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A ESTILHA DE CRISTAL
A ESTILHA DE CRISTAL

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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19
Más Novas

Drizzt atravessou sem ruído os túneis e passou pelos corpos dos gigantes mortos, afrouxando o passo apenas para apanhar mais um naco de carneiro assado da grande mesa. Passou pelas vigas de sustentação e desceu pelo corredor sombrio, moderando sua ansiedade com bom senso. Se o tesouro dos gigantes estivesse escondido ali embaixo, a câmara que o abrigava estaria atrás de uma porta oculta ou haveria algum monstro - embora outro gigante fosse improvável, já que teria se unido à luta.
O túnel era bem comprido, corria direto para o norte, e Drizzt calculou que caminhava agora sob a grande massa do Sepulcro de Kelvin. Deixara para trás a última tocha, mas foi com alegria que recebeu a escuridão. Ele passara a maior parte de sua vida percorrendo túneis no mundo subterrâneo e sem luz de seu povo, e seus grandes olhos guiavam-no na escuridão absoluta com mais precisão do que nas regiões iluminadas.
O corredor terminava abruptamente numa porta ferrada e trancada, e a tranca de metal era mantida em seu lugar por uma grande corrente e um cadeado. Drizzt sentiu uma pontada de culpa por deixar Wulfgar para trás. O drow tinha duas fraquezas: antes de tudo, a emoção da batalha, mas logo em seguida vinha a comichão por descobrir o butim dos inimigos derrotados. Ouro e pedras preciosas não seduziam Drizzt; ele não se importava com riquezas e raramente guardava os tesouros que conquistara. Tratava-se simplesmente do arrebatamento de vê-los pela primeira vez, da emoção de examiná-los minuciosamente e, talvez, descobrir algum incrível artefato esquecido havia eras, ou, quem sabe, o grimório de um antigo e poderoso mago.
O sentimento de culpa o abandonou assim que ele tirou de sua escarcela uma pequena gazua. Ele nunca recebera treinamento formal nas artes ladinas, mas era tão ágil e coordenado quanto qualquer arrombador experiente. Com seus dedos sensíveis e a audição aguda, a fechadura tosca não lhe oferecia particularmente um desafio; caiu ao chão, aberta, numa questão de segundos. Drizzt atentou para os sons por trás da porta. Não ouvindo nada, ergueu gentilmente a grande tranca e a colocou de lado. Pondo-se uma última vez à escuta, ele desembainhou uma das cimitarras, prendeu a respiração de pura expectativa e empurrou a porta.
Expeliu o ar num suspiro decepcionado. A sala logo à frente brilhava com a luz minguante de duas tochas. Era pequena e estava vazia, exceto por um grande espelho de aro metálico que se encontrava em seu centro. Drizzt esquivou-se do caminho do espelho, conhecedor de algumas estranhas propriedades mágicas que esses objetos sabidamente exibiam, e aproximou-se para examiná-lo mais de perto.
Era quase da altura de um homem, mas um suporte de ferro intrincadamente trabalhado o mantinha ao nível dos olhos. Por estar revestido de prata e numa câmara tão remota, Drizzt começou a acreditar que não se tratava de um espelho comum. No entanto, uma inspeção minuciosa não revelou runas nem sinais arcanos de qualquer tipo que sugerissem suas propriedades.
Incapaz de descobrir qualquer coisa de incomum sobre a peça, Drizzt descuidadamente colocou-se em frente ao espelho. De repente, uma bruma rosada começou a remoinhar dentro do espelho, parecendo um espaço tridimensional aprisionado no interior da planura do vidro. Drizzt saltou de lado, mais curioso que amedrontado, e observou o desenrolar do espetáculo.
Lufadas agitaram a bruma cada vez mais densa, como se alimentada por um fogo oculto. Depois, o centro espalhou-se para as bordas e abriu-se na imagem nítida do rosto de um homem, uma fisionomia encovada e macilenta, pintada segundo a tradição de uma das cidades sulistas.
- Por que veio me incomodar? - perguntou o homem diante da sala vazia em frente ao espelho.
Drizzt deu outro passo para o lado, distanciando-se ainda mais da linha de visão da aparição. Cogitou confrontar o misterioso mago, mas pensou nos amigos e calculou que havia muita coisa em jogo para ele se arriscar de maneira tão irresponsável.
- Apresente-se, Sorrisão! - ordenou a imagem. O rosto aguardou vários segundos, sorrindo impacientemente, com um ar escarninho e cada vez mais tenso. - Quando eu descobrir qual de vocês idiotas inadvertidamente me invocou, hei de transformá-lo num coelho e jogá-lo numa arena de lobos! - gritou a imagem, furiosa. O espelho cintilou repentinamente e voltou ao normal.
Drizzt coçou o queixo e imaginou se havia algo mais que ele pudesse descobrir por ali. Decidiu que os riscos eram simplesmente grandes demais naquele momento.

Quando Drizzt percorreu de volta o covil, encontrou Wulfgar sentado ao lado de Guenhwyvar na passagem principal, não muito longe das portas da frente, fechadas e trancadas. O bárbaro acariciava o pescoço e os ombros musculosos do gato.
- Vejo que Guenhwyvar ganhou sua amizade - disse Drizzt ao se aproximar.
Wulfgar sorriu.
- Uma excelente aliada - disse ele, sacudindo de brincadeira o animal. - E uma verdadeira guerreira! - Ele começou a se levantar, mas foi atirado violentamente de volta ao chão.
Uma explosão abalou o covil quando um projétil de balista chocou-se contra as portas pesadas, estilhaçou-lhes a tranca de madeira e destruiu-as. Uma das portas dividiu-se perfeitamente em duas; o gonzo superior da outra foi arrancado, deixando a porta pendurada canhestramente pelo retorcido gonzo inferior.
Drizzt desembainhou a cimitarra e colocou-se protetoramente sobre Wulfgar enquanto o bárbaro tentava recobrar o equilíbrio.
Abruptamente, um guerreiro de barba saltou para a porta pendente, trazendo num dos braços o escudo circular com o emblema de uma caneca de cerveja espumante e, no outro, um machado de guerra chanfrado e manchado de sangue.
- Saiam e venham brincar, gigantes! - gritou Bruenor, batendo forte o machado contra o escudo, como se seu clã já não tivesse feito barulho suficiente para acordar o covil!
- Calma, seu anão louco - riu Drizzt. - Os verbeeg estão todos mortos.
Bruenor avistou os amigos e saltou para o túnel, logo seguido pelo resto do clã afoito.
- Todos mortos! - gritou o anão. - Maldito seja, elfo! Eu tinha certeza que 'cê ia dar um jeito de brincar sozinho!
- E quanto aos reforços? - perguntou Wulfgar. Bruenor casquinou maliciosamente.
- Ô, garoto, um pouco de fé, sim? Foram empilhados numa vala comum, mas eu acho que não mereciam ser enterrados! Só tem um vivo: um ore miserável que vai continuar respirando só até dar com a maldita língua nos dentes!
Depois do episódio com o espelho, não era pequeno o interesse de Drizzt em interrogar o ore.
- Você já o inquiriu? - perguntou a Bruenor.
- Ah, ficou calado até agora - replicou o anão. - Mas eu tenho uma coisinha ou outra que deve fazer ele abrir o bico!
Drizzt tinha uma idéia melhor. Os ores não eram criaturas leais mas, sob o encantamento de um mago, as técnicas de tortura geralmente de pouco adiantavam. Eles precisavam de algo para neutralizar a magia, e Drizzt fazia idéia do que poderia funcionar.
- Vá buscar Régis - ele instruiu Bruenor. - O halfling pode fazer o ore nos contar tudo o que quisermos saber.
- Torturar ele seria mais divertido - lamentou-se Bruenor, mas ele também compreendia a sabedoria da sugestão do drow. Ele estava mais do que simplesmente curioso - e preocupado - com tantos gigantes trabalhando em conjunto. E agora com ores ao lado deles...

Drizzt e Wulfgar sentaram-se no canto mais distante da pequena câmara, o mais longe possível de Bruenor e dos outros dois anões. Um dos soldados de Bruenor retornara naquela mesma noite de Bosquesó, trazendo Régis, e, embora estivessem todos exaustos da marcha e do combate, estavam ansiosos demais para dormir, aguardando novas informações. Régis e o ore capturado haviam passado à sala contígua para uma conversa particular assim que o halfling conseguira controlar a vontade do prisioneiro com seu pingente de rubi.
Bruenor ocupava-se em preparar uma nova receita - ensopado de miolos de gigante - e fervia os deploráveis e mal-cheirosos ingredientes diretamente no crânio oco de um verbeeg.
- Pensem um pouco! - argumentara ele, em resposta às expressões de horror e asco de Drizzt e Wulfgar. - O ganso de quintal é mais gostoso do que o selvagem porque não usa os músculos. O mesmo deve valer pros miolos de um gigante!
Drizzt e Wulfgar não tinham a mesma opinião. Entretanto, eles não queriam deixar a área e perder uma palavra sequer do que Régis teria a dizer, de modo que se acotovelavam no canto mais distante da sala e levavam adiante uma conversa particular.
Bruenor se esforçava para ouvi-los, pois estavam falando de algo que muito lhe interessava.
- Metade daquele último na cozinha - insistia Wulfgar - e metade para o gato.
- E você só leva a metade daquele lá no precipício - retorquiu Drizzt.
- De acordo - disse Wulfgar. - E dividimos ao meio aquele no salão e Sorrisão?
Drizzt assentiu.
Então, somadas todas as metades e as vítimas divididas, são dez e meio para mim e dez e meio para você.
- E quatro para o gato - acrescentou Wulfgar.
- Quatro para o gato - repetiu Drizzt. - Lutou bem, meu amigo. Você se saiu bem até agora, mas tenho a impressão de que teremos muito mais combates pela frente e, no final, valerá minha maior experiência!
- Você está ficando velho, meu bom elfo - caçoou Wulfgar, recostando-se novamente na parede e exibindo a brancura de um sorriso largo e confiante por entre a barba loura. - Veremos. Veremos.
Bruenor também sorria, tanto diante da competição saudável entre seus amigos quanto do persistente orgulho que sentia pelo jovem bárbaro. Wulfgar estava se saindo bem já que conseguira acompanhar um veterano habilidoso como Drizzt Do'Urden.
Régis emergiu da sala e a mortalha cinzenta em seu rosto geralmente jovial arrefeceu o clima de despreocupação.
- Estamos encrencados - disse o halfling sombriamente.
- Onde está o ore? - perguntou Bruenor enquanto tirava o machado do cinto, interpretando erroneamente as palavras do halfling.
- Lá dentro. Ele está bem - replicou Régis.
O ore contara entusiasticamente a seu mais novo amigo tudo sobre os planos de Akar Kessell de invadir Dez-Burgos e o tamanho das forças que se concentravam. Régis tremia visivelmente ao dar aos amigos a notícia.
- Todas as tribos de ores e goblins e os clãs de verbeeg desta região da Espinha do Mundo estão se reunindo sob o comando de um feiticeiro chamado Akar Kessell - começou o halfling. Drizzt e Wulfgar entreolharam-se, reconhecendo o nome de Kessell. O bárbaro pensara que Akar Kessell fosse um enorme gigante do gelo quando o verbeeg o mencionara, mas foram bem diferentes as suspeitas de Drizzt, principalmente depois do incidente com o espelho.
- Eles planejam atacar Dez-Burgos - continuou Régis. - E até mesmo os bárbaros, comandados por um poderoso líder de um olho só, juntaram-se a suas fileiras!
Wulfgar corou de fúria e vergonha. Seu povo lutando ao lado de ores! Ele conhecia o líder de que falara Régis, pois Wulfgar pertencia à Tribo do Alce e chegara até mesmo a carregar o estandarte da tribo como arauto de Heafstaag. Drizzt também se lembrava dolorosamente do rei caolho. Pousou a mão consoladora sobre o ombro de Wulfgar.
- Vão até Brin Shander - disse o drow a Bruenor e Régis. - O povo precisa se preparar.
Régis estremeceu diante da inutilidade daquilo tudo. Se a estimativa do ore quanto ao tamanho do exército que se congregava estivesse correta, nem toda a Dez-Burgos reunida resistiria ao assalto. O halfling deixou cair a cabeça e, não desejando alarmar os amigos mais do que o necessário, silenciosamente deu forma às palavras:
- Temos de partir!

Apesar de Bruenor e Régis conseguirem convencer Cássio quanto à urgência e à importância das notícias que traziam, foram necessários vários dias para reunir em conselho os outros representantes. Era o auge da estação das cabeçudas, o fim do verão, e todos estavam envolvidos num último esforço para apanhar uma boa safra de peixe para a última caravana mercante com destino a Luskan. Os representantes das nove aldeias pesqueiras compreendiam suas responsabilidades para com as respectivas comunidades, mas relutavam em abandonar os lagos mesmo que um único dia.
E, assim, com a exceção de Cássio de Brin Shander, Muldoon, o novo representante de Bosquesó, que venerava Régis como o herói de sua vila, Glensather de Angraleste, a comunidade sempre disposta a participar pelo bem de Dez-Burgos, e Agorwal de Termalaine, que devotava feroz lealdade a Bruenor, a disposição de ânimo do conselho não era muito receptiva.
Kemp, ainda ressentido com Bruenor por causa do incidente envolvendo Drizzt logo depois da Batalha de Brin Shander, mostrou-se particularmente desagregador. Antes que Cássio sequer tivesse a oportunidade de apresentar as Formalidades de Ordem, o mal-humorado representante de Targos saltou de seu assento e esmurrou a mesa.
- Danem-se as leituras formais e vamos logo com isto! - grunhiu Kemp. - Com que direito você nos manda vir dos lagos, Cássio? Enquanto nos sentamos em volta desta mesa, os mercadores em Luskan estão se preparando para a viagem!
- Temos notícia de uma invasão, Representante Kemp - respondeu Cássio, com calma, compreendendo a fúria do pescador. - Eu não os teria convocado a essa altura da estação, a nenhum de vocês, se não fosse urgente.
- Então, os boatos são verdadeiros - escarneceu Kemp. - Uma invasão, você diz? Ora! Sei o que há por trás deste arremedo de conselho!
Voltou-se para Agorwal. A disputa entre Targos e Termalaine havia se intensificado nas últimas semanas, apesar dos esforços de Cássio para dissipá-la e trazer os princípios das cidades rivais à mesa de negociação. Agorwal concordara com uma reunião, mas Kemp fora resolutamente contrário. E, assim, com as suspeitas no auge, a escolha do momento daquele conselho de emergência não poderia ter sido pior.
- É uma tentativa realmente lamentável! - berrou Kemp. Olhou ao redor para os colegas representantes. - Um esforço lamentável de Agorwal e seus ardilosos partidários para forçar um acordo favorável a Termalaine em sua disputa com Targos!
Incitado pela aura de suspeita infundida por Kemp, Schermont, o novo representante de Caer-Konig, apontou um dedo acusador para Jensin Brent de Caer-Dineval.
- Qual é seu papel nesta traição? - disse ele com veemência ao encarniçado rival. Schermont chegara ao cargo depois da morte do primeiro representante de Caer-Konig nas águas do Lac Dinneshir, em batalha contra um barco de Dineval. Dorim Liugar havia sido amigo e líder de Schermont, e as políticas do novo representante em relação a Caer-Dineval eram ainda mais despóticas que as de seu predecessor.
Régis e Bruenor permaneceram recostados em seus assentos, silenciosos, em impotente consternação, ao longo de toda essa disputa verbal inicial. Por fim, Cássio bateu violentamente o martelo, partindo-lhe o cabo ao meio, e silenciou os demais tempo suficiente para dizer o que queria.
- Alguns instantes de silêncio! - ordenou. - Contenham suas palavras venenosas e dêem ouvidos ao portador de más novas! - Os outros se deixaram cair de volta aos assentos e permaneceram silenciosos, mas Cássio temia que o dano já tivesse sido feito.
Ele cedeu a vez a Régis.
Sinceramente aterrorizado pelo que arrancara do prisioneiro ore, Régis relatou apaixonadamente a batalha vencida por seus amigos no covil dos verbeeg e sobre a relva de Valvertente.
- E Bruenor capturou um dos ores que escoltavam os gigantes - disse ele enfaticamente. Alguns representantes inspiraram profundamente diante da idéia de tais criaturas andando em bando, mas Kemp e alguns dos outros, sempre desconfiados das ameaças mais imediatas representadas por seus rivais, e já decididos quanto ao verdadeiro propósito da reunião, ainda não haviam se convencido.
- O ore nos falou - continuou Régis sombriamente - da vinda de um poderoso mago, Akar Kessell, e de sua vasta hoste de goblins e gigantes! Têm a intenção de conquistar Dez-Burgos! - Ele imaginou que sua dramaticidade se mostraria eficaz.
Mas Kemp estava ultrajado:
- Por causa das palavras de um ore, Cássio? Você nos convocou, tirou-nos dos lagos nesta época crítica por causa das ameaças de um maldito ore?
- A história do halfling não é incomum - acrescentou Schermont. - Todos já vimos um goblin capturado falar o que lhe der na telha para salvar sua cabeça sem valor.
- Ou talvez você tivesse outros motivos - silvou Kemp, mais uma vez fitando Agorwal.
Cássio, embora realmente acreditasse nas más novas, recostou-se em sua cadeira e nada disse. Com toda aquela tensão nos lagos e a última feira comercial de uma estação de pesca particularmente infrutífera se aproximando rapidamente, ele desconfiara que isso ocorreria. Olhou resignadamente para Bruenor e Régis e deu de ombros quando mais uma vez o conselho degenerou-se numa disputa de gritos.
Em meio à comoção que se seguiu, Régis retirou o pingente de rubi de sob o colete e cutucou Bruenor. Eles olharam para a coisa e um para o outro, decepcionados; haviam alimentado a esperança de que a pedra mágica não se fizesse necessária.
Régis golpeou com seu martelo, requisitando a vez, que lhe foi concedida por Cássio. Em seguida, como ele fizera cinco anos atrás, saltou sobre a mesa e caminhou em direção a seu principal antagonista.
Mas, dessa vez, o resultado não foi o que Régis havia esperado. Kemp passara muitas horas nos últimos cinco anos refletindo sobre aquele conselho antes da invasão bárbara. O representante ficara contente com o resultado final de toda aquela situação e, na verdade, percebera que ele e toda a Dez-Burgos estavam em dívida com o halfling por tê-los feito dar atenção ao aviso. No entanto, incomodava Kemp, e não pouco, que sua posição inicial tivesse sido abalada tão facilmente. Ele era um tipo ruidoso cujo primeiro amor, acima mesmo da pesca, era a batalha; mas tinha uma mente perspicaz e estava sempre alerta ao perigo. Ele observara Régis várias vezes nos últimos anos e ouvira atentamente as histórias sobre a habilidade do halfling na arte da persuasão. Enquanto Régis se aproximava, o corpulento representante desviou os olhos.
- Fora, trapaceiro! - grunhiu ele, afastando defensivamente a cadeira da mesa com um empurrão. - Você parece ter uma estranha maneira de convencer as pessoas, mas não vou cair em seu encanto desta vez! - Ele se dirigiu aos outros representantes. - Cuidado com o halfling! Ele possui algum tipo de mágica, podem estar certos!
Kemp sabia que não teria como provar suas alegações, mas também percebeu que não precisaria fazê-lo. Régis olhou ao redor, aturdido e incapaz sequer de responder às acusações do representante. Até mesmo Agorwal, embora o representante de Termalaine discretamente tentasse ocultar o fato, não mais olharia Régis diretamente nos olhos.
- Sente-se, trapaceiro! - escarneceu Kemp. - Sua mágica de nada serve agora que percebemos suas intenções!
Bruenor, calado até então, de repente deu um salto, com o rosto deformado pela fúria.
- Isto também é um truque, canalha de Targos? - desafiou o anão. Ele tirou uma sacola do cinto e fez rolar o conteúdo da mesma - uma cabeça decapitada de verbeeg - mesa abaixo, em direção a Kemp. Vários representantes pularam para trás, horrorizados, mas Kemp permaneceu inabalado.
- Lidamos com gigantes desgarrados muitas vezes antes - replicou fria mente o representante.
- Desgarrados? - repetiu Bruenor, incrédulo. - Quarenta destes monstros foram abatidos, além de ores e ogros!
- Um bando de passagem - explicou Kemp, com tranqüilidade e teimosia. - E estão todos mortos, você mesmo o disse. Por que, então, isto se torna um assunto para o conselho? Se é louvor o que deseja, poderoso anão, então há de tê-lo! - O veneno escorria de sua voz e foi com profundo prazer que ele observou o rosto cada vez mais vermelho de Bruenor. - Talvez Cássio possa fazer um discurso especial em sua honra diante de todo o povo de Dez-Burgos.
Bruenor esmurrou a mesa e fitou todos os homens ao redor dele em franca ameaça a qualquer um que desse continuidade aos insultos de Kemp.
- A gente veio até aqui pra ajudar vocês e salvar seus lares e seu povo! - berrou ele. - Pode ser que 'cês acreditem na gente e façam alguma coisa pra sobreviver. Ou pode ser que 'cês dêem ouvidos às palavras deste canalha de Targos e não façam nada. De um jeito ou de outro, já estou cheio de vocês! Façam o que quiserem e que seus deuses os protejam!
Virou-se e deixou a sala.
O tom soturno de Bruenor fez com que muitos representantes percebessem que a ameaça era simplesmente grave demais para ser desconsiderada como o engodo de um prisioneiro desesperado, ou mesmo como mais um plano traiçoeiro de Cássio e alguns conspiradores. Kemp, porém, orgulhoso e arrogante, e certo de que Agorwal e seus amigos não-humanos, o halfling e o anão, estavam usando a fachada de uma invasão para ganhar alguma vantagem sobre a cidade superior de Targos, não arredaria pé. Abaixo apenas de Cássio em toda a Dez-Burgos, a opinião de Kemp tinha grande influência, principalmente para o povo de Caer-Konig e Caer-Dineval que, à luz da inabalável neutralidade de Brin Shander em relação a sua disputa, buscava o favor de Targos.
Um número suficiente de representantes continuava desconfiado de seus rivais e disposto a aceitar a explicação de Kemp para impedir que Cássio levasse o conselho a uma ação decisiva. As linhas foram logo claramente traçadas.
Régis assistiu ao espetáculo enquanto os lados opositores atacavam-se mutuamente, mas a própria credibilidade do halfling fora destruída e ele já não teria qualquer impacto sobre o resto da reunião. No final, pouco foi decidido. O máximo que Agorwal, Glensather e Muldoon conseguiram arrancar de Cássio foi uma declaração pública de que "um alerta geral deve ser emitido e que este chegue a cada casa em Dez-Burgos. Que o povo receba as más novas e que estejam certos de que hei de abrir espaço dentro das muralhas de Brin Shander para todas as pessoas que assim desejarem nossa proteção."
Régis fitou os representantes divididos. Sem união, o halfling perguntou-se que grau de proteção ofereceriam até mesmo as altas muralhas de Brin Shander.

20
Escravo de Homem Nenhum

- Sem discussão - disse Bruenor rispidamente, embora nenhum dos quatro amigos que lhe faziam companhia nas encostas rochosas do aclive tivesse a menor intenção de se pronunciar contra a decisão. Em sua tola mesquinhez e seu estúpido orgulho, a maioria dos representantes havia praticamente condenado suas comunidades à destruição certa e nem Drizzt, Wulfgar, Cattiebrie ou Régis esperavam que os anões apoiassem uma causa tão sem esperança.
- Quando você vai bloquear as minas? - perguntou Drizzt. O drow ainda não decidira se acompanharia os anões na prisão auto-imposta das cavernas, mas planejara servir como batedor para Brin Shander pelo menos até o exército de Alçar Kessell chegar à região.
- Vamos começar os preparativos hoje à noite - disse Bruenor. - Mas depois de tudo pronto, não tem pressa. Vamos deixar os malditos ores virem direto pra cima da gente antes de derrubar os túneis e apanhar eles no desabamento! 'Cê vai ficar com a gente, então?
Drizzt deu de ombros. Apesar de a maioria das pessoas de Dez-Burgos ainda fugir dele, o drow tinha um forte senso de lealdade e não estava bem certo se conseguiria dar as costas ao lar que escolhera, mesmo sob circunstâncias suicidas. E Drizzt pouco ansiava por retornar ao subterrâneo desprovido de luz, mesmo às cavernas hospitaleiras da vila dos anões.
- E qual é sua decisão? - Bruenor perguntou a Régis.
O halfling também estava dividido entre seus instintos de sobrevivência e sua lealdade a Dez-Burgos. Com a ajuda do rubi, ele vivera bem durante os últimos anos às margens do Maer Dualdon. Mas, agora, ele havia sido desmascarado. Depois dos rumores espalhados pelo conselho, todos em Brin Shander cochichavam sobre a influência mágica do halfling. Não demoraria muito até que todas as comunidades viessem a saber das acusações de Kemp e começassem a evitá-lo, se é que não se esquivariam dele abertamente. De um jeito ou de outro, Régis sabia que seus dias de vida fácil em Bosquesó estavam chegando ao fim.
- Obrigado pelo convite - disse ele a Bruenor. - Virei para cá antes de Kessell chegar.
- Ótimo - respondeu o anão. - 'cê vai ficar com um quarto perto do garoto, assim nenhum dos anões vai precisar te ouvir choramingando de fome! - Lançou a Drizzt uma piscadela jovial.
- Não - disse Wulfgar.
Bruenor olhou para ele, curioso, interpretando erroneamente as intenções do bárbaro e perguntando-se por que ele faria objeção a ter Régis a seu lado.
- Olha lá, garoto - caçoou o anão. - Se tiver pensando em ficar perto da menina, então comece a pensar em encolher a cabeça e escapar de meu machado!
Cattiebrie riu baixinho, constrangida, mas verdadeiramente emocionada.
- As minas não são meu lugar - disse Wulfgar de repente. - Minha vida está na planície.
- 'cê 'tá esquecendo que eu é que decido sua vida! - retorquiu Bruenor. Na verdade, seus berros deviam-se mais à irritação de um pai do que ao ultraje de um senhor de escravos.
Wulfgar ficou de pé diante do anão, orgulhoso e austero. Drizzt compreendeu, satisfeito. Foi então que Bruenor começou a entender aonde o bárbaro queria chegar e, apesar de detestar a idéia da separação, naquele instante, sentiu-se mais orgulhoso do rapaz do que nunca.
- Meu período de compromisso ainda não terminou - começou Wulfgar -, mas já saldei minha dívida com você, meu amigo, e com seu povo, repetidas vezes. Eu sou Wulfgar! - proclamou ele, orgulhoso, com o queixo firme e os músculos tensos. - Não mais um garoto, mas um homem! Um homem livre!
Bruenor sentiu a umidade bordejar-lhe os olhos. Pela primeira vez, nada fez para escondê-la. Avançou até o imenso bárbaro e retribuiu o olhar obstinado de Wulfgar com sincera admiração.
- E é mesmo - observou Bruenor. - Então, posso perguntar se, de sua própria escolha, vai ficar e lutar a meu lado?
Wulfgar chacoalhou a cabeça.
- Na verdade, já saldei minha dívida com você. E hei sempre de chamá-lo de amigo... querido amigo. Mas tenho outra dívida a saldar. - Ele desviou o olhar para o Sepulcro de Kelvin e além. Incontáveis estrelas brilhavam limpidamente sobre a tundra, fazendo a vasta planície parecer ainda mais imensa e desabitada. - Lá fora, num outro mundo.
Cattiebrie suspirou e trocou de pé desconfortavelmente. Somente ela compreendia completamente o retrato indistinto pintado por Wulfgar. E ela não estava feliz com a escolha dele.
Bruenor assentiu, respeitando a decisão do bárbaro.
- Vá, então, e passe bem - disse ele, esforçando-se para controlar a voz entrecortada enquanto partia em direção à trilha rochosa. Deteve-se um último momento e olhou para trás, para o jovem e alto bárbaro. - 'cê já é um homem, não há o que discutir - disse ele, por sobre o ombro. - Mas nunca se esqueça de que vai ser sempre meu garoto!
- Não vou - Wulfgar murmurou baixinho enquanto Bruenor desaparecia túnel adentro. Sentiu a mão de Drizzt em seu ombro.
- Quando você vai partir? - o drow perguntou.
- Esta noite - respondeu Wulfgar. - Estes dias soturnos não oferecem descanso.
- E para onde vai? - perguntou Cattiebrie, conhecendo de antemão a verdade e também a resposta vaga que Wulfgar daria.
O bárbaro voltou o olhar indefinido mais uma vez para a planície.
- Para casa.
Ele começou a descer a trilha e Régis o acompanhou. Mas Cattiebrie ficou para trás e, com um gesto, pediu a Drizzt que fizesse o mesmo.
- Diga adeus a Wulfgar hoje à noite - disse ela ao drow. - Não creio que ele vá voltar.
- Ele é quem deve escolher onde fica sua casa - replicou Drizzt, imaginando que as notícias sobre Heafstaag unindo-se a Kessell haviam tido alguma influência sobre a decisão de Wulfgar. Ele observou respeitosamente o bárbaro que se afastava. - Ele tem alguns assuntos particulares a resolver.
- Mais do que você imagina - disse Cattiebrie. Drizzt olhou para ela, curioso. - Wulfgar tem uma aventura em mente - ela explicou. Não tivera a intenção de quebrar a confiança de Wulfgar, mas imaginara que ninguém, a não ser Drizzt Do'Urden, seria capaz de encontrar um meio de ajudá-lo. - Uma aventura que acredito ter lhe sido imposta antes de estar preparado.
- As questões da tribo são assunto dele - disse Drizzt, imaginando o que a moça sugeria. - Os bárbaros têm suas próprias tradições e não recebem muito bem os forasteiros.
- Quanto às tribos, eu concordo - disse Cattiebrie. - Mas o caminho de Wulfgar, a menos que eu esteja enganada, não leva diretamente para casa. Tem alguma outra coisa pela frente, uma aventura de que ele fala com freqüência, mas nunca explica inteiramente. Sei apenas que envolve grande perigo e uma promessa que mesmo ele teme não conseguir cumprir sozinho.
Drizzt desviou o olhar para a planície estrelada e ponderou as palavras da moça. Ele sabia que Cattiebrie era muito perspicaz e observadora para a idade. Não duvidou das suposições dela.
As estrelas piscavam acima da noite fresca e a abóbada celeste tragava a orla plana do horizonte. Um horizonte ainda não marcado pelas fogueiras de um exército em marcha, observou Drizzt.
Talvez ele tivesse algum tempo.

Apesar de a proclamação de Cássio chegar até a mais remota das vilas em questão de dois dias, poucos grupos de refugiados pegaram as estradas até Brin Shander. Cássio já esperava por isso, de outro modo jamais teria feito a audaciosa oferta de abrigar todos os que viessem. Brin Shander era uma cidade de bom tamanho e sua população atual já não era tão grande quanto antes. Havia muitos edifícios desocupados no interior das muralhas e todo um setor da cidade, reservado para as caravanas mercantes, encontrava-se vazio no momento. Entretanto, se apenas metade das pessoas das outras nove comunidades ali buscasse refúgio, Cássio se veria em dificuldades para honrar seu compromisso.
O representante não estava preocupado. O povo de Dez-Burgos era uma gente valorosa e vivia cotidianamente sob a ameaça de uma invasão dos goblins. Cássio sabia que seria necessário mais do que um alerta abstrato para arrancá-los de suas casas. E, com a lealdade entre as vilas tão em baixa, poucos líderes tomariam qualquer providência para convencer seu povo a fugir.
No fim das contas, Glensather e Agorwal foram os únicos representantes a chegar aos portões de Brin Shander. Praticamente toda Angraleste seguia seu líder, mas Agorwal era acompanhado por menos da metade da gente de Termalaine. Rumores vindos da arrogante cidade de Targos, quase tão bem defendida quanto Brin Shander, deixaram claro que nem uma pessoa sequer dali partiria. Muitos pescadores de Termalaine, temendo a vantagem econômica que Targos ganharia sobre eles, recusaram-se a desistir do mês mais lucrativo da estação de pesca.
Esse também foi o caso de Caer-Konig e Caer-Dineval. Nenhum dos rancorosos inimigos atrevia-se a ceder ao outro a menor vantagem e ninguém, de nenhuma das duas cidades, fugiu para Brin Shander. Para o povo dessas comunidades em guerra, os ores eram uma ameaça distante com a qual teriam de lidar caso algum dia esta se materializasse, mas a disputa com seus vizinhos imediatos era brutalmente real e evidente em todas as rotinas diárias.
No oeste, a vila de Bremen continuava encarniçadamente independente das outras comunidades e encarava a oferta de Cássio como uma tentativa ineficaz de Brin Shander de reafirmar sua posição de liderança. Bom Prado e Toca de Dugan, ao sul, não tinham qualquer intenção de se esconder na cidade murada ou de enviar soldados para ajudar na batalha. Essas duas cidades, às margens do Marerrubra, o menor dos lagos e o mais pobre em cabeçudas, não se dariam ao luxo de ficar muito tempo longe dos barcos. Haviam atendido ao pedido de união cinco anos antes, sob a ameaça de uma invasão bárbara, e, embora sofressem as maiores perdas dentre todas as vilas envolvidas no confronto, foram as que menos ganhos tiveram.
Vários grupos de Bosquesó infiltraram-se em Brin Shander, mas boa parte do povo da vila mais ao norte preferiu manter-se afastada. Seu herói perdera o prestígio. Mesmo Muldoon agora via o halfling sob uma perspectiva diferente e desconsiderou o alerta de invasão como um mal-entendido, ou quem sabe até um embuste calculado.
O bem maior da região havia sido sobrepujado pelos mais insignificantes ganhos pessoais de um orgulho pertinaz. A maioria das pessoas de Dez-Burgos confundiu união com dependência.

Régis retornou a Brin Shander para fazer alguns arranjos pessoais na manhã seguinte à partida de Wulfgar. Um amigo viria de Bosquesó com seus estimados pertences e, portanto, ele permaneceu na cidade, assistindo em total consternação à passagem dos dias sem que se fizessem quaisquer preparativos efetivos para receber o exército que chegava. Mesmo depois do conselho, o halfling nutrira alguma esperança de que as pessoas percebessem que a destruição era iminente e acabassem por se unir, mas, agora, ele começava a acreditar que a decisão dos anões de abandonar Dez-Burgos e encerrar-se em suas minas era a única opção, caso desejassem sobreviver.
Régis culpava-se em parte pela tragédia iminente, convencido de que se tornara descuidado. Quando haviam traçado os planos de usar a situação política e o poder do rubi para forçar as vilas a se unirem contra os bárbaros, ele e Drizzt passaram muitas horas prevendo as respostas iniciais dos representantes e medindo o valor da aliança de cada vila. Dessa vez, porém, Régis depositara uma fé maior nas pessoas de Dez-Burgos e na pedra, imaginando que poderia simplesmente empregar seu poder para convencer os últimos céticos quanto à gravidade da situação.
Mas Régis não suportou a própria culpa ao ouvir as respostas arrogantes e ressabiadas que chegavam de todas as vilas. Por que ele deveria forçar as pessoas a se defender por meio de um engodo? Se eram estúpidas o bastante para deixar o próprio orgulho acarretar a própria destruição, então que responsabilidade, ou que direito, tinha ele de salvá-las?
- Vocês terão o que merecem! - disse o halfling em voz alta, sorrindo, malgrado ele mesmo, ao perceber que estava começando a soar tão descrente quanto Bruenor.
Mas a insensibilidade era sua única proteção contra uma situação tão sem remédio. Ele esperava que seu amigo de Bosquesó chegasse logo. Seu santuário estava no subterrâneo.

Akar Kessell estava sentado no trono de cristal do Salão das Visões, o terceiro nível de Crishal-Tirith, e tamborilava os dedos nervosamente no braço da grande cadeira enquanto fitava atentamente o espelho escuro diante dele. Sorrisão estava muito atrasado com seu relatório sobre a caravana de reforços. A última invocação que o mago recebera do covil fora suspeita, pois não encontrara ninguém do outro lado para receber sua resposta. Agora, o espelho no covil revelava apenas trevas e resistia a todas as tentativas do mago de vislumbrar a sala.
Se o espelho tivesse sido quebrado, Kessell teria percebido a alteração em suas visões. Mas aquilo era um grande mistério, pois algo além de sua compreensão bloqueava-lhe a visão remota. O dilema o enervava, fazia-o pensar que tinha sido enganado ou descoberto. Os dedos continuaram a tamborilar nervosamente.
- Talvez seja o momento de tomar uma decisão - sugeriu Errtu, em sua habitual posição ao lado do trono do mago.
- Ainda não atingimos nossa força máxima! - retorquiu Kessell. - Muitas tribos de goblins e um grande clã de gigantes ainda não chegaram. E os bárbaros ainda não estão prontos.
- Os soldados têm sede de batalha - salientou Errtu. - Lutam entre si. E possível que você logo veja seu exército desintegrar-se à sua volta!
Kessell concordava que manter tantas tribos de goblins reunidas durante tanto tempo era um negócio arriscado e perigoso. Talvez fosse melhor se marchassem imediatamente. Mas, ainda assim, o mago queria ter certeza. Queria o exército no auge de suas forças.
- Onde está Sorrisão? - queixou-se Kessell. - Por que ele não atende a meus chamados?
- Que preparativos os humanos estão fazendo agora? - perguntou Errtu abruptamente.
Mas Kessell já não ouvia. Limpou o suor do rosto. Talvez a estilha e o demônio tivessem razão quanto a mandar os bárbaros, bem menos conspícuos, ao covil. O que estariam pensando os pescadores caso tivessem descoberto uma combinação tão incomum de monstros entocando-se na região? O quanto já teriam adivinhado?
Errtu percebeu o desconforto de Kessell com impiedosa satisfação. O demônio e a estilha vinham pressionando Kessell a atacar muito mais cedo desde que as mensagens de Sorrisão haviam cessado. Mas o mago covarde, precisando de mais garantias de que seu exército seria esmagador, continuara a tardar.
- Devo ir às tropas? - perguntou Errtu, confiante que a resistência de Kessell já não existia.
- Envie mensageiros aos bárbaros e às tribos que ainda não se juntaram a nós - instruiu Kessell. - Diga-lhes que lutar a nosso lado é juntar-se ao banquete da vitória! Mas os que não lutarem a nosso lado cairão a nossos pés! Marcharemos amanhã!
Errtu deixou a torre sem demora e não demorou muito para que os vivas pelo início da guerra ecoassem por todo o imenso acampamento. Goblins e gigantes corriam nervosamente de um lado para outro, desmontando as barracas e embalando suprimentos. Haviam esperado por aquele momento durante longas semanas e agora não desperdiçavam tempo com os preparativos finais.
Naquela mesma noite, o vasto exército de Akar Kessell levantou acampamento e começou sua longa marcha em direção a Dez-Burgos.
E, no covil desbaratado dos verbeeg, o espelho de cristalomancia encontrava-se intocado e inteiro, inofensivamente coberto pela pesada manta que Drizzt Do'Urden jogara sobre ele.

Epílogo

Ele correu sob o radiante sol do dia; correu sob as estrelas pálidas da noite, com o vento leste sempre em seu rosto. As pernas compridas e os passos largos carregavam-no incansavelmente, um mero pontinho em movimento na planície desabitada. Durante dias, Wulfgar forçou-se aos limites absolutos de sua resistência, chegando a caçar e a comer ainda a caminho, parando apenas quando a exaustão o derrubava.
Bem mais ao sul, avançando a partir da Espinha do Mundo como uma nuvem tóxica de vapores mal-cheirosos, vinham as forças de goblins e gigantes de Akar Kessell. Com as mentes distorcidas pela vontade da estilha de cristal, eles desejavam apenas matar e destruir. Desejavam apenas agradar Akar Kessell.
A três dias do vale dos anões, o bárbaro encontrou, por acaso, as pegadas desordenadas de muitos guerreiros, e todas levavam em direção a um destino comum. Ficou feliz por conseguir encontrar seu povo com tamanha facilidade, mas a presença de tantas pegadas revelava que as tribos estavam se reunindo, um fato que apenas enfatizava a urgência de sua missão. Instigado pela necessidade, ele seguiu em frente com maior vigor.
O maior inimigo de Wulfgar não era o cansaço, mas a solidão. Ele se esforçava para manter seus pensamentos no passado durante longas horas, recordando a promessa feita ao pai morto e contemplando as possibilidades de vitória. Entretanto, ele evitava pensar na senda que agora trilhava, compreendendo perfeitamente que o total desespero do plano poderia destruir sua determinação.
No entanto, era sua única chance. Não tinha sangue nobre nem qualquer Direito ao Desafio contra Heafstaag. Mesmo que derrotasse o rei eleito, seu povo não o reconheceria como líder. A única maneira de alguém como ele legitimar uma reivindicação à condição de rei da tribo era por meio de um ato de proporções heróicas.
Ele prosseguia a passos largos em direção ao mesmo objetivo que levara à morte muitos outros pretensos reis antes dele. E, nas sombras logo atrás dele, caminhando com a graciosa desenvoltura característica de sua raça, vinha Drizzt Do'Urden.
Sempre rumo leste, para a Geleira Reghed e um lugar chamado Vaporeterno.
Para o covil de Ingeloakastimizilian, o dragão branco que os bárbaros denominavam simplesmente "Morte Gélida".

Livro 3
Crishal-Tirith

O que Wulfgar vê quando olha para a tundra, quando seus olhos de um azul cristalino vagam pela planície escura até os pontos de luz que marcam as fogueiras do acampamento de seu povo?
Será que ele enxerga o passado, talvez, e anseia retornar àquele lugar e àqueles costumes? Será que enxerga o presente e compara o que aprendeu comigo e com Bruenor às duras lições da vida entre seus nômades companheiros de tribo?
Ou será que Wulfgar enxerga o futuro, o potencial para a mudança, a possibilidade de levar costumes novos e melhores a seu povo?
Um pouco dos três, acho eu. Desconfio que esse é o turbilhão dentro de Wulfgar, as chamas que fervilham por trás daqueles olhos azuis. Ele luta com tamanha paixão! Um pouco disso advém de sua criação entre os ferozes homens das tribos, dos jogos de guerra dos meninos bárbaros, geralmente sangrentos e às vezes fatais. Parte dessa paixão pela batalha brota do turbilhão interior de Wulfgar, da frustração que ele deve sentir ao comparar as lições que recebeu de mim e de Bruenor às que obteve durante os anos passados entre sua própria gente.
O povo de Wulfgar invadiu Dez-Burgos. Eles chegaram com fúria impiedosa, prontos para matar quem quer que se colocasse em seu caminho sem a menor consideração.
Como Wulfgar concilia essa verdade com o fato de que Bruenor Martelo de Batalha não o deixou morrer no campo, que o anão o poupou, embora ele houvesse tentado matar Bruenor em combate (apesar de o tolo rapaz cometer o erro de dar uma pancada na cabeça de Bruenor!)? Como Wulfgar concilia o amor que Bruenor tem lhe demonstrado com a idéia que antes fazia dos anões como inimigos detestáveis e impiedosos? Pois é assim que os bárbaros do Vale do Vento Gélido sem dúvida vêem os anões, uma mentira que perpetuam entre eles mesmos de modo a justificar o costume de empreender incursões assassinas. Não diferem muito das mentiras que os drow contam a si mesmos para justificar seu ódio por qualquer um que não seja drow.
Mas, agora, Wulfgar foi afrontado com a verdade de Bruenor e dos anões. Irrevogavelmente. Ele tem de ponderar essa revelação pessoal e compará-la a todas as "verdades" que aprendeu na infância. Precisa aceitar que aquilo que seus pais e todos os anciões da tribo lhe disseram eram mentiras. Sei, por experiência própria, que não é algo fácil de conciliar. Pois fazê-lo é admitir que uma boa parte de sua própria vida não passou de uma mentira, que uma boa parte daquilo que faz de você o que você é está errada. Reconheci os males de Menzoberranzan bem cedo porque seus ensinamentos iam tanto contra a lógica quanto contra o que eu trazia em meu coração. No entanto, muito embora essas iniqüidades fossem dolorosamente óbvias, não foram fáceis os primeiros passos que me levaram para longe de minha terra natal.
Os erros dos bárbaros do Vale do Vento Gélido são insignificantes se comparados aos dos drow e, portanto, temo que os passos que Wulfgar precisa dar para se afastar emocionalmente de seu povo sejam ainda mais difíceis. Há muito mais verdade nos costumes dos bárbaros, mais justificativas para suas ações - belicosos como são -, porém, recai sobre os ombros fortes, mas dolorosamente jovens de Wulfgar diferenciar entre os costumes de seu povo e os de seus novos amigos, adotar a compaixão e a aceitação acima das sólidas muralhas do preconceito que enclausuraram toda a sua juventude.
Não invejo a tarefa que ele tem. diante de si - a confusão e a frustração.
É bom que ele lute todos os dias. Rezo apenas para que, num acesso cego de fúria, enquanto externa essa frustração, meu companheiro de treinos não me arranque a cabeça dos ombros.

Drizzt Do'Urden

21
A Tumba de Gelo

Na base da grande geleira, escondido num pequeno vale no qual um dos contrafortes de gelo serpenteava por entre fendas e matacões fragmentados, ficava um lugar que os bárbaros denominavam Vaporeterno. Uma fonte termal alimentava um pequeno lago, e as águas aquecidas travavam uma batalha inexorável com as banquisas e as temperaturas enregelantes. Os nativos retidos no interior pelas primeiras neves, aqueles que não conseguiam encontrar o caminho para o mar seguindo o rebanho de renas, geralmente buscavam refúgio em Vaporeterno, pois, mesmo nos meses mais frios do inverno, podia-se encontrar ali água em estado líquido, essencial à vida. E os vapores quentes do lago tornavam suportáveis, ainda que desconfortáveis, as temperaturas da área próxima.
No entanto, o calor e a água potável constituíam apenas parte da riqueza de Vaporeterno. Sob a superfície opaca da água embaciada jazia uma fortuna em pedras preciosas, jóias, ouro e prata, a rivalizar com o tesouro de qualquer rei de toda aquela região do mundo. Todos os bárbaros conheciam a lenda do dragão branco, mas a maioria deles considerava-a apenas uma história fantasiosa recontada por velhos pretensiosos para a diversão das crianças. Pois o dragão não emergia de seu covil oculto havia muitos e muitos anos.
Wulfgar, porém, sabia que não se tratava de uma simples lenda. Quando jovem, seu pai havia acidentalmente topado com a entrada da caverna secreta. Mais tarde, quando ouviu a lenda do dragão, Beornegar compreendeu o valor potencial de sua descoberta e passou anos coletando todas as informações que conseguiu encontrar sobre os dragões, principalmente os brancos, e Ingeloakastimizilian em particular.
Beornegar morrera numa batalha entre as tribos antes que pudesse tentar conquistar o tesouro, mas, como vivesse numa terra em que a visita da morte era muito comum, ele previra essa sinistra possibilidade e dividira seu conhecimento com o filho. O segredo não morreu com ele.

Com um arremesso de Garra de Palas, Wulfgar abateu um gamo e carregou o animal pelos últimos quilômetros até Vaporeterno. Ele visitara o lugar duas vezes antes, mas mesmo assim, como sempre, a estranha beleza da paisagem tirou-lhe o fôlego. O ar acima do lago cobria-se de vapor, e pedaços de gelo flutuante deixavam-se levar pelas águas embaciadas como meândricos navios-fantasmas. Os imensos matacões que cercavam a área eram particularmente coloridos, com vários tons de vermelho e laranja, e encontravam-se encapsulados numa fina camada de gelo que capturava o calor do sol e refletia brilhantes explosões de cores cintilantes, em surpreendente contraste com o cinza enfadonho do turvo gelo glacial. Era um local silencioso, protegido do choro pesaroso do vento por paredões de gelo e rocha, livre de qualquer perturbação.
Depois da morte de Beornegar, Wulfgar jurou, como homenagem, empreender essa jornada e realizar o sonho de seu pai. Ele se aproximou reverentemente do lago e, embora questões mais urgentes o assombrassem, deteve-se para refletir um pouco. Guerreiros de todas as tribos da tundra tinham vindo a Vaporeterno com as mesmas esperanças. Nenhum deles jamais retornara.
O jovem bárbaro decidiu mudar essa situação. Firmou o queixo orgulhoso e pôs-se a esfolar o gamo. O primeiro obstáculo a sobrepujar era o próprio lago. Abaixo da superfície, as águas eram enganosamente cálidas e confortáveis, mas quem emergisse do lago no ar frio morreria congelado em questão de minutos.
Wulfgar tirou o couro do animal e começou a raspar a camada subjacente de gordura. Derreteu-a numa pequena fogueira até que atingisse a consistência de uma tinta espessa, depois besuntou o corpo todo. Inspirando profundamente para se acalmar e concentrar os pensamentos na tarefa imediata, ele apanhou Garra de Palas e entrou nas águas de Vaporeterno.
Sob o véu atenuante de névoa, as águas pareciam serenas, mas assim que se afastou das margens do lago, Wulfgar sentiu as fortes correntes voraginosas da fonte termal. Usando uma saliência de rocha protuberante como marco, ele se aproximou do centro exato do lago. Lá chegando, inspirou uma última vez e, confiante nas instruções de seu pai, deixou-se levar pelas correntes e afundar na água. Desceu por um instante, depois foi subitamente arrastado pela correnteza do riacho em direção à extremidade norte do lago. Mesmo sob a bruma, a água era nebulosa, o que obrigava Wulfgar a confiar cegamente que ele transporia o lago antes de lhe acabar o fôlego.
Ele já estava a uma pequena distância do paredão de gelo, na extremidade do lago, antes mesmo de vislumbrar o perigo. Preparou-se para a colisão, mas a corrente turbilhonou de repente e o mandou ainda mais para o fundo. A obscuridade tornou-se treva assim que ele entrou por uma abertura escondida sob o gelo, de largura apenas suficiente para que ele deslizasse por ela, apesar de o fluxo incessante do riacho não lhe oferecer outra escolha.
Seus pulmões gritavam por ar. Ele mordeu o lábio para evitar que a boca se abrisse numa explosão e o privasse dos últimos fiapos de oxigênio precioso.
Foi então que ele passou a um túnel mais largo, onde o nível da água foi baixando até chegar-lhe à garganta. Ofegante, ele respirou com sofreguidão, mas ainda era carregado, impotente, pela água impetuosa.
Um perigo ficara para trás.
Depois de muitas voltas e curvas, ouviu-se claramente o estrondo de uma queda d'água logo adiante. Wulfgar tentou diminuir sua velocidade, mas não conseguia encontrar no que se agarrar nem qualquer tipo de esteio, pois o chão e as paredes eram de gelo tornado liso por séculos de correnteza. O bárbaro agitou-se freneticamente e Garra de Palas voou de suas mãos quando ele tentou inutilmente enfiá-las no gelo sólido. Ele entrou numa caverna ampla e profunda e vislumbrou o vão livre diante dele.
Um pouco além do topo da cachoeira havia vários pingentes de gelo enormes que se estendiam desde o teto abobadado até abaixo da linha de visão de Wulfgar. Ele enxergou ali sua única chance. Quando se aproximou da beirada do vão, ele saltou e abraçou um pingente de gelo. Caiu rapidamente, pois o sincelo se afilava, mas logo viu que este se alargava novamente perto do chão, como se um segundo pingente tivesse crescido de baixo para cima para encontrar o primeiro.
A salvo por ora, ele percorreu com o olhar a estranha caverna, admirado. A queda d'água prendia-lhe a imaginação. O vapor elevava-se do precipício e acrescentava ao espetáculo um toque de surrealismo. O riacho escorria por sobre o vão e boa parte dele seguia seu caminho através de um pequeno precipício, que não passava de uma fenda no chão, dez metros abaixo da base da cachoeira. As gotículas que ultrapassavam o precipício, porém, solidificavam-se assim que se separavam do riacho e, ao atingirem o chão de gelo da caverna, quicavam em todas as direções. Ainda não completamente endurecidos, os cubos aderiam ao substrato onde pousavam e, por toda a base da cachoeira, encontravam-se pilhas estranhamente esculpidas de gelo fragmentado.
Garra de Palas atravessou o vão, ultrapassou facilmente o pequeno precipício e chocou-se contra uma daquelas esculturas, espalhando estilhaços de gelo. Embora tivesse os braços entorpecidos, depois de deslizar pelo sincelo, Wulfgar lançou-se rapidamente até o martelo, que já começava a aderir à pilha onde havia caído, e liberou-o do abraço petrificante do gelo.
Sob o piso cristalino, no ponto em que o martelo desbastara as camadas superiores, o bárbaro notou uma sombra escura. Examinou-a mais de perto, depois recuou diante da horrenda visão. Perfeitamente preservado, um de seus predecessores tinha aparentemente despencado queda abaixo e morrido ali mesmo onde caíra, no gelo cada vez mais profundo. Quantos outros, imaginou Wulfgar, haviam encontrado o mesmo destino?
Ele não tinha tempo para pensar um pouco mais na pergunta. Uma de suas outras preocupações havia se desfeito, pois boa parte do teto da caverna estava apenas alguns metros abaixo da superfície iluminada, e o sol abria caminho pelas partes que eram feitas de puro gelo. O menor fulgor proveniente do teto refletia-se milhares de vezes nos pisos e paredes vítreos, e a caverna inteira irrompia em explosões cintilantes de luz.
Wulfgar sentia vivamente o frio, mas a gordura derretida era proteção suficiente. Ele sobreviveria aos primeiros perigos daquela aventura.
Mas o espectro do dragão fazia-se sentir em algum lugar mais adiante.
Vários túneis espiralados partiam da câmara principal, esculpida pelo riacho nos dias de antanho, quando suas águas eram mais elevadas. No entanto, somente um deles era grande o bastante para um dragão. Wulfgar pensou em vasculhar primeiro os outros túneis para ver se conseguia encontrar um caminho menos óbvio até o covil. Mas o fulgor, as distorções de luz e os incontáveis sincelos, que pendiam do teto como os dentes de um predador, deixavam-no tonto, e ele sabia que, caso se perdesse ou desperdiçasse muito tempo, a noite o surpreenderia, privando-o da luz e fazendo a temperatura cair abaixo até mesmo de sua considerável tolerância.
Portanto, ele bateu Garra de Palas contra o chão para remover o gelo remanescente que aderira à arma e seguiu em frente pelo túnel que acreditava levar ao covil de Ingeloakastimizilian.

O dragão dormia profundamente ao lado de seu tesouro na maior câmara das cavernas de gelo, confiante, após tantos anos de solidão, que não seria perturbado. Ingeloakastimizilian, mais comumente conhecido como Morte Gélida, cometera o mesmo erro que muitos de sua espécie que tinham covis em cavernas de gelo semelhantes. O riacho impetuoso que oferecia entrada às cavernas, e também saída, minguara ao longo dos anos, deixando o dragão aprisionado numa tumba cristalina.
Morte Gélida já desfrutara seus anos caçando gamos e humanos. No pouco tempo em que estivera ativo, o monstro devastador e aterrorizante ganhara uma reputação respeitável. Os dragões, porém, principalmente os brancos, que raramente se mostram ativos em seus habitats gelados, podem viver muitos séculos sem carne. O amor egoísta por seus tesouros é capaz de sustentá-los indefinidamente, e a riqueza de Morte Gélida, apesar de pequena se comparada aos vastos montes de ouro colecionados pelos descomunais dragões vermelhos e azuis que viviam em áreas mais populosas, era a maior dentre todas as fortunas dos dragões da tundra.
Se tivesse realmente desejado a liberdade, o dragão provavelmente poderia ter atravessado o teto de gelo da caverna. Mas Morte Gélida considerava o risco grande demais, e, portanto, dormia, contando suas moedas e pedras preciosas em sonhos que os dragões julgavam agradáveis.
Entretanto, a serpente adormecida não percebera inteiramente como havia se descuidado. Em seu cochilo ininterrupto, Morte Gélida não se movia havia décadas. Uma fria manta de gelo tinha se esgueirado sobre a forma alongada e espessado-se aos poucos até que o único ponto livre fosse um buraco em frente às grandes narinas, onde as rajadas rítmicas das ruidosas exalações mantinham o gelo afastado.
E foi assim que Wulfgar, procurando cautelosamente a origem dos roncos retumbantes, encontrou o monstro.
Vendo o esplendor de Morte Gélida realçado pela manta de gelo cristalino, Wulfgar examinou o dragão com profundo assombro. Pilhas de ouro e pedras preciosas enchiam a caverna sob mantos semelhantes, mas Wulfgar não conseguia desviar os olhos. Jamais vira tamanha magnificência, tamanha força.
Confiante que o monstro se encontrava impotente e imobilizado, ele abaixou a cabeça do martelo e deixou a arma pender junto ao flanco.
- Saudações, Ingeloakastimizilian - chamou, usando respeitosamente o nome completo do monstro.
Os olhos azul-claros abriram-se num átimo e as chamas ardentes se fizeram imediatamente visíveis, mesmo sob o véu de gelo. Wulfgar hesitou diante daquele olhar penetrante.
Após o choque inicial, ele recuperou a confiança.
- Não tenha medo, poderosa serpente - disse ele com audácia. - Sou um guerreiro honrado e não vou matá-la sob circunstâncias tão injustas. - Ele sorriu obliquamente. - Só levarei seu tesouro e meu desejo será aplacado!
Mas o bárbaro cometera um erro crítico.
Um guerreiro mais experiente, até mesmo um cavaleiro honrado, teria relevado seu código cavalheiresco, aceitado a boa sorte como uma bênção e matado a serpente enquanto esta dormia. Poucos aventureiros, ou até mesmo grupos inteiros de aventureiros, haviam oferecido a um dragão maligno de qualquer cor uma oportunidade justa e sobrevivido para contar vantagem.
Até mesmo Morte Gélida, em meio ao choque inicial de sua situação, imaginara-se indefeso ao acordar e encarar o bárbaro. Os grandes músculos, atrofiados pela inatividade, não conseguiram resistir ao peso e à força da prisão de gelo. Mas, quando Wulfgar mencionou o tesouro, uma nova onda de energia afastou a letargia do dragão.
Morte Gélida encontrou forças na ira e, com uma explosão de energia até então inimaginável para o bárbaro, o dragão acionou os músculos torneados e fez grandes pedaços de gelo voar pelos ares. Todo o complexo de cavernas estremeceu violentamente, e Wulfgar, sobre o piso escorregadio, foi atirado de costas ao chão. Ele rolou para o lado no último segundo e esquivou-se da ponta lanceolada de um sincelo desalojado pelo tremor.
Wulfgar rapidamente colocou-se de pé, mas, ao se voltar, encontrou-se frente a frente com uma cabeça branca e ornada de chifres bem à altura de seus olhos. As grandes asas do dragão se desdobraram, livrando-se dos últimos restos de sua manta, e os olhos azuis cravaram-se em Wulfgar.
O bárbaro olhou desesperadamente ao redor, à procura de uma rota de fuga. Cogitou arremessar Garra de Palas, mas sabia que não conseguiria matar o monstro com um único golpe. E, inevitavelmente, o hálito mortal viria.
Morte Gélida avaliou o inimigo por um momento. Caso soprasse, teria de se contentar com carne congelada. Era um dragão, afinal de contas, uma terrível serpente, e acreditava - provavelmente com razão - que nenhum homem sozinho pudesse jamais derrotá-lo. Entretanto, aquele homem descomunal e o martelo mágico - pois o dragão sentia-lhe o poder - perturbavam a serpente. A cautela mantivera Morte Gélida vivo por muitos séculos. Ele não se meteria numa escaramuça com aquele homem.
O ar gelado acumulou-se em seus pulmões.
Wulfgar ouviu o ar sendo sugado e, num reflexo, atirou-se para um lado. Não conseguiu escapar totalmente da rajada que se seguiu, mas sobreviveu graças a sua agilidade, combinada à gordura de gamo. Caiu atrás de um bloco de gelo, com as pernas realmente queimadas pelo frio e os pulmões a doer. Ele precisava de alguns instantes para se recuperar, mas viu a cabeça branca que se erguia lentamente para remover o obstáculo insignificante com a mudança de ângulo.
O bárbaro não sobreviveria a uma segunda rajada.
De repente, um globo de escuridão envolveu a cabeça do dragão. Uma flecha de haste negra passou zunindo pelo bárbaro, seguida por outra ainda, e ouviu-se apenas quando ambas atingiram o alvo atrás da barreira de trevas.
- Ataque, rapaz! Agora! - gritou Drizzt Do'Urden desde a entrada da câmara. O disciplinado bárbaro obedeceu instintivamente a seu professor. Com um esgar de dor, ele contornou o bloco de gelo e aproximou-se da serpente que se debatia.
Morte Gélida balançava a imensa cabeça de um lado para o outro, tentando libertar-se do encanto do elfo negro. O ódio consumiu o monstro quando mais uma flecha lancinante atingiu seu alvo. O único desejo do dragão era matar. Mesmo cego, seus sentidos eram superiores; ele demarcou facilmente a direção do drow e soprou mais uma vez.
Mas Drizzt era bem versado na cultura dos dragões. Havia estimado perfeitamente a distância entre ele e Morte Gélida, e a força da geada mortal foi insuficiente.
O bárbaro investiu contra o flanco do dragão aturdido e, com toda a sua grande força, deu com Garra de Palas nas escamas brancas. O dragão encolheu-se de agonia. As escamas agüentaram o golpe, mas o dragão nunca havia sentido tamanha força num humano e não estava inclinado a testar a resistência de seu couro com um segundo ataque. Virou-se para liberar uma terceira rajada no bárbaro exposto.
Mas uma outra flecha atingiu o alvo.
Wulfgar viu uma grande porção de sangue de dragão salpicar o chão logo ao lado dele e observou o globo de escuridão afastar-se subitamente. O dragão rugiu de fúria. Garra de Palas golpeou novamente, e uma terceira vez. Uma das escamas rachou e caiu, e a visão da carne exposta renovou as esperanças de vitória de Wulfgar.
Mas Morte Gélida sobrevivera a muitas batalhas, e sua derrota ainda estava longe. O dragão sabia o quão vulnerável se encontrava face ao poderoso martelo e manteve suficiente concentração para retaliar. A longa cauda fez a volta por sobre as costas escamosas e esmurrou Wulfgar no exato momento em que o bárbaro iniciava mais um golpe. Em lugar da satisfação de sentir Garra de Palas esmigalhando a carne do dragão, Wulfgar viu-se atirado contra um monte congelado de moedas de ouro a meio metro de distância.
A caverna girou, seus olhos lacrimejantes realçavam os reflexos estrelados de luz e a consciência lhe fugia. Mas ele viu Drizzt, com as cimitarras desembainhadas, avançando audaciosamente em direção a Morte Gélida. Viu o dragão em posição, pronto para soprar novamente.
Viu, com clareza cristalina, o imenso sincelo que pendia do teto acima do dragão.
Drizzt seguiu em frente. Não tinha qualquer estratégia contra um adversário tão formidável; ele esperava encontrar um ponto fraco antes que o dragão o matasse. Pensou que Wulfgar estivesse fora de combate, provavelmente morto, depois da poderosa vergastada da cauda, e surpreendeu-se ao ver o súbito movimento num dos cantos.
Morte Gélida também percebeu o movimento do bárbaro e acionou a longa cauda para dar fim a qualquer outra ameaça a seu flanco.
Mas Wulfgar já lançara sua cartada. Com uma última explosão de força, ele se desgrudou da pilha e arremessou Garra de Palas bem alto.
A cauda do dragão atingiu o alvo e Wulfgar ficou sem saber se sua tentativa desesperada foi bem-sucedida. Pensou ver um ponto mais claro aparecer no teto antes de ser arremessado nas trevas.
Drizzt foi testemunha da vitória de ambos. Hipnotizado, o drow assistiu à silenciosa queda do imenso pingente de gelo.
Morte Gélida, insensível ao perigo devido ao globo de escuridão, e pensando que o martelo voara sem rumo, agitou as asas. As patas dianteiras, providas de garras, mal haviam começado a se erguer quando a lança de gelo colidiu contra as costas do dragão e o impeliu de volta ao chão.
Com a bola de escuridão fixa na cabeça do monstro, Drizzt não pôde ver a expressão agonizante do dragão.
Mas ele ouviu o "craque" fatal quando o pescoço, semelhante a um chicote, arremessado pela súbita reversão do impulso, bamboleou para cima e partiu-se.

22
Por Bravura ou Nascimento

O calor de uma pequena fogueira trouxe Wulfgar de volta à consciência. Ele voltou a si um pouco grogue e, a princípio, enquanto se livrava de uma manta que não recordava ter trazido, não conseguiu entender onde estava. Depois, reconheceu Morte Gélida, morto, a uma pequena distância dali, com o imenso pingente de gelo enraizado firmemente em suas costas. O globo de escuridão se dissipara, e Wulfgar admirou-se com a precisão dos disparos aproximados do drow. Uma flecha projetava-se do olho esquerdo do dragão e as hastes negras de outras duas saíam-lhe da boca.
Wulfgar estendeu o braço, em busca da segurança proporcionada pela presença familiar da empunhadura de Garra de Palas em sua mão. Mas o martelo não estava por perto. Lutando contra o penetrante entorpecimento em suas pernas, o bárbaro conseguiu ficar de pé e pôs-se a procurar freneticamente a arma. E onde, perguntou-se, estava o drow?
Foi então que ele ouviu as batidas que provinham de uma câmara adjacente. Mancando, ele contornou a cautelosamente a curva. Ali estava Drizzt, no topo de uma montanha de moedas, removendo-lhe a cobertura de gelo com o martelo de guerra de Wulfgar.
Drizzt percebeu a aproximação de Wulfgar e, como saudação, fez-lhe uma reverência.
- Bons olhos o vejam, Ruína do Dragão! - gritou ele.
- Você também, amigo elfo - respondeu Wulfgar, feliz em ver o drow novamente. - Você me seguiu por uma boa distância.
- Nem tanto - replicou Drizzt, arrancando mais um pedaço de gelo de cima do tesouro. - Dez-Burgos andava muito monótona e eu não poderia deixar você tomar a dianteira em nossa disputa! Dez e meio a dez e meio - declarou ele, com um sorriso largo -, e um dragão a ser dividido entre nós dois. Quero a metade!
- É sua e bem merecida - concordou Wulfgar. - E também metade do butim.
Drizzt revelou uma pequena bolsa que pendia de uma linda corrente de prata em seu pescoço.
- Ninharias - explicou. - Não preciso de riquezas e, de qualquer maneira, duvido que seria capaz de carregar muita coisa! Algumas ninharias já bastam.
Ele vasculhou a porção da pilha que acabara de livrar do gelo e descobriu o punho de uma espada, feito de adamantita negra, esculpido magistralmente à imagem da boca denteada de um felino predador e tendo por botão uma pedra preciosa. O intrincado acabamento seduziu Drizzt e, com dedos vacilantes, ele removeu de sob o ouro o restante da arma.
Uma cimitarra. A lâmina recurva era de prata, com fio de diamante. Drizzt ergueu-a diante dele, admirado com sua leveza e seu perfeito equilíbrio.
- Algumas ninharias... e isto - corrigiu-se.

Mesmo antes de seu encontro com o dragão, Wulfgar imaginava como escaparia das cavernas subterrâneas.
- A correnteza é muito forte e o topo da queda d'água é alto demais para voltarmos por Vaporeterno - disse ele a Drizzt, embora soubesse que o drow já teria inferido a mesma coisa. - Mesmo que conseguíssemos ultrapassar esses obstáculos, não tenho mais gordura de gamo para nos proteger do frio quando deixarmos a água.
- Eu tampouco desejo atravessar as águas de Vaporeterno novamente - Drizzt assegurou ao bárbaro. - No entanto, conto com minha considerável experiência na hora de me meter nessas situações e vim preparado! Daí a madeira para o fogo e a manta que coloquei sobre você, ambas envolvidas em pele de foca. E também isto.
Ele retirou do cinto um gancho de três pontas e alguns metros de corda leve e forte. Já havia encontrado uma rota de fuga.
Drizzt apontou um pequeno buraco no teto. O pingente de gelo desalojado por Garra de Palas levara parte do teto da câmara com ele.
- Nem sonho atirar o gancho tão alto, mas, para seus braços fortes, o arremesso deve ser um desafio insignificante.
- Em outros tempos, talvez - confiou Wulfgar. - Mas estou sem torças. - O bárbaro estivera mais perto da morte do que imaginara quando o sopro do dragão se abateu sobre ele e, exaurida agora a adrenalina do combate, sentia intensamente o frio penetrante. - Temo que minhas mãos insensíveis sequer conseguiriam segurar o gancho!
- Então corra! - berrou o drow. - Deixe seu corpo enregelado se aquecer.
Wulfgar começou imediatamente a correr pela câmara ampla, forçando o sangue a circular pelas pernas e dedos entorpecidos. Em pouco tempo, ele começou a sentir o calor interno do próprio corpo retornando.
Precisou de apenas dois arremessos para passar o gancho pelo buraco e prendê-lo no gelo. Drizzt foi o primeiro a subir, e era como se o elfo ágil corresse corda acima.
Wulfgar terminou o que tinha a fazer na caverna e recolheu um saco de riquezas e alguns outros objetos que sabia seriam necessários. Ele teve muito mais dificuldade em subir pela corda do que Drizzt, mas, com o drow a ajudá-lo lá de cima, conseguiu galgar o gelo antes que o sol poente afundasse no horizonte.
Eles acamparam ao lado de Vaporeterno, banqueteando-se com carne de caça e aproveitando o necessário e bem merecido descanso no conforto dos vapores que aqueciam a região.
Depois, partiram novamente antes do amanhecer, para o oeste. Correram lado a lado durante dois dias, igualando o ritmo frenético que os trouxera tão ao leste. Quando encontraram os rastros das tribos bárbaras que se congregavam, ambos compreenderam que havia chegado a hora da separação.
- Adeus, meu bom amigo - disse Wulfgar, abaixando-se para inspecionar os rastros. - Nunca esquecerei o que você fez por mim.
- Adeus, Wulfgar - respondeu Drizzt sombriamente. - Que seu poderoso martelo leve o terror a seus inimigos durante muitos anos ainda!
Ele partiu, apressado, sem olhar para trás, mas imaginava se veria mais uma vez seu imenso companheiro ainda com vida.

Wulfgar deixou de lado a urgência de sua missão para examinar suas emoções assim que avistou o grande acampamento das tribos reunidas. Cinco anos antes, carregando orgulhosamente o estandarte da Tribo do Alce, um Wulfgar bem mais jovem marchara para uma reunião semelhante, entoando a Canção de Tempus e partilhando o forte hidromel com homens que lutariam e talvez viessem a morrer a seu lado. Ele via a batalha de um outro modo então, como o teste glorioso de um guerreiro. "Selvageria inocente", murmurou, percebendo a contradição das palavras ao recordar sua ignorância naqueles dias, tanto tempo atrás. Mas suas percepções haviam sofrido uma metamorfose considerável. Bruenor e Drizzt, ganhando-lhe a amizade e ensinando-lhe as complexidades do mundo em que viviam, haviam individualizado as pessoas que ele anteriormente considerara meros inimigos e forçaram-no a encarar as brutais conseqüências de suas ações.
Uma bile amarga subiu à garganta de Wulfgar ao imaginar que as tribos lançariam mais um ataque contra Dez-Burgos. O que o repugnava ainda mais era o fato de seu orgulhoso povo marchar para a guerra ao lado de goblins e gigantes.
Ao se aproximar do perímetro, viu que em todo o acampamento não se encontrava Hengorot, o Recinto Cerimonial do Hidromel. Uma série de pequenas tendas, cada uma delas a ostentar os respectivos estandartes dos reis tribais, compreendia o centro do conclave, cercado pelas fogueiras bem visíveis dos soldados comuns. Examinando as bandeiras, Wulfgar notou que quase todas as tribos estavam presentes, mas suas forças combinadas chegavam a pouco mais da metade do conclave de cinco anos antes. As observações de Drizzt, de que os bárbaros não haviam ainda se recuperado do massacre nas encostas de Brin Shander, pareceram dolorosamente verdadeiras.
Dois guardas se apresentaram para receber Wulfgar. Ele não fizera qualquer tentativa de ocultar sua aproximação e, agora, colocava Garra de Palas a seus pés e erguia as mãos para mostrar que suas intenções eram honestas.
- Quem é você que chega desacompanhado e sem ser convidado ao conselho de Heafstaag? - perguntou um dos guardas. Ele avaliou o forasteiro, imensamente impressionado pela óbvia força de Wulfgar e pela pujante arma aos pés do jovem. - Sem dúvida não é nenhum mendigo, nobre guerreiro, mas não o conhecemos.
- Conhecem sim, Revjak, filho de Jorn, o Vermelho - respondeu Wulfgar, reconhecendo o homem como um companheiro de tribo. - Sou Wulfgar, filho de Beornegar, guerreiro da Tribo do Alce. Vocês me perderam cinco anos atrás, quando marchamos sobre Dez-Burgos - explicou, escolhendo cuidadosamente as frases para evitar o assunto da derrota. Os bárbaros não comentavam lembranças tão desagradáveis.
Revjak estudou o rapaz de perto. Ele havia sido amigo de Beornegar e lembrava-se do menino, Wulfgar. Contou os anos, comparando a idade do menino quando o vira pela última vez à idade aparente daquele rapaz. Logo se satisfez com o fato de a semelhança não ser mera coincidência.
- Bem vindo ao lar, jovem guerreiro! - disse afetuosamente. - Você se saiu bem!
- De fato - replicou Wulfgar. - Vi coisas notáveis e prodigiosas e aprendi muito. São muitas as histórias que tenho para contar, mas, na verdade, não tenho tempo para conversa fiada. Estou aqui para ver Heafstaag.
Revjak assentiu e imediatamente começou a mostrar a Wulfgar o caminho por entre as fogueiras enfileiradas.
- Heafstaag ficará feliz com seu retorno.
Baixinho demais para ser ouvido, Wulfgar respondeu:
- Nem tanto.

Uma multidão curiosa ajuntou-se em volta do magnífico guerreiro assim que ele se aproximou da tenda central do acampamento. Reyjak entrou para anunciá-lo ao rei e retornou imediatamente com a permissão de Heafstaag para Wulfgar entrar.
Wulfgar levou Garra de Palas ao ombro, mas não deu um passo sequer em direção à aba que Revjak mantinha aberta.
- O que tenho a falar deve ser dito publicamente e diante de todo o povo - disse ele, alto o bastante para Heafstaag ouvir. - Que Heafstaag venha até mim!
Murmúrios confusos brotaram a seu redor diante daquelas palavras de desafio, pois os rumores que vinham circulando entre a multidão não falavam de Wulfgar, filho de Beornegar, como um descendente das linhagens reais.
Heafstaag precipitou-se para fora da tenda. Aproximou-se do desafiante, com o peito estufado e o único olho bom a fitar Wulfgar com ferocidade. A multidão fez silêncio, esperando que o cruel rei matasse ali mesmo o jovem impertinente.
Mas Wulfgar retribuiu o perigoso olhar de Heafstaag e não recuou o mínimo que fosse.
- Eu sou Wulfgar - anunciou, orgulhoso -, filho de Beornegar, filho de Beorne antes dele; guerreiro da Tribo do Alce, que lutou na Batalha de Brin Shander; portador de Garra de Palas, o Inimigo dos Gigantes - ergueu o grande martelo diante dele -, amigo dos artífices anões e discípulo de um ranger de Gwaeron Windstrom; matador de gigantes e invasor de covis; assassino do líder dos gigantes do gelo, Sorrisão.
Ele se deteve um momento, com os olhos apertados pelo sorriso que se alargava, e aumentou a expectativa da proclamação seguinte. Satisfeito por ter toda a atenção da multidão, ele continuou:
- Eu sou Wulfgar, Ruína do Dragão!
Heafstaag retraiu-se. Nenhum homem vivo em toda a tundra havia reivindicado um título tão imponente.
- Solicito o Direito ao Desafio - grunhiu Wulfgar num tom baixo e ameaçador.
- Vou matar você - respondeu Heafstaag com toda a calma que foi capaz de reunir. Não tinha medo de homem algum, mas os ombros descomunais e os músculos torneados de Wulfgar sugeriam cautela. O rei não tinha a intenção de arriscar sua posição naquele momento, às vésperas de uma aparente vitória sobre os pescadores de Dez-Burgos. Se pudesse desacreditar o jovem guerreiro, o povo jamais permitiria o combate. Forçariam Wulfgar a desistir de sua reivindicação, ou matariam-no imediatamente. - Que herança lhe dá o direito de fazer essa solicitação?
- Você pretende liderar nosso povo sob as ordens de um mago - retorquiu Wulfgar. Ouviu atentamente às vozes na multidão, procurando avaliar se aprovavam ou não sua acusação. - Você pretende fazê-los levantar armas em causa comum com um bando de goblins e ores!
Ninguém ousou protestar em voz alta, mas Wulfgar sentia que a batalha iminente secretamente enfurecia muitos outros guerreiros. Isso explicaria também a ausência do Recinto do Hidromel, pois Heafstaag era inteligente o bastante para perceber que a fúria poderia facilmente explodir em meio às grandes emoções da celebração.
Revjak se interpôs antes que Heafstaag conseguisse responder, fosse com palavras ou armas.
- Filho de Beornegar - disse Revjak com firmeza -, você até agora não conquistou o direito de questionar as ordens do rei. Você declarou um desafio público; as regras da tradição exigem que justifique, por bravura ou nascimento, seu direito a um embate como esse.
A emoção revelava-se nas palavras de Revjak, e Wulfgar compreendeu imediatamente que o velho amigo de seu pai havia interferido para evitar o início de um combate não reconhecido e, portanto, não oficial. O homem mais velho obviamente acreditava que aquele jovem magnífico pudesse atender às exigências. E Wulfgar também sentiu que Revjak - e muitos outros, talvez - esperava que o desafio fosse completado com sucesso.
Wulfgar aprumou os ombros e, confiante, sorriu para o oponente, ganhando forças com mais uma prova de que seu povo seguia a direção ignóbil de Heafstaag simplesmente por estar obrigado ao rei caolho e não conseguir apresentar nenhum desafiante adequado para derrotá-lo.
- Por bravura - disse ele tranqüilamente.
Sem jamais tirar os olhos de Heafstaag, Wulfgar desamarrou a manta enrolada que trazia às costas e exibiu dois objetos parecidos com lanças. Atirou-os casualmente ao chão diante do Rei. Aqueles na multidão que puderam ver claramente o espetáculo boquiabriram-se todos ao mesmo tempo, e até o inabalável Heafstaag empalideceu e deu um passo vacilante para trás.
- O desafio não pode ser recusado! - gritou Revjak. Eram os chifres de Morte Gélida.

O suor frio no rosto de Heafstaag revelava sua tensão enquanto polia com um pedaço de camurça as últimas rebarbas da cabeça de seu imenso machado.
- Ruína do Dragão! - bufou, pouco convincente, para o porta-estandarte que acabara de entrar na tenda. - É mais provável que ele tenha tropeçado numa serpente adormecida!
- Perdão, poderoso rei - disse o rapaz. - Revjak enviou-me para lhe dizer que chegou a hora aprazada.
- Ótimo! - zombou Heafstaag, correndo o polegar pelo fio brilhante do machado. - Vou ensinar o filho de Beornegar a respeitar seu rei!
Os guerreiros da Tribo do Alce formaram um círculo em volta dos combatentes. Embora fosse um acontecimento particular para o povo de Heafstaag, as outras tribos assistiam com interesse a uma distância respeitável. O vencedor não teria qualquer autoridade formal sobre elas, mas seria o rei da tribo mais poderosa e dominante da tundra.
Revjak adentrou o círculo e movimentou-se entre os dois oponentes.
- Anuncio Heafstaag - gritou. - Rei da Tribo do Alce! - E ele continuou a recitar a longa lista de feitos heróicos do rei caolho.
A confiança de Heafstaag pareceu retornar durante a declamação, embora estivesse um pouco confuso e furioso com Revjak, que escolhera anunciá-lo primeiro. Levou as mãos aos amplos quadris, fitou ameaçadoramente cada um dos espectadores mais próximos e sorria quando estes recuavam. Fez o mesmo com seu oponente, mas novamente sua tática intimidativa falhou com Wulfgar.
- E eu anuncio Wulfgar - continuou Revjak -, filho de Beornegar e contestador do trono da Tribo do Alce! - É claro que a declamação da lista de Wulfgar levou bem menos tempo. Mas o último feito anunciado por Revjak trouxe um certo grau de paridade aos dois.
- Ruína do Dragão! - gritou Revjak, e a multidão, até então em respeitoso silêncio, pôs-se a narrar nervosamente os numerosos rumores que haviam surgido sobre o confronto em que Wulfgar matara Morte Gélida.
Revjak olhou para os dois combatentes e deixou o círculo.
O momento de honra chegara.
Com passos cautelosos, os dois circularam pela arena de combate, medindo-se, em busca de sinais de fraqueza. Wulfgar notou a impaciência no rosto de Heafstaag, um defeito comum entre os guerreiros bárbaros. Ele não teria sido muito diferente, não fossem as rudes lições de Drizzt Do'Urden. Mil incisões humilhantes das cimitarras do drow haviam ensinado a Wulfgar que o primeiro golpe não era tão importante quanto o último.
Por fim, Heafstaag bufou e avançou com um brado. Wulfgar também grunhiu alto e movimentou-se como se fosse receber de frente a investida. Mas, então, deu um passo para o lado no último instante, e Heafstaag, arrastado pelo impulso de sua pesada arma, passou pelo adversário aos trambolhões e chocou-se contra a primeira fileira de espectadores.
O rei caolho recuperou-se rapidamente e investiu mais uma vez, duas vezes mais enfurecido, ou assim acreditava Wulfgar. Heafstaag havia sido rei durante muitos anos e lutara em incontáveis batalhas. Se não tivesse aprendido a ajustar sua técnica de combate, já teria sido morto havia muito. Ele voltou a atacar Wulfgar, aparentemente mais fora de controle do que da primeira vez. Mas, ao sair do caminho, Wulfgar encontrou o grande machado de Heafstaag esperando por ele. O rei caolho, antecipando a esquiva, brandiu a arma de lado e abriu o braço de Wulfgar do ombro ao cotovelo.
Wulfgar reagiu rapidamente, desferindo uma estocada defensiva com Garra de Palas para desencorajar ataques subseqüentes. O golpe saiu sem força, mas a mira foi certeira e o poderoso martelo impeliu Heafstaag um passo para trás. Wulfgar aproveitou para examinar o sangue em seu braço.
Ele poderia continuar a lutar.
- Você se defende bem - resmungou Heafstaag ao colocar-se em posição a alguns passos apenas do desafiante. - Teria servido bem a nosso povo como soldado. Que desperdício eu ter de matar você!
Mais uma vez, o machado traçou seu arco, fazendo chover um golpe depois do outro num furioso assalto com a intenção de terminar a luta rapidamente.
Mas, comparado às espadas sibilantes de Drizzt Do'Urden, o machado de Heafstaag parecia se mover preguiçosamente. Wulfgar não teve dificuldade para aparar os ataques, chegando a responder, vez ou outra, com uma estocada calculada que se chocava com um ruído surdo contra o peito largo de Heafstaag.
As faces do rei caolho avermelharam-se de frustração e cansaço.
- Um oponente cansado geralmente ataca com toda a força de uma vez só - Drizzt explicara a Wulfgar, durante as semanas de treinamento. - Mas raramente move-se na direção óbvia, na direção que ele pensa que você pensa que ele está se movendo!
Wulfgar esperou atentamente pela finta anunciada.
Conformado por não conseguir atravessar a guarda eficaz do oponente mais jovem e mais rápido, o rei, coberto de suor, ergueu o machado sobre a cabeça e arremeteu, urrando como um louco para dar ênfase ao ataque.
Mas os reflexos de Wulfgar estavam afiados ao máximo, e a ênfase excessiva que Heafstaag colocara no ataque dizia-lhe para esperar uma mudança de direção. Ele ergueu Garra de Palas, como que para bloquear o golpe dissimulado, mas reverteu a empunhadura no exato momento em que o machado caia do ombro de Heafstaag e entrava enganosamente baixo, com um golpe oblíquo.
Confiando inteiramente em sua arma de fabricação anã, Wulfgar deslocou para trás o pé dianteiro, virando-se para encontrar a lâmina que se aproximava com um golpe de ângulo semelhante.
As cabeças das duas armas chocaram-se com força inacreditável. O machado de Heafstaag estilhaçou-se em suas mãos e as violentas vibrações lançaram-no por terra.
Garra de Palas estava intacto. Wulfgar poderia facilmente ter vencido a luta e dado cabo de Heafstaag com um único golpe.
Revjak cerrou o punho de expectativa pela vitória iminente de Wulfgar.
- Jamais confunda honra com estupidez! - Drizzt repreendera Wulfgar, depois da perigosa inação do bárbaro em relação ao dragão.
Mas, com aquele combate, Wulfgar queria mais do que simplesmente ganhar a liderança de sua tribo; ele queria deixar uma impressão duradoura em todas as testemunhas. Ele largou Garra de Palas e aproximou-se de Heafstaag em pé de igualdade.
O rei bárbaro não questionou sua boa sorte. Saltou sobre Wulfgar e envolveu o rapaz com seus braços numa tentativa de lançá-lo de costas ao chão.
Wulfgar debruçou-se para receber o ataque, plantou firmemente as pernas fortes no chão e deteve o homem mais pesado.
Atracaram-se com ferocidade e trocaram golpes duros antes de conseguirem se engalfinhar e tornar os socos ineficazes. Os olhos de ambos os combatentes estavam lívidos e inchados, o sangue escorria de arranhões e cortes no rosto e no peito de ambos.
Contudo, Heafstaag era o mais cansado. Seu peito largo arquejava a cada árdua exalação. Ele abraçou a cintura de Wulfgar e tentou mais uma vez torcer o corpo de seu implacável oponente para lançá-lo ao chão.
Foi então que os longos dedos de Wulfgar fecharam-se sobre as têmporas de Heafstaag. Os nós dos dedos do rapaz empalideceram, os músculos descomunais dos antebraços e dos ombros se enrijeceram. Ele começou a apertar.
Heafstaag compreendeu imediatamente que estava em dificuldades, pois o abraço de Wulfgar era mais forte que o de um urso. O rei debateu-se freneticamente e seus punhos enormes esmurraram as costelas expostas do oponente, esperando apenas quebrar a concentração mortal de Wulfgar.
Dessa vez, foi uma das lições de Bruenor que o incitou a continuar:
- Lembra da doninha, garoto. Tome os golpes mais fracos, mas nunca, nunca deixe eles escaparem quando 'cê estiver em cima deles!
Os músculos do ombro e do pescoço projetaram-se quando ele forçou o rei caolho a se ajoelhar.
Aterrorizado com a força do abraço, Heafstaag agarrava e puxava os antebraços de ferro do rapaz, tentando inutilmente aliviar a pressão cada vez maior.
Wulfgar percebeu que estava prestes a matar alguém de sua própria tribo.
- Renda-se! - ele gritou para Heafstaag, à procura de uma alternativa mais aceitável.
O orgulhoso rei respondeu com um derradeiro soco.
Wulfgar voltou os olhos para o céu.
- Não sou como ele! - urrou desamparadamente, justificando-se a quem quisesse ouvir. Mas restava apenas um caminho agora.
Os ombros descomunais do jovem bárbaro avermelharam-se com o sangue que a eles afluiu. Ele viu o terror no olhar de Heafstaag transformar-se em incompreensão. Ouviu o estalar dos ossos, sentiu o crânio esmigalhando-se sob suas poderosas mãos.
Revjak deveria ter adentrado o círculo e anunciado o novo Rei da Tribo do Alce.
Mas, como as outras testemunhas a seu redor, ele estava imóvel, boquiaberto, e nem mesmo piscava.

Auxiliado pelas rajadas de vento frio em suas costas, Drizzt percorreu a toda a pressa as últimas milhas até Dez-Burgos. Na mesma noite em que ele havia se separado de Wulfgar, o topo coberto de neve do Sepulcro de Kelvin apareceu no horizonte. A visão de seu lar estimulou o drow a prosseguir ainda mais rápido, mas uma sensação incômoda dizia-lhe que algo estava errado.
O olho humano jamais o teria percebido, mas a aguçada visão noturna do drow enfim o divisou: um pilar crescente de escuridão a obscurecer as estrelas mais baixas do horizonte, ao sul da montanha. E uma segunda coluna um pouco menor, ao sul da primeira.
Drizzt estacou. Estreitou os olhos para se certificar de sua suposição. Em seguida, ele se pôs a caminho novamente, mas devagar, para ganhar tempo e escolher uma rota alternativa.
Caer-Konig e Caer-Dineval estavam em chamas.

23
Sitiados

A frota de Caer-Dineval corricava as águas mais ao sul do Lac Dinneshir, aproveitando as áreas desocupadas depois da fuga do povo de Angraleste para Brin Shander.
As embarcações de Caer-Konig pescavam em águas conhecidas, perto das margens setentrionais do lago. Foram as primeiras a avistar a destruição iminente.
Como um furioso enxame de abelhas, o hediondo exército de Kessell contornou velozmente a curva setentrional do Lac Dinneshir e, aos brados, desceu o Desfiladeiro do Vento Gélido.
- Levantar âncora! - gritaram Schermont e muitos outros capitães assim que se recuperaram do choque inicial. Mas já sabiam que não retornariam a tempo.
A vanguarda do exército de goblins atacou Caer-Konig violentamente.
Os homens nos barcos viram as chamas se elevarem quando as casas foram incendiadas. Ouviram os apupos sanguinários dos desprezíveis invasores.
Ouviram os gritos agonizantes de sua gente.
As mulheres, as crianças e os velhos em Caer-Konig nem pensaram em resistir. Correram. Por suas vidas, eles correram. E os goblins deram-lhes caça e os mataram.
Gigantes e ogros precipitaram-se para as docas e esmagaram os miseráveis humanos que acenavam desamparadamente para a frota de retorno, ou levaram-nos à morte gélida nas águas do lago.
Os gigantes carregavam sacos imensos e, à medida que os corajosos pescadores chegavam precipitadamente ao porto, as naus eram golpeadas e danificadas pelos calhaus arremessados.
Os goblins continuavam a entrar em grande número na cidade condenada, mas o grosso da linha de retaguarda do vasto exército passou por ela e seguiu em direção à segunda cidade, Caer-Dineval. A essa altura, as pessoas em Caer-Dineval já tinham avistado a fumaça e ouvido os gritos e fugiam à toda pressa para Brin Shander, ou então estavam nas docas, implorando aos marinheiros que voltassem para casa.
Mas a frota de Caer-Dineval, mesmo impelida pela força do vento leste em sua pressa de atravessar novamente o lago, tinha milhas e milhas de água diante dela. Os pescadores viram as colunas de fumaça se erguerem sobre Caer-Konig e muitos, desconfiando do que acontecia, entenderam que seu ímpeto, mesmo com as velas tão enfunadas, seria em vão. Ainda assim, ouviram-se gemidos de choque e incredulidade em cada convés quando a nuvem negra deu início a sua agourenta escalada desde os setores mais setentrionais de Caer-Dineval.
Foi então que Schermont tomou uma decisão nobre. Aceitando a condenação da própria cidade, ele ofereceu ajuda aos vizinhos.
- Não podemos entrar! - ele gritou ao capitão de uma embarcação próxima. - Passe adiante: vamos para o sul! As docas de Dineval ainda estão livres!

De um parapeito na muralha de Brin Shander, Régis, Cássio, Agorwal e Glensather assistiram, horrorizados, à investida do perverso contingente pelo trecho de planície entre eles e as duas cidades saqueadas. Os inimigos avançavam sobre a população que fugia de Caer-Dineval.
- Abra os portões, Cássio! - gritou Agorwal. - Precisamos ir até eles! Não terão a menor chance de chegar à cidade a menos que retardemos a perseguição!
- Não - respondeu Cássio, melancólico, dolorosamente ciente de suas responsabilidades ainda maiores. - Preciso de cada homem para defender a cidade. Expor-se na planície aberta com uma desvantagem numérica tão esmagadora seria inútil. As vilas às margens do Lac Dinneshir estão condenadas!
- Estão indefesos! - devolveu Agorwal. - Que espécie de homens somos nós se não somos capazes de defender nossa gente? Que direito temos de assistir a tudo detrás desta muralha enquanto nosso povo é chacinado?
Cássio chacoalhou a cabeça, firme em sua decisão de proteger Brin Shander.
Mas, então, outros refugiados vieram correndo pela segunda passagem, a Via de Bremen, fugindo, histéricos, da desprotegida vila de Termalaine assim que viram as cidades do outro lado incendiadas. Mais de mil refugiados estavam agora ao alcance da visão desde Brin Shander. Estimando a velocidade deles e a distância restante, Cássio calculou que convergiriam no vasto campo logo abaixo dos portões setentrionais da cidade principal. Onde os goblins os pegariam.
- Vá - disse ele a Agorwal.
Brin Shander não podia se dar ao luxo de perder tantos homens, mas o campo logo ficaria rubro com o sangue de mulheres e crianças.
Agorwal desceu com seus valorosos homens a estrada nordeste, em busca de uma posição defensável onde pudessem se entrincheirar. Escolheram uma pequena serrania - na verdade, mais uma crista - onde a estrada submergia ligeiramente. Entrincheirados e prontos para lutar e morrer, eles esperaram até os últimos refugiados passarem, aterrorizados, aos gritos, pois acreditavam não ter qualquer chance de alcançar a segurança da cidade antes que os goblins se abatessem sobre eles.
Sentindo o cheiro de sangue humano, os mais rápidos dentre o exército invasor estavam logo atrás dos retardatários, mães em sua maioria, que apertavam os filhos pequenos contra o peito. Concentrados nas vítimas fáceis, os monstros da vanguarda não se deram conta do destacamento de Agorwal até os guerreiros de tocaia já estarem sobre eles.
Mas, então, era tarde demais.
Os corajosos homens de Termalaine surpreenderam os goblins num fogo cruzado de flechas e depois seguiram Agorwal num feroz assalto de espadas. Lutaram sem medo, como homens que haviam aceitado o que o destino lhes reservara. Dezenas de monstros jaziam mortos e mais deles caíam a cada minuto à medida que os guerreiros furiosos forçavam entrada em suas fileiras.
Mas a formação parecia interminável. A cada goblin que caía, dois vinham substituí-lo. Os homens de Termalaine logo foram tragados por um mar de goblins.
Agorwal alcançou um ponto elevado e olhou para trás, em direção à cidade. As mulheres em fuga estavam a uma boa distância do outro lado do campo, mas moviam-se devagar. Se rompessem as fileiras inimigas e fugissem, seus homens alcançariam os refugiados antes das encostas de Brin Shander. E os monstros estariam logo atrás deles.
- Temos de sair e apoiar Agorwal! - berrou Glensather para Cássio. Mas, dessa vez, o representante de Brin Shander permaneceu firme.
- Agorwal cumpriu sua missão - respondeu Cássio. - Os refugiados chegarão à muralha. Não enviarei mais homens para a morte! Mesmo que a força combinada de toda a Dez-Burgos estivesse no campo, não seria capaz de derrotar o inimigo diante de nós.
O sagaz representante já compreendera que não poderiam lutar com Kessell em pé de igualdade.
O benevolente Glensather pareceu abatido.
- Leve alguns soldados colina abaixo - cedeu Cássio. - Ajudem os refugiados exaustos na última escalada.
Os homens de Agorwal estavam agora em sérias dificuldades. O representante de Termalaine olhou para trás novamente e tranqüilizou-se; as mulheres e as crianças estavam em segurança. Correu os olhos pela alta muralha, ciente de que Régis, Cássio e os outros podiam vê-lo, uma figura solitária na pequena elevação, muito embora ele não conseguisse divisá-los entre a multidão de espectadores que se enfileirava nos parapeitos de Brin Shander.
Mais goblins despejaram-se na batalha, agora acompanhados de ogros e verbeeg. Agorwal saudou os amigos na cidade. Seu sorriso de satisfação era sincero quando girou nos calcanhares e voltou a arremeter ladeira abaixo para se unir a seus vitoriosos soldados em seu momento de maior glória.
Então, Régis e Cássio assistiram à maré negra derrubar todos os bravos homens de Termalaine.
Abaixo deles, os pesados portões se fecharam com estrondo. Os últimos refugiados haviam entrado.

Apesar de os homens de Agorwal conquistarem uma vitória de honra, a única força a ter realmente combatido o exército de Kessell naquele dia, e sobrevivido, foi a dos anões. O clã do Salão de Mitral passara dias em diligente preparação para aquela invasão, mas quase a perdeu. Mantidos pela vontade tirânica do mago numa disciplina nunca vista entre os goblins, principalmente entre tribos rivais e variadas, o exército de Kessell tinha planos bem definidos e diretos a seguir no assalto inicial. Até ali, os anões não estavam incluídos.
Mas os rapazes de Bruenor tinham outros planos. Eles não se enterrariam em suas minas sem ao menos aproveitar a oportunidade de arrancar algumas cabeças de goblins ou esmigalhar os joelhos de um ou dois gigantes.
Vários guerreiros do povo de longas barbas subiram ao cume mais ao sul do vale. Quando a retaguarda do exército maligno passou, os anões começaram a provocar os monstros, gritando desafios e xingando suas mães. Os insultos nem mesmo eram necessários. Os ores e os goblins desprezam os anões mais do que qualquer outra coisa viva, e o plano eficiente de Kessell evaporou-se de suas mentes à mera visão de Bruenor e sua gente. Sempre ávidos pelo sangue dos anões, um contingente considerável separou-se do exército principal.
Os anões deixaram que eles se aproximassem, espicaçando-os com provocações até que os monstros estivessem praticamente sobre eles. Depois, Bruenor e os seus pularam da saliência rochosa e escorregaram pela vertente íngreme.
- Venham brincar, canalhas estúpidos.
Bruenor riu maliciosamente ao desaparecer de vista. Tirou das costas uma corda. Ele tinha bolado um truquezinho que estava ansioso para experimentar.
Os goblins arremeteram vale adentro, com uma vantagem numérica de quatro para um. E tinham como apoio cerca de vinte ogros furiosos.
Os monstros não tiveram a menor chance.
Os anões continuaram a incitá-los por todo o declive da parte mais íngreme do vale até as saliências estreitas e inclinadas na face do penhasco que passavam em frente às numerosas entradas para as cavernas dos anões. Um lugar óbvio para uma emboscada, mas os goblins estúpidos, enfurecidos diante da visão de seus mais odiados inimigos, avançaram de qualquer maneira, indiferentes ao perigo.
Quando a maioria dos monstros já se encontrava nas saliências e o resto ainda começava a descer até o vale, a primeira armadilha foi acionada. Cattiebrie, armada até os dentes, mas posicionada no fundo dos túneis mais internos, puxou uma alavanca e derrubou uma coluna na crista superior do vale. Toneladas de pedra e cascalho tombaram sobre a retaguarda da formação dos monstros, e aqueles que conseguiram manter o equilíbrio, ainda que precário, e escapar ao impacto da avalanche encontraram as trilhas atrás deles enterradas e bloqueadas, impedindo-lhes a fuga.
As bestas zuniram desde recessos ocultos, e um grupo de anões saiu correndo para receber os goblins da vanguarda.
Bruenor não estava entre eles. Ele havia se escondido mais atrás na trilha e observou os goblins, concentrados no desafio à frente, passarem por ele. Poderia ter atacado naquele momento, mas estava atrás de caça maior e esperou até que os ogros estivessem ao alcance. A corda já havia sido cuidadosamente medida e amarrada. Ele passou uma das pontas em forma de laço em torno da cintura e a outra foi jogada sobre uma rocha. Em seguida, ele tirou do cinto as duas machadinhas.
Era uma manobra arriscada, talvez a mais perigosa que o anão já tentara, mas a pura emoção da coisa tornou-se óbvia na forma de um largo sorriso estampado na cara de Bruenor ao perceber a aproximação dos desajeitados ogros. Mal pôde conter o riso quando duas das criaturas passaram por ele na trilha estreita.
Saltando de seu esconderijo, Bruenor investiu contra os ogros surpreendidos e atirou as machadinhas em suas cabeças. Os ogros desviaram-se e conseguiram aparar os fracos arremessos, mas as armas não passavam de uma distração.
O corpo de Bruenor era a verdadeira arma naquele ataque.
Surpreendidos, esquivando-se das machadinhas, os dois ogros perderam o equilíbrio. O plano se desenrolava com perfeição; os ogros mal sabiam o que fazer com os pés. Contraindo os poderosos músculos de suas pernas atarracadas Bruenor lançou-se no ar e colidiu com o monstro mais próximo. A criatura caiu junto com ele sobre o outro ogro.
E despencaram da saliência, todos os três.
Um dos ogros conseguiu agarrar com a mão descomunal o rosto do anão, mas Bruenor prontamente mordeu-a, e o monstro recuou. Por um breve momento, eles formaram um emaranhado em queda de pernas e braços agitados, mas então a corda de Bruenor esticou-se e os separou.
- Um pouso tranqüilo pra vocês, garotos - gritou Bruenor, ao escapar da queda. - Dêem um grande beijo nas pedras por mim!
O movimento em pêndulo da corda largou Bruenor na entrada de um poço de mina na saliência imediatamente mais baixa enquanto suas vítimas impotentes caíam para morrer. Vários goblins em formação atrás dos ogros assistiram ao espetáculo em total estupefação. Em seguida, viram a oportunidade de usar a corda pendurada como atalho para uma das cavernas e, um a um, treparam na corda e começaram a descer.
Mas Bruenor também antecipara aquilo. Os goblins não entenderam por que a corda parecia tão escorregadia em suas mãos.
Quando Bruenor apareceu na saliência inferior, com a ponta da corda numa das mãos e uma tocha acesa na outra, eles entenderam.
As chamas lamberam o cordão azeitado. O goblin no topo da corda conseguiu galgar de volta a saliência, mas o resto seguiu o mesmo caminho que os pobres ogros. Um deles quase escapou à queda fatal, aterrissando pesadamente na saliência inferior. No entanto, antes que ele conseguisse recuperar o equilíbrio, Bruenor o fez despencar com um pontapé.
O anão, admirado, aprovou com um aceno de cabeça o sucesso da manobra. Era um truque que ele tinha a intenção de lembrar. Batendo as mãos uma na outra, ele desceu rapidamente pelo poço que, um pouco mais atrás, subia até se juntar aos túneis superiores.
Na saliência de cima, os anões lutavam numa ação de retirada. O plano não era travar um conflito mortal do lado de fora, mas atrair os monstros para as aberturas dos túneis. Com o desejo de matar obscurecendo-lhes toda e qualquer razão, os obtusos invasores prontamente aquiesceram, presumindo que sua vantagem numérica estivesse encurralando os anões.
O entrechoque de espadas logo se fez ouvir em vários túneis. Os anões continuaram a recuar, conduzindo os monstros à derradeira armadilha. Então, de algum lugar no fundo das cavernas, uma corneta soou. No momento exato os anões desvencilharam-se da escaramuça e fugiram pelos túneis.
Os goblins e os ogros, pensando haver desbaratado os inimigos, detiveram-se apenas para berrar gritos de vitória, depois lançaram-se atrás dos anões como uma onda.
Mas, bem lá no fundo dos túneis, várias alavancas foram puxadas. A armadilha final foi acionada e todas as entradas dos túneis simplesmente desabaram. O chão estremeceu violentamente sob o peso do deslizamento e toda a face do penhasco veio abaixo.
Os únicos monstros a sobreviver foram os que estavam exatamente nas linhas de vanguarda. E, desorientados, castigados pela força do deslizamento e atordoados pela rajada de pó, eles foram imediatamente abatidos pelos anões de tocaia.
A espantosa avalanche fez estremecer até mesmo as pessoas em Brin Shander, distantes como estavam. Acorreram à muralha norte para assistir, consternadas, à ascensão da nuvem de poeira, pois acreditavam que os anões haviam sido dizimados.
Régis sabia que não. O halfling invejou os anões, sepultados em segurança em seus extensos túneis. Ele se dera conta, no momento em que vira as chamas se elevarem de Caer-Konig, que sua demora na cidade, à espera do amigo de Bosquesó, custara-lhe a oportunidade de escapar.
Agora, ele assistia, impotente e sem esperança, ao avanço daquela massa negra em direção a Brin Shander.

As frotas no Maer Dualdon e no Marerrubra retornaram aos portos de origem assim que perceberam o que estava acontecendo. Encontraram suas famílias momentaneamente em segurança, exceto os pescadores de Termalaine, que velejaram de volta a uma cidade abandonada. Tudo o que os homens de Termalaine podiam fazer, enquanto relutantemente voltavam ao lago, era esperar que os seus tivessem conseguido chegar a Brin Shander ou a algum outro refúgio, pois viram o flanco setentrional do exército de Kessell enxameando pelo campo em direção a sua cidade condenada.
Targos, a segunda maior cidade e a única outra, além de Brin Shander, com alguma esperança de resistir algum tempo ao vasto exército, estendeu o convite às embarcações de Termalaine para atracar em suas docas. E os homens de Termalaine, que logo estariam entre os desabrigados, aceitaram a hospitalidade de seus encarniçados inimigos do sul. Suas disputas com o povo de Targos pareciam realmente insignificantes em comparação ao desastre que se abatera sobre as vilas.

Na batalha principal, os generais goblins que lideravam o exército de Kessell acreditavam poder invadir Brin Shander antes do anoitecer. Eles obedeceram ao plano de seu líder ao pé da letra. O corpo principal do exército desviou-se para longe de Brin Shander e desceu pelo trecho de terreno aberto entre a cidade principal e Targos, acabando, assim, com qualquer possibilidade de as duas poderosas cidades unirem suas forças.
Várias tribos de goblins haviam se separado do grupo principal e lançado-se sobre Termalaine, com a intenção de saquear a terceira cidade do dia. Mas, encontrando deserto o lugar, abstiveram-se de queimar as casas. Parte do exército de Kessell agora tinha um acampamento pronto, onde poderia aguardar pelo cerco iminente com todo o conforto.
Como dois grandes braços, milhares de monstros correram para o sul da força principal. Tão vasto era o exército de Kessell que este preenchia os muitos quilômetros do campo entre Brin Shander e Termalaine e ainda havia gente suficiente para cercar a colina da cidade principal com densas fileiras de soldados.
Tudo acontecera tão rápido que, quando os goblins finalmente interromperam sua investida frenética, a mudança pareceu demasiadamente dramática. Depois de alguns minutos de calma, o suficiente para recuperar o fôlego, Régis sentiu a tensão aumentar novamente.
- Por que eles não acabam logo com isto? - ele perguntou aos dois representantes a seu lado.
Cássio e Glensather, mais instruídos nas tradições da guerra, compreenderam exatamente o que estava acontecendo.
- Eles não têm pressa, amiguinho - explicou Cássio. - Têm o tempo como aliado.
Foi então que Régis compreendeu. Durante os vários anos que passara nas terras mais populosas do sul, ele ouvira muitas histórias vividas sobre os horrores de um cerco.
Veio-lhe à mente a imagem da derradeira saudação de Agorwal, ao longe, o olhar satisfeito no rosto do representante e sua disposição em morrer valorosamente. Régis não tinha a menor vontade de morrer, mas podia imaginar o que ele e o povo acuado de Brin Shander tinham pela frente.
Flagrou-se invejando Agorwal.

24
Crishal-Tirith

Drizzt logo encontrou o solo maltratado por onde passara o exército. As pegadas não chegaram a ser uma surpresa para o drow, pois as colunas de fumaça já lhe haviam revelado boa parte do que ocorrera. A única pergunta não respondida era se alguma das vilas resistira ou não ao ataque, e ele seguiu rapidamente em direção à montanha, imaginando se ainda teria um lar para onde retornar.
Foi então que ele sentiu uma presença, uma aura de um outro mundo que estranhamente o fazia recordar os dias de sua juventude. Abaixou-se para verificar o solo novamente. Algumas das marcas eram rastros frescos de trolls, mas havia uma cicatriz no chão que nenhuma criatura mortal poderia ter deixado. Drizzt olhou ao redor, nervoso, mas o único som era o lamento do vento e os únicos vultos no horizonte eram os picos do Sepulcro de Kelvin diante dele, e os da Espinha do Mundo, bem mais ao sul. Drizzt deteve-se para considerar a tal presença durante algum tempo, tentando distinguir melhor a familiaridade que sentia.
Ele seguiu em frente tentativamente. Compreendia a origem de suas lembranças agora, mas os pormenores exatos continuavam impalpáveis. Ele sabia o que estava seguindo.
Um demônio chegara ao Vale do Vento Gélido.
O Sepulcro de Kelvin já parecia muito maior antes de Drizzt alcançar o bando. Sua sensibilidade a criaturas dos planos inferiores, fruto de séculos de associação com elas em Menzoberranzan, informou o drow de que ele se aproximava do demônio antes mesmo de avistá-lo.
E foi então que ele viu as formas distantes, meia dúzia de trolls que marchavam numa fileira compacta e, destacando-se no meio deles, encontrava-se um enorme monstro do Abismo. Drizzt compreendeu imediatamente que não se tratava de um mane nem de um homúnculo insignificante, e sim de um demônio importante. Kessell devia ser realmente poderoso se tinha sob seu controle um monstro tão formidável!
Drizzt os seguiu, mantendo cautelosa distância. No entanto, o bando estava concentrado em seu destino e a cautela do drow era desnecessária. Mas Drizzt não estava disposto a se arriscar de modo algum, pois havia sido muitas vezes testemunha da ira desses demônios. Eram lugar-comum nas cidades dos drow, prova maior para Drizzt Do'Urden de que a cultura de seu povo não lhe condizia.
Ele se aproximou, pois algo mais chamara-lhe a atenção. O demônio segurava um pequeno objeto que irradiava uma magia tão poderosa que o drow, mesmo àquela distância, era capaz de sentir claramente. Estava demasiado disfarçada pelas próprias emanações do demônio para que Drizzt conseguisse ter uma idéia clara do que se tratava e, portanto, ele cautelosamente recuou mais uma vez.
As luzes de milhares de fogueiras apareceram no horizonte quando o grupo e Drizzt aproximaram-se da montanha. Os goblins haviam posicionado sentinelas naquela área e Drizzt percebeu que já avançara o máximo que podia na direção sul. Desistiu da perseguição e dirigiu-se a um ponto de observação melhor no alto da montanha.
O melhor momento para a visão do drow, adaptada ao subterrâneo, era sob a luz tênue antes do nascer do sol e, apesar de cansado, Drizzt tinha a determinação de estar em posição quando chegasse a hora. Ele rapidamente escalou as rochas, dirigindo-se aos poucos à face sul da montanha.
Foi então que ele viu as fogueiras que cercavam Brin Shander. Mais para o leste, as brasas brilhavam em meio aos escombros que outrora haviam sido Caer-Konig e Caer-Dineval. Gritos selvagens ecoavam em Termalaine, e Drizzt compreendeu que a cidade às margens do Maer Dualdon estava nas mãos do inimigo.
E, então, o prenúncio da aurora azulou o céu noturno e muito mais coisas tornaram-se aparentes. Drizzt olhou primeiro para a extremidade sul do vale dos anões e ficou aliviado ao ver que o paredão defronte havia desabado. O povo de Bruenor, pelo menos, estava salvo, e Régis com eles, supôs o drow.
Mas a visão de Brin Shander era menos consoladora. Drizzt ouvira as bazófias do ore capturado e vira os rastros do exército e suas fogueiras, mas nunca poderia ter imaginado o vasto conclave que apareceu diante dele assim que a luz aumentou.
A visão o desconcertou.
- Quantas tribos de goblins você reuniu, Akar Kessell? - disse, com voz entrecortada. - E quantos gigantes chamam-no de mestre?
Ele sabia que o povo de Brin Shander sobreviveria apenas o tempo que Kessell lhes permitisse. Não tinham a menor esperança de se defender contra tamanho exército. Consternado, ele se voltou para procurar uma gruta onde pudesse descansar um pouco. Ele não seria de ajuda naquele momento, e a exaustão aumentava sua desesperança, impedindo-o de pensar de maneira construtiva.
Enquanto se afastava da face da montanha, uma súbita atividade no campo distante chamou-lhe a atenção. Ele não conseguia divisar os indivíduos a uma distância tão grande - o exército parecia apenas uma massa negra -, mas compreendeu que o demônio aparecera. Viu o ponto mais negro que marcava sua presença maligna avançar até uma área de terreno limpo, algumas centenas de metros apenas abaixo dos portões de Brin Shander. E ele sentiu a aura sobrenatural da poderosa magia que percebera antes, como o coração pulsante de alguma forma de vida desconhecida, palpitando nas mãos providas de garras do demônio.
Os goblins se juntaram para assistir ao espetáculo, mantendo uma distância respeitosa entre eles e o perigoso e imprevisível capitão de Kessell.
- O que é aquilo? - perguntou Régis, esmagado entre a multidão de espectadores na muralha de Brin Shander.
- Um demônio - respondeu Cássio. - E dos grandes.
- Eles zombam de nossas pobres defesas! - gritou Glensather. - Que esperança temos de resistir a um inimigo como este?
O demônio fez uma reverência, concentrado no ritual para evocar o encantamento do objeto cristalino. Ele colocou a estilha de cristal de pé sobre a relva, deu um passo para trás e berrou as palavras obscuras de um antigo feitiço, alteando num crescendo à medida que o céu começava a clarear com a iminente aparição do sol.
- Um punhal de vidro? - perguntou Régis, intrigado com o objeto pulsante.
O primeiro raio da aurora rompeu o horizonte. O cristal cintilou e invocou a luz, desviando a trajetória do raio solar e absorvendo sua energia.
A estilha tremeluziu novamente. As pulsações aumentaram quando mais uma parte do sol rastejou para o céu oriental, apenas para ter sua luz sugada pela cópia faminta de Crenshinibon.
Os espectadores na muralha boquiabriram-se, horrorizados, e imaginaram se Akar Kessell tinha algum poder sobre o próprio sol. Somente Cássio teve presença de espírito para ligar o poder da estilha à luz solar.
Foi então que o cristal começou a crescer. Estendia-se a cada vez que uma pulsação atingia seu pico, depois encolhia-se um pouco enquanto a palpitação seguinte ganhava força. Tudo o mais ao redor permanecia nas sombras, pois o cristal consumia avidamente toda a luz do sol. Lenta mas inevitavelmente, o diâmetro da coisa alargou-se e seu topo elevou-se às alturas. As pessoas na muralha e os monstros no campo precisaram desviar os olhos do poder resplandecente de Crishal-Tirith. Apenas o drow, desde seu remoto ponto de observação, e o demônio, que era imune a essas visões, testemunharam a criação de mais uma cópia de Crenshinibon. A terceira Crishal-Tirith ganhou vida. A torre libertou o sol de seu jugo assim que se completou o ritual e toda a região foi banhada pela luz da manhã.
O demônio rugiu com o sucesso de seu encantamento e entrou orgulhosamente pela porta espelhada da nova torre, seguido pelos trolls, a guarda pessoal do mago.
Os habitantes sitiados de Brin Shander e Targos examinaram a incrível estrutura com uma mistura confusa de espanto, admiração e terror. Não conseguiam resistir à beleza sobrenatural de Crishal-Tirith, mas compreendiam as conseqüências do aparecimento da torre: Akar Kessell, senhor de goblins e gigantes, havia chegado.

Os goblins e os ores caíram de joelhos, e todo o vasto exército retomou o cântico de "Kessell! Kessell!", prestando homenagem ao mago com uma devoção tão fanática que fez estremecer as testemunhas humanas do espetáculo.
Drizzt também estava assustado com a extensão da influência e da devoção que o mago exercia sobre as normalmente independentes tribos de goblins. O drow determinou naquele momento que a única chance de sobrevivência para o povo de Dez-Burgos era a morte de Akar Kessell. Ele já sabia, mesmo antes de ter considerado as opções possíveis, que tentaria chegar ao mago. Por enquanto, porém, ele precisava descansar. Encontrou uma gruta sombreada logo atrás da face do Sepulcro de Kelvin e deixou-se tomar pela exaustão.
Cássio também estava cansado. O representante permanecera na muralha durante toda a noite fria, examinando os acampamentos para determinar o que restava da inimizade natural entre as tribos indisciplinadas. Ele vira um pouco de discórdia e alguns insultos, mas nada extremo o bastante para dar a ele a esperança de que o exército se desmancharia logo no início do cerco. Não entendia como o mago conseguira uma unificação tão dramática dos arquiinimigos. A aparição do demônio e o soerguimento de Crishal-Tirith mostraram-lhe o incrível poder sob o comando de Kessell. Ele logo chegara às mesmas conclusões que o drow.
Ao contrário de Drizzt, porém, o representante de Brin Shander não se recolheu quando o campo voltou a se acalmar, apesar dos protestos de Régis e Glensather, preocupados com sua saúde. Sobre seus ombros, Cássio carregava a responsabilidade por vários milhares de pessoas aterrorizadas, amontoados no interior das muralhas de sua cidade, e, para ele, não haveria descanso. Ele precisava de informações; precisava encontrar um elo fraco na armadura aparentemente inexpugnável do mago.
E, portanto, o representante vigiou com zelo e paciência durante todo o primeiro longo e monótono dia do cerco, observando as fronteiras que as tribos de goblins delimitavam como suas e a ordem de hierarquia que determinava a distância de cada grupo em relação ao ponto central de Crishal-Tirith.

Bem mais ao leste, as frotas de Caer-Konig e Caer-Dineval estavam ancoradas lado a lado nas docas da cidade abandonada de Angraleste. Várias equipagens foram à terra para recolher provisões, mas a maioria das pessoas permanecera nos barcos, incertas quanto à extensão do braço oriental do exército de Kessell.
Jensin Brent e sua contraparte de Caer-Konig haviam assumido total controle da situação a partir do convés do Explorador das Brumas, a nau-capitânia de Caer-Dineval. Todas as disputas entre as duas cidades foram suspensas, ao menos temporariamente, apesar de se ouvirem promessas de amizade duradoura nos conveses de todas as embarcações sobre o Lac Dinneshir. Os dois representantes concordavam que ainda não poderiam deixar as águas do lago e fugir, pois perceberam que não havia para onde ir. Todas as dez vilas estavam sob a ameaça de Kessell, Luskan ficava a seiscentos quilômetros de distância e o exército do mago estava bem no caminho. Os refugiados mal equipados sequer sonhariam em chegar à cidade antes de serem surpreendidos pelas primeiras neves do inverno.
Os marinheiros que haviam desembarcado logo retornaram às docas com as boas novas de que Angraleste ainda não havia sido tocada pelas trevas. Mais equipagens foram enviadas à terra para trazer mais comida e cobertores, mas Jensin Brent agia com cautela, pois pensava ser aconselhável manter a maioria dos refugiados na água, longe do alcance de Kessell.
Notícias mais promissoras chegaram pouco depois.
- Sinais provenientes de Marerrubra, Representante Brent! - gritou a sentinela no alto do cesto da gávea do Explorador das Brumas. - O povo de Bom Prado e Toca de Dugan está são e salvo! - Ele ergueu seu arauto, um pequeno espelho fabricado em Termalaine e projetado para focalizar a luz do sol e enviar sinais através dos lagos, usando códigos complexos, porém limitados. - Responderam a meus chamados!
- Onde estão eles, então? - perguntou Brent, ansioso.
- Nas margens orientais - replicou a sentinela. - Embarcaram e deixaram as aldeias, pensando que seriam indefensáveis. Nenhum monstro se aproximou ainda, mas o representante achou que o outro lado do lago seria mais seguro até os invasores terem partido.
- Mantenha a comunicação - ordenou Brent. - Informe quando tiver mais notícias.
- Até os invasores terem partido? - repetiu Schermont, incrédulo, ao se colocar ao lado de Jensin Brent.
- Uma avaliação tola e otimista da situação, concordo - disse Brent. - Mas fico aliviado em saber que nossos primos ao sul ainda estão vivos!
- Vamos até eles? Juntar nossas forças?
- Ainda não - respondeu Brent. - Receio que ficaríamos vulneráveis demais no terreno desprotegido entre os lagos. Precisamos de mais informações antes de tomar qualquer ação efetiva. Vamos manter as comunicações entre os dois lagos. Reúna voluntários para levar mensagens a Marerrubra.
- Devem ser enviados imediatamente - concordou Schermont, já a caminho.
Brent assentiu e voltou a olhar para a outra margem do lago, para o penacho agonizante de fumaça sobre sua cidade.
- Mais informações - murmurou consigo mesmo.
Mais tarde, naquele mesmo dia, outros voluntários partiram em direção ao perigoso oeste para fazer um reconhecimento da situação na cidade principal.
Brent e Schermont haviam feito um trabalho magistral de controle do pânico, mas, mesmo com os ganhos substanciais na organização, o choque inicial da súbita e fatal invasão deixara a maioria dos sobreviventes de Caer-Konig e Caer-Dineval num estado de completo desespero. Jensin Brent foi a animadora exceção. O representante de Caer-Dineval era um guerreiro corajoso que recusava categoricamente a rendição até o último alento. Circulou com sua orgulhosa nau-capitânia pelos ancoradouros, reanimando o povo com suas promessas de vingança contra Akar Kessell.
Agora ele mantinha-se em vigília e aguardava no convés do Explorador das Brumas as notícias vitais que chegariam do oeste. No meio da tarde, ele ouviu o grito pelo qual rezara.
- Está de pé! - gritou, extasiada, a sentinela no cesto da gávea, assim que avistou o brilho do sinal do arauto. - Brin Shander está de pé!
De repente, o otimismo de Brent revestiu-se de credibilidade. O bando miserável de vítimas desabrigadas assumiu uma postura enfurecida, propensa a vingança. Mais mensageiros foram imediatamente despachados para levar a Marerrubra as novas de que Kessell ainda não alcançara a vitória completa.
Em ambos os lagos, foi levada a sério a tarefa de separar os guerreiros dos civis. As mulheres e as crianças passaram aos barcos mais pesados e menos robustos e os homens em condição de lutar embarcaram nas naus mais velozes. Os navios de guerra designados foram então posicionados nos atracadouros mais externos, de onde poderiam zarpar rapidamente e atravessar os lagos. Suas velas foram verificadas e retesadas em preparação para a impetuosa travessia que levaria suas corajosas tripulações à guerra.
Ou, segundo o furioso decreto de Jensin Brent: "A travessia que levaria suas corajosas tripulações à vitória!"

