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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESTRELA DE JOANA / Paulo Pereira Cristóvão
A ESTRELA DE JOANA / Paulo Pereira Cristóvão

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A ESTRELA DE JOANA

 

Este livro não pretende ser uma obra de referência na literatura nacional. É somente o relato de um processo que mexeu com a consciência colectiva. Mexeu com a vida de polícias e, em alguns, fê-los repensar continuar a servir um Estado que não os protege. Mas um Estado que não protege as suas crianças dificilmente poderá proteger os seus polícias. Os polícias são homens e mulheres que, longe de serem perfeitos, são especiais. São diferentes. São o filtro através do qual só queremos ver a água cristalina a cair, mas não o que ficou por detrás da peneira.

Tive o privilégio de conhecer, ao longo de dezassete anos de Polícia Judiciária, tudo, mas mesmo tudo, de mau e de bom que esta sociedade é capaz de conceber. A Polícia formou-me, fez-me verdadeiramente adulto e desenhou em mim muito daquilo que é o meu perfil enquanto pessoa.

Para agradecer aos muitos que me ensinaram a ser Polícia porque, eles sim, eram verdadeiros Polícias e Homens, e para lhes dizer o que significaram, talvez tivesse que escrever um outro livro. Esses sabem quem são e ficam, para sempre, com os seus nomes gravados dentro de mim. Demasiadas vezes a Polícia Judiciária esqueceu aqueles que foram verdadeiras referências da sua existência. Foram também demasiadas as situações em que muitos literalmente abdicaram da sua própria vida pessoal para servir uma instituição que lhes demonstrou não o merecer e os abandonou quando deles julgava já não precisar. É excessivamente elevado o número daqueles cujo esforço e êxito pessoal foi, antes de mais, a escada para outros subirem. Homens que viram os inêxitos publicitados e os êxitos comemorados em privado.

Dedico este livro a todos aqueles que serviram a instituição ao longo de uma vida, acabando-a ultrapassados pelos novos tempos, ignorados pelos que hoje vivem dos seus feitos e singular dedicação e que, no silêncio da doença, do esquecimento e da solidão, humildemente mas com muito orgulho, dizem que foram da Polícia Judiciária.

Para ti, Joana, perdoa-nos não termos sabido cuidar de ti. Merecias muito mais deste mundo do que aquilo que cá vieste encontrar. Estávamos todos demasiado ocupados com as mesquinhices da vida para te dar somente um pouco da muita atenção que devíamos ter-te dado. Fiquei teu fã incondicional.

Uma dedicatória especial ao meu pai, companheiro e verdadeiro irmão de uma vida, sempre presente e apoiando o filho em Tudo e Sempre que foi preciso. À minha mãe. Aos meus filhos Ricardo e Beatriz, que me perdoem as ausências e que, um dia, digam orgulhosamente que o pai foi Inspector da Polícia Judiciária. A Marina, à Paula e a todos aqueles que, comigo, partilharam uma aventura de vida que durou dezassete anos.

Este livro relata um pequeno episódio desse caminho porque é importante saber que, afinal, os polícias também choram.

 

No dia 13 de Setembro de 2004, Leonor Cipriano e o seu companheiro Leandro David apresentaram-se no Posto da Guarda Nacional Republicana de Portimão para participar o desaparecimento de Joana Isabel Cipriano Guerreiro, filha de Leonor, nascida a 31 de Maio de 1996.

Declararam que a menina havia desaparecido na localidade de Figueira, Freguesia da Mexilhoeira Grande no dia anterior, cerca das 20.00 horas quando se havia deslocado a um café próximo de casa.

 

CRISTÓVÃO, MARQUES E LEONEL - O INÍCIO

São duas da tarde naquele Departamento de Combate ao Banditismo da Polícia Judiciária. Lisboa e o seu habitual trânsito lá fora. A Av. José Malhoa crescera nos últimos anos em prédios e em movimento e já não era aquele recanto pacato mesmo dentro de Lisboa. E Outubro mas o calor não dá mostras de querer dar tréguas aos lisboetas. Nesta sexta-feira, entre os que não estão porque foram jogar futebol e aqueles que aproveitam este dia da semana para organizar almoços distendidos, o Departamento apresenta-se quase deserto.

A Direcção Central de Combate ao Banditismo (DCCB) já não é realmente o que havia sido, um Departamento de elite, onde só alguns logravam entrar, onde os conceitos de Família e Cumplicidade eram rigorosamente levados a peito. A culpa era de todos e de ninguém. As levas de muitas dezenas de elementos novos, o crescimento desmesurado das competências, a escravidão à estatística tinham um preço a pagar e esse seria a descaracterização e esquecimento daqueles que prestaram serviços de elevado valor à sociedade, muitos deles de forma anónima e sem qualquer sede de protagonismo ou reconhecimento público. Os mais velhos, logo, os mais experientes, os portadores da mística, haviam mudado de ares e rumado a outros destinos dentro da Polícia ou para a reforma. A presa fácil em que se tornou para vaidades pessoais e desejos de protagonismo e controle de pessoas até de fora da Polícia, havia enfraquecido um Departamento que durante muitos anos primara pela discrição e eficácia sob o comando de Orlando Romano e Maria Alice Fernandes.

Cristóvão era um Inspector de 34 anos de idade mas já com 14 anos de Polícia Judiciária. Trabalhador compulsivo, teimoso, nem sempre era compreendido por alguns, mas seria seguramente respeitado pela maior parte. O seu porte de 1,86m, mais de 100 quilos, ombros largos, cabelo curto, olhos de gato - como membros de certa etnia teimavam em chamar-lhe - emoldurados por um «olhar de mau», colocavam-no nos «comos do toiro» sempre que havia uma qualquer operação ou detenção mais complicada. Também sabia, e bem, como conduzir interrogatórios e, tal como num jogo de poker, muitas vezes havia feito bluffs que culminaram com confissões de arguidos, convencidos que do outro lado estava construído um caso indestrutível contra si, quando na verdade o que havia não passava de um palpite. Isto, aliado a uma percepção aguçada do pensamento alheio, permitira-lhe obter êxitos nos processos mais importantes do Departamento.

Cristóvão era também alguém que sempre geriu melhor o seu trabalho que a vida pessoal. Dois filhos, mas divorciado. Incessante busca pela felicidade eterna porém sempre sem a encontrar. Muitas mulheres, mas nenhuma como Aquela Mulher. Os filhos, embora nunca o deixasse transparecer, acompanhavam-no no pensamento desde o acordar até voltar à cama. A amargura de não os ver sempre que quer também é atenuada pela indomável vontade de trabalhar mais. Sempre mais. Enquanto o cérebro se ocupa do «mânfio», da «rede», do «modus operandi», do «estabelecer conexões», do «produzir prova», não se ocupa de mais nada e assim é que estava bem. Bem sabia que se trataria de um erro assim agir, mas que fazer? A vida continua e o trabalho também e às vezes parar no peito, colar na relva e chutar para o alto é mesmo a melhor forma de se viver.

O trabalho já não lhe dava a «pica» de outrora. A qualidade do que chegava às secretárias não era nada do que havia sido uns anos antes. Até os próprios criminosos tinham descido de nível e isso não ajudava nada ao entusiasmo geral e ao desenvolvimento mental dos polícias. Estes são uma raça à parte que precisa de permanente desafio para também de forma permanente estarem a par do que se passa e disponíveis para o trabalho. A rotina mata o polícia. O marasmo corrói-o até que ele embrutece e Cristóvão receia cristalizar ideias pré-concebidas sobre tudo e sobre todos, esquecendo-se do permanente exercício que a investigação criminal é: Análise; Correlação; Síntese.

Precisava de desafios. Sentia-se a embrutecer, sentia-se a ficar acomodado e encostado. Mesmo prestes a entrar numa já longa fila de outros que assim haviam ficado antes de si. Por isso, e também por injustiças que lhe entraram na carne como faca afiada em músculo amorfo, Cristóvão já havia, há alguns meses atrás, pedido para ser transferido para o departamento de crime económico. Desejava trabalhar na Corrupção. O simples facto de se imaginar a começar a trabalhar em algo tão específico e ao mesmo tempo tão desconhecido elevava-lhe os níveis de adrenalina e ansiedade. Era bom. Era mesmo disso que necessitava. De sentir-se pequenino de novo, de aprender, de ouvir, qual estagiário que absorve tudo à volta como uma esponja. Era mesmo disso que precisava. Mudar e reinventar-se como polícia e como pessoa.

Para quem durante anos abria e fechava o Departamento, entrando às oito da manhã e saindo no mínimo doze horas depois, os tempos que corriam eram propícios ao cumprimento integral do horário do funcionalismo público. «Nove-cinco e meia». Custava, mas sucessivas guerras relativamente a horários, horas extraordinárias, subsídios de turno, contenção de despesas e afins sufocaram a vontade de trabalhar além daquilo para que os polícias eram pagos. A boa vontade e o espírito de iniciativa eram confundidos com graxismo e daí, à cautela, havia que cercear espíritos mais desenvoltos em matéria de produção.

Marques Bom havia entrado para a carreira de investigador criminal no mesmo curso que Cristóvão. É aquele tipo de polícia que qualquer colega gosta de ter a seu lado. Diligente, desenrascado, adaptável aos imprevistos, confiável e, acima de tudo, possuidor de um inabalável sentido prático das coisas. Como que padecendo da doença de más experiências conjugais que assalta os polícias, Marques Bom também tinha um filho que era a luz dos seus olhos, mas não vivia com a mãe deste. Mas nada o demovia de estar com ele. Polícia de trato afável e falinhas mansas que normalmente colhiam junto das interlocutoras femininas, cabelos grisalhos, olhar Alain Delon, baixo, aspecto robusto, andar curto mas decidido e, acima de tudo, frontal. Reencontrara recentemente o equilíbrio com uma também divorciada, identificando-se mutuamente e acreditando nas teorias das segundas oportunidades.

Leonel era o ícone da velha guarda do Departamento. Homem já com alguns avisos do coração, fumador compulsivo, resistência física notável, já vira melhores dias na DCCB. As sucessivas mudanças verificadas relegaram-no para uma prateleira chamada «Apoio à Direcção». Viúvo, desde muito cedo se viu a braços com duas filhas para criar e fê-lo, apesar das mais que muitas ausências e os muitos reconhecimentos a locais de bandidos por si efectuados acompanhado das suas meninas, que pensavam estar a fazer mais um passeio com o pai. Era errado? Pois era, mas era também a forma de manter o fusível DCCB ligado 24 horas por dia ao mesmo tempo que lhes dava o apoio e companhia possíveis. Leonel era também um homem desalentado com a sua sina profissional. Ele, que já fizera parte de muitos e importantes casos no Departamento, enfrentava esta fase sempre com a mesma vontade de dar o corpo ao manifesto. Os seus cinquenta e muitos anos estavam marcados no corpo. A barriga proeminente, a pele escura e a voz grossa eram a sua imagem de marca. O coração já o havia avisado em diversas ocasiões, o tabaco que há muito deveria pertencer ao passado teimava em acompanhá-lo todas as horas do dia. Era um daqueles polícias que ainda acreditava que na Informação estava a solução para todos os casos e cultivava-a. Jantava e almoçava com presos seus e ex-condenados.

Estava assim por dentro do que se passava e foram muitas as vezes que resolveu problemas aparentemente insolúveis. Leonel não o sabia, aliás, nunca o soube, mas dominava a função da Empatia. Cristóvão seguiu-lhe os passos nessa arte e foi assim que desenvolveu e aprimorou técnicas de entrevista e interrogatório que o Instituto da Polícia não ensina. O fazer-se amigo de quem eventualmente se pode odiar é uma arte só ao alcance de poucos.

 

O TELEFONEMA DE MANUELA

Toca o telefone na secretária de Cristóvão, no visor lê-se «Manuela Santos». Ela era a Coordenadora da Secção de Cristóvão. Mulher já nos quarenta, morena, cabelo negro farto e, no entanto, cara de boneca. A simpatia mas também a rectidão e frontalidade, assim como o companheirismo para com aqueles que consigo trabalhavam eram as razões do facto de o seu gabinete ser seguramente aquele que na DCCB mais visitas tinha. Manuela desenvolvera com Cristóvão uma relação de confiança e de desabafos mútuos sobre o andar da Polícia. Ambos concordavam sobre o estado, mau, a que aquele Departamento chegara e sobre as políticas erradas de quem o dirigia.

- Cristóvão, passe pelo meu gabinete e traga o Marques Bom - disse num tom grave que adivinhava algo sério e que contrastava com a sua habitual imagem de marca de simpatia e jovialidade.

- Ok, estamos a ir.

Cristóvão chama Marques Bom e ambos entram no gabinete de Manuela. Ali chegados são convidados a sentar-se, podendo agora testemunhar de forma visível que a face de Manuela transmitia apreensão e gravidade.

- Sabem aquela situação lá de baixo? A Joana? Ambos anuíram, olhando-se.

- O director pediu-me para escolher duas ou três pessoas para irem ajudar os colegas lá de Faro com aquela situação e eu escolhi-vos e também o Chefe Leonel - continuou.

Cristóvão foi assolado por um turbilhão de ideias sobre a dita «situação». Era tão-somente o assunto de que há quase um mês o país inteiro falava. A pequena Joana de oito anos havia desaparecido, e a mãe e o tio haviam sido detidos, encontrando-se em prisão preventiva naquele momento por suspeitas de homicídio da criança e ocultação do cadáver. Naqueles segundos a cabeça de Cristóvão foi ainda trespassada pela imagem do tio da Joana a percorrer campos junto à localidade da Figueira, algemado e acompanhado por colegas da PJ, indicando locais, uns atrás dos outros, sem que isso os levasse onde quer que fosse. Também lhe vieram à cabeça as sucessivas declarações à imprensa por parte dos responsáveis da Polícia referindo que se havia confirmado o homicídio da criança e que a descoberta do corpo estaria para breve. O breve havia-se transformado em demasiado tempo e o tempo ia passando.

Talvez ainda envolto nestes pensamentos Cristóvão franziu o sobrolho e, após olhar para Marques Bom, atira para Manuela:

- Cá para mim estamos mas é a entrar num qualquer esquema de divisão de responsabilidades. Os gajos estão presos, os dias passam, da miúda nada e como é que aquele pessoal vai aceitar os inteligentes que vão lá chegar provenientes de Lisboa? Parece-me que assim, no fim, e se as coisas não correrem bem, já vão poder dizer que eles não conseguiram, mas os rapazes da DCCB também não. Já me estou a ver carne para canhão.

Marques Bom interrompe o discurso de Cristóvão e remata:

- Também eu, mas vamos a eles, caraças!

Cristóvão pensa que mesmo assim vale a pena porque finalmente... finalmente uma pedra no marasmo em que se havia tornado o trabalho naquele Departamento. Era para si um desafio, um daqueles grandes como gostava, era o tentar desatar um nó que, pelo que ia sabendo pela comunicação social, estava bem mais que apertado. Tudo isto e a adrenalina que suscitavam em si os eventuais futuros interrogatórios a dois personagens policialmente aliciantes como o tio e a mãe da menina, a ideia de os entender, estudar, abordar, de neles usar a célebre abordagem empática que tantas vezes dera frutos antes, tudo isso fazia crescer em si a vontade quase indomável de agarrar num carro e ir para o Algarve naquele momento. O desejo foi aos poucos substituído por questões mais práticas como a escolha de viatura para a deslocação, dormidas, cartões de gasolina entre outros preparativos que implica uma deslocação para mais de 300 quilómetros da base, sem dia previsto para voltar a Lisboa pois a ordem de trabalhos era para ir sem saber quando ocorreria o regresso.

 

O TRIUNVIRATO

No dia seguinte, sábado, Cristóvão, Marques Bom e Leonel juntaram-se em casa do primeiro. Nos olhos de Leonel via-se uma ânsia, uma vontade enorme de voltar aos desafios da Polícia. Seria o regresso aos aparentes problemas insolúveis. Esta vontade quase que se via em termos físicos e na própria postura desta velha raposa. Até a proeminente barriga se aligeirara e dera lugar a um peito cheio. Este beirão bonacheirão que habitualmente falava dos tempos da luta contra as FP25, assuntos enigmáticos para as novas gerações de polícias, vira aqui uma hipótese de nascer outra vez.

- Rapazes - diz Leonel com um sorriso -, vamos resolver aquela merda ou não? É que se não for a gente não é mais ninguém, caraças. Está aqui um trio do melhor que esta casa já inventou, seus caraças!

- Vamos a ver, Leonel, o pior que pode acontecer é voltarmos para cima! - dispara Marques Bom entre risos.

As duas horas seguintes foram a troca de impressões pessoais relativamente àquilo que cada um interpretara do que vira nos jornais e televisões acabando, ao fim daquele tempo, por decidir que o melhor seria irem para o Algarve sem qualquer ideia pré-concebida sobre os factos. A abordagem passaria por irem para Sul com o menor possível de conclusões tiradas.

Ainda em Lisboa, segunda-feira, nove horas da manhã, o trio reúne-se com o Director da DCCB. Este, num tom sério e antes que Cristóvão, Leonel e Marques Bom se sentassem nas cadeiras daquela sala de reuniões despida de quadros ou adereços para além de uma mesa oval e seis cadeiras, diz:

- O DIC de Faro pediu-nos ajuda na resolução do caso da Joana, de que já ouviram falar, e vocês, tal como combinado, seguirão para baixo hoje e por tempo indeterminado, tendo por missão o interrogatório a João Cipriano, tio da menina, que se encontra preso há mais de vinte e tal dias!

O silêncio na sala era profundo com a excepção do barulho de desembrulhar bombons por parte de Cristóvão. Afinal estava uma taça de vidro cheia deles em cima da mesa de reuniões e, já que eram tão poucas as oportunidades de se lixar a Direcção, ao menos a subtracção daqueles doces serviria como uma vingança, ainda por cima doce.

Leonel, ouvindo uma missão tão vulgar como um simples interrogatório, questionou o Director:

- É só para isso? Para interrogar o gajo? O pessoal lá de baixo aceita isso bem?

- Temos ordens do Director-Nacional! - exclama o dirigente. - Eles pediram ajuda e nós estamos a dá-la... vocês chegam lá abaixo e apresentam-se ao Director do Departamento!

Cristóvão espreita a folha A4 que se encontra em frente ao Director e ali encontram-se escritos, em letra de forma, os nomes daquele triunvirato. Numa das linhas podia ler-se «Ordem de missão - Interrogatório a João Cipriano».

Leonel levanta-se da cadeira e, entre duas baforadas de fumo do inevitável cigarro, perguntou: - Fazemos por turnos? Oito horas a cada um, caraças... - gracejou.

 

RUMO AO SUL

Início da semana seguinte, segunda-feira, sete da manhã, um Audi preto atravessa a Ponte 25 de Abril rumando a sul.

Cristóvão vai ao volante, Leonel a seu lado e Marques Bom no banco traseiro. Na mala seguem três sacos com mudas de roupa para pelo menos uma semana. Fala-se de tudo menos do que os faz seguir naquele momento naquele carro e àquela hora. Mas Cristóvão pensa precisamente em tudo o que já viu na televisão sobre os dois irmãos, a imagem de Joana vem-lhe à cabeça dezenas de vezes. Entremeando com os seus pensamentos, vai tecendo comentários sobre os assuntos que vêm à baila naquele carro. Quase monocórdico. A certa altura apercebe-se de que os seus dois companheiros de viagem o fazem também e conclui que nenhum dos três está verdadeiramente ali. As suas mentes estão 300 quilómetros mais abaixo, na Figueira, em Faro, em Portimão... Acima de tudo era por de mais evidente que ali havia muita vontade de meter mãos à obra, ainda que estivessem a caminho do desconhecido. O desconhecido é sempre perigoso.

Cientes de que nestas coisas ninguém gosta de partilhar êxitos mas sim o contrário, o sentimento reinante era o da adrenalina misturado com as responsabilidades que tinham assumido. Já se sabia que as pressões eram muitas, a comunicação social não parava de falar no assunto de dia e de noite, a Direcção da Polícia já assumia que todos os meios seriam colocados à disposição, que nada faltaria, mas que «resolvessem o caso».

O tio e a mãe da Joana estavam presos preventivamente pelo homicídio da pequena Joana, mas o corpo não aparecia.

A coisa não estava fácil, quase um mês após o desaparecimento da criança. Não obstante todas as reticências, a vontade de fazer parte da resolução deste caso sobrepunha-se a tudo o resto. Era um pouco como aquelas balelas militares do «não sei para onde vou mas vou».

Em pouco mais de duas horas chegaram ao Departamento de Faro. Ao atravessarem a cidade buscavam um sinal de tumulto social, algo que de imediato mostrasse a indignação popular de que tanto ouviam falar nos meios de comunicação social. Mas não. Estava tudo normal. A vida continuava. As pessoas embrenhadas nas suas vidas. Mal entraram nas instalações de imediato sentiram uma atmosfera pesada no ar. Apesar da cordialidade institucional os receios confirmavam-se. Não eram bem-vindos ali. A sua presença era o atestado de que algo não correra bem.

Uma funcionária do Secretariado da Direcção recebeu o trio e disse - «Reunião no Salão Nobre!».

Quando entraram na sala esperava-os Guilhermino Encarnação, homem com história dentro da Polícia, que estivera no combate às FP-25 e ascendera dentro da hierarquia a pulso. Trazia na face o cansaço de muitas noites mal dormidas durante o último mês. Corpo franzino, cabelo e barba de um branco imaculados, o fato que vestia já fora preenchido com um corpo mais composto, o cigarro atrás de cigarro... Eram evidentes os sinais da pressão contínua a que estivera sujeito até àquele momento. A Direcção queria resultados, os media não paravam de lhe bater à porta.

- Bem - disse -, vocês estão aqui e ainda bem. O meu pessoal está completamente estafado e já não aguenta mais. Estes manos são diferentes de tudo o que encontrámos até hoje. Confessaram que mataram, mas não dizem onde está o corpo! - enquanto fita o tampo da mesa oval cor de carvalho que centra o salão e agarra nos aros dos óculos, observando-os também.

Abre-se a porta e entra Gonçalo Amaral, o Coordenador que supervisionava as investigações. Cristóvão já ouvira falar dele, mas nunca se haviam encontrado. Indivíduo já nos quarenta tardios, barriga proeminente, tez morena e os olhos... bem os olhos de cansaço do Guilhermino encontraram gémeos também neste polícia.

- Peço desculpa pelo atraso - diz -, mas tenho montes de coisas que estou a fazer. Mas adiante... Já abordámos estas peças de toda a forma e feitio e não há meio de dizerem o que fizeram à miúda. O João é um psicopata marado da pior espécie e a irmã vai pelo mesmo caminho!

Cristóvão, Marques Bom e Leonel vão ouvindo. Estão os três sentados lado a lado numa lateral da grande mesa oval com as mãos sobre o tampo. Nenhum abriu a boca depois daquela conversa ter começado, mas os olhares cruzam-se a cada frase ouvida. A dado momento a conversa chega a um interregno e Leonel, após encher o peito de ar, dispara:

- Da nossa parte contem com o maior empenho e fica desde já esclarecido que nós somos só mais uns que estão aqui para ajudar. Tudo o que pudermos fazer vamos fazê-lo e não há horários. Se tivermos que trabalhar de dia e de noite vamos fazer isso mesmo. Mas de que é que precisam para já?

- Então - pediu Gonçalo Amaral - vocês vão buscar o João e fazem-lhe o interrogatório!

Marques Bom pensa para com os seus botões: Porra..., assim tão rápido? E a merda do processo não se vê primeiro?

Como que por via telepática a mesma ideia domina os pensamentos de Cristóvão. E o enquadramento psicológico destas personagens? Chegamos, aterramos e vai de avançar para o gajo? Assim às cegas?

Entretanto, Marques Bom pergunta a Guilhermino:

- O processo está aí para a gente consultar?

- Está no Tribunal - responde Gonçalo. Temos algumas cópias de peças por aí, mas pronto... o essencial está dito, agora é escolherem quem fará o interrogatório. - Di-lo virado para Leonel como que esperando que este responda e lhe diga quem será então o interrogador.

Leonel olha para o lado, coloca a sua mão esquerda sobre a mão de Cristóvão e diz: - Aqui o meu amigo Cristóvão é que é o especialista dessa área e trata do assunto! - A escolha de Leonel fundamentava-se nas muitas horas já partilhadas por ambos, nas muitas noites de investigação, no muito frio que já haviam apanhado juntos e também nos muitos «jantares» às três e quatro da manhã em roulotes pela cidade de Lisboa.

 

JOÃO

Uma hora depois desta conversa, o Audi preto dirige-se ao Estabelecimento Prisional de Olhão com o Cristóvão e o Marques Bom. Leonel havia ficado no Departamento de Faro junto com Gonçalo e Guilhermino.

Pelo caminho, Cristóvão e Marques Bom decidem a estratégia para a abordagem ao João: potenciar ao máximo o efeito que duas caras novas teriam na sua pessoa, gestão do silêncio desde o primeiro momento, cordialidade em vez de afrontamento. O João, fosse ele o que fosse, teria que entender desde o primeiro segundo que não estaria a ser confrontado com mais do mesmo. Estavam cientes da tarefa hercúlea que os esperava porque ao fim de um mês de interrogatórios e de todo o tipo de abordagens, teria que se proceder a um reset naquela mente. Começar tudo de novo não era fácil e graças àquele inusitado procedimento de chegar e interrogar, iam mesmo a caminho do desconhecido para falar com um completo estranho.

Chegados ao Estabelecimento Prisional, Marques Bom dirige-se ao guarda de serviço e apresenta-lhe o ofício de requisição do preso. Trata-se de um guarda novo tanto na idade quanto, seguramente, na profissão, uma vez que de forma entusiasta atira:

- Ainda bem que o vieram buscar... o meu chefe está lixado com esse gajo... estávamos a falar com ele há bocado e uma vez diz que o corpo da miúda está aqui, depois diz que está acolá... está mesmo a pedir para levar, ai isso está!

Marques Bom e Cristóvão trocam olhares e pensamentos ao mesmo tempo que começam a ver os nefastos efeitos práticos da excessiva cobertura mediática. Toda a gente, sem excepção, quer ser o «salvador da pátria». Esta situação de o preso ser constantemente questionado, inclusivamente na prisão, era algo novo.

Chega ao hall o João Cipriano. Olhos no chão. Barba por fazer há muitos dias, cabelo desgrenhado, pele que já foi branca e agora tem um ar doentio, amarelado. Ao mesmo tempo que lhe abre a porta traseira do carro, Cristóvão diz-lhe: - Boa tarde Sr. João, faça o favor de entrar. -João sorri como que admirado pela delicadeza do trato.

O caminho até Faro foi dominado pelo silêncio dos três ocupantes do carro. A cabeça de Cristóvão fervilhava com ideias sobre a abordagem pela qual iria optar. As primeiras frases marcam a relação que o polícia e o interrogado vão manter daí para a frente.

Chegados ao Departamento, Cristóvão e João entram numa sala no segundo piso, sala essa que lhes fora destinada para as diligências. Sentam-se frente a frente. Cristóvão olha à volta e vê demasiados cartazes, demasiados pontos de distracção para o próprio João, fotografias, textos, quadros, papéis, processos, tudo potenciador de distracção, quando o que se pretendia seria focalização. Pede a Marques Bom, que se encontra junto da porta, para que tudo isso saia da sala. Marques Bom, com o desembaraço que lhe é reconhecido, em menos de cinco minutos desnuda a sala de tudo à excepção de uma secretária, uns móveis pequenos, um computador e duas cadeiras que são colocadas lateralmente à secretária viradas uma para a outra. A porta fecha-se, ficando Marques Bom no exterior.

Cristóvão decide-se pela função empática, pensando para si mesmo: Este gajo tem tido uma vida de merda nos últimos tempos, a prisão deve ser um inferno, quando vem a bófia a coisa não deve ser muito melhor... Que se lixe, vamos dar-lhe o contraste disso. E atira:

- Vai um cigarro, João?

- Vai sim, obrigadinho - responde, olhando para o chão, como que envergonhado.

- Tem tabaco na prisão? - continua Cristóvão.

- Eu não - pela primeira vez olha nos olhos de Cristóvão.

- De vez em quando lá vou arranjando um cigarrinho!

- Ok... Sabe que se quiser podemos ter aqui um advogado. Quer?

- Eu não. O senhor não me vai fazer mal, pois não?

- Mal? - sorri Cristóvão. - Mal faço a mim próprio quando fumo um maço por dia, companheiro. - Sorriem ambos.

- Nããã... não quero nada disso!

- Ok João, tudo bem. Sabe que está preso e vai continuar assim, não sabe? Por causa dessa merda em que se meteu?

Os olhos de João percorriam as paredes buscando algo onde se fixar. As suas mãos enroscavam-se ferozmente, os dedos polegar e indicador laceravam carne nos pulsos como que num processo de automutilação, como que tentando através daquele processo expurgar de dentro de si todos os seus pecados. A verdadeira dimensão daquilo em que estava envolvido tomou conta dele. Passou de dócil e educado para uma espécie de animal acossado. Cristóvão está sentado de frente para ele sem nada a separá-los. O João cheira mal. A roupa é a mesma desde que foi preso, não tem lâminas para se barbear, os olhos estão no fundo de uma cova escura. Cristóvão tenta olhá-lo nos olhos, sentir o que vai naquela mente. João olha para tudo. Qualquer coisa serve para não ter que olhar nos olhos de Cristóvão. Tudo serve para se distrair, as lâmpadas no tecto, as janelas, a beata do cigarro, tudo... Ele não quer é olhar nos olhos o polícia que ali está, como se, fazendo-o, de imediato o seu silêncio fosse traído e tudo se desmistificasse.

João curva-se sobre si mesmo, as suas mãos martirizam o seu corpo, a sua cabeça permanece baixa. Cristóvão tenta adivinhar o que suscitará interesse àquele homem.

- Então, João, como é a prisa, companheiro? Está sempre fechado? Não há recreio?

- Tou sempre fechado - responde sem olhar para o seu interlocutor.

Cristóvão entende que com João o máximo que pode almejar é pergunta/resposta e nunca um verdadeiro diálogo de ideias construídas. João carrega sobre si mais de um mês de comunicação social, polícias, serviços prisionais, interrogatórios, falsas pistas, contínuas falsas indicações de locais onde poderia estar Joana. No entanto, a despeito de tudo isto, Cristóvão sente que o João também se sente importante, importante como nunca se sentira na sua vida. Tanta gente a querer saber o que ele sabe, tantas formas de o abordarem antevendo ele sempre o fim e o propósito de cada um dos contactos, de cada um dos interrogatórios, de cada uma das abordagens... Onde está a Joana? Desde que fora preso não havia passado um dia que não fosse interrogado com esta pergunta. Foram polícias, guardas prisionais, magistrados. A carapaça estava forte. A aprendizagem já havia sido feita. Dava gozo a João. Um gozo que não podia exibir mas que se notava nos seus olhos quando estes se deixavam ver.

Os minutos passavam, a conversa não fluía, os olhos de João raramente fitavam os de Cristóvão e quando o fazia era somente para se certificar de que ainda estava a ser observado por este. Mais duas perguntas de circunstância e as mesmas respostas telegráficas. Sempre aquele olhar de fugida. Sempre aquelas mãos a massacrarem o corpo.

Cristóvão sente a necessidade de aquilatar João, de lhe tomar o pulso, aferir até que ponto aquele homem é inteligente. Faz-lhe a pergunta sacramental que qualquer polícia faz quando quer muito saber algo:

- Qual a coisa que mais deseja, companheiro? Cristóvão sabe que se João responder «Liberdade» é porque

não valorizou nem credibilizou aquele polícia à sua frente. É a resposta óbvia para polícias desesperados por informação. Se a resposta for diferente, mais elaborada, João, sem dar por isso, dará o sinal inequívoco de que ainda que não seja particularmente inteligente, a sua esperteza rude mas sábia fá-lo assumir um papel num tabuleiro de xadrez. É nestas entrelinhas, nestes diálogos sem palavras que Cristóvão sabe que se avalia uma personalidade, uma tendência comportamental, uma via para continuar.

João olha nos olhos do polícia, que estão a pouco mais de um palmo dos seus e diz:

- Queria que isto tudo acabasse a bem. Queria que isto tudo acabasse, que a menina aparecesse para isto tudo acabar!

Cristóvão pensou para si que tal resposta implicava uma melhoria porquanto a palavra «liberdade» não havia entrado neste desabafo do João. Cristóvão nem sequer valorizou a parte da criança aparecer porque, indo por aí, estaria a retroceder um mês em termos dos poucos avanços que a investigação já havia feito.

João e Leonor já haviam sido formalmente interrogados e declarado anteriormente que, no dia do seu desaparecimento, a Joana os havia surpreendido a manterem relações sexuais e que ameaçara contar o que vira ao seu padrasto, companheiro de Leonor. Por via disso havia sido agredida por ambos acabando inanimada no chão da sala da casa tendo os dois entendido que estaria morta, acabando cada um deles por acusar o outro de ter sido o autor da ocultação do cadáver da menina.

- Tem alguma forma disto acabar como você diz querer que acabe? - pergunta Cristóvão.

João hesita. Dá uma longa passa no cigarro que entretanto Cristóvão lhe dera e lhe acendera. Parece pensativo, como que com vontade de dar uma resposta minimamente aceitável para o polícia.

- Então... era eu dizer-lhe para onde foi o corpo da menina...

Cristóvão entende a cenoura que pela enésima vez é atirada para a frente da Polícia e sobe a parada. João tem que entender que tudo mudou, que as certezas e as pessoas são outras.

- Não! Isso não é importante, companheiro. Tem um processo por homicídio e isso está bem fundamentado. O facto de o corpo aparecer para nós é igual. O meu amigo já andou a passear o pessoal daqui mais de cem vezes e... nada!

Obrigado na mesma, estamos muito agradecidos, mas isso não é assunto que nos interesse muito. Bem... fique aí a fumar o seu cigarrinho que já volto, ok?

Cristóvão sai da sala, chama Marques Bom e dá-lhe conta do que lhe pareceu aquela troca de palavras com João.

- Temos aqui uma rica peça, companheiro. Um verdadeiro vaso raro da dinastia Ming. Tem o curso todo de técnicas de interrogatório. Já está mais que calejado, caraças!

Enquanto troca ideias com Marques Bom, Cristóvão vai espreitando para o interior da sala onde João se mantém imóvel na mesma posição em que se colocara cerca de duas horas antes.

- Este filme ainda agora começou - atira Marques Bom, confiante.

Cristóvão retorna à sala e de imediato pergunta a João se está com fome porque ele próprio vai mandar vir uma sandes e um sumo para si. João fica visivelmente incomodado, sente-se mal quando é alvo de um qualquer acto de cortesia ou de boa educação. Ser maltratado e de forma rude é-lhe bastante mais fácil de gerir. Sabe que não é normal ser bem tratado face à monstruosidade de que é acusado.

- Se puder ser uma cervejinha, então! Não quero comer nada.

- Nada disso, companheiro - retorquiu Cristóvão. - Se vai beber uma cerveja tem que acompanhar com algo. vou mandar vir uma sandes também para si, ok?

Decididamente esta preocupação alheia com o seu bem-estar não encaixa em João. Ele sente-se mal, quase deixando transparecer que necessitava que o tratassem mal. João encolhe os ombros e com a cabeça anui.

Cristóvão torna a sentar-se na cadeira em frente de João.

Enquanto Marques Bom vai ao café junto ao Departamento para aviar a encomenda e ele próprio comer qualquer coisa, encontra Guilhermino, Gonçalo e Leonel. Marques Bom é avesso aos famigerados AC’s da Polícia, ou seja, os Altos Crânios. Mesmo a presença de Leonel nesta mesa não o faz violar os seus princípios de afastamento das chefias.

- Duas sandes mistas, uma Sagres e uma Coca-Cola, se faz favor - diz Marques Bom para o empregado do balcão.

Ouve a voz inconfundível de Leonel perguntando-lhe:

- Então pá, como vai aquilo?

- Vai indo. É preciso é calma - responde Marques Bom, enquanto fita os croquetes como se fossem um objecto de análise pericial tipo CSI.

Enquanto espera que o sirvam, Marques Bom fixa-se no televisor do bar onde está a passar mais uma notícia sobre o caso Joana, referindo qualquer coisa sobre os elementos de Lisboa que haviam sido deslocados para o Algarve. Não consegue ouvir mais, mas vê a Leonor a mostrar a foto da filha e as famigeradas imagens do João a passear pelos campos circundantes à Figueira. Reparou que a t-shirt vermelha e as calças cinzentas são as mesmas peças de roupa que o João traz vestidas neste dia.

Marques Bom pensa para si: Ninguém arranja a merda de umas roupas ao tipo, tem um fedor que tresanda... se sair outra vez comigo vai mas é na mala do carro, caraças...

De regresso ao Departamento, Marques Bom, naquele seu passo calmo e pausado, entra no edifício, cumprimenta o segurança de serviço, olha-o olhos nos olhos como normalmente faz quando em pleno exercício de funções e vê ali, naquele funcionário que nada tem que ver com a investigação, um fundo de expectativa sobre si e sobre aqueles que consigo viajaram para o Algarve. Pensa mais um pouco e nota no «Boa noite» daquele seu colega algum desdém mas tem a missão das sandes para cumprir e isso é que é o mais importante agora. No entanto e enquanto vai subindo as escadas do Departamento, continua a pensar: Porra, esta merda, ainda agora começou e acho que já anda gente atravessada com isto...

Continuava a meditar entre palavrões e pragas a quem o mandou para o Algarve, quando foi assaltado por um pensamento como se um relâmpago o trespassasse. Parou entre dois vãos de escada, olhou à volta e pensou: Onde é que estão os nossos colegas algarvios?

Já havia visto duas salas daquela secção dependente da DCCB. As secretárias estavam vazias e nada de colegas. Pensa: Porra. Onde é que andam estes maganos?

Foi com este pensamento que vagarosamente subiu as escadas e chegou ao gabinete onde Cristóvão e João continuavam a conversa. Para não interromper qualquer coisa importante que eventualmente pudesse estar a passar-se, mas também porque «bófia que é bófia é um grande cusco», encostou o ouvido direito à porta enquanto, com ambas as mãos, segurava os mantimentos que lhe haviam solicitado. Lá dentro Cristóvão falava com João:

- João, esteja sempre à vontade para falar do que quiser menos dos locais da Joana, ok? Isso não interessa nada!

