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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESTRADA SINUOSA / Morris West
A ESTRADA SINUOSA / Morris West

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A ESTRADA SINUOSA

 

O jornalista americano Ri­chard Ashley reúne todos os ele­mentos de que necessita para escre­ver uma matéria sensacional sobre o poderoso Duque de Orgagna, lati­fundiário, político extremamente influente e que parece estar indica­do para um cargo de ministro no governo democrata-cristão que con­duz os destinos da Itália.

Ashley pretende revelar que Or­gagna não somente é respónsável pelo desvio de fundos de assistência aos países subdesenvolvidos, como também está envolvido no tráfico de entorpecentes, mas um agente do serviço de espionagem da Ingla­terra faz-lhe ver que a anulação do prestígio político de Orgagna pode­ria ser prejudicial ao Ocidente, en­quanto a Duquesa de Orgagna ten­ta, igualmente, demover de seus in­tuitos o jornalista americano, de quem em tempos fora amante. Não obstante a pressão que sofre, Ash­ley está disposto a contar toda a verdade.

Para levar a cabo a sua intenção de publicar o artigo, Ashley precisa apenas ficar de posse das cópias de alguns documentos e está disposto a adquiri-los, a qualquer preço, de uma pessoa que ele não conhece e que os roubou de Orgagna. Porém, quando esse informante vai passar às suas mãos o precioso material, é vitimado num acidente de automó­vel, que não se poderia considerar casual e do qual a responsabilidade de Ashley não está afastada...

Agora é, então, a vez de Ashley ter de enfrentar uma situação ex­tremamente embaraçosa, a braços com a polícia italiana e com o Du­que, diabólico e dono de uma per­sonalidade muito mais complexa do que o jornalista poderia supor, e que não se detém ante obstáculo al­gum para destruir o homem que planejara a sua queda, nem mesmo que para isso se veja obrigado a ma­tar alguém ou a arruinar a reputa­ção de sua própria mulher.

 

 

     TRATAVA-SE de um verdadeiro furo jornalístico - o maior da sua vida.

Richard Ashley estava confortavelmente instalado no salão do Hotel Caravino, saboreando, página por página, a sua tão cuidada e sensa­cional reportagem, tal como um general antegozaria um próximo e inevitável triunfo ou como uma mulher leria as cartas de um seu fiel amante.

A reportagem que todo jornalista deseja realizar um dia, a história com que sonham todos os jornais em busca de manchetes sensacionais, encontrava-se ali dentro daquela pasta de papelão - exata e cuidado­samente preparada. Nada lhe faltava senão a prova final da sua vera­cidade e esta ser-lhe-ia trazida dentro de uma hora, quando Enzo Ga­rofano, o informante, viesse receber a sua recompensa e entregar-lhe as fotocópias das cartas de Orgagna.

Partiria então de Sorrento, deixando atrás de si esse paraíso turís­tico. com os seus terraços banhados por um sol esfuziante e as suas paisagens de rochedos, de mar e de corpos bronzeados estendidos pela praia. Faria as malas e partiria de regresso a Roma, ao seu escritório, on­de as moças do telex aguardavam o momento de enviar a história para Paris, Londres e Nova York, a fim de que imponentes cabeçalhos ilus­trassem as primeiras páginas de todos os jornais matutinos.

E, sob esses sensacionais títulos, o seu nome torna-se-ia conhecido e admirado pelos leitores de dois ou mais continentes: RICHARD ASHLEY, Nosso Correspondente Especial.

O jornalista era um homem de estatura elevada, corpulento, embora bem-proporcionado, e sem a barriga que seria natural em tal idade. Nas suas feições havia algo de duro e o seu olhar possuía a profundidade de quem tinha uma imensa experiência da vida. Trajava roupas de verão, ou seja, uma camisa larga com flores artisticamente desenhadas, calças ,azuis de linho e alparcatas típicas da região. ­


       Fazia quarenta anos naquele dia e o fato agradava-lhe bastante. Um homem pode considerar-se feliz quando alcança, simultaneamente, o apogeu da sua vida como ser humano e o da sua carreira profissional.

Richard Ashley fechou a pasta e posou-a numa cadeira, a seu lado. Olhou para o relógio e verificou que já eram três e meia da tarde. Ga­rofano chegaria às quatro e meia. Entretanto, durante a hora que faltava, receberia de Roma a confirmação de que os seus superiores haviam aprovado a oferta de dois mil dólares e de que essa quantia fora depo­sitada na sucursal da American Express, em Sorrento. Ashley, contudo, franziu o sobrolho. Hansen, no escritório de Roma, já deveria ter dado sinal de vida.

Roberto, no bar que se encontrava a um dos cantos da sala, tossiu discretamente. Ashley olhou na direção dele. Roberto sorriu-lhe, então, de uma maneira muito latina e apontou para o terraço. Ashley voltou-se para onde ele apontava e viu as pernas atraentes de uma mulher que es­tava estendida sobre os almofadões de uma chaise longue. O resto do cor­po não se podia ver, detrás das cortinas da porta.

Ashley piscou o olho a Roberto e sacudiu negativamente a cabeça. O pouco que descobria da mulher era bastante provocador, mas isso nada representava para um homem em véspera de, tal triunfo.

- Deixe as mulheres em paz e preocupe-se mais com o seu trabalho,

Roberto - disse-lhe Ashley. - Prepare-me um martíni, mas bem seco, senão eu o despejo pela sua cabeça abaixo.

Roberto riu despreocupadamente.

- Tenho uma idéia melhor... ofereça-o àquela moça, que eu lhe preparo outro.

Ashley não deu ouvidos à sugestão.

- Não tenho tempo nem dinheiro para essas fantasias, e, além dis­so, estou trabalhando.

Roberto pousou bruscamente a garrafa e teve um gesto teatral.

- Trabalhando?! Com este sol?! A esta hora?! Na presença de tal beleza? Vergogna!

O barman soltou um suspiro e curvou-se para se entregar ao ritual de dosar as bebidas e cortar a casca de limão. Roberto, um homem muito moreno e sorridente, de cabelo e bigode negros, era um excelente bar­man. Os seus modos e atitudes para com os clientes constituíam uma combinação discreta de deferência e de insolência napolitana. A deferên­cia proporcionava-lhe boas gorjetas dos homens, mas as mulheres pa­gavam-lhe em moeda diferente os insolentes galanteios.

Ashley voltou a olhar para o relógio.

- A que horas abre o Correio?

- Às três, signore.

- Estou à espera de um telegrama... que já devia ter chegado. Roberto encolheu os ombros filosoficamente.

- Pazienza, meu amigo! Pazienza! O telegrama tem primeiro de chegar ao Correio e, em seguida, é copiado... Terão ainda de enviar um mensageiro e...

Roberto calou-se repentinamente ficando a olhar, boquiaberto e ex­tasiado, para a dona daquelas fabulosas pernas, que acabara de se mover na chaise longue, revelando-se inteiramente aos olhos dos dois homens. Tratava-se de uma loura em roupa de banho Capri. Levantou-se lan­guidamente e, depois de lhes sorrir, afastou-se para o outro extremo do terraço.

- Caramba!

Roberto parecia ter ficado muito perturbado ante aquela visão.

- Já é demais! Dez vezes demais, signore! Sou casado e tenho três filhos. Minha mulher está à espera de outro. Tenho o meu trabalho, que não posso perder, e a minha honra, que perderia alegremente! E encon­tro-me sujeito a tentações como

esta...!

- Estou com muita sede - disse Ashley.

- Subito, signore! - exclamou Roberto, que sabia quando devia encerrar uma brincadeira como aquela.

            O barman acabou de preparar o martíni e foi servi-lo a Ashley numa pequena bandeja prateada.

- Quanto? - perguntou o jornalista.

- Seiscentas liras, signore.

Ashley olhou-o com severidade.

- Seiscentas?! Só paguei quatrocentas e cinqüenta por uma bebida igual, antes do almoço.

            - Enganei-me, signore - disse Roberto com delicadeza. - O preço é quatrocentas e cinqüenta, claro.

- Você é um grande mentiroso, Roberto.

Roberto encolheu os ombros e sorriu alegremente.

- Força-me a confessá-lo, signore. Sou um grande mentiroso, não há dúvida.

            - Que razão tem para mentir? Sempre o gratifiquei bem, não é ver­dade?

            - Muito bem, signore.         

- Então... para que me mentiu?

- Força do hábito, signore.

- É um péssimo hábito, Roberto.

- Creio que se trata de uma deformação profissional. - Roberto olhou para Ashley com curiosidade. - Nunca mentiu, então, signore?


       A pergunta apanhou-o de surpresa. Roberto continuava a sorrir, mas usara outro tom de voz e no seu olhar brilbara fugazmente uma nova expressão. Fora como se dissesse: "Nós dois devíamos nos entender. Temos interesses comuns. Podíamos ser úteis um ao outro."

Ashley respondeu à pergunta com um certo cuidado.

- Minto, por vezes, sim... mas nunca por dinheiro.

- Apenas porque não tem de se preocupar com o dinheiro, com cer­teza. Eu, pelo contrário, sou obrigado a pensar nele constantemente. Todos nós, afinal, mentimos por aquilo que consideramos mais impor­tante...

E pronto! Roberto abrira as negociações à maneira napolitana, com muitos sorrisos e circunlóquios. Tinha algo para lhe dizer, mas nunca o faria sem a respectiva recompensa monetária. A próxima cartada cabia a Ashley.

- Que acha, então, que seja importante para mim, Roberto?

O barman piscou-lhe o olho.

- Esse telegrama que aguarda com tanta impaciência. A infor­mação contida nessa pasta e o homem que vem visitá-lo esta tarde, às quatro e meia...

Aquelas palavras surpreenderam muito mais Ashley do que se tives­se recebido uma bofetada. O jornalista curvou-se para a frente e ia quase entornando o martíni. Todavia, depressa se recompôs da surpresa e olhou intensamente para Roberto. Mas os seus olhos, muito escuros e misteriosos, nada lhe revelaram. Roberto continuava impassível. Com todo o cuidado, muito atento às reações do barman, Ashley formulou nova pergunta.

- A pasta, compreendo perfeitamente... Viu-me a estudá-la com toda a atenção. O telegrama, fui eu quem lhe falou dele. Mas o que me disse acerca do homem que vem visitar-me... Como foi que o soube e que conhece a respeito desse homem?

- O martíni - disse Roberto. - Não me pagou a bebida, signore.

Ashley tirou a carteira do bolso. Agarrou uma nota de cinco mil liras e pousou-a na bandeja. Os olhos de Roberto alegraram-se. Pegou a nota, dobrou-a devagar e guardou-a.

- Tenho um recado para o signore - disse ele, suavemente. - Esse homem que vem vê-lo é um mentiroso e um vigarista. Aceite o que ele lhe trouxer, mas não confie nele, não confie nele totalmente.

- Mais alguma coisa?

- Nada mais.

Roberto pegou a bandeja e regressou ao bar. Ashley ficou a olhar para ele, perplexo e irritado. Não lhe formulara qualquer outra pergunta e nem sequer discutira com ele. Sabia que, por mais que falasse, não con­seguiria arrancar mais nenhuma informação daqueles lábios sorridentes.

Além disso, Ashley não ficara excessivamente perturbado com a revelação. Embrenhara-se demasiado naquela importante investigação para poder ignorar que os italianos adoram os rumores e as intrigas teatrais. Durante cada uma das fases da reportagem-investigação - e não haviam sido poucas - Ashley fora assediado por uma quantidade de informantes que lhe tinham contado toda espécie de pormenores sem qualquer fundamento. Não faltaram vigaristas que o procuraram em bares, em clubes da imprensa e salões de hotel; vinham em sua busca, recomendados por amigos ou simplesmente por terem ouvido falar no scrittore americano que pagava bem qualquer informação. Estes homens falavam muito vagamente de acontecimentos sinistros e influências perigosas - e acabavam sempre por lhe pedir dinheiro adiantado. Por vezes, embora muito raramente, fragmentos de algumas verdades des­pertavam Ashley da apatia com que os escutava. Na maioria dos casos, contudo, nada lhe diziam de interessante ou de novo.

Tentavam, então, vender-lhe outras coisas: nomes e moradas de homens que o poderiam proteger em caso de necessidade, referências a tentativas de assassinato sobre a sua pessoa etc. Ashley não os censurava muito; sabia que na Itália um homem era forçado a fazer muitas coisas desagradáveis para sobreviver. O que não desejava era preocupar-se com as mentiras e as intrigas destes falsos informantes. Investigara a fundo todos os fatos contidos na sua reportagem e estava certo de que ela era irrefutável. Ao, história baseava-se muito em fatos para que pudesse ser destruída por uma coisa que não fosse uma catástrofe.

Richard Ashley recostou-se na cadeira e, saboreando o martíni, começou a folhear de novo o manuscrito. Sentia-se ligeiramente apreen­sivo apesar da sua certeza. Algo viera amargurar o doce sabor do seu triunfo.

     Sem querer, voltou a pensar no que Roberto lhe dissera.

      "Esse homem que vem vê-lo é um mentiroso e um vigarista." A in­formação nada tinha de novo ou de extraordinário. Garofano era um in­formante barato que vivia da venda de documentos roubados. Era na­tural, pois, que fosse de fato vigarista e mentiroso. Os documentos, esses, eram autênticos - disso não tinha a menor dúvida. Ashley vira-os e examinara-os com todo o cuidado e verificara a sua autenticidade.

"Aceite o que ele lhe trouxer, mas não confie nele." O que o infor­mante lhe traria seria algo de material: fotocópias de documentos já ins­pecionados e verificados. Não havia a menor possibilidade de falsifi­cação. A questão de confiança não estava em jogo.

Só duas coisas interessavam: a identidade de quem dera aquela in­formação a Roberto e a razão do aviso. Mas a resposta a essas duas in­cógnitas só podia ser uma: o lucro. Cinco mil liras divididas em duas par­tes, uma para Roberto e outra para um vigarista desconhecido que es­cutara qualquer rumor num bar. O scrittore americano vai comprar algo a Enzo Garofano! Basta avisá-lo e criar-lhe uma certa desconfiança para que ele "largue" alguns milhares de liras. Tratava-se, sem dúvida, de uma versão daquilo a que os napolitanos chamam la combinazione.

Ashley sorriu, satisfeito por haver solucionado o mistério da infor­mação que Roberto lhe trouxera. Já se sentia mais tranqüilo e, acenden­do um cigarro, instalou-se melhor na confortável cadeira. O telegrama que esperava com tanta ansiedade chegou pouco depois.

O jornalista abriu-o rapidamente. O texto era curto e incisivo:

 


AUTORIZO INFORMAÇÃO PAGAMENTO DOIS MIL DO­LARES PT DINHEIRO ENVIADO AMERICAN EXPRESS SORRENTO PT INFORME CONCLUSÃO NEGOCIO... HAN­SEN.

 

Esplêndido! Ashley voltou a sorrire guardou o telegrama no bolso. Roma aprovava a despesa. O dinheiro encontrava-se já à sua disposição. Nada mais tinha a fazer senão aguardar Enzo Garofano. Acabou de beber o martini e, levantando-se bruscamente, encaminhou-se para o terraço.

Roberto observava-o com evidente curiosidade.

A jovem também o observava.

Aquela loura em trajes de banho não desviava o olhar de Ashley, parecendo admirar as suas feições e a sua atitude segura e decidida; não deixou de observá-lo nem por um momento enquanto ele se curvava sobre o parapeito do terraço a fim de admirar os corpos de outras moças, lá embaixo, na praia, e, depois, observar, para além das águas azuis, a silhueta distante de Nápoles e os contornos enevoados de Ischia e Pro­cida. Ashley mostrava todo o aspecto de um homem satisfeito consigo próprio e com a vida, um homem sem compromissos, com todo o tempo do mundo ao seu dispor. Não faltavam boas razões, pensava a jovem, para que ele passasse algum desse tempo com ela.

A loura encostou-se ao parapeito, numa pose bastante sedutora, como se fosse um modelo posando para um fotógrafo de revista de modas, e, em seguida, com um gesto largo, sacudiu sua vistosa toalha para que aquele movimento de cor chamasse a atenção de Ashley. Quan­do este se voltou, sorriu-lhe e ele cumprimentou-a:

- Boa tarde!

- Buon giorno... Va bene cosi nel sole!

Aquelas palavras, ditas em italiano, surpreenderam-no.

Pensara que ela fosse estrangeira, como ele próprio; talvez ameri­cana, sueca ou uma Gretchen da Renânia. Os cabelos louros e a pele bronzeada não pareciam próprios de uma mulher da região.

- Italiana?

- Si, italiana. Da Roma.

Ela sorriu e fez-lhe um gesto, convidando-o a vir para junto dela. De Roma? O fato nada significava. Veneza, Trento, Florença, Pisa... A raça loura da Lombardia infiltrara-se por toda a península. Ashley falava o italiano fluentemente, e a conversa continuou assim, nessa lingua, en­quanto o vozerio e a música da praia se faziam ouvir vagamente no ter­raço do hotel.

Ambos pareciam satisfeitos com o encontro, cada um desejoso de saber um pouco mais acerca do outro. O prelúdio decorreu com a maior naturalidade:

- Está aqui há pouco tempo, não é verdade? Ainda não a tinha vis­to.

- Cheguei ontem à noite. E você?

- Já estou aqui há quase dez dias.

- Em férias?

- Não... a trabalho.

- Escolheu um ótimo local para isso. Que faz?

- Sou jornalista... correspondente.

- Muito interessante. Isto significa que viaja, escreve histórias, conhece personagens importantes... uma vida interessante.

- Às vezes. - Era verdade que, nem sempre constituia "uma vida interessante", pensava Ashley, mas o era agora, no dia em que fazia quarenta anos e a menos de uma hora de completar a reportagem mais sensacional da sua carreira, com aquela linda loura a seu lado, a sorrir­-lhe tão agradavelmente. - A propósito, chamo-me Ashley... Richard Ashley.

- Elena Carrese.

A forma simples e despreocupada como ela correspondeu à sua apresentação agradou a Ashley. Verificava que a garota era muito di­ferente das timidas e envergonhadas napolitanas.

- E está aqui de férias, então?

- Só por hoje... o meu patrão chega amanhã.

- Oh! - O prelúdio sofrera a primeira dissonância. Moças para quem os patrões reservam quartos no Caravino eram sempre moças muito especiais.


     - Durante o inverno - explicou Elena - trabalhamos em Roma, mas no verão vimos sempre para cá.

     Ela falara sem a menor hesitação ou embaraço.

     - Que sorte! - comentou Ashley, secamente. - Que gênero de trabalho é o seu... ou melhor, o do seu patrão?

Ela fez um gesto largo, permitindo que a toalha lhe caísse dos om­bros e Ashley tivesse que se aproximar para apanhá-la.

- O que ele faz? Ora, muitas coisas... dedica-se à política, aos negócios, bancos, alta finança... Viaja muito, e eu, é claro, viajo tam­bém.

- Naturalmente. É possível que eu conheça esse senhor tão viajado.

- E possível, sim - Elena pronunciou estas palavras sem qualquer malícia nos olhos ou ironia no sorriso. -

É mesmo natural que, como jornalista, já o tenha visto e até haja falado com ele. É famoso em toda a Itália.

     - Como se chama?

     - Vittorio, Duque de Orgagna.

     Como era um homem com longa experiência da vida e das mais es­tranhas situações, habituado a dominar os músculos do rosto e a escon­der o que lhe ia no espírito ou na alma, Richard Ashley fingiu uma gran­de surpresa e, com deferência disse:

     - Orgagna? Mas como não havia de conhecê-lo! Entrevistei-o mais de uma vez.

     O jornalista poderia ter dito: "Conheço esse Orgagna melhor do que você, minha pombinha. É verdade que trabalha para ele e é até possível que durma na sua cama, mas eu vivi-lhe o passado e o presente. E sou o juiz do seu duvidoso futuro. Sei quanto dinheiro possui e como o obteve. Sei até onde vai o seu poder e qual é o limite da sua influência. Sei quem foram os homens que ele comprou e negociei com os homens que, por sua vez, o venderam. Conheço a mulher com quem se casou e todas as outras a quem ele amou... todas menos você, minha querida, que para mim é uma surpresa. Estou a par de todos os seus triunfos e hoje marcarei o primeiro compasso para a sua derrota final. Amanhã, publicarei a sua infâmia, para que todo o mundo o conheça tão bem como eu."

     Richard Ashley poderia ter-lhe falado assim, mas não o fez. Em vez disso, voltou a sorrir a Elena Carrese e disse-lhe amigavelmente:

     - Amanhã pertencerá a Orgagna. Hoje pertence a mim. Faço anos e recebi boas notícias. Gostaria de celebrar. Permite-me que a convide a tomar uma bebida?

     - Senz’altro, signore! Certamente! - respondeu Elena Carrese e, dando o braço a Ashley, encaminhou-se para o bar.

     O rádio tocava docemente A 'nnamurata Mia e Roberto estava se­cando os copos e arrumando-os nas respectivas prateleiras. Seu rosto se iluminou com um sorriso de aprovação, que nem sequér pensou em es­conder, quando viu a garota chegar de braço dado com Richard Ashley.

O jornalista e Elena sentaram-se no bar, e pediram drinques e brin­daram a saúde ruidosamente. Ashley proferiu galanteios extravagantes em napolitano e a garota exclamou graciosamente "Vergogna!" e pousou a mão na dele. Tudo aquilo se passava com a maior das naturalidades e encanto - um autêntico encontro de férias na Terra das Sereias.

Ou seria cada uma daquelas palavras uma bem-arquitetada men­tira?

Richard Ashley fizera as suas pesquisas durante seis meses nas águas turvas da política e da alta finança da Itália. Era impossível manter segredo absoluto, por tanto tempo, sobre as suas intenções. Seria incrível que o próprio Orgagna ignorasse o homem que investigara a sua vida tão cuidadosamente. Seria ainda mais incrível que justamente aquele dia, climax de tudo, se passasse sem qualquer espécie de ação para o impedir de publicar a acusação contida na reportagem. Talvez este encontro com Elena Carrese fosse o início das represálias. Ela continuava a rir, a falar animadamente e a gesticular como um manequim.

- Disse-me que teve boas notícias, não é verdade?

- Notícias? - perguntou ele, distraído. - Sim, sim... tem razão. - Ainda não me disse de que se trata.

"Agora", pensou ele. "Agora... muito cuidado. Piano, piano...! Muito suavemente, à moda italiana, chegamos ao momento perigoso. Fale-me dessas notícias, meu bom amigo, para que eu possa ir contá-las ao meu amo, Vittorio, Duque de Orgágna."

Ashley encolheu os ombros, como se o assunto não tivesse a menor importância.

- Não é assunto que lhe interesse grandemente. Fiz uma repor­tagem que resultou melhor do que eu esperava e o meu jornal acabou de autorizar a compra de uns documentos que me faltavam. Agora, tenho uma reportagem muito boa.

            - Que gênero de reportagem? - perguntou Elena, abrindo muito os olhos e falando num tom de voz inocente.

            - Política.

            - Sério?! - admirou-se Elena Carrese, e aquela exclamação pa­receu ficar pairando no ar como um acorde musical.

            - Pode ser que lhe diga algo mais quando a conhecer melhor.

            - Isso seria muito indiscreto - disse inesperadamente uma voz em inglês.

Ashley voltou-se com uma exclamação irada e entornou a bebida no balcão do bar. Elena também se voltou. O homem que assim lhes falara era de pequena estatura, ligeiramente obeso, e tinha um rosto quase in­fantil, com olhos muito doces. Vestia à moda inglesa: casaco azul, calças cinzentas e camisa de seda. Todo o seu aspecto irradiava a juventude in­congruente de quem nascera sob um signo de inverno. O recém-chegado ignorou a evidente antipatia demonstrada por Ashley e aproximou-se do bar. Elena Carrese observava-o com certo desânimo e alguma preocu­pação. O homem estendeu a mão, cumprimentando o jornalista.

- Ashley, meu bom amigo, é um grande prazer voltar a vê-lo.

- Um grande prazer... sem dúvida. - Ashiey apertou-lhe a mão sem grande entusiasmo e apresentou-o. - Elena Carrese... George Arlequim.

       Arlequim cumprimentou-a e voltou-se de novo para Ashley.

- Passamos a vida a encontrar-nos, não lhe parece?

- É verdade.

- No Clube da Imprensa, em Veneza; no Festival da Primavera, em Florença; no Joe's Bar, em Roma; no Stampa, em Nápoles... e agora aqui. É estranho...

       - Muito.

Abruptamente, George Arlequim começou a falar em italiano. Fez uma reverência irônica a Elena e disse-lhe:

- Você está muito bonita, Lena.

- Obrigada - respondeu ela, indiferente ao cumprimento.

- Vocês já se conheciam? - perguntou Ashley, surpreso e descon­fiado.

            - Já - respondeu Elena, friamente, ao mesmo tempo que se erguia e acrescentava: - Desculpe... tenho de ir embora.

            - O quê? Não pode...

            - Peço-lhe que me desculpe - voltou ela a dizer, já a caminho da porta.

- Não quer jantar comigo esta noite?

- Sinto muito, mas é impossível.

- E... depois do jantar, então? Café?

Elena já abrira a porta. Mais um segundo, e desaparecia. Parou, porém, quando já estava saindo e voltou-se para Ashley:

- Está bem... tomarei café com você, depois do jantar.

Elena Carrese fechou então a porta atrás de si. George Arlequim sol­tou uma gargalhada. Ashiey estava furioso.

            - E agora, Arlequim, espero que me diga o que isto tudo significa.

Tem-me seguido por toda a Itália. É um abuso... ou uma coincidência muito estranha. Chegamos ao fim da viagem. Vamos, que deseja de mim?

- Primeiramente, meu bom amigo, quero uma bebida - respon­deu George Arlequim, muito calmo e senhor de si.

- Que toma?

- Uísque com água.

- Subito, signore - disse Roberto.

- Sirva-me na mesa.

Ashley encaminhou-se para a mesa onde ainda se encontrava a pasta com o manuscrito da reportagem. Arlequim seguiu-o e Roberto olhou-os com curiosidade. O inglês acendeu um cigarro e aguardou que o barman trouxesse as bebidas e se afastasse de novo. Depois, sorrindo ironicamen­te, levantou o copo e olhou para o jornalista.

- Boa sorte, Ashiey!

- Que quer dizer com isso?! - Ashley bebeu a sua bebida de um gole e acrescentou: - Okay, Arlequim. Vamos ao assunto. E em de­talhes... Quem é você? Que deseja de mim... e por quê?

Os olhos de Arlequim eram muito doces, mas também muito en­ganadores. A sua expressão nada indicou ao jornalista. O sorriso irônico se acentuou ainda mais.

- Creio que já adivinhou as respostas.

- Gostaria de ouvi-ias da sua boca.

O outro encolheu os ombros e pousou o cigarro no cinzeiro.

- Muito bem. Sei que, durante estes últimos seis meses, tem estado preparando uma acusação sensacional.

- Tenho estado preparando uma reportagem jornalística.

- Que é, na realidade, uma acusação, feita a certos políticos italianos, de fraude, corrupção e roubo de grandes quantidades de dólares enviadas para a Itália com o fim de auxiliar os infelizes que perderam tudo na guerra.

- Acertou.

- A sua reportagem é muito completa e cuidada, Ashley.

- Pelo visto, já a leu - disse Ashiey, com ironia.

- Com toda a certeza - respondeu George Arlequim, calmamente. Li-a de fio a pavio, sem omitir as observações à margem.

Ashley olhou-o com incredulidade agressiva.

- Quê?! Não acredito!

- Devo dizer-lhe que, tratando-se de um jornalista com tanta ex­eperiência, foi muito descuidado com seus originais.

- Ashley curvou-se para a frente. Seus olhos faiscavam de raiva con­tida. A boca contraiu-se num ricto amargo.

- Quem é você?

- Sou um profissional.

- Um profissional de quê?

Arlequim fez um gesto largo com as mãos.

- Homem de contato, mensageiro, negociador, investigador...

- Agente?

- Chame-me como quiser.

- Quem é que você representa?

- O Governo de Sua Majestade Britânica. Sem qualquer qualida­de oficial, claro.

- Já começo a compreender.

Ashley recostou-se e começou a rir. Sentia-se aliviado. Sua tensão inicial desaparecia para de novo dar lugar ao triunfo que antes sentira. A reportagem era ainda mais importante do que ele pensara. Os perso­nagens da política britânica, em Whitehall, estavam preocupados. Amanhã, quando o que escrevera alcançasse as grandes capitais do mun­do, os seus títulos espalhafatosos causariam um certo pânico. As dúvidas e a incerteza que o haviam assaltado naqueles últimos minutos desa­pareceram completamente. Richard Ashley preparou-se para representar uma comédia... e divertir-se.

            - Sinto-me muito importante, Arlequim. Que razões tem o Gover­no britânico para se interessar tanto por mim?

- Vai comprar as fotocópias dos documentos de Orgagna, não é verdade?

O olhar de Ashley tomou-se duro. Sentiu-se de novo pouco seguro de si.

- Também sabe isso, então?...

- Naturalmente.

- Okay! Vou comprá-los, sim! Vou comprá-los dentro de vinte minutos, nesta mesma sala e a esta mesma mesa.

- E a sua acusação então ficará completa?

- Completíssima. As personagens mais importantes da política italiana, e até as mais insignificantes, serão julgadas no tribunal da opinião pública. As fotocópias constituirão a prova final e concludente de um dos maiores escândalos político-financeiros do século XX, planejado e executado por Sua Excelência, o Duque de Orgagna.

- É pena - disse George Arlequim, falando com uma tristeza aparente. - É uma grande pena. Quando tenciona publicar a repor­tagem?

- Penso que será divulgada depois de amanhã, o que é bastante oportuno. As eleições italianas efetuam-se dentro de dez dias.

- Os americanos têm um grande senso teatral - disse Arlequim,levantando-se e dando alguns passos em direção ao terraço que dominava a praia e a baía - Importa-se de que continuemos a nossa conversa lá fora? É mais discreto...

            - Como quiser.

            Ashley pegou a pasta e dirigiu-se também para o terraço. Arlequim começou então a passear para cá e para lá naquela longa superfície sus­pensa sobre um abismo de quase cem metros de altura. Ashley acom­panhou-o no inesperado passeio. Arlequim já não sorria; tomou-se muito sério e abandonou a ironia anterior, como um ator que houvesse ter­minado o seu papel num palco. Sua voz transformou-se também; era agora mais sóbria e cautelosa.

- Ashley - disse ele - creio que conhece perfeitamente a situação política deste país. Existe um partido de extrema esquerda, forte e bem ­organizado. Há também uma direita reacionária, bem capitalizada, mas muito pequena. Existe ainda uma coligação assaz fraca de centro... com­posta pelos moderados de ambos os grupos e que, de momento, tem a maioria dos votos.

- Certo.          

- É do interesse da Grã-Bretanha e da América, como deve saber, manter e reforçar a coligação do centro.

- Tem razão.

- O homem que até agora tem mantido essa unidade do centro é Orgagna.

            - Não. Não concordo com você - disse Ashley, falando com con­vicção.

            Arlequim ouviu aquelas palavras com calma, como se tentasse evitar uma discussão sobre o assunto.

- Digamos, então, que, na opinião de alguns, na opinião do meu Governo, por exemplo, Orgagna é a chave da unidade de toda a política italiana. Tem ligações com os partidos da esquerda e da direita e é um negociador muito hábil. Possui também imensa personalidade e o pú­blico gosta dele. Se desaparecer da cena política, como sucederá se a sua reportagem for publicada, o país ficará apenas com figuras medíocres. Compreende?...

Ashley perdeu a serenidade numa explosão de raiva.

- Compreendo perfeitamente! Está pedindo-me que destrua a reportagem para que um vigarista de grande envergadura ocupe um Maar e relevo no Governo italiano! - Ashley riu-se amargamente. ­- Mas que argumento fraco para um profissional apresentar a outro Profissional!

O inglês sorriu, tentando desarmar o jornalista.

- É o único argumento que tenho, Ashley. Se eu pudesse suborná-lo, seria isso que faria. Se tivesse algum pretexto para fazer chantagem, não hesitaria em fazê-la. Nas circunstâncias presentes, contudo, não possuo outro argumento senão a verdade. Sirvo-me dessa arma da melhor maneira possível.

Ashley deteve-o e encarou-o.

- Esplêndido! Acredito na sua sinceridade, mas vou acentuar-lhe o que me está pedindo: quer que eu omita uma ação criminosa, toda uma séria de ações criminosas, por causa de um expediente político.

- É possível que sim, mas eu gostaria de acrescentar que se trata de um expediente de que poderá vir a depender a estabilidade da defesa da Europa.

Ashley olhou em silêncio durante alguns segundo para, em seguida, voltar a explodir:

- Meu Deus! Vocês, britânicos, são extraordinários! Julgam que nasceram na nação mais moralista do mundo: a Família Real, a Igreja Protestante e os rituais sagrados do cricket! Mas, apesar disso, toda a História de vocês se funda em imoralidades econômicas e em expedientes políticos. Os seus heróis são piratas e corsários. Os seus santos são excên­tricos e anarquistas. Pregam a moral no Parlamento e planejam as guerras no Clube Conservador. Os seus financistas magnatas atacam Wall Street e o expansionismo americano, mas eles próprios é que são os verdadeiros gatunos, disfarçados de gentlemen! E, quando algum deles comete uma patifaria ou qualquer outra ação vergonhosa, evoca a irman­dade britânica e Oxford, Eton ou Cambridge. Pelo amor de Deus, Ar­lequim!

            Arlequim não pareceu muito impressionado com este desabafo. Res­pondeu com uma fleuma absolutamente britânica.

- A sua opinião é muito extremista e agora não é o momento ideal para a discutir. Julgo que estamos

falando de coisas diferentes, meu caro amigo.

            - Não me parece.

            - Você está falando de moral e eu de política. São assuntos total­mente opostos.

- Isso é um engano, e você bem sabe. Não concordo. A política é a arte e a ciência de governar homens imperfeitos por meio de sistemas imperfeitos.

- O fato de homens falsamente perfeitos serem colocados em postos de governo constitui, sem dúvida, má política.

- Nem sempre. Os homens falsos podem ser orientados. Os homens gananciosos podem ser comprados. Cabe ao diplomata saber aproveitar-se do medo dos mentirosos e da ambição dos especuladores.

E a verdade?

- A verdade? - George Arlequim encolheu os ombros. - A ver­dade, meu caro Ashley, é um luxo permitido àqueles que não sofrem as suas consequências.

- Que significa isso?

- Significa que você, pessoalmente, não se preocupa com o que possa acontecer à Itália ou mesmo à Europa. O seu furo de reportagem poderá vir a abalar governos, a mergulhar este país no caos, tanto político como econômico, a destruir o trabalho de muitos anos nos planos de defesa da Europa e da estratégia do Mediterrâneo. E você, como não suportará as conseqüências da sua ação, seguirá para a Índia, para Java ou para a Austrália, sem nada sofrer no corpo ou na alma...

            - E você, é claro, sofrerá com isso!... - exclamou Ashley, sorrindo ironicamente.

            George Arlequim mediu bem suas palavras antes de ripostar:

- Como profissional, certamente sofrerei. Não sou um simples ob­servador, como você. Sou um dos participantes. Sofrerei, já que o meu país sofrerá pelo fato de estar a trinta milhas das costas da Europa, e também por ser a política da Europa que determina o que poderei comer ao almoço ou ao jantar. Você, por seu lado, representa a imprensa e apenas procura explorar o sensacionalismo da verdade. Eu sou um homem que tem de viver com as mentiras, que tem de aceitar as injus­tiças, de chegar a um acordo com a corrupção, já que elas são elementos constantes na sociedade humana.

            - Você e os outros homens como você perpetuam a injustiça, a corrupção e a mentira, ao aceitá-las.

            - E os homens como você?

            - Nós também sofremos - respondeu Ashley lentamente. ­- Sofremos por vermos, mais do que você, mais freqüentemente do que os homens como você, as conseqüências da mentira e da injustiça. Vemos cenas de miséria nas ruas, enquanto você as lê apenas num jornal ou num relatório. Assistimos a crimes imundos e somos nós que lhes mostramos as fotografias que os provam. Vemos crianças mortas e mulheres violadas seis meses antes de você ler um pequeno relatório de dez linhas acerca de um incidente na fronteira. Sofremos... não julgue que não. Sofremos por pensar que só a verdade é que conta e por muitas vezes não a podermos relatar. Sócrates criou uma reputação bastante duradoura por pensar como nós.

- E, como recompensa, foi envenado.

- É um dos riscos do ofício, um dos riscos profissionais que todos nós aceitamos. - Ashley suspirou e encostou-se ao parapeito do terraço.

- Esta conversa a nada conduz. A posição é muito simples. Você e o seu Governo querem ver Orgagna no Conselho de Ministros; eu, por meu lado, quero vê-lo na prisão. O objetivo de vocês é um mero expediente político e o meu é a defesa da verdade. ­

- Será esse o seu único objetivo?

- Que outro eu poderia ter?

Fria e secamente, George Arlequim retorquiu-lhe:

- Esteve, ou ainda está, apaixonado pela mulher de Orgagna...

AQUELAS palavras foram tão brutais como um bom soco dado no rosto.

Ashley sentiu um desejo louco de se atirar ao inglês e de, após es­murrar-lhe a cara, o lançar no abismo, entre o mar e o céu. Em vez de o fazer, contudo, fechou os olhos e agarrou-se com toda a força das suas mãos à balaustrada. Estava furioso e, de começo, julgou que ia enlou­quecer de raiva, mas, aos poucos, foi-se dominando e, quando abriu os olhos, viu que George Arlequim ainda se encontrava na sua frente, obser­vando-o sombriamente. Só então é que Ashley recuperou a voz.

- Que infâmia! Você é um verme miserável! Um pulha! Não vejo Cosima há mais de dez anos. É verdade que a amei... e que ainda a amo! Foi minha amante, é verdade, e eu teria casado com ela... se ela não houvesse escolhido Orgagna. Desejei-lhe as maiores felicidades e tentei esquecê-la. Ela não tem a menor relação com a minha reportagem.

- Como mulher dele, está envolvida.

- E mulher do Duque de Orgagna, não minha.

- Eu desejaria - disse Arlequim, muito sério - estar tão seguro dos meus argumentos como você está dos seus. Tem sorte, Ashley. La­mento muito o que disse. Peço-lhe que me perdoe.

Arlequim estendeu-lhe a mão, mas Ashley recusou-se a apertá-la.

- Não se incomode com desculpas.       

Arlequim encolheu os ombros, pouco à vontade.

- Suponho, então, que tenciona publicar a reportagem.

-Vou publicá-la, sim - respondeu Ashley, falando com amarga satisfação. - Vou publicá-la na sua totalidade, com as fotocópias dos documentos e tudo. Vou provar que crianças morrem nas ruas de Ná­poles só porque Vittorio Orgagna se apoderou dos fundos de socorro aos pobres neste país. Vou provar que existem duzentos mil desempregados em Nápoles e Eboli só porque Orgagna e os seus colegas desviaram os


dólares destinados a reconstruções no Sul para os seus negócios particulares no Norte. Vou provar que as sementes de cereais enviadas pela América foram vendidas aos membros do Partido em vez de serem distribuídas gratuitamente pelos agricultores mais pobres, e que o homem que organizou a venda foi Vittorio Orgagna. Vou publicar os relatórios e contas das suas firmas e revelar a quantidade de créditos secretos que tem nos bancos americanos. Você e a gente que o mandou vir ter comigo que vão para o inferno!

- Está brincando com fogo.

- Não estou brincando.

O inglês parecia exausto e desanimado. O seu rosto juvenil tornara­-se subitamente velho e sombrio. Arlequim voltou as costas a Ashley e en­caminhou-se para a porta, mas, de repente, como se tivesse sido assal­tado por um súbito impulso, voltou-se de novo e encarou o jornalista.

- Permita-me dar-lhe um conselho. A Itália é um país muito an­tigo, com um passado extraordinariamente turbulento. Nesta terra, como deve saber, existe muita violência, muita corrupção, muita intriga, e os assassinatos políticos não são raros. A família de Orgagna faz parte desse passado há muitos séculos. Tenha cuidado, meu caro amigo! Tenha cuidado! E, se mudar de idéia, me procure.

- Prefiro morrer a trair as minhas convicções!

- É muito possível que morra, então - disse o inglês suavemente.

George Arlequim afastou-se e Ashley ficou só, encostado à balaus­trada, olhando para o mar que se estendia a seus pés.

Os ruídos, abafados pela distância, elevavam-se vaga e confusamen­te no ar morno da tarde: os gritos da rapaziada, o riso alegre das jovens, o baque de corpos a mergulharem na água, os minúsculos rádios a trans­mitirem canções napolitanas, o motor de um barco de recreio. O Sul es­tava no seu apogeu: era época das canções das sereias, a estação dos faunos que não se cansavam de bailar. Espertos eram os que passavam os dias descansadamente ao sol e as noites a amar debaixo das laranjeiras ou nas areias macias, ocultos nos rochedos. Só um imbecil como ele próprio é que desperdiçava os dias e as noites a preocupar-se com os pecados de outro homem.

Gostaria muito de saber, por exemplo, quem de todas aquelas cen­tenas de pessoas que se viam na praia, leria a história que ele escrevera para o mundo.

Quem, de todas aquelas pessoas, depois de ler a reportagem, lhe agradeceria o serviço prestado?