Régis havia se juntado mais uma vez a Cássio sobre a muralha quando o sinal do arauto foi avistado na margem sudoeste do Lac Dinneshir. O halfling dormira a maior parte da noite e do dia, imaginando que poderia muito bem morrer fazendo a coisa de que mais gostava. Ficou surpreso ao acordar, pois esperava que seu sono se prolongasse na eternidade.
Cássio, entretanto, começava a ver as coisas sob uma perspectiva diferente. Ele havia coligido uma longa lista de potenciais colapsos no exército indisciplinado de Akar Kessell; ores que intimidavam goblins, e os gigantes, por sua vez, a intimidar tanto uns quanto outros. Se conseguisse apenas encontrar uma maneira de resistir tempo suficiente para que o ódio esclarecido entre as raças de goblins começasse a prejudicar as forças de Kessell...
E, então, o sinal do Lac Dinneshir e os relatos subseqüentes de luzes semelhantes na margem mais distante de Marerrubra haviam proporcionado ao representante a esperança sincera de que o cerco poderia muito bem se desintegrar e Dez-Burgos sobreviver.
Mas foi aí que o mago fez sua dramática aparição e as esperanças de Cássio foram destruídas.
Começou como uma pulsação de luz vermelha a circular no interior da parede cristalina na base de Crishal-Tirith. Em seguida, uma segunda pulsação, desta vez azul, subiu pela torre e girou na direção contrária. Lentamente, as duas correntes começaram a contornar o perímetro da torre e a misturar-se numa luz verde toda vez que convergiam, para depois se separarem e seguirem o próprio caminho. Todos os que assistiam ao fascinante espetáculo tinham os olhos fixos e apreensivos, sem saber o que aconteceria em seguida, mas convencidos de que uma exibição de formidável poder estava por vir.
As luzes aceleraram e sua intensidade aumentava com a velocidade. Não demorou muito e toda a base da torre se achava envolta numa mancha verde tão brilhante que os espectadores precisaram desviar os olhos. Da mancha indistinta saíram dois horrendos trolls e cada um deles carregava um espelho ornamentado.
As luzes reduziram sua velocidade e pararam por completo.
A mera visão dos repugnantes trolls encheu as pessoas de Brin Shander de nojo, mas, intrigadas, nenhuma delas se voltou. Os monstros caminharam diretamente até a base da colina íngreme da cidade e postaram-se de frente um para o outro, apontando seus espelhos diagonalmente em direção um ao outro, mas ainda capturando o reflexo de Crishal-Tirith.
Raios gêmeos de luz projetaram-se da torre, e cada um deles atingiu um dos espelhos e convergiu com o outro a meio caminho entre os trolls. Uma súbita pulsação da torre, como o fulgor de um raio, deixou a área entre os monstros coberta por fumaça e, quando esta se dissipou, em lugar dos raios convergentes de luz, estava ali uma imagem tênue e deformada de um homem vestindo uma túnica de cetim vermelho.
Os goblins caíram de joelhos novamente e esconderam os rostos. Akar Kessell havia chegado.
Ele ergueu os olhos em direção a Cássio, sobre a muralha, com um sorriso arrogante a espichar-lhe os lábios finos.
- Saudações, representante de Brin Shander! - casquinou ele. - Bem-vindo a minha bela cidade! - Ele riu obliquamente.
Cássio não tinha dúvida de que o mago o distinguira, apesar de não se lembrar de algum dia ter visto aquele homem e não compreender como fora reconhecido. Olhou para Régis e Glensather, em busca de uma explicação, mas ambos deram de ombros.
- Sim, eu conheço você, Cássio - disse Kessell. - E a você, meu bom Representante Glensather, meus cumprimentos. Devia ter adivinhado que você estaria aqui; o povo de Angraleste sempre mostrou disposição em se juntar a uma causa, mesmo que não restasse esperança!
E então foi a vez de Glensather, estarrecido, fitar os companheiros. Mas, novamente, não havia explicações disponíveis.
- Você nos conhece - respondeu Cássio à aparição -, mas nos é desconhecido. Parece que você tem uma vantagem injusta.
- Injusta? - protestou o mago. - Eu tenho todas as vantagens, seu tolo! - Mais uma vez a risada. - Vocês me conhecem, ou ao menos Glensather me conhece.
O representante de Angraleste deu de ombros mais uma vez em resposta ao olhar inquisitivo de Cássio. O gesto pareceu enfurecer Kessell.
- Passei vários meses em Angraleste - disse o mago bruscamente. - Sob o disfarce de um aprendiz de mago de Luskan! Esperto, não acham?
- Você se lembra dele? - Cássio perguntou baixinho a Glensather. - Poderia ser de grande importância.
- E possível que tenha se hospedado em Angraleste - replicou Glensather no mesmo tom sussurrado -, apesar de há vários anos nenhum grupo da Torre das Hostes vir a minha cidade. Mas somos uma cidade aberta e muitos forasteiros chegam com cada caravana mercante de passagem. Com sinceridade, Cássio, não me recordo deste homem.
Kessell estava ultrajado. Bateu os pés impacientemente e o sorriso em seu rosto foi substituído por uma carantonha mal-humorada.
-Talvez meu retorno a Dez-Burgos venha a se mostrar mais memorável, seus idiotas! - disse ele bruscamente. Ergueu e esticou os braços, numa presunçosa proclamação. - Contemplem Akar Kessell, o Tirano do Vale do Vento Gélido! - gritou. - Povo de Dez-Burgos, seu mestre está aqui!
- Suas palavras são um tanto prematuras... - começou Cássio, mas Kessell o cortou com um grito arrebatado.
- Jamais me interrompa! - gritou o mago, com as veias do pescoço esticadas e salientes e o rosto vermelho como sangue.
Quando Cássio se calou, incrédulo, Kessell pareceu recuperar um pouco a compostura.
- Você há de aprender, orgulhoso Cássio. - ameaçou ele. - Há de aprender!
Ele se virou para Crishal-Tirith e pronunciou uma simples palavra de comando. A torre escureceu por um instante, como se se recusasse a liberar os reflexos da luz do sol. Depois, começou a brilhar com uma luz que parecia mais própria do que um reflexo do dia. A cada segundo que passava, a coloração mudava e a luz começava a subir e a circular pelas estranhas paredes.
- Contemplem Akar Kessell! - anunciou o mago, ainda carrancudo. - Vejam o esplendor de Crenshinibon e abandonem toda esperança!
Mais luzes começaram a lampejar no interior das paredes da torre, subindo e descendo a esmo e girando em volta da estrutura numa dança frenética que clamava por libertação. Aos poucos, dirigiram-se para o pontiagudo pináculo, e este começou a flamejar como se estivesse em chamas, passando pelas cores do espectro até sua labareda branca rivalizar com a luminosidade do próprio sol.
Kessell gritou como um homem em estado de êxtase.
O fogo foi liberado.
Projetou-se, numa linha delgada e candente, em direção ao norte e à desafortunada cidade de Targos. Muitos espectadores enfileiravam-se sobre a alta muralha de Targos, embora a torre estivesse muito mais longe deles do que de Brin Shander e parecesse pouco mais do que um ponto reluzente na planície distante. Eles faziam pouca idéia do que acontecia aos pés da cidade principal, mas viram o raio de fogo que vinha em sua direção.
Mas, então, já era tarde demais.
A ira de Akar Kessell atroou pela orgulhosa cidade adentro e abriu uma trilha de devastação instantânea. Chamas irromperam por toda a extensão de sua linha assassina. As pessoas apanhadas na trajetória direta do raio sequer tiveram a chance de gritar antes de serem simplesmente vaporizadas. Mas aqueles que sobreviveram ao assalto inicial, tanto as mulheres quanto as crianças e os homens endurecidos pela tundra, que haviam enfrentado a morte milhares de vezes ou mais, esses de fato gritaram. E seu pranto atravessou o lago sereno até Bosquesó e Bremen, até os goblins jubilantes em Termalaine e planície abaixo até as testemunhas horrorizadas em Brin Shander.
Kessell acenou com a mão e alterou ligeiramente o ângulo do disparo, fazendo, assim, a destruição descrever um arco por toda a Targos. Toda estrutura importante no interior da cidade logo estava ardendo, e centenas de pessoas jaziam mortas ou, agonizantes, rolavam lamentavelmente no solo para extinguir as chamas que envolviam seus corpos, ou ofegavam inutilmente em busca de ar em meio à densa fumaça.
Kessell deliciou-se com o momento. Mas, depois, sentiu um calafrio na espinha e a torre também pareceu estremecer. O mago apertou a relíquia, ainda enfiada sob as dobras de sua túnica. Compreendeu que havia forçado demais os limites do poder de Crenshinibon.
Na Espinha do Mundo, a primeira torre que Kessell erguera desabou e ficou em escombros. E, longe, na vasta tundra, o mesmo aconteceu à segunda. A estilha se recolheu e destruiu as cópias-torres que exauriam sua força.
Kessell também fora exaurido pelo esforço, e as luzes da Crishal-Tirith remanescente começaram a sossegar e, em seguida, a minguar. O raio tremulou e extinguiu-se.
Mas havia cumprido sua função.
Na primeira onda da invasão, Kemp e os outros orgulhosos líderes de Targos haviam prometido a seu povo que defenderiam a cidade até que o último homem tivesse caído, mas mesmo o teimoso representante percebeu que não restava escolha a não ser fugir. Felizmente, a cidade propriamente dita, que recebera o grosso do ataque de Kessell, ficava em terreno elevado, sobranceando a área protegida da baía. As frotas continuavam ilesas. E os pescadores desabrigados de Termalaine já estavam nas docas, pois haviam permanecido nos barcos depois de aportados em Targos. Logo que se deram conta da inacreditável extensão da destruição que ocorria na cidade em si, eles começaram a se preparar para o influxo iminente dos últimos refugiados de guerra. A maioria dos barcos de ambas as cidades fez-se ao largo minutos depois do ataque, tentando desesperadamente colocar as velas vulneráveis a uma distancia segura das fagulhas e dos escombros carregados pelo vento. Algumas naus ficaram para trás, desafiando os riscos cada vez maiores para resgatar os retardatários nas docas.
As pessoas na doca de Brin Shander choravam diante dos gritos persistentes dos agonizantes. Cássio, porém, consumido por sua missão de procurar e encontrar as fraquezas aparentes que Kessell acabara de revelar, não tinha tempo para lágrimas. Na verdade, os gritos afetavam-no tão profundamente quanto a qualquer outro, mas, relutante em deixar o lunático Kessell ver qualquer insinuação de fraqueza da parte dele, transformou o pesar de sua fisionomia num esgar férreo de fúria. Kessell ria dele.
- Não faça beicinho, meu pobre Cássio - escarneceu o mago. - Não fica bem.
- Você é um cachorro - retorquiu Glensather. - E cães indisciplinados devem ser castigados!
Cássio deteve seu colega representante com a mão estendida.
- Acalme-se, meu amigo - sussurrou. - Kessell vai se alimentar de nosso pânico. Deixe-o falar: está revelando mais do que imagina.
- Pobre Cássio - repetiu Kessell sarcasticamente. Então, de repente, a face do mago desfigurou-se de raiva. Cássio notou vividamente a abrupta oscilação e arquivou-a com as outras informações que recolhera.
- Prestem muita atenção ao que vocês testemunharam aqui, povo de Brin Shander! - zombou Kessell. - Curvem-se diante de seu mestre ou o mesmo destino há de recair sobre vocês! E vocês não têm um lago a suas costas! Não têm para onde fugir!
Ele voltou a rir desvairadamente e percorreu com os olhos a colina da cidade, como se procurasse alguma coisa.
- O que vocês vão fazer? - casquinou ele. - Não têm um lago! Já me pronunciei, Cássio. Ouça-me com atenção. Amanhã, você enviará um emissário até mim, um emissário portando notícias de sua rendição incondicional! E caso seu orgulho impeça tal ato, lembre-se dos gritos da Targos agonizante! Olhe para a cidade às margens do Maer Dualdon em busca de orientação, miserável Cássio. As chamas ainda deverão estar ardendo ao raiar do dia de amanhã!
Naquele exato momento, um mensageiro correu até o representante.
- Avistaram-se muitas embarcações deixando o manto de fumaça em Targos. Os sinais dos arautos já começaram a chegar, vindos dos refugiados.
- E quanto a Kemp? - perguntou Cássio, ansioso.
- Está vivo - respondeu o mensageiro. - E jurou vingança.
Cássio deixou escapar um suspiro de alívio. Não era muito amigo de seu equivalente em Targos, mas sabia que o calejado representante se mostraria um trunfo valioso para a causa de Dez-Burgos antes do fim.
Kessell ouviu a conversa e grunhiu de desdém.
- E para onde eles vão fugir? - perguntou a Cássio.
O representante, concentrado em estudar aquele adversário imprevisível e desequilibrado, não respondeu, mas Kessell o fez por ele.
- Para Bremen? Mas não podem! - Ele estalou os dedos, dando início à transmissão de uma mensagem pré-combinada para suas forças mais a oeste. Imediatamente, um grande grupo de goblins saiu da formação e partiu para o oeste.
Rumo a Bremen.
- Vê? Bremen cairá antes do fim da noite e mais uma frota fugirá para o precioso lago. A cena há de se repetir na vila do bosque com resultados previsíveis. Mas que proteção os lagos oferecerão a essas pessoas quando o inverno implacável chegar? - gritou ele. - Com que rapidez suas embarcações hão de fugir de mim quando as águas se congelarem ao redor delas?
Ele riu novamente mas, dessa vez, com mais seriedade, mais perigo.
- Que proteção tem qualquer um de vocês contra Akar Kessell?
Cássio e o mago fitaram-se obstinadamente. O mago mal e mal enunciou as palavras, mas Cássio ouviu-as claramente:
- Que proteção?

No Maer Dualdon, Kemp reprimiu sua raiva frustrada ao assistir à queda de sua cidade em chamas. Rostos enegrecidos pela fuligem fitavam as ruínas incandescentes, incrédulos e aterrorizados, gritando recusas impossíveis e chorando indisfarçadamente pelos amigos e parentes perdidos.
Mas, como Cássio, Kemp converteu seu desespero em ira construtiva. Logo que soube do destacamento de goblins a caminho de Bremen, despachou seu barco mais veloz para alertar o povo daquela distante cidade e informá-los sobre os acontecimentos do outro lado do lago. Depois, enviou um outro barco em direção a Bosquesó para implorar por comida e ataduras, e talvez um convite para aportar.
Apesar de suas óbvias diferenças, os representantes das dez vilas eram parecidos em vários aspectos. Como Agorwal, feliz em sacrificar tudo pelo bem do povo, e Jensin Brent, que se recusava a entregar-se ao desespero, Kemp de Targos pôs-se a conclamar sua gente para um ataque retaliatório. Não sabia ainda como realizaria a proeza, mas sabia que ainda teria a palavra final na guerra do mago.
E, sobre a muralha de Brin Shander, Cássio também o sabia.

25
Errtu

Drizzt rastejou para fora de sua câmara oculta quando as últimas luzes do sol poente começaram a desaparecer. Perscrutou o horizonte meridional e ficou mais uma vez consternado. Ele precisara descansar, mas não pôde evitar as agudas dores da culpa ao ver a cidade de Targos ardendo, como se tivesse negligenciado seu dever de testemunhar o sofrimento das vítimas indefesas de Kessell.
No entanto, o drow não estivera ocioso, nem mesmo durante as horas do transe meditativo que os elfos chamavam de sono. Ele viajara de volta ao mundo subterrâneo de suas lembranças remotas, em busca de uma determinada sensação, a aura de uma poderosa presença que conhecera outrora. Apesar de não ter se aproximado o bastante para dar uma boa olhada no demônio que seguira na noite anterior, alguma coisa na criatura havia tangido uma corda familiar em suas mais antigas recordações. Uma emanação sobrenatural e penetrante cercava as criaturas dos planos inferiores quando estas caminhavam no mundo material, uma aura que os elfos negros, mais do que qualquer outra raça, haviam aprendido a compreender e a reconhecer. Drizzt conhecia não apenas aquele tipo de demônio, mas aquela criatura em particular. O monstro servira a sua gente em Menzoberranzan durante muitos anos.
- Errtu - ele murmurou enquanto vasculhava seus sonhos. Drizzt sabia o verdadeiro nome do demônio. O monstro atenderia a seu chamado.

Drizzt levou mais de uma hora em busca de um lugar apropriado para a invocação do demônio, e várias outras a preparar a área. Seu objetivo era anular tantas das vantagens de Errtu quantas pudesse - particularmente o tamanho e a capacidade de vôo -, apesar de esperar sinceramente que o encontro não envolvesse combate. As pessoas que conheciam o drow consideravam-no ousado, até mesmo imprudente, às vezes -, mas isso era contra inimigos mortais que recuavam diante da dor pungente de suas espadas sibilantes. Os demônios, principalmente aqueles com o tamanho e a força de Errtu, eram outra história. Muitas vezes, durante sua juventude, Drizzt testemunhara a ira de um monstro como aquele. Vira edifícios lançados por terra, a pedra sólida despedaçada pelas grandes mãos providas de garras. Vira pujantes guerreiros humanos atingirem o monstro com golpes que abateriam um ogro, apenas para descobrir, no terror da morte, que suas armas eram inúteis contra um ser tão poderoso dos planos inferiores.
Seu próprio povo geralmente se saía um pouco melhor contra os demônios e, na verdade, merecia até um certo grau de respeito da parte deles. Os demônios aliavam-se com freqüência aos drow em pé de igualdade, ou até mesmo serviam abertamente aos elfos negros, pois temiam a magia e as poderosas armas possuídas pelos drow. Mas isso era no mundo subterrâneo, onde as estranhas emanações das singulares formações de rocha abençoavam os metais usados pelos artífices drow com propriedades mágicas e misteriosas. Drizzt não tinha nenhuma das armas de sua terra natal, pois sua estranha magia não resistia à luz do dia; embora ele tivesse tomado o cuidado de protegê-las contra o sol, tornaram-se inúteis logo depois de ele ter se mudado para a superfície. Ele duvidava que as armas que agora carregava fossem capazes de ferir Errtu. E, mesmo que conseguissem, os demônios da estatura de Errtu não podiam ser realmente destruídos longe de seus planos de origem. Se chegassem às vias de fato, o máximo que Drizzt poderia esperar fazer era banir a criatura do Plano Material durante cem anos.
Ele não tinha a menor intenção de lutar.
No entanto, precisava tentar algo contra o mago que ameaçava as vilas. Seu objetivo agora era conseguir algumas informações que pudessem revelar um ponto fraco no mago, e seu método era a trapaça e o disfarce, pois esperava que Errtu recordasse o bastante sobre os elfos negros para tornar verossímil sua história, mas não demais para desnudar as mentiras frágeis que a comporiam.
O lugar que escolhera para o encontro era uma valeira abrigada, a uma pequena distância da face escarpada da montanha. Um teto provido de pináculo, formado por paredes convergentes, cobria metade da área; a outra metade abria-se para o céu, mas o lugar todo estava encravado na encosta da montanha, atrás dos elevados paredões, seguro e fora do alcance da visão de Crishal-Tirith. Agora, Drizzt usava o punhal e riscava runas de proteção nas paredes e no chão defronte ao lugar onde se sentaria. A imagem mental que tinha desses símbolos mágicos havia se obscurecido depois de tantos anos, e ele sabia que seu traçado estava longe de ser perfeito. No entanto, percebeu que precisaria de toda a proteção que eles pudessem oferecer caso Errtu se virasse contra ele.
Ao terminar, ele se sentou de pernas cruzadas sob o teto de pedra, atrás da área protegida, e sacou da mochila a pequena estatueta que ali carregava. Guenhwyvar seria um bom teste para suas inscrições de proteção.
O grande felino respondeu à invocação. Apareceu do outro lado do cubículo, e seus olhos aguçados já esquadrinhavam a área, em busca de qualquer perigo potencial que ameaçasse seu mestre. Depois, como nada sentisse, lançou uma olhar curioso para Drizzt.
- Venha até mim - chamou Drizzt, acenando com a mão. O gato deu um passo na direção dele, depois parou abruptamente, como se houvesse trombado com uma parede. Drizzt suspirou aliviado ao ver que as runas encerravam algum poder. Sua confiança aumentou consideravelmente, apesar de compreender que Errtu forçaria o poder das runas a seus limites absolutos, e provavelmente além.
Guenhwyvar deixou pender sua imensa cabeça num esforço para compreender o que a impedia. A resistência não havia sido realmente muito forte, mas os sinais atrapalhados de seu mestre - chamando-a, porém repelindo-a - confundiram a pantera. Ela cogitou reunir suas forças e atravessar a barreira frágil, mas seu mestre pareceu satisfeito por ela ter parado. Portanto, o gato se sentou onde estava e esperou.
Drizzt estava entretido estudando a área, à procura do lugar mais favorável para Guenhwyvar, um canto de onde ela pudesse saltar e surpreender o demônio. Uma saliência recôndita numa das paredes altas, logo depois da parte que convergia na formação de um teto, pareceu oferecer o melhor esconderijo. Ele fez sinal para que o gato se colocasse em posição e o instruiu a não atacar até receber ordem para tanto. Em seguida, ele voltou a se sentar e tentou relaxar, concentrado em seus últimos preparativos mentais antes de invocar o demônio.

Do outro lado do vale, na torre mágica, Errtu estava agachado num canto escuro do harém de Kessell, em eterna vigilância sobre o mago maligno que brincava com suas meninas de mentes despedaçadas. Uma chama tremulante de ódio ardia nos olhos de Errtu toda vez que ele pensava no estúpido Kessell. O mago quase arruinara tudo com sua demonstração de poder naquela tarde e sua recusa em demolir as torres desocupadas que haviam ficado para trás, o que havia exaurido ainda mais a força de Crenshinibon.
Errtu sentira uma impiedosa satisfação quando Kessell retornara a Crishal-Tirith e confirmara, por meio do uso dos espelhos de cristalomancia, que as outras duas torres haviam se desfeito em pedaços. Errtu alertara Kessell para não erguer uma terceira torre, mas o mago de ego frágil ficava mais teimoso a cada dia da campanha, imaginando que os conselhos do demônio, ou mesmo os de Crenshinibon, não passavam de uma manobra para minar seu controle absoluto.
E, portanto, Errtu, mostrou-se bastante receptivo, até mesmo aliviado, quando ouviu o chamado de Drizzt flutuando pelo vale. A princípio, ele rejeitou a possibilidade daquela invocação, mas as inflexões de seu verdadeiro nome pronunciadas em voz alta davam-lhe calafrios. Mais intrigado do que furioso com a impertinência do mortal que se atrevia a pronunciar seu nome, Errtu fugiu do mago distraído e deixou Crishal-Tirith.
Veio o chamado novamente, atravessando a harmonia da canção infindável do vento como uma onda de crista espumosa num lago tranqüilo.
Errtu esticou as grandes asas e planou sobre a tundra, voando para o norte, cada vez mais rápido, em direção ao conjurador. Os goblins aterrorizados fugiam da sombra escura do demônio de passagem, pois, mesmo sob a luz tênue de uma lua esquálida, a criatura do Abismo deixava uma tal esteira de trevas que fazia a noite parecer clara.
Drizzt inspirou profundamente, tenso. Ele sentiu a aproximação certeira do demônio quando este se desviou da Via de Bremen e subiu impetuosamente pelas encostas inferiores do Sepulcro de Kelvin, Guenhwyvar ergueu a cabeça repousada sobre as patas e rosnou, sentindo também a aproximação do monstro maligno. O gato recolheu-se ao fundo da saliência recôndita e manteve-se abaixado e imóvel, aguardando a ordem de seu mestre, confiante que suas excepcionais habilidades de dissimulação poderiam protegê-lo até mesmo da grande sensibilidade de um demônio.
As asas coriáceas de Errtu fecharam-se quando ele pousou na saliência. Ele determinou imediatamente a localização exata do conjurador e, mesmo tendo de encolher os ombros largos para passar pela entrada estreita da valeira, precipitou-se direto para dentro, com a intenção de mitigar sua curiosidade e depois matar o tolo blasfemo que ousava pronunciar seu nome em voz alta.
Drizzt esforçou-se para manter sua margem de controle quando o imenso demônio forçou passagem, com o corpanzil a preencher a pequena área do outro lado do minúsculo santuário do drow e obstruir a luz das estrelas. Não havia como se desviar daquele perigoso curso. Ele não tinha para onde fugir.
O demônio deteve-se subitamente, estupefato. Havia séculos Errtu não punha os olhos num drow e sem dúvida jamais esperara encontrar um deles na superfície, nos desertos congelados do norte mais longínquo.
De algum modo, Drizzt encontrou sua voz.
- Saudações, mestre do caos - disse ele tranqüilamente, com uma reverência. - Sou Drizzt Do'Urden, da casa de Daermon N'a'shezbaernon, nona família da linha de sucessão ao trono de Menzoberranzan. Bem-vindo a meu humilde acampamento.
- Você está bem longe de casa, drow - disse o demônio, com óbvia desconfiança.
- Como vós, grande demônio do Abismo - replicou Drizzt serenamente. - E atraído a este alto rincão do mundo por motivos semelhantes, a menos que eu esteja enganado.
- Sei por que estou aqui - respondeu Errtu. - Os assuntos dos drow sempre estiveram além de minha compreensão, ou de minha atenção!
Drizzt afagou o queixo esguio e riu com fingida confiança. Tinha o estômago apertado e sentiu o princípio de um suor frio a caminho. Riu novamente e lutou contra o medo. Se o demônio percebesse sua apreensão, sua credibilidade seria em muito reduzida.
- Ah, mas desta vez, pela primeira vez em muitos anos, parece que nossas estradas se cruzaram, poderoso aprovisionador da destruição. Meu povo tem uma certa curiosidade, talvez até mesmo um certo interesse pelo mago a quem você parece servir.
Errtu aprumou os ombros, e os primeiros bruxuleios de perigosas chamas apareceram em seus olhos vermelhos.
- Servir? - repetiu, incrédulo, e o tom regular de sua voz falhou, como se tocasse as raias de uma fúria incontrolável.
Drizzt rapidamente qualificou sua observação.
- Tudo indica, guardião das intenções caóticas, que o mago tem algum poder sobre você. Sem dúvida, você trabalha lado a lado com Akar Kessell.
- Não sirvo a humano nenhum! - rugiu Errtu, fazendo estremecer a própria fundação da caverna com uma batida enfática do pé.
Drizzt especulou se a luta que sequer sonhava vencer estaria prestes a começar. Cogitou chamar Guenhwyvar para que juntos pudessem ao menos desferir os primeiros golpes.
Mas, de repente, o demônio voltou a se acalmar. Convencido de que tinha adivinhado em parte o motivo da presença inesperada do drow, Errtu lançou um olhar inquisitivo para Drizzt.
- Servir ao mago? - gargalhou. - Akar Kessell é insignificante até mesmo pelos baixos padrões dos humanos! Mas você sabe disso, drow, e não ouse negá-lo. Está aqui, como eu estou aqui, por causa de Crenshinibon, e que se dane Kessell!
O olhar confuso no rosto do drow foi genuíno o bastante para fazer Errtu perder o equilíbrio. O demônio ainda acreditava que seu palpite estava correto, mas não conseguia entender por que o drow não compreendia o nome.
- Crenshinibon - explicou, estendendo a mão e as garras para o sul. - Um antigo bastião de poder indescritível.
- A torre? - perguntou Drizzt.
A incerteza de Errtu aflorou na forma de fúria explosiva.
- Não banque o ignorante comigo! - berrou o demônio. - Os lordes-drow conhecem muito bem o poder do artefato de Akar Kessell, ou então não teriam vindo à superfície para procurá-lo!
- Muito bem, você adivinhou - cedeu Drizzt. - Mas eu precisava me certificar de que a torre na planície era de fato o antigo artefato que procurava. Meus mestres mostram pouca misericórdia aos espiões negligentes.
Errtu sorriu perversamente ao recordar as medonhas câmaras de tortura de Menzoberranzan. Aqueles anos que passara entre os elfos negros haviam sido realmente agradáveis!
Drizzt rapidamente impeliu a conversa numa direção que talvez revelasse alguns dos pontos fracos de Kessell ou de sua torre.
- Uma coisa me deixa intrigado, horripilante espectro de maldade desenfreada - começou ele, tomando o cuidado de dar continuidade a sua série de elogios não repetidos. - Com que direito o mago possui Crenshinibon?
- Nenhum - disse Errtu. - Mago, ora! Comparado a seu povo, ele não passa de um aprendiz. A língua dele se contorce desajeitadamente ao pronunciar até mesmo o mais simples dos encantamentos. Mas é comum o destino fazer brincadeiras assim. Maior é o prazer, digo eu! Deixe Akar Kessell ter seu breve momento de triunfo. Os humanos não vivem muito tempo!
Drizzt sabia que seguia uma perigosa linha de questionamento, mas aceitou o risco. Mesmo com um demônio importante tão perto dele, Drizzt calculou que suas chances de sobrevivência naquele momento eram melhores que as de seus amigos em Brin Shander.
- Ainda assim, meus mestres preocupam-se com a possibilidade da torre ser danificada na batalha iminente com os humanos - blefou.
Errtu examinou Drizzt por mais um instante. A aparição dos elfos negros complicava o plano simples do demônio de herdar Crenshinibon de Kessell. Se os poderosos lordes-drow da imensa cidade de Menzoberranzan realmente tivessem planos que envolviam a relíquia, o demônio sabia que a conseguiriam. Kessell, com toda a certeza, mesmo com o poder da estilha, não poderia resistir-lhes. A mera presença daquele drow mudava a maneira como o demônio via sua relação com Crenshinibon. Como Errtu desejava que pudesse simplesmente devorar Kessell e fugir com a relíquia antes que os elfos negros se envolvessem demais!
No entanto, Errtu nunca havia considerado os drow como inimigos, e o demônio desprezava o mago titubeante. Talvez uma aliança com os elfos negros pudesse se mostrar benéfica para ambos os lados.
- Diga-me, campeão inigualável das trevas - pressionou Drizzt -, Crenshinibon está em perigo?
- Ora! - desdenhou Errtu. - Mesmo a torre, que é meramente um reflexo de Crenshinibon, é impenetrável. Absorve todos os ataques dirigidos contra suas paredes espelhadas e os reflete de volta à própria origem! Somente o pulsante cristal de energia, o próprio coração de Crishal-Tirith, é vulnerável, mas está escondido em segurança.
- Lá dentro?
- É claro.
- Mas e se alguém entrasse na torre - raciocinou Drizzt -, quão bem protegido, então, ele encontraria o núcleo?
- Uma tarefa impossível! - replicou o demônio. - A menos que os pescadores simplórios de Dez-Burgos tenham algum espírito a serviço deles. Ou talvez um sacerdote-mor, ou um arquimago para lançar encantamentos de revelação. Sem dúvida, seus mestres sabem que a porta de Crishal-Tirith é invisível e impossível de detectar por quaisquer seres inerentes ao plano em que atualmente descansa a torre. Nenhuma criatura deste mundo material - nem mesmo sua raça - conseguiria encontrar uma maneira de entrar!
- Mas... - Drizzt pressionou, ansioso. Errtu o interrompeu.
- Mesmo se alguém entrasse na estrutura por acidente - grunhiu ele, impaciente com a torrente implacável de suposições impossíveis -, teria de passar por mim. E o limite do poder de Kessell dentro da torre é realmente considerável, pois o mago tornou-se uma extensão da própria Crenshinibon, um escape vivo para a força incomensurável da estilha de cristal! O núcleo jaz além do próprio ponto focal da interação de Kessell com a torre e no alto do próprio topo... - O demônio deteve-se, subitamente desconfiado da linha de questionamento de Drizzt. Se o os sábios lordes-drow estivessem realmente interessados em Crenshinibon, por que não estavam mais inteirados de seus pontos fortes e fracos?
Foi aí que Errtu compreendeu seu erro. Ele voltou a examinar Drizzt, mas com um foco diferente. Ao encontrar o drow, atordoado pela mera presença de um elfo negro na região, ele havia procurado sinais de trapaça nos atributos físicos do próprio Drizzt, tentando determinar se as características drow eram uma ilusão - um truque inteligente, porém simples de alteração da forma, ao alcance até mesmo de um mago menor.
Quando se convenceu de que tinha diante dele um drow de verdade e não uma ilusão, Errtu aceitou a credibilidade da história de Drizzt, consistente com o estilo dos elfos negros.
Agora, porém, o demônio explorava outros indícios periféricos além da pele negra de Drizzt, reparando nos objetos que este carregava e na área que ele delimitara para o encontro. Nada que Drizzt tinha consigo, nem mesmo as armas embainhadas em seus quadris, emanava as distintas propriedades mágicas do mundo subterrâneo. Talvez os mestres-drow tivessem aparelhado seus espiões de maneira mais adequada ao mundo da superfície, raciocinou Errtu. Pelo que aprendera sobre os elfos negros durante seus muitos anos de serviço em Menzoberranzan, a presença daquele drow não era uma ultrajante.
Mas as criaturas do caos sobreviviam porque não confiavam em ninguém.
Errtu continuou sua busca por indícios da autenticidade de Drizzt. O único objeto percebido pelo demônio a refletir a herança de Drizzt era uma fina corrente de prata presa em volta do pescoço esguio, uma jóia comum entre os elfos negros, usada para carregar uma pequena bolsa de dinheiro. Concentrando-se nisso, Errtu descobriu uma segunda corrente, mais delicada que a primeira e a ela entrelaçada. O demônio seguiu o vinco quase imperceptível criado pela longa corrente no gibão de Drizzt.
Incomum, observou ele, e talvez revelador. Errtu apontou a corrente, pronunciou uma palavra de comando e ergueu o dedo esticado.
Drizzt retesou-se ao sentir o emblema deslizar para fora de seu gibão de couro. O símbolo passou pelo decote do traje, caiu até esticar a corrente e pender exposto sobre seu peito.
O sorriso maldoso de Errtu alargou-se juntamente com seus olhos semi-cerrados.
- Escolha incomum para um drow - sibilou ele com sarcasmo. - Eu teria esperado o símbolo de Llolth, a rainha-demônio de seu povo. Ela não ficaria nada feliz!
Como que a partir do nada, um chicote de muitas correias apareceu numa das mãos do demônio e, na outra, uma espada denteada e cruelmente chanfrada.
A princípio, a mente de Drizzt lançou-se por centenas de caminhos, explorou as mentiras mais plausíveis que poderia inventar para tirá-lo daquele apuro. Mas, em seguida, ele chacoalhou a cabeça resolutamente e descartou as mentiras. Ele não desonraria sua divindade.
Da corrente de prata pendia um presente de Régis, uma peça que o halfling entalhara a partir dos ossos de uma das poucas cabeçudas que jamais fisgara. Drizzt ficara profundamente emocionado quando Régis lhe mostrara o pingente e considerava-o o melhor trabalho do halfling. Girava suspenso pela longa corrente, e o relevo e o sombreado delicados conferiam-lhe o caráter de uma verdadeira obra de arte.
Era uma cabeça de unicórnio, o símbolo da deusa Mielikki.
- Quem é você, drow? - exigiu Errtu. O demônio já tinha se decidido a matar Drizzt, mas estava intrigado com um encontro tão incomum. Um elfo negro que seguia a Dama da Floresta? E um habitante da superfície também! Errtu conhecera muitos drow ao longo dos séculos, mas nunca ouvira falar de um que tivesse abandonado os costumes perversos dos drow. Assassinos frios todos eles, haviam ensinado até mesmo ao grande demônio do caos alguns truques no que se referia aos métodos da tortura excruciante.
- Sou Drizzt Do'Urden, isso ao menos é verdade - replicou Drizzt tranqüilamente. - Aquele que renunciou à Casa de Daermon N'a'shezbaernon. - Todo o medo abandou Drizzt assim que ele aceitou, malgrado toda e qualquer esperança, que teria de lutar com o demônio. Ele assumia agora a serena prontidão de um guerreiro experiente, preparado para aproveitar a menor vantagem que aparecesse. - Um ranger humilde a serviço de Gwaeron Windstrom, herói da deusa Mielikki. - Ele fez uma reverência, de acordo com as normas de uma apresentação adequada.
Ao se endireitar, ele desembainhou as cimitarras.
- Preciso derrotá-lo, cicatriz da vilania - declarou -, e mandá-lo de volta ao turbilhão de nuvens do Abismo sem fundo. Não há lugar no mundo iluminado pelo sol para alguém de sua espécie.
- Você está confuso, elfo - disse o demônio. - Perdeu os costumes de seu povo e agora ousa presumir que é capaz de me derrotar! - Chamas se ergueram das pedras ao redor de Errtu. - Eu o teria matado com misericórdia, com um golpe limpo, por respeito a sua raça. Mas seu orgulho me atormenta; hei de ensiná-lo a desejar a morte! Venha, sinta a ardência de minhas chamas!
Drizzt já se encontrava praticamente indefeso diante do calor do fogo demoníaco de Errtu, e a luminosidade das chamas feriam seus olhos sensíveis. O corpanzil do demônio parecia apenas a mancha embaçada de uma sombra. O drow viu a escuridão que se estendia à direita do demônio e compreendeu que Errtu havia erguido sua terrível espada. Posicionou-se para a defesa mas, de repente, o demônio cambaleou de lado e rugiu, surpreso e enfurecido.
Guenhwyvar havia se agarrado firmemente ao braço erguido da criatura.
O imenso demônio manteve a pantera à distância, tentando imprensar o gato entre seu antebraço e a parede de rocha para manter as garras e os dentes dilacerantes longe de uma área vital. Guenhwyvar mordia e arranhava o braço descomunal, rasgava a pele e os músculos do demônio.
Errtu afastou o violento ataque com um estremecimento e decidiu lidar com o gato mais tarde. A principal preocupação do demônio continuava a ser o drow, pois ele respeitava o poder potencial dos elfos negros. Errtu vira muitos adversários abatidos por um dos incontáveis truques dos elfos negros.
O chicote vergastou as pernas de Drizzt, rápido demais para que o drow, ainda tonto com a súbita explosão de luz das chamas, aparasse o golpe ou se esquivasse. Errtu puxou o cabo assim que as correias se emaranharam nas pernas finas e nos tornozelos do drow, com força suficiente para lançar Drizzt facilmente de costas ao chão.
Drizzt sentiu a dor lancinante em suas pernas e ouviu o jato de ar expelido de seus pulmões ao cair sobre a pedra dura. Ele sabia que precisava reagir sem demora, mas o fulgor das chamas e o súbito ataque de Errtu o desorientaram. Viu-se arrastado pela pedra, sentiu a intensidade do calor que aumentava. Ele conseguiu erguer a cabeça apenas a tempo de ver os pés emaranhados penetrarem o fogo demoníaco.
- E, assim, eu morro - declarou categoricamente.
Mas suas pernas não queimaram.
Salivando de antecipação pelos gritos agonizantes de sua vítima indefesa, Errtu deu um puxão mais forte no chicote e arrastou Drizzt completamente para dentro do fogo. Apesar de totalmente envolto pelas labaredas, o drow mal se sentia aquecido pelas chamas.
E então, com um derradeiro silvo de protesto, as chamas ardentes extinguiram-se de repente.
Nenhum dos oponentes compreendeu o que acontecia, pois ambos presumiram que o outro havia sido o responsável.
Errtu atacou rapidamente mais uma vez. Baixando o pé pesado sobre o peito de Drizzt, começou a esmagá-lo contra a pedra. O drow, desesperado, distribuiu golpes com uma das armas, mas isso não teve qualquer efeito sobre o monstro de um outro mundo.
Foi então que Drizzt brandiu a outra cimitarra, a espada que recolhera do tesouro do dragão.
Chiando como a água em contato com o fogo, ela penetrou a articulação do joelho de Errtu. O punho da arma aqueceu-se quando a lâmina rasgou a pele do demônio e quase queimou a mão de Drizzt. Depois, tornou-se fria como o gelo, como se extinguisse a força vital e ardente de Errtu com uma energia glacial toda própria. Drizzt compreendeu, então, o que apagara as chamas.
O demônio boquiabriu-se, completamente horrorizado, depois gritou de agonia. Nunca sentira tamanha ardência! Ele saltou para trás e agitou-se freneticamente, tentando escapar à terrível dor provocada pela arma, e arrastou Drizzt, que não conseguia largar o punho. Guenhwyvar foi atirada longe com a violência da fúria do demônio, voou do braço do monstro e colidiu pesadamente com a parede.
Drizzt fitou o ferimento, incrédulo, enquanto o demônio recuava. Jorrava vapor do buraco no joelho de Errtu e as bordas do corte cobriam-se de gelo!
Mas Drizzt também havia se enfraquecido com o golpe. Em sua luta com o poderoso demônio, a cimitarra extraíra a força vital do portador e arrastara Drizzt para a batalha com o monstro de fogo.
Agora o drow sentia como se não lhe tivessem restado forças nem mesmo para ficar de pé. Mas flagrou-se investindo adiante, com a espada em riste, como que arrastado pela avidez da cimitarra.
A entrada era muito estreita. Errtu não conseguia se esquivar nem saltar para longe.
A cimitarra encontrou o ventre do demônio.
A onda explosiva que resultou do contato da lâmina com o núcleo da força vital de Errtu exauriu as energias de Drizzt e o arremessou para trás. Ele se chocou com a parede de pedra e desabou, mas conseguiu manter-se alerta o suficiente para testemunhar a luta titânica que ainda continuava.
Errtu saiu para a saliência. O demônio agora cambaleava, tentando abrir as asas. Mas elas pendiam, combalidas. O poder da cimitarra emitia uma luz branca e a arma continuava com seu assalto. O demônio não suportava segurá-la nem arrancá-la da própria carne, apesar de a lâmina encravada, cuja magia apagava as chamas que ela fora criada para destruir, estivesse certamente vencendo o conflito.
Errtu compreendeu que havia se descuidado, pois confiara excessivamente em sua capacidade de destruir qualquer mortal em combate singular. O demônio não tinha pensado na possibilidade de uma espada tão cruel existir; nunca ouvira falar de uma arma com tamanha ardência!
O vapor jorrava das vísceras expostas de Errtu e envolvia os combatentes.
- E, assim, você me baniu, drow traiçoeiro! - chispou ele.
Tonto e estupefato, Drizzt viu a luz branca aumentar em intensidade e a sombra escura diminuir.
- Cem anos, drow! - uivou Errtu. - Não é muito tempo para nenhum de nós! - O vapor se adensava à medida que a sombra parecia derreter.
- Um século, Drizzt Do'Urden! - veio o grito enfraquecido de Errtu desde algum lugar muito distante. - Cuidado, então! Errtu não estará muito longe!
O vapor flutuou no ar e sumiu.
O último som que Drizzt ouviu foi o retinir da cimitarra de metal que caía sobre a saliência de pedra.

26
Direitos de Vitória

Wulfgar estava recostado em sua cadeira, à cabeceira da mesa principal no Recinto do Hidromel, que fora construído às pressas, e batia o pé ansiosamente por causa da longa e necessária demora devida às exigências da tradição. Sentia que seu povo já deveria estar a caminho, mas foi a restauração das cerimônias e celebrações tradicionais que imediatamente o diferenciaram - e o colocaram acima - do tirano Heafstaag aos olhos dos céticos e sempre desconfiados bárbaros.
Wulfgar, afinal, entrara no acampamento depois de cinco anos de ausência e desafiara seu rei de longa data. Um dia depois, conquistara a coroa e no dia seguinte fora coroado Rei Wulfgar da Tribo do Alce.
E era sua determinação que seu reinado, curto como pretendia que este fosse, não se caracterizasse pelas ameaças e táticas intimidativas de seu predecessor. Ele pediria, e não ordenaria aos guerreiros das tribos reunidas que o acompanhassem na batalha, pois sabia que o guerreiro bárbaro era um homem impelido quase exclusivamente pelo orgulho feroz. Despojados de sua dignidade, como Heafstaag fizera ao se recusar a honrar a soberania dos reis individuais, os homens da tribo não eram melhores na batalha do que os homens comuns. Wulfgar sabia que era preciso recuperar a vantagem daquele orgulho se quisessem ter alguma chance contra a esmagadora superioridade numérica do mago.
Portanto, Hengorot, o Recinto do Hidromel, fora erguido e o Desafio da Canção iniciado pela primeira vez em quase cinco anos. Era um momento breve e feliz de competição jovial entre as tribos, sufocadas sob a dominação implacável de Heafstaag.
A decisão de erguer o recinto de pele de gamo havia sido difícil para Wulfgar. Supondo-se que ainda houvesse tempo antes de o exército de Kessell atacar, ele ponderou os benefícios de retornar à tradição e a necessidade premente de urgência. Ele esperava apenas que, no frenesi dos preparativos antes da batalha, Kessell não notasse a ausência do rei bárbaro, Heafstaag. Se o mago fosse perspicaz, isso era bastante improvável.
Agora ele esperava silenciosa e pacientemente, observando as chamas retornarem aos olhos dos homens da tribo.
- Como nos velhos tempos? - perguntou Revjak, sentado a seu lado.
- Bons tempos - respondeu Wulfgar.
Satisfeito, Revjak recostou-se na parede de pele de gamo da tenda e proporcionou ao novo chefe a solidão que ele obviamente desejava. E Wulfgar retomou sua espera, à procura do melhor momento para revelar sua proposta.
Na outra extremidade do recinto, tinha início uma competição de arremesso de machados. Semelhante à tática que Heafstaag e Beorg haviam utilizado para selar um pacto entre as tribos no último Hengorot, o desafio consistia em arremessar o machado a partir da maior distância possível e cravá-lo num barril de hidromel com força suficiente para abrir um buraco. O número de canecas enchidas com o esforço, no decorrer de uma contagem especificada, determinava o sucesso do arremesso.
Wulfgar viu ali sua oportunidade. Saltou de seu banco e exigiu, como anfitrião, o primeiro arremesso. O homem que havia sido escolhido para arbitrar o desafio reconheceu o direito de Wulfgar e convidou-o a descer até a primeira marca designada.
- Daqui mesmo - disse Wulfgar, levando Garra de Palas ao ombro. Murmúrios de incredulidade e agitação manifestaram-se em todos os cantos do recinto. O uso de um martelo de guerra naquele desafio era inaudito, mas ninguém reclamou ou citou as regras. Todos os homens que haviam escutado as histórias, mas não testemunhado em primeira mão o estilhaçamento do grande machado de Heafstaag, estavam ansiosos para ver a arma em ação. Um barril de hidromel foi colocado sobre um banco ao fundo do recinto.
- Mais um atrás dele! - exigiu Wulfgar. - E outro atrás desse! - Sua concentração restringiu-se à tarefa imediata, e ele não perdeu tempo tentando distinguir os sussurros que ouvia a seu redor.
Os barris foram preparados e a multidão afastou-se da linha de visão do jovem rei. Wulfgar apertou com força Garra de Palas em suas mãos e inspirou profundamente, segurando a arma para se manter firme. Os espectadores incrédulos assistiram, estupefatos, à explosão de movimento do novo rei, que arremessou o poderoso martelo com um gesto fluído e uma força inigualável.
Girando no ar, Garra de Palas atravessou o longo recinto, destruiu o primeiro barril, depois o segundo e continuou: não só derrubou os três alvos e seus bancos, como seguiu em frente e abriu um buraco nos fundos do Recinto do Hidromel. Os guerreiros mais próximos acorreram à abertura para acompanhar o vôo da arma, mas o martelo havia desaparecido nas trevas. Eles saíram para recuperá-lo.
Mas Wulfgar os deteve. Saltou para a mesa e ergueu os braços diante dele.
- Ouçam-me, guerreiros das planícies do norte! - gritou ele.
Estavam todos boquiabertos diante da proeza sem precedentes; alguns caíram de joelhos ao ver Garra de Palas reaparecer subitamente nas mãos do jovem rei.
- Sou Wulfgar, filho de Beornegar e Rei da Tribo do Alce! No entanto, falo a vocês agora não como seu rei, mas como um irmão guerreiro, horrorizado pela desonra que Heafstaag tentou impor a todos nós!
Incitado por saber que havia conquistado a atenção e o respeito de todos e pela confirmação de que não estavam erradas suas suposições sobre os verdadeiros desejos deles, Wulfgar aproveitou o momento. Aquelas pessoas haviam clamado por sua libertação do reinado tirânico do rei caolho e, derrotadas e quase levadas à extinção em sua última campanha, e agora prestes a lutar ao lado de goblins e gigantes, ansiavam por um herói que lhes devolvesse o orgulho perdido.
- Sou o matador do dragão! - continuou ele. - E, pelo direito da vitória, possuo os tesouros de Morte Gélida.
Novamente as conversas particulares o interromperam, pois o tesouro desprotegido tornara-se assunto de debate. Wulfgar deixou-os continuar com a conversa fiada durante um bom tempo para aumentar-lhes o interesse pelo ouro do dragão.
Quando finalmente se aquietaram, ele continuou.
- As tribos da tundra não lutam pela mesma causa que goblins e gigantes! - decretou ele, recebendo estimulantes gritos de aprovação. - Lutamos contra eles!
A multidão ficou subitamente em silêncio. Um guarda entrou correndo na tenda, mas não se atreveu a interromper o novo rei.
- Parto com a aurora para Dez-Burgos - declarou Wulfgar. - Hei de combater o mago Kessell e a horda abominável que ele arrancou das tocas da Espinha do Mundo!
A multidão não respondeu. Os bárbaros aceitavam avidamente a idéia de lutar contra Kessell, mas o pensamento de retornar a Dez-Burgos para ajudar a gente que quase os destruíra cinco anos antes nunca lhes havia ocorrido. Mas o guarda interveio nesse momento.
- Receio que sua demanda seja vã, jovem rei - disse ele. Wulfgar lançou um olhar angustiado para o homem, pois já adivinhava as notícias que ele trazia. - As nuvens de fumaça de grandes incêndios elevam-se neste exato momento da planície ao sul.
Wulfgar avaliou as notícias aflitivas. Ele imaginara que teria mais tempo.
- Então partirei esta noite! - vociferou para a assembléia atordoada. - Venham comigo, meus amigos, meus colegas guerreiros do norte! Hei de mostrar a vocês o caminho para as glórias perdidas de nosso passado!
A multidão parecia dividida e incerta. Wulfgar lançou sua última cartada:
- A qualquer homem que vier comigo, ou aos parentes sobreviventes, caso ele venha a tombar na batalha, ofereço uma parte justa do tesouro do dragão!
Ele os atingira como uma poderosa borrasca vinda do Mar do Gelo em Movimento. Prendera a imaginação e o coração de cada guerreiro bárbaro e prometera a eles um retorno à riqueza e à glória de seus dias mais brilhantes.
Naquela mesma noite, o exército mercenário de Wulfgar partiu do acampamento e atroou pela vasta planície.
Nem um único homem ficou para trás.

27
O Relógio da Destruição

Bremen foi incendiada ao amanhecer. O povo da pequena aldeia desmurada compreendeu que de nada adiantaria resistir e lutar assim que a torrente de monstros atravessou impetuosamente o Rio Shaengarne. Ofereceram uma resistência simbólica no vau, disparando algumas rajadas de flechas nos goblins de vanguarda apenas para retardar as tropas o bastante até que as embarcações mais pesadas e mais lentas zarpassem e alcançassem a segurança do Maer Dualdon. Os arqueiros, logo depois, fugiram de volta às docas e seguiram seus concidadãos.
Quando os goblins finalmente entraram na cidade, encontraram-na completamente abandonada. Enfurecidos, assistiram à fuga das embarcações à vela, que recuaram em direção ao leste para se unir à flotilha de Targos e Termalaine. Bremen encontrava-se muito distante para ser de qualquer utilidade para Akar Kessell e, portanto - ao contrário da cidade de Termalaine, convertida num acampamento -, foi arrasada pelas chamas.
As pessoas no lago, as mais recentes numa longa sucessão de vítimas desabrigadas pela destruição arbitrária de Kessell, observaram, impotentes, suas casas virem abaixo em forma de lascas incandescentes.
Desde a muralha de Brin Shander, Cássio e Régis também assistiam a tudo.
- Ele cometeu mais um erro - Cássio disse ao halfling.
- Como assim?
- Kessell acuou as pessoas de Targos, Termalaine, Caer-Konig, Caer-Dineval e, agora, Bremen - explicou Cássio. - Elas não têm mais para onde ir; sua única esperança é a vitória.
- Grande coisa - comentou Régis. - Você viu o que a torre é capaz de fazer. E, mesmo sem ela, o exército de Kessell poderia destruir a todos nós! Como o próprio mago disse, ele tem todas as vantagens.
- Talvez - cedeu Cássio. - O mago acredita ser invencível, isso é certo. E esse é o erro dele, meu amigo. O mais dócil dos animais luta bravamente quando encurralado contra uma parede, pois nada tem a perder. Um homem pobre é mais letal que um homem rico porque dá menos valor à própria vida. E um homem desabrigado, preso nas estepes congeladas com os primeiros ventos do inverno já começando a soprar, é um inimigo realmente formidável!
- Não tenha medo, amiguinho - continuou Cássio - Em nosso conselho, agora pela manhã, encontraremos uma maneira de explorar as fraquezas do mago.
Régis assentiu, incapaz de contestar a lógica simples do representante e sem disposição para rejeitar seu otimismo. Mesmo assim, ao examinar as densas fileiras de goblins e ores que cercavam a cidade, o halfling alimentava poucas esperanças.
Olhou para o norte, onde a poeira finalmente havia se assentado sobre o vale dos anões. A Ladeira de Bruenor não mais existia, pois ruíra com o restante da face íngreme quando os anões obliteraram as próprias cavernas.
- Abra uma porta para mim, Bruenor - sussurrou Régis distraidamente. - Por favor, deixe-me entrar.

Coincidentemente, Bruenor e seu clã estavam, naquele exato momento, discutindo a plausibilidade de abrir uma porta em seus túneis. Mas não para deixar alguém entrar. Logo após seu sucesso arrasador contra os ogros e goblins nas saliências do lado de fora das minas, os belicosos barbas-longas se deram conta de que não conseguiriam ficar no ócio enquanto ores, goblins e monstros ainda piores destruíam o mundo ao redor deles. Ansiavam por experimentar Kessell uma segunda vez. Nas entranhas do subterrâneo, eles não faziam idéia de que Brin Shander ainda estava de pé, nem que o exército de Kessell já havia invadido toda a Dez-Burgos, mas ouviam os sons de um acampamento acima das seções mais meridionais de seu imenso complexo.
Foi Bruenor quem propôs a idéia de uma segunda batalha, principalmente por estar ele mesmo furioso com a perda iminente de seus mais chegados amigos entre os não-anões. Pouco depois de abatidos os goblins que escaparam ao desmoronamento dos túneis, o líder do clã do Salão de Mitral reuniu todo o seu povo ao redor dele.
- Mandem alguém até as extremidades mais distantes dos túneis - instruiu. - Descubram onde os canalhas vão dormir.
Naquela noite, os sons dos monstros em marcha tornaram-se óbvios bem mais ao sul, sob o campo que cercava Brin Shander. Os diligentes anões imediatamente puseram-se a restaurar os túneis pouco usados que corriam naquela direção. E, assim que se colocaram sob o exército, cavaram dez poços separados, de baixo para cima, detendo-se apenas pouco abaixo da superfície.
Um brilho especial havia retornado a seus olhos: a centelha de um anão que sabe estar prestes a decepar algumas cabeças de goblins. O traiçoeiro plano de Bruenor tinha um potencial infinito para a vingança com riscos mínimos. Em coisa de cinco minutos, poderiam completar suas novas saídas. Menos de um minuto depois, todo o seu contingente estaria na superfície, bem no meio do exército adormecido de Kessell.

A reunião que Cássio qualificara como um conselho, na verdade, foi antes um fórum onde o representante de Brin Shander pôde revelar suas primeiras estratégias retaliatórias. No entanto, nenhum dos líderes reunidos, nem mesmo Glensather, o único outro representante presente, protestou o mínimo que fosse. Cássio estudara em todos os aspectos o mago e seu exército de goblins entrincheirados e dedicou atenção meticulosa aos pormenores. O representante havia delineado a disposição de todo o contingente e detalhado as rivalidades potencialmente mais explosivas entre as tropas de goblins e ores e as melhores estimativas quanto ao tempo necessário para que o conflito interno enfraquecesse suficientemente o exército.
Todos os presentes concordavam, entretanto, que a pedra fundamental do cerco era Crishal-Tirith. O assombroso poder da estrutura cristalina forçaria até mesmo os ores mais desagregadores à obediência incondicional. No entanto, os limites daquele poder, segundo Cássio, constituíam a verdadeira questão.
- Por que Kessell insistiu tanto numa rendição imediata? - raciocinou o representante. - Ele poderia nos fazer padecer durante alguns dias a angústia de um cerco até amolecer nossa resistência.
Os outros concordaram com a lógica da linha de raciocínio de Cássio, mas não tinham respostas.
-Talvez Kessell não tenha tanto controle sobre seu rebanho quanto acreditamos - sugeriu o próprio Cássio. - Será que o mago teme que seu exército se desintegre ao redor dele caso o ataque seja protelado?
- Pode ser - respondeu Glensather de Angraleste. - Ou pode ser que Akar Kessell simplesmente compreenda o poder de sua vantagem e saiba que não temos escolha a não ser ceder. Será que você não está confundindo confiança com preocupação?
Cássio deteve-se um momento para refletir sobre a questão.
- Excelente colocação - disse ele, enfim. - No entanto, irrelevante para nossos planos.
Glensather e vários outros lançaram um olhar curioso ao representante. Devemos aceitar essa última hipótese - explicou Cássio. - Se o mago tiver realmente o controle absoluto do exército reunido, então tudo o que possamos tentar vai se mostrar inútil em todo caso. Portanto, devemos agir sob o pressuposto de que a impaciência de Kessell revela uma preocupação bem fundada. Não acho que o mago seja um estrategista excepcional. Ele embarcou num curso de destruição que imaginou nos forçaria à submissão, mas que, na realidade, fortaleceu a determinação, de muitos de nós de lutar até o fim. Rivalidades de longa data entre várias vilas, um rancor que o líder sagaz de uma força invasora certamente teria transformado numa excelente vantagem, foram corrigidas com a patente desconsideração do mago pela sutileza e por suas demonstrações de ultrajante brutalidade.
Pelos olhares atentos que recebia, Cássio sabia estar angariando apoio de todos os lados. Tentava realizar duas coisas naquela reunião: convencer os demais a concordar com a jogada de risco que estava prestes a revelar e elevar-lhes as perspectivas, devolvendo-lhes um resto de esperança.
- Nossa gente está lá fora - disse ele, descrevendo um arco amplo com o braço. - No Maer Dualdon e no Lac Dinneshir, as frotas se juntaram, à espera de algum sinal de Brin Shander, de que haveremos de apoiá-los. As pessoas de Bom Prado e Toca de Dugan fazem o mesmo no lago ao sul, armadas até os dentes e cientes de que nesta batalha nada restará a qualquer um dos sobreviventes caso não sejamos vitoriosos! - Ele se debruçou sobre a mesa, prendeu alternadamente o olhar de cada homem sentado diante dele e concluiu sombriamente - Sem um lar. Sem esperança para nossas esposas. Sem esperança para nossos filhos. Sem termos para onde fugir.
Cássio continuou a inspirar os demais a sua volta e foi logo apoiado por Glensather, que intuíra o objetivo do representante de elevar o moral e reconhecera o valor da tentativa. Cássio aguardou o momento mais oportuno. Quando a maioria dos líderes reunidos já havia substituído as carrancas de desespero pelo esgar determinado da sobrevivência, ele apresentou seu ousado plano.
- Kessell exigiu um emissário - disse ele - e nós devemos enviar um.
- Você ou eu pareceríamos a escolha mais óbvia - interveio Glensather. - Qual dos dois deve ser?
Um sorriso oblíquo espalhou-se pelo rosto de Cássio.
- Nenhum dos dois - respondeu. - Um de nós seria a escolha óbvia caso tivéssemos a intenção de concordar com as exigências de Kessell. Mas temos uma outra opção. - Seu olhar recaiu diretamente sobre Régis. O halfling contorceu-se, constrangido, meio que adivinhando o que o representante tinha em mente. - Há alguém entre nós que conseguiu uma reputação quase lendária com suas consideráveis habilidades de persuasão. Talvez seu apelo carismático venha a nos ganhar um tempo valioso em nossas negociações com o mago.
Régis sentiu-se mal. Ele sempre se perguntara quando o pingente de rubi o meteria numa encrenca da qual não conseguiria escapar.
Várias outras pessoas fitavam Régis agora, aparentemente intrigadas pelas possibilidades da sugestão de Cássio. As histórias sobre o encanto e a habilidade persuasiva do halfling e a acusação que Kemp fizera no conselho, semanas antes, haviam sido contadas e recontadas milhares de vezes em todas as vilas, e cada narrador costumava realçar e exagerar os contos para aumentar a própria importância. Embora Régis não estivesse entusiasmado com a perda do poder de seu segredo - era raro que as pessoas o olhassem diretamente nos olhos agora -, ele chegara a desfrutar de um certo grau de fama. Ele não tinha pensado nos possíveis efeitos colaterais de ter tantos admiradores.
- Que o halfling, o antigo porta-voz de Bosquesó, represente-nos na corte de Akar Kessell - declarou Cássio, com a aprovação quase unânime da assembléia. -Talvez nosso pequeno amigo seja capaz de convencer o mago do erro de sua maldade!
- Estão enganados! - protestou Régis. - São apenas boatos...
- A humildade - interrompeu Cássio - é uma excelente virtude, meu bom halfling. E todos aqui reunidos apreciam a sinceridade de sua insegurança. E apreciam ainda mais sua disposição em lançar seus talentos contra Kessell à luz dessa insegurança!
Régis fechou os olhos e não respondeu, sabendo que a moção certamente passaria, quer ele a aprovasse ou não.
E passou, sem um único voto discordante. Acuadas, as pessoas estavam totalmente dispostas a agarrar o menor fragmento de esperança que pudessem encontrar.
Cássio agiu rapidamente para encerrar o conselho, pois acreditava que todos os outro assuntos - problemas de superlotação e armazenamento de comida - eram de pouca importância numa hora como aquela. Se Régis falhasse, todas as outras inconveniências se tornariam imateriais.
Régis permaneceu em silêncio. Ele se apresentara ao conselho apenas para oferecer apoio a seus amigos representantes. Ao assumir seu lugar à mesa, não tinha nem mesmo a intenção de participar ativamente das discussões, quanto menos de se tornar o ponto central do plano de defesa.
E, portanto, suspendeu-se a reunião. Cássio e Glensather trocaram piscadelas, cientes do triunfo obtido, pois todos deixaram a sala sentindo-se um pouco mais otimistas.
Cássio reteve Régis quando este fez menção de sair com os demais. O representante de Brin Shander fechou a porta depois do último ter passado, desejando uma audiência privada com o principal personagem dos primeiros estágios de seu plano.
- Você poderia ter discutido isso tudo comigo primeiro! - Régis resmungou pelas costas do representante assim que a porta foi fechada. - Acho que eu merecia a oportunidade de tomar uma decisão quanto a isso!
Cássio apresentava uma fisionomia lúgubre ao se virar para encarar o halfling.
- Que escolha tem qualquer um de nós? - perguntou ele. - Ao menos desta maneira demos a todos eles um pouco de esperança.
- Você me sobreestima - protestou Régis.
- Talvez você é que se subestime - disse Cássio.
Apesar de o halfling compreender que Cássio não voltaria atrás no plano que havia colocado em ação, a confiança do representante transmitia a Régis um espírito altruísta genuinamente reconfortante.
- Rezemos, pelo bem de nós dois, que esta última hipótese seja a verdadeira - continuou Cássio, indo até sua cadeira. - Mas eu realmente acredito que este seja o caso. Tenho fé em você, mesmo que você não a tenha. Lembro-me bem do que fez ao Representante Kemp no conselho, cinco anos atrás, embora fosse necessária a própria declaração dele de que havia sido enganado para que eu percebesse a verdade. Um trabalho magistral de persuasão, Régis de Bosquesó, e mais ainda por ter guardado seu segredo durante tanto tempo!
Régis corou e admitiu que Cássio tinha razão.
- E se você consegue lidar com tipos teimosos como Kemp de Targos, deve achar Akar Kessell uma vítima fácil!
- Concordo com você que Kessell não chega a ser um homem de força interior - disse Régis -, mas os magos têm maneiras de descobrir truques semelhantes aos deles. E você esquece o demônio. Eu nem mesmo tentaria enganar alguém da espécie dele!
- Esperemos que você não tenha de lidar com esse aí - concordou Cássio, com um estremecimento visível. - No entanto, sinto que você deve ir à torre e tentar dissuadir o mago. Se não conseguirmos manter afastado o exército reunido até sua própria desordem interna se tornar nossa aliada, então estaremos certamente condenados. Creia-me, já que sou seu amigo, que não pediria a você para correr tamanho risco caso vislumbrasse qualquer outro caminho possível.
Um olhar dolorido de impotente simpatia se insinuara claramente na aparência anterior de vibrante otimismo do representante. Sua preocupação comoveu Régis, como o faria um homem faminto a implorar comida.
Mesmo levando em consideração seus sentimentos pelo representante excessivamente aflito, Régis foi forçado a admitir a lógica do plano e a ausência de outros caminhos a explorar. Kessell não havia lhes dado muito tempo para reagrupar depois do ataque inicial. Com a destruição de Targos, o mago demonstrara sua capacidade de igualmente destruir Brin Shander, e o halfling tinha poucas dúvidas de que Kessell levaria a cabo sua vil ameaça.
E foi por isso que Régis acabou aceitando sua participação como a única opção. O halfling não era facilmente incitado a agir, mas, quando se decidia a fazer algo, geralmente tentava fazê-lo da maneira adequada.
- Antes de tudo - começou ele -, devo lhe contar, no mais rigoroso sigilo, que realmente tenho auxílio mágico. - Um brilho de esperança retornou aos olhos de Cássio. Ele se inclinou, ansioso para ouvir mais, porém Régis apaziguou-o com uma palma estendida.
- Você precisa entender, no entanto - explicou o halfling -, que eu não tenho, como alegam algumas histórias, o poder de perverter o que uma pessoa traz no coração. Eu não conseguiria convencer Kessell a abandonar sua senda maligna mais do que poderia convencer o representante Kemp a fazer as pazes com Termalaine. - Ele se levantou da cadeira almofadada e pôs-se a caminhar em volta da mesa, com as mãos atrás das costas. Cássio o vigiava com expectativa e incerteza, incapaz de descobrir exatamente aonde ele pretendia chegar ao admitir possuir o poder e logo depois repudiá-lo.
- No entanto, às vezes, tenho realmente como fazer alguém enxergar as coisas de um ponto de vista diferente - admitiu Régis. - Como no incidente a que você se referiu, quando convenci Kemp de que embarcar num certo curso de ação acabaria ajudando-o a alcançar suas próprias metas. Portanto, conte-me novamente, Cássio, tudo o que você descobriu sobre o mago e seu exército. Vejamos se conseguimos encontrar uma maneira de fazer Kessell duvidar das próprias coisas com as quais ele veio a contar!
A eloqüência do halfling atordoou o representante. Muito embora não tivesse olhado Régis nos olhos, vislumbrou uma promessa de verdade nas histórias que sempre presumira um exagero.
- Pelo arauto, soubemos que Kemp assumiu o comando das forças remanescentes das quatro vilas às margens do Maer Dualdon - explicou Cássio. - Do mesmo modo, Jensin Brent e Schermont aguardam no Lac Dinneshir e, combinados às frotas de Marerrubra, devem se mostrar uma força realmente poderosa! Kemp já jurou vingança e duvido que qualquer um dos outros refugiados cogite a rendição ou a fuga.
- Para onde poderiam ir? - murmurou Régis.
Cheio de pena, ele olhou para Cássio, que não tinha nenhuma palavra de consolo. Cássio havia simulado, diante dos demais no conselho e das pessoas na vila, uma demonstração de confiança e esperança, mas não poderia olhar para Régis naquele instante e fazer promessas vazias.
Glensather retornou e irrompeu repentinamente sala adentro.
- O mago está de volta ao campo! - gritou. - Exige nosso emissário. As luzes na torre recomeçaram!
Os três precipitaram-se para fora do edifício, com Cássio a reiterar o tanto quanto podia as informações pertinentes. Régis o silenciou.
- Estou preparado - ele tranqüilizou Cássio. - Não sei se esse seu plano ultrajante tem alguma chance de funcionar, mas tem minha palavra de que vou me esforçar para levar a cabo o engodo.
Então, eles estavam ao portão.
- Deve funcionar - disse Cássio, dando um tapinha no ombro de Régis. - Não temos outra esperança.
Ele começou a se virar, mas Régis tinha uma última pergunta que precisava de resposta.
- E se eu descobrir que Kessell está além de meu poder? - perguntou ele sombriamente. - O que devo fazer se o engodo falhar?
Cássio olhou ao redor, para os milhares de mulheres e crianças amontoados nas áreas públicas da cidade, tentando se proteger do vento gélido.
- Se falhar - começou ele, lentamente -, se Kessell não for dissuadido de usar o poder da torre contra Brin Shander - ele hesitou mais uma vez, mesmo que apenas para retardar o momento em que teria de ouvir a si mesmo pronunciar as palavras -, você tem então minhas ordens pessoais de entregar a rendição da cidade.
Cássio virou-se e dirigiu-se aos parapeitos para testemunhar o confronto crucial. Régis não hesitou mais tempo, pois sabia que a menor pausa naquela conjuntura assustadora provavelmente o faria mudar de idéia e correr até encontrar um esconderijo em algum buraco escuro da cidade. Antes mesmo que tivesse a oportunidade de reconsiderar, ele atravessara o portão e marchava audaciosamente colina abaixo, em direção ao espectro ansioso de Akar Kessell.
Kessell havia novamente aparecido entre dois espelhos carregados pelos trolls, tinha os braços cruzados e batia um dos pés impacientemente. A carranca maldosa em seu rosto deu a Régis a distinta impressão de que o mago o mataria com um só golpe, num acesso de fúria incontrolável, antes mesmo que ele chegasse ao sopé da colina. No entanto, o halfling precisava manter os olhos focalizados em Kessell para simplesmente seguir adiante. Os perversos trolls o enojavam mais que qualquer outra coisa que já tivesse encontrado, e foi necessária toda a sua força de vontade para simplesmente se aproximar das criaturas. Já desde o portão era possível sentir-lhes o fedor pútrido.
Mas, de algum modo, ele conseguiu chegar aos espelhos e encarou o mago maligno.
Kessell estudou o emissário durante um bom tempo. Ele não esperara que um halfling representasse a cidade e perguntou-se por que Cássio não tinha vindo pessoalmente a um encontro tão importante.
Você está aqui diante de mim como o representante oficial de Brin Shander e de todos os que residem no interior das muralhas?
Régis assentiu.
- Sou Régis de Bosquesó - ele respondeu -, um amigo de Cássio e antigo membro do Conselho dos Dez. Fui nomeado para falar em nome do povo no interior da cidade.
Os olhos de Kessell se estreitaram, antecipando a vitória.
- E você traz consigo a mensagem de sua rendição incondicional?
Régis trocou de pé, apreensivo, e mudou propositalmente de posição para que o pingente de rubi começasse a girar em seu peito.
- Desejo uma audiência privada convosco, poderoso mago, para que possamos discutir os termos do acordo.
Os olhos de Kessell se arregalaram. Ele olhou para Cássio, que estava sobre a muralha.
- Eu disse incondicional! - guinchou. Atrás dele, as luzes de Crishal-Tirith começaram a rodopiar e a aumentar. - Agora você há de testemunhar a leviandade de sua insolência!
- Espere! - implorou Régis, saltando de um lado a outro para recuperar a atenção do mago. - Há algumas coisas que você deveria saber antes de tudo ser decidido!
Kessell deu pouca atenção à tagarelice do halfling, mas o pingente de rubi subitamente prendeu sua atenção. Mesmo através da proteção oferecida pela distância entre seu corpo físico e a projeção de sua imagem, ele achou a jóia fascinante.
Régis não resistiu ao impulso de sorrir, mesmo que apenas ligeiramente, ao perceber que os olhos do mago não mais piscavam.
- Tenho algumas informações e estou certo de que você vai achá-las valiosas - disse o halfling tranqüilamente.
Kessell fez sinal para que ele continuasse.
- Aqui não - sussurrou Régis. - Muitos ouvidos curiosos por perto. Nem todos os goblins aqui reunidos ficariam contentes em ouvir o que tenho a dizer!
Kessell ponderou as palavras do halfling por um instante. Sentia-se curiosamente subjugado por alguma razão que ele ainda não compreendia.
- Muito bem, halfling - concordou. - Ouvirei suas palavras. - Com um clarão e uma nuvem de fumaça, o mago desapareceu.
Régis olhou por sobre o ombro, para as pessoas na muralha, e fez um sinal com a cabeça.
A um comando telepático, proveniente da torre, os trolls alteraram as posições dos espelhos para capturar a imagem de Régis. Mais um clarão, outra nuvem de fumaça e Régis também desapareceu.
Na muralha, Cássio retribuiu o gesto do halfling, porém Régis já havia desaparecido. O representante respirava um pouco melhor, consolado pelo último olhar que Régis lhe lançara e pelo fato de que o sol estava se pondo e Brin Shander continuava de pé. Caso sua suposição, baseada na sincronicidade das ações do mago, estivesse correta, Crishal-Tirith extraía a maior parte de sua energia da luz do sol.
Parecia que seu plano havia lhes conseguido ao menos mais uma noite.

Mesmo com os olhos turvos, Drizzt reconheceu a forma escura que pairava sobre ele. O drow havia batido com a cabeça ao ser arremessado para longe do punho da cimitarra, e Guenhwyvar, sua leal companheira, guardara silenciosa vigília durante todas as longas horas em que o drow permanecera inconsciente, muito embora o gato também houvesse se ferido na luta com Errtu.
Drizzt rolou pelo chão até se sentar e procurou reorientar-se. A princípio, ele pensou que houvesse chegado a aurora, mas depois percebeu que a pálida luz do sol vinha do oeste. Ele estivera inconsciente durante a maior parte de um dia, completamente esgotado, pois a cimitarra havia lhe exaurido a energia vital em sua batalha com o demônio.
Guenhwyvar parecia ainda mais abatida. O ombro do gato pendia sem vida devido à colisão com a parede de pedra, e Errtu tinha aberto um profundo corte em uma de suas patas dianteiras.
Mais do que os ferimentos, contudo, a fadiga consumia o animal mágico. Havia prolongado em muitas horas - além dos limites normais - sua visita ao plano material. O cordão entre seu plano natal e o do drow só se conservava intacto devido à própria energia mágica do gato, e cada minuto a mais neste mundo exauria um pouco de sua força.
Drizzt afagou-lhe afetuosamente o pescoço musculoso. Compreendia o sacrifício que Guenhwyvar fizera pelo bem dele e desejava poder atender às necessidades do gato e mandá-lo de volta ao próprio mundo.
Mas não podia. Se o gato retornasse ao próprio plano, levaria horas para recuperar a força necessária para restabelecer a ligação com este mundo. E ele precisava do gato agora.
- Mais um pouco - ele implorou.
O animal fiel deitou-se ao lado dele sem o menor sinal de protesto. Drizzt observou-o com pena e acariciou-lhe o pescoço mais uma vez. Como ele ansiava por liberar o gato! Mas não podia.
Pelo que Errtu lhe dissera, a porta para Crishal-Tirith era invisível apenas aos seres do Plano Material.
Drizzt precisava dos olhos do gato.

28
Uma Mentira Dentro da Outra

Régis esfregou os olhos para se livrar da imagem residual do clarão ofuscante e achou-se novamente encarando o mago. Kessell estava reclinado sobre um trono de cristal, recostado num dos braços do móvel, com as pernas atiradas casualmente sobre o outro. Encontravam-se numa sala de cristal quadrangular que transmitia uma impressão visual acetinada, mas parecia tão sólida quanto a rocha. Régis compreendeu imediatamente que estava dentro da torre. Dúzias de espelhos ornamentados e de formas estranhas enchiam a sala. Um deles, em particular, o maior e mais decorativo, chamou a atenção do halfling, pois uma fogueira ardia em suas profundezas. A princípio, Régis olhou na direção oposta ao espelho, esperando ver a fonte da imagem, mas, em seguida, percebeu que as chamas não eram um reflexo e sim um acontecimento real nas dimensões interiores do próprio espelho.
- Bem-vindo a meu lar - riu o mago. - Considere-se um halfling de sorte por testemunhar tamanho esplendor! - Mas Régis fixou o olhar em Kessell e estudou o mago cuidadosamente, pois aquele tom de voz não se assemelhava à característica pronúncia ininteligível dos que ele havia encantado com o rubi.
- Perdoe minha surpresa quando primeiro nos encontramos - continuou Kessell. - Não esperava que os homens austeros de Dez-Burgos enviassem um halfling para fazer o trabalho por eles! - Ele riu novamente e Régis entendeu que algo havia quebrado o encanto que ele lançara sobre o mago quando ainda estavam do lado de fora.
O halfling imaginava o que acontecera. Sentia o poder palpitante da sala; era evidente que Kessell dele se nutria. Com sua psique do lado de fora, o mago estivera vulnerável à magia da jóia, mas, ali dentro, sua força estava muito acima do poder do rubi.
- Você disse ter informações para mim - exigiu Kessell, de repente. - Fale agora, tudo! Ou sua morte será bem desagradável!
Régis tartamudeou, tentando improvisar uma história alternativa. As mentiras insidiosas que planejara urdir seriam de pouco valor contra o mago impassível. De fato, em suas óbvias fraquezas, poderiam revelar boa parte da verdade sobre as estratégias de Cássio.
Kessell aprumou-se em seu trono e inclinou-se sobre o halfling, impondo o olhar a sua contraparte.
- Fale! - exigiu ele, sereno.
Régis sentiu uma vontade férrea que se insinuava em todos os seus pensamentos, obrigando-o a obedecer a todas as ordens de Kessell. No entanto, ele percebeu que a força dominadora não emanava do mago. Parecia antes vir de alguma fonte externa, talvez o objeto invisível que o mago ocasionalmente apertava entre os dedos, metido num bolso em suas vestes.
Entretanto, os halflings possuíam uma forte resistência natural à magia e uma força opositora - a jóia - ajudou Régis a resistir à vontade insinuante e a repeli-la aos poucos. Uma idéia repentina ocorreu a Régis. Ele sem dúvida vira tanta gente cair em seus próprios encantos que era capaz de imitar-lhes a postura reveladora. Deixou os ombros penderem um pouco, como se de repente ele se fizesse completamente à vontade, e focalizou o olhar vazio numa imagem no canto da sala, por sobre o ombro de Kessell. Sentiu os olhos se ressecarem, mas resistiu à tentação de piscar.
- Que informação você deseja? - respondeu mecanicamente. Kessell afundou-se no espaldar do trono, novamente confiante.
- Dirija-se a mim como Mestre Kessell - ordenou.
- Que informação o senhor deseja, Mestre Kessell?
- Ótimo - o mago sorriu afetadamente consigo mesmo. - Admita a verdade, halfling. A história que você foi enviado para contar era um engodo.
"Por que não?", pensou Régis. A mentira temperada com pitadas de verdade tornava-se muito mais forte.
- Sim - ele respondeu. - Para fazê-lo pensar que seus aliados mais leais planejavam contra o senhor.
- E qual era o propósito? - pressionou Kessell, bastante satisfeito consigo mesmo. - O povo de Brin Shander sabe com certeza que eu poderia facilmente esmagá-los sem nenhum aliado. Parece-me um plano frágil.
- Cássio não tinha a menor intenção de tentar derrotá-lo, Mestre Kessell - disse Régis.
- Então, por que você está aqui? E por que Cássio simplesmente não entregou a cidade como exigi?
- Fui enviado para incutir algumas dúvidas - replicou Régis, improvisando às cegas para manter Kessell intrigado e ocupado. Por trás da fachada de suas palavras, ele tentava dar forma a algum tipo de plano alternativo. - Para dar a Cássio mais tempo para traçar seu verdadeiro curso de ação.
Kessell inclinou-se.
- E qual seria esse curso de ação? Régis hesitou, à procura de uma resposta.
- Você não pode resistir! - vociferou Kessell. - Minha vontade é grande demais! Responda ou hei de arrancar a verdade de sua mente.
- Escapar - disse Régis abruptamente e, depois de tê-lo dito, várias possibilidades se abriram diante dele.
Kessell reclinou-se novamente.
- Impossível - o mago respondeu casualmente. - Em toda a sua extensão, meu exército é forte demais para que os humanos o transponham.
- Talvez não tão forte quando o senhor acredita, Mestre Kessell - açulou-o Régis. Agora o caminho abria-se claramente diante dele. Uma mentira dentro da outra. Ele gostou da fórmula.
- Explique-se - exigiu Kessell, e uma sombra de preocupação anuviou-lhe a fisionomia arrogante.
- Cássio tem aliados em suas fileiras.
O mago saltou da cadeira, tremendo de raiva. Régis admirou-se da eficiência de sua simples imitação. Perguntou-se por um instante se alguma de suas próprias vítimas teria igualmente revertido o engodo contra ele. Afastou o pensamento perturbador e reservou-o para futura contemplação.
- Os ores vivem entre as pessoas de Dez-Burgos há meses - continuou Régis. - Uma das tribos chegou a abrir relações comerciais com os pescadores. Esses ores também responderam a sua convocação às armas, mas ainda devem lealdade a Cássio, se é que se pode dizer que essa raça algum dia já foi realmente leal. Mesmo enquanto seu exército se entrincheirava no campo ao redor de Brin Shander, as primeiras comunicações eram trocadas entre o chefe dos ores e mensageiros ores que escapuliram de Brin Shander. (...)
Kessell alisou o cabelo para trás e esfregou o rosto com a mão, nervoso. Seria possível que seu exército aparentemente invencível tivesse uma fraqueza secreta?
Não, ninguém se atreveria a fazer oposição a Akar Kessell!
Mas, ainda assim, se alguns tramassem contra ele - se todos tramassem contra ele -, será que viria a saber? E onde estava Errtu? Será que o demônio estava por trás daquilo tudo?
- Qual tribo? - ele perguntou suavemente a Régis, e seu tom revelava que as informações do halfling haviam lhe ensinado um pouco de humildade.
Régis, então, ludibriou completamente o mago.
O grupo que o senhor enviou para saquear a cidade de Bremen, os Ores da língua Partida - disse ele, observando com total satisfação os olhos cada vez mais arregalados do mago. - Minha tarefa era meramente impedir o senhor de tomar qualquer providência contra Brin Shander antes do cair da noite, pois os ores retornarão antes do amanhecer, presumivelmente para se reagruparem na posição que lhes foi designada no campo, mas, na verdade, para abrir uma brecha em seu flanco ocidental. Cássio vai conduzir o povo pelas encostas ocidentais até a tundra. Esperam apenas mantê-lo desorganizado tempo suficiente para conseguir uma boa vantagem. Depois disso, o senhor será forçado a persegui-los o caminho todo até Luskan!
O plano tinha muitos pontos fracos aparentes, mas parecia razoável que pessoas numa situação tão desesperadora tentassem aquela cartada. Kessell esmurrou o braço do trono.
- Os idiotas! - resmungou.
Régis já respirava um pouco melhor. Kessell estava convencido.
- Errtu! - ele gritou subitamente, sem saber que o demônio fora banido do mundo.
Não houve resposta.
- Ah, maldito seja o demônio! - amaldiçoou Kessell. - Nunca está por perto quando mais se precisa dele - Ele se voltou para Régis. - Você espera aqui. Terei muito mais perguntas para você mais tarde! - As chamas estrondosas de sua fúria fervilhavam perversamente. - Mas, primeiro, devo falar com alguns de meus generais. Hei de ensinar aos Ores da Língua Partida a me fazerem oposição!
Na verdade, as observações de Cássio qualificavam os Ores da Língua Partida como os mais fortes e fanáticos apoiadores de Kessell. Uma mentira dentro da outra.

Nas águas do Maer Dualdon, mais tarde naquela mesma noite, a frota reunida de quatro vilas observou com desconfiança um segundo grupo de monstros se separar da força principal e partir em direção a Bremen.
- Curioso - Kemp comentou com Muldoon de Bosquesó e com o representante da cidade incendiada de Bremen, que estavam ao lado dele no convés da nau capitania de Targos. Toda a população de Bremen estava no lago. Era certo que o primeiro grupo de ores, depois das flechadas iniciais, não encontrara mais resistência na cidade. E Brin Shander ainda estava intacta - Por que, então, o mago estava estendendo mais ainda sua linha de poder? - Kessell me confunde - disse Muldoon. - Seu gênio está simplesmente além de minhas faculdades ou ele verdadeiramente comete evidentes erros táticos!
- Presuma a segunda possibilidade - instruiu Kemp, esperançoso -, pois qualquer coisa que venhamos a tentar será em vão caso a primeira seja verdadeira!
Portanto, eles continuaram a reposicionar seus guerreiros para um ataque oportunista, passando as crianças e mulheres nos barcos remanescentes para os atracadouros ainda incólumes de Bosquesó, uma estratégia semelhante à das forças refugiadas nos outros dois lagos.
Na muralha de Brin Shander, foi com maior entendimento que Cássio e Glensather assistiram à divisão das forças de Kessell.
- Magistral, halfling - Cássio sussurrou para o vento noturno. Sorrindo, Glensather tocou o ombro de seu colega representante, tentando transmitir-lhe equilíbrio.
- Vou informar nossos comandantes de campo - disse ele. - Se o momento de atacarmos chegar, deveremos estar prontos!
Cássio apertou a mão de Glensather e deu sua aprovação com um aceno de cabeça. Enquanto o representante de Angraleste se afastava rapidamente, Cássio debruçou-se sobre o cume da muralha e fitou com determinação as paredes agora escurecidas de Crishal-Tirith. Entre dentes, ele declarou ostensivamente:
- O momento há de chegar!

Do alto de seu ponto de observação no Sepulcro de Kelvin, Drizzt Do'Urden também testemunhara a abrupta movimentação do exército de monstros. Ele acabara de completar os últimos preparativos para seu corajoso assalto à Crishal-Tirith quando os bruxuleios distantes de uma grande massa de tochas deslizaram subitamente para oeste. Ele e Guenhwyvar sentaram-se, em silêncio, e estudaram a situação durante algum tempo, tentando encontrar alguma pista sobre o que teria provocado aquela ação.
Nenhuma explicação óbvia veio à tona, mas a noite se estendia e ele precisava se apressar. Não estava bem certo se toda aquela atividade se mostraria útil - já que enfraquecia as tropas do acampamento - ou destrutiva - pois aumentava o estado de prontidão dos monstros remanescentes. No entanto, ele sabia que o povo de Brin Shander não arcaria com os custos da demora. Desceu pela trilha da montanha, com a grande pantera logo em seus calcanhares, silenciosa.
Ele cobriu rapidamente o terreno livre e pôs-se a percorrer, com passos ligeiros e certos, a extensão da Via de Bremen. Caso tivesse se detido para estudar os arredores ou colar ao solo um de seus ouvidos sensíveis, ele teria ouvido o estrondo distante, proveniente da vasta tundra ao norte, de mais um exército que se aproximava.
Mas a atenção do drow estava no sul, e sua visão se limitava, enquanto corria à escuridão expectante de Crishal-Tirith. Ele carregava pouco peso, pois levava consigo apenas os objetos que julgava essenciais à tarefa. Tinha suas cinco armas: as duas cimitarras nas bainhas de couro em seus quadris, um punhal enfiado no cinto, bem no meio das costas, e as duas facas ocultas em suas botas. Ele trazia o símbolo sagrado e a bolsa de dinheiro em volta do pescoço, e um pequeno saco de farinha, remanescente da incursão pelo covil dos gigantes, ainda pendia de seu cinto - uma escolha sentimental, um lembrete reconfortante das ousadas aventuras que havia partilhado com Wulfgar. Todos os outros suprimentos, a mochila, a corda, os odres e outros objetos fundamentais da sobrevivência diária na tundra agreste, ele havia deixado no pequeno cubículo.
Ouviu os gritos dos goblins folgazões ao passar pelos arrabaldes a leste de Termalaine.
- Ataquem agora, marinheiros do Maer Dualdon - disse baixinho o drow. Mas, pensando bem, estava feliz por terem os barcos permanecido no lago. Mesmo que conseguissem aportar desapercebidos e atacar rapidamente os monstros na cidade, não poderiam arcar com as perdas que sofreriam. Termalaine podia esperar; uma batalha mais importante ainda estava por ser travada.
Drizzt e Guenhwyvar aproximaram-se do perímetro mais externo do principal acampamento de Kessell. O drow consolou-se com os sinais de que a comoção no interior do acampamento havia serenado. Um solitário guarda ore apoiava-se, fatigado; em sua lança, vigiando sem entusiasmo a escuridão inane do horizonte setentrional. Mesmo que estivesse alerta, ele não teria notado a aproximação furtiva das duas formas, mais negras que as trevas da noite.
- Situação! - veio uma ordem de longe.
- Tudo limpo! - respondeu o guarda.
Drizzt ouviu a verificação se repetir em vários pontos distantes. Fez sinal para que Guenhwyvar se detivesse, depois se esgueirou até uma distância a partir da qual poderia atingir o guarda com um arremesso.
O ore cansado sequer ouviu o silvo do punhal que se aproximava.
E, então, Drizzt estava ao lado dele, silenciosamente interrompendo-lhe a queda em meio à escuridão. O drow tirou seu punhal da garganta do ore e deitou a vítima delicadamente no chão. Ele e Guenhwyvar, os espectros invisíveis da morte, avançaram.
Haviam atravessado a única linha de guardas posicionada no perímetro setentrional e agora prosseguiam com facilidade e cautela pelo acampamento adormecido. Drizzt poderia ter matado dezenas de ores e goblins, e até mesmo um verbeeg - mas a interrupção daqueles roncos retumbantes talvez tivesse chamado a atenção -, mas ele não podia se dar ao luxo de abrandar o passo. Cada minuto que passava continuava a exaurir Guenhwyvar e agora os primeiros sinais de um segundo inimigo, a reveladora aurora, tornavam-se evidentes no céu oriental.
As esperanças do drow haviam se elevado consideravelmente com o progresso que fizera, mas ele ficou consternado ao topar com Crishal-Tirith. Um grupo de ogros em prontidão circulava a torre, bloqueando-lhe o caminho.
Ele se agachou ao lado do gato, sem que se decidisse pelo que deveriam fazer. Para escapar à amplitude do imenso acampamento antes que a aurora viesse a expô-los, teriam de fugir pelo caminho por onde vieram. Drizzt duvidava que Guenhwyvar, em seu estado digno de pena, pudesse sequer tentar aquela rota. No entanto, seguir em frente significava uma luta sem esperança com um grupo de ogros. Parecia não haver nenhuma resposta ao dilema.
Foi então que algo aconteceu lá atrás, na seção nordeste do acampamento, e abriu um caminho para os companheiros furtivos. Irromperam gritos repentinos de alarma, o que atraiu os ogros e afastou-os de seus postos algumas passadas largas. Drizzt pensou, a princípio, que houvessem descoberto o ore assassinado, mas os gritos vinham do leste distante.
Não demorou muito e o clangor de aço contra aço ecoou pelo céu que antecedia a aurora. Haviam se metido numa batalha. Tribos rivais, Drizzt supôs, apesar de não avistar os combatentes àquela distância.
Sua curiosidade, entretanto, não foi irresistível. Os ogros indisciplinados haviam se afastado mais ainda das posições designadas. E Guenhwyvar avistara a porta da torre. Os dois não hesitaram um segundo sequer.
Os ogros nem mesmo notaram as duas sombras que entraram na torre a suas costas.

Uma estranha sensação, uma vibração, um zumbido apoderou-se de Drizzt assim que ele passou pela entrada de Crishal-Tirith, como se penetrasse as entranhas de uma entidade viva. Seguiu em frente, porém, através do corredor escuro que levava ao primeiro nível da torre, deslumbrado com o estranho material cristalino que compunha as paredes e os pisos da estrutura.
Achou-se num salão quadrangular, a câmara inferior da estrutura de quatro salas. Era o salão onde Kessell geralmente se reunia com seus generais de campo, a principal sala de audiências do mago, onde ele recebia todos com exceção de seus comandantes de mais alta patente.
Drizzt perscrutou a sala, suas formas escuras e as sombras ainda mais profundas criadas por elas. Apesar de não distinguir nenhum movimento, ele percebeu que não se achava só. Sabia que as mesmas sensações incomodavam Guenhwyvar, pois os pêlos negros de sua nuca estavam eriçados e o gato deixou escapar um rosnado baixo.
Kessell considerava aquela sala uma zona-tampão entre ele e a rale do mundo exterior. Era a câmara da torre que ele mais raramente visitava. Era o lugar onde Akar Kessell abrigava seus trolls.

29
Outras Opções

Os anões do Salão de Mitral completaram a primeira saída secreta logo depois do crepúsculo. Bruenor foi o primeiro a subir ao topo da escada e espiar, de sob a relva cortada, o exército de monstros que se acomodava. Tão habilidosos eram os mineiros anões que eles conseguiram cavar um poço bem no meio de um grande grupo de goblins e ogros sem alertar os monstros o mínimo que fosse.
Bruenor sorria quando voltou a descer para se juntar a seus companheiros de clã.
- Terminem os outros nove - instruiu ele enquanto prosseguia túnel adentro, com Cattiebrie a seu lado. - Hoje o sono vai ser pesado pr'alguns dos garotos do Kessell! - declarou ele, acariciando a cabeça do machado em seu cinto.
- Qual será meu papel na próxima batalha? - Cattiebrie perguntou quando eles se afastaram dos outros anões.
- 'cê vai puxar uma das alavancas e desmoronar os túneis se algum desses porcos descer - respondeu Bruenor.
- E se todos vocês forem mortos no campo? - raciocinou Cattiebrie. - Ser enterrada viva nestes túneis não me parece muito promissor.
Bruenor coçou a barba ruiva. Ele não havia pensado naquela conseqüência, pois imaginara que, se ele e o clã fossem abatidos no campo, Cattiebrie estaria suficientemente segura por trás dos túneis desmoronados. Mas como ela poderia viver sozinha lá embaixo? Que preço pagaria pela sobrevivência?
- 'cê quer subir e lutar, então? 'cê luta bem com uma espada e eu vou estar bem do seu lado!
Cattiebrie pensou na proposta por um instante.
- Vou ficar com a alavanca - decidiu ela. - Você já tem coisas demais pra fazer lá em cima. E alguém tem de ficar aqui para derrubar os túneis; não podemos deixar os goblins reivindicarem nossos salões como lar!
- Além disso - ela acrescentou, com um sorriso -, foi bobagem minha me preocupar. Sei que você vai voltar para mim, Bruenor. Nem você, nem ninguém de seu clã jamais me decepcionou!
Ela beijou o anão na testa e afastou-se saltitando, o que fez Bruenor sorrir.
- Por certo que 'cê é uma menina corajosa, minha Cattiebrie - murmurou ele.
O trabalho nos túneis estava terminado poucas horas depois. Os poços haviam sido escavados e todo o complexo de túneis em volta deles preparado para desmoronar e cobrir qualquer ação de retirada ou reprimir uma possível investida dos goblins. Todo o clã, com as faces propositalmente enegrecidas pela fuligem e as armaduras e armas pesadas disfarçadas sob camadas de tecido escuro, alinhou-se no fundo dos dez poços. Bruenor subiu primeiro para investigar. Deu uma olhadela lá fora e sorriu sinistramente. A sua volta, os ogros e os goblins haviam se aninhado para passar a noite.
Ele estava prestes a dar o sinal para seus primos agirem quando uma comoção subitamente teve início no acampamento. Bruenor continuou no topo do poço, mas manteve a cabeça abaixo da camada de relva (o que lhe angariou a pisadela de um goblin de passagem), e tentou descobrir o que alertara os monstros. Ouviu gritos de comando e um tropel como o de um grande destacamento a se reunir.
Mais gritos se seguiram, brados pela morte da Língua Partida. Apesar de nunca ter ouvido o nome antes, o anão não teve dificuldade para adivinhar que este descrevia uma tribo de ores.
- Então, eles 'tão lutando entre eles, né? - murmurou baixinho, sem conter o riso. Percebendo que o assalto dos anões teria de esperar, ele voltou a descer a escada.
Mas o clã, decepcionado com o adiamento, não se dispersou. Estavam determinados a completar o serviço daquela noite e, portanto, aguardaram.
Passada mais da metade da noite, ainda se ouvia alguma movimentação no acampamento acima. No entanto, a espera não embotava a agudeza da determinação dos anões. Ao contrário, a demora aviva-lhes a paixão, aumentava-lhes a avidez pelo sangue dos goblins. Esses guerreiros eram também ferreiros, artífices que passavam longas horas acrescentando uma única escama a uma estátua de dragão. Eles sabiam ser pacientes.
Por fim, quando tudo se aquietou mais uma vez, Bruenor voltou a subir a escada. Antes mesmo que tivesse metido a cabeça através do relvado, ele ouviu os sons reconfortantes da respiração rítmica de roncos altos.
Sem mais demora, o clã se esgueirou para fora dos buracos e metodicamente deu início a sua obra mortífera. Eles não se rejubilavam com o papel de assassinos, pois preferiam cruzar espadas, mas compreendiam a necessidade daquele tipo de incursão e não davam o menor valor às vidas da escória goblin.
A área foi gradualmente se aquietando à medida que mais monstros caíam no sono silencioso da morte. Os anões concentraram-se primeiramente nos ogros, no caso do ataque ser descoberto antes que eles conseguissem provocar danos suficientes. Mas a estratégia mostrou-se desnecessária. Muitos minutos se passaram sem retaliação.
Quando um dos guardas finalmente percebeu o que estava acontecendo e conseguiu dar um grito de alerta, o sangue de mais de mil dos protegidos de Kessell umedecia o campo.
Gritos se elevaram ao redor deles, mas Bruenor não ordenou a retirada.
- Em formação! - ordenou ele. - Bem fechada em volta dos túneis!
Ele sabia que a investida selvagem da primeira onda do contra-ataque seria desorganizada e os monstros estariam despreparados.
Os anões alinharam-se numa fechada posição defensiva e tiveram pouco trabalho para abater os goblins. O machado de Bruenor já ostentava muitos outros chanfros antes mesmo que um goblin houvesse tentado golpeá-lo.
Aos poucos, porém, os protegidos de Kessell tornaram-se mais organizados. Investiram contra os anões em suas próprias formações e, à medida que o acampamento era despertado e alertado, as tropas cada vez maiores começavam a pressionar os atacantes. E, então, um grupo de ogros, a guarda de elite da torre de Kessell, arremeteu pelo campo.
Os primeiros anões a bater em retirada - os peritos que deveriam fazer a verificação final dos preparativos para o desmoronamento - colocaram os pés protegidos por botas nos degraus superiores das escadas dos poços. A fuga para os túneis seria uma operação delicada, e a pressa com eficiência seria um fator decisivo em seu sucesso ou fracasso.
Mas Bruenor inesperadamente ordenou que os peritos voltassem a sair dos poços e os anões defendessem a linha.
Ele ouvira as primeiras notas de uma antiga canção, uma canção que, apenas alguns anos antes, teria enchido o anão de temor. Agora, porém, enchia seu coração de esperança.
Ele reconheceu a voz que regia as palavras arrebatadoras.

Um braço decepado de carne pútrida estatelou-se no chão, mais uma vítima das cimitarras sibilantes de Drizzt Do'Urden.
Mas os destemidos trolls abriam caminho até ele. Normalmente, Drizzt teria percebido a presença deles assim que tivesse penetrado a câmara quadrangular. O terrível fedor dos monstros dificultava-lhes a dissimulação. Aqueles ali porém, não estavam realmente na câmara quando o drow entrou. Ao adentrar a sala, Drizzt disparou um alarme mágico que banhou a área em luz arcana e atraiu os guardiões. Eles saíram de espelhos mágicos que Kessell havia instalado como postos de vigilância por toda a sala.
Drizzt já tinha abatido um dos perversos monstros, mas agora estava mais preocupado em fugir do que lutar. Cinco outros substituíram o primeiro e eram mais do que páreo para qualquer guerreiro. Drizzt chacoalhou a cabeça, incrédulo, quando o corpo do troll que ele decapitara subitamente levantou-se de novo e pôs-se a desferir golpes às cegas.
E, em seguida, uma mão provida de garras segurou-lhe o tornozelo. Ele não precisou nem mesmo olhai para saber que se tratava do membro que acabara de decepar.
Horrorizado, ele chutou o braço grotesco para longe, virou-se e disparou para a escadaria em espiral, nos fundos da câmara, que subia até o segundo nível da torre. Com uma ordem anterior sua, Guenhwyvar já havia debilmente mancado escada acima e agora aguardava na plataforma do topo.
Drizzt ouviu distintamente o som aspirado dos passos de seus repugnantes perseguidores e o arranhar das imundas unhas da mão decepada que também retomava a perseguição. O drow subiu a escadaria aos saltos, sem olhar para trás, esperando que sua velocidade e agilidade dessem a ele uma boa dianteira até encontrar uma maneira de escapar.
Pois não havia portas na plataforma.
O patamar no topo das escadas era retangular e tinha cerca de dez pés em sua largura máxima. Dois lados abriam-se para a sala, um terceiro abrangia a orla do friso do poço da escada, e o quarto era uma folha larga de espelho que se estendia pelo exato comprimento da plataforma e se achava preso entre ela e o teto da câmara. A esperança de Drizzt era adivinhar o segredo daquela porta incomum - se é que se tratava realmente de uma porta - quando a examinou desde a plataforma.
Não seria assim tão fácil.
Apesar de tomada pelo reflexo de uma tapeçaria ornamentada que pendia da parede diretamente oposta, a superfície do espelho parecia perfeitamente lisa, imaculada por qualquer rachadura ou maçaneta que indicasse uma abertura secreta. Drizzt embainhou as armas e correu as mãos pela superfície para ver se havia ali uma maçaneta oculta a seus olhos aguçados, mas a superfície regular do vidro só confirmou sua observação.
Os trolls estavam na escadaria.
Drizzt tentou abrir caminho através do vidro, pronunciou todas as palavras de desobstrução que já havia aprendido, procurou um portal extradimensional similar aos que haviam ocultado os hediondos guardas de Kessell. A parede continuava uma barreira tangível.
O troll na vanguarda alcançou o ponto médio das escadas.
- Deve haver uma pista em algum lugar! - gemeu o drow. - Os magos adoram um desafio e não há diversão nisto! - A única resposta possível estava nos padrões e imagens intrincadas da tapeçaria. Drizzt fitou-a, tentando classificar os milhares de imagens entretecidas em busca de alguma dica que lhe mostrasse o caminho para a segurança.
O fedor já chegava até ele. Podia ouvir a salivação dos monstros eternamente famintos.
Mas ele precisava controlar seu asco e concentrar-se naquela miríade de imagens. Algo na tapeçaria chamou-lhe a atenção: os versos de um poema que se entrelaçavam a todas aquelas outras imagens ao longo da borda superior. Ao contrário das cores desbotadas do restante da antiga obra de arte, as letras caligrafadas do poema ostentavam o brilho contrastante de um acréscimo mais recente. Seria algo que Kessell acrescentara?
Vinde se quiserdes
A orgia em que vivo,
Mas antes a aldrava deveis encontrar!
Visto e não visto
Ser sem ter sido
A maçaneta, a carne não pode tocar.
Um verso em particular destacou-se na mente do drow. Ele ouvira a frase "ser sem ter sido" em sua infância em Menzoberranzan. Era uma referência a Urgutha Forka, um demônio perverso que devastara o planeta com uma peste particularmente virulenta nos tempos antigos, quando os ancestrais de Drizzt caminhavam na superfície. Os elfos da superfície haviam sempre negado a existência de Urgutha Forka e culpavam os drow pela peste, mas os elfos negros sabiam a verdade. Algo em sua constituição física os havia imunizado contra o demônio e, depois de perceber a letalidade da praga para seus inimigos, eles fizeram de tudo para comprovar as suspeitas dos elfos claros ao arregimentar Urgutha como um de seus aliados.
Portanto, a referência "ser sem ter sido" era um verso pejorativo num conto um pouco mais longo dos drow, uma piada secreta em cima de seus odiados primos que haviam perdido milhares por causa de uma criatura que negavam até mesmo existir.
A solução do enigma teria sido impossível para qualquer um que não conhecesse a história de Urgutha Forka. O drow encontrara uma vantagem valiosa. Ele examinou o reflexo da tapeçaria em busca de uma imagem que tivesse alguma ligação com o demônio. E encontrou-a bem na borda do espelho à altura da cintura: um retrato do próprio Urgutha, revelado em toda a sua horrível magnificência. O demônio era representado esmagando o crânio de um elfo com um bordão negro, seu símbolo. Drizzt vira aquele mesmo retrato antes. Nada parecia fora de lugar nem indicava qualquer coisa de incomum.
Os trolls haviam chegado ao último lance de escada. O tempo de Drizzt se esgotava.
Ele se virou e vasculhou a fonte da imagem em busca de alguma discrepância. Ocorreu-lhe imediatamente. Na tapeçaria original, Urgutha atingia o elfo com o punho; não havia um bordão!
"Visto e não visto"
Drizzt girou sobre os calcanhares e voltou a fitar o espelho, tentando agarrar a arma ilusória do demônio. Mas tudo o que sentiu foi o vidro liso. Quase gritou de frustração.
Sua experiência ensinara-lhe disciplina, e ele rapidamente readquiriu a compostura. Afastou a mão do espelho, tentando posicionar seu próprio reflexo à mesma profundidade em que julgava estar o bordão. Fechou os dedos vagarosamente, observando a imagem de sua mão fechar-se em torno do bordão com a emoção do sucesso antecipado.
Ele moveu a mão ligeiramente.
Uma fina rachadura apareceu no espelho.
O troll da vanguarda alcançou o topo das escadas, mas Drizzt e Guenhwyvar haviam desaparecido.
O drow deslizou a estranha porta de volta à posição fechada, recostou-se e suspirou aliviado. Tinha diante dele uma escadaria indistintamente iluminada que levava para cima e terminava numa plataforma que se abria no segundo nível da torre. Nenhuma porta bloqueava seu caminho, apenas cordões aljofrados que pendiam do teto, cintilantes e alaranjados sob a luz das tochas da sala do outro lado. Drizzt ouviu risos.
Em silêncio, ele e o gato se esgueiraram escada acima e espiaram por sobre a beirada do patamar. Haviam chegado ao harém de Kessell.
A sala era iluminada suavemente por tochas que brilhavam sob quebra-luzes protetores. A maior parte do piso cobria-se de almofadas excessivamente estofadas, e algumas seções da sala achavam-se isoladas por cortinas. As moças do harém, os brinquedinhos irracionais de Kessell, estavam sentadas em círculo no centro do piso, rindo com o entusiasmo infantil de crianças a brincar. Drizzt duvidava que elas viessem a notá-lo, mas mesmo que o fizessem, ele não estava muito preocupado. Compreendeu imediatamente que aquelas lamentáveis e subjugadas criaturas eram incapazes de tomar qualquer atitude contra ele.
Manteve-se alerta, entretanto, principalmente por causa dos budoares acortinados. Ele duvidava que Kessell tivesse posicionado guardas ali, sem dúvida nenhum tão imprevisivelmente violento quanto os trolls, mas não podia se dar ao luxo de cometer erros.
Com Guenhwyvar bem a seu lado, ele se esgueirou silenciosamente de uma sombra a outra, e quando os dois companheiros alcançaram o patamar diante da porta para o terceiro nível, depois de terem subido as escadas, Drizzt relaxou um pouco.
Mas, então, recomeçou o zumbido que Drizzt ouvira quando entrou na torre. Ficava mais forte a cada instante, como se sua música tivesse origem nas vibrações das próprias paredes da torre. Drizzt olhou a sua volta, em busca de uma possível fonte.
Sinos pendentes do teto da sala começaram a tilintar sinistramente. As chamas das tochas nas paredes dançaram impetuosamente.
Foi então que Drizzt compreendeu.
A estrutura despertava, ganhava vida própria. O campo lá fora continuava sob a sombra da noite, mas os primeiros dedos da aurora iluminavam o alto pináculo da torre.
A porta abriu-se de repente para o terceiro nível, a sala do trono de Kessell.
- Muito bem! - gritou o mago.
Ele estava de pé, atrás do trono de cristal, do outro lado da sala em relação a Drizzt, segurando uma vela apagada e encarando a porta aberta. Régis encontrava-se obedientemente ao lado dele, com uma expressão vazia no rosto.
- Entre, por favor - disse Kessell, com falsa cortesia. - Não se preocupe com os meus trolls que você feriu; eles com certeza vão sarar!
Atirou a cabeça para trás e gargalhou.
Drizzt sentiu-se estúpido. E pensar que toda a sua cautela e dissimulação de pouco adiantaram, a não ser para divertir o mago! Ele descansou as mãos sobre os punhos das cimitarras embainhadas e atravessou a porta.
Guenhwyvar permaneceu agachada nas sombras da escadaria, em parte porque o mago nada dissera que indicasse que ele soubesse sobre o gato e, em parte, porque a pantera enfraquecida desejava poupar a energia de caminhar.
Drizzt estacou diante do trono e fez uma reverência. A visão de Régis ao lado do mago o perturbava - e não era pouco -, mas ele conseguiu disfarçar que reconhecia o halfling. Régis, do mesmo modo, não demonstrara qualquer familiaridade assim que vira o drow, mas Drizzt não estava bem certo se aquilo era um esforço consciente ou se o halfling estava sob a influência de algum tipo de encantamento.
- Saudações, Akar Kessell - tartamudeou Drizzt, com o sotaque imperfeito dos habitantes do mundo subterrâneo, como se a língua geral da superfície fosse estranha a ele. Imaginou que poderia muito bem tentar a mesma tática que usara contra o demônio. - Fui enviado de boa fé por meu povo para parlamentar com você quanto a questões referentes a nossos interesses comuns.
Kessell gargalhou alto.
- Sério? - um sorriso largo espalhou-se por seu rosto, substituído abruptamente por uma carranca. Seus olhos se estreitaram maldosamente. - Eu conheço você, elfo negro! Qualquer homem que tenha vivido em Dez-Burgos já ouviu o nome de Drizzt Do'Urden em lendas ou anedotas! Fique com suas mentiras!
- Perdão, poderoso mago - disse Drizzt tranqüilamente, mudando de tática. - Em vários aspectos, assim parece, você é mais sábio que seu demônio.
A aparência presunçosa sumiu do rosto de Kessell. Ele vinha se perguntando o que tinha impedido Errtu de responder a seus chamados. Olhou para o drow com mais respeito. Teria aquele guerreiro solitário dado cabo de um demônio importante?
- Permita-me recomeçar - disse Drizzt. - Saudações, Akar Kessell. - Ele fez uma reverência. - Sou Drizzt Do'Urden, ranger de Gwaeron Windstrom, guardião do Vale do Vento Gélido. Vim matá-lo.
As cimitarras saltaram de suas bainhas.
Mas Kessell também se moveu. A vela que segurava ganhou vida de repente. A chama foi capturada pelo labirinto de prismas e espelhos que atravancavam toda a câmara, focalizada e aguçada em cada ponto refletor. Instantaneamente, com o acender da vela, três raios concentrados de luz encerraram o drow numa prisão triangular. Nenhum dos raios o tocou, mas Drizzt sentiu-lhes o poder e não ousou atravessar-lhes o caminho.
Drizzt ouviu claramente a torre zumbir assim que a luz do dia insinuou-se por toda a sua extensão. A sala se iluminou consideravelmente quando vários painéis nas paredes, tão semelhantes a espelhos à luz das tochas, revelaram-se como janelas.
- Você acreditou que poderia entrar aqui e simplesmente desfazer-se de mim? - Kessell perguntou, incrédulo. - Sou Akar Kessell, seu idiota! O Tirano do Vale do Vento Gélido! Comando o maior exército que já marchou sobre as estepes congeladas desta terra abandonada! Contemple meu exército!
Ele acenou com a mão e um dos espelhos de cristalomancia ganhou vida, revelando em sua plenitude parte do vasto acampamento que cercava a torre e os gritos daqueles que despertavam.
Foi então que um grito agonizante soou em algum lugar nos confins invisíveis do campo. Instintivamente, tanto o drow quanto o mago ajustaram os ouvidos ao clamor distante e ouviram o fragor contínuo da batalha. Curioso, Drizzt olhou para Kessell, imaginando se o mago sabia o que estava acontecendo na seção norte de seu acampamento.
Kessell respondeu à pergunta muda do drow com um aceno da mão. A imagem no espelho anuviou-se por um instante com uma bruma interior e depois se deslocou para o outro lado do campo. Os gritos e o clangor da batalha soaram alto desde as profundezas do instrumento de cristalomancia. Quando a bruma clareou, a imagem dos companheiros de clã de Bruenor, lutando de costas um para o outro em meio a um mar de goblins, ficou nítida. O campo em volta dos anões estava coberto de cadáveres de goblins e ogros.
- Vê como é estúpido resistir a mim? - foi o grito agudo de Kessell.
- Parece que os anões estão se saindo bem.
- Bobagem! - gritou Kessell.
Ele acenou com a mão novamente e a névoa retornou ao espelho. Abruptamente, a Canção de Tempus ressoou desde suas profundezas. Drizzt inclinou-se e esforçou-se para vislumbrar uma imagem através do véu, ansioso por ver o regente da canção.
- Mesmo agora, enquanto os estúpidos anões abatem alguns de meus soldados mais insignificantes, mais guerreiros chegam em grande número para se juntar às fileiras de meu exército! Estão condenados, todos vocês, Drizzt Do'Urden! Akar Kessell chegou!
A névoa clareou.
Com mil guerreiros fervorosos atrás dele, Wulfgar aproximou-se dos monstros desavisados. Os goblins e ores mais próximos aos bárbaros atacantes, acreditando piamente nas palavras de seu mestre, rejubilaram-se com a chegada dos prometidos aliados.
E então morreram.
A horda bárbara atravessou-lhes as fileiras, cantando e matando com selvagem abandono. Mesmo em meio ao fragor das armas, foi possível ouvir os anões juntando suas vozes à Canção de Tempus.
De olhos esbugalhados, o queixo caído e a tremer de raiva, Kessell afastou a imagem chocante com um aceno e girou o corpo para encarar Drizzt novamente.
- Não importa! - disse ele, lutando para manter firme o tom da voz. - Hei de lidar com eles sem misericórdia! E então Brin Shander há de tombar em meio às chamas! Mas primeiro, você, drow traidor - sibilou o mago. - Assassino de sua própria gente, que deuses lhe restaram a quem orar?
Ele soprou a vela e fez a chama dançar para um lado.
O ângulo de reflexão mudou e um dos raios recaiu sobre Drizzt, abrindo um buraco através do punho de sua velha cimitarra, e depois penetrou mais fundo, atravessando a pele negra da mão dele. O rosto de Drizzt contorceu-se de agonia, e ele apertou o ferimento enquanto a cimitarra caía ao chão e o raio retornava a sua trajetória original.
- Vê como é fácil? - escarneceu Kessell. - Sua mente fraca sequer é capaz de começar a imaginar o poder de Crenshinibon! Sinta-se abençoado por eu ter permitido a você sentir uma amostra desse poder antes de morrer!
Drizzt contraiu os músculos da mandíbula e não havia sinal de súplica em seus olhos quando ele fitou o mago. Havia tempos ele tinha reconhecido a possibilidade da morte como um risco aceitável de sua profissão e estava determinado a morrer com dignidade.
Kessell tentou fazê-lo suar. O mago fez oscilar torturantemente a vela mortífera, fazendo com que os raios se deslocassem de um lado para outro. Quando finalmente se deu conta de que não ouviria um único gemido ou rogo do orgulhoso tanger, Kessell cansou-se de seu joguinho.
- Adeus, idiota - resmungou ele e franziu os lábios para soprar a chama.
Régis apagou a vela.
Tudo pareceu parar completamente durante vários segundos. O mago, escandalizado, baixou os olhos até o halfling, a quem ele considerava um escravo. Régis meramente encolheu os ombros, como se estivesse tão surpreso por seu incomum ato de bravura quanto Kessell.
Confiando no instinto, o mago atirou o pires de prata que sustentava a vela através do vidro do espelho e correu, aos gritos, em direção ao canto nos fundos da sala, até uma pequena escada de mão escondida nas sombras. Drizzt acabara de dar os primeiros passos quando as chamas no interior do espelho se inflamaram. Quatro olhos vermelhos e malignos fitaram-no desde lá de dentro, atraindo a atenção do drow, e dois cães infernais saltaram através do vidro partido.
Guenhwyvar interceptou um deles, passando num salto por seu mestre e chocando-se de cabeça contra o cão demoníaco. As duas feras - um borrão vermelho-fulvo de presas e garras - rolaram em direção à parte de trás da sala e arremessaram Régis para um lado.
O segundo cachorro liberou seu hálito de fogo sobre Drizzt, mas novamente, como acontecera com o demônio, as chamas não incomodaram o drow. E agora era sua vez de atacar. A cimitarra que odiava o fogo retiniu de puro êxtase e partiu o agressor ao meio quando Drizzt a baixou. Admirado com o poder da espada, mas sem tempo até mesmo para ficar admirado diante da vítima mutilada, Drizzt retomou sua perseguição.
Ele alcançou a base da escada. Lá de cima, através do alçapão aberto para o andar mais alto da torre, vinham os lampejos rítmicos de uma luz palpitante. Drizzt sentiu a intensidade das vibrações aumentar a cada pulsação. O coração de Crishal-Tirith batia mais forte com o sol nascente. Drizzt compreendia o risco que correria, mas não tinha tempo para se deter e avaliar suas chances.
Em seguida, ele estava de novo diante de Kessell, dessa vez na menor sala da estrutura. Entre eles, suspenso misteriosamente em pleno ar, encontrava-se um grande fragmento palpitante de cristal: o coração de Crishal-Tirith. Tinha quatro lados e era afilado como um pingente de gelo. Drizzt reconheceu-o como uma réplica em miniatura da torre na qual se encontrava, apesar de este mal chegar a trinta centímetros de comprimento.
Uma cópia exata de Crenshinibon.
Uma muralha de luz dele emanava, dividindo a câmara ao meio, com o drow de um lado e o mago do outro. Drizzt compreendeu, pela risadinha do mago, que era uma barreira tão tangível quanto se fosse de pedra. Ao contrário da abarrotada sala de cristalomancia abaixo, apenas um espelho, que parecia mais uma janela na parede da torre, adornava aquela sala, bem ao lado do mago.
- Golpeie o coração, drow - riu Kessell. - Idiota! O coração de Crishal-Tirith é mais poderoso que qualquer arma do mundo! Nada que você possa fazer, seja mágico ou não, poderia sequer arranhar-lhe a superfície imaculada! Golpeie-o. Que se revele sua tola impertinência!
Drizzt, porém, tinha outros planos. Era versátil e astuto o bastante para perceber que alguns adversários não podiam ser derrotados somente com o uso da força. Havia sempre outras opções.
Ele embainhou a arma remanescente, a cimitarra mágica, e começou a desamarrar a corda que prendia o saco de farinha a seu cinto. Kessell apenas observou, curioso, perturbado com a calma do drow, mesmo quando a morte parecia inevitável.
- O que está fazendo? - indagou o mago.
Drizzt não respondeu. Suas ações eram metódicas e impassíveis. Ele soltou o cordão que fechava o saco e o abriu.
- Perguntei o que está fazendo!
Kessell franziu o cenho quando Drizzt começou a andar em direção ao coração da torre. Subitamente, a réplica pareceu vulnerável ao mago. Ele tinha a sensação incômoda de que talvez aquele elfo negro fosse mais perigoso do que ele tinha pensado.
Crenshinibon também o sentiu. A estilha de cristal telepaticamente instruiu Kessell a liberar um raio fatal e dar cabo do drow.
Mas Kessell estava amedrontado.
Drizzt aproximou-se do cristal. Tentou colocar a mão sobre ele, mas a muralha de luz o repeliu. Ele meneou a cabeça, já esperando por isso, e esticou tanto quanto possível a boca do saco. Sua concentração voltou-se exclusivamente para a própria torre: ele jamais olhou para o mago nem deu a atenção a seus resmungos.
Ele esvaziou o saco de farinha sobre a jóia.
A torre pareceu gemer em protesto. Escureceu.
A muralha de luz que separava o drow do mago desapareceu.
Mas, ainda assim, Drizzt concentrou-se na torre. Ele sabia que a camada asfixiante de farinha bloquearia as poderosas radiações da jóia apenas por pouco tempo.
O bastante, porém, para que ele rapidamente colocasse o saco agora vazio sobre ela e esticasse o cordão que o fechava. Kessell gritou de dor e atirou-se para frente, mas estacou diante da cimitarra desembainhada.
- Não! - o mago gritou num protesto impotente. - Você tem idéia das conseqüências do que acabou de fazer?
Como se respondesse, a torre estremeceu. Acalmou-se rapidamente, mas tanto o drow quanto o mago sentiram o perigo iminente. Em algum lugar nas entranhas de Crishal-Tirith, a deterioração já começara.
- Compreendo perfeitamente - respondeu Drizzt. - Eu o derrotei, Akar Kessell. Seu breve reinado como auto-proclamado soberano de Dez-Burgos chegou ao fim.
- Você matou a si mesmo, drow! - retorquiu Kessell, e Crishal-Tirith estremeceu novamente, dessa vez com mais violência. - Você nem mesmo pode sonhar escapar antes de a torre desabar sobre sua cabeça!
Veio de novo o tremor. E de novo. Drizzt deu de ombros, indiferente.
- Que seja - disse ele. - Cumpri meu propósito, pois você também há de perecer.
Uma gargalhada súbita e insana explodiu nos lábios do mago. Ele deu as costas a Drizzt e mergulhou no espelho embutido na parede da torre. Em vez de atravessar o vidro e cair no campo lá embaixo, como Drizzt esperava, Kessell deslizou espelho adentro e sumiu.
A torre chacoalhou novamente e, dessa vez, o tremor não cedeu. Drizzt lançou-se para o alçapão, mas mal conseguiu manter-se de pé. Rachaduras apareceram ao longo das paredes.
- Régis! - berrou, mas não houve resposta. Parte da parede da sala abaixo já havia desabado. Drizzt viu os escombros ao pé da escada. Rezando para que seus amigos já tivessem escapado, ele tomou a única rota que lhe restara.
Mergulhou através do espelho mágico atrás de Kessell.

