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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESSÊNCIA DA LÂMINA - P.2 / Filipe Faria
A ESSÊNCIA DA LÂMINA - P.2 / Filipe Faria

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O Outono aproximava-se do seu fim em Nolwyn, e os arrabaldes de Vaul-Syrith já tremiam com o frio bafejado pelas montanhas da Cinta a norte. O tempo estava cerrado e no céu migravam densas nuvens que vaticinavam as previsões dos vilãos de que o Verão estuante daria lugar a um gélido Inverno. Árvores despidas mexiam-se como que embaraçadas e os seus ramos desnudos ciciavam, agitados por uma aragem que esfriava os narizes e as bochechas do séquito que se encontrava acampado à orla do bosquete. Um seleto grupo da corte de Vaul-Syrith reunira-se na coutada de lorde Syndar por ocasião da Dádiva Régia, uma cerimônia importada de Thyr. Vaul-Syrith podia ser uma das cidades-estado de Nolwyn, mas em eras passadas acolhera o perdedor de uma contenda dinástica da nação do outro lado da Cinta, conservando-o a salvo de quem pretendia eliminar a sua pretensa elegibilidade à sucessão do trono de Thyr. Esse perdedor, um mero graveto de uma basta árvore fidalga, acabou por se instalar na cidade com a sua corte de arrivistas, trazendo consigo toda uma moda e série de costumes que os estratos superiores de Vaul-Syrith acabaram por adotar numa das muitas demandas palacianas em busca de distinção social no sempre colorido panorama de Nolwyn. Cabelos ao nível dos ombros, um apreço por cavalos e uma índole mais mundana eram o mais visível legado de Thyr, o que resultava numa profunda asserção de desconformidade das gentes de Vaul-Syrith em relação às restantes províncias de Nolwyn. A Dádiva Régia era uma cerimônia de fim de Outono na qual o rei de Thyr organizava uma caçada ao bisonte, um animal que ainda abundava nas vastas planícies dessa nação, e concedia o primeiro quinhão a um camponês que o acompanhava.

 

 

 

 

O afortunado daquele ano fora um rapaz magro e simplório de cabelos castanho-escuros cujo nome todos já haviam esquecido e que aguardava em infantil expectativa com parte da corte pelo regresso do grupo de caça de lorde Syndar. Cercado por homens armados de lanças, brigandinas cobertas de peles e elmos globulares, fidalgos cujas roupas de caça poderiam comprar a sua aldeia e a própria Alnara Syndar, esposa do seu senhor, o rapaz olhava em redor com olhos de cachorro curioso em respeitoso silêncio. Na verdade, a senhora Alnara fora bastante afável e simpática, mas era evidente que estava preocupada com alguma coisa e os seus pais bem o haviam avisado de que tinha certamente coisas mais importantes em que pensar que um «rapazola» como ele, que se devia portar bem e não fazer demasiadas perguntas. Não percebia porquê, a esposa de lorde Sunlar já lhe sorrira muitas vezes e falara bastante com ele antes de ficar preocupada; logo iria mostrar aos seus pais como haviam estado enganados. Alnara já não era uma mulher jovem, mas tinha uma beleza madura que não passava despercebida, com um brando semblante oval, olhos castanhos, nariz direito e uma boca de determinados lábios finos pintados a vermelho. Envergava uma peliça de lustrosa castorina azul com compridas mangas pelo cotovelo sobre um vestido roxo e plissado, com um manto preso por um broche na forma de duas cabeças de cavalo enfreadas. Usava um elegante capuz azul sobre a sua mantilha branca, mantendo as enluvadas mãos recatadamente cruzadas sobre o regaço enquanto passeava em círculos, murmurando palavras de apreensão de cada vez que olhava para as árvores despidas. Sempre fizera questão de acompanhar o seu marido nas caçadas, e este já desistira de a tentar dissuadir, embora por vezes parecesse demorar-se mais de propósito apenas para a preocupar. Lorde Syndar embrenhara-se pelo bosquete adentro com o seu grupo e a sua guarda pessoal havia já algum tempo, mas o rapaz não via quaisquer razões de preocupação. O seu regente era um homem forte, um guerreiro experimentado cuja presença era uma inspiração para quem o servia, e decerto nada teria a temer de um mero bisonte, embora pessoalmente o rapaz nunca tivesse visto um e se questionasse quanto à sua aparência e sabor. Era já longa a tradição em Vaul-Syrith de trazer o animal de Thyr e soltá-lo numa floresta para uma caçada anual, o que contribuía para uma certa mística da besta. Os restantes guardas falavam distraidamente entre si, atentos ao mínimo ruído vindo das árvores enquanto preparavam uma robusta armação para tratar do animal.

— É muito grande, um bisonte? — perguntou o rapaz atabalhoadamente a um velho guarda de barba curta e espigada que se deteve ao seu lado para observar as árvores.

— Enorme, rapaz, embora não tão grande como deves ter ouvido dizer — afirmou o homem, coçando as cerdas grisalhas na sua bochecha e indicando um camarada seu com a lança. — A cabeça daquele maganão ali deve dar-lhe pela bossa.

O rapaz fez uma cara de espanto e esfregou os braços. A sua casaca de pele de cabra era quente, mas arrependia-se de não ter trazido os seus trapos de lã para não parecer demasiado rústico diante do seu regente.

— Quando um bicho daqueles se põe a cavalgar, o melhor é saíres-lhe da frente — continuou o guarda. — Peludo como um urso, ainda por cima. E com uma cabeçorra que nem te...

Calou-se ao ouvir o tênue mugido de uma trompa e a sua cabeça estalou para uma posição alerta como a de um pássaro. Os restantes guardas tiveram uma reação semelhante, e, quando a trompa soou pela segunda vez, todos correram a postar-se perto da sua senhora, deixando o camponês para trás. Uma fila de homens ajoelhou-se diante de outra que se posicionou diante de Alnara, ambas de lanças enristadas, enquanto outros frecharam arcos curtos nos seus flancos numa formação quase militar. O rapaz achou por bem aproximar-se, mas por alguma razão não lhe ocorreu sequer a noção de ter medo, pois estava perto de cerca de vinte homens armados e não sentia que estivesse em perigo, nem mesmo quando o tropel de cascos começou a crescer atrás das árvores. Avistaram-se vultos montados entre os troncos e ramagens à distância, gritos de acicate, o tilintar de arreios. O grupo de caça aproximava-se; teriam já morto o animal?

O primeiro a surgir foi o próprio lorde Sunlar, que esporeava o seu corcel fulvo de boca espumante a galopar a toda a brida. Os seus cabelos escuros agitavam-se atrás do rebordo para a nuca do seu elmo globular com crista da qual fluía uma crina negra, e empunhava na mão direita um dardo. Envergava uma jaqueta de couro com padrões eqüestres nela cerzidos a prata sobre uma túnica de cota de malha, ambas reveladas pelas peles esvoaçantes que trazia aos ombros. O rapaz registou o breve momento na sua memória antes de o regente trovejar por perto do grupo, gritando-lhes que se afastassem, que o «bicho» vinha aí, e por ele ficou maravilhado, com a terrível beleza do seu senhor de arma aprestada e do corcel fulvo de narinas frementes. Os lanceiros gritaram e recuaram, mais gritos vieram das árvores, o tropel de várias montarias, ramos e gravetos a estalarem, terra coberta de folhas mortas a ser sulcada por violentos cascos.

— Ó moço! Chega aqui! — gritou o guarda de barba espigada. — Sai daí!

Distraído pela cavalgada de Sunlar, o camponês afastara-se do grupo, e os guardas indicaram-lhe freneticamente que viesse ter com eles assim que olhou para trás. Sempre a incitar o seu cavalo, lorde Sunlar começou a descrever uma larga e acentuada curva a uma considerável distância dali, inclinando-se para o lado oposto ao que o corcel decaía. O rapaz olhou uma última vez para o seu senhor antes de se decidir a voltar para perto dos guardas, mas nesse momento irromperam das árvores dois cavaleiros armados de lanças, o grupo afastou-se mais e o jovem teve a distinta sensação de que estava no caminho.

— Tirem-no dali! — gritou a senhora Alnara, mas os guardas tinham as suas prioridades bem definidas, e o tempo que um deles levou a decidir antes de avançar forçou-o a recuar para evitar ficar na rota de colisão com um dos cavalos.

De repente, o rapaz estava entre dois cavaleiros que cavalgavam a toda a brida e que lhe gritaram qualquer coisa, mas tudo ficou lento a partir desse momento, parecendo desacelerar ainda mais quando passaram por ele, bafejando-lhe os cabelos e as roupas com o deslocamento de ar e polvilhando-o com pedaços de terra arrancados pelos cascos das montarias. Alnara tornou a gritar, e dois outros cavaleiros surgiram do bosquete, mais afastados um do outro que os seus predecessores e tão rápidos como estes. O jovem estava imóvel, limitando-se a olhar para os lados como se não estivesse a entender ao certo o que se passava e sem revelar medo na sua simplória expressão. Talvez devesse ir ter com os guardas, pensou, mas logo então avistou algo que lhe plantou os pés no chão contra a sua vontade, algo enorme e escuro que se agigantava vindo do emaranhado de troncos e ramos com dois cavaleiros a certa distância a seu lado. Alnara e os guardas gritaram num díspar coro, mas o rapaz foi incapaz de tirar os olhos da tremenda besta que rompeu das árvores com enorme estardalhaço de galhos e ramos quebrados. Era imenso, com pelagem castanho-dourada, uma felpuda bossa aos ombros, um focinho achatado com barba e um espesso e curto pescoço cuja longa lanugem formava uma melena por baixo. A sua cabeça enorme e arredondada tinha pêlos encaracolados na testa provida de dois temíveis cornos curvos que, lembrou-se, não eram nem pouco mais ou menos tão grandes como lhe haviam dito. Furioso e assustado, o bisonte corria por entre o corredor formado pelos cavaleiros, e vinha inexorável e estrondoso na direção do rapaz, expelindo nuvens de vapor pelas narinas. Este não mexeu um dedo, hipnotizado pela monstruosa magnificência da montanha de carne que contra ele arremetia, ouvindo apenas os gritos de Alnara e dos guardas embotados pelas retumbantes batidas do seu coração e pelo pesado tropel do bisonte. Nas profundezas da sua mente simplória, o camponês questionou-se se poderia de fato morrer ali, esmagado pela desmedida cabeça, estraçalhado pelos afiados cornos ou atropelado pelos possantes cascos, pois o animal não parava e vinha direito a ele, próximo, cada vez mais próximo até que o rapaz já lhe podia ver o branco dos olhos arregalados...

Algo lhe silvou perto do ouvido e cravou-se no peito do bisonte, que barriu e tropeçou para a sua direita. O jovem camponês não teve sequer tempo de ficar admirado, pois algo o atingiu pelas costas, arrancando-lhe os pés do chão e arrojando-o pelo ar para longe da estrebuchante besta que derrapava. O rapaz espanejou braços e pernas ao voar antes de aterrar com pouca delicadeza no chão, pelo qual rebolou, aturdido. Lorde Syndar puxou as rédeas e desmontou apressadamente, desembainhando a espada triangular a caminho do bisonte, incentivado pelos berros dos seus homens e desaconselhado pelos gritos de Alnara. Falhara o coração com o arremesso, e agora o bisonte bramia, tentando a custo levantar-se com o dardo cravado no peito. Rápido e misericordioso, Sunlar empunhou a espada com ambas as mãos e enterrou-a atrás da pata anterior do animal, trespassando-lhe o coração e largando a arma para não ser projetado ao ar com as convulsões do seu estertor de morte.

Todos aguardaram em silêncio durante alguns momentos, os últimos do bisonte, findos os quais irromperam em aclamações de lanças ao ar, aplaudindo a proeza do seu senhor. Ofegante, Sunlar lançou um último olhar à besta tombada antes de se dirigir ao rapaz que salvara. O jovem camponês estava sujo de terra e continuava a olhar em redor em confusão, mas felizmente não parecia magoado apesar do brusco salvamento ao pontapé. O senhor de Vaul-Syrith desafivelou o elmo e aninhou-o debaixo do braço enquanto andava, estendendo de seguida uma mão enluvada ao rapaz. Os seus cabelos compridos estavam em desalinho, emaranhados nas tranças de fios brancos que lhe cresciam nas têmporas, e, ao contrário da expressão sóbria e quase macambúzia que portara durante a caminhada para o bosquete, o regente sorria agora de orelha a orelha, com olhos castanhos e vivazes debaixo das suas sobrancelhas angulares. Tinha pequenas folhas e pedaços de sujidade molhada na barba meticulosamente aparada e enfatizada pelos seus proeminentes maxilares, e a sua boca rasgou-se num sorriso branco.

— Desculpa, meu rapaz. Estás bem?

Ainda sem palavras, o jovem limitou-se a aceitar a mão do seu soberano e a levantar-se com a ajuda deste. Sunlar ia dizer algo mais, mas Alnara veio a correr na sua direção de saias na mão e saltou para os seus braços com um grito abafado.

— Oh, seu estúpido! — barafustou ao seu ombro. — Tu sabes como eu odeio isto!

O regente riu através dos dentes e limitou-se a pegar-lhe na cabeça e a beijá-la, um gesto que foi aplaudido pelos homens que tinham ficado com adrenalina por gastar.

— Revigorante! — exalou Sunlar, largando uma atordoada Alnara. — Boa caçada, homens!

Todos concordaram e um grupo foi amarrar as patas do bisonte para o arrastarem até à armação. Sunlar pôs um braço por cima dos ombros da sua esposa e com o outro indicou ao camponês que se aproximasse, puxando-o para si também e conduzindo os dois até à carcaça do animal.

— Diz-me, rapaz, que parte dele queres, hum? O que é que vais levar para a tua família?

O jovem olhou alternadamente para Sunlar e para o bisonte sem acusar grande compreensão, mas o seu regente apertou-lhe o ombro e largou Alnara para indicar o bisonte com a mão.

— Vá, escolhe. O primeiro quinhão é teu. Queres o cachaço, uma coxa? Escolhe à vontade.

— Hãã... posso... posso ter a cabeça?

— A cabeça?

O rapaz acenou com a sua.

— Os meus pais vão gostar. Vai ficar bonito na sala.

Sunlar riu, dando palmadinhas nas costas do jovem camponês.

— Não me parece que achem grande graça a teres prescindido de um belo pedaço de carne por um troféu... Mas enfim, sempre podes aproveitar a língua e a mioleira, não é?

— Língua e mioleira... sim.

— A cabeça então! — ordenou o regente quando um guarda lhe veio devolver a espada já limpa. — Preparem aí o troféu ao rapaz para que ele não se esqueça desta caçada. Não te vais esquecer, pois não?

— Não... senhor — sorriu o jovem estupidamente. — Não me esqueço, não.

— Então muito bem, tratem lá disso. E alguém me traga um pouco de vinho, que fiquei com a garganta seca de tanto gritar.

Um solícito guarda veio de imediato com um odre para o seu senhor beber, pois Sunlar ficava sempre de bom humor após uma caçada bem-sucedida e todos queriam prolongar o seu estado de espírito tanto quanto possível. O regente de Vaul-Syrith era um homem comedido e pouco propenso a grandes emoções, e as suas gentes admiravam-no por isso, mas ninguém podia negar que se tornava bem mais divertido e generoso em ocasiões como aquela. A semelhança de anos anteriores, aguardava-se com expectativa uma grande festa quando do seu regresso à cidade, com especial incidência na aldeia do afortunado escolhido para participar na caçada, que contaria com a sua breve presença durante os festejos.

— É um belo animal, esposo — disse Alnara mais por dever que por genuíno apreço pela matança. — Sem dúvida, uma presa à altura dos guerreiros de Vaul-Syrith.

Os guardas nutaram e murmuraram em agradecimento ao elogio da sua senhora, e Sunlar cingiu-lhe a cintura com um braço, segredando-lhe ao ouvido:

— E logo à noite veremos se este guerreiro de Vaul-Syrith está à vossa altura, minha senhora...

— Sunlar! — protestou Alnara com um deleitado sussurro. — Tira essas mãos sujas de cima de mim e vai falar dessas poucas-vergonhas com os teus sabujos!

Empurrado pela sua esposa, o regente limitou-se a sorrir-lhe em tom de desafio antes de se dirigir aos cortesãos para com eles trocar impressões enquanto um grupo de guardas preparava a carcaça do bisonte e a cabeça deste para o triunfal retorno do jovem camponês à sua aldeia. Os outros aprontavam tudo para o regresso à cidade, ansiando por taças de vinho quente e pelo caloroso acolhimento de raparigas de aldeia ansiosas por conhecerem de perto os membros da guarda real de Vaul-Syrith. Tudo decorreu com rapidez e eficiência até um dos homens avistar um cavaleiro que se aproximava à distância.

— Meu senhor, alguém se aproxima! Parece ser um dos nossos.

De fato, o cavaleiro ostentava uma libré com as armas de Vaul-Syrith, um corcel amarelo empinado sobre uma rosa branca, e não tardou a ser reconhecido como Jestiban Kilune, paladino de lorde Sunlar e condestável de Vaul-Syrith. Antes que alguém sequer lhe dirigisse a palavra, puxou as rédeas à sua montaria, pulou da sela e encaminhou-se na direção do regente enquanto desafivelava a correia do elmo.

— Meu senhor... — disse, removendo o capacete e ajoelhando-se diante de Sunlar. — Trago-vos notícias... aziagas.

— Jestiban, perdeste uma bela caçada! — disse o regente, acostumado aos modos graves do seu paladino e à sua tendência de exagerar o banal, especialmente desde que voltara da sua missão de encontrar Lhiannah com notícias de uma possível ameaça ocarr. — Vem dar uma olhadela ao nosso animal enquanto me contas o que se passou na minha ausência...

— Meu senhor — ergueu-se Jestiban, alinhando inconscientemente os seus cabelos castanhos amassados pelo forro de couro do elmo.

— Vim o mais rápido que pude. Recebemos notícias... da princesa Lhiannah.

O sorriso que acompanhara Sunlar até então esvaneceu-se à semelhança do sol a ser coberto por uma nuvem, e o seu semblante escureceu conformemente, tornando-se tão sério como a cara angular de Jestiban. A menção do nome da desaparecida princesa ilegítima foi como uma mácula até então oculta e esquecida que se revelava inesperadamente, e tanto guardas como cortesãos se calaram.

— Que notícias são essas? — perguntou Sunlar com um tom de voz um mero meio tom acima do mínimo necessário para ser ouvido.

Um rolo de couro surgiu prontamente na mão de Jestiban, que o destapou e dele tirou uma carta enrolada com selo quebrado.

— Foi-me entregue por um... estafeta — disse, entregando-a ao seu senhor. — Não por um emissário... como seria de esperar.

O corpo do regente ficou imóvel enquanto os seus olhos percorriam as apressadamente rabiscadas linhas da carta.

— O sinete é o de Aereth Thoryn... tanto quanto pude confirmar — assegurou Jestiban enquanto o seu senhor lia. Alnara surgiu detrás do seu ombro, preocupada.

— Sunlar, o que...?

O ruído de pergaminho a ser bruscamente amarrotado assustou-a, e Sunlar conferiu por breves instantes com o seu paladino, trocando com ele uma série de impressões com um mero olhar. Havia uma fúria velada por detrás dos olhos castanho-escuros de Sunlar, e os seus proeminentes maxilares destacaram-se ainda mais pelo seu estado de tensão.

— Meu senhor, como vosso condestável, sugiro-vos que...

O regente surpreendeu todos ao desembainhar a sua espada, eliciando exclamações de surpresa pela parte de alguns cortesãos e sobressaltando a sua esposa. Os olhos de Jestiban baixaram-se para a lâmina e tornaram a erguer-se quase de seguida, invulgarmente alarmados.

— Meu senhor, deveríamos pelo menos...

Sunlar tirou a luva da mão esquerda, arregaçou a manga de cota de malha para expor o antebraço, cerrou o punho e passou o gume da lâmina pela sua carne, deixando o sangue verter sobre o aço. Alnara levou a mão à boca e tanto os cortesãos como os guardas ficaram mudos de espanto. Apenas o jovem camponês não percebia o que estava a acontecer, mas ninguém fez caso do seu olhar interrogador.

— Meu senhor...!

— Leva-a — ordenou Sunlar friamente. — Leva-a para que cada homem são de corpo a veja. Sabes o que fazer, Jestiban.

O paladino sabia-o, e por isso mesmo hesitava, pois aquele era um costume thyrano que não mais fora usado desde a Guerra da Hecatombe e que Jestiban esperara nunca ter de levar a cabo. Portar a espada manchada com o sangue do rei por todas as aldeias era o que antecedia à mobilização total, o prelúdio de uma guerra sem quartel em defesa da vida e honra do monarca. Pelos deuses, não esperara tão irada decisão!

— Homens, montai — ordenou Sunlar. — Cavalgamos para Vaul-Syrith a toda a brida. Nalio, escolta a minha mulher em segurança até ao palácio. Agapardo, ajuda o rapaz a pôr a cabeça do bisonte na sela. Ele irá contigo, Jestiban. Vão para Praseda; diz aos habitantes que lamentas trazer-lhes uma reivindicação com uma oferenda, mas que o seu senhor precisa deles. Entendido?

Todos menos Jestiban acenaram de imediato com as cabeças e lançaram-se às tarefas incumbidas, pois o tom de voz do seu senhor não deixava qualquer espaço para discussão. Apenas o paladino hesitou, empunhando a espada manchada de sangue, mas Sunlar virou-lhe as costas, tomando a sua obediência como um dado adquirido e montando o corcel. Nem mesmo os rogos de Alnara o demoveram quando esta lhe agarrou a perna.

— Sunlar, o que é que a carta diz? O que é que vais fazer?

— Vemo-nos no palácio, esposa — disse o regente concisamente, puxando ligeiramente as rédeas do cavalo para o lado oposto ao de Alnara. — A galope, homens! Quem puder, que nos acompanhe!

E partiu, seguido por quem conseguiu montar rápido o suficiente e deixando uma aflita esposa e um apreensivo paladino para trás.

Alnara olhou para Jestiban a pedir apoio e explicações enquanto os que haviam ficado para trás se aprontavam rapidamente para partir, mas este foi incapaz de lhe dar qualquer um dos dois. Não conseguia tirar os olhos da espada, cujo gume escorria fios de sangue régio, e naquele momento sentiu que a sede da lâmina fora desperta. Jestiban Kilune não era estranho à morte ou ao combate, mas arrepiou-se com a idéia da quantidade de sangue que aquela espada ainda poderia vir a beber.

«Aereth Thoryn, grande idiota... o que foste fazer?», pensou o paladino, erguendo a lâmina diante da sua cara e com ela bloqueando Alnara da sua visão. «O que foste fazer...?»

 

Já não pela primeira vez, Aewyre questionou-se que raio estava ali a fazer. Despido até aos seus trajes menores, executava séries de movimentos cegos com Ancalach dentro de uma exígua câmara escura forrada a rugosas chapas de aço. Os seus pés já estavam insensíveis ao férreo frio do piso, escorregando por vezes nas poças alimentadas pelas gotas que transpirava. O corpo do guerreiro escorria água, pois a sala era avaramente ventilada através de diminutos orifícios e o ar estava pesado ao ponto de julgar ser capaz de o cortar com o gume da Espada dos Reis. Já se habituara também ao cheiro a suor misturado com o dos seus pés, forçado a respirá-lo para manter o ritmo que lhe fora recomendado. Mantinha os olhos semicerrados, pois, além de estar escuro, a transpiração abrasava-os, colando-lhe as pestanas. Ocasionalmente, faíscas resultantes do impacto do gume ou da ponta de Ancalach contra o aço das paredes asseguravam-lhe de que não estava cego, conferindo à cena o ambiente fulgurantemente surreal de um alucinado sonho, distorcido pela aparentemente interminável passagem do tempo. Há quanto tempo estaria ali? Lembrava-se de ter entrado no estreito cubículo ainda de noite, mas não tinha forma de saber quantas badaladas haviam soado a não ser através do medrante peso dos seus músculos, a rigidez dos seus ossos repetidamente abalados pelo embate de aço contra aço e a condição quase derrapante do piso molhado pelo seu próprio suor. Com os movimentos mais lerdos e uma crescente impaciência que recusava deixar-se suprimir, Aewyre atingia as paredes com cada vez mais freqüência, e já embatera contra elas de ombros ou costas mais que uma vez. De uma coisa estava certo: a madrugada não podia estar longe. Quanto tempo mais iria o maldito thuragar deixá-lo ali dentro?

A sua mente tendia a divagar, por muito que se esforçasse por manter a concentração exigida por Grwos, e o jovem dava consigo a refletir acerca dos seus primeiros tempos na Cidadela da Lâmina. Diacolo supervisionara pessoalmente a sua integração no recinto e o cumprimento rigoroso dos rituais diários nos quais a férrea disciplina da fortaleza assentava, e fora com ele que o jovem e Kror haviam treinado. Para grande frustração de Aewyre, ainda não haviam aprendido nada que não soubesse já. Demorara mais tempo a explicar ao sathmaro o que queria dizer com o «tendão» do que este levara a explanar aquilo que entendia pela Essência da Lâmina, ficando-se por uma definição abrangente semelhante à que Allumno lhe dera. Queixava-se freqüentemente da impaciência do jovem guerreiro, de que havia muito ainda por descobrir acerca das suas capacidades e as de Kror antes que pudessem começar com o treino «a sério». De uma coisa estava certo; os malditos Lamelares eram condescendentes para com meros Portadores, e acima de tudo ciosos dos seus segredos. Tendo já atingido um domínio razoável da Essência da Lâmina, procuravam alcançar a plena mestria da devastadora força que portavam e não estavam dispostos a providenciar atalhos a iniciados precipitados. Mais ainda do que mestres e alunos, a impressão que Aewyre tinha era a de que havia duas castas que coabitavam na Cidadela além dos camponeses do recinto inferior, e que ele e Kror eram de momento os únicos pertencentes à ralé, meros noviços que lhes passariam ao lado, não fosse pelas suas esplendorosas armas e pelo fato de um deles ser um drahreg. Treinavam juntos debaixo da supervisão de Diacolo ou sozinhos, nunca em grupo com os Lamelares, e durante as refeições eram sempre abordados com questões pessoais. Quem eram? De onde vinham? Como conseguiam não se matar um ao outro? Onde tinham arranjado tais espadas? Nunca lhes fora oferecido qualquer conselho, nunca ouviram uma única palavra de apoio. Aewyre começava a ficar irrequieto, mas sentia que simplesmente alardear a sua história poderia acabar por ser contraproducente.

O que queria verdadeiramente era falar com o Alto Lamelar, o homem no qual depositava mais esperanças de poder obter respostas para as suas muitas perguntas, mas não mais tivera ocasião de falar com Assiòn desde o primeiro dia. Vira-o ocasionalmente durante as refeições, a passar esporadicamente pelo adarve da muralha, observando os treinos no pátio, mas nunca lhe fora permitido dirigir-se a ele, e, das poucas vezes que o fizera, fora de qualquer forma dispensado pelo laonês. Aewyre tinha a distinta sensação de que o homem fazia por ignorá-lo pelo fato de não se ter imediatamente aberto a ele, revelando-lhe todos os seus segredos de uma só assentada. Como se isso não bastasse, as suas insubordinações haviam-lhe merecido turnos prolongados a limpar o chão do refeitório. Aewyre fumegara de raiva com o tratamento, mas estava ciente de que teria de se ater aos regulamentos da Cidadela e que de nada serviria extravasar a sua fúria. Além de Diacolo provavelmente ser capaz de o vencer e a Kror juntos, a verdade era que o jovem não podia exigir tratamento especial sem lhes dar razões para tal. E contudo, hesitava em contar a sua história, não só pela periclitante credibilidade da mesma. A Cidadela da Lâmina não correspondia totalmente às suas expectativas, parecendo mais um antro de mercenários alimentados a dinheiro de proteção pago por quem dessa forma pretendia evitar problemas com Lamelares. Não gostara do aspecto de Heldrada, a mulher com a qual ainda não haviam treinado, não simpatizava particularmente com Diacolo e não lhe estava a agradar o jogo de Assiòn, que lhes providenciara logo de início uma ardilosa primeira recepção. Desconhecia as intenções de quem geria a Cidadela, não estava sobremodo impressionado com quem nela treinava e tinha sérias reservas quanto à integridade dos mesmos. Tanto quanto sabia, podia bem haver Filhos do Flagelo entre eles, e embora Ancalach não mais os atraísse, uma vez que o seu senhor já não se encontrava aprisionado na Espada dos Reis, esta seria sempre um alvo apetecível para os servos da Sombra.

Grunhindo de raiva, Aewyre raspou um trilho de faíscas com um golpe arrastado ao longo da parede, cravando de seguida a ponta de Ancalach no chão, que cuspiu mais fagulhas que foram quase instantaneamente engolidas pela escuridão. Ofegante, o guerreiro apoiou-se então sobre o pomo da espada e respirou o ar pesado e cediço. O único ruído era o da sua respiração, bem como as trovejantes batidas do seu coração, que davam a impressão de ecoarem dentro das quatro paredes do cubículo. Quanto tempo mais teria de permanecer ali dentro? Ter-se-ia o thuragar esquecido dele?

Como se em resposta aos pensamentos de Aewyre, uma fresta vertical de luz amarela dilacerou a escuridão, alargando-se como uma ferida aberta que forçou o jovem a cobrir os olhos com a sombra da mão erguida.

— Acabaste, humano? — resmoneou uma mal-encarada voz. — Pensava que não te ias cansar.

Aewyre não respondeu, baixando a mão e olhando com uma careta de olhos semicerrados para o pequeno vulto ensombrado que se recortava contra a luz do corredor.

— Não faças cara estúpida. Anda, sai — disse Grwos com um gesto da mão. Aewyre assim fez, empunhando Ancalach de ponta baixa e esfregando o suor da testa com o antebraço.

A diferença de temperatura entre o corredor e o cubículo fê-lo espirrar quase de imediato, borrifando o thuragar com gotículas de suor que lhe saltaram dos cabelos. Grwos praguejou na sua pétrea língua, esfregando a incomodada pêra entrançada e a cota de malha e entregando a Aewyre as suas roupas.

— Anda, humano. Cheiras mal — disse com o habitual tato da sua raça, indicando ao jovem que o seguisse pelo corredor.

— Aprendi alguma coisa com isto? — inquiriu Aewyre ao seguir Grwos, esfregando os úmidos cabelos para trás. Aparara a barba e cortara o cabelo logo no primeiro dia na Cidadela, e, como recusara usar franja, tivera de o cortar bem mais curto que ao que estava habituado.

— A parar quando estás cansado, o que é que pensavas? Humano estúpido... — disse Grwos inconclusivamente.

Aewyre sabia bem que não fora esse o objetivo da sessão, mas também já se habituara a não obter respostas concludentes do thuragar. Segundo lhe fora dado a entender, o treino no escuro destinava-se a ligá-lo à arma, harmonizá-lo com as vibrações do seu aço, torná-lo uno com a lâmina. Aparentemente, um Lamelar não o era enquanto não estivesse de alguma forma vinculado à sua arma e não podia fazer uso da Essência da Lâmina sem uma à qual estivesse intimamente ligado; uma razão adicional para esta ser o seu bem mais precioso. Já vira Diacolo e outros Lamelares atraírem as espadas para as suas mãos com mera força de vontade, o que evidenciava a importância da componente da ligação de um Lamelar com a sua arma no treino. Estava a tentar fazer como lhe fora indicado com uma mente aberta, mas não podia suprimir por completo a impressão de que estava de alguma forma a ser gozado.

«Bom, pelo menos desta vez não me andou a trinchar com a Ancalach...», pensou o jovem sem grande humor. Um dos primeiros rituais fora o de deixar a lâmina da Espada dos Reis provar o seu sangue, e as feridas cicatrizantes nos seus antebraços serviam como memória dos pouco ortodoxos métodos da Cidadela. Também isso se destinara a ajudá-lo a entrar em sintonia com o aço da sua arma.

Enquanto caminhava e espirrava pelos corredores da torre onde até então havia treinado em exclusivo, Aewyre ponderava acerca do verdadeiro valor prático do que fizera desde a sua chegada. Não se sentia mais próximo da Essência da Lâmina, nem lhe parecia que estivesse perto de exercer o mínimo domínio sobre ela, mas Diacolo enfatizava sempre que tanto ele como Kror ainda se encontravam no estágio incipiente de Portadores, visto que se recusavam a combater para poderem passar à fase seguinte de infusão com a Essência da Lâmina. O sathmaro nunca se cansava de repetir que poderiam poupar muito trabalho um ao outro caso decidissem simplesmente combater, parecendo mouco quando Aewyre enfatizava que essa opção seria a última que iriam tomar, quando todos os outros recursos tivessem sido esgotados. Embora parecesse ele próprio interessado naquilo que humano e drahreg se haviam proposto a tentar, Diacolo reiterava incansavelmente que «todos os outros recursos» não passavam precisamente do combate pelo qual todos os Lamelares haviam passado sem exceção ao longo dos séculos.

— Vai lavar-te, humano — disse Grwos, interrompendo os seus pensamentos. Estavam diante da porta de outro minúsculo cubículo, este com buracos de escoamento no chão, um banco encostado à parede com duas toalhas ásperas e ruças, e uma tina de água que quando muito estaria morna. — Depressa. O Diacolo está à tua espera. E eu quero ir dormir.

A tina não se adequava à estatura do jovem, que teve de se acocorar dentro dela e cujos braços mal tinham espaço para levar a água às partes superiores do corpo. Estava ligeiramente mais cálida que a temperatura ambiente e Aewyre deu-se por satisfeito, embora em alturas como aquela se lembrasse com certo arrependimento de todas as vezes que trocara um bom banho quente em Allahn Anroth por um mergulho numa das fontes do pátio do palácio. A vida na Cidadela da Lâmina era austera e frugal, e o guerreiro tolerá-la-ia bem melhor se ao menos tivesse um mínimo de certeza que aquilo que estava a fazer ia de encontro ao seu objetivo principal: aprender a dominar a Essência da Lâmina para poder combater O Flagelo e matar o maldito desgraçado. Também em alturas como aquela o jovem aproveitava para beber da raiva que entretanto lhe arrefecera nas veias, mais fria que os corredores ventosos da Cidadela. Ainda sentia os seus arroubos ocasionalmente, que faziam o seu sangue ferver e o levavam a esmurrar as paredes de pedra quando ninguém estava a olhar, vertendo solitárias lágrimas amargas. Por vezes a frustração levava a melhor, e o guerreiro sentia-se sozinho e desesperançado naquele local frio e estranho, longe de casa e dos seus amigos e rodeado por desconhecidos nos quais não se dava ao luxo de confiar e que podiam bem ser inimigos. Aewyre falara pouco com os Lamelares, evitando as perguntas pertinentes à sua origem e à sua espada, o que também em nada contribuíra para a sua integração na hermética comunidade. Já lhe fora freqüentemente sugerido que desse uma volta pelo recinto inferior, mas o guerreiro preferira sempre manter-se ocupado a treinar mais um pouco, mesmo sem a orientação de Diacolo ou a presença de Kror. Cada dia que passava apenas favorecia O Anátema e o que quer que ele estivesse a planejar para Allaryia, e Aewyre esfregou-se com rapidez como se ouvisse os grãos da ampulheta a sibilarem, esfregando o suor da sua pele e enxugando-se vigorosamente enquanto Grwos ia resmungando na sua língua. O thuragar e os seus irmãos não eram Lamelares; aparentemente não passavam dos ferreiros de serviço da Cidadela, antigos mercenários trazidos por Assiòn que ocasionalmente davam uma ajuda nos treinos. Segundo lhe fora explicado, a Essência da Lâmina nunca escolhia eahan ou thuragar, da mesma forma que essas duas raças eram incapazes de moldar a Essência com a Palavra. Aparentemente, o bloqueio intrínseco com o qual ambos haviam sido criados pelas Entidades — que dessa forma haviam tentado impedir que as suas criações se rebelassem como os humanos — também os impedia de serem escolhidos como Portadores. Era curioso que Kror tivesse sido escolhido, pois os drahregs haviam sido criados a partir dos thuragar, pelo que seria de supor que partilhassem do bloqueio. Talvez se devesse a mais uma das muitas imperfeições do Terceiro Pecado. Diacolo explicara-lhe também que, apesar de diferente da Essência que os magos usavam, a Essência da Lâmina provavelmente proviria da mesma fonte, embora essa fosse uma área de estudo pouco tocada pelos eruditos. Esses e outros sábios contentavam-se em defini-la como uma força primordial resultante do contato direto do Delta com Allaryia, e não necessariamente como um derivado da renovável fonte de energia essencial que este havia concedido para sustentar o mundo.

«Muita teoria, pouca prática...», pensou o jovem para consigo, dando uma última enérgica esfregadela ao seu curto cabelo úmido antes de se começar a vestir.

A sua indumentária consistia da túnica eahlan negra que trouxera de Aemer-Anoth sobre uma camisa interior de linho, um sago de lã cinzenta que lhe chegava aos joelhos, as suas calças e botas. Não lhe

fora requerido qualquer pagamento para treinar na Cidadela, e tanto ele como Kror haviam recebido à chegada peças de roupa quentes, camas numa divisória dos dormitórios e a garantia de três refeições diárias de qualidade aceitável. Pouco mais faziam além de treinar, passando o resto do tempo a desempenhar tarefas de manutenção e ocasional limpeza com os serventes vindos do recinto inferior, e aparentemente a Cidadela da Lâmina obtinha tudo aquilo de que precisava através dos tributos das quintas nas redondezas e do dinheiro enviado pelo rei de Laone, que dessa forma evitava problemas com Lamelares mercenários a deambularem pelas suas terras.

Estava frio em Laone, pois o mês de Inaen aproximava-se e as neves já desciam ameaçadoramente dos picos das montanhas do vale. Aewyre tornou a espirrar assim que saiu com Grwos pela porta elevada do baluarte, e os dois desceram apressadamente a escadaria esculpida na própria rocha cintilante com orvalho gelado. Diacolo aguardava no pátio com Kror, e as irregulares exalações vaporosas da boca do humano davam conta de um diálogo entre ambos, ou pelo menos de um dos habituais monólogos do sathmaro. O drahreg estava de costas para Aewyre, mas ainda assim pareceu sentir a presença deste mesmo antes de os ruídos dos passos lhe chegarem ao ouvido e virou-se na sua direção. Kror rapara o cabelo por completo, revelando uma cabeça acuminada com falhas e velhas cicatrizes, e a falta de cabelo contribuía para acentuar as suas carcomidas orelhas de pontas ligeiramente descaídas. Envergava a armadura de couro fervido que adquirira na Sirulia e tinha os alfanges embainhados às costas, e o sutil ajeitar de uma das fivelas ao ombro não passou despercebido a Aewyre.

— Ah, aí estás — disse Diacolo na sua habitual frescura matinal. O homem parecia derivar energia da sua própria voz, e o jovem não duvidava que ele falasse durante o sono para se embalar a si mesmo. Tinha os cabelos ligeiramente umedecidos e vestia uma simples camisa branca e calças vermelhas sem quaisquer adornos além do broche dourado ao ombro.

— Bons dias, Mestre de Armas — cumprimentou Aewyre, saudando Kror com um ligeiro aceno da cabeça que lhe foi retribuído.

— Um bom dia, sim senhor — respondeu o sathmaro, indicando a tênue luz que se começava a difundir pelo céu escuro. — Fresco — disse, batendo com o punho no peito. — Faz um homem forte, não é verdade?

— Sim — concordou Aewyre sem grande convicção, batendo as mãos e esfregando-as. — Vamos começar?

— Vocês devem estar frios agora — alvitrou Diacolo, desafivelando o talim da sua espada e pousando-a no chão. — Primeiro corremos. Deixem as espadas aqui — disse, dando o mote ao começar ele próprio, e os três lançaram-se numa corrida ligeira à volta do pátio do recinto com apenas algumas curiosas aves matutinas como companhia.

— Sabem por que é tão bom fazer isto de manhã?

Ambos o sabiam, pois já lhes fora repetidas vezes explicado pelo sathmaro, mas nenhum se pronunciou.

— Qualquer luta é uma fomentação das energias vitais genésicas e vegetativas. A Essência da Lâmina...

«... é apenas uma manifestação deste estímulo», gralhou Aewyre mentalmente enquanto corria. «Pensem em cada movimento vosso como uma flor a desabrochar, uma batida do coração, um sinal de que estão vivos. De que cada instante é uma luta para permanecerem vivos, não é verdade?» Diacolo evidentemente decorara aquilo, e a constante repetição tornava-o cada vez menos convincente.

Diacolo conduziu-os ao interior de uma das torres e subiu a escada em caracol degrau por degrau, respirando ritmicamente. Evidentemente, Kror executara os mesmos exercícios que Aewyre, e os cansados músculos de ambos não se pouparam a queixas durante a subida, cooperando a relutante custo. Quando por fim chegaram ao topo, o sathmaro já lhes levava considerável vantagem e abrandou o passo num breve circuito ao longo da muralha.

— Vejam, o sol nasce — disse o Mestre de Armas, apontando para os escabrosos cumes brancos das montanhas que se viam além das ameias e que se começavam a recortar contra o azul, roxo e rosado baços do céu da alvorada. — Sentem a luta? Sentem o sol a debater-se para se erguer? A vida a despertar? Aproveitem as energias da manhã...

«Em nome de Gilgethan, o homem acredita mesmo no que diz?», exalou Aewyre uma incrédula nuvem condensada, olhando para o sorridente Diacolo. «Será preciso decorar essa arenga para ser Lamelar?»

Porém, absteve-se de fazer semelhante pergunta e limitou-se a seguir o sathmaro. Como era habitual, Kror mantinha-se em silêncio, exalando vapor através dos seus dentes e olhando fixamente para nenhum lugar. Os dois haviam falado pouco nos últimos tempos, menos ainda que o que era habitual; Aewyre notara que o drahreg andava invulgarmente concentrado e meditabundo, e ao contrário do humano seguia todas as indicações de Diacolo à risca sem fazer perguntas.

Nunca mais abordara o incidente causado por Aewyre para que fossem admitidos na Cidadela, embora o jovem tivesse a distinta sensação de que o olhar do drahreg transmitira menos confiança desde então. Como confirmação do seu pensamento, os orbes vermelhos de Kror cruzaram-se quase forçosamente com os seus, resolutos, competitivos, quase hostis. Não havia dúvida de que algo de irrevogável mudara quando da sua chegada à Cidadela, e Aewyre não podia culpar ninguém a não ser a si mesmo.

«Para a fossa com isso, não estou aqui para ser amigo dele», pensou o guerreiro, retribuindo a acutilância do olhar de Kror antes de lhe virar a cara. O «tendão» não perdia uma única oportunidade, e Aewyre procurou distrair-se, pois tinha a distinta sensação de que Diacolo apenas os incitaria caso as coisas se descontrolassem.

Mesmo vista das ameias, a Cidadela da Lâmina continuava a providenciar uma visão que era tudo menos imponente, ou pelo menos muito aquém das quase míticas expectativas que Aewyre até pouco tempo atrás partilhara com os restantes habitantes de Allaryia. Os dois recintos casavam perfeitamente com as caprichosas asperezas da íngreme formação rochosa que os suportava, tendo os enormes e bizarros estratos verticais de pedra calcária como contramuro, mas a estrutura de pedra na qual a fortaleza assentava era bem mais impressionante que a própria. O torreão poligonal do baluarte arrojava-se à beira das barbatanas de rocha, dominando o vale daquele ponto sobranceiro, e o jovem questionava-se quanto aos segredos que a estrutura conteria no seu interior. Não tivera ocasião de explorar nada mais além do dormitório, o refeitório e as salas de treinos, e o pouco que vira deixara-o rigorosamente na mesma. Continuava a achar que a Cidadela da Lâmina mais parecia um bem guarnecido forte de província que qualquer outra coisa. Mais abaixo, algumas casas da pacata comunidade do recinto inferior começavam a exalar fumo langorosamente pelas chaminés à medida que a vida ia despertando. Além de umas pequenas incursões no cumprimento de tarefas menores para a Cidadela, não tivera ocasião nem vontade de explorar a minúscula aldeia, cujos habitantes mais pareciam lapas agarradas à segurança e solidez de uma rocha. Para todos os efeitos, eram os serventes de um palácio no qual a fidalguia se media pela perícia de armas; porém, tanto quanto Aewyre vira, eram mais bem tratados no desempenho das suas funções que os servos de muitos nobres que conhecera. Artesãos, serviçais, costureiras, alfagemes, correeiros e afins, todos eles laoneses das cercanias que se haviam mudado para aquela que reputadamente era a mais segura fortaleza de Allaryia, com um código de impostos próprio mais brando que o de Laone e a garantia de uma vida sem quaisquer perspectivas de enriquecimento mas pelo menos protegidos de bandidos e da eternamente belicosa vizinha Namuriqua. Algum tempo atrás, Aewyre ter-se-ia certamente escapulido para uma qualquer taberna no recinto inferior à primeira oportunidade, mas em dia algum lhe passara semelhante pensamento pela cabeça. Muito pelo contrário, sentia-se cada vez mais frustrado pela falta de progressos e pela ausência de uma perspectiva na qual se pudesse aplicar a fundo. Não sabia o que fazer além de seguir as ordens e indicações de Diacolo, mas os treinos com o sathmaro eram desesperantemente pouco proveitosos, e o jovem estava a ter dificuldades em se deixar convencer pelo aparente otimismo deste. Além do mais, tinha a certeza de que o Mestre de Armas estava apenas a tentar fazer com que ele e Kror vissem a situação através dos seus olhos para que ficassem convencidos da futilidade daquilo que estavam a tentar fazer e se decidissem por fim a resolver a questão através do aço das suas lâminas. A suscetibilidade de Kror preocupava-o, e a já cicatrizada ferida na sua perna era uma constante recordação de quão dependente estava do maldito drahreg, de quão fácil era tudo ir abaixo num mero momento, num único piscar de olhos. A responsabilidade pesava aos ombros de Aewyre; havia demasiado a depender dele e sentia que não estava a fazer o suficiente a respeito disso. Por sua vez, Kror permanecia concentrado e aparentemente alheio a dilemas ou preocupações semelhantes aos do humano. Olhou poucas vezes para Aewyre durante a corrida, porém, sempre que o fazia, dava a impressão de que tinha um novo segredo que não iria partilhar.

«O que te estará o azigoth a sussurrar para dentro dessa cabeça careca?», questionou-se Aewyre, vaporando da boca. «E como terão sido as tuas conversas com o Diacolo enquanto eu não estava presente?»

Aewyre não tinha como o saber, pois Kror fechara-se ainda mais desde o primeiro dia na Cidadela da Lâmina e os dois haviam desde então sido parcimoniosos na troca de palavras. O jovem nunca esperara ficar incomodado com o afastamento do drahreg, mas a verdade era que tinham de aprender a dominar aquilo que portavam, e a sua relativa proximidade durante a viagem ajudara-os pelo menos a habituarem-se à tensão causada pelo «tendão». A seu ver, o afastamento de Kror representava um passo atrás, e o fato de o drahreg não parecer incomodado com isso levava-o a conjecturar situações inquietantes.

Para desviar nefastos pensamentos que envolviam atirar Kror das ameias abaixo, Aewyre olhou antes para o recinto superior e o pátio no qual os guerreiros da Cidadela treinavam. A solitária cisterna e o baluarte com a torre poligonal eram as únicas estruturas e ocupavam boa parte do recinto, cujo espaço remanescente ostentava cicatrizes dignas de um campo de batalha. Havia ainda a estranha portada de ferro forjado no afloramento de rocha sobre o qual o baluarte assentava e sobre a qual todos pareciam relutantes em falar quando Aewyre fazia perguntas a respeito dela. Já a examinara de perto e vira o belo trabalho das espadas dos mais variados tamanhos e feitios que constituíam as barras de ferro negro, bem como o túnel escuro que vedava e que levava a um destino desconhecido que ninguém se dignava esclarecer.

— Mestre de Armas, aonde leva aquela porta? — tentou Aewyre, decidido a testar os limites da verbosidade do sathmaro.

Diacolo pareceu adivinhar a que o jovem se referia, pois nem sequer olhou para trás ao responder.

— É misteriosa, não é verdade? Todos perguntam quando chegam à Cidadela, todos ficam curiosos como moças de cozinha... a porta escura que leva aos infernos... — Aewyre tentou não ficar ofendido com o comentário e o tom de voz zombeteiro. — Não, ainda não é para vocês. Vocês têm outras coisas em que pensar, não é verdade? Aquilo vem mais tarde.

«Então sempre é alguma coisa...», contentou-se Aewyre a concluir enquanto desciam as escadas em espiral de uma outra torre. Os outros Lamelares não haviam elaborado as suas respostas ao mínimo, mas o sathmaro fora autêntico à índole do seu povo.

O guerreiro arquivou o pensamento para mais tarde refletir assim que chegaram ao ponto de partida e recuperaram as suas armas. Os treinos matinais com Diacolo eram intensos e extenuantes, e embora não o estivessem a ajudar a progredir no domínio da Essência da Lâmina, pelo menos com eles Aewyre estava certo de que não iria perder a forma. À semelhança dos outros dias, os dois lançaram-se numas breves e quase cerimoniais seqüências de guardas segundo as orientações de Diacolo, cortando o ar com as suas lâminas frias nas quais a luz do sol nascente se retratava. Humano e drahreg eram forçados a um ativo estado de concentração por estarem tão perto um do outro com aço desnudo, e o sathmaro assegurava-se de forma quase maliciosa de que os dois permaneciam próximos. Tanto um como o outro haviam dado mostras de já terem um excelente domínio sobre os elementos básicos da luta à espada, embora Diacolo não se cansasse de os arreliar com o fato de as suas experiências de combate lhes terem incutido alguns «tiques», estragando-lhes as «boas posturas, não é verdade?». Daveanorn sempre lhe dissera e Aewyre sabia que tal era praticamente inevitável, mas o Mestre de Armas usara o fato como desculpa para com eles rever os conceitos básicos nas primeiras sessões de treino. Quando o jovem ficara perto de gritar de frustração, Diacolo deu início a umas breves sessões de luta com Kror, evidentemente à espera de que um deles se descontrolasse e pusesse termo ao imbróglio da maneira mais rápida. Ambos se conseguiram controlar, mas sempre que o sathmaro sentia que os ânimos esmoreciam, escolhia judiciosamente o momento para rever mais posturas e exercícios aflitivamente básicos, num jogo de constante aliciação e acicate à espera de que um dos dois acabasse por ceder na subsequente luta de treino. Aewyre e Kror resistiram, e Diacolo optou por uma abordagem diferente nas sessões anteriores, levando-os a assistir aos treinos com o Alto Lamelar, nos quais tiveram ocasião de testemunhar as proezas e peripécias com a Essência da Lâmina levadas a cabo por aqueles que já tinham evoluído do estágio de meros Portadores. Aewyre odiara o sathmaro nesses dias, e este apercebera-se disso, ocupando-se a humilhar o jovem em curtíssimos combates nos quais fazia pleno uso das suas capacidades e que invariavelmente acabavam com Ancalach no chão ou a ponta da espada do Mestre de Armas demasiado perto de pontos vitais da sua anatomia. Chegara mesmo a deixar-se desarmar para de seguida atrair a sua espada para a mão e apanhar o jovem de surpresa. Ainda assim, fora Kror a sua maior preocupação, mas o drahreg mantivera-se relativamente impassível e alheio às influências de Diacolo.

— Hoje vamos tentar uma coisa diferente — disse o sathmaro ao terminar o exercício, interrompendo as rememorações de Aewyre. O homem pegou em duas cintas unidas por uma corda de tendões entrançados e entregou-as aos seus discípulos. Ao ver as caras intrigadas de ambos, Diacolo sorriu. — Estás sempre a falar do «tendão», não é verdade? Eu achei engraçado, e o Kraac teve uma idéia. Ponham-nas.

Aewyre e Kror assim fizeram, trocando olhares perplexos enquanto afivelavam as cintas. A corda que os unia tinha uma certa elasticidade, mas a forçada proximidade causou um certo desconforto em ambos.

— Agora vamos jogar um jogo, sim? Um de vocês vai ficar desarmado e o outro tem de o defender de mim. Kror, começamos contigo. Defendes o Aewyre?

O drahreg não reagiu de imediato, fitando alternadamente Aewyre e Diacolo com o trejeito que lhe era típico sempre que se lhe requisitava uma opinião ou resposta. O sathmaro sorria o seu sorriso tolo, alargando as suas estreitas feições emolduradas pela ridícula cabeleira com franja castanho-escura e exalando expectantes nuvens de vapor pelo grande nariz. Nos seus olhos avelanados havia sempre um especial brilho finório, pelo que era difícil dizer se o homem aprontava alguma ou não. Kror manteve as dúbias sobrancelhas franzidas, e as gotas de sangue nas poças de negrume que eram os seus olhos permaneciam desconfiadas, mas acedeu com um aceno da cabeça e crispou os dedos nos punhos dos alfanges. Aewyre embainhou Ancalach e pousou-a no chão, embora manifestamente pouco à vontade com a perspectiva de ficar desarmado perante o drahreg, que se posicionou entre ele e Diacolo.

— Muito bem. Se eu atingir o Aewyre, perdes — disse o sathmaro, inclinando o ombro esquerdo e levando o braço da espada atrás numa pose rapinante. — Vamos dançar? E não te preocupes; não me vais magoar, não é verdade?

Com esse último chiste, Diacolo aprestou a arma e atacou. Kror estava visivelmente atrapalhado com a cinta que o unia a Aewyre, e a sua dança assumiu um cariz mais defensivo que o habitual. A espada de Diacolo era comprida e afilada, com copos curvos e pomo em cauda de peixe — ambos dourados e cinzelados à vistosa moda de Sathmara — e dois anéis para proteção dos dedos. O Mestre de Armas aferroava como uma abelha, zumbindo em redor de Kror e apresentando sempre uma ameaça para o drahreg e Aewyre dos mais variados ângulos. O primeiro toque foi originado por um tropeção de Kror, o segundo surgiu de um ataque indefensável e o terceiro deveu-se a Aewyre, que recuou para a direção oposta do seu parceiro e lhe atrapalhou os movimentos. Diacolo não usava sequer a Essência da Lâmina além da perspectiva quase transcendental do combate e dos movimentos adversários que esta lhe conferia. O drahreg mal teve ocasião de ripostar, até que o sathmaro se lançou repentinamente numa rápida seqüência de passadas laterais para o contornar e chegar a Aewyre. O drahreg antecipou-lhe os movimentos, ágil como um antílope da planície, mas limitou-se a bloquear-lhe o caminho e não tomou a iniciativa de atacar. A espada do sathmaro veio como um relâmpago punitivo, estridulando num apressadamente erguido alfange e oscilando num ângulo reverso que obrigou Kror a compensar, recuando para evitar o golpe e deixando Aewyre exposto. Diacolo pressionou, investindo com a lâmina pronta a estocar o jovem, e Kror atacou com um corte raso ascendente que o sathmaro aparou, empurrando a sua lâmina para baixo com a ajuda da mão livre. O duro bloqueio abalou Kror, que ainda assim tentou recuperar da sua desvantagem com uma ferroada por cima. Porém, o fato de o golpe ter partido de uma posição difícil permitiu a Diacolo desviá-lo simplesmente com a mão nua, girando de seguida em si e tocando ao de leve com o lado da sua lâmina na coxa do drahreg. Ainda teve tempo de fingir uma estocada mortal ao peito de Aewyre antes que qualquer um dos dois pudesse esboçar qualquer reação significativa.

— Então? Não é só o Kror que tem de se esforçar. Vocês têm de se ajudar um ao outro — admoestou os dois guerreiros, erguendo a repreendedora ponta da espada. — Como querem partilhar a Essência da Lâmina de outra forma? Têm de cooperar, não é verdade?

Aewyre e Kror conferenciaram em silêncio por um breve instante durante o qual Diacolo os observou, aparentemente divertido com o antagonismo que faiscava entre dois indivíduos forçados a trabalharem juntos. Quando estes por fim nutaram, o sathmaro ergueu a espada à laia de saudação e deu novo início à sessão.

Foi uma árdua madrugada e uma esgotante manhã. Diacolo não poupou os dois Portadores, percorrendo com eles cada laje do pátio e massacrando cada parte exposta dos seus corpos com toques, pontadas e alguns cortes superficiais. O homem era rápido, eficiente, mortífero, e o fato de estar amarrado a Kror de pouco consolo serviu a Aewyre. Afinal, como podia esperar enfrentar O Flagelo se Diacolo praticamente se permitia brincar com ele? Quando o jovem invertia os papéis com o drahreg, não se saía melhor, embora estivesse relativamente bem familiarizado com o estilo célere e acutilante do sathmaro, praticamente idêntico ao de Nolwyn. Nos anos de treino com Daveanorn sempre fora forçado a contrapor a técnica que Ancalach requeria à predominância das estocadas nos estilos dos seus adversários, e conhecia bem as suas forças e fraquezas, mas Diacolo era simplesmente... bom. Muito bom, mesmo. E sabia-o, pois o seu sorriso era escarnecedor, e as irritantes risadinhas eram do mais condescendente que o guerreiro ouvira em qualquer treino. A sua frustração e irritação provocaram-lhe inúmeros toques, arranhões e cortes, e tardou a aperceber-se de quão contraproducente era culpar Kror de cada vez que era atingido. Não foi senão quando o sol já ia alto no céu claro que os dois conseguiram uma rara coordenação de movimentos que apanhou o sathmaro de surpresa ao ser fintado por Aewyre e permitiu a Kror desviar a sua espada e atingir-lhe o braço direito com um golpe potencialmente incapacitante. Drahreg e o humano foram incapazes de evitar um uivo de uníssono triunfo, mas Diacolo limitou-se a piscar os olhos antes de tornar a sorrir.

— Muito bem, afinal conseguem trabalhar juntos — admitiu aos dois ofegantes espadeiros que praticamente exalavam vapor de cada um dos seus poros. Diacolo suava apenas ligeiramente da testa, que esfregou com o antebraço. — Mas mesmo um cego acerta uma vez, não é verdade? E não era esse o verdadeiro objetivo do treino, não se esqueçam disso. Vocês deviam ajudar o outro a conseguir aceder à Essência da Lâmina, lembram-se? Ainda não vi nada disso.

Arquejantes e de mãos apoiadas sobre os joelhos, Aewyre e Kror entreolharam-se, decididos a aproveitar a certamente temporária concordância originada pelo seu trabalho em conjunto. Ambos acenaram com as cabeças, dispostos a transpirarem mais um pouco antes que os seus corpos os traíssem devido à exaustão. Os restantes habitantes do recinto superior estavam certamente demasiado ocupados para constituírem uma audiência, mas alguns desocupados e serventes postaram-se às ameias para assistirem ao bizarro treino quando Diacolo retomou a sua perseguição aos dois guerreiros vinculados. Era a vez de Aewyre defender Kror, e à semelhança das vezes anteriores o primeiro impulso do guerreiro foi manter Diacolo afastado com o alcance superior de Ancalach, esperando que o sathmaro se expusesse com uma estocada comprida. Porém, tornou a lembrar-se de que o objetivo não era vencer Diacolo, e esforçou-se por entrar em sintonia com Kror, o que provou ser difícil com a sua atenção centrada no Mestre de Armas. O treino com o sathmaro era tudo menos mecânico, pois este mexia-se como se estivesse com os pés descalços sobre brasas, e só o tentar não se atrapalhar com Kror já era uma distração a mais para Aewyre. Uma finta e um toque. Uma oscilação atempada e uma pontada na coxa. O guerreiro começava a rilhar os dentes uma vez mais.

— Quando é que vocês... soltaram o «tendão»? — perguntou Diacolo entre dois toques de lâminas.

Aewyre evitou que Kror fosse encostado à parede antes de responder. Já o explicara anteriormente ao sathmaro, mas este repetia freqüentemente as perguntas e tinha uma irritante tendência a esquecer-se das respostas.

— Em lutas... — grunhiu, exclamando algo pouco educado entre dentes ao falhar um contra-ataque. — Quando um de nós... corria perigo de morrer.

— Morrer, não é verdade? — repetiu Diacolo, acentuando o seu já galhardo sorriso. O desgraçado lembrava-se muito bem da sua resposta; o que estaria a aprontar?

Nada de bom, concluiu Aewyre com grande surpresa quando o sorriso desapareceu da face do Mestre de Armas e este cortou com um golpe o tendão que unia a sua cinta à de Kror. O drahreg cambaleou ligeiramente para trás e o guerreiro ficou a olhar para Diacolo com a cara plena de incompreensão, e apenas os seus instintos lhe permitiram erguer Ancalach a tempo de desviar uma rápida estocada que de treino pouco ou nada tinha.

— Defende-te! — disse Diacolo com uma voz séria como até então Aewyre não ouvira da sua boca, e lançou-se numa fustigante seqüência de ferroadas como um escorpião embravecido.

Embora cansado e de membros pesados, Aewyre extraiu suficiente energia do surto de adrenalina que lhe foi bombeado pelo corpo ao inesperado sinal de perigo vindo da mortífera ponta da espada do sathmaro. Ancalach lambeu repetidas vezes a lâmina coberta de velhas cicatrizes e bocas, e pela primeira vez os sentidos de Aewyre ficaram verdadeiramente em estado de alerta, e todo o seu corpo soltou um rebate causado pelo repentinamente bem real perigo orientado pela ponta da arma de Diacolo. Tudo o resto desapareceu — Kror, a Cidadela, os espectadores — tudo se borrou em redor da figura do sathmaro e da morte que este empunhava. Tomado de surpresa, quando Aewyre deu por si, já recuara quase metade do pátio e continuava a ser impelido para trás pelo furioso ataque de Diacolo. A sua reação para travar semelhante ímpeto foi penetrar numa das estocadas, intentando lacerar o interior do antebraço do adversário ou picar-lhe o peito, mas Diacolo surpreendeu-o com uma torção das ancas para a direita e um girar de pulso que orientou a ponta da espada para baixo e lhe desviou Ancalach para o lado. Exposto, Aewyre impeliu o pomo da espada para cima e com isso conseguiu interceptar a nova estocada do sathmaro, evitando a fatal ponta ao deslocar a perna esquerda para trás. O guerreiro trouxe então Ancalach num arco ascendente e a Espada dos Reis cortou o ar no breve instante em que esteve de costas viradas, mas assim que tornou a enfrentar Diacolo já este lhe caía em cima uma vez mais, aguilhoando-o como a um touro teimoso. Os seus olhos refletiam a acutilância da sua lâmina, e era nesses dois que o mundo do jovem se centrava naquele momento. Sentiu por um breve instante uma reflexiva antecipação de ter aço a morder a sua carne quando os músculos do seu ventre se retesaram ao ver que uma estocada de Diacolo passara pelas suas defesas, mas o seu braço discordou e interveio, descendo a tempo de encalhar a ponta nos copos de Ancalach. Ainda assim, a ponta picou-lhe a anca e o sathmaro caiu-lhe em cima com um ataque avassalador como um cão de fila que acabara de abocanhar a presa. Aewyre sentiu-se ceder, perder terreno, perder ritmo, tudo em meros instantes. As suas defesas tornaram-se frenéticas, desajeitadas, os olhos de Diacolo dominantes, a sua espada cada vez mais próxima e afiada...

Um breve entrechocar, aço a rilhar em aço, uma série de quase imperceptíveis embicadelas das bocas da espada de Diacolo no impecável gume de Ancalach, e a cruel ponta vinha dirigida ao baixo-ventre de Aewyre...

Cujo corpo de repente se desprendeu quando vários dos seus músculos reflexivamente contraídos se soltaram, permitindo-lhe efetuar um movimento defensivo que já não julgara possível e que aparou a estocada do sathmaro.

Cuja respiração ouvia claramente. Cujos olhos lhe davam as coordenadas dos seus movimentos. Cujas sobrancelhas traduziam surpresa. Que Aewyre foi impelido a aproveitar por um qualquer instinto primário, arremetendo pela primeira vez com um ataque seu. O combate pareceu transcender para um outro domínio além do físico quando os dois espadeiros se embrenharam numa renovada contenda de aço vibrante e lâminas refulgentes, embora desta vez com Diacolo a recuar. Aewyre já antes o experimentara — a percepção quase extra-sensorial do ambiente que o rodeava, a fluidez quase desnatural dos movimentos, a decididamente singular reverberação causada pelo chofre do gume de Ancalach no ar — mas naquele momento sentiu-se o mais próximo até então do domínio pleno da Essência da Lâmina. A sensação foi extática nos primeiros momentos; a tensão, insuportável pouco depois. Ultrapassado o perigo imediato, sentiu uma tração oposta que ia lentamente retesando o tendão que instantes atrás o arrebatara com uma figurativa hiperextensão. O seu ataque ressentiu-se, o que levou o guerreiro a pressionar Diacolo ainda mais com violentas cutiladas de Ancalach ao ver o quão próximo estava da muralha.

«Encosta-o à parede, acaba com isto...», pensava o guerreiro, tremendo com os dois tipos de tensão que lhe retorciam os nervos como trapos molhados. «Só mais uns passos, não falta nada...»

Golpe, parada, riposte, desvio, estocada, passada de Diacolo para a esquerda, oscilação para a esquerda, passo de Diacolo para trás, sempre em frente, sempre em frente, até à parede...

A Essência da Lâmina abandonou-o então com um violento sacão, e Aewyre tentou atabalhoadamente compensar o seu cambaleio com uma precipitada investida de Ancalach em riste. Diacolo defendeu-se, esmurrando a lâmina para cima com os copos da sua espada e agarrando o pulso de Aewyre com a mão esquerda. Como seqüência do mesmo movimento, torceu o pulso ao jovem e arrojou-o de ombro contra a parede, encostando-lhe de seguida a ponta da lâmina ao pescoço.

Os dois ficaram nessas posições durante longos momentos passados a ofegar sem tirarem os olhos um do outro. A ridícula franja do sathmaro estava dentada por várias farripas suadas, e foi com uma certa medida de vanglória que Aewyre viu que o homem tivera efetivamente de se esforçar para evitar os seus ataques. E que não sorria.

— Bem... surpreendeste-me — admitiu Diacolo, estragando o prazer do jovem ao mostrar os dentes. — Era mais ou menos isto... que pretendiam... não é verdade?

— Como... diz?

— Isto... partilharem a Essência... da Lâmina... ufa — exalou o sathmaro, afastando-se de Aewyre e baixando a espada. — És realmente... muito bom... tu e o Kror... mas falta-vos... o domínio.

«Olha que novidade...», resmungou Aewyre para dentro, tentando amainar as batidas do seu coração. Diacolo estava agora descontraído e cortês como sempre, mas o jovem podia jurar que o sathmaro teria sido capaz de o matar durante o combate.

— Tive uma conversa... com o Alto Lamelar... ontem — disse Diacolo, exalando longamente e esfregando o suor da testa com as costas da mão. — A idéia foi dele, e parece funcionar. Kror?

O drahreg já se encaminhava na sua direção, e Diacolo notou que ainda tinha os punhos cerrados e caminhava ligeiramente curvado como um gato atento. Não foi sequer necessário virar a cara para Aewyre para ver que ambos se fitavam, pois a tensão entre os seus olhares era quase palpável.

— Pois, isto é complicado... — constatou Diacolo, falando para si e para quem estivesse disposto a ouvi-lo enquanto embainhava a espada. — Vocês os dois... são muito diferentes, não é verdade?

«Estás perspicaz, hoje...», pensou Aewyre.

— Um é muito técnico e o outro é natural. Tu, Aewyre, aprendeste muito bem com o teu mestre; és... correto, combates de forma tática, usas a cabeça, e quando as coisas não funcionam, podes sempre usar a tua força e tamanho... nada a constatar aí — reconheceu o guerreiro. — Tu, Kror, és mais natural, instintivo... quer dizer, lutar à espada é instintivo, com os movimentos que repetem no treino e essas coisas, mas para ti é quase uma dança. Vocês os dois combatem de formas diferentes, e por isso usam a Essência da Lâmina de formas diferentes. Isso não vai ajudar nada uma coisa que já é difícil, percebem?

Por fim, algo de conclusivo, ainda que pouco encorajador.

«Ao menos sempre estávamos a fazer algo de produtivo, não foi tudo uma perda de tempo. E falou com o Alto Lamelar a nosso respeito», consolou-se Aewyre. — Então vamos ter de treinar mais.

— Claro, mas não é só isso. Vocês nunca sentiram nada além do, heh, «tendão» a puxar, não é verdade? Só agora, quando eu ataquei a sério, é que tu a conseguiste usar.

— Sim — concordou Kror. — Foi como das outras vezes. Quando vi que ele podia morrer, soltei o... «tendão».

— Nunca ninguém lhe deu um nome assim, sabiam? — divagou Diacolo. — Já lhe chamaram «cio de aço», «escara-metade», «porra» e outras coisas mais feias. Quando eu a senti pela primeira vez e todos pensavam que eu estava maluco, chamaram-lhe aiña doe vual. E uma doença que as ovelhas têm, não sei como vocês lhe chamam...

— Disse que não era só de termos de treinar mais...? — interrompeu Aewyre.

Diacolo transmitiu o seu desagrado com o olhar, mas desculpou a rudeza do jovem com a adrenalina que certamente ainda lhe corria nas veias e continuou.

— Não, não é só isso. Vocês têm de estar em situações de perigo, têm de ser ameaçados, senão não funciona... — O sathmaro lançou um discreto olhar à portada de ferro forjado que Aewyre e Kror captaram. — Mas eu não treino assim. Não é a minha maneira.

— Então? — quis Aewyre saber.

— Vão treinar com a Heldrada — disse Diacolo. — Vocês já perceberam o que têm de fazer, e sabem como o fazer quando conseguem. Com a Heldrada, devem conseguir muitas vezes.

Aewyre olhou para Kror, mas o drahreg não retribuiu e ficou de distraídos olhos postos no sathmaro.