            Talvez ninguém. Para que escrever, então? Para que arriscar a vida e criar um caso de consciência em nome da verdade? Será a verdade jus­tificativa suficiente para se arriscar a vida? Será uma revolução mais im­portante do que uma hora passada na praia com uma bela moça?

A verdade? Uma dedicação sagrada, mas um serviço mal agrade­cido. Justiça? Uma deusa cega cuja balança nunca se equilibra perfei­tamente. Orgulho? Ambição? Vaidade? Tudo isto tem importância num homem, mas não se explica.

Escolhe-se uma profissão em que se deseja triunfar. Apreciam-se as suas recompensas. Aceitam-se as suas limitações. Compartilha-se a res­ponsabilidade dos seus males. Um homem e a sua obra têm de ser jul­gados no estado e condição a que ele pertence. O próprio Deus Todo­-Poderoso tempera a justiça absoluta com uma infinita misericórdia.

"Então, se você se julga com tanta clemência, que o impede de jul­gar Vittorio, Duque de Orgagna, da mesma forma? Ele próprio, tam­bém, pertence a um estado e a uma condição bem definidos. Nasceu de um milhar de anos de intrigas num velho país corrupto. A sua profissão é a política e o dinheiro. O Duque de Orgagna também deve ser julgado no seu próprio milieu segundo a história do seu país. Poderá ele ser julgado e condenado, então, com a mesma justiça que reina no seu país? Se assim não for, que direito você tem para o acusar e provocar a sua conde­nação?"

Este novo e perturbador pensamento começava a apoderar-se do es­pírito de Richard Ashley quando ouviu o telefone tocar e viu Roberto atender.

- Pronto!... Come si chiama? Garofano?. Aspett'un moment'. ­- Roberto olhou para Ashley. – Signore Ashley, está lá embaixo um se­nhor para o ver. Chama-se Garofano.

- Diga-lhe que suba.

Roberto voltou a falar ao telefone:

- Il signore aspetta nello salone. Si, si, subito! O barman des­ligou o aparelho e voltou-se para Ashley. - Ele já vem, signore. Deseja que lhe sirva alguma bebida? Tenho de servir uns turistas na sala ao lado e...

- Não quero bebidas, apenas dois cafés.

- Dois cafés! Isso levará alguns minutos, signore.

- Esperaremos.

Roberto afastou-se, encaminhando-se para outra sala, e, logo a seguir, Enzo Garofano apareceu à porta. Ao ver Ashley, dirigiu-se para ele rapidamente.

Garofano era um homem pequeno e magro, muito moreno e com o aspecto de pessoa imensamente débil. Vestia à moda napolitana: casaco curto e apertado, calças estreitas e sapatos pontiagudos muito polidos. Movia-se quase nas pontas dos pés e de uma forma muito nervosa e fur­-


tiva. Trazia uma pasta debaixo do braço e na sua aparência tudo indicava que tinha medo da própria sombra.        

- Sinto o maior prazer em vê-lo - disse Ashley alegremente, esten­dendo-lhe a mão. Garofano cumprimentou-o, mas não disse palavra, limitando-se a sentar-se numa cadeira e a limpar o suor do rosto com um lenço bastante sujo. Ashley ofereceu-lhe um cigarro e ele acendeu-o precipitadamente. Deu algumas tragadas em silêncio. Suas mãos tre­miam.

- Calma, calma - disse Ashley, sorrindo-lhe. - Já não há motivo para medo. Tomaremos café e o nosso negócio ficará concluído em cinco minutos. Trouxe as fotocópias?

- Não.

Ashley ia dando um salto na cadeira.

- Quê?

- Por favor, por favor! - exclamou Garofano, gesticulando quase histericamente. - Não me interprete mal. Só quis dizer que não as trouxe comigo. Posso ir buscá-las quando quiser. Trata-se, como com­preenderá, de uma questão de prudência.

- Você é muito cuidadoso, não é?

- Em negócio... neste gênero de negócio... é necessário ser-se prudente. Já recebeu notícias de seus superiores?

            - Já.. Tive boas notícias para ambos. Recebi confirmação do pa­gamento.

- Quanto?

- O combinado... dois mil dólares em moeda americana.

- Não chega.

Seguiu-se uma pausa. Enzo Garofano baixou os olhos e Ashley, boquiaberto, ficou a olhar para ele sem compreender nada. Após alguns segundos, quando o jornalista se preparava para quebrar o silêncio, Garofano voltou a encarar Ashley. As mãos já não lhe tremiam. Seu rosto adquirira a expressão de um vigarista. Disse suavemente.

- Lamento muito, meu amigo, mas o preço subiu.

Ashley tentou manter a calma.

- Quanto quer, agora?

- Dez mil.

- Mas por quê?

- O mercado está muito animado. Tive uma oferta melhor.

- De quem?

Garofano voltou a baixar os olhos. Sua expressão alterou-se ligei­ramente e a voz tomou-se um tanto irônica.

            - Não é boa política revelar os nomes dos clientes neste gênero de negócio, signore.

- Negócio?! - Ashley explodiu, completamente fora de si. O jor­nalista saltou da cadeira, agarrou Garofano pela lapela do casaco, obrigando-o a levantar-se, e encostou-o à parede. Richard Ashley co­meçara a gritar, numa mistura de inglês e italiano. - Negócio... Você chama a isto negócio?! Fala em negócio e em clientes... e quer me passar pra trás! Fizemos um trato: dois mil dólares! Eu cumpri o que combi­namos. Tenho o dinheiro à sua disposição. E, por Deus, você também vai cumprir o que combinou comigo... nem que eu tenha de matá-lo!

Ashley começou a esbofeteá-lo, atirando-o repetidas vezes de encon­tro à parede. Nesse momento, Roberto voltou a entrar na sala e deixoucair a bandeja que trazia nas mãos ao ver o que se passava.

            - Signore! Pelo amor de Deus! Basta! Basta!

Ashley nem sequer o ouviu, tal era a raiva que o assaltava, e con­tinuou a castigar o informante com bofetadas e murros até que uma voz feminina o interrompeu, furiosa:

            - Pare, Richard! Pare!

            Ashley voltou-se para a recém-chegada e Garofano aproveitou aquela breve interrupção para pegar a pasta e sair correndo da sala.

O jornalista viu-a, então, parada à porta do terraço: era a bela Cosima d'Orgagna. Despenteado e ofegante, Ashley ficou a olhar para ela estupidamente - a olhar para a mulher da sua vida, que assim lhe aparecia após tantos anos!

- Cosima!

Roberto parara junto da mesa, indeciso ante as xícaras tombadas e o café entornado. A Duquesa de Orgagna voltou a falar:

- Você, cameriere, limpe isto tudo e deixe-nos sozinhos.

- Subito, signora! - Roberto obedeceu imediatamente à voz autoritária. Abaixou-se para apanhar a louça partida e limpar as man­chas escuras do café e depois saiu da sala sem mais perda de tempo.

Ashley, como se estivesse sonhando, ficou a olhar para Cosima d'Or­gagna.

Cosima aproximou-se dele e beijou-o na testa, começando a lim­par-lhe o rosto, e ajeitar-lhe a camisa e a falar-lhe como antigamente:

- Richard! Richard! O mesmo Richard Ashley de sempre, violento e exaltado!... Quem era aquele homem horrível? De que reportagem se trata, desta vez? Sente-se e acalme-se, Mãe de Deus! Você não mudou nada... continua o mesmo de dez anos atrás.

Cosima d'Orgagna obrigou-o a sentar-se, acendeu-lhe um cigarro e esperou que a fúria passasse.

- Conte-me o que aconteceu, Richard.

Ashley passou a mão pelos olhos e sorriu amargamente.

- Não... não tem importância. Era um homem a quem eu ia com­prar uns documentos. Combinamos um preço e, à última hora, quin­tuplicou-o! Perdi a cabeça.

            Cosima riu-se e tocou-lhe afetuosamente na mão.

            - O mesmo Richard de antigamente. Testa dura! O mesmo teimoso e persistente Richard de sempre... Sempre perdendo a cabeça por causa das loucuras e dos escândalos do mundo. Você nunca foi muito paciente, não é?

- Há coisas que me fazem perder a paciência, é verdade.

- Que espécie de reportagem era esta?

- A história de...

Lembrou-se então de que a reportagem também lhe dizia respeito, visto que ela já não era a sua amante, mas sim a esposa de Vittorio. Duque de Orgagna. Recordou-se também de que, sem fotocópias, a reportagem não valia nada. Lembrou-se ainda da misteriosa advertência de Roberto e do inesperado encontro com Elena Carrese. Compreendeu, naquele momento, que a chegada de Cosima d'Orgagna não fora aciden­tal. Tratava-se, com certeza, de mais uma fase de um bem estudado plano para o impedir de acusar o marido. Não sabia, é claro, até que ponto ela estaria comprometida no caso. Mas teria de o saber depressa, senão o seu triunfo transformar-se-ia mim completo malogro.

- A reportagem? Já não tem importância, agora que você está aqui. Como veio para cá? Quando foi que você chegou? Que a trouxe a Sorren­to?

            - Vivo aqui, Richard - respondeu ela, muito simplesmente. ­- Meu marido possui propriedades na península. Temos também uma villa no Cabo.

            - Seu marido também está aqui?

            - Chega de Roma esta noite. Hoje jantamos e ficamos aqui no hotel e amanhã de manhã seguimos viagem para a villa.

Ashley olhou para Cosima e percebeu que esta se sentia muito con­tente por vê-lo de novo. Velhas recordações perturbavam-lhe o espírito e o coração.

            Contudo, já tinha quarenta anos e aprendera a ser cauteloso.

            - Talvez pudéssemos passar junto uma ou duas horas...? - arris­cou Ashley, pouco senhor de si.

            Cosima sorriu e respondeu:

            - Se você quiser...

Ele pensou rapidamente: "Aqui no hotel, não, com Roberto, Ar­lequim e Elena Carrese... Tenho de ser prudente, especialmente depois da cena com Garofano. Não podemos ficar aqui, com Orgagna que está para chegar e os criados a murmurarem intrigas pelos corredores."

- Tem automóvel, Cosima?

- Tenho.

- Podíamos ir passear...

- Até às montanhas, por exemplo... Lá em cima, naqueles picos, a solidão e o silêncio são completos. A paisagem é maravilhosa e pode­remos conversar... e recordar.

- Vamos, então.

Roberto, que passava por um corredor, viu Richard e Cosima saírem juntos, tendo também notado que Ashley entregara a pasta de papelão na Recepção para que a guardassem no cofre do hotel. Viu-os, depois, sair do Caravino, de mãos dadas, como se estivessem apaixonados um pelo outro.

Roberto dirigiu-se rapidamente para o bar e pegou o telefone.

Ashley sentou-se ao volante da potente Isotta azul e dirigiu-se cuidadosamente para o centro da cidade. Quando alcançavam a praça principal, os ônibus da tarde desembarcavam os excursionistas e os cocheiros das carruagens alinhavam-nas em frente da Bagatelle. O ruído característico dos cavalos e dos guizos prateados misturava-se, numa confusão indescritível, com o barulho ensurdecedor das buzinas e dos berros dos porteiros dos hotéis, à volta da bagagem dos clientes que acabavam de chegar e daqueles que se preparavam para partir. Ashley dirigia muito lentamente por entre a multidão e subia pelo Corso em direção à silhueta sombria do Cabo.

Cosima só voltou a falar quando deixaram para trás a cidade, a mul­tidão e as villas de verão que se erguiam em redor de Sorrento. O potente automóvel subia agora a íngreme e tortuosa encosta, afastando-se do mar e daquele tão popular centro turístico do Sul da Itália.

- É como antigamente, Richard - disse ela.

- Já lá se vão muitos anos.

"Antigamente" significava dez anos antes, quando a guerra só ter­minara havia um ano e Richard Ashley não passava de um jornalista inexperiente. Cosima Benedetto, essa, era então uma jovem que con­seguira o seu primeiro emprego no jornal onde ele trabalhava, agradecida por ter um homem que a amava e o suficiente para comer após os terríveis anos da guerra. "Antigamente" era o mesmo que dizer "os bons tempos": um pequeno e arejado apartamento no Parioli, tardes passadas nos jardins do Tivoli, jantares ao ar livre nos restaurantes das avenidas, pas­seios domingueiros a Frascati e Ostia e, de vez em quando, fins de se­mana vividos em Florença ou Veneza. "Antigamente" fora o tempo da paixão, quando o amor parecia ser suficiente e o casamento um ato des­necessário. Ashley fora então enviado para Berlim, a fim de substituir um colega, e, após um ano de separação forçada, recebera uma carta de Cosima em que ela lhe dizia que os "bons tempos" haviam terminado e que ia casar-se com um homem que possuía uma fortuna considerável e um velho e nobre título. Richard Ashley não a repreendera então e ainda agora não a culpava, nem a acusava de o haver atraiçoado. Existiam muitos homens sem raízes, como ele próprio, que se deixavam conquistar e dominar pela paixão, mas para quem o casamento nada significava.

Velhos tempos... velhos fantasmas! Os fantasmas ainda não tinham desaparecido completamente e a sua antiga paixão estava ali, a seu lado, com os cabelos ao vento e tão bela como antes, a caminho do ponto mais alto da península sorrentina.

- Richard, você me odiou, não é verdade?

- Odiei?! Não... creio mesmo que ainda continuo apaixonado por você.

- É muito agradável ouvi-lo dizer isso.

"Agradável... fácil de dizer", pensou Ashley, "mas muito perigoso também! Poderei amá-la, sim, mas não me renderei aos seus encantos. Cosima é a chave do mistério. Terei de a usar contra Orgagna tal como

Orgagna a usaria contra mim."

Ashley, olhando para o límpido céu azul que se estendia à sua frente, sentiu-se subitamente envergonhado de pensar daquele modo.

Uma carroça puxada por um burro surgiu inesperadamente numa curva da estrada e Ashley foi obrigado a dar uma guinada ao volante para evitar o choque. Cosima soltou uma exclamação e foi lançada de encontro a ele. Richard sentiu-se perturbado com a a proximidade do seu corpo e o perfume do seu cabelo. Uma vez passada a curva, já quase no cimo da encosta, viram uma capela em ruínas rodeada de oliveiras.

- Podemos parar ali, Richard.

- Onde quiser.

- Os naturais da região chamam "Il Deserto" a este local. É apropriado, não é?

- Muito.

Ele saiu da estrada e meteu o automóvel pelo acidentado piso do caminho que conduzia à velha capela. Pararam quase junto dela e Ri­chard ajudou Cosima a descer do carro, ficando a seu lado, de pé, a ad­mirar o panorama e a ouvir o trinar dos pássaros que saltitavam nas oliveiras.

A paisagem era, na realidade, maravilhosa e muito variada. De um lado via-se a baía de Nápoles, com as aldeias muito brancas e os laranjais que cobriam toda uma parte da montanha, e, do outro, a baía de Salermo, onde as colinas eram ainda mais íngremes e as aldeias mais raras.

- Richard?..

- Sim...

- Sinto-me muito feliz por saber que ainda gosta um pouco de mim.

- Por que diz isso?

- Preciso imensamente de amor.

Dez anos atrás, "antigamente", Richard Ashley teria beijado e abraçado Cosima. Agora, contudo, era mais velho e experiente. Sua res­posta, em tom ligeiramente irônico, foi acompanhada de um sorriso:

- Eu lhe ofereci o meu amor, uma vez.

- Richard, o amor, então, era menos importante para mim.

- Menos importante do que o quê? - O seu tom de voz tornara-se duro e Cosima estremeceu. - Que um casamento nobre?..

            - Queria ter a certeza de poder comer quando o grande correspon­dente se cansasse da sua amante e se fosse embora.

A sua franqueza colocou-o na defensiva. Já perdera o terreno que es­perara ganhar. Cosima afastou-se e Ashley olhou-a fixamente enquanto lhe falava quase num murmúrio, quase humildemente:

- Você nunca me disse que queria casar.

Cosima sorriu amargamente.

- Que diferença fez não ter dito?

- Fez muita diferença, depois.

Cosima d'Orgagna encolheu os ombros e olhou para a água muito azul da baía.

- Arrependi-me logo, mas já era tarde.

Ashley perdera algo da certeza anterior. A atitude e as palavras de Cosima não pareciam uma simples comédia de sedução representada para proteger o marido. Cosima mostrava-se distante, magoada e fria. Ele curvou-se e apanhou um galho, começando a parti-lo em pedaços com gestos nervosos.

- Julgava que você fosse feliz no casamento...

- Casei-me bem, não esperava mais do que isso.

- E que lhe deu ele, afinal?

Cosima enfrentou-o arrogante e agressiva e falou num tom brin­calhão que o perturbou:

            - Deu-me tudo o que um nobre italiano pode oferecer a sua esposa, exceto amor e fidelidade.

            - Faltou o que mais importância tem.

- Não mais do que aquilo que falta a todas as outras que tomam a decisão que eu tomei. Os homens como o meu marido têm um sentido muito especial da justiça. Exigem o prazer à profissional, a paixão à amante e a discrição à esposa. Não se negam a pagar bem a todas três.

- E, nunca, nunca tentam combinar esses três talentos?... - per­guntou Ashley, sorrindo. - Seria mais econômico.

       - Segundo o meu marido - respondeu Cosima, agora mais alegre - a percentagem de divórcios na América prova a impossibilidade de o conseguir.

- Seu marido é um homem notável.

- Imensamente.

Richard aproximou-se dela e beijou-a carinhosamente. Em seguida, pegando-lhe a mão, encaminhou-a para o portão da capela.

A relva em redor das oliveiras era muito verde e macia. Cosima deitou-se, apoiando a cabeça nas mãos, junto de um muro em ruínas de onde ainda podiam ver a encosta da colina e a baía distante. Richard sen­tou-se ao seu lado. Tentaram falar dos velhos tempos passados em Roma, mas os velhos tempos eram como os velhos beijos: frios e dolorosos. Calaram-se, pois, limitando-se a sentir o calor do sol nos seus corpos e a alegrar-se cada um com a presença do outro - dominados pela nostalgia do paraíso perdido, meio amargo, meio doce.

            Passado algum tempo, após um silêncio reconfortante, Ashley olhou para ela e disse num murmúrio:

            - Cosima, há algo que precisa ser dito.

            - Pode dizer, Richard - respondeu ela, meio adormecida e li­geiramente distante.

- Nestes últimos seis meses tenho andado investigando a vida do seu marido. Vou publicar uma reportagem que poderá ser a causa da sua ruína. O que hoje você viu na sala de estar foi parte do caso.

- Já o sabia, Richard.

            - Quê?!

Ashley empertigou-se e olhou para ela. Cosima sorria placidamente.

- Já o sabia, meu querido Richard. Meu marido está a par de tudo. É por isso que ele vem hoje para Sorrento. Foi por sabê-lo que enviou Elena.

- Quem é Elena?

Cosima riu, divertida com a expressão dele.

- É a secretária do meu marido... e sua amante também, com cer­teza. É muito atraente, não acha?

- É, sim... sem dúvida.

Richard Ashley desviou o olhar, concentrando-o na vista da baía. Que poderia ele perguntar-lhe, agora? Como formular-lhe a pergunta que, uma vez pronunciada, poderia prejudicar tudo - mesmo a curta felicidade daquela última hora?

- Responderei ao que me quer perguntar, caro mio...

- Ao que quero perguntar?

- Sim... já percebi que quer saber as razões que me trouxeram aqui.

- Bem...

Cosima sentou-se e encarou-o.

- Vim... porque o meu marido assim o quis. Estamos na época das eleições. Ele gosta de manter as aparências. Apenas vim um dia antes, por saber que você estava em Sorrento e porque desejava passar umas horas com você.

- Só por isso?

- Que mais poderia eu querer?

- Só pretendo fazer mais uma pergunta. Que quer que eu faça com a reportagem?

- E você, o que quer fazer com ela, caro?

- Publicá-la.

- Então publique-a... meu querido. Ela não me perturba em nada.

Cosima beijou-o e puxou-o para junto de si, para o verde macio e quente da relva. Quando já era hora de partir, Richard Ashley sentia-se feliz como nunca - como jamais se sentira durante os dez últimos anos.

Richard e Cosima entraram no automóvel e, com ele ao volante, dirigiram-se para Sorrento. Não havia o menor movimento na estrada, o que facilitava enormemente. Os turistas e os excursionistas já haviam retomado à cidade. Richard, por estar atrasado e também por se sentir ainda muito excitado, dirigia veloz e perigosamente, entrando nas curvas quase sem frear e lançando-se nas descidas a uma velocidade só possível pela completa ausência de outros veículos na estrada.

Freou ligeiramente quando alcançou a última curva e, em seguida, ao atingir a reta que se prolongava por mais de uma milha, acelerou a fundo e a Isotta saltou para a frente como se fosse impulsionada por uma mola.

Foi então que Cosima soltou um grito angustiado.

A pouca distância, mesmo na frente deles, um homem cambaleava perigosamente sobre uma elevação de terreno à beira da estrada. Quase no mesmo instante, quando os pneus gemiam sob a força dos freios e a

Isorta começava a diminuir a marcha, o homem pareceu lançar-se para a frente e Ashley não conseguiu evitar o choque, que atirou o desgraçado para o meio da estrada.

            Desesperadamente, Ashley fez tudo para dominar o carro, mas só conseguiu detê-lo cinqüenta metros mais adiante. Desceu logo da Isotta, deixando Cosima a soluçar, e correu para o corpo sangrento, que jazia no asfalto.

Quando se aproximou mais e lhe viu o rosto, verificou que se tratava e Enzo Garofano, o informante.

 

O SILÊNCIO era completo. A vida parecia ter paralisado. Não se ouvia um único pássaro e aquele corpo estendido no solo dava à es­trada abandonada e silenciosa uma nota lúgubre, que enchia toda a at­mosfera. A cidade, já a pouca distância, tinha o aspecto de uma pintura de outros tempos e o mar, muito sereno e azul, era como um pano de fun­do. As oliveiras, cinzentas e esverdeadas, pareciam árvores de pesadelo.

Ashley continuava curvado sobre o corpo. As duas figuras, imóveis e quase grotescas, eram como fantoches à espera de que alguém lhes puxasse os cordéis para terem vida.

A brisa levantou-se de novo. As folhas voltaram a agitar-se e os ramos das oliveiras, açoitados suavemente, quebraram o silêncio mortal que se fizera. Richard Ashley curvou-se mais sobre o corpo de Enzo Garofano.

Este estava estendido de costas, numa posição caricata, e todo coberto de sangue. Como tudo parecia indicar, havia morrido de diversas fraturas que o próprio Ashley diagnosticou sem dificuldade. A vinte metros de distância, na direção oposta, o chapéu dele e a pasta jaziam à beira da estrada.

À beira da estrada...

            Ashley olhou para o ponto onde primeiramente vira Garofano a cambalear. A estrada era marginada naquele local, embora só agora o notasse, por uma elevação de terreno de uns três metros de altura, na qual cresciam algumas oliveiras, cujos ramos se debruçavam sobre a es­trada.

Ashley não via qualquer caminho que tivesse permitido o acesso de Garofano ao local. Todo aquele terreno, era evidente, pertencia a uma propriedade particular. Na realidade, o único acesso era a própria es­trada e, mesmo dela, teria sido quase impossível subir à elevação, que caía a pique e não possuía ali quaisquer saliências que servissem de apoio ou de degrau natural.

Era também evidente que Garofano não se entretivera a passear pela estrada ou a fazer alpinismo àquela distância de Sorrento. Tornava-se claro, agora que o jornalista visualizava de novo o que se havia passado, que alguém o empurrara do alto da elevação e que, com o impulso, ele fora atirado para o meio da estrada e cambaleara durante um ou dois segundos já sobre o asfalto.

Perturbado, impressionado, Ashley levantou-se e foi buscar o chapéu e a pasta. O chapéu estava sujo e manchado de algo oleoso. Sem saber o que fazia, Ashley tentou limpá-lo, esfregando-o na sua própria manga. A pasta não sofrera nem um arranhão, mas, ao abri-la, encon­trou-a completamente vazia.

Ashley olhou para cima, tentando localizar o ponto de onde Ga­rofano caíra. Reparou em algumas árvores bastante pequenas que ro­deavam outra maior, com o tronco muito grosso e os ramos estranhamen­te torcidos. A Polícia desejaria conhecer todos aqueles pormenores. A Polícia viria ao local, sem dúvida, para descobrir a pista dos homens que haviam assassinado aquele reles e furtivo informante.

Só então é que ele percebeu o que poderia suceder.

O homem que seria acusado de ter assassinado Enzo Garofano seria ele próprio: Richard Ashley! Ameaçara fazê-lo, na sala do Hotel Ca­ravino, e existiam testemunhas para o provar. Isso passara-se apenas umas três horas antes da morte do informante. A sua presença ali na es­trada fora acidental, era verdade, mas só havia uma pessoa que podia narrar o que de fato acontecera... uma mulher cujo testemunho seria o de uma amante apaixonada, o de uma esposa infiel.

Cosima podia até ter conspirado contra ele e - quem sabe? - par­ticipado nos preparativos do assassínio.

Aquele pensamento era horrível, mas cruzou-lhe o espírito como se fora de uma lógica brutal. Quem mais poderia saber onde eles se encon­travam? Fora Cosima quem sugerira aquele caminho, aquele passeio até ao ponto mais alto de Sorrento. De que outra forma, senão por inter­médio dela, poderiam os homens que haviam assassinado Garofano ter sabido que a potente Isotta, passaria por aquele local?

Cosima soltara um grito de terror e, agora, estava toda encolhida no assento do automóvel, a soluçar de emoção. Ela não esperava que aquilo sucedesse. Fizera apenas o que lhe haviam dito. Levara-o para as mon­tanhas, conservara-o num local deserto durante algum tempo e, em seguida, fizera-o regressar pela estrada em que Garofano seria lançado sobre o carro que ela lhe pedira que dirigisse. Cosima não soubera dos planos do crime, com certeza, embora tivesse sua parcela de culpa no caso.

Motivo? Para proteger o marido, a fim de manter a posição social e a fortuna que desejara ao casar-se. Mas o prelúdio? O amor à sombra das oliveiras, o passado amplamente evocado, a ternura e os beijos? Era verdade que também procedera assim antigamente, para depois se entregar ao Duque de Orgagna. Se o fizera então, que motivo a impediria de o fazer de novo, agora que as razões eram muito mais fortes? Nada era mais agradável do que possuir um título de nobreza e uma fortuna no banco para quando chegasse o outono e a temporada mais animada de Roma.

Richard Ashley voltou a aproximar-se do corpo, sentindo-se in­vadido por uma terrível náusea. Era necessário pensar nos vários aspectos daquela situação e ser prático. Teria de meter o corpo no automóvel – o automóvel de Cosima - e transportá-lo para a Questura. Teria de pres­tar declarações. Ambos seriam interrogados. Que poderia ele contar à Polícia?

Que haviam sido amantes dez anos antes e que tinham ido passar uma hora debaixo das oliveiras de Il Deserto? Que estava excitado, como qualquer jovem apaixonado, e que dirigira a Isotta a uma velocidade ex­cessiva? Que aquele sujeito fora lançado sob o automóvel por uns amigos do marido daquela senhora? Que era verdade, sim, que ameaçara a vítima num local público; que a espancara... mas que isto era diferente... que se tratava de uma armadilha para "liquidar" um inocente defensor da verdade?

Não! Teriam de contar uma história muito diferente. Diriam a ver­dade, sim, pois uma mentira talvez viesse a ser descoberta e incriminá­-los-ia ainda mais, mas não poderiam contar toda a verdade. Era neces­sário que ambos dissessem o mesmo e, para isso, precisava de esconder de Cosima as suas suspeitas. Teria de representar o papel de amante e amigo protetor. Poderia mesmo tentar servir-se dela tal como os outros a haviam usado contra ele.

Richard Ashley sabia que possuía um trunfo de peso. As eleições aconteceriam breve. Orgagna teria de manter as aparências. Um escân­dalo entre sua esposa e um antigo amante ser-lhe-ia bastante prejudicial. Se Orgagna não sentia escrúpulos em cometer um assassínio, não he­sitaria também em dizer uma ou duas mentiras. Orgagna gozava da maior influência naquele país, onde tal atributo contava mais do que a integridade de caráter. Seria amargamente irônico ele pretender servir-se dela para atacar o homem que quisera arruiná-lo.

O plano que começara a formar na mente era muito débil e dava-lhe poucas esperanças, mas encorajou-o a regressar até junto de Cosima, para a consolar. Em seguida, pôs o automóvel em marcha a fim de ir buscar o corpo de Garofano e instalá-lo no banco traseiro.

Depois, com todo o cuidado, Richard Ashley explicou a Cosima o que planejara. Esta estava absolutamente desesperada, pálida e trêmula, mas ouviu atentamente tudo o que o jornalista lhe disse e pareceu com­preender o que ele queria que ela fizesse e dissesse.

- ...Voltamos para Sorrento. Vou subir a capota e fechar as ja­nelas. Irei primeiramente ao hotel, para deixar você lá, e, em seguida, à Questura. Entregarei lá o carro e o corpo e contarei o que se passou.           

- Mas a Polícia desejará falar comigo também.

- Com toda a certeza, mas os policiais são perfeitos cavalheiros. Compreenderão que a Duquesa de Orgagna é uma senhora muito sen­sível e frágil e que se encontra profundamente chocada. Farão os seus in­terrogatórios mais tarde, quando Sua Excelência estiver mais descansada        e se encontrar na presença do marido.

- Que é que você vai dizer a eles?

- A verdade. Dir-lhes-ei que íamos com muita velocidade. Não vale a pena negá-lo. As marcas dos pneus e o estado em que o corpo ficou são a prova indiscutível do fato. A minha desculpa para a velocidade será que você estava atrasada para um jantar, o que é verdade. Dir-lhes-ei que não havia outros carros no caminho, o que também é verdade. Explicarei como vimos Garofano cambalear à beira da estrada, como ele pareceu saltar para diante do carro e como, finalmente, o trouxe para o auto­móvel e o transportamos depois para a cidade. Nada mais... não pre­cisaremos de outras explicações.

- Como é que vai explicar... nós?

- Somos velhos amigos. Diremos à Polícia que também sou amigo do seu marido e que você queria mostrar-me as belezas da paisagem... o que é verdade, pelo menos em parte... e evita que mintamos. Compreen­de? Não nos convém mentir. Nem sequer devemos rechear a nossa história de pormenores complicados. Se o fizermos, acabaremos por dizer coisas diferentes e encontrar-nos-emos em dificuldades.

- Eu... eu compreendo.

- O que interessa é saber se o seu marido compreenderá. Acha que sera capaz de confirmar esta história? Será que ele estará disposto a dizer que eu sou um velho amigo da família, com todo o direito ao prazer da

sua companhia?

     Cosima sorriu.

- Não terá outro remédio, não é mesmo?

- Não terá - respondeu Ashley secamente, ao mesmo tempo que tava uma volta à chave da ignição e punha o motor a funcionar. Cosima tocou-lhe na mão.         

- Mas, Richard, há uma coisa...

- Sim?

- Como vai explicar à Policia o que aconteceu?

- Explicar o quê?

Cosima apontou para o local de onde Garofano fora lançado.

- Como explicar que ele se encontrava ali em cima... e até a queda também? Tudo isto parece tão irreal e estúpido! Julgarão que inventamos uma história para justificar a velocidade com que vínhamos.

- Ouça-me, querida! - exclamou Ashley, voltando-se para ela bruscamente. - Diremos exatamente o que combinamos, visto que, apesar de parecer ridículo, é essa a pura verdade.

Cosima sacudiu a cabeça.

- Você não conhece os napolitanos ou, pelo menos, não conhece a Polícia napolitana. O seu maior desejo é transformar tudo numa ópera trágica. A verdade não é tão importante para eles como o que parece ser a verdade. Isto torna tudo mais fácil para a Policia e também mais fácil para nós. Temos de os ajudar a transformar este desastre em algo mais conveniente para eles: um simples acidente sem complicações, nada que permita aos seus amigos jornalistas escreverem reportagens sensacionais.

- Que quer que eu lhes diga, então, Cosima?

- Bem... apenas que este homem vinha andando pela estrada e não viu o automóvel. Você tocou a buzina, ele saltou para o outro lado e não foi possível evitar o atropelamento. Uma história muito simples que não

preocupa quem quer que seja e que ninguém pode contestar. Um aciden­te... em resumo. Não acha melhor assim?

- Não - disse Ashley friamente. - Não acho.

- Mas, Richard...

- Contaremos tudo como se passou.

- Você não compreende... não pode saber como esta gente pensa.          

Richard Ashley nem sequer lhe respondeu. Percebia perfeitamente aonde ela queria chegar. Matar um homem numa reta sem outros veículos a dificultarem o tráfego é homicídio em qualquer código e em qual­quer país... especialmente existindo um motivo que poderia justificar um assassínio. Ele sabia agora, sem a menor dúvida, que Cosima o atraiçoara.

            Devagar, o mais devagar possivel, Ashley conduziu a Isotta para Sorrento.

O Capitão Eduardo Granforte era um homem corpulento e quase obeso, com um rosto inocente e prazenteiro, uma voz de veludo e uns olhos muito amáveis. Granforte gostava do seu trabalho, por ser fácil e agradável. O seu único desejo era que assim continuasse. Todos o achavam um homem cortês, que sabia lidar com estrangeiros e, especial­mente, com representantes da imprensa estrangeira. O Capitão auxiliou Ashley nas primeiras fases do interrogatório com uma rapidez e uma eficiência que o surpreenderam.

Isotta foi lavada e limpa rapidamente na garagem da Questura e o corpo de Garofano depositado numa cela da prisão, à espera da autópsia. Uma chamada telefônica para o hotel fez com que viessem logo novas roupas para Ashley, cuja camisa e calças estavam manchadas de san­gue. O Capitão Granforte ofereceu-lhe café e cigarros, e o interrogató­rio prosseguiu depois com uma amabilidade inesperada.

- ... O automóvel pertence a Sua Excelência a Duquesa de Orgag­na, não é verdade?

- Sim.

- Foi ela, então, quem lhe pediu que o conduzisse?

- Foi, sim.

- O senhor possui uma carteira de habilitação internacional, es­pero...

- Sim, mas deixei-a no hotel...

O Capitão Granforte sorriu e fez um gesto condescendente com a mão.

- Basta que a possua, signore. Não tencionamos incomodá-lo com ninharias, a não ser que seja absolutamente necessário, claro.

            - É muito amável.   

- Prego, signore! - O Capitão inclinou-se, agradecendo. - Muito bem, foram então passear. Regressavam ao hotel com alguma pressa visto que Sua Excelência tinha um jantar...

- Exatamente.

- A que velocidade estava no momento do acidente?

Ashley encolheu os ombros.

- Não sei dizer-lhe. Não olhei para o velocímetro, mas estávamos correndo bastante.

- Essa estrada é tão cheia de curvas que não podiam estar correndo tanto, com certeza.

Ashley compreendeu imediatamente a intenção do policial. Este es­tava sendo muito cuidadoso. Orgagna era um homem bastante influente, o gênero de homem que poderia trazer grandes benefícios a um capitão de Polícia da província, desde que este agisse com tato e cuidado.

- Tem razão... as curvas me forçaram a diminuir a marcha do carro.

- Muito bem... ia então a uma velocidade moderada nesse trecho da estrada. Que sucedeu depois?

- Sua Excelência gritou. Fiquei ligeiramente perplexo quando vi um homem cambalear à beira da estrada, especialmente por não o ter visto antes. Percebi que fora lançado da elevação de terreno que margina a estrada e que, perdendo o equilibrio, viera parar quase no meio do caminho, sem que eu pudesse evitar o choque. Freei, mas atropelei-o. Parei o carro, corri para o homem e encontrei-o morto. Meti-o no carro e trouxe-o para aqui. E... é tudo.

O Capitão franziu o sobrolho. Seus olhos amáveis enevoaram-se. Os dedos tamborilaram no tampo da mesa. Seguiu-se um breve silêncio e, depois, olhando para o teto, voltou a falar:

- As circunstâncias, como as descreve, parecem-me um tanto anor­mais.

- Tem razão.

O Capitão olhou-o com curiosidade.

- Terá pensado nisso no momento do acidente?

- No momento, não, visto que estava demasiado ocupado com o domínio do automóvel. Não tive tempo para pensar nas implicações do caso.

- E depois?

- Depois, quando fui examinar o corpo, olhei bem para o único local de onde ele poderia ter sido empurrado. Pareceu-me tratar-se de uma propriedade particular. Não vi caminho algum, nem sequer pos­sibilidade de alguém poder subir da estrada para a elevação. Não con­segui compreender como ele se encontrava ali, o que fazia tão perto da borda e como caiu.

- Terá procurado achar uma resposta para essas incógnitas?

Ashley encolheu os ombros. Não se encontrava no seu estado normal e começava a sentir os efeitos daquela desagradável experiência.

            - Não, tinha muitas outras coisas em que pensar. Garofano estava morto. As minhas deduções já não o poderiam auxiliar.

            - Garofano! - o Capitão exclamou o nome com enorme surpresa. - Conhecia o homem, então? Conhecia-o de nome?

Ashley estremeceu. Aquele fora o seu primeiro erro, e já era tarde para o corrigir. Tentou, pois, dar um tom diferente à sua resposta.

- Conhecia-o, sim. Tive negócios com ele.

- Que espécie de negócios?

- Garofano costumava vender-me informações para o jornal.

- Quando é que o viu pela última vez, antes do acidente?

- Às quatro e meia da tarde de hoje, no Hotel Caravino.

- Pouco antes de partir para o passeio com Sua Excelência?

- Sim.

O Capitão Granforte olhou para o relógio de pulso. Marcava vinte horas menos um quarto. Já era quase hora do jantar; demasiado tarde, portanto, para um homem continuar no trabalho. Ainda precisava de fazer mais perguntas a este lacônico americano, mas teriam de ficar para dia seguinte. Era conveniente descobrir alguma coisa antes de pros­seguir com o interrogatório: a situação familiar da Duquesa de Orgagna e seu marido; as relações do americano com o casal; o passado de Garofano; a natureza das informações que ele vendera ao correspondente estrangeiro; como fora parar no cimo daquela elevação de terreno e como caíra. Qualquer destas perguntas o poderia conduzir a um lago de águas turvas. Preferia, pois, fazer algumas investigações discretas antes de pros­seguir. Era muito possível que encontrasse areias movediças ou profun­didades demasiado inesperadas para um oficial ambicioso em busca de promoção...

Granforte sorriu a Ashley e procurou uma posição mais confortável na cadeira.

- Teve uma tarde muito desagradável e exaustiva, meu- amigo.

- Muito.

- Ficará em Sorrento alguns dias, não é verdade?

- Sem dúvida.

- Não partirá do Hotel Caravino sem me informar, pois não?

- Perfeitamente.

- Então permita-me que lhe ofereça um .conhaque antes de irmos jantar.

- Muito obrigado. Uma bebida me faria bem.

Os dois levantaram-se e, no próprio escritório da Questura, Richard Ashley bebeu um conhaque com o homem que talvez viesse ainda a provocar a sua condenação. O Capitão Eduardo Granforte continuou a sorrir, não parando de falar de mulheres. As mulheres eram um assunto que lhe agradava imensamente.

Ashley voltou para o Hotel Caravino vinte minutos depois. Pediu na Recepção que lhe entregassem a chave do quarto e o manuscrito que mandara guardar no cofre, e também que lhe enviassem uma garrafa de uísque. O empregado olhou-o de uma forma bastante estranha, mas nada disse. Ao encaminhar-se para o elevador, Ashley espreitou para dentro do bar e notou a presença de Elena Carrese, entretida em animada conversa com um elegante jovem que ele não conhecia, mas não viu Cosima.

Quando alcançou o quarto, que estava situado no terceiro andar, pensou em telefonar a Cosima para lhe contar como se passara o encontro Com a Polícia, mas não o fez por pensar que seria melhor que fosse ela a dar o próximo passo. Em face do que sucedera durante a tarde, se acer­tara nas suas deduções, Cosima tinha maior habilidade para a intriga do que ele.

Richard Ashley sentia o corpo dorido, como se houvesse sido espan­cado. Resolveu, por isso, tomar um banho quente antes de pensar ma­duramente nos acontecimentos do dia e nos planos para o futuro. O calor do vapor da água ajudou-o a sentir-se melhor, a afastar a tensão que o dominava desde o momento em que se dera o acidente. Deitado na banheira, deliciando-se com aqueles minutos de paz, procurou analisar o resultado daquele seu quadragésimo aniversário.

O dia fora um perfeito fracasso.

A sua reportagem ficara em nada, de momento, devido a Garofano se ter recusado a vender-lhe as fotocópias pelo preço combinado. A mulher que ele amava atraiçoara-o e, muito sorridente e carinhosa, con­duzira-o a uma armadilha. Matara um homem e seria provavelmente condenado pela lei italiana, que era muito severa em casos desta natu­reza.

A notícia do acidente já devia ter corrido pela cidade. A sua discus­são com Garofano também já se tomara pública, com toda a certeza. O Capitão Granforte não tardaria a ser posto ao corrente do que se passara e, então, a sua situação tornar-se-ia muito mais difícil.

Seria preso, talvez condenado. Para a justiça italiana, o motorista, em princípio, é o culpado. Além disso, os seus processos de agir eram ex­tremamente lentos... Seria preso e o caso arrastar-se-ia até depois das eleições... Só então é que o libertariam... talvez. Orgagna já teria um lugar no Governo e o seu jornal um pedido da Embaixada Americana para o transferirem da Itália como persona non grata.

