga-me: o que Richard pensa desse súbito interesse do amo nas demais propriedades?

   - Não está gostando nem um pouco.

   - Mas não há o que temer, há?

   - Richard acha que não.

   - Você não me parece convicto. Herbert deu de ombros.

   - Começo a pensar que devemos fugir, antes que nossas atividades sejam descobertas. Foi fácil quando era o pai de sir George e lucramos umas moedas aqui e ali. Mas fomos longe demais. Podemos ser descobertos.

   Elma olhou-o severa.

   - Não está pensando em nos abandonar, está?

   - Não, claro que não - mentiu ele.

   - Ótimo. - Elma sorriu. - Tenho certeza de que não deixaria Lisette para trás.

   - Eu jamais a deixaria.

   - E ela jamais deixaria você, a menos que ficasse pobre ou fosse preso. Ou morresse, é claro.

   - Mentira!

   - Somos todos mentirosos - observou a criada -, além de embusteiros e fraudadores.

   - Ela me ama! - afirmou Herbert, querendo acredi¬tar, mas sabendo que era mentira também.

   - Acredite no que quiser - finalizou Elma, friamente, passando por ele. - Mas nem pense em pegar a sua parte e fugir.

  

   A criada Elma estava certa: Alice não estava muito doente. Não obstante, o farmacêutico, um careca barbudo de meia-idade, recomendou repouso por alguns dias, deixando-lhe um remédio de gosto amargo para tomar.

   Assim que o homem saiu pela porta, Alice despejou o remédio janela abaixo e encheu a garrafinha de água. O pouco de cheiro e cor que permaneceu na bebida foi suficiente para que ninguém desconfiasse de sua artimanha. Mesmo sem o remédio, Alice recuperou-se em poucos dias, embora se sentisse mais cansada do que o normal. Atribuía tal indisposição aos longos dias que passava em ansiedade, sem idéia de quando teria a chance de conversar com o marido.

   Tampouco estava acostumada às atenções exageradas das pessoas durante sua recuperação. No castelo de seu pai, costumava-se deixar os doentes enfrentando seu mal em paz, servidos apenas por um criado. Sir Dugall temia que cuidados excessivos incentivassem a vadiagem, mesmo com relação aos próprios filhos.

   A solícita Margot oferecera-se para revisar as contas de despesas enquanto ela estivesse em repouso, e devia estar realizando um trabalho mais do que perfeito.

   Para piorar a situação, George não dava notícias. Margot informara que a propriedade mais distante a ser vi¬sitada ficava a apenas meio dia de viagem a cavalo, de modo que ele bem poderia ter enviado um mensageiro para saber da saúde da esposa.

   Por fim, no quinto dia, Alice concluiu que não conseguiria mais ficar na cama. Coincidentemente, soube, pela criada Elma, que lady Margot se recolhera a seus aposentos, por estar "naqueles" dias.

   Sendo assim, livre da vigilância da prima Margot, poderia finalmente sair daquele quarto, onde tudo lhe lem¬brava George e as noites que haviam partilhado.

   Após tantos dias afastada de seus deveres, estava até com vontade de repassar as contas domésticas com Her¬bert. Em poucos minutos, totalmente vestida e arrumada, adentrava o solar, onde já se encontrava o administrador debruçado sobre suas listas.

   - Minha senhora! - espantou-se ele, levantando-se bruscamente. - Não devia estar descansando? O farmacêutico disse que...

   - Eu sei o que ele disse - declarou Alice, segura de si. - Só que eu não aguentava mais ficar na cama. Mais um minuto e enlouqueceria.

   - Por favor, sente-se, minha senhora. - O empregado macilento puxou outra cadeira para junto da escrivaninha. - Eu estava apenas verificando o preços das en¬guias. Começo a achar que estão caras demais para ter¬mos toda semana.

   Alice manobrou a saia pesada ao se acomodar na bei¬rada do assento, e passou a mão na touca. Tivera que colocar o incômodo acessório porque, senão, a criada Elma não a teria deixado passar pela porta, prevenindo-a de que deveria proteger a cabeça, a fim de evitar uma recaída, ainda mais em dias chuvosos como os que vinham tendo.

   Herbert passou-lhe uma lista de alimentos.

   - Entendo - murmurou Alice, correndo o olhar pelo pergaminho. - Mas gostaria de discutir um outro item...

   Pegou um outro pergaminho e escolheu na lista uma palavra ao acaso, apontando-a. Incrédula, analisou o nú¬mero escrito diante da palavra, e não apenas por conse¬guir decifrá-la.

   - Ah, os novos guardanapos - identificou Herbert, contraindo-se todo, o pânico evidente em seus olhos. - Não tínhamos o suficiente. Precisamos de mais cinquenta.

   - Para completar...

   - Duzentos.

   - Quando os novos guardanapos chegaram?

   - Pouco antes de sua festa de casamento, minha se¬nhora. Precisamos deles para aquela ocasião feliz.

   Mas Alice lembrava-se muito da quantidade de guar¬danapos que conferira por insistência de Margot havia poucos dias: cento e setenta e cinco.

   Vinte e cinco guardanapos de linho haviam desaparecido em um mês. Ou um criado os furtara, o que era pouco provável, uma vez que os linhos permaneciam trancados num armário cujas duas únicas chaves ficavam com o ad¬ministrador doméstico e com a castelã, ou desenrolava-se algum esquema criminoso. A julgar pelo nervosismo de Herbert Jolliet, parecia evidente seu envolvimento.

   - Parece-me uma quantia elevada essa que pagamos pelos guardanapos - prosseguiu Alice, para ver aonde chegava.

   - Bem, minha senhora, trata-se de artigos muito finos.

   - Muito finos, deveras - concordou ela, agora certa de que estava diante de um larápio.

   Cautela, recomendou a si mesma. Se Herbert Jolliet era mesmo um empregado desonesto, não seria prudente deixá-lo saber de suas suspeitas, ainda mais na ausência de George. Criminosos podiam tornar-se violentos quando acuados.

   Lembrou-se então de que lady Margot apossara-se de seu molho de chaves enquanto estivera doente. Seria a prima de George uma ladra?

   Não, não podia acreditar nisso. Aquelas poucas sema¬nas de convivência haviam bastado para que confiasse totalmente na nova amiga. A despeito de suas rivalidades e disputas de todo tipo, tanto veladas quanto ostensivas, ao recordar o quanto Margot lhe fora bondosa durante sua convalescença, agora enrubescia, percebendo o quan¬to fora injusta em seu ciúme cego.

   Não, lady Margot jamais faria algo tão baixo.

   Já sir Richard Jolliet e o irmão Herbert pareciam bem capazes. Talvez estivessem aplicando o golpe havia vários anos, desde o tempo do pai de George. Nesse caso, teriam de se explicar muito bem.

   De sua parte, precisava encontrar evidências mais con¬cretas da desonestidade dos empregados. Ao menos sabia em que aspecto se concentrar agora e, se sua leitura continuasse a melhorar, logo descobriria novos indícios.

   - Gostaria de ver os outros artigos de linho desse mercador - declarou Alice. - Ele mora aqui por perto?

   - Não, não, minha senhora - respondeu Herbert, incapaz de ocultar o pânico. - É de Londres, e estava de passagem na aldeia. Foi muito conveniente para nós, aliás.

   - Que pena... Talvez, da próxima vez que for a Lon¬dres, sir Richard possa pedir a esse mercador que venha de novo para estas bandas.

   - Claro, minha senhora. Comunicarei seu pedido a meu irmão assim que ele voltar.

   - Ótimo. Isto é tudo por hoje, Herbert?

   Nesse instante, ouviu-se uma movimentação junto ao portão principal do castelo e o coração de Alice falhou uma batida.

   - Oh... será que sir George está de volta? - murmu¬rou, esperançosa.

   O administrador foi até a janela.

   - Não, minha senhora. E algum visitante, embora não estejamos esperando...

   Já se podiam distinguir as vozes dos recém-chegados ao adentrarem o pátio.

   - Rufus! - exclamou Alice, saltando da cadeira. Cor¬reu até a janela e empurrou o empregado para o lado. - Rufus! - gritou, acenando selvagemente.

   Então, correu para fora do solar como que perseguida por uma gangue de degoladores.

   Pela janela, Herbert viu o grupo de homens desconhe¬cidos no pátio, liderados por um grandalhão ruivo.

   Um dos irmãos da senhora?, considerou, a julgar pela alegria dela. Talvez aquela visita inesperada a fizesse esquecer a questão dos guardanapos de linho.

   O administrador doméstico voltou-se e enxugou o suor do lábio superior com a mão. Céus, por que ela se detivera naquele item, dentre tantos outros? Teria contado os guardanapos? Dias antes, estivera mesmo xeretando nos armários, junto com lady Margot.

   Ora, guardanapos eram coisa fácil de roubar. Jogaria a culpa nos criados. Era o que Richard sempre dizia que faria se fossem pegos. Bem que tentara alertá-lo sobre os riscos ao avançarem sobre itens guardados a sete cha¬ves e não mais produtos perecíveis somente.

   Jogou-se na cadeira que lady Alice acabara de deso¬cupar. Talvez estivesse se preocupando à toa. Afinal, a patroa não externara desconfiança, nem dissera nada alarmante. Devia ser sua própria imaginação correndo solta. Ficara receoso só porque ela abordara aquele item em especial.