— Não se preocupem. Ela é um pouco mais bruta do que eu, mas nunca matou ninguém. Na Cidadela.

— Ela... sabe lutar à espada? — indagou Kror.

— Sim, sabe? — secundou Aewyre.

— Não se preocupem — asseverou Diacolo. — Ela sabe lutar muito bem com a sua arma. Vocês vão treinar com ela para tentarem usar a Essência da Lâmina; se fosse para aprenderem a lutar à espada, treinavam comigo, não é verdade?

«Sim, e depois enfiava-te a espada no...»

— Quando? — quis Kror saber.

— Amanhã, acho eu. Tenho de falar com ela primeiro, mas de certeza que ela vai querer treinar o Aewyre, hum? — gozou o sathmaro, piscando um olho aos dois. Kror não pareceu achar piada e o sorriso de Aewyre foi mais amarelo que o sol, que já alcançara o seu zênite. — Venham, devem estar cheios de fome, não é verdade? São horas de almoçar. Depois à tarde treinamos mais um pouco, uma coisa mais leve para vos preparar para amanhã.

 

A torre do belver em Allahn Anroth destinava-se a hospedar visitas ilustres e, como tal, estava devidamente guarnecida. Dispunha de um sistema de canalização de tubos de chumbo e torneiras de bronze que providenciavam água a cada um dos pisos, incluindo um luxo para a aquecer na forma de caldeiras mantidas por serventes em determinadas alturas do dia. Lhiannah estava presa sob menagem, o que lhe garantia condições mais suntuosas que muitos burgueses abastados de Ul-Thoryn, uma sensação ainda mais enfatizada por um ano inteiro de viagens no ermo a dormir ao relento e numa cabina de navio. O seu quarto de piso ladrilhado era amplo e desafogado, decorado com bonitas tapeçarias roxas com padrões geométricos e mobilado com um escabelo almofadado, uma elegante escrivaninha, um lavatório na parede, um tear, um espaçoso armário alojado num nicho e uma cama com dossel na qual caberiam todos os serventes que atendiam às suas necessidades. Havia ainda uma alta lareira de mármore com o brasão de Ul-Thoryn esculpido no capelo e uma esguia janela de lancetas geminadas com assentos e uma excelente vista para Ul-Thoryn. Lhiannah estava sentada num deles de queixo apoiado sobre uma mão, observando a caiada vastidão da cidade através da empanada vidraça que apenas escurecia mais ainda o céu baço e acinzentado. A princesa envergava um dos inúmeros vestidos disponíveis no armário, uma simples peça creme forrada a pele com um decote que lhe expunha os ombros, sobre os quais estavam presos dois broches redondos encastoados de rubis destinados a prevenir qualquer risco de ostentação inconveniente. Usava o cabelo solto e dispensara qualquer outro ornamento adicional, para grande contrariedade das serventes que a haviam tentado embonecar a todos os custos. Lhiannah começava a arrepender-se de ter deixado de ser agressiva; nos primeiros dias da sua clausura naquela gaiola dourada fora simplesmente intratável, e as serventes haviam-se mesmo recusado a entrar sem a companhia de guardas armados, mas a princesa cedo se apercebera de que tal comportamento lhe era em última análise prejudicial. De nada lhe serviria afirmar aos gritos que estava a dizer a verdade, que o corpo que trouxera era de fato o de Aezrel Thoryn, que O Flagelo regressara e que todos corriam perigo. Partir mobília cara, recusar-se a comer, gritar pela janela e atacar guardas tão-pouco a ajudaram a fazer valer o seu ponto de vista, pelo que Lhiannah acalmou após a primeira semana e tentou ser razoável, tratando os serventes como uma verdadeira princesa e requisitando polidamente uma nova audiência com lorde Thoryn numa base diária. Ainda não lhe fora concedida nenhuma, nem sequer a permissão para falar com Worick, que não vira desde que haviam sido separados e cujo destino desconhecia, embora lhe tivesse sido assegurado que se encontrava hospedado em condições de igual conforto e segurança, e a arinnir de fato tivesse ouvido a sua voz durante a noite no exterior. Pouco mais podia fazer além de acreditar nas serventes que afirmavam ter visto o thuragar bem e de saúde, e fiar-se nas garantias de que em breve poderia falar com ele. Lhiannah previra complicações, mas ser mantida refém em Allahn Anroth nem sequer lhe passara pela cabeça, muito menos ser acusada de cumplicidade em conspiração contra o regente de Ul-Thoryn. Era certo que fora vista com Aewyre e Allumno, o próprio Jestiban o testemunhara, mas daí até Aereth concluir que os dois o haviam traído, que o seu pai o estava a tentar desacreditar... Não fazia sentido, nada daquilo fazia sentido.

«E o Taislin, o que estará ele a fazer? Esta não é Alyun, ele não pode esperar conseguir incitar uma insurreição contra Aereth...», lembrou-se Lhiannah. «Nem era essa a nossa intenção. Oh, deuses, eu só vim aqui para entregar o corpo do pobre homem e avisar o Aereth do perigo que todos corremos, que ele próprio corre. Aquele inconsciente ainda vai causar a guerra, se o meu pai sabe...»

Um ruído na tranca da porta despertou a princesa dos seus pensamentos funestos e Lhiannah ergueu-se, alisando o vestido num gesto forçosamente relembrado. Não desgostava de vestidos, antes pelo contrário, mas havia praticamente perdido o hábito devido à indumentária prática que fora obrigada a usar durante as suas viagens. A porta foi aberta pelo guarda que a vigiava e permitiu entrada à princesa Iollina e à sua aia, que se dirigiram a Lhiannah com um respeito e deferência aos quais nunca tivera direito como filha bastarda do seu pai. Iollina trazia um vestido bege com um bordado floral rosado entrelaçado nos braços e compridas mangas pendentes, e o seu cabelo escuro preso com um chapéu de malha prateada com ornamentos quadrados nas interseções e uma peça frontal de filigrana dava-lhe um ar decididamente mais régio que o de Lhiannah. Apesar disso, a princesa não podia ter mais de quinze anos, e nem toda a vermelhidão nos lábios finos da sua pequena boca ou azulado nas pálpebras descaídas a fariam parecer mais velha. A aia também era jovem, embora nem mesmo com a sua cara oval realçada por uma trança em arco sobre a cabeça tivesse o ar acriançado de Iollina. Usava um simples vestido amarelo cuja saia ergueu ligeiramente em delicada mesura para com Lhiannah, que cruzou as mãos diante do ventre e retribuiu com um aceno da cabeça.

— Princesa, a que devo esta visita?

— Eu, hum... boas tardes, princesa Lhiannah. — A arinnir virou a cara ligeiramente para a esquerda para melhor ouvir, pois a rapariga falava quase para dentro. — Espero que as vossas acomodações estejam do vosso agrado? — perguntou Iollina em ensaiada cortesia.

— O quarto é maravilhoso, mas eu contava falar com lorde Aereth o quanto antes. Sabe se isso seria possível?

— Eu... o senhor meu pai tem falado com lorde Aereth, e ambos acharam que de momento não seria... oportuno.

Lhiannah esforçou-se por conter o seu desapontamento e impaciência, falhando e optando por disfarçar ambos.

— E o general Worick? Decerto ser-me-á permitido falar com ele? Não o vejo há mais de uma semana...

— Sim, sim. Viemos precisamente dizer-vos que podereis visitar hoje o general Worick nos seus aposentos. Eu e a minha aia acompanhar— vos-emos.

Lhiannah não pôde evitar erguer o sombrolho.

— Vós, princesa?

As bochechas pueris de Iollina coraram furiosamente, e começou a torcer sub-repticiamente os dedos das nervosas mãos.

— Bem... o meu esposo, lorde Aereth... achou que seria apropriado que vos acompanhasse. A esposa do regente. Eu.

A arinnir compadeceu-se do nervosismo e atrapalhação de Iollina e forçou um sorriso.

— Certamente, princesa. Ainda não tivemos ocasião de falar.

— Sim, e a princesa Iollina tem tantas perguntas para vos fazer — afirmou a aia excitadamente, abrangendo Lhiannah com os seus grandes olhos pestanudos. — Desde a vossa chegada que ela está ansiosa por vos conhecer pessoalmente e ouvir as vossas aventuras.

A cara de Iollina ardeu de embaraço, e foi incapaz de sequer reunir suficiente autoridade para repreender a aia pela sua imprudência.

— O vosso esposo não pareceu muito convencido com as minhas aventuras... — comentou a arinnir mais secamente que o que pretendera.

— Oh, mas a princesa acredita e quer ouvi-las a todas! Acreditai, ela não fala de outra coisa desde que haveis chegado, de como sois bonita, de que haveis viajado pelo mundo, do quão eloqüente e corajosa fostes a falar diante de toda aquela gente...

Muda de vergonha, Iollina deu uma contrita palmada no braço da sua aia e o contato visual que só de si já achara difícil de manter foi quebrado. A própria Lhiannah não se sentia muito confortável com tamanha bajulação, mas afetou um ajeitar do cabelo e agradeceu modestamente.

— Se me permitis, ficais linda com esse vestido, princesa — continuou a rapariga, que aparentemente se estivera a conter até àquele momento. — Tendes uns ombros tão largos e elegantes, e o decote favorece-os bem.

O ligeiro desconforto de Lhiannah não tardou a transformar-se em constrangimento, mas a aia não abrandou com o seu assalto, avançando e avaliando-a judiciosamente de mãos nas ancas.

— Francamente, não vos deram sequer uma caixa de cosméticos? Princesa Iollina, temos de avisar o vosso esposo! — disse a rapariga, parecendo ter assumido uma certa medida de autoridade a fim de retificar semelhante lacuna. — Esse vosso tom de pele e os vossos olhos só beneficiariam de uns tons pálidos e claros, com algum brilho aqui e ali... Convinha também fazermos algo com essa sobrancelha direita. E precisais de jóias adequadas, talvez um colar para realçar esse vosso pescoço gracioso...

— As vossas serventes bem insistiram, mas de momento não me apetece ser enfeitada — viu-se Lhiannah forçada a interromper.

— Oh — calou-se a aia, caindo em si. — Eu peço desculpa, princesa. Sou uma estouvada, quando começo não me calo. As outras aias bem dizem que eu pareço uma gralha, mas Sabeis, a princesa Iollina é tão tímida, que há quem diga que eu tenho de falar pelas duas.

A piada não foi bem aceite por nenhuma das princesas, e a aia forçou um último risinho nervoso antes de compor as faces e calar-se. Lhiannah teve pena da pobre tagarela e conseguiu outro meio sorriso.

— Fazemos assim, quando eu puder por fim falar com lorde Aereth, chamar-vos-ei às duas para me ajudarem a ficar apresentável, sim?

A aia bateu com as mãos e apertou-as ao peito, evidentemente deleitada com a sugestão, e a própria Iollina pareceu discretamente radiante apesar do seu evidente embaraço e da furiosa cor nas suas faces que teimava em amainar.

— Podeis levar-me então ao general Worick, princesa? Eu preciso muito de falar com ele.

— Sim... claro. Princesa — concordou Iollina prontamente, desconfortável por ser o centro das atenções uma vez mais. — Vinde, hum... segui-me.

Lhiannah tentou não parecer demasiado ansiosa ao sair do quarto. Tinha direito a dois passeios vigiados por dia, um de manhã e outro à tarde, e, fora as idas à sua latrina privada e aos banhos, eram essas as únicas ocasiões em que podia transpor a porta. De resto, as refeições eram-lhe trazidas diretamente ao quarto com todos os luxos dignos de uma princesa, trincheira incluído, pelo que os serventes e os guardas eram as únicas pessoas com as quais tinha contato. Quaisquer cortesãos com que eventualmente deparasse cumprimentavam-na a uma distância segura e evitavam-na da forma mais educada e sutil possível, pelo que Lhiannah estava às escuras quanto ao que se passava na corte de Ul-Thoryn. Os serventes afirmavam nada saber, e a princesa duvidou que partilhassem com ela fosse o que fosse mesmo que o soubessem, pois certamente tinham as suas ordens bem específicas. Era inútil sequer tentar com os guardas, pois estes mantinham as tumulares bocas fechadas e pareciam imunes a perguntas que não fossem pertinentes às suas funções imediatas. O que vigiava o seu quarto naquele momento fechou a porta atrás das três mulheres, deu-lhes um respeitoso avanço e seguiu-as com passos acerados e de partazana empunhada. Envergava uma pesada armadura nolwyna em forma de ampulheta com libré esquartelada com os brasões de Ul-Thoryn e Lennhau, e a abertura em forma de Y da sua barbuda recortava um semblante impassível com bigode e pêra impecavelmente aparados. A arinnir já se habituara à companhia silenciosa da guarda palaciana e a presença de guardas armados deixara de ser um incômodo, até porque eram silenciosos e até então nunca a haviam impedido de fazer algo.

— Princesa? — intrometeu-se a voz da aia nos seus pensamentos.

— Sim? — disse Lhiannah, que começava a duvidar que fosse realmente Iollina a que era incapaz de falar de outra coisa que não acerca da sua pessoa.

— Se me permitis... tendes um cabelo lindo. Que cor!

— Obrigada... — agradeceu a arinnir paciente e modestamente.

— Mas estais a perdê-la! — constatou a rapariga como se Lhiannah estivesse em risco de ter de amputar um membro ou como se as raízes escuras que se alastravam pela cabeleira da arinnir fossem um cancro. — Que pena, um tom dourado tão lustroso! Já experimentastes misturar rebentos de vinha com cinzas de freixo, galha de carvalho e vinagre? Se cozerdes a mistura durante meio dia (posso mandar uma das serventes fazê-lo para vós), lavardes o cabelo com ela e cobrirdes a cabeça com uma touca, garanto-vos que no dia seguinte tereis esse maravilhoso tom dourado uma vez mais! Ah, e acho que sei de uma crespina ideal para vós; ela combinaria perfeitamente! E parecida com a que a princesa Iollina usa, mas tem fios prateados entrelaçados com ouro, e pérolas nas interseções... Que dizeis, princesa? — perguntou, dirigindo-se a Iollina. — Certamente partilharíeis...

— Obrigada — interrompeu Lhiannah —, mas de momento a cor do meu cabelo é a menor das minhas preocupações. Onde podemos encontrar o general Worick?

Embaraçada e ciente de que se tornara a exceder, a aia calou-se e Iollina levou alguns instantes a perceber que lhe cabia agora a ela responder.

— Ah, o general... está a tomar banho. Nos banhos, isto é. Foi o que me disseram. Podemos, hum... esperar nos seus aposentos?

A arinnir refletiu brevemente, e chegou à conclusão de que preferia falar com o seu mentor nos banhos, onde seria mais fácil ter uma conversa privada e cujo ruído ambiente perturbaria quaisquer ouvidos indiscretos.

— Se não vos importais, princesa, tenho uma certa urgência em falar com o general, pois já estou há mais de uma semana à espera. Quero saber se ele está bem, ele tem umas necessidades muito especiais, e sempre foi como um segundo pai para mim. Acompanhais-me aos banhos?

O tom afirmativo da pergunta roubou a Iollina as já de si parcas questões que poderia ter levantado, e a princesa deu consigo a tartamudear o seu assentimento. Nem a aia nem o guarda se pronunciaram, pelo que Lhiannah acenou com a satisfeita cabeça e tomou a dianteira, virando para a escadaria com corrimão de entrançada corda vermelha com franja dourada.

«Bellex me de paciência, devem ter-me enviado esta para que eu me isole na torre e nunca mais queira falar com ninguém...», pensou Lhiannah, bufando e arregalando os olhos quando ninguém a podia ver.

Os banhos da torre do belver localizavam-se nas cavas desta, numa marmórea sala aquecida com meia dúzia de tanques para o uso dos hóspedes. A entrada dava para um vestuário fechado por reposteiros num estrado elevado e um lanço de escadas adjacentes a ele descia de lado para o corredor com os fumegantes tanques, no qual se encontravam apenas Worick e um vigilante guarda palaciano. O thuragar banhava-se calmamente, esfregando um pequeno pé de unhas disformes com uma escova e com a cabeça apoiada num recosto de mármore polido. A sua barba grisalha flutuava à tona da água como um emaranhado de algas ruças, bem como as pontas da sua já comprida cabeleira. Worick estava a demorar propositadamente e os seus dedos já estavam enrugados como passas, mas o gozo que usufruía de arreliar o átono guarda valia a pena. Tentara obter algumas respostas nos primeiros dias da sua clausura, mas, como estas não vieram, propôs-se a infernizar a vida de quem o rodeava até que pudesse falar com Aereth ou Lhiannah. Embora não tivesse causado tanto alarido como a sua protegida, o thuragar fora um prisioneiro intratável desde o primeiro dia, exigindo constantemente soyg às refeições e fazendo propostas indecorosas às serventes que lhe tratavam do quarto, algumas das quais tentara mesmo levar a cabo antes de destacarem pessoal exclusivamente masculino para o servir. Durante várias noites cantara canções obscenas da sua janela com vista para o pátio interior ajardinado, perturbando o sono de quem ouvia a sua discordante voz, até o senescal Tomenno mandar trancar as suas janelas. Worick partira-as e compusera uma autêntica sinfonia estilhaçada durante a noite para acompanhar as suas indecorosas árias. Tomenno pediu-lhe polidamente que cessasse com tal comportamento e conseguiu a palavra de honra do thuragar de que não tornaria a fazer semelhante coisa antes de mandar reparar as janelas. Worick partiu-as nessa mesma noite e agraciou os habitantes de Allahn Anroth com uma cantilena de levar as faces das donzelas ao rubro, sendo transferido no dia seguinte para um quarto sem janelas. Mesmo nos banhos o thuragar fizera por causar problemas, tendo por várias vezes puxado para dentro de água as serventes que tinham por função escová-lo, razão pela qual passara a desempenhar essa tarefa sozinho. Passara a ter como único alvo o guarda que o vigiava durante o banho, e os chistes e comentários cáusticos do thuragar eram um desafio mesmo para a impassível guarda palaciana.

— Sabes, rapazola, ainda há meses estive em Tanarch — contou, pousando a escova num suporte ao lado do tanque e molhando a cara. — As pessoas de lá são estranhas, sobretudo os homens. Parece que eles gostam muito de fazer uma coisa chamada argel por aquelas bandas. Vocês por acaso também fazem argel uns com os outros aqui no palácio? — perguntou, balbuciando com a água.

Silencioso como sempre, o guarda não respondeu.

— Quer dizer, vocês tiram essas armaduras uma vez por outra, imagino? E precisam de ajuda, por isso devem fazê-lo juntos, não?

Silêncio.

— Pois, deve ser nessa altura que começa o argel. Vocês são demasiado hirtos e rígidos, sabes? Mais parecem essas vossas partazanas. O que o Aereth devia fazer era trazer umas rameiras a Allahn Anroth aí uma vez por semana para ver se vocês relaxavam um pouco. Já estiveste com uma mulher, rapazola?

Se estivera, o guarda não parecia disposto a partilhar a experiência.

— Não, parece-me que gostas mais de ver thuragar nus a tomarem banho. Sempre me disseram que as mulheres de Ul-Thoryn eram as mais baixas e roliças de Nolwyn, se calhar é por isso...

Worick não ouviu os dedos da manopla do guarda roçarem a haste da partazana devido ao ruído ambiente de água a escorrer.

— Pois, eu conheço o gênero, calado que nem um rato para não chamar a atenção e não ter de dar a sua opinião — continuou o thuragar, esfregando os braços com sabão. — Já transformei muitos frangalhotes como tu em homens a sério, e olha que foi só uma questão de partir à cachaporrada a concha em que se escondiam. Uma boa cambalhota com uma moça roliça só te faria bem... Agora que falo nisso, achas que o Aereth me podia arranjar uma?

Quando Worick começou a lavar a cabeça, o guarda teve por fim uns momentos de sossego. Estava francamente farto do maldito thuragar, da sua boca suja, da sua irritante voz cáustica, das suas canções ordinárias, das suas eructações e flatos intencionados... Já por várias vezes estivera perto de o agredir, e apenas a sua atenção ao dever o impedira. Vontade não faltava, porém, e foi devido à intensidade do rancor que nutria que não se apercebeu do vulto que lhe despontou atrás das costas enquanto amaldiçoava mentalmente o thuragar. Um breve toque na sua couraça dorsal espertou-o num instante e o guarda virou-se de sobressalto, empunhando a partazana com ambas as mãos.

Não teve tempo de ver mais que um homem alto e careca antes de este abrir a boca e lhe regurgitar algo quente e vil sobre a cara. O grunhido do guarda foi abafado pelas suas próprias mãos quando as levou ao rosto, deixando a partazana cair com grande estrépito ao chão.

— Então? — resmungou Worick, esticando a cabeça ensaboada para fora do tanque e torcendo o pescoço para olhar para trás. Viu o guarda ajoelhado com metade do seu corpo tapado por um tanque, e pareceu-lhe que estava a tentar reaver a sua arma de haste, pelo que se limitou a abanar a cabeça e retomar a sua lavagem. — Já estás aí parado há muito tempo, rapazola. Deixa de andar hirto que nem uma verga que só te cansas...

O guarda mal ouviu o conselho do thuragar, contudo, quando baixou as mãos, a sua face era uma careta de raiva de dentes arreganhados e pingava um líquido amarelo-esverdeado do queixo e das bordas da barbuda. Os seus coléricos olhos pareciam prestes a saltar da abertura do elmo e viraram-se na direção do foco de todo o ódio e sanha que lhe grassavam pelo sangue numa irada torrente. Os murmúrios de Worick eram sopros a instigarem as brasas da sua fúria e o guarda pegou na partazana, erguendo-se com a arma empunhada e aproximando-se a apressados passos do tanque no qual o thuragar se banhava.

— Já está na hora de jantar? — inquiriu Worick ao erguer a cabeça que mergulhara na água, esfregando-a dos olhos. — Não te preocupes, não devo demorar muito mais. Só me falta lavar atrás das orelhas, limpar o umbigo e dar uma boa esfregadela ao...

A mente de Worick foi suficientemente rápida a avaliar o perigo ao ver que o guarda empunhava a partazana de ponta virada para baixo quando tirou os cabelos da cara, mas os seus reflexos não corresponderam. O seu abdome retraiu-se instintivamente e a sua mão disparou na direção da esponja, o objeto mais parecido com uma arma na proximidade, mas foi lento demais para a totalmente inesperada raiva do guarda. O humano grunhiu através dos dentes cerrados ao estocar com a partazana para baixo, e atingiu Worick em cheio na barriga. O aço frio a perfurar-lhe o corpo quente fez com que o thuragar soltasse o ar dos pulmões num rouco arquejo, e todo o seu corpo reagiu com um total retesar dos músculos. Grunhindo de raiva, o guarda empurrou a arma mais para baixo. Os dedos curtos e grossos do thuragar crisparam-se na haste da partazana, mas o humano tornou a grunhir e empurrou a arma ainda mais, trazendo sangue à agitada superfície da água. Worick estava de boca aberta e olhos arregalados, e apenas conseguia emitir roucos crocitos enquanto forçava o seu corpo a reagir e tirar a fria lâmina que lhe queimava o ventre e que começava a tingir o tanque de vermelho escuro. O seu coração retumbava-lhe alarmado aos ouvidos ocasionalmente submergidos em água, e o thuragar debatia-se sem grande sucesso por um ponto de apoio para conseguir disputar a pressão da partazana. Os olhos do guarda brilhavam com um ódio maníaco da abertura do seu elmo, e os seus lábios estavam esticados num rito de raiva que grunhia e espumava pela sua violenta morte. A visão de Worick começava a turvar-se... ou talvez fosse da água sobre os olhos, água que lhe entrava pela boca com um sabor cóbreo... o sabor do seu sangue... por Tharobar, tanto do seu sangue...

— Worick! — ecoou o seu nome de forma estridente pelo corredor.

O guarda virou a cabeça bruscamente e pareceu captar outro alvo para o seu ódio, pois tentou puxar a partazana. Contudo, o thuragar não percebeu e manteve o seu aperto na haste, impedindo o humano de a puxar e grunhindo de dor quando a lâmina foi torcida em conseqüência da contestação. Furioso, o homem largou a partazana e desembainhou uma espada triangular, correndo a enfrentar quem gritara.

Lhiannah saltara desesperadamente das escadas ao ver o seu mentor empalado e correra irrefletidamente na direção do seu agressor, porém, agora que se via desarmada a enfrentar um homem arnesado e armado de espada, viu-se forçada a reconsiderar. Iollina e a aia gritaram, chamando pelo guarda que as escoltara, mas a princesa sabia que podia bem morrer antes que ele chegasse, pois o seu adversário investia com intentos assassinos. Optou então por recuar, sentindo de imediato o estorvo que a saia do vestido representava, e estendeu o braço atrás para ter uma idéia da distância a que se encontrava das escadas, tocando um degrau quando o guarda já se encontrava à distância de um golpe. Lhiannah apoiou a mão no degrau que tocara e saltou para cima das escadas, evitando a estocada por uma escassa distância e por pouco não tropeçando na saia ao erguer-se numa posição acocorada. O guarda recuperou da investida e trouxe a arma atrás para um golpe horizontal à altura da cintura da arinnir, mas esta antecipou-se-lhe e avançou de rampante para a borda do degrau, desferindo-lhe um pontapé no punho e travando o golpe, mas perdendo o equilíbrio em conseqüência. Iollina e a aia tornaram a gritar e levaram as mãos às bocas quando Lhiannah se impulsionou para a frente com a sua perna assente e saltou para cima do homem enquanto este estava com a guarda aberta, caindo com grande estardalhaço ao chão sobre um monte de metal. A queda doeu-lhe bem mais que ao adversário, mas ainda assim a arinnir conseguiu agarrar-lhe o braço da espada antes que este a tentasse golpear, posicionando o tronco sobre o outro braço de forma a imobilizá-lo e enfiando-lhe de seguida as unhas pela abertura do elmo adentro, esperando espetar-lhe os olhos. Lhiannah nem teve tempo de se admirar com o fluido viscoso que sentiu com os dedos antes de a mão esquerda do guarda surgir estrebuchante por cima do seu ombro e agarrar-lhe os cabelos. A princesa gritou quando a sua cabeça foi violentamente puxada para trás e fincou ainda mais as unhas na carne do homem, que afastou a cara para proteger os olhos e dessa forma rasgou a pele, grunhindo ruidosamente e ameaçando partir o pescoço de Lhiannah. A arinnir viu-se forçada a largar a cara do homem e deixar-se puxar pelos cabelos até ficar de costas sobre o braço dele, aliviando a pressão e aproveitando a mão livre para agarrar com duas mãos o punho que empunhava a espada. Ao fazê-lo, Lhiannah permitiu ao adversário erguer a perna e posicionar-se em cima de si, continuando a agarrar-lhe os cabelos e ameaçando-a com a ponta da espada que agora mantinha desesperadamente à distância. O homem grunhia raivosamente de dentes cerrados, e o sangue que lhe escorria das feridas abertas debaixo dos olhos misturava-se a um doentio amarelo-esverdeado que lhe cobria as partes expostas da cara e lhe pingava das bordas do elmo. Nada mais se lia na sua expressão além de um ódio irracional que clamava pela sua morte, e Lhiannah sentiu-a aproximar-se na forma da aguçada ponta. O guarda que a escoltara surgiu numa altura oportuna e oscilou a sua partazana do cimo das escadas, percutindo a cabeça do seu ensandecido companheiro e tirando-o de cima de Lhiannah. A princesa grunhiu de dor quando alguns dos seus cabelos presos nas frestas da manopla foram arrancados, chutou a cara do adversário com ambos os pés munidos de macias sapatilhas para o afastar, magoando-se mais que a ele, e arredou para trás a gatinhar de costas.

— Scoraldo, o que estás a fazer, homem? — indagou o guarda do cimo da escadaria com a ponta da partazana apontada ao visado.

Este limitou-se a grunhir em resposta, erguendo-se de espada empunhada e com tenções de atacar o seu companheiro.

— Peçam ajuda! — gritou Lhiannah a Iollina e à aia. — Chamem a guarda!

Os dois que se encontravam presentes entraram em combate e o da escadaria tomou a iniciativa ao ver que ia ser atacado, estocando da sua posição vantajosa. Porém, o seu companheiro entrou pelo ataque adentro, confiando no seu arnês para defletir o golpe, o que de fato sucedeu, permitindo-lhe pegar na haste. Com um esforçado grunhido, o tresloucado serviu-se como eixo para empurrar o seu desequilibrado companheiro pelas escadas abaixo, atirando-o com grande estrépito ao piso marmóreo. Sem se deter, largou a partazana e arrojou-se para cima do atordoado guarda, fixando-o com um joelho e retendo-lhe a cabeça com a mão esquerda. A sua primeira estocada resvalou na borda do elmo devido a um movimento brusco do guarda, mas a segunda entrou na abertura vertical e penetrou-o mortalmente debaixo do queixo. O homem sacou a espada de ponta sangrenta e virou-se para enfrentar Lhiannah, mas a única coisa que viu foi a lâmina de uma partazana vir embater de lado contra a sua cara, atirando-o contra a parede. Lhiannah arremeteu de seguida, encalhando a ponta da arma na espaldeira direita do guarda de forma a mantê-lo imobilizado. Podia ouvir os gritos de Iollina e da aia no corredor, mas não vira qualquer guarda a caminho dos banhos e não podia contar com qualquer ajuda atempada, pelo que se concentrou em reter o homem tanto quanto possível, apoiando todo o seu peso na partazana. Porém, a raiva deste não estava disposta a ser refreada e o homem agarrou a haste, chutando-a com a perna esquerda e fazendo a princesa embater de ombro contra a escadaria. O guarda ameaçou-a com um novo golpe, mas Lhiannah conseguiu trazer a haste da partazana acima a tempo de desviar o ataque, calcando-lhe ainda o joelho com a intenção de lhe partir, mas a joelheira protegeu-o. Ainda mais enraivecido, o seu adversário esmurrou-a com as costas da mão que empunhava a espada, atingindo-a na cabeça. A arinnir caiu perto do guarda que se contorcia nas vascas da morte e a sua mão crispou-se instintivamente no punho da sua espada mesmo enquanto caía, desembainhando-a ao virar-se de barriga para cima a tempo de aparar uma espadeirada do guarda. O homem tornou a tentar com uma estocada que a arinnir contrariou, penetrando por ela adentro e prendendo a ponta com os copos da sua espada, aproveitando para chutar o adversário na escarcela. Uma vez mais, magoou-se mais que a ele, mas pelo menos ganhou o instante necessário para se erguer rapidamente, debatendo-se com a saia enquanto o fazia. Implacável, o guarda tornou a investir com um golpe que a princesa leu como sendo uma finta, o que se confirmou quando este torceu o pulso e o tornou numa estocada dirigida à sua anca. Lhiannah deu-lhe um ligeiro toque para baixo e arremeteu com a espada diagonalmente para cima, empunhando-a com ambas as mãos, mas o homem virou a cara e baixou o queixo, encaixando as bordas do elmo na sua couraça e tapando a abertura para a sua garganta que a arinnir procurara.

O homem era um guerreiro hábil, mas a sua pesada armadura nolwyna de grandes espaldeiras destinada a proteger de virotes de besta restringia-lhe os movimentos dos braços, além de que a sua anômala raiva anunciava claramente as suas intenções. Porém, a proteção do seu arnês permitia-lhe dar-se ao luxo de golpes desenfreados, e o vestido de Lhiannah também a atrapalhava sem contudo a resguardar do aço cortante. Os dois espadeiraram pelo corredor fora e a arinnir conseguiu meia dúzia de toques que poderiam ter terminado a luta, não fosse pela armadura do seu adversário. Um deles deslizou pelo coxote deste, e o guarda ripostou com um corte superficial no braço esquerdo de Lhiannah que fez a princesa recuar, levando à ferida o punho que empunhava a espada. Como que incitado pela visão de sangue, o guarda lançou-se numa arrojada oscilação acompanhada por um ávido grunhido. Lhiannah deslizou a perna direita na diagonal e apoiou o pomo da espada na mão do braço ferido, enfiando a ponta na fresta interior da manopla do adversário a meio do golpe. O aguçado bico rompeu o cabedal que resguardava a abertura, cortando os tendões do pulso do homem e inutilizando-lhe a mão, que deixou cair a espada. Todavia, o guarda atacou com as suas próprias mãos antes que a princesa pudesse capitalizar a sua vantagem, arremetendo de forma tão cega e inesperada, que Lhiannah apenas teve tempo de reação para um inútil corte que nada mais fez além de retinir contra a espaldeira deste. O seu adversário caiu-lhe em cima, pressionando-lhe dolorosamente a ilharga contra o canto de um dos tanques e cerrando os dedos de aço da mão esquerda na sua garganta. As pontas dos cabelos de Lhiannah acariciaram a superfície da água e as suas mãos foram uma vez mais em busca da abertura no elmo do guarda, mas este virou a cara e deixou a princesa a arranhar metal. A força do seu furioso aperto ameaçava esmagar-lhe a traquéia, e não havia qualquer ponto vulnerável no qual a arinnir pudesse bater. A sua respiração ecoava-lhe aos ouvidos, bloqueando todos os outros sons, e Lhiannah começou a sentir uma forte pressão a ameaçar estourar-lhe a cabeça. O pânico e a sensação de impotência levaram-na a esmurrar inutilmente a armadura e a desferir dolorosas joelhadas que apenas lhe rasgaram a saia na ponta de uma falda, mordendo-lhe o joelho. Desesperada e a sufocar, Lhiannah enganchou o tornozelo do homem com o seu pé e levantou-lhe a perna bruscamente ao mesmo tempo que aproveitava o fato de ele estar inclinado sobre si para lhe puxar a cabeça para baixo com ambas as mãos. Os dois caíram de cabeça na água fria do tanque e ficaram a chapinhar numa intensa luta em busca da posição superior. Lhiannah perdeu a noção dos seus movimentos e bloqueou todo e qualquer pensamento racional; a única coisa que interessava era tirar a cabeça de água e ficar por cima, tudo o resto era irrelevante. Os gestos de ambos trovejavam dentro da água, o raspar do arnês do guarda era bem audível e o furioso borbulhar das suas respirações mais parecia o rugido de furiosos animais em contenda.

Por fim, a cabeça de Lhiannah irrompeu à tona de arfante boca aberta, trilhando um véu de cabelos molhados à sua frente e com a saia espalhada pela superfície da água. Sem saber como nem porquê, resguardou a sua cara com o antebraço que aparou um doloroso golpe que nem vira. Os membros arnesados do guarda estrebuchavam como peixes moribundos e as suas pernas clangoravam contra a borda do tanque, mas o peso da sua armadura e a posição não lhe permitiram tirar Lhiannah de cima de si. Praticamente rosnando de fúria, a princesa mantinha a cabeça do homem debaixo de água com uma mão enquanto se defendia dos desesperados golpes com a outra. Uma mão passou e atingiu-a na cara, fazendo-a morder a parede da boca, e outra trepou-lhe às pancadas pelo flanco acima. A arinnir reagiu rapidamente, pegou-lhe no braço agressor e encostou-se às pernas do guarda para manter a distância. Ainda a agarrar o pulso, pisou a cabeça do homem e plantou nela os pés, puxando-lhe o braço enquanto empurrava com as pernas. A mão livre agrediu-lhe a perna direita, batendo-lhe dolorosamente no joelho por duas vezes antes que Lhiannah conseguisse encostá-la à parede interior do tanque pelo cotovelo com o pé. Uma joelheira colidiu com a sua nuca, e a princesa empurrou com mais força ainda, esticando as costas para lhe imobilizar as pernas também.

— Pára de te mexer, desgraçado! — rosnou a princesa, calcando repetidas vezes o elmo debaixo de água. — Pára! Pára! Pára!

Os movimentos do guarda começaram a tornar-se mais lerdos e pesados e Lhiannah soltou um prolongado grunhido enquanto empurrava e puxava com toda a força, cerrando dentes e olhos, nada mais querendo que aquele pesadelo acabasse. O espernear ficou reduzido a um mero arrastar de coxotes pela borda do tanque, e Lhiannah empurrou com mais força ainda, enterrando as costas dolorosamente nas joelheiras. Os dedos das manoplas contorceram-se, e a princesa sentiu afrouxar a força do braço que segurava com ambas as mãos, mas nem assim aliviou e pisou o elmo umas outras três vezes antes de finalmente se atrever a relaxar os membros. Os braços do homem afundaram-se na água assim que o fez e Lhiannah soltou um trêmulo suspiro, um suspiro que se transformou num alarmado arquejo assim que se lembrou de Worick, precipitando uma atabalhoada e chapinhante saída do tanque na qual a princesa tropeçou na saia, caindo borda fora. Lhiannah magoou os pulsos ao amortecer a queda, mas apenas o seu mentor ocupava os seus pensamentos e ergueu-se quase de imediato, deixando para trás as pernas do guarda afogado.

— Worick! — gritou a princesa, arrastando a saia molhada na direção do tanque do qual se projetava uma haste de partazana. Um ruído sufocado de pânico escapou-lhe da garganta ao ver o vermelho na água na qual as barbas do thuragar flutuavam. — Oh, não... Worick!

Lhiannah levantou a saia e passou as pernas por cima da borda, entrando no tanque sangrento e ficando com água até ao umbigo. Murmurando palavras incoerentes, a arinnir estendeu as hesitantes mãos para a haste, olhando alternadamente para ela e para a cara pálida de olhos fechados do thuragar, sem saber o que fazer.

— Oh, não, por todos os deuses, não... — sussurrou Lhiannah, abanando a cabeça e pegando na de Worick com ambas as mãos. Estava fria. — Alguém me ajude!

Passos vieram do corredor, mas pareciam distantes, tão distantes...

— Por favor, alguém me ajude! — gritou a arinnir com lágrimas a escorrerem-lhe dos olhos fechados, abraçando a cabeça do seu mentor.

 

Quenestil atravessou apressadamente a barbacã oeste da muralha interior, portando aos ombros o arco e o peso dos olhares dos sirulianos pelos quais passava, esses felizmente poucos, pois a maior parte deles encontrava-se nas muralhas ou demasiado ocupado a caminho destas. Além do mais, todos tinham coisas mais prementes em que pensar que um eahan a andar à solta em Gul-Yrith; Aemer-Anoth estava em estado de sítio, e Gaul-Anoth fora sitiada apenas uma semana atrás. A horda de Asmodeon descera em fúria no último mês, e as mensagens recebidas através de pombos mensageiros relatavam drahregs em números não vistos desde a Guerra da Hecatombe, números esses que os haviam tornado ousados ao ponto de sitiarem duas fortalezas ao mesmo tempo. Segundo as últimas mensagens recebidas dias atrás, ambas as fortalezas estavam a suster a investida e a infligir horrendas baixas à progénie d’O Flagelo com poucas perdas até então. Gul-Yrith reforçara as duas outras fortalezas com um contingente substancial, pois a última barreira entre Asmodeon e Allaryia era de todas a mais defensável, e os homens adicionais podiam bem ser necessários onde o ataque iria ser sentido com mais força. Quenestil bem vira o que a reduzida guarnição de Aemer-Anoth fizera ao exército do azigoth — talvez a afirmação de Worick de que cada siruliano valia dez drahregs não estivesse assim tão longe da verdade — mas a situação era de cem mil contra cerca de seis mil nos três redutos, e mesmo que o thuragar estivesse certo, isso implicaria um morticínio em massa para a Sirulia. Asmodeon despertara e caminhava debaixo da égide do seu senhor, e mesmo na mais sólida das fortalezas sirulianas o eahan sentia-se tudo menos seguro, até porque se falara da possibilidade de a horda se dividir mais ainda e enviar uma força na direção de Gul-Yrith. Era estrategicamente insano, mas os sirulianos não descartavam possibilidade alguma, agora que O Flagelo regressara. Faltavam poucos meses para que Slayra desse à luz, e Quenestil só desejava que tudo acabasse o mais depressa possível. Não queria que o seu filho nascesse a meio de uma guerra, mas se assim tivesse de ser, ao menos que nascesse numa fortaleza segura enquanto a progénie do Flagelo sangrava contra as muralhas das outras duas. Esse não fora o único pensamento egoísta que lhe passara pela cabeça nos últimos tempos, e o shura sabia-o. Slayra estivera relacionada com grande parte deles, sobretudo devido às dificuldades que ultimamente tivera para falar com a eahanoir, que continuava gelidamente furiosa com a sua decisão. Imagine-se, guardar-lhe rancor por algo que não chegaria sequer a fazer, não agora que as forças de Asmodeon estavam literalmente a bater à porta...

O curto dia aproximava-se do fim, e as sombras do intervalo entre as muralhas exterior e interior equiparavam-se à disposição do eahan, cuja expressão carregada a refletia. Não tivera ocasião nem paciência para cortar o cabelo, que prendera num rabo-de-cavalo ruivo com penas brancas da cauda do lagópode que caçara nele penduradas, e desde o incidente com o nekkr que passara a usar peles sobre a sua túnica eahlan roxa. A sua aparência e o seu comportamento de animal enjaulado davam-lhe um ar selvagem, que foi certamente a impressão que transmitiu ao começar a galgar as escadas de uma das torres da barbacã da muralha exterior, passando à frente dos sirulianos que subiam com pesados passos para ver o que os aguardava do outro lado da muralha. A marcha acerada dos Ajuramentados não dava conta de qualquer urgência, embora fosse mais apressada que o costume, o que por si só traía uma certa ansiedade que também contagiava Quenestil. Quando por fim chegou ao cimo da torre, o shura ainda teve de contornar uma série de pilares humanos revestidos de aço coberto com saios verdes e desbravar uma floresta de hastes de alabardas antes de alcançar as ameias, enfiando-se num pequeno espaço desocupado ao lado de um trabuquete. Os adarves eram regularmente limpos e não tinham qualquer neve, e apenas as ameias estavam polvilhadas de branco. Alguns meses atrás Quenestil não teria ousado caminhar de tal forma entre Miliciares ou Ajuramentados, mas nesses meses aprendera algo de muito útil: sirulianos muito raramente manifestavam o seu desagrado verbalmente, limitando-se a transmiti-lo com o peso do seu olhar. Desmente que evitasse o contato visual e continuasse a andar, não teria problemas imediatos. De qualquer forma, estavam todos demasiado ocupados a contemplar o que se encontrava no níveo campo aberto debaixo de um céu baço coberto por nuvens esfarrapadas e escuras parcamente alumiadas por um sol alquebrado. Quenestil era de fato inexperiente no que dizia respeito a assuntos pertinentes à guerra, embora se achasse no dever de manter uma determinada postura quando confrontado com ela após as suas experiências em Aemer-Anoth. Não o conseguiu ao ver o exército, e o queixo descaiu-lhe de forma muito pouco digna. Era decididamente superior em tamanho à hoste que combatera no Esporão, e em contraste à uniformidade escura e pardacenta desse, quase gritava uma pletora de tons de azul, verde e vermelho que mais pareciam uma Primavera antecipada no campo de neve diante da barbacã. Era composto por cavaleiros com elmos cônicos de abas estreitas, revestidos de cota de malha com couraças lamelares, armados de lanças e dardos; outros de capas com golas forradas a peles, saios brancos de orlas ricamente debruadas e mangas folgadas, túnicas de cota de malha reforçadas com escamas, elmos cônicos sulcados e armados de maças quadradas de cantos truncados e espadas longas e afiladas, ambos montados sobre cavalos com chanfrões de metal e caparazões acolchoados ou lamelares. Também infantes de botas altas de couro decorado. elmos cupulados de segmentos de ferro rebitados, achas de armas com lâminas em forma de crescente e escudos em forma de lágrima, bem como arqueiros com casacas acolchoadas de golas altas e gorros, armados também com machados e adagas. Na retaguarda vinham ainda lanceiros que envergavam casacas acolchoadas debaixo de solhas de escamas gravadas em relevo, elmos em forma de cebola com proteções nasais e capelos de cota de malha, armados de lanças de pontas tetrago-nais e escudos redondos revestidos com segmentos de ferro; bem como infantaria ligeira de elmos afunilados com proteções para as orelhas e machados. Além de todos estes, havia ainda uma extensa coluna de homens agrilhoados com aspecto de prisioneiros que estavam a ser trazidos para a dianteira. Quenestil não soube identificar nenhum de entre as centenas de pendões e estandartes que abanavam à ligeira brisa fria, mas apesar do caráter repetitivo de alguns percebeu que representavam um número significativo de senhores e domínios, totalizando cerca de seis mil no seu total. O tilintar de arreios e cota de malha criava uma sinfonia que toava perfeitamente com o gélido ar bafejado pelos bufidos dos cavalos, e as lanças erguidas oscilavam ao vento como uma solícita seara pronta a ser colhida.

— Como... de onde vieram eles todos? Porquê? — indagou Quenestil a ninguém em especial.

Os Ajuramentados que se encontravam mais próximos olharam-no como se fosse uma criança a imiscuir-se em assuntos de adultos, o que irritou o eahan, que era provavelmente mais velho que a maior parte daquelas vigas prematuras. Não, decididamente não estava com disposição para aturar aquilo.

— Ouçam, se os exércitos de Asmodeon vierem aí, eu vou sangrar e se calhar morrer nas muralhas tal como vocês, talvez ainda mais depressa, já que não tenho ceroulas de aço, por isso o mínimo que podiam fazer era ao menos explicar-me que raio se passa, não acham?

Apesar de impaciente e farto de ser desprezado por todos menos os eahlan, Quenestil rapidamente se apercebeu de que talvez tivesse ido longe demais e esperou contato com uma manopla ou com o chão do outro lado das ameias. Contudo, quer devido à eloqüência do shura, quer ao fato de não desejarem dar mostras de atos desordeiros nas suas fileiras diante de outro exército, os Ajuramentados limitaram-se a lançar-lhe os habituais olhares que consigo carregavam boa parte do desprezo do mundo, refletindo-o neles como um verme insignificante que não sabia o que dizia. Ainda assim, o seu desabafo confirmou-o como um ser suficientemente senciente para merecer uma explicação que um Miliciar atrás de si se dignou a dar-lhe, falando-lhe do cimo da sua cabeça.

— São o exército de Tanarch, eahan. Parte dele — explanou o siruliano, que manteve os olhos no exército mesmo quando o shura se virou para ele. A sua babeira puxada para cima revelava uns duros orbes cinzento-azulados e uma boca que se assemelhava a uma fresta aberta com um cinzel num bloco de pedra. — Nunca pensei tornar a ver semelhante coisa na minha vida... as milícias de Dul-Goryn e Val-Oryth, veadeiros de Nekrashevan, os séquitos de Sakrishin, Kyaninker, Glusgai, Orkinal... o Iaque Branco, o Salmão Prateado, o Lobo Rampante... em nome de Sirul, tê-los-ão os Mandatários por fim compenetrado?

Aquela fora a maior dose de emoção que Quenestil até então ouvira da boca de um siruliano, mas não precisara dela para se aperceber de que a presença do exército tanarchiano era algo de significativo. O eahan presenciara o ódio contra a Sirulia em Tanarch, ouvira as maldições e impropérios, sentira os olhares venenosos. Poderiam ter mudado de idéias, tê-los-iam de fato os Mandatários ou porventura os sobreviventes da batalha de Aemer-Anoth convencido de que O Flagelo regressara, de que era urgente pôr as diferenças de parte? Em nome de todos os deuses, seria possível?

— Serão conscritos, Miliciar? — questionou um dos Ajuramentados, apontando para os homens agrilhoados que agora se encontravam mais próximos da muralha. Tinham um ar andrajoso e miserável, mas olhavam sem medo para os sirulianos.

— Só posso presumir que sim, Ajuramentado Fealdir. Silêncio, agora — disse o Miliciar, indicando um mensageiro montado que se aproximava.

No preciso momento em que o homem surgiu, destacou-se de entre todos na barbacã o grisalho Factoto Saeron.

— Trago-vos as mais cordiais saudações de Tanarch em nome dos meus senhores Shvetan e Gorom, Factoto — disse o homem, que vestia um cafetão vermelho com mangas debruadas a pele de marta com vários fios dourados estendidos através do peito cravados com botões de ouro e um barrete verde forrado a pele. A sua capa verde adejava-lhe suavemente às costas, e o homem mantinha um porte algo emproado com um punho apoiado sobre a anca e o peito estufado. — Viemos prestar-vos a ajuda há muito devida.

Os dedos das manoplas de Saeron roçaram na pedra das ameias quando o homem se apoiou sobre elas, contemplando todo o exército com o silencioso olhar.

— Onde estão os três Mandatários e as respectivas escoltas que com eles foram enviadas? — perguntou o Factoto com uma voz forte e cheia.

— Requisitámos a sua preciosa assistência nas províncias a oeste, tradicionalmente sempre as mais refratária, como bem o deveis saber — respondeu prontamente o mensageiro. — Afinal, quem melhor que os Mandatários para ilustrar o perigo que todos corremos?

— Todos eles? — indagou o Factoto.

— Todos, Factoto. Tanarch é grande, e três é um número pequeno...

— Nem eu nem o Castelão recebemos notícias do Mandatário Vealdar há semanas.

— Posso assegurar-vos de que tanto ele como os seus pares e as respectivas escoltas estavam bem de saúde da última vez que os vi, Factoto. E como sinal da boa vontade de Tanarch e do excelente desempenho dos Mandatários nas suas funções extrajurídicas, trazemo-vos estes homens.

O mensageiro puxou as rédeas do cavalo para o lado e este mexeu-se de acordo, virando-se para a coluna de homens andrajosos e agrilhoados que o seu cavaleiro indicou com um gesto de desprezo.

— Esta escória... escondidos entre nós, planejando, tramando nas sombras. Apenas a percepção dos vossos Mandatários soube identificá-los pelo que verdadeiramente são, Factoto: Filhos do Flagelo, Fadados!

Se fora uma reação que o mensageiro quisera provocar, então poucas outras coisas poderiam ter surtido tal efeito. Centenas de placas de aço roçaram umas nas outras quando várias vozes se ergueram em exclamações admiradas e jovens temperamentos por pouco não levaram a que o rastrilho fosse aberto para a furiosa saída de uma vindicante turba armada de alabardas.

— Fadados...? — gralhou o Factoto, a sua voz forçosamente contida e como tal não tão imponente como antes.

— Como sinal da nossa boa vontade... e da nossa vontade de exterminarmos de vez a ameaça d’O Flagelo. Em todas as suas formas.

Nas fileiras de Ajuramentados havia silenciosos e relutantes acenos de aprovação, embora fosse evidente que a sua atenção estava centrada nos homens acorrentados que retribuíam os olhares com ódio e asco.

— Os meus senhores enviaram comigo seis mil homens, Factoto; outros quatro mil vêm a caminho. Dez mil lanças no total para vos ajudarem contra a ameaça acerca da qual bem nos tentaram avisar...

Os números falavam por si, e os olhares passaram momentaneamente para o Factoto, que pesava as palavras do mensageiro com mais ponderação que os Ajuramentados e Quenestil.

«Mãe, se assim for, então temos esperança! Dez mil... e soldados, não conscritos... mais os sirulianos...», calculou o eahan, afastando-se de seguida das ameias para ir dar as boas-novas a Slayra.

A sua saída não passou despercebida, mas foi ignorada por quem apenas aguardava a ordem do Factoto para abrir o rastrilho, permitindo-lhe regressar mais facilmente por onde viera. Assim que começou a descer as escadas, ouviu a voz de Saeron dizer qualquer coisa, mas estava demasiado ansioso para partilhar as novidades com Slayra para ficar e assistir ao desenvolvimento da situação. Os sirulianos eram criaturas de hábitos, apegados aos seus parâmetros e rotinas como lapas a uma rocha de uma baía revoltosa, que era como viam o resto do mundo. Quando por fim convencessem o Factoto a abrir o rastrilho — algo que não estava explicitamente mencionado nas suas ordens —, podia já ser noite alta, razão pela qual o eahan resolveu antecipar-se. Desceu apenas um lanço das escadas e passou diretamente da barbacã para o adarve, que percorreu a apressados passos enquanto vislumbrava o exército tanarchiano ao seu lado. De fato, tamanha força representava um alívio pelo qual o shura não ousara esperar durante as semanas em que imaginara a solitária Gul-Yrith cercada por um oceano negro. Os números do inimigo continuavam avassaladores, mas este estava dividido em dois exércitos que presentemente se estatelavam contra as sólidas muralhas de duas fortalezas. Com a ajuda dos tanarchianos, Gul-Yrith provavelmente iria enviar uma força em auxílio de Gaul-Anoth, e isso certamente apanharia a maldita progénie d’O Flagelo desprevenida. Avizinhavam-se dias negros e sangrentos, mas ao menos agora o eahan conseguia lobrigar alguma esperança de combater a ameaça sem ter de definhar num longo e atroz estado de sítio à espera de que Sirulia ou a horda de Asmodeon sangrassem até à morte. Os piques e as alabardas sirulianas haviam devastado os seus inimigos em Aemer-Anoth; certamente não temeriam defrontar o Primeiro Pecado em campo de batalha aberto com o apoio de dez mil tanarchianos? Esses e centenas de outros pensamentos e considerações grassavam pela mente de Quenestil enquanto praticamente corria pelo adarve, desviando-se de sirulianos que vinham na direção oposta e se debatiam claramente com a vontade de perguntarem a um mero eahan o que se passava.

— Tanarch veio em nosso auxílio! — não resistiu o shura a anunciar. — Seis mil homens, e mais vêm a caminho!

Não parou sequer para observar as reações dos Ajuramentados e Miliciares e continuou até chegar ao torreão nordeste no qual ficara alojado com Slayra e os eahlan. Fora a sua casa nos últimos meses, e embora os eahan brancos se tivessem esforçado por tornar os aposentos rudemente sirulianos minimamente habitáveis e aprazíveis, o shura nunca deixaria de se sentir enclausurado. Entrou rapidamente pela porta e de imediato deparou com duas serventes eahlanas com peles de arminho que o receberam com sorrisos que felizmente havia muito haviam deixado de o fazer sentir-se indigno. Cumprimentou-as às duas com um curto aceno de cabeça e um sorriso, mas não se deteve para não ficar retido pelas suas perguntas, que ainda assim lhe fizeram nas suas costas.

— Chegou um exército de Tanarch — explicou Quenestil rapidamente. — Vão ver.

— Ah, o Çeluan está à vossa procura — disse uma das eahlanas, referindo-se a um dos serventes.

— Sim? Então vou ter com ele daqui a...

— Alguma coisa sobre a Lusia, que ela precisa de vos ver. Disse que é importante — aditou a outra.

O tom de voz da eahlana impediu Quenestil de continuar despreocupadamente em frente como pretendera. Os eahan brancos deviam ser das criaturas mais expressivas de Allaryia, em parte devido à sua língua viva e mágica, mas mesmo sem falarem Eridiaith conseguiam impor uma tal expressividade a tudo o que diziam que veiculavam sentimentos e impressões mesmo sem as palavras necessárias. O que Quenestil sentiu foi genuína preocupação, e foi quanto bastou para que voltasse atrás.

— Passa-se alguma coisa?

— O Çeluan disse que a Lusia não parecia nada bem, e que queria urgentemente falar convosco e com a Slayra.

— Bom, se é assim tão urgente... — Dois acenos de cabeça. — Por acaso não sabem de que se trata, não? — Dois abanares de cabeça. Quenestil suspirou. — Onde está ela?

— Nos seus aposentos no segundo piso.

— Disse que chegou um exército de Tanarch? Mais daqueles pobres homens?

— Não, soldados mesmo. Vão lá fora ver. Obrigado por me avisarem.

Quenestil retirou-se, conformado com o fato de que Slayra iria ter de ficar chateada com ele mais algum tempo. Aliás, nem garantias tinha de que a eahanoir veria qualquer razão para fazer as pazes com ele... ou que sequer achasse que se tratava de boas notícias, as que lhe iria trazer. O mais certo era culpá-lo por algo que eventualmente lhe tivesse acontecido naquele dia antes de sequer ouvir o que tinha para dizer, ou então reclamar por ter de ser posta de lado uma vez mais enquanto «os homens fazem o que tem de ser feito». Sim, talvez mais um pequeno atraso não fizesse uma diferença assim tão grande... Os degraus começaram a voar mais devagar debaixo dos seus pés e Quenestil ajustou o arco ao ombro, algo que fazia freqüentemente devido aos olhares que recebia de todos os que estranhavam que portasse semelhante arma na fortaleza. Sentia-se melhor com a proximidade do seu arco ocarr, que servia como uma ligação à liberdade da qual as quatro muralhas de Gul-Yrith o privavam. Passou por vários eahlan que se dirigiam ao adarve, tendo certamente ouvido as novidades por outras bocas, e cumprimentou-os a todos como os conhecidos em que se haviam tornado ao longo de meses de coabitação. Apesar do humor de javalina prenha e disposição de víbora pisada, Slayra sempre fora o centro das atenções e era tratada como uma rainha pelos eahan brancos, e por essas e muitas outras coisas Quenestil estava-lhes grato. Se pudesse retribuir de alguma forma a ajudar Lusia, então fá-lo-ia de muito bom grado, embora não fizesse idéia do tipo de problema que a filha do Patriarca poderia ter nem de que forma a poderia ajudar. Contudo, não hesitaria em fazer qualquer coisa que estivesse ao seu alcance.

Nunca estivera nos aposentos de Lu§ia, mas reconheceu a dura porta siruliana com dobradiças de palheta decorada com uma grinalda de tecido branco debruada a prata. Olhou em redor, constatando que ninguém estava presente no corredor, e bateu educadamente à porta.

— Lusia? E o Quenestil — Não houve resposta. No exterior ouviram-se vários curtos toques de trompas. Aparentemente, o Factoto permitira a entrada ao exército tanarchiano mais cedo do que o eahan esperara. — Disseram-me que mandou o Çeluan chamar-me. Quer falar comigo?

Nada. O eahan tornou a bater e encostou a orelha à porta, mas nesse momento ouviu a voz de Lusia abafada pela espessa porta.

— Quenestil, entre... por favor.

«Diabo, mas que pode ter ela?», questionou-se o shura ao girar a tranca, pois parecia de fato perturbada.

O quarto de Lusia certamente não se comparava ao que ela deveria ter na sua estância em Aemer-Anoth, mas fizera um bom trabalho ao torná-lo habitável segundo os padrões de outros que não os austeros sirulianos. Uma cama, uma arca para a roupa com uma palmatória com uma vela sobre uma toalha branca, um lavatório com um elegante gomil prateado e uma bacia, um defumadouro no canto e arestas embelezadas com laços brancos e azuis. Comparado com o que Quenestil vira no resto de Gul-Yrith, o quarto era um luxo. Lusia não estava à vista, mas criara uma divisória entre o quarto e a sua única janela com um grande reposteiro de lã em padrões azuis e brancos e ouviam-se soluços do outro lado.

— Lusia... queria falar? — perguntou Quenestil, avançando hesitante.

Sem que o eahan percebesse porquê, algo fez com que os pêlos no seu pescoço se arrepiassem subitamente. Apesar do local onde se encontrava, apesar de estar fora do seu meio e cercado por cerca de um milhar de sirulianos, o eahan reagiu de imediato ao seu instinto, deslizando o arco pelo braço abaixo e frechando-o quase no mesmo movimento. Os soluços estavam a ser abafados, e não apenas pelo reposteiro, apercebeu-se então. Algo de errado se passava.

— Lusia... ? — tornou a perguntar, fixando os olhos no reposteiro, apontando a flecha ao chão e avançando sobre as pontas dos pés, ligeiramente agachado. Não ouvia nada além dos soluços da eahlana, e do corredor não parecia vir mais ninguém.

O reposteiro contorceu-se ao ser agarrado por trás, e Quenestil enristou de imediato o arco, fazendo-o ranger na sua plena curvatura. O reposteiro foi puxado, e por pouco o eahan não soltou o fio ao sentir os seus músculos esmaecerem com o choque.

— Acho que a palavra mais adequada seria «tu?!», não te parece, Quenestil? — perguntou Tannath, sorridente e com a ponta de um maleficamente aguçado estilete pousada sobre a garganta de Lusia, cuja boca estava tapada com uma mão e cujos grandes olhos azul-escuros estavam arregalados.

O eahanoir usava roupas diferentes que lhe davam um ar mais soberbo que a sua indumentária de assassino, com uma jaqueta de couro macio e segmentado em tons de negro e vermelho e uma aveludada capa preta forrada a escarlate com calças revestidas por perneiras de couro cerzido. A sua nova indumentária era completada por espaldeiras estilizadas, uma fita na testa da qual descia uma pala curvilínea que lhe tapava o olho esquerdo, botas afiveladas e finas luvas, tudo elementos que lhe davam um ar bem mais eclético e porventura aperaltado, mas que em nada diminuíram o temor sentido por Quenestil.

— Tannath...? — disse, incrédulo.

— Eu mesmo, meu caro. Surpreso por me ver? Não te censuro; eu também ficaria...

O eahan negro avançou ligeiramente, mantendo o estilete perto da carótida de Lusia, e Quenestil recuou instintivamente.

— Tu morreste... Eu vi-te morrer — tentou o shura convencer Tannath e a si mesmo, abanando a cabeça. — Espetei-te a faca no coração, morreste à minha frente... e foste atirado pelos conscritos ao rio...

— É verdade, mataste-me bem morto — reconheceu o eahanoir, avançando mais um pouco. — Posso assegurar-te que não é uma experiência nada agradável... Mas não te quero aborrecer com detalhes. Voltei, meu bom Quenestil, e achei por bem visitar-te e à Slayra, visto que tanto ficou por dizer entre nós...

A menção de Slayra despertou Quenestil do seu torpor surpreso e atemorizado, e o eahan readquiriu a sua pose de predador. Não percebia o que acontecera nem o que estava a acontecer, mas não havia dúvidas de que aquele era de fato Tannath. A flecha manteve-se apontada para baixo, contudo, pois Lusia ainda corria perigo.

— Onde está a Slayra?

— Estava à espera de que esta adorável eahlana me soubesse dizer, ou que pelo menos tu fizesses idéia. Essa Slayra, sempre foi uma galdéria, sempre teve a sua própria vida e não gosta que ninguém se meta nela...

— O que queres, Tannath?

O eahanoir sorriu com o brusco nervosismo de Quenestil, e deslizou o aço do estilete com delicadeza pela pele arrepiada do pescoço de Lusia, fazendo-a gemer por entre os seus dedos.

— Bem, os meus desejos não mudaram muito desde o nosso último encontro... — admitiu Tannath. — Ainda te odeio e à Slayra pelo que me fizeram, por isso vou matar-vos aos dois, como é evidente. Contudo, acho que não a vou comer antes de lhe cortar a garganta como te disse em Aemer-Anoth. Na minha presente condição isso seria... difícil.

Quenestil não percebeu o que Tannath quis dizer, não percebia o que ele estava ali a fazer, não percebia como ele podia sequer ali estar, mas a pura malícia do sorriso do eahanoir fez com que crispasse os dedos no arco e esquecesse todas as perguntas. A flecha tremeu ligeiramente.

— Deixa a Lusia, Tannath — disse o shura com toda a calma que conseguiu reunir. — Ela não te fez mal algum, e isto é entre nós.

O eahanoir olhou para a eahlana como se a tivesse visto pela primeira vez, fazendo uma cara surpresa. Os orbes azul-escuros de Lusia giraram para os cantos dos seus olhos, cruzando-os com o de Tannath enquanto respirava aceleradamente através dos dedos enluvados deste.

— Linda, não é? Nunca tinha visto uma eahlana, e dou toda a razão às histórias, mas sabes, aquilo pelo que passei tornou-me bastante menos... impressionável.

— Larga-a, Tannath. Tens-me aqui.

— Pois tenho, Quenestil — concordou o eahanoir, afagando o ombro descoberto de Lusia com o indicador e médio da mão que empunhava o estilete. — Tenho-te exatamente onde te queria, tal como durante tantos meses sonhei. Mas tens razão, ela não me fez mal algum. — Outro sorriso malévolo ao virar o olhar para Quenestil. — Além de que nunca gostei de espectadores.

Com a velocidade viperina da qual Quenestil se lembrava, Tannath deslizou a mão que tapava a boca de Lusia até ao pescoço desta e beliscou-lhe a carótida com força. A eahlana estacou e, assim que o eahanoir a largou, estatelou-se ao comprido no chão. Quenestil despediu a flecha de imediato, atingindo Tannath no peito e impelindo-o contra o reposteiro. O eahan negro cambaleou para trás e arrancou-o do seu suporte ao cair, descobrindo uma estreita janela aberta ladeada por dois assentos de pedra almofadados. Quenestil frechou outra seta de imediato e manteve o eahanoir na mira enquanto avançava.

— Uma flecha... outra vez, Quenestil? — disse Tannath, fingindo admiração. — Já da outra vez começaste a luta com um truque sujo desses...

— Não vai haver qualquer luta. Tu vais morrer, maldito, e desta vez vou certificar-me de que ficas bem morto, nem que tenha de te varar de setas contra a parede e enfiar-te uma no olho que te resta.

— Mas que sanguinário... Será que o meu pai também era assim? — questionou-se Tannath, apoiando o braço num dos assentos de pedra para se erguer. Ao ver que a sua flecha provavelmente se alojara entre as costelas e o esterno do eahanoir, Quenestil fez nova pontaria.

— Ao menos não dispares sobre um homem caído...

— No chão, canalha! — quase gritou o shura, e a flecha cravou-se num pulmão de Tannath, que tornou a grunhir de surpresa.

Quenestil embebeu outra flecha no fio do arco e preparou-se para cumprir o que dissera, avançando sobre um Tannath curvado.

— Ela está viva, Quenestil. Não estejas tão zangado... — disse o eahanoir de cabeça baixa e cabelos pendentes ao erguer-se lentamente com os braços apoiados em ambos os assentos de pedra. O seu olho azul pareceu brilhar por entre os negros fios da sua cabeleira assim que se pôs entre o shura e a janela, espalhando no chão a sua sombra.

— Cala-me essa boca torpe. Não sei como entraste aqui, mas sei como vais sair, e desta vez eu...

Quando viu Tannath sorrir, já não foi a tempo de fazer valer a sua ameaça, pois uma sombra ergueu-se do chão e bateu-lhe no arco, arrancando-lhe da mão e soltando uma inofensiva seta. Antes que o eahan pudesse sequer assimilar a nova ameaça, um punho umbral enterrou-se na sua barriga, expelindo-lhe o ar para fora dos pulmões, e ouviu um ruído semelhante ao de tecido a revolutear pelo ar antes de um pé o atingir de lado na cabeça, derrubando-o.

— Interrompeste-me, Quenestil... Eu ainda queria falar um pouco antes de passarmos à diversão — disse Tannath, erguendo-se facilmente e arrancando ambas as flechas do seu torso.

Surpreso e atordoado, o eahan viu um vulto sombrio entre si e Tannath, uma réplica do eahanoir em todos os aspectos, embora desprovida de expressão ou relevo. Não se permitiu pensar acerca do que o seu adversário era ao certo e esticou-se no chão na tentativa de agarrar o seu arco, mas a sombra antecipou-se-lhe como Tannath o teria feito e pisou-lhe a mão. Quenestil mal teve tempo de cerrar os dentes de dor antes de uma bota sombria lhe embater no queixo, deixando-o estendido no chão de barriga para baixo. Tornou a ouvir o ruído de ar a resistir à passagem de tecido quando o vulto pareceu saltar, e dois pés aterraram aos lados da sua cintura. Aço umbral foi desembainhado nas suas costas, e Quenestil virou-se a tempo de agarrar dois braços que não o eram, ficando com um estilete e quebra-espadas sombrios a uma perigosa distância da sua cara. Contendendo por breves instantes, o eahan acabou por conseguir agredir o que julgava ser a virilha do vulto, mas este não acusou qualquer outra reação além do impacto e Quenestil plantou-lhe o pé na barriga, empurrando-o para longe de si. A sombra era real, física e sólida ao ponto de tropeçar na cama e cair sobre os lençóis. Quenestil desembainhou o seu facalhão e ergueu-se numa posição acocorada com um golpe de perna cruzado, rosnando entre os dois adversários. Tannath limitava-se a sorrir enquanto brincava com as duas flechas, girando-as entre os dedos, mas a sua sombra levantou-se prontamente, acocorando-se sobre a cama e pulando como um gato, espanejando a sombria capa pelo ar como distração. Quenestil desviou-se do primeiro golpe que o vulto desferiu em pleno vôo, mas o segundo escoriou-lhe o ombro esquerdo antes que o shura se conseguisse baixar, e, quando a sua resposta veio, o seu alvo já havia aterrado. Quenestil rosnou e estocou com o facalhão, mas o vulto tornou a menear a capa diante de si. atrapalhando-lhe o ataque, e deu seguimento com um forte pontapé à barriga que derrubou o eahan. Quenestil bateu com a cabeça na cama e teve de se desviar de seguida de outro chuto, prendendo a perna do vulto com uma tesoura e forçando-o ao chão com uma torção de ancas. O baque produzido pelo seu adversário era quase semimaterial, como se tivesse derrubado um fardo de lençóis, e este ergueu-se quase tão depressa como Quenestil, rodopiando com movimentos estorcegantes.

«Mãe, o que é esta coisa?»

O vulto não lhe deu tempo para grandes considerações, lançando-se numa nova surriada com todas as suas extremidades, que Quenestil se viu com dificuldades para aparar. Um golpe fez-lhe um rasgo no antebraço debaixo da braceleira de couro, e um pontapé na coxa direita fez com que a sua perna cambasse. O estilete negro veio dardejante na direção da sua garganta, mas o eahan foi suficientemente rápido para penetrar pelo golpe adentro e enfiar o seu facalhão debaixo daquilo que seria a axila do vulto. A criatura pareceu sentir o golpe, mas a única manifestação consistiu em desferir uma joelhada na cara de Quenestil para o afastar e de seguida retomar o ataque. Uma vez mais, meneou a capa negra como a noite como distração, mas Quenestil não se deixou iludir e crispou os dedos no sombrio tecido, puxando com toda a força e arremessando o vulto contra a parede. O baque foi pouco satisfatório, mas o eahan tornou a puxar a capa, torcendo-a com ambos os braços para puxar o vulto para si e projetá-lo por cima do ombro, deixando-o estatelar-se frustrantemente com pouco aparato no chão. Rosnando, Quenestil pousou-lhe o joelho em cima da ilharga, agarrou os fiapos sombrios que nele passavam por cabelos e desferiu um golpe dirigido à sua garganta com a ponta do facalhão.