João retorquia e questionava:

- Mas não quer saber onde está a menina? Eu quero acabar com isto!

- Quer dar uma volta companheiro? A noite está para o fresco, mas tudo bem. Diga as coordenadas! - Cristóvão usa de alguma ironia porque para si esta é só mais uma das muitas voltas que João já deu no Algarve e pretendia continuar a dar.

- Então - diz João a medo -, sabe onde me prenderam? Na Altura? Ao pé de Caceia? É aí que está a menina. Num esgoto de um figueiral... debaixo de uma tampa de esgoto... é aí que está.

- Bem, companheiro João - diz Cristóvão a sorrir, isso fica a mais de sessenta quilómetros daqui, mas tudo bem, é como o meu amigo quiser. Mas não leve a mal, vamos lá noutro dia qualquer, ok? Hoje não.

João fica como que surpreendido com o que acabara de ouvir e argumenta:

- Mas então não quer que os leve lá?

- Nãããã... deixe estar, coma a sandes e a cervejola que depois já falamos, ok? - responde Cristóvão, como que totalmente desinteressado do que acabara de ouvir.

Cristóvão sai da sala e vai para o corredor onde Marques Bom, que escutara toda a conversa, se encontra. Cristóvão sabe que a pista não é para descartar até porque numa altura como aquelas nenhum elemento deveria ser descartado assim sem verificação, sendo certo é que o João não podia perceber o quão interessados eles estariam naquilo que ele dizia. Havia que se marcar a diferença e não serem «paus-mandados» dele.

Marques Bom questiona Cristóvão:

- O que achas, pá? Achas que vale a pena a gente fazer uma incursão ao local? É quase meia-noite, mas que se lixe.

Enquanto passa a mão na nuca Cristóvão concorda:

- Acho que sim, que devemos lá ir. Ele não há-de é saber que lá vamos. Fala com o Leonel e arranjem mais alguém que saiba o local exacto onde o detiveram e já sabem... um figueiral... tampas de esgoto, etc. Ouve lá, já falaste com alguém da SRCB *?

Marques Bom abre os olhos, franze o sobrolho e responde:

- Exactamente! Já tinha pensado nessa merda. Não há quorum - diz entre risos.

Enquanto procura o nome de Leonel na agenda do seu telefone, Marques Bom vai pensando que se calhar irá ter uma estada curta no Algarve.

- Chefe...

- Diz, companheiro Marques Bom - responde Leonel

com voz de trovão.

- Acho que temos que ir dar uma volta... Embora?

- Oh, meu caro amigo... cinco minutos e estou aí.

- Até já.

Chegado à sala onde Cristóvão e João continuavam a falar, agora de questões de construção civil, este agora está a desenhar numa folha A4 um croquis do terreno onde o homem dizia ter colocado o corpo de Joana, com três círculos

 

* Secção Regional de Combate ao Banditismo.

 

que pretendiam ser as tampas do esgoto e a sua localização concreta. Leonel colocou a sua mão sobre o ombro direito de João e disse-lhe:

- Então, caro amigo? Parece que tem qualquer coisa para indicar? É isso? Olhe que o senhor Cristóvão, com quem está a falar, acredita em si a cem por cento e acha mesmo que você não o está a enganar!

Esta era uma tentativa de Leonel elevar a fasquia, de confrontar João com um pretenso desgosto colectivo caso, mais uma vez, as suas indicações se revelassem erradas. João olha Leonel nos olhos e, com uma expressão de quase indignação exclama:

- Eu já disse que estou a dizer a verdade. Agora estou a dizer a verdade!

- Bem - diz Leonel -, vamos arranjar então umas lanternas e vamos fazer-nos à estrada. Vamos embora, Marques Bom!

Leonel e Marques Bom saem. Leonel sai da sala juntamente com Marques Bom, que entretanto se lhes juntara, e João, observando que Cristóvão continuava impávido sentado à sua frente sem fazer qualquer movimento que indicasse que ambos também acompanhariam a diligência, questionou o seu interlocutor:

- Então você não vai também? - Como que perguntando se ele próprio também não iria sair.

- Não - respondeu Cristóvão laconicamente -, eu e o meu amigo João vamos ficar aqui a coordenar as operações!

Resultou por de mais evidente que João havia ficado profundamente desapontado. Baixou novamente a cabeça e voltou ao seu mundo privado com as mãos unidas à frente, cotovelos apoiados sobre as pernas e sempre aquela tortura que infligia a si próprio em momentos de maior tensão.

Já passa da uma da madrugada quando Marques Bom e Leonel deixam para trás a cidade de Faro e entram na Via do Infante em direcção à Altura. A estrada é deles ainda que a fé naquelas informações fornecidas por João não seja muito grande, a expectativa, a adrenalina crescem dentro de ambos e só muito dificilmente escondem um do outro o que lhes vai na alma.

Marques Bom quebra o silêncio que já durava há vários minutos e que só não era total pelo ruído do motor e dos pneus a rodarem naquele alcatrão, quase betão, daquela via:

- Então, chefe? Acha que é desta que vamos dar um funeral decente à pequenita?

- Deus te oiça rapaz, Deus te oiça - responde Leonel sem retirar os olhos da estrada, como que tendo dado aquela resposta porque sim, porque era aquela que deveria dar e não por ter pensado muito no assunto. Na sua cabeça fervilham mil ideias, mil formas de tentar entender o que faz a natureza humana tratar tão mal crianças cujo único pecado é serem isso mesmo, crianças. A situação incomoda-o, mas depressa volta ao seu mundo, ao universo do polícia batido nestas coisas e dispara:

- Se não for hoje, nem que seja daqui a mil anos, Marques Bom, esta pequenita terá de ser encontrada.

Os quilómetros foram como os minutos decorridos. Voaram. Depressa o duo chega ao local onde João diz que se encontraria o corpo da criança. São quase duas da manhã e na localidade de Casa Alta nem um gato se vê. Trata-se de um amontoado de casas térreas, com três ou quatro ruas que mal deixam passar dois carros simultaneamente e que fica a cerca de dois quilómetros da EN125 na Altura. Lá estava o Fiat Uno branco onde João pernoitava quando havia sido detido. As indicações fornecidas pelo Gonçalo Amaral quanto àquela localização tinham-se revelado precisas e foi sem dificuldade que encontraram este povoado.

Param o Audi junto do Fiat do João e Marques Bom exclama:

- Esta merda é mais escura que os confins do Inferno, Chefe! Olhe, cá está o famigerado figueiral referido pelo nosso João. Muito bem. Pelo menos, no que a isto diz respeito, o homem, para já, está a falar verdade. Ora bem, deixa cá ver o mapa do tesouro escrito pela personagem...

Enquanto desdobra a folha A4 tenta localizar as tampas de esgoto ao mesmo tempo que começa a aventurar-se pelo terreno. Leonel acompanha-o. Em pleno campo, sem qualquer fonte de luz para além das lanternas que cada um trazia consigo, os focos de luz emanados de cada um daqueles aparelhos pareciam rasgar a noite. Não obstante o movimento, ninguém das casas aparecia à janela ou procurava saber o que se passava. O tradicional medo português de intervir naquilo que não lhes diz respeito fazia aqui uma demonstração plena.

- Esta gente - graceja Leonel enquanto tenta identificar uma das tampas de esgoto - não está a dormir o sono dos justos... está a dormir o sono dos surdos, dos mudos e dos cegos! A esta hora está tudo por detrás das persianas.

- Aqui está uma! - aponta Marques Bom, fixando uma tampa de esgoto ferrugenta, visível por entre ervas já com mais de trinta centímetros de altura.

O foco de luz da lanterna de Leonel confluiu para o mesmo local para onde a de Marques Bom apontava, e os quinze metros que separavam ambos daquele objecto foram rapidamente vencidos.

Leonel aproxima-se da tampa e constata que a mesma, pela quantidade de ervas que a cobriam e pelo seu aspecto geral, há muito que não era levantada do seu lugar. Então, Marques Bom exclama:

- Não! Isto não cheira a nada, Chefe, mas tudo bem, vamos lá levantar esta merda!

À força de quatro braços, e com as lanternas no chão iluminando parcamente aquela zona, conseguiram levantar a tampa constatando que ali não se encontrava rigorosamente nada. Localizada a primeira tampa, depressa descobriram as restantes, continuando a ter por referência o mapa toscamente desenhado pelo João. Não havia dúvida de que ele conhecia aquela propriedade e o sistema de esgotos que servia a rega da mesma.

- Mais do mesmo! - exclama Leonel desalentado, mas ao mesmo tempo esboçando um sorriso que revelava que, agora sim, entrara no jogo. O jogo do gato e do rato. Da verdade e da mentira. com efeito, o desafio fazia-o sentir-se vivo e estava a adorar a sensação.

Leonel empunha o telemóvel e liga para Cristóvão.

- Tou? Cristóvão?

- Diga coisas, Chefe Leónidas.

- Agradece aí ao teu companheiro o passeio nocturno que viemos dar, mas que há tampas e figos isso há... agora, de Joana, nada.

- Sim senhor, muito bem - responde Cristóvão tentando não dar a João qualquer mostra de desalento ou euforia, uma vez que a gestão das emoções, junto dele, eram factor essencial para um qualquer resultado positivo. - Até já então! despediu-se.

Cristóvão olha João nos olhos durante uns segundos, antes de retomar a conversa com ele. Os olhos de João olham timidamente para os de Cristóvão, como que adivinhando a notícia que lhe vai ser dada. Afinal tratava-se de mais uma pista falsa e ele tinha a verdadeira noção disso.

- Bem, João - fala sem qualquer expressão no rosto -, por hoje terminámos. Você vai daqui a pouco para o Estabelecimento Prisional, e dentro em breve tornaremos a falar, ok?

- Então... - balbucia João, como que perguntando o que se havia passado na Casa Alta.

- Então... - interrompe Cristóvão - então você vai para a prisão dormir, descansar e em breve tornaremos a falar, ok?

- ’Tá bem - anui João, baixando novamente a cabeça e fechando-se na sua mutilação de sempre.

A meia hora seguinte foi de profundo silêncio naquela sala onde somente os dois se encontravam. As paredes despidas de tudo, a falta de pontos de observação, todo esse despojamento só deixavam como foco de observação de um a presença do outro. Cristóvão nem por um segundo deixou de observar João. A pele amarelada, a roupa suja, os braços magros, aquele cabelo desgrenhado e oleoso, a barba de muitos dias, dias de mais, os olhos encovados, vitrificados, sem expressão. Que homem estaria diante de si? Um campônio que com os copos fazia coisas de que depois já nem sequer se lembrava? Um chico-esperto? Alguém cuja importância era nula, mas que toda a gente havia colocado ao nível de um grande criminoso? Ou pelo contrário estaria perante um dos maiores desafios da Polícia, confrontando-se com um psicopata puro? O aspecto exterior do João não deixava adivinhar qualquer resposta a tantas perguntas. O trabalho teria que obedecer a uma estratégia milimetricamente delineada e de igual forma cumprida. com o João Cipriano não havia lugar a improvisos ou a laivos de inspiração momentânea de qualquer polícia.

Pouco passa das três da manhã quando Cristóvão, Marques Bom e Leonel param o carro à porta do EP de Olhão. O guarda de serviço, ao espreitar pela escotilha, de imediato identifica a já figura nacional de João Cipriano acompanhado daqueles três polícias.

- Olha quem está de volta - graceja. - bom filho à casa torna!

- Deixem-no dormir - adverte Cristóvão -, ele precisa de dormir mesmo.

Depois de abandonarem a prisão, seguem para o Departamento de Faro. Ali chegados, as questões de logística colocam-se pela primeira vez. Após breve discussão sobre o assunto decidem que o cansaço vence tudo e pernoitam mesmo nas celas da cave do Departamento.

- Às oito horas no bar, ok? Pequeno-almoço familiar! - diz Leonel enquanto ri.

 

UM NOVO DIA

São sete da manhã. Para Cristóvão as horas voaram. O sono foi interrompido diversas vezes pela figura do João na sua mente. As estratégias, as formas de o abordar, os ensinamentos que foi adquirindo ao longo dos anos vieram todos ao de cima. Pensa que para aquele indivíduo tudo será pouco, terá de se socorrer da totalidade do que souber em termos de Entrevista e Interrogatório, mas também de Empatia, Gestão do Silêncio, Gestão da Informação, tudo...

A noite também havia tido um foco de perturbação que Cristóvão já tinha esquecido, o que era comum para quem dormia perto de Leonel em tantas e tantas diligências que implicavam trabalhos fora de Lisboa. O ressonar de Leonel, gracejava-se com o assunto, era suficiente para acordar os mortos. Encontrei-o quando saía do duche fazendo ele o caminho contrário. Leonel estava enrolado numa toalha de banho de turco branco. Aquela toalha colocada sobre a sua barriga e enrolada à volta do corpo, com aquela barriga proeminente, dava-lhe um ar de pré-parturiente.

- Alvorada - graceja Cristóvão. - A criança está para breve?

- Ai o caraças, ’tou lixado contigo! - responde Leonel, encaixando pela enésima vez a brincadeira que já tinha tradição na DCCB.

Como que impulsionados pela mesma mola madrugadora, às sete e meia da manhã já o trio se encontra à porta do bar do Departamento e Leonel ri com a situação:

- Isto é que é alegria no trabalho, hein? Meus amigos...

- fica agora com um ar mais pesado - temos aqui uma peça do caralho!

Cristóvão e Marques Bom anuem com as cabeças.

- Mas também se fosse fácil não éramos nós que estávamos aqui, pois não? - atira Marques Bom.

Leonel continua.

- Depois de tudo o que o Guilhermino e o Gonçalo me informaram ontem e também do que já vi, parece que temos aqui um psicopata da pior espécie e também me parece que andam a subestimá-lo há demasiado tempo, não só nós, polícia, mas o público, os jornais, televisão, etc, etc!

- Estou nessa consigo, Leonel - remata Cristóvão -, hoje temos que nos sentar calmamente, olhar para o processo com olhos de ver, observar o que já foi feito até agora, o que cada um deles declarou e depois pensarmos numa abordagem quer ao João, quer à Leonor.

Apesar das poucas horas dormidas, Cristóvão estava entusiasmado com este novo dia. Motivação não faltava a este grupo. Havia diferentes formas de encarar o trabalho.

Pouco passa das oito horas da manhã, quando o grupo já se encontra na sala destinada a trabalharem. Não se vê ninguém na secção nem nos corredores e Marques Bom atira:

- Querem ver que hoje vamos continuar sem ver o resto do pessoal?

- Calma - diz Leonel -, acho que o processo vinha ontem ao fim da tarde e vou ver se encontro essa merda para a gente depois se sentar aqui um bocado para ficarmos a par da coisa, está bem?

Enquanto Cristóvão e Marques Bom ficam a trocar ideias sobre as impressões de cada um acerca do dia anterior, Leonel sai da sala.

Uma hora e meia mais tarde, Leonel entra na sala com um volume que, pela experiência de Cristóvão e Marques Bom, não teria mais de cento e cinquenta folhas. Marques Bom não tira os olhos do processo e não se consegue conter:

- Porra! Isso é que é o processo? Ou esta gente não gosta de escrever ou então deve haver mais dois ou três volumes escondidos... Isto está bonito, está. Siga para bingo então!

Vamos lá!

Os olhos ávidos dos três vão consultando as diversas peças processuais, desde a comunicação do desaparecimento por parte da mãe da Joana, recolha de informações, inquirições de várias pessoas, entrada da PJ de Portimão no processo, croquis, medições no terreno, autos de busca à residência da Leonor Cipriano, até aos interrogatórios de ambos no Juiz de Instrução.

- Bem! - exclama Cristóvão, abrindo os olhos - temos muito que começar a analisar antes de fazermos mais qualquer coisa, ok?

Estando os três prestes a começar a tarefa a que se propunham, entra Gonçalo na sala:

- bom dia, amigos, a Leonor está aqui, querem começar?

- Ha? - Leonel mostra-se surpreendido - mas quem? Porquê? Gonçalo, vamos falar aí fora um pouco! - Dito isto sai da sala levando Gonçalo consigo.

Marques Bom desabafa:

- Agora sobra a Leonor para nós também? Ainda nem sabemos sequer de quem estamos a falar, o local não foi visto, não sabemos sequer o que já foi feito nem se neste momento se está a fazer qualquer coisa... nada! Agora toma lá a senhora e governa-te! Sim senhor, que rico serviço! Nasci para sofrer!

- Fantástico - concorda Cristóvão com ironia -, assim mesmo é que é. A ciência ao serviço da investigação!

Na verdade começava a crescer um sentir de que, para além de terem sido para ali destacados, o mais importante era despachar o assunto o mais rápido possível e, isso já estava mais que comprovado, era método que não traria qualquer resultado positivo.

Marques Bom continua:

- Vejam lá, por este andar, a gente faz-se à estrada para Lisboa, não custa nada. A mesma estrada que nos trouxe é a mesma que nos leva!

Leonel ia concordando com estes comentários e a dado momento disse:

- Rapaziada... vocês é que sabem! O que querem fazer? O que decidirem, por mim está bem decidido, e acompanho-os. Já viram que isto não está famoso. Agarramos nós o boi pelos cornos, e ajudamos os nossos colegas com esta confusão, ou a polícia vai ficar mal vista. Uma coisa é certa, se não for a gente outros virão, portanto decidam lá que eu vou convosco até ao fim do mundo! - E dá uma palmada na mesa como que assinando por baixo o final da sua dissertação.

Cristóvão levanta-se, vai até à janela da sala e observa quatro jornalistas, daqueles que se mantêm junto da porta do Departamento dia e noite, desde o início desta saga. Estão sentados no chão. Esperam algo, esperam notícias, esperam não sabem bem o quê, mas esperam. Medita uns segundos e conclui:

- Tem toda a razão, Leonel! Tens toda a razão, Marques Bom. Estamos aqui, não estamos? Agora é mesmo para a desgraça, caraças! E até ao fim ou até nos porem daqui para fora, mas nunca hão-de dizer que virámos costas a esta merda, entendem? Somos a Polícia Judiciária, caraças. Está mais que visto que o eventual inêxito é para ser dividido com a gente e o êxito será só para alguns, mas que se lixe. Ou metemos o rabo entre as pernas e rumamos a Lisboa ou vamos assumir esta merda. Assumam desde já que, se der merda, os culpados seremos nós. Se der fogo-de-artifício já sabem que teremos Directores, Ministros a dizerem Amen e Aleluia. Como é? Vamos a eles?

Leonel bebe estas palavras. Ele sabe que está ali para ser um equilibrador. Não está em Faro para fazer juízos de valor sobre as idiossincrasias daquele Departamento ou sobre o trabalho desenvolvido pelos outros. Estão ali os três, desde o início, para ajudar. Mais nada. Não querem louros. Querem ajudar, dar tudo o que tiverem. Eles estão ali para avançar e ultrapassar problemas. Venham eles da Polícia ou de homicidas.

- Nasci para sofrer - graceja Marques Bom.       Vamos a eles e seja o que Deus quiser!

Cristóvão provoca-o:

- Dita para a acta, Marques Bom. Ficará consignado o protesto de V. Exa!

- Está decidido então, cambada! - diz Leonel ao mesmo tempo que as suas mãos grossas e pesadas abraçam os ombros de Cristóvão e Marques Bom como que selando o pacto que acabara de ser feito entre o trio.

Marques Bom, faz um apanhado de tudo o que achares importante do que está no processo e tu, Cristóvão, vais namorar com a senhora, ok? - organiza Leonel.

- Vamos embora! - concorda Cristóvão.

- Eu tenho uma outra missão, Cristóvão - diz Leonel em tom sério. - vou até à zona da Figueira dar uma volta, cheirar aquilo, a mim ninguém me conhece e isso é excelente... ainda pensam que sou mais um jornas... o Gonçalo diz que não se pode lá ir porque aquilo tem um enxame de jornalistas. A gente entra e eles caem em cima de nós, etc. etc. Já estou cheio de medo, caraças - ri -, ainda levo com um microfone nos cornos! Boa sorte com a senhora, companheiro!

- Força Leonel, boa viagem! - despede-se Cristóvão. Atravessando o Algarve sempre na Via do Infante em direcção à Mexilhoeira Grande, freguesia da qual a localidade de Figueira faz parte, Leonel conduz absorvido em mil pensamentos e interrogações: Como será aquilo? As minhas filhas estão bem? Tenho que lhes ligar, merda! Se já tivesse acontecido alguma coisa eu já sabia... é já... Agarra no telemóvel e liga para a mais velha:

- Tou, filha... tá tudo bem, sim, a mana está boa? Tudo a andar?.... Aqui tudo bem... não, não sei quando volto, filha... qualquer coisa liga, está bem? Beijinhos à mana...

Leonel tem a plena consciência do quão abençoado foi com duas filhas que se revelaram, mais que tudo, uma muleta essencial da vida do pai após a morte da mãe. Sabe que elas, embora o trabalho do pai o consuma quase na totalidade, compreendem esse trabalho e acompanham o progenitor em todas as decisões que ele toma. O percurso entre Faro e a Figueira é feito em pouco mais de trinta minutos. Perto daquela pequena localidade, Leonel pára o carro e começa a enquadrar o que vê, comparando-o com o que havia acompanhado na televisão. As casas, as ruas, os campos a norte e a sul da localidade, campos a perder de vista, milhares de hipóteses para ocultação de um pequeno corpo. A norte estendiam-se hectares de caminhos de terra, casas em ruínas isoladas, campos com algum cultivo. A este e oeste é exactamente igual. A sul observa um vale que se estende ao longo de mais de dois quilómetros, marca da presença de ribeiras, com canaviais e plantas altas. A pequena localidade tem, para si, um ambiente estranho. Pelo menos há mais de um mês que tem vindo a ser invadida por hordas sedentas de notícias, voyeuristas de fim-de-semana que querem ver a vila e que se quedam em frente à casa de Leonor, sequiosos, quase parecendo querer observar uma gota de sangue, um vestígio. As pessoas que ali vivem estão fartas disto tudo e Leonel sabe-o bem. Querem que tudo, acabe rapidamente para retomarem as suas pacatas vidas.

No meio de tanta indignação popular e da tragédia que se abateu sobre a Figueira ainda há quem, mesmo que involuntariamente, ganhe com esta situação. A D. Ofélia, dona de um dos cafés e também testemunha no processo, viu disparar o número de clientes diários a todas as horas. Nunca o negócio correu tão bem. Podem ser voyeurs, simples curiosos, polícias, jornalistas, mas todos têm uma coisa em comum, têm de comer qualquer coisa. Já deu muitas entrevistas aos meios de comunicação social, sempre para dizer que naquela noite do desaparecimento da Joana ...a menina foi ao Café aviar umas latas de atum e uns pacotes de leite! Para além da D. Ofélia muitas outras personagens locais iam ganhando os seus cinco minutos de fama, sendo que a capacidade de memória de alguns crescia proporcionalmente ao número de entrevistas que iam dando.

Se no início diziam que ... a menina era normal, andava normal!, mais adiante diziam que ...ela andava estranha com qualquer coisa, parecia-me que estava a adivinhar qualquer coisa... aqueles olhitos não me enganavam!

Leonel contempla tudo sentado sobre o capot do Audi enquanto fuma um dos muitos cigarros do dia. O ambiente do local parece-lhe o da série Twin Peaks, em que em cada episódio o número dos suspeitos aumentava e parecia que todos, sem excepção, saberiam de algo que não podiam dizer. Todos saberiam de algo que também, por via da sua omissão, os tornava igualmente co-responsáveis.

Leonel ainda não sabe que para além do desmesurado aumento de vendas no comércio da pequena Figueira, também havia populares cuja hipótese de verem a carteira mais composta tinha sido celebrarem contratos verbais de avença com alguns órgãos de comunicação social. A única missão que lhes cabia era avisarem os ditos órgãos sempre que a polícia entrasse na Figueira para uma qualquer diligência.

Este velho polícia nunca fora muito dado a dissertações filosóficas sobre locais, ambientes ou pessoas. Aliás, se havia algo que era o denominador comum entre ele, Cristóvão e Marques Bom era o pragmatismo. Mas não obstante o seu sentido prático das coisas e a racionalidade que colocava no seu trabalho há mais de trinta anos, este local incomodava-o. Parecia-lhe que a loucura e a ausência de escrúpulos dos humanos se haviam encontrado ali mesmo naqueles poucos quilómetros quadrados.

Diz para si mesmo: Vamos lá então!

Depois de fechar o carro, entra a pé na localidade da Figueira. Mãos nos bolsos. Andar descontraído. Óculos graduados pendurados junto ao peito e óculos de sol acima da testa.

 

MAE?

Enquanto isso, Cristóvão entra na sala do segundo andar onde Leonor o espera. Está sentada numa cadeira preta, cabelo farto com um penteado fora de moda centrado por um risco. O cabelo não lhe chega aos ombros, antes crescendo para cima. Os olhos do irmão. Exactamente os do irmão. Vítreos. Distantes. Sem alma. Olham para lado nenhum, estão fixados no chão. Leonor é uma mulher corporalmente disforme. Veste umas calças de fato de treino de cor azul-claro, um pólo às riscas brancas e vermelhas. Não obstante está com bastante melhor aspecto que o irmão. Coincidem na imediata sensação que ambos transmitem de uma ideia de submissão quase que envergonhada. Ambos parecem ter vergonha de algo que fizeram, ambos querem e não querem falar, ambos se defendem, ambos atacam. Têm, quase como que por programação genética, aquela postura de se sentarem com as pernas juntas, tronco ligeiramente curvado para a frente, mãos unidas sobre os joelhos entrelaçando-se, mutilando-se, ferindo-se como se de um processo de autopenitência se tratasse. Dizem os relatórios periciais que se trata de alguém que basicamente só olha para si e para a sua satisfação pessoal.

A sala é grande de mais para uma conversa. Mais uma vez, tem demasiados objectos, cartazes, fotos. É a antítese do que deve ser uma sala onde é suposto questionar ou falar calmamente com alguém.

Face a isto, e pelas mesmas razões pelas quais mandou despir a outra sala, decidiu que aquele não seria o espaço para falarem. No entanto dirigiu-se a Leonor de forma afável e cordial:

- Como está, Leonor? Chamo-me Cristóvão e gostaria de falar um pouco consigo, pode ser?

Leonor pela primeira vez levanta um pouco a cabeça e responde:

- O senhor é novo, não é? Pode ser, sim!

- Depende do que entender por novo, mas aqui em Faro sim, sou - gracejou. - Vamos para outra sala, pode ser?

Leonor levanta-se. Não diz nada. Limita-se a seguir Cristóvão até à sala onde este já havia falado com o João.

Sentam-se virados um para o outro. A distância bastante próxima mantida por Cristóvão com João aqui é aumentada porque se trata de uma mulher e a última coisa que queria era ser acusado de assédio pela Leonor. Um metro é quanto basta, e assim se posicionam. Só mudou o local. A posição que Leonor assume é exactamente a mesma que assumira na outra sala.

Vêm de novo à cabeça de Cristóvão todos os conceitos apreendidos ao longo dos anos. A proxémia - gestão das distâncias; empatia; gestão dos silêncios; uso das palavras; entoação... Cristóvão lembra-se da Leonor umas semanas antes, na televisão, chorando copiosamente no programa da Fátima Lopes, exibindo uma fotografia da filha e solicitando ajuda para obtenção de informações sobre o paradeiro da menina.

- Olhe, Leonor - começa Cristóvão -, vamos somente falar, mas se você quiser um interrogatório a sério podemos trazer um advogado... Quer?

- Você vai-me fazer mal?

Cristóvão está alertado pelos colegas de Faro de que, quinze dias antes, Leonor havia começado a sangrar a meio de um interrogatório e, levada imediatamente para o Hospital de Faro, tentara convencer os médicos de que teria sido alvo de um abuso sexual. Afinal viera-lhe o período.

- Mau! Que conversa é essa, Leonor? - protesta Cristóvão.

- Então não quero gente dessa aqui!

- Olhe. Leonor, mal faz você aos seus pulsos com essa mania de tentar arrancar bocados de carne!

- É mania - diz meio envergonhada.

- É uma má mania, isso sim, mas tudo bem. Vai um cigarro? -diz Cristóvão ao mesmo tempo que lhe estende o 1 maço de Marlboro.

Leonor retira dois cigarros do interior do maço e Cristóvão, reparando no pormenor, pergunta-lhe:

- Então que é isso? Isso agora é assim?

Com a cara de uma criança que foi apanhada a furtar um doce, Leonor olha para Cristóvão e diz:

- Então... um é para agora e outro é para depois! - sorri. Cristóvão concorda, fazendo um sinal com a cabeça. Como mandam as regras elementares de uma conversa nessas circunstâncias especiais, Cristóvão começou por falar de tudo menos dos factos em concreto. Primeiro focalizou a conversa no ambiente da prisão.

- Então diga-me, Leonor, como é aquilo na cadeia? Está sempre sozinha ou fechada? Dá-se bem com as suas companheiras?

- Agora estou sozinha - responde com a cara sempre fixada no chão -, a senhora directora da cadeia gosta muito de mim!

Cristóvão aproveita a boleia dada pela sua interlocutora.

- Gosta muito de si? Como assim?

- Então - diz com postura empenhada -, está lá sempre comigo, fala muito comigo sobre isto tudo... ela também já me perguntou muitas vezes disto tudo que se passou!

- Disto tudo - continua Cristóvão. - Não me diga que também lhe anda a fazer perguntas do género «onde pára Joana» ?

- Isso! - confirma Leonor. - Ela, sempre que lá estou, vai à minha cela e pergunta-me da menina, mas eu já lhe disse muitas vezes que não sei de nada!

Cristóvão levanta-se, acende um cigarro, afasta-se de Leonor e medita, chegando vezes demasiadas à mesma pergunta: O que estou a fazer aqui? Isto não é fácil! Já não basta tudo isto e ainda temos agora uma interrogadora extra-sedenta de protagonismo.

Na verdade Cristóvão interroga-se sobre o como fazer-se a gestão dos contactos, do silêncio, das horas de descanso. A Leonor saía de Faro e continuava a ser interrogada na prisão, local onde deveria estar a descansar, a dormir e a reflectir.

Não lhe é permitido fazer qualquer comentário a esta situação sui generis, mas não pode deixar de se sentir desalentado com o que já viu em pouco mais de trinta horas no Algarve. Diz para si próprio Adiante!, como forma de tentar passar uma esponja, mesmo que temporária, sobre mais aquele contratempo.

Volta para perto de Leonor e senta-se.

- E então como tem passado os dias?

- Mais ou menos - responde Leonor, ao mesmo tempo que lhe sai da boca o fumo do cigarro.

- Então, Leonor - continua -, para além do João, vocês têm mais irmãos? Sobrinhos? Como é?

- Há a minha irmã Anabela, que é irmã gémea do João, e também tenho sobrinhos.

- Vocês como irmãos dão-se bem uns com os outros? Leonor encolhe os ombros como se quisesse dizer «nim». A Cristóvão, Leonor parecia, apesar de tudo, ser mais desenvolta no diálogo que o João. Ele exalava a impressão de que, fora do sistema da Polícia e da prisão, seria um ser mais dominador, mais frio, mais calculista, quando queria, e mais choramingas, quando isso lhe conviesse. Leonor desenvolvia o discurso. Também se recordava de que normalmente, e, pelo que vira na televisão, era João quem conduzia a Polícia naqueles célebres passeios e nunca vira Leonor a fazê-lo.

Por muita táctica intelectual e perícia que o polícia detenha, os instintos não o abandonam e dispara de repente:

- Leonor, quantos filhos vivos tem?

- Tenho o Ruben e a Isabel e outros dois que estão com os pais.

- E mortos? - atalha Cristóvão.

Leonor entende a armadilha verbal onde caíra e tenta emendar a mão.

- E a Joana também.

Era tarde para Leonor. Era fora do tempo. Ambos olharam fixamente nos olhos um do outro e entenderam isso mesmo sem dizer qualquer palavra mais. Estava dito. Fora espontâneo.

Leonor fica visivelmente incomodada, tem que dizer qualquer coisa. Revela não ter a capacidade de abstracção do seu irmão.

- Eu ainda acho que a menina vai aparecer bem de saúde. É uma coisa que tenho cá dentro que me diz isso.

Di-lo sem qualquer ponta de emoção. O discurso é monocórdico. Di-lo porque tem que o dizer. Di-lo com a boca quando todo o resto do seu corpo, especialmente os olhos, a traem e a denunciam.

- Mas, Leonor - continua Cristóvão com uma voz calma,

- você já não disse que a menina tinha morrido?

Leonor baixa a cabeça, mas a sua face transmite um ar zangado.

- Eles obrigaram-me. O Juiz, os senhores do Tribunal, a Polícia, vocês todos, mas o João é que sabe de tudo, perguntem ao João. O João é que fez tudo. Perguntem-lhe a ele. Ele informa tudo.

- Muito bem, Leonor, então é melhor perguntar tudo ao João, é isso? Você não sabe de nada e o João sabe de tudo. É isso?

Leonor torna a fixar os olhos em Cristóvão e responde num modo meio envergonhado de quem sabe que não está a enganar o outro e que é tudo claro para ambos naquele jogo de palavras.

- Então... pois... ele é que sabe de tudo.

- Ele manda, é isso? - atira Cristóvão.

- Isso mesmo - responde de imediato Leonor.

Nova armadilha verbal na qual Leonor tarde de mais vê que caiu. Tenta novamente remendar a posteriori a traição da sua espontaneidade.

- Ele manda lá na vida dele, eu mando na minha.

Para Cristóvão crescia e ganhava forma a ideia que já havia começado a fermentar dentro de si. João mantinha um ascendente grande sobre a irmã. Não se sabia se por medo físico, se por razões de hierarquia familiar, mesmo que tosca, ou ainda por Leonor ser a única pessoa que sabia realmente o que o irmão seria capaz de fazer se fosse traído. O facto é que cada vez mais ressaltava a ideia de que havia uma combinação prévia entre eles, onde o João determinara que ela, Leonor, não saberia de nada e quem quisesse saber que lhe perguntasse a ele. Ele era o homem. Ele aguentar-se-ia à bronca. Talvez lhe tenha feito crer que, se ela não seguisse este eventual plano, tudo acabaria por desabar nos seus ombros. Eram tudo hipóteses na cabeça de Cristóvão, mas o que já resultava líquido para si era o facto de que o João mantinha sobre Leonor um domínio que nem a separação física conseguia abalar.

Estava Cristóvão a acabar este raciocínio quando Marques Bom bate à porta e lhe faz sinal de que precisam de conversar. Cristóvão sai da sala e juntam-se no corredor, sempre mantendo Leonor debaixo de olho através da porta não totalmente fechada. Está entretida a fumar o segundo cigarro de Cristóvão.

- Então é assim, amigo Cristóvão - começa Marques Bom -, estive a ler o processo e quando eles foram presentes ao Juiz, aí a nossa amiga disse que o Carlos, que é um amigo do Leandro, companheiro da Leonor e que vive com eles lá em casa, é que fez desaparecer a miúda. Depois calou-se. O João disse que a miúda os apanhou a dar uma queca e ameaçou que iria contar tudo ao padrasto, Leandro. Assim, os manos deram-lhe uns tabefes, a miúda ficou caída na sala e terá sido o João, segundo ele próprio, a levá-la para a rua e ali deixou o corpo nas traseiras da casa. Depois disto é só diligências de passeio com os amigos e não se sabe mais nada da miúda, rien – remata -. - A irmã gémea do João declarou que o João lhe telefonou à noite porque «eles teriam feito mal à menina» e que a «teriam matado» e precisavam de ajuda para se desfazerem do corpo. Ela, depois de declarar isso, veio dizer que estava a mentir. O João bebera umas quantas bejecas naquela tarde, passou lá o dia todo..., a mãe fora buscar a miúda à mãe do Leandro, parece que antes do tempo, mas não há muito mais.

- Mas o sangue de que falaram na televisão, era da miúda, não? - questiona Cristóvão.

- Não se sabe, companheiro. Estava tudo contaminado, não dava para testar nada.

- Porra! Está visto porque viemos para aqui então. Se isto fosse bom não estava cá, não - desabafa Cristóvão.

Cristóvão apercebe-se neste momento da verdadeira dimensão do porquê de estar ali. Aqueles dois irmãos estavam naquela zona que medeia entre o preto e o branco. Eram puros habitantes do Planeta Cinzento. Ao mesmo tempo representavam um desafio para qualquer um. Também compreendia agora que não se trataria do tipo de gente que cederia a qualquer tipo de abordagem à moda antiga, do tempo do conhecido código florestal de há meio século atrás. Tinham de ser vergados pela inteligência e, se esta fosse bem usada e aplicada nos momentos certos, seguramente o desespero iria levá-los à verdade. Para além do mais, e face à agora constatada ausência de elementos que permitissem assegurar que houvera um homicídio, poder-se-ia tratar de um caso de cedência ou venda da menor para uma qualquer rede de exploração sexual de crianças, e por isso o tempo corria contra a polícia.

Os comentários do cidadão comum às notícias que continuamente surgiam sobre este caso oscilavam entre o corte de membros até à execução dos dois irmãos. O polícia, ainda que seja mais um homem como os outros, não pode embarcar neste tipo de abordagens. Cristóvão sabia que se as pessoas que opinavam do exterior falassem só uma ou duas horas com qualquer uma destas personagens, ficariam seguramente a necessitar de medicação.

Começou também a vir-lhe à memória que nas últimas semanas todo e qualquer escriba de qualquer jornal emitia opiniões sobre incompetência policial, estratégias de investigação criminal, porque deveria ter sido assim, porque deveria ter sido assado, todos haviam opinado e avançado com soluções para um problema do qual nada sabiam. A histeria opinativa já atingira níveis grotescos. Havia inclusivamente quem avançasse que os êxitos de mais de sessenta anos de Polícia Judiciária ficariam esquecidos caso este processo não fosse deslindado.

Um turbilhão de pensamentos invadia-o. As faces dos dois irmãos, os gestos iguais, um dominando o outro, as mesmas posturas ziguezagueantes face à Justiça. Pensa:

Estes tipos quererão tempo? Mas tempo para quê? Ela submete-se a ele, canaliza toda a informação e esclarecimentos para ele, deixa que seja o irmão a gerir a informação.