O plano fora bem arquitetado, não restavam dúvidas... e o homem que o imaginara fora Vittorio, Duque de Orgagna.

Sempre que pensava em Orgagna, o que sucedia cada vez com mais frequência, não podia deixar de o admirar e de o respeitar pela sua in­teligência e oportunismo. Só alguém com muita coragem e uma con­fiança ilimitada nos seus próprios recursos é que teria podido ver, duran­te meses e meses, um homem amontoar provas contra a sua honestidade sem tentar detê-lo. Só uma pessoa com nervos de aço teria permitido que ele reunisse toóas as informações e a documentação necessária para com­pletar a acusação, sabendo esperar pacientemente até poder destruir todos esses meses de trabalho no momento culminante.

Fora isso que Orgagna fizera. Mas não se tratava apenas de nervos e coragem. Orgagna era muito sutil e habilidoso - contando com os milhares de anos de diplomacia e intriga que haviam formado a Itália atual. Movera suas peças em estratégia após estratégia, até dominar inteiramente o tabuleiro e o adversário - um rei preto rodeado de peões que lhe garantiam a vitória final: Cosima, Elena Carrese, George Ar­lequim e o Capitão Granforte.

A vítima, que era ele próprio, não podia deixar de reconhecer amar­gamente tão grande talento e brilho técnico num adversário como o Duque de Orgagna.

Ashley decidiu-se a sair do banho e, depois de se barbear, vestiu-se com mais cuidado do que habitualmente, sorrindo em frente do espelho. Um homem que vai assistir ao seu próprio funeral gosta de se vestir bem para essa ocasião.

Alguém lhe bateu à porta do quarto.

- Avanti - disse Ashley, e um criado entrou com uma garrafa de uísque, copos e um balde de gelo. O jornalista deu-lhe cem liras de gor­jeta e disse-lhe que o deixasse só. Em seguida, ainda a sorrir amargamen­te serviu-se de uma boa dose da reconfortante bebida e sentou-se à ja­nela, pensando no problema que teria de enfrentar. 

O telefone tocou e ele atendeu, cuidadosamente:

- Pronto! Fala Richard Ashley.

- Richard? - perguntou Cosima, falando com a maior des­preocupação. - Sou eu... queria saber o que se passou na Questura.

- Tudo correu bem, até agora - informou ele. - Contei o que aconteceu. O Capitão desejará ver-me de novo, talvez amanhã. Nada mais, por enquanto.

- Ótimo! - exclamou ela com uma amabilidade fria e calculada.

- Alegro-me muito. Ouça, Richard...

- Diga.

- Meu marido agradece muito você ter se ocupado deste assunto desagradável. Ele gostaria que você viesse jantar conosco aqui em nossa suíte.

- Ele gostaria?! - Exclamou Richard, extraordinariamente ad­mirado pelo convite.

- Já sabia que aceitaria... Ficamos ambos muito contentes e po­deremos assim lhe agradecer devidamente. Digamos, então, dentro de vinte minutos... está bem?

- Claro... claro...

- Arrivederci - disse Cosima, desligando.

Ashley, sentindo-se estúpido, ficou a olliar para o telefone, perplexo com aquele convite. Em seguida, ainda absorvido por estranhos pen­samentos, dirigiu-se para o terraço do quarto e ficou a contemplar a água azul da baía durante alguns minutos.

O mar estava muito calmo, a noite quente e sem vento algum, mas Ashley estremeceu como se alguém caminhasse sobre a sua cova. Ainda não morrera, claro, mas os coveiros já haviam começado a cavar-lhe a sepultura.

O fato de pensar na morte trouxe-lhe à memória Enzo Garofano, que morrera nesse dia e seria enterrado e esquecido no dia seguinte. O in­formante fora apenas um homem assustado e furtivo, em busca do lucro fácil. Mas, apesar da sua insignificância, Garofano poderia ter provo­cado um verdadeiro caos no Governo italiano só por estar de posse das fotocópias de seis cartas particulares escritas por Orgagna a colegas de negócios e correligionários.

Como conseguira ele obtê-las? Ashley lhe perguntara, dutante o primeiro encontro que tivera com ele, mas Garofano esquivara-se a res­ponder, dizendo apenas que possuía amigos a serviço do grande mag­nata. Fora por intermédio desses amigos que conseguira subtrair as car­tas durante alguns dias para as mostrar a Ashley e fotografá-las, tendo-as devolvido depOis aos fichários do Duque de Orgagna. Ashley aceitara esta explicação como a única possível. A verdade era que lhe haviam interes­sado muito menos as circunstâncias em que os documentos tinham sido obtidos do que os próprios documentos, visto que eles provavam con­clusivamente a negociação de um empréstimo do Governo, na importân­cia de dois milhões de dólares, para estabelecer uma indústria têxtil no Sul, e o desvio fraudulento de noventa por cento dos respectivos fundos para as fábricas de Orgagna, no Norte.

Agora, contudo, essas circunstâncias eram de importância vital. Garofano entrara em contato com ele em Nápoles e combinara um en­contro em Sorrento. Mostrara-lhe as cartas originais e não parecia na­tural que elas tivessem vindo de Roma. Era, pois, plausível que se encon­trassem na villa de verão que Orgagna possuía ali perto. Os tais amigos, por conseguinte, talvez estivessem em Sorrento ou então tinham acesso fácil à casa e aos fichários.

Qual seria a base de ligação entre Garofano e esses seus amigos, os quais, era o mais provável, seriam talvez uma única pessoa? Se essa pes­soa fosse um homem, então a base seria apenas o lucro. Se fosse uma mulher, o que era bem possível, outros fatores, além do lucro, poderiam constituir um motivo aceitável: o amor, o ciúme, a vingança. Mas, com Garofano morto, assassinado por alguém sob as ordens de Orgagna, não haveria lucro... e, portanto...

Portanto, Richard Ashley teria de encontrar a tal pessoa e tentar negociar diretamente com ela. Existiam dois mil dólares em notas americanas nos cofres da American Express à espera de quem os quisesse aceitar. Os dólares constituíam sempre uma isca excelente, mesmo para peixes grandes, desde que o anzol fosse lançado com muito tato e opor­tunidade.

Ashley olhava distraidamente para as luzes dos barcos de recreio que se encontravam na baía. Uma nova dúvida lhe assaltou o espírito para que se preocupava com assunto tão desagradável? Que razões o levariam, aos quarenta anos de idade, a perder o seu tempo e mesmo a arriscar a vida naquele desprezível negócio de intrigas e corrupção? Seria por ter tanto respeito pela verdade? Seria, puramente, por gostar tanto da profissão que escolhera? Os românticos dizem que o jornalismo é uma profissão muito nobre. Os cínicos afirmam que não é mais do que uma especulação sórdida à volta das misérias terrenas. O que sucede, na realidade, é que o jornalismo tem ao seu dispor um extraordinário e vasto meio de comunicação, pelo qual, pura ou adulterada, a verdade é trans­mitida diariamente a milhões de pessoas em todo o mundo.

Não se tratava de toda a verdade. Isso nunca podia ser. Mas, mesmo assim, a verdade parcial era melhor do que a conspiração silenciosa, em que a corrupção floresce com mais vigor.

A verdade, porém, não bastava para conservar um homem na mes­ma ocupação durante vinte anos, nem para lhe manter a curiosidade, a paixão e a ambição pela sua repetida e renovada conquista.

A vaidade desse homem tinha de ser alimentada pelos grandes tí­tulos das reportagens e por missões especiais. O seu orgulho precisava ser estimulado pela maior das ilusões: a ilusão de que o homem que relata as notícias é quem as cria. A sua sensualidade necessitava de ser acalmada com doses de vida confortável entre pessoas cujo viver ele observava mas nunca compartilhava verdadeiramente. E, acima de tudo, devia ter sem­pre um fim em vista: a reportagem sensacional! Era, enfim, como se a queda de um governo e o caos resultante fossem mais importantes, na es­cala humana, do que o nascimento de uma criança ou a oração rezada quando morre um velho...

Aqueles pensamentos estavam longe de reconfortar Richard Ashley. Fizera quarenta anos e ainda não se cansara de perseguir a maior das ilusões. Já era demasiado idoso para voltar atrás, teria de continuar... teria de provar o fruto proibido, embora soubesse que ele lhe deixaria um gosto amargo na boca.

O jornalista consultou o relógio. Ainda faltavam dez minutos para a hora do jantar... tempo suficiente para engolir outra bebida.

 

         O jantar oferecido por Orgagna foi tão íntimo e tão cuidadosa­mente organizado como uma conferência de imprensa. Quando Ashley chegou aos aposentos do Duque, na hora exata que Cosima lhe indicara, a porta foi-lhe aberta por um criado de casaco que o conduziu a uma sala tão grande quanto um salão de dança, com um enorme terraço, que proporcionava uma vista admirável da baía, de Nápoles e dos gasômetros perto de Pugliano.

Uma longa mesa, ricamente decorada, fora colocada em frente da janela, e um maître d’hôtel, muito elegante e de aspecto severo, dava or­dens secas e incisivas a dois criados enquanto vigiava, com exagerada atenção, uma grande quantidade de travessas quentes e apetitosamente recheadas. Ashley notou, então, que os outros comensais eram o próprio Orgagna, Arlequim, Elena Carrese, o jovem que ele vira conversando com ela quando chegara ao hotel e Cosima. Esta veio ao seu encontro, não com o ar despreocupado e amigável com que o tratara durante a tar­de, mas como a anfitriã de um salão ducal - o seu corpo coberto de ouro, o rosto sob uma máscara sorridente, seu olhar revelando bem a ironia que lhe ia na alma.

            - Meu caro Richard, você foi muito amável em aceitar o nosso con­vite.

            - O prazer é meu, Cosima.

Richard Ashley pegou-lhe a mão e curvou-se para a beijar, notando então a frieza daquele contacto, a falta de afeto e a indiferença com que ela reagia. Orgagna aproximou-se do jornalista, por sua vez: alto, aquilino, de olhar irônico e cabelos grisalhos e com o encanto profissional do diplomata.

- Senhor Ashley, já nos conhecemos, creio. Tive o prazer de ser en­trevistado para o seu jornal. Alegro-me por vê-lo aqui como meu con­vidado. Devo-lhe um grande favor.

- Vossa Excelência exagera - disse Ashley, friamente. Se eles queriam representar a comédia daquela forma, uma comédia à moda an­tiga, com todas as delicadezas de outros tempos, não seria ele quem os desiludiria.

Orgagna deu-lhe o. braço e conduziu-o à presença dos outros con­vidados.

- Julgo que já conhece Arlequim...

- Perfeitamente - respondeu o jornalista.

George Arlequim olhou para Ashley com uma expressão preocupada e especulativa. 

- Lamento muito o acidente que sofreu.

- Não teve grande importância - disse Ashley com um sorriso. - Riscos do ofício... - Encolheu os ombros com indiferença e aproximou­se de Elena Carrese e do jovem que lhe fazia companhia. O aspecto da mulher mudara desde que a vira durante a tarde. O seu olhar mostrava­se agora horrível, sem a menor dúvida. Era também evidente que estivera chorando, fato que nem a exagerada maquilagem conseguia esconder. A mão que segurava o cálice tremia e o líquido ameaçava entornar. Or­gagna fez as apresentações num tom de voz ligeiramente ríspido e frio.

-A minha secretária, Elena Carrese.

- Tullio Riccioli, um dos mais prometedores artistas da nova geração romana.

            - Signore.

            O jovem estendeu a mão, mal olhando para Ashley, e voltou-se de novo para Elena Carrese. Orgagna encaminhou o seu convidado para junto de Cosima e de Arlequim. Um criado serviu-Ihes um coquetel de champanha e eles ficaram a conversar, esperando uma oportunidade para se referirem ao assunto que mais lhes interessava.

            Foi Ashley quem deu o desejado rumo à conversa, fazendo-lhes uma declaração sobre o caso:

            - Trouxe o carro comigo. A Polícia teve a gentileza de o lavar. As chaves estão na Recepção.

- O senhor é que foi bastante gentil - disse Orgagna calorosamen­te. - Nunca esquecerei que poupou a minha esposa o aborrecimento de uma entrevista com a Polícia. Cosima estava muito chocada quando aqui chegou, mas já se sente melhor. Não e verdade, cara?

Cosima sorriu com diplomacia.

- Muito melhor. Teve... teve alguma dificuldade, Richard?

- Não. O Capitão foi muito amável.

- Aceitou, então, a sua explicação do acidente? - perguntou Or­gagna, incisivamente, mas sem mostrar grande ansiedade.

- Aceitou, sim... mas não creio que tenha acreditado.

- Diga-nos... por que teve essa impressão? - A voz de Orgagna revelava agora um certo interesse e o seu olhar adquirira um novo brilho, que Ashley não lhe conhecia.

            Cosima nada disse. Limitou-se a olhar para ambos sob uma tensão evidente. George Arlequim ouvia-os com aparente desinteresse.

            A resposta de Ashley foi demasiado direta. A paciência já começava a faltar-lhe.

- Pareceu-me que o Capitão Granforte encontrou algo de sinistro na minha história, sobre o homem ter caído da elevação que margina a estrada no ponto onde se deu o acidente. Fiquei convencido de que ten­ciona fazer algumas investigações sobre o caso. Insistiu muito em que eu não deveria sair de Sorrento.

- Acha... acha que ele desejará ver-me, Richard?

- É provável que sim.

Orgagna não pareceu importar-se muito com aquela idéia. Falou alegremente.

- Que importância tem isso, cara? É natural que queira ver você. Trata-se de pura rotina. Só terá de lhe narrar o que sucedeu. Ele nada mais fará do que ouvir e mandar tirar vinte cópias das suas declarações para todos os burocratas que as queiram ler. É o seu trabalho... e você não deve permitir que interfira com a sua digestão.

            - Sou estúpida em preocupar-me, já sei. - Cosima sorriu, ligei­ramente embaraçada, e saboreou a bebida que tinha na mão.

Orgagna ofereceu um cigarro a Ashley. Arlequim acendeu-o. Os seus olhos pálidos pareciam querer formular-lhe uma infinidade de per­guntas, mas a que fez, de fato, era a mais difícil de todas:

            - E você, Ashley, pensa que houve algo de sinistro no acidente?

            A pergunta apanhou-o desprevenido, mas ele recompôs-se depressa.

Rogando em pensamento uma praga ao agente, sorriu, a custo, enquanto se esquivava de responder-lhe concretamente.

            - Os fatos já me bastam, por ora. Prefiro deixar as especulações aos entendidos.

            - Muito sensato - comentou George Arlequim.

- Tudo é estranho e por vezes sinistro - disse Orgagna suavemente - para um homem que se encontra fora do seu país. A primeira vez que fui a Londres, lembro-me como se fosse hoje, senti-me imensamente oprimido com o repicar do Big Ben. Pareceu-me um repique a anunciar qualquer tragédia. Só mais tarde é que percebi que se tratava de um som amigo e reconfortante. Passa-se o mesmo com o Sr. Ashley. Não é capaz, neste momento, de considerar o que lhe sucedeu como um acidente nor­mal. Foi com certeza uma experiência muito desagradável. Ainda tem o que aconteceu bem presente na memória, e não é de admirar que o veja como um terrlve pesadelo.

- Eu referi-me ao que o Capitão pensou e não à minha opinião sobre o assunto.

Ashley já estava cansado de tantas sutilezas diplomáticas. O egoísmo calculado e frio daquela gente chocava-o profundamente. Fora um homem que morrera, e não um verme ou um inseto, um homem não muito honesto nem merecedor de consideração, era verdade, mas um homem como muitos, com tanto direito à vida como os outros. Não du­vidava de que fora Orgagna quem causara a sua morte, e os outros ali presentes pareciam aprovar o sucedido, tornando-se tão culpados quanto ele. Apesar disso, continuavam a falar, a gesticular, como atores num palco, procurando obter qualquer informação que os reconfortasse no seu embaraço. O que ele, Richard Ashley, desejava era mandá-los para o diabo e ir-se embora daquela desagradável atmosfera, Mas, infelizmente, também precisava de informações e, por isso, permanecia ali, de pé, representando aquela cínica comédia e estudando os seus rostos e as suas maneiras para tentar descobrir algo que viesse a ser-lhe útil. Cosima foi a primeira a oferecer-lhe um pequeno indício do que ele esperava, ao en­cará-lo firmemente e ao dizer-lhe com certa brusquidão:

- Bem que eu lhe avisei do que poderia suceder, Richard. Os napolitanos transformam qualquer pequeno drama numa peça de teatro. Você teria feito melhor se houvesse simplificado tudo. Poderia ter dito que o homem ia andando pela estrada, que você tocou a buzina e tentou desviar, mas em vão... Nada mais simples e natural.

- Demasiado simples, Cosima.

- Por que, Richard?

- Por quê? - repetiu Ashley, sentindo forte desejo de dizer a ver­dade, de explicar o que o seu raciocínio lhe fazia ver: "Demasiado sim­ples! Eu poderia ser acusado de um crime de morte e o seu precioso marido ficaria à solta e muito contente por me ver em apuros. Por quê? Apenas por saber que a minha única esperança está em conseguir que o Capitão Granforte examine o terreno e procure indícios de alguma luta ou da presença do homem ou homens que empurraram Garofano. Por causa de..." Ashley, entretanto, não teve coragem suficiente para con­tinuar daquele modo e explicou pacientemente:

- O fato de matar um homem numa reta de uma milha de com­primento indica direção perigosa em qualquer país do mundo. Essa acusaçao, Por si só, já seria grave. Na Itália, porém, seria ainda mais séria e poderia mesmo resultar numa condenação por homicídio. Será bom para nós ambos - Richard acentuou a palavra "ambos" - se o pudermos evitar.

            Os olhos pálidos de Arlequim iluminaram-se de um súbito interesse. Orgagna tornou-se pensativo, mas depois assentiu firmemente.

- É claro que o Sr. Ashley tem razão, Cosima. Além disso, de qual­quer modo, é melhor não adulterar a verdade, mesmo que isso pareça conveniente.

Seguiu-se uma pausa, como se uma aragem gelada tivesse passado pela sala, agitando a superfície polida da conversa, entrelaçando con­fusamente as raízes dos motivos e contramotivos que jaziam sob a aparente futilidade dessa conversa.

Depois, uma vez mais, Orgagna tomou o comando da situação, fazendo um sinal ao maître d'hôtel e dando início à cerimônia do jantar.

Os criados tomaram as suas posições em volta da mesa. Orgagna e Cosima sentaram-se às cabeceiras. Ashley e Arlequim ao lado um do outro, em frente de Elena Carrese e do jovem artista, que ficaram de cos­tas voltadas para a janela.

Os vinhos e a comida foram servidos e tudo, no aspecto da mesa e dos comensais, parecia indicar que se tratava de uma reunião de ricos personagens internacionais que se haviam juntado prazenteiramente na Terra das Sereias. Arlequim começou a conversar com Orgagna, e Tumo falou das exposições em Roma e das tendências da pintura moderna italiana. Ashley ficou com a tarefa de entreter a sua antiga amante e a outra mulher que a suplantara na cama de seu marido.

As tentativas do jornalista não conseguiram, todavia, coroar-se de êxito. As respostas de Elena às suas primeiras palavras foram bruscas e frias. E Cosima lutou em vão para manter o ar despreocupado de uma es­posa virtuosa.

A conversa morreu pouco depois, logo que o peixe foi servido, e pouco à vontade, ficaram a ouvir a animada discussão sobre pintura italiana. Ashley alegrou-se com aquele momento de alívio, visto que o deixava livre para pensar sobre algo que lhe chamara a atenção. Os seus pensamentos concentraram-se, então, na loura mal-encarada que se sen­tava à sua frente.

A transformação que ela sofrera era deveras surpreendente. O seu encanto de manequim havia desaparecido, arrancado como uma máscara de Carnaval. O rosto mostrava-se agora contraído e estranho. Os seus olhos sorridentes tinham-se enchido de um ódio incompreensível. Por quê? Por causa de Richard Ashley ter ido passear com a esposa do seu amante? Isso seria razão para riso ou triunfo, e não para lágrimas. por Ashley haver causado a morte de um homem? Que relação poderia existir entre um miserável informante como Garofano e aquela secretária-­amante-de-luxo, tão típica dos salons de Roma?

Haveria outra forma de explicar como relações tão amigáveis se haviam transformado subitamente naquele imprevisto e bem marcado ódio? A não ser, claro, que Orgagna houvesse sentido um possível in­teresse de Elena por Ashley e arquitetasse a qualquer plano para a virar contra ele. Era natural que assim fosse. Nada parecia impossível naquele estranho jantar.

- ...não lhe parece, Sr. Ashley? - perguntou-lhe interessadamente Orgagna, despertando-o dos profundos pensamentos que o assaltavam.

- Mil desculpas - respondeu o jornalista. - Não ouvi a pergunta.

- Estamos falando de moral... a moral da arte e da política.

Ashley encolheu os ombros.

- Sou jornalista... e não filósofo.

- Então, meu amigo! - exclamou Orgagna, bem-disposto. - É essa a função da imprensa, não é? Uma das prerrogativas do jornalista é ter a possibilidade de orientar a moral pública.

Uma súbita ira amargou o sabor do vinho de Ashley. Aqueles seus inimigos estavam de novo a provocá-lo, a espicaçá-lo - e a observar as suas reações a cada frase que proferiam. O que eles queriam, justamente, era que ele se enfurecesse e se tomasse indiscreto. Mas não se atrevia a ceder, pois sabia muito bem que, uma vez que se inferiorizasse diante deles, nunca mais poderia voltar à sua anterior posição. Ashley bebeu um pouco do esplêndido vinhoo que tinha na sua frente e formulou sua respos­ta com todo o cuidado.

- Esta é uma noite privilegiada, Excelência. Seria bastante im­próprio, creio eu, discutir a moral da imprensa... ou dos políticos.

Gorge Arlequim soltou uma gargalhada. pareceu engasgar-se com o vinho.

- Uma noite privilegiada! Essa é muito boa. Sabe, Orgagna, é muito estranho, mas nunca julgamos os americanos capazes de formular frases como esta. O nosso amigo Ashley possui, na verdade, uma presença de espírito notável.

- Nunca desdenhei dos talentos do Sr. Ashley - ripostou Orgagna, falando com a maior delicadeza. -Alegro-me por tê-lo como nosso amigo e não como inimigo.

“Agora”, pensou Ashley, “é que chegamos ao vedadeiro motivo desta reunião. O Duque quer trégua. Sabe que pode dificultar-me a vida, mas não tem a certeza de me poder calar. Deseja, pois, concluir um acordo. Mais um pouco de paciência... e não tardará a expor as sua condições’’

Aquele pensamento reconfortou-o. Agradeceu o cumprimento com um sorriso e a atmosfera tornou-se menos tensa. Cosima fez alguns comentários sobre moda. Arlequim fingiu mostrar grande interesse pelo assunto. O jovem artista entrou na conversa com uma veemência quase feminina e aquele momento embaraçoso passou. Só Elena Carrese é que continuava silenciosa e séria, com o mar enluarado e as luzes cin­tilantes de Nápoles fazendo fundo à sua beleza sombria.

Os pratos foram mudados e um novo vinho se serviu quase no mes­mo instante. Os criados pairavam atentamente em redor da mesa, en­quanto os signori comiam e continuavam a falar de alta costura, de modas, da alta finança, dos escândalos da sociedade e, enfim, das in­trigas de Roma. Os seus rostos mantinham-se impassíveis, os olhos pareciam mortos, como era de esperar de criados de um hotel com a categoria do Caravino. Mas os seus ouvidos estavam bem abertos e aten­tos, recolhendo fragmentos de conversas e informações que poderiam vir a ser-lhes úteis. Uma gorjeta, em paga de alguma informação oportuna, representava muito na economia do Sul - talvez um quilo de pasta na mesa da família ou um casaco para uma criança adoentada.

Servida a carne, surgiu pouco depois na mesa uma variedade enorme de tortas e bolos. Seguiram-se as frutas e logo apareceram os queijos. O café, muito forte e amargo, foi preparado à mesa e, quando o maître d'hôtel aquecia as taças para o conhaque, o telefone tocou estridente­mente com insistência.

O maître d'hôtel acorreu a responder à chamada, falando em voz baixa e olhando rapidamente para os comensais em redor da mesa. Em seguida, pousando o fone, encaminhou-se para Orgagna e murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido. Orgagna ouviu-o com toda a atenção e, pedindo aos convidados que o desculpassem, levantou-se e dirigiu-se ao quarto, a fim de se servir do outro telefone.

Cosima viu-o desaparecer com uma certa inquietação no olhar.

O Duque regressou três minutos depois. Não fez a mínima referência à chamada e retomou logo o fio da conversa.

            Em seguida, e assim que o café e o conhaque foram servidos, voltou­-se para o maître d'hôtel:

            - Pode deixar-nos agora. Tocarei a campainha se precisar de al­guma coisa.

            - Perfeitamente, Excelência.

            O maître fez uma reverência e saiu da sala, sendo logo imitado pelos outros criados. Orgagna, confortavelmente sentado numa poltrona, olhava para o balão de conhaque que tinha entre as mãos. Sem levantar o olhar, disse friamente:   .

- Tullio, leve Elena para o bar do hotel e tomem seu café numa at­mosfera mais animada do que a que respiramos aqui. Não saiam do hotel, ainda poderei vir a precisar de vocês.

Os dois jovens levantaram-se sem dizer palavra. Orgagna aguardou que a porta se fechasse atrás deles e fixou depois os restantes convidados. O seu rosto tinha algo de frio e irônico. Os outros olhavam para ele, pouco à vontade.

- A chamada que recebi há pouco foi do Capitão Granforte, da Questura. Deseja falar-lhe, Sr. Ashley.

- O meu novo amigo não perdeu muito tempo.

Orgagna não pareceu gostar de interrupção.

- Eu disse ao Capitão que, por causa de minha esposa, o assunto também me dizia respeito. Pedi-lhe, como um favor especial, que viesse juntar-se a nós para discutirmos pnvadamente quaisquer problemas

inerentes ao caso. O Capitão acedeu ao meu pedido.

- Foi muito amável - disse Ashley secamente.

- Mais amável do que pensa, Sr. Ashley - redargüiu Orgagna, olhando severamente para o jornalista. - Acho indicado que empreguemos agora os poucos minutos que nos restam para prepararmos a sós a conversa que iremos ter com o Capitão.

- Estou disposto a ouvir o que tem a dizer.

- Ótimo. - Orgagna saboreou o conhaque e voltou-se uma vez mais para Ashley, começando a falar lenta e cuidadosamente.

- Estou ao corrente das suas antigas relações com minha esposa. Pessoalmente, decidi ignorar o fato. Publicamente, sou obrigado a suprimi-lo, a todo o custo. Essa é a única razão que me leva a subscrever a fantasia proposta pelo senhor: que é meu amigo, que o passeio desta tarde foi um favor que me fez e também uma ação amável da sua parte em relação a Cosima.

- É a única decisão acertada - disse Ashley friamente.

       O Duque de Orgagna bebeu outro trago de conhaque.

- Granforte está, aparentemente, ao corrente de qualquer negócio que tenha havido entre Garofano e o Sr. Ashley. É por isso, antes de mais nada, que ele encontra algo de sinistro nas causas do acidente. Imagino que... - Orgagna baixou o olhar e fez uma pausa. - Imagino que desejará reunir suficientes provas contra o senhor para o conservar em Sorrento até que as investigações se encontrem terminadas.

- O que seria bastante embaraçoso para o senhor, não é verdade?

- Por causa de minha esposa, sim.

- Como queira... mas parece-me que essa não é a única razão.

Orgagna fez por ignorar o tom irônico de Ashley e prosseguiu com uma firmeza e uma intenção bem estudadas e calculadas.

- Os nossos interesses são, por conseguinte, idênticos. Creio que existem suficientes razões para uma aliança.

         - Qual é o preço dessa aliança? - perguntou Ashley abruptamen­te.

- O preço pode ser discutido mais tarde, se conseguir sobreviver a esta entrevista com o Capitão Granforte.

            - Se ambos sobrevivermos.

            Orgagna levantou-se. A sua voz retomara um tom indiferente e superior.

- Mais tarde... poderemos discutir o assunto que nos interessa ver­dadeiramente. Pense bem, Sr. Ashley. Não temos muito tempo. Venha comigo, Cosima.

O Duque e a Duquesa de Orgagna encaminharam-se para o quarto, deixando Ashley sozinho com George Arlequim.

Imperturbável, como sempre, o inglês parecia preocupar-se apenas com o conhaque que saboreava. Os seus olhos brilhavam maliciosamen­te. Ashley acendeu um cigarro e esperou que ele falasse.

- Avisei-o, não é verdade?

Ashley olhou-o com um desdém gelado;

- Tenho visto muita coisa desprezível feita em nome do Governo de Sua Majestade, Arlequim, mas não esperava nunca um assassinato.

- Um assassinato? - O sorriso desapareceu dos olhos pálidos do inglês.

- Foi planejado por Orgagna com a cumplicidade de Cosima.

- Não acredito.

- É natural. - Ashley sentia-se cansado. A sua paciência tinha limites. Estava farto, farto de todos eles e da sutileza cínica das suas palavras. Fora apanhado na rede que lhe haviam lançado e não poderia livrar-se dela facilmente... como não podia libertar-se também da am­bição que o dominava. A reportagem explodira-lhe na cara e os destroços que se amontoavam à sua volta impediam-no de esboçar qualquer movimento que lhe devolvesse a liberdade de ação.

Frio e distante, Arlequim observava atentamente o jornalista. Es­tudava a expressão daquele rosto que o encarava e as reações daquelas mãos nervosas e fortes que se apoiavam na toalha branca da mesa. Era verdade que ele próprio se encontrava prisioneiro na mesma rede e numa hora de franqueza, até seria capaz de o confessar. Mas, naquele momen­to vital e naquela sala, onde ainda reinava a presença ducal de Orgagna, não passava de um profissional comprometido a cumprir as sórdidas obrigações da sua profissão.

            As palavras que George Arlequim proferiu a seguir deixaram Ashley literalmente boquiaberto.

- Orgagna sabe que você já tem as fotocópias.

- Quê?! - Ashley levantou-se abruptamente como se tivesse sido picado por um alfinete. - Repita o que disse!

- Orgagna sa e que voce já tem as fotocópias.

Ashley olhou para ele durante um momento, ainda boquiaberto. Em seguida soltou uma grande gargalhada e continuou a rir com estrépito por largo tempo. Orgagna e Cosima apareceram à porta da sala, muito surpreendidos com as gargalhadas, e os três ficaram a olhá-lo não per­cebendo o motivo daquela reação quase histérica e chegando até a assus­tar-se com a estranha cena que acabavam de presenciar.

Quando o Capitão Granforte chegou, passados alguns minutos, Richard Ashley já nem sequer tinha forças para continuar a rir - e sen­tia-se ainda mais exausto do que antes.

 

       O Capitão Eduardo Granforte era um homem singularmente feliz. Encontrava-se perfeitamente à vontade no salon de Sua Ex­celência, o Duque de Orgagna, com um ótimo conhaque no balão que aquecia nas mãos e uma quantidade de informações muito úteis no cérebro.

O que sabia dava-lhe certa confiança, mas ele era demasiado ex­periente para se tomar arrogante. Estava certo de que viria a lucrar algo com este epcontro, mas sabia também que, com tato e discrição, poderia

aumentar esse lucro consideravelmente.

O Capitão não era um homem corrupto, embora servisse a uma ad­ministração corrupta. Mostrava-se honesto para consigo próprio - o que é a maior das honestidades - e sabia que, apesar de todos os homens terem um preço, o seu era talvez o mais elevado de todos. Nunca perver­tera a justiça, embora muitas vezes fosse obrigado a conviver com a injus­tiça. Nunca se deixara subornar, mas não via razão alguma para recusar um presente de um cidadão agradecido.

Neste momento o Capitão Granforte estava sentado no centro de um semicírculo constituído por Orgagna, Cosima, Arlequim e Richard Ashley. Sentia-se bem ali, entre aqueles personagens, e iniciou o seu                 in- terrogatório num tom enganadoramente humilde:

- Resolvemos aceitar como um fato, Sr. Ashley, as suas relações de amizade com Suas Excelências, o que explica a sua presença na estrada àquela hora, o uso de um automóvel que não lhe pertence e mesmo,         pos­sivelmente, um certo brio ao dirigir.

- Eis uma forma muito agradável de expor a sua opinião - disse Ashley com um sorriso.

- Todavia - Granforte fez um gesto largo e bebeu outro trago ­estamos menos satisfeitos no que diz respeito às suas relações com o mor­to.

- Por quê?

- Primeiramente, sabemos que tinha negócios com ele...

- Fui eu próprio quem lhe disse, Capitão.

- Que espécie de negócios?

- Também já lhe disse. Vendia-me certas informações.

- Que gênero de informações?

- Informações para as minhas reportagens, Capitão.

- Poderá especificar melhor, Sr. Ashley?

- Não.

- Por quê?

- A ética da minha profissão me proíbe.

O Capitão Granforte sorriu pranzenteiramente. Não precisava da resposta do jornalista. Já estava ao corrente de tudo o que interessava ao caso, mas divertia-o imenso interrogar este americano corpulento e tão seguro de si. Era-lhe conveniente, além disso, poder impressionar o Duque e a sua bela e infiel esposa. Quanto mais eles o respeitassem, mais estariam dispostos a ser-lhe úteis quando chegasse o momento de ajustar contas. O Capitão formulou nova pergunta:

- Devo então pensar que as informações que comprava a Garofano eram de natureza confidencial, não é isso?

- Sim.

- Que sabe acerca de Garofano, Sr. Ashley?

- Nada. Veio me procurar, há tempos, e propôs-me a venda de uns documentos que me interessavam. Os documentos eram autênticos e, por isso, dispus-me a comprá-los. Nada mais procurei saber acerca do ho­mem.

            - Então permita-me que lhe diga que Garofano era funcionário público e trabalhava no Município de Nápoles...

            - Interessante...

            - Mais do que interessante, o fato é de extrema importância. As suas ações poderão ocasionar-lhe uma condenação por ter subornado um funcionário público com o fim de ter acesso a documentos oficiais.

            Ashley sacudiu a cabeça e sorriu amargamente.

- Não está no bom caminho, Capitão. Os documentos não são oficiais, nem têm qualquer relação com o Município ou o Governo. Mes­mo que tivessem, nunca poderia prová-lo. Terá de tentar outra pista...

- Negará, por acaso, Sr. Ashley, que as informações eram em for­ma de documentos?

- Não... não nego.

- Agradecer-lhe-ia se me mostrasse esses documentos. - Não os tenho em meu poder, Capitão.

- Não?

            - O último preço de Garofano era muito elevado. Recusei-me a comprá-los.

            - E foi então, Sr. Ashley, que se zangou com Garofano e o esbo­feteou numa sala do hotel. Ameaçou-o mesmo de morte.

- Quem lhe disse?

- O barman Roberto. Nega que isso tenha sucedido?

- Não. O incidente passou-se tal como acabou de o descrever.

- Allora! - O Capitão Granforte recostou-se na poltrona e bebeu as últimas gotas do seu conhaque - Já percebeu, com certeza, aonde eu queria chegar. Foi visto maltratando o infeliz Garofano e ouviram-no ameaçá-lo de morte. Já confessou um motivo: o fato de Garofano se recusar a vender-lhe certos documentos pelo preço que o senhor desejava pagá-los, Uma hora mais tarde, apenas uma hora atropelou esse mesmo homem numa reta de uma estrada sem movimento. Trouxe-me o corpo da vítima, assim como a sua pasta, que estava vazia. Já viu o perigo que corre, com certeza...

- Um momento, Capitão! - Fora o Duque de Orgagna quem falara, muito tenso e preocupado.

- Por favor, Excelência, permita-me que termine. Já sei o que deseja dizer, Formular uma acusação desta natureza significa, neste caso, acusar também de um crime premeditado Sua Excelência, a Duquesa... Mas isso é absolutamente ridículo.

- Muito obrigado, Capitão - disse Orgagna suavemente, respi­rando fundo e continuando a observar Granforte com os olhos semi­cerrados,

- Torna-se essencial, por conseguinte, investigar com mais cuidado os acontecimentos da tarde, os movimentos do Sr. Ashley e de Sua Ex­celência, a Duquesa, assim como os movimentos de Garofano desde que saiu do hotel, se é que desejamos provar sem sombra de dúvida a na­tureza acidental da sua morte. Por outro lado...

Ashley ficou imóvel, aguardando ansiosamente as palavras seguin­tes, O Capitão não era tolo, disso não restavam dúvidas. Encaminhava­-se rapidamente para a verdade, embora o fizesse à maneira napolitana, com muita sutileza e diplomacia.

- Por outro lado... é possível que existam outros pormenores que o Sr. Ashley não deseje tomar públicos.

- Nada mais tenho a dizer, Capitão.

Granforte abanou a cabeça e passou a língua pelos lábios.

- Terá algumas sugestões que possam ajudar-me nas investi­gações?

- Tenho, sim,

- Que sugestões, Sr. Ashley?

- Envie alguns dos seus homens para a elevação de terreno de onde Garofano caiu. Talvez consiga descobrir como ele foi parar lá e o que lhe causou a queda.

O Capitão concordou com um gesto rápido e firme de cabeça.

- Já pensamos em fazer o que sugere, Sr, Ashley. Infelizmente, como é evidente, nada podemos realizar neste sentido até amànhã de manhã. Convenço-me de que nada encontraremos, mas estou inteira­mente disposto a tentar o que propõe.

Granforte poderia ter dito muito mais. Poderia ter dito que o lugar estava vigiado por dois policiais com ordens para prender quem se aproximasse do local durante a noite, Poderia também ter dito que examinara as plantas do Município e descobrira que o local de onde Garofano caíra pertencia a uma propriedade de Orgagna.

Mas o Capitão era um homem muito esperto e cheio de recursos e preferia ter sempre um ou dois trunfos de reserva. Granforte sorriu, ficando imóvel e silencioso à espera de que alguém lhe formulasse qual­quer pergunta, Mostrou-se, porém, muito admirado quando ela foi feita por George Arlequim:

- Onde vivia esse homem... Garofano?

- Em Santa Ágata, no alto da colina.

- É de se pensar então que, após sair do hotel, se teria encami­nhado para casa, não lhe parece?

- É provável que sim.

- Iria ele a pé? Santa Ágata fica bastante longe.

- Normalmente, devia ir de ônibus, mas saiu bastante tarde do hotel e é natural que o haja perdido. O próximo só partia duas horas mais tarde. É possível que tenha preferido ir a pé.

- E teria de tomar a mesma estrada que tomou o Sr, Ashleye Sua Excelência, não é verdade?

            - É a única estrada, signore.

- É possível, por conseguinte, que outras pessoas interessadas nos seus rnovimentos o tivessem seguido sem dificuldade.

- Que outras pessoas?

Arlequim encolheu os ombros.

- Não faço a menor idéia. Mas parece-me razoável pensar que ele apenas se recusou a vender os documentos ao Sr. Ashley pelo preço combinado­ por ter outro cliente.

O Capitão voltou-se para Ashley.

- É possível que o Sr. Arlequim tenha razão, mas só poderemos admitir essa possibilidade se o Sr. Ashley estiver disposto a dar-nos uma idéia acerca da natureza dos documentos.

Ashley considerou aquela proposta durante um longo momento. De início, parecera-lhe tentadora. Poderia jogar a culpa sobre o Duque de Orgagna e ficaria com liberdade completa para continuar a procurar as fotocópias. A reportagem voltaria a tornar-se possível... Contudo, tinha de considerar também outros elementos de importância primordial: a in­fluência de Orgagna; a atitude de Cosima, que até àquela data ainda não fora interrogada; a atitude do próprio Arlequim, que era um negociador demasiado experiente para conceder uma vantagem assim tão clara a um seu opositor. Ashley sentiu-se subitamente só e insignificante, des­protegido ante os punhais da intriga num velho e estranho país. Decidiu, por isso, recusar aquele convite aparentemente bem-intencionado.

- Lamento muito, mas nada mais tenho a dizer.

Ashley ouviu Orgagna respirar fundo, aliviado, e viu as mãos e o ros­to de Cosima descontraírem-se. Arlequim, esse, limitou-se a ter um vago gestos de indiferença. O Capitão Granforte acendeu um cigarro e pare­ceu hesitar sobre o que devia fazer ou dizer. Ashley, todavia, não teve de esperar muito para saber o que ele decidira.

O policial olhou-o e falou-lhe lenta e pausadamente.

- Nesse caso, Sr. Ashley, não tenho outra alternativa senão prendê­-lo, em virtude de ter subornado um funcionário público e de haver co­metido um homicídio involuntário. Mais tarde, como resultado das minhas investigações, talvez possa vir a ser acusado de um crime ainda mais grave.

Ashley sentiu-se subitamente muito calmo. Levantou-se e encarou o Capitão Granforte.

- Compreendo perfeitamente que tenha de cumprir o que pensa ser o seu dever, Capitão. Peço-lhe, todavia, que telefone imediatamente ao cônsul americano em Nápoles e lhe diga que venha visitar-me o mais depressa possível.   

Seguiu-se um breve silêncio e a atmosfera carregou-se de uma maneira quase insuportável. Granforte baixou os olhos, parecendo examinar as mãos. Os outros três voltaram-se para a figura arrogante de Ashley, que, de pé, aguardava a reação do Capitão Granforte. Foi Or­gagna, todavia, quem cortou o silêncio.

- Capitão...

- Diga, Excelência.