A ponta de aço rilhou contra pedra quando a sombra se espalmou contra o chão, recuando como se escorresse pelas lajes como uma poça de um qualquer fluido negro e viscoso. Antes que o shura se pudesse virar para ver aonde fora, foi brutalmente atingido nos rins por um pontapé que lhe arqueou as costas e que quase fez com que os seus pulmões implodissem. Outro atingiu-o com violência na nuca, por pouco não o impelindo de cara contra o chão e obscurecendo-lhe a visão por alguns instantes.

— Não me deste tempo de te contar tudo, Quenestil... — explicou-lhe a voz de Tannath enquanto o eahan procurava recuperar a visão e o fôlego. — Já não sou o mesmo de antes.

A única resposta de Quenestil foi um rouco ofego enquanto abria e fechava os olhos, abanando a cabeça latejante.

— Vá, respira fundo. Não quero que desmaies já; não antes de a Slayra chegar...

A respiração ofegante do shura transformou-se num rosnido e Quenestil pôs-se de quatro como um animal, virando-se e saltando para cima de Tannath, que contudo se limitou a esticar a perna para que o eahan embatesse de barriga no seu pé. Com as duas flechas empunhadas, o eahanoir usou as pernas para desferir uma joelhada na cara curvada de Quenestil, seguido de um pontapé de lado na cabeça que o fez girar ao cair uma vez mais.

— Quenestil, não ataques enquanto não conseguires respirar como deve ser. Já disse que te quero consciente, além de que ainda não acabei. Não queres ao menos ouvir o que tenho a dizer antes que eu mate a Slayra à tua frente?

Respirando roucamente, o shura ergueu-se à segunda tentativa, olhos e dentes e punhos selvaticamente cerrados. Tannath ergueu um jocosamente admirado sombrolho e sorriu, girando as flechas nos seus dedos. Quenestil investiu desvairadamente, e o eahanoir limitou-se a descair para o lado de perna estendida para que o shura tropeçasse e derrapasse pelo chão, estrebuchando como um animal enraivecido para se erguer.

— Qual é a sensação, Quenestil, de estar tudo contra nós? — indagou Tannath enquanto o shura tropeçava mais do que corria na sua direção, desferindo um murro do qual o eahanoir se desviou, retribuindo com outro nas costelas. — De sentires o coração raivejar-te no peito a cada menção ao nome da Slayra?

Tannath golpeou-lho com o cotovelo para melhor ilustrar o seu ponto de vista, chutando-lhe de seguida o joelho de lado para o ajoelhar e atingindo-lhe a cabeça com o calcanhar.

— Não é muito agradável, pois não? As mulheres fazem-nos destas coisas, Quenestil... Mas estou a divagar. Eu ia explicar-te o que me aconteceu ao certo, lembras-te? És capaz de ficar sossegado por uns momentos e ouvir-me?

Sangrando do couro cabeludo raspado pelo pontapé, do ombro escoriado e do antebraço cortado pelo vulto, Quenestil tentava a custo erguer-se, mas a sua respiração dificultava-lhe.

— Ótimo. Bom, não é para te assustar, mas queria que soubesses que eu fui agraciado pelo meu senhor, e tornei-me num dos seus Passos. Lembras-te dos Aesh’alan, Quenestil? Sou um deles agora, um Passo d’O Flagelo: preparo Allaryia para a Sua vinda e sou capaz de coisas que nem imaginas... — explicou Tannath, girando as flechas nos seus dedos enquanto caminhava a passos lentos em volta do eahan. — Em parte devo-o a ti, e o meu senhor foi suficientemente benévolo para me permitir vir agradecer-te em pessoa.

A mão de Quenestil surpreendeu Tannath, esticando-se subitamente para lhe agarrar o tornozelo, mas o eahanoir descreveu um brusco semicírculo com a sua perna que virou o shura de costas. Como punição por o ter interrompido, pisou-lhe a barriga, o que fez com que o torso de Quenestil se arqueasse para cima, posicionando a sua cabeça para mais um pontapé que lhe expeliu da boca um fio de sangue que se esparrinhou na arca de roupa próxima. Quenestil tentou levantar-se, mas recebeu outro chuto nas costelas pelo seu esforço.

— É difícil falar contigo, sabias? — indagou Tannath, calcando-lhe as vértebras com um golpe que lhe soltou uma furiosa colônia de formigas pelos ossos fora. — Eu até tentei ser simpático contigo, mas tu limitavas-te a cuspir-me em cima e a pôr-me no mesmo saco onde punhas todos os eahanoir. E a Slayra, onde é que a pões?

— Maldito... desgraçado...! — rouquejou o shura, apoiando as mãos no chão e erguendo-se à segunda trêmula tentativa.

— Oh, vá lá, Quenestil — pediu Tannath, deixando os braços cair. — Deixa de ser ridículo. Não está aqui ninguém para impressionares...

— Maldito desgraçado!

Arrebatado, ferido e apenas a ver vermelho à sua frente, Quenestil arremeteu contra o eahanoir, que recuou um, dois, três passos, aparando os sucessivos golpes antes de enfiar o cotovelo no epigastro do shura e percuti-lo com as costas de um punho cerrado. Prendeu-lhe a cabeça entre ambos os antebraços e puxou-o duas vezes de barriga contra o seu joelho, que de seguida o atingiu na cara e o deixou a cambalear para trás. Tannath ainda desferiu um pontapé de raspão na cara de Quenestil antes de o impulsionar para trás com um forte na barriga. O eahan embateu de costas contra a arca de roupa e ficou encostado a ela, gemebundo. Tannath girou o pescoço e pareceu desapontado quando este não estalou.

— Bem, isto foi revigorante, mas já chega de nos divertirmos sozinhos. Temos de nos preparar para a Slayra, para quando ela vier.

O nome da eahanoir apenas trouxe um gemido mais audível à boca de Quenestil, que mal conseguia focar a visão e cujas pernas teimavam em lhe obedecer. Tannath assentou o pé sobre o braço esquerdo de Quenestil, que se encontrava estendido sobre a sua barriga, prendendo-lhe. Pegou no pulso direito do shura com a mão livre, encostando-lhe à tampa da arca e cravando-lhe nela com a flecha. Quenestil gritou de rouca dor e surpresa, mas estava imobilizado naquela posição e apenas conseguiu espernear e levar a cabeça atrás.

— Da outra vez atravessaste-me o antebraço com uma destas tuas malditas flechas antes de sequer começarmos a lutar — recordou-se o eahanoir, colocando a haste de outra diante da cara de olhos cerrados do shura. — Vais desculpar-me se te guardo um pouco de rancor por isso.

Tannath pegou no queixo de Quenestil com a outra mão e achegou-lhe ligeiramente a cara à sua, apertando-lhe as bochechas e franzindo-lhe os lábios.

— Eu quero que assistas, Quenestil. Quero que vejas tudo o que lhe vou fazer. Mas sabes, ocorreu-me uma coisa. — O eahanoir aproximou a ponta da outra flecha do olho esquerdo do shura. — Não precisas de dois olhos para ver...

A porta do quarto abriu-se de rompante, e os sedosos cabelos de Tannath chicotearam quando este virou a cabeça bruscamente, e os reflexos que ganhara em vida sobrepuseram-se à lassidão que o conforto da morte lhe conferira, permitindo-lhe desviar-se de um punhal arremessado. Tannath desembainhou duas ornadas lâminas de arremesso das bainhas nas suas braceleiras, mas ao ver quem acabara de entrar, os seus braços estacaram e um sorriso rasgou-lhe a cara.

— Slayra — foi a única palavra que proferiu ao ver a eahanoir de olhos arregalados à porta. Porém, o seu sorriso desvaneceu-se quando o seu olho desceu para o estranho intumescimento no ventre da eahanna negra, e os dois ficaram a olhar-se em mútuo choque de bocas entreabertas.

Slayra foi incapaz de falar, duvidou que fosse capaz de se mexer, e sentiu as pernas fraquejarem, esmagada pela realidade da presença do seu antigo amante. A eahanoir tentava olhá-lo no olho, mas Tannath tinha-o fixo na sua barriga, tendo esquecido Quenestil por completo. Este aproveitou a deixa para morder a haste da flecha com os dentes e arrancá-la da sua mão com um sacão do pescoço. Tannath devolveu-lhe a sua atenção, mas Quenestil agrediu-o na garganta com a mão ferida antes que pudesse reagir, intentando esmagar-lhe a laringe. O eahanoir acusou o golpe, mas, em vez de recuar e levar as mãos à garganta, golpeou o shura com as costas de uma e esmurrou-o com a outra. Slayra gritou, tirou outro punhal de algures entre as dobras do seu folgado vestido negro e atacou, aterrorizada mas inflamada pelo perigo que Quenestil corria. Tannath apontou para ela e a sua sombra pulou do chão, estarrecendo a eahanoir e encostando-a à parede com um sombrio estilete perto da sua barriga. Tannath endireitou-se e pegou em Quenestil pelos cabelos, virando a sua cara surrada para Slayra.

— Isto... isto é melhor do que eu alguma vez esperei — confessou o eahanoir com voz sufocada devido à sua garganta golpeada. — Ela é mesmo diabólica, Quenestil. Mais do que nós os dois pensávamos.

Atordoado e de trêmulos olhos semicerrados, Quenestil pouco mais conseguiu murmurar que umas ameaças incoerentes ao ver Slayra ser ameaçada.

— Bom demais... isto é bom demais — disse Tannath com um sorriso maníaco, claramente excitado. — Não te posso matar assim, Slayra. Não quando estás quase a dar à luz o meu filho...

A respiração de Slayra estava acelerada, e embora toda a sua atenção estivesse focada na ponta negra que lhe ameaçava a barriga, os seus olhos arregalaram-se ainda mais e viraram-se para Tannath.

— O quê? — arquejou. Quenestil grunhiu.

— O meu filho... pel’O Flagelo, eu não posso acreditar... — O eahanoir levou a cabeça atrás e riu de boca escancarada, endireitando-se de seguida com um sorriso de dentes bem expostos. — Vocês irão viver, os dois. Vou poupar-vos a vida, e tu, Slayra, darás à luz o meu filho. Mas eu voltarei. Um dia voltarei, disso podem estar certos. Poderei estar nas sombras do vosso quarto, poderei vir com o cair da noite, poderei ser a silhueta que se estende nas vossas próprias costas, poderei aparecer em qualquer lugar quando menos esperarem. E vocês nunca o saberão até ser tarde demais.

Tannath curvou-se ligeiramente para falar ao ouvido de Quenestil.

— E tu, meu caro Quenestil, viverás sabendo que eu te podia ter morto e a ela facilmente, mas que vos deixei viver. Que vos deixei viver para um dia vos matar pela calada da noite. E vou matar-vos, tal como te prometi e descrevi, disso podem estar certos. Mas primeiro gostava de ver o meu filho nascer, está bem?

— Seu... filho da...

O joelho de Tannath calou a boca de Quenestil, atirando-o de costas ao chão. Slayra meio gritou meio soluçou algo, mas o eahanoir levantou as apaziguantes mãos como para dar a entender que já terminara.

— Ele mereceu isto; foi muito desconsiderado para comigo em Aemer-Anoth — justificou-se Tannath, encaminhando-se com ar pensativo para Slayra. — Como foi, Slayra? Ficaste triste por não poderes falar comigo uma última vez, por eu ter morrido de forma tão inglória? Não, não digas nada. Já sei que não me choraste.

— O filho... não é teu — disse Slayra, contendo a respiração para não aproximar demasiado a barriga do estilete do vulto.

— Ai não? — retorquiu Tannath, inclinando a condescendente cabeça e passando os dedos enluvados pelos cabelos de Slayra. A eahanna virou a cara, fechando os olhos, o que renovou o sorriso na cara do eahanoir. — Nunca deixei de pensar em ti, sabias? — perguntou, passando umas madeixas negras por entre os seus dedos enquanto o vulto se mantinha impassível e vigilante. — Aliás, foi em grande parte graças a ti que eu...

O ruído de pesados e apressados passos à distância no corredor interrompeu Tannath, que recuou de olho posto na porta, embora o vulto permanecesse imóvel.

— Interrupções, sempre interrupções... — murmurou Tannath, passando por Quenestil e por Lusia enquanto retrocedia para perto da janela. — Ah, toma cuidado contigo agora, tu e o Quenestil correm perigo nesta fortaleza. O melhor é irem esconder-se nas sombrias catacumbas — sugeriu o eahanoir cora um malicioso sorriso. — Até à próxima, querida Slayra. Tornaremos a ver-nos.

Silencioso como a morte, o corpo de Tannath desagregou-se nas sombras próximas da janela e o seu vulto espalmou-se contra o chão nesse mesmo instante, escorrendo rapidamente até à sua silhueta para que ambos serpenteassem pela abertura até ao exterior. Com um longo e rouco suspiro, Slayra deixou-se descair ligeiramente pela parede abaixo, levando uma mão à boca para conter os soluços e a outra à barriga. Ruídos e vozes vinham do corredor, mas foram os gemidos de Quenestil que despertaram a eahanoir, que correu a ajoelhar-se a seu lado, pegando-lhe pela cabeça.

— Quenestil, estás bem?

O eahan começava a formar inchaços na cara e sangrava de uma ferida no couro cabeludo e de ambas as narinas, embora não parecesse ter o nariz partido. Os seus olhos ainda estavam algo desfocados, atordoados, e os seus membros mexiam-se de forma desconexa.

— Quenestil, fala comigo!

— O Tannath... — conseguiu o eahan grunhir. — Onde está...? — Já foi, ele já foi embora. Estás bem? O que é que ele te fez...?

— Nada. Estou bem — tornou o shura a grunhir, apoiando os cotovelos no chão para se levantar e fazendo uma careta com a dor nas costelas, às quais levou a mão ferida.

— Espera, não te mexas. A tua mão...

— Estou bem! — rosnou o eahan, recolhendo as pernas ao erguer o tronco e apoiando-se com a mão esquerda, tendo readquirido uma medida de ferocidade nos olhos ao olhar para Slayra.

A eahanoir recuou ligeira e involuntariamente diante da reação de Quenestil.

— A... Lusia?

— Está só inconsciente — disse o eahan, pegando no braço de Slayra com força e prendendo-lhe os olhos com os seus. — De que estava o Tannath a falar? O filho dele?

Slayra ficou boquiaberta, fitando Quenestil sem sequer piscar os olhos, e os do shura endureceram como pedras em resultado do seu silêncio.

— Quenestil... tu não...? — A boca do eahan era uma linha tensa na sua cara. — Quenestil, tu não te atrevas a...

— Não me atrevo a quê? — quase sibilou o shura com a garganta contrita, apertando o braço de Slayra com mais força.

— Estás a magoar-me!

A tempestade de aço que entrou pelo quarto adentro interrompeu bruscamente a conversa, que foi espezinhada pelos pesados escarpins dos sirulianos armados. Os espadões e alabardas que empunhavam estavam cruentos, e partes das suas armaduras encontravam-se manchadas e listradas de sangue.

— A Primogênita? O que lhe aconteceu? — perguntou o siruliano que vinha na dianteira ao erguer a babeira em forma de relha de arado do seu elmo.

Slayra e Quenestil tiveram praticamente de se arrastar de gatas para fora do caminho dos sirulianos para não serem atropelados, e ainda assim houve quem lhes apontasse as pontas de acusadoras alabardas.

— O que aconteceu aqui? Quem lhe fez isto?

— Ela está viva, está viva! — assegurou Slayra. — Está só inconsciente...

— Quem foi? — perguntou outro siruliano, que se ajoelhara diante da eahlana, pousando a alabarda no chão e pegando-lhe com impossível cuidado na cabeça com as enormes mãos.

— Um... uma criatura d’O Flagelo — disse a eahanoir, trocando olhares com Quenestil, cujos olhos eram tudo menos cúmplices. — O que se passa?

— Gul-Yrith está a ser atacada — respondeu o siruliano, colhendo Lusia nos seus braços e erguendo-se enquanto outro pegava na sua alabarda. — Venham conosco, vamos evacuar-vos com os Lasan.

As suas palavras despertaram Quenestil por fim do seu olhar inquisidor, e o eahan levantou-se virado para os sirulianos.

— Atacada...?

— Pega nas tuas armas, eahan — disse o siruliano com Lusia ao colo, passando por ele e por pouco não o derrubando. — Tu, eahanoir, acompanha-nos se conseguires. Não nos iremos retardar por tua causa.

Dito e feito, os Ajuramentados marcharam para fora do quarto e Quenestil foi forçado a recolher o seu arco e facalhão à pressa, rasgando pelo caminho a toalha branca sobre a arca de roupa para enfaixar a sua mão ferida. Praticamente sem se deter, cingiu de seguida a cintura de Slayra com o braço e puxou-a atrás de si com um pouco menos de delicadeza que o habitual.

— Quenestil, eu...

— Falamos depois — interrompeu o eahan sem sequer olhar para ela enquanto seguia os sirulianos pelo corredor fora.

— Ouve...

— Agora não! — praticamente rosnou Quenestil de dentes cerrados, virando-se para a eahanoir como um cão prestes a morder. — Nem uma palavra. Falamos depois. Depois, ouviste?

Com isto, o eahan tornou a puxá-la e Slayra deixou-se ir, tentando controlar a respiração e sustentando a barriga com o braço. Havia sons de batalha que vinham do exterior, filtrados através das estreitas janelas, mas embora estes assustassem Slayra, naquele momento não eram eles o que a eahanoir mais temia.

Era o que se lhes seguiria.

 

Kror tentava a custo manter à distância a dardejante ponta curva da foice de guerra, mas esta ameaçava-o, sempre próxima, chispando nas suas lâminas como uma serpente assanhada. Aewyre observava o combate encostado de braços cruzados à parede de uma das salas de treino no interior do baluarte da Cidadela, onde haviam passado a treinar desde que Diacolo os entregara a Heldrada. Era um recinto pequeno e totalmente desprovido de decoração além de duas séries de colunas, iluminada por isoladas janelas estreitas que despejavam fachos de luz pálida para o interior. Aewyre já perdera a conta das vezes que Kror e ele o haviam percorrido na íntegra a lutar com Heldrada, embora talvez o pudesse contar através das partes do corpo que lhe doíam. O sathmaro tomara sem dúvida a decisão acertada ao pô-los a treinar com a mulher, pois esta parecia desconhecer o conceito de luta de treino. Cada golpe seu tinha o potencial de os magoar e alguns haviam sido verdadeiramente perigosos, mas Heldrada parecia apenas aumentar a intensidade quando não correspondiam. O drahreg envergava a sua armadura de couro e um gorjal acolchoado à garganta como precaução, mas a humana lutava como sempre apenas com as suas já de si parcas vestimentas, exibindo feridas recentes sobre as suas inúmeras cicatrizes no ventre e braços. As suas pernas longas e magras deviam estar igualmente marcadas, mas eram a única parte do seu corpo que tinha a mínima decência de cobrir, embora as apertadas calças de pele de gamo deixassem pouco à imaginação. Aewyre tivera ocasião de descobrir algumas coisas acerca da namuriquana nas suas conversas com os Lamelares que se haviam dignado a responder às suas perguntas, e tivera a distinta impressão de que apenas o conseguira porque Heldrada causava uma espécie de solidariedade entre os que com ela treinavam ou haviam treinado. Epítetos como «chanfrada», «cabra maluca» ou «Ceifadora de túbaros» eram os mais freqüentes e menos explícitos, e entre eles o guerreiro ouvira histórias, boatos e teorias deveras bizarros. Segundo lhe fora contado, a mulher não só fora deflorada com uma adaga como também parecia derivar um estranho prazer dos ferimentos que lhe eram infligidos durante os treinos, uma das razões das suas cicatrizes. Quando isso não lhe bastava, Heldrada alegadamente feria-se a si mesma nos seus aposentos. Aposentos esses que por sinal nenhum dos Lamelares alguma vez chegara a visitar pelo fato de Heldrada não ser considerada particularmente atraente. Aewyre julgava que se tratava de algo mais, embora não pudesse negar que o corpo magro e nervudo da namuriquana tão-pouco ia de encontro aos seus padrões, e as cicatrizes e o cabelo cortado à facada também não ajudavam. Heldrada aparentava não ter uma única gota de gordura, o que lhe expunha os músculos nervudos de uma forma muito pouco atraente. Apesar disso, mesmo enquanto a via lutar, o guerreiro não podia negar que havia algo na namuriquana que a destacava, e não era só o fato de ser mulher. Alta, com cabelos da cor do linho, malares salientes, maxilar raso e uns intensos olhos azul-claros, acabava fatalmente por chamar a atenção, tanto devido às suas características exóticas como à sua presença distintamente perturbadora. Havia algo em Heldrada que sem dúvida contribuíra para muitas das histórias a seu respeito, algo de magnético, repulsivo e cativante ao mesmo tempo, algo de selvagem semelhante a um animal enjaulado que levantava a questão acerca de quem estava verdadeiramente preso com quem. Além disso, a sua esparsa indumentária que lhe expunha boa parte do torso e lhe apertava o já escasso peito acabava invariavelmente por cativar os olhares masculinos, bem como o curioso anel dourado sobre o umbigo e as ancas cingidas pela cinta de couro. Aewyre nunca a vira com outras roupas, mas embora a sua noção de estética pudesse ser posta em causa, não havia dúvida de que Heldrada se exibia em marcial magnificência nelas enquanto lutava com a sua longa e fina trança a serpentear-lhe da nuca, brandindo a sua foice de guerra com destreza e mestria.

Kror parecia estar a ter os mesmos pensamentos, pois não tinha ar de estar particularmente concentrado na luta. O objetivo do treino tal como delineado por Diacolo era forçar a partilha da Essência da Lâmina através da exposição controlada a uma situação de perigo ou stresse extremo. Haviam conseguido certos progressos nas sessões anteriores, a custo de algumas nódoas negras e cortes, incluindo uma incisão feia na anca de Kror que por pouco não infectara. Sempre que um via a hipótese de matar o outro ser usurpada por outrem, alcançava-se uma espécie de entendimento temporário que permitia ao ameaçado fazer uso quase pleno da Essência da Lâmina, mas finda a ameaça ou um curto período de tempo, o «tendão» tornava a puxar e repartia o potencial uma vez mais. Aewyre e Kror haviam tentado prolongar esse clímax quer estivessem numa posição ativa ou passiva, mas este dera mostras de ser uma força a ter em conta por direito próprio, e o tempo parecia sempre insuficiente. Por sua vez, Heldrada limitava-se a desempenhar o seu papel sem oferecer qualquer tipo de conselho e parecendo apenas procurar pretextos para poder aumentar a intensidade das sessões. Apesar de ter um grau de proficiência superior ao de Aewyre e Kror, a namuriquana não escapara ilesa aos treinos, embora à luz das histórias que Aewyre ouvira vários dos seus ferimentos talvez tivessem sido o resultado de permissividade e não se devessem necessariamente à sua perícia ou à de Kror. Fora-lhe difícil colocar semelhante pensamento em perspectiva — o de haver uma mulher que lhe fosse superior em combate — mas Aewyre pudera sempre reconfortar-se com o fato de que Heldrada já era uma Mestre de Armas enquanto ele não passava de um mero Portador. Ainda assim, tentava não pensar demasiado no assunto, pois Essência da Lâmina ou não, era inegável que Heldrada era realmente boa. A foice de guerra era uma arma mortífera nas suas mãos, tanto pelo alcance como pela rapidez das suas estocadas, além de que podia desferir terríveis golpes cortantes em arco que mesmo bloqueados podiam ser perigosos devido ao seu simples ímpeto. Kror dançava em seu redor de alfanges rodopiantes, mas pouco mais conseguia além de se manter a uma distância segura. Heldrada ameaçara-o umas quantas vezes de forma séria, e nessas ocasiões o drahreg conseguira fazer uso temporário da Essência da Lâmina, mas o resto do treino consistira basicamente de desvios e evasões com alguns contra-ataques mais ou menos bem-sucedidos. Kror conseguira ocasionalmente penetrar na defesa da namuriquana adentro com umas rápidas passadas no momento certo, mas agora mais parecia aguardar uma situação de perigo na qual pudesse atacar com a Essência da Lâmina. Aewyre compreendera a sua idéia e tentara concentrar-se desde então para o ajudar, mas Kror estava a defender-se muito bem e não propiciava situações de perigo, além de que Heldrada começava a acusar um pouco de cansaço por ter estado a combater com os dois durante boa parte da tarde. O humano e o drahreg também estavam cansados e doíam-lhes várias partes do corpo como resultado do intenso treino de contato. Após semanas de progressos assinaláveis, Aewyre começava a ter a sensação de que estavam a empurrar um pesado pedregulho por uma ladeira acima apenas para o verem cair após o seu esforço. O jovem inspirou fundo, fechou os olhos e tentou visualizar o «tendão», imaginando-o tenso e trêmulo entre si e Kror, rangendo e protestando com a contenda que havia muito deveria ter terminado. Rangendo, sempre a ranger...

«Sabes uma coisa? Começo a ficar farto de ti. Mesmo farto», confessou o guerreiro à sua imaginação. «Pois bem, se qualquer luta é uma fomentação das energias vitais genésicas e vegetativas, e a Essência da Lâmina não passa de uma manifestação desse estímulo, então o que fazes aqui comigo, que estou perfeitamente quieto?»

Aewyre ia jurar que recebera um rangido mais forte como resposta. Havia já algumas sessões que nutrira certas suspeitas ao tentear as resistências do «tendão» e estudar atentamente os seus padrões de tensão, e achou que estava na altura de um pequeno teste.

«Tu queres manifestar-te, não queres? É para isso que existes, para o ardor do combate, o entrechocar do aço. Deves estalar de frustração comigo aqui de braços cruzados enquanto o Kror luta, não?»

Um pequeno clarão de racionalidade fulgurou na mente de Aewyre, temente da sua sanidade e pedindo-lhe que parasse com semelhante absurdo, mas o jovem estava farto de tentar ser razoável com o «tendão».

«Sim, é aquilo que queres e desejas. Até eu o sinto, até eu gostava. Por que desafias o teu propósito, por que negas a tua natureza?», reptou Aewyre, retesando os seus maxilares em emulação da tensão na qual imaginava o «tendão», abrindo os olhos e fixando Kror.

O drahreg continuava a dançar com Heldrada, deixando a foice de guerra ditar o ritmo e o passo. Aewyre focou-se na fluidez dos seus movimentos, na fulguração das lâminas dos seus alfanges de cada vez que passavam por um facho de luz, nas suas exalações rítmicas e grunhidos a cada golpe e bloqueio. Talvez devido à sua acentuada sintonia com o «tendão», naquele momento Aewyre sentiu as primordiais energias vitais emanarem dos dois contendores: dois animais a combaterem por território, o rasgo do dealbar na noite, uma cria a debater-se com as adversidades do parto ao nascer, o esforço de um pulmão para respirar, presa e predador, dia e noite, frio e calor. O «tendão» parecia prestes a estalar.

«Vai, por que esperas?», tornou Aewyre a desafiar. «Ele esta à tua espera.»

Como se o «tendão» protestasse, o jovem abanou a cabeça em negação.

«Já sabes que de mim não vais conseguir nada; eu não o vou combater, por muito que ranjas. Se queres desempenhar o teu propósito, o melhor é aproveitares... agora!»

Relaxando todos os músculos do seu corpo em simultâneo com uma brusca exalação, Aewyre descaiu de costas para a parede ao largar a sua ponta do «tendão», sentindo-o estalar para fora dos seus membros. O embate com Kror foi repentino e o seu efeito imediato, lançando o drahreg num furor atacante que prontamente alterou o ritmo da dança, acentuando a sua leitura dos movimentos da adversária e aprimorando-lhe os reflexos. Heldrada foi tomada de surpresa e recuou enquanto Kror lhe batia na foice de guerra com os lados das lâminas numa tentativa de a afastar e penetrar pela sua defesa adentro. A namuriquana deixou a haste da arma deslizar ligeiramente pelas suas mãos abaixo, desferindo uma talhada no ar à sua frente que se propagou numa afiada reverberação dirigida a Kror, que a desviou com um alfange. Aewyre sentiu quase de imediato a ameaça de um refluxo do «tendão» e cerrou os dentes ao negar-lhe o regresso. Pela primeira vez conseguira forçar a partilha, e embora a resistência do «tendão» continuasse tão feroz como sempre, este parecia ter perdido um ponto de apoio que lhe fortalecia a posição. Aewyre estava determinado a ver até que ponto conseguiria manter a cisão, mas de repente ocorreu-lhe um pensamento que lhe minou a resolução: e se a Essência da Lâmina permanecesse de fato em Kror por lhe estar a recusar o regresso?

Essa breve hesitação, essa ínfima falha na sua determinação foi quanto bastou para que o «tendão» se infiltrasse por ela adentro, regressando ao corpo de Aewyre com um vingativo coice que o fez embater de costas contra a parede. Por sua vez, Kror vacilou no ataque e expôs-se demasiado com uma estocada comprida, sendo rapidamente apanhado pela haste de Heldrada, que lhe torceu o braço atrás das costas e o pôs de joelhos com o seu sobre o dorso do drahreg. Os dois deixaram-se estar naquela posição e a mulher disse-lhe algo perto do ouvido que Aewyre não conseguiu ouvir, pois estava longe e tinha um remoinho de pensamentos e impressões a destrinçar e ordenar dentro da cabeça.

«Filho da mãe... desta vez ganhas te.»

O guerreiro sacudiu a cabeça e afastou-se da parede, preparando-se para a sua vez com Heldrada. Contudo, Kror estava com olhos e dentes cerrados e viam-se-lhe as veias a latejarem na careca, pois a mulher mantinha-lhe o braço em posição de luxação enquanto falava com ele. Aewyre franziu o cenho ao aproximar-se, questionando-se quanto à finalidade daquilo e recordando-se das histórias dos outros Lamelares. O drahreg grunhiu audivelmente e cerrou o punho livre quando Heldrada ajustou ligeiramente a posição da haste, fazendo o que soou como uma pergunta, mas que também poderia ser um desafio. Kror abanou a cabeça e tornou a grunhir, desta vez em negação, e quando Heldrada baixou ligeiramente a cabeça para lhe sussurrar ao ouvido, os dedos da mão livre do drahreg crisparam-se no cabelo da namuriquana. Antes que Heldrada lhe pudesse luxar o ombro, Kror puxou-lhe a cabeça e torceu-lhe o pescoço, rosnando algo por entre os dentes. Intrigado e algo inquietado com tal comportamento, Aewyre estugou o passo, apoiando a mão no pomo de Ancalach.

— Mestre de Armas, podemos começar, nós os dois? — perguntou com o tom de voz mais neutro que conseguiu formar em semelhante situação.

Ainda com a cabeça torta, Heldrada limitou-se a erguer os olhos para fitar Aewyre, e o azul dos seus orbes era tudo menos amistoso, quase incomodado pela interrupção. Kror exalou contidamente pelo nariz adunco quando a pressão no seu braço relaxou, e correspondeu largando lentamente os desguedelhados cabelos da mulher, que se levantou com ar venenoso.

— Eu estava a ensinar uma coisa ao Kror — disse, guturalizando os erres e sibilando os esses na sua característica forma e deixando cada sílaba bem explícita. Tinha um vocabulário mais completo que o de Diacolo, mas a sua fala espaçada por vezes fazia com que Aewyre desejasse que fosse mais reduzido.

— E eu... peço desculpa, Mestre de Armas, mas creio ter feito progressos no domínio da Essência da Lâmina, e gostava de continuar.

— Sim? — indagou Heldrada, erguendo as claras sobrancelhas descuidadas. Se o seu olhar e postura não fossem tão ameaçadores, talvez a sua rouquidão tivesse um efeito sedutor, o que decididamente não era o caso.

— Sim. Podemos começar?

A namuriquana atirou a fina trança loura para trás do ombro com um gesto da mão e inclinou a cabeça, apoiando-se na foice de guerra. Aewyre não se conseguia recordar de parte alguma do corpo da mulher que não tivesse sido atingida por si ou por Kror nos últimos dias, mas ou isso não a incomodava, ou era muito boa a disfarçar. O jovem bem sabia que fora difícil manter uma boa postura a andar com as pancadas que recebera na coxa e com as vezes que os seus pés haviam sido pisados.

— Quem orienta os treinos? — perguntou Heldrada retoricamente, dispensando brevemente a atenção a Kror quando este se ergueu.

Aewyre suspirou discretamente.

— Naturalmente é a Mestre de Armas quem orienta os treinos...

— Então por que me interrompeste?

— Porque descobri algo de novo...

— E não podias esperar que eu acabasse com o Kror?

— Estava com medo de que o fizesse mesmo — escapou a Aewyre.

Heldrada Semicerrou os olhos azuis e passou a haste da foice de guerra para a sua outra mão.

— Não gostas dos meus... métodos?

— Os seus métodos são excelentes para quem quer aprender a lutar, mas...

— Achas que sou demasiado dura? Um homem grande e forte como tu?

— Não, só acho que eu e o Kror já sabemos lutar. O que queremos é aprender a dominar a Essência da Lâmina, e não me parece que o consigamos a puxar cabelos e torcer braços — tornou a escapar a Aewyre.

Heldrada fitou-o sem piscar durante alguns momentos, findos os quais lhe virou as costas e deu o primeiro passo para se retirar. No mero instante em que Aewyre desviou a sua atenção para Kror, teve apenas tempo de registar o súbito alarme do drahreg antes de a devolver à mulher e constatar que a cabeça desta estava ao nível da sua barriga. Isto antes de a haste da foice de guerra lhe varrer os pés do chão, com o qual as suas costas e nuca colidiram violentamente. O guerreiro não teve sequer tempo de dissipar os pontos brancos nos seus olhos ou normalizar a sua respiração antes de sentir um grande e afiado gume curvo debaixo do seu queixo. Quando conseguiu focar a visão, viu que a arma se estendia até às mãos de Heldrada, que parecia demasiado pequena e franzina para um gume tão grande.

— Bem, parece que há coisas que tu e o Kror ainda não sabem, não é?

Aewyre teria respondido, mas ainda não tinha fôlego para articular palavras e a ponta debaixo do seu queixo não o estava a ajudar a recuperá-lo.

— Talvez me queiras ensinar mais alguma coisa? — sugeriu a namuriquana. — Ou talvez...

— Então, Heldrada, então? — ouviu-se uma voz na sala dizer, uma voz que pôs a mulher imediatamente em sentido.

Aewyre ouviu passos, mas a sua nuca ressentiu-se ao erguer a cabeça, pelo que a apoiou com a sua mão enquanto se virava lentamente. Kror e Heldrada olhavam para o recém-chegado, que o atordoado jovem demorou a reconhecer como Assiòn através do andar confiante e ponderado de mão agarrada à espada debaixo da capa verde presa ao ombro. O laonês sorria debaixo do seu bigode como o velho simpático que gostava de aparentar ser, mas notara-se um tom de cautela na sua voz que fora sobretudo dirigido a Heldrada.

— O que estou eu farto de te dizer acerca de mestres e alunos? — perguntou com erres e us exagerados, detendo-se com dois ruidosos passos como para marcar presença. Ainda não olhara para Aewyre ou Kror, embora os indicasse a ambos com um gesto.

— Que um dia o aluno será melhor do que nós... — recitou Heldrada com um tom de voz entediado.

— E...? — instigou Assiòn, gesticulando com uma mão enluvada.

— E que devemos evitar tratá-los como não gostaríamos de ser tratados por eles quando estivermos velhos e fracos.

— Está claro que não és assim tão velha — assegurou-lhe Assiòn, sorrindo e rindo guturalmente. — E o Aewyre e o Kror são pouco mais novos que tu, mas percebes o que quero dizer, não percebes?

— Sim, Alto Lamelar — disse Heldrada de cabeça baixa em falsa humildade.

— Bom, já se começa a fazer tarde. Talvez devessem parar por hoje? Parece-me que estão a precisar de um balde de água fria, uns mais que outros.

Aewyre não soube dizer se o chiste fora ou não intencional, mas ao afagar a nuca convenceu-se de que até não era má idéia. O jovem levantou-se, massageando suavemente a cabeça e olhando com cara de poucos amigos para Heldrada sem se esforçar por velar o seu tom de ameaça, que foi retribuído em pleno.

— Como têm sido as sessões? Proveitosas? — interpôs-se Assiòn, que, apesar de ser o mais baixo na sala, conseguia impor a sua presença.

— Chegamos a conclusões interessantes com o Mestre de Armas Diacolo, sim — comentou Aewyre com propositada malícia, o que estreitou os olhos de Heldrada.

— Sim? Estou curioso; contem-me enquanto me acompanham num pequeno passeio. Já estão trancafiados aqui dentro há demasiado tempo. Heldrada, vai descansar, minha querida.

A namuriquana nada disse nem se mexeu, acompanhando a saída dos três com o olhar e apoiando-se com ambas as mãos na foice de guerra. Aewyre manifestou a sua inimizade uma última vez antes de lhe virar as costas e ir buscar a sua capa; Kror andou praticamente com a cabeça virada para trás até sair porta fora e postar-se ao lado do humano enquanto seguiam o Alto Lamelar. Os corredores da Cidadela estavam solitários como sempre, e o único som era o das correntes de ar e o distante entrechocar de lâminas que se ouvia sempre como ruído de fundo durante o dia e ocasionalmente à noite. Eram iluminados por tochas com suportes em forma de espadas cruciformes, além dos quais havia apenas a ocasional tapeçaria bucólica laonesa a servir de decoração, e a única característica de relevo que viram foi um pequeno altar a Gilgethan alojado num nicho na parede.

— Vamos até ao topo do torreão. O pôr do sol costuma ser muito bonito por esta altura — disse Assiòn, virando para uma escada em espiral.

Aewyre e Kror hesitaram, não devido à sugestão do Alto Lamelar, mas porque ambos se sentiram repentinamente relutantes em darem as costas ao outro. O «tendão» fora esticado até ao limite e usado de forma intensiva nos últimos tempos, o que deixara os dois guerreiros particularmente susceptíveis e tensos. Assiòn deteve-se após três degraus e olhou por cima do ombro sem compreender o que se passava até começar a sentir a quase palpável tensão emanar dos dois. Rindo guturalmente, o laonês encostou-se à parede e esticou o braço direito.

— Vai à minha frente, Kror, é sempre a subir. Já estou velho para estas escadas, e dá-me jeito ter um rapaz grande e forte como o Aewyre para me apoiar se eu cair.

O drahreg não contestou a justificação de Assiòn e passou-lhe prontamente à frente, e o homem ainda piscou o olho a Aewyre antes de lhe virar as robustas costas. Os três subiram em silêncio, cada um absorto nos seus próprios pensamentos até Assiòn os interromper.

— É um pouco difícil lidar com a Heldrada, não é? «Não, se formos masoquistas..,», pensou Aewyre.

— Eu acho que ela nos treina bem — disse Kror em inesperada defesa da mulher. — Nós precisamos de algum perigo para usarmos a Essência da Lâmina.

«... ou drahregs com uma paixoneta. Só me faltava esta agora.» Os três percorreram um corredor até ao escritório do Alto Lamelar, no qual tomaram uma escadaria que dava ao topo do torreão.

— Sim, a Heldrada sempre foi muito... intensa. Mas sempre preparou bem os seus alunos, apesar de os magoar e de eles ficarem sempre a odiá-la. Dois chegaram mesmo a atacá-la e um quase a matou, tal era a raiva que lhe tinha.

— O que lhe aconteceu? — perguntou Aewyre.

O Alto Lamelar olhou sobriamente para trás por cima do ombro.

— Foi um... incidente infeliz — limitou-se Assiòn a dizer, e o resto da subida foi efetuada em silêncio até chegarem à porta que dava ao cimo do torreão.

Estava frio, pois o sol punha-se e o vento soprava das montanhas em redor, sacudindo as capas de lã com as quais Aewyre e Kror prontamente se agasalharam. Os derradeiros raios tingiam a neve macia dos cumes em tons rosados e davam-lhes um ar que o guerreiro só soube descrever como apetitoso. O vale também já tinha os seus retalhos brancos, embora ainda não tivesse nevado com grande intensidade, e as quintas e fazendas nas cercanias estavam sossegadas, fumando placidamente das chaminés. Das vertentes das montanhas à distância ouviam-se os indistintos ecos de machados a falquearem madeira, a derradeira labuta dos lenhadores que preparavam os seus lares para os rigores do Inverno. Pequenos vultos acompanhados por enérgicos cães caminhavam ao longo das estradas, portando às costas fardos de fetos-dos-ventos que serviriam para acamar o gado que seria poupado à matança do fim do Outono.

— O Inverno costuma ser sossegado aqui no vale. A não ser quando temos bradagà.

— O quê?

— Um vento do norte que nem o escudo de Gilgethan agüentaria — explicou Assiòn, apontando na referida direção. — Parece uma alcatéia de lobos no céu. Muito forte. Há quem passe noites sem dormir com o barulho que faz.

Aewyre e Kror grunhiram a sua compreensão, mas nada mais acrescentaram.

— Muito forte mesmo... — murmurou Assiòn, roçando as narinas com o bigode e agasalhando-se ele também com a sua capa.

Os três ficaram a contemplar a lenta queda do sol em renovado silêncio. Aewyre esfregou as orelhas avermelhadas pelo frio, sentindo as quatro cicatrizes no lado esquerdo da sua face enrijecerem, e Kror fungou do nariz que começava a correr.

— Bem, então contem-me lá que descobertas foram essas que fizeram — disse o Alto Lamelar por fim. — Acreditem que estamos todos curiosos quanto aos vossos progressos.

Os dois Portadores entreolharam-se como já pareciam não poder deixar de fazer, aparentando discutir sem palavras quem a deveria tomar. Alcançaram uma decisão que não foi verbalizada e Aewyre assentiu com a cabeça.

— O Mestre de Armas Diacolo não vos contou?

— Gostava de o ouvir das vossas bocas — disse Assiòn, ainda de olhos postos no horizonte. — Além disso, as vossas últimas sessões foram com a Heldrada, e ela nunca foi muito faladora.

Aewyre brincou com o pensativo incisivo saliente com a língua antes de se decidir a fazê-lo.

— Descobrimos que detemos uma certa medida de controlo sobre a Essência da Lâmina.

— Deveras? — Assiòn ergueu as sobrancelhas grisalhas.

— Sim. Continuamos a ter de estar expostos a um certo perigo, ou pelo menos numa situação de combate, mas já constatámos que é possível transferir a nossa parte da Essência da Lâmina para o outro por nossa própria vontade.

Assiòn virou a cara para o jovem, e o seu olho direito com a pálpebra e sobrancelha descaídas davam-lhe naquele momento um ar cético às feições quadradas.

— Sou... todo ouvidos.

— A Essência da Lâmina...

— Podes dizer «tendão» — sorriu o bigode do laonês. — O Diacolo contou-me e eu achei muita piada ao nome. Além de que transmite a idéia correta.

Aewyre não comentou.

— Nós sabemos o que o «tendão» quer, qual a sua única função. O que eu experimentei não foi mais que o que se faz com certas pessoas: tentá-lo com aquilo que quer ao mesmo tempo que fingimos indiferença para com ele. Funcionou, embora apenas temporariamente...

O Alto Lamelar ergueu mais o canto do bigode.

— Mas desta vez é mesmo uma relação que procuras, não é? — piscou-lhe Assiòn o olho. — Deves ter quebrado uns quantos corações em Nolwyn. Eu logo vi quando passámos pelo recinto inferior; era só cabeças de meninas a virarem-se.

Aewyre ficou algo desconcertado com a insinuação do laonês. Então estavam a falar da Essência da Lâmina e ele...?

— Confesso que estou surpreendido com os vossos progressos; em todos os meus anos na Cidadela, nunca ouvi nada de parecido. Estão de parabéns. Mas diz-me, achas que conseguirás fazer disso uma... relação? Consegues ficar com a Essência da Lâmina permanentemente?

— Bem... — disse Aewyre. — Nós temos que fazer isto com calma, passo a passo. Agora que já conseguimos descobrir como a transferir, é só arranjarmos forma de controlar a duração...

— E qual de vocês fica com ela? — insistiu Assiòn, virando-se para os dois de braços cruzados. — Não a podem dividir, não pode cada um ficar com metade; essa é a vossa situação agora.

Aewyre não olhou para Kror, mas não teve qualquer dificuldade em imaginar os seus orbes vermelhos a virarem-se acusadoramente para si.

— Eu... como disse, nós vamos fazer as coisas passo a passo. Não vale a pena preocuparmo-nos já com a colheita se ainda nem semeámos o campo.

— Falaste como um verdadeiro nolwyno... — fungou Assiòn.

— Estão habituados a que tudo vos caia nas mãos, ou brote da vossa terra fértil, ou esteja à venda caso não o consigam.

— Mas...

— Admitam-no. Vocês só estão a adiar o inevitável. Sabem bem que apenas um de vocês poderá ter a Essência da Lâmina, e que a única forma de o conseguirem será através do combate.

As sobrancelhas de Aewyre formaram duas oblíquas curvas teimosas assim que ouviu as palavras do laonês.

— Foi o que vocês disseram desde o primeiro dia que cá chegámos — protestou Aewyre. — E nós desde logo dissemos que essa seria uma opção de último recurso...

— Um de vocês terá de morrer, Aewyre, Kror. Quanto mais cedo o aceitarem, melhor.

— Mas esse é um risco que não podemos correr, porra! — explodiu o guerreiro, batendo o pé num gesto infantil e cerrando os punhos a seus lados. — O Kror não quer morrer, claro, e eu não posso morrer! Há demasiado a depender de mim!

Perfeitamente alheio à fúria do jovem, Assiòn limitou-se a reter o seu olhar por uns instantes antes de virar a cara uma vez mais para a paisagem do vale.

— E por que não podes correr esse risco, além do óbvio? — perguntou com voz mais suave. — Que coisa é essa, tão terrível e importante que não a podes dizer a ninguém?

Aewyre respirou pesadamente enquanto o seu sangue tornava a arrefecer, após o qual suspirou e pousou ambas as mãos no parapeito do torreão, contemplando os recintos em baixo.

— Eu quero ajudar-vos, Aewyre, se me deixarem — disse Assiòn. — A Cidadela da Lâmina não é nenhuma casa de mercenários, não somos teus inimigos e não servimos os interesses de ninguém. O que fazemos aqui é temperar os talentos de Portadores, e tentar fazer deles homens civilizados que não sejam ameaças para os seus.

Aewyre apoiou antes os cotovelos sobre o parapeito e pousou a cabeça nas mãos, esfregando os cabelos.

— Não te posso pedir que confies em mim, mas posso dizer-te que não te consigo ajudar enquanto não souber o que se passa. Ou se os teus motivos são nobres.

Assiòn olhou para Kror, cuja atenção retinha sem reservas e cuja expressão intrigada o fascinou.

— O que quer que tenhas para contar, não pode ser pior que o que já vi e ouvi — assegurou-lhe o Alto Lamelar, ainda a fitar o drahreg que exercera sobre si um enorme fascínio desde o primeiro instante em que o vira. — Já vi o melhor e o pior que os humanos e as outras raças têm para oferecer. Todos aqui na Cidadela temos os nossos segredos, uns mais negros que os outros, mas o teu está a estorvar-te...

«Não pode ser pior que o que já viste?», riu-se Aewyre para dentro enquanto rilhava os dentes em mal contida fúria, permanecendo de costas para os dois.

— Aewyre? — ouviu a voz de Kror dizer. O drahreg pronunciava-se com suficiente parcimônia para que de cada vez que o fazia tivesse a garantia de todas as atenções, e o guerreiro não estava isento.

Virou-se e viu Kror com uma expressão dura e séria que apenas parecia ficar realçada com a sua acuminada careca marcada por falhas.

— Conta-lhe — disse o drahreg sucintamente. — Precisamos da ajuda dele, precisamos da ajuda de alguém. Não conseguimos fazer isto sozinhos.

O guerreiro nada disse, mas era possível ler-lhe nos olhos escuros que não, que se sentia bem capaz de resolver o problema sozinho, que não precisava de revelar o seu segredo a ninguém. A negação estava-lhe patente na expressão, uma obstinação infantil acerbada pela solidão que Kror conhecia muito bem e que não teve quaisquer dificuldades em ler no olhar do humano. A separação dos seus amigos, a brutal responsabilização com a qual tivera de lidar, o ter ficado entregue a si mesmo, tudo isso fora um golpe duro para Aewyre, e agora que se conseguira adaptar à situação e aceitá-la, não se permitiria depender de outros. Essa era igualmente uma sensação que Kror conhecia muito bem, e sabia que nem ele nem o humano se podiam dar a semelhante luxo.

— Aewyre, se não lhe contares... — O drahreg fez uma pausa que podia ou não ter sido intencional. — Lutamos. Aqui. Agora.

A repetição das mesmas palavras que enunciara antes do seu quase mortal combate na Cidadela era ampla prova de que Kror falava a sério. Assiòn tornou a sentir a tensão no ar, uma antecipação de quem vê um animal selvagem acocorado a ondear a coluna vertebral antes do pulo; o derradeiro instante fino como uma lâmina que antecede o desembainhar de aço, que separa a pacífica imobilidade do mortífero movimento. Nesses instantes decisivos o Alto Lamelar soube que bastaria um mero empurrão seu, um gesto indevido, um torcer do nariz, e um dos dois não iria sair vivo do topo do torreão, tal era o precário equilíbrio da situação. Nada fez, contudo, e aguardou paciente e calmamente pela resolução dos dois guerreiros, que uma vez mais alcançaram um consenso sem a troca de uma única palavra, limitando-se a acenar com as cabeças.

— Muito bem — suspirou Aewyre, virando-se para Assiòn com ar cansado e conformado, a sua expressão apropriadamente sombreada por estar de costas contra o sol poente. — Vou contar-vos uma história, Alto Lamelar...

O sol pôs-se, a noite desceu, as estrelas despontaram, e Aewyre praticamente ainda não passara do prólogo. Os três retiraram-se sabiamente do mordaz frio para o escritório de Assiòn, onde se sentaram perto da lareira com taças de vinho quente nas mãos para que Aewyre continuasse com a história. A sala era acolhedora, iluminada por candeias pendentes das paredes, com estantes repletas de livros que qualificavam Assiòn como um homem letrado ou pelo menos com diversificados interesses, uma escrivaninha esculpida em motivos lameliformes e um grande tapete de pele de vaca laonesa com basto pêlo castanho. A noite foi avançando a par do relato de Aewyre, que, à medida que ia contando, se abria cada vez mais, não se poupando a detalhes e apercebendo-se cada vez mais do alívio que sentia por poder por fim desabafar, ainda que com um desconhecido. Assiòn ouviu atentamente sem interromper uma única vez, confortavelmente recostado na cadeira e com um cotovelo apoiado num dos braços para amparar o queixo no punho. Kror emulou o seu silêncio sem sequer intervir nas partes que lhe diziam respeito, olhando como que cativado para a dança das labaredas na lareira, cujo fulgor causava estranhos jogos de luz no negrume dos seus olhos. Aewyre parava apenas para bebericar do seu vinho, e o Alto Lamelar reencheu-lhe a taça várias vezes sem que o guerreiro lhe pedisse. Quando a longa história por fim terminou, o jarro estava vazio e as bochechas de Aewyre coradas, embora não aparentasse estar minimamente ébrio.

— E assim foi... — concluiu, bebendo um último gole e pousando a taça na sua coxa, aguardando o veredicto de Assiòn.

Este permanecia na mesma posição, tendo apenas alternado de braço ao longo do relato, e os seus olhos verde-acastanhados poucas vezes haviam largado o jovem enquanto este falava. O seu bigode estava perfeitamente direito, e o único elemento que destoava da sóbria simetria da sua face quadrada era o olho descaído, embora nem mesmo esse lhe roubasse a franqueza patente no rosto.

— Uma história extraordinária... — apreciou, coçando o queixo. — Demasiado extraordinária para que a tenhas inventado.

De olhos postos no chão e a girar a taça sobre a sua coxa, Aewyre nada disse.

— Conheço a perda que vejo nos teus olhos — disse ainda, fazendo com que o jovem os erguesse de espanto. — Conheço-a bem, e é principalmente por vê-la que acredito em ti. Eu sempre desconfiei de alguma coisa: um humano e um drahreg, as vossas armas, o fato de não quererem combater... alguma coisa se passava, e agora compreendo porquê. E difícil acreditar no que me contas... mas eu acredito.

Aewyre e Kror não esconderam a sua surpresa, mas as palavras de Assiòn pareciam de fato sinceras.

— O Flagelo... dròldur vor gnaqàn òan vor hen llapàn.

— Como?

— Dròldur vor gnaqàn òan vor hen llapàn. É uma coisa que dizemos em Llorenc... ah, monstros nas vossas cabeças mordem-vos se lhes mexerem.

— Ele não está na minha cabeça — retorquiu Aewyre, erguendo-se sério. — Ele voltou e matou o meu pai, e eu vou matá-lo por isso.

— Senta-te, Aewyre. Já disse que acredito em ti — insistiu Assiòn, indicando a cadeira do jovem. Aewyre aquiesceu, ajeitando Ancalach para se sentar, e o gesto atraiu o olhar do laonês. — A Espada dos Reis, o filho de Aezrel Thoryn, aqui na Cidadela da Lâmina... Pela pena de Nirille, mas que história...

— E agora, o que vai fazer? — inquiriu Aewyre com um toque de suspeição na voz.

Assiòn pareceu ressentido pelo tom do jovem e suspirou, esfregando os olhos cansados e franzindo a testa.

— Ofendes-me, Aewyre — confessou. — O que pensavas, que eu ia roubar-te a espada?

O silêncio do jovem foi desconsiderada confirmação da sua pergunta, mas o Alto Lamelar fez por não se sentir demasiado injuriado.

— Não, para mim já acabaram os tempos de glória e aventuras, de luta e violência desnecessárias. E não te tentaria tirar mesmo que ainda tivesse essas ambições; ouvi bem a tua história. Se eu percebi bem, és tu a única esperança contra... O Flagelo. Certo?

— Sou o único que Ancalach protege do seu poder, sim — admitiu o jovem.

— Então eu não te deveria tirar mesmo que quisesse, não é?

— Acredita em nós? — perguntou Kror como para confirmar, intervindo pela primeira vez desde que Aewyre começara a história.

— Como já disse, eu conheço a perda que vejo nos olhos do Aewyre, é impossível fingi-la. E eu sabia que as vossas armas tinham uma história qualquer; ou vocês eram ladrões, ou tinham uma razão muito especial para estarem aqui. Como não agiram como ladrões da primeira vez que nos encontrámos, soube logo que tinham de ter um motivo para terem vindo à Cidadela. E agora sei qual, embora não tivesse imaginado uma história assim nem nos meus sonhos.

O Alto Lamelar apoiou-se nos braços da cadeira para se erguer, postando-se seguidamente diante da fogueira com os pensativos braços atrás das costas. Aewyre e Kror permaneceram sentados e trocaram olhares durante os quais o drahreg surpreendeu o humano ao acenar aprovadoramente com a cabeça.

— Como podes imaginar, não posso nem vou tratar-te de forma diferente dos outros só por seres príncipe — afirmou Assiòn de costas. — Aqui na Cidadela da Lâmina todos os Lamelares e Portadores são iguais, e a única autoridade é a minha e a dos Mestres de Armas.

— Eu sei. Vim à Cidadela para aprender, não para mandar em ninguém.

O laonês nutou com a cabeça, satisfeito com a resposta do jovem.

— Contaste-me muitas coisas, e a maior parte delas ainda estão a dançar na minha cabeça — admitiu Assiòn. — Tenho de pensar muito bem acerca delas, e decidir a posição da Cidadela. Mas uma coisa sei — anunciou, virando-se para os seus dois interlocutores. — Vou ajudar-vos como puder a dominarem a Essência da Lâmina. Kror baixou ligeiramente a cabeça em agradecimento e Aewyre suspirou discretamente de alívio através do nariz.

— É notável o que vocês já conseguiram sozinhos. Com alguma ajuda podem conseguir muito mais, e eu sei do sítio ideal para vocês treinarem.

— O sítio ideal? — inquiriu Kror, curioso.

Assiòn ainda hesitou, como se estivesse a ponderar e reconsiderar a sua decisão, mas acabou por a comunicar.

— Vão os dois para o círculo de guerreiros.

— O círculo de guerreiros? — tornou Kror a gralhar.

— Aquela portada no pátio?

— Sim. Só os Lamelares têm o direito de treinar lá, mas é a melhor forma de vocês terem acesso à Essência da Lâmina. Depois eu explico-vos. Agora, se me dão licença, eu gostava de pensar um pouco antes de me deitar. Já é tarde, e eu já não tenho idade para noites assim...

O regresso à postura de velho simpático foi desconcertante para Aewyre e Kror, que contudo obedeceram e se levantaram das cadeiras.

— Eu falo convosco amanhã. A partir de hoje não treinarão mais com a Heldrada, mas comigo.

— Eu... — tartamudeou Aewyre. — Obrigado, Alto Lamelar.

— Falamos amanhã, agora tenho de pensar. Boa noite — terminou Assiòn, virando-lhes as costas uma vez mais.

Os dois guerreiros retiraram-se lentamente, olhando para trás e um para o outro a caminho da porta, questionando-se acerca das caprichosas venetas do destino. A porta demorou a ser alcançada, e por mais que uma vez Aewyre virou-se para trás de dedo erguido e boca entreaberta para dizer algo mais, mas as palavras acabavam por nunca lhe sair. Por fim, Kror abriu a porta e saiu, sendo seguido por Aewyre que contudo não chegou a fechá-la antes de ouvir a voz de Assiòn.

— Aewyre?

— Sim, Alto Lamelar? — disse o jovem, escancarando a porta para constatar que o laonês permanecia de costas voltadas para ele.

— Lamento muito pela tua perda. A história recorda-o como um grande homem.

Sentindo um aperto na garganta que havia muito não o atormentava, Aewyre não conseguiu mais que um «obrigado» sufocado antes de fechar a porta, após o que os seus passos se afastaram a par com os de Kror. Assiòn ficou ainda algum tempo a olhar para o fogo na lareira, entrelaçando os dedos atrás das costas em profunda reflexão. Já estava velho e cansado para sequer pensar n’O Flagelo, para recordar os horrores que presenciara vinte anos atrás. Laone não fora poupado ao ferro e fogo, e o Alto Lamelar empunhara e ateara uma generosa porção destes nesses tempos. Ir-se-ia o círculo fechar por fim? Viria afinal o dia do ajuste de contas, da retribuição?

«Não, parece que o dia de pomares a espada ainda não está próximo, velhote», refletiu resignadamente, pegando num atiçador de ferro negro e remexendo nos consumidos toros, que protestaram cuspindo fagulhas.

Ferro e fogo.

O círculo fechar-se-ia. Em breve.

 

A cara de Worick estava pálida, uma condição tanto mais realçada pela brancura dos lençóis que o cobriam dos pés ao peito e pela mecha alva na sua barba grisalha. Lhiannah estava sentada numa cadeira ao lado do leito, pegando na mão do seu mentor com as suas mãos, tendo os cotovelos apoiados sobre as coxas. Continuava com o mesmo vestido bege e tinha os cabelos despenteados, além de um ligeiro inchaço no malar direito e uma ligadura no braço esquerdo. O quarto era o do thuragar, desprovido de janelas, com paredes estucadas e esparsamente mobilado com uma mesa de artesão, um lavatório e uma arca para as roupas, iluminado pelo fogo que crepitava na lareira e umas candeias dependuradas das paredes. Além da princesa e de Worick, encontrava-se também um cirurgião presente, um homem de feições largas com caracóis enfiados a custo debaixo de uma touca branca e uma túnica listada de verde e azul debaixo de um escapulário igualmente branco. O homem lavava as mãos ensangüentadas no lavatório, que em vez de artigos de higiene se encontrava ocupado com escalpelos, sondas, ganchos de tração, agulhas, linha e afins instrumentos cirúrgicos.

— Mais não posso fazer, princesa — assegurou-lhe o homem, enxugando as mãos e mudando a água no lavatório. — Fazer suturas no intestino é extremamente arriscado, e devemos agradecer a Acquon o não ter piorado as coisas.

Lhiannah nada disse, afagando a ardente testa de Worick, reparando no quão pronunciada esta estava pelo recuar da sua linha de cabelo, e como a careta desdenhosa criada pelo corte no lábio e as rasuras na sua cara lhe davam um ar velho, ferido e cansado. Quantas feridas já sustivera aquele corpo? Quantas mais poderia suster?

— Desinfetei a ferida o melhor que pude, e inseri uma cânula para drenar quaisquer fluidos que se possam acumular — explicou o cirurgião, arrumando os seus instrumentos numa mala. — Eu virei regularmente examinar a condição do general, e podeis sempre dispor dos meus serviços.

— Obrigada — agradeceu Lhiannah roucamente, erguendo a cansada cabeça e tirando os desalinhados cabelos da frente. Passara a noite em branco, e a falta de sono pesava-lhe nas olheiras.

— Não convém que ingira alimentos, apenas água ao acordar, com um pouco de mel à mistura. Ele que não erga o torso nem faça movimentos bruscos. Chamai uma servente se ele necessitar do urinol, e...

— Não é preciso, eu faço isso — firmou a arinnir.

— Sim, princesa. Bom, de momento nada mais podemos fazer além de rezar. Lorde Aereth providenciou a vinda de uma sacerdotisa de Acquon para esta tarde.

Compreendendo que Lhiannah não estava particularmente conversadora, o cirurgião pigarreou e recuou para a porta.

— Bom, retiro-me. Tende confiança, princesa. O general tem uma constituição de touro, apesar da sua idade.

Falhando em obter um comentário mesmo com esse reparo, o homem desistiu de vez e saiu discretamente porta fora, fechando-a atrás de si com delicadeza. Ouviram-se vozes do outro lado da entrada, mas Lhiannah não lhes prestou qualquer atenção, afagando a aspereza dos dedos pequenos e grossos de unhas rachadas do thuragar. Como era possível que tudo tivesse corrido tão mal? Supostamente, deveriam ter apenas entregue o corpo de Aezrel, avisado Aereth quanto ao vindouro perigo e voltado a Vaul-Syrith para fazer o mesmo com o seu pai e receber o castigo que este achasse apropriado. Agora estavam detidos sob menagem, acusados de envolvimento numa conspiração que existia apenas na cabeça do regente de Ul-Thoryn, e Worick quase morrera, atacado por um dos guardas palacianos. Ainda podia morrer... Não, quase morrera. Agora iria ficar bom. Tinha de ficar bom. Lhiannah nunca aceitaria outro desfecho, os deuses não podiam ser assim tão cruéis.

«Como é que isto foi acontecer?», lamentou-se Lhiannah, levando a mão do thuragar à bochecha e roçando a cara nela, fungando.

Quem fora aquele homem, e por que tentara assassinar Worick? A única coisa anômala que reparara nele fora a estranha substância viscosa no seu elmo e na sua cara, mas esta desaparecera com a água.

A sua memória estrebuchava quase imperceptivelmente, associando a substância a uma qualquer reminiscência que sabia até ser relativamente recente, mas não a conseguia desenterrar do conturbado emaranhado na sua cabeça. A meio das suas reflexões, pareceu-lhe ouvir alguém bater à porta, mas, como fora com o seu danificado ouvido esquerdo, a princesa levantou a cabeça para se certificar, olhando para trás por cima do ombro. A batida repetiu-se.

— Quem é? — rouquejou a arinnir.

— Lorde Thoryn e a princesa Iollina requisitam a vossa permissão para entrar, princesa! — disse um guarda do outro lado da porta.

Lhiannah levantou-se da cadeira, alvoroçada, e compôs o seu vestido vincado o melhor que pôde. A sua saia estava rasgada e havia manchas de sangue perto do rasgão causado por uma joelhada na falda do guarda. Pensou que devia parecer uma ratazana afogada seca ao ajeitar os cabelos, mas não tinha tempo para mais considerações estéticas e limpou a garganta.

— Entrai.

O guarda abriu a porta e Aereth entrou com Iollina. Vinham ambos com vestimentas adequadas às suas posições e estatuto, coloridas e suntuosas, mas Lhiannah não lhes deu qualquer atenção e fixou-se apenas em Aereth, que envergava uma longa toga azul de mangas desproporcionadamente folgadas até ao cotovelo e com folhos debruados a ouro que lembravam as penas de uma águia. Usava uma cinta da qual caíam vários pendentes encastoados de jóias e tinha aos ombros um capelo bordado com um rígido colarinho erguido atrás da nuca, adereços indubitavelmente régios, mas que também lhe davam o ar de um real peralta. Usava a coroa de Ul-Thoryn na fronte — a tiara dourada com asas sobre as orelhas e cabeça de águia com olhos rubiáceos que em tempos de antanho simbolizara o domínio sobre todo Nolwyn — e as mãos que estendeu a Lhiannah tinham os dedos reluzentes de anéis. A arinnir permitiu que o regente lhe pegasse na mão e lha apertasse com as suas, que transmitiram mais o frio dos anéis que o calor humano que fora sem dúvida intencionado.

— Princesa, lamento muito não ter estado presente numa altura tão difícil para vós. Encontrava-me na província, mas vim assim que soube o que acontecera.

Lhiannah nada disse.

— Como está o general Worick? O Thaddeo é um excelente cirurgião, o melhor de todo Nolwyn. Já arrancou muitos dos meus homens às garras da morte...

— Sobreviveu. Estamos à espera de que recupere agora — resumiu a princesa sucintamente, sabendo bem que o regente estaria plenamente informado acerca da condição do thuragar.

— A minha esposa contou-me tudo — continuou Aereth, olhando para Iollina, que, não sendo o centro das atenções, se permitia fitar Lhiannah com a admiração que demonstrara da primeira vez que a vira. — Eu não compreendo como semelhante coisa pôde acontecer...

— Um dos vossos guardas atacou o Worick — acusou a arinnir com um tom de voz perfeitamente nivelado. — Depois tentou matar-me.

— Sim, a minha esposa e a sua aia viram-no. Princesa, estou tão confuso quanto vós. Era um dos mais recentes incorporados na guarda palaciana, um jovem promissor e obediente, recomendado pelos instrutores...

— Tentou matar-me — vincou Lhiannah, retirando a sua mão das de Aereth. — Ia matando o Worick. Matou um dos seus companheiros. Os vossos instrutores recomendam assassinos, meu senhor?

— Princesa, compreendo que estejais abalada — assegurou-lhe Aereth, pegando-lhe delicadamente pelos braços e reparando na ligadura que tinha. — Estais ferida?

— O vosso cirurgião tratou de mim, estou bem — afirmou a arinnir, sacudindo os braços para se livrar das mãos de Aereth. — É pela vida do Worick que tememos.

— Hoje ainda virá uma sacerdotisa de Acquon ajudar à recuperação do general com as suas preces. Sabeis que podeis contar com a total disponibilidade dos meus físicos e do Thaddeo...

— Meu senhor, o que quereis de nós? — perguntou Lhiannah sem mais rodeios, confrontando o regente.

— Princesa...? — ergueu Aereth as sobrancelhas.

— Obrigastes-nos a prestar juramento de menagem e há semanas que nos mantendes prisioneiros. Por várias vezes requisitei uma audiência convosco, sem nunca receber justificação alguma para todas as recusas.

Os olhos de Iollina pareciam aumentar com o tom de Lhiannah, e esta olhou para o seu esposo para avaliar a sua reação, que se mantinha calma.

— Não pude falar com o Worick uma única vez, nem me foi permitido enviar uma carta ao meu pai, vosso par e senhor da província adjacente aos vossos domínios. Por isso vos pergunto, meu senhor: o que quereis de nós? Um resgate? O meu pai pagar-vos-á o que lhe pedirdes, deixai-me apenas escrever-lhe uma carta. A verdade? Já vo-la disse, e entreguei-vos uma missiva do vosso conselheiro para provar o que afirmei. Nada mais vos posso dar. O que quereis?

Aereth fitou Lhiannah, cerrando ligeiramente os olhos, e Iollina observava atentamente como única espectadora, até que o regente sorriu e deu um passo para o lado de Lhiannah, cruzando os braços atrás das costas.

— Ou sois mais inocente do que eu presumira, ou uma intriguista mais astuta do que eu imaginara — comentou Aereth, começando lentamente a circundar a arinnir, cujos orbes tocaram os cantos dos seus olhos como se tentasse olhar para trás.

— Achais que sou cego, surdo e idiota, princesa? — gracejou o regente. — A única coisa que ainda não percebi, a única coisa, é se o senhor vosso pai é um unionista ou um mero separatista.

Lhiannah virou-se para Aereth, quebrando a passividade do seu rosto com a testa profundamente franzida e a incrédula boca entreaberta.

— Sim, ouvistes bem. Ainda não há um ano, o senhor vosso pai conseguiu aliciar o tolo do meu irmão e aquele que eu julgava ser o meu mais fiel conselheiro. Ul-Thoryn e o seu regente foram alvo de chacota durante meses: o secundogenito foge com a mais preciosa relíquia de Allahn Anroth sem que ninguém disso se aperceba, levando o conselheiro consigo. Meses mais tarde, onde são vistos? Na Latvonia, com a princesa de Vaul-Syrith e um senhor da guerra. O que estariam lá a fazer, questionaram-se muitos, incluindo eu? Em busca de aventuras, opinaram uns quantos, o senhor vosso pai incluído, como ele bem teve a amabilidade de mo demonstrar com cartas bem explícitas, nas quais praticamente me acusava de aliciar a sua filha. A corte de Ul-Thoryn? Um circo, uma vez mais. Mas e se tivesse sido algo mais?