- Eles querem tempo, Marques Bom.

- Então? - questiona Marques Bom surpreendido.

- Não sei, amigo, mas talvez para que passado certo período de tempo não sejam incriminados ou, pelo menos, não sejam tão incriminados como estão neste momento.

- Eh pá! Falei com o Gonçalo há bocado e ele disse-me que a Joana tinha a mãe como uma deusa, ela amava verdadeiramente a mãe. Foi uma vizinha que lho disse.

- Acompanha-me, Marques Bom, neste raciocínio - diz Cristóvão entusiasmado. - Ele disse que a menina os apanhou a dar uma e ameaçou ir contar tudo ao padrasto, não foi?

- Certo.

- Para a Joana a mãe era o supra-sumo. Esta madame que temos aqui sentada, não é?

- Correcto e afirmativo - anui Marques Bom.

- O que é que uma criança que adora a mãe faz quando a apanha supostamente a fazer algo errado? Denuncia-a ou guarda para si?

- Assim de repente... - Marques Bom reflecte -, acho que guardaria para si de forma a não prejudicar a mãe, pelo menos num primeiro momento.

- Touché, mon ami! A Joana nunca os ameaçou que contaria ao padrasto por terem sido apanhados a ter sexo.

- Então?

- Estás sintonizado comigo sobre o tipo de gente que temos à nossa frente, não estás? - continua Cristóvão.

- Ai não, que não estou! - Marques Bom sorri.

- A menina realmente terá dito que iria contar algo ao padrasto, mas foi numa única situação, meu caro amigo. Só uma única situação a faria saltar por cima daquele amor, só existe uma forma de a mãe saltar do pedestal.

Marques Bom já se mostra impaciente.

- Desenvolve, caraças...

- Ok, mas antes acompanha-me... O João passou a tarde a beber bejecas, não foi?

- Sim - confirma Marques Bom -, estavam lá em casa uma data de garrafas de cerveja vazias.

- Pois é, Marques Bom, posso estar enganado, mas a nossa menina seguramente gritou que iria contar a alguém alguma coisa e essa coisa era, para mim, o facto de ser o seu próprio corpo o alvo do abuso, com a mamã que ela adorava a fumar o seu cigarrinho e a ver a novela sentada no sofá ao lado. Descobrindo-se o corpo fica-se a saber o que lhe fizeram e o João sabe disso, caraças. Seguramente para ele é menos grave dizer que matou do que assumir que abusou da própria sobrinha.

- Cristóvão, dá cá um abraço - diz Marques Bom a sorrir.

- Mau... paneleirices? - graceja Cristóvão.

- Não andarás longe da verdade, companheiro.

- Eu também acho que não. Passou-se o ultravioleta na casa?

- No processo não está nada disso. A questão nunca foi colocada, caraças - responde Marques Bom.

- Pois, mas devia. Vamos é começar esta merda do zero e que se lixe e fazer o melhor que se puder. Aquela casa, Marques Bom, temos que desmontar aquela casa toda nem que tenhamos que lá ficar fechados dois dias, mas vamos fazer uma inspecção ao local mesmo a sério. Agora vou lá para dentro outra vez. Vai falando com o pessoal e vê o que podes sacar de mais informação sobre estas peças, ok?

- Estou no ir - diz Marques Bom, enquanto se afasta pelo corredor fora.

Cristóvão reentra na sala. Bate a porta devagar, observa Leonor e tenta aferir dos seus olhos a confirmação da hipótese que acabara de colocar. Na verdade os olhos de Leonor nada transmitem para além de um sentimento de culpa de algo que não está bem esclarecido. A mente manda-a olhar de frente o polícia que ali está consigo, contudo os olhos traem essa ordem e teimam em baixar-se. Sente-se nela a vontade de passar a ideia do equívoco que era a sua prisão, mas os olhos, sempre os olhos, que a traem uma, duas, três, dezenas de vezes. Cristóvão começa a pensar que se calhar a abordagem mais eficaz àqueles dois, mas também a mais trabalhosa, vai passar pela demonstração exaustiva de cada uma das suas mentiras. Por cada uma das mentiras que dissessem, ser-lhes-ia demonstrado no momento a evidência dessas mesmas faltas à verdade. A abordagem da supressão dos passeios seria mantida e seriam colocados polícias no terreno que a todo o tempo poderiam confirmar ou não tudo o que eles referissem. Os presos ou estariam na prisão ou na Polícia. Mais nada. Os polícias estariam no terreno a passar à prática tudo o que fosse dito nestas conversas com Leonor e João. Por muito que se assemelhassem a moços de recados dos arguidos, pelo menos poderiam desenvolver o seu trabalho de forma discreta, sem o circo mediático atrás.

Embora as vertentes psico-sociológicas sejam importantes na abordagem a um caso destes, Cristóvão sabe que não lhe cabe a ele fazer dissertações genéricas e filosóficas. A ele, junto com os outros, cabe-lhe dar sentido e objectividade a algo que, até ver, não está claro nem definido. Tem que se encaixar num facto consumado de primeiro prender e depois investigar, quando o contrário é uma das premissas basilares do trabalho de investigação criminal.

Cristóvão nunca foi à Figueira. Não sabe como é a terra, se é macia, se é farta em pedra, se é rija e seca. Afinal tem que aferir das possibilidades de como se desfazer de um corpo naquela zona. Começa a falar com Leonor sobre as potencialidades da agricultura naquela zona como forma de desenvolvimento do concelho.

- Sim, sim - diz Leonor -, a terra ali não dá para cultivar nada porque é muito seca, é só calhaus...

Cristóvão continua, derivando para as dificuldades do regadio, porque aquela zona deveria provavelmente ser bastante mal servida de água.

- ... naquela zona há muitos poços, mas muitos estão secos - continua Leonor.

As conversas são mesmo como as cerejas. Desde o sistema camarário de recolha de lixo que, segundo Leonor, é muito certinho... todos os dias às onze da noite, até à própria Junta de Freguesia da Mexilhoeira Grande que também, segundo a Leonor, até dão sacos do lixo grandes para a gente ter em casa. Aquela aparentemente inócua conversa também versava sobre o vale junto à Figueira que ninguém lavrava porque só quereriam era «mandriar», com Leonor a acrescentar que aquilo até tem uns caminhos que dá para a gente andar a pê mas as ervas e as canas dão cabo das pernas a quem lá passa, quanto mais ir para lá trabalhar...

Desta breve troca de impressões, resultou claro para Cristóvão que a terra à volta da Figueira seria demasiado dura e rochosa para cavar um buraco com profundidade suficiente para que um cão ou um caçador não detectassem o cheiro de carne humana putrefacta. Também apurou que o número de poços na zona era elevado, aumentando assim as possibilidades de uma instalação destas ter sido usada por João e Leonor para ocultarem o corpo.

Porque não se andam a passear corpos na rua resultou também obter a informação de que a Junta de Freguesia ofereceria sacos herméticos próprios para acondicionamento de lixo assim como seriam pontuais na recolha diária do mesmo. Também a descrição daquele vale e dos caminhos com as ditas plantas, canas e ervas altas se revelaram importantes. Mais importante que tudo isto, para Cristóvão, era o facto de Leonor ter revelado conhecimento sobre o terreno, horários de recolha de lixo, poços e sacos. Tudo o que poderia servir a quem se quer desfazer de um pequeno cadáver.

Leonor demonstrou conhecer pormenores importantes que colocavam de parte hipóteses e levantariam outras passíveis de exploração pela investigação.

Entretanto Leonel continua a sua saga de descobrimento da Figueira, de fazer o levantamento in loco. Determina que, pela localização da casa da Leonor, não se afigurava crível uma saída daquele local transportando um corpo. Observa que a rua em causa é servida unicamente por uma pequena estrada de alcatrão e que, quando chega à soleira da porta da casa de Leonor, a última de uma correnteza, já só é terra. Estar ali naquele local, respirar aquele ar, parar, olhar à volta, observar os fluxos de pessoas, para onde vão, de onde vêm, são elementos básicos que qualquer polícia deve respeitar numa investigação. Também sabe que a sua cabeça terá que funcionar como uma câmara digital para que depois, regressado a Faro, transmita a Cristóvão e Marques Bom tudo o que observou.

A conversa entre Cristóvão e Leonor não pára. Fala-se no tempo, dela, dos pais, aos poucos faz-se um enquadramento da família, dos maiores e menores graus de intimidade entre os vários elementos. Leonor revela uma história triste como mulher. Teria andado, segundo ela, a prostituir-se desde nova a mando da sua mãe. Violência familiar. Relações sexuais entre irmãos e progenitores. Total ausência de valores ou laços afectivos. Possibilidades da existência de consanguinidade. Filhos entregues a terceiros. Uma filha de um outro homem entregue à avó paterna em Olhão. Esta filha não queria nem ouvir falar de quem a colocara neste mundo.

No decurso desta conversa, que Cristóvão considerou honesta por parte da sua interlocutora, obteve uma imensidão de informação que poderia ainda vir a revelar-se importante no esclarecimento deste caso. Uma ideia fixou mais que as outras. Leonor temia verdadeiramente João, atribuindo-lhe um carácter extremamente violento especialmente quando sob o efeito de álcool. Nesse dia João havia consumido muita cerveja. Cristóvão não esquece este pormenor.

O polícia dá a conversa por finda e informa Leonor disso mesmo. Ela não consegue disfarçar o incómodo de ter estado a falar de tudo menos do motivo pelo qual está presa. A sua cabeça teimosamente baixa não evita que se vislumbre o seu olhar de baixo para cima, fixando a cara de Cristóvão, como que perguntando Então não fala daquilo? Hoje não. Hoje não se fala nada disso. Cristóvão não quer fazer as sacramentais perguntas que já lhe foram feitas em centenas de ocasiões. Hoje tomou-lhe o pulso e ela, sem saber, forneceu informações valiosas. Já é tarde. E hora de recolher à cadeia. No entanto, e tendo bem presente a questão dos questionários prisionais, Cristóvão lança novamente o tema:

- Espero que hoje, depois desta agradável conversa, não vá sofrer um interrogatório na prisão.

- Ela gosta muito de mim. Fala muito comigo. Leonor fala assim, mas o tom de voz não transmite a emoção natural de quando se diz que alguém gosta de nós. Ela não acredita verdadeiramente no que está a dizer. Talvez a conforte acreditar que a Directora da prisão gosta muito de si e que só quer o seu bem. Talvez lhe faça bem ao seu ego fingir que tal interesse é genuíno e omitir a si própria que tais conversas de amizade invariavelmente acabavam com tentativas de saber a resposta à pergunta que um país inteiro coloca.

Já depois de colegas de Cristóvão e Marques Bom providenciarem o transporte de Leonor para Odemira, os dois juntam-se e Cristóvão fornece-lhe os detalhes da conversa, acentuando o facto da situação, para si intolerável, das questões colocadas na prisão. Marques Bom concorda:

- Temos de resolver essa questão dos interrogatórios na prisão, Cristóvão. Nem que a gente tenha que meter o Director-Nacional ao barulho. Não podemos dar-nos ao luxo de estarmos aqui a querer começar tudo do zero, a definir estratégias, e uma tipa que quer ser a salvadora da pátria a lixar esta merda toda. Não pode ser mesmo.

Continua:

- Se é para isto, fazemos mas é a trouxa e voltamos para perto da família. Isto parece um filme surrealista do David Lynch. Nada nesta merda faz sentido. E o que se pensava estar feito e não está, são estes dois psicopatas com cursos avançados de entrevista e interrogatório, são os telefonemas de Lisboa, que segundo o Gonçalo não param... todos querem saber como é, etc.

Cristóvão faz sinal de concordância com a cabeça e prossegue o raciocínio de Marques Bom:

- É isso, Marques Bom, isto tem que ficar afinadinho em termos de estratégia, se não vai dar em merda.

Entretanto chega Leonel e a conversa entre os três, trocando toda a informação recolhida, faz avançar a reunião, para não variar, pela madrugada dentro. São já perto das cinco da manhã quando Leonel olha para o relógio e diz:

- Eh pá, pessoal - sorri -, horas do ó-ó... oito e meia ao pequeno-almoço... sempre são três horas, ok?

Cristóvão e Marques Bom olham-se e fazem sinal que sim com o polegar, ao mesmo tempo que arrumam papéis.

Cristóvão deita-se na pequena cama de ferro de um quarto separado do de Leonel por um mero contraplacado. Já não dormem nas celas mas sim nuns pequenos quartos pelos quais ficou acordado o valor de cinco euros por noite a pagar na tesouraria do Departamento. Não são grande coisa - uma pequena cama de ferro, uma mesa-de-cabeceira e uma cadeira

- mas também o repouso não é muito e assim sempre ficam perto do local onde as coisas acontecem. Outra questão prática os fez decidir por dormir ali, é que pelos 25 euros de ajudas de custo que a polícia lhes dá para pernoitar fora de Lisboa nunca iriam alugar o que quer que fosse em qualquer hotel.

Enquanto olha para o tecto branco não pára de pensar em tudo o que já apurou. Em todas as conversas mantidas naqueles dois dias. Tenta recordar, frase por frase, as conversas mantidas com João e Leonor. Não está nada contente com o que veio encontrar. Sente a falta de rumo na investigação. Navega-se à vista. Há muita vontade mas não chega. Pensa:

Temos que blindar esta merda. Sono do caraças... tenho que ligar ao meu puto... merda... há três dias que não falo com ele... sem falta... amanhã sem falta, caraças.

No quarto ao lado o sono profundo de Leonel manifestava-se através de um ronco profundo...

ROOOOONNNNC, ouvia-se em intervalos cadenciados de sete a oito segundos.

Oito horas da manhã do terceiro daquela «epopeia», como Marques Bom já baptizara o assunto. O trio reuniu-se bem cedo no bar do Departamento. Olham-se. As olheiras já estão a deixar marcas e a vermelhidão dos olhos já indicia o défice de sono. Apesar de tudo o entusiasmo era geral e a vontade de trabalhar era sempre a mesma.

Leonel, entre duas dentadas na sandes de fiambre e um trago do seu Sumol de laranja, diz:

- É impressão minha ou estes dois dias parece que foram trinta?

Marques Bom quase que se engasga com o pão que ainda mastigava e atira de chofre:

- Nem mais, caraças! Diga-me lá como é que fazemos aqui um bunker à prova de chibaria se nem uma sala de operações temos?

- Tens razão, rapaz - responde Leonel, num tom quase paternal -, mas não se esqueçam que viemos para aqui somente para interrogar o João. Tenho estado em contacto permanente com o nosso Director em Lisboa. Já estamos a fazer mais que o inicialmente combinado não foi? Mas não temos medo desta merda. Já enfrentámos os piores cabrões deste país, não foi?

Cristóvão parece que olha um ponto algures fora da janela do bar que dá para o exterior do Departamento e reflecte em voz alta:

- Pois é, Leonel. Enfrentámos a pior escória da nação, mas parece-me a mim que, para além daqueles dois manos, enfrentamos coisas bem piores. A pressa da nossa casa. Os colegas que não apreciam a nossa presença aqui. Para mim isso é pior.

Faz-se um silêncio sepulcral à mesa. Quase que comandados por um mestre de marionetas invisível, as três cabeças baixaram-se por momentos. Este breve instante foi interrompido pela chegada à mesa de Guilhermino e Gonçalo. Quase de imediato, e sem se importar com a eventual má interpretação do gesto, Marques Bom arregaça a manga esquerda do casaco, olha para o relógio e diz:

- Muito bem. Tudo a madrugar. Bonito. Leonel faz as honras da mesa:

- Muito bom dia. Como estão os senhores? Chegaram mesmo a tempo de nos pagarem o pequeno-almoço - graceja.

- bom dia a todos - exclama Guilhermino. - Vejo que estão cheios de vontade. Tudo o que precisarem, digam. Tenho falado com o Director-Nacional e ele diz-me que se algo for necessário para a investigação disto é só pedirem. Desde máquinas, peritos, tudo o que for necessário, arranja-se. Da nossa parte a mesma coisa. Precisam de alguma coisa?

Face a isto Leonel sente necessidade de transmitir as necessidades que lhe haviam sido expostas por Cristóvão e Marques Bom, para além das que ele próprio observara.

- Senhor Director, precisamos de uma sala com pelo menos um computador, para não andarmos em salas emprestadas. E já agora vai ouvir o que esta parelha tem para dizer.

Marques Bom afasta a sua cadeira da mesa por forma a que Gonçalo consiga encaixar a sua e de imediato dispara:

- Senhor Coordenador, para começar uma dúvida que nos assalta. Onde é que andam os nossos colegas da sua secção? Não é por nada. São só saudades... - Não tenta disfarçar a ironia com que fala.

Gonçalo acusa o toque, mas também sabe que assiste razão a Marques Bom. Aquele grupo já está no terceiro dia no Departamento, já desenvolveu algumas acções de investigação e os elementos da secção chefiada por ele andavam sempre no exterior e em parte incerta. Não consegue deixar de assumir o desconforto que o invade por aqueles colegas estarem a invadir o seu território. Para si eles são a corporização da ideia de que algo falhou. Se a Direcção Nacional os mandou é porque, por alguma razão, não lhe reconheciam capacidade, ou ao seu grupo, para levarem tudo a bom porto. Também sabe que, se os resultados forem os mesmos de até então, as responsabilidades já serão repartidas também com Lisboa. No entanto esboça um sorriso quase simpático antes de responder a Marques Bom:

- Ok, Marques Bom, o pessoal tem andado fora em diligências, mas entre hoje e amanhã já estarão aí. Se necessitarem de alguma coisa é só pedir.

Guilhermino entende que têm todos que trocar pontos de vista sobre o que se propõem a fazer e pede ao grupo para o acompanhar até ao salão nobre do Departamento, onde aliás já tinham estado quando chegaram de Lisboa. Guilhermino senta-se no topo da mesa oval, enquanto os restantes se distribuem simetricamente por ambos os lados.

- Muito bem pessoal - quase grita Leonel, ao mesmo tempo que dá uma palmada na mesa como que enterrando o machado de guerra e assinando por baixo -, vamos mas é ao trabalho que se faz tarde. Marques Bom, como estamos de papel? - refere-se ao processo e à análise deste.

- Como é pouco já está tudo analisado - responde Marques Bom ironicamente. -- Mas vamos lá resumir isto - continua. - Tudo isto começa com uma participação à GNR, vinte e quatro horas depois do desaparecimento. A Leonor foi alertar a GNR que a miúda tinha saído de casa cerca das oito e vinte para ir ao café da Ofélia comprar atum e leite, dizendo-lhes que já não voltara a casa. Foi ouvida a Ofélia que disse que efectivamente a miúda tinha lá ido fazer as referidas compras e saiu com o troco, seriam cerca das oito e meia da noite. Disse também que pouco depois entraram no café o padrasto Leandro e o seu amigo Carlos, que entretanto beberam umas bejecas. Cerca de uma hora mais tarde e em plena saga de minis e médias, apareceu a Leonor a perguntar pela menina e a dizer que ainda não tinha chegado a casa. Ainda segundo a Ofélia, saíram os três do Café.

Sem quase respirar, Marques Bom continua a sua síntese ao grupo.

- O Leandro e o Carlos disseram que estavam no café, vindos da sucata da família do primeiro e onde ambos trabalham, quando apareceu a Leonor a dizer que a menina tinha desaparecido. Disseram ainda que dali foram para casa e, quando lá chegaram, viram o João sentado no sofá da sala. Depois saíram os três ficando o João em casa sozinho.

Cristóvão interrompe Marques Bom:

- Desculpa lá, companheiro. Quer dizer que o João teve sempre o domínio do espaço, não foi? A Leonor andaria a passear os outros dois, não era?

- Exactamente - continua Marques Bom. - Dizem todos que foram ao local onde nessa noite estava a decorrer a Festa do Berbigão, no ringue de futebol da Figueira, havia grupos de música e tudo. Também disseram que a certa altura se separaram para abranger mais área de busca, cabendo ao Leandro ir ao recinto da festa para procurar a Joana. Cerca da meia-noite estiveram a falar, junto à igreja, com a patrulha da GNR que, segundo eles, lhes terá dito para irem apresentar queixa no dia seguinte. Depois disto afirmam que foram para o remanso do lar dormir. Quando chegaram a casa o João estava lá na mesma.

- Foram para casa dormir? - questionou indignado Leonel - Esses gajos têm a miúda desaparecida e vão todos dormir?

- Pois... - conclui Marques Bom. - É tão bonito ser pai, não é? - continua. - E mais... isto foram as versões deles ao pessoal da GNR e aos nossos colegas de Portimão, o que aconteceu durante mais ou menos uma semana para juntar a cerca de três ou quatro dias em que isto esteve na GNR como um mero desaparecimento. Entretanto começou-se a ver que podia haver merda e da grossa e foi decidido começar a tratar disto como se de um rapto, uma venda ou um homicídio se tratasse. Foi aqui que começaram a ser mais seriamente questionados e foram confrontados com o depoimento de uma vizinha que vira a Joana a entrar para a casa onde eles diziam que já não havia voltado. Foi então que começaram a dizer que a miúda os havia apanhado a dar uma queca, que os ameaçara, bofetadas, cabeça contra a parede e o resto já se sabe. Depois disto é o caos... o João diz que a Leonor é que sabia o que acontecera e ela fez o contrário, deram locais, andavam a passear quem sabe se para passarem perto do verdadeiro local e se certificarem que tudo estaria bem... enfim... o resto da história é aquela que sabem.

- Então e relativamente aos exames? Aqui Marques Bom franze o sobrolho.

- Ora bem... isto não foi famoso. Apanharam uma esfregona com resquícios de sangue, mas depois o Laboratório disse que não dava para saber se era humano ou não... havia contaminação com produtos de limpeza. Mas depois também foram ouvidos os pais do Leandro que disseram que a menina estava em casa deles, na Mexilhoeira, há dois dias, e que adorava lá estar e também que era suposto ali estar mais outros dois ou três dias... Disseram que a mãe a fora buscar e, embora a menina quisesse continuar com eles, Leonor terá insistido para que ela fosse para a Figueira naquele domingo. Ter-lhe-á falado na festa que havia na Figueira e na visita do tio João lá a casa. Como a Joana nunca foi a festa nenhuma naquele dia, cheira-me que isso foi somente o bombom que a mamã arranjou para a convencer mais rapidamente.

- Exactamente - concorda Leonel. Sem se deter, Marques Bom continua.

- Pois bem, o pai do Leandro é o dono da sucata onde ele trabalha com o Carlos... estes dois dão-se muito bem, são quase como que amigos inseparáveis...

O silêncio naquela mesa é praticamente total. Toda a gente está a beber estas palavras de Marques Bom e, por estranho que pareça, até Guilhermino e Gonçalo estão a pensar como se tivessem chegado naquele dia à investigação. Sem querer perder o fio ao discurso e querendo concluir a sua ideia, Marques Bom remata:

- E pouco mais temos, companheiros, em termos daquilo que foram as declarações desta gente e, como nós sabemos, nestas coisas dos processos só existe o que está escrito, não é? O que não está escrito não existe. Mas para além disto também há no processo um trabalho de base importante, desenvolvido pelos colegas de Portimão, como a medição das distâncias entre casa e o café, croquis daquela zona e reportagens fotográficas sobre o percurso entre aqueles dois locais. Mas isso já o Chefe Leonel deve ter verificado pessoalmente, não é?

Leonel, que estava reclinado na cadeira, chegou-se para a frente. Entende que chegara o momento de tentar colocar em palavras, se calhar não tanto o que vira na Figueira, mas mais o que sentiu quando por lá andou no dia anterior. A análise policial fala mais alto.

- Então é assim, pessoal. Passei quase um dia por lá. Aqui e ali vão-se vendo carros das televisões. A Figueira já é um local razoável onde algumas centenas de pessoas vivem, tem um ringue de futebol, que foi onde decorreu a Festa do Berbigão, um minimercado, dois ou três cafés, igreja e alguns pequenos estabelecimentos diversos, casas de habitação social, estradas que, de dentro da vila, tanto seguem em direcção às vias principais como embicam para o interior. As pessoas são muito observadoras, não sei se por natureza ou se pelo que aconteceu. Parecem tristes. Talvez não gostem de ser o centro das atenções por motivos como estes. A casa deles é servida por uma pequena estrada. É uma correnteza de casas e a deles é a última do lado direito. Em frente à casa existe uma pequena lixeira numa ribanceira que liga à estrada nacional que segue para a Mexilhoeira. Depois é só campo e mais campo. Um vale a sul e muito campo a norte.

«Se eu sair da casa deles tenho um pequeno terreno à direita, em frente está a dita lixeira, que eles próprios fizeram. Se seguir o caminho da rua que lhes dá acesso vou entroncar numa outra estrada principal que serve o interior da localidade. Se seguir para o interior sou confrontado com uma imensidão de estradas de terra, terrenos imensos, algumas pecuárias rudimentares, casas velhas em ruínas, poços, noras... não há grandes declives, mas também não é fácil andar-se naqueles campos, especialmente se chover. E é isto, rapazes... Leonel acaba o seu discurso abrindo os braços com as palmas das mãos abertas e viradas para cima, como que querendo dizer que o livro estava aberto e agora era só ler.

Os cinco sabiam que, independentemente do que viesse a acontecer no futuro, estavam perante uma investigação que os iria marcar. Nada ali era normal ou corriqueiro. Aqueles dias, e não sabendo quantos mais, iriam ficar marcados para sempre nas suas vidas.

Chega a vez de Cristóvão entrar na conversa:

- O João tem um ascendente grande sobre a Leonor. Não duvidem disso. O que ele lhe disser, garanto que ela cumpre cegamente, simplesmente porque ela deve ser uma das poucas pessoas que saberá perfeitamente aquilo de que o João é capaz. A nossa primeira abordagem foi precisamente a ele, que, conforme todos já viram, tem oscilações de comportamento que vão desde aquele olhar frio e calculista, de matador sem escrúpulos, até ao derreter-se em lágrimas e ajoelhar-se se for preciso. O João é um solitário, vive de biscates aqui e ali e parece-me que consome qualquer coisita para além das bejecas e dos cigarros. Encaixa no perfil do predador psicopata cuja única satisfação a que liga é precisamente a sua. É desumanizado. Imagino aquele tipo atrás de um arbusto numa qualquer azinhaga à espera que passe uma velhinha com a reforma. Ele seria bem capaz de lhe bater, roubar e violar, não necessariamente por esta ordem. Não existem escrúpulos naquela cabeça. Apenas a satisfação das suas necessidades importa, os outros que se lixem. Acredito que seria perfeitamente capaz de, estando a criança ali à mão, manter relações com ela, assim como acredito que as possa ter também com uma irmã, entendem? Gonçalo interrompe.

- A Leonor disse-nos que o João, de vez em quando, mantinha relações com a irmã gémea dele, a Anabela, e foi para casa dessa que ele se pirou depois do que aconteceu na Figueira. Relembro aquilo que se calhar já devem ter lido no processo. A Anabela declarou que o João lhe telefonara a dizer que «tinham feito mal à menina» e que precisava da ajuda do marido dela para se desfazer do corpo, solicitando-lhe que fosse ter com ele no carro. Ela disse que não. Passados uns dias, veio dizer que afinal já não era bem assim, mas isto já depois de o João ter lá estado em casa dois ou três dias.

Cristóvão continua, sem esquecer a importância do que acabara de ouvir de Gonçalo:

- Relativamente à Leonor, daquilo que foi possível observar, é uma mulher narcisista, parece que já teve «n» relações, tem filhos de uns quantos homens, tem uma filha com quinze anos que nem sequer quer ouvir falar da mãe e que vive com a avó paterna. Já não se vêem há mais de dez anos. Tem filhos à sua guarda e outros à guarda de terceiros. Os dois pequeninos que estavam lá em casa são muito novitos para se aperceberem do que quer que seja. Segundo informações recolhidas, ela gosta mesmo é de passar os dias nos cafés, fumar os seus cigarrinhos, já se terá prostituído... Valores de vida, se os teve, deve ter-se esquecido deles, e a forma como tem encarado este processo é bem demonstrativa do tipo de pessoa com quem estamos a lidar. Pára uns segundos, como que a ganhar fôlego para nova investida.

- Não será preciso relembrá-los de que à nossa frente ou de quem já esteve com ela, a senhora nunca verteu uma única lágrima. Estamos a falar da mãe, conceito esse no qual, no caso dela, coloco vinte milhões de pontos de interrogação. Da mesma mãe que deu entrevistas a jornais e televisões e que andou a exibir a fotografia da filha e a pedir para os raptores lhe devolverem a Joana. Foi a mesma mãe que jurou a pés juntos que a menina havia saído de casa naquela noite e que já não havia voltado a entrar nela. Só depois de ter sido confrontada com o testemunho da vizinha que viu a menina entrar, é que voltou com a palavra atrás e mudou para a história que se sabe. Não aprofundámos muito esta questão porque farta de perguntas directas está ela e foi por isso que se fez uma abordagem mais ao largo da questão central, o que nos permitiu saber que a Leonor detém um conhecimento interessante daquela zona, se calhar, maior que o do João, que não é dali. A terra está cheia de pedras, o que impede covas profundas com pás ou enxadas. Ela também conhece a parte da planície, mas isso já foi completamente batido com cães e tudo, não foi? Tem conhecimento de muitos poços activos e desactivados, assim como das muitas estradas de terra que avançam para o interior algarvio.

Pára um pouco para a seguir concluir:

- Conhecimento do terreno é coisa que não falta a esta senhora e, até ver, acho que ninguém pode ser excluído como suspeito do que quer que seja, porque o Leandro e o Carlos também devem conhecer bem aquela zona. Acho ainda que a participação desses dois nisto tudo não está completamente esclarecida. Longe disso. Assim sendo, todos os minutos dessa gente têm de ser justificados, nesses dias pelo menos. com quem estavam, onde estavam, a fazer o quê, etc.

Fica decidido entre todos a criação de uma «Fita do Tempo», onde verticalmente seriam alinhados os quatro visados e horizontalmente todas as horas de pelo menos três dias: o dia antes dos factos, o próprio dia e o dia seguinte. Eles eram os quatro adultos com acesso directo à Joana, e nessa fita do tempo colocar-se-iam todas as localizações de cada um, sendo as mesmas necessariamente fornecidas por elementos externos a eles próprios. Só assim esta diligência seria credível. Foi ainda assumido que as declarações de cada um relativamente às suas movimentações seriam esquecidas por ora e que, atendendo ao ror de mentiras e contradições já constantes dos autos, melhor seria mesmo «colocar» cada um deles no maior número de horas possíveis, mas agora através de elementos exteriores, como as localizações dos telemóveis, os testemunhos de pessoas externas à família, ou seja, elementos fidedignos e não especulativos ou enfermados de amizade ou qualquer outra motivação.

Cristóvão continua a partilhar com os restantes o que lhe vai na mente:

- Uma outra coisa. Está bom de ver que a linha de abordagem a este assunto até agora não se revelou a mais profícua, razão pela qual devemos abandonar a ideia de encontrar o corpo da Joana a todo o custo e concentrarmo-nos na ideia de que teremos que provar, antes de mais, que existiu mesmo um homicídio. Depois, quem o praticou, e, por fim, vamos preocupar-nos com a questão do corpo. Para existir uma condenação não precisamos de corpo nenhum. Temos é sempre que provar o homicídio e ligá-lo a quem foi o autor dele.

Gonçalo interrompe:

- Então o corpo não é importante, caraças?

- Claro que é! - responde Cristóvão. - Mas imaginando que o corpo poderá já nem aparecer?

- Essa agora é que me lixou - avança Guilhermino.

- É uma teoria minha - prossegue Cristóvão -, tão boa como qualquer outra nesta fase, mas não se prendam a isso. Lá mais para a frente teremos mais certezas, no entanto, já que aqui estamos, proponho-vos que me acompanhem neste raciocínio. O João confessou que ele e a Leonor bateram na menina, não foi? E que isso culminou no homicídio, certo? Também Leonor, embora de forma mais envergonhada, colocando responsabilidades em terceiros, seguiu pelo mesmo caminho. Então o que leva esta gente a confessar o homicídio de uma criança de oito anos e a não dizer o que fizeram ao corpo? Mesmo que a tivessem vendido, poderiam tê-lo dito com a maior das calmas e nem um dia passavam na prisão. Tanta renitência para concretizar, porquê? Para mim só existem duas hipóteses: ou houve outras pessoas que participaram no desaparecimento do corpo e que eles, por qualquer razão, não querem denunciar, ou então porque, sendo o corpo encontrado, poderemos nós detectar algo que para eles seria pior que cometer homicídio.

- Violação da menina? - avança Marques Bom.

- É uma hipótese, companheiro. Mas a eventualidade do corpo já não existir é também algo que não podemos descurar.

Leonel intervém na conversa:

- Digam lá se concordam, rapaziada. Trazemo-los para aqui o máximo de tempo possível, tratamo-los bem, sumos, comidinha, tabaquinho e cafezinhos aos molhos. Esta questão dos interrogatórios nas prisões tem que acabar, e é já, nem que seja o Ministro chamado ao barulho.

- Mas, Leonel - diz Guilhermino -, eu não estava a par disso. Como é que é?

- É assim mesmo, caraças - responde Leonel rudemente. -- Quando o pessoal foi buscar o João, tinha acabado um interrogatório. A Leonor diz que a senhora Directora da prisão é muito amiguinha dela, que a trata muito bem sempre que a apanha lá e que fala muito com ela sobre este assunto. Isto assim não pode mesmo ser, senhor director. Como é que podemos andar aqui com estratégias de gestão de silêncios, gestão da informação, se temos umas personagens dentro do sistema que minam esta merda toda?

- Nunca saberemos até que ponto estas abordagens, direccionadas e feitas por quem não tem competência nenhuma para as fazer, não inquinaram esta merda toda - remata Cristóvão.

Continua Leonel:

- Não me digam que a senhora directora da prisão está a pensar sacar a informação que os outros andam aqui a esmifrar-se para conseguir. E depois faz o quê? Convoca uma conferência de imprensa? Esta merda tem que acabar e vai acabar mesmo - concretiza, visivelmente irritado.

- Mais uma coisa - continua Cristóvão. - Acho que dentro da abordagem que discutimos, de os ter aqui o máximo de tempo possível, era fantástico dispormos de uma equipa em permanência na Figueira. O objectivo seria confrontá-los no momento com a sua própria mentira. Vamos elencar todos os locais já apontados por eles, marcá-los num mapa e depois é esperar indicações das excelências, que poderão ser comprovadas no terreno e on-line, com a vantagem de acabarem os passeios.

- Por mim - diz Marques Bom -, a investigação começa hoje e nem que se tenha que falar com o mesmo gajo pela milésima vez, que se lixe, vamos fazer tudo do princípio e se alguém se chatear com a gente, azar deles. Como somos uns burros que aqui andamos - graceja -, vão ter que nos explicar o bê-á-bá disto tudinho.

Face às propostas, Leonel intervém e diz:

- vou pedir aos digníssimos colegas da Malhoa, Carlos, Praxedes e António, para virem ainda hoje cá para baixo e darem esse apoio logístico nesta questão, ok?

- Maravilha - diz Cristóvão.

Ficou assim decidido que Leonel, Guilhermino e Gonçalo iriam tratar das questões de intromissões e obstruções à investigação, assim como iriam providenciar a logística, enquanto Cristóvão e Marques Bom iriam tratar da estratégia de conversas com os irmãos e da «Fita do Tempo», respectivamente.

- Pessoal - diz Leonel -, tratem lá disso que eu vou estar imerso em AC’s.

Cristóvão e Marques Bom sorriem. Sabem o que ele quer dizer. Leonel chama assim aos Altos Crânios da Polícia, aqueles que dissertam sobre grandes questões estratégicas e que tinham por missão a gestão departamental.

Leonel joga na estratégia de grupo. Sabe que, a exemplo do futebol, uma equipa funciona tanto melhor quanto mais se conseguir reforçar a ideia de um inimigo exterior. Isso estimula cada um dos elementos da equipa a dar o seu melhor, a ir mais longe. Quando o objectivo da equipa está longe de ser alcançado, maior o estímulo que tem que ser dado e de forma mais contínua.

A Polícia já não tinha o espírito de corpo que em tempos existira. O velho Leonel sabia-o embora se recusasse publicamente a reconhecê-lo. Já não havia aquele conceito de família que outrora era a imagem de marca da DCCB. Das chefias actuais, gostava de Manuela Santos e pouco mais. Dos inspectores, poucos haveria que sabiam lidar consigo e, por conseguinte, eram poucos aqueles por quem tinha apreço. Mas gostava decididamente de Cristóvão e Marques Bom.

Os últimos tempos naquele ano de 2004 eram dominados pelas discussões constantes sobre as horas extraordinárias, mas essas questões nunca seriam trazidas para aqui. O que estava em causa neste trabalho era muito mais importante que remunerações.

Cristóvão e Marques Bom encontram-se junto à porta do Departamento. O primeiro solicitou a Guilhermino uma viatura que fosse rápida e o Director disponibilizou-lhe um Clio Williams, na gíria conhecido como uma bomba sobre rodas. Leva Marques Bom até junto ao carro e diz-lhe:

- Vamos dar uma voltinha, companheiro?

- É até ao fim do mundo. Embora.

Mal se senta no banco do passageiro, Marques Bom pergunta de forma séria:

- É preciso levar uma muda de roupa?

- Nããããã... - diz Cristóvão - nada disso. Vamos só andar uns quarenta quilómetros e trouxe aqui comigo um CD para nos acompanhar nesta pequena viagem... uma coisa calminha para desanuviar.

A distância entre o Departamento e a Via do Infante é rapidamente percorrida, apesar do trânsito. O carro quase que força o condutor a uma condução desportiva e agressiva. Entram na auto-estrada e seguem em direcção a Vila Real de Santo António.

- Então? - questiona Marques Bom. - A música calma nunca mais toca?

- Ok, então - diz Cristóvão ao mesmo tempo que empurra o CD para a prateleira de leitura e aumenta o volume. De repente as guitarras eléctricas começam a ressoar dentro do pequeno carro. O som da batida parece que entra pelas entranhas de Marques Bom e, entretanto Cristóvão bate com as mãos no volante acompanhando o ritmo e a letra da canção.