   De qualquer forma, era recomendável enviar um men¬sageiro a Richard, informando-o de que um assunto em Ravensloft exigia sua presença. Sim, era o melhor a fazer: chamar Richard para que ele lidasse com aquela crise, havendo mesmo crise.

   Levantando-se, foi providenciar o mensageiro. No ca¬minho, olhava a cada minuto por sobre o ombro, como se esperasse ver os homens do patrão em seu encalço.

   Enquanto isso, no pátio, Alice recepcionava alegremente sir Rufus Hamerton.

  

   - Rufus!

   O cavaleiro ruivo interrompeu sua contida apreciação do castelo ao ouvir a voz feminina familiar.

   - Alice! - exclamou, feliz, virando-se para a direção do chamado e adotando uma posição defensiva, uma vez que a grande amiga costumava tentar golpeá-lo sempre que o revia após uma longa ausência.

   Qual não foi sua surpresa ao ver a bela dama ricamente vestida aproximar-se a passos graciosos e, detendo-se a alguns metros dele, alisar a saia e fazer uma reverência.

   Era como se nunca houvesse conhecido Alice Dugall. Tal¬vez, de certa forma, nunca houvesse, mesmo. Jamais a vira num vestido tão bem cortado e ajustado a suas formas perfeitas. A maior parte do tempo, a cabeleira solta o impedira de apreciar-lhe os traços finos do rosto, ora realçados pelo lenço de seda e touca lisa, sem falar na sensualidade dos lábios carnudos. Quando ela, por um breve instante, baixou as pálpebras de maneira tão feminina, cogitou seriamente se aquela não era uma outra Alice.

   Formal, fez uma mesura polida e ela se aproximou para lhe dar um levíssimo beijo no rosto. Nem seu cheiro, uma espécie de essência floral, era mais o de Alice.

   - Bem-vindo a Ravensloft, sir Rufus.

   Só então, com o rosto a poucos centímetros do dela, notou-lhe o rosto fatigado, a expressão ansiosa, as olhei¬ras profundas, o sobrolho preocupado, o sorriso hesitante.

   Céus, o que George de Gramercie fizera para mudá-la tanto assim? Onde estava a destemida e voluntariosa Alice com quem convivera durante anos? Evidentemente, ficava bonita de vestido, mas faltava-lhe algo infinita¬mente mais precioso.

   Rufus limpou a garganta, cônscio dos olhares dos cria¬dos no pátio.

   - Lady Alice, peço perdão por chegar sem convite. Meu pai chamou-me ao lar e pensei em interromper mi¬nha viagem aqui e fazer-lhe uma visita, considerando que não sei quando poderei estar de volta a esta parte do país. Sir George fará objeção?

   - Ele não se encontra em casa no momento - infor¬mou Alice, e algo em seus olhos o enfureceu ainda mais contra seu marido. - Está visitando outras propriedades, mas tenho certeza de que não fará objeção. Permita-me oferecer-lhe a hospitalidade de nosso salão.

   Com um sorriso débil, ela se voltou para mostrar o caminho rumo à maior construção no pátio interno.

   - É um castelo maravilhoso, Ali... lady Alice - co¬mentou Rufus, cortês.

   - Não é mesmo? - replicou ela, sem entusiasmo.

   A entrada do salão, Rufus se deteve, pasmo não só com a amplidão do espaço, mas também com a ostentação e magnificência das tapeçarias encobrindo as paredes.

   Era luxo demais para seu gosto. Um salão de castelo não precisava se parecer com um palácio de sultão. Uns poucos tapetes eram mais que suficientes para o conforto. Aliás, não imaginava por que Alice ainda não mandara guardar os excedentes antes que a fumaça os arruinasse.

   Sir Dugall certamente o teria feito.

   O salão era rico também em móveis finos, prova de que sir George era homem de posses e bom gosto... o que não tinha importância, contudo, se ele não fazia Alice feliz.

   Em sua marcha constante, Alice já chegara à mesa principal no estrado. Rufus apressou-se em juntar-se a ela, e ambos foram servidos de vinho por um criado de expressão curiosa.

   Sedento, o visitante tomou bastante da bebida e en¬xugou a boca com a mão. Alice tomou só um golinho de sua taça.

   - Seu pai está bem de saúde - informou ele. - E você?

   - Tive um resfriado há poucos dias, mas já estou melhor. Aquele retraimento artificial perturbava-o cada vez mais. Não eram velhos amigos, afinal? Apertou a taça na mão.

   - Sir George não retornou ao saber que você não es¬tava bem?

   - Não mandei avisá-lo.

   Por fim, uma atitude que combinava com Alice. Nunca entregava os pontos, mesmo doente.

   - Eu devia ter adivinhado - replicou, aprovando. Ela não respondeu, mas corou um pouco. O coração dele se acelerou.

   - Viu meu pai recentemente? - quis saber ela.

   - Passei lá a caminho daqui. Snout será sagrado ca¬valeiro no outono.

   A notícia a alegrou, trazendo de volta a seus olhos o brilho de antigamente.

   - Já não era sem tempo.

   Rufus bebeu mais do vinho e o silêncio entre eles se prolongou. Alice tentava demonstrar serenidade, ainda que interiormente estivesse em conflito.

   Sua primeira reação ao ver Rufus fora de alegria, pois tratava-se de um grande velho amigo. A seguir, experi¬mentara um pouco da excitação que outrora confundira com amor, mas esta logo desaparecera. Permaneceu então o afeto, com as lembranças da vida no lar paterno.

   Agora, na companhia de Rufus no salão de Ravensloft, achava ótimo que George não estivesse em casa. Ele teria considerado cada gesto entre os dois amigos uma prova das relações ilícitas que achava que haviam mantido.

   - Deve ser um assunto sério, para afastá-lo de casa com tão pouco tempo de casados - comentou Rufus.

   - Ele considerou que sim.

   Um trovão chamou a atenção de ambos para a janela, por onde viram os primeiros pingos de chuva. Rufus levantou-se.

   - É melhor cuidar para que os cavalos e bagagens sejam guardados antes que fiquem ensopados.

   - Como quiser. Farei com que um criado mostre os aposentos a você e seus homens. - Vendo o amigo tão formal, Alice não se conteve e declarou: - E tão bom ver você aqui, Rufus!

   Rufus retirou-se apressado, mas não por causa dos cavalose bagagens, dos quais seus homens podiam cuidar perfeitamente bem. Simplesmente não suportaria mais um minuto com Alice, agora apenas uma sombra da mu¬lher feliz e espirituosa que conhecera.

   Da mulher que sir George de Gramercie parecia estar destruindo lentamente.

  

   Na sala da casa-sede da menor de suas propriedades, George olhou pela janela. A chuva interrompera sua ca¬çada e agora não lhe restava nada a fazer senão con¬templar a água e a lama e pensar em Alice.

   Bem como a decisão que tomara quanto ao futuro de ambos.

   Concluíra que o casamento fora um erro tolo, baseado em lascívia e solidão.

   Aceitara a incapacidade dela de comportar-se como uma dama, pois houvera algum progresso sob a tutela de Margot. Acostumara-se a seu temperamento difícil e natureza desconfiada.

   Mas simplesmente não suportava a idéia de que ela já partilhara a cama com outro homem, ou, pior ainda, com outros homens. Não podia ignorar o fato de ela ser uma mulher dissimulada e desonrada.

   Tampouco podia arriscar as possíveis consequências da fúria que ela lhe provocava. Ela tornava suas emoções íngovernáveis. Casa sentimento seu se exacerbava na presença dela, e perdia o controle. Era provável que, al¬gum dia, ficaria tão irado que a machucaria. Agiria como o mais baixo e fraco dos tiranos.

   Não permitiria que isso acontecesse. Era preferível pôr fim ao casamento.

   De volta a Ravensloft, comunicaria a Alice sua decisão e daria início ao processo de anulação do casamento. Não seria difícil consegui-la. Tinha muitos amigos na Igreja e algum deles encontraria algum obscuro impedimento legal, algo como um parentesco distante. Tais manobras aconteciam com certa frequência.

   Entretanto, não revelaria suas suspeitas quanto à de¬sonra de Alice, nem a ela mesma, nem a seu pai, nem a ninguém, assim como não exporia sua própria fraqueza. Devia-lhe isso pela breve felicidade que partilhara com ela.

   Ela poderia se casar novamente, e ele também, se um dia se dispusesse a assumir tamanho risco uma segunda vez.

   A nobreza toda comentaria, mas qualquer um que conhecesse Alice concluiria que houve de fato incompatibilidade de gênios e todos diriam saber desde o início que aquele casamento não daria certo. Ao final, poderia até sair beneficiado com toda aquela história: o próximo marido de Alice creditaria a ele os conhecimentos espe¬ciais de Alice.

   Já tomara a decisão havia dois dias, no entanto, por causa de seus sentimentos por Alice, do amor inegável que lhe tinha, e que ela também exacerbava, adiara o retorno. Um cavaleiro chegou ao portão da cerca de madeira que protegia o pequeno pátio enlameado. O guarda o deixou entrar. O homem desmontou e correu para a casa.

   George ficou tenso, imaginando se Alice teria piorado de saúde. Diariamente, enviara mensageiros para saber de sua recuperação e o último relato fora de que ela melhorara e estava fora de perigo.

   Mas isso fora no dia anterior.