Aereth interrompeu bruscamente os seus passos e virou-se para Lhiannah, apontando-lhe um dedo anelado. A arinnir não se sobressaltou.

— E se os dois enamorados tivessem na verdade ido em busca dos serviços mercenários de um senhor da guerra latvoniano, simbolizando com as suas pessoas uma esperança na união de Nolwyn debaixo do nome de uma única casa? Qual a casa, não o sei, embora Vaul-Syrith tenha cessado de enviar caravanas além do Caar, e várias de Ul-Thoryn tenham sido atacadas após tão... oportuna audiência. Bandidos latvonianos, dizem.

«Iwansk Dorstyev, o porco latvoniano», lembrou-se Lhiannah. O senhor da guerra decerto não se esquecera da afronta de Lhiannah, e a casa de Aewyre estava a pagar por arrastamento.

— Sim, princesa, muito me atormentaram estas dúvidas. O vosso pai evidentemente não estava satisfeito sendo unicamente regente de Vaul-Syrith, e o maior obstáculo às suas pretensões era naturalmente Ul-Thoryn, a antiga capital. Havia portanto que causar uma certa desestabilização, minar a credibilidade do seu regente, expor a mais esplendorosa corte do antigo Nolwyn como uma súcia de pândegos incapazes sequer de refrearem o seu príncipe e de conservarem o legado do seu maior herói. Como terá o vosso pai aliciado o meu irmão, princesa? Montada a cavalo, disfarçada com uma capa, um encontro fortuito numa taberna de Ul-Thoryn, hum? Parece de fato uma história de amor das que as aias partilham entre si, não diríeis?

Iollina ficou lívida com a insinuação do seu esposo e a sua pequena boca abriu-se, horrorizada.

— Meu senhor... — tartamudeou Lhiannah, chocada. — Estais a sugerir que...

— Não me entendais mal, princesa. Fostes apenas uma inocente peça nas mãos do vosso pai, não tenho dificuldade em acreditar nisso — asseverou Aereth, sorrindo quase maliciosamente, mais parecendo estar a brincar cruelmente com um incômodo piolho ao qual conseguira por fim deitar a mão. — Eu próprio demorei a aperceber-me dos verdadeiros intentos do senhor vosso pai, e só então decidi que era chegada a hora de agir. Vaul-Syrith pretendia obviamente dar início a uma insidiosa anexação das restantes províncias a custo de Ul-Thoryn, e eu não podia ficar de braços cruzados. Encetei as negociações para uma aliança com Lennhau, e lorde Tylon Nehin, pai da minha esposa, aceitou. Posso dizer-vos que o senhor vosso pai ficou deveras incomodado com o virar da situação.

O regente riu através dos dentes com a memória, e Lhiannah começava por fim a ver a profundidade do buraco no qual caíra.

— Apesar do que o senhor vosso pai tentara fazer, ainda lhe estendi a mão, propus que uníssemos os nossos esforços para a reunificação de Nolwyn, mas fui sumariamente repudiado. Desde esse dia, o senhor vosso pai assumiu outro papel e tem sido um autêntico separatista. — A expressão de Aereth tornou-se então severa. — Porém, não sabia até aonde ele estaria disposto a ir. Agora sei.

Lhiannah não vacilou diante do seu olhar, mas tão-pouco o desafiou, pois estava surpresa e chocada, e tinha a consciência de que se encontrava envolvida numa situação que a transcendia.

— Eu nem acreditava que o meu irmão e o meu conselheiro estivessem realmente envolvidos, sabíeis? Mas aquela... farsa obscena... foi o golpe mais baixo que o senhor vosso pai poderia ter desferido, e não hesitou em envolver a própria filha para lhe dar maior credibilidade.

— Meu senhor... — Deuses, tinha de dizer alguma coisa! Aereth estava a distorcer tudo! Como podia estar a interpretar a situação daquela forma?

— Não, não lhe perdôo. Os insultos à minha pessoa podiam ser esquecidos, a afronta à minha corte eventualmente compensada. Mas por isso nunca lhe perdoarei. Jamais.

— Meu senhor, não estais a...

—Jamais! — gritou Aereth. — Perguntais o que desejo de vós, princesa? Desejo que permaneçais aqui na torre até o senhor vosso pai ganhar juízo e se predispor a parlamentar à mesa como um regente em vez de armar truques matreiros como os selvagens thyranos aos quais tanta inspiração vai buscar.

O ataque a Worick acabara por passar para segundo plano, pois as palavras do regente haviam chocado Lhiannah profundamente. Iria servir como moeda de troca? Aereth pretendia usá-la para pressionar o seu pai a ceder?

— Sois louco! O meu pai vai declarar-vos guerra! — balbuciou a arinnir, incrédula.

— Louco? — gralhou Aereth, arregalando os olhos e de veias latejantes no pescoço. — Não, princesa. Mas o vosso pai, esse sim, em breve pagará o preço pela sua loucura, pois a guerra já foi declarada! E se ousar levá-la a cabo, juro que Vaul-Syrith ficará soterrada debaixo de sangue e estrume de cavalo!

Aereth aproximou-se de Lhiannah, que estava lívida de choque e de olhos rasgados, e ergueu um autoritário indicador entre ambos, reduzindo a sua voz a um quase ameaçador cicio.

— Estais em meu poder. Comportar-vos-eis como uma princesa, tal como o haveis feito nos últimos dias, e como tal sereis tratada. Por outro lado, apenas preciso de vós viva. Se vos comportardes como o thuragar — apontou para Worick —, juro que vos ireis arrepender.

Algo rebentou dentro de Lhiannah nesse momento, uma explosão de cansaço, raiva, frustração e medo, medo por si, medo pela vida de Worick, medo de ter falhado para com Aewyre. Aereth não esperou nem viu o murro antes de este lhe rebentar o lábio, fazendo-o estatelar-se de frente no chão, no qual a sua coroa retiniu ao cair. Iollina arquejou e levou as mãos à boca, mas Aereth apenas teve ocasião de grunhir quando a arinnir lhe chutou a cara, virando-o de barriga para cima e assentando com os joelhos em cima dela, agarrando o regente pelos crespos cabelos com a mão esquerda.

— Guar...! — Outro murro de Lhiannah fê-lo cuspir o resto da palavra, e a arinnir atingiu-o uma segunda e terceira vez antes que o regente conseguisse resguardar a sua cara do quarto com ambos os braços e gritar. — Guardas!

A reação destes foi rápida, e a surpresa de ambos foi grande ao entrarem de partazanas empunhadas e verem o seu senhor no chão a ser espancado pela princesa. Iollina estava encostada à parede e observava a cena com um misto de medo e admiração, mesmo os dois guardas levaram um instante adicional a reagirem ao perigo que o seu senhor corria, sendo necessário mais um baque surdo de um murro para que largassem as armas de haste e corressem a acudir Aereth.

— Tirem-na de cima de...! — Os nós do punho de Lhiannah atingiram-no em cheio nos dentes, e o regente grunhiu de dor.

Um par de mãos aceradas agarrou os braços da arinnir, apertando com força e tentando arrancá-la de cima de Aereth. Uma delas apertou-lhe o ferimento, mas Lhiannah estava demasiado furiosa para o sentir e rosnou de raiva enquanto esbracejava violentamente para se libertar. O guarda passou-lhe então os braços por debaixo das axilas e apoiou-lhe as mãos sobre o pescoço, retendo-a o suficiente para que o seu companheiro a afastasse do regente, que se encolhera e cobrira a cabeça com as mãos. Lhiannah ainda conseguiu pisar-lhe as costelas com uma furiosa rosnadela antes que o outro guarda lhe agarrasse as pernas e a princesa ficasse entre os dois a estrebuchar como uma gata assanhada presa, desferindo cabeçadas para trás no elmo de um e puxando e empurrando o outro com os movimentos convulsivos das suas pernas. Aereth permaneceu no chão, agarrado de olhos cerrados às suas costelas com um braço e com o branco dos dentes arreganhados realçado pelo sangue nos intervalos destes. O regente levou a mão livre à boca de lábio rebentado que lhe escorria vermelho pela barba abaixo. Chocado com a visão do seu sangue, o regente ficou a olhar de olhos arregalados para a mão manchada, pingando do queixo para a sua régia toga azul.

— Meu senhor, estais bem? — perguntou um dos guardas, grunhindo de esforço para reter Lhiannah.

Aereth pareceu despertar e os seus olhos arregalados adquiriram um brilho maníaco.

— Ponham essa puta no Ninho! — berrou, apontando para a arinnir com a mão sangrenta.

— Covarde! — gritou Lhiannah em resposta, fazendo as placas dos arneses dos guardas roçarem com o esforço. — Fraco! Não és nada comparado ao teu irmão! Nada!

— Tirem-na da minha vista antes que eu a mate! — raivou Aereth, apopléctico. — Já!

A arinnir berrou mais epítetos incoerentes a meio de rosnadelas e gritos de raiva enquanto era carregada a custo pelos guardas para fora da sala, e nesse momento Iollina despertou, dirigindo-se de saias levantadas para Aereth e ajoelhando-se diante dele.

— Esposo...?

— Não me toques, fedelha! — rosnou o regente, empurrando Iollina e deixando-lhe uma tosca e sangrenta impressão palmar no vestido.

Aereth ergueu-se atabalhoadamente, atrapalhando-se com a comprida toga, e dirigiu-se aos tropeções para o lavatório, ainda a agarrar as costelas magoadas. Iollina ficou no chão, recolhendo as pernas para perto de si debaixo da saia e observando o seu irado esposo enquanto este lavava a cara com grande estardalhaço, pingando vermelho aguado e rosnando imprecações de dentes cerrados. Os seus olhos azuis desceram então para a coroa, e viu que a bela tiara dourada estava inclinada sobre as asas de águia e entre gotas do sangue de Aereth espalhadas pelo piso ladrilhado. A princesa não soube dizer ao certo porquê, mas naquele momento essa visão causou-lhe fortes arrepios e pareceu-lhe plena de um significado que desconhecia e que contudo temeu.

 

O ataque foi tão repentino como violento e inesperado.

O Factoto acabara por permitir a entrada ao exército de Tanarch, e a procissão de Fadados acorrentados entrara numa fila ordeira, escoltados por infantes tanarchianos. Mandara informar o Castelão de que seria necessária uma urgente conferência de guerra para organizar a força de alívio que deveriam destacar quanto antes para ir em auxílio de Gaul-Anoth, e fora concedida permissão à cavalaria para estacionar no recinto entre as muralhas exterior e interior. Seis mil homens começaram uma lenta marcha para o interior da fortaleza, o que os obrigara a dividirem-se em três colunas das quais duas foram contornar o lago artificial para entrarem pelas barbacãs do lanço da muralha a leste. Por toda a fortaleza ouvira-se o som áspero e férreo de rastrilhos a serem erguidos, cuja abertura foi sinalizada por pequenos toques de trompa, e o grosso da guarnição de Gul-Yrith deslocara-se para as muralhas e para o pátio interior. Ninguém quisera acreditar no que estava a acontecer, e vira-se um conflito patente nos normalmente indiferentes semblantes dos Ajuramentados, uma contenda entre a exultação por tamanhos e imprevistos reforços e o arraigado ódio para com os Fadados que lhes estavam a ser entregues e que representavam uma parte muito especial de tudo o que os sirulianos mais odiavam. A cena adquirira os contornos grotescos de um desorganizado matadouro no qual os andrajosos prisioneiros foram alinhados, cerca de duas centenas no total, e os arnesados Ajuramentados se começaram a acercar deles com mal contida ânsia, empunhando as suas alabardas como cutelos de açougueiros. Enquanto boa parte das atenções estivera centrada no pátio interior, o exército tanarchiano fora entrando pelas barbacãs a oeste, nordeste e sudeste em ordeiras colunas, calcando trilhos negros na neve branca. Cavaleiros, lanceiros, infantes e arqueiros de hastes e coloridos pendões que a Sirulia nunca esperara ver aprumados em Gul-Yrith e que sinalizavam uma viragem na iminente guerra, e pela primeira vez em milhares de anos os sirulianos ousaram ter esperança. Esperança de que não seria mais uma batalha pela sobrevivência, esperança de que poderiam levar a guerra ao inimigo em vez de aguardarem os seus avanços, esperança de que poderiam talvez mesmo chegar às portas da fortaleza de Asmodeon, retomá-la, fazer Syntadel renascer.

Esperança essa que foi quebrada como nuvens de chuva ansiada por campos estéreis e ressequidos que de repente explodiam em relâmpagos. Quando estavam devidamente posicionados, os batalhões de Tanarch ribombaram numa violenta tempestade diante dos sirulianos que os recebiam com a expectação de camponeses desesperados. Tudo começou com os prisioneiros, que se libertaram das suas correntes soltas diante dos surpresos olhares dos Ajuramentados e que atacaram com misericórdias escondidas nos seus andrajos. Os sirulianos mais próximos não tiveram espaço para usarem as suas alabardas e foram acometidos por uma furiosa vaga de Fadados que lhes saltaram em cima, procurando pontos frágeis nos seus arneses com as rígidas pontas das misericórdias. Apesar da surpresa, os Ajuramentados e Miliciares não tardaram a reagir, mas nem mesmo os seus aprimorados reflexos e antevisão de combate os prepararam para a investida tanarchiana que se seguiu. Homens bradaram e baixaram as lanças, arremetendo contra os surpresos sirulianos enquanto a cavalaria se empinava e contornava as colunas de lanceiros e infantes para carregar sobre os adversários espalhados. Homens que haviam transportado grossas escoras haviam esperado pelo momento certo nos túneis das barbacãs para as erguerem, bloqueando os rastrilhos. Flechas começaram a sibilar pelo ar, ressoando sem grande efeito contra arneses, mas alimentando a confusão que se desejava, impedindo os sirulianos de assumirem as suas virtualmente imbatíveis formações. Ainda assim, mesmo surpreendidos e em tremenda desvantagem numérica, os instintos aceirados pelo intenso treino ao qual haviam sido sujeitos desde a mais tenra idade não tardaram a ter efeito em Ajuramentados e Miliciares, cuja surpresa deu lugar a uma frígida fúria. Irosos gritos em Eridiaith quebraram momentaneamente o crescente alento dos seus inimigos, e as possantes alabardas sirulianas colheram uma sangrenta leva em resposta. Pequenos grupos dos gigantes arnesados ajuntaram-se, interrompendo as formações que os tanarchianos estavam a tentar formar no recinto e talhando furiosamente em redor. Nenhum deles estava armado com os enormes piques que tanto poder davam às formações sirulianas, pelo que a cavalaria se lançou em desenfreadas cargas que por norma não ousaria. Mesmo cientes de que as lanças dos cavaleiros superavam as suas alabardas em comprimento, os Ajuramentados e Miliciares formaram barreiras, sustendo estoicamente o brutal choque que lhes quebrava invariavelmente as filas dianteiras e lançando-se de seguida em punitivas investidas que estraçalhavam homens e montarias em igual medida. Cavalos relinchavam de dor e fúria enquanto mergulhavam em formações incipientes, escoiceando em desespero enquanto os seus cavaleiros malhavam para a esquerda e para a direita com maças e achas de armas. Guerreiros isolados munidos de possantes espadões dançavam no meio dos inimigos, decepando pontas de lanças, membros e cabeças, percutindo escudos e desmontando cavaleiros antes de tombarem. Arcos longos sirulianos começaram a vibrar do topo das muralhas, mortíferos, mas em número e organização insuficiente para desbaratarem a hoste inimiga que jorrava de ambas as barbacãs para o interior de Gul-Yrith. Fadados berravam e corriam e saltavam e morriam, decompondo-se em revoltantes poças negras, e, apesar de causarem poucas baixas, a sua superior resistência aos ferimentos tornava-os difíceis de abater e ganhava tempo aos tanarchianos, que urravam os nomes de familiares e amigos mortos ou estropiados pela conscrição da Sirulia. A vingança ardia nos olhos de cada um e inflamava os gritos de ódio e mórbida satisfação diante da queda de cada Ajuramentado e Miliciar. O piso nevado do recinto interior cedo ficou sulcado e manchado de sangue, e os pés de combatentes de ambos os lados não tardaram a ter de pisar amigos e inimigos para se poderem mover.

Quenestil e Slayra corriam desesperadamente atrás do grupo de Ajuramentados, tentando acompanhar o passo das suas compridas pernas. Os ruídos de batalha passavam-lhes aos ouvidos de cada vez que transpunham uma janela, mas nunca se detiveram para ter mais que um vislumbre do que se passava no exterior. Porém, os reflexos de aço rutilante que captavam, os gritos, o fragor e o tremor de milhares de passos não deixavam qualquer dúvida quanto ao que estava a acontecer. Os sirulianos conversavam apressadamente entre si, falando de Gul-Yrith cercada, barbacãs abertas, retirada para as catacumbas, evacuação dos Lasan, poterna interior, poterna exterior, barco. A fúria de Quenestil recolhera-se temporariamente de forma a dar espaço aos seus instintos de sobrevivência e proteção, pois uma visceral sensação de perigo dissolvera o sentimento de segurança conferido pelas altivas muralhas da fortaleza. A sua perfurada mão direita latejava, e o eahan pouco mais pudera fazer além de a enfaixar com um pedaço de toalha branca. A escoriação no ombro, o corte no antebraço esquerdo e o princípio de uma tumefação na maçã do seu rosto não o incomodavam sobremodo, apenas o fato de o seu nariz não parar de sangrar. Slayra ofegava ao seu lado, meio correndo meio arrastada pelo braço do shura, e agarrava a barriga com ambas as mãos. O bebê era o que mais preocupava a ambos, mas o primitivo instinto de segurança nos números levava-os a seguirem os sirulianos como se as suas vidas disso dependessem.

O grupo desceu mais um lanço de escadas em espiral, e a ampla sala na qual entraram estava apinhada de sirulianos e eahlan. Os primeiros, cerca de cinqüenta, estavam todos armados e arnesados sem exceção e gritavam ordens, perguntas e indicações, enquanto os segundos, que não totalizavam mais de quarenta, envergavam os seus trajes normais e amparavam-se mutuamente, homens, mulheres, jovens, adultos e crianças. Algumas choravam, embora a maioria se mantivesse calma com a serenidade característica da raça e com a ajuda das apaziguantes vozes das suas mães e irmãs. Quenestil e Slayra olharam em redor em busca de faces familiares, reconhecendo o enorme Castelão Aedreth, Sana, Hanal, Eluana e os filhos destes. Assim que viram Lusia nos braços do siruliano que a carregava, os Lasan presentes correram a cercá-lo, enquanto Sana foi ter com os dois eahan.

— Oh, Quenestil, Slayra, estão bem! — disse a servente, pegando-lhes pelas mãos. — O que lhe aconteceu?

— Fui atacado — limitou-se o eahan a dizer. — Sana, o que é que está a acontecer? Para onde nos levam?

— Oh, Sirul, estamos a ser atacados! — gemeu a eahanna branca, apertando-lhes as mãos com mais força. — Os tanarchianos... os prisioneiros, eram Fadados! Eles entraram no recinto e começaram a atacar! Estamos presos aqui na torre, não podemos ir para a ala, não nos podemos refugiar nas catacumbas!

Slayra pegou na mão de Sana com as suas e Quenestil soltou-se, indo ter com Hanal no meio da confusão de braços arnesados e desordenadas cabeças de cabelos brancos. Alguns sirulianos gritaram-Ihe, mas o eahan ignorou-os e continuou o seu caminho. O Patriarca discutia com Aedreth, parecendo pequeno diante do gigante de armadura vermelha, e era óbvio que ambos estavam a ter um altercado desentendimento enquanto os restantes familiares se aglomeravam excitadamente em redor do Ajuramentado com a inconsciente Lusia.

— Patriarca, o que se está a passar? — exigiu Quenestil saber, pegando na folgada manga roxa do eahlan, que se virou para ele com uma agitada expressão no semblante que não lhe parecia pertencer.

— Quenestil Anthalos, ainda bem que está aqui. Temi pela vossa segurança e a da Slayra...

— Não temos tempo para isto, Patriarca — interrompeu Aedreth, cuja voz ressoou pelos arneses dos seus sirulianos. — Já perdestes suficientes dos vossos lá fora; temos de nos apressar antes que fiquem presos aqui! Temos de vos levar para o portão marítimo!

Os olhos azul-escuros de Hanal marejaram dor naquele momento, dor pelo que acontecera e pelo que ainda teria de ser feito. Não foram necessárias palavras para que Quenestil percebesse que os eahlan que vira saírem para o adarve haviam pago pela sua curiosidade, e a indignada fúria inflamou-lhe as orelhas pontudas. Todavia, antes que pudesse proferir o seu parecer, uma porta abriu-se e dela irromperam em fila uns vinte eahlan parcialmente arnesados. Haviam-se evidentemente armado à pressa, pois envergavam apenas couraças, coxotes, grevas e braceleiras, todas com motivos selénicos, polidas e resplandecentes, e traziam aos braços graciosos elmos com salientes viseiras em forma de crescentes de bicos virados para cima. Em forma de crescente eram também os rebordos côncavos nos cotos das suas longas espadas ligeiramente recurvas de gume único, e os seus arcos brancos de freixo eram dois meios crescentes que originavam do punho e apontavam para a frente. A sua chegada causou enorme consternação entre os sirulianos, mesmo entre os Ajuramentados, que por norma aguardavam que lhes fosse concedida a palavra pelos seus superiores.

— O que fazem?

— Vocês vão para o barco! Tirem os arneses!

— Não estão a pensar lutar?!

— Nem pensem que...

— Silêncio! — bradou o Castelão, silenciando todos com um brusco gesto do enorme braço. — Patriarca, mandai os vossos homens deporem as armas. Não temos tempo para isto.

— De fato, não — concordou Hanal, parecendo conformado ao dar as costas aos eahlan armados e cruzar os braços diante de Aedreth. Quenestil sentiu um aperto no coração ao ver a tristeza patente no semblante do Patriarca. — Não temos tempo. Esta é a minha guarda pessoal, Castelão. As suas famílias juraram depor as suas vidas diante da minha quando necessário fosse. Todos estes homens quiseram honrar essa jura se for este o dia.

Pela primeira vez desde que o conhecera, o shura viu as sobrancelhas do Castelão franzirem-se de consternação, e todos sentiram a intensidade do seu conflito interior.

— Não há espaço para todos no barco, Castelão — disse um dos eahlan, assentando o elmo sobre a cabeça. Pareceu belo e temível ao dizê-lo, o seu exemplo seguido pelos seus companheiros. — Sabei-lo tão bem como nós.

Os dedos de aço de Aedreth rasparam uns nos outros quando este cerrou os punhos em impotente fúria. Hanal pousou a mão na manopla do siruliano.

— Aedreth, confiar-te-ia... confio-te a minha vida, e sei que nos salvarias a todos se pudesses. Mas não podes. Alguns de nós morrerão hoje — afirmou prosaicamente. — Mais morrerão se não nos apressarmos.

Os dois fitaram-se durante um, dois, talvez mais instantes. O momento pareceu mais longo que na verdade provavelmente foi, tal era a intensidade dos olhares dos dois líderes, tamanha a carga emocional que os orbes azul-escuros e azuis difundiam. Por fim, a enorme e resignada mão de Aedreth pousou sobre a de Hanal e o Castelão acenou com a cabeça.

— Homens, quais os preceitos pelos quais nos regemos?

— Disciplina é vital. Obediência é esperada. O dever é tudo — responderam todos prontamente como se estivessem numa sessão de treino e não a meio de uma batalha.

— Lembrem-se disso quando descermos aquelas escadas. Miliciares, sabem o que fazer — disse Aedreth, a sua voz severa e resoluta. — Ajuramentados, foram marcados quando vieram ao mundo, prestaram juramentos quando do advento da vossa maioridade. Provem hoje a vossa dedicação, e para sempre sejam dignos da luz e graça de Sirul.

O berro unissonante em Eridiaith dos sirulianos fez Quenestil estremecer com a fatalidade e cega determinação que transmitia, e mesmo as mais serenas crianças eahlan começaram a chorar. Mães e irmãs sentiram que chegara o momento e pegaram-nas ao colo, balançando-as e aquietando-as com ruídos calmantes. Aedreth mandou um Ajuramentado subir a torre e avisar os arqueiros que se encontravam no adarve que se preparassem. O siruliano hesitou em abandonar os seus companheiros ao seu destino, mas os ditames que seguia sobrepuseram-se às suas emoções.

— Guarnecer flancos e retaguarda, Ajuramentados! — gritou o Castelão. — Miliciares, tomem a dianteira. Para o pátio!

Os sirulianos adotaram rápida e ordeiramente a formação indicada, mantendo o séquito eahlan no meio e aceitando resignadamente a presença dos eahan brancos armados nas suas fileiras. Eluana foi agarrar a mão do seu esposo, que chamou para perto de si os seus filhos, e os restantes serviçais formaram um círculo protetor em redor dos Lasan. Sana trouxe Slayra pela mão e pegou em Quenestil pelo braço, puxando ambos os eahan para dentro do círculo, no qual foram acolhidos como se fizessem parte da família. Um primitivo instinto protetor levou Quenestil a aprestar o seu arco, e o shura jurou silenciosamente que faria o possível para proteger aqueles maravilhosos seres. Quando a marcha começou pelas escadas abaixo, todos souberam que não poderiam voltar atrás.

O aço reinava supremo no pátio interior de Gul-Yrith, igualando em cor o nublado céu em cima, e a morte era rainha e senhora. Corpos de mortos e moribundos semeavam o chão de neve revolta e manchada de sangue, entranhas e evacuações das mesmas, e o clangor de espadas, machados e alabardas carpia pelos caídos ao mesmo tempo que ansiava por mais. Pontes giratórias haviam unido as barbacãs do lanço de muralha marítimo aos torreões da muralha exterior, e os poucos que lá se encontravam correram a ajudar com os seus arcos longos. Caldeirões de óleo quente haviam sido ateados e despejados por escoadouros sobre os corredores das barbacãs, interrompendo brevemente a torrente de inimigos que estes despejavam e lançando gritantes tochas humanas a correrem desenfreadamente em redor. Alguns tentaram voltar atrás para saltarem para o lago, acabando espetados nas lanças dos seus assustados camaradas e espezinhados. Foi um refolgo temporário para os avassalados sirulianos que resistiam bravamente, mas insuficiente para lhes dar qualquer esperança além da de mais uns momentos de vida. A maior parte dos Ajuramentados e Miliciares recolhera-se nos edifícios e torreões, defendendo ferozmente as entradas enquanto os seus companheiros retiravam para as catacumbas na ala, mas alguns bolsos de resistência haviam permanecido no exterior, mortíferos rochedos com esporões na forma de alabardas cercados por um revolto e rutilante oceano que contra elas se esmagava. Avessos tanto a dar como a receber quartel dos malditos Atraidores tanarchianos que haviam vendido as almas a’O Flagelo, os sirulianos entoavam autênticas canções de guerra em Eridiaith, tendo como instrumentos as suas cruentas armas que já haviam criado pequenas barreiras de cadáveres à altura dos joelhos em seu redor. Cavalos desvairados com o cheiro de sangue no apertado espaço ao qual estavam confinados empinavam-se, homens berravam e grunhiam e roncavam ao serem abatidos pelas horrendas lâminas das alabardas sirulianas ou quando os seus pés eram arrancados do chão pela morte que os arcos longos faziam chover do topo das muralhas. Ajuramentados e Miliciares tinham os arneses encharcados de sangue e as hastes das armas escorregadias, mas a mortífera sincronia dos seus golpes não abrandava, abatendo e esmagando tanarchianos como grão contra a mó de um moinho. Contudo, nem mesmo a irrepreensível bravura e inigualável perícia de armas dos sirulianos lhes podiam valer contra tão avassaladoramente numeroso inimigo em tão desvantajosa situação. A sua férrea disciplina mantinha as escassas fileiras unidas, mas apanhados de surpresa, fora de formação, espalhados e sem uma liderança central, o máximo que cada siruliano esperava fazer era levar tantos inimigos consigo quanto possível e conceder tempo aos seus companheiros para que estes se pudessem refugiar nas catacumbas e dar continuidade à batalha noutro dia. Eram essas as únicas considerações na mente de cada Ajuramentado, era apenas isso e nada mais que os Miliciares repisavam antes e após cada investida inimiga.

Fora das muralhas do pátio interior, soldados tanarchianos corriam e cavalgavam na direção da barbacã leste, pois a que se encontrava a oeste já estava apinhada de corpos cravados de setas ou queimados e esmagados por o que quer que os sirulianos lhes atiravam através dos buracos sobre os corredores. Mesmo sem a pressa e ânsia de batalha, dificilmente teriam reparado na fresta que se abriu na discreta poterna na junção do torreão com a muralha, e ter-lhes-ia sido simplesmente impossível divisar os olhos do Miliciar que por ela espreitaram para avaliar a situação. Inviso, o siruliano relatou o que via para o interior enquanto os inimigos exultavam e se acicatavam mutuamente, correndo excitadamente de armas empunhadas como sabujos no rastro de sangue. A fresta foi fechada e seguiram-se alguns instantes contados pelo número de tanarchianos que passaram por perto.

De repente, a poterna foi escancarada, expelindo uma fila de sirulianos de espadões empunhados que carregaram em fúria sobre a fila quase contínua de inimigos, colhendo-os às dúzias com as brutais ceifadas das suas lâminas. O desnorteio desses primeiros instantes foi reforçado pelas flechas que começaram a chover em redobrada intensidade do topo das muralhas, abatendo o inimigo às dezenas. Seguiram-se-lhes os eahlan, que formaram duas rápidas linhas de arcos aprestados e um grupo de alabardeiros que representava o grosso da surtida siruliana, formando um corredor defensivo até à poterna da muralha exterior no meio do qual os Lasan correram de mãos agarradas e crianças ao colo. Era de oeste que vinha o maior número de inimigos, mas o leste não podia ser ignorado, pois um grupo de soldados apercebera-se de que algo se passava na sua retaguarda e retrocederam, chamando outros.

— Os perros sirulianos saem do alvalade! Ao amago! Ao amago! — gritou um cavaleiro de elmo cônico sulcado e cota de malha com couraça lamelar, brandindo uma espada.

Os espadeiros sirulianos recuaram, e os eahlan arnesados diante dos alabardeiros frecharam os arcos e despediram uma salva que se sentiu fortemente na desorganizada ralé que corria sem qualquer ordem na sua direção. Quenestil largou a mão de Slayra, lançando-lhe um olhar encorajador e a Sana e juntando-se aos eahan brancos com o seu arco ocarr. As duas nada mais puderam fazer além de correr com os Lasan, que se aglomeraram diante da poterna exterior enquanto o Castelão a abria apressadamente com uma pesada chave. Os Miliciares orientaram então as duas colunas de alabardeiros, que se começaram a encolher num semicírculo colado à muralha exterior e adensaram as fileiras para três enquanto os eahlan retardavam a iminente investida com uma barragem de flechas. Nenhum disparava mais depressa que Quenestil, cuja mão direita latejava de empunhar o arco e cujo ombro esquerdo lhe ardia devido ao corte sombrio que sofrera. A sua visão estava absolutamente focada, e captava ao máximo os detalhes de cada homem que abatia. As bochechas infladas do infante de casaca acolchoada quando o seu tronco se arqueou ao cravar-se uma seta na sua barriga, a espuma na boca do cavalo e o branco dos seus olhos ao ser atingido no pescoço, o breve esgar na cara do homem ao sentir o impacto da flecha na placa lamelar sobre o peito que o salvou. A sua audição pouco mais captava além do ranger do seu arco e o silvo das setas, mas ocasionalmente ouvia os eahlan aos seus lados murmurar algo em Eridiaith de cada vez que os seus arcos vibravam, algo que lhe conjurava imagens de tristeza e que mais lembrava um pedido de perdão.

— Recuem! Recuem! — gritaram os Miliciares, e os eahan brancos assim fizeram, sendo absorvidos pelas fileiras de sirulianos e depondo os arcos.

Quenestil foi atrás, colidindo desajeitadamente com alguns arneses, meteu o arco ao ombro e desembainhou o facalhão ao ver os eahlan deporem os seus. Um deles tirou o olhar da iminente carga inimiga e abanou a cabeça.

— Vá, Quenestil Anthalos. Nós cobriremos a vossa retirada.

O shura fitou o nobre eahan branco, cujo semblante não lhe era estranho, mas que tão-pouco lhe trazia um nome à memória. Sentia-se contagiado pelo júbilo da batalha, tremia em antecipação à investida do inimigo, queria tomar parte, ajudar. Os gritos tanarchianos estavam cada vez mais próximos, vindos da esquerda e da direita, os arneses dos Miliciares e Ajuramentados raspavam uns nos outros, as pontas das alabardas foram baixadas em antecipação. Os eahlan desembainharam as suas longas espadas de gume único e empunharam-nas com ambas as mãos ao lado dos espadeiros sirulianos.

— Quenestil! — ouviu a voz de Slayra gritar atrás de si. Aedreth mantinha a porta aberta e urgia os Lasan a passarem por ela, assistido por um Ajuramentado. Sana tentava puxá-la pelo braço, mas a eahanoir fincara os pés no chão e praticamente pendia inclinada, estendendo a mão na direção do eahan.

— Vá! A sua esposa e o seu filho precisam de si! — instou o eahan branco, agarrando-lhe o ombro com força, dispensando-lhe atenção em tão crítica altura, naqueles que certamente eram os seus últimos momentos de vida. E nem se lembrava do nome dele.

— Não vos esquecerei — prometeu Quenestil com a voz apertada e um formigueiro nas narinas. — A nenhum de vocês. Juro-o, pela Mãe, juro-o.

O eahlan anônimo sorriu-lhe tristemente, e os dois pareceram perder-se naquele momento de mútua solidariedade, tanto que, quando o choque por fim se deu, ambos se sobressaltaram e o eahlan praticamente o empurrou para trás. Cavaleiros tanarchianos haviam mergulhado na silveira de aço com as suas lanças de comprimento superior, tombando e arremessando sirulianos para trás, mas as fileiras mantiveram-se firmes e as alabardas talharam e vararam cavalos e cavaleiros. Uma besta empinou-se com uma ponta cravada no peito, desselando o seu cavaleiro, e uma lâmina decepou a perna de outro guerreiro, enterrando-se no flanco da montaria. Um terceiro golpeava com os cascos no meio de uma floresta de hastes enquanto quem o montava as falqueava freneticamente com um machado, até que uma alabarda lhe fendeu o chanfrão e o crânio, arrojando-lhe a cabeça ao chão e impelindo o cavaleiro para a frente. Lanceiros munidos de escudos carregaram numa linha minimamente organizada, entrechocando brutalmente com a inamovível barreira de arneses para terem os escudos, elmos e ossos escachados de seguida. Para aliviar a pressão nas fileiras, os sirulianos abriram espaços entre si dos quais saíram os seus espadeiros e os eahlan, cujas lâminas trincharam aberturas na desordenada dianteira inimiga, fazendo-os recuar. A uma ordem berrada em Eridiaith por vários Miliciares, os alabardeiros avançaram então, aproveitando o espaço para se abaterem como autênticas relhas de arado em solo virgem sobre os tanarchianos. Os espadeiros e eahlan retrocederam então, e estes últimos desferiram estocadas de misericórdia em inimigos tombados por cima dos quais os alabardeiros haviam passado, proferindo serenos pedidos de desculpa.

Quenestil mal teve tempo de assistir aos primeiros instantes do embate, pois Aedreth ameaçava fechar-lhe a porta e a Slayra se não se despachasse. O shura duvidava que o tivesse feito, pois Sana ainda se encontrava com a eahanoir, mas a sua mente já estava decidida, embora o seu coração agonizasse. Pegou em Slayra a correr e praticamente carregou-a com Sana, e os três passaram pela poterna, saindo numa estreita faixa de terra inclinada fora da muralha exterior que bordejava o lago artificial. Servia unicamente para acomodar um pequeno estaleiro que entretanto fora aberto e do qual começava a sair a proa de uma alongada barcaça de fundo chato desprovida de convés, puxada pelo Ajuramentado e empurrada por alguns membros do séquito dos Lasan e o próprio Patriarca. A semelhança da barcaça dos conscritos, tinha apenas um leme, um mastro com uma pequena vela e buracos para remos, mas não comportaria mais de quarenta passageiros.

— Andem, andem! — apressou o Castelão, passando à frente do casal eahlan para ajudar a empurrar a barcaça para a borda congelada.

À semelhança do que sucedera na Guerra da Hecatombe, a costa da Sirulia começara a ser banhada por águas quentes causadas pelo distúrbio nas marés, o que mantivera os seus cais desobstruídos e impedira o lago artificial de congelar por completo. Ainda assim, teriam de empurrar a embarcação por gelo até chegarem à água, e havia tanarchianos a correrem do outro lado da margem, alguns dos quais repararam neles. O canal a norte congelara, pelo que teriam mesmo de fugir pelo mar, e isso implicava passarem por uma zona perigosa.

Aedreth dizia isso mesmo aos eahlan, indicando-lhes a muralha marítima e o portão que teriam de transpor para saírem.

— Não montem o mastro. A ponte do canal foi baixada — advertiu, pegando numa criança eahlan ao colo e metendo-a dentro da barcaça. — Os arqueiros na muralha norte têm ordens para se deslocarem ao torreão assim que vocês chegarem lá. Eles serão o vosso apoio contra os inimigos que encontrarem. Remem o mais rápido que conseguirem.

— Para onde vamos? — perguntou Hanal, ajudando a sua esposa a subir.

— Rumem para norte, chegarão a uma foz. Sigam por ela adentro até avistarem uma herdade murada. O Miliciar residente ajudar-vos-á a menos que... a menos que...

O Castelão não verbalizou o seu pensamento e sacudiu a cabeça, apoiando-se na borda do barco e levando a mão ao peito.

— Aedreth! — sibilou o Patriarca, pegando-lhe no braço. Os eahlan à sua volta estavam demasiado ocupados a subir ao barco e a confortar as crianças para repararem. Quenestil viu enquanto ajudava Slayra a subir, mas o velho siruliano recuperou antes que o shura se dirigisse a ele.

— Este coração já não é o que era, velho amigo — disse Aedreth, inspirando fundo e endireitando-se, embora a sua rígida postura denotasse dolorosas seqüelas e estivesse a transpirar. — Têm comida para alguns dias, água, mantas e cobertores ali dentro. Não se afastem da costa. Ajuramentado?

O jovem siruliano que fora chamado ajudou a eahlana que tinha aos braços a subir e correu prontamente para o seu superior.

— Castelão?

— O vosso nome.

— Deadan Belyth, Castelão!

Quenestil reconheceu a cara exposta pela babeira aberta como a de um dos Ajuramentados que o acompanhara e aos seus companheiros durante a viagem na barcaça dos conscritos.

— Deadan Belyth, acompanhará a família Lasan e o seu séquito nesta barcaça, e protegê-los-á com a vossa vida. Compreendeu a ordem?

Ao contrário do que seria de esperar, o jovem siruliano não acatou de imediato o comando com a prontidão marcial que caracterizava os seus pares, estacando como Quenestil nunca vira um siruliano fazer a menos que posto em sentido.

— Castelão...?

— Ouviu bem, Ajuramentado! — rosnou Aedreth. — E uma ordem!

Nos suplicantes olhos azuis de Deadan lia-se aquilo que um siruliano jamais ousaria pôr em palavras, a contestação de uma ordem direta de um superior. Era evidente que a idéia de deixar os seus companheiros para trás, de fugir enquanto outros morriam a lutar nunca lhe passara pela cabeça nem nos seus piores pesadelos. Os ruídos da batalha manavam da poterna, chamando-o.

Aedreth pegou-lhe pela cabeça com as suas enormes mãos e baixou a sua até que os seus narizes quase se tocaram.

— Os preceitos, Ajuramentado — sibilou o Castelão. Deadan apenas balbuciou, o que o levou a repetir aos gritos. — Os preceitos!

— Dis... disciplina é vital — tartamudeou o jovem siruliano, e Quenestil quase jurou que viu uma lágrima brotar num dos seus olhos azuis. — Obediência é esperada. O dever é tudo.

— Os vossos companheiros cumprem o seu dever neste preciso momento. Morrem a cumpri-lo — explicou Aedreth mais calmamente. — O vosso dever agora é defender os Lasan para honrar as mortes deles, pois mais ninguém o pode fazer. Entendido, Ajuramentado?

Duas lágrimas escorreram então de fato pelas bochechas de Deadan abaixo, e o jovem nutou tensamente, apertando os lábios. Aedreth deu-lhe duas fraternais pancadas no elmo e empurrou-o para o lado, indicando-lhe com um gesto da cabeça que fosse ajudar os eahlan a empurrar a proa da barcaça. Hanal e Quenestil fitavam-no, um com pesar e o outro com respeito. Aedreth pousou a mão no ombro do Patriarca e, após um momento de hesitação, no do shura, um gesto que os surpreendeu imensamente a ambos.

— E assim nos separamos, velho amigo. Vai. Não há tempo para a despedida que seria adequada.

Quenestil não sabia que era possível manter um aspecto régio num abraço tão emotivo como o que presenciou, mas ambas as altivas figuras conseguiram-no, conservando a nobreza do seu porte mesmo nos braços um do outro. Aedreth manteve a mão sobre o ombro do eahan enquanto cingia as costas do Patriarca com o braço livre, que teve de tomar a iniciativa de afastar o eahlan.

— Todos os nossos desentendimentos... — Aedreth abanou a cabeça como para significar que não importava, mas Hanal insistiu, contendo as lágrimas. — Nós sempre soubemos que o faziam por nós, que apenas tinham o nosso bem em mente. Todos o sabíamos, todos. E amamo-vos por isso... irmão.

A dor na cara de Aedreth fez com que cerrasse os olhos e empurrasse o Patriarca, como se fosse incapaz de agüentar o seu olhar, as suas palavras. Hanal não pareceu ressentido e disse algo em Eridiaith em surdina, levando a mão ao peito e recuando dois passos antes de lhes virar as costas e ir ajudar a empurrar a barcaça. O Castelão grunhiu e cerrou os olhos com mais força, magoando o ombro de Quenestil ao crispar os dedos nele, e o eahan avançou para o suster pela couraça.

— Deixa, estou bem, estou bem — disse Aedreth, endireitando-se prontamente e afastando-se do shura, que ficou de mãos abertas a olhar para ele.

— Castelão... se houver alguma coisa que eu...

— Ajuda o Deadan. Protege-os — pediu o Castelão, recuando mais um passo. — Faz com que isto não tenha sido em vão, eahan.

— Pela minha vida, Castelão — prometeu Quenestil, crispando os punhos.

Aedreth acenou pesadamente com a cabeça e caminhou na direção da poterna, cada passo seu a afundar-se na neve da faixa de terra. O shura não pôde evitar olhar para as enormes e cansadas costas do siruliano, que caminhava de livre vontade para a sua morte, um guerreiro de outrora que via o seu crepúsculo chegar e que não vacilava diante dele.

— Quenestil! — chamou Slayra, e este virou-se para ver a eahanoir à popa por cima das cabeças dos eahlan que empurravam a barcaça sobre o gelo. Resguardando a sua mente de todo o resto, Quenestil embotou-se voluntariamente por dentro enquanto corria para a embarcação, não se permitindo sentir fosse o que fosse enquanto não tivessem saído daquele inferno.

Aedreth saiu calmamente pela poterna para o pequeno campo de batalha no recinto exterior. Os seus homens combatiam isolados ou em pequenos grupos; a formação siruliana fora quebrada, o número de mortos que para tal fora necessário era atroz e o caos, total. Entre os cadáveres do inimigo estavam os corpos arnesados de sirulianos tombados, bem como de eahlan. A morte e o Castelão eram velhos conhecidos, mas a visão dos eahan brancos mortos, dos seus alvos cabelos manchados de contrastante sangue, do azul-escuro dos seus olhos fito no céu plúmbeo, da serenidade quebrada das suas expressões de bocas abertas... Essa visão cortou-lhe os calos da alma e rasgou-o por dentro, ferindo-o mais profundamente que qualquer arma que o tivesse atingido durante a sua longa vida. Todavia, o gigante siruliano passou descontraidamente por amigos e inimigos em mortal contenda, desembainhando lentamente o seu enorme espadão, um veterano de inúmeras batalhas e escaramuças, cheio de cicatrizes e falhas no velho gume. Nenhum dos tanarchianos em redor ousou atacá-lo, e a sua aparição trouxe novo alento a Miliciares e Ajuramentados, cujas alabardas e espadões oscilaram com renovada e mortal intensidade. Não havia esperança, e todos o sabiam, mas cada um fez uma silenciosa promessa de vender cara a sua vida a preço de sangue tanarchiano. Aedreth continuou a andar, empunhando o espadão com ambas as mãos e encostando-o à testa, fechando os olhos por breves instantes enquanto encomendava a sua alma à luz de Sirul e murmurava ao aço da sua lâmina em Eridiaith para que cortasse certeiro e mortífero. Quando os tornou a abrir, viu um cavaleiro carregar na sua direção de lança enristada. Envergava uma solha de escamas com rebites dourados e uma redonda placa de aço com filigrana ao peito, braceleiras e grevas, um elmo cônico com um penacho vermelho, uma capa azul forrada de pele debruada a escarlate e um vistoso escudo em forma de gota. A sua montaria cavalgava a toda a brida com braceletes douradas sobre os cascos, protegida por um caparazão vermelho acolchoado e um chanfrão de cota de malha, ultrapassando avidamente os infantes que corriam na direção da sua presa de armas aprestadas. Aedreth continuou a caminhar calmamente, até que o momento da colisão chegou.

Girou em si para se desviar da ponta da lança e oscilou selvaticamente com o espadão, cujo chofre reverberou pelo ar e cujo gume decepou as patas posteriores do cavalo, que relinchou agudamente de dor e se estatelou no chão, rebolando com o seu cavaleiro pela neve. Seguiu-se um gritante infante que vinha de machado empunhado e escudo enristado, convidando ao primeiro golpe. O Castelão obsequiou-o e derrubou-o com a força da sua espadeirada, partindo-lhe o pescoço protegido por um gorjal lamelar de seguida. O próximo foi cortado ao meio por um possante golpe na horizontal que o apanhou a meio da correria, separando-lhe o tronco das pernas num festival de sangue e entranhas.

— Eis chegada a minha hora! — bradou Aedreth, desviando um golpe de acha de armas à espadeirada e fendendo o elmo do adversário com um revés.

— Irmãos, de vós me despeço! — levaram adiante os sobreviventes atrás de si a meio de cortes, grunhidos e concussões.

— Todas as minhas faltas, todos os erros que cometi — disseram todos em uníssono. — Atenuo agora com a minha vida...

Um cavaleiro com um dardo empunhado galopou na direção de Aedreth, que estava demasiado ocupado com dois adversários para reparar nele. Derrubou um ao podar-lhe as pernas e recebeu um golpe de maça nas costas antes de praticamente arrancar a cabeça do segundo com um revés. Ouviu o tropel de cascos atrás de si e virou-se de espadão empunhado, sendo então atingido pelo dardo do cavaleiro, que lhe perfurou a couraça e o obrigou a cambalear vários passos para trás para não cair. O cavaleiro passou a seu lado a galope e Aedreth arregalou os olhos, grunhindo sufocadamente com a ponta de aço que se embebera no seu torso. A ponta do seu espadão caiu ao chão quando agarrou a haste do dardo com uma mão, puxando futilmente e sentindo uma dor aguda no seu coração que lhe enterrou os joelhos na neve. Suores frios escorreram-lhe pela testa, a respiração tornou-se custosa, a armadura pareceu-lhe mais abafada do que alguma vez lhe parecera na vida, como se lhe apertasse ainda mais o coração. Apesar de tudo, pareceu-lhe ouvir o relinchar isolado de um cavalo a meio do estrupido da escaramuça. O cavaleiro ia tornar a investir. Aedreth cerrou os dentes e ergueu uma perna, mas sentia os membros tão pesados...

— ...a elevado preço vendida à Sombra! — recordou-lhe o coro dos seus homens. Os olhos azuis do Castelão espertaram então, suprimindo a dor.

— Por Sirulia... — sussurrou, acompanhando os gritos de Miliciares e Ajuramentados, crispando ambas as mãos no punho do seu espadão e olhando por cima da espaldeira.

O cavaleiro vinha na sua direção, empunhando um machado de cabo comprido e com a bestial alegria de um sanguinário júbilo de batalha na expressão.

— Por Allaryia! — bradou, erguendo-se como o gigante que era e trazendo a ponta do espadão acima com o pomo apoiado na mão esquerda.

O tremendo golpe perfurou o caparazão acolchoado do cavalo sem qualquer dificuldade, atravessando-lhe o pescoço, o arção da sela e as virilhas do cavaleiro. Homem e besta soltaram lancinantes gritos de dor, unidos pelo frio do aço que os trespassava, e o choque do impacto vibrou por todos os ossos de Aedreth, cujo coração cedeu então, e que apenas se susteve de pé graças ao aperto de morte que mantinha no punho do espadão. O cavalo empinou-se, erguendo os braços do Castelão, e, quando caiu, Aedreth caiu com ele, enterrando a espaldeira esquerda no chão e deitando a cabeça na neve revolta, morrendo com as últimas e valorosas palavras dos seus homens nos lábios.

— Pela memória de Sirul!

 

Uma pequena e solitária carroça puxada por um asno felpudo de orelhas arrebitadas arrastava-se pela estrada coberta de neve aos pés do espigão das montanhas Deorfheim que penetrava Laone. Estava um dia ventoso, o que limpara o céu e permitira ao sol poente tingir a neve do afloramento de rocha de um tom rosado, dourando as árvores no seu sopé. A carroça transportava lenha e nela vinham dois homens a partilharem o banco da frente, de entre os quais o que menos atenção chamava era um camponês de barba com restolho branco com chapéu de abas longas, um remendado balandrau castanho e umas calças de estamenha. O seu companheiro de viagem era alto e magro, e mesmo curvado falava de cima para o camponês. Vestia uma túnica talar vermelha de mangas apertadas com rígidas ombreiras proeminentes que lhe tornavam as espáduas mais largas e empunhava um nodoso cajado retorcido. Dois grandes corvos estavam empoleirados sobre as ombreiras, debicando as asas e olhando silenciosamente em redor com negros olhos atentos. O indivíduo era pálido e calvo, e o cabelo cor de neve que lhe descia da nuca juntava-se à basta pêra que lhe crescia da orelha e lábio inferior para baixo, mas o que de longe mais à vista saltava era a venda vermelha que lhe cobria os olhos. Tinha aberturas desajeitadamente costuradas que de outra forma lhe permitiriam ver e que lhe davam um aspecto de olhos de espantalho, e debaixo delas pendiam longas badanas soltas que lembravam lágrimas de sangue. Os lábios da sua boca haviam sido adelgaçados pela idade, e estrias subiam do lábio superior até perto do nariz direito e afilado, do qual partiam dois profundos vincos na sua face.

— ...o Enec, esse malandro, arranjou uma rapariga era Cantalle e nunca mais voltou. Nem nunca mais disse nada! Desnaturado, mau filho! — queixou-se o camponês, fitando o seu companheiro vagamente com olhos embaciados por cataratas. — Esquecer-se dos pais assim... onde é que já se viu?

— O seu filho parece ser um homem viajador... — comentou o indivíduo alto com uma voz profunda e eólica.

— Oh, lá isso é. Nunca foi capaz de ficar quieto, parecia que tinha medo que a foice de Gorfanna lhe cortasse os túbaros, da maneira como fugia de tudo o que era trabalho no campo! — recordou o homem, abanando a cabeça. — Certo dia deu com um mercador, e, como sempre foi um rapaz esperto, este gostou dele e deixou que o ajudasse nos negócios que fazia na vila. Depois, um dia... — O carroceiro fez um ruído de chofre, passando rapidamente a mão diante da cara. — Aviou-se. Ainda nos visitou umas vezes (da última trouxe a esposa, uma bela moça) e lá vai mandando uns cobres e umas cartas, mas nem eu nem a minha mulher sabemos ler, menos ainda agora com estas minhas cataratas...

— De fato, não me parece correto.

— Ele também falava como o senhor, sabe, com esse linguarejar complicado. Não me leve a mal, sou um homem simples, e...

— Não me ofendeu — assegurou-lhe o indivíduo alto, que era fitado por um dos seus corvos. — Por favor, continue. Disse que tinha uma filha?

— Sim, a minha Cladoya. Uma divaroth de rapariga, deixe-me que lhe diga. A moça casou-se com o filho do moleira, mas todos os dias visita os pais para ver como nós estamos... Mas olhe, o que é que se há de fazer? As coisas são como são, os dois são meus filhos e gosto muito deles, mas o Enec deu-me um desgosto. Deu-me sim senhor, a mim e à minha mulher.

Silêncio meditativo.

— Então e o senhor, tem filhos?

— Tenho um.

— E como se chama?

— Eu... não tive ocasião de lhe dar um nome. Foi a mãe dele quem lho deu. Ela não era minha esposa, entende.

— Oh — opinou o camponês, olhando para o seu companheiro, distinguindo apenas um vulto através das suas cataratas.

— Eu não o sabia. Era uma mulher arrebatadora, poderosa, nenhum homem seria capaz de lhe resistir. Tinha cabelos da cor da meia-noite, uma pele branca como a cal e esculpida como a de uma estátua, lábios vorazes que prometiam a perdição ao mesmo tempo que nos ensandeciam de desejo, olhos escuros frios como blocos de carvão, mas que ardiam como brasas atiçadas nos estertores da paixão...

As sobrancelhas grisalhas sobre os olhos baços do homem arregalaram-se, e a sua boca formou um admirado O que exalava impressionados vapores com a descrição.

— Ela usou-me, e eu nunca mais fui o mesmo.

— Parece que era uma mulher daquelas... — alvitrou o camponês.

— Era isso e muito mais. Com medo de a tornar a ver... arranquei os meus próprios olhos. — Os corvos empoleirados nas suas ombreiras olharam-no como se lhes estivessem a ser retirados os devidos louros.

— Não me diga! — exclamou o homem, inclinando-se para ele.

— Sim, e fi-lo também para não mais me deixar enganar com as aparências. Ela mudou-me, sabe? Falava a sério quando disse que nunca mais fui o mesmo.

— Homem, você tem cá uma história... E não me disse que era cego porquê? Eu tinha-o ajudado a subir, fiquei aqui sentado a pensar que você estava à vontade... Afinal ainda vê pior do que eu!

— Não se incomode. Eu tenho... outras formas de ver.

— Também lhe aconteceu, não é? Eu também cada vez dependo menos da vista. Sim, porque nem pensar em deixar que me enfiem uma agulha no olho para tratar destas cataratas, isso para não falar do preço, já viu quanto aqueles barbeiros ladrões cobram? E olhe, já conheço esta estrada tão bem que nem preciso de ver para andar nela!

— Sim... — concordou o seu companheiro distraidamente.

— Então e o marido dela? Teve problemas com ele? Ele não lhe terá pregado uma partida também?

— Ele? Não. Ele viu o que ela me fez, o que me aconteceu. Tinha medo que algo de semelhante sucedesse se o fizesse com... outra mulher.

— O quê, ele deixou-se ficar? Estavam bem um para o outro, então...

— Sim. De fato.

Novo momento de silêncio, durante o qual o carroceiro vergastou o dorso do asno com as rédeas por nenhuma razão em especial. Os pinheiros da encosta ciciavam, soprados por um vento vindo do norte.

— Está-se a levantar vento — constatou. — Ainda vamos ter bradagà.

O homem vendado limitou-se a concordar guturalmente.

— Então e o seu filho, que foi feito dele? Outro momento de quietude.

— O meu filho... o meu filho tornou-se um monstro — uma pausa enfática. — Um monstro. Não imagina as coisas que fez, a quantidade de pessoas que matou, todo o sofrimento que ele já causou. Eu pus um monstro neste mundo.

— Ai, homem, tanta desgraça! Então o seu filho deu em bandido?

— Não imagina. Todos os dias me culpo por ter cedido aos encantos da sua mãe, todos os dias me culpo por ter plantado a semente de uma criatura tão odiosa...

— Apre! Mas então... e o senhor ainda fala com ele? Sabe dele?

— O meu filho... tornei a encontrá-lo há pouco tempo. Ele tem-me nas mãos. Nada posso fazer contra ele.

— Não me diga que o seu filho o está a ameaçar? — espantou-se o camponês, erguendo ligeiramente a aba do chapéu. — Homem, livre-se disso! Ouça, eu conheço bem o vílico lá da minha aldeia, ele é boa pessoa, e, se fizer queixa, ele pode arranjar quem o ajude. Ele sabe de homens de justiça em Cantalle, e...

— Ele está para além da justiça, amigo — constatou prosaicamente o homem vendado, erguendo a cabeça como se quisesse olhar à distância. — Homem algum lhe pode tocar. Tenho de fazer o que ele diz.

— Então... e o que é que ele o mandou fazer?

— Enviou-me atrás de uma pessoa, como um cão de caça. Uma pessoa da qual ele tem medo.

— A si? Homem, mas se é cego...

Os corvos nas ombreiras inclinaram a cabeça e piscaram os condescendentes olhos ao carroceiro.

— Tenho os meus meios. O meu filho conhece-o muito bem, e eu sei como o procurar.

— Mas então... e o que lhe vai fazer?

— Depende — afirmou o homem vendado, relaxando o aperto dos seus dedos no cajado e olhando em frente como se de fato pudesse ver. — Se ele for verdadeiramente culpado, então pagará como todos os outros. Se não for...

Um dos corvos crocitou pela primeira vez, sobressaltando o camponês, e a cabeça do homem vendado olhou bruscamente para o lado, na direção da encosta arborizada. Ambos ruflaram as asas e pegaram vôo, bafejando os finos cabelos brancos do seu mestre e assustando ainda mais o carroceiro.

— O que foi isso...? — perguntou este. Como não obteve resposta, puxou as rédeas ao asno, que zurziu incomodado. — O que é que...

Um grupo de quatro bandidos surgiu então das árvores, envergando peles e andrajosos trajes de couro, armados com facas, clavas e um arco de caça. Não se incomodaram a ocultar a sua presença, pois sabiam que o asno nunca conseguiria levar a carroça muito longe, e desceram a encosta com andar gingão, rindo e trocando gracejos. O camponês olhou para os borrões que se mexiam no seu mundo baço e apertou as rédeas com força, retesando-se.

— Boas tardes, avozinhos — cumprimentou-os um jovem de anelados cabelos castanhos e cara suja de carda. — Aonde levam essa lenha toda?

— E só lenha — lamentou-se o homem. — Deixem um pobre velho em paz.

— Mas está frio, avozinho — queixou-se com tom jocoso um rapaz alto com cabelos negros sebosos e falhas nos dentes. — Podemos precisar dessa lenha para nos aquecermos...

— Vocês ainda são novos e fortes! — insurgiu-se o camponês, descobrindo uma reserva de indignado alento. — Vão cortar a vossa própria lenha!

— Isso dá muito trabalho, avozinho — justificou-se um terceiro, pálido, bochechudo e entroncado. Tentou afagar o focinho do asno ao dizê-lo, e o animal recuou com a cabeça, zurzindo. — E este jumento talvez ainda nos dê jeito...

— Sim, e o outro avozinho aí, com essas roupas todas caras, se calhar emprestava-nos uns cobres, não? — alvitrou o quarto, apontando o seu arco para baixo com os seus mitenes de couro.

— Não têm vergonha? A roubarem dois velhos? — repreendeu-os o carroceiro, colérico.

Os quatro rapazes riram, divertidos, e acercaram-se dos dois enquanto o bochechudo segurava as rédeas do asno.

— Vá, avozinho, ninguém tem de se magoar — disse o dos cabelos anelados, batendo com uma sugestiva clava na palma da sua mão.

— Saiam só da carroça, dêem-nos o que tiverem e podemos ir todos embora.

— Bandidos! Desavergonhados! — insultou o revoltado homem.

— Deviam ser todos enforcados! As vossas mães deviam ter-vos afogado numa selha quando nasceram!

— Nós estávamos a ser simpáticos, mas assim começa a irritar-nos, avozinho — avisou o com as falhas nos dentes, advertindo-o com a faca e pegando-lhe pela ponta do balandrau. — Se calhar precisa de uma...

— Avarqè òt Folcat — enunciou o homem vendado sem olhar para o rapaz da faca, que o fitou de surpresa.

— Como é que sabe o meu...

— Fizeste algo de que te arrependes — constatou este com a sua profunda voz eólica, que naquele momento reboou ligeiramente.

Os quatro olharam-no, admirados, incluindo o carroceiro.

— Para que é essa venda, avozinho? — perguntou o dos cabelos anelados para combater o inexplicável nervosismo que começou a sentir.

— Orgel du Loba, a tua família jaz em cinzas, mas a sua memória continua a arder na tua consciência — declarou o homem vendado.

— Mas o que é que está a... ?

— Oh, Ascar, desculpa-me! — pediu Avarqè, o das falhas nos dentes, dirigindo-se ao que empunhava o arco.

Orgel baixou a cabeça de testa franzida e boca entreaberta, mas os outros dois olharam para Avarqè, admirados. Havia lágrimas a escorrerem dos seus olhos, e deixara a faca cair para estender os braços na direção do arqueiro.

— A tua irmã... fui eu! Fui eu! Ela queria, juro que queria! — justificou-se Avarqè, plangente. — Mas depois começou a gritar, a espernear, a arranhar... Ascar, eu não queria... Mas ela gritava tanto, oh, como ela gritava! Tive de a calar...

O do arco olhou estupefato para o seu companheiro, enquanto Orgel caía de joelhos, largando a moca e levando as mãos à cabeça.

— Mãe... pai... oh, desculpem-me. Por favor, desculpem-me — pediu, enterrando a cara nas mãos. — Eu deixei-vos... deixei-vos...!

— Ascar òt Carbè, prometeste que não deixavas a tua irmã sozinha — recordou o homem da venda.

— Seu filho da puta, foste tu! — acusou o arqueiro, erguendo o arco e disparando. A flecha enterrou-se na garganta do seu companheiro com falhas nos dentes, passando por entre os seus suplicantes braços estendidos, e este caiu, sufocado.

— Avarqè! — gritou o de bochechas rechonchudas, largando as rédeas do asno e correndo a acudir o seu amigo mortalmente ferido.

— Desculpem-me, eu não agüento... não agüento... — lamentou-se Orgel, desembainhando uma faca e empunhando-a com ambas as mãos, abanando a cabeça. — Não agüento!

O rapaz cravou a faca no pescoço, arregalando os olhos marejados de lágrimas e tombando gorgolejante para o lado. Ascar, o arqueiro, olhou para o companheiro que abatera, ignorando o que acabara de se matar, e o peso do que fizera esmagou-o.

— Oh, Assana, não! Avarqè! O que é que eu fiz? — Levando as mãos à cara, deixou cair o arco, virou as costas e começou a correr desenfreadamente pela encosta acima.

O das bochechas rechonchudas agarrava o dos dentes com falhas, cujos membros se contorciam nos estertores da morte. O carroceiro estava de baços olhos esbugalhados, olhando para todas as fontes de ruído e vendo vultos indistintos ajoelhados, a correr, a espernearem. O seu companheiro de viagem permaneceu perfeitamente quieto a seu lado, até que virou lentamente a cabeça para o bandido que restava. As bochechas do rapaz estavam lívidas e bafejava por entre elas de forma quase bovina, segurando o companheiro morto nos seus braços. Ao ver que o homem vendado o fitava, ficou retido na sua posição, arregalando ainda mais os olhos e começando a tremer.

— Quem é você? — titubeou, estremecendo ao ouvir um grito de Ascar vindo das árvores. — Pelos deuses, o que é você?

O homem ergueu-se ponderadamente, assustando o carroceiro, que parecia ter perdido a língua, e desceu a carroça com vagar, apoiando a mão livre no fueiro.

— Eu sou aquilo que te remói por dentro — disse, de costas para o rapaz, virando-se então para ele. — Inflamo-te a alma, quebro lentamente o teu espírito.

Apesar de ter a barra do jugo entre si e o homem, o bandido ficou lívido de terror, incapaz de se mexer e aproveitar para fugir. O carroceiro estava igualmente paralisado.

— Eu sou o chicote da tua consciência, o azorrague da tua moral, o látego do teu delito — continuou o homem vendado, recitando uma ladainha que fazia o rapaz abanar a cabeça em impotente negação a cada palavra.

— Eu sou a Culpa — pontuou, pesando a alma do rapaz com os olhos vendados. — E todos irão pagar.

O bandido viu passarem diante dos seus olhos todas as suas transgressões, todos os seus crimes, o mal que fizera a outros e a si mesmo que nele deixara várias viciosas sementes plantadas, sementes essas que agora germinavam, apertando-lhe o coração com delituosas trepadeiras. Apercebeu-se então de que não podia continuar a viver com tamanha culpa, que toda a sua vida não passara de meros fragmentos de contrição que agora se fundiam num bloco frio nas suas entranhas demasiado pesado para a sua consciência suportar. Desembainhar a sua faca e espetá-la violentamente no seu coração pareceu-lhe a coisa mais natural a fazer, e toda a sua culpa lhe jorrou quente pelos braços abaixo.

Culpa ficou a olhar na direção geral do último bandido sem trair qualquer emoção na sua boca, virando então lentamente a cabeça para o carroceiro. Este sentiu de alguma forma que estava a ser fitado e arquejou, afastando-se tanto quanto conseguiu sem cair do banco. Durante largos momentos nada foi dito, e apenas a ruidosa respiração aterrada do camponês e os pinheiros a ciciarem ao vento se faziam ouvir.

— Nada tens a temer — asseverou Culpa por fim. — Tens as tuas falhas, mas és um bom homem. Porém, deves acautelar-te, não vão elas infectar e inquinar a tua consciência.

O homem estava demasiado aterrado para atentar às suas palavras, mas Culpa achou que as devia dizer de qualquer forma. Estendeu o braço esquerdo, indicando a estrada em frente.

— Vai.

O carroceiro não pensou duas vezes e vergastou o asno com força com as rédeas, merecendo um zurzido de protesto pela parte deste, que começou um forçado trote que não lhe teria permitido fugir de um homem que estugasse o passo. Culpa cruzou os braços, vendo aquele que fora o seu companheiro de viagem partir, absolutamente espavorido. Não se conseguia recordar da última vez que falara com alguém além do seu filho, não se lembrava da última conversa banal que tivera. Sentira falta do contacto humano, de uma voz compreensiva, e por isso agradeceu mentalmente ao abençoadamente ignorante homem. Quando este desapareceu da vista, virou a cara para o íngreme afloramento de rocha atrás do qual se escondia o vale da Cidadela da Lâmina. Aí aguardava Aewyre Thoryn, o homem que o seu filho desejava morto, o jovem cuja alma Seltor conhecia intimamente e cujos segredos lhe revelara, e cujo imenso peso culposo lhe permitira segui-lo através de Tanarch, Wolhynia e Laone. O seu filho não se poupara a detalhes, relatando-os como se tivesse presenciado em pessoa os mais marcantes eventos da vida de Aewyre Thoryn, e Culpa seguira o rasto do jovem como um Sabujo farejava uma presa. Não o fazia de livre vontade, mas a culpa que sentia por ter trazido o seu filho ao mundo dava-lhe poder sobre si, poder que não hesitara em exercer após uma longa ausência. Deambulara propositadamente, seguindo o rasto de Aewyre Thoryn de forma errática e deixando-se atrair aleatoriamente por outras fontes de remorsos e arrependimentos num gesto quase meramente simbólico de revolta para com o seu filho, mas fatalmente voltava sempre ao trilho do jovem. E agora estava próximo do seu destino. Não o fazia de livre vontade, mas a culpa atraía-o. Ele era-a.

O vento aumentou de intensidade, e Culpa virou a cara para um dos corvos que veio pousar no seu ombro, corvejando em conferência com o seu mestre. Levantou o queixo e viu o outro sobrevoar a área em círculos, crocitando do alto. O bradagà viria. Os lobos do céu iriam uivar, e os cordeiros culposos iriam ficar encurralados à espera de serem sentenciados pelo peso das suas próprias consciências. Mas ainda havia outros nas cercanias, outros cujas almas estavam disseminadas com sementes de culpa irrigadas pelos seus escrúpulos, gente vil e mesquinha. Sim, faria o seu filho esperar mais um pouco, nem que fosse essa a sua única revolta, a única forma que tinha de se insurgir. Culpa baixou a cabeça, com as badanas vermelhas da sua venda a adejarem ao sabor do vento, entrelaçando-se com a sua barba e cabelos brancos, e começou a andar.

Todos iriam pagar, disso estava certo.

 

A portada de ferro forjado no pátio interior da Cidadela da Lâmina dava acesso a uma escadaria moldada pela passagem de pés ao longo de milênios, que por sua vez levava a um antro nas entranhas do afloramento rochoso sobre o qual o baluarte assentava. A pequena gruta era lugubremente iluminada por fogaréus de ferro escurecido, cujas bruxuleantes chamas faziam reluzir as bizarras formações no teto que se assemelhavam a várias espadas sobrepostas a apontarem ameaçadoramente para baixo. As paredes estavam marcadas, e riscadas, e cobertas por ancianos desenhos toscos que retratavam cenas de combate com guerreiros de expressões grotescas e armas de proporções desmedidas que de alguma forma atenuavam a violência nelas representada. Porém, não eram esses a mais notável característica da gruta, mas sim as caveiras. Dezenas, centenas de caveiras parcial ou totalmente revestidas por sedimentos calcários decoravam o chão numa mórbida carpete, emparelhando com as estalagmites de variável tamanho. O ambiente era frio, úmido e soturno e convidava ao silêncio, um convite que os seis presentes haviam aceite sem quaisquer reservas, deixando o lamber das chamas entregue ao seu solitário monólogo. Aewyre e Kror estavam sentados de pernas cruzadas no centro da gruta, de costas direitas um para o outro, e vestiam apenas um par de calças cada. Rok e Kraac pintavam estranhas runas e diagramas nos seus troncos nus, pincelando os músculos de ambos com grossos dedos embebidos em azurite diluída em pequenas taças que seguravam nas mãos livres. Além desses quatro, estavam ainda presentes Assiòn e um vetusto laonês com um puído manto de lã castanha cujo peso parecia vergar as suas já de si corcovadas costas.