- Isto é música do Inferno, caraças! - grita Marques Bom.

- Não, não... - diz Cristóvão a rir - chama-se «Battery» e é de um agrupamento étnico-cultural chamado Metallica.

Marques Bom consegue ter a calma para, apesar da velocidade e do barulho infernal que está naquele carro, descobrir um jornal no banco traseiro. Era o Correio da Manhã de há dez dias atrás. Cristóvão vê, baixa o volume e diz-lhe:

- Isso já tem uma data de dias, amigo.

- Está bem - concorda Marques Bom com olhar malicioso - mas as meninas das massagens de hoje são as mesmas da semana passada, logo, está tudo dentro do prazo.

A Via do Infante foi vencida em pouco tempo e, já na EN125, agora em direcção a Caceia, Cristóvão explica a Marques Bom que a razão daquela deslocação se prende com uma abordagem àquela que era uma espécie de namorada de João Cipriano:

- Vamos ter com a Fátima Gomes que é tão-somente a última namorada do João e com quem parece que ele viveu, segundo o que o Gonçalo me informou. Também de acordo com o que eles me disseram, na noite anterior a ser preso, o João havia estado com ela no Fiat na Casa Alta. Acho que estiveram a matar saudades - sorri. - Vamos ter com ela para ver se se abre um bocadinho com a gente, para sabermos mais sobre os comportamentos do nosso João em termos do sexo, etc., etc., tu sabes como é - pisca o olho a Marques Bom.

- Olá, se sei. Vamos então a ela.

Depois de procurarem, conseguiram, através da morada fornecida pelos colegas de Faro, localizar um pequeno amontoado de casas térreas tipicamente algarvias, pintadas de cal branca. À porta de uma das casas estava uma pequena motoreta azul, tal qual como aquela em que, disseram a Cristóvão, a Fátima andava. Bateram à porta e pouco tempo depois esta foi aberta por uma mulher com pouco mais de trinta anos de idade. O corpo evidenciava pouco cuidado com o peso e com a aparência. O cabelo, a pele e os dentes já haviam visto melhores dias. Não se admiraram com o aspecto, mas a forma aparentemente calma com que reagiu à exibição do crachá de Cristóvão de certa forma impressionou-os.

- Muito boa tarde - diz Cristóvão exibindo um simpático sorriso. - Somos da Polícia Judiciária e gostaríamos de falar consigo um pouco. Tem ideia do que nos faz vir até à sua casa?

Meio envergonhada, somente com as pontas dos dedos enfiadas nos bolsos das calças de ganga e sem proferir qualquer palavra, saiu para o exterior, fechou a porta atrás de si e começou a andar lentamente duma forma que indicava que se preparava para dizer algo importante. Cristóvão e Marques Bom seguiram-na porque aquela atitude indiciava colaboração e vontade de dizer algo que não pudesse ser ouvido por mais ninguém. Já no meio de um terreno adjacente à habitação, e sempre sem tirar os dedos dos bolsos, Fátima inverte a direcção da sua marcha e enfrenta os polícias:

- Desculpem lá não vos convidar a entrar, mas tenho os meninos lá dentro e a minha mãe também está lá.

- Por amor de Deus, D. Fátima - exclama Cristóvão -, acho muito bem, deixe-os lá estar descansados. Não queremos incomodar mais ninguém.

- Vocês querem falar do João, não é?

- É isso mesmo - diz Cristóvão.

- Então que querem saber? Eu não sei nada do que dizem que ele fez. Só sei que estive com ele no carro na Casa Alta, na noite antes de o prenderem. Ele ligou-me e eu fui lá ter com ele ao carro. Foi tudo normal, ele estava normal e não me disse nada... só disse que tinha estado em casa da irmã dele, a Anabela, e que da casa dela tinha ido para ali. Fizemos amor e depois vim embora. Não sei mais nada. Já não o via há muito tempo.

- Tudo isso a gente já sabe - diz Cristóvão. - Mas diga-me você... viveu com o João, não foi? Tipo marido e mulher, não é assim?

- Sim, vivemos uns meses.

- Desculpe lá, mas como era o nosso homem em termos do sexo? Meiguinho? Brutinho? Só queria às vezes? Era todos os dias? Como era? - pergunta Marques Bom.

Fátima assume a pose de pessoa ofendida e diz:

- Olha-me essa agora... não vou falar disso com vocês. São coisas íntimas!

Cristóvão sente a necessidade de quebrar as barreiras e mostrar de forma mais incisiva que as perguntas têm uma razão de ser e são para ser respondidas.

- Oiça-me, menina! O que nos traz aqui é uma criança de oito anos que em princípio foi morta pela mãe e pelo seu querido João com o qual a senhora andou a dar umas quecas num veículo na via pública, portanto não me fale em intimidades, ok? Ganhe juízo e colabore.

Marques Bom sabe que neste jogo tem agora que desempenhar o papel do polícia bom, já que Cristóvão estava a fazer o de mau.

- Então, Fátima - diz enquanto lhe coloca a mão direita sobre o ombro -, você já viu que isto é muito grave e não podemos perder tempo com ninharias, não é? O que nós queremos saber é como esse rapaz é na realidade, ok? E nesse aspecto ninguém mais que a Fátima nos pode ajudar.

A estratégia resulta e Fátima baixa a cabeça como que concordando que aquela não é a hora para se refugiar em intimidades ou ficar reservada quanto às mesmas.

- Sim, tem razão. Ele queria fazer todos os dias... a gente fazia todos os dias. Eu às vezes não queria porque me doía a barriga de estar com o período, mas ele fazia na mesma e eu... como era mulher dele, não é? Tinha que fazer, não é?

Cristóvão pensava para si que não. Não era assim que tinha que ser. Aproveita o embalo da conversa e adianta:

- Ele alguma vez lhe bateu ou algo assim?

- Foi só uma vez. A gente discutiu e ele já tinha bebido umas cervejas.

Neste momento Cristóvão lembrou-se de que no dia do desaparecimento da Joana, João havia passado o dia a beber cervejas, e os colegas da polícia que inicialmente haviam ido à casa da Leonor disseram que ali se encontrava um saco com mais de dez garrafas de cervejas, todas com restos no interior, o que indiciava que teriam sido bebidas recentemente.

- Vamos lá esclarecer uma coisa, Fátima - diz Cristóvão, tentando direccionar a conversa para os pontos verdadeiramente importantes -, como é que era o João quando bebia uns copos a mais?

- Então - prossegue a Fátima -, dessa vez ele estava com uns copos e eu também estava a gritar e ele ficou assim meio fora de controlo e puxou de uma faca da cozinha para mim... eu fugi, mas depois à noite já estava tudo bem. Mas foi só dessa vez... de resto tudo bem...

Cristóvão volta à simpatia e em jeito de despedida diz:

- Por favor, vá tomar conta dos seus meninos. Muito obrigado por este tempo que nos dispensou e desculpe se a incomodámos.

- Era o que eu sabia, adeus e encontrem a menina - diz Fátima ao mesmo tempo que alarga o passo em direcção à porta da sua casa.

Cristóvão e Marques Bom entraram no carro. Ainda antes de colocar a chave na ignição, Cristóvão coloca as duas mãos sobre o volante, empurra as costas contra o banco e interroga Marques Bom:

- Então, companheiro, o que é que achas? Valeu a pena vir aqui, não valeu?

- Muito bem - concorda Marques Bom. -Já ficámos a saber que o nosso homem, calculista e frio, quando bebe uns copos a mais, descontrola-se, não é? É especialmente quando o contrariam. Se naquela noite era mais que evidente que já estava bem atestado e, se ainda por cima foi contrariado, ou pela menina, de acordo com a tua teoria, ou pelas ameaças da menina em contar que os apanhara, então isto é bem capaz de ter pernas para andar.

- Exacto, Marques Bom. Estavam reunidos todos os ingredientes necessários para que o João explodisse, não? Cervejas a mais, apetite sexual contínuo e alguém que de alguma forma o contrariou ou irritou... ou ambas.

- Ora aí está - continua Marques Bom entusiasmado. E não te esqueças daquele pormenor que a rapariga deixou escapar. O João estava-se a borrifar se ela estava com dores do período. Tinha era que ser satisfeito e mais nada.

- Exactamente - concorda Cristóvão.

Cristóvão roda a chave da ignição e abandonam aquele local em direcção à Estrada Nacional 125, para apanharem novamente a Via do Infante e dali irem até Faro. Pelo caminho, Cristóvão volta a atacar Marques Bom com Metallica em altos berros no carro, com este novamente a agarrar-se àquele Correio da Manhã com mais de dez dias. Tentava vislumbrar se Marques Bom estaria mesmo a ler algo em concreto ou se era uma forma de se abstrair do som infernal que percorria aquele carro. Conseguiu, a dada altura, ver Marques Bom a espreitá-lo por cima do rebordo das folhas e foi nesse momento que decidiu ligar o isqueiro do carro. Quando este saltou, e sem que Marques Bom se apercebesse, encostou-o, pela zona incandescente, às folhas do jornal. Segundos depois estava um buraco bem delineado ainda que não tivesse transposto a última folha. Cristóvão rapidamente colocou o isqueiro no lugar e continuou a conduzir como se nada fosse. Pouco tempo depois uma pequena nuvem de fumo teve origem no jornal de Marques Bom enquanto que este começou aos gritos sem saber o que fazer ao jornal:

- Merda, merda, fogo, fogo...

Abre a janela do carro e atira o jornal borda fora, parando Cristóvão o carro na berma e advertindo-o:

- Aquela merda foi combustão espontânea, Marques Bom. Vai lá apagar aquilo que ainda dá direito a incêndio.

Marques Bom saiu do carro e correu em direcção ao jornal desatando a espezinhá-lo como se a sua vida dependesse disso. Cristóvão observa esta cena de Marques Bom pelo espelho retrovisor, rindo até que as lágrimas já não o deixavam abrir os olhos. Quando Marques Bom volta ao carro Cristóvão diz-lhe entre soluços:

- Porra, Marques Bom. Isso é que é. As gajas dos anúncios são daquelas de deitar fumo - Mas que merda foi aquela? - pergunta Marques Bom

- o jornal começou a arder, companheiro.

- Cenas místicas, Marques Bom - diz Cristóvão enquanto repõe o carro na entrada.

- Pronto, já vi tudo - admite Marques Bom. - Fui encravado, não fui? É assim... nasci para sofrer.

Mais uma vez a Via do Infante foi percorrida rapidamente. Chegados a Faro embrenharam-se no trânsito do centro da cidade. Já estavam na rua do edifício do Departamento, quando Marques Bom levantou os óculos de sol e se inclinou para a frente como que observando algo interessante ao longe:

- Já viste ali em frente à bófia? Os tipos não saem dali, porra!

Marques Bom falava do grupo de jornalistas que se encontravam sentados no chão, uns com máquinas de fotografar, outros com micros e ainda uma ou duas câmaras.

- Sim, senhor - diz Cristóvão. - Será que nos escapou qualquer coisa? Terão ido buscar os manos para um interrogatório daqueles que a gente não sabe? - ironizou.

Estacionaram o carro num parque afastado do Departamento e dirigiram-se calmamente para a porta das traseiras. Também ali havia jornalistas.

- Bem - diz Marques Bom - vamos de fininho, e se pedirem autógrafos dizemos que só sabemos assinar de cruz, ok?

- É isso mesmo - sorriu Cristóvão.

A troca de olhares entre todos foi inevitável, mas não passou disso mesmo. Chegados ao segundo piso, onde já estava sediada a solicitada sala de operações, só lá se encontrava Leonel. Atrás deles entraram Gonçalo e Guilhermino.

- Então pessoal, tudo a andar? - diz.

- Tudo a andar... devagar mas bem, que é como se quer

- respondeu Cristóvão. -Já agora, que salganhada é aquela lá fora? Hoje houve convocatória geral?

- Não pá... nada disso - responde Gonçalo incomodado.

- São estes gajos que não nos deixam trabalhar. A gente não pode fazer a ponta de um corno na Figueira sem vir a assistência toda atrás...

Cristóvão ouve-o atentamente, tal como Leonel e Marques Bom, cada um sentado na sua cadeira. Marques Bom não se conforma com condicionalismos de circulação da investigação na Figueira e atira:

- Pois, isso é uma merda! E depois? Nós somos a Polícia Judiciária, não somos? Eles têm o direito de informar e nós temos o dever de investigar, e sempre que o direito deles interferir com o nosso, paciência... estabelecemos um perímetro de segurança de quinhentos metros e, se não o respeitarem, levam com Desobediência e Obstrução. Dá detenção, apreensão do material, carros, etc... A gente não anda aqui para agradar a ninguém. Estamos aqui para fazer o melhor possível e ponto final. De preferência sem interferências de ninguém! Gonçalo ouve Marques Bom com atenção e acaba por desabafar:

- Pois... isso era o ideal, mas assim é uma merda. Os gajos sempre em cima, estão a ver? Não dá para fazer merda nenhuma.

Para eles era mais que evidente que Gonçalo já não conseguia esconder os excessos do último mês. Sono a menos, demasiados cafés, muitos e muitos maços de cigarros, pressão constante por resultados. Tudo isto havia originado, não só em Gonçalo, mas também em Guilhermino evidentes marcas físicas de cansaço global. Os telefonemas de Lisboa não paravam no telemóvel de Guilhermino. Por cada oferta de auxílio, desde a tecnologia que evidentemente não se aplicava ao caso, passando por aspirantes a profilers e médiuns, até jornalistas com teorias inimagináveis sobre uma rede de pedofilia que teria raptado a Joana para a comercializar, Directores, Ministros, tudo caía em cima dos ombros de Guilhermino e ele tentava aguentar-se com a dignidade que a exposição e o cargo exigiam. Tanto ele como Gonçalo eram os «porta-estandarte» da credibilidade e eficácia da PJ.

Leonel parece que entendia as «não-palavras» dos presentes:

- Calma! - disse. - com calma a gente vai levar a água ao moinho. É preciso ter calma. Confie aqui no pessoal que nós vamos desatar o raio deste nó. Agora é paciência, não é?

- continuou - as receitas já experimentadas não surtiram qualquer efeito, não foi? Vamos abordar a coisa de outra forma. Temos uma estratégia e vamos segui-la e o pior que pode acontecer é ficarmos na mesma, não é?

Leonel fala com uma convicção que contagia os presentes e Gonçalo entra no espírito:

- Ok, Leonel, o melhor que se conseguir fazer, então. Os presentes entenderam esta conversa como uma mudança no curso da investigação. Este momento foi entendido como relevante e marcaria tudo a partir daí, nomeadamente as relações entre os elementos de Lisboa e os de Faro. Esta viragem acarretava também um aumento de responsabilidade para o grupo de Leonel.

Guilhermino e Gonçalo abandonaram a sala. Parecia que pairava a ideia de passagem de testemunho, não na componente de direcção das coisas, mas sim na estratégia e na táctica a utilizar a partir daquele momento. Não havia um despacho escrito ou declarações formais, mas sentia-se que as circunstâncias assim o ditavam. Tudo parecia natural e estranho ao mesmo tempo.

- Bem - diz Marques Bom -, e que tal se a gente fosse comer um peixinho para variar? Digo eu... - sorri.

São quase nove da noite quando chegam ao restaurante O Chico, em Olhão. Pouco depois Leonel recebe uma chamada. Era António dizendo que já havia chegado a Faro juntamente com Praxedes e Carlos.

- Venham aqui ter com a gente, seus caraças! - disse Leonel com um tom de voz que evidenciava alegria por reencontrar mais dos seus.

Cerca de vinte minutos depois, o trio acabado de chegar juntou-se à mesa de Cristóvão, Marques Bom e Leonel.

Praxedes era um polícia já com mais de dez anos de Judiciária. Divorciado, como convém para encaixar no perfil. Baixo, entroncado, olhos claros, cabelo curto e a roçar o loiro. Muitos anos de Secção de Roubo na Directoria de Lisboa e mais recentemente colocado na DCCB. Há pouco tempo recompusera a sua vida conjugal, juntando-se com uma senhora mais velha que ele com a qual se sentia realizado, mas ao mesmo tempo tolhido porque eram muitos os telefonemas diários com controlos sobre companhias, trabalho, desconfianças próprias das mulheres mais velhas que a todo o tempo se vêem trocadas por outra mais nova. Não seria o caso. Praxedes era fiel e dedicado à hipótese de ser finalmente feliz.

António era um polícia com dezoito anos de Judiciária. Estatura média. Moreno. Já derrotado na guerra contra a calvície. Dois filhos, homem com valores, falinhas mansas e anos de DCCB. Tinha uma vida relativamente simples de classe média, com vontade de ascender ainda na carreira. Nem sempre era compreendido pelos colegas, mas compensava tudo com uma atitude de camarada para com os que o rodeavam. Carlos era um polícia com cinco anos de Judiciária. Antes disso havia batido muita calçada com a farda da PSP. Rapaz baixo, risco ao lado sempre definido, andar curto, postura que pretendia sempre exemplar. Polícia típico, com um projecto de vida perfeitamente definido. Casado com a filha de um promotor imobiliário, tinha tudo perfeitamente programado na sua vida: quando ter um filho, quando concorrer à categoria seguinte da carreira, quando acabar o curso de Direito que frequentava à noite. Tudo estava matematicamente programado e não deixaria que nada o desviasse dos seus objectivos.

É certo que se tratava de um grupo de pessoas heterogéneo, porém Leonel assim quis porque acreditava ser nas valências próprias de cada um que se encontrava a riqueza deste grupo. Não estavam ali para serem muito amigos uns dos outros, mas sim para colocarem os saberes e capacidades especiais de cada um ao serviço de uma causa comum que era chegar, o mais aproximadamente possível, à verdade: o que efectivamente acontecera à pequena Joana naquela noite de Setembro. Durante mais de duas horas, na mesa daquele restaurante, os recém-chegados são colocados ao corrente de tudo quanto já aconteceu e de toda a matéria já apurada por Cristóvão, Marques Bom e Leonel.

- Então isto não está fácil, pois não? - desabafa António.

- Bem-vindo à realidade - graceja Cristóvão.

Findo o jantar ficou desde logo combinado encontrarem-se à porta do Departamento às seis da manhã.

São quase duas da manhã quando Cristóvão se deita na sua pequena cama, após mais uma vez ter lido todo o processo, todas as inquirições, todas as diligências efectuadas pelos outros, recapitulando toda a estratégia já delineada para os dias seguintes, pensando para si:

Agora é que vai ser bonito, sim senhor... isto ou vai dar em glória para uns iluminados ou vai dar um lindo funeral. No fim ninguém se vai lembrar da merda que viemos encontrar, do que temos que passar, do tipo de gente com que estamos a lidar... no fim estão-se todos a cagar para isto e para nós. Se fizermos porcaria temos que nos aguentar sozinhos. Se der resultado vão todos a correr para as conferências de imprensa. Que merda de vida esta... De qualquer forma, estamos sempre comidos, mas que se lixe...

Está Cristóvão entretido com os seus pensamentos enquanto, no quarto ao lado, Leonel vai cogitando com os seus botões, quase murmurando, enquanto tenta não ser vencido pelo sono:

- Ora bem.. temos que tratar da «Fita do Tempo»... Testemunhas... zzzzzzzzzzzzz... telemóveis... Ver contas...

Finalmente as poucas horas de descanso vencem o velho polícia. A idade e o acumular de maus tratamentos àquele corpo não perdoam.

São cinco e meia da manhã do quarto dia. Marques Bom acorda com aquela sensação de que, por muito que dormisse, seria sempre pouco. A cafeína faz milagres, mas não durante muito tempo.

Seis horas em ponto. O grupo encontra-se à porta do Departamento de Faro da PJ. Os recém-chegados haviam dormido em casa de um amigo de António naquela cidade o que, em comparação com as condições em que o trio inicial dormia, era um verdadeiro luxo. O segurança do turno da noite olha para eles com um olhar também ele sonolento, tentando disfarçar com uma operacionalidade e atenção que àquela hora soam mesmo a teatro de segunda categoria.

- Ora muito bem, minha cambada de preguiçosos - atira Leonel sorrindo -, vamos lá dar ao chinelo que se faz tarde, caraças. A nossa vida não é isto, isto é um part-time - continua, rindo.

- Pois, pois - diz Marques Bom com um ar de caso temos é aqui para umas semanas, chefe.

- Gaita - interrompe Cristóvão -, a merda da falta de sono dá cabo de um gajo, Marques Bom. Ainda te vou ver pior

- diz aplicando uma palmada nas costas daquele -, ainda te vou ver a filosofar sobre o papel da espécie humana e o porquê da existência obscura do lado negro da razão...

Marques Bom acusa a ironia e diz sorrindo:

- Agora com essa é que me mataste. Já não digo mais nada.

 

SUBIDA À SUPERFÍCIE

Cristóvão e Marques Bom saíram daquele local e rumaram à Direcção Regional dos Recursos Hídricos em Faro. Ao chegarem à porta do edifício, poucos minutos antes das sete da manhã, Marques Bom questionou Cristóvão:

- Achas que a esta hora está aqui alguém, caraças?

- Deve estar mesmo, Marques Bom - responde Cristóvão. - Ontem falei com uma senhora chefe de secção e combinámos às sete de forma a que ninguém nos veja aqui e fique a saber o que pretendemos. Se não, amanhã está tudo no jornal, entendeste?

- Muito bem. E pretendemos o quê? Saber se vai haver muita água neste Inverno?

- Nada disso, companheiro - continua Cristóvão -, nós só queremos umas plantinhas da zona da freguesia da Mexilhoeira Grande onde estejam assinaladas todas as captações de água existentes naquela zona, entendes? Poços naturais, poços feitos pelo Homem, activos e desactivados, capsci?

- Muitíssimo bem - exulta Marques Bom -, fantástica diligência, irmão. Cartografar o terreno. É sempre bom saber onde estão os poços, não é?

- Exactamente - responde Cristóvão, olhando para uma senhora que desce a escada no interior do edifício e lhes abre a porta -, nunca se sabe e é sempre bom perceber exactamente onde eles estarão todos, já que a Leonor disse que por ali há muitos.

Cristóvão interrompe a explicação para cumprimentar a senhora que os esperava:

- Muito bom dia. Falou comigo ontem à tarde. Peço desculpa pelo incómodo, mas já se sabe... a discrição obriga-nos a andar aqui a estas horas.

- Por amor de Deus - responde a senhora -, tenho muito gosto em ajudar-vos em tudo o que for possível.

Subiram as escadas até um primeiro andar no qual se encontravam duas máquinas de moedas, uma para tirar cafés e uma outra com bolos secos.

- Aguardem um pouco que eu já volto - disse, desaparecendo num corredor.

- Marques Bom - diz Cristóvão -, enquanto houver moedinhas nestes bolsos, estas duas são nossas - sorri.

- Puxa... com a fome que estou até a máquina como responde Marques Bom, ao mesmo tempo que começa a procurar nos bolsos as necessárias moedas para o pequeno-almoço daquele dia.

Uma meia hora depois, a voluntariosa senhora chega ao pé de ambos com uma folhas enroladas na mão. A sua postura, o andar, o quase sussurrar as palavras eram próprios daqueles cidadãos anónimos que em algum momento são recrutados pelos serviços secretos. Interiorizam a missão e de repente falam e respiram como um agente secreto. Tudo é alterado à velocidade de um clique.

- Aqui está - disse exultante -, estão todos assinalados e aqueles que têm registo possuem a identificação do proprietário. Qualquer coisa mais é só dizerem, que estou à vossa disposição - continua agora com uma face mais séria. - E se não for abuso peço-vos que ao menos dêem um funeral àquela menina, está bem?

- Não é abuso nenhum, minha senhora - diz Marques Bom -, estamos a fazer tudo o que é possível, descanse. Muito obrigado por tudo.

Saíram do edifício e Faro ainda não acordou para a corrida matinal aos empregos. A cacimba matinal ainda se abate sobre os carros estacionados. Vê-se uma ou outra empregada das limpezas de escritórios e pouco mais.

- E agora - questiona Marques Bom -, o que consta da ementa?

- Agora? - responde Cristóvão com um sorriso matreiro.

- Agora vamos dar um pulinho a Lisboa, meu irmão.

- Porra... essa foi mortal - diz Marques Bom, estupefacto. - Fazer o quê?

- Ajudar de forma singela aquela «Fita do Tempo», companheiro. - Cristóvão continua a sorrir à medida que se vão aproximando do carro como que querendo transmitir a Marques Bom que algo mais virá daquela conversa.

- Então como é isso? - insiste Marques Bom, intrigado.

- Vamos ver em primeira-mão os contactos telefónicos e células activadas por aquela cambada toda naqueles dias.

Marques Bom está confuso.

- Então não precisamos do mandado do juiz?

- Vamos lá a ver uma coisa, Marques Bom - diz Cristóvão sorrindo, enquanto o carro vai serpenteando pelas estradas ainda desertas de Faro em direcção à Via do Infante -, os princípios gerais são uma coisa, os meios de aplicação são outra completamente diferente. É óbvio que precisamos disso tudo, mas também sabes como é esta merda dos despachos, informações, ofícios, etc, não é? Era pelo menos uma semana até termos isso, companheiro, e tempo é coisa que não temos muito. Foram feitos alguns contactos com operadoras que se disponibilizaram a ajudar-nos. Depois, se houver alguma coisa de jeito, a gente vai incomodar o juiz. Para já precisamos é da informação, e rapidamente.

- Exactamente - diz Marques Bom. - Mas essa merda já devia estar feita, não?

- Pois - anui Cristóvão -, mas agora temos nós que a fazer. Temos é que dar ao chinelo.

Vendo Cristóvão a colocar um CD no leitor do carro e lembrando-se das experiências anteriores, Marques Bom questiona:

- Não me digas que aí vem a tortura outra vez! É isso?

- Nããããããã - graceja Cristóvão -, é só mais do mesmo, Marques Bom. É a única forma de fazermos 300 quilómetros

numa hora e meia.

- Deixa mas é meter o cinto - responde Marques Bom. A viagem até Lisboa fez com que os dois tivessem uma sensação de regresso à realidade. Era como se tivessem andado uns dias num mundo à parte do seu. Era como se voltassem à superfície depois de muito tempo no fundo do mar. Sabia-lhes bem atravessar a ponte sobre o Tejo. Mesmo com as centenas de veículos a entrar em Lisboa àquela hora da manhã sabia-lhes bem. Lisboa estava lá e parecia que tinham saído dela havia anos. Realmente, quando mergulha de cabeça numa investigação, o investigador alheia-se de tudo e de todos, perseguindo o seu objectivo dentro de um mundo muito próprio. Esse alheamento, essa entrega arruinaram muito casamento de elementos das Polícias. Ninguém entende, e muito menos os cônjuges, o que na realidade se passa. Os polícias são assim. Melhor, os verdadeiros polícias são assim. Não se consegue ser um verdadeiro polícia nesta realidade se não existir a entrega mais que total. Não dá para fazer entre as nove e as cinco e meia. Para alguns dá, mas não para quem mexe no pior que nós próprios, humanos, somos capazes de produzir.

O silêncio no carro só não era total porque o piso em grelha de metal da terceira via da ponte fazia aquele som reconhecível em qualquer lado. Cristóvão e Marques Bom seguramente pensariam a mesma coisa, em como era bom estar de volta àquela cidade.

Depois de terem sido visitados dois edifícios, sedes de outras tantas operadoras de telefones móveis, no calor do meio-dia já estavam de regresso à A2 rumando a sul. A pasta com várias folhas de papel A4 repousava no banco traseiro e Cristóvão, olhando para Marques Bom e vendo que a sua curiosidade compelia a olhar para ela diversas vezes, disse:

- Bem, companheiro, vamos rumar a sul outra vez, mas daqui a pouco paramos numa área de serviço qualquer e matar esta curiosidade que nos corrói a alma, está bem? - diz sorrindo.

- Muito bem - responde Marques Bom -, agora até podes meter o CD em altos berros que para mim está tudo bem...

- Ai é? - diz Cristóvão em tom de desafio. - Então levas aqui outra pérola que eu trouxe para a gente não dormir.

Retira o CD dos Metallica e coloca um outro de uma banda chamada Slipknot. À medida que a música ecoa no carro, Marques Bom grita:

- Porra, nasci mesmo para sofrer, seu caraças. Se isto acabar depressa juro que passo a ir à missa todos os dias, colaboro com o Banco Alimentar... tudo...

Nas colunas de som do Cito ecoam como trovões as frases «Iput my fingers into my eyes... it’s the only thing that slowly stops the hake... but it’s made of ali the things / have to taaaakeee...»

Cristóvão ia acompanhando as letras usando o volante como percussão e ao mesmo tempo que os quilómetros iam sendo devorados. Tinham sido percorridos pouco mais de cinquenta quilómetros quando Cristóvão decidiu entrar numa área de serviço e parquear o Clio debaixo de um toldo do parque de estacionamento.

- Ora bem, deixa cá ver - disse -, tenho aqui o telefone do João... o da Leonor... do Leandro e o do outro gosma, o Carlinhos - dizia Cristóvão enquanto os seus olhos percorriam a listagem com diversos tipos de informação.

- Vamos lá distribuir isto pelos dois, ok? - acrescenta.

- É melhor mesmo - concorda Marques Bom.

- Então ficas com a Leonor e o Leandro e eu com o Carlinhos e Joãozinho, ok?

Começam os dois a olhar para números de contacto e respectivas células activadas quando tais chamadas eram efectuadas ou recebidas.

Cristóvão olha atentamente para uma folha e diz:

- No dia 11 temos aqui o João todo o dia caladinho e só no dia 12 fez uma chamada para um número que me parece ser o da irmã. No dia seguinte fez quatro chamadas para a namorada com quem falámos.

- A mãe extremosa, nem piu - diz Marques Bom no dia dos acontecimentos. Falou somente com o mano no dia anterior, quando a Joana estava na casa da mãe do Leandro. Falaram pouco mais de um minuto. O Leandro continua - esteve o dia todo com células activadas na zona da sucata.

- O Carlinhos - diz Cristóvão - fez e recebeu chamadas durante o dia, mas à noite não se vê nada. Assim de repente não se vislumbra nada de especial que possamos apelidar de suspeito, Marques Bom. Acho que a coisa se resolveu nos contactos pessoais e proximidade entre estas personagens. Tirando esta chamadinha do João para a mana gémea, a tal em que ela disse que ele lhe pedira para ajudar a despachar o corpo da menina, não vejo mais nada de especial.

- Bem - diz Marques Bom -, temos aqui elementos para trabalharmos e depois tirarmos conclusões. Vamos mas é para sul, Cristóvão.

- Vamos embora, Marques Bom, pelo caminho comemos uma buchinha em qualquer lado.

A estrada entre a área de serviço de Palmela, onde haviam estado parados, e a Via do Infante foi toda percorrida com muito mais silêncio que no sentido inverso. Cristóvão e Marques Bom estavam mergulhados nos seus pensamentos. Cristóvão levantava hipóteses, confirmava outras, enquanto Marques Bom ia desfolhando folhas, umas atrás das outras, de forma entusiasmada, como se ali estivesse o esclarecimento de todo aquele caso. Ia vendo e tomando apontamentos num pequeno bloco que com dificuldade mantinha sobre o joelho direito.

Chegam a Faro. A confusão do trânsito contrasta em absoluto com a calmaria que estava quando abandonaram a cidade de manhã cedo. A herança dos tempos de Cavaco estava à vista. As auto-estradas, os ICs, IP’s e afins tornavam estas viagens muito mais cómodas e rápidas. Como que acordando de um sonho, Marques Bom levanta a cabeça dos apontamentos em que estivera mergulhado ao longo da jornada e exclama:

- Faro! Já? Isto é que foi andar, Cristóvão, hein? Vamos para a base já?

- Porquê? Tens alguma ideia melhor? - questiona-o Cristóvão.

- Por acaso até tenho. Já que estamos em maré de raides, assim de repente - sorri -, podíamos passar de fininho na estrada que liga a Figueira à sucata e depois irmos ver a zona da casa da irmã gémea do João em Lagoa. Só para cheirar os locais, entendes?

Cristóvão sabia que em qualquer investigação era primordial ver os locais, tal como Leonel já fizera na Figueira. Ninguém pode falar de determinado local sem lá ter estado pelo menos uma vez.

- Oh, meu amigo e companheiro - diz Cristóvão enquanto fazia uma inversão de marcha repentina em pleno centro de Faro -, é que é mesmo já a seguir. Vamos embora.

Enquanto isto Leonel, Guilhermino e Gonçalo encontravam-se no Salão Nobre da PJ de Faro. O Director não conseguia disfarçar toda a tensão que vinha acumulando dentro de si. As olheiras cada vez mais pronunciadas. A necessidade de boas notícias era urgente.

- Então, Leonel - disse -, como é que isso está a andar? Acha que o pessoal desata a merda deste nó?

Leonel esboça um sorriso e enquanto dá uma leve palmada nas frágeis costas de Guilhermino diz:

- Senhor Director, se há nó desatado ou não, isso não sei. O que sei é que é que os gajos que aqui estão, especialmente o Cristóvão e o Marques Bom, são os maiores esmifras que você podia ter, ok? Se houver uma merdinha de nada para se ir buscar, garanto-lhe que eles vão buscá-la, e por eles até meto os tomates na guilhotina.

- Eu sei disso, Leonel - responde Guilhermino -, mas sabe... eu sei que nem tudo foi perfeito nesta investigação e já passou tanto tempo que começo a ver isto tudo muito negro.

Gonçalo intervém na conversa.

- Eu também sou esmifra, caraças! e se mais não foi feito é porque não era possível fazer.

Leonel acusa o toque:

- Esta merda é como nos malandros. Quando um se julga o rei dos malandros eis que surge outro ainda mais malandro que ele. Vamos esperar para ver. Difícil é obter em quatro dias aquilo que num mês não se conseguiu - abre os braços como que passando a mensagem de que não lhes resta outra alternativa senão esperar mesmo. - Como dizia o Tio Cavaco, deixem-nos trabalhar. - Ri. - Mas já que aqui estamos contem-me lá como foi quando foram a casa deles.

Gonçalo parece desconfiar do pedido.

- Como foi? Como assim?

- Então - replica Leonel -, como foi a Busca?

- Então fomos lá à casa, fizemos a Busca à procura de qualquer coisa que indiciasse algo cometido ali dentro. Depois houve a questão da esfregona que trouxemos. Parece que andaram a limpar aquilo tudo com a esfregona. Disseram que o chão estava cheio de carraços que é uma espécie de carraça, mas mais pequena. Na esfregona encontrou-se sangue, embora não se soubesse se era humano ou não, e o laboratório também não soube dizer porque aquela merda estava toda contaminada.

Entre o que já decidira previamente e tudo o que acabara de ouvir, decidiu que era altura de efectivamente começar tudo de novo também no local onde o crime mais grave poderia ter ocorrido e a seco disparou:

- Senhor Director, Senhor Coordenador, vamos ter que ir outra vez à casa.

- Outra vez? - disseram os outros dois quase em uníssono.

- É! Outra vez e desta vez mesmo a sério.

- E por acaso fomos lá brincar da outra vez? - responde Gonçalo indignado.

- Não foram brincar, Gonçalo, mas simplesmente poderão ter ido à procura das coisas erradas e não das certas. Se, pelo que me pareceu, foram lá fazer uma busca somente visual sem terem presente a possibilidade de outros cenários, então vamos ser humildes e antes que se estrague tudo vamos lá a ver o que ainda se conseguirá trazer daquela casa.

- Pronto, ok - anui Guilhermino -, quando quiser ou pedimos ao juiz o mandado ou então falamos com o Leandro que se tem mostrado colaborante e vamos lá de novo. Diga quando.

- Quando? - responde Leonel. - Quando é já amanhã, senhor Director, e mande cá estar uma equipa do Laboratório. Quero pessoal da Biologia, pelo menos dois, ok? E também quero um pinceleiro.

O termo «pinceleiro» era usado para designar os profissionais de Lofoscopia da Polícia, atendendo a que se faziam acompanhar de pequenos pincéis para desempenhar as suas funções de recolha de vestígios de impressões dermo-papilares, conhecidas por impressões digitais.

Após esta conversa, Leonel separou-se dos seus dois interlocutores e ligou para Cristóvão para saber como as coisas estariam a andar.

- Então Cristóvão, como é? Tudo a andar? Novidades? Ah, ok! Amanhã quero que vocês dois vão fazer a busca à casa, mas mesmo a sério, ok? Vai pessoal do laboratório com vocês. Eu vou ver se falo com o Leandro para ele dar a devida autorização para a Busca, senão temos que ir arranjar um Mandado e essa merda demora como o caraças.

Do outro lado da linha Cristóvão solicita a Leonel que ao contactar Leandro lhe peça para que Sara, a irmã dele e, segundo os informaram, a maior amiga de Joana, acompanhasse a busca juntamente com o irmão. Leonel não entende naquele momento o alcance de tal pedido, mas como confia em Cristóvão concorda com a proposta sem pestanejar.

Depois de procederem aos reconhecimentos aos locais, Cristóvão e Marques Bom regressam a Faro. Chegados ao Departamento dão aos colegas António e Praxedes as listagens dos telefonemas assim como os mapas topográficos de que constam os poços da freguesia da Mexilhoeira, os quais são quase de imediato colocados por Praxedes nas paredes da sala destinada a ser o centro de operações.

Cristóvão acha que depois de algumas informações que entretanto recolhera ao longo daqueles dias e das primeiras conversas com João e Leonor, está-se em momento certo para se ter uma nova conversa com João. Marques Bom, que entretanto fora à reprografia, volta com um maço de cartazes a cores copiados daqueles que haviam sido distribuídos com a fotografia da Joana e informando sobre a roupa que a mesma usaria na altura do desaparecimento, assim como telefones para contacto em caso de alguém possuir informações sobre o paradeiro da menina. Os cartazes haviam sido feitos pela Sara no seu computador, ideia que tirara de outras situações semelhantes que vira na televisão.

Estes cartazes foram colocados nas paredes da sala que estava destinada a interrogatórios, tendo sido recortados por forma a somente ficar a foto de Joana, e sem qualquer outra informação. Quer João quer Leonor, quando voltassem a ir ao Departamento, encontrar-se-iam numa sala onde a foto de Joana, independentemente da direcção em que olhassem, estaria sempre presente no campo visual deles. Quem saberia se o olhar para ela espoletaria nas suas mentes o clique que reavivasse a memória de cada um daqueles seus familiares.