30
A Batalha do Vale do Vento Gélido

O povo de Brin Shander ouviu os sons do combate no campo, mas foi somente com a luz da aurora que conseguiram ver o que acontecia. Aplaudiram freneticamente os anões e admiraram-se quando os bárbaros se chocaram com as tropas de Kessell e abateram os goblins com alegre abandono.
Cássio e Glensather, em suas habituais posições sobre a muralha, avaliaram a inesperada reviravolta dos acontecimentos, sem que se decidissem se deveriam ou não soltar suas tropas na refrega.
- Bárbaros? - admirou-se Glensather. - São nossos amigos ou inimigos?
- Estão matando os ores! - respondeu Cássio. - São amigos!
No Maer Dualdon, Kemp e os outros também ouviram o fragor da batalha, apesar de não conseguirem ver que forças estavam envolvidas. O mais desconcertante era que um segundo conflito começara, dessa vez a sudoeste, na vila de Bremen. Teriam os homens de Brin Shander saído e atacado? Ou era o contingente de Akar Kessell destruindo-se em volta dele?
Foi então que Crishal-Tirith subitamente ficou escura e seus lados antes vítreos e vibrantes adquiriram uma imobilidade cadavérica e opaca.
- Régis - murmurou Cássio, sentindo a perda de poder da torre. - Um herói como nunca tivemos!
A torre estremeceu e agitou-se. Grandes rachaduras apareceram por toda a extensão de suas paredes. Em seguida, desmoronou.
Os monstros do exército só fizeram observar, incrédulos e aterrorizados, o desmoronamento do bastião do mago que eles vieram a adorar como a um deus.
As cornetas de Brin Shander começaram a soar. A gente de Kemp irrompeu em vivas frenéticos e precipitou-se para os remos. Os batedores de vanguarda de Jensin Brent, por meio de sinais, repassaram as surpreendentes notícias à frota no Lac Dinneshir que, por sua vez, transmitiu a mensagem a Marerrubra. Em todos os refúgios temporários que ocultavam o povo disperso de Dez-Burgos ouviu-se a mesma ordem:
- Atacar!
O exército reunido diante dos grandes portões da muralha de Brin Shander despejou-se do pátio para o campo. As frotas de Caer-Konig e Caer-Dineval, no Lac Dinneshir, e Bom Prado e Toca de Dugan, no sul, içaram suas velas para aproveitar o vento leste e puseram-se a atravessar os lagos a toda a pressa. As quatro frotas reunidas no Maer Dualdon remaram com toda a força, fazendo frente àquele mesmo vento, ansiosas por vingança.
Numa arremetida voraginosa de caos e surpresa, começara a derradeira Batalha do Vale do Vento Gélido.

Régis rolou pelo chão para se pôr fora do caminho quando as duas criaturas que travavam combate passaram mais uma vez por ele, aos trambolhões, com as garras e as presas a rasgar e a dilacerar a carne numa luta desesperada. Normalmente, Guenhwyvar teria tido pouco trabalho para despachar o cão infernal mas, enfraquecida como estava, viu-se lutando pela própria vida. O hálito quente do cachorro abrasou a pelagem negra; as grandes presas enterraram-se no pescoço musculoso.
Régis queria ajudar o gato, mas sequer conseguia se aproximar o suficiente para chutar o adversário da pantera. Por que Drizzt fugira tão abruptamente?
Guenhwyvar sentiu o pescoço sendo esmagado pela poderosa bocarra. O gato rolou e, mais pesado, levou o cão consigo. Mas as mandíbulas caninas não cederam. A tontura acometeu o gato devido à falta de ar. O felino começou a enviar sua mente de volta através dos planos, para seu verdadeiro lar, mesmo lamentando ter falhado com seu mestre numa hora de necessidade.
Foi então que a torre escureceu. O assustado cão infernal relaxou ligeiramente a pressão e Guenhwyvar rapidamente aproveitou a oportunidade. O gato enfiou as patas nas costelas do cão e livrou-se das mandíbulas com um repelão, rolando para longe e para as trevas.
O cão infernal procurou o adversário, mas os poderes de dissimulação da pantera estavam acima até mesmo da considerável perceptividade de seus sentidos aguçados. O cão viu uma segunda presa. Um único salto o levou até Régis.
Mas Guenhwyvar agora conhecia muito bem as regras do jogo. A pantera era uma criatura da noite, um predador que atacava a partir das trevas e matava antes mesmo que a vítima pressentisse sua presença. O cão infernal agachou-se para atacar Régis, mas foi ao chão quando a pantera caiu pesadamente sobre suas costas e as garras enterraram-se em seu couro cor de ferrugem.
O cão ganiu apenas uma vez antes de as presas fatais encontrarem seu pescoço.
Os espelhos racharam e se estilhaçaram. Um buraco imprevisto no piso tragou o trono de Kessell. Os blocos de escombros cristalinos começaram a cair de todos os lados, e a torre estremecia em seus estertores finais. Gritos provenientes da câmara do harém logo abaixo informaram Régis de que uma cena semelhante de destruição era comum em toda a estrutura. Ele se alegrou o ver Guenhwyvar despachar o cão infernal, mas compreendeu a inutilidade do heroísmo do gato. Não tinham para onde correr nem como escapar à morte de Crishal-Tirith.
Régis chamou Guenhwyvar para perto dele.
Ele não conseguia enxergar o corpo do gato na escuridão, mas via os olhos que se concentravam nele e o rodeavam como se o gato o estivesse espreitando.
- O que foi? - refugou o halfling, atônito, imaginando se a tensão e os ferimentos infligidos pelo cão não teriam levado Guenhwyvar à loucura.
Um grande pedaço da parede espatifou-se bem ao lado dele, estatelando-o no chão. Ele viu os olhos do gato erguerem-se em pleno ar; Guenhwyvar saltara.
O pó o sufocou, e ele sentiu o início do derradeiro colapso da torre de cristal. Em seguida, uma escuridão mais profunda o surpreendeu quando ele foi envolvido pelo gato negro.

Drizzt sentiu-se cair.
A luz era brilhante demais, ele não enxergava. Nada ouvia, nem mesmo o som do ar que passava velozmente. No entanto, ele sabia com certeza que estava caindo.
E depois a luz empalideceu e transformou-se numa bruma cinzenta, como se ele atravessasse uma nuvem. Tudo parecia tão onírico, tão completamente irreal. Ele não se lembrava de como acabara naquela situação. Não conseguia recordar o próprio nome.
Foi então que ele caiu num profundo monte de neve e percebeu que não estava sonhando. Ouviu o grito do vento e sentiu sua mordida enregelante. Ele tentou ficar de pé para ter uma idéia melhor dos arredores.
Aí ele ouviu, ao longe e abaixo, os gritos da devastadora batalha. Lembrou-se de Crishal-Tirith, lembrou-se de onde estivera. Só podia haver uma resposta.
Ele estava no topo do Sepulcro de Kelvin.

Os soldados de Brin Shander e Angraleste, lutando lado a lado e liderados por Cássio e Glensather, arremeteram colina abaixo e caíram com toda a força sobre as tropas transtornadas de goblins. Os dois representantes tinham um determinado objetivo em mente: queriam atravessar as fileiras de monstros e unir-se aos pupilos de Bruenor. Sobre a muralha, momentos antes, eles tinham visto os bárbaros tentarem a mesma estratégia e calcularam que, se todos os três exércitos pudessem ser reunidos para cobrir um o flanco do outro, suas chances exíguas melhorariam bastante.
Os goblins cederam ao assalto. Em sua absoluta consternação e surpresa diante da súbita reviravolta dos acontecimentos, os monstros foram incapazes de organizar algo que lembrasse uma linha defensiva.
Quando aportaram logo ao norte das ruínas de Targos, as quatro frotas no Maer Dualdon encontraram a mesma resistência desorganizada e desorientada. Kemp e os outros líderes haviam calculado que conseguiriam facilmente estabelecer uma cabeça-de-ponte em terra, mas sua principal preocupação era o grande exército de goblins ocupando Termalaine precipitar-se logo atrás deles caso abrissem caminho a partir da praia, o que eliminaria sua única rota de fuga.
Entretanto, eles não precisariam ter se preocupado. Nos primeiros estágios da batalha, os goblins em Termalaine haviam realmente se precipitado para fora com toda a intenção de apoiar o mago. Mas, então, Crishal-Tirith desmoronara. Os goblins já andavam céticos, tendo ouvido durante toda a noite que Kessell despachara um grande destacamento para exterminar os Ores da Língua Partida na cidade conquistada de Bremen. E quando viram a torre, o pináculo do poder de Kessell, transformada em ruínas, eles reconsideraram suas alternativas e ponderaram entre eles as conseqüências de suas opções. Fugiram para o norte e para a segurança da vasta planície.

As rajadas de neve contribuíam para formar o denso véu de bruma no topo da montanha. Drizzt mantinha os olhos baixos, mas mal conseguia enxergar os próprios pés enquanto colocava resolutamente um em frente ao outro. Ele ainda tinha a cimitarra mágica, e ela brilhava com uma luz pálida, como se aprovasse as temperaturas frígidas.
O corpo cada vez mais insensível do drow implorava para que ele descesse a montanha, mas ele continuava a se distanciar ao longo da face alta, em direção a um dos picos adjacentes. O vento trazia um som perturbador a seus ouvidos: uma gargalhada ensandecida.
E foi então que ele viu a forma indistinta do mago, debruçada por sobre o precipício ao sul, tentando vislumbrar o que acontecia no campo de batalha lá em baixo.
- Kessell! - gritou Drizzt. Ele viu a forma se mover abruptamente e compreendeu que o mago o ouvira, mesmo com o uivo do vento. - Em nome do povo de Dez-Burgos, exijo que se renda a mim! Rápido, agora, antes que esse sopro implacável de inverno nos congele aqui mesmo onde estamos!
Kessell abriu um sorriso escarninho.
- Você ainda não compreende o que está enfrentando, não é? - perguntou ele, estupefato. - Você realmente acredita que venceu esta batalha?
- Como a gente lá embaixo está se saindo eu ainda não sei - respondeu Drizzt, mas você foi derrotado! Sua torre foi destruída, Kessell, e sem ela você não passa de um impostor insignificante! - Ele continuou a se mover enquanto falava e estava agora a uma pequena distância do mago, mas seu oponente era ainda um mero borrão negro num campo cinzento.
- Quer saber como eles estão se saindo, drow? - perguntou Kessell. - Então olhe! Testemunhe a queda de Dez-Burgos! - Ele enfiou a mão sob o manto e sacou um objeto brilhante: uma estilha de cristal. As nuvens pareceram recuar diante dela. O vento cessou dentro dos limites do amplo raio de sua influência. Drizzt testemunhou seu incrível poder. Sob a luz do cristal, o drow sentiu o sangue retornar a suas mãos insensíveis. Em seguida, o véu cinzento foi consumido pelo fogo e o céu diante deles ficou claro.
- A torre destruída? - zombou Kessell. - Você quebrou apenas uma das inúmeras cópias de Crenshinibon! Um saco de farinha? Derrotar a relíquia mais poderosa do mundo? Olhe lá embaixo, veja os homens estúpidos que ousam me fazer oposição!
O campo de batalha desfraldou-se diante do drow. Ele viu as velas brancas e enfunadas dos barcos de Caer-Dineval e Caer-Konig que se aproximavam da margem oeste do Lac Dinneshir.
No sul, as frotas de Bom Prado e Toca de Dugan já haviam aportado. Os marinheiros não encontraram qualquer resistência inicial e, naquele exato momento, entravam em formação para um ataque por terra. Os goblins e os ores que formavam a metade meridional do círculo de Kessell não haviam testemunhado a queda de Crishal-Tirith. Mesmo sentindo a perda de poder e orientação, e apesar de muitos permanecerem onde estavam ou abandonarem os companheiros para fugir, outros tantos contornaram precipitadamente a colina de Brin Shander para se juntar à batalha.
As tropas de Kemp também estavam em terra firme e empurravam os barcos para longe das praias com um olhar desconfiado voltado para o norte. Esse grupo tinha aportado em meio à mais densa concentração das forças de Kessell, mas também na área sob a sombra da torre, onde a queda de Crishal-Tirith havia sido mais desalentadora. Os pescadores encontraram mais goblins interessados em fugir do que com a intenção de lutar.
No centro do campo, onde aconteciam os combates mais violentos, os homens de Dez-Burgos e seus aliados também pareciam estar se saindo bem.
Os bárbaros tinham praticamente se unido aos anões. Incitadas pela força do martelo de Wulfgar e a coragem sem igual de Bruenor, as duas forças estraçalhavam tudo o que se colocava entre elas. E logo se tornariam ainda mais formidáveis, pois Cássio e Glensather estavam bem perto e aproximavam-se a um ritmo constante.
- Pelo que dizem meus olhos, seu exército não está se saindo muito bem - retorquiu Drizzt. - Os homens "estúpidos" de Dez-Burgos ainda não foram derrotados!
Kessell ergueu a estilha de cristal bem acima da cabeça, e a luz do objeto inflamou-se e atingiu um nível ainda maior de poder. lá embaixo, no campo de batalha, mesmo àquela grande distância, os combatentes compreenderam imediatamente a ressurreição da poderosa presença que haviam conhecido como Crishal-Tirith. Tanto humanos quanto anões e goblins, mesmo aqueles envolvidos em combate mortal, detiveram-se um segundo para contemplar o farol sobre a montanha. Os monstros, sentindo o retorno de seu deus, irromperam em vivas frenéticos e abandonaram sua postura até então defensiva. Encorajados pelo glorioso reaparecimento de Kessell, eles forçaram o ataque com fúria selvagem.
- Veja como minha simples presença os incita! - Kessell vangloriou- se, orgulhoso.
Mas Drizzt já não prestava mais atenção nem ao mago nem à batalha lá embaixo. Tinha agora os pés cobertos por poças d'água formadas pela neve derretida sob o calor da brilhante relíquia. Eles se concentrava agora num ruído que seus ouvidos aguçados haviam captado por entre o fragor da luta distante. Um bramido de protesto dos picos congelados do Sepulcro de Kelvin.
- Contemple a glória de Akar Kessell! - gritou o mago, com a voz ampliada a uma magnitude ensurdecedora pelo poder da relíquia que ele segurava. - Será muito fácil destruir os barcos no lago lá embaixo!
Drizzt percebeu que Kessell, em sua arrogante desconsideração pelo perigo cada vez maior, cometia um erro flagrante. Tudo o que tinha a fazer era retardar qualquer ação decisiva do mago pelos próximos instantes. Num reflexo, ele agarrou o punhal atrás de seu cinto e atirou-o contra Kessell, embora soubesse que Kessell estava ligado a Crenshinibon por algum tipo de simbiose deturpada e que a pequena arma não tinha a menor chance de atingir seu alvo. O drow esperava distrair e enfurecer o mago para afastar sua fúria do campo de batalha.
O punhal atravessou o ar velozmente. Drizzt virou-se e correu.
Um raio delgado foi disparado por Crenshinibon e derreteu a arma antes que esta encontrasse seu alvo, mas Kessell estava furioso.
- Você deveria se curvar diante de mim! - ele gritou para Drizzt. - Como blasfemo, você fez por merecer a distinção de ser minha primeira vítima
Girou e brandiu a estilha, afastando-a da saliência e apontando-a para o drow em fuga. Mas, tão logo completou o giro, ele afundou até os joelhos na neve derretida.
Foi então que ele também ouviu os bramidos furiosos da montanha.
Drizzt deixou a esfera de influência da relíquia e, sem hesitar nem olhar para trás, correu, distanciando-se tanto quanto pôde da face sul do Sepulcro de Kelvin.
Agora imerso até o peito, Kessell lutou para se libertar da neve derretida. Invocou o poder de Crenshinibon novamente, mas sua concentração vacilou sob a intensa tensão da catástrofe iminente.
Pela primeira vez em anos, Akar Kessell sentiu-se fraco novamente. Não o Tirano do Vale do Vento Gélido, mas o titubeante aprendiz que assassinara seu mestre.
Era como se a estilha de cristal o tivesse rejeitado.
Nesse momento, todo um lado do topo nevado da montanha caiu. O estrondo fez a terra estremecer num raio de muitas milhas. Homens e ores, goblins e até mesmo ogros foram atirados ao chão.
Kessell apertou a estilha bem junto ao peito quando ele começou a cair. Mas Crenshinibon queimou-lhe as mãos, repeliu-o. Kessell falhara vezes demais. A relíquia não mais o aceitaria como seu portador.
Kessell gritou ao sentir a estilha escorregar por entre seus dedos. Seu guincho, porém, foi abafado pelo estrondo da avalanche. A fria escuridão da neve fechou-se ao redor dele e caiu, tombou com ele. Kessell acreditava desesperadamente que, se ainda segurasse a estilha de cristal, ele conseguiria sobreviver até mesmo àquilo. Foi seu pequeno consolo quando ele caiu num dos picos mais baixos do Sepulcro de Kelvin.
E metade do topo da montanha caiu sobre ele.

O exército de monstros presenciara novamente a queda de seu deus. O filete de esperança que estimulara seu ímpeto começou a se desfazer rapidamente. Mas, no breve período em que Kessell reaparecera, algum grau de atividade coordenadora ocorrera. Dois gigantes do gelo, os únicos gigantes verdadeiros remanescentes em todo o exército do mago, assumiram o comando. Chamaram os ogros da guarda de elite para junto deles e depois convocaram as tribos de ores e goblins a se juntar a eles e seguir sua liderança.
Mesmo assim, a consternação do exército era óbvia. As rivalidades tribais, enterradas sob a dominação férrea de Akar Kessell, ressurgiram na forma de patente desconfiança. Somente o medo que tinham dos inimigos os mantinha lutando, e somente o medo que tinham dos gigantes os mantinha em formação ao lado das outras tribos.
- Bons olhos o vejam, Bruenor! - entoou Wulfgar, depois de espatifar a cabeça de mais um goblin, assim que a horda bárbara finalmente chegou até os anões.
- E você também, garoto! - respondeu o anão, enterrando seu machado no peito do oponente. - Quase que passou da hora de 'cê voltar! Achei que também ia ter que matar a sua parte desta escória!
Entretanto, a atenção de Wulfgar estava em outro lugar. Ele descobrira os dois gigantes que comandavam as tropas.
- Gigantes do gelo - disse ele a Bruenor, dirigindo o olhar do anão para o círculo de ogros. - São tudo o que mantém as tribos unidas!
- Mais diversão! - gargalhou Bruenor. - Vá na frente!
E, desse modo, com seus principais acompanhantes e Bruenor a seu lado, o jovem rei começou a abrir uma trilha de destruição através das fileiras de goblins.
Os ogros amontoaram-se em frente aos novos comandantes para bloquear o caminho do bárbaro.
Wulfgar estava perto o bastante então.
Garra de Palas passou pelas fileiras de ogros com um silvo e acertou um dos gigantes na cabeça, fazendo-o cair sem vida. O outro, pasmo e incrédulo diante de um humano capaz de desferir um golpe tão letal contra alguém de sua espécie e daquela distância, hesitou apenas um instante antes de abandonar a batalha.
Impávidos, os ferozes ogros investiram contra o grupo de Wulfgar e empurrou-o para trás. Mas Wulfgar estava satisfeito e cedeu de boa vontade à pressão, ansioso para voltar a se reunir ao grosso do exército de humanos e anões.
Bruenor, porém, não tinha a mesma disposição. Era o tipo de combate caótico que ele mais apreciava. Desapareceu sob as pernas compridas da linha de vanguarda dos ogros e moveu-se, despercebido em meio ao pó e à confusão, entre suas fileiras.
Com o canto do olho, Wulfgar presenciou a estranha retirada do anão.
- Para onde você vai? - gritou, mas o aguerrido Bruenor não ouviu o chamado e não teria dado atenção de qualquer maneira.
Wulfgar não pôde assistir à carreira do furioso anão, mas conseguiu se aproximar da posição de Bruenor, ou ao menos do lugar onde o anão estivera havia pouco, acompanhando os ogros que se vergavam de surpresa e agonia, um após outro, levando às mãos a um joelho, a um tendão ou à virilha.
Acima de toda a comoção, os ores e goblins não envolvidos em combate direto vigiavam o Sepulcro de Kelvin, à espera de uma segunda ressurreição.
Mas, assentada agora nas encostas inferiores da montanha, havia apenas neve.

Desejosos de vingança, os combatentes de Caer-Konig e Caer-Dineval conduziram suas embarcações em direção à terra a todo pano e fizeram-nas deslizar imprudentemente até as areias dos baixios para evitar a demorada ancoragem em águas mais profundas. Eles saltaram dos barcos, chapinharam até a terra firme e precipitaram-se na batalha com um frenesi destemido que afastou os oponentes.
Uma vez estabelecidos em terra, Jensin Brent reuniu-os numa formação fechada e dirigiu-os para o sul. O representante ouviu sons de combate vindos de longe naquela direção e compreendeu que os homens de Bom Prado e Toca de Dugan iam para o norte com a intenção de se juntarem aos seus. O plano era encontrá-los na Estrada do Leste e depois virar para oeste, na direção de Brin Shander, com um exército muito maior.
Muitos dos goblins daquele lado da cidade já tinham fugido havia tempos, e muitos mais foram para noroeste, rumo às ruínas de Crishal-Tirith e ao conflito principal. O exército do Lac Dinneshir correu em direção a seu objetivo. Chegou à estrada com algumas baixas e entrincheirou-se para esperar os sulistas.

Kemp esperava ansiosamente o sinal do barco solitário a velejar nas águas do Maer Dualdon. O representante de Targos, designado comandante das forças das quatro cidades do lago, movera-se cautelosamente até então com medo de um pesado ataque vindo do norte. Ele manteve seus homens sob controle, permitindo que combatessem apenas os monstros que os atacassem, mas essa atitude conservadora - sem falar dos sons da devastadora batalha que ecoavam pelo campo - dilacerava seu coração aventureiro.
Como os minutos se arrastassem sem qualquer sinal de reforços goblins, o representante enviara uma pequena escuna para percorrer as margens e descobrir o que estava atrasando a força que ocupava Termalaine.
Foi então que ele avistou as velas brancas a surgirem gradualmente no horizonte. Bem alto sobre a proa da pequena embarcação estava a bandeira sinalizadora que Kemp mais havia desejado, mas aquela que ele menos esperara: o estandarte vermelho da captura, que naquele caso sinalizava que Termalaine estava livre e os goblins fugiam para o norte.
Kemp correu até o ponto mais alto que pôde encontrar, com o rosto avermelhado pelo desejo de vingança.
- Rompam a linha, rapazes! - ele gritou para seus homens. - Abram uma trilha até a cidade sobre a colina! Que Cássio retorne e nos encontre sentados à porta de sua cidade!
A cada passo, eles gritavam furiosamente, pois eram homens que haviam perdido casas e parentes e visto suas cidades extinguirem-se nas chamas sem nada poder fazer. Muitos deles nada tinham a perder. Tudo o que podiam esperar era um gostinho de amarga satisfação.

A batalha continuou a grassar durante o resto da manhã. Homens e monstros erguiam suas espadas e lanças que pareciam ter dobrado de peso. Mas a exaustão, apesar de diminuir seus reflexos, em nada aplacava a raiva que ardia no sangue de cada combatente.
As linhas de batalha foram se tornando indistinguíveis à medida que a luta avançava, e os soldados separavam-se irremediavelmente de seus comandantes. Em muitos lugares, goblins e ores lutavam uns contra os outros, incapazes - mesmo com um inimigo comum ao alcance - de sublimar o ódio de longa data pelas tribos rivais. Uma espessa nuvem de pó envolvia as maiores concentrações do conflito. O clamor atordoante de aço contra aço, as espadas que se chocavam contra os escudos e os gritos cada vez mais freqüentes de morte, agonia e vitória fizeram o embate estruturado se degenerar numa briga generalizada.
A única exceção era o grupo de experientes anões. Suas fileiras não vacilaram nem se desintegraram o mínimo que fosse, apesar de Bruenor ainda não ter retornado depois de sua estranha retirada.
Os anões proporcionaram uma sólida plataforma para o ataque dos bárbaros e uma referência para o retorno de Wulfgar e de seu pequeno grupo. O jovem rei voltou às fileiras bárbaras no exato momento em que Cássio e seu exército se juntavam a eles. O representante e Wulfgar trocaram olhares preocupados, ambos incertos quanto a em que pé estavam um em relação ao outro. No entanto, os dois foram sábios o suficiente para confiar inteiramente naquela aliança momentânea. Ambos compreendiam que adversários inteligentes deixam de lado suas diferenças em face de um inimigo superior.
Apoiar um ao outro seria a única vantagem dos aliados recém-coligados. Juntos, eles superavam em número e conseguiriam sobrepujar qualquer tribo individual de ores ou goblins que enfrentassem. E, como as tribos goblins não cooperavam entre si, os vários grupos careciam de apoio externo nos flancos. Wulfgar e Cássio, seguindo e apoiando os movimentos um do outro, enviaram guerreiros em braços defensivos para manter os grupos periféricos afastados enquanto a força principal do exército combinado fulminava uma tribo por vez.
Apesar de seus soldados terem abatido mais de dez goblins para cada homem perdido, Cássio estava verdadeiramente apreensivo. Milhares de monstros sequer haviam entrado em contato com os humanos ou erguido uma arma, e seus homens estavam quase caindo de cansaço. Ele precisava levá-los de volta à cidade. Deixou que os anões assumissem a liderança.
Wulfgar, também preocupado com a capacidade de seus guerreiros de manter o ritmo, e sabendo que não havia outra rota de fuga, instruiu seus homens a seguirem Cássio e os anões. Era uma jogada de risco, pois o rei bárbaro sequer tinha certeza de que o povo de Brin Shander deixaria seus guerreiros entrarem na cidade.
As forças de Kemp fizeram um impressionante progresso em sua investida inicial até as encostas da cidade principal, mas, ao se aproximarem de seu objetivo, encontraram concentrações mais densas e desesperadas de humanóides. A cerca de cem metros da colina, eles foram detidos e tiveram de lutar em todas as frentes.
Os exércitos que chegavam do leste em grande número saíram-se melhor. A arremetida pela Estrada do Leste encontrara pouca resistência e eles foram os primeiros a alcançar a colina. Haviam atravessado furiosamente os lagos em seus barcos e corrido e lutado todo o caminho através da planície, mas Jensin Brent, o único representante sobrevivente dos quatro originais, pois Schermont e os dois das cidades ao sul haviam tombado na Estrada do Leste, não os deixaria descansar. Ele ouvia claramente os sons da acalorada batalha e compreendia que os bravos homens nos campos do norte, enfrentando o grosso do exército de Kessell, precisavam de todo o apoio que pudessem conseguir.
No entanto, quando contornaram a última curva antes do portão norte da cidade, o representante e suas tropas ficaram petrificados diante do espetáculo da mais brutal batalha que já tinham visto ou mesmo ouvido falar em historias exageradas. Os combatentes lutavam por cima dos corpos retalhados dos mortos, e os guerreiros que haviam perdido suas armas mordiam e arranhavam os oponentes.
Brent inferiu imediatamente que Cássio e seu grande contingente seriam capazes de retornar à cidade por conta própria. Os exércitos do Maer Dualdon, porém, estavam numa situação difícil.
- Para oeste! - ele gritou para seus homens enquanto arremetia em direção à força encurralada.
Uma nova onda de adrenalina impeliu o exército cansado ao resgate de seus camaradas. Sob ordens de Brent, os homens desceram as encostas numa linha comprida, lado a lado, mas, quando alcançaram o campo de batalha, apenas o grupo do meio seguiu em frente. Os grupos nas pontas da formação foram caindo para o centro e a força inteira havia logo formado uma cunha, cuja ponta abria caminho através dos monstros para alcançar os exércitos acuados de Kemp.
Os homens de Kemp acolheram avidamente o esquadrão de resgate, e o exército reunido foi logo capaz de recuar para a face norte da colina. Os últimos retardatários chegaram aos trambolhões ao mesmo tempo que o exército de Cássio, os bárbaros de Wulfgar e os anões livravam-se das fileiras mais próximas de goblins e subiam pelo terreno exposto da colina.
Agora, com os humanos e os anões reunidos numa só força, os goblins avançavam tentativamente. As baixas haviam sido terríveis. Não restavam gigantes nem ogros, e tribos inteiras de goblins e ores jaziam mortas. Crishal-Tirith era uma pilha de escombros enegrecidos e Akar Kessell estava enterrado numa cova congelada.
Os homens na colina de Brin Shander estavam machucados e cambaleavam de exaustão, mas o feitio inflexível de seus maxilares deixava claro aos monstros remanescentes que eles continuariam lutando até o último alento. Haviam recuado até onde podiam, não haveria outra retirada.
Dúvidas insinuaram-se na mente de cada goblin e ore que permaneceu para levar a guerra adiante. Embora provavelmente estivessem ainda em número suficiente para completar a tarefa, muitos mais ainda tombariam antes que os ferozes homens de Dez-Burgos e seus mortíferos aliados fossem abatidos. Mesmo assim, qual das tribos sobreviventes reclamaria a vitória? Sem a orientação do mago, os sobreviventes da batalha sem dúvida teriam dificuldades para dividir igualmente os espólios sem novos conflitos.
A Batalha do Vale do Vento Gélido não seguira o curso que Akar Kessell prometera.

31
Vitória?

Os homens de Dez-Burgos, juntamente com os aliados anões e bárbaros, haviam lutado até abrir caminho de todos os lados do vasto campo e agora estavam reunidos diante do portão norte de Brin Shander. E enquanto seu exército chegara a uma única atitude de combate, com todos os grupos antes separados agora reunidos sob o objetivo comum da sobrevivência, o exército de Kessell percorrera a estrada oposta. Ao arremeter pelo Desfiladeiro do Vento Gélido, o propósito comum dos goblins era a vitória para a glória de Akar Kessell. Mas Kessell estava morto e Crishal-Tirith destruída, e a corda que mantivera unidos os rancorosos inimigos de longa data, as tribos rivais de ores e goblins, havia começado a se desfazer.
Os humanos e os anões avaliaram a massa de invasores com renovada esperança, pois, em todas as orlas externas da vasta força, formas escuras continuavam a desprender-se e a fugir do campo de batalha, de volta à tundra.
Ainda assim, os defensores de Dez-Burgos estavam cercados por três lados e tinham a muralha de Brin Shander a suas costas. Naquele momento, os monstros não fizeram qualquer menção de insistir no ataque, mas milhares de goblins mantinham suas posições ao redor de todos os campos ao norte da cidade.
Pouco antes, durante a batalha, quando os ataques iniciais haviam surpreendido os invasores, os líderes das forças defensoras envolvidas teriam considerado desastrosa aquela calmaria, algo que lhes roubaria o ímpeto e permitiria que seus inimigos atordoados se reagrupassem em formações mais favoráveis.
Agora, porém, o interlúdio vinha como uma dupla bênção: dava aos soldados um descanso desesperadamente necessário e deixava os goblins e ores assimilarem inteiramente a derrota que haviam sofrido. O campo deste lado da cidade estava coberto de cadáveres, muito mais goblins que humanos, e a pilha esfacelada que havia sido Crishal-Tirith só acentuava a noção dos monstros de que suas baixas foram terríveis. Não restavam gigantes nem ogros para apoiar suas fileiras cada vez menores e, a cada segundo, mais aliados desertavam a causa.
Cássio teve tempo de chamar todos os representantes sobreviventes para um breve conselho.
A uma pequena distância dali, Wulfgar e Revjalc reuniam-se com Arnês Mallot, nomeado líder das forças anãs em face da perturbadora ausência de Bruenor.
- Estamos contentes com sua volta, poderoso Wulfgar - disse Arnês. - Bruenor sabia que 'cê ia voltar.
Wulfgar percorreu o campo com os olhos, à procura de algum sinal de que Bruenor ainda estava lá, em algum lugar, brandindo seu machado.
- Alguma notícia de Bruenor?
- 'cê foi o último a ver ele - respondeu Arnês sombriamente.
Ficaram em silêncio, esquadrinhando o campo.
- Deixe-me ouvir novamente o retinir de seu machado - murmurou Wulfgar.
Mas Bruenor não podia ouvi-lo.

- Jensin - Cássio perguntou ao representante de Caer-Dineval -, onde estão suas mulheres e crianças? Estão a salvo?
- A salvo em Angraleste - replicou Jensin Brent - Acompanhadas, a essa altura, pelo povo de Bom Prado e Toca de Dugan. Estão bem providos e protegidos. Se os desgraçados soldados de Kessell investirem contra a vila, o povo há de saber do perigo com tempo de sobra para zarpar mais uma vez para o Lac Dinneshir.
- Mas quanto tempo eles conseguiriam sobreviver na água? - perguntou Cássio.
Jensin Brent deu de ombros evasivamente.
- Até o inverno chegar, acho eu. Sempre terão onde aportar, no entanto, pois os goblins e os ores restantes não conseguiriam abranger nem mesmo metade da extensão das margens do lago.
Cássio pareceu satisfeito. Virou-se para Kemp.
- Bosquesó - Kemp respondeu à pergunta muda. - E aposto que estão melhor do que nós! Têm barcos suficientes nas docas por lá para fundar uma cidade no meio do Maer Dualdon.
- Isso é bom - Cássio disse a eles. - Deixa-nos ainda uma outra opção. Poderíamos, talvez, resistir aqui durante algum tempo, depois retirarmo-nos para o interior das muralhas da cidade. Os goblins e os ores, mesmo com a superioridade numérica, não poderiam sequer sonhar em nos conquistar uma vez lá dentro!
A idéia pareceu ter um certo apelo para Jensin Brent, mas Kemp franziu o cenho.
- A nossa gente estaria mais ou menos a salvo - disse ele -, mas e quanto aos bárbaros?
- As mulheres deles são vigorosas e capazes de sobreviver sem os homens - respondeu Cássio.
- Não dou a mínima para as mulheres fedorentas deles - vociferou Kemp, erguendo a voz de propósito para que Wulfgar e Revjak, em seu próprio conselho não muito longe dali, pudessem ouvi-lo. - Falo dos próprios cães selvagens ali! Você não vai escancarar a porta e convidá-los!
- O orgulhoso Wulfgar aproximou-se dos representantes.
Cássio, enfurecido, virou-se contra Kemp.
- Idiota teimoso! - murmurou rudemente. - Nossa única esperança é a união!
- Nossa única esperança é o ataque! - retorquiu Kemp. - Eles estão aterrorizados e você pede para fugirmos e nos escondermos!
O imenso bárbaro colocou-se diante dos dois representantes, destacando-se entre eles.
- Saudações, Cássio de Brin Shander - disse educadamente. - Sou Wulfgar, filho de Beornegar e líder das tribos que vieram se unir a sua nobre causa.
- O que sua raça entende de nobreza? - interrompeu Kemp. Wulfgar o ignorou.
- Ouvi boa parte de sua discussão - continuou ele, impassível. - É minha opinião que seu conselheiro malcriado e ingrato aqui - ele fez uma pausa para se controlar - propôs a única solução.
Cássio, ainda esperando que Wulfgar se enfurecesse com os insultos de Kemp, a princípio ficou confuso.
- Atacar - explicou Wulfgar. - Os goblins agora já não têm certeza do que podem ganhar com isso. Perguntam-se por que é que seguiram o mago até este lugar fatídico. Se tiverem a oportunidade de recobrar o desejo pela batalha, vão se mostrar um adversário mais formidável.
- Agradeço suas palavras, rei dos bárbaros - respondeu Cássio. - No entanto, acho que essa ralé não será capaz de agüentar um cerco. Deixarão os campos antes de uma semana.
- Talvez - disse Wulfgar. - Mas, mesmo assim seu povo há de pagar caro. Partindo por escolha própria, os goblins não retornarão a suas cavernas de mãos vazias. Há ainda várias cidades desprotegidas que eles poderiam atacar ao deixar o Vale do Vento Gélido. E, pior ainda, eles não vão partir com medo nos olhos. Sua retirada há de salvar as vidas de alguns de seus homens, Cássio, mas não evitará um futuro retorno de seus inimigos!
- Então você concorda que devemos atacar? - perguntou Cássio.
- Nossos inimigos agora nos temem. Olham ao redor e vêem a ruína que infligimos a eles. O medo é um instrumento poderoso, principalmente contra goblins covardes. Completemos o desbaratamento, como seu povo fez com o meu, cinco anos atrás... - Cássio reconheceu a dor nos olhos de Wulfgar ao recordar o incidente. - Façamos esses animais imundos correr de volta a seus lares nas montanhas! Muitos anos passarão antes que eles se aventurem a atacar as vilas novamente.
Cássio olhou para o jovem bárbaro com profundo respeito e curiosidade. Mal podia acreditar que aqueles orgulhosos guerreiros da tundra, que recordavam vividamente a carnificina que haviam sofrido nas mãos dos deca-burgueses, tivessem vindo em auxílio às comunidades pesqueiras.
- Meu povo de fato desbaratou o seu, nobre rei. Brutalmente. Por que, então, vocês vieram?
- Isso é uma questão que devemos discutir depois de completada nossa tarefa - respondeu Wulfgar. - Agora, cantemos! Vamos levar terror aos corações de nossos inimigos e alquebrá-los!
Ele se virou para Revjak e alguns de seus outros líderes.
- Cantem, orgulhosos guerreiros! - ordenou. - Que a Canção de Tempus profetize a morte dos goblins!
Um vibrante viva elevou-se de todas as fileiras de bárbaros e, com orgulho, eles ergueram as vozes em louvor a seu deus da guerra.
Cássio notou o efeito imediato da canção sobre os monstros mais próximos. Eles recuaram um passo e apertaram os punhos das armas.
Um sorriso cruzou o rosto do representante. Ele ainda não conseguia entender a presença dos bárbaros, mas as explicações teriam de esperar.
- Juntem-se a nossos aliados bárbaros! - ele gritou para seus soldados. - Hoje é um dia de vitória!
Os anões haviam retomado o soturno cântico de guerra de sua antiga terra natal. Os pescadores de Dez-Burgos acompanharam as palavras da Canção de Tempus, tentativamente a princípio, até que as inflexões e expressões estrangeiras fluíssem facilmente de seus lábios. Em seguida, juntaram-se a eles em uníssono, proclamando a glória de cada uma de suas vilas como os bárbaros faziam com suas tribos.
O ritmo aumentou, o volume foi ganhando as proporções de um poderoso crescendo. Os goblins tremeram diante do frenesi cada vez maior de seus mortíferos inimigos. A torrente de desertores que partiam das beiradas da aglomeração principal começou a ficar cada vez mais caudalosa.
E então, como uma única onda mortífera, os aliados humanos e anões arremeteram colina abaixo.

Drizzt conseguira se afastar da face sul, mesmo com dificuldade, o bastante para escapar à fúria da avalanche, mas ele ainda se encontrava numa situação perigosa. O Sepulcro de Kelvin não era uma montanha alta, mas o terço do topo cobria-se perpetuamente de neve profunda e vivia brutalmente exposto ao vento gélido que dava nome à terra.
Pior ainda para o drow, seus pés haviam se molhado no derretimento provocado por Crenshinibon e, agora, à medida que a umidade congelava em volta de sua pele, mover-se pela neve era doloroso.
Arrastando-se, ele decidiu continuar em direção à face oeste, que oferecia melhor proteção contra o vento. Seus movimentos eram violentos e exagerados, pois ele gastava toda a sua energia para manter o sangue correndo em suas veias. Ao alcançar a orla do pico da montanha e começar a descer, ele foi obrigado a se mover mais tentativamente, pois temia que um solavanco repentino o entregasse ao mesmo destino sinistro que acometera Akar Kessell.
Suas pernas agora estavam completamente entorpecidas, mas ele as manteve em movimento, praticamente obrigado a forçar seus reflexos automáticos.
Mas, então, ele escorregou.

Os ferozes guerreiros de Wulfgar foram os primeiros a colidir com a linha de goblins. Eles retalharam e empurraram para trás a primeira fileira de monstros. Nem goblins nem ores ousaram resistir ao poderoso rei, mas, em meio à confusão apinhada da luta, poucos conseguiram sair do caminho dele. Foram ao chão, um a um.
O medo quase paralisou os goblins, e sua ligeira hesitação foi a perdição dos primeiros grupos a encontrar os selvagens bárbaros.
No entanto, a derrocada do exército veio essencialmente de mais atrás. As tribos que não tinham se envolvido na luta começaram a reconsiderar a sabedoria de continuar com a campanha, pois viram que tinham obtido vantagem suficiente sobre os rivais de sua terra natal - enfraquecidos pelas pesadas baixas para expandir seus territórios na Espinha do Mundo. Pouco depois de iniciada a segunda irrupção de combate, a nuvem de poeira gerada pelo bater dos pés contra o solo mais uma vez se ergueu acima do Desfiladeiro do Vento Gélido à medida que dezenas de tribos de ores e goblins dirigiam-se para casa.
E foi devastador o efeito das deserções em massa nos goblins que não poderiam fugir tão facilmente. Mesmo o goblin mais obtuso compreendia que as chances de vitória de seu povo contra os obstinados defensores de Dez-Burgos estava no peso esmagador de sua superioridade numérica.
Ouviu-se repetidamente o ruído surdo dos golpes de Garra de Palas quando Wulfgar, arremetendo sozinho, abriu uma trilha de devastação diante dele. Até os homens de Dez-Burgos afastaram-se, assustados com sua força selvagem. Mas seu próprio povo olhava para ele com assombro e fazia o possível para seguir sua gloriosa liderança.
Wulfgar investiu contra um grupo de ores. Garra de Palas atingiu um deles em cheio, matou-o e derrubou os que estavam atrás dele. O golpe reverso de Wulfgar com o martelo produziu os mesmos resultados em seu outro flanco. Numa única arrancada, mais da metade do grupo de ores foi morta ou estava atordoada.
Os que sobraram não tinham o menor desejo de atacar o poderoso humano.
Glensather de Angraleste também investiu contra um grupo de goblins, esperando estimular sua gente com a mesma fúria de sua contraparte bárbara. Mas Glensather não era um gigante imponente como Wulfgar e não empunhava uma arma tão poderosa quanto Garra de Palas. Sua espada abateu o primeiro goblin que encontrou, depois reverteu o giro habilmente e derrubou um segundo. O representante saíra-se bem, mas faltou um elemento em seu ataque: o fator crítico que elevava Wulfgar acima de outros homens. Glensather matara dois goblins, mas não provocara em suas fileiras o caos de que precisava para continuar. Em vez de fugir, como fizeram diante de Wulfgar, os goblins remanescentes lançaram-se atrás dele.
Glensather mal aparecera ao lado do rei bárbaro quando a ponta cruel de uma lança enterrou-se em suas costas e atravessou-o, saindo-lhe pelo peito.
Testemunhando o medonho espetáculo, Wulfgar brandiu Garra de Palas sobre o representante e impeliu a cabeça do goblin que empunhava a lança contra o próprio peito. Glensather ouviu o martelo atingir o alvo atrás dele e até conseguiu sorrir em agradecimento antes de cair morto sobre a relva.
Os anões agiram de maneira bem diferente. Novamente em sua formação fechada e solidária, eles dizimaram fileiras de goblins simultaneamente. E os pescadores, lutando pelas vidas de suas mulheres e crianças, lutaram e morreram sem medo.
Em menos de uma hora, todos os grupos de goblins haviam sido esmagados e, meia hora mais tarde, os últimos monstros caíam mortos no campo manchado de sangue.

Drizzt deslizou junto com a onda branca de neve que caiu pela face da montanha. Rolou por terra, impotente, tentando preparar-se para o impacto sempre que via a ponta protuberante de um matacão em seu caminho. Ao se aproximar da base do topo coberto de neve, ele foi atirado longe e escapou do deslizamento, o que o fez rolar aos trambolhões por entre as rochas e matacões cinzentos, como se os picos orgulhosos e inconquistáveis da montanha o tivessem expulsado como a um hóspede indesejado.
Sua agilidade - e uma boa dose de pura sorte - o salvou. Quando finalmente conseguiu estacar e encontrar um pouso, ele descobriu que seus numerosos ferimentos eram superficiais, sendo os piores uma esfoladura no joelho, um nariz ensangüentado e um pulso torcido. Em retrospecto, Drizzt foi obrigado a considerar a pequena avalanche uma bênção, pois ele fizera rápido progresso montanha abaixo e nem mesmo tinha certeza de que, não fosse isso, teria conseguido escapar ao destino gélido de Kessell.
A batalha no sul recomeçara àquela altura. Ouvindo os sons do combate, Drizzt observou, curioso, os milhares de goblins que passavam pelo outro lado do vale dos anões, corriam e subiam o Desfiladeiro do Vento Gélido nas primeiras etapas de sua longa jornada para casa. Não havia como o drow ter certeza do que estava acontecendo, mesmo conhecendo a famosa covardia dos goblins.
Mas ele não pensou muito naquilo, pois a batalha já não era mais sua principal preocupação. Sua visão seguia uma trilha estreita até o monte de pedras negras e fragmentadas que fora Crishal-Tirith. Ele terminou de descer o Sepulcro de Kelvin e dirigiu-se à Via de Bremen e aos escombros.
Ele precisava descobrir se Régis e Guenhwyvar haviam escapado.

Vitória.
Pareceu um pequeno consolo a Cássio, Kemp e Jensin Brent quando eles passaram os olhos pelo campo marcado por cicatrizes e viram a carnificina a seu redor. Eram os únicos representantes a ter sobrevivido ao conflito; sete outros haviam sido abatidos.
- Vencemos - declarou Cássio sombriamente.
Ele assistiu, impotente, à morte de mais soldados, homens que haviam sofrido ferimentos fatais durante a batalha, mas recusaram-se a tombar e morrer antes do fim. Mais da metade de todos os homens de Dez-Burgos jazia morta, e muitos mais morreriam posteriormente, pois quase a metade dos ainda vivos havia se ferido gravemente. Quatro vilas haviam sido reduzidas a cinzas e uma outra fora saqueada e destruída pelos ocupantes goblins.
Eles pagaram um preço terrível pela vitória.
Os bárbaros também haviam sido dizimados. Jovens e inexperientes em sua maioria, eles lutaram com a tenacidade de sua raça e morreram aceitando seu destino como um final glorioso para a história de suas vidas.
Apenas os anões, disciplinados por muitas batalhas, haviam saído relativamente incólumes. Vários haviam sido mortos, alguns outros feridos, mas a maioria estava pronta para retomar a luta novamente se pudessem apenas encontrar mais goblins para despedaçar! Seu único grande lamento, porém, era que Bruenor estava desaparecido.
- Vão vocês até sua gente - Cássio disse aos colegas representantes. - Depois, retornem esta noite para o conselho. Kemp deve falar por todas as pessoas das quatro vilas do Maer Dualdon e Jensin Brent pela gente dos outros lagos.
- Temos muito a decidir e pouco tempo para fazê-lo - disse Jensin Brent. - O inverno está chegando rápido.
- Sobreviveremos! - declarou Kemp com sua característica rebeldia. Mas ele percebeu os olhares taciturnos que seus pares lhe lançavam e cedeu um pouco ao realismo dos mesmos. - Mas será uma luta encarniçada.
- Assim será para meu povo - disse uma outra voz. Os três representantes se voltaram para ver o gigante Wulfgar aparecer pomposamente, tendo ao fundo a cena poeirenta e surreal da carnificina. O bárbaro estava coberto de terra e salpicado com o sangue de seus inimigos, mas parecia um rei nobre em todos os pormenores. - Solicito um convite para seu conselho, Cássio. Nossos povos muito podem oferecer um ao outro nesta hora soturna.
Kemp grunhiu.
- Se precisarmos de burros de carga, compraremos bois.
Cássio lançou uma olhar perigoso para Kemp e voltou-se para seu inesperado aliado.
- Você pode, de fato, juntar-se ao conselho, Wulfgar, filho de Beornegar. Por seu auxílio neste dia, meu povo deve muito ao seu. Mais uma vez eu pergunto: por que vocês vieram?
Pela segunda vez naquele dia, Wulfgar ignorou os insultos de Kemp.
- Para saldar uma dívida - ele respondeu a Cássio. - E talvez para melhorar as vidas de nossos dois povos.
- Matando goblins? - perguntou Jensin Brent, pois desconfiava que o bárbaro tinha algo mais em mente.
- É um começo - respondeu Wulfgar. - No entanto, há muito mais coisas que podemos realizar. Meu povo conhece a tundra melhor até mesmo que os yetis. Entendemos as peculiaridades desta terra e sabemos como sobreviver. Seu povo se beneficiaria com nossa amizade, principalmente nos tempos difíceis que estão por vir.
- Ora! - bufou Kemp, mas Cássio o silenciou. O representante de Brin Shander estava intrigado com as possibilidades.
- E o que seu povo ganharia com essa união?
- Uma conexão - respondeu Wulfgar. - Um elo com um mundo de comodidades que jamais conhecemos. As tribos têm em suas mãos o tesouro de um dragão, mas ouro e jóias não proporcionam calor numa noite de inverno, nem comida quando a caça é parca. Seu povo também tem muito a reconstruir. Meu povo tem o dinheiro para ajudar na tarefa. Em troca, Dez-Burgos proporcionará a meu povo uma vida melhor.
Cássio e Jensin Brent aprovavam com gestos de cabeça enquanto Wulfgar apresentava seu plano.
- Finalmente, e talvez o mais importante - concluiu o bárbaro -, é fato que precisamos uns dos outros, ao menos por enquanto. Nossos dois povos foram enfraquecidos e estamos vulneráveis aos perigos desta terra. Juntos, a força que nos resta nos ajudará a vencer as dificuldades do inverno.
- Você me intriga e me surpreende - disse Cássio. - Venha ao conselho, então. Garanto pessoalmente que você será bem-vindo e vamos colocar em andamento um plano que beneficiará todos os que sobreviveram ao confronto com Akar Kessell!
Tão logo Cássio se virou, Wulfgar agarrou a camisa de Kemp com uma de suas mãos descomunais e, com facilidade, ergueu no ar o representante de Targos. Kemp esmurrou o antebraço musculoso, mas percebeu que não tinha a menor chance de romper o abraço de ferro do bárbaro.
Wulfgar lançou-lhe um olhar feroz e perigoso.
- Por enquanto - disse ele -, sou responsável por todo o meu povo. Portanto, desconsiderei seus insultos. Mas, quando chegar o dia em que eu não for mais rei, seria aconselhável que você não cruzasse mais meu caminho!
Com um movimento rápido do pulso, ele atirou o representante ao chão.
Kemp, intimidado demais no momento para se enfurecer ou ficar constrangido, permaneceu sentado onde caiu e não respondeu. Cássio e Brent cutucaram um ao outro e riram baixinho, cúmplices.
O divertimento só durou até verem a moça que se aproximava com o braço enfiado numa tipóia ensangüentada e o rosto e os cabelos castanho-avermelhados empastados com camadas de pó. Wulfgar também a viu e a visão dos ferimentos dela afligiu-o mais do que os seus próprios.
- Cattiebrie! - ele gritou e correu até ela. Ela o acalmou com uma palma estendida.
- Não estou muito ferida - ela estoicamente tranqüilizou Wulfgar, mas era evidente para o bárbaro que ela havia sido ferida gravemente. - Mas não quero nem pensar no que poderia ter me acontecido se Bruenor não tivesse aparecido!
- Você viu Bruenor?
- Nos túneis - Cattiebrie explicou. - Alguns ores descobriram como entrar. Talvez eu devesse ter desmoronado o túnel. Mas não eram muitos e dava para ouvir que os anões estavam se saindo bem no campo lá em cima. Bruenor desceu nesse momento, mas havia mais ores atrás dele. Uma viga de sustentação desabou; acho que Bruenor a cortou e havia muito pó e confusão.
- E Bruenor? - Wulfgar perguntou ansiosamente. Cattiebrie olhou para trás, para o outro lado do campo.
- Lá fora. Ele mandou chamar você.

Quando Drizzt finalmente chegou aos escombros de Crishal-Tirith, a batalha terminara. As imagens e os sons das horríveis seqüelas faziam vista em torno dele, mas seu objetivo continuava o mesmo. Ele subiu pelo lado da pilha de pedras fragmentadas.
Na verdade, o drow se achava um idiota por perseguir uma causa tão inútil. Mesmo se Régis e Guenhwyvar não tivessem deixado a torre, que esperança havia de encontrá-los?
Ele insistiu teimosamente, recusando-se a ceder à lógica inescapável que o censurava. Nesse ponto é que ele diferia de sua gente, isso é o que o expulsara, enfim, da escuridão ininterrupta de suas vastas cidades. Drizzt Do'Urden permitia-se sentir compaixão.
Ele subiu pelo lado do monte de escombros e começou a cavar em volta dos destroços com as mãos nuas. Os blocos maiores o impediram de se aprofundar mais na pilha, mas ele não se entregou, chegando a enfiar-se em fendas precariamente apertadas e instáveis. Usava pouco a mão esquerda queimada e logo a direita sangrava com as esfoladuras. Mas ele continuou, movendo-se primeiro ao redor da pilha, depois escalando-a.
Foi recompensado pela persistência e por suas emoções. Quando atingiu o topo das ruínas, ele sentiu uma aura familiar de poder mágico. Isso o guiou até uma pequena fenda entre duas pedras. Enfiou um braço por ela, tentativamente, esperando encontrar o objeto intacto, e tirou lá de dentro a pequena estatueta em forma de felino. Seus dedos tremiam ao examiná-la, em busca de danos. Mas nada encontrou: a magia no interior do objeto resistira ao peso das pedras.
Entretanto, os sentimentos do drow diante do achado eram confusos. Apesar de aliviado por Guenhwyvar ter aparentemente sobrevivido, a presença da estatueta revelava-lhe que Régis provavelmente não havia escapado para o campo. Seu coração esmoreceu. E esmoreceu ainda mais quando uma cintilação no interior daquela mesma fenda chamou-lhe a atenção. Enfiou ali o braço e tirou lá de dentro a corrente de ouro com o pingente de rubi, e seus temores se confirmaram.
- Um túmulo apropriado para você, meu corajoso amiguinho - ele disse melancolicamente, e decidiu naquele instante chamar a pilha de escombros de o Sepulcro de Régis. Não conseguia entender, porém, o que acontecera para separar o halfling de seu colar, pois não havia sangue nem qualquer outra coisa na corrente que indicasse que Régis o estivesse usando ao morrer.
- Guenhwyvar - chamou ele. - Venha até mim, minha sombra. - Ele sentiu as sensações familiares na estatueta ao colocá-la no chão. Em seguida, a névoa negra apareceu e transformou-se no grande felino, são e salvo e, de algum modo, recuperado pelas poucas horas que passara em seu próprio plano.
Drizzt moveu-se rapidamente em direção a sua companheira felina, mas deteve-se quando uma segunda névoa apareceu a uma pequena distância dali e começou a se solidificar.
Régis.
O halfling estava sentado, com os olhos fechados e a boca bem aberta, como se estivesse prestes a dar de uma enorme mordida em alguma iguaria invisível. Uma de suas mãos estava cerrada ao lado de suas bochechas ávidas e a outra aberta diante dele.
Quando ele abocanhou o ar, seus olhos abriram-se subitamente, surpresos.
- Drizzt! - gemeu ele. - Francamente, você devia avisar antes de me seqüestrar! Este gato perfeitamente maravilhoso conseguiu-me a mais suculenta das refeições!
Drizzt chacoalhou a cabeça e sorriu com um misto de alívio e incredulidade.
- Ah, esplêndido - gritou Régis. - Você encontrou minha jóia. Eu achei que a tivesse perdido. Por alguma razão ela não fez a travessia comigo e com o gato.
Drizzt devolveu-lhe o rubi. O gato era capaz de levar alguém em suas viagens através dos planos? Drizzt decidiu explorar essa faceta do poder de Guenhwyvar mais tarde.
Ele afagou o pescoço do gato, depois liberou-o para voltar a seu próprio mundo, onde o animal poderia se recuperar um pouco mais.
- Venha, Régis - disse ele sombriamente. - Vejamos onde podemos ser de alguma ajuda.
Regis deu de ombros, resignado, e levantou-se para seguir o drow. Quando galgaram o topo das ruínas e viram a carnificina espalhada diante deles, o halfling deu-se conta da enormidade da destruição. Suas pernas quase lhe faltaram, mas ele conseguiu, com alguma ajuda de seu ágil amigo, empreender a descida.
- Nós vencemos? - ele perguntou a Drizzt quando se aproximaram do nível do campo, sem saber com certeza se o povo de Dez-Burgos havia denominado o que via diante dele de vitória ou derrota.
- Nós sobrevivemos - corrigiu Drizzt.
Um grito elevou-se subitamente quando um grupo de pescadores, vendo os dois companheiros, precipitou-se aos berros na direção deles.
- Assassino do mago e destruidor da torre! - gritaram eles. Drizzt, sempre humilde, baixou os olhos.
- Salve Régis - continuaram os homens -, o herói de Dez-Burgos!
Drizzt lançou um olhar surpreso, mas divertido para o amigo. Régis simplesmente deu de ombros, impotente, como se ele fosse vítima do erro tanto quanto Drizzt.
Os homens pegaram o halfling e ergueram-no nos ombros.
- Carregaremos você com toda a glória até o conselho que está reunido na cidade! - alguém proclamou. - Você, acima de todos os outros, deve opinar quanto às decisões a serem tomadas! - Quase como uma reflexão tardia, o homem disse para Drizzt. - Você pode vir também, drow.
Drizzt declinou.
- Salve Régis - disse ele, com um sorriso espalhado no rosto. - Ah, amiguinho, você sempre tem a sorte de encontrar ouro na lama onde outros chafurdam!
Ele deu um tapinha nas costas do halfling e colocou-se de lado para deixar passar a procissão.
Régis olhou por sobre o ombro e girou os olhos nas órbitas como se estivesse meramente aproveitando a carona.
Mas Drizzt sabia que não era bem assim.
O divertimento do drow durou pouco.

Antes que tivesse sequer se afastado do ponto onde estava, dois anões o saudaram.
- Que bom que te encontramos, amigo elfo - disse um deles. O drow compreendeu imediatamente que eles traziam más novas.
- Bruenor? - ele perguntou. Os anões assentiram.
- Está à beira da morte, e mesmo agora pode ser que tenha morrido. Ele mandou te chamar.
Sem mais uma palavra, os anões conduziram Drizzt através do campo até uma pequena tenda que haviam armado perto das saídas de seus túneis e escoltaram-no ao entrar.
Lá dentro, as velas bruxuleavam suavemente. Além do único catre, encostado à parede em frente à entrada, encontravam-se Wulfgar e Cattiebrie, com as cabeças reverentemente abaixadas.
Bruenor jazia sobre o catre e tinha a cabeça e o peito envoltos em ataduras manchadas de sangue. Sua respiração era ruidosa e pouco profunda, como se cada alento fosse o último. Drizzt colocou-se solenemente ao lado dele, estoicamente determinado a conter as lágrimas atípicas que lhe marejavam os olhos cor de lavanda. Bruenor preferiria que ele se mostrasse forte.
- É... o elfo? - disse Bruenor, com voz entrecortada, quando viu a forma escura sobre ele.
- Estou aqui, meu mais caro amigo - respondeu Drizzt.
- Pra... me ver partir?
Drizzt não conseguiria sinceramente responder a uma pergunta tão franca.
- Partir? - Ele forçou o riso a sair da garganta apertada. - Você já passou por coisa pior! Não quero ouvir falar de morte. Quem, então, encontraria o Salão de Mitral?
- Ah, meu lar... - Bruenor voltou a se acalmar com a menção do nome e pareceu relaxar, quase como se sentisse que seus sonhos o ajudariam a completar a sombria jornada a sua frente. - 'cê vem comigo, então?
- É claro - concordou Drizzt. Ele olhou para Wulfgar e Cattiebrie em busca de apoio mas, perdidos em seu próprio pesar, eles ainda desviavam os olhos.
- Mas não agora, não, não - explicou Bruenor. - Não com o inverno tão próximo! -Tossiu. - Na primavera. Sim, na primavera.
Sua voz foi morrendo e os olhos se fecharam.
- Sim, meu amigo. - concordou Drizzt. - Na primavera. Levarei você para casa na primavera!
Os olhos de Bruenor reabriram-se de repente, e a turvação da morte foi removida por um resquício do antigo brilho. Um sorriso de contentamento espalhou-se pelo rosto do anão e Drizzt ficou feliz por ter sido capaz de consolar seu amigo agonizante.
O drow voltou a olhar para Wulfgar e Cattiebrie, e eles também sorriam. Um para o outro, Drizzt notou, curioso.
De repente, para surpresa e horror de Drizzt, Bruenor sentou-se e arrancou as ataduras.
- Aí está! - berrou ele, para divertimento dos demais na tenda. - 'cê prometeu e eu tenho testemunhas!
Drizzt, depois de quase cair com o choque inicial, lançou um olhar irritado para Wulfgar. O bárbaro e Cattiebrie esforçaram-se para reprimir o riso. Wulfgar deu de ombros e deixou escapar uma risadinha.
- Bruenor disse que me cortaria até chegar à altura de um anão se eu dissesse uma palavra!
- E ele teria feito isso mesmo! - acrescentou Cattiebrie. Os dois saíram apressadamente.
- Um conselho em Brin Shander - explicou Wulfgar precipitadamente. Fora da tenda, o riso dos dois irrompeu sem reservas.
- Maldito seja, Bruenor Martelo de Batalha! - disse o drow, carrancudo. Depois, incapaz de se conter, atirou os braços em volta do corpo atarracado do anão e o abraçou.
- Acabe logo com isso - gemeu Bruenor, aceitando o abraço. - Mas seja rápido. A gente tem um monte de trabalho pra fazer o inverno todo! A primavera vai chegar mais cedo do que 'cê tá pensando e no primeiro dia quente a gente sai pra procurar o Salão de Mitral!
- Onde quer que esteja - riu Drizzt, aliviado demais para se enfurecer com o truque.
- A gente consegue, drow! - gritou Bruenor. - A gente sempre consegue!

Epílogo

O povo de Dez-Burgos e seus aliados bárbaros acharam difícil o inverno que se seguiu à batalha mas, ao dividirem talentos e recursos, conseguiram sobreviver. Muitos conselhos foram realizados em todos aqueles longos meses, com Cássio, Jensin Brent e Kemp representando o povo de Dez-Burgos, e Wulfgar e Revjak falando pelas tribos bárbaras. A primeira tarefa era reconhecer oficialmente e justificar a aliança dos dois povos, apesar da oposição veemente de muita gente de ambos os lados.
As cidades intocadas pelo exército de Akar Kessell abarrotaram-se com refugiados durante o inverno brutal. A reconstrução começou com os primeiros sinais da primavera. Quando a recuperação da região já estava bem encaminhada - e depois do retorno da expedição bárbara que, seguindo as orientações de Wulfgar, trouxe o tesouro do dragão -, realizaram-se conselhos para dividir as vilas entre os sobreviventes. As relações entre os dois povos quase sucumbiu várias vezes e foram mantidas apenas pela presença imperiosa de Wulfgar e a calma constante de Cássio.
Quando tudo finalmente estava acertado, os bárbaros receberam as cidades de Bremen e Caer-Konig para reerguer, os desabrigados de Caer-Konig foram transferidos para a cidade reconstruída de Caer-Dineval e aos refugiados de Bremen que não desejavam viver entre os homens das tribos ofereceram-se casas na cidade recém-construída de Targos.
Foi uma situação difícil, na qual os inimigos tradicionais foram forçados a deixar de lado suas diferenças e viver lado a lado. Apesar de vitoriosos na batalha, os aldeões não podiam se considerar vencedores. Todos haviam sofrido perdas terríveis; ninguém havia saído daquilo tudo em melhores condições para a luta seguinte.
Exceto Régis.
O halfling oportunista foi premiado com o título de Primeiro Cidadão e a melhor casa de toda a Dez-Burgos por seu papel na batalha. Cássio prontamente entregou seu palácio ao "destruidor da torre". Régis aceitou a oferta do representante e todos os outros numerosos presentes que afluíram de cada parte, pois, embora não tivesse realmente merecido as honras a ele conferidas, justificava sua boa sorte considerando-se um parceiro do modesto drow. E já que Drizzt Do'Urden não tinha a menor vontade de vir a Brin Shander e receber os prêmios, Régis imaginou que era seu dever fazê-lo.
Esse era o mimado estilo de vida que o halfling havia sempre desejado. Ele realmente apreciava a riqueza excessiva e o luxo, embora mais tarde viesse a aprender que havia de fato um preço elevado a se pagar pela fama.

Drizzt e Bruenor haviam passado o inverno fazendo preparativos para sua busca pelo Salão de Mitral. O drow tinha a intenção de honrar sua palavra, apesar de ter sido enganado, porque a vida não mudara muito para ele após a batalha. Mesmo sendo, na verdade, o herói do conflito, ele ainda se via mal e mal tolerado entre a gente de Dez-Burgos. E os bárbaros, com a exceção de Wulfgar e Revjak, o evitavam abertamente e murmuravam orações de proteção para seus deuses toda vez que inadvertidamente cruzavam-lhe o caminho.
Mas o drow aceitava o isolamento com seu característico estoicismo.

- Na cidade, diz-se a meia-voz que você cedeu a Revjak seu lugar no conselho - disse Cattiebrie a Wulfgar numa de suas muitas visitas a Brin Shander.
Wulfgar assentiu.
- Ele é mais velho e mais sábio em muitos aspectos.
Cattiebrie prendeu Wulfgar sob o desconfortável escrutínio de seus olhos escuros. Ela sabia que havia outras razões para Wulfgar renunciar à coroa.
- Você quer ir com eles - ela declarou categoricamente.
- Devo isso ao drow - foi a única explicação de Wulfgar ao dar-lhe as costas, sem disposição para discutir com a moça irascível.
- Mais uma vez você se esquiva da pergunta - riu Cattiebrie. - Você não vai saldar dívida nenhuma! Você vai porque a estrada é sua escolha!
- O que é que você sabe dessa estrada? - grunhiu Wulfgar, contendo-se em virtude da observação dolorosamente precisa da moça. - O que é que você sabe sobre aventuras?
Os olhos de Cattiebrie cintilaram, e desarmaram Wulfgar.
- Eu sei - ela declarou categoricamente. - Qualquer dia em qualquer lugar é uma aventura. Isso você ainda não aprendeu. E, por isso, você persegue as estradas distantes, esperando satisfazer o desejo de emoção que arde em seu coração. Então vá, Wulfgar do Vale do Vento Gélido. Siga a senda de coração e seja feliz! Talvez, ao retornar, você entenda a emoção de simplesmente estar vivo.
Ela o beijou no rosto e saltitou em direção à porta. Wulfgar, agradavelmente surpreso com o beijo, gritou-lhe:
- Talvez, então, nossas discussões sejam mais aprazíveis!
- Mas não tão interessantes - foi a última resposta dela.

Numa bela manhã de início de primavera, a hora de partir chegou enfim para Drizzt e Bruenor. Cattiebrie ajudou-os a preparar suas mochilas abarrotadas.
- Quando a gente tiver limpado o lugar, eu te levo lá! - Bruenor disse à moça novamente. - Por certo que seus olhos vão brilhar quando 'cê ver os rios de prata do Salão de Mitral!
Cattiebrie sorriu, indulgente.
- Tem certeza que 'cê vai ficar bem? - perguntou Bruenor, agora mais sério. Sabia que ela ficaria bem, mas seu coração transbordava de preocupação paternal.
O sorriso de Cattiebrie alargou-se. Eles já tinham discutido aquilo centenas de vezes ao longo do inverno. Cattiebrie estava feliz com a partida do anão, mesmo sabendo que sentiria imensa saudade dele, pois estava claro que Bruenor nunca ficaria realmente contente até que tivesse ao menos tentado encontrar seu antigo lar.
E ela sabia, melhor que ninguém, que o anão estaria bem acompanhado.
Bruenor ficou satisfeito. Chegara a hora de partir.
Os companheiros disseram adeus aos anões e partiram para Brin Shander a fim de se despedirem de seus dois amigos mais chegados.
Chegaram à casa de Régis pouco depois, naquela mesma manhã, e encontraram Wulfgar sentado nos degraus esperando por eles, tendo Garra de Palas e a mochila a seu lado.
Drizzt olhou com desconfiança os pertences do bárbaro enquanto se aproximavam, meio que adivinhando as intenções de Wulfgar.
- Bons olhos o vejam, Rei Wulfgar - disse ele. - Está de partida para Brenen, ou talvez Caer-Konig, para supervisionar o trabalho de sua gente?
Wulfgar chacoalhou a cabeça.
- Não sou rei - ele respondeu. - É melhor deixar os conselhos e os discursos para os mais velhos; já tive mais do que podia tolerar. Revjak fala pelos homens da tundra agora.
- E, então, o que 'cê vai fazer? - perguntou Bruenor.
- Vou com vocês - replicou Wulfgar. - Para saldar minha última dívida.
- 'cê não me deve nada! - declarou Bruenor.
- A você já paguei - concordou Wulfgar. - E paguei tudo o que devo a Dez-Burgos e também a meu próprio povo. Mas há uma dívida de que ainda não me livrei. - Ele se virou para encarar Drizzt diretamente. - A você, meu amigo elfo.
Drizzt não sabia o que responder. Ele deu um tapinha no ombro do homem descomunal e sorriu afetuosamente.

- Vem com a gente, Ronca-bucho - disse Bruenor, depois de terminado um excelente almoço no palácio. - Quatro aventureiros na vasta planície. Vai te fazer algum bem e tirar um pouco dessa sua barriga!
Régis levou ambas as mãos ao ventre amplo e o sacudiu.
- Eu gosto de minha barriga e tenho a intenção de mantê-la, obrigado. Posso até mesmo aumentá-la um pouquinho! De qualquer maneira, eu não consigo entender por que vocês insistem em partir nessa busca - disse ele, agora com mais seriedade. Ele passara muitas horas durante o inverno tentando convencer Bruenor e Drizzt a desistir daquilo. - Temos uma vida fácil aqui; por que vocês iam querer partir?
- Há mais coisas na vida do que boa comida e almofadas macias, amiguinho - disse Wulfgar. - O desejo pela aventura arde em nosso sangue. Com paz na região, Dez-Burgos não pode oferecer a emoção do perigo ou a satisfação da vitória.
Drizzt e Bruenor assentiram com a cabeça, embora Régis chacoalhasse a sua.
- E 'cê chama este lugar deplorável de rico? - riu Bruenor, estalando os dedos hirsutos. - Quando eu voltar do Salão de Mitral, vou te construir uma casa duas vezes maior e debruada de pedras preciosas como 'cê nunca viu antes!
Mas Régis estava certo de que havia testemunhado sua última aventura. Terminada a refeição, ele acompanhou seus amigos até a porta.
- Se vocês conseguirem voltar...
- Sua casa será nossa primeira parada - assegurou Drizzt. Encontraram Kemp de Targos ao sair. Ele estava do outro lado da rua, bem em frente à soleira de Régis, aparentemente à procura deles.
- Ele está me esperando - explicou Wulfgar, sorrindo diante da idéia de que Kemp não pouparia esforços para se livrar dele.
- Adeus, meu bom representante - gritou Wulfgar, com uma reverência. Pyayne de crabug ahm rinedere be-yogt iglo kes gron.
Kemp lançou um gesto obsceno para o bárbaro e foi embora, indignado. Régis quase se dobrou de tanto rir.
Drizzt reconheceu as palavras, mas ficou confuso com o motivo pelo qual Wulfgar as dissera para Kemp.
- Uma vez você me disse que essas palavras eram um antigo grito de guerra da tundra - ele comentou com o bárbaro. - Por que você as ofereceria ao homem que mais despreza?
Wulfgar tartamudeou, em busca de uma explicação que o tirasse daquele aperto, mas Régis respondeu por ele.
- Grito de guerra? - exclamou o halfling - Isso é uma antiga maldição das matronas bárbaras, geralmente reservada aos velhos maridos adúlteros. - Os olhos cor de lavanda do drow estreitaram-se, concentrados no bárbaro, enquanto Régis prosseguia. - Significa: "Que as pulgas de mil renas se aninhem em sua genitália."
Bruenor disparou a rir, logo acompanhado por Wulfgar. Drizzt não pôde evitar fazer o mesmo.
- Vamos, o dia é longo - disse o drow. - Vamos dar início a esta aventura. Vai ser interessante!
- Aonde vocês vão? - Régis perguntou, tristonho. Uma pequena parte do halfling, na verdade, invejava os amigos; ele tinha de admitir que sentiria a falta deles.
- Para Bremen, primeiro - replicou Drizzt. - Vamos completar lá nossas provisões e partir para sudoeste.
- Luskan?
- Talvez, se os fados assim o quiserem.
- Boa viagem - ofereceu Régis assim que os três companheiros puseram-se a caminho sem mais delongas.
Régis observou-os desaparecer, imaginando como ele viera a escolher amigos tão tolos. Desfez-se da idéia com um encolher de ombros e voltou a seu palácio: sobrara bastante comida do almoço.
Foi detido antes que atravessasse a porta.
- Primeiro Cidadão! - veio um grito da rua. A voz pertencia a um dono de armazém da seção sul da cidade, onde as caravanas de mercadores carregavam e descarregavam. Régis esperou que ele se aproximasse.
- Um homem, Primeiro Cidadão - disse o dono do armazém, curvando-se como quem se desculpa por perturbar uma pessoa tão importante. - Perguntando pelo senhor. Ele alega ser um representante da Sociedade dos Heróis de Luskan, enviado para solicitar sua presença na próxima reunião.
Ele disse que pagaria bem.
- O nome dele?
- Ele não disse, só me deu isto! - O dono do armazém abriu uma pequena bolsa de ouro.
Era tudo o que Régis precisava ver. Partiu imediatamente para encontrar o homem de Luskan.
Mais uma vez, foi pura sorte o que salvou a vida do halfling, pois ele viu o estranho antes que este o visse. Apesar de já não ver aquele homem havia anos, Régis o reconheceu imediatamente pelo cabo do punhal incrustado com uma esmeralda que se projetava da bainha em seu quadril. Régis muitas vezes cogitara roubar aquela bela arma, mas mesmo sua imprudência tinha limites. O punhal pertencia a Artemis Entreri.
O principal assassino do Paxá Pük.

Os três companheiros deixaram Bremen antes do amanhecer do dia seguinte. Ansiosos para dar início à aventura, eles se apressaram e já estavam bem longe na tundra quando os primeiros raios do sol espiaram por sobre o horizonte oriental, logo atrás deles.
Ainda assim, Bruenor não ficou surpreso ao notar Régis, que se esforçava para alcançá-los através da planície desabitada.
- Se meteu em encrenca de novo ou então eu sou um gnomo de barba - o anão, rindo, comentou com Wulfgar e Drizzt.
- Bons olhos o vejam - disse Drizzt. - Mas nós já não nos despedimos?
- Decidi que não podia deixar Bruenor se meter em encrenca sem que eu estivesse por perto para salvá-lo - bufou Régis, tentando recuperar o fôlego.
- 'cê vem com a gente? - grunhiu Bruenor. - 'cê não trouxe provisões, seu halfling estúpido!
- Eu não como muito - protestou Régis, e um quê de desespero insinuava-se em sua voz.
- Ora! 'cê come mais que nós três juntos! Mas tudo bem, a gente te deixa vir junto de qualquer jeito.
O rosto do halfling iluminou-se visivelmente, e Drizzt desconfiou que o palpite do anão sobre a tal encrenca não estava muito longe da verdade.
- Nós quatro, então! - proclamou Wulfgar. - Um para representar cada uma das quatro raças comuns: Bruenor pelos anões, Régis pelos halflings, Drizzt Do'Urden pelos elfos e eu pelos humanos. Uma trupe apropriada!
- Duvido muito que os elfos escolheriam um drow para representá-los - observou Drizzt.
Bruenor bufou: - 'cê acha que os halflings iam escolher Ronca-bucho como o campeão deles?
- Você é louco, anão - retorquiu Régis.
Bruenor deixou cair o escudo, contornou Wulfgar com um salto e colocou-se em guarda diante de Régis. Seu rosto contorceu-se num arremedo de fúria ao agarrar Régis pelos ombros e erguê-lo em pleno ar.
- 'ce tá certo, Ronca-bucho! - Bruenor gritou desvairadamente. - Sou louco mesmo! E nunca contrarie alguém mais louco que você!
Drizzt e Wulfgar olharam um para o outro e trocaram sorrisos conhecedores.
Seria realmente uma aventura interessante.
E, com o sol nascente em suas costas e as sombras alongando-se diante deles, seguiram seu caminho.
Para encontrar o Salão de Mitral. 19
Más Novas

Drizzt atravessou sem ruído os túneis e passou pelos corpos dos gigantes mortos, afrouxando o passo apenas para apanhar mais um naco de carneiro assado da grande mesa. Passou pelas vigas de sustentação e desceu pelo corredor sombrio, moderando sua ansiedade com bom senso. Se o tesouro dos gigantes estivesse escondido ali embaixo, a câmara que o abrigava estaria atrás de uma porta oculta ou haveria algum monstro - embora outro gigante fosse improvável, já que teria se unido à luta.
O túnel era bem comprido, corria direto para o norte, e Drizzt calculou que caminhava agora sob a grande massa do Sepulcro de Kelvin. Deixara para trás a última tocha, mas foi com alegria que recebeu a escuridão. Ele passara a maior parte de sua vida percorrendo túneis no mundo subterrâneo e sem luz de seu povo, e seus grandes olhos guiavam-no na escuridão absoluta com mais precisão do que nas regiões iluminadas.
O corredor terminava abruptamente numa porta ferrada e trancada, e a tranca de metal era mantida em seu lugar por uma grande corrente e um cadeado. Drizzt sentiu uma pontada de culpa por deixar Wulfgar para trás. O drow tinha duas fraquezas: antes de tudo, a emoção da batalha, mas logo em seguida vinha a comichão por descobrir o butim dos inimigos derrotados. Ouro e pedras preciosas não seduziam Drizzt; ele não se importava com riquezas e raramente guardava os tesouros que conquistara. Tratava-se simplesmente do arrebatamento de vê-los pela primeira vez, da emoção de examiná-los minuciosamente e, talvez, descobrir algum incrível artefato esquecido havia eras, ou, quem sabe, o grimório de um antigo e poderoso mago.
O sentimento de culpa o abandonou assim que ele tirou de sua escarcela uma pequena gazua. Ele nunca recebera treinamento formal nas artes ladinas, mas era tão ágil e coordenado quanto qualquer arrombador experiente. Com seus dedos sensíveis e a audição aguda, a fechadura tosca não lhe oferecia particularmente um desafio; caiu ao chão, aberta, numa questão de segundos. Drizzt atentou para os sons por trás da porta. Não ouvindo nada, ergueu gentilmente a grande tranca e a colocou de lado. Pondo-se uma última vez à escuta, ele desembainhou uma das cimitarras, prendeu a respiração de pura expectativa e empurrou a porta.
Expeliu o ar num suspiro decepcionado. A sala logo à frente brilhava com a luz minguante de duas tochas. Era pequena e estava vazia, exceto por um grande espelho de aro metálico que se encontrava em seu centro. Drizzt esquivou-se do caminho do espelho, conhecedor de algumas estranhas propriedades mágicas que esses objetos sabidamente exibiam, e aproximou-se para examiná-lo mais de perto.
Era quase da altura de um homem, mas um suporte de ferro intrincadamente trabalhado o mantinha ao nível dos olhos. Por estar revestido de prata e numa câmara tão remota, Drizzt começou a acreditar que não se tratava de um espelho comum. No entanto, uma inspeção minuciosa não revelou runas nem sinais arcanos de qualquer tipo que sugerissem suas propriedades.
Incapaz de descobrir qualquer coisa de incomum sobre a peça, Drizzt descuidadamente colocou-se em frente ao espelho. De repente, uma bruma rosada começou a remoinhar dentro do espelho, parecendo um espaço tridimensional aprisionado no interior da planura do vidro. Drizzt saltou de lado, mais curioso que amedrontado, e observou o desenrolar do espetáculo.
Lufadas agitaram a bruma cada vez mais densa, como se alimentada por um fogo oculto. Depois, o centro espalhou-se para as bordas e abriu-se na imagem nítida do rosto de um homem, uma fisionomia encovada e macilenta, pintada segundo a tradição de uma das cidades sulistas.
- Por que veio me incomodar? - perguntou o homem diante da sala vazia em frente ao espelho.
Drizzt deu outro passo para o lado, distanciando-se ainda mais da linha de visão da aparição. Cogitou confrontar o misterioso mago, mas pensou nos amigos e calculou que havia muita coisa em jogo para ele se arriscar de maneira tão irresponsável.
- Apresente-se, Sorrisão! - ordenou a imagem. O rosto aguardou vários segundos, sorrindo impacientemente, com um ar escarninho e cada vez mais tenso. - Quando eu descobrir qual de vocês idiotas inadvertidamente me invocou, hei de transformá-lo num coelho e jogá-lo numa arena de lobos! - gritou a imagem, furiosa. O espelho cintilou repentinamente e voltou ao normal.
Drizzt coçou o queixo e imaginou se havia algo mais que ele pudesse descobrir por ali. Decidiu que os riscos eram simplesmente grandes demais naquele momento.

Quando Drizzt percorreu de volta o covil, encontrou Wulfgar sentado ao lado de Guenhwyvar na passagem principal, não muito longe das portas da frente, fechadas e trancadas. O bárbaro acariciava o pescoço e os ombros musculosos do gato.
- Vejo que Guenhwyvar ganhou sua amizade - disse Drizzt ao se aproximar.
Wulfgar sorriu.
- Uma excelente aliada - disse ele, sacudindo de brincadeira o animal. - E uma verdadeira guerreira! - Ele começou a se levantar, mas foi atirado violentamente de volta ao chão.
Uma explosão abalou o covil quando um projétil de balista chocou-se contra as portas pesadas, estilhaçou-lhes a tranca de madeira e destruiu-as. Uma das portas dividiu-se perfeitamente em duas; o gonzo superior da outra foi arrancado, deixando a porta pendurada canhestramente pelo retorcido gonzo inferior.
Drizzt desembainhou a cimitarra e colocou-se protetoramente sobre Wulfgar enquanto o bárbaro tentava recobrar o equilíbrio.
Abruptamente, um guerreiro de barba saltou para a porta pendente, trazendo num dos braços o escudo circular com o emblema de uma caneca de cerveja espumante e, no outro, um machado de guerra chanfrado e manchado de sangue.
- Saiam e venham brincar, gigantes! - gritou Bruenor, batendo forte o machado contra o escudo, como se seu clã já não tivesse feito barulho suficiente para acordar o covil!
- Calma, seu anão louco - riu Drizzt. - Os verbeeg estão todos mortos.
Bruenor avistou os amigos e saltou para o túnel, logo seguido pelo resto do clã afoito.
- Todos mortos! - gritou o anão. - Maldito seja, elfo! Eu tinha certeza que 'cê ia dar um jeito de brincar sozinho!
- E quanto aos reforços? - perguntou Wulfgar. Bruenor casquinou maliciosamente.
- Ô, garoto, um pouco de fé, sim? Foram empilhados numa vala comum, mas eu acho que não mereciam ser enterrados! Só tem um vivo: um ore miserável que vai continuar respirando só até dar com a maldita língua nos dentes!
Depois do episódio com o espelho, não era pequeno o interesse de Drizzt em interrogar o ore.
- Você já o inquiriu? - perguntou a Bruenor.
- Ah, ficou calado até agora - replicou o anão. - Mas eu tenho uma coisinha ou outra que deve fazer ele abrir o bico!
Drizzt tinha uma idéia melhor. Os ores não eram criaturas leais mas, sob o encantamento de um mago, as técnicas de tortura geralmente de pouco adiantavam. Eles precisavam de algo para neutralizar a magia, e Drizzt fazia idéia do que poderia funcionar.
- Vá buscar Régis - ele instruiu Bruenor. - O halfling pode fazer o ore nos contar tudo o que quisermos saber.
- Torturar ele seria mais divertido - lamentou-se Bruenor, mas ele também compreendia a sabedoria da sugestão do drow. Ele estava mais do que simplesmente curioso - e preocupado - com tantos gigantes trabalhando em conjunto. E agora com ores ao lado deles...

Drizzt e Wulfgar sentaram-se no canto mais distante da pequena câmara, o mais longe possível de Bruenor e dos outros dois anões. Um dos soldados de Bruenor retornara naquela mesma noite de Bosquesó, trazendo Régis, e, embora estivessem todos exaustos da marcha e do combate, estavam ansiosos demais para dormir, aguardando novas informações. Régis e o ore capturado haviam passado à sala contígua para uma conversa particular assim que o halfling conseguira controlar a vontade do prisioneiro com seu pingente de rubi.
Bruenor ocupava-se em preparar uma nova receita - ensopado de miolos de gigante - e fervia os deploráveis e mal-cheirosos ingredientes diretamente no crânio oco de um verbeeg.
- Pensem um pouco! - argumentara ele, em resposta às expressões de horror e asco de Drizzt e Wulfgar. - O ganso de quintal é mais gostoso do que o selvagem porque não usa os músculos. O mesmo deve valer pros miolos de um gigante!
Drizzt e Wulfgar não tinham a mesma opinião. Entretanto, eles não queriam deixar a área e perder uma palavra sequer do que Régis teria a dizer, de modo que se acotovelavam no canto mais distante da sala e levavam adiante uma conversa particular.
Bruenor se esforçava para ouvi-los, pois estavam falando de algo que muito lhe interessava.
- Metade daquele último na cozinha - insistia Wulfgar - e metade para o gato.
- E você só leva a metade daquele lá no precipício - retorquiu Drizzt.
- De acordo - disse Wulfgar. - E dividimos ao meio aquele no salão e Sorrisão?
Drizzt assentiu.
Então, somadas todas as metades e as vítimas divididas, são dez e meio para mim e dez e meio para você.
- E quatro para o gato - acrescentou Wulfgar.
- Quatro para o gato - repetiu Drizzt. - Lutou bem, meu amigo. Você se saiu bem até agora, mas tenho a impressão de que teremos muito mais combates pela frente e, no final, valerá minha maior experiência!
- Você está ficando velho, meu bom elfo - caçoou Wulfgar, recostando-se novamente na parede e exibindo a brancura de um sorriso largo e confiante por entre a barba loura. - Veremos. Veremos.
Bruenor também sorria, tanto diante da competição saudável entre seus amigos quanto do persistente orgulho que sentia pelo jovem bárbaro. Wulfgar estava se saindo bem já que conseguira acompanhar um veterano habilidoso como Drizzt Do'Urden.
Régis emergiu da sala e a mortalha cinzenta em seu rosto geralmente jovial arrefeceu o clima de despreocupação.
- Estamos encrencados - disse o halfling sombriamente.
- Onde está o ore? - perguntou Bruenor enquanto tirava o machado do cinto, interpretando erroneamente as palavras do halfling.
- Lá dentro. Ele está bem - replicou Régis.
O ore contara entusiasticamente a seu mais novo amigo tudo sobre os planos de Akar Kessell de invadir Dez-Burgos e o tamanho das forças que se concentravam. Régis tremia visivelmente ao dar aos amigos a notícia.
- Todas as tribos de ores e goblins e os clãs de verbeeg desta região da Espinha do Mundo estão se reunindo sob o comando de um feiticeiro chamado Akar Kessell - começou o halfling. Drizzt e Wulfgar entreolharam-se, reconhecendo o nome de Kessell. O bárbaro pensara que Akar Kessell fosse um enorme gigante do gelo quando o verbeeg o mencionara, mas foram bem diferentes as suspeitas de Drizzt, principalmente depois do incidente com o espelho.
- Eles planejam atacar Dez-Burgos - continuou Régis. - E até mesmo os bárbaros, comandados por um poderoso líder de um olho só, juntaram-se a suas fileiras!
Wulfgar corou de fúria e vergonha. Seu povo lutando ao lado de ores! Ele conhecia o líder de que falara Régis, pois Wulfgar pertencia à Tribo do Alce e chegara até mesmo a carregar o estandarte da tribo como arauto de Heafstaag. Drizzt também se lembrava dolorosamente do rei caolho. Pousou a mão consoladora sobre o ombro de Wulfgar.
- Vão até Brin Shander - disse o drow a Bruenor e Régis. - O povo precisa se preparar.
Régis estremeceu diante da inutilidade daquilo tudo. Se a estimativa do ore quanto ao tamanho do exército que se congregava estivesse correta, nem toda a Dez-Burgos reunida resistiria ao assalto. O halfling deixou cair a cabeça e, não desejando alarmar os amigos mais do que o necessário, silenciosamente deu forma às palavras:
- Temos de partir!

Apesar de Bruenor e Régis conseguirem convencer Cássio quanto à urgência e à importância das notícias que traziam, foram necessários vários dias para reunir em conselho os outros representantes. Era o auge da estação das cabeçudas, o fim do verão, e todos estavam envolvidos num último esforço para apanhar uma boa safra de peixe para a última caravana mercante com destino a Luskan. Os representantes das nove aldeias pesqueiras compreendiam suas responsabilidades para com as respectivas comunidades, mas relutavam em abandonar os lagos mesmo que um único dia.
E, assim, com a exceção de Cássio de Brin Shander, Muldoon, o novo representante de Bosquesó, que venerava Régis como o herói de sua vila, Glensather de Angraleste, a comunidade sempre disposta a participar pelo bem de Dez-Burgos, e Agorwal de Termalaine, que devotava feroz lealdade a Bruenor, a disposição de ânimo do conselho não era muito receptiva.
Kemp, ainda ressentido com Bruenor por causa do incidente envolvendo Drizzt logo depois da Batalha de Brin Shander, mostrou-se particularmente desagregador. Antes que Cássio sequer tivesse a oportunidade de apresentar as Formalidades de Ordem, o mal-humorado representante de Targos saltou de seu assento e esmurrou a mesa.
- Danem-se as leituras formais e vamos logo com isto! - grunhiu Kemp. - Com que direito você nos manda vir dos lagos, Cássio? Enquanto nos sentamos em volta desta mesa, os mercadores em Luskan estão se preparando para a viagem!
- Temos notícia de uma invasão, Representante Kemp - respondeu Cássio, com calma, compreendendo a fúria do pescador. - Eu não os teria convocado a essa altura da estação, a nenhum de vocês, se não fosse urgente.
- Então, os boatos são verdadeiros - escarneceu Kemp. - Uma invasão, você diz? Ora! Sei o que há por trás deste arremedo de conselho!
Voltou-se para Agorwal. A disputa entre Targos e Termalaine havia se intensificado nas últimas semanas, apesar dos esforços de Cássio para dissipá-la e trazer os princípios das cidades rivais à mesa de negociação. Agorwal concordara com uma reunião, mas Kemp fora resolutamente contrário. E, assim, com as suspeitas no auge, a escolha do momento daquele conselho de emergência não poderia ter sido pior.
- É uma tentativa realmente lamentável! - berrou Kemp. Olhou ao redor para os colegas representantes. - Um esforço lamentável de Agorwal e seus ardilosos partidários para forçar um acordo favorável a Termalaine em sua disputa com Targos!
Incitado pela aura de suspeita infundida por Kemp, Schermont, o novo representante de Caer-Konig, apontou um dedo acusador para Jensin Brent de Caer-Dineval.
- Qual é seu papel nesta traição? - disse ele com veemência ao encarniçado rival. Schermont chegara ao cargo depois da morte do primeiro representante de Caer-Konig nas águas do Lac Dinneshir, em batalha contra um barco de Dineval. Dorim Liugar havia sido amigo e líder de Schermont, e as políticas do novo representante em relação a Caer-Dineval eram ainda mais despóticas que as de seu predecessor.
Régis e Bruenor permaneceram recostados em seus assentos, silenciosos, em impotente consternação, ao longo de toda essa disputa verbal inicial. Por fim, Cássio bateu violentamente o martelo, partindo-lhe o cabo ao meio, e silenciou os demais tempo suficiente para dizer o que queria.
- Alguns instantes de silêncio! - ordenou. - Contenham suas palavras venenosas e dêem ouvidos ao portador de más novas! - Os outros se deixaram cair de volta aos assentos e permaneceram silenciosos, mas Cássio temia que o dano já tivesse sido feito.
Ele cedeu a vez a Régis.
Sinceramente aterrorizado pelo que arrancara do prisioneiro ore, Régis relatou apaixonadamente a batalha vencida por seus amigos no covil dos verbeeg e sobre a relva de Valvertente.
- E Bruenor capturou um dos ores que escoltavam os gigantes - disse ele enfaticamente. Alguns representantes inspiraram profundamente diante da idéia de tais criaturas andando em bando, mas Kemp e alguns dos outros, sempre desconfiados das ameaças mais imediatas representadas por seus rivais, e já decididos quanto ao verdadeiro propósito da reunião, ainda não haviam se convencido.
- O ore nos falou - continuou Régis sombriamente - da vinda de um poderoso mago, Akar Kessell, e de sua vasta hoste de goblins e gigantes! Têm a intenção de conquistar Dez-Burgos! - Ele imaginou que sua dramaticidade se mostraria eficaz.
Mas Kemp estava ultrajado:
- Por causa das palavras de um ore, Cássio? Você nos convocou, tirou-nos dos lagos nesta época crítica por causa das ameaças de um maldito ore?
- A história do halfling não é incomum - acrescentou Schermont. - Todos já vimos um goblin capturado falar o que lhe der na telha para salvar sua cabeça sem valor.
- Ou talvez você tivesse outros motivos - silvou Kemp, mais uma vez fitando Agorwal.
Cássio, embora realmente acreditasse nas más novas, recostou-se em sua cadeira e nada disse. Com toda aquela tensão nos lagos e a última feira comercial de uma estação de pesca particularmente infrutífera se aproximando rapidamente, ele desconfiara que isso ocorreria. Olhou resignadamente para Bruenor e Régis e deu de ombros quando mais uma vez o conselho degenerou-se numa disputa de gritos.
Em meio à comoção que se seguiu, Régis retirou o pingente de rubi de sob o colete e cutucou Bruenor. Eles olharam para a coisa e um para o outro, decepcionados; haviam alimentado a esperança de que a pedra mágica não se fizesse necessária.
Régis golpeou com seu martelo, requisitando a vez, que lhe foi concedida por Cássio. Em seguida, como ele fizera cinco anos atrás, saltou sobre a mesa e caminhou em direção a seu principal antagonista.
Mas, dessa vez, o resultado não foi o que Régis havia esperado. Kemp passara muitas horas nos últimos cinco anos refletindo sobre aquele conselho antes da invasão bárbara. O representante ficara contente com o resultado final de toda aquela situação e, na verdade, percebera que ele e toda a Dez-Burgos estavam em dívida com o halfling por tê-los feito dar atenção ao aviso. No entanto, incomodava Kemp, e não pouco, que sua posição inicial tivesse sido abalada tão facilmente. Ele era um tipo ruidoso cujo primeiro amor, acima mesmo da pesca, era a batalha; mas tinha uma mente perspicaz e estava sempre alerta ao perigo. Ele observara Régis várias vezes nos últimos anos e ouvira atentamente as histórias sobre a habilidade do halfling na arte da persuasão. Enquanto Régis se aproximava, o corpulento representante desviou os olhos.
- Fora, trapaceiro! - grunhiu ele, afastando defensivamente a cadeira da mesa com um empurrão. - Você parece ter uma estranha maneira de convencer as pessoas, mas não vou cair em seu encanto desta vez! - Ele se dirigiu aos outros representantes. - Cuidado com o halfling! Ele possui algum tipo de mágica, podem estar certos!
Kemp sabia que não teria como provar suas alegações, mas também percebeu que não precisaria fazê-lo. Régis olhou ao redor, aturdido e incapaz sequer de responder às acusações do representante. Até mesmo Agorwal, embora o representante de Termalaine discretamente tentasse ocultar o fato, não mais olharia Régis diretamente nos olhos.
- Sente-se, trapaceiro! - escarneceu Kemp. - Sua mágica de nada serve agora que percebemos suas intenções!
Bruenor, calado até então, de repente deu um salto, com o rosto deformado pela fúria.
- Isto também é um truque, canalha de Targos? - desafiou o anão. Ele tirou uma sacola do cinto e fez rolar o conteúdo da mesma - uma cabeça decapitada de verbeeg - mesa abaixo, em direção a Kemp. Vários representantes pularam para trás, horrorizados, mas Kemp permaneceu inabalado.
- Lidamos com gigantes desgarrados muitas vezes antes - replicou fria mente o representante.
- Desgarrados? - repetiu Bruenor, incrédulo. - Quarenta destes monstros foram abatidos, além de ores e ogros!
- Um bando de passagem - explicou Kemp, com tranqüilidade e teimosia. - E estão todos mortos, você mesmo o disse. Por que, então, isto se torna um assunto para o conselho? Se é louvor o que deseja, poderoso anão, então há de tê-lo! - O veneno escorria de sua voz e foi com profundo prazer que ele observou o rosto cada vez mais vermelho de Bruenor. - Talvez Cássio possa fazer um discurso especial em sua honra diante de todo o povo de Dez-Burgos.
Bruenor esmurrou a mesa e fitou todos os homens ao redor dele em franca ameaça a qualquer um que desse continuidade aos insultos de Kemp.
- A gente veio até aqui pra ajudar vocês e salvar seus lares e seu povo! - berrou ele. - Pode ser que 'cês acreditem na gente e façam alguma coisa pra sobreviver. Ou pode ser que 'cês dêem ouvidos às palavras deste canalha de Targos e não façam nada. De um jeito ou de outro, já estou cheio de vocês! Façam o que quiserem e que seus deuses os protejam!
Virou-se e deixou a sala.
O tom soturno de Bruenor fez com que muitos representantes percebessem que a ameaça era simplesmente grave demais para ser desconsiderada como o engodo de um prisioneiro desesperado, ou mesmo como mais um plano traiçoeiro de Cássio e alguns conspiradores. Kemp, porém, orgulhoso e arrogante, e certo de que Agorwal e seus amigos não-humanos, o halfling e o anão, estavam usando a fachada de uma invasão para ganhar alguma vantagem sobre a cidade superior de Targos, não arredaria pé. Abaixo apenas de Cássio em toda a Dez-Burgos, a opinião de Kemp tinha grande influência, principalmente para o povo de Caer-Konig e Caer-Dineval que, à luz da inabalável neutralidade de Brin Shander em relação a sua disputa, buscava o favor de Targos.
Um número suficiente de representantes continuava desconfiado de seus rivais e disposto a aceitar a explicação de Kemp para impedir que Cássio levasse o conselho a uma ação decisiva. As linhas foram logo claramente traçadas.
Régis assistiu ao espetáculo enquanto os lados opositores atacavam-se mutuamente, mas a própria credibilidade do halfling fora destruída e ele já não teria qualquer impacto sobre o resto da reunião. No final, pouco foi decidido. O máximo que Agorwal, Glensather e Muldoon conseguiram arrancar de Cássio foi uma declaração pública de que "um alerta geral deve ser emitido e que este chegue a cada casa em Dez-Burgos. Que o povo receba as más novas e que estejam certos de que hei de abrir espaço dentro das muralhas de Brin Shander para todas as pessoas que assim desejarem nossa proteção."
Régis fitou os representantes divididos. Sem união, o halfling perguntou-se que grau de proteção ofereceriam até mesmo as altas muralhas de Brin Shander.

20
Escravo de Homem Nenhum

- Sem discussão - disse Bruenor rispidamente, embora nenhum dos quatro amigos que lhe faziam companhia nas encostas rochosas do aclive tivesse a menor intenção de se pronunciar contra a decisão. Em sua tola mesquinhez e seu estúpido orgulho, a maioria dos representantes havia praticamente condenado suas comunidades à destruição certa e nem Drizzt, Wulfgar, Cattiebrie ou Régis esperavam que os anões apoiassem uma causa tão sem esperança.
- Quando você vai bloquear as minas? - perguntou Drizzt. O drow ainda não decidira se acompanharia os anões na prisão auto-imposta das cavernas, mas planejara servir como batedor para Brin Shander pelo menos até o exército de Alçar Kessell chegar à região.
- Vamos começar os preparativos hoje à noite - disse Bruenor. - Mas depois de tudo pronto, não tem pressa. Vamos deixar os malditos ores virem direto pra cima da gente antes de derrubar os túneis e apanhar eles no desabamento! 'Cê vai ficar com a gente, então?
Drizzt deu de ombros. Apesar de a maioria das pessoas de Dez-Burgos ainda fugir dele, o drow tinha um forte senso de lealdade e não estava bem certo se conseguiria dar as costas ao lar que escolhera, mesmo sob circunstâncias suicidas. E Drizzt pouco ansiava por retornar ao subterrâneo desprovido de luz, mesmo às cavernas hospitaleiras da vila dos anões.
- E qual é sua decisão? - Bruenor perguntou a Régis.
O halfling também estava dividido entre seus instintos de sobrevivência e sua lealdade a Dez-Burgos. Com a ajuda do rubi, ele vivera bem durante os últimos anos às margens do Maer Dualdon. Mas, agora, ele havia sido desmascarado. Depois dos rumores espalhados pelo conselho, todos em Brin Shander cochichavam sobre a influência mágica do halfling. Não demoraria muito até que todas as comunidades viessem a saber das acusações de Kemp e começassem a evitá-lo, se é que não se esquivariam dele abertamente. De um jeito ou de outro, Régis sabia que seus dias de vida fácil em Bosquesó estavam chegando ao fim.
- Obrigado pelo convite - disse ele a Bruenor. - Virei para cá antes de Kessell chegar.
- Ótimo - respondeu o anão. - 'cê vai ficar com um quarto perto do garoto, assim nenhum dos anões vai precisar te ouvir choramingando de fome! - Lançou a Drizzt uma piscadela jovial.
- Não - disse Wulfgar.
Bruenor olhou para ele, curioso, interpretando erroneamente as intenções do bárbaro e perguntando-se por que ele faria objeção a ter Régis a seu lado.
- Olha lá, garoto - caçoou o anão. - Se tiver pensando em ficar perto da menina, então comece a pensar em encolher a cabeça e escapar de meu machado!
Cattiebrie riu baixinho, constrangida, mas verdadeiramente emocionada.
- As minas não são meu lugar - disse Wulfgar de repente. - Minha vida está na planície.
- 'cê 'tá esquecendo que eu é que decido sua vida! - retorquiu Bruenor. Na verdade, seus berros deviam-se mais à irritação de um pai do que ao ultraje de um senhor de escravos.
Wulfgar ficou de pé diante do anão, orgulhoso e austero. Drizzt compreendeu, satisfeito. Foi então que Bruenor começou a entender aonde o bárbaro queria chegar e, apesar de detestar a idéia da separação, naquele instante, sentiu-se mais orgulhoso do rapaz do que nunca.
- Meu período de compromisso ainda não terminou - começou Wulfgar -, mas já saldei minha dívida com você, meu amigo, e com seu povo, repetidas vezes. Eu sou Wulfgar! - proclamou ele, orgulhoso, com o queixo firme e os músculos tensos. - Não mais um garoto, mas um homem! Um homem livre!
Bruenor sentiu a umidade bordejar-lhe os olhos. Pela primeira vez, nada fez para escondê-la. Avançou até o imenso bárbaro e retribuiu o olhar obstinado de Wulfgar com sincera admiração.
- E é mesmo - observou Bruenor. - Então, posso perguntar se, de sua própria escolha, vai ficar e lutar a meu lado?
Wulfgar chacoalhou a cabeça.
- Na verdade, já saldei minha dívida com você. E hei sempre de chamá-lo de amigo... querido amigo. Mas tenho outra dívida a saldar. - Ele desviou o olhar para o Sepulcro de Kelvin e além. Incontáveis estrelas brilhavam limpidamente sobre a tundra, fazendo a vasta planície parecer ainda mais imensa e desabitada. - Lá fora, num outro mundo.
Cattiebrie suspirou e trocou de pé desconfortavelmente. Somente ela compreendia completamente o retrato indistinto pintado por Wulfgar. E ela não estava feliz com a escolha dele.
Bruenor assentiu, respeitando a decisão do bárbaro.
- Vá, então, e passe bem - disse ele, esforçando-se para controlar a voz entrecortada enquanto partia em direção à trilha rochosa. Deteve-se um último momento e olhou para trás, para o jovem e alto bárbaro. - 'cê já é um homem, não há o que discutir - disse ele, por sobre o ombro. - Mas nunca se esqueça de que vai ser sempre meu garoto!
- Não vou - Wulfgar murmurou baixinho enquanto Bruenor desaparecia túnel adentro. Sentiu a mão de Drizzt em seu ombro.
- Quando você vai partir? - o drow perguntou.
- Esta noite - respondeu Wulfgar. - Estes dias soturnos não oferecem descanso.
- E para onde vai? - perguntou Cattiebrie, conhecendo de antemão a verdade e também a resposta vaga que Wulfgar daria.
O bárbaro voltou o olhar indefinido mais uma vez para a planície.
- Para casa.
Ele começou a descer a trilha e Régis o acompanhou. Mas Cattiebrie ficou para trás e, com um gesto, pediu a Drizzt que fizesse o mesmo.
- Diga adeus a Wulfgar hoje à noite - disse ela ao drow. - Não creio que ele vá voltar.
- Ele é quem deve escolher onde fica sua casa - replicou Drizzt, imaginando que as notícias sobre Heafstaag unindo-se a Kessell haviam tido alguma influência sobre a decisão de Wulfgar. Ele observou respeitosamente o bárbaro que se afastava. - Ele tem alguns assuntos particulares a resolver.
- Mais do que você imagina - disse Cattiebrie. Drizzt olhou para ela, curioso. - Wulfgar tem uma aventura em mente - ela explicou. Não tivera a intenção de quebrar a confiança de Wulfgar, mas imaginara que ninguém, a não ser Drizzt Do'Urden, seria capaz de encontrar um meio de ajudá-lo. - Uma aventura que acredito ter lhe sido imposta antes de estar preparado.
- As questões da tribo são assunto dele - disse Drizzt, imaginando o que a moça sugeria. - Os bárbaros têm suas próprias tradições e não recebem muito bem os forasteiros.
- Quanto às tribos, eu concordo - disse Cattiebrie. - Mas o caminho de Wulfgar, a menos que eu esteja enganada, não leva diretamente para casa. Tem alguma outra coisa pela frente, uma aventura de que ele fala com freqüência, mas nunca explica inteiramente. Sei apenas que envolve grande perigo e uma promessa que mesmo ele teme não conseguir cumprir sozinho.
Drizzt desviou o olhar para a planície estrelada e ponderou as palavras da moça. Ele sabia que Cattiebrie era muito perspicaz e observadora para a idade. Não duvidou das suposições dela.
As estrelas piscavam acima da noite fresca e a abóbada celeste tragava a orla plana do horizonte. Um horizonte ainda não marcado pelas fogueiras de um exército em marcha, observou Drizzt.
Talvez ele tivesse algum tempo.

Apesar de a proclamação de Cássio chegar até a mais remota das vilas em questão de dois dias, poucos grupos de refugiados pegaram as estradas até Brin Shander. Cássio já esperava por isso, de outro modo jamais teria feito a audaciosa oferta de abrigar todos os que viessem. Brin Shander era uma cidade de bom tamanho e sua população atual já não era tão grande quanto antes. Havia muitos edifícios desocupados no interior das muralhas e todo um setor da cidade, reservado para as caravanas mercantes, encontrava-se vazio no momento. Entretanto, se apenas metade das pessoas das outras nove comunidades ali buscasse refúgio, Cássio se veria em dificuldades para honrar seu compromisso.
O representante não estava preocupado. O povo de Dez-Burgos era uma gente valorosa e vivia cotidianamente sob a ameaça de uma invasão dos goblins. Cássio sabia que seria necessário mais do que um alerta abstrato para arrancá-los de suas casas. E, com a lealdade entre as vilas tão em baixa, poucos líderes tomariam qualquer providência para convencer seu povo a fugir.
No fim das contas, Glensather e Agorwal foram os únicos representantes a chegar aos portões de Brin Shander. Praticamente toda Angraleste seguia seu líder, mas Agorwal era acompanhado por menos da metade da gente de Termalaine. Rumores vindos da arrogante cidade de Targos, quase tão bem defendida quanto Brin Shander, deixaram claro que nem uma pessoa sequer dali partiria. Muitos pescadores de Termalaine, temendo a vantagem econômica que Targos ganharia sobre eles, recusaram-se a desistir do mês mais lucrativo da estação de pesca.
Esse também foi o caso de Caer-Konig e Caer-Dineval. Nenhum dos rancorosos inimigos atrevia-se a ceder ao outro a menor vantagem e ninguém, de nenhuma das duas cidades, fugiu para Brin Shander. Para o povo dessas comunidades em guerra, os ores eram uma ameaça distante com a qual teriam de lidar caso algum dia esta se materializasse, mas a disputa com seus vizinhos imediatos era brutalmente real e evidente em todas as rotinas diárias.
No oeste, a vila de Bremen continuava encarniçadamente independente das outras comunidades e encarava a oferta de Cássio como uma tentativa ineficaz de Brin Shander de reafirmar sua posição de liderança. Bom Prado e Toca de Dugan, ao sul, não tinham qualquer intenção de se esconder na cidade murada ou de enviar soldados para ajudar na batalha. Essas duas cidades, às margens do Marerrubra, o menor dos lagos e o mais pobre em cabeçudas, não se dariam ao luxo de ficar muito tempo longe dos barcos. Haviam atendido ao pedido de união cinco anos antes, sob a ameaça de uma invasão bárbara, e, embora sofressem as maiores perdas dentre todas as vilas envolvidas no confronto, foram as que menos ganhos tiveram.
Vários grupos de Bosquesó infiltraram-se em Brin Shander, mas boa parte do povo da vila mais ao norte preferiu manter-se afastada. Seu herói perdera o prestígio. Mesmo Muldoon agora via o halfling sob uma perspectiva diferente e desconsiderou o alerta de invasão como um mal-entendido, ou quem sabe até um embuste calculado.
O bem maior da região havia sido sobrepujado pelos mais insignificantes ganhos pessoais de um orgulho pertinaz. A maioria das pessoas de Dez-Burgos confundiu união com dependência.

Régis retornou a Brin Shander para fazer alguns arranjos pessoais na manhã seguinte à partida de Wulfgar. Um amigo viria de Bosquesó com seus estimados pertences e, portanto, ele permaneceu na cidade, assistindo em total consternação à passagem dos dias sem que se fizessem quaisquer preparativos efetivos para receber o exército que chegava. Mesmo depois do conselho, o halfling nutrira alguma esperança de que as pessoas percebessem que a destruição era iminente e acabassem por se unir, mas, agora, ele começava a acreditar que a decisão dos anões de abandonar Dez-Burgos e encerrar-se em suas minas era a única opção, caso desejassem sobreviver.
Régis culpava-se em parte pela tragédia iminente, convencido de que se tornara descuidado. Quando haviam traçado os planos de usar a situação política e o poder do rubi para forçar as vilas a se unirem contra os bárbaros, ele e Drizzt passaram muitas horas prevendo as respostas iniciais dos representantes e medindo o valor da aliança de cada vila. Dessa vez, porém, Régis depositara uma fé maior nas pessoas de Dez-Burgos e na pedra, imaginando que poderia simplesmente empregar seu poder para convencer os últimos céticos quanto à gravidade da situação.
Mas Régis não suportou a própria culpa ao ouvir as respostas arrogantes e ressabiadas que chegavam de todas as vilas. Por que ele deveria forçar as pessoas a se defender por meio de um engodo? Se eram estúpidas o bastante para deixar o próprio orgulho acarretar a própria destruição, então que responsabilidade, ou que direito, tinha ele de salvá-las?
- Vocês terão o que merecem! - disse o halfling em voz alta, sorrindo, malgrado ele mesmo, ao perceber que estava começando a soar tão descrente quanto Bruenor.
Mas a insensibilidade era sua única proteção contra uma situação tão sem remédio. Ele esperava que seu amigo de Bosquesó chegasse logo. Seu santuário estava no subterrâneo.

Akar Kessell estava sentado no trono de cristal do Salão das Visões, o terceiro nível de Crishal-Tirith, e tamborilava os dedos nervosamente no braço da grande cadeira enquanto fitava atentamente o espelho escuro diante dele. Sorrisão estava muito atrasado com seu relatório sobre a caravana de reforços. A última invocação que o mago recebera do covil fora suspeita, pois não encontrara ninguém do outro lado para receber sua resposta. Agora, o espelho no covil revelava apenas trevas e resistia a todas as tentativas do mago de vislumbrar a sala.
Se o espelho tivesse sido quebrado, Kessell teria percebido a alteração em suas visões. Mas aquilo era um grande mistério, pois algo além de sua compreensão bloqueava-lhe a visão remota. O dilema o enervava, fazia-o pensar que tinha sido enganado ou descoberto. Os dedos continuaram a tamborilar nervosamente.
- Talvez seja o momento de tomar uma decisão - sugeriu Errtu, em sua habitual posição ao lado do trono do mago.
- Ainda não atingimos nossa força máxima! - retorquiu Kessell. - Muitas tribos de goblins e um grande clã de gigantes ainda não chegaram. E os bárbaros ainda não estão prontos.
- Os soldados têm sede de batalha - salientou Errtu. - Lutam entre si. E possível que você logo veja seu exército desintegrar-se à sua volta!
Kessell concordava que manter tantas tribos de goblins reunidas durante tanto tempo era um negócio arriscado e perigoso. Talvez fosse melhor se marchassem imediatamente. Mas, ainda assim, o mago queria ter certeza. Queria o exército no auge de suas forças.
- Onde está Sorrisão? - queixou-se Kessell. - Por que ele não atende a meus chamados?
- Que preparativos os humanos estão fazendo agora? - perguntou Errtu abruptamente.
Mas Kessell já não ouvia. Limpou o suor do rosto. Talvez a estilha e o demônio tivessem razão quanto a mandar os bárbaros, bem menos conspícuos, ao covil. O que estariam pensando os pescadores caso tivessem descoberto uma combinação tão incomum de monstros entocando-se na região? O quanto já teriam adivinhado?
Errtu percebeu o desconforto de Kessell com impiedosa satisfação. O demônio e a estilha vinham pressionando Kessell a atacar muito mais cedo desde que as mensagens de Sorrisão haviam cessado. Mas o mago covarde, precisando de mais garantias de que seu exército seria esmagador, continuara a tardar.
- Devo ir às tropas? - perguntou Errtu, confiante que a resistência de Kessell já não existia.
- Envie mensageiros aos bárbaros e às tribos que ainda não se juntaram a nós - instruiu Kessell. - Diga-lhes que lutar a nosso lado é juntar-se ao banquete da vitória! Mas os que não lutarem a nosso lado cairão a nossos pés! Marcharemos amanhã!
Errtu deixou a torre sem demora e não demorou muito para que os vivas pelo início da guerra ecoassem por todo o imenso acampamento. Goblins e gigantes corriam nervosamente de um lado para outro, desmontando as barracas e embalando suprimentos. Haviam esperado por aquele momento durante longas semanas e agora não desperdiçavam tempo com os preparativos finais.
Naquela mesma noite, o vasto exército de Akar Kessell levantou acampamento e começou sua longa marcha em direção a Dez-Burgos.
E, no covil desbaratado dos verbeeg, o espelho de cristalomancia encontrava-se intocado e inteiro, inofensivamente coberto pela pesada manta que Drizzt Do'Urden jogara sobre ele.

Epílogo

Ele correu sob o radiante sol do dia; correu sob as estrelas pálidas da noite, com o vento leste sempre em seu rosto. As pernas compridas e os passos largos carregavam-no incansavelmente, um mero pontinho em movimento na planície desabitada. Durante dias, Wulfgar forçou-se aos limites absolutos de sua resistência, chegando a caçar e a comer ainda a caminho, parando apenas quando a exaustão o derrubava.
Bem mais ao sul, avançando a partir da Espinha do Mundo como uma nuvem tóxica de vapores mal-cheirosos, vinham as forças de goblins e gigantes de Akar Kessell. Com as mentes distorcidas pela vontade da estilha de cristal, eles desejavam apenas matar e destruir. Desejavam apenas agradar Akar Kessell.
A três dias do vale dos anões, o bárbaro encontrou, por acaso, as pegadas desordenadas de muitos guerreiros, e todas levavam em direção a um destino comum. Ficou feliz por conseguir encontrar seu povo com tamanha facilidade, mas a presença de tantas pegadas revelava que as tribos estavam se reunindo, um fato que apenas enfatizava a urgência de sua missão. Instigado pela necessidade, ele seguiu em frente com maior vigor.
O maior inimigo de Wulfgar não era o cansaço, mas a solidão. Ele se esforçava para manter seus pensamentos no passado durante longas horas, recordando a promessa feita ao pai morto e contemplando as possibilidades de vitória. Entretanto, ele evitava pensar na senda que agora trilhava, compreendendo perfeitamente que o total desespero do plano poderia destruir sua determinação.
No entanto, era sua única chance. Não tinha sangue nobre nem qualquer Direito ao Desafio contra Heafstaag. Mesmo que derrotasse o rei eleito, seu povo não o reconheceria como líder. A única maneira de alguém como ele legitimar uma reivindicação à condição de rei da tribo era por meio de um ato de proporções heróicas.
Ele prosseguia a passos largos em direção ao mesmo objetivo que levara à morte muitos outros pretensos reis antes dele. E, nas sombras logo atrás dele, caminhando com a graciosa desenvoltura característica de sua raça, vinha Drizzt Do'Urden.
Sempre rumo leste, para a Geleira Reghed e um lugar chamado Vaporeterno.
Para o covil de Ingeloakastimizilian, o dragão branco que os bárbaros denominavam simplesmente "Morte Gélida".