- Sei muito bem que o senhor é um oficial experiente e que ocupa um cargo de grande responsabilidade. Não me atrevo sequer a duvidar da justiça dessa sua decisão...

            Granforte assentiu e aguardou que Orgagna continuasse.

            - Entretanto, as investigações em que está envolvido o Sr. Ashley ainda se encontram muito incompletas e existem, como deve saber, certos problemas legais e diplomáticos nos processos contra estrangeiros. O Sr. Ashley é um correspondente de fama mundial. É, além disso, um grande amigo nosso. Gostaria, pois, de lhe pedir que até as investigações ter­minarem deixasse em liberdade o Sr. Ashley, sob minha inteira respon­sabilidade.

O rosto de Granforte continuava impassível, mas interiormente ele ficara muito mais satisfeito do que os outros poderiam supor. O seu "negócio" com o Duque de Orgagna tivera, finalmente, um início. Um dia ainda não sabia bem quando, a questão do preço seria discutida. Mas isso só aconteceria muito mais tarde, quando possuísse provas que lhe pudessem servir de alavanca. Agora, contudo, fingiu hesitar.

- Eu... eu gostaria de ser agradável a Vossa Excelência... mas exis­tem certos problemas...

- Talvez os possamos resolver aqui entre nós - sugeriu Orgagna, falando com delicadeza.

- Temos primeiramente o fato de esse Garofano ser empregado do Município. O povo desejará que lhe seja feita justiça. Não parecerá correto que o homem que matou um habitante de Sorrento permaneça aqui no hotel como um hóspede de honra. O caso poderia provocar... in­cidentes. Conhece a nossa gente... as suas idéias primitivas sobre estes assuntos.. .

- Já tinha também pensado nesse aspecto. Era minha intenção sugerir que o Sr. Ashley fosse para a minha villa durante o resto da sua estada em Sorrento. Já deve saber que fico aqui até depois das eleições. O Sr. Ashley não será visto por quem quer que seja e estará à sua disposição sempre que deseje visitá-lo.

- Vossa Excelência assume uma grande responsabilidade.

- Nenhuma responsabilidade é demasiado grande quando a liber­dade de um amigo está em jogo.

O Capitão Granforte fez uma reverência e sorriu, voltando-se depois para Ashley.

- Concorda com este arranjo, Sr. Ashley?

- Concordo.

- Percebe, é claro, que ficará, moralmente, sob palavra...?

- Percebo perfeitamente.

- Muito obrigado. - Granforte voltou a sorrir e dirigiu a palavra a Orgagna. - Agora, se Vossa Excelência me conceder uns minutos, gos­taria que Sua Excelência, a Duquesa, prestasse declarações. Tenho a cer­teza de que ela se sentirá mais à vontade na sua presença.

- Poderemos fazê-lo no outro quarto - disse Orgagna, levantando­ - Sirvam-se de conhaque, Arlequim... Ashley.

O Duque dirigiu-se para o quarto, seguido de Cosima e Granforte. A porta fechou-se atrás deles e, após um momento, as suas vozes come­çaram a ouvir-se: apenas um murmúrio, surdo e incompreensível.

Arlequim pegou os dois balões de conhaque e, depois de os aquecer à chama de uma pequena lamparina, encheu-os e deu um a Ashley. Os dois homens entregaram-se, durante alguns segundos, ao prazer de aspirar o

vapor do conhaque e de o saborear. Em seguida Arlequim cortou o silên­cio:

- Não o considerava tão habilidoso...

Ashley olhou-o com uma expressão hostil e desalentada.

- Não recomece com as suas intrigas, homem! Lembre-se de que tive um dia terrível. Estou exausto.

- É isso que eu queria dizer. Tem estado a travar um duelo renhido com especialistas. Devo dizer-lhe que se portou muito melhor do que eu esperava.

- De que lado está você, Arlequim?

- Lado? Meu caro amigo... - os olhos de Arlequim abriram-se muito, parecendo mostrar uma grande inocência - ...não estou de lado nenhum. O meu Governo tem um interesse especial no resultado das eleições.

- E em Orgagna...

- Tem razão... mas as nossas idéias são suficientemente largas para. ..

- Pelo amor de Deus, Arlequim!

Ashley, agastado e nervoso, levantou-se e dirigiu-se para a janela, ficando a contemplar as luzes dos barcos de pesca e a vista maravilhosa que a baía oferecia de noite. A música que vinha do salão do hotel ouvia­se agora distante e melodiosa. O corpo doía-lhe e sentia o rosto contraído e seco. Fechou os olhos e deixou-se dominar por toda aquela calma momentânea e pela nostalgia da música. Ouviu, então, a voz de Arle­quim, que lhe falava a seu lado.

- Há uma resposta para a sua pergunta, se a quiser ouvir, Ashley. Os assassinatos já passaram de moda na Inglaterra. É verdade que, por vezes, temos de recorrer a processos mais ou menos ilegais, mas nunca vamos até ao ponto de matar um homem para conseguir os nossos fins. Ashley empertigou-se e voltou-se novamente para o agente.

- Então... acredita que Orgagna...?

- Não acredito em coisa alguma que não possa provar... - respon­deu-lhe Arlequim. - Limitei-me a expor um princípio. Talvez o fato de o recordar venha a servir-lhe num futuro próximo. A propósito... tem ou não as fotocópias?

- Vá pro inferno! - exclamou Ashley, encostando-se ao parapeito da janela. Aqueles seus adversários eram todos iguais. Não conheciam a lealdade nem a piedade. Bastava-lhes encontrarem um ponto fraco na defesa de um inimigo para o atacarem logo, fria e cruelmente. Ashley decidiu nunca mais voltar a confiar neles.

- Se não as tem - disse Arlequim suavemente - não o diga a Or­gagna. As fotocópias são a única arma que possui para se defender dele.

Ashley não lhe respondeu. O seu corpo estava esgotado pelo cansaço e sua alma, farta daquela atmosfera de conspiração. Arlequim afastou-se furtivamente e, ao ouvir a porta abrir-se e fechar-se logo a seguir, Ashley percebeu que estava sozinho - um homem abandonado e perplexo, sem saber o que devia fazer em seguida.

Abriu a porta do terraço e saiu para o ar fresco da noite. O silêncio era quase completo, apenas cortado pelo lento rolar das ondas do mar, a embaterem nos rochedos, e por alguns lânguidos e abafados acordes de guitarra. Ashley debruçou-se do terraço e ficou a olhar para as luzes da distante baía de Nápoles, para os barcos de pesca, para os mastros dos veleiros ancorados na doca, para as bonitas villas que se erguiam em volta de Sorrento, voltadas para o mar. Tudo o que via, iluminado de luar, lhe trazia uma certa sensação de paz. À paisagem, aos barcos e ao conforto das villas acrescentavam-se, entretanto, os prelúdios de amor que avis­tava sob as laranjeiras e nas areias da praia, que imaginava dentro das grutas, à sombra escura dos rochedos e a bordo dos luxuosos barcos de recreio que balançavam ao sabor das ondas...

Estava tudo ali, à vista: tudo o que o homem ambicionava, tudo aquilo que deveria ser a recompensa de uma vida de trabalho, mas que geralmente só era obtido pelos homens irresponsáveis ou pouco escru­pulosos. Tudo aquilo parecia estar agora longe do seu alcance, só por ele se haver deixado dominar pela ambição, por causa de a sua curiosidade profissional o ter forçado a investigar os pecados de outro homem, por haver despertado dentro de si uma velha paixão que o cegara e levara à catástrofe.

Cosa fare? Que poderia ele fazer?

Nada... Apenas aguardar e lamentar que tivesse de se defender de outros homens que dirigiam o seu novo destino.

Quem bebe o vinho do rei tem que sofrer as dores de cabeça do rei ­- e ficar agradecido por este não lhe enviar o carrasco para curá-las de vez.

Ashley não tinha aliados nem amigos nesta sua aventura. Só via in­teresses à sua volta e mais nada. O jornal não queria a verdade, apenas desejava uma tiragem cada vez maior. O editor não pretendia bons tex­tos,           

mas sim, cabeçalhos espalhafatosos e fascinantes. Os seus colegas não acreditavam em cruzadas como aquela e os informantes que tinha depressa fugiam quando percebiam que o poder das informações que transacionavam ameaçava explodir-lhes na cara.

Estava, por isso, completamente só, mas desejoso de triunfar, a fim de se mostrar menos mesquinho do que os outros e para acabar a sua carreira com o halo dos apóstolos. Não pensara que os apóstolos aca­bavam a sua carreira na mortificação. Só uma vida inteira de sacrifício ou um milagre podem fazer um mártir, e vinte anos passados na redação de um jornal não constituem nunca o noviciàdo suficiente.

Encontrava-se, pois, num terrível momento de isolamento e de ex­pectativa, num estado de espírito entre o céu e o inferno.

Ashley sorriu amargamente e acendeu um cigarro. Deu algumas tragadas e, não sentindo qualquer prazer, atirou o cigarro para longe e o seu olhar fixou-se num pequeno ponto vermelho que foi mergulhar na água da baía, lá muito embaixo.

Foi então que ouviu alguém a soluçar.

            Os soluços só muito abafadamente se ouviam, mas surgiam de tal forma inesperados e estranhos àquela hora e naquele local que se distin­guiam muito mais nitidamente do que a música ou o mar a embater nos rochedos: era indubitavelmente ó choro de uma mulher desesperada.

Richard Ashley olhou em toda a extensão do terraço. Os quartos cujas janelas se abriam para ali eram doze, mas apenas quatro estavam iluminados: a sala onde haviam jantado, o quarto onde Cosima e Orgag­na conferenciavam com o Capitão Granforte, outro ainda ao fundo do terraço e aquele que se situava a seguir à sala, na extremidade oposta.

Sem saber bem o que fazia, mas talvez para se distrair, Ashley aproximou-se da janela deste último quarto, andando suavemente no mármore do terraço. As portas de vidro estavam ligeiramente abertas, mas as cortinas de linho encontravam-se corridas. Ele espreitou para dentro do quarto através de uma pequena abertura nas cortinas.

Viu, deitada sobre a cama, a figura abandonada de uma moça a soluçar. Tinha o rosto escondido numa almofada, mas Ashley reco­nheceu-a imediatamente. Tratava-se de Elena Carrese, a encantadora jovem daquela tarde e a sombria beldade do jantar.

Richard Ashley afastou as cortinas e entrou no quarto. Aproximan­do-se da cama, tocou de leve nos ombros de Elena. A moça sentou-se na cama e olhou para ele com uma expressão aterrorizada. O seu rosto es­tava contraído por um pavor incompreensível. Disse-lhe ameaçadora­mente:

- Saia! Vá embora imediatamente!

Ashley sorriu-lhe, tocando-lhe e falando-lhe como se ela fosse uma criança que precisasse de ser reconfortada.

- Ouvi-a chorar. Entrei para lhe perguntar se posso ajudá-la em al­guma coisa. Gostaria muito de lhe ser útil.

- Vá embora, ou começarei a gritar!

Elena Carrese estava tão perto do pânico absoluto que não era pos­sível falar com ela. Ashley depressa percebeu que não lhe seria fácil acal­má-la e encaminhou-se lentamente para a porta por onde entrara. Elena pareceu surpreendida com aquela vitória fácil e olhou para ele cheia de receio e de espanto. Ashley parou junto à porta e, voltando-se arriscou al­gumas palavras com doçura:

- Prometeu tomar café comigo esta noite. Quando me fez esta promessa, à tarde, parecia gostar de mim. Ao jantar, porém, tornou-se evidente que me odeia. Por quê? E por que razão está chorando?

Elena estendeu o braço, apontando para ele num gesto de acusação. Tudo, no aspecto, no olhar e na voz, indicava que ela estava prestes a cair numa crise de histerismo.

- Você o matou! - exclamou ela. - Você e essa mulher! Mata­ram-no antes de ele ter tempo de pedir misericórdia para a sua pobre al­ma danada. Matou-o por causa de um pedaço de papel que...

Elena começara a elevar a voz, numa exaltação que não podia dominar, e Ashley voltou para junto da cama e esbofeteou-a, para fazê-la voltar a si. Elena calou-se e voltou a mergulhar o rosto na almofada, soluçando num desespero quase abjeto. Depois, persistente e carinho­samente, Ashley começou a falar-lhe esperando com ansiedade que al­guma palavra ou frase vencesse aquela barreira de repugnância e de medo quase animal.

- Foi Orgagna quem lhe disse isso, não foi? Disse-o para que você me odiasse, para poder servir-se de você contra mim. Orgagna mentiu­-lhe. É verdade que dirigi o automóvel e que fui passear com Cosima, mas não matei Garofano. Foi Orgagna quem o matou. Atirou-o para a es­trada quando íamos passando. Tentei salvá-lo e quase virei o carro ao fazê-lo. O automóvel ia com demasiada velocidade e foi impossível evitar o desastre. Tem de me acreditar. tanto por mim como por você mesma. Não fui eu quem o matou. O culpado é Orgagna, que queria apoderar-se de: uns papéis que estavam na posse de Garofano... uns documentos que o incriminariam. Deixe-me explicar-lhe tudo e não tardará a acreditar em mim. Deixe-me explicar-lhe... pelo amor de Deus!

Subitamente, Ashley pensou que a convencera e que ela começava a acalmar-se. Elena parara de soluçar e limpava as lágrimas, voltando a sentar-se. Os seus olhos fixaram-se no rosto de Ashley, e só então este notou o frio e calculado ódio com que ela o observava. Em seguida, pausada e deliberadamente, Elena Carrese começou a amaldiçoá-lo no obsceno dialeto de Nápoles.

- Que os seus órgãos adoeçam e as suas mulheres apodreçam! Que os seus filhos sejam anões e as suas filhas nasçam estéreis! Que morra torturado e coma fogo durante toda a eternidade é isto o que eu lhe desejo por ter assassinado o meu irmão!

- O seu irmão?! - Ashley, imensamente surpreendido e pertur­bado, ficou a olhar para ela durante alguns segundos e depois repetiu numa voz rouca e gutural: - O seu irmão?!

Ele encaminhou-se lentamente em direção da porta e saiu para o terraço, deixando atrás de si a infeliz moça a murmurar contra ele as tradicionais maldições de um velho e misterioso povo - a pedir a ruína e a danação para o homem que trouxera a morte à sua familia.

Estonteado e exausto por tantas emoções, como um homem vivendo um pesadelo, Ashley voltou para a sala, onde Cosima e Orgagna o aguar­davam.

 

       O Capitão Granforte já havia partido, ao que parecia. Interro­gara Cosima e fora indulgente ao ponto de sugerir que a partida para a villa fosse adiada até à manhã seguinte. O Capitão tinha todo o ar de ser um homem agradável. Bastante cortês, nunca procurava exercer a sua autoridade com ostentação. Era uma sorte ter um homem tão com­preensivo tratando do caso. Ainda haveriam de enfrentar algumas di­ficuldades, mas, pelo menos de momento, o escândalo fora evitado. Com discrição e a ajuda de Granforte, era mesmo possivel que...

A voz educa da de Vittorio d'Orgagna prosseguia, incansável, en­quanto Ashley fazia um grande esforço para se manter de pé, ouvindo as suas palavras como se fossem ditas através de um cobertor de algodão.

- Ainda existem alguns desentendimentos entre nós dois, Sr. Ashley, mas a sua atitude tão amigável de hoje leva-me a esperar que, quando nos conhecermos melhor, possamos chegar a um acordo.

- Com certeza... com certeza...

            Ashley assentiu, distraidamente.

Desentendimentos... atitude amigável... acordo! Uma quantidade de palavras vagas que eram pura mentira. As únicas palavras que, neste momento, representavam algo para ele eram descansar e dormir.

- ...Quando estivermos no Cabo, na intimidade da minha villa, teremos oportunidade de conversar melhor...

Conversar... conversar... conversar! Richard Ashley estava tonto de tanta conversa. O que mais desejava agora era silêncio e solidão. Pre­cisava de tempo para pensar, para recuperar as forças perdidas.

- Estou exausto - disse ele, abruptamente. - Vou-me deitar. Boa noite, Cosima.

- Boa noite, Richard - respondeu-lhe ela, num tom de voz distan­te e distraído.

Orgagna deu-lhe o braço e conduziu-o amavelmente até à porta.

- Durma bem, caro amigo.


- Boa noite, Orgagna.

Ashley ouviu a porta fechar-se atrás de si e dirigiu-se vagarosamente para os seus aposentos. Abriu a porta e entrou no quarto, mas logo se deteve, boquiaberto.

O Capitão Granforte estava sentado numa cadeira, bebendo o uís­que de Ashley e com o manuscrito da reportagem aberto sobre os joelhos.

Ashley, exausto e irritado, nem sequer encontrou palavras para manifestar a sua ira ante aquela estranha invasão. Aproximou-se da mesa e, servindo-se de uma dose de uísque bebeu-a de um só trago. Depois, voltando a encher o copo, pousou-o na mesinha de cabeceira e sentou-se na cama com a cabeça entre as mãos e toda espécie de pen­samentos a cruzar-lhe o espírito.

Granforte observava-o com uma expressão divertida.

- Cansado, meu amigo?

- Muito.

- Os livros dizem que a melhor hora para interrogar um indivíduo suspeito é quando ele está cansado e com os nervos esgotados.

Ashley fechou os olhos. O uísque dera-lhe uma sensação de bem-es­tar e os seus efeitos já se faziam sentir tanto nos seus músculos doloridos como no seu espírito. Não tencionava discutir com Granforte. Este poderia perguntar o que quisesse, poderia interrogá-lo durante horas seguidas, que está noite já não obteria qualquer resposta mais. O Capitão voltou a falar. A sua voz adquiria um tom delicado e simpático.

- Todavia, quando se lida com um homem inteligente como o senhor, é mais indicado desdenhar o que ensinam os livros e usar de tato e consideração. Sei muito bem que mesmo se ficasse aqui toda a noite a fazer-lhe perguntas não conseguiria saber nada de novo.

- Tem toda a razão, Capitão - disse Ashley, bebendo outro trago de uísque e deitando-se a seguir na cama.

- Enquanto estivemos conversando lá embaixo - informou Gran­forte - os meus homens deram uma busca em seu quarto. Nada encon­traram que me pudesse interessar, exceto isto. - O Capitão apontou para os originais e prosseguiu: - Leio o inglês suficientemente para com­preender o sentido desta reportagem.

- Não encontrará nessas páginas o que procura - disse Ashley com indiferença.

- Não, mas descobri o que o senhor procurava. Notei espaços vazios, precedidos de anotações, que dizem: "Inserir fotocópia n.° 1", "inserir fotocópia n.° 2" etc... Gostaria de levar isto comigo.

- Sei que levaria mesmo, dissesse eu o que dissesse - respondeu Ashley - mas informo-o de que possuo mais duas cópias no meu es­critório em Roma.

- Aguarda, portanto, ainda os documentos finais para publicar a reportagem, não é verdade?

- Acertou. Agora, se não se importa, vá embora e deixe-me dor­mir... sim?

- A chantagem é um crime muito sério - disse o Capitão Granforte.

- Chantagem?! - Ashley levantou-se de súbito. - Julga então que eu tentei fazer chantagem com Orgagna usando esta reportagem?!

- Não seria impossível, Sr. Ashley - respondeu o Capitão, elevan­do a mão num gesto rápido para evitar que o jornalista se lançasse numa negativa veemente. - Pense bem. Que razão teria um nobre italiano, um homem rico e influente, para fingir que é amigo de um jornalista ame­ricano que, como este documento o prova, procura arruiná-lo? Que outra razão poderia tê-lo levado a oferecer a proteção do seu nome e a hospitalidade da sua casa a um homem que é amante de sua esposa?

- Não tem o direito de afirmar uma coisa dessas!

- Não, Sr. Ashley? - Granforte sorriu ironicamente e fez de novo um gesto largo com as mãos. - Foi o senhor quem confessou ter ido pas­sear esta tarde no lugar a que nós chamamos Il Deserto, o local preferido pelos amantes. Foi também o senhor quem me disse ter lá passado duas horas. Segundo o que os meus agentes informam, depois de terem ins­pecionado o local com lanternas muito potentes, as marcas dos pneus da Isotta vão até junto da capela em ruínas, onde a relva está pisada numa área bastante significativa. Que quer que eu pense? Que outra explicação o senhor me dá?

Ashley sacudiu a cabeça teimosamente.

- Não sou chantagista nem assassino.

- Tem motivos suficientes para ser ambas as coisas.

- Não.

- Sim. Sr. Ashley. O assassinato de Garofano permitiu-lhe adquirir documentos que o poderão levar a apossar-se da fortuna de Orgagna e de sua esposa.

- Sabe, por acaso, o que está dizendo?! Está insinuando que Cosima tomou parte no crime!

- Devo dizer-lhe que nunca deixei de admitir essa possibilidade ­ - afirmou Granforte friamente.

Ashley curvou-se para a frente e escondeu o rosto nas mãos. Res­pirou fundo e, desesperado, soltou um suspiro amargo. Fora vencido - e sabia-o. Para onde quer que se voltasse, em busca de uma jangada sal­vadora, só encontrava mais redes que o imobilizavam e lhe roubavam a coragem para continuar a lutar. O seu primeiro impulso foi contar a Granforte toda a verdade e deixá-lo agir à sua maneira.

Mal pensou, contudo percebeu que nada ganharia com isso. O que dissesse agora, fosse o que fosse, seria deturpado de maneira a poder ser aplicado a uma dúzia de hipóteses, todas elas contra ele. Nada podia fazer senão seguir por aquele caminho tortuoso e escuro, esperando encontrar alguma luz salvadora no seu final. Ashley levantou a cabeça e sorriu ironicamente para Granforte.

- Quer levar-me para a cadeia agora, Granforte?

O Capitão olhou-o estranhamente.

- Será isso que deseja, Sr. Ashley?

- Estou demasiado cansado para me importar. - Aquelas palavras eram as mais verdadeiras que dissera em toda a noite e também as mais amargas.Granforte sacudiu a cabeça.

- Quando quiserprendê-lo, meu amigo, não terei a menor dificul­dade em encontrá-lo. Boa noite, e sonhos cor-de-rosa!

            O Capitão Granforte levantou-se, acabou de beber o seu uísque e, com o manuscrito debaixo do braço, saiu do quarto.

Richard Ashley ficou estendido na cama, ainda vestido, a olhar para o teto. Estava só, finalmente! Livrara-se das maliciosas perguntas dos outros. Agora, sozinho e em silêncio, poderia pensar e tentar orientar-se no labirinto em que se encontrava perdido.

Primeiramente, a chave real de tudo: Enzo Garofano era irmão de Elena Carrese, a secretária e atual amante de Orgagna. A diferença de nomes nada significava. Qualquer homem podia mudar de nome, em­bora fosse talvez interessante averiguar como ele o conseguira em face da profusa documentação necessária ao mais simples processo oficial na Itália.

O importante era que o fato estabelecia a origem das fotocópias e das cartas em questão. Uma secretária que é simultaneamente amante do patrão tem acesso aos seus fichários mais confidenciais.

Mas que razões poderia ter aquela mulher para querer inutilizar o homem que a mantinha? Ciúmes? O passado de Orgagna apresentava-o como sendo um amante inconstante e muito difícil. Com as eleições à vis­ta e a possibilidade de entrar para o Conselho de Ministros, num país católico, era muito possível que Orgagna houvesse decidido desemba­raçar-se de uma ligação demasiado vistosa. Talvez fosse essa a razão da presença de Tullio Riccioli no jantar. Era costume, nos meios feudais, arranjar um casamento para a moça que as conveniências mandavam em dada altura afastar, e na Itália não seria difícil encontrar um homem que quisesse casar-se com uma beldade como Elena que, ainda por cima, gozava da proteção de um duque influente.

Aquela suposição apresentava-se, pelo menos aparentemente, bas­tante plausível, mas não explicava o histerismo de Elena nem a sua in­credulidade ante qualquer acusação a Orgagna, a não ser que este tivesse mentido sobre o caso. O Duque era muito sutil e experiente em questões de mulheres.

Ashley pensou então em Cosima, a querida e falsa amante dos outros tempos. Recordou que ela não fora interrogada na sua presença. Não haviam confrontado as suas descrições do acidente. As declarações dela tinham sido prestadas privadamente, apenas na presença de seu marido e de Granforte. Ashley não sabia se Cosima o havia atraiçoado mais uma vez, fazendo-o passar por mentiroso para salvar o marido. Era bem pos­sível que isso tivesse acontecido.

Recordou depois Arlequim, aquele agente de olhar frio e expressão impávida. Não passava de um profissional a cumprir uma incumbência do seu Governo. O drama não o perturbava e executava o seu trabalho sem a menor paixão, sem o mínimo entusiasmo. A verdade nada sig­nificava para ele. Só pensava na sua missão, mas tinha a franqueza de o confessar. Não era difícil lidar com um homem assim... Ou seria?

Granforte? Esse parecia um homem inteiramente diferente. Gran­forte fazia parte da organização do sistema de privilégios e preferências de Orgagna.

Os olhos de Richard Ashley fecharam-se. O sono apoderou-se dele e transportou-o, então, para um mundo de pesadelo onde Cosima o chamava do alto de um precipício e as ondas do mar rolavam sobre o cor­po de um morto com o rosto de Vittorio, Duque de Orgagna.

Quando Ashley acordou já era dia claro. Contudo, continuava com o corpo dolorido e o espírito ligeiramente confuso. Ouviu as vozes dos criados, o ruído característico de um aspirador no corredor e, receando que fosse muito tarde, pulou da cama e foi abrir as cortinas das janelas. O sol brilhava intensamente, ferindo-lhe os olhos, e lá embaixo, na praia, os primeiros banhistas, alegres e buliçosos, pareciam troçar da sua triste condição física e moral. Richard Ashley olhou para o relógio: eram sete e vinte! Ainda teria de aguardar duas ou três horas até que os Orgagna começassem a preparar-se a fim de partirem para a villa.

Quando se dirigiu ao banheiro para se barbear, o rosto que o espelho e mostrou era cinzento e bem marcado pelo cansaço. Os seus quarenta anos estavam agora acentuados por olheiras e rugas que ele nunca tivera. Tudo no aspecto de Ashley, após aquela noite desagradável e a fadiga do dia anterior, se apresentava absolutamente desanimador. Quando, por fim, acabou de barbear-se e friccionou o rosto com um produto que garantia a juventude eterna, verificou com satisfação que as suas faces haviam recuperado um pouco de cor e que a pele não estava                                 tão gasta pelos anos como a princípio pensara. Um banho quente e um desjejum ligeiro, com muito café - e Richard Ashley voltaria a ser o mesmo ho­mem.

Não seria bem o mesmo, claro, visto que dependia de Granforte e do Duque de Orgagna, e também porque um jornalista sem reportagens en­contra-se sempre numa situação embaraçosa junto ao jornal que lhe paga o ordenado e as despesas de representação. Mas, enfim, continuava vivo, ao passo que Enzo Garofano estava morto e longe de todas as preocu­pações. Isso era uma pequena consolação e Ashley sentia-se agradecido ao destino pelo fato.

Enquanto friccionava o corpo e lavava energicamente a cabeça, começando já a sentir-se mais reconfortado, Richard Ashley tentava pensar no que teria de fazer antes de trocar a liberdade do hotel pela atmos­fera hermética da villa de Orgagna. Ainda não decidira se deveria te­lefonar para o escritório e explicar tudo quanto lhe sucedera. Talvez não fosse aconselhável fazê-lo. Hansen, o chefe do escritório, era um homem incerto e dificil, que se preocupava mais com a administração do seu car­go do que propriamente com as reportagens e as noticias. Tinha pouca simpatia pelos excêntricos e faltava-lhe a paciência para atender os correspondentes que se apaixonavam demasiado pelos assuntos que pos­suíam entre as mãos. Hansen era bem capaz, se se encontrasse num dos seus momentos de má disposição, de retirar um repórter da sua missão e de o fazer regressar a Roma para que explicasse as suas atitudes.

Além disso, se soubesse que as fotocópias se haviam perdido, era também capaz de exigir a devolução dos fundos que se encontravam na American Express, e Ashley estava certo de que os dois mil dólares ainda viriam a ser-lhe muito úteis. O melhor seria ir buscá-los logo que a American Express abrisse as portas. Sim... seria isso que faria logo após o café.

Richard Ashley já começava a vestir-se quando o telefone tocou. Tratava-se de Arlequim, que lhe falou num tom de voz de pessoa bem­  disposta e prazenteira.

- Ashley? Desculpe-me telefonar-lhe tão cedo.

- Já havia levantado. Estou me vestindo.

- Queria falar com você antes da sua partida.

- Ótimo. Venha tomar café comigo.

- Aceito com todo o prazer. Onde?

- No meu quarto. Poderemos tomá-lo no terraço.

- Não me demorarei. Como se sente esta manhã?

- Terrível.

Arlequim riu e desligou: Ashley acabou de se vestir e, em seguida, encomendou dois cafés. Acendeu depois um cigarro e aguardou a che­gada do criado e de George Arlequim.

O inglês estava, de fato muito bem-disposto. Falou animadamente enquanto bebia a primeira xícara de café e comeu o desjejum como se fosse a coisa mais importante do mundo. Depois, evidentemente satis­feito, recostou-se na cadeira e olhou atentamente para o jornalista.

- Decidi ser franco com você, Ashley - disse ele, por fim.

Ashley não pareceu ficar muito impressionado com aquelas pala­vras.

- Para variar, sem dúvida... Mas por quê?

- Pensei que seria melhor falar-lhe com sinceridade.

Ashley ficou admirado, convencido como estava de que Arlequim proferira aquelas palavras sem ironia.

- Melhor... para quem?

- Para nós dois.

Ashley sorriu e preparou-se para o ouvir.

- Vejamos, então, até que ponto saber ser franco, Arlequim.

- Bem... - O inglês voltou-se para o lado da baía de Nápoles e continuou num tom de voz seco e impessoal: - Tenho certeza de que Garofano foi assassinado - disse ele. Fez uma pausa e acrescentou: ­Mas não sei bem quem o assassinou, se foi Orgagna ou você.

Ashley nada disse. Aquela declaração podia ser muito sincera, mas não constituía novidade para ele. Arlequim prosseguiu:

- Encontro-me numa posição muito curiosa. Se o culpado é você... tanto melhor... para mim. Poderei levar a cabo uma difícil jogada po­lítica que beneficiará o meu Governo. O fato afastaria qualquer receio de escândalo e de revelações inoportunas. Compreende-me, não é verdade?

O sorriso inocente de Arlequim assemelhava-se ao de uma criança.

Ashley não sorria, porque o inglês, apesar do seu ar infantil, era um homem muito frio e limitava-se a expor a realidade da situação.

- Compreendo perfeitamente...

- Se, por outro lado, foi Orgagna quem assassinou Garofano, para salvar a sua reputação pessoal, então, meu caro amigo, terei de acon­selhar o meu Governo a desinteressar-se do Duque e a pôr fim às ne­gociações com os seus colegas. Como vê, Ashley, estou numa situação muito melindrosa.

- Não resta a menor dúvida - disse Ashley, sorrindo pela primeira vez com verdadeira satisfação.

- Nós dois - continuou Arlequim - estamos numa situação em­baraçosa. O Capitão Granforte, que é um homem temível, acusou-o de todos os crimes possíveis e imaginários e, depois, entregou-o aos cui­dados de um homem que o odeia, meu caro Ashley. Se você é o culpado, devo dizer-lhe que não terei o menor escrúpulo em afundá-lo ainda mais, mas se está inocente - Arlequim fez uma ligeira pausa,                             para continuar


após uma hesitação quase imperceptível - ...se está inocente, meu bom amigo, então é muito possível que venha a ser assassinado tal como o foi Garofano.

- Um lindo futuro...

            - O que me conduz à minha pergunta de ontem à noite - disse Arlequim deliberadamente. - Tem as fotocópias ou não? Não quero que me responda. Só desejo salientar isto, que é muito simples: se não tem as fotocópias é porque está inocente e, então, precisará delas para se defen­der e proteger a sua vida. Uma vez que vá para a villa de Orgagna fica sob a vigilância constante do Duque e nada mais poderá fazer. Necessitará, portanto, de um aliado para o ajudar a recuperar as fotocópias o mais rapidamente possivel. Ofereço-lhe os meus serviços, se é que não as roubou a Garofano quando o matou. - Arlequim voltou-se para Ashley. Este continuava a olhar para o mar, parecendo pouco perturbado com a fala do inglês. - Ainda não confia em mim, não é, Ashley?

- Não!

            A resposta fora bastante brusca e fria, mas o inglês não mostrou ofender-se. Sorriu com aparente indulgência e encheu de novo as duas xícaras.

            - Esse é um dos grandes defeitos dos americanos: não compreen­dem a nossa linguagem.

- Se se refere à linguagem diplomática, às mentiras e às contra­dições, então concordo com você. Nós, os americanos, gostamos de palavras sem duplo sentido, simples e claras.

- Porque não têm de se preocupar verdadeiramente com o que sucede na Europa, meu amigo. Nós, aqui neste velho continente, fomos obrigados a viver durante tanto tempo no meio de fatos e incidentes desagradáveis que tivemos de nos habituar a uma técnica de impostura, de disfarce, ou até, talvez, de evasiva.

- Não vejo em que é que isso possa ajudá-los.

            - Pode ter a certeza de que nos ajuda muito... A vida seria muito monótona, demasiadamente simples, se o significado de tudo aquilo que dizemos ou fazemos pudesse descobrir-se à primeira vista.            .

            Ashley, apesar da desconfiança que sentia por Arlequim, foi obrigado a concordar com ele e sorriu sem querer.

            - Talvez tenha razão. Não compreendi bem aonde queria chegar. Explique-se melhor.

- É muito simples. Mesmo quando afirmamos o que é evidente, sem qualquer duplo sentido, não conseguimos nunca convencê-los de que estamos falando a verdade.

Ashley hesitou e encolheu os ombros, resignado.

- Está bem, Arlequim, vou dizer-lhe o que deseja saber. Não tenho as fotocópias e não faço a menor idéia do lugar onde elas se encontram.

            George Arlequim olhou para ele, mostrando-se pensativo e preo­cupado.

            - Agradeço-lhe a prova de confiança. Não a esquecerei facilmente. O seu futuro preocupa-me bastante.

            - Também me sinto um tanto preocupado.

            - Foi Orgagna, portanto, quem organizou a morte de Garofano e o fez com bastante habilidade. É bem capaz de lhe fazer o mesmo, meu caro amigo. Os assassinos não faltam nas ruas de Nápoles.

            - Creio que o Duque tem mais interesse em chegar a um acordo comigo.

- Só se ele pensa que você tem as fotocópias.

Ashley curvou-se para a frente.

- Você já me disse isso uma vez e foi essa a razão que me levou a desconfiar das suas intenções. Orgagna deve saber que não estou de posse das fotocópias.

- Por quê?

- É muito simples. Cosima esteve sempre comigo desde que eu me zanguei com Garofano, na sala do hotel, até ao momento em que levei o corpo dele para a Questura, em Sorrento. Estou certo de que ela contou ao marido tudo quanto se passou durante essas horas, talvez apenas com        exceção dos momentos mais românticos...

George Arlequim olhou-o com espanto.

- É isso que pensa, então?

- Não sei que outra coisa possa pensar...

- Mas que tolo... - disse Arlequim com doçura. - Não sabe que Cosima está apaixonada por você?

            Ashley sacudiu a cabeça e baixou o olhar sombriamente.

            - Cosima atraiçoou-me, Arlequim. Atraiçoou-me duas vezes por causa do mesmo homem. Nunca mais confiarei nela.

            Arlequim encolheu os ombros.

-Você é que sabe, claro. Devo dizer que não a conheço suficien­temente. E é pena. Vai precisar de um amigo em casa de Orgagna. Não sei o que será de você sem um aliado.

- Espero conseguir auxilio de Elena Carrese. - Ashley contou en­tão o que sabia acerca da secretária, não se esquecendo de dizer que Garofano era irmão dela e também como a moça o havia amaldiçoado por pensar que fora ele quem o matara.

- Arlequim assobiou de surpresa e ouviu atentamente tudo o que Ashley lhe contou. Depois, levantando-se e encostando-se ao parapeito do terraço, ficou a olhar para o mar. Voltou a sentar-se passados alguns minutos e começou então a descrever a situação tal como ele a via:

- Avisei-o logo de começo de que você não compreendia estas coisas. Creio que já as compreenderá melhor agora, mas ainda se encontra em terreno estranho e movediço. Está num velho e complexo país onde nada é tão simples como poderá parecer à primeira vista. Terá de aprender a pensar em paradoxos. Elena Carrese, por exemplo. Conheceu-a como uma mulher sofisticada de Roma e, apesar disso, ela amaldiçoou-o como o faria uma rude camponesa do Sul. Para a sua família, se é que ela tem família, Elena não passa de uma mulher de mau porte, devido a ter renunciado à sua vida honesta para se transformar na amante de um duque. Esse fato, porém, não a impede de chorar a morte de um irmão, que era um informante barato. Você considerou todos os motivos de sua atitude e escolheu aquele que melhor condiz com a sua habitual maneira de pensar: o ciúme. Eu, como conheço melhor a Itália e os italianos, poderia mencionar-lhe vinte outros motivos, cada qual mais forte... Não se esqueça de que se encontra entre um povo muito antigo, Ashley, resul­tado de dois mil anos de desordem, conquista e ambição. Os italianos vivem segundo uma norma que você desconhece. Respeitam tradições que para você são irrisórias, mas que constituem para eles o que há de mais importante. Depressa verificará que, se não compreender essa ver­dade, cometerá uma série de erros que o levarão à derrota.

- Essa sua teoria também se poderá aplicar a Orgagna? - pergun­tou Ashley.     

- Com toda a certeza - respondeu Arlequim, falando com exces­siva gravidade. - O que acabo de lhe dizer também se refere a Orga­gna. Li o que escreveu na sua reportagem e é tudo verdade. O Duque de Orgagna é um financista sem caráter, um político sem escrúpulos, um aventureiro com a ambição de governar. Mas isso não constitui toda a verdade, uma vez que é impossível resumir dois mil anos de História numa só frase. Um homem como Orgagna não pode nunca ser explicado por adjetivos. Não pode também ser aniquilado por uma dúzia de do­cumentos como o seu. Não sei como lhe poderia explicar o caráter do Duque. A sua única esperança será conseguir compreendê-lo por você mesmo... e depois...

Arlequim calou-se, como se não encontrasse palavras para explicar o que pensava.

Ashley respondeu-lhe, falando com suavidade.

- Já começo a compreendê-lo.

- Então, meu caro Ashley, não tardará a perceber o que me leva a recear pela sua vida.         

 

Quando Arlequim se despediu, depois de lhe recomendar no­vamente a máxima cautela nas suas negociações com Orgagna, Ashley fez as malas para que os criados as pudessem levar para baixo. Foi em seguida pagar a conta do hotel e depois encaminhou-se para o es­critório da American Express, a fim de levantar os dois mil dólares. Mos­trou o seu passaporte, assinou o recibo e, em troca, recebeu vinte notas de cem dólares, novinhas em folha, que guardou cuidadosamente na car­teira. O largo principal de Sorrento encontrava-se muito animado e toda a cidade estava banhada por um sol esfuziante.

O tráfego da manhã rolava lentamente em redor da estátua de Santo Antonino, patrono de Sorrento, o qual parecia olhar para os turistas, do alto do seu pedestal, com um sorriso tolerante, como se os abençoasse por virem enriquecer a cidade com as suas divisas e, assim, ajudar o seu povo a sobreviver no próximo inverno. Os turistas eram de todos os tipos, tamanhos e nacionalidades: franceses, americanos, alemães... moças e rapazes em busca de divertimentos; casais de meia-idade à procura de sol e de repouso etc. Alguns dos visitantes encaminhavam-se para as docas a fim de embarcarem para Capri; outros sentavam-se às mesas dos cafés a escrever postais para a família e amigos; outros, ainda, invadiam as lojas na esperança de encontrar qualquer objeto típico próprio para oferecer ou decorar as suas casas nos respectivos países de origem. Não faltavam, também, os que se limitavam a beber café e a comer biscoitos nas es­planadas, ao ar livre, de onde observavam, aqui e ali, um ou outro turista a discutir com os cocchieri o preço de uma viagem a Positano ou a Massa Lubrense.

Criados, de sandálias e casacos de algodão listrados, lavavam as mesas de mármore dos bares. Camponesas, vestidas à moda da região, passavam com bilhas à cabeça. Os intérpretes e os guias aguardavam junto dos ônibus, enquanto um policial de uniforme verde e com uma pistola preta no cinto, apitava incessantemente, num esforço desesperado para pôr fim ao caos do trânsito em volta da estátua de Santo Antonino.

O espetáculo era alegre, barulhento, encantador, mas Ashley sentia­se tão longe dele como da Lua.

Acendeu um cigarro e ficou a fumá-lo junto do portão que dava acesso aos jardins do Hotel Caravino. Um maltrapilho aproximou-se e ofereceu-lhe cigarros americanos a um preço ridículo. Ashley afastou-o com um gesto impaciente. O mais certo era que aqueles cigarros tivessem sido manufaturados numa "fábrica" familiar de Nápoles com as guimbas que os pedintes apanhavam do chão e das valetas imundas da cidade.

Uma velha pediu-lhe esmola. Ashley deu-lhe um punhado de moedas e ela afastou-se a abençoá-lo roucamente, em nome de Deus, da Virgem Maria e dos vinte e oito santos de Sorrento.

