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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESTRELA DE LANCASTER / Jean Plaidy
A ESTRELA DE LANCASTER / Jean Plaidy

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

OS MUROS do convento erguiam-se serenos e belos em meio à verde campina. Perto dali estavam os muros cinzentos do castelo de Pleshy, moradia da garotinha que estava sentada à mesa, com o livro de estudo aberto à sua frente. Como era silencioso no convento, estava ela pensando. Havia, ali, uma tranquilidade que ela achava muito reconfortante, ainda mais porque ela passara a perceber um certo tumulto no castelo.

Mary sempre tivera um pouco de respeito temeroso por Eleanor, sua irmã mais velha, e talvez mais ainda por Thomas, marido de Eleanor. Ele era um homem muito importante, claro; e Eleanor tinha orgulho de ser sua esposa. Ela estava constantemente lembrando à sua irmãzinha que os filhos dela seriam de sangue real, porque Thomas era filho do rei.

 

 

 

 

Era verdade. Thomas de Woodstock, como as pessoas o chamavam por causa do lugar onde ele nascera, era na verdade conde de Buckingham e filho caçula do rei Eduardo e da rainha Filipa. Mary se lembrava de quando ele e Eleanor se casaram. Seu pai era vivo, então, e houvera muita alegria no castelo, porque se tratava de um brilhante casamento para os de Bohun, muito embora Humphrey de Bohun fosse um homem muito rico, possuindo, além do castelo de Pleshy, os de Monmouth e Leicester e uma mansão na cidade de Londres; e, embora tivesse sido devido à sua imensa fortuna que o casamento fora aprovado pela família real, os de Bohun tinham ficado perfeitamente cientes da honra que lhes fora concedida.

Depois, tudo mudara porque seu pai - Humphrey de Bohun, para dar o nome completo - morrera e sua vasta fortuna seria dividida entre as duas filhas, pois não havia herdeiro homem. Assim, Eleanor, mulher do Thomas de sangue real, e Mary, de dez anos de idade, tornaram-se as herdeiras mais ricas da Inglaterra.

Eleanor estava encantada com isso; Thomas também; Mary estava perplexa com a agitação deles. Que diferença fazia para elas?, perguntava-se ela. Tinham sido ricas antes. O que mais poderiam querer?

Quando ela perguntava isso, Eleanor lhe dizia, com rispidez, que não fosse ingénua, e ela ficava desanimada, porque sempre fora muito cônscia da condição de mais velha de Eleanor. Eleanor sempre a fizera ciente disso, mesmo antes da morte do pai. Ela era muito mais velha, salientava Eleanor, e Mary não passava de uma criança. Mary devia fazer o que lhe mandassem as pessoas que tinham maior experiência, e isso, naturalmente, significava uma irmã mais velha.

Remoendo, agora, sobre aquela época enquanto ficava sentada dentro dos pacíficos muros do convento, os livros esquecidos à sua frente, ela pensava em tudo o que acontecera desde a morte do pai e na atitude de Eleanor e seu marido para com ela. Era como se estivessem planejando alguma coisa.

O pensamento fazia com que ela se sentisse ligeiramente aflita, e mais do que nunca ela percebia como era agradável estar num convento entre as delicadas freiras. Dali a pouco, uma delas daria uma olhada em seu trabalho. Se estivesse bom, pouco se comentaria, porque ficava implícito que se esperava que estivesse; se tivesse sido feito com falta de cuidado ou revelasse ignorância das matérias escolhidas, haveria uma suave reprimenda, que, por estranho que parecesse, a magoava mais do que a raiva e o desprezo.

Mary gostava das freiras; gostava do convento; a atmosfera a fascinava. A abadessa dissera-lhe que as Claras Pobres viviam apenas para servir. Elas se deslocavam pelo convento como cinzentos fantasmas silenciosos, porque se quisessem falar umas com as outras, primeiro tinham de receber permissão da abadessa. Elas dormiam em estrados duros; jejuavam; obedeciam a rigorosas leis de pobreza; e era de seu dever esquecerem-se de suas próprias necessidades e dedicarem o tempo a cuidar dos doentes e dos pobres.

Muitas vezes, Mary comparava a vida delas com as pessoas que viviam no castelo que era seu lar. Eleanor gostava de luxo, e o mesmo acontecia com Thomas, que fora acostumado a ele a vida inteira, pois o pai mantivera uma corte extravagante e a do rei Ricardo, segundo se dizia, era ainda mais luxuosa. No entanto, ali, entre os muros do convento, as Claras Pobres dormiam nos estrados duros, negavam-se a comer, consumindo apenas o que fosse necessário para mante-las, a fim de que pudessem continuar seu trabalho, e Mary muitas vezes pensava como era estranho que pudessem haver tantas diferenças nas vidas das pessoas.

Eleanor adorava roupas ricas, e suas costureiras viviam trabalhando em novos trajes para ela. Passava horas discutindo quais as duas cores que combinavam-porque todos os seus vestidos eram de duas cores, agora, de acordo com a moda -, e finas sedas eram colocadas junto e combinadas. Seus vestidos colados no corpo eram realmente muito vistosos, e muitas vezes decorados com pedras preciosas. As mangas soltas ficavam cada vez mais compridas com cada vestido novo, e ela sentia prazer em esconder os cabelos-que eram lisos e não muito abundantes - sob uma touca muito elaborada.

Muitas vezes, Mary pensava no que as freiras poderiam ter feito com o dinheiro que sua irmã gastava com tanta liberalidade para enfeitar-se. Ela costumava compará-la com as freiras nos seus hábitos de cor cinza, sem formas e soltos, presos pela cintura com as cordas de linho que eram atadas com quatro nós para representar os quatro votos que elas faziam e para lembrá-las deles. Mary comparava a serenidade das freiras com a irrequieta atividade da irmã, e parecia claro quem achava a vida mais satisfatória.

Não foi uma das freiras que a procurou, mas a própria abadessa. Mary ficou impressionada e achou que uma visita daquelas devia ser por um motivo importante.

- Bem, minha filha, você já terminou seus deveres de hoje

- disse a abadessa.

Ela pegou os livros e olhou para eles; depois, seus olhos penetrantes fixaram-se na menina.

Uma bela menina, pensou ela. Herdara mais do que o normal da boa aparência da família. Os de Bohun tinham sido benfeitores do convento durante anos, e era natural que aquela garotinha lhes tivesse sido entregue para que elas pudessem educá-la. Aquilo acontecia com muitas crianças de alta estirpe, e elas deviam aceitá-lo com prazer. As famílias nobres eram o sangue que as mantinha vivas. Elas precisavam do amparo daqueles que, em tantos casos, pensavam em pagar seus pecados fazendo doações a um convento e sustentando-os pela vida inteira. Era irónico o fato de locais sacros como aquele dependerem tanto de pecadores, e mais ainda, de modo que quanto maiores os pecados cometidos, mais vultosas poderiam ser as doações.

Ela agora era responsável pela educação daquela menina; mas sabia que o ambicioso Thomas de Woodstock e sua igualmente ambiciosa mulher a tinham enviado para lá com alguma finalidade.

Seria bom, para o convento, se aquela finalidade fosse bemsucedida; mas a abadessa não queria que o fosse, a menos que se tratasse do melhor que pudesse acontecer à menina. com seus cabelos pretos e seus delicados olhos de corça, o rosto em forma de coração e as feições delicadas, ela mostrava sinais de uma verdadeira beldade. Sua natureza era delicada mas alerta; ela seria uma mulher constante, mas a abadessa estava em dúvida.

Por enquanto, pensou, ela é criança demais para decidir.

- Está um belo dia - disse ela, animada. - Vamos passear um pouco pelo jardim.

Aquilo era estranho. A abadessa nunca passeara com ela pelo jardim antes, mas uma coisa que Mary aprendera no convento era não fazer perguntas, de modo que fechou os livros imediatamente e levantou-se.

Seguiu a abadessa pelos corredores de pedra. Passaram por freiras de pés silenciosos que, preservando seu silêncio, não falavam. No jardim, onde legumes e ervas

eram criados, três freiras trabalhavam: não ergueram os olhos. Na padaria seria a mesma coisa, como na lavanderia e na cervejaria. Estavam todas trabalhando sem parar e em silêncio, como estariam nas despensas onde as ervas estavam sendo transformadas em remédios para uso dos pobres.

- Está vendo, minha filha - disse a abadessa -, aqui estamos trabalhando para os outros. Nossa missão na vida é servir a Deus por intermédio de Seus filhos desafortunados.

- Sim, senhora abadessa, há muito tempo que sei disso.

- E você acha que se trata de uma vocação meritória?

- Oh, acho sim, senhora. Acho.

- Há algumas que fazem seus votos talvez cedo demais e, mais tarde, lamentam tê-lo feito. O mundo é um lugar sedutor, minha filha.

- Ele está cheio de maldade, minha senhora.

- E o que você sabe sobre essa maldade? Diga-me. Mary ficou calada e a abadessa sorriu.

- Você nada sabe sobre o mundo, a não ser aquilo que ouviu dizer. Mas viu um pouco como é a vida de uma freira. E acha que é uma vida boa?

- Oh, acho, minha senhora.

As duas andaram em silêncio por alguns instantes, e então a abadessa disse:

- Que idade você tem?

- Tenho dez anos.

- É cedo demais para tomar decisões que afetariam sua vida inteira.

- Que decisões, senhora?

- O senhor conde disse que se você quisesse juntar-se a nós, ele não faria objeções.

- Juntar-me... às senhoras aqui.

- Tornar-se uma de nós. O que acha, Mary?

A menina ficou em silêncio. Levar a vida de uma freira! Trabalhar para os pobres! Falar só quando tivesse permissão! Ela não sabia o que dizer. Quando entrara na calma do convento, sentira uma felicidade envolvê-la. Isso porque Eleanor dissera algo que ela achara indelicado; e estava cônscia dos atritos em Pleshy. Seu cunhado vivia zangado com alguma coisa. Ele e a irmã dela estavam sempre discutindo alguma ofensa e garantindo um ao outro de que chegaria o dia em que eles seriam vingados. Aquilo a deixava aflita; e por isso gostava de se afastar. Mas viver ali para sempre... sem nunca saber o que realmente acontecia no mundo...

- Minha querida - disse a abadessa -, não fique assustada. Levaria anos até que algo fosse feito. O duque de Lancaster é seu guardião e teria de dar o consentimento, é claro. Os planos dele poderiam ser diferentes dos de seu cunhado e sua irmã. Mas muita coisa depende da sua vontade, porque nós não iríamos querer que você ficasse aqui contra a vontade. Lembre-se de que a decisão é sua, mas se comenta que é uma vida indicada para você, e pensei em lhe dizer isso, para que você passe a nos observar e à nossa maneira de viver com mais atenção. Acho que nunca é cedo demais para pensar nessas coisas.

- Obrigada, senhora. vou pensar nelas.

- É bom. Creio que o seu cavalariço está esperando nos estábulos para levá-la para Pleshy.

A abadessa entrou no convento, e Mary seguiu para os estábulos, onde seu cavalo já estava preparado.

No solário de Pleshy, Mary estava bordando uma toalha de altar para a capela quando sua irmã se aproximou. Eleanor estava grávida; tinha esperanças de que fosse um menino; tinha uma menina com cerca de um ano de idade, e considerava-se maltratada pela vida porque a primogénita não fora menino.

Ela sentou-se ao lado de Mary e disse:

- Você parece muito feliz. Mas sempre fica assim depois que volta do convento. Pelo visto, você adora aquele lugar.

- Eu gosto. Lá é muito agradável, e as freiras são muito delicadas. Elas são muito boas, sabe, Eleanor?

- Eu sei, sim. Não há ninguém mais digna do que elas no mundo. Alguns de nós temos deveres em outras direções.

Ela suspirou como se deplorasse ter de ser uma grande dama, ir à corte, usar trajes vistosos, e como se teria considerado um grande privilégio se lhe tivessem permitido vestir o hábito de cor cinza das Pobres Claras e dedicar-se aos necessitados.

Ora, isso era demais para Mary aceitar. Eleanor desfrutava por completo sua vida mundana, mas estivera planejando alguma coisa havia algum tempo, e Mary estava começando a compreender do que se tratava. Eleanor queria que ela entrasse para um convento; na verdade, estava tentando convencê-la a isso. Suas palavras seguintes confirmaram suas suspeitas.

- Oh, Mary, estou começando a achar que você é mais afortunada do que eu. Acredito, mesmo, que Deus está lhe dando uma chance de levar uma vida muito digna.

- Você está falando em entrar para um convento? Ser freira?

- Vejo que você é só alegria ao pensar nisso.

- Não, Eleanor. Isso não é de todo verdade. Acho, sim, que as freiras são boas e eu gostaria de ser igual a elas...

- Ora, então, irmã, não é isso o que está dizendo?

- Mas existem outros prazeres no mundo. Quando brinco com Anninha, penso no quanto você é afortunada em tê-la, e depois há o novo filho que está chegando. Eu adoro a paz do convento, mas adoraria ser mãe, também... ter filhos como Anne.

- Que absurdo! - disse Eleanor, ríspida. - Ter um filho não é nada agradável, isso posso lhe garantir.

- Sei que é uma provação, mas a recompensa é grande Às vezes acho que a coisa mais maravilhosa do mundo é ter um filho.

- Você está falando de coisas das quais não sabe nada - disse Eleanor, com rispidez. -Acho que você devia começar a pensar na possibilidade de entrar para o convento. Eu poderia falar com a abadessa.

- Eleanor, você já falou com a abadessa?

- Conversamos sobre seu futuro, é claro.

- E a nossa mãe?

- Ela não opinou, mas estou certa de que ficaria feliz se você adotasse a vida santa.

- Penso que ela iria respeitar minha vontade quanto a isso

- disse Mary, com ar espirituoso.

Eleanor arregalou muito os olhos.

- Mas não é isso que todos queremos? - perguntou ela.

- Neste caso - replicou Mary, séria -, cabe a mim decidir, e ainda tenho algum tempo para pensar no meu futuro.

- Claro que tem - retorquiu Eleanor. - Mas acho que você ficaria muito feliz ao sentir que se decidiu sobre ele.

Mary ficou calada. Eleanor ficaria muito, muito feliz, disso estava certa, se ficasse resolvido que sua jovem irmã seria freira.

Thomas Woodstock, conde de Buckingham, cavalgou para Pleshy a fim de se despedir da mulher, antes de partir para a França. Não estava contrariado por ir, porque era um aventureiro por natureza e tinha o desejo plantageneta de entrar em combate. Acabara de chegar do triunfo que obtivera quando, pouco antes do Natal, capturara oito navios espanhóis ao largo de Brest. Egoísta, impulsivo, dado a imprudências, Thomas ansiava por estar no centro dos acontecimentos.

Eleanor compreendia bem isso. Ela compartilhava de suas ambições. Recebeu-o calorosamente e logo mandou que fosse servido o melhor dos almoços e que os menestréis dessem o máximo. Ela sempre insistira que deviam receber as mais recentes canções da corte, e como não estavam longe de Londres e Westminster, em geral ela conseguia o que queria.

Eleanor entrara para a realeza ao se casar, e não se esquecia disso nem deixava que ninguém mais se esquecesse.

Era um bom casamento do ponto de vista tanto do marido como da mulher. Thomas gostava da ambição dela e de sua aprovação a todos os empreendimentos dele, e ficava satisfeito com o fato de ela estar tão cônscia da realeza que ele lhe concedera.

Em seus aposentos, ele contou a ela sobre seus sucessos no mar - evitando a parte na qual a esquadra que ele comandava fora dispersada por uma tempestade.

- vou ajudar o duque de Bretanha - explicou ele. - Ele está nos entregando o castelo de Brest, para usarmos enquanto a guerra durar. Mas os franceses irão toma-lo, a menos que eu chegue a tempo de defendê-lo.

- Você conseguirá - disse ela. - Confio em que Ricardo fique agradecido por tudo o que você faz por ele.

-. Agradecido! Ele aceita tudo como sendo um direito dele, e pouco sabe a respeito dos assuntos. Ele não passa de um menino. Um menino, rei da Inglaterra!

- Deveria ter havido uma regência - disse Eleanor.

- Ah, minha querida, o que você diz é verdade.

- Embora você saiba que Lancaster teria ficado no comando.

- Ele teria tentado ficar. Eu teria evitado isso.

Eleanor fez um gesto afirmativo com a cabeça, com ar solene. Praticamente não havia amor entre os dois irmãos. John de Gaunt, duque de Lancaster, era tão ambicioso quanto o irmão. Os dois ressentiam-se amargamente pelo fato de não terem sido os mais velhos dos filhos de Eduardo. Teria sido diferente se o Príncipe Negro tivesse continuado vivo. Teria subido naturalmente ao trono e não teria havido dúvida alguma quanto ao seu direito de estar ali. Mas o filho dele, aquele menino - delicado e efeminado -, era totalmente contra-indicado para o destino que lhe haviam atribuído; e era uma irritação fora do comum que aquilo acontecesse quando Eduardo III tivera outros filhos homens além do Príncipe Negro. John de Gaunt e Thomas de Woodstock acreditavam ser mais indicados para tomar a coroa. Quanto ao terceiro irmão, Edmund de Langley, não era ambicioso, preferindo viver tranquilamente no interior. Mas John e Thomas viviam se acotovelando na tentativa de agarrar o poder, e era irritante, para os dois, ter de aceitar o insignificante sobrinho como rei deles.

Thomas era um homem que remoía as injustiças que sofria; nunca esquecia nem perdoava uma desfeita; e quando John de Gaunt indicara o próprio filho, Henrique de Bolingbroke, para a Ordem da Jarreteira, e o falecido pai

deles, Eduardo III, concedera o título a Henrique, Thomas ficara consumido pelo ódio ao irmão - porque houvera dois candidatos à Ordem: o próprio Thomas e Henrique de Bolingbroke, e para consegui-la para o filho, John de Gaunt tivera de afastar o irmão. Não, aquilo jamais deveria ser perdoado.

- Bem, minha querida - disse ele -, minha estada aqui vai ser curta. Quando eu voltar, nosso filhinho já deverá ter nascido.

- Você terá notícias assim que o bebé chegar - prometeu Eleanor. - Como espero que dessa vez seja um menino!

- Se não for, dispomos de muito tempo. Cuide bem de sua saúde, querida. E Mary... já deu algum indício?

- Tenho esperanças de que ela se manifeste em breve. Ela se sente feliz no convento. Mas a abadessa acha que ela deve esperar um pouco para não tomar uma decisão precipitada.

- A abadessa devia cuidar dos assuntos que lhe dizem respeito.

- É possível que ela considere que os votos de Mary lhe dizem respeito.

- Depois que ela os tiver feito, sim. A menina precisa ser persuadida.

- Estou fazendo o possível. Mary ainda é criança, e se ao menos pudermos convencê-la antes que...

Eleanor franziu o cenho.

- Você está pensando em caçadores de fortunas - disse Thomas. - Minha querida esposa, ninguém poderia casar-se com ela sem nos consultar.

- Você se esqueceu de seu irmão. Ele é o guardião dela.

- Meu irmão está ocupado com outros assuntos. Passa muito tempo com a amante. Eu gostaria de saber o que essa Catherine Swynford tem que o enfeitiça desse jeito. Não há dúvida de que ele está enfeitiçado por essa mulher.

- Acha que ela é uma feiticeira... Thomas deu de ombros.

- Se fosse, teria feito com que ele se casasse com ela, sem dúvida. Ele a conheceu quando Blanche morreu. Mas se casou com Constanza, não foi?

- Porque tinha esperanças de conquistar a coroa de Castela.

- Sim, John tem com que se ocupar. Duvido que ele pense muito na pequena Mary de Bohun.

- Neste caso, é apenas uma questão de persuadir Mary.

- Vai chegar o dia - profetizou Thomas - em que ela entrará para o convento e então tudo será nosso, minha querida.

Os olhos dele brilhavam ao pensar naquilo. Os de Eleanor, também.

Ela acabaria persuadindo Mary. Sempre a persuadira.

Thomas partiu para a França. Mary voltou para suas aulas no convento. Tornara-se muito cônscia de tudo o que acontecia à sua volta e começava a acreditar que a paz do convento seria muito atraente.

John de Gaunt tinha ido para o castelo de Arundel, onde estava sendo recebido por seus bons amigos, o conde e a condessa.

John voltara recentemente da Escócia, onde negociara a paz com os escoceses e levara o filho, Henrique de Bolingbroke, com ele. Henrique estava com cerca de quatorze anos, era um menino robusto e bem-apessoado, e o pai tinha muito orgulho dele.

Em breve, pensara ele, terei de arranjar uma esposa adequada para ele. Seria alguém que pudesse trazer-lhe riqueza. Aquilo era necessário. Quanto mais rico fosse um homem, maior seu poder. Seu irmão, Thomas, saíra-se muito bem com a herdeira dos Bohun. Aquelas jovens Bohun seriam as duas mais ricas do reino. Não era de admirar que Thomas tivesse ficado muito presunçoso depois do casamento.

John sabia muito bem qual era a extensão da fortuna dos Bohun, pois a mais moça estava sob sua tutela. O rei concederalhe aquele presente - porque de fato era um presente, já que a tutela era acompanhada por uma doação de cinco mil marcos, que Ricardo entregara a ele a título de compensação por alguns pagamentos que lhe eram devidos. Thomas não gostara disso. John deu um sorriso sinistro ao pensar na contrariedade de Thomas. Sem dúvida, não queria que o irmão soubesse demais sobre a herança dos Bohun. Além do mais, aquilo dava a John o controle do futuro de Mary.

Enquanto subia a alta colina circular sobre a qual ficava o castelo, os pensamentos dele estavam no irmão, e ficou imaginando que maldade estaria tramando agora. Lá se foi ele pela ponte levadiça e sob a grade levadiça entrou no castelo, onde o conde o esperava. John de Gaunt era o homem mais poderoso do país - depois do rei; e Ricardo ainda não passava de um menino.

Fora a condessa que abordara o assunto das jovens de Bohun. Era tia delas e estava muito interessada no futuro das duas porque ouvira um boato de que a mais nova estava pensando em entrar para um convento.

Após o almoço, os menestréis tocavam na galeria; muito vinho bom fora consumido, e a conversa estava sendo digressiva.

- O senhor é o guardião de minha sobrinha, senhor de Lancaster - disse a condessa. - Não tenho dúvidas de que teria sido informado se Mary tivesse decidido fazer os votos.

- Não ouvi nada sobre isso - replicou John. - E acho que a menina é demasiado jovem para tomar uma decisão dessas.

- Não duvido - interpôs o conde-que esteja sendo suavemente persuadida de que a vida no convento é a indicada para ela.

- Persuadida! - bradou a condessa.

- Bem - disse o conde -, vejam o que Buckingham ganharia com um ato desses. Não a metade das propriedades dos de Bohun, mas a totalidade delas, ficaria para Eleanor. Pelo que ouvi dizer, trata-se de uma mulher muito inteligente. E o Thomas tem faro por dinheiro. Mas, meu senhor de Lancaster, ela precisaria de seu consentimento.

- Eu não o daria, a menos que a menina realmente quisesse

- replicou John.

- É muito bom ouvi-lo afirmar isso - disse a condessa. Ela está com dez anos de idade. As meninas nessa idade estão cheias de ideais. Podem tomar uma decisão antes de perceber do que se trata, em especial se forem discretamente levadas a isso.

- Irei visitá-la - disse John. - vou me certificar do que está acontecendo.

- Creio que Eleanor é uma jovem muito enérgica - explicou a condessa. - Quando se decide a fazer algo, esforça-se bastante para consegui-lo. Mary é delicada... a beldade da família. Uma coisinha linda. Confesso que jamais aceitaria vê-la trancada junto com as Pobres Claras. E pense naquele dinheiro todo!

- Estou pensando-disse John. - É por isso que irei visitá-la. -. Seria mais fácil se não soubessem que o senhor a estava investigando - disse a condessa. - Tenho uma ideia. Querem ouvi-la?

- Somos todos ouvidos - disse o conde. - Não é, senhor duque de Lancaster?

John confirmou com a cabeça, sorrindo.

- Por que não convido Mary para vir a Arundel? Isso não provocará comentário algum. Direi a ela que todos queremos ver as sobrinhas. Não há motivo pelo qual eu não deva trazê-la para visitar o tio Ricardo. Irei a Pleshy e a trarei de volta comigo. Vamos ter algumas diversões aqui em Arundel e veremos se Mary quer realmente trocar o mundo pelo convento. O que acham desse plano?

- Para mim, parece muito bom - disse o marido dela. - O que acha o senhor duque?

John estava pensativo. Ele tivera uma ideia. Não disse nada por um instante, e a condessa o instigou:

- E então, senhor duque de Lancaster?

- Gosto desse plano - disse ele. - Seria um peso tirado da minha consciência saber que ela não está sendo forçada a entrar para o convento. Quero ver a menina... longe da irmã e da influência de Thomas. Quero julgar por mim mesmo o que for melhor para ela.

- Nesse caso, irei a Pleshy, e quando Mary estiver aqui, senhor duque, mandarei avisá-lo.

John estava sorrindo. Gostava da ideia. Gostava muito.

Eleanor recebeu a tia com uma certa dignidade graciosa.

Ela se dá ares de importância desde que se casou com um membro da realeza, pensou a condessa, sorrindo no íntimo. Não gostava de Eleanor. A jovem era orgulhosa demais e muito ambiciosa. Mary era inteiramente diferente, charmosa e bonita. A condessa ficava satisfeita pelo fato de a jovem Mary ter adquirido todos os traços bonitos.

- Minha querida Eleanor - bradou ela -, faz muito tempo que não a vejo. O casamento lhe faz bem, minha cara. Um filho na ala infantil e outro a caminho. Sou capaz de jurar que Thomas, desta vez, quer um menino.

- Estamos com esperança de que seja um menino - replicou Eleanor.

- Há notícias de Thomas?

- Nenhuma. A senhora sabe como é difícil receber notícias da França.

- Sem dúvida a criança terá nascido quando ele voltar. Uma recompensa pelos serviços dele ao rei.

- Ele não deverá receber nenhum outro.

- Oh, vamos, Ricardo é agradecido aos tios.

- A Thomas, não.

A condessa deu uma risada leve.

- É um prazer ver você tão contente com seu casamento. E Mary, como vai ela?

- Está dedicada às freiras. Foi muita sorte o convento ficar tão perto do castelo. Significa que a temos conosco e que, ao mesmo tempo, ela pode ter o prazer de ficar dentro do convento.

- Foi muitíssimo conveniente você ter decidido vir para Pleshy - comentou a condessa. - Poderia ter sido um de seus castelos ou aquela casa açoitada pelo vento que pertencia a seu pai, em Dowgate Ward, em Londres.

- A senhora está se referindo a Cole Harbour. Sim, Pleshy é o lugar ideal para Mary, e estou pronta a ficar aqui por esse motivo. Gosto de ver minha irmãzinha satisfeita,

- Como está, mesmo, creio eu.

- Ah, muito. As pessoas são afortunadas quando nascem sabendo o que querem na vida.

- Você quer dizer o convento, para Mary. Concordo com você. É muita sorte. Estou ansiosa por ver Mary enquanto estou aqui.

- Claro que verá.

Estou decidida, pensou a condessa, porque é este o objetivo de minha visita.

Mais tarde, naquele dia, ela realmente viu Mary.

Ela pensou: a menina é, mesmo, uma beldade. Seria uma pena se ficasse trancada num convento só porque sua gananciosa irmã e seu avarento cunhado querem a parte dela na fortuna dos de Bohun.

A condessa agia com muita cautela, porque estava ansiosa por não dar sinal algum a Eleanor de que fosse um mínimo de avessa ao futuro de Mary no convento.

Mencionou, mais de uma vez, a grande admiração que tinha pelas Claras Pobres e pelo trabalho maravilhoso que estavam fazendo.

Mary falava com entusiasmo sobre elas, e Eleanor ronronava como uma gata satisfeita.

- Seu tio Ricardo estava dizendo que gostaria de ver você - disse a condessa. - Prometi a ele que iria convencê-la a voltar para Arundel comigo, para uma visita curta. Ele disse: "Tenho muita vontade de ver minhas queridas sobrinhas."

- Mas eu não estou em condições de viajar - salientou Eleanor.

- Infelizmente, é verdade - concordou a condessa. - Mas Mary poderia ir.

- Eu gostaria muito - bradou Mary.

Eleanor pareceu um pouco confusa, mas antes que ela pudesse falar, a condessa disse, com firmeza:

- Então está combinado. Partiremos amanhã.

- Mary, você não vai querer largar os estudos - disse Eleanor.

- Mas, Eleanor, será uma visita curta. Estou com muita vontade de ir.

- Então, irá, minha querida sobrinha - disse a condessa, rápida.

- Mais tarde, depois que você tiver a criança, Eleanor, eu sei que irá visitar seu tio.

- Ele não pode vir até aqui, senhora condessa?

- Ele virá, claro que virá. Mas me pediu muito que eu voltasse levando vocês duas. Não pensou que você estivesse sem condições de viajar. Os homens não entendem dessas coisas. Tenho de levar uma de vocês comigo. Mary, temos de partir cedo. É uma viagem longa, e quero partir bem cedo.

Mary estava evidentemente agitada com a perspectiva da visita, e Eleanor só pôde dar de ombros.

Seriam apenas uns poucos dias, e a tia delas estava claramente a favor de que Mary entrasse para o convento. Talvez ela fosse ajudar a persuadi-la.

Não precisava preocupar-se.

Foi emocionante cavalgar para Arundel com a tia. Mary se esquecera de como o interior de Sussex era bonito. Sentia o cheiro da maresia e lembrou-se de que o castelo ficava perto da costa. A condessa estivera falando sobre as delícias de Arundel e as novas danças e canções das quais Mary tinha um certo conhecimento, porque ninguém podia desfrutar mais da vida social do que Eleanor e Thomas. Era frequente haver visitas em Arundel, explicou a tia. Era uma grande satisfação quando chegavam com notícias do que se passava na corte. Não que ela ignorasse isso, apressou-se a acrescentar. Seu tio está sempre comparecendo em presença do rei.

Mary não percebeu que, embora enquanto elas estavam em Pleshy, sua tia tivesse falado muito sobre o convento das Claras Pobres, salientando a vida digna levada pelas freiras, durante a viagem sua conversa mudara bastante; e parecia estar elogiando os prazeres da vida fora dos muros do convento.

Quando a ponte levadiça foi arriada e as duas passaram por baixo da grade levadiça, a condessa disse:

- É um prazer voltar para casa. Sempre me pergunto, quando volto, o que terá acontecido com o castelo enquanto estive ausente, que visitantes tivemos ou quem estará esperando por nós. Uma das melhores coisas da vida é voltar para casa.

Ela olhou de soslaio para Mary, em cujo rosto havia uma expressão de compreensão e de emoção compartilhada.

Não vai haver vida de convento para ela!, pensou a condessa. Lancaster vai tomar as devidas providências.

Mary entrou no castelo, seguindo para o quarto que fora preparado, para tirar a poeira da viagem e preparar-se para descer para o grande salão, onde os apetitosos cheiros que invadiam o castelo proclamavam que em breve a comida seria servida.

Uma das empregadas do castelo chegou para dizer que, segundo instruções da senhora condessa, ela ali estava para ajudá-la a vestir-se. A senhora duquesa separara um vestido para ela, pois o dela ainda não tinha sido tirado da bagagem.

Mary ficou perplexa diante do esplendor do traje. O casaco solto era de fina seda azul e delicadamente bordado com pássaros e flores. Sob o casaco havia um vestido menos solto, num delicado tom de verde; as mangas faziam com que o traje ficasse na última moda, porque caíam dos cotovelos até quase a altura dos joelhos.

Mary não estava acostumada a usar roupas tão finas assim, embora tivesse visto Eleanor com elas.

- Você gosta das cores de suas freiras - dissera Eleanor; e ela não ligara o suficiente para protestar.

A criada penteou-lhe os cabelos e deixou-os cair pelos ombros, dizendo:

- A senhora condessa disse que nada de touca para você. Seus cabelos são bonitos demais para ficarem escondidos.

Mary sentia-se uma estranha quando a condessa foi ao seu quarto para ver o efeito e levá-la para o salão.

No salão estava o duque, que lhe deu as boas-vindas ao castelo, e com ele estavam suas filhas Elizabeth e Joan.

Mary ficou contente por elas estarem lá. Os meninos estavam longe de casa - como era o costume com meninos, que sempre pareciam ser criados na casa de outra pessoa. Mas foi agradável encontrar as primas.

O calor da recepção foi enternecedor, e Mary não pôde deixar de sentir prazer em ter escapado de Eleanor, que a teria criticado bastante, e isso teria estragado seu prazer.

Mary foi colocada na mesa elevada, entre o conde e a condessa, e os dois conversaram com ela sobre a vida em Pleshy e, naturalmente, o convento das Claras Pobres foi mencionado.

- As freiras são as melhores pessoas possíveis para dar a uma menina uma boa educação - declarou a condessa. - Pobres criaturas, que vida triste elas levam.

- Elas não são nem um pouco tristes, senhora - disse Mary, rápido. - Elas servem a Deus através dos desafortunados, e isso lhes traz uma grande felicidade.

A condessa colocou a mão sobre a da sobrinha.

- Isso é verdade. Tenho pena delas porque jamais conhecerão a alegria de ter filhos. Falo como mãe, minha querida. Eu me pergunto quantas delas lamentam a vida que escolheram quando ouvem crianças tagarelando e rindo juntas.

Mary ficou calada.

Aquela era uma ocasião especial, sussurrou o tio. Todos estavam muito encantados pela presença dela. Iria conduzi-la na dança depois da ceia. O que ela achava disso? Gostava de dançar?

Oh, sim, ela adorava dançar.

E de música? Ela gostava?

Ela gostava de cantar. Tocava guitarra, acompanhando a si mesma.

- Temos de ouvi-la - disse o conde. -Você canta para sua irmã e o marido dela? Garanto que nada adiantaria cantar para as freiras.

- Oh, não - disse ela, com um risinho.

- Espero que esta carne de veado seja do seu agrado - prosseguiu o conde. - Juro que você não comeria uma carne mais gostosa do que esta à mesa do rei. O nosso rei tem um ótimo paladar. Sabe que ele mesmo se interessa pelo preparo da comida que lhe é servida?

- O rei tem gostos muito fora do comum para um rei. A condessa deu uma risada.

- Você tem razão - disse ela. - Não se poderia imaginar o pai ou o avô dele se preocupando com a quantidade de mel, em proporção às amoras, que se coloca num moree.

- Então o rei se preocupa com essas coisas? – perguntou Mary.

- Preocupa-se, sim - replicou o conde. - Ele se preocupa não só com seus cozinheiros, como com seus alfaiates. Passa horas consultando esses sujeitos que estão, ao que dizem, tendo uma ideia exagerada do que valem. Há quem diga que em breve ele concederá a Ordem da Jarreteira a um deles, por ter criado uma receita delicada ou um traje justo de um esplendor especial.

Houve risadas à mesa. E então, enquanto os sotiltees estavam sendo servidos, os menestréis e os pantomimeiros chegaram.

Foi um espetáculo maravilhoso, mais divertido do que qualquer outro que ela presenciara em Pleshy. Os pantomimeiros dançavam e faziam piruetas com extrema agilidade; com suas máscaras grotescas, pareciam seres de outro mundo. Mary riu bastante, e o conde e a condessa ficaram encantados com o prazer que ela sentia. Estavam decididos a que, até ir embora de Arundel, Mary tivesse mudado de ideia sobre aquele desejo de entrar para as Claras Pobres.

Ela dormiu profundamente aquela noite e acordou sentindo-se nova e cheia de vitalidade na manhã seguinte. Não podia deixar de ficar satisfeita pelo fato de Eleanor não ter podido acompanhá-las, porque estava percebendo que Eleanor tinha um jeito de sufocar seus prazeres e de dar a entender que era pecado Mary desfrutar daquilo que ela, Eleanor, desfrutava sem parar.

As primas mostraram-lhe os cavalos e atravessaram a ponte levadiça, desceram correndo a ladeira e caminharam até a floresta. Mary gostou muito de ficar debaixo das árvores e aspirar o cheiro da terra e dos pinheiros. Adorava a floresta e tinha muita vontade de ficar ali sozinha, livre da tagarelice das primas. Achava que tinha muito em que pensar. Elas acreditavam ter sido muito ousadas por atravessar a ponte levadiça, mas Elizabeth disse:

- Não faz mal, porque somos três.

Mary sentia-se muito mais velha do que as duas, embora não fosse assim; ela imaginava que aquilo era devido à criação dela pelas freiras. Parecia que, nos últimos

dias, ela crescera de repente; tinha pela frente um problema que poderia afetar sua vida inteira, e precisava de solidão para pensar nele. Como gostaria de perambular sozinha por entre aquelas belas árvores e pensar no futuro. Estava pensativa enquanto voltavam para o castelo.

Todos já haviam almoçado e a casa estava muito silenciosa. Mary sabia que as primas estavam com a mãe, antes do descanso dela. Sentiu uma ânsia irresistível por sair e ir até a floresta. Queria ficar absolutamente sozinha, e não conseguia sentir-se assim dentro dos muros do castelo.

Cedendo a um impulso, vestiu a capa e foi para a ponte levadiça. A ponte estava arriada e não havia guardas de plantão. Mary atravessou-a e sentiu-se livre. Desceu correndo a ladeira e voltouse em direção à entrada da floresta.

Foi uma grande ousadia. Seus tios ficariam horrorizados se soubessem que ela estava lá fora, sozinha. vou só me arriscar até a entrada da floresta, prometeu a si mesma, e manterei o castelo à vista. Tenho de ficar sozinha para refletir.

A relva estava verde e macia sob seus pés. Tinha chovido muito ultimamente. Como era bonito! Havia um forte e penetrante cheiro no ar que fazia com que suas faces formigassem, mas não estava realmente frio para o mês de janeiro. Ela gostava do inverno; achava que as árvores, erguendo os galhos desnudos para o céu, faziam um desenho mais complicado e delicado do que aquele que podia ser produzido com uma agulha sobre seda, e os pinheiros sempre verdes estavam tão resplandecentes agora quanto no auge do verão. Mary ficou ouvindo o canto de uma cotovia; encheu os pulmões com o penetrante ar fresco e sentiu, agradecida, o cheiro da relva e da folhagem. Ergueu os olhos para o céu cinzento e para o pálido sol de inverno e achou que o mundo era uma beleza. Havia tantas coisas a descobrir, e se uma pessoa se trancasse em um convento, aprenderia muito pouco sobre ele. Estava profundamente absorta em pensamentos enquanto caminhava pelos atalhos, fazendo uma pausa de vez em quando para olhar mais atentamente os corutos das aveleiras e para ver se as flores estavam começando a brotar nos velhos teixos, enquanto inalava o ar fresco.

Ela começou a sorrir, pensando de repente nos pantomimeiros que tinha visto na noite anterior. Ficara muito emocionada quando o tio a conduzira na dança. Tinha sido uma grande honra; perguntou-se por que ele e a condessa tinham se esforçado tanto para que ela se sentisse tão importante. Afinal, acabara de completar dez anos de idade.

Otio falara sobre ela ir para a corte. Isso, é claro, seria muito mais tarde, mas ele fizera com que a ideia parecesse emocionante. Ricardo teria prazer em recebê-la, dissera ele. O que ela achava disso? Sempre deve ser um prazer ser recebida por um rei, respondera ela.

Ali em Arundel era muito diferente de Pleshy. Seria porque Eleanor sempre fazia com que ela sentisse que estava destinada a entrar para um convento e que nunca devia esquecer-se disso, porque seria um pecado não dar confiança ao destino.

Mas será que aquilo era seu destino? Desde que chegara em Arundel, não tinha certeza.

Ela parou, escutando. Ouviu o som de patas de cavalos. Devia ser gente chegando ao castelo. Não havia nada de anormal nisso. Viajantes estavam sempre fazendo uma visita. Muitas vezes, vinham de Pleshy. Nunca eram rejeitados, a menos, é claro, que houvesse motivo para isso.

O incidente fizera com que ela se lembrasse de onde estava e do que estava fazendo. Estava desobedecendo regras, o que não era correto de sua parte, pois fora tratada com tanto carinho pelos tios no castelo. Por eles terem se portado como se ela fosse muito mais velha, com as honrarias que lhe tinham dedicado, sentira-se uma adulta. Talvez fosse por isso que se arriscara a ir até a floresta.

Devia voltar já.

Começou a voltar pelo caminho que achou ter sido aquele pelo qual tinha ido, mas depois de ter andado uma curta distância e ter esperado sair da floresta para ver o castelo à sua frente, não conseguiu.

As árvores envolviam-na e, com aflição, percebeu que não tinha certeza quanto à direção em que deveria seguir. Não era nada que devesse assustá-la. Não havia penetrado na floresta de verdade; apenas seguira pela borda. Dali a pouco, deveria sair da floresta e ver o castelo.

Infelizmente, não era tão simples assim. Estivera tão mergulhada em reflexões que não gravara qualquer ponto de referência que pudesse tê-la ajudado. Todas as árvores eram parecidas. Ela parou, na dúvida, e tentou calcular a direção que deveria tomar.

Não devia entrar em pânico. Aquela era uma situação que nunca enfrentara antes. Era a primeira vez em que saíra de casa sozinha. O que estava pensando ao entrar na floresta? O tratamento que lhe fora dispensado pelos parentes tinham-na feito sentir que já não era mais criança.

Que tola tinha sido, e ali estava, sozinha, perdida na floresta.

Aquilo era um absurdo. Encontraria o caminho. Ficou inteiramente imóvel e, ao fazê-lo, achou ter ouvido um farfalhar na vegetação rasteira.

Haveria mais alguém naquela parte da floresta?

A primeira sensação foi de alívio. Se algum madeireiro estivesse ali, poderia mostrar-lhe o caminho de volta para o castelo. E então, pensou em assaltantes. Ouvira dizer que existiam em grande quantidade nas estradas. Durante os primeiros dias do reinado do falecido rei tinham havido leis rigorosas contra eles, e as estradas tinham ficado relativamente seguras; mas, quando o antigo rei tornara-se senil e dava mais atenção à amante, Alice Perrers, do que aos assuntos relativos ao país, as leis tinham-se tornado mais frouxas e os assaltantes se multiplicaram. Ricardo ainda era jovem e não se sabia como seria seu reinado, mas parecia claro que suas leis não seriam tão rigorosas quanto as do avô no auge da vida.

As mãos de Mary tocaram a faixa em sua cintura. Não era excessivamente trabalhada, não podia ser comparada ao tipo que Eleanor usava - mas teria um alto valor aos olhos de um vagabundo necessitado.

Ouviu-se outro som. Agora não havia dúvida. Alguém se aproximava. Mary continuou a caminhar, apressando o passo. Quem quer que fosse, também apressou o passo. Então estava sendo seguida.

Na verdade, não sentia medo.

Começou a correr. Estaria indo na direção certa? Tantas árvores, tantos arbustos, que pareciam iguais, e estivera absorta demais para observar pontos de referência.

Poderia estar certa de que seguia pelo caminho pelo qual viera, que as árvores ficariam menos densas dali a pouco e poderia ver os cinzentos muros do castelo?

Quem quer que a estivesse seguindo estava correndo, agora.

- Espere! - bradou uma voz. Ela continuou correndo.

Alguém estava bem atrás dela, e segurou-lhe o braço. Mary levou um susto enorme enquanto uma voz dizia: - bom dia, moça.

Ela se voltou bruscamente. Era um menino - poucos anos mais velho do que ela, cabelos loiro-castanhos, olhos azuis e bem alto.

- Por que está fugindo de mim? - perguntou ele. - Você está sem fôlego.

- O que você quer? - perguntou ela, e instintivamente suas mãos tocaram a faixa na cintura.

Ele recuou um passo e fez uma profunda reverência.

- Servi-la - disse ele, e em seus olhos havia uma ligeira expressão de zombaria.

- Neste caso, mostre-me o caminho para o castelo.

- Você não se afastou muito.

- Estou no caminho certo? Ele abanou a cabeça.

- Vai precisar da minha ajuda.

- Estou vendo que vai querer ser pago por isso. Não se preocupe. Leve-me de volta ao castelo e será recompensado.

- Como conseguiu se perder?

- Pouco importa, eu me perdi. Vai me mostrar o caminho certo?

- Siga-me - disse ele.

Por um instante, ela ficou aliviada. O menino caminhou à sua frente. Ela percebeu a cabeça bem-formada e que os cabelos loiro-castanhos tinham ondas suaves; tinha um porte orgulhoso. Mary pensou que deveria ser filho de algum proprietário rural da vizinhança.

- Não me lembro de ter vindo por aqui - disse ela, depois de alguns minutos.

Ele se voltou para sorrir para ela, e havia um toque de travessura no sorriso.

- Ah, mas você se perdeu.

- Tem certeza de que este é o caminho de volta para o castelo?

- Juro que vou levá-la até lá.

Os dois tinham chegado a uma clareira na floresta.

- Não vi isso antes.

- É um ponto agradável - disse ele.

Ela ficara muito amedrontada. Ele não a estava levando para o castelo. Parecia, isso sim, que a estava afastando dele.

- Por favor, mostre-me o caminho imediatamente - disse ela.

- Você está cansada - respondeu ele, em tom apaziguador.

- Descanse um pouco. Depois, prometo que mostro o caminho de volta.

- Não estou com vontade nenhuma de descansar.

- Acho que está. Está corada de tanto esforço e medo. Sentese por uns instantes. Olhe, há um lugar agradável ali, sob as árvores.

- Não quero. Descanse você.

Ele se atirara sob uma árvore e ergueu os olhos para ela, sorrindo. Ela pensou: como é insolente, esse filho de um escudeirol Meu tio irá castigá-lo bastante por isso.

Ela girou sobre os calcanhares e logo se perguntou por onde deveria seguir.

Hesitou e ouviu a voz dele.

- Vai entrar mais ainda na floresta. É melhor esperar por mim.

Ela voltou para perto dele.

- Se me levar de volta agora, eu lhe pagarei bem.

- Depois - disse ele. - Depois.

O menino indicou o lugar ao lado dele. Mary hesitou por um instante e, vendo que precisava da ajuda dele, sentou-se a seu lado.

- Você precisa saber o quanto estou aflita - disse ela. Não é muito galante portar-se como está se portando. Devia estudar os bons modos da cavalaria, muito embora possa não ser de berço nobre.

- Você exige demais de uma pessoa... que não tem berço nobre. Você tem, mesmo. Eu acho. Está hospedada no castelo.

- O conde de Arundel é meu tio. Ele ficaria contrariado se soubesse de sua conduta.

- Fico imaginando qual seria meu castigo. Talvez eu descubra depois que você me delatar.

- Não direi nada sobre isso se você me levar agora de volta para o castelo. Na verdade, providenciarei para que receba uma boa refeição e uma recompensa.

- Estou muitíssimo grato. Ela se pôs de pé num salto.

- Então, mostre-me o caminho de volta, agora.

Ele não se levantou, mas se estendeu no chão, sorrindo para ela, com ar preguiçoso.

- Daqui a pouco - disse ele. - Eu prometo. Você não me disse seu nome, mas acredito que seja Lady Mary de Bohun, que no momento está visitando os tios em Arundel.

- Como soube disso?

- Nós, os humildes, descobrimos essas coisas relativas aos importantes.

- Neste caso, como sabe quem eu sou, vai perceber a necessidade de não me ofender... nem ofender meu tio.

- É uma grande necessidade - disse ele. - Você não perguntou meu nome.

- Para mim, ele não tem importância.

- Isso nada teve de amável. Então, vou dizer. Meu nome é Henrique.

- Então, Henrique, está na hora de sairmos daqui.

- Um lugar muito agradável - murmurou ele. - Para mim, foi uma ótima aventura.

- Se não me mostrar o caminho de volta, tentarei encontrá-lo por mim mesma. E fique certo de que vou denunciar seu comportamento desonesto para comigo. Você vai se arrepender.

- Não é sempre que fica zangada, é? Ela lhe deu as costas.

- Mas está zangada agora porque está com medo. Por favor, não tenha medo, Lady Mary. Quero que goste de mim.

- Não vou gostar, depois do seu comportamento. Leve-me de volta, já.

Ele ficou de pé humildemente e disse:

- Foi só uma brincadeira. Venha. É aqui. Ficará surpresa ao ver como estava perto do castelo. As árvores ficam tão grossas e os arbustos crescem tanto, que até no inverno é fácil perder a direção.

Ela caminhou ao lado dele, desconfiada. De vez em quando, ele lançava-lhe um olhar quase que de súplica, como se pedisse que ela o perdoasse; e por estranho que parecesse, porque era muito bonito e parecia realmente arrependido e afinal não passava de um menino, achou que poderia perdoá-lo, em especial quando viu o castelo um pouco adiante.

Na beira da floresta, ela fez uma pausa para se despedir dele e agradecer.

- Você será recompensado. vou dizer ao meu tio.

- Irei ao castelo para apanhar a minha recompensa - disse ele.

Ela hesitou. Talvez fosse melhor assim. Ele poderia ir até a cozinha e, lá, comer e beber alguma coisa e ficar satisfeito.

Os dois chegaram à ponte levadiça. Agora, havia soldados armados nela, que se curvaram para ela e seu acompanhante.

Juntos, os dois passaram sob a grade levadiça e entraram no

pátio.

Ele estava se preparando para acompanhá-la ao salão, e ela lhe disse:

- Você deve ir por aquele beco ali. Vá até a cozinha. Pode dizer que fui eu que o mandei.

- Prefiro entrar pelo salão.

- Mas você não compreende.

Ele ergueu as sobrancelhas. Era um garoto muito fora do comum. Tinha, percebeu Mary agora, um ar de arrogância que dava a entender que se considerava igual a qualquer outra pessoa.

- Meu tio... - começou ela.

E naquele momento o tio entrou no salão, e com ele estava o duque de Lancaster em pessoa. Mesmo num momento daqueles, Mary não pôde deixar de sentir um enorme respeito

pelo seu guardião.

Era um homem alto, de aparência dominadora. Os olhos profundos tinham um azul vivo, e os cabelos eram loiro-castanhos como os de um leão. Tinha o nariz comprido e as maçãs do rosto estreitas dos Plantagenetas, e em sua túnica estava bordado seu emblema da flor-de-lis da França e dos leopardos da Inglaterra.

Ao lado dele, o tio parecia insignificante.

Por um momento, esqueceu o menino a seu lado, e depois ficou com medo de que algo acontecesse a ele. Uma coisa era ele arriscar-se a entrar no salão do castelo, mas ficar frente a frente com o tio dela e com o grande duque de Lancaster, era outra.

- É a Mary - disse o duque.

Ela se adiantou e, para seu espanto, o menino fez o mesmo.

Ele ficou parado ao lado do grande duque, que não deu sinal algum de surpresa diante daquele estranho comportamento.

Apreensiva, ela fez uma mesura, imaginando como iria explicar aquilo.

O duque ergueu-a nos braços e disse:

- Ora, Mary, você cresceu desde a última vez em que nos vimos. Já ficou conhecendo Henrique.

Henrique!

O menino estava sorrindo para ela.

- Nós nos encontramos fora do castelo, senhor meu pai disse ele. - E assim... entramos juntos.

Era impressionante. O menino que ela pensara ser um humilde escudeiro tratava-se, na verdade, do filho do grande John de Gaunt - mais nobre do que ela. Ficou envergonhada. Que coisas dissera para ele!

Agora tudo parecia uma brincadeira. Ele tinha ido ao castelo com o pai, que estivera ansioso por ver sua tutelada e descobrir como a menina estava se dando em Pleshy.

- Quando o senhor de Lancaster soube que você viria para cá - disse a condessa -, achou que seria uma maneira fácil de verificar se estava bem e feliz. Era muito mais fácil do que ir até Pleshy. - Ela baixou a voz. - Você sabe que ele e o irmão não mantêm um relacionamento dos mais amigáveis.

- É uma pena quando há conflito nas famílias - disse Mary.

- Mas sempre inevitável. Esse nosso jovem Henrique é um belo e jovem ramo do tronco real, não acha? Foi ele a causa da desavença entre os dois irmãos. Cavaleiro da Ordem da Jarreteira e já duque de Derbyl Não me surpreende o fato de o pai ser louco por ele. Será uma boa companhia para você enquanto estiver conosco, Mary.

- Tenho minhas primas.

- Sim, mas acho que vai achar Henrique mais agradável. Era verdade, ela achava.

No início, repreendera-o pela maneira dele ter-se comportado na floresta.

- Tudo não passou de uma brincadeira - disse ele. - Não pude resistir. Você acabara de entrar na floresta... o que estou certo de que era proibido. Fui protegê-la.

- Foi uma trapaça não se apresentar - retorquiu ela.

- Meu Deus. Eu tinha me esquecido de que eles vão fazer você ser freira, não vão?

- Eles não vão me fazer ser coisa alguma, se eu não quiser.

- Então, vou lhe dizer uma coisa. Você não vai ser freira.

- Como você sabe?

- Porque você nunca vai concordar em isolar-se do mundo. Você gosta demais dele.

- Meu futuro ainda não está decidido.

- Vai ser, em breve - disse ele, e havia risos nos olhos. Ele queria estar sempre com ela.

- Você despreza muito minhas primas - repreendeu-o.

- Elas não se importam. São crianças.

- E que idade você tem?

- vou fazer quinze em breve.

Era realmente alguns anos mais velho do que ela, mas nunca parecia perceber a diferença.

Mary sabia jogar xadrez tanto quanto ele. Era frequente os dois ficarem sentados juntos a um canto do grande salão, as cabeças inclinadas sobre o tabuleiro de xadrez. Às vezes o próprio duque ficava assistindo ao jogo - aplaudindo um bom lance. Parecia muito contente por vê-los juntos.

Mary cantava para ele, tocando guitarra para o acompanhamento. A voz dele unia-se à dela; os dois estavam em perfeita harmonia.

A condessa disse que precisavam cantar juntos para os presentes depois do jantar, e quando o faziam, ela percebia os olhos do grande John de Gaunt velados de emoção. Era evidente que tinha um grande afeto pelo filho, e Mary podia compreender aquilo, porque estava descobrindo que ela também sentia isso.

Os dias passavam depressa demais. Mary sabia que teria de voltar para Pleshy muito em breve, e quando pensava em voltar para o antigo estilo de vida, sentia-se deprimida. Talvez Henrique a fosse visitar em Pleshy; mas se se tornasse freira, não poderiam ver-se com muita frequência.

Eles saíam a cavalo junto com um grupo, mas Henrique sempre dava um jeito para que os dois dessem uma fugida. Ela imaginava que os parentes percebiam isso e achavam divertido, não irritante.

Então, um dia, quando tinham escapado do grupo e passeavam a cavalo pela floresta, chegaram à clareira onde tinham se sentado naquela primeira vez.

Henrique sugeriu que amarrassem os cavalos e se sentassem no mesmo lugar por algum tempo, porque tinha algo a dizer-lhe.

- Em breve você vai voltar para Pleshy - começou ele. Ela suspirou.

- É uma pena, mas vou. Minha temporada aqui já está mais longa do que pensei que seria. Estou certa de que estarei voltando em breve.

- Também estarei indo embora daqui com meu pai.

- Tem sido um período muito feliz.

- Para nós dois - disse Henrique. - Mary, você não vai entrar para um convento, vai?

- Estou em dúvida...

Ele se voltou apaixonadamente para ela e, envolvendo-a nos braços, manteve-a junto a ele.

- Oh, Mary - sussurrou ele -, você não pode fazer isso. Prometa que não fará.

- Por que isso iria significar... tanto assim para você? - perguntou ela, muito ofegante.

- Porque quero me casar com você.

- Casar-se comigo. Oh, Henrique...

- Isso lhe agrada?

Ela olhou à sua volta, para os ramos desnudos das árvores que adorava, e pensou que a floresta de Arundel era o lugar mais bonito do mundo.

- Você já respondeu - disse ele. - Isso lhe agrada.

- Muito - disse ela. - Nunca, na vida, me senti tão feliz como tenho me sentido desde que você chegou.

- Então, está decidido.

- O que está decidido? Terei de ir embora daqui, e você também.

- Nós vamos nos casar - disse ele.

- Casar. Como iremos nos casar? Não posso me casar... assim sem mais nem menos.

- Por que não?

- Isso nunca seria permitido.

- Posso lhe dizer que meu pai não vai proibir, e ele é seu tutor.

Como sabe disso?

Ele me disse.

- Então... você conversou com ele.

- Só porque ele estava muito ansioso. Achei que se eu pudesse obter o consentimento dele, isso seria tudo de que precisaríamos.

- E... ele o deu.

- Ele adora você. Disse que você foi a tutelada dele e agora será filha dele.

- É verdade, mesmo?

- É, sim. Ele ficou encantado com o fato de termos passado a nos amar. Disse que não vê motivo para que não nos casemos... em breve.

- Henrique, ainda não fiz onze anos.

- É uma idade muito agradável. Eu tenho quatorze. Está vendo que não há muita diferença entre nós.

- Eles nunca nos deixariam casar por enquanto. Teríamos de esperar.

- Poderia haver uma cerimónia... para que ninguém pudesse nos manter separados. O que me diz, Mary?

Ela entrelaçou as mãos e ficou calada. Era muita coisa para assimilar. Não fazia muito tempo que estivera sentada ali, perdida na floresta, indecisa quanto ao caminho pelo qual deveria voltar para o castelo, e também quanto ao seu tipo de vida.

Henrique tomara sua mão e a beijara.

- Quer se casar comigo, Mary. Sabe que quer. Pense em como aproveitou esses últimos dias. Seria assim pelo restante de nossas vidas.

Mary pensou no caso, e ele lhe pareceu maravilhoso demais para ser verdade. Não ter de viver em Pleshy; desistir dos estudos no convento. Como chegara a pensar que queria ser freira?

- Sim, Henrique - bradou ela. - Eu quero. Quero me casar com você. Quero ter muitos filhos. Quero ser esposa e mãe, e viver assim para sempre.

Henrique estava rindo. Abraçou-a com fervor. Disse-lhe que nunca se sentira tão feliz assim na vida.

- Vamos voltar para o castelo e contar a eles.

Mary não queria ir por enquanto. Queria demorar-se na floresta. Apesar de tudo o que ele dissera, temia que eles não aprovassem. Embora tivessem parecido contentes ao ver Henrique e ela juntos e não tivessem impedido que os dois ficassem a sós, o que em si mesmo era estranho, ela ainda achava que sua extrema juventude seria salientada e, embora fossem se mostrar delicados, embora pudessem deixar que os dois ficassem noivos, aquele caso só chegaria àquele ponto, por enquanto. Eles poderiam casar-se, talvez, dali a uns três anos...

Mas Mary estava enganada.

Quando os dois voltaram para o castelo, Henrique levou-a imediatamente para falar com o pai dele.

- Meu senhor-bradou ele -, Mary prometeu casar-se comigo.

Mary ficou pasma pela expressão do belo rosto do duque. Os olhos dele pareciam de um azul mais penetrante do que nunca, e um sorriso de satisfação abriu-se em seu rosto.

- Mas, meus queridos filhos... essa notícia me emociona e me encanta. Nada poderia me agradar mais.

Ele tomou Mary nos braços e apertou-a, a ponto de ela pensar que fosse ficar sufocada contra as flores-de-lis e os leopardos. Depois, ele a soltou e abraçou Henrique.

- É isso que eu esperava - disse ele. - Fiquei encantado ao ver vocês dois passarem a se amar. O amor é a melhor base para o casamento.

Ficou emocionado demais para falar por alguns instantes. Estava sendo sincero. Seu ambicioso casamento com Constanza de Castela realizara-se pelo amor a uma coroa, que era um amor de outro tipo, e muitas vezes ele se perguntava se não devia ter sido ousadamente romântico e ter-se casado com Catherine Swynford, a mulher que amava. Casamento por amor. Que bênção! Mas quando havia uma grande riqueza e também amor, não poderia haver dúvida de que o casamento era o ideal.

Ele sorriu benignamente para Mary.

- Então, minha filha, você decidiu que a vida no convento não é para você, hein? Fez uma escolha sensata, e para o máximo de felicidade deste meu filho. Vocês vão ficar noivos.

- Nós estamos ansiosos, senhor, para nos casarmos – disse Henrique. - Não queremos que demore muito.

- Está vendo o homem impaciente com o qual você vai se casar, Mary - retorquiu o duque. - Ora, isso dá a medida do amor dele por você. Eu lhe digo com sinceridade, nada atrapalhará a vontade de vocês.

Mary não acreditava que estivesse ouvindo bem. O grande homem parecia tão contente com a união quanto ela e Henrique.

A Esposa Criança

LANCASTER NÃO podia esperar para dar a boa nova ao conde e à condessa.

- Funcionou perfeitamente - bradou Lancaster. - Henrique representou seu papel com perfeição. Ele sabia o que eu queria, e parece que quando viu a bela menina passou a querer a mesma coisa.

- É um prazer ter um filho tão obediente assim - replicou Arundel.

- Eles formam um casal encantador - disse a condessa. Acho que Henrique é um menino de muita sorte, e fico muito satisfeita com o fato de a nossa pequena Mary ter escapado daquela sua irmã. Eu me pergunto o que Thomas irá dizer quando receber a notícia. Eu adoraria estar presente quando ele a ouvir pela primeira vez.

- Ele irá reclamar e vociferar - disse o conde. - E tentar impedi-lo.

- É com isso que devemos ter cuidado - acrescentou Lancaster. - Eu não acho prudente Mary voltar para Pleshy.

Não é, mesmo - concordou o conde. - Eleanor seria

capaz de qualquer coisa. Poderia trancar a menina até que ela prometesse entrar para um convento. Ela vai ficar furiosa especialmente devido ao fato de isso ter acontecido na ausência de Thomas.

- Ele não poderia ter-se recusado a deixar que Mary viesse para Arundel - salientou Lancaster.

Ele teria tentado, se tivesse sabido que você e Henrique estavam vindo para cá - disse o conde.

- Ele não teria pensado nisso... tendo em vista a pouca idade de Mary.

- A pouca idade de Mary! - meditou a condessa. - Ela é, mesmo, muito criança para se casar.

- Ora, deixe que os dois vivam juntos - disse Lancaster. Eles irão agir de acordo com a natureza, e este é o melhor método. Quero vê-los casados e pretendo que a cerimónia tenha lugar o mais rápido possível.

- E quer que ela fique aqui até o momento em que a cerimónia aconteça?

- Acho melhor. E devemos ficar calados a respeito da proposta de casamento. Então, ela acontecerá no Savoy. Duvido que meu irmão... se tiver voltado, e espero que não tenha... ou a mulher dele estará entre os convidados para o casamento.

Eleanor começara a perceber a prolongada ausência da irmã, mas não estava mais perturbada do que o normal. O tempo estava ruim e não era fácil viajar no inverno. Sua tia dera a impressão de que acreditava que a vida num convento seria boa para Mary, e se a menina voltasse convencida de sua vocação, Eleanor ficaria muitíssimo satisfeita.

A gravidez era enfadonha para uma pessoa de sua vitalidade. Era uma necessidade, claro, se quisesse procriar; e tinha de ter filhos homens. Estava com esperança de que tivesse um menino para mostrar a Thomas quando ele voltasse da França. Mesmo assim, teriam de se dedicar a conseguir outro.

Ela estava sentada, desanimada, entre as damas de companhia, que viviam falando na criança e às vezes mencionavam Lady Mary e se perguntavam se ela sentia saudades do convento.

- Claro que sente - retorquia Eleanor, com firmeza. - A vida dela é junto às freiras. Minha cara menina, ela tem uma natureza de santa. Está claro qual é o destino dela.

As damas murmuravam frases de concordância. Era sempre prudente concordar com Eleanor, e era impossível trabalhar naquela casa e não ter conhecimento do insistente desejo dos patrões.

Em uma tarde em que nevava, as dores do parto começaram. Estava tudo preparado, e antes de se passar um dia a criança fez sua aparição.

Foi uma grande decepção para a condessa o fato de ser mais uma menina.

Ficava deitada, desolada, na cama e ouvia o vento castigar os muros de Pleshy. Thomas ficaria muito frustrado. Mas a criança era saudável, e Eleanor resolveu chamá-la de Joan. Em pouco tempo, ela achava que iria ficar grávida outra vez e teria de passar pelos cansativos meses de espera e então, ter... não outra menina. Não, isso seria uma infelicidade. Mas acontecera com outras pessoas. Lancaster tivera meninas e um filho natimorto antes do nascimento do jovem Henrique em Bolingbroke.

Enquanto ela remoía aqueles pensamentos, chegou um mensageiro. Era estranho que viesse a mando de Lancaster, quando o duque estivera em seus pensamentos.

- Um mensageiro do senhor duque de Lancaster - bradou ela. - Que notícias ele me mandará?

O mensageiro foi levado ao quarto dela, e as cartas foram-lhe entregues.

Não se apressou a lê-las, mas perguntou ao mensageiro de onde ele viera, e quando soube que ele vinha de Arundel, sentiu o primeiro tremor de preocupação. Mandou o mensageiro para a cozinha, a fim de ser atendido como era de costume, e rompeu os selos.

O que ela leu quase a fez saltar da cama, por mais fraca que estivesse.

O duque tinha o prazer de informar a ela que seu filho Henrique, conde de Derby, apaixonara-se pela irmã dela, Mary. Não havia outra pessoa que ele quisesse ver casada com seu filho. Portanto, ele dera seu consentimento ao casamento, pois não via razão para que o jovem casal tivesse negada sua felicidade. Thomas estava ausente, mas ele esperava que ela fosse a toda pressa ao seu palácio do Savoy, onde o casamento seria celebrado em muito breve.

Não podia acreditar naquilo. Era impossível. Era um pesadelo. Estava sonhando!

Mary ia se casar! A menina ainda não tinha onze anos. Como poderia casar-se naquela idade? Estava claro que era a fortuna de Mary que Lancaster queria. Que avarento e astuto patife!

Mary era criança demais para se casar. Eleanor iria protestar. Oh, por que Thomas não estava lá!

No entanto, o que Thomas poderia fazer se estivesse presente? Lancaster era o tutor de Mary. Lancaster era o irmão mais velho. Dizia-se que Lancaster era o homem mais poderoso do país, porque o pobre do rei Ricardo tinha pouca importância. E ele se aproveitara do fato de Mary estar longe de Pleshy.

- Maldito conspirador! - bradou ela.

Não podia fazer nada. Não podia sair da cama.

Eles tinham planejado aquilo. Será que Arundel estava envolvido? Thomas jamais os perdoaria. Um dia haveria um assassinato entre aqueles dois irmãos.

Nunca deveria ter deixado que Mary fosse a Arundel. Devia ter previsto o que aconteceria. Devia ter sabido...

Eleanor leu a carta outra vez. Henrique e Mary apaixonados! Ela teve um sorriso zombeteiro, furiosa. Henrique estava apaixonado, realmente, e o mesmo acontecia com Lancaster. Apaixonados pela fortuna de Mary.

Aquela era a essência da questão. Era o dinheiro de Mary que eles queriam. Era o dinheiro de Mary que todos queriam.

- Oh, Mary, sua tolinha - bradou ela -, por que você não entrou para seu convento?

Cerrando e abrindo os punhos, Eleanor ficou deitada na cama. A parteira entrou e abanou a cabeça.

- Minha senhora, precisa de descanso. Tem de ficar calma. Isso é necessário para a sua boa saúde.

Ela se sentia fraca e exausta.

Ganhara uma criança -uma menina, e perdera uma fortuna.

Mary estava aturdida. Não havia tempo para pensar muito sobre qualquer outra coisa que não no casamento que se aproximava. Estava num estado de bem-aventurada felicidade, mas a rapidez com que tudo estava acontecendo não podia deixar de fazê-la sentir-se um pouco confusa. Ela esperara um noivado, mas não aquele casamento apressado. Não que tivesse quaisquer dúvidas quanto ao seu amor por Henrique. Queria casar-se com ele; mas pensara, naturalmente, que, devido à idade dos dois, iriam esperar pelo menos um ano.

Mas não, dissera o duque de Lancaster. Eles teriam aquele caso feliz resolvido logo. Henrique queria assim. Ela queria assim. E o duque queria a felicidade deles.

Naquelas circunstâncias, ele achou prudente que a cerimónia tivesse lugar em seu palácio do Savoy. Seria mais simples do que celebrá-lo em Cole Harbour, que ele acreditava ser um incómodo palácio onde ventava muito.

Mary confirmou.

- Há Pleshy - sugeriu ela.

O duque apressou-se a dizer que o Savoy parecia mais adequado.

- É uma de nossas residências - disse ele - e pela qual tenho um carinho especial. Depois da cerimónia, você e Henrique poderão ir para Hertford ou Leicester, ou talvez Kenilworth. Acho que Henrique vai querer lhe mostrar Kenilworth. Creio que de todos os nossos castelos esse é o preferido dele.

Mary disse que teria prazer em ir para onde quer que Henrique quisesse, o que fez com que o poderoso duque lhe segurasse a mão, a beijasse e declarasse que Henrique era realmente um felizardo por ter encontrado uma noiva como aquela.

Foram dias maravilhosos. Ela e Henrique passeavam juntos pela floresta, a cavalo. Ele lhe disse que esperava ficar ao lado do pai e levar a glória de volta para a Inglaterra. Para ela, o menino parecia estar muito a par do que acontecia no mundo. Mantinha uma estreita relação com o rei.

- Somos primos - disse ele - e da mesma idade. Há três anos, recebemos juntos a Ordem da Jarreteira. Isso foi quando o rei anterior estava vivo. Foi pouco antes dele morrer. Na época, ele era um homem velho e doente. Lembro-me dele praticamente assim, mas dizem que quando jovem era um prazer olhar para ele. Então, ele era um marido fiel e um rei forte.

Mary adorava ouvir falar naqueles assuntos, muitos dos quais ela ouvira sendo discutidos em Pleshy, mas pareciam mais pitorescos e emocionantes partindo de Henrique. Ou pode ter sido que como esposa dele ela fosse ter seu papel a representar neles.

Ele falava de Alice Perrers, a mulher dissoluta pela qual o velho rei ficara enamorado. Ela o enfeitiçara e o roubara, e chegara até a começar a roubar antes de a Boa Rainha Filipa morrer.

- Serei fiel a você para sempre, doce Mary-jurou Henrique Mary jurou que seria fiel a ele.

Eram dias idílicos.

Mas havia um leve temor que começara a surgir na mente de Mary. Ela ouvira, sem ser percebida, mulheres conversando de acordo com o costume feminino - e todas as conversas em Arundel versavam sobre o casamento que estava para acontecer.

- Oh, é um casamento maravilhoso. O melhor para a pequena Lady Mary. Ora, o jovem Henrique é primo do rei e neto do grande Eduardo e filho do grande John de Gaunt.

Que ponto mais alto do que isso ela poderia atingir... a menos que fosse o rei?

- Mas ela é muito criança. Será que vão colocar os dois na cama juntos...? Duas crianças assim.

- O conde de Derby não é tão criança assim. Vai completar quinze anos. Meninos dessa idade se saem muito bem, e sou capaz de jurar que o jovem Henrique não é exceção.

- Eu estava pensando em Lady Mary.

Conversas como aquela a deixavam perturbada; e não fora apenas uma vez que ela percebera aquelas alusões.

Henrique percebeu que ela estava perturbada, e ela lhe disse o motivo.

Ele ficou muito preocupado. Sim, havia aquele lado do casamento, mas ela não precisava ter medo. Ele sabia o que precisava ser feito, e ela podia deixar por sua conta.

- Entenda, por eu ser quem sou, precisamos ter filhos. Queremos filhos homens.

- Eu sempre quis ter filhos - disse ela. - Foi essa uma das razões pela qual hesitei quanto a entrar para o convento.

- Lembre-se sempre de que a salvei disso. - Riu das preocupações dela. - Não, não há nada que temer. Você vai gostar do que precisa ser feito. Eu lhe prometo. Teremos filhos homens saudáveis. O que acha disso?

Ela disse que gostaria muito. E ficou imaginando por que as mulheres tinham manifestado uma leve desaprovação e tinham ficado sérias.

Estava certa de que o que tivesse de fazer com Henrique seria bom.

Os dois cantavam juntos; jogavam xadrez; e Mary tinha suas medidas tiradas para os mais esplendorosos trajes que já possuíra. Foi animador, até que chegou um mensageiro de Pleshy, com uma carta de Eleanor. Era evidente que fora escrita num acesso de raiva. Eleanor não conseguia compreender o que acontecera à sua irmãzinha, que ela sempre achara ser uma santa em formação. Como se enganara, porque agora se revelava que Mary era falsa ao extremo. Fingira querer a vida religiosa, quando o tempo todo não passava de uma leviana. Ficara noiva de Henrique de Derby sem consultar a irmã. "Depois de tudo o que fizemos por você", escreveu Eleanor, "você nos trata dessa maneira. Estou profundamente magoada. Peço-lhe que pare com essa loucura e volte para Pleshy. Aqui, conversaremos para solucionar esse assunto. Vamos ver o que isso significa. Por que você acha que John de Lancaster está tão ansioso por esse casamento? Se você tivesse sido uma menina sem uma fortuna, acha que Henrique de Bolingbroke teria ficado tão ansioso por se casar com você...?"

Mary fez uma pausa e pensou: se eu tivesse sido, eu nunca o teria conhecido dessa maneira. Foi porque estava passando uma temporada em Arundel com meu tio e minha tia que o conheci.

"Para mim, está claro que é sua fortuna que torna esse casamento com a casa de Lancaster tão atraente para eles", prosseguia a carta de Eléanor.

E, pensou Mary, é a minha fortuna que a deixa tão ansiosa para que eu entre para um convento, para que possa abrir mão da minha parte em seu favor. Meu Deus! Como eu queria que fosse, mesmo, uma menina sem fortuna!