Livro 3
Crishal-Tirith

O que Wulfgar vê quando olha para a tundra, quando seus olhos de um azul cristalino vagam pela planície escura até os pontos de luz que marcam as fogueiras do acampamento de seu povo?
Será que ele enxerga o passado, talvez, e anseia retornar àquele lugar e àqueles costumes? Será que enxerga o presente e compara o que aprendeu comigo e com Bruenor às duras lições da vida entre seus nômades companheiros de tribo?
Ou será que Wulfgar enxerga o futuro, o potencial para a mudança, a possibilidade de levar costumes novos e melhores a seu povo?
Um pouco dos três, acho eu. Desconfio que esse é o turbilhão dentro de Wulfgar, as chamas que fervilham por trás daqueles olhos azuis. Ele luta com tamanha paixão! Um pouco disso advém de sua criação entre os ferozes homens das tribos, dos jogos de guerra dos meninos bárbaros, geralmente sangrentos e às vezes fatais. Parte dessa paixão pela batalha brota do turbilhão interior de Wulfgar, da frustração que ele deve sentir ao comparar as lições que recebeu de mim e de Bruenor às que obteve durante os anos passados entre sua própria gente.
O povo de Wulfgar invadiu Dez-Burgos. Eles chegaram com fúria impiedosa, prontos para matar quem quer que se colocasse em seu caminho sem a menor consideração.
Como Wulfgar concilia essa verdade com o fato de que Bruenor Martelo de Batalha não o deixou morrer no campo, que o anão o poupou, embora ele houvesse tentado matar Bruenor em combate (apesar de o tolo rapaz cometer o erro de dar uma pancada na cabeça de Bruenor!)? Como Wulfgar concilia o amor que Bruenor tem lhe demonstrado com a idéia que antes fazia dos anões como inimigos detestáveis e impiedosos? Pois é assim que os bárbaros do Vale do Vento Gélido sem dúvida vêem os anões, uma mentira que perpetuam entre eles mesmos de modo a justificar o costume de empreender incursões assassinas. Não diferem muito das mentiras que os drow contam a si mesmos para justificar seu ódio por qualquer um que não seja drow.
Mas, agora, Wulfgar foi afrontado com a verdade de Bruenor e dos anões. Irrevogavelmente. Ele tem de ponderar essa revelação pessoal e compará-la a todas as "verdades" que aprendeu na infância. Precisa aceitar que aquilo que seus pais e todos os anciões da tribo lhe disseram eram mentiras. Sei, por experiência própria, que não é algo fácil de conciliar. Pois fazê-lo é admitir que uma boa parte de sua própria vida não passou de uma mentira, que uma boa parte daquilo que faz de você o que você é está errada. Reconheci os males de Menzoberranzan bem cedo porque seus ensinamentos iam tanto contra a lógica quanto contra o que eu trazia em meu coração. No entanto, muito embora essas iniqüidades fossem dolorosamente óbvias, não foram fáceis os primeiros passos que me levaram para longe de minha terra natal.
Os erros dos bárbaros do Vale do Vento Gélido são insignificantes se comparados aos dos drow e, portanto, temo que os passos que Wulfgar precisa dar para se afastar emocionalmente de seu povo sejam ainda mais difíceis. Há muito mais verdade nos costumes dos bárbaros, mais justificativas para suas ações - belicosos como são -, porém, recai sobre os ombros fortes, mas dolorosamente jovens de Wulfgar diferenciar entre os costumes de seu povo e os de seus novos amigos, adotar a compaixão e a aceitação acima das sólidas muralhas do preconceito que enclausuraram toda a sua juventude.
Não invejo a tarefa que ele tem. diante de si - a confusão e a frustração.
É bom que ele lute todos os dias. Rezo apenas para que, num acesso cego de fúria, enquanto externa essa frustração, meu companheiro de treinos não me arranque a cabeça dos ombros.

Drizzt Do'Urden

21
A Tumba de Gelo

Na base da grande geleira, escondido num pequeno vale no qual um dos contrafortes de gelo serpenteava por entre fendas e matacões fragmentados, ficava um lugar que os bárbaros denominavam Vaporeterno. Uma fonte termal alimentava um pequeno lago, e as águas aquecidas travavam uma batalha inexorável com as banquisas e as temperaturas enregelantes. Os nativos retidos no interior pelas primeiras neves, aqueles que não conseguiam encontrar o caminho para o mar seguindo o rebanho de renas, geralmente buscavam refúgio em Vaporeterno, pois, mesmo nos meses mais frios do inverno, podia-se encontrar ali água em estado líquido, essencial à vida. E os vapores quentes do lago tornavam suportáveis, ainda que desconfortáveis, as temperaturas da área próxima.
No entanto, o calor e a água potável constituíam apenas parte da riqueza de Vaporeterno. Sob a superfície opaca da água embaciada jazia uma fortuna em pedras preciosas, jóias, ouro e prata, a rivalizar com o tesouro de qualquer rei de toda aquela região do mundo. Todos os bárbaros conheciam a lenda do dragão branco, mas a maioria deles considerava-a apenas uma história fantasiosa recontada por velhos pretensiosos para a diversão das crianças. Pois o dragão não emergia de seu covil oculto havia muitos e muitos anos.
Wulfgar, porém, sabia que não se tratava de uma simples lenda. Quando jovem, seu pai havia acidentalmente topado com a entrada da caverna secreta. Mais tarde, quando ouviu a lenda do dragão, Beornegar compreendeu o valor potencial de sua descoberta e passou anos coletando todas as informações que conseguiu encontrar sobre os dragões, principalmente os brancos, e Ingeloakastimizilian em particular.
Beornegar morrera numa batalha entre as tribos antes que pudesse tentar conquistar o tesouro, mas, como vivesse numa terra em que a visita da morte era muito comum, ele previra essa sinistra possibilidade e dividira seu conhecimento com o filho. O segredo não morreu com ele.

Com um arremesso de Garra de Palas, Wulfgar abateu um gamo e carregou o animal pelos últimos quilômetros até Vaporeterno. Ele visitara o lugar duas vezes antes, mas mesmo assim, como sempre, a estranha beleza da paisagem tirou-lhe o fôlego. O ar acima do lago cobria-se de vapor, e pedaços de gelo flutuante deixavam-se levar pelas águas embaciadas como meândricos navios-fantasmas. Os imensos matacões que cercavam a área eram particularmente coloridos, com vários tons de vermelho e laranja, e encontravam-se encapsulados numa fina camada de gelo que capturava o calor do sol e refletia brilhantes explosões de cores cintilantes, em surpreendente contraste com o cinza enfadonho do turvo gelo glacial. Era um local silencioso, protegido do choro pesaroso do vento por paredões de gelo e rocha, livre de qualquer perturbação.
Depois da morte de Beornegar, Wulfgar jurou, como homenagem, empreender essa jornada e realizar o sonho de seu pai. Ele se aproximou reverentemente do lago e, embora questões mais urgentes o assombrassem, deteve-se para refletir um pouco. Guerreiros de todas as tribos da tundra tinham vindo a Vaporeterno com as mesmas esperanças. Nenhum deles jamais retornara.
O jovem bárbaro decidiu mudar essa situação. Firmou o queixo orgulhoso e pôs-se a esfolar o gamo. O primeiro obstáculo a sobrepujar era o próprio lago. Abaixo da superfície, as águas eram enganosamente cálidas e confortáveis, mas quem emergisse do lago no ar frio morreria congelado em questão de minutos.
Wulfgar tirou o couro do animal e começou a raspar a camada subjacente de gordura. Derreteu-a numa pequena fogueira até que atingisse a consistência de uma tinta espessa, depois besuntou o corpo todo. Inspirando profundamente para se acalmar e concentrar os pensamentos na tarefa imediata, ele apanhou Garra de Palas e entrou nas águas de Vaporeterno.
Sob o véu atenuante de névoa, as águas pareciam serenas, mas assim que se afastou das margens do lago, Wulfgar sentiu as fortes correntes voraginosas da fonte termal. Usando uma saliência de rocha protuberante como marco, ele se aproximou do centro exato do lago. Lá chegando, inspirou uma última vez e, confiante nas instruções de seu pai, deixou-se levar pelas correntes e afundar na água. Desceu por um instante, depois foi subitamente arrastado pela correnteza do riacho em direção à extremidade norte do lago. Mesmo sob a bruma, a água era nebulosa, o que obrigava Wulfgar a confiar cegamente que ele transporia o lago antes de lhe acabar o fôlego.
Ele já estava a uma pequena distância do paredão de gelo, na extremidade do lago, antes mesmo de vislumbrar o perigo. Preparou-se para a colisão, mas a corrente turbilhonou de repente e o mandou ainda mais para o fundo. A obscuridade tornou-se treva assim que ele entrou por uma abertura escondida sob o gelo, de largura apenas suficiente para que ele deslizasse por ela, apesar de o fluxo incessante do riacho não lhe oferecer outra escolha.
Seus pulmões gritavam por ar. Ele mordeu o lábio para evitar que a boca se abrisse numa explosão e o privasse dos últimos fiapos de oxigênio precioso.
Foi então que ele passou a um túnel mais largo, onde o nível da água foi baixando até chegar-lhe à garganta. Ofegante, ele respirou com sofreguidão, mas ainda era carregado, impotente, pela água impetuosa.
Um perigo ficara para trás.
Depois de muitas voltas e curvas, ouviu-se claramente o estrondo de uma queda d'água logo adiante. Wulfgar tentou diminuir sua velocidade, mas não conseguia encontrar no que se agarrar nem qualquer tipo de esteio, pois o chão e as paredes eram de gelo tornado liso por séculos de correnteza. O bárbaro agitou-se freneticamente e Garra de Palas voou de suas mãos quando ele tentou inutilmente enfiá-las no gelo sólido. Ele entrou numa caverna ampla e profunda e vislumbrou o vão livre diante dele.
Um pouco além do topo da cachoeira havia vários pingentes de gelo enormes que se estendiam desde o teto abobadado até abaixo da linha de visão de Wulfgar. Ele enxergou ali sua única chance. Quando se aproximou da beirada do vão, ele saltou e abraçou um pingente de gelo. Caiu rapidamente, pois o sincelo se afilava, mas logo viu que este se alargava novamente perto do chão, como se um segundo pingente tivesse crescido de baixo para cima para encontrar o primeiro.
A salvo por ora, ele percorreu com o olhar a estranha caverna, admirado. A queda d'água prendia-lhe a imaginação. O vapor elevava-se do precipício e acrescentava ao espetáculo um toque de surrealismo. O riacho escorria por sobre o vão e boa parte dele seguia seu caminho através de um pequeno precipício, que não passava de uma fenda no chão, dez metros abaixo da base da cachoeira. As gotículas que ultrapassavam o precipício, porém, solidificavam-se assim que se separavam do riacho e, ao atingirem o chão de gelo da caverna, quicavam em todas as direções. Ainda não completamente endurecidos, os cubos aderiam ao substrato onde pousavam e, por toda a base da cachoeira, encontravam-se pilhas estranhamente esculpidas de gelo fragmentado.
Garra de Palas atravessou o vão, ultrapassou facilmente o pequeno precipício e chocou-se contra uma daquelas esculturas, espalhando estilhaços de gelo. Embora tivesse os braços entorpecidos, depois de deslizar pelo sincelo, Wulfgar lançou-se rapidamente até o martelo, que já começava a aderir à pilha onde havia caído, e liberou-o do abraço petrificante do gelo.
Sob o piso cristalino, no ponto em que o martelo desbastara as camadas superiores, o bárbaro notou uma sombra escura. Examinou-a mais de perto, depois recuou diante da horrenda visão. Perfeitamente preservado, um de seus predecessores tinha aparentemente despencado queda abaixo e morrido ali mesmo onde caíra, no gelo cada vez mais profundo. Quantos outros, imaginou Wulfgar, haviam encontrado o mesmo destino?
Ele não tinha tempo para pensar um pouco mais na pergunta. Uma de suas outras preocupações havia se desfeito, pois boa parte do teto da caverna estava apenas alguns metros abaixo da superfície iluminada, e o sol abria caminho pelas partes que eram feitas de puro gelo. O menor fulgor proveniente do teto refletia-se milhares de vezes nos pisos e paredes vítreos, e a caverna inteira irrompia em explosões cintilantes de luz.
Wulfgar sentia vivamente o frio, mas a gordura derretida era proteção suficiente. Ele sobreviveria aos primeiros perigos daquela aventura.
Mas o espectro do dragão fazia-se sentir em algum lugar mais adiante.
Vários túneis espiralados partiam da câmara principal, esculpida pelo riacho nos dias de antanho, quando suas águas eram mais elevadas. No entanto, somente um deles era grande o bastante para um dragão. Wulfgar pensou em vasculhar primeiro os outros túneis para ver se conseguia encontrar um caminho menos óbvio até o covil. Mas o fulgor, as distorções de luz e os incontáveis sincelos, que pendiam do teto como os dentes de um predador, deixavam-no tonto, e ele sabia que, caso se perdesse ou desperdiçasse muito tempo, a noite o surpreenderia, privando-o da luz e fazendo a temperatura cair abaixo até mesmo de sua considerável tolerância.
Portanto, ele bateu Garra de Palas contra o chão para remover o gelo remanescente que aderira à arma e seguiu em frente pelo túnel que acreditava levar ao covil de Ingeloakastimizilian.

O dragão dormia profundamente ao lado de seu tesouro na maior câmara das cavernas de gelo, confiante, após tantos anos de solidão, que não seria perturbado. Ingeloakastimizilian, mais comumente conhecido como Morte Gélida, cometera o mesmo erro que muitos de sua espécie que tinham covis em cavernas de gelo semelhantes. O riacho impetuoso que oferecia entrada às cavernas, e também saída, minguara ao longo dos anos, deixando o dragão aprisionado numa tumba cristalina.
Morte Gélida já desfrutara seus anos caçando gamos e humanos. No pouco tempo em que estivera ativo, o monstro devastador e aterrorizante ganhara uma reputação respeitável. Os dragões, porém, principalmente os brancos, que raramente se mostram ativos em seus habitats gelados, podem viver muitos séculos sem carne. O amor egoísta por seus tesouros é capaz de sustentá-los indefinidamente, e a riqueza de Morte Gélida, apesar de pequena se comparada aos vastos montes de ouro colecionados pelos descomunais dragões vermelhos e azuis que viviam em áreas mais populosas, era a maior dentre todas as fortunas dos dragões da tundra.
Se tivesse realmente desejado a liberdade, o dragão provavelmente poderia ter atravessado o teto de gelo da caverna. Mas Morte Gélida considerava o risco grande demais, e, portanto, dormia, contando suas moedas e pedras preciosas em sonhos que os dragões julgavam agradáveis.
Entretanto, a serpente adormecida não percebera inteiramente como havia se descuidado. Em seu cochilo ininterrupto, Morte Gélida não se movia havia décadas. Uma fria manta de gelo tinha se esgueirado sobre a forma alongada e espessado-se aos poucos até que o único ponto livre fosse um buraco em frente às grandes narinas, onde as rajadas rítmicas das ruidosas exalações mantinham o gelo afastado.
E foi assim que Wulfgar, procurando cautelosamente a origem dos roncos retumbantes, encontrou o monstro.
Vendo o esplendor de Morte Gélida realçado pela manta de gelo cristalino, Wulfgar examinou o dragão com profundo assombro. Pilhas de ouro e pedras preciosas enchiam a caverna sob mantos semelhantes, mas Wulfgar não conseguia desviar os olhos. Jamais vira tamanha magnificência, tamanha força.
Confiante que o monstro se encontrava impotente e imobilizado, ele abaixou a cabeça do martelo e deixou a arma pender junto ao flanco.
- Saudações, Ingeloakastimizilian - chamou, usando respeitosamente o nome completo do monstro.
Os olhos azul-claros abriram-se num átimo e as chamas ardentes se fizeram imediatamente visíveis, mesmo sob o véu de gelo. Wulfgar hesitou diante daquele olhar penetrante.
Após o choque inicial, ele recuperou a confiança.
- Não tenha medo, poderosa serpente - disse ele com audácia. - Sou um guerreiro honrado e não vou matá-la sob circunstâncias tão injustas. - Ele sorriu obliquamente. - Só levarei seu tesouro e meu desejo será aplacado!
Mas o bárbaro cometera um erro crítico.
Um guerreiro mais experiente, até mesmo um cavaleiro honrado, teria relevado seu código cavalheiresco, aceitado a boa sorte como uma bênção e matado a serpente enquanto esta dormia. Poucos aventureiros, ou até mesmo grupos inteiros de aventureiros, haviam oferecido a um dragão maligno de qualquer cor uma oportunidade justa e sobrevivido para contar vantagem.
Até mesmo Morte Gélida, em meio ao choque inicial de sua situação, imaginara-se indefeso ao acordar e encarar o bárbaro. Os grandes músculos, atrofiados pela inatividade, não conseguiram resistir ao peso e à força da prisão de gelo. Mas, quando Wulfgar mencionou o tesouro, uma nova onda de energia afastou a letargia do dragão.
Morte Gélida encontrou forças na ira e, com uma explosão de energia até então inimaginável para o bárbaro, o dragão acionou os músculos torneados e fez grandes pedaços de gelo voar pelos ares. Todo o complexo de cavernas estremeceu violentamente, e Wulfgar, sobre o piso escorregadio, foi atirado de costas ao chão. Ele rolou para o lado no último segundo e esquivou-se da ponta lanceolada de um sincelo desalojado pelo tremor.
Wulfgar rapidamente colocou-se de pé, mas, ao se voltar, encontrou-se frente a frente com uma cabeça branca e ornada de chifres bem à altura de seus olhos. As grandes asas do dragão se desdobraram, livrando-se dos últimos restos de sua manta, e os olhos azuis cravaram-se em Wulfgar.
O bárbaro olhou desesperadamente ao redor, à procura de uma rota de fuga. Cogitou arremessar Garra de Palas, mas sabia que não conseguiria matar o monstro com um único golpe. E, inevitavelmente, o hálito mortal viria.
Morte Gélida avaliou o inimigo por um momento. Caso soprasse, teria de se contentar com carne congelada. Era um dragão, afinal de contas, uma terrível serpente, e acreditava - provavelmente com razão - que nenhum homem sozinho pudesse jamais derrotá-lo. Entretanto, aquele homem descomunal e o martelo mágico - pois o dragão sentia-lhe o poder - perturbavam a serpente. A cautela mantivera Morte Gélida vivo por muitos séculos. Ele não se meteria numa escaramuça com aquele homem.
O ar gelado acumulou-se em seus pulmões.
Wulfgar ouviu o ar sendo sugado e, num reflexo, atirou-se para um lado. Não conseguiu escapar totalmente da rajada que se seguiu, mas sobreviveu graças a sua agilidade, combinada à gordura de gamo. Caiu atrás de um bloco de gelo, com as pernas realmente queimadas pelo frio e os pulmões a doer. Ele precisava de alguns instantes para se recuperar, mas viu a cabeça branca que se erguia lentamente para remover o obstáculo insignificante com a mudança de ângulo.
O bárbaro não sobreviveria a uma segunda rajada.
De repente, um globo de escuridão envolveu a cabeça do dragão. Uma flecha de haste negra passou zunindo pelo bárbaro, seguida por outra ainda, e ouviu-se apenas quando ambas atingiram o alvo atrás da barreira de trevas.
- Ataque, rapaz! Agora! - gritou Drizzt Do'Urden desde a entrada da câmara. O disciplinado bárbaro obedeceu instintivamente a seu professor. Com um esgar de dor, ele contornou o bloco de gelo e aproximou-se da serpente que se debatia.
Morte Gélida balançava a imensa cabeça de um lado para o outro, tentando libertar-se do encanto do elfo negro. O ódio consumiu o monstro quando mais uma flecha lancinante atingiu seu alvo. O único desejo do dragão era matar. Mesmo cego, seus sentidos eram superiores; ele demarcou facilmente a direção do drow e soprou mais uma vez.
Mas Drizzt era bem versado na cultura dos dragões. Havia estimado perfeitamente a distância entre ele e Morte Gélida, e a força da geada mortal foi insuficiente.
O bárbaro investiu contra o flanco do dragão aturdido e, com toda a sua grande força, deu com Garra de Palas nas escamas brancas. O dragão encolheu-se de agonia. As escamas agüentaram o golpe, mas o dragão nunca havia sentido tamanha força num humano e não estava inclinado a testar a resistência de seu couro com um segundo ataque. Virou-se para liberar uma terceira rajada no bárbaro exposto.
Mas uma outra flecha atingiu o alvo.
Wulfgar viu uma grande porção de sangue de dragão salpicar o chão logo ao lado dele e observou o globo de escuridão afastar-se subitamente. O dragão rugiu de fúria. Garra de Palas golpeou novamente, e uma terceira vez. Uma das escamas rachou e caiu, e a visão da carne exposta renovou as esperanças de vitória de Wulfgar.
Mas Morte Gélida sobrevivera a muitas batalhas, e sua derrota ainda estava longe. O dragão sabia o quão vulnerável se encontrava face ao poderoso martelo e manteve suficiente concentração para retaliar. A longa cauda fez a volta por sobre as costas escamosas e esmurrou Wulfgar no exato momento em que o bárbaro iniciava mais um golpe. Em lugar da satisfação de sentir Garra de Palas esmigalhando a carne do dragão, Wulfgar viu-se atirado contra um monte congelado de moedas de ouro a meio metro de distância.
A caverna girou, seus olhos lacrimejantes realçavam os reflexos estrelados de luz e a consciência lhe fugia. Mas ele viu Drizzt, com as cimitarras desembainhadas, avançando audaciosamente em direção a Morte Gélida. Viu o dragão em posição, pronto para soprar novamente.
Viu, com clareza cristalina, o imenso sincelo que pendia do teto acima do dragão.
Drizzt seguiu em frente. Não tinha qualquer estratégia contra um adversário tão formidável; ele esperava encontrar um ponto fraco antes que o dragão o matasse. Pensou que Wulfgar estivesse fora de combate, provavelmente morto, depois da poderosa vergastada da cauda, e surpreendeu-se ao ver o súbito movimento num dos cantos.
Morte Gélida também percebeu o movimento do bárbaro e acionou a longa cauda para dar fim a qualquer outra ameaça a seu flanco.
Mas Wulfgar já lançara sua cartada. Com uma última explosão de força, ele se desgrudou da pilha e arremessou Garra de Palas bem alto.
A cauda do dragão atingiu o alvo e Wulfgar ficou sem saber se sua tentativa desesperada foi bem-sucedida. Pensou ver um ponto mais claro aparecer no teto antes de ser arremessado nas trevas.
Drizzt foi testemunha da vitória de ambos. Hipnotizado, o drow assistiu à silenciosa queda do imenso pingente de gelo.
Morte Gélida, insensível ao perigo devido ao globo de escuridão, e pensando que o martelo voara sem rumo, agitou as asas. As patas dianteiras, providas de garras, mal haviam começado a se erguer quando a lança de gelo colidiu contra as costas do dragão e o impeliu de volta ao chão.
Com a bola de escuridão fixa na cabeça do monstro, Drizzt não pôde ver a expressão agonizante do dragão.
Mas ele ouviu o "craque" fatal quando o pescoço, semelhante a um chicote, arremessado pela súbita reversão do impulso, bamboleou para cima e partiu-se.

22
Por Bravura ou Nascimento

O calor de uma pequena fogueira trouxe Wulfgar de volta à consciência. Ele voltou a si um pouco grogue e, a princípio, enquanto se livrava de uma manta que não recordava ter trazido, não conseguiu entender onde estava. Depois, reconheceu Morte Gélida, morto, a uma pequena distância dali, com o imenso pingente de gelo enraizado firmemente em suas costas. O globo de escuridão se dissipara, e Wulfgar admirou-se com a precisão dos disparos aproximados do drow. Uma flecha projetava-se do olho esquerdo do dragão e as hastes negras de outras duas saíam-lhe da boca.
Wulfgar estendeu o braço, em busca da segurança proporcionada pela presença familiar da empunhadura de Garra de Palas em sua mão. Mas o martelo não estava por perto. Lutando contra o penetrante entorpecimento em suas pernas, o bárbaro conseguiu ficar de pé e pôs-se a procurar freneticamente a arma. E onde, perguntou-se, estava o drow?
Foi então que ele ouviu as batidas que provinham de uma câmara adjacente. Mancando, ele contornou a cautelosamente a curva. Ali estava Drizzt, no topo de uma montanha de moedas, removendo-lhe a cobertura de gelo com o martelo de guerra de Wulfgar.
Drizzt percebeu a aproximação de Wulfgar e, como saudação, fez-lhe uma reverência.
- Bons olhos o vejam, Ruína do Dragão! - gritou ele.
- Você também, amigo elfo - respondeu Wulfgar, feliz em ver o drow novamente. - Você me seguiu por uma boa distância.
- Nem tanto - replicou Drizzt, arrancando mais um pedaço de gelo de cima do tesouro. - Dez-Burgos andava muito monótona e eu não poderia deixar você tomar a dianteira em nossa disputa! Dez e meio a dez e meio - declarou ele, com um sorriso largo -, e um dragão a ser dividido entre nós dois. Quero a metade!
- É sua e bem merecida - concordou Wulfgar. - E também metade do butim.
Drizzt revelou uma pequena bolsa que pendia de uma linda corrente de prata em seu pescoço.
- Ninharias - explicou. - Não preciso de riquezas e, de qualquer maneira, duvido que seria capaz de carregar muita coisa! Algumas ninharias já bastam.
Ele vasculhou a porção da pilha que acabara de livrar do gelo e descobriu o punho de uma espada, feito de adamantita negra, esculpido magistralmente à imagem da boca denteada de um felino predador e tendo por botão uma pedra preciosa. O intrincado acabamento seduziu Drizzt e, com dedos vacilantes, ele removeu de sob o ouro o restante da arma.
Uma cimitarra. A lâmina recurva era de prata, com fio de diamante. Drizzt ergueu-a diante dele, admirado com sua leveza e seu perfeito equilíbrio.
- Algumas ninharias... e isto - corrigiu-se.

Mesmo antes de seu encontro com o dragão, Wulfgar imaginava como escaparia das cavernas subterrâneas.
- A correnteza é muito forte e o topo da queda d'água é alto demais para voltarmos por Vaporeterno - disse ele a Drizzt, embora soubesse que o drow já teria inferido a mesma coisa. - Mesmo que conseguíssemos ultrapassar esses obstáculos, não tenho mais gordura de gamo para nos proteger do frio quando deixarmos a água.
- Eu tampouco desejo atravessar as águas de Vaporeterno novamente - Drizzt assegurou ao bárbaro. - No entanto, conto com minha considerável experiência na hora de me meter nessas situações e vim preparado! Daí a madeira para o fogo e a manta que coloquei sobre você, ambas envolvidas em pele de foca. E também isto.
Ele retirou do cinto um gancho de três pontas e alguns metros de corda leve e forte. Já havia encontrado uma rota de fuga.
Drizzt apontou um pequeno buraco no teto. O pingente de gelo desalojado por Garra de Palas levara parte do teto da câmara com ele.
- Nem sonho atirar o gancho tão alto, mas, para seus braços fortes, o arremesso deve ser um desafio insignificante.
- Em outros tempos, talvez - confiou Wulfgar. - Mas estou sem torças. - O bárbaro estivera mais perto da morte do que imaginara quando o sopro do dragão se abateu sobre ele e, exaurida agora a adrenalina do combate, sentia intensamente o frio penetrante. - Temo que minhas mãos insensíveis sequer conseguiriam segurar o gancho!
- Então corra! - berrou o drow. - Deixe seu corpo enregelado se aquecer.
Wulfgar começou imediatamente a correr pela câmara ampla, forçando o sangue a circular pelas pernas e dedos entorpecidos. Em pouco tempo, ele começou a sentir o calor interno do próprio corpo retornando.
Precisou de apenas dois arremessos para passar o gancho pelo buraco e prendê-lo no gelo. Drizzt foi o primeiro a subir, e era como se o elfo ágil corresse corda acima.
Wulfgar terminou o que tinha a fazer na caverna e recolheu um saco de riquezas e alguns outros objetos que sabia seriam necessários. Ele teve muito mais dificuldade em subir pela corda do que Drizzt, mas, com o drow a ajudá-lo lá de cima, conseguiu galgar o gelo antes que o sol poente afundasse no horizonte.
Eles acamparam ao lado de Vaporeterno, banqueteando-se com carne de caça e aproveitando o necessário e bem merecido descanso no conforto dos vapores que aqueciam a região.
Depois, partiram novamente antes do amanhecer, para o oeste. Correram lado a lado durante dois dias, igualando o ritmo frenético que os trouxera tão ao leste. Quando encontraram os rastros das tribos bárbaras que se congregavam, ambos compreenderam que havia chegado a hora da separação.
- Adeus, meu bom amigo - disse Wulfgar, abaixando-se para inspecionar os rastros. - Nunca esquecerei o que você fez por mim.
- Adeus, Wulfgar - respondeu Drizzt sombriamente. - Que seu poderoso martelo leve o terror a seus inimigos durante muitos anos ainda!
Ele partiu, apressado, sem olhar para trás, mas imaginava se veria mais uma vez seu imenso companheiro ainda com vida.

Wulfgar deixou de lado a urgência de sua missão para examinar suas emoções assim que avistou o grande acampamento das tribos reunidas. Cinco anos antes, carregando orgulhosamente o estandarte da Tribo do Alce, um Wulfgar bem mais jovem marchara para uma reunião semelhante, entoando a Canção de Tempus e partilhando o forte hidromel com homens que lutariam e talvez viessem a morrer a seu lado. Ele via a batalha de um outro modo então, como o teste glorioso de um guerreiro. "Selvageria inocente", murmurou, percebendo a contradição das palavras ao recordar sua ignorância naqueles dias, tanto tempo atrás. Mas suas percepções haviam sofrido uma metamorfose considerável. Bruenor e Drizzt, ganhando-lhe a amizade e ensinando-lhe as complexidades do mundo em que viviam, haviam individualizado as pessoas que ele anteriormente considerara meros inimigos e forçaram-no a encarar as brutais conseqüências de suas ações.
Uma bile amarga subiu à garganta de Wulfgar ao imaginar que as tribos lançariam mais um ataque contra Dez-Burgos. O que o repugnava ainda mais era o fato de seu orgulhoso povo marchar para a guerra ao lado de goblins e gigantes.
Ao se aproximar do perímetro, viu que em todo o acampamento não se encontrava Hengorot, o Recinto Cerimonial do Hidromel. Uma série de pequenas tendas, cada uma delas a ostentar os respectivos estandartes dos reis tribais, compreendia o centro do conclave, cercado pelas fogueiras bem visíveis dos soldados comuns. Examinando as bandeiras, Wulfgar notou que quase todas as tribos estavam presentes, mas suas forças combinadas chegavam a pouco mais da metade do conclave de cinco anos antes. As observações de Drizzt, de que os bárbaros não haviam ainda se recuperado do massacre nas encostas de Brin Shander, pareceram dolorosamente verdadeiras.
Dois guardas se apresentaram para receber Wulfgar. Ele não fizera qualquer tentativa de ocultar sua aproximação e, agora, colocava Garra de Palas a seus pés e erguia as mãos para mostrar que suas intenções eram honestas.
- Quem é você que chega desacompanhado e sem ser convidado ao conselho de Heafstaag? - perguntou um dos guardas. Ele avaliou o forasteiro, imensamente impressionado pela óbvia força de Wulfgar e pela pujante arma aos pés do jovem. - Sem dúvida não é nenhum mendigo, nobre guerreiro, mas não o conhecemos.
- Conhecem sim, Revjak, filho de Jorn, o Vermelho - respondeu Wulfgar, reconhecendo o homem como um companheiro de tribo. - Sou Wulfgar, filho de Beornegar, guerreiro da Tribo do Alce. Vocês me perderam cinco anos atrás, quando marchamos sobre Dez-Burgos - explicou, escolhendo cuidadosamente as frases para evitar o assunto da derrota. Os bárbaros não comentavam lembranças tão desagradáveis.
Revjak estudou o rapaz de perto. Ele havia sido amigo de Beornegar e lembrava-se do menino, Wulfgar. Contou os anos, comparando a idade do menino quando o vira pela última vez à idade aparente daquele rapaz. Logo se satisfez com o fato de a semelhança não ser mera coincidência.
- Bem vindo ao lar, jovem guerreiro! - disse afetuosamente. - Você se saiu bem!
- De fato - replicou Wulfgar. - Vi coisas notáveis e prodigiosas e aprendi muito. São muitas as histórias que tenho para contar, mas, na verdade, não tenho tempo para conversa fiada. Estou aqui para ver Heafstaag.
Revjak assentiu e imediatamente começou a mostrar a Wulfgar o caminho por entre as fogueiras enfileiradas.
- Heafstaag ficará feliz com seu retorno.
Baixinho demais para ser ouvido, Wulfgar respondeu:
- Nem tanto.

Uma multidão curiosa ajuntou-se em volta do magnífico guerreiro assim que ele se aproximou da tenda central do acampamento. Reyjak entrou para anunciá-lo ao rei e retornou imediatamente com a permissão de Heafstaag para Wulfgar entrar.
Wulfgar levou Garra de Palas ao ombro, mas não deu um passo sequer em direção à aba que Revjak mantinha aberta.
- O que tenho a falar deve ser dito publicamente e diante de todo o povo - disse ele, alto o bastante para Heafstaag ouvir. - Que Heafstaag venha até mim!
Murmúrios confusos brotaram a seu redor diante daquelas palavras de desafio, pois os rumores que vinham circulando entre a multidão não falavam de Wulfgar, filho de Beornegar, como um descendente das linhagens reais.
Heafstaag precipitou-se para fora da tenda. Aproximou-se do desafiante, com o peito estufado e o único olho bom a fitar Wulfgar com ferocidade. A multidão fez silêncio, esperando que o cruel rei matasse ali mesmo o jovem impertinente.
Mas Wulfgar retribuiu o perigoso olhar de Heafstaag e não recuou o mínimo que fosse.
- Eu sou Wulfgar - anunciou, orgulhoso -, filho de Beornegar, filho de Beorne antes dele; guerreiro da Tribo do Alce, que lutou na Batalha de Brin Shander; portador de Garra de Palas, o Inimigo dos Gigantes - ergueu o grande martelo diante dele -, amigo dos artífices anões e discípulo de um ranger de Gwaeron Windstrom; matador de gigantes e invasor de covis; assassino do líder dos gigantes do gelo, Sorrisão.
Ele se deteve um momento, com os olhos apertados pelo sorriso que se alargava, e aumentou a expectativa da proclamação seguinte. Satisfeito por ter toda a atenção da multidão, ele continuou:
- Eu sou Wulfgar, Ruína do Dragão!
Heafstaag retraiu-se. Nenhum homem vivo em toda a tundra havia reivindicado um título tão imponente.
- Solicito o Direito ao Desafio - grunhiu Wulfgar num tom baixo e ameaçador.
- Vou matar você - respondeu Heafstaag com toda a calma que foi capaz de reunir. Não tinha medo de homem algum, mas os ombros descomunais e os músculos torneados de Wulfgar sugeriam cautela. O rei não tinha a intenção de arriscar sua posição naquele momento, às vésperas de uma aparente vitória sobre os pescadores de Dez-Burgos. Se pudesse desacreditar o jovem guerreiro, o povo jamais permitiria o combate. Forçariam Wulfgar a desistir de sua reivindicação, ou matariam-no imediatamente. - Que herança lhe dá o direito de fazer essa solicitação?
- Você pretende liderar nosso povo sob as ordens de um mago - retorquiu Wulfgar. Ouviu atentamente às vozes na multidão, procurando avaliar se aprovavam ou não sua acusação. - Você pretende fazê-los levantar armas em causa comum com um bando de goblins e ores!
Ninguém ousou protestar em voz alta, mas Wulfgar sentia que a batalha iminente secretamente enfurecia muitos outros guerreiros. Isso explicaria também a ausência do Recinto do Hidromel, pois Heafstaag era inteligente o bastante para perceber que a fúria poderia facilmente explodir em meio às grandes emoções da celebração.
Revjak se interpôs antes que Heafstaag conseguisse responder, fosse com palavras ou armas.
- Filho de Beornegar - disse Revjak com firmeza -, você até agora não conquistou o direito de questionar as ordens do rei. Você declarou um desafio público; as regras da tradição exigem que justifique, por bravura ou nascimento, seu direito a um embate como esse.
A emoção revelava-se nas palavras de Revjak, e Wulfgar compreendeu imediatamente que o velho amigo de seu pai havia interferido para evitar o início de um combate não reconhecido e, portanto, não oficial. O homem mais velho obviamente acreditava que aquele jovem magnífico pudesse atender às exigências. E Wulfgar também sentiu que Revjak - e muitos outros, talvez - esperava que o desafio fosse completado com sucesso.
Wulfgar aprumou os ombros e, confiante, sorriu para o oponente, ganhando forças com mais uma prova de que seu povo seguia a direção ignóbil de Heafstaag simplesmente por estar obrigado ao rei caolho e não conseguir apresentar nenhum desafiante adequado para derrotá-lo.
- Por bravura - disse ele tranqüilamente.
Sem jamais tirar os olhos de Heafstaag, Wulfgar desamarrou a manta enrolada que trazia às costas e exibiu dois objetos parecidos com lanças. Atirou-os casualmente ao chão diante do Rei. Aqueles na multidão que puderam ver claramente o espetáculo boquiabriram-se todos ao mesmo tempo, e até o inabalável Heafstaag empalideceu e deu um passo vacilante para trás.
- O desafio não pode ser recusado! - gritou Revjak. Eram os chifres de Morte Gélida.

O suor frio no rosto de Heafstaag revelava sua tensão enquanto polia com um pedaço de camurça as últimas rebarbas da cabeça de seu imenso machado.
- Ruína do Dragão! - bufou, pouco convincente, para o porta-estandarte que acabara de entrar na tenda. - É mais provável que ele tenha tropeçado numa serpente adormecida!
- Perdão, poderoso rei - disse o rapaz. - Revjak enviou-me para lhe dizer que chegou a hora aprazada.
- Ótimo! - zombou Heafstaag, correndo o polegar pelo fio brilhante do machado. - Vou ensinar o filho de Beornegar a respeitar seu rei!
Os guerreiros da Tribo do Alce formaram um círculo em volta dos combatentes. Embora fosse um acontecimento particular para o povo de Heafstaag, as outras tribos assistiam com interesse a uma distância respeitável. O vencedor não teria qualquer autoridade formal sobre elas, mas seria o rei da tribo mais poderosa e dominante da tundra.
Revjak adentrou o círculo e movimentou-se entre os dois oponentes.
- Anuncio Heafstaag - gritou. - Rei da Tribo do Alce! - E ele continuou a recitar a longa lista de feitos heróicos do rei caolho.
A confiança de Heafstaag pareceu retornar durante a declamação, embora estivesse um pouco confuso e furioso com Revjak, que escolhera anunciá-lo primeiro. Levou as mãos aos amplos quadris, fitou ameaçadoramente cada um dos espectadores mais próximos e sorria quando estes recuavam. Fez o mesmo com seu oponente, mas novamente sua tática intimidativa falhou com Wulfgar.
- E eu anuncio Wulfgar - continuou Revjak -, filho de Beornegar e contestador do trono da Tribo do Alce! - É claro que a declamação da lista de Wulfgar levou bem menos tempo. Mas o último feito anunciado por Revjak trouxe um certo grau de paridade aos dois.
- Ruína do Dragão! - gritou Revjak, e a multidão, até então em respeitoso silêncio, pôs-se a narrar nervosamente os numerosos rumores que haviam surgido sobre o confronto em que Wulfgar matara Morte Gélida.
Revjak olhou para os dois combatentes e deixou o círculo.
O momento de honra chegara.
Com passos cautelosos, os dois circularam pela arena de combate, medindo-se, em busca de sinais de fraqueza. Wulfgar notou a impaciência no rosto de Heafstaag, um defeito comum entre os guerreiros bárbaros. Ele não teria sido muito diferente, não fossem as rudes lições de Drizzt Do'Urden. Mil incisões humilhantes das cimitarras do drow haviam ensinado a Wulfgar que o primeiro golpe não era tão importante quanto o último.
Por fim, Heafstaag bufou e avançou com um brado. Wulfgar também grunhiu alto e movimentou-se como se fosse receber de frente a investida. Mas, então, deu um passo para o lado no último instante, e Heafstaag, arrastado pelo impulso de sua pesada arma, passou pelo adversário aos trambolhões e chocou-se contra a primeira fileira de espectadores.
O rei caolho recuperou-se rapidamente e investiu mais uma vez, duas vezes mais enfurecido, ou assim acreditava Wulfgar. Heafstaag havia sido rei durante muitos anos e lutara em incontáveis batalhas. Se não tivesse aprendido a ajustar sua técnica de combate, já teria sido morto havia muito. Ele voltou a atacar Wulfgar, aparentemente mais fora de controle do que da primeira vez. Mas, ao sair do caminho, Wulfgar encontrou o grande machado de Heafstaag esperando por ele. O rei caolho, antecipando a esquiva, brandiu a arma de lado e abriu o braço de Wulfgar do ombro ao cotovelo.
Wulfgar reagiu rapidamente, desferindo uma estocada defensiva com Garra de Palas para desencorajar ataques subseqüentes. O golpe saiu sem força, mas a mira foi certeira e o poderoso martelo impeliu Heafstaag um passo para trás. Wulfgar aproveitou para examinar o sangue em seu braço.
Ele poderia continuar a lutar.
- Você se defende bem - resmungou Heafstaag ao colocar-se em posição a alguns passos apenas do desafiante. - Teria servido bem a nosso povo como soldado. Que desperdício eu ter de matar você!
Mais uma vez, o machado traçou seu arco, fazendo chover um golpe depois do outro num furioso assalto com a intenção de terminar a luta rapidamente.
Mas, comparado às espadas sibilantes de Drizzt Do'Urden, o machado de Heafstaag parecia se mover preguiçosamente. Wulfgar não teve dificuldade para aparar os ataques, chegando a responder, vez ou outra, com uma estocada calculada que se chocava com um ruído surdo contra o peito largo de Heafstaag.
As faces do rei caolho avermelharam-se de frustração e cansaço.
- Um oponente cansado geralmente ataca com toda a força de uma vez só - Drizzt explicara a Wulfgar, durante as semanas de treinamento. - Mas raramente move-se na direção óbvia, na direção que ele pensa que você pensa que ele está se movendo!
Wulfgar esperou atentamente pela finta anunciada.
Conformado por não conseguir atravessar a guarda eficaz do oponente mais jovem e mais rápido, o rei, coberto de suor, ergueu o machado sobre a cabeça e arremeteu, urrando como um louco para dar ênfase ao ataque.
Mas os reflexos de Wulfgar estavam afiados ao máximo, e a ênfase excessiva que Heafstaag colocara no ataque dizia-lhe para esperar uma mudança de direção. Ele ergueu Garra de Palas, como que para bloquear o golpe dissimulado, mas reverteu a empunhadura no exato momento em que o machado caia do ombro de Heafstaag e entrava enganosamente baixo, com um golpe oblíquo.
Confiando inteiramente em sua arma de fabricação anã, Wulfgar deslocou para trás o pé dianteiro, virando-se para encontrar a lâmina que se aproximava com um golpe de ângulo semelhante.
As cabeças das duas armas chocaram-se com força inacreditável. O machado de Heafstaag estilhaçou-se em suas mãos e as violentas vibrações lançaram-no por terra.
Garra de Palas estava intacto. Wulfgar poderia facilmente ter vencido a luta e dado cabo de Heafstaag com um único golpe.
Revjak cerrou o punho de expectativa pela vitória iminente de Wulfgar.
- Jamais confunda honra com estupidez! - Drizzt repreendera Wulfgar, depois da perigosa inação do bárbaro em relação ao dragão.
Mas, com aquele combate, Wulfgar queria mais do que simplesmente ganhar a liderança de sua tribo; ele queria deixar uma impressão duradoura em todas as testemunhas. Ele largou Garra de Palas e aproximou-se de Heafstaag em pé de igualdade.
O rei bárbaro não questionou sua boa sorte. Saltou sobre Wulfgar e envolveu o rapaz com seus braços numa tentativa de lançá-lo de costas ao chão.
Wulfgar debruçou-se para receber o ataque, plantou firmemente as pernas fortes no chão e deteve o homem mais pesado.
Atracaram-se com ferocidade e trocaram golpes duros antes de conseguirem se engalfinhar e tornar os socos ineficazes. Os olhos de ambos os combatentes estavam lívidos e inchados, o sangue escorria de arranhões e cortes no rosto e no peito de ambos.
Contudo, Heafstaag era o mais cansado. Seu peito largo arquejava a cada árdua exalação. Ele abraçou a cintura de Wulfgar e tentou mais uma vez torcer o corpo de seu implacável oponente para lançá-lo ao chão.
Foi então que os longos dedos de Wulfgar fecharam-se sobre as têmporas de Heafstaag. Os nós dos dedos do rapaz empalideceram, os músculos descomunais dos antebraços e dos ombros se enrijeceram. Ele começou a apertar.
Heafstaag compreendeu imediatamente que estava em dificuldades, pois o abraço de Wulfgar era mais forte que o de um urso. O rei debateu-se freneticamente e seus punhos enormes esmurraram as costelas expostas do oponente, esperando apenas quebrar a concentração mortal de Wulfgar.
Dessa vez, foi uma das lições de Bruenor que o incitou a continuar:
- Lembra da doninha, garoto. Tome os golpes mais fracos, mas nunca, nunca deixe eles escaparem quando 'cê estiver em cima deles!
Os músculos do ombro e do pescoço projetaram-se quando ele forçou o rei caolho a se ajoelhar.
Aterrorizado com a força do abraço, Heafstaag agarrava e puxava os antebraços de ferro do rapaz, tentando inutilmente aliviar a pressão cada vez maior.
Wulfgar percebeu que estava prestes a matar alguém de sua própria tribo.
- Renda-se! - ele gritou para Heafstaag, à procura de uma alternativa mais aceitável.
O orgulhoso rei respondeu com um derradeiro soco.
Wulfgar voltou os olhos para o céu.
- Não sou como ele! - urrou desamparadamente, justificando-se a quem quisesse ouvir. Mas restava apenas um caminho agora.
Os ombros descomunais do jovem bárbaro avermelharam-se com o sangue que a eles afluiu. Ele viu o terror no olhar de Heafstaag transformar-se em incompreensão. Ouviu o estalar dos ossos, sentiu o crânio esmigalhando-se sob suas poderosas mãos.
Revjak deveria ter adentrado o círculo e anunciado o novo Rei da Tribo do Alce.
Mas, como as outras testemunhas a seu redor, ele estava imóvel, boquiaberto, e nem mesmo piscava.

Auxiliado pelas rajadas de vento frio em suas costas, Drizzt percorreu a toda a pressa as últimas milhas até Dez-Burgos. Na mesma noite em que ele havia se separado de Wulfgar, o topo coberto de neve do Sepulcro de Kelvin apareceu no horizonte. A visão de seu lar estimulou o drow a prosseguir ainda mais rápido, mas uma sensação incômoda dizia-lhe que algo estava errado.
O olho humano jamais o teria percebido, mas a aguçada visão noturna do drow enfim o divisou: um pilar crescente de escuridão a obscurecer as estrelas mais baixas do horizonte, ao sul da montanha. E uma segunda coluna um pouco menor, ao sul da primeira.
Drizzt estacou. Estreitou os olhos para se certificar de sua suposição. Em seguida, ele se pôs a caminho novamente, mas devagar, para ganhar tempo e escolher uma rota alternativa.
Caer-Konig e Caer-Dineval estavam em chamas.

23
Sitiados

A frota de Caer-Dineval corricava as águas mais ao sul do Lac Dinneshir, aproveitando as áreas desocupadas depois da fuga do povo de Angraleste para Brin Shander.
As embarcações de Caer-Konig pescavam em águas conhecidas, perto das margens setentrionais do lago. Foram as primeiras a avistar a destruição iminente.
Como um furioso enxame de abelhas, o hediondo exército de Kessell contornou velozmente a curva setentrional do Lac Dinneshir e, aos brados, desceu o Desfiladeiro do Vento Gélido.
- Levantar âncora! - gritaram Schermont e muitos outros capitães assim que se recuperaram do choque inicial. Mas já sabiam que não retornariam a tempo.
A vanguarda do exército de goblins atacou Caer-Konig violentamente.
Os homens nos barcos viram as chamas se elevarem quando as casas foram incendiadas. Ouviram os apupos sanguinários dos desprezíveis invasores.
Ouviram os gritos agonizantes de sua gente.
As mulheres, as crianças e os velhos em Caer-Konig nem pensaram em resistir. Correram. Por suas vidas, eles correram. E os goblins deram-lhes caça e os mataram.
Gigantes e ogros precipitaram-se para as docas e esmagaram os miseráveis humanos que acenavam desamparadamente para a frota de retorno, ou levaram-nos à morte gélida nas águas do lago.
Os gigantes carregavam sacos imensos e, à medida que os corajosos pescadores chegavam precipitadamente ao porto, as naus eram golpeadas e danificadas pelos calhaus arremessados.
Os goblins continuavam a entrar em grande número na cidade condenada, mas o grosso da linha de retaguarda do vasto exército passou por ela e seguiu em direção à segunda cidade, Caer-Dineval. A essa altura, as pessoas em Caer-Dineval já tinham avistado a fumaça e ouvido os gritos e fugiam à toda pressa para Brin Shander, ou então estavam nas docas, implorando aos marinheiros que voltassem para casa.
Mas a frota de Caer-Dineval, mesmo impelida pela força do vento leste em sua pressa de atravessar novamente o lago, tinha milhas e milhas de água diante dela. Os pescadores viram as colunas de fumaça se erguerem sobre Caer-Konig e muitos, desconfiando do que acontecia, entenderam que seu ímpeto, mesmo com as velas tão enfunadas, seria em vão. Ainda assim, ouviram-se gemidos de choque e incredulidade em cada convés quando a nuvem negra deu início a sua agourenta escalada desde os setores mais setentrionais de Caer-Dineval.
Foi então que Schermont tomou uma decisão nobre. Aceitando a condenação da própria cidade, ele ofereceu ajuda aos vizinhos.
- Não podemos entrar! - ele gritou ao capitão de uma embarcação próxima. - Passe adiante: vamos para o sul! As docas de Dineval ainda estão livres!

De um parapeito na muralha de Brin Shander, Régis, Cássio, Agorwal e Glensather assistiram, horrorizados, à investida do perverso contingente pelo trecho de planície entre eles e as duas cidades saqueadas. Os inimigos avançavam sobre a população que fugia de Caer-Dineval.
- Abra os portões, Cássio! - gritou Agorwal. - Precisamos ir até eles! Não terão a menor chance de chegar à cidade a menos que retardemos a perseguição!
- Não - respondeu Cássio, melancólico, dolorosamente ciente de suas responsabilidades ainda maiores. - Preciso de cada homem para defender a cidade. Expor-se na planície aberta com uma desvantagem numérica tão esmagadora seria inútil. As vilas às margens do Lac Dinneshir estão condenadas!
- Estão indefesos! - devolveu Agorwal. - Que espécie de homens somos nós se não somos capazes de defender nossa gente? Que direito temos de assistir a tudo detrás desta muralha enquanto nosso povo é chacinado?
Cássio chacoalhou a cabeça, firme em sua decisão de proteger Brin Shander.
Mas, então, outros refugiados vieram correndo pela segunda passagem, a Via de Bremen, fugindo, histéricos, da desprotegida vila de Termalaine assim que viram as cidades do outro lado incendiadas. Mais de mil refugiados estavam agora ao alcance da visão desde Brin Shander. Estimando a velocidade deles e a distância restante, Cássio calculou que convergiriam no vasto campo logo abaixo dos portões setentrionais da cidade principal. Onde os goblins os pegariam.
- Vá - disse ele a Agorwal.
Brin Shander não podia se dar ao luxo de perder tantos homens, mas o campo logo ficaria rubro com o sangue de mulheres e crianças.
Agorwal desceu com seus valorosos homens a estrada nordeste, em busca de uma posição defensável onde pudessem se entrincheirar. Escolheram uma pequena serrania - na verdade, mais uma crista - onde a estrada submergia ligeiramente. Entrincheirados e prontos para lutar e morrer, eles esperaram até os últimos refugiados passarem, aterrorizados, aos gritos, pois acreditavam não ter qualquer chance de alcançar a segurança da cidade antes que os goblins se abatessem sobre eles.
Sentindo o cheiro de sangue humano, os mais rápidos dentre o exército invasor estavam logo atrás dos retardatários, mães em sua maioria, que apertavam os filhos pequenos contra o peito. Concentrados nas vítimas fáceis, os monstros da vanguarda não se deram conta do destacamento de Agorwal até os guerreiros de tocaia já estarem sobre eles.
Mas, então, era tarde demais.
Os corajosos homens de Termalaine surpreenderam os goblins num fogo cruzado de flechas e depois seguiram Agorwal num feroz assalto de espadas. Lutaram sem medo, como homens que haviam aceitado o que o destino lhes reservara. Dezenas de monstros jaziam mortos e mais deles caíam a cada minuto à medida que os guerreiros furiosos forçavam entrada em suas fileiras.
Mas a formação parecia interminável. A cada goblin que caía, dois vinham substituí-lo. Os homens de Termalaine logo foram tragados por um mar de goblins.
Agorwal alcançou um ponto elevado e olhou para trás, em direção à cidade. As mulheres em fuga estavam a uma boa distância do outro lado do campo, mas moviam-se devagar. Se rompessem as fileiras inimigas e fugissem, seus homens alcançariam os refugiados antes das encostas de Brin Shander. E os monstros estariam logo atrás deles.
- Temos de sair e apoiar Agorwal! - berrou Glensather para Cássio. Mas, dessa vez, o representante de Brin Shander permaneceu firme.
- Agorwal cumpriu sua missão - respondeu Cássio. - Os refugiados chegarão à muralha. Não enviarei mais homens para a morte! Mesmo que a força combinada de toda a Dez-Burgos estivesse no campo, não seria capaz de derrotar o inimigo diante de nós.
O sagaz representante já compreendera que não poderiam lutar com Kessell em pé de igualdade.
O benevolente Glensather pareceu abatido.
- Leve alguns soldados colina abaixo - cedeu Cássio. - Ajudem os refugiados exaustos na última escalada.
Os homens de Agorwal estavam agora em sérias dificuldades. O representante de Termalaine olhou para trás novamente e tranqüilizou-se; as mulheres e as crianças estavam em segurança. Correu os olhos pela alta muralha, ciente de que Régis, Cássio e os outros podiam vê-lo, uma figura solitária na pequena elevação, muito embora ele não conseguisse divisá-los entre a multidão de espectadores que se enfileirava nos parapeitos de Brin Shander.
Mais goblins despejaram-se na batalha, agora acompanhados de ogros e verbeeg. Agorwal saudou os amigos na cidade. Seu sorriso de satisfação era sincero quando girou nos calcanhares e voltou a arremeter ladeira abaixo para se unir a seus vitoriosos soldados em seu momento de maior glória.
Então, Régis e Cássio assistiram à maré negra derrubar todos os bravos homens de Termalaine.
Abaixo deles, os pesados portões se fecharam com estrondo. Os últimos refugiados haviam entrado.

Apesar de os homens de Agorwal conquistarem uma vitória de honra, a única força a ter realmente combatido o exército de Kessell naquele dia, e sobrevivido, foi a dos anões. O clã do Salão de Mitral passara dias em diligente preparação para aquela invasão, mas quase a perdeu. Mantidos pela vontade tirânica do mago numa disciplina nunca vista entre os goblins, principalmente entre tribos rivais e variadas, o exército de Kessell tinha planos bem definidos e diretos a seguir no assalto inicial. Até ali, os anões não estavam incluídos.
Mas os rapazes de Bruenor tinham outros planos. Eles não se enterrariam em suas minas sem ao menos aproveitar a oportunidade de arrancar algumas cabeças de goblins ou esmigalhar os joelhos de um ou dois gigantes.
Vários guerreiros do povo de longas barbas subiram ao cume mais ao sul do vale. Quando a retaguarda do exército maligno passou, os anões começaram a provocar os monstros, gritando desafios e xingando suas mães. Os insultos nem mesmo eram necessários. Os ores e os goblins desprezam os anões mais do que qualquer outra coisa viva, e o plano eficiente de Kessell evaporou-se de suas mentes à mera visão de Bruenor e sua gente. Sempre ávidos pelo sangue dos anões, um contingente considerável separou-se do exército principal.
Os anões deixaram que eles se aproximassem, espicaçando-os com provocações até que os monstros estivessem praticamente sobre eles. Depois, Bruenor e os seus pularam da saliência rochosa e escorregaram pela vertente íngreme.
- Venham brincar, canalhas estúpidos.
Bruenor riu maliciosamente ao desaparecer de vista. Tirou das costas uma corda. Ele tinha bolado um truquezinho que estava ansioso para experimentar.
Os goblins arremeteram vale adentro, com uma vantagem numérica de quatro para um. E tinham como apoio cerca de vinte ogros furiosos.
Os monstros não tiveram a menor chance.
Os anões continuaram a incitá-los por todo o declive da parte mais íngreme do vale até as saliências estreitas e inclinadas na face do penhasco que passavam em frente às numerosas entradas para as cavernas dos anões. Um lugar óbvio para uma emboscada, mas os goblins estúpidos, enfurecidos diante da visão de seus mais odiados inimigos, avançaram de qualquer maneira, indiferentes ao perigo.
Quando a maioria dos monstros já se encontrava nas saliências e o resto ainda começava a descer até o vale, a primeira armadilha foi acionada. Cattiebrie, armada até os dentes, mas posicionada no fundo dos túneis mais internos, puxou uma alavanca e derrubou uma coluna na crista superior do vale. Toneladas de pedra e cascalho tombaram sobre a retaguarda da formação dos monstros, e aqueles que conseguiram manter o equilíbrio, ainda que precário, e escapar ao impacto da avalanche encontraram as trilhas atrás deles enterradas e bloqueadas, impedindo-lhes a fuga.
As bestas zuniram desde recessos ocultos, e um grupo de anões saiu correndo para receber os goblins da vanguarda.
Bruenor não estava entre eles. Ele havia se escondido mais atrás na trilha e observou os goblins, concentrados no desafio à frente, passarem por ele. Poderia ter atacado naquele momento, mas estava atrás de caça maior e esperou até que os ogros estivessem ao alcance. A corda já havia sido cuidadosamente medida e amarrada. Ele passou uma das pontas em forma de laço em torno da cintura e a outra foi jogada sobre uma rocha. Em seguida, ele tirou do cinto as duas machadinhas.
Era uma manobra arriscada, talvez a mais perigosa que o anão já tentara, mas a pura emoção da coisa tornou-se óbvia na forma de um largo sorriso estampado na cara de Bruenor ao perceber a aproximação dos desajeitados ogros. Mal pôde conter o riso quando duas das criaturas passaram por ele na trilha estreita.
Saltando de seu esconderijo, Bruenor investiu contra os ogros surpreendidos e atirou as machadinhas em suas cabeças. Os ogros desviaram-se e conseguiram aparar os fracos arremessos, mas as armas não passavam de uma distração.
O corpo de Bruenor era a verdadeira arma naquele ataque.
Surpreendidos, esquivando-se das machadinhas, os dois ogros perderam o equilíbrio. O plano se desenrolava com perfeição; os ogros mal sabiam o que fazer com os pés. Contraindo os poderosos músculos de suas pernas atarracadas Bruenor lançou-se no ar e colidiu com o monstro mais próximo. A criatura caiu junto com ele sobre o outro ogro.
E despencaram da saliência, todos os três.
Um dos ogros conseguiu agarrar com a mão descomunal o rosto do anão, mas Bruenor prontamente mordeu-a, e o monstro recuou. Por um breve momento, eles formaram um emaranhado em queda de pernas e braços agitados, mas então a corda de Bruenor esticou-se e os separou.
- Um pouso tranqüilo pra vocês, garotos - gritou Bruenor, ao escapar da queda. - Dêem um grande beijo nas pedras por mim!
O movimento em pêndulo da corda largou Bruenor na entrada de um poço de mina na saliência imediatamente mais baixa enquanto suas vítimas impotentes caíam para morrer. Vários goblins em formação atrás dos ogros assistiram ao espetáculo em total estupefação. Em seguida, viram a oportunidade de usar a corda pendurada como atalho para uma das cavernas e, um a um, treparam na corda e começaram a descer.
Mas Bruenor também antecipara aquilo. Os goblins não entenderam por que a corda parecia tão escorregadia em suas mãos.
Quando Bruenor apareceu na saliência inferior, com a ponta da corda numa das mãos e uma tocha acesa na outra, eles entenderam.
As chamas lamberam o cordão azeitado. O goblin no topo da corda conseguiu galgar de volta a saliência, mas o resto seguiu o mesmo caminho que os pobres ogros. Um deles quase escapou à queda fatal, aterrissando pesadamente na saliência inferior. No entanto, antes que ele conseguisse recuperar o equilíbrio, Bruenor o fez despencar com um pontapé.
O anão, admirado, aprovou com um aceno de cabeça o sucesso da manobra. Era um truque que ele tinha a intenção de lembrar. Batendo as mãos uma na outra, ele desceu rapidamente pelo poço que, um pouco mais atrás, subia até se juntar aos túneis superiores.
Na saliência de cima, os anões lutavam numa ação de retirada. O plano não era travar um conflito mortal do lado de fora, mas atrair os monstros para as aberturas dos túneis. Com o desejo de matar obscurecendo-lhes toda e qualquer razão, os obtusos invasores prontamente aquiesceram, presumindo que sua vantagem numérica estivesse encurralando os anões.
O entrechoque de espadas logo se fez ouvir em vários túneis. Os anões continuaram a recuar, conduzindo os monstros à derradeira armadilha. Então, de algum lugar no fundo das cavernas, uma corneta soou. No momento exato os anões desvencilharam-se da escaramuça e fugiram pelos túneis.
Os goblins e os ogros, pensando haver desbaratado os inimigos, detiveram-se apenas para berrar gritos de vitória, depois lançaram-se atrás dos anões como uma onda.
Mas, bem lá no fundo dos túneis, várias alavancas foram puxadas. A armadilha final foi acionada e todas as entradas dos túneis simplesmente desabaram. O chão estremeceu violentamente sob o peso do deslizamento e toda a face do penhasco veio abaixo.
Os únicos monstros a sobreviver foram os que estavam exatamente nas linhas de vanguarda. E, desorientados, castigados pela força do deslizamento e atordoados pela rajada de pó, eles foram imediatamente abatidos pelos anões de tocaia.
A espantosa avalanche fez estremecer até mesmo as pessoas em Brin Shander, distantes como estavam. Acorreram à muralha norte para assistir, consternadas, à ascensão da nuvem de poeira, pois acreditavam que os anões haviam sido dizimados.
Régis sabia que não. O halfling invejou os anões, sepultados em segurança em seus extensos túneis. Ele se dera conta, no momento em que vira as chamas se elevarem de Caer-Konig, que sua demora na cidade, à espera do amigo de Bosquesó, custara-lhe a oportunidade de escapar.
Agora, ele assistia, impotente e sem esperança, ao avanço daquela massa negra em direção a Brin Shander.

As frotas no Maer Dualdon e no Marerrubra retornaram aos portos de origem assim que perceberam o que estava acontecendo. Encontraram suas famílias momentaneamente em segurança, exceto os pescadores de Termalaine, que velejaram de volta a uma cidade abandonada. Tudo o que os homens de Termalaine podiam fazer, enquanto relutantemente voltavam ao lago, era esperar que os seus tivessem conseguido chegar a Brin Shander ou a algum outro refúgio, pois viram o flanco setentrional do exército de Kessell enxameando pelo campo em direção a sua cidade condenada.
Targos, a segunda maior cidade e a única outra, além de Brin Shander, com alguma esperança de resistir algum tempo ao vasto exército, estendeu o convite às embarcações de Termalaine para atracar em suas docas. E os homens de Termalaine, que logo estariam entre os desabrigados, aceitaram a hospitalidade de seus encarniçados inimigos do sul. Suas disputas com o povo de Targos pareciam realmente insignificantes em comparação ao desastre que se abatera sobre as vilas.

Na batalha principal, os generais goblins que lideravam o exército de Kessell acreditavam poder invadir Brin Shander antes do anoitecer. Eles obedeceram ao plano de seu líder ao pé da letra. O corpo principal do exército desviou-se para longe de Brin Shander e desceu pelo trecho de terreno aberto entre a cidade principal e Targos, acabando, assim, com qualquer possibilidade de as duas poderosas cidades unirem suas forças.
Várias tribos de goblins haviam se separado do grupo principal e lançado-se sobre Termalaine, com a intenção de saquear a terceira cidade do dia. Mas, encontrando deserto o lugar, abstiveram-se de queimar as casas. Parte do exército de Kessell agora tinha um acampamento pronto, onde poderia aguardar pelo cerco iminente com todo o conforto.
Como dois grandes braços, milhares de monstros correram para o sul da força principal. Tão vasto era o exército de Kessell que este preenchia os muitos quilômetros do campo entre Brin Shander e Termalaine e ainda havia gente suficiente para cercar a colina da cidade principal com densas fileiras de soldados.
Tudo acontecera tão rápido que, quando os goblins finalmente interromperam sua investida frenética, a mudança pareceu demasiadamente dramática. Depois de alguns minutos de calma, o suficiente para recuperar o fôlego, Régis sentiu a tensão aumentar novamente.
- Por que eles não acabam logo com isto? - ele perguntou aos dois representantes a seu lado.
Cássio e Glensather, mais instruídos nas tradições da guerra, compreenderam exatamente o que estava acontecendo.
- Eles não têm pressa, amiguinho - explicou Cássio. - Têm o tempo como aliado.
Foi então que Régis compreendeu. Durante os vários anos que passara nas terras mais populosas do sul, ele ouvira muitas histórias vividas sobre os horrores de um cerco.
Veio-lhe à mente a imagem da derradeira saudação de Agorwal, ao longe, o olhar satisfeito no rosto do representante e sua disposição em morrer valorosamente. Régis não tinha a menor vontade de morrer, mas podia imaginar o que ele e o povo acuado de Brin Shander tinham pela frente.
Flagrou-se invejando Agorwal.

24
Crishal-Tirith

Drizzt logo encontrou o solo maltratado por onde passara o exército. As pegadas não chegaram a ser uma surpresa para o drow, pois as colunas de fumaça já lhe haviam revelado boa parte do que ocorrera. A única pergunta não respondida era se alguma das vilas resistira ou não ao ataque, e ele seguiu rapidamente em direção à montanha, imaginando se ainda teria um lar para onde retornar.
Foi então que ele sentiu uma presença, uma aura de um outro mundo que estranhamente o fazia recordar os dias de sua juventude. Abaixou-se para verificar o solo novamente. Algumas das marcas eram rastros frescos de trolls, mas havia uma cicatriz no chão que nenhuma criatura mortal poderia ter deixado. Drizzt olhou ao redor, nervoso, mas o único som era o lamento do vento e os únicos vultos no horizonte eram os picos do Sepulcro de Kelvin diante dele, e os da Espinha do Mundo, bem mais ao sul. Drizzt deteve-se para considerar a tal presença durante algum tempo, tentando distinguir melhor a familiaridade que sentia.
Ele seguiu em frente tentativamente. Compreendia a origem de suas lembranças agora, mas os pormenores exatos continuavam impalpáveis. Ele sabia o que estava seguindo.
Um demônio chegara ao Vale do Vento Gélido.
O Sepulcro de Kelvin já parecia muito maior antes de Drizzt alcançar o bando. Sua sensibilidade a criaturas dos planos inferiores, fruto de séculos de associação com elas em Menzoberranzan, informou o drow de que ele se aproximava do demônio antes mesmo de avistá-lo.
E foi então que ele viu as formas distantes, meia dúzia de trolls que marchavam numa fileira compacta e, destacando-se no meio deles, encontrava-se um enorme monstro do Abismo. Drizzt compreendeu imediatamente que não se tratava de um mane nem de um homúnculo insignificante, e sim de um demônio importante. Kessell devia ser realmente poderoso se tinha sob seu controle um monstro tão formidável!
Drizzt os seguiu, mantendo cautelosa distância. No entanto, o bando estava concentrado em seu destino e a cautela do drow era desnecessária. Mas Drizzt não estava disposto a se arriscar de modo algum, pois havia sido muitas vezes testemunha da ira desses demônios. Eram lugar-comum nas cidades dos drow, prova maior para Drizzt Do'Urden de que a cultura de seu povo não lhe condizia.
Ele se aproximou, pois algo mais chamara-lhe a atenção. O demônio segurava um pequeno objeto que irradiava uma magia tão poderosa que o drow, mesmo àquela distância, era capaz de sentir claramente. Estava demasiado disfarçada pelas próprias emanações do demônio para que Drizzt conseguisse ter uma idéia clara do que se tratava e, portanto, ele cautelosamente recuou mais uma vez.
As luzes de milhares de fogueiras apareceram no horizonte quando o grupo e Drizzt aproximaram-se da montanha. Os goblins haviam posicionado sentinelas naquela área e Drizzt percebeu que já avançara o máximo que podia na direção sul. Desistiu da perseguição e dirigiu-se a um ponto de observação melhor no alto da montanha.
O melhor momento para a visão do drow, adaptada ao subterrâneo, era sob a luz tênue antes do nascer do sol e, apesar de cansado, Drizzt tinha a determinação de estar em posição quando chegasse a hora. Ele rapidamente escalou as rochas, dirigindo-se aos poucos à face sul da montanha.
Foi então que ele viu as fogueiras que cercavam Brin Shander. Mais para o leste, as brasas brilhavam em meio aos escombros que outrora haviam sido Caer-Konig e Caer-Dineval. Gritos selvagens ecoavam em Termalaine, e Drizzt compreendeu que a cidade às margens do Maer Dualdon estava nas mãos do inimigo.
E, então, o prenúncio da aurora azulou o céu noturno e muito mais coisas tornaram-se aparentes. Drizzt olhou primeiro para a extremidade sul do vale dos anões e ficou aliviado ao ver que o paredão defronte havia desabado. O povo de Bruenor, pelo menos, estava salvo, e Régis com eles, supôs o drow.
Mas a visão de Brin Shander era menos consoladora. Drizzt ouvira as bazófias do ore capturado e vira os rastros do exército e suas fogueiras, mas nunca poderia ter imaginado o vasto conclave que apareceu diante dele assim que a luz aumentou.
A visão o desconcertou.
- Quantas tribos de goblins você reuniu, Akar Kessell? - disse, com voz entrecortada. - E quantos gigantes chamam-no de mestre?
Ele sabia que o povo de Brin Shander sobreviveria apenas o tempo que Kessell lhes permitisse. Não tinham a menor esperança de se defender contra tamanho exército. Consternado, ele se voltou para procurar uma gruta onde pudesse descansar um pouco. Ele não seria de ajuda naquele momento, e a exaustão aumentava sua desesperança, impedindo-o de pensar de maneira construtiva.
Enquanto se afastava da face da montanha, uma súbita atividade no campo distante chamou-lhe a atenção. Ele não conseguia divisar os indivíduos a uma distância tão grande - o exército parecia apenas uma massa negra -, mas compreendeu que o demônio aparecera. Viu o ponto mais negro que marcava sua presença maligna avançar até uma área de terreno limpo, algumas centenas de metros apenas abaixo dos portões de Brin Shander. E ele sentiu a aura sobrenatural da poderosa magia que percebera antes, como o coração pulsante de alguma forma de vida desconhecida, palpitando nas mãos providas de garras do demônio.
Os goblins se juntaram para assistir ao espetáculo, mantendo uma distância respeitosa entre eles e o perigoso e imprevisível capitão de Kessell.
- O que é aquilo? - perguntou Régis, esmagado entre a multidão de espectadores na muralha de Brin Shander.
- Um demônio - respondeu Cássio. - E dos grandes.
- Eles zombam de nossas pobres defesas! - gritou Glensather. - Que esperança temos de resistir a um inimigo como este?
O demônio fez uma reverência, concentrado no ritual para evocar o encantamento do objeto cristalino. Ele colocou a estilha de cristal de pé sobre a relva, deu um passo para trás e berrou as palavras obscuras de um antigo feitiço, alteando num crescendo à medida que o céu começava a clarear com a iminente aparição do sol.
- Um punhal de vidro? - perguntou Régis, intrigado com o objeto pulsante.
O primeiro raio da aurora rompeu o horizonte. O cristal cintilou e invocou a luz, desviando a trajetória do raio solar e absorvendo sua energia.
A estilha tremeluziu novamente. As pulsações aumentaram quando mais uma parte do sol rastejou para o céu oriental, apenas para ter sua luz sugada pela cópia faminta de Crenshinibon.
Os espectadores na muralha boquiabriram-se, horrorizados, e imaginaram se Akar Kessell tinha algum poder sobre o próprio sol. Somente Cássio teve presença de espírito para ligar o poder da estilha à luz solar.
Foi então que o cristal começou a crescer. Estendia-se a cada vez que uma pulsação atingia seu pico, depois encolhia-se um pouco enquanto a palpitação seguinte ganhava força. Tudo o mais ao redor permanecia nas sombras, pois o cristal consumia avidamente toda a luz do sol. Lenta mas inevitavelmente, o diâmetro da coisa alargou-se e seu topo elevou-se às alturas. As pessoas na muralha e os monstros no campo precisaram desviar os olhos do poder resplandecente de Crishal-Tirith. Apenas o drow, desde seu remoto ponto de observação, e o demônio, que era imune a essas visões, testemunharam a criação de mais uma cópia de Crenshinibon. A terceira Crishal-Tirith ganhou vida. A torre libertou o sol de seu jugo assim que se completou o ritual e toda a região foi banhada pela luz da manhã.
O demônio rugiu com o sucesso de seu encantamento e entrou orgulhosamente pela porta espelhada da nova torre, seguido pelos trolls, a guarda pessoal do mago.
Os habitantes sitiados de Brin Shander e Targos examinaram a incrível estrutura com uma mistura confusa de espanto, admiração e terror. Não conseguiam resistir à beleza sobrenatural de Crishal-Tirith, mas compreendiam as conseqüências do aparecimento da torre: Akar Kessell, senhor de goblins e gigantes, havia chegado.

Os goblins e os ores caíram de joelhos, e todo o vasto exército retomou o cântico de "Kessell! Kessell!", prestando homenagem ao mago com uma devoção tão fanática que fez estremecer as testemunhas humanas do espetáculo.
Drizzt também estava assustado com a extensão da influência e da devoção que o mago exercia sobre as normalmente independentes tribos de goblins. O drow determinou naquele momento que a única chance de sobrevivência para o povo de Dez-Burgos era a morte de Akar Kessell. Ele já sabia, mesmo antes de ter considerado as opções possíveis, que tentaria chegar ao mago. Por enquanto, porém, ele precisava descansar. Encontrou uma gruta sombreada logo atrás da face do Sepulcro de Kelvin e deixou-se tomar pela exaustão.
Cássio também estava cansado. O representante permanecera na muralha durante toda a noite fria, examinando os acampamentos para determinar o que restava da inimizade natural entre as tribos indisciplinadas. Ele vira um pouco de discórdia e alguns insultos, mas nada extremo o bastante para dar a ele a esperança de que o exército se desmancharia logo no início do cerco. Não entendia como o mago conseguira uma unificação tão dramática dos arquiinimigos. A aparição do demônio e o soerguimento de Crishal-Tirith mostraram-lhe o incrível poder sob o comando de Kessell. Ele logo chegara às mesmas conclusões que o drow.
Ao contrário de Drizzt, porém, o representante de Brin Shander não se recolheu quando o campo voltou a se acalmar, apesar dos protestos de Régis e Glensather, preocupados com sua saúde. Sobre seus ombros, Cássio carregava a responsabilidade por vários milhares de pessoas aterrorizadas, amontoados no interior das muralhas de sua cidade, e, para ele, não haveria descanso. Ele precisava de informações; precisava encontrar um elo fraco na armadura aparentemente inexpugnável do mago.
E, portanto, o representante vigiou com zelo e paciência durante todo o primeiro longo e monótono dia do cerco, observando as fronteiras que as tribos de goblins delimitavam como suas e a ordem de hierarquia que determinava a distância de cada grupo em relação ao ponto central de Crishal-Tirith.

Bem mais ao leste, as frotas de Caer-Konig e Caer-Dineval estavam ancoradas lado a lado nas docas da cidade abandonada de Angraleste. Várias equipagens foram à terra para recolher provisões, mas a maioria das pessoas permanecera nos barcos, incertas quanto à extensão do braço oriental do exército de Kessell.
Jensin Brent e sua contraparte de Caer-Konig haviam assumido total controle da situação a partir do convés do Explorador das Brumas, a nau-capitânia de Caer-Dineval. Todas as disputas entre as duas cidades foram suspensas, ao menos temporariamente, apesar de se ouvirem promessas de amizade duradoura nos conveses de todas as embarcações sobre o Lac Dinneshir. Os dois representantes concordavam que ainda não poderiam deixar as águas do lago e fugir, pois perceberam que não havia para onde ir. Todas as dez vilas estavam sob a ameaça de Kessell, Luskan ficava a seiscentos quilômetros de distância e o exército do mago estava bem no caminho. Os refugiados mal equipados sequer sonhariam em chegar à cidade antes de serem surpreendidos pelas primeiras neves do inverno.
Os marinheiros que haviam desembarcado logo retornaram às docas com as boas novas de que Angraleste ainda não havia sido tocada pelas trevas. Mais equipagens foram enviadas à terra para trazer mais comida e cobertores, mas Jensin Brent agia com cautela, pois pensava ser aconselhável manter a maioria dos refugiados na água, longe do alcance de Kessell.
Notícias mais promissoras chegaram pouco depois.
- Sinais provenientes de Marerrubra, Representante Brent! - gritou a sentinela no alto do cesto da gávea do Explorador das Brumas. - O povo de Bom Prado e Toca de Dugan está são e salvo! - Ele ergueu seu arauto, um pequeno espelho fabricado em Termalaine e projetado para focalizar a luz do sol e enviar sinais através dos lagos, usando códigos complexos, porém limitados. - Responderam a meus chamados!
- Onde estão eles, então? - perguntou Brent, ansioso.
- Nas margens orientais - replicou a sentinela. - Embarcaram e deixaram as aldeias, pensando que seriam indefensáveis. Nenhum monstro se aproximou ainda, mas o representante achou que o outro lado do lago seria mais seguro até os invasores terem partido.
- Mantenha a comunicação - ordenou Brent. - Informe quando tiver mais notícias.
- Até os invasores terem partido? - repetiu Schermont, incrédulo, ao se colocar ao lado de Jensin Brent.
- Uma avaliação tola e otimista da situação, concordo - disse Brent. - Mas fico aliviado em saber que nossos primos ao sul ainda estão vivos!
- Vamos até eles? Juntar nossas forças?
- Ainda não - respondeu Brent. - Receio que ficaríamos vulneráveis demais no terreno desprotegido entre os lagos. Precisamos de mais informações antes de tomar qualquer ação efetiva. Vamos manter as comunicações entre os dois lagos. Reúna voluntários para levar mensagens a Marerrubra.
- Devem ser enviados imediatamente - concordou Schermont, já a caminho.
Brent assentiu e voltou a olhar para a outra margem do lago, para o penacho agonizante de fumaça sobre sua cidade.
- Mais informações - murmurou consigo mesmo.
Mais tarde, naquele mesmo dia, outros voluntários partiram em direção ao perigoso oeste para fazer um reconhecimento da situação na cidade principal.
Brent e Schermont haviam feito um trabalho magistral de controle do pânico, mas, mesmo com os ganhos substanciais na organização, o choque inicial da súbita e fatal invasão deixara a maioria dos sobreviventes de Caer-Konig e Caer-Dineval num estado de completo desespero. Jensin Brent foi a animadora exceção. O representante de Caer-Dineval era um guerreiro corajoso que recusava categoricamente a rendição até o último alento. Circulou com sua orgulhosa nau-capitânia pelos ancoradouros, reanimando o povo com suas promessas de vingança contra Akar Kessell.
Agora ele mantinha-se em vigília e aguardava no convés do Explorador das Brumas as notícias vitais que chegariam do oeste. No meio da tarde, ele ouviu o grito pelo qual rezara.
- Está de pé! - gritou, extasiada, a sentinela no cesto da gávea, assim que avistou o brilho do sinal do arauto. - Brin Shander está de pé!
De repente, o otimismo de Brent revestiu-se de credibilidade. O bando miserável de vítimas desabrigadas assumiu uma postura enfurecida, propensa a vingança. Mais mensageiros foram imediatamente despachados para levar a Marerrubra as novas de que Kessell ainda não alcançara a vitória completa.
Em ambos os lagos, foi levada a sério a tarefa de separar os guerreiros dos civis. As mulheres e as crianças passaram aos barcos mais pesados e menos robustos e os homens em condição de lutar embarcaram nas naus mais velozes. Os navios de guerra designados foram então posicionados nos atracadouros mais externos, de onde poderiam zarpar rapidamente e atravessar os lagos. Suas velas foram verificadas e retesadas em preparação para a impetuosa travessia que levaria suas corajosas tripulações à guerra.
Ou, segundo o furioso decreto de Jensin Brent: "A travessia que levaria suas corajosas tripulações à vitória!"

Régis havia se juntado mais uma vez a Cássio sobre a muralha quando o sinal do arauto foi avistado na margem sudoeste do Lac Dinneshir. O halfling dormira a maior parte da noite e do dia, imaginando que poderia muito bem morrer fazendo a coisa de que mais gostava. Ficou surpreso ao acordar, pois esperava que seu sono se prolongasse na eternidade.
Cássio, entretanto, começava a ver as coisas sob uma perspectiva diferente. Ele havia coligido uma longa lista de potenciais colapsos no exército indisciplinado de Akar Kessell; ores que intimidavam goblins, e os gigantes, por sua vez, a intimidar tanto uns quanto outros. Se conseguisse apenas encontrar uma maneira de resistir tempo suficiente para que o ódio esclarecido entre as raças de goblins começasse a prejudicar as forças de Kessell...
E, então, o sinal do Lac Dinneshir e os relatos subseqüentes de luzes semelhantes na margem mais distante de Marerrubra haviam proporcionado ao representante a esperança sincera de que o cerco poderia muito bem se desintegrar e Dez-Burgos sobreviver.
Mas foi aí que o mago fez sua dramática aparição e as esperanças de Cássio foram destruídas.
Começou como uma pulsação de luz vermelha a circular no interior da parede cristalina na base de Crishal-Tirith. Em seguida, uma segunda pulsação, desta vez azul, subiu pela torre e girou na direção contrária. Lentamente, as duas correntes começaram a contornar o perímetro da torre e a misturar-se numa luz verde toda vez que convergiam, para depois se separarem e seguirem o próprio caminho. Todos os que assistiam ao fascinante espetáculo tinham os olhos fixos e apreensivos, sem saber o que aconteceria em seguida, mas convencidos de que uma exibição de formidável poder estava por vir.
As luzes aceleraram e sua intensidade aumentava com a velocidade. Não demorou muito e toda a base da torre se achava envolta numa mancha verde tão brilhante que os espectadores precisaram desviar os olhos. Da mancha indistinta saíram dois horrendos trolls e cada um deles carregava um espelho ornamentado.
As luzes reduziram sua velocidade e pararam por completo.
A mera visão dos repugnantes trolls encheu as pessoas de Brin Shander de nojo, mas, intrigadas, nenhuma delas se voltou. Os monstros caminharam diretamente até a base da colina íngreme da cidade e postaram-se de frente um para o outro, apontando seus espelhos diagonalmente em direção um ao outro, mas ainda capturando o reflexo de Crishal-Tirith.
Raios gêmeos de luz projetaram-se da torre, e cada um deles atingiu um dos espelhos e convergiu com o outro a meio caminho entre os trolls. Uma súbita pulsação da torre, como o fulgor de um raio, deixou a área entre os monstros coberta por fumaça e, quando esta se dissipou, em lugar dos raios convergentes de luz, estava ali uma imagem tênue e deformada de um homem vestindo uma túnica de cetim vermelho.
Os goblins caíram de joelhos novamente e esconderam os rostos. Akar Kessell havia chegado.
Ele ergueu os olhos em direção a Cássio, sobre a muralha, com um sorriso arrogante a espichar-lhe os lábios finos.
- Saudações, representante de Brin Shander! - casquinou ele. - Bem-vindo a minha bela cidade! - Ele riu obliquamente.
Cássio não tinha dúvida de que o mago o distinguira, apesar de não se lembrar de algum dia ter visto aquele homem e não compreender como fora reconhecido. Olhou para Régis e Glensather, em busca de uma explicação, mas ambos deram de ombros.
- Sim, eu conheço você, Cássio - disse Kessell. - E a você, meu bom Representante Glensather, meus cumprimentos. Devia ter adivinhado que você estaria aqui; o povo de Angraleste sempre mostrou disposição em se juntar a uma causa, mesmo que não restasse esperança!
E então foi a vez de Glensather, estarrecido, fitar os companheiros. Mas, novamente, não havia explicações disponíveis.
- Você nos conhece - respondeu Cássio à aparição -, mas nos é desconhecido. Parece que você tem uma vantagem injusta.
- Injusta? - protestou o mago. - Eu tenho todas as vantagens, seu tolo! - Mais uma vez a risada. - Vocês me conhecem, ou ao menos Glensather me conhece.
O representante de Angraleste deu de ombros mais uma vez em resposta ao olhar inquisitivo de Cássio. O gesto pareceu enfurecer Kessell.
- Passei vários meses em Angraleste - disse o mago bruscamente. - Sob o disfarce de um aprendiz de mago de Luskan! Esperto, não acham?
- Você se lembra dele? - Cássio perguntou baixinho a Glensather. - Poderia ser de grande importância.
- E possível que tenha se hospedado em Angraleste - replicou Glensather no mesmo tom sussurrado -, apesar de há vários anos nenhum grupo da Torre das Hostes vir a minha cidade. Mas somos uma cidade aberta e muitos forasteiros chegam com cada caravana mercante de passagem. Com sinceridade, Cássio, não me recordo deste homem.
Kessell estava ultrajado. Bateu os pés impacientemente e o sorriso em seu rosto foi substituído por uma carantonha mal-humorada.
-Talvez meu retorno a Dez-Burgos venha a se mostrar mais memorável, seus idiotas! - disse ele bruscamente. Ergueu e esticou os braços, numa presunçosa proclamação. - Contemplem Akar Kessell, o Tirano do Vale do Vento Gélido! - gritou. - Povo de Dez-Burgos, seu mestre está aqui!
- Suas palavras são um tanto prematuras... - começou Cássio, mas Kessell o cortou com um grito arrebatado.
- Jamais me interrompa! - gritou o mago, com as veias do pescoço esticadas e salientes e o rosto vermelho como sangue.
Quando Cássio se calou, incrédulo, Kessell pareceu recuperar um pouco a compostura.
- Você há de aprender, orgulhoso Cássio. - ameaçou ele. - Há de aprender!
Ele se virou para Crishal-Tirith e pronunciou uma simples palavra de comando. A torre escureceu por um instante, como se se recusasse a liberar os reflexos da luz do sol. Depois, começou a brilhar com uma luz que parecia mais própria do que um reflexo do dia. A cada segundo que passava, a coloração mudava e a luz começava a subir e a circular pelas estranhas paredes.
- Contemplem Akar Kessell! - anunciou o mago, ainda carrancudo. - Vejam o esplendor de Crenshinibon e abandonem toda esperança!
Mais luzes começaram a lampejar no interior das paredes da torre, subindo e descendo a esmo e girando em volta da estrutura numa dança frenética que clamava por libertação. Aos poucos, dirigiram-se para o pontiagudo pináculo, e este começou a flamejar como se estivesse em chamas, passando pelas cores do espectro até sua labareda branca rivalizar com a luminosidade do próprio sol.
Kessell gritou como um homem em estado de êxtase.
O fogo foi liberado.
Projetou-se, numa linha delgada e candente, em direção ao norte e à desafortunada cidade de Targos. Muitos espectadores enfileiravam-se sobre a alta muralha de Targos, embora a torre estivesse muito mais longe deles do que de Brin Shander e parecesse pouco mais do que um ponto reluzente na planície distante. Eles faziam pouca idéia do que acontecia aos pés da cidade principal, mas viram o raio de fogo que vinha em sua direção.
Mas, então, já era tarde demais.
A ira de Akar Kessell atroou pela orgulhosa cidade adentro e abriu uma trilha de devastação instantânea. Chamas irromperam por toda a extensão de sua linha assassina. As pessoas apanhadas na trajetória direta do raio sequer tiveram a chance de gritar antes de serem simplesmente vaporizadas. Mas aqueles que sobreviveram ao assalto inicial, tanto as mulheres quanto as crianças e os homens endurecidos pela tundra, que haviam enfrentado a morte milhares de vezes ou mais, esses de fato gritaram. E seu pranto atravessou o lago sereno até Bosquesó e Bremen, até os goblins jubilantes em Termalaine e planície abaixo até as testemunhas horrorizadas em Brin Shander.
Kessell acenou com a mão e alterou ligeiramente o ângulo do disparo, fazendo, assim, a destruição descrever um arco por toda a Targos. Toda estrutura importante no interior da cidade logo estava ardendo, e centenas de pessoas jaziam mortas ou, agonizantes, rolavam lamentavelmente no solo para extinguir as chamas que envolviam seus corpos, ou ofegavam inutilmente em busca de ar em meio à densa fumaça.
Kessell deliciou-se com o momento. Mas, depois, sentiu um calafrio na espinha e a torre também pareceu estremecer. O mago apertou a relíquia, ainda enfiada sob as dobras de sua túnica. Compreendeu que havia forçado demais os limites do poder de Crenshinibon.
Na Espinha do Mundo, a primeira torre que Kessell erguera desabou e ficou em escombros. E, longe, na vasta tundra, o mesmo aconteceu à segunda. A estilha se recolheu e destruiu as cópias-torres que exauriam sua força.
Kessell também fora exaurido pelo esforço, e as luzes da Crishal-Tirith remanescente começaram a sossegar e, em seguida, a minguar. O raio tremulou e extinguiu-se.
Mas havia cumprido sua função.
Na primeira onda da invasão, Kemp e os outros orgulhosos líderes de Targos haviam prometido a seu povo que defenderiam a cidade até que o último homem tivesse caído, mas mesmo o teimoso representante percebeu que não restava escolha a não ser fugir. Felizmente, a cidade propriamente dita, que recebera o grosso do ataque de Kessell, ficava em terreno elevado, sobranceando a área protegida da baía. As frotas continuavam ilesas. E os pescadores desabrigados de Termalaine já estavam nas docas, pois haviam permanecido nos barcos depois de aportados em Targos. Logo que se deram conta da inacreditável extensão da destruição que ocorria na cidade em si, eles começaram a se preparar para o influxo iminente dos últimos refugiados de guerra. A maioria dos barcos de ambas as cidades fez-se ao largo minutos depois do ataque, tentando desesperadamente colocar as velas vulneráveis a uma distancia segura das fagulhas e dos escombros carregados pelo vento. Algumas naus ficaram para trás, desafiando os riscos cada vez maiores para resgatar os retardatários nas docas.
As pessoas na doca de Brin Shander choravam diante dos gritos persistentes dos agonizantes. Cássio, porém, consumido por sua missão de procurar e encontrar as fraquezas aparentes que Kessell acabara de revelar, não tinha tempo para lágrimas. Na verdade, os gritos afetavam-no tão profundamente quanto a qualquer outro, mas, relutante em deixar o lunático Kessell ver qualquer insinuação de fraqueza da parte dele, transformou o pesar de sua fisionomia num esgar férreo de fúria. Kessell ria dele.
- Não faça beicinho, meu pobre Cássio - escarneceu o mago. - Não fica bem.
- Você é um cachorro - retorquiu Glensather. - E cães indisciplinados devem ser castigados!
Cássio deteve seu colega representante com a mão estendida.
- Acalme-se, meu amigo - sussurrou. - Kessell vai se alimentar de nosso pânico. Deixe-o falar: está revelando mais do que imagina.
- Pobre Cássio - repetiu Kessell sarcasticamente. Então, de repente, a face do mago desfigurou-se de raiva. Cássio notou vividamente a abrupta oscilação e arquivou-a com as outras informações que recolhera.
- Prestem muita atenção ao que vocês testemunharam aqui, povo de Brin Shander! - zombou Kessell. - Curvem-se diante de seu mestre ou o mesmo destino há de recair sobre vocês! E vocês não têm um lago a suas costas! Não têm para onde fugir!
Ele voltou a rir desvairadamente e percorreu com os olhos a colina da cidade, como se procurasse alguma coisa.
- O que vocês vão fazer? - casquinou ele. - Não têm um lago! Já me pronunciei, Cássio. Ouça-me com atenção. Amanhã, você enviará um emissário até mim, um emissário portando notícias de sua rendição incondicional! E caso seu orgulho impeça tal ato, lembre-se dos gritos da Targos agonizante! Olhe para a cidade às margens do Maer Dualdon em busca de orientação, miserável Cássio. As chamas ainda deverão estar ardendo ao raiar do dia de amanhã!
Naquele exato momento, um mensageiro correu até o representante.
- Avistaram-se muitas embarcações deixando o manto de fumaça em Targos. Os sinais dos arautos já começaram a chegar, vindos dos refugiados.
- E quanto a Kemp? - perguntou Cássio, ansioso.
- Está vivo - respondeu o mensageiro. - E jurou vingança.
Cássio deixou escapar um suspiro de alívio. Não era muito amigo de seu equivalente em Targos, mas sabia que o calejado representante se mostraria um trunfo valioso para a causa de Dez-Burgos antes do fim.
Kessell ouviu a conversa e grunhiu de desdém.
- E para onde eles vão fugir? - perguntou a Cássio.
O representante, concentrado em estudar aquele adversário imprevisível e desequilibrado, não respondeu, mas Kessell o fez por ele.
- Para Bremen? Mas não podem! - Ele estalou os dedos, dando início à transmissão de uma mensagem pré-combinada para suas forças mais a oeste. Imediatamente, um grande grupo de goblins saiu da formação e partiu para o oeste.
Rumo a Bremen.
- Vê? Bremen cairá antes do fim da noite e mais uma frota fugirá para o precioso lago. A cena há de se repetir na vila do bosque com resultados previsíveis. Mas que proteção os lagos oferecerão a essas pessoas quando o inverno implacável chegar? - gritou ele. - Com que rapidez suas embarcações hão de fugir de mim quando as águas se congelarem ao redor delas?
Ele riu novamente mas, dessa vez, com mais seriedade, mais perigo.
- Que proteção tem qualquer um de vocês contra Akar Kessell?
Cássio e o mago fitaram-se obstinadamente. O mago mal e mal enunciou as palavras, mas Cássio ouviu-as claramente:
- Que proteção?

No Maer Dualdon, Kemp reprimiu sua raiva frustrada ao assistir à queda de sua cidade em chamas. Rostos enegrecidos pela fuligem fitavam as ruínas incandescentes, incrédulos e aterrorizados, gritando recusas impossíveis e chorando indisfarçadamente pelos amigos e parentes perdidos.
Mas, como Cássio, Kemp converteu seu desespero em ira construtiva. Logo que soube do destacamento de goblins a caminho de Bremen, despachou seu barco mais veloz para alertar o povo daquela distante cidade e informá-los sobre os acontecimentos do outro lado do lago. Depois, enviou um outro barco em direção a Bosquesó para implorar por comida e ataduras, e talvez um convite para aportar.
Apesar de suas óbvias diferenças, os representantes das dez vilas eram parecidos em vários aspectos. Como Agorwal, feliz em sacrificar tudo pelo bem do povo, e Jensin Brent, que se recusava a entregar-se ao desespero, Kemp de Targos pôs-se a conclamar sua gente para um ataque retaliatório. Não sabia ainda como realizaria a proeza, mas sabia que ainda teria a palavra final na guerra do mago.
E, sobre a muralha de Brin Shander, Cássio também o sabia.

25
Errtu

Drizzt rastejou para fora de sua câmara oculta quando as últimas luzes do sol poente começaram a desaparecer. Perscrutou o horizonte meridional e ficou mais uma vez consternado. Ele precisara descansar, mas não pôde evitar as agudas dores da culpa ao ver a cidade de Targos ardendo, como se tivesse negligenciado seu dever de testemunhar o sofrimento das vítimas indefesas de Kessell.
No entanto, o drow não estivera ocioso, nem mesmo durante as horas do transe meditativo que os elfos chamavam de sono. Ele viajara de volta ao mundo subterrâneo de suas lembranças remotas, em busca de uma determinada sensação, a aura de uma poderosa presença que conhecera outrora. Apesar de não ter se aproximado o bastante para dar uma boa olhada no demônio que seguira na noite anterior, alguma coisa na criatura havia tangido uma corda familiar em suas mais antigas recordações. Uma emanação sobrenatural e penetrante cercava as criaturas dos planos inferiores quando estas caminhavam no mundo material, uma aura que os elfos negros, mais do que qualquer outra raça, haviam aprendido a compreender e a reconhecer. Drizzt conhecia não apenas aquele tipo de demônio, mas aquela criatura em particular. O monstro servira a sua gente em Menzoberranzan durante muitos anos.
- Errtu - ele murmurou enquanto vasculhava seus sonhos. Drizzt sabia o verdadeiro nome do demônio. O monstro atenderia a seu chamado.

Drizzt levou mais de uma hora em busca de um lugar apropriado para a invocação do demônio, e várias outras a preparar a área. Seu objetivo era anular tantas das vantagens de Errtu quantas pudesse - particularmente o tamanho e a capacidade de vôo -, apesar de esperar sinceramente que o encontro não envolvesse combate. As pessoas que conheciam o drow consideravam-no ousado, até mesmo imprudente, às vezes -, mas isso era contra inimigos mortais que recuavam diante da dor pungente de suas espadas sibilantes. Os demônios, principalmente aqueles com o tamanho e a força de Errtu, eram outra história. Muitas vezes, durante sua juventude, Drizzt testemunhara a ira de um monstro como aquele. Vira edifícios lançados por terra, a pedra sólida despedaçada pelas grandes mãos providas de garras. Vira pujantes guerreiros humanos atingirem o monstro com golpes que abateriam um ogro, apenas para descobrir, no terror da morte, que suas armas eram inúteis contra um ser tão poderoso dos planos inferiores.
Seu próprio povo geralmente se saía um pouco melhor contra os demônios e, na verdade, merecia até um certo grau de respeito da parte deles. Os demônios aliavam-se com freqüência aos drow em pé de igualdade, ou até mesmo serviam abertamente aos elfos negros, pois temiam a magia e as poderosas armas possuídas pelos drow. Mas isso era no mundo subterrâneo, onde as estranhas emanações das singulares formações de rocha abençoavam os metais usados pelos artífices drow com propriedades mágicas e misteriosas. Drizzt não tinha nenhuma das armas de sua terra natal, pois sua estranha magia não resistia à luz do dia; embora ele tivesse tomado o cuidado de protegê-las contra o sol, tornaram-se inúteis logo depois de ele ter se mudado para a superfície. Ele duvidava que as armas que agora carregava fossem capazes de ferir Errtu. E, mesmo que conseguissem, os demônios da estatura de Errtu não podiam ser realmente destruídos longe de seus planos de origem. Se chegassem às vias de fato, o máximo que Drizzt poderia esperar fazer era banir a criatura do Plano Material durante cem anos.
Ele não tinha a menor intenção de lutar.
No entanto, precisava tentar algo contra o mago que ameaçava as vilas. Seu objetivo agora era conseguir algumas informações que pudessem revelar um ponto fraco no mago, e seu método era a trapaça e o disfarce, pois esperava que Errtu recordasse o bastante sobre os elfos negros para tornar verossímil sua história, mas não demais para desnudar as mentiras frágeis que a comporiam.
O lugar que escolhera para o encontro era uma valeira abrigada, a uma pequena distância da face escarpada da montanha. Um teto provido de pináculo, formado por paredes convergentes, cobria metade da área; a outra metade abria-se para o céu, mas o lugar todo estava encravado na encosta da montanha, atrás dos elevados paredões, seguro e fora do alcance da visão de Crishal-Tirith. Agora, Drizzt usava o punhal e riscava runas de proteção nas paredes e no chão defronte ao lugar onde se sentaria. A imagem mental que tinha desses símbolos mágicos havia se obscurecido depois de tantos anos, e ele sabia que seu traçado estava longe de ser perfeito. No entanto, percebeu que precisaria de toda a proteção que eles pudessem oferecer caso Errtu se virasse contra ele.
Ao terminar, ele se sentou de pernas cruzadas sob o teto de pedra, atrás da área protegida, e sacou da mochila a pequena estatueta que ali carregava. Guenhwyvar seria um bom teste para suas inscrições de proteção.
O grande felino respondeu à invocação. Apareceu do outro lado do cubículo, e seus olhos aguçados já esquadrinhavam a área, em busca de qualquer perigo potencial que ameaçasse seu mestre. Depois, como nada sentisse, lançou uma olhar curioso para Drizzt.
- Venha até mim - chamou Drizzt, acenando com a mão. O gato deu um passo na direção dele, depois parou abruptamente, como se houvesse trombado com uma parede. Drizzt suspirou aliviado ao ver que as runas encerravam algum poder. Sua confiança aumentou consideravelmente, apesar de compreender que Errtu forçaria o poder das runas a seus limites absolutos, e provavelmente além.
Guenhwyvar deixou pender sua imensa cabeça num esforço para compreender o que a impedia. A resistência não havia sido realmente muito forte, mas os sinais atrapalhados de seu mestre - chamando-a, porém repelindo-a - confundiram a pantera. Ela cogitou reunir suas forças e atravessar a barreira frágil, mas seu mestre pareceu satisfeito por ela ter parado. Portanto, o gato se sentou onde estava e esperou.
Drizzt estava entretido estudando a área, à procura do lugar mais favorável para Guenhwyvar, um canto de onde ela pudesse saltar e surpreender o demônio. Uma saliência recôndita numa das paredes altas, logo depois da parte que convergia na formação de um teto, pareceu oferecer o melhor esconderijo. Ele fez sinal para que o gato se colocasse em posição e o instruiu a não atacar até receber ordem para tanto. Em seguida, ele voltou a se sentar e tentou relaxar, concentrado em seus últimos preparativos mentais antes de invocar o demônio.

Do outro lado do vale, na torre mágica, Errtu estava agachado num canto escuro do harém de Kessell, em eterna vigilância sobre o mago maligno que brincava com suas meninas de mentes despedaçadas. Uma chama tremulante de ódio ardia nos olhos de Errtu toda vez que ele pensava no estúpido Kessell. O mago quase arruinara tudo com sua demonstração de poder naquela tarde e sua recusa em demolir as torres desocupadas que haviam ficado para trás, o que havia exaurido ainda mais a força de Crenshinibon.
Errtu sentira uma impiedosa satisfação quando Kessell retornara a Crishal-Tirith e confirmara, por meio do uso dos espelhos de cristalomancia, que as outras duas torres haviam se desfeito em pedaços. Errtu alertara Kessell para não erguer uma terceira torre, mas o mago de ego frágil ficava mais teimoso a cada dia da campanha, imaginando que os conselhos do demônio, ou mesmo os de Crenshinibon, não passavam de uma manobra para minar seu controle absoluto.
E, portanto, Errtu, mostrou-se bastante receptivo, até mesmo aliviado, quando ouviu o chamado de Drizzt flutuando pelo vale. A princípio, ele rejeitou a possibilidade daquela invocação, mas as inflexões de seu verdadeiro nome pronunciadas em voz alta davam-lhe calafrios. Mais intrigado do que furioso com a impertinência do mortal que se atrevia a pronunciar seu nome, Errtu fugiu do mago distraído e deixou Crishal-Tirith.
Veio o chamado novamente, atravessando a harmonia da canção infindável do vento como uma onda de crista espumosa num lago tranqüilo.
Errtu esticou as grandes asas e planou sobre a tundra, voando para o norte, cada vez mais rápido, em direção ao conjurador. Os goblins aterrorizados fugiam da sombra escura do demônio de passagem, pois, mesmo sob a luz tênue de uma lua esquálida, a criatura do Abismo deixava uma tal esteira de trevas que fazia a noite parecer clara.
Drizzt inspirou profundamente, tenso. Ele sentiu a aproximação certeira do demônio quando este se desviou da Via de Bremen e subiu impetuosamente pelas encostas inferiores do Sepulcro de Kelvin, Guenhwyvar ergueu a cabeça repousada sobre as patas e rosnou, sentindo também a aproximação do monstro maligno. O gato recolheu-se ao fundo da saliência recôndita e manteve-se abaixado e imóvel, aguardando a ordem de seu mestre, confiante que suas excepcionais habilidades de dissimulação poderiam protegê-lo até mesmo da grande sensibilidade de um demônio.
As asas coriáceas de Errtu fecharam-se quando ele pousou na saliência. Ele determinou imediatamente a localização exata do conjurador e, mesmo tendo de encolher os ombros largos para passar pela entrada estreita da valeira, precipitou-se direto para dentro, com a intenção de mitigar sua curiosidade e depois matar o tolo blasfemo que ousava pronunciar seu nome em voz alta.
Drizzt esforçou-se para manter sua margem de controle quando o imenso demônio forçou passagem, com o corpanzil a preencher a pequena área do outro lado do minúsculo santuário do drow e obstruir a luz das estrelas. Não havia como se desviar daquele perigoso curso. Ele não tinha para onde fugir.
O demônio deteve-se subitamente, estupefato. Havia séculos Errtu não punha os olhos num drow e sem dúvida jamais esperara encontrar um deles na superfície, nos desertos congelados do norte mais longínquo.
De algum modo, Drizzt encontrou sua voz.
- Saudações, mestre do caos - disse ele tranqüilamente, com uma reverência. - Sou Drizzt Do'Urden, da casa de Daermon N'a'shezbaernon, nona família da linha de sucessão ao trono de Menzoberranzan. Bem-vindo a meu humilde acampamento.
- Você está bem longe de casa, drow - disse o demônio, com óbvia desconfiança.
- Como vós, grande demônio do Abismo - replicou Drizzt serenamente. - E atraído a este alto rincão do mundo por motivos semelhantes, a menos que eu esteja enganado.
- Sei por que estou aqui - respondeu Errtu. - Os assuntos dos drow sempre estiveram além de minha compreensão, ou de minha atenção!
Drizzt afagou o queixo esguio e riu com fingida confiança. Tinha o estômago apertado e sentiu o princípio de um suor frio a caminho. Riu novamente e lutou contra o medo. Se o demônio percebesse sua apreensão, sua credibilidade seria em muito reduzida.
- Ah, mas desta vez, pela primeira vez em muitos anos, parece que nossas estradas se cruzaram, poderoso aprovisionador da destruição. Meu povo tem uma certa curiosidade, talvez até mesmo um certo interesse pelo mago a quem você parece servir.
Errtu aprumou os ombros, e os primeiros bruxuleios de perigosas chamas apareceram em seus olhos vermelhos.
- Servir? - repetiu, incrédulo, e o tom regular de sua voz falhou, como se tocasse as raias de uma fúria incontrolável.
Drizzt rapidamente qualificou sua observação.
- Tudo indica, guardião das intenções caóticas, que o mago tem algum poder sobre você. Sem dúvida, você trabalha lado a lado com Akar Kessell.
- Não sirvo a humano nenhum! - rugiu Errtu, fazendo estremecer a própria fundação da caverna com uma batida enfática do pé.
Drizzt especulou se a luta que sequer sonhava vencer estaria prestes a começar. Cogitou chamar Guenhwyvar para que juntos pudessem ao menos desferir os primeiros golpes.
Mas, de repente, o demônio voltou a se acalmar. Convencido de que tinha adivinhado em parte o motivo da presença inesperada do drow, Errtu lançou um olhar inquisitivo para Drizzt.
- Servir ao mago? - gargalhou. - Akar Kessell é insignificante até mesmo pelos baixos padrões dos humanos! Mas você sabe disso, drow, e não ouse negá-lo. Está aqui, como eu estou aqui, por causa de Crenshinibon, e que se dane Kessell!
O olhar confuso no rosto do drow foi genuíno o bastante para fazer Errtu perder o equilíbrio. O demônio ainda acreditava que seu palpite estava correto, mas não conseguia entender por que o drow não compreendia o nome.
- Crenshinibon - explicou, estendendo a mão e as garras para o sul. - Um antigo bastião de poder indescritível.
- A torre? - perguntou Drizzt.
A incerteza de Errtu aflorou na forma de fúria explosiva.
- Não banque o ignorante comigo! - berrou o demônio. - Os lordes-drow conhecem muito bem o poder do artefato de Akar Kessell, ou então não teriam vindo à superfície para procurá-lo!
- Muito bem, você adivinhou - cedeu Drizzt. - Mas eu precisava me certificar de que a torre na planície era de fato o antigo artefato que procurava. Meus mestres mostram pouca misericórdia aos espiões negligentes.
Errtu sorriu perversamente ao recordar as medonhas câmaras de tortura de Menzoberranzan. Aqueles anos que passara entre os elfos negros haviam sido realmente agradáveis!
Drizzt rapidamente impeliu a conversa numa direção que talvez revelasse alguns dos pontos fracos de Kessell ou de sua torre.
- Uma coisa me deixa intrigado, horripilante espectro de maldade desenfreada - começou ele, tomando o cuidado de dar continuidade a sua série de elogios não repetidos. - Com que direito o mago possui Crenshinibon?
- Nenhum - disse Errtu. - Mago, ora! Comparado a seu povo, ele não passa de um aprendiz. A língua dele se contorce desajeitadamente ao pronunciar até mesmo o mais simples dos encantamentos. Mas é comum o destino fazer brincadeiras assim. Maior é o prazer, digo eu! Deixe Akar Kessell ter seu breve momento de triunfo. Os humanos não vivem muito tempo!
Drizzt sabia que seguia uma perigosa linha de questionamento, mas aceitou o risco. Mesmo com um demônio importante tão perto dele, Drizzt calculou que suas chances de sobrevivência naquele momento eram melhores que as de seus amigos em Brin Shander.
- Ainda assim, meus mestres preocupam-se com a possibilidade da torre ser danificada na batalha iminente com os humanos - blefou.
Errtu examinou Drizzt por mais um instante. A aparição dos elfos negros complicava o plano simples do demônio de herdar Crenshinibon de Kessell. Se os poderosos lordes-drow da imensa cidade de Menzoberranzan realmente tivessem planos que envolviam a relíquia, o demônio sabia que a conseguiriam. Kessell, com toda a certeza, mesmo com o poder da estilha, não poderia resistir-lhes. A mera presença daquele drow mudava a maneira como o demônio via sua relação com Crenshinibon. Como Errtu desejava que pudesse simplesmente devorar Kessell e fugir com a relíquia antes que os elfos negros se envolvessem demais!
No entanto, Errtu nunca havia considerado os drow como inimigos, e o demônio desprezava o mago titubeante. Talvez uma aliança com os elfos negros pudesse se mostrar benéfica para ambos os lados.
- Diga-me, campeão inigualável das trevas - pressionou Drizzt -, Crenshinibon está em perigo?
- Ora! - desdenhou Errtu. - Mesmo a torre, que é meramente um reflexo de Crenshinibon, é impenetrável. Absorve todos os ataques dirigidos contra suas paredes espelhadas e os reflete de volta à própria origem! Somente o pulsante cristal de energia, o próprio coração de Crishal-Tirith, é vulnerável, mas está escondido em segurança.
- Lá dentro?
- É claro.
- Mas e se alguém entrasse na torre - raciocinou Drizzt -, quão bem protegido, então, ele encontraria o núcleo?
- Uma tarefa impossível! - replicou o demônio. - A menos que os pescadores simplórios de Dez-Burgos tenham algum espírito a serviço deles. Ou talvez um sacerdote-mor, ou um arquimago para lançar encantamentos de revelação. Sem dúvida, seus mestres sabem que a porta de Crishal-Tirith é invisível e impossível de detectar por quaisquer seres inerentes ao plano em que atualmente descansa a torre. Nenhuma criatura deste mundo material - nem mesmo sua raça - conseguiria encontrar uma maneira de entrar!
- Mas... - Drizzt pressionou, ansioso. Errtu o interrompeu.
- Mesmo se alguém entrasse na estrutura por acidente - grunhiu ele, impaciente com a torrente implacável de suposições impossíveis -, teria de passar por mim. E o limite do poder de Kessell dentro da torre é realmente considerável, pois o mago tornou-se uma extensão da própria Crenshinibon, um escape vivo para a força incomensurável da estilha de cristal! O núcleo jaz além do próprio ponto focal da interação de Kessell com a torre e no alto do próprio topo... - O demônio deteve-se, subitamente desconfiado da linha de questionamento de Drizzt. Se o os sábios lordes-drow estivessem realmente interessados em Crenshinibon, por que não estavam mais inteirados de seus pontos fortes e fracos?
Foi aí que Errtu compreendeu seu erro. Ele voltou a examinar Drizzt, mas com um foco diferente. Ao encontrar o drow, atordoado pela mera presença de um elfo negro na região, ele havia procurado sinais de trapaça nos atributos físicos do próprio Drizzt, tentando determinar se as características drow eram uma ilusão - um truque inteligente, porém simples de alteração da forma, ao alcance até mesmo de um mago menor.
Quando se convenceu de que tinha diante dele um drow de verdade e não uma ilusão, Errtu aceitou a credibilidade da história de Drizzt, consistente com o estilo dos elfos negros.
Agora, porém, o demônio explorava outros indícios periféricos além da pele negra de Drizzt, reparando nos objetos que este carregava e na área que ele delimitara para o encontro. Nada que Drizzt tinha consigo, nem mesmo as armas embainhadas em seus quadris, emanava as distintas propriedades mágicas do mundo subterrâneo. Talvez os mestres-drow tivessem aparelhado seus espiões de maneira mais adequada ao mundo da superfície, raciocinou Errtu. Pelo que aprendera sobre os elfos negros durante seus muitos anos de serviço em Menzoberranzan, a presença daquele drow não era uma ultrajante.
Mas as criaturas do caos sobreviviam porque não confiavam em ninguém.
Errtu continuou sua busca por indícios da autenticidade de Drizzt. O único objeto percebido pelo demônio a refletir a herança de Drizzt era uma fina corrente de prata presa em volta do pescoço esguio, uma jóia comum entre os elfos negros, usada para carregar uma pequena bolsa de dinheiro. Concentrando-se nisso, Errtu descobriu uma segunda corrente, mais delicada que a primeira e a ela entrelaçada. O demônio seguiu o vinco quase imperceptível criado pela longa corrente no gibão de Drizzt.
Incomum, observou ele, e talvez revelador. Errtu apontou a corrente, pronunciou uma palavra de comando e ergueu o dedo esticado.
Drizzt retesou-se ao sentir o emblema deslizar para fora de seu gibão de couro. O símbolo passou pelo decote do traje, caiu até esticar a corrente e pender exposto sobre seu peito.
O sorriso maldoso de Errtu alargou-se juntamente com seus olhos semi-cerrados.
- Escolha incomum para um drow - sibilou ele com sarcasmo. - Eu teria esperado o símbolo de Llolth, a rainha-demônio de seu povo. Ela não ficaria nada feliz!
Como que a partir do nada, um chicote de muitas correias apareceu numa das mãos do demônio e, na outra, uma espada denteada e cruelmente chanfrada.
A princípio, a mente de Drizzt lançou-se por centenas de caminhos, explorou as mentiras mais plausíveis que poderia inventar para tirá-lo daquele apuro. Mas, em seguida, ele chacoalhou a cabeça resolutamente e descartou as mentiras. Ele não desonraria sua divindade.
Da corrente de prata pendia um presente de Régis, uma peça que o halfling entalhara a partir dos ossos de uma das poucas cabeçudas que jamais fisgara. Drizzt ficara profundamente emocionado quando Régis lhe mostrara o pingente e considerava-o o melhor trabalho do halfling. Girava suspenso pela longa corrente, e o relevo e o sombreado delicados conferiam-lhe o caráter de uma verdadeira obra de arte.
Era uma cabeça de unicórnio, o símbolo da deusa Mielikki.
- Quem é você, drow? - exigiu Errtu. O demônio já tinha se decidido a matar Drizzt, mas estava intrigado com um encontro tão incomum. Um elfo negro que seguia a Dama da Floresta? E um habitante da superfície também! Errtu conhecera muitos drow ao longo dos séculos, mas nunca ouvira falar de um que tivesse abandonado os costumes perversos dos drow. Assassinos frios todos eles, haviam ensinado até mesmo ao grande demônio do caos alguns truques no que se referia aos métodos da tortura excruciante.
- Sou Drizzt Do'Urden, isso ao menos é verdade - replicou Drizzt tranqüilamente. - Aquele que renunciou à Casa de Daermon N'a'shezbaernon. - Todo o medo abandou Drizzt assim que ele aceitou, malgrado toda e qualquer esperança, que teria de lutar com o demônio. Ele assumia agora a serena prontidão de um guerreiro experiente, preparado para aproveitar a menor vantagem que aparecesse. - Um ranger humilde a serviço de Gwaeron Windstrom, herói da deusa Mielikki. - Ele fez uma reverência, de acordo com as normas de uma apresentação adequada.
Ao se endireitar, ele desembainhou as cimitarras.
- Preciso derrotá-lo, cicatriz da vilania - declarou -, e mandá-lo de volta ao turbilhão de nuvens do Abismo sem fundo. Não há lugar no mundo iluminado pelo sol para alguém de sua espécie.
- Você está confuso, elfo - disse o demônio. - Perdeu os costumes de seu povo e agora ousa presumir que é capaz de me derrotar! - Chamas se ergueram das pedras ao redor de Errtu. - Eu o teria matado com misericórdia, com um golpe limpo, por respeito a sua raça. Mas seu orgulho me atormenta; hei de ensiná-lo a desejar a morte! Venha, sinta a ardência de minhas chamas!
Drizzt já se encontrava praticamente indefeso diante do calor do fogo demoníaco de Errtu, e a luminosidade das chamas feriam seus olhos sensíveis. O corpanzil do demônio parecia apenas a mancha embaçada de uma sombra. O drow viu a escuridão que se estendia à direita do demônio e compreendeu que Errtu havia erguido sua terrível espada. Posicionou-se para a defesa mas, de repente, o demônio cambaleou de lado e rugiu, surpreso e enfurecido.
Guenhwyvar havia se agarrado firmemente ao braço erguido da criatura.
O imenso demônio manteve a pantera à distância, tentando imprensar o gato entre seu antebraço e a parede de rocha para manter as garras e os dentes dilacerantes longe de uma área vital. Guenhwyvar mordia e arranhava o braço descomunal, rasgava a pele e os músculos do demônio.
Errtu afastou o violento ataque com um estremecimento e decidiu lidar com o gato mais tarde. A principal preocupação do demônio continuava a ser o drow, pois ele respeitava o poder potencial dos elfos negros. Errtu vira muitos adversários abatidos por um dos incontáveis truques dos elfos negros.
O chicote vergastou as pernas de Drizzt, rápido demais para que o drow, ainda tonto com a súbita explosão de luz das chamas, aparasse o golpe ou se esquivasse. Errtu puxou o cabo assim que as correias se emaranharam nas pernas finas e nos tornozelos do drow, com força suficiente para lançar Drizzt facilmente de costas ao chão.
Drizzt sentiu a dor lancinante em suas pernas e ouviu o jato de ar expelido de seus pulmões ao cair sobre a pedra dura. Ele sabia que precisava reagir sem demora, mas o fulgor das chamas e o súbito ataque de Errtu o desorientaram. Viu-se arrastado pela pedra, sentiu a intensidade do calor que aumentava. Ele conseguiu erguer a cabeça apenas a tempo de ver os pés emaranhados penetrarem o fogo demoníaco.
- E, assim, eu morro - declarou categoricamente.
Mas suas pernas não queimaram.
Salivando de antecipação pelos gritos agonizantes de sua vítima indefesa, Errtu deu um puxão mais forte no chicote e arrastou Drizzt completamente para dentro do fogo. Apesar de totalmente envolto pelas labaredas, o drow mal se sentia aquecido pelas chamas.
E então, com um derradeiro silvo de protesto, as chamas ardentes extinguiram-se de repente.
Nenhum dos oponentes compreendeu o que acontecia, pois ambos presumiram que o outro havia sido o responsável.
Errtu atacou rapidamente mais uma vez. Baixando o pé pesado sobre o peito de Drizzt, começou a esmagá-lo contra a pedra. O drow, desesperado, distribuiu golpes com uma das armas, mas isso não teve qualquer efeito sobre o monstro de um outro mundo.
Foi então que Drizzt brandiu a outra cimitarra, a espada que recolhera do tesouro do dragão.
Chiando como a água em contato com o fogo, ela penetrou a articulação do joelho de Errtu. O punho da arma aqueceu-se quando a lâmina rasgou a pele do demônio e quase queimou a mão de Drizzt. Depois, tornou-se fria como o gelo, como se extinguisse a força vital e ardente de Errtu com uma energia glacial toda própria. Drizzt compreendeu, então, o que apagara as chamas.
O demônio boquiabriu-se, completamente horrorizado, depois gritou de agonia. Nunca sentira tamanha ardência! Ele saltou para trás e agitou-se freneticamente, tentando escapar à terrível dor provocada pela arma, e arrastou Drizzt, que não conseguia largar o punho. Guenhwyvar foi atirada longe com a violência da fúria do demônio, voou do braço do monstro e colidiu pesadamente com a parede.
Drizzt fitou o ferimento, incrédulo, enquanto o demônio recuava. Jorrava vapor do buraco no joelho de Errtu e as bordas do corte cobriam-se de gelo!
Mas Drizzt também havia se enfraquecido com o golpe. Em sua luta com o poderoso demônio, a cimitarra extraíra a força vital do portador e arrastara Drizzt para a batalha com o monstro de fogo.
Agora o drow sentia como se não lhe tivessem restado forças nem mesmo para ficar de pé. Mas flagrou-se investindo adiante, com a espada em riste, como que arrastado pela avidez da cimitarra.
A entrada era muito estreita. Errtu não conseguia se esquivar nem saltar para longe.
A cimitarra encontrou o ventre do demônio.
A onda explosiva que resultou do contato da lâmina com o núcleo da força vital de Errtu exauriu as energias de Drizzt e o arremessou para trás. Ele se chocou com a parede de pedra e desabou, mas conseguiu manter-se alerta o suficiente para testemunhar a luta titânica que ainda continuava.
Errtu saiu para a saliência. O demônio agora cambaleava, tentando abrir as asas. Mas elas pendiam, combalidas. O poder da cimitarra emitia uma luz branca e a arma continuava com seu assalto. O demônio não suportava segurá-la nem arrancá-la da própria carne, apesar de a lâmina encravada, cuja magia apagava as chamas que ela fora criada para destruir, estivesse certamente vencendo o conflito.
Errtu compreendeu que havia se descuidado, pois confiara excessivamente em sua capacidade de destruir qualquer mortal em combate singular. O demônio não tinha pensado na possibilidade de uma espada tão cruel existir; nunca ouvira falar de uma arma com tamanha ardência!
O vapor jorrava das vísceras expostas de Errtu e envolvia os combatentes.
- E, assim, você me baniu, drow traiçoeiro! - chispou ele.
Tonto e estupefato, Drizzt viu a luz branca aumentar em intensidade e a sombra escura diminuir.
- Cem anos, drow! - uivou Errtu. - Não é muito tempo para nenhum de nós! - O vapor se adensava à medida que a sombra parecia derreter.
- Um século, Drizzt Do'Urden! - veio o grito enfraquecido de Errtu desde algum lugar muito distante. - Cuidado, então! Errtu não estará muito longe!
O vapor flutuou no ar e sumiu.
O último som que Drizzt ouviu foi o retinir da cimitarra de metal que caía sobre a saliência de pedra.