Envergava uma cogula com capuz que lhe ensombrava as faces, deixando apenas visível o seu comprido queixo e a boca de lábios chupados, e as suas mãos maculadas de manchas castanhas apoiavam-se num curioso bastão de ferro que os seus braços franzinos deviam ter dificuldade em erguer. Aewyre não se lembrava de o ter visto anteriormente, mas Assiòn referira-se a ele como o «Custódio», e aparentemente o homem desempenhava essa mesma função com o círculo de guerreiros. O que o jovem ainda não chegara a descortinar fora o que havia ao certo naquela gruta que necessitasse de um custódio. Pensara que iriam combater com outros Lamelares, embora Assiòn tivesse dado a entender que o combate teria lugar em condições muito especiais. Agora via-se com Kror numa gruta de terreno irregular com desenhos de outras eras nas paredes e estalagmites propensas a empalar quem caísse. Iriam combater um com o outro, com os thuragar? Com Assiòn? Com o Custódio} E por que estavam Rok e Kraac a pintar-lhes aquelas runas nos torsos? A expressão intrigada na sua cara não passou despercebida a Assiòn, que cruzou os braços e sorriu com o bigode.

— Apreensivo, Aewyre?

— Não, Alto Lamelar. Apenas...

— Não te mexas, humano estúpido — rosnou Rok, torcendo os bigodes compridos e farfalhudos. — Queres morrer?

O jovem ficou surpreso com as palavras do thuragar, sobretudo por estas não se tratarem de uma ameaça, mas sim de um aviso. Kror também o sentiu, mas uma rosnadela de Kraac impediu-o de virar a cabeça. Assiòn limitou-se a sorrir, e o Custódio não acusou qualquer reação.

— E melhor ficares calado, então. Vou contar-vos uma história enquanto esperam, e explicar-vos que sítio é este...

Aewyre olhou desconfiadamente para o thuragar, mas os pequenos olhos escuros deste estavam concentrados no seu torso enquanto lhe pincelava estranhos símbolos no peito, resmoneando qualquer coisa na sua língua rocal enquanto o fazia.

— Aqueles desenhos que ali vêem — continuou Assiòn, indicando as paredes com um dedo — são muito mais antigos que a Cidadela da Lâmina. Muito mais. Foram feitos pelos ghèren, uma tribo antiga de Laone que originou neste vale...

— Anút II vàella pan Lane — pronunciou o Custódio com uma voz de pieira, enclavinhando os dedos sobre o pomo da sua vara de ferro.

— O Custódio diz que na altura não havia Laone, e é verdade. Foi há muitos séculos — reconheceu Assiòn, indicando-o de seguida acusadoramente com um gesto da cabeça. — Ele percebe Glottik, mas recusa-se a falar noutra língua que não a sua.

Se entendera, o Custódio não se dignou a responder, e Assiòn caminhou um pouco ao longo de uma parede, cruzando os braços atrás das costas enquanto revisitava as histórias relatadas pelos desenhos.

— Os ghèren eram ferozes, numerosos, e bons guerreiros. Entraram em muitas guerras com as outras tribos, e conquistaram muitas terras. A única coisa que se esperava de um homem era que soubesse lutar, e a maior vergonha era morrer de velho na cama.

Assiòn passou a mão por cima de duas figuras de desmedidas espadas embrenhadas em combate mortal, e o ruído que o seu anel fez ao roçar com a pedra calcária assemelhou-se ao desembainhar de uma lâmina.

— Quando um guerreiro ghèren já estava demasiado velho para acompanhar os jovens na batalha, era abandonado para que morresse sozinho... Mas nós os velhos somos espertos, hã? — comentou o Alto Lamelar, tocando ao de leve com o indicador na têmpora. — Eles arranjaram uma forma de evitar uma morte tão... inglória.

O Custódio murmurou o seu assentimento.

— Procuravam um outro velho guerreiro, que muitas vezes era um camarada que os acompanhara nas batalhas e que também fora abandonado pelos jovens, e vinham para aqui. — Assiòn deteve-se e apontou para o chão com ambos os indicadores. — Aqui, no Cume das Três Fúrias.

— Ne Tàetan des Trò Teríe... — disse o Custódio.

— Sim. Vocês com certeza repararam nas... — o laonês procurou a palavra — formações. Com certeza repararam nas formações do monte quando chegaram à Cidadela, não?

Aewyre acenou com a cabeça, o que lhe mereceu um grunhido de Rok.

— Chamavam-lhe o Cume das Três Fúrias por isso. Pensavam que as Entidades o tinham golpeado com as suas espadas para verem qual delas era mais forte, e consideravam-no um local sagrado... Bom, esses velhos de que eu estava a falar, eles subiam até aqui a esta caverna, onde lutavam um com o outro, vigiados por um Custódio.

Aewyre olhou para o homem, que conseguia ao mesmo tempo parecer interessado e perfeitamente alheio à conversa. Talvez já o tivesse visto, uma figura corcovada a andar pelo recinto inferior, certa vez que estivera a espreitar das ameias...

— Sempre houve um aqui na gruta. Os Custódios esperavam aqui pelos velhos, que vinham sempre aos pares, e assistiam a um combate mortal entre eles. O vencedor lutava de seguida com o Custódio, perdendo quase de certeza devido aos ferimentos, e de seguida era decapitado.

— Eles vinham aqui para serem decapitados? — admirou-se Aewyre, e pareceu-lhe que Rok ameaçou fazer isso mesmo se não ficasse quieto.

— O vencedor, sim. O perdedor era só atirado para fora da gruta, para ser comido pelos abutres, embora eles preferissem mesmo isso a morrer na cama. Acontecia o mesmo com o corpo do vencedor, mas a sua cabeça era preparada e ficava aqui para se unir ao local sagrado, como vêem...

Assiòn indicou as caveiras calcificadas, que fizeram Aewyre lembrar-se do cemitério thuragar que vira com Lhiannah. Rok tornou a rosnar quando o guerreiro abanou ligeiramente a cabeça para afastar a memória. Não se podia distrair agora.

— O primeiro Custódio deve ter sido o sobrevivente do primeiro combate entre velhos — concluiu o Alto Lamelar. — Bom, um dia acabou. Os ghèren acabaram por se misturar com outras tribos, assentaram, e não houve mais velhos a combaterem aqui. Mas os Custódios continuaram a existir mesmo sem os combates. Havia pequenas comunidades no vale, muito... como é que vocês dizem...? Apegadas às suas tradições.

Assiòn regressou para perto do grupo, cruzando uma vez mais as mãos atrás das costas. Aewyre e Kror tinham os torsos quase completamente desenhados com estranhas runas e diagramas, mas os dois thuragar ainda estavam a dar uns retoques.

— O fundador da Cidadela da Lâmina decidiu construí-la aqui pela história do local e porque havia nele algo de... — O laonês tenteou o ar com os dedos, à procura da palavra. — Primário. As almas dos guerreiros ghèren, os vencedores, tinham permanecido de alguma forma, não tinham subido às suas montanhas. As caveiras, o combate ritual, as suas crenças, ninguém sabe porquê, mas permaneceram aqui na gruta...

— Bah! — desdenhou Kraac grosseiramente. — Pensam que a Essência faz tudo. Humanos estúpidos e fracos. Há poder nas rochas, nos ossos da terra. Poder mais antigo que o dos vossos magos maricas.

Aewyre ergueu o sobrolho mesmo antes de Rok começar a pincelar a sua testa com os seus dedos grosseiros.

— Pois. Seja como for, as almas estão presas aqui, e os nossos Lamelares usam-nas para treinos de combate intensivo.

— Almas...? — admirou-se Aewyre, esforçando-se por mexer apenas a boca.

— Bem, são um pouco mais do que almas. Fantasmas, talvez... Nós chamamos-lhes desèmè. Os Custódios sempre tiveram uma certa influência sobre eles, e os senhores da Cidadela aprenderam a usá-los para os chamar.

O silêncio do Custódio pareceu adquirir uma certa expressão perante as palavras do Alto Lamelar.

— Não lhe agrada, nem nunca agradou aos que vieram antes dele. Mas eles dão o melhor treino possível para os nossos Lamelares. São perigosos, não morrem, e podem fazer coisas que nenhum dos mestres consegue. Nós precisamos deles, e... bem, estão mortos — constatou o laonês, encolhendo os ombros de forma quase apologética. — Não vão a lado nenhum.

Aewyre nada disse, matutando sobre aquilo que Assiòn dissera. Ia pô-los a lutar contra fantasmas! A experiência mais semelhante que o guerreiro tivera fora contra selenn, e não era nada que desejasse repetir. Kror ainda não se pronunciara, e o jovem questionava-se quanto ao que o drahreg estaria a pensar. Rok e Kraac terminaram então as suas pinturas, erguendo-se e limpando os dedos tintos nas suas túnicas enquanto se dirigiam à escadaria.

— Já está? Bom, podem levantar-se — disse Assiòn, e Aewyre e Kror assim fizeram, pegando nas suas armas pelas bainhas. — Tomem, ponham isto aos pescoços.

O Alto Lamelar deu um colar com uma cornalina vermelha a cada um, e ambos os guerreiros ficaram a olhar de sobrancelhas franzidas para as gemas com as correntes a penderem das palmas das suas mãos.

— Vão precisar deles. Ponham-nos.

Aewyre e Kror olharam dubiamente um para o outro, intrigados com toda a situação e os bizarros preparativos. Ambos estavam de tronco nu, revestidos de estranhos símbolos azuis cujo propósito lhes escapava por completo, e aparentemente os outros preparavam-se para os deixar sozinhos numa gruta úmida repleta de caveiras e desenhos pouco acolhedores. Porém, acabaram por fazer como lhes fora dito e ficaram a aguardar mais instruções.

— Muito bem. Estão prontos — afirmou Assiòn, pousando as confiantes mãos nos ombros dos seus mais recentes pupilos. — Eu já vos vi a combater, e acho que vocês estão prontos para isto, mesmo sem serem Lamelares, hum?

Confusos, Aewyre e Kror não souberam como responder à confiança e ficaram a olhar para o Alto Lamelar com caras pouco convencidas.

— Não se preocupem, vão perceber daqui a pouco. Vamos, Custódio?

Como uma estátua que repentinamente ganhava vida, o anciano laonês pôs-se a caminho da escadaria sem esperar por Assiòn, que deu umas últimas palmadinhas reconfortantes nos ombros dos dois guerreiros antes de o seguir.

— Vão desembainhando as armas. E ponham-se de costas um para o outro — recomendou.

Aewyre e Kror assim fizeram, o humano com Ancalach empunhada por ambas as mãos, e o drahreg com os dois alfanges cruzados em expectativa. Assiòn ainda não acabara de subir a escadaria, mas os dois começaram de imediato a olhar em redor e, tendo estudado atentamente o terreno durante a pintura, dirigiram-se lentamente para um ponto entre várias estalagmites que, não sendo suficientemente altas para bloquearem golpes, limitavam as direções pelas quais quaisquer eventuais inimigos se pudessem aproximar. Os passos do Alto Lamelar despediam-se deles, e as sombras movidas pelas bruxuleantes chamas dos fogaréus pressagiavam uma ameaça oculta.

— Boa sorte! — desejou Assiòn antes de sair para o exterior, deixando o Custódio sozinho no topo da escadaria.

Este empunhou o bastão de ferro com ambas as mãos e bateu três vezes com a ponta no chão.

— Derives, dòtàes emes! — bradou com uma voz que Aewyre o julgara incapaz de possuir antes de sair e fechar a portada com um plangente estrondo.

Silêncio na gruta. Humano e drahreg ouviam apenas a respiração um do outro e o arder dos fogaréus.

— O que é que ele disse? — perguntou Kror de dentes desafiadoramente arreganhados, esquadrinhando cada recesso do antro com os olhos vermelhos.

— Não sei, mas não me soou nada bem — disse o guerreiro, relaxando o aperto no punho de Ancalach ao aperceber-se da força com a qual o apertava.

Os dois aguardaram em tensa expectativa, sem saberem de onde surgiria o perigo que sentiam, mas que não conseguiam visualizar, até que de repente as labaredas dos fogaréus se agitaram, lançando as sombras num frenesi. Aewyre e Kror começaram a andar em lentos círculos, sempre de costas um para o outro. Tênues e indistintas vozes fizeram-se ouvir, criando um perturbador ruído de fundo acompanhado do silvar e entrechocar de lâminas. Kror praguejou algo em Olgur e Aewyre teve vontade de fazer o mesmo, sentindo o seu coração acelerar e as pernas descontraírem instintivamente à medida que o seu corpo se preparava para o iminente combate. Com o seu torso desprotegido, agachou-se involuntariamente de forma a sobrepor as costelas umas às outras para melhor se proteger, mas ainda assim sentia-se nu.

As caveiras principiaram a exalar uma estranha névoa que cheirava a cinzas molhadas e verdete, cujos fiapos se retorciam no ar como tentáculos cegos em busca de presas. Os dois guerreiros rasparam o chão com os pés para avaliar a ameaça, mas a névoa pareceu-lhes inofensiva, pelo menos até dela começarem a emergir cabeças num círculo em redor de Aewyre e Kror. As três lâminas forjadas por Siris colocaram-se em lesta guarda assim que as cabeças deram continuidade a corpos que se ergueram do chão, cadáveres eretos e fantasmagóricos a assomarem do oceano nublado em redor. Empunhavam longas espadas de lâminas largas desprovidas de copos e com pesados pomos redondos, machados de compridas cunhas, lanças de pontas grandes com rebarbas e escudos oblongos com bojos no centro. Envergavam armaduras de couro com corseletes e elmos cristados com proteções para as orelhas, bem como um sortido de peles e capas de tecido axadrezado. Alguns tinham camisas de cota de malha, outros estavam de tronco nu como Aewyre e Kror, e nesses notava-se em particular a vetustez dos guerreiros mortos. Os seus corpos e vestimentas eram nimbados e parcialmente diáfanos, e as suas cores por conseguinte opacas e indistintas, mas notavam-se na perfeição os assaltos do tempo nos seus senectos físicos antes da morte destes e os ferimentos que os haviam tombado. Longos cabelos presos em coques na nuca predominavam, embora a calvície de alguns obrigasse a mal-amanhadas tranças semelhantes às que faziam com os seus compridos bigodes. Velhos robustos no seu tempo, conservavam um altivo porte mesmo após a morte, e os seus olhos vítreos fitavam Aewyre e Kror em tom de desafio, que estava igualmente patente nos reptos que lhes saíam num coro monótono e contínuo das bocas. As suas vozes etéreas ressoavam como se vindas do além, mas os seus corpos — ou pelo menos a manifestação destes — estavam bem presentes, e as suas armas pareciam tão capazes de ferir e matar como o haviam sido em vida.

— Eles vão atacar — constatou o drahreg mesmo sem perceber as suas palavras. — Estamos cercados.

Aewyre não teve de concordar para lhe dar razão. Confiava em Assiòn, mas a situação na qual ele os deixara mais lembrava uma armadilha que uma sessão de treino. Teria mudado de idéias, seria tudo uma trama para adquirir Ancalach...?

«Não, se ele a quisesse, ter-ma-ia tirado com facilidade», negou o guerreiro. «Isto é um treino. Agora só temos de descobrir como é que o passamos.»

Havia sete guerreiros à sua volta, dois armados de lanças que poderiam usar mesmo detrás das estalagmites que lhes bloqueavam o caminho e cinco de espadas e machados aprestados. Não sabia sequer se os conseguiam ferir, mas lembrou-se do seu combate com os selenn, no qual os seus gritos e a sua raiva haviam cortado os incorpóreos seres tanto ou mais que Ancalach.

— Concentra-te, Kror — disse de costas para o drahreg. — Luta com eles como se fossem homens vivos, reage como se os tivesses ferido mesmo que os teus alfanges passem por eles.

Kror limitou-se a grunhir em resposta, mas o guerreiro sentiu-se em suficiente sintonia com o drahreg para saber que este entendera. Não sabia para que serviam as pinturas nos seus torsos nem os colares aos pescoços, mas convenceu-se de que tinham o seu propósito e que estavam lá para os ajudar.

— Quando eles fizerem o primeiro movimento e abrirem espaços, penetramos por eles adentro — praticamente ordenou Aewyre. — Mantém-te em movimento, espalha-os, não deixes que te ataquem todos ao mesmo tempo. E lembra-te do que falamos acerca de partilhar o «tendão», tenta...

Um coro fantasmal interrompeu o guerreiro e as translúcidas lâminas investiram. Aewyre e Kror gritaram e o aço estridulou com bronze de eras passadas, dando início ao combate. Um alfange desviou uma estocada e o outro deslizou debaixo da barba de um guerreiro, que grunhiu e se esfumou como uma traça seca coberta de pó. Ancalach dançou com duas lâminas, subindo pelo peito de um dos fantasmas ghèren, e o guerreiro aproveitou de imediato a brecha para ir em frente, sentindo o chofre vítreo de armas atrás de si. Girou prontamente com Ancalach num arco baixo e apanhou a anca de um outro adversário antes de contornar uma estalagmite, mas antes que se pudesse esperançar com as baixas que haviam facilmente infligido aos adversários, quatro novas cabeças despontaram da névoa no chão.

— Pela espada cruenta de Gilgethan, vêm aí mais! — gritou a Kror, que dançava entre dois oponentes.

Um velho guerreiro correu por entre estalagmites na sua direção, enristando uma lança de pesada ponta para o empalar. Aewyre gritou ao desviá-la, esfumando o guerreiro com um revés e colocando-se numa guarda média para receber o ataque de dois espadeiros. Os fantasmas tinham o vigor que lhes faltara em vida e atacavam com ferocidade, obrigando Aewyre a uma série de desvios e passos recuados enquanto se mantinha atento à aproximação de outros. A gruta parecera de repente ficar repleta de guerreiros fantasmagóricos, cujos aulidos se assemelhavam aos de uma alcatéia de lobos etéreos de focinhos estalantes em redor de duas presas encurraladas. Kror corria, fintando estalagmites e golpes aleatórios, mordendo em redor com os seus alfanges e lançando os seus perseguidores numa desenfreada corrida até tropeçar numa qualquer irregularidade do terreno. O drahreg rebolou pela névoa, evitando duas lançadas até se conseguir erguer, oscilando os alfanges sobre a cabeça numa nuvem de dois guerreiros esfumados.

«Maldição, não temos nem espaço nem terreno para isto!», praguejou Aewyre, vendo-se forçado a bloquear uma espadeirada. A parada dura abriu a sua guarda para um atacante por trás, e o jovem não se conseguiu afastar por completo do golpe. Um frio desnatural escoriou-lhe a omoplata e Aewyre grunhiu de dor.

— Que raio...?! — barafustou, baixando-se para varar o adversário à sua frente e pontapeando para trás. O seu pé encontrou uma certa resistência no ar, semelhante a uma forte corrente, mas não pareceu afetar o fantasma ghèren de qualquer forma, pois este trouxe a espada em arco para cima e preparou-se para o partir ao meio.

Ancalach podou-lhe os braços a meio caminho, regressando de imediato atrás para embater contra o escudo oblongo de um novo atacante. Aewyre sentira o perigo, mas não fizera idéia de que a dor de um ferimento fantasma seria tão... física.

— Kror, vai para as escadas!

Era o único local na gruta com verdadeiras limitações para os atacantes, que começavam a enxamear por todos os lados. A cacofonia das suas vozes fantasmais começava a tornar-se ensurdecedora, e o mofento odor da pulverulenta «morte» de cada adversário colava-se ao céu-da-boca e irritava o nariz. Os seus números não pareciam diminuir de forma significativa; muito pelo contrário, davam a idéia de estar a aumentar. Kror ouviu o seu grito e achou o conselho avisado, pelo que se desenvencilhou o mais rápido que conseguiu dos seus adversários e começou a correr para a escadaria. Guerreiros fantasmagóricos brotaram no seu caminho, mas o drahreg acutilou todos os que não conseguiu evitar e pulou para os degraus, brandindo os alfanges em desafio para todos quantos ousassem aproximar-se dele naquele espaço restrito. Vários aceitaram o desafio, e os alfanges do drahreg começaram a sua mortal dança. Por sua vez, Aewyre em breve se viu avassalado por um ataque concertado dos fantasmas ghèren. Lâminas de bronze fantasmagórico chofraram em seu redor com sons vítreos, pontuando os ditos e as ameaças proferidos por quem as empunhava, e Ancalach bailava furiosamente com elas. Aewyre não parava quieto um instante, forçado a um constante jogo de passos e a uma calculada corrida entre estalagmites para não ficar encurralado. Já nem pensava em Assiòn, nem se lembrava das certezas de que esta não passava de uma sessão de treino e que nada de grave poderia nela ocorrer. Tinha de fazer alguma coisa.

— Kror, concentra-te! — gritou, atravessando a nuvem de pó de um fantasma que espadeirara para fora do seu caminho. De todas as vezes que tivera acesso à Essência da Lâmina, fora devido a uma reação instintiva do drahreg, mas não estava disposto a confiar a sua vida somente à intuição deste. — Eu não agüento com eles todos! Preciso da Essência da Lâmina!

Kror continuou a debater-se com os seus adversários, mas da sua posição podia ver Aewyre a debater-se aflitivamente com a horda fantasmal, e apercebeu-se do perigo que o humano corria. Lembrou-se da conversa com ele a respeito do que acontecera na última sessão de treino com Heldrada, mas não estava em condições de atingir um estado de espírito concentrado para sequer tentar o que Aewyre fizera. O humano estivera meramente a observar enquanto Kror combatia, mas naquele momento estavam ambos a lutar desesperadamente contra um número quase avassalador de inimigos. Mesmo na sua posição vantajosa, o drahreg começava a ter dificuldades em repelir todas as investidas.

— Kror, liberta-a! — rogou Aewyre, praticamente agredindo duas espadas e esfumando uma perna, evitando os subseqüentes golpes com um hábil jogo de pés que o deixou diante de outros três oponentes. — Se eu morrer, ficas sem ela!

— Eu também estou a lutar! — protestou o drahreg, aparando uma espadeirada e passando um alfange pelo ventre desprotegido de um ghèren.

— Mas eu estou cercado, porra! — berrou o jovem, oscilando Ancalach sobre a cabeça e percutindo um escudo fantasmagórico, por pouco não caindo ao desviar-se de outro golpe. — Tenta concentrar-te em mim! Pensa em como vais perder a Essência da Lâmina se eu morrer, pensa...

Aewyre bateu com os rins numa estalagmite ao recuar, e duas espadas aproveitaram-se de imediato do seu deslize. A primeira, evitou-a com um desvio, a segunda, teve de bloqueá-la com uma parada dura, o que o levou a tentar algo mais arrojado ao ver-se numa posição precária. Atirou-se de cabeça sobre um fantasma com a intenção de lhe dar uma cabeçada no queixo, mas foi como arremeter contra uma forte corrente de vento, e os guerreiros ghèren à sua frente pareceram bem menos surpresos que ele. Aewyre baixou-se e varreu as pernas à sua volta com uma arrebatada oscilação de Ancalach, reduzindo pernas a pó antes de se levantar com uma cadenciada seqüência de golpes. Os fantasmas não manifestavam qualquer dor nem pesar pelos companheiros caídos; limitavam-se a esfumar-se e dar lugar a outros, que atacavam com os mesmos intuitos assassinos e tagarelavam no mesmo tom arrepiantemente monótono. Não pareciam muito interessados em manter diálogo, mas aparentemente queriam que os dois guerreiros soubessem por que estavam a ser atacados.

— Vem para aqui! — gritou Kror, defendendo ferozmente a sua posição.

— Eu bem quero! — protestou Aewyre, despedaçando a ponta de uma estalagmite por acidente com um golpe de espada. — Eles estão por todo o lado!

As espadas longas dos seus adversários cancelavam a vantagem que o guerreiro estava habituado a deter graças ao comprimento de Ancalach, e o combate tornava-se cada vez mais desesperado. Algo frio mordeu-lhe a parte posterior da coxa e Aewyre grunhiu, esfumando o seu agressor com uma cutilada horizontal e trazendo a espada imediatamente abaixo para bloquear um ataque com uma guarda fechada, aparando outro de seguida com uma guarda pendente. Havia muito que a luta perdera toda e qualquer correção, tendo sido reduzida a uma série de espadeiradas quase amadoras. Aewyre sabia que era apenas uma questão de tempo até ser encurralado ou atingido certeiramente por um golpe fortuito, e que tinha de fazer alguma coisa. Um dos seus muitos tropeções deu-lhe uma idéia e o jovem exagerou o desequilíbrio, deixando-se cair e rebolando pelo chão até ficar numa posição comprometedora, enterrando Ancalach debaixo da névoa e fingindo que esta estava encalhada.

— Kror! — gritou, com várias lâminas prestes a silenciá-lo.

O drahreg viu a sua posição precária, e embora estivesse de mãos cheias com os seus persistentes adversários, o tempo desacelerou o suficiente para que pudesse fixar o olhar no humano. Algo no seu interior relaxou então, permitindo-lhe soltar o «tendão» com uma brusca exalação a meio de um golpe. Aewyre sentiu de imediato o desnatural vigor estimular-lhe a circulação para os membros, acalentando-lhe o ácido láctico nos músculos, derramando-lhe químicos coagulantes no sangue e focando-lhe a visão para os perigos mais imediatos. Embora não houvesse sinais vitais a captar nos seus adversários, as lâminas diáfanas dos ghèren adquiriram aguçado detalhe, e os seus iminentes ataques formigavam-lhe nos pêlos em antecipado aviso. Ancalach ergueu-se da névoa, rutilando com as chamas dos fogaréus, e o arco que descreveu reduziu quatro ghèren a sepulcral fumo com uma reverberação pelo ar. O jovem levantou-se, brandindo a Espada dos Reis com ambas as mãos, e lançou-se numa arrojada dança pelo meio dos guerreiros fantasmais, compassando o ritmo com Ancalach e criando um corredor de fumo entre os oponentes. A partir do momento em que deixou de correr perigo imediato, o «tendão» tentou regressar ao seu estado de tensão entre os dois Portadores, mas Aewyre cerrou os dentes e recusou-se a permiti-lo. A sensação era revigorante, sublime, o poder que detinha absolutamente inebriante. Sentia-se capaz de combater lendas, segar exércitos, tombar deuses. Era aquilo por que lutara, aquilo de que precisava para combater O Flagelo, aquilo que estaria sem dúvida disposto a matar para obter. Não o iria largar, nunca, nunca mais. Era seu.

O «tendão» protestou, e o pequeno tamanho das estalagmites foi explicado pelas reverberações que o guerreiro lançava com os seus quase assertórios golpes, esfumando ghèren e espedaçando pontas calcárias com igual facilidade. Kror viu-se aliviado pelo surto de poder do humano, pois os fantasmas começaram a dedicar-lhe grande parte das suas atenções, mas o grupo que o ameaçava ainda era respeitável, e as malditas cabeças não paravam de brotar da névoa, que se estendera despercebidamente por alguns degraus acima. Uma delas surgiu detrás das pernas de Kror sem que o drahreg a visse, e o ghèren armado de lança assomou silenciosamente nas suas costas, empunhando a arma com ambas as mãos. Kror abriu os braços e esfumou dois fantasmas que haviam falhado os seus golpes, preparando-se para bailar com os seguintes quando de repente algo se lhe espetou na ilharga, enregelando-lha. O drahreg grunhiu de surpresa e apenas conseguiu bloquear uma espada, cruzando os alfanges sobre ela enquanto a outra lhe acutilava a perna. O seu grito de gélida dor chamou a atenção de Aewyre, quebrando a sua desbastadora investida entre os ghèren ao ver que Kror corria sério perigo. O guerreiro abriu caminho com um golpe largo e soltou o «tendão», aproveitando o espaço que criara para se afastar aos tropeções dos adversários em resultado das contrações musculares causadas pela soltura. Kror sentiu o já lentamente familiar arroubo e como sempre reagiu instintivamente ao arrebatamento, cortando para trás para esfumar o ghèren que o atacara pelas costas, subindo um degrau lateralmente e saltando por cima dos adversários que de imediato subiram, passando-lhes os alfanges sobre as cabeças e devolvendo-os à névoa que os expelira. Os seus pés afundaram-se nela, fazendo saltar dela outras tantas cabeças enquanto descrevia rutilantes arcos com ambos os alfanges, criando um círculo de fumarenta morte em seu redor. Aewyre corria, esfumaçando oponentes aleatoriamente na sua irregular trajetória, e a sua tentação era correr para a ilha de segurança criada em redor do drahreg, que começava a ser atacado por todos os lados por inimigos que passaram a ignorá-lo. Aparando lâminas fantasmagóricas e atravessando nuvens de fumo com a sua, o guerreiro correu na direção de Kror, espadeirando adversários para fora do seu caminho.

— Kror, passa-me! Assim eles vão todos para cima de ti! — gritou, irrompendo pelas fileiras fantasmagóricas com perfeitamente desvairados golpes giratórios que lhe mereceriam um forte carolo do seu mestre Daveanorn.

O drahreg ignorou pela primeira vez os seus instintos, oscilando os alfanges sobre a cabeça enquanto cortava em redor e desferindo uma cutilada que o deixou de joelhos e que apontou uma das lâminas na direção de Aewyre. A energia abandonou-o como água por um escoadouro aberto, mas Aewyre aliviou a pressão dos ataques que lhe eram dirigidos com uma undíflua reverberação por cima da cabeça do drahreg, que os reduziu a fumo sepulcral. Dessa forma, Kror teve tempo para compensar os espasmos resultantes da libertação do «tendão» e rebolou pelo irregular chão, cortando as pernas diáfanas que vadeavam a névoa e erguendo-se no espaço criado por uma abertura dos braços que deixou fiapos de fumo a trilharem os seus alfanges. Aewyre rasgou a barreira fantasmagórica que se lhe apresentou, procurando pontos de ruptura entre os grupos de ghèren de forma a construir um intrincado labirinto que lhe permitisse a livre movimentação entre os adversários. A sua idéia era cada um ir atraindo os fantasmas num jogo de perseguição enquanto iam trocando a posse do «tendão», dividindo-os à medida que alternavam o foco dos seus ataques. Não sabia quantos eram ou se os seus números teriam sequer fim, mas pelo menos não aparentavam grande inteligência, a avaliar pela forma como se iam deixando orientar como ovelhas para o matadouro. Ainda assim, fantasmas não se cansavam, e Aewyre sabia que nem mesmo a Essência da Lâmina lhe daria a si e a Kror um vigor infindável, pelo que começou a estudar outras hipóteses, entre as quais a fuga. As lâminas dos ghèren podiam não verter sangue, mas o jovem sentira a dor e sabia estar ferido, embora não houvesse sinais exteriores disso. Não sabia qual fora a idéia de Assiòn, mas nem ele nem Kror estavam prontos a defrontar um exército de fantasmas, nem mesmo com o parcial uso da Essência da Lâmina. Tinham que sair dali.

O fumo de mais um ghèren desvaneceu-se quase instantaneamente no ar após ser atingido por Aewyre, revelando-lhe a escadaria ao longe antes de um grupo de guerreiros fantasma lhe taparem a visão, mas não antes de ver três ghèren posicionados na base dos degraus. Os fantasmas não se mexiam, cortando-lhes a única via de retirada possível, o que deixou Aewyre tão apreensivo como o fato de tal iniciativa dar mostras de uma inteligência que até então os seus adversários não tinham evidenciado.

«Não estou a gostar disto», pensou o guerreiro, esfumando dois com um golpe e revés. «O melhor é sairmos daqui quanto antes.»

Decidido, Aewyre correu uma vez mais na direção de Kror, que golpeava, aparava, desviava e fintava com a sua dança das estepes. Um grupo de ghèren perseguiu-o, trilhando névoa e imprecando no seu incompreensível dialeto laonês.

— Kror, atrás de ti! — avisou Aewyre, passando a correr pelo drahreg quando este se virou e investindo contra os seus adversários.

Kror viu-se então face a um autêntico batalhão fantasmagórico a uivar pela sua morte, e Aewyre aproveitou o seu ímpeto para se abater sobre os ghèren à sua frente enquanto cedia o «tendão» ao drahreg. Os braços deste estalaram em resposta, lacerando o ar e desenhando dois mortíferos arcos que dissiparam o grupo que o atacava como uma rajada de vento o faria com uma névoa.

— Para as escadas! Corre para as escadas! — incitou Aewyre, tossindo com o fumo fantasmagórico no ar enquanto corria na direção oposta à de Kror.

Invulgarmente solícito, o drahreg seguiu as suas indicações, investindo contra os três ghèren que o aguardavam na escadaria, que já se encontrava parcialmente coberta pela fantasmal névoa da qual saíram outros tantos, arremessando-lhe lanças que Kror esfumou facilmente. O drahreg reparou que não estava a ser perseguido como dantes acontecera, mas a sua atenção estava centrada nos adversários na escadaria e preparou-se para os reduzir a fumo com uma devastadora reverberação.

Aewyre viu-se cercado por ghèren que esperava que tivessem atacado Kror, a maior ameaça, e de repente a sua diversão tornou-se numa corrida para a morte.

«Filhos da mãe, eles são inteligentes!», pensou, alarmado, espadeirando com mais lâminas fantasmagóricas com as quais esperara deparar. O súbito pânico criou uma abertura que o oportunista «tendão» prontamente aproveitou, regressando com uma violência que permitiu a Aewyre desbaratar a emboscada.

Porém, Kror carregou sobre os inimigos e foi repentinamente despojado da energia com a qual contara, e estes aumentaram repentinamente de número. Recuando e defendendo-se até aos seus limites, o drahreg chamou mentalmente pelo «tendão», que Aewyre lhe cedeu após ter eliminado a ameaça mais imediata, mas outra cedo se revelou na forma de uma nova vaga de ghèren. O «tendão» estava agora tenso e dividido pela necessidade de ambos, cuja concentração fora quebrada pela inesperada manobra dos fantasmas. Kror viu-se cercado por inimigos que o envolveram numa turba de corpos diáfanos e discordantes vozes etéreas, e Aewyre praticamente oscilava com Ancalach em redor, sentindo várias mordidelas frias nos membros e tronco. Quis o acaso que o drahreg se virasse na direção do humano a meio de uma desesperada defesa. Nesse momento, uma lâmina veio na direção da cara de Aewyre, cuja espada estava imobilizada debaixo do peso de outra que bloqueara, e o jovem só teve tempo de grunhir.

Os seus joelhos afundaram-se na névoa, e o vermelho dos orbes de Kror dilatou-se no negrume dos seus olhos. O «tendão» estalou, como que rasgado.

— Não! — gritou Kror antes de ser varado por várias lâminas que lhe enregelaram o torso e de cair inanimado ao chão, ficando com um lado da cara submerso na conturbada neblina, boca e olhos bem abertos.

Aewyre ouviu o compassado ruído de algo a ser vergastado. Era Verão e estava a dormir uma sesta enquanto as moças da aldeia espadelavam o linho à beira do rio. Não, estava demasiado fresco, o mais certo era estar num cubículo escuro na oficina dos pisoadores com a filha do dono. Também não, o corpo doía-lhe. E sentia frio. Deuses, seria o carcereiro das masmorras de Alyun? Estaria preso? O jovem despertou de sobressalto, erguendo o torso e apoiando as mãos na inesperadamente macia colcha. Estava na sua cama no dormitório. Sozinho? O vergastar fê-lo virar a cabeça e viu Kror deitado de barriga para cima na sua cama do outro lado da sala (os dois haviam escolhido leitos propositadamente afastados), com os lençóis puxados para baixo e com Heldrada a açoitar-lhe o torso despido com uma correia de couro.

— Eh, o que é que estás a fazer? — exclamou o jovem, chutando os pés para fora da cama e arrastando o lençol consigo.

— Calma, Aewyre — ouviu a voz de Assiòn dizer nas suas costas. — A Heldrada está a tratar dele.

Aewyre virou-se e viu que o Alto Lamelar estava à janela, apoiado no parapeito e a olhar por cima do ombro. Era de manhã, e o céu apresentava-se soturno como já era hábito, e a janela aberta deixara entrar uma aragem que arrefecera o dormitório.

— Não te preocupes, tu e o Kror estão bem — assegurou-lhe o laonês, fechando as adufas. — Passaram a noite a dormir, como é natural. Não vos íamos acordar depois de semelhante experiência, não é?

Confuso, Aewyre olhou para Assiòn e para Heldrada, que lhe dispensou o mínimo das atenções antes de retomar o castigo que parecia estar a dispensar a Kror. O drahreg virou a cabeça para o fitar, e, além das caretas de dor que ia fazendo a cada vergastada, parecia de fato bem, pelo que o guerreiro se sentou na cama. Reparou que estava com uma camisa vestida e puxou-a da cintura para cima, constatando que já não tinha as estranhas runas que Rok nele pintara.

— Alto Lamelar... o que aconteceu? Os ghèren...

— Foi uma sessão de treino curiosa, não? — sorriu Assiòn, sentando-se na cama diante do guerreiro. — Aposto que ficaram assustados.

— Assustados? — grasnou Aewyre. — Pensava que eles...

— Sim, é uma experiência muito intensa. E não está muito longe da realidade, sabes? Os ghèren podem mesmo matar-te.

Estupefato com a forma prosaica com a qual o laonês fizera semelhante afirmação, Aewyre olhou para Kror para ver se o drahreg partilhava do seu espanto, mas este limitou-se a fazer outra careta e a virar a cabeça, como se já tivesse ouvido a conversa. Heldrada parecia concentrada naquilo que estava a fazer e não prestava qualquer atenção ao que diziam.

— É complicado explicar, mas as runas de azurite que o Rok e o Kraac vos pintaram eram para vos ajudar a... — Assiòn olhou para o lado de sobrancelhas franzidas. — Como é que aquele rapaz dizia...? Desenvolver a vossa percepção mental do que vos rodeava, mas que não estava mesmo lá. Elas fazem a ponte entre a vossa intuição e os vossos sentidos, e ao mesmo tempo confundem os dois, entendes?

— Não posso dizer que sim... — confessou Aewyre, esfregando os olhos. O corpo doía-lhe onde fora atingido pelas lâminas fantasmagóricas, uma dor fria vinda de dentro, quase reumática.

— Bom, não interessa. Elas serviam também para vos proteger, para vos ligar à gruta e de certa forma aos próprios ghèren que estão presos a ela. Os três thuragar eram capazes de te explicar melhor, mas duvido que o fizessem. Há coisas que só quem vive debaixo de terra consegue compreender mesmo, não achas?

— Suponho que sim... — As vergastadas de Heldrada começavam a incomodar Aewyre. Apesar de ser difícil distinguir marcas nas costas escuras de Kror, era óbvio que o estava a magoar. — O que é que ela está a fazer?

— Aewyre...

— Perdão. Posso saber o que a Mestre de Armas está a fazer?

— Ia explicar-te isso. Os colares que eu vos dei, lembras-te? — Aewyre nutou. — As cornalinas são potentes protetoras, mas ali serviram sobretudo para... — O laonês tornou a olhar para o lado, lambendo os lábios. — Aquele rapaz é que dizia tudo tão bem... revitalizar e alinhar o corpo físico e espiritual, é isso! — declarou, estalando os dedos. — Sim, elas serviram para que vocês sentissem os «ferimentos», mas que estes apenas afetassem os vossos corpos espirituais, ou o vosso espírito.

Assiòn falava como se estivesse a opinar acerca da melhor altura para podar as vinhas, mas Aewyre estava a acompanhá-lo tão bem como se estivesse a ouvir uma das dissertações de Allumno acerca da Essência.

— Ferir os nossos espíritos? Mas isso não é... não sei... grave?

— Oh, é doloroso à sua maneira, claro — admitiu o Alto Lamelar de levíssimo ânimo. — Mas o que resulta é que vocês apenas pensam que foram feridos. Na verdade, não o são. Por isso é que o círculo de guerreiros é tão útil para o treino dos Lamelares, entendes? Podem lutar sem se conterem, porque os ghèren não morrem, e ao mesmo tempo correm «perigo», pois mesmo que saibam que não podem morrer, as runas e as cornalinas fazem-nos sentir que foram mesmo feridos, por vezes mortalmente como vocês.

— Nós... não estávamos à espera de que fosse tão...

— Nem eu. Tu e o Kror aguentaram-se muito bem, fiquei muito impressionado. Eu não vi o que vocês fizeram, mas devem ter conseguido partilhar a Essência da Lâmina, não?

— Sim, conseguimos... mais ou menos.

— Por isso é que eu achei que vocês deviam ir. Vocês têm mais facilidade em partilhar a Essência da Lâmina quando correm perigo, não é? Ali é o local ideal para vocês experimentarem.

Nisso Assiòn tinha razão. Por muito atabalhoado que o combate tivesse sido, a verdade era que abrira várias oportunidades para o jovem experimentar coisas que até então não tivera ocasião de fazer, e ao que parecia era possível tornar a fazê-lo num ambiente de perigo minimamente controlado.

— Disse que eles nos podem matar?

— Bem, em toda a história da Cidadela, só sei de um rapaz que não tornou a acordar. O que eu quero dizer é que os ghèren são mesmo perigosos. Estão presos àquela gruta, têm de ser invocados pelo Custódio e a portada de ferro não os deixa sair, mas são perigosos. Sem as runas e os colares, eles podiam mesmo ter-vos morto. São espíritos, mas o ritual das suas mortes mantém-nos presos à gruta, e são capazes de partilhar as suas dores com os vivos. Vocês parecem ter descoberto cedo a melhor forma de os afetar — disse Assiòn, abanando um aprovador indicador. — Houve muitos Lamelares que «morreram» sem conseguirem «matar» um sequer.

— Eu tive umas experiências com... espíritos. Mas nunca vi nenhum como estes.

— Nem sei se existem outros em Allaryia. Fazem parte de uma tradição muito especial, eles e o Custódio. O homem já estava aqui antes de eu chegar à Cidadela da Lâmina, e já faz tanto parte dela como da gruta dos ghèren. Não gosta muito do que fazemos com eles, como deves ter reparado, e acho que se sente um pouco culpado. Mas eles estão mortos e graças a nós podem continuar a fazer o que mais gostavam em vida: lutar. Não me parece crueldade, não achas?

Aewyre tinha certas reservas quanto a perturbar as almas dos caídos, mas decidiu não as partilhar com Assiòn, e foram necessárias quatro vergastadas de Heldrada para que o jovem tornasse a falar.

— Ainda não me explicou por que é que ela... a Mestre de Armas está a desancar o Kror.

— Ah, é verdade, perdi-me — sorriu o laonês. — Tem paciência com este velho. Tu deves estar a sentir umas dores estranhas, não?

Aewyre acenou com a cabeça, esfregando a base do nariz com as dores do golpe «mortal» que recebera na cara.

— Na cara, foi? — compadeceu-se Assiòn, franzindo a testa. — E dos sítios mais complicados. Bom, a Heldrada também treina no círculo de guerreiros, e descobriu que se magoar os sítios onde foi «ferida», essa dor estranha desaparece. Não me perguntes porquê, mas todos os outros Lamelares dizem que funciona e vêm pedir-lhe que os magoe.

Assiòn riu-se, mas Aewyre não achou muita piada.

— E verdade. Essa dor fria desaparece se magoares o corpo mesmo nesse sítio. O Kror disse que foi atravessado por várias lâminas, por isso ela está a magoá-lo onde lhe dói. Pode doer um pouco, mas ao menos são dores normais e desaparecem em menos tempo. Quando é em sítios mais complicados, a Heldrada usa facas ou agulhas, às vezes até água a ferver. Os rapazes fartam-se de gritar, mas no dia a seguir agradecem-lhe sempre.

Observando a namuriquana enquanto esta chibatava Kror, o guerreiro conseguiu suprimir definitivamente toda e qualquer atração que eventualmente tivesse sentido por ela, por muito subtil ou básica que fosse. Havia algo de doente em Heldrada, algo na clareza dos seus olhos azuis que era definitivamente turvo e deturpado, e esses mesmos olhos estavam fixos nos de Kror. O drahreg estremecia a cada vergastada, mas nunca quebrava o contacto visual, e mantinha-se solicitamente hirto e quieto como se estivesse a seguir instruções prévias.

— Ela já esteve sentada em cima dele a pôr-lhe ferros quentes nas costas — segredou-lhe Assiòn, chegando o tronco ligeiramente para a frente. — Acho que gosta dele.

Aewyre olhou-o com ar enojado, mas o Alto Lamelar limitou-se a piscar-lhe o olho com ar de quem sabia alguma coisa e recolheu-se, enclavinhando os dedos uns nos outros com os cotovelos apoiados sobre os joelhos.

— Mas diz-me, achas que o círculo de guerreiros te pode ajudar?

— Sim, sim, claro, Alto Lamelar — disse Aewyre, satisfeito por estarem a mudar de assunto. — Ê perfeito... mas há um problema. Por muitos ghèren que «matemos», aparecem sempre mais, cada vez mais. Depois de algum tempo, temos um exército atrás de nós, e aí pouco podemos fazer.

Assiòn olhou Pensativamente para Aewyre, esfregando os dedos em ponderação enquanto parecia estar a tentar decidir se devia partilhar algo ou não. O jovem tentou não parecer ansioso enquanto esperava.

— Bom... — disse o laonês por fim. — Normalmente, deixamos os Lamelares descobrirem isto sozinhos; faz parte do treino. Mas como tu e o Kror são um caso... especial... — Tornou a esticar o tronco em frente, olhando de viés para Heldrada como se fosse partilhar um segredo. — Não «matem» tantos tão depressa. Deixem-nos atacar, defendam-se só. Enquanto não «matarem» nenhum, são apenas os primeiros sete. Aproveitem o tempo para treinarem, para tentarem partilhar a Essência da Lâmina.

Aewyre acenou silenciosamente com a cabeça, apercebendo-se do potencial da situação.

— Depois vão «matando» um e outro se quiserem que seja mais difícil. Nós deixamo-vos lá dentro e só mandamos os ghèren de volta quando estavam inconscientes, mas normalmente os Lamelares dão um sinal ao Custódio e ele manda-os de volta.

— Já chega? — ouviram Heldrada perguntar.

Aewyre olhou por cima do ombro de Assiòn e este fez o mesmo para observar o que se passava com os dois. A namuriquana fitava Kror com uma mão na anca e a outra crispada na correia. O drahreg abanou a cabeça.

— Ainda sinto... frio.

Assiòn virou metade da cara a Aewyre, sorrindo de uma forma marota, e o jovem fingiu não ver. Heldrada fitou o drahreg mais alguns momentos em silêncio, mas este não vacilou diante do peso do seu olhar, que Aewyre achava bem mais frio que as fantasmagóricas feridas.

— Então vem treinar comigo depois. Se o Alto Lamelar deixar? — sugeriu Heldrada, olhando para Assiòn, que levantou as inocentes mãos e negou qualquer responsabilidade com um abanar da cabeça.

— Eu hoje não estava a pensar num treino físico para eles. Parecendo que não, vocês passaram por uma experiência... traumática, e deviam descansar. Aewyre — virou-se para o jovem —, gostavas de ler uns livros comigo na biblioteca? Tenho andado a lembrar-me de uns relatos que talvez aches interessantes.

Aewyre acenou com a cabeça, pois estava demasiado dorido para treinar e interessava-lhe ver os livros que o Alto Lamelar tinha. Sempre imaginara que a Cidadela da Lâmina tivesse arquivos com o conhecimento dos Lamelares neles reunido, e embora não fosse homem de grandes leituras, sabia que podia bem encontrar algo de interessante.

— Com certeza, Alto Lamelar.

— Excelente. Kror, o que queres fazer? — perguntou Assiòn ao levantar-se.

Ao contrário do que era habitual, o drahreg não hesitou antes de responder.

— Não sei ler. Vou treinar.

«Pelo colo de Assana, o raio do drahreg parece mesmo um Idparo primaveril!», barafustou Aewyre mentalmente.

Heldrada olhou Kror pelos cantos dos olhos e dirigiu-se então a Aewyre sem nada dizer. A namuriquana continuava com as mesmas roupas, e a sua aproximação trouxe um pouco aprazível odor a couro molhado com suor. Lhiannah também tinha um corpo atlético, mas Heldrada era demasiado magra, demasiado venosa, com músculos ventrais cuja definição se devia tanto a falta de gordura como a tônus, e pernas que deviam dar tanto prazer a afagar como um presunto fumado. Estava despenteada como sempre, com fiapos linhosos diante da cara, e a sua inestética trança oscilava-lhe nas costas enquanto caminhava com um andar que lhe salientava os ossos das ancas.

— Sentes dores? — perguntou num tom quase desafiador a Aewyre, que a fitou de baixo sem grande afabilidade.

— Obrigado, mas acho que prefiro dar umas cabeçadas na parede. Assiòn lançou-lhe um olhar de aviso, mas Heldrada ergueu uma desdenhosa sobrancelha clara.

— Um homem tão grande e forte com medo das dores? — indagou a namuriquana no seu sotaque de erres guturais e esses fricativos..

— Não, Mestre de Armas. Só gosto delas mais... fortes — retorquiu o jovem.

A sua resposta fora suficientemente ambígua para não ofender de imediato, mas o duplo sentido não escapara a Heldrada e os olhos desta estreitaram-se quase imperceptivelmente ao mesmo tempo que um subtil movimento da correia acusou um crispar de dedos nela.

— Heldrada, vamos? — interrompeu Assiòn, pousando a mão sobre uma saliente omoplata da namuriquana e empurrando-a discretamente para a porta. — Está na hora do pequeno-almoço. Vocês os dois, vistam-se e venham para a messe antes que levantem a mesa.

Heldrada deixou-se arrastar por Assiòn, mas os seus olhos prometiam não esquecer, e Aewyre foi levado por um primitivo impulso masculino a manter o contacto visual e retribuir. Assiòn olhou para trás com ar severo.

— Eles os dois ainda estão abalados pelo que passaram — acrescentou em tom de justificação enquanto abria a porta para deixar Heldrada passar. — Tenho a certeza de que o Aewyre te pedirá desculpas na messe.

O olhar admoestador do Alto Lamelar foi apenas quebrado pela porta que se fechou, deixando humano e drahreg entregues a si mesmos. Aewyre suspirou, tornando a esfregar a base do seu nariz.

«Cabra escanzelada... cada vez gosto menos dela. Ah, Acquon me cure, se esta dor de cabeça continuar, atiro-me mesmo com ela contra a parede.»

— Vamos? — perguntou Kror, que já se levantara e enfiava a camisola, fazendo caretas de dor ao passar a bainha desta pelo seu torso obviamente dorido. Nunca vira o drahreg tão ansioso.

«E também só me faltava esta...», gemeu o jovem para dentro, tornando a suspirar antes de se erguer e sentindo as dores frias dos seus outros supostos ferimentos. «Bom, pode ser que assim ele perca o interesse pela Essência da hâmina e eu fique com ela só para mim...»

— Por que é que me tiraste a Essência da Lâmina quando eu corri para as escadas? — lembrou-se Kror enquanto calçava as botas, curvando-se o menos possível para não causar fricção entre as costas e a camisa. — Nós podíamos ter conseguido fugir se não a tivesses tirado.

Aewyre olhou de soslaio para o drahreg e este parecia tão desafiador como sempre, fazendo o «tendão» ranger com o franzir da sua interrogadora testa.

«E daí, talvez não.»

 

O Ninho era um anexo praticamente caído em desuso em Allahn Anroth, pois tratava-se de uma espécie de claustro perto do cimo da torre do belver que havia séculos não era usado. As masmorras da cidade serviam muito bem para acomodar prisioneiros de maior ou somenos importância, e os vinte anos de paz não haviam produzido quaisquer prisioneiros políticos, pelo que o Ninho fora apenas usado para assustar jovens serviçais com histórias de clausura e para o ocasional encontro secreto com cortesãos. A sua localização sobre uma plataforma saliente na torre do belver — uma magnífica estrutura caiada e com intrincados ornamentos — quebrava ligeiramente a harmonia desta e dava para a íngreme umbria da colina, o que significava que nunca apanhava com o sol. O seu interior era de comprimento superior à largura, frio, apertado e austero. As suas únicas características de relevo eram um bloco de pedra a servir de cama, uma estreita abertura como janela que deixava entrar mais correntes de ar que luz e um assento na parede a servir de latrina. Lhiannah estava sentada sobre a cama, abraçando os joelhos e coberta com um trapo para melhor se resguardar do frio sombrio da cela, procurando aquecer a pedra nas suas costas com o parco calor que lhe restava. A porta baixa que dava acesso ao Ninho tinha uma pequena portinhola em baixo pela qual lhe eram entregues as refeições, frias e sensaboronas em absoluto contraste com a faustosa abundância à qual tivera direito antes de ter atacado Aereth. A sua cama era um frio bloco de pedra com um mísero trapo que mal a resguardava do frio, a latrina nem sequer tinha um mero assento de madeira e a umidade começava a fazê-la tossir após dois dias no Ninho. A princesa continuava com o vestido que envergara quando Worick fora atacado e que felizmente era forrado a peles, e nem sequer substituíra as já sujas ligaduras no braço e no joelho. Tremia de frio, os seus lábios estavam a ficar perigosamente arroxeados, o seu nariz avermelhado, os dedos com frieiras e o cabelo pendia-lhe em desalinho diante da cara. Iria tudo acabar assim, morreria gelada naquela torre de forma tão inglória, sem sequer ter falado com o seu pai, sem saber o que acontecera ao Worick, sem ver o Aewyre uma última vez? Já se cansara de berrar pelo guarda, e tentar agarrar-lhe os pulsos para obter respostas enquanto este lhe passava a comida pela portinhola apenas resultara num jarro de água derramado sobre a mixórdia que lhe fora servida. Lhiannah esmurrara as paredes em frustração, o que por sua vez apenas redundara era nós dos punhos feridos, e passara a primeira noite a chorar, encolhida a um canto, certa de que seria esquecida e deixada a apodrecer naquela frígida clausura. Foi por isso que ficou surpreendida e ergueu a cabeça aninhada nos joelhos ao ouvir uma voz feminina subir do outro lado da porta, e passos que davam a entender que vinha acompanhada. Lhiannah levantou-se, sentindo as articulações frias, e aguardou de braços cruzados enquanto uma chave revolvia na fechadura. A porta abriu-se e deu entrada a uma rapariga que a arinnir reconheceu como a aia que acompanhara a princesa Iollina e um rapaz com ar de pajem, ambos carregados com um sortido de objetos que quase lhes caíam dos braços, especialmente o rapaz.

— Batam à porta quando quiserem sair — disse o guarda, olhando em advertência para Lhiannah antes de a fechar.

— Oh, princesa! Como puderam pôr-vos aqui? Está gelado! — indignou-se a rapariga, pousando roupas, mantas e uma caixa na cama pétrea e refreando um impulso de abraçar Lhiannah.

— Vocês... — tossiu Lhiannah, olhando sobretudo para o pajem, que segurava uma selha de madeira coberta por um pano e tinha um pote preto com asa ao braço. — Quem vos enviou?

O rapaz olhava boquiaberto para a princesa, esquecendo-se momentaneamente do peso que tinha aos braços além de uma candeia que lhe pendia dos dedos e um odre a tiracolo. Mesmo que pudesse responder, provavelmente não o teria feito, pelo que a aia tomou a palavra, como era seu hábito.

— A princesa Iollina — sussurrou, olhando para os lados como se tivesse medo de que alguém a ouvisse. — Lorde Aereth não deseja que recebais visitas, mas a princesa não suportava a idéia de vos saber aqui ao frio. Podes pôr isso no chão, escusas de andar com esse peso...

Ah, é o pajem de lorde Aereth, que está a tomar banho neste momento. Nunca gostou de ter homens presentes enquanto se banha, emendeis, e achamos que talvez fosse esta a altura indicada para vos vir entregar... então? Põe isso no chão.

Só então o rapaz se apercebeu de que falavam com ele e despertou com um piscar de olhos, pousando a selha e os restantes objetos.

— Ele é mudo, princesa, mas é bom rapaz. Faz-me companhia, e teve a amabilidade de me ajudar quando lhe disse que vinha trazer umas coisas para a princesa Lhiannah. Eu sabia que não conseguiria trazer isto tudo sozinha, e a princesa Iollina, coitada, já cheia de medo de contrariar o esposo só por me estar a enviar e...

— Espera, rapariga, espera! — pediu Lhiannah, abanando a cabeça e estendendo a mão, atordoada com tão violento quebrar do silêncio após dois dias de clausura. A aia calou-se, envergonhada uma vez mais ao pensar que se tornara a exceder, e Lhiannah suspirou. — Desculpa. Estou muito... transtornada.

— Imagino, princesa — disse a aia compreensivamente. — Trouxe-vos roupas quentes, uma colcha e mantas para dormirdes mais confortável. Trouxemos também uma selha de água quente e toalhas para vos lavardes, um guisado, vinho para vos aquecer e uma candeia para quando estiver escuro. Já vistes? Ainda é dia, e já parece noite aqui entro. E este frio! — arrepiou-se a rapariga, pegando numa das mantas que trouxera. — Como pôde lorde Aereth? Vesti-vos, princesa, por favor. Ao menos esta manta...

Lhiannah aquiesceu de bom grado, e a gentil pressão da aia sobre os seus ombros levou-a a sentar-se.

— Traz o guisado — pediu ao pajem, indicando o pote. — Têm-vos dado de comer, princesa? Mesmo assim, deveis estar com fome, não?

Lhiannah não respondeu, pois a sua boca ficou repentinamente alagada assim que o pajem destapou o pote e serviu uma colherada no prato que trouxera. O saboroso odor que dele emanou assaltou os sentidos da princesa, que teve de se reter para não arrancar o prato das mãos do rapaz ou empurrar a comida para a boca com a mão. Comeu contida e rapidamente com uma colher enquanto a rapariga dispunha as roupas sobre a cama de pedra e o pajem olhava para si com ar envergonhadamente fascinado.

— O general Worick, como está? — perguntou de boca cheia.

— Dizem que está a recuperar. Teve uma febre, mas passou-lhe. Parece que emagreceu um pouco, porque ainda não pode comer, mas segundo o físico que está a tratar dele, o pior já passou.

— Ele perguntou por mim?

— Não sei, princesa — disse a aia com ar pesaroso. — Não estava lá, só sei o que me disseram.

«Ao menos está melhor, Acquon seja louvado», agradeceu a arinnir.

— Lorde Aereth disse o que pretende fazer comigo?

A aia pousou um vestido dobrado e tornou a sentar-se ao lado de Lhiannah, pegando-lhe no braço que segurava a colher com certo descaramento do qual só posteriormente se veio a aperceber.

— Princesa, é verdade que... o que haveis feito... com lorde Aereth?

— Sim. Só tive pena de não lhe espatifar a cara contra o chão — admitiu a arinnir com toda a sinceridade. A rapariga levou a mão à boca.

— Não digais isso, princesa! Se alguém vos ouve...

— Põe-me nas masmorras? — desdenhou Lhiannah. — Talvez sejam menos frias que isto.

Era evidente que a aia lhe queria perguntar muito mais, mas aparentemente o seu bom senso e a consciência do seu estatuto sobrepuseram-se à sua língua solta. A arinnir também não estava disposta a falar-lhe d’O Flagelo, temendo que a rapariga a tomasse por verdadeiramente louca e cortasse aquele que era o seu único elo ao mundo exterior. Porém, tinha de esclarecer ao menos uma coisa, pois viu a pergunta arder nos olhos de grandes pestanas.

— Eu não tomei parte em nenhuma conspiração contra lorde Aereth, rapariga, nem lhe desejava mal antes de ele me ter aprisionado — explicou entre duas colheradas. — Lorde Aereth está numa posição perigosa, e começa a ver inimigos em todo o lado.

— Oh, sim, eu acredito em vós, princesa, e a princesa Iollina também. Por isso é que ela me mandou vir aqui... Mas o melhor é irmos andando. Não convém ficarmos aqui demasiado tempo.

A aia levantou-se, alisando o vestido, e o pajem pareceu despertar do seu transe graças ao seu movimento.

— Essa caixa tem uns dentes de alho, para vos ajudar a manterdes-vos saudável. Pus também lá sabão, um pente e outras coisas de que Podereis precisar para que este lugar não afete demasiado a vossa aparência. — Lhiannah teve vontade de revirar os olhos, mas as intenções da rapariga eram boas. — Talvez quereis tapar a abertura com as mantas que trouxemos durante a noite, para não fazer tanto frio. Ah, e tenho de me lembrar de vos trazer um assento para a latrina, que desconforto! E talvez algo para o cheiro também, não? Perdoai-me, não quero ser indiscreta, estão sempre a dizer que sou, mas...

— Não... Sim, obrigada, rapariga. Agradeço-te imenso tudo o que me puderes trazer. E tenta saber mais acerca do general Worick, está bem?

— Certamente, princesa. Não vos preocupais, estou certa de que tudo se resolverá.

«Disso não tenho dúvida. Resta saber como e a que custo para quem...», pensou Lhiannah, agradecendo as fúteis mas simpáticas palavras com um meio sorriso.

— Agora deixar-vos-emos à vontade. Voltarei quando puder — prometeu a aia, retirando-se para a porta com o pajem, que praticamente teve de ser puxado e nem assim tirou os olhos da arinnir.

— Agradece à princesa Iollina por mim, sim?

— Assim farei, princesa — assegurou-lhe a rapariga, batendo à porta e chamando o guarda, que chegou pouco depois.

Sozinha uma vez mais, Lhiannah devorou mais uma pratada do saboroso guisado e destapou a selha, que emanou os vapores de água que ainda estava ligeiramente aquecida. A arinnir sentia-se suja e achou que já estava na altura de mudar de roupas, pelo que lavou a cara, despiu rapidamente o vestido sujo e rasgado e começou a esfregar o seu corpo com toalhas úmidas e sabão. Estava frio, e Lhiannah apressou-se nas suas abluções, constatando que as suas feridas no braço e joelho estavam a sarar bem. Ainda assim, limpou-as e rasgou uma toalha em duas para servirem de ligaduras improvisadas, vestindo de seguida um vestido verde também forrado a pele, mas sem decote para os ombros, e cobrindo-se com uma manta. Medida alguma de calor alguma vez lhe soubera tão bem, nem sequer quando se encontrara nas Estepes de Karatai. Na altura estivera com os seus companheiros; juntos, sabiam que podiam vencer qualquer inimigo, ultrapassar qualquer adversidade. Agora estava sozinha, tal como boa parte da sua vida em Vaul-Syrith, e nem sequer tinha Worick ao seu lado. «Deuses, por favor, que ele fique bom. Eu preciso tanto dele...» Duvidava que alguma vez se fosse esquecer da imagem da cara pálida do thuragar à superfície da água sangrenta, com a haste daquela horrível partazana a projetar-se dele... e o desgraçado, o cobarde do Aereth, ainda tivera o desaforo de a ameaçar, além de tudo o mais o que lhe estava a fazer. O maxilar de Lhiannah retesou-se ao pensar no seu captor, imaginando a cara de sorriso gorduroso que tivera ocasião de partir e que infelizmente não aproveitara. Tinha a certeza de que o regente tão cedo não se iria esquecer da sova que levara, regozijava-se com o fato de o ter humilhado diante dos seus homens e da sua esposa, e só tinha pena de não lhe ter batido mais, de não lhe ter feito à barba à porrada, como Worick diria. Ainda tinha cortes nos nós dos punhos avermelhados por ter esmurrado os regenciais dentes de Aereth, mas de bom grado teria partido as mãos só para lhe amassar aquela cara arrogante, aquele nariz emproado, aquela...

— Mas que pensamentos tão rancorosos, minha linda — comentou alguém à sua frente com uma voz doentia.

A distraída cabeça de Lhiannah ergueu-se de sobressalto e a princesa viu um homem alto e magro encostado à parede do outro lado do cubículo, braços cruzados e com uma perna encolhida sobre a latrina. Vestia uma túnica de mangas folgadas e capuz aberta ao nível do torso, que exibia um peito cavo e uma bojuda barriga com repelentes veias azuladas que lhe radiavam do umbigo como as patas de uma aranha. Usava uma cinta debaixo da barriga em cujas patilhas guardava várias lancetas semelhantes às que o cirurgião usara e tinha calças repuxadas com pernas enfaixadas por ligaduras. O seu capuz estava puxado para trás, o que lhe exibia a cabeça careca com pequenas máculas vermelhas na face de escarninho sorridente. Assustada, a primeira coisa pela qual Lhiannah deu falta foi a sua espada, ao erguer-se, aproximando-se da porta.

— Não são coisas bonitas de se pensar, muito menos para uma princesa.

— Quem é você? Como entrou? — exigiu a arinnir saber, pegando no pote pela asa à falta de arma melhor.

— Chamo-me Hepascar — apresentou-se o desconhecido, afastando-se da parede e fazendo uma magra vênia ao aproximar-se.

— Guarda! — gritou Lhiannah para o lado sem tirar os olhos do homem.

— Inútil gritar, quer-me parecer. Acho que todos os teus berros, insultos e ameaças deixaram os guardas algo inoculados à tua voz, minha linda. E que voz deliciosamente raivosa ela é...

Agora que estava mais próximo, Lhiannah via que os seus olhos eram amarelados com íris esverdeadas e que a sua pele tinha um insalubre tom amarelento.

— Guarda! — tornou a gritar.

— Não te apoquentes, minha linda. Hoje vim cá só para te conhecer em pessoa e apresentar-me — assegurou-lhe Hepascar, erguendo as mãos de palmas rubras em sinal de pretensa paz. — Sítio mais desagradável em que te puseram, não?

— O que quer? — inquiriu Lhiannah, pegando na asa do pote com ambas as mãos e levando-o ameaçadoramente atrás.

— O que eu quero? Que a pessoa do coração de quem matou a minha mãe tenha uma morte apropriada. E saborosa.

Enfatizadas por uma nojenta lambidela de lábios com uma língua amarelada, as palavras de Hepascar atiçaram em chamas uma memória que Lhiannah até então tivera dificuldades em encontrar, algo que soubera ser importante, mas de que não se conseguira lembrar.

— Haghral...! — sussurrou.

Este ergueu as sobrancelhas em surpresa.

— Já percebeste? Beleza e miolos, quem diria...

— Guarda! — gritou Lhiannah uma terceira vez, procurando atingir Hepascar com uma oscilação do pote. Este desviou-se e o golpe atingiu a parede, esparrinhando o guisado contra ela e fazendo os dentes de Lhiannah rangerem com o vibrante choque.

— Eh lá! Calma, minha linda! — gozou o haghral, recuando. — Não tenho fome, e já disse que hoje só vim para me apresentar.

Lhiannah respirava aceleradamente e continuava a empunhar o seu fiel pote, lembrando-se de tudo o que Allumno lhe contara e ciente do perigo que corria.

— Foi você... foi você que fez aquilo ao Worick — acusou.

— Eu? Não, foi o guarda. Eu só o ajudei a extravasar aquilo que verdadeiramente sentia a respeito do thuragar. Calculei que dessa forma pudesse exacerbar a tua bile, o que me permitiria um encontro como o que estamos a ter agora, e parece que acertei.

Lhiannah rosnou e tornou a oscilar com o pote, tentando rachar a cabeça do haghral, mas este desviou-se sem qualquer esforço desse e dos subseqüentes golpes, que despejaram mais guisado.

— Tanta raiva... delicioso! — gozou Hepascar, baixando-se e fazendo Lhiannah esticar-se demasiado com um golpe, que causou a sua queda. — Tão bela e tão furiosa... és uma obra de arte por ti só, minha linda. Darás um maravilhoso tributo à minha progenitora quando eu tiver acabado contigo.

A arinnir levantou-se atabalhoadamente, arfando e ainda de pote empunhado, pronta a vender cara a sua vida.

— Mas não hoje, já te disse. Não me estás a ouvir? — sorriu o haghral. — Vou deixar que vivas. Quero que passes muito tempo com o fel a fermentar, a azedar as tuas emoções e alimentar o teu ressentimento até que nada mais te reste além da raiva e do desespero.

— Seu canalha doentio — disse Lhiannah através dos dentes cerrados, avançando um passo.

— Cada pensamento rancoroso teu é como um degrau para mim. minha linda — cortejou Hepascar, recuando até ficar perto da cama de pedra. — E eu sei que irás ter muitos desses, a pensar no Aereth e no Hepascar, esse malvado. Da próxima vez que me vires, será a última.

A arinnir rosnou e arremeteu contra o haghral, que pegou em duas mantas e as volteou no ar, deixando o golpe do pote arrancar-lhe uma da mão e atirando a outra para cima de Lhiannah. A princesa ficou cega e recuou aos tropeções para trás, a sua raiva dando momentaneamente lugar ao medo de não estar a ver o seu adversário, e acabou por escorregar numa poça de guisado, caindo de costas ao chão. O pote clangorou pela pedra, e Lhiannah debateu-se desesperadamente com a manta, arrancando-a de cima de si já com as pernas prontas a chutar, mas constatou que estava sozinha no cubículo. O único sinal da luta eram as amarrotadas mantas no chão e as manchas de guisado pelo piso e pelas paredes; de resto a única companhia da ofegante respiração de Lhiannah eram os ventosos suspiros que provinham da abertura na parede. Um novo terror apoderou-se então da princesa, ao aperceber-se de que estava presa, sozinha, indefesa e cercada de inimigos, pelo menos um dos quais fazia tenções de a matar.

— Oh, que o escudo de Gilgethan me resguarde... — orou Lhiannah, deixando a cabeça cair sobre o braço estendido no chão e cobrindo parcialmente a cara com o punho envolto com uma das pontas da manta, sentindo-se mais impotente do que alguma vez se sentira em toda a sua vida.