Aquilo era uma bobagem. Eléanor estava certa. John de Gaunt estava contente devido à sua fortuna. com Henrique, era diferente. Estava certa de que ele a teria amado, independente de quem ela fosse. Mas o casamento era bem recebido devido ao dinheiro. Ela não estava assim tão por fora das coisas mundanas a ponto de não saber disso.

"Volte imediatamente para Pleshy", ordenava Eléanor. "Vamos conversar sobre esse assunto. Vamos refletir juntas e decidir o que é melhor para você."

Mary respondeu à carta e pediu que Eléanor fosse a Arundel. Estava tão atarefada com os preparativos para o casamento que não poderia viajar. Eléanor já deveria ter-se recuperado do nascimento da queridinha Joan. Mas talvez preferisse esperar e participar das celebrações no Savoy.

Eléanor não era de desistir. Mary tinha, mesmo, de voltar. Por uma questão de gratidão, tinha de voltar. A abadessa estava desolada. Ela estava certa de que era errado Mary casar-se tão depressa assim e enquanto era tão criança. Que ela voltasse para Pleshy. Que conversasse com a irmã. Que ela se lembrasse de tudo o que Eléanor e seu cunhado Thomas tinham feito por ela.

Mary mostrou a Henrique as cartas de Eléanor. Disse que não queria saber de segredos entre os dois.

Henrique leu as cartas e disse:

- Aí está uma mulher zangada. Apesar de ser sua irmã, eu não deixaria você se aproximar dela. Ora, ela poderia trancar você e deixá-la passar fome até fazer a vontade dela.

- Oh, ela não é assim tão monstruosa.

- Eu vou proteger você daqui por diante, Mary.

Ela ficou aliviada. Sentia-se sempre muito feliz com Henrique; chegou, até, a parar de se preocupar com a questão do leito matrimonial.

Poucos dias antes do dia em que eles deviam partir para o Savoy, a mãe de Mary, a condessa de Hereford, chegou a Arundel.

Ela, é claro, tinha sido informada do casamento, em breve, da filha mais moça e estava apreensiva.

Preferiria que Mary tivesse continuado sob seus cuidados, mas de acordo com o costume, já que Mary era uma grande herdeira, a menina devia ficar sob a tutela de alguém de posição elevada. Não havia ninguém em posição mais elevada, depois do rei, do que John de Gaunt, e como Eleanor já estava casada com o irmão dele, Thomas de Woodstock, a condessa não tinha outra alternativa a não ser liberar a filha.

Era claro que ela não podia reclamar sobre o marido escolhido para a filha. O filho mais velho de John de Gaunt, herdeiro das herdades lancastrianas, poucos anos mais velho do que Mary, saudável, já um Cavaleiro da Ordem da Jarreteira - não poderia ter havido um casamento mais satisfatório. Mas o que preocupava a condessa era a pouca idade da filha.

Mary era uma criança, ainda não preparada para o casamento, no ponto de vista da condessa, e não deveria se casar enquanto não estivesse, pelo menos, com quatorze anos.

Abraçou a filha com carinho e olhou-a com olhos inquisidores.

Estava certa de que não tinha havido coerção de forma alguma. A menina parecia muito feliz.

A condessa procurou logo uma oportunidade para conversar com o duque de Lancaster.

- Estou feliz com o casamento - disse ela -, exceto quanto a um aspecto dele.

O duque assumiu um ar de desdém, como se se perguntasse que aspecto poderia ser desagradável com relação a um casamento com o filho dele.

- É a pouca idade de minha filha.

Ela acabou de completar onze anos.

É muito pouca idade para um casamento.

- Os dois são jovens.

- Jovens demais, senhor duque. Que fiquem noivos e se casem... digamos, daqui a dois anos.

Lancaster pareceu refletir sobre aquilo, embora não tivesse intenção de fazê-lo. Esperar dois anos? Deixar que Thomas e a bruxa de sua mulher tentassem influenciar a menina? Em pouco tempo, iriam enfiá-la num convento, usando meios desonestos.

- Pobre Mary - disse ele -, ela ficaria muito infeliz. Espere até ver os dois juntos. Eles gostam muito de ficar na companhia um do outro. Não, eu não poderia permitir isso. Eles irão viver juntos... naturalmente, como duas crianças...

- Não acho que meninas dessa idade devam ter filhos.

- Filhos! Eles vão levar anos para ter filhos. São muito inocentes. A senhora devia ouvi-los cantando em harmonia. Eles passeiam a cavalo; dançam; jogam xadrez. É um prazer enorme ver os dois. Não, minha cara condessa, eles têm de se casar. compreendo os sentimentos de uma mãe, mas permita que a assegure de que não há necessidade para a menor preocupação.

- vou ter uma conversa com a minha filha - disse a condessa.

John de Gaunt ficou apreensivo. Gostaria que a condessa não tivesse ido a Arundel, mas naturalmente fora necessário dizer-lhe o que estava sendo planejado para sua filha. Era uma mulher astuta. Iria compreender o motivo pelo qual Eleanor estava tentando obrigar a menina a entrar para um convento. Mas ao mesmo tempo, faria o possível para manter Mary solteira até atingir o que ela considerava uma idade adequada.

A condessa conversou com Mary.

- Minha filha querida - disse ela -, você é muito criança para se casar.

- Outras pessoas têm dito isso, senhora - replicou a filha.

- Mas Henrique e eu nos amamos e somos muito felizes juntos. Ele não se importa com o fato de eu ser criança.

- Você tem de compreender que existem obrigações.

- Eu sei do que a senhora está falando. É do leito matrimonial, não é?

A condessa ficou um tanto surpresa.

- O que você sabe sobre essas coisas?

- Que não há nada a temer... quando se ama.

Ela estava citando Henrique. A condessa adivinhou aquilo. Não havia dúvida de que John de Gaunt estava certo quando disse que os dois se amavam.

- Pedi ao duque que adie o casamento. Pelo menos um ano. Então poderíamos estudar outra vez quando ele deveria acontecer.

Mary ficou muito abatida.

- E ele vai fazer isso?

A condessa envolveu a filha em um braço e apertou-a de encontro a ela. Pensou: não, não vai. Ele quer a sua fortuna para o filho dele. Filha querida, o que sábia ela sobre as coisas do mundo?

Pelo menos a condessa podia se consolar. A menina estava feliz. Tantas meninas na sua situação viam-se obrigadas a casamentos que lhes eram desagradáveis. Ninguém podia dizer isso de Mary.

A condessa conhecia a determinação de John de Gaunt. Por mais que ela protestasse, o casamento iria acontecer.

Ela precisava aceitar a ideia de que era aquilo que Mary queria.

E assim os dois se casaram e houve grandes comemorações no palácio do Savoy, de John de Gaunt, o que era de se esperar, pois se tratava do casamento de seu filho e herdeiro. Fizeram com que Mary sentisse que estava entrando, pelo casamento, na mais importante família do país e que seu casamento era ainda mais brilhante do que o de sua irmã. Eleanor não esteve presente. Recusara o convite de sua irmã falsa; e Thomas ainda estava na França. Aquele rompimento provocou uma leve tristeza no coração da noiva, mas ela não a alimentou. Henrique fizera com que ela percebesse que Eleanor estava, na verdade, mais interessada na fortuna dos de Bohun do que na felicidade da irmã mais moça, e Mary começava a olhar para Henrique e aceitar qualquer interpretação que ele desse sobre todos os assuntos, e como Henrique tinha sempre o máximo prazer de explicar e ela de ouvir, os dois gostavam mais um do outro a cada dia que passava.

Mary agora era a condessa de Derby, e o imponente homem que estava sentado à cabeceira da mesa era seu sogro, e ali no grande salão do palácio do Savoy mesas haviam sido montadas sobre cavaletes, porque toda a nobreza do país deveria estar presente ao casamento do filho de John de Gaunt. Mary, ao lado direito do grande duque, com Henrique a seu lado, sentava-se à mesa alta. Sua mãe estava lá, assim como suas novas cunhadas Filipa e Elizabeth. Achava-se também presente uma mulher muito bonita, cuja presença provocou alguns risos abafados entre os convidados. Era característico do importante duque insistir que sua amante não só estivesse presente, mas fosse tratada com toda a deferência que normalmente seria dedicada à sua duquesa.

Henrique apertou a mão de Mary, que sorriu para ele. Era reconfortante acreditar que enquanto ele estivesse a seu lado tudo estaria bem.

Ele escolhia as melhores partes da comida e os dava a Mary e, feliz, ela mastigava os delicados petiscos, embora na verdade não estivesse com fome. Mas os convidados deliciavam-se com o banquete, declarando que raramente tinham visto cabeças de javalis tão grandes, tais quartos de vaca e carneiro, tais pernis de porco, tais bacorinhos que davam água na boca só de olhar. Havia pato selvagem, faisão, galinha, marrecos, galinholas, narcejas, pavões e perdizes, e um delicioso prato chamado leche, feito de carne de porco crua triturada, ovos, açúcar, passas e tâmaras, todos misturados com especiarias e colocados numa bexiga para ferver; e também havia aqueles produtos de pastelaria conhecidos como raffyolys eflampoyntes. Tudo em que se pudera pensar para fazer daquela uma festa para sobrepujar todas as outras fora providenciado.

Deveria haver uma justa no dia seguinte, mas aquele tinha sido dedicado a comemorações e divertimentos em recinto fechado.

Os pantomimeiros entraram no salão com suas máscaras, algumas das quais tão estranhas, que pareciam figuras fantasmagóricas e provocavam arrepios de horror nas espinhas dos espectadores.

Usavam cabeças de animais com chifres e cabeças de bodes e criaturas que nunca poderiam ter existido a não ser na imaginação do fabricante da máscara. Alguns usavam máscaras de belas mulheres que ficavam estranhas nos retilíneos corpos masculinos. Mas eles tinham a finalidade de levar risos aos lábios de todos os que os vissem, e isso não havia dúvida de que fizeram, embora algumas pessoas pudessem ter ficado apavoradas.

Foi maravilhoso vê-los dançar e representar as cenas em mímica. A plateia aplaudiu com entusiasmo, e então começou o baile. Henrique conduziu Mary, e outras pessoas seguiram-nos. Lancaster dançou com a bela Catherine Swynford; os presentes ficaram de respiração presa ao observá-los, e muitos pensaram embora não ousassem transformar os pensamentos em palavras - que naquele momento não havia um homem no reino que teria a ousadia de se portar como John de Gaunt. O antigo rei fizera-o com sua amante Alice Perrers. Ele teria dito que aquilo era o privilégio de um rei; mas o povo não gostava dele por causa disso. De certo modo, com John de Gaunt era diferente. Havia um amor verdadeiro entre aqueles dois, e o fato disso ser tão óbvio devia inspirar respeito onde quer que estivesse.

Então John de Gaunt tomou a mão de Mary e dançou com ela, enquanto Henrique dançava com Lady Swynford. Seu novo pai disse a Mary que considerava aquele um dos dias mais felizes de sua vida. Queria que ela também o considerasse assim.

As tochas derretiam-se, e a noite ia passando. Estava na hora de Henrique levar Mary embora. O pai dele conteve as pessoas que teriam tentado agir de acordo com os velhos costumes.

- Eles são jovens e inocentes - disse ele. - Eu não os incomodaria. Deixem que a natureza siga seu curso normal com eles.

No grande quarto preparado para eles, a natureza estava seguindo seu curso normal.

Henrique era adiantado para sua idade. Estava apaixonado pela esposa, e por ela ter uma inteligência acima do normal para sua idade, não passou pela cabeça dele pensar que ela poderia não ser fisicamente madura.

Ele estava contente por não ter havido piadas picantes; Mary não as teria compreendido, e elas poderiam tê-la deixado assustada. Assim, ela estava inteiramente à disposição dele para que a ensinasse, segundo ele acreditava, com a calma que lhe fosse possível.

Henrique ajudou-a a tirar os trajes de noiva que, muito incrustados de jóias, eram pesadamente incómodos, e foi um alívio livrar-se deles.

Mary ficou em pé diante dele - uma criança em sua simplicidade. Ele próprio apanhou a camisola solta e passou-a pela cabeça dela.

E)epois, conduziu-a até o leito nupcial; ela se deitou, enquanto ele se despia.

Então, juntou-se a ela.

Delicadamente, com ternas explicações, ele a iniciou nos mistérios da procriação que, para pessoas como eles, que tinham de pensar na continuação de famílias importantes, era a função primordial do casamento.

Os dois partiram para Kenilworth porque, como o pai dele dissera, Henrique gostava mais de lá do que de todas as outras herdades que seriam suas um dia.

Mary sentia-se muito feliz em viajar com Henrique; ele era delicado, carinhoso e gentil, e ela não acreditara que houvesse tanta satisfação no mundo. Se ao menos pudesse se esquecer de Eleanor, ficaria inteiramente feliz.

A visão de Kenilworth era deslumbrante. Tinham feito uma viagem longa, porque o castelo ficava entre Warwick e Coventry, a cerca de oito quilómetros de cada um deles. O castelo consistia em uma magnífica estrutura de prédios acastelados que deviam seu encanto ao fato de terem sido acrescentados ao longo dos anos, pois Kenilworth não passava de uma herdade na época do primeiro Henrique, que o doara a um de seus nobres, e fora esse nobre que começara a tarefa de transformar a herdade num castelo. A torre de menagem era maciça e era conhecida como César, em honra à do mesmo nome que havia na Torre de Londres. Kenilworth tinha a distinção de ter pertencido, em determinada época, a Simon de Montfort, e quando este morrera o castelo fora dado pelo rei ao seu filho caçula, Edmund, conde de Lancaster. Assim, tal como o Savoy, ele passara às mãos de John de Gaunt através de seu casamento com a mãe de Henrique, Blanche de Lancaster.

Henrique disse a Mary que seu pai, que ficara gostando muito do castelo desde que ele passara a ser seu, ampliara-o ainda mais do que aqueles que o tinham possuído antes, e para provar isso, Henrique apontou para ela a magnífica extensão conhecida como Prédio Lancaster.

Kenilworth era um palácio de contos de fada, ideal para um casal de jovens que estavam compreendendo o prazer de se conhecer.

Mary iria lembrar-se daquela fase até o fim da vida. Sentia-se inteiramente feliz e não lhe ocorreu, no auge da felicidade, questionar a transitoriedade daquele sentimento. Não olhava para o futuro; se tivesse olhado, teria entendido que um homem na elevada posição de Henrique não poderia desfrutar para sempre dos prazeres da bem-aventurança de recém-casados no castelo de Kenilworth.

Os dois cavalgavam juntos pela floresta - não caçando, porque Mary confessara a ele que detestava ver animais serem mortos e sempre esperava que os alces e os javalis conseguissem escapar. Henrique riu dela, mas a amou ainda mais pela sua delicadeza, e disse que já que ela não gostava de caçadas, eles iriam à procura de sinais da primavera, e não de trilhas de animais.

Ela também não gostava da caça com o falcão; gostava de ver os pássaros voando em liberdade. Ficava parada e admirava Henrique quando ele praticava o arco e flecha e aplaudia, feliz, quando ele derrotava os competidores. Pensava em como ele ficava bonito ao atirar ao alvo com o arco que era da mesma altura que ele, e a flecha media quase um metro. Os acompanhantes participavam de brincadeiras e jogos com eles. Os dois riam bastante com o Rolo do Trapeiro, que era a preliminar para um espetáculo de mímica. Um deles trazia um rolo de pergaminho no qual estavam escritos alguns dísticos descrevendo certos personagens; e presos a esses versos estavam cordões com selos na ponta. Cada participante devia segurar um selo, puxar o cordão e depois representar a personagem cuja descrição ele escolhera. Havia risadas estridentes quando se brincava daquela maneira, pois sempre parecia que as pessoas escolhiam as personagens menos parecidas com elas. Quando se cansavam da mímica, brincavam de uma espécie de "cabra cega", no qual um dos participantes tinha os olhos vendados e se ajoelhava com as mãos para trás. Os outros participantes batiam nas mãos dele, e a pessoa ajoelhada e vendada tinha de adivinhar quem havia batido, antes de ser liberada. Mary preferia muito mais os jogos de xadrez, quando ela e Henrique se retiravam para um canto tranquilo e mediam sua capacidade um contra o outro, ou quando Henrique sugeria que ela apanhasse a guitarra e cantavam e tocavam juntos.

Foram dias realmente felizes, enquanto a primavera se transformava em verão, mas que não podiam continuar para sempre, e um dia chegou ao castelo um mensageiro a mando do duque de Lancaster, com a ordem para que Henrique se juntasse ao pai.

Seria só por pouco tempo, disse ele a Mary. Assim que pudesse, voltaria, ou se isso fosse impossível, mandaria buscá-la.

Ela percebeu que tinha de aceitar aquilo. Viu-o afastar-se a cavalo e a desolação tomou conta dela. Sabia que tinha de ser corajosa. Isso acontecia com todas as esposas. Os maridos não podiam ficar com elas para sempre.

Pouco depois da partida de Henrique, ela viu que teria um filho.

Mary ficou encantada, embora ouvisse, sem ser percebida, suas acompanhantes discutindo o assunto em particular e sabia que abanavam a cabeça e a melancolia se refletia nos olhos delas.

- Eu lhe digo que ela é criança demais - disse uma delas.

- Isso não está correto para uma pessoa tão jovem.

- Dizem - comentou outra - que se a mulher puder conceber, está madura para procriar.

- Ela mesma não passa de uma criança. Eles deviam ter esperado.

Mary não queria ouvir mais. Aquele tipo de conversa a amedrontava.

Um certo dia, o conde e a condessa de Buckingham passaram por Kenilworth. Ficaram lá uma noite, e isso foi muito desagradável.

Eleanor estava fria; Thomas fervia de indignação.

- Por Deus! - disse ele. - Nunca mais vou gostar de John. Ele planejou isso. Esperou até eu me ausentar.

- Não foi assim - bradou Mary.

- Casada! - bradou Eleanor. - Na sua idade. Estou profundamente chocada.

- Você ia me mandar para um convento - retorquiu Mary.

- Você achava que eu tinha idade suficiente para me decidir sobre isso.

- Como você pôde ser tão enganadora? As freiras estão desoladas.

- A abadessa estava mais preocupada com que eu tivesse certeza de que estava fazendo o que fosse melhor para mim.

- Eu me pergunto se você não está envergonhada - bradou Eleanor. - Sair daquele jeito e logo depois ficarmos sabendo que estava noiva!

- Por acaso, Henrique estava em Arundel...

- Por acaso! - vociferou Eleanor. - Isso foi preparado. E por que você acha que foi preparado? Porque por acaso você era uma herdeira, entendeu? Você acha que o todo-poderoso duque de Lancaster e seu romântico filho teriam ficado tão ansiosos por conquistá-la sem sua fortuna?

- Foi por isso que Thomas conquistou você? - retorquiu Mary.

- Sua malvada! Você está se dando ares de importante. Como ousa falar comigo desse jeito? Oh, estou muito decepcionada. Depois de tudo o que fizemos. Fomos para Pleshy porque você estava muito interessada no convento de lá.

- Parem de discutir - gritou Thomas. - O mal está feito. Quisera Deus que eu não estivesse fora do país na ocasião. Eu teria pegado em armas contra Lancaster. Eu teria...

Ele continuou a vociferar, com raiva. Era tudo muito ridículo, pensou Mary. Ele não teria tido a ousadia de pegar em armas contra o irmão por um motivo daqueles. Mas talvez pegasse. Era conhecido no país inteiro como um homem que agia por impulsos, por mais tolos que fossem.

Mary ficou contente quando foram embora. Aquilo era muito perturbador.

De vez em quando, Henrique a visitava, mas se encontrava a serviço do rei e não podia estar com ela com a frequência que desejava. Ela gostava de ouvir falar sobre o rei, a quem ela desconfiava que Henrique desprezava um pouco. Ele não era tão hábil quanto Henrique em qualquer um dos esportes ao ar livre; Henrique sempre o vencia. - Ele se importa? - perguntou Mary.

- Ele, não. Ele gosta mais dos livros; e fica horas falando sobre suas finas roupas. É muito exigente quanto à comida. Não que coma muito; mas tem de ser servido com o máximo de delicadeza. Para lhe dizer a verdade, Mary, ele não é o que se pensa de um rei.

Muitas vezes Henrique ficava melancólico quando falava no rei. Mary compreendeu o motivo quando um dia ele lhe disse:

- Sabe, se meu pai tivesse sido o primeiro dos filhos do pai dele, eu é que teria sido o rei.

- Você teria gostado, Henrique? - perguntou ela.

- Não é uma questão de gostar - foi a resposta - mas de aceitar o fato e amoldar-se a ele. Você vê, Ricardo não nasceu para ser rei. Se o irmão mais velho dele tivesse vivido, conquistaria a coroa; e depois o pai dele morreu e ali estava ele, com cerca de nove anos de idade, rei da Inglaterra.

Na voz de Henrique havia um leve ressentimento.

Mary não disse, mas ficou satisfeita com o fato de o pai dele não ter sido o filho mais velho, pois nesse caso ela acabaria sendo rainha, e sabia que isso seria de assustar.

As visitas de Henrique eram muito rápidas, e Mary ficava muito tempo sozinha. Fazia muito trabalho de agulha, tocava guitarra, aprendia novas músicas para cantar para Henrique e aguardava o nascimento do filho com certa impaciência.

Ela ouvia trechos de mexericos de suas acompanhantes. com base neles, Mary conseguia formar um quadro do que acontecia no mundo exterior. Descobriu que havia um murmúrio de descontentamento pelo país inteiro. Alguns diziam que os camponeses estavam se achando muito importantes devido às leis agrárias que permitiam que eles cultivassem para uso próprio parte da terra pertencente ao dono da herdade e pagassem isso trabalhando para ele. Reclamavam que o senhor das terras ocupava a maior parte do tempo deles e suas safras eram prejudicadas porque eles não podiam cuidar delas numa emergência, pois numa época daquelas as terras do patrão precisariam de toda a atenção deles. Eram escravos. Estavam presos à terra, e o mesmo acontecia com seus filhos. Mas a maior de todas as queixas era o imposto per capita, cobrado de cada homem, de cada mulher e de cada criança acima de quinze anos.

Ela ouvia o nome de John Bali, mencionado com frequência. Ele fora, pelo que Mary deduzia, um sacerdote iletrado e de classe social inferior, o que significava que não tivera igreja nem casa própria, mas perambulara pelo interior pregando e aceitando cama e mesa onde fosse possível encontrá-las. Ele pregara para o povo em gramados centrais das aldeias, numa certa fase, mas quando começou a ser observado por pessoas com autoridade, aquelas reuniões tinham sido feitas em bosques, à noite.

Dissera-se que ele estivera não apenas pregando religião, mas pregando revolução, pois estava instando os camponeses a se levantarem contra os senhores, a acabarem com a escravidão, e a exigirem o que ele chamara de seus direitos.

Não era de admirar que um homem que pregasse tais doutrinas incendiárias fosse considerado perigoso, e John Bali fora detido e colocado na prisão de Maidstone, do arcebispo.

E agora havia todo aquele falatório sobre a inquietação dos camponeses; mas ninguém a levava muito a sério.

Sem dúvida era o que acontecia com os moradores de Kenilworth, onde todos se mostravam preocupados com o nascimento que estava próximo.

Ele começou ao cair da noite, quando Mary estava sentada com as damas de companhia. Ela tocava guitarra enquanto elas teciam suas tapeçarias. A criança era esperada dentro de poucas semanas, e Mary estava sofrendo de um terrível desconforto. Era tudo muito natural, diziam as acompanhantes; aquele era o destino de todas as mulheres na situação dela, e todos os transtornos dos últimos meses teriam valido a pena quando o filho dela nascesse.

As dores começaram de repente, e eram tão agudas, que as damas de companhia levaram-na imediatamente para a cama e mandaram chamar os médicos.

Mary agora estava perdida no nevoeiro da dor; nunca acreditara que pudesse haver tamanha agonia. Vagamente, ouviu uma voz dizendo:

- Mas ela mesma não passa de uma criança... jovem demais... imatura...

Ela perdera a noção de tempo. Ficava só ali deitada, à espera que as ondas de dor a encobrissem, recuassem, e depois voltassem. Parecia que aquilo não acabaria nunca. Ela perdeu a consciência, e quando acordou a dor passara. Sentia-se completamente exausta, e por algum tempo não teve certeza quanto ao que acontecera. E quando se lembrou, os primeiros pensamentos foram para a criança.

- Meu filho... - murmurou.

Fez-se silêncio. Ela tentou esforçar-se para se levantar, mas se sentia cansada demais.

- Onde está meu filho? - perguntou, com voz estridente. Uma das assistentes aproximou-se da cama e ajoelhou-se.

Estava para falar, e então curvou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos.

- Diga-me - disse Mary, inflexível.

- Minha senhora - disse a mulher, e havia um soluço em sua voz -, a criança nasceu... uma criança bonita... membros perfeitos...

- Sim, sim. Onde está ela?

- Nasceu morta, senhora.

Mary deixou-se cair para trás na cama. Fechou os olhos. Todos os meses de espera... todas as esperanças e todos os planos... acabaram. A criança nascera morta.

- Haverá mais... depois-continuou a mulher. -A senhora escapou, louvado seja Deus. Vai ficar forte outra vez e então, e então...

Mary não estava ouvindo. Henrique, pensou ela. Oh, Henrique, eu o decepcionei.

Ela estava impossibilitada de sair da cama. Ficava deitada, apática, imaginando onde estaria Henrique, o que ele estaria fazendo naquele momento. Estava certa de que ele iria até o quarto dela. Ela não teria condições de suportar a decepção dele.

Mary tinha razão. Assim que a notícia foi levada até Henrique, ele obteve autorização do rei para ir até Kenilworth.

Ajoelhou-se ao lado da cama. Tomou as mãos dela e as beijou. Disse que ela não devia se preocupar. No devido tempo, teriam um filho homem...

Ele fez muito para consolá-la. Devia pensar em como os dois eram jovens. Tinham a vida inteira pela frente. Não deviam se atormentar por ter perdido aquele filho. Henrique se sentava ao lado da cama e falava com ela sobre o futuro e o quanto seriam felizes e que, com o tempo, teriam tantos filhos quanto o avô dele, o rei Eduardo, e sua avó, a rainha Filipa, tinham tido. Mary veria.

Ela começou a se recuperar, mas ainda estava fraca.

Poucos dias depois de Henrique, chegou outra visita a Kenilworth. Era a mãe de Mary, a condessa de Hereford.

Foi imediatamente ver a filha, abraçou-a e então declarou que tinha ido para tratar dela. Joana de Bohun era uma mulher de grande força de caráter; era dedicada às filhas e, em especial, a Mary, porque era a mais nova das duas. Eleanor, segundo ela, podia cuidar de si mesma.

Joana sempre se ressentira do fato de que o costume do país exigia que sua filha fosse retirada de seus cuidados e se tornasse tutelada de John de Gaunt, a fim de que, dizia ela, o poderoso duque recebesse a recompensa monetária que acompanhava tais nomeações.

Ela, mãe de Mary, estava mais apta a cuidar da filha do que ninguém; e em vista do que acontecera, agora fora reivindicar esse direito.

Mary ficou encantada ao ver a mãe.

A condessa estudou a filha e escondeu a preocupação que sentia. A menina estava muito magra. Que terrível provação para uma menina que ainda não completara doze anos de idade. Algumas meninas se desenvolvem mais cedo do que outras, e nesse caso uma gravidez precoce poderia ser permissível; mas Mary ainda era criança e delicada demais.

Isso não vai mais se repetir, pensou a condessa, séria. Se tiver de lutar contra o próprio John de Gaunt, eu o farei.

- Mãe adorada - disse Mary. - Estou muito feliz ao vê-la.

- Deus a abençoe, minha filha. É natural que quando minha filha fica doente, a mãe seja a pessoa a cuidar dela. Você vai ficar boa em uma semana. vou providenciar isso.

Mary sorriu.

- Sempre tínhamos de obedecer à senhora - disse ela. Por isso, tenho de obedecer agora.

- Deve mesmo, e vai.

Henrique entrara no quarto da doente, e a condessa percebeu a maneira da fisionomia de Mary se animar ao vê-lo. Era um belo rapaz, pensou ela, e de fato um marido digno para uma de Bohun, mas eles eram muito crianças... crianças demais, e aquilo não deveria acontecer mais.

Henrique deu-lhe as boas-vindas com fidalguia e estava claramente contente por ela ter chegado, porque parecia apreensivo a respeito da saúde de sua jovem mulher, e a condessa gostou dele por causa disso. Disse a ele que em breve faria Mary ficar boa.

- Ninguém compreende uma filha como a mãe dela - anunciou ela.

Ela tomou conta da inválida. Mandou levar para o quarto uma cama que ela pudesse ocupar. Ficaria com Mary dia e noite. Fez uma mistura de leite quente, cerveja e vinho, e sopas especiais para a filha que, sob o olhar severo da mãe, não tinha coragem de recusar.

Mary tinha uma grande sensação de segurança, da qual sentira falta na época de Pleshy. Estar ali com Henrique e a mãe deixava-a muito feliz, e ela começou a se recuperar

da dor que sentira com a perda do filho.

- Você tem a vida inteira pela frente - disse a mãe. Havia um assunto que ela ainda não discutira com Mary, mas pretendia fazê-lo quando achasse que chegara a hora certa.

A condessa culpava a si mesma por não ter sido bastante firme logo no início. Quando ficara viúva, deveria ter-se recusado a permitir que a filha mais nova fosse afastada de seus cuidados.

O rei dera a tutelagem a John de Gaunt como um prémio de consolação por alguma outra coisa, e ela fora obrigada a liberar a filha, devido à ordem real. Seu marido, Humphrey de Bohun, conde de Hereford e Essex, tinha sido um dos homens mais ricos do país, e por isso tinha uma imensa fortuna para deixar, e fora aquela fortuna que levara àquela situação em que Mary poderia ter perdido a vida.

A condessa, agora, estava agindo com decisão e assumindo o controle da situação.

Ela abordou o assunto primeiro com Henrique.

- Henrique - disse ela -, terei uma conversa muito séria com você. Estou muitíssimo preocupada com Mary.

Ele pareceu alarmado.

- Pensei que ela estivesse melhorando.

- Está. Mas você sabe que ela quase perdeu a vida, não é?

- Sei que ela tem andado muito doente.

- A verdade pura e simples é que ela é criança demais para ter filhos. O corpo ainda não está totalmente formado. Ela precisa de mais uns dois anos, no mínimo, para amadurecer.

Henrique pareceu envergonhado, e a condessa apressou-se a prosseguir:

- Não culpo você. A culpa é daqueles que colocaram vocês dois juntos numa idade tão tenra.

Henrique ficou rubro. Para ele, o pai era um herói.

- Oh, os homens nem sempre compreendem essas coisas disse a condessa, rápido, percebendo que se quisesse conseguir o que queria não podia hostilizar John de Gaunt.

Ela acreditava saber como lidar com aquilo, mas precisaria usar de tato; e sabia que o grande desejo de John de Gaunt tinha sido fazer com que o casamento fosse celebrado e a fortuna de Mary ficasse garantida. Isso tinha sido feito, e ele deveria estar disposto a adiar a geração de filhos por alguns anos.

- O que a senhora quer que eu faça? - perguntou Henrique.

- Não deve haver relações maritais entre vocês pelo menos por dois anos. Você tem de entender o motivo por trás disso. Não deve haver mais filhos... por enquanto.

- A senhora falou com Mary?

- Explicarei a ela. Ela compreenderá. Na verdade, estou certa de que ela não quer passar novamente por essa situação. O que vou sugerir é que eu leve Mary de volta comigo. Tomarei conta dela e-você vai saber que ela está segura sob os cuidados da mãe. Você será bem-vindo ao castelo sempre que quiser, ficando entendido que não haverá atos amorosos enquanto ela não tiver atingido uma idade adequada.

Henrique estava pronto a jurar que concordava com aquelas condições. Ficara muito aflito com o estado de Mary e tivera uma terrível sensação de culpa. Mas agora ela estava bem outra vez e ele compreendia que eles deviam esperar alguns anos antes de viver juntos. Sim, ele não podia fazer outra coisa, a não ser concordar.

A condessa ficou triunfante. John de Gaunt estava ausente, a serviço do rei, de modo que não podia levantar objeções. Eleanor e o marido já não estavam interessados, agora que haviam perdido a parte de Mary da fortuna dos de Bohun.

Joana tinha apenas que contar a Mary, e assim que a menina se recuperasse o suficiente para viajar, as duas partiriam.

Mary ouviu a mãe com atenção.

- Minha adorada filha - disse a condessa -, fiquei muito triste quando você me deixou para ir morar com sua irmã. Você sabe que não foi por vontade minha.

- Eu sei, sim - disse Mary, veemente.

- É muito errado quando uma criança é tirada do lugar que é seu por direito só porque possui uma fortuna. Oh, aquela fortuna! Eu poderia desejar que seu pai tivesse sido um homem muito mais pobre. Sua irmã a ambicionava... e o marido dela também. Eles teriam colocado você num convento só por causa dela.

- Tive sorte de conhecer Henrique - intercalou Mary. Ele não liga para a minha fortuna.

A condessa ficou calada. Não ligava? Ela ficaria surpresa se aquilo fosse verdade. De qualquer modo, havia uma pessoa que se importava, e muito, e essa pessoa era o pai de Henrique, John de Gaunt.

Graças a Deus, ele estava na Escócia e não poderia interferir. E será que o rei interferiria? Ele dera a tutela ao seu tio John. Não, Joana nada tinha a temer da parte de Ricardo. Não passava de um menino. Se fosse necessário, iria procurá-lo e explicar-lhe a situação; estava certa de que poderia despertar a piedade dele por uma mãe que estava preocupada com a filha.

- Minha querida - prosseguiu a condessa -, você sabe muito bem que esteve muito doente. Houve um dia em que não havia mais esperanças quanto à sua vida. A verdade, filha, é que ainda é muito criança para ter filhos. Henrique concorda comigo que vocês devam esperar um ano ou coisa assim.

- Esperar... o que a senhora quer dizer?

- Você e Henrique ficarão como se fossem noivos... Não haverá mais relações maritais entre os dois.

- Tenho de perguntar a Henrique...

- Já conversei com Henrique. Ele entende. Ele concorda comigo.

Mary pareceu ter ficado aliviada. Depois, disse, assustada:

- Quer dizer que não vou ver Henrique?

- Claro que vai ver Henrique. Ele irá a Leicester para nos visitar. Ficará lá, e vocês vão cantar suas canções e tocar guitarra juntos. Vão medir suas inteligências no xadrez. Mas simplesmente se comportarão como noivos... como se a cerimónia do casamento ainda não tivesse acontecido.

Mary ficou calada. E a mãe desabafou com veemência:

- Você não vai mais ser submetida a esse sofrimento outra vez. Ainda é muito criança para ter filhos. Seu corpo não está pronto para isso. Tudo o que peço é que esperem um ano... dois anos, talvez. Na verdade, eu vou insistir.

- Desde que Henrique concorde... e eu o veja.

- Mas é claro que o verá. Querida filha, compreenda que tudo o que sempre quero é aquilo que seja o melhor para você.

E assim ficou combinado, e quando Mary ficou em condições, a condessa deixou Kenilworth levando a filha.

 

POR MAIS DE três anos, Mary morou com a mãe, período no qual Henrique a visitava sempre que possível. A mãe explicara a ela que quando uma mulher se casava com um homem de uma posição assim tão elevada, devia estar preparada para que ele tivesse muitos deveres fora de sua vida doméstica reclamando a sua atenção.

Mary estava resignada. Aprendeu, com entusiasmo, a controlar uma casa grande; passava longas horas na despensa; estudou as várias ervas e especiarias e o modo de guarnecer pratos com elas; sabia fermentar cerveja com perfeição; a mãe deixava que ela desse instruções aos criados nas ocasiões em que eram esperados visitantes importantes, e a condessa insistia para que eles todos vissem que, apesar da pouca idade, Mary era condessa de Hereford e esposa do filho do grande John de Gaunt. Tampouco deixava que Mary negligenciasse as atividades mais finas. Precisava aprender as canções e danças mais recentes que estavam na moda na corte, e tocava guitarra e cantava para os convidados. Os mais finos tecidos eram enviados ao castelo para que ela escolhesse o preferido, e a condessa insistia em que ela dedicasse especial atenção à sua aparência.

Aqueles eram os anos de espera, e Mary percebia, agora, sem dúvida alguma, como teria sido errado se tivesse deixado que a obrigassem a entrar para o convento. Henrique a salvara daquilo, e seria grata a ele para sempre. Pretendia ser aquilo que ele iria fazer dela: esposa e mãe. Proporcionar uma casa bem-administrada ao marido e aos filhos era a sua verdadeira missão na vida, e durante aqueles anos de espera ansiava pelo momento em que ficasse com idade bastante para ir viver com Henrique.

Pensava muito nele, querendo saber o que ele estaria fazendo naquele momento. Durante o dia, estava ocupada; a mãe providenciava para que ela ficasse bem ocupada; mas à noite, deitada na cama, observava as tremeluzentes sombras nas paredes, pois de acordo com a moda da época ela acendia uma pequena lâmpada no quarto. Era uma taça de metal cheia de óleo, com um pavio; e era um consolo durante a escuridão, quando certos medos tomavam conta dela.

Mary vivia apreensiva, com medo de que algo acontecesse e não lhe contassem. Na época em que ela e Henrique tinham vivido juntos e ficara grávida, coisas horríveis andavam acontecendo, e ela nada soubera sobre isso. Os camponeses

tinham-se revoltado e o país inteiro estivera em perigo; quanto a Henrique, ficara ao lado do rei, na época, na Torre de Londres, e quase perdera a vida. Ela ficara - e ainda estava - tão horrorizada diante da segunda quase-calamidade que pouco pensava na primeira.

Só soubera da verdade depois do trágico nascimento de seu filho natimorto, e nunca se esqueceria, enquanto vivesse, do dia em que Henrique se sentara a seu lado e lhe contara.

- Um homem chamado Wat Tyler estava à frente deles dissera ele. - A história é que o coletor que fora cobrar o imposto per capita insultara a filha dele e Tyler matara o coletor de impostos, e os camponeses se uniram em torno dele. Acabaram marchando para Londres. Queriam governar o país; queriam pégar todas as riquezas do país e dividi-las entre si. Estavam saqueando tudo em sua passagem. Destruíram o palácio de meu pai no Savoy.

Mary ouvira de olhos arregalados, o coração batendo furiosamente ao pensar que enquanto aquilo acontecia ela vivia tranquilamente no interior, esperando o filho e sem saber coisa alguma sobre a revolta. E Henrique estivera lá em Londres... com o rei.

- E aquela turba agitada entrou em Londres - prosseguira Henrique. - O rei foi ao encontro deles... primeiro, em Blackheath, e depois em Smithfield. Ele demonstrou grande coragem... todos disseram isso... e temos que nos lembrar de que ele salvou a situação. Quando ele estava em Blackheath, fui deixado na Torre e eles a invadiram.

Mary sentira um medo terrível, e Henrique rira dela.

- Agora está tudo acabado. Acabou bem. Ricardo falou com eles... prometeu dar o que queriam... não que ele possa dar... mas prometeu a eles, e Wat Tyler foi morto. Eles ficaram sem um líder. Dispersaram-se e desapareceram... e depois os cabeças foram apanhados e punidos.

- E você estava na Torre - murmurara ela.

- Eu tive sorte. Oh, Mary, naquele dia você quase perde seu marido. Eles teriam me matado, porque odiavam meu pai. Aonde quer que você vá, Mary, você os ouve resmungando contra ele. Você conhece todas as mentiras que dizem sobre ele.

- Por que eles o odeiam tanto? - perguntara ela. Henrique dera de ombros. Depois dissera, os olhos brilhando de orgulho:

- Porque ele é o maior homem da Inglaterra. Ele devia ter sido o primogénito, para que pudesse ter ganhado a coroa. Ele nasceu para ser rei.

Mary pedira que ele lhe contasse como fora sua fuga afortunada.

- Pareceu um milagre, Mary. Lá estava eu, esperando que me atacassem a qualquer momento. Estava pensando em você. Pensei: minha pobre Mary, vai ficar com o coração partido. E teria ficado, não teria?

Ela só conseguira confirmar com a cabeça, pois estava emocionada demais para falar.

- E então - continuara ele - a porta se abriu de supetão e ali estava um deles; tinha um podão na mão, e pensei que ele tinha ido me matar. Ele me chamou de "senhor" e falou depressa, e me disse que fora para me conduzir a um lugar seguro, pois minha vida corria grande perigo. Disse-me o que fazer, e vesti roupas simples que ele me deu. Trazia um cajado de madeira para mim e me pediu que o seguisse gritando ofensas aos ricos, e foi o que fiz e nós fugimos correndo da Torre e pelas ruas de Londres gritando o tempo todo, até chegarmos onde ficam os escritórios reais em Cárter Lane, e ali juntei-me à rainha-fnãe e a outras pessoas que tinham conseguido fugir da Torre.

Mary conseguira apenas agarrar-se a ele e pensar, com horror, que enquanto aquilo acontecia ela estivera sentada calmamente, fazendo seu trabalho de agulha, sem nenhum indício da tragédia que quase lhe arruinara a vida.

- Serei grata, pelo resto da vida, ao homem que salvou sua vida - dissera ela, com fervor.

- Eu também - replicara Henrique. - O nome dele é John Ferrour, e é de Southwark. Ele foi bem recompensado. Deve ter feito isso por gostar de meu pai, porque eu nunca tinha ouvido falar nele. Mas não há dúvida de que, não fosse ele, teria sido o fim de Henrique de Bolingbroke.

Mais tarde, Mary ficara sabendo mais a respeito da Revolta dos Camponeses e da bravura do jovem rei, e todos diziam que Ricardo seria um grande rei, tal como o avô. A Revolta dos Camponeses, à primeira vista, fora um triunfo de Ricardo; mas no entender de Mary, aquele triunfo tinha sido obtido sob falsos pretextos. Ele prometera dar o que eles queriam, e o que receberam fora uma morte cruel para os seus líderes, e suas queixas tinham continuado.

Henrique tentara explicar a Mary que não poderia ter havido outra solução. A revolução tinha de ser detida, e Ricardo conseguira isso; e a única maneira pela qual aquilo pudera ser feito fora prometendo a eles o que era impossível dar.

Ela estava ávida por notícias da corte. Henrique trazia as novidades quando de suas visitas, e aquilo era o ponto alto da existência dela. Quando ela ouvia visitantes chegando, seu coração dava saltos de alegria. Infelizmente, muitas vezes ficava profundamente decepcionada. Mas as ocasiões em que ele ia eram maravilhosas. Mary ansiava para que o tempo passasse, para que pudesse atingir a fase em que seria considerada com idade suficiente para se casar.

Henrique também estava ansioso por isso. Aquilo era outra aflição. E se ele se apaixonasse por outra pessoa? Seu pai estava casado com Constanza de Castela, mas todo mundo sabia que ele amava Lady Swynford. Casamento não era garantia de amor.

Quando o jovem rei se casara, houvera uma grande agitação pelo país inteiro. Dizia-se que Anne da Boémia não era muito bonita e que o pouco de boa aparência que possuía era prejudicada pela horrível touca em forma de chifres que usava; mas o rei gostava dela e muito em breve as toucas em forma de chifre tinham virado moda nos círculos mais elevados.

- Você deve ter uma - disse sua mãe.

Henrique passava muito tempo com o pai, e estava claro, para Mary, que para Henrique ninguém jamais poderia se comparar a John de Gaunt. Havia um forte elo entre os dois que a agradava, e ela sabia que Henrique gostava muito de Lady Swynford, que era tratada por todos - sob pena de desagradar ao duque - como duquesa de Lancaster. Não demoraria muito, dizia Henrique, para que ficassem juntos. Assim que ela fizesse quinze anos, ele anularia as objeções da mãe dela; e sabia que o pai o ajudaria.

Enquanto isso, ele levava notícias do mundo exterior. O rei era dedicado à rainha, que tratava bem o amigo dele, Robert de Vere, que, diziam alguns, Ricardo amava mais do que qualquer outra pessoa, a ponto de se desconfiar que ele tivesse herdado certos traços de caráter do tataravô, Eduardo II. Mas a rainha tornava tudo muito acomodado, e o trio estava sempre junto. Era uma loucura, disse Henrique, porque Ricardo estava dando uma atenção demasiada ao seu favorito, não apenas na sua vida particular como em assuntos de Estado, e isso era um grande erro.

- Ricardo já gastou o prestígio dado pela glória de Blackheath e Smithfield, e se continuar assim, deverá ter cuidado - disse Henrique, em tom ameaçador, e havia um certo brilho em seus olhos que deixou Mary levemente perturbada.

Mais tarde, ele disse-lhe que John Wycliffe, que provocara tanta controvérsia com suas ideias sobre religião, morrera de apoplexia enquanto assistia à missa.

- Mas isso não foi o fim de John Wycliffe - profetizou Henrique.

Houve mais confusão quando John Holland, o meio-irmão do rei, assassinou o filho do conde de Stafford e foi banido do país.

- A rainha-mãe está desolada - explicou Henrique. - Ela está tentando convencer Ricardo a inocentá-lo, mas não vejo como ele conseguirá salvá-lo. Isso praticamente irá matá-la. A saúde dela não é boa, e ela está envelhecendo.

E matou mesmo, porque ela morreu pouco depois.

Mas a essa altura Mary atingira os quinze anos de idade, e um dia John de Gaunt mandou avisar que iria visitá-los.

Tinha de haver um grande preparativo para um visitante tão importante assim, e a condessa, com Mary ao lado, mandou que preparassem carne de vaca e carneiro, frangos, carne de veado, com garças, cisnes e pavões para o honrado hóspede. O cheiro da pastelaria invadia as cozinhas, pois tinham de haver pastéis e tortas de todos os tipos, para serem dignos de tal convidado e da comitiva que com toda certeza ele levaria junto.

Henrique deveria acompanhá-lo, e Mary adivinhou o objetivo daquela visita. O mesmo aconteceu com sua mãe, pois olhava aflita para a filha.

- Senhora - lembrou Mary à condessa -, já completei quinze anos e já não sou mais criança.

A condessa suspirou. Teria gostado de manter a filha a seu lado um pouco mais.

De uma das janelas da torrinha, Mary viu a chegada do grande John de Gaunt, resplandecente com bandeiras exibindo os leões e os leopardos. Ao lado do grande duque de Lancaster cavalgava seu filho, Henrique de Bolingbroke.

Como eram nobres, aqueles Plantagenetas, e como se pareciam na aparência! Não podia haver dúvida de suas origens; tinham o porte - todos eles - de rei.

A condessa estava esperando para recebê-los, com Mary ao lado. John de Gaunt pegou Mary nos braços, quando ela ia fazer uma mesura para ele.

- Como vai passando minha filha querida? - perguntou ele. Ela respondeu que estava bem e que esperava que ele também estivesse.

A mãe dela olhava com orgulho, como devia, mesmo, ao contemplar aquele brilhante casamento da filha; e o fato de Mary e Henrique se amarem de forma tão evidente era um grande bálsamo para seu coração materno.

Henrique encarava Mary com olhos brilhantes, e quando a abraçou, ela sentiu a alegria que o envolvia; e por isso percebeu que a espera logo acabaria.

Havia um ar de festividade no jantar daquela noite, enquanto os pratos que tinham provocado tamanha azáfama, na cozinha eram colocados diante dos ilustres convidados. Além das carnes e das tortas, havia frutas secas conservadas em açúcar - amêndoas, passas e belos marzipãs com todos os petiscos que já se tinha imaginado.

- Sua filha cresce depressa - disse John de Gaunt à condessa. - E a beleza dela aumenta. Já não é mais criança. A senhora concorda?

Relutante, a condessa admitiu que sim; e então já não podia haver dúvida quanto à razão da visita.

Mary e Henrique dançaram juntos; ela tocou guitarra, e ele cantou com ela; e enquanto os observavam, o duque de Lancaster explicou à condessa que dentro em pouco ele deixaria o país e iria para Castela, onde tentaria conquistar a coroa, à qual ele alegava ter direito por intermédio de sua esposa Constanza; deixaria o filho encarregado de suas propriedades.

- Henrique agora é um homem - acrescentou ele.

A condessa ficou pensativa. Não gostava muito de John de Gaunt, era amedrontador demais para que ela se sentisse à vontade. Além do mais, sabia o quanto ele era ambicioso e que ansiava por uma coroa. Casara-se com Constanza de Castela na esperança de ser rei de Castela, já que não podia ser o rei da Inglaterra, embora não vivesse com a esposa legítima mas com a amante, Catherine Swynford. E ele casara o filho com Mary por causa da fortuna de Mary.

Agora, estava dizendo à condessa que estava na hora de Mary afastar-se da mãe e tornar-se esposa de Henrique.

Joana percebeu que aquilo tinha de acontecer.

Enquanto isso, Henrique explicava a Mary.

- A espera acabou - disse ele. - Você partirá comigo. Mary entrelaçou as mãos e fechou os olhos; estava muito contente.

- Isso quer dizer que você está contente? - perguntou Henrique.

Ela confirmou com a cabeça.

- Estou com quase vinte anos - disse ele. - Meu pai diz que está na hora de eu ter uma esposa. Oh, Mary, a espera foi muito longa.

- Para mim, também. Lamento por ter sido muito nova. Aquilo fez com que Henrique desse uma risada.

- Escute - disse ele. - Quando eu sair daqui, você irá comigo. Meu pai vai para Castela.

- Oh, Henrique... você...

- Não, eu não vou com ele. Tem de haver alguém aqui para cuidar das herdades. Sem dúvida, deverei viajar com ele até a costa. Talvez você vá conosco, Mary.

Ela colocou as mãos nas dele.

- Henrique, estou muito feliz.

Seguiram-se dias atarefados. Era preciso fazer as honras da casa ao grande John de Gaunt, e Mary tinha de se preparar para partir com Henrique. A mãe a observava com uma certa tristeza.

- Sinto-me satisfeita por você estar feliz no casamento - disse ela -, mas triste porque está indo embora. Se algum dia precisar de mim, basta mandar me avisar, minha filha, e estarei com você.

- Haverá mulher mais afortunada do que eu? - disse Mary, com ar solene. - Tenho o melhor marido e a melhor mãe do mundo.

Mary era esposa de verdade, e não demorou muito para ficar esperando ser mãe. Ela e Henrique tinham ido para o castelo favorito deles em Monmouthshire, e lá passado algumas arrebatadas semanas, durante as quais Mary engravidara. A vida era maravilhosa, se ao menos ela pudesse esquecer-se de que a separação poderia vir a qualquer momento. Henrique estava profundamente envolvido em política, e isso significava uma vida inquieta. Ele não gostava do primo, o rei. Na intimidade, ele o chamava de bobo; dizia que era fútil e caminhava para uma desgraça.

- Ele perdeu a sapatilha na coroação dele - disse Henrique, certa vez -; e se não tiver cuidado, dentro em pouco perderá o trono.

Mary tinha horror de pensar o quanto Henrique estava sendo envolvido. Desejava que os dois pudessem viver tranquilamente no castelo de Monmouth, felizes, dia-a-dia.

Ela ficava muito feliz quando ele tocava sua flauta e ela tocava sua guitarra e depois cantavam e dançavam; ou quando os dois jogavam xadrez com as belas peças de prata que tinham sido presente do pai de Henrique a eles, ou passeavam a cavalo juntos na floresta, como tinham feito quando se encontraram pela primeira vez.

Mas aquela existência idílica não podia durar. Às vezes ela pensava - mas em segredo - no quanto poderia ter sido feliz se ele fosse filho de um humilde escudeiro. Mary não tinha coragem de dar a perceber seus sentimentos, porque o fato de ser filho de alguém tão importante era motivo da mais orgulhosa jactância por parte dele.

À medida que os meses se passavam, o desconforto dela aumentava; era uma gravidez difícil, como fora com o primeiro filho. Henrique era um marido bom e atencioso, mas Mary sentia a inquietação dele. Já não podia cavalgar com ele; não podia dançar; e às vezes ficava tão cansada que não conseguia nem mesmo se concentrar no jogo de xadrez.

Estava percebendo que se casara com um homem muito ambicioso. Praticamente não se poderia esperar que o filho de John de Gaunt fosse outra coisa, e enquanto ele se distraía com ela no castelo, sentia que os pensamentos dele estavam muito longe. A situação política estava ficando muito tensa; quando falava com ela sobre aquilo, os olhos dele brilhavam e a voz tremia de emoção; percebeu logo que ele preferia estar na corte, e não com ela; aquilo a deixava triste e, no entanto, ela compreendia. Era apenas parte da vida dele; não podia esperar que ele compartilhasse de seu desejo por uma domesticidade acomodada; e agora que estava grávida e vivia se sentindo mal, não podia ser a companheira animada de que ele precisava. Tinha de enfrentar a realidade; o idílio terminara; estava se transformando rapidamente num casamento sensato. Henrique ainda a amava, mas como poderia ela esperar a mesma dedicação irrestrita dele que estava disposta a dar?

Chegou um dia em que o tio de Henrique - cunhado de Mary -, Thomas de Gloucester, chegou ao castelo. Mary ficou apreensiva com a visita, porque sabia que Thomas jamais a perdoaria por ter deixado Pleshy e se casado com Henrique. Eleanor a tratara com muita frieza nas poucas ocasiões em que tinham se encontrado.

Thomas, no entanto, saudou-a com afeto fraternal, e quando ela perguntou por Eleanor, disse que estava bem, assim como as crianças. Eleanor agora tinha um filho homem e aquilo parecia ter dado a ela e ao marido uma grande satisfação. Ele recebera o nome de Humphrey, um dos nomes favoritos na família de Bohun.

O menino era forte e saudável, disse Thomas com orgulho, e esperava que Mary os honrasse com uma visita.

Aquilo era como oferecer o ramo de oliveira em sinal de paz, sem dúvida alguma, e por ter aprendido algo sobre a natureza do cunhado quando morava em Pleshy, Mary achava que aquilo só poderia significar que ele tinha algum projeto em mente que fizera a perda da metade da fortuna dos de Bohun parecer menos importante do que fora no passado.

Ele e Henrique passavam muito tempo a sós, e Mary ficou apreensiva, porque percebia a agitação que aquelas conversas provocavam no marido.

Quando ficaram a sós naquela noite, arriscou-se a perguntar a Henrique qual era o motivo da visita de Thomas.

A princípio, ele não estivera disposto a contar-lhe, o que a magoava.

- Ele é meu tio - disse ele -, e agora que meu pai está ausente, sem dúvida acha que deve ficar de olho em mim. Estava viajando por aqui, de modo que naturalmente quis nos visitar. Além do mais, é seu cunhado. Sou capaz de jurar que Eleanor quer notícias suas.

- Ora, Henrique - replicou ela -, seu tio não tem sido muito cortês com seu pai, e isso quer dizer com você, pois você recebeu a Jarreteira em lugar dele e você se casou comigo quando ele e minha irmã queriam que eu entrasse para um convento, a fim de que minha parte da herança da família passasse para eles. Praticamente, é impossível que sintam algum afeto por nós.

Então, Henrique resolveu contar-lhe.

- Isso é coisa do passado - disse ele. - Eram diferenças insignificantes. Posso dizer-lhe que está para acontecer algo da máxima importância.

O coração de Mary pareceu parar.

- O que é, Henrique?

- Você sabe que há algum tempo o comportamento do rei não tem agradado a certos homens do país. A atitude enfatuada dele para com de Vère é muito ofensiva. Aquele homem é uma ameaça à paz do país. Ele tramou contra meu pai. Está na hora de o rei ficar sabendo que neste país existem homens que não vão mais aturar essa situação.

- E você é um daqueles que estão contra ele?-disse Mary, com voz fraca.

- Estou bem acompanhado - replicou ele.

- Quem mais? - perguntou ela, em voz baixa.

- Meu tio Gloucester, Arundel, Nottingham e Warwick.

- Então vocês são cinco.

- Somos os líderes e estamos bem apoiados.

- Oh, Henrique, tenho medo dessas disputas. Você poderia ficar em perigo.

- Minha querida Mary, são assuntos que você não compreende. Temos de livrar o país dos homens que o estão arruinando.

- Você se refere... ao rei.

- O rei, se for necessário.

- Mas ele é o herdeiro legítimo do trono. Filho do Príncipe Negro...

- Infelizmente, é - disse Henrique com um tom de raiva na voz, e Mary percebeu que ele estava pensando: por que meu pai não foi o filho mais velho do rei?

- Henrique, não faça isso...

Ele riu dela e acariciou-lhe os cabelos.

- Eu não devia ter contado a você - disse ele. Tocou levemente na barriga dela. - Você tem outras coisas em que pensar.

- Tenho de me preocupar com o que acontece com você respondeu ela.

- Pois então, não tenha medo. Ricardo é fraco. É um bobo. Parece o bisavô. Ele perdeu o trono...

Mary estremeceu.

- E a vida... da maneira mais bárbara.

- Ricardo deveria lembrar-se disso.

Mary voltou-se para ele e escondeu o rosto contra o corpo dele. Sabia que não adiantava protestar, não adiantava tentar dissuadilo. Era um homem ambicioso; e embora nenhum dos dois mencionasse isso, era fascinado por uma coroa de ouro.

Mary queria gritar para ele: "Ela nunca poderá ser sua. Ela pertence a Ricardo, por direito. Ricardo pode ter um filho homem." Oh Deus, mande um filho homem para Ricardo. Isso poria um fim naqueles loucos sonhos ambiciosos. Mas mesmo que Ricardo não tivesse um filho homem, havia outros antes de John de Gaunt.

Havia a filha de Lionel, Filipa, que vinha antes dele, porque não havia lei sálica na Inglaterra, e mulheres podiam herdar o trono. Se um dia Ricardo fosse deposto e John de Gaunt pegasse a coroa, então seu herdeiro seria Henrique, que não conseguia esquecer isso, embora fosse uma possibilidade remota. Era como um tumor maligno na cabeça dele; estava ficando cada vez mais obcecado por ele, e aquilo a aterrorizava.

Agora ele estava se juntando àqueles quatro homens ambiciosos para ficar contra o rei. Queriam Ricardo afastado, e Ricardo era o rei de direito.

- Ora - disse Henrique -, você está se preocupando. Vamos mostrar a Ricardo que ele tem de governar para o bem do povo, e não para o bem de seus favoritos. Se ele for inteligente, vai entender; se não, bem, então terá de sair.

- "Vai haver uma guerra - disse ela.

- Não vai - corrigiu ele. - Ricardo nunca lutaria. Ele cederia. Não existe espírito de luta nele. Às vezes me pergunto se ele é, mesmo, filho do pai dele. A mãe era uma mulher leviana. Viveu com Holland antes de se casar com ele, sabe?

- Oh, Henrique, tenha cuidado. E se algum criado ouvir?

- Minha Mary, você está nervosa demais. É o seu estado. Não faz mal. Dentro de muito pouco tempo vamos ter nosso garoto, não é?

- E quando você partirá com seu tio?

- Amanhã. Há pouco tempo a perder.

- E quando você volta?

- Depende muito de Ricardo. Mas providenciarei para que você fique em segurança e seja bem tratada. Foi por isso que escolhi Monmouth para você. É um pouco isolado. Você pode esquecer tudo, aqui, menos o filho que vai chegar.

- Pensa que algum dia eu me esqueceria de você, Henrique?

- Espero que não esqueça, meu amor. Mas você é minha mulher e tem de me obedecer. Minhas ordens são para que descanse quieta, fique em paz, não se aflija, e no momento certo terá o nosso filho.

- Você me atribui tarefas impossíveis - replicou ela. - Como posso descansar quieta, enquanto sei que você está envolvido em tramas contra o rei?

- Contra o rei, não, meu amor. Em favor do rei. Tudo o que fizermos será para o bem dele... se ele for inteligente bastante para perceber isso.

Nada mais havia que ela pudesse dizer. Tinha de aceitar o fato de que estava casada com um homem muito ambicioso que via a coroa brilhando a alguns passos de distância, e embora parecesse improvável que um dia ele pudesse dar aqueles passos, estava otimista e decidido a não perder oportunidade alguma que surgisse.

No dia seguinte, ele partiu com o tio Thomas.

Era impossível Mary ficar à vontade. Ela se atormentava; sofria de insónia; vivia à espera de mensageiros que levassem temidas más notícias.

O mês de agosto chegara; os dias eram quentes e abafados; ela não conseguia se deslocar de aposento para aposento sem sentir muito mal-estar.

- A senhora precisa descansar-diziam suas damas de companhia.

Sabiam que o descanso não adiantava para Mary. Ela queria paz de espírito.

As dores tinham começado; continuaram o dia inteiro. Ela estava em agonia. Suas acompanhantes estavam aflitas.

Lembravam-se daquela outra ocasião, em que ela tivera um filho que nascera morto.

- Ela ficará de coração partido se perder esse também disse uma delas.

- E não é de admirar - acrescentou uma outra. - Ela tem estado morta de aflição desde que o senhor duque partiu.

- Ela é frágil para gerar filhos, e não lhe fez bem ter tido um filho quando era tão criança.

- Deus nos ajude. Tenho medo pelo que possa acontecer a ela. Então ainda não há sinal do filho?

Sinal algum.

Mary não conseguia pensar em outra coisa que não na dor. Ela vinha e ia embora e tornava a voltar. Mary tentava abafar os gritos. Ficou contente por Henrique não estar lá.

- Por favor, meu Deus - rezava ela -, me ajude. Ajudeme e me dê um menino.

Ela estava inconsciente quando a criança nasceu. A parteira pegou-a.

- Um menino - disse ela. - Conseguiu o menino dela. Uma coisinha franzina. Não há vida nele.

Então, ela gritou:

- Oh, nãol Ele não respira. Está morto. Isso vai matá-la... A parteira colocou o pequeno corpo despido atravessado nos joelhos e começou a dar-lhe tapas, com um vigor que deixou alarmadas aquelas que estavam assistindo.

- Isso não é culpa da criança... - disse alguém.

Mas a parteira parou de repente, prestando atenção. Então, um sorriso de triunfo iluminou-lhe o rosto.

- Ele está respirando - bradou ela. - Isso fez o milagre. Eu bati tanto que lhe dei vida. Uma criança fraca... mas viva. Graças a Deus... pelo bendito bem dela.

A parteira pôs a criança de lado e foi dar uma olhada na mãe. Mary respirava com dificuldade.

- Mandem uma mensagem para o senhor duque - disse ela.

- Ele deve estar esperando por ela. Deve vir imediatamente. Digam a ele que tem um filho homem.

Henrique estava a caminho de Monmouth quando soube que seu filho tinha nascido. Estivera decidido a ficar por perto, a fim de que pudesse ir para o lado de Mary e ver o filho deles assim que ele chegasse. Estivera tão preocupado com seus aliados que tivera pouco tempo para remoer sobre o que se passava em Monmouth. Ele estava num dilema. O tempo todo, sabia da avassaladora ambição de seu tio Thomas. Não havia afeto entre os dois; eram aliados apenas por uma questão de conveniência. Henrique sabia que Thomas gostaria de ver Ricardo deposto e então pegar a coroa. Aquilo era uma coisa que deveria ser evitada a todo custo. Se Ricardo fosse abrir mão da coroa, ela não deveria ir para Gloucester. Ele era o filho caçula de Eduardo III. Não. A coroa deveria ir para John de Gaunt, porque só assim poderia

chegar a Henrique. Mas John de Gaunt estava no exterior, tentando conquistar a coroa de Castela, e se aquela revolta chegasse a algum resultado, seria Thomas de Gloucester que estaria no local. Mas é claro que a filha de Lionel deveria vir antes dele. Depois, John de Gaunt. Depois, Edmund de Langley, agora duque de York.

Mas Henrique bem podia imaginar como Thomas eliminaria as reivindicações deles, a filha de Lionel! Uma jovem no trono. O que queriam era um homem forte, e com John de Gaunt fora do país perseguindo a coroa de Castela, e Edmund duque de York não tendo vontade alguma de pegar a coroa, Thomas vinha em seguida.

Não, nunca, pensou Henrique. Ricardo não deve ser deposto enquanto meu pai não estiver aqui para pegar a coroa!

Eram esses os seus pensamentos enquanto cavalgava em direção a Monmouth.

Em Ross on Wye, foi detido por um balseiro, que bradou:

- Muito bom dia, meu senhor. - E reconhecendo os leões e os leopardos, acrescentou: - E que Deus abençoe seu belo filho.

- Por que diz isso? - perguntou Henrique.

- Porque o reconheci como sendo Henrique de Bolingbroke e sua senhora, pelo que ouvi dizer, lhe deu um filho homem.

Henrique não coube em si de alegria. Por algum tempo, esqueceu as deficiências de Ricardo e dos meios sinuosos de seu tio Thomas; chegou, até, a esquecer suas próprias ambições.

Atirou para o homem uma bolsa de ouro, e sem esperar para ouvir os agradecimentos, gritou para seus seguidores:

- A toda velocidade para Monmouth.

Chegando ao castelo, sua alegria foi muito abafada. Mostraram-lhe um bebé franzino - um menino, era verdade, mas que mal estava vivo.

- Esse aí vai precisar de cuidados especiais, meu senhor disse a parteira.

Henrique olhou para a criança, desanimado. Aquele pequenino pedaço de pele vermelha e enrugada, o filho pelo qual tanto esperara! Ele não berrava como Henrique teria gostado de ouvir. Ficava só ali imóvel, no colo da ama.

- Ele vai precisar de uma ama-de-leite, senhor. A minha senhora não tem condições de amamentar a criança.

- Minha mulher...

Henrique foi imediatamente para o lado da cama onde ela estava. Oh, Deus, pensou ele, essa é a Mary? Essa criatura pálida, lânguida, parecendo muito pequena na cama grande, os cabelos caindo à sua volta; os olhos afundados e, no entanto, iluminandose de alegria ao vê-lo.

- Mary - bradou ele, e ajoelhou-se ao lado da cama.

- Henrique - disse ela baixinho -, temos um menino, Você está contente?

Ele confirmou com a cabeça.

- Mas você tem de ficar boa.

- vou ficar. vou ficar. Tenho de ficar. Há o menino... e você...

- Ele... é um belo menino - mentiu Henrique.

- Elas não querem trazê-lo até aqui. Dizem que estou cansada demais. Tenho de descansar. Mas eu não o vi. Ele é um belo menino... Henrique.

- Um belo menino - repetiu Henrique.

- Ele vai ter o mesmo nome que você.

- Neste caso, seremos dois.

- Ele será Harry... Harry de Monmouth.

- Assim será - disse Henrique.

Mary fechou os olhos e ele se voltou, indo para perto da parteira.

- Os médicos estão aqui?

- Estão sim, senhor, eles estão esperando pelo senhor. Ele conversou muito com eles. A condessa sentia-se exausta.

Precisava de repouso... e paz. Quanto ao menino, tinham a esperança de mante-lo vivo. A primeira necessidade dele era uma amade-leite forte e saudável.

Henrique tinha um só propósito, agora. Tinha de salvar a criança, porque se a perdessem, temia que Mary morresse. Era o pensamento no filho que a estava mantendo viva. A criança tinha de sobreviver.

- Procurem uma ama imediatamente - ordenou ele. Deve haver uma jovem forte e saudável aqui por perto.

Ele andava de um lado para o outro no quarto. Ouvia o bebé choramingar. Rezava pedindo ajuda a Deus; e de repente teve uma ideia.

Desceu aos estábulos e mandou que os cavalariços selassem seu cavalo. Depois, cavalgou quase dez quilómetros até Welsh Bicknow, residência de seu amigo John Montacute, o segundo filho do conde de Salisbury. Poucas semanas antes, a mulher de John, Margaret, dera à luz um filho saudável, e um instinto lhe dizia que lá ele poderia encontrar a ajuda de que precisava.

Aquilo fora uma inspiração. Margaret estava amamentando a criança. Tinha leite de sobra.

- Você poderia ir ajudar a nossa pequena Mary? - implorou Henrique.

Claro que podia. Ela consideraria aquilo uma honra.

Pouco depois, Margaret Montacute estava em Monmouth, e o jovem Harry sugava seus seios, satisfeito.

Depois disso, ele começou a progredir, embora, avisara a parteira, não fosse ser uma criança robusta, e eles pudessem ter dificuldade em criá-lo. No entanto, a vida dele foi temporariamente salva, e Mary podia segurar o precioso filho nos braços. Ela sentira um medo terrível de que ele estava morto, e quando lhe deram provas da existência dele começara a se recuperar.

Não foi uma recuperação rápida, mas Mary melhorava a cada dia, e quanto ao jovem Harry, que mostrara tanta relutância em aceitar o mundo, começou a ficar animado com a ajuda do leite de Margaret Montacute e fazia promessas de que continuaria nele.

Para grande surpresa dos que a cercavam, Mary se recuperou, e se Harry não estava exatamente transbordando de saúde, ele sobrevivia, embora suas amas insistissem que era uma criança cuja saúde teria de ser vigiada.

Um dia, chegou ao castelo uma jovem, de busto grande e quadris amplos, que perguntou se podia falar com a condessa de Hereford.

Mary recebeu-a e descobriu que se chamava Joan Waring e morava numa aldeia perto de Monmouth.

- Minha senhora - disse ela -, eu soube que há um menino aqui no castelo que não é tão forte quanto deveria ser. Eu adoro criancinhas. Já criei as minhas. Elas nasceram fortes e saudáveis, mas se a senhora me der uma chance, eu gostaria de cuidar desse pequenino.

Mary não ficou tão surpresa quanto se poderia esperar; sabia que se falava muito sobre o nascimento do pequeno Harry. A parteira jactara-se de que salvara a vida dele dando palmadas fortes no traseiro e forçando-o a chorar para que levasse o ar aos pulmões. Muitas vezes era considerado vantajoso conseguir uma boa e forte jovem de aldeia para cuidar de uma criança de alta estirpe, e como não se podia esperar que Margaret Montacute fosse ficar para sempre sendo a ama-de-leite de Harry, pareceu uma boa ideia dar uma chance àquela mulher.

Era evidente que estava ansiosa por desempenhar a tarefa, e quando o jovem Harry foi levado e ela o pegou no colo, ele pareceu gostar logo dela. Parou de choramingar e, encostado nos macios e firmes seios, parecia à vontade.

Mary decidiu que contrataria Joan Waring. Foi o que fez, e por algum motivo, a partir daquele momento, a saúde de Harry começou a melhorar.

Foram meses angustiados. Mary não tinha certeza de que queria ouvir as notícias que vinham da corte ou isolar-se por completo dela. Vivia num terror constante de que algo de mau pudesse acontecer a Henrique. Havia confusão, e ele estava envolvido nela.

Henrique se unira aos quatro que agora eram chamados de os Lordes Apelantes. Haviam reunido um exército e enfrentado Ricardo, de braços dados para mostrar a solidariedade, e o obrigado a demitir os ministros que consideravam que estavam prestando a ele uma assessoria prejudicial, e tinham instalado o Parlamento Implacável, que obrigava à submissão do rei.

Mary esperara com ansiedade que algo terrível ocorresse. Nada aconteceu.

O país parecia ter-se acalmado; o rei estava no trono e parecia ter lucrado com os últimos acontecimentos. O país passara para um estágio pacífico, e isso se confirmou quando Henrique foi uma vez mais a Monmouth.

- Está vendo - disse ele a Mary -, seus temores não tinham fundamento.

- Poderia ter havido uma grande confusão. Você poderia ter corrido perigo - retorquiu ela.

- Ora, você me vê aqui, a salvo e bem. E como vai passando o jovem Harry de Monmouth?

Ela pôde dizer-lhe que o jovem Harry estava indo bem. Arranjara uma ama-de-leite excelente numa mulher da aldeia chamada Joan Waring. Harry era-lhe devotado e ela também gostava muito dele.

- Essas mulheres de aldeia são boas amas-de-leite - foi o comentário dele; e o prazer que sentiu quando viu o jovem Harry foi evidente. O menino mudara do frágil pedacinho de humanidade que enchera Henrique de tanta apreensão poucos meses antes.

- Agora - disse ele - já não há necessidade de você permanecer aqui em Monmouth. vou levá-la embora daqui, para Londres, e então, Mary, você não ficará tão longe de mim. Gostou da ideia?

Ela gostou muito, e começaram os preparativos para deixar o local de nascimento do jovem Harry. Iriam para Londres por uns tempos, e como o palácio do Savoy fora destruído pela turba durante a Revolta dos Camponeses, foram residir em Cole Harbour, uma das mansões dos de Bohun.

Era uma casa fria e com muita corrente de ar, e Joan Waring expressou sua veemente desaprovação. As ruas sujas, o barulho e toda aquela gente não eram bons para o seu garotinho, declarou ela. O que ele queria era o ar fresco do interior.

Como o pequeno Harry parecia concordar com aquele veredicto, em pouco tempo ficou decidido que Londres não era o lugar para criar o menino e, por sugestão de Henrique, eles se afastaram, indo para Kenilworth.

Aquela altura, Mary engravidara outra vez.

Kenilworth! Como era bonito, com sua maciça torre de menagem e seus fortes muros de pedra. Ali Mary se sentia segura, e como Henrique permaneceu com ela algum tempo, ficou feliz.

Acabou chegando a hora de seu filho nascer. Talvez porque se sentisse em paz, ainda que apenas temporariamente, porque Henrique estava com ela e talvez porque já mostrara que podia gerar um filho homem, aquele parto aconteceu com moderada facilidade e, para o encanto de pai e mãe, tiveram outro filho homem. Era forte e robusto, e eles o chamaram de Thomas.

Houve uma grande alegria em Kenilworth quando chegou a notícia de que John de Gaunt voltara de Castela, e tão ansioso estava para ver os netos que estava seguindo imediatamente para o castelo, com sua amante Lady Swynford.