Um vendedor otimista tentou levá-lo a comprar um chapéu de palha. Uma menina, muito bonita, de uma escola religiosa, pediu-lhe dinheiro para as obras do convento. O corretor de um restaurante quis convencê-lo a frequentar a casa onde melhor se comia em toda Sorrento - segundo ele afirmava - e a trocar dinheiro. Foi então que Ashley viu Roberto, o barman.

Atravessava o largo, a caminho do hotel. Vinha de cabeça baixa e seguia apressadamente como se já tivesse atrasado. Ashley interceptou-o quando ele ia alcançar o portão.

- Bom dia, Roberto!

O barman olhou para ele, surpreendido, e sorriu-lhe nervosamente ao mesmo tempo que resmungava um bom-dia sem vontade. Roberto tentou afastar-se, mas Ashley agarrou-o por um braço e conduziu-o para debaixo de uma palmeira. O local era bastante discreto, longe da vista do público e ideal para a conversa que pretendia ter com o barman.

            Roberto procurou libertar-se, mas Ashley segurou-o com força e tor­ceu-lhe o braço. O barman olhou-o com certa apreensão.

            - Signore, peço-lhe que... pelo amor de Deus! Já estou atrasado para o trabalho. Por favor... que deseja de mim?

Roberto voltou a tentar libertar-se, desta vez com um gesto bastante brusco, e Ashley torceu-lhe ainda mais o braço, obrigando-o a ficar imóvel e com o rosto contraído pela dor.

            - Se tornar a fazer isso - disse Ashley firmemente - desloco-lhe o braço. Entendido?

            - Capito! - murmurou o barman, com um terror abjeto.

            - Você me deu um recado ontem, Roberto. Uma mensagem de al­guém que me recomendava não confiar em Garofano. Paguei-lhe cinco mil liras pelo serviço, mas agora quero saber mais. Quem o encarregou dessa mensagem?

Roberto tremia de pavor. Ashley percebeu isso, nitidamente, pela expressão dele e pelas fortes palpitações do seu coração.

- Quem o encarregou da mensagem?

- Não... não sei, signore.

- Mentira - exclamou Ashley, voltando a fazer pressão sobre o braço do outro. Ashley envergonhava-se daquela brutalidade, mas a sua vida corria perigo e era essencial que Roberto lhe respondesse. - Quem foi? Como se chama esse homem?

- Não me disse o nome, signore. Foi um homem que eu nunca tinha visto... talvez de Nápoles. Deu-me o recado e um sobrescrito com dez mil liras.

- E que mais?

- Deu-me também o número de um telefone.

- Que número? - Ashley, muito excitado com aquela revelação, voltou a torcer o braço do infeliz.

- Por favor, signore. Vai acabar me matando. Vou dizer-lhe tudo que sei.

- O número do telefone?

- Era o que eu deveria discar se o signore saísse do hotel. Eu teria de dizer a que horas e com quem o signore saíra.

- E foi isso que fez então?

- Sim, signore.

- Quando?

- Logo depois de o signore sair com Sua Excelência.

- Que número era?

- Eu... eu esqueci, signore.

- Recorde-se!

- O número era... Sorrento 673.

- Tem mais alguma coisa a acrescentar?

- Não, signorel O homem só me disse o que eu já lhe contei. Juro-o pelos ossos de minha mãe, sobre a sepultura de meu pai!

- Para que lhe teria ele dado um recado que nada significa?

- Não sei, signore.  

- Adivinhe!

- Talvez para lhe causar uma certa desconfiança por Garofano, para que se zangassem...

- Para provocar o que de fato aconteceu?

- Não vejo outro motivo.

- E. Contou ao telefone, então, o que se passou?

- Sim, signore.

- Se está mentindo, Roberto...

- Signore... tenha piedade de mim! Juro que lhe disse toda a ver­dade.

Ashley soltou-o e o barman afastou-se rapidamente, resmungando palavras entre dentes e esfregando o braço dolorido. O jornalista não es­tava muito ressentido do que ele fizera. Era parte do seu trabalho num país onde as pequenas gratificações por serviços daquela natureza cons­tituíam boa garantia de vida. Os tempos continuavam muito difíceis na Itália e um homem não podia prestar muita atenção à moral de uma ação que lhe rendia dez mil liras e contribuía para a alimentação da esposa e de três bambini.

Ashley voltou para a praça, atravessando-a em frente à estátua de Santo Antonino, e dirigiu-se a um bar, onde pediu licença para se servir do telefone.

            Discou cuidadosamente o número 673 e, logo a seguir, ouviu uma voz de homem que disse:

            - Pronto! Villa Orgagna.

            Ashley desligou o telefone e saiu do bar. O calor aumentara, toman­do-se quase insuportável, mas ele estremeceu com um arrepio de frio que lhe percorreu todo o corpo.

Quando chegou ao hotel, Ashley encontrou a Isotta estacionada em frente da porta e, atrás dela, uma pequena caminhonete, dentro da qual dois criados arrumavam cuidadosamente uma porção de malas, sob o olhar atento de um chofer trajando um elegante uniforme azul. O gerente despedia-se de Cosima e de Orgagna, no hall do hotel, com exagerado formalismo, enquanto Elena Carrese e Tullio Riccioli aguardavam a al­guma distância, falando em voz baixa.

A chegada de Richard Ashley apressou as despedidas e dois minutos depois todos tomavam os seus lugares na Isotta: Orgagna e Cosima à frente, Tullio e Ashley atrás, com Elena entre eles.

Orgagna conduziu o automóvel com grande perícia por entre o enor­me tráfego que se aglomerava nas ruas de Sorrento e, em seguida, tomou a tortuosa e íngreme estrada que ligava a cidade à extremidade ocidental da península.

Estava muito bem-disposto, dirigindo velozmente, enquanto in­dicava os pontos mais interessantes da paisagem e fazia comentários graciosos sobre certas curiosidades locais. Era evidente que se esforçava em ser agradável e todos correspondiam a essa boa disposição, com exceção de Elena Carrese, que continuava empertigada e indiferente entre Tullio e Ashley.

Alcançaram, por fim, a propriedade do Duque e, quando o carro parou no final de uma avenida ladeada de oliveiras, Ashley viu um enor­me escudo com as armas da Casa de Orgagna esculpido em metal num portão enorme, que logo foi aberto quando Orgagna tocou a buzina. Quem abriu foi um velho de cabelos brancos, que depois se encaminhou para o automóvel e beijou a mão do amo, ao mesmo tempo que o abençoava e lhe dava as boas-vindas. Orgagna sorriu-lhe e falou-lhe no dialeto local, afagando-lhe a cabeça afetuosamente, após o que voltou a por a Isotta em movimento só tornando a parar em frente da villa.

Logo que pôde observar a casa, Ashley ficou chocado. Sem saber bem por que, esperava encontrar uma daquelas villas brancas e qua­dradas com os arcos mouriscos que abundam em Capri. Julgava que ia ver uma casa de praia, uma villa tipicamente de férias, muito simples e apenas com o conforto essencial para os períodos curtos e uma vida des­preocupada e singela.

Em vez disso, porém, deparou com uma magnífica residência de três andares, em estilo barroco, com terraços ricamente decorados, enormes portas de talha artística e uma, escadaria de mármore que se abria sobre um estupendo relvado. Este estendia-se até os laranjais e olivais que cobriam o resto da propriedade. A paisagem era encantadora. As cores das flores nos diversos canteiros e o azul distante do Mediterrâneo acres­centavam ainda a sua beleza à imponência da bela residência e dos velhos pinheiros que a abrigavam de ventos.

A porta principal abriu-se logo que Orgagna deteve a Isotta e um elegante mordomo desceu a escadaria para vir recebê-los. Ashley notou, então, alinhados na grande sala de entrada, sete ou oito criados e criadas, nos seus uniformes muito coloridos, à espera de serem inspecionados pelo seu nobre amo. Tratava-se de uma recepção principesca a Sua Excelên­cia, o Duque de Orgagna.

O mordomo auxiliou-os a sair do automóvel - Orgagna em pri­meiro lugar, Cosima a seguir e os outros depois - tendo para cada um deles manifestações de respeito cuidadosamente calculadas segundo as respectivas categorias sociais. Quando chegou a vez de Elena Carrese, o velho tomou-a nos braços, beijou-a em ambas as faces e abraçou-a du­rante um momento. A moça beijou-o também com um prazer e uma emoção evidentes, e AshIey pensou que ela ia começar a chorar.

Orgagna reparou na expressão de surpresa do jornalista e sorriu:

- O chefe do pessoal da minha casa: Carlo Carrese. É o pai de Elena.

- Oh!

O comentário não fora muito inteligente, mas que poderia Ashley ter dito? Estava cercado por mistérios e as relações domésticas de Orgagna constituiam o maior de todos eles.

Quando os cumprimentos e todo o cerimonial da chegada termi­naram, sem esquecer a inspeção dos criados alinhados no hall, Ashley foi conduzido ao primeiro andar, a um vasto quarto quadrado com uma cama de colunas e um teto em talha, cujas janelas se abriam sobre as oliveiras para uma pequena baía circular rodeada de rochedos que caíam a pique sobre o mar.

O quarto estava cheio de sol e, logo que a criada o deixou só, Ashley ficou de pé, examinando o aposento.

O compartimento chegaria para alojar um exército. A própria cama, apesar de enorme, parecia insignificante naquela vastidão. O teto era muito rico em talha dourada e os mosaicos do chão, com desenhos de pétalas de rosa, apresentavam-se à sua curiosidade tão artísticos e de­licados que ele quase se sentiu tentado a tocá-los. As cômodas e os armários eram florentinos e a chaminé, toda de mármore, uma obra-prima do estilo barroco.

A opulência do quarto teria oprimido Ashley se o sol não entrasse a jorros pelas janelas e não lhe emprestasse o tom alegre e luminoso que naquele momento apresentava.

Richard Ashley encontrava-se de novo diante desta realidade: era um estrangeiro, um homem de um novo mundo em face dos esplendores da velha Europa.

Bateram à porta e outra criada entrou no quarto, com a sua mala e o seu saco de viagem. Ashley fez menção de a ajudar, mas ela esquivou-se, sempre sorridente. Abriu a mala e arrumou os temos e demais roupas, tendo o cuidado de pôr de lado a roupa suja para lavar.

Ele acendeu um cigarro e ficou a observá-la. Descobriu um ines­perado prazer na contemplação do seu rosto jovial e simples e agradou-­lhe ver as suas mãos grosseiras ocupadas naquele humilde serviço. A criada, na fantástica situação em que se encontrava Ashley, representava para ele o seu primeiro contacto com a realidade, e este, muito agra­decido, perguntou-lhe:

- Come ti chiam '? Como se chama?

- Concetta.

- Já trabalha aqui há muito tempo?

A criada levantou a cabeça num gesto de orgulho e sorriu agradavel­mente.

            - Son della famiglia, signore. Pretenço à família. Sou a criada da Duquesa. Foi ela quem me pediu que cuidasse do senhor.

- A Duquesa é muito amável.

- C'e una cara, signore.

E, dizendo isto, pegou a roupa suja, meteu-a no saco de viagem e saiu do quarto.       

- C'e una cara! Uma querida, não havia dúvida! Querida e desejável - mas diabolicamente dispendiosa para um homem que alcançara a meia-idade e havia descoberto que possuíajá tão pouco amor em si que era obrigado a dosá-lo cautelosamente para que não chegasse a perdê-lo de vez. Os cínicos seriam capazes de dizer um gracejo de mau gosto a esse respeito, mas era verdade: os anos haviam domado o corpo, mas não ainda saciado a alma. O amor, em conseqüência, secava tal como seca a seiva de uma árvore, fazendo-a morrer de cima para baixo. Um homem pode morrer só, por aciidente ou por um ato e Deus, mas aquele que morre sem amor é verdadeiramente infeliz.

Este pensamento de Ashley era demasiado mórbido e ele tentou afastá-lo. Depois de haver trocado o paletó e a gravata por uma echarpe colorida, desceu até o andar de baixo e dirigiu-se para o terraço.

Orgagna estava sentado ao sol, olhando para as colinas distantes que se erguiam sobre o mar, mas, ao ouvir os passos de Ashley, voltou-se e sorriu-lhe.

- Venha para cá, Ashley. Está confortavelmente instalado? Gosta do seu quarto?

- Muito. Obrigado pela sua atenção.

- Que tal lhe parece a minha casa?

- Muito agradável. Devo dizer-lhe que o invejo.

- Permita-me que lhe mostre a propriedade.

- Claro.

Orgagna sorria-lhe com tanto prazer e falava-lhe com tanta sin­ceridade que se tomava quase impossível acreditar que fora aquele homem quem planejara um assassinato para encobrir uma série de ações ilegais e criminosas. Embora de forma muito estranha, Ashley sentia-se grato para com ele. Viver ali em guerra aberta demandaria um esforço intolerável.

O Duque tomou-o pelo braço e conduziu-o ao outro extremo do terraço, onde Ashley foi encontrar outra linda escadaria, ladeada por duas estátuas de mármore: um fauno e uma bacante, no límpido e suave estilo de Canova. A escadaria conduzia a um caminho de cascalho que serpenteava por entre o relvado e seguia até aos laranjais e ao mar.

Orgagna, enquanto ambos caminhavam lentamente naquele pa­raíso, falou-lhe não com as frases vazias do diplomata, mas com sim­plicidade, como um homem que apreciava os prazeres proporcionados pela sua propriedade.

- Sempre que volto aqui, o que agora acontece raramente, sinto-me de novo como um, rapazinho inexperiente. Não sei se já sabe, mas foi aqui que eu nasci. Brinquei à sombra destas oliveiras. Aprendi a nadar na­quela praia ali embaixo. Pesquei o meu primeiro peixe daqueles ro­chedos: um enorme scorfano, muito vermelho. Pesava quase um quilo.

Tenho um palácio em Roma... possuo muitas outras casas em toda a Itália. Mas, para mim, esta casa é que é o meu lar. Compreende o que quero dizer?

- Com certeza que sim. Todos nós temos o nosso lar, um lar único, que nunca trocamos por qualquer outro.

- Minha família já possuía estas terras antes da existência da Casa de Sabóia, dos Bourbons e do Reino das Duas Sicílias, antes de Amalfi ser a primeira república da Itália. Aquelas ruínas que vê ali são os restos das velhas torres que os meus antepassados construíram no tempo dos piratas bárbaros. Minha família tem uma história longa e turbulenta. Perdemos várias lutas, ganhamos outras, mas durante séculos, e apesar de todos esses incidentes, nunca perdemos estas terras. Foram os nossos camponeses os únicos que as cultivaram e os nossos pescadores sempre pescaram nas suas águas. Construímos as nossas casas e assistimos à sua destruição, pelo tempo, pela guerra ou pelos terremotos... mas nunca hesitamos em reconstruí-las para mantermos vivo o nosso lar. Os nossos criados têm sido sempre os filhos dos criados dos nossos pais. Os nossos relvados crescem sobre os corpos dos nossos mortos. As nossas flores nas­cem do estrume do nosso passado. É algo... algo que devemos recordar, non è vero?

- De fato - respondeu Ashley sombriamente. - Sem dúvida.

            - Alegro-me de o ouvir falar assim, Ashley. Vejo que tem um co­ração muito sensível, embora, às vezes, não pareça. Confesso-lhe uma coisa, Ashley... algo que, por vezes, é demasiado para mim. Sabe por quê ?...

O Duque fez uma pausa. Continuou, todavia, a caminhar, apro­veitando agora a sombra de umas árvores que ladeavam o caminho para os rochedos. Ashley reparou numas crianças que brincavam perto de um muro e lhes acenaram alegremente. Orgagna riu e retribuiu-lhes os acenos com simpatia. Depois, o seu rosto tornou-se sombrio e, então, vol­tou a falar:

- Eis ali a razão, Ashley. As crianças. Cosima nunca me deu um filho. Sou o último da família. O nome de Orgagna morrerá comigo... e o passado morrerá também...

            - Ainda há tempo para... - começou Ashley a dizer com o máximo cuidado.

            - Quando não há amor - concluiu Orgagna suavemente - nunca há tempo suficiente para o que quer que seja.

            Orgagna fez nova pausa e olhou para o mar. Estava pensativo e preocupado.

            - É isso que, para nós, constitui a razão de viver... Este desejo de estabelecer uma residência permanente na Terra, da qual a morte nos afastará, um dia, forçosamente. É isso que nos leva também de uma mulher para outra, de uma ambição para outra. Nós somos cegos, Ashley, cegos pelo desejo de nos perpetuarmos, antes que as forças nos abandonem e os jovens venham tomar o nosso lugar.

As aves trinavam alegremente, a saltitar de ramo em ramo. Sobre as pedras, lagartixas dormiam ao sol, preguiçosamente. Naquela atmosfera reconfortante, os dois homens fIcaram a olhar para o vale, onde o calor vibrava no ar do verão. Orgagna endireitou-se e sorriu como se quisesse desculpar-se.

- Estou aborrecendo-o, com certeza, meu amigo. Desculpe-me. Continuemos o nosso passeio.

Voltando a tomar o braço de Ashley, à maneira italiana. Orgagna conduziu-o pelo caminho que desembocava nas ruínas das torres que os seus antepassados haviam construído para se defender dos infiéis.

Ashley levou algum tempo até compreender as intenções de Orgag­na. O Duque preparava a própria defesa, e, pelo que podia perceber, não restavam dúvidas de que ela prometia ser impressionante.

A forma eficiente como a propriedade de Orgagna estava sendo cul­tivada também era impressionante. Ashley conhecia bem o baixo nível da agricultura no Sul da Itália: os seus métodos primitivos, a pobreza do gado, o mau uso da terra, a ausência completa de fertilizantes ou adubos tratados. Notara esse estado de coisas não só entre os pequenos lavra­dores mas também nas grandes herdades de Puglia e Calábria, cujos proprietários forçavam o pessoal a esgotar as terras para que eles pudes­sem conservar as suas grandes villas em Frascoti e os seus luxuosos barcos de recreio em Rapallo. 

Aqui, porém, não se procedia assim. As árvores de mais idade não deixavam de ser tratadas e a terra apresentava-se devidamente cultivada e adubada. Ashley não pôde deixar de reparar numa grande quantidade de árvores muito jovens, cientificamente plantadas e regadas. Por toda parte se notavam método e arranjo. Os canais de irrigação haviam sido plantados segundo os mais modernos sistemas, e as novas laranjeiras, importadas da Austrália e da Califórnia, já cresciam prometedoramente.

Quando Ashley comentou o fato, Orgagna sorriu-lhe.

- Ficou surpreendido, não é verdade, Ashley? Por quê?

- Os seus processos são raros nesta parte do mundo.

- Demasiados raros, concordo - respondeu Orgagna muito sério. - Não é possível transformar um país de um dia para o outro. A ignorân­cia e a superstição de séculos não podem ser eliminados em cinco, dez ou mesmo vinte anos. Nada disto se pode conseguir em tão pouco tempo sem uma educação muito completa e persistente, e, para isso, são necessários educadores. Também são imprescindíveis comunicações, estradas, pon­tes, cabos elétricos, telefones e tudo o mais que espalhe a educação por todo o território.

Ashley assentiu. O que Orgagna afirmava era evidente. O que não era evidente era onde Orgagna queria chegar com todo aquele pala­vreado. Pensou, durante um breve momento, que o Duque ia mudar o rumo da conversa. Os dois homens haviam alcançado a zona rochosa da propriedade e Ashley descobriu um pequeno rebanho de cabras guardado por um velho pastor que se sentara numa pedra a uns trinta metros de distância.

Orgagna apontou para ele.

- Olhe bem para aquele velho, meu amigo. Tente entendê-lo e talvez venha a compreender os problemas do nosso pais. Tem sessenta anos de idade, embora pareça ter oitenta. Faz este trabalho desde os dez anos. Não sabe ler nem escrever. Se lhe falasse em italiano, ele não compreen­deria uma única palavra, e o seu dialeto também seria um mistério para você. Viveu aqui durante toda a sua vida e não foi mais de duas vezes a Sorrento, apenas a quinze quilômetros de distância. Pergunte-lhe por que e ele lhe dirá que tem tido uma vida boa aqui e não vê qualquer razão para mudar. Tem sido muito feliz, à sua maneira, e não compreende que essa felicidade não possa ser suficiente para os seus filhos e os seus netos. Esse velho e centenas de milhares como ele são o maior problema que temos hoje na Itália.

- Não concordo - disse Ashley secamente.

Orgagna olhou-o, admirado.

- Por quê?

Ashley manteve-se silencioso durante um longo momento. Dissera aquelas palavras quase sem pensar, mas agora que as dissera sabia que elas haviam feito surgir o momento decisivo. Seria prudente prosseguir com aquela conversa cheia de insinuações? Deveria ele continuar a viver na casa de um inimigo, e comer do seu sal, lembrando-se de que amara a sua esposa, sorrindo-lhe à mesa, mas odiando-o e planejando a sua ruina? Ou deveria acabar com aquela situação sem mais cinismos, pôr as cartas na mesa e enfrentar o adversário?

Orgagna repetiu a pergunta.

- Por que, Ashley?

- Existem muitos homens como esse pastor - respondeu Ashley, apontando para o velho - nas aldeias inglesas, nas montanhas de Catskill, nos campos da Austrália, na Holanda, por todo o mundo, afinal. A responsabilidade do futuro não recai sobre eles. Essa respon­sabilidade cabe aos homens que têm a sorte de possuir educação, influên­cia, riqueza e poder e que, mais freqüentemente do que seria de esperar, se servem desses atributos para aumentar os seus lucros e não para be­neficiar o povo.

Ashley dissera o que sentia e estava contente e aliviado pelo desa­bafo. Sentia igualmente que recuperara algo da sua dignidade. A pró­xima jogada era de Orgagna.

Orgagna, porem, nao se deixou vencer por aque as palavras. Era também demasiado sutil, muito perspicaz para discutir com um homem que ainda possuia algum poder sobre ele. O Duque de Orgagna voltou­-se, então, para as ruínas da velha torre que se erguia sobre o mar e falou num tom de voz muito calmo:

- Olhe para aquela torre, Ashley. O homem que a construiu foi um meu antepassado direto. Tinha o mesmo nome que eu: Vittorio. Era um homem desagradável, tal como eu talvez o seja. Um rufião, um bêbado, um desavergonhado. As.moças da aldeia nunca estavam seguras na sua presença e sabe-se que deixou algumas dezenas de bastardos e maltratou muitos dos seus vassalos, mas essa gente, apesar de tudo, adorava-o. O seu nome ainda hoje é recordado nestas terras. Vittorio tornou-se uma figura lendária. E sabe por quê? Quando os piratas atacavam a costa e desembarcavam na península, o que sucedia com bastante freqüência, o meu antepassado reunia todos os seus mercenários, armava os cam­poneses e vencia os invasores, assumindo ele próprio o comando da batalha e lutando sempre como um leão. Que importância tinha que ele se embriagasse? Que importava que fosse brutal, que obrigasse a sua gente a pagar impostos exagerados, que seduzisse algumas moças? O que importava era que ele conseguia proteger a terra e mantê-la intacta em face de um inimigo feroz. O povo sabia, e ainda hoje sabe, que, afinal de contas, o que verdadeiramente importa é a terra. Vittorio era forte e o povo precisava da sua força... tal como agora precisa da minha, Ashley! Como, aliás, sempre precisará!

Depois de proferir estas palavras, Orgagna afastou-se, encaminhan­do-se devagar para as árvores e calcando pesadamente a relva ressequida e queimada pelo sol.

Ashley olhou para a velha torre de pedra, já quase destruida, mas ainda de pé, à mercê dos ventos e do mar. Ele sentiu que os fundamentos cuidadosamente planejados da sua reportagem estremeciam e amea­çavam ruir como um castelo de cartas.

 

       Ashley começava a sentir os efeitos do calor. Transpirava abun­dantemente e a impressão que lhe causavam as roupas, ao colarem­-se-lhe ao corpo, era-lhe desagradável. Decidiu, pois, tomar um banho nas águas tranqüilas do Mediterrâneo. Procurando por entre os rochedos, não tardou a encontrar um caminho tortuoso e acidentado, que descia para a praia ou, mais exatamente, para uma minúscula baía, onde as águas aparentavam uma serenidade convidativa e os rochedos se en­tremeavam com dunas de areia. Já quase a alcançar o nivel do mar, após uma descida um tanto perigosa, Ashley escorregou numa pedra solta. Praguejando, tentou recuperar o equilibrio, mas não o conseguiu e foi estatelar-se na areia.

Ouviu, então, o riso alegre de Cosima.

            A Duquesa de Orgagna estava estendida numa enorme toalha de praia. Vestia um maiô tão sumário que lhe descobria, quase na totalidade, o belo corpo bronzeado. Os olhos de Cosima escondiam-se atrás de óculos escuros, mas os seus lábios sorriam e os seus ombros ainda eram sacudidos pelo riso que a brusca queda de Ashley lhe provocara.

Este levantou-se e foi sentar-se a seu lado.

            O sorriso desapareceu imediatamente do rosto de Cosima. Abraçou Ashley e falou-lhe com um carinho e uma emoção que ele não sabia se eram reais ou fingidos.

- Richard...! Caro mio! Esperava que viesse para junto de mim.Es­perava-o com ansiedade... não tive tempo para pedir isto a você. Este é o primeiro momento de solidão que passo desde ontem. Tenho tanto que lhe dizer... tanto que lhe explicar! ... Beije-me, caro mio!

Ashley, por já haver enveredado por mau caminho, por precisar até da mais simples informação que ela lhe prestasse e também por conti­nuar, apesar de tudo, a amá-la, fez o que Cosima lhe pedia: beijou-a. A sua pele parecia-lhe de veludo. Seus lábios enfeitiçavam-no. O corpo bronzeado de Cosima rendia-se a Ashley, mas este, fazendo um esforço inaudito, libertou-se dela e falou-lhe roucamente:

- Fui dar um passeio com seu marido, mas ele voltou para casa e eu pensei em vir nadar um pouco.

- Foi uma sorte, Richard. Assim podemos nadar juntos.

- Primeiro temos de conversar.

Ashley, despiu a camisa e deixou-a cair na areia. Cosima sentou-se e pôs os braços em volta dos joelhos. Fitava-o, mas Ashley não conseguia ver-lhe os olhos, o que o levou a estender a mão e a arrancar-lhe os óculos escuros. Cosima pestanejou, devido à intensa luminosidade do dia, mas não tentou recuperar os óculos. Os olhos brilhavam-lhe de ternura e com­preensão. Para Ashley, porém, aqueles olhos estavam cheios de mentiras.

- Temos de conversar, não é verdade?

- Temos, sim.

- O que se passou ontem foi horrível... as perguntas, as longas dis­cussões, as mentiras, a comédia que tive de representar para fingir que já       não amava você, que não me importava o que lhe pudesse acontecer...

Ashley sorriu e falou-lhe com gentileza.

- Você representou muito bem.

Agora eram os olhos do próprio Ashley que se enchiam de menti­ras... mentiras causadas por Cosima e que ele nunca perdoaria a si próprio nem a ela.

- Que pensa o seu marido... de nós? - perguntou Ashley, falando quase num murmúrio. ­

- Nada, Richard. O fato de sermos ou de termos sido amantes nada significa para ele. Há já muito tempo que não nos amamos. Vittorio não se preocupa com as inclinações do meu coração. Só sou importante para ele, como esposa, politicamente... Você, por outro lado, é importante para ele por ter poder suficiente para o arruinar.

- Para que a comédia, então?

- Para o Capitão Granforte, para George Arlequim... e creio que, também, para Tullio e Elena.

- Por que para eles? Elena é amante do seu marido, não é? Cosima sorriu.

- Foi. Agora, contudo, tornou-se inconveniente para ele. Não fi­caria bem nos meios governamentais. Antes de sair de Roma. Vittorio disse-lhe que tinha esperança de se reconciliar comigo, mas o meu encon­tro com você destruiu essa ficção, embora meu marido insista em mantê­-la. Foi por isso que trouxe Tullio conosco. Deseja casá-lo com Elena.

Ashley teve um sorriso irônico.

- Não me parece que Tullio se incline muito para as mulheres...


- E, por conseguinte, para ele é indiferente casar-se ou não. O que lhe interessa é que meu marido pagar-lhe-á bem o serviço.

- Que diz Elena a tudo isso?

Cosima encolheu os ombros.

- Menos do que você pensa, Richard. Existem muitas moças como ela no nosso país e poucos homens que tenham posses para as desposar. Elena tem apenas duas soluções: procurar outro protetor ou, então, casar-se com Tullio e viver com o dinheiro que meu marido lhe dará e com a liberdade de uma esposa desdenhada. Creio que preferirá esta úl­tima solução.

- Acha que ela está apaixonada por seu marido?

- Esse é que é o mal, Richard - respondeu Cosima, muito séria. ­Creio que está, e tenho muita, muita pena dela.

Ashley começava: a ficar satisfeito consigo mesmo. Já descobrira al­guns fatos interessantes e Cosima ainda não lhe mentira. Não tardaria muito, porém, para que as mentiras começassem. Ele formulou a per­gunta seguinte com todo cuidado.    

- Cosima, você sabe em que posição me encontro, não sabe?

- Com toda a certeza... e tenho muito medo do que lhe possa acon­tecer, Richard.

- Compreenderá, então, que qualquer resposta que dê às minhas perguntas será importantíssimo, embora possa parecer trivial e irrelevan­te.

- Compreendo, sim.

- Pois bem, o que eu tentava comprar a Garofano?

- Fotocópias de certas cartas escritas por meu marido.

- Como sabe disso?          

- Você me disse que Garofano não lhe quis vender determinadas informações pelo preço combinado e que essa fora a causa do seu desen­tendimento com ele. Meu marido contou-me o resto.

- Quando?

- Quando voltei para o hotel... depois do acidente.

- Como é que ele o sabia?

- Não tenho a minima idéia. Tudo o que sei é que, desde que você iniciou suas investigações, ele tem estado sempre a par dos seus movi­mentos e dos seus contactos. Isto... não seria muito dificil, não é mesmo?

- Sabe quem era Garofano?

- Não. Ouvi o Capitão dizer que era funcionário público em Ná­poles. Não sei mais nada.

- E o seu marido?

- Se sabe mais alguma coisa sobre Garofano, não me disse.

- Para que você queria que eu mentisse acerca do acidente?

Os olhos de Cosima manifestaram bem a surpresa que a inesperada pergunta lhe causara, mas ela respondeu sem a menor hesitação:

- Já lhe expliquei, Richard. Não é aconselhável dramatizar o que quer que seja com a nossa Polícia. E tive razão, não tive?

- Sim, teve. Explique-me agora, o que levou seu marido a trazer­-me para cá, quando podia ter-me deixado nas mãos da Polícia.

            Cosima olhou-o sombriamente.

            - Creio que ele é o culpado da morte desse Garofano... a razão deve ser essa.

            A brusquidão com que ela o disse surpreendeu Asbley. Este, porém, manteve-se silencioso e Cosima prosseguiu:

- E, além disso, mesmo que não seja ele o culpado, desejou cer­tamente evitar um escândalo, em que o meu nome seria envolvido, e com o qual, por conseguinte, ele próprio sofreria. O escândalo seria inopor­tuno e prejudicial para a sua carreira. À parte isto - Cosima hesitou e fez uma breve pausa - à parte isto, meu marido julga que você tem as fotocópias. Deseja negociar com você, ou forçá-lo a entregá-las a ele.

Aquela mentira parecia-lhe tão evidente e desnecessária que Ashley se esqueceu de conservar a prudência que se impusera e afastou-se de Cosima, exclamando:

- Puxa, Cosima! Como é que você pode dizer isso!? Seu marido deve saber que eu não tenho as fotocópias. Você bem viu que Garofano se recusou a vendê-las a mim. Esteve comigo desde esse momento até eu voltar a levar você para o hotel. Deve ter contado ao seu marido o que aconteceu.

Calma e firmemente, Cosima respondeu-lhe:

- Contei-lhe, sim. Disse-lhe que vi você lutando com Garofano e que lhe havia tirado um sobrescrito do bolso do casaco. Vittorio acre­ditou, Richard.

- Para que lhe disse isso?

- Se eu não o dissesse, caro mio, você estaria agora na prisão... ou abandonado num barranco, morto como Garofano.

            Ashley olhou para Cosima e notou uma expressão de angústia e de surpresa no seu rosto. Compreendeu, então, que fora um perfeito im­becil, mas, logo a seguir, cometeu um erro ainda maior. Puxou Cosima para junto de si e tentou desculpar-se.

- Cosima... nem pode imaginar como estou arrependido! Deveria saber que você não me mentiria. Pensei que me tivesse atraiçoado e...

Cosima afastou-se bruscamente e esbofeteou-o uma, duas vezes. Levantou-se logo a seguir e ficou a olhar para Ashley com uma expressão de raiva e de desdém no olhar.

- Você... você pensava que eu lhe tinha atraiçoado! Pensava isso e me beijou! Você é um cão imundo! Imundo como todos os outros! Eu nunca deveria tê-lo conhecido!

Iradamente, pegou um punhado de areia e atirou-os aos olhos de Ashley, abalando depois pelo íngreme caminho, rumo à sombra reconfortante das oliveiras e da casa.

Meio cego e desesperado. Richard Ashley encaminhou-se com di. ficuldade para a beira da água e tentou lavar os olhos.

- Mulheres! - exclamou Tullio Riccioli, na sua voz de cana rachada. - As mulheres são uma invenção infernal! Quem as ama ou é en­ganado ou arruína-se com um bando de bambini. Quem procura ignorá-las não consegue evitar que elas se lhes lancem nos braços. Um homem devia viver numa ilha deserta, com tintas, pincéis e um amigo compreen­sivo.

- Tullio, parece-me que você acertou! - disse Ashley.

O artista estava pintando no terraço quando Ashley voltou para casa com os olhos inflamados e ardendo. Tullio nada dissera, mas levara-a para o quarto dele, para longe de perguntas indiscretas e embaraçosas. Ashley, estava sentado na cama, com a cabeça deitada para trás. As mãos ágeis e femininas de Tullio procuravam encontrar os indesejáveis grãos de areia e banhavam-lhe os olhos com azeite. Ashley tinha certa dificuldade em falar naquela posição, com os músculos do pescoço dis­tendidos, mas falar aliviava-o um pouco da tormenta que lhe ia na alma.

- Discutiu com ela, não é verdade?

- Pedi-lhe desculpa...

- Um disparate! - comentou Tullio. - Já tem idade para saber que isso não serve de nada.

O artista voltou a passar um pedaço de algodão embebido em azeite pelos olhos inflamados de Ashley e este respirou fundo, aliviado, quando sentiu a dor diminuir.

- Obrigado, Tullio. Estou-lhe muito agradecido.

Tullio limpou as mãos com um lenço de seda.

- Foi um prazer meu amigo. Todos nós precisamos de aliados con­tra as mulheres.

- Ouvi dizer que você vai casar-se.

- É verdade - disse Tullio, encolhendo os ombros - mas o meu casamento não passa de um negócio... aborrecido, mas necessário. Uma vez casado... - Tullio fez um gesto largo com as mãos - finito! Não vol-

tarei a pensar no caso.

- A ilha, as tintas e os pincéis, e o tal amigo, não é verdade?..

- Precisamente. Ficou talvez chocado por me ouvir falar assim...

- Já não há coisa alguma que me choque - disse Ashley com uma grande convicção - mas gostaria de saber, em todo o caso, como foi feito o negócio. O assunto interessa-me e parece ser lucrativo.

- Tullio cancentrou-se, enquanto tirava uma lima do bolso e se en­ tretinha a cuidar das unhas.

- Começou com Carla Manfredi. Conhece-a? É uma mulher insuportável, mas imensamente rica. Foi ela quem subsidiou a minha primeira exposição. Tive críticas excelentes, embora a venda fosse muito fraca. Quis que me ajudasse noutra exposição, mas por essa altura já ela perdera o interesse pela pintura e se dedicara à música... ou antes, a um polonês que Carla afirmava ser um segundo Paderewski. Enfim, foi ela própria quem me sugeriu que tentasse obter o patrocínio de Orgagna. Foi também ela quem me proporcionou um encontro com ele, no seu es­critório, e, sem estar com meias medidas, Orgagna propôs-me logo todo o auxílio se eu me casasse com Elena. Os termos do contrato, devo dizer­-lhe, são bastante generosos, embora eu suspeite de que Elena lucrará mais com o casamento do que este seu amigo. Não lhe parece que isso seja possível?

- É muito provável que sim - respondeu Ashley imediatamente. ­As mulheres, como você disse há pouco, são uma invenção diabólica, mas conseguem sempre obter o que querem.

            Riccioli olhou para ele como se receasse que Ashley estivesse brin­cando, mas a expressão deste não podia ser mais séria.

            - Você é que não parece estar conseguindo o que quer, não é ver­dade? - perguntou-lhe Tullio, sorrindo.

            Ashley também sorriu, mas amargamente.

            - Tenho conseguido alguma coisa, mas não o suficiente. Estou dis­posta a pagar bem para obter melhores resultados.

            - Quanto?

            Os olhos límpidos de Tullio adquiriram uma expressão dura de cál­culo. Tullio Riccioli, era, talvez, o "menino bonito" dos salons e o amigo constante de estetas, mas nascera num bairro pobre de Roma e estava dlsposto a nunca mais voltar à pobreza da sua infância.

- Mil dólares - disse Ashley calmamente. - Mais ou menos, segundo os resultados.

- Que terei eu de fazer para os ganhar, signore? - perguntou Tullio, com uma reverência.

- Mais tarde lhe direi, mais tarde! - Ashley sorriu levemente. ­- Por hora só queria saber se o dinheiro o seduzia.

            - O dinheiro e a pintura são as únicas coisas que me interessam.

            - E o tal amigo compreensivo...

- É para isso que eu quero o dinheiro - respondeu Tullio, Com uma doce expressão de inocência.

O gongo soou, então, anunciando o almoço, e os dois homens des­ceram as escadas juntos, como um par de conspiradores. Apesar de sentir os olhos magoados e de haver ferido o orgulho de Cosima, Ashley pensou que ia apreciar o almoço.

Já adquirira várias informações preciosas, assim como a promessa de mais algumas num futuro próximo. Mas do que isso, ainda, encon­trara um aliado muito útil, que o ajudaria, levado pela razão para ele mais forte: o dinheiro.

O excelente almoço foi servido na pérgula do terraço. Duas ou três criadas, vigiadas atentamente por Carlo Carrese, trouxeram da cozinha travessa após travessa de apetitosos manjares, e o nobre vinho dos Orga­gna acompanhava briosamente a opípara refeição.

A conversa era lânguida e fragmentada, visto que, embora sentindo­-se todos imensamente confortados, nenhum deles estava suficientemente à vontade para estabelecer uma conversação seguida. Ashley, por detrás dos óculos escuros, teve assim ampla oportunidade de estudar as expres­sõos e as atitudes de todos os convivas.

O velho mordomo era de todos os presentes o que mais o interessava. A sua atitude continuava a ser de uma grande deferência para cada um deles, mas reservava uma especial e quase paternal solicitude para Or­gagna. Perguntava-lhe a cada momento se os pratos e os vinhos estavam a seu gosto, tentando vislumbrar com todo o cuidado qualquer gesto do patrão que indicasse necessitar dos seus préstimos.

Carrese devia contar quase setenta anos, pensou Ashley, mas tinha as costas eretas, as mãos não lhe tremiam e os seus movimentos não eram menos seguros do que os de um jovem. O aspecto do rosto, já um tanto enrugado, correspondia àqueles setenta anos, mas a expressão do olhar denotava firmeza e vivacidade, como se a idade não lhe houvesse afetado o espirito. O nariz aquilino e os olhos muito negros e brilhantes confe­riam-lhe uma certa semelhança com o próprio Orgagna.

Ashley pensou que era muito possível que ele tivesse algum sangue dos Orgagna, herdado talvez de uma das moças que o lendário Vittorio seduzira havia muito tempo. A posição de Cado Carrese era, sem dúvida, privilegiada, uma vez que Orgagna, usualmente brusco com os outros criados, o tratava sempre com afeto, sorrindo-lhe e dirigindo-lhe até         palavras carinhosas.

Isto constituia um novo mistério que Ashley gostaria de desvendar.

Garofano, o morto era irmão de Elena e, por conseguinte, filho do velho mordomo. Como poderia explicar-se o grau de amizade existen­te entre aquele pai e o homem que lhe matara o filho? A não ser que o pai tivesse toma o parte ativa no assassínio.

Essa hipótese parecia, à primeira vista, disparatada, mas a verdade era que os italianos faziam óperas com enredos daquela natureza. Os fantasmas de pecados ainda mais negros assombravam os palácios som­brios de Florença e Veneza. A Itália, era um pais muito antigo, como Arlequim lhe recordara, e aquele complexo e apaixonado povo ainda vivia à sombra do seu turbulento passado.

Quando o almoço terminou, e depois de saborearem um esplêndido café e um conhaque admirável, todos se recolheram para a sesta, mas Ashley, homem ativo e pouco à vontade, foi passear pelo laranjal, onde a luz era mais suave e o ar mais perfumado e fresco.

O caminho que tomou desta vez levou-o a um pequeno planalto, num dos extremos do qual se erguia, sobre pedestal apropriado, uma imagem antiga da Madonna. Ashley sentou-se num banco em frente da Virgem e ficou a contemplá-la. O seu pequeno rosto era muito suave e es­tava voltado, com uma ternura incomparável, para a Criança que tinha ao colo. O dourado da coroa e o azul da túnica já estavam desbotados havia muito tempo, mas a imagem continuava a ser uma obra-prima de serenidade e simplicidade.