   Aflito, correu para a porta, pouco à frente de Richard Jolliet, que estivera estudando livros contábeis junto ao fogo.

   - Tenho uma mensagem para sir Richard - informou o rapaz, ofegante, estendendo uma bolsa. - E de seu irmão, senhor.

   - E como está minha esposa? - indagou George, apro¬veitando a presença do empregado.

   - Melhor, creio, meu senhor - declarou o jovem, hu¬milde. - Já saiu da cama. Eu mesmo a vi, recebendo um visitante.

   Aliviado, George por fim reparou no desconforto do rapaz, de cuja capa ensopada escorria água para o chão de terra batida,

   - Entre e tire essa capa - convidou. Viu uma criada espionando por uma porta. - Traga cerveja para Derek, imediatamente.

   - Obrigado, meu senhor!. - O mensageiro pendurou a capa num gancho ao lado da porta e adentrou a sala. - Hoje está péssimo para viajar, sem brincadeira...

   George sentou-se num banco junto ã lareira e ofereceu ao empregado a vaga bem a seu lado. Notou então o capataz lendo a mensagem de cenho franzido.

   - Não más notícias, espero, Richard?

   - Nada urgente, meu senhor. De qualquer forma, gos¬taria de voltar a Ravensloft amanhã, a menos que precise de mim aqui...

   - Não, pode ir. - George voltou-se para o empre¬gado. - Quer dizer que temos visitas em Ravensloft. Quem é?

   - Baldwin me disse que ele se chama sir Rufus de Hamerton.

   George ficou sério de repente.

   - Como?

   Apreensivo ante a reação do patrão, o rapaz repetiu gaguejando:

   - Sir Ru-rufus de Ha-hamerton, meu senhor. George olhou para o capataz por sobre o ombro.

   - Volto com você para Ravensloft, Richard. Partimos ao amanhecer.

   O mensageiro deu de ombros, sem entender nada. Quem conseguia entender os nobres?

  

   - Lady Margot de Pontypoole, apresento-lhe sir Rufus de Hamerton - declarou Alice, quando o amigo se juntou a elas à mesa principal para a ceia.

   Rufus olhou para Margot e engoliu em seco. Era a mulher mais bonita que já vira. de tez pálida e imaculada, lábios que lembravam um botão de rosa e olhos de pura esmeralda.

   - Rufus, lady Margot é prima de meu marido.

   - Encantado em conhecê-la, minha senhora - mur¬murou ele, fazendo uma mesura.

   - Fico feliz em conhecer um amigo da esposa de Geor¬ge - replicou Margot, numa voz tão linda quanto seu rosto. Seu sorriso aquecia como o sol num dia de verão.

   - Por favor, sente-se, Rufus - convidou Alice.

   Iniciaram a refeição, mas Rufus mal sentia o gosto da comida, preocupado que estava em descobrir por que o marido de Alice viajara tão pouco tempo após o casamento. Era seu instinto protetor por ela revelando-se mais forte do que nunca. Mas o constrangimento entre ambos continuava e não havia como tocar no assunto.

   Sua salvação foi lady Margot, com quem conversou de modo descontraído durante toda a ceia. Ao final, ela se levantou parecendo sinceramente relutante.

   - Com sua licença, preciso falar com o padre Adolphus a respeito de algumas missas especiais para meu finado marido. Aproxima-se a data de sua morte.

   Ela era viúva? Que interessante...

   Alice aquiesceu e lady Margot afastou-se graciosamente.

   - Ela é muito bonita, não é? - comentou Alice, observando-a.

   - Há algo errado, não há, Alice? - indagou o amigo, de chofre. - Ela não tem a casa dela?

   - Tem, sim.

   - Por que ela ainda está aqui? Seu casamento foi há um mês.

   - Rufus, eu...

   Alice notou o administrador doméstico Herbert a uma mesa próxima.

   - Alice, o que se passa aqui? - insistia o amigo.

   - Rufus! - alertou ela. - Depois. Conversaremos sobre tudo depois. Amanhã. Encontre-se comigo no solar após o almoço. Lá estaremos a sós.

   Rufus concordou e deixou o salão bruscamente.

  

   No dia seguinte após o almoço, Alice andava em círculos no solar, temerosa de que Herbert ou a criada Elma aparecessem antes de Rufus.

   Olhou para os pergaminhos desenrolados sobre a escrivaninha. Precisava discutir com alguém suas suspeitas e tinha certeza de que seu velho amigo a ouviria. E ajudaria.

   Oh, mas por que demorava-se tanto?

   Por fim, uma batida suave na porta. Abriu-a. Era Rufus.

   - Entre - sussurrou, olhando para os dois lados no corredor para se certificar de que nenhum criado espionava.

   Ao fechar a porta e se voltar para o amigo, viu-o ner¬voso e ofegante.

   - Alice...

   Antes que ela pudesse questionar, ele a agarrou nos braços e beijou apaixonadamente. Assustada, ela se desvencilhou dele.

   - Rufus! Por favor! - Correu para o outro lado da escrivaninha. - Eu... as coisas são diferentes agora, Rufus!

   - Eu sei, e me amaldiçôo por isso! Alice, pode me perdoar? - O grandalhão ruivo ajoelhou-se e abriu os braços em súplica. - Fui um idiota em abrir mão de você! Eu devia ter implorado para que se casasse comigo!

   - Rufus, por favor! Você não entende!

   - Claro que entendo. - Ele se pôs de pé outra vez. - Fui um idiota e a perdi. Uma vez. - Aproximou-se da mesa com expressão determinada. - Venha comigo!

   - Não!

   Rufus deteve-se, os olhos cheios de pesar.

   - Eu devia saber que uma mulher honrada daria essa resposta. Mas você não pode ficar aqui. Ao menos, dei¬xe-me levá-la de volta ao seu pai.

   Alice o fitou segura e sincera.

   - Sei que o que diz vem da bondade de seu coração e de seu afeto por mim, Rufus, mas não... eu me importo muito com meu marido. Tivemos um desentendimento, mas logo será superado, eu lhe garanto.

   - Um desentendimento? Não, foi mais que isso. Veja o que ele fez com você... o que eu permiti que acontecesse.   Você não passa de um sombra do que era, Alice! Não vê aonde isso vai dar? Ele a está matando!

   - Estive doente - lembrou ela. - Ainda não me sinto muito bem.

   - Por que aquela mulher a tutela?

   - Não me expliquei bem ontem à noite.

   - Venha comigo, Alice - ordenou Rufus.

   - Não. Eu amo meu marido.

   - Ama um homem que lhe é infiel, sob seu próprio teto, com sua própria prima? - questionou o amigo. - Ele a tornou cega e burra também?

Alice continuava inabalável.

   - Não. E o que você disse não é verdade.

   - Por que outro motivo ele manteria essa mulher aqui?

   - Ele queria que ela me ensinasse a ser uma dama.

   - O quê?

   - Não viu como melhorei meus modos?

   Alisando a saia do vestido, Alice começava a pensar que deveria ter procurado logo George ao descobrir in¬dícios de roubo por parte de seus fiéis empregados.

   Inconformado, Rufus foi até ela, segurou-a pelos om¬bros e fitou-a bem nos olhos.

   - Melhorou, mas você não é feliz aqui... e não me diga o contrário, Alice. Eu a conheço bem demais.

   De repente, a porta do solar se escancarou. Alice e Rufus afastaram-se um do outro quando George entrou.

   - George!

   Enrubescido, mesmo sabendo que não fizera nada er¬rado, ela fez uma reverência ao marido.

   - Bem-vindo a Ravensloft, sir Rufus - saudou George, em tom frio e comedido, praticamente ignorando a esposa.

   Decepção e desalento tomaram conta de Alice. Espe¬rara ter de volta o marido que ganhara no dia de seu casamento: charmoso, excitante, interessado nela. Con¬tudo, nunca lhe parecera mais estranho.

   - Estou feliz que tenha voltado - murmurou, dese¬jando que ele acreditasse em sua sinceridade.

   - Mesmo? - replicou George, irônico. - Estou feliz em voltar. - Passou por ela e pelo visitante. - Mas o que o traz aqui, sir Rufus? - quis saber, acomodando-se na cadeira atrás da escrivaninha.

   Os dois homens mantinham-se calmos, mas eram como dois cães raivosos circundando um ao outro.

   - Estou a caminho da casa de meu pai, no norte - esclareceu o cavaleiro ruivo. - Considerando que não estarei de volta tão cedo, por mais que deteste a idéia, pensei em fazer-lhe uma visita. Mas, caso não seja bem-vindo...

   - Ora, claro que é! - retrucou George, galante como sempre. - Não concorda, Alice? Por favor, sente-se e tome um vinho. Alice, devia ter-lhe oferecido bebida. Não faz mal, podemos beber mais tarde... a menos que pretenda partir hoje. Está um ótimo dia para viajar...

   Impassível, Rufus acomodou-se numa cadeira de frente para George.

   Tomando um assento ao lado do amigo, Alice era só desconsolo. Como queria dizer a George que estava real¬mente feliz por vê-lo de volta e que sentira muito a sua falta, além de explicar o motivo da presença de Rufus ali no solar. Mas via-se sem fala, ao mesmo tempo que reunia toda a determinação que possuía.