26
Direitos de Vitória

Wulfgar estava recostado em sua cadeira, à cabeceira da mesa principal no Recinto do Hidromel, que fora construído às pressas, e batia o pé ansiosamente por causa da longa e necessária demora devida às exigências da tradição. Sentia que seu povo já deveria estar a caminho, mas foi a restauração das cerimônias e celebrações tradicionais que imediatamente o diferenciaram - e o colocaram acima - do tirano Heafstaag aos olhos dos céticos e sempre desconfiados bárbaros.
Wulfgar, afinal, entrara no acampamento depois de cinco anos de ausência e desafiara seu rei de longa data. Um dia depois, conquistara a coroa e no dia seguinte fora coroado Rei Wulfgar da Tribo do Alce.
E era sua determinação que seu reinado, curto como pretendia que este fosse, não se caracterizasse pelas ameaças e táticas intimidativas de seu predecessor. Ele pediria, e não ordenaria aos guerreiros das tribos reunidas que o acompanhassem na batalha, pois sabia que o guerreiro bárbaro era um homem impelido quase exclusivamente pelo orgulho feroz. Despojados de sua dignidade, como Heafstaag fizera ao se recusar a honrar a soberania dos reis individuais, os homens da tribo não eram melhores na batalha do que os homens comuns. Wulfgar sabia que era preciso recuperar a vantagem daquele orgulho se quisessem ter alguma chance contra a esmagadora superioridade numérica do mago.
Portanto, Hengorot, o Recinto do Hidromel, fora erguido e o Desafio da Canção iniciado pela primeira vez em quase cinco anos. Era um momento breve e feliz de competição jovial entre as tribos, sufocadas sob a dominação implacável de Heafstaag.
A decisão de erguer o recinto de pele de gamo havia sido difícil para Wulfgar. Supondo-se que ainda houvesse tempo antes de o exército de Kessell atacar, ele ponderou os benefícios de retornar à tradição e a necessidade premente de urgência. Ele esperava apenas que, no frenesi dos preparativos antes da batalha, Kessell não notasse a ausência do rei bárbaro, Heafstaag. Se o mago fosse perspicaz, isso era bastante improvável.
Agora ele esperava silenciosa e pacientemente, observando as chamas retornarem aos olhos dos homens da tribo.
- Como nos velhos tempos? - perguntou Revjak, sentado a seu lado.
- Bons tempos - respondeu Wulfgar.
Satisfeito, Revjak recostou-se na parede de pele de gamo da tenda e proporcionou ao novo chefe a solidão que ele obviamente desejava. E Wulfgar retomou sua espera, à procura do melhor momento para revelar sua proposta.
Na outra extremidade do recinto, tinha início uma competição de arremesso de machados. Semelhante à tática que Heafstaag e Beorg haviam utilizado para selar um pacto entre as tribos no último Hengorot, o desafio consistia em arremessar o machado a partir da maior distância possível e cravá-lo num barril de hidromel com força suficiente para abrir um buraco. O número de canecas enchidas com o esforço, no decorrer de uma contagem especificada, determinava o sucesso do arremesso.
Wulfgar viu ali sua oportunidade. Saltou de seu banco e exigiu, como anfitrião, o primeiro arremesso. O homem que havia sido escolhido para arbitrar o desafio reconheceu o direito de Wulfgar e convidou-o a descer até a primeira marca designada.
- Daqui mesmo - disse Wulfgar, levando Garra de Palas ao ombro. Murmúrios de incredulidade e agitação manifestaram-se em todos os cantos do recinto. O uso de um martelo de guerra naquele desafio era inaudito, mas ninguém reclamou ou citou as regras. Todos os homens que haviam escutado as histórias, mas não testemunhado em primeira mão o estilhaçamento do grande machado de Heafstaag, estavam ansiosos para ver a arma em ação. Um barril de hidromel foi colocado sobre um banco ao fundo do recinto.
- Mais um atrás dele! - exigiu Wulfgar. - E outro atrás desse! - Sua concentração restringiu-se à tarefa imediata, e ele não perdeu tempo tentando distinguir os sussurros que ouvia a seu redor.
Os barris foram preparados e a multidão afastou-se da linha de visão do jovem rei. Wulfgar apertou com força Garra de Palas em suas mãos e inspirou profundamente, segurando a arma para se manter firme. Os espectadores incrédulos assistiram, estupefatos, à explosão de movimento do novo rei, que arremessou o poderoso martelo com um gesto fluído e uma força inigualável.
Girando no ar, Garra de Palas atravessou o longo recinto, destruiu o primeiro barril, depois o segundo e continuou: não só derrubou os três alvos e seus bancos, como seguiu em frente e abriu um buraco nos fundos do Recinto do Hidromel. Os guerreiros mais próximos acorreram à abertura para acompanhar o vôo da arma, mas o martelo havia desaparecido nas trevas. Eles saíram para recuperá-lo.
Mas Wulfgar os deteve. Saltou para a mesa e ergueu os braços diante dele.
- Ouçam-me, guerreiros das planícies do norte! - gritou ele.
Estavam todos boquiabertos diante da proeza sem precedentes; alguns caíram de joelhos ao ver Garra de Palas reaparecer subitamente nas mãos do jovem rei.
- Sou Wulfgar, filho de Beornegar e Rei da Tribo do Alce! No entanto, falo a vocês agora não como seu rei, mas como um irmão guerreiro, horrorizado pela desonra que Heafstaag tentou impor a todos nós!
Incitado por saber que havia conquistado a atenção e o respeito de todos e pela confirmação de que não estavam erradas suas suposições sobre os verdadeiros desejos deles, Wulfgar aproveitou o momento. Aquelas pessoas haviam clamado por sua libertação do reinado tirânico do rei caolho e, derrotadas e quase levadas à extinção em sua última campanha, e agora prestes a lutar ao lado de goblins e gigantes, ansiavam por um herói que lhes devolvesse o orgulho perdido.
- Sou o matador do dragão! - continuou ele. - E, pelo direito da vitória, possuo os tesouros de Morte Gélida.
Novamente as conversas particulares o interromperam, pois o tesouro desprotegido tornara-se assunto de debate. Wulfgar deixou-os continuar com a conversa fiada durante um bom tempo para aumentar-lhes o interesse pelo ouro do dragão.
Quando finalmente se aquietaram, ele continuou.
- As tribos da tundra não lutam pela mesma causa que goblins e gigantes! - decretou ele, recebendo estimulantes gritos de aprovação. - Lutamos contra eles!
A multidão ficou subitamente em silêncio. Um guarda entrou correndo na tenda, mas não se atreveu a interromper o novo rei.
- Parto com a aurora para Dez-Burgos - declarou Wulfgar. - Hei de combater o mago Kessell e a horda abominável que ele arrancou das tocas da Espinha do Mundo!
A multidão não respondeu. Os bárbaros aceitavam avidamente a idéia de lutar contra Kessell, mas o pensamento de retornar a Dez-Burgos para ajudar a gente que quase os destruíra cinco anos antes nunca lhes havia ocorrido. Mas o guarda interveio nesse momento.
- Receio que sua demanda seja vã, jovem rei - disse ele. Wulfgar lançou um olhar angustiado para o homem, pois já adivinhava as notícias que ele trazia. - As nuvens de fumaça de grandes incêndios elevam-se neste exato momento da planície ao sul.
Wulfgar avaliou as notícias aflitivas. Ele imaginara que teria mais tempo.
- Então partirei esta noite! - vociferou para a assembléia atordoada. - Venham comigo, meus amigos, meus colegas guerreiros do norte! Hei de mostrar a vocês o caminho para as glórias perdidas de nosso passado!
A multidão parecia dividida e incerta. Wulfgar lançou sua última cartada:
- A qualquer homem que vier comigo, ou aos parentes sobreviventes, caso ele venha a tombar na batalha, ofereço uma parte justa do tesouro do dragão!
Ele os atingira como uma poderosa borrasca vinda do Mar do Gelo em Movimento. Prendera a imaginação e o coração de cada guerreiro bárbaro e prometera a eles um retorno à riqueza e à glória de seus dias mais brilhantes.
Naquela mesma noite, o exército mercenário de Wulfgar partiu do acampamento e atroou pela vasta planície.
Nem um único homem ficou para trás.

27
O Relógio da Destruição

Bremen foi incendiada ao amanhecer. O povo da pequena aldeia desmurada compreendeu que de nada adiantaria resistir e lutar assim que a torrente de monstros atravessou impetuosamente o Rio Shaengarne. Ofereceram uma resistência simbólica no vau, disparando algumas rajadas de flechas nos goblins de vanguarda apenas para retardar as tropas o bastante até que as embarcações mais pesadas e mais lentas zarpassem e alcançassem a segurança do Maer Dualdon. Os arqueiros, logo depois, fugiram de volta às docas e seguiram seus concidadãos.
Quando os goblins finalmente entraram na cidade, encontraram-na completamente abandonada. Enfurecidos, assistiram à fuga das embarcações à vela, que recuaram em direção ao leste para se unir à flotilha de Targos e Termalaine. Bremen encontrava-se muito distante para ser de qualquer utilidade para Akar Kessell e, portanto - ao contrário da cidade de Termalaine, convertida num acampamento -, foi arrasada pelas chamas.
As pessoas no lago, as mais recentes numa longa sucessão de vítimas desabrigadas pela destruição arbitrária de Kessell, observaram, impotentes, suas casas virem abaixo em forma de lascas incandescentes.
Desde a muralha de Brin Shander, Cássio e Régis também assistiam a tudo.
- Ele cometeu mais um erro - Cássio disse ao halfling.
- Como assim?
- Kessell acuou as pessoas de Targos, Termalaine, Caer-Konig, Caer-Dineval e, agora, Bremen - explicou Cássio. - Elas não têm mais para onde ir; sua única esperança é a vitória.
- Grande coisa - comentou Régis. - Você viu o que a torre é capaz de fazer. E, mesmo sem ela, o exército de Kessell poderia destruir a todos nós! Como o próprio mago disse, ele tem todas as vantagens.
- Talvez - cedeu Cássio. - O mago acredita ser invencível, isso é certo. E esse é o erro dele, meu amigo. O mais dócil dos animais luta bravamente quando encurralado contra uma parede, pois nada tem a perder. Um homem pobre é mais letal que um homem rico porque dá menos valor à própria vida. E um homem desabrigado, preso nas estepes congeladas com os primeiros ventos do inverno já começando a soprar, é um inimigo realmente formidável!
- Não tenha medo, amiguinho - continuou Cássio - Em nosso conselho, agora pela manhã, encontraremos uma maneira de explorar as fraquezas do mago.
Régis assentiu, incapaz de contestar a lógica simples do representante e sem disposição para rejeitar seu otimismo. Mesmo assim, ao examinar as densas fileiras de goblins e ores que cercavam a cidade, o halfling alimentava poucas esperanças.
Olhou para o norte, onde a poeira finalmente havia se assentado sobre o vale dos anões. A Ladeira de Bruenor não mais existia, pois ruíra com o restante da face íngreme quando os anões obliteraram as próprias cavernas.
- Abra uma porta para mim, Bruenor - sussurrou Régis distraidamente. - Por favor, deixe-me entrar.

Coincidentemente, Bruenor e seu clã estavam, naquele exato momento, discutindo a plausibilidade de abrir uma porta em seus túneis. Mas não para deixar alguém entrar. Logo após seu sucesso arrasador contra os ogros e goblins nas saliências do lado de fora das minas, os belicosos barbas-longas se deram conta de que não conseguiriam ficar no ócio enquanto ores, goblins e monstros ainda piores destruíam o mundo ao redor deles. Ansiavam por experimentar Kessell uma segunda vez. Nas entranhas do subterrâneo, eles não faziam idéia de que Brin Shander ainda estava de pé, nem que o exército de Kessell já havia invadido toda a Dez-Burgos, mas ouviam os sons de um acampamento acima das seções mais meridionais de seu imenso complexo.
Foi Bruenor quem propôs a idéia de uma segunda batalha, principalmente por estar ele mesmo furioso com a perda iminente de seus mais chegados amigos entre os não-anões. Pouco depois de abatidos os goblins que escaparam ao desmoronamento dos túneis, o líder do clã do Salão de Mitral reuniu todo o seu povo ao redor dele.
- Mandem alguém até as extremidades mais distantes dos túneis - instruiu. - Descubram onde os canalhas vão dormir.
Naquela noite, os sons dos monstros em marcha tornaram-se óbvios bem mais ao sul, sob o campo que cercava Brin Shander. Os diligentes anões imediatamente puseram-se a restaurar os túneis pouco usados que corriam naquela direção. E, assim que se colocaram sob o exército, cavaram dez poços separados, de baixo para cima, detendo-se apenas pouco abaixo da superfície.
Um brilho especial havia retornado a seus olhos: a centelha de um anão que sabe estar prestes a decepar algumas cabeças de goblins. O traiçoeiro plano de Bruenor tinha um potencial infinito para a vingança com riscos mínimos. Em coisa de cinco minutos, poderiam completar suas novas saídas. Menos de um minuto depois, todo o seu contingente estaria na superfície, bem no meio do exército adormecido de Kessell.

A reunião que Cássio qualificara como um conselho, na verdade, foi antes um fórum onde o representante de Brin Shander pôde revelar suas primeiras estratégias retaliatórias. No entanto, nenhum dos líderes reunidos, nem mesmo Glensather, o único outro representante presente, protestou o mínimo que fosse. Cássio estudara em todos os aspectos o mago e seu exército de goblins entrincheirados e dedicou atenção meticulosa aos pormenores. O representante havia delineado a disposição de todo o contingente e detalhado as rivalidades potencialmente mais explosivas entre as tropas de goblins e ores e as melhores estimativas quanto ao tempo necessário para que o conflito interno enfraquecesse suficientemente o exército.
Todos os presentes concordavam, entretanto, que a pedra fundamental do cerco era Crishal-Tirith. O assombroso poder da estrutura cristalina forçaria até mesmo os ores mais desagregadores à obediência incondicional. No entanto, os limites daquele poder, segundo Cássio, constituíam a verdadeira questão.
- Por que Kessell insistiu tanto numa rendição imediata? - raciocinou o representante. - Ele poderia nos fazer padecer durante alguns dias a angústia de um cerco até amolecer nossa resistência.
Os outros concordaram com a lógica da linha de raciocínio de Cássio, mas não tinham respostas.
-Talvez Kessell não tenha tanto controle sobre seu rebanho quanto acreditamos - sugeriu o próprio Cássio. - Será que o mago teme que seu exército se desintegre ao redor dele caso o ataque seja protelado?
- Pode ser - respondeu Glensather de Angraleste. - Ou pode ser que Akar Kessell simplesmente compreenda o poder de sua vantagem e saiba que não temos escolha a não ser ceder. Será que você não está confundindo confiança com preocupação?
Cássio deteve-se um momento para refletir sobre a questão.
- Excelente colocação - disse ele, enfim. - No entanto, irrelevante para nossos planos.
Glensather e vários outros lançaram um olhar curioso ao representante. Devemos aceitar essa última hipótese - explicou Cássio. - Se o mago tiver realmente o controle absoluto do exército reunido, então tudo o que possamos tentar vai se mostrar inútil em todo caso. Portanto, devemos agir sob o pressuposto de que a impaciência de Kessell revela uma preocupação bem fundada. Não acho que o mago seja um estrategista excepcional. Ele embarcou num curso de destruição que imaginou nos forçaria à submissão, mas que, na realidade, fortaleceu a determinação, de muitos de nós de lutar até o fim. Rivalidades de longa data entre várias vilas, um rancor que o líder sagaz de uma força invasora certamente teria transformado numa excelente vantagem, foram corrigidas com a patente desconsideração do mago pela sutileza e por suas demonstrações de ultrajante brutalidade.
Pelos olhares atentos que recebia, Cássio sabia estar angariando apoio de todos os lados. Tentava realizar duas coisas naquela reunião: convencer os demais a concordar com a jogada de risco que estava prestes a revelar e elevar-lhes as perspectivas, devolvendo-lhes um resto de esperança.
- Nossa gente está lá fora - disse ele, descrevendo um arco amplo com o braço. - No Maer Dualdon e no Lac Dinneshir, as frotas se juntaram, à espera de algum sinal de Brin Shander, de que haveremos de apoiá-los. As pessoas de Bom Prado e Toca de Dugan fazem o mesmo no lago ao sul, armadas até os dentes e cientes de que nesta batalha nada restará a qualquer um dos sobreviventes caso não sejamos vitoriosos! - Ele se debruçou sobre a mesa, prendeu alternadamente o olhar de cada homem sentado diante dele e concluiu sombriamente - Sem um lar. Sem esperança para nossas esposas. Sem esperança para nossos filhos. Sem termos para onde fugir.
Cássio continuou a inspirar os demais a sua volta e foi logo apoiado por Glensather, que intuíra o objetivo do representante de elevar o moral e reconhecera o valor da tentativa. Cássio aguardou o momento mais oportuno. Quando a maioria dos líderes reunidos já havia substituído as carrancas de desespero pelo esgar determinado da sobrevivência, ele apresentou seu ousado plano.
- Kessell exigiu um emissário - disse ele - e nós devemos enviar um.
- Você ou eu pareceríamos a escolha mais óbvia - interveio Glensather. - Qual dos dois deve ser?
Um sorriso oblíquo espalhou-se pelo rosto de Cássio.
- Nenhum dos dois - respondeu. - Um de nós seria a escolha óbvia caso tivéssemos a intenção de concordar com as exigências de Kessell. Mas temos uma outra opção. - Seu olhar recaiu diretamente sobre Régis. O halfling contorceu-se, constrangido, meio que adivinhando o que o representante tinha em mente. - Há alguém entre nós que conseguiu uma reputação quase lendária com suas consideráveis habilidades de persuasão. Talvez seu apelo carismático venha a nos ganhar um tempo valioso em nossas negociações com o mago.
Régis sentiu-se mal. Ele sempre se perguntara quando o pingente de rubi o meteria numa encrenca da qual não conseguiria escapar.
Várias outras pessoas fitavam Régis agora, aparentemente intrigadas pelas possibilidades da sugestão de Cássio. As histórias sobre o encanto e a habilidade persuasiva do halfling e a acusação que Kemp fizera no conselho, semanas antes, haviam sido contadas e recontadas milhares de vezes em todas as vilas, e cada narrador costumava realçar e exagerar os contos para aumentar a própria importância. Embora Régis não estivesse entusiasmado com a perda do poder de seu segredo - era raro que as pessoas o olhassem diretamente nos olhos agora -, ele chegara a desfrutar de um certo grau de fama. Ele não tinha pensado nos possíveis efeitos colaterais de ter tantos admiradores.
- Que o halfling, o antigo porta-voz de Bosquesó, represente-nos na corte de Akar Kessell - declarou Cássio, com a aprovação quase unânime da assembléia. -Talvez nosso pequeno amigo seja capaz de convencer o mago do erro de sua maldade!
- Estão enganados! - protestou Régis. - São apenas boatos...
- A humildade - interrompeu Cássio - é uma excelente virtude, meu bom halfling. E todos aqui reunidos apreciam a sinceridade de sua insegurança. E apreciam ainda mais sua disposição em lançar seus talentos contra Kessell à luz dessa insegurança!
Régis fechou os olhos e não respondeu, sabendo que a moção certamente passaria, quer ele a aprovasse ou não.
E passou, sem um único voto discordante. Acuadas, as pessoas estavam totalmente dispostas a agarrar o menor fragmento de esperança que pudessem encontrar.
Cássio agiu rapidamente para encerrar o conselho, pois acreditava que todos os outro assuntos - problemas de superlotação e armazenamento de comida - eram de pouca importância numa hora como aquela. Se Régis falhasse, todas as outras inconveniências se tornariam imateriais.
Régis permaneceu em silêncio. Ele se apresentara ao conselho apenas para oferecer apoio a seus amigos representantes. Ao assumir seu lugar à mesa, não tinha nem mesmo a intenção de participar ativamente das discussões, quanto menos de se tornar o ponto central do plano de defesa.
E, portanto, suspendeu-se a reunião. Cássio e Glensather trocaram piscadelas, cientes do triunfo obtido, pois todos deixaram a sala sentindo-se um pouco mais otimistas.
Cássio reteve Régis quando este fez menção de sair com os demais. O representante de Brin Shander fechou a porta depois do último ter passado, desejando uma audiência privada com o principal personagem dos primeiros estágios de seu plano.
- Você poderia ter discutido isso tudo comigo primeiro! - Régis resmungou pelas costas do representante assim que a porta foi fechada. - Acho que eu merecia a oportunidade de tomar uma decisão quanto a isso!
Cássio apresentava uma fisionomia lúgubre ao se virar para encarar o halfling.
- Que escolha tem qualquer um de nós? - perguntou ele. - Ao menos desta maneira demos a todos eles um pouco de esperança.
- Você me sobreestima - protestou Régis.
- Talvez você é que se subestime - disse Cássio.
Apesar de o halfling compreender que Cássio não voltaria atrás no plano que havia colocado em ação, a confiança do representante transmitia a Régis um espírito altruísta genuinamente reconfortante.
- Rezemos, pelo bem de nós dois, que esta última hipótese seja a verdadeira - continuou Cássio, indo até sua cadeira. - Mas eu realmente acredito que este seja o caso. Tenho fé em você, mesmo que você não a tenha. Lembro-me bem do que fez ao Representante Kemp no conselho, cinco anos atrás, embora fosse necessária a própria declaração dele de que havia sido enganado para que eu percebesse a verdade. Um trabalho magistral de persuasão, Régis de Bosquesó, e mais ainda por ter guardado seu segredo durante tanto tempo!
Régis corou e admitiu que Cássio tinha razão.
- E se você consegue lidar com tipos teimosos como Kemp de Targos, deve achar Akar Kessell uma vítima fácil!
- Concordo com você que Kessell não chega a ser um homem de força interior - disse Régis -, mas os magos têm maneiras de descobrir truques semelhantes aos deles. E você esquece o demônio. Eu nem mesmo tentaria enganar alguém da espécie dele!
- Esperemos que você não tenha de lidar com esse aí - concordou Cássio, com um estremecimento visível. - No entanto, sinto que você deve ir à torre e tentar dissuadir o mago. Se não conseguirmos manter afastado o exército reunido até sua própria desordem interna se tornar nossa aliada, então estaremos certamente condenados. Creia-me, já que sou seu amigo, que não pediria a você para correr tamanho risco caso vislumbrasse qualquer outro caminho possível.
Um olhar dolorido de impotente simpatia se insinuara claramente na aparência anterior de vibrante otimismo do representante. Sua preocupação comoveu Régis, como o faria um homem faminto a implorar comida.
Mesmo levando em consideração seus sentimentos pelo representante excessivamente aflito, Régis foi forçado a admitir a lógica do plano e a ausência de outros caminhos a explorar. Kessell não havia lhes dado muito tempo para reagrupar depois do ataque inicial. Com a destruição de Targos, o mago demonstrara sua capacidade de igualmente destruir Brin Shander, e o halfling tinha poucas dúvidas de que Kessell levaria a cabo sua vil ameaça.
E foi por isso que Régis acabou aceitando sua participação como a única opção. O halfling não era facilmente incitado a agir, mas, quando se decidia a fazer algo, geralmente tentava fazê-lo da maneira adequada.
- Antes de tudo - começou ele -, devo lhe contar, no mais rigoroso sigilo, que realmente tenho auxílio mágico. - Um brilho de esperança retornou aos olhos de Cássio. Ele se inclinou, ansioso para ouvir mais, porém Régis apaziguou-o com uma palma estendida.
- Você precisa entender, no entanto - explicou o halfling -, que eu não tenho, como alegam algumas histórias, o poder de perverter o que uma pessoa traz no coração. Eu não conseguiria convencer Kessell a abandonar sua senda maligna mais do que poderia convencer o representante Kemp a fazer as pazes com Termalaine. - Ele se levantou da cadeira almofadada e pôs-se a caminhar em volta da mesa, com as mãos atrás das costas. Cássio o vigiava com expectativa e incerteza, incapaz de descobrir exatamente aonde ele pretendia chegar ao admitir possuir o poder e logo depois repudiá-lo.
- No entanto, às vezes, tenho realmente como fazer alguém enxergar as coisas de um ponto de vista diferente - admitiu Régis. - Como no incidente a que você se referiu, quando convenci Kemp de que embarcar num certo curso de ação acabaria ajudando-o a alcançar suas próprias metas. Portanto, conte-me novamente, Cássio, tudo o que você descobriu sobre o mago e seu exército. Vejamos se conseguimos encontrar uma maneira de fazer Kessell duvidar das próprias coisas com as quais ele veio a contar!
A eloqüência do halfling atordoou o representante. Muito embora não tivesse olhado Régis nos olhos, vislumbrou uma promessa de verdade nas histórias que sempre presumira um exagero.
- Pelo arauto, soubemos que Kemp assumiu o comando das forças remanescentes das quatro vilas às margens do Maer Dualdon - explicou Cássio. - Do mesmo modo, Jensin Brent e Schermont aguardam no Lac Dinneshir e, combinados às frotas de Marerrubra, devem se mostrar uma força realmente poderosa! Kemp já jurou vingança e duvido que qualquer um dos outros refugiados cogite a rendição ou a fuga.
- Para onde poderiam ir? - murmurou Régis.
Cheio de pena, ele olhou para Cássio, que não tinha nenhuma palavra de consolo. Cássio havia simulado, diante dos demais no conselho e das pessoas na vila, uma demonstração de confiança e esperança, mas não poderia olhar para Régis naquele instante e fazer promessas vazias.
Glensather retornou e irrompeu repentinamente sala adentro.
- O mago está de volta ao campo! - gritou. - Exige nosso emissário. As luzes na torre recomeçaram!
Os três precipitaram-se para fora do edifício, com Cássio a reiterar o tanto quanto podia as informações pertinentes. Régis o silenciou.
- Estou preparado - ele tranqüilizou Cássio. - Não sei se esse seu plano ultrajante tem alguma chance de funcionar, mas tem minha palavra de que vou me esforçar para levar a cabo o engodo.
Então, eles estavam ao portão.
- Deve funcionar - disse Cássio, dando um tapinha no ombro de Régis. - Não temos outra esperança.
Ele começou a se virar, mas Régis tinha uma última pergunta que precisava de resposta.
- E se eu descobrir que Kessell está além de meu poder? - perguntou ele sombriamente. - O que devo fazer se o engodo falhar?
Cássio olhou ao redor, para os milhares de mulheres e crianças amontoados nas áreas públicas da cidade, tentando se proteger do vento gélido.
- Se falhar - começou ele, lentamente -, se Kessell não for dissuadido de usar o poder da torre contra Brin Shander - ele hesitou mais uma vez, mesmo que apenas para retardar o momento em que teria de ouvir a si mesmo pronunciar as palavras -, você tem então minhas ordens pessoais de entregar a rendição da cidade.
Cássio virou-se e dirigiu-se aos parapeitos para testemunhar o confronto crucial. Régis não hesitou mais tempo, pois sabia que a menor pausa naquela conjuntura assustadora provavelmente o faria mudar de idéia e correr até encontrar um esconderijo em algum buraco escuro da cidade. Antes mesmo que tivesse a oportunidade de reconsiderar, ele atravessara o portão e marchava audaciosamente colina abaixo, em direção ao espectro ansioso de Akar Kessell.
Kessell havia novamente aparecido entre dois espelhos carregados pelos trolls, tinha os braços cruzados e batia um dos pés impacientemente. A carranca maldosa em seu rosto deu a Régis a distinta impressão de que o mago o mataria com um só golpe, num acesso de fúria incontrolável, antes mesmo que ele chegasse ao sopé da colina. No entanto, o halfling precisava manter os olhos focalizados em Kessell para simplesmente seguir adiante. Os perversos trolls o enojavam mais que qualquer outra coisa que já tivesse encontrado, e foi necessária toda a sua força de vontade para simplesmente se aproximar das criaturas. Já desde o portão era possível sentir-lhes o fedor pútrido.
Mas, de algum modo, ele conseguiu chegar aos espelhos e encarou o mago maligno.
Kessell estudou o emissário durante um bom tempo. Ele não esperara que um halfling representasse a cidade e perguntou-se por que Cássio não tinha vindo pessoalmente a um encontro tão importante.
Você está aqui diante de mim como o representante oficial de Brin Shander e de todos os que residem no interior das muralhas?
Régis assentiu.
- Sou Régis de Bosquesó - ele respondeu -, um amigo de Cássio e antigo membro do Conselho dos Dez. Fui nomeado para falar em nome do povo no interior da cidade.
Os olhos de Kessell se estreitaram, antecipando a vitória.
- E você traz consigo a mensagem de sua rendição incondicional?
Régis trocou de pé, apreensivo, e mudou propositalmente de posição para que o pingente de rubi começasse a girar em seu peito.
- Desejo uma audiência privada convosco, poderoso mago, para que possamos discutir os termos do acordo.
Os olhos de Kessell se arregalaram. Ele olhou para Cássio, que estava sobre a muralha.
- Eu disse incondicional! - guinchou. Atrás dele, as luzes de Crishal-Tirith começaram a rodopiar e a aumentar. - Agora você há de testemunhar a leviandade de sua insolência!
- Espere! - implorou Régis, saltando de um lado a outro para recuperar a atenção do mago. - Há algumas coisas que você deveria saber antes de tudo ser decidido!
Kessell deu pouca atenção à tagarelice do halfling, mas o pingente de rubi subitamente prendeu sua atenção. Mesmo através da proteção oferecida pela distância entre seu corpo físico e a projeção de sua imagem, ele achou a jóia fascinante.
Régis não resistiu ao impulso de sorrir, mesmo que apenas ligeiramente, ao perceber que os olhos do mago não mais piscavam.
- Tenho algumas informações e estou certo de que você vai achá-las valiosas - disse o halfling tranqüilamente.
Kessell fez sinal para que ele continuasse.
- Aqui não - sussurrou Régis. - Muitos ouvidos curiosos por perto. Nem todos os goblins aqui reunidos ficariam contentes em ouvir o que tenho a dizer!
Kessell ponderou as palavras do halfling por um instante. Sentia-se curiosamente subjugado por alguma razão que ele ainda não compreendia.
- Muito bem, halfling - concordou. - Ouvirei suas palavras. - Com um clarão e uma nuvem de fumaça, o mago desapareceu.
Régis olhou por sobre o ombro, para as pessoas na muralha, e fez um sinal com a cabeça.
A um comando telepático, proveniente da torre, os trolls alteraram as posições dos espelhos para capturar a imagem de Régis. Mais um clarão, outra nuvem de fumaça e Régis também desapareceu.
Na muralha, Cássio retribuiu o gesto do halfling, porém Régis já havia desaparecido. O representante respirava um pouco melhor, consolado pelo último olhar que Régis lhe lançara e pelo fato de que o sol estava se pondo e Brin Shander continuava de pé. Caso sua suposição, baseada na sincronicidade das ações do mago, estivesse correta, Crishal-Tirith extraía a maior parte de sua energia da luz do sol.
Parecia que seu plano havia lhes conseguido ao menos mais uma noite.

Mesmo com os olhos turvos, Drizzt reconheceu a forma escura que pairava sobre ele. O drow havia batido com a cabeça ao ser arremessado para longe do punho da cimitarra, e Guenhwyvar, sua leal companheira, guardara silenciosa vigília durante todas as longas horas em que o drow permanecera inconsciente, muito embora o gato também houvesse se ferido na luta com Errtu.
Drizzt rolou pelo chão até se sentar e procurou reorientar-se. A princípio, ele pensou que houvesse chegado a aurora, mas depois percebeu que a pálida luz do sol vinha do oeste. Ele estivera inconsciente durante a maior parte de um dia, completamente esgotado, pois a cimitarra havia lhe exaurido a energia vital em sua batalha com o demônio.
Guenhwyvar parecia ainda mais abatida. O ombro do gato pendia sem vida devido à colisão com a parede de pedra, e Errtu tinha aberto um profundo corte em uma de suas patas dianteiras.
Mais do que os ferimentos, contudo, a fadiga consumia o animal mágico. Havia prolongado em muitas horas - além dos limites normais - sua visita ao plano material. O cordão entre seu plano natal e o do drow só se conservava intacto devido à própria energia mágica do gato, e cada minuto a mais neste mundo exauria um pouco de sua força.
Drizzt afagou-lhe afetuosamente o pescoço musculoso. Compreendia o sacrifício que Guenhwyvar fizera pelo bem dele e desejava poder atender às necessidades do gato e mandá-lo de volta ao próprio mundo.
Mas não podia. Se o gato retornasse ao próprio plano, levaria horas para recuperar a força necessária para restabelecer a ligação com este mundo. E ele precisava do gato agora.
- Mais um pouco - ele implorou.
O animal fiel deitou-se ao lado dele sem o menor sinal de protesto. Drizzt observou-o com pena e acariciou-lhe o pescoço mais uma vez. Como ele ansiava por liberar o gato! Mas não podia.
Pelo que Errtu lhe dissera, a porta para Crishal-Tirith era invisível apenas aos seres do Plano Material.
Drizzt precisava dos olhos do gato.

28
Uma Mentira Dentro da Outra

Régis esfregou os olhos para se livrar da imagem residual do clarão ofuscante e achou-se novamente encarando o mago. Kessell estava reclinado sobre um trono de cristal, recostado num dos braços do móvel, com as pernas atiradas casualmente sobre o outro. Encontravam-se numa sala de cristal quadrangular que transmitia uma impressão visual acetinada, mas parecia tão sólida quanto a rocha. Régis compreendeu imediatamente que estava dentro da torre. Dúzias de espelhos ornamentados e de formas estranhas enchiam a sala. Um deles, em particular, o maior e mais decorativo, chamou a atenção do halfling, pois uma fogueira ardia em suas profundezas. A princípio, Régis olhou na direção oposta ao espelho, esperando ver a fonte da imagem, mas, em seguida, percebeu que as chamas não eram um reflexo e sim um acontecimento real nas dimensões interiores do próprio espelho.
- Bem-vindo a meu lar - riu o mago. - Considere-se um halfling de sorte por testemunhar tamanho esplendor! - Mas Régis fixou o olhar em Kessell e estudou o mago cuidadosamente, pois aquele tom de voz não se assemelhava à característica pronúncia ininteligível dos que ele havia encantado com o rubi.
- Perdoe minha surpresa quando primeiro nos encontramos - continuou Kessell. - Não esperava que os homens austeros de Dez-Burgos enviassem um halfling para fazer o trabalho por eles! - Ele riu novamente e Régis entendeu que algo havia quebrado o encanto que ele lançara sobre o mago quando ainda estavam do lado de fora.
O halfling imaginava o que acontecera. Sentia o poder palpitante da sala; era evidente que Kessell dele se nutria. Com sua psique do lado de fora, o mago estivera vulnerável à magia da jóia, mas, ali dentro, sua força estava muito acima do poder do rubi.
- Você disse ter informações para mim - exigiu Kessell, de repente. - Fale agora, tudo! Ou sua morte será bem desagradável!
Régis tartamudeou, tentando improvisar uma história alternativa. As mentiras insidiosas que planejara urdir seriam de pouco valor contra o mago impassível. De fato, em suas óbvias fraquezas, poderiam revelar boa parte da verdade sobre as estratégias de Cássio.
Kessell aprumou-se em seu trono e inclinou-se sobre o halfling, impondo o olhar a sua contraparte.
- Fale! - exigiu ele, sereno.
Régis sentiu uma vontade férrea que se insinuava em todos os seus pensamentos, obrigando-o a obedecer a todas as ordens de Kessell. No entanto, ele percebeu que a força dominadora não emanava do mago. Parecia antes vir de alguma fonte externa, talvez o objeto invisível que o mago ocasionalmente apertava entre os dedos, metido num bolso em suas vestes.
Entretanto, os halflings possuíam uma forte resistência natural à magia e uma força opositora - a jóia - ajudou Régis a resistir à vontade insinuante e a repeli-la aos poucos. Uma idéia repentina ocorreu a Régis. Ele sem dúvida vira tanta gente cair em seus próprios encantos que era capaz de imitar-lhes a postura reveladora. Deixou os ombros penderem um pouco, como se de repente ele se fizesse completamente à vontade, e focalizou o olhar vazio numa imagem no canto da sala, por sobre o ombro de Kessell. Sentiu os olhos se ressecarem, mas resistiu à tentação de piscar.
- Que informação você deseja? - respondeu mecanicamente. Kessell afundou-se no espaldar do trono, novamente confiante.
- Dirija-se a mim como Mestre Kessell - ordenou.
- Que informação o senhor deseja, Mestre Kessell?
- Ótimo - o mago sorriu afetadamente consigo mesmo. - Admita a verdade, halfling. A história que você foi enviado para contar era um engodo.
"Por que não?", pensou Régis. A mentira temperada com pitadas de verdade tornava-se muito mais forte.
- Sim - ele respondeu. - Para fazê-lo pensar que seus aliados mais leais planejavam contra o senhor.
- E qual era o propósito? - pressionou Kessell, bastante satisfeito consigo mesmo. - O povo de Brin Shander sabe com certeza que eu poderia facilmente esmagá-los sem nenhum aliado. Parece-me um plano frágil.
- Cássio não tinha a menor intenção de tentar derrotá-lo, Mestre Kessell - disse Régis.
- Então, por que você está aqui? E por que Cássio simplesmente não entregou a cidade como exigi?
- Fui enviado para incutir algumas dúvidas - replicou Régis, improvisando às cegas para manter Kessell intrigado e ocupado. Por trás da fachada de suas palavras, ele tentava dar forma a algum tipo de plano alternativo. - Para dar a Cássio mais tempo para traçar seu verdadeiro curso de ação.
Kessell inclinou-se.
- E qual seria esse curso de ação? Régis hesitou, à procura de uma resposta.
- Você não pode resistir! - vociferou Kessell. - Minha vontade é grande demais! Responda ou hei de arrancar a verdade de sua mente.
- Escapar - disse Régis abruptamente e, depois de tê-lo dito, várias possibilidades se abriram diante dele.
Kessell reclinou-se novamente.
- Impossível - o mago respondeu casualmente. - Em toda a sua extensão, meu exército é forte demais para que os humanos o transponham.
- Talvez não tão forte quando o senhor acredita, Mestre Kessell - açulou-o Régis. Agora o caminho abria-se claramente diante dele. Uma mentira dentro da outra. Ele gostou da fórmula.
- Explique-se - exigiu Kessell, e uma sombra de preocupação anuviou-lhe a fisionomia arrogante.
- Cássio tem aliados em suas fileiras.
O mago saltou da cadeira, tremendo de raiva. Régis admirou-se da eficiência de sua simples imitação. Perguntou-se por um instante se alguma de suas próprias vítimas teria igualmente revertido o engodo contra ele. Afastou o pensamento perturbador e reservou-o para futura contemplação.
- Os ores vivem entre as pessoas de Dez-Burgos há meses - continuou Régis. - Uma das tribos chegou a abrir relações comerciais com os pescadores. Esses ores também responderam a sua convocação às armas, mas ainda devem lealdade a Cássio, se é que se pode dizer que essa raça algum dia já foi realmente leal. Mesmo enquanto seu exército se entrincheirava no campo ao redor de Brin Shander, as primeiras comunicações eram trocadas entre o chefe dos ores e mensageiros ores que escapuliram de Brin Shander. (...)
Kessell alisou o cabelo para trás e esfregou o rosto com a mão, nervoso. Seria possível que seu exército aparentemente invencível tivesse uma fraqueza secreta?
Não, ninguém se atreveria a fazer oposição a Akar Kessell!
Mas, ainda assim, se alguns tramassem contra ele - se todos tramassem contra ele -, será que viria a saber? E onde estava Errtu? Será que o demônio estava por trás daquilo tudo?
- Qual tribo? - ele perguntou suavemente a Régis, e seu tom revelava que as informações do halfling haviam lhe ensinado um pouco de humildade.
Régis, então, ludibriou completamente o mago.
O grupo que o senhor enviou para saquear a cidade de Bremen, os Ores da língua Partida - disse ele, observando com total satisfação os olhos cada vez mais arregalados do mago. - Minha tarefa era meramente impedir o senhor de tomar qualquer providência contra Brin Shander antes do cair da noite, pois os ores retornarão antes do amanhecer, presumivelmente para se reagruparem na posição que lhes foi designada no campo, mas, na verdade, para abrir uma brecha em seu flanco ocidental. Cássio vai conduzir o povo pelas encostas ocidentais até a tundra. Esperam apenas mantê-lo desorganizado tempo suficiente para conseguir uma boa vantagem. Depois disso, o senhor será forçado a persegui-los o caminho todo até Luskan!
O plano tinha muitos pontos fracos aparentes, mas parecia razoável que pessoas numa situação tão desesperadora tentassem aquela cartada. Kessell esmurrou o braço do trono.
- Os idiotas! - resmungou.
Régis já respirava um pouco melhor. Kessell estava convencido.
- Errtu! - ele gritou subitamente, sem saber que o demônio fora banido do mundo.
Não houve resposta.
- Ah, maldito seja o demônio! - amaldiçoou Kessell. - Nunca está por perto quando mais se precisa dele - Ele se voltou para Régis. - Você espera aqui. Terei muito mais perguntas para você mais tarde! - As chamas estrondosas de sua fúria fervilhavam perversamente. - Mas, primeiro, devo falar com alguns de meus generais. Hei de ensinar aos Ores da Língua Partida a me fazerem oposição!
Na verdade, as observações de Cássio qualificavam os Ores da Língua Partida como os mais fortes e fanáticos apoiadores de Kessell. Uma mentira dentro da outra.

Nas águas do Maer Dualdon, mais tarde naquela mesma noite, a frota reunida de quatro vilas observou com desconfiança um segundo grupo de monstros se separar da força principal e partir em direção a Bremen.
- Curioso - Kemp comentou com Muldoon de Bosquesó e com o representante da cidade incendiada de Bremen, que estavam ao lado dele no convés da nau capitania de Targos. Toda a população de Bremen estava no lago. Era certo que o primeiro grupo de ores, depois das flechadas iniciais, não encontrara mais resistência na cidade. E Brin Shander ainda estava intacta - Por que, então, o mago estava estendendo mais ainda sua linha de poder? - Kessell me confunde - disse Muldoon. - Seu gênio está simplesmente além de minhas faculdades ou ele verdadeiramente comete evidentes erros táticos!
- Presuma a segunda possibilidade - instruiu Kemp, esperançoso -, pois qualquer coisa que venhamos a tentar será em vão caso a primeira seja verdadeira!
Portanto, eles continuaram a reposicionar seus guerreiros para um ataque oportunista, passando as crianças e mulheres nos barcos remanescentes para os atracadouros ainda incólumes de Bosquesó, uma estratégia semelhante à das forças refugiadas nos outros dois lagos.
Na muralha de Brin Shander, foi com maior entendimento que Cássio e Glensather assistiram à divisão das forças de Kessell.
- Magistral, halfling - Cássio sussurrou para o vento noturno. Sorrindo, Glensather tocou o ombro de seu colega representante, tentando transmitir-lhe equilíbrio.
- Vou informar nossos comandantes de campo - disse ele. - Se o momento de atacarmos chegar, deveremos estar prontos!
Cássio apertou a mão de Glensather e deu sua aprovação com um aceno de cabeça. Enquanto o representante de Angraleste se afastava rapidamente, Cássio debruçou-se sobre o cume da muralha e fitou com determinação as paredes agora escurecidas de Crishal-Tirith. Entre dentes, ele declarou ostensivamente:
- O momento há de chegar!

Do alto de seu ponto de observação no Sepulcro de Kelvin, Drizzt Do'Urden também testemunhara a abrupta movimentação do exército de monstros. Ele acabara de completar os últimos preparativos para seu corajoso assalto à Crishal-Tirith quando os bruxuleios distantes de uma grande massa de tochas deslizaram subitamente para oeste. Ele e Guenhwyvar sentaram-se, em silêncio, e estudaram a situação durante algum tempo, tentando encontrar alguma pista sobre o que teria provocado aquela ação.
Nenhuma explicação óbvia veio à tona, mas a noite se estendia e ele precisava se apressar. Não estava bem certo se toda aquela atividade se mostraria útil - já que enfraquecia as tropas do acampamento - ou destrutiva - pois aumentava o estado de prontidão dos monstros remanescentes. No entanto, ele sabia que o povo de Brin Shander não arcaria com os custos da demora. Desceu pela trilha da montanha, com a grande pantera logo em seus calcanhares, silenciosa.
Ele cobriu rapidamente o terreno livre e pôs-se a percorrer, com passos ligeiros e certos, a extensão da Via de Bremen. Caso tivesse se detido para estudar os arredores ou colar ao solo um de seus ouvidos sensíveis, ele teria ouvido o estrondo distante, proveniente da vasta tundra ao norte, de mais um exército que se aproximava.
Mas a atenção do drow estava no sul, e sua visão se limitava, enquanto corria à escuridão expectante de Crishal-Tirith. Ele carregava pouco peso, pois levava consigo apenas os objetos que julgava essenciais à tarefa. Tinha suas cinco armas: as duas cimitarras nas bainhas de couro em seus quadris, um punhal enfiado no cinto, bem no meio das costas, e as duas facas ocultas em suas botas. Ele trazia o símbolo sagrado e a bolsa de dinheiro em volta do pescoço, e um pequeno saco de farinha, remanescente da incursão pelo covil dos gigantes, ainda pendia de seu cinto - uma escolha sentimental, um lembrete reconfortante das ousadas aventuras que havia partilhado com Wulfgar. Todos os outros suprimentos, a mochila, a corda, os odres e outros objetos fundamentais da sobrevivência diária na tundra agreste, ele havia deixado no pequeno cubículo.
Ouviu os gritos dos goblins folgazões ao passar pelos arrabaldes a leste de Termalaine.
- Ataquem agora, marinheiros do Maer Dualdon - disse baixinho o drow. Mas, pensando bem, estava feliz por terem os barcos permanecido no lago. Mesmo que conseguissem aportar desapercebidos e atacar rapidamente os monstros na cidade, não poderiam arcar com as perdas que sofreriam. Termalaine podia esperar; uma batalha mais importante ainda estava por ser travada.
Drizzt e Guenhwyvar aproximaram-se do perímetro mais externo do principal acampamento de Kessell. O drow consolou-se com os sinais de que a comoção no interior do acampamento havia serenado. Um solitário guarda ore apoiava-se, fatigado; em sua lança, vigiando sem entusiasmo a escuridão inane do horizonte setentrional. Mesmo que estivesse alerta, ele não teria notado a aproximação furtiva das duas formas, mais negras que as trevas da noite.
- Situação! - veio uma ordem de longe.
- Tudo limpo! - respondeu o guarda.
Drizzt ouviu a verificação se repetir em vários pontos distantes. Fez sinal para que Guenhwyvar se detivesse, depois se esgueirou até uma distância a partir da qual poderia atingir o guarda com um arremesso.
O ore cansado sequer ouviu o silvo do punhal que se aproximava.
E, então, Drizzt estava ao lado dele, silenciosamente interrompendo-lhe a queda em meio à escuridão. O drow tirou seu punhal da garganta do ore e deitou a vítima delicadamente no chão. Ele e Guenhwyvar, os espectros invisíveis da morte, avançaram.
Haviam atravessado a única linha de guardas posicionada no perímetro setentrional e agora prosseguiam com facilidade e cautela pelo acampamento adormecido. Drizzt poderia ter matado dezenas de ores e goblins, e até mesmo um verbeeg - mas a interrupção daqueles roncos retumbantes talvez tivesse chamado a atenção -, mas ele não podia se dar ao luxo de abrandar o passo. Cada minuto que passava continuava a exaurir Guenhwyvar e agora os primeiros sinais de um segundo inimigo, a reveladora aurora, tornavam-se evidentes no céu oriental.
As esperanças do drow haviam se elevado consideravelmente com o progresso que fizera, mas ele ficou consternado ao topar com Crishal-Tirith. Um grupo de ogros em prontidão circulava a torre, bloqueando-lhe o caminho.
Ele se agachou ao lado do gato, sem que se decidisse pelo que deveriam fazer. Para escapar à amplitude do imenso acampamento antes que a aurora viesse a expô-los, teriam de fugir pelo caminho por onde vieram. Drizzt duvidava que Guenhwyvar, em seu estado digno de pena, pudesse sequer tentar aquela rota. No entanto, seguir em frente significava uma luta sem esperança com um grupo de ogros. Parecia não haver nenhuma resposta ao dilema.
Foi então que algo aconteceu lá atrás, na seção nordeste do acampamento, e abriu um caminho para os companheiros furtivos. Irromperam gritos repentinos de alarma, o que atraiu os ogros e afastou-os de seus postos algumas passadas largas. Drizzt pensou, a princípio, que houvessem descoberto o ore assassinado, mas os gritos vinham do leste distante.
Não demorou muito e o clangor de aço contra aço ecoou pelo céu que antecedia a aurora. Haviam se metido numa batalha. Tribos rivais, Drizzt supôs, apesar de não avistar os combatentes àquela distância.
Sua curiosidade, entretanto, não foi irresistível. Os ogros indisciplinados haviam se afastado mais ainda das posições designadas. E Guenhwyvar avistara a porta da torre. Os dois não hesitaram um segundo sequer.
Os ogros nem mesmo notaram as duas sombras que entraram na torre a suas costas.

Uma estranha sensação, uma vibração, um zumbido apoderou-se de Drizzt assim que ele passou pela entrada de Crishal-Tirith, como se penetrasse as entranhas de uma entidade viva. Seguiu em frente, porém, através do corredor escuro que levava ao primeiro nível da torre, deslumbrado com o estranho material cristalino que compunha as paredes e os pisos da estrutura.
Achou-se num salão quadrangular, a câmara inferior da estrutura de quatro salas. Era o salão onde Kessell geralmente se reunia com seus generais de campo, a principal sala de audiências do mago, onde ele recebia todos com exceção de seus comandantes de mais alta patente.
Drizzt perscrutou a sala, suas formas escuras e as sombras ainda mais profundas criadas por elas. Apesar de não distinguir nenhum movimento, ele percebeu que não se achava só. Sabia que as mesmas sensações incomodavam Guenhwyvar, pois os pêlos negros de sua nuca estavam eriçados e o gato deixou escapar um rosnado baixo.
Kessell considerava aquela sala uma zona-tampão entre ele e a rale do mundo exterior. Era a câmara da torre que ele mais raramente visitava. Era o lugar onde Akar Kessell abrigava seus trolls.

29
Outras Opções

Os anões do Salão de Mitral completaram a primeira saída secreta logo depois do crepúsculo. Bruenor foi o primeiro a subir ao topo da escada e espiar, de sob a relva cortada, o exército de monstros que se acomodava. Tão habilidosos eram os mineiros anões que eles conseguiram cavar um poço bem no meio de um grande grupo de goblins e ogros sem alertar os monstros o mínimo que fosse.
Bruenor sorria quando voltou a descer para se juntar a seus companheiros de clã.
- Terminem os outros nove - instruiu ele enquanto prosseguia túnel adentro, com Cattiebrie a seu lado. - Hoje o sono vai ser pesado pr'alguns dos garotos do Kessell! - declarou ele, acariciando a cabeça do machado em seu cinto.
- Qual será meu papel na próxima batalha? - Cattiebrie perguntou quando eles se afastaram dos outros anões.
- 'cê vai puxar uma das alavancas e desmoronar os túneis se algum desses porcos descer - respondeu Bruenor.
- E se todos vocês forem mortos no campo? - raciocinou Cattiebrie. - Ser enterrada viva nestes túneis não me parece muito promissor.
Bruenor coçou a barba ruiva. Ele não havia pensado naquela conseqüência, pois imaginara que, se ele e o clã fossem abatidos no campo, Cattiebrie estaria suficientemente segura por trás dos túneis desmoronados. Mas como ela poderia viver sozinha lá embaixo? Que preço pagaria pela sobrevivência?
- 'cê quer subir e lutar, então? 'cê luta bem com uma espada e eu vou estar bem do seu lado!
Cattiebrie pensou na proposta por um instante.
- Vou ficar com a alavanca - decidiu ela. - Você já tem coisas demais pra fazer lá em cima. E alguém tem de ficar aqui para derrubar os túneis; não podemos deixar os goblins reivindicarem nossos salões como lar!
- Além disso - ela acrescentou, com um sorriso -, foi bobagem minha me preocupar. Sei que você vai voltar para mim, Bruenor. Nem você, nem ninguém de seu clã jamais me decepcionou!
Ela beijou o anão na testa e afastou-se saltitando, o que fez Bruenor sorrir.
- Por certo que 'cê é uma menina corajosa, minha Cattiebrie - murmurou ele.
O trabalho nos túneis estava terminado poucas horas depois. Os poços haviam sido escavados e todo o complexo de túneis em volta deles preparado para desmoronar e cobrir qualquer ação de retirada ou reprimir uma possível investida dos goblins. Todo o clã, com as faces propositalmente enegrecidas pela fuligem e as armaduras e armas pesadas disfarçadas sob camadas de tecido escuro, alinhou-se no fundo dos dez poços. Bruenor subiu primeiro para investigar. Deu uma olhadela lá fora e sorriu sinistramente. A sua volta, os ogros e os goblins haviam se aninhado para passar a noite.
Ele estava prestes a dar o sinal para seus primos agirem quando uma comoção subitamente teve início no acampamento. Bruenor continuou no topo do poço, mas manteve a cabeça abaixo da camada de relva (o que lhe angariou a pisadela de um goblin de passagem), e tentou descobrir o que alertara os monstros. Ouviu gritos de comando e um tropel como o de um grande destacamento a se reunir.
Mais gritos se seguiram, brados pela morte da Língua Partida. Apesar de nunca ter ouvido o nome antes, o anão não teve dificuldade para adivinhar que este descrevia uma tribo de ores.
- Então, eles 'tão lutando entre eles, né? - murmurou baixinho, sem conter o riso. Percebendo que o assalto dos anões teria de esperar, ele voltou a descer a escada.
Mas o clã, decepcionado com o adiamento, não se dispersou. Estavam determinados a completar o serviço daquela noite e, portanto, aguardaram.
Passada mais da metade da noite, ainda se ouvia alguma movimentação no acampamento acima. No entanto, a espera não embotava a agudeza da determinação dos anões. Ao contrário, a demora aviva-lhes a paixão, aumentava-lhes a avidez pelo sangue dos goblins. Esses guerreiros eram também ferreiros, artífices que passavam longas horas acrescentando uma única escama a uma estátua de dragão. Eles sabiam ser pacientes.
Por fim, quando tudo se aquietou mais uma vez, Bruenor voltou a subir a escada. Antes mesmo que tivesse metido a cabeça através do relvado, ele ouviu os sons reconfortantes da respiração rítmica de roncos altos.
Sem mais demora, o clã se esgueirou para fora dos buracos e metodicamente deu início a sua obra mortífera. Eles não se rejubilavam com o papel de assassinos, pois preferiam cruzar espadas, mas compreendiam a necessidade daquele tipo de incursão e não davam o menor valor às vidas da escória goblin.
A área foi gradualmente se aquietando à medida que mais monstros caíam no sono silencioso da morte. Os anões concentraram-se primeiramente nos ogros, no caso do ataque ser descoberto antes que eles conseguissem provocar danos suficientes. Mas a estratégia mostrou-se desnecessária. Muitos minutos se passaram sem retaliação.
Quando um dos guardas finalmente percebeu o que estava acontecendo e conseguiu dar um grito de alerta, o sangue de mais de mil dos protegidos de Kessell umedecia o campo.
Gritos se elevaram ao redor deles, mas Bruenor não ordenou a retirada.
- Em formação! - ordenou ele. - Bem fechada em volta dos túneis!
Ele sabia que a investida selvagem da primeira onda do contra-ataque seria desorganizada e os monstros estariam despreparados.
Os anões alinharam-se numa fechada posição defensiva e tiveram pouco trabalho para abater os goblins. O machado de Bruenor já ostentava muitos outros chanfros antes mesmo que um goblin houvesse tentado golpeá-lo.
Aos poucos, porém, os protegidos de Kessell tornaram-se mais organizados. Investiram contra os anões em suas próprias formações e, à medida que o acampamento era despertado e alertado, as tropas cada vez maiores começavam a pressionar os atacantes. E, então, um grupo de ogros, a guarda de elite da torre de Kessell, arremeteu pelo campo.
Os primeiros anões a bater em retirada - os peritos que deveriam fazer a verificação final dos preparativos para o desmoronamento - colocaram os pés protegidos por botas nos degraus superiores das escadas dos poços. A fuga para os túneis seria uma operação delicada, e a pressa com eficiência seria um fator decisivo em seu sucesso ou fracasso.
Mas Bruenor inesperadamente ordenou que os peritos voltassem a sair dos poços e os anões defendessem a linha.
Ele ouvira as primeiras notas de uma antiga canção, uma canção que, apenas alguns anos antes, teria enchido o anão de temor. Agora, porém, enchia seu coração de esperança.
Ele reconheceu a voz que regia as palavras arrebatadoras.

Um braço decepado de carne pútrida estatelou-se no chão, mais uma vítima das cimitarras sibilantes de Drizzt Do'Urden.
Mas os destemidos trolls abriam caminho até ele. Normalmente, Drizzt teria percebido a presença deles assim que tivesse penetrado a câmara quadrangular. O terrível fedor dos monstros dificultava-lhes a dissimulação. Aqueles ali porém, não estavam realmente na câmara quando o drow entrou. Ao adentrar a sala, Drizzt disparou um alarme mágico que banhou a área em luz arcana e atraiu os guardiões. Eles saíram de espelhos mágicos que Kessell havia instalado como postos de vigilância por toda a sala.
Drizzt já tinha abatido um dos perversos monstros, mas agora estava mais preocupado em fugir do que lutar. Cinco outros substituíram o primeiro e eram mais do que páreo para qualquer guerreiro. Drizzt chacoalhou a cabeça, incrédulo, quando o corpo do troll que ele decapitara subitamente levantou-se de novo e pôs-se a desferir golpes às cegas.
E, em seguida, uma mão provida de garras segurou-lhe o tornozelo. Ele não precisou nem mesmo olhai para saber que se tratava do membro que acabara de decepar.
Horrorizado, ele chutou o braço grotesco para longe, virou-se e disparou para a escadaria em espiral, nos fundos da câmara, que subia até o segundo nível da torre. Com uma ordem anterior sua, Guenhwyvar já havia debilmente mancado escada acima e agora aguardava na plataforma do topo.
Drizzt ouviu distintamente o som aspirado dos passos de seus repugnantes perseguidores e o arranhar das imundas unhas da mão decepada que também retomava a perseguição. O drow subiu a escadaria aos saltos, sem olhar para trás, esperando que sua velocidade e agilidade dessem a ele uma boa dianteira até encontrar uma maneira de escapar.
Pois não havia portas na plataforma.
O patamar no topo das escadas era retangular e tinha cerca de dez pés em sua largura máxima. Dois lados abriam-se para a sala, um terceiro abrangia a orla do friso do poço da escada, e o quarto era uma folha larga de espelho que se estendia pelo exato comprimento da plataforma e se achava preso entre ela e o teto da câmara. A esperança de Drizzt era adivinhar o segredo daquela porta incomum - se é que se tratava realmente de uma porta - quando a examinou desde a plataforma.
Não seria assim tão fácil.
Apesar de tomada pelo reflexo de uma tapeçaria ornamentada que pendia da parede diretamente oposta, a superfície do espelho parecia perfeitamente lisa, imaculada por qualquer rachadura ou maçaneta que indicasse uma abertura secreta. Drizzt embainhou as armas e correu as mãos pela superfície para ver se havia ali uma maçaneta oculta a seus olhos aguçados, mas a superfície regular do vidro só confirmou sua observação.
Os trolls estavam na escadaria.
Drizzt tentou abrir caminho através do vidro, pronunciou todas as palavras de desobstrução que já havia aprendido, procurou um portal extradimensional similar aos que haviam ocultado os hediondos guardas de Kessell. A parede continuava uma barreira tangível.
O troll na vanguarda alcançou o ponto médio das escadas.
- Deve haver uma pista em algum lugar! - gemeu o drow. - Os magos adoram um desafio e não há diversão nisto! - A única resposta possível estava nos padrões e imagens intrincadas da tapeçaria. Drizzt fitou-a, tentando classificar os milhares de imagens entretecidas em busca de alguma dica que lhe mostrasse o caminho para a segurança.
O fedor já chegava até ele. Podia ouvir a salivação dos monstros eternamente famintos.
Mas ele precisava controlar seu asco e concentrar-se naquela miríade de imagens. Algo na tapeçaria chamou-lhe a atenção: os versos de um poema que se entrelaçavam a todas aquelas outras imagens ao longo da borda superior. Ao contrário das cores desbotadas do restante da antiga obra de arte, as letras caligrafadas do poema ostentavam o brilho contrastante de um acréscimo mais recente. Seria algo que Kessell acrescentara?
Vinde se quiserdes
A orgia em que vivo,
Mas antes a aldrava deveis encontrar!
Visto e não visto
Ser sem ter sido
A maçaneta, a carne não pode tocar.
Um verso em particular destacou-se na mente do drow. Ele ouvira a frase "ser sem ter sido" em sua infância em Menzoberranzan. Era uma referência a Urgutha Forka, um demônio perverso que devastara o planeta com uma peste particularmente virulenta nos tempos antigos, quando os ancestrais de Drizzt caminhavam na superfície. Os elfos da superfície haviam sempre negado a existência de Urgutha Forka e culpavam os drow pela peste, mas os elfos negros sabiam a verdade. Algo em sua constituição física os havia imunizado contra o demônio e, depois de perceber a letalidade da praga para seus inimigos, eles fizeram de tudo para comprovar as suspeitas dos elfos claros ao arregimentar Urgutha como um de seus aliados.
Portanto, a referência "ser sem ter sido" era um verso pejorativo num conto um pouco mais longo dos drow, uma piada secreta em cima de seus odiados primos que haviam perdido milhares por causa de uma criatura que negavam até mesmo existir.
A solução do enigma teria sido impossível para qualquer um que não conhecesse a história de Urgutha Forka. O drow encontrara uma vantagem valiosa. Ele examinou o reflexo da tapeçaria em busca de uma imagem que tivesse alguma ligação com o demônio. E encontrou-a bem na borda do espelho à altura da cintura: um retrato do próprio Urgutha, revelado em toda a sua horrível magnificência. O demônio era representado esmagando o crânio de um elfo com um bordão negro, seu símbolo. Drizzt vira aquele mesmo retrato antes. Nada parecia fora de lugar nem indicava qualquer coisa de incomum.
Os trolls haviam chegado ao último lance de escada. O tempo de Drizzt se esgotava.
Ele se virou e vasculhou a fonte da imagem em busca de alguma discrepância. Ocorreu-lhe imediatamente. Na tapeçaria original, Urgutha atingia o elfo com o punho; não havia um bordão!
"Visto e não visto"
Drizzt girou sobre os calcanhares e voltou a fitar o espelho, tentando agarrar a arma ilusória do demônio. Mas tudo o que sentiu foi o vidro liso. Quase gritou de frustração.
Sua experiência ensinara-lhe disciplina, e ele rapidamente readquiriu a compostura. Afastou a mão do espelho, tentando posicionar seu próprio reflexo à mesma profundidade em que julgava estar o bordão. Fechou os dedos vagarosamente, observando a imagem de sua mão fechar-se em torno do bordão com a emoção do sucesso antecipado.
Ele moveu a mão ligeiramente.
Uma fina rachadura apareceu no espelho.
O troll da vanguarda alcançou o topo das escadas, mas Drizzt e Guenhwyvar haviam desaparecido.
O drow deslizou a estranha porta de volta à posição fechada, recostou-se e suspirou aliviado. Tinha diante dele uma escadaria indistintamente iluminada que levava para cima e terminava numa plataforma que se abria no segundo nível da torre. Nenhuma porta bloqueava seu caminho, apenas cordões aljofrados que pendiam do teto, cintilantes e alaranjados sob a luz das tochas da sala do outro lado. Drizzt ouviu risos.
Em silêncio, ele e o gato se esgueiraram escada acima e espiaram por sobre a beirada do patamar. Haviam chegado ao harém de Kessell.
A sala era iluminada suavemente por tochas que brilhavam sob quebra-luzes protetores. A maior parte do piso cobria-se de almofadas excessivamente estofadas, e algumas seções da sala achavam-se isoladas por cortinas. As moças do harém, os brinquedinhos irracionais de Kessell, estavam sentadas em círculo no centro do piso, rindo com o entusiasmo infantil de crianças a brincar. Drizzt duvidava que elas viessem a notá-lo, mas mesmo que o fizessem, ele não estava muito preocupado. Compreendeu imediatamente que aquelas lamentáveis e subjugadas criaturas eram incapazes de tomar qualquer atitude contra ele.
Manteve-se alerta, entretanto, principalmente por causa dos budoares acortinados. Ele duvidava que Kessell tivesse posicionado guardas ali, sem dúvida nenhum tão imprevisivelmente violento quanto os trolls, mas não podia se dar ao luxo de cometer erros.
Com Guenhwyvar bem a seu lado, ele se esgueirou silenciosamente de uma sombra a outra, e quando os dois companheiros alcançaram o patamar diante da porta para o terceiro nível, depois de terem subido as escadas, Drizzt relaxou um pouco.
Mas, então, recomeçou o zumbido que Drizzt ouvira quando entrou na torre. Ficava mais forte a cada instante, como se sua música tivesse origem nas vibrações das próprias paredes da torre. Drizzt olhou a sua volta, em busca de uma possível fonte.
Sinos pendentes do teto da sala começaram a tilintar sinistramente. As chamas das tochas nas paredes dançaram impetuosamente.
Foi então que Drizzt compreendeu.
A estrutura despertava, ganhava vida própria. O campo lá fora continuava sob a sombra da noite, mas os primeiros dedos da aurora iluminavam o alto pináculo da torre.
A porta abriu-se de repente para o terceiro nível, a sala do trono de Kessell.
- Muito bem! - gritou o mago.
Ele estava de pé, atrás do trono de cristal, do outro lado da sala em relação a Drizzt, segurando uma vela apagada e encarando a porta aberta. Régis encontrava-se obedientemente ao lado dele, com uma expressão vazia no rosto.
- Entre, por favor - disse Kessell, com falsa cortesia. - Não se preocupe com os meus trolls que você feriu; eles com certeza vão sarar!
Atirou a cabeça para trás e gargalhou.
Drizzt sentiu-se estúpido. E pensar que toda a sua cautela e dissimulação de pouco adiantaram, a não ser para divertir o mago! Ele descansou as mãos sobre os punhos das cimitarras embainhadas e atravessou a porta.
Guenhwyvar permaneceu agachada nas sombras da escadaria, em parte porque o mago nada dissera que indicasse que ele soubesse sobre o gato e, em parte, porque a pantera enfraquecida desejava poupar a energia de caminhar.
Drizzt estacou diante do trono e fez uma reverência. A visão de Régis ao lado do mago o perturbava - e não era pouco -, mas ele conseguiu disfarçar que reconhecia o halfling. Régis, do mesmo modo, não demonstrara qualquer familiaridade assim que vira o drow, mas Drizzt não estava bem certo se aquilo era um esforço consciente ou se o halfling estava sob a influência de algum tipo de encantamento.
- Saudações, Akar Kessell - tartamudeou Drizzt, com o sotaque imperfeito dos habitantes do mundo subterrâneo, como se a língua geral da superfície fosse estranha a ele. Imaginou que poderia muito bem tentar a mesma tática que usara contra o demônio. - Fui enviado de boa fé por meu povo para parlamentar com você quanto a questões referentes a nossos interesses comuns.
Kessell gargalhou alto.
- Sério? - um sorriso largo espalhou-se por seu rosto, substituído abruptamente por uma carranca. Seus olhos se estreitaram maldosamente. - Eu conheço você, elfo negro! Qualquer homem que tenha vivido em Dez-Burgos já ouviu o nome de Drizzt Do'Urden em lendas ou anedotas! Fique com suas mentiras!
- Perdão, poderoso mago - disse Drizzt tranqüilamente, mudando de tática. - Em vários aspectos, assim parece, você é mais sábio que seu demônio.
A aparência presunçosa sumiu do rosto de Kessell. Ele vinha se perguntando o que tinha impedido Errtu de responder a seus chamados. Olhou para o drow com mais respeito. Teria aquele guerreiro solitário dado cabo de um demônio importante?
- Permita-me recomeçar - disse Drizzt. - Saudações, Akar Kessell. - Ele fez uma reverência. - Sou Drizzt Do'Urden, ranger de Gwaeron Windstrom, guardião do Vale do Vento Gélido. Vim matá-lo.
As cimitarras saltaram de suas bainhas.
Mas Kessell também se moveu. A vela que segurava ganhou vida de repente. A chama foi capturada pelo labirinto de prismas e espelhos que atravancavam toda a câmara, focalizada e aguçada em cada ponto refletor. Instantaneamente, com o acender da vela, três raios concentrados de luz encerraram o drow numa prisão triangular. Nenhum dos raios o tocou, mas Drizzt sentiu-lhes o poder e não ousou atravessar-lhes o caminho.
Drizzt ouviu claramente a torre zumbir assim que a luz do dia insinuou-se por toda a sua extensão. A sala se iluminou consideravelmente quando vários painéis nas paredes, tão semelhantes a espelhos à luz das tochas, revelaram-se como janelas.
- Você acreditou que poderia entrar aqui e simplesmente desfazer-se de mim? - Kessell perguntou, incrédulo. - Sou Akar Kessell, seu idiota! O Tirano do Vale do Vento Gélido! Comando o maior exército que já marchou sobre as estepes congeladas desta terra abandonada! Contemple meu exército!
Ele acenou com a mão e um dos espelhos de cristalomancia ganhou vida, revelando em sua plenitude parte do vasto acampamento que cercava a torre e os gritos daqueles que despertavam.
Foi então que um grito agonizante soou em algum lugar nos confins invisíveis do campo. Instintivamente, tanto o drow quanto o mago ajustaram os ouvidos ao clamor distante e ouviram o fragor contínuo da batalha. Curioso, Drizzt olhou para Kessell, imaginando se o mago sabia o que estava acontecendo na seção norte de seu acampamento.
Kessell respondeu à pergunta muda do drow com um aceno da mão. A imagem no espelho anuviou-se por um instante com uma bruma interior e depois se deslocou para o outro lado do campo. Os gritos e o clangor da batalha soaram alto desde as profundezas do instrumento de cristalomancia. Quando a bruma clareou, a imagem dos companheiros de clã de Bruenor, lutando de costas um para o outro em meio a um mar de goblins, ficou nítida. O campo em volta dos anões estava coberto de cadáveres de goblins e ogros.
- Vê como é estúpido resistir a mim? - foi o grito agudo de Kessell.
- Parece que os anões estão se saindo bem.
- Bobagem! - gritou Kessell.
Ele acenou com a mão novamente e a névoa retornou ao espelho. Abruptamente, a Canção de Tempus ressoou desde suas profundezas. Drizzt inclinou-se e esforçou-se para vislumbrar uma imagem através do véu, ansioso por ver o regente da canção.
- Mesmo agora, enquanto os estúpidos anões abatem alguns de meus soldados mais insignificantes, mais guerreiros chegam em grande número para se juntar às fileiras de meu exército! Estão condenados, todos vocês, Drizzt Do'Urden! Akar Kessell chegou!
A névoa clareou.
Com mil guerreiros fervorosos atrás dele, Wulfgar aproximou-se dos monstros desavisados. Os goblins e ores mais próximos aos bárbaros atacantes, acreditando piamente nas palavras de seu mestre, rejubilaram-se com a chegada dos prometidos aliados.
E então morreram.
A horda bárbara atravessou-lhes as fileiras, cantando e matando com selvagem abandono. Mesmo em meio ao fragor das armas, foi possível ouvir os anões juntando suas vozes à Canção de Tempus.
De olhos esbugalhados, o queixo caído e a tremer de raiva, Kessell afastou a imagem chocante com um aceno e girou o corpo para encarar Drizzt novamente.
- Não importa! - disse ele, lutando para manter firme o tom da voz. - Hei de lidar com eles sem misericórdia! E então Brin Shander há de tombar em meio às chamas! Mas primeiro, você, drow traidor - sibilou o mago. - Assassino de sua própria gente, que deuses lhe restaram a quem orar?
Ele soprou a vela e fez a chama dançar para um lado.
O ângulo de reflexão mudou e um dos raios recaiu sobre Drizzt, abrindo um buraco através do punho de sua velha cimitarra, e depois penetrou mais fundo, atravessando a pele negra da mão dele. O rosto de Drizzt contorceu-se de agonia, e ele apertou o ferimento enquanto a cimitarra caía ao chão e o raio retornava a sua trajetória original.
- Vê como é fácil? - escarneceu Kessell. - Sua mente fraca sequer é capaz de começar a imaginar o poder de Crenshinibon! Sinta-se abençoado por eu ter permitido a você sentir uma amostra desse poder antes de morrer!
Drizzt contraiu os músculos da mandíbula e não havia sinal de súplica em seus olhos quando ele fitou o mago. Havia tempos ele tinha reconhecido a possibilidade da morte como um risco aceitável de sua profissão e estava determinado a morrer com dignidade.
Kessell tentou fazê-lo suar. O mago fez oscilar torturantemente a vela mortífera, fazendo com que os raios se deslocassem de um lado para outro. Quando finalmente se deu conta de que não ouviria um único gemido ou rogo do orgulhoso tanger, Kessell cansou-se de seu joguinho.
- Adeus, idiota - resmungou ele e franziu os lábios para soprar a chama.
Régis apagou a vela.
Tudo pareceu parar completamente durante vários segundos. O mago, escandalizado, baixou os olhos até o halfling, a quem ele considerava um escravo. Régis meramente encolheu os ombros, como se estivesse tão surpreso por seu incomum ato de bravura quanto Kessell.
Confiando no instinto, o mago atirou o pires de prata que sustentava a vela através do vidro do espelho e correu, aos gritos, em direção ao canto nos fundos da sala, até uma pequena escada de mão escondida nas sombras. Drizzt acabara de dar os primeiros passos quando as chamas no interior do espelho se inflamaram. Quatro olhos vermelhos e malignos fitaram-no desde lá de dentro, atraindo a atenção do drow, e dois cães infernais saltaram através do vidro partido.
Guenhwyvar interceptou um deles, passando num salto por seu mestre e chocando-se de cabeça contra o cão demoníaco. As duas feras - um borrão vermelho-fulvo de presas e garras - rolaram em direção à parte de trás da sala e arremessaram Régis para um lado.
O segundo cachorro liberou seu hálito de fogo sobre Drizzt, mas novamente, como acontecera com o demônio, as chamas não incomodaram o drow. E agora era sua vez de atacar. A cimitarra que odiava o fogo retiniu de puro êxtase e partiu o agressor ao meio quando Drizzt a baixou. Admirado com o poder da espada, mas sem tempo até mesmo para ficar admirado diante da vítima mutilada, Drizzt retomou sua perseguição.
Ele alcançou a base da escada. Lá de cima, através do alçapão aberto para o andar mais alto da torre, vinham os lampejos rítmicos de uma luz palpitante. Drizzt sentiu a intensidade das vibrações aumentar a cada pulsação. O coração de Crishal-Tirith batia mais forte com o sol nascente. Drizzt compreendia o risco que correria, mas não tinha tempo para se deter e avaliar suas chances.
Em seguida, ele estava de novo diante de Kessell, dessa vez na menor sala da estrutura. Entre eles, suspenso misteriosamente em pleno ar, encontrava-se um grande fragmento palpitante de cristal: o coração de Crishal-Tirith. Tinha quatro lados e era afilado como um pingente de gelo. Drizzt reconheceu-o como uma réplica em miniatura da torre na qual se encontrava, apesar de este mal chegar a trinta centímetros de comprimento.
Uma cópia exata de Crenshinibon.
Uma muralha de luz dele emanava, dividindo a câmara ao meio, com o drow de um lado e o mago do outro. Drizzt compreendeu, pela risadinha do mago, que era uma barreira tão tangível quanto se fosse de pedra. Ao contrário da abarrotada sala de cristalomancia abaixo, apenas um espelho, que parecia mais uma janela na parede da torre, adornava aquela sala, bem ao lado do mago.
- Golpeie o coração, drow - riu Kessell. - Idiota! O coração de Crishal-Tirith é mais poderoso que qualquer arma do mundo! Nada que você possa fazer, seja mágico ou não, poderia sequer arranhar-lhe a superfície imaculada! Golpeie-o. Que se revele sua tola impertinência!
Drizzt, porém, tinha outros planos. Era versátil e astuto o bastante para perceber que alguns adversários não podiam ser derrotados somente com o uso da força. Havia sempre outras opções.
Ele embainhou a arma remanescente, a cimitarra mágica, e começou a desamarrar a corda que prendia o saco de farinha a seu cinto. Kessell apenas observou, curioso, perturbado com a calma do drow, mesmo quando a morte parecia inevitável.
- O que está fazendo? - indagou o mago.
Drizzt não respondeu. Suas ações eram metódicas e impassíveis. Ele soltou o cordão que fechava o saco e o abriu.
- Perguntei o que está fazendo!
Kessell franziu o cenho quando Drizzt começou a andar em direção ao coração da torre. Subitamente, a réplica pareceu vulnerável ao mago. Ele tinha a sensação incômoda de que talvez aquele elfo negro fosse mais perigoso do que ele tinha pensado.
Crenshinibon também o sentiu. A estilha de cristal telepaticamente instruiu Kessell a liberar um raio fatal e dar cabo do drow.
Mas Kessell estava amedrontado.
Drizzt aproximou-se do cristal. Tentou colocar a mão sobre ele, mas a muralha de luz o repeliu. Ele meneou a cabeça, já esperando por isso, e esticou tanto quanto possível a boca do saco. Sua concentração voltou-se exclusivamente para a própria torre: ele jamais olhou para o mago nem deu a atenção a seus resmungos.
Ele esvaziou o saco de farinha sobre a jóia.
A torre pareceu gemer em protesto. Escureceu.
A muralha de luz que separava o drow do mago desapareceu.
Mas, ainda assim, Drizzt concentrou-se na torre. Ele sabia que a camada asfixiante de farinha bloquearia as poderosas radiações da jóia apenas por pouco tempo.
O bastante, porém, para que ele rapidamente colocasse o saco agora vazio sobre ela e esticasse o cordão que o fechava. Kessell gritou de dor e atirou-se para frente, mas estacou diante da cimitarra desembainhada.
- Não! - o mago gritou num protesto impotente. - Você tem idéia das conseqüências do que acabou de fazer?
Como se respondesse, a torre estremeceu. Acalmou-se rapidamente, mas tanto o drow quanto o mago sentiram o perigo iminente. Em algum lugar nas entranhas de Crishal-Tirith, a deterioração já começara.
- Compreendo perfeitamente - respondeu Drizzt. - Eu o derrotei, Akar Kessell. Seu breve reinado como auto-proclamado soberano de Dez-Burgos chegou ao fim.
- Você matou a si mesmo, drow! - retorquiu Kessell, e Crishal-Tirith estremeceu novamente, dessa vez com mais violência. - Você nem mesmo pode sonhar escapar antes de a torre desabar sobre sua cabeça!
Veio de novo o tremor. E de novo. Drizzt deu de ombros, indiferente.
- Que seja - disse ele. - Cumpri meu propósito, pois você também há de perecer.
Uma gargalhada súbita e insana explodiu nos lábios do mago. Ele deu as costas a Drizzt e mergulhou no espelho embutido na parede da torre. Em vez de atravessar o vidro e cair no campo lá embaixo, como Drizzt esperava, Kessell deslizou espelho adentro e sumiu.
A torre chacoalhou novamente e, dessa vez, o tremor não cedeu. Drizzt lançou-se para o alçapão, mas mal conseguiu manter-se de pé. Rachaduras apareceram ao longo das paredes.
- Régis! - berrou, mas não houve resposta. Parte da parede da sala abaixo já havia desabado. Drizzt viu os escombros ao pé da escada. Rezando para que seus amigos já tivessem escapado, ele tomou a única rota que lhe restara.
Mergulhou através do espelho mágico atrás de Kessell.

30
A Batalha do Vale do Vento Gélido

O povo de Brin Shander ouviu os sons do combate no campo, mas foi somente com a luz da aurora que conseguiram ver o que acontecia. Aplaudiram freneticamente os anões e admiraram-se quando os bárbaros se chocaram com as tropas de Kessell e abateram os goblins com alegre abandono.
Cássio e Glensather, em suas habituais posições sobre a muralha, avaliaram a inesperada reviravolta dos acontecimentos, sem que se decidissem se deveriam ou não soltar suas tropas na refrega.
- Bárbaros? - admirou-se Glensather. - São nossos amigos ou inimigos?
- Estão matando os ores! - respondeu Cássio. - São amigos!
No Maer Dualdon, Kemp e os outros também ouviram o fragor da batalha, apesar de não conseguirem ver que forças estavam envolvidas. O mais desconcertante era que um segundo conflito começara, dessa vez a sudoeste, na vila de Bremen. Teriam os homens de Brin Shander saído e atacado? Ou era o contingente de Akar Kessell destruindo-se em volta dele?
Foi então que Crishal-Tirith subitamente ficou escura e seus lados antes vítreos e vibrantes adquiriram uma imobilidade cadavérica e opaca.
- Régis - murmurou Cássio, sentindo a perda de poder da torre. - Um herói como nunca tivemos!
A torre estremeceu e agitou-se. Grandes rachaduras apareceram por toda a extensão de suas paredes. Em seguida, desmoronou.
Os monstros do exército só fizeram observar, incrédulos e aterrorizados, o desmoronamento do bastião do mago que eles vieram a adorar como a um deus.
As cornetas de Brin Shander começaram a soar. A gente de Kemp irrompeu em vivas frenéticos e precipitou-se para os remos. Os batedores de vanguarda de Jensin Brent, por meio de sinais, repassaram as surpreendentes notícias à frota no Lac Dinneshir que, por sua vez, transmitiu a mensagem a Marerrubra. Em todos os refúgios temporários que ocultavam o povo disperso de Dez-Burgos ouviu-se a mesma ordem:
- Atacar!
O exército reunido diante dos grandes portões da muralha de Brin Shander despejou-se do pátio para o campo. As frotas de Caer-Konig e Caer-Dineval, no Lac Dinneshir, e Bom Prado e Toca de Dugan, no sul, içaram suas velas para aproveitar o vento leste e puseram-se a atravessar os lagos a toda a pressa. As quatro frotas reunidas no Maer Dualdon remaram com toda a força, fazendo frente àquele mesmo vento, ansiosas por vingança.
Numa arremetida voraginosa de caos e surpresa, começara a derradeira Batalha do Vale do Vento Gélido.

Régis rolou pelo chão para se pôr fora do caminho quando as duas criaturas que travavam combate passaram mais uma vez por ele, aos trambolhões, com as garras e as presas a rasgar e a dilacerar a carne numa luta desesperada. Normalmente, Guenhwyvar teria tido pouco trabalho para despachar o cão infernal mas, enfraquecida como estava, viu-se lutando pela própria vida. O hálito quente do cachorro abrasou a pelagem negra; as grandes presas enterraram-se no pescoço musculoso.
Régis queria ajudar o gato, mas sequer conseguia se aproximar o suficiente para chutar o adversário da pantera. Por que Drizzt fugira tão abruptamente?
Guenhwyvar sentiu o pescoço sendo esmagado pela poderosa bocarra. O gato rolou e, mais pesado, levou o cão consigo. Mas as mandíbulas caninas não cederam. A tontura acometeu o gato devido à falta de ar. O felino começou a enviar sua mente de volta através dos planos, para seu verdadeiro lar, mesmo lamentando ter falhado com seu mestre numa hora de necessidade.
Foi então que a torre escureceu. O assustado cão infernal relaxou ligeiramente a pressão e Guenhwyvar rapidamente aproveitou a oportunidade. O gato enfiou as patas nas costelas do cão e livrou-se das mandíbulas com um repelão, rolando para longe e para as trevas.
O cão infernal procurou o adversário, mas os poderes de dissimulação da pantera estavam acima até mesmo da considerável perceptividade de seus sentidos aguçados. O cão viu uma segunda presa. Um único salto o levou até Régis.
Mas Guenhwyvar agora conhecia muito bem as regras do jogo. A pantera era uma criatura da noite, um predador que atacava a partir das trevas e matava antes mesmo que a vítima pressentisse sua presença. O cão infernal agachou-se para atacar Régis, mas foi ao chão quando a pantera caiu pesadamente sobre suas costas e as garras enterraram-se em seu couro cor de ferrugem.
O cão ganiu apenas uma vez antes de as presas fatais encontrarem seu pescoço.
Os espelhos racharam e se estilhaçaram. Um buraco imprevisto no piso tragou o trono de Kessell. Os blocos de escombros cristalinos começaram a cair de todos os lados, e a torre estremecia em seus estertores finais. Gritos provenientes da câmara do harém logo abaixo informaram Régis de que uma cena semelhante de destruição era comum em toda a estrutura. Ele se alegrou o ver Guenhwyvar despachar o cão infernal, mas compreendeu a inutilidade do heroísmo do gato. Não tinham para onde correr nem como escapar à morte de Crishal-Tirith.
Régis chamou Guenhwyvar para perto dele.
Ele não conseguia enxergar o corpo do gato na escuridão, mas via os olhos que se concentravam nele e o rodeavam como se o gato o estivesse espreitando.
- O que foi? - refugou o halfling, atônito, imaginando se a tensão e os ferimentos infligidos pelo cão não teriam levado Guenhwyvar à loucura.
Um grande pedaço da parede espatifou-se bem ao lado dele, estatelando-o no chão. Ele viu os olhos do gato erguerem-se em pleno ar; Guenhwyvar saltara.
O pó o sufocou, e ele sentiu o início do derradeiro colapso da torre de cristal. Em seguida, uma escuridão mais profunda o surpreendeu quando ele foi envolvido pelo gato negro.

Drizzt sentiu-se cair.
A luz era brilhante demais, ele não enxergava. Nada ouvia, nem mesmo o som do ar que passava velozmente. No entanto, ele sabia com certeza que estava caindo.
E depois a luz empalideceu e transformou-se numa bruma cinzenta, como se ele atravessasse uma nuvem. Tudo parecia tão onírico, tão completamente irreal. Ele não se lembrava de como acabara naquela situação. Não conseguia recordar o próprio nome.
Foi então que ele caiu num profundo monte de neve e percebeu que não estava sonhando. Ouviu o grito do vento e sentiu sua mordida enregelante. Ele tentou ficar de pé para ter uma idéia melhor dos arredores.
Aí ele ouviu, ao longe e abaixo, os gritos da devastadora batalha. Lembrou-se de Crishal-Tirith, lembrou-se de onde estivera. Só podia haver uma resposta.
Ele estava no topo do Sepulcro de Kelvin.

Os soldados de Brin Shander e Angraleste, lutando lado a lado e liderados por Cássio e Glensather, arremeteram colina abaixo e caíram com toda a força sobre as tropas transtornadas de goblins. Os dois representantes tinham um determinado objetivo em mente: queriam atravessar as fileiras de monstros e unir-se aos pupilos de Bruenor. Sobre a muralha, momentos antes, eles tinham visto os bárbaros tentarem a mesma estratégia e calcularam que, se todos os três exércitos pudessem ser reunidos para cobrir um o flanco do outro, suas chances exíguas melhorariam bastante.
Os goblins cederam ao assalto. Em sua absoluta consternação e surpresa diante da súbita reviravolta dos acontecimentos, os monstros foram incapazes de organizar algo que lembrasse uma linha defensiva.
Quando aportaram logo ao norte das ruínas de Targos, as quatro frotas no Maer Dualdon encontraram a mesma resistência desorganizada e desorientada. Kemp e os outros líderes haviam calculado que conseguiriam facilmente estabelecer uma cabeça-de-ponte em terra, mas sua principal preocupação era o grande exército de goblins ocupando Termalaine precipitar-se logo atrás deles caso abrissem caminho a partir da praia, o que eliminaria sua única rota de fuga.
Entretanto, eles não precisariam ter se preocupado. Nos primeiros estágios da batalha, os goblins em Termalaine haviam realmente se precipitado para fora com toda a intenção de apoiar o mago. Mas, então, Crishal-Tirith desmoronara. Os goblins já andavam céticos, tendo ouvido durante toda a noite que Kessell despachara um grande destacamento para exterminar os Ores da Língua Partida na cidade conquistada de Bremen. E quando viram a torre, o pináculo do poder de Kessell, transformada em ruínas, eles reconsideraram suas alternativas e ponderaram entre eles as conseqüências de suas opções. Fugiram para o norte e para a segurança da vasta planície.

As rajadas de neve contribuíam para formar o denso véu de bruma no topo da montanha. Drizzt mantinha os olhos baixos, mas mal conseguia enxergar os próprios pés enquanto colocava resolutamente um em frente ao outro. Ele ainda tinha a cimitarra mágica, e ela brilhava com uma luz pálida, como se aprovasse as temperaturas frígidas.
O corpo cada vez mais insensível do drow implorava para que ele descesse a montanha, mas ele continuava a se distanciar ao longo da face alta, em direção a um dos picos adjacentes. O vento trazia um som perturbador a seus ouvidos: uma gargalhada ensandecida.
E foi então que ele viu a forma indistinta do mago, debruçada por sobre o precipício ao sul, tentando vislumbrar o que acontecia no campo de batalha lá em baixo.
- Kessell! - gritou Drizzt. Ele viu a forma se mover abruptamente e compreendeu que o mago o ouvira, mesmo com o uivo do vento. - Em nome do povo de Dez-Burgos, exijo que se renda a mim! Rápido, agora, antes que esse sopro implacável de inverno nos congele aqui mesmo onde estamos!
Kessell abriu um sorriso escarninho.
- Você ainda não compreende o que está enfrentando, não é? - perguntou ele, estupefato. - Você realmente acredita que venceu esta batalha?
- Como a gente lá embaixo está se saindo eu ainda não sei - respondeu Drizzt, mas você foi derrotado! Sua torre foi destruída, Kessell, e sem ela você não passa de um impostor insignificante! - Ele continuou a se mover enquanto falava e estava agora a uma pequena distância do mago, mas seu oponente era ainda um mero borrão negro num campo cinzento.
- Quer saber como eles estão se saindo, drow? - perguntou Kessell. - Então olhe! Testemunhe a queda de Dez-Burgos! - Ele enfiou a mão sob o manto e sacou um objeto brilhante: uma estilha de cristal. As nuvens pareceram recuar diante dela. O vento cessou dentro dos limites do amplo raio de sua influência. Drizzt testemunhou seu incrível poder. Sob a luz do cristal, o drow sentiu o sangue retornar a suas mãos insensíveis. Em seguida, o véu cinzento foi consumido pelo fogo e o céu diante deles ficou claro.
- A torre destruída? - zombou Kessell. - Você quebrou apenas uma das inúmeras cópias de Crenshinibon! Um saco de farinha? Derrotar a relíquia mais poderosa do mundo? Olhe lá embaixo, veja os homens estúpidos que ousam me fazer oposição!
O campo de batalha desfraldou-se diante do drow. Ele viu as velas brancas e enfunadas dos barcos de Caer-Dineval e Caer-Konig que se aproximavam da margem oeste do Lac Dinneshir.
No sul, as frotas de Bom Prado e Toca de Dugan já haviam aportado. Os marinheiros não encontraram qualquer resistência inicial e, naquele exato momento, entravam em formação para um ataque por terra. Os goblins e os ores que formavam a metade meridional do círculo de Kessell não haviam testemunhado a queda de Crishal-Tirith. Mesmo sentindo a perda de poder e orientação, e apesar de muitos permanecerem onde estavam ou abandonarem os companheiros para fugir, outros tantos contornaram precipitadamente a colina de Brin Shander para se juntar à batalha.
As tropas de Kemp também estavam em terra firme e empurravam os barcos para longe das praias com um olhar desconfiado voltado para o norte. Esse grupo tinha aportado em meio à mais densa concentração das forças de Kessell, mas também na área sob a sombra da torre, onde a queda de Crishal-Tirith havia sido mais desalentadora. Os pescadores encontraram mais goblins interessados em fugir do que com a intenção de lutar.
No centro do campo, onde aconteciam os combates mais violentos, os homens de Dez-Burgos e seus aliados também pareciam estar se saindo bem.
Os bárbaros tinham praticamente se unido aos anões. Incitadas pela força do martelo de Wulfgar e a coragem sem igual de Bruenor, as duas forças estraçalhavam tudo o que se colocava entre elas. E logo se tornariam ainda mais formidáveis, pois Cássio e Glensather estavam bem perto e aproximavam-se a um ritmo constante.
- Pelo que dizem meus olhos, seu exército não está se saindo muito bem - retorquiu Drizzt. - Os homens "estúpidos" de Dez-Burgos ainda não foram derrotados!
Kessell ergueu a estilha de cristal bem acima da cabeça, e a luz do objeto inflamou-se e atingiu um nível ainda maior de poder. lá embaixo, no campo de batalha, mesmo àquela grande distância, os combatentes compreenderam imediatamente a ressurreição da poderosa presença que haviam conhecido como Crishal-Tirith. Tanto humanos quanto anões e goblins, mesmo aqueles envolvidos em combate mortal, detiveram-se um segundo para contemplar o farol sobre a montanha. Os monstros, sentindo o retorno de seu deus, irromperam em vivas frenéticos e abandonaram sua postura até então defensiva. Encorajados pelo glorioso reaparecimento de Kessell, eles forçaram o ataque com fúria selvagem.
- Veja como minha simples presença os incita! - Kessell vangloriou- se, orgulhoso.
Mas Drizzt já não prestava mais atenção nem ao mago nem à batalha lá embaixo. Tinha agora os pés cobertos por poças d'água formadas pela neve derretida sob o calor da brilhante relíquia. Eles se concentrava agora num ruído que seus ouvidos aguçados haviam captado por entre o fragor da luta distante. Um bramido de protesto dos picos congelados do Sepulcro de Kelvin.
- Contemple a glória de Akar Kessell! - gritou o mago, com a voz ampliada a uma magnitude ensurdecedora pelo poder da relíquia que ele segurava. - Será muito fácil destruir os barcos no lago lá embaixo!
Drizzt percebeu que Kessell, em sua arrogante desconsideração pelo perigo cada vez maior, cometia um erro flagrante. Tudo o que tinha a fazer era retardar qualquer ação decisiva do mago pelos próximos instantes. Num reflexo, ele agarrou o punhal atrás de seu cinto e atirou-o contra Kessell, embora soubesse que Kessell estava ligado a Crenshinibon por algum tipo de simbiose deturpada e que a pequena arma não tinha a menor chance de atingir seu alvo. O drow esperava distrair e enfurecer o mago para afastar sua fúria do campo de batalha.
O punhal atravessou o ar velozmente. Drizzt virou-se e correu.
Um raio delgado foi disparado por Crenshinibon e derreteu a arma antes que esta encontrasse seu alvo, mas Kessell estava furioso.
- Você deveria se curvar diante de mim! - ele gritou para Drizzt. - Como blasfemo, você fez por merecer a distinção de ser minha primeira vítima
Girou e brandiu a estilha, afastando-a da saliência e apontando-a para o drow em fuga. Mas, tão logo completou o giro, ele afundou até os joelhos na neve derretida.
Foi então que ele também ouviu os bramidos furiosos da montanha.
Drizzt deixou a esfera de influência da relíquia e, sem hesitar nem olhar para trás, correu, distanciando-se tanto quanto pôde da face sul do Sepulcro de Kelvin.
Agora imerso até o peito, Kessell lutou para se libertar da neve derretida. Invocou o poder de Crenshinibon novamente, mas sua concentração vacilou sob a intensa tensão da catástrofe iminente.
Pela primeira vez em anos, Akar Kessell sentiu-se fraco novamente. Não o Tirano do Vale do Vento Gélido, mas o titubeante aprendiz que assassinara seu mestre.
Era como se a estilha de cristal o tivesse rejeitado.
Nesse momento, todo um lado do topo nevado da montanha caiu. O estrondo fez a terra estremecer num raio de muitas milhas. Homens e ores, goblins e até mesmo ogros foram atirados ao chão.
Kessell apertou a estilha bem junto ao peito quando ele começou a cair. Mas Crenshinibon queimou-lhe as mãos, repeliu-o. Kessell falhara vezes demais. A relíquia não mais o aceitaria como seu portador.
Kessell gritou ao sentir a estilha escorregar por entre seus dedos. Seu guincho, porém, foi abafado pelo estrondo da avalanche. A fria escuridão da neve fechou-se ao redor dele e caiu, tombou com ele. Kessell acreditava desesperadamente que, se ainda segurasse a estilha de cristal, ele conseguiria sobreviver até mesmo àquilo. Foi seu pequeno consolo quando ele caiu num dos picos mais baixos do Sepulcro de Kelvin.
E metade do topo da montanha caiu sobre ele.

O exército de monstros presenciara novamente a queda de seu deus. O filete de esperança que estimulara seu ímpeto começou a se desfazer rapidamente. Mas, no breve período em que Kessell reaparecera, algum grau de atividade coordenadora ocorrera. Dois gigantes do gelo, os únicos gigantes verdadeiros remanescentes em todo o exército do mago, assumiram o comando. Chamaram os ogros da guarda de elite para junto deles e depois convocaram as tribos de ores e goblins a se juntar a eles e seguir sua liderança.
Mesmo assim, a consternação do exército era óbvia. As rivalidades tribais, enterradas sob a dominação férrea de Akar Kessell, ressurgiram na forma de patente desconfiança. Somente o medo que tinham dos inimigos os mantinha lutando, e somente o medo que tinham dos gigantes os mantinha em formação ao lado das outras tribos.
- Bons olhos o vejam, Bruenor! - entoou Wulfgar, depois de espatifar a cabeça de mais um goblin, assim que a horda bárbara finalmente chegou até os anões.
- E você também, garoto! - respondeu o anão, enterrando seu machado no peito do oponente. - Quase que passou da hora de 'cê voltar! Achei que também ia ter que matar a sua parte desta escória!
Entretanto, a atenção de Wulfgar estava em outro lugar. Ele descobrira os dois gigantes que comandavam as tropas.
- Gigantes do gelo - disse ele a Bruenor, dirigindo o olhar do anão para o círculo de ogros. - São tudo o que mantém as tribos unidas!
- Mais diversão! - gargalhou Bruenor. - Vá na frente!
E, desse modo, com seus principais acompanhantes e Bruenor a seu lado, o jovem rei começou a abrir uma trilha de destruição através das fileiras de goblins.
Os ogros amontoaram-se em frente aos novos comandantes para bloquear o caminho do bárbaro.
Wulfgar estava perto o bastante então.
Garra de Palas passou pelas fileiras de ogros com um silvo e acertou um dos gigantes na cabeça, fazendo-o cair sem vida. O outro, pasmo e incrédulo diante de um humano capaz de desferir um golpe tão letal contra alguém de sua espécie e daquela distância, hesitou apenas um instante antes de abandonar a batalha.
Impávidos, os ferozes ogros investiram contra o grupo de Wulfgar e empurrou-o para trás. Mas Wulfgar estava satisfeito e cedeu de boa vontade à pressão, ansioso para voltar a se reunir ao grosso do exército de humanos e anões.
Bruenor, porém, não tinha a mesma disposição. Era o tipo de combate caótico que ele mais apreciava. Desapareceu sob as pernas compridas da linha de vanguarda dos ogros e moveu-se, despercebido em meio ao pó e à confusão, entre suas fileiras.
Com o canto do olho, Wulfgar presenciou a estranha retirada do anão.
- Para onde você vai? - gritou, mas o aguerrido Bruenor não ouviu o chamado e não teria dado atenção de qualquer maneira.
Wulfgar não pôde assistir à carreira do furioso anão, mas conseguiu se aproximar da posição de Bruenor, ou ao menos do lugar onde o anão estivera havia pouco, acompanhando os ogros que se vergavam de surpresa e agonia, um após outro, levando às mãos a um joelho, a um tendão ou à virilha.
Acima de toda a comoção, os ores e goblins não envolvidos em combate direto vigiavam o Sepulcro de Kelvin, à espera de uma segunda ressurreição.
Mas, assentada agora nas encostas inferiores da montanha, havia apenas neve.

Desejosos de vingança, os combatentes de Caer-Konig e Caer-Dineval conduziram suas embarcações em direção à terra a todo pano e fizeram-nas deslizar imprudentemente até as areias dos baixios para evitar a demorada ancoragem em águas mais profundas. Eles saltaram dos barcos, chapinharam até a terra firme e precipitaram-se na batalha com um frenesi destemido que afastou os oponentes.
Uma vez estabelecidos em terra, Jensin Brent reuniu-os numa formação fechada e dirigiu-os para o sul. O representante ouviu sons de combate vindos de longe naquela direção e compreendeu que os homens de Bom Prado e Toca de Dugan iam para o norte com a intenção de se juntarem aos seus. O plano era encontrá-los na Estrada do Leste e depois virar para oeste, na direção de Brin Shander, com um exército muito maior.
Muitos dos goblins daquele lado da cidade já tinham fugido havia tempos, e muitos mais foram para noroeste, rumo às ruínas de Crishal-Tirith e ao conflito principal. O exército do Lac Dinneshir correu em direção a seu objetivo. Chegou à estrada com algumas baixas e entrincheirou-se para esperar os sulistas.

Kemp esperava ansiosamente o sinal do barco solitário a velejar nas águas do Maer Dualdon. O representante de Targos, designado comandante das forças das quatro cidades do lago, movera-se cautelosamente até então com medo de um pesado ataque vindo do norte. Ele manteve seus homens sob controle, permitindo que combatessem apenas os monstros que os atacassem, mas essa atitude conservadora - sem falar dos sons da devastadora batalha que ecoavam pelo campo - dilacerava seu coração aventureiro.
Como os minutos se arrastassem sem qualquer sinal de reforços goblins, o representante enviara uma pequena escuna para percorrer as margens e descobrir o que estava atrasando a força que ocupava Termalaine.
Foi então que ele avistou as velas brancas a surgirem gradualmente no horizonte. Bem alto sobre a proa da pequena embarcação estava a bandeira sinalizadora que Kemp mais havia desejado, mas aquela que ele menos esperara: o estandarte vermelho da captura, que naquele caso sinalizava que Termalaine estava livre e os goblins fugiam para o norte.
Kemp correu até o ponto mais alto que pôde encontrar, com o rosto avermelhado pelo desejo de vingança.
- Rompam a linha, rapazes! - ele gritou para seus homens. - Abram uma trilha até a cidade sobre a colina! Que Cássio retorne e nos encontre sentados à porta de sua cidade!
A cada passo, eles gritavam furiosamente, pois eram homens que haviam perdido casas e parentes e visto suas cidades extinguirem-se nas chamas sem nada poder fazer. Muitos deles nada tinham a perder. Tudo o que podiam esperar era um gostinho de amarga satisfação.

A batalha continuou a grassar durante o resto da manhã. Homens e monstros erguiam suas espadas e lanças que pareciam ter dobrado de peso. Mas a exaustão, apesar de diminuir seus reflexos, em nada aplacava a raiva que ardia no sangue de cada combatente.
As linhas de batalha foram se tornando indistinguíveis à medida que a luta avançava, e os soldados separavam-se irremediavelmente de seus comandantes. Em muitos lugares, goblins e ores lutavam uns contra os outros, incapazes - mesmo com um inimigo comum ao alcance - de sublimar o ódio de longa data pelas tribos rivais. Uma espessa nuvem de pó envolvia as maiores concentrações do conflito. O clamor atordoante de aço contra aço, as espadas que se chocavam contra os escudos e os gritos cada vez mais freqüentes de morte, agonia e vitória fizeram o embate estruturado se degenerar numa briga generalizada.
A única exceção era o grupo de experientes anões. Suas fileiras não vacilaram nem se desintegraram o mínimo que fosse, apesar de Bruenor ainda não ter retornado depois de sua estranha retirada.
Os anões proporcionaram uma sólida plataforma para o ataque dos bárbaros e uma referência para o retorno de Wulfgar e de seu pequeno grupo. O jovem rei voltou às fileiras bárbaras no exato momento em que Cássio e seu exército se juntavam a eles. O representante e Wulfgar trocaram olhares preocupados, ambos incertos quanto a em que pé estavam um em relação ao outro. No entanto, os dois foram sábios o suficiente para confiar inteiramente naquela aliança momentânea. Ambos compreendiam que adversários inteligentes deixam de lado suas diferenças em face de um inimigo superior.
Apoiar um ao outro seria a única vantagem dos aliados recém-coligados. Juntos, eles superavam em número e conseguiriam sobrepujar qualquer tribo individual de ores ou goblins que enfrentassem. E, como as tribos goblins não cooperavam entre si, os vários grupos careciam de apoio externo nos flancos. Wulfgar e Cássio, seguindo e apoiando os movimentos um do outro, enviaram guerreiros em braços defensivos para manter os grupos periféricos afastados enquanto a força principal do exército combinado fulminava uma tribo por vez.
Apesar de seus soldados terem abatido mais de dez goblins para cada homem perdido, Cássio estava verdadeiramente apreensivo. Milhares de monstros sequer haviam entrado em contato com os humanos ou erguido uma arma, e seus homens estavam quase caindo de cansaço. Ele precisava levá-los de volta à cidade. Deixou que os anões assumissem a liderança.
Wulfgar, também preocupado com a capacidade de seus guerreiros de manter o ritmo, e sabendo que não havia outra rota de fuga, instruiu seus homens a seguirem Cássio e os anões. Era uma jogada de risco, pois o rei bárbaro sequer tinha certeza de que o povo de Brin Shander deixaria seus guerreiros entrarem na cidade.
As forças de Kemp fizeram um impressionante progresso em sua investida inicial até as encostas da cidade principal, mas, ao se aproximarem de seu objetivo, encontraram concentrações mais densas e desesperadas de humanóides. A cerca de cem metros da colina, eles foram detidos e tiveram de lutar em todas as frentes.
Os exércitos que chegavam do leste em grande número saíram-se melhor. A arremetida pela Estrada do Leste encontrara pouca resistência e eles foram os primeiros a alcançar a colina. Haviam atravessado furiosamente os lagos em seus barcos e corrido e lutado todo o caminho através da planície, mas Jensin Brent, o único representante sobrevivente dos quatro originais, pois Schermont e os dois das cidades ao sul haviam tombado na Estrada do Leste, não os deixaria descansar. Ele ouvia claramente os sons da acalorada batalha e compreendia que os bravos homens nos campos do norte, enfrentando o grosso do exército de Kessell, precisavam de todo o apoio que pudessem conseguir.
No entanto, quando contornaram a última curva antes do portão norte da cidade, o representante e suas tropas ficaram petrificados diante do espetáculo da mais brutal batalha que já tinham visto ou mesmo ouvido falar em historias exageradas. Os combatentes lutavam por cima dos corpos retalhados dos mortos, e os guerreiros que haviam perdido suas armas mordiam e arranhavam os oponentes.
Brent inferiu imediatamente que Cássio e seu grande contingente seriam capazes de retornar à cidade por conta própria. Os exércitos do Maer Dualdon, porém, estavam numa situação difícil.
- Para oeste! - ele gritou para seus homens enquanto arremetia em direção à força encurralada.
Uma nova onda de adrenalina impeliu o exército cansado ao resgate de seus camaradas. Sob ordens de Brent, os homens desceram as encostas numa linha comprida, lado a lado, mas, quando alcançaram o campo de batalha, apenas o grupo do meio seguiu em frente. Os grupos nas pontas da formação foram caindo para o centro e a força inteira havia logo formado uma cunha, cuja ponta abria caminho através dos monstros para alcançar os exércitos acuados de Kemp.
Os homens de Kemp acolheram avidamente o esquadrão de resgate, e o exército reunido foi logo capaz de recuar para a face norte da colina. Os últimos retardatários chegaram aos trambolhões ao mesmo tempo que o exército de Cássio, os bárbaros de Wulfgar e os anões livravam-se das fileiras mais próximas de goblins e subiam pelo terreno exposto da colina.
Agora, com os humanos e os anões reunidos numa só força, os goblins avançavam tentativamente. As baixas haviam sido terríveis. Não restavam gigantes nem ogros, e tribos inteiras de goblins e ores jaziam mortas. Crishal-Tirith era uma pilha de escombros enegrecidos e Akar Kessell estava enterrado numa cova congelada.
Os homens na colina de Brin Shander estavam machucados e cambaleavam de exaustão, mas o feitio inflexível de seus maxilares deixava claro aos monstros remanescentes que eles continuariam lutando até o último alento. Haviam recuado até onde podiam, não haveria outra retirada.
Dúvidas insinuaram-se na mente de cada goblin e ore que permaneceu para levar a guerra adiante. Embora provavelmente estivessem ainda em número suficiente para completar a tarefa, muitos mais ainda tombariam antes que os ferozes homens de Dez-Burgos e seus mortíferos aliados fossem abatidos. Mesmo assim, qual das tribos sobreviventes reclamaria a vitória? Sem a orientação do mago, os sobreviventes da batalha sem dúvida teriam dificuldades para dividir igualmente os espólios sem novos conflitos.
A Batalha do Vale do Vento Gélido não seguira o curso que Akar Kessell prometera.

31
Vitória?

Os homens de Dez-Burgos, juntamente com os aliados anões e bárbaros, haviam lutado até abrir caminho de todos os lados do vasto campo e agora estavam reunidos diante do portão norte de Brin Shander. E enquanto seu exército chegara a uma única atitude de combate, com todos os grupos antes separados agora reunidos sob o objetivo comum da sobrevivência, o exército de Kessell percorrera a estrada oposta. Ao arremeter pelo Desfiladeiro do Vento Gélido, o propósito comum dos goblins era a vitória para a glória de Akar Kessell. Mas Kessell estava morto e Crishal-Tirith destruída, e a corda que mantivera unidos os rancorosos inimigos de longa data, as tribos rivais de ores e goblins, havia começado a se desfazer.
Os humanos e os anões avaliaram a massa de invasores com renovada esperança, pois, em todas as orlas externas da vasta força, formas escuras continuavam a desprender-se e a fugir do campo de batalha, de volta à tundra.
Ainda assim, os defensores de Dez-Burgos estavam cercados por três lados e tinham a muralha de Brin Shander a suas costas. Naquele momento, os monstros não fizeram qualquer menção de insistir no ataque, mas milhares de goblins mantinham suas posições ao redor de todos os campos ao norte da cidade.
Pouco antes, durante a batalha, quando os ataques iniciais haviam surpreendido os invasores, os líderes das forças defensoras envolvidas teriam considerado desastrosa aquela calmaria, algo que lhes roubaria o ímpeto e permitiria que seus inimigos atordoados se reagrupassem em formações mais favoráveis.
Agora, porém, o interlúdio vinha como uma dupla bênção: dava aos soldados um descanso desesperadamente necessário e deixava os goblins e ores assimilarem inteiramente a derrota que haviam sofrido. O campo deste lado da cidade estava coberto de cadáveres, muito mais goblins que humanos, e a pilha esfacelada que havia sido Crishal-Tirith só acentuava a noção dos monstros de que suas baixas foram terríveis. Não restavam gigantes nem ogros para apoiar suas fileiras cada vez menores e, a cada segundo, mais aliados desertavam a causa.
Cássio teve tempo de chamar todos os representantes sobreviventes para um breve conselho.
A uma pequena distância dali, Wulfgar e Revjalc reuniam-se com Arnês Mallot, nomeado líder das forças anãs em face da perturbadora ausência de Bruenor.
- Estamos contentes com sua volta, poderoso Wulfgar - disse Arnês. - Bruenor sabia que 'cê ia voltar.
Wulfgar percorreu o campo com os olhos, à procura de algum sinal de que Bruenor ainda estava lá, em algum lugar, brandindo seu machado.
- Alguma notícia de Bruenor?
- 'cê foi o último a ver ele - respondeu Arnês sombriamente.
Ficaram em silêncio, esquadrinhando o campo.
- Deixe-me ouvir novamente o retinir de seu machado - murmurou Wulfgar.
Mas Bruenor não podia ouvi-lo.

- Jensin - Cássio perguntou ao representante de Caer-Dineval -, onde estão suas mulheres e crianças? Estão a salvo?
- A salvo em Angraleste - replicou Jensin Brent - Acompanhadas, a essa altura, pelo povo de Bom Prado e Toca de Dugan. Estão bem providos e protegidos. Se os desgraçados soldados de Kessell investirem contra a vila, o povo há de saber do perigo com tempo de sobra para zarpar mais uma vez para o Lac Dinneshir.
- Mas quanto tempo eles conseguiriam sobreviver na água? - perguntou Cássio.
Jensin Brent deu de ombros evasivamente.
- Até o inverno chegar, acho eu. Sempre terão onde aportar, no entanto, pois os goblins e os ores restantes não conseguiriam abranger nem mesmo metade da extensão das margens do lago.
Cássio pareceu satisfeito. Virou-se para Kemp.
- Bosquesó - Kemp respondeu à pergunta muda. - E aposto que estão melhor do que nós! Têm barcos suficientes nas docas por lá para fundar uma cidade no meio do Maer Dualdon.
- Isso é bom - Cássio disse a eles. - Deixa-nos ainda uma outra opção. Poderíamos, talvez, resistir aqui durante algum tempo, depois retirarmo-nos para o interior das muralhas da cidade. Os goblins e os ores, mesmo com a superioridade numérica, não poderiam sequer sonhar em nos conquistar uma vez lá dentro!
A idéia pareceu ter um certo apelo para Jensin Brent, mas Kemp franziu o cenho.
- A nossa gente estaria mais ou menos a salvo - disse ele -, mas e quanto aos bárbaros?
- As mulheres deles são vigorosas e capazes de sobreviver sem os homens - respondeu Cássio.
- Não dou a mínima para as mulheres fedorentas deles - vociferou Kemp, erguendo a voz de propósito para que Wulfgar e Revjak, em seu próprio conselho não muito longe dali, pudessem ouvi-lo. - Falo dos próprios cães selvagens ali! Você não vai escancarar a porta e convidá-los!
- O orgulhoso Wulfgar aproximou-se dos representantes.
Cássio, enfurecido, virou-se contra Kemp.
- Idiota teimoso! - murmurou rudemente. - Nossa única esperança é a união!
- Nossa única esperança é o ataque! - retorquiu Kemp. - Eles estão aterrorizados e você pede para fugirmos e nos escondermos!
O imenso bárbaro colocou-se diante dos dois representantes, destacando-se entre eles.
- Saudações, Cássio de Brin Shander - disse educadamente. - Sou Wulfgar, filho de Beornegar e líder das tribos que vieram se unir a sua nobre causa.
- O que sua raça entende de nobreza? - interrompeu Kemp. Wulfgar o ignorou.
- Ouvi boa parte de sua discussão - continuou ele, impassível. - É minha opinião que seu conselheiro malcriado e ingrato aqui - ele fez uma pausa para se controlar - propôs a única solução.
Cássio, ainda esperando que Wulfgar se enfurecesse com os insultos de Kemp, a princípio ficou confuso.
- Atacar - explicou Wulfgar. - Os goblins agora já não têm certeza do que podem ganhar com isso. Perguntam-se por que é que seguiram o mago até este lugar fatídico. Se tiverem a oportunidade de recobrar o desejo pela batalha, vão se mostrar um adversário mais formidável.
- Agradeço suas palavras, rei dos bárbaros - respondeu Cássio. - No entanto, acho que essa ralé não será capaz de agüentar um cerco. Deixarão os campos antes de uma semana.
- Talvez - disse Wulfgar. - Mas, mesmo assim seu povo há de pagar caro. Partindo por escolha própria, os goblins não retornarão a suas cavernas de mãos vazias. Há ainda várias cidades desprotegidas que eles poderiam atacar ao deixar o Vale do Vento Gélido. E, pior ainda, eles não vão partir com medo nos olhos. Sua retirada há de salvar as vidas de alguns de seus homens, Cássio, mas não evitará um futuro retorno de seus inimigos!
- Então você concorda que devemos atacar? - perguntou Cássio.
- Nossos inimigos agora nos temem. Olham ao redor e vêem a ruína que infligimos a eles. O medo é um instrumento poderoso, principalmente contra goblins covardes. Completemos o desbaratamento, como seu povo fez com o meu, cinco anos atrás... - Cássio reconheceu a dor nos olhos de Wulfgar ao recordar o incidente. - Façamos esses animais imundos correr de volta a seus lares nas montanhas! Muitos anos passarão antes que eles se aventurem a atacar as vilas novamente.
Cássio olhou para o jovem bárbaro com profundo respeito e curiosidade. Mal podia acreditar que aqueles orgulhosos guerreiros da tundra, que recordavam vividamente a carnificina que haviam sofrido nas mãos dos deca-burgueses, tivessem vindo em auxílio às comunidades pesqueiras.
- Meu povo de fato desbaratou o seu, nobre rei. Brutalmente. Por que, então, vocês vieram?
- Isso é uma questão que devemos discutir depois de completada nossa tarefa - respondeu Wulfgar. - Agora, cantemos! Vamos levar terror aos corações de nossos inimigos e alquebrá-los!
Ele se virou para Revjak e alguns de seus outros líderes.
- Cantem, orgulhosos guerreiros! - ordenou. - Que a Canção de Tempus profetize a morte dos goblins!
Um vibrante viva elevou-se de todas as fileiras de bárbaros e, com orgulho, eles ergueram as vozes em louvor a seu deus da guerra.
Cássio notou o efeito imediato da canção sobre os monstros mais próximos. Eles recuaram um passo e apertaram os punhos das armas.
Um sorriso cruzou o rosto do representante. Ele ainda não conseguia entender a presença dos bárbaros, mas as explicações teriam de esperar.
- Juntem-se a nossos aliados bárbaros! - ele gritou para seus soldados. - Hoje é um dia de vitória!
Os anões haviam retomado o soturno cântico de guerra de sua antiga terra natal. Os pescadores de Dez-Burgos acompanharam as palavras da Canção de Tempus, tentativamente a princípio, até que as inflexões e expressões estrangeiras fluíssem facilmente de seus lábios. Em seguida, juntaram-se a eles em uníssono, proclamando a glória de cada uma de suas vilas como os bárbaros faziam com suas tribos.
O ritmo aumentou, o volume foi ganhando as proporções de um poderoso crescendo. Os goblins tremeram diante do frenesi cada vez maior de seus mortíferos inimigos. A torrente de desertores que partiam das beiradas da aglomeração principal começou a ficar cada vez mais caudalosa.
E então, como uma única onda mortífera, os aliados humanos e anões arremeteram colina abaixo.