 

JOÃO - A LUZ AO FUNDO

São quatro da tarde. João e Cristóvão estão novamente olhos nos olhos naquela mesma sala. Pernas entrelaçadas um num outro. A mão direita de Cristóvão agarra na mão esquerda de João. Cristóvão tenta que João focalize aquilo que os traz ali, as horas vão passando. João chora. Cristóvão sente que dentro dele existe algo para além de um monstro. As acções de João em todo este caso não são tão simples como o que declarou e veio divulgado na comunicação social. João exala o medo de que saibam que os seus actos foram mais tenebrosos do que inicialmente se disse. Ninguém assume um homicídio e depois oculta o mais fácil, que é indicar o local onde o cadáver está. Cristóvão acredita que algumas das suas teorias têm pernas para andar, ainda assim tem que ir com muita paciência com João. Os pontos sensíveis só devem ser tocados nos momentos certos, sob pena de se perderem. João é alguém muito calejado na vida e foi esta vida que não o fez especialmente inteligente mas lhe deu a esperteza e a endurance que demonstrara até então.

Cristóvão e João vão falando com as caras uma junto da outra. João chora e continua a chorar cada vez mais. As horas vão passando. Cristóvão já está quase no limite da sua capacidade de aguentar a ausência de tabaco. Para além do mais tem fome e sede. Muita sede. Não pode sair dali. Naquela situação é tão refém como João. Ambos estão no mesmo barco de se tentarem entender. Lá fora, na porta, está uma folha branca a dizer «NÃO INCOMODE EM NENHUMA CIRCUNSTÂNCIA» e até àquele momento estava a ser respeitada. Cristóvão interiorizara que naquele dia ou haveria uma conversa sensata com João ou se abandonaria completamente este personagem. Afinal ninguém poderia extrair de dentro si algo que ele não quisesse dar. Existem limites para tudo. João, já passaria das dez da noite, aperta a mão de Cristóvão com uma forma tal que este teve que fazer uso de alguma força contrária para que João entendesse. O sinal era positivo. Já haviam jurado amizade eterna para todo o sempre. Já haviam combinado um ao outro irem beber cervejas às discotecas e «engatar umas gajas» juntos quando tudo aquilo terminasse. João havia-lhe pedido que o tratasse por «tu». A dado momento João pergunta a Cristóvão, entre lágrimas:

- Eu vou-lhe contar tudo, mas promete que acredita em mim?

- O que é que muda desta vez, João? Por que é que vai ser diferente das tuas outras vezes, companheiro?

- Porque desta vez você vai acreditar em mim, ’tá bem? E eu vou dizer tudo como aconteceu.

As mãos de João tremem tal como as pernas, inclina o corpo para a frente e para trás em movimentos contínuos como se estivesse a ganhar balanço para o que viria a sair de dentro de si e começa:

- Posso falar à vontade? Promete que acredita em mim?

- Prometo que te vou ouvir com toda a atenção deste mundo e depois falamos, ok João? - diz Cristóvão sem nunca largar a mão de João e este apertando sempre com força.

- Naquela noite eu estava bem bebido. Bebi muitas médias... não sei quantas. Estava com a Leonor e os pequeninos lá em casa e a Joana também. A Leonor disse-lhe para ir ao café buscar umas latas de atum e uns pacotes de leite. Eu disse à Leonor que queria fazer coiso com ela e ela disse que não lhe apetecia, mas eu disse-lhe que queria mesmo que me estava a apetecer e pronto... ela foi meter as pequenos no quarto deles e veio para o sofá onde eu estava, tirou as calças do fato de treino e começamos a fazer coiso... a menina entrou quando estávamos a fazer aquilo e começou a dizer que ia contar tudo ao Leandro... a Leonor puxou-a para dentro de casa e ela agarrou-se à parede de fora, mas a gente meteu-a em casa e a Leonor deu-lhe uma chapada. Depois, e como ela não se calava, eu dei-lhe outra e ela foi bater contra a parede mesmo ao pé da porta e ficou assim no chão quietinha. Eu fui-lhe ouvir o coração e não ouvi nada e disse à Leonor que a gente tinha matado a menina. Ela ficou maluca... disse para a gente dizer que a menina tinha caído no chão, mas depois eu disse-lhe que viam as nossas marcas nela e íamos presos por termos morto a menina... começámos a pensar o que havíamos de fazer ao corpo da menina e eu disse-lhe para ir andando para o café para perguntar o que tinha acontecido à menina porque ela não tinha aparecido lá em casa. Antes de ela ir nós metemos a menina debaixo de umas telhas por trás da casa e ela ficou ali quietinha... A Leonor disse que a gente não podia ser apanhados e eu disse-lhe que era melhor cortar a menina aos bocados... assim era melhor para a gente se desfazer do corpo. Ela também era pequenina... A Leonor saiu e foi ao café e voltou com o Carlos e o Leandro e eu fiquei ali sentado na sala a fumar um cigarro. Eles dois perguntaram e eu disse que a menina tinha saído e, já tão tarde, ainda não tinha voltado a casa. Eu fiz sinal à Leonor para os levar a dar umas voltas à procura da menina e eles saíram. Depois comecei a pensar no que tinha que fazer para a gente não ser apanhado e trouxe a menina para dentro da casa. Levei-a para o chão da sala, embrulhei-a num lençol da cama dela e...

Aqui João começava a hesitar. Cristóvão aperta-lhe a mão e diz:

- Vá, João, continua companheiro, estou aqui contigo.

João começa a chorar compulsivamente como nunca Cristóvão imaginou que aquela personagem conseguisse chorar. O choro não é fingido. João sente o que vai falar. Parece ter nojo de si próprio mas continua gritando:

EU CORTEI A MENINA AOS PEDAÇOS!!!

Cristóvão, até aqui imperturbável na sua missão de quem interroga, foi atravessado por uma sensação que, embora a tenha conseguido esconder do seu interlocutor, por dentro era como se fosse o fim de toda a crença na raça humana. Depressa se recompôs e incitou João a continuar:

- Ok, João, e como fizeste isso?

- Então... foi com uma machadinha da cozinha e com a folha de uma serra que estava lá na caixa de ferramentas do Leandro.

- Então e depois como cortaste?

- Cortei pelos braços... e pelo pescoço... e as pernas... Cristóvão imagina a cena rapidamente, mas o momento não é para se deixar impressionar perante quadro tão dantesco.

- Ok, muito bem... tinhas então dois braços, uma cabeça, um tronco e duas pernas... e o que é que fizeste a isso tudo, João?

- Meti em quatro sacos daqueles do lixo grandes que ’tavam na cozinha e atirei baldes de água para o chão da sala e mais uns detergentes e lavei com a esfregona mas não ficou muito limpo. Via-se sangue nos intervalos dos azulejos... e depois meti os sacos na arca frigorífica lá da sala...

Perante este quadro Cristóvão fez algumas perguntas a João por forma a aferir da credibilidade do que acabara de ouvir, nomeadamente coagulação sanguínea, quantidade de sangue, forma de corte da coluna vertebral, rigor mortis e, em todas as questões, mesmo sem saber exactamente que itens estariam em causa, João havia dado respostas que sustentavam as suas explicações. Desde o corte da coluna com a machadinha até às dificuldades, segundo o João, encontradas no corte de tendões das articulações, a quantidade de sangue que se num adulto somente chega aos cinco litros, numa criança como a Joana não poderia ultrapassar os três, e ainda por cima já de alguma forma coagulado. Tudo parecia plausível, no entanto ainda havia muito para explicar.

- Tudo bem, João, e depois? - incitou Cristóvão.

- Depois eles voltaram... uma ou duas horas depois. E Leandro desconfiava que a menina não tinha desaparecido... ele dizia que ela era certinha e não desaparecia... começou a fazer muitas perguntas sobre a menina e a Leonor disse que a gente a tinha matado... disse-lhe que ela tinha roubado o troco do café, por isso tinha-lhe dado uma chapada e a menina tinha batido com a cabeça e morrido e ela não podia ir presa por causa disso... O Leandro disse que era tudo mentira, e eu abri a porta da arca frigorífica onde estavam os sacos e ele foi para a casa de banho vomitar e o Carlos também... eles ficaram malucos e disseram que a gente ia todos presos por aquilo... a Leonor disse ao Leandro que se fosse presa ele também ia porque ela ia dizer que ela tinha morto a menina... ele tremia por todo o lado... depois ficámos a falar como fazíamos... eu disse ao Leandro para meter os sacos no carro velho que estava em cima do reboque deles e ele disse logo que não... depois o Leandro foi para a festa e mesmo depois de saber tudo andou à pergunta da menina para as pessoas verem que ele andava à procura... e o Carlos também foi não sei para onde... Depois vieram todos para casa mas trouxeram uns bolos lá da fábrica onde a menina ia às vezes buscar para a gente comer... depois fomos dormir...

- Dormir, João? - questionou Cristóvão. - Então vocês com uns sacos da menina cortada aos pedaços ali no frigorífico e vão dormir?

- Então, ’távamos cansados...

Cristóvão nem sequer tentara entender esta última questão, mas à luz de tudo o quanto já ouvira desde que chegara a Faro e tudo o que havia vivido, já nada o fazia ficar surpreso. Sentia-se a desumanizar.

- E depois? - continuava Cristóvão.

- Depois eu, de manhã, liguei para a minha irmã Anabela para ela dizer ao meu cunhado para lá ir ter comigo. O Leandro e o Carlos fugiram como se nada fosse com eles... a minha irmã disse que não ia lá... eu disse-lhe que a gente tinha feito mal à menina e tinha havido uma desgraça... depois a Leonor e o Leandro foram apresentar queixa à guarda porque uma vizinha lá da Figueira estava a chateá-la... nessa noite eu fui mais a Leonor e metemos os sacos num carro que estava lá na sucata... a Leonor disse que o carro iria ser queimado e assim já ninguém descobria nada... a gente combinou dizer que a menina já não tinha voltado ou então tinha sido um espanhol que tinha levado a menina e que ela estava bem entregue...

- Muito bem, João. E depois?

- Então... depois fui para casa da minha irmã Anabela que me lavou as roupas....

- Então e a machadinha e a serra, João? – continuava Cristóvão.

- Isso foi tudo dentro dos sacos para desaparecer tudo...

- Olha, João - continua Cristóvão agarrando na mão de João que nunca parara de chorar -, eu acho que não foi isso que aconteceu... acho que se calhar tu estavas a fazer alguma coisa à Joana não foi?

João levanta a cabeça, arregala os olhos e numa postura de indignação disse uma frase que ficaria para sempre na cabeça de Cristóvão:

- Eu não lhe fiz mal. Eu só a matei!

Só a matou?, questionava-se Cristóvão surpreso com a enormidade do que o ser humano consegue fazer e dizer. No entanto este «só» vinha de encontro ao que pensara. Para João, violar a sobrinha seria bem pior que a matar, isto na sua escala de valores. Poderia estar aí o cerne da indomável vontade de, até então, ocultar o paradeiro do corpo? Encontrando-se o corpo ou o que restaria dele, poder-se-iam detectar outros crimes praticados sobre o mesmo para além de um homicídio?

- Ok, tudo bem, João - disse-lhe Cristóvão num tom calmo por forma a que João não se desviasse do caminho que estava a trilhar. - E depois como é que desaparece o corpo?

- Então... a Leonor depois disse ao Leandro que eles tinham lá o corpo da menina aos pedaços e se a polícia lá fosse eles iam todos para a cadeia mais de vinte anos porque iam julgar que tinham sido eles... e eles ficaram com medo... levaram o carro para Espanha e nem esperaram nem nada que viesse o espanhol para fazer os fardos do carro para irem ser queimados...

A explicação de João fazia sentido, mas algo falhava até àquele momento nesta confissão. A ausência de explicação para não ter dito mais cedo que o corpo desaparecera nas fornalhas espanholas de carros de ferro-velho. Confronta João com isso.

- A gente combinámos que fazíamos assim e eles ajudavam a gente a dizer que a gente não fazia mal à menina, percebe? Tem aí um cigarrinho?

- Eh pá, João - diz Cristóvão colocando a mão direita na sua nuca -, estou a tentar perceber companheiro... estou a tentar... cigarrinho? Sim, está muito bem... eu também já fumava um...

Cristóvão não se esquece da componente formal do que acabara de ouvir e dá conta disso mesmo a João:

- João, agora já é tarde, mas amanhã chamamos a tua advogada para escrevermos isso tudo, está bem?

- Por mim tudo bem... já disse tudo... ’tá dito -João encolhe os ombros como se já estivesse seco por dentro e já nada lhe pesasse na consciência.

Finda esta conversa, ambos comeram duas sandes mistas trazidas por Marques Bom e um sumo. Parecia-lhes a maior iguaria do mundo. Ainda que o pão já estivesse duro, naquele momento era um manjar dos deuses. Depois do jantar improvisado, António e Carlos levaram o João ao EP de Olhão enquanto Cristóvão colocava Marques Bom, Leonel e Praxedes ao corrente de tudo que havia sido falado com João, ao longo de mais de oito horas juntos numa sala, de mãos dadas. A este propósito Marques Bom não deixou escapar a boca que se impunha:

- Estou desconfiado, Cristóvão... tantas horas de mão dada...

- Vai-te lixar, Marques Bom - responde sorrindo -, tinha de ser para não se escarafunchar todo outra vez...

- Eu sei, mano, eu sei - responde Marques Bom. - Era só brincadeirinha...

- Bem - diz Leonel -, amanhã depois de almoço estão cá os peritos do Laboratório e daqui arrancam com vocês dois - aponta para Cristóvão e Marques Bom - para fazer aquela diligência lá na casa, ok? De manhã formaliza-se o interrogatório ao João, ok Cristóvão? - Cristóvão faz sinal afirmativo com a cabeça. - Enquanto isso e à cautela o resto do pessoal vai vendo as listagens e os mapas dos poços não vá esta ser mais uma tanga dele - prossegue. - Se isto tiver pernas a andar temos que tentar comprovar tudo com a Leonor para ver se bate certo.

Dia seguinte. São nove da manhã. Cristóvão encontra-se sentado em frente ao computador de uma sala que lhe reservaram para a formalização do interrogatório ao João Cipriano. Apesar de o mesmo ter declarado que dispensava a presença de advogado até para este acto, Cristóvão e Leonel acharam por bem que a defensora oficiosa de João estivesse presente por forma a que não subsistissem dúvidas quanto à espontaneidade do que João diria, isto no caso de querer confirmar o que tinha dito na noite anterior a Cristóvão.

A advogada entrou na sala e sentou-se ao lado de João. Ele nem sequer olhou para ela. Parecia um menino envergonhado que foi apanhado a furtar um doce de uma loja.

Cristóvão iniciou a conversa dirigindo-se à advogada.

- bom dia, senhora Doutora. O que se passa é que aqui o João ontem à noite, numa conversa que manteve comigo, entendeu apresentar uma versão dos factos que, a meu ver, tem que ser plasmada nos autos, porque eventualmente será importante para o esclarecimento disto tudo. Entendemos que a formalização das suas declarações deveria ser acompanhada por um advogado. A senhora tem algo a opor?

A defensora, mulher com pouco mais de trinta anos de idade, bom aspecto, cabelos curtos loiros, pele branca e feições agradáveis bem definidas, olhou para João e disse-lhe:

- Quer falar?

- Pois quero - disse João ao mesmo tempo que balançava a cabeça em sinal afirmativo.

- Então pode começar, senhor Inspector - disse. Cristóvão começou a formular as perguntas e João ia respondendo exactamente como na explicação que adiantara no dia anterior. Notava-se na face da defensora um igual desejo de ver esclarecida esta situação, de também ela saber o que realmente se havia passado com a Joana.

Quando o interrogatório começou a aflorar as questões à volta do esquartejamento do corpo da Joana, Cristóvão olhou para a advogada e os seus olhos choravam. Chorava copiosamente. João mantinha-se impassível. Cristóvão entendia aquelas lágrimas. O imaginar o corpo de uma criança a ser esquartejado era muito mais do que muita gente neste mundo poderia aguentar. O polícia não se pode impressionar ou chorar, pelo menos em frente dos outros. O polícia chora e sofre sozinho. Os outros são os outros.

A dado momento Cristóvão pegou numa folha A4 na qual se encontrava um desenho de um homem, tipo o de Da Vinci, expediente normalmente usado pelos colegas dos homicídios para assinalar as lesões visíveis num cadáver. Colocou-o em frente de João e pediu-lhe para assinalar os locais e a forma como fez os cortes no corpo de Joana, segundo a sua versão. João entregou-se à tarefa de forma aplicada como um aluno que tenta obter a melhor nota da turma no teste de Português. Ia fazendo dois traços nas articulações dos braços; fez outro no pescoço e por fim dois outros nas articulações superiores das pernas. Por fim disse:

- Foi assim que fiz! - olhou para Cristóvão e para a advogada e voltou para a sua pose de menino envergonhado.

Cristóvão pediu-lhe que assinasse no canto superior direito daquela folha, acto precedido pela defensora de João que, sem conseguir parar de exibir as lágrimas que lhe caíam pelo rosto, igualmente assinou aquela peça processual. A certo momento, Cristóvão, apercebendo-se de que a advogada estava visivelmente transtornada, chama Marques Bom que a acompanhou ao exterior por uns minutos até que se recompôs e voltou para finalizar a sua assistência a João.

O interrogatório foi relativamente rápido. Não terá durado mais de uma hora, mas seguramente para aquela causídica terá sido o mais marcante da sua vida. Para Cristóvão eram com certeza os factos mais graves que já havia descrito num interogatório e tinha a plena noção de que por muitos anos que ainnda andasse na polícia, dificilmente faria algo semelhante.

 

O LADO ERRADO DA VIDA A CASA DOS HORRORES

São duas da tarde. Cristóvão e Marques Bom olham pela primeira vez para a casa para onde tudo acontecera. com eles está Teresa, especialista superior do Laboratório de Polícia Científica. Teresa tem trinta e cinco anos, concluiu o curso de medicina mas optou, por vocação, por aquela actividade seguramente menos bem remunerada. Era divorciada - o velho mal de quem trabalhava naquela casa - e bastante interessada pela matéria da Biologia. Com ela está Norberto, perito lofoscopista da nossa leva. Poucos anos na arte do pincel mas muita competência e também familiarizado com as questões de análises a cenários de crime violento.

Leandro e a irmã, Sara, também lá estão, cabisbaixos. No início da rua que dá acesso à casa estão mais de vinte jornalistas com câmaras de filmar e máquinas fotográficas. Todos esperam alguma coisa.

Entram na casa. Mal se abre a porta está-se na sala. No prolongamento desta, ao fundo, está uma kitchenette com balcão. Ao lado está a casa de banho. À esquerda de quem entra estão duas portas. A primeira dá para o quarto onde dormiam as crianças mais novas e também Leonor e Leandro. A segunda porta serve o quarto de Joana. Cristóvão pede a Leandro e a Sara que se sentem na cama de Leonor enquanto eles dão início à inspecção. À esquerda da porta encontra-se uma arca de frio vertical de cor castanha, com um metro e pouco de altura e uma única porta. Cristóvão deixa-a ficar para o fim, até porque convém manter-se com o frio ligado por forma a preservar eventuais vestígios.

- Bem... vamos lá começar então isto - diz Cristóvão ao mesmo tempo que vai calçando umas luvas de látex, acto em que é acompanhado pelos restantes elementos da Polícia.

Cristóvão entra no quarto de Joana. Tem duas camas, uma encostada à parede logo que se entra e outra mais afastada da porta. Chama Sara para o ajudar a entender o cenário:

- Diga-me, Sara, quem dorme nestas camas?

- Esta aqui é da Joana - respondeu colaborante, ao mesmo tempo que apontava para a da entrada - e esta aqui é onde dorme o Carlos - diz apontando para a cama mais distante da porta.

A ideia de que um adulto estranho à família dormiria no mesmo quarto que uma menina daquela idade não agradava a Cristóvão, mas também não deu qualquer sinal disso a Sara e continuou.

- Sara, você conhece o calçado da Joana, não conhece? O que é que falta aqui? - di-lo ao mesmo tempo que alinha vários sapatos, chinelas e botas junto à parede.

Sara era a melhor amiga de Joana. Não obstante ser mais velha, o facto de Joana ter muito mais maturidade do que a idade dela poderia sugerir, aproximava-as juntava-as e fazia de Sara a sua melhor amiga.

Sara olha atentamente para o calçado e diz que está ali uma chinela em borracha de cor de laranja mas falta o par dela. Só lá está uma chinela. Esta estava debaixo da cama da Joana e foi Cristóvão que, quando estava a juntar aqueles pares, a descobriu e a alinhou junto do restante calçado.

- Pois falta, Sara - diz Cristóvão enigmático. - Olhe, já agora, por acaso, esta não faz parte do par que vem lá escrito no cartaz? Roupa laranja e chinelas da mesma cor?

Sara, embora a pele morena, fica como que branca.

- Pois é - diz como se descobrisse a resolução de um enigma -, a Leonor disse que estas eram as que a menina tinha calçadas naquele dia e foi isso que eu escrevi no cartaz. Então por onde andará a outra?, diz Cristóvão para si mesmo começando a olhar à volta. Chega à ombreira da porta daquele quarto e vê os seus colegas a tentarem localizar vestígios biológicos, cada um com a sua função. O plano afastado dá-lhe visão para observar o que se encontra debaixo de um dos sofás da sala e observa aquilo que lhe parece ser uma chinela. É laranja. É a chinela que falta àquele par. Esteve aquele tempo todo debaixo do sofá da sala. A casa foi frequentada por dezenas de jornalistas. Muita gente entrou a saiu da habitação. Ninguém reparou que os chinelos referidos como aqueles que a Joana calçava naquele dia estavam precisamente lá em casa. Um debaixo do sofá e outro debaixo da cama dela. Primeira vitória.

Cristóvão volta ao quarto. Olha em volta e vê os velhos livros de escola que Joana usava. Um coração grande em cartolina vermelha dizia em letra muito bem desenhada: «AMO-TE MUITO MÃEZINHA - DIA DA MÃE 2004». Fora feito por Joana para Leonor no Dia da Mãe. Estão lá também numa pequena escrivaninha fotos da Joana na escola com colegas. Nota-se que a menina era organizada, metódica. Tratava livros que pareciam já ter passado pelas mãos de outras crianças noutros anos como se novos fossem. A caligrafia era bonita. As notas das professoras não eram más apesar do quadro familiar disfuncional e de ausência de valores em que vivera. Cristóvão sente que Joana seria do tipo de criança que, com as oportunidades certas, seria uma grande estudante, uma grande mulher e uma futura profissional competente em qualquer área que abraçasse. Nasceu no lado errado da vida. Pensava para consigo que não a mereceram. Merecias muito mais pequenita, - a frase encaixava no que via.

A total ausência de arrumação ou método naquela casa assim como a completa conspurcação do espaço diziam muito sobre os hábitos de higiene, ou ausência deles, das pessoas que ali viviam. A promiscuidade em que viviam três adultos e três crianças era por demais evidente. O polibã servia para amontoar roupa suja até cerca de um metro de altura. Não havia hábitos de limpeza.

Seguidamente Cristóvão junta-se a Marques Bom e Teresa numa missão que tinha como objectivo tentar reconstituir cientificamente a versão dos acontecimentos dada pelo João.

Com Leandro e Sara no quarto de Leonor, portas fechadas e uma manta tapando os vidros da porta de alumínio da entrada por forma a tornar o local o mais escuro possível, a casa foi passada a ultravioletas. O método permite identificar impressões, não visíveis a olho nu, assim como vestígios biológicos como esperma ou saliva onde quer que se encontrem.

Começam pela parede onde João diz que a Joana embateu com a cabeça e teria ficado inanimada. Quando Teresa percorre essa parede, mesmo junto à porta da rua exclama:

- Oh, meu Deus! - fixa uma zona com o foco daquela luz. Na parede vê-se distintamente a impressão da face direita de uma cara a cerca de um metro do chão. Um pouco mais acima e à direita está lá uma pequena mão - a direita também impressa. Continuando a descer observa-se uma outra - a esquerda - deixando um rasto que acaba junto ao rodapé. Terá sido o último movimento de Joana, pensam.

O que João disse é confirmado pela ciência. Tudo indica que ocorreu ali um embate violento contra aquela parede e depois a vítima desfaleceu.

Cristóvão recorda-se que João também havia dito que a certa altura Joana tentara fugir, mas que havia sido puxada para dentro por Leonor e depois por ele também. Era importante verificar isso da parte de fora da ombreira da porta da rua. Foi assim que improvisaram. Foram para o exterior e, com outra manta, cobriram-se, para espanto geral dos jornalistas presentes a mais de cinquenta metros. A luz ultravioleta fez a sua missão e identificou a localização das impressões de quatro dedos a uma altura de trinta centímetros do chão e outros quatro a cerca de vinte centímetros mais acima.

Estas impressões davam uma ideia clara de que a menina se havia agarrado à ombreira exterior enquanto lhe agarravam nas pernas para a forçar a regressar ao interior. Assim fazia sentido ter uma chinela das que calçava naquele dia debaixo do sofá a cerca de um metro e meio da porta. O quadro começava a fazer sentido e as palavras de João começavam a ser comprovadas de forma inabalável.

Teresa tem um problema.

- Agora temos aqui uma chatice - diz. - Como vamos fotografar isto? Precisávamos de uma lente bastante escura, tipo óculos de sol, para dar o contraste à foto   e a protecção à lente que se precisa ter... e como isto só é visível a ultravioleta, não sei...

Marques Bom, fazendo sempre uso do seu saudável sentido prático das coisas, ouve falar em «... tipo óculos de sol observa à sua volta, e constata que os quatro têm precisament’ óculos de sol consigo e diz:

- Está resolvido!

Foi assim de improviso e fazendo uso de desenrascanço disciplina tantas vezes usada na Polícia Judiciária, que enquanto Teresa segurava o foco da luz, Cristóvão e Marques Bom mantinham um equilíbrio precário de quatro pares de óculos sobrepostos sobre a lente da máquina fotográfica digital e Norberto ia tirando as fotos. Os resultados iam sendo vistos no pequeno monitor da máquina. Tiraram muitas fotografias. Acabada que estava esta parte do trabalho quase que exultavam de alegria, mas havia que manter a compostura e a contenção até porque estavam acompanhados de Leandro e Sara. Seguidamente as impressões foram delineadas com um lápis por forma a serem identificados a olho nu os locais onde se encontravam e a disposição que apresentavam. Foi feita outra reportagem fotográfica agora nesta modalidade.

Por cima da zona onde havia sido detectada a impressão da cabeça encontrava-se um interruptor de iluminação. Cristóvão desmontou o espelho que protege o equipamento e cuidadosamente entregou-o a Teresa. Esta fez-lhe um teste prévio e acusou sangue.

- Excelente - disse Cristóvão -, vamos mas é desmontar isto tudo.

Desmontou todo o mecanismo, separando os fios eléctricos e colocou tudo dentro de um saco. Sangue acima daquela zona era indiciador de algo.

Olhou para o sofá onde alegadamente João estaria a manter relações com Leonor e pediu a Teresa para fazer incidir a luz naquela peça. A especialista percorreu-a toda calmamente e em nenhum local foi detectado qualquer vestígio biológico. Cristóvão deu dois passos atrás, observou o sofá, imaginou alguém com uma esfregona a limpar um chão sujo de sangue e lembrou-se de que existe um sítio onde o sangue eventualmente poderia ter ficado impregnado, mesmo no caso de eventual rmoção, porque a esfregona jamais lá chegaria: a base das pernas em madeira do próprio sofá.

Juntamente com Marques Bom viraram o sofá. Teresa fez um teste químico prévio para detectar a presença de sangue e quando passou o cotonete naquela base que havia estado sempre em contacto com o chão e lhe misturou os componentes químicos, a cor que apareceu era rosa-vivo. Todos sabiam o que aquilo queria dizer. Sangue. As outras pernas não tinham nada. Somente aquela que era a mais próxima da porta da rua e que eventualmente poderia ter sido banhada por uma pequena poça de sangue.

Face a tudo aquilo, Marques Bom não se consegue conter a diz:

- Isto parece a casa dos horrores, companheiros. É sangue em todo o lado.

Os outros presentes nada dizem, mas concordam em absoluto. Quanto mais escavam na terra dos pecados, mais perguntas sem resposta encontram. Somente sabem que aquilo com que estão a lidar é mais do que inicialmente contavam. A adrenalina da descoberta fá-los manterem-se alerta a tudo e a todos os pormenores. Afinal estão ali para fazer uma inspecção total de forma a que não seja preciso lá voltarem nunca mais.

Teresa coloca outra questão:

Precisava de levar essa perna para o Laboratório mas como fazemos isso agora?

Como se faz? Oh, senhora Doutora - Marques Bom tá ao desenrascanço -, quer ver como se faz?

Ao mesmo tempo que falava Marques Bom arranca a dita perna com a ajuda de uma chave de fendas. Fá-lo pela base e com cuidado para não contaminar o objecto e entrega-o a Teresa.

- Ora aqui está! Siga.

- Se fossem todos assim desenrascados como vocês! Desabafa Teresa. - Há colegas vossos que estão mais preocupados com a mobília dos suspeitos que com a recolha de provas.

- Acredito - interrompe Cristóvão -, mas aqui se não gostarem podem sempre colocar-nos um processo. Adiante... Teresa, venha comigo por favor até ao quarto da menina e traga a luz milagrosa.

Cristóvão e Teresa entram no quarto de Joana. Fecham a porta. A cama dela apresenta uma colcha vermelha já bastante usada. A cama está encostada à parede pelo topo e encostada a outra parede na lateral esquerda, ficando os pés para a porta. Apagam a luz. Escuridão total. Teresa começa a passar o foco de forma metódica quase que como seguindo linhas invisíveis verticais e horizontais por forma a não ficar qualquer centímetro por analisar.

- Ora aqui está - exclama com voz bastante calma - e aqui também e puxa... aqui também? Ai meu Deus...

Era o segundo «Ai meu Deus» da Teresa, mas tinha razão de ser. Sensivelmente a meio daquela coberta eram por demais evidentes os vestígios de uma qualquer substância biológica que reagia à luz ultravioleta como sendo esperma. O mesmo acontecia no topo da cama ao nível das almofadas e na parede lateral também.

- Não me parece que seja o local mais próprio para se detectar estas coisas, não acha Teresa? - diz Cristóvão.

- Já não sei o que pensar disto tudo, Cristóvão - responde Teresa ainda meio atordoada pela descoberta.

Guardam a colcha num saco para ser levada para Lisboa, Teresa colhe amostras da parede para posteriormente tentar identificar que vestígios são aqueles e guarda cuidadosamente dentro de um envelope umas lascas de tinta que entretanto retirara. Seguidamente Teresa repete o mesmo procedimento com o ultravioleta no próprio colchão e descobre mais vestígios no tecido daquele. Confronta Cristóvão com nova contrariedade:

- Precisava de levar este bocado para análise mas não posso levar o colchão todo, não é? - diz, como se já soubesse o que iria acontecer a seguir.

- Não tem problema, Teresa, empreste-me o seu x-acto.

Cristóvão corta um círculo no tecido do colchão com aproximadamente quarenta centímetros de diâmetro e coloca-o dentro de envelope do Laboratório. Lembra-se de uma diligência que necessitava que Teresa fizesse e diz:

- Teresa, preciso que você envie os ditos carraços de que eles falavam, e que andavam por aqui, para um qualquer Instituto. É absolutamente necessário determinar o período de vida deles quando a esfregona e as lixívias acabaram com eles ok?

- Ok, Cristóvão. Assim será feito! - responde Teresa determinada.

As horas iam passando e a casa era esquadrinhada centímetro a centímetro. Tiraram toda a roupa do polibã por forma a que Teresa fizesse um pequeno teste ao sistema de evacuação de água para os esgotos para eventualmente detectar mais vestígios de sangue. Deu negativo. Aliás, aquele chuveiro não aparentava ser usado há muito tempo.

Cristóvão volta ao quarto de Joana, lembra-se de procurar as cuequitas da menina. Encontra um único par numa gaveta e pede a Teresa que passe o ultravioleta. Fecham-se no quarto de novo e é detectado aquilo que aparenta ser mais um vestígio biológico. Mais uma peça que é levada por Teresa para análise laboratorial em Lisboa. A especialista também leva uma escova de dentes, segundo Leandro e Sara usada pela Joana, e uma escova do cabelo para obter o seu perfil de ADN. O facto de não existir mais nenhum par de cuequinhas de Joana levanta suspeitas ao investigador.

Leandro e Sara iam dando sinais de impaciência, mas era fulcral que acompanhassem as diligências que estavam a ser levadas a cabo na casa. Leandro já havia fumado mais de dez cigarros. Dizia ter fome e que queria ir comer. Após diversas insistências Cristóvão disse-lhe:

- Olhe, Leandro, eu também estou a morrer de fome e cheio de vontade de ir fumar um cigarrinho, mas isto é mesmo assim, meu amigo. Estamos todos no mesmo barco, não estamos? Aliás, parece-me que o senhor Leandro já cá anda neste barco há mais tempo que eu e nunca se queixou, pois não?

Leandro terá entendido a mensagem. Mantinha-se atento a tudo o que lhe era possível observar dos procedimentos dos polícias e dos técnicos do Laboratório, até que Marques Bom lhe pergunta:

- Então, Leandro, o que acha disto tudo?

Leandro, que estava sentado na cama dele e de Leonor com Sara a seu lado, espera até acabar de expelir o fumo do cigarro que vinha de dentro de si e responde:

- Eu já não sei o que hei-de pensar disto. Não sei mesmo...

Cristóvão estava atento a esta breve troca de palavras. Leandro era um homem que evidenciava ter sido ultrapassado pelos acontecimentos. Algo lhe prendia a linguagem, os gestos, o olhar. Se o que o João tinha dito correspondesse inteiramente à verdade, Leandro ter-se-ia involuntariamente envolvido neste caso e confrontado com a hipótese de ser envolvido no homicídio da criança. Naquela situação gozara de poucos segundos para decidir o que fazer à sua vida. Denunciava tudo, entregando a companheira e o irmão dela à cadeia por muitos anos, ou, acovardava-se e entrava no jogo, esperando que tudo passasse e ninguém conseguisse provar nada contra eles e, logo, nada contra si também. Ele sabia que Leonor devia mais obediência a João do que a si. Actos sexuais entre a sua companheira e o irmão dela eram publicamente assumidos e curiosamente Leandro mantinha-se distante da teoria de aqueles dois se terem desfeito do corpo da menina após consumarem a morte dela. Havia inclusivamente uma espécie de solidariedade para com a companheira. Qualquer homem, sabendo de tal situação e pela vergonha pública que tal representava, pura e simplesmente abandonaria a companheira à sua sorte não querendo saber mais dela.

Algo Leandro sabia que fazia com que continuasse a visitar Leonor na prisão de Odemira. Para Cristóvão, Leandro sabia muito mais do que sempre dissera. Provavelmente, ele sabia que na realidade não houvera actos sexuais entre Leonor e João. Existia no processo uma cassete vídeo, de um vídeo-amador que, enquanto filmava as actuações dos grupos na Festa do Berbigão, começava, a dado momento, a abrir os planos de imagem para toda a gente que estava naquele ringue. Então aparece ali o próprio Leandro, encostado ao balcão do bar, bebendo uma cerveja. Teria sido naquela altura que ele teria ido à procura da menina àquela festa. Cristóvão já havia visionado as imagens que em bom tempo foram recolhidas pelos colegas de Faro. Observava-se Leandro, não à procura de quem quer que fosse, mas sim cabisbaixo junto ao bar, quieto, olhar fixo no chão, triste. Quando foi àquele local, ele já não ia à procura de ninguém. Foi lá porque foi. Foi lá porque sim, foi porque tinha que dizer que tinha lá ido procurar a Joana. Aquela não era a postura de quem estava desesperadamente à procura de uma criança. Para Cristóvão, aquela era a postura de um homem derrotado, que já sabia o que havia acontecido à Joana e que precisara de tirar uns momentos, à sua maneira, para pensar no que decidir. O polícia acredita que Leandro estava genuinamente triste. Não havia teatro ali. Ele gostava dela como se de uma filha se tratasse. Ela chamava-lhe «Pai» e ele talvez fosse o último refúgio de Joana. Ele não tinha estado lá para a defender e de alguma forma isso corroía-o por dentro. Leandro não é homem para grandes considerações sobre a existência. Vive o dia-a-dia. Sobrevive. Trabalha num negócio gerido pela mãe e pelo padrasto. A sua vida é relativamente simples. Sucata, cafés, beber umas cervejas, uma ou outra vez fumava a sua ganzá, mas não era homem violento. Gostava da menina como dizia. Era genuíno quando o dizia. Tomou uma má decisão, mas também não lhe deram muito tempo para pensar. Foi colocado perante factos consumados e a sua capacidade de sobrevivência fez-lhe ver o caminho mais fácil naquele momento. Adaptar-se e sobreviver. Foi isso que fez. Não era isso que faria dele um criminoso ou um homem mau. Cristóvão pensava que, mais adiante no processo, teria de ter uma conversa com o Leandro demonstrando-lhe isso mesmo. Que não iria para a cadeia por eventualmente se ter envolvido na ocultação de um cadáver. Seria conversa para mais tarde. Lá mais para a frente.

Após mais de cinco horas fechados naquela casa, a saída para o exterior sabia bem. Os jornalistas acotovelavam-se para tirar a melhor foto de Leandro e Sara. Talvez pensassem que seguissem ali dois bárbaros criminosos, mas não. Eram somente uma jovem de dezasseis anos que era a melhor amiga da menina e o seu padrasto que, por acaso, seria a pessoa que naquela casa gostaria mais dela.

A arca frigorífica foi propositadamente deixada para trás. Mais tarde, e longe do alarido da comunicação social, providenciar-se-ia o transporte daquele. electrodoméstico porque não havia hipótese de o tirarem da casa sem que fosse visível tal diligência. A comunicação viajava mais depressa que a luz e poderia Leonor ou algum dos seus familiares terem conhecimento da apreensão da arca e formularem uma qualquer hipótese adicional ou adaptada ao que fora apreendido. Marques Bom somente perguntou a Leandro se «lá para a noite» estaria disponível, se fosse preciso, para falarem um pouco. Leandro anuiu. Marques Bom ficou assim a saber que no período nocturno poder-se-ia recolher a arca discretamente.