   Ao observá-la acomodar-se na cadeira, George se sentiu mais uma vez tomado por aquele incrível desejo apaixonado que ela lhe inspirava. Em sua presença, recordava cada instante da intimidade que já tinham vivido e, se Rufus não estivesse ali, teria tomado-a nos braços sem delongas.

   Mas Rufus estava ali, mais grandalhão e ruivo do que nunca.

   - Bem, Alice, por que esse encontro bem no meu solar? Para que não houvesse testemunhas?

   Ela o encarou firmemente, pois não tinha do que se envergonhar.

   - Pedi a Rufus que me encontrasse aqui porque queria pedir sua ajuda numa suspeita minha contra os Jolliet. Eles o estão roubando.

   Surpreso, Rufus se mexeu na cadeira. George reagiu com indiferença.

   - Infelizmente, creio que está errada. Passei e repas¬sei as contas das outras propriedades e não encontrei nada de errado. Além disso, se tinha evidências suficientes para apresentar a seu caro amigo, por que não pro¬curou a mim?

   - Eu queria ter certeza.

   - Eu teria verificado.

   - Será? - questionou Alice. - Teria dado um mínimo de crédito a minhas suspeitas?

   - A sua palavra contra a dos homens que trabalham para minha família há anos? - considerou George. - Dificilmente, concordo. Foi por isso que preferiu apre¬sentar o caso a sir Rufus... pois teria nele um ouvido solidário?

   - Eu acreditaria em Alice - interpôs Rufus. - E acho que você também deveria.

   - George, você estava viajando - lembrou Alice. - E acho que tenho provas.

   - Acha? A justiça exige mais que especulação.

   - Tenho provas - corrigiu-se ela.

   - Onde?

   - Aqui! - Alice apontou para os pergaminhos espa¬lhados sobre a mesa. - Nas listas. Tenho certeza de que estão roubando coisas. Creio até que preços e quantidades foram alterados, de modo que a diferença engordasse o bolso de alguém, provavelmente dos administradores em quem você tanto confia. Quem mais poderia roubá-lo sem que você percebesse?

   George pegou um dos pergaminhos e examinou-o rapidamente.

   - Não estou vendo nada errado. Mostre-me onde exatamente.

   Os olhos de Alice faiscaram de raiva.

   - Não posso.

   - Por que não?

   - Porque não sei ler. George olhou-a perplexo.

   - Meu pai achou que não era importante ensinar-me - explicou Alice.

   Bem, a atitude combinava com o perfil de sir Dugall, concluiu George, já menos surpreso. Mas por que ela não lhe contara? Pensara que ele se divertiria a suas custas? Ela devia saber que ele jamais faria isso.

   - Mas há discrepâncias - insistiu Alice, rubra de frustração.

   - Como pode questionar sua esposa como se ela fosse a culpada? - repreendeu Rufus, sem poder se conter. - Se ela lhe revela uma suspeita, tem de pôr fé na palavra dela!

   Como esse homem se atreve a me criticar?, questionou George, a fúria crescendo.

   - Assim como devo pôr fé na palavra dela de que se casou virgem, apesar da falta de evidências na cama também?

   Rufus olhou pasmo para Alice, que se levantou e apoiou as mãos na mesa.

   - Sim, deve! E você devia ter-me dado a chance de explicar.

   - Tenho certeza de que sua explicação teria sido muito interessante - retrucou George, mais carrancudo do que nunca. - Diga-me, tinha tanta confiança nessa explica¬ção que chegou a convidar seu amante para me trair debaixo de meu próprio teto?

   - Rufus não é meu amante! - protestou Alice. Rufus levantou-se.

   - Como se atreve acusar Alice de ser infiel, seu verme? Trata-se da mulher mais honrada da Inglaterra, e se pensa que...

   Alice interrompeu o amigo declarando:

   - Quanto ao que faço na cama, aprendi ouvindo meus irmãos e outros homens quando falavam de seus encon¬tros com mulheres!

   George encarou-a. Podia ser verdade. Podia imaginar Alice escondida num canto de alojamento masculino, ou¬vindo e aprendendo...

   - Alice! - esbravejou Rufus. - Você não tem de explicar nada. Se ele a considera capaz de um compor¬tamento tão vil, então ele não a merece.

   Ela encarou o cavaleiro visitante.

   - Você também não entende!

   - Entendo perfeitamente! Agora está explicada a pre¬sença da prima dele aqui: sua função é vigiar você!

   - Ela é minha professora!

   Rufus olhou raivoso para George.

   - Acha Alice capaz de algo tão baixo, seu salafrário? Ou era só uma desculpa para manter sua prima aqui... de modo a ter sua amante bem à mão! Que conveniente!

   - Ela não é minha amante! - protestou George. - É só minha prima!

   - E que prima, hein?

   Ouviu-se alguém reprimir o espanto e todos se voltaram para a porta. Lá estava Margot, a mão sobre a boca, horrorizada.

   - Margot! - exclamou George, querendo levantar-se para ampará-la.

   Mas ela o fez se deter com um gesto.

   - Não... não é verdade - declarou, a voz trêmula, mas com expressão determinada. - George não me ama dessa maneira. Nunca amou. Nunca amará. Eu... eu... - Seus olhos se inundaram de angústia antes que girasse nos calcanhares e corresse da sala.

   Só então George percebeu o quanto fora cego e egoísta, com relação à esposa e à prima. Mesmo se importando demais com os sentimentos de Margot, esqueceu-a por completo ao ver o grandalhão Rufus agarrar Alice pelo pulso e ordenar-lhe:

   - Vamos embora, largue esse patife aí!

   - Largue a minha esposa!

   Os três se paralisaram por um longo instante. Então, Alice se libertou. George estava irreconhecível, seu sem¬blante tomado pelo ódio.

   Ela deu um passo na direção dele, mas Rufus saltou em sua frente emitindo um rosnado primitivo.

   - Rufus, pare! - gritou ela, vendo-o agarrar George e derrubá-lo no chão. '

   Mas o cavaleiro ruivo já não ouvia nada. Cerrou o punho para esmurrar George, que rolou para um lado e tentou revidar com os pés. Apesar do tamanho, Rufus era ágil e conseguiu se esquivar.

   - Você não a merece! - gritava ele. - Ela não o ama. Ela ama a mim!

   - Rufus! - protestou Alice, espantada ante a afir¬mação do amigo, envergonhada por tê-lo levado a tal conclusão um dia. Olhou para o marido, viu a ira cega em seus olhos. - George, por favor...

   Com um furioso grito primitivo, ele tomou impulso para investir contra Rufus.

   Alice se colocou no caminho, certa de que Rufus seria morto. George empurrou-a com tamanha violência que ela caiu, batendo a cabeça na quina da escrivaninha.

   A sala girou, e Alice não viu mais nada.

  

   - Oh, que Deus me acuda! - gemeu George. - O que foi que eu fiz? Ele se ajoelhou ao lado do corpo encolhido da esposa e tomou-o nos braços, virando-o com todo o cuidado. Levou um choque ao ver o corte em sua testa e a hemorragia.

   - Alice! Alice! - murmurava, afastando de seu pes¬coço o lenço ensopado de sangue.

   - Tire as mãos dela! - rosnou Rufus.

   - Ela é minha mulher! - berrou George, detendo o rival com apenas um olhar maligno.

   Alguém entrou no solar.

   - Margot?

   - Não, meu senhor. Sou eu, Elma.

   - Vá buscar o farmacêutico - ordenou George, er¬guendo-se devagar com Alice nos braços. Ela gemeu fra¬camente, o que lhe cortou o coração. - Rápido!

   A criada disparou da sala.

   George seguiu com cuidado para a porta, vendo só Alice e nada mais, estudando seu rosto, pálido sob o sangue que escorria do corte profundo. Não sentia nada além do peso dela em seus braços. Como o do cãozinho que matara.

   Oh, céus, se ele a ferira gravemente... se ela morresse... jamais se perdoaria.

   Jamais.

  

   Em seus aposentos, sir Richard Jolliet olhava furioso para o irmão Herbert. Separara-se de sir George ainda na estrada, alegando ter de conferir a pesagem no moi¬nho, mas então seguira para sua própria residência.

   - O que foi que aconteceu para você me mandar aquela mensagem?

   - E lady Alice. Ela desconfia de nós.

   Richard arregalou os olhos e seu coração se acelerou.

   - De quem ela desconfia? Do quê?

   Herbert engoliu em seco, seu pomo-de-adão agitando-se de maneira repulsiva.

   - Eu... eu... não tenho certeza. Ela quis saber dos guardanapos.

   - Saber o quê?

   - A quantidade exata e quando os recebemos. Ela e lady Margot andaram mexendo nos armários um tempo atrás. Talvez os tenham contado. Talvez ela tenha percebido que pagamos por mais do que recebemos.

   - E você não alterou o número de guardanapos na lista de artigos de linho?

   - Eu... eu me esqueci. E quem teria imaginado que ela notaria a discrepância, se não sabe ler?

   - Eu teria - mentiu Richard, ainda que de fato hou¬vesse dispensado o excesso de precauções, dadas as circunstâncias. - Mas ela o acusou diretamente de algo?

   - A mim? Não. - Herbert fitou o irmão apreensivo. - Não vou me responsabilizar sozinho por nenhuma discrepância.

   - Eu disse alguma coisa? - retrucou Richard, embora não achasse má a idéia de jogar a culpa toda em outra pessoa. - Podemos culpar os criados, lembra-se? Você não deixou lady Margot verificar as listas, deixou? Ela talvez reparasse nos números adulterados.