Joan Waring queria exibir seus pupilos na melhor das formas, ao mesmo tempo declarando que não deveria haver muita agitação, porque isso não seria bom para os seus garotinhos - especialmente Lorde Harry, que já era travesso bastante sem isso. Estava mais preocupada com ele do que com o pequenino Thomas. Lorde Harry era o que ela chamava de Brasinha, e podia-se ter certeza de que ele criaria algum caso, não importava onde estivesse. Além do mais, sua fragilidade persistia, e tinha de manter uma vigilância especial sobre ele.

- Temos de providenciar para que não se deixe que ele faça um papelão diante do avô, Joan - disse Mary.

Quando o grande homem chegou acompanhado da bela amante, abraçou o filho e Mary com entusiasmo, estudando Mary com uma certa aflição, porque recebera informações sobre a doença que quase acabara com a vida dela por ocasião do nascimento de Harry. Continuava com uma aparência de frágil, mas a pele irradiava saúde e os olhos estavam brilhantes.

- E os meus netos?-bradou o duque. - Então este é Harry, não?

Ele ergueu o menino e os dois olharam fixo um para o outro, até que a atenção de Harry foi atraída pelos leões e leopardos bordados no casaco do avô e ele nitidamente achou-os mais interessantes do que o dono.

- Ele me parece um jovem que vai querer tudo à sua moda - disse o duque.

- Senhor duque, o senhor diz a verdade - replicou Mary.

- Ele é o desespero da ama.

- Bem, não queremos um menino que tenha medo da própria sombra, não é? Por isso, não vamos reclamar.

Ele arriou Harry, que não fez segredo do fato de que sentiu prazer em ser liberado.

O bebé foi levado à presença de John e ele pegou-o no colo.

- Thomas é um bom menininho - disse a mãe. - Sorri bastante, chora muito pouco e parece contente com seu destino.

- Esperemos que continue assim - disse o duque. -Você tem uma bela família, Mary. Que Deus a abençoe e proteja você e eles.

Mary agradeceu e o deixou com Henrique enquanto ela levava Lady Swynford para o quarto que ela compartilharia com o duque e conversou com ela sobre as crianças e sobre problemas da casa.

Lady Swynford, tendo dado ao duque quatro filhos e sendo mãe de dois com o primeiro marido, tinha experiência e estava pronta a transmitir seu conhecimento e seus conselhos.

Tinha uma personalidade afável, e sua dedicação ao duque e a dele a ela faziam com que Mary a tratasse muito bem. Como ela se recusasse a pensar que havia qualquer coisa de vergonhoso no relacionamento baseado num amor altruísta, parecia não haver coisa alguma; e Mary sentia prazer em receber Lady Swynford com o respeito que teria mostrado para com Constanza, duquesa de Lancaster, e, estava certa, com uma afeição muito maior.

As duas mulheres sentiam um prazer inconteste na companhia uma da outra. Mary podia falar de suas angústias sobre a saúde de Harry e a natureza geniosa, e Catherine podia insinuar sua preocupação com o lado Beaufort de sua família, aqueles três filhos homens e uma filha que eram do duque e que eram ilegítimos, porque, por mais que os pais deles os amassem, o estigma lá estava, e o restante do mundo não fingiria desconhecer esse fato.

No entanto, elas estavam calmas, e ambas sentiam-se felizes com seu destino.

Catherine se interessava, tanto quanto Mary, pelos detalhes triviais da domesticidade. Sabia admirar o belo papagaio em sua bela gaiola e declarar que, embora muitas das damas elegantes os possuíssem, nunca vira um pássaro mais bonito do que o de Mary. Ria das travessuras dos cachorros de Mary e a cumprimentava pelas coleiras decoradas de seda em quadriculados verde e branco, confeccionadas por ela mesma.

Tudo isso ela fazia como qualquer mulher faria e, no entanto, tinha um conhecimento profundo de assuntos políticos que sabia discutir com uma lucidez, que Mary não descobrira em qualquer outra pessoa e, em consequência, podia retratar mais nitidamente o que estava acontecendo. Além do mais, Catherine compartilhava os temores de Mary quanto àquilo em que seus homens poderiam ser levados a se envolver; e tinham uma ideia semelhante sobre a futilidade da guerra e de qualquer tipo de conflito. Por isso, sentiam um grande prazer em estar juntas.

Naquele ínterim, o duque participava de uma reunião importante com o filho. Ele sabia, claro, o que acontecera em sua ausência, que Henrique, com os outros quatro Lordes Apelantes, tinham enfrentado o rei e o tinham obrigado a aceitar o Parlamento Implacável.

- Perigoso - comentou o duque. - E não se deve confiar no seu tio Thomas.

- Sei disso muito bem - replicou Henrique -, mas a nossa ação deu frutos.

- Não subestime Ricardo - insistiu o pai dele. - Ele age como um tolo, isso eu admito, mas tem centelhas de sensatez. Como você vê, ele se saiu de uma situação muito difícil, aceita as restrições que lhe são impostas e agora que não está cercado pelos favoritos, governa razoavelmente bem.

No entanto, foi necessário agir como agimos.

Isso eu não nego. Mas esteja vigilante, Henrique. Ricardo

não deverá esquecer-se de vocês cinco, e é uma pessoa que guarda ressentimentos. É bem possível que ele procure algum tipo de vingança.

- Mas ele precisa entender que as atividades estão mais normais agora. Ele deveria ser grato a nós.

- Não pense que um rei, não importa quem seja, algum dia vá se esquecer de que foi enfrentado por cinco de seus súditos que ameaçam tirar-lhe a coroa se não se portar como eles acham adequado. Nada disso, Henrique. Ande com cuidado. Meu conselho é que deve ficar no interior por algum tempo. Mantenha-se afastado da política. É um caminho que tenho de seguir de vez em quando, e sempre o fiz com alguma vantagem.

Henrique compreendeu o que aquilo significava e resolveu que iria testá-lo por algum tempo, mas, como salientou ao pai, não poderia ficar contente para sempre com a vida de um proprietário rural.

- Haverá uma importante justa em St. Inglebert, perto de Calais. Por que não vai até lá e mostra a todos sua perícia? Seu irmão John deveria ir com você. Duvido que haja dois cavaleiros, na França ou na Inglaterra, que possam se comparar com vocês dois.

O duque falava com orgulho. Estava sempre destacando os bastardos Beaufort, os filhos de Catherine, e gostava que Henrique tivesse um bom relacionamento com seus meio-irmãos.

- Isso manteria você ocupado por uns tempos - prosseguiu o duque -, e nunca se pode ter certeza do que vai acontecer em seguida. Poderá chegar uma hora em que seja necessário você tomar parte na formulação de assuntos de Estado. Mas a hora não é esta. Ricardo recuperou alguma popularidade desde que de Vere foi embora. O povo não quer confusões. Espere, Henrique. Aja com cuidado, mas mantenha sua imagem perante o povo. Ele gosta mais de você do que jamais gostou de mim. Seria inteligente você deixar que essa situação seja mantida.

- O senhor sempre me deu bons conselhos-disse Henrique.

- Meu filho querido, você é a minha esperança. Tudo o que sonhei para mim quero para você. Meus negócios em Castela estão resolvidos, agora. A filha de Constanza... e minha... casou-se com o herdeiro do trono e será a rainha das Astúrias. Isso resolve o problema. Constanza está contente. Ela não terá a coroa, e eu também não, mas nossa filha irá usá-la. Sua irmã Filipa casou-se com o rei de Portugal. Acho que já não preciso tomar parte ativa em assuntos do Estado. Não consegui o que queria, mas quem consegue? Eu agora devo viver através de meus filhos. Henrique, um dia, quem sabe o que será seu... Esteja pronto para isso. Ricardo é instável... poderá chegar o dia... Mas não vou dizer mais nada. Não é sensato sonhar demais. Mas esteja preparado... O caminho para a grandeza é tempestuoso; são muitos os que tombam por um passo em falso. Temos uma boa base. Você tem dois belos filhos homens. Eu me orgulho de você.

- O senhor está certo em tudo que diz, meu pai - disse Henrique; e os dois ficaram calados, olhando para o futuro, e havia sonhos de grandeza em seus olhos.

Antes que a visita de John de Gaunt acabasse, Henrique se decidira a participar da justa em St. Inglebert; e quando ele deixou Kenilworth, Mary estava grávida uma vez mais.

Os dois irmãos partiram para a França e mergulharam com entusiasmo na tarefa de defender a honra inglesa contra a francesa.

Eles eram amigos, tendo se conhecido bem ao longo da infância. O pai deles nunca desejara segregar os filhos legítimos que tivera com Blanche de Lancaster dos que eram ilegítimos, tidos com Catherine Swynford. Sua filha Catherine, que ele tivera com Constanza de Castela, sempre morara com a mãe; mas o restante da família ficara junto por longo tempo, muitas vezes sob os cuidados de Lady Swynford.

John era um rapaz com olhos que procuravam sempre um meio de tirar vantagem. Era um pouco mais novo do que Henrique, embora não muito, e era o mais velho dos jovens Beaufort. Era bonito, mostrando mais do que um traço ou dois de suas origens Plantagenetas, e herdara um pouco da beleza fora do comum de sua mãe. Era sagaz, inteligente, e uma companhia agradável; e, embora tivesse ambições pessoais, nunca por um momento se esquecia de que Henrique era o herdeiro de Lancaster, tinha a grande vantagem de ser filho legítimo e, John sabia, todas as bênçãos de que sua mãe, seus irmãos e irmãs tinham desfrutado tinham fluido de John de Gaunt, e que quando aquele benfeitor fosse tirado do caminho - e só a morte poderia tirá-lo - elas teriam de partir de Henrique, que então seria o novo duque de Lancaster.

John tinha uma grande admiração pela realeza. Essa admiração fora-lhe incutida; jactava-se de ter sangue real nas veias muito embora esse sangue tivesse sido injetado na cama errada e, portanto, admirava duplamente Henrique, porque aquele sangue chegara a ele não apenas através do pai, mas também através da mãe.

Henrique descendia de Henrique in por ambos os lados, pois sua mãe e seu pai eram trinetos daquele rei e os bisavôs deles, Eduardo I e Edmund duque de Lancaster, tinham sido irmãos.

Havia uma total harmonia entre os irmãos - John, estando decidido a agradar a Henrique; e Henrique, desfrutando o óbvio respeito de seu meio-irmão. Além do mais, não fora apenas orgulho paternal quando John de Gaunt declarara que eles eram dois dos melhores expoentes da justa na Inglaterra e na França. Tinham recebido a melhor instrução possível na infância, e como os dois, por natureza, ansiavam por ser os melhores, tinham-se transformado em adversários verdadeiramente respeitáveis para quem os desafiasse.

Foi uma ocasião fulgurante, e feliz, porque foi um grande prazer entrarem em combate contra os franceses numa joust à Plaisance, e transpirou que os dois campeões eram Henrique de Bolingbroke e seu meio-irmão John Beaufort. Homenagens foram prestadas a eles, que foram ovacionados e festejados.

Louis de Clermont, duque de Bourbon, que estava entre os cavaleiros presentes, ficou muitíssimo impressionado com a intrepidez deles e convidou-os para sua tenda, onde prometeu darlhes uma recepção digna de um rei.

Muitos dos nobres franceses estavam reunidos ali, e os convidados foram servidos de pratos especiais e vinhos finos como os que os franceses produziam melhor do

que qualquer outro país; e durante a festa, Louis de Clermont detalhou sobre uma expedição que ele lançaria.

- Recebi uma missão enviada pelos mercadores ricos de Génova - explicou ele a Henrique e a John. - Parece que eles são atormentados por piratas da Barbaria que tocaiam seus navios e roubam suas mercadorias. Dizem que a ameaça aumenta e pedem ajuda.

- O que o senhor pretende fazer? - perguntou Henrique.

- Seria lucrativo para todos os que tomarem parte - prosseguiu Louis. - Seria uma grande aventura. Deveríamos ajudar a promover o intercâmbio. Os mercadores estão fazendo um bom trabalho. Mas não poderão prosseguir se essa cruel pirataria continuar. O senhor me pergunta o que pretendo fazer, meu amigo. É levar um bando de homens bravos e intrépidos e atacar El Mahadia, onde moram os corsários. Eles partem de lá. Mahadia fica mais rica enquanto Génova fica mais pobre. Os ladrões estão vencendo a batalha contra comerciantes honestos.

- Parece um projeto recomendável - disse John Beaufort.

- É, na verdade, é. O que preciso é de homens que saibam manejar uma espada. Aqueles corsários são homens furiosos. Seria uma bela aventura. Deveríamos recuperar os espólios que foram roubados dos mercadores e, deixem que lhes diga, os mercadores ficariam tão agradecidos por ver o fim dos corsários, que os produtos seriam a nossa recompensa.

- O senhor está nos convidando para participarmos de sua expedição? - perguntou Henrique.

- Eu teria prazer em sua companhia - foi a resposta.

Os olhos de John Beaufort brilhavam. A ideia daquele tesouro era-lhe muito atraente.

Henrique parecia mais cauteloso.

- Vamos pensar no assunto - disse ele. - Não é algo que possa ser decidido com superficialidade.

Louis de Clermont concordou. Estava satisfeito; tinha certeza de que aqueles dois jovens, que certamente sabiam manejar uma espada, fariam parte de seu grupo.

Quando ficaram a sós em sua tenda, Henrique e John discutiram a proposta, e John ouviu com o máximo de respeito o que seu meio-irmão tinha a dizer.

- Nosso pai acha que não devo me envolver em política disse Henrique. - Poderia ser um bom plano ir a El Mahadia, especialmente se houver bons lucros.

John concordou, entusiasmado.

- Nós nos saímos bem na justa - disse ele. - Por que não faríamos o mesmo e ainda por cima obter algum lucro?

- Pois então, vamos - bradou Henrique.

- Juntos - ecoou John.

- Devemos voltar para a Inglaterra a toda velocidade. Precisaremos nos equipar, e isso vai demorar um pouco.

- Poderíamos partir para a Inglaterra amanhã.

- Então, vamos.

Louis de Clermont ficou exultante quando os dois prometeram juntar-se à sua expedição, e assim que a maré permitiu, eles puseram-se ao mar em direção a Dover.

Henrique voltou à Inglaterra a tempo do nascimento do terceiro filho homem. O garoto recebeu o nome de John. De modo que agora ele e Mary tinham três meninos, e o avô deles ficou encantado por ter aquele batizado em sua homenagem. O jovem Harry estava com três anos e mostrava um caráter decididamente rebelde. O fato de ainda ter uma tendência a ser frágil significava que era um pouco mimado por Joan Waring, que raramente o deixava ficar fora do alcance de sua vista. Sem dúvida alguma, era o rei da ala infantil, fato compreensível por ser o mais velho, mas havia em Harry aquele algo que dava a entender que nada o impediria de conseguir o que queria.

Mary ficou transtornada quando Henrique lhe disse que atacaria os piratas da Barbaria. Ela gostara quando ele fora à justa em St. Inglebert. Ele salientara que tinha sido à Plaisance, e ela pensara: na verdade, é apenas uma brincadeira, justar com lanças de pontas cegas ou com pontas especiais que as tornavam inofensivas. Por que não se podia sempre lutar assim caso isso fosse preciso? Mas os piratas da Barbaria eram diferentes. Tinham a fama de ser homens violentos. Ali, havia perigo de verdade.

Henrique tentou tranquilizá-la; fez uma descrição das justas em St. Inglebert e salientou o sucesso dele e de seu meio-irmão, na esperança de dar a entender que saberiam como se defender. Mas Mary não conseguia ficar tranquila e estava muito aflita, embora tentasse esconder sua situação.

Enquanto Henrique reunia os cavaleiros que levaria consigo e dava instruções a Richard Kyngeston, o homem que ele chamava de seu "tesoureiro de guerra", quanto a que armas e mantimentos seriam necessários, ele conseguiu realmente passar algum tempo com a família.

Ficava encantado com os filhos, e em especial com Harry. Aquele seu filho mais velho era muito inteligente, um menino do qual se orgulhava. O fato de estar sempre fazendo alguma travessura divertia o pai. Claro que o menino, por ser inteligente e vivo, já percebera a sua importância. Joan Waring podia brigar e até mesmo dar uma palmada ocasional, mas estava sempre pronta a acompanhá-la de um abraço e uma garantia de que, apesar de travesso, ele era o seu muito especial Lorde Harry.

Ele subia no joelho do pai, e Henrique falava com ele sobre a justa, contando como inclinara sua lança em direção ao adversário e saíra em disparada para enfrentá-lo.

Harry ouvia, os olhos castanhos brilhando de emoção. Ele era moreno para um Plantageneta mas, apesar disso, bonito, com um rosto oval e um nariz comprido e reto. Era magro demais, mas Joan Waring informara que ele era a criança mais ágil e vivaz que já vira, e sua opinião era de que ele superaria a fragilidade da infância.

- Continue! Continue! - gritava Harry se o pai parasse e chegava até a dar socos no peito dele se ele não fosse rápido o suficiente, o que deveria ter provocado uma reprovação, mas Henrique ficava tão contente ao ver o filho agitado que não ligava para aquilo e obedecia a ele.

- Obtivemos uma grande vitória sobre os franceses. Fomos homenageados por todo o país. Eu e seu tio John Beaufort fomos os heróis da justa.

Harry não tirava os olhos do rosto do pai, e Henrique se perguntava até que ponto ele compreendia aquilo que lhe era contado. Tinha uma ideia de que Harry gostava apenas de ficar sentado no joelho do pai porque este era a pessoa mais importante do castelo - sem contar com o próprio Harry, é claro - e Harry gostava de ser considerado importante por ele.

O pai observava-o montar o pequeno pónei, naturalmente conduzido por outra pessoa. Não devia haver perigo algum para o herdeiro de Lancaster, muito embora ele tivesse dois jovens irmãos robustos. Henrique, como todos os demais que viviam no castelo, sentia que havia algo de muito especial em relação ao jovem Harry.

O pai dele descia para o campo a fim de vê-lo cavalgar com o professor de equitação. Ficavam dando voltas pelo campo. Harry ficava corado de tanta agitação, e todas as vezes em que passava pelo pai, olhava atentamente para ele para ver se toda a atenção dele estava sendo dada à maravilhosa mestria do filho.

Um dia, Henrique estava em pé com um ou dois de seus auxiliares, observando a aula de equitação, quando Richard Kyngeston foi falar com ele. Houvera um atraso com alguns dos suprimentos, e só poderiam partir de Dover dali a uma semana.

Henrique voltou-se para o lado para discutir aquilo com Kyngeston justo quando Harry passou por eles a cavalo e, vendo que a atenção do pai não estava dirigida a ele, de repente, por algum estratagema que era óbvio que aprendera, se soltou do professor de equitação e disparou num galope.

O professor deu um berro, muito alarmado, enquanto saía atrás do garoto, e Henrique se esqueceu imediatamente de Kyngeston quando viu o filho indo direto para a cerca.

- Oh, Deus nos ajude! - bradou ele.-O menino vai morrer.

Harry ainda estava na frente do professor de equitação. Henrique começou a correr. O garoto chegara até a cerca e, desviando-se e reduzindo a velocidade, começou a atravessar o campo com o cavalo a meio galope. Ele sorria triunfante quando o professor o alcançou.

- Você é um menino travesso - disse Henrique, com frieza. Harry tinha uma expressão de desafio e ainda estava contente consigo mesmo.

- Você sabe que não pode fazer isso. - Henrique achou que o menino o olhava com muita insolência. - Não sabe? - berrou ele.

Harry confirmou com a cabeça.

- Responda-me quando eu falar com você.

Harry se deteve. Sentiu um pouco de medo da frieza na voz e nos olhos do pai.

- Sei, sim.

- E no entanto, desobedeceu de propósito. Desobedeceu ordens. Sabe o que acontece com quem desafia seus superiores?

Harry ficou em silêncio.

- Então sabe, hein? Eles são punidos. Desça do cavalo. Vá para o seu quarto e espere lá.

Harry desmontou e entrou no castelo.

Henrique estava longe da calma que aparentava. Ficara profundamente abalado pela visão do filho em perigo; aquilo passara, e tinha pela frente outro perigo. Aquele menino era rebelde por natureza, e aquela rebeldia tinha de ser controlada. Ele precisava apanhar. E quem o castigaria? Joan Waring? Ela jamais faria isso. Jamais seria capaz de se esquecer de que aquele era o seu precioso protegido. Alegaria que ele não devia ser contrariado por ser delicado demais. Mary? Mary seria inteiramente incapaz de dar uma surra. Henrique sabia que ele mesmo teria de fazer aquilo. Em breve o menino deveria ter um tutor e este ficaria responsável por aquelas tarefas desagradáveis - porque parecia provável que haveria necessidade de castigo no futuro.

Henrique apanhou uma vara resistente e foi para a ala infantil. Harry estava sentado no colo de Joan Waring, contando-lhe uma história triste de seu pai cruel.

Joan estava horrorizada e tremia de tanta agitação.

Está na hora, pensou Henrique, de o menino ser levado para longe de um grupo de mulheres.

Joan se levantou quando ele entrou, e Harry se agarrou na saia dela, enterrando a cabeça nelas.

- Retire-se - disse Henrique, ríspido, a Joan.

Harry se voltou e olhou para o pai com uma expressão maligna nos olhos, enquanto Joan afastava as mãos dele da saia.

- Não - bradou Harry. - Não ligue para ele, Joan. Não vá.

- Retire-se imediatamente - ordenou Henrique. Joan murmurou, enquanto passava:

- Meu senhor, ele é tão criança... e lembre-se de que é delicado.

Os olhos de Harry estavam na vara, e Henrique sentiu o coração fraquejar. Amava aquele menino. O garoto jamais compreenderia que aquilo não era menos doloroso para ele do que seria para o próprio Harry.

- Você foi um menino travesso - disse ele, tentanto forçar um tom frio na voz, pois estava intimamente sentindo uma grande admiração pela maneira pela qual o garoto controlara o cavalo, e era óbvio que ele tinha sido francamente destemido. - Vai aprender a obedecer.

- Por quê? - perguntou Harry, desafiador.

- Porque todos temos de obedecer.

- O senhor não tem - disse ele.

- Claro que tenho.

- A quem o senhor obedece?

- Aos que estão acima de mim.

- Ninguém está acima do senhor... exceto o rei. O senhor obedece ao rei?

Por um instante, Henrique se viu de pé diante de Ricardo com os outros quatro Lordes Apelantes. O menino estava deixando-o constrangido, em vez de acontecer o contrário.

- Já chega - disse ele. - Venha cá.

Henrique tentou fazer com que o menino se deitasse num banco. Harry se debateu com tanta violência, que só havia uma coisa a fazer: levantá-lo e colocá-lo atravessado no colo. Henrique se sentia como um velho tolo. Mesmo assim, arriou a vara e ela trabalhou com eficiência, a julgar pelos gritos de Harry.

Henrique gostou de não poder ver o rosto do filho.

Não exagerar, pensou ele, só o suficiente para dar-lhe uma lição. Largou a vara no chão e empurrou Harry para que saísse do seu colo.

O menino olhou para ele assustado. Percebeu que não havia lágrimas, embora o rostinho estivesse rubro de raiva.

- Isso vai lhe servir de lição - disse Henrique.

Os belos olhos castanhos estavam semicerrados. Nunca o ódio fora tão óbvio quanto aquele que Henrique viu no rosto do filho.

Mary ficou contrariada por Henrique ter sido obrigado a castigar Harry.

- Tinha de ser, querida-explicou Henrique. - Ele é muito voluntarioso. Teremos problemas com ele mais tarde, a menos que se aja com mão firme.

- Espero que não tenha batido nele com muita força. Joan disse que os gritos dele eram terríveis.

- Ele estava gritando de raiva. Não verteu uma única lágrima - acrescentou Henrique com orgulho.

- Ele ainda não completou quatro anos.

- Nunca é cedo demais para aprender a ter disciplina. Quero que ele vá para Oxford quando for um pouco mais velho. O tio dele, Henry Beaufort, cuidará dele.

- Não quero que ele vá para longe de mim cedo demais disse Mary. - Deixe que eu fique com meus filhos por algum tempo.

- Claro, claro - tranquilizou-a Henrique. - Mas nada de mimar demais o menino. Joan o paparica muito.

- Ela é muito boa para ele. Ele a adora.

- Não duvido, quando ele a controla com o dedo mindinho.

- Ora vamos, ela sabe ser severa. Dá palmadas nele, se for preciso.

- Harry é um menino que precisa estar sempre sendo corrigido.

Bem, ele agora recebeu algo que vai fazer com que se lembre por algum tempo.

No dia seguinte, Harry estava cavalgando pela campina, mas o pai não foi vê-lo. Em vez disso, passou o tempo com a mulher e os filhos mais novos. Harry pareceu aceitar isso filosoficamente, e quando Henrique entrou na ala infantil, o menino olhou para o pai com cautela, mas logo, logo pareceu ter esquecido a surra e sua intenção era transferir a atenção do pai de seus irmãos para ele, fazendo perguntas sobre os piratas da Barbaria.

Pouco depois, Henrique se despediu da família e partiu para a costa. Mary levou Harry e Thomas para a torrinha mais alta, a fim de vê-lo-ir embora.

- Eu também quero ir - declarou Harry. - Quero ir lutar contra os piratas.

- Você tem de esperar até ficar mais velho-replicou a mãe.

- Não quero esperar. Quero ir agora.

- Garotinhos não vão lutar contra piratas.

- Vão, sim.

- Ora, Harry, não seja tolo.

Harry bateu os pés e cemicerrou os olhos como fazia quando ficava zangado.

Arrancou a mão da de Mary e correu pela escada caracol à frente dela.

Entrou no quarto que ela compartilhava com o pai dele. Harry não tinha permissão para entrar lá, a menos que especialmente convocado, mas agora não havia ninguém para impedi-lo. O pai tinha ido lutar contra os piratas da Barbaria e não o levara junto. Harry tocou as nádegas. Ainda sentia os efeitos da surra que levara. Aquilo o deixava zangado, não tanto porque magoava seu corpo, mas porque feria seu orgulho. Odiava pensar que ele, Lorde Harry - o queridinho de sua mãe, o precioso pinguinho de gente de Joan tinha de ficar à mercê de um braço forte. Não tinha certeza se odiava o pai ou não. Às vezes, odiava. Em outras, queria ser como ele, especialmente se isso significasse combater os piratas da Barbaria.

Mas eles não queriam levá-lo e estavam todos dizendo o quanto seu pai era inteligente e não estavam prestando atenção suficiente a Lorde Harry.

Ele viu o papagaio na gaiola. Era muito bonito, com suas penas de cores brilhantes. Às vezes, a mãe o deixava falar com o papagaio e colocar sementes na gaiola.

De repente, Harry ficou com raiva porque estavam todos fazendo muito alarde a respeito de seu pai e não queriam deixá-lo ir combater os piratas.

Obedecendo a um impulso repentino, ele abriu a gaiola.

- Saia, pássaro bonito - disse ele. - Venha ver Harry.

O pássaro voou para fora da gaiola. Harry o observou batendo asas pelo quarto. Depois, o pássaro saiu pela porta.

- Volte - chamou Harry. - Volte.

Mas o papagaio não deu atenção. Continuou voando... descendo pela escada para o salão, passando pela porta aberta e fugindo.

 

HENRIQUE SE ENCONTROU com John Beaufort em Calais. Eles tinham recebido permissão do rei da França para atravessar o país, pois estavam participando de uma missão

que iria beneficiar os mercadores da França, bem como os de Génova. Enquanto estavam em Calais, juntou-se a eles um cavaleiro que seguia para a Lituânia, a fim de combater ao lado dos cavaleiros teutônicos.

- Vamos para El Mahadia, o covil dos piratas da Barbaria disse-lhe Henrique. - Temos planos de destruir a cidade.

- Uma causa digna - replicou o cavaleiro - mas estou ansioso por participar de uma cruzada. Estarei lutando contra o infiel. Os senhores poderão voltar mais ricos, mas eu terei expiado meus pecados e dado um golpe em favor de Cristo e da cristandade.

Henrique ficou calado. Era verdade. De repente, tomou uma decisão.

Foi procurar John e disse que resolvera não ir para El Mahadia, mas unir-se aos cavaleiros teutônicos na Lituânia.

John ficou perplexo.

- Senhor duque, já chegou até aqui-protestou ele.-Pode mudar de ideia agora?

- Posso - disse Henrique -, e vou. Para mim, é melhor conquistar honrarias numa luta que é o equivalente a uma cruzada do que conquistar riquezas de uma quadrilha de piratas.

John ficou decepcionado. Ele estivera ansioso pelos espólios que tinha certeza de que conseguiria.

Henrique pôs a mão no ombro do meio-irmão.

- Você deve prosseguir - disse ele. - Um de nós tem de continuar. Leve seus homens e o equipamento e atravesse a França e vá para Marselha. Eu voltarei para a Inglaterra. Precisarei de equipamento diferente para a Lituânia, e não há dúvida de que não partirei de Calais.

- O que vai fazer, então? - perguntou o perplexo John Beaufort.

- Voltar. Levantar mais dinheiro e partir de novo. Mas John, você tem de ir. É o que nosso pai desejaria. Vá com as bênçãos dele e minhas, e que Deus o acompanhe.

E assim os dois irmãos separaram-se e Henrique voltou para a Inglaterra.

Mary ficou encantada ao vê-lo; mas alarmada quando soube que o novo plano era ir para a Lituânia. Acreditava que aquilo seria ainda mais perigoso do que atacar os piratas. Mas pelo menos ele ficaria em casa por mais um curto período.

Mary ficou aliviada por Henrique estar tão concentrado nos preparativos que pouca atenção podia dar a Harry, que parecia ficar cada dia mais voluntarioso. Ele admitira espalhafatosamente ter soltado o papagaio de estimação de Mary, e quando ela lhe perguntara por que, ele dissera:

- Ele queria ir embora. Ele não gostava de ficar numa gaiola. Harry não mostrara arrependimento algum pelo que fizera, mas quando ela lhe dissera que os papagaios tinham de aprender a gostar de suas gaiolas porque não tinham condições de viver ao ar livre, ficara pensativo e um pouco pesaroso.

No íntimo, Mary achava que ele soltara o pássaro porque queria chamar para si a atenção de todos no castelo. O assunto que preocupara todos na época tinha sido a partida de Henrique, e sem dúvida Harry se sentira desprezado.

Mary se preocupava com Harry - mas havia outras coisas com que se preocupar. Por exemplo, o enorme desejo de Henrique por uma aventura. Claro que ela soubera que seria impossível mantelo a seu lado, que na posição que ocupava ele tinha de participar dos problemas do país, mas aquilo não era uma questão de Estado. Aquilo era aventura, pura e simplesmente, o desejo de estar em algum outro lugar que não o seu lar. A verdade era que o amor que havia entre os dois e os filhos que estavam criando não era suficiente para ele. Visava à aventura no exterior.

Pensar nisso deixava Mary louca. Sabia que era uma tola. Sua irmã Eleanor ria dela e lhe dizia que não se portava como uma dama de alta estirpe, mas como uma camponesa, agarrando-se ao marido e aos filhos. Precisava guardar para si mesma seus pensamentos. Além do mais, a perspectiva de ter mais filhos a amedrontava um pouco. O último parto fora uma agonia. Joan Waring dizia achar que o marido deveria saber o quanto ela sofrera.

- Há senhoras que podem ter filhos com facilidade - disse Joan - e há outras que não podem. O meu senhor e a minha senhora têm três belos meninos. Para o bem de sua saúde, senhora, isso deveria ser o bastante.

Mary sabia que ela estava certa. Mas como poderia dizer aquilo a Henrique?

Por fim, Henrique partiu para a Lituânia e para a cruzada que eliminaria todos os seus pecados.

Não fazia muito tempo que ele se fora, quando Mary descobriu que estava grávida uma vez mais.

Depois de desembarcar em Rixhóft, Henrique seguiu depressa para Danzig, porto em que o corpo principal de suas forças desembarcara com o equipamento. Dentro de dez dias eles tinham-se juntado aos cavaleiros teutônicos e pouco depois estava no auge da batalha de Alt Kowno, que mais tarde ficou conhecida como a Batalha dos Pagãos.

Henrique e seus aliados obtiveram uma incontestável vitória com poucas baixas, e imediatamente avançaram sobre Vilna e sitiaram aquela cidade. A vitória parecia certa, mas os habitantes de Vilna eram um povo teimoso e estóico; não se entregavam, e como os suprimentos estavam acabando para os sitiantes, foi necessário cancelar o ataque e voltar para Konigsberg.

Àquela altura, o inverno chegara, e as atividades tiveram de ser adiadas. Henrique se instalou em aposentos na cidade e tentava preencher o tempo antes que a luta pudesse ser recomeçada.

Não foi difícil, porque os cavaleiros teutônicos sentiam prazer em tê-lo com eles; lutara com disposição pela causa deles, e queriam mostrar sua gratidão, e providenciavam para que houvesse boas caçadas nas florestas e, à noite, festas e diversões.

Um dia, quando voltou de uma caçada, Henrique encontrou um marinheiro inglês à sua espera.

O homem disse que viera da Inglaterra com a finalidade de levar-lhe uma mensagem de Lady Mary.

- Senhor duque - disse o homem -, devo lhe dizer que sua senhora deu à luz um belo menino. Diz ela que como o último foi batizado em homenagem ao avô paterno, esse deverá homenagear o avô materno. Ele se chama Humphrey.

Henrique ficou tão contente que deu ao mensageiro uma bolsa de ouro. Quatro meninos! Seu pai ficaria satisfeito. Henrique fizera mais do que ele, porque ele só tinha um filho homem legítimo. Não se podia considerar os meninos Beaufort. Harry, Thomas, John e, agora, Humphrey. Mary querida, ela representara bem seu papel. Nenhum homem poderia ter tido, algum dia, uma mulher melhor. Mary lhe dera muito, uma fortuna, quatro filhos homens e docilidade e admiração. Ela o olhava com respeito e achava que ele tinha razão em todas as coisas. Sentia-se um homem feliz. Se ao menos seu pai tivesse sido o primogénito do pai dele e fosse filho de um rei, em vez de neto de um rei, Henrique teria ficado plenamente satisfeito com a vida.

Mesmo assim, ele tinha muito o que agradecer, e agora havia um nascimento a ser comemorado.

O Natal chegaria em breve, e Henrique propôs que na véspera do dia de Reis ele, como recebera tanta hospitalidade, recepcionaria seus anfitriões. Haveria um banquete à moda inglesa, com pantomimeiros, menestréis e, talvez, uma justa.

Henrique se dedicou aos preparativos. Estava sempre lembrando a si mesmo que tinha mais um filho. Não conseguia parar de falar nos filhos homens. Eram quatro, e ele ainda era jovem. Iria rivalizar com o avô na geração de filhos. Eduardo e Filipa tinham tido doze, e Henrique não via motivo para que ele e Mary não igualassem aquele número.

Na festa que deu, ele recebeu as congratulações dos aliados. A saúde de seus filhos foi brindada com uma menção especial ao recém-chegado Humphrey e ao mais velho, Harry, o herdeiro.

Ele recebeu ricos presentes. Sedas, veludos e jóias; e de um dos teutões, três ursos. "Para distrair aqueles belos meninos", disse o doador dos animais.

Foi uma ocasião gloriosa, e Henrique pensou em como fora inteligente ao dedicar-se a uma aventura daquelas, que podia lhe dar muito prazer e, ao mesmo tempo, eliminar seus pecados.

O inverno começou a passar, e ainda assim as hostilidades não foram reiniciadas. No início de março, Henrique começou a se perguntar se recomeçariam algum dia, porque os teutões não tinham conseguido levantar o dinheiro necessário para levar a guerra adiante, e parecia que ela esfriaria aos poucos.

Henrique começou a achar que estava na hora de voltar para casa. Afinal, não pretendera ficar longe por tanto tempo, de modo que encomendou dois navios a serem feitos por dois armadores prussianos e, assim que ficassem prontos, carregados para que ele pudesse partir na viagem de volta. Os três ursos foram enjaulados e levados para bordo. Não era fácil levá-los, mas ele não podia ofender o doador deixando-os para trás, e sorriu para si mesmo imaginando o que os meninos achariam deles.

Então, puseram-se ao mar e finalmente entraram no porto de Hull, onde Henrique desembarcou, embora muitos dos componentes do grupo continuassem para Boston, em Lincolnshire, com a bagagem.

Henrique mandara avisar de sua chegada e que queria que a família estivesse em Bolingbroke, para onde ele iria a toda velocidade.

Mary e as crianças estavam esperando sua chegada. John não se lembrava do pai. Thomas não estava bem certo de que se lembrava; mas Harry se lembrava. Lembrava-se de que Henrique ficara à sua frente com uma vara na mão. Por estranho que parecesse, não sentira medo diante da ideia da volta do pai, só uma espécie de estímulo, como sentiria mais tarde quando estivesse entrando em combate.

Os sentimentos de Mary também eram mistos. De certa maneira, ansiava por ver Henrique e dava graças por estar são e salvo; queria ouvir suas aventuras; mas no fundo de sua mente estava o medo de que o resultado da volta dele fosse ser mais uma gravidez, porque aquilo parecia inevitável sempre que Henrique estava em casa.

Durante o nascimento de Humphrey, ela sofrera intensamente, e Joan Waring ficara ainda mais preocupada. O alívio dela quando Mary se recuperara tornara óbvio que temera que as consequências pudessem ter sido desastrosas.

- Agora não deve haver mais nenhum, senhora - dissera ela.

- Quatro belos garotos! O senhor conde não pode querer mais do que isso.

Mas claro que queria. Ele queria igualar-se ao avô. Pobre rainha Filipa! Mary não chegara a conhecê-la e soubera que tivera filhos com facilidade, mas ficara muito gorda e, no fim da vida, incapaz de andar. "Ela mal se levantava da cama com um filho e já se preparava para outro", dissera uma de suas assistentes. "Ora, isso não é bom. Uma mulher precisa de descanso... um longo descanso entre um e outro."

Mary concordava com isso. Mas quando Henrique entrou no pátio a cavalo, os olhos brilhando de alegria ao ver todos ali reunidos, quando a abraçou e ela sentiu o beijo quente dele em sua boca, pensou: como vou dizer a ele? Não podia. A vida tinha de seguir seu curso.

Foi um reeencontro alegre. Henrique tinha de admirar o pequenino Humphrey. Tinha de ver o quanto John e Thomas tinham crescido. E havia Harry, também - que continuava o mesmo esguio a ponto de ser magro, com aquele rosto oval e os olhos vivos que nada perdiam - lisos cabelos negros, raros entre os louros encaracolados Plantagenetas.

Ele pouco mudara. Chamava atenção de tal maneira que parecia estar realmente pedindo isso. Ficou ali, as pernas abertas, sem nada temer a não ser que se pudesse dar tanta atenção ao aventureiro que retornava, que as pessoas fossem se esquecer de Lorde Harry.

Houve uma grande agitação quando a bagagem chegou, e Henrique desembrulhou as coisas exóticas que trouxera para eles. As belas sedas encantaram todas as mulheres; ele trouxera um papagaio para Mary.

- Algo para deixar seu papagaio com ciúme - disse-lhe ele. Houve um breve silêncio enquanto Harry olhava para a mãe com ar quase de desafio. Ele quase ouvia o cantar da vara enquanto ela cortava o ar.

- Ele fugiu da gaiola - disse Mary, por fim.

- Que bicho tolo! - comentou Henrique. - Que chance ele teria lá fora?

A ideia do papagaio sendo atacado por pássaros agressivos... águias e falcões... perturbou ainda mais Harry do que a lembrança da vara.

Ele nada disse. Jamais tornaria a deixar um pássaro fugir da gaiola. A mãe explicara-lhe o que acontecia com passarinhos de estimação quando encontravam os pássaros selvagens.

Aquilo o deixara muito impressionado, e Mary acreditava que ele aprendera a lição. Ela não contaria a Henrique as muitas enrascadas em que o primogénito deles estivera envolvido. Não podia suportar a ideia do filho ser açoitado. Acreditava que havia outras maneiras de ensinar-lhe.

Quando Henrique falou com as crianças sobre os ursos, elas ficaram tomadas de admiração e assombro. Harry não conseguia conter a alegria; não falava em outra coisa. O pai mandou cavar um fosso para eles e, lá, as tropelias dos animais poderiam divertir as crianças, mas deveria haver um tratador para eles, e os meninos deveriam lembrar-se de que os ursos poderiam se tornar animais perigosos.

A ideia de perigo fez com que os olhos de Harry cintilassem. Estava muito ansioso por que todos soubessem que não tinha medo de coisa alguma. Thomas ficava com medo no escuro; Harry zombava disso. Quando ouviu criados conversando sobre a lebre de Bolingbroke, prestou atenção; amedrontou Thomas com sua narrativa sobre ela, e Thomas tinha pesadelos e acordava gritando que a lebre estava no quarto, a ponto de Joan ter de deixá-lo deitar-se em sua cama e garantir-lhe que não existia lebre nenhuma.

- Existe, existe - insistia Thomas. - Harry diz que existe.

- Malvado agente de Satã - murmurava Joan. - Se a lebre viesse buscar alguém, seria ele.

E então ela se benzia, por temer ter lançado alguma praga sobre seu adorado Harry.

Harry pouco se importava. Jactava-se de que desejava que a lebre aparecesse e de que ele a pegaria, pegaria mesmo. Iria pegála e cozinhá-la para o almoço.

- Não deve dizer essas coisas - dizia Joan. - Se essa lebre for a forma que alguma alma sofredora assumiu, você não poderia fervê-la numa panela e comê-la.

- Poderia - jactava-se Harry.

- Esse garoto me mata de medo - disse Joan a Mary Hervey, uma recém-chegada ao castelo que a condessa contratara para atuar como governanta das crianças.

Mary Hervey disse que Harry era um menino corajoso e de muita imaginação, de longe a criança mais interessante que já lhe coubera ensinar, de modo que estava claro que também fora dominada pelos encantos dele.

Mary Hervey ensinava aos dois meninos mais velhos, e depois que ficassem mais velhos, os outros ficariam sob seus cuidados. Harry era um menino inteligente, saía-se bem nas aulas quando se interessava por elas, e tinha a esperança de torná-lo um erudito.

Enquanto isso, ele estava obcecado pelos ursos, e quando chegaram ficou quase louco de agitação.

O tratador ensinaria alguns truques aos animais, e Harry e Thomas tiveram permissão para assistir. Os ursos estavam num fosso fundo, do qual não podiam fugir. Só o tratador descia para onde eles estavam. Qualquer outra pessoa, decretara Henrique, deveria ficar olhando-os de cima.

Todos os dias, durante uma hora, Harry e Thomas podiam vêlos. Harry ficava muito agitado; gritava para os ursos. Ele gostava dos três, mas o menor deles era o que mais o deliciava. Sentia uma vontade enorme de descer e dizer àquele urso que um dia iria libertá-lo daquele fosso e os dois viajariam juntos. Teriam as mais maravilhosas aventuras. Iriam justar com os cavaleiros franceses; depois lutariam com os cavaleiros teutões; e estariam sempre juntos. Quando os inimigos dele o estivessem cercando, o urso afugentaria todos eles; e quando alguns homens malvados tentassem levar o urso e o colocassem num fosso para ser atormentado por cachorros selvagens, Harry pularia para dentro do fosso, mataria todos os cachorros e sairia triunfante com seu queridíssimo urso.

Era exasperador nunca ter permissão para entrar no fosso.

O urso tornara-se uma parte muito importante de seus dias, e ele praticamente acreditava que as aventuras que imaginara eram verdadeiras. Uma tarde, quando estava tudo quieto no castelo, Harry fugiu e foi até o fosso. Os ursos estavam dormindo. Em volta do fosso havia pontas de ferro para evitar que os ursos saíssem. Não foi difícil Harry esgueirar-se entre elas. Agora, poderia, utilizando mãos e pés, descer até onde estavam os ursos.

Não foi tão fácil quanto imaginara. A inclinação era acentua da. Ele desceu com cautela; escorregou um pouco, recuperou o apoio dos pés e continuou a descer. Chegou bem ao fundo do fosso. Os ursos pareciam muito grandes, vistos de tão perto, e não pôde deixar de se sentir muito pequenino. Eles estavam dormindo - os três, até seu urso especial.

O que teria acontecido a Harry no fosso dos ursos nunca se soube, porque o tratador passou por acaso naquele momento e, olhando para dentro do fosso, não acreditou nos que seus olhos viram. Quando se certificou de que era realmente Lorde Harry que estava lá embaixo, ficou horrorizado. Os ursos estavam dormindo, e se fossem perturbados poderiam ficar de mau humor. O que poderia acontecer então, ele não tinha coragem de pensar. Não podia passar pelas pontas, como Harry conseguira, mas no fosso havia uma cabana que ele usava para preparar a comida dos ursos e estocar outras coisas de que precisava para cuidar deles, e o acesso à cabana era feito por degraus que iam do lado de fora do fosso até o interior. O tratador abriu o portão que dava para a escada, e pouco depois estava dentro do fosso. Harry estava em pé ao lado do menor dos ursos e falava com ele. O urso acordara e estava cheirando o menino. O tratador agarrou Harry e levou-o para a cabana.

- Como foi que você desceu até aqui? - perguntou ele.

- Passei pelas pontas e desci.

- Você foi avisado para não fazer uma coisa dessas.

- Não fui, não - disse Harry. - Não me avisaram para não passar pelas pontas e descer para dentro do fosso.

- Mas você sabia que os ursos podem ser perigosos.

Sim, Harry sabia disso, mas ninguém lhe dissera que não poderia passar pelas pontas.

Claro que não o tinham avisado quanto a esse detalhe, porque ninguém imaginara que ele faria aquilo.

Terei de dizer onde o encontrei - disse o tratador. Por quê? - perguntou Harry.

- Porque você poderia ter morrido.

- Meu urso jamais me mataria. Se os outros tivessem tentado, ele teria me salvado.

O tratador estava desesperado. Teria de contar ao pai de Harry, porque se houvesse um acidente mais tarde, ele seria responsabilizado. Não poderia correr aquele risco. O menino tinha de ser controlado.

Mary estava com Henrique quando o tratador pediu para ser recebido. Harry estava com ele e ele explicou onde achara o menino.

- Ele não teve medo algum, senhor conde. Lá no fosso dos ursos. Ora, eles poderiam ter-se voltado contra ele.

- Oh, Harry! -exclamou a mãe dele, em tom de reprovação. Mas era para o pai que Harry estava olhando.

Henrique olhou o filho com ar sério.

Vá imediatamente para seu quarto - disse ele.

Harry ergueu bem a cabeça e dirigiu ao pai aquele olhar desafiador que Henrique já vira antes. Mas obedeceu e foi para o quarto.

- Ele conseguiu passar pelas pontas, meu senhor. Desceu agarrando-se com mãos e pés. Ele gosta muito dos ursos, em especial do menor. Estava falando com ele quando o encontrei. Meu coração estava saindo pela boca quando o ergui com um safanão.

- Você agiu bem - disse Henrique. - Coloque mais pontas, a fim de que nem mesmo a menor das crianças possa passar por elas. vou me lembrar do que você fez hoje.

O tratador retirou-se satisfeito.

- Oh, Henrique, ele não passa de uma criança - disse Mary -, como você sabe.

- O que não sei é o que vamos fazer com ele.

- Henrique, não bata com muita força nele. Ele é frágil. Embora seja difícil de acreditar.

- Ele não parece ter medo de coisa alguma.

- De certa maneira, isso é admirável. Henrique sorriu lentamente.

- Você tem razão - disse ele. - Quando ele me olha daquele jeito desafiador, penso que ele gostaria de me matar.

- Oh, Henrique, não diga uma coisa dessas. Para ele, você é um herói. Nas brincadeiras de que ele participa, tudo tem relação com o que você está fazendo. Ele finge que participa de uma justa e combate os lituanos. E sempre faz o papel de você. Ele é sempre você. O pobre do Thomas tem de ser o que Harry decidir. Só que ele tem uma energia sem limites e faz, realmente, muita travessura.

- Ele é um menino formidável, isso eu admito. Mas precisa de disciplina. Falarei com ele.

- Henrique.-Mary colocou a mão no braço dele, num gesto de súplica.

- Fique tranquila - disse ele, delicado. - Farei o que for melhor para ele.

Harry estava à espera dele, emburrado e desafiador.

- Harry - disse Henrique, sentando-se-, quero falar com você. Venha cá.

Harry se aproximou. Ele estava à procura da vara. Não conseguia entender por que o pai não a levara.

Henrique puxou o menino para junto de si.

- Por que você é tão desobediente? - perguntou ele.

- Eu estava só falando com meu urso.

- Você sabe que não deve descer no fosso dos ursos. Harry ficou calado.

- Você sabia disso?

- Ninguém me disse.

- Mas você sabia, não sabia?

- Eu sabia que Thomas não devia descer.

- E achou que você poderia? Harry se empertigou todo.

- Eu sabia que eles não me fariam mal.

- Quer dizer que não teve medo?

- Se os outros tivessem tentado me morder, nós teríamos enfrentado eles.

- Quem os teria enfrentado?

- O meu urso e eu.

Henrique pensou: não adianta. Eu devia ter orgulho dele. Eu jamais teria suportado um maricas. Ele é destemido. É um menino do qual qualquer pai sentiria orgulho.

- Harry - disse ele -, você sabe que seu avô é um homem muito importante.

- Ele é John de Gaunt, duque de Lancaster - disse Harry, de imediato.

- É isso mesmo, e por ele ser quem é, você tem de aprender a ser digno de ser neto dele. Você deve ser audacioso; não deve ter medo de coisa alguma, a não ser do que for nocivo.

- Não tenho medo do mal - jactou-se Harry. O pai dele sorriu.

- Harry - disse ele -, desta vez não vou bater em você. Foi errado entrar no fosso. Você poderia ter sido machucado pelos ursos, até mesmo morto. Precisa pensar antes de agir. Gosto muito de que você não tenha medo, mas precisa pensar mais nos outros. Pense em como sua mãe e eu ficaríamos tristes, e seus irmãos também, se lhe acontecesse alguma coisa. Harry ficou chocado com a ideia. Depois, disse:

- Thomas e John não se importariam, e Humphrey não saberia.

- E eu e sua mãe... - disse Henrique.

- O senhor não gosta de mim - disse Harry. - O senhor não gosta de mim quando eu faço coisas erradas... e eu faço muita coisa errada.

- Harry, prometa-me uma coisa. Em breve irei para longe. Quero que você cuide de sua mãe e de seus irmãos até eu voltar.

Harry pareceu contente diante daquela perspectiva.

- Você - disse Henrique, colocando uma das mãos no ombro dele - será o chefe da casa enquanto eu estiver ausente. Meu filho e herdeiro. Que outra pessoa deveria tomar conta do meu lar? Mas, é claro, se vai fazer tolices... um garotinho poderia fazer... então de nada adianta.

- Não vou fazer tolices - bradou Harry. - vou ser o chefe da casa.

Henrique o puxou e o apertou com força. Era raro ele demonstrar seu afeto.

Talvez aquela fosse a maneira de lidar com aquele seu filho. Estava agradecendo a Deus por ele. No íntimo, tinha muito orgulho de Harry e não queria que ele fosse diferente do que era.

John de Gaunt foi a Bolingbroke visitar a família. Foi uma grande ocasião. As crianças ficaram muito impressionadas com ele, até mesmo Harry, apesar de fingir-se indiferente - mas elas gostavam de Lady Swynford, que sempre o acompanhava.

John viu os ursos e o papagaio, os falcões e os cachorros, e ouviu uma narrativa da descida de Harry no fosso dos ursos, que o divertiu e que ele aplaudiu como tendo sido uma demonstração de espírito audacioso.

Não havia dúvida de que fora Harry que despertara o maior interesse, e este estava profundamente cônscio disso.

Mas o motivo que levara o duque a visitar o filho não era apenas o de ver as crianças.

Como disse a Henrique, embora fosse prudente manter-se afastado de facções perigosas, não devia perder a alta posição no reino que era seu direito como herdeiro do pai.

- Temos de viver em paz com a França - disse o duque. Não haverá prosperidade enquanto isso não acontecer. Ricardo compreende isso, acho eu, e estou certo de que ele queria que essa reivindicação à coroa da França nunca tivesse sido apresentada. Ele concorda comigo que deveríamos tentar provocar algum tipo de acordo.

- O senhor quer dizer que está se propondo a levar uma embaixada à França?

- Isso mesmo - disse John de Gaunt -, e você deveria fazer parte dela.

Catherine Swynford conversava com Mary sobre a missão sugerida, que o duque discutira minuciosamente com ela.

- Isso os levará para longe outra vez - disse ela -, mas pelo menos será numa missão pacífica.

Mary brincou com a ideia de falar com Catherine sobre os temores que a atormentavam e sobre como, depois de cada gravidez, se sentia um pouco mais fraca. Mas de algum modo não teve coragem. Catherine parecia muito cheia de saúde, embora fosse muito mais velha e tivesse dado ao duque quatro filhos e ao marido dois com, pelo que parecia, o máximo de facilidade.

Mary se sentia envergonhada por ser tão fraca. Afinal, a missão da mulher na vida era ser mãe.

Por isso, ela nada disse e, em vez disso, discutiu as perspectivas de paz com a França.

Algum tempo depois, a embaixada partiu e, àquela altura, Mary estava grávida uma vez mais.

O terrível presságio envolveu-a. Sentia-se doente à medida que os meses se passavam. Tenho de dizer a Henrique, prometia a si mesma. Tem de haver um fim para isso. Nós temos quatro filhos homens e agora há este outro.

Isso deve ser o bastante.

Estava com a sensação de que tinha de ir embora de Bolingbroke. Talvez uma estada na agradável Peterborough lhe fizesse bem. De qualquer modo, uma mudança de cenário seria benéfica. Havia agitação na mudança de castelo para castelo. Depois de sua aventura no fosso dos ursos, Harry perdera um pouco da dedicação a eles. Estava mais interessado em um falcão que conseguira que lhe dessem. As crianças gostariam de uma mudança.

Então partiram para Peterborough.

Por estranho que parecesse, a saúde de Mary melhorou. Os meses passaram-se depressa, e chegaram notícias da França. Aonde quer que os ingleses fossem, eram tratados com honrarias e cortesia pelos franceses; havia torneios e banquetes nos quais, como de costume, cada um tentava ser melhor do que o outro em esplendor.

Henrique se destacava, como sempre, na justa e lá encontrou pessoas que estavam em peregrinação à Terra Santa. Ocorreu-lhe, então, que aquilo era uma coisa que gostaria de fazer. A verdade era que precisava de aventura. Quando se unira aos Lordes Apelantes, tinham sido muitas as aventuras, mas agora que o rei se acomodara e a rainha estava a seu lado para manter uma influência controladora sobre ele, a vida mudara na Inglaterra; e não havia o suficiente para manter ocupado um homem como Henrique.

Ele pensou em partir em peregrinação e discutiu o assunto com o pai, que achou uma boa ideia.

Ele recebera de Mary a notícia de que estava grávida novamente. Parecia ter um filho a cada ano, o que era muito elogiável. Quanto mais sua família crescia, mais Henrique se sentia feliz. Meninos para ficarem a seu lado e apoiá-lo em suas disputas, meninas para fazerem boas alianças e levar mais força para sua casa. Eles ainda eram jovens. Mary estava, agora, com 22 anos; contava com anos de geração de filhos pela frente. Sim, os dois iriam rivalizar com Eduardo e Filipa.

Enquanto isso, Mary aguardava em Peterborough.

Estava cônscia dos olhares aflitos de Joan Waring e Mary Hervey; sabia que as duas sussurravam sobre ela e temiam o pior.

Joan estava indignada. As senhoras de classe tinham mais o que fazer na vida do que ter um filho atrás do outro. Isso era para as ciganas e as pobres, e o senhor conde deveria compreender. Claro que ele não sabia o tributo que aquelas gravidezes cobravam de Lady Mary. Quando ele voltava para casa, havia uma criancinha sorrindo - ou berrando - no berço e lá estava sua esposa sorrindo como se tudo tivesse sido tão fácil quanto ela pudesse ter desejado que fosse.

Era primavera, e os botões estavam se abrindo, e os pássaros cantavam de alegria quando as dores do parto de Mary começaram. Um medo frio tomou conta dela, enquanto suas damas de companhia a ajudavam a ir para a cama.

- Deixai que eu passe por esta a salvo - rezava ela. - O que será das crianças se eu não conseguir? Elas precisam da mãe. Ó Deus, deixai que eu viva e que este seja o último.

Pareceu que suas orações tinham sido ouvidas, porque foi um parto mais fácil do que os outros; a criança era pequenina, mas de formas perfeitas.

Uma menininha.

Foi uma mudança, depois de quatro meninos. Ela ficou maravilhada com a frágil criatura, e naquele momento pensou que tudo valia a pena. Estava com cinco filhos maravilhosos. Não devia reclamar por ter tido de pagar um certo preço por eles. O parto doloroso... a deterioração da saúde... podiam ser esquecidos enquanto segurava a garotinha nos braços.

Será que Henrique ficaria satisfeito? Ela acreditava que sim. Afinal, eles tinham seus quatro meninos.

Mary pensou em um nome para a criança. Receberia o nome em homenagem à mãe de Henrique. Blanche era um bom nome na família. Por isso, o nome seria Blanche.

A menininha desenvolvia-se, e Mary estava encantada por sentir-se muito melhor do que costumava sentir-se depois dos partos.

Henrique ficou tão encantado quanto Mary esperava. Alegrouse com o fato de a menina receber o nome de sua mãe, que o poeta Chaucer elogiara em seus versos mas de quem Henrique não se lembrava. Ele mandou sedas de Champagne e de Flanders para decorar a pia batismal na catedral de Peterborough, e lá a filha de Mary, que dos filhos era a quinta, foi batizada.

Henrique voltou para a Inglaterra, mas quase que de imediato tornou a partir. Atravessaria a Europa em direção à Terra Santa. Mo caminho, o rei queria que ele fizesse uma visita ao irmão da rainha, Wenceslas, que também era o Sacro Imperador Romano. Henrique deveria apresentar seus respeitos e dizer a Wenceslas o quanto Ricardo era dedicado à sua rainha. Na verdade, não havia necessidade disso, porque a devoção do casal real era bem conhecida por toda a Europa. No entanto, era um gesto amigável que Henrique ficou encantado por fazer.

Da Boémia, ele foi para Veneza, onde providenciou para que fosse encomendado um navio, e quando a embarcação ficou pronta e foi carregada com os suprimentos necessários, partiu para a Palestina, onde chegou sem problemas. Fez uma visita à Igreja do Santo Sepulcro, no monte das Oliveiras e, irradiando integridade, começou a viagem de volta. Demorou-se um pouco na ilha de Chipre, onde foi recepcionado pelo rei e, depois de ter assistido à exibição dos ursos, não pôde resistir e contou a história de seu primogénito que, sem ter medo, descera no fosso para brincar com o urso. A coragem do menino foi aplaudida e, quando Henrique ia partir, o rei presentou-o com um leopardo.

- Para distrair o jovem Lorde Harry - foi o comentário -, mas diga a ele que não deve chegar perto demais desse aí.

- O que seria a maneira de fazer com que ele chegasse! replicou Henrique.

- Oh, esse menino é um bravo príncipe - foi a resposta, com uma gargalhada, e arranjou-se uma jaula para o leopardo, para que ele pudesse acompanhar Henrique quando este voltasse para a Inglaterra.

John de Gaunt lhe mandou um recado. Estava na hora de voltar. Uma nova situação estava-se criando no país. O conde de Arundel, um dos cinco Lordes Apelantes que tinham enfrentado o rei com Henrique, estava espalhando boatos sobre John de Gaunt, duvidando de sua lealdade para com o rei.

O duque conseguiu, em pouco tempo, acabar com aquilo, e de tal maneira conquistou a confiança do rei, que Ricardo mandou Arundel pedir desculpas ao tio.

Ricardo passara a acreditar que John de Gaunt era seu aliado de maior confiança. Ele estava velho demais, agora, para querer a coroa para si mesmo, e além do mais estava evidente que Ricardo era, sem dúvida alguma, o verdadeiro herdeiro da coroa e que seria loucura tentar removê-la de sua cabeça. Aquela era uma época de inquietação, quando aqueles que estavam por perto do trono deviam tomar cuidado com a maneira de andar.

Henrique voltou, e Mary, consternada, descobriu que estava grávida mais uma vez. Seu ânimo despencou, porque, dessa vez, sentia-se realmente mal.

Tinha de haver um fim para aquela gravidez incessante. Ela teria de contar a Henrique o quanto a temia. Naturalmente que ele não estava ciente disso, porque de maneira geral, se não estivesse fora do país, estava longe do círculo familiar. Pouco depois que Mary fez aquela alarmante descoberta, chegou ao castelo a notícia da morte da madrasta de Henrique, Constanza de Castela. Mary só se encontrara com Constanza raramente, e ela sempre parecera distante, porque a madrasta de Henrique era espanhola e nunca se adaptara ao modo de viver inglês. Ela e o marido raramente tinham vivido juntos, e desde que tinham voltado de Castela depois de arranjarem o casamento da filha Catherine com o herdeiro daquele país, Constanza parecia ainda mais uma estranha para todos eles. A esposa do duque era, para todos os efeitos menos o legal, Catherine Swynford, quem se interessava pelos assuntos da família, e era dela que as crianças gostavam. Ainda assim, aquilo foi um choque, como sempre deve ser a morte, e Henrique, que voltara para junto da família por um curto espaço de tempo, expressou sua curiosidade quanto ao que aconteceria agora.

O duque livrara-se de Constanza, mas poderia casar-se com Catherine Swynford? Se não fosse filho de um rei, sem dúvida que sim. Mas ele tinha sempre de lembrar-se de que era filho do rei Eduardo.

- De uma coisa podemos estar certos - salientou Mary. Lady Swynford não tentará influenciá-lo.

- Ele não pode se casar com ela - disse Henrique, enfático. - A posição dele é alta demais, e ela é demasiado humilde.

Mary suspirou.

- Não há mulher alguma, no país, mais digna do que a duquesa de Lancaster.

- Sob todas as formas, menos uma - concordou Henrique. Seu berço humilde jamais poderá ser esquecido.

- Não pode? - perguntou Mary, quase que em tom de dúvida.

Então, ela disse que gostaria de ir até Leicester, para variar de lugar. Queria que o novo filho nascesse lá.

Uma tragédia terrível abatera-se sobre o rei. Sua querida esposa, conhecida pelo país inteiro como a Boa Rainha Anne, pegara a doença da época e em poucas semanas estava morta.

A dor do rei enlouquecia-o e ele estava inconsolável. Anne fora sua companheira constante e ficara muito mais chegada depois do falecimento do amigo dele, Robert de Vere. O rei não podia imaginar a vida sem ela, e ficou com raiva pelo fato de o destino ser tão cruel a ponto de tirar-lhe sua adorada rainha.

Em sua raiva incontrolável, ele fez em tiras as tapeçarias do quarto onde ela morrera e declarou que nunca mais queria ver Sheen.

Então sua raiva mórbida tomou conta dele, a ponto de não conseguir controlá-la. Quebrou a mobília daquele quarto; destruiu-a por completo. Nunca mais poderia suportar olhar para dentro daquele quarto outra vez.

A morte está no ar, pensou Mary.

A hora estava chegando. Joan Waring e Mary Hervey ficavam cada vez mais aflitas.

- Não há intervalo para que ela se recupere - resmungava Joan. - É uma bênção o senhor conde estar fora, em suas viagens, caso contrário, não há dúvida de que os intervalos seriam menores.

- Se ele estivesse aqui, talvez tomasse conhecimento do tributo que isso está cobrando dela.

- Homens! - vociferou Joan. - O que é que eles sabem dessas coisas? Tudo em que pensam é no prazer deles e em ter filhos para trazer-lhes honrarias e glória.

Alguém terá de falar com sua excelência depois desse, e se ninguém falar eu falarei.

- É melhor deixar isso para a senhora condessa.

- Ela, pobrezinha, não faz outra coisa a não ser submeter-se.

- Ela é uma grande dama.

- A melhor do país. Mas isso não fará com que ela se recupere. Tenho medo do que possa acontecer a ela, Tenho medo.

- Você sempre teve medo, e no entanto ela se recuperou.

- É, a tempo de pegar a próxima. Só sei que isso não vai continuar.

Joan nada disse. Enrugou os lábios para expressar desaprovação.

As semanas passavam-se e Mary sentia-se tão cansada que passava a maior parte do tempo na cama. Estava feliz Por Henrique estar ausente. Teria odiado se ele a visse tão indisposta. Milhares de mulheres estavam tendo filhos todos os dias- E ela tinha apenas cinco. Não era uma grande quantidade. Só que pareciam vir muito depressa, um atrás do outro.

Talvez quando aquela criança nascesse, ela fosse tentar explicar a Henrique...

O verão chegara. Mary pensou em Constance e se perguntava como teria sido a vida dela com um marido que nao rizera segredo do fato de que se casara com ela por causa da coroa. Henrique jamais teria obtido permissão para casar-se com ela refletia Mary, se não fosse a sua fortuna, mas os dois tinham se conhecido de uma forma romântica e tinham sido amantes. No entanto, ele soubera desde o começo quem ela era e, sem dúvida fora aconseIhado pelo pai a cortejá-la.

Talvez fosse melhor não investigar muito a fundo os motivos. Bastava saber que ela tinha sido feliz - completamente feliz na queles primeiros anos, antes de começar aquela temivel tarefa de gerar filhos.

É defeito meu, admoestou a si mesma. Outras mulheres fazem isso sem reclamar.

Ela estava sempre pensando no rei e na sua dor. Soubera que ele destruíra o quarto em Sheen onde a rainha morrera, porque nunca mais seria capaz de olhar para ele. E o casamento deles tinha sido um casamento de conveniência, arranjado por Estados, e eles nunca tinham se visto até que Anne viera da Boémia para casar-se com ele.

Pobre, pobre do Ricardo. Rei infeliz, que subira ao trono jovem demais, mas encontrara uma mulher a quem pudera amar e depois a perdera.

Mas Mary não devia lamentar-se da morte. Havia uma vida se mexendo dentro dela. E ela amava os filhos. Amava-os com fervor. Depois que eles chegavam e ela se recuperava, sentia-se feliz... até que chegava a hora de dar à luz outra vez.

Sou uma covarde, pensou. E depois: ah, mas se Henrique ao menos soubesse a dor que sinto!

Leicester era um castelo magnífico, situado na margem direita do rio Soar, logo fora da cidade mas perto do muro que os romanos tinham construído quando chamavam a cidade de Ratae. Quando o nome mudara, ela não sabia, mas a cidade e o castelo, que tinham sido de grande importância tanto para os saxões como para os dinamarqueses, tinham passado para as mãos da Casa de Lancaster havia mais de cem anos, e John de Gaunt o restaurara e embelezara à maneira que ele gostava de empregar em tantas de suas propriedades.

O mês de junho chegava ao fim, e o nascimento estava iminente. Mary estava deitada na cama, à espera do início das dores.

Os trabalhos do parto foram longos e árduos. Durante o dia todo e a noite, eles continuaram. A dor ficou mais intensa e nunca antes, nem mesmo em suas mais extenuantes experiências, Mary sentira tamanha agonia.

Quando afinal a criança nasceu, Mary estava exausta demais para perguntar qual era o sexo e se era saudável sob todos os aspectos.

Os médicos disseram que, acima de tudo, ela tinha de descansar. Deram-lhe uma poção calmante e colocaram duas mulheres ao lado da cama para tomar conta dela.

A criança era uma menina saudável. Assim que Joan ouviu o vigoroso choro dela, foi até lá para ver a nova pupila. Uma bela garota!

- Deus a abençoe - murmurou ela -; vamos esperar que sua chegada não tenha custado à senhora condessa um esforço demasiado.

Parecia que tinha custado muito, porque Mary continuou exausta nos próximos dias, mas quando a criancinha era levada até ela e colocada em seus braços, ela ficava contente.

- Dei ao senhor conde seis filhos - disse ela. - É um número razoável... quatro meninos e duas meninas... não é?

As acompanhantes garantiram-lhe que sim.

- Estou com vinte e quatro anos de idade - disse ela. Por quanto tempo uma mulher pode esperar continuar tendo filhos? Mais dez anos? - Ela sorriu fracamente. - Para mim, não, acho eu. Para mim, não.

- Seis é um número muito bom - disse Joan, rápido. - É o suficiente para a maioria dos pais, não importa quem sejam eles.

- A rainha Filipa teve doze - disse ela.

- É demais - balbuciou Joan.

- vou chamar essa menina de Filipa, em homenagem à Boa Rainha - disse Mary.

Elas levaram a criança, porque Mary se cansava com muita facilidade.

No decorrer do dia seguinte, uma lassidão tomou conta de Mary e ela ficou, desanimada, na cama. Estava sempre caindo no sono - embora não parecesse um sono, mas fosse quase como se tivesse fugido do presente e ido para o passado. Estava no convento, e a abadessa estava com ela. "Você tem de ter certeza de que esta é a vida que quer, Mary." Ah, a paz da vida - vivida ao comando dos sinos, como ela sempre pensara. Sinos para a nona, sinos para as completas... trabalhar no canteiro de ervas, fazer pão, cuidar dos pobres, viver numa cela sem nenhum móvel, gelada até os ossos no inverno mas de certo modo feliz, a serviço de Deus.

Mary se afastara daquela vida. Henrique a fizera afastar-se, e a partir do momento em que o encontrara na floresta, ela não tivera mais desejo algum de ser freira. Sabia que seu futuro fora planejado. Ela era um peão nas mãos do grande John de Gaunt, como teria sido nas mãos de sua irmã e do ambicioso marido de Eleanor.

Mas acontecera com muita naturalidade, e independente do que acontecesse ela jamais iria querer ficar sem os filhos. Filhos adorados. Harry, o rebelde, Thomas, que gostava de imitar o irmão mais velho; John, que era um bom menino, e o pequenino Humphrey. Depois, a doce Blanche e, agora, Filipa. Não, eles eram sua vida, embora em breve os meninos fossem ser levados para longe dela, mas no momento os tinha ao seu lado.

Mary pediu que levassem Harry e Thomas à sua presença.

Eles foram e ficaram em pé ao lado da cama, muito impressionados, o que era estranho para Harry, mas ele percebeu que havia algo de momentoso naquela ocasião.

Os olhos de Mary pousaram em Harry - agora com sete anos, parecendo mais um de Bohun do que um Plantageneta. Aqueles lisos cabelos escuros e olhos castanhos e rosto oval, o corpo pequeno muito esguio. Faltava-lhe a aparência trigueira de um leão dos antecessores de seu pai. Os olhos castanhos estavam, agora, curiosos, alerta com especulação, mas ao mesmo tempo ele estava nitidamente perturbado ao ver a mãe tão diferente do normal.

- Harry - disse ela -, chegue mais para perto da cama. Ela segurou a mão dele. - E Thomas. Vfenha para o outro lado. Pronto, estou com um filho de cada lado. Vocês me protegeriam, não é?

- Contra o quê? - perguntou Harry. - Ninguém vai fazer mal à senhora aqui.

Ela pensou: contra a Morte. A Morte está no castelo, meu filho. Eu a sinto por perto.

- Não, mas eu gosto de ter vocês ao meu lado - disse ela com um sorriso.

- Nenhum inimigo de meu pai poderia entrar no castelo, eu Iria impedir - jactou-se Harry.

- Eu também - acrescentou Thomas.

- Deus abençoe os dois, meus filhos. Eu sei que vocês fariam isso. Quero que vocês sejam sempre amigos. Prometem?

Os meninos pareciam perplexos, e Mary continuou.

- Sei que de vez em quando vocês discutem na sala de aula. Mas pouco depois, esquecem suas diferenças, não é? E se alguém tentasse fazer mal a Thomas, Harry, você iria em socorro dele, certo?

- Alguém vai fazer mal a ele? - perguntou Harry, os olhos brilhando.

- Não, não. Mas eu apenas disse se...

- Não se diz se, a menos que se ache que pode acontecer replicou Harry, sensato.

Mary pensou: não devo alarmá-los. Harry é inteligente demais, e Thomas está imaginando o que poderá acontecer a ele.

- Quero apenas que vocês se lembrem de que desejo que sejam sempre amigos.

- A senhora não quer que eu dê a ele meu novo falcão? perguntou Harry, desconfiado.

- Eu quero ele - bradou Thomas, esperançoso.

- Não, não - replicou a mãe deles. - Sejam apenas bons amigos, sempre... e nunca deixem que uma disputa entre vocês seja prolongada.

Os dois meninos estavam observando um ao outro com intensidade, de um lado para o outro da cama, e Mary disse, rápido:

- Vocês têm uma nova irmã.

- Nós temos uma - disse Thomas.

- Na verdade, não queríamos outra - acrescentou Harry, em acentuado tom de reprovação. - E a senhora ficou muito doente para trazê-la.

- Vocês não devem culpá-la por isso.

- Quando é que a senhora vai se levantar?

- Em breve.

- E vamos ter uma festa? E será que meu pai virá?

- Sim, vamos ter uma festa e ele virá.

Mary fechou os olhos. Harry fez um gesto chamando o irmão, e naquele momento Joan entrou.

- Venham - disse ela -, sua mãe está cansada.

Enquanto ela os conduzia para fora, Harry voltou-se para ela e disse:

- Acho que ela estava tentando dizer que está indo embora.

Havia tristeza no castelo, e uma terrível premonição de desgraça.

Homens e mulheres andavam nas pontas dos pés e falavam em sussurros. A condessa estava com febre.

Na ala infantil, o novo bebé ia vivendo. Uma ama-de-leite fora encontrada para ela, e não era a criança que mostrava sinais de sua difícil chegada ao mundo.

A pergunta era se se devia enviar uma mensagem ao conde de Derby, para dizer a ele que a saúde de sua condessa estava provocando uma séria aflição e que desde o nascimento de Lady Filipa começavam a surgir graves sintomas. Eles hesitavam, mas à medida que os dias se passavam, chegou-se à conclusão de que ele devia ser avisado.