Chegados a Faro, acompanhados de Leandro e Sara, Cristóvão e Marques Bom estão cansados, com fome e sede, mas contentes. Sentem que foram efectuados avanços importantes.

Leonor está na sala das entrevistas com Leonel. Está naquela postura de tronco curvado para a frente, cotovelos apoiados nas pernas e olhos fixando o chão. Tem um maço de cigarros perto de si e Cristóvão compreende que Leonel já lhe dera uma prenda. Na sala ao lado estão António, Carlos e Praxedes fazendo as suas análises.

- Senhor Leonel de Marques - provoca Cristóvão -, dá licença que estes humildes servos comam qualquer coisinha?

- Oh, meu caro amigo, hoje o meu amigo merece comer caviar - responde Leonel a rir.

- Pois, mas hoje terão mesmo que ser uns salgadinhos... - diz ao mesmo tempo que faz sinal a Leonel que Leandro e Sara estão no corredor também.

Pouco depois chegam ao Departamento a mãe de Leandro, o marido dela e o Carlos. Todos haviam sido chamados para prestarem declarações complementares às iniciais. Cristóvão e Marques Bom atravessam os corredores e, vendo aquela gente toda, comentaram entre si:

- Hoje para não variar é até às tantas - diz Cristóvão.

- É para a desgraça, companheiro - graceja Marques Bom. - Tu agarra-te mas é à tua namorada que ela gostou muito de ti...

- Porra! - indigna-se Cristóvão ao mesmo tempo que bate três vezes com os nós dos dedos numa porta de madeira pela qual passavam.

 

A VERDADE DA MENTIRA - POLÍCIAS

São nove e meia da noite. Cristóvão e Marques Bom saem do pequeno café que fica junto ao Departamento e preparam-se para o que tudo indica ser mais uma noite de cansaço, trabalho e mentiras de alguns contra as verdades de outros tantos. Esta coisa de o polícia viver constantemente com a mentira ao pé da sua porta deixa marcas nos traços de personalidade de qualquer um. Ser bom polícia é ouvir as mentiras impávido e procurar a verdade. Ser um excelente polícia é ouvir as mesmas mentiras e fazer exercícios de detecção de meias verdades no meio das mentiras. Mesmo de forma inconsciente, qualquer criminoso, profissional ou de circunstância, sabe que qualquer mentira, para subsistir no tempo e ser levada a sério, tem que estar, aqui e ali, polvilhada por uns grãos de verdade. É isso que dá consistência à mentira. É a verdade circunstancial que sustenta o edifício construído na base da não-verdade. Esse jogo estava a ser jogado há mais de um mês. João, Leonor, Carlos, Leandro, os pais dele, eram todos jogadores. Uns tinham mais a perder que outros, é certo, mas todos jogavam com as palavras. Todos queriam, de uma ou outra forma, fazer com que a sua situação não fosse tão má como poderia efectivamente vir a ser. Ninguém se aventurava a apontar o dedo a qualquer um dos outros. Quando se perguntava a alguém o que achava do que havia sucedido, todos, à excepção de João e Leonor, se mostravam optimistas. Todos diziam que a «menina há-de aparecer bem de saúde». Pois claro que sim, pensava Cristóvão para consigo. Obviamente que a menina um dia vai aparecer e vai ser graças aos esforços desenvolvidos por tão extremosa família.

Quando o polícia está perante a mentira descarada de quem num minuto lhe diz uma coisa e, no outro seguinte, lhe diz outra completamente diferente, a sanidade mental tem que ser mantida. João e Leonor em muitas ocasiões assim agiram e quem os ouviu talvez não tenha buscado a meia verdade oculta no meio de tanta mentira dita pelos dois.

Estes irmãos tinham traços de psicopatia. A dada altura acreditavam efectivamente no que estavam a dizer. Cristóvão compreende que o último mês nas vidas deles havia sido confuso. No caso de Leonor passou da mãe chorosa para a mãe homicida, com uma nação inteira a pedir a sua crucificação. João foi pelo mesmo caminho, embora o seu protagonismo somente começasse nos célebres passeios pelos campos com a polícia. A dado momento terá achado que se se fizesse passar por inimputável em razão de qualquer anomalia psíquica, poderia escapar à punição. Muito do que fez e disse foi encenado. Friamente encenado. Muito do que a sua irmã disse foi igualmente encenado e orquestrado por João. Leonor seguia-o sem grande dificuldade aparente.

A mentira. Sempre a mentira. A verdade confundia-se com a mentira nestes dois. O desafio para estes polícias era só um. Até onde dois seres, aparentemente colaborantes e dialogantes com o aparelho judiciário, iriam levar a sua mentira? E Leonor? Quando fosse colocada perante evidências, provas científicas de que mentira, o que iria fazer? Fechar-se? E se chegasse a ouvir o que João dissera a Cristóvão e assinara? Que diria? Chamar-lhe-ia mentiroso? Gritaria?

Toda esta envolvência, todas estas variáveis fascinam o investigador. O jogo tem riscos mas é disto que vive a verdadeira investigação criminal. E dos avanços e recuos. Ninguém é obrigado a confessar nada ou sequer dirigir a palavra aos polícias. Diz-se o que se quer dizer e o polícia tem que ter a capacidade de saber interpretar o que se diz nas entrelinhas. O que os olhos falam. Eles nunca mentem. As mãos não mentem. Tudo o resto pode transpirar mentiras. Só os anos dão o calo ao investigador para saber distinguir entre aquilo que lhe soa bem ao ouvido e aquilo que realmente é a verdade.

Efectivamente a mentira consome a alma de quem a ouve constantemente. Faz do polícia um ser permanentemente desconfiado em relação a tudo e a todos. O polícia que entra para a instituição é igual a outra pessoa qualquer. Tem defeitos, virtudes, maiores aptidões para umas coisas e menores para outras. São pessoas normais. Aqueles que trabalham com a criminalidade violenta vão-se tornando seres cristalizados, imunes, desconfiados, assertivos, frios.

Costuma-se dizer que o polícia é o filtro da sociedade. É ele que tem que lidar com o lado negro da existência. E a ele que cabe servir de tampão entre o caos generalizado e a ordem ou repressão do crime. É ele que mantém contidos os níveis de ordem da civilização. Ninguém quer saber do polícia até ao momento em que precisa de um. Cristóvão viu, ao longo dos anos, muita gente que, perante uma situação de necessidade pontual, caía da sua altivez de gestor público, político reconhecido nacionalmente, magistrado e outros, para ficarem à disposição daquele simples e singelo... polícia. Por nada mais que a necessidade daquele momento. Quantas vezes o polícia não se sente usado e descartado logo a seguir? Muitas. Demasiadas.

Então e se tudo isto é verdade e acrescentarmos, a cada um destes homens e mulheres, a hipoteca da casa, a prestação do carro, as despesas com os filhos mais as pensões alimentares deles em muitos casos, o afastamento de quem se gosta e com quem se quer estar, os cônjuges que muitas vezes não compreendem (nem têm que compreender) a vida e a vivência sui generis do polícia, as crispações, as discussões, a má remuneração, o excesso de fio da navalha, as horas, as noites, a má alimentação, a saúde que vai depressa... enfim... estaremos ou não perante uns milhares de loucos? A resposta é definitiva e concreta. Não estamos, não. O polícia, o verdadeiro polícia, é somente diferente. Dá o corpo às balas disparadas pela mesma sociedade que dias antes o elevava à condição de Deus. Não pretende dinheiro. Pretende reconhecimento. Contínuo e sincero. Isso basta ao verdadeiro Polícia.

Ele nunca se apercebe o quão especial é e quanta falta faz. Os verdadeiros milagres que, dia a dia, milhares desta raça vão fazendo por esse país fora, nunca são reconhecidos ou alvo de romarias. É o trabalho deles, diz-se. Pois é. É o trabalho deles, mas o que não falta é exemplos nesta nação de quem deveria fazer somente o seu trabalho e definitivamente não o faz. É essa a diferença do polícia para os outros. Quando não faz o seu trabalho ou o faz mal, todos discutem e opinam sobre o trabalho do polícia. Ele limita-se a fazer o melhor que pode e sabe, tantas vezes em seu prejuízo pessoal. E cala-se.

 

LEONOR - A VERDADE DE MÃE

Cristóvão toma o lugar de Leonel. Está sentado em frente a Leonor. Lá fora nos corredores há barulho, ouvem-se vozes de fundo, há movimento. A família toda junta. Faz falta um elemento e é dele que vão falar. Leonor olha à volta, como já deveria ter olhado quando falava com Leonel. Vê as várias fotografias da filha. Não se lhe nota uma lágrima. Não se vislumbra um resquício de arrependimento seja pelo que for. É Leonor como ela própria é. Uma mulher narcisista, desprovida de sentimentos pelo próximo, alheada da dor alheia. Não tem culpa, se calhar. Foi a vida, foi o destino ou o Fado que cada um carrega consigo. Terá sido qualquer coisa, mas, se o mundo nos molda, porque é que não fazemos um bocadinho de força para que mudemos também o Mundo à nossa volta? Esta questão assolava a cabeça de Cristóvão quando Leonor começou a falar:

- Eu já disse ao outro senhor que já tinha dito tudo... não sei de mais nada...

- Ok, tudo bem, Leonor. É como a senhora quiser. Tenha calma, vai um cigarrinho? - Cristóvão reparara que o maço que ali se encontrava antes já estava vazio.

Pela segunda vez Leonor retira dois cigarros de uma só vez.

- Mau - sorri Cristóvão -, isto é que é uma vida, hein?

- Tem que ser...

Estavam assim cordialmente quando Marques Bom bate à porta e pergunta a Cristóvão se pode deixar ali o João um pouco porque tinha uma coisa muito urgente para fazer.

Cristóvão estranhou o pedido até porque se havia coisa que não faltava ali eram polícias e salas, mas não se desmanchou, porque desde o início acreditou que se tratava de um qualquer esquema de última hora. João entrou e sentou-se ao lado de Leonor. Era a primeira vez que os via lado a lado. Nenhum deles olhava para o outro. Ambos estavam encostados a uma parede de pladur que separava esta da sala contígua e Cristóvão estava de frente para essa parede.

Passados poucos segundos Cristóvão recebe uma mensagem escrita no telefone. Era Marques Bom e dizia: Inventa uma desculpa e diz que tens que sair uns momentos e voltas já. Vem aqui ao lado ter com a gente.

Cristóvão mantém-se sereno e, virando-se para os irmãos, diz:

- Peço muita desculpa, meus amigos, mas tenho que ir despachar uma coisa urgente... Vocês só me dão trabalho ri para eles. - Portem-se bem e juizinho, volto já - disse, enquanto lhes apontava o dedo indicador direito. Saiu da sala e fechou a porta atrás de si. Entrou de imediato na sala ao lado e deparou-se com Leonel, Marques Bom, António, Carlos, Praxedes, Gonçalo e mais uns quantos, todos a disputarem um pequeno espaço junto a uma placa de pladur. Marques Bom havia retirado a segunda placa e somente uma espessura com pouco mais de um centímetro separava os ouvidos daqueles polícias das bocas de João e Leonor que, no outro lado estariam a pouco mais de um palmo.

Cristóvão pensou para si mesmo:

Polícia científica do século XXI.... escutar atrás das paredes, sim senhor. E foi com dificuldade que conteve o riso Do outro lado ouviu-se Leonor:

- E agora? Como fazemos?

- Diz-se que foi um espanhol que levou a menina sussurra João.

- Um espanhol... - Leonor fala como se’ não entendesse o que João lhe estava a tentar transmitir...

- Sim, merda... sem corpo ninguém vai preso... - diz João irritado, mas sempre sem perder o tom de sussurro.

- ’Tá bem... - concorda Leonor.

Nem mais uma palavra trocaram e assim ficaram. João em nenhum momento disse a Leonor o que havia declarado perante Cristóvão e a advogada. Estaria a tentar ganhar vantagem em algum eventual benefício futuro na medida da pena?

Passados alguns minutos, Cristóvão entrou novamente na sala e Marques Bom saiu com João. Sentaram-se novamente em frente um do outro. Cristóvão e Leonor.

O instinto. Sempre o instinto. Cristóvão via Leonor confiante. A miniconversa com o irmão rejuvenescera-a. Parecia que tinha estado de férias tal a confiança que saía do seu olhar e da sua postura. O instinto do polícia diz-lhe que não vale a pena recomeçar com os jogos de palavras porque as «baterias estão recarregadas». Tinha para um ou dois dias de conversa da treta e isso não é opção. Confia, como em tantas ocasiões, que se a confrontar com factos isolados, mas factos e não suposições, talvez vislumbre em Leonor uma reacção que confirme o que já tinha sido apurado e relatado pelo irmão dela. Sabe que é um jogo perigoso que se pode virar contra si se disser coisas que não são verdade e por isso assume um risco calculado em que somente lhe dirá o que sabe ser certo. Faz-se silêncio e de repente Cristóvão atira:

- Posso contar-lhe uma história, Leonor?

- Pode... eu gosto de histórias - via em Leonor altivez e arrogância como nunca lhe vira.

- Então é assim, Leonor. O que será isto? Uma menina que sofre muito mais do que deve alguém inocente sofrer. Uma menina que não pediu para vir a este mundo. Uma menina que não tem culpa da merda de família onde veio calhar. Uma menina muito visitada na sua cama por quem não devia lá estar. Uma menina que usa cuecas sujas com coisas de outros. Uma menina que é atirada contra uma parede e deixa as suas marcas lá. Uma menina que tenta fugir agarrando-se à ombreira da porta enquanto a mãe querida e o tio a puxam para dentro. Uma menina que por acaso até amava essa mãe querida e lhe fazia corações em cartolina. Uma menina que às três e quatro da manhã ia comprar bolos à fábrica na Figueira porque a mamã não levantava o cu e a mandava a essa hora porque gostava de bolinhos quentes. Uma menina que deixa lá em casa as chinelas que a mamã disse que calçava no dia em que desapareceu. A tal menina que agora foi para Espanha levada por um tipo qualquer.

Leonor não se contém e descamba em lágrimas e soluços. Cristóvão não sente qualquer necessidade de parar e sente-se agora como a voz não só da Polícia, do Ministério Público, dos Juizes ou sequer do Estado. Sente-se o porta-voz de todas as pessoas que têm escrúpulos. Mais que o Direito Processual Penal, estava ali em causa algo que tinha a ver com a sociedade toda. Continuou:

- Uma menina que por acaso é sua filha, Leonor. Não lhe resta um pingo de mãe?

Leonor está em crescendo emocional. Foi como se o mundo lhe caísse em cima ou acordasse agora de um qualquer pesadelo e o confirmasse depois de acordada.

- Foi o filho da puta do Leandro... Esse cobarde de merda que até tinha medo de mexer nos sacos... borrava-se de medo... Esse merdas desse Leandro... - gritou.

Cristóvão começava a pensar que Leonor estava convencida de que Leandro tinha aberto a boca mas não contrapôs e prosseguiu:

- E depois, Leonor? Que acontece a seguir a isto tudo que lhe disse?

As perguntas tinham que ser suficientemente largas para que, havendo uma qualquer resposta, a mesma fosse crível. Não se podia direccionar sob pena se cair nos mesmos erros.

- Depois o João cortou a menina! - diz Leonor num choro compulsivo.

- Sim, e depois? - continua Cristóvão.

- Depois... depois.... o João meteu-a no frigorífico.... eu vou acabar com isto tudo... eu vou-me matar... filhos da puta, não me levam presa...

Mas presa já estás, Leonor, pensa Cristóvão para consigo. Era evidente que aqueles minutos haviam sido demolidores para Leonor e o polícia acreditava agora que havia luz ao fundo do túnel. Tinha sido demasiado intenso para não ser verdade. Acreditava, por tudo o que ouvira, analisara, correlacionara e concluíra, que a Verdade andaria por aqui. A Mentira desta vez estava em desvantagem. A ameaça de Leonor foi levada a sério por Cristóvão. Se o que ela acabara de dizer era verdade, então era provável que todo o seu narcisismo desse lugar à autodestruição. A vergonha pública de ter participado em tais actos seria demasiado pesada para ela comportar.

- E agora, Leonor, que se faz? - pergunta Cristóvão.

- Quero pedir desculpas à menina - responde Leonor em pranto.

- Olhe, ela está aqui nesta sala, por todo o lado, se quiser fale com ela à vontade - disse Cristóvão enquanto olhava para as várias fotos de Joana espalhadas pela sala.

Leonor fixa uma das fotos, levanta-se, dá dois passos em direcção da mesma, pára um segundo e ajoelha-se.

- Filha, desculpa a mãe. A mãe não te queria fazer mal. A mãe não queria... - irrompe em nova crise de choro.

Cristóvão chama Marques Bom e informa-o do que se passara naquela sala. A conversa com Leonor acabou. Talvez no dia seguinte se possa fazer como no caso do João. Vem um advogado e, se ela quiser, fala-se do que ambos conversaram. Marques Bom leva Leonor para outra sala e Cristóvão redige uma Informação de Serviço, relatando a conversa que mantivera com Leonor. Sabe que não tem qualquer efeito probatório, mas os interrogatórios também não têm e não obstante são levados a cabo todos os dias. Era a verdade do que se passara e como tal tinha que ser escrita num papel. O valor dela era aquele que lhe quisessem dar. Valia o que valia. Nem mais nem menos. Relata os pontos essenciais da conversa e conclui informando que Leonor fizera menção expressa de cometer suicídio, e solicitando que fossem os Serviços Prisionais informados disso mesmo e tomassem as medidas julgadas necessárias para impedir ou, pelo menos, diminuir esse risco.

Cerca de uma hora depois e estando a acabar de redigir a Informação, ouve gritos provenientes dos corredores:

- Pára, caralho!

Parecia-lhe a voz de Marques Bom, mas como nunca a ouvira antes. Nervo. Histerismo. Gravidade.

Saltou da cadeira e naquele milésimo de segundo pensou que João estaria a tentar fugir. Associou aquele «pára» a João a correr pelos corredores. Cristóvão saiu da sala a correr, percorreu o corredor e chegado ao patamar das escadas viu Marques Bom de cócoras junto a Leonor e António sentado no chão no patamar intermédio entre os dois pisos.

Gonçalo vinha pelo lado contrário e confluíram para o patamar quase em simultâneo.

Leonor estava desarranjada, sentada, encostada à parede e tinha a mão direita na cabeça. Marques Bom gritava-lhe:

- Sua estúpida do caralho. Esta merda faz-se? António estava branco, sentado ao lado de Leonor e quase não conseguia articular uma frase.

- Olha se esta gaja se mata... se esta gaja se enfia por aquela merda - dizia olhando para o fosso entre vãos de escada, que atravessa verticalmente todo o prédio.

Instintivamente Cristóvão deu dois passos em direcção ao fosso, olhou para baixo e viu que para além dos dois andares acima de terra ainda havia mais a cave, o que faria com que uma queda dali fosse fatal.

Gonçalo está atónito com a cena.

- Mas o que se passou, caraças? - perguntou Marques Bom responde visivelmente irritado e nervoso, como nunca o vira e falando como se Leonor não estivesse a seu lado.

- Esta estúpida do caralho pediu para ir à casa de banho e a gente não foi com ela lá para dentro, não é? Estávamos aqui fora no paleio à espera que a excelência saísse quando abre a porta e vai a correr para se atirar para o fosso. Ainda me diz que ia acabar com isto... vai acabar com ela mas é para o caralho que a foda lá para a terra dela... só deu tempo para lhe dar uma palmada e ela enrolou-se pelas escadas abaixo...

António parecia ainda em estado de choque e quase não se mexia da posição de sentado ao lado de Leonor.

Os quatro estão junto de Leonor e perguntam-lhe como está, se sente alguma coisa partida, se é preciso chamar uma ambulância. Leonor levanta-se sem ajuda e começa a falar:

- Desculpem lá isto... desculpem...

- Desculpa mas é o caraças! - diz Marques Bom ainda transtornado. - Vais mas é para a cana e mata-te lá...

- Onde está o Leonel? - pergunta Cristóvão aos presentes.

- Eh pá, o Leonel foi à Figueira juntamente com o Carlos e também com o Leandro... foram lá buscar a arca frigorífica...

- responde Marques Bom.

- Metam-na numa sala e não tirem os olhos dela. Quando chegar o Leonel, dois de vocês levam-na para Odemira e não há mais conversa com ela - diz Gonçalo.

- Bem, agora é que a Informação que redigi faz mesmo sentido, senhor Coordenador - diz Cristóvão enquanto lhe agarra num braço como que o convidando a ir à sala onde já tinha sido impressa aquela peça processual.

Gonçalo lê o texto e diz:

- Então ela confirmou, não foi? O frigorífico? Porra!!! O resto? Ela não disse que se queria matar? É verdade, não é?

- Exactamente - responde Cristóvão. - Só não pensei que esta merda acontecesse logo aqui, caraças.

- É a puta da vida do polícia, Cristóvão. Se é verdade, estamos descansados. Os outros que pensem o que quiserem.

- Ok, então é só eu assinar e levar isso a despacho a si ou ao Director para ser junto ao processo.

Cristóvão assina a Informação e entrega-a a Gonçalo.

Já passava das duas da manhã e de todas as pessoas que foram inquiridas naquela noite no Departamento somente Leonor ali se encontrava, agora permanentemente acompanhada de um elemento da Polícia e tendo sido afastados de si todos os objectos que lhe servissem para se automutilar.

O grupo está todo reunido com Leonel e Gonçalo, à excepção de Praxedes que está a fazer companhia a Leonor. O velho polícia, uma vez ao corrente do que sucedera, fica preocupado:

- Olhem se esta gaja morre quando está à nossa guarda, caraças. Porra. António e Carlos - olha para ambos -, vão lá levá-la e informem o que se passou, e elas que tenham cuidado com isso.

- Bem - diz Cristóvão -, agora é que a senhora irá ter

toda a atenção do Corpo Directivo.

 

ODEMIRA

São cinco da manhã. Cristóvão recebe um telefonema de António dizendo que Leonor apresentava um inchaço na cabeça que havia piorado de aspecto ao longo da viagem entre Faro e Odemira. Leonel está a dormir, mas para a diligência que se impõe não é preciso a autorização de Leonel. Basta bom senso.

- Eh pá, se está assim, vocês levem-na é ao Centro Médico daí. Deve ter serviço permanente. Eles que a observem e depois digam qualquer coisa.

António e Carlos entram no Centro Médico de Odemira já passam das seis da manhã. A recepcionista de serviço reconhece imediatamente Leonor. Não está ninguém à espera e a presa entra logo para o gabinete do médico. António e Carlos esperam no exterior.

Cerca de vinte minutos depois são chamados pelo médico que lhes diz que a Leonor teria feito um ligeiro traumatismo e que deveria ficar em repouso por forma a que o sangue pisado não descesse para a zona dos olhos, mas sim para a zona da nuca onde não seria visível e mais facilmente diluído. A lei da gravidade também se aplicava a este caso. Receitou uns analgésicos e desejou as melhoras a Leonor.

António e Carlos, com Leonor no banco traseiro do carro, deambularam pela vila até encontrarem a farmácia que se encontrava de serviço. A receita foi aviada e dali seguiram para o Estabelecimento Prisional onde, uma vez chegados, foi António quem relatou à guarda de serviço tudo o que havia ocorrido com Leonor e as cautelas que deveriam manter para salvaguardar a sua integridade.

No dia seguinte ninguém consegue estar de pé antes das dez da manhã. Mesmo assim muitas horas de sono já estão em atraso. Cristóvão adormeceu e acordou a pensar nos resultados dos testes de Teresa, mas sabe que, para que aquele tipo de análises sejam bem feitas, o tempo é importante. Combinam entre todos que às onze deveriam reunir para compilar e discutir tudo o que fora feito, cruzar todos os elementos obtidos e determinarem o que mais se poderia fazer em termos de recolha de provas.

Está o grupo reunido com Gonçalo e Guilhermino no Salão Nobre quando Gonçalo é chamado com urgência ao Piquete. Nada de estranho, pensam os presentes. O Piquete é mesmo assim. Tudo pode acontecer.

Gonçalo volta cerca de dez minutos depois e a sua cara denota preocupação. Coloca as duas mãos abertas sobre a mesa oval, inclina o corpo ligeiramente para a frente, mantendo-se de pé, e diz:

- Sabem a melhor? Recebemos agora no Piquete uma chamada anónima de uma senhora que disse que na Prisão estão a convencer a Leonor a dizer que nós lhe demos uma tareia. A nossa anónima disse também aquilo que a gente já sabia pela Leonor. Que ela se enfia na cela com a presa para ver se obtém informação da Joana ou uma merda qualquer assim...

Os presentes entreolham-se incrédulos. Sabem que estas coisas fazem parte da vida do polícia. São os riscos da profissão, mas nunca ninguém está verdadeiramente preparado para elas.

- E agora, o que fazemos? - pergunta Carlos.

- Agora trabalhamos, caraças - diz Leonel ao mesmo tempo que bate com a mão no tampo da mesa. - Essa senhora que invente o que quiser e depois cá estaremos para ela, mas agora temos é que trabalhar, sua cambada de calões - sorri.

- Só nos faltava esta merda agora - diz Cristóvão. Uma psicopata e uma outra senhora que vou aguardar mais um bocadinho para qualificar... Aliás, algo moverá essa senhora para fazer o que está a tentar fazer, isto se estivermos a falar sobre uma base verdadeira, não é?

- Que se lixem as duas. Vamos mas é ao trabuco que se faz tarde - diz Marques Bom.

- A nós, quando a entregámos e contámos o que se passou, as guardas que lá estavam pareciam ter-nos entendido. Agora o que se passou depois lá não sei, sinceramente - esclarece António.

- Ou muito me engano ou isto ainda vai dar muito que escrever - adianta Leonel como que recuando momentaneamente na posição optimista -, mas de qualquer maneira já sabem que nesta vida de funcionários principescamente pagos - ri-se - há sempre um cantinho reservado para as filhas das putices...

Cristóvão sente necessidade de rematar aquela conversa.

- A estrada que aqui nos trouxe é aquela que nos vai levar, companheiros. Tudo o resto é conversa. Desde cedo que já sabíamos que nos íamos meter numa alhada, não era? Uma coisa vos garanto. Esta Joanita nunca pensou ser tão importante. Vocês já viram a quantidade de poisos que estão dependentes desta miúda? A quantidade de gente mal parida que espera vir a ser o salvador da coisa? Agora aquela senhora cujo nome nem quero saber anda a ver se nos faz a cama? A propósito do quê e de quem, caraças? Alguém se lembrou de participar dela à Direcção-Geral? Foi o deixa-andar e depois levamos com estas e cheira-me que ainda vamos levar com outras, mas tudo bem. Vamos mas é ao trabalho que se faz tarde.

 

OS REIS DA SUCATA

Dividiram tarefas entre todos, cabendo a Cristóvão e Leonel irem falar com Carlos, o padrasto do Leandro. Depois de ter estado a ser inquirido na noite anterior, este tinha ligado para o Departamento dizendo que queria falar com os «senhores de Lisboa». Aquela abordagem era estranha, mas ao mesmo tempo suscitava curiosidade nos polícias.

O Sol estava no pico quando Cristóvão e Leonel chegaram à sucata da família de Leandro na Mexilhoeira. Também queriam aproveitar para discretamente observarem aquele local, o número de veículos para abate, as condições do terreno envolvente, a zona onde estava inserido o negócio. A área tinha razoáveis dimensões e contavam-se pelas dezenas os veículos velhos prontos para serem enfardados e levados para Espanha. Existiam autênticas pilhas de automóveis colocados uns em cima dos outros. Carlos vê-os e dirige-se-lhes. Aparenta estar ansioso:

- Boa tarde, como estão os senhores?

- Muito bem, obrigado, mas diga-me lá, o que nos traz aqui? - atalhou desde logo Leonel.

- Bem... queria falar com vocês sobre aquilo da miúda...

- Não duvido, senhor Carlos - diz Cristóvão -, nem acreditávamos se fosse falar connosco para nos vender uma sucata destas.

- Sabem... tenho algumas informações... não sei o que valem mas tinha que as dar...

- Muito bem, estamos aqui para ouvi-lo – continua Leonel em tom sério.

O interlocutor dos polícias fala baixo, embora não haja necessidade disso. Afinal só ali estão os três no meio da sucata. Cristóvão repara na mãe de Leandro que os observa ao longe dentro de uma roulote que em princípio funcionaria como escritório.

- Parece que terá havido uma venda da menina - continuou -, ou foi levada por um tipo qualquer espanhol que andava por lá.

Cristóvão e Leonel olharam um para o outro tentando não demonstrar qualquer expressão que revelasse a Carlos o que estavam a pensar. Depois de tudo o que já conheciam, aquela conversa sabia-lhes a arroz requentado. A mais do mesmo. A diferença é que se suspeitas havia que colocavam esta pessoa como provável conhecedor de mais factos do que aqueles que relatara, agora haviam-se convertido em quase certezas. Cristóvão entra no jogo e eleva a fasquia:

- É capaz de ser uma possibilidade, senhor Carlos, mas diga-me, como é que soube tão relevante informação?

- É o que nós achamos, está a ver? - responde Carlos.

- Pois sim - diz Cristóvão -, é uma possibilidade essa da venda da menina a um espanhol ou então de ter sido raptada por um espanhol... nestas coisas nunca se sabe, não é?

- Pois, pois, e o que é que vocês acham disto tudo? Eu já não sei o que pensar... fala-se em tanta coisa, que a menina foi deitada aos porcos... sei lá... já não sei o que pensar e agora vêm com suspeitas para cima de nós e a minha mulher, que é uma santa senhora, qualquer dia dá-lhe qualquer coisa má... já nem sei... ela anda transtornada com isto tudo... depois vocês levaram aquelas coisas lá da casa deles... e a minha mulher anda cheia de vergonha... nem consegue olhar as pessoas nos olhos, e coitado do Leandro no meio disto tudo... o que acham disto?

Carlos não podia ter ido bater a pior porta para mandar recados ou passar mensagens subliminares. Era evidente para aqueles dois polícias que lhes estava a ser passada uma versão que podia ser qualquer uma, desde que não incluísse a mãe de Leandro e, por arrasto, o interlocutor deles. Já tinham visto a senhora em diversas ocasiões na televisão. A impressão que lhes dava, juntamente com aquelas imagens recolhidas junto dos colegas que privaram mais com Leandro, é que a senhora em questão era uma verdadeira matriarca. Exercia efectivo ascendente sobre os restantes membros da família e isso era naturalmente aceite por eles.

Carlos tinha uma personalidade menos expansiva e talvez mais submissa. Leonel e Cristóvão estavam com a sensação que entre a roulote e Carlos estavam uma série de fios invisíveis que lhe comandavam a boca e os gestos. Era ele que falava, sim senhor, mas falava e agia mais por alguém que por ele próprio. Tinha ido tentar obter informações usando as armas que eram o dia-a-dia daqueles polícias: a empatia; o afirmar para perguntar; o responder para ser desmentido e assim obter mais informação; a indignação para obter compreensão e, outra vez, mais informação. Tudo isto eram estratégias recorrentes no trabalho do polícia quando busca a Verdade, quando quer chegar à Informação e ele, qual cordeiro que entra na Coutada do Lobo Ibérico, caiu nesse erro. Quando assim é só existe uma medida a tomar e aqueles dois sabiam bem qual era. A contra-informação ou desinformação, baralhar para dar de novo. Foi Leonel quem começou a dar as cartas:

- Eh pá, o que é que nós achamos? Sei lá, senhor Carlos, nós também já não sabemos o que pensar, isto está uma confusão do caraças e nós já estamos fartos. Quanto à sua senhora, se ela não tem nada a ver com isto é compreensível que ande chateada e amargurada com esta coisa toda, mas que se há-de fazer? Olhe... também ela andar todos os dias na televisão não ajuda, não é?

- Pois - justifica-se Carlos -, mas eles vêm para aqui... o que se há-de fazer?

Os polícias lembram-se bem que a senhora em questão, em todas as entrevistas que dera em nenhum momento parecera estar acossada ou deprimida, mas sim de certa forma contente com os contínuos banhos de elevação de auto-estima e narcisismo que lhe eram dados pelo mediatismo.

- Isto é uma chatice, senhor Carlos, não é? - diz Cristóvão. - Mas tudo irá correr pelo melhor, vai ver... mas já agora - atira para a conversa sem aviso -, porque é que a sua senhora anda sempre a dizer que não acredita que nada disto aconteceu, a morte da menina, etc., e que a Joana ainda deve aparecer? Pelos vistos é a única defensora que a Leonor tem cá fora...

Carlos não acusa o toque e mantém a sua lenga-lenga sempre na mesma nota:

- Então, coitadinha, não há-de acreditar? Até lhe provarem o contrário não há nada que a convença que eles mataram a menina e se desfizeram do corpo...

Vendo que esta conversa não levava a lado nenhum para além de comprovarem aquilo de que já suspeitavam, Leonel dá por finda a diligência:

- Bem... temos que ir embora! Já sabe... se quiser então dizer mais qualquer coisa um dia destes telefone ou apareça em Faro.

- Pois sim... Obrigado por terem vindo - despede-se como tendo a noção de que não teria tido muito êxito na missão a que se propusera.

 

DESCANSO... MAS POUCO

A semana voou e para estes polícias parecia que haviam estado uma eternidade embrenhados num mundo qualquer longínquo, fora deste planeta. Comentavam entre todos que as horas, os dias, as noites pareciam ter-se multiplicado por dez. Tudo era intenso. Até a mentira era profunda.

Chegara a hora de serem tratadas as questões práticas, tais como levar para Lisboa uns sacos de roupa suja para trocar por mais uma trouxa de roupa limpa. O sábado seria para a família de cada um.

As mulheres, os amigos, os irmãos, os conhecidos que sabiam que eles faziam parte da investigação, questionavam-nos, opinavam sobre matérias que seguramente não dominavam. Em toda a gente era mais que evidente um desejo quase genético de saber o que havia acontecido. Nestas coisas de uma das nossas crianças desaparecer, a sociedade em geral comunga do mesmo desejo de querer explicações e os órgãos de comunicação social faziam eco desse desejo. Tal era o eco que já não se sabia se não eram antes as pessoas que moviam os meios de comunicação social e se se deixavam arrastar pela onda informativa e opinativa que, de manhã à noite, pululava por todos os telejornais. Ninguém queria saber o que o investigador quer saber. Ele precisa de responder às seis premissas essenciais da investigação: Quem; Onde; Quando; Como; O quê; Porquê.

Os interrogatórios em Lisboa eram tantos que Cristóvão e Marques Bom decidiram rumar a sul no próprio dia de domingo porque havia muitas diligências para programar e cumprir.

 

O SIGNIFICADO DA PALAVRA «MÃE»

Diz o dicionário: Mãe: mulher ou fêmea que teve um ou mais filhos; mulher que dispensa cuidados maternais ao filho ou filhos de outra mulher...

Olhando para o processo, detectaram diversas pessoas que poderiam ainda contribuir com o seu testemunho para o mesmo. Uma dessas pessoas, que já tinha sido sumariamente ouvida, era a D. Maria do Carmo, proprietária, com o marido, de uma pequena fábrica de bolos na Figueira. Começava a trabalhar perto das onze da noite para que de madrugada o marido distribuísse os bolos pelas pastelarias da zona. Era perto da meia-noite de domingo quando Marques Bom e Cristóvão lhe bateram no portão que dava acesso à pequena indústria. Identificaram-se e disseram-lhe que queriam confirmar mais uns quantos pormenores, não só relativamente à noite do desaparecimento de Joana mas também nos tempos anteriores àquela noite.

- Sim - diz a D. Maria do Carmo -, às vezes a Joana vinha aqui a meio da noite, sabe Deus como, para comprar bolos quentes para eles. Eu dizia para meu marido... como é que se poderia deixar uma criança andar sozinha na noite àquelas horas? Às vezes com chuva e frio e lá vinha a Joana sozinha por aí fora, e olhe que daqui até casa deles ainda é um bocado de distância...

- E naquela noite? Eles apareceram aqui? - questionou Marques Bom.

- Já não sei que horas eram, mas devia ser perto das três da manhã quando apareceram aqui a Leonor, o Leandro e o Carlos.

Eles ficaram mais afastados... só ela é que entrou. Perguntou se tinha visto a menina dela porque havia desaparecido e não sabia dela. Eu disse-lhe que aqui não tinha aparecido.

- Então e depois? - pergunta Cristóvão. - Ela estava muito preocupada, aflita?

- Qual quê? Só me disse isso e depois pediu para lhe embrulhar quatro bolos para levar para eles comerem respondeu de imediato.

Cristóvão instintivamente faz as contas. Eles os três e o João são quatro. Ninguém estava definitivamente à espera de que a Joana aparecesse. É um pequeno pormenor, é certo, mas tudo aponta sempre no mesmo sentido.

Enquanto Marques Bom formaliza as declarações da D. Maria do Carmo num pequeno escritório ali existente, Cristóvão vem até ao exterior e matematicamente vai somando factos, correlacionando-os entre si, colocando hipóteses, corroborando-as... coloca-se na posição dos dois irmãos.

Homicídio premeditado não... Ofensas à Integridade física agravadas pelo resultado... a coisa não foi pensada... o momento era para pará-la... ameaças é igual a levares pancada... desmaio... corpo inanimado... pânico... ocultação... como? Pensamos que está morta e agora? Uma coisa leva à outra... marcas... eles vêem que fomos nós... tirá-la daqui... depois não sabemos nada... não voltou... terá sido raptada por um espanhol qualquer...

Os seus pensamentos são interrompidos pela voz de Marques Bom.

- Muito bem, está tudo. Vamos?

- Vamos sim - responde mecanicamente Cristóvão. Olha, Marques Bom, de manhã vamos falar mas é com a senhora da Comissão de Protecção de Menores, ok? Vamos ver o que já constava ou não.

- Vamos então. Agora vamos para o choco que se faz tarde e a semana já sabemos como vai ser... - diz Marques Bom a sorrir.