   - Ela nunca chegou perto dos livros.

   Sir Richard continuava raciocinando freneticamente.

   - Será que o moleiro comentou algo com lady Alice que a fez desconfiar?

   - Duvido. Seus homens fizeram um serviço... completo. Analisando o irmão friamente, Richard concluiu que, se havia um elo fraco naquela corrente, era ele. Devia tê-lo deixado de fora dos esquemas. Tarde demais.

   - Então, deixe-me ver se entendi. Acha que lady Alice desconfia de sua honestidade, mas não sabe exatamente com relação a quê. Mas ela não deve ter provas, senão já teria falado com o marido a respeito.

   - Sim, é isso.

   - Escute, mano, enquanto nosso patrão e sua senhora não se entenderem, não há o que temermos. Mesmo que ela nos acuse, sem provas ele não irá acreditar, pois será a palavra dela contra a dos administradores a serviço da família desde o tempo do pai dele. Não obstante, devemos nos assegurar de que não haverá nenhuma verificação...

   A porta do quarto se escancarou de repente. Era Elma, toda esbaforida.

   - Venham rápido, vocês dois, ao castelo! sir George... acho que ele a matou! E lady Margot está arrumando a bagagem, dizendo que irá embora o mais rápido possível... O castelo todo está em polvorosa!

   Richard e Herbert se entreolharam pasmos, inda¬gando juntos:

   - Sir George matou a mulher?

   - Eu não sei! - gritou Elma. - É melhor vocês dois irem lá já! Eu estou vindo do farmacêutico!

   Herbert apressou-se em sair, mas Richard o chamou de volta.

   - Não com tanta pressa. - Olhou para a cúmplice Elma. - Poderá ser bom para nós se ele a houver matado - opinou, frio. - Herbert me contou que ela andou ques¬tionando sobre o linho.

   A criada praguejou grosseiramente.

   - Eu sabia que era um erro, devíamos ter-nos limitado aos comes e bebes. Herbert tem razão. Eles discutiram, eu ouvi uma parte... ela falava de vocês.

   - De nós?

   - Dos dois. Os administradores. Richard engoliu em seco.

   - O que vamos fazer agora? - lamuriou-se Herbert, torcendo a barra da túnica entre as mãos.

   - Manter a calma até termos certeza de que há algo com que nos preocuparmos - declarou Richard.

   - Talvez devamos procurar de novo aqueles homens... aqueles que "visitaram" o moleiro...

   - Para fazer o mesmo com o mercador de linhos? Herbert aquiesceu.

   - Ele é o único que pode provar alguma coisa.

   - Se ele não cooperar, vamos precisar de um bode expiatório - concluiu Elma.

   - Quem? Uma das outras criadas? - Herbert viu-se alvo dos olhares insensíveis de Richard e Elma. - Eu não! Só fiz o que me mandaram!

   Richard caminhou a passos lentos na direção do irmão, que tentou se afastar até dar com as costas na parede,

   - Você levantou a suspeita, seu idiota - sibilou Richard, prensando-o. - Mesmo que façamos o mercador de linhos reconhecer a sabedoria do silêncio, as sementes foram plantadas. Foi fácil enganar sir George quando ele confiava em nós, mas a mamata acabou... e é tudo culpa sua!

   - Richard, por favor!

   Indiferente ao desespero do irmão, Richard desembai¬nhou sua adaga e enterrou-a no peito dele.

   - Richard... - gemeu Herbert, um fio de sangue es¬correndo-lhe pelo canto da boca.

   - Eu devia ter feito isto há muitos anos. - Richard puxou a adaga e deixou o corpo do irmão escorregar para o chão. - Não se preocupe com Lisette, Herbert. Cuidarei para que ela não se sinta só.

   Elma nem piscava, paralisada pelo choque.

   - Por que fez isso? - questionou. - Não havia necessidade...

   - Ele sempre foi muito dependente, um fraco - jus¬tificou Richard, limpando a lâmina ensanguentada. - Quem sabe o que eleja não havia contado àquela meretriz dele? Podemos negar qualquer participação no esquema agora, caso descubram as discrepáncias, e Herbert levará toda a culpa. Sir George achará difícil admitir que esteve abrigando um larápio, não acreditará que há outro. - Adotou uma expressão pesarosa ao ensaiar: - "Ora, sir George, como eu podia imaginar que o irmão em quem sempre confiei era um ladrão?" - Deu uma risada insana.

   - Agora, ajude-me a esconder o corpo debaixo da cama. Pegue as pernas dele.

   Relutante, Elma se aproximou do corpo inerte e er¬gueu-lhe as pernas com dificuldade. Richard puxou-o pe¬los braços e empurrou-o para debaixo da cama.

   - Vou me livrar dele à noite, no escuro. Elma aquiesceu, pálida.

   - É melhor irmos para o castelo.

  

   George nunca experimentara uma agonia tão intensa quanto ao carregar Alice escadaria acima rumo ao quarto.

   Sempre com movimentos suaves, depositou-a na cama e tomou-lhe a mão fria, apertando-a contra o próprio rosto úmido.

   Que tipo de besta era ele, afinal?

   - Alice... perdão, Alice! Pode se vestir como quiser, e comer como quiser, apenas não me deixe. Fui um idiota ao tentar mudá-la. Volte para mim, Alice.

   Ela mexeu as pálpebras e então abriu os olhos. Ele quase gritou de alegria.

   - George? - sussurrou ela, num fio de voz, e levou a mão à testa. - O... o que foi que aconteceu?

   - Eu a empurrei... Oh, Alice, pensei ter matado você! - Com lágrimas nos olhos, ele lhe tomou a outra mão e apertou-a com força.

   Ela sorriu debilmente e afastou uma mecha de cabelo da testa dele.

   - Meu pai devia ter-lhe dito que é preciso mais que uma pancada em minha cabeça dura para me matar.

   George esboçou um sorriso.

   - Mesmo assim, imploro seu perdão. E quero que saiba que acredito em tudo o que disse: você nunca teve um amante, Richard e Herbert são ladrões, em tudo! Mas não me odeie.

   - Como poderia odiá-lo? - sussurrou ela. - Eu o amo demais.

   - Verdade?

   A alegria voltou a faiscar nos olhos dela.

   - Não teria me esforçado tanto para mudar se não fosse.

   - Eu estava errado ao exigir isso de você, Alice...

   Alguém chegou apressado e se deteve à porta do aposento.

   - Meu senhor! Era o farmacêutico. George levantou-se da cama.

   - Ela está consciente.

   O homem de meia-idade inclinou-se e analisou as fei¬ções de Alice, tocando de leve no galo que crescia em sua testa, ao que ela fez uma careta de dor.

   - Eu já estou bem - garantiu Alice, valente, erguen¬do-se para provar. Levando a mão à testa, deitou-se outra vez. - Só um pouquinho tonta...

   - Vou lavar o ferimento e pôr compressa fria no galo - informou o profissional, pegando os apetrechos na bolsa. Em poucos minutos, Alice estava tratada e medicada, e o farmacêutico deu as últimas instruções:

   - Não a deixe dormir até o fim da tarde. À noite, acorde-a várias vezes. Se não conseguir acordá-la, mande me chamar imediatamente.

   - Entendido, Paracus.

   - Agora, ela deve repousar - concluiu o profissional. - E não a deixe sozinha.

   - Não sairei do lado dela nem um minuto - garantiu George. - Pode ir, agora.

   Ao sair, o farmacêutico cruzou com Rufus, que aguar¬dava ansioso à porta. George foi até ele.

   - Rufus, devo-lhe desculpas. Eu me comportei...

   - Ora, você se comportou como um homem apaixonado pela mulher - completou o cavaleiro ruivo, objetivo. - E ela é apaixonada por você.

   George mal disfarçava a felicidade.

   - Perdão por pensar mal de você, Rufus. O ex-rival encarou-o firmemente.

   - Creio que deve pedir desculpas a sua esposa - opinou. - Agora, se me der licença, estou de partida.

   - Rufus? - Alice ergueu-se na cama, apesar da fra¬queza. - Obrigada por me defender.

   Rufus corou e desviou o olhar.

   - Eu falei sério, Alice. Devia ter-me casado com você quanto tive a oportunidade.

   Então, fazendo uma mesura, foi-se. George suspirou e fechou a porta.

   - Ele está certo. É a você que devo pedir desculpas, Alice. - Foi até a cama e ajoelhou-se ao lado dela, to-mando-lhe a mão. - Pode me perdoar pelo que eu disse, pelo que eu pensei? Eu devia ter confiado em você.

   Ela sorriu gloriosamente.

   - Confia em mim agora, não?

   - Totalmente.

   - Eu também devia ter confiado em você - confessou ela. - Perdoa-me?

   Ele devolveu o sorriso.

   - Claro que sim. Alice, preciso explicar por que agi daquela maneira. Eu estava com medo...

   - De mim?

   - De mim mesmo. - Resumidamente, George contou a história do cãozinho que matara de raiva. - Como vê, meu amor, eu tinha pavor de machucá-la. Lembra-se daquele dia, no pomar, quando a persegui?

   Ela lhe afagou as faces com a ponta dos dedos.