Havia ainda outro fator muito importante nesta gente, pensava Ashley. Acreditavam em Deus e no Diabo. Acreditavam na Mãe de Deus e em todos os santos e anjos. As suas relações com o mundo espiritual eram reais e pessoais. Os seus símbolos seriam pouco convincentes e as suas superstições não teriam razão de ser, era verdade, mas os italianos mostravam-se muito sinceros a respeito da sua religião e não podiam praticá-la sem acreditar piamente na misericórdia do Céu e no terror do Inferno.

Esta crença fazia parte do caráter de todos os italianos, mesmo de homens como Orgagna e de mulheres como Cosima. Eram muitos os que se recusavam a praticá-la, ou que aparentavam recusar-se, mas nenhum deles conseguia eliminá-la completamente do seu espirito e da sua alma. A crença em Deus e no Diabo dava-Ihes uma paixão muito intensa e levava-os a abandonarem-se decididamente aos seus pecados. Quando se arriscavam a ser amaldiçoados por pecados de amor ou de dinheiro, os italianos preocupavam-se muito menos com os riscos terrenos desses pecados do que com o perigo de irem para o Inferno.

Aquele pensamento perturbou-o. Ashley sabia que estava deslocado, ali, naquela península. Não passava de um homem do Novo Mundo, des­protegido e isolado, entre o desdém e o desprezo de um povo antigo e supersticioso. Recordou, então, George Arlequim e sentiu falta da sua presença reconfortante. Arlequim era um europeu civilizado que, apesar de tudo, compreendia as sutilezas daquele velho povo e...

O sono apoderou-se dele e, recostando-se no rústico banco de pedra, Ashley acabou por adormecer profundamente.

Acordou ao ouvir os soluços de uma mulher. Teve, no entanto, a presença de espírito suficiente para não fazer qualquer movimento e ficou como que paralisado, tenso e silencioso, a observar a cena desesperada e impressionante que se passava em frente da imagem.

Elena Carrese, que não notara a sua presença, estava ajoelhada, com a cabeça encostada ao pedestal, e soluçava, angustiadamente. Tinha o cabelo em desalinho e acariciava com as mãos os pés da Virgem. De vez em quando, rezando apaixonadamente no dialeto cerrado da penín­sula, Elena fixava os olhos ternos da Madonna. Ashley, que falava bem o italiano e um pouco também de napolitano, não entendeu todas as suas palavras, mas apreendeu o sentido da oração.

- Madonna mia! Mãe de Deus! Tende piedade de mim! Piedade! Piedade! Amo-o e ele quer mandar-me embora. Desonrei-me por causa dele e dei a minha alma ao Diabo... Agora, Madonna mia, ele quer que eu me case com um homem que não é homem mas, sim,femmenella, um homem anormal que nunca poderá amar-me e que não me deixará ser mãe... Tende piedade de mim, Madonna! Sois mulher e podereis com­preender-me. Tende piedade de mim e dai-me de novo o meu querido...!

Elena Carrese repetiu estas palavras várias vezes, e depois, exausta e ofegante em seu desespero, permaneceu agachada aos pés da imagem.

Ao vê-la assim, Ashley compreendeu que aquele era o melhor momento para tentar fazer dela uma aliada. Percebeu também que, se tivesse um movimento em falso ou se dissesse algo descabido ou pouco diplomático, perderia o seu auxílio para sempre. Não se atreveu a tocar-­lhe. Falou-lhe do banco onde estava sentado. Falou-lhe doce e suavemen­te, com o maior carinho e ternura que conseguiu dar à sua voz:

- A Madonna compreende você, Elena. Eu também a compreendo, creia. Talvez me seja possível ajudá-la... se me deixar. Juro-lhe aqui, aos pés da Madonna, que não matei o seu irmão.

Muito lenta e cautelosamente, Elena levantou a cabeça e olhou para ele. O seu belo rosto ainda estava coberto de lágrimas. Nada a asse­melhava àquela provocante loura que Ashley conhecera no terraço do Hotel Caravino. Elena regressara à sua origem: uma pobre camponesa: perdida e só na indiferença e crueldade do mundo. Não tinha forças para se levantar e fugir. Limitava-se a olhar para ele, estupefata, como se fosse um animal assustado e indefeso.

Ashley sorriu-lhe e falou-lhe rapidamente em voz baixa, num tom carinhoso e paciente:

- Sei o que lhe aconteceu, Elena, e lamento-o profundamente. Sei também o que planejaram para o seu futuro e, por isso, sinto ainda maior piedade por você. Sei que lhe disseram mentiras e sei por que lhe men­tiram. Afirmaram-lhe que fui eu quem matou o seu irmão. Não fui eu, mas sim os homens que o lançaram sob as rodas do automóvel que eu dirigia na estrada de Santa Ágata. Disseram-lhe que eu sou um men­tiroso e um vigarista. No entanto, são eles que mentem. Dê-me alguns momentos, ouça-me com atenção, aqui mesmo, e lhe direi toda a ver­dade, para que você me compreenda. Tentarei ajudá-la. Não tenha medo de mim. Se preferir ir embora, em vez de me ouvir, não serei eu que a im­pedirei. Se quiser conversar comigo, perguntar-me o que porventura queira saber, prometo não lhe tocar nem me aproximar mais de você. Juro-lhe... aos pés da Madonna, sobre as mãos de Jesus.

Lentamente, muito lentamente, as palavras de Ashley principiaram a penetrar naquela cortina de pânico. Elena tornou-se mais tensa e in­teressada quando começou a apreender o seu significado, e ele viu aqueles olhos mortos iluminarem-se de ódio, um ódio que logo se trans­formou em medo, depois em curiosidade... e, em seguida, numa espe­rança muito ligeira. Passados mais alguns minutos, finalmente, Elena levantou-se com um movimento quase patético e procurou um lenço no bolso da saia.

Ashley sorriu e atirou-lhe o seu próprio lenço.

- Tome. Use o meu... é maior.

Elena olhou para o lenço e depois para Ashley. Hesitou um momen­to, mas abaixou-se para o apanhar. Ashley percebeu que ganhara aquela batalha quando, depois de limpar as lágrimas, Elena foi sentar-se a seu lado.

- Diga o que tem a dizer - começou ela, falando secamente.

Richard Ashley, então, contou-lhe tudo: o seu antigo amor por Cosima, as suas investigações acerca de Orgagna, o passeio até Il Deser­to, as suas conversas com o Duque e com a Polícia. A única coisa que não lhe contou foi o acordo que fizera com Tullio Riccioli.

Quando acabou de falar, Elena estava sentada como se estivesse em estado cataléptico, os olhos fechados e as mãos cruzadas sobre o peito. Ashley perguntou-lhe com brandura:

- Acredita em mim agora...?

Elena respondeu-lhe num tom de voz apático e estranho:

- Sim.

- Já compreendeu que podemos ajudar um ao outro?

- Sim.

- Eu estou disposto a ajudá-la. Deseja fazer o mesmo por mim?

Elena abriu os olhos e voltou-se para ele. Ashley viu, com uma certa sensação de mal-estar, o novo demônio a que dera vida. Elena tornara-se agora uma mulher consumida pelo ciúme, odiando o homem que a se­duzira e que, em seguida, a desprezara.

            - Está bem - disse Elena Carrese. - Eu vou ajudar. Vou ajudar você a arruinar Orgagna.

Então, inesperadamente, escondeu o rosto entre as mãos e reco­meçou a chorar, enquanto ele tentava reconfortá-la com palavras doces e amigas. Elena encostou-se a Ashley como uma criança se encostaria ao peito da mãe ou do pai.

Quando, pouco depois, Carlo Carrese chegou ao local, encontrou a filha nos braços de Richard Ashley. O velho avançou para eles com o ros­to contraído pela raiva e o olhar a faiscar de ódio. Trazia em uma das mãos uma pequena faca e na outra um ramo de flores que cortara para colocar aos pés da Virgem. Elena afastou-se bruscamente dos braços de Ashley e ficou a olhar para o pai, horrorizada. Ashley observava aten­tamente os movimentos do velho, temendo que este o atacasse com a faca.

            O mordomo não se moveu, porém, limitou-se a falar num tom seco e autoritário:

            - Você, menina, volte já para casa!

            Elena levantou-se e, depois de contornar cautelosamente o pai, como se receasse que ele lhe batesse, começou a correr em direção à villa.

Em seguida, Carlo Carrese voltou-se e se encaminhou para a imagem. Metodicamente, sem a menor pressa, colocou as flores numa jarra ao lado da Virgem e, depois, dando um passo atrás, ficou imóvel, a rezar em silêncio, durante um longo tempo.

            Ashley observava-o, fascinado. Quando o velho terminou a oração, Ashley levantou-se e perguntou-lhe:

            - Para que estava rezando, Carlo?

A pergunta surpreendeu o velho, que se tomou pensativo. Só lhe res­pondeu passados alguns segundos, mas sem desviar o olhar do rosto de Ashley.

- Quando o velho Duque morreu, signore, pediu-me que cuidasse do filho. Fez-me prometer que o trataria como se ele fosse um filho meu. Nunca faltei à minha promessa e tenho feito tudo quando as minhas forças têm permitido. Agora, contudo, sinto-me velho e já me faltam as forças. É por isso que... rezo por ele... e pela honra da sua casa.

- É uma boa oração - disse Ashley calmamente.

            - Rezo por mais do que isso, signore. Rezo pela signora, que é a esposa do meu amo. Rogo à Madonna que a conserve com saúde... e honrada. Rezo para que o signore se vá desta casa depressa e nos deixe em paz. Rezo para que a minha filha conserve a sua alma pura aos olhos de Deus e o seu corpo imaculado para o homem que vier a desposá-la.

- Não seria melhor fazer ainda outra prece?

- Qual?

- Não deveria também rezar pela alma do seu filho, que foi assas­sinado pelo seu amo?

- Não tenho nenhum filho, signore.

Ashley notou, então, que o velho estendia o braço e que a lâmina da faca avançava rapidamente na direção do seu ventre.

            Com um gesto rápido e decisivo, Ashley desviou-se e agarrou o pulso de Carlo, torcendo-lhe o braço e obrigando-o a soltar a faca.

- Louco! - exclamou Ashley, ofegante. - O seu amo é um gatuno e um assassino e a sua filha já está perdida! E nenhum deles lhe agra­decerá o que você acaba de fazer!

Ashley encarou Carlo Carrese uma vez mais e encaminhou-se para a casa. O velho ficou a olhá-lo com uma expressão de ódio e de frustração bem evidentes. A Madonna observava-os a ambos, mas os seus olhos eram de madeira e não viam.

 

       Nessa mesma noite, depois do jantar, Orgagna convidou Ashley para uma conversa no seu escritório.

Os dois homens deixaram Cosima e os outros, após tomarem o café, e subiram ao primeiro andar, onde se encontrava o escritório e biblioteca do Duque - uma enorme sala cujas janelas se abriam sobre o mar e as luzes longínquas de Capri.

O ambiente era guarnecido por um rico mobiliário de estilo barroco e duas das paredes estavam cobertas de livros encadernados em pele de vitela com as armas dos Orgagna nas lombadas. Ashley sentiu-se, uma vez mais, impressionado com tanta magnificência, mas Orgagna não parecia muito consciente da riqueza que possuía.

O Duque abriu um pequeno armário e tirou dele uma garrafa de conhaque e uma caixa de charutos. Depois, quando o conhaque já estava aquecido e os charutos fumegavam agradavelmente, Ashley e Orgagna sentaram-se próximos à janela, encarando-se e estudando-se atentamente   um ao outro. Orgagna foi quem iniciou o diálogo:

- Decidi, Ashley, que seria melhor falarmos com toda a franqueza.

- Eu também gostaria de uma conversa sem sutilezas nem di­plomacias.

- Esplêndido! - Orgagna deu uma tragada no charuto e saboreou um gole da bebida. - Talvez o surpreenda saber que, apesar do que existe entre nós, tenho um grande respeito por você. Já descobri que é in­teligente, que possui muita coragem e uma determinação inigualável. Es­tou certo de que, se as circunstâncias fossem outras, poderíamos ser grandes amigos. Isso, infelizmente, é impossível. Todavia, como o respeito, poderei tentar explicar-me sem que o meu orgulho sofra mais do que já sofreu.

- Terei grande interesse em ouvi-lo - declarou Ashley cautelo­samente.

- Em primeiro lugar - disse Orgagna num tom de voz delibe­radamente frio - devo dizer-lhe que estou a par das suas investigações tanto sobre a minha vida privada como no que se refere aos aspectos político e financeiro. Tenho-as seguido com interesse desde o começo. Não posso deixar de o cumprimentar pela eficiência e exatidão do seu trabalho.

- Muito obrigado.

Orgagna fingiu não notar a ironia na voz de Ashley e continuou:

- Sei também que as provas finais com que tencionava valorizar a sua reportagem se encontravam nas mãos de Garofano e que foi isso que o trouxe a Sorrento. Não tenho a menor dúvida em confessar que a publicação da sua história me faria, com certeza, perder as eleições e o lugar que ambiciono no Governo. O meu maior interesse é, pois, con­seguir que a reportagem desapareça. Como pode notar, estou sendo sin­cero com você.

- Estou notando.

- A sua antiga ligação com minha esposa e o interesse que ela ainda mostra por você também são inconvenientes de peso. Não por motivos sentimentais, como deve saber, mas por motivos de Estado.

Ashley moveu-se na cadeira, pouco à vontade, e engoliu outro trago do saboroso conhaque. Os olhos de Orgagna brilhavam com uma expres­são divertida ante o evidente embaraço do jornalista.

- Bem, Sr. Ashley, chegamos agora ao ponto mais importante. Creio que tem em seu poder, ou pelo menos à sua disposição, as foto­cópias das cartas em causa. Creio que o único fator que impede a sua imediata divulgação é a situação infeliz em que se encontra em face da Polícia, e o fato de estar quase prisioneiro na minha casa, não é verdade?

Ashley encolheu os ombros com indiferença.

- Sim. É, na verdade, como diz.

- Pois bem... - Orgagna recostou-se com a maior calma e deli­ciou-se durante alguns momentos com o conhaque. - Encontro-me, as­sim, numa situação curiosa e desejaria negociar com você. Já sei que não se assusta facilmente. Não creio, também, que possa comprá-lo. Por con­seguinte... - Orgagna fez uma pausa e hesitou ligeiramente, escolhendo as palavras com o máximo cuidado. - Por conseguinte... proponho-me fazer algo que nunca fiz em toda a minha vida: explicar-me. Sei que en­trevistou muitas pessoas durante as suas investigações, mas a verdade é que nunca ouviu a mim. Julgo, pois, que tenho o direito de falar em minha defesa, que me deve o privilégio de uma explicação pessoal. Con­corda comigo, Sr. Ashley ?

- Inteiramente.

- E se eu o convencer estará disposto a destruir a sua história?

- Se me convencer... sim. Se não me convencer, publicarei a sua explicação na íntegra. Seja como for, meu caro Duque, ganhará algo com isso.

- Já sabia que você tinha um sentido de justiça assaz desenvolvido, Ashley - declarou então Vittorio d'Orgagna, sem a menor ironia na voz ou nas palavras, levantando-se e dando alguns passos pela sala. Ashley observava-o com certa curiosidade. Não lhe restavam dúvidas de que admirava aquele homem, especialmente pela sua força fria e calculada, pela lucidez do seu raciocínio e pela confiança que tinha em si próprio e na sua causa. Era evidente que Orgagna se encontrava sob uma grande tensão interior. A sua dignidade, porém, parecia nada ter sofrido. Vittorio d'Orgagna podia ser amado ou odiado, exaltado ou crucificado, mas era homem na verdadeira acepção da palavra.

Subitamente, Orgagna encostou-se à secretária e começou a falar, adotando a postura tranqüila do advogado diante de uma causa fácil:

- Antes de mais nada, meu caro Ashley, permita-me um pequeno prelúdio... curto, simples, sem retórica ou quaisquer floreados. Estamos na Itália, e não na Inglaterra ou nos Estados Unidos. O seu juízo acerca das minhas ações deve ser feito em concordância com a vida no meu país e não com as condições existentes noutros países. Um assassinato em Chicago é um crime. Na África, porém, pode ser um ato religioso, o ritual      de um culto... Compreende-me?

- Muito bem.

- Concorda com este princípio?

- Sujeito à sua interpretação, sim...

Orgagna sorriu-lhe.

- Já esperava isso de você, meu amigo, e, de momento, não lhe peço mais. Já lhe disse que estava a par das acusações que me faz na sua reportagem. Os principais casos são três: primeiro, que eu obtive um em­préstimo do Governo, dos dólares que os americanos nos concederam para ajudar os necessitados, destinado a fundar uma indústria no Sul, e que, em seguida, desviei esses fundos para as minhas fábricas do Norte; segundo, que, tendo sido encarregado de distribuir sementes pelos la­vradores menos afortunados das áreas mais pobres, as distribuí unica­mente pelos membros do meu partido e os obriguei a pagá-las; terceiro, que, em contravenção das leis italianas, exportei fundos e os depositei em bancos americanos. Este meu sumário da sua reportagem é correto, não é verdade?

- Sim.

- Que deseja que eu faça? Que o negue?

- Não vejo como poderia.

- Não o nego, Sr. Ashley! - Orgagna falara secamente, sem a menor hesitação ou vergonha. - Tudo o que diz na sua reportagem é a expressão da verdade... tudo! E há muito mais ainda, muito mais, que as suas investigações não descobriram.

- Franqueza não lhe falta... - comentou Ashley, sorrindo e dando mais uma tragada no charuto.

- Tudo isso é ilegal, bem sei - continuou Orgagna, falando com a maior calma. - Mas, apesar de serem ilegais, eu afirmo que todas as minhas ações foram necessárias e justificadas. Já sei o que está pensando: que todos os criminosos justificam as suas ações e que o próprio Diabo tem os Evangelhos na ponta da língua. Engana-se, meu amigo, engana-se redondamente.

- Já lhe disse que suspendi o julgamento - respondeu Ashley, impávido. - Limito-me agora a ouvir a defesa.

Orgagna encaminhou-se para a janela e ficou a olhar para o mar e os reflexos da lua nas suaves ondas do Mediterrâneo. Sentia-se preso nas malhas do mistério e do terror, mas era um homem que apreciava a natureza. A luz vaga da noite encheu-lhe o rosto de sombras e pareceu acentuar-lhe os traços característicos. De costas para Ashley, este não podia observar se ele sorria ou franzia o sobrolho, mas a sua voz fez-se ouvir, brilhante de convicção:

- Você, Ashley, é um homem de um mundo novo. O seu país, devido às grandes riquezas que possui, alcançou muito depressa um alto nível de evolução técnica. Seus operários compram automóveis e suas mulheres podem ter filhos em hospitais extremamente higiênicos e agradáveis, em vez de serem assistidas por parteiras ignorantes e sujas. Os seus filhos têm todo o espaço de que precisam para crescer e recebem a necessária educação, e às suas filhas não faltam homens para desposar. Vocês, os americanos, criaram uma história nova e não têm de curvar-se sob o peso do passado. Nós, o meu povo, nada vemos que nos encoraje a encarar com otimismo o futuro. Aqui no Sul, principalmente, só temos analfabetismo, desemprego, ausência quase completa de comunicações, fracos recursos... Este estado de coisas só pode ser modificado com em­preendimentos de grande envergadura e não com a visão estreita dos burocratas ou de membros de partido, nem com os simples empreen­dimentos dos pequenos negociantes e oportunistas. Para atingir esse ob­jetivo, a evolução que tanto desejo, são precisos homens de ação, com coragem e visão ampla, mesmo que façam à margem da lei o que é necessário fazer. Quer saber, por exemplo, a razão por que desviei fundos do Sul para o Norte? Primeiramente, só consegui esses fundos graças a uma mentira. Em segundo lugar, se eu tentasse montar uma indústria aqui no Sul, sem meios para o fazer, sem comunicações, sem técnicos                 especia­lizados, o dinheiro seria completamente perdido, desperdiçado num poço sem fundo. Esse mesmo dinheiro, no Norte, emprega dois mil homens e beneficia o país por igual. Paga impostos que ajudarão a construir escolas em Nápoles. Atrairá mais dinheiro, fundos do seu país, que não hesitará em investir capitais num negócio lucrativo, pois os americanos são ban­queiros e não apenas almas caridosas, como é natural.

Fez uma pausa é prosseguiu:

            - Quer saber, também, o que me levou a vender sementes que deveriam ser distribuídas gratuitamente? Vou dizer-lhe: o nosso povo é ignorante, os nossos lavradores e camponeses são imbecis e supersti­ciosos, desconfiados e incapazes de se organizar, e é por isso que a nossa terra morre e as árvores não dão frutos. Dar-Ihes sementes seria outro desperdício, ou talvez eles as vendessem, até, troçando da nossa inge­nuidade. Só lhes dariam a devida importância se as vendêssemos a eles. Se as vendi unicamente aos membros do partido foi para tentar ensinar­-lhes o valor da cooperação e do progresso. Bem sei que foi uma ação ilegal, mas qualquer outra, pode crer, seria uma loucura.

"Pense bem no que acabo de lhe dizer, Ashley! Não pense em mim! Esqueça-se de que sou o marido da mulher que você ama! Preocupe-se apenas com os fatos, com a situação que existe aqui. Tente imaginar o que faria se estivesse no meu lugar.”

"Finalmente, meu amigo, acusa-me de transferir fundos para a América. Não me diga que queria que eu, sempre que precisasse de maquinaria, de instrumentos e matérias-primas para a minha fábrica, para dar trabalho aos meus operários, recorresse a um burocrata em Roma, que, com um gesto ignorante, cortaria pela metade a minha quota de dólares. Esse burocrata, como todos eles, nada sabe! Ignora o que são a necessidade, a pobreza. Só sabe que tem a lei a seu lado, e nada, nada o faria alterar uma decisão que estivesse de acordo com a lei, uma lei retrógrada que não foi mudada desde os tempos de Justiniano. Eu, porém, digo que a justiça e o progresso só se conseguem com os meus métodos! - Orgagna sentou-se e passou a mão pela testa, a fim de limpar o suor que lhe escorria para os olhos. - Eis, pois, a minha defesa, Ashley! Você é suficientemente inteligente para poder julgá-la com imparcialidade. Se quer formular-me alguma pergunta; qualquer que seja ela terei o maior prazer em responder-lhe com toda a honestidade.’’

- Só desejo perguntar-lhe uma coisa - disse Ashley calmamente.

- Que é?

- Por que mandou assassinar Garofano?

- Não fui eu - repondeu Orgagna com tal firmeza que Ashley quase acreditou.

Depois, durante um longo momento, os dois homens encararam-se à beira de um lago de silêncio, cuja negra superfície era encrespada por uma forte brisa de desconfiança e de suspeita.

Finalmente, desanuviando a atmosfera, Ashley voltou a falar:

            - Ouvi a sua defesa com interesse e até com uma certa simpatia. Reservo o meu julgamento para mais tarde, mas antes preciso de es­clarecer esta incógnita: Quem matou Garofano? Quem foi que observou meus movimentos e atirou o desgraçado para a frente do automóvel?

- Não lhe sei dizer.

O rosto de Orgagna continuava imerso no escuro e Ashley teve a es­tranha sensação de que aquela voz não pertencia ao corpo ali sentado em frente da janela.

- Diga que não quer... que não pode.

- Pense o que quiser.

Ashley sentiu subitamente a necessidade de proclamar o que pen­sava e exclamou, num tom firme e áspero:         

            - Vou-lhe dizer quem foi, então. Foi Carlo Carrese, o mordomo da sua casa!

            Orgagna não replicou imediatamente àquela acusação. Só falou, com a maior calma e amabilidade, após uma breve pausa:

- Que razões tem para fazer uma afirmação tão grave, Sr. Ashley?

- Carrese tentou matar-me esta tarde.

A reação, desta vez, não se fez esperar. O Duque soltou uma ex­clamação de surpresa, levantou-se e encostou-se ao parapeito da janela, de costas voltadas para Ashley.

- Importa-se de me dizer como e onde?

Ashley contou-lhe o que se havia passado. Orgagna continuou a con­templar as luzes da ilha distante, a bela Capri, e algo na sua voz, quando ele recomeçou o diálogo, parecia indicar que sorria amargamente:

- Tomemos outro conhaque, sim?

- Com todo o gosto.

Ashley levantou-se e ajudou Orgagna a servir as bebidas.

- Salute!

- Salute!

Os dois homens beberam em silêncio. Orgagna limpou o suor do rosto com um lenço de seda. Transpirava abundantemente, era certo, mas a sua voz não perdera a serenidade nem a firmeza anteriores.

- Parece-me melhor contar-lhe algo sobre Carlo Carrese.

- Sim?

            - Carlo foi, como ele próprio lhe disse, o mordo mo e homem de confiança de meu pai. Sempre se afirmou na família que ele possui algum sangue Orgagna nas veias, o que é muito possível, em virtude do nosso turbulento passado. Seja como for, a verdade é que sentimos sempre um grande afeto por ele. Tem sido um mordomo ideal, imensamente fiel, e, além disso, é ele quem tem sempre cuidado da propriedade e da casa. Quando o meu pai morreu, já lá se vão muitos anos, Carlo cuidou tão bem de mim como decerto cuidaria de um filho, se tivesse filhos...

            - Carrese tinha um filho - disse Ashley friamente. - Enzo Garofano.

            Novamente surpreso, Orgagna fixou o jornalista, mas em seguida sorriu e o seu rosto descontraiu-se.

- Não! - exclamou ele, sacudindo a cabeça. - Garofano não era filho dele. Garofano era o filho da mulher de Carlo e de outro homem. Se você tivesse sabido algo mais sobre os nossos costumes, depressa teria adivinhado, pela diferença de nome, que isso não era possível. Garofano nem sequer é um nome de família. Trata-se do nome de uma flor, de um cravo. Enzo nasceu na primavera, na época dos cravos, e como o pai se fora embora sem que a mulher de Carlo soubesse do seu paradeiro, ela deu-lhe esse nome.

- Carlo? Onde estava ele quando isso se deu?

- Em Milão, com o meu pai... ajudando-o a montar o nosso ne­gócio.

- Oh!

            - Quando Carlo voltou para casa, assim que descobriu o que acon­tecera, procedeu como é costume entre nós. Deu uma surra na mulher e continuou a bater-lhe periodicamente para lhe recordar a loucura que cometera. A criança fora enviada para um asilo e, mais tarde, adotada. Depois, Elena nasceu e a mãe, certo dia, apresentou-a ao seu meio ­irmão. As duas crianças tomaram-se muito amigas e Enzo, apesar da oposição de Carlo, costumava vir para cá, brincar. A mulher de Carlo morreu há alguns anos e eu... eu decidi pagar os estudos de Enzo. Jamais gostei muito dele, mas, por causa de Elena, deixava-o vir aqui passar os dias com ela. Carlo, é claro, odiava-o. Mas... - Orgagna encolheu os ombros e hesitou - ...mas, como é muito fiel, respeitava os desejos do seu amo.

- Foi, então, por isso que ele matou Garofano?

Orgagna sacudiu a cabeça lentamente, num gesto negativo.

- Eu não disse que foi Carlo quem o matou. A idéia é sua. Apenas lhe contei isto tudo por uma razão muito simples...

- Qual?

            - Para que compreenda que Carlo Carrese é como se fosse um membro da família. Tudo o que o afeta, seja o que for, também afeta a mim. Carlo é um velho, Ashley. A velhice pesa-lhe muito, e a família Or­gagna ainda tem uma grande dívida para com ele. A única forma de pagar essa dívida é protegê-lo, proporcionando-lhe uma velhice confor­tável, o que farei... mesmo que...

O Duque calou-se em meio à frase e aquela ameaça velada ficou a pairar na atmosfera, como uma nota dissonante.

- Continue - pediu Ashley secamente.

            Orgagna sacudiu a cabeça.

- Não, meu amigo, não. Você poderia julgar que estava a ameaçá­-lo e esta noite, muito especialmente, quero evitar mal-entendidos desse gênero. Hoje sou eu o acusado e por isso limito-me a apresentar a minha

defesa. Este caso de Carlo Carrese é, aliás, irrelevante, e agora pouco in­teresse tem.

Orgagna falara com tal suavidade e sutileza que Ashley quase foi en­ganado. O Duque intrigara-o quando lhe falara numa possível combi­nação entre ambos. Mostrara-se muito simpático e tentara seduzi-lo com uma retórica bem planejada. Agora, na realidade, tudo na sua expressão indicava que desejava encontrar uma fórmula ou um acordo, tomando como base o fato de Ashley possuir as fotocópias e de ele, Orgagna, haver arquitetado a morte de Garofano de forma que o suspeito fosse o jornalis­ta. Tratava-se de chantagem pura, já não restavam dúvidas. Orgagna devia estar convencido de que Ashley preferiria ceder, a fim de que o Duque conseguisse que o Capitão Granforte o deixasse partir sem mais aborrecimentos. ­

Ashley recordou-se nesta altura da última recomendação de Arle­quim e aguardou, pouco à vontade, que Orgagna apresentasse a sua proposta. Este não tardou a fazê-lo, falando com convicção e exagerada seriedade:

- A ilusão de que os homens bons dão bons governantes é muito antiga, Ashley. A crença de que os seres humanos podem ser governados por meio da Fé, da Esperança e da Caridade não passa de uma ilusão, creia. A função do Governo consiste em assegurar uma estrutura forte e estável, dentro da qual a população possa viver e progredir lentamente, para assim alcançar um melhor nível de vida. As virtudes do governante nenhuma relação têm com isso. A sua força é que importa, assim como a sua sabedoria e capacidade, para tranformar a corrupção e as fraquezas em algo que beneficie o corpo político da nação. O progresso exige se­gurança. A segurança é alicerçada na força. Eu não sou um homem bom... longe disso... mas sou forte e tenho uma certa habilidade para a vida política. Possuo uma influência financeira bastante sólida. Com sor­te, uma sorte que depende agora em parte de você, poderei pegar as rédeas do Governo e servir de elo de ligação entre os partidos durante tal­vez cinco anos, o tempo suficiente para conseguir assegurar a ordem política e dar um novo impulso à máquina do progresso neste país.                                                                                                    Sem mim, como já lhe devem ter dito, a aliança entre a esquerda e a direita será destruída e regressaremos à desordem politica e ao caos econômico do passado. É estranho, muito estranho, que o poder de construir ou de destruir se concentre neste momento nas mãos de um homem como você, um espectador, cuja única força financeira é o cheque mensal de orde­nado que o jornal lhe paga, cujo único interesse neste país é a sua paixão pela esposa de outro homem.

Ashley ficou vermelho de raiva. Orgagna dera início à luta, atacando com todos os meios ao seu dispor. A sua voz mudou subitamente de tom. Começou a falar suavemente, demonstrando uma simpatia e um interesse fingidos.

- Que deseja você, Ashley ? Que razões teve, afinal, para iniciar es­ta investigação? Que é que o leva a preocupar-se tanto com uma repor­tagem que, três semanas mais tarde, será expulsa das primeiras páginas dos jornais para dar lugar ao casamento de uma estrela de cinema ou à explosão de um avião na América? Que justificativa tem para compensar o desespero e a miséria que as suas reportagens causam? Será o dinheiro? Duvido. Será para satisfazer a sua vaidade, a sua ambição de poder? Ou será compelido pela paixão cega do cruzado? Acredite-me, Ashley, eu gostaria de o compreender.

Ashley olhou-o firmemente.

- Agora é você que deseja ouvir a minha defesa.

Orgagna assentiu.

- A defesa também tem o direito de interrogar quem acusa.

            - É justo.       

            Ashley acendeu um cigarro e ficou a olhar as espirais de fumaça que subiam para as sombras do teto. Sabia que agora era ele quem estava sendo julgado. Sabia também que, além disso, a sua profissão seria jul­gada juntamente com ele. Receava que, se não conseguisse justificar-se plenamente, nunca mais viesse a dormir em paz. Teria, então, de se jun­tar aos cínicos que apenas eram jornalistas para receber um ordenado no fim do mês, sem se importarem com as conseqüências do que faziam. Hesitantemente de início, mas adquirindo aos poucos mais força e con­vicção. Ashley começou a falar:

- Perguntou-me quais as razões que tive, Orgagna. Mentiria se lhe dissesse que elas são menos confusas ou de mais valor do que as de qual­quer outra pessoa. O dinheiro? Sim. A quantia por que me costumam pagar uma reportagem corno esta seria suficiente para eu viver um ou dois anos sem preocupações. A publicação da reportagem elevar-me-ia tam­bém a um nível profissional de grande categoria e dar-me-ia a possibilida­de de ganhar ainda mais do que já ganho. Vaidade? Sim, também. Quem não tem orgulho ou vaidade não pode adotar uma profissão como a minha. Ambição de poder? Duvido... a não ser que exista um pervertido sentimento de poder no desinteresse do observador irresponsável. Ciúmes de você e Cosima? Não. Já faz muito tempo que perdi Cosima... Nunca senti ciúmes que chegassem para fazer uma vendetta por causa dela.

- Mas ainda a ama... tal como ela o ama, não é verdade?

            - A pergunta é irrelevante - replicou Ashley secamente.

            - Desculpe-me - declarou Orgagna. - Retiro a pergunta. Con­tinue, então.

- Todas as profissões têm os seus cínicos e os seus oportunistas. Existem grandes cirurgiões com o poder de curar as mais graves doenças e que, apesar disso, preferem ganhar fortunas a fazer operações plásticas em estrelas de Hollywood ou velhas ricas que estão sempre dispostas a tudo para recuperar algo da juventude perdida. Há juízes que falseiam a Justiça, padres que pervertem a Igreja. Existem, infelizmente, muitos jornalistas que deturpam as suas verdadeiras funções por causa da po­lítica e do aumento da circulação do jornal. A maioria deles, porém, ainda acredita que a sua missão é apenas comunicar a verdade. Esses jor­nalistas não são os donos dos meios de informação e vêem-se obrigados a recorrer a estratagemas para conseguirem publicar a verdade. Não o podem fazer, por vezes, mas acreditam firmemente no direito de o pú­blico ser posto a par de toda a verdade. Acreditam, como eu, que a ver­dade tem a sua própria virtude, como uma seiva própria, e que matá-la é destruir uma fonte de vida e de progresso. A tirania floresce na escuridão e a corrupção alimenta-se a portas fechadas. Se uma criança morre tuberculosa, como eu tenho visto nos bassi de Nápoles, a culpa é atri­buída sempre ao fato de a verdade haver sido escondida ou de não ter sido revelada a tempo. É por isso que desejo publicar esta reportagem, Orga­gna. Creio sinceramente que o público tem o direito de saber tudo a seu respeito antes de lhe entregar o futuro do país.

Ashley deixou cair cinza no tapete e, fazendo um gesto de desculpa, apagou o cigarro no cinzeiro.

- O motivo é este, Orgagna. Lamento não poder explicar-me melhor, mas é este o verdadeiro motivo, embora os outros também te­nham a sua importância. Se o motivo fosse outro... sabe o que eu faria? Perdir-lhe-ia que me pagasse, agora mesmo, uma fortuna, levaria Cosima comigo e partiria no primeiro avião, para plantar laranjas na Ca­lifórnia.

- O preço seria barato - disse o Duque com delicadeza. - Quan­to?

- Não quero fazer negócio, Orgagna.

- Não quer vender-me as fotocópias e a reportagem?

- Não.

       - Dou-lhe dois ou três dias para pensar...

- Não vale a pena...

Orgagna olhou para ele e sorriu-lhe com uma estranha sutileza.

- A sabedoria não é obra de um dia apenas, meu amigo, e eu sei ser paciente. Pense bem. Amanhã, depois de passada uma noite, talvez mude de idéia.

Orgagna levantou-se e estendeu a mão.

- Boa noite, Ashley. Sogni d'oro! Sonhos felizes!

 

       O luar infiltrava-se docemente pelas cortinas das janelas do seu quarto e iluminava de tons suaves as pétalas de rosa dos mosaicos que cobriam o chão. A enorme mobília entalhada formava sombras grotescas nos ângulos do aposento. Os querubins que decoravam o teto haviam-se escondido na escuridão das alturas. Richard Ashley estava bem acordado, estendido no gigantesco leito, a ponderar sobre tudo quanto acontecera durante o seu primeiro dia na Villa Orgagna.

Ganhara algo e perdera outro tanto. Ganhara, por exemplo, várias informações interessantes, como a relação entre o morto e a família Or­gagna, o que na realidade sucedera com Elena e o Duque, os ciúmes e o desespero da moça, a descoberta de que Tullio Riccioli podia ser com­prado e de que, afinal, Cosima não o atraiçoara e até mentira para o proteger, e, finalmente, de que Orgagna o temia o suficiente para propor um acordo.

O que perdera era menos patente mas mais sério. Não havia dúvida de que as hostilidades se haviam iniciado e de que Orgagna sabia per­feitamente, como ele próprio o sabia, que a guerra estava à vista. Um dos dois adversários teria de ser abatido num futuro mais ou menos próximo. A sua segurança, pensava Ashley, dependia unicamente de uma mentira. Orgagna julgava que ele tinha as fotocópias. Ashley sentia assim que lhe seria difícil lutar durante muito tempo em terreno tão traiçoeiro como aquele em que se encontrava. Teria, pois, de descobrir o paradeiro das fotocoplas ou, então, de fugir para longe de Orgagna.

A única pessoa que seria capaz de o ajudar a encontrar a pista dos documentos seria Elena Carrese, mas, após o episódio junto da imagem da Madonna, Ashley calculava que uma conversa entre eles era ainda mais difícil do que anteriormente.

            Com os olhos postos na escuridão do teto, no conforto daquela bela cama e sentindo o corpo já mais descansado, Ashley começou a pensar em Elena Carrese. Esta fora desdenhada pelo homem que a desonrara e, como verdadeira mulher do Sul, o seu primeiro impulso seria vingar-se desse homem. Não lhe faltavam armas para o fazer. Elena, como se­cretária de Orgagna, tinha acesso a todos os seus fichários e arquivos. Devia, também, estar a par das investigações levadas a cabo por Ashley. Conhecia, portanto, a melhor forma de ferir o Duque. Fora essa a razão, com toda a certeza, que a levara a entregar os documentos a Enzo Ga­rofano, procurando, talvez, além da vingança, algum benefício material que a tornasse independente e lhe permitisse recusar o casamento com Tullio Riccioli. Fora isso o que sucedera e Elena aguardara a ruína de Orgagna ao mesmo tempo que a sua alma de camponesa se debatia entre o amor e o ódio que sentia por ele.

Em seguida, cada vez mais desesperada vira que a rede de espio­nagem de Sua Excelência se apercebera do que se tramava, compreen­dera certamente que Enzo Garofano e Richard Ashley se haviam tornado suspeitos e que o seu plano se transformara numa armadilha, num perigo inesperado que ela nem sequer antecipara. Havia avisado Garofano do perigo que corria, mas ele não lhe dera ouvidos e tentara obter mais dinheiro em troca dos documentos. Fora essa ganância, essa triste ga­nância, que o perdera...

E quando, por fim, Enzo Garofano foi assassinado, cruel e des­necessariamente, Elena já não sabia ao certo quem o tinha assassinado. Não se atrevera sequer a procurar sabê-lo, já que a revelação talvez lhe desvendasse que o assassino tinha sido o seu amante ou até mesmo o seu pai. Fora por isso que prudentemente, ela acusara Ashley de ser o assas­sino, o carrasco.

Quanto mais Ashley ia pensando desta forma mais convencido ficava de que descobrira a verdade nua e crua. Era mesmo possível que o Capitão Granforte aceitasse aquela hipótese como autêntica, desde que visse as cartas...

Desde que visse as cartas...

Garofano dissera-lhe, durante a conversa no Hotel Caravino, que os documentos não estavam longe, que depressa os iria buscar se ele estives­se disposto a pagar dez mil dólares. O infeliz não lhe mentira, com cer­teza, o que significava que as fotocópias se encontravam em Sorrento, em casa de um amigo ou depositadas num banco, embora fosse sabido que os informantes não têm amigos nem confiam em quem quer que seja.

Depois, quando já lhe ocorria um novo pensamento, a porta do quarto abriu-se suavemente e Ashley viu Cosima entrar e aproximar-se da cama com uma toalha, uma bacia de água e um pequeno frasco de azeite nas mãos.

Cosima vestia um roupão de cetim acolchoado e era evidente que já estava preparada para se deitar. Ashley sentou-se na cama, muito ad­mirado daquela inesperada visita.

- Cosima! Você está louca!

- Os seus olhos, Richard. Vi-os durante o jantar. Estão inflama­dos... O menos que posso fazer é tratar deles.

Cosima colocou então as coisas que trazia na mesa de cabeceira e foi fechar as cortinas das janelas. Ashley observava-a, absolutamente per­plexo. Quando Cosima se aproximou de novo da cama, Ashley não lhe

tocou e deitou-se, .não voltando a mover-se enquanto ela lhe banhava os olhos e lhe acariciava as pálpebras inflamadas. As mãos de Cosima eram de uma suavidade extrema e a sua voz ainda mais carinhosa:

- Naquele momento, Richard, quase que odiei você. Nunca me passou pela cabeça que fosse capaz de pensar tão mal de mim. Nunca jul­guei que pudesse beijàr-me e abraçar-me e, em seguida, transformar tal delícia numa mentira horrorosa. Não, não! Não tente falar. Fique quieto e deixe-me terminar isto. Os seus olhos estão num estado horrível. Mais tarde, quando comecei a pensar no que me disse, é que percebi o que passou pela sua cabeça: que eu planejava inutilizar você, para salvar o meu marido. Não o censuro... apenas me acuso de não lhe ter falado an­tes sobre o assunto e...