Cristóvão deu o volante a Marques Bom porque necessitava de falar consigo mesmo durante aquele percurso entre a Figueira e Faro. Reviu mentalmente o passado de Leonor com filhos ao deus-dará, filhos que a não queriam ver, entregues a avós, abortos pelo meio, muitos homens na sua vida, desumanização total, incapacidade de demonstrar afecto pelo próximo sem ser no seu próprio interesse. Narcisismo, capacidade de fantasiar, gosto exacerbado pelo dinheiro.

Ia pensando para si próprio:

Ninguém pode ficar chateado ou ofendido por andar uma menina por aí a meio da noite para ir buscar bolos quentinhos para as excelências... agora é tudo a falar da coitadinha da menina que lhe foi feito isto e assado... rica merda... e onde andavam as madames das Comissões de Protecção de Menores? E os polícias? E os vizinhos? E os professores? Então a merda deste filme já não estava a passar à frente dos olhos de nós todos? Agora estamos todos indignados com o final do filme... boa merda de sociedade em que vivemos... Vão-se mas é todos lixar!!!

Naquele momento Cristóvão sentiu-se como o «almeida» da Câmara. Os outros passam o dia a sujar, a cuspir para o chão, a conspurcar tudo e mais alguma coisa e depois só querem ir dormir descansadinhos e acordar de manhã com a rua outra vez limpinha e pronta para ser outra vez conspurcada, suja e desejosa de receber toda a porcaria que nela desejem deitar. A sociedade era assim mesmo. Errava quando não cuidava das suas crianças, quando não lhes dava atenção e não identificava os sinais. Por detrás dos olhos tristes de uma criança há sempre um qualquer abuso, só tem que ser identificado qual. O assobiar para o lado sempre foi mais cómodo do que intervir, o nacional diferimento de responsabilidades estava na génese da nação. É muito mais cómodo aparecer depois do facto consumado. Quando o «almeida» da sociedade, que é o polícia, não limpa bem a rua, a mesma sociedade que a sujou aponta-lhe o dedo em riste.

Ninguém daquele grupo falava nisto. Era certo que cada um, à sua maneira, se sentia um pouco como a camareira que entra no quarto de hotel num completo caos e é suposto deixar tudo imaculado para que, quando os hóspedes voltarem, encontrem tudo como se nada tivesse ocorrido.

Ninguém pensa que, se em vez de se atirarem as beatas dos cigarros para a sanita e as colocassem no cinzeiro, o trabalho da camareira ficaria facilitado. A analogia persegue-os. Por tudo o que ouviram, experimentaram e viveram ao longo das suas vidas de polícia, sentem-se as putas do sistema. Enquanto são precisos são acarinhados. Depois... bem, «depois voltem para as vossas tocas que é para isso que a gente vos paga».

A Mãe colocou-nos no mundo, protegeu-nos enquanto ganhávamos forma, corpo e força e defesas para enfrentar o ambiente hostil que nos esperava. É suposto continuar a fazê-lo pela vida fora. Mãe é sempre Mãe. A protecção deve continuar até que um dos dois - filho ou mãe - abandonem este mundo. Leonor não fora Mãe de Joana nem de nenhum dos seus filhos. Simplesmente tinha sido a mulher que os colocara neste mundo e que neste mesmo mundo os deixou a ser criados por outros. Ninguém é Mãe assim.

Era suposto Leonor proteger a pequena Joana. Ela não se queixava e isso só por si já era um sinal ao qual ninguém deu atenção. Criança queixa-se sempre e de tudo. Toda a gente dizia que Joana era uma criança que tinha fases de recolhimento e fraca comunicação. Outro sinal. A promiscuidade onde vivia era um outro. Voltamos todos a não querer ver. O passado da mãe desumanizada. Outro ao qual voltamos as costas. Dizer que uma criança como ela cuidava dos irmãos quando deveria estar a brincar. Mais um para acrescentar à lista. Foram demasiados os sinais que a sociedade não soube interpretar.

Estes pensamentos trespassavam a mente de Cristóvão enquanto Marques Bom conduzia o carro em direcção a Faro.

Amanhã é outro dia - murmurava Cristóvão. Não imaginava o que o novo dia lhe iria trazer, a ele e aos outros.

 

A CASA DOS HORRORES - PARTE II

Eram oito da manhã. O grupo está a tomar o pequeno-almoço juntamente com Gonçalo e Guilhermino. Trocam impressões sobre as diligências do dia anterior e as de sexta-feira. O telefone de Cristóvão toca. No visor aparece «Teresa LPC». Àquela hora, se Teresa lhe telefonava era porque já teria pelo menos alguns resultados das perícias efectuadas na casa de Leonor. Por sinais avisou os outros de quem se tratava, enquanto estes se dirigiam para o Salão Nobre. Levantou-se da mesa e colocou-se junto à janela do bar do Departamento por forma a ter mais alguma privacidade. Atende:

- Muito bom dia, Teresa.

- Olá, Cristóvão.

- Temos novas de alegria ou não? - gracejou.

- Temos coisas interessantes para vocês - disse Teresa. O tom de voz de Teresa denotava ter algo importante para revelar a seguir.

- Força - disse Cristóvão, sem querer demonstrar demasiada ansiedade.

- Então é assim... o sangue recolhido por trás do interruptor junto à porta de entrada é de origem humana, mas não dá para fazermos a recolha de ADN para compararmos com os perfis dos habitantes da casa e da própria Joana.

- Muito bem. E mais? - continua Cristóvão.

- Ora bem... nas cuequinhas da menina era sangue mas também não dá para definir um perfil.

- Mau - interrompe Cristóvão -, não me diga que é só más notícias.

- Calma - diz Teresa. - Lembra-se da perna do sofá que vocês arrancaram porque tinha vestígios de sangue?

- Sim, continue...

- O sangue que ali se encontrava tem o perfil coincidente em oito aelos com o perfil da Leonor. Pode-se dizer que é sangue de um descendente da Leonor que ali está, mas acontece que não é de nenhum dos meninos que vivem com ela nem da filha que vive em Olhão e nem sequer coincide com o perfil de ADN da Joana. Ou seja, é sangue de um filho da Leonor que não é nenhum dos conhecidos porque desses temos nós os perfis.

Cristóvão manteve-se em silêncio. Estava a ouvir Teresa a dar-lhe razão quando pensara que aquela casa encerraria muitos mais segredos do que aquilo que tinha vindo a público. Leonor e João representavam muito mais do que aquilo que era visto. Não eram tão básicos quanto gostariam que toda a gente pensasse.

- Então e a cama da Joana? - questionou Cristóvão.

- Os vestígios recolhidos na cama, colchão e parede são inconclusivos. São biológicos, mas não sabemos se possuem esperma ou não.

- Ao menos acabe com algo mais interessante, Teresa - diz Cristóvão.

- Efectivamente, Cristóvão... na arca frigorífica que me chegou foi detectada uma gota de sangue. Podemos dizer que é humano, mas a amostra não dá para extrair um perfil de ADN.

- Sangue humano aí? Excelente, Teresa... Excelente! diz Cristóvão exultante. - E não dá para extrair o perfil porquê? - continua.

- Porque a amostra foi diluída na água do frigorífico.

A resposta seca de Teresa foi um balde de água fria para Cristóvão. Pensou para consigo no azar que sucessivamente ocorria nestas questões. Havia sempre qualquer coisa que fazia com que uma expectativa positiva não fosse corroborada.

Sem se deter, Cristóvão continuou:

- E mais, Teresa? E mais?

- Bem... e mais... relativamente àquele pedido especial que me fez sobre os carraços, ou lá o que eles lhe chamavam...

- Sim, diga, Teresa.

- Foram alvo de análise mesmo a sério, sabe? Pelo que foi observado, tratavam-se daqueles que se colam aos cães entende?

- Olá se entendo, Teresa - diz Cristóvão contente muito bem.

Cristóvão acabou a conversa telefónica com Teresa e dirigiu-se de imediato para o Salão Nobre, não sem antes ter a mente trespassada pelo motivo que estivera na origem daquele pedido.

Recordava-se que a mãe de Leandro e Leonor, dias depois da Joana ter desaparecido, haviam feito uma limpeza profunda ao chão da sala invocando que, na zona da entrada, existiam «carraços» e que não sabiam como estes tinham ido para ali. Cristóvão sabia agora que se tratavam daqueles que necessitam uma fonte de sangue em permanência. Eram daqueles que qualquer cão vadio, que se preze, possui no seu pêlo. Também sabia o investigador que em casa de Leonor não existiam animais e que as carraças só largam uma fonte de sangue numa situação. Quando encontram outra fonte de sangue mais fresco. Mesmo que essa fonte não esteja visível ao olho humano. Era precisamente da entrada da casa que se tratava. Local onde João dissera que tudo ocorrera.

Cristóvão informou os colegas de tudo o quanto acabara de ouvir de Teresa e concluiu:

- E é assim. O sangue daquela perna de sofá é de um filho da Leonor cujo paradeiro ou existência desconhecemos. Acho que se se confirmarem os abusos sexuais juntando a isto, o nome Casa dos Horrores até se aplica bem, não é?

«Mãe» é igual àquela que cuida.

O sentimento geral era de consternação. Não passava pela cabeça de ninguém a existência de mais alguma criança. E agora? Iam ignorar este assunto? Abordá-lo com Leonor? Falar com João? Ficou decidido que este assunto, naquele momento, somente poderia introduzir ruído onde já o havia por de mais.

Marques Bom, a dado momento da conversa, introduz o assunto de Leonor a Gonçalo e do que estaria a ocorrer.

- Então, que se passa com aquele assunto?

- Sinceramente não sei, mas também a nós isso não nos interessa até porque se temos a consciência limpa nada temos com que nos preocupar - disse Gonçalo.

- Pois sim - intervém Leonel -, mas como já vi tanta coisa neste país.

- Todos já vimos, Leonel - diz Cristóvão -, mas o que é facto é que não é para admitir que seja quem for, coloque em causa o que quer que seja. Vão mas é trabalhar, tratem do trabalhinho de cada um, mas não há-de ser à nossa conta que incompetentes de merda irão ficar na história...

- Temos mas é que trabalhar e o «eles»... quando chegar à altura... se chegarmos a essa altura... a gente tratará deles, ok?

Aquele assunto está a ser falado demais entre o grupo. Desgastam-se quando deveriam concentrar forças noutras coisas bem mais importantes. A nuvem negra sobre a cabeça de todos e sobre a própria polícia incomoda-os. Alguns do grupo já haviam presenciado histórias do género em que o tema recorrente dos arguidos é dizerem que são brutalmente espancados pelos polícias emerge. O resto desta segunda-feira é passada entre muros delineando-se estratégias dado os resultados obtidos pelo Laboratório não terem sido inequívocos. Reforçavam suspeitas, era certo, mas não concluíam nada de forma a direccionar a investigação de forma definitiva em qualquer objectivo.

 

MISTÉRIOS PÚBLICOS

Os polícias do grupo de Lisboa, com Gonçalo e Guilhermino encontram-se reunidos mais uma vez e recebem uma informação de que a Directora da Prisão de Odemira havia efectuado uma participação ao Director Nacional da Polícia acompanhada de fotos de Leonor.

No dia seguinte é recebida por Gonçalo uma cópia de uma carta que havia sido dirigida por uma reclusa do Estabelecimento Prisional de Odemira. A carta, com a autora devidamente identificada, dizia que Leonor, desde que havia sido ali entregue pelos elementos da Polícia, sempre tinha dito que teria caído de umas escadas. Acrescentava ainda, a reclusa que, depois de uma demorada reunião entre a Directora do Estabelecimento com a Leonor, esta teria mudado de ideias quanto às causas das mazelas que apresentava e passara a dizer que havia sido espancada pelos elementos da Polícia em Faro e que, segundo acrescentava, se preparava para receber uma grande indemnização.

Gonçalo partilha o teor desta carta com os restantes elementos da equipa ao mesmo tempo que os informa que a mesma Directora havia tirado umas fotografias à Leonor e as enviara para o Director-Nacional da PJ.

Reunidos novamente no Salão Nobre, Leonel intervém:

- Por acaso essa gente saberá que na noite em que essa senhora quis fazer porcaria, estavam aqui mais de vinte pessoas entre as quais a própria família dela? João, a rainha da sucata e marido, Carlos do Reboque, Sara, etc? Mais os polícias, seguranças e sei lá quem mais? Mas a mulher é parva? E qual o papel dessa senhora Directora? Se julgava estar na presença de um crime por que é que não denunciou ao Ministério Público em vez de denunciar ao Director dos bandidos que, pelos vistos, agora devemos ser nós?

Antevendo o cada vez maior desgaste que este assunto iria assumir no grupo, Cristóvão desabafa:

- Esta merda toda já me está a meter nojo e, como tal, preferia mesmo era ir trabalhar, se não se importam.

- Muito bem - concorda Marques Bom -, vamos mas é bulir que se faz tarde.

- Como é que estamos dos poços, António? – pergunta Leonel.

- Já está tudo identificado e colocámos as plantas sobre mapas actuais e parece que assim será mais fácil a gente lá ir ter com os caminhos que hoje existem. A merda é que por cada poço que a gente for ver, levamos com os jornalistas todos atrás e depois já se sabe, lá vem a história de que andamos às aranhas, etc...

- Não há problema - adianta Cristóvão -, é fácil. É só a gente arranjar um show-off noutra zona que eles montam ali a tenda e enquanto isso vocês vão dando uma vista de olhos pelos poços, ok?

Foi assim que no dia seguinte, quarta-feira, pelas sete e meia da manhã, uma máquina retro-escavadora da Câmara Municipal de Lagos começou a desbastar um arbusto enorme na zona da planície em frente à casa de Leonor. O arbusto era tão grande que escondia dois poços desconhecidos inclusivamente da população. Já que ali estavam, não puderam descartar aquela segunda hipótese e foi assim que um mergulhador dos Bombeiros foi até ao fundo daqueles poços e nada encontrou. Enquanto isto tudo decorria ao longo de um dia inteiro durante o qual choveu e fez sol, António e Carlos iam inspeccionando poços, um a um, na zona a norte da Figueira. O resto do grupo fazia um teatro junto daquele imenso arbusto e eram alvo de dezenas de jornalistas. O objectivo havia sido atingido e, sem qualquer publicidade, fez-se uma diligência de despiste importante. Se calhar poderia não ser um caminho muito ético, mas às vezes as investigações de grande repercussão social têm mesmo que ser assim. Os investigadores precisam de espaço e de tempo e, acima de tudo, de muita discrição nos procedimentos. Qualquer investigação, desde a mais simples à mais complexa, tem dias em que avança e outros em que recua. Quando as diferentes velocidades e direcções são expostas na praça pública mal vai a investigação. Já não é sequer a questão dos segredos de Justiça. É somente ter espaço para errar, para experimentar caminhos alternativos sem estar permanentemente a ser fiscalizado e comentado em tudo o que se faz ou sequer se pensa. No fim, então sim. No fim fazem-se as contas da investigação. No final da investigação dever-se-ão atribuir créditos a quem de direito e o contrário também, se houver lugar a isso. Teria que ser assim. Teve que ser assim.

Depois de António e Carlos terem inspeccionado mais de duas dezenas de poços com a ajuda de elementos dos bombeiros, chegaram à conclusão de que, pelo menos naquela zona, o meio usado para ocultação do cadáver de Joana não teria sido aquele. Era uma diligência que teria mesmo que ser levada a cabo porque uma coisa é olhar ao longe e, por puro empirismo, dizer que se acha que não. Outra coisa é ir aos locais, sujar os pés, investigar no terreno e depois então falar com propriedade, com conhecimento. Foi isso que fizeram.

Outra diligência similar foi efectuada na altura da inspecção às instalações pecuárias naquela zona. Corriam boatos entre o povo que o corpo da menina havia sido retalhado e atirado aos porcos para ser devorado. Pois. E quais? Onde? Como? É certo que estes animais devoram tudo o que se lhes colocar à frente, mas o crânio e outros ossos dificilmente seriam comidos na íntegra e, como tal, deixariam restos visíveis. Foi então assim que, na noite seguinte, já depois da meia-noite, foram fiscalizadas mais de três dezenas de instalações onde se encontravam explorações de pecuária. Muitas delas eram simplesmente no meio do campo com uma rede a isolar o local. Outras eram mais cuidadas. Em nenhuma foi localizado qualquer vestígio do que quer que fosse que indiciasse a presença de um corpo humano. A noite foi passada literalmente no meio de porcaria e, quando chegaram a Faro, os carros fediam e as roupas e sapatos igualmente. A frase de Marques Bom à chegada a Faro, quase ao raiar do dia, sintetizava tudo:

- Passámos uma noite mesmo na merda, companheiros, mas conseguimos regressar - disse, enquanto ainda havia disposição para um sorriso do grupo.

De facto não havia sido nada agradável, mas teve de ser. A necessidade de se ter que ir aos locais também aqui era aplicada. Ninguém resolve rigorosamente nada se não se levantar da cadeira. Na polícia e em muitas outras profissões havia gente de mais que pensava resolver tudo assim - sentado numa cadeira. Felizmente que havia ainda quem pensasse o contrário. Mesmo que para isso tivessem que correr o risco de serem detectados pela comunicação social e no dia seguinte serem alvo de um qualquer comentário na televisão dizendo que não saberiam o que andavam a fazer. Na verdade estavam a eliminar hipóteses por forma a comprovar aquela que seria a hipótese com maior base de veracidade. Nunca esta poderia vingar, se todas as outras não tivessem sido alvo de pelo menos uma experimentação. É isso mesmo. A Polícia não possuía bolas de cristal para este caso e muito menos informadores que apontassem uma pista para ser trabalhada. Quando assim é, resta a formulação de hipóteses e confrontação das mesmas com os elementos que vão sendo recolhidos pelos investigadores.

Nesta especial investigação toda a gente próxima de Joana mentia, uns por uma razão, outros por outra, mas seguro é que ninguém dizia tudo aquilo que na realidade sabia. Cada um à sua maneira ia fornecendo os dados que lhes convinham. Leonor havia dito que quando o amigo de Leandro, o Carlos, dormia no quarto de Joana, a menina optava por dormir no sofá da sala e vice-versa. Também tinha dito que Leandro havia sido confrontado com os sacos de plástico contendo o corpo de Joana esquartejado. Leonor disse ainda que fora o irmão que esquartejara a filha para ocultarem o cadáver. Leandro dizia que não sabia de nada e que procurara a menina de que tanto gostava durante aquela noite. Os factos desmentiam-no. Acabara a noite a dormir em casa depois de ter ido comprar bolos com Leonor e Carlos e, antes disso, havia estado cabisbaixo a beber cervejas no recinto onde dissera ter estado à procura de Joana. Carlos era o amigo de Leandro que com ele trabalhava, convivia e em cuja casa tinha obtido abrigo. Teria algo mais a esclarecer quanto à ocultação do corpo? Afinal era ele quem tinha um reboque parado perto da casa com um carro lá em cima. A família de Leandro levantava questões ainda não respondidas. A conversa mantida com o padrastro de Leandro durante a qual defendera, sem qualquer necessidade aparente, a pessoa da sua mulher...

Tudo continuava ainda nebuloso. Só existiam as certezas de que Leonor e João eram as pessoas que haviam partilhado os últimos momentos com Joana antes de esta desaparecer. Também era certo que a questão da venda da menina a um espanhol ou a qualquer outra pessoa estava fora de hipótese. Cristóvão começava a acreditar que o que João declarara, se não era a verdade integral, estava muito próximo dela. A questão do abuso sexual à menina mantinha-se em cima da mesa das hipóteses e esta teoria saíra mais reforçada depois do exame à casa. Leonor não seria mulher para obstar a que tal acontecesse. Por tudo o que era o seu passado, o seu presente, por tudo o que aquela casa dissera. Então a menina, que já não era assim tão pequenina, apesar de subdesenvolvida para a sua idade, iria descalça pela rua? Leonor esquecera-se de ocultar também as chinelas de Joana. Durante um mês nenhum jornalista, nenhum polícia, nenhum familiar teve a iniciativa de espreitar para debaixo do sofá da sala e ver que ali se encontrava uma das chinelas que Joana tinha calçadas naquele dia. E as cuequinhas de Joana? Que seria feito delas? Por que teriam desaparecido? Eliminação de provas de abusos sexuais continuados? Infelizmente somente os adultos que com ela conviviam poderiam esclarecer tudo. Inclusivamente o sangue no frigorífico. Ou eles ou Joana explicariam. Convenientemente, ela não explicava nada porque tinha desaparecido.

É verdade que por esse Portugal fora existem muitas Joanas. É verdade que o que estes investigadores estavam a tentar discernir seria só mais um episódio na vergonha nacional que são as crianças abusadas, seja de que forma for, por aqueles que precisamente têm a obrigação de cuidar delas, de as acarinhar. Esta era a primeira com a qual Cristóvão se tinha confrontado por isso, para si, Joana era especial. Nunca falara com ela, nunca a conhecera, mas era como se fossem amigos. Joana era a menina-coragem. Passou por muito mais do que alguém jamais imaginaria. Terá sofrido, em silêncio, aquilo que homens adultos não suportariam. Nunca se queixara de nada. Para si os poucos momentos de alegria eram aproveitados ao máximo, porque nada lhe garantia quando o próximo viria. Joana deveria ser o exemplo acabado, último, da nossa vergonha enquanto sociedade pretensamente desenvolvida. Mas não, ninguém tinha vergonha de nada. Os jornalistas queriam notícias, os políticos queriam motivos para falar em novas legislações para evitar mais Joanas, os polícias queriam pistas para resolver um caso, os vizinhos queriam explicações para um final de um filme em cuja produção colaboraram activamente, todos queriam qualquer coisa. Ninguém queria pensar no que fora efectivamente a vida daquela criança e na contribuição de cada um para que assim tivesse sido.

Cristóvão gostava de Joana. Ela tinha tido muito mais coragem do que muitos polícias que com ele trabalharam. Menina-coragem credora de muitos pedidos de desculpa e de muito curvar de coluna da nossa parte. Aquela que ousou dizer que...

E a mãe da Joana teria muito para falar com o seu travesseiro. Joana tinha sido maior que ela. Tinha sido maior que nós todos juntos. Nascera mal, sobrevivera pior e agarrara-se até ao último instante, à sua vida.

 

JOÃO - A ARTE DO TRIÂNGULO

No final da segunda semana de trabalhos João pede, através dos serviços prisionais, para voltar a falar com os investigadores. Não sabia ele que, entretanto, António e Carlos se haviam deslocado à Prisão de Pinheiro da Cruz onde, na sequência duma informação que obtiveram, estava a cumprir pena um indivíduo, que já dividira uma cela com João no passado. Ele, de nome Ricardo, havia estado uns meses preso juntamente com João em Silves. O interlocutor por homicídio, pelo qual ainda estava a cumprir pena, e João por ter agredido um indivíduo causando-lhe lesões graves. Ricardo acabara por contar aos investigadores que, enquanto ambos partilharam o mesmo espaço, teria desabafado com o João que se não tivesse dito aos investigadores onde estava o corpo do homem que matara, jamais teria sido preso e muito menos condenado. Arrependia-se disso. Sem corpo ninguém ia preso. Essa frase havia sido repetida por João naquela conversa tida com Leonor e que os polícias escutaram. Também disse que João era um predador frio e que para satisfazer os seus instintos ou desejos de dinheiro fácil faria qualquer coisa. Achava que João já experimentara a sensação de matar um homem e que escapara impune. Relatou uma situação de um reformado que passava algumas vezes em frente a uma vivenda em cuja construção João trabalhava e que, certo dia em que recebera a reforma, desaparecera para nunca mais ser visto. Também disse que o ensinara na arte do Triângulo. Matar num local. Colocar o corpo num outro e por fim deslocar-se para um terceiro. Num mapa estas três acções fazem um triângulo. Os investigadores recordavam-se que João, na sua própria confissão, dissera que matara na Figueira, colocara o corpo na sucata e se deslocara para casa da irmã Anabela e depois para a Altura, onde havia sido detido. Um triângulo, portanto. Era uma arte, sim senhor, porque a maior parte dos criminosos, sejam eles pensadores ou os de ocasião, não cuidam do cumprimento desta regra. Arte no sentido de obrigar ao sangue frio suficiente para estabelecer um mapa mental, desenhar um plano de três pontos, cumpri-lo no momento certo e sair do turbilhão na hora, também ela, certa. No final da conversa os investigadores perguntaram a Ricardo sobre o porquê da sua vontade de colaborar com a Polícia. Este terá respondido que o que o gajo fez à miúda não merece perdão, nem mesmo entre matadores.

Foram precisamente António e Carlos a ir buscar João a Olhão. No caminho demonstrava estar mais desinibido que antes. Falava das coisas que ia vendo no percurso e parecia que se tinha adaptado à sua condição de preso indiciado pelo homicídio da sobrinha.

Chegado a Faro, foi colocado na sala onde habitualmente falava com Cristóvão. Quando este entrou, João estava sentado fumando o seu inseparável cigarro e de perna cruzada.

- Muito bom dia, companheiro João - cumprimentou Cristóvão - tudo bem?

- Eu vou indo, Inspector - responde João num tom descontraído - e o senhor?

- Cá vamos na luta de todos os dias, João... cá vamos... responde-lhe Cristóvão ao mesmo tempo em que se senta em frente a ele.

- Pois é, tem que ser... - retorquiu João.

A conversa de circunstância entre estes dois homens servia somente para iniciar mais um diálogo que, segundo o que Cristóvão pensara, poderia ser muito esclarecedor. Por isso pegou numa folha branca de papel A4 e ali desenhou três pontos distintos na distância entre si. Um no topo da folha e outros dois em baixo e separados entre si, ficando cada um destes quase nas margens laterais. Os três eram os vértices de um triângulo. Depois ligou-os através de uma linha acabando por desenhar a forma geométrica. Sem dizer uma palavra colocou esta folha em frente a João e quedou-se a olhar para ele enquanto se reclinava na sua cadeira como que expectante sobre a interpretação que João daria a este enigma.

João olhou para a folha e depois de alguns segundos sorriu. Era bom sinal. Reconhecera algo naquele papel com três riscos e três pontos sem qualquer informação adicional, escrita ou falada.

- O senhor sabe... - disse, voltando aquele seu sorriso envergonhado de menino apanhado a fazer travessuras.

- Não, não sei nada, João, apeteceu-me fazer um desenho e estou à espera que o meu companheiro João escreva aí qualquer coisa - disse Cristóvão com ar sério.

Quase de imediato João agarrou na caneta que estava em cima da secretária e no vértice superior escreveu, vagarosamente e com uma letra de escola primária, a palavra figueira. Depois no vértice inferior esquerdo escreveu a palavra Sucata e por fim Casa Alta no vértice inferior direito.

«Bingo»!, pensou Cristóvão tentando esconder a satisfação que sentia invadi-lo.

Sem tecer qualquer comentário ao que João acabara de escrever, Cristóvão saiu da sala, e foi ter com os colegas que estavam na sala do lado e informou-os do que acabara de acontecer. O que João fizera era a corroboração da sua confissão, agora por outra via. Tudo fazia sentido neste momento. Leonel exultou.

- Temos que ir à sucata com ele, caraças... para nos indicar então onde estava o carro, onde estavam os sacos com a Joana. Temos que fazer uma espécie de reconstituição. Uma coisa é falar aqui e outra é estar no local onde as coisas aconteceram. Tem que ser, caraças...

Pairava a ideia na mente de todos que haviam chegado quase à ponta do funil. As hipóteses adiantadas por toda a gente, quanto ao que efectivamente acontecera a Joana, já haviam sido submetidas a teste e todas falharam. As possibilidades de Leonor e João terem vendido a menina caíam para zero quando se colocava a teoria perante o facto de tal não ser crime e, assim sendo, nenhum dos dois sofreria qualquer sanção penal. Também se tornava difícil comprovar que contactos prévios haviam sido mantidos, com eventuais compradores porque não havia qualquer registo de um só. As contas não tinham dinheiro e os compradores de crianças não andam propriamente por aí como num supermercado. O raciocínio destes polícias saía reforçado com o facto de Joana ser mais velha do que o que o habitual adoptante, nestas situações, prefere.

A versão última de João apresentava congruências com o que já estava apurado em termos testemunhais e periciais. No entanto, a polícia faz, ou deve fazer, sempre, o raciocínio de análise, correlação e síntese. Não se tratava somente de eliminação de hipóteses até chegar à mais difícil de eliminar. Era também uma sequência de factos lógicos interligados entre si, referidos pelo João, factos esses que, à luz do que sabia então, faziam sentido. Foi assim que, movido por esta linha de raciocínio, o grupo decidiu avançar para aquela diligência com o tio da Joana.

Nessa mesma tarde de quinta-feira, o grupo deslocou-se, acompanhado de João, para junto das instalações onde a família de Leandro comercializava restos de veículos. Pararam os dois carros à porta das instalações e observaram que a porta foi imediatamente fechada por dentro. Quem lá estava preferia manter-se afastado do que estaria para acontecer, mesmo não sabendo que poderia haver interesse precisamente no interior daquelas instalações. O padrasto de Leandro vira João a acompanhar os polícias e fechara a porta mantendo-se, juntamente com os restantes elementos da família, no interior.

Marques Bom, observando isto, não pôde conter um comentário murmurado enquanto passava junto do portão de ferro ferrugento:

- Então? Medo? Medo de quê?

- Medo deste nosso amigo aqui, Marques Bom murmurou também Cristóvão sem se deter no passo indicado pelo João enquanto ia apontando o caminho para uma pilha de carros que se encontrava no exterior.

- Era aqui que estava o carro - diz João apontando -, era vermelho, já não me lembro. Estava em cima de outro e eu pus um saco debaixo do banco da frente... pus outro debaixo do banco de trás... espalhei os sacos pelo carro velho e a machadinha e o serrote também.... mas antes cortámos em pedacinhos mais pequeninos para o corpo da menina ficar mais distribuído pelo carro...

- Então e porquê, João? - perguntou Marques Bom.

- Então... se ficassem espalhados depois era mais fácil desaparecerem quando o carro fosse esmigalhado...

Mais uma vez o raciocínio de João era correcto. Efectivamente a distribuição dos sacos por várias zonas do carro faria com que, submetido à compressão com a força de várias toneladas, mais facilmente o conteúdo dos sacos se disseminasse pela estrutura comprimida. Depois destas indicações, João indicou os percursos que fizeram, quer para chegarem àquela zona, quer para dali saírem.

Leonel tinha uma dúvida e confrontou João com ela.

- Diga-me lá, João, por que é que colocaram os sacos num carro destes, que estão fora da sucata e não num daqueles que estão dentro dos muros?

- Então - respondeu rapidamente -, pusemos aqui porque àquela hora, era de noite, não estava cá ninguém...

- Estou esclarecido - disse Leonel.

 

TALVEZ NUNCA SE TENHAM LEMBRADO

A cerca de cinquenta metros, as câmaras das televisões apontavam todas na direcção da zona onde os polícias e João estavam. Ouviam-se os jornalistas a gravarem as suas peças de reportagem para seguramente serem emitidas nos jornais da noite. Os polícias e João eram o fundo de imagem daqueles trabalhos. Não sabiam o que se estaria a passar, mas cada um teria a sua opinião. Talvez não tivessem reparado que, enquanto tudo isto decorria, o portão da sucata se mantinha fechado e lá dentro não se ouvia rigorosamente nada. Talvez não tivessem também reparado que o cansaço físico dos polícias já estava a cobrar as muitas horas de sono em dívida. Três horas de sono em média por noite de sono durante semanas faz mossa em qualquer um, assim como os muitos maços de cigarros fumados e a alimentação feita à base de sandes aqui, salgados acolá, com a cafeína como melhor amiga. Talvez nem naquele momento nem nunca, desde o início, alguém se tivesse lembrado das famílias daqueles polícias. Das ausências prolongadas. Das mulheres que tinham que aguentar o barco lá em casa. Do frio. Da chuva que apanharam no corpo. Da lama. Do stresse que corrói o coração. Do andar no meio da merda dos porcos. Das velocidades excessivas que a todo o tempo podiam dar, como deram em muitos casos na PJ, direito a uma placa no 4.° andar da Directoria-Nacional com a inscrição Falecido em Serviço. Talvez ninguém tenha pensado nas mordomias daqueles polícias trabalhando horas a fio fora do horário normal de trabalho por dois euros à hora. Talvez ninguém se tivesse lembrado que aqueles e os outros que os precederam também tinham vidas que não eram cor-de-rosa. Talvez isso tudo tenha sido esquecido por todos.

Os próprios polícias haviam esquecido as famílias. Haviam esquecido que fumar faz mal. Fumar demasiado, mais mal ainda. Que convém andar bem nutrido e bem descansado. Que é bom para os filhos ouvir a voz do pai. Que é bom para a estabilidade conjugal as mulheres estarem com os maridos. Talvez ninguém se tenha lembrado, como é normal, de que quem tem por missão investigar, interpretar e levar até à punição os males da nossa sociedade também faz parte dela. Toda a gente que acompanhava este caso do exterior sentia que tinha a sua própria opinião sobre o mesmo. As personalidades doentias dos arguidos ou meras vítimas da miséria humana. Que a menina havia sido vendida ou morta e atirada aos porcos. Que a família do Leandro estava envolvida ou eram meras testemunhas de factos para os quais nada contribuíram. Que as senhoras da Segurança Social estavam isentas de culpas ou pura e simplesmente viraram costas ao inevitável. Que era uma surpresa para os vizinhos ou que estes tinham culpa por verem e calarem. Toda a gente opinava e todas as pessoas se esqueciam que, alheios a isto tudo, calados, sóbrios e aguentando o barco da serenidade, um grupo de homens discretos e humildes tentava dar um sentido àquilo que não fazia sentido. Tentavam dar luz a um caminho cuja iluminação havia sido apagada por todos nós.

Talvez nunca se tenham lembrado. Foi pena.

 

ALGARVE - O EPÍLOGO

Os dias iam passando. As horas voavam. Na terceira semana de trabalhos, Leonel, Cristóvão e Marques Bom vão falar com um informador que pretendia ficar anónimo e que contactara o Departamento de Faro. É um final de tarde de sexta-feira. O calor apertava. As camisas colavam ao corpo. Estavam os polícias numa esplanada em Tavira, virados para a ria quando, ao fim de poucos minutos, surge um homem forte, barba por fazer, aparentando ter quarenta e tal anos de idade, camisa por fora das calças, que se lhes dirige de imediato:

- São os senhores com quem falei pelo telefone? Lá de Faro?

- Somos sim senhor - respondeu Marques Bom, enquanto se levantava para colocar uma cadeira a jeito para o informador se sentar.

- Eu não quero ser metido nisto, embora ache que se calhar tenho uma coisa para vocês com interesse, mas só se me garantirem que não vou ser metido nisto, está bem?

- Muito bem - diz Cristóvão -, a nós não nos interessa muito a fonte da informação, mas sim se ela é boa ou não... diga lá então.

- Bem... eu sei porque vi... que no dia seguinte à menina desaparecer, o Leandro e o Carlos iam no reboque com um carro vermelho velho em cima. Iam em direcção a Espanha. Eu vi-os na Via do Infante já passando Monte Gordo. Eu conheço-os e achei que não era normal porque o espanhol que enfarda os carros vai lá à sucata deles todos os meses. Só sei isso e não me quero meter em mais nada.

Cristóvão sabe bem o valor de tal informação, mas faz-se desentendido.

- Mas então qual era o mal nisso?

- Então? - responde quase como que indignado o interlocutor. - Se calhar levavam lá a menina, não?

- Ah, bom, ok - diz Cristóvão -, nunca se sabe... é uma possibilidade.

Sem esperar por mais qualquer pergunta o informador levantou-se e disse enquanto se afastava:

- Espero que tenham sorte... adeus.

Esta conversa fez com que partissem para uma diligência que já pensavam levar a cabo havia dias, mas agora teriam mesmo que tirar a limpo esta questão da indústria da fundição de carros de sucata.

Entram no carro, e acrescentando mais uma às muitas travessias daquela estrada, percorreram a Via do Infante, estrada que era já quase como que um prolongamento destes dois polícias. Quando estão a entrar na ponte internacional sobre o Guadiana, Marques Bom lembra-se dos impedimentos legais em sair de território nacional sem autorização.

- Cristóvão, se temos um acidente do outro lado é que vai dar merda...

- Que se lixe, Marques Bom - responde Cristóvão enquanto acelerava o Cito Williams pela ponte -, assim como assim palpita-me que mais tarde ou mais cedo estamos a caminho de Lisboa e, como tal... siga.

- Muito bem, é para a desgraça, é mais uma - diz Marques Bom, sorrindo.

Estão já em Espanha. Conduzem até à Zona Industrial de Valbom em Gerez, onde se situam aquelas instalações. Sabem que não podem dizer que são polícias portugueses à procura de registos de carros queimados porque se não poderá haver um incidente. Não conhecem ninguém da polícia dali. Olham para as instalações. Centenas de carros amontoam-se à espera de serem fundidos. Falam com dois espanhóis que os informam que, à excepção desta fundição, não há mais nenhuma instalação similar no raio de centenas de quilómetros. O local é de dimensões gigantescas. Decidem voltar para Faro e solicitar, pela via oficial, a formalização de diligências junto dos colegas espanhóis.

Via do Infante de novo. Sempre ela. Quilómetros e mais quilómetros. Sentem, sem o falar, que o tempo para eles escasseia. Vão ocorrer mudanças na DCCB, segundo consta e, quando assim é, tudo muda. Cristóvão pensa para si que, embora tal possa acontecer e já estar oficialmente colocado na Corrupção, como pretendia, o deixem, a ele e aos outros, terminar não aquilo que lhes foi encomendado, mas o que o destino lhes colocou nas mãos.

Chegam a Faro. Estacionam o carro. É final de tarde com a noite já a cobrir o céu limpo do Algarve. Sobem as escadas até ao segundo andar onde, na sala que lhes destinaram, estão Leonel, António, Carlos e Praxedes. As caras estão tensas e Leonel fuma o inseparável cigarro com a cabeça apoiada na palma da mão direita e com o cotovelo sobre uma secretária.

- Então? Há velório? - graceja Marques Bom.