Drizzt conseguira se afastar da face sul, mesmo com dificuldade, o bastante para escapar à fúria da avalanche, mas ele ainda se encontrava numa situação perigosa. O Sepulcro de Kelvin não era uma montanha alta, mas o terço do topo cobria-se perpetuamente de neve profunda e vivia brutalmente exposto ao vento gélido que dava nome à terra.
Pior ainda para o drow, seus pés haviam se molhado no derretimento provocado por Crenshinibon e, agora, à medida que a umidade congelava em volta de sua pele, mover-se pela neve era doloroso.
Arrastando-se, ele decidiu continuar em direção à face oeste, que oferecia melhor proteção contra o vento. Seus movimentos eram violentos e exagerados, pois ele gastava toda a sua energia para manter o sangue correndo em suas veias. Ao alcançar a orla do pico da montanha e começar a descer, ele foi obrigado a se mover mais tentativamente, pois temia que um solavanco repentino o entregasse ao mesmo destino sinistro que acometera Akar Kessell.
Suas pernas agora estavam completamente entorpecidas, mas ele as manteve em movimento, praticamente obrigado a forçar seus reflexos automáticos.
Mas, então, ele escorregou.

Os ferozes guerreiros de Wulfgar foram os primeiros a colidir com a linha de goblins. Eles retalharam e empurraram para trás a primeira fileira de monstros. Nem goblins nem ores ousaram resistir ao poderoso rei, mas, em meio à confusão apinhada da luta, poucos conseguiram sair do caminho dele. Foram ao chão, um a um.
O medo quase paralisou os goblins, e sua ligeira hesitação foi a perdição dos primeiros grupos a encontrar os selvagens bárbaros.
No entanto, a derrocada do exército veio essencialmente de mais atrás. As tribos que não tinham se envolvido na luta começaram a reconsiderar a sabedoria de continuar com a campanha, pois viram que tinham obtido vantagem suficiente sobre os rivais de sua terra natal - enfraquecidos pelas pesadas baixas para expandir seus territórios na Espinha do Mundo. Pouco depois de iniciada a segunda irrupção de combate, a nuvem de poeira gerada pelo bater dos pés contra o solo mais uma vez se ergueu acima do Desfiladeiro do Vento Gélido à medida que dezenas de tribos de ores e goblins dirigiam-se para casa.
E foi devastador o efeito das deserções em massa nos goblins que não poderiam fugir tão facilmente. Mesmo o goblin mais obtuso compreendia que as chances de vitória de seu povo contra os obstinados defensores de Dez-Burgos estava no peso esmagador de sua superioridade numérica.
Ouviu-se repetidamente o ruído surdo dos golpes de Garra de Palas quando Wulfgar, arremetendo sozinho, abriu uma trilha de devastação diante dele. Até os homens de Dez-Burgos afastaram-se, assustados com sua força selvagem. Mas seu próprio povo olhava para ele com assombro e fazia o possível para seguir sua gloriosa liderança.
Wulfgar investiu contra um grupo de ores. Garra de Palas atingiu um deles em cheio, matou-o e derrubou os que estavam atrás dele. O golpe reverso de Wulfgar com o martelo produziu os mesmos resultados em seu outro flanco. Numa única arrancada, mais da metade do grupo de ores foi morta ou estava atordoada.
Os que sobraram não tinham o menor desejo de atacar o poderoso humano.
Glensather de Angraleste também investiu contra um grupo de goblins, esperando estimular sua gente com a mesma fúria de sua contraparte bárbara. Mas Glensather não era um gigante imponente como Wulfgar e não empunhava uma arma tão poderosa quanto Garra de Palas. Sua espada abateu o primeiro goblin que encontrou, depois reverteu o giro habilmente e derrubou um segundo. O representante saíra-se bem, mas faltou um elemento em seu ataque: o fator crítico que elevava Wulfgar acima de outros homens. Glensather matara dois goblins, mas não provocara em suas fileiras o caos de que precisava para continuar. Em vez de fugir, como fizeram diante de Wulfgar, os goblins remanescentes lançaram-se atrás dele.
Glensather mal aparecera ao lado do rei bárbaro quando a ponta cruel de uma lança enterrou-se em suas costas e atravessou-o, saindo-lhe pelo peito.
Testemunhando o medonho espetáculo, Wulfgar brandiu Garra de Palas sobre o representante e impeliu a cabeça do goblin que empunhava a lança contra o próprio peito. Glensather ouviu o martelo atingir o alvo atrás dele e até conseguiu sorrir em agradecimento antes de cair morto sobre a relva.
Os anões agiram de maneira bem diferente. Novamente em sua formação fechada e solidária, eles dizimaram fileiras de goblins simultaneamente. E os pescadores, lutando pelas vidas de suas mulheres e crianças, lutaram e morreram sem medo.
Em menos de uma hora, todos os grupos de goblins haviam sido esmagados e, meia hora mais tarde, os últimos monstros caíam mortos no campo manchado de sangue.

Drizzt deslizou junto com a onda branca de neve que caiu pela face da montanha. Rolou por terra, impotente, tentando preparar-se para o impacto sempre que via a ponta protuberante de um matacão em seu caminho. Ao se aproximar da base do topo coberto de neve, ele foi atirado longe e escapou do deslizamento, o que o fez rolar aos trambolhões por entre as rochas e matacões cinzentos, como se os picos orgulhosos e inconquistáveis da montanha o tivessem expulsado como a um hóspede indesejado.
Sua agilidade - e uma boa dose de pura sorte - o salvou. Quando finalmente conseguiu estacar e encontrar um pouso, ele descobriu que seus numerosos ferimentos eram superficiais, sendo os piores uma esfoladura no joelho, um nariz ensangüentado e um pulso torcido. Em retrospecto, Drizzt foi obrigado a considerar a pequena avalanche uma bênção, pois ele fizera rápido progresso montanha abaixo e nem mesmo tinha certeza de que, não fosse isso, teria conseguido escapar ao destino gélido de Kessell.
A batalha no sul recomeçara àquela altura. Ouvindo os sons do combate, Drizzt observou, curioso, os milhares de goblins que passavam pelo outro lado do vale dos anões, corriam e subiam o Desfiladeiro do Vento Gélido nas primeiras etapas de sua longa jornada para casa. Não havia como o drow ter certeza do que estava acontecendo, mesmo conhecendo a famosa covardia dos goblins.
Mas ele não pensou muito naquilo, pois a batalha já não era mais sua principal preocupação. Sua visão seguia uma trilha estreita até o monte de pedras negras e fragmentadas que fora Crishal-Tirith. Ele terminou de descer o Sepulcro de Kelvin e dirigiu-se à Via de Bremen e aos escombros.
Ele precisava descobrir se Régis e Guenhwyvar haviam escapado.

Vitória.
Pareceu um pequeno consolo a Cássio, Kemp e Jensin Brent quando eles passaram os olhos pelo campo marcado por cicatrizes e viram a carnificina a seu redor. Eram os únicos representantes a ter sobrevivido ao conflito; sete outros haviam sido abatidos.
- Vencemos - declarou Cássio sombriamente.
Ele assistiu, impotente, à morte de mais soldados, homens que haviam sofrido ferimentos fatais durante a batalha, mas recusaram-se a tombar e morrer antes do fim. Mais da metade de todos os homens de Dez-Burgos jazia morta, e muitos mais morreriam posteriormente, pois quase a metade dos ainda vivos havia se ferido gravemente. Quatro vilas haviam sido reduzidas a cinzas e uma outra fora saqueada e destruída pelos ocupantes goblins.
Eles pagaram um preço terrível pela vitória.
Os bárbaros também haviam sido dizimados. Jovens e inexperientes em sua maioria, eles lutaram com a tenacidade de sua raça e morreram aceitando seu destino como um final glorioso para a história de suas vidas.
Apenas os anões, disciplinados por muitas batalhas, haviam saído relativamente incólumes. Vários haviam sido mortos, alguns outros feridos, mas a maioria estava pronta para retomar a luta novamente se pudessem apenas encontrar mais goblins para despedaçar! Seu único grande lamento, porém, era que Bruenor estava desaparecido.
- Vão vocês até sua gente - Cássio disse aos colegas representantes. - Depois, retornem esta noite para o conselho. Kemp deve falar por todas as pessoas das quatro vilas do Maer Dualdon e Jensin Brent pela gente dos outros lagos.
- Temos muito a decidir e pouco tempo para fazê-lo - disse Jensin Brent. - O inverno está chegando rápido.
- Sobreviveremos! - declarou Kemp com sua característica rebeldia. Mas ele percebeu os olhares taciturnos que seus pares lhe lançavam e cedeu um pouco ao realismo dos mesmos. - Mas será uma luta encarniçada.
- Assim será para meu povo - disse uma outra voz. Os três representantes se voltaram para ver o gigante Wulfgar aparecer pomposamente, tendo ao fundo a cena poeirenta e surreal da carnificina. O bárbaro estava coberto de terra e salpicado com o sangue de seus inimigos, mas parecia um rei nobre em todos os pormenores. - Solicito um convite para seu conselho, Cássio. Nossos povos muito podem oferecer um ao outro nesta hora soturna.
Kemp grunhiu.
- Se precisarmos de burros de carga, compraremos bois.
Cássio lançou uma olhar perigoso para Kemp e voltou-se para seu inesperado aliado.
- Você pode, de fato, juntar-se ao conselho, Wulfgar, filho de Beornegar. Por seu auxílio neste dia, meu povo deve muito ao seu. Mais uma vez eu pergunto: por que vocês vieram?
Pela segunda vez naquele dia, Wulfgar ignorou os insultos de Kemp.
- Para saldar uma dívida - ele respondeu a Cássio. - E talvez para melhorar as vidas de nossos dois povos.
- Matando goblins? - perguntou Jensin Brent, pois desconfiava que o bárbaro tinha algo mais em mente.
- É um começo - respondeu Wulfgar. - No entanto, há muito mais coisas que podemos realizar. Meu povo conhece a tundra melhor até mesmo que os yetis. Entendemos as peculiaridades desta terra e sabemos como sobreviver. Seu povo se beneficiaria com nossa amizade, principalmente nos tempos difíceis que estão por vir.
- Ora! - bufou Kemp, mas Cássio o silenciou. O representante de Brin Shander estava intrigado com as possibilidades.
- E o que seu povo ganharia com essa união?
- Uma conexão - respondeu Wulfgar. - Um elo com um mundo de comodidades que jamais conhecemos. As tribos têm em suas mãos o tesouro de um dragão, mas ouro e jóias não proporcionam calor numa noite de inverno, nem comida quando a caça é parca. Seu povo também tem muito a reconstruir. Meu povo tem o dinheiro para ajudar na tarefa. Em troca, Dez-Burgos proporcionará a meu povo uma vida melhor.
Cássio e Jensin Brent aprovavam com gestos de cabeça enquanto Wulfgar apresentava seu plano.
- Finalmente, e talvez o mais importante - concluiu o bárbaro -, é fato que precisamos uns dos outros, ao menos por enquanto. Nossos dois povos foram enfraquecidos e estamos vulneráveis aos perigos desta terra. Juntos, a força que nos resta nos ajudará a vencer as dificuldades do inverno.
- Você me intriga e me surpreende - disse Cássio. - Venha ao conselho, então. Garanto pessoalmente que você será bem-vindo e vamos colocar em andamento um plano que beneficiará todos os que sobreviveram ao confronto com Akar Kessell!
Tão logo Cássio se virou, Wulfgar agarrou a camisa de Kemp com uma de suas mãos descomunais e, com facilidade, ergueu no ar o representante de Targos. Kemp esmurrou o antebraço musculoso, mas percebeu que não tinha a menor chance de romper o abraço de ferro do bárbaro.
Wulfgar lançou-lhe um olhar feroz e perigoso.
- Por enquanto - disse ele -, sou responsável por todo o meu povo. Portanto, desconsiderei seus insultos. Mas, quando chegar o dia em que eu não for mais rei, seria aconselhável que você não cruzasse mais meu caminho!
Com um movimento rápido do pulso, ele atirou o representante ao chão.
Kemp, intimidado demais no momento para se enfurecer ou ficar constrangido, permaneceu sentado onde caiu e não respondeu. Cássio e Brent cutucaram um ao outro e riram baixinho, cúmplices.
O divertimento só durou até verem a moça que se aproximava com o braço enfiado numa tipóia ensangüentada e o rosto e os cabelos castanho-avermelhados empastados com camadas de pó. Wulfgar também a viu e a visão dos ferimentos dela afligiu-o mais do que os seus próprios.
- Cattiebrie! - ele gritou e correu até ela. Ela o acalmou com uma palma estendida.
- Não estou muito ferida - ela estoicamente tranqüilizou Wulfgar, mas era evidente para o bárbaro que ela havia sido ferida gravemente. - Mas não quero nem pensar no que poderia ter me acontecido se Bruenor não tivesse aparecido!
- Você viu Bruenor?
- Nos túneis - Cattiebrie explicou. - Alguns ores descobriram como entrar. Talvez eu devesse ter desmoronado o túnel. Mas não eram muitos e dava para ouvir que os anões estavam se saindo bem no campo lá em cima. Bruenor desceu nesse momento, mas havia mais ores atrás dele. Uma viga de sustentação desabou; acho que Bruenor a cortou e havia muito pó e confusão.
- E Bruenor? - Wulfgar perguntou ansiosamente. Cattiebrie olhou para trás, para o outro lado do campo.
- Lá fora. Ele mandou chamar você.

Quando Drizzt finalmente chegou aos escombros de Crishal-Tirith, a batalha terminara. As imagens e os sons das horríveis seqüelas faziam vista em torno dele, mas seu objetivo continuava o mesmo. Ele subiu pelo lado da pilha de pedras fragmentadas.
Na verdade, o drow se achava um idiota por perseguir uma causa tão inútil. Mesmo se Régis e Guenhwyvar não tivessem deixado a torre, que esperança havia de encontrá-los?
Ele insistiu teimosamente, recusando-se a ceder à lógica inescapável que o censurava. Nesse ponto é que ele diferia de sua gente, isso é o que o expulsara, enfim, da escuridão ininterrupta de suas vastas cidades. Drizzt Do'Urden permitia-se sentir compaixão.
Ele subiu pelo lado do monte de escombros e começou a cavar em volta dos destroços com as mãos nuas. Os blocos maiores o impediram de se aprofundar mais na pilha, mas ele não se entregou, chegando a enfiar-se em fendas precariamente apertadas e instáveis. Usava pouco a mão esquerda queimada e logo a direita sangrava com as esfoladuras. Mas ele continuou, movendo-se primeiro ao redor da pilha, depois escalando-a.
Foi recompensado pela persistência e por suas emoções. Quando atingiu o topo das ruínas, ele sentiu uma aura familiar de poder mágico. Isso o guiou até uma pequena fenda entre duas pedras. Enfiou um braço por ela, tentativamente, esperando encontrar o objeto intacto, e tirou lá de dentro a pequena estatueta em forma de felino. Seus dedos tremiam ao examiná-la, em busca de danos. Mas nada encontrou: a magia no interior do objeto resistira ao peso das pedras.
Entretanto, os sentimentos do drow diante do achado eram confusos. Apesar de aliviado por Guenhwyvar ter aparentemente sobrevivido, a presença da estatueta revelava-lhe que Régis provavelmente não havia escapado para o campo. Seu coração esmoreceu. E esmoreceu ainda mais quando uma cintilação no interior daquela mesma fenda chamou-lhe a atenção. Enfiou ali o braço e tirou lá de dentro a corrente de ouro com o pingente de rubi, e seus temores se confirmaram.
- Um túmulo apropriado para você, meu corajoso amiguinho - ele disse melancolicamente, e decidiu naquele instante chamar a pilha de escombros de o Sepulcro de Régis. Não conseguia entender, porém, o que acontecera para separar o halfling de seu colar, pois não havia sangue nem qualquer outra coisa na corrente que indicasse que Régis o estivesse usando ao morrer.
- Guenhwyvar - chamou ele. - Venha até mim, minha sombra. - Ele sentiu as sensações familiares na estatueta ao colocá-la no chão. Em seguida, a névoa negra apareceu e transformou-se no grande felino, são e salvo e, de algum modo, recuperado pelas poucas horas que passara em seu próprio plano.
Drizzt moveu-se rapidamente em direção a sua companheira felina, mas deteve-se quando uma segunda névoa apareceu a uma pequena distância dali e começou a se solidificar.
Régis.
O halfling estava sentado, com os olhos fechados e a boca bem aberta, como se estivesse prestes a dar de uma enorme mordida em alguma iguaria invisível. Uma de suas mãos estava cerrada ao lado de suas bochechas ávidas e a outra aberta diante dele.
Quando ele abocanhou o ar, seus olhos abriram-se subitamente, surpresos.
- Drizzt! - gemeu ele. - Francamente, você devia avisar antes de me seqüestrar! Este gato perfeitamente maravilhoso conseguiu-me a mais suculenta das refeições!
Drizzt chacoalhou a cabeça e sorriu com um misto de alívio e incredulidade.
- Ah, esplêndido - gritou Régis. - Você encontrou minha jóia. Eu achei que a tivesse perdido. Por alguma razão ela não fez a travessia comigo e com o gato.
Drizzt devolveu-lhe o rubi. O gato era capaz de levar alguém em suas viagens através dos planos? Drizzt decidiu explorar essa faceta do poder de Guenhwyvar mais tarde.
Ele afagou o pescoço do gato, depois liberou-o para voltar a seu próprio mundo, onde o animal poderia se recuperar um pouco mais.
- Venha, Régis - disse ele sombriamente. - Vejamos onde podemos ser de alguma ajuda.
Regis deu de ombros, resignado, e levantou-se para seguir o drow. Quando galgaram o topo das ruínas e viram a carnificina espalhada diante deles, o halfling deu-se conta da enormidade da destruição. Suas pernas quase lhe faltaram, mas ele conseguiu, com alguma ajuda de seu ágil amigo, empreender a descida.
- Nós vencemos? - ele perguntou a Drizzt quando se aproximaram do nível do campo, sem saber com certeza se o povo de Dez-Burgos havia denominado o que via diante dele de vitória ou derrota.
- Nós sobrevivemos - corrigiu Drizzt.
Um grito elevou-se subitamente quando um grupo de pescadores, vendo os dois companheiros, precipitou-se aos berros na direção deles.
- Assassino do mago e destruidor da torre! - gritaram eles. Drizzt, sempre humilde, baixou os olhos.
- Salve Régis - continuaram os homens -, o herói de Dez-Burgos!
Drizzt lançou um olhar surpreso, mas divertido para o amigo. Régis simplesmente deu de ombros, impotente, como se ele fosse vítima do erro tanto quanto Drizzt.
Os homens pegaram o halfling e ergueram-no nos ombros.
- Carregaremos você com toda a glória até o conselho que está reunido na cidade! - alguém proclamou. - Você, acima de todos os outros, deve opinar quanto às decisões a serem tomadas! - Quase como uma reflexão tardia, o homem disse para Drizzt. - Você pode vir também, drow.
Drizzt declinou.
- Salve Régis - disse ele, com um sorriso espalhado no rosto. - Ah, amiguinho, você sempre tem a sorte de encontrar ouro na lama onde outros chafurdam!
Ele deu um tapinha nas costas do halfling e colocou-se de lado para deixar passar a procissão.
Régis olhou por sobre o ombro e girou os olhos nas órbitas como se estivesse meramente aproveitando a carona.
Mas Drizzt sabia que não era bem assim.
O divertimento do drow durou pouco.

Antes que tivesse sequer se afastado do ponto onde estava, dois anões o saudaram.
- Que bom que te encontramos, amigo elfo - disse um deles. O drow compreendeu imediatamente que eles traziam más novas.
- Bruenor? - ele perguntou. Os anões assentiram.
- Está à beira da morte, e mesmo agora pode ser que tenha morrido. Ele mandou te chamar.
Sem mais uma palavra, os anões conduziram Drizzt através do campo até uma pequena tenda que haviam armado perto das saídas de seus túneis e escoltaram-no ao entrar.
Lá dentro, as velas bruxuleavam suavemente. Além do único catre, encostado à parede em frente à entrada, encontravam-se Wulfgar e Cattiebrie, com as cabeças reverentemente abaixadas.
Bruenor jazia sobre o catre e tinha a cabeça e o peito envoltos em ataduras manchadas de sangue. Sua respiração era ruidosa e pouco profunda, como se cada alento fosse o último. Drizzt colocou-se solenemente ao lado dele, estoicamente determinado a conter as lágrimas atípicas que lhe marejavam os olhos cor de lavanda. Bruenor preferiria que ele se mostrasse forte.
- É... o elfo? - disse Bruenor, com voz entrecortada, quando viu a forma escura sobre ele.
- Estou aqui, meu mais caro amigo - respondeu Drizzt.
- Pra... me ver partir?
Drizzt não conseguiria sinceramente responder a uma pergunta tão franca.
- Partir? - Ele forçou o riso a sair da garganta apertada. - Você já passou por coisa pior! Não quero ouvir falar de morte. Quem, então, encontraria o Salão de Mitral?
- Ah, meu lar... - Bruenor voltou a se acalmar com a menção do nome e pareceu relaxar, quase como se sentisse que seus sonhos o ajudariam a completar a sombria jornada a sua frente. - 'cê vem comigo, então?
- É claro - concordou Drizzt. Ele olhou para Wulfgar e Cattiebrie em busca de apoio mas, perdidos em seu próprio pesar, eles ainda desviavam os olhos.
- Mas não agora, não, não - explicou Bruenor. - Não com o inverno tão próximo! -Tossiu. - Na primavera. Sim, na primavera.
Sua voz foi morrendo e os olhos se fecharam.
- Sim, meu amigo. - concordou Drizzt. - Na primavera. Levarei você para casa na primavera!
Os olhos de Bruenor reabriram-se de repente, e a turvação da morte foi removida por um resquício do antigo brilho. Um sorriso de contentamento espalhou-se pelo rosto do anão e Drizzt ficou feliz por ter sido capaz de consolar seu amigo agonizante.
O drow voltou a olhar para Wulfgar e Cattiebrie, e eles também sorriam. Um para o outro, Drizzt notou, curioso.
De repente, para surpresa e horror de Drizzt, Bruenor sentou-se e arrancou as ataduras.
- Aí está! - berrou ele, para divertimento dos demais na tenda. - 'cê prometeu e eu tenho testemunhas!
Drizzt, depois de quase cair com o choque inicial, lançou um olhar irritado para Wulfgar. O bárbaro e Cattiebrie esforçaram-se para reprimir o riso. Wulfgar deu de ombros e deixou escapar uma risadinha.
- Bruenor disse que me cortaria até chegar à altura de um anão se eu dissesse uma palavra!
- E ele teria feito isso mesmo! - acrescentou Cattiebrie. Os dois saíram apressadamente.
- Um conselho em Brin Shander - explicou Wulfgar precipitadamente. Fora da tenda, o riso dos dois irrompeu sem reservas.
- Maldito seja, Bruenor Martelo de Batalha! - disse o drow, carrancudo. Depois, incapaz de se conter, atirou os braços em volta do corpo atarracado do anão e o abraçou.
- Acabe logo com isso - gemeu Bruenor, aceitando o abraço. - Mas seja rápido. A gente tem um monte de trabalho pra fazer o inverno todo! A primavera vai chegar mais cedo do que 'cê tá pensando e no primeiro dia quente a gente sai pra procurar o Salão de Mitral!
- Onde quer que esteja - riu Drizzt, aliviado demais para se enfurecer com o truque.
- A gente consegue, drow! - gritou Bruenor. - A gente sempre consegue!

Epílogo

O povo de Dez-Burgos e seus aliados bárbaros acharam difícil o inverno que se seguiu à batalha mas, ao dividirem talentos e recursos, conseguiram sobreviver. Muitos conselhos foram realizados em todos aqueles longos meses, com Cássio, Jensin Brent e Kemp representando o povo de Dez-Burgos, e Wulfgar e Revjak falando pelas tribos bárbaras. A primeira tarefa era reconhecer oficialmente e justificar a aliança dos dois povos, apesar da oposição veemente de muita gente de ambos os lados.
As cidades intocadas pelo exército de Akar Kessell abarrotaram-se com refugiados durante o inverno brutal. A reconstrução começou com os primeiros sinais da primavera. Quando a recuperação da região já estava bem encaminhada - e depois do retorno da expedição bárbara que, seguindo as orientações de Wulfgar, trouxe o tesouro do dragão -, realizaram-se conselhos para dividir as vilas entre os sobreviventes. As relações entre os dois povos quase sucumbiu várias vezes e foram mantidas apenas pela presença imperiosa de Wulfgar e a calma constante de Cássio.
Quando tudo finalmente estava acertado, os bárbaros receberam as cidades de Bremen e Caer-Konig para reerguer, os desabrigados de Caer-Konig foram transferidos para a cidade reconstruída de Caer-Dineval e aos refugiados de Bremen que não desejavam viver entre os homens das tribos ofereceram-se casas na cidade recém-construída de Targos.
Foi uma situação difícil, na qual os inimigos tradicionais foram forçados a deixar de lado suas diferenças e viver lado a lado. Apesar de vitoriosos na batalha, os aldeões não podiam se considerar vencedores. Todos haviam sofrido perdas terríveis; ninguém havia saído daquilo tudo em melhores condições para a luta seguinte.
Exceto Régis.
O halfling oportunista foi premiado com o título de Primeiro Cidadão e a melhor casa de toda a Dez-Burgos por seu papel na batalha. Cássio prontamente entregou seu palácio ao "destruidor da torre". Régis aceitou a oferta do representante e todos os outros numerosos presentes que afluíram de cada parte, pois, embora não tivesse realmente merecido as honras a ele conferidas, justificava sua boa sorte considerando-se um parceiro do modesto drow. E já que Drizzt Do'Urden não tinha a menor vontade de vir a Brin Shander e receber os prêmios, Régis imaginou que era seu dever fazê-lo.
Esse era o mimado estilo de vida que o halfling havia sempre desejado. Ele realmente apreciava a riqueza excessiva e o luxo, embora mais tarde viesse a aprender que havia de fato um preço elevado a se pagar pela fama.

Drizzt e Bruenor haviam passado o inverno fazendo preparativos para sua busca pelo Salão de Mitral. O drow tinha a intenção de honrar sua palavra, apesar de ter sido enganado, porque a vida não mudara muito para ele após a batalha. Mesmo sendo, na verdade, o herói do conflito, ele ainda se via mal e mal tolerado entre a gente de Dez-Burgos. E os bárbaros, com a exceção de Wulfgar e Revjak, o evitavam abertamente e murmuravam orações de proteção para seus deuses toda vez que inadvertidamente cruzavam-lhe o caminho.
Mas o drow aceitava o isolamento com seu característico estoicismo.

- Na cidade, diz-se a meia-voz que você cedeu a Revjak seu lugar no conselho - disse Cattiebrie a Wulfgar numa de suas muitas visitas a Brin Shander.
Wulfgar assentiu.
- Ele é mais velho e mais sábio em muitos aspectos.
Cattiebrie prendeu Wulfgar sob o desconfortável escrutínio de seus olhos escuros. Ela sabia que havia outras razões para Wulfgar renunciar à coroa.
- Você quer ir com eles - ela declarou categoricamente.
- Devo isso ao drow - foi a única explicação de Wulfgar ao dar-lhe as costas, sem disposição para discutir com a moça irascível.
- Mais uma vez você se esquiva da pergunta - riu Cattiebrie. - Você não vai saldar dívida nenhuma! Você vai porque a estrada é sua escolha!
- O que é que você sabe dessa estrada? - grunhiu Wulfgar, contendo-se em virtude da observação dolorosamente precisa da moça. - O que é que você sabe sobre aventuras?
Os olhos de Cattiebrie cintilaram, e desarmaram Wulfgar.
- Eu sei - ela declarou categoricamente. - Qualquer dia em qualquer lugar é uma aventura. Isso você ainda não aprendeu. E, por isso, você persegue as estradas distantes, esperando satisfazer o desejo de emoção que arde em seu coração. Então vá, Wulfgar do Vale do Vento Gélido. Siga a senda de coração e seja feliz! Talvez, ao retornar, você entenda a emoção de simplesmente estar vivo.
Ela o beijou no rosto e saltitou em direção à porta. Wulfgar, agradavelmente surpreso com o beijo, gritou-lhe:
- Talvez, então, nossas discussões sejam mais aprazíveis!
- Mas não tão interessantes - foi a última resposta dela.

Numa bela manhã de início de primavera, a hora de partir chegou enfim para Drizzt e Bruenor. Cattiebrie ajudou-os a preparar suas mochilas abarrotadas.
- Quando a gente tiver limpado o lugar, eu te levo lá! - Bruenor disse à moça novamente. - Por certo que seus olhos vão brilhar quando 'cê ver os rios de prata do Salão de Mitral!
Cattiebrie sorriu, indulgente.
- Tem certeza que 'cê vai ficar bem? - perguntou Bruenor, agora mais sério. Sabia que ela ficaria bem, mas seu coração transbordava de preocupação paternal.
O sorriso de Cattiebrie alargou-se. Eles já tinham discutido aquilo centenas de vezes ao longo do inverno. Cattiebrie estava feliz com a partida do anão, mesmo sabendo que sentiria imensa saudade dele, pois estava claro que Bruenor nunca ficaria realmente contente até que tivesse ao menos tentado encontrar seu antigo lar.
E ela sabia, melhor que ninguém, que o anão estaria bem acompanhado.
Bruenor ficou satisfeito. Chegara a hora de partir.
Os companheiros disseram adeus aos anões e partiram para Brin Shander a fim de se despedirem de seus dois amigos mais chegados.
Chegaram à casa de Régis pouco depois, naquela mesma manhã, e encontraram Wulfgar sentado nos degraus esperando por eles, tendo Garra de Palas e a mochila a seu lado.
Drizzt olhou com desconfiança os pertences do bárbaro enquanto se aproximavam, meio que adivinhando as intenções de Wulfgar.
- Bons olhos o vejam, Rei Wulfgar - disse ele. - Está de partida para Brenen, ou talvez Caer-Konig, para supervisionar o trabalho de sua gente?
Wulfgar chacoalhou a cabeça.
- Não sou rei - ele respondeu. - É melhor deixar os conselhos e os discursos para os mais velhos; já tive mais do que podia tolerar. Revjak fala pelos homens da tundra agora.
- E, então, o que 'cê vai fazer? - perguntou Bruenor.
- Vou com vocês - replicou Wulfgar. - Para saldar minha última dívida.
- 'cê não me deve nada! - declarou Bruenor.
- A você já paguei - concordou Wulfgar. - E paguei tudo o que devo a Dez-Burgos e também a meu próprio povo. Mas há uma dívida de que ainda não me livrei. - Ele se virou para encarar Drizzt diretamente. - A você, meu amigo elfo.
Drizzt não sabia o que responder. Ele deu um tapinha no ombro do homem descomunal e sorriu afetuosamente.

- Vem com a gente, Ronca-bucho - disse Bruenor, depois de terminado um excelente almoço no palácio. - Quatro aventureiros na vasta planície. Vai te fazer algum bem e tirar um pouco dessa sua barriga!
Régis levou ambas as mãos ao ventre amplo e o sacudiu.
- Eu gosto de minha barriga e tenho a intenção de mantê-la, obrigado. Posso até mesmo aumentá-la um pouquinho! De qualquer maneira, eu não consigo entender por que vocês insistem em partir nessa busca - disse ele, agora com mais seriedade. Ele passara muitas horas durante o inverno tentando convencer Bruenor e Drizzt a desistir daquilo. - Temos uma vida fácil aqui; por que vocês iam querer partir?
- Há mais coisas na vida do que boa comida e almofadas macias, amiguinho - disse Wulfgar. - O desejo pela aventura arde em nosso sangue. Com paz na região, Dez-Burgos não pode oferecer a emoção do perigo ou a satisfação da vitória.
Drizzt e Bruenor assentiram com a cabeça, embora Régis chacoalhasse a sua.
- E 'cê chama este lugar deplorável de rico? - riu Bruenor, estalando os dedos hirsutos. - Quando eu voltar do Salão de Mitral, vou te construir uma casa duas vezes maior e debruada de pedras preciosas como 'cê nunca viu antes!
Mas Régis estava certo de que havia testemunhado sua última aventura. Terminada a refeição, ele acompanhou seus amigos até a porta.
- Se vocês conseguirem voltar...
- Sua casa será nossa primeira parada - assegurou Drizzt. Encontraram Kemp de Targos ao sair. Ele estava do outro lado da rua, bem em frente à soleira de Régis, aparentemente à procura deles.
- Ele está me esperando - explicou Wulfgar, sorrindo diante da idéia de que Kemp não pouparia esforços para se livrar dele.
- Adeus, meu bom representante - gritou Wulfgar, com uma reverência. Pyayne de crabug ahm rinedere be-yogt iglo kes gron.
Kemp lançou um gesto obsceno para o bárbaro e foi embora, indignado. Régis quase se dobrou de tanto rir.
Drizzt reconheceu as palavras, mas ficou confuso com o motivo pelo qual Wulfgar as dissera para Kemp.
- Uma vez você me disse que essas palavras eram um antigo grito de guerra da tundra - ele comentou com o bárbaro. - Por que você as ofereceria ao homem que mais despreza?
Wulfgar tartamudeou, em busca de uma explicação que o tirasse daquele aperto, mas Régis respondeu por ele.
- Grito de guerra? - exclamou o halfling - Isso é uma antiga maldição das matronas bárbaras, geralmente reservada aos velhos maridos adúlteros. - Os olhos cor de lavanda do drow estreitaram-se, concentrados no bárbaro, enquanto Régis prosseguia. - Significa: "Que as pulgas de mil renas se aninhem em sua genitália."
Bruenor disparou a rir, logo acompanhado por Wulfgar. Drizzt não pôde evitar fazer o mesmo.
- Vamos, o dia é longo - disse o drow. - Vamos dar início a esta aventura. Vai ser interessante!
- Aonde vocês vão? - Régis perguntou, tristonho. Uma pequena parte do halfling, na verdade, invejava os amigos; ele tinha de admitir que sentiria a falta deles.
- Para Bremen, primeiro - replicou Drizzt. - Vamos completar lá nossas provisões e partir para sudoeste.
- Luskan?
- Talvez, se os fados assim o quiserem.
- Boa viagem - ofereceu Régis assim que os três companheiros puseram-se a caminho sem mais delongas.
Régis observou-os desaparecer, imaginando como ele viera a escolher amigos tão tolos. Desfez-se da idéia com um encolher de ombros e voltou a seu palácio: sobrara bastante comida do almoço.
Foi detido antes que atravessasse a porta.
- Primeiro Cidadão! - veio um grito da rua. A voz pertencia a um dono de armazém da seção sul da cidade, onde as caravanas de mercadores carregavam e descarregavam. Régis esperou que ele se aproximasse.
- Um homem, Primeiro Cidadão - disse o dono do armazém, curvando-se como quem se desculpa por perturbar uma pessoa tão importante. - Perguntando pelo senhor. Ele alega ser um representante da Sociedade dos Heróis de Luskan, enviado para solicitar sua presença na próxima reunião.
Ele disse que pagaria bem.
- O nome dele?
- Ele não disse, só me deu isto! - O dono do armazém abriu uma pequena bolsa de ouro.
Era tudo o que Régis precisava ver. Partiu imediatamente para encontrar o homem de Luskan.
Mais uma vez, foi pura sorte o que salvou a vida do halfling, pois ele viu o estranho antes que este o visse. Apesar de já não ver aquele homem havia anos, Régis o reconheceu imediatamente pelo cabo do punhal incrustado com uma esmeralda que se projetava da bainha em seu quadril. Régis muitas vezes cogitara roubar aquela bela arma, mas mesmo sua imprudência tinha limites. O punhal pertencia a Artemis Entreri.
O principal assassino do Paxá Pük.

Os três companheiros deixaram Bremen antes do amanhecer do dia seguinte. Ansiosos para dar início à aventura, eles se apressaram e já estavam bem longe na tundra quando os primeiros raios do sol espiaram por sobre o horizonte oriental, logo atrás deles.
Ainda assim, Bruenor não ficou surpreso ao notar Régis, que se esforçava para alcançá-los através da planície desabitada.
- Se meteu em encrenca de novo ou então eu sou um gnomo de barba - o anão, rindo, comentou com Wulfgar e Drizzt.
- Bons olhos o vejam - disse Drizzt. - Mas nós já não nos despedimos?
- Decidi que não podia deixar Bruenor se meter em encrenca sem que eu estivesse por perto para salvá-lo - bufou Régis, tentando recuperar o fôlego.
- 'cê vem com a gente? - grunhiu Bruenor. - 'cê não trouxe provisões, seu halfling estúpido!
- Eu não como muito - protestou Régis, e um quê de desespero insinuava-se em sua voz.
- Ora! 'cê come mais que nós três juntos! Mas tudo bem, a gente te deixa vir junto de qualquer jeito.
O rosto do halfling iluminou-se visivelmente, e Drizzt desconfiou que o palpite do anão sobre a tal encrenca não estava muito longe da verdade.
- Nós quatro, então! - proclamou Wulfgar. - Um para representar cada uma das quatro raças comuns: Bruenor pelos anões, Régis pelos halflings, Drizzt Do'Urden pelos elfos e eu pelos humanos. Uma trupe apropriada!
- Duvido muito que os elfos escolheriam um drow para representá-los - observou Drizzt.
Bruenor bufou: - 'cê acha que os halflings iam escolher Ronca-bucho como o campeão deles?
- Você é louco, anão - retorquiu Régis.
Bruenor deixou cair o escudo, contornou Wulfgar com um salto e colocou-se em guarda diante de Régis. Seu rosto contorceu-se num arremedo de fúria ao agarrar Régis pelos ombros e erguê-lo em pleno ar.
- 'ce tá certo, Ronca-bucho! - Bruenor gritou desvairadamente. - Sou louco mesmo! E nunca contrarie alguém mais louco que você!
Drizzt e Wulfgar olharam um para o outro e trocaram sorrisos conhecedores.
Seria realmente uma aventura interessante.
E, com o sol nascente em suas costas e as sombras alongando-se diante deles, seguiram seu caminho.
Para encontrar o Salão de Mitral. 19
Más Novas

Drizzt atravessou sem ruído os túneis e passou pelos corpos dos gigantes mortos, afrouxando o passo apenas para apanhar mais um naco de carneiro assado da grande mesa. Passou pelas vigas de sustentação e desceu pelo corredor sombrio, moderando sua ansiedade com bom senso. Se o tesouro dos gigantes estivesse escondido ali embaixo, a câmara que o abrigava estaria atrás de uma porta oculta ou haveria algum monstro - embora outro gigante fosse improvável, já que teria se unido à luta.
O túnel era bem comprido, corria direto para o norte, e Drizzt calculou que caminhava agora sob a grande massa do Sepulcro de Kelvin. Deixara para trás a última tocha, mas foi com alegria que recebeu a escuridão. Ele passara a maior parte de sua vida percorrendo túneis no mundo subterrâneo e sem luz de seu povo, e seus grandes olhos guiavam-no na escuridão absoluta com mais precisão do que nas regiões iluminadas.
O corredor terminava abruptamente numa porta ferrada e trancada, e a tranca de metal era mantida em seu lugar por uma grande corrente e um cadeado. Drizzt sentiu uma pontada de culpa por deixar Wulfgar para trás. O drow tinha duas fraquezas: antes de tudo, a emoção da batalha, mas logo em seguida vinha a comichão por descobrir o butim dos inimigos derrotados. Ouro e pedras preciosas não seduziam Drizzt; ele não se importava com riquezas e raramente guardava os tesouros que conquistara. Tratava-se simplesmente do arrebatamento de vê-los pela primeira vez, da emoção de examiná-los minuciosamente e, talvez, descobrir algum incrível artefato esquecido havia eras, ou, quem sabe, o grimório de um antigo e poderoso mago.
O sentimento de culpa o abandonou assim que ele tirou de sua escarcela uma pequena gazua. Ele nunca recebera treinamento formal nas artes ladinas, mas era tão ágil e coordenado quanto qualquer arrombador experiente. Com seus dedos sensíveis e a audição aguda, a fechadura tosca não lhe oferecia particularmente um desafio; caiu ao chão, aberta, numa questão de segundos. Drizzt atentou para os sons por trás da porta. Não ouvindo nada, ergueu gentilmente a grande tranca e a colocou de lado. Pondo-se uma última vez à escuta, ele desembainhou uma das cimitarras, prendeu a respiração de pura expectativa e empurrou a porta.
Expeliu o ar num suspiro decepcionado. A sala logo à frente brilhava com a luz minguante de duas tochas. Era pequena e estava vazia, exceto por um grande espelho de aro metálico que se encontrava em seu centro. Drizzt esquivou-se do caminho do espelho, conhecedor de algumas estranhas propriedades mágicas que esses objetos sabidamente exibiam, e aproximou-se para examiná-lo mais de perto.
Era quase da altura de um homem, mas um suporte de ferro intrincadamente trabalhado o mantinha ao nível dos olhos. Por estar revestido de prata e numa câmara tão remota, Drizzt começou a acreditar que não se tratava de um espelho comum. No entanto, uma inspeção minuciosa não revelou runas nem sinais arcanos de qualquer tipo que sugerissem suas propriedades.
Incapaz de descobrir qualquer coisa de incomum sobre a peça, Drizzt descuidadamente colocou-se em frente ao espelho. De repente, uma bruma rosada começou a remoinhar dentro do espelho, parecendo um espaço tridimensional aprisionado no interior da planura do vidro. Drizzt saltou de lado, mais curioso que amedrontado, e observou o desenrolar do espetáculo.
Lufadas agitaram a bruma cada vez mais densa, como se alimentada por um fogo oculto. Depois, o centro espalhou-se para as bordas e abriu-se na imagem nítida do rosto de um homem, uma fisionomia encovada e macilenta, pintada segundo a tradição de uma das cidades sulistas.
- Por que veio me incomodar? - perguntou o homem diante da sala vazia em frente ao espelho.
Drizzt deu outro passo para o lado, distanciando-se ainda mais da linha de visão da aparição. Cogitou confrontar o misterioso mago, mas pensou nos amigos e calculou que havia muita coisa em jogo para ele se arriscar de maneira tão irresponsável.
- Apresente-se, Sorrisão! - ordenou a imagem. O rosto aguardou vários segundos, sorrindo impacientemente, com um ar escarninho e cada vez mais tenso. - Quando eu descobrir qual de vocês idiotas inadvertidamente me invocou, hei de transformá-lo num coelho e jogá-lo numa arena de lobos! - gritou a imagem, furiosa. O espelho cintilou repentinamente e voltou ao normal.
Drizzt coçou o queixo e imaginou se havia algo mais que ele pudesse descobrir por ali. Decidiu que os riscos eram simplesmente grandes demais naquele momento.

Quando Drizzt percorreu de volta o covil, encontrou Wulfgar sentado ao lado de Guenhwyvar na passagem principal, não muito longe das portas da frente, fechadas e trancadas. O bárbaro acariciava o pescoço e os ombros musculosos do gato.
- Vejo que Guenhwyvar ganhou sua amizade - disse Drizzt ao se aproximar.
Wulfgar sorriu.
- Uma excelente aliada - disse ele, sacudindo de brincadeira o animal. - E uma verdadeira guerreira! - Ele começou a se levantar, mas foi atirado violentamente de volta ao chão.
Uma explosão abalou o covil quando um projétil de balista chocou-se contra as portas pesadas, estilhaçou-lhes a tranca de madeira e destruiu-as. Uma das portas dividiu-se perfeitamente em duas; o gonzo superior da outra foi arrancado, deixando a porta pendurada canhestramente pelo retorcido gonzo inferior.
Drizzt desembainhou a cimitarra e colocou-se protetoramente sobre Wulfgar enquanto o bárbaro tentava recobrar o equilíbrio.
Abruptamente, um guerreiro de barba saltou para a porta pendente, trazendo num dos braços o escudo circular com o emblema de uma caneca de cerveja espumante e, no outro, um machado de guerra chanfrado e manchado de sangue.
- Saiam e venham brincar, gigantes! - gritou Bruenor, batendo forte o machado contra o escudo, como se seu clã já não tivesse feito barulho suficiente para acordar o covil!
- Calma, seu anão louco - riu Drizzt. - Os verbeeg estão todos mortos.
Bruenor avistou os amigos e saltou para o túnel, logo seguido pelo resto do clã afoito.
- Todos mortos! - gritou o anão. - Maldito seja, elfo! Eu tinha certeza que 'cê ia dar um jeito de brincar sozinho!
- E quanto aos reforços? - perguntou Wulfgar. Bruenor casquinou maliciosamente.
- Ô, garoto, um pouco de fé, sim? Foram empilhados numa vala comum, mas eu acho que não mereciam ser enterrados! Só tem um vivo: um ore miserável que vai continuar respirando só até dar com a maldita língua nos dentes!
Depois do episódio com o espelho, não era pequeno o interesse de Drizzt em interrogar o ore.
- Você já o inquiriu? - perguntou a Bruenor.
- Ah, ficou calado até agora - replicou o anão. - Mas eu tenho uma coisinha ou outra que deve fazer ele abrir o bico!
Drizzt tinha uma idéia melhor. Os ores não eram criaturas leais mas, sob o encantamento de um mago, as técnicas de tortura geralmente de pouco adiantavam. Eles precisavam de algo para neutralizar a magia, e Drizzt fazia idéia do que poderia funcionar.
- Vá buscar Régis - ele instruiu Bruenor. - O halfling pode fazer o ore nos contar tudo o que quisermos saber.
- Torturar ele seria mais divertido - lamentou-se Bruenor, mas ele também compreendia a sabedoria da sugestão do drow. Ele estava mais do que simplesmente curioso - e preocupado - com tantos gigantes trabalhando em conjunto. E agora com ores ao lado deles...

Drizzt e Wulfgar sentaram-se no canto mais distante da pequena câmara, o mais longe possível de Bruenor e dos outros dois anões. Um dos soldados de Bruenor retornara naquela mesma noite de Bosquesó, trazendo Régis, e, embora estivessem todos exaustos da marcha e do combate, estavam ansiosos demais para dormir, aguardando novas informações. Régis e o ore capturado haviam passado à sala contígua para uma conversa particular assim que o halfling conseguira controlar a vontade do prisioneiro com seu pingente de rubi.
Bruenor ocupava-se em preparar uma nova receita - ensopado de miolos de gigante - e fervia os deploráveis e mal-cheirosos ingredientes diretamente no crânio oco de um verbeeg.
- Pensem um pouco! - argumentara ele, em resposta às expressões de horror e asco de Drizzt e Wulfgar. - O ganso de quintal é mais gostoso do que o selvagem porque não usa os músculos. O mesmo deve valer pros miolos de um gigante!
Drizzt e Wulfgar não tinham a mesma opinião. Entretanto, eles não queriam deixar a área e perder uma palavra sequer do que Régis teria a dizer, de modo que se acotovelavam no canto mais distante da sala e levavam adiante uma conversa particular.
Bruenor se esforçava para ouvi-los, pois estavam falando de algo que muito lhe interessava.
- Metade daquele último na cozinha - insistia Wulfgar - e metade para o gato.
- E você só leva a metade daquele lá no precipício - retorquiu Drizzt.
- De acordo - disse Wulfgar. - E dividimos ao meio aquele no salão e Sorrisão?
Drizzt assentiu.
Então, somadas todas as metades e as vítimas divididas, são dez e meio para mim e dez e meio para você.
- E quatro para o gato - acrescentou Wulfgar.
- Quatro para o gato - repetiu Drizzt. - Lutou bem, meu amigo. Você se saiu bem até agora, mas tenho a impressão de que teremos muito mais combates pela frente e, no final, valerá minha maior experiência!
- Você está ficando velho, meu bom elfo - caçoou Wulfgar, recostando-se novamente na parede e exibindo a brancura de um sorriso largo e confiante por entre a barba loura. - Veremos. Veremos.
Bruenor também sorria, tanto diante da competição saudável entre seus amigos quanto do persistente orgulho que sentia pelo jovem bárbaro. Wulfgar estava se saindo bem já que conseguira acompanhar um veterano habilidoso como Drizzt Do'Urden.
Régis emergiu da sala e a mortalha cinzenta em seu rosto geralmente jovial arrefeceu o clima de despreocupação.
- Estamos encrencados - disse o halfling sombriamente.
- Onde está o ore? - perguntou Bruenor enquanto tirava o machado do cinto, interpretando erroneamente as palavras do halfling.
- Lá dentro. Ele está bem - replicou Régis.
O ore contara entusiasticamente a seu mais novo amigo tudo sobre os planos de Akar Kessell de invadir Dez-Burgos e o tamanho das forças que se concentravam. Régis tremia visivelmente ao dar aos amigos a notícia.
- Todas as tribos de ores e goblins e os clãs de verbeeg desta região da Espinha do Mundo estão se reunindo sob o comando de um feiticeiro chamado Akar Kessell - começou o halfling. Drizzt e Wulfgar entreolharam-se, reconhecendo o nome de Kessell. O bárbaro pensara que Akar Kessell fosse um enorme gigante do gelo quando o verbeeg o mencionara, mas foram bem diferentes as suspeitas de Drizzt, principalmente depois do incidente com o espelho.
- Eles planejam atacar Dez-Burgos - continuou Régis. - E até mesmo os bárbaros, comandados por um poderoso líder de um olho só, juntaram-se a suas fileiras!
Wulfgar corou de fúria e vergonha. Seu povo lutando ao lado de ores! Ele conhecia o líder de que falara Régis, pois Wulfgar pertencia à Tribo do Alce e chegara até mesmo a carregar o estandarte da tribo como arauto de Heafstaag. Drizzt também se lembrava dolorosamente do rei caolho. Pousou a mão consoladora sobre o ombro de Wulfgar.
- Vão até Brin Shander - disse o drow a Bruenor e Régis. - O povo precisa se preparar.
Régis estremeceu diante da inutilidade daquilo tudo. Se a estimativa do ore quanto ao tamanho do exército que se congregava estivesse correta, nem toda a Dez-Burgos reunida resistiria ao assalto. O halfling deixou cair a cabeça e, não desejando alarmar os amigos mais do que o necessário, silenciosamente deu forma às palavras:
- Temos de partir!

Apesar de Bruenor e Régis conseguirem convencer Cássio quanto à urgência e à importância das notícias que traziam, foram necessários vários dias para reunir em conselho os outros representantes. Era o auge da estação das cabeçudas, o fim do verão, e todos estavam envolvidos num último esforço para apanhar uma boa safra de peixe para a última caravana mercante com destino a Luskan. Os representantes das nove aldeias pesqueiras compreendiam suas responsabilidades para com as respectivas comunidades, mas relutavam em abandonar os lagos mesmo que um único dia.
E, assim, com a exceção de Cássio de Brin Shander, Muldoon, o novo representante de Bosquesó, que venerava Régis como o herói de sua vila, Glensather de Angraleste, a comunidade sempre disposta a participar pelo bem de Dez-Burgos, e Agorwal de Termalaine, que devotava feroz lealdade a Bruenor, a disposição de ânimo do conselho não era muito receptiva.
Kemp, ainda ressentido com Bruenor por causa do incidente envolvendo Drizzt logo depois da Batalha de Brin Shander, mostrou-se particularmente desagregador. Antes que Cássio sequer tivesse a oportunidade de apresentar as Formalidades de Ordem, o mal-humorado representante de Targos saltou de seu assento e esmurrou a mesa.
- Danem-se as leituras formais e vamos logo com isto! - grunhiu Kemp. - Com que direito você nos manda vir dos lagos, Cássio? Enquanto nos sentamos em volta desta mesa, os mercadores em Luskan estão se preparando para a viagem!
- Temos notícia de uma invasão, Representante Kemp - respondeu Cássio, com calma, compreendendo a fúria do pescador. - Eu não os teria convocado a essa altura da estação, a nenhum de vocês, se não fosse urgente.
- Então, os boatos são verdadeiros - escarneceu Kemp. - Uma invasão, você diz? Ora! Sei o que há por trás deste arremedo de conselho!
Voltou-se para Agorwal. A disputa entre Targos e Termalaine havia se intensificado nas últimas semanas, apesar dos esforços de Cássio para dissipá-la e trazer os princípios das cidades rivais à mesa de negociação. Agorwal concordara com uma reunião, mas Kemp fora resolutamente contrário. E, assim, com as suspeitas no auge, a escolha do momento daquele conselho de emergência não poderia ter sido pior.
- É uma tentativa realmente lamentável! - berrou Kemp. Olhou ao redor para os colegas representantes. - Um esforço lamentável de Agorwal e seus ardilosos partidários para forçar um acordo favorável a Termalaine em sua disputa com Targos!
Incitado pela aura de suspeita infundida por Kemp, Schermont, o novo representante de Caer-Konig, apontou um dedo acusador para Jensin Brent de Caer-Dineval.
- Qual é seu papel nesta traição? - disse ele com veemência ao encarniçado rival. Schermont chegara ao cargo depois da morte do primeiro representante de Caer-Konig nas águas do Lac Dinneshir, em batalha contra um barco de Dineval. Dorim Liugar havia sido amigo e líder de Schermont, e as políticas do novo representante em relação a Caer-Dineval eram ainda mais despóticas que as de seu predecessor.
Régis e Bruenor permaneceram recostados em seus assentos, silenciosos, em impotente consternação, ao longo de toda essa disputa verbal inicial. Por fim, Cássio bateu violentamente o martelo, partindo-lhe o cabo ao meio, e silenciou os demais tempo suficiente para dizer o que queria.
- Alguns instantes de silêncio! - ordenou. - Contenham suas palavras venenosas e dêem ouvidos ao portador de más novas! - Os outros se deixaram cair de volta aos assentos e permaneceram silenciosos, mas Cássio temia que o dano já tivesse sido feito.
Ele cedeu a vez a Régis.
Sinceramente aterrorizado pelo que arrancara do prisioneiro ore, Régis relatou apaixonadamente a batalha vencida por seus amigos no covil dos verbeeg e sobre a relva de Valvertente.
- E Bruenor capturou um dos ores que escoltavam os gigantes - disse ele enfaticamente. Alguns representantes inspiraram profundamente diante da idéia de tais criaturas andando em bando, mas Kemp e alguns dos outros, sempre desconfiados das ameaças mais imediatas representadas por seus rivais, e já decididos quanto ao verdadeiro propósito da reunião, ainda não haviam se convencido.
- O ore nos falou - continuou Régis sombriamente - da vinda de um poderoso mago, Akar Kessell, e de sua vasta hoste de goblins e gigantes! Têm a intenção de conquistar Dez-Burgos! - Ele imaginou que sua dramaticidade se mostraria eficaz.
Mas Kemp estava ultrajado:
- Por causa das palavras de um ore, Cássio? Você nos convocou, tirou-nos dos lagos nesta época crítica por causa das ameaças de um maldito ore?
- A história do halfling não é incomum - acrescentou Schermont. - Todos já vimos um goblin capturado falar o que lhe der na telha para salvar sua cabeça sem valor.
- Ou talvez você tivesse outros motivos - silvou Kemp, mais uma vez fitando Agorwal.
Cássio, embora realmente acreditasse nas más novas, recostou-se em sua cadeira e nada disse. Com toda aquela tensão nos lagos e a última feira comercial de uma estação de pesca particularmente infrutífera se aproximando rapidamente, ele desconfiara que isso ocorreria. Olhou resignadamente para Bruenor e Régis e deu de ombros quando mais uma vez o conselho degenerou-se numa disputa de gritos.
Em meio à comoção que se seguiu, Régis retirou o pingente de rubi de sob o colete e cutucou Bruenor. Eles olharam para a coisa e um para o outro, decepcionados; haviam alimentado a esperança de que a pedra mágica não se fizesse necessária.
Régis golpeou com seu martelo, requisitando a vez, que lhe foi concedida por Cássio. Em seguida, como ele fizera cinco anos atrás, saltou sobre a mesa e caminhou em direção a seu principal antagonista.
Mas, dessa vez, o resultado não foi o que Régis havia esperado. Kemp passara muitas horas nos últimos cinco anos refletindo sobre aquele conselho antes da invasão bárbara. O representante ficara contente com o resultado final de toda aquela situação e, na verdade, percebera que ele e toda a Dez-Burgos estavam em dívida com o halfling por tê-los feito dar atenção ao aviso. No entanto, incomodava Kemp, e não pouco, que sua posição inicial tivesse sido abalada tão facilmente. Ele era um tipo ruidoso cujo primeiro amor, acima mesmo da pesca, era a batalha; mas tinha uma mente perspicaz e estava sempre alerta ao perigo. Ele observara Régis várias vezes nos últimos anos e ouvira atentamente as histórias sobre a habilidade do halfling na arte da persuasão. Enquanto Régis se aproximava, o corpulento representante desviou os olhos.
- Fora, trapaceiro! - grunhiu ele, afastando defensivamente a cadeira da mesa com um empurrão. - Você parece ter uma estranha maneira de convencer as pessoas, mas não vou cair em seu encanto desta vez! - Ele se dirigiu aos outros representantes. - Cuidado com o halfling! Ele possui algum tipo de mágica, podem estar certos!
Kemp sabia que não teria como provar suas alegações, mas também percebeu que não precisaria fazê-lo. Régis olhou ao redor, aturdido e incapaz sequer de responder às acusações do representante. Até mesmo Agorwal, embora o representante de Termalaine discretamente tentasse ocultar o fato, não mais olharia Régis diretamente nos olhos.
- Sente-se, trapaceiro! - escarneceu Kemp. - Sua mágica de nada serve agora que percebemos suas intenções!
Bruenor, calado até então, de repente deu um salto, com o rosto deformado pela fúria.
- Isto também é um truque, canalha de Targos? - desafiou o anão. Ele tirou uma sacola do cinto e fez rolar o conteúdo da mesma - uma cabeça decapitada de verbeeg - mesa abaixo, em direção a Kemp. Vários representantes pularam para trás, horrorizados, mas Kemp permaneceu inabalado.
- Lidamos com gigantes desgarrados muitas vezes antes - replicou fria mente o representante.
- Desgarrados? - repetiu Bruenor, incrédulo. - Quarenta destes monstros foram abatidos, além de ores e ogros!
- Um bando de passagem - explicou Kemp, com tranqüilidade e teimosia. - E estão todos mortos, você mesmo o disse. Por que, então, isto se torna um assunto para o conselho? Se é louvor o que deseja, poderoso anão, então há de tê-lo! - O veneno escorria de sua voz e foi com profundo prazer que ele observou o rosto cada vez mais vermelho de Bruenor. - Talvez Cássio possa fazer um discurso especial em sua honra diante de todo o povo de Dez-Burgos.
Bruenor esmurrou a mesa e fitou todos os homens ao redor dele em franca ameaça a qualquer um que desse continuidade aos insultos de Kemp.
- A gente veio até aqui pra ajudar vocês e salvar seus lares e seu povo! - berrou ele. - Pode ser que 'cês acreditem na gente e façam alguma coisa pra sobreviver. Ou pode ser que 'cês dêem ouvidos às palavras deste canalha de Targos e não façam nada. De um jeito ou de outro, já estou cheio de vocês! Façam o que quiserem e que seus deuses os protejam!
Virou-se e deixou a sala.
O tom soturno de Bruenor fez com que muitos representantes percebessem que a ameaça era simplesmente grave demais para ser desconsiderada como o engodo de um prisioneiro desesperado, ou mesmo como mais um plano traiçoeiro de Cássio e alguns conspiradores. Kemp, porém, orgulhoso e arrogante, e certo de que Agorwal e seus amigos não-humanos, o halfling e o anão, estavam usando a fachada de uma invasão para ganhar alguma vantagem sobre a cidade superior de Targos, não arredaria pé. Abaixo apenas de Cássio em toda a Dez-Burgos, a opinião de Kemp tinha grande influência, principalmente para o povo de Caer-Konig e Caer-Dineval que, à luz da inabalável neutralidade de Brin Shander em relação a sua disputa, buscava o favor de Targos.
Um número suficiente de representantes continuava desconfiado de seus rivais e disposto a aceitar a explicação de Kemp para impedir que Cássio levasse o conselho a uma ação decisiva. As linhas foram logo claramente traçadas.
Régis assistiu ao espetáculo enquanto os lados opositores atacavam-se mutuamente, mas a própria credibilidade do halfling fora destruída e ele já não teria qualquer impacto sobre o resto da reunião. No final, pouco foi decidido. O máximo que Agorwal, Glensather e Muldoon conseguiram arrancar de Cássio foi uma declaração pública de que "um alerta geral deve ser emitido e que este chegue a cada casa em Dez-Burgos. Que o povo receba as más novas e que estejam certos de que hei de abrir espaço dentro das muralhas de Brin Shander para todas as pessoas que assim desejarem nossa proteção."
Régis fitou os representantes divididos. Sem união, o halfling perguntou-se que grau de proteção ofereceriam até mesmo as altas muralhas de Brin Shander.

20
Escravo de Homem Nenhum

- Sem discussão - disse Bruenor rispidamente, embora nenhum dos quatro amigos que lhe faziam companhia nas encostas rochosas do aclive tivesse a menor intenção de se pronunciar contra a decisão. Em sua tola mesquinhez e seu estúpido orgulho, a maioria dos representantes havia praticamente condenado suas comunidades à destruição certa e nem Drizzt, Wulfgar, Cattiebrie ou Régis esperavam que os anões apoiassem uma causa tão sem esperança.
- Quando você vai bloquear as minas? - perguntou Drizzt. O drow ainda não decidira se acompanharia os anões na prisão auto-imposta das cavernas, mas planejara servir como batedor para Brin Shander pelo menos até o exército de Alçar Kessell chegar à região.
- Vamos começar os preparativos hoje à noite - disse Bruenor. - Mas depois de tudo pronto, não tem pressa. Vamos deixar os malditos ores virem direto pra cima da gente antes de derrubar os túneis e apanhar eles no desabamento! 'Cê vai ficar com a gente, então?
Drizzt deu de ombros. Apesar de a maioria das pessoas de Dez-Burgos ainda fugir dele, o drow tinha um forte senso de lealdade e não estava bem certo se conseguiria dar as costas ao lar que escolhera, mesmo sob circunstâncias suicidas. E Drizzt pouco ansiava por retornar ao subterrâneo desprovido de luz, mesmo às cavernas hospitaleiras da vila dos anões.
- E qual é sua decisão? - Bruenor perguntou a Régis.
O halfling também estava dividido entre seus instintos de sobrevivência e sua lealdade a Dez-Burgos. Com a ajuda do rubi, ele vivera bem durante os últimos anos às margens do Maer Dualdon. Mas, agora, ele havia sido desmascarado. Depois dos rumores espalhados pelo conselho, todos em Brin Shander cochichavam sobre a influência mágica do halfling. Não demoraria muito até que todas as comunidades viessem a saber das acusações de Kemp e começassem a evitá-lo, se é que não se esquivariam dele abertamente. De um jeito ou de outro, Régis sabia que seus dias de vida fácil em Bosquesó estavam chegando ao fim.
- Obrigado pelo convite - disse ele a Bruenor. - Virei para cá antes de Kessell chegar.
- Ótimo - respondeu o anão. - 'cê vai ficar com um quarto perto do garoto, assim nenhum dos anões vai precisar te ouvir choramingando de fome! - Lançou a Drizzt uma piscadela jovial.
- Não - disse Wulfgar.
Bruenor olhou para ele, curioso, interpretando erroneamente as intenções do bárbaro e perguntando-se por que ele faria objeção a ter Régis a seu lado.
- Olha lá, garoto - caçoou o anão. - Se tiver pensando em ficar perto da menina, então comece a pensar em encolher a cabeça e escapar de meu machado!
Cattiebrie riu baixinho, constrangida, mas verdadeiramente emocionada.
- As minas não são meu lugar - disse Wulfgar de repente. - Minha vida está na planície.
- 'cê 'tá esquecendo que eu é que decido sua vida! - retorquiu Bruenor. Na verdade, seus berros deviam-se mais à irritação de um pai do que ao ultraje de um senhor de escravos.
Wulfgar ficou de pé diante do anão, orgulhoso e austero. Drizzt compreendeu, satisfeito. Foi então que Bruenor começou a entender aonde o bárbaro queria chegar e, apesar de detestar a idéia da separação, naquele instante, sentiu-se mais orgulhoso do rapaz do que nunca.
- Meu período de compromisso ainda não terminou - começou Wulfgar -, mas já saldei minha dívida com você, meu amigo, e com seu povo, repetidas vezes. Eu sou Wulfgar! - proclamou ele, orgulhoso, com o queixo firme e os músculos tensos. - Não mais um garoto, mas um homem! Um homem livre!
Bruenor sentiu a umidade bordejar-lhe os olhos. Pela primeira vez, nada fez para escondê-la. Avançou até o imenso bárbaro e retribuiu o olhar obstinado de Wulfgar com sincera admiração.
- E é mesmo - observou Bruenor. - Então, posso perguntar se, de sua própria escolha, vai ficar e lutar a meu lado?
Wulfgar chacoalhou a cabeça.
- Na verdade, já saldei minha dívida com você. E hei sempre de chamá-lo de amigo... querido amigo. Mas tenho outra dívida a saldar. - Ele desviou o olhar para o Sepulcro de Kelvin e além. Incontáveis estrelas brilhavam limpidamente sobre a tundra, fazendo a vasta planície parecer ainda mais imensa e desabitada. - Lá fora, num outro mundo.
Cattiebrie suspirou e trocou de pé desconfortavelmente. Somente ela compreendia completamente o retrato indistinto pintado por Wulfgar. E ela não estava feliz com a escolha dele.
Bruenor assentiu, respeitando a decisão do bárbaro.
- Vá, então, e passe bem - disse ele, esforçando-se para controlar a voz entrecortada enquanto partia em direção à trilha rochosa. Deteve-se um último momento e olhou para trás, para o jovem e alto bárbaro. - 'cê já é um homem, não há o que discutir - disse ele, por sobre o ombro. - Mas nunca se esqueça de que vai ser sempre meu garoto!
- Não vou - Wulfgar murmurou baixinho enquanto Bruenor desaparecia túnel adentro. Sentiu a mão de Drizzt em seu ombro.
- Quando você vai partir? - o drow perguntou.
- Esta noite - respondeu Wulfgar. - Estes dias soturnos não oferecem descanso.
- E para onde vai? - perguntou Cattiebrie, conhecendo de antemão a verdade e também a resposta vaga que Wulfgar daria.
O bárbaro voltou o olhar indefinido mais uma vez para a planície.
- Para casa.
Ele começou a descer a trilha e Régis o acompanhou. Mas Cattiebrie ficou para trás e, com um gesto, pediu a Drizzt que fizesse o mesmo.
- Diga adeus a Wulfgar hoje à noite - disse ela ao drow. - Não creio que ele vá voltar.
- Ele é quem deve escolher onde fica sua casa - replicou Drizzt, imaginando que as notícias sobre Heafstaag unindo-se a Kessell haviam tido alguma influência sobre a decisão de Wulfgar. Ele observou respeitosamente o bárbaro que se afastava. - Ele tem alguns assuntos particulares a resolver.
- Mais do que você imagina - disse Cattiebrie. Drizzt olhou para ela, curioso. - Wulfgar tem uma aventura em mente - ela explicou. Não tivera a intenção de quebrar a confiança de Wulfgar, mas imaginara que ninguém, a não ser Drizzt Do'Urden, seria capaz de encontrar um meio de ajudá-lo. - Uma aventura que acredito ter lhe sido imposta antes de estar preparado.
- As questões da tribo são assunto dele - disse Drizzt, imaginando o que a moça sugeria. - Os bárbaros têm suas próprias tradições e não recebem muito bem os forasteiros.
- Quanto às tribos, eu concordo - disse Cattiebrie. - Mas o caminho de Wulfgar, a menos que eu esteja enganada, não leva diretamente para casa. Tem alguma outra coisa pela frente, uma aventura de que ele fala com freqüência, mas nunca explica inteiramente. Sei apenas que envolve grande perigo e uma promessa que mesmo ele teme não conseguir cumprir sozinho.
Drizzt desviou o olhar para a planície estrelada e ponderou as palavras da moça. Ele sabia que Cattiebrie era muito perspicaz e observadora para a idade. Não duvidou das suposições dela.
As estrelas piscavam acima da noite fresca e a abóbada celeste tragava a orla plana do horizonte. Um horizonte ainda não marcado pelas fogueiras de um exército em marcha, observou Drizzt.
Talvez ele tivesse algum tempo.

Apesar de a proclamação de Cássio chegar até a mais remota das vilas em questão de dois dias, poucos grupos de refugiados pegaram as estradas até Brin Shander. Cássio já esperava por isso, de outro modo jamais teria feito a audaciosa oferta de abrigar todos os que viessem. Brin Shander era uma cidade de bom tamanho e sua população atual já não era tão grande quanto antes. Havia muitos edifícios desocupados no interior das muralhas e todo um setor da cidade, reservado para as caravanas mercantes, encontrava-se vazio no momento. Entretanto, se apenas metade das pessoas das outras nove comunidades ali buscasse refúgio, Cássio se veria em dificuldades para honrar seu compromisso.
O representante não estava preocupado. O povo de Dez-Burgos era uma gente valorosa e vivia cotidianamente sob a ameaça de uma invasão dos goblins. Cássio sabia que seria necessário mais do que um alerta abstrato para arrancá-los de suas casas. E, com a lealdade entre as vilas tão em baixa, poucos líderes tomariam qualquer providência para convencer seu povo a fugir.
No fim das contas, Glensather e Agorwal foram os únicos representantes a chegar aos portões de Brin Shander. Praticamente toda Angraleste seguia seu líder, mas Agorwal era acompanhado por menos da metade da gente de Termalaine. Rumores vindos da arrogante cidade de Targos, quase tão bem defendida quanto Brin Shander, deixaram claro que nem uma pessoa sequer dali partiria. Muitos pescadores de Termalaine, temendo a vantagem econômica que Targos ganharia sobre eles, recusaram-se a desistir do mês mais lucrativo da estação de pesca.
Esse também foi o caso de Caer-Konig e Caer-Dineval. Nenhum dos rancorosos inimigos atrevia-se a ceder ao outro a menor vantagem e ninguém, de nenhuma das duas cidades, fugiu para Brin Shander. Para o povo dessas comunidades em guerra, os ores eram uma ameaça distante com a qual teriam de lidar caso algum dia esta se materializasse, mas a disputa com seus vizinhos imediatos era brutalmente real e evidente em todas as rotinas diárias.
No oeste, a vila de Bremen continuava encarniçadamente independente das outras comunidades e encarava a oferta de Cássio como uma tentativa ineficaz de Brin Shander de reafirmar sua posição de liderança. Bom Prado e Toca de Dugan, ao sul, não tinham qualquer intenção de se esconder na cidade murada ou de enviar soldados para ajudar na batalha. Essas duas cidades, às margens do Marerrubra, o menor dos lagos e o mais pobre em cabeçudas, não se dariam ao luxo de ficar muito tempo longe dos barcos. Haviam atendido ao pedido de união cinco anos antes, sob a ameaça de uma invasão bárbara, e, embora sofressem as maiores perdas dentre todas as vilas envolvidas no confronto, foram as que menos ganhos tiveram.
Vários grupos de Bosquesó infiltraram-se em Brin Shander, mas boa parte do povo da vila mais ao norte preferiu manter-se afastada. Seu herói perdera o prestígio. Mesmo Muldoon agora via o halfling sob uma perspectiva diferente e desconsiderou o alerta de invasão como um mal-entendido, ou quem sabe até um embuste calculado.
O bem maior da região havia sido sobrepujado pelos mais insignificantes ganhos pessoais de um orgulho pertinaz. A maioria das pessoas de Dez-Burgos confundiu união com dependência.

Régis retornou a Brin Shander para fazer alguns arranjos pessoais na manhã seguinte à partida de Wulfgar. Um amigo viria de Bosquesó com seus estimados pertences e, portanto, ele permaneceu na cidade, assistindo em total consternação à passagem dos dias sem que se fizessem quaisquer preparativos efetivos para receber o exército que chegava. Mesmo depois do conselho, o halfling nutrira alguma esperança de que as pessoas percebessem que a destruição era iminente e acabassem por se unir, mas, agora, ele começava a acreditar que a decisão dos anões de abandonar Dez-Burgos e encerrar-se em suas minas era a única opção, caso desejassem sobreviver.
Régis culpava-se em parte pela tragédia iminente, convencido de que se tornara descuidado. Quando haviam traçado os planos de usar a situação política e o poder do rubi para forçar as vilas a se unirem contra os bárbaros, ele e Drizzt passaram muitas horas prevendo as respostas iniciais dos representantes e medindo o valor da aliança de cada vila. Dessa vez, porém, Régis depositara uma fé maior nas pessoas de Dez-Burgos e na pedra, imaginando que poderia simplesmente empregar seu poder para convencer os últimos céticos quanto à gravidade da situação.
Mas Régis não suportou a própria culpa ao ouvir as respostas arrogantes e ressabiadas que chegavam de todas as vilas. Por que ele deveria forçar as pessoas a se defender por meio de um engodo? Se eram estúpidas o bastante para deixar o próprio orgulho acarretar a própria destruição, então que responsabilidade, ou que direito, tinha ele de salvá-las?
- Vocês terão o que merecem! - disse o halfling em voz alta, sorrindo, malgrado ele mesmo, ao perceber que estava começando a soar tão descrente quanto Bruenor.
Mas a insensibilidade era sua única proteção contra uma situação tão sem remédio. Ele esperava que seu amigo de Bosquesó chegasse logo. Seu santuário estava no subterrâneo.

Akar Kessell estava sentado no trono de cristal do Salão das Visões, o terceiro nível de Crishal-Tirith, e tamborilava os dedos nervosamente no braço da grande cadeira enquanto fitava atentamente o espelho escuro diante dele. Sorrisão estava muito atrasado com seu relatório sobre a caravana de reforços. A última invocação que o mago recebera do covil fora suspeita, pois não encontrara ninguém do outro lado para receber sua resposta. Agora, o espelho no covil revelava apenas trevas e resistia a todas as tentativas do mago de vislumbrar a sala.
Se o espelho tivesse sido quebrado, Kessell teria percebido a alteração em suas visões. Mas aquilo era um grande mistério, pois algo além de sua compreensão bloqueava-lhe a visão remota. O dilema o enervava, fazia-o pensar que tinha sido enganado ou descoberto. Os dedos continuaram a tamborilar nervosamente.
- Talvez seja o momento de tomar uma decisão - sugeriu Errtu, em sua habitual posição ao lado do trono do mago.
- Ainda não atingimos nossa força máxima! - retorquiu Kessell. - Muitas tribos de goblins e um grande clã de gigantes ainda não chegaram. E os bárbaros ainda não estão prontos.
- Os soldados têm sede de batalha - salientou Errtu. - Lutam entre si. E possível que você logo veja seu exército desintegrar-se à sua volta!
Kessell concordava que manter tantas tribos de goblins reunidas durante tanto tempo era um negócio arriscado e perigoso. Talvez fosse melhor se marchassem imediatamente. Mas, ainda assim, o mago queria ter certeza. Queria o exército no auge de suas forças.
- Onde está Sorrisão? - queixou-se Kessell. - Por que ele não atende a meus chamados?
- Que preparativos os humanos estão fazendo agora? - perguntou Errtu abruptamente.
Mas Kessell já não ouvia. Limpou o suor do rosto. Talvez a estilha e o demônio tivessem razão quanto a mandar os bárbaros, bem menos conspícuos, ao covil. O que estariam pensando os pescadores caso tivessem descoberto uma combinação tão incomum de monstros entocando-se na região? O quanto já teriam adivinhado?
Errtu percebeu o desconforto de Kessell com impiedosa satisfação. O demônio e a estilha vinham pressionando Kessell a atacar muito mais cedo desde que as mensagens de Sorrisão haviam cessado. Mas o mago covarde, precisando de mais garantias de que seu exército seria esmagador, continuara a tardar.
- Devo ir às tropas? - perguntou Errtu, confiante que a resistência de Kessell já não existia.
- Envie mensageiros aos bárbaros e às tribos que ainda não se juntaram a nós - instruiu Kessell. - Diga-lhes que lutar a nosso lado é juntar-se ao banquete da vitória! Mas os que não lutarem a nosso lado cairão a nossos pés! Marcharemos amanhã!
Errtu deixou a torre sem demora e não demorou muito para que os vivas pelo início da guerra ecoassem por todo o imenso acampamento. Goblins e gigantes corriam nervosamente de um lado para outro, desmontando as barracas e embalando suprimentos. Haviam esperado por aquele momento durante longas semanas e agora não desperdiçavam tempo com os preparativos finais.
Naquela mesma noite, o vasto exército de Akar Kessell levantou acampamento e começou sua longa marcha em direção a Dez-Burgos.
E, no covil desbaratado dos verbeeg, o espelho de cristalomancia encontrava-se intocado e inteiro, inofensivamente coberto pela pesada manta que Drizzt Do'Urden jogara sobre ele.

Epílogo

Ele correu sob o radiante sol do dia; correu sob as estrelas pálidas da noite, com o vento leste sempre em seu rosto. As pernas compridas e os passos largos carregavam-no incansavelmente, um mero pontinho em movimento na planície desabitada. Durante dias, Wulfgar forçou-se aos limites absolutos de sua resistência, chegando a caçar e a comer ainda a caminho, parando apenas quando a exaustão o derrubava.
Bem mais ao sul, avançando a partir da Espinha do Mundo como uma nuvem tóxica de vapores mal-cheirosos, vinham as forças de goblins e gigantes de Akar Kessell. Com as mentes distorcidas pela vontade da estilha de cristal, eles desejavam apenas matar e destruir. Desejavam apenas agradar Akar Kessell.
A três dias do vale dos anões, o bárbaro encontrou, por acaso, as pegadas desordenadas de muitos guerreiros, e todas levavam em direção a um destino comum. Ficou feliz por conseguir encontrar seu povo com tamanha facilidade, mas a presença de tantas pegadas revelava que as tribos estavam se reunindo, um fato que apenas enfatizava a urgência de sua missão. Instigado pela necessidade, ele seguiu em frente com maior vigor.
O maior inimigo de Wulfgar não era o cansaço, mas a solidão. Ele se esforçava para manter seus pensamentos no passado durante longas horas, recordando a promessa feita ao pai morto e contemplando as possibilidades de vitória. Entretanto, ele evitava pensar na senda que agora trilhava, compreendendo perfeitamente que o total desespero do plano poderia destruir sua determinação.
No entanto, era sua única chance. Não tinha sangue nobre nem qualquer Direito ao Desafio contra Heafstaag. Mesmo que derrotasse o rei eleito, seu povo não o reconheceria como líder. A única maneira de alguém como ele legitimar uma reivindicação à condição de rei da tribo era por meio de um ato de proporções heróicas.
Ele prosseguia a passos largos em direção ao mesmo objetivo que levara à morte muitos outros pretensos reis antes dele. E, nas sombras logo atrás dele, caminhando com a graciosa desenvoltura característica de sua raça, vinha Drizzt Do'Urden.
Sempre rumo leste, para a Geleira Reghed e um lugar chamado Vaporeterno.
Para o covil de Ingeloakastimizilian, o dragão branco que os bárbaros denominavam simplesmente "Morte Gélida".

Livro 3
Crishal-Tirith

O que Wulfgar vê quando olha para a tundra, quando seus olhos de um azul cristalino vagam pela planície escura até os pontos de luz que marcam as fogueiras do acampamento de seu povo?
Será que ele enxerga o passado, talvez, e anseia retornar àquele lugar e àqueles costumes? Será que enxerga o presente e compara o que aprendeu comigo e com Bruenor às duras lições da vida entre seus nômades companheiros de tribo?
Ou será que Wulfgar enxerga o futuro, o potencial para a mudança, a possibilidade de levar costumes novos e melhores a seu povo?
Um pouco dos três, acho eu. Desconfio que esse é o turbilhão dentro de Wulfgar, as chamas que fervilham por trás daqueles olhos azuis. Ele luta com tamanha paixão! Um pouco disso advém de sua criação entre os ferozes homens das tribos, dos jogos de guerra dos meninos bárbaros, geralmente sangrentos e às vezes fatais. Parte dessa paixão pela batalha brota do turbilhão interior de Wulfgar, da frustração que ele deve sentir ao comparar as lições que recebeu de mim e de Bruenor às que obteve durante os anos passados entre sua própria gente.
O povo de Wulfgar invadiu Dez-Burgos. Eles chegaram com fúria impiedosa, prontos para matar quem quer que se colocasse em seu caminho sem a menor consideração.
Como Wulfgar concilia essa verdade com o fato de que Bruenor Martelo de Batalha não o deixou morrer no campo, que o anão o poupou, embora ele houvesse tentado matar Bruenor em combate (apesar de o tolo rapaz cometer o erro de dar uma pancada na cabeça de Bruenor!)? Como Wulfgar concilia o amor que Bruenor tem lhe demonstrado com a idéia que antes fazia dos anões como inimigos detestáveis e impiedosos? Pois é assim que os bárbaros do Vale do Vento Gélido sem dúvida vêem os anões, uma mentira que perpetuam entre eles mesmos de modo a justificar o costume de empreender incursões assassinas. Não diferem muito das mentiras que os drow contam a si mesmos para justificar seu ódio por qualquer um que não seja drow.
Mas, agora, Wulfgar foi afrontado com a verdade de Bruenor e dos anões. Irrevogavelmente. Ele tem de ponderar essa revelação pessoal e compará-la a todas as "verdades" que aprendeu na infância. Precisa aceitar que aquilo que seus pais e todos os anciões da tribo lhe disseram eram mentiras. Sei, por experiência própria, que não é algo fácil de conciliar. Pois fazê-lo é admitir que uma boa parte de sua própria vida não passou de uma mentira, que uma boa parte daquilo que faz de você o que você é está errada. Reconheci os males de Menzoberranzan bem cedo porque seus ensinamentos iam tanto contra a lógica quanto contra o que eu trazia em meu coração. No entanto, muito embora essas iniqüidades fossem dolorosamente óbvias, não foram fáceis os primeiros passos que me levaram para longe de minha terra natal.
Os erros dos bárbaros do Vale do Vento Gélido são insignificantes se comparados aos dos drow e, portanto, temo que os passos que Wulfgar precisa dar para se afastar emocionalmente de seu povo sejam ainda mais difíceis. Há muito mais verdade nos costumes dos bárbaros, mais justificativas para suas ações - belicosos como são -, porém, recai sobre os ombros fortes, mas dolorosamente jovens de Wulfgar diferenciar entre os costumes de seu povo e os de seus novos amigos, adotar a compaixão e a aceitação acima das sólidas muralhas do preconceito que enclausuraram toda a sua juventude.
Não invejo a tarefa que ele tem. diante de si - a confusão e a frustração.
É bom que ele lute todos os dias. Rezo apenas para que, num acesso cego de fúria, enquanto externa essa frustração, meu companheiro de treinos não me arranque a cabeça dos ombros.

Drizzt Do'Urden

21
A Tumba de Gelo

Na base da grande geleira, escondido num pequeno vale no qual um dos contrafortes de gelo serpenteava por entre fendas e matacões fragmentados, ficava um lugar que os bárbaros denominavam Vaporeterno. Uma fonte termal alimentava um pequeno lago, e as águas aquecidas travavam uma batalha inexorável com as banquisas e as temperaturas enregelantes. Os nativos retidos no interior pelas primeiras neves, aqueles que não conseguiam encontrar o caminho para o mar seguindo o rebanho de renas, geralmente buscavam refúgio em Vaporeterno, pois, mesmo nos meses mais frios do inverno, podia-se encontrar ali água em estado líquido, essencial à vida. E os vapores quentes do lago tornavam suportáveis, ainda que desconfortáveis, as temperaturas da área próxima.
No entanto, o calor e a água potável constituíam apenas parte da riqueza de Vaporeterno. Sob a superfície opaca da água embaciada jazia uma fortuna em pedras preciosas, jóias, ouro e prata, a rivalizar com o tesouro de qualquer rei de toda aquela região do mundo. Todos os bárbaros conheciam a lenda do dragão branco, mas a maioria deles considerava-a apenas uma história fantasiosa recontada por velhos pretensiosos para a diversão das crianças. Pois o dragão não emergia de seu covil oculto havia muitos e muitos anos.
Wulfgar, porém, sabia que não se tratava de uma simples lenda. Quando jovem, seu pai havia acidentalmente topado com a entrada da caverna secreta. Mais tarde, quando ouviu a lenda do dragão, Beornegar compreendeu o valor potencial de sua descoberta e passou anos coletando todas as informações que conseguiu encontrar sobre os dragões, principalmente os brancos, e Ingeloakastimizilian em particular.
Beornegar morrera numa batalha entre as tribos antes que pudesse tentar conquistar o tesouro, mas, como vivesse numa terra em que a visita da morte era muito comum, ele previra essa sinistra possibilidade e dividira seu conhecimento com o filho. O segredo não morreu com ele.

Com um arremesso de Garra de Palas, Wulfgar abateu um gamo e carregou o animal pelos últimos quilômetros até Vaporeterno. Ele visitara o lugar duas vezes antes, mas mesmo assim, como sempre, a estranha beleza da paisagem tirou-lhe o fôlego. O ar acima do lago cobria-se de vapor, e pedaços de gelo flutuante deixavam-se levar pelas águas embaciadas como meândricos navios-fantasmas. Os imensos matacões que cercavam a área eram particularmente coloridos, com vários tons de vermelho e laranja, e encontravam-se encapsulados numa fina camada de gelo que capturava o calor do sol e refletia brilhantes explosões de cores cintilantes, em surpreendente contraste com o cinza enfadonho do turvo gelo glacial. Era um local silencioso, protegido do choro pesaroso do vento por paredões de gelo e rocha, livre de qualquer perturbação.
Depois da morte de Beornegar, Wulfgar jurou, como homenagem, empreender essa jornada e realizar o sonho de seu pai. Ele se aproximou reverentemente do lago e, embora questões mais urgentes o assombrassem, deteve-se para refletir um pouco. Guerreiros de todas as tribos da tundra tinham vindo a Vaporeterno com as mesmas esperanças. Nenhum deles jamais retornara.
O jovem bárbaro decidiu mudar essa situação. Firmou o queixo orgulhoso e pôs-se a esfolar o gamo. O primeiro obstáculo a sobrepujar era o próprio lago. Abaixo da superfície, as águas eram enganosamente cálidas e confortáveis, mas quem emergisse do lago no ar frio morreria congelado em questão de minutos.
Wulfgar tirou o couro do animal e começou a raspar a camada subjacente de gordura. Derreteu-a numa pequena fogueira até que atingisse a consistência de uma tinta espessa, depois besuntou o corpo todo. Inspirando profundamente para se acalmar e concentrar os pensamentos na tarefa imediata, ele apanhou Garra de Palas e entrou nas águas de Vaporeterno.
Sob o véu atenuante de névoa, as águas pareciam serenas, mas assim que se afastou das margens do lago, Wulfgar sentiu as fortes correntes voraginosas da fonte termal. Usando uma saliência de rocha protuberante como marco, ele se aproximou do centro exato do lago. Lá chegando, inspirou uma última vez e, confiante nas instruções de seu pai, deixou-se levar pelas correntes e afundar na água. Desceu por um instante, depois foi subitamente arrastado pela correnteza do riacho em direção à extremidade norte do lago. Mesmo sob a bruma, a água era nebulosa, o que obrigava Wulfgar a confiar cegamente que ele transporia o lago antes de lhe acabar o fôlego.
Ele já estava a uma pequena distância do paredão de gelo, na extremidade do lago, antes mesmo de vislumbrar o perigo. Preparou-se para a colisão, mas a corrente turbilhonou de repente e o mandou ainda mais para o fundo. A obscuridade tornou-se treva assim que ele entrou por uma abertura escondida sob o gelo, de largura apenas suficiente para que ele deslizasse por ela, apesar de o fluxo incessante do riacho não lhe oferecer outra escolha.
Seus pulmões gritavam por ar. Ele mordeu o lábio para evitar que a boca se abrisse numa explosão e o privasse dos últimos fiapos de oxigênio precioso.
Foi então que ele passou a um túnel mais largo, onde o nível da água foi baixando até chegar-lhe à garganta. Ofegante, ele respirou com sofreguidão, mas ainda era carregado, impotente, pela água impetuosa.
Um perigo ficara para trás.
Depois de muitas voltas e curvas, ouviu-se claramente o estrondo de uma queda d'água logo adiante. Wulfgar tentou diminuir sua velocidade, mas não conseguia encontrar no que se agarrar nem qualquer tipo de esteio, pois o chão e as paredes eram de gelo tornado liso por séculos de correnteza. O bárbaro agitou-se freneticamente e Garra de Palas voou de suas mãos quando ele tentou inutilmente enfiá-las no gelo sólido. Ele entrou numa caverna ampla e profunda e vislumbrou o vão livre diante dele.
Um pouco além do topo da cachoeira havia vários pingentes de gelo enormes que se estendiam desde o teto abobadado até abaixo da linha de visão de Wulfgar. Ele enxergou ali sua única chance. Quando se aproximou da beirada do vão, ele saltou e abraçou um pingente de gelo. Caiu rapidamente, pois o sincelo se afilava, mas logo viu que este se alargava novamente perto do chão, como se um segundo pingente tivesse crescido de baixo para cima para encontrar o primeiro.
A salvo por ora, ele percorreu com o olhar a estranha caverna, admirado. A queda d'água prendia-lhe a imaginação. O vapor elevava-se do precipício e acrescentava ao espetáculo um toque de surrealismo. O riacho escorria por sobre o vão e boa parte dele seguia seu caminho através de um pequeno precipício, que não passava de uma fenda no chão, dez metros abaixo da base da cachoeira. As gotículas que ultrapassavam o precipício, porém, solidificavam-se assim que se separavam do riacho e, ao atingirem o chão de gelo da caverna, quicavam em todas as direções. Ainda não completamente endurecidos, os cubos aderiam ao substrato onde pousavam e, por toda a base da cachoeira, encontravam-se pilhas estranhamente esculpidas de gelo fragmentado.
Garra de Palas atravessou o vão, ultrapassou facilmente o pequeno precipício e chocou-se contra uma daquelas esculturas, espalhando estilhaços de gelo. Embora tivesse os braços entorpecidos, depois de deslizar pelo sincelo, Wulfgar lançou-se rapidamente até o martelo, que já começava a aderir à pilha onde havia caído, e liberou-o do abraço petrificante do gelo.
Sob o piso cristalino, no ponto em que o martelo desbastara as camadas superiores, o bárbaro notou uma sombra escura. Examinou-a mais de perto, depois recuou diante da horrenda visão. Perfeitamente preservado, um de seus predecessores tinha aparentemente despencado queda abaixo e morrido ali mesmo onde caíra, no gelo cada vez mais profundo. Quantos outros, imaginou Wulfgar, haviam encontrado o mesmo destino?
Ele não tinha tempo para pensar um pouco mais na pergunta. Uma de suas outras preocupações havia se desfeito, pois boa parte do teto da caverna estava apenas alguns metros abaixo da superfície iluminada, e o sol abria caminho pelas partes que eram feitas de puro gelo. O menor fulgor proveniente do teto refletia-se milhares de vezes nos pisos e paredes vítreos, e a caverna inteira irrompia em explosões cintilantes de luz.
Wulfgar sentia vivamente o frio, mas a gordura derretida era proteção suficiente. Ele sobreviveria aos primeiros perigos daquela aventura.
Mas o espectro do dragão fazia-se sentir em algum lugar mais adiante.
Vários túneis espiralados partiam da câmara principal, esculpida pelo riacho nos dias de antanho, quando suas águas eram mais elevadas. No entanto, somente um deles era grande o bastante para um dragão. Wulfgar pensou em vasculhar primeiro os outros túneis para ver se conseguia encontrar um caminho menos óbvio até o covil. Mas o fulgor, as distorções de luz e os incontáveis sincelos, que pendiam do teto como os dentes de um predador, deixavam-no tonto, e ele sabia que, caso se perdesse ou desperdiçasse muito tempo, a noite o surpreenderia, privando-o da luz e fazendo a temperatura cair abaixo até mesmo de sua considerável tolerância.
Portanto, ele bateu Garra de Palas contra o chão para remover o gelo remanescente que aderira à arma e seguiu em frente pelo túnel que acreditava levar ao covil de Ingeloakastimizilian.

O dragão dormia profundamente ao lado de seu tesouro na maior câmara das cavernas de gelo, confiante, após tantos anos de solidão, que não seria perturbado. Ingeloakastimizilian, mais comumente conhecido como Morte Gélida, cometera o mesmo erro que muitos de sua espécie que tinham covis em cavernas de gelo semelhantes. O riacho impetuoso que oferecia entrada às cavernas, e também saída, minguara ao longo dos anos, deixando o dragão aprisionado numa tumba cristalina.
Morte Gélida já desfrutara seus anos caçando gamos e humanos. No pouco tempo em que estivera ativo, o monstro devastador e aterrorizante ganhara uma reputação respeitável. Os dragões, porém, principalmente os brancos, que raramente se mostram ativos em seus habitats gelados, podem viver muitos séculos sem carne. O amor egoísta por seus tesouros é capaz de sustentá-los indefinidamente, e a riqueza de Morte Gélida, apesar de pequena se comparada aos vastos montes de ouro colecionados pelos descomunais dragões vermelhos e azuis que viviam em áreas mais populosas, era a maior dentre todas as fortunas dos dragões da tundra.
Se tivesse realmente desejado a liberdade, o dragão provavelmente poderia ter atravessado o teto de gelo da caverna. Mas Morte Gélida considerava o risco grande demais, e, portanto, dormia, contando suas moedas e pedras preciosas em sonhos que os dragões julgavam agradáveis.
Entretanto, a serpente adormecida não percebera inteiramente como havia se descuidado. Em seu cochilo ininterrupto, Morte Gélida não se movia havia décadas. Uma fria manta de gelo tinha se esgueirado sobre a forma alongada e espessado-se aos poucos até que o único ponto livre fosse um buraco em frente às grandes narinas, onde as rajadas rítmicas das ruidosas exalações mantinham o gelo afastado.
E foi assim que Wulfgar, procurando cautelosamente a origem dos roncos retumbantes, encontrou o monstro.
Vendo o esplendor de Morte Gélida realçado pela manta de gelo cristalino, Wulfgar examinou o dragão com profundo assombro. Pilhas de ouro e pedras preciosas enchiam a caverna sob mantos semelhantes, mas Wulfgar não conseguia desviar os olhos. Jamais vira tamanha magnificência, tamanha força.
Confiante que o monstro se encontrava impotente e imobilizado, ele abaixou a cabeça do martelo e deixou a arma pender junto ao flanco.
- Saudações, Ingeloakastimizilian - chamou, usando respeitosamente o nome completo do monstro.
Os olhos azul-claros abriram-se num átimo e as chamas ardentes se fizeram imediatamente visíveis, mesmo sob o véu de gelo. Wulfgar hesitou diante daquele olhar penetrante.
Após o choque inicial, ele recuperou a confiança.
- Não tenha medo, poderosa serpente - disse ele com audácia. - Sou um guerreiro honrado e não vou matá-la sob circunstâncias tão injustas. - Ele sorriu obliquamente. - Só levarei seu tesouro e meu desejo será aplacado!
Mas o bárbaro cometera um erro crítico.
Um guerreiro mais experiente, até mesmo um cavaleiro honrado, teria relevado seu código cavalheiresco, aceitado a boa sorte como uma bênção e matado a serpente enquanto esta dormia. Poucos aventureiros, ou até mesmo grupos inteiros de aventureiros, haviam oferecido a um dragão maligno de qualquer cor uma oportunidade justa e sobrevivido para contar vantagem.
Até mesmo Morte Gélida, em meio ao choque inicial de sua situação, imaginara-se indefeso ao acordar e encarar o bárbaro. Os grandes músculos, atrofiados pela inatividade, não conseguiram resistir ao peso e à força da prisão de gelo. Mas, quando Wulfgar mencionou o tesouro, uma nova onda de energia afastou a letargia do dragão.
Morte Gélida encontrou forças na ira e, com uma explosão de energia até então inimaginável para o bárbaro, o dragão acionou os músculos torneados e fez grandes pedaços de gelo voar pelos ares. Todo o complexo de cavernas estremeceu violentamente, e Wulfgar, sobre o piso escorregadio, foi atirado de costas ao chão. Ele rolou para o lado no último segundo e esquivou-se da ponta lanceolada de um sincelo desalojado pelo tremor.
Wulfgar rapidamente colocou-se de pé, mas, ao se voltar, encontrou-se frente a frente com uma cabeça branca e ornada de chifres bem à altura de seus olhos. As grandes asas do dragão se desdobraram, livrando-se dos últimos restos de sua manta, e os olhos azuis cravaram-se em Wulfgar.
O bárbaro olhou desesperadamente ao redor, à procura de uma rota de fuga. Cogitou arremessar Garra de Palas, mas sabia que não conseguiria matar o monstro com um único golpe. E, inevitavelmente, o hálito mortal viria.
Morte Gélida avaliou o inimigo por um momento. Caso soprasse, teria de se contentar com carne congelada. Era um dragão, afinal de contas, uma terrível serpente, e acreditava - provavelmente com razão - que nenhum homem sozinho pudesse jamais derrotá-lo. Entretanto, aquele homem descomunal e o martelo mágico - pois o dragão sentia-lhe o poder - perturbavam a serpente. A cautela mantivera Morte Gélida vivo por muitos séculos. Ele não se meteria numa escaramuça com aquele homem.
O ar gelado acumulou-se em seus pulmões.
Wulfgar ouviu o ar sendo sugado e, num reflexo, atirou-se para um lado. Não conseguiu escapar totalmente da rajada que se seguiu, mas sobreviveu graças a sua agilidade, combinada à gordura de gamo. Caiu atrás de um bloco de gelo, com as pernas realmente queimadas pelo frio e os pulmões a doer. Ele precisava de alguns instantes para se recuperar, mas viu a cabeça branca que se erguia lentamente para remover o obstáculo insignificante com a mudança de ângulo.
O bárbaro não sobreviveria a uma segunda rajada.
De repente, um globo de escuridão envolveu a cabeça do dragão. Uma flecha de haste negra passou zunindo pelo bárbaro, seguida por outra ainda, e ouviu-se apenas quando ambas atingiram o alvo atrás da barreira de trevas.
- Ataque, rapaz! Agora! - gritou Drizzt Do'Urden desde a entrada da câmara. O disciplinado bárbaro obedeceu instintivamente a seu professor. Com um esgar de dor, ele contornou o bloco de gelo e aproximou-se da serpente que se debatia.
Morte Gélida balançava a imensa cabeça de um lado para o outro, tentando libertar-se do encanto do elfo negro. O ódio consumiu o monstro quando mais uma flecha lancinante atingiu seu alvo. O único desejo do dragão era matar. Mesmo cego, seus sentidos eram superiores; ele demarcou facilmente a direção do drow e soprou mais uma vez.
Mas Drizzt era bem versado na cultura dos dragões. Havia estimado perfeitamente a distância entre ele e Morte Gélida, e a força da geada mortal foi insuficiente.
O bárbaro investiu contra o flanco do dragão aturdido e, com toda a sua grande força, deu com Garra de Palas nas escamas brancas. O dragão encolheu-se de agonia. As escamas agüentaram o golpe, mas o dragão nunca havia sentido tamanha força num humano e não estava inclinado a testar a resistência de seu couro com um segundo ataque. Virou-se para liberar uma terceira rajada no bárbaro exposto.
Mas uma outra flecha atingiu o alvo.
Wulfgar viu uma grande porção de sangue de dragão salpicar o chão logo ao lado dele e observou o globo de escuridão afastar-se subitamente. O dragão rugiu de fúria. Garra de Palas golpeou novamente, e uma terceira vez. Uma das escamas rachou e caiu, e a visão da carne exposta renovou as esperanças de vitória de Wulfgar.
Mas Morte Gélida sobrevivera a muitas batalhas, e sua derrota ainda estava longe. O dragão sabia o quão vulnerável se encontrava face ao poderoso martelo e manteve suficiente concentração para retaliar. A longa cauda fez a volta por sobre as costas escamosas e esmurrou Wulfgar no exato momento em que o bárbaro iniciava mais um golpe. Em lugar da satisfação de sentir Garra de Palas esmigalhando a carne do dragão, Wulfgar viu-se atirado contra um monte congelado de moedas de ouro a meio metro de distância.
A caverna girou, seus olhos lacrimejantes realçavam os reflexos estrelados de luz e a consciência lhe fugia. Mas ele viu Drizzt, com as cimitarras desembainhadas, avançando audaciosamente em direção a Morte Gélida. Viu o dragão em posição, pronto para soprar novamente.
Viu, com clareza cristalina, o imenso sincelo que pendia do teto acima do dragão.
Drizzt seguiu em frente. Não tinha qualquer estratégia contra um adversário tão formidável; ele esperava encontrar um ponto fraco antes que o dragão o matasse. Pensou que Wulfgar estivesse fora de combate, provavelmente morto, depois da poderosa vergastada da cauda, e surpreendeu-se ao ver o súbito movimento num dos cantos.
Morte Gélida também percebeu o movimento do bárbaro e acionou a longa cauda para dar fim a qualquer outra ameaça a seu flanco.
Mas Wulfgar já lançara sua cartada. Com uma última explosão de força, ele se desgrudou da pilha e arremessou Garra de Palas bem alto.
A cauda do dragão atingiu o alvo e Wulfgar ficou sem saber se sua tentativa desesperada foi bem-sucedida. Pensou ver um ponto mais claro aparecer no teto antes de ser arremessado nas trevas.
Drizzt foi testemunha da vitória de ambos. Hipnotizado, o drow assistiu à silenciosa queda do imenso pingente de gelo.
Morte Gélida, insensível ao perigo devido ao globo de escuridão, e pensando que o martelo voara sem rumo, agitou as asas. As patas dianteiras, providas de garras, mal haviam começado a se erguer quando a lança de gelo colidiu contra as costas do dragão e o impeliu de volta ao chão.
Com a bola de escuridão fixa na cabeça do monstro, Drizzt não pôde ver a expressão agonizante do dragão.
Mas ele ouviu o "craque" fatal quando o pescoço, semelhante a um chicote, arremessado pela súbita reversão do impulso, bamboleou para cima e partiu-se.

22
Por Bravura ou Nascimento

O calor de uma pequena fogueira trouxe Wulfgar de volta à consciência. Ele voltou a si um pouco grogue e, a princípio, enquanto se livrava de uma manta que não recordava ter trazido, não conseguiu entender onde estava. Depois, reconheceu Morte Gélida, morto, a uma pequena distância dali, com o imenso pingente de gelo enraizado firmemente em suas costas. O globo de escuridão se dissipara, e Wulfgar admirou-se com a precisão dos disparos aproximados do drow. Uma flecha projetava-se do olho esquerdo do dragão e as hastes negras de outras duas saíam-lhe da boca.
Wulfgar estendeu o braço, em busca da segurança proporcionada pela presença familiar da empunhadura de Garra de Palas em sua mão. Mas o martelo não estava por perto. Lutando contra o penetrante entorpecimento em suas pernas, o bárbaro conseguiu ficar de pé e pôs-se a procurar freneticamente a arma. E onde, perguntou-se, estava o drow?
Foi então que ele ouviu as batidas que provinham de uma câmara adjacente. Mancando, ele contornou a cautelosamente a curva. Ali estava Drizzt, no topo de uma montanha de moedas, removendo-lhe a cobertura de gelo com o martelo de guerra de Wulfgar.
Drizzt percebeu a aproximação de Wulfgar e, como saudação, fez-lhe uma reverência.
- Bons olhos o vejam, Ruína do Dragão! - gritou ele.
- Você também, amigo elfo - respondeu Wulfgar, feliz em ver o drow novamente. - Você me seguiu por uma boa distância.
- Nem tanto - replicou Drizzt, arrancando mais um pedaço de gelo de cima do tesouro. - Dez-Burgos andava muito monótona e eu não poderia deixar você tomar a dianteira em nossa disputa! Dez e meio a dez e meio - declarou ele, com um sorriso largo -, e um dragão a ser dividido entre nós dois. Quero a metade!
- É sua e bem merecida - concordou Wulfgar. - E também metade do butim.
Drizzt revelou uma pequena bolsa que pendia de uma linda corrente de prata em seu pescoço.
- Ninharias - explicou. - Não preciso de riquezas e, de qualquer maneira, duvido que seria capaz de carregar muita coisa! Algumas ninharias já bastam.
Ele vasculhou a porção da pilha que acabara de livrar do gelo e descobriu o punho de uma espada, feito de adamantita negra, esculpido magistralmente à imagem da boca denteada de um felino predador e tendo por botão uma pedra preciosa. O intrincado acabamento seduziu Drizzt e, com dedos vacilantes, ele removeu de sob o ouro o restante da arma.
Uma cimitarra. A lâmina recurva era de prata, com fio de diamante. Drizzt ergueu-a diante dele, admirado com sua leveza e seu perfeito equilíbrio.
- Algumas ninharias... e isto - corrigiu-se.

Mesmo antes de seu encontro com o dragão, Wulfgar imaginava como escaparia das cavernas subterrâneas.
- A correnteza é muito forte e o topo da queda d'água é alto demais para voltarmos por Vaporeterno - disse ele a Drizzt, embora soubesse que o drow já teria inferido a mesma coisa. - Mesmo que conseguíssemos ultrapassar esses obstáculos, não tenho mais gordura de gamo para nos proteger do frio quando deixarmos a água.
- Eu tampouco desejo atravessar as águas de Vaporeterno novamente - Drizzt assegurou ao bárbaro. - No entanto, conto com minha considerável experiência na hora de me meter nessas situações e vim preparado! Daí a madeira para o fogo e a manta que coloquei sobre você, ambas envolvidas em pele de foca. E também isto.
Ele retirou do cinto um gancho de três pontas e alguns metros de corda leve e forte. Já havia encontrado uma rota de fuga.
Drizzt apontou um pequeno buraco no teto. O pingente de gelo desalojado por Garra de Palas levara parte do teto da câmara com ele.
- Nem sonho atirar o gancho tão alto, mas, para seus braços fortes, o arremesso deve ser um desafio insignificante.
- Em outros tempos, talvez - confiou Wulfgar. - Mas estou sem torças. - O bárbaro estivera mais perto da morte do que imaginara quando o sopro do dragão se abateu sobre ele e, exaurida agora a adrenalina do combate, sentia intensamente o frio penetrante. - Temo que minhas mãos insensíveis sequer conseguiriam segurar o gancho!
- Então corra! - berrou o drow. - Deixe seu corpo enregelado se aquecer.
Wulfgar começou imediatamente a correr pela câmara ampla, forçando o sangue a circular pelas pernas e dedos entorpecidos. Em pouco tempo, ele começou a sentir o calor interno do próprio corpo retornando.
Precisou de apenas dois arremessos para passar o gancho pelo buraco e prendê-lo no gelo. Drizzt foi o primeiro a subir, e era como se o elfo ágil corresse corda acima.
Wulfgar terminou o que tinha a fazer na caverna e recolheu um saco de riquezas e alguns outros objetos que sabia seriam necessários. Ele teve muito mais dificuldade em subir pela corda do que Drizzt, mas, com o drow a ajudá-lo lá de cima, conseguiu galgar o gelo antes que o sol poente afundasse no horizonte.
Eles acamparam ao lado de Vaporeterno, banqueteando-se com carne de caça e aproveitando o necessário e bem merecido descanso no conforto dos vapores que aqueciam a região.
Depois, partiram novamente antes do amanhecer, para o oeste. Correram lado a lado durante dois dias, igualando o ritmo frenético que os trouxera tão ao leste. Quando encontraram os rastros das tribos bárbaras que se congregavam, ambos compreenderam que havia chegado a hora da separação.
- Adeus, meu bom amigo - disse Wulfgar, abaixando-se para inspecionar os rastros. - Nunca esquecerei o que você fez por mim.
- Adeus, Wulfgar - respondeu Drizzt sombriamente. - Que seu poderoso martelo leve o terror a seus inimigos durante muitos anos ainda!
Ele partiu, apressado, sem olhar para trás, mas imaginava se veria mais uma vez seu imenso companheiro ainda com vida.

Wulfgar deixou de lado a urgência de sua missão para examinar suas emoções assim que avistou o grande acampamento das tribos reunidas. Cinco anos antes, carregando orgulhosamente o estandarte da Tribo do Alce, um Wulfgar bem mais jovem marchara para uma reunião semelhante, entoando a Canção de Tempus e partilhando o forte hidromel com homens que lutariam e talvez viessem a morrer a seu lado. Ele via a batalha de um outro modo então, como o teste glorioso de um guerreiro. "Selvageria inocente", murmurou, percebendo a contradição das palavras ao recordar sua ignorância naqueles dias, tanto tempo atrás. Mas suas percepções haviam sofrido uma metamorfose considerável. Bruenor e Drizzt, ganhando-lhe a amizade e ensinando-lhe as complexidades do mundo em que viviam, haviam individualizado as pessoas que ele anteriormente considerara meros inimigos e forçaram-no a encarar as brutais conseqüências de suas ações.
Uma bile amarga subiu à garganta de Wulfgar ao imaginar que as tribos lançariam mais um ataque contra Dez-Burgos. O que o repugnava ainda mais era o fato de seu orgulhoso povo marchar para a guerra ao lado de goblins e gigantes.
Ao se aproximar do perímetro, viu que em todo o acampamento não se encontrava Hengorot, o Recinto Cerimonial do Hidromel. Uma série de pequenas tendas, cada uma delas a ostentar os respectivos estandartes dos reis tribais, compreendia o centro do conclave, cercado pelas fogueiras bem visíveis dos soldados comuns. Examinando as bandeiras, Wulfgar notou que quase todas as tribos estavam presentes, mas suas forças combinadas chegavam a pouco mais da metade do conclave de cinco anos antes. As observações de Drizzt, de que os bárbaros não haviam ainda se recuperado do massacre nas encostas de Brin Shander, pareceram dolorosamente verdadeiras.
Dois guardas se apresentaram para receber Wulfgar. Ele não fizera qualquer tentativa de ocultar sua aproximação e, agora, colocava Garra de Palas a seus pés e erguia as mãos para mostrar que suas intenções eram honestas.
- Quem é você que chega desacompanhado e sem ser convidado ao conselho de Heafstaag? - perguntou um dos guardas. Ele avaliou o forasteiro, imensamente impressionado pela óbvia força de Wulfgar e pela pujante arma aos pés do jovem. - Sem dúvida não é nenhum mendigo, nobre guerreiro, mas não o conhecemos.
- Conhecem sim, Revjak, filho de Jorn, o Vermelho - respondeu Wulfgar, reconhecendo o homem como um companheiro de tribo. - Sou Wulfgar, filho de Beornegar, guerreiro da Tribo do Alce. Vocês me perderam cinco anos atrás, quando marchamos sobre Dez-Burgos - explicou, escolhendo cuidadosamente as frases para evitar o assunto da derrota. Os bárbaros não comentavam lembranças tão desagradáveis.
Revjak estudou o rapaz de perto. Ele havia sido amigo de Beornegar e lembrava-se do menino, Wulfgar. Contou os anos, comparando a idade do menino quando o vira pela última vez à idade aparente daquele rapaz. Logo se satisfez com o fato de a semelhança não ser mera coincidência.
- Bem vindo ao lar, jovem guerreiro! - disse afetuosamente. - Você se saiu bem!
- De fato - replicou Wulfgar. - Vi coisas notáveis e prodigiosas e aprendi muito. São muitas as histórias que tenho para contar, mas, na verdade, não tenho tempo para conversa fiada. Estou aqui para ver Heafstaag.
Revjak assentiu e imediatamente começou a mostrar a Wulfgar o caminho por entre as fogueiras enfileiradas.
- Heafstaag ficará feliz com seu retorno.
Baixinho demais para ser ouvido, Wulfgar respondeu:
- Nem tanto.

Uma multidão curiosa ajuntou-se em volta do magnífico guerreiro assim que ele se aproximou da tenda central do acampamento. Reyjak entrou para anunciá-lo ao rei e retornou imediatamente com a permissão de Heafstaag para Wulfgar entrar.
Wulfgar levou Garra de Palas ao ombro, mas não deu um passo sequer em direção à aba que Revjak mantinha aberta.
- O que tenho a falar deve ser dito publicamente e diante de todo o povo - disse ele, alto o bastante para Heafstaag ouvir. - Que Heafstaag venha até mim!
Murmúrios confusos brotaram a seu redor diante daquelas palavras de desafio, pois os rumores que vinham circulando entre a multidão não falavam de Wulfgar, filho de Beornegar, como um descendente das linhagens reais.
Heafstaag precipitou-se para fora da tenda. Aproximou-se do desafiante, com o peito estufado e o único olho bom a fitar Wulfgar com ferocidade. A multidão fez silêncio, esperando que o cruel rei matasse ali mesmo o jovem impertinente.
Mas Wulfgar retribuiu o perigoso olhar de Heafstaag e não recuou o mínimo que fosse.
- Eu sou Wulfgar - anunciou, orgulhoso -, filho de Beornegar, filho de Beorne antes dele; guerreiro da Tribo do Alce, que lutou na Batalha de Brin Shander; portador de Garra de Palas, o Inimigo dos Gigantes - ergueu o grande martelo diante dele -, amigo dos artífices anões e discípulo de um ranger de Gwaeron Windstrom; matador de gigantes e invasor de covis; assassino do líder dos gigantes do gelo, Sorrisão.
Ele se deteve um momento, com os olhos apertados pelo sorriso que se alargava, e aumentou a expectativa da proclamação seguinte. Satisfeito por ter toda a atenção da multidão, ele continuou:
- Eu sou Wulfgar, Ruína do Dragão!
Heafstaag retraiu-se. Nenhum homem vivo em toda a tundra havia reivindicado um título tão imponente.
- Solicito o Direito ao Desafio - grunhiu Wulfgar num tom baixo e ameaçador.
- Vou matar você - respondeu Heafstaag com toda a calma que foi capaz de reunir. Não tinha medo de homem algum, mas os ombros descomunais e os músculos torneados de Wulfgar sugeriam cautela. O rei não tinha a intenção de arriscar sua posição naquele momento, às vésperas de uma aparente vitória sobre os pescadores de Dez-Burgos. Se pudesse desacreditar o jovem guerreiro, o povo jamais permitiria o combate. Forçariam Wulfgar a desistir de sua reivindicação, ou matariam-no imediatamente. - Que herança lhe dá o direito de fazer essa solicitação?
- Você pretende liderar nosso povo sob as ordens de um mago - retorquiu Wulfgar. Ouviu atentamente às vozes na multidão, procurando avaliar se aprovavam ou não sua acusação. - Você pretende fazê-los levantar armas em causa comum com um bando de goblins e ores!
Ninguém ousou protestar em voz alta, mas Wulfgar sentia que a batalha iminente secretamente enfurecia muitos outros guerreiros. Isso explicaria também a ausência do Recinto do Hidromel, pois Heafstaag era inteligente o bastante para perceber que a fúria poderia facilmente explodir em meio às grandes emoções da celebração.
Revjak se interpôs antes que Heafstaag conseguisse responder, fosse com palavras ou armas.
- Filho de Beornegar - disse Revjak com firmeza -, você até agora não conquistou o direito de questionar as ordens do rei. Você declarou um desafio público; as regras da tradição exigem que justifique, por bravura ou nascimento, seu direito a um embate como esse.
A emoção revelava-se nas palavras de Revjak, e Wulfgar compreendeu imediatamente que o velho amigo de seu pai havia interferido para evitar o início de um combate não reconhecido e, portanto, não oficial. O homem mais velho obviamente acreditava que aquele jovem magnífico pudesse atender às exigências. E Wulfgar também sentiu que Revjak - e muitos outros, talvez - esperava que o desafio fosse completado com sucesso.
Wulfgar aprumou os ombros e, confiante, sorriu para o oponente, ganhando forças com mais uma prova de que seu povo seguia a direção ignóbil de Heafstaag simplesmente por estar obrigado ao rei caolho e não conseguir apresentar nenhum desafiante adequado para derrotá-lo.
- Por bravura - disse ele tranqüilamente.
Sem jamais tirar os olhos de Heafstaag, Wulfgar desamarrou a manta enrolada que trazia às costas e exibiu dois objetos parecidos com lanças. Atirou-os casualmente ao chão diante do Rei. Aqueles na multidão que puderam ver claramente o espetáculo boquiabriram-se todos ao mesmo tempo, e até o inabalável Heafstaag empalideceu e deu um passo vacilante para trás.
- O desafio não pode ser recusado! - gritou Revjak. Eram os chifres de Morte Gélida.