Henrique ficou alarmado. Foi imediatamente para Leicester.

No íntimo, ele soubera que Mary tinha horror ao parto, mas considerara isso como um dos fatores inevitáveis da vida.

Os filhos eram a própria razão do casamento, e ele se encantava com o fato de ter seis e esperava ter mais.

E agora, Mary estava doente. Efeitos consequentes do parto, garantiu a si mesmo. Não era nada. Aquelas mulheres que a cercavam faziam muito espalhafato. Estimulavam os temores dela.

Mesmo assim, ele cavalgou a toda velocidade, e quando chegou ao castelo, uma grande depressão tomou conta dele.

Foi imediatamente ao quarto de sua mulher. A pálida e lânguida figura deitada na cama estava praticamente irreconhecível. Os negros cabelos pendiam escorridos em torno de suas descoradas feições; só os olhos pareciam os mesmos; carinhosos, vivos, ansiosos por agradar.

- Henrique, você veio.

- Meu amor - disse ele -, o que você tem?

- Foi demais, Henrique... demais.

- A criança está bem.

- Graças a Deus, é uma bela menina. Foi a sua pobre Mary que mudou, Henrique.

- Dentro em breve você ficará boa. Ainda vamos ter mais seis, Mary. Você vai ver.

Ela sorriu fracamente e abanou a cabeça.

- Bem-disse Henrique -, temos os nossos seis. Oh, Mary, tenho horror a vê-la assim.

- Eu sei. Eu não queria que me visse desse jeito, mas eles mandaram lhe chamar.

- Estou contente por estar com você.

- Eu não o decepcionei?

- Minha adorada, você me fez muito feliz. Nunca deixei de amá-la, desde o dia em que a vi pela primeira vez na floresta. Você se lembra?

- Isso é uma coisa da qual nunca me esquecerei. Guardo com carinho a lembrança... e lhe dei seis filhos, não é? Cumpri com meu dever como esposa...

- Oh, não fale em dever. Foi por amor, não foi?

- Foi - disse ela -, por amor. Lembre-se sempre disso, Henrique. Por amor.

Ele ficou um longo tempo sentado ao lado da cama, e ela o fez falar sobre o passado, daquela época em Arundel e depois do nascimento de Harry, e do quanto tinham sido felizes nos primeiros tempos de casamento.

Depois, ele estivera ausente tantas vezes, e ela o vira raramente, só o suficiente para ficar grávida e iniciar a exaustiva tarefa de trazer ao mundo mais um filho.

Mas eles formavam sua adorada família, e era preciso pagar pelas bênçãos.

Depois de um certo tempo, Henrique viu que ela estava dormindo e esgueirou-se para fora do quarto.

Pouco depois da chegada dele, ficou claro que Mary estava muito doente. Os melhores médicos do país estavam ao seu lado, mas não havia nada que pudessem fazer. Ela estava exausta, esgotada por um número demasiado de partos. Era pequena e frágil e não estava apta a uma vida tão árdua assim.

Henrique estava perplexo. A realidade estava à sua frente. Aquilo não precisava ter acontecido. Se ela tivesse parado a tempo aquilo não teria ocorrido.

O progresso da febre foi rápido, e poucos dias depois de sua chegada Henrique percebeu que era o fim.

Ele se ajoelhou ao lado da cama de Mary, porque ela parecia reconfortada ao tê-lo perto. Ela agora estava em paz. Uma mulher que terminara seu trabalho. Ela não mandou chamar os filhos, porque não queria que a vissem assim.

- Vai assustá-los - disse ela. - Deixe que se lembrem de mim como eu era. Eu os estou deixando com você, Henrique. Você cuidará deles. Não seja rigoroso com Harry. Quero que ele o ame. Quero que todos amem uns aos outros. Nada de disputas mortais. Eles deverão sempre trabalhar juntos. É o que eu quero...

- Assim será - disse Henrique. - Tudo o que você pedir, eu farei.

- Então, fique comigo. Não vai demorar, agora. Ele estava ao lado dela quando ela morreu.

Ele ficou sentado ao lado da cama, aturdido pela incredulidade.

Mas precisava se recuperar. Mary estava morta. Ela estava com 24 anos. Jovem demais para morrer. Mas estava morta. Aquele era o Ano da Morte - Constanza, a rainha e agora Mary, e tanto a rainha como Mary tinham sido abatidas na flor da idade. Ele entendia a dor do primo, que o obsedara e o deixara louco durante algum tempo.

As vezes, Henrique pensava que seu destino estivesse entrelaçado com o do primo. Ele sempre achara que, não fosse aquele capricho do destino, deveria estar no lugar de Ricardo. Os dois tinham nascido no mesmo ano. Tinham tido casamentos felizes e, com um intervalo de poucas semanas, tinham perdido suas adoradas companheiras.

Ele se sentia perdido, aturdido. Embora nos últimos anos tivesse passado mais tempo fora do que com ela, sabia que sentiria uma falta terrível dela.

Ela deveria ter um funeral grandioso. Sua mãe iria insistir nisso. Mary deveria ser sepultada com o restante dos de Bohuns, porque era isso que ela quisera.

Planejar o pomposo funeral afastou a mente de Henrique da desolação que sentia, tal como acontecera com Ricardo quando enterrara sua rainha.

Depois que aquilo tivesse terminado, ele teria de pensar nos filhos.

As crianças tinham ficado todas juntas, cuidadas pela mãe carinhosa. Ele agora tinha de fazer outros planos para o futuro delas. Ficaria com elas quando pudesse, mas a situação política era tal que exigia sua atenção constante.

Henrique estava pensando com muito cuidado no que deveria ser feito pelos meninos e meninas órfãos de mãe.

 

AS CRIANÇAS estavam, agora, sob os cuidados de Mary Hervey e Joan Waring, e viviam a maior parte do tempo em Kenilworth, e quando aquele castelo precisou de reparos, mudaram-se por algum tempo para Tutbury. A vida, para elas, continuava praticamente como tinha sido antes da morte da mãe, mas sentiam uma falta enorme dela. Blanche, é claro, não se lembrava dela, mas todos os meninos se lembravam, até mesmo Humphrey, que tinha três anos. Quanto a Harry, ele levou algum tempo agindo com seriedade. Estava com sete anos, e era adiantado para a sua idade. Achava que na ausência do pai ele era o chefe da família, e sua ascendência sobre os irmãos parecia mais forte do que nunca.

A falta que ele sentia da mãe era maior do que aquela que Mary e Joan teriam acreditado possível; e às vezes ficava quieto e muito triste, pensando nela. Lembrava-se do que ela lhe dissera, e se deu conta de que ela sabia, na ocasião, que estava morrendo. Harry prometeu a si mesmo que tentaria fazer o que ela queria e, em consequência, adotou uma atitude protetora para com os irmãos.

No inverno do ano seguinte, ele pegou um resfriado e ficou tão mal, que todos pensaram que morreria. O pai, numa agonia de apreensão, mandou vir de Londres os melhores médicos, e pouco depois Harry os surpreendia com a sua determinação de viver. Sua saúde começou a melhorar, e ele ficava na cama ouvindo as canções de Wilkin Walkin, o menestrel que o pai deles mandara para ensiná-los a cantar. Eles gostavam de música porque a mãe sempre providenciara para que houvesse muita música na casa. Havia aulas com Mary Hervey e brincadeiras com os irmãos; ele mandava neles e tolerava as irmãs, e assim a vida passava no primeiro ano depois da morte da mãe, mas ninguém sabia mais do que Harry que ela não continuaria como estava.

Henrique estava ficando cada vez mais preocupado com a situação do país. Além do mais, o rei tinha ido à Irlanda para tentar resolver os problemas por lá, e John de Gaunt foi à Aquitânia com a mesma finalidade em mente. Isso colocou responsabilidades sobre Henrique, porque o rei o fizera membro do conselho que governava durante sua ausência; e como seu pai estava fora do país, cabia a Henrique cuidar das propriedades lancasterianas.

Ricardo e John de Gaunt voltaram para a Inglaterra; e naquele ano, o segundo após a morte de Mary, aconteceram na Inglaterra dois casamentos importantes.

John de Gaunt não ligava para as convenções e fez o que vinha querendo fazer havia muito tempo, que era casar-se com Catherine Swynford. Alguns membros da nobreza ficaram horrorizados com isso, mas muitos aplaudiram e admiraram muito John de Gaunt por ter se casado com Catherine.

O rei foi um dos que aprovou a união. Ele sempre gostara de Catherine; além do mais, ele estava completamente reconciliado com seu tio Lancaster, e como contava com os conselhos que este lhe dava, estava ansioso por agradá-lo. Por isso, não só demonstrou sua aprovação do casamento recebendo Catherine como a nova duquesa, mas colocou seu selo nele e conquistou a eterna gratidão dela ao legitimizar seus filhos, os Beaufort, o que, depois do casamento com o duque, era o maior desejo de Catherine.

Henrique ficou satisfeito. Ele sempre considerava Catherine como sua madrasta e os Beaufort como seus irmãos. Agora, eram legalmente seus irmãos.

O outro casamento foi o do próprio Ricardo. Por mais que tivesse amado Anne, ele queria agradar a seus conselheiros casando-se outra vez, mas escolheu Isabella, filha do rei da França, para grande consternação dos que os cercavam, porque Isabella era uma criança que ainda não completara dez anos. Apesar de ter sido uma esposa perfeita, Anne falhara sob um aspecto. Não dera um herdeiro ao trono. Parecia uma loucura extrema, portanto, que Ricardo, cujo principal objetivo do casamento deveria ser a geração de filhos, casar-se com uma menina que ainda levaria, no mínimo, uns quatro anos para estar pronta a gerar filhos.

A dedução foi de que Ricardo não gostava muito de mulheres, e não queria substituir Anne; e que a ideia de uma esposa criança que pudesse ser criada de acordo com os costumes ingleses e não fazer exigências maritais vinha muito a calhar para ele.

John de Gaunt e Henrique acompanharam o rei à França, para o casamento real. Como duquesa de Lancaster, Catherine Swynford foi uma das damas destacadas para servir à nova rainha, como foram a irmã de Mary, Eleanor, e a condessa de Arundel. Esta condessa era Filipa, filha do conde de March e, portanto, neta do irmão mais velho de John de Gaunt, Lionel. Ela era muito cônscia de seu sangue real e queria que todos que a cercavam também fossem.

Eleanor e Filipa provocaram uma sensação pela maneira rude de tratar Catherine, e embora esta se portasse como se não tivesse percebido a má educação das duas, John de Gaunt ficou furioso e decidido a fazer com que elas pagassem pelo insulto mais tarde.

No entanto, havia outros assuntos a ocupar a atenção deles, e Lancaster estava muito ansioso por que seu filho entendesse a importância do que estava acontecendo.

- O que pode significar esse casamento de Ricardo? - perguntou ele. - É óbvio que não poderá haver herdeiro algum durante anos. E Anne também não conseguiu arranjar um herdeiro. A culpa pode ter sido de Ricardo. O fato de ele ter escolhido esse casamento pode ser uma chave para a situação. Mas pense no que isso significa, Henrique. Quando ele morrer, quem irá substituí-lo?

- Os herdeiros de Lionel... John de Gaunt estalou os dedos.

- Remoto demais - disse ele. - Você fica bem colocado na fila, Henrique.

- Tenho a mesma idade que Ricardo, e ele parece gozar de boa saúde.

- Ele é imprevisível. Num momento, exibe sinais de que vai se tornar um grande rei. Enfrentou os rebeldes em Blackheath e Smithfield. Na ocasião, foi um herói. Mas onde está o herói agora? Ele enfrentou os rebeldes porque não percebeu o perigo que corria. Na ocasião, era uma criança. A coisa funcionou, mas poderia facilmente não ter funcionado, e então, em vez de um ato heróico, teria sido considerado um ato de loucura. Vejo grandes acontecimentos no horizonte, Henrique, e quero que esteja preparado quando eles vierem. Acabaram-se as viagens. Você tem de ficar perto de casa. Tem de defender nossas propriedades. Tem de providenciar para que, quando chegar a hora, você esteja disponível.

Por isso, quando eles retornaram à Inglaterra, Henrique abandonou todas as ideias de outras viagens e manteve um olho vigilante no que acontecia em volta do rei. Havia paz com a França, mas em vez de melhorar a situação, isso parecia agravá-la. O povo ainda reclamava dos pesados impostos que lhe eram cobrados; e agora que havia paz com a França - ainda que apenas temporária - por que o Tesouro precisava de tanto dinheiro? A resposta era clara. O rei levava uma vida extravagante; estava sempre dando dispendiosos banquetes e diversões para os amigos; quantias elevadas eram gastas com suas roupas, cheias de jóias valiosas; na verdade, esperava-se que o povo pagasse muito para manter uma corte luxuosa demais para ser paga sem o apoio dele.

Será que Ricardo não vai aprender nunca?, perguntava-se John de Gaunt. Havia encrenca fermentando.

Ricardo estava cônscio de que a revolta estava no ar; sabia que os líderes eram seu tio Thomas de Gloucester e os condes de Arundel e Warwick. Decidiu agir e, pelo menos dessa vez, agiu com presteza. Convidou todos para um banquete, com a intenção de prendê-los quando chegassem. Gloucester e Arundel sentiram o cheiro do perigo e não apareceram. Warwick compareceu e foi preso. Mas Warwick era menos importante do que os outros dois, e foi mandado para a Torre, onde ficou. Arundel foi atraído a Londres, preso sob acusação de traição, e John de Gaunt, como senescal da Inglaterra, presidiu o julgamento e o condenou à morte, com um certo prazer, pois se lembrava dos insultos que ele dirigira a Catherine.

Restava Gloucester, que acabou sendo capturado e mandado para Calais, onde morreu misteriosamente numa estalagem, segundo disseram sufocado por colchões de penas apertados sobre ele.

John de Gaunt ficou muito perturbado. Thomas, afinal, era seu irmão. Nunca houvera uma grande amizade entre eles, mesmo quando jovens, mas quando John conseguira que seu filho obtivesse a cobiçada Jarreteira tirando Thomas da concorrência, provocara a inimizade do mordaz irmão; e ainda mais quando tirara Mary do controle do irmão e casara a fortuna dela com seu filho Henrique.

Ainda assim, ele era seu irmão e, como confidenciou a Henrique, era interessante observar que os três que tinham sido perseguidos de modo tão implacável pelo rei - Gloucester, Arundel e Warwick - eram três dos cinco Lordes Apelantes que, alguns anos antes, enfrentaram o rei de braços dados para mostrar solidariedade e arrancaram concessões dele.

Os outros dois eram Thomas Mowbray e o próprio Henrique.

- Está vendo - disse o sábio duque de Lancaster -, é necessário andar com muito cuidado. Ricardo não esquece o que considera um insulto. Você e Mowbray deveriam ficar alertas.

Ricardo, no entanto, parecia gostar do primo. Fez dele um duque, e Henrique passou a ser, agora, duque de Hereford, e Thomas Mowbray virou duque de Norfolk, de modo que parecia que aquele longínquo incidente estava esquecido.

Depois que concedeu a honraria, Ricardo mostrou sua amizade para com Henrique perguntando pelos filhos e apresentando-lhe as condolências pela morte da esposa.

- Compartilhamos de uma infelicidade - disse ele, e passou a exaltar as virtudes de sua adorada Anne. Era verdade que ele tinha uma pequena rainha, da qual já estava

gostando muito. Uma criança; mas ele iria venerá-la e criá-la para amar a Inglaterra e ser a rainha daquele país.

- Sob certos aspectos, você é mais feliz do que eu-disse o rei. - Você tem seus meninos e suas meninas. Quantos são, agora? Ouvi dizer que são quatro meninos.

- Exatamente, tenho quatro, e duas meninas.

- E que idade tem seu herdeiro - o jovem Harry de Monmouth, não é?

- Está com dez anos.

- E, segundo me disseram, é inteligente para a idade que tem. Quero conhecer Harry de Monmouth. vou lhe dizer uma coisa, primo: ele deverá vir à corte.

- Fico embevecido pela honra - disse Henrique, tentando esconder a preocupação. - Ele agora está em Oxford, sob os cuidados de meu meio-irmão Henry Beaufort. Ele é reitor da universidade, como Vossa Majestade sabe, e é bom Harry ficar sob a tutela dele.

- Ele vai aprender mais na corte, primo.

- Vossa Majestade está sendo muito bom para o menino. Ele é criança demais para ser um cortesão.

- Estou decidido a tê-lo aqui. Ouvi dizer que é um tanto rebelde.

- Majestade, ele não passa de uma criança.

- Mas é capaz de se mostrar digno da admiração de todos pelos seus atos. Gosto do que me dizem sobre o jovem Harry de Monmouth. vou mandar avisar que ele deve vir para a corte.

Era evidente que Ricardo estava decidido, e, desanimado, Henrique foi procurar o pai, a fim de contar-lhe o que se passara entre ele e Ricardo.

Lancaster, a princípio, ficou perturbado pela notícia, e depois disse:

- É bem possível que Ricardo queira demonstrar amizade. Ele fez de você um duque. Precisa de mim e passou a confiar em mim. Acho que talvez ele esteja mostrando boa vontade para com meu neto.

- Seja como for - replicou Henrique -, não há nada que possamos fazer.

Harry não teve pena de deixar Oxford e ir para a corte. O rei recebeu-o com uma demonstração de afeto.

- Neto do meu bom tio - disse ele. - Seja bem-vindo, Harry.

Hàrry respondeu com um prazer sincero. Gostava daquele homem bem-apessoado, suntuosamente vestido, de mãos delicadas e pele rosada e branca que corava de modo muito agradável quando ele mostrava agitação, com os trajes brilhantes e o perfume delicado que pairava à sua volta.

E ele é o rei, pensou Harry; e a partir daquele momento, ele também quis ser rei.

Havia muito o que ver na corte. Primeiro, ele foi a Eltham, onde o rei estava naquela ocasião, e ficou encantado com o local. Era muito diferente do sombrio Tutbury, e até Kenilworth perdia na comparação. Ricardo, em torno do qual tudo tinha de ser elegante e no que ele considerava um gosto perfeito, o que significava um reflexo de seu deleite nas combinações de cores e padrões, divertia-se ao ver o quanto seu jovem parente estava perplexo e, durante algum tempo, manteve-o junto dele.

Mostrou-lhe as reformas que fizera em Elthan - a nova casa de banhos.

- Nunca se esqueça de tomar banho, Harry - disse ele. A prática dá prazer a você e também aos que o cercam. Eu abomino odores repugnantes.

Era uma prática que o rei exercia com regularidade. Sua pessoa era sempre requintada. Preocupava-se tanto com o corte de seus casacos de mangas compridas, as golas altas, os ombros com enchimento de suas jaquetas, suas calças coladas na pele e seus compridos sapatos pontudos, quanto com os negócios de Estado.

Havia, também, a câmara pintada e a câmara de dança - porque o rei adorava dançar -, e ele fizera novos jardins para seu divertimento e suas recepções ao ar livre.

Para Harry, aquilo era um mundo novo. Ele ganhou uma roupa colante, decorada com o emblema do cervo branco que mostrava que ele fazia parte da casa do rei; e quando a corte viajava, ele ia junto.

Seus dias eram ocupadíssimos. Tinha uma vontade enorme de ser um cavaleiro e tomar parte nas justas, mas estava com dez anos de idade, e os outros não se esqueciam disso, embora ele se esquecesse. Tinha de comparecer às aulas com outros de sua idade, porque na corte havia meninos iguais a ele, vindos de casas nobres; então, ele tinha de aprender a cavalgar e usar a espada, praticar arco e flecha, para que quando chegasse o momento de ser feito cavaleiro pudesse mostrar suas qualidades e sua bravura.

Era uma vida muito diferente daquela que ele vivera sob os cuidados de sua mãe ou quando estivera em Oxford. Harry absorvia o que se passava à sua volta, e aquilo o entusiasmava. A vida na corte do rei era a vida de que ele gostava.

Depois de mais ou menos uma semana na corte, o rei perdeu o interesse por ele, que passou a ser apenas um dos meninos que estava sendo criado lá. Harry não se importou. Havia o suficiente para absorvê-lo, e estava mais interessado na vida ao ar livre do que nos livros e na música e nas belas roupas que o rei tanto admirava.

A corte mudara-se para Windsor, e o rei estava muito animado. Disseram a Harry que era porque a pequena rainha estava lá, e Ricardo gostava muito da companhia da garotinha.

Harry se interessava pela rainha porque esta tinha mais ou menos a sua idade e para ele parecia maravilhoso ser importante.

Às vezes, ele via os homens a cavalo indo para a floresta, liderados pelo rei, e ao lado do rei ia a menina mais bonita que Harry já vira. Era animada e acrescentava gestos à sua fala constante. Seus longos cabelos escuros caíam-lhe soltos pelos ombros, e ela usava roupas elegantíssimas que, segundo Harry ficou sabendo, tinham sido escolhidas pelo rei.

Um dia, quando estava tendo uma aula de dança, que era obrigado a tolerar, ela entrou na sala para assistir. Havia duas outras meninas e dois meninos além de Harry e seu par, e eles estavam treinando as mais novas danças da corte. Ele se sentiu mais contrafeito do que nunca, porque aqueles faiscantes olhos negros o tinham escolhido

como foco da atenção especial dela, e a situação não melhorou quando o professor de dança assinalou mais um passo errado que ele dera.

Então, a pequena rainha correu para perto dele e, segurando-lhe a mão, bradou:

- Vamos, dance comigo, menino trapalhão. vou lhe mostrar como se faz.

Harry ficou muito contrafeito e sentiu antipatia por ela, apesar da beleza que o excitava e fazia com que ele quisesse continuar a olhar para ela.

- Eu não quero, majestade - disse ele, com uma mesura arrogante.

- Meu senhor - disse o instrutor. - A rainha lhe concede uma honra.

- Não me sinto honrado - disse Harry. Ela começou a rir.

- Esse aí não tem boas maneiras - disse ela, num inglês muito ruim.

- A rainha manda que o senhor dance com ela - disse o instrutor olhando fixo para ele e tentando transmitir alguma mensagem.

- Não, não - bradou Isabella. - Eu não mando. Se ele não quer... - Ela ergueu os ombros e fez uma expressão de falsa tragédia. Voltou-se para um dos outros meninos e segurou-lhe a mão enquanto dizia: - Música, por favor.

Os músicos começaram a tocar. Harry se recusou a dançar, e sua parceira e a menina que havia dançado com o menino que Isabella escolhera dançaram juntas, enquanto Harry ficou ali olhando, carrancudo.

Não havia dúvida de que a rainha dançava muitíssimo bem. Possuía uma graça especial toda sua. De vez em quando, olhava em direção a Harry e o pegava olhando para ela. Isso parecia deixála satisfeita.

Quando a dança terminou, ela pareceu perder o interesse pelo acontecimento e, rindo, correu para fora da sala, mas não sem primeiro lançar um olhar zombeteiro na direção de Harry.

Assim que ela se foi, o instrutor gritou para Harry:

- O senhor é um louco. Nunca vi um comportamento desses em toda a minha vida. Isso poderá me custar meu cargo, e ao senhor, o seu lugar na corte. Não é minha obrigação ensinar-lhe maneiras refinadas e a dançar, e não acabo de ver a pior demonstração de maus modos jamais vistos na corte? O senhor percebe que ela é a rainha?

- Claro que eu sabia que ela era a rainha - murmurou Harry.

- E o senhor se recusou a dançar com ela quando ela lhe concedeu a honra de escolhê-lo!

- Ela estava zombando de mim.

- O senhor se recusou a dançar com a rainha! Esteja certo, meu senhor, de que a coisa não ficará por aí. Ela contará ao rei, e o senhor será mandado de volta para o interior, onde é o seu lugar.

- Eu não me importo - disse Harry, com ar de desprezo. Mas se importava. Ele gostava muito da vida na corte. Não suportava pensar em voltar para o interior, para ficar sob os cuidados de Mary Hervey, ou retornar a Oxford para trabalhar sob o olhar rigoroso do tio Beaufort.

Harry estava sempre pensando em Isabella. Ela se dava ares de importante. Ora, e por que não iria agir assim? Ela era a rainha. E era muito bonita. Ele nunca vira ninguém tão bonita. Sua maneira de falar era fascinante, como eram seus modos.

Ele a deixara zangada - embora ela fingisse não estar. Ela iria contar ao rei, e todo mundo dizia que o rei não lhe negava coisa alguma, porque a adorava e a tratava como um valioso bichinho de estimação. Bastava ela dizer "eu quero aquele mal-educado Harry de Monmouth mandado embora da corte", e Harry seria dispensado.

O dia todo, ele ficou pensando no quanto gostava da vida na corte. Percebeu, também, como eram elegantes e atraentes algumas das mulheres. Nenhuma delas tinha o estilo da rainha, é claro, embora ela não passasse de uma criança.

Mas ela o transformara de alguma maneira. Fizera-o perceber coisas que nunca havia notado.

Harry estava desolado, taxando a si mesmo de estúpido por tê-la antagonizado. A dispensa chegaria a qualquer momento. Seu pai ficaria zangado com ele; o avô iria desprezá-lo. Que esperança de subir na vida ele teria se fosse deixar que o orgulho bobo governasse seus atos?

Devia ter dançado com a rainha; tê-la bajulado. Devia ter feito com que ela gostasse dele. Agora que era tarde demais, ele compreendia perfeitamente aquilo.

A convocação não veio, no entanto, e poucas semanas depois ele parou de esperá-la, embora não se esquecesse da rainha e, sempre que podia, aproveitava a oportunidade para observá-la, embora ela nunca mais voltasse a perceber sua presença.

Na corte, estavam todos falando sobre o combate que aconteceria entre os duques de Hereford e Norfolk, e como duque de Hereford era o título que fora concedido recentemente ao pai de Harry, aquilo tinha um interesse especial para ele.

Até onde Harry conseguia entender, Thomas Mowbray, recentemente feito duque de Norfolk - ao mesmo tempo em que Henrique de Lancaster tinha sido feito duque de Hereford - fizera uma proposta a Hereford que este considerara uma traição e comunicara ao rei.

Norfolk retaliara declarando que não era traidor e que Hereford estava fazendo a acusação para encobrir suas próprias intenções nefandas.

Como resultado, o rei concordara que os dois homens deviam enfrentar-se em combate. Havia muitos sussurros na corte, e Harry tinha o que Joan Waring chamara de orelhas grandes. Se um desses homens é um traidor, perguntava-se, de que adiantaria um combate para resolver o problema? Um traidor poderia sair vencedor e um homem inocente poderia ser morto. Era tudo muito estranho.

Mas a agitação aumentava à medida que os dias se passavam. A corte mudara-se para Coventry, uma bela cidade cercada de grossos muros guardados por 32 torres. Havia doze portas para entrar na cidade e, em consequência, ela era uma das mais poderosas fortificações do país.

Fora dos muros da cidade havia uma grande atividade, enquanto se erguiam pavilhões. Harry observava a obra um pouco confuso, porque seu pai seria um dos principais atores daquele drama que estava para ser representado naquele brilhante campo, e se seu pai morresse...

A ideia deixava-o perplexo. Ele via pouco o pai e o achara sério e frio-muito diferente de sua mãe que, embora morta havia muito tempo, continuava em sua lembrança.

Jamais esqueceria as surras que o pai lhe dera. Para o seu bem, dissera-lhe sua mãe; mas ele sempre achara que teria se sentido melhor sem elas, porque quando sentia vontade de fazer alguma coisa que provocaria castigo, nunca parava para pensar nas consequências. Aquilo vinha depois. No castelo, apostava-se na vida ou na morte dos duques de Hereford e Norfolk - porque aquela não era uma o joust à Plaisance, mas o clímax de uma amarga disputa, que significaria o fim de um deles.

O avô de Harry chegou. Harry percebeu, satisfeito, que o pavilhão dele, desfraldando seus galhardetes e leões e leopardos, era quase tão bonito quanto o do rei.

Um dia, eles seriam seu emblema. Seu avô chamou-o à presença dele. Era um homem muito idoso e parecia ter envelhecido desde a última vez em que Harry o vira.

- Seu pai vai ganhar do traidor do Norfolk - disse ele a Harry.

- Mas é claro - replicou Harry, com lealdade.

Mas pôde perceber que o avô não tinha mais certeza daquilo do que ele.

- Você vai se sentar com a duquesa e comigo - diisse John de Gaunt. - É bom você estar aqui para presenciar este dia.

Ele está com medo, pensou Harry; e está me lembrando de que se meu pai for morto, serei o herdeiro de meu avô. Ele é um homem muito velho. Não deverá demorar muito para que eu seja o chefe da Casa de Lancaster.

Mas Harry ainda não seria o chefe da Casa de Lancaster. Aquela foi a reunião de pessoas mais extraordinária que já vira.

Harry viu o pai aparecer montado em seu cavalo. Estava magnífico em seu grande cavalo branco ajaezado com veludo verde e azul decorado com cisnes e antílopes dourados. A armadura, segundo Harry ouvira dizer, tinha sido confeccionada em Milão, onde se faziam as melhores armaduras.

Depois veio o duque de Norfolk, que estava quase tão magnífico; sua bandeira era vermelha e o veludo era bordado com leões e amoreiras.

Então, aconteceu a mais estranha das coisas. Os arautos, obedecendo às ordens do rei, avançaram de repente, gritando:

"Ho! Ho!, o que significava que deveria haver uma pausa no processo.

O rei desapareceu de seu pavilhão.

- Aonde foi ele? - sussurrou Harry.

- Isso é estranho - disse o avô dele. - Acho que ele vai impedir o combate.

Harry pôde perceber o alívio que havia na voz do avô. Percebeu, naquele momento, o quanto ele estivera com medo.

Havia uma grande tensão na multidão de espectadores, que achavam que estavam para testemunhar eventos fora do comum. Eles tinham ido ver uma luta de vida ou morte entre dois dos mais eminentes homens do país, mas, independente do que quer que acontecesse agora, poderia provocar a mesma emoção.

Duas horas se passaram antes que um dos conselheiros do rei aparecesse para anunciar à multidão que não haveria combate algum. O rei e seus conselheiros tinham decidido que o problema não poderia ser resolvido daquela maneira, e chegara-se à conclusão de que como havia dúvida sobre a lealdade de ambos os disputantes, seriam exilados do país. Hereford só voltaria depois de dez anos; Norfolk jamais voltaria.

Um silêncio abafado caiu sobre a multidão. Harry viu que o rosto do avô adquirira uma cor acinzentada. Ele agarrou a cadeira e sussurrou:

- Oh, que Deus nos ajude. Isso, não. Isso, não.

Todo mundo estava falando sobre os exilados, e Harry percebeu que quando ele aparecia havia um fim abrupto da conversa. Como filho de um dos principais atores do drama, era preciso ter cuidado com o que se dizia perto dele.

Seu pai estava indo embora. Ficaria ausente durante dez anos. Estarei com vinte anos quando ele voltar, pensou Harry. Será que o rei o mandaria embora? Será que a família caíra em desgraça? Deveria ter caído, se o rei desconfiava que seu pai cometera traição e o estava mandando para fora do país.

Os dois duques tinham recebido um prazo de quinze dias para fazer os preparativos e deixar o país. Depois daquele prazo, seriam presos se continuassem por lá.

Uma sentença rigorosa, era o comentário.

- Você está estranhando? - Harry ouviu alguém dizer. Esses são os dois últimos dos Lordes Apelantes. Os outros três já foram eliminados. Agora, o exílio para esses dois. Ricardo nunca esquece um insulto. Pode estar certo de que ele estava esperando para se vingar desses dois.

- Ele parecia ter confiado em Mowbray e em Bolingbroke.

- Parecia. Mas Ricardo nunca se esquece.

Harry sabia a respeito dos Lordes Apelantes. Aprendia aquelas coisas com absoluta facilidade, porque diziam respeito a seu pai e à família dele, e isso significava ele, Harry.

Foi avisado de que seu pai iria despedir-se dele antes de deixar o país, e revestiu-se de coragem para a despedida.

O avô chegou com seu pai. Os dois estavam muito sérios.

O pai abraçou-o e disse-lhe que agora ele deveria crescer depressa. Tinha de se lembrar que na ausência do pai ele teria de ocupar o lugar dele.

- Graças a Deus seu avô está aqui para protegê-lo - disse Henrique.

- Você vai deixar a corte e vir comigo - prosseguiu o importante duque. - Seu pai e eu achamos que é melhor assim. A duquesa está ansiosa por recebê-lo. Iremos para Leicester depois de acompanharmos seu pai até a costa.

- Sim - disse Harry, tranquilo.

- Acho que Harry já tem idade suficiente para compreender - prosseguiu o duque. - Seu pai não poderá voltar para este país, e você precisa aprender a cuidar dos nossos interesses. É isso que vou ensinar a você. E se está pensando que sou um velho, tem razão. Sou. Posso morrer a qualquer momento, e temos de estar preparados para isso. Fui falar com o rei e ele concordou que quando eu morrer minhas propriedades não serão confiscadas. A herança lancastriana caberá a seu pai e, no devido tempo, a você, Harry. Está entendendo?

- Estou - disse Harry.

- É uma situação lamentável para a nossa família, mas estamos juntos e nunca vamos ter medo ou dúvida de que no fim sairemos triunfantes.

Enquanto eles conversavam, o rei chegou.

Ficaram todos espantados, porque raramente ele era visto sem acompanhantes. Estes estavam lá, agora... mas esperando fora do aposento.

- Está se despedindo do menino - disse Ricardo. O pai e o avô recuaram, na dúvida.

- Não precisa ter medo pelo que possa acontecer ao seu filho, primo - disse o rei.

- Ele será bem cuidado - disse o avô. - vou levá-lo comigo quando eu partir.

O rei sorriu lentamente.

- Passei a gostar muito de Harry. Você sabe disso, não sabe, menino?

Harry murmurou que Sua Majestade fora bondoso para com ele.

- Tanto assim que não posso me separar dele.

Harry ouviu o avô prender a respiração e viu-o estender a mão para tocar uma cadeira, a fim de se escorar.

- É gentileza sua dizer isso - disse o pai de Harry -, mas em vista de minha triste situação, Vossa Majestade vai querer livrar-se dele.

- Você se engana, primo. Eu me interessei pessoalmente por Harry. Gosto muito dele. Na verdade, ele me interessa tanto, que decidi mante-lo ao meu lado.

- Ele é jovem - disse o avô com voz tranquila. - Precisa estar junto à família.

- Até certo ponto, sim. O senhor não é meu tio e ele não é seu neto? Na corte, ele pode estar com seu rei e parente. - As palavras seguintes foram ameaçadoras. - Eu quero assim, e não vou mudar de ideia. Vamos, Harry, diga adeus a seu pai. Você estará à minha mesa hoje à noite.

O rei girou sobre os calcanhares e retirou-se da sala. Harry olhou do pai, que estava lívido, para o avô perplexo. Compreendeu.

Ele se tornara um refém.

Harry não tornou a ver o avô. Quatro meses depois que o filho tinha sido exilado, John de Gaunt morreu no castelo de Leicester. Estava com quase sessenta anos, e levara uma vida plena e aventurosa. Sua grande ambição tinha sido usar uma coroa, e nunca a realizara, embora sua filha com Constanza de Castela fosse, agora, uma rainha e o filho que Blanche de Lancaster tivera e os de Catherine Swynford deixariam, disso ele tinha certeza, sua marca no mundo.

Mas ele não veria isso; e morreu, com o filho no exílio e o neto um menino que só completaria doze anos no verão.

Seu corpo foi levado de Leicester para Londres, e o cortejo parou uma noite para descansar em St. Albans, onde o outro filho, Henry Beaufort, agora bispo de Lincoln, celebrou um réquiem em homenagem ao pai.

O nome de John de Gaunt estava em todos os lábios. Agora que morrera, todos esqueceram que ele fora o homem mais impopular do país e só havia boas lembranças.

Quando o rei confiscou suas propriedades, várias pessoas ficaram chocadas, porque se sabia que Ricardo prometera que as propriedades deveriam ir para o herdeiro de direito, muito embora ele fosse um exilado. O rei prometera isso solenemente a John de Gaunt. Não era prudente quebrar promessas feitas aos mortos.

- Isso não trará bem algum - foi a profecia. - Ricardo deve ter cuidado.

Henrique de Bolingbroke, duque de Hereford, exilado de sua terra natal, chegou triste à França e tomou a decisão de que não tinha alternativa a não ser colocar-se à mercê do rei da França, esperando que, como Ricardo o mandara embora, ele pudesse encontrar um pouco de receptividade naquela região.

Até mesmo isso era duvidoso, porque a filha de Carlos, Isabella, era agora esposa de Ricardo, e os dois países estavam em paz. Mesmo assim, seria ingenuidade presumir que houvesse uma verdadeira amizade entre eles, e era quase certo que o rei da França estivesse pronto para receber um exilado notável vindo da Inglaterra, quando nada para saber o que se passava naquele país.

Henrique estava certo. Tão logo chegou a Paris, o rei Carlos expressou sua disposição em recebê-lo, e o fez com tamanha demonstração de amizade, que o ânimo de Henrique se elevou, especialmente quando o rei o presenteou com o palácio Clisson, muito bom, que seria dele enquanto ficasse na França.

Henrique foi recebido na corte presidida pela rainha Isabeau, uma das mulheres mais bonitas que já vira e, se os rumores estivessem certos, uma das mais malvadas.

Apesar da aparência externa de elegância e riqueza, havia uma distinta inquietação por toda a corte, e não demorou muito para Henrique ouvir falar das aberrações mentais de que o rei sofria e que lhe tiravam a razão. Elas duravam por períodos que variavam - ninguém podia ter certeza sobre a duração - e quando terminavam, o rei saía sem se lembrar de nada ou lembrando-se de muito pouco do que acontecera durante seus períodos de insanidade.

Henrique começou a ficar com medo. Ricardo, pressionado por John de Gaunt, reduzira a sentença de dez para seis anos. Mas seis anos longe de casa! Como suportaria aquilo? Seu pai estava envelhecendo, Harry não passava de um menino, e o exílio era a coisa mais desastrada que poderia ter acontecido. Além do mais, embora tivesse sido recebido calorosamente na corte francesa, sabia como desaparecia depressa o entusiasmo por homens nas suas condições. Henrique caiu em melancolia.

Um dia, no entanto, chegaram ao palácio Clisson visitantes que iriam alegrá-lo bastante.

Ele mal podia acreditar em seus olhos quando os dois homens chegaram pedindo uma audiência com o duque de Hereford. Recebeu-os com cautela, porque o mais velho deles era Thomas de Canterbury, e o mais moço, o conde de Arundel, cujo pai tinha sido executado por traição.

Era natural que exilados trabalhassem juntos contra um inimigo comum, mas o primeiro pensamento que Henrique teve foi que seu pai, John de Gaunt, como senescal da Inglaterra, fora o homem que pronunciara a sentença contra o infeliz conde de Arundel - e como poderia ele adivinhar quais seriam os sentimentos dos Arundel para com o filho de John de Gaunt.

Em pouco tempo ficou claro que os ressentimentos passados deveriam ser esquecidos. Afinal, embora Henrique tivesse sido membro do tribunal que condenara o conde de Arundel, não fora ele quem dera a sentença fatal; agora eram todos exilados da Inglaterra e deviam unir-se contra o inimigo comum, Ricardo, o rei.

Por isso, Henrique podia sentir-se aliviado com a chegada daqueles dois, e em Paris poderiam discutir o destino que os dominara, devido à maneira errada de governar de Ricardo, e pensar no que poderia ser feito quanto a isso.

O arcebispo tinha ido de Roma, onde exortara o papa a pedir a Ricardo que o deixasse voltar, infelizmente em vão.

- Um dia eu voltarei - disse ele. - Sou o arcebispo, não importa quem o rei coloque no meu lugar.

Henrique concordou. Era reconfortante ter ingleses de posição compartilhando de seu destino. Deviam esquecer o passado. Tinham de pensar no futuro.

O jovem Thomas Fitzalan, conde de Arundel, era o único filho vivo do conde que fora executado. Quando o pai morreu, ele tinha apenas dezesseis anos; não fazia muito tempo, e se lembrava claramente daquilo. Como poderia esquecer-se? Não apenas perdera o pai, mas a maneira de viver, à qual estivera acostumado, sofrera uma mudança drástica.

Ele contou a Henrique o que lhe acontecera. Aquilo o deixara muito amargurado.

- As propriedades de meu pai foram confiscadas. Eu não tinha nada... absolutamente nada. A maior de todas as infelicidades foi ter sido entregue a John Holland. Duque de Exeter, agora! Ele ficou muito rico, mas não por mérito, simplesmente porque é meio-irmão do rei. Como odeio aquele homeml Ele adora humilhar quem é melhor do que ele. Ricardo sabe disso, e no entanto continua prestando-lhe homenagens. Ele não tem condições para frequentar os círculos nobres. Gostava muito de me humilhar. "Você se intitula senhor duque, não é?", disse-me ele. "Agora que seu pai perdeu a cabeça, você quer tomar o lugar dele, não é? Tenha cuidado para não seguir muito de perto as pegadas dele, meu jovem bravo." E depois tirou as botas, jogou-as em mim e mandou que eu as-limpasse. Eu lhe digo, eu era tratado como criado. Um dia vou me vingar de Holland.

Sim, era uma conversa reconfortante, e a cada dia que passava, o arcebispo exilado exprimia mais ressentimentos contra a Casa de Lancaster. Os três homens conversavam com frequência e entusiasmo sobre os acontecimentos na Inglaterra. Ainda não podiam fazer nada, mas quando chegasse a oportunidade, estariam prontos.

Um dia, o importante duque de Berri, tio do rei, fez uma visita ao palácio Clisson. Ele era afável e mostrou sinais de amizade para com Henrique. Também falou sobre a situação na Inglaterra. Tinha seus espiões naquele país e sabia que a conduta do rei estava tendo cada vez menos aprovação do povo.

- Os ingleses têm uma maneira de punir seus reis se eles não os agradarem, não têm? - O duque deu uma risada. -Mon Dieu, a Inglaterra esteve muito perto de ter um rei vindo da França no reinado de João, lembra-se? Henrique III, Eduardo II... eles tiveram suas dificuldades. Pode muito bem acontecer o mesmo com Ricardo. E aí...

Ah, mas estamos olhando para um futuro muito distante.

Aquelas palavras provocaram uma grande agitação em Henrique; mas ele aprendera a não dar a perceber seus sentimentos. O que estaria Berri insinuando? Que Ricardo poderia cair e então... e então...

As palavras seguintes dele deixaram bem claras suas ideias.

- Você é viúvo. Perdeu sua boa condessa. É um homem muito jovem para ficar solteiro, hein? Especialmente tendo em vista sua situação. Eu tenho uma filha. Marie é uma jovem engraçadinha. Bem, talvez você fosse achar que sim. Se estiver de acordo, eu não faria objeção.

Henrique estava plenamente de acordo. Sentiu-se exultante. Berri só podia acreditar que o trono de Ricardo estava balançando e - que pensamento inebriante - que ele, Henrique de Lancaster, tinha uma chance de ocupá-lo. Só uma esperança dessas e uma boa chance de que ela se tornasse uma certeza poderia ter levado Berri a fazer aquilo.

Henrique respondeu com calma, porque estava decidido a não parecer ansioso demais e porque poderia ser perigoso dizer uma palavra que pudesse ser usada contra ele, dizendo que ainda não pensara em tornar a se casar. Tinha sido dedicado à sua condessa; a morte dela fora um grande choque do qual ainda não se recuperara. Tinha quatro belos meninos e duas filhas, de modo que àquela altura não precisava se preocupar com herdeiros. Mas agradecia a honra que lhe fora concedida, e se o duque de Berri lhe desse um pouco de tempo...

- Um pouco, meu amigo - bradou o duque -, mas não demais. Uma jovem como a minha filha tem muitos pretendentes, como pode imaginar. Deve me dar a resposta esta semana.

Depois que ele se retirou, Henrique pensou no caso. Casar com um membro da casa real da França. Ricardo ficaria profundamente perturbado, e Henrique se sentiria encantado ao colocar Ricardo naquela situação.

Ele discutiu o assunto com o arcebispo e com o conde de Arundel.

- Isso só pode significar uma coisa-disse o arcebispo. - Eles sabem alguma coisa do que se passa na Inglaterra. A coroa de Ricardo está ficando cada vez mais insegura na cabeça dele. É bem possível que não fiquemos exilados de nossa terra natal por muito tempo.

- Então acha que devo aceitar essa oferta da filha de Berri?

- Sem dúvida que deve.

- vou fingir hesitação. Não quero que ele pense que estou ansioso demais.

Os Arundel concordaram que aquela era a melhor maneira, e ficaram agitados tentando adivinhar que fatos haviam chegado aos ouvidos do duque de Berri.

Alguns dias depois, John Montacute, conde de Salisbury, chegou a Paris. Vinha em missão de Ricardo e passou muito tempo com o rei e com o duque de Berri.

Não visitou o palácio Clisson, o que talvez fosse de se esperar, já que Henrique estava no exílio e Montacute era mensageiro do rei.

Nesse ínterim, Henrique decidira concordar com o casamento sugerido, mas quando foi visitar o duque de Berri disseram-lhe que era impossível conseguir uma audiência. Como o duque o avisara de que não deveria haver demora em concordar com o casamento com a sua filha e ele devia saber que era aquela a razão da visita de Henrique, aquilo pareceu muito estranho.

Durante as semanas que se seguiram, o duque foi muito frio para com Henrique, cujo orgulho o impedia de exigir uma explicação.

Ele acabou tendo uma explicação, embora não pelo duque de Berri.

Berri decidira que não queria mais receber Henrique em sua família e chegara a essa conclusão depois de chegada do conde de Salisbury da Inglaterra. Era óbvio. Ricardo soubera do casamento proposto, decidira impedi-lo, e enviara Salisbury a Paris com aquela finalidade. Sem dúvida, ele dera ao duque de Berri informações sobre as deficiências de Henrique de Bolingbroke, e o fizera com tal sucesso, que Berri não pretendia mais a aliança. Talvez ele tivesse ficado tão impressionado com a ação imediata de Ricardo, que achara que não seria fácil empurrá-lo para fora do trono e que, naquele caso, de que adiantaria o casamento de sua filha com um pretendente à coroa da Inglaterra?

Henrique ficou desanimado, e iria ficar ainda mais, porque o rei da França em pessoa mandou chamá-lo, e quando ele ficou diante dele pediu-lhe que se sentasse, porque era obrigado a dizer uma coisa muito dolorosa.

- Como o senhor sabe - disse o rei -, tenho em alta estima a Casa de Lancaster e senti-me feliz ao recebê-lo em minha corte. No entanto, recebi um recado do rei Ricardo dizendo que ele considera a hospitalidade que lhe concedo um ato de inimizade para com ele. Diz ele que se sentirá muito contrariado se eu não pedir que o senhor vá embora.

- Isso quer dizer que Vossa Majestade está, mesmo, me pedindo que vá embora? - perguntou Henrique.

- Lamento dizer que sim.

Vindo em seguida ao caso com o duque de Berri, aquilo era realmente um golpe. Suas esperanças tinham sido muito altas. Agora, tinham despencado.

Ergueu a cabeça, orgulhoso.

- Pode estar seguro, majestade, de que sairei de Paris sem perda de tempo.

O rei pareceu triste, mas não conseguiu esconder o alívio que sentia. Parecia que Ricardo estava firme no trono como sempre, e que esperança tinha um pobre exilado de retornar ao seu país, quanto mais de ser o rei daquele país?

com seus poucos auxiliares, Henrique saiu desanimado de Paris. Para onde poderia ir? Não sabia. Seria a mesma história em toda parte. No início, seria recebido, e depois, se ficasse muito à vontade, Ricardo mostraria seu desagrado, e ele teria de sair perambulando outra vez.

Estava seguindo para a Bretanha. O duque John, daquele país, não era nada jovem, mas era conhecido por sua coragem - era conhecido como John, o Valente - e seu génio violento. A sua duquesa era sua terceira esposa e muitos anos mais nova do que ele; era Joana, filha de Charles d Albret, rei de Navarra, cuja reputação era tão má que ele era conhecido como Charles, o Mau. Charles tinha laços de parentesco com a casa real da França por intermédio de sua mãe, que fora a única filha de Luís X. Claro que ele não podia herdar o trono, por causa da lei sálica que vigorava na França, mas, como era inevitável, Charles, o Mau, ansiava por conseguir aquela coroa, um desejo que levara a um problema perpétuo.

Henrique não tinha vontade alguma de chegar na Bretanha para ser avisado de que Ricardo era contra ele estar lá, de modo que antes de entrar na terra do duque enviou um mensageiro para perguntar-lhe se seria bem-vindo.

Quando o mensageiro chegou, o duque bradou, quase em tom irado:

- Por que ele acha que é necessário perguntar? Sempre mantive excelentes relações com a Casa de Lancaster. Volte e diga a ele que pode esperar uma recepção calorosa.

Henrique ficou satisfeito ao receber a notícia. Aquilo resolvia seu problema por enquanto. Mesmo assim, não conseguia livrarse da melancolia. Serei sempre um exilado perambulando pela Europa, nunca tendo certeza de como serei recebido, sabendo que tenho imensas propriedades na Inglaterra que nunca posso ver?, perguntava-se ele.

O duque da Bretanha decidiu agir de acordo com o prometido, e seguiu a cavalo ao encontro dele. Aquilo foi uma grande honra, e Henrique expressou profundos agradecimentos pelo ato.

O duque era muito velho, mas ainda mantinha uma certa vitalidade. Não era à toa que fora chamado de o Valente, e Henrique respondeu à saudação dele com o mesmo entusiasmo. E então percebeu uma mulher muito bonita que cavalgava ao lado do duque.

Era jovem; irradiava saúde e estava sorrindo para ele.

- Minha duquesa quer lhe dar boas-vindas tão calorosas quanto as que lhe dou - disse-lhe o duque.

- Bem-vindo à Bretanha - disse a duquesa. - Faremos o possível para torná-lo feliz enquanto ficar conosco.

O velho duque olhou para sua resplandecente jovem esposa com uma ternura apaixonada, e Henrique ficou encantado não só com a recepção do duque mas com a fascinante duquesa Joana; e durante as semanas seguintes, quando banquetes e justas eram organizados em sua honra, ele não precisou fingir que estava se deliciando com sua estada na Bretanha, e não era só porque para um homem em sua situação era bom ter um santuário. Era algo mais. Ele achava a convivência com a duquesa Joana muito encantadora.

Joana era uma mulher de grande força de caráter. Talvez uma infância como a dela tivesse sido ajudada a desenvolver tal força. Devido à imprudência do pai e às tentativas dele de reivindicar o trono da França, a família vivera em perigo constante.

Sua avó, filha única de Luís X, que não tivera filhos homens, casara-se com o conde de Evreux e, por intermédio dele, viera o reino de Navarra, que o pai de Joana, Charles, herdara. Mas o que era o reino de Navarra quando, não fosse aquela lei sálica, ele teria sido o rei da França? Charles se casara com Joana, filha do rei John da França, e tiveram dois filhos homens, Charles e Pierre, e a filha, que era Joana.

As crianças tinham tido uma infância tempestuosa, com todos os três tendo passado algum tempo como reféns para controlar o comportamento do pai. Eles tinham sido detidos pelos regentes da França, os duques de Berri e de Borgonha; e tinham corrido grave perigo quando seu imprudente pai fizera uma tentativa de envenenar seus captores. O plano fora frustrado e o agente de Charles fora descoberto e executado. O próprio Charles, no entanto, escapara ao castigo. Parecera possível, então, que a retaliação exigida seria a morte dos reféns, mas os duques não queriam vingar-se em crianças. Mesmo assim, elas tinham ficado numa situação desesperadora.

Quando Joana estava com dezesseis anos, casara-se com o velho duque de Bretanha. Os duques de Berri e de Borgonha tinham achado aquilo aconselhável, porque o grande medo deles, na época, era de que o duque pudesse fazer uma aliança com a Inglaterra, e aquilo parecia uma boa maneira de se aproveitarem da refém. E assim, Joana foi devidamente apresentada ao velho duque, que sucumbiu imediatamente aos seus jovens encantos. Joana não ficou contrariada. Era reconfortante fazerem com que ela se sentisse tão importante quanto era e receber uma grande quantidade de presentes e ganhar belas roupas incrustadas de jóias para usar. Ela estava decidida a gostar de ser a duquesa de Bretanha, e se isso significava receber o velho duque também, desde que ele continuasse a ser louco por ela, ela poderia suportar.

E então parecera que Joana estava acomodada, com o futuro garantido. O velho duque estava cada vez mais dedicado, e sempre que ficava longe da mulher ficava inquieto e ansioso por voltar para o lado dela.

O pai de Joana estava contente com a união, mas não tinha intenção alguma de pagar o enorme dote que prometera. "O velho duque está tão entusiasmado com a minha filha que não vai sentir falta de algumas peças de ouro", argumentava ele. E estava certo, porque o duque estava, realmente, tão encantado com o casamento que não ligava para o dote que faltava.

Charles parecia quase decepcionado. Ele gostava muito de uma disputa, e a última coisa que queria era uma existência pacífica. Durante alguns anos, ele sofrera de um mal que enrijecia os membros e lhe provocava muitas dores, e a única maneira de afastar a mente desse sofrimento era criar situações alarmantes que provocavam estresse nos outros.

Gostando da devoção do duque pela sua filha, ele achou que seria divertido provocar a autoconfiança do marido excessivamente dedicado à esposa.

Havia um cavaleiro em sua corte do qual o duque John gostava muito. Era Oliver de Clisson, um grande nobre que levara honrarias à Bretanha através de sua fidalguia e bravura, tanto no campo de batalha como nas justas. Era alto e muito bonito, apesar de ter perdido um olho em combate a serviço do duque. Na época, havia uma certa tensão entre o duque e Clisson, devida à tendência do duque a uma amizade com a Inglaterra, enquanto Clisson achava que era melhor a Bretanha apoiar a França. Fazia pouco tempo, Clisson estivera em Paris para discutir planos para uma possível invasão da Inglaterra se surgisse a oportunidade, e o duque ficara contrariado por ele ter feito isso.

Ao seu perverso sogro, Charles, o Mau, aquela era a oportunidade para fazer um jogo divertido. O duque de Bretanha estava se afastando de Clisson nos casos políticos, de modo que Charles achava que introduziria um elemento de mistério e romance na situação.

Era fácil. Ele conversou sobre a filha com o duque e não havia assunto que agradasse mais ao duque.

- Fico muito satisfeito - disse Charles - ao ver como o senhor gosta da menina. O senhor diria que ela é bonita, não?

- Diria, sim - replicou o complacente marido. - Iria mais longe. Eu diria que não se acharia uma mulher mais bonita, mesmo que se procurasse a França inteira, sim, e a Inglaterra também.

- É um prazer ver um homem assim tão contente com seu casamento. Espero que continue assim. Este é o meu mais ardente desejo.

- Obrigado - disse o duque. - Pretendo fazer com que continue assim.

- É sempre bom ter esperanças - replicou Charles, com um tom de aviso na voz que assustou o duque, que era o que pretendera fazer.

- Por que o senhor fala desse jeito?

- Ora, meu amigo, ela é jovem e saudável, disso não tenho dúvidas. Ela é membro de minha família, e sei o que nós somos. O senhor é um belo homem para a sua idade... para a sua idade senhor duque.

Agora o duque estava começando a ficar alarmado de verdade.

- O senhor sabe de alguma coisa. O que está tentando me dizer? - perguntou ele.

- Bem, talvez eu não devesse dizer coisa alguma... É só por uma questão de amizade...

O duque, que perdia a paciência, começou a se impacientar.

- Diga-me o que sabe! - bradou ele, e encarou o rei de Navarra com uma expressão que indicava claramente que lhe causaria algum mal se ele não falasse rápido.

- Eu me apresso a dizer que minha filha é inteiramente inocente.

- O quê! - gritou o duque.

- Mas não tenho dúvida sobre o que Clisson sente por ela. Ele é um sujeito audacioso. É capaz de qualquer coisa. Ora, poderia, até, tentar raptá-la. É visível a paixão que sente por ela.

O duque ficou tão furioso que podia ter derrubado o rei naquele momento.

Charles afastou-se com um dar de ombros que indicava impotência. Não adiantava culpá-lo pela má conduta dos súditos do ducado. Talvez estivesse errado ao trair Clisson.

Ele pensara na sua amizade...

- O senhor fez bem em me contar - vociferou o duque; e Charles o deixou com a sua raiva.

O duque estava decidido a controlar a raiva. Queria planejar com calma. Clisson já caíra em desgraça devido a suas políticas, e o fato de já ter havido uma grande concordância entre eles só fazia fortalecer a raiva do duque.

Ele convidou Clisson e dois amigos deste, Lavai e Beaumanoir, para jantar com ele no Château de Ia Motte. Eles chegaram sem desconfiar de nada, e depois da refeição, na qual o duque impressionara a todos com sua afabilidade, o duque lhes disse que queria mostrar-lhes uma alteração que ele fizera no palácio para atender a um pedido de sua mulher.

Eles pareciam muito interessados.

- Quero mostrar-lhes, em especial, a torre - disse ele, e quando chegaram a uma estreita escada em espiral deixou que Clisson seguisse na frente. O duque seguiu imediatamente atrás e fez uma pausa para mostrar a Lavai e Beaumanoir um delicado rendilhado na parede.

Enquanto ele fazia isso, ouviu-se um grito vindo lá de cima. Guardas tinham surgido para agarrar e levar Clisson.

Lavai e Beaumanoir perceberam logo que tinham caído numa armadilha.

- Pelo amor de Deus, senhor duque-bradou Lavai -, não use de violência contra Clisson.

- Vocês fariam bem em ir para casa, enquanto estão sãos e salvos - retorquiu o duque.

- O que o senhor vai fazer com Clisson? - protestou Beaumanoir. - Ele é seu convidado.

- Quer ficar igual a ele? - perguntou o duque.

- Ele é um grande homem - foi a resposta de Beaumanoir.

- Seria uma honra eu me parecer com ele.

O duque sacou de uma adaga e segurou-a em frente ao rosto dele.

- Então - bradou ele, venenoso -, terei de arrancar um de seus olhos.

Beaumanoir recuou, alarmado. Ele e Lavai viram que não tinham saída. Se tentassem salvar Clisson, também seriam presos pelo duque. Mesmo assim, Beaumanoir agiu com firmeza e exigiu que lhe dissessem por que Clisson tinha sido preso.

O duque foi a seus aposentos privados e, ainda irritado, mandou chamar o Sieur Bazvalen, um homem que o servira bem ao longo dos anos e cuja lealdade era indiscutível.

- Bazvalen, meu bom amigo - disse ele -, quero que Clisson morra imediatamente, e quero que você providencie isso.

Bazvalen recuou, horrorizado. Conhecia Clisson bem. Aquilo era pedir demais. Ele não era um assassino. Matara homens em combate, era verdade, mas aquilo era diferente.

- Meu senhor... - começou ele.

Mas o duque fez um gesto imperioso com a mão.

- Que ele seja levado para uma masmorra. Mate-o, não me importa o meio, e abra o alçapão e deixe o corpo dele cair no fosso.

Bazvalen percebeu que não adiantava discutir com o duque no estado de espírito em que este se encontrava, sob pena de ele mesmo correr perigo, mas estava decidido a não ter a morte de Clisson na consciência, de modo que foi procurar Clisson e avisou-o do que ele fora mandado fazer e planejou voltar a falar com o duque e dizer-lhe que Clisson estava morto e o corpo fora jogado no fosso. Enquanto isso, planejariam um meio de tirar Clisson do castelo.

Mas quando Bazvalen fez a comunicação ao duque, este ficou dominado pelo remorso. Sua raiva desapareceu, e percebeu que condenara Clisson sem provar sua culpa.

- Você não tem culpa, Bazvalen - bradou dele. - Apenas cumpriu ordens. O pecado está na minha consciência. Eu assassinei Clisson.

O duque não queria comer. Disse que jamais voltaria a dormir em paz, e quando declarou que daria tudo para ter outra chance, Bazvalen não conseguiu guardar mais a verdade e confessou que não conseguira assassinar Clisson, que ainda estava vivo. O duque abraçou Bazvalen pelo pescoço.

- Meu boníssimo criado - bradou ele -, você me conhecia melhor do que eu mesmo.

A raiva do duque desaparecera, mas ele sempre era homem de procurar levar alguma vantagem. Seu maldoso sogro fizera sugestões maléficas que poderiam ser falsas, mas Clisson andara trabalhando com os franceses e, portanto, não poderia ser posto em liberdade enquanto certas condições não fossem preenchidas. O duque exigiu a entrega de várias cidades que estavam em poder de Clisson, e mais cem mil florins.

Clisson, muito contente por escapar com vida, teve o maior prazer em pagar o que era exigido e, com isso, conseguir sua liberdade.

Joana ficou contrariada quando soube que o marido desconfiara de que Clisson quisera ser seu amante, especialmente agora que estava grávida, fato que a tornou ainda mais atraente aos olhos do duque. Ela o tratou com frieza, e quando ele perguntou a causa de sua contrariedade, bradou:

- Você desconfiou que eu lhe era infiel com Clisson. Isso me perturbou bastante numa época em que você devia fazer tudo para que eu fosse bem tratada.

Ele não cabia em si de sofrimento.

- Nunca, por um momento, duvidei de você, meu amor assegurou-lhe ele. - Eu sei que você é perfeita... perfeita sob todos os aspectos. Você é a minha razão de viver. Sem você, eu morreria amanhã, e satisfeito. E a ideia daquele... daquele... monstro...

- Acha que eu me sentiria atraída por um escudeiro caolho...

- Dizem que as mulheres o acham muito atraente...

- Então você me compara com... mulheres.

- Nunca! Nunca! Você está acima de todas elas. Eu daria tudo... tudo o que tenho...

Joana sorriu para ele. Era bom torná-lo humilde.

- Eu sei... - respondeu ela. - Mas lhe peço que não torne a me insultar ligando-me com gente como Clisson. Sou a duquesa de Bretanha. Meu bisavô foi rei da França.

- Meu amor... como posso conseguir seu perdão? Ela deu um sorriso encantador.

- Sei que tudo isso dá a medida de seu amor por mim disse ela.

Sabia, também, que agora haveria presentes ainda mais valiosos do que antes.

A criança nasceu pouco depois disso, uma filha que morreu poucas semanas depois. O duque ficou desolado. Ficou imaginando se o caso Clisson era o responsável.

Charles, o Mau, a causa do problema, sofreu uma nova recaída de sua dolorosa doença. Um de seus médicos apresentou um remédio que lhe deu um certo alívio. Ataduras eram ensopadas com uma solução de vinho e enxofre, e a tarefa de um dos criados era envolver os membros nelas e costurar as ataduras para mante-las firmes. Quando isso era feito, o corpo dele parecia envolto numa mortalha.

Uma noite, quando um novo criado estava costurando as ataduras, o que era uma tarefa difícil, porque Charles não gostava de ser amarrado, ele ficou ainda mais irritado do que de costume, porque o homem era desajeitado, e quanto mais Charles vociferava, mais nervoso ele ficava.

- Pareço um porco que está sendo amarrado para ser colocado na assadeira! - bradou ele, furioso.

Pouco percebeu ele a propriedade de sua comparação. O criado ficou cada vez mais trapalhão, e quando chegou a hora de cortar o fio, ele percebeu que havia perdido a faca de que precisava para a tarefa. Charles estava ficando encolerizado e, no desespero, o criado apanhou uma vela acesa para queimar o fio e, assim, soltar a agulha. O efeito foi instantâneo e desastroso. O vinho pegou fogo e logo depois Charles estava envolto num casulo de fogo. Ele berrava em agonia, enquanto criados acudiam. Ele foi rolado na cama e abafado com cobertores pesados, e o fogo acabou sendo extinto, mas não antes de Charles ficar tão queimado que não parecia provável que fosse sobreviver. Ele morreu poucos dias mais tarde.

Não se pode dizer que ele foi muito lamentado, e quando seu filho, Charles, tornou-se rei de Navarra, houve uma alegria geral, porque Charles não fora conhecido como o Mau sem motivos; e seu filho, mais um Charles, depois de compartilhar a difícil infância da irmã, dava todos os sinais de que era o oposto do pai.

Joana, que ficara grávida imediatamente depois da morte do primeiro filho, deu à luz um menino que foi batizado com o nome de Pierre, e esse nascimento, para deleite dos pais, foi logo seguido pela chegada de uma menininha, Marie.

O duque não cabia em si de alegria. Achava Joana mais maravilhosa do que nunca. Não apenas ela era jovem e bonita, mas também fértil, e para um homem de sua idade aquilo significava muito. Ele praticamente não conseguia se afastar dela, e assim que um filho nascia, ela ficava grávida de outro. Depois de Pierre - que como era o herdeiro tornara-se conhecido como John - vieram Marie, Arthur, Gilles, Richard, Blanche e Margaret. Oito filhos ao todo, contando a pequenina Joana, que morrera logo depois de nascida.

Era essa a feliz situação quando Henrique chegou à corte da Bretanha.

Lá, o duque estava decidido a mostrar o prazer que sentia com a presença de seu hóspede. Uma coisa que ele queria fazer era salientar o desprezo não só pelo rei da Inglaterra, mas também pelo rei da França.

Ficou encantado, também, com a admiração que Henrique sentia pela duquesa.

Joana era muito diferente da pequena Mary de Bohun, e talvez por isso Henrique a achava atraente. Sua conversa era animada; era uma mulher de caráter forte; na verdade, era a principal razão para tornar um prazer a estada dele na Bretanha.

Se ela fosse viúva, com ele sendo viúvo, os dois teriam feito a união perfeita. Nenhum dos dois era velho demais, nem imaturos, e os dois tinham uma família grande. O conhecimento dela sobre a situação da Europa, e isso incluía a Inglaterra, era notável. Henrique pôde ver que ela assessorava o duque com uma sensatez que o próprio duque não possuía.

Sim, Joana era uma mulher admirável.

Ele não falava propriamente de seus sentimentos com Joana, mas era uma mulher muito sensata e sensível e estava cônscia deles; e não via razão para esconder o fato de que achava Henrique atraente. Não havia nada de que ela gostasse mais do que sentar-se a sós com ele e conversar. Não a sós, é claro, pois isso teria sido indiscreto e não havia nada de indiscreto em relação a Joana. Havia criados, mas Joana sempre podia conseguir que não ficassem muito próximos.

Ela contou-lhe o caso de Clisson. Foi uma história acauteladora. O duque tinha um génio irascível e era capaz de atos irrefletidos quando o mau génio tomava conta dele.

Joana gostava de ouvir falar nos filhos de Henrique e as histórias que ele contava deles pareciam ser dominadas pelo divertido e muito vivo Lorde Harry. Preocupava-se com Harry, que estava na corte do rei Ricardo.

- Eu queria que meu pai o levasse de lá - disse Henrique - mas o rei não quis deixá-lo ir embora.

Aquilo o deixava temeroso, admitiu ele. O menino, na verdade, era um refém.

Para Joana, ele podia explicar como se sentia isolado de seu país. Era triste ser um exilado, mesmo quando recebia ofertas de hospitalidade como a que vinha da Bretanha.

- Nem sempre vai ser assim - tranquilizou-o ela. - Imagino que Ricardo não ficará no trono por muito tempo. E então...

- E então... sim...?

- Ora, você não será mais um exilado, certo? Irá para longe de nós, e não me surpreenderia se... Mas eu falo demais.

- As vezes é bom falar sobre nossos sonhos - disse Henrique.

- Eles podem ser perigosos. - Ela encarou-o com olhos brilhantes. - Quem pode ter certeza do que vai acontecer? Você pode ser um rei dentro em pouco, Henrique de Lancaster.

- Há uma possibilidade - disse ele, quase ofegante.

- E eu... onde estarei? Meu marido não goza de boa saúde, sabe?

Os dois ficaram em silêncio. Sentiam que o ar estava carregado de sugestões.

- Eu penso nisso - disse ela. - Era um homem de idade quando me casei com ele. Tivera duas esposas e sobrevivera às duas. Eu fui dada a ele. Não havia escolha para mim. Mas ele sempre foi bom para mim.

- Você o tem feito muito feliz.

- Dei-lhe filhos, e ele sempre me tratou com grande carinho e afeto.

- Era o que ele tinha de fazer.

- Mas ele não poderá viver por muito mais tempo, sabe? A mão dele colocara-se sobre a dela.

- Quem sabe o que o futuro nos reserva? - disse ele. Aquilo parecia uma declaração.

Joana falou num tom mais elevado, dizendo:

- Esse seu filho, esse Harry, precisa de uma esposa.

- Terá uma em breve.

- O que me diz de minha filha? Isso uniria nossas famílias de um modo que seria muito do meu agrado.

- Meu filho... sua filha... Sim. Seria... um começo. Joana olhou atentamente para ele, os olhos faiscando. Sim, havia realmente um entendimento entre os dois.

O duque concordou que a filha deles, Marie, ficasse noiva de Harry de Monmouth, pois confidenciara a Joana, quando estavam a sós, que tinha certeza de que havia uma profunda insatisfação na Inglaterra com o rei que reinava no momento.

- Ricardo estará fora do trono dentro em pouco. Você verá, minha querida. E então... fica por conta de Lancaster.

- Há outro antes dele. Mortimer... O duque estalou os dedos.

- Um braço forte e uma cabeça equilibrada irão decidir. Acho que Henrique é quem tem os dois.

Ele apertou o braço de Joana.

- Fizemos bem em torná-lo nosso amigo. Vamos fortalecer nossa aliança fazendo com que nossa filha fique comprometida com o jovem Lorde Harry. Ela terá um dote de 150 mil francos.

Os preparativos foram feitos. As núpcias seriam celebradas no castelo de Brest, que seria um presente para os noivos. Duvidava-se que Harry recebesse permissão para ir à França. Na verdade, isso era muito improvável, já que ele não pudera ir morar com o avô. No entanto, o casamento poderia acontecer por procuração.

Enquanto aqueles preparativos estavam acontecendo, chegou uma mensagem do rei da França, que desejava um encontro imediato com o duque de Bretanha com relação a um assunto de importância para os dois. O duque John estava, agora, um tanto enfermo; não queria envolver-se em encrencas, e não podia desobedecer à convocação do rei, a menos que quisesse provocar um incidente perigoso.

Por isso, foi. bltou logo. O rei da França não aprovava o casamento de Marie com Harry. Ele tinha outro noivo para ela. Oferecera o herdeiro de Alençon, e para casar com aquele nobre príncipe o duque não seria solicitado a dar um dote nem de longe tão vultoso quanto os ingleses estavam pedindo.

- Não pude fazer nada, a não ser aceitar - disse o duque, mal-humorado, com isso proclamando que sentira tristemente o peso da idade, porque tempos atrás nunca teria deixado que alguém o obrigasse a ficar numa situação daquelas.

Por volta dessa época chegou à Bretanha um mensageiro enviado pela duquesa de Lancaster. O duque morrera, e Henrique agora herdara o título e as propriedades; ele era o chefe da Casa de Lancaster e um dos homens mais ricos da Inglaterra.

- Como isso deve fazer com que você se irrite contra o exílio - disse Joana.

Mas não demorou muito e chegou outro mensageiro. O rei pusera de lado a promessa que fizera a John de Gaunt e confiscara as propriedades dos Lancaster.

- Isso é traição! - bradou Henrique, quando soube. - Jamais aceitarei isso.

Ricardo era um impostor e um mentiroso. Não era digno de governar. Ele fizera um juramento solene de que as propriedades passariam para Henrique de Lancaster com a morte do pai dele. Era uma promessa na qual John de Gaunt insistira.

Henrique discutiu o assunto com Joana e o duque de Bretanha, bem como com os Arundel, que tinham sido companheiros muito chegados no exílio.

Os dias que se seguiram foram tensos.

Perderia Henrique sua herança? Só havia um meio de recuperála, e seria ir para a Inglaterra e arrancá-la das mãos de Ricardo. Ele ficou agitado diante da perspectiva, porque imaginava que tiraria de Ricardo mais do que as propriedades dos Lancaster. Para ele estava claro que aqueles à sua volta estavam esperando que tomasse alguma decisão. Ele tivera a oportunidade. Ricardo faltara com a palavra. Por que esperar que Henrique cumprisse a dele? Ele sabia que estava chegando a hora em que teria de voltar para a Inglaterra, a fim de reivindicar suas propriedades.

O duque era só conselhos. Estava muito velho para fazer companhas a seu favor, mas poderia interessar-se por empreendimentos como aquele.

- Ricardo estará alerta - disse ele. - Deve estar imaginando o que você vai fazer. Finja. Faça de conta que está tão envolvido em desfrutar seus prazeres que não tem energia para um combate.

- Isso faz sentido - disse Joana; e Henrique concordou. Mas a agitação aumentava. Dia e noite, ele não pensava em outra coisa.

O duque, instado por Joana, disse que faria o possível para levantar um exército. Henrique ficou pensativo. Embora a proposta fosse atraente, manifestou-se contra.

Seria uma loucura levar um exército estrangeiro para solo inglês. Ele conhecia seus compatriotas. Iriam se levantar contra o estrangeiro. Não. Se o que sabia fosse verdade - e tanto ele como os Arundel tinham seus espiões na Inglaterra, e mensageiros viviam viajando de um lado para o outro -, Ricardo se tornava cada vez mais impopular. Ele, Henrique, voltaria à Inglaterra, sim, mas iria sob o pretexto de recuperar seus direitos. Não deveria haver indício algum de que era a coroa que ele buscava. Ele desembarcaria em silêncio na Inglaterra.

- Ninguém deve saber que estou indo - disse ele, e os Arundel concordaram com ele.

Joana sugeriu que eles deveriam fingir ter planos de uma visita à Espanha. Que viajassem a Paris e que se espalhasse a notícia que estavam lá; e quando partissem, deveriam seguir alguns quilómetros para o sul, e depois virar e seguir a toda velocidade para Bolonha. O duque de Bretanha colocaria os navios necessários à disposição deles, e eles poderiam atravessar o Canal sem alarde.