- Eu também não a censuro. Na praia, quando você perdeu a cabeça, ainda tentei pedir desculpas. - Ashley sorriu amargamente. - Você não me deixou acabar... mas, se quer agora fazer as pazes, me dê um beijo.

            Cosima beijou-o muito de leve nos lábios e continuou a banhar-lhe os olhos com o reconfortante azeite. Ashley, quando ela deu por finda a tarefa, puxou-a para junto de si e de novo. Cosima libertou-se após um momento e olhou-o com uma expressão terna mas preocupada.

- Richard... que irá acontecer-nos?

- Que quer dizer com isso?

- Depois de tudo o que se passou, acredite, acho impossível con­tinuar a viver com meu marido. Duvido mesmo de que ele o queira. De resto, deixarei de ter o menor valor para ele logo que as eleições termi­narem.

- Divórcio?

- A lei italiana não o permite.

- Podemos sair da Itália. Não será difícil conseguir o divórcio noutro país.

- Tem razão, Richard.

Cosima falara sem nenhuma convicção, limitando-se a concordar com Ashley.

            - É o fato de ser católica que está preocupando você? Já sei que a Igreja condena o divórcio e o segundo casamento de pessoas divorciadas.

- Há tanto tempo que estou afastada da Igreja... Já nem me preocupo com essas coisas.

- Eu não sou religioso, Cosima. A forma como nos casamos e quem nos casa são coisas que não têm a menor importância para mim, mas compreendo que você se preocupe. Será que se sentiria feliz dessa maneira?

- Feliz? - Cosima desviou o olhar e encolheu os ombros. - Não sei o que significa a felicidade, Richard. Antigamente, quando vivia com você, pensava que era feliz. Essa felicidade, contudo, não me bastava. Imaginava que conseguiria ser muito mais feliz com tudo o que Orgagna me pudesse dar. Enganei-me... e agora já nem sei bem o que quero. Talvez nunca encontre a verdadeira felicidade...

Ashley pareceu muito surpreendido com aquelas palavras.

- Que quer dizer com isso, Cosima? Que já não gosta de mim?

- Como pode pensar isso?

- Não penso, apenas perguntei. Quer que eu a leve comigo para nos casarmos noutro país? Estou disposto a fazê-lo, desde que isso a torne feliz. Quer abandonar seu marido e viver comigo, à margem da Igreja? Podemos fazer isso, embora não seja muito indicado e talvez você possa vir a sofrer com a falta do conforto religioso. Farei o que você quiser... Mas há uma coisa, uma só, que não é possível, minha querida.

- O quê?

- Fazer tudo de acordo com a sua consciência. Nenhum amante o consegue e nós somos suficientemente experientes para o saber. Você é que tem de decidir, Cosima.

Ela ficou silenciosa durante alguns segundos. Baixando os olhos, pensou profundamente nas conseqüências que a sua decisão poderia ocasionar.

- Richard, tenho de lhe dizer uma coisa.

- Diga.

- Eu creio que... poderiamos ser muito felizes. Creio também que a Igreja não sentirá grandemente a falta de uma alma, que já anda perdida há tanto tempo. Há um fator, contudo, que me impediria de ser feliz. Não posso construir a minha felicidade sobre a ruína de um homem que, apesar de tudo, é meu marido e que, conquanto possua o caráter que conhecemos, tem sido muito gentil e generoso para comigo. Isso, parece-­me, seria uma espécie de negação absoluta do resto da bondade que ain­da existe em mim.

- Quando falamos sobre o assunto, junto daquela capela em ruínas em Il Deserto, você me disse que publicasse a reportagem...

- Eu sei... - Cosi ma falava agora quase num murmúrio, sendo evidente que sofria imensamente por ter de se referir àquele assunto. ­ - Naquele dia, a seu lado, em Il Deserto, estava louca de alegria por ter voltado a encontrar você, por ter encontrado novamente o que pensara haver perdido para sempre. Sei agora que se tratava de uma ilusão. Não posso concordar. Eu me casarei com você, Richard... onde e como de­sejar. Viverei com você sem nos casarmos, se assim o preferir, mas tenho de pedir que não publique a reportagem. Quero que a destrua, que a es­queça completamente. Deus sabe que tem razões suficientes para o fazer. Então, creio, talvez possamos vir a ser felizes.

E ali estava, exatamente, a mesma proposta que Orgagna lhe fizera uma hora antes. Esta gente era capaz de vender tudo - as suas almas, os seus corpos, aqueles a quem amavam - só para conservar os últimos res­quícios da sua honra. Ashley olhou para Cosima com repugnância e afas­tou-se ligeiramerite dela, como se receasse o seu contacto.

- Saia! Volte para o seu marido! Diga-lhe que a proposta me agradou mais quando ele a fez. Diga-lhe que não estou interessado. Diga-­lhe que, afinal, prefiro comprar o amor nas ruas de Nápoles, onde as mulheres são mais honestas!

Transfigurada, horrorizada, Cosima olhou para ele durante um lon­go e insuportável momento. Seu rosto tornara-se muito pálido e as mãos tremiam. Quando finalmente falou, sua voz não passava de um mur­múrio cheio de terror:

- Você... você... quer dizer que...

- Pelo amor de Deus, Cosima, deixe-me só!

Lentamente, como se estivesse em transe, Cosima levantou-se e en­caminhou-se para a porta. A meio caminho, hesitando ainda, deteve-se e voltou-se para Ashley. Seu rosto revelava bem a tragédia que lhe ia na al­ma. E a voz, embora tivesse recuperado algo da sua firmeza, tomara-se agora imensamente amarga e desiludida.

- Tenho muita pena de você, Richard. Tenho mesmo mais pena de você do que de mim própria. É tão orgulhoso que nem sequer pode ver a verdade quando ela está tão perto. Não permite que coisa alguma se atravesse no seu caminho. Não cede ante o amor, a piedade ou até a mor­te. Suas belas palavras não passam de uma ilusão. Sua reportagem é uma vergonha, pois você proclama a verdade e exige que seja feita justiça apenas para alimentar a sua ambição e o seu ódio. Que Deus o proteja, Richard! Ninguém mais o pode fazer.

A porta fechou-se atrás de Cosima - uma pequena figura abatida e vencida na escuridão daquela imensa casa. Ashley ficou imóvel. Sabia agora que teria de publicar a reportagem, custasse o que custasse, em­bora isso viesse a provocar-lhe uma amargura como nunca sentira. Após um momento, aturdido por tantos pensamentos que lhe cruzavam o es­pírito, mergulhou num sono agitado.

Pouco depois da meia-noite, quando toda a casa se encontrava mer­gulhada em silêncio profundo, Ashley acordou num sobressalto e sentou­se na cama. O seu sono fora perturbado por um ruído, como de um rato roendo, junto da porta do seu quarto.

- Quem está aí?

Ashley viu, então, um envelope castanho no chão. O ruído que ouvira tinha sido o de alguém colocando o envelope por debaixo da porta. Ashley saltou da cama, pegou o envelope e abriu-o.

O seu conteúdo surpreendeu-o extraordinariamente: eram as seis fotocópias das cartas de Orgagna!

Ficou a olhar para os documentos durante muito tempo, mal poden­do acreditar na sua boa sorte. A reportagem encontrava-se finalmente completa. A evidência estava agora ali, na própria Villa Orgagna, e seria mais do que suficiente para convencer o Capitão Granforte da sua inocência. Se este, porém, se mostrasse difícil, poderia ainda recorrer ao cônsul americano. Amanhã, o triunfo seria completo. Amanhã...! Lem­brou-se, então, de que ainda tinha de deixar passar as restantes horas daquela noite e algumas da manhã seguinte antes de poder se comunicar com Sorrento e de conseguir que o deixassem abandonar a Villa Orgag­na. Teria, pois, de esconder cuidadosamente as fotocópias até o momento da sua partida. Transportá-las consigo seria correr um risco desneces­sário.

Ashley fechou a porta a chave e olhou à sua volta. O quarto era cheio de móveis, mas ele não sabia como esconder os documentos de for­ma a que nenhuma das criadas os descobrisse. O colchão era um escon­derijo clássico, claro, mas um rasgão no colchão qualquer criada notaria, e Carlo Carrese seria avisado imediatamente.

Seu olhar pousou, então, numa cômoda de estilo florentino. Era muito pesada e ninguém decerto a moveria sem uma razão especial. Ashley aproximou-se do móvel, curvou-se e, usando o ombro levantou-o, com grande dificuldade, os mosaicos debaixo da cômoda estavam cober­tos de poeira, prova evidente de que ninguém a erguera nos últimos anos. O esconderijo era ótimo e Ashley voltou a baixar a cômoda depois de ter colocado o envelope debaixo dela. Pronto! As fotocópias estavam a salvo de qualquer busca casual.

            Agorá já poderia tentar descobrir quem as trouxera e por que, pen­sou Ashley.

A resposta à incógnita parecia óbvia: Elena Carrese. A moça pro­metera ajudá-lo. Assim, trouxera as fotocópias para lhe provar a sua boa vontade. Além disso, o que sucedera na presença da Madonna devia, com certeza, ter apressado o cumprimento da promessa de aliança que ela lhe fizera. Seu pai, Carlo, suspeitara talvez das boas relações com o estran­geiro. E Orgagna não teria dúvida acerca do significado dessa confiança.

Fora isso, portanto, que levara Elena a entregar-lhe as fotocópias sem mais perda de tempo.

O que ainda não sabia era como Elena tinha ficado na posse delas. Talvez Enzo Garofano lhe houvesse pedido que as guardasse antes do seu encontro com Ashley. Sim... devia ter sido isso. Tudo o indicava. Quando o negócio falhou, e depois do incidente com o jornalista, Garofano não se mostrara preocupado. Sabia que os documentos estavam seguros nas mãos de Elena e decidira, com certeza, ir buscá-los mais tarde. Não o fizera, porém. Por quê? Ashley não ignorava que, se pudesse responder a esta pergunta, o seu caso contra Orgagna e Carlo Carrese ficaria com­pletamente esclarecido e completo, tal como a reportagem já o estava. Que teria acontecido a Garofano entre o momento em que saíra do hotel e aquele em que fora atirado para a frente da potente Isotta?

Granforte talvez conseguisse desvendar esse mistério se encarregasse os seus agentes de fazer um interrogatório em Sorrento, para averiguar os movimentos exatos dos suspeitos durante o referido período. Ashley sorriu ao pensar no impávido Capitão a investigar todos aqueles mistérios e a lamentar a promoção que jamais ganharia.

Após algum tempo, o sono chegou e Ashley teve um pesadelo, so­nhando que se encontrava num deserto e ouvia a voz de Cosima a chamar por ele, mas não a via, olhasse para onde olhasse, porque a havia perdido para sempre. Despertou de manhã, muito cedo, cansado e indis­posto. Tinha o corpo dorido e sentia-se esgotado, deprimido, tanto física como moralmente. Barbeou-se, vestiu o calção de banho e um roupão e dirigiu-se para a praia. Decidira ir nadar um pouco, para se refrescar e distender os músculos.

O ar da manhã ainda estava fresco e o vivo odor das laranjeiras con­jugava-se agradavelmente com o cheiro sadio da terra e o trinar dos pás­saros, que saltitavam pelas árvores.

Ao alcançar os rochedos, depois de deixar para trás o laranjal e o caminho que conduzia à villa, Ashley viu um homem de pé no mesmo lugar onde na véspera avistara o velho pastor. O homem envergava o traje

típico dos camponeses da região e trazia a tiracolo uma espingarda de dois canos.

Ashley cumprimentou-o alegremente:

- Buon giorno! Cosa fai? Que está fazendo?

- Quaglie! - gritou o homem de volta. - Codornizes!

Ashley deteve-se, bastante surpreendido. As codornizes só apareciam na primavera e eram logo abatidas pelos caçadores. Estavam em pleno verão.

- Já não é um pouco tarde para as codornizes? - indagou Ashley.

O homem encolheu os ombros, gesticulando vagamente, e afastou-se, sem pressa, na direção oposta à de Ashley.

Este desceu à praia e mergulhou imediatamente naquela água muito azul que escondia as galés naufragadas dos romanos e as ossadas, já transformadas em coral, com certeza, dos navegadores fenícios. A luz crua da praia feriu-lhe os olhos ainda doridos, mas a água estava deliciosa, quase morna, e Ashley deitou-se de costas, flutuando ao sabor das ondas e deliciando-se com a tepidez do sol, que lhe acariciava o peito e o ventre.

Aquele momento era-lhe imensamente agradável. Já começava a sentir-se melhor, como se as águas lhe varressem a confusão que tinha no espírito da mesma forma que lhe lavavam o suor da pele, acumulado durante a noite, e lhe faziam desaparecer o cansaço que sentira ao des­pertar. Tratava-se, claro, de uma ilusão como tantas outras, mas Ashley só via naqueles breves momentos uma fuga à realidade da sua situação, que o aliviava e lhe emprestava novas energias para o difícil dia que teria de enfrentar.

Logo que a maré começou a subir e as vagas entre Capri e a costa de Sorrento aumentaram de freqüência e tamanho, Ashley voltou para a praia, e, quando se enxugava, viu de novo o homem em cima de um rochedo e de espingarda na mão. Ashley vestiu o roupão e encaminhou-se lentamente para casa. 

Uma vez na villa, e depois de se haver vestido, foi sentar-se no ter­raço e um criado serviu-lhe o desjejum: café, pãezinhos quentes e frutas. Os outros, informou o criado, tomavam o desjejum nos seus respectivos quartos. Ashley julgou vislumbrar no olhar do criado uma certa censura pelo fato de certos forestieri se levantarem tão cedo e saírem do quarto antes que a criadagem deixasse a casa arrumada e impecavelmente lim­pa.

Acabou de beber o café, acendeu um cigarro e decidiu ir dar um passeio pela propriedade.

Desta vez, contudo, dirigiu-se para o lado oposto ao mar, a parte que ainda não conhecia. Depois de passar por uma vinha e de observar algumas casas rústicas que deviam ser as habitações do pessoal de Orgagna, deparou com um muro que marcava os limites da propriedade.

Seguindo o muro com o olhar, notou com surpresa que este terminava abruptamente junto de umas oliveiras que se erguiam, solitárias, no cimo de uma pequena elevação. Compreendeu, então, súbita e inesperadamente, que essa elevação dava para a estrada: a mesma que Cosima e ele haviam tomado e que conduzia a I1 Deserto. A estrada onde Garofano morrera.        

Richard Ashley apressou-se a seguu na direção da elevação que avis­tara. Isso era importante. Se conseguisse descobrir o ponto exato de onde Garofano fora lançado... O jornalista soltou uma exclamação de sur­presa, dando um passo atrás, ao ver um homem aparecer de súbito, vindo não sabia bem de onde, e encará-lo com cara de poucos amigos.

O homem era um camponês, como o que vira a caminho da praia, e também armado de uma espingarda de dois canos. Ashley sorriu-lhe forçadamente e falou-lhe, tal como fizera com o outro.

- Bom dia. Você me surpreendeu. Que está fazendo?

- Codornizes, signore - respondeu o homem, secamente.

Ashley sorriu-lhe de novo e sacudiu a cabeça.

- Está perdendo o seu tempo. A primavera já acabou.

O homem continuava a olhá-lo, mal-encarado.

- Poderei atirar em outros pássaros, se não passar nenhuma codor­niz.

- Come vuoi - disse Ashley com indiferença. - Faça o que quiser. Meteu as mãos nos bolsos e encaminhou-se para o ponto onde o muro terminava. O camponês interpôs-se novamente:

- Não pode ir por aí, signore.

- Porquê?

- Espantará os pássaros...

- Que mal faz...?

Ashley não terminou a frase. A espingarda já estava apontada para o seu peito. O camponês sorria ironicamente, com o dedo no gatilho. Ashley, então, deu meia-volta e retrocedeu por onde viera.

Que Granforte desse uma busca no local, se quisesse...! A repor­tagem ainda estava longe das rotativas dos jornais e Ashley nunca con­seguiria publicá-la com o peito crivado de chumbo.

Ao alcançár mais uma vez as árvores, olhou para trás. O camponês vigiava o muro de espingarda em punho e com um ar de decisão no rosto. Ashley descobriu ainda mais dois homens, igualmente armados, no ex­tremo oposto do muro. Nenhum deles parecia preocupar-se com codor­nizes ou quaisquer outros pássaros, pois todos tinham os olhos postos no americano.

"Sou um alvo perfeito", pensou Ashley, olhando para o relógio. Eram nove e quinze da manhã. O Capitão Granforte já devia encontrar­-se na Questura. Era melhor telefonar-lhe imediatamente e pôr fim à comédia e ia antes que alguém se machucasse.

Richard Ashley dirigiu-se para a villa, Os homens de sentinela as­sobiaram e gesticularam uns para os outros como que a indicarem que o perigo havia passado.

O terraço ainda continuava deserto, Ashley entrou no salão onde se encontrava o telefone. Um dos criados estava lavando o chão e, ao vê-lo, parou de trabalhar durante um momento e ficou a observá-lo.

            Ashley pegou o telefone, Não ouviu o menor sinal, mas sabia que os telefones italianos eram muito caprichosos. Não tardou a compreender, porém, que o telefone estava desligado e que provavelmente assim con­tinuaria enquanto ele permanecesse na Villa Orgagna.

Pensou, então, que chegara o momento de entrar em negociações com Tullio Riccioli,

 

       Já passatn das dez horas quando Tullio apareceu no terraço, apenas de calção de banho e sandálias, trazendo consigo todo o seu equipamento de artista. Ashley cumprimentou-o aparentando casua­lidade e esperou que ele pousasse a tela que tinha debaixo do bràço e começasse a trabalhar numa pintura que estava quase pronta.

            Em seguida, sem a menor pressa, Ashley levantou-se e aproximou-se dele, falando-lhe em voz baixa:

            - Continue a trabalhar, Tullio. Se alguém vier, faça de conta que estou lhe falando dessa pintura.

- D 'accordo! - Riccioli olhou-o de lado e continuou a pintar. ­De que é que quer falar-me, então?

- Preciso que me faça um trabalhinho... hoje mesmo.

- Tenciona pagar-me?

- Claro.

- Quanto?

- Quinhentos dólares adiantadamente e mais quinhentos depois de me prestar esse serviço.

- Parece tratar-se de assunto importante...

- É, sim,.. para mim.

- Que quer que eu faça?

- Quero que vá a Sorrento e transmita um recado ao inglês George Arlequim.

- Que deseja que eu lhe diga?

- Apenas que já tenho o que ele quer e que venha visitar-me o mais depressa possível.

Tullio deu um passo atrás e olhou para a pintura com uma expressão teatral.

- Só isso?

- Nada mais... Só quero que lhe dê o recado. Poderá sair daqui sem dificuldade?

            - Não vejo o que é que possa impedir-me. A viagem até me fará bem. Esta casa é como um museu.

            - A que horas poderá ir?

            - Antes do almoço. Terei de pedir um automóvel a Orgagna. Não pense que vou a pé ou de ônibus, com este calor. Quando é que... me en­trega o adiantamento.

- Venha ao meu quarto, pouco antes de sair, que eu lhe entregarei.

- Esplêndido.

E foi tudo. Tullio voltou à sua pintura e Ashley foi sentar-se de novo. Teria preferido voltar à praia e passar a manhã a banhar-se e a deliciar-se ao sol, mas julgou mais conveniente ficar em casa e fazer face às dificul­dades que não tardariam a surgir. Além disso - bem o sabia - os cam­poneses da península eram muito caprichosos e Ashley receava os caçadores que caçavam codornizes fora de época.

Tullio Riccioli oferecia pouca confiança - também o sabia - dado que se mostrava cheio de caprichos, vaidoso e incapaz de um ato de leal­dade. Seria, por conseguinte, um aliado muito perigoso. O seu caráter era imensamente duvidoso e Ashley ignorava se os quinhentos dólares do adiantamento chegariam para comprar a sua lealdade até Sorrento. Es­perava fervorosamente que sim, mas não depositava absoluta confiança nos resultados da missão.

Elena Carrese desceu ao terraço pouco depois. Apesar do calor, ves­tia uma saia de camponesa e uma blusa abotoada nos punhos. Tullio cumprimentou-a friamente e continuou a pintar. Ashley chamou-a e, após um momento de hesitação, Elena foi sentar-se a seu lado.

Ashley notou imediatamente que ela já estava mais calma e que nada na sua expressão indicava o pânico que a assaltara na véspera. Ofereceu­ lhe um cigarro e acendeu-o. A moça fumou em silêncio durante alguns

momentos e, em seguida, falou-lhe quase num murmúrio:

- Recebeu o que eu lhe mandei?

- Recebi, sim. Muito obrigado. Não tem mais nada a dizer-me sobre o assunto?

- Não. Apenas lhe peço que guarde bem os documentos.

- Por que diz isso? Receia alguma coisa?

- Receio?! - Elena sorriu amargamente. - Já não receio o que quer que seja! Nunca mais voltarei a ter medo de coisa alguma.

- Que aconteceu ontem. .. depois de me ter deixado?

            - Meu pai bateu-me - respondeu-me ela, falando com simulada indiferença. - Bateu-me como se eu fosse uma mulher ignorante das montanhas. Foi por isso que me vesti assim, para esconder as nódoas negras. Insultou-me e chamou-me de toda espécie de nomes por me ter visto com você naquele banco. Ameaçou matar-me se voltasse a me ver em sua companhia. Eu ri e ele tomou a me bater, como costumava fazer à minha mãe... até ficar cansado ejá não poder mais! - Elena deu outra tragada e continuou: - Nem sequer posso imaginar o que sucederia se ele soubesse o que se tem passado entre mim e Vittorio.

Ashley ficou muito admirado com. aquelas palavras.

- Então... ele ainda não sabe?!

Elena teve uma expressão de tristeza e amargura.

- Como poderia saber? Nunca estive com ele nesta casa. Vittorio é para o meu pai o gran' signore que levou para a cidade uma mocinha do campo e a transformou numa signora, apenas por generosidade e gran­deza de alma, e que completa agora o ato de caridade ao preparar-lhe o casamento com um marido ideal.

- Meu Deus! - exclamou Ashley.

Elena continuou a falar num tom angustiado e comovedor:

            - Meu pai é um homem muito simples. Só acredita em Deus e na Casa de Orgagna. Afirma que só existem três espécies de mulheres: as virgens, as esposas e... as outras. Bateu-me para me obrigar a perma­necer na classe a que ele julga que eu pertenço.

- Que aconteceria se ele descobrisse a verdade?

- Não sei - disse Elena Carrese sombriamente. - Creio que seria o fim do mundo para ele.

- E você? Gosta de seu pai?

- Não. Tenho um certo carinho por ele, mas nunca o amei como amei a minha mãe. Meu pai nunca nos pertenceu, compreende? Perten­ceu sempre à Casa de Orgagna.

- Sabe que ele tentou matar-me ontem no jardim?

Elena assentiu lentamente.

            - Sei. Meu pai me disse, enquanto me batia. Disse também que falhara dessa vez, mas que não falhará da próxima. Quando se zanga, acho que ele fica meio louco.

Ashley voltou-se para Elena e falou-lhe com muita ternura:

- Sabe que foi ele quem matou seu irmão?

Elena olhou-o bruscamente. O seu rosto se transfigurara. O olhar revelava bem o choque que ela sofrera ao ouvir aquelas palavras.

            - Tem... tem certeza? - perguntou Elena, falando com grande dificuldade.

Ashley pousou a sua mão firme no braço trêmulo da moça. Não desejava arriscar-se a uma cena ali no terraço, em frente às janelas da villa , e com Tullio a apenas alguns metros de distância.

- Tente dominar-se - disse-lhe ele, rapidamente. - Não mostre que está tão perturbada.

Elena empertigou-se e, muito tensa e rígida, tentou acalmar-se.

- Não se preocupe... nada farei de estúpido. Conte-me o que sabe.

Ele apressou-se a explicar-lhe o que deduzira. Orgagna e Cosima não tardariam a descer dos quartos e Ashley não queria perder aquela oportunidade.

- Não posso prová-lo, mas estou certo de que acertei. Creio que Or­gagna avisou seu pai de que Garofano tinha as fotocópias com ele. Al­guém desta casa pagou a Roberto para que vigiasse os meus movimentos e telefonasse para cá logo que eu abandonasse o hotel com Cosima. Julgo que, quando seu irmão saiu do hotel, obrigaram-no a entrar em um automóvel e o trouxeram para cá. Descobriram, então, que ele não trazia os documentos consigo, e, depois de o levarem para a elevação sobre a es­trada, aguardaram que Cosima e eu passássemos. De onde se encon­travam, podiam avistar a Isotta a uma grande distância. Sabiam, sem dúvida, que naquela reta os automóveis circulam a toda a velocidade. Só tiveram de aguardar a nossa chegada e atirar seu irmão na frente do automóvel. Agora, me diga: poderia alguém desta casa ter feito tal coisa sem que o seu pai tomasse conhecimento? Sem que ele ajudasse?

- Ninguém - respondeu a moça, sem qualquer entonação.

- Foi isso mesmo que eu pensei.

Elena ficou a olhar em silêncio para Ashley durante um longo tem­po. O americano sentia enorme piedade por aquela jovem indefesa, abandonada tristemente em tão sombrio poço de intriga e paixão. Seu ir­mão fora assassinado. O seu amante e o seu pai haviam conspirado para lhe provocar a morte. Depois, o amante desdenhara-a e abandonara-a para a vender a um homem desprezível como Tullio Riccioli.

- Agora - disse Ashley, falando com toda a sinceridade - creio que tentarão matar-me.

- Já o sabia - respondeu Elena gravemente. - Ouvi meu pai falar com os homens armados que andam pela propriedade. Se você tentar sair daqui, quer pela estrada, quer pelo mar, eles têm ordens para o matar e dizer depois que foi um acidente. Não deve afastar-se muito da casa. Não vá passear pelos jardins nem pelos olivais.

- Gostaria que você ficasse junto de mim.

- Por quê?

- Creio que vou precisar de você... e você de mim.

            Ashley ofereceu outro cigarro a Elena e pediu-lhe que se estendesse a seu lado, na outra cadeira. Richard Ashley e Elena Carrese, ambos imen­samente preocupados, ficaram a olhar então para Tullio enquanto este pintava o céu azul, as árvores cinzentas e os canteiros de flores no ousado estilo que encantava os críticos de Roma.

Orgagna apareceu no terraço meia hora mais tarde, em roupa de banho e trazendo uma enorme toalha no braço. O Duque cumprimento Ashley e Elena e deteve-se um momento a admirar a pintura de Tullio. Os dois homens conversaram animadamente durante alguns momentos. Tullio perguntou-lhe qualquer coisa. Orgagna olhou de súbito para Ashley e voltou-se de novo para Tullio, dando-lhe uma pancada amigável nas costas e falando-lhe em voz baixa, após o que se encaminhou apres­sadamente para a praia.

Pouco depois, Tullio, voltou-se e fez um gesto triunfante a Ashley. Este sorriu-lhe e acenou-lhe para mostrar que compreendera. Haviam transposto o primeiro obstáculo. Tullio iria a Sorrento levar a mensagem a George Arlequim.

Perto do meio-dia o pintor arrumou as suas coisas e voltou para casa. Ashley seguiu-o pouco depois, deixando Elena quase adormecida à sombra protetora de um enorme guarda-sol.

Tullio aguardava-o no seu quarto.

            - Está tudo arranjado, meu amigo. Disse a Orgagna que queria ir a Sorrento e pedi que me emprestasse um carro. Concordou. Pareceu até ficar muito contente por se ver livre de mim. Disse-me que ficasse lá até amanhã, se quisesse.

- E que foi que você respondeu?

Tullio sorriu e deu de ombros.

- Que poderia eu dizer-lhe senão a verdade? Estou farto desta vida monótona. Ficarei em Sorrento um ou dois dias.

- Ótimo.

            Ashley entregou cinco notas de cem dólares a Riccioli, que as guar­dou no bolso depois de as beijar efusivamente e de soltar uma exclamação infantil de alegria.

- Os outros quinhentos quando eu voltar?

- Exatamente. Repita-me agora o que vai comunicar a George Arlequim.

- Vou dizer-lhe que você já tem o que ele quer e que deseja vê-lo o mais depressa possível. Mais alguma coisa?

- Não. Isso basta.

Tullio soltou uma gargalhada quase feminina.

- Não quererá mandar também qualquer recado ao Capitão Gran­forte?

- Não, não. George Arlequim encarregar-se-á de... - Ashley proferira aquelas palavras sem pensar, e, notando a expressão de Tullio, logo compreendeu que cometera um erro muito grave. Só esperava que, com mais os quinhentos dólares prometidos, o artista não se servisse daquela sua indiscrição.

- Arrivederci, amico! - disse Tullio com suavidade.

            - Até amanhã - respondeu-lhe Ashley, acompanhando-o até à porta.

Richard Ashley começava a sentir um certo receio. Encontrava-se na propriedade de Orgagna tão bem guardado como o estaria numa cela da Polícia.

O telefone continuava desligado e os grandes portões fechados a cadeado. Os homens de Carlo, armados de espingardas de caça, vigiavam todas as possíveis saídas para o mar, para a estrada e para as colinas que rodeavam a propriedade. Se Riccioli falhasse na sua missão, o que era muito possível, Ashley estaria perdido.

Debruçou-se da janela do quarto e olhou para o terraço. Elena con­tinuava deitada. Cosima, de pé, a seu lado, conversava com ela. Orga­gna, após o banho matinal, regressava a casa. O almoço seria servido dentro de pouco tempo e, sem a presença de Tullio, eles quatro seriam os únicos comensais - um tenso e preocupado grupo, cada um deles re­ceando o parceiro, todos desconfiando uns dos outros. Carlo Carrese, que apenas acreditava em Deus e na Casa de Orgagna, assistiria também à embaraçante refeição.

Seria muito desagradável, sem dúvida, mas de qualquer forma, Richard Ashley teria de resistir à enorme pressão que o tentaria esmagar. E depois, mais tarde, mas nesse mesmo dia, Orgagna jogaria certamente mais uma cartada. Não lhe seria possível esperar muito mais tempo. O Capitão Granforte não tardaria a vir também reclamar o seu prisioneiro, para o acusar de homicídio ou para o libertar, a fim de ele poder dar cur­so à reportagem.

Ashley estava transpirando, tal era o calor, e, como não podia ir à praia sem se arriscar a ser assassinado, resolveu tomar uma ducha fria antes do almoço.

Quando já se vestia, meia hora mais tarde, ouviu o ruído de um automóvel que se punha em marcha e se afastava da villa. O fato deu-lhe uma ligeira confiança no futuro e provocou-lhe também um certo apetite para o almoço.

A refeição foi muito mais cerimoniosa do que a do dia anterior. Os criados haviam colocado no terraço uma grande mesa redonda e, junto dela, uma outra, de serviço, à qual Carlo Carrese presidia. Todo aquele aparato parecia indicar que Orgagna mandara preparar algo de especial para compensar o silêncio quase completo em que decorreu o almoço.

A refeição começou com uma entrada de surpreendente variedade e riqueza, acompanhada de uma garrafa de vinho branco seco da melhor colheita da Casa de Orgagna. A seguir veio o peixe: filés cozidos, um a um, em lamparinas e regados com um esplêndido molho de alho, tomate e virias especiarias exóticas. O vinho foi depois mudado para um Barolo tinto e seguiu-se um delicioso spiedini à moda romana. Numa apetitosa e espetacular seqüência, foram servidos, então, os doces, os queijos, as frutas e o café, e, em seguida, um bom conhaque Napoleon.

Não havia sido um atmoço para um dia de verão passado na praia, mas servira o seu objetivo, e, quando terminou, as duas mulheres reti­raram-se para os seus quartos, a fim de dormirem a sesta, enquanto Ashley e Orgagna ficavam conversando sob o guarda-sol.

"Agora" pensou Ashley, "é que ele vai começar o ataque."

Orgagna, porém, parecia não ter pressa de discutir o assunto. Em vez de o fazer, sorrindo ironicamente, tirou do bolso cinco notas de cem dólares e entregou-as a Ashley.

- Aqui tem o seu dinheiro, Sr. Ashley. Tullio foi esperto. Decidiu que faria melhor negócio comigo. Devia alegrar-se por eu lhe devolver o dinheiro, meu amigo.

- Muito obrigado - respondeu Ashley, aparentando uma calma que estava longe de sentir.

Orgagna riu, bem-disposto.

- Apesar de ser um homem experiente, você às vezes mostra-se inocente demais. Julgava então que um tipo como Tullio Riccioli atraiçoaria um protetor como eu apenas por quinhentos dólares? O rapaz tem os seus defeitos, mas não é idiota de todo. Sabia que eu lhe pagaria duas ou três vezes mais pela informação de que você tentava entrar em contato com George Arlequim.

Ashley nada disse. Não se sentia muito lúcido após aquele opíparo banquete.

- Já pensou na minha proposta? - perguntou Orgagna, abrup­tamente.

- A resposta ainda é a mesma: não!

- Tem as fotocópias, não é verdade?

- Tenho sim - disse Ashley, muito senhor de si e até com certa arrogância na voz.

Orgagna notou o novo tom de Ashley e olhou rapidamente para ele, falando-lhe com brusquidão e impaciência:

- É a sua última oportunidade, Ashley.

- Vá para o inferno! - exclamou o jornalista, já muito irritado.

O Duque encolheu os ombros e deitou-se na chaise longue. Ashley imitou-o. Sentia-se entontecido e ligeiramente enjoado. Tinha a testa coberta de suor e as mãos tremiam-lhe febrilmente. O jornalista sentiu mesmo um arrepio a percorrer-lhe o corpo.

De súbito, sem o menor sinal, foi atacado por uma terrível dor no ventre e por uma náusea que o fizeram levantar-se de um salto e correr para o parapeito do terraço. Vomitava e tentava recuperar o fôlego, até que o espasmo passou.

- Meu pobre amigo! - exclamou Orgagna, solícito e amável. ­Você está doente. Deixe-me ajudá-lo. Deve ir já para seu quarto, para longe do sol.

- Obrigado... sinto-me bastante mal.

            Orgagna pegou-lhe o braço e ajudou-o a atravessar o terraço e a subir depois as escadas até o quarto. Ashley deitou-se imediatamente, transpirando e sofrendo espasmos após espasmos, enquanto Orgagna o observava, calmo e atento, e o auxiliava repetidamente a ir até ao ba­nheiro e a voltar para a cama. A dor tornou-se mais violenta e Ashley sen­tiu que ia perder os sentidos. Depois... muito ao longe... voltou a ouvir a voz de Orgagna.

- Já se sente melhor, Ashley?

O outro sacudiu a cabeça, abriu os olhos e viu Orgagna de pé, a sorrir-lhe com ironia.

- Sinto-me pessimamente. Não seio que possa ser.

- Você foi envenenado, Ashley - disse Orgagna suavemente.

            - Envenenado! Eu... eu... - Tentou sentar-se, mas foi assaltado por novo espasmo e teve de correr uma vez mais para o banheiro. Desta vez, contudo, Orgagna não fez o mesmo gesto para o ajudar e limitou-se a observá-lo com um sorriso maldoso nos olhos.

Quando Ashley voltou para a cama, fraco e cambaleando, Orgagna sentou-se a seu lado e falou-lhe longa e pausadamente:    

- Você foi envenenado, Ashley. O veneno foi-lhe ministrado duran­te o almoço. Trata-se de um veneno muito simples e eficaz. Os espasmos tornam-se gradualmente mais freqüentes, como já deve ter verificado. Dentro de uma hora, duas no máximo, morrerá, cheio de dores. Existe um antídoto, claro. É também muito simples. Estou pronto a lhe dar este antídoto em troca das fotocópias, mas só depois de elas estarem nas minhas mãos. Suspeito de que as tenha deixado em Sorrento. Vinte minutos para chegar lá e outros vinte para o regresso... Teremos tempo para administrar o antídoto desde que você não se mostre muito teimoso.

Enfraquecido e febril, aguardando outro espasmo doloroso, Ashley olhava atentamente para o rosto de Vittorio Orgagna. Este não mostrava sentir a menor piedade ou remorso. O jornalista sabia que Orgagna fi­caria ali a observá-lo calmamente até que o soubesse morto.

Ashley fechou os olhos e tentou reunir forças suficientes para al­cançar o corredor, de onde talvez pudesse pedir socorro a alguém. Talvez Elena ou um dos criados o ouvisse e viesse em sua ajuda. A febre e a náusea, porém, não o deixavam mexer-se e então compreendeu que nun­ca teria forças para lutar com Orgagna e fugir do quarto.

- Assistirei à sua morte, Ashley... Acredite-me. Já fui demasiado longe para voltar atrás. Já morreu um homem e a morte de mais outro pouca diferença fará. Desta vez, contudo, não corro o menor risco de ser

descoberto. Você sente-se fraco, não é verdade? Vai enfraquecer ainda mais e as dores aumentarão até se tornarem completamente insupor­táveis. Poderei dar-lhe o antídoto quando quiser, mas aconselho-o a que não espere muito mais tempo. Os venenos são sutis e os seus efeitos nem sempre se mostram iguais em todas as pessoas.

            Ashley mantinha-se silencioso, tremendo de febre e de raiva. Sentia­-se sem forças suficientes para discutir, mas era obrigado a conservar as poucas que lhe restavam para combater a dor e ir ao banheiro. Percebia que começava a perder a esperança e que o medo já o dominava quase por completo.     

            Orgagna continuava, porém, a falar-lhe, teimosa e insistentemente. Ashley estava atingindo o limite da sua resistência.

- O jornal pagará o seu funeral, Ashley. Fará uma pequena re­ferência à sua morte e à sua carreira, mas os seus colegas continuarão vivos... divertindo-se, e logo esquecerão o idealismo que lhe fez perder tantos anos de bela vida. Você é um louco! Um louco teimoso que não merece viver. Onde estão as fotocópias?

- Debaixo... debaixo da cômoda - disse Ashley fracamente. - do outro lado...

Orgagna soltou um suspiro de alívio e aproximou-se da cômoda, levantando-a com o. ombro, tal como Ashley fizera. O Duque pegou o en­velope e, depois de examinar as fotocópias, soltou uma gargalhada.

Ashley abriu os olhos e falou-lhe angustiadamente.

- O antídoto... pelo amor de Deus!

Orgagna voltou para junto da cama e ficou a olhar para Ashley. Já não ria e o seu olhar tomara-se de novo sombrio e cínico.

- Sabe o que vou fazer, Ashley?

- Você fez um trato, Orgagna.

- E cumprirei o que lhe prometi, mas, em seguida, telefonarei ao Capitão Granforte e dir-lhe-ei que você está doente e que não desejo con­tinuar a responsabilizar-me por você. Pedir-lhe-ei que o prenda e proceda neste caso segundo a lei. A acusação era suborno, não é verdade? E homicídio...

            - Pelo amor de Deus, homem! Já tem o que desejava. Não poderá agora... ?

            Orgagna encaminhou-se calmamente para uma das paredes e tocou a campanhia de serviço.

         Poucos instantes depois, com grande espanto de Ashley, uma criada entrou no quarto. Pareceu ficar muito surpresa com o aspecto do americano. Orgagna falou-lhe em italiano:

            - Lúcia, traga três medidas de óleo de rícino para o signore, que comeu alguma coisa que lhe fez mal.

            Depois de a criada sair do quarto, Orgagna dirigiu-se outra vez a Ashley, sorrindo como uma criança maldosa:

- Foi o peixe, Ashley. Comeu um pedaço que estava podre. Trata­-se de um velho truque que se aplica sempre aos hóspedes indesejáveis. Tenho de cumprimentar Carlo pelo seu êxito.       

Vittorio Orgagna saiu do quarto a rir e Ashley, escondendo o rosto na almofada, chorou e praguejou - furioso, humilhado e exausto pelas fortes dores de barriga que o atacavam.

 

       Nada melhor para roubar a coragem a um homem, para o tomar completamente indefeso e ineficaz ante as suas obrigações, do que um pedaço de peixe podre. O seu corpo revolta-se e o espírito turva-se-lhe com a febre e o esgotamento. O infeliz toma-se objeto de repugnância para si próprio e de piedade trocista para os outros. É obrigado a tomar purgante, como uma criança, a passar fome, e fica condenado a lentas e difíceis horas de convalescença.

Ashley tinha pouca paciência para suportar aquela indisposição, que se tornara uma verdadeira catástrofe. O pensamento de que se degradara fisicamente e de que fora moralmente derrotado ainda mais lhe dificul­tava a passagem daquelas intermináveis horas na cama.

A criada, sempre sorridente, visitou-o repetidas vezes com o óleo de rícino que Orgagna receitara, deixando-o apenas com uma garrafa de água mineral e a sua infelicidade como companhia.

A reportagem já não tinha salvação possível. Orgagna, servindo-se de um simples truque psicológico, transformara a sua própria derrota numa vitória completa. Seu inimigo seria alvo de troça, pela sua inocên­cia e covardia. O Duque preparava agora a humilhação final, a entrega de Ashley ao Capitão Granforte, para que o jornalista sofresse o castigo da lei como se fosse um criminoso do mais baixo estofo.