O suor frio no rosto de Heafstaag revelava sua tensão enquanto polia com um pedaço de camurça as últimas rebarbas da cabeça de seu imenso machado.
- Ruína do Dragão! - bufou, pouco convincente, para o porta-estandarte que acabara de entrar na tenda. - É mais provável que ele tenha tropeçado numa serpente adormecida!
- Perdão, poderoso rei - disse o rapaz. - Revjak enviou-me para lhe dizer que chegou a hora aprazada.
- Ótimo! - zombou Heafstaag, correndo o polegar pelo fio brilhante do machado. - Vou ensinar o filho de Beornegar a respeitar seu rei!
Os guerreiros da Tribo do Alce formaram um círculo em volta dos combatentes. Embora fosse um acontecimento particular para o povo de Heafstaag, as outras tribos assistiam com interesse a uma distância respeitável. O vencedor não teria qualquer autoridade formal sobre elas, mas seria o rei da tribo mais poderosa e dominante da tundra.
Revjak adentrou o círculo e movimentou-se entre os dois oponentes.
- Anuncio Heafstaag - gritou. - Rei da Tribo do Alce! - E ele continuou a recitar a longa lista de feitos heróicos do rei caolho.
A confiança de Heafstaag pareceu retornar durante a declamação, embora estivesse um pouco confuso e furioso com Revjak, que escolhera anunciá-lo primeiro. Levou as mãos aos amplos quadris, fitou ameaçadoramente cada um dos espectadores mais próximos e sorria quando estes recuavam. Fez o mesmo com seu oponente, mas novamente sua tática intimidativa falhou com Wulfgar.
- E eu anuncio Wulfgar - continuou Revjak -, filho de Beornegar e contestador do trono da Tribo do Alce! - É claro que a declamação da lista de Wulfgar levou bem menos tempo. Mas o último feito anunciado por Revjak trouxe um certo grau de paridade aos dois.
- Ruína do Dragão! - gritou Revjak, e a multidão, até então em respeitoso silêncio, pôs-se a narrar nervosamente os numerosos rumores que haviam surgido sobre o confronto em que Wulfgar matara Morte Gélida.
Revjak olhou para os dois combatentes e deixou o círculo.
O momento de honra chegara.
Com passos cautelosos, os dois circularam pela arena de combate, medindo-se, em busca de sinais de fraqueza. Wulfgar notou a impaciência no rosto de Heafstaag, um defeito comum entre os guerreiros bárbaros. Ele não teria sido muito diferente, não fossem as rudes lições de Drizzt Do'Urden. Mil incisões humilhantes das cimitarras do drow haviam ensinado a Wulfgar que o primeiro golpe não era tão importante quanto o último.
Por fim, Heafstaag bufou e avançou com um brado. Wulfgar também grunhiu alto e movimentou-se como se fosse receber de frente a investida. Mas, então, deu um passo para o lado no último instante, e Heafstaag, arrastado pelo impulso de sua pesada arma, passou pelo adversário aos trambolhões e chocou-se contra a primeira fileira de espectadores.
O rei caolho recuperou-se rapidamente e investiu mais uma vez, duas vezes mais enfurecido, ou assim acreditava Wulfgar. Heafstaag havia sido rei durante muitos anos e lutara em incontáveis batalhas. Se não tivesse aprendido a ajustar sua técnica de combate, já teria sido morto havia muito. Ele voltou a atacar Wulfgar, aparentemente mais fora de controle do que da primeira vez. Mas, ao sair do caminho, Wulfgar encontrou o grande machado de Heafstaag esperando por ele. O rei caolho, antecipando a esquiva, brandiu a arma de lado e abriu o braço de Wulfgar do ombro ao cotovelo.
Wulfgar reagiu rapidamente, desferindo uma estocada defensiva com Garra de Palas para desencorajar ataques subseqüentes. O golpe saiu sem força, mas a mira foi certeira e o poderoso martelo impeliu Heafstaag um passo para trás. Wulfgar aproveitou para examinar o sangue em seu braço.
Ele poderia continuar a lutar.
- Você se defende bem - resmungou Heafstaag ao colocar-se em posição a alguns passos apenas do desafiante. - Teria servido bem a nosso povo como soldado. Que desperdício eu ter de matar você!
Mais uma vez, o machado traçou seu arco, fazendo chover um golpe depois do outro num furioso assalto com a intenção de terminar a luta rapidamente.
Mas, comparado às espadas sibilantes de Drizzt Do'Urden, o machado de Heafstaag parecia se mover preguiçosamente. Wulfgar não teve dificuldade para aparar os ataques, chegando a responder, vez ou outra, com uma estocada calculada que se chocava com um ruído surdo contra o peito largo de Heafstaag.
As faces do rei caolho avermelharam-se de frustração e cansaço.
- Um oponente cansado geralmente ataca com toda a força de uma vez só - Drizzt explicara a Wulfgar, durante as semanas de treinamento. - Mas raramente move-se na direção óbvia, na direção que ele pensa que você pensa que ele está se movendo!
Wulfgar esperou atentamente pela finta anunciada.
Conformado por não conseguir atravessar a guarda eficaz do oponente mais jovem e mais rápido, o rei, coberto de suor, ergueu o machado sobre a cabeça e arremeteu, urrando como um louco para dar ênfase ao ataque.
Mas os reflexos de Wulfgar estavam afiados ao máximo, e a ênfase excessiva que Heafstaag colocara no ataque dizia-lhe para esperar uma mudança de direção. Ele ergueu Garra de Palas, como que para bloquear o golpe dissimulado, mas reverteu a empunhadura no exato momento em que o machado caia do ombro de Heafstaag e entrava enganosamente baixo, com um golpe oblíquo.
Confiando inteiramente em sua arma de fabricação anã, Wulfgar deslocou para trás o pé dianteiro, virando-se para encontrar a lâmina que se aproximava com um golpe de ângulo semelhante.
As cabeças das duas armas chocaram-se com força inacreditável. O machado de Heafstaag estilhaçou-se em suas mãos e as violentas vibrações lançaram-no por terra.
Garra de Palas estava intacto. Wulfgar poderia facilmente ter vencido a luta e dado cabo de Heafstaag com um único golpe.
Revjak cerrou o punho de expectativa pela vitória iminente de Wulfgar.
- Jamais confunda honra com estupidez! - Drizzt repreendera Wulfgar, depois da perigosa inação do bárbaro em relação ao dragão.
Mas, com aquele combate, Wulfgar queria mais do que simplesmente ganhar a liderança de sua tribo; ele queria deixar uma impressão duradoura em todas as testemunhas. Ele largou Garra de Palas e aproximou-se de Heafstaag em pé de igualdade.
O rei bárbaro não questionou sua boa sorte. Saltou sobre Wulfgar e envolveu o rapaz com seus braços numa tentativa de lançá-lo de costas ao chão.
Wulfgar debruçou-se para receber o ataque, plantou firmemente as pernas fortes no chão e deteve o homem mais pesado.
Atracaram-se com ferocidade e trocaram golpes duros antes de conseguirem se engalfinhar e tornar os socos ineficazes. Os olhos de ambos os combatentes estavam lívidos e inchados, o sangue escorria de arranhões e cortes no rosto e no peito de ambos.
Contudo, Heafstaag era o mais cansado. Seu peito largo arquejava a cada árdua exalação. Ele abraçou a cintura de Wulfgar e tentou mais uma vez torcer o corpo de seu implacável oponente para lançá-lo ao chão.
Foi então que os longos dedos de Wulfgar fecharam-se sobre as têmporas de Heafstaag. Os nós dos dedos do rapaz empalideceram, os músculos descomunais dos antebraços e dos ombros se enrijeceram. Ele começou a apertar.
Heafstaag compreendeu imediatamente que estava em dificuldades, pois o abraço de Wulfgar era mais forte que o de um urso. O rei debateu-se freneticamente e seus punhos enormes esmurraram as costelas expostas do oponente, esperando apenas quebrar a concentração mortal de Wulfgar.
Dessa vez, foi uma das lições de Bruenor que o incitou a continuar:
- Lembra da doninha, garoto. Tome os golpes mais fracos, mas nunca, nunca deixe eles escaparem quando 'cê estiver em cima deles!
Os músculos do ombro e do pescoço projetaram-se quando ele forçou o rei caolho a se ajoelhar.
Aterrorizado com a força do abraço, Heafstaag agarrava e puxava os antebraços de ferro do rapaz, tentando inutilmente aliviar a pressão cada vez maior.
Wulfgar percebeu que estava prestes a matar alguém de sua própria tribo.
- Renda-se! - ele gritou para Heafstaag, à procura de uma alternativa mais aceitável.
O orgulhoso rei respondeu com um derradeiro soco.
Wulfgar voltou os olhos para o céu.
- Não sou como ele! - urrou desamparadamente, justificando-se a quem quisesse ouvir. Mas restava apenas um caminho agora.
Os ombros descomunais do jovem bárbaro avermelharam-se com o sangue que a eles afluiu. Ele viu o terror no olhar de Heafstaag transformar-se em incompreensão. Ouviu o estalar dos ossos, sentiu o crânio esmigalhando-se sob suas poderosas mãos.
Revjak deveria ter adentrado o círculo e anunciado o novo Rei da Tribo do Alce.
Mas, como as outras testemunhas a seu redor, ele estava imóvel, boquiaberto, e nem mesmo piscava.

Auxiliado pelas rajadas de vento frio em suas costas, Drizzt percorreu a toda a pressa as últimas milhas até Dez-Burgos. Na mesma noite em que ele havia se separado de Wulfgar, o topo coberto de neve do Sepulcro de Kelvin apareceu no horizonte. A visão de seu lar estimulou o drow a prosseguir ainda mais rápido, mas uma sensação incômoda dizia-lhe que algo estava errado.
O olho humano jamais o teria percebido, mas a aguçada visão noturna do drow enfim o divisou: um pilar crescente de escuridão a obscurecer as estrelas mais baixas do horizonte, ao sul da montanha. E uma segunda coluna um pouco menor, ao sul da primeira.
Drizzt estacou. Estreitou os olhos para se certificar de sua suposição. Em seguida, ele se pôs a caminho novamente, mas devagar, para ganhar tempo e escolher uma rota alternativa.
Caer-Konig e Caer-Dineval estavam em chamas.

23
Sitiados

A frota de Caer-Dineval corricava as águas mais ao sul do Lac Dinneshir, aproveitando as áreas desocupadas depois da fuga do povo de Angraleste para Brin Shander.
As embarcações de Caer-Konig pescavam em águas conhecidas, perto das margens setentrionais do lago. Foram as primeiras a avistar a destruição iminente.
Como um furioso enxame de abelhas, o hediondo exército de Kessell contornou velozmente a curva setentrional do Lac Dinneshir e, aos brados, desceu o Desfiladeiro do Vento Gélido.
- Levantar âncora! - gritaram Schermont e muitos outros capitães assim que se recuperaram do choque inicial. Mas já sabiam que não retornariam a tempo.
A vanguarda do exército de goblins atacou Caer-Konig violentamente.
Os homens nos barcos viram as chamas se elevarem quando as casas foram incendiadas. Ouviram os apupos sanguinários dos desprezíveis invasores.
Ouviram os gritos agonizantes de sua gente.
As mulheres, as crianças e os velhos em Caer-Konig nem pensaram em resistir. Correram. Por suas vidas, eles correram. E os goblins deram-lhes caça e os mataram.
Gigantes e ogros precipitaram-se para as docas e esmagaram os miseráveis humanos que acenavam desamparadamente para a frota de retorno, ou levaram-nos à morte gélida nas águas do lago.
Os gigantes carregavam sacos imensos e, à medida que os corajosos pescadores chegavam precipitadamente ao porto, as naus eram golpeadas e danificadas pelos calhaus arremessados.
Os goblins continuavam a entrar em grande número na cidade condenada, mas o grosso da linha de retaguarda do vasto exército passou por ela e seguiu em direção à segunda cidade, Caer-Dineval. A essa altura, as pessoas em Caer-Dineval já tinham avistado a fumaça e ouvido os gritos e fugiam à toda pressa para Brin Shander, ou então estavam nas docas, implorando aos marinheiros que voltassem para casa.
Mas a frota de Caer-Dineval, mesmo impelida pela força do vento leste em sua pressa de atravessar novamente o lago, tinha milhas e milhas de água diante dela. Os pescadores viram as colunas de fumaça se erguerem sobre Caer-Konig e muitos, desconfiando do que acontecia, entenderam que seu ímpeto, mesmo com as velas tão enfunadas, seria em vão. Ainda assim, ouviram-se gemidos de choque e incredulidade em cada convés quando a nuvem negra deu início a sua agourenta escalada desde os setores mais setentrionais de Caer-Dineval.
Foi então que Schermont tomou uma decisão nobre. Aceitando a condenação da própria cidade, ele ofereceu ajuda aos vizinhos.
- Não podemos entrar! - ele gritou ao capitão de uma embarcação próxima. - Passe adiante: vamos para o sul! As docas de Dineval ainda estão livres!

De um parapeito na muralha de Brin Shander, Régis, Cássio, Agorwal e Glensather assistiram, horrorizados, à investida do perverso contingente pelo trecho de planície entre eles e as duas cidades saqueadas. Os inimigos avançavam sobre a população que fugia de Caer-Dineval.
- Abra os portões, Cássio! - gritou Agorwal. - Precisamos ir até eles! Não terão a menor chance de chegar à cidade a menos que retardemos a perseguição!
- Não - respondeu Cássio, melancólico, dolorosamente ciente de suas responsabilidades ainda maiores. - Preciso de cada homem para defender a cidade. Expor-se na planície aberta com uma desvantagem numérica tão esmagadora seria inútil. As vilas às margens do Lac Dinneshir estão condenadas!
- Estão indefesos! - devolveu Agorwal. - Que espécie de homens somos nós se não somos capazes de defender nossa gente? Que direito temos de assistir a tudo detrás desta muralha enquanto nosso povo é chacinado?
Cássio chacoalhou a cabeça, firme em sua decisão de proteger Brin Shander.
Mas, então, outros refugiados vieram correndo pela segunda passagem, a Via de Bremen, fugindo, histéricos, da desprotegida vila de Termalaine assim que viram as cidades do outro lado incendiadas. Mais de mil refugiados estavam agora ao alcance da visão desde Brin Shander. Estimando a velocidade deles e a distância restante, Cássio calculou que convergiriam no vasto campo logo abaixo dos portões setentrionais da cidade principal. Onde os goblins os pegariam.
- Vá - disse ele a Agorwal.
Brin Shander não podia se dar ao luxo de perder tantos homens, mas o campo logo ficaria rubro com o sangue de mulheres e crianças.
Agorwal desceu com seus valorosos homens a estrada nordeste, em busca de uma posição defensável onde pudessem se entrincheirar. Escolheram uma pequena serrania - na verdade, mais uma crista - onde a estrada submergia ligeiramente. Entrincheirados e prontos para lutar e morrer, eles esperaram até os últimos refugiados passarem, aterrorizados, aos gritos, pois acreditavam não ter qualquer chance de alcançar a segurança da cidade antes que os goblins se abatessem sobre eles.
Sentindo o cheiro de sangue humano, os mais rápidos dentre o exército invasor estavam logo atrás dos retardatários, mães em sua maioria, que apertavam os filhos pequenos contra o peito. Concentrados nas vítimas fáceis, os monstros da vanguarda não se deram conta do destacamento de Agorwal até os guerreiros de tocaia já estarem sobre eles.
Mas, então, era tarde demais.
Os corajosos homens de Termalaine surpreenderam os goblins num fogo cruzado de flechas e depois seguiram Agorwal num feroz assalto de espadas. Lutaram sem medo, como homens que haviam aceitado o que o destino lhes reservara. Dezenas de monstros jaziam mortos e mais deles caíam a cada minuto à medida que os guerreiros furiosos forçavam entrada em suas fileiras.
Mas a formação parecia interminável. A cada goblin que caía, dois vinham substituí-lo. Os homens de Termalaine logo foram tragados por um mar de goblins.
Agorwal alcançou um ponto elevado e olhou para trás, em direção à cidade. As mulheres em fuga estavam a uma boa distância do outro lado do campo, mas moviam-se devagar. Se rompessem as fileiras inimigas e fugissem, seus homens alcançariam os refugiados antes das encostas de Brin Shander. E os monstros estariam logo atrás deles.
- Temos de sair e apoiar Agorwal! - berrou Glensather para Cássio. Mas, dessa vez, o representante de Brin Shander permaneceu firme.
- Agorwal cumpriu sua missão - respondeu Cássio. - Os refugiados chegarão à muralha. Não enviarei mais homens para a morte! Mesmo que a força combinada de toda a Dez-Burgos estivesse no campo, não seria capaz de derrotar o inimigo diante de nós.
O sagaz representante já compreendera que não poderiam lutar com Kessell em pé de igualdade.
O benevolente Glensather pareceu abatido.
- Leve alguns soldados colina abaixo - cedeu Cássio. - Ajudem os refugiados exaustos na última escalada.
Os homens de Agorwal estavam agora em sérias dificuldades. O representante de Termalaine olhou para trás novamente e tranqüilizou-se; as mulheres e as crianças estavam em segurança. Correu os olhos pela alta muralha, ciente de que Régis, Cássio e os outros podiam vê-lo, uma figura solitária na pequena elevação, muito embora ele não conseguisse divisá-los entre a multidão de espectadores que se enfileirava nos parapeitos de Brin Shander.
Mais goblins despejaram-se na batalha, agora acompanhados de ogros e verbeeg. Agorwal saudou os amigos na cidade. Seu sorriso de satisfação era sincero quando girou nos calcanhares e voltou a arremeter ladeira abaixo para se unir a seus vitoriosos soldados em seu momento de maior glória.
Então, Régis e Cássio assistiram à maré negra derrubar todos os bravos homens de Termalaine.
Abaixo deles, os pesados portões se fecharam com estrondo. Os últimos refugiados haviam entrado.

Apesar de os homens de Agorwal conquistarem uma vitória de honra, a única força a ter realmente combatido o exército de Kessell naquele dia, e sobrevivido, foi a dos anões. O clã do Salão de Mitral passara dias em diligente preparação para aquela invasão, mas quase a perdeu. Mantidos pela vontade tirânica do mago numa disciplina nunca vista entre os goblins, principalmente entre tribos rivais e variadas, o exército de Kessell tinha planos bem definidos e diretos a seguir no assalto inicial. Até ali, os anões não estavam incluídos.
Mas os rapazes de Bruenor tinham outros planos. Eles não se enterrariam em suas minas sem ao menos aproveitar a oportunidade de arrancar algumas cabeças de goblins ou esmigalhar os joelhos de um ou dois gigantes.
Vários guerreiros do povo de longas barbas subiram ao cume mais ao sul do vale. Quando a retaguarda do exército maligno passou, os anões começaram a provocar os monstros, gritando desafios e xingando suas mães. Os insultos nem mesmo eram necessários. Os ores e os goblins desprezam os anões mais do que qualquer outra coisa viva, e o plano eficiente de Kessell evaporou-se de suas mentes à mera visão de Bruenor e sua gente. Sempre ávidos pelo sangue dos anões, um contingente considerável separou-se do exército principal.
Os anões deixaram que eles se aproximassem, espicaçando-os com provocações até que os monstros estivessem praticamente sobre eles. Depois, Bruenor e os seus pularam da saliência rochosa e escorregaram pela vertente íngreme.
- Venham brincar, canalhas estúpidos.
Bruenor riu maliciosamente ao desaparecer de vista. Tirou das costas uma corda. Ele tinha bolado um truquezinho que estava ansioso para experimentar.
Os goblins arremeteram vale adentro, com uma vantagem numérica de quatro para um. E tinham como apoio cerca de vinte ogros furiosos.
Os monstros não tiveram a menor chance.
Os anões continuaram a incitá-los por todo o declive da parte mais íngreme do vale até as saliências estreitas e inclinadas na face do penhasco que passavam em frente às numerosas entradas para as cavernas dos anões. Um lugar óbvio para uma emboscada, mas os goblins estúpidos, enfurecidos diante da visão de seus mais odiados inimigos, avançaram de qualquer maneira, indiferentes ao perigo.
Quando a maioria dos monstros já se encontrava nas saliências e o resto ainda começava a descer até o vale, a primeira armadilha foi acionada. Cattiebrie, armada até os dentes, mas posicionada no fundo dos túneis mais internos, puxou uma alavanca e derrubou uma coluna na crista superior do vale. Toneladas de pedra e cascalho tombaram sobre a retaguarda da formação dos monstros, e aqueles que conseguiram manter o equilíbrio, ainda que precário, e escapar ao impacto da avalanche encontraram as trilhas atrás deles enterradas e bloqueadas, impedindo-lhes a fuga.
As bestas zuniram desde recessos ocultos, e um grupo de anões saiu correndo para receber os goblins da vanguarda.
Bruenor não estava entre eles. Ele havia se escondido mais atrás na trilha e observou os goblins, concentrados no desafio à frente, passarem por ele. Poderia ter atacado naquele momento, mas estava atrás de caça maior e esperou até que os ogros estivessem ao alcance. A corda já havia sido cuidadosamente medida e amarrada. Ele passou uma das pontas em forma de laço em torno da cintura e a outra foi jogada sobre uma rocha. Em seguida, ele tirou do cinto as duas machadinhas.
Era uma manobra arriscada, talvez a mais perigosa que o anão já tentara, mas a pura emoção da coisa tornou-se óbvia na forma de um largo sorriso estampado na cara de Bruenor ao perceber a aproximação dos desajeitados ogros. Mal pôde conter o riso quando duas das criaturas passaram por ele na trilha estreita.
Saltando de seu esconderijo, Bruenor investiu contra os ogros surpreendidos e atirou as machadinhas em suas cabeças. Os ogros desviaram-se e conseguiram aparar os fracos arremessos, mas as armas não passavam de uma distração.
O corpo de Bruenor era a verdadeira arma naquele ataque.
Surpreendidos, esquivando-se das machadinhas, os dois ogros perderam o equilíbrio. O plano se desenrolava com perfeição; os ogros mal sabiam o que fazer com os pés. Contraindo os poderosos músculos de suas pernas atarracadas Bruenor lançou-se no ar e colidiu com o monstro mais próximo. A criatura caiu junto com ele sobre o outro ogro.
E despencaram da saliência, todos os três.
Um dos ogros conseguiu agarrar com a mão descomunal o rosto do anão, mas Bruenor prontamente mordeu-a, e o monstro recuou. Por um breve momento, eles formaram um emaranhado em queda de pernas e braços agitados, mas então a corda de Bruenor esticou-se e os separou.
- Um pouso tranqüilo pra vocês, garotos - gritou Bruenor, ao escapar da queda. - Dêem um grande beijo nas pedras por mim!
O movimento em pêndulo da corda largou Bruenor na entrada de um poço de mina na saliência imediatamente mais baixa enquanto suas vítimas impotentes caíam para morrer. Vários goblins em formação atrás dos ogros assistiram ao espetáculo em total estupefação. Em seguida, viram a oportunidade de usar a corda pendurada como atalho para uma das cavernas e, um a um, treparam na corda e começaram a descer.
Mas Bruenor também antecipara aquilo. Os goblins não entenderam por que a corda parecia tão escorregadia em suas mãos.
Quando Bruenor apareceu na saliência inferior, com a ponta da corda numa das mãos e uma tocha acesa na outra, eles entenderam.
As chamas lamberam o cordão azeitado. O goblin no topo da corda conseguiu galgar de volta a saliência, mas o resto seguiu o mesmo caminho que os pobres ogros. Um deles quase escapou à queda fatal, aterrissando pesadamente na saliência inferior. No entanto, antes que ele conseguisse recuperar o equilíbrio, Bruenor o fez despencar com um pontapé.
O anão, admirado, aprovou com um aceno de cabeça o sucesso da manobra. Era um truque que ele tinha a intenção de lembrar. Batendo as mãos uma na outra, ele desceu rapidamente pelo poço que, um pouco mais atrás, subia até se juntar aos túneis superiores.
Na saliência de cima, os anões lutavam numa ação de retirada. O plano não era travar um conflito mortal do lado de fora, mas atrair os monstros para as aberturas dos túneis. Com o desejo de matar obscurecendo-lhes toda e qualquer razão, os obtusos invasores prontamente aquiesceram, presumindo que sua vantagem numérica estivesse encurralando os anões.
O entrechoque de espadas logo se fez ouvir em vários túneis. Os anões continuaram a recuar, conduzindo os monstros à derradeira armadilha. Então, de algum lugar no fundo das cavernas, uma corneta soou. No momento exato os anões desvencilharam-se da escaramuça e fugiram pelos túneis.
Os goblins e os ogros, pensando haver desbaratado os inimigos, detiveram-se apenas para berrar gritos de vitória, depois lançaram-se atrás dos anões como uma onda.
Mas, bem lá no fundo dos túneis, várias alavancas foram puxadas. A armadilha final foi acionada e todas as entradas dos túneis simplesmente desabaram. O chão estremeceu violentamente sob o peso do deslizamento e toda a face do penhasco veio abaixo.
Os únicos monstros a sobreviver foram os que estavam exatamente nas linhas de vanguarda. E, desorientados, castigados pela força do deslizamento e atordoados pela rajada de pó, eles foram imediatamente abatidos pelos anões de tocaia.
A espantosa avalanche fez estremecer até mesmo as pessoas em Brin Shander, distantes como estavam. Acorreram à muralha norte para assistir, consternadas, à ascensão da nuvem de poeira, pois acreditavam que os anões haviam sido dizimados.
Régis sabia que não. O halfling invejou os anões, sepultados em segurança em seus extensos túneis. Ele se dera conta, no momento em que vira as chamas se elevarem de Caer-Konig, que sua demora na cidade, à espera do amigo de Bosquesó, custara-lhe a oportunidade de escapar.
Agora, ele assistia, impotente e sem esperança, ao avanço daquela massa negra em direção a Brin Shander.

As frotas no Maer Dualdon e no Marerrubra retornaram aos portos de origem assim que perceberam o que estava acontecendo. Encontraram suas famílias momentaneamente em segurança, exceto os pescadores de Termalaine, que velejaram de volta a uma cidade abandonada. Tudo o que os homens de Termalaine podiam fazer, enquanto relutantemente voltavam ao lago, era esperar que os seus tivessem conseguido chegar a Brin Shander ou a algum outro refúgio, pois viram o flanco setentrional do exército de Kessell enxameando pelo campo em direção a sua cidade condenada.
Targos, a segunda maior cidade e a única outra, além de Brin Shander, com alguma esperança de resistir algum tempo ao vasto exército, estendeu o convite às embarcações de Termalaine para atracar em suas docas. E os homens de Termalaine, que logo estariam entre os desabrigados, aceitaram a hospitalidade de seus encarniçados inimigos do sul. Suas disputas com o povo de Targos pareciam realmente insignificantes em comparação ao desastre que se abatera sobre as vilas.

Na batalha principal, os generais goblins que lideravam o exército de Kessell acreditavam poder invadir Brin Shander antes do anoitecer. Eles obedeceram ao plano de seu líder ao pé da letra. O corpo principal do exército desviou-se para longe de Brin Shander e desceu pelo trecho de terreno aberto entre a cidade principal e Targos, acabando, assim, com qualquer possibilidade de as duas poderosas cidades unirem suas forças.
Várias tribos de goblins haviam se separado do grupo principal e lançado-se sobre Termalaine, com a intenção de saquear a terceira cidade do dia. Mas, encontrando deserto o lugar, abstiveram-se de queimar as casas. Parte do exército de Kessell agora tinha um acampamento pronto, onde poderia aguardar pelo cerco iminente com todo o conforto.
Como dois grandes braços, milhares de monstros correram para o sul da força principal. Tão vasto era o exército de Kessell que este preenchia os muitos quilômetros do campo entre Brin Shander e Termalaine e ainda havia gente suficiente para cercar a colina da cidade principal com densas fileiras de soldados.
Tudo acontecera tão rápido que, quando os goblins finalmente interromperam sua investida frenética, a mudança pareceu demasiadamente dramática. Depois de alguns minutos de calma, o suficiente para recuperar o fôlego, Régis sentiu a tensão aumentar novamente.
- Por que eles não acabam logo com isto? - ele perguntou aos dois representantes a seu lado.
Cássio e Glensather, mais instruídos nas tradições da guerra, compreenderam exatamente o que estava acontecendo.
- Eles não têm pressa, amiguinho - explicou Cássio. - Têm o tempo como aliado.
Foi então que Régis compreendeu. Durante os vários anos que passara nas terras mais populosas do sul, ele ouvira muitas histórias vividas sobre os horrores de um cerco.
Veio-lhe à mente a imagem da derradeira saudação de Agorwal, ao longe, o olhar satisfeito no rosto do representante e sua disposição em morrer valorosamente. Régis não tinha a menor vontade de morrer, mas podia imaginar o que ele e o povo acuado de Brin Shander tinham pela frente.
Flagrou-se invejando Agorwal.

24
Crishal-Tirith

Drizzt logo encontrou o solo maltratado por onde passara o exército. As pegadas não chegaram a ser uma surpresa para o drow, pois as colunas de fumaça já lhe haviam revelado boa parte do que ocorrera. A única pergunta não respondida era se alguma das vilas resistira ou não ao ataque, e ele seguiu rapidamente em direção à montanha, imaginando se ainda teria um lar para onde retornar.
Foi então que ele sentiu uma presença, uma aura de um outro mundo que estranhamente o fazia recordar os dias de sua juventude. Abaixou-se para verificar o solo novamente. Algumas das marcas eram rastros frescos de trolls, mas havia uma cicatriz no chão que nenhuma criatura mortal poderia ter deixado. Drizzt olhou ao redor, nervoso, mas o único som era o lamento do vento e os únicos vultos no horizonte eram os picos do Sepulcro de Kelvin diante dele, e os da Espinha do Mundo, bem mais ao sul. Drizzt deteve-se para considerar a tal presença durante algum tempo, tentando distinguir melhor a familiaridade que sentia.
Ele seguiu em frente tentativamente. Compreendia a origem de suas lembranças agora, mas os pormenores exatos continuavam impalpáveis. Ele sabia o que estava seguindo.
Um demônio chegara ao Vale do Vento Gélido.
O Sepulcro de Kelvin já parecia muito maior antes de Drizzt alcançar o bando. Sua sensibilidade a criaturas dos planos inferiores, fruto de séculos de associação com elas em Menzoberranzan, informou o drow de que ele se aproximava do demônio antes mesmo de avistá-lo.
E foi então que ele viu as formas distantes, meia dúzia de trolls que marchavam numa fileira compacta e, destacando-se no meio deles, encontrava-se um enorme monstro do Abismo. Drizzt compreendeu imediatamente que não se tratava de um mane nem de um homúnculo insignificante, e sim de um demônio importante. Kessell devia ser realmente poderoso se tinha sob seu controle um monstro tão formidável!
Drizzt os seguiu, mantendo cautelosa distância. No entanto, o bando estava concentrado em seu destino e a cautela do drow era desnecessária. Mas Drizzt não estava disposto a se arriscar de modo algum, pois havia sido muitas vezes testemunha da ira desses demônios. Eram lugar-comum nas cidades dos drow, prova maior para Drizzt Do'Urden de que a cultura de seu povo não lhe condizia.
Ele se aproximou, pois algo mais chamara-lhe a atenção. O demônio segurava um pequeno objeto que irradiava uma magia tão poderosa que o drow, mesmo àquela distância, era capaz de sentir claramente. Estava demasiado disfarçada pelas próprias emanações do demônio para que Drizzt conseguisse ter uma idéia clara do que se tratava e, portanto, ele cautelosamente recuou mais uma vez.
As luzes de milhares de fogueiras apareceram no horizonte quando o grupo e Drizzt aproximaram-se da montanha. Os goblins haviam posicionado sentinelas naquela área e Drizzt percebeu que já avançara o máximo que podia na direção sul. Desistiu da perseguição e dirigiu-se a um ponto de observação melhor no alto da montanha.
O melhor momento para a visão do drow, adaptada ao subterrâneo, era sob a luz tênue antes do nascer do sol e, apesar de cansado, Drizzt tinha a determinação de estar em posição quando chegasse a hora. Ele rapidamente escalou as rochas, dirigindo-se aos poucos à face sul da montanha.
Foi então que ele viu as fogueiras que cercavam Brin Shander. Mais para o leste, as brasas brilhavam em meio aos escombros que outrora haviam sido Caer-Konig e Caer-Dineval. Gritos selvagens ecoavam em Termalaine, e Drizzt compreendeu que a cidade às margens do Maer Dualdon estava nas mãos do inimigo.
E, então, o prenúncio da aurora azulou o céu noturno e muito mais coisas tornaram-se aparentes. Drizzt olhou primeiro para a extremidade sul do vale dos anões e ficou aliviado ao ver que o paredão defronte havia desabado. O povo de Bruenor, pelo menos, estava salvo, e Régis com eles, supôs o drow.
Mas a visão de Brin Shander era menos consoladora. Drizzt ouvira as bazófias do ore capturado e vira os rastros do exército e suas fogueiras, mas nunca poderia ter imaginado o vasto conclave que apareceu diante dele assim que a luz aumentou.
A visão o desconcertou.
- Quantas tribos de goblins você reuniu, Akar Kessell? - disse, com voz entrecortada. - E quantos gigantes chamam-no de mestre?
Ele sabia que o povo de Brin Shander sobreviveria apenas o tempo que Kessell lhes permitisse. Não tinham a menor esperança de se defender contra tamanho exército. Consternado, ele se voltou para procurar uma gruta onde pudesse descansar um pouco. Ele não seria de ajuda naquele momento, e a exaustão aumentava sua desesperança, impedindo-o de pensar de maneira construtiva.
Enquanto se afastava da face da montanha, uma súbita atividade no campo distante chamou-lhe a atenção. Ele não conseguia divisar os indivíduos a uma distância tão grande - o exército parecia apenas uma massa negra -, mas compreendeu que o demônio aparecera. Viu o ponto mais negro que marcava sua presença maligna avançar até uma área de terreno limpo, algumas centenas de metros apenas abaixo dos portões de Brin Shander. E ele sentiu a aura sobrenatural da poderosa magia que percebera antes, como o coração pulsante de alguma forma de vida desconhecida, palpitando nas mãos providas de garras do demônio.
Os goblins se juntaram para assistir ao espetáculo, mantendo uma distância respeitosa entre eles e o perigoso e imprevisível capitão de Kessell.
- O que é aquilo? - perguntou Régis, esmagado entre a multidão de espectadores na muralha de Brin Shander.
- Um demônio - respondeu Cássio. - E dos grandes.
- Eles zombam de nossas pobres defesas! - gritou Glensather. - Que esperança temos de resistir a um inimigo como este?
O demônio fez uma reverência, concentrado no ritual para evocar o encantamento do objeto cristalino. Ele colocou a estilha de cristal de pé sobre a relva, deu um passo para trás e berrou as palavras obscuras de um antigo feitiço, alteando num crescendo à medida que o céu começava a clarear com a iminente aparição do sol.
- Um punhal de vidro? - perguntou Régis, intrigado com o objeto pulsante.
O primeiro raio da aurora rompeu o horizonte. O cristal cintilou e invocou a luz, desviando a trajetória do raio solar e absorvendo sua energia.
A estilha tremeluziu novamente. As pulsações aumentaram quando mais uma parte do sol rastejou para o céu oriental, apenas para ter sua luz sugada pela cópia faminta de Crenshinibon.
Os espectadores na muralha boquiabriram-se, horrorizados, e imaginaram se Akar Kessell tinha algum poder sobre o próprio sol. Somente Cássio teve presença de espírito para ligar o poder da estilha à luz solar.
Foi então que o cristal começou a crescer. Estendia-se a cada vez que uma pulsação atingia seu pico, depois encolhia-se um pouco enquanto a palpitação seguinte ganhava força. Tudo o mais ao redor permanecia nas sombras, pois o cristal consumia avidamente toda a luz do sol. Lenta mas inevitavelmente, o diâmetro da coisa alargou-se e seu topo elevou-se às alturas. As pessoas na muralha e os monstros no campo precisaram desviar os olhos do poder resplandecente de Crishal-Tirith. Apenas o drow, desde seu remoto ponto de observação, e o demônio, que era imune a essas visões, testemunharam a criação de mais uma cópia de Crenshinibon. A terceira Crishal-Tirith ganhou vida. A torre libertou o sol de seu jugo assim que se completou o ritual e toda a região foi banhada pela luz da manhã.
O demônio rugiu com o sucesso de seu encantamento e entrou orgulhosamente pela porta espelhada da nova torre, seguido pelos trolls, a guarda pessoal do mago.
Os habitantes sitiados de Brin Shander e Targos examinaram a incrível estrutura com uma mistura confusa de espanto, admiração e terror. Não conseguiam resistir à beleza sobrenatural de Crishal-Tirith, mas compreendiam as conseqüências do aparecimento da torre: Akar Kessell, senhor de goblins e gigantes, havia chegado.

Os goblins e os ores caíram de joelhos, e todo o vasto exército retomou o cântico de "Kessell! Kessell!", prestando homenagem ao mago com uma devoção tão fanática que fez estremecer as testemunhas humanas do espetáculo.
Drizzt também estava assustado com a extensão da influência e da devoção que o mago exercia sobre as normalmente independentes tribos de goblins. O drow determinou naquele momento que a única chance de sobrevivência para o povo de Dez-Burgos era a morte de Akar Kessell. Ele já sabia, mesmo antes de ter considerado as opções possíveis, que tentaria chegar ao mago. Por enquanto, porém, ele precisava descansar. Encontrou uma gruta sombreada logo atrás da face do Sepulcro de Kelvin e deixou-se tomar pela exaustão.
Cássio também estava cansado. O representante permanecera na muralha durante toda a noite fria, examinando os acampamentos para determinar o que restava da inimizade natural entre as tribos indisciplinadas. Ele vira um pouco de discórdia e alguns insultos, mas nada extremo o bastante para dar a ele a esperança de que o exército se desmancharia logo no início do cerco. Não entendia como o mago conseguira uma unificação tão dramática dos arquiinimigos. A aparição do demônio e o soerguimento de Crishal-Tirith mostraram-lhe o incrível poder sob o comando de Kessell. Ele logo chegara às mesmas conclusões que o drow.
Ao contrário de Drizzt, porém, o representante de Brin Shander não se recolheu quando o campo voltou a se acalmar, apesar dos protestos de Régis e Glensather, preocupados com sua saúde. Sobre seus ombros, Cássio carregava a responsabilidade por vários milhares de pessoas aterrorizadas, amontoados no interior das muralhas de sua cidade, e, para ele, não haveria descanso. Ele precisava de informações; precisava encontrar um elo fraco na armadura aparentemente inexpugnável do mago.
E, portanto, o representante vigiou com zelo e paciência durante todo o primeiro longo e monótono dia do cerco, observando as fronteiras que as tribos de goblins delimitavam como suas e a ordem de hierarquia que determinava a distância de cada grupo em relação ao ponto central de Crishal-Tirith.

Bem mais ao leste, as frotas de Caer-Konig e Caer-Dineval estavam ancoradas lado a lado nas docas da cidade abandonada de Angraleste. Várias equipagens foram à terra para recolher provisões, mas a maioria das pessoas permanecera nos barcos, incertas quanto à extensão do braço oriental do exército de Kessell.
Jensin Brent e sua contraparte de Caer-Konig haviam assumido total controle da situação a partir do convés do Explorador das Brumas, a nau-capitânia de Caer-Dineval. Todas as disputas entre as duas cidades foram suspensas, ao menos temporariamente, apesar de se ouvirem promessas de amizade duradoura nos conveses de todas as embarcações sobre o Lac Dinneshir. Os dois representantes concordavam que ainda não poderiam deixar as águas do lago e fugir, pois perceberam que não havia para onde ir. Todas as dez vilas estavam sob a ameaça de Kessell, Luskan ficava a seiscentos quilômetros de distância e o exército do mago estava bem no caminho. Os refugiados mal equipados sequer sonhariam em chegar à cidade antes de serem surpreendidos pelas primeiras neves do inverno.
Os marinheiros que haviam desembarcado logo retornaram às docas com as boas novas de que Angraleste ainda não havia sido tocada pelas trevas. Mais equipagens foram enviadas à terra para trazer mais comida e cobertores, mas Jensin Brent agia com cautela, pois pensava ser aconselhável manter a maioria dos refugiados na água, longe do alcance de Kessell.
Notícias mais promissoras chegaram pouco depois.
- Sinais provenientes de Marerrubra, Representante Brent! - gritou a sentinela no alto do cesto da gávea do Explorador das Brumas. - O povo de Bom Prado e Toca de Dugan está são e salvo! - Ele ergueu seu arauto, um pequeno espelho fabricado em Termalaine e projetado para focalizar a luz do sol e enviar sinais através dos lagos, usando códigos complexos, porém limitados. - Responderam a meus chamados!
- Onde estão eles, então? - perguntou Brent, ansioso.
- Nas margens orientais - replicou a sentinela. - Embarcaram e deixaram as aldeias, pensando que seriam indefensáveis. Nenhum monstro se aproximou ainda, mas o representante achou que o outro lado do lago seria mais seguro até os invasores terem partido.
- Mantenha a comunicação - ordenou Brent. - Informe quando tiver mais notícias.
- Até os invasores terem partido? - repetiu Schermont, incrédulo, ao se colocar ao lado de Jensin Brent.
- Uma avaliação tola e otimista da situação, concordo - disse Brent. - Mas fico aliviado em saber que nossos primos ao sul ainda estão vivos!
- Vamos até eles? Juntar nossas forças?
- Ainda não - respondeu Brent. - Receio que ficaríamos vulneráveis demais no terreno desprotegido entre os lagos. Precisamos de mais informações antes de tomar qualquer ação efetiva. Vamos manter as comunicações entre os dois lagos. Reúna voluntários para levar mensagens a Marerrubra.
- Devem ser enviados imediatamente - concordou Schermont, já a caminho.
Brent assentiu e voltou a olhar para a outra margem do lago, para o penacho agonizante de fumaça sobre sua cidade.
- Mais informações - murmurou consigo mesmo.
Mais tarde, naquele mesmo dia, outros voluntários partiram em direção ao perigoso oeste para fazer um reconhecimento da situação na cidade principal.
Brent e Schermont haviam feito um trabalho magistral de controle do pânico, mas, mesmo com os ganhos substanciais na organização, o choque inicial da súbita e fatal invasão deixara a maioria dos sobreviventes de Caer-Konig e Caer-Dineval num estado de completo desespero. Jensin Brent foi a animadora exceção. O representante de Caer-Dineval era um guerreiro corajoso que recusava categoricamente a rendição até o último alento. Circulou com sua orgulhosa nau-capitânia pelos ancoradouros, reanimando o povo com suas promessas de vingança contra Akar Kessell.
Agora ele mantinha-se em vigília e aguardava no convés do Explorador das Brumas as notícias vitais que chegariam do oeste. No meio da tarde, ele ouviu o grito pelo qual rezara.
- Está de pé! - gritou, extasiada, a sentinela no cesto da gávea, assim que avistou o brilho do sinal do arauto. - Brin Shander está de pé!
De repente, o otimismo de Brent revestiu-se de credibilidade. O bando miserável de vítimas desabrigadas assumiu uma postura enfurecida, propensa a vingança. Mais mensageiros foram imediatamente despachados para levar a Marerrubra as novas de que Kessell ainda não alcançara a vitória completa.
Em ambos os lagos, foi levada a sério a tarefa de separar os guerreiros dos civis. As mulheres e as crianças passaram aos barcos mais pesados e menos robustos e os homens em condição de lutar embarcaram nas naus mais velozes. Os navios de guerra designados foram então posicionados nos atracadouros mais externos, de onde poderiam zarpar rapidamente e atravessar os lagos. Suas velas foram verificadas e retesadas em preparação para a impetuosa travessia que levaria suas corajosas tripulações à guerra.
Ou, segundo o furioso decreto de Jensin Brent: "A travessia que levaria suas corajosas tripulações à vitória!"

Régis havia se juntado mais uma vez a Cássio sobre a muralha quando o sinal do arauto foi avistado na margem sudoeste do Lac Dinneshir. O halfling dormira a maior parte da noite e do dia, imaginando que poderia muito bem morrer fazendo a coisa de que mais gostava. Ficou surpreso ao acordar, pois esperava que seu sono se prolongasse na eternidade.
Cássio, entretanto, começava a ver as coisas sob uma perspectiva diferente. Ele havia coligido uma longa lista de potenciais colapsos no exército indisciplinado de Akar Kessell; ores que intimidavam goblins, e os gigantes, por sua vez, a intimidar tanto uns quanto outros. Se conseguisse apenas encontrar uma maneira de resistir tempo suficiente para que o ódio esclarecido entre as raças de goblins começasse a prejudicar as forças de Kessell...
E, então, o sinal do Lac Dinneshir e os relatos subseqüentes de luzes semelhantes na margem mais distante de Marerrubra haviam proporcionado ao representante a esperança sincera de que o cerco poderia muito bem se desintegrar e Dez-Burgos sobreviver.
Mas foi aí que o mago fez sua dramática aparição e as esperanças de Cássio foram destruídas.
Começou como uma pulsação de luz vermelha a circular no interior da parede cristalina na base de Crishal-Tirith. Em seguida, uma segunda pulsação, desta vez azul, subiu pela torre e girou na direção contrária. Lentamente, as duas correntes começaram a contornar o perímetro da torre e a misturar-se numa luz verde toda vez que convergiam, para depois se separarem e seguirem o próprio caminho. Todos os que assistiam ao fascinante espetáculo tinham os olhos fixos e apreensivos, sem saber o que aconteceria em seguida, mas convencidos de que uma exibição de formidável poder estava por vir.
As luzes aceleraram e sua intensidade aumentava com a velocidade. Não demorou muito e toda a base da torre se achava envolta numa mancha verde tão brilhante que os espectadores precisaram desviar os olhos. Da mancha indistinta saíram dois horrendos trolls e cada um deles carregava um espelho ornamentado.
As luzes reduziram sua velocidade e pararam por completo.
A mera visão dos repugnantes trolls encheu as pessoas de Brin Shander de nojo, mas, intrigadas, nenhuma delas se voltou. Os monstros caminharam diretamente até a base da colina íngreme da cidade e postaram-se de frente um para o outro, apontando seus espelhos diagonalmente em direção um ao outro, mas ainda capturando o reflexo de Crishal-Tirith.
Raios gêmeos de luz projetaram-se da torre, e cada um deles atingiu um dos espelhos e convergiu com o outro a meio caminho entre os trolls. Uma súbita pulsação da torre, como o fulgor de um raio, deixou a área entre os monstros coberta por fumaça e, quando esta se dissipou, em lugar dos raios convergentes de luz, estava ali uma imagem tênue e deformada de um homem vestindo uma túnica de cetim vermelho.
Os goblins caíram de joelhos novamente e esconderam os rostos. Akar Kessell havia chegado.
Ele ergueu os olhos em direção a Cássio, sobre a muralha, com um sorriso arrogante a espichar-lhe os lábios finos.
- Saudações, representante de Brin Shander! - casquinou ele. - Bem-vindo a minha bela cidade! - Ele riu obliquamente.
Cássio não tinha dúvida de que o mago o distinguira, apesar de não se lembrar de algum dia ter visto aquele homem e não compreender como fora reconhecido. Olhou para Régis e Glensather, em busca de uma explicação, mas ambos deram de ombros.
- Sim, eu conheço você, Cássio - disse Kessell. - E a você, meu bom Representante Glensather, meus cumprimentos. Devia ter adivinhado que você estaria aqui; o povo de Angraleste sempre mostrou disposição em se juntar a uma causa, mesmo que não restasse esperança!
E então foi a vez de Glensather, estarrecido, fitar os companheiros. Mas, novamente, não havia explicações disponíveis.
- Você nos conhece - respondeu Cássio à aparição -, mas nos é desconhecido. Parece que você tem uma vantagem injusta.
- Injusta? - protestou o mago. - Eu tenho todas as vantagens, seu tolo! - Mais uma vez a risada. - Vocês me conhecem, ou ao menos Glensather me conhece.
O representante de Angraleste deu de ombros mais uma vez em resposta ao olhar inquisitivo de Cássio. O gesto pareceu enfurecer Kessell.
- Passei vários meses em Angraleste - disse o mago bruscamente. - Sob o disfarce de um aprendiz de mago de Luskan! Esperto, não acham?
- Você se lembra dele? - Cássio perguntou baixinho a Glensather. - Poderia ser de grande importância.
- E possível que tenha se hospedado em Angraleste - replicou Glensather no mesmo tom sussurrado -, apesar de há vários anos nenhum grupo da Torre das Hostes vir a minha cidade. Mas somos uma cidade aberta e muitos forasteiros chegam com cada caravana mercante de passagem. Com sinceridade, Cássio, não me recordo deste homem.
Kessell estava ultrajado. Bateu os pés impacientemente e o sorriso em seu rosto foi substituído por uma carantonha mal-humorada.
-Talvez meu retorno a Dez-Burgos venha a se mostrar mais memorável, seus idiotas! - disse ele bruscamente. Ergueu e esticou os braços, numa presunçosa proclamação. - Contemplem Akar Kessell, o Tirano do Vale do Vento Gélido! - gritou. - Povo de Dez-Burgos, seu mestre está aqui!
- Suas palavras são um tanto prematuras... - começou Cássio, mas Kessell o cortou com um grito arrebatado.
- Jamais me interrompa! - gritou o mago, com as veias do pescoço esticadas e salientes e o rosto vermelho como sangue.
Quando Cássio se calou, incrédulo, Kessell pareceu recuperar um pouco a compostura.
- Você há de aprender, orgulhoso Cássio. - ameaçou ele. - Há de aprender!
Ele se virou para Crishal-Tirith e pronunciou uma simples palavra de comando. A torre escureceu por um instante, como se se recusasse a liberar os reflexos da luz do sol. Depois, começou a brilhar com uma luz que parecia mais própria do que um reflexo do dia. A cada segundo que passava, a coloração mudava e a luz começava a subir e a circular pelas estranhas paredes.
- Contemplem Akar Kessell! - anunciou o mago, ainda carrancudo. - Vejam o esplendor de Crenshinibon e abandonem toda esperança!
Mais luzes começaram a lampejar no interior das paredes da torre, subindo e descendo a esmo e girando em volta da estrutura numa dança frenética que clamava por libertação. Aos poucos, dirigiram-se para o pontiagudo pináculo, e este começou a flamejar como se estivesse em chamas, passando pelas cores do espectro até sua labareda branca rivalizar com a luminosidade do próprio sol.
Kessell gritou como um homem em estado de êxtase.
O fogo foi liberado.
Projetou-se, numa linha delgada e candente, em direção ao norte e à desafortunada cidade de Targos. Muitos espectadores enfileiravam-se sobre a alta muralha de Targos, embora a torre estivesse muito mais longe deles do que de Brin Shander e parecesse pouco mais do que um ponto reluzente na planície distante. Eles faziam pouca idéia do que acontecia aos pés da cidade principal, mas viram o raio de fogo que vinha em sua direção.
Mas, então, já era tarde demais.
A ira de Akar Kessell atroou pela orgulhosa cidade adentro e abriu uma trilha de devastação instantânea. Chamas irromperam por toda a extensão de sua linha assassina. As pessoas apanhadas na trajetória direta do raio sequer tiveram a chance de gritar antes de serem simplesmente vaporizadas. Mas aqueles que sobreviveram ao assalto inicial, tanto as mulheres quanto as crianças e os homens endurecidos pela tundra, que haviam enfrentado a morte milhares de vezes ou mais, esses de fato gritaram. E seu pranto atravessou o lago sereno até Bosquesó e Bremen, até os goblins jubilantes em Termalaine e planície abaixo até as testemunhas horrorizadas em Brin Shander.
Kessell acenou com a mão e alterou ligeiramente o ângulo do disparo, fazendo, assim, a destruição descrever um arco por toda a Targos. Toda estrutura importante no interior da cidade logo estava ardendo, e centenas de pessoas jaziam mortas ou, agonizantes, rolavam lamentavelmente no solo para extinguir as chamas que envolviam seus corpos, ou ofegavam inutilmente em busca de ar em meio à densa fumaça.
Kessell deliciou-se com o momento. Mas, depois, sentiu um calafrio na espinha e a torre também pareceu estremecer. O mago apertou a relíquia, ainda enfiada sob as dobras de sua túnica. Compreendeu que havia forçado demais os limites do poder de Crenshinibon.
Na Espinha do Mundo, a primeira torre que Kessell erguera desabou e ficou em escombros. E, longe, na vasta tundra, o mesmo aconteceu à segunda. A estilha se recolheu e destruiu as cópias-torres que exauriam sua força.
Kessell também fora exaurido pelo esforço, e as luzes da Crishal-Tirith remanescente começaram a sossegar e, em seguida, a minguar. O raio tremulou e extinguiu-se.
Mas havia cumprido sua função.
Na primeira onda da invasão, Kemp e os outros orgulhosos líderes de Targos haviam prometido a seu povo que defenderiam a cidade até que o último homem tivesse caído, mas mesmo o teimoso representante percebeu que não restava escolha a não ser fugir. Felizmente, a cidade propriamente dita, que recebera o grosso do ataque de Kessell, ficava em terreno elevado, sobranceando a área protegida da baía. As frotas continuavam ilesas. E os pescadores desabrigados de Termalaine já estavam nas docas, pois haviam permanecido nos barcos depois de aportados em Targos. Logo que se deram conta da inacreditável extensão da destruição que ocorria na cidade em si, eles começaram a se preparar para o influxo iminente dos últimos refugiados de guerra. A maioria dos barcos de ambas as cidades fez-se ao largo minutos depois do ataque, tentando desesperadamente colocar as velas vulneráveis a uma distancia segura das fagulhas e dos escombros carregados pelo vento. Algumas naus ficaram para trás, desafiando os riscos cada vez maiores para resgatar os retardatários nas docas.
As pessoas na doca de Brin Shander choravam diante dos gritos persistentes dos agonizantes. Cássio, porém, consumido por sua missão de procurar e encontrar as fraquezas aparentes que Kessell acabara de revelar, não tinha tempo para lágrimas. Na verdade, os gritos afetavam-no tão profundamente quanto a qualquer outro, mas, relutante em deixar o lunático Kessell ver qualquer insinuação de fraqueza da parte dele, transformou o pesar de sua fisionomia num esgar férreo de fúria. Kessell ria dele.
- Não faça beicinho, meu pobre Cássio - escarneceu o mago. - Não fica bem.
- Você é um cachorro - retorquiu Glensather. - E cães indisciplinados devem ser castigados!
Cássio deteve seu colega representante com a mão estendida.
- Acalme-se, meu amigo - sussurrou. - Kessell vai se alimentar de nosso pânico. Deixe-o falar: está revelando mais do que imagina.
- Pobre Cássio - repetiu Kessell sarcasticamente. Então, de repente, a face do mago desfigurou-se de raiva. Cássio notou vividamente a abrupta oscilação e arquivou-a com as outras informações que recolhera.
- Prestem muita atenção ao que vocês testemunharam aqui, povo de Brin Shander! - zombou Kessell. - Curvem-se diante de seu mestre ou o mesmo destino há de recair sobre vocês! E vocês não têm um lago a suas costas! Não têm para onde fugir!
Ele voltou a rir desvairadamente e percorreu com os olhos a colina da cidade, como se procurasse alguma coisa.
- O que vocês vão fazer? - casquinou ele. - Não têm um lago! Já me pronunciei, Cássio. Ouça-me com atenção. Amanhã, você enviará um emissário até mim, um emissário portando notícias de sua rendição incondicional! E caso seu orgulho impeça tal ato, lembre-se dos gritos da Targos agonizante! Olhe para a cidade às margens do Maer Dualdon em busca de orientação, miserável Cássio. As chamas ainda deverão estar ardendo ao raiar do dia de amanhã!
Naquele exato momento, um mensageiro correu até o representante.
- Avistaram-se muitas embarcações deixando o manto de fumaça em Targos. Os sinais dos arautos já começaram a chegar, vindos dos refugiados.
- E quanto a Kemp? - perguntou Cássio, ansioso.
- Está vivo - respondeu o mensageiro. - E jurou vingança.
Cássio deixou escapar um suspiro de alívio. Não era muito amigo de seu equivalente em Targos, mas sabia que o calejado representante se mostraria um trunfo valioso para a causa de Dez-Burgos antes do fim.
Kessell ouviu a conversa e grunhiu de desdém.
- E para onde eles vão fugir? - perguntou a Cássio.
O representante, concentrado em estudar aquele adversário imprevisível e desequilibrado, não respondeu, mas Kessell o fez por ele.
- Para Bremen? Mas não podem! - Ele estalou os dedos, dando início à transmissão de uma mensagem pré-combinada para suas forças mais a oeste. Imediatamente, um grande grupo de goblins saiu da formação e partiu para o oeste.
Rumo a Bremen.
- Vê? Bremen cairá antes do fim da noite e mais uma frota fugirá para o precioso lago. A cena há de se repetir na vila do bosque com resultados previsíveis. Mas que proteção os lagos oferecerão a essas pessoas quando o inverno implacável chegar? - gritou ele. - Com que rapidez suas embarcações hão de fugir de mim quando as águas se congelarem ao redor delas?
Ele riu novamente mas, dessa vez, com mais seriedade, mais perigo.
- Que proteção tem qualquer um de vocês contra Akar Kessell?
Cássio e o mago fitaram-se obstinadamente. O mago mal e mal enunciou as palavras, mas Cássio ouviu-as claramente:
- Que proteção?

No Maer Dualdon, Kemp reprimiu sua raiva frustrada ao assistir à queda de sua cidade em chamas. Rostos enegrecidos pela fuligem fitavam as ruínas incandescentes, incrédulos e aterrorizados, gritando recusas impossíveis e chorando indisfarçadamente pelos amigos e parentes perdidos.
Mas, como Cássio, Kemp converteu seu desespero em ira construtiva. Logo que soube do destacamento de goblins a caminho de Bremen, despachou seu barco mais veloz para alertar o povo daquela distante cidade e informá-los sobre os acontecimentos do outro lado do lago. Depois, enviou um outro barco em direção a Bosquesó para implorar por comida e ataduras, e talvez um convite para aportar.
Apesar de suas óbvias diferenças, os representantes das dez vilas eram parecidos em vários aspectos. Como Agorwal, feliz em sacrificar tudo pelo bem do povo, e Jensin Brent, que se recusava a entregar-se ao desespero, Kemp de Targos pôs-se a conclamar sua gente para um ataque retaliatório. Não sabia ainda como realizaria a proeza, mas sabia que ainda teria a palavra final na guerra do mago.
E, sobre a muralha de Brin Shander, Cássio também o sabia.

25
Errtu

Drizzt rastejou para fora de sua câmara oculta quando as últimas luzes do sol poente começaram a desaparecer. Perscrutou o horizonte meridional e ficou mais uma vez consternado. Ele precisara descansar, mas não pôde evitar as agudas dores da culpa ao ver a cidade de Targos ardendo, como se tivesse negligenciado seu dever de testemunhar o sofrimento das vítimas indefesas de Kessell.
No entanto, o drow não estivera ocioso, nem mesmo durante as horas do transe meditativo que os elfos chamavam de sono. Ele viajara de volta ao mundo subterrâneo de suas lembranças remotas, em busca de uma determinada sensação, a aura de uma poderosa presença que conhecera outrora. Apesar de não ter se aproximado o bastante para dar uma boa olhada no demônio que seguira na noite anterior, alguma coisa na criatura havia tangido uma corda familiar em suas mais antigas recordações. Uma emanação sobrenatural e penetrante cercava as criaturas dos planos inferiores quando estas caminhavam no mundo material, uma aura que os elfos negros, mais do que qualquer outra raça, haviam aprendido a compreender e a reconhecer. Drizzt conhecia não apenas aquele tipo de demônio, mas aquela criatura em particular. O monstro servira a sua gente em Menzoberranzan durante muitos anos.
- Errtu - ele murmurou enquanto vasculhava seus sonhos. Drizzt sabia o verdadeiro nome do demônio. O monstro atenderia a seu chamado.

Drizzt levou mais de uma hora em busca de um lugar apropriado para a invocação do demônio, e várias outras a preparar a área. Seu objetivo era anular tantas das vantagens de Errtu quantas pudesse - particularmente o tamanho e a capacidade de vôo -, apesar de esperar sinceramente que o encontro não envolvesse combate. As pessoas que conheciam o drow consideravam-no ousado, até mesmo imprudente, às vezes -, mas isso era contra inimigos mortais que recuavam diante da dor pungente de suas espadas sibilantes. Os demônios, principalmente aqueles com o tamanho e a força de Errtu, eram outra história. Muitas vezes, durante sua juventude, Drizzt testemunhara a ira de um monstro como aquele. Vira edifícios lançados por terra, a pedra sólida despedaçada pelas grandes mãos providas de garras. Vira pujantes guerreiros humanos atingirem o monstro com golpes que abateriam um ogro, apenas para descobrir, no terror da morte, que suas armas eram inúteis contra um ser tão poderoso dos planos inferiores.
Seu próprio povo geralmente se saía um pouco melhor contra os demônios e, na verdade, merecia até um certo grau de respeito da parte deles. Os demônios aliavam-se com freqüência aos drow em pé de igualdade, ou até mesmo serviam abertamente aos elfos negros, pois temiam a magia e as poderosas armas possuídas pelos drow. Mas isso era no mundo subterrâneo, onde as estranhas emanações das singulares formações de rocha abençoavam os metais usados pelos artífices drow com propriedades mágicas e misteriosas. Drizzt não tinha nenhuma das armas de sua terra natal, pois sua estranha magia não resistia à luz do dia; embora ele tivesse tomado o cuidado de protegê-las contra o sol, tornaram-se inúteis logo depois de ele ter se mudado para a superfície. Ele duvidava que as armas que agora carregava fossem capazes de ferir Errtu. E, mesmo que conseguissem, os demônios da estatura de Errtu não podiam ser realmente destruídos longe de seus planos de origem. Se chegassem às vias de fato, o máximo que Drizzt poderia esperar fazer era banir a criatura do Plano Material durante cem anos.
Ele não tinha a menor intenção de lutar.
No entanto, precisava tentar algo contra o mago que ameaçava as vilas. Seu objetivo agora era conseguir algumas informações que pudessem revelar um ponto fraco no mago, e seu método era a trapaça e o disfarce, pois esperava que Errtu recordasse o bastante sobre os elfos negros para tornar verossímil sua história, mas não demais para desnudar as mentiras frágeis que a comporiam.
O lugar que escolhera para o encontro era uma valeira abrigada, a uma pequena distância da face escarpada da montanha. Um teto provido de pináculo, formado por paredes convergentes, cobria metade da área; a outra metade abria-se para o céu, mas o lugar todo estava encravado na encosta da montanha, atrás dos elevados paredões, seguro e fora do alcance da visão de Crishal-Tirith. Agora, Drizzt usava o punhal e riscava runas de proteção nas paredes e no chão defronte ao lugar onde se sentaria. A imagem mental que tinha desses símbolos mágicos havia se obscurecido depois de tantos anos, e ele sabia que seu traçado estava longe de ser perfeito. No entanto, percebeu que precisaria de toda a proteção que eles pudessem oferecer caso Errtu se virasse contra ele.
Ao terminar, ele se sentou de pernas cruzadas sob o teto de pedra, atrás da área protegida, e sacou da mochila a pequena estatueta que ali carregava. Guenhwyvar seria um bom teste para suas inscrições de proteção.
O grande felino respondeu à invocação. Apareceu do outro lado do cubículo, e seus olhos aguçados já esquadrinhavam a área, em busca de qualquer perigo potencial que ameaçasse seu mestre. Depois, como nada sentisse, lançou uma olhar curioso para Drizzt.
- Venha até mim - chamou Drizzt, acenando com a mão. O gato deu um passo na direção dele, depois parou abruptamente, como se houvesse trombado com uma parede. Drizzt suspirou aliviado ao ver que as runas encerravam algum poder. Sua confiança aumentou consideravelmente, apesar de compreender que Errtu forçaria o poder das runas a seus limites absolutos, e provavelmente além.
Guenhwyvar deixou pender sua imensa cabeça num esforço para compreender o que a impedia. A resistência não havia sido realmente muito forte, mas os sinais atrapalhados de seu mestre - chamando-a, porém repelindo-a - confundiram a pantera. Ela cogitou reunir suas forças e atravessar a barreira frágil, mas seu mestre pareceu satisfeito por ela ter parado. Portanto, o gato se sentou onde estava e esperou.
Drizzt estava entretido estudando a área, à procura do lugar mais favorável para Guenhwyvar, um canto de onde ela pudesse saltar e surpreender o demônio. Uma saliência recôndita numa das paredes altas, logo depois da parte que convergia na formação de um teto, pareceu oferecer o melhor esconderijo. Ele fez sinal para que o gato se colocasse em posição e o instruiu a não atacar até receber ordem para tanto. Em seguida, ele voltou a se sentar e tentou relaxar, concentrado em seus últimos preparativos mentais antes de invocar o demônio.

Do outro lado do vale, na torre mágica, Errtu estava agachado num canto escuro do harém de Kessell, em eterna vigilância sobre o mago maligno que brincava com suas meninas de mentes despedaçadas. Uma chama tremulante de ódio ardia nos olhos de Errtu toda vez que ele pensava no estúpido Kessell. O mago quase arruinara tudo com sua demonstração de poder naquela tarde e sua recusa em demolir as torres desocupadas que haviam ficado para trás, o que havia exaurido ainda mais a força de Crenshinibon.
Errtu sentira uma impiedosa satisfação quando Kessell retornara a Crishal-Tirith e confirmara, por meio do uso dos espelhos de cristalomancia, que as outras duas torres haviam se desfeito em pedaços. Errtu alertara Kessell para não erguer uma terceira torre, mas o mago de ego frágil ficava mais teimoso a cada dia da campanha, imaginando que os conselhos do demônio, ou mesmo os de Crenshinibon, não passavam de uma manobra para minar seu controle absoluto.
E, portanto, Errtu, mostrou-se bastante receptivo, até mesmo aliviado, quando ouviu o chamado de Drizzt flutuando pelo vale. A princípio, ele rejeitou a possibilidade daquela invocação, mas as inflexões de seu verdadeiro nome pronunciadas em voz alta davam-lhe calafrios. Mais intrigado do que furioso com a impertinência do mortal que se atrevia a pronunciar seu nome, Errtu fugiu do mago distraído e deixou Crishal-Tirith.
Veio o chamado novamente, atravessando a harmonia da canção infindável do vento como uma onda de crista espumosa num lago tranqüilo.
Errtu esticou as grandes asas e planou sobre a tundra, voando para o norte, cada vez mais rápido, em direção ao conjurador. Os goblins aterrorizados fugiam da sombra escura do demônio de passagem, pois, mesmo sob a luz tênue de uma lua esquálida, a criatura do Abismo deixava uma tal esteira de trevas que fazia a noite parecer clara.
Drizzt inspirou profundamente, tenso. Ele sentiu a aproximação certeira do demônio quando este se desviou da Via de Bremen e subiu impetuosamente pelas encostas inferiores do Sepulcro de Kelvin, Guenhwyvar ergueu a cabeça repousada sobre as patas e rosnou, sentindo também a aproximação do monstro maligno. O gato recolheu-se ao fundo da saliência recôndita e manteve-se abaixado e imóvel, aguardando a ordem de seu mestre, confiante que suas excepcionais habilidades de dissimulação poderiam protegê-lo até mesmo da grande sensibilidade de um demônio.
As asas coriáceas de Errtu fecharam-se quando ele pousou na saliência. Ele determinou imediatamente a localização exata do conjurador e, mesmo tendo de encolher os ombros largos para passar pela entrada estreita da valeira, precipitou-se direto para dentro, com a intenção de mitigar sua curiosidade e depois matar o tolo blasfemo que ousava pronunciar seu nome em voz alta.
Drizzt esforçou-se para manter sua margem de controle quando o imenso demônio forçou passagem, com o corpanzil a preencher a pequena área do outro lado do minúsculo santuário do drow e obstruir a luz das estrelas. Não havia como se desviar daquele perigoso curso. Ele não tinha para onde fugir.
O demônio deteve-se subitamente, estupefato. Havia séculos Errtu não punha os olhos num drow e sem dúvida jamais esperara encontrar um deles na superfície, nos desertos congelados do norte mais longínquo.
De algum modo, Drizzt encontrou sua voz.
- Saudações, mestre do caos - disse ele tranqüilamente, com uma reverência. - Sou Drizzt Do'Urden, da casa de Daermon N'a'shezbaernon, nona família da linha de sucessão ao trono de Menzoberranzan. Bem-vindo a meu humilde acampamento.
- Você está bem longe de casa, drow - disse o demônio, com óbvia desconfiança.
- Como vós, grande demônio do Abismo - replicou Drizzt serenamente. - E atraído a este alto rincão do mundo por motivos semelhantes, a menos que eu esteja enganado.
- Sei por que estou aqui - respondeu Errtu. - Os assuntos dos drow sempre estiveram além de minha compreensão, ou de minha atenção!
Drizzt afagou o queixo esguio e riu com fingida confiança. Tinha o estômago apertado e sentiu o princípio de um suor frio a caminho. Riu novamente e lutou contra o medo. Se o demônio percebesse sua apreensão, sua credibilidade seria em muito reduzida.
- Ah, mas desta vez, pela primeira vez em muitos anos, parece que nossas estradas se cruzaram, poderoso aprovisionador da destruição. Meu povo tem uma certa curiosidade, talvez até mesmo um certo interesse pelo mago a quem você parece servir.
Errtu aprumou os ombros, e os primeiros bruxuleios de perigosas chamas apareceram em seus olhos vermelhos.
- Servir? - repetiu, incrédulo, e o tom regular de sua voz falhou, como se tocasse as raias de uma fúria incontrolável.
Drizzt rapidamente qualificou sua observação.
- Tudo indica, guardião das intenções caóticas, que o mago tem algum poder sobre você. Sem dúvida, você trabalha lado a lado com Akar Kessell.
- Não sirvo a humano nenhum! - rugiu Errtu, fazendo estremecer a própria fundação da caverna com uma batida enfática do pé.
Drizzt especulou se a luta que sequer sonhava vencer estaria prestes a começar. Cogitou chamar Guenhwyvar para que juntos pudessem ao menos desferir os primeiros golpes.
Mas, de repente, o demônio voltou a se acalmar. Convencido de que tinha adivinhado em parte o motivo da presença inesperada do drow, Errtu lançou um olhar inquisitivo para Drizzt.
- Servir ao mago? - gargalhou. - Akar Kessell é insignificante até mesmo pelos baixos padrões dos humanos! Mas você sabe disso, drow, e não ouse negá-lo. Está aqui, como eu estou aqui, por causa de Crenshinibon, e que se dane Kessell!
O olhar confuso no rosto do drow foi genuíno o bastante para fazer Errtu perder o equilíbrio. O demônio ainda acreditava que seu palpite estava correto, mas não conseguia entender por que o drow não compreendia o nome.
- Crenshinibon - explicou, estendendo a mão e as garras para o sul. - Um antigo bastião de poder indescritível.
- A torre? - perguntou Drizzt.
A incerteza de Errtu aflorou na forma de fúria explosiva.
- Não banque o ignorante comigo! - berrou o demônio. - Os lordes-drow conhecem muito bem o poder do artefato de Akar Kessell, ou então não teriam vindo à superfície para procurá-lo!
- Muito bem, você adivinhou - cedeu Drizzt. - Mas eu precisava me certificar de que a torre na planície era de fato o antigo artefato que procurava. Meus mestres mostram pouca misericórdia aos espiões negligentes.
Errtu sorriu perversamente ao recordar as medonhas câmaras de tortura de Menzoberranzan. Aqueles anos que passara entre os elfos negros haviam sido realmente agradáveis!
Drizzt rapidamente impeliu a conversa numa direção que talvez revelasse alguns dos pontos fracos de Kessell ou de sua torre.
- Uma coisa me deixa intrigado, horripilante espectro de maldade desenfreada - começou ele, tomando o cuidado de dar continuidade a sua série de elogios não repetidos. - Com que direito o mago possui Crenshinibon?
- Nenhum - disse Errtu. - Mago, ora! Comparado a seu povo, ele não passa de um aprendiz. A língua dele se contorce desajeitadamente ao pronunciar até mesmo o mais simples dos encantamentos. Mas é comum o destino fazer brincadeiras assim. Maior é o prazer, digo eu! Deixe Akar Kessell ter seu breve momento de triunfo. Os humanos não vivem muito tempo!
Drizzt sabia que seguia uma perigosa linha de questionamento, mas aceitou o risco. Mesmo com um demônio importante tão perto dele, Drizzt calculou que suas chances de sobrevivência naquele momento eram melhores que as de seus amigos em Brin Shander.
- Ainda assim, meus mestres preocupam-se com a possibilidade da torre ser danificada na batalha iminente com os humanos - blefou.
Errtu examinou Drizzt por mais um instante. A aparição dos elfos negros complicava o plano simples do demônio de herdar Crenshinibon de Kessell. Se os poderosos lordes-drow da imensa cidade de Menzoberranzan realmente tivessem planos que envolviam a relíquia, o demônio sabia que a conseguiriam. Kessell, com toda a certeza, mesmo com o poder da estilha, não poderia resistir-lhes. A mera presença daquele drow mudava a maneira como o demônio via sua relação com Crenshinibon. Como Errtu desejava que pudesse simplesmente devorar Kessell e fugir com a relíquia antes que os elfos negros se envolvessem demais!
No entanto, Errtu nunca havia considerado os drow como inimigos, e o demônio desprezava o mago titubeante. Talvez uma aliança com os elfos negros pudesse se mostrar benéfica para ambos os lados.
- Diga-me, campeão inigualável das trevas - pressionou Drizzt -, Crenshinibon está em perigo?
- Ora! - desdenhou Errtu. - Mesmo a torre, que é meramente um reflexo de Crenshinibon, é impenetrável. Absorve todos os ataques dirigidos contra suas paredes espelhadas e os reflete de volta à própria origem! Somente o pulsante cristal de energia, o próprio coração de Crishal-Tirith, é vulnerável, mas está escondido em segurança.
- Lá dentro?
- É claro.
- Mas e se alguém entrasse na torre - raciocinou Drizzt -, quão bem protegido, então, ele encontraria o núcleo?
- Uma tarefa impossível! - replicou o demônio. - A menos que os pescadores simplórios de Dez-Burgos tenham algum espírito a serviço deles. Ou talvez um sacerdote-mor, ou um arquimago para lançar encantamentos de revelação. Sem dúvida, seus mestres sabem que a porta de Crishal-Tirith é invisível e impossível de detectar por quaisquer seres inerentes ao plano em que atualmente descansa a torre. Nenhuma criatura deste mundo material - nem mesmo sua raça - conseguiria encontrar uma maneira de entrar!
- Mas... - Drizzt pressionou, ansioso. Errtu o interrompeu.
- Mesmo se alguém entrasse na estrutura por acidente - grunhiu ele, impaciente com a torrente implacável de suposições impossíveis -, teria de passar por mim. E o limite do poder de Kessell dentro da torre é realmente considerável, pois o mago tornou-se uma extensão da própria Crenshinibon, um escape vivo para a força incomensurável da estilha de cristal! O núcleo jaz além do próprio ponto focal da interação de Kessell com a torre e no alto do próprio topo... - O demônio deteve-se, subitamente desconfiado da linha de questionamento de Drizzt. Se o os sábios lordes-drow estivessem realmente interessados em Crenshinibon, por que não estavam mais inteirados de seus pontos fortes e fracos?
Foi aí que Errtu compreendeu seu erro. Ele voltou a examinar Drizzt, mas com um foco diferente. Ao encontrar o drow, atordoado pela mera presença de um elfo negro na região, ele havia procurado sinais de trapaça nos atributos físicos do próprio Drizzt, tentando determinar se as características drow eram uma ilusão - um truque inteligente, porém simples de alteração da forma, ao alcance até mesmo de um mago menor.
Quando se convenceu de que tinha diante dele um drow de verdade e não uma ilusão, Errtu aceitou a credibilidade da história de Drizzt, consistente com o estilo dos elfos negros.
Agora, porém, o demônio explorava outros indícios periféricos além da pele negra de Drizzt, reparando nos objetos que este carregava e na área que ele delimitara para o encontro. Nada que Drizzt tinha consigo, nem mesmo as armas embainhadas em seus quadris, emanava as distintas propriedades mágicas do mundo subterrâneo. Talvez os mestres-drow tivessem aparelhado seus espiões de maneira mais adequada ao mundo da superfície, raciocinou Errtu. Pelo que aprendera sobre os elfos negros durante seus muitos anos de serviço em Menzoberranzan, a presença daquele drow não era uma ultrajante.
Mas as criaturas do caos sobreviviam porque não confiavam em ninguém.
Errtu continuou sua busca por indícios da autenticidade de Drizzt. O único objeto percebido pelo demônio a refletir a herança de Drizzt era uma fina corrente de prata presa em volta do pescoço esguio, uma jóia comum entre os elfos negros, usada para carregar uma pequena bolsa de dinheiro. Concentrando-se nisso, Errtu descobriu uma segunda corrente, mais delicada que a primeira e a ela entrelaçada. O demônio seguiu o vinco quase imperceptível criado pela longa corrente no gibão de Drizzt.
Incomum, observou ele, e talvez revelador. Errtu apontou a corrente, pronunciou uma palavra de comando e ergueu o dedo esticado.
Drizzt retesou-se ao sentir o emblema deslizar para fora de seu gibão de couro. O símbolo passou pelo decote do traje, caiu até esticar a corrente e pender exposto sobre seu peito.
O sorriso maldoso de Errtu alargou-se juntamente com seus olhos semi-cerrados.
- Escolha incomum para um drow - sibilou ele com sarcasmo. - Eu teria esperado o símbolo de Llolth, a rainha-demônio de seu povo. Ela não ficaria nada feliz!
Como que a partir do nada, um chicote de muitas correias apareceu numa das mãos do demônio e, na outra, uma espada denteada e cruelmente chanfrada.
A princípio, a mente de Drizzt lançou-se por centenas de caminhos, explorou as mentiras mais plausíveis que poderia inventar para tirá-lo daquele apuro. Mas, em seguida, ele chacoalhou a cabeça resolutamente e descartou as mentiras. Ele não desonraria sua divindade.
Da corrente de prata pendia um presente de Régis, uma peça que o halfling entalhara a partir dos ossos de uma das poucas cabeçudas que jamais fisgara. Drizzt ficara profundamente emocionado quando Régis lhe mostrara o pingente e considerava-o o melhor trabalho do halfling. Girava suspenso pela longa corrente, e o relevo e o sombreado delicados conferiam-lhe o caráter de uma verdadeira obra de arte.
Era uma cabeça de unicórnio, o símbolo da deusa Mielikki.
- Quem é você, drow? - exigiu Errtu. O demônio já tinha se decidido a matar Drizzt, mas estava intrigado com um encontro tão incomum. Um elfo negro que seguia a Dama da Floresta? E um habitante da superfície também! Errtu conhecera muitos drow ao longo dos séculos, mas nunca ouvira falar de um que tivesse abandonado os costumes perversos dos drow. Assassinos frios todos eles, haviam ensinado até mesmo ao grande demônio do caos alguns truques no que se referia aos métodos da tortura excruciante.
- Sou Drizzt Do'Urden, isso ao menos é verdade - replicou Drizzt tranqüilamente. - Aquele que renunciou à Casa de Daermon N'a'shezbaernon. - Todo o medo abandou Drizzt assim que ele aceitou, malgrado toda e qualquer esperança, que teria de lutar com o demônio. Ele assumia agora a serena prontidão de um guerreiro experiente, preparado para aproveitar a menor vantagem que aparecesse. - Um ranger humilde a serviço de Gwaeron Windstrom, herói da deusa Mielikki. - Ele fez uma reverência, de acordo com as normas de uma apresentação adequada.
Ao se endireitar, ele desembainhou as cimitarras.
- Preciso derrotá-lo, cicatriz da vilania - declarou -, e mandá-lo de volta ao turbilhão de nuvens do Abismo sem fundo. Não há lugar no mundo iluminado pelo sol para alguém de sua espécie.
- Você está confuso, elfo - disse o demônio. - Perdeu os costumes de seu povo e agora ousa presumir que é capaz de me derrotar! - Chamas se ergueram das pedras ao redor de Errtu. - Eu o teria matado com misericórdia, com um golpe limpo, por respeito a sua raça. Mas seu orgulho me atormenta; hei de ensiná-lo a desejar a morte! Venha, sinta a ardência de minhas chamas!
Drizzt já se encontrava praticamente indefeso diante do calor do fogo demoníaco de Errtu, e a luminosidade das chamas feriam seus olhos sensíveis. O corpanzil do demônio parecia apenas a mancha embaçada de uma sombra. O drow viu a escuridão que se estendia à direita do demônio e compreendeu que Errtu havia erguido sua terrível espada. Posicionou-se para a defesa mas, de repente, o demônio cambaleou de lado e rugiu, surpreso e enfurecido.
Guenhwyvar havia se agarrado firmemente ao braço erguido da criatura.
O imenso demônio manteve a pantera à distância, tentando imprensar o gato entre seu antebraço e a parede de rocha para manter as garras e os dentes dilacerantes longe de uma área vital. Guenhwyvar mordia e arranhava o braço descomunal, rasgava a pele e os músculos do demônio.
Errtu afastou o violento ataque com um estremecimento e decidiu lidar com o gato mais tarde. A principal preocupação do demônio continuava a ser o drow, pois ele respeitava o poder potencial dos elfos negros. Errtu vira muitos adversários abatidos por um dos incontáveis truques dos elfos negros.
O chicote vergastou as pernas de Drizzt, rápido demais para que o drow, ainda tonto com a súbita explosão de luz das chamas, aparasse o golpe ou se esquivasse. Errtu puxou o cabo assim que as correias se emaranharam nas pernas finas e nos tornozelos do drow, com força suficiente para lançar Drizzt facilmente de costas ao chão.
Drizzt sentiu a dor lancinante em suas pernas e ouviu o jato de ar expelido de seus pulmões ao cair sobre a pedra dura. Ele sabia que precisava reagir sem demora, mas o fulgor das chamas e o súbito ataque de Errtu o desorientaram. Viu-se arrastado pela pedra, sentiu a intensidade do calor que aumentava. Ele conseguiu erguer a cabeça apenas a tempo de ver os pés emaranhados penetrarem o fogo demoníaco.
- E, assim, eu morro - declarou categoricamente.
Mas suas pernas não queimaram.
Salivando de antecipação pelos gritos agonizantes de sua vítima indefesa, Errtu deu um puxão mais forte no chicote e arrastou Drizzt completamente para dentro do fogo. Apesar de totalmente envolto pelas labaredas, o drow mal se sentia aquecido pelas chamas.
E então, com um derradeiro silvo de protesto, as chamas ardentes extinguiram-se de repente.
Nenhum dos oponentes compreendeu o que acontecia, pois ambos presumiram que o outro havia sido o responsável.
Errtu atacou rapidamente mais uma vez. Baixando o pé pesado sobre o peito de Drizzt, começou a esmagá-lo contra a pedra. O drow, desesperado, distribuiu golpes com uma das armas, mas isso não teve qualquer efeito sobre o monstro de um outro mundo.
Foi então que Drizzt brandiu a outra cimitarra, a espada que recolhera do tesouro do dragão.
Chiando como a água em contato com o fogo, ela penetrou a articulação do joelho de Errtu. O punho da arma aqueceu-se quando a lâmina rasgou a pele do demônio e quase queimou a mão de Drizzt. Depois, tornou-se fria como o gelo, como se extinguisse a força vital e ardente de Errtu com uma energia glacial toda própria. Drizzt compreendeu, então, o que apagara as chamas.
O demônio boquiabriu-se, completamente horrorizado, depois gritou de agonia. Nunca sentira tamanha ardência! Ele saltou para trás e agitou-se freneticamente, tentando escapar à terrível dor provocada pela arma, e arrastou Drizzt, que não conseguia largar o punho. Guenhwyvar foi atirada longe com a violência da fúria do demônio, voou do braço do monstro e colidiu pesadamente com a parede.
Drizzt fitou o ferimento, incrédulo, enquanto o demônio recuava. Jorrava vapor do buraco no joelho de Errtu e as bordas do corte cobriam-se de gelo!
Mas Drizzt também havia se enfraquecido com o golpe. Em sua luta com o poderoso demônio, a cimitarra extraíra a força vital do portador e arrastara Drizzt para a batalha com o monstro de fogo.
Agora o drow sentia como se não lhe tivessem restado forças nem mesmo para ficar de pé. Mas flagrou-se investindo adiante, com a espada em riste, como que arrastado pela avidez da cimitarra.
A entrada era muito estreita. Errtu não conseguia se esquivar nem saltar para longe.
A cimitarra encontrou o ventre do demônio.
A onda explosiva que resultou do contato da lâmina com o núcleo da força vital de Errtu exauriu as energias de Drizzt e o arremessou para trás. Ele se chocou com a parede de pedra e desabou, mas conseguiu manter-se alerta o suficiente para testemunhar a luta titânica que ainda continuava.
Errtu saiu para a saliência. O demônio agora cambaleava, tentando abrir as asas. Mas elas pendiam, combalidas. O poder da cimitarra emitia uma luz branca e a arma continuava com seu assalto. O demônio não suportava segurá-la nem arrancá-la da própria carne, apesar de a lâmina encravada, cuja magia apagava as chamas que ela fora criada para destruir, estivesse certamente vencendo o conflito.
Errtu compreendeu que havia se descuidado, pois confiara excessivamente em sua capacidade de destruir qualquer mortal em combate singular. O demônio não tinha pensado na possibilidade de uma espada tão cruel existir; nunca ouvira falar de uma arma com tamanha ardência!
O vapor jorrava das vísceras expostas de Errtu e envolvia os combatentes.
- E, assim, você me baniu, drow traiçoeiro! - chispou ele.
Tonto e estupefato, Drizzt viu a luz branca aumentar em intensidade e a sombra escura diminuir.
- Cem anos, drow! - uivou Errtu. - Não é muito tempo para nenhum de nós! - O vapor se adensava à medida que a sombra parecia derreter.
- Um século, Drizzt Do'Urden! - veio o grito enfraquecido de Errtu desde algum lugar muito distante. - Cuidado, então! Errtu não estará muito longe!
O vapor flutuou no ar e sumiu.
O último som que Drizzt ouviu foi o retinir da cimitarra de metal que caía sobre a saliência de pedra.

26
Direitos de Vitória

Wulfgar estava recostado em sua cadeira, à cabeceira da mesa principal no Recinto do Hidromel, que fora construído às pressas, e batia o pé ansiosamente por causa da longa e necessária demora devida às exigências da tradição. Sentia que seu povo já deveria estar a caminho, mas foi a restauração das cerimônias e celebrações tradicionais que imediatamente o diferenciaram - e o colocaram acima - do tirano Heafstaag aos olhos dos céticos e sempre desconfiados bárbaros.
Wulfgar, afinal, entrara no acampamento depois de cinco anos de ausência e desafiara seu rei de longa data. Um dia depois, conquistara a coroa e no dia seguinte fora coroado Rei Wulfgar da Tribo do Alce.
E era sua determinação que seu reinado, curto como pretendia que este fosse, não se caracterizasse pelas ameaças e táticas intimidativas de seu predecessor. Ele pediria, e não ordenaria aos guerreiros das tribos reunidas que o acompanhassem na batalha, pois sabia que o guerreiro bárbaro era um homem impelido quase exclusivamente pelo orgulho feroz. Despojados de sua dignidade, como Heafstaag fizera ao se recusar a honrar a soberania dos reis individuais, os homens da tribo não eram melhores na batalha do que os homens comuns. Wulfgar sabia que era preciso recuperar a vantagem daquele orgulho se quisessem ter alguma chance contra a esmagadora superioridade numérica do mago.
Portanto, Hengorot, o Recinto do Hidromel, fora erguido e o Desafio da Canção iniciado pela primeira vez em quase cinco anos. Era um momento breve e feliz de competição jovial entre as tribos, sufocadas sob a dominação implacável de Heafstaag.
A decisão de erguer o recinto de pele de gamo havia sido difícil para Wulfgar. Supondo-se que ainda houvesse tempo antes de o exército de Kessell atacar, ele ponderou os benefícios de retornar à tradição e a necessidade premente de urgência. Ele esperava apenas que, no frenesi dos preparativos antes da batalha, Kessell não notasse a ausência do rei bárbaro, Heafstaag. Se o mago fosse perspicaz, isso era bastante improvável.
Agora ele esperava silenciosa e pacientemente, observando as chamas retornarem aos olhos dos homens da tribo.
- Como nos velhos tempos? - perguntou Revjak, sentado a seu lado.
- Bons tempos - respondeu Wulfgar.
Satisfeito, Revjak recostou-se na parede de pele de gamo da tenda e proporcionou ao novo chefe a solidão que ele obviamente desejava. E Wulfgar retomou sua espera, à procura do melhor momento para revelar sua proposta.
Na outra extremidade do recinto, tinha início uma competição de arremesso de machados. Semelhante à tática que Heafstaag e Beorg haviam utilizado para selar um pacto entre as tribos no último Hengorot, o desafio consistia em arremessar o machado a partir da maior distância possível e cravá-lo num barril de hidromel com força suficiente para abrir um buraco. O número de canecas enchidas com o esforço, no decorrer de uma contagem especificada, determinava o sucesso do arremesso.
Wulfgar viu ali sua oportunidade. Saltou de seu banco e exigiu, como anfitrião, o primeiro arremesso. O homem que havia sido escolhido para arbitrar o desafio reconheceu o direito de Wulfgar e convidou-o a descer até a primeira marca designada.
- Daqui mesmo - disse Wulfgar, levando Garra de Palas ao ombro. Murmúrios de incredulidade e agitação manifestaram-se em todos os cantos do recinto. O uso de um martelo de guerra naquele desafio era inaudito, mas ninguém reclamou ou citou as regras. Todos os homens que haviam escutado as histórias, mas não testemunhado em primeira mão o estilhaçamento do grande machado de Heafstaag, estavam ansiosos para ver a arma em ação. Um barril de hidromel foi colocado sobre um banco ao fundo do recinto.
- Mais um atrás dele! - exigiu Wulfgar. - E outro atrás desse! - Sua concentração restringiu-se à tarefa imediata, e ele não perdeu tempo tentando distinguir os sussurros que ouvia a seu redor.
Os barris foram preparados e a multidão afastou-se da linha de visão do jovem rei. Wulfgar apertou com força Garra de Palas em suas mãos e inspirou profundamente, segurando a arma para se manter firme. Os espectadores incrédulos assistiram, estupefatos, à explosão de movimento do novo rei, que arremessou o poderoso martelo com um gesto fluído e uma força inigualável.
Girando no ar, Garra de Palas atravessou o longo recinto, destruiu o primeiro barril, depois o segundo e continuou: não só derrubou os três alvos e seus bancos, como seguiu em frente e abriu um buraco nos fundos do Recinto do Hidromel. Os guerreiros mais próximos acorreram à abertura para acompanhar o vôo da arma, mas o martelo havia desaparecido nas trevas. Eles saíram para recuperá-lo.
Mas Wulfgar os deteve. Saltou para a mesa e ergueu os braços diante dele.
- Ouçam-me, guerreiros das planícies do norte! - gritou ele.
Estavam todos boquiabertos diante da proeza sem precedentes; alguns caíram de joelhos ao ver Garra de Palas reaparecer subitamente nas mãos do jovem rei.
- Sou Wulfgar, filho de Beornegar e Rei da Tribo do Alce! No entanto, falo a vocês agora não como seu rei, mas como um irmão guerreiro, horrorizado pela desonra que Heafstaag tentou impor a todos nós!
Incitado por saber que havia conquistado a atenção e o respeito de todos e pela confirmação de que não estavam erradas suas suposições sobre os verdadeiros desejos deles, Wulfgar aproveitou o momento. Aquelas pessoas haviam clamado por sua libertação do reinado tirânico do rei caolho e, derrotadas e quase levadas à extinção em sua última campanha, e agora prestes a lutar ao lado de goblins e gigantes, ansiavam por um herói que lhes devolvesse o orgulho perdido.
- Sou o matador do dragão! - continuou ele. - E, pelo direito da vitória, possuo os tesouros de Morte Gélida.
Novamente as conversas particulares o interromperam, pois o tesouro desprotegido tornara-se assunto de debate. Wulfgar deixou-os continuar com a conversa fiada durante um bom tempo para aumentar-lhes o interesse pelo ouro do dragão.
Quando finalmente se aquietaram, ele continuou.
- As tribos da tundra não lutam pela mesma causa que goblins e gigantes! - decretou ele, recebendo estimulantes gritos de aprovação. - Lutamos contra eles!
A multidão ficou subitamente em silêncio. Um guarda entrou correndo na tenda, mas não se atreveu a interromper o novo rei.
- Parto com a aurora para Dez-Burgos - declarou Wulfgar. - Hei de combater o mago Kessell e a horda abominável que ele arrancou das tocas da Espinha do Mundo!
A multidão não respondeu. Os bárbaros aceitavam avidamente a idéia de lutar contra Kessell, mas o pensamento de retornar a Dez-Burgos para ajudar a gente que quase os destruíra cinco anos antes nunca lhes havia ocorrido. Mas o guarda interveio nesse momento.
- Receio que sua demanda seja vã, jovem rei - disse ele. Wulfgar lançou um olhar angustiado para o homem, pois já adivinhava as notícias que ele trazia. - As nuvens de fumaça de grandes incêndios elevam-se neste exato momento da planície ao sul.
Wulfgar avaliou as notícias aflitivas. Ele imaginara que teria mais tempo.
- Então partirei esta noite! - vociferou para a assembléia atordoada. - Venham comigo, meus amigos, meus colegas guerreiros do norte! Hei de mostrar a vocês o caminho para as glórias perdidas de nosso passado!
A multidão parecia dividida e incerta. Wulfgar lançou sua última cartada:
- A qualquer homem que vier comigo, ou aos parentes sobreviventes, caso ele venha a tombar na batalha, ofereço uma parte justa do tesouro do dragão!
Ele os atingira como uma poderosa borrasca vinda do Mar do Gelo em Movimento. Prendera a imaginação e o coração de cada guerreiro bárbaro e prometera a eles um retorno à riqueza e à glória de seus dias mais brilhantes.
Naquela mesma noite, o exército mercenário de Wulfgar partiu do acampamento e atroou pela vasta planície.
Nem um único homem ficou para trás.

27
O Relógio da Destruição

Bremen foi incendiada ao amanhecer. O povo da pequena aldeia desmurada compreendeu que de nada adiantaria resistir e lutar assim que a torrente de monstros atravessou impetuosamente o Rio Shaengarne. Ofereceram uma resistência simbólica no vau, disparando algumas rajadas de flechas nos goblins de vanguarda apenas para retardar as tropas o bastante até que as embarcações mais pesadas e mais lentas zarpassem e alcançassem a segurança do Maer Dualdon. Os arqueiros, logo depois, fugiram de volta às docas e seguiram seus concidadãos.
Quando os goblins finalmente entraram na cidade, encontraram-na completamente abandonada. Enfurecidos, assistiram à fuga das embarcações à vela, que recuaram em direção ao leste para se unir à flotilha de Targos e Termalaine. Bremen encontrava-se muito distante para ser de qualquer utilidade para Akar Kessell e, portanto - ao contrário da cidade de Termalaine, convertida num acampamento -, foi arrasada pelas chamas.
As pessoas no lago, as mais recentes numa longa sucessão de vítimas desabrigadas pela destruição arbitrária de Kessell, observaram, impotentes, suas casas virem abaixo em forma de lascas incandescentes.
Desde a muralha de Brin Shander, Cássio e Régis também assistiam a tudo.
- Ele cometeu mais um erro - Cássio disse ao halfling.
- Como assim?
- Kessell acuou as pessoas de Targos, Termalaine, Caer-Konig, Caer-Dineval e, agora, Bremen - explicou Cássio. - Elas não têm mais para onde ir; sua única esperança é a vitória.
- Grande coisa - comentou Régis. - Você viu o que a torre é capaz de fazer. E, mesmo sem ela, o exército de Kessell poderia destruir a todos nós! Como o próprio mago disse, ele tem todas as vantagens.
- Talvez - cedeu Cássio. - O mago acredita ser invencível, isso é certo. E esse é o erro dele, meu amigo. O mais dócil dos animais luta bravamente quando encurralado contra uma parede, pois nada tem a perder. Um homem pobre é mais letal que um homem rico porque dá menos valor à própria vida. E um homem desabrigado, preso nas estepes congeladas com os primeiros ventos do inverno já começando a soprar, é um inimigo realmente formidável!
- Não tenha medo, amiguinho - continuou Cássio - Em nosso conselho, agora pela manhã, encontraremos uma maneira de explorar as fraquezas do mago.
Régis assentiu, incapaz de contestar a lógica simples do representante e sem disposição para rejeitar seu otimismo. Mesmo assim, ao examinar as densas fileiras de goblins e ores que cercavam a cidade, o halfling alimentava poucas esperanças.
Olhou para o norte, onde a poeira finalmente havia se assentado sobre o vale dos anões. A Ladeira de Bruenor não mais existia, pois ruíra com o restante da face íngreme quando os anões obliteraram as próprias cavernas.
- Abra uma porta para mim, Bruenor - sussurrou Régis distraidamente. - Por favor, deixe-me entrar.

Coincidentemente, Bruenor e seu clã estavam, naquele exato momento, discutindo a plausibilidade de abrir uma porta em seus túneis. Mas não para deixar alguém entrar. Logo após seu sucesso arrasador contra os ogros e goblins nas saliências do lado de fora das minas, os belicosos barbas-longas se deram conta de que não conseguiriam ficar no ócio enquanto ores, goblins e monstros ainda piores destruíam o mundo ao redor deles. Ansiavam por experimentar Kessell uma segunda vez. Nas entranhas do subterrâneo, eles não faziam idéia de que Brin Shander ainda estava de pé, nem que o exército de Kessell já havia invadido toda a Dez-Burgos, mas ouviam os sons de um acampamento acima das seções mais meridionais de seu imenso complexo.
Foi Bruenor quem propôs a idéia de uma segunda batalha, principalmente por estar ele mesmo furioso com a perda iminente de seus mais chegados amigos entre os não-anões. Pouco depois de abatidos os goblins que escaparam ao desmoronamento dos túneis, o líder do clã do Salão de Mitral reuniu todo o seu povo ao redor dele.
- Mandem alguém até as extremidades mais distantes dos túneis - instruiu. - Descubram onde os canalhas vão dormir.
Naquela noite, os sons dos monstros em marcha tornaram-se óbvios bem mais ao sul, sob o campo que cercava Brin Shander. Os diligentes anões imediatamente puseram-se a restaurar os túneis pouco usados que corriam naquela direção. E, assim que se colocaram sob o exército, cavaram dez poços separados, de baixo para cima, detendo-se apenas pouco abaixo da superfície.
Um brilho especial havia retornado a seus olhos: a centelha de um anão que sabe estar prestes a decepar algumas cabeças de goblins. O traiçoeiro plano de Bruenor tinha um potencial infinito para a vingança com riscos mínimos. Em coisa de cinco minutos, poderiam completar suas novas saídas. Menos de um minuto depois, todo o seu contingente estaria na superfície, bem no meio do exército adormecido de Kessell.

A reunião que Cássio qualificara como um conselho, na verdade, foi antes um fórum onde o representante de Brin Shander pôde revelar suas primeiras estratégias retaliatórias. No entanto, nenhum dos líderes reunidos, nem mesmo Glensather, o único outro representante presente, protestou o mínimo que fosse. Cássio estudara em todos os aspectos o mago e seu exército de goblins entrincheirados e dedicou atenção meticulosa aos pormenores. O representante havia delineado a disposição de todo o contingente e detalhado as rivalidades potencialmente mais explosivas entre as tropas de goblins e ores e as melhores estimativas quanto ao tempo necessário para que o conflito interno enfraquecesse suficientemente o exército.
Todos os presentes concordavam, entretanto, que a pedra fundamental do cerco era Crishal-Tirith. O assombroso poder da estrutura cristalina forçaria até mesmo os ores mais desagregadores à obediência incondicional. No entanto, os limites daquele poder, segundo Cássio, constituíam a verdadeira questão.
- Por que Kessell insistiu tanto numa rendição imediata? - raciocinou o representante. - Ele poderia nos fazer padecer durante alguns dias a angústia de um cerco até amolecer nossa resistência.
Os outros concordaram com a lógica da linha de raciocínio de Cássio, mas não tinham respostas.
-Talvez Kessell não tenha tanto controle sobre seu rebanho quanto acreditamos - sugeriu o próprio Cássio. - Será que o mago teme que seu exército se desintegre ao redor dele caso o ataque seja protelado?
- Pode ser - respondeu Glensather de Angraleste. - Ou pode ser que Akar Kessell simplesmente compreenda o poder de sua vantagem e saiba que não temos escolha a não ser ceder. Será que você não está confundindo confiança com preocupação?
Cássio deteve-se um momento para refletir sobre a questão.
- Excelente colocação - disse ele, enfim. - No entanto, irrelevante para nossos planos.
Glensather e vários outros lançaram um olhar curioso ao representante. Devemos aceitar essa última hipótese - explicou Cássio. - Se o mago tiver realmente o controle absoluto do exército reunido, então tudo o que possamos tentar vai se mostrar inútil em todo caso. Portanto, devemos agir sob o pressuposto de que a impaciência de Kessell revela uma preocupação bem fundada. Não acho que o mago seja um estrategista excepcional. Ele embarcou num curso de destruição que imaginou nos forçaria à submissão, mas que, na realidade, fortaleceu a determinação, de muitos de nós de lutar até o fim. Rivalidades de longa data entre várias vilas, um rancor que o líder sagaz de uma força invasora certamente teria transformado numa excelente vantagem, foram corrigidas com a patente desconsideração do mago pela sutileza e por suas demonstrações de ultrajante brutalidade.
Pelos olhares atentos que recebia, Cássio sabia estar angariando apoio de todos os lados. Tentava realizar duas coisas naquela reunião: convencer os demais a concordar com a jogada de risco que estava prestes a revelar e elevar-lhes as perspectivas, devolvendo-lhes um resto de esperança.
- Nossa gente está lá fora - disse ele, descrevendo um arco amplo com o braço. - No Maer Dualdon e no Lac Dinneshir, as frotas se juntaram, à espera de algum sinal de Brin Shander, de que haveremos de apoiá-los. As pessoas de Bom Prado e Toca de Dugan fazem o mesmo no lago ao sul, armadas até os dentes e cientes de que nesta batalha nada restará a qualquer um dos sobreviventes caso não sejamos vitoriosos! - Ele se debruçou sobre a mesa, prendeu alternadamente o olhar de cada homem sentado diante dele e concluiu sombriamente - Sem um lar. Sem esperança para nossas esposas. Sem esperança para nossos filhos. Sem termos para onde fugir.
Cássio continuou a inspirar os demais a sua volta e foi logo apoiado por Glensather, que intuíra o objetivo do representante de elevar o moral e reconhecera o valor da tentativa. Cássio aguardou o momento mais oportuno. Quando a maioria dos líderes reunidos já havia substituído as carrancas de desespero pelo esgar determinado da sobrevivência, ele apresentou seu ousado plano.
- Kessell exigiu um emissário - disse ele - e nós devemos enviar um.
- Você ou eu pareceríamos a escolha mais óbvia - interveio Glensather. - Qual dos dois deve ser?
Um sorriso oblíquo espalhou-se pelo rosto de Cássio.
- Nenhum dos dois - respondeu. - Um de nós seria a escolha óbvia caso tivéssemos a intenção de concordar com as exigências de Kessell. Mas temos uma outra opção. - Seu olhar recaiu diretamente sobre Régis. O halfling contorceu-se, constrangido, meio que adivinhando o que o representante tinha em mente. - Há alguém entre nós que conseguiu uma reputação quase lendária com suas consideráveis habilidades de persuasão. Talvez seu apelo carismático venha a nos ganhar um tempo valioso em nossas negociações com o mago.
Régis sentiu-se mal. Ele sempre se perguntara quando o pingente de rubi o meteria numa encrenca da qual não conseguiria escapar.
Várias outras pessoas fitavam Régis agora, aparentemente intrigadas pelas possibilidades da sugestão de Cássio. As histórias sobre o encanto e a habilidade persuasiva do halfling e a acusação que Kemp fizera no conselho, semanas antes, haviam sido contadas e recontadas milhares de vezes em todas as vilas, e cada narrador costumava realçar e exagerar os contos para aumentar a própria importância. Embora Régis não estivesse entusiasmado com a perda do poder de seu segredo - era raro que as pessoas o olhassem diretamente nos olhos agora -, ele chegara a desfrutar de um certo grau de fama. Ele não tinha pensado nos possíveis efeitos colaterais de ter tantos admiradores.
- Que o halfling, o antigo porta-voz de Bosquesó, represente-nos na corte de Akar Kessell - declarou Cássio, com a aprovação quase unânime da assembléia. -Talvez nosso pequeno amigo seja capaz de convencer o mago do erro de sua maldade!
- Estão enganados! - protestou Régis. - São apenas boatos...
- A humildade - interrompeu Cássio - é uma excelente virtude, meu bom halfling. E todos aqui reunidos apreciam a sinceridade de sua insegurança. E apreciam ainda mais sua disposição em lançar seus talentos contra Kessell à luz dessa insegurança!
Régis fechou os olhos e não respondeu, sabendo que a moção certamente passaria, quer ele a aprovasse ou não.
E passou, sem um único voto discordante. Acuadas, as pessoas estavam totalmente dispostas a agarrar o menor fragmento de esperança que pudessem encontrar.
Cássio agiu rapidamente para encerrar o conselho, pois acreditava que todos os outro assuntos - problemas de superlotação e armazenamento de comida - eram de pouca importância numa hora como aquela. Se Régis falhasse, todas as outras inconveniências se tornariam imateriais.
Régis permaneceu em silêncio. Ele se apresentara ao conselho apenas para oferecer apoio a seus amigos representantes. Ao assumir seu lugar à mesa, não tinha nem mesmo a intenção de participar ativamente das discussões, quanto menos de se tornar o ponto central do plano de defesa.
E, portanto, suspendeu-se a reunião. Cássio e Glensather trocaram piscadelas, cientes do triunfo obtido, pois todos deixaram a sala sentindo-se um pouco mais otimistas.
Cássio reteve Régis quando este fez menção de sair com os demais. O representante de Brin Shander fechou a porta depois do último ter passado, desejando uma audiência privada com o principal personagem dos primeiros estágios de seu plano.
- Você poderia ter discutido isso tudo comigo primeiro! - Régis resmungou pelas costas do representante assim que a porta foi fechada. - Acho que eu merecia a oportunidade de tomar uma decisão quanto a isso!
Cássio apresentava uma fisionomia lúgubre ao se virar para encarar o halfling.
- Que escolha tem qualquer um de nós? - perguntou ele. - Ao menos desta maneira demos a todos eles um pouco de esperança.
- Você me sobreestima - protestou Régis.
- Talvez você é que se subestime - disse Cássio.
Apesar de o halfling compreender que Cássio não voltaria atrás no plano que havia colocado em ação, a confiança do representante transmitia a Régis um espírito altruísta genuinamente reconfortante.
- Rezemos, pelo bem de nós dois, que esta última hipótese seja a verdadeira - continuou Cássio, indo até sua cadeira. - Mas eu realmente acredito que este seja o caso. Tenho fé em você, mesmo que você não a tenha. Lembro-me bem do que fez ao Representante Kemp no conselho, cinco anos atrás, embora fosse necessária a própria declaração dele de que havia sido enganado para que eu percebesse a verdade. Um trabalho magistral de persuasão, Régis de Bosquesó, e mais ainda por ter guardado seu segredo durante tanto tempo!
Régis corou e admitiu que Cássio tinha razão.
- E se você consegue lidar com tipos teimosos como Kemp de Targos, deve achar Akar Kessell uma vítima fácil!
- Concordo com você que Kessell não chega a ser um homem de força interior - disse Régis -, mas os magos têm maneiras de descobrir truques semelhantes aos deles. E você esquece o demônio. Eu nem mesmo tentaria enganar alguém da espécie dele!
- Esperemos que você não tenha de lidar com esse aí - concordou Cássio, com um estremecimento visível. - No entanto, sinto que você deve ir à torre e tentar dissuadir o mago. Se não conseguirmos manter afastado o exército reunido até sua própria desordem interna se tornar nossa aliada, então estaremos certamente condenados. Creia-me, já que sou seu amigo, que não pediria a você para correr tamanho risco caso vislumbrasse qualquer outro caminho possível.
Um olhar dolorido de impotente simpatia se insinuara claramente na aparência anterior de vibrante otimismo do representante. Sua preocupação comoveu Régis, como o faria um homem faminto a implorar comida.
Mesmo levando em consideração seus sentimentos pelo representante excessivamente aflito, Régis foi forçado a admitir a lógica do plano e a ausência de outros caminhos a explorar. Kessell não havia lhes dado muito tempo para reagrupar depois do ataque inicial. Com a destruição de Targos, o mago demonstrara sua capacidade de igualmente destruir Brin Shander, e o halfling tinha poucas dúvidas de que Kessell levaria a cabo sua vil ameaça.
E foi por isso que Régis acabou aceitando sua participação como a única opção. O halfling não era facilmente incitado a agir, mas, quando se decidia a fazer algo, geralmente tentava fazê-lo da maneira adequada.
- Antes de tudo - começou ele -, devo lhe contar, no mais rigoroso sigilo, que realmente tenho auxílio mágico. - Um brilho de esperança retornou aos olhos de Cássio. Ele se inclinou, ansioso para ouvir mais, porém Régis apaziguou-o com uma palma estendida.
- Você precisa entender, no entanto - explicou o halfling -, que eu não tenho, como alegam algumas histórias, o poder de perverter o que uma pessoa traz no coração. Eu não conseguiria convencer Kessell a abandonar sua senda maligna mais do que poderia convencer o representante Kemp a fazer as pazes com Termalaine. - Ele se levantou da cadeira almofadada e pôs-se a caminhar em volta da mesa, com as mãos atrás das costas. Cássio o vigiava com expectativa e incerteza, incapaz de descobrir exatamente aonde ele pretendia chegar ao admitir possuir o poder e logo depois repudiá-lo.
- No entanto, às vezes, tenho realmente como fazer alguém enxergar as coisas de um ponto de vista diferente - admitiu Régis. - Como no incidente a que você se referiu, quando convenci Kemp de que embarcar num certo curso de ação acabaria ajudando-o a alcançar suas próprias metas. Portanto, conte-me novamente, Cássio, tudo o que você descobriu sobre o mago e seu exército. Vejamos se conseguimos encontrar uma maneira de fazer Kessell duvidar das próprias coisas com as quais ele veio a contar!
A eloqüência do halfling atordoou o representante. Muito embora não tivesse olhado Régis nos olhos, vislumbrou uma promessa de verdade nas histórias que sempre presumira um exagero.
- Pelo arauto, soubemos que Kemp assumiu o comando das forças remanescentes das quatro vilas às margens do Maer Dualdon - explicou Cássio. - Do mesmo modo, Jensin Brent e Schermont aguardam no Lac Dinneshir e, combinados às frotas de Marerrubra, devem se mostrar uma força realmente poderosa! Kemp já jurou vingança e duvido que qualquer um dos outros refugiados cogite a rendição ou a fuga.
- Para onde poderiam ir? - murmurou Régis.
Cheio de pena, ele olhou para Cássio, que não tinha nenhuma palavra de consolo. Cássio havia simulado, diante dos demais no conselho e das pessoas na vila, uma demonstração de confiança e esperança, mas não poderia olhar para Régis naquele instante e fazer promessas vazias.
Glensather retornou e irrompeu repentinamente sala adentro.
- O mago está de volta ao campo! - gritou. - Exige nosso emissário. As luzes na torre recomeçaram!
Os três precipitaram-se para fora do edifício, com Cássio a reiterar o tanto quanto podia as informações pertinentes. Régis o silenciou.
- Estou preparado - ele tranqüilizou Cássio. - Não sei se esse seu plano ultrajante tem alguma chance de funcionar, mas tem minha palavra de que vou me esforçar para levar a cabo o engodo.
Então, eles estavam ao portão.
- Deve funcionar - disse Cássio, dando um tapinha no ombro de Régis. - Não temos outra esperança.
Ele começou a se virar, mas Régis tinha uma última pergunta que precisava de resposta.
- E se eu descobrir que Kessell está além de meu poder? - perguntou ele sombriamente. - O que devo fazer se o engodo falhar?
Cássio olhou ao redor, para os milhares de mulheres e crianças amontoados nas áreas públicas da cidade, tentando se proteger do vento gélido.
- Se falhar - começou ele, lentamente -, se Kessell não for dissuadido de usar o poder da torre contra Brin Shander - ele hesitou mais uma vez, mesmo que apenas para retardar o momento em que teria de ouvir a si mesmo pronunciar as palavras -, você tem então minhas ordens pessoais de entregar a rendição da cidade.
Cássio virou-se e dirigiu-se aos parapeitos para testemunhar o confronto crucial. Régis não hesitou mais tempo, pois sabia que a menor pausa naquela conjuntura assustadora provavelmente o faria mudar de idéia e correr até encontrar um esconderijo em algum buraco escuro da cidade. Antes mesmo que tivesse a oportunidade de reconsiderar, ele atravessara o portão e marchava audaciosamente colina abaixo, em direção ao espectro ansioso de Akar Kessell.
Kessell havia novamente aparecido entre dois espelhos carregados pelos trolls, tinha os braços cruzados e batia um dos pés impacientemente. A carranca maldosa em seu rosto deu a Régis a distinta impressão de que o mago o mataria com um só golpe, num acesso de fúria incontrolável, antes mesmo que ele chegasse ao sopé da colina. No entanto, o halfling precisava manter os olhos focalizados em Kessell para simplesmente seguir adiante. Os perversos trolls o enojavam mais que qualquer outra coisa que já tivesse encontrado, e foi necessária toda a sua força de vontade para simplesmente se aproximar das criaturas. Já desde o portão era possível sentir-lhes o fedor pútrido.
Mas, de algum modo, ele conseguiu chegar aos espelhos e encarou o mago maligno.
Kessell estudou o emissário durante um bom tempo. Ele não esperara que um halfling representasse a cidade e perguntou-se por que Cássio não tinha vindo pessoalmente a um encontro tão importante.
Você está aqui diante de mim como o representante oficial de Brin Shander e de todos os que residem no interior das muralhas?
Régis assentiu.
- Sou Régis de Bosquesó - ele respondeu -, um amigo de Cássio e antigo membro do Conselho dos Dez. Fui nomeado para falar em nome do povo no interior da cidade.
Os olhos de Kessell se estreitaram, antecipando a vitória.
- E você traz consigo a mensagem de sua rendição incondicional?
Régis trocou de pé, apreensivo, e mudou propositalmente de posição para que o pingente de rubi começasse a girar em seu peito.
- Desejo uma audiência privada convosco, poderoso mago, para que possamos discutir os termos do acordo.
Os olhos de Kessell se arregalaram. Ele olhou para Cássio, que estava sobre a muralha.
- Eu disse incondicional! - guinchou. Atrás dele, as luzes de Crishal-Tirith começaram a rodopiar e a aumentar. - Agora você há de testemunhar a leviandade de sua insolência!
- Espere! - implorou Régis, saltando de um lado a outro para recuperar a atenção do mago. - Há algumas coisas que você deveria saber antes de tudo ser decidido!
Kessell deu pouca atenção à tagarelice do halfling, mas o pingente de rubi subitamente prendeu sua atenção. Mesmo através da proteção oferecida pela distância entre seu corpo físico e a projeção de sua imagem, ele achou a jóia fascinante.
Régis não resistiu ao impulso de sorrir, mesmo que apenas ligeiramente, ao perceber que os olhos do mago não mais piscavam.
- Tenho algumas informações e estou certo de que você vai achá-las valiosas - disse o halfling tranqüilamente.
Kessell fez sinal para que ele continuasse.
- Aqui não - sussurrou Régis. - Muitos ouvidos curiosos por perto. Nem todos os goblins aqui reunidos ficariam contentes em ouvir o que tenho a dizer!
Kessell ponderou as palavras do halfling por um instante. Sentia-se curiosamente subjugado por alguma razão que ele ainda não compreendia.
- Muito bem, halfling - concordou. - Ouvirei suas palavras. - Com um clarão e uma nuvem de fumaça, o mago desapareceu.
Régis olhou por sobre o ombro, para as pessoas na muralha, e fez um sinal com a cabeça.
A um comando telepático, proveniente da torre, os trolls alteraram as posições dos espelhos para capturar a imagem de Régis. Mais um clarão, outra nuvem de fumaça e Régis também desapareceu.
Na muralha, Cássio retribuiu o gesto do halfling, porém Régis já havia desaparecido. O representante respirava um pouco melhor, consolado pelo último olhar que Régis lhe lançara e pelo fato de que o sol estava se pondo e Brin Shander continuava de pé. Caso sua suposição, baseada na sincronicidade das ações do mago, estivesse correta, Crishal-Tirith extraía a maior parte de sua energia da luz do sol.
Parecia que seu plano havia lhes conseguido ao menos mais uma noite.

Mesmo com os olhos turvos, Drizzt reconheceu a forma escura que pairava sobre ele. O drow havia batido com a cabeça ao ser arremessado para longe do punho da cimitarra, e Guenhwyvar, sua leal companheira, guardara silenciosa vigília durante todas as longas horas em que o drow permanecera inconsciente, muito embora o gato também houvesse se ferido na luta com Errtu.
Drizzt rolou pelo chão até se sentar e procurou reorientar-se. A princípio, ele pensou que houvesse chegado a aurora, mas depois percebeu que a pálida luz do sol vinha do oeste. Ele estivera inconsciente durante a maior parte de um dia, completamente esgotado, pois a cimitarra havia lhe exaurido a energia vital em sua batalha com o demônio.
Guenhwyvar parecia ainda mais abatida. O ombro do gato pendia sem vida devido à colisão com a parede de pedra, e Errtu tinha aberto um profundo corte em uma de suas patas dianteiras.
Mais do que os ferimentos, contudo, a fadiga consumia o animal mágico. Havia prolongado em muitas horas - além dos limites normais - sua visita ao plano material. O cordão entre seu plano natal e o do drow só se conservava intacto devido à própria energia mágica do gato, e cada minuto a mais neste mundo exauria um pouco de sua força.
Drizzt afagou-lhe afetuosamente o pescoço musculoso. Compreendia o sacrifício que Guenhwyvar fizera pelo bem dele e desejava poder atender às necessidades do gato e mandá-lo de volta ao próprio mundo.
Mas não podia. Se o gato retornasse ao próprio plano, levaria horas para recuperar a força necessária para restabelecer a ligação com este mundo. E ele precisava do gato agora.
- Mais um pouco - ele implorou.
O animal fiel deitou-se ao lado dele sem o menor sinal de protesto. Drizzt observou-o com pena e acariciou-lhe o pescoço mais uma vez. Como ele ansiava por liberar o gato! Mas não podia.
Pelo que Errtu lhe dissera, a porta para Crishal-Tirith era invisível apenas aos seres do Plano Material.
Drizzt precisava dos olhos do gato.