O ardil parecera eficiente, porque pouco depois eles ficaram sabendo que Roger Mortimer, conde de March, que estava cuidando dos assuntos na Irlanda, fora morto perto de Kells, no condado de Kilkenny. O próprio Ricardo decidiu que devia ir até lá para continuar a luta, o que com toda certeza não o teria feito se tivesse tido qualquer indício dos planos de Henrique. Roger Mortimer - neto de Lionel, duque de Clarence, filho de Eduardo III e Filipa, irmão mais velho de John de Gaunt - fora indicado como herdeiro do trono na eventualidade de Ricardo não ter filhos. Por isso, antes de partir para a Irlanda, Ricardo indicou Edmund, filho de Roger, como seu sucessor. Edmund, no entanto, era um menino de oito anos de idade, e o povo não queria um garoto como rei. Ele já tivera uma amostra disso quando Ricardo subira ao trono. Edmund era um obstáculo, porque naturalmente vinha antes do filho de John de Gaunt, mas Henrique estava certo de que a juventude de Edmund estava contra ele e que se fosse provado que o povo já estava farto de Ricardo, o povo iria voltarse para o filho de de Gaunt, que era nada mais nada menos do que Henrique de Bolingbroke, duque de Hereford, chefe da Casa de Lancaster.

Era um raciocínio animador.

Joana mostrou um pouco de tristeza na despedida, embora Henrique soubesse que ela estava ansiosa por que ele conquistasse uma coroa. Havia um olhar distante nos olhos dela, que ele achou compreender.

Os dois deram um último passeio a pé juntos no pequeno jardim dentro da área do castelo.

- Fui tão feliz na Bretanha - disse Henrique -, que quase me esqueci da razão por estar aqui.

- Fico feliz por você ter vindo nos procurar - disse ela.

Como poderei retribuir a bondade de vocês para comigo? - perguntou ele.

- Talvez não se esquecendo de nós - disse ela.

Ele se curvou e apanhou uma pequena flor azul e colocou-a na palma da mão.

- Sabe o que é isso? - perguntou ele.

- Ela é chamada de myosotis arvensis - respondeu ela.

- É linda, não é? Quando eu a vir, pensarei em você. vou mandar bordá-la no meu emblema, e daqui por diante ela será conhecida como forget-me-not.1

Poucos dias depois, ele deixou a corte da Bretanha. Encontrou uma oportunidade de dar a Joana a pequena flor azul, que ela imprensou entre as páginas de um livro e para a qual olhava com frequência nos meses seguintes...

Harry estava se tornando cada vez mais cônscio de sua posição um tanto desagradável na corte. Era um parente muito próximo do rei, mas todo mundo sabia que seu pai estava no exílio e que sua presença na corte era considerada como uma garantia do bom comportamento do pai. Para uma pessoa com a disposição de Harry não era muito agradável ser um prisioneiro.

Sabia muito bem que se pedisse permissão para visitar os irmãos e irmãs ou sua madrasta-avó ou seus parentes Beaufort, essa permissão não seria concedida. Não. O rei queria Harry num lugar onde pudesse agarrá-lo sem aviso prévio, caso necessário.

Ricardo sempre foi afável com Harry. Ele gostava mesmo do menino. Divertia-se com Harry - que era muito diferente dele mesmo. Harry ficava impaciente com preocupações como roupas, jóias e refeições gastronómicas. Irritava-se com a vida na corte. Ele queria aventuras.

Além do mais, estava aflito com relação ao pai, em especial desde a morte do avô.

Seu primo Humphrey estava na corte. Humphrey também não se achava numa situação muito boa. Eles tinham um parentesco

 

1 Este é o nome do miosótis em inglês, que significa não me esqueça (N. do T.)

 

muito próximo, porque o pai de Humphrey fora o duque de Gloucester, sufocado por colchões de penas numa imunda estalagem de Calais (sem dúvida, a mando do rei), e o duque era irmão do avô de Harry, John de Gaunt, e como a mãe dele era Eleanor de Bohun, irmã da mãe de Harry, era um parentesco duplo.

Fizera-se ver aos dois meninos que a segurança deles era um tanto precária, porque o destino de seus pais era um aviso constante de que qualquer coisa poderia acontecer a qualquer momento.

Eles ficavam de ouvidos atentos a notícias e conversavam em segredo. Harry tinha certeza de que seu pai voltaria para a Inglaterra, agora que o rei confiscara as propriedades dos Lancaster.

- Quando ele voltar - disse ele -, muita gente irá ajudá-lo a recuperá-las. Os nobres não gostam que um deles sofra tal confisco, porque dizem que se isso pode acontecer com um deles, poderá acontecer com outros.

- Ele terá de tomar cuidado - disse Humphrey.

- Meu pai sempre foi um homem cauteloso. Não foi imprudente como o seu.

Humphrey ficou calado, pensando naquele dia horrível em que soubera da prisão de seu pai. Tinha sido inacreditável. Thomas de Gloucester sempre fora um fanfarrão imprudente, certo de que tinha poder para vencer. Jamais se esqueceria de como sua mãe, que era franca, que nunca parecera sem saber o que fazer antes, de repente tivera um colapso e se tornara uma mulher triste e calada. Tinha sido muito confiante em si mesma; acreditara demais que o marido conseguiria realizar todas as suas ambições e que ela subiria com ele; e então, de repente, tudo acabara. Seu pai fora levado embora. Como teria ele morrido? Qual era a sensação de ter dois ou três homens fortes apertando um colchão de penas sobre você até você ficar arquejante... e depois não poder mais respirar?

Ele não devia pensar naquelas coisas. Tinha de ser como Harry, que ria muito e acompanhava as criadas com olhos cobiçosos e até mesmo se permitia comentar os encantos - ou a falta deles - das damas da corte.

Eles agora estavam jogando com as cartas que fascinavam a ambos. Haviam sido inventadas poucos anos antes para distrair o rei da França e estavam ficando muito em moda na Inglaterra. Muita gente da corte jogava com elas, e com seus reis, rainhas, valetes e ases, elas pareciam talhadas para a vida da corte.

Harry estava sorrindo para a fileira em forma de leque que tinha nas mãos e olhava astutamente para Humphrey, à sua frente. Nunca se sabia que cartas Harry tinha, pensou Humphrey. Ele fazia uma cara para divertir as pessoas.

Mas antes que o jogo começasse, um dos criados do rei foi procurá-los para dizer que a presença deles era exigida nos aposentos reais, de modo que os dois largaram as cartas e foram imediatamente obedecer à ordem do rei.

Ricardo estava à vontade em sua cadeira, muito informalmente, com seu favorito galgo, Math, a seus pés. O cão olhou os meninos com ar desconfiado, enquanto se aproximavam.

Harry tentara convencer o cão a se aproximar dele, mas Math só lhe dava o desprezo. Parecia estar dizendo: "Eu sou o cão do rei, e não aceito ninguém, a não ser o rei, como meu senhor."

- Ah, meus primos - disse Ricardo, sorrindo para eles -, tenho novidades para vocês.

Observou-os com olhos semicerrados. Percebia que Harry seria um homem rebelde. Seria tudo o que ele, Ricardo, não era. No entanto, Ricardo gostava do garoto. Ficava satisfeito por mante-lo na corte e a uma distância que permitia chamá-lo com facilidade. Era assim que continuaria.

Aqueles dois garotos eram filhos de homens que ele odiara apesar de serem seus parentes bem próximos. Humphrey era, agora, duque de Gloucester, e Ricardo odiara mais o pai dele do que ninguém. Ele fora um dos tios que tinham infernizado sua vida quando ele era muito jovem. Ele gostara de John de Gaunt, avô de Harry, desde quando o velho aceitara sua idade e abandonara a infrutífera luta por uma coroa, qualquer que fosse ela. Mas do pai de Harry, Henrique de Bolingbroke, desconfiaria sempre.

Jamais se esqueceria daqueles cinco Lordes Apelantes em pé à sua frente, de braços dados para mostrar que tinham ido juntos e que estavam contra ele. Não, decidira vingar-se desde o momento em que tinham ficado ali, de pé. E se vingara. Gloucester morto, sufocado por penas, Arundel decapitado, Warwick na prisão, Norfolk e Hereford exilados. E assim deveriam ficar. E se Hereford decidisse provocar confusão, ele tinha o jovem Harry em seu poder. Harry, o refém.

- Vocês devem estar se perguntando por que mandei chamálos - disse Ricardo. - Não é?

- Vossa Majestade acertou - replicou Harry. Havia apenas um toque de insolência na voz jovem, mas o sorriso era cativante. Nunca se podia ter certeza quanto a Harry.

- Não foi nenhuma charada difícil - disse o rei, secamente. - Vocês devem se preparar para partir para a Irlanda.

- Irlanda, majestade! - bradou Harry.

- Eu disse Irlanda - replicou o rei. - A morte do conde de March tornou necessário que eu leve meu exército para lá. Vocês irão conosco.

Os meninos ouviram a notícia um tanto confusos. Gostavam da ideia de aventura - mas Irlanda! Teriam preferido ir para a França. O pai de Harry estava na França. Suponhamos...

Õ rei estava dizendo:

- Sem dúvida, vocês desejarão fazer alguns preparativos. Receberão instruções sobre quando partiremos.

Math os observou sonolento, enquanto eles faziam uma mesura e se retiravam.

- Para a Irlanda - murmurou Humphrey. - Por que será que nós vamos?

- Porque o rei não me quer longe dos olhos dele. Sou um refém como garantia da boa conduta de meu pai para com ele. É por isso que eu vou.

- Mas, por que eu estou indo?

- Porque ele não quer tornar o fato de minha ida evidente demais. Se nós dois formos... bem, então faremos parte da comitiva dele. Percebo isso claramente, primo Humphrey.

- É - disse Humphrey -, eu também. Eu me pergunto quanto tempo você vai continuar como refém.

Harry estava pensativo. Sabia que o rei tinha confiscado as propriedades de seu pai.

Achava que um fato daqueles poderia fazer uma diferença.

Os dois meninos gostaram da agitação de fazer a viagem para a Irlanda. A turbulenta travessia marítima que tanta gente achava penosa não os afetou. Eles andavam pelo convés na garoa e achavam que eram realmente homens que iam para uma batalha.

- Claro que são apenas os irlandeses - disse Harry, desconsolado. - Eu queria que fossem os franceses.

A Irlanda foi uma decepção. Parecia haver pouco, a não ser quilómetros de terra pantanosa que era traiçoeira; havia montanhas escarpadas, gente carrancuda que vivia numa pobreza muito grande, e acima de tudo chuva, uma chuva perpétua.

Ricardo, à frente de seus exércitos, parecia de fato muito vistoso, e criava uma certa perplexidade entre os irlandeses que não deixava de fazer seu efeito. Harry percebeu isso. Ricardo não tinha qualidades verdadeiras como líder, mas possuía uma aura de realeza que de certa maneira lhe era benéfica. Harry ouvira falar muitas vezes da maneira pela qual ele enfrentara os camponeses rebeldes em Blackheath e Smithfield e compreendia por que ele pudera dominá-los. Ele era extraordinariamente bonito; muito louro, de pele muito clara, com uma aparência quase etérea. Era o homem para sair a cavalo entre seus comandados e conquistálos com seu charme; mas não era o rei para liderá-los em combate. Se não houvesse uma luta de verdade, a campanha de Ricardo poderia ser vitoriosa. Se houvesse, ela fracassaria. Harry estava aprendendo muito sobre liderança. Um dia teria seus próprios soldados e saberia como liderá-los, então.

O exército tornou-se cada vez mais descontente. Não havia nada mais indicado para solapar o ânimo de soldados do que a inatividade e uma chuva perpétua. Eles estavam com saudade de casa; odiavam a Irlanda. Não havia uma luta de verdade para excitá-los e nenhum espólio naquela terra dominada pela pobreza, para fazer com que a viagem deles valesse a pena.

Lá na Inglaterra, Edmund de Langley, duque de York, atuava como regente. Embora fosse filho de Eduardo III, ele praticamente não tinha ambição alguma e só pedia uma vida quieta e pacata. Talvez tivesse sido por isso que Ricardo o nomeara regente. O rei escolhera quatro homens para ajudá-lo: William Scrope, conde de Wiltshire, Sir William Bagot, Sir John Bushby e Sir Henry Green. Não poderia ter escolhido quatro homens mais impopulares. Apesar de jovem, Harry ficou pasmo com o descuido do rei.

Foi uma campanha lamentável, ainda mais por causa do tempo. O mar agitado tornou impossível a travessia de mantimentos, de modo que as linhas de comunicação foram cortadas. Os homens estavam cansados da luta, e embora os irlandeses não pudessem formar um exército, tinham outros modos de perturbar os invasores. Destruíam até mesmo o pouco que teria havido para ser abandonado enquanto fugiam do inimigo, e quando Ricardo chegou a Dublin, seu exército só tinha um pensamento: voltar o mais depressa possível para perto de suas lareiras. Os homens já estavam fartos de guerras insensatas que não lhes proporcionavam lucro algum.

Havia mensageiros aguardando Ricardo em Dublin, e a notícia que levavam era catastrófica. Henrique de Lancaster desembarcara na Inglaterra; fora recuperar sua herança e havia homens aderindo à sua bandeira.

Ricardo sempre tivera medo do primo. Percebeu, então, que cometera um grande erro. Primeiro, exilando Henrique, e depois confiscando as propriedades dos Lancaster.

Agora, era tarde demais para recuar.

Tinha duas alternativas; ficar na Irlanda e dirigir uma campanha contra Henrique a partir daquele país, ou voltar e enfrentálo. Tinha, é claro, de voltar para a Inglaterra, mas deveria haver necessariamente uma certa demora. Mandou John Montacute, conde de Salisbury, voltar imediatamente para a Inglaterra, a fim de levantar o povo do País de Gales contra Lancaster. Ele iria o mais cedo possível, depois de tomar algumas providências na Irlanda.

E então lembrou-se de Harry de Monmouth, filho do invasor, que estava em suas mãos.

Ele deveria ser capaz de transformar aquilo em vantagem.

Soltou uma gargalhada ao pensar nisso. O filho e herdeiro do inimigo em suas mãos!

Mandou chamar o jovem Harry, que chegou, um pouco truculentamente, já tendo ouvido, é claro, a notícia do desembarque do pai. Ele tinha de admirar o menino. Estava numa situação perigosa e sabia disso.

- Então você é filho de um traidor, hein? - disse Ricardo.

- Não, majestade, não sou, não. Meu pai não é traidor coisa nenhuma.

- Você soube que ele desembarcou na Inglaterra, embora eu o tivesse exilado?

- Ele vem para recuperar suas propriedades, sem dúvida disse Harry. - Aquelas que Vossa Majestade prometeu ao meu avô que não deveriam ser confiscadas.

- Você é ousado, meu jovem provocador. Como sabe, você é meu prisioneiro.

- Sei que fui e continuo sendo um refém.

- Em garantia do bom comportamento de seu pai.

- Neste caso, nada tenho a temer, porque meu pai não age como um traidor. Ele vem apenas reaver as propriedades que são dele por direito de herança.

- Você terá de aprender a controlar a língua, Harry.

- E mentir... como fazem os outros. Ricardo enrubesceu.

- Você é um menino tolo - disse ele.

- É melhor isso do que ser um tratante - retorquiu Harry.

- Desapareça da minha frente - berrou Ricardo -, se não vou mandar cortar essa língua atrevida.

No íntimo, Harry se intimidou diante daquela ideia, mas não deu demonstração de medo. Fez uma mesura e se retirou.

Ricardo enterrou o rosto nas mãos. Mil maldições sobre Henrique Bolingbrokel Que ingénuo ele fora ao deixar aquele homem viver, mandá-lo para o exterior para tramar com seus inimigos, ter confiscado as propriedades dele. Ele mesmo provocara aquilo.

O jovem Harry sabia disso. Era um menino esperto, inteligente.

Ricardo odiava a violência. Era por isso que abominava tanto ir à guerra. Por que as pessoas não podiam desfrutar, todas, das coisas de que ele desfrutava - música, literatura, arte, boa comida com moderação, vinhos finos, doces perfumes, ricas roupas, jóias brilhantes, um corpo limpo e bonito...? Era considerado como não tendo nada de rei porque gostava daquelas coisas. E agora, Lancaster estava forçando uma guerra contra ele; e Harry, filho dele, estava desafiador, quase insolente, porque no íntimo sabia que causar mal a ele seria um ato que Ricardo considerava desprezível, já que abominava a violência. O que fazer com Harry?

Ricardo mandou chamar dois de seus guardas.

- Levem Lorde Harry de Monmouth para o castelo de Trim e, com ele, levem seu primo Gloucester. Eles deverão ficar lá até que eu tenha resolvido esse assunto com o traidor do Lancaster.

E assim, os dois meninos foram mandados para o castelo de Trim, onde deveriam passar os dias preocupados, jogando xadrez e outros jogos que inventavam com suas cartas, enquanto aguardavam notícias da Inglaterra.

Henrique decidira seguir para a parte do país que esperava ser mais leal a ele, de modo que em vez de desembarcar em Dover ou Folkestone, como teriam esperado que fizesse, seguiu em direção norte e acabou chegando em Bridlington. Ficou impressionado com o número de pessoas que aderiram à sua bandeira. Estavam lhe dando as boas-vindas porque se sentiam cansadas de Ricardo. Ele fez de seu castelo de Pickering seu quartel-general temporário, e de lá marchou para Doncaster, com o número de seguidores aumentando a cada dia.

Em Doncaster, uniram-se a ele o conde de Westmorland e Henry Percy, conde de Northumberland, com seu filho Sir Henry Percy, conhecido como Hotspur (Violento). Os Percy eram uma família poderosa que ajudava a manter a vigilância na fronteira escocesa, para o caso de estourar qualquer revolta. Eram como reis das províncias nortistas. com eles, tinham levado os Lordes de Greystock e Willoughby, uma força respeitável.

O conde de Northumberland convocou um conselho ao qual pediu a Henrique que comparecesse, e quando estavam todos reunidos, disse:

- É importante saber quais são as suas intenções e por que o senhor voltou à Inglaterra.

Henrique replicou de imediato, dizendo que suas intenções eram recuperar as propriedades que lhe tinham sido injustamente confiscadas. Não tinha quaisquer outras intenções.

Os presentes ficaram aliviados. Deram a entender que não tinham vontade alguma de participar de uma campanha para tirar a coroa de Ricardo e colocá-la na cabeça do primo dele. Mas por serem proprietários de bens imóveis, mostravam-se fortemente contrários ao confisco de propriedades. O rei cometera uma tolice ao quebrar a promessa feita a John de Gaunt, e eles concordavam que só havia um caminho aberto para Henrique de Lancaster. Tinha de voltar à Inglaterra e recuperar o que era seu.

Assim, os poderosos condes do norte uniram-se a Henrique de Lancaster num processo justo.

A semana seguinte viu a derrocada completa. Os seguidores de Ricardo desertaram um a um e uniram-se em peso à bandeira de Henrique. No início, o rei ficou perplexo, e depois, resignado. Acontecera o que ele sempre temera. O povo estava cansado dele; já não amava o menino inteligente e bonito que tinham ovacionado tanto em Blackheath e Smithfield. Já estava farto dele, e achava que Henrique de Lancaster iria servi-lo melhor.

Quando Ricardo ficou com apenas seis soldados leais, percebeu que era só uma questão de dias até ser capturado. Perambulou de castelo em castelo, até chegar a Conway e, lá, descansou por não ter ânimo para continuar a fútil luta.

Seu velho inimigo, o arcebispo Arundel, foi procurá-lo lá e arrancou dele uma promessa de abrir mão da coroa.

E ele abriu, quase que com entusiasmo. Estava cansado da coroa, cansado da vida. Mas lamentou ter-se separado de sua pequena rainha.

A jovem Isabella trouxera-lhe o que lhe faltara na vida desde a morte da rainha Anne. Ele queria amar e ser amado; e aquela requintada garotinha que o adorava e que ele considerava como uma filha adorada - embora fosse sua mulher - lhe proporcionara aquilo.

Pobre e doce Isabella, o que seria dela, agora?

Quanto a Henrique, seu sucesso ultrapassara suas mais absurdas expectativas.

Fizera com que Ricardo abrisse mão do trono por vontade própria. Henrique não queria confusão, que teria sido inevitável se Ricardo fosse obrigado a abdicar. Henrique queria ser persuadido a assumir aquilo que suas mãos havia muitos anos vinham coçando para agarrar.

Ricardo foi obstinado, no início, quando o passo irrevogável tinha de ser dado, mas acabou cedendo.

Havia um novo rei no trono. Henrique de Bolingbroke, duque de Lancaster tornara-se o rei Henrique IV da Inglaterra.

 

HARRY ESTAVA ficando muito inquieto no castelo de Trim, porque por ordens do rei ele e Humphrey eram mantidos sob uma vigilância rigorosa. Não podiam sair a cavalo, o que era um sofrimento insuportável. Jogaram até se cansar dos jogos; Harry fazia todo tipo de plano para fugir, que Humphrey recusava por considerá-los impossíveis. Harry também sabia disso, mas fazer planos ajudava um pouco.

Então, um dia, quando estavam sentados a um canto do quarto onde viviam, ouviram o som de passos subindo pela íngreme escada caracol; os passos pararam diante da porta deles e ouviram o tilintar de chaves, enquanto a porta estava sendo destrancada.

Dois dos guardas entraram no quarto. Estavam olhando para Harry, e havia uma visível mudança de comportamento neles. Não que tivessem sido cruéis. Ricardo jamais teria desejado isso. Mas agora havia respeito na mesura que fizeram na direção de Harry e depois na de Humphrey.

- Grandes novidades, senhor - disse o guarda, olhando direto para Harry, que estava começando a sentir-se um pouco confuso com a possibilidade que lhe ocorrera.

- Sim, sim - bradou Harry, impaciente e imperioso.

- Temos um novo rei. Deus o salve. Rei Henrique IV, da Inglaterra.

- Meu... meu pai! - disse Harry, com voz entrecortada.

- Seu nobre pai, alteza, Deus o salve.

- Então Ricardo...

- Abdicou, senhor. Ele sabia que estava derrotado. Harry sorriu para si mesmo. Aquilo era a coisa mais espetacular que já acontecera. Na véspera, tinha sido Harry de Monmouth, filho de um exilado, refém nas mãos do rei. Agora, se tornara o príncipe Harry, herdeiro do trono.

Queria ir para casa. Queria compartilhar do triunfo. Aquilo representava o fim daquela vida enfadonha e sem sentido. Uma exultação violenta tomou conta dele. Todo mundo estava demonstrando respeito, até mesmo Humphrey. Herdeiro do trono. As palavras estavam sempre vibrando em sua cabeça.

- Quais são as notícias de meu pai, o rei? - perguntou ele.

- Ordens, senhor, para que Vossa Alteza e o duque Humphrey partam já para a Inglaterra - foi a resposta.

- Vamos, Humphrey - bradou Harry. - Não percamos tempo.

E não perderam. Partiriam logo. Haveria um navio esperando por eles. O pai tomara as devidas providências. Henrique queria seu herdeiro perto dele o mais rápido possível. com toda certeza, Harry se tornaria príncipe de Gales. Tinha uma vida gloriosa pela frente.

Humphrey estava mais cauteloso e muito pensativo.

Pobre do Humphrey, para ele seria pouca a diferença. Já era o duque de Gloucester e não podia subir muito mais do que isso. Ainda assim, teria a distinção de ter compartilhado do exílio com o príncipe de Gales.

Quando ficaram a sós, Humphrey disse:

- Harry, não tenha esperanças demais.

- O que quer dizer? Ter esperanças demais! Sou herdeiro do trono, não sou?

- Isso ainda deve ser muito incerto.

- Incerto! Pode crer que meu pai fez com que tudo ficasse bem certo.

- Para início de conversa, o jovem Edmund Mortimer é o verdadeiro herdeiro.

- Não é uma reivindicação séria.

- Tem de ver as coisas como elas são, Harry. Edmund descende de Lionel, que era mais velho do que seu avô.

- Eu sei, eu sei. Mas ele é uma criança.

- A idade não faz diferença.

- Ah, faz, sim. Meu pai conta com o apoio do povo. É ele que todos querem. Não querem mais reis meninos.

- Nem mesmo que sejam os herdeiros de direito?

- Chega, Humphrey. Lembre-se...

- De com quem estou falando. O herdeiro do trono que balança. Não espere demais, Harry.

- Você vai parar ou... ou...

- Você vai me mandar para a Torre e mandar que eu coloque a cabeça no cepo? Você será um rei vingativo, Harry, mas não durará muito se não enfrentar a verdade de frente e aceitá-la como ela é.

Harry agarrou-o e os dois lutaram no chão do quarto, como gostavam muito de fazer. Harry costumava vencer naquelas brigas, embora fosse vários anos mais novo que Humphrey.

A luta acabou em gargalhadas, como sempre, e Harry bradou:

- O que estamos fazendo, perdendo tempo? Venha, temos de voltar a toda velocidade para onde as coisas estão acontecendo. Já não sou mais um refém, Humphrey. Pense nisso.

- Não posso pensar em outra coisa que não na satisfação de deixar esta terra úmida e inamistosa.

- Vamos, então, vamos nos preparar. Para a Inglaterra. Poucos dias depois, os dois deixaram a Irlanda. A travessia foi agitada, e nela Humphrey ficou doente. Harry caçoava dele e dizia-lhe que era um marinheiro fraco e comentou que era uma felicidade não estarem indo para um combate. Humphrey sorria fracamente e dizia que não se lembrava de já ter-se sentido tão estranho.

- Você ficará bom de novo assim que puser os pés em terra firme - prometeu Harry.

Mas não foi isso que aconteceu, e a travessia estava tão agitada, que em determinado momento parecia que eles não conseguiriam. Foi um grande alívio quando puderam desembarcar em Anglesey. Por estranho que parecesse, Humphrey não estava melhor e em breve ficou claro que a doença nada tinha a ver com ornar.

Ele estava com febre e delirava. Tinham chegado a uma estalagem que era a mais próxima do ponto em que tinham desembarcado, e Harry pensara que depois de um breve descanso ali Humphrey voltaria ao seu normal.

Humphrey balbuciava a respeito de seu pai. Pensava que estava numa estalagem em Calais, em vez de em Anglesey, e que aquilo que tinha sido feito com seu pai se repetiria com ele.

- Que absurdo! - bradou Harry. - Estou aqui com você, Humphrey. Estamos no País de Gales... em breve estaremos com meu pai. Não somos mais prisioneiros de Ricardo.

Humphrey ficou tranquilo, mas não melhorou. Na verdade, estava piorando, e de repente Harry sentiu um medo profundo.

Será que aquilo era um tipo de peste que tinha atacado seu companheiro?

Ele devia seguir em frente. Seu pai aguardava-o com impaciência, mas ele não abandonaria o Humphrey.

Para Harry, a volta para casa seria triste, apesar da glória que o esperava. Poucos dias depois do desembarque, Humphrey morreu da doença misteriosa que o atacara tão de repente.

Quando a duquesa de Gloucester soube da morte do seu filho único foi dominada pela melancolia.

Era difícil reconhecer naquela mulher sofredora a enérgica Eleanor de Bohun que certa vez ficara tão satisfeita consigo mesma quando se casara com Thomas de Woodstock, e juntos tinham planejado pôr as mãos em toda a fortuna deixada pelo pai dela.

Naquela época, ela tivera sonhos de grandeza. Ao tornar-se membro de uma família real através do casamento com um dos filhos de Eduardo III, ficara muito orgulhosa. E quando seu filho nascera e recebera aquele bom e tradicional nome na família de Bohun, Humphrey, ela o idolatrara.

Seu único filho homem! Seu Humphrey! Ela aprendera o que significava gostar de algo que não riqueza e poder quando ele nascera, embora nunca tivesse deixado de dar valor àquelas coisas e as quisesse para Humphrey.

Quando o marido fora assassinado, isso representara o fim de sua ambição em favor dele, e voltara os pensamentos cada vez mais para o precioso filho.

Ele acompanhara o primo Harry à Irlanda, por ordem de Ricardo, mas não passara pela cabeça dela que algo pudesse acontecer ao filho.

E agora, aquela notícia a arrasara. Tinham-lhe roubado aquilo que era o significado da vida para ela. Tinha três filhas; mas tinha sido em Humphrey que seu amor e sua devoção se concentraram.

Ela andava por Pleshy sem fazer barulho com os pés e triste. Suas assistentes observavam-na, aflitas.

- Ela vai morrer de dor no coração - diziam elas. Ficava sentada no banco da janela e olhava para o outro lado do campo, onde os muros cinzentos do convento se erguiam, e ela pensava naquela época, muito antes do nascimento de Humphrey, quando sua irmã Mary estava ali e fazia seus trajetos de ida e vinda do convento. Eles tinham insistido com ela para que escolhesse a vida de freira. E ela poderia ter feito isso se não fosse aquele encontro com Henrique Bolingbroke - preparado, é claro, por John de Gaunt. Tinham desejado a fortuna de Mary... ora, ela também.

Como tudo teria sido diferente se Mary tivesse entrado para o convento! Harry de Monmouth nunca teria nascido.

- Oh, Humphrey - lamentava-se ela -, nunca mais tornarei a vê-lo... Humphrey, meu filho, meu menino...

Estava cansada de corpo e mente. Agora não tinha motivo algum para viver.

E então tornou a ver os muros cinzentos do convento e pareceu-lhe que eles ofereciam paz. Seria possível que ela, Eleanor duquesa de Gloucester, que durante anos tentara tanto convencer a irmã a entrar para aquele convento, estivesse agora pensando em acabar sua vida lá?

Era estranho como o pensamento lhe trazia a paz. Praticamente podia ouvir os próprios argumentos com que bombardeara Mary. O silêncio. A paz. A vida vivida de acordo

com um padrão de servir aos outros.

Havia consolo nela.

Era irónico que a duquesa, que considerara a vida no convento muito boa para a irmã, agora quisesse abraçá-la.

À medida que os dias se passavam, mais firme se tornava a decisão, e por fim ela deu o passo.

Não viveu por muito tempo. Achou que devia lamentar a perda do filho dentro dos muros do convento com o mesmo amargor que lamentara no castelo.

Morreu pouco depois de entrar para o convento. Disseram que de dor no coração.

Harry percebeu que Humphrey tivera razão quando falara na insegurança da situação do novo rei; e ninguém sentia mais isso do que o próprio Henrique.

Ficou encantado ao receber o filho e ver que ele gozava de boa saúde, embora ainda um tanto melancólico devido à morte súbita do primo.

Havia outros assuntos com que se preocupar, lembrou Henrique ao filho e, como Harry era o mais importante depois dele, discutia francamente os problemas com ele.

- Não imagine - disse o novo rei - que estamos seguros no trono como se ele tivesse vindo a nós através de uma herança direta. Ricardo foi coroado rei. Ainda está vivo. O povo mostrou que estava farto dele e ele concordou em abdicar, mas a posição é delicada.

- O reinado de Ricardo acabou - bradou Harry. - Temos de nos preocupar com ele?

- Claro que sim, meu filho. Digo-lhe uma coisa: não ficarei tranquilo enquanto ele viver. Há Edmund de Mortimer... aquele menino. Ele não aumenta a minha paz de espírito. Harry, temos de pisar com o máximo de cuidado. Você se dá ares de importante. Não faça isso. Porte-se com modéstia. Aja como antes.

- Alguma vez me portei com modéstia? - perguntou Harry, sorrindo.

- Isso é sério. Muita coisa vai depender das próximas semanas. Não ganhei a coroa por conquista, porque praticamente não houve luta. Foi por eleição.

- Isso não é bom?

- É, mas quero torná-lo firme. Quero que o povo diga agora, e nos anos futuros, a meu respeito: "Existe um verdadeiro rei e governante." Se não tivermos cuidado, teremos levantes. Haverá quem esteja pronto a apoiar Ricardo... até ele morrer... adeptos de Edmund de Mortimer.

- Seria mais seguro se pudéssemos provar de alguma maneira que o senhor é o herdeiro de direito.

- Bem, há a história de que o filho mais velho de Henrique in não era o Eduardo que se tornou o primeiro com aquele nome, mas Edmund, conde de Lancaster, aquele chamado de Corcunda, e de quem descendemos em linha direta. Mas devido à fraqueza dele, colocaram Eduardo, o segundo filho, no lugar de primogénito, e assim ele foi criado como o herdeiro.

- Alguém vai acreditar nisso, majestade?

- Acho que muito poucos, mas pouparia muita confusão se pudessem ser convencidos a acreditar.

- Por que o senhor não reivindica o trono uma vez que o conquistou?

- Reivindicá-lo por ter sido conquistado por mim é Uma situação perigosa, Harry. Alguém, um dia, poderia tirá-lo de mim... reivindicando-o por tê-lo conquistado.

O ministro do Supremo Tribunal, Thyrnynge, me avisou que não devo fazer isso. Mas talvez se pudesse dizer que tenho mais direito a reivindicá-lo porque descendo de Henrique in pelos dois lados da família. Sabe, aquele rei foi tataravô de meu pai e também tataravô de minha mãe. Edmund de Mortimer não poderia alegar isso.

- A meu ver - disse Harry -, o senhor tem o poder; tem a riqueza; tem a coroa nas mãos. Isso faz com que seja o rei. O senhor só tem de se preocupar com manter essa coroa, até que ela passe para mim, e esteja certo, majestade, que quando ela passar eu a prenderei na cabeça com barras de ferro.

Henrique não pôde deixar de sorrir para o filho. Assim que lhe fosse possível, faria dele príncipe de Gales.

O novo rei cavalgou pela chuva forte, indo da Torre para Westminster no trajeto tradicional, porque o dia seguinte seria o dia de sua coroação.

A água escorria em quantidade pelo seu rosto, encharcando os belos trajes, mas ele ria daquilo e o mesmo acontecia com as multidões que tinham saído para recepcioná-lo, apesar do mau tempo.

com ele iam seus quatro filhos, Harry, que se tornaria príncipe de Gales alguns dias depois e que acabara de completar doze anos de idade; Thomas, que estava com dez, John, nove e Humphrey, oito. A visão dos meninos animou o coração do povo. Ali estava um homem para governá-los e ele era forte e inteligente, filho do astuto John de Gaunt, e já dera prova de que podia dar herdeiros fortes para o trono. Os sorrisos e os modos afáveis do jovem Harry para com a multidão encantaram a todos; e agora tudo seria diferente do reinado de Ricardo, quando o povo tinha sido tributado para pagar por seus belos amigos e suas extravagâncias gerais e ele mostrara com toda clareza que era incapaz ou não tinha disposição de gerar um herdeiro.

Harry achava que o som mais mágico do mundo era o da ovação do povo e as palavras "Deus salve o rei". Era de uma emoção especial pensar que um dia aquilo estaria acontecendo com ele.

Quase lamentou chegar ao conforto seco do palácio de Westminster, onde eles iriam instalar-se para passar a noite, preparando-se para o evento do dia seguinte.

- vou ficar aflito até a coroação acabar-dissera seu pai. Depois que um homem é coroado rei, o povo fica menos inclinado a derrubá-lo do trono.

Harry começava a pensar que o pai se preocupava demais e que não ficaria aflito só até â coroação terminar, mas continuaria assim para sempre. Devia esquecer a maneira pela qual a coroa chegara até ele. Tinha de tirar da cabeça a imagem de Ricardo prisioneiro e do menino Edmund Mortimer. Ricardo fora deposto, e ninguém queria uma criança no trono.

Harry acordou cedo no dia da coroação.

Em seus aposentos, o rei rezava para que nada desse errado. Não passou pela cabeça de Harry que alguma coisa pudesse dar errado.

Felizmente, a chuva passara. O povo estava nas ruas desde a madrugada e se reunira aos milhares em torno do palácio e da abadia.

Houve vivas entusiásticos quando a procissão surgiu liderada por Henry Percy, conde de Northumberland, levando na mão a espada de Lancaster que Henrique dissera que deveria ser sempre preservada, pois ele a levara quando desembarcara na Inglaterra. Nothumberland era condestável da Inglaterra e por isso tinha um papel tão destacado na coroação; além do mais, imaginava que ele e seu filho Hotspur tinham tornado possível que Henrique ganhasse o trono, ao oferecer seu apoio quando ele chegara, sem qualquer exército ou sem os recursos para fazer uma campanha cujo objetivo, na época, fora apenas recuperar as propriedades dos Lancaster.

Harry estava fascinado por representar um papel importante num espetáculo daqueles. Sua tarefa era levar a curtana, a espada sem ponta que era sempre levada nas coroações como símbolo de bondade.

Ele caminhava imediatamente atrás do pai, que, vestido inteiramente de branco, caminhava sob um dossel de seda azul levado pelos barões dos Cinque Ports.

Foi uma das cerimónias mais impressionantes jamais vistas, e se o tempo todo Henrique estava preocupado, imaginando se no último momento algumas pessoas protestariam dizendo que o país já tinha um rei e que aquele homem que estava sendo coroado era um impostor, ele não demonstrou.

Nada disso aconteceu. O país parecia satisfeito com seu novo rei. Mas a aflição de Henrique continuou durante o esplêndido banquete que se seguiu, e quando Sir Thomas Dymoke, o interpelador tradicional, entrou a cavalo no salão para dizer que se algum homem ali presente não aceitasse Henrique

como o rei da Inglaterra deveria enfrentar Sir Thomas em um duelo, o próprio Henrique respondeu.

- Se for preciso, Sir Thomas - disse ele, em voz clara -, eu mesmo irei substituí-lo nessa tarefa.

Foi uma bela intervenção, embora traísse um afastamento da tradição - como, de fato, era aquela ocasião. Era raro um rei ser coroado enquanto um rei coroado vivesse e houvesse outra pessoa mais próxima do trono.

Seguiu-se um momento de silêncio, e depois irrompeu uma ovação.

Não havia dúvida de que Henrique IV era rei da Inglaterra por vontade do povo.

Poucos dias depois, Harry foi feito príncipe de Gales.

Era inevitável que houvesse algumas vozes de discordância. Henrique estava precavido; e quando houve um plano de capturar ele e os filhos e colocar Ricardo de volta ao trono, ele agiu com firmeza. Abafou a derrota, mas era absolutamente necessário que Ricardo morresse. No castelo de Pontefract, Henrique o colocou aos cuidados de Sir Thomas Swynford, filho de Catherine, a duquesa de Lancaster. Se Henrique fracassasse, as fortunas de Thomas desapareceriam. Thomas era um homem em quem ele podia confiar, era um homem astuto que sabia onde estava sua vantagem; estava ciente que haveria rebeliões e levantes enquanto Ricardo vivesse. Cabia a Thomas providenciar para que Ricardo não vivesse.

E não viveu. Morreu em Pontefract. Houve quem dissesse que tinha morrido de fome; a história contada por Thomas Swynford era de que ele se recusara a comer. Correu o rumor de que fora atacado e morrera se defendendo. Mas a história que mais preocupava Henrique era a de que Ricardo não estava morto coisa nenhuma, e que um padre que se parecia muito com ele ocupara seu lugar enquanto Ricardo fugia.

Essa história precisava ser desmentida de imediato. Tinha-se de mostrar que Ricardo estava morto, e Henrique agiu com a presteza de costume. O finado rei devia ter um enterro digno de seu gosto, declarou ele. Era verdade que Ricardo se tornara apenas Sir Ricardo de Bordeaux, mas fora

rei um dia; e, afinal, era primo em primeiro grau do monarca que reinava.

Henrique deu ordens para que o corpo de Ricardo fosse colocado numa liteira e coberto com um pano preto. Haveria um dossel sobre a liteira, feito do mesmo pano preto. Quatro cavalos deveriam ser atrelados à carroça-liteira e também deveriam ser ajaezados em preto. Cavalariços deveriam montar os cavalos que puxavam a liteira e quatro cavaleiros deveriam acompanhála na sua viagem. A conduta deles deveria coadunar-se com seus trajes de luto, porque deveria ser visto por todos que se prestava o devido respeito ao finado rei. Seu rosto deveria ficar exposto, para que todos vissem quem era o morto, a fim de que não houvesse mais os cansativos rumores sobre ele não estar morto. Em todas as cidades e aldeias pelas quais o cortejo passasse, a liteira deveria ser deixada na praça do mercado ou em algum lugar público desse tipo, onde todos pudessem vê-la e convencer-se de que era mesmo Ricardo que ali estava.

No devido tempo, ela chegou a Londres e seguiu a passo lento pelas ruas até chegar a Cheapside, e ali ficou por duas horas.

Vinte mil homens e mulheres foram vê-la e olhar com ar triste para o rosto sem vida, que era tudo o que podia ser visto do rei.

Quando a liteira funerária deixou Cheapside, seguiu para Langley e, lá, Ricardo foi enterrado.

Harry de Monmouth, príncipe de Gales, dirigia-se a cavalo para Havering Bower. Estava animado. A vida começava a se revelar muito interessante. Quem teria acreditado que ela poderia ter mudado tão depressa? Parecia que apenas havia cerca de uma semana ele e Humphrey tinham estado brincando e brigando juntos, presos no castelo de Trim, e que seu pai era um exilado com poucas esperanças de voltar para a Inglaterra antes de passados vários anos. Harry não queria pensar demais no castelo de Trim, porque isso trazia lembranças de Humphrey, que o faziam ficar triste. Se ao menos Humphrey estivesse ali agora, como Harry teria gostado de se vangloriar perante ele. Mas Humphrey estava morto, e Harry era o príncipe de Gales, com um rei que era seu pai.

Era uma expectativa emocionante demais para sentir melancolia por muito tempo.

E ele estava quase um homem. Fez um muxoxo também, pensando na sua missão.

Seu pai fora direto ao assunto, como de costume.

- Harry, você está crescendo. Além do mais, é o príncipe de Gales. Está na hora de pensarmos num casamento para você.

Casamento! A ideia deixou Harry agitado. Ele já demonstrara uma certa queda por mulheres - e até ali, suas atenções tinham sido principalmente para criadas. Elas gostavam dele e estavam prontas a aceitar sua atenção com um risinho e um ar muito condescendente que o faziam lembrar-se de que era "apenas um menino".

O casamento seria diferente.

- Bem, em breve você fará treze anos, e não é criança demais para sua idade - prosseguiu o pai. -Acho que não é preciso esperar mais. Não vejo motivo para que o casamento não aconteça assim que tivermos providenciado tudo o que será necessário.

- Quem vai ser minha esposa? - perguntou Harry. O pai sorriu para ele.

- Uma jovem que você já conhece e, creio eu, pela qual sente uma certa admiração. Ela é do mais nobre dos berços - na verdade, é uma rainha. O que acha disso? - Enquanto Harry parecia intrigado, o pai continuou: - Ora, a jovem Isabella, é claro.

- A rainha de Ricardo!

- Agora, viúva - uma viúva virgem. Mais ou menos da sua idade, Harry!

- Isabella!

- Ah, estou vendo que a ideia não o desagrada.

- Ela é a menina mais bonita que já vi.

- É exatamente isso que você deveria dizer sobre sua futura mulher.

- Quando é que vou me casar com ela?

- Nada de tanta pressa, por favor. Ela é filha do rei da França.

Não quero deixar que ela saia daqui, porque com toda a certeza ele vai exigir o dote dela de volta, de modo que parece uma solução excelente você se casar com ela.

Quando chegar a hora, ela deverá ser a rainha da Inglaterra outra vez.

- Acho que ela vai gostar.

- O mais importante no momento, Harry, é ela gostar de

você.

- Oh, ela vai gostar de mim -jactou-se Harry. -vou falar com ela.

O pai achou a ideia excelente. Isabella era uma jovem imperiosa, e como tinha sido mimada em demasia pelo falecido marido, precisaria ser cortejada um pouco, ponderou o rei. Ele queria que o casamento fosse aceito por ela.

Harry não tinha dúvida alguma de que estava levando uma boa nova a Isabella, e chegou a Havering muito animado.

Quando soube que ele tinha ido procurá-la, Isabella primeiro ficou perplexa, e depois irada. Estava num estado de grande melancolia, de luto por Ricardo. Desde o momento em que o vira, ela passara a amá-lo; era muito bonito com os seus cabelos dourados, olhos azuis e pele delicada. Sempre estivera requintadamente vestido e perfumado, e se encantara tanto com Isabella quanto ela se encantara por ele. Estivera ansiosa pelo dia em que atingisse a idade suficiente para viver com ele como sua mulher, e agora ali estava ela com quase doze anos e atingindo aquela meta, e o haviam matado.

Estava certa de que o tinham matado. Não acreditava que ele tivesse jejuado até morrer. Ele jamais teria se matado. Afinal, ela era sua esposa, e mesmo que tivessem roubado a coroa dele e passado a chamá-lo de Sir Ricardo de Bordeaux em vez do que ele era de verdade, rei Ricardo, ainda era sua esposa.

E agora ele estava morto, e ela estava sozinha e não sabia o que seria dela - no entanto, na sua dor, não se importava.

- Não vou receber esse fanfarrão - disse ela. - Por que iria ele vir aqui para falar comigo?

Suas aias, Simonette e Marianne, que ela levara da França e que Ricardo, condescendente, deixara que ela mantivesse, rodopiavam à sua volta, uma escovando-lhe os longos cabelos pretos e a outra calçando-lhe os sapatos.

- É importante, senhora - disse Simonette. - Esse Harry é, agora, o príncipe de Gales.

- Ele não é o príncipe de Gales - bradou Isabella. - Não existe príncipe de Gales nenhum. Ele é filho do usurpador.

- Fale baixo, fale baixo, senhora - avisou Marianne. - As pessoas têm ouvidos. Dizem que o rei é muito rigoroso com os que se voltam contra ele.

- Que ele seja rigoroso comigo. Que me mate como matou meu querido Ricardo. Meu pai virá enfrentá-lo e talvez matá-lo, o que muito me agradaria, isso eu lhe digo.

As duas camareiras abanaram a cabeça e se entreolharam, tristes. Seria praticamente impossível o rei da França ir até a Inglaterra para salvar a filha. Ele estava, naquele momento, em um de seus períodos perdidos, o que significava que era mantido isolado do mundo, até que o mal o deixasse e recuperasse o equilíbrio mental.

A pequena rainha tinha sido tão mimada pelo marido que acreditava que o mundo inteiro estaria pronto para atender a seus caprichos.

- Essa daí tem muito que aprender - foi o comentário de Simonette para Marianne.

Isabella não podia recusar-se a receber o príncipe de Gales, e naquele momento não queria recebê-lo porque o ódio que sentia pelo pai dele - e o ódio se estendia a ele - era tão avassalador que queria dar vazão a ele.

Estava vestida toda de branco, devido ao luto, e com as faces rubras e os olhos brilhando de paixão, era um quadro muito bonito, e o coração de Harry pulou de alegria ao vê-la. Era, de fato, a criatura mais bonita que já vira. A filha do rei da França, já uma rainha! Que sorte estar à altura delel

Ele fez uma mesura com o máximo de capricho, enquanto ela o olhava com desdém.

- Bons olhos a vejam, senhora - disse ele. - Há muito que não tenho o prazer que este encontro entre nós me proporciona.

Ela continuou calada. Espere até ela saber, pensou Harry. Linda Isabella, ela aqui é uma prisioneira. Deve estar imaginando o que lhe acontecerá. Vim salvá-la. Como vai me amar, quando souber!

Tenho um assunto da máxima importância a discutir com a senhora - prosseguiu ele.

- Não sei o que o senhor e eu temos a discutir - disse ela, com frieza.

- Vai saber, doce senhora. Vai saber. São tão boas as novas que lhe trago que não me deterei mais. Há algum lugar onde possamos ficar tranquilos, para que possamos conversar?

- Diga o que tem a dizer aqui e agora, meu senhor - disse Isabella. - O senhor tem uma longa viagem de volta para Westminster.

Os modos dela fizeram com que Harry desse uma risada. Claro, ainda se considerava uma rainha. Esquecera-se de que Ricardo estava morto, que ele fora destronado. Ainda assim, ainda usava o título de rainha e era filha do rei da França, embora ele fosse um louco.

- Não tenho dúvidas de que voltarei com boas notícias para meu pai. Venha sentar-se comigo e lhe contarei por que vim até aqui.

com relutância, ela permitiu que ele a conduzisse até o banco da janela.

Então, ele segurou-lhe a mão e disse:

- Isabella, meu pai me fez príncipe de Gales. Isso significa que sou herdeiro do trono. Você reinou com Ricardo. Que tal um dia também fazer isso comigo?

Ela recusou-se a acreditar na insinuação.

- Não compreendo, senhor - disse ela. - Sei que o rei verdadeiro morreu e que há um usurpador no trono. O senhor está querendo dizer que se os leais súditos do rei verdadeiro não derrubarem esse usurpador, o senhor um dia será rei.

- Não existe usurpador nenhum. Meu pai está reinando pela vontade do povo, porque Ricardo se mostrou incapaz de fazê-lo. Meu pai é descendente de reis por ambos os lados da família. A Inglaterra será mais feliz sob o governo dele do que jamais foi sob o de Ricardo. Meu pai, o rei Henrique, me deu o consentimento para o nosso casamento, e vim aqui dar-lhe esta boa nova.

- Nosso... casamento!

- Isabella, minha bela Isabella, eu te amo. Quero que seja minha mulher... minha rainha, um dia. Meu pai...

Ela se pusera de pé de um salto; os punhos estavam cerrados; os olhos, frios.

- Você... filho do assassino de meu marido... Você tem a ousadia de vir até aqui e me dizer isso!

- Isabella, você está enganada. Ricardo não foi assassinado. Ele preferiu morrer. Ele sabia que era um inútil e desistiu do trono por sua livre e espontânea vontade.

Você era esposa dele... sua esposa menina... nunca foi esposa dele de outra maneira, a não ser no nome.

- Por favor, não fale dele. Não quero ouvir o nome dele em seus lábios. Seu pai é um assassino, Harry de Monmouth. Vocês mataram meu marido. Você faz o seu crime parecer pior ao sugerir que eu me case com você. - A voz dela aumentara de tom. Eu o odeio, Harry de Monmouth! Eu o odeio. Eu o odeio.

- Ora - disse Harry, com um sorriso -, isso não precisa impedir que se case comigo.

- Vá embora. Não deixe que eu o veja outra vez.

- Ora, isso já é pedir demais. Uma esposa tem de ver o marido de vez em quando, como sabe. De que outra maneira eles vão ter os herdeiros que o país espera deles?

Isabella tentou forçar a passagem, mas ele a agarrou firme.

- Você parece uma gata selvagem. Preciso domá-la.

- vou mandar chamar meu pai - bradou ela. - vou contar-lhe como você me insultou. Ele declarará guerra contra vocês.

- Doce Isabella, querida criança. Os reis não fazem guerra por causa de filhinhas travessas. Seu pai vai gostar muito dessa união, tal como o meu. Vamos, Isabella, sou de fato um ótimo rapaz e estou pronto a lhe provar isso.

- Deixe-me em paz. Vá embora. Nunca mais me fale dessa maneira.

Com isso, ela lhe deu um empurrão que o mandou de volta para o banco da janela e ela correu escada acima, indo para o quarto.

Harry a acompanhou com o olhar, desanimado. Ela iria se acostumar com a ideia.

No quarto, Isabella encontrou a duquesa da Irlanda, que Ricardo designara para tomar conta dela. A duquesa, que tinha sido Eleanor Holland antes do casamento com Roger de Mortimer, tinha poucos motivos para gostar do homem que se dizia ser o novo rei, porque seu filho era Edmund de Mortimer, que muitos diziam ser o verdadeiro herdeiro do trono. A duquesa ainda estava de luto pela morte do marido, que morrera devido a ferimentos sofridos na Irlanda, pouco antes de Ricardo começar sua campanha por lá.

Isabella trancou a porta e ficou em pé, encostada nela, de frente para a duquesa.

- O que você acha que ele teve a ousadia de dizer? - perguntou ela. -Aquele... aquele menino... que se intitula príncipe de Gales. Ele diz que o pai quer que eu me case com ele.

- Oh, minha filha! - Houve um amargo contorcer dos lábios da duquesa. - Esse Henrique de Lancaster não perde tempo, não é?

- Eleanor, eu me recuso. Disse a ele que o odeio. Eu nunca... nunca vou me casar com ele. Oh, por que eles mataram Ricardo? Eu amo Ricardo... vou amá-lo para sempre. O fato de ter morrido não faz qualquer diferença.

- Minha querida senhora, ele não passa de um menino obedecendo ao pai.

- Eu o odeio. Ele é tão mau quanto o pai. Tenho ódio dos dois. Não vou me casar com ele. vou fugir. vou para perto do meu pai. Eleanor, quero mandar mensageiros a ele imediatamente...

A duquesa acariciou os cabelos de Isabella.

Pobrezinha, pensou ela, é apenas uma ficha num jogo para todos eles... para ser deslocada de um lado para o outro, de acordo com a preferência deles.

Independente do que a jovem rainha sentisse em relação ao seu indesejado visitante, não era possível cometer a grosseria de negar-lhe hospitalidade. Afinal, era filho do rei e tinha de ser tratado como tal. Todo mundo de Havering sabia que a posição dele ou dela era precária, e que Isabella não ficaria em Havering por muito tempo. Acreditara-se que o mais provável era que ela voltasse para a França, mas a chegada do príncipe de Gales representava uma nova e emocionante possibilidade, porque logo ficou-se sabendo qual o motivo que o levara até lá.

Quando Isabella se recuperou do choque da proposta de Harry, ficou um pouco mais calma, e sua atitude para com ele era de um frio desdém.

No início, aquilo o divertiu. Não iria gostar de uma conquista fácil; e quanto mais indiferente Isabella ficava, mais ele se decidia que queria casar-se com ela.

Dava um jeito de estar com ela tantas vezes quanto possível, mas como estava determinada a evitá-lo, nem sempre ele conseguia.

Desesperada, ela tentou explicar.

- Nunca me casarei com você - disse ela. - Já me casei uma vez. Eu amava meu marido, o verdadeiro rei, e nunca mais vou amar mais ninguém.

Harry tentou argumentar com ela.

- Isso é um absurdo - insistiu ele. - Ricardo nunca foi seu marido. Ele foi como um pai indulgente e você foi um bichinho de estimação... como um dos cachorros dele.

- Eu o odeio, Harry de Monmouth - murmurou ela.

- Você nunca foi esposa dele. Não sabe o que significa ser uma esposa.

- E você vai querer me ensinar o que isso significa? Os olhos dele brilharam diante da perspectiva.

- Eu faria isso, com muito prazer.

- Jamais fará isso.

- Vamos, prometa-me.

- Só vou lhe prometer uma coisa: jamais serei sua esposa.

- Não sou de desistir com facilidade.

- Quando um não quer, dois não fazem um acordo desses.

- Nem sempre - respondeu ele. - Na verdade, os casamentos reais são arranjados para nós. Meu pai está muito disposto. E se o seu também estiver?

Ela gelou de terror. Fugiu para longe dele assim que pôde e, indo procurar a duquesa, disse-lhe que mandaria imediatamente uma mensagem ao pai.

A mensagem foi enviada à França, e ao mesmo tempo chegou uma embaixada de Henrique propondo o casamento de seu filho com Isabella. Carlos, o rei da França, estava sofrendo, na época, um de seus ataques de loucura e seu irmão, Luís de Orleans, recebeu a mensagem. Claro que ele não queria o casamento. Em primeiro lugar, Henrique não estava muito firme no trono. Luís estava certo de que haveria todo tipo de manifestações contra ele; além do mais, Luís tinha um filho e achava que Isabella seria uma esposa muito boa para o jovem Charles de Angoulême, cerca de um ano mais novo que ela.

Luís ficou contente por Isabella não querer a união com Harry, embora, é claro, se o casamento fosse conveniente, os sentimentos dela não teriam sido da máxima importância.

A resposta de Luís a Henrique foi de que o rei estava, naquele momento, sofrendo de um seus ataques e era impossível sua filha mais velha ser dada em casamento sem consultá-lo. Portanto, no momento não se podia dar uma resposta.

Quando Isabella soube disso, ficou grata por ter um pouco de descanso; acreditava que o pai, que sempre a tratara com carinho, daria ouvidos a suas súplicas.

Durante algumas semanas depois disso, Isabella viveu tranquila, sem ser perturbada pelas visitas de seu pretenso candidato. O pai dele resolvera que, já que Isabella era tão contra o casamento, era melhor não falar nisso por algum tempo. Dali a alguns meses seria considerado que ela atingira uma idade casadoura e, então, poderia ser possível realizar a cerimónia apesar das suas objeções. Por enquanto era cedo demais, e a morte de Ricardo estava muito recente.

O rei da França recuperou-se de sua loucura como fizera em outras ocasiões, e assim que suas aberrações mentais cessaram, ficou perfeitamente normal outra vez. Seu primeiro pensamento foi para a filha, e quando soube o que era proposto para ela e teve conhecimento da abominação que ela dedicava ao casamento, decidiu enviar o conde d Albret com uma embaixada à Inglaterra para visitar Henrique e Isabella e descobrir o que deveria ser feito. Isabella havia ido para a Inglaterra com um dote excelente. Se voltasse para a França, o dote deveria voltar com ela, e o rei, tal como Luís de Orleans, achava que a posse da coroa por Henrique poderia não estar muito firme.

Isabella, enquanto isso, continuara em Havering um tanto apreensiva. Harry fizera outra visita, durante a qual ela permanecera fria para com ele e o evitara tanto quanto possível. Ele, no entanto, não se perturbara, porque achara que com o tempo Isabella cederia, mas estava começando a perceber que aquilo que no início ele considerara um jogo divertido era uma questão mais séria que poderia acabar em derrota para ele, porque Isabella realmente o odiava e era impressionantemente fiel a Ricardo. Não havia dúvidas de que se tratava de uma pessoa de determinação, e a menos que os franceses estivessem muito ansiosos pela união, era bem provável que ela não acontecesse.

Quando o conde d Albret chegou à Inglaterra e se apresentou, o rei Henrique o recebeu com pompa em Eltham. O conde disse que queria visitar a jovem rainha, ao que Henrique replicou:

- O senhor irá encontrá-la muito triste. Ela lamenta a morte do rei. Eu não gostaria que o senhor falasse nele quando for visitá-la.

- Como isso pode ser evitado, majestade?

- Se ela falar nele, o senhor deverá responder, claro, mas insisto que o senhor não deve abordar o assunto, nem deve discutir a abdicação e a morte de Ricardo com ela. Precisarei de seu juramento nesse sentido.

O conde replicou que não tinha ido ali para falar do que agora era passado. Era com o futuro que se preocupava, e deu a sua palavra.

O rei, então, mandou um de seus guardas falar com Isabella e obter dela a mesma promessa.

- O rei está concedendo permissão ao conde d Albret para visitar a senhora - disseram-lhe - sob a condição de a senhora não falar no falecido rei com ele.

Isabella ficou perplexa.

- Como não posso falar de uma coisa que está em meus pensamentos noite e dia?

A menos que a senhora prometa - replicou o guarda -, o conde não virá vê-la. Ele prometeu ao rei.

Isabella ficou calada por um instante. Era prisioneira dos homens que odiava. Ali não havia coisa alguma para ela - nada, a não ser recordações de seu adorado Ricardo. Tinha de voltar para casa. Era o único lugar em que poderia encontrar paz de espírito e fugir das odiosas atenções de Henrique e seu filho.

Ela prometeu.

O conde chegou a Havering, onde foi recebido por Isabella em companhia da duquesa da Irlanda e algumas outras damas.

Isabella cobriu o visitante de perguntas sobre seus pais. Foilhe dito que seu pai estava bem, naquele momento; e o mesmo acontecia com o delfim Luís e seus dois irmãos mais moços e com a irmã.

- Estou com uma vontade enorme de vê-los-disse Isabella, num tom bem significativo.

- Parece, senhora, que irá vê-los em breve - foi a resposta. Aquilo era uma insinuação de que o rei não estava ansioso por deixar que a filha se casasse com um inglês.

A embaixada voltou para a França, mas não deixou claro para Henrique que não deveria haver casamento algum. O rei da França queria receber a filha de volta em sua corte. Ele, é claro, exigiria que as jóias que ela levara para a Inglaterra fossem devolvidas à França. Ela ainda era jovem, mas em determinado momento poderia ser necessário oferecer outro dote por ela. Carlos queria as valiosas jóias da filha.

Henrique não ficou muito contente com a viravolta da situação, mas não queria confusões com a França. Isabella era jovem. Poderia ser melhor ela voltar para a França, e um casamento entre ela e Harry poderia muito bem ser providenciado mais tarde. Mas, e as jóias que deveriam ir com ela? Henrique as distribuíra entre os membros de sua família. Ele podia apenas prometer devolvê-las, e comunicou aos franceses que dera ordens aos filhos para que as enviassem a ele. Deu a entender aos filhos que não dissera aos franceses que as jóias seriam devolvidas, mas apenas que mandara que fossem devolvidas; e não deviam se apressar em mandá-las para ele. Enquanto isso, outros artigos foram reunidos - taças de prata para bebidas, pratos de prata, tapeçarias que Isabella levara com ela - e esses puderam ser enviados na bagagem dela. Agora não havia mais dúvida de que Isabella voltaria para a França.

Fazia uma bela manhã de maio quando ela partiu para Dover acompanhada pela duquesa da Irlanda e das condessas de Hereford e March, Lady Mowbray e algumas outras de categoria ligeiramente inferior. Isabella olhava, com certa emoção, a paisagem do interior que estava no auge da beleza agora, viva com a promessa de verão. Os campos estavam muito verdes e as margens azul e branco com germândreas, verónicas e heras terrestres, alsinas e rainhas-dos-prados. Quando passava por bosques, ela viu de relance campainhas enevoadas ondulando debaixo de árvores e se lembrou do primeiro dia em que pusera os pés naquele país. Lembrou-se de sua perturbação, da saudade de casa... e então da primeira vez em que vira Ricardo.

Não devia continuar pensando nele. Mas como poderia evitálo? E sabia que nunca mais voltaria a ser feliz.

Henrique determinara que fosse tratada com o máximo de honrarias, e ao longo do caminho foi recebida pelos bispos de Durham e Hereford e pelo conde de Somerset, que era meio-irmão do rei, um dos filhos do lado Beaufort de John de Gaunt e Catherine Swynford.

Isabella ficou insensível com as homenagens. Sentia-se confusa. Não queria ficar na Inglaterra, mas tampouco desejava ir para a França. Tudo o que queria era voltar no tempo para o dia em que chegara e vira Ricardo. Eu o protegeria, pensou irritante e sem lógica. Eu nunca permitiria que ele fosse assassinado. Eu teria ficado com ele. Mas aquilo tudo era um absurdo. Ele estava morto e ela estava sozinha, flutuando num limbo sem querer olhar para trás, odiando estar naquele lugar; tudo o que podia fazer era olhar para trás, para a bem-aventurança que compartilhara com Ricardo.

Em Hackney, ela foi recebida pelo príncipe Thomas, irmão de Harry, que era um ano mais novo do que ele e era abominado por ela por ser filho de quem era. Mas pelo menos ele não a importunou como fizera o irmão. Isabella o recebeu friamente.

O prefeito e os vereadores tinham deixado Londres para saudála e protegê-la, enquanto ela entrava na cidade a cavalo. Não se esqueceram de que era rainha e foram gentis com ela e fizeram-na lembrar-se da tumultuada recepção que recebera quando entrara naquela cidade com Ricardo, mas Isabella desprezava todos eles. Tinham ficado impassíveis e deixado que Ricardo fosse assassinado; tinham aceitado o usurpador e o chamavam de rei.

Ela ficou instalada na Torre de Londres, e lá passou alguns dias antes de fazer a viagem até a costa, e só partiu em fins de junho. Por fim, chegou a Dover; e depois de ter atravessado o Canal em companhia de Sir Thomas Percy, membro daquela família que representara papel tão importante na colocação de Henrique no trono, Isabella foi escoltada até a cidadezinha de Leulinghen, que ficava entre Bolonha e Calais, e lá foi formalmente entregue ao conde St. Pol, para ser conduzida à corte do pai.

Quando chegou a Paris, a família a esperava. Os pais abraçaram-na calorosamente, enquanto os irmãos e a irmãzinha olhavam-na com uma franca expressão de avaliação.

Seu pai, ela logo percebeu, estava diferente do homem de quem se lembrava. Parecia abatido, o que ela considerou natural depois da doença de que sofrera. Mas ele

estava delicado e calmo e não mostrava sinal algum das tensões mentais de que devia ter sofrido. Sua mãe também estava diferente. A beleza dela era estonteante.

Isabella nunca vira ninguém mais bonita. Era uma beleza cintilante, o que tornava impossível as pessoas pararem de olhar para ela. Os irmãos e a irmã eram apenas

crianças, não tão experientes em relação ao mundo quanto ela. Eles tinham ido para a Inglaterra? Tinham se casado e enviuvado e quase obrigados a uma horrenda união com alguém que odiava? Não, eram jovens, inocentes, não tinham os sinais do tempo.

Isabella logo descobriu que havia algo estranho acontecendo. Estava cônscia de olhares velados; do modo pelo qual sua mãe e o irmão do rei, Luís de Orleans, se entreolhavam. Estava cônscia de muitos olhos vigilantes; e em breve ficou claro que havia uma intriga adúltera entre sua mãe e seu tio.

Luís de Orleans era afável. Dava-se ares de rei. Isabella sentia repugnância porque não parava de pensar no pobre pai com seus ataques de loucura e que sua mãe e seu tio o estavam enganando, e na aura de intriga que cercava a corte.

Isabella sabia que o tio estava muito cônscio dela. Estava planejando alguma coisa. O mesmo acontecia com sua mãe. E ela ficou com medo.

O tio Luís disse a ela um dia, pouco depois de sua volta:

- Que prazer ter você conosco, doce menina. Vamos ficar com você. Não se preocupe, que arranjaremos um marido digno de você.

Ela teve vontade de gritar:

- É disso que tenho medo. Eu tive um marido. Jamais o esquecerei. Não quero mais.

Depois, ela começou a se perguntar se seria mais feliz na França do que na Inglaterra. Estava ansiosa por ser criança outra vez, acreditando que tudo era bom e bonito e feito para sua satisfação. Como era triste ter de crescer e aprender a verdade. Quisera deixar o cenário inglês porque, para ela, estava manchado de vermelho com o sangue de seu marido e se tornara odioso por causa da espalhafatosa usurpação do trono. E agora estava na França, e por ser mais velha, mais experiente, sentia a tragédia ali, tão intensa quanto a que ela sofrera na Inglaterra.

O que seria de seu pobre pai, que por longos períodos de tempo perdia o juízo? O que estariam planejando, juntos, sua mãe e seu tio? Quando iriam obrigá-la a casar-se com o homem que escolhessem? Será que poderia ser mais feliz na França do que tinha sido na Inglaterra? Mas como poderia ser feliz em algum lugar, agora que Ricardo estava morto?

 

FICARA LOGO claro, para o rei, que embora ele tivesse conquistado a coroa com relativa facilidade, acharia mais difícil mante-la.

A misteriosa morte de Ricardo e o conhecimento de que o padre Maudelyn nascera com uma semelhança quase inacreditável dele serviam como uma boa base para os boatos.

Henrique temia que durante anos haveria quem declarasse que Ricardo continuava vivo e que o corpo que desfilara pelas ruas era o do padre. Outro motivo para preocupação era a existência de Edmund Mortimer, cuja reivindicação vinha antes da de Henrique. Ninguém sabia mais do que ele que a coroa que fora colocada em sua cabeça com mãos tão pressurosas estava ali com um equilíbrio muito precário.

O primeiro problema de verdade veio do País de Gales, e lá ele descobriu um temível inimigo em um homem chamado Owain ab Gruffydd, lorde de Glyndyvrdwy ou, como estava se tornando conhecido em toda a Inglaterra, Owen Glendower.

Owen estudara direito inglês em Westminster e durante certo tempo fora escudeiro do conde de Arundel, que tinha propriedades no País de Gales. Quando Arundel aderiu a Henrique de Lancaster, Owen estava com ele, embora o País de Gales em geral apoiasse Ricardo e houvesse manifestos de insatisfação por todo o país quando Harry foi feito príncipe de Gales.

O problema surgira mesmo quando Owen discutiu com Reginald Lorde Grey de Ruthin sobre certas terras que ambos reivindicavam, e Owen foi a Westminster para que o caso entre eles fosse julgado. Lá, ele foi tratado com um certo desdém, mas conseguiu que o caso fosse submetido ao rei e ao Parlamento.

- O homem está decidido a obter o que chama de justiça disseram ao rei.

Henrique, impaciente, fez um gesto como que não dando importância ao assunto.

- O que nos importam esses pobretões insignificantes? bradou ele, com desprezo. As palavras do rei foram comunicadas a Owen, que voltou furioso para o País de Gales.

Henrique fizera um inimigo para o restante da vida.

Quando a expedição escocesa foi planejada, Owen deveria ter feito parte dela, mas por vingança Grey de Ruthin só entregou a convocação quando era tarde demais para Glendower obedecer e, como ele não se juntou à expedição, Grey o denunciou como sendo um espião. Isso foi demais para um homem como Owen tolerar, e se ele não podia obter satisfação em Westminster quanto à questão de suas terras, que justiça poderia ele esperar agora? Decidiu fazer justiça pelas próprias mãos. Declarou guerra contra Grey, saqueou-lhe as terras, matou alguns membros de sua família e declarou de público que os galeses jamais teriam justiça, que eles eram tratados com desprezo pelos ingleses, e se qualquer galês quisesse marchar sob sua bandeira, eles tomariam algumas providências quanto a isso.

Henrique recebeu a notícia com consternação e no início pensou que se tratasse apenas de um levante local, mas em pouco tempo saberia que se enganara. Os galeses estavam em marcha. O lema que gritavam era liberdade e independência. Não apenas os habitantes do País de Gales uniram-se à bandeira de Owen Glendower, mas galeses que viviam na Inglaterra deixaram seus lares para viajar até o País de Gales.

Era necessário pôr um fim naquela rebelião, e Henrique marchou pessoalmente para a fronteira galesa. Owen Glendower podia ter reunido uma grande força, mas esta não duraria muito contra os grupos treinados de arqueiros ingleses. Então ele se enganou, porque Owen Glendower era astuto demais para se bater de frente com o exército de Henrique. Em vez disso, ele e seus soldados recuaram para as montanhas, onde era impossível seguilos. Eles conheciam cada pedra e cada fresta.

Aquelas montanhas eram intransitáveis e tinham derrotado outros antes de Henrique. Serviam de um baluarte perfeito. Além disso, as condições climáticas estavam traiçoeiras, e os galeses obtiveram seus sucessos, o principal dos quais foi a captura de Lorde Grey e Sir Edrnund Mortimer, o tio e guardião do jovem conde de March, que tanta gente acreditava ter mais direito ao trono do que Henrique. Simplesmente não foi possível acabar logo com o conflito. Os galeses não podiam ser conquistados com tanta facilidade assim, e aquilo que poderia ter sido resolvido pela lei-se Owen Glendower tivesse sido tratado com justiça - desenvolveu-se numa guerra que nenhum dos dois lados conseguia levar a uma conclusão satisfatória.

Henrique deixou um grupo de soldados no País de Gales e foi para Oxford, onde falou com o filho.

Harry tinha sido enviado para estudar com o tio, Henry Beaufort, que era reitor da Universidade, mas estava cansado do Queen s College e se impacientava com sua pouca idade e, portanto, quando ouviu o que o pai tinha a dizer, ficou contentíssimo.

Harry percebeu que o pai perdera um pouco da cor saudável. Ser um rei tinha suas responsabilidades, isso era óbvio, mas Henrique estava visivelmente encantado com

a aparência do filho. Harry crescera e era um retrato da saúde perfeita.

Depois de se abraçarem, Henrique disse:

- Vim ter uma conversa muito séria com você, Harry. Acho que está na hora de abandonar Oxford. Há trabalho para você.

Os olhos de Harry brilharam diante daquela perspectiva.

- Terei muito prazer em deixar Oxford - disse ele. - Não sou nenhum erudito, senhor, e nada me tornará em um deles. Quero lutar ao seu lado.

- É exatamente isso que quero que você faça, Harry. - O rei tocou a testa com um gesto de cansaço. - Há muita revolta em toda parte. Os galeses... os escoceses. E será que podemos confiar nos franceses?

- Não é hora de eu ficar me debruçando sobre livros na faculdade - concordou Harry.

- Quanto a isso, pensamos da mesma maneira, meu filho. A verdade é que preciso de você. Quisera Deus que você fosse um pouco mais velho.

- Agora estou com quinze anos, pai.

- Quinze. Juro por Deus, Harry, que você parece três anos mais velho.

Harry não cabia em si de satisfação.

- Para onde o senhor quer que eu vá?

- Para a fronteira galesa. Talvez, mais tarde, para a Escócia. Você tem de aprender, Harry. Tem de aprender depressa.

- Não se preocupe, senhor. Já aprendi muitas coisas.

- Você tem de aprender a nos defender. Temos de manter o que temos. Meu Deus, Harry, vamos ter de nos agarrar com toda firmeza.

- Eu sempre soube disso. Estarei pronto, não se preocupe. vou partir imediatamente.

O rei ergueu a mão.

- Vamos com calma. Lembre-se de que é o herdeiro do trono. vou falar com o reitor. Ele compreenderá. Você terá de se contentar com o nível de instrução que tem.

Sua tarefa, agora, é aprender a ser um soldado.

- Eu estou pronto, senhor - disse Harry.

Estava, sim. E era um filho do qual um pai podia se orgulhar. Agradeço a Deus por ele, pensou Henrique. Quem dera que fosse mais velho.