   - Sim, fiquei com medo de você... mas depois pare¬ceu-me tão calmo... então, eu o subestimei: interpretei como fraqueza, não como força.

   - Meu temperamento é uma fraqueza minha - explicou George. - Eu teria matado Rufus hoje, se você não me houvesse detido.

   - Você é o homem com mais autocontrole que eu já conheci - observou Alice. - Desta vez, não foi você quem bateu primeiro. Foi Rufus.

   - É verdade! - George não reparara no detalhe.

   - E, por mais que me agrade saber que sou capaz de detonar essa paixão em você, acho que seu silêncio nos prejudicou muito mais.

   George encostou a testa na cama, profundamente to¬cado pela verdade nas palavras de Alice.

   - Como tenho sido egoísta! - desabafou, inconfor¬mado. - Eu estava destruindo justamente as pequenas coisas em você que me fizeram amá-la, e com certeza não considerei os sentimentos de Margot.

   - Eu sei. - Ela remexeu seus cabelos. - Cega de desconfiança, eu também não compreendi Margot.

   Ele levantou a cabeça.

   - Não vamos mais falar de desconfiança nunca mais. Prometo, Alice, que confiarei plenamente em você de ago¬ra em diante.

   - E Margot?

   - Oh, céus, não tenho a menor idéia do que dizer-lhe.

   - Talvez seja melhor não dizer nada - aventou Alice. - Pode ser humilhante demais para ela... - Encarou-o crítica. - Estamos falando só de Margot e de mim, mas você também está magoado.

   Com um suspiro cansado, ele se levantou e acomodou-se na beirada da cama.

   - Um pouco. Mas isso não é nada comparado ao que senti aqui... - Levou a mão ao peito. - ...quando pensei que fosse perder você.

   - Senti sua falta, meu marido - sussurrou Alice, enlaçando-o com os braços e puxando-o contra si.

   - Paracus disse que você tem que descansar...

   - Mas nós vamos descansar. Daqui a pouco. Deve saber, a esta altura, que não sou a mais tediosa das mulheres.

  

   Várias horas depois, Elma contou todas as moedas escondidas atrás de um tijolo solto no muro atrás da casa de sir Richard Jolliet.

   Esperta, não mantivera em seu alojamento em Ra-vensloft a parcela que ganhara desonestamente nos es¬quemas do capataz, optando por enterrá-la no bosque.

   Agora, roubava o dinheiro do cúmplice. Vira onde ele escondia seu lucro. Bem merecia tudo o que pudesse ar¬rancar dele, disse a si mesma, recordando a noite em que ele a arrastara para a despensa e a tomara, sem questionar por que ela resistia tanto e implorava para que não o fizesse.

   Então, ao se levantar do chão, exigira dinheiro. Quão chocado ele ficara ante sua mentira de que tinha clientes pagantes. O fato era que se recuperara da violência rápido o bastante para obter alguma compensação em troca da desonra.

   Então, passara a vigiá-lo, bem como a seu irmão Herbert, até descobrir o que tramavam, e chocara-o novamente ao revelar o que sabia e o que queria em troca do silêncio.

   Ainda que nem todo o dinheiro do mundo pudesse compensar sua inocência perdida naquela noite terrível, extorqui-lo fora uma boa vingança e o tempo se encarregara de torná-los quites.

   Sorriu satisfeita para as moedas nas bolsinhas de couro, reluzentes ao luar. Havia mais que o suficiente para que pudesse partir para algum lugar distante, onde não fosse conhecida. Poderia se apresentar como a viúva de um rico mercador. Era jovem e bonita. Conseguiria um marido rico, talvez até um cavaleiro.

   Uma criada transformada em dama... Como reagiriam todos em Ravensloft se um dia reaparecesse nessa nova condição? Mera fantasia, pois jamais voltaria. Odiava o lugar e todos os que lá viviam.

   Principalmente sir George, que nunca a olhara duas vezes, a não ser para que lhe fizesse algum serviço. Desleixado o bastante para deixar todos os negócios nas mãos de dois patifes, ele merecia ser roubado.

   Deslocou-se para a sombra da casa de Richard, estremecendo ao recordar o sangue-frio com que ele matara o próprio irmão. 0 que seria capaz de lhe fazer, se achasse necessário?

   Olhando por sobre o ombro para o perfil maciço do castelo Ravensloft, concluiu que não poderia ter escolhido melhor momento para fugir. A confusão lá era total, com o súbito retorno de sir George, o acidente com lady Alice, a partida precipitada de lady Margot aos prantos e a retirada igualmente impetuosa de sir Rufus.

   Erguendo a saia, retirou os acessórios especiais que preparara para aquele grande momento. Dentro de velhas bolsas de couro, costurara um forro grosso no qual acondicionara as moedas.

   Nenhum curioso ou ladrão imaginaria haver dentro daquelas bolsas esfarrapadas uma pequena fortuna em ouro e prata.

   Ao terminar, ergueu as bolsas, constatando que estavam mais pesadas do que esperara. Felizmente, o trabalho como criada lhe fortalecera os braços, bem como a força de vontade. Logo chegou ao beco onde a aguardava o burrico que surrupiara no estábulo de Ravensloft. Não era um animal ligeiro, mas um cujo sumiço demorariam mais a notar.

   Com movimentos lentos, evitando fazer barulho, pen¬durou as bolsas na sela e, como precaução extra, cobriu-as com mantas.

   Olhou mais uma vez para a casa de sir Richard Jolliet. Havia luz numa janela do andar superior.

   O capataz devia estar tomando as providências quanto ao corpo de Herbert. Experimentando um novo tremor e um grande senso de urgência, Elma montou no burrico e fustigou-o no traseiro.

   O animal pôs-se em movimento, levando Elma embora de Ravensloft.

  

   - Oh! - exclamou George de dor, recostado contra os travesseiros.

   Alice acabara de sentar-se em seu peito, nua, ilumi¬nada pelos primeiros raios de sol da manhã.

   - Não está gostando? - provocou ela.

   - Não é isso... São minhas costelas. Não me espan¬taria se soubesse que aquele seu amigo Rufus partiu algumas delas...

   Compreensiva, Alice se ergueu e ajoelhou-se a seu lado na cama.

   George acomodou as mãos entrelaçadas sob a nuca e apreciou as formas perfeitas da esposa.

   - Sabe, acho que Paracus não aprovaria sua versão de repouso.

   - A minha versão foi ótima. Praticamente não me mexi, Já a sua...

   - A minha?

   - Eu não sabia que dava para fazer daquele jeito. Ele sorriu traquinas.

   - Eu também não sabia, mas achei que valia a pena tentar.

   - Ah, valeu! - garantiu Alice, com um suspiro lânguido. - Acho que conseguiu curar até minha cabeça batida.

   George riu, e ela se aninhou junto dele.

   - O que mais aconteceu durante minha ausência? - quis saber ele, curioso. - Além dos progressos de minha esposa na etiqueta, os quais ela agora irá esquecer... com a minha aprovação.

   Ela brincou com uma mecha do cabelo dele.

   - Após tanto esforço para aprender? Não, senhor. - Franzindo o cenho, indagou: - Vai investigar as contas? Tenho certeza de que os administradores estão fazendo algo desonesto.

   - Amanhã - prometeu ele. Beijaram-se levemente.

   - Gostaria de ter aprendido a ler - comentou Alice, pesarosa.

   - Não é tarde demais.

   Ela se apoiou num cotovelo para encará-lo, muito séria.

- Acho que não vou ter tempo.

   - Pretende se dedicar tanto assim a seus deveres de castelã? - questionou George, um tanto incrédulo. - Ou pretende providenciar em pessoa toda a caça consu¬mida diariamente no castelo?

   Alice balançou a cabeça, tímida como que jamais vira uma mulher.

   - Vou estar muito ocupada.

   - Com o quê?

   - Com... com nosso bebê.

   George arregalou os olhos, mudo por um segundo.

   - Com o quê?

   - Com nosso bebê. Quero dizer... acho que vamos ter um. - Lindamente enrubescida, ela deu de ombros. - Não tenho certeza, mas... estou atrasada.

   George agarrou-a e abraçou-a com força. - Isso é maravilhoso, Alice! Sou o homem mais feliz da Inglaterra.

   Alice continuava séria, parecendo insegura.

   - Acha... que serei uma boa mãe?

   Ele a segurou pelos ombros carinhosamente.

   - Você será uma mãe maravilhosa. - Em tom provo¬cador, completou: - Principalmente se for um menino. Tenho certeza de que nossos filhos serão excelentes arqueiros!

   - Mas não sei nada sobre bebês - lamuriou-se ela. - Nunca sequer segurei um nos braços.

   George encarou-a muito sério.

   - Alice, você será uma boa mãe. Tenho absoluta fé nisso. - Então, sendo George de Gramercie, não poderia evitar um complemento irônico: - Concordo, não vai ser a mãe típica... mas por isso mesmo será ainda melhor!

   Ela sorriu, aliviada, e só então ouviram uma batida bem fraca na porta.

   - Deve ser Elma - arriscou Alice, querendo se levantar. George a segurou.

   - Você está de repouso, mulher - repreendeu, e saiu da cama. - Farei com que ela nos traga pão, queijo e vinho.

   Após vestir-se rapidamente, ele abriu a porta e, sur¬preso, deu com uma das criadas do salão.

   - Meu senhor, mandaram-me acordá-lo - declarou a moçoila, tímida, fazendo uma mesura.