28
Uma Mentira Dentro da Outra

Régis esfregou os olhos para se livrar da imagem residual do clarão ofuscante e achou-se novamente encarando o mago. Kessell estava reclinado sobre um trono de cristal, recostado num dos braços do móvel, com as pernas atiradas casualmente sobre o outro. Encontravam-se numa sala de cristal quadrangular que transmitia uma impressão visual acetinada, mas parecia tão sólida quanto a rocha. Régis compreendeu imediatamente que estava dentro da torre. Dúzias de espelhos ornamentados e de formas estranhas enchiam a sala. Um deles, em particular, o maior e mais decorativo, chamou a atenção do halfling, pois uma fogueira ardia em suas profundezas. A princípio, Régis olhou na direção oposta ao espelho, esperando ver a fonte da imagem, mas, em seguida, percebeu que as chamas não eram um reflexo e sim um acontecimento real nas dimensões interiores do próprio espelho.
- Bem-vindo a meu lar - riu o mago. - Considere-se um halfling de sorte por testemunhar tamanho esplendor! - Mas Régis fixou o olhar em Kessell e estudou o mago cuidadosamente, pois aquele tom de voz não se assemelhava à característica pronúncia ininteligível dos que ele havia encantado com o rubi.
- Perdoe minha surpresa quando primeiro nos encontramos - continuou Kessell. - Não esperava que os homens austeros de Dez-Burgos enviassem um halfling para fazer o trabalho por eles! - Ele riu novamente e Régis entendeu que algo havia quebrado o encanto que ele lançara sobre o mago quando ainda estavam do lado de fora.
O halfling imaginava o que acontecera. Sentia o poder palpitante da sala; era evidente que Kessell dele se nutria. Com sua psique do lado de fora, o mago estivera vulnerável à magia da jóia, mas, ali dentro, sua força estava muito acima do poder do rubi.
- Você disse ter informações para mim - exigiu Kessell, de repente. - Fale agora, tudo! Ou sua morte será bem desagradável!
Régis tartamudeou, tentando improvisar uma história alternativa. As mentiras insidiosas que planejara urdir seriam de pouco valor contra o mago impassível. De fato, em suas óbvias fraquezas, poderiam revelar boa parte da verdade sobre as estratégias de Cássio.
Kessell aprumou-se em seu trono e inclinou-se sobre o halfling, impondo o olhar a sua contraparte.
- Fale! - exigiu ele, sereno.
Régis sentiu uma vontade férrea que se insinuava em todos os seus pensamentos, obrigando-o a obedecer a todas as ordens de Kessell. No entanto, ele percebeu que a força dominadora não emanava do mago. Parecia antes vir de alguma fonte externa, talvez o objeto invisível que o mago ocasionalmente apertava entre os dedos, metido num bolso em suas vestes.
Entretanto, os halflings possuíam uma forte resistência natural à magia e uma força opositora - a jóia - ajudou Régis a resistir à vontade insinuante e a repeli-la aos poucos. Uma idéia repentina ocorreu a Régis. Ele sem dúvida vira tanta gente cair em seus próprios encantos que era capaz de imitar-lhes a postura reveladora. Deixou os ombros penderem um pouco, como se de repente ele se fizesse completamente à vontade, e focalizou o olhar vazio numa imagem no canto da sala, por sobre o ombro de Kessell. Sentiu os olhos se ressecarem, mas resistiu à tentação de piscar.
- Que informação você deseja? - respondeu mecanicamente. Kessell afundou-se no espaldar do trono, novamente confiante.
- Dirija-se a mim como Mestre Kessell - ordenou.
- Que informação o senhor deseja, Mestre Kessell?
- Ótimo - o mago sorriu afetadamente consigo mesmo. - Admita a verdade, halfling. A história que você foi enviado para contar era um engodo.
"Por que não?", pensou Régis. A mentira temperada com pitadas de verdade tornava-se muito mais forte.
- Sim - ele respondeu. - Para fazê-lo pensar que seus aliados mais leais planejavam contra o senhor.
- E qual era o propósito? - pressionou Kessell, bastante satisfeito consigo mesmo. - O povo de Brin Shander sabe com certeza que eu poderia facilmente esmagá-los sem nenhum aliado. Parece-me um plano frágil.
- Cássio não tinha a menor intenção de tentar derrotá-lo, Mestre Kessell - disse Régis.
- Então, por que você está aqui? E por que Cássio simplesmente não entregou a cidade como exigi?
- Fui enviado para incutir algumas dúvidas - replicou Régis, improvisando às cegas para manter Kessell intrigado e ocupado. Por trás da fachada de suas palavras, ele tentava dar forma a algum tipo de plano alternativo. - Para dar a Cássio mais tempo para traçar seu verdadeiro curso de ação.
Kessell inclinou-se.
- E qual seria esse curso de ação? Régis hesitou, à procura de uma resposta.
- Você não pode resistir! - vociferou Kessell. - Minha vontade é grande demais! Responda ou hei de arrancar a verdade de sua mente.
- Escapar - disse Régis abruptamente e, depois de tê-lo dito, várias possibilidades se abriram diante dele.
Kessell reclinou-se novamente.
- Impossível - o mago respondeu casualmente. - Em toda a sua extensão, meu exército é forte demais para que os humanos o transponham.
- Talvez não tão forte quando o senhor acredita, Mestre Kessell - açulou-o Régis. Agora o caminho abria-se claramente diante dele. Uma mentira dentro da outra. Ele gostou da fórmula.
- Explique-se - exigiu Kessell, e uma sombra de preocupação anuviou-lhe a fisionomia arrogante.
- Cássio tem aliados em suas fileiras.
O mago saltou da cadeira, tremendo de raiva. Régis admirou-se da eficiência de sua simples imitação. Perguntou-se por um instante se alguma de suas próprias vítimas teria igualmente revertido o engodo contra ele. Afastou o pensamento perturbador e reservou-o para futura contemplação.
- Os ores vivem entre as pessoas de Dez-Burgos há meses - continuou Régis. - Uma das tribos chegou a abrir relações comerciais com os pescadores. Esses ores também responderam a sua convocação às armas, mas ainda devem lealdade a Cássio, se é que se pode dizer que essa raça algum dia já foi realmente leal. Mesmo enquanto seu exército se entrincheirava no campo ao redor de Brin Shander, as primeiras comunicações eram trocadas entre o chefe dos ores e mensageiros ores que escapuliram de Brin Shander. (...)
Kessell alisou o cabelo para trás e esfregou o rosto com a mão, nervoso. Seria possível que seu exército aparentemente invencível tivesse uma fraqueza secreta?
Não, ninguém se atreveria a fazer oposição a Akar Kessell!
Mas, ainda assim, se alguns tramassem contra ele - se todos tramassem contra ele -, será que viria a saber? E onde estava Errtu? Será que o demônio estava por trás daquilo tudo?
- Qual tribo? - ele perguntou suavemente a Régis, e seu tom revelava que as informações do halfling haviam lhe ensinado um pouco de humildade.
Régis, então, ludibriou completamente o mago.
O grupo que o senhor enviou para saquear a cidade de Bremen, os Ores da língua Partida - disse ele, observando com total satisfação os olhos cada vez mais arregalados do mago. - Minha tarefa era meramente impedir o senhor de tomar qualquer providência contra Brin Shander antes do cair da noite, pois os ores retornarão antes do amanhecer, presumivelmente para se reagruparem na posição que lhes foi designada no campo, mas, na verdade, para abrir uma brecha em seu flanco ocidental. Cássio vai conduzir o povo pelas encostas ocidentais até a tundra. Esperam apenas mantê-lo desorganizado tempo suficiente para conseguir uma boa vantagem. Depois disso, o senhor será forçado a persegui-los o caminho todo até Luskan!
O plano tinha muitos pontos fracos aparentes, mas parecia razoável que pessoas numa situação tão desesperadora tentassem aquela cartada. Kessell esmurrou o braço do trono.
- Os idiotas! - resmungou.
Régis já respirava um pouco melhor. Kessell estava convencido.
- Errtu! - ele gritou subitamente, sem saber que o demônio fora banido do mundo.
Não houve resposta.
- Ah, maldito seja o demônio! - amaldiçoou Kessell. - Nunca está por perto quando mais se precisa dele - Ele se voltou para Régis. - Você espera aqui. Terei muito mais perguntas para você mais tarde! - As chamas estrondosas de sua fúria fervilhavam perversamente. - Mas, primeiro, devo falar com alguns de meus generais. Hei de ensinar aos Ores da Língua Partida a me fazerem oposição!
Na verdade, as observações de Cássio qualificavam os Ores da Língua Partida como os mais fortes e fanáticos apoiadores de Kessell. Uma mentira dentro da outra.

Nas águas do Maer Dualdon, mais tarde naquela mesma noite, a frota reunida de quatro vilas observou com desconfiança um segundo grupo de monstros se separar da força principal e partir em direção a Bremen.
- Curioso - Kemp comentou com Muldoon de Bosquesó e com o representante da cidade incendiada de Bremen, que estavam ao lado dele no convés da nau capitania de Targos. Toda a população de Bremen estava no lago. Era certo que o primeiro grupo de ores, depois das flechadas iniciais, não encontrara mais resistência na cidade. E Brin Shander ainda estava intacta - Por que, então, o mago estava estendendo mais ainda sua linha de poder? - Kessell me confunde - disse Muldoon. - Seu gênio está simplesmente além de minhas faculdades ou ele verdadeiramente comete evidentes erros táticos!
- Presuma a segunda possibilidade - instruiu Kemp, esperançoso -, pois qualquer coisa que venhamos a tentar será em vão caso a primeira seja verdadeira!
Portanto, eles continuaram a reposicionar seus guerreiros para um ataque oportunista, passando as crianças e mulheres nos barcos remanescentes para os atracadouros ainda incólumes de Bosquesó, uma estratégia semelhante à das forças refugiadas nos outros dois lagos.
Na muralha de Brin Shander, foi com maior entendimento que Cássio e Glensather assistiram à divisão das forças de Kessell.
- Magistral, halfling - Cássio sussurrou para o vento noturno. Sorrindo, Glensather tocou o ombro de seu colega representante, tentando transmitir-lhe equilíbrio.
- Vou informar nossos comandantes de campo - disse ele. - Se o momento de atacarmos chegar, deveremos estar prontos!
Cássio apertou a mão de Glensather e deu sua aprovação com um aceno de cabeça. Enquanto o representante de Angraleste se afastava rapidamente, Cássio debruçou-se sobre o cume da muralha e fitou com determinação as paredes agora escurecidas de Crishal-Tirith. Entre dentes, ele declarou ostensivamente:
- O momento há de chegar!

Do alto de seu ponto de observação no Sepulcro de Kelvin, Drizzt Do'Urden também testemunhara a abrupta movimentação do exército de monstros. Ele acabara de completar os últimos preparativos para seu corajoso assalto à Crishal-Tirith quando os bruxuleios distantes de uma grande massa de tochas deslizaram subitamente para oeste. Ele e Guenhwyvar sentaram-se, em silêncio, e estudaram a situação durante algum tempo, tentando encontrar alguma pista sobre o que teria provocado aquela ação.
Nenhuma explicação óbvia veio à tona, mas a noite se estendia e ele precisava se apressar. Não estava bem certo se toda aquela atividade se mostraria útil - já que enfraquecia as tropas do acampamento - ou destrutiva - pois aumentava o estado de prontidão dos monstros remanescentes. No entanto, ele sabia que o povo de Brin Shander não arcaria com os custos da demora. Desceu pela trilha da montanha, com a grande pantera logo em seus calcanhares, silenciosa.
Ele cobriu rapidamente o terreno livre e pôs-se a percorrer, com passos ligeiros e certos, a extensão da Via de Bremen. Caso tivesse se detido para estudar os arredores ou colar ao solo um de seus ouvidos sensíveis, ele teria ouvido o estrondo distante, proveniente da vasta tundra ao norte, de mais um exército que se aproximava.
Mas a atenção do drow estava no sul, e sua visão se limitava, enquanto corria à escuridão expectante de Crishal-Tirith. Ele carregava pouco peso, pois levava consigo apenas os objetos que julgava essenciais à tarefa. Tinha suas cinco armas: as duas cimitarras nas bainhas de couro em seus quadris, um punhal enfiado no cinto, bem no meio das costas, e as duas facas ocultas em suas botas. Ele trazia o símbolo sagrado e a bolsa de dinheiro em volta do pescoço, e um pequeno saco de farinha, remanescente da incursão pelo covil dos gigantes, ainda pendia de seu cinto - uma escolha sentimental, um lembrete reconfortante das ousadas aventuras que havia partilhado com Wulfgar. Todos os outros suprimentos, a mochila, a corda, os odres e outros objetos fundamentais da sobrevivência diária na tundra agreste, ele havia deixado no pequeno cubículo.
Ouviu os gritos dos goblins folgazões ao passar pelos arrabaldes a leste de Termalaine.
- Ataquem agora, marinheiros do Maer Dualdon - disse baixinho o drow. Mas, pensando bem, estava feliz por terem os barcos permanecido no lago. Mesmo que conseguissem aportar desapercebidos e atacar rapidamente os monstros na cidade, não poderiam arcar com as perdas que sofreriam. Termalaine podia esperar; uma batalha mais importante ainda estava por ser travada.
Drizzt e Guenhwyvar aproximaram-se do perímetro mais externo do principal acampamento de Kessell. O drow consolou-se com os sinais de que a comoção no interior do acampamento havia serenado. Um solitário guarda ore apoiava-se, fatigado; em sua lança, vigiando sem entusiasmo a escuridão inane do horizonte setentrional. Mesmo que estivesse alerta, ele não teria notado a aproximação furtiva das duas formas, mais negras que as trevas da noite.
- Situação! - veio uma ordem de longe.
- Tudo limpo! - respondeu o guarda.
Drizzt ouviu a verificação se repetir em vários pontos distantes. Fez sinal para que Guenhwyvar se detivesse, depois se esgueirou até uma distância a partir da qual poderia atingir o guarda com um arremesso.
O ore cansado sequer ouviu o silvo do punhal que se aproximava.
E, então, Drizzt estava ao lado dele, silenciosamente interrompendo-lhe a queda em meio à escuridão. O drow tirou seu punhal da garganta do ore e deitou a vítima delicadamente no chão. Ele e Guenhwyvar, os espectros invisíveis da morte, avançaram.
Haviam atravessado a única linha de guardas posicionada no perímetro setentrional e agora prosseguiam com facilidade e cautela pelo acampamento adormecido. Drizzt poderia ter matado dezenas de ores e goblins, e até mesmo um verbeeg - mas a interrupção daqueles roncos retumbantes talvez tivesse chamado a atenção -, mas ele não podia se dar ao luxo de abrandar o passo. Cada minuto que passava continuava a exaurir Guenhwyvar e agora os primeiros sinais de um segundo inimigo, a reveladora aurora, tornavam-se evidentes no céu oriental.
As esperanças do drow haviam se elevado consideravelmente com o progresso que fizera, mas ele ficou consternado ao topar com Crishal-Tirith. Um grupo de ogros em prontidão circulava a torre, bloqueando-lhe o caminho.
Ele se agachou ao lado do gato, sem que se decidisse pelo que deveriam fazer. Para escapar à amplitude do imenso acampamento antes que a aurora viesse a expô-los, teriam de fugir pelo caminho por onde vieram. Drizzt duvidava que Guenhwyvar, em seu estado digno de pena, pudesse sequer tentar aquela rota. No entanto, seguir em frente significava uma luta sem esperança com um grupo de ogros. Parecia não haver nenhuma resposta ao dilema.
Foi então que algo aconteceu lá atrás, na seção nordeste do acampamento, e abriu um caminho para os companheiros furtivos. Irromperam gritos repentinos de alarma, o que atraiu os ogros e afastou-os de seus postos algumas passadas largas. Drizzt pensou, a princípio, que houvessem descoberto o ore assassinado, mas os gritos vinham do leste distante.
Não demorou muito e o clangor de aço contra aço ecoou pelo céu que antecedia a aurora. Haviam se metido numa batalha. Tribos rivais, Drizzt supôs, apesar de não avistar os combatentes àquela distância.
Sua curiosidade, entretanto, não foi irresistível. Os ogros indisciplinados haviam se afastado mais ainda das posições designadas. E Guenhwyvar avistara a porta da torre. Os dois não hesitaram um segundo sequer.
Os ogros nem mesmo notaram as duas sombras que entraram na torre a suas costas.

Uma estranha sensação, uma vibração, um zumbido apoderou-se de Drizzt assim que ele passou pela entrada de Crishal-Tirith, como se penetrasse as entranhas de uma entidade viva. Seguiu em frente, porém, através do corredor escuro que levava ao primeiro nível da torre, deslumbrado com o estranho material cristalino que compunha as paredes e os pisos da estrutura.
Achou-se num salão quadrangular, a câmara inferior da estrutura de quatro salas. Era o salão onde Kessell geralmente se reunia com seus generais de campo, a principal sala de audiências do mago, onde ele recebia todos com exceção de seus comandantes de mais alta patente.
Drizzt perscrutou a sala, suas formas escuras e as sombras ainda mais profundas criadas por elas. Apesar de não distinguir nenhum movimento, ele percebeu que não se achava só. Sabia que as mesmas sensações incomodavam Guenhwyvar, pois os pêlos negros de sua nuca estavam eriçados e o gato deixou escapar um rosnado baixo.
Kessell considerava aquela sala uma zona-tampão entre ele e a rale do mundo exterior. Era a câmara da torre que ele mais raramente visitava. Era o lugar onde Akar Kessell abrigava seus trolls.

29
Outras Opções

Os anões do Salão de Mitral completaram a primeira saída secreta logo depois do crepúsculo. Bruenor foi o primeiro a subir ao topo da escada e espiar, de sob a relva cortada, o exército de monstros que se acomodava. Tão habilidosos eram os mineiros anões que eles conseguiram cavar um poço bem no meio de um grande grupo de goblins e ogros sem alertar os monstros o mínimo que fosse.
Bruenor sorria quando voltou a descer para se juntar a seus companheiros de clã.
- Terminem os outros nove - instruiu ele enquanto prosseguia túnel adentro, com Cattiebrie a seu lado. - Hoje o sono vai ser pesado pr'alguns dos garotos do Kessell! - declarou ele, acariciando a cabeça do machado em seu cinto.
- Qual será meu papel na próxima batalha? - Cattiebrie perguntou quando eles se afastaram dos outros anões.
- 'cê vai puxar uma das alavancas e desmoronar os túneis se algum desses porcos descer - respondeu Bruenor.
- E se todos vocês forem mortos no campo? - raciocinou Cattiebrie. - Ser enterrada viva nestes túneis não me parece muito promissor.
Bruenor coçou a barba ruiva. Ele não havia pensado naquela conseqüência, pois imaginara que, se ele e o clã fossem abatidos no campo, Cattiebrie estaria suficientemente segura por trás dos túneis desmoronados. Mas como ela poderia viver sozinha lá embaixo? Que preço pagaria pela sobrevivência?
- 'cê quer subir e lutar, então? 'cê luta bem com uma espada e eu vou estar bem do seu lado!
Cattiebrie pensou na proposta por um instante.
- Vou ficar com a alavanca - decidiu ela. - Você já tem coisas demais pra fazer lá em cima. E alguém tem de ficar aqui para derrubar os túneis; não podemos deixar os goblins reivindicarem nossos salões como lar!
- Além disso - ela acrescentou, com um sorriso -, foi bobagem minha me preocupar. Sei que você vai voltar para mim, Bruenor. Nem você, nem ninguém de seu clã jamais me decepcionou!
Ela beijou o anão na testa e afastou-se saltitando, o que fez Bruenor sorrir.
- Por certo que 'cê é uma menina corajosa, minha Cattiebrie - murmurou ele.
O trabalho nos túneis estava terminado poucas horas depois. Os poços haviam sido escavados e todo o complexo de túneis em volta deles preparado para desmoronar e cobrir qualquer ação de retirada ou reprimir uma possível investida dos goblins. Todo o clã, com as faces propositalmente enegrecidas pela fuligem e as armaduras e armas pesadas disfarçadas sob camadas de tecido escuro, alinhou-se no fundo dos dez poços. Bruenor subiu primeiro para investigar. Deu uma olhadela lá fora e sorriu sinistramente. A sua volta, os ogros e os goblins haviam se aninhado para passar a noite.
Ele estava prestes a dar o sinal para seus primos agirem quando uma comoção subitamente teve início no acampamento. Bruenor continuou no topo do poço, mas manteve a cabeça abaixo da camada de relva (o que lhe angariou a pisadela de um goblin de passagem), e tentou descobrir o que alertara os monstros. Ouviu gritos de comando e um tropel como o de um grande destacamento a se reunir.
Mais gritos se seguiram, brados pela morte da Língua Partida. Apesar de nunca ter ouvido o nome antes, o anão não teve dificuldade para adivinhar que este descrevia uma tribo de ores.
- Então, eles 'tão lutando entre eles, né? - murmurou baixinho, sem conter o riso. Percebendo que o assalto dos anões teria de esperar, ele voltou a descer a escada.
Mas o clã, decepcionado com o adiamento, não se dispersou. Estavam determinados a completar o serviço daquela noite e, portanto, aguardaram.
Passada mais da metade da noite, ainda se ouvia alguma movimentação no acampamento acima. No entanto, a espera não embotava a agudeza da determinação dos anões. Ao contrário, a demora aviva-lhes a paixão, aumentava-lhes a avidez pelo sangue dos goblins. Esses guerreiros eram também ferreiros, artífices que passavam longas horas acrescentando uma única escama a uma estátua de dragão. Eles sabiam ser pacientes.
Por fim, quando tudo se aquietou mais uma vez, Bruenor voltou a subir a escada. Antes mesmo que tivesse metido a cabeça através do relvado, ele ouviu os sons reconfortantes da respiração rítmica de roncos altos.
Sem mais demora, o clã se esgueirou para fora dos buracos e metodicamente deu início a sua obra mortífera. Eles não se rejubilavam com o papel de assassinos, pois preferiam cruzar espadas, mas compreendiam a necessidade daquele tipo de incursão e não davam o menor valor às vidas da escória goblin.
A área foi gradualmente se aquietando à medida que mais monstros caíam no sono silencioso da morte. Os anões concentraram-se primeiramente nos ogros, no caso do ataque ser descoberto antes que eles conseguissem provocar danos suficientes. Mas a estratégia mostrou-se desnecessária. Muitos minutos se passaram sem retaliação.
Quando um dos guardas finalmente percebeu o que estava acontecendo e conseguiu dar um grito de alerta, o sangue de mais de mil dos protegidos de Kessell umedecia o campo.
Gritos se elevaram ao redor deles, mas Bruenor não ordenou a retirada.
- Em formação! - ordenou ele. - Bem fechada em volta dos túneis!
Ele sabia que a investida selvagem da primeira onda do contra-ataque seria desorganizada e os monstros estariam despreparados.
Os anões alinharam-se numa fechada posição defensiva e tiveram pouco trabalho para abater os goblins. O machado de Bruenor já ostentava muitos outros chanfros antes mesmo que um goblin houvesse tentado golpeá-lo.
Aos poucos, porém, os protegidos de Kessell tornaram-se mais organizados. Investiram contra os anões em suas próprias formações e, à medida que o acampamento era despertado e alertado, as tropas cada vez maiores começavam a pressionar os atacantes. E, então, um grupo de ogros, a guarda de elite da torre de Kessell, arremeteu pelo campo.
Os primeiros anões a bater em retirada - os peritos que deveriam fazer a verificação final dos preparativos para o desmoronamento - colocaram os pés protegidos por botas nos degraus superiores das escadas dos poços. A fuga para os túneis seria uma operação delicada, e a pressa com eficiência seria um fator decisivo em seu sucesso ou fracasso.
Mas Bruenor inesperadamente ordenou que os peritos voltassem a sair dos poços e os anões defendessem a linha.
Ele ouvira as primeiras notas de uma antiga canção, uma canção que, apenas alguns anos antes, teria enchido o anão de temor. Agora, porém, enchia seu coração de esperança.
Ele reconheceu a voz que regia as palavras arrebatadoras.

Um braço decepado de carne pútrida estatelou-se no chão, mais uma vítima das cimitarras sibilantes de Drizzt Do'Urden.
Mas os destemidos trolls abriam caminho até ele. Normalmente, Drizzt teria percebido a presença deles assim que tivesse penetrado a câmara quadrangular. O terrível fedor dos monstros dificultava-lhes a dissimulação. Aqueles ali porém, não estavam realmente na câmara quando o drow entrou. Ao adentrar a sala, Drizzt disparou um alarme mágico que banhou a área em luz arcana e atraiu os guardiões. Eles saíram de espelhos mágicos que Kessell havia instalado como postos de vigilância por toda a sala.
Drizzt já tinha abatido um dos perversos monstros, mas agora estava mais preocupado em fugir do que lutar. Cinco outros substituíram o primeiro e eram mais do que páreo para qualquer guerreiro. Drizzt chacoalhou a cabeça, incrédulo, quando o corpo do troll que ele decapitara subitamente levantou-se de novo e pôs-se a desferir golpes às cegas.
E, em seguida, uma mão provida de garras segurou-lhe o tornozelo. Ele não precisou nem mesmo olhai para saber que se tratava do membro que acabara de decepar.
Horrorizado, ele chutou o braço grotesco para longe, virou-se e disparou para a escadaria em espiral, nos fundos da câmara, que subia até o segundo nível da torre. Com uma ordem anterior sua, Guenhwyvar já havia debilmente mancado escada acima e agora aguardava na plataforma do topo.
Drizzt ouviu distintamente o som aspirado dos passos de seus repugnantes perseguidores e o arranhar das imundas unhas da mão decepada que também retomava a perseguição. O drow subiu a escadaria aos saltos, sem olhar para trás, esperando que sua velocidade e agilidade dessem a ele uma boa dianteira até encontrar uma maneira de escapar.
Pois não havia portas na plataforma.
O patamar no topo das escadas era retangular e tinha cerca de dez pés em sua largura máxima. Dois lados abriam-se para a sala, um terceiro abrangia a orla do friso do poço da escada, e o quarto era uma folha larga de espelho que se estendia pelo exato comprimento da plataforma e se achava preso entre ela e o teto da câmara. A esperança de Drizzt era adivinhar o segredo daquela porta incomum - se é que se tratava realmente de uma porta - quando a examinou desde a plataforma.
Não seria assim tão fácil.
Apesar de tomada pelo reflexo de uma tapeçaria ornamentada que pendia da parede diretamente oposta, a superfície do espelho parecia perfeitamente lisa, imaculada por qualquer rachadura ou maçaneta que indicasse uma abertura secreta. Drizzt embainhou as armas e correu as mãos pela superfície para ver se havia ali uma maçaneta oculta a seus olhos aguçados, mas a superfície regular do vidro só confirmou sua observação.
Os trolls estavam na escadaria.
Drizzt tentou abrir caminho através do vidro, pronunciou todas as palavras de desobstrução que já havia aprendido, procurou um portal extradimensional similar aos que haviam ocultado os hediondos guardas de Kessell. A parede continuava uma barreira tangível.
O troll na vanguarda alcançou o ponto médio das escadas.
- Deve haver uma pista em algum lugar! - gemeu o drow. - Os magos adoram um desafio e não há diversão nisto! - A única resposta possível estava nos padrões e imagens intrincadas da tapeçaria. Drizzt fitou-a, tentando classificar os milhares de imagens entretecidas em busca de alguma dica que lhe mostrasse o caminho para a segurança.
O fedor já chegava até ele. Podia ouvir a salivação dos monstros eternamente famintos.
Mas ele precisava controlar seu asco e concentrar-se naquela miríade de imagens. Algo na tapeçaria chamou-lhe a atenção: os versos de um poema que se entrelaçavam a todas aquelas outras imagens ao longo da borda superior. Ao contrário das cores desbotadas do restante da antiga obra de arte, as letras caligrafadas do poema ostentavam o brilho contrastante de um acréscimo mais recente. Seria algo que Kessell acrescentara?
Vinde se quiserdes
A orgia em que vivo,
Mas antes a aldrava deveis encontrar!
Visto e não visto
Ser sem ter sido
A maçaneta, a carne não pode tocar.
Um verso em particular destacou-se na mente do drow. Ele ouvira a frase "ser sem ter sido" em sua infância em Menzoberranzan. Era uma referência a Urgutha Forka, um demônio perverso que devastara o planeta com uma peste particularmente virulenta nos tempos antigos, quando os ancestrais de Drizzt caminhavam na superfície. Os elfos da superfície haviam sempre negado a existência de Urgutha Forka e culpavam os drow pela peste, mas os elfos negros sabiam a verdade. Algo em sua constituição física os havia imunizado contra o demônio e, depois de perceber a letalidade da praga para seus inimigos, eles fizeram de tudo para comprovar as suspeitas dos elfos claros ao arregimentar Urgutha como um de seus aliados.
Portanto, a referência "ser sem ter sido" era um verso pejorativo num conto um pouco mais longo dos drow, uma piada secreta em cima de seus odiados primos que haviam perdido milhares por causa de uma criatura que negavam até mesmo existir.
A solução do enigma teria sido impossível para qualquer um que não conhecesse a história de Urgutha Forka. O drow encontrara uma vantagem valiosa. Ele examinou o reflexo da tapeçaria em busca de uma imagem que tivesse alguma ligação com o demônio. E encontrou-a bem na borda do espelho à altura da cintura: um retrato do próprio Urgutha, revelado em toda a sua horrível magnificência. O demônio era representado esmagando o crânio de um elfo com um bordão negro, seu símbolo. Drizzt vira aquele mesmo retrato antes. Nada parecia fora de lugar nem indicava qualquer coisa de incomum.
Os trolls haviam chegado ao último lance de escada. O tempo de Drizzt se esgotava.
Ele se virou e vasculhou a fonte da imagem em busca de alguma discrepância. Ocorreu-lhe imediatamente. Na tapeçaria original, Urgutha atingia o elfo com o punho; não havia um bordão!
"Visto e não visto"
Drizzt girou sobre os calcanhares e voltou a fitar o espelho, tentando agarrar a arma ilusória do demônio. Mas tudo o que sentiu foi o vidro liso. Quase gritou de frustração.
Sua experiência ensinara-lhe disciplina, e ele rapidamente readquiriu a compostura. Afastou a mão do espelho, tentando posicionar seu próprio reflexo à mesma profundidade em que julgava estar o bordão. Fechou os dedos vagarosamente, observando a imagem de sua mão fechar-se em torno do bordão com a emoção do sucesso antecipado.
Ele moveu a mão ligeiramente.
Uma fina rachadura apareceu no espelho.
O troll da vanguarda alcançou o topo das escadas, mas Drizzt e Guenhwyvar haviam desaparecido.
O drow deslizou a estranha porta de volta à posição fechada, recostou-se e suspirou aliviado. Tinha diante dele uma escadaria indistintamente iluminada que levava para cima e terminava numa plataforma que se abria no segundo nível da torre. Nenhuma porta bloqueava seu caminho, apenas cordões aljofrados que pendiam do teto, cintilantes e alaranjados sob a luz das tochas da sala do outro lado. Drizzt ouviu risos.
Em silêncio, ele e o gato se esgueiraram escada acima e espiaram por sobre a beirada do patamar. Haviam chegado ao harém de Kessell.
A sala era iluminada suavemente por tochas que brilhavam sob quebra-luzes protetores. A maior parte do piso cobria-se de almofadas excessivamente estofadas, e algumas seções da sala achavam-se isoladas por cortinas. As moças do harém, os brinquedinhos irracionais de Kessell, estavam sentadas em círculo no centro do piso, rindo com o entusiasmo infantil de crianças a brincar. Drizzt duvidava que elas viessem a notá-lo, mas mesmo que o fizessem, ele não estava muito preocupado. Compreendeu imediatamente que aquelas lamentáveis e subjugadas criaturas eram incapazes de tomar qualquer atitude contra ele.
Manteve-se alerta, entretanto, principalmente por causa dos budoares acortinados. Ele duvidava que Kessell tivesse posicionado guardas ali, sem dúvida nenhum tão imprevisivelmente violento quanto os trolls, mas não podia se dar ao luxo de cometer erros.
Com Guenhwyvar bem a seu lado, ele se esgueirou silenciosamente de uma sombra a outra, e quando os dois companheiros alcançaram o patamar diante da porta para o terceiro nível, depois de terem subido as escadas, Drizzt relaxou um pouco.
Mas, então, recomeçou o zumbido que Drizzt ouvira quando entrou na torre. Ficava mais forte a cada instante, como se sua música tivesse origem nas vibrações das próprias paredes da torre. Drizzt olhou a sua volta, em busca de uma possível fonte.
Sinos pendentes do teto da sala começaram a tilintar sinistramente. As chamas das tochas nas paredes dançaram impetuosamente.
Foi então que Drizzt compreendeu.
A estrutura despertava, ganhava vida própria. O campo lá fora continuava sob a sombra da noite, mas os primeiros dedos da aurora iluminavam o alto pináculo da torre.
A porta abriu-se de repente para o terceiro nível, a sala do trono de Kessell.
- Muito bem! - gritou o mago.
Ele estava de pé, atrás do trono de cristal, do outro lado da sala em relação a Drizzt, segurando uma vela apagada e encarando a porta aberta. Régis encontrava-se obedientemente ao lado dele, com uma expressão vazia no rosto.
- Entre, por favor - disse Kessell, com falsa cortesia. - Não se preocupe com os meus trolls que você feriu; eles com certeza vão sarar!
Atirou a cabeça para trás e gargalhou.
Drizzt sentiu-se estúpido. E pensar que toda a sua cautela e dissimulação de pouco adiantaram, a não ser para divertir o mago! Ele descansou as mãos sobre os punhos das cimitarras embainhadas e atravessou a porta.
Guenhwyvar permaneceu agachada nas sombras da escadaria, em parte porque o mago nada dissera que indicasse que ele soubesse sobre o gato e, em parte, porque a pantera enfraquecida desejava poupar a energia de caminhar.
Drizzt estacou diante do trono e fez uma reverência. A visão de Régis ao lado do mago o perturbava - e não era pouco -, mas ele conseguiu disfarçar que reconhecia o halfling. Régis, do mesmo modo, não demonstrara qualquer familiaridade assim que vira o drow, mas Drizzt não estava bem certo se aquilo era um esforço consciente ou se o halfling estava sob a influência de algum tipo de encantamento.
- Saudações, Akar Kessell - tartamudeou Drizzt, com o sotaque imperfeito dos habitantes do mundo subterrâneo, como se a língua geral da superfície fosse estranha a ele. Imaginou que poderia muito bem tentar a mesma tática que usara contra o demônio. - Fui enviado de boa fé por meu povo para parlamentar com você quanto a questões referentes a nossos interesses comuns.
Kessell gargalhou alto.
- Sério? - um sorriso largo espalhou-se por seu rosto, substituído abruptamente por uma carranca. Seus olhos se estreitaram maldosamente. - Eu conheço você, elfo negro! Qualquer homem que tenha vivido em Dez-Burgos já ouviu o nome de Drizzt Do'Urden em lendas ou anedotas! Fique com suas mentiras!
- Perdão, poderoso mago - disse Drizzt tranqüilamente, mudando de tática. - Em vários aspectos, assim parece, você é mais sábio que seu demônio.
A aparência presunçosa sumiu do rosto de Kessell. Ele vinha se perguntando o que tinha impedido Errtu de responder a seus chamados. Olhou para o drow com mais respeito. Teria aquele guerreiro solitário dado cabo de um demônio importante?
- Permita-me recomeçar - disse Drizzt. - Saudações, Akar Kessell. - Ele fez uma reverência. - Sou Drizzt Do'Urden, ranger de Gwaeron Windstrom, guardião do Vale do Vento Gélido. Vim matá-lo.
As cimitarras saltaram de suas bainhas.
Mas Kessell também se moveu. A vela que segurava ganhou vida de repente. A chama foi capturada pelo labirinto de prismas e espelhos que atravancavam toda a câmara, focalizada e aguçada em cada ponto refletor. Instantaneamente, com o acender da vela, três raios concentrados de luz encerraram o drow numa prisão triangular. Nenhum dos raios o tocou, mas Drizzt sentiu-lhes o poder e não ousou atravessar-lhes o caminho.
Drizzt ouviu claramente a torre zumbir assim que a luz do dia insinuou-se por toda a sua extensão. A sala se iluminou consideravelmente quando vários painéis nas paredes, tão semelhantes a espelhos à luz das tochas, revelaram-se como janelas.
- Você acreditou que poderia entrar aqui e simplesmente desfazer-se de mim? - Kessell perguntou, incrédulo. - Sou Akar Kessell, seu idiota! O Tirano do Vale do Vento Gélido! Comando o maior exército que já marchou sobre as estepes congeladas desta terra abandonada! Contemple meu exército!
Ele acenou com a mão e um dos espelhos de cristalomancia ganhou vida, revelando em sua plenitude parte do vasto acampamento que cercava a torre e os gritos daqueles que despertavam.
Foi então que um grito agonizante soou em algum lugar nos confins invisíveis do campo. Instintivamente, tanto o drow quanto o mago ajustaram os ouvidos ao clamor distante e ouviram o fragor contínuo da batalha. Curioso, Drizzt olhou para Kessell, imaginando se o mago sabia o que estava acontecendo na seção norte de seu acampamento.
Kessell respondeu à pergunta muda do drow com um aceno da mão. A imagem no espelho anuviou-se por um instante com uma bruma interior e depois se deslocou para o outro lado do campo. Os gritos e o clangor da batalha soaram alto desde as profundezas do instrumento de cristalomancia. Quando a bruma clareou, a imagem dos companheiros de clã de Bruenor, lutando de costas um para o outro em meio a um mar de goblins, ficou nítida. O campo em volta dos anões estava coberto de cadáveres de goblins e ogros.
- Vê como é estúpido resistir a mim? - foi o grito agudo de Kessell.
- Parece que os anões estão se saindo bem.
- Bobagem! - gritou Kessell.
Ele acenou com a mão novamente e a névoa retornou ao espelho. Abruptamente, a Canção de Tempus ressoou desde suas profundezas. Drizzt inclinou-se e esforçou-se para vislumbrar uma imagem através do véu, ansioso por ver o regente da canção.
- Mesmo agora, enquanto os estúpidos anões abatem alguns de meus soldados mais insignificantes, mais guerreiros chegam em grande número para se juntar às fileiras de meu exército! Estão condenados, todos vocês, Drizzt Do'Urden! Akar Kessell chegou!
A névoa clareou.
Com mil guerreiros fervorosos atrás dele, Wulfgar aproximou-se dos monstros desavisados. Os goblins e ores mais próximos aos bárbaros atacantes, acreditando piamente nas palavras de seu mestre, rejubilaram-se com a chegada dos prometidos aliados.
E então morreram.
A horda bárbara atravessou-lhes as fileiras, cantando e matando com selvagem abandono. Mesmo em meio ao fragor das armas, foi possível ouvir os anões juntando suas vozes à Canção de Tempus.
De olhos esbugalhados, o queixo caído e a tremer de raiva, Kessell afastou a imagem chocante com um aceno e girou o corpo para encarar Drizzt novamente.
- Não importa! - disse ele, lutando para manter firme o tom da voz. - Hei de lidar com eles sem misericórdia! E então Brin Shander há de tombar em meio às chamas! Mas primeiro, você, drow traidor - sibilou o mago. - Assassino de sua própria gente, que deuses lhe restaram a quem orar?
Ele soprou a vela e fez a chama dançar para um lado.
O ângulo de reflexão mudou e um dos raios recaiu sobre Drizzt, abrindo um buraco através do punho de sua velha cimitarra, e depois penetrou mais fundo, atravessando a pele negra da mão dele. O rosto de Drizzt contorceu-se de agonia, e ele apertou o ferimento enquanto a cimitarra caía ao chão e o raio retornava a sua trajetória original.
- Vê como é fácil? - escarneceu Kessell. - Sua mente fraca sequer é capaz de começar a imaginar o poder de Crenshinibon! Sinta-se abençoado por eu ter permitido a você sentir uma amostra desse poder antes de morrer!
Drizzt contraiu os músculos da mandíbula e não havia sinal de súplica em seus olhos quando ele fitou o mago. Havia tempos ele tinha reconhecido a possibilidade da morte como um risco aceitável de sua profissão e estava determinado a morrer com dignidade.
Kessell tentou fazê-lo suar. O mago fez oscilar torturantemente a vela mortífera, fazendo com que os raios se deslocassem de um lado para outro. Quando finalmente se deu conta de que não ouviria um único gemido ou rogo do orgulhoso tanger, Kessell cansou-se de seu joguinho.
- Adeus, idiota - resmungou ele e franziu os lábios para soprar a chama.
Régis apagou a vela.
Tudo pareceu parar completamente durante vários segundos. O mago, escandalizado, baixou os olhos até o halfling, a quem ele considerava um escravo. Régis meramente encolheu os ombros, como se estivesse tão surpreso por seu incomum ato de bravura quanto Kessell.
Confiando no instinto, o mago atirou o pires de prata que sustentava a vela através do vidro do espelho e correu, aos gritos, em direção ao canto nos fundos da sala, até uma pequena escada de mão escondida nas sombras. Drizzt acabara de dar os primeiros passos quando as chamas no interior do espelho se inflamaram. Quatro olhos vermelhos e malignos fitaram-no desde lá de dentro, atraindo a atenção do drow, e dois cães infernais saltaram através do vidro partido.
Guenhwyvar interceptou um deles, passando num salto por seu mestre e chocando-se de cabeça contra o cão demoníaco. As duas feras - um borrão vermelho-fulvo de presas e garras - rolaram em direção à parte de trás da sala e arremessaram Régis para um lado.
O segundo cachorro liberou seu hálito de fogo sobre Drizzt, mas novamente, como acontecera com o demônio, as chamas não incomodaram o drow. E agora era sua vez de atacar. A cimitarra que odiava o fogo retiniu de puro êxtase e partiu o agressor ao meio quando Drizzt a baixou. Admirado com o poder da espada, mas sem tempo até mesmo para ficar admirado diante da vítima mutilada, Drizzt retomou sua perseguição.
Ele alcançou a base da escada. Lá de cima, através do alçapão aberto para o andar mais alto da torre, vinham os lampejos rítmicos de uma luz palpitante. Drizzt sentiu a intensidade das vibrações aumentar a cada pulsação. O coração de Crishal-Tirith batia mais forte com o sol nascente. Drizzt compreendia o risco que correria, mas não tinha tempo para se deter e avaliar suas chances.
Em seguida, ele estava de novo diante de Kessell, dessa vez na menor sala da estrutura. Entre eles, suspenso misteriosamente em pleno ar, encontrava-se um grande fragmento palpitante de cristal: o coração de Crishal-Tirith. Tinha quatro lados e era afilado como um pingente de gelo. Drizzt reconheceu-o como uma réplica em miniatura da torre na qual se encontrava, apesar de este mal chegar a trinta centímetros de comprimento.
Uma cópia exata de Crenshinibon.
Uma muralha de luz dele emanava, dividindo a câmara ao meio, com o drow de um lado e o mago do outro. Drizzt compreendeu, pela risadinha do mago, que era uma barreira tão tangível quanto se fosse de pedra. Ao contrário da abarrotada sala de cristalomancia abaixo, apenas um espelho, que parecia mais uma janela na parede da torre, adornava aquela sala, bem ao lado do mago.
- Golpeie o coração, drow - riu Kessell. - Idiota! O coração de Crishal-Tirith é mais poderoso que qualquer arma do mundo! Nada que você possa fazer, seja mágico ou não, poderia sequer arranhar-lhe a superfície imaculada! Golpeie-o. Que se revele sua tola impertinência!
Drizzt, porém, tinha outros planos. Era versátil e astuto o bastante para perceber que alguns adversários não podiam ser derrotados somente com o uso da força. Havia sempre outras opções.
Ele embainhou a arma remanescente, a cimitarra mágica, e começou a desamarrar a corda que prendia o saco de farinha a seu cinto. Kessell apenas observou, curioso, perturbado com a calma do drow, mesmo quando a morte parecia inevitável.
- O que está fazendo? - indagou o mago.
Drizzt não respondeu. Suas ações eram metódicas e impassíveis. Ele soltou o cordão que fechava o saco e o abriu.
- Perguntei o que está fazendo!
Kessell franziu o cenho quando Drizzt começou a andar em direção ao coração da torre. Subitamente, a réplica pareceu vulnerável ao mago. Ele tinha a sensação incômoda de que talvez aquele elfo negro fosse mais perigoso do que ele tinha pensado.
Crenshinibon também o sentiu. A estilha de cristal telepaticamente instruiu Kessell a liberar um raio fatal e dar cabo do drow.
Mas Kessell estava amedrontado.
Drizzt aproximou-se do cristal. Tentou colocar a mão sobre ele, mas a muralha de luz o repeliu. Ele meneou a cabeça, já esperando por isso, e esticou tanto quanto possível a boca do saco. Sua concentração voltou-se exclusivamente para a própria torre: ele jamais olhou para o mago nem deu a atenção a seus resmungos.
Ele esvaziou o saco de farinha sobre a jóia.
A torre pareceu gemer em protesto. Escureceu.
A muralha de luz que separava o drow do mago desapareceu.
Mas, ainda assim, Drizzt concentrou-se na torre. Ele sabia que a camada asfixiante de farinha bloquearia as poderosas radiações da jóia apenas por pouco tempo.
O bastante, porém, para que ele rapidamente colocasse o saco agora vazio sobre ela e esticasse o cordão que o fechava. Kessell gritou de dor e atirou-se para frente, mas estacou diante da cimitarra desembainhada.
- Não! - o mago gritou num protesto impotente. - Você tem idéia das conseqüências do que acabou de fazer?
Como se respondesse, a torre estremeceu. Acalmou-se rapidamente, mas tanto o drow quanto o mago sentiram o perigo iminente. Em algum lugar nas entranhas de Crishal-Tirith, a deterioração já começara.
- Compreendo perfeitamente - respondeu Drizzt. - Eu o derrotei, Akar Kessell. Seu breve reinado como auto-proclamado soberano de Dez-Burgos chegou ao fim.
- Você matou a si mesmo, drow! - retorquiu Kessell, e Crishal-Tirith estremeceu novamente, dessa vez com mais violência. - Você nem mesmo pode sonhar escapar antes de a torre desabar sobre sua cabeça!
Veio de novo o tremor. E de novo. Drizzt deu de ombros, indiferente.
- Que seja - disse ele. - Cumpri meu propósito, pois você também há de perecer.
Uma gargalhada súbita e insana explodiu nos lábios do mago. Ele deu as costas a Drizzt e mergulhou no espelho embutido na parede da torre. Em vez de atravessar o vidro e cair no campo lá embaixo, como Drizzt esperava, Kessell deslizou espelho adentro e sumiu.
A torre chacoalhou novamente e, dessa vez, o tremor não cedeu. Drizzt lançou-se para o alçapão, mas mal conseguiu manter-se de pé. Rachaduras apareceram ao longo das paredes.
- Régis! - berrou, mas não houve resposta. Parte da parede da sala abaixo já havia desabado. Drizzt viu os escombros ao pé da escada. Rezando para que seus amigos já tivessem escapado, ele tomou a única rota que lhe restara.
Mergulhou através do espelho mágico atrás de Kessell.

30
A Batalha do Vale do Vento Gélido

O povo de Brin Shander ouviu os sons do combate no campo, mas foi somente com a luz da aurora que conseguiram ver o que acontecia. Aplaudiram freneticamente os anões e admiraram-se quando os bárbaros se chocaram com as tropas de Kessell e abateram os goblins com alegre abandono.
Cássio e Glensather, em suas habituais posições sobre a muralha, avaliaram a inesperada reviravolta dos acontecimentos, sem que se decidissem se deveriam ou não soltar suas tropas na refrega.
- Bárbaros? - admirou-se Glensather. - São nossos amigos ou inimigos?
- Estão matando os ores! - respondeu Cássio. - São amigos!
No Maer Dualdon, Kemp e os outros também ouviram o fragor da batalha, apesar de não conseguirem ver que forças estavam envolvidas. O mais desconcertante era que um segundo conflito começara, dessa vez a sudoeste, na vila de Bremen. Teriam os homens de Brin Shander saído e atacado? Ou era o contingente de Akar Kessell destruindo-se em volta dele?
Foi então que Crishal-Tirith subitamente ficou escura e seus lados antes vítreos e vibrantes adquiriram uma imobilidade cadavérica e opaca.
- Régis - murmurou Cássio, sentindo a perda de poder da torre. - Um herói como nunca tivemos!
A torre estremeceu e agitou-se. Grandes rachaduras apareceram por toda a extensão de suas paredes. Em seguida, desmoronou.
Os monstros do exército só fizeram observar, incrédulos e aterrorizados, o desmoronamento do bastião do mago que eles vieram a adorar como a um deus.
As cornetas de Brin Shander começaram a soar. A gente de Kemp irrompeu em vivas frenéticos e precipitou-se para os remos. Os batedores de vanguarda de Jensin Brent, por meio de sinais, repassaram as surpreendentes notícias à frota no Lac Dinneshir que, por sua vez, transmitiu a mensagem a Marerrubra. Em todos os refúgios temporários que ocultavam o povo disperso de Dez-Burgos ouviu-se a mesma ordem:
- Atacar!
O exército reunido diante dos grandes portões da muralha de Brin Shander despejou-se do pátio para o campo. As frotas de Caer-Konig e Caer-Dineval, no Lac Dinneshir, e Bom Prado e Toca de Dugan, no sul, içaram suas velas para aproveitar o vento leste e puseram-se a atravessar os lagos a toda a pressa. As quatro frotas reunidas no Maer Dualdon remaram com toda a força, fazendo frente àquele mesmo vento, ansiosas por vingança.
Numa arremetida voraginosa de caos e surpresa, começara a derradeira Batalha do Vale do Vento Gélido.

Régis rolou pelo chão para se pôr fora do caminho quando as duas criaturas que travavam combate passaram mais uma vez por ele, aos trambolhões, com as garras e as presas a rasgar e a dilacerar a carne numa luta desesperada. Normalmente, Guenhwyvar teria tido pouco trabalho para despachar o cão infernal mas, enfraquecida como estava, viu-se lutando pela própria vida. O hálito quente do cachorro abrasou a pelagem negra; as grandes presas enterraram-se no pescoço musculoso.
Régis queria ajudar o gato, mas sequer conseguia se aproximar o suficiente para chutar o adversário da pantera. Por que Drizzt fugira tão abruptamente?
Guenhwyvar sentiu o pescoço sendo esmagado pela poderosa bocarra. O gato rolou e, mais pesado, levou o cão consigo. Mas as mandíbulas caninas não cederam. A tontura acometeu o gato devido à falta de ar. O felino começou a enviar sua mente de volta através dos planos, para seu verdadeiro lar, mesmo lamentando ter falhado com seu mestre numa hora de necessidade.
Foi então que a torre escureceu. O assustado cão infernal relaxou ligeiramente a pressão e Guenhwyvar rapidamente aproveitou a oportunidade. O gato enfiou as patas nas costelas do cão e livrou-se das mandíbulas com um repelão, rolando para longe e para as trevas.
O cão infernal procurou o adversário, mas os poderes de dissimulação da pantera estavam acima até mesmo da considerável perceptividade de seus sentidos aguçados. O cão viu uma segunda presa. Um único salto o levou até Régis.
Mas Guenhwyvar agora conhecia muito bem as regras do jogo. A pantera era uma criatura da noite, um predador que atacava a partir das trevas e matava antes mesmo que a vítima pressentisse sua presença. O cão infernal agachou-se para atacar Régis, mas foi ao chão quando a pantera caiu pesadamente sobre suas costas e as garras enterraram-se em seu couro cor de ferrugem.
O cão ganiu apenas uma vez antes de as presas fatais encontrarem seu pescoço.
Os espelhos racharam e se estilhaçaram. Um buraco imprevisto no piso tragou o trono de Kessell. Os blocos de escombros cristalinos começaram a cair de todos os lados, e a torre estremecia em seus estertores finais. Gritos provenientes da câmara do harém logo abaixo informaram Régis de que uma cena semelhante de destruição era comum em toda a estrutura. Ele se alegrou o ver Guenhwyvar despachar o cão infernal, mas compreendeu a inutilidade do heroísmo do gato. Não tinham para onde correr nem como escapar à morte de Crishal-Tirith.
Régis chamou Guenhwyvar para perto dele.
Ele não conseguia enxergar o corpo do gato na escuridão, mas via os olhos que se concentravam nele e o rodeavam como se o gato o estivesse espreitando.
- O que foi? - refugou o halfling, atônito, imaginando se a tensão e os ferimentos infligidos pelo cão não teriam levado Guenhwyvar à loucura.
Um grande pedaço da parede espatifou-se bem ao lado dele, estatelando-o no chão. Ele viu os olhos do gato erguerem-se em pleno ar; Guenhwyvar saltara.
O pó o sufocou, e ele sentiu o início do derradeiro colapso da torre de cristal. Em seguida, uma escuridão mais profunda o surpreendeu quando ele foi envolvido pelo gato negro.

Drizzt sentiu-se cair.
A luz era brilhante demais, ele não enxergava. Nada ouvia, nem mesmo o som do ar que passava velozmente. No entanto, ele sabia com certeza que estava caindo.
E depois a luz empalideceu e transformou-se numa bruma cinzenta, como se ele atravessasse uma nuvem. Tudo parecia tão onírico, tão completamente irreal. Ele não se lembrava de como acabara naquela situação. Não conseguia recordar o próprio nome.
Foi então que ele caiu num profundo monte de neve e percebeu que não estava sonhando. Ouviu o grito do vento e sentiu sua mordida enregelante. Ele tentou ficar de pé para ter uma idéia melhor dos arredores.
Aí ele ouviu, ao longe e abaixo, os gritos da devastadora batalha. Lembrou-se de Crishal-Tirith, lembrou-se de onde estivera. Só podia haver uma resposta.
Ele estava no topo do Sepulcro de Kelvin.

Os soldados de Brin Shander e Angraleste, lutando lado a lado e liderados por Cássio e Glensather, arremeteram colina abaixo e caíram com toda a força sobre as tropas transtornadas de goblins. Os dois representantes tinham um determinado objetivo em mente: queriam atravessar as fileiras de monstros e unir-se aos pupilos de Bruenor. Sobre a muralha, momentos antes, eles tinham visto os bárbaros tentarem a mesma estratégia e calcularam que, se todos os três exércitos pudessem ser reunidos para cobrir um o flanco do outro, suas chances exíguas melhorariam bastante.
Os goblins cederam ao assalto. Em sua absoluta consternação e surpresa diante da súbita reviravolta dos acontecimentos, os monstros foram incapazes de organizar algo que lembrasse uma linha defensiva.
Quando aportaram logo ao norte das ruínas de Targos, as quatro frotas no Maer Dualdon encontraram a mesma resistência desorganizada e desorientada. Kemp e os outros líderes haviam calculado que conseguiriam facilmente estabelecer uma cabeça-de-ponte em terra, mas sua principal preocupação era o grande exército de goblins ocupando Termalaine precipitar-se logo atrás deles caso abrissem caminho a partir da praia, o que eliminaria sua única rota de fuga.
Entretanto, eles não precisariam ter se preocupado. Nos primeiros estágios da batalha, os goblins em Termalaine haviam realmente se precipitado para fora com toda a intenção de apoiar o mago. Mas, então, Crishal-Tirith desmoronara. Os goblins já andavam céticos, tendo ouvido durante toda a noite que Kessell despachara um grande destacamento para exterminar os Ores da Língua Partida na cidade conquistada de Bremen. E quando viram a torre, o pináculo do poder de Kessell, transformada em ruínas, eles reconsideraram suas alternativas e ponderaram entre eles as conseqüências de suas opções. Fugiram para o norte e para a segurança da vasta planície.

As rajadas de neve contribuíam para formar o denso véu de bruma no topo da montanha. Drizzt mantinha os olhos baixos, mas mal conseguia enxergar os próprios pés enquanto colocava resolutamente um em frente ao outro. Ele ainda tinha a cimitarra mágica, e ela brilhava com uma luz pálida, como se aprovasse as temperaturas frígidas.
O corpo cada vez mais insensível do drow implorava para que ele descesse a montanha, mas ele continuava a se distanciar ao longo da face alta, em direção a um dos picos adjacentes. O vento trazia um som perturbador a seus ouvidos: uma gargalhada ensandecida.
E foi então que ele viu a forma indistinta do mago, debruçada por sobre o precipício ao sul, tentando vislumbrar o que acontecia no campo de batalha lá em baixo.
- Kessell! - gritou Drizzt. Ele viu a forma se mover abruptamente e compreendeu que o mago o ouvira, mesmo com o uivo do vento. - Em nome do povo de Dez-Burgos, exijo que se renda a mim! Rápido, agora, antes que esse sopro implacável de inverno nos congele aqui mesmo onde estamos!
Kessell abriu um sorriso escarninho.
- Você ainda não compreende o que está enfrentando, não é? - perguntou ele, estupefato. - Você realmente acredita que venceu esta batalha?
- Como a gente lá embaixo está se saindo eu ainda não sei - respondeu Drizzt, mas você foi derrotado! Sua torre foi destruída, Kessell, e sem ela você não passa de um impostor insignificante! - Ele continuou a se mover enquanto falava e estava agora a uma pequena distância do mago, mas seu oponente era ainda um mero borrão negro num campo cinzento.
- Quer saber como eles estão se saindo, drow? - perguntou Kessell. - Então olhe! Testemunhe a queda de Dez-Burgos! - Ele enfiou a mão sob o manto e sacou um objeto brilhante: uma estilha de cristal. As nuvens pareceram recuar diante dela. O vento cessou dentro dos limites do amplo raio de sua influência. Drizzt testemunhou seu incrível poder. Sob a luz do cristal, o drow sentiu o sangue retornar a suas mãos insensíveis. Em seguida, o véu cinzento foi consumido pelo fogo e o céu diante deles ficou claro.
- A torre destruída? - zombou Kessell. - Você quebrou apenas uma das inúmeras cópias de Crenshinibon! Um saco de farinha? Derrotar a relíquia mais poderosa do mundo? Olhe lá embaixo, veja os homens estúpidos que ousam me fazer oposição!
O campo de batalha desfraldou-se diante do drow. Ele viu as velas brancas e enfunadas dos barcos de Caer-Dineval e Caer-Konig que se aproximavam da margem oeste do Lac Dinneshir.
No sul, as frotas de Bom Prado e Toca de Dugan já haviam aportado. Os marinheiros não encontraram qualquer resistência inicial e, naquele exato momento, entravam em formação para um ataque por terra. Os goblins e os ores que formavam a metade meridional do círculo de Kessell não haviam testemunhado a queda de Crishal-Tirith. Mesmo sentindo a perda de poder e orientação, e apesar de muitos permanecerem onde estavam ou abandonarem os companheiros para fugir, outros tantos contornaram precipitadamente a colina de Brin Shander para se juntar à batalha.
As tropas de Kemp também estavam em terra firme e empurravam os barcos para longe das praias com um olhar desconfiado voltado para o norte. Esse grupo tinha aportado em meio à mais densa concentração das forças de Kessell, mas também na área sob a sombra da torre, onde a queda de Crishal-Tirith havia sido mais desalentadora. Os pescadores encontraram mais goblins interessados em fugir do que com a intenção de lutar.
No centro do campo, onde aconteciam os combates mais violentos, os homens de Dez-Burgos e seus aliados também pareciam estar se saindo bem.
Os bárbaros tinham praticamente se unido aos anões. Incitadas pela força do martelo de Wulfgar e a coragem sem igual de Bruenor, as duas forças estraçalhavam tudo o que se colocava entre elas. E logo se tornariam ainda mais formidáveis, pois Cássio e Glensather estavam bem perto e aproximavam-se a um ritmo constante.
- Pelo que dizem meus olhos, seu exército não está se saindo muito bem - retorquiu Drizzt. - Os homens "estúpidos" de Dez-Burgos ainda não foram derrotados!
Kessell ergueu a estilha de cristal bem acima da cabeça, e a luz do objeto inflamou-se e atingiu um nível ainda maior de poder. lá embaixo, no campo de batalha, mesmo àquela grande distância, os combatentes compreenderam imediatamente a ressurreição da poderosa presença que haviam conhecido como Crishal-Tirith. Tanto humanos quanto anões e goblins, mesmo aqueles envolvidos em combate mortal, detiveram-se um segundo para contemplar o farol sobre a montanha. Os monstros, sentindo o retorno de seu deus, irromperam em vivas frenéticos e abandonaram sua postura até então defensiva. Encorajados pelo glorioso reaparecimento de Kessell, eles forçaram o ataque com fúria selvagem.
- Veja como minha simples presença os incita! - Kessell vangloriou- se, orgulhoso.
Mas Drizzt já não prestava mais atenção nem ao mago nem à batalha lá embaixo. Tinha agora os pés cobertos por poças d'água formadas pela neve derretida sob o calor da brilhante relíquia. Eles se concentrava agora num ruído que seus ouvidos aguçados haviam captado por entre o fragor da luta distante. Um bramido de protesto dos picos congelados do Sepulcro de Kelvin.
- Contemple a glória de Akar Kessell! - gritou o mago, com a voz ampliada a uma magnitude ensurdecedora pelo poder da relíquia que ele segurava. - Será muito fácil destruir os barcos no lago lá embaixo!
Drizzt percebeu que Kessell, em sua arrogante desconsideração pelo perigo cada vez maior, cometia um erro flagrante. Tudo o que tinha a fazer era retardar qualquer ação decisiva do mago pelos próximos instantes. Num reflexo, ele agarrou o punhal atrás de seu cinto e atirou-o contra Kessell, embora soubesse que Kessell estava ligado a Crenshinibon por algum tipo de simbiose deturpada e que a pequena arma não tinha a menor chance de atingir seu alvo. O drow esperava distrair e enfurecer o mago para afastar sua fúria do campo de batalha.
O punhal atravessou o ar velozmente. Drizzt virou-se e correu.
Um raio delgado foi disparado por Crenshinibon e derreteu a arma antes que esta encontrasse seu alvo, mas Kessell estava furioso.
- Você deveria se curvar diante de mim! - ele gritou para Drizzt. - Como blasfemo, você fez por merecer a distinção de ser minha primeira vítima
Girou e brandiu a estilha, afastando-a da saliência e apontando-a para o drow em fuga. Mas, tão logo completou o giro, ele afundou até os joelhos na neve derretida.
Foi então que ele também ouviu os bramidos furiosos da montanha.
Drizzt deixou a esfera de influência da relíquia e, sem hesitar nem olhar para trás, correu, distanciando-se tanto quanto pôde da face sul do Sepulcro de Kelvin.
Agora imerso até o peito, Kessell lutou para se libertar da neve derretida. Invocou o poder de Crenshinibon novamente, mas sua concentração vacilou sob a intensa tensão da catástrofe iminente.
Pela primeira vez em anos, Akar Kessell sentiu-se fraco novamente. Não o Tirano do Vale do Vento Gélido, mas o titubeante aprendiz que assassinara seu mestre.
Era como se a estilha de cristal o tivesse rejeitado.
Nesse momento, todo um lado do topo nevado da montanha caiu. O estrondo fez a terra estremecer num raio de muitas milhas. Homens e ores, goblins e até mesmo ogros foram atirados ao chão.
Kessell apertou a estilha bem junto ao peito quando ele começou a cair. Mas Crenshinibon queimou-lhe as mãos, repeliu-o. Kessell falhara vezes demais. A relíquia não mais o aceitaria como seu portador.
Kessell gritou ao sentir a estilha escorregar por entre seus dedos. Seu guincho, porém, foi abafado pelo estrondo da avalanche. A fria escuridão da neve fechou-se ao redor dele e caiu, tombou com ele. Kessell acreditava desesperadamente que, se ainda segurasse a estilha de cristal, ele conseguiria sobreviver até mesmo àquilo. Foi seu pequeno consolo quando ele caiu num dos picos mais baixos do Sepulcro de Kelvin.
E metade do topo da montanha caiu sobre ele.

O exército de monstros presenciara novamente a queda de seu deus. O filete de esperança que estimulara seu ímpeto começou a se desfazer rapidamente. Mas, no breve período em que Kessell reaparecera, algum grau de atividade coordenadora ocorrera. Dois gigantes do gelo, os únicos gigantes verdadeiros remanescentes em todo o exército do mago, assumiram o comando. Chamaram os ogros da guarda de elite para junto deles e depois convocaram as tribos de ores e goblins a se juntar a eles e seguir sua liderança.
Mesmo assim, a consternação do exército era óbvia. As rivalidades tribais, enterradas sob a dominação férrea de Akar Kessell, ressurgiram na forma de patente desconfiança. Somente o medo que tinham dos inimigos os mantinha lutando, e somente o medo que tinham dos gigantes os mantinha em formação ao lado das outras tribos.
- Bons olhos o vejam, Bruenor! - entoou Wulfgar, depois de espatifar a cabeça de mais um goblin, assim que a horda bárbara finalmente chegou até os anões.
- E você também, garoto! - respondeu o anão, enterrando seu machado no peito do oponente. - Quase que passou da hora de 'cê voltar! Achei que também ia ter que matar a sua parte desta escória!
Entretanto, a atenção de Wulfgar estava em outro lugar. Ele descobrira os dois gigantes que comandavam as tropas.
- Gigantes do gelo - disse ele a Bruenor, dirigindo o olhar do anão para o círculo de ogros. - São tudo o que mantém as tribos unidas!
- Mais diversão! - gargalhou Bruenor. - Vá na frente!
E, desse modo, com seus principais acompanhantes e Bruenor a seu lado, o jovem rei começou a abrir uma trilha de destruição através das fileiras de goblins.
Os ogros amontoaram-se em frente aos novos comandantes para bloquear o caminho do bárbaro.
Wulfgar estava perto o bastante então.
Garra de Palas passou pelas fileiras de ogros com um silvo e acertou um dos gigantes na cabeça, fazendo-o cair sem vida. O outro, pasmo e incrédulo diante de um humano capaz de desferir um golpe tão letal contra alguém de sua espécie e daquela distância, hesitou apenas um instante antes de abandonar a batalha.
Impávidos, os ferozes ogros investiram contra o grupo de Wulfgar e empurrou-o para trás. Mas Wulfgar estava satisfeito e cedeu de boa vontade à pressão, ansioso para voltar a se reunir ao grosso do exército de humanos e anões.
Bruenor, porém, não tinha a mesma disposição. Era o tipo de combate caótico que ele mais apreciava. Desapareceu sob as pernas compridas da linha de vanguarda dos ogros e moveu-se, despercebido em meio ao pó e à confusão, entre suas fileiras.
Com o canto do olho, Wulfgar presenciou a estranha retirada do anão.
- Para onde você vai? - gritou, mas o aguerrido Bruenor não ouviu o chamado e não teria dado atenção de qualquer maneira.
Wulfgar não pôde assistir à carreira do furioso anão, mas conseguiu se aproximar da posição de Bruenor, ou ao menos do lugar onde o anão estivera havia pouco, acompanhando os ogros que se vergavam de surpresa e agonia, um após outro, levando às mãos a um joelho, a um tendão ou à virilha.
Acima de toda a comoção, os ores e goblins não envolvidos em combate direto vigiavam o Sepulcro de Kelvin, à espera de uma segunda ressurreição.
Mas, assentada agora nas encostas inferiores da montanha, havia apenas neve.

Desejosos de vingança, os combatentes de Caer-Konig e Caer-Dineval conduziram suas embarcações em direção à terra a todo pano e fizeram-nas deslizar imprudentemente até as areias dos baixios para evitar a demorada ancoragem em águas mais profundas. Eles saltaram dos barcos, chapinharam até a terra firme e precipitaram-se na batalha com um frenesi destemido que afastou os oponentes.
Uma vez estabelecidos em terra, Jensin Brent reuniu-os numa formação fechada e dirigiu-os para o sul. O representante ouviu sons de combate vindos de longe naquela direção e compreendeu que os homens de Bom Prado e Toca de Dugan iam para o norte com a intenção de se juntarem aos seus. O plano era encontrá-los na Estrada do Leste e depois virar para oeste, na direção de Brin Shander, com um exército muito maior.
Muitos dos goblins daquele lado da cidade já tinham fugido havia tempos, e muitos mais foram para noroeste, rumo às ruínas de Crishal-Tirith e ao conflito principal. O exército do Lac Dinneshir correu em direção a seu objetivo. Chegou à estrada com algumas baixas e entrincheirou-se para esperar os sulistas.

Kemp esperava ansiosamente o sinal do barco solitário a velejar nas águas do Maer Dualdon. O representante de Targos, designado comandante das forças das quatro cidades do lago, movera-se cautelosamente até então com medo de um pesado ataque vindo do norte. Ele manteve seus homens sob controle, permitindo que combatessem apenas os monstros que os atacassem, mas essa atitude conservadora - sem falar dos sons da devastadora batalha que ecoavam pelo campo - dilacerava seu coração aventureiro.
Como os minutos se arrastassem sem qualquer sinal de reforços goblins, o representante enviara uma pequena escuna para percorrer as margens e descobrir o que estava atrasando a força que ocupava Termalaine.
Foi então que ele avistou as velas brancas a surgirem gradualmente no horizonte. Bem alto sobre a proa da pequena embarcação estava a bandeira sinalizadora que Kemp mais havia desejado, mas aquela que ele menos esperara: o estandarte vermelho da captura, que naquele caso sinalizava que Termalaine estava livre e os goblins fugiam para o norte.
Kemp correu até o ponto mais alto que pôde encontrar, com o rosto avermelhado pelo desejo de vingança.
- Rompam a linha, rapazes! - ele gritou para seus homens. - Abram uma trilha até a cidade sobre a colina! Que Cássio retorne e nos encontre sentados à porta de sua cidade!
A cada passo, eles gritavam furiosamente, pois eram homens que haviam perdido casas e parentes e visto suas cidades extinguirem-se nas chamas sem nada poder fazer. Muitos deles nada tinham a perder. Tudo o que podiam esperar era um gostinho de amarga satisfação.

A batalha continuou a grassar durante o resto da manhã. Homens e monstros erguiam suas espadas e lanças que pareciam ter dobrado de peso. Mas a exaustão, apesar de diminuir seus reflexos, em nada aplacava a raiva que ardia no sangue de cada combatente.
As linhas de batalha foram se tornando indistinguíveis à medida que a luta avançava, e os soldados separavam-se irremediavelmente de seus comandantes. Em muitos lugares, goblins e ores lutavam uns contra os outros, incapazes - mesmo com um inimigo comum ao alcance - de sublimar o ódio de longa data pelas tribos rivais. Uma espessa nuvem de pó envolvia as maiores concentrações do conflito. O clamor atordoante de aço contra aço, as espadas que se chocavam contra os escudos e os gritos cada vez mais freqüentes de morte, agonia e vitória fizeram o embate estruturado se degenerar numa briga generalizada.
A única exceção era o grupo de experientes anões. Suas fileiras não vacilaram nem se desintegraram o mínimo que fosse, apesar de Bruenor ainda não ter retornado depois de sua estranha retirada.
Os anões proporcionaram uma sólida plataforma para o ataque dos bárbaros e uma referência para o retorno de Wulfgar e de seu pequeno grupo. O jovem rei voltou às fileiras bárbaras no exato momento em que Cássio e seu exército se juntavam a eles. O representante e Wulfgar trocaram olhares preocupados, ambos incertos quanto a em que pé estavam um em relação ao outro. No entanto, os dois foram sábios o suficiente para confiar inteiramente naquela aliança momentânea. Ambos compreendiam que adversários inteligentes deixam de lado suas diferenças em face de um inimigo superior.
Apoiar um ao outro seria a única vantagem dos aliados recém-coligados. Juntos, eles superavam em número e conseguiriam sobrepujar qualquer tribo individual de ores ou goblins que enfrentassem. E, como as tribos goblins não cooperavam entre si, os vários grupos careciam de apoio externo nos flancos. Wulfgar e Cássio, seguindo e apoiando os movimentos um do outro, enviaram guerreiros em braços defensivos para manter os grupos periféricos afastados enquanto a força principal do exército combinado fulminava uma tribo por vez.
Apesar de seus soldados terem abatido mais de dez goblins para cada homem perdido, Cássio estava verdadeiramente apreensivo. Milhares de monstros sequer haviam entrado em contato com os humanos ou erguido uma arma, e seus homens estavam quase caindo de cansaço. Ele precisava levá-los de volta à cidade. Deixou que os anões assumissem a liderança.
Wulfgar, também preocupado com a capacidade de seus guerreiros de manter o ritmo, e sabendo que não havia outra rota de fuga, instruiu seus homens a seguirem Cássio e os anões. Era uma jogada de risco, pois o rei bárbaro sequer tinha certeza de que o povo de Brin Shander deixaria seus guerreiros entrarem na cidade.
As forças de Kemp fizeram um impressionante progresso em sua investida inicial até as encostas da cidade principal, mas, ao se aproximarem de seu objetivo, encontraram concentrações mais densas e desesperadas de humanóides. A cerca de cem metros da colina, eles foram detidos e tiveram de lutar em todas as frentes.
Os exércitos que chegavam do leste em grande número saíram-se melhor. A arremetida pela Estrada do Leste encontrara pouca resistência e eles foram os primeiros a alcançar a colina. Haviam atravessado furiosamente os lagos em seus barcos e corrido e lutado todo o caminho através da planície, mas Jensin Brent, o único representante sobrevivente dos quatro originais, pois Schermont e os dois das cidades ao sul haviam tombado na Estrada do Leste, não os deixaria descansar. Ele ouvia claramente os sons da acalorada batalha e compreendia que os bravos homens nos campos do norte, enfrentando o grosso do exército de Kessell, precisavam de todo o apoio que pudessem conseguir.
No entanto, quando contornaram a última curva antes do portão norte da cidade, o representante e suas tropas ficaram petrificados diante do espetáculo da mais brutal batalha que já tinham visto ou mesmo ouvido falar em historias exageradas. Os combatentes lutavam por cima dos corpos retalhados dos mortos, e os guerreiros que haviam perdido suas armas mordiam e arranhavam os oponentes.
Brent inferiu imediatamente que Cássio e seu grande contingente seriam capazes de retornar à cidade por conta própria. Os exércitos do Maer Dualdon, porém, estavam numa situação difícil.
- Para oeste! - ele gritou para seus homens enquanto arremetia em direção à força encurralada.
Uma nova onda de adrenalina impeliu o exército cansado ao resgate de seus camaradas. Sob ordens de Brent, os homens desceram as encostas numa linha comprida, lado a lado, mas, quando alcançaram o campo de batalha, apenas o grupo do meio seguiu em frente. Os grupos nas pontas da formação foram caindo para o centro e a força inteira havia logo formado uma cunha, cuja ponta abria caminho através dos monstros para alcançar os exércitos acuados de Kemp.
Os homens de Kemp acolheram avidamente o esquadrão de resgate, e o exército reunido foi logo capaz de recuar para a face norte da colina. Os últimos retardatários chegaram aos trambolhões ao mesmo tempo que o exército de Cássio, os bárbaros de Wulfgar e os anões livravam-se das fileiras mais próximas de goblins e subiam pelo terreno exposto da colina.
Agora, com os humanos e os anões reunidos numa só força, os goblins avançavam tentativamente. As baixas haviam sido terríveis. Não restavam gigantes nem ogros, e tribos inteiras de goblins e ores jaziam mortas. Crishal-Tirith era uma pilha de escombros enegrecidos e Akar Kessell estava enterrado numa cova congelada.
Os homens na colina de Brin Shander estavam machucados e cambaleavam de exaustão, mas o feitio inflexível de seus maxilares deixava claro aos monstros remanescentes que eles continuariam lutando até o último alento. Haviam recuado até onde podiam, não haveria outra retirada.
Dúvidas insinuaram-se na mente de cada goblin e ore que permaneceu para levar a guerra adiante. Embora provavelmente estivessem ainda em número suficiente para completar a tarefa, muitos mais ainda tombariam antes que os ferozes homens de Dez-Burgos e seus mortíferos aliados fossem abatidos. Mesmo assim, qual das tribos sobreviventes reclamaria a vitória? Sem a orientação do mago, os sobreviventes da batalha sem dúvida teriam dificuldades para dividir igualmente os espólios sem novos conflitos.
A Batalha do Vale do Vento Gélido não seguira o curso que Akar Kessell prometera.

31
Vitória?

Os homens de Dez-Burgos, juntamente com os aliados anões e bárbaros, haviam lutado até abrir caminho de todos os lados do vasto campo e agora estavam reunidos diante do portão norte de Brin Shander. E enquanto seu exército chegara a uma única atitude de combate, com todos os grupos antes separados agora reunidos sob o objetivo comum da sobrevivência, o exército de Kessell percorrera a estrada oposta. Ao arremeter pelo Desfiladeiro do Vento Gélido, o propósito comum dos goblins era a vitória para a glória de Akar Kessell. Mas Kessell estava morto e Crishal-Tirith destruída, e a corda que mantivera unidos os rancorosos inimigos de longa data, as tribos rivais de ores e goblins, havia começado a se desfazer.
Os humanos e os anões avaliaram a massa de invasores com renovada esperança, pois, em todas as orlas externas da vasta força, formas escuras continuavam a desprender-se e a fugir do campo de batalha, de volta à tundra.
Ainda assim, os defensores de Dez-Burgos estavam cercados por três lados e tinham a muralha de Brin Shander a suas costas. Naquele momento, os monstros não fizeram qualquer menção de insistir no ataque, mas milhares de goblins mantinham suas posições ao redor de todos os campos ao norte da cidade.
Pouco antes, durante a batalha, quando os ataques iniciais haviam surpreendido os invasores, os líderes das forças defensoras envolvidas teriam considerado desastrosa aquela calmaria, algo que lhes roubaria o ímpeto e permitiria que seus inimigos atordoados se reagrupassem em formações mais favoráveis.
Agora, porém, o interlúdio vinha como uma dupla bênção: dava aos soldados um descanso desesperadamente necessário e deixava os goblins e ores assimilarem inteiramente a derrota que haviam sofrido. O campo deste lado da cidade estava coberto de cadáveres, muito mais goblins que humanos, e a pilha esfacelada que havia sido Crishal-Tirith só acentuava a noção dos monstros de que suas baixas foram terríveis. Não restavam gigantes nem ogros para apoiar suas fileiras cada vez menores e, a cada segundo, mais aliados desertavam a causa.
Cássio teve tempo de chamar todos os representantes sobreviventes para um breve conselho.
A uma pequena distância dali, Wulfgar e Revjalc reuniam-se com Arnês Mallot, nomeado líder das forças anãs em face da perturbadora ausência de Bruenor.
- Estamos contentes com sua volta, poderoso Wulfgar - disse Arnês. - Bruenor sabia que 'cê ia voltar.
Wulfgar percorreu o campo com os olhos, à procura de algum sinal de que Bruenor ainda estava lá, em algum lugar, brandindo seu machado.
- Alguma notícia de Bruenor?
- 'cê foi o último a ver ele - respondeu Arnês sombriamente.
Ficaram em silêncio, esquadrinhando o campo.
- Deixe-me ouvir novamente o retinir de seu machado - murmurou Wulfgar.
Mas Bruenor não podia ouvi-lo.

- Jensin - Cássio perguntou ao representante de Caer-Dineval -, onde estão suas mulheres e crianças? Estão a salvo?
- A salvo em Angraleste - replicou Jensin Brent - Acompanhadas, a essa altura, pelo povo de Bom Prado e Toca de Dugan. Estão bem providos e protegidos. Se os desgraçados soldados de Kessell investirem contra a vila, o povo há de saber do perigo com tempo de sobra para zarpar mais uma vez para o Lac Dinneshir.
- Mas quanto tempo eles conseguiriam sobreviver na água? - perguntou Cássio.
Jensin Brent deu de ombros evasivamente.
- Até o inverno chegar, acho eu. Sempre terão onde aportar, no entanto, pois os goblins e os ores restantes não conseguiriam abranger nem mesmo metade da extensão das margens do lago.
Cássio pareceu satisfeito. Virou-se para Kemp.
- Bosquesó - Kemp respondeu à pergunta muda. - E aposto que estão melhor do que nós! Têm barcos suficientes nas docas por lá para fundar uma cidade no meio do Maer Dualdon.
- Isso é bom - Cássio disse a eles. - Deixa-nos ainda uma outra opção. Poderíamos, talvez, resistir aqui durante algum tempo, depois retirarmo-nos para o interior das muralhas da cidade. Os goblins e os ores, mesmo com a superioridade numérica, não poderiam sequer sonhar em nos conquistar uma vez lá dentro!
A idéia pareceu ter um certo apelo para Jensin Brent, mas Kemp franziu o cenho.
- A nossa gente estaria mais ou menos a salvo - disse ele -, mas e quanto aos bárbaros?
- As mulheres deles são vigorosas e capazes de sobreviver sem os homens - respondeu Cássio.
- Não dou a mínima para as mulheres fedorentas deles - vociferou Kemp, erguendo a voz de propósito para que Wulfgar e Revjak, em seu próprio conselho não muito longe dali, pudessem ouvi-lo. - Falo dos próprios cães selvagens ali! Você não vai escancarar a porta e convidá-los!
- O orgulhoso Wulfgar aproximou-se dos representantes.
Cássio, enfurecido, virou-se contra Kemp.
- Idiota teimoso! - murmurou rudemente. - Nossa única esperança é a união!
- Nossa única esperança é o ataque! - retorquiu Kemp. - Eles estão aterrorizados e você pede para fugirmos e nos escondermos!
O imenso bárbaro colocou-se diante dos dois representantes, destacando-se entre eles.
- Saudações, Cássio de Brin Shander - disse educadamente. - Sou Wulfgar, filho de Beornegar e líder das tribos que vieram se unir a sua nobre causa.
- O que sua raça entende de nobreza? - interrompeu Kemp. Wulfgar o ignorou.
- Ouvi boa parte de sua discussão - continuou ele, impassível. - É minha opinião que seu conselheiro malcriado e ingrato aqui - ele fez uma pausa para se controlar - propôs a única solução.
Cássio, ainda esperando que Wulfgar se enfurecesse com os insultos de Kemp, a princípio ficou confuso.
- Atacar - explicou Wulfgar. - Os goblins agora já não têm certeza do que podem ganhar com isso. Perguntam-se por que é que seguiram o mago até este lugar fatídico. Se tiverem a oportunidade de recobrar o desejo pela batalha, vão se mostrar um adversário mais formidável.
- Agradeço suas palavras, rei dos bárbaros - respondeu Cássio. - No entanto, acho que essa ralé não será capaz de agüentar um cerco. Deixarão os campos antes de uma semana.
- Talvez - disse Wulfgar. - Mas, mesmo assim seu povo há de pagar caro. Partindo por escolha própria, os goblins não retornarão a suas cavernas de mãos vazias. Há ainda várias cidades desprotegidas que eles poderiam atacar ao deixar o Vale do Vento Gélido. E, pior ainda, eles não vão partir com medo nos olhos. Sua retirada há de salvar as vidas de alguns de seus homens, Cássio, mas não evitará um futuro retorno de seus inimigos!
- Então você concorda que devemos atacar? - perguntou Cássio.
- Nossos inimigos agora nos temem. Olham ao redor e vêem a ruína que infligimos a eles. O medo é um instrumento poderoso, principalmente contra goblins covardes. Completemos o desbaratamento, como seu povo fez com o meu, cinco anos atrás... - Cássio reconheceu a dor nos olhos de Wulfgar ao recordar o incidente. - Façamos esses animais imundos correr de volta a seus lares nas montanhas! Muitos anos passarão antes que eles se aventurem a atacar as vilas novamente.
Cássio olhou para o jovem bárbaro com profundo respeito e curiosidade. Mal podia acreditar que aqueles orgulhosos guerreiros da tundra, que recordavam vividamente a carnificina que haviam sofrido nas mãos dos deca-burgueses, tivessem vindo em auxílio às comunidades pesqueiras.
- Meu povo de fato desbaratou o seu, nobre rei. Brutalmente. Por que, então, vocês vieram?
- Isso é uma questão que devemos discutir depois de completada nossa tarefa - respondeu Wulfgar. - Agora, cantemos! Vamos levar terror aos corações de nossos inimigos e alquebrá-los!
Ele se virou para Revjak e alguns de seus outros líderes.
- Cantem, orgulhosos guerreiros! - ordenou. - Que a Canção de Tempus profetize a morte dos goblins!
Um vibrante viva elevou-se de todas as fileiras de bárbaros e, com orgulho, eles ergueram as vozes em louvor a seu deus da guerra.
Cássio notou o efeito imediato da canção sobre os monstros mais próximos. Eles recuaram um passo e apertaram os punhos das armas.
Um sorriso cruzou o rosto do representante. Ele ainda não conseguia entender a presença dos bárbaros, mas as explicações teriam de esperar.
- Juntem-se a nossos aliados bárbaros! - ele gritou para seus soldados. - Hoje é um dia de vitória!
Os anões haviam retomado o soturno cântico de guerra de sua antiga terra natal. Os pescadores de Dez-Burgos acompanharam as palavras da Canção de Tempus, tentativamente a princípio, até que as inflexões e expressões estrangeiras fluíssem facilmente de seus lábios. Em seguida, juntaram-se a eles em uníssono, proclamando a glória de cada uma de suas vilas como os bárbaros faziam com suas tribos.
O ritmo aumentou, o volume foi ganhando as proporções de um poderoso crescendo. Os goblins tremeram diante do frenesi cada vez maior de seus mortíferos inimigos. A torrente de desertores que partiam das beiradas da aglomeração principal começou a ficar cada vez mais caudalosa.
E então, como uma única onda mortífera, os aliados humanos e anões arremeteram colina abaixo.

Drizzt conseguira se afastar da face sul, mesmo com dificuldade, o bastante para escapar à fúria da avalanche, mas ele ainda se encontrava numa situação perigosa. O Sepulcro de Kelvin não era uma montanha alta, mas o terço do topo cobria-se perpetuamente de neve profunda e vivia brutalmente exposto ao vento gélido que dava nome à terra.
Pior ainda para o drow, seus pés haviam se molhado no derretimento provocado por Crenshinibon e, agora, à medida que a umidade congelava em volta de sua pele, mover-se pela neve era doloroso.
Arrastando-se, ele decidiu continuar em direção à face oeste, que oferecia melhor proteção contra o vento. Seus movimentos eram violentos e exagerados, pois ele gastava toda a sua energia para manter o sangue correndo em suas veias. Ao alcançar a orla do pico da montanha e começar a descer, ele foi obrigado a se mover mais tentativamente, pois temia que um solavanco repentino o entregasse ao mesmo destino sinistro que acometera Akar Kessell.
Suas pernas agora estavam completamente entorpecidas, mas ele as manteve em movimento, praticamente obrigado a forçar seus reflexos automáticos.
Mas, então, ele escorregou.

Os ferozes guerreiros de Wulfgar foram os primeiros a colidir com a linha de goblins. Eles retalharam e empurraram para trás a primeira fileira de monstros. Nem goblins nem ores ousaram resistir ao poderoso rei, mas, em meio à confusão apinhada da luta, poucos conseguiram sair do caminho dele. Foram ao chão, um a um.
O medo quase paralisou os goblins, e sua ligeira hesitação foi a perdição dos primeiros grupos a encontrar os selvagens bárbaros.
No entanto, a derrocada do exército veio essencialmente de mais atrás. As tribos que não tinham se envolvido na luta começaram a reconsiderar a sabedoria de continuar com a campanha, pois viram que tinham obtido vantagem suficiente sobre os rivais de sua terra natal - enfraquecidos pelas pesadas baixas para expandir seus territórios na Espinha do Mundo. Pouco depois de iniciada a segunda irrupção de combate, a nuvem de poeira gerada pelo bater dos pés contra o solo mais uma vez se ergueu acima do Desfiladeiro do Vento Gélido à medida que dezenas de tribos de ores e goblins dirigiam-se para casa.
E foi devastador o efeito das deserções em massa nos goblins que não poderiam fugir tão facilmente. Mesmo o goblin mais obtuso compreendia que as chances de vitória de seu povo contra os obstinados defensores de Dez-Burgos estava no peso esmagador de sua superioridade numérica.
Ouviu-se repetidamente o ruído surdo dos golpes de Garra de Palas quando Wulfgar, arremetendo sozinho, abriu uma trilha de devastação diante dele. Até os homens de Dez-Burgos afastaram-se, assustados com sua força selvagem. Mas seu próprio povo olhava para ele com assombro e fazia o possível para seguir sua gloriosa liderança.
Wulfgar investiu contra um grupo de ores. Garra de Palas atingiu um deles em cheio, matou-o e derrubou os que estavam atrás dele. O golpe reverso de Wulfgar com o martelo produziu os mesmos resultados em seu outro flanco. Numa única arrancada, mais da metade do grupo de ores foi morta ou estava atordoada.
Os que sobraram não tinham o menor desejo de atacar o poderoso humano.
Glensather de Angraleste também investiu contra um grupo de goblins, esperando estimular sua gente com a mesma fúria de sua contraparte bárbara. Mas Glensather não era um gigante imponente como Wulfgar e não empunhava uma arma tão poderosa quanto Garra de Palas. Sua espada abateu o primeiro goblin que encontrou, depois reverteu o giro habilmente e derrubou um segundo. O representante saíra-se bem, mas faltou um elemento em seu ataque: o fator crítico que elevava Wulfgar acima de outros homens. Glensather matara dois goblins, mas não provocara em suas fileiras o caos de que precisava para continuar. Em vez de fugir, como fizeram diante de Wulfgar, os goblins remanescentes lançaram-se atrás dele.
Glensather mal aparecera ao lado do rei bárbaro quando a ponta cruel de uma lança enterrou-se em suas costas e atravessou-o, saindo-lhe pelo peito.
Testemunhando o medonho espetáculo, Wulfgar brandiu Garra de Palas sobre o representante e impeliu a cabeça do goblin que empunhava a lança contra o próprio peito. Glensather ouviu o martelo atingir o alvo atrás dele e até conseguiu sorrir em agradecimento antes de cair morto sobre a relva.
Os anões agiram de maneira bem diferente. Novamente em sua formação fechada e solidária, eles dizimaram fileiras de goblins simultaneamente. E os pescadores, lutando pelas vidas de suas mulheres e crianças, lutaram e morreram sem medo.
Em menos de uma hora, todos os grupos de goblins haviam sido esmagados e, meia hora mais tarde, os últimos monstros caíam mortos no campo manchado de sangue.

Drizzt deslizou junto com a onda branca de neve que caiu pela face da montanha. Rolou por terra, impotente, tentando preparar-se para o impacto sempre que via a ponta protuberante de um matacão em seu caminho. Ao se aproximar da base do topo coberto de neve, ele foi atirado longe e escapou do deslizamento, o que o fez rolar aos trambolhões por entre as rochas e matacões cinzentos, como se os picos orgulhosos e inconquistáveis da montanha o tivessem expulsado como a um hóspede indesejado.
Sua agilidade - e uma boa dose de pura sorte - o salvou. Quando finalmente conseguiu estacar e encontrar um pouso, ele descobriu que seus numerosos ferimentos eram superficiais, sendo os piores uma esfoladura no joelho, um nariz ensangüentado e um pulso torcido. Em retrospecto, Drizzt foi obrigado a considerar a pequena avalanche uma bênção, pois ele fizera rápido progresso montanha abaixo e nem mesmo tinha certeza de que, não fosse isso, teria conseguido escapar ao destino gélido de Kessell.
A batalha no sul recomeçara àquela altura. Ouvindo os sons do combate, Drizzt observou, curioso, os milhares de goblins que passavam pelo outro lado do vale dos anões, corriam e subiam o Desfiladeiro do Vento Gélido nas primeiras etapas de sua longa jornada para casa. Não havia como o drow ter certeza do que estava acontecendo, mesmo conhecendo a famosa covardia dos goblins.
Mas ele não pensou muito naquilo, pois a batalha já não era mais sua principal preocupação. Sua visão seguia uma trilha estreita até o monte de pedras negras e fragmentadas que fora Crishal-Tirith. Ele terminou de descer o Sepulcro de Kelvin e dirigiu-se à Via de Bremen e aos escombros.
Ele precisava descobrir se Régis e Guenhwyvar haviam escapado.

Vitória.
Pareceu um pequeno consolo a Cássio, Kemp e Jensin Brent quando eles passaram os olhos pelo campo marcado por cicatrizes e viram a carnificina a seu redor. Eram os únicos representantes a ter sobrevivido ao conflito; sete outros haviam sido abatidos.
- Vencemos - declarou Cássio sombriamente.
Ele assistiu, impotente, à morte de mais soldados, homens que haviam sofrido ferimentos fatais durante a batalha, mas recusaram-se a tombar e morrer antes do fim. Mais da metade de todos os homens de Dez-Burgos jazia morta, e muitos mais morreriam posteriormente, pois quase a metade dos ainda vivos havia se ferido gravemente. Quatro vilas haviam sido reduzidas a cinzas e uma outra fora saqueada e destruída pelos ocupantes goblins.
Eles pagaram um preço terrível pela vitória.
Os bárbaros também haviam sido dizimados. Jovens e inexperientes em sua maioria, eles lutaram com a tenacidade de sua raça e morreram aceitando seu destino como um final glorioso para a história de suas vidas.
Apenas os anões, disciplinados por muitas batalhas, haviam saído relativamente incólumes. Vários haviam sido mortos, alguns outros feridos, mas a maioria estava pronta para retomar a luta novamente se pudessem apenas encontrar mais goblins para despedaçar! Seu único grande lamento, porém, era que Bruenor estava desaparecido.
- Vão vocês até sua gente - Cássio disse aos colegas representantes. - Depois, retornem esta noite para o conselho. Kemp deve falar por todas as pessoas das quatro vilas do Maer Dualdon e Jensin Brent pela gente dos outros lagos.
- Temos muito a decidir e pouco tempo para fazê-lo - disse Jensin Brent. - O inverno está chegando rápido.
- Sobreviveremos! - declarou Kemp com sua característica rebeldia. Mas ele percebeu os olhares taciturnos que seus pares lhe lançavam e cedeu um pouco ao realismo dos mesmos. - Mas será uma luta encarniçada.
- Assim será para meu povo - disse uma outra voz. Os três representantes se voltaram para ver o gigante Wulfgar aparecer pomposamente, tendo ao fundo a cena poeirenta e surreal da carnificina. O bárbaro estava coberto de terra e salpicado com o sangue de seus inimigos, mas parecia um rei nobre em todos os pormenores. - Solicito um convite para seu conselho, Cássio. Nossos povos muito podem oferecer um ao outro nesta hora soturna.
Kemp grunhiu.
- Se precisarmos de burros de carga, compraremos bois.
Cássio lançou uma olhar perigoso para Kemp e voltou-se para seu inesperado aliado.
- Você pode, de fato, juntar-se ao conselho, Wulfgar, filho de Beornegar. Por seu auxílio neste dia, meu povo deve muito ao seu. Mais uma vez eu pergunto: por que vocês vieram?
Pela segunda vez naquele dia, Wulfgar ignorou os insultos de Kemp.
- Para saldar uma dívida - ele respondeu a Cássio. - E talvez para melhorar as vidas de nossos dois povos.
- Matando goblins? - perguntou Jensin Brent, pois desconfiava que o bárbaro tinha algo mais em mente.
- É um começo - respondeu Wulfgar. - No entanto, há muito mais coisas que podemos realizar. Meu povo conhece a tundra melhor até mesmo que os yetis. Entendemos as peculiaridades desta terra e sabemos como sobreviver. Seu povo se beneficiaria com nossa amizade, principalmente nos tempos difíceis que estão por vir.
- Ora! - bufou Kemp, mas Cássio o silenciou. O representante de Brin Shander estava intrigado com as possibilidades.
- E o que seu povo ganharia com essa união?
- Uma conexão - respondeu Wulfgar. - Um elo com um mundo de comodidades que jamais conhecemos. As tribos têm em suas mãos o tesouro de um dragão, mas ouro e jóias não proporcionam calor numa noite de inverno, nem comida quando a caça é parca. Seu povo também tem muito a reconstruir. Meu povo tem o dinheiro para ajudar na tarefa. Em troca, Dez-Burgos proporcionará a meu povo uma vida melhor.
Cássio e Jensin Brent aprovavam com gestos de cabeça enquanto Wulfgar apresentava seu plano.
- Finalmente, e talvez o mais importante - concluiu o bárbaro -, é fato que precisamos uns dos outros, ao menos por enquanto. Nossos dois povos foram enfraquecidos e estamos vulneráveis aos perigos desta terra. Juntos, a força que nos resta nos ajudará a vencer as dificuldades do inverno.
- Você me intriga e me surpreende - disse Cássio. - Venha ao conselho, então. Garanto pessoalmente que você será bem-vindo e vamos colocar em andamento um plano que beneficiará todos os que sobreviveram ao confronto com Akar Kessell!
Tão logo Cássio se virou, Wulfgar agarrou a camisa de Kemp com uma de suas mãos descomunais e, com facilidade, ergueu no ar o representante de Targos. Kemp esmurrou o antebraço musculoso, mas percebeu que não tinha a menor chance de romper o abraço de ferro do bárbaro.
Wulfgar lançou-lhe um olhar feroz e perigoso.
- Por enquanto - disse ele -, sou responsável por todo o meu povo. Portanto, desconsiderei seus insultos. Mas, quando chegar o dia em que eu não for mais rei, seria aconselhável que você não cruzasse mais meu caminho!
Com um movimento rápido do pulso, ele atirou o representante ao chão.
Kemp, intimidado demais no momento para se enfurecer ou ficar constrangido, permaneceu sentado onde caiu e não respondeu. Cássio e Brent cutucaram um ao outro e riram baixinho, cúmplices.
O divertimento só durou até verem a moça que se aproximava com o braço enfiado numa tipóia ensangüentada e o rosto e os cabelos castanho-avermelhados empastados com camadas de pó. Wulfgar também a viu e a visão dos ferimentos dela afligiu-o mais do que os seus próprios.
- Cattiebrie! - ele gritou e correu até ela. Ela o acalmou com uma palma estendida.
- Não estou muito ferida - ela estoicamente tranqüilizou Wulfgar, mas era evidente para o bárbaro que ela havia sido ferida gravemente. - Mas não quero nem pensar no que poderia ter me acontecido se Bruenor não tivesse aparecido!
- Você viu Bruenor?
- Nos túneis - Cattiebrie explicou. - Alguns ores descobriram como entrar. Talvez eu devesse ter desmoronado o túnel. Mas não eram muitos e dava para ouvir que os anões estavam se saindo bem no campo lá em cima. Bruenor desceu nesse momento, mas havia mais ores atrás dele. Uma viga de sustentação desabou; acho que Bruenor a cortou e havia muito pó e confusão.
- E Bruenor? - Wulfgar perguntou ansiosamente. Cattiebrie olhou para trás, para o outro lado do campo.
- Lá fora. Ele mandou chamar você.

Quando Drizzt finalmente chegou aos escombros de Crishal-Tirith, a batalha terminara. As imagens e os sons das horríveis seqüelas faziam vista em torno dele, mas seu objetivo continuava o mesmo. Ele subiu pelo lado da pilha de pedras fragmentadas.
Na verdade, o drow se achava um idiota por perseguir uma causa tão inútil. Mesmo se Régis e Guenhwyvar não tivessem deixado a torre, que esperança havia de encontrá-los?
Ele insistiu teimosamente, recusando-se a ceder à lógica inescapável que o censurava. Nesse ponto é que ele diferia de sua gente, isso é o que o expulsara, enfim, da escuridão ininterrupta de suas vastas cidades. Drizzt Do'Urden permitia-se sentir compaixão.
Ele subiu pelo lado do monte de escombros e começou a cavar em volta dos destroços com as mãos nuas. Os blocos maiores o impediram de se aprofundar mais na pilha, mas ele não se entregou, chegando a enfiar-se em fendas precariamente apertadas e instáveis. Usava pouco a mão esquerda queimada e logo a direita sangrava com as esfoladuras. Mas ele continuou, movendo-se primeiro ao redor da pilha, depois escalando-a.
Foi recompensado pela persistência e por suas emoções. Quando atingiu o topo das ruínas, ele sentiu uma aura familiar de poder mágico. Isso o guiou até uma pequena fenda entre duas pedras. Enfiou um braço por ela, tentativamente, esperando encontrar o objeto intacto, e tirou lá de dentro a pequena estatueta em forma de felino. Seus dedos tremiam ao examiná-la, em busca de danos. Mas nada encontrou: a magia no interior do objeto resistira ao peso das pedras.
Entretanto, os sentimentos do drow diante do achado eram confusos. Apesar de aliviado por Guenhwyvar ter aparentemente sobrevivido, a presença da estatueta revelava-lhe que Régis provavelmente não havia escapado para o campo. Seu coração esmoreceu. E esmoreceu ainda mais quando uma cintilação no interior daquela mesma fenda chamou-lhe a atenção. Enfiou ali o braço e tirou lá de dentro a corrente de ouro com o pingente de rubi, e seus temores se confirmaram.
- Um túmulo apropriado para você, meu corajoso amiguinho - ele disse melancolicamente, e decidiu naquele instante chamar a pilha de escombros de o Sepulcro de Régis. Não conseguia entender, porém, o que acontecera para separar o halfling de seu colar, pois não havia sangue nem qualquer outra coisa na corrente que indicasse que Régis o estivesse usando ao morrer.
- Guenhwyvar - chamou ele. - Venha até mim, minha sombra. - Ele sentiu as sensações familiares na estatueta ao colocá-la no chão. Em seguida, a névoa negra apareceu e transformou-se no grande felino, são e salvo e, de algum modo, recuperado pelas poucas horas que passara em seu próprio plano.
Drizzt moveu-se rapidamente em direção a sua companheira felina, mas deteve-se quando uma segunda névoa apareceu a uma pequena distância dali e começou a se solidificar.
Régis.
O halfling estava sentado, com os olhos fechados e a boca bem aberta, como se estivesse prestes a dar de uma enorme mordida em alguma iguaria invisível. Uma de suas mãos estava cerrada ao lado de suas bochechas ávidas e a outra aberta diante dele.
Quando ele abocanhou o ar, seus olhos abriram-se subitamente, surpresos.
- Drizzt! - gemeu ele. - Francamente, você devia avisar antes de me seqüestrar! Este gato perfeitamente maravilhoso conseguiu-me a mais suculenta das refeições!
Drizzt chacoalhou a cabeça e sorriu com um misto de alívio e incredulidade.
- Ah, esplêndido - gritou Régis. - Você encontrou minha jóia. Eu achei que a tivesse perdido. Por alguma razão ela não fez a travessia comigo e com o gato.
Drizzt devolveu-lhe o rubi. O gato era capaz de levar alguém em suas viagens através dos planos? Drizzt decidiu explorar essa faceta do poder de Guenhwyvar mais tarde.
Ele afagou o pescoço do gato, depois liberou-o para voltar a seu próprio mundo, onde o animal poderia se recuperar um pouco mais.
- Venha, Régis - disse ele sombriamente. - Vejamos onde podemos ser de alguma ajuda.
Regis deu de ombros, resignado, e levantou-se para seguir o drow. Quando galgaram o topo das ruínas e viram a carnificina espalhada diante deles, o halfling deu-se conta da enormidade da destruição. Suas pernas quase lhe faltaram, mas ele conseguiu, com alguma ajuda de seu ágil amigo, empreender a descida.
- Nós vencemos? - ele perguntou a Drizzt quando se aproximaram do nível do campo, sem saber com certeza se o povo de Dez-Burgos havia denominado o que via diante dele de vitória ou derrota.
- Nós sobrevivemos - corrigiu Drizzt.
Um grito elevou-se subitamente quando um grupo de pescadores, vendo os dois companheiros, precipitou-se aos berros na direção deles.
- Assassino do mago e destruidor da torre! - gritaram eles. Drizzt, sempre humilde, baixou os olhos.
- Salve Régis - continuaram os homens -, o herói de Dez-Burgos!
Drizzt lançou um olhar surpreso, mas divertido para o amigo. Régis simplesmente deu de ombros, impotente, como se ele fosse vítima do erro tanto quanto Drizzt.
Os homens pegaram o halfling e ergueram-no nos ombros.
- Carregaremos você com toda a glória até o conselho que está reunido na cidade! - alguém proclamou. - Você, acima de todos os outros, deve opinar quanto às decisões a serem tomadas! - Quase como uma reflexão tardia, o homem disse para Drizzt. - Você pode vir também, drow.
Drizzt declinou.
- Salve Régis - disse ele, com um sorriso espalhado no rosto. - Ah, amiguinho, você sempre tem a sorte de encontrar ouro na lama onde outros chafurdam!
Ele deu um tapinha nas costas do halfling e colocou-se de lado para deixar passar a procissão.
Régis olhou por sobre o ombro e girou os olhos nas órbitas como se estivesse meramente aproveitando a carona.
Mas Drizzt sabia que não era bem assim.
O divertimento do drow durou pouco.

Antes que tivesse sequer se afastado do ponto onde estava, dois anões o saudaram.
- Que bom que te encontramos, amigo elfo - disse um deles. O drow compreendeu imediatamente que eles traziam más novas.
- Bruenor? - ele perguntou. Os anões assentiram.
- Está à beira da morte, e mesmo agora pode ser que tenha morrido. Ele mandou te chamar.
Sem mais uma palavra, os anões conduziram Drizzt através do campo até uma pequena tenda que haviam armado perto das saídas de seus túneis e escoltaram-no ao entrar.
Lá dentro, as velas bruxuleavam suavemente. Além do único catre, encostado à parede em frente à entrada, encontravam-se Wulfgar e Cattiebrie, com as cabeças reverentemente abaixadas.
Bruenor jazia sobre o catre e tinha a cabeça e o peito envoltos em ataduras manchadas de sangue. Sua respiração era ruidosa e pouco profunda, como se cada alento fosse o último. Drizzt colocou-se solenemente ao lado dele, estoicamente determinado a conter as lágrimas atípicas que lhe marejavam os olhos cor de lavanda. Bruenor preferiria que ele se mostrasse forte.
- É... o elfo? - disse Bruenor, com voz entrecortada, quando viu a forma escura sobre ele.
- Estou aqui, meu mais caro amigo - respondeu Drizzt.
- Pra... me ver partir?
Drizzt não conseguiria sinceramente responder a uma pergunta tão franca.
- Partir? - Ele forçou o riso a sair da garganta apertada. - Você já passou por coisa pior! Não quero ouvir falar de morte. Quem, então, encontraria o Salão de Mitral?
- Ah, meu lar... - Bruenor voltou a se acalmar com a menção do nome e pareceu relaxar, quase como se sentisse que seus sonhos o ajudariam a completar a sombria jornada a sua frente. - 'cê vem comigo, então?
- É claro - concordou Drizzt. Ele olhou para Wulfgar e Cattiebrie em busca de apoio mas, perdidos em seu próprio pesar, eles ainda desviavam os olhos.
- Mas não agora, não, não - explicou Bruenor. - Não com o inverno tão próximo! -Tossiu. - Na primavera. Sim, na primavera.
Sua voz foi morrendo e os olhos se fecharam.
- Sim, meu amigo. - concordou Drizzt. - Na primavera. Levarei você para casa na primavera!
Os olhos de Bruenor reabriram-se de repente, e a turvação da morte foi removida por um resquício do antigo brilho. Um sorriso de contentamento espalhou-se pelo rosto do anão e Drizzt ficou feliz por ter sido capaz de consolar seu amigo agonizante.
O drow voltou a olhar para Wulfgar e Cattiebrie, e eles também sorriam. Um para o outro, Drizzt notou, curioso.
De repente, para surpresa e horror de Drizzt, Bruenor sentou-se e arrancou as ataduras.
- Aí está! - berrou ele, para divertimento dos demais na tenda. - 'cê prometeu e eu tenho testemunhas!
Drizzt, depois de quase cair com o choque inicial, lançou um olhar irritado para Wulfgar. O bárbaro e Cattiebrie esforçaram-se para reprimir o riso. Wulfgar deu de ombros e deixou escapar uma risadinha.
- Bruenor disse que me cortaria até chegar à altura de um anão se eu dissesse uma palavra!
- E ele teria feito isso mesmo! - acrescentou Cattiebrie. Os dois saíram apressadamente.
- Um conselho em Brin Shander - explicou Wulfgar precipitadamente. Fora da tenda, o riso dos dois irrompeu sem reservas.
- Maldito seja, Bruenor Martelo de Batalha! - disse o drow, carrancudo. Depois, incapaz de se conter, atirou os braços em volta do corpo atarracado do anão e o abraçou.
- Acabe logo com isso - gemeu Bruenor, aceitando o abraço. - Mas seja rápido. A gente tem um monte de trabalho pra fazer o inverno todo! A primavera vai chegar mais cedo do que 'cê tá pensando e no primeiro dia quente a gente sai pra procurar o Salão de Mitral!
- Onde quer que esteja - riu Drizzt, aliviado demais para se enfurecer com o truque.
- A gente consegue, drow! - gritou Bruenor. - A gente sempre consegue!

Epílogo

O povo de Dez-Burgos e seus aliados bárbaros acharam difícil o inverno que se seguiu à batalha mas, ao dividirem talentos e recursos, conseguiram sobreviver. Muitos conselhos foram realizados em todos aqueles longos meses, com Cássio, Jensin Brent e Kemp representando o povo de Dez-Burgos, e Wulfgar e Revjak falando pelas tribos bárbaras. A primeira tarefa era reconhecer oficialmente e justificar a aliança dos dois povos, apesar da oposição veemente de muita gente de ambos os lados.
As cidades intocadas pelo exército de Akar Kessell abarrotaram-se com refugiados durante o inverno brutal. A reconstrução começou com os primeiros sinais da primavera. Quando a recuperação da região já estava bem encaminhada - e depois do retorno da expedição bárbara que, seguindo as orientações de Wulfgar, trouxe o tesouro do dragão -, realizaram-se conselhos para dividir as vilas entre os sobreviventes. As relações entre os dois povos quase sucumbiu várias vezes e foram mantidas apenas pela presença imperiosa de Wulfgar e a calma constante de Cássio.
Quando tudo finalmente estava acertado, os bárbaros receberam as cidades de Bremen e Caer-Konig para reerguer, os desabrigados de Caer-Konig foram transferidos para a cidade reconstruída de Caer-Dineval e aos refugiados de Bremen que não desejavam viver entre os homens das tribos ofereceram-se casas na cidade recém-construída de Targos.
Foi uma situação difícil, na qual os inimigos tradicionais foram forçados a deixar de lado suas diferenças e viver lado a lado. Apesar de vitoriosos na batalha, os aldeões não podiam se considerar vencedores. Todos haviam sofrido perdas terríveis; ninguém havia saído daquilo tudo em melhores condições para a luta seguinte.
Exceto Régis.
O halfling oportunista foi premiado com o título de Primeiro Cidadão e a melhor casa de toda a Dez-Burgos por seu papel na batalha. Cássio prontamente entregou seu palácio ao "destruidor da torre". Régis aceitou a oferta do representante e todos os outros numerosos presentes que afluíram de cada parte, pois, embora não tivesse realmente merecido as honras a ele conferidas, justificava sua boa sorte considerando-se um parceiro do modesto drow. E já que Drizzt Do'Urden não tinha a menor vontade de vir a Brin Shander e receber os prêmios, Régis imaginou que era seu dever fazê-lo.
Esse era o mimado estilo de vida que o halfling havia sempre desejado. Ele realmente apreciava a riqueza excessiva e o luxo, embora mais tarde viesse a aprender que havia de fato um preço elevado a se pagar pela fama.

Drizzt e Bruenor haviam passado o inverno fazendo preparativos para sua busca pelo Salão de Mitral. O drow tinha a intenção de honrar sua palavra, apesar de ter sido enganado, porque a vida não mudara muito para ele após a batalha. Mesmo sendo, na verdade, o herói do conflito, ele ainda se via mal e mal tolerado entre a gente de Dez-Burgos. E os bárbaros, com a exceção de Wulfgar e Revjak, o evitavam abertamente e murmuravam orações de proteção para seus deuses toda vez que inadvertidamente cruzavam-lhe o caminho.
Mas o drow aceitava o isolamento com seu característico estoicismo.

- Na cidade, diz-se a meia-voz que você cedeu a Revjak seu lugar no conselho - disse Cattiebrie a Wulfgar numa de suas muitas visitas a Brin Shander.
Wulfgar assentiu.
- Ele é mais velho e mais sábio em muitos aspectos.
Cattiebrie prendeu Wulfgar sob o desconfortável escrutínio de seus olhos escuros. Ela sabia que havia outras razões para Wulfgar renunciar à coroa.
- Você quer ir com eles - ela declarou categoricamente.
- Devo isso ao drow - foi a única explicação de Wulfgar ao dar-lhe as costas, sem disposição para discutir com a moça irascível.
- Mais uma vez você se esquiva da pergunta - riu Cattiebrie. - Você não vai saldar dívida nenhuma! Você vai porque a estrada é sua escolha!
- O que é que você sabe dessa estrada? - grunhiu Wulfgar, contendo-se em virtude da observação dolorosamente precisa da moça. - O que é que você sabe sobre aventuras?
Os olhos de Cattiebrie cintilaram, e desarmaram Wulfgar.
- Eu sei - ela declarou categoricamente. - Qualquer dia em qualquer lugar é uma aventura. Isso você ainda não aprendeu. E, por isso, você persegue as estradas distantes, esperando satisfazer o desejo de emoção que arde em seu coração. Então vá, Wulfgar do Vale do Vento Gélido. Siga a senda de coração e seja feliz! Talvez, ao retornar, você entenda a emoção de simplesmente estar vivo.
Ela o beijou no rosto e saltitou em direção à porta. Wulfgar, agradavelmente surpreso com o beijo, gritou-lhe:
- Talvez, então, nossas discussões sejam mais aprazíveis!
- Mas não tão interessantes - foi a última resposta dela.

Numa bela manhã de início de primavera, a hora de partir chegou enfim para Drizzt e Bruenor. Cattiebrie ajudou-os a preparar suas mochilas abarrotadas.
- Quando a gente tiver limpado o lugar, eu te levo lá! - Bruenor disse à moça novamente. - Por certo que seus olhos vão brilhar quando 'cê ver os rios de prata do Salão de Mitral!
Cattiebrie sorriu, indulgente.
- Tem certeza que 'cê vai ficar bem? - perguntou Bruenor, agora mais sério. Sabia que ela ficaria bem, mas seu coração transbordava de preocupação paternal.
O sorriso de Cattiebrie alargou-se. Eles já tinham discutido aquilo centenas de vezes ao longo do inverno. Cattiebrie estava feliz com a partida do anão, mesmo sabendo que sentiria imensa saudade dele, pois estava claro que Bruenor nunca ficaria realmente contente até que tivesse ao menos tentado encontrar seu antigo lar.
E ela sabia, melhor que ninguém, que o anão estaria bem acompanhado.
Bruenor ficou satisfeito. Chegara a hora de partir.
Os companheiros disseram adeus aos anões e partiram para Brin Shander a fim de se despedirem de seus dois amigos mais chegados.
Chegaram à casa de Régis pouco depois, naquela mesma manhã, e encontraram Wulfgar sentado nos degraus esperando por eles, tendo Garra de Palas e a mochila a seu lado.
Drizzt olhou com desconfiança os pertences do bárbaro enquanto se aproximavam, meio que adivinhando as intenções de Wulfgar.
- Bons olhos o vejam, Rei Wulfgar - disse ele. - Está de partida para Brenen, ou talvez Caer-Konig, para supervisionar o trabalho de sua gente?
Wulfgar chacoalhou a cabeça.
- Não sou rei - ele respondeu. - É melhor deixar os conselhos e os discursos para os mais velhos; já tive mais do que podia tolerar. Revjak fala pelos homens da tundra agora.
- E, então, o que 'cê vai fazer? - perguntou Bruenor.
- Vou com vocês - replicou Wulfgar. - Para saldar minha última dívida.
- 'cê não me deve nada! - declarou Bruenor.
- A você já paguei - concordou Wulfgar. - E paguei tudo o que devo a Dez-Burgos e também a meu próprio povo. Mas há uma dívida de que ainda não me livrei. - Ele se virou para encarar Drizzt diretamente. - A você, meu amigo elfo.
Drizzt não sabia o que responder. Ele deu um tapinha no ombro do homem descomunal e sorriu afetuosamente.

- Vem com a gente, Ronca-bucho - disse Bruenor, depois de terminado um excelente almoço no palácio. - Quatro aventureiros na vasta planície. Vai te fazer algum bem e tirar um pouco dessa sua barriga!
Régis levou ambas as mãos ao ventre amplo e o sacudiu.
- Eu gosto de minha barriga e tenho a intenção de mantê-la, obrigado. Posso até mesmo aumentá-la um pouquinho! De qualquer maneira, eu não consigo entender por que vocês insistem em partir nessa busca - disse ele, agora com mais seriedade. Ele passara muitas horas durante o inverno tentando convencer Bruenor e Drizzt a desistir daquilo. - Temos uma vida fácil aqui; por que vocês iam querer partir?
- Há mais coisas na vida do que boa comida e almofadas macias, amiguinho - disse Wulfgar. - O desejo pela aventura arde em nosso sangue. Com paz na região, Dez-Burgos não pode oferecer a emoção do perigo ou a satisfação da vitória.
Drizzt e Bruenor assentiram com a cabeça, embora Régis chacoalhasse a sua.
- E 'cê chama este lugar deplorável de rico? - riu Bruenor, estalando os dedos hirsutos. - Quando eu voltar do Salão de Mitral, vou te construir uma casa duas vezes maior e debruada de pedras preciosas como 'cê nunca viu antes!
Mas Régis estava certo de que havia testemunhado sua última aventura. Terminada a refeição, ele acompanhou seus amigos até a porta.
- Se vocês conseguirem voltar...
- Sua casa será nossa primeira parada - assegurou Drizzt. Encontraram Kemp de Targos ao sair. Ele estava do outro lado da rua, bem em frente à soleira de Régis, aparentemente à procura deles.
- Ele está me esperando - explicou Wulfgar, sorrindo diante da idéia de que Kemp não pouparia esforços para se livrar dele.
- Adeus, meu bom representante - gritou Wulfgar, com uma reverência. Pyayne de crabug ahm rinedere be-yogt iglo kes gron.
Kemp lançou um gesto obsceno para o bárbaro e foi embora, indignado. Régis quase se dobrou de tanto rir.
Drizzt reconheceu as palavras, mas ficou confuso com o motivo pelo qual Wulfgar as dissera para Kemp.
- Uma vez você me disse que essas palavras eram um antigo grito de guerra da tundra - ele comentou com o bárbaro. - Por que você as ofereceria ao homem que mais despreza?
Wulfgar tartamudeou, em busca de uma explicação que o tirasse daquele aperto, mas Régis respondeu por ele.
- Grito de guerra? - exclamou o halfling - Isso é uma antiga maldição das matronas bárbaras, geralmente reservada aos velhos maridos adúlteros. - Os olhos cor de lavanda do drow estreitaram-se, concentrados no bárbaro, enquanto Régis prosseguia. - Significa: "Que as pulgas de mil renas se aninhem em sua genitália."
Bruenor disparou a rir, logo acompanhado por Wulfgar. Drizzt não pôde evitar fazer o mesmo.
- Vamos, o dia é longo - disse o drow. - Vamos dar início a esta aventura. Vai ser interessante!
- Aonde vocês vão? - Régis perguntou, tristonho. Uma pequena parte do halfling, na verdade, invejava os amigos; ele tinha de admitir que sentiria a falta deles.
- Para Bremen, primeiro - replicou Drizzt. - Vamos completar lá nossas provisões e partir para sudoeste.
- Luskan?
- Talvez, se os fados assim o quiserem.
- Boa viagem - ofereceu Régis assim que os três companheiros puseram-se a caminho sem mais delongas.
Régis observou-os desaparecer, imaginando como ele viera a escolher amigos tão tolos. Desfez-se da idéia com um encolher de ombros e voltou a seu palácio: sobrara bastante comida do almoço.
Foi detido antes que atravessasse a porta.
- Primeiro Cidadão! - veio um grito da rua. A voz pertencia a um dono de armazém da seção sul da cidade, onde as caravanas de mercadores carregavam e descarregavam. Régis esperou que ele se aproximasse.
- Um homem, Primeiro Cidadão - disse o dono do armazém, curvando-se como quem se desculpa por perturbar uma pessoa tão importante. - Perguntando pelo senhor. Ele alega ser um representante da Sociedade dos Heróis de Luskan, enviado para solicitar sua presença na próxima reunião.
Ele disse que pagaria bem.
- O nome dele?
- Ele não disse, só me deu isto! - O dono do armazém abriu uma pequena bolsa de ouro.
Era tudo o que Régis precisava ver. Partiu imediatamente para encontrar o homem de Luskan.
Mais uma vez, foi pura sorte o que salvou a vida do halfling, pois ele viu o estranho antes que este o visse. Apesar de já não ver aquele homem havia anos, Régis o reconheceu imediatamente pelo cabo do punhal incrustado com uma esmeralda que se projetava da bainha em seu quadril. Régis muitas vezes cogitara roubar aquela bela arma, mas mesmo sua imprudência tinha limites. O punhal pertencia a Artemis Entreri.
O principal assassino do Paxá Pük.

Os três companheiros deixaram Bremen antes do amanhecer do dia seguinte. Ansiosos para dar início à aventura, eles se apressaram e já estavam bem longe na tundra quando os primeiros raios do sol espiaram por sobre o horizonte oriental, logo atrás deles.
Ainda assim, Bruenor não ficou surpreso ao notar Régis, que se esforçava para alcançá-los através da planície desabitada.
- Se meteu em encrenca de novo ou então eu sou um gnomo de barba - o anão, rindo, comentou com Wulfgar e Drizzt.
- Bons olhos o vejam - disse Drizzt. - Mas nós já não nos despedimos?
- Decidi que não podia deixar Bruenor se meter em encrenca sem que eu estivesse por perto para salvá-lo - bufou Régis, tentando recuperar o fôlego.
- 'cê vem com a gente? - grunhiu Bruenor. - 'cê não trouxe provisões, seu halfling estúpido!
- Eu não como muito - protestou Régis, e um quê de desespero insinuava-se em sua voz.
- Ora! 'cê come mais que nós três juntos! Mas tudo bem, a gente te deixa vir junto de qualquer jeito.
O rosto do halfling iluminou-se visivelmente, e Drizzt desconfiou que o palpite do anão sobre a tal encrenca não estava muito longe da verdade.
- Nós quatro, então! - proclamou Wulfgar. - Um para representar cada uma das quatro raças comuns: Bruenor pelos anões, Régis pelos halflings, Drizzt Do'Urden pelos elfos e eu pelos humanos. Uma trupe apropriada!
- Duvido muito que os elfos escolheriam um drow para representá-los - observou Drizzt.
Bruenor bufou: - 'cê acha que os halflings iam escolher Ronca-bucho como o campeão deles?
- Você é louco, anão - retorquiu Régis.
Bruenor deixou cair o escudo, contornou Wulfgar com um salto e colocou-se em guarda diante de Régis. Seu rosto contorceu-se num arremedo de fúria ao agarrar Régis pelos ombros e erguê-lo em pleno ar.
- 'ce tá certo, Ronca-bucho! - Bruenor gritou desvairadamente. - Sou louco mesmo! E nunca contrarie alguém mais louco que você!
Drizzt e Wulfgar olharam um para o outro e trocaram sorrisos conhecedores.
Seria realmente uma aventura interessante.
E, com o sol nascente em suas costas e as sombras alongando-se diante deles, seguiram seu caminho.
Para encontrar o Salão de Mitral.

 

 

                                                    R. A. Salvatore         

 

 

 

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