Henrique hesitou. Será que deveria contar a Harry sobre a estranha doença que ele receava que pudesse estar ameaçando-o? Resolveu não contar. Não queria mostrar-lhe a descoloração da pele e agradeceu a Deus por ainda poder escondê-la. Aquilo vinha e ia embora, e enquanto ficava ele era dominado por uma terrível lassidão.

Esperava que não fosse alguma doença horrível. Harry devia estar preparado.

Quando Harry chegou ao norte do País de Gales, foi recebido por Sir Henry Percy, conhecido como Hotspur, e um homem cerca de vinte anos mais velho, com uma das reputações mais temíveis do país. Na verdade, ele nascera no mesmo ano que aqueles dois reis, Henrique, o que reinava, e Ricardo, o que estava morto, e sua atitude para com o jovem Harry tendia a ser paternal. Um grande soldado também, Hotspur reconheceu tais qualidades em Harry; mas Harry tinha muito o que aprender. Pouco importava, iria aprender.

A casa de Hotspur ficava no norte. Seu pai era o grande conde de Northumberland, e sua família se considerava os lordes do norte e de uma importância que não era inferior à do rei. Eles estavam muito cônscios de que tinha sido o poder que eles exerciam que colocara Henrique no trono; e estavam decididos a que Henrique se lembrasse disso.

Harry reconhecia as qualidades de Hotspur e estava pronto a aprender com ele. Aquela era a vida de que ele gostava. Nascera para ser um soldado. Conquistou logo a popularidade com os soldados, portava-se sem cerimónia, e embora mantivesse uma certa dignidade, conversava com eles de igual para igual; tinha uma afabilidade que faltava ao pai, e no entanto ao mesmo tempo havia nele algo que sugeria que não seria prudente aproveitar-se de sua natureza ou de sua juventude. Hotspur reconheceu nele o dom da liderança; e aquilo o agradava.

Havia outro homem que se sentia atraído pelo caráter do príncipe, e o próprio Harry não podia deixar de gostar dele; em consequência, muitas vezes eles se encontravam na companhia um do outro. Formavam uma dupla um tanto incompatível - Harry, o príncipe, com quinze anos de idade, e Sir John Oldcastle, trinta anos mais velho do que ele - o garoto e o cínico velho guerreiro, assim que se conheceram, ficaram amigos.

Eles ficavam sentados juntos, enquanto Sir John falava de suas aventuras, que tinham sido muitas. Sua conversa era estimulante e esclarecedora e dava a Harry uma nova visão da vida de soldado.

- Nem tudo é glória, meu príncipe - disse-lhe Sir John. Há sangue, também... em grande quantidade. Não adianta ser melindroso na guerra, meu jovem senhor. Tem de

chegar primeiro e espetar as tripas do inimigo antes que ele atinja as suas. Esteja sempre um passo à frente... assim é a guerra. Mas existe outro lado. - Sir John cutucou Harry. - Oh, sim, meu pequeno senhor, há um outro lado. Butins... há vinho e boa carne, e há coisa ainda melhor. Pode adivinhar o que é? Mulheres.

Harry já estava muito interessado por mulheres, e Sir John sabia disso.

- Estou vendo que o senhor é mais um igual a mim - comentou ele, à vontade. - Eu não podia passar sem elas... nem o senhor poderá. Bem, é um esporte bom e saudável... tendo prazer aqui e tendo prazer ali, e sempre de olho na próxima. Sempre na espreita. Haverá todos os tipos para satisfazê-lo, disso eu não duvido. As morenas e as louras... e sem esquecer as ruivas. Uma vez, conheci uma ruiva... a melhor que já conheci. As ruivas são ardentes. Vossa Alteza vai aprender isso um dia, pois se parece com o velho John Oldcastle, tem uma natureza ardente e apaixonada. E é do tipo que não será desperdiçado.

Harry gostava muito daquelas conversas. Elas contrastavam com seu contato com Henry Percy, que era tão nobre, tão orgulhoso de seu nome quanto um rei poderia ser. Na verdade, pensava Harry, Hotspur se achava um rei. Esperava reinar; não suportava interferências. Certa vez, dissera que os Northumberland eram os reis do norte, e nenhum rei da Inglaterra poderia governar sem eles. Se alguém deixasse de mostrar o respeito que ele achava merecer, a fúria de Hotspur era provocada. Os homens viviam com medo dele, enquanto ao mesmo tempo o respeitavam pelo excelente líder que era.

Harry descobriu que podia trabalhar bem com Hotspur e aprender com ele, porque em Harry havia um certo instinto militar que ele reconhecia, e o mesmo faziam Hotspur e Oldcastle. O príncipe podia desfrutar da companhia daqueles homens e obter esclarecimentos de ambos. com Hotspur, aprendeu a conduzir uma campanha, enquanto Oldcastle o fazia ver as necessidades dos soldados e compreender como tratá-los.

Assim, Harry dedicou-se a estudar a arte da guerra com mais entusiasmo do que tivera condições de aplicar aos seus estudos em Oxford.

Hotspur fora nomeado guardião dos castelos de Chester, Flint, Conway e Caernarvon; era, também, juiz de Cheshire e xerife de Flintshire, além de ter todos os seus compromissos em Northumberland, que eram sua herança natural. Ele queria resolver os problemas galeses o mais depressa possível, para que pudesse voltar para sua terra natal, e dedicou suas energias a isso; no entanto, até mesmo um vigoroso guerreiro como Hotspur não podia estar em todos os lugares ao mesmo tempo, e um dia era Sexta-feira Santa - ele ficou desanimado ao saber que o castelo de Conway, uma das mais potentes fortalezas sob seus cuidados, tinha sido capturado por Rhys e Gwilym ab Tudor.

Hotspur logo convocou uma conferência que Harry presidiu, já que era, no nome, o chefe dos ingleses no País de Gales, embora ninguém soubesse melhor do que Harry que aquilo era apenas um título.

- Temos de recuperar imediatamente aquele baluarte - declarou Hotspur. - É um castelo muito importante para se perder sem dar importância. Sugiro, alteza... - ele se voltara, em deferência, para Harry... - que enviemos uma força armada para cercar o castelo. Depois que o tivermos recuperado, mostraremos clemência e prometeremos que não haverá recriminações. Penso firmemente que é assim que se deve abordar a questão.

- Sr. Percy, tem razão - concordou Harry. - Vamos agir dessa maneira, e quanto mais cedo tivermos Conway de novo nas mãos, melhor.

- Neste caso, o assunto está aprovado - disse Hotspur. Resta, agora, colocar este plano em ação.

Sir John Oldcastle disse a Harry que Hotspur estava certo.

- Ali está um homem - comentou ele - que invariavelmente estará certo em suas decisões, mas ele tem defeitos. Mas Vossa Alteza vai dizer: "E quem não tem defeitos?" Qual de nós, hein? E Vossa Alteza terá razão. Mas Percy também tem a cabeça e as esporas quentes, e apesar de seu discernimento em combate ser uma bênção do céu, lá está o demónio ao seu lado chamando sua atenção quando ele não está conseguindo tudo o que um Percy deveria conseguir. O nosso Hotspur nunca se esquece de uma desfeita, e para se vingar ele arriscaria a cabeça. Isso não é um julgamento calmo, certo? Onde está o sentido de vingar uma desfeita se para isso você perde literalmente a cabeça? Não se pode desfrutar do orgulho se não se tem uma cabeça com que fazer isso.

- Garanto que vamos tomar Conway em uma semana-bradou Harry.

- E não sou eu quem vai dizer que não, meu jovem galo de briga. Ora, com você lá para cacarejar, estimulando-nos à vitória, e com Percy para nos meter as esporas, ele estará nas nossas mãos antes da gente começar.

Olcastle estava certo. Em muito pouco tempo, tinham recuperado o castelo; e puseram em ação o plano de mostrar clemência para com os que tinham cedido aos galeses.

Enquanto se congratulavam pelo sucesso obtido, receberam um despacho do rei.

Ele se regozijava com o fato de o castelo ter sido recapturado, mas achava que, para início de conversa, ele nunca deveria ter sido perdido. Além do mais, ele não acreditava em mostrar clemência para com os que com tanta facilidade haviam entregado o castelo ao inimigo. "Se homens devem ser recompensados por nos traírem quando nós, a um certo custo, recuperamos o que foi perdido, eles irão adotar essa postura fácil quando forem sitiados outra vez", foi o comentário dele.

Hotspur ficou irritado. Não suportava críticas. Ele planejara a operação com muito cuidado e perícia. A ideia de que a sua negligência fizera com que perdessem o castelo era injusta. Além do mais, lembraram-lhe que ele não havia recebido do rei um dinheiro que lhe era devido e que, para realizar a operação recente, fora obrigado a arcar pessoalmente com grande parte das despesas.

A raiva ferveu na mente de Hotspur, e Harry ficou perturbado com aquele ressentimento que sabia que Hotspur guardava em relação a seu pai. Ele desejava poder explicar ao rei que Hotspur era um grande comandante e que na sua opinião era insensato criticar aquilo que, se o rei tivesse estado presente, teria visto que fora uma operação muito habilidosa.

John Oldcastle conversou com Harry sobre o assunto e foi imprudente ao falar, e como Harry sabia disso, ficou gostando ainda mais dele, porque aquilo mostrava que havia confiança entre os dois.

- Hotspur está perdendo prestígio junto a seu régio pai, e perdendo-o bem depressa, meu jovem príncipe - foi o comentário dele.

- Quero dizer a meu pai que grande líder ele é. Sir John, o senhor sabe que ele é o melhor que nós temos. Meu pai não tem condições de ofender um homem como Hotspur.

- Seu pai não tem condições de entrar nessas guerras, mas ele as faz, alteza.

- Ele é obrigado. Mas não precisa fazer de Hotspur um inimigo. Ele devia mandar o dinheiro que Hotspur gastou nessas campanhas. Os soldados que estão na fronteira escocesa também não foram pagos.

- Ah, guerra, guerra... questões de Estado. -Oldcastle aproximou bem o rosto do do príncipe. - Ocorreu-me uma ideia. Seu pai é um homem astuto. Garanto que ele não gosta do poder dos Percy. Nenhum grande rei quer reizinhos em seu reino. Os reis inteligentes encontram um meio de conter o poder desses pequenos soberanos. E acho que seu pai é um rei inteligente.

- O senhor quer dizer, meu amigo, que ele está tentando conter o poder dos Percy?

- Por que não? Por que não? E que melhor maneira do que fazê-los pagar pelas guerras dele? Ora, é isso que seria de esperarse de um rei inteligente.

Oldcastle deu uma forte cutucada nas costelas do príncipe. Harry confirmou com um movimento da cabeça. Gostava de pensar que o pai era astuto e manhoso. Mesmo assim, não achava que um excelente soldado como Hotspur devesse ser explorado.

Hotspur, enquanto isso, alimentava ressentimentos.

Estava ficando cada vez mais decepcionado com o rei e cansado de guerrear contra os galeses. Queria estar de volta com a sua gente em Northumberland. Aquela era a sua terra, e ele queria estar ao lado do pai para defendê-la. A disputa com os galeses só dizia respeito ao rei, e se o rei não reconhecia o que era feito em seu benefício, por que Henry Percy se preocuparia em fazê-lo?

Havia outra coisa. Sir Edmund Mortimer fora capturado pelos galeses, e Hotspur queria provocar sua libertação. Tinha um motivo sentimental para isso. Sir Edmund era irmão de sua mulher, e Hotspur sabia que ela estava aflita por causa dele. Queria ir dizer a ela que conseguira a libertação do irmão. Sir Edmund era um prisioneiro muito importante. Era o tio e guardião do conde de March, que muitos diziam ser o verdadeiro herdeiro do trono.

Hotspur, portanto, queria negociar com os galeses a devolução de Mortimer, e o rei não admitia isso, o que deixava Hotspur furioso.

Hotspur esbravejava.

- Mortimer não foi capturado a serviço do rei? - vociferou ele. E depois bradou: - Não, não há dúvida de que Henrique de Bolingbroke não quer a volta de Mortimer, porque os Mortimer estão mais perto do trono do que ele!

Quando Harry soube desse comentário, ficou apreensivo. Hotspur estava se colocando do outro lado, porque a fenda que havia entre ele e o rei estava aumentando rapidamente.

Hotspur declarou que não ficaria mais no País de Gales. Ele fizera o possível, mas seus serviços nunca tinham sido compreendidos ou reconhecidos, e já estava farto do País de Gales.

Voltaria para o baluarte de Northumberland.

Antes de partir, ele recebeu uma mensagem dizendo que um galês de alta categoria queria conversar com ele e que se o recebesse, os dois poderiam chegar a alguns termos vantajosos para os dois. Percy concordou, e um homem alto, envolto numa capa que escondia sua identidade, foi levado até sua tenda.

Percy estava pronto. Vestia sua armadura e estava preparado para uma traição. Foi grande a sua surpresa quando o visitante se revelou como sendo Owen Glendower.

- Venho em paz - disse Glendower. - Guarde sua espada, meu senhor. Como vê, não estou armado.

Percy viu que era verdade e largou a espada.

- Por que o senhor veio me ver? - perguntou Percy. - O que tem a dizer?

- Que estamos lutando uma guerra absurda. Nunca vai haver paz se vocês, os ingleses, quiserem subjugar o País de Gales. As montanhas são nossas aliadas. Devolva-me as terras que me foram tiradas, e poderá haver paz. Para esta guerra não poderá haver uni final satisfatório.

Percy ficou calado. O que Glendower estava dizendo era verdade. Jamais poderiam dominar por completo os galeses, e ainda que o fizessem durante algum tempo, sempre haveria o surgimento de problemas.

Ele mesmo estava cansado da guerra galesa; tomara a decisão de ir embora, e dali a poucos dias estaria partindo.

- Posso submeter sua proposta ao rei - disse Percy.

- Ao rei? - bradou Glendower. - O senhor se refere ao usurpador. Ao homem que se diz rei.

Percy ficou confuso e não disse nada; mas não ficou contrariado por ouvir o veneno que havia na voz de Glendower. Ele mesmo estava se sentindo cada vez mais contrário a Henrique Bolingbroke.

- Dizem por aí que Ricardo não morreu, que ele não foi assassinado por ordem do usurpador.

- Ele está morto. Tenho certeza - disse Hotspur. - Se não estivesse, Henrique jamais teria tentado casar o jovem Harry com a rainha de Ricardo. Ele não iria querer uma fileira de bastardos dizendo que são herdeiros das propriedades lancastrianas.

- Então, se Ricardo está morto, o conde de March é o verdadeiro rei.

- Há um certo grau de verdade nisso.

- Pode muito bem acontecer que se Henrique não devolver a terra que me foi tirada, se ele não fizer a paz com o País de Gales, iremos trabalhar para tirá-lo do trono e colocar em seu lugar o rei de direito. - Owen olhava fixamente para Hotspur. - É bem provável que algumas pessoas na Inglaterra pensem da mesma forma e se juntem a nós.

Hotspur estava pensativo. Depois, disse:

- Há uma questão que me toca o coração. Vocês têm como seu prisioneiro meu cunhado, Sir Edmund Mortimer. Henrique se recusou a discutir o resgate. Quero que ele seja libertado.

Owen sorriu lentamente.

- O senhor tem certeza de que ele quer ser solto? Hotspur olhou fixo, perplexo, e Owen continuou:

- Ele se apaixonou pela minha filha Catherine. Não vejo motivo para me opor ao casamento. Não acho que ele vai querer pegar em armas contra o sogro. E, naturalmente, ele gostaria de ver o sobrinho no lugar que lhe cabe por direito, o trono.

Hotspur ficou estupefato.

Percebeu que Henrique teria uma tarefa muito difícil na defesa da coroa, e não ficou contrariado. Bem-feito. Se Henrique não reconhecia o valor dos Northumberland, devia ser deposto. Além do mais, o novo rei seria seu sobrinho através do casamento, e isso parecia uma excelente perspectiva.

Claro que Henrique não abriria mão da coroa com facilidade. Mas aquela era uma situação interessante para levar para casa e analisar bem.

- vou submeter ao rei suas propostas para a devolução de sua terra e para a paz. Mas tenho poucas esperanças de que ele vá aceitar - disse ele.

- Eu também - replicou Owen. - Mas se não aceitar, saberemos como agir, não é, meu caro senhor?

Hotspur ficou em silêncio. Despediu-se de Owen Glendower e ficou muito pensativo enquanto seguia para Northumberland.

Enfurecido com Hotspur, Henrique chegou a Worcester. Lá, Harry juntou-se ao pai, e ele ficou sabendo sobre as dificuldades de guerrear no País de Gales.

- O terreno está contra nós - explicou Harry. - Os galeses conhecem cada monte e cada vale, e nós, não.

Henrique, porém, não tinha certeza disso e estava decidido a mostrar aos galeses que não podiam zombar dele; mas, quando outros uniram suas vozes à de Harry e insistiram que atacar nas montanhas era uma decisão arriscada, ele teve de lhes dar ouvidos.

Foi nessa época que apareceu no acampamento um galês, pedindo uma audiência com o rei e garantindo aos guardas que tinha ido em paz. Eles o examinaram para certificar-se de que não portava armas, e Henrique concordou em recebê-lo.

Ele disse que se chamava Llywelyn ap Gruffydd. Dava as boasvindas aos ingleses, disse ele. Seus dois filhos estavam lutando com os rebeldes e ele os queria de volta. Se Henrique lhe devolvesse os filhos, iria mostrar-lhe e ao seu exército o caminho pelos passos das montanhas e conduzi-lo ao acampamento galês.

Henrique aceitou a oferta e dali a algum tempo partiu com Llywelyn ap Gruffydd cavalgando entre ele e Harry. Sob a orientação do galês, eles penetraram fundo nas montanhas galesas, mas uma certa manhã acordaram e descobriram que o guia desaparecera. Perceberam, então, o engano de que tinham sido vítimas. Não estavam nada perto do exército de Glendower; tinham entrado, depois de vários dias difíceis de marcha, numa área difícil, onde não havia provisões, e agora tinham de achar a saída.

Henrique ficou furioso. Estava tendo dificuldade em alimentar seu exército, e eles não conseguiam encontrar coisa alguma, naquele país miserável, para ajudá-los. Tinha de encontrar um caminho de volta para uma cidade, onde seus homens pudessem comer e descansar com conforto.

Sua fúria aumentou quando soube que Llywelyn andava se jactando de ter enganado os ingleses, e os galeses pioraram as coisas ao compor baladas sobre o incidente.

Henrique seguiu de volta para a cidade de Llandovery, jurando vingar-se de Llywelyn ap Gruffydd.

- Se eu puder pôr as mãos nele, não vai viver muito para se arrepender. Rogo a Deus que não me impeça de encontrar esse homem.

Deus atendeu às suas orações, porque um dia Llywelyn entrou numa taberna na cidade e foi reconhecido por alguns dos soldados de Henrique enquanto cantava a balada sobre a frustração de Henrique, para distrair o restante dos presentes.

Pouco depois, ele estava de pé em frente a Henrique...

Os últimos meses tinham provocado uma mudança no rei. Antes de a coroa ser sua, ele tinha sido um homem calmo, que se orgulhava de suas decisões astutas. Agora, com tantas ameaças à sua posição e uma responsabilidade quase esmagadora ao lado de uma ansiedade que o atormentava de que havia algo de errado com sua saúde, ele se tornara vingativo. Não pouparia ninguém, na sua determinação de conservar a coroa; e queria fazer um exemplo de todos aqueles que fossem seus inimigos.

com um prazer selvagem, condenou o galês piadista à morte bárbara de enforcamento, estripamento e esquartejamento, e mandou que seus filhos homens se sentassem ao seu lado enquanto assistiam à terrível sentença ser executada.

Harry ficou perturbado com aquilo. O homem devia ser punido, sim, mas a sentença era rigorosa demais. Llywelyn era um bravo, e se trabalhara contra o rei, era natural que o fizesse, porque eram inimigos de seu país.

No entanto, Harry não podia manifestar-se enquanto o pai estivesse naquele estado de espírito; mas ficou, de fato, impressionado com a mudança que houvera nele e se perguntou se ele se sentia tão feliz com a coroa quanto antes de obtê-la.

Após a execução, eles deixaram Llandovery e seguiram para a abadia cisterciense de Strata Florida, que continha os túmulos de vários príncipes galeses. O rei mandou seus soldados saquearem o local.

Uma lição, disse Henrique, para todos os que se opunham a ele.

Henrique mandou chamar o filho e olhou para ele fixamente. Talvez mais cedo do que ele imagina, pensou, a coroa passará para ele. Ninguém deveria saber de seus temores quanto ao que lhe acontecia. Estava com sinais de uma doença horrível. Será que a pegara na Terra Santa, em Famagusta, talvez, Veneza, Corfu... alguma terra quente e árida onde floresciam doenças sobre as quais nunca se ouvira falar? Até ali, podia manter sua angústia em segredo. Ninguém conseguia ver as erupções em sua pele, porque por uma felicidade elas se localizavam em pontos que podiam ser escondidos pelas roupas; e ele as esquecia quando não o castigavam com sua causticante irritação. Mas às vezes temia o que elas significavam e se perguntava se pioraria.

Devia conservar a coroa até que Harry crescesse, e isso tinha de ser depressa. Henrique nunca pensara que a coroa seria tão difícil de se conservar; e não podia

ter previsto o grau de determinação com que se agarraria a ela.

- Harry - disse ele -, a notícia não é boa. Northumberland, com Hotspur, está em marcha contra nós. Sabe o que isso significa. Eles estão se unindo aos galeses.

- Isso é impossível. Hotspur lutou contra os galeses.

- O cunhado dele se casou com a filha de Glendower. Você sabe o que isso quer dizer. Northumberland e Glendower estão unindo forças contra nós.

- com base em quê?

- Leia isto - disse Henrique.

Era um documento que fora preparado pelos Percy para ser apresentado não apenas ao rei mas a todos os principais nobres do país. Era uma convocação às armas. Queriam Henrique deposto porque, como diziam, ele tinha jurado a eles, em Doncaster, quando voltara para a Inglaterra, que não queria nada mais do que recuperar sua herança e a de sua esposa. No entanto, mandara prender Ricardo, seu soberano, e o obrigara a abdicar à coroa e assumira o título e a autoridade de um rei.

Jurado que enquanto Ricardo vivesse deveria gozar de todas as prerrogativas reais e, no entanto, fizera com que aquele príncipe, no castelo de Pontefract, depois de quinze dias, morresse de fome, sede e frio e, assim, fosse assassinado.

Devido à morte de Ricardo, ele mantivera a posse da coroa que pertencia ao jovem conde de March, que era o herdeiro seguinte e direto.

Jurara governar segundo a lei; e não fizera isso. Recusara-se a permitir a libertação de S ir Edmund de Mortimer, que fora capturado quando lutava por ele, e considerara os Percy traidores por terem negociado com Glendower. Por causa disso, nós o desafiamos e pretendemos mostrar isso pela força das armas e de Deus Todo-Poderoso.

Quando Harry acabou de ler o documento, olhou desanimado para o pai.

- Então eles se voltam contra nós! Os Northumberland... e Glendower...

- E os franceses enviaram um grupo de soldados para me importunar.

- O senhor pode ter a certeza de que os franceses aproveitam todas as oportunidades - bradou Harry.

- Não tenha receio, meu filho. Nós os derrotaremos.

- Claro! - bradou Harry. - É isso que vamos fazer. Mesmo assim, ele desejava que o inimigo não fosse Hotspur.

Foi uma longa marcha de quatrocentos quilómetros, de Northumberland a Shrewsbury - os homens de Hotspur estavam ansiosos por lutar, mas se sentiam cansados e com fome; e, primeiro, precisavam descansar.

A batalha seria por Shrewsbury, porque se tomasse aquela cidade, Henrique poderia bloquear a passagem de Hotspur para o País de Gales.

Hotspur pensou no jovem Harry, pelo qual nutrira uma certa afeição. Um rapaz de quinze anos, mas que prometia. Hotspur esperava que nada de mau acontecesse a ele naquele dia. Quem dera que você estivesse comigo, Harry de Monmouth, pensou ele. Você seria um aliado melhor do que o hipócrita do seu pai, disso eu não duvido.

Mas naturalmente o garoto estaria do lado do pai. Como poderia ser de outro modo?

Os dois exércitos ficaram frente a frente. Hotspur viu um padre destacar-se das fileiras e cavalgar em sua direção. Era Thomas Prestbury, o abade de Shrewsbury, e tinha uma mensagem para Hotspur. Era a seguinte: coloque-se à mercê de Henrique, e a batalha será cancelada.

Hotspur mandou seu tio, Thomas Percy, conde de Worcester, levar sua resposta ao rei.

- Vamos, Worcester - disse Henrique -, você quer que hoje seja derramado sangue inocente?

- Procuramos justiça, majestade - replicou Worcester.

- Ponha-se nas minhas boas graças.

- Não confio nas suas boas graças - foi a resposta.

-Pois então lute - bradou Henrique. - Rogo a Deus que você possa ter de responder pelo sangue que for derramado hoje, e não eu.

Logo depois desse encontro, a batalha começou. De ambos os lados saiu uma forte descarga de flechas. Foi um combate furioso. Uma flecha atingiu Harry no rosto, mas ele continuou lutando.

- São Jorge! São Jorge! -bradou Harry. O sangue escorrialhe pela face, mas ele o ignorava. A agitação o dominava. Homens caíam por toda sua volta, e ele estava no centro da batalha.

Hotspur estava decidido a vencer. Queria matar o rei com as próprias mãos, e com cerca de trinta de seus cavaleiros mais valentes, saiu a galope contra o grupo que cercava Henrique. Mas o rei e seus soldados estavam à altura deles, e foram rechaçados.

Pareceu, então, que a vitória caberia a Hotspur. Gritos com o nome dele enchiam o ar. Harry aguentou firme. Estava no meio de uma batalha, e ele sabia que nascera para aquilo. Praticamente não sentia o ferimento no rosto.

Reuniu seus soldados à sua volta e todos esqueceram que ele tinha apenas quinze anos.

Hotspur estava certo da vitória. Destronaria Henrique. Veria o herdeiro legítimo no trono; vingaria a morte de Ricardo.

- Hotspur! - gritavam as vozes triunfantes à sua roda. Então aconteceu. Muito entusiasmado com a vitória iminente, ele só viu a flecha quando esta o atingiu. Ela furou-lhe o cérebro, e ele caiu do cavalo - morto.

Não ouviu o grito triunfante que partiu das forças do rei.

Hotspur estava morto e sua morte decidira a questão.

Aquilo foi o fim da batalha e o triunfo para Henrique.

O duque de Bretanha estava morrendo. A duquesa Joana tratava pessoalmente dele, mas enquanto o fazia não conseguia evitar que seus pensamentos se desviassem para Henrique de Lancaster e que se perguntasse como estaria ele se saindo na Inglaterra.

Ela imprensara a florzinha azul que ele lhe dera. Forget-menot. Fora assim que ele a chamara, e Joana jamais o esqueceria.

Em várias ocasiões, ele indicara o ardor de seus sentimentos para com ela e dera a entender que se não fosse a esposa do duque poderia ter havido um casamento entre os dois. Ele agora era rei. Ora, ela era filha de um rei e sua mãe tinha sido filha do rei da França. Não poderia haver dúvida quanto ao fato de que era digna de se tornar rainha da Inglaterra.

De vez em quando chegavam à Bretanha notícias do que se passava além-mar. Ela sabia que Henrique não tornara a se casar. O tempo dele tinha sido tomado, primeiro, pela conquista do trono e, depois, pela tarefa de defendê-lo; e isso, acreditava Joana, ele estava fazendo naquele momento.

Tinham havido rumores sobre a morte de Ricardo. Alguns diziam que ele fora assassinado. Uma versão era de que homens tinham entrado em sua cela e o matado. Outra era de que tinham deixado que ele morresse de fome. Mas o assassino em ambos os casos fora chamado de Henrique, porque embora, segundo se dizia, pudesse não ter cometido o ato em pessoa, teria mandado que outros o fizessem.

Aquilo devia ter sido necessário, argumentou Joana.

Perguntava-se se algum dia ele pensara nela ou se sua mente estava inteiramente tomada pelos emocionantes acontecimentos à sua roda.

Suponhamos que ele mandasse buscá-la; ela teria podido ir para o lado dele? Àquela altura, teria sido impossível. Estava se esquecendo do seu filho, agora duque de Bretanha e menor de idade. Não poderia deixá-lo.

Tinha medo de Clisson; sabia que ele tinha uma filha muito ambiciosa, a esposa do conde de Penthievres, que acreditava que por intermédio dele tinha mais direito ao trono de Bretanha do que o filho de Joana.

Clisson era um homem honrado, e embora o pretendente rival ao trono tivesse se casado com sua filha, ele considerara o falecido duque como o verdadeiro herdeiro da Bretanha. Joana acreditava poder lidar com ele.

Nisso, ela mostrou que estava certa. Prometeria concessões a Clisson; ficaria sendo regente e, com a ajuda dele, governaria o ducado até que seu filho ficasse em condições de fazê-lo. O duque de Borgonha, que era tio de Joana, e o rei da França teriam a guarda do ducado e dos jovens membros da família até que eles atingissem a maioridade.

Joana mostrara, na verdade, uma grande astúcia ao provocar essa reconciliação, porque o poder, a riqueza e a popularidade de Clisson, se usados contra ela, poderiam ter tirado a herança de seu filho.

Mas assim que Clisson deu a sua palavra e assinou o tratado, ele passou a ser o partidário do pequeno duque tão forte quanto Joana poderia desejar, o que foi comprovado quando sua filha Marguerite, que quisera o ducado para o marido, foi procurar o pai muito agitada e perguntou-lhe por que ele agia contra a própria família.

- Tanta coisa dependeria do senhor - dissera ela. - O senhor poderia nos dar a Bretanha. Meus filhos são os herdeiros dela.

- Você está pedindo demais - replicara Clisson. - O duque de Borgonha está vindo para cá. É possível que ele leve as crianças junto para a corte francesa. Ele agora é um dos guardiões delas.

- Pai - bradara a ambiciosa Marguerite -, ainda há tempo para eliminá-las.

- Eliminá-las? - respondera ele. - Você está louca?

- O senhor poderia mandar matá-las. Se elas não existissem mais, nosso caminho estaria livre.

Clisson ficara tão horrorizado, que bradara:

- Como você é má! Você me pede para matar aquelas crianças inocentes. Eu preferiria matar você. - E seu nojo era tão grande que momentaneamente ele falara sério e sacara da espada.

Ela, vendo a disposição nos olhos dele, girara sobre os calcanhares e fugira, e ao fazê-lo caíra de cabeça por um lanço de escada. Ela iria lembrar-se sempre daquele encontro, porque quebrou o fémur, que nunca se solidificou como devia e a deixou manca pelo resto da vida.

O duque de Borgonha chegou a Bretanha, e Pierre, de doze anos de idade, que agora era chamado de John, foi vestido com o hábito, o diadema e a espada ducais, e na mesma cerimónia seus irmãos mais novos, Arthur e Jules, foram feitos cavaleiros.

Agora que seu filho fora proclamado duque e contava com o poderoso duque de Borgonha e o rei da França como seus guardiões, e Oliver Clisson jurara apoiá-lo, Joana sentiu-se livre.

Se Henrique mandasse buscá-la, ela poderia ir; mas sabia que o papa jamais concordaria com o casamento, e como consegui-lo sem aquela aprovação?

O fato era que o cisma papal agora existia, e a Inglaterra apoiava Bonifácio, que era chamado de antipapa por aqueles que davam apoio a Benedito, como fazia a Bretanha.

Mas Joana não tinha por natureza aceitar obstáculos.

Henrique ainda não sugeria um casamento, e só os dois sabiam dos sentimentos que tinham provocado um no outro. Ela imaginou um plano de pedir ao papa uma autorização para se casar com um homem de sua escolha dentro do quarto grau de consanguinidade. Não ficara viúva havia muito tempo; era muito jovem, de modo que parecia razoável prever que poderia querer casar-se outra vez. O apelo ao papa foi redigido com tamanho cuidado, que ele não viu motivos para não dar seu consentimento, e foi o que fez, sem fazer a mínima ideia de que o marido que Joana tinha em mente era aquele rei que Benedito chamara de rebelde.

Ela ficou satisfeita com sua esperteza.

Quando mandou uma mensagem a Henrique para dizer o que fizera, ele respondeu com entusiasmo. Queria que se casassem por procuração, sem demora. Joana enviou, então, um de seus escudeiros, um certo Antoine Riczi, e lá no palácio de Eltham teve lugar o casamento por procuração.

Era impossível manter segredo por muito tempo sobre um acontecimento como o casamento do rei da Inglaterra com a viúva duquesa de Bretanha, e a Corte Papal em Avignon ficou sabendo e imediatamente mandou avisar a Joana que ao participar daquele casamento ela cometera um pecado mortal. Ela prometera viver em matrimónio com um partidário de Bonifácio.

Joana, no entanto, não permitiria que um decreto daqueles a impedisse de casar-se com o homem que escolhera, e quando deixou isso claro, Benedito, percebendo que poderia perder seu apoio, deu permissão para que ela vivesse com Henrique, desde que não se desviasse de sua fidelidade a ele, o verdadeiro papa. Era bem possível que ela pudesse fazer com que seu marido corrigisse os erros de sua conduta e atraí-lo de volta para o rebanho.

O duque de Borgonha chegara à França com ricos presentes para a duquesa e seus filhos. Ela mostrara, com seus atos decididos, ser uma mulher merecedora de respeito, e era desconcertante pensar que ela se aliaria àquele velho inimigo, Henrique da Inglaterra.

A própria Joana ficou encantada com aquela demonstração de amizade e achou que podia, em sã consciência, deixar os filhos sob a tutela do poderoso duque de Borgonha.

Despediu-se dos filhos e assistiu à partida deles para a corte da França, sabendo que o rei da França manteria a paz na Bretanha e preservaria o ducado para o filho dela. As duas filhas, Blanche e Marguerite, viajariam com ela para a Inglaterra.

Foi uma travessia agitada, e houve uma hora em que Joana pensou que nunca veria a Inglaterra; pretendia desembarcar em Southampton, mas o vento era tão forte, que o navio em que se encontravam foi levado ao longo da costa. Tiveram sorte de poder desembarcar em Falmouth.

À frente de sua comitiva, ela cavalgou para o interior, e em Winchester teve o prazer de ver Henrique que, quando soubera que ela desembarcara em Falmouth, fora recebê-la a toda velocidade.

Foi um momento de grande alegria para ela quando os dois ficaram frente a frente.

Ele tomou-lhe a mão e a beijou.

- Parece que faz muito tempo que nos vimos pela última vez - disse ele.

- Mas eu guardei a flor que você me deu. Lembra-se?

- Pode ter certeza de que me lembro. A mensagem dela era "não me esqueça".

- Então, está tudo como antes...

- E ficará assim enquanto nós dois vivermos.

Eles entraram na cidade cavalgando lado a lado; e no dia seguinte o casamento foi celebrado na igreja de St. Swithin, com grande pompa e cerimónia.

Henrique estava decidido a homenagear sua mulher.

O velho conde de Northumberland ficou abaladíssimo quando soube da morte do filho. Hotspur fora um grande nome; era o filho favorito do pai, e sua derrota e morte deveriam mergulhar a casa de Northumberland num luto profundo e doloroso.

Mas não por muito tempo. O velho conde bradava por vingança. Ele iria consegui-la, e não descansaria enquanto não tivesse derrubado Henrique de Lancaster do trono que ele não tinha direito algum de ocupar.

Ele ainda estava em contato com Owen Glendower. Os Mortimer estavam com eles. Tinham direito ao trono. A causa deles era justa. Juntos, continuariam a lutar, e ao inferno com os usurpadores.

O poder dos Percy era grande; significavam mais do que barões da fronteira; eram os reis da fronteira.

- Temos defendido essa fronteira à nossa custa, há anos declarou o conde. -Vamos continuar fazendo isso para o bem de Henrique de Lancaster?

Northumberland ficou possuído de uma dor furiosa quando soube que o corpo do filho, que recebera um enterro digno em Whitchurch, fora exumado por ordens do rei. Que tinha sido levado numa carroça rústica para Shrewsbury, fora salgado para evitar a decomposição e instalado entre duas pedras de moinho perto do pelourinho, para que todos pudessem ver qual tinha sido o fim do orgulhoso Hotspur.

- Ele é um inimigo demasiado importante para ficar na obscuridade - disse Henrique. - Quero que o mundo todo veja o que aconteceu a ele por ter desafiado o rei.

A cabeça de Hotspur foi decepada e o restante do corpo foi cortado em quartos e enviado para exibição destacada em Newcastle, Chester, Bristol e Londres. Quanto à cabeça, Henrique mandou que a colocassem em York, sobre a porta norte da cidade, para que ficasse voltada para a parte do país sobre a qual Hotspur governara por tanto tempo.

O velho conde ficou louco de dor. Ele só vivia para a vingança. Quando recebeu uma mensagem do rei dizendo que se ele fosse a York os dois iriam conversar e resolver seus ressentimentos, não teve alternativa se não aceitar o convite. Henrique sabia que ele teria de passar pela porta norte, sobre a qual estava a cabeça do filho.

Quando Northumberland entrou a cavalo em York e viu aquela terrível relíquia, encheu-se de um ódio exaustivo contra o rei.

- Mil maldições para Bolingbroke - resmungou ele. Pouco depois, ele perceberia que tinha sido um louco em ir. Henrique não tinha intenção alguma de chegar a um acordo com ele por enquanto. Ele disse ao idoso homem que vários de seus castelos seriam confiscados e ele mesmo ficaria confinado perto de Coventry, até que seu caso pudesse ser julgado pelos seus pares.

Aquilo foi o máximo de humilhação. E havia mais. Mas de nada adiantava permitir que o orgulho atrapalhasse o que ele pretendia fazer. Ele tinha de dar uma demonstração de humildade, se quisesse salvar a vida, e tinha a intenção de salvá-la, ainda que apenas com a finalidade de vingar-se de Bolingbroke. Acabou sendo decidido que como ele não participara realmente da batalha, não poderia ser julgado culpado de traição, de modo que seria apenas multado; e se jurasse servir lealmente ao rei no futuro, poderia voltar para Northumberland.

Henrique era um homem que não cumpria promessas; Northumberland agiria do mesmo modo.

Sim, ele concordaria com tudo. Mas quando voltasse para Northumberland, tramaria a derrubada do homem que se intitulava rei.

Northumberland estava decidido. Ele entrara em contato com Owen Glendower; fizera um pacto com os escoceses que, agora que ele ficara contra os ingleses, tinham um interesse comum.

Henrique sabia disso. Ele deveria ter destruído Northumberland quando tivera a oportunidade. Deveria ter sabido que o conde jamais se esqueceria nem perdoaria o que Henrique fizera com o valoroso Hotspur.

Henrique marchou para o norte. Era inverno, e ninguém se lembrava de ter passado por um inverno tão rigoroso. A neve cobria o chão com uma camada espessa, e na região norte do país em especial, aquele seria conhecido durante anos como o inverno do gelo.

Não eram as condições meteorológicas ideais para participar de batalhas, mas Northumberland estava decidido. Tinha de recuperar o que lhe fora confiscado e tirar o usurpador do trono.

Henrique não teve outra alternativa que não a de entrar em combate. Foi o que fez. Seus efetivos eram em maior número; seus soldados estavam melhor equipados. A batalha foi curta e decisiva, e Northumberland caiu do cavalo quando uma flecha o atingiu, ferindo-o mortalmente.

Henrique estava triunfante.

Aquele deveria ser o fim da rebelião no norte. Os homens precisavam compreender o que acontecia quando eles vinham enfrentar o rei.

Tinham chegado a um lugarejo chamado Green Hammerton, e lá ficou decidido que passariam a noite.

O rei e seus auxiliares mais chegados foram instalados em uma mansão, enquanto os soldados encontraram alojamento na cidade e, apesar do frio que fazia, alguns armaram barracas.

Henrique estava molhado e com frio; os membros estavam duros, e ele queria vinho quente e adoçado, comida quente e uma cama para descansar.

Tirou algumas peças de roupa e o vinho lhe foi levado. De repente, ele atirou a taça para longe, gritando.

- O que foi que vocês fizeram? Quem é o traidor? Quem jogou fogo em cima de mim?

Aqueles que estavam à volta dele encolheram-se, horrorizados, porque o rosto dele tinha ficado roxo, e eles viam pústulas aparecendo na pele. Ele devia ter apanhado uma doença terrível.

- O que é isso?-bradou Henrique. - O que é isso? - Ele levou as mãos ao rosto. - Por que me olham dessa maneira? O que me aconteceu?

- Majestade - disse um dos assistentes -, devíamos mandar chamar o seu médico imediatamente.

Henrique se deitou na cama. Tocou o horror que estava no seu rosto. Sabia que era o mesmo que estivera aparecendo no corpo. Agora, não podia mais escondê-lo.

Havia uma palavra que sempre lhe vinha à cabeça. Lepra! Ele a havia visto em suas viagens. Oh, Deus, rezava ele, permita que isso não me ataque... Faça qualquer coisa... mas não me faça sofrer disso. A morte de Ricardo pode ser obra minha, eu sei. Mas foi para o bem do país. Não, Senhor, pelo meu bem. Tire isso de mim... e me peça qualquer coisa... e farei. Vou suportar... mas não... a lepra...

Ele não podia sair do quarto. Não poderia ser visto daquele jeito. Ele se perguntava o que seria dele, do país. Harry ainda era muito criança. Henrique continuou a rezar de forma incoerente. Tocou o rosto. Sabia que seu aspecto era horrendo...

Os médicos chegaram. Deram-lhe poções e unguentos, e em poucos dias as terríveis pústulas quase tinham desaparecido. O rosto ainda estava descorado e a superfície da pele, áspera; mas pelo menos ele podia aparecer.

O sucesso de derrotar Northumberland tornara-se amargo. Agora voltou a atenção para Glendower. Harry estava na frente galesa. Henrique agradecia a Deus pelo fato de seu filho ter-se tornado um grande soldado. Ele estava fazendo um bom trabalho no País de Gales e já provocara a defecção de vários nobres importantes que tinham apoiado Glendower.

Harry conseguiu recuperar Harlech e capturar a filha de Glendower e seus filhos de Mortimer depois que Sir Edmund

morrera no cerco.

A batalha deixou Glendower sem exército. Ele fugiu, mas ainda estava livre para perambular pelas suas montanhas e tentar reunir uma força. Henrique, no entanto, estava confiante em que aquilo nunca seria grande coisa mais do que uma escaramuça ocasional. Eles teriam de ficar vigilantes, nada mais.

O sucesso deveu-se à brilhante liderança do jovem Harry. Ele era um filho de que um pai devia orgulhar-se. Estava crescendo. Já era experiente, apesar da pouca idade, para comandar um exército.

Henrique poderia ter-se sentido mais tranquilo do que se sentira desde que assumira o trono, não fora o fato de estar sempre à espreita do maior inimigo de todos, de cuja identidade ele não tinha certeza mas temia muito que pudesse ser a temível lepra.

Harry precisava se casar. Quanto mais cedo, melhor. Tinha de ter filhos para o sucederem. O lado lancastriano da árvore genealógica dos Plantagenetas devia ser fortalecido.

Isabella da França ainda não se casara. Era bem possível que depois de todo aquele tempo a menina tivesse superado sua obsessão por Ricardo. Poderia estar pronta a pensar na possibilidade de um casamento - ou a família dela poderia estar, o que era mais relevante. E por que o noivo não devia ser o outrora rejeitado Harry de Monmouth?

 

QUANDO ISABELLA voltou para a França, logo percebeu que havia algo de muito errado na corte de seu pai, e aos poucos começou a compreender do que se tratava.

Seu pai tinha acessos de loucura. No início, as pessoas não falavam nisso com ela. Apenas ouvira dizer que ele tinha ataques. Aqueles ataques poderiam durar meses, e quando estavam atuando, ele era trancado no palácio St. Pol, aquela residência em Paris onde ela passara grande parte de sua infância. Quando se recuperava, seu pai ficava tal como ela sempre se lembrava dele, delicado e aparentemente em pleno gozo de seus sentidos, mas ela detectava uma desconfiança nele e nas pessoas que o cercavam e sabia que eles estavam à espera que a doença se manifestasse outra vez.

Havia sua mãe - bela, e vigorosa, a ponto de parecer ser a verdadeira governante da França, com o tio Luís, é claro.

Luís, duque de Orleans, irmão de seu pai, fora nomeado pelo rei para ser o regente durante seus acessos de loucura. A rainha, que exercia grande influência junto ao rei, aconselhara isso, e às vezes parecia a Isabella que a mãe e o tio queriam que seu pai enlouquecesse, porque quando isso acontecia o tio Luís se portava como se fosse o rei, e ficava claro para todo mundo - até mesmo para a jovem Isabella - que Isabeau agia como se Luís fosse não apenas o rei no trono, mas em seu leito também. O fato era que aquela intriga adúltera entre a rainha Isabeau e o duque Luís de Orleans estava se transformando num escândalo não apenas na França toda, mas fora dela.

E depois, havia o tio de seu pai, o duque de Borgonha, um homem sério, que deplorava o que se passava e não fazia segredo disso.

Era uma situação muito triste, e Isabella ansiava como nunca pelos felizes dias em Windsor, quando Ricardo saíra a cavalo para vê-la e tinham sido muito felizes juntos.

- Nunca mais tornarei a ser feliz - lamentou-se ela.

Mas gostava, no entanto, de estar de novo com a família. Havia seus três irmãos e três irmãs; porque recentemente nascera uma garotinha. Recebera o nome de Katherine.

As menininhas ficaram alojadas no palácio St. Pol, e ninguém se importava muito com elas. Quando o rei ficava doente, era levado para uma parte do palácio e trancado em companhia de uns poucos auxiliares. Muitas vezes Isabella ficava acordada e ouvia os estranhos sons que vinham dos aposentos do pai. Ela fazia o possível para tomar conta das garotinhas, porque as amas nem sempre eram cuidadosas, e quando Isabella disse isso à mãe, a rainha declarou que elas seriam demitidas, mas nada fez nesse sentido. Ela parecia ocupada demais com os seus problemas, que na maior parte consistiam em receber e ser recebida pelo duque de Orleans. Isabella achava o duque o homem mais bonito que ela já vira e que sua mãe era a mulher mais bonita. Parecia inevitável que os dois fossem amantes. Ela se perguntava se o pai sabia. Parecia que todos os demais sabiam, de modo que talvez ele também estivesse a par.

Era uma vida estranha para uma pessoa que tinha sido rainha da Inglaterra; agarrava-se a suas recordações da vida com Ricardo. Isabella segurava a pequenina Katherine no colo e as outras se agrupavam em torno dela, enquanto ela lhes contava histórias de sua vida na corte inglesa; e sempre Ricardo aparecia naquelas histórias, o cavaleiro na armadura brilhante.

Isabella mantinha os ouvidos abertos e descobriu muita coisa sobre o que acontecia na corte de seu pai. Assim que o tio Luís assumiu o poder, lançou um imposto sobre o clero e sobre o povo que os deixou muito irritados. Alguns diziam: "Não vamos suportar mais o governo desse jovem libertino e sua desavergonhada concubina."

E a desavergonhada concubina era a mãe de Isabella!

Oh, a situação era muito lamentável.

Era difícil não gostar do tio Luís - que, além de ser bonito, vivia de bom humor e era sempre generoso; era divertido, e sempre havia risadas onde ele estivesse; usava roupas requintadas e era notório pela extravagância. Sempre tratava Isabella como se gostasse muito dela, e quando ela chegara à França ele se declarara muito irritado com a maneira pela qual Ricardo fora tratado. Na época, ela sentira um grande consolo ao ouvir os elogios a Ricardo serem cantados e o usurpador rei da Inglaterra difamado.

- Eu odeio os dois, ele e seu filho Harry - disse ela. - E eles tentaram me casar com Harry. Eu não quis saber dele.

O tio Luís disse que era claro que não! Ela era bonita e importante demais. O quê, a filha do rei da França casar-se com o filho de um impostor! Era verdade que ele detinha o título de rei naquele momento, mas quanto tempo aquilo duraria?

- Irei lutar contra ele em seu nome - declarou ele.

- Como poderá fazer isso, tio Luís?

- Desafiando-o, minha querida. Ele roubou seu dote e assassinou seu marido. vou desafiá-lo a me enfrentar na arena.

- O senhor não faria isso, tio - sussurrou ela.

- Faria, sim, minha querida. vou mandar um desafio a ele agora mesmo.

No afetado estilo com que Luís de Orleans fazia tudo, ele enviou o desafio.

A mãe de Isabella ficou encantada.

- É típico dele! - disse ela. - É um cavalheiro muito galante. - Depois, acrescentou: - Henrique não vai aceitar, isso eu lhe prometo.

Mas na verdade ela estava prometendo a si mesma. A última coisa que queria que o amante fizesse era participar de um combate que poderia acabar na morte dele.

Ela estava certa. Henrique tratou o desafio com desprezo.

- Não conheço precedente algum que dê o exemplo de um rei coroado entrar na arena para duelar com um súdito - foi a sua fria resposta. - Por mais alto que seja o nível desse súdito.

Aquilo fez com que Luís se enfurecesse e ficasse agitado. A rainha Isabeau estava ao seu lado quando recebeu a resposta, e mandou chamar a filha para que visse como o tio era um galante defensor.

- vou responder a isso! - bradou Luís. - vou humilhá-lo!

Luís se sentou e escreveu com a rainha Isabeau inclinada sobre ele, observando, aplaudindo e acariciando-lhe a nuca, enquanto ele escrevia.

"Como pôde deixar que a rainha da Inglaterra voltasse para seu país natal, desolada com a morte do marido, despojada do dote e de tudo que levou com ela por ocasião do casamento? Quem busca a honra deve esposar a causa dela. Não estão os nobres cavaleiros obrigados a defender os direitos de viúvas e virgens de vida virtuosa como se sabe que minha sobrinha leva? É por esta razão que eu o desafio." com sarcasmo, ele acrescentou: "Devo agradecer-lhe o cuidado que teve para comigo ao se recusar a aceitar esse combate, o que é mais do que fez pela saúde e pela vida de seu real e legítimo rei Ricardo."

- Isso - bradou o duque - irá perturbá-lo. Sei que há uma coisa que nunca deixa de irritá-lo, e isso é uma referência ao assassinato de Ricardo no castelo de Pontefract. Sou capaz de jurar que esse ato o perseguira pelo resto da vida. No entanto, se ele nunca o tivesse cometido, como poderia ter-se tornado rei da Inglaterra?

O bilhete provocou, de fato, uma resposta de Henrique.

Luís riu dela com Isabeau, enquanto a lia em voz alta. com muita indignação, Henrique negava ter tido alguma participação na morte de Ricardo.

- Deus sabe como e pelas mãos de quem meu primo... que Deus o absolva... morreu, mas se o senhor estiver dando a entender que aquela morte foi provocada por mim, estará mentindo e o fará abominavelmente sempre que afirmar isso.

Nada mais foi feito sobre o assunto, e os meses passaram-se. Para Isabella, parecia que havia uma tensão permanente, como se a desordem estivesse pronta a estourar a qualquer momento. A mãe dela e o tio Luís estavam sendo muito francos no seu relacionamento; o pai estava dominado pela melancolia; o tio do pai, o duque de Borgonha, vivia insistindo com o rei para que fizesse alguma coisa, ameaçando que se não reagisse perderia a coroa. Será que ele queria se ver na situação de Ricardo da Inglaterra, que estava morto?, perguntava ele. Isabella queria protestar. Queria gritar que não era culpa de Ricardo. Era devido aos malévolos homens ambiciosos que o cercavam. Mas ninguém lhe daria ouvidos, é claro. Ele tinha medo do filho do duque, que era conhecido como João o Destemido, conde de Nevers. Era um homem violento, que não tinha o cuidado com o que dizia e sobre quem falava. Sempre parecia estar no centro de alguma causa e jurando vingança contra alguém. Ela ficava contente quando ele não estava na corte.

O duque de Borgonha estava sempre tentando convencer o rei a tirar a regência das mãos de seu irmão de Orleans naqueles períodos em que ele não tinha condições de reinar. O rei vacilava, mas Isabeau sempre conseguia persuadi-lo. Era uma mulher fatal que conseguia ter seu reprimido caso de amor com Luís de Orleans na presença do marido e dar um jeito de enganá-lo.

Isabella jamais esqueceria o dia em que o monge agostinho foi à corte para pregar. Ele se chamava James Legrand e era famoso pelos seus escritos e pela franqueza de seus sermões, e o tema de seu sermão foi a corrupção do poder e a licenciosidade. Estava claro que o alvo era a corte.

Durante o sermão, o rei levantou-se de sua cadeira e foi sentar-se mais perto do pregador, ficando bem à sua frente, a fim de que pudesse observá-lo enquanto ele falava e não perder uma só palavra.

- O rei, pai de Sua Majestade - disse Legrand -, tributou igualmente o povo, mas o fez para construir fortalezas e defender o país. Salvou seus tesouros e tornou-se o mais poderoso dos reis. Agora, nada disso é feito. A nobreza de hoje em dia gasta o dinheiro em diversões; vive na devassidão; usa roupas com bordas ornamentais e grandes punhos. - Ele se voltou para a rainha e com voz ameaçadora disse: - É essa a vergonha da corte, ó rainha. Se Vossa Majestade não acredita em mim, vista-se como camponesa e vá até a cidade e se misture com o povo, para que possa ouvir o que ele diz.

A rainha ficou enfurecida. Disse que o pregador deveria ser preso. Que apodrecesse numa masmorra e descobrisse as palavras ousadas que teria de expressar então; mas pelo menos daquela vez ele manifestou sua vontade.

- Nada disso - disse ele. - O que esse homem diz faz algum sentido. É verdade o que ele falou sobre meu pai. Quem dera que eu fosse como ele.

O duque de Borgonha estava ao lado do sobrinho.

- Fique avisado - disse ele. - Durante sua doença, o país está sendo levado à ruína. Seu irmão é muito irresponsável, muito frívolo. Sua moral não é das mais altas. A mulher dele se preocupa muito com ele. Violante Visconti é uma boa esposa para ele, e como ele a trata? Ele lhe é notadamente infiel. Ela é uma mulher infeliz. Vossa Majestade precisa tirar dele o poder de governar quando Vossa Majestade está atacado. Há outros mais adequados para essa tarefa.

- Refere-se ao senhor mesmo, meu tio.

- Sou de uma época mais séria, sobrinho. Verá que muita gente me apoia.

O rei ficara tão impressionado com o sermão, e com o fato de ser verdade que havia muita gente que apoiava o duque de Borgonha, que cedeu. Sabia, no fundo do coração, que aquilo era o correto, embora não pudesse deixar-se acreditar no que era tão espalhafatosamente óbvio, o fato de seu irmão ser amante de sua mulher.

Quando a rainha soube que o poder fora transferido para Borgonha, ficou furiosa. Luís também. Os dois não gostavam de Borgonha, que, sabiam eles, controlaria as rédeas com firmeza tão logo as tivesse nas mãos. A vida não seria tão divertida quanto vinha sendo.

- Que a peste pegue Borgonha! - bradou Luís de Orleans, mas do que adiantavam as palavras? Era verdade que sob o comando de Borgonha foi imposta uma nova regra de lei e ordem. O famoso duque dava um exemplo ao país com sua exemplar vida familiar. Cercava-se de homens iguais a ele, cujo grande desejo era preservar o país, e o povo estava começando a ver a diferença que um bom governante podia fazer. Não havia mais as orgias que a rainha adorava fazer à custa do Estado. Borgonha não podia acabar com a intriga entre ele e Luís de Orleans mas conseguiu corrigir muita coisa errada, e ficou com o povo do seu lado.

Isabella estava, agora, com dezessete anos. O dia em que ficara sabendo que perdera Ricardo acontecera havia muito tempo, mas para ela continuava muito recente.

Não amaria ninguém, a não ser Ricardo. Ele estaria sempre em seus pensamentos, para ficar entre ela e qualquer que fosse o homem com quem a casassem; e iriam casá-la. Não deixariam que ela vivesse muito tempo solteira.

A situação chegou a um ponto decisivo quando veio uma embaixada da Inglaterra. Ela levava uma notícia surpreendente. Parecia ser um segredo, mas Henrique da Inglaterra declarava que se o rei da França lhe desse a mão de sua filha Isabella ao filho dele, Harry, príncipe de Gales, ele próprio abdicaria em favor do filho.

Aquilo era surpreendente. Henrique abdicar? Por quê? Os rumores da terrível doença que o atacara deviam ser verdadeiros.

Poderia ele estar, mesmo, sofrendo de lepra? Fora a doença que acabara com o grande guerreiro escocês, Robert, o Bruce, havia anos. Sofrendo dela, a pessoa ficava com um aspecto tão horripilante que não tinha outra alternativa a não ser esconder-se e, assim, manter-se afastada da sociedade.

Isabella, rainha da Inglaterra uma vez mais! Era uma perspectiva brilhante.

Era necessário transmitir a informação a Isabella. Havia uma tradição segundo a qual a mulher que se casasse pela primeira vez por razões de Estado devia ter uma certa opção no segundo casamento. Além do mais, Borgonha não tinha certeza - seus assessores, também não - de que aquele casamento com a Inglaterra era o melhor possível naquele momento. Se Henrique estivesse mesmo incapaz de reinar e pronto a ser substituído pelo filho, isso não seria uma admissão de fraqueza? Se queria um casamento com a França, poderia isso significar que ele estava procurando a paz ou, pelo menos, uma trégua, por temer que seu controle estivesse enfraquecendo? Um país não lutava com outro quando havia uma aliança entre eles pelo casamento.

Os franceses estavam na dúvida.

Quando a proposta foi submetida a Isabella, ela foi veemente

em sua recusa.

- Jamais irei para lá. Jamais viverei entre os assassinos de meu marido. Qualquer coisa... qualquer coisa, menos isso.

- Qualquer coisa? - disse o duque de Orleans. - Querida sobrinha, é necessário que você se case, como sabe.

- Eu sei - replicou ela. - Mas não me casarei com Harry de Monmouth.

Como Isabella estava tão decidida e o conselho tinha muitas dúvidas, pareceu uma boa saída deixar que Isabella decidisse, mas ninguém sabia melhor do que ela que se tivesse sido interessante para seu país que ela se casasse com Harry de Monmouth, ela teria sido obrigada a fazê-lo.

Foi então que seu tio Luís lhe falou sobre o filho dele, Charles de Angoulême.

- Ele adora você - disse Luís. - É um desejo muito caro para mim... e para sua mãe... que vocês dois se casem.

- Não acho que minha mãe se importe muito com o que possa me acontecer - disse Isabella.

- Oh, minha querida - bradou Luís, tentando mostrar grande preocupação -, não deve dizer isso. Ela gosta muito de você... de você e de seus irmãos e de suas irmãs.

- Não tenho percebido isso, senhor - replicou Isabella, com frieza. - Minhas irmãs estão precisando de roupas novas. A comida delas não é das melhores. Disseram-me que não há dinheiro para alimentá-las e vesti-las de acordo com o nível delas. Minha mãe naturalmente, precisa desse dinheiro para suas bordas ornamentais e seus punhos grandes.

Luís soltou uma risada.

Você andou ouvindo as divagações daquele pregador miserável. Se eu pudesse, ele seria metido num calabouço e deixado por lá.

- Disso eu não duvido - replicou Isabella. - Mas saiba de uma coisa. Não quero me casar.

- Ora vamos, minha querida. Você não foi feita para desperdiçar o tempo. Ora, você é uma beldade. Um dia, será igual à sua mãe.

- Rezo para não ser.

- Ela é a mulher mais bonita da França.

Isabella ficou em silêncio. Um medo terrível tomou conta dela. Eles iriam fingir, durante algum tempo, que queriam o consentimento dela, e quando ela se recusasse, iriam obrigá-la. Conhecia os métodos deles.

A possibilidade de um casamento foi temporariamente esquecida porque, para grande alegria de Orleans e da rainha, o duque de Borgonha caiu doente. Pouco tempo depois, morreu. O novo duque de Borgonha era seu filho John, o Destemido, conde de Nevers.

A França inteira esperava, apreensiva, o que aconteceria em seguida.

Luís estava mais ansioso do que nunca, agora, para conseguir o casamento de seu filho com Isabella, e a rainha disse à filha, com firmeza, que não deveria haver mais demora.

- Você quer que a mandemos para a Inglaterra? - perguntou ela. - É isso que vai acabar acontecendo, pode estar certa, se você se demorar muito mais. Há quem acredite que seria bom conseguir uma trégua com a Inglaterra, e eles a conseguiriam com esse casamento. O novo duque de Borgonha é contra continuar com a guerra. Você pode adivinhar o que ele tem em mente. Há seu primo Charles. Sei que ele é mais novo do que você, mas isso dará a você a oportunidade de moldá-lo à sua maneira. Vamos, Isabella, não seja tola. Case-se com Charles. É isso que quero para você, e também o que quer seu tio Luís.

- E o meu pai? Ele quer?

- Seu pobre pai, infelizmente, está em uma de suas fases crepusculares. Ele não sabe o que quer. Mas quando estiver com a cabeça boa, concordará que isso é o certo para você. Pense, menina, isso a manterá conosco. Você quer ir para uma terra estranha? Quer ser mandada de volta para o filho do assassino de seu primeiro marido? Ouço falar sobre a vida que o jovem Harry leva. Farreando em tabernas... escolhendo as mais baixas das companhias. Não é o tipo de marido que serviria para sua natureza sensível e seus gostos refinados. Se quisessem encontrar para você um homem que fosse o mais diferente de Ricardo possível, não poderiam escolher melhor.

E assim a situação continuou, e por fim, ela concordou.

Houve uma grande alegria, e sua mãe, encantada com o fato de sua filha ter prometido casar-se com o filho de seu amante, pôs-se a preparar as mais deslumbrantes recepções. Os dois eram primos, é claro - e primos em primeiro grau -, mas pouco importava. O papa não teria a ousadia de levantar qualquer objeção, e a dispensa era inevitável. Banquetes e justas, danças, atores... tudo que se podia imaginar foi incluído. A rainha era hábil no preparo de acontecimentos como aqueles; e Luís, claro, estava do lado dela. Aquilo era a melhor coisa que tinha acontecido desde que Borgonha o tirara de seu cargo de regente.

Só a noiva em perspectiva sentia-se infeliz. Ficava sentada durante as festividades, triste, e só conseguia pensar em Ricardo.

Ela praticamente não ligava para o menino com o qual a estavam casando, mas ele parecia perplexo, e ela tentava consolá-lo da melhor maneira possível.

- Não precisa se preocupar - dizia para ele. - Dará tudo certo.

Ele se agarrava à mão dela, tranquilo; mas ela conseguia apenas virar o rosto para esconder as lágrimas que não conseguia conter.

E assim Isabella se tornou condessa de Angoulême e já não era mais a viúva enlutada de Ricardo.

O casamento não provocou muito interesse no país. As pessoas estavam mais preocupadas com o escandaloso comportamento da rainha e seu amante e com a crescente tensão entre o duque de Borgonha e Luís de Orleans.

Houve um certo alívio quando Borgonha demonstrou que estava procurando acalmar Orleans. Nas ruas de Paris comentava-se que se aqueles dois pudessem esquecer as diferenças, a vantagem seria da França; e Borgonha, a fim de mostrar que a culpa não lhe cabia, convidou Orleans para jantar.

Era uma escura noite de novembro, antes do dia marcado para o encontro de Orleans e Borgonha. Luís jantara com a rainha e estava muito animado. Eram oito horas. Ele iria juntar-se à rainha mais tarde, mas agora estava voltando para os seus aposentos.

Ele se fazia acompanhar por dois de seus escudeiros, montados em apenas um cavalo e por quatro criados que levavam archotes. O duque cantava enquanto eles caminhavam.

Ao entrarem na Vieille Rue du Temple, um bando de homens armados surgiu de repente e cercou o grupo.

Felizmente para os escudeiros, o cavalo que eles montavam se assustou e saiu em disparada com eles às costas; os criados largaram os archotes e aglomeraram-se em torno do duque, que bradou:

- O que é isso? Sou o duque de Orleans. O que querem de mim?

Um dos assaltantes bradou:

- É você que nós queremos. Prontos, amigos?

O homem que falara atacou o duque com um machado e outro avançou para ele com uma espada. Luís caiu ao chão, enquanto perdia os sentidos.

Um dos criados tentou defendê-lo e foi abatido mas conseguiu fugir rastejando, e os outros, vendo que era inútil tentar se defender, fugiram para uma loja que havia por perto.

Àquela altura, janelas eram abertas de supetão, porque muita gente ouvira a agitação e os gritos dos assassinos.

- Assassinato! - berrou uma mulher da janela de uma oficina de sapateiro.

- Cale a boca, sua prostituta - berrou um dos assassinos, e atirou uma flecha na direção dela, o que fez com que ela desaparecesse imediatamente de vista.

- Apaguem todas as luzes - bradou o líder do bando. Então os assassinos correram. Àquela altura, as pessoas tinham sido acordadas e estavam descendo, temerosas, para a rua; e a agora que os assassinos tinham ido embora, elas foram olhar para o resultado da operação noturna.

O duque de Orleans estava morto. Seu corpo tinha sido retalhado e mutilado até não restar sinal algum do belo namorador.

A rainha ficou desesperada; o mesmo aconteceu com a mulher de Orleans, Violante. Não havia dúvida de que as duas estavam apaixonadas pelo duque.

- Encontrem os assassinos dele - bradou a rainha. - Juro que vou me vingar deles.

O duque de Borgonha uniu sua voz à da rainha.

- Nunca houve um assassinato mais repulsivo em todo o reino da França - declarou ele.

O prefeito de Paris, Sieur de Tignouville, foi chamado. Disseram-lhe que nada deveria ser poupado na caçada aos assassinos.

- Senhor duque - foi a sua resposta -, se me derem permissão para fazer minhas investigações nos albergues dos criados do rei e nos dos criados dos príncipes, descobrirei os criminosos.

A resposta foi que a ajuda de que o prefeito precisasse deveria ser-lhe prestada. Ele teria entrada livre em todo palácio, hotel, loja ou casa de Paris.

- Neste caso - bradou Tignouville -, penso que poderei entregar-lhe os assassinos.

O duque de Borgonha mostrou evidentes sinais de estresse diante daquele pronunciamento, e o duque de Berri, seu tio, percebeu.

Ele o afastou para um lado porque tivera uma suspeita terrível.

- Creio que você sabe de alguma coisa, John - disse ele. Borgonha viu que não adiantava negar que fora ele o instigador do assassinato.

- Orleans estava levando a desonra ao leito real - disse ele.

- Ele era uma ameaça à nação. Sim, fui eu que contratei os assassinos para matá-lo.

Oh, meu Deus-bradou o duque de Berri. -Agora, perdi meus dois sobrinhos. Luís assassinado, e você, John, o assassino.

- Você não deve voltar para o conselho - acrescentou Berri. - E não vou, mesmo - disse Borgonha. - Meu desejo é que ninguém seja acusado de assassinar o duque de Orleans, porque fui eu, e ninguém mais, o responsável por isso.

com isso, ele se retirou, pulou para o cavalo e, levando apenas seis de seus assistentes, saiu a galope, atravessando a fronteira para Flanders.

Quando se soube que ele fugira, foi grande a indignação, e uma centena de homens de Orleans saíram em sua perseguição, mas já era tarde demais, e não conseguiram alcançá-lo.

O caso abalara a corte. Não se falava em outra coisa. Não havia nada que pudesse ser feito para levar Borgonha a julgamento; e começava-se a dizer que Orleans merecera a morte. Ele desonrara o irmão; não fizera segredo de seu relacionamento adúltero com a rainha, cobrara impostos do povo, seu governo quase levara o país à ruína, enquanto todos sabiam que Borgonha era um homem forte. Impetuoso ele podia ser, implacável, violento; mas o governo de seu pai tinha sido bom e ele mostrava sinais da energia do pai.

Violante Visconti, viúva de Orleans, estava decidida a que o assassino não ficasse impune. Apesar das infidelidades do marido, ela amava apaixonadamente o duque e estava ansiosa por vingálo. Ela chegou a Paris com os filhos. Fazia um frio terrível - o pior que Paris sofrera havia vários anos. Apesar disso, ela foi porque o rei estava em meio a um de seus períodos lúcidos e ela acreditava que conseguiria justiça da parte dele.

Ela foi ao palácio St. Pol, onde o rei estava em residência, e forçou a entrada na sala em que ele estava reunido com o seu conselho. Lá, atirou-se de joelhos e pediu que os assassinos de seu marido fossem levados a julgamento.

O rei prometeu que tudo deveria ser feito.

- Consideramos o ato cometido contra o nosso irmão como tendo sido cometido contra nós - disse ele a Violante.

Isabella, infeliz em seu insatisfatório casamento, fez o possível para consolar Violante. Ela sabia o que significava ter um marido assassinado.

- Temos muito em comum - disse ela, triste. - Lamento por você.

Corriam rumores pela cidade. Borgonha não tinha intenção de continuar fora da França. Era verdade que ele assassinara o duque de Orleans, mas o fizera pela França. Todo mundo sabia que ele estava arruinando o país. Borgonha estava criando uma imagem de salvador da França. O rei, cercado por todos, mergulhou imediatamente na loucura.

Paris esperava pelo que aconteceria em seguida. Aconteceu pouco depois. Um monge chegou com uma mensagem do duque de Borgonha ao rei. O pobre Carlos, com a mente toldada, não podia receber o monge; mas seu filho, o pequeno delfim, agora com doze anos, sentou-se à cabeceira do conselho e ouviu o que o monge tinha a dizer.

O ponto principal de seu discurso dizia que era legítimo, honrado e meritório matar ou fazer com que se matasse um traidor daquele país - especialmente quando aquele traidor tivesse mais poderes do que o rei. Não era isso o que acontecera no caso do duque de Orleans, cujo objetivo tinha sido pôr o rei e seus filhos de lado e pegar a coroa? Longe de acusarem o duque de Borgonha, o rei e o país deveriam aplaudir o que ele mandara fazer.

O pobre do pequeno delfim ficou perplexo. O mesmo aconteceu com o conselho. Havia um certo grau de verdade naquilo. Orleans, o extravagante libertino, não tinha dons para governar. O país prosperara temporariamente sob o governo do velho duque de Borgonha. O filho deste estaria certo ao fazer o que fizera?

Enquanto o monge continuava a expor ao delfim e ao conselho a defesa de Borgonha, o rei recuperou-se e teve condições de presidir e ouvir os argumentos apresentados. Era verdade, pensava ele, que Orleans quase levara o país à ruína; era também verdade que o velho duque de Borgonha o salvara. Tudo o que ele queria era a paz, e nunca haveria paz se ele não concordasse que o que Borgonha fizera era bom para a França. Orleans o traíra. O rei tinha conhecimento da sua ligação com a rainha.

Foi levada a ele uma carta enviada pelo monge, que implorou para que ele a assinasse.

- Majestade - rogou ele -, um golpe da sua pena, e este caso estará resolvido.

O rei leu a carta:

"É nosso dever e de nossa satisfação que o nosso primo de Borgonha resida em paz conosco e com os nossos sucessores com relação ao ato mencionado e a tudo o que se seguiu a ele, e que por nós e nossos sucessores, nosso povo e nossos oficiais, nenhum obstáculo seja oposto ao duque e aos seus devido a isso."

- Apenas seu nome, majestade - implorou o monge -, e este assunto altamente perigoso será encerrado.

Carlos estava cansado de lutas. Não sabia, nem com a antecedência de um dia, quando chegaria um ataque. Ele assinou.

- Diga ao duque de Borgonha que o receberei - disse ele. O duque não precisou de um segundo convite. Foi imediatamente falar com o rei.

Carlos o recebeu com cortesia, mas um tanto triste.

- Posso cancelar o castigo - disse ele ao duque -, mas não o ressentimento. Senhor duque, caberá ao senhor defender-se dos ataques que, pelo que parece, virão.

- Majestade - replicou o duque -, se eu estiver nas suas graças, não temerei nenhum homem vivo.

A rainha ficou assombrada. O rei não lhe dava ouvidos. Ela perdera o amante. Estava triste e se perguntava o que lhe aconteceria.

Isabella, profundamente preocupada com tudo o que estava acontecendo à sua volta, encontrava tempo para visitar suas irmãzinhas, que estavam alojadas no palácio St. Pol e com frequência ficavam desprezadas. Um dia, ela chegou e descobriu que as irmãs tinham ido embora. As criadas, tristes e chorando, disseram-lhe que a rainha tinha ido até lá e as levara.

- Para onde ela as levou? - bradou Isabella.

Ninguém tinha condições de dizer. Aquilo era muito estranho, porque a rainha nunca mostrara muito interesse pelas filhas.

Mais tarde, descobriu-se que estava escondida em Melun e que tinha com ela todas as crianças de sangue real. O rei caíra em um de seus períodos de loucura, e o duque de Borgonha tomou as rédeas do governo e mostrou, com a sua força de propósito, que estava à altura da tarefa.

Depois de alguns meses, uma revolta em Flanders exigiu a presença de Borgonha, de modo que ele deixou a França e seguiu a cavalo para resolver o problema em Flanders.

Assim que ele partiu, a rainha voltou para Paris com o delfim, e este foi muito calorosamente recebido pelos parisienses. Estava claro que o povo estava do lado dele. A viúva duquesa de Orleans começou, então, a implorar ao delfim que levasse o assassino de seu marido a julgamento, e o delfim foi aconselhado a dizer-lhe que pensaria no caso, mas antes que ele tivesse tempo para isso, chegou a notícia de que Borgonha dominara os rebeldes em Flanders e estava voltando para Paris. A rainha, com o delfim e todos os membros da família real, partiu para Tours, de modo que quando Borgonha voltou não encontrou ninguém para recebê-lo.