   - Mas onde está Elma?

   - Nin... ninguém sabe, meu senhor. Ela sumiu... bem como Herbert Jolliet.

   Na cama, debaixo do lençol, Alice se sobressaltou.

   - Herbert e Elma sumiram?

   A criada confirmou, nervosamente. George passou a mão no queixo ainda dolorido da luta com Rufus.

   - Algum deles comentou alguma coisa ontem? É pos¬sível que tenham fugido juntos?

   - Parece que não, meu senhor. Ontem estávamos em polvorosa, com o acidente de lady Alice, mais a partida de lady Margot e, a seguir, de sir Rufus...

   George e Alice trocaram olhares surpresos.

   - Lady Margot foi embora? - confirmou ele com a criada.

   - Sim, meu senhor, ontem à tarde, e sir Rufus foi logo depois. Ficamos todos muito ocupados arrumando depressa as bagagens deles e nem tivemos tempo de conversar.

   - Parece que minha hospitalidade deixa a desejar... - lamentou George.

   - Margot deve ter ficado aborrecida demais para con¬tinuar aqui - explicou Alice. - E Rufus avisou que estava de partida.

   George aquiesceu.

   - E sir Richard? - indagou à criada. - Ele tem idéia do paradeiro do irmão?

   - Não, meu senhor. Ele está a sua espera no saião. Foi ele que me mandou acordá-lo.

   - Diga a sir Richard que já estou descendo. George fechou a porta e foi calçar as botas, interrom¬pendo-se ao ver Alice sair da cama.

   - Não, senhora! Tem que descansar!

   - George, não aguento ficar nesta cama nem mais um minuto. Quero saber o que está acontecendo.

   Ele ainda abriu a boca para protestar, mas se conformou.

   - Está bem. Mas prometa-me que não irá além de suas forças.

   - Prometo.

  

   De pé diante de sir George e lady Alice, sir Richard Jolliet mantinha o cenho fran¬zido e a expressão séria, mal controlando o tremor que o ódio lhe provocava.

   Como aquela infeliz ousara roubar seu dinheiro? Quan¬do pusesse as mãos, ela desejaria não ter nascido.

   Agora, iria culpá-la pela morte de Herbert também, além do roubo. Ela seria presa, julgada e enforcada. Nesse dia, seria um homem feliz.

   - Desaparecido - repetiu sir George, sereno.

   - Exatamente, meu senhor. Lamento dizer que, apa¬rentemente, ele e Elma andaram tomando atitudes... reprováveis.

   - Roubo?

   - No mínimo, meu senhor. - Richard baixou a cabeça, falsamente envergonhado. - E com profundo pesar que revelo: temo que Herbert abusou da confiança que depo¬sitou nele. Temo que ele se tenha desgraçado, e a toda nossa família, com sua atitude.

   Fazendo uma pausa, olhou para George, depois para Alice, cuja expressão o fez engolir em seco.

   - Saiba, meu senhor, que minha própria casa foi arrombada esta noite - prosseguiu. - Um irmão desonesto desaparecido, uma criada desertora, sendo que podem estar juntos, meu próprio dinheiro surrupiado. Que dizer de tudo isto?

   - O que aconteceu com o moleiro, Richard? - inquiriu Alice, dura.

   O capataz mostrou-se confuso.

   - Ele... ele foi espancado por rufiões, minha senhora.

   - Tem certeza de que não sabe de mais nada a respeito?

   - Claro que não, minha senhora.

   Alice deu uma trégua, mas George retomou o inquérito:

   - Por que acha que Herbert fugiu com Elma? Ele pode estar com Lisette...

Richard o encarou pasmo, sem fala.

   - Quem é Lisette? - quis saber Alice.

   - A amante dele - informou George. - Ou ele estava com Elma também?

   - Eu não sei, meu senhor. Pode até ser...

   Richard raciocinou rápido: ao ser prega, Elma negaria ter fugido com Herbert. Se alguém descobrisse o corpo dele, apesar de oculto no fundo do bosque, tanto Elma quanto Lisette poderiam ser acusadas de haver cometido um crime passional.

   - Temos de encontrá-los - concluiu sir George. - Quanto antes, melhor. Vamos destacar alguns homens para pegar Lisette, e dez para me acompanharem, in¬cluindo você, Richard. - Olhou para a esposa, que não permaneceria no castelo nem amarrada. - Alice, você também vem comigo.

   O casal marchou para a porta, e Richard apressou-se em acompanhá-los.

  

   Elma ouviu os soldados montados antes de vê-los, pois seu galope ecoava como cem tambores na estrada, atrás dela. Só podia ser sir Richard Jolliet com uma guarda armada em seu encalço.

   - Mãe do céu! - exclamou, desmontando do burrico. Devia ter roubado um cavalo.

   Puxando o animal pelas rédeas, embrenhou-se na mata. Seus braços arranhavam-se nos arbustos e galhos de árvores e seus pés afundavam no terreno escorregadio e lamacento, mas persistia, pois não podia ser capturada. Por precaução, escondera bem o dinheiro, de modo a poder acusar Richard de crimes bem mais graves do que os seus, ainda que isso não fosse livrá-la da forca, a punição para qualquer tipo de roubo.

   Olhou por sobre o ombro. Tinha de se embrenhar mais, pois ainda poderiam vê-la da estrada. Mas o burrico parecia considerar que já haviam ido longe demais e empacara.

   Os cavaleiros aproximavam-se. Ouvindo o tilintar das ferragens, calculou muitos homens, uma tropa grande demais para perseguir uma única criada desertora. Já deviam ter descoberto a fraude.

   Sem perder tempo, pegou as bolsas e abandonou o burrico. Havia uma caverna ali perto, tão pequena que mal abrigava uma pessoa, mas ficava além de um córrego estreito que desviaria os cães farejadores em seu rastro. Seguindo na direção da caverna, deslocava-se o mais rápido possível no terreno acidentado, amaldiçoando o peso do fardo. De repente, tropeçou em alguma coisa e caiu estatelada no solo. Ofegante, rolou para o lado a fim de se levantar, sempre agarrada às bolsas... e Ficou cara a cara com Herbert, os olhos parvos, sem vida, ainda abertos.

   Ela gritou, e então tapou a boca com a mão, sob uma revoada de pássaros sobressaltados.

  

   George ouviu um grito de mulher e estacou o cavalo. Todos viram a revoada de pássaros ao longe, sinalizando como fumaça.

   A tropa toda adentrou o bosque.

  

   Em pânico, Elma sentia as costas encharcadas de suor ao percorrer a mata à procura do córrego. Fazia meses que não entrava naquele bosque e ainda era criança quan¬do visitara a caverna pela última vez.

   Mas era sua única saída, lembrou, murmurando pa¬lavrões sem parar. Era grande a vontade de largar as bolsas e poder se locomover melhor, mas nelas se depo¬sitava seu futuro e não podia abandoná-las.

   A certa altura, porém, era abrir mão do dinheiro, ou ser capturada. Com as mãos trêmulas de desespero, co¬locou as bolsas entre as raízes de um grande carvalho e cobriu-as com terra e folhas.

   Retomando a fuga, já não ouvia os perseguidores e, por alguns minutos, ousou acreditar que haviam desis¬tido. Erguendo a barra da saia, começou a correr entre os arbustos, indiferente aos respingos úmidos no rosto ao afastar os ramos com os ombros.

   Enganara-se. Sir George e seus homens não haviam desistido da caçada. Tinham-na cercado, conforme descobriu ao alcançar uma pequena clareira e dar com soldados desmontados à frente e dos lados. Dando meia-volta, viu sir George aproximar-se a cavalo muito severo.

   Sir Richard Jolliet vinha logo atrás.

   - Bom dia, Elma - cumprimentou o patrão, em tom tão afável quanto se estivessem na capela para a missa.

   A Elma restava agir como uma criada fujona.

   - Perdão, sir George! - implorou, o peito arfando. - Sei que não devia ter...

   - Ela é uma ladra! - acusou sir Richard, o mal em pessoa.

   Elma olhou furiosa para o ex-cúmplice.

   - Mentira! - Voltou-se para sir George. - Acusam-me de roubar o quê?

   Richard hesitou, parecendo em dúvida, mas respondeu:

   - Ela roubou meu dinheiro, meu senhor, peças de linho de seu armário, e quem sabe mais o quê?

   Sir George desmontou do garanhão.

   - Pena não podermos perguntar a Herbert o que mais foi surrupiado, não é, Elma?

   - Meu senhor, eu... eu fugi, é verdade, mas porque... porque sir Richard estava abusando de mim!

   - Abusando? Como assim?

   - Ele... me atacou. Várias vezes.

   - É uma mentirosa baixa e vil, meu senhor! - pro¬testou Richard.

   Impassível, George olhou por sobre o ombro para um dos soldados, que avançou levando duas bolsas de couro,

   - Bem, vamos ver o que Elma levou consigo ao fugir. A criada prendeu o fôlego enquanto o soldado abria as bolsas e despejava o conteúdo no chão: roupas.

   - Não há nada mais dentro, meu senhor - garantiu o homem, parecendo confuso.  

   - Como bolsas vazias podem pesar tanto? - indagou sir George, pensativo. Encarou a criada. - E o que sabe sobre Herbert?

   - Não sei nada, meu senhor. Mas o irmão dele sabe.