Do lado a nascente, a torre do belver tinha vista para um dos dois enormes pátios interiores abertos ao céu de Allahn Anroth. De entre os dois, esse era o único ajardinado, embora no Inverno essa característica perdesse boa parte da sua relevância. O centro era dominado por duas pérgulas perpendiculares cobertas de trepadeiras desnudas que dividiam quatro parcelas simétricas de relva agora desprovida de flores e com um pavilhão na junção entre ambas que abrigava a majestosa águia sobre o sol de Ul-Thoryn. O jardim em redor tinha pomares e sete fontes de mármore com figuras alusivas aos brasões das que anteriormente haviam sido as províncias de toda uma nação, como o peixe de Sardin e o teixo de Lennhau. Mesmo as paredes que cercavam o jardim tinham coladas a elas espaldeiras de armações em losangos que providenciavam unia vista colorida e agradável quando do desabrochar das suas flores. Durante o Inverno o jardim era pouco freqüentado, pois os habitantes do palácio preferiam as fontes aquecidas do outro pátio, mas naquela tarde fria e sombria havia um casal que se passeava debaixo de uma pérgula, vigiados por um homem que aguardava de braços cruzados encostado a uma das portas. Tylon e Lethia Nehin caminhavam lado a lado, pensativos e de semblantes carregados. O regente de Lennhau envergava uma despretensiosa túnica verde com frestas forradas a pele nas quais tinha as mãos enfiadas e um manto e capelo de veiro. A sua careca estava coberta por um chapéu vermelho de aba revirada para cima e a basta barba castanha sarapintada de branco que lhe crescia debaixo do queixo mexia-se como raízes vivas de cada vez que Tylon mexia os pensativos lábios. Lethia olhava por vezes para o seu marido, arrastando graciosamente o manto roxo que lhe cobria o vestido azul e violeta. Tinha a cabeça e o pescoço cobertos por uma mantilha branca, o que lhe realçava a cara cordiforme de testa larga e queixo delicado que dava uma idéia enganosa acerca da sua índole, essa bem mais evidente nos seus proeminentes olhos cor de avelã crestada por geada bem delineados a negro.

— A princesa Lhiannah está a provar ser algo problemática, esposo — constatou com uma voz que lhe equivalia ao olhar.

— Ainda não compreendo o que sucedeu ao thuragar — admitiu Tylon. — Julgo que o bobo sabe algo, mas não me diz nada. Às vezes penso que ele tece a sua própria trama, com esse assunto da bebê e outros...

— Começas a depender demasiado dessa criatura, esposo. Não confio nela.

— Porquê? Por ter reparado naquilo que todos estavam a ver de qualquer forma? — regougou o regente.

Os olhos de Lethia crestaram-se ainda mais perante a referência ao decote que usara no almoço de boda da sua filha e que o bobo tivera a ousadia de comentar. A mulher dera-lhe uma bofetada que lhe deixara uma merecida marca devido a um dos seus anéis, mas a criatura continuara a fazer pouco dela mesmo assim.

— Devias ser mais cuidadosa, esposa — recomendou Tylon num registro mais afável. — Ele parece falar de igual para igual com o nosso mestre Othragon. É mais perigoso do que aparenta ser.

— O Cortun protege-me — afirmou Lethia, indicando o paladino do seu senhor, que os vigiava. — Talvez devesse mandá-lo torcer-lhe aquele pescoço escanzelado...

— Pois, é muito fácil agires de forma emproada enquanto tens o Cortun a proteger-te. Gostava de saber se falarias com o mesmo tom se não tivesses o machado dele sempre às tuas costas.

O branco em redor dos orbes de Lethia avivou-se por momentos, mas esta recuperou a compostura e olhou descontraidamente em frente.

— É a ti ou aos ciúmes que ouço falar, esposo? — indagou, erguendo uma elaborada sobrancelha.

Tylon fez uma careta e olhou de esguelha para a sua mulher.

— O Cortun é-me fiel. Conto que também o sejas.

— Expectativas justas para o meu lorde e senhor de Lennhau.

— Cala-te, mulher. O teu palavrear insensato distrai-me e tenho mais em que pensar.

— Preocupa-te o Aereth, esposo?

— Aquele idiota por pouco não perdia a cabeça com a princesa Lhiannah. Ela não faz idéia da delicadeza do fio pelo qual a sua vida pendeu.

— Ela espancou-o mesmo? — admirou-se Lethia. — Na frente da nossa filha, dos seus homens?

— Rebentou-lhe o lábio, rachou-lhe dois dentes e ainda está de costelas ressentidas, embora os físicos afirmem que nada tem partido — enumerou Tylon categoricamente.

— Era ela a tal gata bravia e bastarda da corte de Vaul-Syrith, não era? — O regente nutou. — Ele vai ser alvo de chacota; os boatos não tardarão a migrar como chamas numa seara seca.

— Ele sabe disso. Daí que a princesa tenha corrido genuíno perigo, mas julgo que ele já recuperou o bom senso, agora que apenas lhe restam inchaços.

— Casaste a nossa filha com um fraco, esposo. O rapaz mal mantém a sua corte sob controlo.

— Mas, apesar de tudo, a sua autoridade é reconhecida, embora nem sempre respeitada. Por isso precisamos dele.

— Os conselhos de mercadores insurgem-se, e as guildas já protestam com a perspectiva de uma guerra... — recordou a mulher.

— Nada que não esperássemos — disse Tylon, descartando a relevância dos agouros da sua esposa com um despreocupado gesto da grande mão. — As bagas já foram colhidas do Teixo e estão a ser processadas pelos nossos alquimistas. Espera que esses abutres gananciosos tenham acesso ao seu suco e verás como se rojarão aos pés do Aereth. O mais difícil já está feito, não te esqueças disso.

— Sim, confesso que também não esperava que a oferta de uma aliança partisse dele... — admirou-se Lethia, passando a mão anelada por um renque de trepadeiras nuas.

— Eu também não. Desconfio que terá sido o bobo. Mestre Othragon tinha-nos dito que esperássemos pelo momento certo, e ele veio quando menos esperávamos.

— Sim. Bem como o nosso senhor...

Tylon deteve-se então e virou-se para a sua esposa, pegando-lhe pelos braços e puxando-a para perto de si, fazendo-a exalar pelo surpreso nariz.

— Sim, Ele voltou — praticamente sussurrou o regente. — Em breve nós teremos Vaul-Syrith e Ul-Thoryn, a jóia de Nolwyn aos nossos pés, duas províncias para regermos em Seu nome! — enfatizou Tylon num raro estado de excitação, sacudindo a sua esposa. — E depois disso... quem sabe?

— Encontro-te visionário hoje, esposo — comentou Lethia, franzindo o cínico sobrolho.

— Cala-te mulher — ordenou o regente, pegando-lhe pelo queixo com dedos grossos e beijando-a forçosamente, retendo-lhe de seguida a cabeça com as duas grandes mãos e ciciando-lhe à cara. — Nolwyn será nosso.

À semelhança do seu esposo, Lethia era uma mulher com rígido freio nas suas emoções, e não sorria muitas vezes. Debaixo da pérgula, Tylon teve ocasião de ver os seus lábios cheios apartarem-se, levando até aos seus maliciosos olhos a rara emotividade que a sua esposa tão poucas vezes mostrava.

— Tens boas recomendações, pirralho — disse o velho, enclavinhando os compridos dedos sobre a sua mesa. Era um homem com uma fisionomia roedora de grisalhos bigodes e cabelos espigados, olhos escuros e pequenos, e o palor de alguém que passara boa parte da sua vida em interiores e mantinha os velhos hábitos chegada a sua já avançada idade.

Nolario era o seu nome, e era um rateiro, um dos mais reputados de Ul-Thoryn e cabecilha da guilda de rateiros, visto que mesmo na Pérola do sul os ratos eram um problema, sobretudo devido ao intenso tráfego naval. O seu interlocutor era um diminuto rapaz com uma grande cabeça que mantinha acanhadamente baixa, ocultando as suas feições com uma desgrenhada cabeleira negra mal coberta por uma coifa branca imunda. Tinha os braços cruzados atrás das costas e envergava roupas de mendigo, de cuja cinta de corda pendiam várias ratazanas negras pelas caudas. Ambos se encontravam numa pequena sala escura iluminada por velas de sebo que emanavam um odor rançoso e mais fumo que luz, que parecia não chegar para dispersar as sombras. Ratos, caudas de ratos, caveiras de ratos e peles de ratos eram a palavra de ordem nas prateleiras, bem como uma imensa variedade de molhes de plantas venenosas ou adversas a roedores, deixadas a secar, embebidas em estranhas substâncias dentro de boiões, pulverizadas dentro de taças ou feitas em infusões com ar pouco sadio. Gatos e furões olhavam com brilhantes olhos selvagens do interior de gaiolas de madeira dependuradas, das quais por sua vez pendiam instrumentos como ratoeiras, varas e afins apetrechos com fins decididamente pouco amistosos. O covil de Nolario fedia a excrementos de animal e ervas, mas o rateiro não parecia minimamente incomodado.

— Dizem que numa só noite limpaste um conjunto habitacional inteiro. E que não tens pejo em te enfiares nos esgotos ou no meio da porcaria para apanhar o raio dos bichos.

Um aflautado assentimento gutural foi a única resposta que o velho veterano recebeu.

— E estou a ver que és calado que nem um... — Nolario riu-se sufocadamente da sua própria piada, um riso desagradável ao ouvido que mais lembrava a pieira de um doente. — Bom, o que interessa é que faças o trabalho. Estás aqui, porque as pessoas certas falaram contigo e acharam que estarias melhor a trabalhar conosco. Não gostamos muito de pessoas que trabalham por conta própria. Sabes o que é trabalhar por conta própria, pirralho?

Outro assentimento gutural.

— Pois, não gostamos disso. Aqui recebes mais, tens mais pessoas a pedirem que trabalhes para elas, e tens todo o equipamento de que precisares. A única coisa diferente é que tens de nos dar algum do dinheiro que recebes, percebeste?

Outro.

— Não sei se és esperto ou só calado, mas como me disseram que pareces um gato a apanhar os bichos... Bom, estamos a precisar de apanhadores jeitosos. Alguma vez foste ao palácio, a Allahn Anroth?

A criança abanou a cabeça.

— Pois. Bem, eles lá são muito limpinhos e gostam de dizer que o resto da cidade é que tem ratos, mas sempre que chega o Inverno e ficam com as despensas cheias, lá vêm os bichos, e os príncipes e as princesas põem-se aos gritos... — Nolario pegou numa ratazana dessecada pela cauda e começou a girá-la distraidamente. — Eles têm os seus rateiros no palácio, mas eles não prestam. Sabes por que é que não prestam?

A negação prosseguiu, inalterada.

— Porque não trabalham para nós, essa é que é essa — concluiu, batendo com a ratazana morta na mesa para enfatizar. — Não prestam, e agora os príncipes e as princesas, eles que têm homens fortes com espadas e armaduras, vêm ter conosco, aflitos a pedir que vamos apanhar os bichos. E sabes porquê? Porque há sítios aonde só um rateiro vai. E tu és um desses, não és?

Por fim, um aceno positivo da cabeça.

— Vais ter de começar a mostrar mais emoção por pertenceres à guilda se quiseres trabalhar conosco... — resmungou Nolario, roçando as narinas com o bigode espetado e abrindo um pesado livro. — Bom, temos de escrever umas coisas antes de começares. Tens nome, pirralho?

A cara da criança ergueu-se ligeiramente, revelando um sorriso reto e um estranho olho castanho entre madeixas de cabelo cuja aparência felina o rateiro achou dever-se à parca iluminação e à sua vista debilitada.

— Mãosdelã.

 

Quenestil já não tinha a certeza de quanto tempo passara após a fuga de Gul-Yrith. Tinha a sensação de que dormira entretanto, pois não se lembrava de ter acompanhado a transição da longa noite (quantas?) para o dia (quantos?), mas também não se lembrava de ter fechado os olhos desde que haviam passado pelo portão marítimo da fortaleza.

Lembrava-se, sim, dos gritos, do medo, do sangue, da morte. Não fora difícil empurrar a barcaça pelo gelo do lago parcialmente congelado, e os eahlan haviam remado com força e afinco até chegarem ao canal que unia o lago ao mar. Aí fora um autêntico pesadelo. Tanarchianos na margem começaram a atacá-los com flechas, e apenas a atempada intervenção dos arqueiros sirulianos no torreão os salvara. Felizmente não houvera muitos arqueiros presentes naquele grupo em particular, mas o shura nunca mais se esqueceria do rechinar das flechas, que até então nunca lhe parecera tão horrível, da imagem dos eahlan que haviam sido atingidos, das suas expressões de incrédula morte ao caírem à água ou para cima dos braços dos seus, nem do desespero de Deadan, que servira de aflito escudo humano contra as setas, incapaz de proteger todos. Eram imagens que para sempre lhe ficariam gravadas a fogo na memória. A raiva guiara as hastes de Quenestil, todas elas certeiras, e as salvas do torreão — que o eahan sabia serem desesperadamente necessárias no pátio interior — haviam quebrado o alento do inimigo na estreita faixa de terra entre a muralha do Istmo e a margem do lago. Ainda assim, houve quem os atacasse quando passaram por baixo da ponte arqueada, guerreiros acicatados pelos ruídos de batalha e pelos gritos de vitória e morte que se faziam ouvir, armados de machados e lanças, correndo com tilintantes cotas de malha e arrojando dardos que mataram outros tantos eahlan. Quenestil abatera os que pudera, mas alguns conseguiram mesmo pular para dentro da embarcação enquanto passava por baixo da ponte. Deadan matara uns em pleno salto, esparramando sangue na barcaça, e Quenestil fora forçado a esfaquear alguns. O portão marítimo fora aberto por sirulianos cujos braços também eram desesperadamente necessários no pátio interior, e a barcaça pôde sair para a segurança do mar. Deadan supervisionara então a montagem do mastro na carlinga e Quenestil livrara-se dos corpos dos tanarchianos, condenando implacável e inconscientemente alguns moribundos a uma morte por afogamento devido às suas pesadas armaduras. O choro das crianças fora uma constante e muitos dos adultos lhes fizeram companhia, embora a maioria se tivesse mantido diligentemente a remar e a assistir os feridos, graças à Mãe. O calor da batalha perdurara durante um período indeterminado de tempo que os exilados aproveitaram para se afastarem tanto quanto possível de Gul-Yrith ao mesmo tempo que se preparavam para a certamente rigorosa viagem na embarcação.

Havia filetes de peixe seco, pão e cerveja de centeio mais que suficiente para os alimentar a todos até chegarem à foz que Aedreth referira, e mantas em excedente para resguardar todos do frio, pois sobravam apenas trinta e um da família Lasan e do seu séquito: sete homens, dezesseis mulheres e oito crianças. Entre esses contavam-se cinco feridos ligeiros que eram tratados com água salgada e apaziguadoras palavras em Eridiaith. Findos os preparativos, efetuadas todas as necessárias precauções, Quenestil caminhara por entre eles com ar perdido, começando por fim a sentir-se esmagado com o que sucedera. Tannath, vivo. O seu filho que podia não o ser. Slayra grávida num barco no mar, tal como quando haviam partido da Latvonia. Amigos... pessoas próximas, mortas. Estava tudo a acontecer outra vez, estaria a reviver esses tempos negros da sua vida num pesadelo? Se assim fosse, então por favor que a Mãe o acordasse, pois não queria passar por tudo aquilo outra vez.

Começou a nevar com vento, e o eahan não soube dizer ao certo o que andara a fazer até então. Tudo lhe parecia lerdo, confuso, o tempo, as suas redondezas, o mar que o cercava, a rochosa margem do continente que parecia nunca se alterar. Cobriu-se com um cobertor e ajudou a estender uma manta sobre as crianças e as mulheres que delas tratavam, algumas em silencioso choque, outras num baixo choramingar à semelhança de muitos adultos. As únicas palavras eram as dirigidas aos feridos, e ninguém as trocava. Deadan era uma estátua de aço à popa, perfeitamente imóvel, sempre a olhar para sul com os desolados olhos azuis, para a cada vez mais distante silhueta de Gul-Yrith que se lobrigava ao longe no meio da neve. Não comia, não falava e não olhava sequer para quem o abordava. Ignorara Quenestil por completo e fora imune aos rogos de Eluana, uma das eahlanas mais serenas, que apenas tentara dar-lhe uma fatia de pão. Hanal confortava os seus filhos Talin, Lusia e Alisa, e, das vezes que o seu olhar se cruzara com o de Quenestil, o shura ficara abalado ao ver a desolação interior que os olhos azul-escuros do Patriarca revelavam. Slayra era assistida por Sana e duas velhas eahlanas cujos cabelos brancos já estavam ligeiramente amarelecidos, e felizmente nada de grave sucedera com toda a agitação. Inconscientemente ou não, Quenestil andara a evitá-la, limitando-se a inquirir acerca da sua condição enquanto desempenhava outras tarefas necessárias e inventadas. Foi por isso que a mão da eahanoir o surpreendeu enquanto reforçava uma das amuras para melhor aproveitar o vento que soprava para norte.

— Quenestil?

De cócoras, o eahan olhou por cima do ombro e viu Slayra agarrada à amura com um braço enquanto segurava com o outro um cobertor aos ombros com fiapos negros do seu cabelo a esvoaçarem ao vento. Já nem mesmo o cobertor podia ocultar o bojo da sua barriga.

— Sim?

— Temos de falar.

O shura virou-lhe de imediato a cabeça.

— Agora não. Temos de sobreviver.

— Quenestil, tu não podes acreditar nas mentiras do Tannath! — instou Slayra. — Não vês, ele quer separar-nos, fazer-nos sofrer antes de nos matar por aquilo que lhe fizemos!

O shura ouviu a eahanoir acocorar-se com um grunhido e sentiu a mão dela apoiar-se no seu ombro antes de o puxar para o forçar a olhar para ela.

— É o teu filho — sussurrou, pegando na mão fria e gretada do eahan e pousando-a sobre o seu ventre dilatado. — Não o sentes?

Embora não retirasse a mão, Quenestil não pareceu convencido e os seus olhos cinzentos permaneceram frios como pedras.

— Porquê no barco? — perguntou, muito calmamente.

— Como?

— Por que é que fizemos aquilo no barco, Slayra? A eahanoir gaguejou, incrédula.

— Posso perguntar-te o mesmo a ti...

— Eu perguntei primeiro. E a idéia foi tua.

— Estás arrependido, é...?

— Não... mudes... de assunto — sibilou Quenestil entre dentes cerrados, achegando-se repentinamente da eahanoir como um volverino acicatado. — Porquê?

Slayra hesitou antes de responder.

— Quenestil... tínhamos acabado de perder o Babaki. íamos para Asmodeon, tanto podia ainda acontecer... Eu tive medo de te perder a ti também. — Slayra agarrou a mão do eahan com ambas as suas, afagando o seu ventre com ela. — Se algo acontecesse... eu queria ao menos ter parte de ti, parte de ti em mim. Quis um filho teu...

— O que fizeste com o Tannath em Jazurrieh?

A brusca interrupção do shura atordoou Slayra, que demorou mais tempo que o que seria desejável a responder.

— Quenestil, tu sabes que eu tive de fingir, sabes que estive com ele durante aqueles dias...

— O que fizeste com o Tannath em Jazurrieh?

Slayra apertou-lhe a mão com força, sentindo a sua rigidez.

— Quenestil, por favor, tu não podes pensar que eu...

— Porra, o que fizeste com o Tannath em Jazurrieh? Responde-me! — gritou o shura, arrancando a sua mão das de Slayra, que se desequilibrou e caiu para trás de nádegas.

O reflexo da eahanoir foi o de proteger a barriga, e, ao fazê-lo, caiu mal, soltando um abafado grunhido de dor. Duas eahlanas acorreram de imediato, murmurando excitadamente em Eridiaith enquanto Slayra expirava e inspirava fundo, olhando de olhos bem abertos para Quenestil, que ficara petrificado numa posição de hesitantes braços esticados para a ajudar. Flocos gelados derreteram-se perto da sua boca entreaberta e aglomeraram-se nas pestanas que se recusavam a fechar. Todos no barco olhavam para ele, mesmo Deadan se virara para ver o que se passava, e havia choque nos olhares dos eahlan.

«Mãe, o que é que eu ia fazendo?»

Incapaz de suportar os olhares dos eahan brancos, incapaz de olhar Slayra nos olhos, Quenestil virou-lhes as costas a todos, mas viu-se confrontado pelos eahlan que estavam atrás de si. Encolhendo a cabeça como se estivesse a correr contra um aglomerado de silvas, o shura passou apressadamente por entre estes, dirigindo-se à proa e apoiando-se nela de olhos fechados. Não queria que ninguém olhasse para ele, não queria ver nem falar com ninguém.

«Não posso lidar com isto agora», lamentou-se, abanando a cabeça. «Não agora...»

Ninguém se deu conta da passagem do tempo, e os dias e as noites passaram a perder significado para a maioria dos tripulantes, visto que passavam tanto um como o outro debaixo das mantas que os resguardavam da neve. Esta nunca fora particularmente intensa, mas as vestimentas dos eahlan não lhes permitiam expor-se demasiado ao frio. Deadan continuava mudo e imóvel, dormindo ocasionalmente envolto numa manta, mas poucos o viam a fazer algo mais além de olhar para sul, e ninguém o vira tirar o arnês ou mesmo o elmo. A barba acastanhada que lhe começava a despontar na face era inédita para um Ajuramentado e um claro indício do seu estado de espírito. Por sua vez, os Lasan haviam forçosamente recuperado e desempenhavam o papel que lhes cabia, prestando apoio ao seu séquito em tão negra hora, e Hanal começara a discutir as opções com Quenestil, que involuntariamente assumira um papel de comando provisório após a saída da fortaleza. Com a apatia de Deadan e a inexperiência do Patriarca devido aos anos de reclusão na sua estância em Aemer-Anoth, era invariavelmente para o shura que todos olhavam sempre que surgia a necessidade de tomar uma decisão. Fora sobre Quenestil que recaíra a responsabilidade de racionar a água e os mantimentos, de orientar a condução da barcaça para que não perdessem o rumo, de dividir os remadores por turnos, de orientar a recolta de neve em recipientes, pois as crianças detestavam a cerveja. Tivera mesmo de ser ele a decidir aquilo que mais ninguém tivera coragem de fazer: atirar borda fora os cadáveres dos dois eahlan que não haviam sobrevivido à sepsia causada pelos ferimentos de flechas, entre os quais uma jovem rapariga.

Deuses, como odiava esse papel.

Mas teve de o representar uma vez mais quando por fim avistaram a foz da qual o Castelão Aedreth falara. A neve cessara ao final daquele que apenas então tiveram ocasião de constatar que fora um dia, e as nuvens espraiavam-se no céu roxo, engelhadas e ruborizadas pelo sol poente, refletindo-se nas águas como chamas celestes. A foz era estreita, o desaguar modesto de um tíbio rio que nascia nas vertentes de umas serranias em Tanarch e atravessava acanhadamente a fronteira com Sirulia até se unir com o mar. Aedreth dissera-lhes que seguissem por ela adentro até depararem com uma herdade, e foi isso mesmo que fizeram, embora Hanal tivesse algumas reservas que naquele momento partilhava com Quenestil à proa da embarcação.

— Duvido que o ataque a Gul-Yrith tenha sido um ato isolado — observou o Patriarca de olhos fitos no sol poente.

Quenestil nada disse, pois mesmo sem grande compreensão de estratégia militar isso parecia-lhe evidente.

— Toda a Sirulia pode estar a ser atacada. O mensageiro não disse que outros quatro mil homens vinham a caminho?

— Disse — corroborou o eahan, flectindo a mão ligada. Felizmente, Tannath não lhe cortara nenhum tendão e a ferida não infectara.

— Por Sirul, para onde iremos, então? — questionou-se Hanal, cujo manchado cobertor acastanhado destoava de forma gritante com os seus cabelos brancos e túnica roxa.

— Não sei, Patriarca. Espero que os sirulianos nos saibam dizer, se a herdade ainda estiver de pé.

A conversa morreu com as palavras do shura. Essa era uma hipótese que ambos já haviam considerado mas que se recusavam a aceitar até definitiva prova em contrário. Os remos da embarcação lambiam a água, diligentemente movidos pelos eahlan e eahlanas que encontravam uma espécie de conforto na monótona e regular tarefa, e em breve estavam a subir o moroso rio. O anoitecer foi rápido após a tênue ostentação do sol, que aparentara apenas querer dar mostras de que ainda existia antes de se deitar atrás das montanhas no horizonte. Estrelas despontaram nos espaços entre as nuvens, cintilando palidamente como cristais de gelo, e as eahannas brancas começaram a embalar as crianças com histórias da placidez e quietude da noite quando a lua banhava todos com os seus serenos raios. Não tardaram a avistar luzes à distância que revelaram ser os fogos de presença da herdade, um edifício com pátio murado que se encontrava no topo de um outeiro. Quenestil falara muito sobre os sirulianos com o Patriarca e outros eahlan, e uma das suas maiores dúvidas dizia respeito ao seu dia-a-dia: viviam de fato em permanente guarnição, todos eles, desde a mais tenra idade até ao leito da sua morte? Aparentemente não, pois Sirulia era auto-suficiente, e isso devia-se à exploração das suas terras num sistema rotativo de tarefas. Segundo entendera, para os sirulianos, era uma espécie de férias o serem destacados para os campos a oeste, onde uma série de quintas e herdades se encarregava da caça, pesca e produção agrícola, bem como do fabrico de armas nas vertentes das montanhas ocidentais. O rigor e a disciplina mantinham-se, naturalmente, mas a mudança de ares e as lides rurais contribuíam para um certo relaxar das mentes em constante tensão dos Ajuramentados ao mesmo tempo que prosseguiam com a formação do caráter com trabalho duro. A época agrícola podia ser tão curta na Sirulia como em Tanarch, mas os Ajuramentados mantinham-se ocupados a cortar a madeira que abastecia as fortalezas, a manter e reparar as pontes e estradas e uma variedade de outras tarefas antes de regressarem à militarista rotina dos seus postos. Quenestil deduziu que os campos murados em redor da herdade pudessem ser de cereais, mas estava demasiado escuro para ver à distância que se encontrava. Havia sinais de atividade, embora não se vissem luzes nas janelas do edifício.

— O que lhe parece, Quenestil? — perguntou o Patriarca.

— Só há uma maneira de saber ao certo.

A barcaça encalhou perto de uma pequena ponte que atravessava o rio e que dava continuidade a uma estrada que serpeava até ao portão do muro da herdade. Quenestil pulou para fora do barco de arco na mão, quebrando a crosta do gelo da margem.

— Esperem aqui, e não acordem já as crianças. Eu vou ver se está tudo bem.

Hanal acenou com a cabeça e a de Slayra apareceu à amurada da embarcação, parecendo inexpressiva na escuridão.

— Tem cuidado, Quenestil.

O shura ignorou-a, mas não se pôde dar ao luxo de ignorar o enorme vulto acerado que se agigantou atrás dela, saltando também borda fora e aterrando com grande estrépito de água e fragmentos de gelo.

— Deadan! — sibilou Quenestil, temente de que alguém o ouvisse mesmo àquela distância. — Fica aqui! És demasiado grande e a tua armadura faz demasiado barulho!

O Ajuramentado ignorou-o e passou por ele de olhos fitos nos fogos de presença que ardiam no edifício no cimo do outeiro, espadão às costas.

— Deadan, eu só vou dar uma... Oh, que os azigoth te levem! Espera por mim!

O desproporcionado par avançou então pela estrada fora até chegar ao portão do muro, constatando que este fora aberto normalmente. O chão revolto dava conta da passagem recente de cavalos, e o passo de Deadan não deu tempo ao shura de investigar mais. Estava demasiado escuro para distinguir grandes detalhes de qualquer forma, mas havia algo na situação que não lhe agradava a um nível visceral, e o Ajuramentado parecia sentir o mesmo. O seu saio verde fazia pouco para abafar o roçagar metálico do seu arnês, mas pelo menos Deadan teve o bom senso de se agachar minimamente e seguir em frente fora da estrada. Os dois caminharam pelo campo níveo, que estalava com o gelo crocante e o restolho congelado que sobrara da última safra, e começaram a ouvir ruídos animados vindos do pátio murado do edifício, risadas, apupos, aplausos, até mesmo um bandolim desafinado. Como provavelmente nunca ouvira semelhantes sons entre os seus, Deadan desembainhou o seu enorme espadão e empunhou-o com ambas as mãos de lado. Quenestil achou por bem afastar-se mais uns passos.

— Não vamos já para o portão — sussurrou Quenestil, apontando para o muro, embora o siruliano nem estivesse a olhar para ele. — Espreitamos antes por cima do muro.

Deadan encaminhou-se nessa direção como se tivesse sido essa a sua intenção desde o início, e talvez tivesse mesmo. O shura encolheu os ombros e limitou-se a ir atrás. Ambos reconheceram algumas palavras em Leochlan e de imediato souberam o que isso queria dizer, mas humano e eahan entorpeceram o seu discernimento propositadamente como mecanismo de defesa e adiaram as conclusões para quando tivessem provas mais definitivas que as que já se lhes apresentavam. O siruliano encostou-se ao muro, pousou a ponta do espadão no chão e estendeu os braços para baixo de dedos enclavinhados para que Quenestil neles pusesse o pé. Quenestil assim fez e Deadan alçou-o até que o eahan conseguisse assentar um pé na sua espaldeira, apoiando-se com as mãos na parede.

«Mãe, por favor, que não...», orou o shura antes de a sua prece se esfumar ao transpor o topo do muro com a sua cabeça.

O pátio murado abrigava um celeiro e uns estábulos além do edifício principal de dois andares, e nele ardia uma enorme fogueira. Sete soldados tanarchianos serviam-se com taças de um barril de kashkin aberto e da comida numa mesa improvisada, riam, gritavam e aplaudiam enquanto um deles tocava um bandolim triangular, batendo com o pé. Envergavam armaduras díspares, solhas, cota de malha e acolchoadas, e a maioria usava os elmos cônicos característicos de Tanarch, com alguns globulosos de pontas pronunciadas à mistura. Tinham as armas embainhadas à exceção de dois arqueiros que, incentivados pelos seus companheiros, praticavam tiro ao alvo com dois sirulianos desnudos presos a postes de braços erguidos. Os dois homens estavam mortos e tinham os corpos cravejados de setas, e como eles havia vários outros espalhados pelo pátio, nenhum de arnês vestido. Com horror, Quenestil constatou que a fogueira estava a ser parcialmente alimentada pelos cadáveres de sirulianos após estes terem servido de alvo, e o fétido odor a carne e cabelos queimados que dela emanava. O pé do eahan quase escorregou na espaldeira de Deadan ao tentar descer, mas o Ajuramentado ajudou-o e pousou-o no chão.

— Vamos. Estão mortos — afirmou o shura categoricamente, preparando-se para partir.

A mão de Deadan reteve-o.

— Quantos?

— Deadan, eles estão todos mortos! — sibilou Quenestil. — Anda, aqui já não há nada para nós...

— Quantos? — repetiu o Ajuramentado num perigoso tom de voz. Quenestil fitou-o de baixo, e viu como os bem abertos olhos azuis do jovem quase pareciam brilhar na escuridão.

— Nove. E estão armados.

Deadan pegou no punho do seu espadão e encaminhou-se de imediato para o portão de entrada.

— Deadan! — ciciou o shura, pegando-lhe pelo braço. — Nós...! O siruliano praticamente sacudiu o eahan contra o muro sem sequer se deter e baixou a babeira em forma de relha de arado, empunhando a arma com ambas as mãos. Quenestil soube nesse momento que seria impossível deter Deadan, e foi retido por um momento de indecisão. Deveria deixá-lo? Não devia nada ao Ajuramentado, não gostava particularmente dele, e os eahlan dependiam de si. Eram nove tanarchianos, e podia haver mais no interior do edifício. A premência da necessidade quase o convenceu, mas o shura não se deixou persuadir. Não ia deixar aquele jovem tolo à sua sorte, além de que ele próprio também sentia os clamores por vingança das memórias de Gul-Yrith na sua cabeça. Com uma praga nos lábios, Quenestil frechou o arco e correu atrás de Deadan. Os tanarchianos não viram logo o imponente guerreiro siruliano surgir das sombras ao portão de espadão empunhado, mas Deadan não deu três passos antes que um dos espectadores gritasse.

— Tate! Um ferrato siruliano!

Os dois arqueiros viraram-se para ele, mas Deadan continuou a avançar com toda a naturalidade e a passo decidido. Um deles disparou uma flecha que bateu na couraça do Ajuramentado, inclinando-o ligeiramente para o lado, mas sem conseguir detê-lo. O outro não teve sequer ocasião de disparar antes de Quenestil surgir e lhe cravar uma seta entre peito e ombro, derrubando-o. O seu rival preparou-se para atacar a nova ameaça, mas o eahan foi bem mais rápido a frechar o arco e foi a sua flecha a primeira a partir, atingindo o homem na barriga. Sem qualquer oposição, Deadan continuou a dirigir-se aos outros alvoroçados tanarchianos que, sem tempo para aprestarem os pesados escudos, largaram as taças de kashkin, desembainharam espadas e puxaram machados e achas de armas das argolas nos cintos. O Ajuramentado carregou então de arnês fulgurante à luz da fogueira, terrível e ameaçador com o seu visor baixado. Os tanarchianos investiram também, tentando flanqueá-lo, mas uma flecha de Quenestil estragou os planos a um, perfurando-lhe a túnica acolchoada. Uma possante varredela de Deadan afastou os adversários, um dos quais procurou atacá-lo pela abertura criada, mas o siruliano surpreendeu-o com um movimento de alavanca no punho da espada que trouxe a lâmina pelo caminho inverso, enristando-a de ponta virada para a barriga do tanarchiano, que nela se enterrou, quebrando os elos da sua cota de malha. O golpe não foi profundo, graças à proteção da armadura, e Deadan trouxe-a em arco sobre a sua cabeça ao mesmo tempo que desferia um pontapé com a comprida perna num outro adversário à sua frente. Quando a trouxe ao chão, girou o tronco e atingiu de lado o elmo cônico de um tanarchiano, partindo-lhe o pescoço. Quenestil soltou outra flecha, mas esta encalhou entre as lâminas da armadura do seu alvo e apenas o fez recuar com o impacto. Um outro espadeirou o jarrete de Deadan, mas os rebordos traseiros da joelheira deflectiram o golpe e o Ajuramentado ripostou com um altabaixo que rompeu os elos da cota de malha ao ombro e lhe partiu a clavícula ao enterrar-se parcialmente nele. O tanarchiano que fora chutado retomou a ofensiva e procurou cortar o braço esticado de Deadan pelo cotovelo com a sua acha de armas, mas este evitou o golpe com uma passada lateral, atirando ao chão o homem que continuava com a lâmina do espadão embebida no seu ombro, no qual o adversário tropeçou. Um terceiro atacou Deadan pelas costas, mas o seu machado atingiu-lhe a couraça posterior num ângulo desfavorável e a sua cunha foi encalhar na espaldeira. Deadan virou-se bruscamente, largando a espada, agarrando e puxando para si a haste do machado com uma mão e esmagando o punho da manopla da outra na cara do tanarchiano, cujo nariz explodiu em sangue e cujos dentes cederam com um ruído crocante. O que já fora atingido por uma flecha julgou ver a sua abertura e atacou de acha de armas ao alto, mas o segundo tiro de Quenestil foi certeiro e alojou-se na sua garganta exposta, à qual levou as mãos ao cair de costas arqueadas no chão. O último tanarchiano, o que tropeçara no seu companheiro de ombro arruinado, ainda tentou agarrar a sua acha de armas, mas o pesado escarpim articulado de Deadan pisou-a. A última coisa que viu ao erguer a cabeça para a sombra que se abatera sobre ele foi o outro escarpim, que lhe partiu o pescoço ao despedaçar-lhe o maxilar num espirro sangrento.

Com uma mão a pingar vermelho, o Ajuramentado olhou em redor em busca de mais vítimas, virando bruscamente o elmo de um lado para o outro e fixando-se em Quenestil, que, agachado, cortava a garganta com o facalhão a um dos que atingira com uma flecha.

— Deadan, anda — arfou Quenestil com adrenalina por soltar ao limpar o sangue no brial do morto. — Temos de nos ir embora.

O siruliano nada disse, mas olhava intensamente na sua direção, e a falta de expressão do seu elmo de babeira baixada inquietou ligeiramente o eahan.

— Deadan? O que foi? — indagou, endireitando-se. — Por que olhas...

Algo lhe disse que o Ajuramentado não o fitava a si, mas algo nas suas costas, pelo que Quenestil se virou. Ao longe, realçados pelo negro manto da noite, os fogos de várias outras quintas e herdades despontavam pela campina siruliana fora.

— Oh, não... não... — lamentou-se o shura ao ver confirmada a verdade que temera. Sirulia estava a ferro e fogo, e ninguém esperara o ataque. Não podiam permanecer ali, não estariam seguros em lugar algum. — Deadan, temos de... — Virou a cabeça de volta. — Deadan!

O siruliano dirigia-se a passos largos para os estábulos, dentro dos quais a luz da fogueira do pátio iluminava as garupas de alguns cavalos, sirulianos ou tanarchianos, Quenestil não soube dizer.

— Deadan, o que estás a fazer? — perguntou o shura, correndo para ele e pondo o arco ao ombro.

O Ajuramentado embainhou o espadão sangrento atrás das costas em resposta e entrou nos estábulos, olhando em redor ainda com a babeira baixada.

— Ouve-me! — exigiu Quenestil, agarrando-lhe o braço. — Vais atacá-los? Sozinho? És louco?

Ao avistar o que procurara, Deadan sacudiu o seu braço e foi buscar uma sela e arreios, com os quais se dirigiu ao cavalo mais próximo. O shura rosnou então e esmurrou-lhe os objetos para fora das mãos, o que por fim suscitou uma tão desejada reação, embora mais violenta que o que Quenestil esperara. A sangrenta mão de Deadan agarrou-lhe a garganta e encostou-o a uma das traves do estábulo, na qual bateu com a nuca. O braço do Ajuramentado tremia, e os seus olhos pareciam prestes a saltar para fora da viseira.

— Deadan... — sufocou o shura, agarrando-lhe a manopla. — Os eahlan... os Lasan precisam de ti.

Aparentemente, essa fora uma realidade que o siruliano não quisera ouvir, pois o aperto intensificou-se, e nem mesmo o sangue nos dedos da manopla afrouxou a pressão.

— Se fores sozinho... vais morrer... — afirmou o shura, estrangulado. — E eu não os posso proteger sozinho. Preciso de ti.

O braço tremeu ainda mais, e as placas do arnês roçaram umas nas outras, bem como os dedos acerados que lhe apertavam a garganta.

— Raios, Deadan... os teus preceitos... ou já te esqueceste...?

— Para os infernos com os malditos preceitos! — bradou Deadan dentro do elmo, largando Quenestil, que se curvou para o lado ao levar a mão ao pescoço, evitando o murro que o Ajuramentado desferiu na trave e que fez o teto estremecer e chover pó.

— Para os infernos com a disciplina, para os infernos com a obediência, e para os infernos com o dever! — raivou Deadan, chutando a sela até ao fundo dos estábulos e assustando os cavalos, que relincharam. — Eu devia ter ficado, devia ter morrido com os meus irmãos! — exclamou, batendo de punhos cerrados no peito. — Por que é que ele me enviou? Porquê eu? PORQUE?

Caindo de joelhos, o Ajuramentado levou as mãos à cabeça, começando a estremecer com sufocados soluções e curvando lentamente o torso arnesado até tocar com as cotoveleiras e a fronte do elmo no chão. O jovem siruliano rompeu então num pesado pranto, ocultando a cabeça com as mãos como se desejasse esconder-se do opróbrio, ecoando o seu plangente choro do interior do elmo. Quenestil ficou a olhar sem palavras, afagando a garganta suja de sangue e incerto quanto ao que fazer.

«O desgraçado do rapaz... sente-se culpado por ter sobrevivido. Eu devia ter imaginado.»

Hesitante, o shura aproximou-se do jovem gigante prostrado, ajoelhando-se a seu lado e pousando um braço sobre as suas maciças espaldeiras. Não era possível dizer se Deadan sequer o sentira, mas pelo menos não o repeliu.

— Deadan... — Um soluço como resposta. O que se podia dizer a alguém de tal forma destroçado? — O Castelão... sabes o que é que ele me disse?

Deadan chorou, e o roçar do seu elmo nas manoplas talvez denotasse um negativo abanar da cabeça. Quenestil interpretou-o como tal.

— Que eu protegesse os Lasan, para que o seu sacrifício e o dos teus irmãos não tivesse sido em vão. — Os ombros do Ajuramentado tremeram, mas houve uma pausa no seu choro. — Sem ti, terá sido em vão. Sem ti, não o conseguirei, Deadan. Preciso da tua força, da tua espada. Preciso que me ajudes, senão o Castelão e os teus irmãos terão morrido por nada, porque sozinho não o consigo.

Quenestil ouviu o siruliano exalar longamente dentro do seu elmo, fungando e respirando fundo para se acalmar. Assim que se achou pronto, ergueu o torso lentamente, apoiando as mãos nos coxotes, e levantou uma perna. Quenestil ajudou-o a levantar, mas Deadan recusou-se a olhá-lo de frente ou mesmo a erguer a babeira.

— Para onde iremos então, Quenestil Anthalos? — perguntou, chamando-o pelo nome pela primeira vez.

— Para já, vamos sair daqui. Vamos voltar para a barcaça.

O Ajuramentado não contestou e os dois saíram dos estábulos. Quenestil aproveitou para recolher a comida num fardo improvisado com uma capa tanarchiana e Deadan pegou na barrica de kashkin, bem como nas armas dos tanarchianos. Quando chegaram à barcaça com o seu espólio, eram aguardados pelo Patriarca, que pela sua expressão já deduzira o que acontecera e nada fez além de dizer ao seu séquito que se sentasse e preparasse para partir. Ajudou Deadan a pôr a barrica dentro do barco e pegou no fardo de Quenestil, que contudo não subiu a bordo. Slayra estava entre as caras que haviam surgido, mas Quenestil apenas a olhou de relance, tal como a todos os outros.

— A Sirulia caiu, Patriarca — anunciou o eahan de punhos cerrados a seus lados. Os eahlan que o ouviram baixaram as cabeças e Hanal nutou com invulgar severidade. — Aqui não há segurança para nós. Temos de ir para a Wolhynia.

— Wolhynia... — repetiu o Patriarca. — Conhece a terra, Quenestil?

— A costa não, mas sei falar um pouco da língua. A nossa única outra opção é contornarmos Asmodeon ou atravessarmos a Sirulia a pé.

Hanal reconheceu de imediato a futilidade de semelhantes demandas. Nunca lhes sobreviveriam.

— Suba então, Quenestil. Partimos de imediato.

— Um momento, Patriarca — pediu o shura, virando-lhe as costas e correndo para a ponte que atravessava o rio.

Olhando com atenção do cimo desta, podia ver os fogos das quintas sirulianas a arderem à distância, e imaginou todos os sirulianos mortos, atacados por quem — apesar de todos os seus erros e excessos — haviam passado gerações a proteger, sangrando e morrendo por eles e pelo resto de Allaryia. E lembrou-se dos eahlan mortos, dos gemidos de dor da pequena eahlana a morrer de sepsia, ruídos que recalcara durante os dias no mar e que agora lhe ecoavam do fundo da sua consciência. Os seus punhos tremeram com a força com que os cerrou, mordendo a carne das palmas com as unhas, e o shura fechou os olhos e baixou a cabeça.

«Mãe, já fiz muitos juramentos. Jurei que a minha flecha tinha o nome da Slayra, e hoje ela é a mãe do meu... a minha...» Quenestil grunhiu de frustração pelo nariz. «Não levei a ameaça a cabo, nem a levarei. Jurei regressar a Moorenglade e purgar o mal que corrompe os pântanos, e ainda não tive ocasião de o fazer. Peço-te, porém, que não me tomes por leviano e que escutes as minhas palavras sinceras.»

Quenestil abriu os olhos, tirou uma flecha da sua aljava, passou um dedo pelas marcas de sangue tanarchiano que a manopla de Deadan lhe deixara na garganta e limpou-o à ponta da seta.

«Pelo que fizeram, por me terem tentado matar a mim, à Slayra, ao... bebê... pela sua traição, por se terem vendido a’O Flagelo, por todos os sirulianos que caíram para me proteger deles, por todos os eahlan que morreram por sua causa, eu juro vingança eterna. Que me concedas a fúria da tempestade e a cólera purificadora do fogo quando chegar a altura, Mãe. Que se restaure o equilíbrio, retribuindo cada siruliano e eahlan mortos com uma vida tanarchiana. Permite-me ser o rectificador, permite-me ser o caçador, que quando o momento chegar as minhas flechas voem certeiras.»

Quenestil tocou o dente de volverino ao seu pescoço e de seguida a testa, inspirando fundo e baixando a cabeça. Então levou-a atrás, abriu os braços e soltou um brado que estilhaçou o gelo do ar noctur-no, ecoando pela noite fora.

— Finne aefeil tuo nomenc atha, Tanarch!

Respirando aceleradamente e com o coração aos pulos, Quenestil ainda se deteve alguns momentos sobre a ponte, olhando como um predador para a noite, tentando sentir o cheiro do medo das suas presas. Não o sentiu, mas o juramento estava feito. E iria ser cumprido. Quando regressou ao barco, foi recebido em silêncio, pois todos sentiram a seriedade da sua terrível declaração, embora não a tivessem compreendido.

— Vamos — disse friamente, olhos pétreos e voz rouca.

Gul-Yrith caíra.

Os seus recintos formigavam com tanarchianos que caminhavam sobre a mortualha de acerados cadáveres sirulianos e dos seus companheiros, arrastando os pés pelos regatos de sangue que haviam derretido a neve suja. Não fora uma batalha, mas sim uma emboscada em grande escala, e ainda assim as baixas dos atacantes haviam sido horrendas, sobretudo nas barbacãs e nos corredores dos edifícios, onde os tanarchianos se enfiaram em autênticos túneis de morte. Os números de mortos rondavam os três milhares para menos de mil sirulianos tombados durante um combate que durou a noite inteira até que os defensores por fim se tivessem refugiado nas catacumbas. Pelejas isoladas prosseguiram durante a manhã entre sirulianos tresmalhados que irrompiam sozinhos ou aos pares de um qualquer esconderijo e se abatiam em fúria vingativa sobre tanarchianos desprevenidos, aumentando as baixas antes de caírem diante dos avassaladores números. Gul-Yrith era uma colossal fortaleza, e os seus recessos inúmeros, o que obrigou os invasores a um meticuloso esquadrinhamento no qual as emboscadas eram um risco constante. Ao sangrento dealbar ainda se ouvia o tênue entrechocar de aço a ecoar em corredores, mas a fortaleza fora tomada e os seus conquistadores percorriam vitoriosamente os adarves. Houve quem reparasse nuns estranhos cadáveres de humanóides desarmados com cabelos brancos, mas a sua descoberta passou despercebida no bulício da conquista dos tanarchianos. Dois deles encontravam-se no topo do torreão nordeste com os triunfantes pés sobre os cadáveres de arqueiros sirulianos, cujos arcos os excediam em altura. Ouviam ruídos de lutas isoladas, mas estavam mais que satisfeitos por terem sobrevivido ao combate e, tendo escapado ao olhar do seu comandante, não estavam dispostos a arriscar mais a sorte. Os dois envergavam couraças lamelares manchadas de vermelho e elmos com o molde de uma cebola, empunhavam machados cruentos e tinham escudos em forma de lágrima às costas. Um deles tinha a mão ligada com um pedaço de capa esfarrapado; perdera dois dedos, mas isso pouco importava. A vitória pertencia-lhes, e os bastardos sirulianos haviam pago bem caro as afrontas e os conscritos mortos e mutilados ao longo dos anos. Ambos tinham sido educados numa cultura de ódio para com a Sirulia, assustados em crianças com histórias dos monstros vestidos de aço que lhes viriam roubar os pais e violar as mães, e embora tal não lhes tivesse acontecido, haviam visto ou ouvido falar de mães e primas de amigos e conhecidos a serem tomadas por grupos sirulianos que vinham às cidades e aldeias, espalhando o terror por onde passavam. O regozijo dos dois homens equiparava-se à sensação de terem vencido os seus medos de infância, e por tal tinham Linsha Akselban a quem agradecer. Esta assumira o comando de um indignado exército após o assassinato do Triunvirato às mãos dos sirulianos; lordes Shvetan e Gorom por um Mandatário e lorde Malagor por dois asseclas sirulianos que, com a ajuda destes, se tinham seguidamente evadido à justiça. Fora a mulher quem organizara a cruzada contra a Sirulia, quem engendrara o engenhoso engodo que lhes havia garantido entrada em Gul-Yrith, permitindo-lhes atacar os sirulianos dentro do seu próprio covil. Havia-os revoltado terem de usar Fadados, desprezíveis criaturas d’O Flagelo cuja existência até então apenas fora rumorejada em Tanarch, mas a doce ironia de serem estes a garantir-lhes a entrada na fortaleza valera a pena. Oh, se valera!

Estava uma manhã fria, mas nem mesmo o tempo lhes resfriava o ânimo e os dois infantes sentiam-se capazes de seguir imediatamente para Gaul-Anoth, se Linsha Akselban assim o ordenasse. Outros quatro mil tanarchianos assolavam o resto da Sirulia naquele preciso momento, e em breve juntar-se-lhes-iam, dilatando as suas fileiras e trazendo consigo os engenhos de cerco que a vanguarda do exército não portara de forma a não acusar as suas intenções a Gul-Yrith. Marchariam então pelo Istmo Negro fora, e arrasariam as outras fortalezas sirulianas também, com ou sem Fadados. Os dois infantes soltavam gritos de vitória do topo do torreão, incitando os seus camaradas a lutarem, e faziam chistes com as posições dos cadáveres sirulianos, que haviam vendido cara a vida e que agora jaziam aos seus pés. Um deles escorregou no sangue do pavimento, por pouco não caindo, e o seu companheiro riu-se dele, apoiando-o com um braço. Os dois abraçaram-se, congratulando-se mutuamente com pancadas nas couraças lamelares enquanto discutiam quem havia morto mais sirulianos, empunhando os vangloriosos machados.

Então ouviram o longo e ominoso mugir de trompas à distância.

Viraram-se ambos na direção do som, e os sorrisos que lhes vincavam as faces barbudas desvaneceram. Ao longe, bem ao longe no Istmo Negro, viram a horda que por ele se alastrava. Ninguém reparara no Olho, o farol do Istmo Negro que passara a noite inteira a enviar frenéticos sinais luminosos, e este tinha agora a base submersa por uma maré negra de aço rutilante que parecia trazer em seu encalço uma vaga de nuvens negras no céu. Drahregs. Milhares deles, dezenas de milhares, talvez uma centena de milhar. O múrmurio das suas vozes roucas ouvia-se à distância como um indistinto tremor no ar, e os seus passos pareciam fazer espumar a água nas bordas do Istmo. Os dois infantes tanarchianos continuaram com os braços sobre os ombros um do outro, mas estes estavam frouxos, hirtos, trêmulos. As suas bocas estavam abertas, os seus olhos incredulamente arregalados, as mãos que empunhavam os machados desfaleceram. O que tinha a mão ferida sentiu urina quente escorrer-lhe pela perna abaixo, ensopando-lhe a bota por dentro e acalentando-lhe o pé. As trompas tornaram a soar, a resposta do Terceiro Pecado ao chamamento do seu senhor, e, para os dois tanarchianos que a ouviram, o vaticínio da sua destruição.

 

Aewyre e Kror combateram numa base quase diária no círculo de guerreiros nas semanas que se seguiram ao primeiro confronto com os ghèren. As sessões eram curtas e intensas, e os dois levaram algum tempo a aprenderem a impor o seu próprio ritmo antes de serem avassalados por um enxame de fantasmas, «morrendo» ainda duas vezes no processo. Apesar de minimamente certos de que nada de realmente grave lhes podia acontecer, a dor fria dos ferimentos causados pelas fantasmagóricas espadas ajudava a manter os latejos do perigo bem vivos e levava humano e drahreg a darem o seu melhor em cada sessão. Ambos tinham a distinta sensação de que começavam a dominar melhor o «tendão», conseguindo prolongar por mais tempo as transferências e alcançando um novo patamar de controlo sobre estas, conseguindo levá-las a cabo mesmo quando não estavam a ser diretamente ameaçados. Com o domínio mais alongado, tanto um como o outro puderam experimentar o verdadeiro poder da Essência da Lâmina, aprendendo a melhor manejar as reverberações e a fluir com o ritmo do combate a outro nível, bem como a acostumar os seus corpos aos efeitos colaterais de cada transferência. Os rescaldos eram sempre o pior, com as dores reumáticas que os forçavam a autênticas sessões de autoflagelação que por sua vez os deixavam doridos e a sentirem-se estúpidos. Aewyre recusara sempre a assistência de Heldrada, embora Kror nunca se fizesse rogado e o guerreiro começasse mesmo a duvidar dos seus reais motivos para ir ter com a namuriquana após cada combate. Todas as noites e nos dias em que estava mais ressentido, Aewyre ia para os aposentos do Alto Lamelar consultar a biblioteca deste, lendo os antigos tomos e manuais em Glottik que encontrava e que relatavam as peripécias de vários

Lamelares ao longo das épocas, bem como velhos registros da Cidadela da Lâmina. Nunca encontrara referência alguma a dois Portadores que tivessem resolvido a questão do seu «tendão» de outra forma além do combate mortal, pelo que passou para os volumes em Llorenc e outras línguas com a assistência de Assiòn, que deu mostras de ser um homem efetivamente letrado. Os dois passaram uma série de noites em branco, estimulados por uma ou outra passagem obscura que de madrugada revelava não ter passado de liberdade artística pela parte do autor. Ainda assim, Aewyre tomou nota de todas e manteve um arquivo à parte que consultava nos tempos livres durante o dia, fantasiando e conjecturando. Como não sabia ler, Kror treinava com Heldrada enquanto Aewyre enterrava a cabeça em poeirentos livros que lhe deixavam os olhos irritados e as pontas dos dedos secas, e o jovem por vezes guardava-lhe um certo ressentimento devido à sensação de que estava a fazer tudo sozinho.

O tempo foi passando, e, num frio dia de Balsaman em que neviscava no exterior, Aewyre estava sentado à mesa do Alto Lamelar a ler à luz de uma candeia com a perna estendida sobre um banco, tendo exagerado na terapia posterior a uma espadeirada fantasmal no joelho. O fogo na lareira crepitava, e Assiòn estava à janela com um braço cruzado e um livro aberto na mão a uma certa distância da cara, que empinava ligeiramente para melhor ler com as suas lunetas. As vidraças de chifre deixavam passar pouca da já de si escassa luz do melancólico dia, e o Alto Lamelar já por várias vezes se queixara dos olhos após longas sessões de leitura, das quais parecia contudo extrair um particular gozo que aparentemente nunca tivera ocasião de desfrutar noutras ocasiões. Segundo ele, ainda nem sequer tivera ocasião de ler a maior parte dos livros nas estantes, e aquela era a oportunidade pela qual até então esperara. Aewyre começava a gostar do velho laonês, a despeito das suas velhacarias iniciais, e passara a dar-lhe mais confiança que a Kror, o que, apesar de não ser dizer muito, sempre compensava um pouco a solidão que o jovem sentira desde o seu primeiro dia na Cidadela. Assiòn era espirituoso, conversador e muito vivido, contando a Aewyre várias histórias acerca dos diversos locais que visitara e nos quais vivera durante os intervalos das suas leituras, assemelhando-se a Allumno na forma com a qual se empolgava sutilmente diante de uma audiência disposta a ouvir. O Alto Lamelar era uniforme no seu trato com os alunos, mas parecia reservar uma especial predileção a Aewyre que não passara despercebida e que soubera ao jovem como uma pequena vingança sobre os Lamelares que o haviam praticamente ignorado e a Kror. Não falava muito do seu passado antes de ter chegado à Cidadela da Lâmina, revelando apenas que fora mercenário e que fizera coisas das quais não se orgulhava. Aewyre também dera consigo a partilhar com Assiòn mais detalhes da sua aventura até Asmodeon, falando-lhe dos perigos, dos inimigos e dos seus companheiros, especialmente Lhiannah. O laonês nunca casara e tivera várias mulheres na sua vida, embora agora, que estava mais velho e com as ânsias da juventude entibiadas, revelasse uma certa vontade de assentar com uma boa mulher honesta. Semelhantes trocas de impressões costumavam dar lugar a um silêncio como o que de momento reinava na sala do Alto Lamelar e que ambos aproveitavam para se imergir na atenta leitura dos respectivos tomos. Aewyre tinha vários livros abertos sobre a mesa e outros tantos com passagens marcadas, notas de referência, folhas de pergaminho com nomes anotados e hipóteses conjecturadas e rasuradas. O tomo que tinha em mãos era um manual de combate de um Lamelar nolwyno chamado Furiardo que passara os seus últimos dias na Cidadela da Lâmina como escriba, e havia nele um excerto que chamara a atenção do jovem.

— Isto talvez seja interessante — disse, esfregando o queixo. — Furiardo refere aqui dois Portadores, um dos quais era aparentemente «hábil, mas fraco de braço e espírito». Os dois combateram numa série de ocasiões, mas o tal fraco era manhoso e fugia sempre, esperando apanhá-lo numa situação mais vantajosa, até que por fim o outro simplesmente desistiu. Já tinha família formada e parece que conseguiu dominar o chamamento, embora o Furiardo especule que ele estava apenas a tentar fazer com que fosse o fraco a ir-lhe atrás em vez do contrário. — Um virar de página. — O outro parece que ficou satisfeito com a forma como as coisas se resolveram e deixou-se ficar. Anos mais tarde, os dois morreram em circunstâncias misteriosas: o forte foi empalado numa foice na sua quinta e o fraco foi mortalmente ferido num jogo de facas.

Aewyre pousou o livro, esfregou os olhos e levou as mãos à nuca, espreguiçando-se na cadeira.

— Estava a pensar se isso não teria eventualmente sido uma manifestação da Essência da Lâmina, uma espécie de... ruptura, causada pela recusa dos dois em combaterem, que a levou a matá-los com objectos afiados. Se assim for, isso só comprova a minha teoria de que a Essência da Lâmina tem uns certos limites de tolerância, tal como quando provoquei o «tendão» para ajudar o Kror enquanto eu ficava quieto. Se conseguíssemos forçá-la a esse extremo, apanhar o...

— O Furiardo é um moralista — opinou Assiòn secamente sem tirar os olhos do seu livro. — Esse seu manual tem mais alegorias que conselhos práticos, como a maior parte dos ensinamentos dos nolwynos. Duvido que seja mais que uma advertência a todos os Portadores cobardes que se recusem a combater por medo.

Por momentos, Aewyre quase se sentiu ofendido, mas o Alto Lamelar conhecia a sua história e decerto não se estivera a referir a ele. De qualquer forma, Aewyre fechou a capa do tomo à bofetada, fazendo-o espirrar uma nuvem de pó.

— Então, Aewyre? São livros antigos, trata-os com respeito.

— Desculpe, Alto Lamelar — escusou-se o jovem, deixando as mãos cair sobre a mesa e suspirando. — Tantas teorias, tantos poemas, tanto palavreado... e nada!

— Tem paciência — recomendou Assiòn, tirando as lunetas do seu nariz e batendo com elas ao de leve no seu livro. — Estes poemas do Fèdac que estou a ler, por exemplo, também falam de dois Portadores que lutaram durante vários anos. Já os li há muitos tempo e achei-os muito aborrecidos, mas agora vejo que têm uns pormenores interessantes.

— Ai sim? — retorquiu Aewyre, pouco convencido. Assiòn lera-lhe algumas estrofes que se ocupavam sobretudo a descrever as roupas dos dois guerreiros e as dezenas de formas diferentes de olharem com ar ameaçador um para o outro. Fèdac fora um Lamelar laonês com uma alma artística (segundo o próprio) e que registrara os seus conhecimentos na forma de poemas de duvidoso valor literário e nula aplicação prática.

— Olha, para começar, ao contrário dos outros Portadores que tens lido, estes ligaram-se às suas armas antes de serem Lamelares, tal como vocês. Encontraram outros que os instruíram, porque ambos tentavam ganhar uma vantagem sobre o outro.

Aewyre enclavinhou os dedos e apoiou a boca sobre eles, franzindo as interessadas sobrancelhas.

— Certa vez aconteceu-lhes uma coisa parecida com a vossa: a família de um contratou um bando de assassinos para matar o outro sem que este o soubesse. Quando foi atacado, o poema dá a entender que o outro sentiu o perigo que corria e transferiu o, hã, «tendão» para ele, salvando-o. Parece que ele conseguiu manter o controlo tempo o suficiente para matar todos os assassinos. Como vês, és capaz de encontrar coisas úteis aqui; pena que não saibas ler em Llorenc.

Assiòn fechou o livro e dirigiu-se à mesa para nela o pousar, brincando com as lunetas na sua mão.

— Agora desculpa, mas já se faz tarde e estou com os olhos muito cansados. E as pernas.

Só então Aewyre reparou que haviam passado boa parte do dia dentro da sala, e que ocupara a cadeira do laonês o tempo todo.

— Oh, desculpe, Alto Lamelar — disse Aewyre, tirando a perna do banco e levantando-se. — Por que não se sentou nas outras cadeiras?

— Não há luz que chegue à lareira — repreendeu-o Assiòn amigavelmente com as lunetas fechadas. — Mas deixa estar, estavas com a perna magoada e estes ossos velhos ainda se agüentam. Como está o joelho?

— Melhor, melhor — afirmou o jovem, flectindo e esticando a perna no ar como para o comprovar. — Mas então... eu também consigo sentir o Kror à distância, como um chamamento na minha cabeça, mas nunca senti se ele estava em perigo ou não, e nunca houve qualquer transferência enquanto não estávamos perto um do outro.

— Quem sabe? Quem sabe se em todas aquelas fantásticas situações que me relataste, se o Kror não terá tido alguma culpa nessas tuas façanhas em combate quando corrias perigo?

Não era um pensamento que agradasse a Aewyre, mas não o podia descartar de ânimo leve.

— É claro que estes dois — Assiòn bateu com o dedo na capa do livro — lutaram durante muitos anos, mais do que vocês. Já se conheciam muito bem, embora se odiassem. Estavam bem habituados ao, hã, «tendão», e mesmo sem o saberem se calhar faziam muita coisa. Tu já sentes o Kror, tal como todos os Portadores, mas a maior parte deles só usa essa ligação para saber onde o outro está, porque o contacto é desagradável. Experimenta algo mais quando tiveres tempo.

Aewyre acenou com a cabeça, puxou os cabelos para trás e dirigiu-se à janela a coxear ligeiramente, apoiando-se com ambas as mãos nos lados desta.

— Tanta coisa a experimentar, tanto para treinar, tantas teorias, o tempo a passar... e o Kror a brincar com aquela... com a Heldrada. Com a Mestre de Armas.

Ao contrário do que esperara, Assiòn não o repreendeu e abafou um riso nas suas costas.

— Ele não sabe ler, Aewyre. Ao menos está a treinar.

— A treinar o quê? Posições? De combate é que não devem ser... Uma fungadela divertida.

— Deixa-os estar, Aewyre... Eu começo a pensar que isso não passa de inveja. Há quanto tempo não estás com uma mulher?

Havia uma certa verdade nas palavras do laonês, mas Aewyre fe2 por ignorá-las.

— Hmpf, estão bem um para o outro, aqueles dois. Talvez uma faca não lhe tenha chegado e ela queira experimentar dois alfanges...

O ruído de algo a cair ao chão fez com que Aewyre espreitasse por cima do ombro. Assiòn estava hirto, olhava para a parede e deixara as lunetas cair.

— Alto Lamelar? Estais bem?

Assiòn pigarreou então, descongelando e flectindo os seus perros joelhos para pegar nas lunetas, que esfregou à sua túnica.

— Oh, graças a Tharobar. Não se partiram — sorriu este, nervosamente aliviado. — Ainda tinha de as mandar reparar em Neveria...

— Alto Lamelar, o que foi? — insistiu Aewyre, afastando-se da janela.

O laonês mexeu distraidamente nas lunetas com os dedos e fitou o jovem com os seus olhos verde-acastanhados na sua peculiar expressão com o olho esquerdo de pálpebra e sobrancelha descaídas. Era o seu olhar apreciador, e estava a avaliar Aewyre para algo.

— Faz-me um pouco de chá, por favor — pediu, dirigindo-se a uma das cadeiras de braços e apontando para a prateleira sobre a lareira. — As folhas estão naquele boião.

Embora algo intrigado com a estranha reação de Assiòn, Aewyre fez como lhe fora dito e foi colocar um pote de ferro com água a aquecer ao fogo enquanto o laonês se sentava.

— Devem ter-te contado umas histórias sobre a Heldrada, não?

— Sim.

— Senta-te — disse Assiòn, olhando para o fogo na lareira, e o guerreiro assim fez, ajeitando Ancalach na sua bainha. — Algumas são exagero, mas a maior parte delas é verdadeira. A Heldrada era uma camponesa da Namuriqua. Já nem me lembro do nome da aldeia, mas julgo que era perto de Dargüna. Seis anos após o fim da Guerra da Hecatombe, o rei da Namuriqua ainda não tinha... consolidado a sua autoridade, e teve graves problemas com as companhias de mercenários que usara durante a guerra. Devia-lhes muito ouro que na altura não podia pagar, e estas começaram a pilhar as suas aldeias, tal como também o tinham feito enquanto eram pagas.

— As Companhias? — perguntou Aewyre, referindo-se aos famosos batalhões namuriquanos.

— Isso foi depois, quando o rei distribuiu perdões e lhes concedeu terras para que o servissem. Não interessa. Uma dessas companhias de mercenários, os Veados Vermelhos, passou pela aldeia da Heldrada. Eram liderados pelo Magarefe.

O jovem conhecia o nome de um dos mais infames mercenários do norte de Allaryia e já começava a ver aonde a história ia dar, mas não interrompeu.

— Os aldeãos nem tiveram ocasião de implorar pelas suas vidas. Atacaram ao anoitecer, derrubaram portas de cabanas, chacinaram os homens, roubaram tudo o que estava à mão e violaram as mulheres, crianças, jovens e viúvas. A Heldrada devia ter uns treze anos na altura, já era alta, e sempre usara bem a vara. Ela defendeu-se contra homens armados. Viu a sua família ser morta, mas lutou e matou mesmo um homem com uma varada na cabeça. O Magarefe... fez jus ao seu nome quando ela foi capturada, e mandou os seus homens divertirem-se com ela. Um deles usou a sua adaga para...

Assiòn não disse o que não precisava de ser dito, e fez-se o silêncio. Havia várias respostas possíveis para a pergunta que saltou à cabeça de Aewyre, mas o jovem fê-la à mesma.

— Alto Lamelar... como é que sabe isso?

O olho descaído de Assiòn virou-se para Aewyre, mas retrocedeu.

— O Magarefe... fui eu.

Embora tivesse esperado uma resposta semelhante, ainda assim o guerreiro sentiu um calor aflorar-se-lhe ao peito e apertou inconscientemente a ponta de um dos braços da cadeira.

— Fostes... vós?

— E essa foi das menores coisas que fiz — admitiu Assiòn. — Durante a Guerra da Hecatombe lutei com drahregs, humanos, thuragar e mesmo eahan. Matei de todos, dependendo de quem me pagasse mais. Homens, mulheres e crianças, eu deixava que o ouro decidisse por mim. Era um Lamelar, o melhor deles, e a minha espada podia ser comprada.

Silêncio. Uma pinha estalou na lareira.

— Cinco anos mais tarde, encontrei a Heldrada outra vez... quer dizer, ela encontrou-me. Disse que queria falar comigo, e os meus homens trouxeram-me. Fiquei surpreendido quando a vi, soube logo que ela era uma Lamelar pela maneira como andava e como segurava a sua foice de guerra. Parecia dez anos mais velha, e a sua cara e olhar tinham ficado duros como o resto do seu corpo. Pensei que me vinha desafiar, mas não era isso que ela queria.

— O que é que ela queria? — indagou Aewyre, preso pela sentida narrativa do laonês.

— Agradecer-me — disse Assiòn em voz baixa, baixando a cabeça como se mesmo o fogo na lareira o estivesse de alguma forma a acusar.

— Agradecer-vos?!

— Por lhe ter... mostrado a verdade. Por lhe ter mostrado o caminho da dor. Por a ter salvo. Ainda hoje não compreendo o que ela quis dizer, mas nunca mais saiu de perto de mim. Juntou-se aos Veados Vermelhos pouco antes de eu abandonar a companhia.

— Como assim?

— Não pude mais. Quando vi a Heldrada, quando ouvi as suas palavras... não sei porquê. Tinha pesadelos à noite, senti que tinha feito algo mais cruel e terrível que assassinar mil crianças — confessou Assiòn, abrindo as lamentosas mãos. — Não consegui mais. Abandonei a companhia e parti com o Rok, o Kraac e o Grwos, que tinham medo de serem mortos sem a minha proteção, porque todos os outros os odiavam. A Heldrada veio atrás de nós, e eu não pude...

O Alto Lamelar fez uma pausa e Aewyre ergueu-se para aliviar a tensão e permitir-lhe recuperar, aproveitando para polvilhar a água fervente do pote de ferro com ervas do boião. Quando se tornou a sentar, Assiòn parecia mais calmo.

— Nós os cinco viemos até à Cidadela da Lâmina. Eu precisava de paz, precisava de um sítio isolado, precisava de pensar. O Alto Lamelar morrera havia pouco tempo, e havia apenas um candidato antes de eu chegar. Quando há mais que um pretendente, o Alto Lamelar é escolhido num ritual de combate, e o outro não me quis enfrentar, por isso eu fui escolhido. Todos me conheciam, mas a Cidadela da Lâmina é neutra e o que era importante era o fato de eu ser o melhor Lamelar.