Ele era suficientemente sensato para saber que não podia governar com um rei; queria que o delfim fosse seu testa de ferro; por isso, partiu de imediato para Tours, numa tentativa de fazer a paz entre as duas facções. Àquela altura, Violante morreu - alguns diziam que de tristeza, tamanho tinha sido o seu amor pelo marido infiel; mas sem ela para clamar por vingança e com a rainha percebendo que era vantagem, para ela, fazer um pacto com Borgonha, fez-se a paz entre as partes.

Isabella observara com repugnância e tristeza tudo o que se passava.

Não antipatizava com seu jovem marido, e agora teria um filho. Ela se perguntava se aquilo mudaria seus sentimentos e se ela poderia ser feliz outra vez.

Se ao menos a criança fosse filha de Ricardo, que feliz ela se

sentiria! Tinham-se passado tantos anos! Será que fazia nove anos desde a última vez em que o vira?

Lembrava-se de como ele a erguera e a abraçara com força e pedira que nunca deixasse de amá-lo.

Como se ela pudesse!

Naquela época, ele não sabia o que o esperava - uma fria e funesta cela no castelo de Pontefract, a morte...

E ela era uma criança, então, para ser deixada sozinha... para enfrentar a vida sem ele.

Da corte daquele ardiloso assassino e do fanfarrão odioso Harry, ela voltara para sua terra natal e encontrara o pai louco, a mãe leviana, e mergulhara em mais um outro drama de assassinato e vingança.

Mas em breve ela teria um filho. Aquilo devia fazer uma diferença.

Charles, seu jovem marido, crescera consideravelmente nos últimos meses; estava muito contente por eles irem ter um filho; não havia nada que ele não fizesse por ela. Estava começando a gostar dele.

Enquanto ficava deitada na cama, com a gravidez avançada, ela às vezes se perguntava se poderia ser feliz outra vez. Talvez. Depois que tivesse o filho e ela e Charles ficassem absorvidos por ele. Quem sabia? Talvez o futuro fosse espantar as figuras do passado. Talvez ela parasse de chorar a morte de Ricardo e aceitar o fato de que o perdera para sempre.

Isabella tinha ido para Blois, lar da família Orleans da qual agora fazia parte. Havia algo de respeitável naquele sólido castelo, com seus grossos muros de pedra erguendo-se da rocha sobre a qual fora construído. Parecia inexpugnável, erguendo-se muito acima da cidade, apoiado pelos poderosos contrafortes. Isabella não podia se esquecer de que ali, havia muito pouco tempo, Violante Visconti morrera, de tristeza, dizia-se; e em seu leito de morte ela implorara aos três filhos e filhas que vingassem a morte do pai. Houvera outra criança que ela mandara buscar - o filho bastardo de seu marido e de uma mulher chamada Marietta d Enghien; vira naquele menino de seis anos as qualidades essenciais de um guerreiro. "Você vingará seu pai, bastardozinho de Orleans", comentava-se que ela dissera isso; e ele jurara que vingaria.

Será que tinha sido sensata ao ir para Blois, cenário de tanta infelicidade? Mas que lugar não tinha aquele tipo de assombração?

Charles se aproximou de Isabella. Ele agora não parecia tão jovem. Ela mesma estava com 21 anos - não muito mais velha do que ele, mas sentia-se velha no que se referia a experiência.

Ele falou no filho. Queria um menino que se tornasse o futuro duque de Orleans. Isabella ficava imaginando com que frequência ele pensava no pai assassinado. Ele nunca falava nele. Tal como ela, Charles olhava para o futuro; só havia tristeza em olhar para trás.

A ideia do filho estava sempre com ela. Será uma vida nova, pensava. E isolava a lembrança dos acontecimentos violentos à sua volta. A mãe não ia visitá-la. Estava envolvida demais em suas intrigas. Isabella não deveria ficar remoendo o que poderia estar por vir. Já estava farta de confusão e queria paz.

Chegara o mês de setembro. Ela carregara a criança durante os meses mais quentes; agora, estava agradecida por ter esfriado um pouco.

As dores começaram de manhã cedo. Os trabalhos do parto foram longos e árduos. Tinha apenas um conhecimento parcial dos vultos em torno de sua cama. Não havia outra coisa, agora, a não ser agonia.

Ela perdeu a consciência... e quando finalmente ouviu o choro de uma criança, não teve certeza de onde se encontrava. Estava andando a cavalo no campo. Era na Inglaterra, e Ricardo estava indo ao seu encontro. Os dois estavam olhando um para o outro, numa espécie de perplexidade. Era a criatura mais bonita que ela já vira, com os cabelos dourados ondulando à brisa e os olhos azuis brilhando de admiração por ela e um leve rubor na pele delicada. E para ele, Isabella era a menina mais bonita do mundo. Ela ouviu a voz dele dizendo isso.

- Oh, Ricardo... Ricardo... Ricardo querido... eu agora estou indo para o seu lado...

Como tinha percebido? Era uma espécie de premonição. Ela tinha uma vida nova para viver, mas não iria começá-la. Sua felicidade tinha sido Ricardo. Nada podia substituir aquilo.

Colocaram a criança em seus braços. Uma garotinha.

Charles, duque de Orleans desde o assassinato do pai, estava ajoelhado ao lado da cama. Ela via o olhar aflito dele. Ela estendeu a mão e tocou-lhe o rosto. Estava molhado de lágrimas.

Por que ele estava chorando? Mas ela sabia.

Ela estava com 21 anos. Era pouca idade para morrer. Mas estava pronta.

Poucos dias depois do nascimento de sua filha, Isabella morreu.

 

A RAINHA da Inglaterra estava pensativa, enquanto as damas de companhia a vestiam. Ela era bonita, todo mundo concordara com isso; mas teria de se acostumar com o fato de que o povo não gostava dela. Não tinha muita certeza de que o povo gostava do próprio rei. Chamavam-na de Estrangeira, e algumas pessoas sussurravam a respeito dele: Usurpador. Chegar ao trono como ele chegara significava, naturalmente, que sempre haveria quem erguesse a voz contra ele.

Os cabelos dela caíam em grossos cachos; e o vestido justo salientava a excelência de seu corpo. Não parecia ter tido vários filhos. As aias colocaram a alta touca síria na sua cabeça. A touca lhe caía bem. Ela teria mudado a moda, se a touca já não o tivesse feito; ela mesma arrumara o véu transparente.

A vida na Inglaterra não tinha sido exatamente o que ela esperara. Ela pensara que depois de seu casamento arranjado com o idoso duque de Bretanha parecera romântico quando Henrique de Lancaster chegara à corte - um exilado necessitando de consolo e ajuda, e com um trono a conquistar. E um amante distante... isso fora muito romântico. Os dois aguardando a decisão do destino. E quando este agira em favor deles, parecera um milagre.

Bem, a realidade era um tanto diferente.

Reis e rainhas não podiam esperar que a vida para eles fosse tranquila. Nenhum dos dois estava no florescer da juventude; ela estava com 33 anos, Henrique era quatro anos mais velho; os dois tinham tido outro casamento - férteis. Ela estava com as filhas a seu lado. O mais importante, talvez, era a existência dos filhos homens, e os interesses deles, intimamente aliados à França, nem sempre poderiam ser os mesmos que os de Henrique.

A filha de Henrique, Blanche, estava casada com Luís, filho e herdeiro do duque da Baviera e Eleitor Palatino do Reno. A menina já deixara a Inglaterra quando Joana chegou. A segunda filha dele, Filipa, partiria em breve, para se casar com Eric da Suécia, e as filhas de Joana teriam de casar-se mais cedo ou mais tarde.

Havia preocupações em demasia na vida deles para que houvesse romance.

Ela estava com sorte por ter conseguido fazer um relacionamento amigável com o príncipe de Gales, e fora recebida com entusiasmo por outros membros da família.

Havia um em especial. Joana sorriu ao pensar nele. Joana gostava de ser admirada - quem não gosta? -, e partindo de uma pessoa como o duque de York, que tinha sangue real, era um prazer.

Henrique estava profundamente absorvido pelos problemas do país. Tinha muito com que se ocupar e preocupar, e com frequência ficava rabugento. Havia uma razão para isso, que ela descobrira em pouco tempo.

Aquilo a deixara alarmada.

Ela se lembrava da cena no quarto deles, quando ele dispensara os empregados e não quisera que o ajudassem a se despir.

Henrique tivera de confessar-lhe, pois ela iria facilmente descobrir sozinha aquele mal.

- Joana - dissera ele -, aconteceu-me uma terrível infelicidade.

O rosto dele ficara pálido enquanto falava com ela, e aquilo tornara mais perceptíveis as marcas em sua pele, que até então ela achara que fossem devidas a ventos frios ou a ficar sentado muito perto da lareira, e que desapareceriam com a ajuda de um tempo refrescante e unguentos.

- Apanhei uma doença. Não sei o que é. Pensei que fosse passar. Mas não passa. Ela afeta minha pele, e às vezes me sinto como se tivesse sido coberto de fogo. A irritação, às vezes, é insuportável. Uma vez, ela apareceu no rosto... - Ele tocou a pele enrugada. - Desapareceu... ou quase. Mas tenho medo que volte, e ela nunca vai embora de todo.

Joana olhara para as marcas no corpo dele com uma aflição crescente e tentara consolá-lo. Consultaria sua despenseira. Acreditava que houvesse unguentos que pudessem curar doenças como aquela.

Mas ficara perturbada, e Henrique, também.

Aquele homem com medo de uma doença horrível que avançava contra ele era muito diferente do amante romântico que lhe dera um miosótis para que não se esquecesse dele.

Ela encontrara unguentos, mas não tiveram efeito algum sobre ele. Uma ideia terrível estava sempre surgindo em sua mente. Poderia ser lepra?

Enquanto ela pensava, uma de suas damas de companhia meteu-lhe um papel nas mãos.

- O próprio duque de York me deu isso - sussurrou a mulher. - Ele me fez jurar que o entregaria a Vossa Majestade e a ninguém mais.

- Oh, ele está ficando muito tolo - disse Joana.

- E impetuoso, também, majestade-disse a mulher com uma risadinha. - Esperamos que isso não chegue aos ouvidos do rei.

Joana deu um forte empurrão na mulher.

- Não é preciso ter medo disso - disse ela, ríspida. - Eu mesma talvez o mostre ao rei. Não há nada de errado, minha cara, em escrever um verso para uma dama na corte, que foi o que o duque fez. Nas cortes de Provence e outras, isso era muito natural.

- Sim, majestade - disse a mulher, baixinho. Joana olhou para o papel.

Eram versos, como esperava, e escritos por aquele jovem tolo. Tinha de avisá-lo. Era galante, da parte dele, achá-la tão bonita que ele suspirava pelo seu amor, mas ele precisava lembrar-se de que era esposa do rei, e escrever coisas assim era perigoso.

Iria avisá-lo, da próxima vez que o visse, para que não tornasse a escrever para ela.

Deixou suas damas de companhia e foi juntar-se ao rei. Os dois iriam sentar-se lado a lado no camarote real para assistir às justas. O jovem Harry iria sair-se muito bem, disso ela não duvidava, e o público gritaria seu nome. Havia algo em relação ao rapaz que atraía ovações onde quer que ele estivesse.

O rosto de Henrique estava cinzento por baixo da boina de veludo presa do lado com uma flor-de-lis. A capa de veludo forrada de peles pendia solta. Joana não tinha coragem de perguntarlhe se tinham aparecido mais manchas na pele. Via uma vermelhidão no pescoço dele e ficou imaginando o que aconteceria quando o rosto começasse a ficar desfigurado de verdade.

- Estou vendo que você está bem de saúde - disse ele. Ela sorriu com afeto e desejou sinceramente que pudesse dizer o mesmo em relação a ele.

- Viu Harry? - perguntou ele.

- Não, mas estou ansiosa pelo desempenho dele. Tenho certeza de que será o campeão.

- Sem dúvida. O menino me dá motivos para ter medo, Joana.

- Ele se meteu em mais encrencas?

- Eu ouço falar. As pessoas acham que devem me contar. Sei que ele será o campeão. Sei que ele pode comandar um exército. Mas a realeza é mais do que isso.

- Ele consegue conquistar o aplauso do povo - lembroulhe Joana. - As pessoas o adoram.

- O povo adora hoje e odeia amanhã - disse o rei, pesaroso.

- Não que ele alguma vez tenha demonstrado grande bajulação em relação a mim. Sempre tive meus inimigos. Poderia se dizer que cheguei ao trono pela porta dos fundos. Isso nunca é bom para um rei.

- Você veio porque o povo o queria. Ele estava cansado de Ricardo. E você era o próximo...

- Lembre-se de que havia o jovem conde de March.

- Um menino! Eles queriam você, Henrique. Você se tornou rei por eleição. Você fez um bem a eles.

- Eles não gostam de mim. Talvez gostem mais de Harry... isto é, se ele corrigir sua maneira de agir.

- O que foi lhe contaram agora?

- Que ele frequenta as tabernas de Londres. Que passa horas na companhia de gente desclassificada. Que abandona sua realeza e vira um deles. Isso não vai ser bom para ele, Joana.

- Você já falou com ele?

- Antigamente, eu falava. Ele tem um ar insolente. Ele é o príncipe de Gales. Tem o povo ao seu lado. Dá a entender que não precisa de mim. Acredito que ele estaria disposto a me tirar o trono.

- Nunca. Ele é apenas uma pessoa fogosa, nada mais. Ele se irrita com os elos da realeza. Dê-lhe um tempo. Ele será um grande rei quando chegar a hora... e rezo para que nessa hora ele seja um ajuizado homem grisalho.

- Você me traz consolo, Joana - disse Henrique. - Mas há outro assunto que me preocupa... e se eu fosse acreditar no que se sussurra, isso me traria uma infelicidade maior do que aquela que sinto pelos maus hábitos de meu filho.

- O que é? - perguntou Joana, surpresa.

- Diz respeito a você... 'e meu primo de York. Joana ficou levemente ruborizada.

- Oh, você andou dando ouvidos a mexericos. Ele é um jovem tolo.

- E você é uma bela jovem.

- Não tão jovem. Mas isso é um absurdo. Ele se considera um poeta, e eu sou um bom alvo para a poesia dele.

- Ele manda os versos para você?

- Manda, sim.

- E você?

- Eu os leio e digo a ele que tem muito que aprender.

- Sobre o quê?

Para início de conversa, como escrever poesia; e depois, sobre mim.

Não gosto disso - disse Henrique.

- Meu querido marido, confie em mim. Eu o amei quando era casada com o duque de Bretanha, mas não lhe disse isso. Entre nós dois nunca foi trocada uma só palavra sobre o que sentíamos um pelo outro. Sou uma mulher que respeita os votos do casamento e mesmo que eu sentisse uma ternura por esse homem que eu me apresso a lhe dizer que não sinto -, não haveria nada entre nós, a não ser amizade.

- Acredito em você - disse o rei. - Mas não confio nele. Houve uma época em que ele estava disposto a apoiar Ricardo contra mim. Eu poderia ter perdido minha coroa. Por estranho que pareça, ele a salvou para mim. Foi um dos conspiradores que planejavam resgatar Ricardo e colocá-lo no trono. Ele era, então, Rutland, porque o pai estava vivo e ele ainda não adquirira o título de York, e de repente ficou com medo e confidenciou ao pai. Meu bom tio de York logo viu o que tinha de ser feito. Fui informado pelo pai e pelo filho do que estava acontecendo, e, com isso, a trama não vingou.

- Então, você pode muito bem dever o trono a ele.

- Posso muito bem fazer isso, mas ao mesmo tempo não gosto de um homem que muda de lado com tanta facilidade.

- Neste caso, você tem de acreditar que ele não é um homem de poder suficiente para você perder tempo em se preocupar com ele. Eu lhe juro que entre nós não aconteceu nada, a não ser aquilo que você já sabe.

- Acredito em você.

- Então, não deve dar atenção a esse tipo de banalidade.

- Nada que se relacione com você pode ser banal para mim.

- Eu sei - disse ela, com a voz suave e terna. - Que Deus o abençoe. Que Ele o conserve em paz e felicidade enquanto nós dois vivermos.

Ele ficou emocionado. Não errara quando a tomara como sua segunda mulher. O fato de ela não ter a docilidade de Mary não o perturbava. Mary não fora feita para ser rainha.

Henrique estava contente com aquele casamento. Era um dos poucos aspectos satisfatórios de sua vida, e ele não deixaria que fosse nem de leve maculado pelo seu amoroso primo. Iria vigiálo, e na primeira oportunidade saberia como lidar com ele.

Eles saíram juntos para tomar seus lugares na justa que estava sendo realizada em honra da rainha. Agradeceram às extasiadas saudações dos presentes e sentaram-se no balcão onde todos podiam vê-los. A rainha era bonita, e no seu traje de veludo real o próprio Henrique era uma figura impressionante. De longe não era possível ver claramente a devastação que a doença estava causando em sua pele.

A oportunidade chegou. York era um jovem impetuoso; o tipo que se envolvia em uma trama ou outra, se tivesse chance. Talvez por isso fosse amigo íntimo do príncipe de Gales.

Depois da morte de Ricardo e considerando-se o fato de que o povo já não acreditava na história de que ele estava vivo - porque se estivesse, Henrique nunca teria ficado tão ansioso por casar o filho com a rainha de Ricardo, Isabella - o maior espantalho na vida de Henrique era o jovem conde de March. Quanto mais velho ele ficava, maior era a probabilidade de homens descontentes aderirem a ele e expressarem o direito dele ao trono.

Foi por isso que, quando chegou a notícia da trama para resgatar o jovem conde de March e seu irmão mais novo de Windsor, onde eles eram mantidos sob a vigilância dos guardas do rei, e ficou provado que o duque de York estava envolvido nela, Henrique pôde agir de forma justificada, e ninguém teve como atribuir seu ato a um ciúme com relação à rainha.

Era uma trama digna de York, pensou Henrique, sério. Estava envolvido com a irmã, Lady de Despenser, que não era uma mulher de caráter dos mais ilibados, e os dois tinham subornado um ferreiro para que fizesse um jogo de chaves para lhes permitir abrir as portas do aposento onde eram mantidos os jovens prisioneiros.

Houve um período de grande consternação quando Henrique soube que os dois meninos tinham sido levados de Windsor.

Henrique visualizava exércitos em nome do conde de March avançando contra ele. Henrique imaginou que muita gente aderiria à bandeira deles simplesmente porque não gostava dele. Suas infrequentes aparições em público não o tornavam simpático ao povo; como poderia ele falar com o público sobre as terríveis angústias que sentia e dizer que às vezes seu rosto ficava tão inflamado que não podia se arriscar a sair? O povo também não gostava da sua rainha estrangeira. Às vezes, ele pensava no quanto ele e Mary tinham sido populares quando ele era simplesmente Bolingbroke, ou Derby ou Hereford. Só quando se tornara Henrique, o rei, o povo começara a sentir antipatia por ele.

York não era nenhum estrategista brilhante, e era inevitável que qualquer trama na qual estivesse envolvido fracassasse. E foi o que aconteceu àquela.

Depois de tirar, de forma inteligente, os meninos de Windsor, ele se descuidou e permitiu que o destino deles fosse descoberto, e não demorou muito para que os dois meninos fossem mandados de volta para Windsor, e York fosse prisioneiro do rei. E então a história foi revelada. O ferreiro perdera a vida; teria sido imprudente permitir que York tivesse o mesmo destino e torná-lo um mártir; ele foi mandado para o castelo de Pevensey, para ficar em segurança.

Henrique se vingara. Ele quisera York afastado, porque não gostava da ideia de um belo rapaz escrevendo versos para Joana. Agora era sua chance. Podia expulsar York da corte, e ninguém alegaria que ele não tinha bons motivos para isso, e Joana não teria mais condições de comparar o York de pele macia com o marido, que a cada dia que passava ia ficando mais repulsivo.

Joana não fez tentativa alguma de pedir por York, o que deixou Henrique muito contente, e ficou convencido de que York nada significava para ela. York era um daqueles homens que iriam sempre envolver-se em situações perigosas nas quais teria poucas chances de atingir seu objetivo.

Restava o caso do conde de March. Quanto mais velho ficava, maior o problema que representaria.

Henrique mandou chamar Harry. Quando seu filho chegou, os sentimentos de Henrique oscilaram entre orgulho e irritação. Não havia dúvida de que ele era um belo exemplo de masculinidade; todos os sinais daquela fragilidade de infância que causara muita angústia à mãe dele tinham desaparecido. Ele era menos Plantageneta do que de Bohun, mas a aparência era a única característica que herdara da mãe. A delicada docilidade, que era a principal característica dela, faltava por completo ao jovem Harry. Era moreno, com espessos cabelos macios; o nariz era comprido e reto, o rosto, oval; os dentes eram de um branco que chamava atenção e bem-formados, e tinha uma cova no queixo. A pele era viçosa, o que indicava uma excelente saúde; havia um toque avermelhado em seus olhos castanhos que podiam ficar sonolentamente bem-humorados ou violentos quando ficava zangado. Sim, era um filho do qual um pai podia orgulhar-se, com o corpo esguio, acima da altura normal, os membros bemformados e o porte já de um rei. Havia nele uma vitalidade que parecia estar lutando para extravasar. Era uma pena que desperdiçasse suas energias em tabernas de baixa categoria, cercado por homens de gostos semelhantes.

- Não preciso perguntar se você vai bem de saúde - disse Henrique.

Harry pensou: não posso dizer o mesmo do senhor, meu velho.

- Eu estou bem, como espero que o senhor esteja. Henrique agitou as mãos.

- Você me vê num estado lamentável. Uma responsabilidade cada vez maior será colocada sobre seus ombros, Harry.

Harry, se empertigou sorrindo, confiando em sua capacidade de arcar com ela.

- Eu gostaria que não houvesse essas notícias sobre você... farreando em tabernas de baixa categoria.

- É a minha maneira de me encontrar com o povo.

- Pode fazer isso de uma maneira satisfatória na minha corte.

- O que eu faço - disse Harry. - Mas gosto de conhecer todos os tipos. O que a maioria dos cortesãos sabe sobre servos feudais, barqueiros, mercadores e semelhantes?

- O que eles poderiam querer saber a respeito deles?

O que eles estão pensando. Que são súditos leais. Nós poderemos depender de gente como eles para nos manter nos nossos tronos.

- Você ainda não tem trono, Harry.

- Não, senhor. Mas sou o herdeiro de um.

- Tome cuidado.

- Mas é isso que estou sempre fazendo, senhor.

- Você está adquirindo uma reputação de quem leva uma vida abjeta.

- E de quem leva uma vida de alto nível, senhor. Estou vivendo minha vida em toda a sua plenitude.

- Você me dá motivos de preocupação, meu filho.

- Meu senhor, o senhor é que me dá motivos de preocupação. Não está bem de saúde.

O rei ficou calado.

- Pai - disse Harry -, pode contar comigo do seu lado, para ser seu substituto, para assumir os deveres que o senhor se considerar incapaz de executar.

Meu Deus, pensou Henrique, os dedos dele estão coçando de vontade de agarrar a coroa!

- Não tenho deveres em tabernas de baixa categoria - disse ele, com frieza.

- Ora - disse Harry, soltando uma risada - isso é minha maneira de passar o tempo.

- vou colocar o conde de March e o irmão sob sua guarda. Os olhos de Harry brilharam de satisfação.

- Fique certo de que os manterei protegidos contra parentes metidos e seus ferreiros condescendentes.

- Providencie isso. E Harry... você já percebeu essa minha doença?

Harry confirmou com a cabeça.

- E os outros?

- Não falam comigo sobre isso.

- Vai chegar uma hora em que tenho medo de que ela seja a minha desgraça. Mas é um processo lento.

Harry ficou calado.

- Devia haver amizade entre nós dois, meu filho. Eu gostaria de que se lembrasse de sua posição.

- Eu jamais poderia esquecê-la, senhor.

- A nossa reivindicação da coroa poderá ser contestada.

- Poderá e está sendo - disse Harry.

- Esse caso do jovem March...

- Ah, temos nossos inimigos.

- Que estão nos cercando, meu filho. É por isso que precisamos ficar unidos.

- E tomar muito cuidado.

- York está seguro em Pevensey.

- Ele não deveria ser mantido preso por muito tempo. Irá tornar-se um mártir. Haverá quem fale sobre ele e talvez diga que tem o direito do seu lado.

- O que você faria, então? Você o libertaria?

- Depois de um certo tempo, sim. E devolveria as propriedades a ele.

- Como recompensa por bancar o traidor?

- Ele é membro da nossa família. Já trabalhou para nós. Ele nos salvou quando estava com os subversivos em Windsor. Não fosse ele, o senhor e eu poderíamos muito bem não estar aqui agora discutindo como proteger a coroa. Ainda teremos bons serviços da parte dele. É um homem governado pelas emoções. Deixe que se preocupe um pouco na prisão. Depois, falarei em defesa dele e garantirei seu bom comportamento. Prometo-lhe que então ele será um bom servidor para mim. Ele é dos que se lembram de uma ajuda.

- Acho que você já tem condições de governar este reino.

- Pense nisso - disse Harry com um sorriso. Depois, fez uma mesura acentuada e disse: - Às vossas ordens, meu senhor e pai. Juntos, protegeremos a coroa contra todos aqueles que possam vir contra nós.

Depois que ele se retirou, Henrique ficou pensativo, e sua preocupação e seu orgulho ficaram mais fortes do que nunca.

Harry estava certo, eles não deviam ser vingativos para com o duque de York. O povo poderia, até, dizer que ele estava com ciúme por causa da admiração do duque pela rainha.

Quatro meses depois de o duque de York ter sido mandado para ftevensey, ele foi libertado e seus bens e suas terras foramlhe devolvidos.

Harry parecia ter raciocinado de forma correta. O duque ficou grato. Henrique acreditava que se houvesse outra tentativa de roubar a coroa, York ficaria do lado dele e de seu filho.

Dois homens seguiam em atitude arrogante pelo pavimento de pedras de East Cheap e entraram na Boar s Head. Formavam uma dupla incongruente - um era gorducho; o outro, magro; e havia uma diferença tão grande nas idades, que poderiam ser pai e filho.

Eles se espalharam juntos em um banco e pediram vinho. A jovem que o levou, os cabelos caindo lisos sobre as fitas baratas e de mau gosto de seu vestido que não estava nada limpo, pousou a mão no ombro do rapaz e dirigiu-lhe um sorriso convidativo.

Ele apertou-lhe a coxa.

- Uma outra hora - disse ele com um piscar de olhos para o companheiro. - Talvez hoje à noite.

- Nada disso - disse o homem mais velho com uma gargalhada ribombante -, não se meta com essas jovens inexperientes, rapaz. Ouça um homem como eu... um homem que já viajou por toda parte... nas guerras francesas... nas guerras alemãs... e em qualquer guerra que você possa mencionar.

- Não dê atenção a ele - disse o mais jovem. - Ele é velho e impotente.

- Vocês dois! - disse a jovem com um agitar de saias. - Se eu conheço alguma coisa, vai ser só conversa fiada. É isso que vocês mais sabem fazer, podem acreditar.

com isso, ela se afastou com um girar de saias rançosas. O homem mais velho recostou-se no banco e examinou o mais novo.

- O senhor disfarça bem - disse ele. - Eu me divertiria subindo neste banco e gritando para eles: "Vejam seu príncipe!"

- Eu não duvido - replicou Harry. - Será que acreditariam em você?

- Ia ser um escândalo tremendo.

- O que é isso, John, já há escândalos suficientes a meu respeito.

- O que teremos esta noite?

- Acho que um pequeno assalto.

- O que o senhor tem em mente, então?

- Há alguns homens à minha roda que desconfiam de minha preferência por este lugar. Ouvi-os sussurrando sobre o Boar s Head em East Cheap. "Nós iremos surpreendê-lo", disseram eles. Vai ser divertido. Eu é que quero surpreendê-los.

- Vossa Alteza traz um bom movimento ao Boar s Head. O dono devia ficar satisfeito com o senhor.

- Essa vagabunda da filha dele não parece satisfeita. Por Deus, John, acho que ela prefere você.

- Ah, um homem experiente tem muito valor.

- Há mais valor na juventude.

- Ora, o senhor está chegando ao ponto de combinar as duas coisas. Mas tome cuidado com prostitutas doentes.

- Abaixo os cuidados enfadonhos - gradou Harry. - O cuidado é para as cortes. Devassidão é para o Boar s Head, trapaça é para as tabernas... O que me diz, John, a isso? Aqui, encontramos o povo. Ouvimos o que ele pensa do rei e do filho dele. O rei, que surrupiou a coroa de Ricardo. O príncipe, que está louco para pegála. O rei, que é mau e ganancioso. O príncipe, que desperdiça o dinheiro deles em devassidão. Por Deus, quem dera que fosse verdade, John; quem dera que eu o gastasse em devassidão.

- O senhor consegue a libertinagem por um preço baixo replicou Oldcastle.

- Ela se consegue por todos os preços, e é mais barata aqui na Boar s Head do que na corte.

- Diga-me, qual é o plano?

- Hoje, vamos ficar de espreita nas ruas. Vamos bancar os salteadores contra aqueles finos cavalheiros da corte. Tiramos o dinheiro deles. Vai ser uma nova brincadeira. E boa, também.

- O senhor está outra vez sem dinheiro?

- Não do tipo que eles estarão levando com eles.

- Eles poderiam fazer-lhe mal.

- Que coisa, John, será que vou conter minhas tendências porque tenho medo de sair ferido? Você diria: "Não entre em combate, alteza, porque poderá ser ferido?" Veja esta cicatriz aqui na minha testa. Condecorações de batalha, John. Uma flecha em Shrewsbury, onde abatemos o bravo Hotspur. Chega de cuidados. Vamos para as ruas. Vamos ficar de espreita e pegá-los a caminho da taberna.

- Parece que vai ser divertido - disse Oldcastle. Harry tirou algo de sob a capa.

- Máscaras, John. Não devem saber que se trata de uma brincadeira.

- É mais fácil o senhor se disfarçar do que eu. Meu corpanzil me denuncia.

- Ora, John, há milhares de homens corpulentos, e onde, na Inglaterra, existe uma figura tão elegante e esguia quanto a minha? Eles olham para mim, não importa como eu esteja vestido, e dizem: "Lá vai o nobre Harry."

- Não. Eu serei reconhecido com mais facilidade.

- Vai querer começar uma discussão agora, seu gordo?

- Eu começaria, e quero começar, menino. Harry soltou uma risada.

- Não tenho tempo para guerras particulares, meu velho. Vamos...

- Estão indo agora, meu bons senhores? - Era a filha do dono.

Harry segurou-a pelo ombro e deu-lhe um caloroso beijo na boca.

- Eu voltarei, querida - disse ele.

Eles saíram para as ruas. A tremeluzente vela de sebo na taberna dera pouca luz, mas foram precisos alguns segundos para que os olhos deles se acostumassem à escuridão.

Os dois seguiram com cuidado pelo terreno acidentado, evitando a valeta no meio da rua que estaria transbordando de detritos, mas mantendo-se longe dos muros para o caso de alguém atirar alguma coisa que fosse ainda mais irritante.

Harry adorava a aventura das ruas à noite. A qualquer momento algum assassino poderia saltar sobre eles, ou eles poderiam ser abordados por alguma prostituta que sabiam que devia estar passando necessidades, já que saíra na escuridão. Para Harry, aquilo era emocionante. Ele gostava das ruas durante o dia, com sua animação; gostava de misturar-se a aprendizes e fingir ser um deles; gostava de pechinchar com os camelos e conversar sobre as iniquidades das leis fiscais; gostava de comprar uma balada de um trovador e levá-la para a taberna e experimentá-la; gostava de trocar piadas com uma ordenhadora e negociar com uma cafetina que estava tentando lhe vender uma de suas jovens vindas do interior. Às vezes, ele se metia em brigas quando sempre podia sair-se bem. "Do que vocês precisam?", gritava ele para os aprendizes. Ficava parado observando os artesãos trabalhando em suas oficinas abertas. Assustava um pedinte com o tamanho de sua contribuição e depois escapulia-se depressa, enquanto o pedinte o abençoava. Ele gostava daquilo tudo - da sujeira, da miséria e da grandeza das ruas de Londres. Era um prazer misturar-se àquela gente, saber como pensavam, como agiam; gostava do orgulho deles e daquela certa dignidade que estava tão arraigada neles quanto na mais alta nobreza.

Acreditava que eram homens como aqueles mercadores e seus aprendizes que ficariam do seu lado contra seus inimigos. Não os queria lá porque ficassem com medo de não se unir a ele; queria compreendê-los, conversar com eles, fazê-los trabalhar para ele e ser leais a ele, não porque fosse traição não fazê-lo, mas de livre vontade.

Ele queria conhecer o povo que um dia governaria. Aquela era uma das razões pelas quais se misturava a eles. A outra era que ele gostava muito daquilo. Gostava de passar uma noite com uma mulher que pensava que fosse um jovem aprendiz e que não fazia ideia de que por um curto espaço de tempo ela desfrutava do privilégio de dividir sua cama com o príncipe de Gales.

Era a aventura que atraía sua juventude e sua disposição; e porque havia perigo nela, ele gostava ainda mais.

- Silêncio - disse John Oldcastle. - Estou ouvindo foliões.

- São eles - sussurrou Harry. - Conheço as vozes. "Vamos pegá-los por trás.

Eles se agacharam junto ao muro. Surgiram três rapazes, cortesãos vestindo seus trajes de veludo. Um deles segurava uma pomander, cheirando-a de propósito.

Harry riu no íntimo. Ouviu um deles dizer:

- Acho que o príncipe não tem gosto.

- Ele vai ter uma surpresa quando nos vir - disse outro.

- Agora! - sussurrou Harry.

Eles tinham agarrado dois dos rapazes por trás. O que segurava a caixa largou-a e gritou:

- Socorro! Estamos sendo atacados. Ladrões!

Harry soltou uma gargalhada. Aquilo mostrava como o rapaz conhecia pouco as ruas de Londres. Um grito daqueles era o suficiente para fazer com que todo mundo pusesse o ferrolho nas portas de casa.

Houve Uma escaramuça. Afinal, eram três contra dois. Harry era ágil, mas não o suficiente. Recebeu um forte golpe nas costelas que o deixou sem respiração, mas reagiu com rapidez e derrubou o oponente no chão.

Atacou, então, o cavalheiro com a caixa, que foi uma presa fácil.

- As bolsas deles - sussurrou ele para Oldcastle. E poucos segundos depois, eles estavam correndo pelas ruas escuras levando três bolsas.

Harry encostou-se em um muro e explodiu numa gargalhada.

- Amanhã - disse ele - eles contarão uma bela história. Os dois não voltaram para a taberna aquela noite.

No dia seguinte, Harry perguntou como seus amigos tinham recebido aquelas escoriações e expressou uma profunda preocupação quando lhe disseram que tinham sido atacados, em East Cheap, por um bando de facínoras.

- As ruas não são seguras à noite - disse Harry, com ares de preocupado.

- É perigoso andar por elas desarmado - acrescentou Oldcastle. -Vocês não tinham com o que se defender?

- Meu caro senhor, tente defender-se quando atacado por uma quadrilha.

- Eram muitos? - perguntou Harry, com ar solene.

- Eu diria que estávamos com uma desvantagem na base de três por um.

- Não há chance contra tantos assim -balbuciou Oldcastle.

- Malditos sejam, eles levaram nossas bolsas.

- E aposto que vocês não podiam dar-se ao luxo de ter o prejuízo que tiveram - disse Harry. - Quem de nós pode? vou ser generoso. Vocês são bons amigos e valentes. Eu seria capaz de jurar que se saíram muito bem. Vocês permitirão que eu os reembolse.

Os três aventureiros declararam-se relutantes em roubar o príncipe.

- Vamos, vamos. Vocês foram assaltados.

Harry estava quase histérico de tanto abafar o riso enquanto devolvia o dinheiro deles.

Quando ficaram a sós, Sir John disse:

- Creio que você deu mais a um deles do que aos outros dois.

- O senhor sabe por quê. Foi ele que me atingiu nas costelas. Achei que ele devia ser recompensado por brigar mais do que os outros.

Eles tinham gostado tanto da aventura que decidiram repetila. Era necessário fazer segredo.

- É perigoso - disse Sir John. - Quem sabe um deles pode ganhar de nós.

- É por isso que é emocionante, seu velho bufão.

As vezes havia uma briga feia, mas quanto mais a pessoa atacada revidava, mas Harry gostava.

Aquilo era sua brincadeira favorita, até que alguém percebeu que ele era o provocador. Dali em diante, a brincadeira perdera o sabor.

Mas sempre havia meios de se divertirem nas tabernas e ruas de Londres.

Harry tinha um empregado do qual gostava muito. Ele sabia que o sujeito era um patife, mas era um patife alegre; e seu comportamento inescrupuloso divertia o príncipe. Um dia, passou-lhe pela cabeça que ele não via Bardolph havia alguns dias, e perguntou onde ele estava.

- Ele foi preso, alteza - foi a resposta.

- Preso, por quê?

- Algum delito grave, alteza. Não havia dúvida de que um dia ele seria apanhado.

- Por que não me contaram? Ele não é meu empregado?

- Foi um crime que o levou perante o presidente do Tribunal Superior, alteza.

- Perante Gascoigne! Ora, neste caso, ele corre o risco de ser enforcado. Não vou perder Bardolph para um carrasco, isso eu juro.

- Alteza, ele vai ser julgado hoje.

- Então, partirei já para o tribunal.

Ele fez o que disse e, impetuoso, saiu a galope. No Tribunal Superior de Justiça, a sessão era presidida por Sir William Gascoigne - homem com cinquenta e tantos anos, digno, profundamente cônscio da importância de seu cargo e conhecido no país inteiro pela incorruptível determinação de administrar justiça tanto aos grandes como aos pequenos.

Houve uma agitação no tribunal quando Harry apareceu, e o juiz exigiu ordem.

Harry se adiantou. Ele avistara seu empregado, Bardolph.

- Ali está meu criado - disse ele. - Desejo que ele seja libertado imediatamente. Se tiver feito alguma coisa que mereça castigo, cabe a mim aplicá-lo.

O juiz estudou com calma a fisionomia acalorada do jovem príncipe.

- Vossa Alteza se engana. O crime desse homem é contra a sociedade, e cai na minha jurisdição.

- O senhor se esquece, meritíssimo, de com quem está falando.

- Eu falo em nome do rei - replicou Sir William Gascoigne - e ordeno que o senhor, súdito dele, se retire do tribunal.

Harry ficou furioso. Desembainhou a espada e avançou contra o juiz, que ficou imóvel, observando-o calmamente. Houve um silêncio abafado. Muitos dos presentes acharam que estavam prestes a testemunhar o assassinato do presidente do Tribunal Superior pelo príncipe de Gales. Então, Sir William falou.

- Alteza - disse ele -, lembre-se de que eu ocupo, aqui, o lugar de seu soberano senhor e pai, a quem Vossa Alteza deve uma obediência dupla. Eu o exorto, em nome dele, a desistir de sua teimosia e de sua conduta ilícita. Daqui por diante, peço-lhe que dê um bom exemplo àqueles que, no futuro, serão seus súditos. Pelo seu desprezo e sua desobediência do Tribunal Superior de Justiça, Vossa Alteza irá para a prisão, para onde o enviarei, e lá permanecerá até que seja conhecida a vontade de seu pai, o rei.

Harry ficou tão perplexo que se manteve em silêncio. Tudo o que tinha de fazer era atravessar com a espada o coração daquele juiz que chegara ao ponto de mandar que ele, o príncipe de Gales, fosse recolhido à prisão, mas no entanto hesitou.

Sua raiva desapareceu de repente, enquanto ele começava a ver aquele incidente claramente através dos olhos de um espectador. Para que um rei mantivesse a justiça, seus tribunais não deviam ser desrespeitados. Ninguém, independente de sua posição, devia entrar de supetão e exigir a libertação de um prisioneiro. Isso levava à anarquia e, como alguém que iria usar a coroa, seu primeiro dever era manter as leis do país.

Ele largou a espada e, curvando-se para o juiz, disse:

- O senhor tem razão. Deve fazer comigo o que quiser. Peço seu perdão e o perdão do tribunal.

Sir William ficou nitidamente impressionado com a sensatez do príncipe. Sua voz era delicada, enquanto ele dizia:

- Vossa Alteza irá aguardar aqui neste tribunal até que eu saiba qual é a vontade do rei. Mensageiros irão procurá-lo a toda velocidade. Enquanto isso, continuaremos com os trabalhos do tribunal.

O rei estava em seu quarto quando o mensageiro chegou. Ele estava melancólico; estava olhando a verdade de frente e acreditava que não viveria por muito tempo. Ele também não queria viver com aquela terrível doença que o atacara. Aquilo não era tudo. Havia outro mal - ou talvez os dois fossem ligados. Às vezes, ele sofria um desmaio ou podia ser um transe, e ficava sem saber onde estava ou o que se passava à sua volta. Uma noite, seus assistentes tinham pensado que ele tivesse morrido.

No íntimo, ele se perguntava se aquilo era um revide, um castigo por ter usurpado a coroa. Era perseguido por lembranças de Ricardo e muitas vezes sonhava com o primo passando fome e frio até morrer em sua cela em Pontefract.

Uma coroa, pensava ele, o que os homens são capazes de fazer por ela! E quando a conseguem, que prazer ela lhes traz?

Seu pai ansiara por ela e morrera frustrado; o avô a herdara por direito e a usara com nobreza - pelo menos, até chegar aos últimos anos de vida. E ele... com satisfação, ele a agarrara, mas ela o sobrecarregara de encrencas desde que passara a ser sua.

Em breve seria a vez de Harry - Harry, com sua vida rebelde e sua preferência por companhias de baixa categoria, libertinos como ele. O que seria do país?

E agora um mensageiro para falar com ele. Henrique se levantou. Que não fossem más notícias.

- Majestade - disse o mensageiro -, venho a mando do Tribunal Superior de Justiça.

Então ele contou o que acontecera.

Henrique, ouvindo, sorriu no íntimo. Sim, pensou ele, é uma boa notícia.

Então, ergueu os olhos e disse:

- Oh, Deus misericordioso, eu vos agradeço um juiz que não teve medo de fazer justiça e um filho que sabe submeter-se a ela com nobreza.

Sentiu-se melhor do que se sentira havia muito tempo. Era bem possível que Harry fosse modificar seu modo de agir. Ele poderia facilmente ter matado o juiz, ter provocado um tumulto no tribunal. Mas obedecera à justiça.

Aquilo era um sinal do céu. Seus pecados estavam perdoados. Ele poderia, apesar de todos os seus temores, estar deixando para a Inglaterra um rei digno.

Mandou imediatamente seus cumprimentos e agradecimentos a Sir William Gascoigne. Aplaudia seu procedimento. Seu filho devia ser libertado. Estava contente por seu filho ter percebido a tempo que a justiça tem de estar acima de tudo na Inglaterra.

Bardolph recebeu uma curta pena de prisão que se encaixava no tipo de crime que cometera, e o príncipe deixou o tribunal no melhor dos relacionamentos com o juiz; e o assunto foi dado por encerrado.

Mas as pessoas falavam nele e ficavam impressionadas com o comportamento do príncipe. Estavam começando a perceber que, apesar de sua vida frívola e inconsequente, havia nele um traço de seriedade.

O incidente no tribunal tivera, sem dúvida, uma influência benéfica sobre Harry; e parecia que seu estado de espírito se transmitira ao seu companheiro John Oldcastle.

Um dia, quando os dois estavam sentados em uma de suas tabernas favoritas, Oldcastle disse a Harry:

- Venho me sentindo perturbado ultimamente e tenho pensado em falar com você.

- Você, perturbado? O que o incomoda, John? Espero que não seja alguma doença.

- Meu príncipe, você nunca me considerou um homem religioso.

- Você nunca me mostrou muitas provas de sua piedade.

- Eu penso bastante, sabe? E desde meu casamento...

- Ah, estou vendo que Lady Cobham está tendo influência sobre você.

- Como você, meu príncipe, sempre fui profundamente influenciado pelas mulheres.

- Elas o fazem ser frívolo, amoroso, imprudente, sim... mas essa senhora faz você pensar. Que estranha alquimia ela tem para realizar esse maravilhoso ato?

- Ela é minha esposa, alteza.

- Eu sei muito bem, e por influência dela você se desfez do relativamente humilde Sir John Oldcastle e se tornou Lorde Cobham.

- E você me condena por isso? Um dia, você irá se desfazer do título relativamente humilde de príncipe de Gales e tornar-se rei da Inglaterra. Mas chega de piadas. O que pensa dos lollardos, Hal?

- Lollardos? Na verdade, não tenho ligado muito para eles. Meu avô apoiou o líder deles, Wycliffe, durante algum tempo, e acho que pouco se lucrou com isso.

- Talvez não por intermédio dele, mas eles são o poder crescente. Têm muitas qualidades.

- Eu gosto do nome deles. Lollardos, o que significa, John?

- "Alguns dizem que vem do alemão lollen, cantar.

- Creio que costumam cantar hinos.

- Um bom costume, cantar sobre aquilo em que se acredita. Mas também ouvi dizer, agora me lembro, que o nome deles se origina de uma boa palavra inglesa. Loller - um indolente.

- Ora, o que significa um nome? O importante é o que eles defendem. São um grupo perigoso, John. Lembro-me do arcebispo Arundel dizer que eles estavam por trás da Revolta dos Camponeses.

- Há quem diga que os camponeses tinham bons motivos para se revoltar.

- Você sempre adorou uma conversação. Palavra que acredito que adota um ponto de vista com o qual sabe que não vou concordar, só para me provocar.

- Talvez - concordou John. - Isso é um bom passatempo. Harry estava olhando para uma das garçonetes.

- Estou pensando num passatempo melhor - disse ele. John suspirou, e o assunto morreu, mas ele voltou a mencionálo no encontro seguinte dos dois.

- Os lollardos acreditam que nenhuma lei humana que não for baseada nas escrituras deve ser obedecida.

- Há crimes que não estão mencionados nas escrituras.

- Será correto - insistiu John - que papas, cardeais, prelados e semelhantes devam viver no luxo, enquanto as pessoas que lutam dia e noite para se alimentar e alimentar a família têm de pagar a eles impostos elevados?

- John, você fala como um pregador.

- Eu me preocupo muito com isso.

- Pelo que vejo, preocupa-se, sim. John, você me assusta. Sabe que meu pai não gosta muito dos lollardos.

- Acho que no fundo do coração ele pode gostar... como o pai dele gostava. Mas quando subiu ao trono, ele prometeu ao arcebispo Àrundel que iria persegui-los, e foi o que fez... para garantir o apoio de Àrundel.

- O que deu em você, John? Não devia falar assim do rei.

- com você, eu falo sem pensar.

- É um hábito perigoso, meu velho. Lembra-se de um homem chamado William Sawtre?

- Eu iria me esquecer do primeiro mártir dessa causa? Ele era um pobre cura, e o escolheram como exemplo. Ele disse que não adoraria a cruz, mas apenas a Cristo, que sofreu nela. Ele preferia adorar um homem que fosse realmente contrito do que uma peça de madeira, que era tudo que a cruz representava. O pão usado no sacramento continuava sendo pão, independente do que um sacerdote balbuciasse sobre ele. Ele foi queimado vivo, como herege. O primeiro a ser tratado dessa maneira. Sua morte foi uma mancha negra na nossa história.

O príncipe olhava perplexo para o amigo.

- O que deu em você? Está mudado, John.

- Não, continuo o mesmo. Como você, meu príncipe. Passamos as horas frivolamente, mas quando estamos quietos, pensamos em outras coisas. Assim como acontece com você, acontece comigo. Eu olho para o futuro, Hal. Não vamos passar a vida farreando em tabernas. Temos outro trabalho a fazer.

- Sei qual é o meu. Pensei que o seu fosse servir-me.

- E é, senhor futuro rei. Mas não em tabernas.

- Você me trouxe à realidade, John. Acho que as prostitutas ficarão desapontadas.

- Afaste sua tristeza. Humildemente, peço perdão por provocá-la.

- Nada disso, John, nada disso. Você me fez ficar disposto a pensar em coisas sérias. Vamos sair daqui. Agora não tenho estômago para ficar aqui. Uma coisa eu lhe digo. Tenha cuidado. Não se envolva com seitas e com companhias reformadoras. Poderão levá-lo à desgraça.

- Não é de minha índole ter medo do que possa me acontecer... como também acontece com você. Essa amizade íntima com a qual você me honra - teria acontecido se nós dois não tivéssemos sido iguais? Farei o que achar correto... como você sempre fará. Isso está em nós.

- Pois então, tome cuidado. Não estou certo de que gosto do pensador sério nem a metade do que gosto do meu lascivo velho farrista.

O rei caíra de cama. O rosto estava destorcido pelas horrendas pústulas que o cobriam por completo; o corpo estava encolhido, e havia uma rigidez em suas mãos e pés que o fazia temer que estava perdendo o uso deles.

Não tinha coragem de se mostrar. Dependia de seus amigos mais chegados e dos filhos. Thomas era o favorito, e Henrique gostaria que ele tivesse sido o mais velho, embora houvesse momentos em que reconhecia em Harry uma certa força que os outros não possuíam, e aí sentia que o reino estaria a salvo nas mãos dele. Thomas era mais tranquilo do que Harry, apesar de ter se envolvido num conflito em East Cheap, que criara um certo escândalo. John, o mais sério da família, estivera envolvido, mas isso só porque estava acompanhando o irmão. Até o jovem Humphrey começava a desenvolver um gosto pela vida noturna de Londres. Seus filhos eram um grupo rebelde. Era estranho pensar que a doce e pequena Mary os gerara.

Pelo menos, Henrique tinha alguma coisa a agradecer. Gerara filhos homens - embora rebeldes; e seus dois casamentos tinham sido felizes. Não poderia ter escolhido melhor do que Joana, exceto pelo fato de a família dela - pela natureza de sua posição geográfica - inclinar-se para o lado dos franceses. Mas agora havia dificuldades internas naquele país - com Borgonha e o rei louco e a rainha leviana. Felizmente, pensou Henrique, porque no momento elas estavam provocando pouca preocupação na Inglaterra; e ele não queria muito entrar em guerra, ao contrário de Harry, que estava ávido para começar. Harry era ambicioso. Queria não apenas a coroa da Inglaterra, mas a coroa da França.

Paz, pensava Henrique, é isto que estou ansioso por conseguir. Quisera Deus que eu estivesse com saúde para sair numa peregrinação. Deus sabe que tenho muitos pecados a pagar. Houvera uma profecia, fazia muitos anos, de que ele morreria em Jerusalém. Isso parecia praticamente improvável agora, a menos que sua saúde melhorasse e ele abdicasse em favor de Harry. Mas se lhe concedessem o milagre de ficar bem de saúde, ele nem sonharia em deixar o país.

O povo adorava Harry. Ele percebera isso quando os dois estavam juntos. Todas as ovações eram dirigidas a Harry. Ele tinha aquela qualidade que atraía os homens para seu lado. Uma qualidade Plantageneta, embora tivesse os traços de um de Bohun. Seu pai nunca a tivera, apesar de toda a sua força e poder; Eduardo, o rei, a tivera, e o mesmo acontecera com o Príncipe Negro.

Henrique ficava irritado com o fato de essa qualidade ter-lhe sido negada.

Jamais gostaram de mim, pensou ele. Se eu dissesse que abdicaria amanhã, eles ficariam roucos de tanto ovacionar Harry.

E o que seria de mim? Ele iria me dizer o que eu teria de fazer. Iria me lembrar, cem vezes por dia, de que ele era o rei.

- Jamais desistirei, meu filho - murmurou. - A morte é a única mão que colocará a coroa na sua cabeça.

Harry estava intimamente ligado aos seus parentes da família Beaufort. Sempre iam para onde as possibilidades fossem melhores. Aquilo era uma indicação de que não achavam que restava muito tempo para Henrique.

Houve época em que o tinham apoiado com entusiasmo. Claro que tinham. Sua sorte estava firmemente vinculada à da Casa de Lancaster. Seus meio-irmãos - resultado da permanente paixão de seu pai por Catherine Swynford. Todos eles inteligentes.

E agora, voltavam-se em direção a Harry. Iriam apoiá-lo, ainda que isso significasse ficar contra o rei - porque o velho rei não duraria muito nesse mundo.

"O rei está morto!", gritariam eles. "Vida longa para o rei!" Henrique estava triste; estava com dores. Ele cometera um grande pecado ao apanhar a coroa, e isso não lhe trouxera coisa alguma, a não ser amargura.

Harry gostava de discutir seus planos com John, que era seu irmão favorito, e com seus tios Henry e Thomas Beaufort. Henry fora nomeado bispo de Winchester, e Thomas, duque de Exeter e chanceler da Inglaterra; eles tinham recebido favores especiais como filhos de John de Gaunt e tinham herdado muito da astúcia do pai.

O irmão mais velho, John Beaufort, conde de Somerset, morrera e houvera uma divisão na família quando o filho rei, Thomas, se casara com a viúva de Somerset, porque quando Thomas exigira as propriedades dela, Henry Beaufort se recusara a entregá-las.

Na discussão, o príncipe tomara partido e ficara a favor do tio, e não do irmão, e aquilo, naturalmente, provocara uma grande frieza entre eles, e Thomas, sabendo que seu pai não mantinha a melhor das relações com o príncipe de Gales, fez o possível para afastar ainda mais o rei do herdeiro do trono.

Era uma situação preocupante. Ela aproximou mais Harry dos Beaufort, que, como bispo e chanceler, eram homens poderosos; e como todo mundo sabia, agora, da temível doença do rei que muitas vezes o mantinha escondido por longos períodos, uma tensão aflita crescia nos círculos da corte. Ela estava caminhando para uma divisão, e parecia que dentro em pouco haveria um círculo do rei e outro formado pelos que apoiavam o príncipe.

A essa altura, eclodira um novo conflito na França.

Depois da morte de Isabella, de parto, seu marido Charles de Angoulême, que se tornara duque de Orleans quando do assassinato do seu pai, tornou a se casar. Dessa vez, sua mulher era filha do muito poderoso e guerreiro conde de Armagnac. Charles de Angoulême era delicado por natureza, um amante das artes, sério, com ódio de guerra, mas estava nas mãos de seu poderoso sogro, que queria estabelecer o poder da Casa de Orleans, o que significava destruir a de Borgonha.

Guerra civil na França era algo com que a Inglaterra não podia deixar de ficar satisfeita. Era sempre muito melhor deixar que um inimigo destruísse a si mesmo do que despender energia destruindo-o.

Os borgonheses mandaram emissários à Inglaterra para pedir ajuda a Henrique e ofereceram em pagamento uma esposa para o príncipe de Gales, Anne, filha do duque.

Harry não queria saber do casamento, mas achou que deveria ser enviada uma força aos borgonheses. Que franceses lutassem contra franceses. Era um bom plano. Haveria menos soldados no campo quando ele fosse até lá para lutar pela coroa da França, o que pretendia fazer quando estivesse seguro no trono da Inglaterra.

Henrique estudou o assunto. Estava se sentindo muito mal. O que queremos é paz, pensou ele. É insensato nos envolvermos nos assuntos de outra nação.

- Absurdo! - bradou Harry. - Isso será vantajoso para nós.

- Eu sou contra - declarou Henrique. - Não haverá força alguma enviada em auxílio de Borgonha.

Aquilo parecia resolver a questão; mas no dia em que fez aquela declaração, o rei sofreu outro ataque, pior ainda do que os que o antecederam. Seu rosto tornou-se uma massa repelente de pústulas horríveis que o cobriam por inteiro, e quando ele tocou sua pele e as sentiu, desmaiou e ficou com a aparência de morto.

Os médicos chegaram e disseram que ele não duraria muito, mas poucos dias depois ele se recuperou e até o rosto estava ligeiramente menos horripilante.

Mas tinha de continuar no quarto. Não poderia mostrar-se ao público ou mesmo à corte. Só as pessoas de seu círculo íntimo poderiam vê-lo. A rainha tratou dele; era delicada e animadora, embora fosse difícil reconhecer naquela pobre criatura encolhida e mutilada que estava na cama o romântico Plantageneta que fora para a Bretanha na qualidade de exilado de seu próprio país.

Harry assumiu as rédeas do governo e a primeira coisa que fez foi enviar homens e armas para o duque de Borgonha.

Como resultado de seus atos, a facção de Orleans foi derrotada e a vitória coube a Borgonha.

O rei não morreu. Em poucas semanas, recuperara-se o suficiente para reassumir suas atividades. A primeira coisa que descobriu foi que seu filho contrariara sua vontade e enviara tropas para a Borgonha.

Ficou furioso. Imediatamente, mandou chamar o príncipe e quis saber por que ele pensara que podia agir de maneira contrária aos desejos de seu pai - e seu rei.

Harry replicou dizendo que o lado a apoiar era, evidentemente, o de Borgonha. Eles tinham vencido, não tinham? Quem sabe não poderiam vir a ser de alguma valia para ajudá-lo se ele entrasse na França numa hora qualquer.

- Seus dedos estão coçando para pôr as mãos na coroa, Harry - disse o rei.

- Apenas penso no futuro.

- E eu sou um homem tão velho e fraco que já não consigo que me obedeçam.

- O senhor é o rei e tem de ser obedecido.

- Até que você ache que estou morto. Ainda terá de esperar um pouco, meu filho, antes que a coroa seja sua.

- Meus pensamentos não estavam na coroa, só naquilo que eu acreditava ser o melhor para a Inglaterra.

- E para o rei Henrique... V, hein?

- O senhor está enganado. Estou contente com a sua recuperação.

- Está contente! Olhe para mim... se puder suportar. O que foi que me tornei? Essa maldita doença tomou conta de mim mas, por Deus e todos os santos, Harry, ainda há vida em mim, e enquanto houver, eu serei o rei.

Harry curvou a cabeça.

O rei dispensou o filho. Ele tomara uma decisão; mostraria a Harry e ao seu conselho que só havia um rei na Inglaterra e que esse rei era ele.

Ele decidira, disse-lhes, enviar ajuda aos Armagnac. Apoiaria Orleans contra Borgonha; e para demonstrar sua boa-fé, mandaria seu filho para a França com soldados e suprimentos.

Mandou chamar o príncipe Thomas, seu favorito. Quisera Deus que ele tivesse sido o mais velho, pensou; e no entanto ele sabia, no íntimo, que faltava àquele seu segundo filho a qualidade de liderança que Harry herdara de seus grandes ancestrais. Num momento de lucidez, ele pensou: será possível ter inveja do próprio filho?

E ficou imaginando se o grande Eduardo III algum dia tivera inveja do Príncipe Negro. Ele deixara que as honras da batalha recaíssem sobre o irmão, em vez de aceitá-las para si. Mas o Príncipe Negro e o pai tinham trabalhado de mãos dadas. Não acontecia o mesmo com ele e Harry; os dois estavam puxando para lados diferentes.

Thomas foi à presença dele. Henrique o encarou, de costas para a luz. Agora tinha por hábito ficar nas sombras; as pessoas sabiam disso e tinham adotado o costume de olhar para ele o mínimo possível, que sabiam ser o que ele queria.

- Thomas - disse Henrique -, estou enviando uma força de oito mil homens para a França, a fim de ajudar os orleanistas.

Thomas ficou perplexo.

- Pensei que estivéssemos do lado de Borgonha.

- Seu irmão está - respondeu o rei em tom de desagrado.

- Isso não significa necessariamente que eu esteja. Mas o lado que prefiro é aquele que este país vai apoiar.

Thomas sorriu com ironia. Mais um ponto de discórdia entre pai e herdeiro. Aquilo o divertia. Harry estava mesmo demasiado confiante em si mesmo.

- Thomas, quero saber a quem você acha que devemos apoiar. Orleans ou Borgonha?

- Se o senhor apoiar os orleanistas, nós todos também devemos apoiá-los.

- Exceto seu irmão.

- O apoio dele de pouco adiantaria sem o seu, meu pai.

- Acho que é verdade. Seu irmão achou por bem agir contra a minha vontade enquanto eu estava adoentado. Agora que estou melhor, pretendo agir contra a vontade dele. O que me diz de você liderar a força para a França?

Thomas ficou nitidamente satisfeito.

- Não quero que você vá apenas como o príncipe Thomas, meu filho. Decidi lhe conceder um ducado. O que me diz sobre o duque de Clarence?

Thomas caiu de joelhos, declarando que serviria ao pai à custa da própria vida.

Quase se esqueceu e tentou segurar a mão do pai para beijála. Lembrou-se, então, de que as mãos do pai eram sempre mantidas escondidas. Havia um rumor de que os dedos das mãos e dos pés tinham começado a cair. Thomas não sabia se era verdade, porque nunca lhe deixavam vê-los.

Levantou-se desajeitado. Não podia abraçar o pai. Não podia fazer nada mais do que reiterar a disposição de servi-lo.

Harry sabia que o pai estava errado ao apoiar os orleanistas, em especial depois de ter dado ajuda a Borgonha.

- Ele tem razão - ponderou Harry a Oldcastle - em me acusar de ter agido contra a vontade dele. Eu sabia qual era ela e devia ter me lembrado de que ele é o rei. Mas ele está ainda mais errado do que eu ao enviar ajuda aos Armagnac, só para me afrontar. Um rei nunca deveria deixar que sentimentos pessoais interferissem com as questões de Estado.

- Ah, você será um rei sensato, Harry, quando receber a coroa.

- Meu pai não concordaria com você.

- Bem que poderia.

- Ele não gosta de mim, John.

- É possível que ele veja em você aquilo que gostaria de ser.

- Ele tem sido um homem virtuoso. Fiel a suas rainhas, e bem servido por elas. Pelo menos, foi feliz nos casamentos que fez. Essa maldita doença é que tomou conta dele e distorceu sua natureza. Ele pensa que se trata de alguma doença que lhe foi enviada como castigo pelos seus pecados.

- No entanto, ele é um homem que tem tentado governar o país bem.

- Mas ele diria que teve de passar por cima do cadáver de Ricardo para isso.

John estava pensativo.

- Ele faltou com a palavra para com os lollardos.

- Você está obcecado com os lollardos. Eu quase poderia acreditar que você é um deles.

- Eu sou, alteza. Harry olhou fixo para ele.

- Você ficou sério, John - disse ele. - Notei uma mudança em você.

- Sim, eu sou um deles, meu príncipe. O que vai fazer, agora? Não vai me considerar seu amigo.

- Os lollardos não podem me tirar um amigo-disse o príncipe. - Mas tenha cuidado, John. A Igreja não gosta de vocês, e a Igreja é muito poderosa.

- A Igreja tem medo de nós. E isso nos traz de volta ao ponto de partida. É possível que seu pai tenha um pouco de medo de você.

- Você é mais vivo do que eu pensava, meu velho.

- Eu sou mais vivo, meu jovem briguento, do que a maioria das pessoas pensa.

Os dois ficaram num silêncio fora do comum; ambos ocupados com pensamentos sobre os dois e de um sobre o outro.

Foi Oldcastle que fez com que o príncipe entendesse que havia um certo perigo na sua posição.

- Há algumas pessoas que estão planejando destruí-lo - disse ele. - Sabem que o rei tem preferência pelo seu irmão de Clarence. A ação dele sobre a Borgonha as fez pensar. Tome cuidado, meu jovem príncipe.

- Eu sou cuidadoso-disse Harry. - Eles não vão me vencer.

- O rei está doente e prestes a morrer. Esteja certo de que existem pessoas que acreditam que você não contará com a boa vontade de nenhuma delas.

Harry estava ciente disso, e quando ouviu o rumor de que ele tirara dinheiro destinado à guarnição de Calais e usara-o em benefício próprio, percebeu o quanto era grave a ameaça contra ele.

Seus inimigos tinham uma boa base sobre a qual trabalhar. Todos conheciam sua maneira de viver no passado. Será que um frequentador de tabernas de baixo nível, um homem que passava o tempo com rameiras e jogadores, tinha condições de ser o rei da Inglaterra?

- Eles têm razão - argumentava Harry -, mas isso não é a verdade por inteiro. Sou esbanjador desse nível. Mas sou outra coisa mais, além disso; e eu sempre soube que um dia terei de dizer adeus ao meu antigo ego e tornar-me um rei, e por Deus eu juro que quando fizer isso serei um rei cuja fama ficará nobremente ao lado da de meus maiores ancestrais.

Mas talvez ele tivesse bancado o tolo. Ele seguira uma certa tendência. Misturara-se com companhias de baixo nível. Mas as conheço melhor do que meu pai jamais poderia conhecê-las. Conhecerei os homens que eu governar e aqueles que levar para as batalhas comigo. Talvez minha juventude não tenha sido tão desperdiçada quanto parece.

Agora tinha de abandonar seus meios de vida inconsequentes. Precisava pensar com clareza. Tinha de agir contra os inimigos. Não podia alienar o pai por completo. O rei era inteligente demais, astuto demais, para não ver as qualidades no filho mais velho. Ele agora estava bestificado - poder-se-ia dizer fascinado - por aquela desprezível doença que tomara conta dele; suas forças estavam diminuindo; além do mais, estava sendo perseguido por outra sombra tão grande quanto aquela da desfigurante doença. Quanto mais velho ficava, quanto mais se aproximava da morte, mais se lembrava do que fizera a Ricardo. Havia o fantasma que caminhava com ele, que dormia em sua cama à noite. Era seu primo Ricardo.

Harry precisava pôr um ponto final na inimizade do pai. Tinha de lembrar a ele que era o filho mais velho; tinha de fazer com que o país soubesse que não passava pela cabeça do rei a ideia de deixá-lo de lado.

Era o dia de Ano-Novo, e a corte estava em Westminster. Henrique apareceu rapidamente e mesmo assim estava envolto numa capa que só mostrava o rosto. Sentou-se em uma das extremidades do grande salão, separado dos demais presentes. A rainha sentou-se a seu lado, e em volta deles ficaram muito poucos de seus auxiliares mais íntimos.

De repente, o príncipe entrou no salão com alguns de seus assistentes. Todos os presentes ficaram assustados, porque ele estava vestido com seu traje de estudante, com a agulha e a linha que eram dadas aos estudantes todos os anos espetadas na gola. Naquela roupa simples, ele teria sido imediatamente reconhecido até mesmo por aqueles que não o consideravam uma pessoa de qualidade. Tinha um porte orgulhoso, e deixando os assistentes agrupados em torno da fogueira que ficava no meio do salão, aproximou-se do tablado sobre o qual o pai se sentara.

Harry se ajoelhou diante do rei, que o olhou com espanto, perguntando-se que brincadeira poderia ser aquela, quando Harry desembainhou a adaga que usava à cintura e entregou-a ao rei.

- O que significa isso, meu filho? - perguntou o rei.

- Tenho sido acusado de deslealdade para com o senhor, meu pai. Meus inimigos dizem-lhe que usei em benefício próprio recursos que deveriam sustentar o porto de Calais. Meus inimigos me difamam, o que por si só não me magoa muito. Todos aqueles que têm algum valor são difamados pelos que temem as próprias fraquezas. Mas que eu seja acusado de deslealdade e de falta de afeto para com meu rei e meu próprio pai, isso não vou suportar. Majestade, se acredita nessas calúnias lançadas contra mim, enfie esta adaga em meu coração.

- Aceite sua adaga de volta - disse o rei. - Acha que eu mataria meu próprio filho?

- Ele desejaria que Vossa Majestade cometesse esse ato se Vossa Majestade acreditasse, por um momento que fosse, nas mentiras que são ditas sobre ele.

O rei devolveu a adaga a Harry.

- Coloque-a no cinto - disse ele. - O lugar dela é nele.

- Quer dizer que acredita que eu seja seu bom filho e seu súdito fiel?

- Acreditarei nisso - disse o rei - até que haja prova em contrário.

- E essa questão dos fundos de Calais?

- Vamos dá-la por encerrada.

- Nada disso - disse Harry. - Quero que minha inocência seja comprovada.

- Pois então, que seja comprovada.

- Meu pai, quero dizer que preferiria que o senhor me matasse a acreditar que não sou seu querido filho e súdito.

- Levante-se, meu filho. Que não haja mais conflitos entre nós. Você é o meu herdeiro. Meu primogénito. Sabemos que não pode estar longe minha partida desta vida. Pelo amor de Deus, sejamos bons amigos durante esse pouco tempo que resta.

- Amém - disse Harry.

Ele estava contente; desacreditara seus inimigos.

O Natal foi celebrado em Eltham, em Kent, um dos palácios favoritos do rei, com seus grossos muros e contrafortes. Muitas tragédias tinham acontecido ali. E agora ele tinha ido para lá a fim de passar seu Natal, e com ele estava Joana, uma das poucas pessoas que deixava chegar perto dele.

Ela estava a par do que havia de pior. Pobre Joana, que fora para a Inglaterra deixando seu jardim de miosótis e descobriu que a vida saíra muito diferente daquela que tinham imaginado quando caminhavam juntos por aqueles jardins, sem falar nas suas esperanças e sentindo-se tão felizes quando elas se materializaram, até descobrirem que a vida era cruel.

A venerada coroa era uma quinquilharia oca que não proporcionava a ele nada a não ser preocupações e decepções; seu corpo outrora belo o estava traindo.

Estava um velho doente e triste.

No grande salão, os folguedos continuavam. Tinha de haver folguedos por causa do Natal, mesmo apesar de o rei não poder honrar os convivas com sua presença. Lá embaixo, eles deviam estar fazendo suas brincadeiras; iriam escolher o rei para aquela noite; os pantomimeiros iriam diverti-los, e haveria risos e canções. Joana o observava com tristeza.

- Você devia estar com os convivas, minha querida - disse ele.

- Devo ficar com você.

- Pobre Joana, nossa vida juntos tem sido triste.

- Não é verdade - protestou ela. -Tem sido uma vida boa.

- Uma vida boa! Eu não sabia que você era mentirosa, mulher. Olhe para este meu corpo... tornado horrível... desprezível... Eu me pergunto se você consegue olhar para ele.

- Ele é seu-respondeu ela, séria -, e quero cuidar de você, atenuar seus males e ser tudo o que prometi que seria.

- Você tem feito isso - disse ele. - Fui abençoado ao ter você, como fui em ter a pequena Mary. Duvido que ela tenha sido feliz... como você também não foi. Ela morreu de tanto ter filhos... um atrás do outro. Por que não percebi que aquilo era demais para ela? E você, Joana, o que foi que recebeu da vida? Dois maridos, um deles um velho quando você se casou com ele, e o outro um homem perseguido por esta horrível doença.

- Vamos aproveitar ao máximo aquilo que temos, Henrique.

- Sensata Joana. O que mais podemos fazer?

Ela o consolava da melhor maneira possível. Tentava não mostrar a repulsa que a visão dele devia provocar-lhe. Tinha medo, porque ouvira sussurros dizendo que o estado dele tinha sido provocado por atos de feitiçaria; e porque ela era uma estrangeira de quem jamais gostaram; havia quem declarasse que ela era a feiticeira.

Henrique não sabia disso. Jamais deveria saber.

Devia fazer o possível para ajudá-lo a viver os meses que estavam por vir. Não poderiam faltar muitos meses para ele.

Estava-se na Quaresma. O rei sentia-se mais fraco. Convocara o Parlamento em fevereiro e bem em cima da hora estivera doente demais para comparecer.

Pediu aos lordes que permanecessem em Londres, o que não agradou a eles, já que deveriam fazê-lo às suas próprias custas.

Mas eles deveriam ficar lá. Henrique considerava a presença deles necessária.

O mês de março chegara, e fortes ventos zuniam pelas ruas.

Era costume o rei fazer uma peregrinação ao santuário de Eduardo, o Confessor, atrás do altar principal da igreja.

Joana tentou dissuadi-lo.

- Está muito frio - disse ela -, e você está muito mal.

- Todos esperam que eu faça isso - lembrou-lhe o rei.

- Eles compreenderão - disse ela. Mas Henrique não lhe deu ouvidos.

Foi uma viagem lenta e dolorosa até a abadia, mas ele chegou ao santuário, e ao chegar caiu desmaiado no chão.

Seus assistentes levantaram-no e sugeriu-se que ele fosse levado para o quarto mais próximo e no qual houvesse uma lareira acesa. Um catre de palha deveria ser levado, e quando isso foi feito ele foi deitado em frente à lareira no quarto Jerusalém.

- Mandem chamar imediatamente o príncipe de Gales disse o arcebispo.

O rei estava deitado, respirando com dificuldade, e parecia estar morrendo quando Harry chegou.

Ele se ajoelhou ao lado do pai. O rei olhou para ele com olhos velados e murmurou seu nome.

- Pai, estou aqui - disse Harry.

- Onde estou? - perguntou o rei.

- O senhor está no quarto Jerusalém, na abadia - disse-lhe Harry.

O rei teve um sorriso fraco.

- Disseram que eu ia morrer em Jerusalém - disse ele. Tragam a coroa.

Ela foi trazida e colocada ao lado dele sobre uma almofada feita de tecido dourado.

O rei pareceu satisfeito.

Fechou os olhos.

Os que estavam à sua volta observavam-no atentamente.

- É o fim - disse um deles.

- Ele já não está conosco - disse um outro.

Harry ajoelhou-se ao lado do pai e olhou para o rosto que ficara horrível por causa da doença de que ele sofrera. Joana ajoelhou-se do outro lado. Ela ergueu os olhos e olhou para Harry por cima do corpo do marido.

Agora, o rei é ele, pensou ela.

- Está acabado - disse Harry, e um de seus assistentes colocou uma toalha de seda sobre o rosto do rei.

- Cabe ao senhor assumir a coroa - disse um dos seguidores de Harry.

Harry apanhou-a e enquanto o fazia, o rei se mexeu como se estivesse ciente do que acontecia.

A toalha foi retirada de seu rosto e Henrique abriu os olhos e olhou direto para o filho, que estava de pé ao seu lado, com a coroa nas mãos.

- Que direito você tem a ela, meu filho - disse ele -, já que eu não tinha direito algum?

Harry respondeu de imediato:

- Majestade, assim como Vossa Majestade a usou e a defendeu com a espada, assim eu a usarei e defenderei enquanto viver.