   - Mesmo?

   George olhou para o capataz. Então, hábil, sacou a espada e enterrou-a numa das bolsas supostamente vazias, rasgando-a.

   Moedas de ouro e prata rolaram para o chão.

   - Está vendo, meu senhor? - exclamou Richard. - Ela roubou de mim!

   - Não é dinheiro dele! - gritou Elma. - Sir Richard vem roubando o senhor há anos. Como alguém na posição dele teria tanto dinheiro para ser roubado?

   George olhou para o empregado em quem depositara tanta confiança.

   - De fato, parece que há muito dinheiro aqui.

   - Bem, meu senhor... parte desse dinheiro é seu - reconheceu Richard, tartamudeando. - Eu o mantinha guardado comigo para...

   - Comprar mais guardanapos de linho? - ironizou George. - Diga-me, Richard, onde está seu irmão? - Espada erguida, aproximou-se do capataz.

   - Ele fugiu com a outra parte do dinheiro que ambos roubaram de mim e de meu pai?

   Raivoso, agarrou-o pelo decote da túnica.

   - Quanto? - gritou, os dentes cerrados. - Quanto roubaram ao longo de todos esses anos?

   - Meu... meu senhor!

   - Eu confiei em você! Meu pai confiou em você! Elma não pôde mais se conter:

   - Ele também matou Herbert! Eu vi!

   George se deteve e fitou nos olhos aquele a quem con¬siderara um amigo.

   - Richard, Richard, Richard, você é uma criatura do mal!

   - Meu senhor, por favor! - implorou o capataz. - Eu sou inocente!

   Finalmente largando o homem, George pareceu recupe¬rar o autocontrole.

   - Veremos, após a auditoria nos livros de contas, após os depoimentos do mercador de linhos e do moleiro...

   - George! - chamou Alice, dentre os arbustos. - Encontrei o corpo de Herbert!

   George derrubou o capataz no chão enlameado.

   - Você matou mesmo seu próprio irmão?

   - Não fui eu! - berrou Richard. - Foi ela! - Apontou para Elma. - Por favor, meu senhor, tem de acreditar que sou inocente!

   George olhou para a criada.

   - O que tem a dizer?

   Aproveitando o momento de distração, Richard levan¬tou-se do chão, agarrou a espada na mão de George e, imobilizando-lhe o braço às costas, encostou a lâmina em seu pescoço.

   - Que ninguém faça nenhum movimento brusco! - advertiu, ensandecido. - Ou degolo este idiota como se fosse uma galinha!

   Alice aproximava-se da clareira a cavalo quando começou o tumulto. Discretamente, desmontou e esguei¬rou-se até a borda da clareira, munida de seu arco e aljava de flechas.

   Bem de costas para ela, Richard deslocava-se lenta¬mente para trás arrastando George, cujo pescoço já se manchava de sangue.

   - Que ninguém se mova! - alertava, tentando al¬cançar seu cavalo. - Mantenham-se afastados!

   Alice tirou uma flecha da aljava e tentou manter as mãos firmes ao posicioná-la transversalmente ao cordão do arco.

   - Fique quieto, George - sussurrou, apavorada com a ideia de atingi-lo caso se movessem bruscamente.

   Devagar, pôs-se de pé, ergueu o arco e, concentrada, mirou.

   Então, a flecha disparou zunindo.

   Richard gritou ao ser atingido no ombro pela flecha, e deixou a espada cair. George girou nos calcanhares e o esbofeteou, deixando-o cambaleante. Os soldados rapi¬damente o cercaram e dominaram.

   - Levem esse canalha de volta a Ravensloft - ordenou George.

   De sua posição na mata, Alice suspirou aliviada, mas então notou um movimento nas proximidades. Elma se aproveitara do momento de tensão na clareira para fugir.

   Alice pegou mais uma flecha e posicionou-a no arco, mirando no pé da criada, só para detê-la.

   Ela gritou ao ser atingida, e logo dois soldados che¬gavam para prendê-la.

   Alice correu até a clareira e se atirou nos braços de George.

   - Pensei que ele fosse matar você - murmurou, apertando-o com força.

   - Eu também - confessou ele. - Sabe, essa é uma maneira excitante demais para se começar o dia, na minha opinião.

   Ela riu.

   - Concordo.

   Os dois soldados que tinham ido buscar Elma volta¬ram, visivelmente constrangido.

   - O que foi? - indagou George.

   - A criada, meu senhor. Está morta.

   Incrédula, Alice correu até o local. O corpo de Elma estava virado para baixo, com os braços abertos, a flecha protuberante em suas costas ensopadas de sangue.

   - Eu... eu não quis matá-la - murmurou, horrorizada. Em sua prática das artes da guerra, nunca matara ninguém, e o que sentia agora era indescritível. Chorou, enterrando o rosto nas mãos.

   - Eu não quis...

   Sentiu os braços fortes de George ao seu redor.

   - Eu sei... - afirmou ele, tentando confortá-la. - Acredite, Alice, eu sei.

  

   Passaram-se dois meses. Certa tarde, Alice encontrou George soturno no solar, diante da escrivaninha coberta de pergaminhos, alguns desenrolados, outros ainda não. Na mesinha lateral, havia mais um monte deles.

   - Estou me sentindo o rei dos bobos - declarou ele, ao vê-la. - Richard e Herbert Jolliet roubaram de mim e de meu pai por anos a fio. Nunca saberemos exata-mente quanto.

   Alice deu a volta e pôs as mãos em seus ombros tensos.

   - Não faz mal - consolou. - Temos muito.

   Julgado por roubo e assassinato, sir Richard Jolliet fora condenado à forca duas semanas antes. Consideran¬do a antiga amizade entre eles, George ordenara que seu corpo fosse baixado de imediato e enterrado no bosque, ao lado do de seu irmão, uma vez que ambos tinham sido excomungados. Permaneciam juntos na morte, assim como fora em vida, mas Alice duvidava de que descan¬sassem em paz. Elma jazia num túmulo para indigentes além dos limites da aldeia.

   - Falou a frugal filha de sir Thomas - brincou George.

   - Preferiria que eu fosse uma perdulária?

   - Estamos longe da bancarrota, folgo em dizer. - Ele remexeu os pergaminhos. - Mas é constrangedor descobrir que vivi anos cego desse jeito. Deveria ficar contente por não terem me roubado mais, por cautela.

   Alice o beijou no topo da cabeça e se aconchegou junto dele.

   - Você confiou demais, isso é tudo. Dizem que o amor é cego. A confiança também é... Aliás, você via tantos defeitos em mim, que eu começava a temer que você jamais me amaria. Ou estou melhorando, ou você se apai¬xonou mesmo por mim a ponto de não enxergar mais meus defeitos.

   George a enlaçou com o braço e puxou-a para seu colo.

   - Para ser franco, Alice, acho que são as duas coisas: você está melhorando... no que é menos importante, pois, naquilo que importa, você sempre foi perfeita, e eu estou tão apaixonado que você poderia me conduzir como um cego. - Apertou os lábios. - Hum... talvez não seja in¬teligente um marido admitir isso.

   Alice riu encantadora.

   - Receio ter ficado cega a alguns de seus defeitos também.

   - Ora, posso não ter nenhum.

   - Margot achava que tinha. George ficou desolado.

   - Margot... Gostaria que ela não tivesse partido da¬quele jeito. Eu a convidei a voltar, mas ela declinou. Parece que vai se casar, com alguém da escolha do rei.

   - Da escolha do rei?

   - Margot é muito rica, dona de uma grande proprie¬dade, além de filha de um nobre muito poderoso. Tanto o rei quanto os cortesãos têm muito interesse em viúvas como ela.

   - Espero que ela seja feliz.

   - Ela merece.

   - Não gostaria que escolhessem um marido para mim - declarou Alice. Então, corando, revelou: - Sabe   eu esperava que Rufus e Margot...

   George se espantou.

   - Notou algum clima entre eles?

   - Ele a achou bonita, e é um cavaleiro rico. Vem de uma família nobre, ainda que não muito abastada Sei que ele e um tanto... impetuoso, mas tenho certeza de que ela conseguiria melhorá-lo em três tempos

   - Talvez eu deva escrever ao rei sugerindo nosso ami¬go para desposar minha prima viúva.

   Alice se animou.

   - O rei consideraria?

   Os olhos de George emitiram um brilho conhecedor

   Ainda não se convenceu de que seu marido é um homem influente? Pois saiba que o rei simpatiza comigo

   - É parece que o subestimei mais uma vez! - reconheceu ela. - Mas concordo que é simpático. E sedutor. E mara¬vilhoso. E muito, muito desejável... - Beijou-o de leve

   - Alice... - apreendeu ele, mas correspondendo ao beijo. - Eu devia estar revisando estas contas

   -Receio, meu senhor, que tenha me tornado muito displicente vivendo em seus domínios - replicou ela sem um pingo de arrependimento. - Tanto que insisto em que esqueça essas contas por ora.

   - Só se me prometer que aprenderá a ler e assumirá esta tarefa tediosa.

   - Com prazer - concordou Alice, enrolando no dedo uma mecha do cabelo loiro do marido. - Pois descobri que estudar não é tão ruim assim.

   George apertou os braços em torno dela.

   - Nesse caso, meu amor, sejamos displicentes juntos...

 

 

 

                                                                                                    Margaret Moore

 

 

 

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