- É pior que isso, companheiros - responde Leonel, com a voz embargada. E, num tom ainda mais grave que o habitual, prossegue - temos ordens para regressar a Lisboa... estes daqui continuam o resto que falta... acho que o nosso Director lá de cima vai sair do lugar e agora parece que estão para aí a dizer que nós batemos na Leonor... eu sei lá, mas já estou farto desta merda toda... isto mete-me nojo... vou mas é meter os papéis para a reforma que já tenho o tempo... puta que os pariu a todos...

Cristóvão deu dois passos atrás, fechou a porta da sala por dentro e sentou-se. O grupo estava numa espécie de círculo em que todos viam todos. Disse:

- Tal como previsto desde início, não? Não é nada que não tenhamos previsto, companheiros. Esta casa é assim mesmo, mastiga e cospe. C’est la vie - conclui.

Sem dizer uma palavra, Marques Bom organizou rapidamente todo o expediente produzido por aquele grupo. Eram mais de dois volumes, com mais de quatrocentas folhas de plantas, mapas, listagens, inquirições, relatos de diligências externas, informações de serviço, interrogatórios, reportagens Fotográficas e todo um manancial de peças processuais e informação. Só naquele momento tiveram a noção do muito que produziram naquelas semanas. Ao olhar para todo aquele expediente Leonel resumiu tudo:

- Acho que mesmo assim valeu a pena, não deixámos a casa ficar mal. Não tenho pena de nós. Tenho é pena da Joaninha.

O resto do grupo baixou as cabeças, cada um concentrado nos seus próprios pensamentos, silenciosos, e sem darem talvez por isso ali prestaram homenagem àquela criança. Tinham a noção de que tinham dado tudo e o melhor de si em todos os momentos e muito mais teriam se lhes tivesse sido pedido.

- Vamos embora, está bem? - disse Marques Bom. - É só fazer o saco da roupa e estamos a ir... já agora, Chefe, pode entregar o expediente ao senhor Director?

Leonel agarrou nos volumes e saiu da sala dizendo:

- Cristóvão e Marques Bom, esperem-me lá à porta que eu faço o meu saco num instante e depois entrego isto.

São oito e meia da noite. Cristóvão está ao volante do Audi. Leonel está sentado a seu lado. Marques Bom no banco traseiro. Ao contrário de muitas saídas da cidade de Faro, esta processa-se de modo lento. Não porque haja muito trânsito, mas sim porque a vontade de ir embora não é muita. O silêncio embala o ruído do motor do carro. Leonel, como que imbuído de um espírito de autoflagelação, questiona:

- E o que é que íamos fazer a seguir, rapazes?

- Na minha modesta opinião - responde Cristóvão de imediato -, o passo seguinte seria falar com os espanhóis e depois, com muita calminha, falar com os Reis da Sucata de forma a ensinar-lhes um bocadinho do Código Penal. Podia ser que com a conversa certa vissem que ocultar um cadáver não é assim tão grave como pensam, isto digo eu.... mas como o Leonel sabe nem eu nem você riscamos mais nada ali, portanto... desenrasquem-se. O meu filho já não me vê há tempo de mais!

Via do Infante, mais uma vez. A última naquelas circunstâncias. Olham para a cidade de Faro. Está tudo igual ao dia em que chegaram. Aliás, está tudo igual como sempre foi. Vai ficar tudo na mesma. Cada uma daquelas pessoas na sua vidinha. Indignados às oito da noite com as notícias, mas às oito e meia prontos para debater o local onde irão beber o café. Uma menina nasceu e viveu no lado errado da vida. Foi estrela de televisões, jornais e comentários. Depois irão aparecer outras estrelas e toda a gente se esquece da Joana.

Estes três polícias passam as duas horas e meia de viagem falando dos filhos de cada um, dos processos de desenvolvimento, das dificuldades na educação, do preço dos colégios, como que concordando no quanto será bom para eles terem alguém a quem verdadeiramente amar. Assiste-se naquele carro a uma espécie de lavagem do lixo acumulado naquelas almas durante semanas. Estar em contacto continuado com o pior da sociedade não faz bem a ninguém. Têm sentimentos contraditórios. Se por um lado estão felizes por regressar à tona de água, por outro não se importariam de continuar submersos no esgoto somente para finalizar aquilo a que se propuseram.

 

LISBOA - CIDADE DE EQUÍVOCOS

Na segunda-feira seguinte Cristóvão apresentou-se na DCICCEF *, tendo sido colocado na Secção Central de Combate a Actividades de Corrupção. Era um recomeçar de novo tal como ansiara. O simples facto de não saber nada da matéria na qual iria trabalhar estimulava-lhe o cérebro até ao último dos neurónios. Desejava apreender tudo rapidamente e começar a apresentar serviço. Afinal queria voltar aos tempos em que o trabalho era o motor da sua alma. Encontrou um grupo de gente que lhe ensinou antes de mais que no crime económico nem tudo é preto ou branco como normalmente era na DCCB. Diziam-lhe, em jeito de graça, que ali existiam vários tons de cinzento. Não tinham a noção do arco-íris por onde passara aquele Inspector antes de ser ali colocado.

Leonel regressou à sua prateleira na DCCB onde novamente lhe foram atribuídas tarefas nada dignas do seu passado como Inspector-Chefe da Polícia Judiciária. Ouviu em silêncio, tal como Marques Bom, os comentários daqueles que pareciam estar contentes com a ausência de resultados, segundo aquilo que eles sabiam, obtidos por aquela equipa no Algarve. Frequentemente eram alvo de comentários nos quais eram apelidados de agressores. A palavra espalhara-se e quando se trata de calúnia, ainda por cima numa casa como a Polícia Judiciária actual, mais vale é estarem calados e foi isso que fizeram.

 

* Direcção Central de Investigação da Corrupção e Criminalidade Económica e Financeira.

 

Marques Bom, o Prático daquele grupo, voltou a fazer o trabalho de que tanto gostava, na Brigada que integrava antes de ir para o Algarve. Muitas vezes confrontado com comentários em surdina sobre o trabalho deles no processo da Joana, calou-se, fazendo assim apelo a uma autocontenção que desconhecia em si. Manteve-se aquele investigador disponível vinte e quatro horas por dia para o trabalho, com um senão. Agora sabia que nada nem ninguém o merecia, mas era mesmo assim o seu feitio. Gostava, melhor, adorava ser polícia e por muita pancada que a Polícia lhe desse, jamais iria deixar esse amor.

António, Carlos e Praxedes voltaram igualmente aos trabalhos que tinham em mãos antes de terem participado naquela verdadeira aventura pelo sul do País. Por menos protagonizarem foram igualmente menos alvo da inveja. A actual polícia não perdoava aqueles que se distinguiam. Melhor, os inaptos não perdoavam aos aptos e pronto. Já não era a Polícia de outrora. Já não era a família unida que fora. Se calhar nunca o foi, mas na mente de alguns pairava esse sentimento. Ainda bem.

Muitas vezes Cristóvão lembrava-se de uma frase que lhe havia sido dirigida por um antigo Director da Polícia:

Sabe, Cristóvão, por alguma razão os corredores da Gomes Freire não são direitos... são tortos... é para nunca se saber o que ou quem vem lá ao fundo.

Nunca como agora estas palavras lhe pareceram tão sábias e premonitórias.

 

RESPIRAR FUNDO - I

Meses depois, numa manhã de sábado, Marques Bom telefona para Cristóvão.

- Muito bom dia, caro amigo. Já viste o Expresso?

- Não, mas diz - responde Cristóvão.

- Na primeira página aparece a senhora Leonor Cipriano com os olhos negros e inchados e o título «Tortura». Dizem que nós lhe batemos, etc, etc...

- Deves estar a brincar, não? - diz Cristóvão.

- Estou, estou, vai lá ver...

- Estou a ir, logo falamos.

Cristóvão compra o jornal e logo na primeira página vê a fotografia de Leonor com os olhos negros e cerrados. Lá dentro do jornal lê o desenvolvimento da notícia com o jornalista a dizer que Leonor havia sido torturada pelos elementos da Polícia Judiciária e que havia ficado naquele estado. Não acredito nisto - pensa. Liga para Leonel que já havia visto a notícia e combinam encontrar-se na segunda-feira seguinte, com o resto do grupo, para falarem sobre aquilo que haviam visto e lido.

Encontram-se no restaurante junto à DCCB e de imediato é óbvio que os ânimos estão exaltados.

- Mas que merda é esta? - diz Praxedes. - Mas alguém bateu naquela gaja?

- Pois, para todos os efeitos ficámos conhecidos como bandidos, rapazes - responde Leonel sorrindo.

- Mas pensem lá um bocadinho, caraças - intervém Cristóvão -, vocês já repararam que os olhos não têm marcas de agressões, marcas abrasivas, de objectos, etc.? O que ali estamos a ver é o sangue pisado da cabeça dela, quando embateu contra a parede nas escadas e que, por não a terem deixado deitada, começou a descer... - continua exemplificando com a mão sobre a cabeça e a descer. - No primeiro dia está aqui - apontando para o couro cabeludo -, no segundo dia está aqui - aponta para a testa -, no terceiro dia está aqui - aponta para os olhos -, depois vai descendo, caraças... agora tiraram as fotos propositadamente quando o aspecto é pior...

- Tens razão, Cristóvão - diz Leonel. - Mas para estes abutres isto é do melhor. Mas eu acho que o melhor é a gente estar quieto e calado e depois logo vemos se alguém nos está a querer apontar alguma coisa.

- Isto não terá a ver com o julgamento que está quase a começar? - diz Carlos.

- Isto tem mais a ver com muito mais coisas do que a gente pode imaginar - diz Leonel enigmático.

- Então de onde vieram estas fotografias? - pergunta Marques Bom.

- Não sei, mas algo me diz que um dia saberemos quem entregou isso ao jornal - diz Leonel.

- Ou não seremos nós investigadores - atira Cristóvão. As conversas sobre estes acontecimentos e a projecção que a notícia tivera na comunicação social dos dias seguintes, sucediam-se. Toda a gente, mais uma vez, opinava sobre factos que não conheciam. O jornalista que escrevera a notícia desdobrava-se em entrevistas. Ninguém lhe ousava perguntar como é que aquelas fotografias lhe haviam chegado à mão. Quem lhas teria dado? com que finalidade? Havia ou não manipulação das fotos? Era segredo profissional, adivinhava-se na resposta que nunca fora dada. Algo não batia certo, pensava Cristóvão. Não queria acreditar, mas estava a passar por algo que nunca experimentara na Polícia. Fazer parte de um grupo de crucificados públicos sem terem hipótese de se defenderem.

 

RESPIRAR FUNDO - II

As semanas passam até que Cristóvão recebe uma convocatória para ir prestar declarações no Departamento Técnico-Disciplinar da Polícia. Falou com os outros e todos haviam recebido a mesma convocatória. Iam falar todos na qualidade de testemunha. Como polícias experientes que eram, sabiam que esta era uma prática habitual naquele Departamento. Solicitar depoimentos na qualidade de testemunha onde o visado não se pode recusar a responder nem a faltar à verdade para depois usar essas mesmas declarações para acusar ou indiciar. Entraram no jogo e cada um explicou a sua participação e o que ocorrera naqueles dias de Outubro de 2004. Foram-lhes mostradas fotografias iguais àquelas que haviam saído no jornal. Pelo menos já sabiam um local onde elas existiam e comentaram isso mesmo uns com os outros.

Estranhando, ou talvez não, atendendo a tudo o que se estava a passar, Cristóvão recebe a notícia de que aquele Departamento, após ouvir os polícias reafirmarem os factos, abrira conclusão no processo endereçando-o ao Director-Nacional com um despacho de que havia fortes indícios de que os polícias haviam cometido o crime de Tortura Agravada.

Cristóvão pensa para si que tortura é fazer parte de uma Polícia onde os incompetentes, mesquinhos e serviçais com sede de protagonismo decidem a vida alheia assim. Nesse dia começa a germinar dentro de si a ideia de abandonar a Polícia. A Polícia não é tudo na vida, pensa. Haverá outros sítios, outros meios de ganhar a vida. Sempre teve a perfeita noção de que poderia ser o que quisesse ser na vida. Deu-se ao luxo de escolher ao contrário de muitos que agora exibiam os crachás da Judiciária. Se não fosse ali, dificilmente poderiam ser alguém noutro lado qualquer. Retomara a não-identificação com aquele ambiente, com aquela instituição onde a sacanice se tornara a regra em vez da excepção. No entanto, e como se estava a sentir realizado com o trabalho que desenvolvia na Corrupção, uma coisa contrabalançava a outra e foi isso que protelou qualquer decisão mais definitiva de Cristóvão.

 

RESPIRAR FUNDO - III

Os meses passaram até que Leonel, Cristóvão, Marques Bom, Praxedes e Carlos são chamados para serem interrogados, agora como arguidos, perante o Procurador da República de Faro. Tinham, entretanto apresentado queixa contra Leonor Cipriano e o jornal por difamação e aguardavam o desenvolvimento do processo quando tal convocatória aconteceu. Apresentaram-se no Tribunal numa manhã soalheira de 5 de Abril de 2005 e juntos compareceram perante aquele magistrado. Homem já na casa dos cinquenta, aspecto de beirão. Cristóvão olha para o Procurador e depois dos cumprimentos de circunstância pergunta-lhe:

- Senhor doutor, podia-nos explicar por que é que, estando vinte e tal pessoas no Departamento de Faro numa certa noite de Outubro de 2004, somos nós os cinco que aqui estamos para ser constituídos arguidos?

O magistrado olhou para o grupo e disse:

- A senhora Leonor Cipriano disse que os que a levaram não lhe bateram, os que a trouxeram também não lhe bateram, os mais velhos não lhe bateram, os mais novos também não, os mais magros também não e os mais gordos também não.

- Ah, muito bem - disse Meireles.

O magistrado olhou para Cristóvão e disse:

- Mas olhe que ela a si descreve-o muito bem.

- Acredito, senhor doutor - retorquiu Cristóvão -, foram muitas horas a namorar um com o outro.

Acompanhando estes polícias estava António Pragal Colaço, advogado do Sindicato dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária, homem que vive os casos em que acredita como se seus se tratassem. Os já quarenta anos começam a pesar num coração que sofre com os problemas alheios. Os óculos e o cabelo ruivo meio despenteado valeram-lhe a alcunha de Wagner numa alusão ao famoso compositor clássico. Chora, indigna-se e é aquilo que o verdadeiro advogado deve ser. Leal, competente, defensor intransigente dos direitos dos seus clientes e, acima de tudo, interessado nas causas que abraça. Tinha-se dedicado a esta com todas as suas forças por ter a perfeita convicção da inocência daqueles que representava. Filho de Sub-Inspector da Polícia Judiciária, cresceu no meio de polícias, aprendera a compreendê-los e a respeitá-los não pelo peso da autoridade, mas pelo muito que viu ser dado por homens e mulheres que depois foram descartados. Entendia os polícias e não se conformava com os bodes expiatórios em que, vezes de mais, se haviam tornado. Pragal interveio na conversa:

- Senhor Doutor, os senhores Inspectores não vão prestar declarações porque se o fizessem cometeriam o crime de Violação do Segredo de Justiça. Entenderá assim que não vão prestar quaisquer declarações.

- Bem - diz o magistrado visivelmente incomodado -, eu não tenho esse entendimento, mas...

- Pois, mas eu tenho e preferimos assim, senhor doutor. Abandonaram o local depois de terem sido identificados e constituídos na qualidade de arguidos. Ninguém do grupo entendia nada do que acontecera ali. Na realidade aquele sentimento de se estar num filme qualquer de David Lynch, com o excessivo a imperar, voltava ao pensamento de cada um. Ninguém compreendera aquela explicação. O porquê de se levar a sério a teoria de que algum deles teria torturado quem quer que fosse. O porquê de serem eles ali e não outros quaisquer. Já se estavam nas tintas. Tinham desenvolvido anticorpos, cada um à sua maneira, para lidar com esta injustiça que pairava sobre as suas cabeças. Já nem conseguiam sentir indignação. Sentiam-se como a prostituta que está deitada de perna aberta enquanto o cliente se deleita de prazer em cima dela. Ela nada sente, pensa em tudo menos no estar ali. Ela concentra-se e centra o mundo todo naquele momento. Estavam assim e não pensavam noutra coisa que não no fim daquele equívoco que, cada vez mais, lhes parecia tudo menos isso. Crescia a sensação de desnorte daquela investigação quando Leonel, depois de ser convocado para ali estar e ser constituído arguido, acabou, depois de observado pelo magistrado, por sair dali sem ser arguido e nem sequer testemunha. Mas afinal qual seria o seu papel? Ficou confuso e já deixara de tentar entender o que se passava.

 

RESPIRAR FUNDO - IV

Leonor e João haviam sido condenados, havia pouco tempo, a pesadas penas de prisão. A sentença não mereceu qualquer comemoração daquele grupo de polícias. Aceitaram-na e registaram tendo a perfeita noção do muito que contribuíram para que a condenação ocorresse. Pouco tempo depois deste episódio são convocados, pelo mesmo magistrado para irem ser reconhecidos presencialmente pela Leonor Cipriano. A convocatória determina a Esquadra da PSP de Faro para se proceder a tal diligência.

Não foram só estes polícias que se sentiram indignados com esta convocatória, foi a Polícia Judiciária e foi assim que própria Direcção-Nacional interveio, pela primeira vez, neste processo.

Não estava em causa a diligência, por muito absurda que lhes parecesse, mas simplesmente a forma e o local onde o titular do Inquérito o queria fazer.

Após avanços e recuos foi determinado que o dia 28 de Novembro de 2005 seria o dia dos reconhecimentos. Seria no DIAP de Évora pelas 14.00 horas.

Chegados a Évora, Marques Bom, Praxedes e Carlos num carro e Cristóvão e Pragal Colaço noutro, estacionaram no fundo da rua do Departamento de Investigação e Acção Penal. Leonel queria acompanhar o grupo por solidariedade, mas acabaram por convencê-lo a ficar em Lisboa assegurando-lhe que no fim lhe dariam as notícias em primeira-mão. Já numa das extremidades da rua olharam para a porta do velho edifício onde funciona aquele serviço e viram carrinhas dos serviços prisionais e mais de dez jornalistas com câmaras de filmar e máquinas fotográficas. Marques Bom diz:

- Muito bem, sim senhor. Alguém teve o cuidado de chamar os rapazinhos para aqui. Agora vamos ser o quê? Estrelas de televisão?

- Senhor Doutor Colaço - diz Praxedes num tom grave -, tenho muita pena mas com aquele circo não entro ali e penso que nenhum dos meus companheiros também o fará.

Todos concordaram que não iriam passar pela suprema humilhação pública de serem filmados ou fotografados num processo que já lhes custava qualificar, quanto mais entender.

- Pois é, isto é uma merda - concorda Colaço -, mas se não vamos o senhor ainda diz que estamos a fugir aos reconhecimentos.

- A fugir uma merda - intervém Cristóvão -, aqui ninguém foge de nada, mas a mim ninguém me obriga a passar pela passadeira vermelha. Vamos onde o senhor quiser, mas assim não!

Colaço liga para aquele Departamento e consegue chegar à fala com o Procurador de Faro que ali estava unicamente para aquele acto. Explica-lhe a renitência dos polícias em passar por mais uma vergonha. Que têm filhos e família e que não são obrigados a posar feitos criminosos para as câmaras. Combinam um encontro cinco minutos depois no edifício do Tribunal da Relação de Évora do qual estavam perto. Fica no fim da mesma rua do DIAP. Ali chegados são encaminhados por uma zelosa funcionária que, sussurrando palavras como se estivesse a agir num qualquer segredo de Estado, os encaminhou para um Salão Nobre. Poucos minutos depois chega o Procurador.

Pragal dá-lhe conta das reservas dos polícias e o magistrado propõe uma entrada pelas traseiras do edifício, local onde, segundo dizia, não era visível a presença de qualquer jornalista. Terminou a sua proposta com a pergunta:

- A não ser que estejam com medo de serem reconhecidos. Para Cristóvão fora despropositado e fora de tempo. Disse:

- Aqui ninguém tem medo de nada, senhor doutor. Vamos lá.

Percorrem uma rua de empedrado com as cabeças baixas não fosse algum fotógrafo detectar a sua manobra de diversão. Vão quase em fila indiana com o Procurador e uma funcionária judicial à frente. Sentem-se humilhados. Marques Bom recorda para si as palavras de um assessor da Direcção Nacional da Polícia uns dias antes num jantar de despedida de um colega reformado. Fora despachado com duas palmadinhas nas costas e um «boa sorte» acompanhado de um sorriso.

Cristóvão pensa, enquanto faz aquele caminho, para que estarão a servir. Os propósitos de quem. Quais os objectivos daquilo tudo. Como é que chegaram à humilhação de estarem perante uma psicopata e ter as suas vidas na mão dela apenas porque, afinal, podia escolher o que quisesse e dizer que esse lhe batera. Era tão simples como isso. A teoria de que o polícia está tão perto da prisão como o bandido, andava agora a ser experimentada de facto. Pelo caminho pensou em tudo, na sua carreira, nos seus filhos, nos seus pais, pensou em tudo o que deixou para trás para ser o que sempre sonhara. Pensou que todos os seus anos de dedicação à Polícia Judiciária culminavam ali, naquele momento, no olhar para os seus sapatos que subiam uma rua de pedras em direcção sabe-se lá aonde. Seguiam os sapatos de outro. Não sabia quem seguia à sua frente. Por três ou quatro minutos abstraiu-se de tudo o que o rodeava. Só lhe apetecia gritar bem alto nos ouvidos daquele indivíduo que os guiava que nada tinham que ver com aquilo. Pela primeira vez na sua vida colocou seriamente em dúvida se tudo teria valido a pena. Se todas as pessoas em cuja vida interviera e ajudara valeriam aquele momento.

Por fim entraram num portão que serve um pátio traseiro do DIAP. Subiram umas escadas e foram conduzidos a uma sala com vista para a frente do prédio. Colaço segue perto do magistrado e fica com ele. Cristóvão conhecia bem aquela sala

onde estavam. Já ali tivera oportunidade de ouvir pessoas em várias deslocações àquela cidade. Tinha duas secretárias, um computador, duas cadeiras e mais nada. Os minutos iam passando com os quatro ali, calados, observando a agitação que estava na rua. A certa altura entra uma funcionária e chama Praxedes. Os restantes três olham para o colega e dizem quase em uníssono «Boa sorte». Ninguém terá percebido bem porque o dissera, mas simplesmente terão achado que era a frase que se impunha naquele momento. Praxedes sai da sala e é conduzido a uma outra onde estão cerca de quinze homens. Soube-se mais tarde que eram elementos da PSP e da GNR locais e que haviam sido requisitados para participar como elementos neutros naquela diligência. O magistrado pergunta a Praxedes se quer escolher dois deles para fazer o número de três, mínimo exigido por Lei para o reconhecimento ser válido. Praxedes diz-lhe para ir quem ele quisesse e é assim que entra numa sala e escolhe a posição número três na óptica de quem o observava. Do outro lado do vidro está o Procurador, a Leonor Cipriano, uma funcionária judicial e Pragal Colaço. Leonor não reconhece nenhum dos três presentes do outro lado do vidro. Praxedes não sabe qual o resultado. Volta à sala. Estava calmo e sereno.

- Então? Correu tudo bem? - pergunta Carlos.

- Pois não sei - responde Praxedes -, daqui a bocadinho já se vê.

Seguidamente Marques Bom é chamado. Volta passados cerca de cinco minutos à sala. Diz:

- Ora muito bem - sorri -, já estou despachado desta merda.

A funcionária chama Cristóvão. Leva-o até uma sala onde estão aqueles polícias todos. O procurador diz-lhe para escolher dois. Cristóvão recusa. Pensa para si que não é o arguido que tem que cuidar do cumprimento do Código de Processual Penal para que os indivíduos que estão consigo num acto daqueles tenham que possuir as maiores semelhanças possíveis consigo. Nunca o havia dado a escolher aos seus arguidos e como tal pensava que quem organizara aquilo é que tinha que cuidar do bom andamento do evento que organizara. Entrou na sala de reconhecimentos com outros dois homens. Um com vinte centímetros menos que os seus l,86m e outro com seguramente 30 quilos a menos que os seus 106 quilos. Nada disse. Não era da sua responsabilidade aferir da legalidade do acto. Manteve-se quieto. Do outro lado do vidro ouviu «três». Era uma voz de mulher quase sumida, mas tinha a certeza do que ouvira. A sua posição era a número três. Não pensou em nada, nada. Saiu da sala quando o mandaram e dirigiu-se para a outra sala onde os restantes o aguardavam. Seguidamente e, por último, Carlos foi fazer a diligência. Enquanto tal decorria, Cristóvão disse para Marques Bom:

- Bem, companheiro, a mim reconheceu-me. Ouvia-a do outro lado a dizer o meu número. O que disse depois é que não sei.

Meireles efectivamente conseguia retirar um coelho da cartola, quando menos se esperava e nos momentos mais difíceis como eram estes que estavam a atravessar. Disse:

- Eh pá, já sabes... gosto da Colgate como pasta e do creme de banho Lux...

Cristóvão não entendeu e deu conta disso mesmo a Marques Bom, ao que este explicou:

- Então., quando formos todos parar ao Presídio de Santarém, já sabes do que gosto - sorriu.

- Eh pá, só mesmo tu numa altura como esta... concluiu Cristóvão.

Pouco depois, Carlos regressou à sala. Estava branco. Dizia:

- Estou lixado com isto, pá. Que grande merda esta. Acho que a gaja me apontou.

- Deve ter sido à sorte, rapaz - diz Marques Bom - descansa que vamos todos para Santarém e nem sabemos porquê, mas tudo bem, quando sairmos ajustamos contas está bem assim?

Marques Bom tenta manter o grupo animado, apesar disso nota-se que, mesmo ele, está ansioso por saber o que se havia passado efectivamente do outro lado do vidro.

Estão assim, cada um com os seus próprios pensamentos. Calados. Tensos. Preocupados com as consequências que advirão daquele dia, quando ouvem passos apressados que cada vez se aproximam mais da porta da sala onde estavam. A porta da sala abre-se como que impelida por um tornado. É Pragal Colaço. Entra, fecha a porta atrás de si e dá um murro no tampo da mesa que se encontrava mais perto de si. Os quatro olham espantados uns para os outros e pressentem que irá sair daquela boca algo de mau.

- Então, que se passa? - pergunta Cristóvão.

- Passa-se que está tudo bem e Deus afinal às vezes até gosta de polícia e de justiça, caraças - exulta Colaço, e continua: - Então a senhora Leonor não reconheceu o Marques Bom, não reconheceu também o Carlos, na fila do Praxedes reconheceu um PSP como tendo estado em Faro, e, por fim, reconheceu aqui o Cristóvão como sendo um dos Inspectores que havia estado em Faro, mas declarando expressamente que nunca lhe batera.

No momento em que Pragal Colaço está a relatar tudo isto ao grupo, Cristóvão vira-se para a janela, olha para o céu e na-quele segundo preciso toma uma das decisões mais importantes da sua vida. Vai sair da Polícia. A sua vida toda tinha estado, minutos antes, nas mãos de Leonor. Por acaso tinha dito a verdade. E se não o tivesse feito? O que aconteceria naquele dia? Estariam a preparar-se para deter polícias naquela tarde? Estes pensamentos alicerçam outros em Cristóvão. Pensava que era melhor que aquele esterco todo de politiquices em que estava metido. Podia fazer melhor noutro lado qualquer, fosse onde fosse. Queria sair daquilo tudo, lavar a alma e seguir em frente. A decisão estava a nascer dentro de si há muito tempo e este último acto de ter que respirar fundo antes que explodisse foi precisamente a gota d’água. Chegara ao fim da linha como nunca imaginara acontecer. Desde que entrara para a Polícia, dezassete anos antes, não se imaginava a ser, respirar ou viver outra coisa que não a Polícia Judiciária. Esta trouxera-lhe muita realização mas, agora, muita frustração também.

Pensava que aqueles que mais nada conseguem ou podem fazer teriam que se resignar a um destino. Ele acreditava em si e na capacidade de fazer um projecto dentro daquilo que gostava mais de fazer na vida. Investigar. Saber o que está por detrás das cortinas. Toda a gente quer o que está para além do que a vista alcança e Cristóvão podia usar todos os conhecimentos e experiência acumulados ao longo de anos para, agora sim, se dedicar e ser recompensado. A ideia agradava-lhe e foi nela que pensou durante uns minutos naquela sala.

Lembrou-se de ligar ao seu pai. Sabia que ele estava a sofrer bem mais que o filho. Ambos tinham a terrível mania de não exporem em público o que sentiam dentro de si. Contou-lhe o que havia acontecido e do outro lado ouviu um alívio incontido. Estavam os dois felizes. Cristóvão não queria mostrar a decisão que acabara de tomar até pelo orgulho do pai pelo facto de o filho ser da Polícia Judiciária. Teria que ser algo no momento certo e aquele não o seria seguramente.

O procurador entra na sala com os vários autos de reconhecimento para os polícias assinarem. Cada um lê atenta e calmamente o seu e seguidamente assina-o. Cristóvão lê aquelas duas folhas até que chega precisamente à parte em que Leonor diz: Reconhece o indivíduo colocado na terceira posição como tendo estado em faro. O mesmo nunca lhe bateu. Assina a segunda folha e rubrica a primeira.

Enquanto Pragal Colaço enfrenta os jornalistas à porta do DIAP, o grupo saiu como entrou, pelas traseiras. Ficaram junto aos carros esperando o causídico chegar. Vinte minutos depois chegou ele. Estava feliz. Rumaram todos a Lisboa.

Pelo caminho Cristóvão telefona a Leonel e informa-o do que se passara. O velho polícia desabafa:

- Companheiro Cristóvão, dá um grande abraço a todos por mim e cá nos encontraremos em Lisboa para irmos todos beber um copo juntos.

 

2006 - 2007

Novembro de 2006. Leonel cumprira a promessa e via a sua pretensão de se reformar cumprida. Estava na altura de dedicar algum tempo àquelas que durante anos se viram privadas da sua presença. As suas filhas. Saíra amargurado da Polícia. Rejeitou o tradicional jantar promovido por colegas e amigos de muitos anos. Saiu discreto como entrou. Queria estar de bem com tudo e com todos, mas nem sempre tal é possível. No seu caso não foi. O tratamento que lhe foi dispensado nos últimos anos da sua carreira não foi condigno com tudo o que dera à Polícia e à Sociedade. Criou demasiados anticorpos na casa com a sua peculiar forma de estar e sentir a polícia. Nunca se arrependeu. Teve momentos bonitos de realização pessoal. Cristóvão nunca esquecerá diligências conjuntas em que no calor da investigação, das vigilâncias e dos seguimentos que antecedem as detenções, via Leonel a conduzir com uma mão, segurando o telemóvel com a outra, cigarro na boca. Era assim, denso, imperfeito, às vezes bruto com alguns subordinados, leal, filho da cidade da Guarda. Transportara para a vida e para o trabalho a rudeza dos seus tempos de criança. Era tudo isso e mais alguma coisa, mas no dia em que saiu da porta da DCCB para nunca mais voltar, a Polícia perdeu um bocado de si.

Fevereiro de 2007. Cristóvão consumou a decisão que tomara em Novembro de 2005. Solicitou uma licença sem vencimento de longa duração com a firme intenção de jamais voltar à Polícia Judiciária. Saiu com a satisfação de ter saído quando quis e como quis. Estava determinado ao ponto de, se não lhe fosse concedida a licença, sair definitivamente da Polícia. Fez um projecto empresarial. Criou o seu próprio negócio de consultoria e virou costas àquele mundo. Um grupo de vinte colegas reservou-lhe um almoço-surpresa na Portugália. Saiu com a perfeita noção de que tinha dado o melhor de si durante anos a fio e que a Polícia lhe proporcionara momentos que jamais esqueceria. Não iriam ser os três últimos anos a manchar um excelente álbum de sucessos profissionais. Curiosamente e sempre que lhe falavam no caso de Joana assumia orgulhosamente a sua participação naquela investigação. Junho de 2007. Cristóvão encontra-se a almoçar numa quinta-feira, dia 7. Uma e meia da tarde. O telemóvel toca. No visor aparece «Pragal Colaço».

- Muito boa tarde, excelentíssimo senhor Colaço - diz Cristóvão em tom de brincadeira.

- Tu não me digas nada, Cristóvão... sabes a melhor? O tom de voz do advogado sugeria algo grave.

- Diz, força...

- Tu, o Leonel e o Marques Bom foram acusados de tortura à Leonor... uma coisa do outro mundo Cristóvão. Diz aquele senhor que vocês congeminaram um plano para mandar uns gajos quaisquer bater à mulher, já viste isto? Eu vou levantar um eu de boi com isto que nem imaginas... isto é de loucos.

- Estás a brincar, certo? - questiona Cristóvão

- Antes estivesse, mas não fiques preocupado porque vamos ter acesso ao processo e depois vamos reunir e falar na abordagem que aquilo merece, ok?

- Eh pá, ok... está bem. Cristóvão está literalmente petrificado e sem reacção.

A revolta que Cristóvão sente naquele instante fá-lo compreender aqueles que num momento da mais inusitada injustiça não conseguem impedir-se de sair da racionalidade e fazerem os maiores disparates nas suas vidas. Não acredita como é que decorreu algo que culminou com a vergonha pública de ser acusado do crime de Tortura. A Joana estava esquecida por todos. O que vendia agora era os Inspectores torturadores. Pois que fosse assim então, pensava. Mais uma luta de muitas que já travara. No dia seguinte leu a peça processual que o apontava, ao Marques Bom e a Leonel como mandantes de actos de tortura sobre Leonor. Mandantes de quem, o Ministério Público não sabia. Quando ocorreram também não. Em que circunstâncias igualmente não sabia. Escolhera os dois polícias que assinaram mais expediente e o Chefe que comandava aquele grupo. António seria igualmente acusado de ter falsificado uma informação de serviço e Gonçalo de omissão de auxílio. Quando julgava já ter visto tudo, Cristóvão espantava-se com a natureza humana e as coisas que a mesma conseguia, por vezes, fabricar.

 

ATÉ SEMPRE JOANA

Leonel combinara encontrar-se com Marques Bom, Cristóvão e Pragal Colaço porque queria desabafar o que lhe ia na alma. Acabam por se encontrar os quatro às dez da noite da quinta-feira seguinte. O local era junto ao Tejo. No parque de estacionamento contíguo às Docas. Junto do local onde têm os carros parqueados existe um banco em cimento mesmo junto ao Tejo. Sentam-se lado a lado os quatro. Ao longe ouvem-se as batidas das discotecas. As pessoas divertem-se. O Verão, mesmo tímido, havia chegado e as pessoas saem da toca. Cada uma com os seus problemas, é certo, mas indiferentes àquele grupo de quatro homens que, sentados ao lado uns dos outros, olham para a corrente do rio lentamente a passar e espelhando a lua cheia daquela noite. Colaço debruça-se e coloca os cotovelos sobre os joelhos.

- Isto é uma puta de vida, meus amigos - diz. - Será que já não há ninguém com bom senso neste mundo? Estou mesmo farto desta merda... a sério que estou.

- Pois é - diz Cristóvão. - E o pior é que mesmo quando nos afastamos do esterco, ele vai atrás de nós. Nunca mais ninguém se lembrou da pequena grande Joana. Isso que se lixe. O prato do dia parece que vamos ser nós. Mas uma coisa é certa companheiros, a Joana, pelo menos para mim e sem nunca a ter conhecido, marcou-me como tudo...

- Marcou tudo, caraças, menos aquela merda de família onde foi bater quando nasceu... teve azar - diz Marques Bom.

- Mas vocês estiveram bem, caraças; honraram a camisola e fizeram muito mais que muitos fariam e só por isso mereciam um louvor e não andar a passar por merda desta - continua Colaço.

Os quatro falam entre si sem se olharem. Fixam o rio. A ponte sobre o Tejo é um símbolo do dia em que atravessaram o rio em direcção ao destino de alguém. Em direcção ao destino de Joana. Nunca quiseram dar-lhe um final apoteótico. Somente queriam fazer cumprir o destino que merece uma criança. Qualquer uma. Joana marcou-os a todos, cada um à sua maneira. O destino, a sina, a estrela de alguém são ditados pelo meio que nos envolve e não por qualquer determinação esotérica. Se Joana teve a sua estrela foi porque alguém próximo de si, e que tinha por obrigação legal e moral de si cuidar, assim o ditou. Restava acreditar que estivesse melhor agora do que antes. Que estivesse a olhar pelo menos para estes polícias e acreditasse que fizeram o melhor que sabiam e podiam para que pelo menos o seu fim fosse claro. Ela merecia ser uma estrela. Foi-o pelos piores motivos mas, se é verdade que quando morremos nos transformamos numa estrela, a de Joana brilhará muito mais do que as daqueles que não cuidaram de si.

Cristóvão lembra-se que não ouviu a voz de Leonel neste breve diálogo. O velho polícia está com o tronco inclinado, braço esquerdo apoiado na perna esquerda, fuma o seu cigarro em passas prolongadas. Fixa um ponto qualquer no rio que passa. Ao longe o barulho das festas nas discotecas. Gente divertida. A noite é de farra. Leonel não parece estar ali. Cristóvão consegue ouvi-lo murmurar a palavra Coitadita. Leonel deixa escapar uma lágrima que se apressa a disfarçar simulando, com a mão, que está com qualquer insecto na cara. Fica envergonhado. Não é seu ser choramingas. Um beirão não deve chorar.

Cristóvão olha para o céu. Está estrelado. Limpo. Uma estrela cadente, coisa rara de ver numa cidade poluída, rasga o céu. Para si é Joana que lhes agradece. O já ex-polícia sorri para o céu e diz, enquanto acompanha a sua trajectória:

- Até sempre grande Joana... até sempre.

Em 11 de Novembro de 2005, o Tribunal Judicial da Comarca de Portimão condenou Leonor Cipriano à pena de 20 anos e 4 meses de prisão e João Cipriano a 19 anos e 2 meses de prisão pelo Homicídio Qualificado e Ocultação de Cadáver de Joana Cipriano.

Em Maio de 2006, o Supremo Tribunal de Justiça determinou a pena única de 16 anos de prisão para cada um dos irmãos Leonor e João.

 

                                                                                Paulo Pereira Cristóvão  

 

                      

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