Ashley, apesar de tudo, durante aquelas angustiosas horas, entre a cama e o banheiro, procurava descobrir uma forma que ainda lhe permitisse vencer Orgagna. A luta tornara-se mais pessoal agora, uma luta suja, sem qualquer nobre princípio a justificá-la. Agora, mais do que nunca, queria que Orgagna fosse acusado de homicídio e pagasse caro todo o mal que fizera.

Quanto mais pensava no assunto, contudo, menores lhe pareciam as suas possibilidades de êxito. Os únicos indícios mais ou menos tangíveis que possuía era o telefonema da Villa Orgagna para o barman Roberto e o dinheiro que este recebera para comunicar os seus movimentos a alguém que se encontrava na villa. Todo o resto era mera especulação e hipótese. Ashley duvidava mesmo de que Roberto pudesse ser convencido a narrar publicamente aquilo que lhe confessara à porta do Hotel Ca­ravino. Além disso, com que provas poderia Ashley contar? Com o fato de Carlo ter tentado assassiná-lo? Ninguém presenciara o incidente e, mesmo que tivesse havido testemunhas, o mordomo defender-se-ia, declarando que como pai lhe competia defender a honra da filha. Os caçadores de codornizes ? Diriam que era uma invenção sua, tal como o seu envenenamento, visto que qualquer imbecil teria percebido que se tratava de uma mera indigestão ou desarranjo intestinal provocado por um filé de peixe menos fresco do que os outros. Cosima? Essa não o ajudaria, com certeza. Nunca mais voltaria a ajudá-lo nem a prodiga­lizar-lhe o seu amor, disso não havia dúvida. Elena Carrese? A moça não podia arriscar-se a perder tudo, a cair na desgraça do pai e de Orgagna. Era verdade que lhe dera as fotocópias, mas ele, como um verdadeiro imbecil, perdera-as novamente. Richard Ashley deixara a pobre moça em má situação, e esta, num país onde existiam muitas como ela, teria de procurar defender-se da melhor forma possível. Orgagna ainda era, de momento, o único homem que lhe poderia proporcionar uma vida agra­dável, e ela não se atreveria a atraiçoá-lo.

George Arlequim? O inglês também tinha, primeiro, de atingir o seu objetivo, e não se preocuparia com problemas de ordem moral. Só pen­sava na sua missão, que era conseguir o delicado equilíbrio das forças políticas da Europa. Orgagna era bem mais importante para ele do que um simples correspondente de um jornal americano. Para onde quer que se voltasse - Ashley o sabia - apenas encontraria punhais a ameaçá-lo e olhares zombeteiros a cobri-lo de ridículo.   

Só lhe restava, pois desistir da luta. Desesperado e angustiado, Richard Ashley adormeceu de cansaço no enorme leito que Orgagna lhe pusera à disposição.

Já era tarde quando despertou. O sol perdera bastante da sua inten­sidade e o ar tomara-se mais fresco. Sentia o corpo ainda muito dolorido, mas o seu espírito recuperara algo da antiga lucidez e inquietação. Olhou para o relógio. Eram oito horas e dez minutos. Não podia continuar ali dentro, imóvel e inútil. Sentou-se na cama e depois levantou-se lenta­mente. Continuava um pouco tonto, mas, passado um momento, a náusea desaparecesse e, ainda cambaleante, dirigiu-se ao banheiro.

Após tomar um banho quente, que o reconfortou bastante, embora ainda se sentisse fraco e meio tonto, Ashley vestiu-se com esmero para o jantar e, em seguida, sentando-se na cama, acendeu um cigarro. Logo, porém, o apagou, nauseado e ainda mais tonto.

Antes de sair do quarto, olhou longamente para a sua imagem, refletida no espelho do armário. Estava muito pálido. A pele do rosto ad­quirira um tom acinzentado e os olhos estavam inflamados e inchados. Os lábios, então pareciam ter perdido toda a cor e as rugas na testa haviam-se tornado ainda mais profundas. "Estou envelhecendo", pen­sou. "Estou demasiado velho para estas coisas. Terei de pedir ao jornal que me dê um lugar atrás de uma mesa, um cargo tranqüilo e respeitável, onde um homem possa fumar calmamente o seu cachimbo e falar aos jovens jornalistas das grandes reportagens de outros tempos e até da­quelas que não chegaram a ser publicadas." .

Richard Ashley ouviu atentamente o ruído de um automóvel que chegava e aproximou-se da janela para ver quem era, esquecendo-se de que o seu quarto dava para o mar e não para a avenida que conduzia ao portão da propriedade. Não importava. Talvez se tratasse do Capitão Granforte, e também podia ser que Tullio Riccioli decidisse, afinal, regressar à casa nesse mesmo dia. Fosse quem fosse. Ashley não tinha pressa. Dar-lhe-ia tempo bastante para se instalar confortavelmente e só desceria ao salão quando se sentisse mais seguro do seu espírito e das suas pernas.

Procurando recompor-se mais depressa, Ashley abriu a janela da varanda e respirou fundo o ar fresco e perfumado da tarde. Uma aragem agradável refrescou-lhe o rosto e o tom alaranjado do céu causou-lhe uma certa sensação de bem-estar. As sombras já começavam a invadir o resto da propriedade e o mar tornara-se vermelho ao último contacto do sol, prestes a desaparecer no horizonte. Os pescadores, nas suas cascas de noz, muito ao longe, regressavam a terra. Capri estava coberta de uma tênue névoa e as janelas das villas de verão brilhavam em reflexos dou­rados e vermelhos para lá do estreito.

Os turistas, àquela hora, deviam estar sentados nos cafés e espla­nadas da praça principal da cidade, enquanto as moças da terra ini­ciavam o passeio para exibir seus melhores vestidos na popular passeg­giata. Um homem como ele estava decerto absolutamente louco para se preocupar tanto com uma reportagem e arriscar até a vida por ela, quan­do o que devia fazer era tomar um barco e ir divertir-se em Capri. Loucuras, como aquela, porém, pagavam-se caro. Mas já não lhe era possível retroceder nem esquecer tudo quando acontecera naqueles úl­timos dias.

Pois bem, agora já estava perto do fim. Esse fim não lhe prometia mais do que humilhação e derrota, mas Ashley sentia-se demasiado can­sado e fraco para se preocupar. Decidido, sem qualquer hesitação, Ashley voltou as costas à ilha, ao mar e àquele céu suave e desceu até ao salão.

Todos estavam presentes, como se o aguardassem: Orgagna, Co­sima, Elena Carrese, Tullio, o Capitão Granforte, George Arlequim e até o velho Carlo, que circulava entre eles com uma bandeja de bebidas. Ashley notou que quase todos, ao vê-lo chegar, haviam ficado imensa­mente chocados e surpresos com o seu aspecto. Orgagna cumprimentou­o fria e calmamente:

            - Estou muito satisfeito por vê-lo entre nós, Ashley. Sente-se melhor?

            - Muito melhor, obrigado.

            - Instale-se aí nessa poltrona. Carlo, traga um aperitivo para o sig­nore.

            - Não quero beber, obrigado.

            Ashley sentou-se pesadamente e cumprimentou os restantes com um gesto vago. Nenhum deles lhe falou, embora todos o observassem, um pouco embaraçados. Carlo acabou de servir as bebidas e foi encostar-se à parede - um modelo de serviço discreto.

- Salute! - disse Orgagna.

- Salute!

Todos eles beberam, continuando a olhar para Ashley, que era o único que não se associara àquela saúde. Orgagna pousou o copo na mesa e, voltando-se para o Capitão Granforte, começou a falar pausa­damente:

- Todos nós estamos ao corrente do assunto que nos reúne aqui hoje. Todos nós, de alguma maneira, tomamos parte no caso que vamos discutir. Pensei, por isso, que seria aconselhável estarmos todos presentes nesta fase final do incidente. As minhas razões são simples. Na minha opinião, e também na de vocês, com certeza, o caso deve ser concluído hoje de vez, para que todos possamos voltar às nossas ocupações habi­tuais sem que sejamos considerados suspeitos do que quer que seja e sem que nos sintamos embaraçados em face de quaisquer pessoas. O Capitão Granforte já concordou comigo neste ponto, o que explica a sua presença entre nós. Quem quiser formular qualquer pergunta, ou mesmo qualquer acusação, deve fazê-lo agora. Quem tiver alguma prova ou esclarecimen­to a apresentar, seja de que natureza for, não deve hesitar nem recear fazê-lo. Compreendem-me?

Orgagna olhou à volta, mas ninguém o encarou. Todos tinham a atenção concentrada nos copos ou nos cigarros que fumavam nervosa­mente. Orgagna prosseguiu:

- Todos sabem os motivos que trouxeram o Sr. Ashley a Sorrento. Já faz muitos meses que andava investigando as minhas atividades po­líticas e financeiras com a esperança de descobrir algo que prejudicasse as minhas possibilidades de triunfo nas próximas eleições. Veio a Sorren­to para comprar umas fotocópias a um tal Enzo Garofano. Essas foto­cópias eram supostas reproduções de algumas cartas do meu arquivo pes­soal. No dia em que esteve com Garofano no Hotel Caravino, Ashley tam­bém encontrou minha mulher, a quem conhecera intimamente antes do nosso casamento. Foram passear de automóvel e no regresso, com Ashley ao volante, atropelaram e mataram Enzo Garofano. O Capitão Granforte pensou que a morte do informante talvez fosse de natureza criminosa, mas, tendo em atenção os meus desejos e também por um ato de justiça para com o Sr. Ashley, permitiu que ele viesse para aqui, como meu con­vidado, até que as investigações terminassem. Concorda com tudo quan­to eu disse Sr. Ashley?

Ashley olhou para ele e sorriu ironicamente.

- Sem comentários.

Orgagna olhou para Granforte, encolheu os ombros significativa­mente e depois continuou:

- Eu pensava ter sido amável para com o Sr. Ashley, ao mesmo tempo que evitava a minha esposa uma série de dissabores. Mas o Sr. Ashley parece que não é da mesma opinião e desde que veio para cá tem sido muito indiscreto e tomou-se mesmo insuportável. Tentou subornar um dos meus convidados, tal como já subornara Garofano. Procurou seduzir a minha secretária e, depois, acusou o pai dela de haver tentado assassiná-lo. Quando viu os meus homens caçando, em busca de uma boa peça para o nosso jantar, acusou-os de o forçarem a permanecer na propriedade sob ameaça de morte. Esta tarde, depois do almoço, afirmou que eu o tinha envenenado, quando todos podem ver que apenas sofreu uma cólica intestinal, depressa curada com um simples purgante. Em virtude de todas estas razões, sinto que já não lhe devo qualquer cortesia e sou forçado a pedir ao Capitão Granforte que me liberte de um hóspede tão... indesejável.

O Duque recostou-se na poltrona e aguardou. George Arlequim acendeu um cigarro e sorriu ligeiramente. Então, o Capitão Granforte dirigiu a palavra a Ashley:

- Sr. Ashley, devo esclarecê-lo de que não é obrigado a responder a qualquer pergunta que não seja feita na intimidade do meu gabinete durante um interrogatório formal. Todavia, devo também dizer-lhe que talvez seja mais útil para todos nós que o senhor não evoque esse privi­légio e nos ajude a esclarecer o caso aqui mesmo. Que lhe parece?

Ashley raciocinou durante um breve momento e a seguir replicou:

- Está bem, mas reservo-me o direito de me recusar a responder a qualquer pergunta.

Granforte assentiu:

- É uma condição que tenho de aceitar. Ouça, então, a minha primeira pergunta: Que razões o levaram a iniciar esta investigação sobre a vida de Sua Excelência?

            - Pertenço a uma empresa jornalística, o meu trabalho é investigar e revelar aos leitores assuntos de interesse público.

- Ebbene! A sua decisão não foi, então, causada pelas suas antigas relações com a esposa de Sua Excelência ou pelos sentimentos que ainda poderão prendê-lo a ela?

            - Não.

            - De que natureza eram os documentos que tentou comprar a Enzo Garofano?

- Tratava-se de seis fotocópias de cartas referentes a transações de dólares, à distribuição de sementes americanas supostamente enviadas para os lavradores mais pobres e também ao desvio de certos fundos            governamentais.

- Chegou a comprar esses documentos?

- Não.

- Roubou-os a Garofano, então, sem os pagar.

- Não.

O Capitão Granforte fez uma pausa e sorriu ligeiramente.

- Sua Excelência informou-me de que, durante o incidente no hotel, sua esposa viu-o tirar um envelope contendo documentos do bolso de Garofano. É verdade?

- Não.

Granforte voltou-se para Cosima.

- É verdade que disse isso a seu marido, signora?

            - É, sim.        

Ashley percebeu o que iria suceder, mas já não se importava. A ver­dade viria a ser descoberta mais cedo ou mais tarde e seria bem mais in­decorosa do que as mentiras que eram ditas para a encobrir.

Granforte voltou a falar:

- Como explica esta discrepância, Sr. Ashley?

- É muito simples. Cosima mentiu apenas para me proteger.

- Muito obrigado. Agradeço-lhe não haver tentado mentir de novo. Agora... diga-me... se esta senhora mentiu uma vez por sua causa, con­forme sucedeu, não será de admitir que ela tenha mentido mais do que uma vez pela mesma razão?          

- Não compreendo a sua pergunta.

- Creio que compreende... e muito bem. A Sra. Duquesa mentiu, como o senhor, sobre a morte de Enzo Garofano. Este não foi lançado ou empurrado desta propriedade, pois ia andando pela estrada, a caminho de casa. Você viu-o e acelerou o carro com o intuito de o atropelar. Roubou-lhe os documentos, então, e entregou-os à signora para que esta os guardasse. Trouxe-os depois para cá a fim de fazer chantagem com eles. E esta tarde, receando ter sido envenenado, viu-se forçado a devolvê­-los a Sua Excelência, que, por sua vez, os entregou a mim.

            Granforte, ao acabar de falar, tirou do bolso o envelope castanho que continha as seis fotocópias.

            Ashley ficou imensamente surpreendido.

Havia algo que ele não compreendia. Algo com que não contara. Or­gagna acusava Cosima da mesma forma que o acusava a ele. Era possível que se tratasse de mais uma das suas artimanhas. Talvez quisesse passar por um infeliz marido enganado e ganhar assim a simpatia e os votos das eleitoras. "Um jornalista e a esposa de uma alta personalidade política conspiram para arruinar o salvador da Itália." A notícia talvez conse­guisse atingir o objetivo. Orgagna era suficientemente sutil para o premeditar e, assim, voltar o feitiço contra o feiticeiro.

Mas, e as fotocópias? Lidas juntamente com a reportagem, que Granforte já tinha nas suas mãos, constituíam a prova decisiva da culpa de Orgagna e de todas as suas ações ilegais. A não ser que Granforte – e agora nada era impossível - houvesse sido comprado também e George Arlequim tivesse tomado parte naquela duvidosa transação.

Granforte continuava a observar o jornalista com um brilho de triunfo nos olhos límpidos. Ashley tentou dominar a angústia que o assal­tava antes de lhe perguntar:

- Permite-me que veja essas fotocópias?

Para sua surpresa, e igualmente de alguns dos presentes, Granforte não fez qualquer objeção e entregou-lhe o envelope. Ashley examinou os documentos. Aquelas fotocópias não tinham nenhuma relação com as outras. Eram de cartas triviais, perfeitamente inocentes, que em nada prejudicavam Orgagna. Ashley devolveu-as a Granforte.

- Então, Sr. Ashley?

- Estas não são as fotocópias em questão.

Granforte sorriu tolerantemente.

- O que pretende dizer-nos, Sr. Ashley, é que Enzo Garofano ten­tou enganá-lo ao querer vender-lhe documentos sem o menor valor, não é verdade? Não o sabia, claro, pois, se o soubesse, não se teria associado com a esposa de Sua Excelência para cometer um assassínio e arruinar o marido da mulher que ama. Quando descobriu que fora enganado, Sr. Ashley, decidiu recorrer à chantagem, destruir este casamento e este lar, e, ao mesmo tempo, lucrar algo com o fato.

Ashley olhou para Cosima. A Duquesa mergulhara o rosto nas mãos. Orgagna permanecia imóvel, tudo parecendo indicar na sua ex­pressão uma profunda dor, a dor inenarrável de um marido ofendido                       e enganado. Ashley olhou ainda para Elena Carrese. Esta, de punhos cerrados e rosto contraído, contemplava Orgagna com uns olhos que brilhavam estranhamente.

- Tem mais alguma coisa a declarar em sua defesa, Sr. Ashley? ­ perguntou Granforte, falando com uma voz macia como seda.

- Tenho, sim! - Ashley soltara aquela exclamação com toda a energia que ainda lhe restava. - O Capitão está vendo tudo isto da forma que mais lhe convém, já que todos os presentes têm o maior interesse em esconder a verdade. Mas, quer queiram, quer não, terão de ouvi-la da minha boca. Essas fotocópias são uma mentira, um estratagema oportu­no do Duque. Eu entreguei-lhe as verdadeiras fotocópias esta tarde. Foram-me dadas por Elena Carrese, visto que ela acreditava que Enzo Garofano, seu meio-irmão, fora assassinado nesta villa por um membro desta família. Garofano pedira-lhe que guardasse os documentos en­quanto os negociava comigo. Quando nos zangamos e Garofano saiu correndo do hotel, Elena guardou as fotocópias para mais tarde as devol­ver ao irmão. Este, contudo, nunca mais regressou ao hotel. Não posso provar o que lhe aconteceu, mas creio que o meteram num automóvel e o trouxeram aqui para a villa. Sei, com toda a certeza, que Roberto, o bar­man, telefonou para cá a fim de informar a que horas Cosima e eu saí­ramos do hotel. Tenho também a certeza de que o assassino nos aguar­dou no alto daquela elevação, que se encontra dentro desta propriedade, e de que, calculando que eu viria dirigindo com grande velocidade na­quela reta, lançou o corpo de Garofano em frente do automóvel para fazer de Cosima e de mim os inocentes instrumentos do crime.

Granforte não pareceu ficar muito impressionado com a veemência do jornalista e ripostou com frieza:

- Quem é o culpado, então, Sr. Ashley?

- Orgagna foi quem planejou o crime, é ele o homem com álibi, a quem basta dar uma ordem pelo telefone para que os seus fiéis servidores lhe obedeçam sem discussões. E Carlo Carrese foi o homem que dirigiu as operações, ajudado talvez por alguns outros membros do pessoal da casa.

Granforte sorriu ironicamente.

- Sabe dramatizar bem o produto da sua imaginação, Sr. Ashley. Tenho a certeza de que é um profissional muito competente. O que me interessa saber agora é como vai provar a sua teoria.

- Primeiramente, Capitão Granforte, interrogue Roberto e veja se consegue que ele fale do telefonema da Villa Orgagna e do homem que lhe pagou dez mil liras.

            - Farei o que me diz, Sr. Ashley. E que mais?

- Pergunte-o ao Sr. Arlequim e ele lhe dirá que eu não tinha as fotocópias comigo no hotel e que nem sequer sabia onde elas se encon­travam.

- Sr. Arlequim? - inquiriu Granforte, voltando-se para O inglês. Os olhos doces de George Arlequim pareciam mostrar quanto ele lamentava aquilo tudo. O seu rosto continuava imperscrutável e sereno. Sacudiu a cabeça lentamente.

- Receio não poder ajudá-lo, meu caro amigo. É verdade que você me disse que não as tinha e também que não sabia onde se encontravam,     mas isso nada prova, não é mesmo?

- E agora, Sr. Ashley?

- Pergunte a Elena Carrese. Ela lhe dirá como veio a ficar de posse das fotocópias. É também possível que ela lhe diga por que, mas não a aconselho a fazê-lo. Pode ser ainda que lhe diga a razão por que seu pai lhe bateu e o que a levou a entregar-me os documentos. Foi ela quem os meteu debaixo da porta do meu quarto ontem à noite.

- Que tem a dizer a isto, signorina? Elena respondeu sem a menor hesitação:

- É tudo mentira. Não vi o meu irmão desde que fui para Roma. Tudo o que sei sobre esses documentos é o que ouvi aqui e o que Sua Ex­celência me disse. Este homem tentou seduzir-me ontem e, quando me recusei a ceder, ameaçou-me de me envolver neste assunto. Sou a se­cretária de Sua Excelência e tenho livre acesso a todos os seus papéis. O Sr. Ashley tentou assustar-me. Depois... o meu pai apareceu e conseguiu libertar-me.. .

Ashley notou a satisfação de Orgagna. Sabia o que motivava a atitude de Elena: com Cosima longe de Orgagna, a moça esperava poder recuperar o seu amante, nem que para isso tivesse de fazer chantagem. Elena conseguira um triunfo bem mais agradável do que tudo quanto planejara, já que desta forma continuaria ao lado do homem que amava. Ashley, porém, não podia deixar passar em claro aquela série de men­tiras.

- Ouça, Granforte...

- Por favor, Richard! - Era a voz de Cosima, cansada mas enér­gica, que se fazia ouvir pela primeira vez em sua defesa. - Não fale mais. Não vale a pena fazê-lo, pelo menos aqui. Diga você o que disser para provar sua inocência, eles deturparão tudo até conseguirem o que de­sejam. Tentei avisar que isto aconteceria, mas você não me deu ouvidos. Desta vez...!

Ashley olhou longamente para Cosima e viu-lhe no rosto uma dor in­finita, uma angústia e um esgotamento que o desesperavam, mas que, ao mesmo tempo, lhe comunicavam uma nova esperança no seu amor. Eram finalmente aliados e ele se arrependia de não haver confiado cegamente na dedicação e no amor de Cosima. Esgotado e tonto por toda a confusão que lhe ia na cabeça, voltou-se para Granforte e disse-lhe simplesmente:

- E, agora, Capitão?

            - Com os elementos de que disponho até esta altura - respondeu Granforte - não tenho outra alternativa senão prender ambos por cons­piração e homicídio.

            - Está bem. - Ashley levantou-se. Os outros olharam-no com curiosidade.

- Nesse caso, peço-lhe que me autorize a telefonar para o meu es­critório em Roma a fim de que eles entrem em contacto com a Embai­xada Americana e organizem a minha defesa legal.

Granforte assentiu pensativamente.

- Muito bem, Sr. Ashley.

Orgagna, ao ver o jornalista encaminhar-se para o telefone, interveio com secura:

- Não será isto um pouco anormal, Capitão?

- Trata-se de uma cortesia - respondeu Granforte calmamente ­e, nestas circunstâncias, creio que seria injusto recusá-la.

Ashley pegou o telefone e pediu uma chamada para Hansen.

- Urgentissimo. É... é um assunto diplomático. .

            A telefonista disse-lhe que demoraria meia hora para completar a ligação. Ashley imaginava que levaria mais tempo, mas transmitiu a in­formação a Granforte, enquanto voltava a se sentar.

- Podemos esperar - declarou o Capitão.

            Orgagna procurou ainda protestar, mas, mudando de idéia, acenou a Carlo Carrese e este voltou a servir as bebidas. Fez-se um silêncio mor­tal e a atmosfera tomou-se tensa e pesada. O único ruído que se ouvia era o das pancadas compassadas de um enorme relógio decorado com as ar­mas dos Orgagna.

 

- CARLO!

Todos olharam, admirados, para Cosima ao notarem o tom autoritário e firme da sua voz.

- Signora...?

- Chame a minha criada Concerta, por favor.

            Carlo foi chamar a criada. Esta chegou poucos minutos depois e ficou a olhar, muito surpresa, para o aspecto tenso e preocupado de todos os presentes. Voltando-se em seguida para Cosima, perguntou:

- La signora, vuole qual' cosa?

- Traga-me a minha bolsa, Concetta. A castanha... que está na segunda gaveta da cômoda.

- Subito, signora.

Concetta apressou-se a sair da sala e os outros ficaram a contemplar Cosima, como se aguardassem alguma explicação para aquele pedido. Cosima não lhes prestou atenção e limitou-se a pegar um cigarro. O Capitão Granforte levantou-se imediatamente para acendê-lo e tomou a sentar-se.

            Carlo começou a preparar um coquetel. O ruído do gelo a chocalhar na coqueteleira juntou-se ao som compassado e irritante do relógio. Nin­guém ousava falar. Que poderiam eles dizer? Nada havia que pudesse ser expresso pela hipocrisia cortês das palavras...

“... Eu os enganei e venci. Você os enganou e foi vencido. Eu fiz o mesmo, mas suas paixões atraiçoaram você, ao passo que as minhas trouxeram-me resultados muito lucrativos. Nós mentimos ambos, mas as minhas mentiras foram consideradas como sendo a verdade. As suas foram a sua perdição. Todos nós somos mentirosos... e traidores. Todos nós somos assassinos potenciais. Alguns de nós, porém, são um pouco mais habilidosos e cruéis do que os outros...”

Foi então que, subitamente, Orgagna se fez ouvir. Falou com visível irritação:

- Não podemos pôr fim a isto, Capitão? A situação é extremamente embaraçosa para todos.

- Tem toda a razão, Excelência - disse Granforte com delicadeza - mas peço-lhe que tenha um pouco mais de paciência.

            - Está bem...

            Concerta regressou à sala. Trouxe consigo a bolsa de Cosima e voltou logo para a cozinha a matutar na estranha atitude dos signori. Cosima abriu a bolsa e tirou dela a sua caixa de pó-de-arroz, entretendo-se a pôr algum pó no rosto. Os outros observaram a Duquesa como se fossem crianças em frente a uma jaula de jardim zoológico.

Passados mais alguns minutos, quando a atmosfera já se tornava novamente insuportável, Cosima fechou a caixa bruscamente e voltou-se            outra vez para o mordomo:

- Carlo!

- Signora ...?

- Venha aqui, por favor!

Carlo pareceu hesitar, mas pousou a coqueteleira e aproximou-se de Cosima, parando em frente dela - uma figura imponente, cheia de dig­nidade, que a sua idade avançada e os longos anos de fiel servidor na­quela casa lhe conferiam.

Cosima olhou para ele e falou-lhe num tom de voz gentil e afetuoso.

- Carlo, conforme ouviu o Capitão dizer, terei de me ausentar desta casa. É costume, um bom costume, aliás, recompensar os bons servi­dores. Você tem sido o servidor de meu marido, mas também tem servido a mim, e eu lhe estou agradecida. Aqui tem, pois, o meu presente.

            Cosima tirou da mala um espesso envelope e entregou-o ao mor­domo.

            O velho hesitou um momento e olhou para Orgagna. Este assentiu num gesto breve. Cado fez uma reverência e disse:

            - Mille grazie, signora!

            - Prego! - respondeu Cosima, olhando para ele enquanto o mor­domo voltava para a mesa de serviço com o envelope na mão. Quando o velho retomou o seu lugar à mesa, hesitando sobre o que devia fazer com o envelope, Cosima falou-lhe ainda mais autoritariamente do que antes: - Abra-o Carlo!

As velhas mãos do mordomo começaram a abrir o envelope, en­quanto os outros o observavam, nervosos e admirados. Granforte cur­vara-se para a frente, com as mãos nos braços da cadeira, como quem se prepara para se levantar de um salto.

Lentamente e ainda hesitante, o velho acabou de abrir o envelope. Encontrou dentro dele uma grande quantidade de recortes de jornais e revistas, a maioria com fotografias. As pessoas presentes estavam, porém,

demasiado longe para poderem vê-los. Apenas distinguiam o papel característico das revistas e jornais. italianos e os títulos muito grandes e negros. Carlo Carrese analisou os recortes um por um, lendo devagar

todos os títulos, e, à medida que o fazia, olhava ora para Elena ora para Orgagna.

Todos observavam Carlo, surpreendidos pelas suas reações: choque, desilusão, medo, desgosto e, finalmente, uma fria e silenciosa fúria. Depois, como se fosse um ator que passasse da mímica para a ação, Carlo dirigiu a palavra a Cosima. Formulou-lhe uma pergunta simples mas in­cisiva:

- Signora, que significa isto?

- Significa - respondeu Cosima - que o homem que foi educado por você, cujo pai você serviu, de cuja casa cuidou fielmente e cuja honra teve de defender por meio de um assassinato, seduziu sua filha e deson­rou-a. Nem sequer o fez secretamente. O nome e o rosto dela vieram es­tampados na imprensa de Roma. Os homens que escreveram esses artigos encarregaram-se de fazer com que todo o mundo ficasse ao corrente da desonra da sua filha. Pergunte a ela, se não acredita em mim!

Carlo, porém, não tinha necessidade disso. Elena tornara-se muito pálida e tapara o rosto com as mãos. Todos os outros, durante um trágico momento, pensaram que ele ia bater-lhe, mas o velho hesitou e deixou cair todos os recortes. Sem saber bem o que fazia, abaixou-se e voltou a apanhá-los. Trêmulo, alquebrado, ficou imóvel durante mais um angus­tioso momento. Depois, empertigando-se e parecendo ter recuperado al­go da sua firmeza, empunhou a faca com que cortara os limões.

Lentamente, como num pesadelo, aproximou-se de Orgagna.

Sua Excelência levantou-se. Os dois homens eram fisicamente parecidos: dir-se-ia que seriam pai e filho, não fosse o filho envergar o traje da nobreza e o pai o uniforme de mordomo.

Ninguém se mexeu, nem o próprio Granforte. Todos eles, naquele momento de tragédia, se limitaram a ser simples espectadores. O palco pertencia aos atores apenas. Estes encontravam-se num mundo muito seu, isolados e alheios a tudo o mais, a representar o último ato de uma tragédia privada.      

Orgagna estava de pé, imóvel, as mãos caídas ao longo do corpo. Quando estam a um passo de distância deste, Carlo parou e entregou-lhe os recortes.

            - Vossa Excelência me dirá se isto é ou não verdade e eu acreditarei no que me disser.

O rosto de Orgagna contraíra-se. Os seus olhos olhavam para além de Carrese, para além dos outros e das próprias paredes da velha casa de família - contemplavam uma visão longínqua: a visão do destino irônico que destrói a obra realizada ou a visão da verdade suprema que elimina todas as mentiras do passado.

       - É verdade - respondeu Orgagna firmemente.

            Seguiu-se uma longa pausa. O velho não se moveu. Seu rosto con­tinuou impávido e o olhar se conservou firme e atento. Os recortes caíram de novo no chão, e, ao mesmo tempo, à sua voz amargurada cor­tou o terrível silêncio que se fizera. Orgagna ficou imóvel, de olhos meio fechados, como se aguardasse a sentença.

- Tentei sempre, desde os seus tempos de criança, ensinar-lhe que neste mundo o que mais interessava eram esta casa e o bom nome da família. "Se a casa continuar forte e honrada, como o foi durante séculos e séculos, nenhum vento a pode deitar abaixo. Se o nome da família per­manecer limpo e respeitado, como sempre sucedeu nenhuma ofensa ou insulto o pode manchar. Um homem, para o ser verdadeiramente, deve conservar os seus pecados bem longe de sua casa e guardar a sua fé den­tro dela." Ensinei-lhe estes simples princípios, tal como seu pai me en­sinara. Fui forçado a matar o filho de minha mulher para preservar a casa e o seu bom nome. Confiei-lhe a minha única filha. Arruinou-a, per­deu-a, da mesma forma que destruiu a casa e o nome.

Elena soltou um grito e os outros levantaram-se, sobressaltados, en­quanto a faca, segura e rápida, se foi cravar, profunda e firmemente, no coração de Orgagna. Este não fizera o menor movimento para se desviar, recebera a faca em cheio no peito.

            Carlo ficou a olhar para o corpo do seu amo, estendido a seus pés, e todos fizeram logo menção de se aproximar dele.

            A voz autoritária de Granforte obrigou-os a recuar:

            - Sentem-se! Sentem-se imediatamente!

Os outros sentaram-se contrariados e tensos, enquanto Granforte se curvava sobre o corpo e George Arlequim ia fechar a porta à chave e correr as cortinas para que os olhares indiscretos do resto da criadagem não vissem o que acontecera. Depois, Arlequim acendeu ainda as luzes e a sala iluminou-se, fazendo resplandecer o solene ambiente barroco da velha Casa de Orgagna.

Carlo Carrese continuava de pé no meio da sala, imóvel e rígido, como que em estado cataléptico. George Arlequim agarrou-o por um braço e conduziu-o até uma cadeira, obrigando-o a sentar-se. O Capitão Granforte continuava ajoelhado junto do corpo de Vittorio Orgagna. Quando se levantou, muito grave e preocupado, o seu olhar era duro e acusador. Começou a falar:

- Eu já esperava por isto, ou qualquer coisa semelhante. Não sabia era como ou quando sucederia, e fui obrigado a aguardar que surgisse a crise que iria desvendar o mistério. Quando isto aconteceu, não procurei evitá-lo, visto constituir a melhor solução para todos, até para ele. ­ Granforte olhou para Vittorio Orgagna com algo de piedade na expres­são. - Querem saber como eu o previ? Pelo manuscrito da sua repor­tagem, Sr. Ashley. Compreendi qual era a natureza dos documentos que desejava comprar e calculei também a violência que daí poderia advir. O seu amigo Arlequim, que é mais seu amigo do que supõe, disse-me que as fotocópias haviam desaparecido. As minhas investigações em Santa Ágata depressa revelaram as relações existentes entre Enzo Garofano, a família Carrese e a Casa Orgagna. Este fato deu-me uma dúzia de ele­mentos assim como a indicação do atual paradeiro das fotocópias. Quan­do fui examinar o terreno de onde Garofano fora lançado, encontrei sinais de luta, embora fosse evidente que alguém os tentara eliminar. En­contrei igualmente um pedaço de tecido do casaco de Garofano e ainda manchas de laranjas esmagadas nas solas dos seus sapatos. O barman, Roberto, já me contou tudo o que sabia sobre o assunto e os meus colegas de Nápoles estão à procura de um homem que vive ali e que foi visto à en­trada do hotel convidando Garofano para entrar no seu automóvel. Foi, de fato, esse homem que o trouxe de Sorrento para esta villa. É tudo muito simples e teria sido ainda mais simples se vocês todos houvessem decidido ser sinceros e honestos para comigo. Agora...

Granforte olhou à sua volta com uma expressão ameaçadora. Havia algo de estranhamente sinistro naquele homem que falava autoritaria­mente, desprezando toda a magnificência da Casa Orgagna e com o cor­po inerte do Duque a seus pés.

- ... Agora... ouçam-me todos com atenção! Nenhuma das pessoas aqui reunidas pode dizer que não tomou parte na morte de Sua Excelên­cia, ou no assassinato anterior a este. Nenhuma! O velho Carrese sofrerá talvez mais do que qualquer de vocês, mas eu penso que ele é o menos culpado de todos. Elena Carrese mentiu e desonrou-se ainda mais para procurar conservar o homem que amava! Sua Excelência, a Duquesa - Granforte apontou firmemente para Cosima - ama um homem que não é seu marido, e foi o seu capricho de querer ir passear até Il Deserto, que causou a morte de Garofano. O Sr. Ashley, em nome da verdade e do seu jornal, não hesitou em mentir e em subornar, criando a situação que provocou o resto. O próprio Tullio Riccioli é culpado de se aproveitar da situação com o único fim de ganhar algum dinheiro. Todos vocês têm as suas culpas na morte dos dois homens! Eu, se quisesse, podia evocar a lei e encontrar uma forma de castigá-los a todos. Mas...

O Capitão Granforte voltou a fitar os rostos contraídos e perplexos dos circunstantes. Em seguida, falando mais baixo, comunicou-Ihes o que decidira:

- ... Mas, quando saírem desta sala, esqueçam-se de tudo quanto se passou, exceto de que o velho Carrese já tinha dado provas de não se encontrar muito bem da cabeça nestes últimos dias. Digam que esta noite, sem qualquer razão aparente, Carlo atacou o seu amo com uma faca e que, antes de o podermos evitar, Sua Excelência morrera. ­- Granforte, sem lhes dar tempo a que protestassem ou o interrogassem, continuou: - E, se me perguntarem que razões tenho para tomar esta atitude, recordar-lhes-ei que as eleições se efetuam dentro de uma se­mana e que do resultado delas dependerão a estabilidade deste país e a sua esperança de progredir nos próximos dez anos. É dessas eleições que dependerão também o trabalho, de operários agora desempregados, o alimento dos pobres, a educação das crianças, as escolas, os hospitais, tudo o que a paz e um Governo estável nos podem proporcionar. Peço-­lhes, pois, que se lembrem deste fato. Recordem igualmente que uma mentira não altera o que já sucedeu e que a verdade indiscreta pode des­truir todo o bem que ainda se poderá fazer. Compreendem-me?

- Não! - exclamou Richard Ashley,

Granforte voltou-se bruscamente para o jornalista:

- Por quê?

Ashley tentou explicar-lhe o que sentia:

- A verdade não pode ser enterrada tão profundamente que nunca venha a ser descoberta. Jamais se pode esconder a verdade completamen­te e parece-me muito melhor dizê-la do que continuar a ocultá-la e a es­palhar cada vez mais a corrupção e a mentira por este país afora. A Itália já sofre bastante com a ausência da verdade e ,o mesmo acontece com toda a Europa. Todos conhecem a verdade mas ninguém tenta dizê-la, excetuando alguns loucos como eu, que são sempre castigados por causa da sua sinceridade.

            - Continua disposto a publicar toda a verdade, Ashley? - pergun­tou Gorge Arlequim, cortando secamente a argumentação do jornalista.

            - Continuo, sim!

            - Sobre você e Cosima, Carlo Carrese, Elena e Tullio, Granforte... e sobre mim próprio? Toda a verdade, enfim, sobre os acontecimentos e as confusas relações entre nós todos?

- Estou pronto para isso, sem a menor dúvida.

- E poderá garantir que será tudo publicado?

Ashley olhou-o com uma surpresa evidente.

- Sabe perfeitamente que não posso garantir isso. Ninguém o pode fazer. Os jornais contam com um espaço muito limitado e, além disso, têm de se circunscrever ao que interessa aos seus leitores. É impossível...

- É impossível contar toda a verdade, e você o sabe muito bem - ­continuou Arlequim friamente. - É contra isso que todos nós lutamos, meu caro amigo. Mesmo que o seu jornal lhe desse todo o espaço do mundo, o que seria impossível, a maioria dos leitores não teria paciência ou coragem para ler tudo. O que o público quer são manchetes, e os jor­nais lhe dão essas manchetes, que constituem uma leitura mais simples e agradável. Os países, porém, não podem ser governados dessa for­ma. O único ser que sabe tudo sobre todos é Deus Todo-Poderoso. Creio até que Ele não estará muito contente com esse conhecimento. Seja razoável, Ashley. Deixe ficar tudo como está. E, se não quer enterrar a verdade, deixe-a dormir durante algum tempo. Quem é que perderá com isso? Não será você. Não...

O telefone tocou, estridente e irritantemente. Ashley levantou-se para atender. O Capitão Granforte barrou-lhe a passagem.

- Deixe-o atender, Capitão - pediu George Arlequim. - Deixe-o fazer o que ele quer.

Granforte deu um passo para o lado e Ashley pegou o telefone. Ouviu vozes que lhe diziam, desde Sorrento até Roma, "Pronto!... Pron­to!... Ponto!", ao mesmo tempo que olhava para o rosto morto de Vit­torio Orgagna e para o sangue que se espalhara no tapete persa. Os "Pronto!..." recomeçaram, desta vez com início em Roma, e depois... Terracina, Nápoles, Castellammare, Sorrento... e, finalmente, a voz de Hansen fez-se ouvir:          

- Pronto! Fala Hansen,

- Aqui fala Ashley... de Sorrento.

- Que prazer ouvir você, Ashley! Quais são as notícias?

- Tenho a reportagem sobre Orgagna. Completa... do princípio ao fim.

- Tem?

- Sim, e neste momento estou na...

- Esqueça a reportagem - disse Hansen sucintamente.

- O quê?! - exclamou Ashley, olhando de um modo aparvalhado para o telefone.

- Esqueça a reportagem. Tire uma semana de férias e divirta-se. Depois volte aqui ao escritório.

- Mas... não compreendo. Tenho notícias importantes. Orgagna morreu e...

- A notícia mais importante neste momento, Ashley, é que Harold P. Halstead, presidente do Monitor, foi nomeado Embaixador dos Es­tados Unidos na República da Itália. Por conseguinte, meu rapaz, não podemos pensar em publicar seja o que for que afete qualquer perso­nalidade de relevo na política italiana. Halstead, agora, é Embaixador, mas ainda é ele quem nos paga os ordenados. Você não recebeu o recado que mandei junto com o dinheiro? Será que não lê os jornais, Ashley? Por onde tem andado?

- Andavam incumbido de uma reportagem, está lembrado? Sobre Orgagna.

- Ah, sim, agora me lembro. Mas parece que você não considerou alguns ângulos importantes, não é, meu rapaz?

Ashley ouviu Hansen soltar uma gargalhada e, depois, o ruído característico do telefone ao ser desligado. Todos observaram atentamen­te o rosto desiludido de Ashley, julgando por um momento que ele ia começar a chorar. Ainda com o telefone na mão, pálido, perplexo, o jor­nalista voltou-se para eles e disse:

- Não querem publicar a reportagem!

- Eu já sabia disso - respondeu George Arlequim - mas você não me deu chance de lhe dizer. Há muito tempo que esperávamos a no­meação de Halstead.

            - Se um homem está morto - indagou Granforte, falando de nin­guém em particular - que importância pode ter uma reportagem?

Ashley não o ouviu. Continuou de pé, a olhar estupidamente para o fone que segurava, e só o largou quando Cosima o pegou pela mão e o conduziu carinhosamente até uma cadeira ao lado da sua.

 

                                                                                            Morris West  

 

                      

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