— Fizestes um bom trabalho — sentiu-se Aewyre obrigado a dizer, conseguindo arrancar um sorriso a Assiòn.

— Obrigado. Aqui encontrei a paz e sossego que procurava, e ao mesmo tempo pude trabalhar para melhorar alguma coisa. Não quero que a Cidadela crie monstros como eu fui, e tento tornar os Lamelares que cá vêm em homens... Não bons, mas ao menos corretos, entendes?

Aewyre fez que sim com a cabeça.

— A Heldrada era muito boa, aprendera muito nos anos após a sua... — Assiòn tornou a pigarrear. — Promovi-a a Mestre de Armas. Muitos discordaram, mas os alunos aprendiam muito com ela. — Apesar do tom solene do relato, o jovem teve de se esforçar para não erguer o sobrolho. — Nunca houve muitas Lamelares; a Essência da Lâmina não parece apelar muito às mulheres...

— Porquê?

O laonês encolheu os ombros.

— Se generalizarmos, o que é que um homem faz se for... digamos insultado?

— Bem, acho que depende...

— Generaliza.

— Insulta quem o insultou. Ou agride-o.

— E uma mulher? Generalizando.

— Tenta falar? Perceber porquê? Ignora-o?

— Então e se o homem for atacado?

— Falando de forma geral? Acho que se defende. Ataca o outro também.

— E a mulher?

— Presumo que fuja, peça ajuda, ou tente... resolver a situação sem ter de lutar?

Assiòn fechou os olhos e inclinou a cabeça, abrindo as mãos.

— A Essência da Lâmina é uma coisa primária, impulsiva, violenta. Seja como for, a Heldrada é muito boa. O Grwos e os outros, arranjei tarefas para eles. O Diacolo veio alguns anos mais tarde, o filho bastardo de um nobre sathmaro que o escorraçou, e também o elevei a Mestre de Armas... Bom, mas já estou a divagar. O que eu queria dizer com isto tudo era que... que... — Assiòn olhou para o vazio durante alguns instantes, mas acabou por sacudir a cabeça.

— Já nem sei. Coisas de velho, hem? Mas da próxima vez que falares ou treinares com a Heldrada, lembra-te disto, sim?

— Bem... sim. Quer dizer, eu não fazia idéia de que...

— Ninguém faz, são só boatos. Não contas isto a mais ninguém?

— O jovem meneou negativamente a cabeça. — Ótimo. Ah, é verdade, com isto tudo lembraste-me de uma coisa.

— O quê, Alto Lamelar?

Assiòn inclinou-se sobre o braço esquerdo da sua cadeira para se aproximar do jovem e estendeu o braço direito para pousar a sua mão sobre a de Aewyre.

— Quando eu vos mandei embora e disse que tinha de pensar, na noite em que tu me contaste a tua história? — O guerreiro nutou.

— Vou ajudar-te. A Cidadela da Lâmina estará do teu lado. Aewyre ficou boquiaberto.

— Não sei se te poderemos valer contra O Flagelo, mas eu e todos os que quiserem lutar ao meu lado ajudar-te-emos no que pudermos quando precisares de nós. Prometo.

Sem palavras, Aewyre apenas piscou os olhos, que refletiam a mais pura surpresa e espanto.

— Se achas tão difícil de acreditar, então pensa nisso como uma forma de eu... pagar por todo o mal que fiz. Parece-te melhor assim?

— Não! Alto Lamelar, eu não estava a duvidar... Eu... E só que... Assiòn apertou-lhe a mão e recostou-se na cadeira de bigode sorridente.

— Acho que precisas de relaxar um pouco, Aewyre. Há quase um mês que só treinas e lês, treinas e lês. Nem sequer foste às celebrações do Findo Ano.

— Bem... eu...

— Vai lá, vai para o recinto inferior — incitou o Alto Lamelar com um despreocupado gesto da mão. — Amanhã lemos mais à noite, depois do vosso treino. Tenho a certeza de que iremos encontrar alguma coisa.

Como o jovem continuou a hesitar, Assiòn levantou-se e ajudou-o a fazer o mesmo, conduzindo-o à porta com palmadinhas no ombro.

— Olha, ainda não foste à Gènnepe, pois não? Eles estão sempre cheios todas as Lurian, e podes aproveitar e comer alguma coisa lá. Vai, diverte-te um pouco, rapaz.

Antes que Aewyre pudesse reagir, o Alto Lamelar empurrou-o porta fora e piscou-lhe o olho antes de a fechar, deixando o aturdido jovem sozinho no corredor escuro. Aewyre ainda ficou algum tempo a olhar para a porta com uma expressão muito pouco dignificante, mas acabou por lhe virar as costas e começar a coxear ligeiramente pelo corredor, tentando organizar na cabeça tudo o que consigo trouxera da sala.

«Ele vai ajudar-me...», repetiu o jovem para consigo. «O Alto Lamelar... a Cidadela da Lâmina vai ajudar-me!»

Os seus olhos avivaram-se, e pela primeira vez em semanas, Aewyre sorriu. Finalmente, um rasgo de esperança, um luminescente ponto na escuridão que talvez ainda viesse a despontar num fogo roaz contra as suas adversidades. A Cidadela da Lâmina! Não fantasiara sequer ter os Lamelares como seus aliados, nem sequer delineara semelhante quimera como objetivo, o que tornava as palavras de Assiòn tanto mais portentosas. Além disso, ele e Kror estavam a progredir nos treinos, cada dia compreendiam melhor o «tendão» e chegavam mais perto de o domar. E havia ainda a fonte de conhecimentos que era a biblioteca do Alto Lamelar, à qual Aewyre só lamentava não ter tido acesso há mais tempo, mas ainda havia muito que podiam descobrir.

«Há esperança. Há mesmo esperança!», reconfortou-se Aewyre, sentindo uma energia que apenas experimentara nas sessões de treino ao começar a descer uma escadaria em espiral. «Sim, vamos lá ver essa... Gènnepe. O Assiòn tem razão, vai-me fazer bem relaxar um pouco. Mas antes...»

O guerreiro deteve-se na escadaria, lembrando-se do que o Alto Lamelar lhe dissera acerca do que seria eventualmente exeqüível através da sua ligação com Kror. Aewyre fechou os olhos, apoiou uma mão na parede e concentrou-se no «tendão», que à distância que se encontrava do drahreg pouco mais era que um retesar na sua cabeça, um mero incômodo ao qual já se habituara. Porém, o jovem focou-se nessa singular sensação, deu-lhe indevida ênfase à exclusão de todos os restantes sentidos. Imaginou os já memorizados movimentos de Kror, o gracioso fluir dos alfanges na sua dança curvilínea, as passadas rítmicas do drahreg, o negro reluzente dos seus músculos suados retesados pela tensão do combate... O silvo metálico e o entrechocar de duas espadas sinalizaram o contacto estabelecido, porém, ao contrário das outras vezes, Aewyre não o quebrou com o sobressalto, embora a sua mão derrapasse ligeiramente pela parede. Em vez de se retrair, o jovem cerrou os olhos com mais força e impôs o contacto, sentindo o «tendão» ranger. Houve um momento de tensão durante o qual todos os seus sentidos pareceram esticados até ao limite, após o qual tudo se normalizou... Uma batida de coração... respiração... acelerada? Sim, o coração também. Batia com força, retumbava. Excitação? Não... perigo!

Kror cuspiu ao ser esmurrado, inclinando a cara para o lado. De braço estendido e punho cerrado, Heldrada endireitou-se e ergueu o quase jactancioso queixo, provocante.

— A mente é facilmente distraída — lecionou na sua voz rouca enquanto Kror se endireitava de dentes arreganhados, sangrando do canto da boca. Estava nu à exceção de trajes menores brancos. — Uma parte dela pensa, lembra-se, cobiça, quer...

Com um rosnido, o drahreg golpeou a mulher com as costas da mão, fazendo-a cambalear dois passos para trás. Heldrada levou a mão ao lábio e viu as pontas dos dedos avermelhadas, posto o que fitou Kror através das desalinhadas madeixas do seu cabelo louro. Os dois encontravam-se nos aposentos da namuriquana, um quarto austero com uma estreita lareira, um camastralho de camponesa no chão, uma mesa com banco e uma arca.

— Quer, enquanto se lembra — continuou a mulher, aproximando-se de Kror, lambendo o ferimento na sua boca. — Mas não se lembra da dor...

Com essa afirmação, Heldrada tornou a esmurrar o drahreg, que prontamente ripostou com um novo golpe com as costas da mão, mas que a mulher interceptou e cujo ímpeto aproveitou para colocar o seu braço em posição de luxação. Kror grunhiu através dos dentes quando Heldrada lhe torceu o cotovelo e lhe cingiu o pescoço com o braço, sussurrando-lhe então ao ouvido.

— Quando há dor, quando há muita dor... — A namuriquana enfatizou com uma torção que fez com que o drahreg se pusesse em bicos de pés. — Essa parte da mente pára e a outra tapa-a.

Kror reagiu, ferrando os afiados caninos no antebraço nervudo de Heldrada, que inalou através dos dentes com a agradável dor da mordedura. O drahreg aproveitou então para a empurrar de costas contra a parede, fazendo-a bofar ao seu ouvido com o impacto e libertando-se com uma cotovelada nas costelas da namuriquana. Kror virou-se e pegou na cara de Heldrada com uma mão, encostando-a à parede com o seu corpo e fitando-a de dentes arreganhados e intensos olhos vermelhos. Havia algo na sua cabeça, algo de intrusivo, mas a mulher ocupava todos os seus sentidos e pensamentos naquele momento.

— Tapa-a e traz paz e sossego... — disse Heldrada com as bochechas comprimidas pelos dedos do drahreg. Ambos respiravam praticamente em cima um do outro, apertando os corpos suados e ofegantes, cheirando o cediço perfume dos seus poros. — Tranqüilidade...

Kror rosnou e premiu a sua boca contra a da namuriquana, apertando-lhe a cara enquanto o fazia. Os dois respiraram ruidosamente através das narinas, roçando os narizes nas suas caras até Heldrada morder o lábio superior do drahreg. Este grunhiu e a mulher enlaçou-lhe a perna com a sua, desequilibrando-o e caindo com ele sobre o camastralho, que pouco os separava do chão. Os dois debateram-se numa confusão de braços e pernas até que Kror conseguiu ficar por cima, agarrando os pulsos de Heldrada e ofegando sobre ela.

— Os deuses são sábios — comentou a mulher, fitando-o intensamente com os olhos azuis. — Ligaram a dor a muitas coisas, para nos avisar do mal que elas podem fazer.

O drahreg decidiu retribuir o favor e mordeu atrapalhadamente os lábios de Heldrada, calando-a momentaneamente enquanto lhe escapavam guturais gemidos de prazer. Foi só quando as unhas da namuriquana lhe riscaram trilhos vermelhos nas costas que o drahreg lhe libertou a boca para grunhir de dor, que deu lugar a um arroubo selvagem que o impeliu a enfiar os dedos pelo cós das apertadas calças de Heldrada e puxá-las com violência. As pálidas pernas riscadas de cicatrizes da mulher assistiram solicitamente à sua brusquidão e os dois deixaram-se cair num enleio selvagem e sensual.

— O calor, de que tanto precisamos... — ofegou a namuriquana, trincando a orelha pontuda e descaída de Kror. — Pode matar quando em excesso. A luz, tão necessária, pode queimar os olhos...

A cara do drahreg desceu pelo seu duro ventre andante abaixo, excitando-a com a vibração causada pelo seu rosnido e trincando-o com sofreguidão animalesca.

— A função da dor é proteger-nos... — disse Heldrada, esticando o queixo para trás e conduzindo a cabeça careca de Kror com ambas as mãos para baixo enquanto apartava as ancas. — Abre a mente, ignora o corpo. A dor é o teu refúgio...

Kror mordeu. A exclamação de Heldrada foi um misto de grito de dor e anélito de prazer sublime.

Devidamente vestido para o frio da noite, Aewyre descia atarantado o trilho íngreme do recinto inferior da Cidadela, tendo-lhe sido concedida passagem pelos Lamelares de guarda sem quaisquer objeções. A experiência de se ligar a Kror fora no mínimo perturbadora, mais ainda pelo que o drahreg estivera naquele momento a fazer. Não esperara uma tal partilha de sensações, uma tal intrusão na mente e no corpo do drahreg, talvez causada pelo relativo perigo que correra. Kror não o expulsara como certamente o poderia ter no mínimo tentado, pois estivera de tal forma absorto no que estava a fazer, distraído pela dor que sentia e pela confusão de sentimentos que se haviam alastrado pela sua alma, que pura e simplesmente ignorara a intrusão de Aewyre. O jovem sentira-se como um mirone depravado e quebrara então o contacto, mas ainda assim ficara com a distinta sensação de ter feito algo sujo, errado e completamente desnecessário. Pior, confirmara ainda o que o Alto Lamelar dissera, que já não estava com uma mulher há muito tempo. Demasiado tempo, desde a noite com Lhiannah em Vau do Caar.

Lhiannah...

Sentia-se tão sozinho... Um sentimento tão mais agravado pelo que experimentara ao ligar-se daquela forma a Kror. Assiòn era excelente companhia, mas havia necessidades que o laonês pura e simplesmente não podia preencher. Perdido nos seus pensamentos, Aewyre desceu com cuidado o trilho, pois já anoitecera e a neve congelada tornava-o traiçoeiro. As cerca de duas dúzias de casas da pequena comunidade estavam de portas e janelas fechadas, fumegando pacatamente das chaminés enquanto as famílias ceavam no seu interior. Uma insígnia com a silhueta de uma mulher de saias revoluteantes em baixo relevo devia ser a tal Gènnepe de que Assiòn falara; um edifício de armação de madeira, pedra calcária amarelada e telhados de quatro águas como todas as outras, embora este com dois pisos e estábulos. Aewyre deteve-se diante da entrada durante algum tempo, ouvindo os ruídos de música e folia do interior filtrados pelas adufas das janelas, por entre cujas frestas escapavam raios de luz amarelada. Estava frio, e o jovem aconchegou-se à sua capa, vaporando uma indecisa exalação. A porta abriu-se de rompante, sobressaltando-o ao expulsar dois animados convivas que tropeçavam para o exterior com os braços por cima dos ombros um do outro.

— Guna gillèdal — desejou um deles com voz arrastada ao tropeçar por Aewyre com o seu companheiro.

A porta ficou a oscilar nas suas dobradiças, até que veio um conviva a resmungar, provavelmente com o frio, pronto a fechá-la antes de ver Aewyre. Era um homem rotundo de bigodes, que lhe indicou impacientemente que entrasse com um gesto, e o jovem acabou por aceder. A taberna estava de fato bastante movimentada com a casa cheia, e Aewyre reconheceu vários Lamelares entre os convivas, que bebiam, cantavam, falavam e faziam barulho das mais variadas formas. Kraac e Rok estavam lá também, quase todos eles tapados pela rechonchuda criada sentada ao colo de ambos e que apenas deixava entrever parte das cabeças dos thuragar e os seus braços que empunhavam canecas. Havia um gaiteiro perto das escadas que tocava uma gaita com afinco e que conseguia sobrepor-se ao bulício com as notas estridentes do seu instrumento, de todo uma tarefa de pouca monta. Para sua grande surpresa, viu mesmo um burrik que participava num jogo de nervos com facas entre dedos numa mesa, mas tinha cabelos castanhos encaracolados e um ar mais velhaco que Taislin que tornava impossível confundir os dois. Aquele que devia ser o proprietário do estabelecimento atarefava-se pela sala fora com o auxílio das empregadas, que tanto serviam as mesas como se sentavam aos colos de quem por elas chamava, meneando mãos com moedas expostas. Eram vigiadas por um homem alto de basta cabeleira e bigode negros e peludos braços cruzados que estava encostado a uma trave e que reparou no jovem assim que este entrou, o que não era difícil, visto que Aewyre o excedia em estatura. Não o reconhecendo como cliente habitual, dirigiu-se prontamente a ele e saudou-o com uma palmada nas omoplatas, sobre as quais deixou ficar a mão.

— Glottik? Llorenc? — indagou.

— Eu? — indagou Aewyre, todo ele o típico estrangeiro perdido. — Hã, Glottik.

— Bom, bom! Venha! Bem-vindo à Gènnepe — convidou o homem com um largo gesto do braço, empurrando o jovem delicadamente pela ilharga. — Bom vinho de Laone, boa comida! Mulheres bonitas, hã?

Alguns convivas também tomaram nota de Aewyre, alguns colegas seus que lhe acenaram com a cabeça sem grande afeição, outros habitantes do recinto inferior que simplesmente ficaram intrigados como qualquer aldeão perante um desconhecido.

— Bem, eu queria...

— E grande! — comentou o homem, erguendo a mão em pala à altura da cabeça de Aewyre. De onde vem?

— Nolwyn.

— Nolwyn! E muito grande... mas forte sou eu, hã? — afirmou, flectindo o braço e apontando para o bojo que se revelava debaixo da camisa, dando de seguida uma pancada no braço do guerreiro com um sorriso rasgado e apontando para ele num gesto de algo forçada confraternização.

O sorriso de Aewyre não lhe chegou aos olhos, cujas sobrancelhas se limitaram a arquear-se, mas o homem não se deixou desanimar.

— Então diga-me: quer sentar? Quer beber? Quer mulher?

O jovem não respondeu, olhando antes em redor, mas o seu interlocutor tomou a liberdade de tomar o seu silêncio por acanhamento e indicou-lhe que aguardasse com a palma da mão. Aewyre não foi rápido o suficiente para o impedir de se embrenhar pelas veredas entre mesas e berrar um nome, chamando alguém com gestos bruscos da mão. Uma rapariga entre três que conversavam ao balcão virou a cabeça e obedeceu prontamente, arrastando as suas saias na direção de quem a chamara. O homem voltou para Aewyre, sorrindo de forma velhaca, e pôs-lhe uma vez mais o excessivamente confiante braço sobre os ombros, indicando a rapariga com a mão.

— Layaline — disse com um tom de voz solene como se estivesse a anunciar a chegada de uma princesa.

Layaline de princesa tinha muito pouco, tanto no andar como na postura. Estava próxima de ser roliça, com cabelos castanho-escuros pelos ombros, uma cara oval com olhos redondos delineados a fuligem e uma pequena boca de lábios carnudos. Tinha uma pele muito branca, o que se notava sobretudo nos fartos seios expostos pelo seu revelador vestido castanho decotado e realçados pelo corpete que usava, e umas sobrancelhas escuras que lembraram a Aewyre duas pequenas baratas sobre os olhos da rapariga. Não era de todo feia, e tinha um afável sorriso de dentes pequenos, mas o jovem via várias outras sentadas ao colo de convivas que já o olhavam com olhos de fome e sobre as quais a sua escolha recairia preferencialmente. O homem olhou para Aewyre de lábios franzidos e fez um grosseiro gesto com ambas as mãos em concha diante do seu peito, acenando com a cabeça, mas Layaline ignorou-o, talvez por hábito, e ergueu ligeiramente a saia à laia de mesura.

— Quero chupar a tua verga — disse com a maior naturalidade do mundo em Glottik numa voz algo ameninada, exagerando us e errei com o sotaque.

Aewyre ficou a olhar para ela de olhos bem abertos, um gesto que a rapariga tomou como lisonjeador e afetou embaraço ao virar ligeiramente a cara. Ao seu lado, o homem debatia-se para conter o riso, e o jovem apercebeu-se de que alguém obviamente se aproveitara da falta de conhecimentos lingüísticos de Layaline para a convencer de que o que dissera não passava de um educado cumprimento ou elogio. Enojado e movido por uma espécie de instinto protetor, Aewyre firmou o maxilar e deu a entender ao homem que aceitava com um aceno de cabeça, pegando na mão da rapariga.

— Bom! — alegrou-se o homem, enxotando os dois com gestos das mãos. — Vão, vão. Pode pagar depois!

O guerreiro olhou para Layaline, que lhe sorriu e o instou a avançar com um inclinar da cabeça, levando-o pela mão até às escadas, passando pelo ruidoso gaiteiro. Subidos alguns degraus, Aewyre apercebeu-se de que não fazia a mínima idéia do que estava ali a fazer. Ou pior, sabia muito bem e não queria acreditar que o estava a fazer. Layaline agarrava a saia com uma mão e puxava-o com a outra, sorrindo-lhe de cada vez que olhava para trás, obviamente satisfeita com a sua sorte. Os dois passaram por um escuro corredor cujas frestas suspiravam com sugestivos ruídos que começaram a pôr Aewyre nervoso de uma forma que este nunca julgara possível. Layaline abriu a porta daqueles que deviam ser os seus aposentos, pouco espaçosos e mobilados com o estritamente necessário. A rapariga acendeu uma candeia numa das que iluminavam o corredor e dependurou-a de um prego na parede, fechando de seguida a porta e ficando encostada a ela de mãos atrás das costas. Aewyre tirou a capa, pendurou-a num outro prego e olhou distraidamente em redor, tentando organizar os seus pensamentos enquanto fingia avaliar o quarto. Estava frio, mas o jovem calculou que essa não fosse uma grande preocupação, tendo em conta a natureza das atividades praticadas no seu interior. Deuses, o que estava ali a fazer?

— A espada — pediu a rapariga, indicando Ancalach.

Aewyre franziu o cenho, mas Layaline apontou para uma arca ao fundo do quarto e exibiu uma pequena chave que lhe pôs na mão.

— Fica escondida. Ninguém mexe.

O jovem compreendeu e foi meter a Espada dos Reis dentro da arca. O proprietário estava certamente ciente do quão ciosos os Lamelares eram das suas armas, e aparentemente tomara providências para que estes pudessem desfrutar descansadamente do seu tempo.

— Sente — disse a rapariga nas suas costas, apontando para a cama quando Aewyre se virou para ela.

— Eu... — hesitou o guerreiro.

— Sente — insistiu Layaline, sorrindo ao puxá-lo pela mão e forçando-o a sentar-se pelos ombros. — Vou agradar.

— Espera... — tentou o jovem inutilmente retardar o avanço das coisas, pois a rapariga recuou um passo e, com um sorriso treinado, começou a desapertar os cordões do seu corpete atrás das costas.

Era para aquilo que viera, não? A mulher de saias na insígnia fora indício de sobra, bem como as empregadas solícitas. Pudera sempre dizer que não, recusar-se, ir embora. Mas estava ali. Seria por causa de Kror e Heldrada? Ou do tempo que passara desde a última vez que estivera com uma mulher? E a Lhiannah?

O seu discernimento obnubilou-se ainda mais quando o vestido caiu ao chão, revelando a nudez do carnudo corpo de pele leitosa de Layaline à luz da candeia.

— Gosta? — inquiriu a rapariga, algo inibida ao descalçar os sapatos com os próprios pés dentro do vestido.

— Muito bonito — sentiu-se o jovem forçado a dizer, incapaz de negar o calor que lhe aflorou em partes que teria preferido manter sob controlo. Há quanto tempo...? Demasiado, ao que parecia.

Sempre sorridente, Layaline aproximou-se dele com passos cuidados como se tivesse medo de ferir os pequenos e alvos pés nas escabrosas tábuas do soalho. Pousou ambas as mãos sobre os ombros largos de Aewyre e os joelhos sobre a cama, sacudindo a cabeça para levar os cabelos atrás e assentar sobre as compridas pernas do jovem. As mãos de Aewyre subiram por vontade própria para a cintura cremosa da rapariga, impedidas por uma última réstia de vontade do jovem de irem mais acima. Layaline afagou-lhe as cicatrizes no lado esquerdo da face e começou a deitá-lo lentamente, empurrando-o com delicadeza pelos ombros. Lhiannah... tanto tempo...

A porta abriu-se, banhando o quarto com inoportuna luz e sombreando Aewyre com a silhueta da rapariga, que se virou sobressaltada, arfando de surpresa e cobrindo os seios com um braço. O jovem levantou ligeiramente a cabeça para o lado e viu o vulto de uma criança à porta.

— Làriana! — disse Layaline, abespinhada, saindo de cima de Aewyre e fechando a porta apressadamente ao puxar a criança para dentro.

Era uma menina que não podia ter mais que sete anos, pequena e franzina e com cabelos castanhos com franja. Segurava uma maltratada boneca de trapos com ambas as mãos à barriga, a sua cara redonda estava contraída numa careta assustada, e os seus grandes olhos mostravam bem este sentimento. Layaline acocorou-se diante dela e pegou-lhe pelos ombros, dando a idéia de a estar a repreender ao mesmo tempo que perguntava o que se passava, praticamente sussurrando. A criança queixou-se de algo, abraçando a boneca com ar assustado, e Layaline levou as mãos à cabeça, olhando de relance para Aewyre, que se apoiava de cotovelos sobre a cama, observando a cena meio deitado. Layaline sacudiu a menina ligeiramente com um tom quase aflito na voz, reforçado pela sua testa enrugada, mas esta abanou a cabeça, queixando-se de algo e apertando mais a boneca.

— ...morro com a satisfação de saber o que está reservado para a tua... para a nossd.fi/ha... — ecoaram as palavras de Hazabel na cabeça de Aewyre.

O guerreiro ergueu o tronco, olhando fascinado de boca entreaberta para a criança, que lhe trouxe a sua alegada filha à memória, as últimas palavras da odiosa Hazabel, um dos mistérios que ficara por resolver. A maldita harahan ainda conseguira deixar algum do seu bilioso veneno antes de morrer, e Aewyre não fazia idéia do que podia fazer a respeito disso. A ser verdade o que Hazabel dissera, e havia fortes probabilidades de ser, poderia ter deixado a criança em qualquer ponto de Allaryia, pois a maldita perseguira-o desde Nolwyn até Asmodeon. Não tinha como a procurar, nem o mínimo indício que lhe indicasse onde começar, razões pelas quais recalcara esse problema enquanto tinha o mais premente assunto da Essência da Lâmina a tratar. Porém, ao ver aquela menina assustada no quarto escuro em que se encontrava haviam-lhe ressurgido memórias de um sinistro cubículo em Llen onde consumara o nefando ato com a harahan e do qual teria alegadamente nascido a filha que nunca vira.

Layaline insistiu, mas a criança permanecia irredutível e a rapariga começou a levantar a voz, o que levou Aewyre a levantar-se. Esse gesto assustou Layaline, que se ergueu de rompante e praticamente lhe saltou em cima, ainda despida, agarrando-lhe o braço e implorando-lhe que não fosse.

— Não vá! Por favor, senhor, a minha filha vai-se embora!

O jovem olhou para a criança, que se encolheu contra a parede diante do seu escrutínio, e para a mãe desta, cujos olhos estavam quase a marejar lágrimas e que continuava a implorar-lhe que não saísse. Aparentemente, a filha de Layaline já lhe causara alguns problemas com clientes, e presumivelmente com os seus empregadores. Aewyre assumiu uma expressão serena, baixou-se para pegar no vestido de Layaline e entregou-lho. Esta então chorou mesmo, abanando a cabeça em desespero, mas Aewyre pousou-lhe calmamente as roupas nas mãos.

— Não te preocupes. Eu fico. Veste-te — pediu, retribuindo à incompreensão dos lacrimejantes olhos castanhos de Layaline com a franqueza dos seus e ajoelhando-se diante da criança, que se afastou um pouco mais. — Como é que ela se chama?

— A minha... filha? — fungou Layaline, agarrada às suas roupas, ao qual Aewyre murmurou afirmativamente. — Làriana.

— Làriana — sorriu Aewyre, inclinando a cabeça para o lado de forma a parecer menos intimidante à criança. — O que é que ela tem?

— Tem... tem medo, senhor. Diz que há... dròldur na cama.

A palavra não era estranha a Aewyre, que se lembrou de algo que Assiòn lhe dissera.

— Deixa cá ver: drrõuldurr vorr gnágã ouan vorr hã dlapa> — arriscou, pronunciando cada palavra individualmente e erguendo as sobrancelhas ao dizê-lo. Sentiu-se como um antroleo a ler poemas, mas a rapariga foi incapaz de conter uma risada pueril, mostrando o incisivo que lhe faltava e encolhendo a cabeça, apertando a boneca. Aewyre sorriu e tocou-lhe ao de leve na testa. — Não é, Làriana? Os monstros nessa cabecinha mordem-te se pensares neles, hem?

Layaline também riu, esfregando o nariz, e traduziu para a filha, que meneou a cabeça, envergonhada mas não mais assustada.

— Como se chama a tua boneca?

A mãe da menina traduziu, e esta mostrou-se bastante acanhada para responder, fazendo-se difícil e oscilando de um lado para o outro abraçada ao seu brinquedo. Por fim, cedeu à insistência da mãe e ao sorriso daquele homem simpático.

— Ive — disse na sua voz desdentada sem olhar diretamente para Aewyre, cobrindo de seguida a embaraçada cara com a cabeça da boneca.

— Então fazemos assim, Làriana — sugeriu o jovem, remexendo na sua bolsa e tirando dela uma moeda de ouro que avivou os já de si grandes olhos da criança. — Se fores uma menina valente e fores dormir sem medo dos drrõuldurr — outra risadinha —, amanhã de manhã a Ive vai-te dar uma moeda igual a esta, hem?

Os olhos da criança ficaram maiores ainda quando a sua mãe traduziu o conteúdo geral da frase de Aewyre, e Làriana acenou vigorosamente com a cabeça, estendendo a pequena mão para tocar no ouro. Contudo, Aewyre fechou a mão e enfiou-a dentro do bolso, abanando um negativo indicador.

— Ah-ah... só se fores uma menina valente.

Làriana fez um amuado beicinho, mas o guerreiro mostrou-se irredutível e a menina acabou por assentir, recebendo um beijo de boas-noites da sua mãe e despedindo-se de Aewyre com um aceno da diminuta mão. O jovem ficou ainda a sorrir para a porta durante algum tempo, até que se lembrou da presença de Layaline, que ainda apertava as roupas ao corpo.

— Senhor... o que quer fazer? — perguntou, nervosa uma vez mais. Para a sossegar, Aewyre foi sentar-se na cama e pediu-lhe que se vestisse, o que a rapariga acabou por fazer após hesitação e incompreensão inicial, sentando-se de seguida ao lado do guerreiro.

— Senhor? — indagou, ajeitando o cabelo.

— Deita-te só comigo — pediu Aewyre, dando o exemplo e estendendo-se na cama.

Layaline compreendeu mal e tentou pôr-se em cima dele, mas o jovem empurrou-a com delicadeza e esticou-se por cima da rapariga para soprar a candeia, mergulhando o quarto em escuridão. Aewyre teve de agarrar as mãos de Layaline quando esta tornou a não entender as suas intenções, e deitou-se simplesmente abraçado a ela, pousando a cabeça sobre o seu peito.

— Vamos só ficar assim, está bem?

O corpo da rapariga ainda estava tenso e expectante, a sua respiração continuava intranqüila, mas foi lentamente abrandando à medida que as intenções de Aewyre iam ficando claras, por muito estranhas que fossem. Hesitante, pousou a sua mão sobre a cabeça do guerreiro e começou a afagar-lhe o cabelo ao mesmo tempo que este ouvia as batidas do coração de Layaline abrandarem, adquirindo um ritmo embalador. Naquele momento e pela primeira vez em meses, Aewyre sentiu-se em paz.

Na manhã seguinte, o jovem desceu as escadas com passos decididos, tendo deixado uma moeda de ouro com instruções para que Layaline a pusesse em Ive. O proprietário limpava o estabelecimento com a ajuda do homem que fora seu anfitrião na noite anterior, e este sorriu-lhe abertamente, encostando a sua vassoura a uma trave.

— Bom dia! Gostou, sim? As mulheres de Laone não são melhores que as de Nolwyn, hem?

Aewyre dirigiu-se a ele com uma expressão ilegível na cara, retribuindo o aceno de cabeça do proprietário, pegou-lhe na mão e enterrou-lhe uma moeda na palma.

— Uma dessas por semana — disse quando os olhos do homem se arregalaram ao olhar para baixo. — Não quero que outros homens estejam com ela, entendeu?

— Mas... — O ar de espanto deu lugar a um novo sorriso rasgado. — Senhor! Gostou mesmo! Claro, claro! Só para o senhor! Se um homem quiser a Layaline, eu digo «não, ela é do senhor alto e bonito de Nolwyn»! Hein?

— Faça isso — disse o guerreiro, dirigindo-se então à porta, mas pareceu lembrar-se de algo e deteve-se, olhando para trás enquanto apertava a capa. — Ah, mais uma coisa.

— Diga, senhor! — abriu o homem os efusivos braços.

— Sabe a filha dela, a Làriana?

— Oh, essa gènnepenine outra vez! Ela também chateou o senhor? Ai, eu vou...

— Se alguém lhe bater, vai ter de se haver comigo — afirmou o guerreiro com um gume ameaçador na voz, dando uma ligeira palmadinha ao pomo de Ancalach para enfatizar.

Satisfeito com a lividez que deu lugar à expressão fanfarrona na cara do homem, Aewyre saiu porta fora, inspirando o frio matinal. Havia uma certa atividade no recinto inferior, sobretudo habitantes bem agasalhados que cortavam pequenos cepos de lenha, e o jovem começou a subida para o portão, cumprimentando alguns pelo caminho. Sentia-se algo estranho, mas... bem. Prometera a Layaline que voltaria, e fazia tenções disso, embora não para o fim que o proxeneta pensava. Era decididamente esquisito, mas além de lhe parecer a coisa certa a fazer, não podia negar que a noite o deixara com um aplacante sentimento de paz interior. Sem dúvida estranho.

«Nada que uma sessão a esfumar ghèren não resolva», pensou, olhando em frente enquanto caminhava. «Espero que o Kror ainda esteja em condições... Em nome de Assana, nunca pensei que fosse invejar um drahreg!»

 

Urlyand era um vilar remoto no Noroeste de Tanarch, uma pacata comunidade de cabanas de toros de madeira com tetos brancos de neve habitada por caçadores de peles e lenhadores cujo único contacto com o mundo exterior era feito através dos mercadores que vinham comprar os seus espólios da floresta. A chegada do cavaleiro de capa roxa e cajado montado num garrano castanho com xairel entretecido chamou portanto a imediata e exclusiva atenção de todos, trazendo cada mulher e criança à porta e aglomerando os homens em redor do visitante. O dia neviscava e estava bastante frio, mas as peles que os habitantes conservavam para consumo próprio resguardavam-nos, e caras hirsutas observaram o estranho encapuzado de barba e rabo-de-cavalo negros com estrias brancas que os olhava do cimo da sua montaria, exalando vapor debaixo do capuz. O seu Leochlan era estranho, e levou algum tempo a fazer-se entender, mas acabaram por perceber que procurava a Velha Avó e indicaram-lhe um caminho por uma vereda que atravessava o bosque. O cavaleiro agradeceu-lhes e partiu, embrenhando-se pelos pinheiros adentro e baixando ligeiramente a cabeça para se resguardar da ramagem em redor. Foi só quando começou a atravessar um arroio meio congelado entre duas ladeiras que sentiu que estava a ser seguido e olhou para trás. De fato, um grupo de homens não tão discretamente armados de machados e arcos de caça estavam a uma certa distância, detendo-se assim que o cavaleiro olhou para trás, mas sem qualquer outra tentativa de discrição. O cavaleiro julgou que seria atacado, mas os homens não avançaram nem se mexeram e optou por continuar a andar, sendo seguido. Parou umas quantas vezes e perguntou mesmo aos aldeãos se algo se passava, mas não obteve qualquer resposta e prosseguiu o seu caminho até chegar a uma cabana isolada no meio de grossos pinheiros. Era uma diminuta habitação, com chaminé fumegante, adufas fechadas e uma pilha de toros ao lado da porta.

— Velha Avó! — vozeou o cavaleiro em Glottik numa nuvem de vapor, olhando uma vez mais para trás e constatando que o bando de homens aguardava, tendo-lhe cortado a sua única via de retirada.

Passaram-se alguns momentos tensos, durante os quais o cavaleiro avaliou as suas opções para o caso de as coisas correrem mal, até que a porta foi destrancada e dela saiu uma corcovada mulher que devia ser a Velha Avó. Trazia um vestido vermelho de bainhas amarelas com uma casaca cinzenta por cima com buracos nas mangas pendentes dos quais saíam franzinos braços de apertadas mangas brancas que empunhavam um cajado nodoso. A sua cabeça era acalentada por um pesado véu carmesim atado debaixo do queixo, e tinha feições retangulares de maxilares fortes, a única força que lhe restava no seu rosto mirrado que estava grotescamente mascarado de branco com manchas vermelhas nos malares e lábios gretados pintados da mesma cor.

— Quem se aproxima com barreiras erguidas e claras más intenções? — perguntou a mulher em aceitável Glottik numa voz de cana rachada.

— Sou Allumno da Gema Vermelha — apresentou-se o mago. — As barreiras não se destinam a vós, Velha Avó, mas aos homens armados que me perseguem.

A mulher fitou-o com olhos argutos, e Allumno reparou que o seu cajado nodoso tinha um ônix negro encastoado na ponta, o que dava a entender que não se tratava de uma feiticeira de combate. Ao contrário do rubi no cajado de Allumno, que se destinava a protegê-lo de ataques e contra o mal, a pedra da mulher servia para lhe conferir maior energia espiritual, o que a demarcava como um contemplativa e que se confirmou quando o mago sentiu a velha sondar-lhe as defesas que erguera em seu redor. A perturbação na Essência era mínima, pois embora estivesse a ser acedida por dois magos, a mulher fê-lo em doses ínfimas, limitando-se a tentear as defesas de Allumno, mas ainda assim os dois sentiram um ligeiro zumbido nos ouvidos com a interação.

— Ela tem poder, pupilo — advertiu-o a voz de Zoryan dentro da sua cabeça. — Acautela-te.

O mago não resistiu de forma a não criar hostilidade antes de sequer falar com ela, mas ficou algo desagradado ao sentir a sonda penetrar mais fundo do que esperara, o que contudo pareceu satisfazer a mulher, que assentiu com a cabeça e mandou os homens embora com um gesto da mão e um palavrear cerrado. Estes foram, relutantes, cada um enviando um último olhar de advertência ao mago antes de se retirar.

— Perdoe-os, Allumno da Gema Vermelha — disse a mulher, sorrindo com lábios carmesins e indicando-lhe com a mão que entrasse. — São muito protetores comigo, e não estão acostumados a visitas. Sou Strelyanika, a Velha Avó.

O mago agradeceu com um aceno da cabeça e desmontou, prendendo as pernas do seu cavalo com uma peia, cobrindo-o com uma manta, afagando-lhe o focinho e aceitando o convite da mulher. O interior da cabana era escuro e desarrumado, e tinha uma autêntica parafernália de objetos místicos e contemplativos além de um odor a ervas no ar. Uma lareira de pedra quadrada aquecia a cabana, e num dos seus lados estava apoiada uma escadaria de madeira que levava a um catre no seu topo. Allumno deduziu que era uma solução prática para dormir quente, mas não se conseguia a imaginar a dormir ali com receio de cair durante a noite. Havia algo que se mexia no interior com pequenos olhos brilhantes, mas o mago não lhe deu grande atenção e sentou-se numa das duas cadeiras postadas diante da lareira, ao lado da qual apoiou o seu cajado. Strelyanika fez o mesmo e os dois ficaram a olhar um para o outro até que a criatura da qual Allumno se dera conta trepou para o regaço da velha, revelando ser uma marta. Strelyanika afagou-lhe a mancha amarelo-alaranjada do pescoço sem tirar os olhos de Allumno, que julgou ser o seu dever como visitante anunciar as suas intenções. Porém, a velha antecipou-se-lhe ao ver que ia falar.

— Teremos esta conversa a sós, Allumno da Gema Vermelha, ou o vosso amigo far-nos-á companhia?

— Ela sentiu-me — apercebeu-se Zoryan.

— E uma contemplativa, mestre... — recordou-lhe Allumno, tentando não parecer demasiado surpreso e decidindo ir diretamente ao assunto. — É justo que o saibais, Strelyanika. Só sairei daqui convencido da vossa integridade ou convosco morta.

O que o mago já fora forçado a fazer deixara-o relativamente dessensibilizado, e os seus olhos espelhavam na perfeição a sua vontade e capacidade de levar a cabo aquilo que dizia. A velha arregalou as sobrancelhas, fingindo surpresa e continuando a afagar o pescoço da marta.

— Então talvez não devesse ter mandado os rapazes embora...

— Sois uma contemplativa, pelo que vejo — comentou Allumno, indicando a casa com um gesto largo da mão. — Decerto vos haveis apercebido de que algo se passou nos últimos tempos.

— O regresso d’O Flagelo, porventura?

O mago nutou.

— Sim, Allumno da Gema Vermelha, estou ciente do que se passou, embora não saiba porquê nem como. Se viestes ameaçar-me a vida em busca de respostas, então perdeis o vosso tempo...

— Não, Strelyanika. A única resposta que procuro não está relacionada com O Anátema. Não diretamente. — O mago ajeitou as costas à cadeira. — Permita-me explicar...

Os grossos cepos que haviam ardido na lareira quando da chegada do mago pouco mais eram que brasido quando Allumno terminou o seu relato. Strelyanika servira-lhes chá entretanto, e ambos seguraram taças de madeira com ambas as mãos durante os longos momentos que se seguiram ao fim da narração. A marta adormecera ao colo da mulher, cobrindo o focinho com a felpuda cauda e perfeitamente alheia ao peso das revelações que tinham sido feitas durante o seu sono.

— Mas o Flagício... deixou o rapaz partir, sozinho? Para onde? — perguntou Strelyanika, incrédula.

— O rapaz é a nossa única esperança contra O Flagelo, e o que ele tem a fazer terá de o fazer sozinho; ninguém o pode ajudar — afirmou o mago categoricamente, evitando propositadamente responder à pergunta. — A única forma que eu tenho de o ajudar é minimizar as ameaças com as quais ele e Allaryia terão de lidar, entre as quais se incluem magos corruptíveis. Decerto está recordada do que sucedeu na Guerra da Hecatombe?

Strelyanika lançou-lhe um olhar pleno de significado.

— Pelo que aconteceu na Guerra da Hecatombe é que eu tive de me refugiar nesta região remota, Allumno da Gema Vermelha. Todos os que empregavam a Palavra foram perseguidos, mesmo o Triunvirato teve...

— Porque muitos cederam às tentações d’O Flagelo. Foi um deles, Strelyanika? Cederia às suas sedutoras palavras agora?

— Isso, Allumno, Brusco e repentino. As primeiras reações são as mais importantes, não te esqueças — recordou-lhe Zoryan.

Ao contrário do que o mago esperara, o olhar da velha amainou então, e os lábios grotescamente pintados desta formaram um sorriso.

— Entendo. E quem vos nomeou juiz e executor?

— A necessidade. Estaria disposta a fazê-lo? — ripostou Allumno.

— Tenho demasiada humildade para o fazer...

— Já matei cinco magos, Strelyanika. Não me agrada, mas estou mais que disposto a fazê-lo outra vez se tiver de o fazer. Diga-me: cederia às tentações d’O Bastardo?

— E que me poderia ele oferecer, Allumno da Gema Vermelha? — inquiriu a mulher, abrindo as mãos. — Poder? Já não tenho essas ambições. Vida eterna como Fadada? Já estou perra que chegue...

— Não deprecie o assunto — advertiu Allumno com um tom ameaçador na voz que coincidiu com um estalo na lareira.

Strelyanika sorriu-lhe de forma quase maternal antes de beber mais um gole de chá e exclamou para dentro desta através do nariz, parecendo lembrar-se de algo. Os seus modos levianos começavam a abespinhar o mago, mas antes que este pudesse fazer algo a respeito, Strelyanika cruzou os braços sobre a barriga e recostou-se confortavelmente à cadeira.

— Contou-me uma história; deixe-me retribuir-lhe o favor — disse, estalando os lábios. — Não é tão longa como a sua. Na verdade, até é bastante curta, mas creio que será esclarecedora.

Allumno franziu o cenho, mas se aquela era uma evasão, então deixaria a velha desmascarar-se.

— O norte de Tanarch é praticamente vetado ao abandono pelas cidades a sul, sempre o foi, e as suas comunidades são exploradas de forma desavergonhada. Os mercadores trazem-lhes bens essenciais à sobrevivência como centeio para pão e em troca levam peles que vendem por dez vezes o valor daquilo de que prescindiram. Numa dessas aldeias começaram a adoecer pessoas após uma transação, homens, mulheres e crianças cujas peles ruborizavam e das quais irrompiam bolhas. Pouco depois surgiam manchas negras, e por fim necrose.

— Ergotismo — adivinhou Allumno.

— Precisamente. Mas aquela gente não fazia idéia do que se tratava, culparam os espíritos, os deuses e mesmo uns aos outros. Um dos habitantes, um lenhador alto e entrançado, decidiu que a melhor forma de se proteger a si e à sua família era matar os doentes para que mais ninguém fosse acometido.

O mago Semicerrou os olhos.

— Dito e feito, matou os pobres desgraçados que haviam adoecido à machadada, e ninguém o impediu por medo dele e da doença. Alguns dias depois, também a sua pele começou a ruborizar. Como provavelmente já haveis deduzido, a culpa foi do centeio com cravagem que os mercadores venderam à aldeia, livrando-se de mercadoria que de outra forma se teria perdido e lucrando ainda com isso. Aquela pobre gente não tinha como o saber, e a aldeia foi considerada amaldiçoada e acabou por ser abandonada.

Os dois fitaram-se mutuamente, metade dos seus semblantes ruborizada pelo brasido na lareira à semelhança dos doentes de ergotismo. Strelyanika tinha um vago olhar de contemplativa que lhe dava um ar de quem sabia sempre algo mais que o seu interlocutor, o que naquelas circunstâncias em nada favorecia o discernimento do mago.

— O que pretende ilustrar com essa história?

— Que nem sempre a culpa reside onde nós julgamos — esclareceu a Velha Avó. — Que, antes de olhar para outros, devemos olhar para nós mesmos. Que você também não é imune, Allumno da Gema Vermelha.

Outro longo silêncio. Strelyanika olhou para o brasido, e o mago sentiu uma ligeira perturbação quando a mulher fez uso de pura Essência para atiçar as brasas.

— Sabe da sombra no Pilar? — perguntou o mago por fim.

— A perturbação negra no Pilar? Sim. Há largos anos que estou ciente dela — disse a mulher, afagando a cabeça da marta, que a erguera de sobressalto com as brasas atiçadas. —Julgo que se deverá às almas dos Fadados, mas não tenho a certeza. De qualquer forma, recomendo-lhe cautela, Allumno da Gema Vermelha. O Flagelo regressou, e não sei até que ponto a sombra no Pilar terá sido a responsável pelos atos de alguns magos durante a Guerra da Hecatombe.

— E uma probabilidade — admitiu o mago. — Mas para pegar na vossa história, o problema neste caso não reside no centeio envenenado, mas em quem o come. As gentes dessa aldeia eram ignorantes. Os nossos pares não o são, e eu estou a encarregar-me de elucidar todos os que porventura o possam ser.

Allumno apoiou os cotovelos sobre os joelhos e inclinou-se para a frente, prendendo os olhos de Strelyanika e atraindo a atenção da marta ao colo desta.

— O que eles escolherem fazer com a informação que lhes dou ditará a sua sorte, se comerão ou não o centeio. Matarei todos os que afirmarem que sim. Qual a vossa escolha, Strelyanika, a Velha Avó?

— Quer matar-me? — indagou a maga com naturalidade.

— Se entender que vai comer o centeio caso a oportunidade se lhe apresente... sim.

A mulher suspirou pesarosamente, quebrando a tensão.

— Não me ouviu, Allumno da Gema Vermelha — afirmou. — É poderoso e sábio para a idade que tem, mas ainda jovem. — O rubor das brasas ocultou o irritado corar do mago. — Julgo que a sua sorte dependerá igualmente do que escolher fazer com a informação que lhe dei. Quanto a mim? Continuarei a fazer o que sempre fiz, a viver os anos que me restam e a ajudar a boa gente de Urlyand. Já lhe dei a minha resposta. Mate-me se assim o entender; não sou uma combatente e não me saberia opor-lhe.

— Não é inteiramente verdade o que ela diz, pupilo — avisou Zoryan. Allumno contemplou um pouco mais a Velha Avó, que o olhava serenamente enquanto afagava a marta, algo caricata com a pintura branca na sua face de bolas vermelhas nos malares, mas fazendo jus ao seu cognome com a sabedoria de largos anos que nela transparecia. O mago acabou por se levantar e pegou no seu cajado, dirigindo-se à porta.

— Não deseja pernoitar aqui, Allumno da Gema Vermelha? — convidou Strelyanika como tivesse passado uma tarde de conversa trivial com o mago. — Vai ser uma noite fria, e estou certa de que a sua montaria precisa de um certo repouso após tão longas jornadas...

Allumno nem sequer hesitou, saindo porta fora e montando apressadamente a sua montaria, que reclamou como se tivesse ouvido a proposta da Velha Avó e que foi golpeada com calcanhares nos flancos pelo seu atrevimento. Contrariado, o garrano trotou para longe da cabana, embora mantivesse um avisado passo lento devido às cadentes condições de luz e terreno traiçoeiro.

— Allumno, o que foi? — perguntou Zoryan.

O mago cobriu a cabeça com o seu capuz, mantendo-a baixa para evitar os ramos e gravetos que lhe esbofeteavam a cara.

— Nada, mestre. Dela não temos nada a temer.

— Foi essa a impressão que deu, mas bem sabes como as aparências podem enganar. Não deves ser tão...

— E que quer o mestre que eu faça? Que mate todos? Era mais fácil, agora que penso nisso! Pelo menos poupava-me às conversas e escusava de ver as suas caras ao saberem que os vou matar!

— Allumno...

— Que me diz, mestre? Vamos só procurar magos pelo Pilar, e eu mato-os! Não, melhor ainda, prendemos logo as almas deles! Falar para quê? Todos são potencialmente suspeitos, todos podem ceder, qualquer um pode ser corrompido mesmo que me diga que gosta de ver flores a desabrochar e crianças a crescer!

O garrano quebrou a camada de gelo do arroio com os cascos, chapinhando água antes de subir pela ladeira.

— Allumno, estás a falar da sombra no Pilar? — O silêncio do seu pupilo foi resposta quanto bastasse. — Ouve, tu tens-me a mim. Eu resguardo-te de quaisquer influências nefastas; os outros dependem apenas deles mesmos, e isso pode não ser suficiente. E por isso que preciso de ti para os avaliar, é por isso que...

— Mestre... — interrompeu o mago, coisa que raramente fazia. — Se não se importa, preciso de pensar, de refletir um pouco.

— Sozinho.

Allumno chegou à aldeia outra vez, vendo as portas e janelas fechadas. Os ruídos do seu cavalo projetaram umas quantas cabeças curiosas para o exterior, mas o mago não lhes deu atenção e continuou a olhar em frente.

— Como queiras, pupilo. Estou aqui, se precisares de mim... — acedeu Zoryan, saindo da sua mente e voltando a imergir no Pilar.

O mago suspirou de alívio. O seu mestre não estava ciente disso, mas a sua presença na sua cabeça era extenuante a longo prazo, como se tivesse duas consciências a ditarem-lhe o que fazer. Especialmente agora que se tornara mais assertivo. O arquimago temia que o passado se repetisse, arrependia-se de ter sido demasiado permissivo com os eventos em seu redor como antes o fora. Allumno temia pelo seu futuro, temia aquilo em que se estava a tornar, e a sua convicção de que estava a fazer a coisa acertada era abalada numa base quase diária. Já deixara de ter fé nas suas acções, limitava-se a prosseguir em frente, passando de um mago para o outro, levando a sua incumbida função a cabo com insensíveis rigor e precisão. Tanto quanto sabia, eram todos susceptíveis, nenhum estava a salvo. Talvez nem mesmo ele. Era em Aewyre que depositava as suas esperanças.

«Só espero que ao menos tenha chegado são e salvo ao seu destino. E que consiga dominar a Essência da hâmina. Nada disto fará qualquer diferença se ele falhar...»

 

O bradagà viera gélido e uivante do norte, forte o suficiente para fazer um homem recuar enquanto este andava e dispersando a neve que se acumulara nos telhados. Todos os treinos passaram a ser efetuados no interior do baluarte e os habitantes do recinto inferior evitavam sair das suas casas, o que os privava de uma bela visão. O ar seco e frio dispersara as nuvens, deixando o céu claro e tinto de um azul incrivelmente luminoso no qual o sol brilhava quase cegante, mas ninguém estava disposto a expor-se às dilacerantes rabanadas do bradagà para o ver. A temperatura descera de forma significativa e os incessantes aulidos do vento haviam deixado os habitantes da Cidadela tensos e irritáveis, causando-lhes enxaquecas devido à falta de sono. Já houvera várias rixas e pequenos conflitos entre os Lamelares, incidentes de somenos importância ocasionados por ânimos exaltados de homens privados de um sono repousante. Nada de grave acontecera e todos se limitavam a prosseguir com as suas vidas condicionadas à espera de que o vento partisse e a rotina pudesse voltar ao normal.

Todos menos Aewyre e Kror, que se haviam recusado a prescindir do seu treino no círculo de guerreiros e que haviam forçado Rok, Kraac e o Custódio a saírem ao frio e vento durante os últimos dias para tratarem dos rituais necessários. Os thuragar estavam de extraordinário mau humor, mas o Alto Lamelar assim o ordenara e os dois obedeciam, embora se vingassem a espetar os dedos nas costelas do humano e do drahreg e os arranhassem sempre que possível enquanto lhes pintavam os torsos. O Custódio desempenhava o seu dever sem se queixar, embora nunca se pronunciasse de qualquer forma a não ser para proferir frases aleatórias em Llorenc. Acusava sempre o entendimento das palavras de Aewyre e Kror com acenos da cabeça encapuzada, mas respondia sempre na sua língua. Rok e Kraac resmungavam e insultavam em Garogar por sua vez, o que, misturado à ocasional frase em Glottik dos dois guerreiros, resultava numa cacofonia tal, que o grupo acabava por preferir manter-se em silêncio. Naquela noite, humano e drahreg estavam como sempre de costas um para o outro enquanto eram pintados, e o Custódio aguardava com as mãos apoiadas sobre a sua vara de ferro, rosto sombreado pelo capuz e corpo perfeitamente imóvel. A gruta era iluminada pela bruxuleante luz dos fogaréus, que destacava as formações no teto semelhantes a espadas sobrepostas a apontarem para baixo, e as caveiras calcificadas pareciam fitar os dois contendores como velhas amigas desejosas de os reencontrarem. Aewyre olhava em redor, já familiarizado com o intrincado labirinto de combate da gruta, as suas vias e segredos, e reconhecendo cortes e entalhes nas estalagmites por si feitos. As sessões tinham sido proveitosas nos últimos dias, e o «tendão» curvava-se cada vez mais à sua vontade e à de Kror, embora estivesse longe de ceder o domínio exclusivo a um ou a outro, retendo sempre parte de si num dos Portadores mesmo enquanto o outro o usava em combate. O livro de poemas que Assiòn encontrara revelara também ser mais interessante do que aparentara, pois havia de fato bastantes semelhanças entre os dois protagonistas e Aewyre e Kror. Embora bastante embelezadas pelo texto, as peripécias de ambos eram reveladoras e condiziam com muito do que o jovem até então em parte já concluíra, o que o motivara sobremaneira. Assiòn prometera-lhe que iria continuar com a sua leitura enquanto os seus olhos lho permitissem, embora nunca se cansasse de enfatizar que começava a perder a vista por culpa do guerreiro. O Alto Lamelar provara ser a coisa mais próxima de um amigo que Aewyre encontrara na Cidadela da Lâmina, e os dois conversavam freqüentemente durante a noite e nos intervalos de leitura, falando de assuntos menos sérios enquanto o bradagà uivava no exterior. Quando o jovem dera por isso, Assiòn acabara por assumir um papel quase paternal, e, embora a idéia lhe fizesse uma certa confusão, não podia negar que se sentia seguro na presença do simpático velho e que este acabara por se tornar um pilar sólido no qual Aewyre se podia apoiar sempre que sentia necessidade. Além do Alto Lamelar, o jovem também tinha ido freqüentemente visitar Layaline e a filha desta, falando com ela e brincando com a criança, para a qual mandara fazer um vestido no alfaiate do recinto inferior. Todos já viam Layaline como a meretriz manteúda do jovem, mas os dois nunca haviam em ocasião alguma feito nada de comprometedor, embora tivessem por mais que uma vez partilhado os lençóis. Layaline estranhara de início, mas passara a ver os seus encontros com Aewyre como as visitas de um amigo e não tivera dificuldades em tratá-lo como tal. Sabia agora que a rapariga era a filha órfã de um cônego de Gorfanna que mantivera uma capela para a deusa da agricultura perto das quintas do vale. A sua mãe morrera após o parto, e o seu pai não sobrevivera ao seu décimo terceiro aniversário. A cônega que o viera substituir mandara-a para a Cidadela, onde arranjara trabalho na Gènnepe, no qual uma noite irresponsável com Micolà (que Aewyre apelidara de «o Proxeneta») teve como resultado o inconveniente nascimento de Làriana. O Proxeneta tomara a criança sob a sua duvidosa proteção, impondo como condição que Layaline permanecesse na Gènnepe, ao que a rapariga acordara, embora soubesse que aquele não era ambiente onde se criar uma criança. Fosse como fosse, Aewyre dava-se bem com Layaline, e as noites que passava com a rapariga ajudavam-no a descomprimir, sempre com uma pontada de culpa na consciência devido a Lhiannah, mas razoavelmente certo de que não estava a fazer nada de errado. Por sua vez, Kror tornara-se cada vez mais distante fora dos treinos, que passaram a ser as únicas alturas em que o guerreiro o via além das refeições. Mesmo a sua cama no dormitório estava vazia a maior parte das vezes. Heldrada tinha-lhe mesmo dado à volta à cabeça, ou ele a ela, mas em todo o caso os dois eram o par mais falado na Cidadela da Lâmina, mesmo no recinto inferior, onde já se começava a falar de drahregzinhos louros para daqui a pouco tempo. Além disso, havia uma certa vagueza distante nos olhos vermelhos de Kror que Aewyre estranhava, pois esta destoava da máscara de concentração que o drahreg usara desde o seu primeiro dia na Cidadela da Lâmina. Já por várias vezes fora visto a andar sozinho pelo adarve, olhando para norte. Como o vento dos últimos dias desaconselhava semelhantes contemplações, Kror limitava-se a espreitar pelas janelas da Cidadela, calado e imóvel e alheio às pessoas que por ele passavam, reagindo apenas à aproximação de Aewyre. Por essa razão, o jovem achou que aquele momento era tão bom como qualquer outro para averiguar.

— Kror?

— Sim?

— Está quieto, drahreg estúpido — resmoneou Kraac.

— Vocês estejam mas é calados e pintem, sim? — retorquiu Aewyre algo rispidamente para as suas costas.

Não olhou para ver a reação de Kraac, mas os pequenos olhos escuros de Rok ergueram-se para o fitar com ar pouco amigável. Aewyre retribuiu, e o thuragar acabou por trincar pedras entredentes numa diatribe que provavelmente envolvia a sua mãe. Sabia que as suas vidas podiam depender das runas que os dois neles estavam a pintar, mas também já se apercebera ao longo das várias sessões que a sua pintura era mais uma arte que uma ciência exata, e que não requeria metade do cuidado que os thuragar prescreviam.

— Ouve, tu tens andado estranho ultimamente — continuou, tendo apesar de tudo o cuidado de não mexer demasiado o tronco. — Não digo o que fazes com a Heldrada, mas já te viram várias vezes sozinho a olhar pela janela. Passa-se alguma coisa?

Tal como esperara, Kror não respondeu de imediato e os dois foram pincelados por grossos dedos durante largos momentos até Aewyre insistir.

— Kror, se alguma coisa se passa, eu quero...

— Eu sinto-O — limitou-se o drahreg a dizer.

Foi a vez de Aewyre hesitar, e Rok franziu o cenho diante da estranha conversa.

— Sentes o quê?

— Ele chama-me — explicou Kror. — Para norte. A Sua voz chama-me para norte.

— Quem? O Kereks?

— Tu sabes quem Ele é.

Silêncio sepulcral na gruta enquanto o bradagà uivava no exterior. Os thuragar aprovaram e prosseguiram com o seu trabalho.

— Ele... chama-te?

— Chama-nos a todos, não é só a mim. Sinto-o.

— E então? — quis Aewyre saber, com os orbes encostados aos cantos dos seus olhos como se quisesse olhar para trás.

— Não comeces já a transpirar, humano — disse Rok.

— Então o quê?

— O que é que... vais fazer?

— Nada — afirmou Kror despreocupadamente. — O Kerhex e a Sassiras’s ensinaram-me que posso escolher. Vou ficar aqui.

«Graças aos deuses, ao menos servem para alguma coisa além de me complicar a vida, aqueles dois», pensou o guerreiro, aliviado. «Está a chamar os drahregs, o desgraçado. Já não temos muito mais tempo...»

Os dois calaram-se então e os thuragar deram uns retoques finais nos símbolos pintados nas suas caras.

— Pronto, já está — disse Kraac, erguendo-se quase ao mesmo tempo que o seu irmão.

— Já se podem magoar — secundou Rok. — Se morrerem é porque andaram a falar. Nós avisamos.

— Obrigado — agradeceu Aewyre distraidamente, levantando-se a par de Kror e pegando em Ancalach pela bainha.

— Ah, é verdade — lembrou-se Kraac enquanto arrumava a sua taça de tinta. — O Assiòn disse-me para te dizer uma coisa, humano.

— O quê?

— Ele diz que... leu uma coisa. Quer falar contigo depois. Importante. Um livro.

— Disse, foi? — O jovem ainda estava abalado pela revelação de Kror, mas o que Kraac dizia podia ser ainda mais importante. Teria o Alto Lamelar descoberto algo?

— Não me ouviste, humano estúpido? Vai falar com ele depois — repetiu o thuragar, resmungando de seguida com o irmão enquanto ambos se retiravam para as escadas.

O Custódio olhou para eles das sombras do seu capuz, acenou com a cabeça e subiu também ele pela escadaria a passos corcovados, demarcando cada passada sua com uma batida da ponta da vara de ferro. Aewyre tirou Ancalach da sua bainha e atirou esta para o chão, empunhando a Espada dos Reis com ambas as mãos ao exalar em preparação para o combate. Kror brandiu os alfanges e preparou-se ele também para a fantasmal arremetida que viria assim que o Custódio dissesse as palavras, que nem mesmo o vento no exterior conseguiu abafar quando o homem bateu três vezes com a vara no chão.

— Derives, dòtàes emes!

A portada de ferro forjado fechou-se com o habitual estrépito, e pouco depois as já familiares vozes sussurrantes fizeram-se ouvir, acompanhadas pelo silvar e entrechocar de lâminas. Caveiras começaram a exalar a sua névoa pelas órbitas, cavidades nasais e por debaixo dos maxilares, criando um nebuloso cobertor no irregular piso da gruta. Os ghèren não tardaram a emergir da imemorial névoa, empunhando as suas longas espadas de fantasmagórico bronze e escudos oblongos. Havia uns que Aewyre já reconhecia e aos quais já dera inclusive nomes. Entre os primeiros sete daquela sessão encontravam-se o Cornudo, cujo elmo globular ostentava cornos, e o Canhoto, que empunhava a sua espada com a mão esquerda. O fato de não reconhecer os outros apenas atestava a ancianidade da gruta; quantos guerreiros haviam morrido ali?

— Então vamos lá, rapazes... — disse o jovem, que estava bem mais interessado em terminar a sessão para ir logo ver o que Assiòn descobrira. — Prepara-te, Kror. Hoje vamos tentar...

O ferro forjado da portada gemeu quando esta foi aberta, sobressaltando os dois guerreiros, que viraram bruscamente as cabeças na direção da escadaria. Os guerreiros ghèren fizeram o mesmo, embora não evidenciassem a mesma surpresa que Aewyre e Kror ao verem o Custódio descer a passo apressado as escadas.

— Alàan! Alàan! Vè sete epàvr! — gritou este, arregaçando a falda da cogula com uma mão enquanto descia a um passo mais apressado que o que seria de esperar na sua idade.

Demasiado admirado para se aperceber do verdadeiro perigo que a situação representava, Aewyre limitou-se a olhar de Ancalach empunhada enquanto o velho deixava a vara de ferro cair pelas escadas abaixo e afundar-se na névoa, correndo com um vigor que o jovem não lhe teria atribuído e estendendo os braços na direção dos ghèren.

— Alàan! Vè sete epàvr! — insistiu, a sua voz de pieira plena de um angustiado arrependimento. Os fantasmas fitavam-no, barbas e tranças diáfanas a abanarem à névoa, ilegíveis olhos vítreos e silenciosos pela primeira vez.

— Custódio, o que é que se passa? — quis Aewyre saber, subitamente nervoso. — O que é que está a fazer?

— Alàan! — gritou o homem, indicando a porta com uma mão maculada de velhas manchas castanhas. A sua cara continuava sombreada, mas os lábios chupados da sua boca tremiam, e os cantos desta estavam pungentemente baixos.

— Aewyre! — apercebeu-se Kror por fim. — A névoa...!

Tarde demais, os dois viram a neblina rastejar pela escadaria acima, enquanto o Custódio continuava a gesticular como um pastor arrependido às suas ovelhas. Os ghèren avançaram, deslizando pela névoa e começando a murmurar no seu antigo dialeto laonês.

— Custódio, não! — gritou Aewyre, virando-se para os fantasmas e atingindo um escudo oblongo. Os ghèren odiavam quem lhes perturbara o sono durante décadas, usando-os como animais para a prática de combate, era essa parte da força que os movia e impelia a atacar além dos seus já de si belicosos instintos. Os Lamelares não estavam devidamente protegidos pelas runas e colares de cornalinas. Se eles saíssem... — Kror, vai para a escadaria!

O drahreg assim fez, e o jovem esfumou um ghèren com um revés, mas os guerreiros fantasmagóricos estavam a ignorá-lo e avançaram, inexoráveis, num murmúrio em crescendo.

— Alàan! — repetiu o Custódio quando Kror passou por ele e se postou na base da escadaria. Os ghèren brandiram então as armas e investiram, soltando imprecações.

— Cuidado! — gritou Aewyre, varando um pelas costas e reduzindo-o a uma nuvem de sepulcral fumo. Dois fantasmas brotaram em seu redor, dirigindo-se eles também para a escadaria.

— Aia...! — O Custódio foi atravessado por várias lâminas fantasmagóricas que o mataram sem verter sangue. O seu corpo esfacelado caiu ao chão, ficando imerso na névoa, e os ghèren passaram por cima dele.

Kror atingiu a espada de um com um alfange e estocou-lhe a cara com o outro, fazendo com que um ghèren brotasse nas suas costas. Aewyre passou a espada pelas de outro, e dois adicionais surgiram atrás do drahreg antes que o jovem tomasse consciência do seu erro.

— Não os mates, Kror! — apercebeu-se Aewyre. — Eles vêm da névoa, estão a ir para trás de ti! Defende-te, não os mates!

Todavia, a sua advertência veio demasiado tarde, pois Kror esfumou outros dois antes de recuar um passo e notar que já tinha uma fila de ghèren a subirem as escadas nas suas costas.

— Pela espada cruenta de Gilgethan, não os podemos deixar sair! — bradou o jovem, ceifando para a esquerda e para a direita no seu pânico e apenas incrementando a fila de fantasmas ao fazê-lo.

A névoa fantasmal chegou ao exterior e o forte vento dispersou-a, permitindo-lhe espalhar-se mais depressa e aumentando a mobilidade dos guerreiros ghèren que a montavam. Estes não tiveram dúvidas quanto ao caminho a seguir e as pontas das suas espadas orientaram a revolta névoa para a escadaria no afloramento de rocha que levava ao baluarte. Aewyre e Kror irromperam da entrada para a gruta, cortando os diáfanos calcanhares de um ghèren e fazendo nascer outros tantos na faminta neblina. Viram Rok e Kraac a lutarem na escadaria do afloramento e correram na sua direção, esfumando ghèren pelo caminho. As violentas rajadas de vento desequilibraram ambos, mas ainda assim conseguiram perseguir os fantasmas de forma errática.

— Ajudem-nos! — pediu Kraac, martelando aflitamente os fantasmas que tentavam passar por ele. O vento uivava furiosamente pelo pátio, arrancando-lhe a voz da garganta e espalhando-a como bem entendia.

— Um homem! Entrou no baluarte! — berrou Rok, que combatia nas costas do seu irmão, tentando manter afastados os que haviam despontado da névoa por trás.

Aewyre e Kror perseguiram o bando fantasmagórico pela escadaria acima, desbastando a sua retaguarda como duas furiosas foices. Porém, a névoa passou pelas frestas da porta fechada, e nem Aewyre, nem Kror, nem os dois thuragar se aperceberam de que estavam a permitir aos ghèren transporem a porta a cada um que esfumavam.

— Um homem? — gritou Aewyre, ceifando em redor em largos arcos e permitindo a Kror passar-lhe à frente, pois os alfanges deste seriam mais úteis na apertada escadaria.

— Alto! Parecia um mago! Disse que a culpa não era nossa e...! — Kraac calou-se, empalado por uma lança fantasmal.

O seu irmão precipitou-se para cima dos adversários, martelando fumo antes de ele também ser varado pelas espadas dos ghèren. Kror avançou por entre eles em fúria, trilhando fumo com os alfanges, mas quando por fim se deu conta do que estava a fazer, já só restavam cinco fantasmas no exterior, que o atacaram assim que deu mostras de hesitação. Por falta de algo melhor para fazer, o drahreg esfumou-os aos cinco, ignorando os gritos de Aewyre e atirando-se de seguida de ombro contra a porta.

— Está fechada! — rosnou.

Aewyre tirou-o do caminho e tentou ele também com o seu peso superior, embatendo violentamente contra a madeira sem grande efeito. Os dois ficaram então à porta, ambos de tronco nu e expostos à fúria do vento, enquanto no interior começavam os primeiros ruídos de uma escaramuça.

— Eles não estão protegidos! — repetiu Aewyre, aflito, chutando a porta antes de lhe ocorrer uma idéia.

Recuou um passo, empunhou Ancalach com ambas as mãos de ponta virada para a porta e estocou com força. Contudo, uma rajada de vento desequilibrou-o e a Espada dos Reis ficou com a ponta espetada na tábua ao lado da fresta que pretendera atravessar.

— O que estás a fazer? — gritou Kror ao seu lado para se sobrepor aos aulidos do vento.

O guerreiro ignorou-o e tornou a tentar, enterrando uma vez mais a ponta da espada em madeira. Rosnando de frustração, Aewyre tornou a arrancar Ancalach com um sacão e concentrou-se tanto quanto lhe foi possível, dadas as circunstâncias, franzindo as sobrancelhas e tentando manter o gume de Ancalach alinhado na sua visão. Na sua terceira tentativa enfiou a lâmina pela fresta adentro, vencendo a resistência e ficando enterrada pela metade. O guerreiro puxou-a desajeitadamente para cima com movimentos bruscos até esta encalhar na tranca e virou-se então de costas para a porta, ajoelhando-se e pondo o ombro debaixo do gume, ainda a empunhar a espada com ambas as mãos.

— Põe o teu alfange de lado em cima do meu ombro.

— O quê?

— Põe-no, porra! — vociferou Aewyre de curtos cabelos bafejados pelo vento, contraindo-se instintivamente por dentro para não permitir ao «tendão» causar tensões indevidas.

Kror fitou-o durante instantes, ajustando os pés para se equilibrar diante de uma rajada, mas acabou por fazer como o humano dissera. Aewyre estremeceu ligeiramente ao sentir o aço frio da arma daquele que no fundo era seu adversário pousar-lhe de lado sobre o ombro com o coto virado para o seu pescoço, mas fez uso do seu arduamente adquirido domínio sobre o «tendão» para ignorar a sensação. Com o alfange a impedir que o gume de Ancalach lhe trinchasse o ombro, o guerreiro puxou o punho da espada para baixo, servindo-se da sua espádua como eixo e erguendo a tranca com esse movimento de alavanca. Aewyre levantou-se então, compensou um desequilíbrio causado por uma rabanada, e desferiu um possante pontapé para trás na porta, que embateu violentamente contra a parede. Os dois correram pela galeria adentro, Aewyre arrancou o resto de Ancalach da fresta e passaram pelo cadáver do porteiro meio imerso na névoa, subindo por uma outra escadaria em busca da origem dos ruídos de luta que ouviam ao fundo. A ante-sala na qual entraram tinha três corpos por cima dos quais passaram, virando rapidamente para a sala principal dominada por um forte pilar sobre o qual as abóbadas assentavam e na qual viram outros tantos tombados, mãos e costas à deriva num oceano nebuloso. Quaisquer pessoas que pudessem ter estado na cozinha e no refeitório pelos quais passaram já estavam mortas, e a névoa assassina já subira pela escada em caracol acima. Era nos dormitórios e nas salas de treino que o mais acirrado combate se travava, e Aewyre e Kror galgavam degraus, temendo o pior.

Quando chegaram ao cimo, foi o caos. Lamelares desprevenidos combatiam a horda fantasmagórica, atravessando portas a correr, gritando e espadeirando nos corredores iluminados por tochas numa sinfonia bélica de aço sibilante e gumes retinintes com os aulidos do vento como ruído de fundo no exterior. Aewyre e Kror juntaram-se à escaramuça, dois guerreiros de troncos nus e pintados de azul a fustigarem os ghèren que apanhavam pelo caminho, enchendo o ar com mofento fumo com cheiro a cinzas molhadas e verdete que se colava ao céu-da-boca e irritava o nariz. Os fantasmas gritavam no seu anciano dialeto, erguendo vozes de vingança e retribuição enquanto se abatiam sobre aqueles que consideravam os seus opressores, enxameando em redor de Lamelares que abatiam com lâminas incruentas. Undífluas reverberações da Essência da Lâmina cortavam o ar, riscando as paredes com sons metálicos e esfumando ghèren como névoa dissipada por fortes rajadas de vento. Porém, os fantasmas pareciam não ter fim, brotando em números superiores do nublado oceano em redor a cada companheiro que era esfumado, velhos guerreiros de barbas e armas arcaicas cujo coro fantasmal entoava um velho cântico de guerra enquanto atacavam, e matavam, e morriam, e nasciam. Os Lamelares gritavam em várias línguas, homens louros, morenos, ruivos, altos e baixos que lutavam pelas suas vidas, espadeirando freneticamente as autênticas nuvens de fumo que já os rodeavam e das quais sabiam que mais adversários iriam surgir. Mais à frente, perto das escadas, Aewyre viu um homem falar sozinho de joelhos, abanando a cabeça e com a arma a seu lado. Os ghèren abateram-se sobre ele antes que o jovem se pudesse sequer admirar, mas não tardou a ver outros que largavam as suas espadas e praticamente se deixavam matar pelos adversários. Alguns falaram em Glottik e Aewyre apercebeu-se de palavras desconexas que perdiam perdão e admitiam culpa antes de serem silenciados por lâminas fantasmagóricas.

— Em nome de todos os deuses, o que é que se está a passar aqui? — berrou o jovem, foiçando ghèren em desespero.

Kror aparou com os alfanges cruzados uma reverberação perdida que por pouco não avistara, cortando de seguida um fantasma com um golpe para trás e deslizando a lâmina pela ilharga de outro que passou por ele.

— O que é que fazemos? — perguntou o drahreg, aparando ainda uma espadeirada e passando ambos os alfanges pelo fumarento ventre de um adversário.

— Raios, continuamos a matá-los, que mais havemos de fazer? — desesperou Aewyre, quebrando uma lâmina fantasmal com um possante altabaixo e atravessando o diáfano elmo de um ghèren.

— Alguma vez hão de acabar... Não, espera! — O jovem girou bruscamente em si e esfumou outro com um golpe transversal. — O Alto Lamelar! Vamos chamar o Alto Lamelar!

Ninguém comentou a sua sugestão nem se opôs a ela, pelo que o guerreiro desatou a correr para a escadaria com revérberos cegos a cortarem o ar à sua volta, irrompendo como um voraz peixe por um fumarento cardume adentro, girando em si quando necessário e desbastando tudo à sua volta com furiosas oscilações de Ancalach. Kror foi atrás dele, dançando freneticamente com os seus alfanges e tirando o máximo proveito do fato de os ghèren parecerem estar mais interessados nos Lamelares desprovidos de runas protetoras que neles. Aewyre irrompeu por outra sala de treino adentro, na qual ficou perplexo ao ver vários homens de armas no chão ou a largarem-nas, oferecendo-se praticamente às lâminas de bronze fantasmal que por eles passavam, fazendo-os estremecer como se tivessem sido atingidos e cair sem um único ferimento. Outros lutavam, mas mesmo entre esses havia alguns que começavam a hesitar, como se algo os estivesse a remoer por dentro e lhes tolhesse a vontade de viver. Diacolo encontrava-se entre eles, e recuava de espada empunhada, meneando a cabeça e falando sozinho na sua língua enquanto um grupo de ghèren se acercava dele com espadas famintas.

— Mestre de Armas! — gritou Aewyre, trilhando um sulco de fumo num campo diáfano. — Lute! Precisamos de ajuda!

Se o ouvira, Diacolo não o deu a entender e bateu com as costas na parede, deixando a espada cair ao chão e continuando a abanar a cabeça, erguendo as mãos numa súplica dirigida a alguém que lá não se encontrava. Os ghèren avançaram, implacáveis e murmurando uma cacofonia vingativa. Aewyre e Kror abateram-se sobre eles, gritando os dois e falqueando-os como frágeis abetos brancos que se esfumaram como traças secas, postando-se de seguida de costas para o sathmaro.

— Mestre de Armas, precisamos de si! Por favor, lute! — rogou-lhe Aewyre, cortando para a esquerda e para a direita enquanto Kror rodopiava os seus alfanges a um ritmo alucinado.

As costas de Diacolo desceram pela parede e o homem deixou-se cair de joelhos, levando as mãos à cara e continuando a lamentar-se na sua língua, que era suficientemente aparentada com o Glottik para que percebesse que falava do seu pai e desapontamento e desilusão e falhanço. Os dois guerreiros não se puderam dar ao luxo de falar, pois abateu-se sobre eles uma vaga de fantasmas determinados a matarem Diacolo. Aewyre e Kror tossiam com a nuvem de sepulcral fumo que já haviam criado à sua frente, o que tornava cada vez mais difícil distinguir as diáfanas silhuetas dos ghèren e lhes custou alguns gélidos ferimentos em golpes fortuitos.

— Mestre de armas! — gritou Aewyre.

A única coisa que ouviu a meio da dissonância de vozes fantasmagóricas, ruídos de chofre vítreo e fumarentas dissoluções foi um silvo molhado e um grunhido nas suas costas. O jovem desferiu um possante golpe em arco à sua frente e permitiu-se um instante para olhar para trás de relance.

— Não!

Diacolo enfiara a espada na própria barriga, e estava encolhido numa posição fetal, deitado de lado no chão com a sangrenta e afilada ponta a despontar-lhe da ilharga. Com a exceção de cinco fantasmas mais entusiasmados, os ghèren deixaram de os atacar e devolveram as suas atenções aos outros Lamelares na sala. Movidos pela raiva e pelo desespero, Aewyre e Kror despacharam-nos sem qualquer dificuldade, olhando para a nebulosa morte e combate em redor para ponderarem as suas opções. O caminho para a escadaria que dava ao segundo piso do baluarte estava relativamente desobstruído e foi por ele que os dois seguiram, embora Kror se detivesse a meio, esfumando três ghèren com o mesmo número de golpes em rápida sucessão.

— Heldrada!

Aewyre olhou para o lado e viu que a mulher desbastava o seu caminho através dos ghèren com a sua foice de guerra, dirigindo-se ela também para a escadaria. Os dois correram a acudi-la, e Aewyre foi forçado a desviar com Ancalach uma reverberação da mulher, que o reteve, e Kror avançou, dispersando os fantasmas no seu caminho.

— Heldrada, ajuda-nos! — pediu o drahreg.

A única resposta da namuriquana foi outra reverberação que esfumou os adversários num largo arco em seu redor e que por pouco não cortou Kror em dois, forçando-o a apará-la com ambos os alfanges.

— Saiam do meu caminho! — gritou a mulher, empalando uma nuvem de fumo e passando por Kror a correr. — Ele é meu!

Aewyre e o drahreg ficaram momentaneamente surpresos, mas o tempo não parou por eles e viram-se forçados a lutar para evitarem ferimentos potencialmente debilitantes, além de que não tinham como saber o que lhes poderia acontecer caso «morressem» fora da gruta.

— Heldrada! — tornou Kror a gritar quando esta se precipitou sobre um grupo de ghèren que tentou bloquear-lhe a passagem.

A mulher rosnava e grunhia enquanto segava os fantasmas, girando a foice de guerra e com a trança a serpentear-lhe loucamente da cabeça. Kror veio em seu auxílio, mas Heldrada estava totalmente alheia à sua segurança e por várias vezes quase o atingiu com golpes destinados aos ghèren. Aewyre arremeteu com um grito, colhendo o seu quinhão com Ancalach, e os três cedo ficaram a suster uma vaga de ghèren, mantendo uma distância segura uns dos outros.

— Mestre de Armas, temos de chamar o Alto Lamelar! — meio disse meio grunhiu o jovem com um golpe. — Ele pode correr...!

— Ele é meu! — rugiu Heldrada, propagando mais um desenfreado revérbero pela sala fora, atingindo as costas de um Lamelar, que foi prontamente tragado pelos fantasmas. — Ele vai pagar!

A namuriquana retirou-se e começou a correr pelas escadas acima, e embora Aewyre estivesse tão confuso e surpreso como os outros Lamelares, sentiu um frio no estômago com toda a situação. O Custódio a libertar os ghèren por cujo aprisionamento era em parte responsável, os Lamelares a deixarem-se matar pelos adversários, Diacolo a culpar-se pelo que o pai lhe fizera e a tomar a sua própria vida... Não compreendia o que o estava a causar, não sabia que espécie de loucura se abatera sobre a Cidadela da Lâmina, mas apercebeu-se de repente a que Heldrada se referia.

«Deuses, foi o Assiòn que fez dela o que é... Ela vai tentar matá-lo!» O pensamento custou-lhe uma álgida incisão na coxa, e Aewyre grunhiu ao talhar o oponente em fumo. — Kror, ela quer matar o Alto Lamelar! — gritou, recuando ele também para as escadas. — Anda!

O drahreg acutilou uns últimos ghèren antes de seguir Aewyre pelas escadas acima, alarmado pelas palavras do guerreiro sem contudo compreender a magnitude da ameaça. A névoa ainda não subira aquela escadaria em particular, mas nem por isso os dois guerreiros abrandaram o passo, sobretudo Aewyre, que pulava degraus como um colérico veado, seguindo os passos de Heldrada. Quando chegaram ao segundo piso, perseguiu a mulher ao longo do corredor com Kror no seu encalço.

— Heldrada! — gritou o drahreg, mas a mulher nem sequer olhou para trás, empunhando a sua foice de guerra perto da lâmina e com esta apontada para baixo.

Aewyre leu-lhe a singular determinação nos movimentos e o pânico bombeou-lhe as pernas, lançando-o numa desenfreada correria. Assim que estava à distância certa, derrapou pelo chão e desferiu um golpe de tesoura nas pernas de Heldrada, derrubando-a de forma espalhafatosa. Sentiu o impacto dos ossos da mulher contra o chão e o estardalhaço da foice de guerra a cair, mas levantou-se rapidamente e empunhou Ancalach com ambas as mãos. A mulher fez o mesmo, pegando na haste da sua arma e apontando-a na direção do jovem.

— Heldrada, o que estás a fazer? — exigiu Kror saber, postando-se ofegante ao lado do humano e mantendo os alfanges propositadamente baixos.

A Mestre de Armas fitou-os aos dois, ofegando ela também de narinas frementes, dentes cerrados e pernas flectidas.

— Ele matou a minha mãe e o meu pai — rosnou de forma quase gutural, crispando os dedos na arma. — Queimou a minha aldeia, matou os meus amigos. Mandou-me violar. Vou matá-lo por isso.

— Não vais fazer coisa nenhuma — afirmou Aewyre sem qualquer compreensão na voz que noutras circunstâncias talvez acharia apropriada. — Juro que te mato se tentares.

Mesmo Kror olhou de arregalados olhos vermelhos para o jovem com o peso da sua ameaça, e Heldrada pareceu levá-lo a sério, pois adotou uma posição de combate com graça felina. Flectiu a perna direita e esticou ligeiramente a esquerda para trás, inclinou o torso ligeiramente para a frente e enristou a foice de guerra com ambas as mãos. O corredor em que se encontravam era espaçoso, mesmo para um combate com uma arma de haste, e a luz das tochas reluzia no aço despido.

— Aewyre...? — duvidou Kror, embora os seus alfanges se erguessem lentamente.

— Esta cabra maluca quer matar o Alto Lamelar. Mas vai ter de passar por mim primeiro.

Heldrada atacou então com um rosnido, cortando o ar à sua frente, visando Kror com uma reverberação. O drahreg espadeirou o ataque, mas a força deste desequilibrou-o e fê-lo cambalear uns passos para trás. A namuriquana estocou então em frente, e Aewyre aparou o que julgava ser o primeiro golpe, mas este revelou ser apenas uma finta e a foice de guerra retraiu-se e veio de uma direção diferente, forçando o jovem a baixar a lâmina impulsivamente para o lado de forma a desviar a haste. O flanco da mulher ficou convidativamente exposto e Aewyre tentou cobrir a distância que os separava com um passo e trazendo Ancalach acima para um golpe oblíquo, mas Heldrada convidara o ataque. Avançou ela também com um passo lateral, trazendo a lâmina da foice bruscamente atrás e concutindo o jovem na nuca com a ponta da haste, atirando-o contra a parede. Heldrada girou a arma sobre a cabeça e desferiu um golpe transversal para manter Kror afastado, mas o drahreg desviou-se deste, avançando com o intuito de ficar fora do alcance da foice e de alguma forma imobilizar a mulher. Contudo, o movimento da namuriquana não correspondeu às suas expectativas e esta, em vez de tentar ganhar distância, trouxe simplesmente a haste acima por entre as pernas do drahreg. Kror grunhiu e curvou-se, e Heldrada estocou para trás com a foice, obrigando Aewyre a um desvio no último instante para evitar ficar varado contra a parede, e chutou o drahreg na cara, derrubando-o. O jovem tentou golpear a haste da sua arma, mas a mulher retraiu-a a tempo e retomou o ataque. Kror estava no chão agarrado às suas partes baixas; não atacara com verdadeiro intuito e pagara por isso, e agora Aewyre defrontava a Mestre de Armas sozinho. Todas as suas lições com Daveanorn a respeito de combater armas de haste vieram-lhe numa torrente à memória: nunca tentar igualar o alcance baixando a espada, cuidado com as mãos, atenção às fintas das estocadas, fazer uso da guarda pendente e baixa, guarda próxima só quando em contacto com a haste... Aewyre mal teve tempo para se lembrar de tudo. Heldrada começou a assediá-lo com fulminantes estocadas e mortíferas talhadas que ameaçavam cortar-lhe os joelhos ao mesmo tempo que o obrigavam a ter sempre uma eventual estocada em conta. A Essência da Lâmina movia a mulher, forçando Aewyre a depender totalmente dos seus instintos para se defender da relampejante rapidez dos seus golpes. Uma estocada às suas pernas obrigou o jovem a baixar Ancalach para a aparar, mas o ataque fora deliberado e libertou-se rapidamente da lâmina, subindo num semicírculo dirigido à sua garganta. Aewyre teve de puxar a cabeça bruscamente para trás, sentindo o chofre da foice perto do nariz, e foi forçado a trazer a lâmina rapidamente acima para desviar a estocada que se lhe seguiu, tentando desesperadamente compensar o movimento na sua desequilibrada posição antes que viesse o quarto ataque. Este veio, embora dirigido à sua arma, atingindo-a por dentro de lado num golpe semicircular e tentando empurrá-la. Aewyre resistiu antes de se aperceber do seu crasso erro e de ver a foice arrojar-se em frente, cortando-lhe o ombro esquerdo apenas porque o jovem teve os reflexos para tirar a garganta do caminho. O sacão de Heldrada fez o gume da foice morder o músculo do seu ombro mais fundo ainda, e o jovem não teve sequer tempo de entrar em pânico com o braço praticamente inutilizado antes que a foice viesse dirigida à sua barriga. Foi então que o «tendão» estalou, chicoteando-lhe o braço para cima com uma rapidez da qual o jovem não se sabia capaz e desviando o golpe mortal com Ancalach. O guerreiro girou em si para penetrar na defesa de Heldrada adentro e cobrir a distância que os separava, mas a sua subseqüente oscilação limitou-se a cortar o ar, pois a mulher dera um passo atrás durante o seu movimento e deixara a haste deslizar-lhe para trás nas mãos para poder desferir uma cutilada próxima. Aewyre foi forçado a um violento bloqueio, apanhando a foice com os copos de Ancalach e grunhindo com o impacto sentido pelos seus ossos. O jovem tentou torcer os copos para reter a lâmina e aproximar-se mais, mas a sua mão por si só não teve força para a pressão necessária e Heldrada libertou a arma, recuando um passo. Aewyre sentiu o «tendão» ser contestado e viu que Kror atacava, tentando ele também fazer uso da Essência da Lâmina e conseguindo apenas deixá-la entre ambos. A namuriquana sentiu o ataque do drahreg e girou a foice de guerra numa dança de passos para melhor se posicionar entre os dois adversários. Aewyre e Kror tentaram coordenar os seus ataques, procurando manter Heldrada próxima das paredes para que a comprida arma desta a atrapalhasse, mas a Essência da Lâmina permitia-lhe uma visão panorâmica do terreno que a rodeava e tal não chegou a acontecer. O humano tentava manter a atenção da arma centrada em si para que o drahreg se pudesse aproximar no estilo de luta que lhe era vantajoso, mas havia foice de guerra que bastasse para os dois. Aewyre e Kror tinham de se haver tanto com a lâmina como com a ponta da haste, e Heldrada parecia ler os movimentos de ambos como se estes anunciassem os golpes antes de os desferirem, tal como numa sessão de treino. Enquanto combatessem e estivessem expostos a igual perigo, nenhum dos dois poderia ter acesso à Essência da Lâmina, e todos os seus esforços estavam mais orientados para a sobrevivência que propriamente para o ataque, pois era a namuriquana quem ditava o ritmo do combate.

— Kror, nós os dois não podemos...! — tentou futilmente avisar, pois era evidente que algo se passava entre o drahreg e Heldrada, o que estava a tolher o discernimento de Kror.

A namuriquana não pareceu ter esse tipo de problemas, o que evidenciou ao desviar Ancalach com a haste, percutindo Aewyre de seguida na boca com a ponta, o que fez o jovem cuspir sangue e cambalear. Kror veio por trás, mas Heldrada estocou para baixo na direção da sua barriga e forçou o drahreg a desviar-se, trazendo de seguida a arma em arco sobre a sua cabeça, deslizando a perna direita para trás e desferindo um longo golpe baixo que cortou os ligamentos do joelho esquerdo de Kror. O drahreg gritou, deixando-se cair de ombro contra a parede e apoiando-se somente sobre a outra perna. A namuriquana olhou bruscamente para trás, chicoteando a trança, e viu Aewyre atordoado mas prestes a ripostar. Heldrada puxou a perna estendida e girou a foice de guerra uma vez mais, criando uma reverberação para a qual o jovem não estava preparado. O que aconteceu deu-se numa questão de frações de instante, durante um dos quais o afiado gume do revérbero quebrou a pele nua do guerreiro, vertendo sangue. No seguinte, os braços de Aewyre, que já haviam estado em movimento, trouxeram Ancalach o resto do caminho para cima, e a Espada dos Reis embateu com a afiada força que cortava o ar e a carne de quem o empunhava. No terceiro, uma linha de sangue assomou ao torso de Aewyre e os seus pés ergueram-se ligeiramente do chão ao mesmo tempo que os seus músculos davam os primeiros impulsos para contorcer o corpo de forma a acompanhar o golpe. Quando o tempo voltou ao normal, Aewyre foi impelido pelo ar pela força do ataque e pelo ímpeto da sua defesa, que fez com que a reverberação talhasse um agudo risco na parede, e caiu de lado ao chão, esparrinhando o sulco na parede com o seu sangue.

Heldrada endireitou-se, olhando para Kror e para Aewyre, para Kror uma última vez, e recomeçou a correr pelo corredor fora. O guerreiro permitira-se um breve momento de choque devido ao quão próximo estivera da morte e porque sentira que a Mestre de Armas cessara o seu ataque, mas a urgência obrigou-o a despertar e a levantar-se. Um longo corte diagonal percorria o seu torso, escorrendo estrias vermelhas pelos contornos dos seus músculos abaixo, sangue do talho no seu ombro esquerdo pingava-lhe dos dedos e o canto direito da sua boca estava rasgado, mas não tinha tempo para se preocupar com os ferimentos. Kror estava encostado à parede e agarrado ao seu joelho sangrento de olhos e dentes cerrados com a dor. Aewyre não pensou sequer nas implicações do debilitante ferimento do drahreg e acocorou-se diante dele, pegando-lhe pelos ombros.

— Kror, eu preciso da Essência da Lâmina! — sussurrou em tom urgente, sacudindo-o ligeiramente.

O drahreg entreabriu os olhos negros marejados de lágrimas, mas apenas conseguiu arquejar. O guerreiro ponderou usar o alfange do azigoth para influenciar a decisão de Kror, mas não havia tempo. Teria de acreditar que o drahreg ainda queria tanto a Essência da Lâmina como ele.

— Eu vou atrás dela, Kror. Sem a Essência da Lâmina, ela mata-me. Concentra-te, por favor! — pediu o jovem, erguendo-se e crispando os dedos em Ancalach ao virar-lhe as costas.

— Não... a mates! — ouviu Kror dizer atrás de si. Aewyre limitou-se a olhar por cima do ombro.

— Ela mata-me. Lembra-te disso. Preciso da Essência da Lâmina — afirmou prosaicamente.

Recomeçou a correr a fundo. Ouviu uma porta abrir-se ao virar da esquina do corredor e as batidas do seu coração aceleraram ainda mais.

A voz de Assiòn. Contornou a esquina, a porta para o escritório do Alto Lamelar estava aberta. Via-se a lareira, mas a mesa estava do lado esquerdo. A ponta da haste surgiu na horizontal. Não! As suas pernas não se mexiam mais do que aquilo, quando o que o jovem queria era que a que se encontrava atrás já estivesse à frente e vice-versa. A ponta da haste avançou. Não! Não! Não!

— NÃO! — gritou Aewyre ao saltar para dentro do escritório, colidindo com a porta entreaberta e fazendo-a bater na parede.

Heldrada estava de um lado da mesa e Assiòn do outro. A namuriquana empunhava a foice de guerra com ambas as mãos e a lâmina estava parcialmente enterrada na barriga do Alto Lamelar, cuja cara denotava dor, mas não surpresa. Havia um livro aberto sobre a mesa, e o laonês ainda tinha as lunetas numa das mãos, que estavam ligeiramente estendidas na direção de Heldrada como que a dar-lhe as boas-vindas ou a chamá-la para os seus braços. Os seus olhos verde-acastanhados viraram-se para Aewyre, e mesmo o descaído se arregalou, como se a sua chegada fosse uma surpresa indesejada. Lá fora ouviam-se os aulidos do bradagà. A cabeça de Heldrada virou-se para si, vergastando o ombro com a trança, e a foice saiu do estômago do Alto Lamelar, pingando sangue sobre o livro que estivera a ler e deixando-lhe uma terrível ferida aberta na barriga. Lívido, o jovem sentiu o «tendão» ranger quando Heldrada aprestou lentamente a sua cruenta foice de guerra, ou talvez fosse ele quem estava a ver tudo com um distanciamento que tornava as coisas mais lentas. Fosse como fosse, algo estalou dentro de Aewyre. Toda a raiva que entretanto secara em amargos caroços no seu sangue eclodiu, jorrando livre pelo seu sangue uma vez mais e pegando fogo, um fogo roaz que lhe ruborizou as feições e lhe incendiou os músculos. Um fogo que queimou o «tendão», mas que ao mesmo tempo o atraiu como a uma traça para o fogo. O vigor acerado fortificou-lhe o corpo ferido, a sua perspectiva afunilou-se, centrando-se totalmente em Heldrada como a única ameaça presente, e a sala em redor revelou-se-lhe como uma armadilha mortal na qual a poderia reter e eliminá-la.

Com um silencioso grito de fúria, Aewyre investiu de espada ao alto, empunhando-a com uma mão apenas. Heldrada aproveitou de imediato a abertura criada, mas o radical acutilamento da percepção do jovem permitiu-lhe ter a noção perfeita de quando trazer a lâmina abaixo e a rapidez necessária para o fazer a tempo de evitar ser empalado. O gume de Ancalach atingiu a haste, mas esta não ofereceu suficiente resistência para ser cortada devido à rapidez do golpe, e a mulher puxou-a de volta para recuperar. Aewyre pressionou, forçando-a a recuar, e Heldrada tentou sem grande sucesso afastá-lo com golpes e fintas laterais. Os dois andaram à volta da sala, derrubando uma cadeira pelo caminho, e o jovem aproximou-se perigosamente, o que forçou a namuriquana a usar a ponta da haste, que Aewyre agarrou com a mão do braço ferido. Não tinha força suficiente nele para contestar o controlo da arma, mas fez com que Heldrada hesitasse o suficiente para arriscar um golpe dirigido à sua mão, pois ser-lhe-ia impossível usar a foice de guerra com uma mão apenas. A mulher retirou-a a tempo, e Ancalach mordeu apenas a haste, arrancando-lhe apenas uma grossa lasca devido ao ângulo do qual a atingiu. Ciente da sua posição vulnerável, Heldrada puxou a haste e atingiu Aewyre no flanco com um pontapé, libertando a arma cuja foice trouxe de imediato num arco diagonal para talhar o pescoço do adversário. Este penetrou pelo golpe adentro, retendo-o com uma parada de Ancalach, e girou em si para desferir um murro com as costas da mão esquerda em Heldrada, atingindo-a em cheio na cara. A mulher cambaleou para trás e Aewyre deu seguimento com uma estocada dirigida ao seu ventre, mas esta recuperou a tempo de a interceptar com a haste, revirando-a de forma a desequilibrar o jovem. Aewyre retirou-a, desafiando a Mestre de Armas a avançar, o que esta fez, estocando o ar onde antes estivera a cabeça do jovem, que a trouxe atrás e recuou um passo, posicionando a espada numa guarda baixa. Heldrada tornou a estocar e Aewyre ergueu a lâmina, desviando o fraco golpe para o lado e resistindo à tentação de investir em frente, que fora o que a mulher pretendera com a sua finta para o varar com o segundo golpe, que o jovem desviou para a sua esquerda, trazendo então Ancalach num arco para cima, num altabaixo que visava a cabeça de Heldrada. A namuriquana teve de se baixar, e o golpe cortou-lhe a trança. Antes que pudesse agredir Aewyre com a haste, este esmurrou-a para baixo com a livre mão esquerda, que, apesar de fraca, atingiu a mulher em cheio, fazendo-a tropeçar outro passo para trás. O jovem tornou a pressionar, mas dessa vez Heldrada exagerara o seu desequilíbrio e levou a perna esquerda atrás, desenhando um golpe oblíquo para decapitar o adversário. Aewyre viu que se expusera demasiado e foi praticamente forçado a deixar-se cair para a frente de forma a levar apenas com a haste da foice de guerra no ombro, o que o posicionou na perfeição para um pontapé na cara que o derrubou. O guerreiro caiu sobre a carpete de vaca laonesa, e Heldrada golpeou o ar para baixo, criando uma afiada reverberação de ar distorcido que entalhou o seu caminho pelas tábuas do soalho na direção da abertura entre as suas pernas, ameaçando cortá-lo ao meio. Aewyre impulsionou-as para o seu lado, cravou a ponta de Ancalach numa das tábuas e cerrou os dentes ao retininte impacto. Sem perder tempo, rebolou para trás e recebeu uma segunda reverberação com um golpe ascendente, cortando-a ao meio com um estrídulo ruído. Heldrada enviou uma terceira na diagonal, revertendo de seguida o golpe para estocar o vazio e enviar um afiado filamento de ar atrás da reverberação. O jovem quebrou a reverberação tal como fizera com a segunda, mas não foi suficientemente rápido para desviar a estocada com um golpe descendente, e esta ainda lhe lacerou a coxa direita. Aewyre fez por não a sentir e baixou-se para retribuir as reverberações de Heldrada com uma sua, que ondeou pelo ar rente ao chão na direção dos pés da mulher. Esta pulou para o evitar, oscilando a foice no ar em resposta e enviando outro revérbero, só que os seus pés não haviam sido o verdadeiro alvo do jovem, mas sim os de um dos lados da estante atrás dela. Estes espedaçaram-se e o móvel cambou, caindo de seguida para a frente, despejando livros sobre Heldrada. Aewyre quebrou o afiado revérbero e a mulher foi forçada a desviar-se para não ser esmagada pela estante, mas esta ainda a atingiu no ombro direito ao cair com grande estrépito. O jovem carregou então, aproveitando o aturdimento da adversária, que recuperou só a tempo de não ser decapitada. Estava demasiado próxima da parede nas suas costas e à sua esquerda, pelo que pulou para cima da estante caída e tentou manter Aewyre afastado com estocadas. O guerreiro sentia o «tendão» debater-se, esperneando como uma criança histérica, mas a sua raiva e o controlo que entretanto sobre ele adquirira refrearam-no, transferindo toda a sua tensão para os membros e golpes do guerreiro. Heldrada tropeçou numa das prateleiras e estatelou-se no chão, virando-se imediatamente e erguendo a foice para empalar Aewyre, mas este desviou a arma e ergueu Ancalach de ponta para baixo, pronto para varar a mulher ao chão. Esta atingiu-o porém no estômago com um rápido pontapé e chutou a cara do jovem, fazendo-o colidir de ombro contra a outra estante, despejando livros. A Mestre de Armas ergueu-se apressadamente, e, ainda assim, foi só a tempo de impedir que Aewyre chegasse à distância proibida. O guerreiro estava possesso, nada parecia pará-lo. Heldrada estocava e ele desviava. Golpeava e ele fintava-a. Fintava e ele batia-lhe na foice. Estocada, parada, golpe, recuo, estocada, finta, golpe, desvio. Um altabaixo, o jovem desviou-se e a foice estraçalhou uma cadeira. Um golpe com a ponta da vara de raspão na cabeça, e Ancalach lambeu-lhe afiadamente a coxa com um golpe longo. Um entrechocar de lâminas, contestação forçosa enquanto ambos tentavam desviar a arma um do outro, Aewyre avançava, Heldrada recuava.

Um desequilíbrio surgiu por fim quando o guerreiro teve a espada pressionada para baixo pela foice após provocar um ataque e Heldrada revirou a ponta, empurrando-a para cima para desequilibrar Aewyre. Este fluiu com o movimento e recuou um passo para compensar, julgando-se a uma distância segura, mas a namuriquana empurrou a haste e deixou-a deslizar pela sua mão comandante que orientava a foice para a garganta exposta de Aewyre, estendendo significativamente o alcance da estocada. O movimento tê-lo-ia provavelmente apanhado, mas o lanho que infligira à haste deixara um recesso farpado no qual a mão de Heldrada se cravou, rasgando-lhe a palma e travando o golpe a meio. Aewyre recuperou a posição e posicionou-se numa guarda pendente antes de arremeter, enquanto Heldrada cerrou os dentes ao ajustar o seu manuseio da arma para desferir uma estocada que nada mais era que uma previsível e desesperada finta que o jovem facilmente afastou com um mero movimento da lâmina. Diante da verdadeira estocada, recuou ligeiramente a perna dianteira e fez uma rápida transição para a guarda média, desviando a foice e encalhando-a nos copos de Ancalach. Antes que Heldrada a pudesse recolher, Aewyre empurrou a arma para cima, passou o braço esquerdo por baixo do direito e agarrou a haste. A namuriquana puxou-a e estava numa posição mais forte que a do guerreiro para contestar o controlo da arma, mas este deixou-se simplesmente ir, deslizando o pé direito na diagonal, levando Ancalach atrás e desferindo um poderoso golpe na haste. Esta foi decepada com um ruído seco pelo gume da Espada dos Reis, e a imediata reação de pânico de Heldrada foi percutir a nuca de Aewyre com a outra metade da haste, derrubando-o e aproveitando o seu breve momento atordoado para pegar na metade que continha a foice e ponderar as suas hipóteses. O jovem abanou a cabeça e preparou-se para se erguer, estava entre ela e a porta, e a sua arma estava quebrada. Fugiu, subindo a escadaria que ia dar ao topo do torreão.

Aewyre levantou-se de Ancalach empunhada, pronto a ir em seu encalço, mas a visão de Assiòn reteve-o. O Alto Lamelar estava sentado na sua cadeira, olhando para nenhures com um braço estendido a seu lado e outro sobre a sangrenta ferida na barriga, que se elevava ao ritmo de uma lenta respiração e que escorria sangue para uma poça no chão. Sabendo que havia apenas um acesso ao topo da torre, o jovem contornou a mesa e ajoelhou-se ao lado do laonês, pegando-lhe na frouxa mão pendente.

— Alto Lamelar... Assiòn! — palavreou, ofegante e ainda agarrado a uma réstia de esperança, que agarrava com tanta força como apertava a mão do moribundo.

— Aewyre... — pronunciou este, lambendo os lábios secos ao olhar para o jovem. — O que...

— Não se mexa, não fale! Eu vou só... — Olhou para a porta da escadaria e para Assiòn alternadamente. — Kror! — gritou para a porta que ia dar ao corredor. — Kror, pede ajuda! O Alto Lamelar está a morrer!

— O livro... — praticamente segredou o homem, indicando o tomo manchado por gotas de sangue. — Fèdac... fala de...

— Assiòn, não fale, por favor! Kror!

— A Heldrada... não lhe faças mal... por favor — pediu o laonês, fitando-o intensamente mesmo com o olho descaído. — Eu... mereci... retribuição... ferro e fogo... o círculo... fechou-se por fim.

— Assiòn! Oh, deuses, não! Outra vez não! Não ele também!

— O livro, Aewyre... na estrofe... lê... a...

A mão perdeu a força. Aewyre reviveu Aemer-Anoth toda ela uma vez mais. A mão do seu pai que caía, inanimada. A mão de Assiòn que amolecia. O seu mundo tornou a ruir. O seu estômago pareceu cair num poço sem fundo. O seu coração esfriou e esqueceu-se de uma batida. A Cidadela da Lâmina do seu lado, os segredos da Essência da Lâmina, a amizade de Assiòn, o próprio Assiòn... tudo perdido, esfarelado como as cinzas de madeira carbonizada sopradas pelo vento. Aemer-Anoth. A Cidadela da Lâmina. Morte. Perda. Tragédia.

— Aewyre...? — grunhiu Kror, descaindo sobre a ombreira da porta. — A Hei...? — calou-se ao ver o que sucedera.

O jovem ergueu-se sem responder ao drahreg, empunhou a espada, fechou os olhos do Alto Lamelar com os dedos sangrentos do braço do ombro ferido, passou por detrás da cadeira e correu para a escadaria que dava ao topo do torreão.

— Aewyre!

Não ouviu a voz de Kror. Galgou os degraus e só ouvia as batidas do seu coração, que tornara a bombear, e estas reboavam-lhe pela cabeça, parecendo ecoar uma palavra que nela se insinuara e que lhe latejava nas têmporas.

Morte.

A porta ao fundo estava aberta, exalando o forte vento que soprava no exterior e uivando pelas escadas abaixo na sua direção. Os instintos avivados de Aewyre avisaram-no do perigo que espreitava à porta, da emboscada que certamente o aguardava, e a sua fúria raivejou-lhe pelo sangue numa torrente de cólera que arrastou pelos seus membros a pujança do «tendão» que se continuava a debater. A distância de um salto da porta, o guerreiro levou Ancalach atrás e trouxe-a abaixo num arco que cortou o ar e que se propagou pelo que restava da escadaria acima numa semicircular vaga de destruição que arou sulcos fragosos nos degraus e no teto, cuspindo pedaços de pedra que ricochetearam pelas paredes e que talhou o batente da porta. Este explodiu em fragmentos pedregosos e Aewyre saltou para o ventoso exterior com um grito a meio de escombros e detritos volantes, vendo Heldrada cambalear para o lado a resguardar a face com o braço. Potentes rajadas que varriam o céu limpo e escuro fustigaram-nos aos dois, forçando-os a ajustar os pés no piso de neve dura e encrostada. O guerreiro veio com um devastador altabaixo que a namuriquana meio desviou meio concutiu, manejando a metade da sua foice de guerra como uma segadeira agrícola. Gritando a cada golpe, Aewyre forçou-a a recuar quase até ao parapeito, onde a mulher lhe afastou a espada da frente com uma desajeitada foiçada e lhe tentou dar um pontapé na cara com o ímpeto do mesmo movimento, mas o jovem ergueu o braço do ombro ferido e aparou o golpe com o antebraço sangrento. Uma rabanada afastou-os, fazendo-os cambalear cada um para seu lado de pés derrapantes na neve endurecida, e Aewyre desferiu um novo e colérico altabaixo que produziu um ruído agudo ao ceifar o vento numa mortífera reverberação da qual Heldrada se desviou, atirando-se de lado e rebolando pelo chão. O golpe alanhou o parapeito com um pétreo estardalhaço, e a namuriquana ripostou do chão, rasgando o ar com um corte horizontal cujo revérbero Aewyre estilhaçou. Aparentemente, o seu elo com a arma não fora quebrado apesar de esta o ter sido, e a Mestre de Armas não estava de todo fora de combate. Heldrada levantou-se rapidamente e correu na direção da porta, mas o jovem cortou-lhe a saída com um golpe descendente que fez as pedras saltarem num explosivo trilho pelo chão, forçando-a a parar. Heldrada rosnou, brandiu a meia foice e lançou-lhe duas undífluas reverberações diagonais pelo ar. Aewyre estilhaçou ambas e os dois avançaram um para o outro, golpeando o ar e com as suas reverberações a embaterem estridentemente umas nas outras, cada vez mais próximos. Heldrada gritou e girou em si quando o contacto foi estabelecido entre as lâminas, tentando atingir Aewyre na anca, mas este revirou a espada e aparou o golpe, revirando-a uma segunda vez e atirando para cima a arma e o braço da mulher para a expor. Não chegou a aproveitar a abertura da adversária acocorada devido a uma rajada que o atingiu de lado e o fez tropeçar alguns passos para a esquerda de Heldrada, que se ergueu e retomou a ofensiva com desesperado alento. As lâminas lamberam-se, estrídulas e sibilantes enquanto o vento lhes uivava aos ouvidos e fustigava os cabelos, esfriando-lhes as acalentadas peles com o seu gélido sopro. Heldrada afastou Ancalach com um golpe e tentou outro pontapé, este dirigido ao ombro ferido de Aewyre, que se tentou defender e dessa forma foi atingido pelo golpe que lhe fez a ferida soluçar sangue dolorosamente. A mulher grunhiu e tentou estocar o peito do jovem, agarrando a meia foice com ambas as mãos, mas este trouxe o punho de Ancalach acima e golpeou a lâmina para o lado, deslizando com o pé para concutir a testa da adversária com o pomo. Aewyre deu seguimento ao golpe com uma talhada diagonal da qual Heldrada se desviou, mas o jovem trouxe-a pelo caminho inverso com uma brusca torção de pulsos e deslizar do pé anterior e traçou um lanho pela coxa da mulher até às suas costelas flutuantes. O golpe podia ter sido mais grave se Heldrada não se tivesse deixado cair ao chão, o que a expôs a um pontapé no torso que a virou de costas. Aewyre empunhou Ancalach com a ponta para baixo e gritou ao tentar varar a namuriquana contra o chão, mas esta desviou o golpe por cima da sua cabeça, empunhando a haste da meia foice com ambas as mãos, e desferiu um pontapé entre a coxa dianteira e a virilha do guerreiro, que grunhiu ruidosamente com o golpe. Heldrada torceu as ancas e chutou-lhe a cabeça de lado com um grunhido seu, afastando Aewyre de si e rebolando para se levantar, deixando um rasto vermelho na neve. O guerreiro já estava em cima dela assim que assentou os pés, espadeirando implacavelmente e forçando-a a recuar com a precisa violência assassina dos seus golpes. As rajadas faziam os seus pés derraparem pelo chão, mas ambos recuperavam de imediato e davam uma quase ininterrupta continuidade à contenda, sentindo o vento quase abrir-lhes os lábios das feridas que já se haviam infligido um ao outro, gelando-lhes o sangue que delas escorria.

Aewyre cortou na diagonal e estocou após o golpe falhado, forçando Heldrada a desviá-lo com a haste. Porém, em vez de recuperar para uma nova investida, o jovem impeliu-se para a frente, pressionando a haste para baixo enquanto deslizava a lâmina por ela e encalhando-a com os copos da espada antes que a mulher a pudesse retirar. Aproveitando o breve instante de imobilização da arma, a sua mão esquerda dardejou como uma víbora ansiosa e crispou os dedos na haste. Aewyre flectiu então os joelhos e baixou as ancas, retesando o braço de forma a usar o seu peso para controlar a foice. O seu ombro ferido gritou de dor com o esforço, mas a cólera e a adrenalina abafaram o seu lancinante protesto, e o jovem fez uma brusca torção de ancas que atirou Heldrada de joelhos ao chão por esta se recusar a largar a haste. Aewyre trouxe Ancalach atrás e baixou a ponta, visando o pescoço da Mestre de Armas, mas Heldrada ergueu a perna direita e chutou a coxa ferida do guerreiro por trás, fazendo-a cambar e desequilibrando-o. Rápida e brusca, a namuriquana agarrou-lhe de imediato a perna esquerda pelo calcanhar e deixou o seu corpo descair para a frente contra a perna, puxando-lhe o calcanhar e fazendo com que o guerreiro baqueasse de lado no chão, expelindo o ar com um violento esbofa-mento. O seu ombro esquerdo absorveu boa parte do impacto, e a dor apagou a visão do guerreiro por instantes. Heldrada agarrou-lhe a mão da espada pelo pulso, retendo-a no chão, e deslocou-se pelo flanco de Aewyre acima com a foice de guerra pronta a matá-lo. O braço esquerdo do jovem estava preso debaixo do seu próprio tronco e latejava de dor, pelo que este se viu forçado a cingir a cintura da Mestre de Armas com a perna direita ferida e a girar as ancas para a arrastar forçosamente ao chão. Os dois ficaram lado a lado na neve encrostada, mortalmente próximos, e Heldrada trincou a mão direita de Aewyre com força, roçando-lhe os nós dos dedos com os dentes. O jovem grunhiu num crescendo de dor e foi só por instinto que conseguiu baixar a cabeça a tempo de evitar que o desajeitado golpe com a foice vindo de nenhures lhe furasse um olho. Ainda assim, a ponta rasgou-lhe o couro cabeludo, e o guerreiro soube que o próximo golpe o mataria. Os dedos da sua mão esquerda crisparam-se, rígidos como uma pedra, e Aewyre forçou o seu braço ferido a arrastar-se debaixo do peso do seu tronco com um brusco movimento, gritando de dor ao atingir as costelas expostas e abertas de Heldrada, que cederam com um estalo. A mulher gritou roucamente, desenterrando os dentes da mão do jovem e encolhendo o seu torso instintivamente com a dor. O guerreiro aproveitou para largar a espada e erguer o braço direito, arrastando a cabeça da mulher pelo queixo e prendendo-lha contra a sua perna enquanto usava a outra para lhe imobilizar o braço que empunhava a foice. O joelho de Heldrada veio em resposta, retumbando contra a sua cabeça e deixando-os aos dois a rebolarem pelo chão, rosnando como dois animais selvagens e feridos enquanto se agrediam mutuamente sem qualquer consideração pela sua própria integridade física. As armas de ambos ficaram para trás e restavam apenas os punhos, pés, cotovelos, joelhos e cabeças, numa contenda na qual o peso e força superiores de Aewyre acabaram por prevalecer, deixando-o em cima de Heldrada enquanto esta lhe mantinha a cara afastada com o braço estendido e lhe agarrava o pulso direito com o outro enquanto esperneava numa desesperada tentativa de lhe cingir o torso com as pernas. Mesmo fraco, o punho esquerdo do jovem acabou por fazer toda a diferença ao esmurrar a namuriquana, pois permitiu ao braço direito libertar-se e descer com todo o ímpeto contra a cara de Heldrada, fazendo-a bater com a cabeça no chão. A mão esquerda reteve-a contra o chão pelo ombro e a direita tornou a explodir-lhe na cara, e outra vez, e outra, cada murro mais violento que o anterior em resposta à crescente dor que o guerreiro sentia no punho mordido. A namuriquana resguardou debilmente a cara com os braços, mas o punho de Aewyre irrompeu por eles adentro como um projétil de catapulta diante de uma paliçada, rebentando-lhe na cara com toda a extravasada raiva do jovem. Ia matá-la, esmagar-lhe a cabeça contra a pedra, continuar a bater-lhe até que parasse de se mexer... O «tendão» retraiu-se, retendo-lhe o punho no ar com a inesperada convulsão.

— Aewyre, não! — gritou a rouca voz de Kror atrás de si, acompanhada por um aulido que pareceu atirar o drahreg para cima das suas costas.

Os dois rebolaram pelo chão, e Kror agarrou-lhe os braços por trás, ficando por baixo do guerreiro com este a estrebuchar-lhe em cima e raspando as costas nuas no gélido piso. Heldrada arrastava debilmente as pernas, espraiada de braços abertos no chão de neve manchada por sangue perto da sua cara.

— Larga-me! Vou matar a cabra! — vociferou Aewyre, arrebatado.

— Aewyre, não faças isso! — rogou-lhe o drahreg através dos dentes afiados perto do ouvido. — Não foi...!

Uma cabeçada do guerreiro cortou-lhe a fala, permitindo-lhe desvencilhar-se e rastejar apressadamente até Heldrada, cujos cabelos agarrou para lhe levantar a cabeça, que não teve sequer tempo de arregalar os olhos diante da fúria de Aewyre antes que este lha arremetesse violentamente contra o chão. Implacável e completamente desgovernado, o jovem ergueu-lhe a cabeça e tornou a arremetê-la contra o chão, excitando a raiva assassina que dele se apoderara com o baque seco de osso sobre pedra. Tê-lo-ia continuado a fazer, se os dedos de Kror não se crispassem nos seus cabelos, puxando-lhe a cabeça para trás, e o gume afiado de um alfange não lhe ameaçasse a garganta.

— Aewyre, pára — rosnou o drahreg num tom de voz que o guerreiro sabia ser sério.

— Ela matou-o! — disse Aewyre através dos dentes espumantes para não mexer demasiado a garganta, olhando para cima. — Vou matar a cabra! Vou matá-la!

— Larga-a! — ordenou Kror, puxando-lhe um pouco mais a cabeça, e o gume mordiscou-lhe a pele. — Larga-a!

— Senão fazes o quê? Matas-me? — reptou o guerreiro com voz sibilante, ainda com os cabelos de Heldrada na mão.

— Aewyre, não foi ela! Não sentes? Há alguma coisa aqui! Não foi ela!

O vento uivou. Aewyre respirava, ofegante, sangrando de vários ferimentos, semicerrando os olhos em busca de um significado para as palavras de Kror. Com a torrente da sua ira temporariamente vedada, sentiu de fato algo mais, algo que até então estivera à espera que levasse a cabo o seu ato assassino e que agora se revelava, desmascarado. Algo íntimo, visceral, e que no entanto lhe era extrínseco. O guerreiro abriu a mão, e a cabeça de Heldrada bateu de lado no chão manchado de vermelho.

— Eu vou para trás — avisou Kror. — Vem comigo. Afasta-te dela. Distraído a tentar perceber o que era ao certo aquilo que sentia,

Aewyre fez como o drahreg disse, recuando com os joelhos e guiado pela mão de Kror nos seus cabelos. O que era... aquilo?

— Posso largar-te? — perguntou o drahreg, que se apoiava sobre o seu ombro devido ao joelho ferido.

O jovem não respondeu e olhou em redor. Sim, havia decididamente algo no topo da torre, uma presença alienígena que não era o «tendão», mas que lhe sondava igualmente o íntimo do seu ser...

— Aewyre?

— Eu sou aquilo que te remói por dentro — ouviram ambos dizer, uma voz profunda e eólica que se parecia arrastar ao sabor das rajadas do vento.

Os dois guerreiros ergueram as cabeças, espetando-as em todas as direções até as fixarem na direção da entrada para o topo do torreão, sobre a qual se encontrava um vulto.

— Inflamo-te a alma, quebro lentamente o teu espírito.

Era um homem alto e esgalgado que envergava uma longa túnica vermelha de mangas apertadas com ombreiras proeminentes e empunhava um nodoso cajado retorcido. Tinha os olhos cobertos por uma venda vermelha com aberturas costuradas da qual pendiam badanas que abanavam ao vento juntamente com a falda da túnica e os seus cabelos e barba brancos. Dois corvos crocitaram, navegando com toda a naturalidade nos furiosos ventos em redor do cimo do torreão.

— Eu sou o chicote da tua consciência, o azorrague da tua moral, o látego do teu delito.

— Pelos deuses, o que é isto? — perguntou Aewyre em surdina. Kror tirou o alfange de perto da sua garganta e praguejou algo em Olgur.

— Eu sou a Culpa. E todos irão pagar — finalizou, quedando-se silente e imoto. Os ventos bafejavam-lhe as roupas, mas não o pareciam incomodar de qualquer outra forma.

Aewyre e Kror soergueram-se cautelosamente.

— És tu quem o meu filho teme — disse o homem vendado, e Aewyre soube de alguma forma que era a si que ele se dirigia. — És tu que empunhas a única arma capaz de o matar.

Culpa?

— Quem é você? — levantou Kror a voz, mancando da perna esquerda.

A cabeça do desconhecido virou-se ligeiramente, como se pudesse ver o drahreg. Os corvos crocitaram.

— Um fruto do Terceiro Pecado... com consciência? — admirou-se este. — Sinto... escrúpulos? Nunca julguei que isso fosse possível.

— Quem é você? — perguntou Aewyre por sua vez, agarrando o braço ferido que pingava sangue dos dedos.

O homem vendado não respondeu de imediato, parecendo ponderar a sua resposta enquanto as suas roupas eram vergastadas pelo vento que obrigava Aewyre e Kror a distribuírem o peso alternadamente pelas pernas de forma a manterem-se equilibrados. Por fim, baixou a cabeça.

— Sou Culpa. Sou o pai de Seltor, e que a minha alma para todo o sempre permaneça amaldiçoada por isso.

Humano e drahreg estacaram, firmados pelo choque mesmo diante do furioso vento. Os corvos tornaram a crocitar, jocosos enquanto voavam funestamente em redor.

— Sou o seu pai, e estou debaixo da sua alçada — admitiu, com o que se assemelhou a um intemporal suspiro. — Tu, Aewyre Thoryn, és uma ameaça para ele.

— Como... como sabe o meu nome? — perguntou o jovem em voz alta.

— És uma ameaça que eu esperava poder deixar viver para que pudesses pôr termo à perniciosa existência do meu filho. Mas a tua culpa é muita, Aewyre Thoryn. Não o posso... não o consigo fazer.

— De que é que você está a falar? O que quer? — gritou o guerreiro, flectindo ligeiramente os joelhos em preparação para correr na direção de Ancalach.

— Terás de pagar pelo que fizeste, Aewyre Thoryn. Lamento muito — admitiu o homem.

A sua aparente sinceridade não convenceu o jovem, que se impulsionou no início de uma corrida para ir buscar a sua espada.

— Nabella — disse Culpa.

Aewyre deteve-se de forma tão brusca, que tropeçou e caiu de joelho ao chão, olhos arregalados e boca arquejante. Nabella... a sua irracional paixão em Alyun, a pobre e inocente rapariga cruelmente morta à sua frente, porque não a conseguiu salvar de Coilen, o tirano. O seu corpo trespassado pela cruel corrente, o sangue a tingir-lhe o vestido alvo, sangue inocente que fora espirrado na cara de Aewyre, enchendo-lhe a boca com um culposo travo cujo sabor agora lha amargava...

Ao ver o jovem cair, Kror desembainhou o seu outro alfange, avançando um passo na direção do homem vendado.

— O Poço de Songul — murmurou este.

O drahreg reteve-se em pleno movimento, como se tivesse colidido com algo. O Poço de Songul... onde tantos irmãos seus haviam morrido, onde a venerável fora mutilada. O aflito relinchar dos hemíonos, os Cho Tirr a arderem em fogo, a tombarem diante das lâminas dos cinco companheiros, tudo porque se deixara enganar pela harahan. O sangue de irmãos de duas e quatro pernas regara o solo sagrado, sangue que estava nas suas mãos por os ter conduzido a uma morte inútil devido à sua própria ignorância...

Culpa observou os dois estremecerem com os espinhos das suas consciências sem qualquer prazer. Aewyre flagelava-se pela morte da camponesa, por ter liberto o seu filho, por ter causado a morte do pai, revia em turbilhão todas os seus erros e transgressões que o haviam prejudicado e a outros, desde a morte dos rebeldes em Alyun aos remorsos por não ter ido com o seu falecido companheiro Babaki. Às suas falhas como líder ajuntavam-se todos os erros que cometera desde que simplesmente fugira de Allahn Anroth com a espada do seu pai, culminando na morte deste e agora também com a do Alto Lamelar.

Trouxera a morte para a Cidadela da Lâmina. Sabia que a culpa era sua. Era só isso o que causava, morte. A morte de outros e a dos seus amigos e entes queridos.

Os conflitos do drahreg, contudo, eram algo de inusitado. Kror chegara a uma conclusão no turbilhão de emoções que era a sua mente, na qual duas outras vontades também se digladiavam, as de Kerhex e Sassiras’s. Concluiu que a culpa era sua, sim, e que, pelo que acontecera aos seus irmãos, não merecia viver, mas a culpa devia-se igualmente ao humano, ao maldito humano. A harahan estivera atrás dele, fora ele que invadira as estepes com os seus amigos, fora pela sua mão que muitos dos seus irmãos haviam morrido. Sim, ele próprio podia merecer a morte, mas primeiro o humano iria pagar. Culpa inclinou a intrigada cabeça ao sentir os prementes gritos de Sassiras’s a urgirem-lhe que não o fizesse e os furiosos rugidos de Kerhex a renderem-se à superior força que movia o drahreg e a instarem-no a pelo menos levar o maldito humano consigo.

Resignado com a incontornabilidade do seu propósito, Culpa deixou as ações seguirem o seu rumo, perante o que os seus corvos manifestaram a sua satisfação com ansiosos crocitos. Kror virou-se para Aewyre de alfanges empunhados e coxeou tropegamente para o humano, que chorava de cara enterrada nas mãos. Pareceu sentir a aproximação do drahreg e ergueu a cara marejada de amargas lágrimas que diluíam o sangue no canto direito da sua boca. Os seus olhos escuros eram um reflexo de todas as tragédias pelas quais passara e pelas quais se responsabilizava, e foi nos orbes vermelhos do drahreg que o jovem captou mais uma para o seu já de si insuportável rol de contrições. Sim, também causara a morte dos ocarr. E usara Kror, usara-o de forma egoísta e mesquinha, independentemente do seu propósito. Aewyre ergueu o torso e ajeitou os joelhos no chão de forma a ficar de frente para o drahreg, diante do qual abriu os braços, olhando-o com ar de súplica. Nabella, Babaki, o seu pai, Assiòn e um sem-número de rostos conhecidos e já quase esquecidos passaram-lhe diante dos olhos, e o jovem cerrou os olhos com uma plangente e soluçante careta, como se dessa forma os deixasse de ver.

O vento uivou e Kror ergueu o braço direito, levando o alfange para trás das costas em preparação para o golpe mortal.

Uma rajada de vento, um silvo metálico e molhado. Culpa baixou a cabeça.

Meia foice e o que sobrava de uma haste projetavam-se do seu peito.

Culpa recuou um passo com o impacto, dois. O abismo abriu-se nas suas costas, o vento empurrou-o, vingativo. Desapareceu atrás do parapeito sem proferir um único som, e os dois corvos crocitaram agudamente, desaparecendo eles também da vista.

Aewyre e Kror olharam ambos bruscamente para o lado e de seguida para o outro, embora permanecessem nas suas poses de executor e condenado. Heldrada estava de gatas, com uma mão apoiada no chão e um trêmulo braço estendido, olhos fitos no local onde antes Culpa estivera. Humano e drahreg entreolharam-se e piscaram os olhos ao sentirem o refluxo de emoções derramadas. Aewyre baixou as mãos, soltou um tremulo suspiro, recordou-se de algo, olhou de lado para a mulher, para Kror. Ambos ponderaram as suas opções. O guerreiro deixou-se cair de lado, dando uma cambalhota para trás sobre o ombro direito. Kror grunhiu e falhou o golpe, impossibilitado de lhe dar seguimento devido à perna esquerda inutilizada. Aewyre correu na direção de Ancalach, que se encontrava a poucos passos de Heldrada. Kror impulsionou-se em frente, mantendo-se numa queda contínua com curtos pulos da sua perna direita, tentando desesperadamente cobrir a distância que o separava dos dois. Aewyre pegou na sua espada, brandiu-a e encaminhou-se para Heldrada com intuitos assassinos. Kror arrojou-se em frente, caindo diante da mulher e ficando entre ela e o guerreiro, empunhando os alfanges em fútil resistência.

— Aewyre, não! Não foi ela! Foi ele! — gritou.

O ombro esquerdo do jovem foi empurrado por uma forte lufada, mas este não se deteve e tentou contornar o drahreg, que rastejou para permanecer no seu caminho.

— Sai daí, Kror — gritou Aewyre com calma assassina. Recortado contra o céu escuro de Ancalach em punho, com um sangrento lanho diagonal no torso, o ombro esquerdo a escorrer-lhe vermelho pelo braço abaixo, cabelo empapado de sangue da ferida no escalpe, canto da boca aberto, coxa rasgada, cara pintada e olhos providos de um brilho maníaco, o jovem mais parecia um espírito vingador da noite.

— Não foi ela! Não ouviste? Foi ele! Ela salvou-nos!

Não importava. A culpa do guerreiro transbordara, a sua alma fora violada e deixada em carne viva, e ver a assassina de Assiòn era mais do que podia suportar, mesmo que tivesse sido ele a trazer a morte para a Cidadela da Lâmina. As suas emoções estavam à flor da pele, a sua consciência sangrava, as lágrimas no seu rosto gelavam ao vento, raiva queimava a tristeza ao mesmo tempo que era por esta extinta. A razão não era para ali chamada.

— Kror, sai da...

— Não — disse Heldrada. — Eu mereço.

Os dois olharam para a mulher, que se erguia a custo do chão com ambos os braços nervudos e cuja face estava arruinada do lado esquerdo. A sua boca pingava escarlate, parte dos lábios inchados, o malar intumescido e cortado, o seu olho estava empolado de sangue pisado e o outro fitava-os, nublado.

— Foi ele... que me fez fazer... o que fiz... — reconheceu com voz túrgida. — Mas fui eu... eu matei-o... matei o Assiòn... Matem-me.

Kror apoiou o cotovelo direito a seu lado para fitar a namuriquana, que contudo só tinha olho para Aewyre.

— Heldrada... — disse o drahreg, rastejando para se sentar a seu lado, agarrando-lhe os ombros e olhando ele também para o jovem.

Aewyre estava imóvel, mas Ancalach tremia visivelmente. Os seus olhos conservavam o seu brilho demente, e as veias do seu pescoço palpitavam, bem visíveis.

— Mata-me... — tornou a mulher a pedir. — Mata...

O corpo de Heldrada esfacelou-se e Kror agarrou-a antes que ela embatesse contra o chão, aninhando-a nos seus braços e levantando a cabeça para fitar o guerreiro. Os dois não trocaram palavras, havia muito que tal era desnecessário. Olhos escuros e vermelhos diziam tudo, dispensavam verbalizações, transmitiam sentimentos, emoções, revelavam o âmago da alma de cada um. Kror viu um vagalhão prestes a abater-se.

Aewyre gritou e levou Ancalach atrás. O drahreg abraçou Heldrada para a resguardar. O jovem virou-se para o lado e desferiu um possante golpe no parapeito, fazendo a pedra cuspir ardentes faúlhas e sentindo o impacto vibrar-lhe de forma cruciante ao longo de todos os seus ossos e ranger-lhe dolorosamente nos dentes. O seu grito aumentou de intensidade com a dor que foi mais que bem-vinda para o distrair momentaneamente da agonia da sua alma estraçalhada, e Aewyre cambaleou para trás. Kror olhou estupefato com Heldrada nos seus braços quando o jovem deu dois apressados passos na direção do parapeito, temendo que ele fosse saltar, mas este limitou-se a apoiar o pé nele e levar a cabeça atrás com os punhos e Ancalach a seus lados.

— SELTOR! — bradou aos ventos, que responderam com agudos aulidos. — E guerra que queres, desgraçado? Então vais tê-la!

O bradagà apoiou o repto, ululando como uma alcatéia de lobos acicatados. Fora declarada a guerra por fim. A batalha por Allaryia podia começar.

 

A sombra do Pilar era um local tetro, povoado por indistintos vultos que vagueavam em redor sem rumo num oceano de negrume, mas mesmo nesse domínio de penumbra absoluta houve uma sombra que se conseguiu destacar, um tenebroso vulto corpóreo que se manifestou das trevas e que assumiu uma forma humana. Os agudos contrastes delineavam a sua silhueta, dando relevo às suas formas, e o vulto ergueu-se jactante a meio das sombras que serpenteavam em redor como víboras negras. Estas retraíram-se a um tempo, recolhendo-se em deferência, e Seltor olhou em redor, senhor do seu domínio. Era incrível como a sombra crescera durante os vinte anos do seu aprisionamento; aparentemente, a sua ausência não fora grande entrave para a concessão da Dádiva Negra, e as seitas dos seus Filhos haviam de alguma forma feito uso das reminiscências do seu poder para efetuar os rituais necessários. Talvez a própria sombra do Pilar tivesse servido como reservatório do qual as necessárias energias puderam ser extraídas para marcar os voluntários a Fadados. Talvez. As incógnitas já não interessavam, era chegado o tempo de agir. Dois dos seus Aesh’alan estavam vivos e o eahanoir Tannath aceitara tornar-se o terceiro, as suas forças haviam sido mobilizadas para um propósito que jamais lobrigariam e os seus peões estavam nas devidas posições. O culminar de vinte anos de insanas tramóias e lúcidas planificações aproximava-se, em breve dar-se-ia o início de uma nova era que ninguém, nem mesmo a sua prole podia conceber. O tempo de conquistas e devaneios de poder era coisa do passado, e mesmo os seus Aeshalan eram demasiado imprevidentes para o conseguirem compreender. Não, apenas vinte anos de dor e isolamento permitiriam semelhante percepção a alguém. Os ditames de outrora havia muito que se tinham tornado obsoletos; Allaryia mudara sem que todos conseguissem acompanhar as mutações. Mesmo os deuses haviam ficado para trás, presos pelos seus arcaicos preceitos num mundo que cada vez mais tomava o seu rumo sem a sua pretensa divina orientação. Era em parte por eles que Seltor se encontrava naquele momento na sombra do Pilar. Allaryia necessitava de um elemento catártico para dar início à mudança, e Seltor iria assumir esse papel.

Estendeu a mão para o lado, e gavinhas de sombra estenderam-se da sua palma, serpenteando até formarem um casulo do qual se metamorfoseou Dalshagnar, a Língua Negra, a espada com a qual tentara matar a sua mãe. Luris sobrevivera, claro, e a razão pela qual deixara o seu filho viver era dos poucos mistérios que ainda atormentavam O Flagelo e que este provavelmente nunca viria a decifrar. Não importava. A sua mãe partira, bem como o seu esposo e a entidade neutra entre ambos, e haviam deixado para trás um mundo imperfeito onde os Primogênitos tresmalhavam como ovelhas iludidas. Nem mesmo as onipotentes Entidades alguma vez haviam conseguido vergar o indômito espírito dos humanos, o que as levara a partir, mas não antes de deixarem sementes de corrupção que entretanto haviam germinado. Seltor via-o agora, e compreendia. Só lamentava não o ter compreendido eras atrás, mas agora chegara a oportunidade de retificar tudo. Estendeu o outro braço em frente, pousou o gume de Dalshagnar sobre o antebraço e, com um brusco sacão, o aço baço da Língua Negra abriu a sua carne sombria, vertendo sangue negro que se espalhou como em água, mesclando-se às sombras em redor. Seltor empurrou a lâmina para impedir que o corte se fechasse e mais sangue brotou, disseminando-se como fumo pela penumbra, que se revolvia como um cardume de peixes famintos. Um último sacão de punho crispado e uma derradeira porção da sua negra essência vital amalgamou-se com as trevas que o rodeavam, dispersando-se com o pulsar de revigoradas veias negras que começaram a inocular a tetra infusão no Pilar.

Estava feito. Começara. Seltor dissolveu Dalshagnar, olhou em redor para as excitadas trevas que se revolviam em silêncio. Também elas não compreendiam, mas em breve iriam perceber. Todos iriam perceber, e O Flagelo sabia que, independentemente de todo o sofrimento que ainda viria, toda a morte e destruição intrínsecas a qualquer mudança, mais tarde humanos, eahan e thuragar ainda lhe iriam agradecer nas suas preces murmuradas na calada da noite. Estava certo disso, e com essa certeza desagregou-se na inescrutável penumbra.

 

 

 

POSFÁCIO

E assim começou.

Implacável, O Bastardo deu de imediato início à concretização dos seus planos, e enquanto as suas peças são colocadas em movimento, a insuspeita Allaryia permanece alheia à ameaça. A barreira entre Asmodeon e o continente foi quebrada e mesmo eu apenas posso conjecturar quanto ao que se seguirá.

Aewyre Thoryn escapou por pouco com vida de um combate com os seus demônios interiores que revelou que O Flagelo está intimamente familiarizado com as suas fraquezas, enquanto o jovem príncipe praticamente desconhece o adversário. Embora não mais se lhe afigure como inatingível, a Essência da Lâmina continua fora do seu alcance, e Assiòn, o único homem que o poderia ajudar, foi morto. Kror permanece uma incógnita, e muito pode ainda depender deste singular drahreg e das duas entidades que na sua alma coabitam.

Quenestil Anthalos, Slayra e a família Lasan foram forçosamente postos em fuga pela traição do exército tanarchiano, que desconhece estar a ajudar os desígnios do Anátema. Rumo a um destino desconhecido a norte, a sobrevivência será certamente a sua maior preocupação.

A missão de Lhiannah Syndar de avisar Nolwyn do perigo que corria acabou por causar uma declaração de guerra entre as duas mais poderosas cidades-estado da velha nação. A princesa foi aprisionada e inconscientemente posta nas mãos de um inimigo que não sabe se pode combater, enquanto Worick de Taramon se encontra gravemente ferido e Taislin Mãosdelã, sozinho e desamparado numa cidade desconhecida e hostil.

A guerra por Allaryia começou, e através do Cronoscópio Extemporâneo cabe-me a mim relatar os marcantes eventos que ocorreram e os que sucederão e que eu desconheço. O futuro revelar-se-á em breve, para bem ou para mal.

Até lá, que os deuses estejam conosco.

             Pearnon, o Escriba Crônicas de Allaryia 

 

                                                                                                    Filipe Faria

 

 

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