- Ainda não estou morto - disse ele. - Eles teriam me despachado antes de eu estar pronto. Mas minha hora está próxima. Faça o que quiser, mas agora me recomende a Deus e reze para que Ele tenha pena de minha alma.

O rei tomou o sacramento e fechou os olhos; mas mesmo assim, continuou vivo.

- Harry - disse ele -, aproxime-se de mim. Esta é a nossa última despedida. Eu amo você. Tenho orgulho de você. Faça sempre por merecer esse orgulho, meu filho. Olhe para mim agora. Houve época em que fui forte como você é agora. Pense, em meio à sua glória e prosperidade, no reino para onde vou e para onde você deverá ir. Ame o Senhor Deus e tema-o. Não ame demais o ócio, mas se dedique às coisas de Deus e aos prazeres e esportes que nada tenham da impureza do vício. Pague minhas contas e que Deus lhe dê a bênção, carregada de todas as boas coisas, para que você possa viver abençoado por todo o sempre.

Harry ficou profundamente comovido. Prometeu ao pai que se esforçaria para ser tudo aquilo que ele quisesse que fosse.

O rei sorriu e se recostou.

Dessa vez, não havia dúvida de que estava morto.

Harry tornara-se o rei Henrique V.

 

A NOITE estava tempestuosa. Havia poucas pessoas nas ruas, mas as que lá estavam poderiam ter visto uma figura encapada seguindo às pressas em direção à abadia.

Ninguém teria adivinhado que se tratava do homem que era rei havia poucas horas. Ele caminhava decidido, curvando a cabeça contra o vento, até que chegou às portas da abadia.

Ele entrou e, ao fazê-lo, um monge foi em sua direção.

- Quero falar com o senhor, irmão. Quero confessar meus pecados e pedir absolvição - disse Henrique.

- Majestade! -bradou o monge, porque não havia como se enganar quanto aos tons autoritários do novo rei. -A esta hora...

- Não me fale na hora. Tenho um trabalho urgente. Vamos. Leve-me até o confessionário.

- Siga-me - disse o monge.

E Henrique o seguiu e lá, no confessionário, pôs-se de joelhos e, enterrando o rosto nas mãos, disse:

- Eu levei uma vida de devassidão. Fui um adepto diligente da ociosidade. Juro por Deus e todos os santos que de hoje em diante vou alterar meu caminho.

- O Senhor ouvirá sua decisão, meu filho - disse o santo homem. - Vossa Majestade é jovem. Tem anos pela frente para compensar as loucuras do passado.

- Tenho de lhe contar os horríveis pecados que cometi. Fui depravado, pródigo, frequentador de tabernas de baixo nível e companheiro de ladrões e prostitutas. Fui um escravo do vício. Dei as costas às virtudes. Fiz com que meu pai ficasse muito angustiado. Agi de forma irresponsável...

- Arrependa-se - disse o monge. - Arrependa-se de verdade. Vossa Majestade ainda é jovem. Tem uma vida inteira pela frente.

- Já vivi nesta Terra vinte e seis anos, padre, e cometi mais pecados do que o homem comum comete em sessenta.

- Coragem, meu filho. Vossa Majestade tem oportunidades pela frente. Dedique a vida ao serviço de seu país. Fuja de seus desejos carnais. Vista o manto de rei, e um rei virtuoso, e o salgueiro estéril será convertido numa oliveira fértil.

- Dê-me sua bênção e deixe-me confessar ao senhor para que fique sabendo de tudo.

Houve uns poucos segundos de silêncio, e então o rei começou a falar sobre as noites que passara nas tabernas de mais baixo nível de East Cheap, sobre as orgias nas quais tivera papel preponderante. Não queria esconder nada. O santo homem tinha de saber até que ponto ele afundara.

O monge ouviu, e ao final do recital do rei, disse:

- Siga seu caminho. Seus pecados serão eliminados pelas boas ações que Vossa Majestade fará.

Mas o rei não ficou satisfeito.

- Meu pai morreu com um grande remorso - disse ele. E eu, que herdei sua coroa, tenho de partilhar desse remorso. Ele acreditava, no final, que não tinha direito à coroa, que a tirara de Ricardo e que teria de pagar por esse ato. A morte de Ricardo...

- É um pecado enorme para ficar em qualquer consciência

- interrompeu o monge. - Se o rei, seu pai, assassinou seu antecessor... não pode esperar entrar no reino dos céus.

- Ele não assassinou Ricardo com as próprias mãos. Talvez não quisesse que ele morresse. Mas Ricardo morreu nas mãos daqueles que serviram a meu pai. Apesar de não tê-lo matado pessoalmente, ele acreditava que partilhava daquela culpa. Ela pesava muito em sua consciência.

- E Vossa Majestade nada sabia a esse respeito?

- Eu acabara de voltar da Irlanda. A coroa passou para as mãos de meu pai enquanto eu estava naquele país. Eu nada sabia sobre a morte de Ricardo, exceto que isso tinha de acontecer por uma questão de segurança para meu pai.

- A culpa disso não será lançada sobre o senhor, meu filho. Tranquilize sua consciência dando a Ricardo um enterro régio.

- Mandarei enterrá-lo nesta abadia. Aqui é o lugar legítimo dele.

- Vá em paz, meu filho. Mude sua maneira de viver. Tire a capa do vício e envolva-se com a da virtude. Sirva bem ao seu povo, porque ao fazê-lo estará servindo melhor a Deus.

Quando o rei saiu para a noite, sentia-se enobrecido. Harry, o príncipe dissoluto, fora substituído por Henrique, o rei decidido.

A coroação deveria acontecer no domingo da Paixão, 9 de abril daquele ano de 1413.

O rei já estava começando a assombrar todos os que o cercavam com seu comportamento sério.

Muita gente dizia que aquilo não duraria. Em breve teriam Harry enchendo a corte com seus companheiros dissolutos. Aquele papel de homem dedicado era novo para ele, mas tinham de admitir que ele o representava com habilidade.

Há dias que ele não via seus companheiros de bebida; e haviam deixado a corte por sugestão dele. Estava em estreito contato com os tios, os Beaufort, e devolveu a Henry Beaufort o cargo de chanceler, do qual se demitira ao ser indicado para a diocese de Winchester. O conde de Arundel fora um grande favorito de seu pai, mas Henrique não compartilhava da devoção do pai por ele, embora percebesse que o chefe de uma família tão poderosa como aquela não devesse ser ofendido. Ele foi nomeado tesoureiro. Henrique fez penitência pública pelos pecados do pai, e todos sabiam que o que realmente tinha em mente era cercar a coroa, porque mandara retirar o corpo de Ricardo de Langley e enterrálo na abadia de Westminster; e anunciou que no dia da coroação pretendia conceder um perdão geral a todos os prisioneiros, exceto os que tivessem sido presos por assassinato ou estupro.

Foi um bom começo, mas a maioria das pessoas ainda estava cautelosa. Harry, o príncipe, adquirira uma reputação terrível demais para poder apagá-la com algumas boas ações. Ele anunciou que iria fundar três casas religiosas em Richmon, uma para monges cartuxos, uma para monges celestinos, e outro para freiras bregentinas; e nelas deveriam ser feitas orações de dia e à noite pelo repouso da alma de seu pai.

Fazia um frio anormal para aquela estação do ano. O inverno fora violento e continuara assim por toda a primavera, mas no dia da coroação o público lotou as ruas, apesar do vento cortante. Após a tradicional cerimónia na abadia, Henrique foi para as ruas, e àquela altura a neve caía bastante, e os fortes ventos a estavam transformando numa nevasca.

Uma tempestade de neve em abril! Não havia dúvida de que um fenônemo assim tão raro tinha de ser um aviso do céu.

Enquanto Henrique lutava para voltar ao palácio para o banquete da coroação, dizia-se que aquela era a maneira de Deus dizer à Inglaterra que o rei afastara os ardores da juventude. Estava sendo purificado pela neve. Um bom augúrio. Mas também havia aqueles que consideravam a tempestade um aviso dos males que estavam por vir.

Independente do que significasse, não podia haver dúvida de que Henrique se tornara um novo homem.

Thomas Arundel, arcebispo de Canterbury, procurou uma audiência com o rei.

A última vez em que o rei vira seu arcebispo fora na coroação, quando Arundel colocara a coroa em sua cabeça. Agora Arundel tinha um assunto grave a discutir, e Henrique adivinhou do que se tratava.

Arundel tinha sido inimigo do movimento que estava espalhando-se pelo país e era conhecido como os lollardos. O objetivo daquela comunidade era, na verdade, a completa privação de doações ou subvenções da Igreja; um objetivo que poderia ter parecido digno de coisa alguma, exceto escárnio em certa época, mas que nos últimos anos mostrara constituir-se numa ameaça.

Aqueles lollardos eram os seguidores de John Wycliffe; eram reformadores e seus interesses não estavam apenas limitados à reforma da Igreja. Acreditava-se que o lollardismo estava na raiz da Revolta dos Camponeses, e eles tinham levado a desgraça até muito perto da coroa. Portanto, era um movimento que devia ser vigiado de perto, e desde que subira ao trono ninguém estava mais ciente disso do que Henrique.

Seu pai nunca desfrutara de segurança, e ele ainda tinha de saber até que ponto ia a sua. Quando se chegara até lá por aquilo que alguns chamariam de caminho tortuoso e por um direito discutível, devia-se ter cuidado.

O rei recebeu o arcebispo com demonstrações de amizade, mas com certa falta de entusiasmo. Não gostava muito do velho, mas este devia estar se aproximando dos sessenta, pensou Henrique, e não poderia durar muito mais tempo.

- Majestade - disse o arcebispo -, vim procurá-lo para tratar de um assunto muito sério. Os lollardos estão prestes a se levantar, e está na hora de agirmos contra eles.

- Os lollardos!-bradou o rei. - Nós os mantemos sob controle, não? Sabemos como lidar com eles se se tornarem muito atrevidos.

- Eles se tornaram mais do que atrevidos, majestade. Tornaram-se uma ameaça.

Henrique estudou o arcebispo atentamente. Sempre alerta para defender os direitos da Igreja, pensou ele. Sempre vigilante, para evitar que alguns privilégios sejam tirados pelo Estado. Henrique acreditava que o Estado deveria estar em primeiro lugar. O arcebispo não concordava. Havia sempre esse conflito entre as duas partes.

Arundel tivera uma carreira tumultuada. Fora banido por Ricardo; e porque Ricardo tinha sido seu inimigo, Henrique IV fora seu amigo. Arundel lamentava o passamento do quarto Henrique e seria muito desconfiado com relação ao quinto daquele nome. E com razão, pensou o novo rei.

Não precisa preocupar-se. Ele era um homem idoso. Em breve estarei nomeando o arcebispo de minha confiança.

- Majestade, os lollardos conspiram contra a coroa quando atacam a Igreja.

Henrique ergueu as sobrancelhas.

- O lollardismo estava por trás da Revolta dos Camponeses, majestade-disse o arcebispo. - Não tenha dúvida. Esse é o plano dos vilões. Eles tentariam tornar Vossa Excelência um fantoche deles ou colocar outro em seu lugar.

- Há vários anos que temos os lollardos conosco. Diga-me, senhor arcebispo, por que o senhor está agitado por causa deles, agora?

- Porque, majestade, eles têm um novo líder. Um homem de uma certa riqueza e com o poder de liderar. Eles estão se reunindo sob a liderança dele. Marcharão contra Londres se não tomarmos providência.

- O senhor não pode prender esse líder e colocá-lo na Torre, para que seja julgado por traição?

- Isso pode ser feito, majestade, mas tendo em vista de quem se trata, achei melhor trazer primeiro o assunto ao seu conhecimento e perguntar o que Vossa Majestade quer que se faça.

- Mas se esse homem é o líder de um bando de rebeldes que planejam uma revolta contra a coroa... por que o senhor hesita?

- É Lorde Cobham, majestade, que em determinada época foi Sir John Oldcastle. Sabe-se que ele é um homem por quem Vossa Majestade tinha uma certa consideração. Antes de ele ser preso, gostaríamos de saber sua opinião.

- Oldcastlel - bradou o rei. Um sorriso lento tocou-lhe os lábios. Seu velho malandro, pensou ele. O que você está tramando agora? - Então ele se tornou um reformador, não é?

Henrique ficou pensativo por algum tempo. Não estava de todo surpreso. O velho John adorara discutir as ideias defendidas pelos lollardos, e às vezes simpatizara com elas. Era difícil imaginá-lo inteiramente sério. Não havia dúvida de que abriria mão de sua preguiçosa vida devassa em troca de uma causa.

- Parece que isso acontece desde seu casamento com Lady Cobham, majestade.

O rei fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Ela é uma herdeira, não é?

- Neta do velho Lorde Cobham, que morreu faz alguns anos. Agora é dona de Cobham Manor e do castelo de Cowling.

- Que tipo de mulher ela é?

- Tem cerca de trinta anos. Oldcastle é seu quarto marido.

- Uma senhora casada muitas vezes. Imagino que seja uma mulher de opiniões firmes e, é claro, ao se casar com ela John Oldcastle adquire o título. Ele vai gostar disso.

- O lollardismo é muito grande no distrito em que ele e a esposa vivem agora. Ultimamente, tem aumentado. Ouvi dizer que o motivo é o fato de Lorde Cobham ser um líder convincente e saber como recrutar homens para a sua causa.

- É isso mesmo - concordou Henrique. - Jamais conheci um homem mais convincente em seus argumentos.

- A sugestão é que ele seja preso e interrogado. Henrique confirmou com a cabeça.

- vou falar com ele - disse ele. -vou mostrar-lhe como é perigosa a situação em que ele está se colocando. É verdade que era meu amigo. Terei prazer em aconselhá-lo.

O arcebispo fez um gesto afirmativo com a cabeça, e depois que ele se retirou, o rei mandou uma mensagem a Cobham Manor com uma ordem para que seu velho amigo o visitasse sem demora.

Ficaram frente a frente - aqueles dois que tinham sido os companheiros farristas decididos a saborear aventuras, ultrapassando um ao outro em irresponsabilidade, jactando-se de que não deixariam de fazer coisa alguma - por mais ofensiva que pudesse ser à sociedade convencional.

Houve uma mudança nele, pensou o rei. Está mais gordo do que nunca; ainda tem o brilho alegre nos olhos; mas há uma nova seriedade, um propósito; poderia dizer-se, até, um fanatismo.

- Bem, John - disse Henrique -, deve ter adivinhado o motivo pelo qual mandei chamá-lo.

- E porque você tem sentido saudades de minha companhia alegre e quer usá-la outra vez.

- É verdade que tenho sentido falta dela, mas agora há pouco tempo em minha vida para diversões como aquelas que você e eu tínhamos. Você ficou sério demais, John.

- Meu caro, você se tornou rei e estou percebendo uma certa mudança em você.

- Tenho de falar com você de coisa séria.

- Sou capaz de jurar que andou conversando com o senhor arcebispo.

- Então, sabe dessa queixa contra você.

- Garanto que o senhor arcebispo, ciente que existe uma certa simpatia entre você e eu, conseguirá sua permissão primeiro antes de me trancar na Torre.

- John, você tem de parar com esse absurdo.

- Absurdo! Vossa Majestade não entendeu. Seria a mesma coisa que eu lhe pedir que desistisse de sua coroa.

- Agora você é que está dizendo um absurdo. Você não apenas se juntou aos lollardos, mas se tornou líder deles, e porque você é quem é... com uma força de persuasão que sei que é poderosa... e porque agora se casou com Lady Cobham e utiliza a riqueza e o título dela, tornou-se um pólo de atração. Está correndo perigo, meu velho. Como uma pessoa que tem sido sua amiga, eu o estou prevenindo.

- Suas palavras caem em chão de pedras, meu caro senhor.

- Neste caso, pretendo cultivar esse chão e torná-lo fértil. John, você tem de me ouvir.

- Eu estava com a esperança de fazer com que você me ouvisse.

- Ora vamos, vai querer me tornar um lollardo?

- Não ficamos contra o rei, majestade. Estamos de olho na Igreja.

- O que um bando de rebeldes... na maioria, camponeses... faz contra a Igreja?

- Queremos reformá-la. Você tem de concordar que Cristo e seus apóstolos não usavam roupas finas. Não viviam em palácios. Andavam de um lado para o outro humildemente e na pobreza, para fazer o bem. Uma Igreja que detém a posse de terras, arrecada dízimos e tira dinheiro de camponeses que estão morrendo de fome e mal podem pagar enterros e batismos não pode estar fazendo o trabalho que Cristo pretendia realizar nesta Terra.

- Não tenho dúvidas de que suas intenções são boas, John. Temos a Igreja e sempre a apoiamos. Não posso deixar que meu arcebispo percorra o interior e durma debaixo de cercas vivas quando não puder pedir uma cama, vivendo de migalhas atiradas para ele por alguma mulher de fazendeiro. Sejamos razoáveis, John. Temo pelo que lhe possa acontecer. Irão prendê-lo. Irão interrogá-lo. Pelos ouvidos de Deus, meu velho, será que não compreende o destino que lhe pode estar reservado? Já se esqueceu de William Sawtre?

- Não me esqueci dele. E muitos também não devem ter se esquecido. Foi o primeiro homem a morrer queimado pelas suas opiniões religiosas. Atos como esse não desanimam. Fortalecem a determinação.

- Deviam servir de lição para você.

- E são, mesmo, majestade, uma lição de que a alma do homem é o seu bem mais caro e que não pode ser destruído pelo fogo.

- Eu preferiria ver meu antigo companheiro devasso do que esse apaixonado reformador.

- Neste caso, comete um erro - respondeu Oldcastle, sério.

- Eu me alegro em ver um rei naquele que outrora foi um rapaz irresponsável. Lembra-se, Hal... perdoe a familiaridade, mas meu pensamento recua à época em que éramos companheiros alegres, porque é dela que estou falando. Lembra-se de um humilde alfaiate da diocese de Worcester? O nome dele era John Badby?

O rei deu as costas, abanando a cabeça com impaciência, mas o gesto foi para esconder o fato de que estava emocionado. Sim, lembrava-se de John Badby. Pensara nele muitas vezes nos meses que tinham se seguido àquele dia. Sentira o cheiro acre, ouvira os gemidos de agonia. Era uma coisa que preferia esquecer.

Mas John Oldcastle não deixaria que esquecesse.

- Eles o prenderam... um modesto alfaiate - prosseguiu John. - Por que escolher um homem daqueles como exemplo? Por Deus, ele era um sujeito valente. Qual foi o crime dele? Foi a negação da transubstanciação. O que foi que ele disse: "Se toda consagração no altar for o corpo do Senhor, então devem haver vinte mil deuses na Inglaterra." Ele disse que acreditava em apenas um Deus na Inglaterra. Eles o julgaram na catedral de St. Paul. Mostraram-lhe o sacramento e perguntaram o que era aquilo. Ele disse que era pão abençoado, mas não o corpo de Deus. E por causa disso levaram-no para Smithfield. Você se esqueceu desse homem. Quem deveria lembrar-se de um humilde alfaiate? Mas se aquele humilde alfaiate tornar-se um santo...

- O martírio desse tolo não vem ao caso.

- Oh, não. Não. Vem muito ao caso. E nunca me esqueço de sua parte nele, meu nobre rei. Não consigo esquecer que o senhor ia passando a cavalo e eu estava com o senhor; e o senhor viu aquele homem amarrado ao poste. Estavam acendendo os ramos que formavam a fogueira aos pés dele. E o senhor parou para olhar. Senti no senhor uma melancolia pelo fato de um homem ser perseguido por causa de suas crenças religiosas. O senhor sempre foi um homem que zombava das convenções, não foi? Aquelas visitas à taberna eram, em parte, porque o senhor queria ir, em parte porque sobrancelhas seriam erguidas e as pessoas diriam: "O príncipe é um farrista. Ele é um devasso irresponsável." Aquilo o fazia rir, fazer careta para os velhos grisalhos. Mas o senhor parou perto do poste em que estava Badby e fez uma pausa para pensar. As chamas lamberam as pernas dele, e a dor era intensa. Ele gritou: "Misericórdia!" E o senhor, o que foi que o senhor disse? "Afastem a fogueira", disse o senhor. "Dêem a ele uma oportunidade para se arrepender." Assim, a fogueira foi afastada e o senhor e o alfaiate se olharam nos olhos. "Jure que estava errado", disse o senhor. "Declare que foi enganado. Faça isso, e irá em paz." Mas, senhor, Badby não pedira misericórdia da humanidade, mas de Deus; ele gritou não para que a fogueira fosse afastada, mas que Deus o recebesse depressa no céu. Ele não quis renunciar a suas crenças, de modo que foi atirado de novo na fogueira. O fim dele, graças a Deus, chegou rápido. Assim era Badby e, acho eu, um homem que continuou a perseguir seus pensamentos durante muitos meses.

- Eu me lembro. Ele foi um bravo.

- Morreu pelas suas crenças. Há muitos neste país, senhor rei, que fariam o mesmo.

O rei estourou numa gargalhada.

- Você não, meu velho - disse ele. - Você, não. É mais provável que você morra dos tremores de Vénus ou dos odores de uma bebida forte.

- Uma coisa estranha e maravilhosa, senhor, é o fato de que assim como o senhor mudou, eu também mudei. Será que isso não prova, de alguma maneira misteriosa, que o senhor e eu caminhamos juntos?

- Você esquecerá seus lollardos, John?

- O senhor se esquecerá de sua coroa?

- Nunca.

- Então, por que devo eu esquecer?

- Porque sua coroa, seu velho bufão, poderá ser a coroa de um mártir se você insistir nas suas loucuras.

- Neste caso, eu não a poria de lado, tanto quanto o senhor não colocaria sua coroa de ouro.

- Escute-me, John, agora estou falando com toda seriedade. Abandone essas loucuras. Volte para sua Cobham Manor. Você tem uma nova esposa. Cumpra com seu dever para com ela.

- Esteja certo, senhor meu rei, de que farei o que achar ser de meu dever.

Henrique percebeu, desanimado, que não adiantava tentar persuadir o amigo a agir com discrição. John Oldcastle parecia estar decidido, como nunca estivera, a não dar importância para o perigo.

Para tristeza sua, poucas semanas depois ele soube que lorde Cobham fora detido e enviado para a Torre.

O rei foi visitar a madrasta em Windsor. Para mostrar sua amizade por ela, quando seu pai morrera ele lhe dera permissão para morar em seus castelos reais de Windsor, Wallingford, Berkhamsted e Hertford, e Joana tivera o prazer de aceitar aquele convite, já que estava ansiosa por manter um bom relacionamento com o novo e jovem rei.

Ela se conformara com a morte do marido. Ninguém poderia ter desejado que ele vivesse e sofresse uma doença repulsiva como aquela que nitidamente piorara à medida que os meses passavam. Era de partir o coração pensar nele tal como tinha sido quando os dois se apaixonaram; e parecia um cruel golpe do destino o fato de ter sido casada com um velho e depois, quando pudera fazer sua escolha, essa ter caído sobre um homem que logo se tornaria um inválido.

Ela acreditava que o que acontecera tinha sido demasiado para Henrique. Ele fora perseguido a vida toda pelo fantasma de Ricardo. Estava certa de que se ele tivesse subido ao trono graças a uma herança legítima, tudo teria sido inteiramente diferente.

Agora, por ter estado ali há tanto tempo e pelo país ter passado a ser sua pátria, queria ficar na Inglaterra. Haveria um lar para ela na Bretanha, onde seu filho era o duque que reinava, mas temia ser recebida lá com frieza. Além do mais, possuía propriedades valiosas na Inglaterra; sempre gostara de acumular riqueza, e como esposa do rei Henrique iy tivera oportunidade disso. Mas queria ficar; e, portanto, tinha de manter o melhor dos relacionamentos com o enteado.

Ela o recebeu bem em seus aposentos.

Ele viera, afirmou, para assegurar-se de que estava instalada com conforto; mas ela sabia que era mais do que isso. Queria que ela fizesse alguma coisa para ele; e ela deveria fazê-la, é claro, se fosse possível.

- Meu bisavô Eduardo III estava convencido de que a coroa da França pertencia a ele por direito. Eu penso da mesma maneira.

Joana ficou esperando.

- Além do mais - continuou ele -, pretendo conquistá-la.

- Você vai recomeçar a guerra com a França? - disse ela, com calma.

- Vou conquistar minha coroa.

Ele falava com uma determinação tranquila. Ela se lembrou de que o pai dele lhe dissera que o filho mais velho pensava como um soldado e agia como tal; e que quando ele chegasse ao trono, a guerra seria sua principal preocupação, tal como acontecera com seu ancestral que os homens tinham chamado de Ricardo Coração de Leão.

- Seu bisavô obteve muitas vitórias - disse Joana -, e o filho dele, o Príncipe Negro, também, mas eles nunca conquistaram a coroa da França para a Inglaterra.

- Eles não continuaram o tempo suficiente. Eduardo envelheceu e cansou-se da guerra. O Príncipe Negro morreu na flor da juventude. Eu jamais desistiria. Eu iria lá e venceria, e é isso que pretendo fazer.

- Será que você consegue... levantar os homens... o dinheiro?

- com a ajuda de Deus, posso e vou levantá-los.

Joana ficou preocupada. Esperava que ele não a pedisse para ajudá-lo. Ela adorava seus bens. Sua maior alegria, agora, era aumentá-los, contá-los, olhá-los com grande satisfação. Ela não iria querer aquela riqueza que tivera tanto prazer em reunir dissipada numa guerra.

- Você está planejando... - começou ela.

- Eu já estava, mesmo antes de meu pai morrer - replicou ele. - Quero vencer, minha senhora, onde outros fracassaram. E não se engane, vou vencer. Farei os franceses ficarem de joelhos, isso eu lhe prometo. O rei deles é maluco. O delfim não é tão brilhante quanto ele mesmo pensa. Na verdade, minha senhora, estou planejando. E na verdade levarei a guerra ao território da França. Agora quero que a senhora me ajude. Espero que esteja disposta.

- Se pudesse, seria um prazer, mas sou uma mulher fraca... Joana ficou em silêncio. Seu filho, o duque de Bretanha, era

casado com a filha do rei da França, e naturalmente haveria uma forte influência, lá, em favor da França. Ela ficou apreensiva.

- Seu filho mais velho deve ser convencido de que minha disputa é justa - disse Henrique. - Não tenho dúvidas de que ele dará ouvidos à mãe. Seu filho Arthur, naturalmente, me deve vassalagem.

Era verdade. Joana persuadira o marido a conceder a Arthur o título de conde de Richmond, e ele o fizera. Seria dever de Arthur alinhar-se ao lado de Henrique. Era em relação ao mais velho que ela temia.

- É uma pena seu filho ter se casado com uma francesa disse ele.

Ela confirmou com o gesto da cabeça. O casamento fora arranjado quando ela partira para a Inglaterra, e porque o rei da França queria assegurar-se da vassalagem da Bretanha.

- Arthur, é claro, estará do seu lado - disse ela. - O duque... bem, isso é outra questão.

Henrique reconhecia que seria difícil o duque lutar contra o sogro. Por outro lado, a mãe dele era a rainha da Inglaterra.

- vou depender de seus poderes de persuasão - disse ele. Joana prometeu fazer o possível, e os dois se separaram amigavelmente.

Mas depois que ele se retirou, Joana cedeu ao desânimo que a visita provocara. Guerras, pensou ela. Vai começar tudo de novo? Que loucura! Ele jamais conquistará o trono da França. Isso significará derramamento de sangue, perda de recursos e divisões entre as famílias. Não podia acreditar que o filho mais velho um dia lutaria do lado dos ingleses contra a França.

Henrique se afastou pensativo, também. Precisava da Bretanha do seu lado, e sem dúvida o fato de a mãe do duque ser sua madrasta devia ter uma certa influência. Joana era uma mulher inteligente. Saberia como convencer. E o assunto era também do interesse dela. Veja o que ela fizera desde que fora para a Inglaterra. Sempre fora bem tratada, muito embora o povo não gostasse dela. Vivia com muito conforto na Inglaterra; ele ouvira dizer que ela era uma mulher muito rica - na verdade, uma das mais ricas da Inglaterra. Tal como o pai dele, ela nunca fora exagerada nos gastos.

Ele precisaria de dinheiro para financiar a guerra.

Pensaria nisso mais tarde.

Quando chegou de volta a Westminster, ficou sabendo que Lorde Cobham fugira da Torre.

O Natal chegara, e a corte estava em Eltham. Henrique gostava de Eltham, e ia para lá com frequência, para fugir à atividade que sempre parecia existir em Westminster. Era uma fortaleza segura, cercada por um fosso e por um grosso muro externo de pedra cinza.

Houve festejos no Natal, mas o pensamento dele estava mais concentrado na campanha que planejava levar à França. Ele sabia que todos os que o cercavam ficavam impressionados com a mudança que ele sofrera. Não fazia muito tempo, ele estaria envolvido em farras, bebendo, cantando e observando as mulheres, perguntando-se qual aquela que escolheria para sua companheira naquela noite.

Uma coroa mudara aquilo. Ele precisava pensar em casamento. Estava com 26 anos, não era exatamente um rapaz. Poucos reis ficavam solteiros tanto tempo. Tinham sido muitos os casamentos sugeridos, mas como era normal com relação a tantas negociações daquele tipo, tinham dado em nada. Agora, ele tinha de pensar seriamente em arranjar uma esposa.

Por estranho que parecesse, pensava muito na pequena Isabella de Valois, viúva de Ricardo. Ficara obcecado por aquela menina. Nunca vira ninguém que igualasse a beleza dela - mas talvez a imagem dela tivesse ficado mais bonita à medida que o tempo passava, como muitas vezes acontecia. Ela morrera, pobrezinha, depois que a tinham casado com Orleans. Que criaturinha fascinante ela se mostrara, com sua veemente lealdade para com o ineficaz Ricardo, que nunca fora seu marido além de apenas no nome.

Bem, tinha de haver um fim para aquelas prevaricações. Uma esposa... mas, primeiro, a coroa da França.

Ele estava sentado na mesa elevada no grande salão de banquetes, acima dele o teto alcantilado com seus pontaletes, pendentes esculpidos e braçadeiras seguras sobre consolos de pedra talhada. Lá na galeria dos menestréis, os músicos tocavam suas melodias. Uma grande fogueira queimava no centro do salão. Dali a pouco, os pantomimeiros chegariam e deixariam os presentes encantados com seu desempenho.

Era exatamente como tantos Natais de que ele se lembrava. Os cozinheiros tinham suplantado a si mesmos com os grandes quartos de saborosas carnes e tortas e peixes guarnecidos com ervadoce, hortelã e salsa - congros, badejos, cavalinhas, solhas, linguados e peixes-de-são-pedro. Não importava a estação do ano, já que os cozinheiros podiam salgar qualquer coisa para preservá-la a fim de que pudessem servi-la a qualquer momento que quisessem. Os cozinheiros disputavam uns com os outros e os cozinheiros reais tinham de fazer cada banquete melhor do que o anterior. Capões, galinhas, cisnes, pavões e abetouros adornavam as mesas, para deleite daqueles que gostavam de pássaros de sabor forte.

Não houve falta de comida, e a maioria dos presentes achava que Henrique ficaria quase incapaz de seguir cambaleando para a cama, tal seria o entusiasmo com que se serviriam de todas as iguarias, e tal seria a liberdade com que beberiam os vinhos, a cerveja e o hidromel levados pelos bons adegueiros de Eltham.

O banquete terminara, os menestréis tocavam; os pantomimeiros tinham chegado e, fartos de tanta comida suculenta e bebida alcooólica, os convidados despertaram de seu estado soporífico para assistir e aplaudir.

A dança começara, e enquanto o rei pensava em qual das damas escolheria, sentiu um pequeno puxão na manga da túnica.

Voltou-se abruptamente. Um dos pantomimeiros, usando a cabeça de um bode, estava em pé bem perto dele.

- Majestade - disse o pantomimeiro com cabeça de bode num sussurro, e havia insistência em seu tom de voz.

- O que significa isso? - disse o rei, mas manteve a voz baixa.

- Parta imediatamente para Westminster, majestade. Há uma trama para prender Vossa Majestade e seus irmãos esta noite. Para matá-lo e instalar um novo governo.

- Isso é uma piada? Por Deus, não gosto desse tipo de piada...

- Majestade, majestade. Mandaram que eu falasse com Vossa Majestade. Os lollardos estão planejando destruí-lo. Eles pretendem repetir o que tentaram fazer na época do rei Ricardo.

- Quem o mandou me procurar?

- Uma pessoa que Vossa Majestade conhece bem. Um amigo que o adora e não quer que lhe aconteça algum mal.

Ele percebeu logo. Aquilo era coisa de John. Seria uma brincadeira? O tipo de brincadeira que os dois gostavam de fazer um com o outro. Não, John ficara sério, tal como ele. E havia uma coisa que ele sabia: os lollardos eram uma potência, e que merecia respeito.

- Eles planejam atacar de madrugada, majestade. Retire-se para seu quarto agora. Faça com que acreditem que está cansado dos festeiros e tem assuntos de Estado para tratar. Chame seus irmãos... e depois, majestade... fuja com eles para salvar a vida.

Henrique hesitou.

Seria verdade? Tinha um instinto para casos assim, e acreditava que poderia ser. Já não era mais o jovem inconsequente que corria riscos. Tinha um país para governar, uma guerra para vencer.

- Acho que você vem a mando de meu velho amigo e camarada John Oldcastle. É isso?

- Eu jurei não revelar a fonte da minha vinda, majestade.

- Eu poderia fazer você falar.

- Há pouco tempo, majestade.

- Confiarei em você, então. Afaste-se de mim, agora. As pessoas estão olhando. Elas pensam que estamos trocando piadas.

O pantomimeiro esgueirou-se para longe. Henrique bocejou.

- Continuem a se divertir. vou me recolher - disse ele. Fez um sinal para os irmãos: - Venham comigo até meu quarto. Tenho assuntos a discutir com vocês.

Eles deixaram o grande salão, e depois que se retiraram, os convivas tornaram a trocar sussurros sobre a mudança que houvera no rei. Antigamente, ele teria ficado em meio aos festeiros; estaria observando algumas das mulheres e fazendo uma avaliação para ver qual a que o agradava. Agora, era uma retirada para tratar de assuntos de Estado com os irmãos.

Teriam ficado surpresos se tivessem presenciado a cena que estava tendo lugar com Henrique e seus irmãos.

- Preparem-se para partir já - disse ele. - Vamos a toda velocidade para Westminster.

O aviso chegara bem a tempo.

Quando o rei chegou a Westminster cedo na manhã seguinte, foi recebido com a notícia de que algo incomum estava acontecendo nas ruas de Londres. Durante todo o dia anterior, aquelas ruas tinham estado cheias de gente, mas não de londrinos. Parecia que homens vindos de todas as partes do país estavam se reunindo lá.

- Mandem um ou dois homens para descobrir o que estão fazendo lá - foi a ordem dele. - Não os detenham para serem interrogados. Mas misturem-se a eles. Bebam com eles nas tabernas e façam perguntas discretas.

Aquilo foi feito, e não demorou para que a mesma informação fosse obtida de várias fontes.

Eles tinham sido atraídos para Londres, vindo do interior, com a promessa de grandes recompensas. Quem fizera tais promessas? Lorde Cobham que estava por trás daquilo. Era um lorde muito rico e reformaria a Igreja e tornaria a vida fácil para os pobres.

A coisa chegou a esse ponto, John?, pensou Henrique. Guerra entre nós dois.

- Temos de nos armar - disse o rei. -Vejo claramente que isso pode ser uma repetição do que aconteceu na época de Ricardo. É o mesmo exército maltrapilho, mas se forem em número suficiente, poderão inspirar respeito.

- Majestade -disse o arcebispo Arundel -, é esse Oldcastle que diz chamar-se Cobham. Ele pensa que está lutando pelo direito.

- Ele é um homem velho - disse o rei. - Conheci-o, certa vez. É uma pessoa que abraça uma causa e dá tudo de si. Receio que seja isso que ele está fazendo agora.

- É uma pena terem deixado que ele fugisse da Torre. Henrique confirmou com um gesto da cabeça. Lembrou-se

da alegria que sentiu quando soube que John estava livre.

John, seu louco, pensou ele. Por que não voltou para o interior e viveu em paz? Será que nunca vai aprender sua lição?

Claro que não aprenderia. Ele era um lutador. Estava pronto para qualquer aventura - agora como antes.

Fique fora disso, John, pensou o rei. Não quero nenhum confronto entre nós dois. Não gosto de estarmos lutando em lados diferentes. Antigamente, participávamos de todas as nossas aventuras juntos. Vamos nos lembrar disso agora. Pare com essa bobagem, enquanto há tempo.

Chegaram mais notícias. Um dos espiões informou que os lollardos estavam se reunindo nos Campos de St. Giles e que estavam se preparando para marchar. O primeiro plano deles era destruir os mosteiros de Westminster, St. Albans e St. Paul, bem como todas as casas de frades de Londres.

O rei estava impaciente. Era preciso tomar alguma providência. Ele se lembrava de como Ricardo saíra triunfante fazendo promessas, promessas que, na verdade, não tinham sido cumpridas. Mas os pobres e simples camponeses não tinham acreditado que o resultado fosse ser aquele. Eles tinham confiado no rei.

- vou expedir uma proclamação - disse ele - avisando que todas as pessoas que tiverem pregado doutrinas hereges e até mesmo aquelas que tramaram contra a minha vida serão perdoadas.

Seus conselheiros ficaram calados. Eles questionavam a prudência daquele ato, mas Henrique foi firme.

- Então eles estão se reunindo nos Campos de St. Giles, não é? Pois bem, irei enfrentá-los. E vou levar um forte exército comigo.

- Majestade - disse um deles-os aprendizes estão se reunindo nas ruas.

- Então, depois de passarmos pelos portões a caminho dos Campos de St. Giles, providenciem para que os portões sejam fechados e não deixem ninguém entrar ou sair, a não ser aqueles que sabemos que são nossos amigos.

- Assim será feito, majestade - foi a resposta; e assim, o rei e seus guardas saíram a cavalo em direção aos Campos de St. Giles.

Foi uma boa manobra, porque os aprendizes, sempre ansiosos por se unir a qualquer movimento que pudesse significar encrenca, estavam se preparando para marchar, e reunindo-se com eles estavam os mendigos e criminosos, sempre ansiosos por roubar e saquear bens e casas dos outros. Muitos dos homens do interior, que tinham ido para Londres para atender ao chamado de Lorde Cobham, confundiram o acampamento do rei com o de seus amigos e foram imediatamente capturados. O resultado foi o caos, e o exército que se rebelava percebeu logo que não podia esperar obter sucesso contra os disciplinados soldados do rei.

Tomaram a única atitude possível. Fugiram.

O rei voltou para Londres. Ele abafara a revolta com uma facilidade maior do que aquela com que Ricardo dispersara o bando de camponeses que o enfrentara. Dessa vez, é claro, o caso não tivera a mesma escala; mas levantes como aquele eram perigosos.

Ele aguardava com ansiedade notícias sobre os prisioneiros. Eram muitos.

- Lorde Cobham está entre eles? - perguntou ele.

- Não, majestade. Parece que ele fugiu... se é que realmente estava lá. É ele que queremos, majestade. Ele poderá tentar outra vez fazer o que falhou desta vez.

- Esse Oldcastle é um sujeito escorregadio.

- Devíamos levá-lo para a Torre, e dessa vez providenciar para que receba o que merece.

- Devíamos - concordou o rei -, mas duvido que seja fácil mante-lo preso. Ele já fugiu antes.

- Dessa vez, o destino dele será resolvido depressa. Ele é um herege e também um traidor de Vossa Majestade.

O rei semicerrou os olhos. Eram muitas as recordações de John. Como tinham chegado àquele ponto? Eles deviam ter sido amigos a vida inteira.

- É - disse Henrique com firmeza -, o destino dele será resolvido depressa.

E qual seria ele? O machado, a corda? A morte dos hereges?

Henrique não podia deixar de pensar em John Badby. O cheiro horrível de carne queimando.

Oh, John, seu louco, pensou ele.

Quando soube que Lorde Cobham fugira dos Campos de St. Giles (se é que estivera por lá) e estava foragido, sentiu um grande alívio.

Fique escondido, seu velho idiota, pensou ele. E pelo amor de Deus, tome juízo!

 

HENRIQUE ARDIA de ambição. Todas as energias que tinham sido gastas em suas aventuras noturnas estavam, agora, concentradas em um objetivo: conquistar a coroa da França.

Convocou seu conselho e disse que as negociações com os franceses deveriam começar sem demora. Apresentou a reivindicação da coroa da França. Não havia dúvida de que lhe pertencia. Eles poderiam manter a lei sálica na França, mas a Inglaterra não a reconhecia; e através de Isabella da França, mãe de seu bisavô Eduardo III, a coroa tinha de ser dele.

Seus irmãos, os duques de Gloucester e Bedford, alinharam-se firmemente ao seu lado; o mesmo fez seu tio, duque de Exeter, e seu primo, duque de York.

Os principais nobres estavam reunidos, também, com o arcebispo de Canterbury.

Pobre do Arundel, parecia que não duraria muito neste mundo. Ele sobrevivera a muitos riscos, sofrera o exílio e vira seu irmão, o conde, ser executado como traidor do rei Ricardo. Uma vida longa, durante a qual o rei acreditara que o arcebispo tentara viver de acordo com seus princípios. Claro que ele adorava uma extravagância; e apoiava, com todo o entusiasmo, a pompa e a grandiosidade da Igreja e era, portanto, um arquiinimigo natural dos lollardos.

E agora, ali estava ele para dar sua garantia de que a reivindicação do trono da França por parte de Henrique nada tinha de ilegal.

- Já deixamos claro, para os franceses, nossa opinião sobre esse assunto - disse Henrique.

- E, majestade - lembrou-lhe seu tio Exeter -, eles zombam de nós.

- Que riam enquanto puderem. Prometo a todos os senhores que seremos nós a rir quando a coroa for colocada na minha cabeça.

- Haverá muitas batalhas antes desse dia feliz - salientou o tio.

Henrique apoiou a mão no ombro dele.

- O senhor acha que isso é um sonho de um jovem louco disse ele. - Conheço seu modo de pensar, meu tio. Mas pense, meu bisavô também tinha esse sonho, e ele não era um jovem louco. Era um guerreiro diante do qual todos os homens se ajoelhavam.

- Dizem, majestade, que ele foi levado a isso por um juramento irrefletido sobre uma garça.

- Mas com garça ou sem garça, ele fez todo o possível para conquistar a coroa da França.

- E não conseguiu, majestade.

- Ele teve azar. Ficou velho, e seu neto, o Príncipe Negro, era um homem doente. Sou jovem. Não vou parar enquanto não tiver vencido.

- Carlos VI jamais abrirá mão da coroa por livre vontade.

- Ora, isso é uma coisa que nós compreendemos. Pobre velho louco. Ele está cercado por todos os lados. Borgonha estaria conosco.

- Não é provável que um rei da França entregue a coroa sem lutar. Além do mais, há o delfim.

O rei estalou os dedos.

- Luís é um fanfarrão, e um fanfarrão muito bonito, creio eu. Ele vai se certificar de que suas roupas íntimas estão bem perfumadas antes de entrar em combate. Ele seria sensato se aceitasse nossas condições mais recentes: Carlos ficaria com a posse nominal do trono até morrer. Isso é muito justo, muito razoável. A Inglaterra não pode mais ser vassala da França por causa das províncias de Normandia, Maine, Anjou e Aquitânia. O resgate pelo rei John, que foi capturado pelo Príncipe Negro e mantido preso aqui em Londres durante algum tempo, nunca foi pago. Será pedir muito que agora ele seja pago? O rei da França dará sua filha caçula, Katherine, para ser a minha rainha, e ela trará um dote de dois milhões de coroas.

- Eles jamais concordarão com essas condições - disse Exeter.

- Mas eles têm medo de nós - insistiu o rei. - Sim, eles têm medo de nós. É a coroa que eu quero, e com a ajuda de Deus irei consegui-la...

A finalidade daquela reunião era receber os embaixadores franceses, que foram admitidos para que Henrique pudesse dizer-lhes, perante todos os presentes, qual era o seu desejo.

Ele falou com clareza e em tom fulminante:

- Pouco ligo para o seu dinheiro francês - disse ele -, e menos ainda para seu poder e sua força. Conheço perfeitamente meus direitos à coroa que foi usurpada. O usurpador, seu patrão, pode ter súditos dedicados que aderirão à causa dele. Agradeço a Deus por não me faltarem súditos assim. E uma coisa eu lhes digo, antes do prazo de um ano farei com que a mais alta coroa de seu país se curve à minha frente e a mais orgulhosa das mitras sofra sua humilhação. Enquanto isso, digam ao usurpador, seu patrão, que dentro de três meses entrarei na França como sendo meu património de verdade e legítimo, adquirindo o mesmo não com palavras tonitruantes, mas com feitos de homens e a poder da espada, com a ajuda de Deus, no qual deposito minha confiança. Os senhores podem partir em segurança para seu país, onde estou certo de que em breve irei visitá-los e de que os senhores terão motivo para dar-me as boas-vindas.

Os franceses ficaram estupefatos com aquelas palavras; mas fizeram uma mesura e se retiraram.

Depois que eles foram embora, todos os olhares estavam dirigidos para o rei.

- Palavras corajosas, majestade - disse Bedford.

- Feitos corajosos devem ser precedidos por palavras corajosas, irmão. Você verá que todas elas representam meu pensamento. Agora vamos fazer os preparativos.

- Carlos vai ficar tremendo de medo - disse Exeter. - Fico imaginando o que o delfim terá a dizer.

A resposta do delfim chegou algumas semanas depois.

O rei estava em sua antecâmara com os irmãos e conselheiros quando os embaixadores da França chegaram. Levavam com eles um barril que foi carregado para dentro e colocado aos pés do rei.

- O que é isso? - perguntou o rei.

- Presente do delfim para Vossa Majestade.

O rei deu uma risada. Será que o tolo janota pensava que poderia acalmar os ânimos do rei da Inglaterra com presentes?

- Ele mandou esses bens valiosos a Vossa Majestade, com a certeza de que o deixarão muitíssimo satisfeito. Ele conhece a sua natureza e aplicou seus conhecimentos ao selecionar um tesouro que fosse considerado muitíssimo adequado ao seu gosto.

- Não deveremos ser influenciados por isso, mesmo que fosse muito do nosso agrado - disse o rei. - Mas vejamos o que o senhor delfim sabe a respeito das minhas preferências.

Ele estava sorrindo quando o barril foi aberto. Houve um prender de respiração de assombro quando o rei enfiou a mão e tirou uma bola de ténis.

- Nossa! - bradou ele. - O barril está cheio delas.

Os embaixadores curvaram a cabeça para esconder os sorrisos.

- Nosso senhor acredita que essas bolas serão de seu agrado, majestade - disse um deles. -A mensagem dele é no sentido de que ele tem certeza de que Vossa Majestade irá usá-las com maior habilidade do que aquela com que usaria uma espada e uma lança.

Henrique ficou em silêncio por alguns momentos. Seu rosto estava com um tom de vermelho mais escuro do que de costume.

Então, disse numa voz alta e clara:

- Digam ao seu patrão que quando eu bater com minhas raquetes nessas bolas, as dispararei com tanta velocidade, que elas irão abrir as portas de Paris.

- Assim seja - bradaram os que estavam assistindo; e os embaixadores retiraram-se, desconcertados.

- O senhor delfim falou - disse o rei. -Agora, não percamos mais tempo. Vamos nos preparar para fazer a guerra em território francês.

Henrique se dedicou com afinco a se preparar para partir. O povo apoiava-o. Ele era popular. Era jovem; era bonito; mostrara, na juventude, que não era santo; era um homem do povo.

- Nós vamos com Harry - dizia o povo.

Os homens ricos do país aderiram a ele. Levavam-lhe presentes que podiam ser convertidos em dinheiro; os pobres podiam apenas levar a si mesmos, o que fizeram, entrando para seu exército. Estavam todos muito animados com a expedição para a França. Não tinham dúvida do sucesso dessa expedição e falavam sobre os butins que conseguiriam. A França era um país rico. Não era como fazer guerra contra o País de Gales ou a Irlanda. Haveria altos lucros para aqueles que fossem saquear com Harry da Inglaterra.

Todos os maiores nobres do país juraram servir com seus seguidores durante um ano. Henrique anunciou que em troca de seus serviços eles seriam pagos, para um duque, treze xelins e quatro pence por dia; para um conde, seis xelins e oito pence; para um barão ou baronete, três xelins e quatro pence, um cavaleiro dois xelins, um escudeiro um xelim, e um arqueiro, seispence. Quaisquer prisioneiros feitos pertenceriam aos seus captores, e para eles iria o resgate pedido quando fosse pago. Estava claro que haveria lucro.

com a expedição, o rei levava seu médico, Nicholas Colnet, e seu cirurgião, Thomas Morstede, e a eles deveriam ser pagos doze pence por dia e dada uma guarda de três arqueiros.

O exército aumentava em potência; havia seis mil soldados armados e vinte e quatro mil arqueiros.

Durante os preparativos, Thomas Arundel, arcebispo de Canterbury, teve um ataque cardíaco. Não conseguia falar. Diziase que aquilo era o castigo de Deus por ele ter impedido que os pregadores divulgassem a palavra de Deus.

- Pobre velho - disse Henrique. - Ele não ficará triste por morrer.

Mas ele não tinha tempo para lamentar a perda de seu arcebispo. Seus pensamentos estavam no seu exército. Henry Chicheley foi nomeado para o lugar de Arundel, e Henrique ficou satisfeito com o novo arcebispo, porque se tratava de um homem que dava apoio irrestrito à guerra.

Henrique, decidido a garantir que não faltasse nenhum detalhe importante, seguiu pessoalmente para Southampton a fim de assistir ao carregamento dos mantimentos.

A expedição estava pronta para partir dentro de poucos dias, quando ele recebeu a notícia da existência de uma trama. A intenção dos conspiradores era tomar conta do país enquanto ele estivesse ausente e colocar, em seu lugar, o conde de March que muita gente acreditava ser o verdadeiro herdeiro do trono.

Um dos empregados de Richard, conde de Cambridge, foi descoberto com cartas de seu patrão a lorde Henry Scrope de Mersham.

Quando o rei leu as cartas, ficou não apenas furioso, mas horrorizado, porque Henry Scrope tinha sido um de seus mais chegados companheiros desde sua ascensão ao trono. Henrique lhe confiara missões no exterior; há bem pouco tempo, ele viajara com Henry Chicheley antes de este último se tornar arcebispo, numa missão muito confidencial junto ao duque de Borgonha.

- Em quem podemos confiar? - bradou Henrique. E descobrir aquele logro justo quando estava para partir para a França era desalentador. Quem será o próximo a me trair?, perguntavase ele. Será seguro deixar meu reino quando aqueles que eu considerava serem meus mais sinceros amigos são, na verdade, meus inimigos?

Aquela era a sombra que perseguira seu pai. Ele sempre temera que alguém tentasse colocar o conde de March em seu lugar ou descobrir que Ricardo ainda estava vivo. Ele, Henrique, se recusaria a ser perseguido por temores daquele tipo. Em breve ele acrescentaria a coroa da França à da Inglaterra, e ninguém negaria seus direitos.

Ele entendia por que Scrope fora atraído para aquilo - Scrope e Cambridge! Scrope casara-se com a madrasta de Cambridge em seu segundo casamento; e Cambridge era casado com a irmã do conde de March. Cambridge, que tinha sangue real por ser o segundo filho de Edmund Langley, que era filho de Eduardo III, deveria achar que seu filho estava na linha direta em direção ao trono. Aqueles casamentos... aquelas linhas reais... metiam ideias na cabeça das pessoas!

Era necessário agir com presteza para tratar daquele assunto. As conspirações eram sempre perigosas, mas nenhuma poderia ter chegado num momento mais impróprio do que aquela.

Henrique mandou chamar Scrope. Scrope era bom e honesto; era isso que ele pensara - e o tempo todo, agia como um traidor!

- Ah, Henrique - disse ele. - Foi ótimo você ter vindo tão depressa.

- Majestade, estou sempre às suas ordens.

- Exceto - replicou o rei - quando está às ordens de meus inimigos.

Ele estava olhando atentamente para aquele que outrora fora seu amigo, esperando detectar no rosto dele um sinal de inocência.

Mas Scrope ficara rubro, e Henrique viu o medo saltar-lhe para os olhos.

- Cartas encantadoras, as que seu amigo Cambridge escreve para você - disse Henrique.

- Eu não compreendo, majestade.

- Já chega, traidor. Eu li a correspondência entre vocês dois. Então vocês querem colocar March no trono, não é? Mas primeiro tinham de se livrar de mim. Quem seria o assassino? Você, talvez. Você conquistou facilidade de acesso à minha pessoa, com seus falsos protestos de amizade.

Scrope ficou calado.

- Diga a verdade - trovejou o rei -, porque pela verdade de Deus eu juro que vou arrancá-la de você.

- Existe uma conspiração, majestade.

- Isso, para mim, já está claro. E você está envolvido nela.

- com a finalidade de descobrir quando os conspiradores pretendem atacar.

- Ora, vamos, Scrope, você terá de arranjar uma desculpa melhor do que essa. Meu parente Cambridge, hein? Ele quer ver o irmão de sua mulher no trono. E se ele morrer, ora, então Anne de Cambridge tem um filho que poderia muito bem usar a coroa, não é? O plano de Cambridge não é colocar March no trono e depois fazer outra conspiração; derrubar March e colocar o filho de Cambridge no lugar dele?

- Majestade, o plano era fazer do conde de March o rei. Embora haja quem diga que Ricardo ainda está vivo.

- Não me venha com essa história antiga de novo!

- Pouca gente acredita nela. - Scrope parecia ansioso por falar, como se ao fazê-lo pudesse convencer o rei de que se unira à conspiração só para traí-la no devido momento.

Henrique ouviu com uma expressão de escárnio nos lábios e tristeza no coração. Ficava magoado ao ver Scrope confundir-se, traindo seus colegas traidores numa tentativa de se salvar.

Chamou os guardas e bradou:

- Levem-no daqui. Mantenham-no preso. Se ele fugir, vocês responderão perante mim.

Scrope foi arrastado para fora dali, ainda protestando inocência.

Os irmãos de Henrique foram procurá-lo quando souberam que Scrope estava preso. Ele lhes disse o que descobrira. Eles ficaram horrorizados.

- vou agir com presteza - disse Henrique. - Não é hora de adiamentos. Eles serão julgados hoje, e se forem considerados culpados, serão eliminados imediatamente.

- Eles deverão servir de exemplo. Devem receber a morte dos traidores.

- Eu os quero fora do meu caminho - disse o rei. - Isso será o suficiente. Deus está do nosso lado, porque se isso não tivesse sido descoberto agora, poderíamos ter perdido o trono.

Os fatos foram logo esclarecidos. O plano era confirmar as reivindicações de York contra as de Lancaster. Henrique seria assassinado e o conde de March seria colocado no trono. Aparecera na Escócia um homem dizendo ser Thomas de Trumpyngton, que declarou que na verdade era o rei Ricardo, que rugira de Pontefract. Parecia muito claro que se tratava de um louco que não era o primeiro a ficar obcedado por aquela ideia, mas os conspiradores prometeram testar suas alegações. Qualquer coisa que pudesse ajudar na luta para livrar o país de Henrique seria examinada. Mas a ideia principal era colocar o conde de March no trono. Planejavam levar o conde até a fronteira galesa, onde podiam ter a certeza de um apoio, e proclamá-lo rei. Era possível confiar em que os Percy defendessem o norte contra Henrique.

Na verdade, era um plano bem traçado; e, disse Henrique, só havia uma maneira de agir.

Ele estava convencido de que seu primo, o conde de March, era inocente. Seria meramente usado como testa-de-ferro, mas não havia dúvida alguma quanto à culpa de Cambridge, Scrope e Thomas Grey de Heton.

Eles foram condenados e imediatamente privados de suas cabeças.

A conspiração tinha sido levada a uma conclusão satisfatória.

Agora, para a França.

Num dia quente de agosto, Henrique partiu para a França com seis mil homens armados e vinte e quatro mil arqueiros. Eles viajaram em 1.500 embarcações.

Ele atacou Harfleur imediatamente. A cidade estava mal equipada para resistir; e o governador, desesperado, enviou mensageiros ao rei da França dizendo que a menos que ele mandasse auxílio no prazo de um mês, não teria outra alternativa que não a de render-se.

Nenhum auxílio chegou, e Harfleur, para júbilo de Henrique, caiu em mãos inglesas.

- É um bom começo-bradou Henrique -, um bom agouro. vou fortificar esta cidade e transformá-la numa outra Calais. Aí, teremos dois portos de entrada na França.

Ele se pôs a consolidar sua posição. Queria que os habitantes de Harfleur deixassem a cidade para seus soldados, e mandou que levassem o máximo de bagagem que pudessem carregar depois de terem jurado em nome de Deus que não tomariam parte na guerra e se entregassem ao governador de Calais.

- Majestade, acha que vão obedecer a essa ordem? - perguntou seu irmão Bedford.

- Pouco importa se não obedecerem, irmão. Quero livrarme deles e povoar esta cidade com homens e mulheres ingleses.

Foi um retumbante sucesso inicial, mas infelizmente pouco depois se viu que esse sucesso foi menos glorioso do que se acreditara no início, porque logo apareceu uma epidemia de disenteria entre os soldados, e numa questão de dias dois mil deles estavam mortos. Isso não foi tudo, porque se ele não tivesse tomado uma providência, mais soldados teriam morrido. Ele viu que só havia um caminho a seguir, e era mandar de volta para a Inglaterra aqueles que estavam ficando muito fracos para ser úteis.

Assim, parecia que o sucesso estava se transformando em desastre, porque o exército, àquela altura, tinha apenas metade da força com que partira.

- Temos de voltar para a Inglaterra - disse Bedford. - Temos de levantar mais homens.

Mas Henrique sacudiu a cabeça.

- Voltar para a Inglaterra com apenas a captura de Harfleur a nosso favor! Nada disso, meu bom irmão, não é possível. O povo da Inglaterra me deu seus homens e seus bens de valor. Não voltarei sem algo mais do que Harfleur para oferecer a ele. Comentariam que sou tímido demais, e ninguém terá motivo para dizer isso de mim.

- Neste caso, para onde vamos daqui?

Henrique ficou pensativo por algum tempo. Depois, disse:

- Pretendo marchar pela Normandia, pela Picardia e por Artois a caminho de Calais. Esta é a minha bela terra da França, e é razoável que eu conheça mais áreas dela.

- Majestade-bradou Bedford, perplexo. - Perdemos tantos homens e muitos dos que restam têm sido enfraquecidos por doenças. Vossa Majestade terá de deixar uma guarnição em Harfleur. Quantos levará nessa marcha?

- Haverá cerca de seis mil.

- Seis mil, majestade, contra o exército francês!

- É possível que não encontremos o exército francês.

- Eles ficarão ressentidos com a captura de Harfleur. E se vierem contra nós? E qual a quantidade de alimentos que teremos condições de confiscar durante essa marcha de... ora, deve ser cerca de duzentos e quarenta quilómetros.

- Tudo o que você diz pode muito bem ser verdade, irmão, mas não voltarei para a Inglaterra sem uma vitória para dar ao meu povo, e essa vitória tem de ser tão prazerosa aos olhos dele quanto as de Crécy e Poitiers.

Bedford fez um gesto negativo com a cabeça. Achou que o irmão estava abusando da sorte. Mas não havia como contrariar as ordens do rei, e a marcha começou.

Eles passaram por Fécamp até Argues, Criei, Eu e St. Valéry, até chegarem ao Somme. Agora, os franceses estavam em marcha.

Era o dia 24 de outubro, e o inimigo estava acampado nas aldeias de Ruisseauville e Agincourt.

Não foi possível encontrar alojamento para Henrique, e ele dormiu numa cabana. De manhã, ele soltou os prisioneiros que levara consigo, obtendo deles uma promessa de que se fossem envolvidos em combate deveriam voltar e se entregar.

- Se eu for derrotado - disse ele -, estarão livres. Caso contrário, voltarão para mim.

Ele riu no íntimo. Quantos iriam obedecê-lo? Não sabia, mas não podia dar-se ao luxo de ter inimigos em seu acampamento. Havia pessoas que poderiam tê-los executado. O método de Henrique não era esse. Orgulhava-se da justiça com que agia. Ele era enérgico, mas não era deliberadamente cruel.

Agora não podia haver adiamento do combate. Os inimigos estavam frente a frente, e o dia seguinte poderia ver o início das hostilidades.

Era grande a confiança no acampamento francês, porque eram muito mais numerosos do que os ingleses. Os franceses sabiam o que acontecera em Harfleur. Os ingleses tinham conseguido aquela vitória, mas a que custo? O exército deles, pelo que os franceses sabiam, fora dizimado pela disenteria.

Choveu a cântaros durante aquela longa noite, e enquanto ouviam a chuva batendo nas suas barracas, os franceses apostavam, confiantes, em quantos prisioneiros fariam na batalha e jactavamse de que iriam pegar aqueles que pudessem render os resgates mais altos. Eles estavam certos da vitória. Não era possível, argumentavam, que um bando dizimado de homens, exaustos por uma longa marcha e pela doença, resistisse a eles. Harry da Inglaterra era um fanfarrão que se jactava de seu direito ao trono da França. Seria um prazer, no dia seguinte, dar-lhe uma lição.

Henrique, por estranho que parecesse, estava tomado de uma confiança tranquila. Proibiu a todos que falassem da pequenez de seu exército. Os homens não deviam ser lembrados disso, disse ele aos generais. Tinha de imbuí-los do mesmo senso de uma vitória certa que ele tinha.

No silêncio da noite, ele caminhou pelo acampamento. Conversava com os soldados, sem declarar sua identidade. Mas eles o conheciam; e com a chuva brilhando no rosto e encharcando sua capa, eles percebiam um certo poder divino nele e esqueciam seus temores e sabiam - tanto quanto ele - que ele não poderia fracassar.

O rei assistiu à missa ao amanhecer. Depois, foi vestido em sua cota de armas na qual estavam as armas tanto da França como da Inglaterra. No seu basinete, ele usava a coroa, para que todos pudessem saber quem era ele quando liderasse seus soldados em combate. Montou em seu pequeno cavalo cinza e chamou os soldados que estavam em seus alojamentos, e quando se reuniram, dirigiu-se a eles. Disse-lhes que a causa deles era justa, que venceriam com a ajuda de Deus e Deus não iria negar aquela ajuda àqueles cuja causa era justa. Mostrariam aos franceses que nenhum exército do mundo poderia resistir aos arqueiros ingleses. Eles iriam entrar para ganhar. Aquele local era chamado de Agincourt, e no futuro seu nome deveria ser comemorado, porque era um nome que deveria ficar ao lado do de Crécy e Poitiers.

Tal era a sua convicção e tanto ele irradiou aquela evidente confiança de que parecia imbuído com um toque de divindade, que seus homens acreditaram nele. Pararam de pensar no número de franceses adversários, que deviam estar mais descansados e, sem dúvida, melhor equipados do que eles. Sabiam apenas que seguiriam Harry da Inglaterra para a vitória.

O próprio Henrique liderou a hoste principal do exército; o duque de York estava na vanguarda, e a retaguarda era comandada por Lorde Camoys. Cada arqueiro levava um podão, um machado e um martelo e uma estaca pontuda nas duas extremidades, para se defender contra uma carga de cavalaria.

Os franceses ficaram firmes, enquanto os ingleses avançavam, e dos arqueiros saiu uma chuva de flechas que causou uma confusão tremenda entre as forças francesas. A cavalaria francesa tentou atacar mas não conseguiu resistir às ondas de flechas, e se convenceram de que a reputação da invencibilidade dos arqueiros ingleses era bem fundada. Os cavalos não conseguiam avançar, porque ao se aproximar os ingleses punham à frente as estacas pontudas e os cavalos franceses, enlouquecidos pelos ferimentos que tinham recebido das flechas, atacavam às cegas, e ficava totalmente impossível seus cavaleiros controlá-los.

A batalha durou três horas. Uma fúria alucinada tomara conta dos ingleses. A maneira pela qual os arqueiros tinham repelido a cavalaria, mesmo depois de terem disparado todas as suas flechas, parecia um milagre. Estavam certos de que Deus estava do lado deles e sabiam que com a Sua ajuda não poderiam fracassar.

Deu vitória para os arqueiros ingleses. Como em Crécy e em Poitiers, eles foram invencíveis.

As perdas francesas foram enormes, as dos ingleses, mínimas. Aquele retumbante e milagroso sucesso foi devido aos arqueiros, mas deveu muito ao génio militar do rei.

Fora ele quem decidira que a batalha devia ser travada naquelê local, onde os franceses não podiam usar todas as suas forças ! mas foram obrigados a atacar em um único espaço, o que reduziu consideravalmente a vantagem numérica.

E assim a batalha fora vencida, e dizia-se que nunca houvera uma batalha tão gloriosa, nunca houvera uma batalha vencida contra desvantagens tão desesperadas.

Os franceses estavam derrotados, os ingleses, gloriosamente vitoriosos, e o nome de Harry da Inglaterra viveria para sempre como o maior de todos os guerreiros.

Coração de Leão, dois grandes Eduardos, o próprio Príncipe Negro - Henrique ficava acima de todos eles.

E assim eles voltaram para Calais e atravessaram o Canal para a Inglaterra.

Lá, os súditos leais aguardavam seu herói. Por todo o país havia comemorações. Fogueiras foram acesas. Representaram-se quadros vivos; e quando o rei chegasse à capital, teria uma recepção que nenhum rei recebera antes.

O libertino príncipe Hal tornara-se o grande Harry da Inglaterra.

 

HAVIA UMA pessoa, no entanto, que não podia alegrar-se de todo o coração com a grande vitória, porque temia muito suas consequências.

Desde que Henrique visitara Joana e dera a entender que esperava que ela influenciasse o filho para lutar pelos ingleses, ela ficara muito aflita.

Até aquele momento, ela estivera contente com a vida que levava na Inglaterra. No início, fora muito feliz com Henrique, mas, quando aquela terrível doença piorara e ele ficara tão horrivelmente desfigurado, seus sentimentos para com ele tinham começado a mudar. Quando ele morrera, aquilo fora uma espécie de libertação e permitira que ela adotasse uma nova vida.

Instalara-se em Havering e lá começara a desfrutar de uma vida de tranquilo isolamento. Juntara grande fortuna, e sua natureza comedida, que se encaixara bem com a de seu marido, ficara encantada com o aumento de suas posses. Não queria que nada mudasse; estava contente em viver nas sombras. A última coisa que queria era ser afastada de sua luxuosa vida de sossego para participar de qualquer controvérsia, e em especial com seu enteado, o rei.

E agora, Agincourtl Uma vitória sem precedentes e inesperada para Henrique.

Sabia que seu filho mais velho, o duque de Bretanha, permanecera incomodamente neutro. Era a única atitude que ele podia ter tomado, porque como sua mulher era filha do rei da França, sua vassalagem tinha de ser para com aquele rei. com Arthur era diferente. Ele tinha sido feito conde de Richmond pelo marido de Joana e devia sua vassalagem à Inglaterra.

No entanto, lutara ao lado da França.

Fora uma atitude sensata... se os franceses tivessem vencido; e todo mundo esperava que os franceses vencessem.

Por isso, em Havering, Joana esperava apreensiva pelo resultado. Estava certa de que a atitude de Henrique para com ela mudaria. Ele iria acusá-la de não ter usado de força suficiente para convencer os filhos. Mas o que ela podia fazer? Havia anos que não os via, e mesmo se os tivesse visto, jamais teria podido influenciá-los até aquele ponto. Para eles, ter apoiado os ingleses teria parecido um suicídio.

Era muito bom ser sensato depois do fato acontecido.

Joana estava num estado de grande nervosismo, e mandou chamar dois homens que mantinha em sua equipe para assessorá-la e predizer o futuro. Petronel Brocart fora para a Inglaterra com ela, e ela encontrara Roger Colles em Salisbury. Considerava-os como seus dois feiticeiros; eles previam o futuro e liam as estrelas, e antes de tomar qualquer atitude, Joana sempre os consultava.

Os membros da criadagem tinham um respeito e um medo enormes dos dois; eles viviam com todo o conforto, porque não havia quem tivesse a ousadia de ofendê-los, com medo de provocar a ira deles e ser amaldiçoado.

Joana mandou chamá-los e disse-lhes que queria consultá-los; disse que estava com medo do futuro. Eles não tinham previsto o resultado da batalha de Agincourt.

Petronel Brocart replicou, dizendo que a previra mas não confiara no que vira e classificara-a apenas como um sonho, e não uma previsão de verdade. As desvantagens eram tão grandes contra os ingleses, que só podia ter sido um milagre de última hora, decidido num instante pelos poderes do bem ou do mal - restava ver qual dos dois.

Joana aceitou a explicação e disse-lhes que ela mesma achava estar... se não em perigo, numa posição incómoda devido à sua família na França.

Brocart a assegurou de que era mantido em dia quanto aos mais recentes acontecimentos, o que muitas vezes significava que tinha condições de profetizar uma certeza; mantinha mensageiros, a quem pagava muito bem, e o dever deles era darlhe as últimas informações quanto ao que acontecia na corte de Bretanha.

Portanto, ele tinha notícias para a rainha; e não eram boas.

- Não me surpreende - disse Brocart - Vossa Majestade sentir essa intranquilidade. Vossa Majestade receberá más notícias.

Joana olhou com olhar de súplica de Colles para Brocart.

- Por favor, digam-me o pior. Meu filho...

- O duque está bem - replicou Colles. - Ele não participou do combate, mas se manteve neutro, no que foi sensato.

- O marido de sua filha, o duque d Alençon, morreu - disse Brocart.

Joana levou a mão ao coração, que batia acelerado; pela expressão daqueles dois homens, percebeu que havia mais.

- Seu irmão, Charles de Navarra, foi ferido em combate.

- Ele morreu em consequência dos ferimentos - acrescentou Colles.

- E meu filho... Arthur? - perguntou Joana, com voz fraca.

- Ele é prisioneiro de Henrique.

- Ó, meu Deus, o que será dele?

- Ficará na Inglaterra, à disposição do rei, majestade.

- E eu poderei ver meu filho?

- Dentro em pouco, majestade.

- Lamentamos dar-lhe notícias dessa natureza, querida senhora.

- Eu sei - replicou Joana -, mas também tenho de saber a verdade. Não hesitem. Há mais alguma de que eu deveria saber?

- Contamos tudo, majestade.

Joana não queria outra coisa a não ser isolar-se com sua dor.

Ela implorara ao rei. Ele tinha de deixar que visitasse o filho. Sabia que ele havia rompido a vassalagem que, como conde de Richmond, devia à Inglaterra. Mas era mãe dele e não o via fazia onze anos, quando ele chegara à Inglaterra ainda menino. Talvez ela tivesse errado ao lembrar ao rei aquela ocasião, porque fora quando ele recebera a investidura de conde de Richmond.

O rei replicara, dizendo que o filho dela era um traidor. Tinha sido encontrado com o inimigo da Inglaterra e fora preso em combate. Não podia esperar ser recebido com honras na Inglaterra; tratava-se de um prisioneiro, um perigo para a Inglaterra, e Henrique não via razão para que fosse tratado de outra forma, muito embora sua mãe tivesse sido rainha da Inglaterra.

Joana estava ansiosa por vê-lo. Estava com muito medo de que ele fosse condenado à morte. Henrique era severo, mas não era arbitrariamente cruel. Ele compreenderia as dificuldades de Arthur, morando em Bretanha, na corte do irmão, com a mulher do irmão, filha do rei da França. Era verdade que ele jurara vassalagem à Inglaterra, mas era jovem, e Henrique não seria tão rigoroso. Além do mais, Joana era uma mulher inteligente; e sempre gostara dela e não queria fazê-la sofrer mais do que o necessário. Era inconcebível que ele fosse soltar Arthur, é claro, mas não via motivo para que não houvesse um encontro entre mãe e filho.

Arthur deveria ir, escoltado, a Havering, e depois levado de volta à Torre de Londres. Quando soube que em breve ele estaria com a mãe, Joana ficou muito emocionada e mandou chamar seu confessor, um frade franciscano chamado John Randolf, e pediulhe que rezasse com ela para que pudesse se preparar para o encontro.

- Preciso tentar não chorar-disse ela. - Ah, é triste quando os filhos são afastados de suas mães quando ainda são crianças.

- Controle-se, majestade - aconselhou John Randolf. -A oração será um consolo para a senhora. Eu sugeriria à senhora que não é prudente confiar tanto naqueles charlatães, Brocart e Colles. Eles não poderão lhe fazer bem.

- Eles previram que meu filho seria preso. Eles me avisaram com antecedência.

- Isso é trabalhar superficialmente com poderes malignos, majestade, e não deixará a senhora em boa situação perante Deus e seus santos.

Joana ficou em silêncio. Sabia que John Randolf não gostava dos feiticeiros, assim como eles não gostavam dele. Desconfiavam uns dos outros e sentiam inveja da influência que cada um deles exercia sobre ela.

Mas não era hora de pensar em rivalidades.

Arthur ia chegar, e deveria estar preparada para ele, de modo que se ajoelhou com Randolf e, juntos, os dois pediram a bênção de Deus e que o coração do rei pudesse ser abrandado em relação a Arthur.

Ele estava a caminho. Em breve estaria ao lado dela. Joana estava tremendo de agitação.

Ela disse a uma de suas damas de companhia:

- Sente-se em minha cadeira, para que quando ele entrar pense que você é a mãe dele. Ficarei observando-o durante algum tempo antes de me revelar.

- Ele saberá que a senhora é a rainha, só pelo seu porte.

- Nada disso - disse Joana -, vamos fazer a coisa assim. E assim ela estava sentada num escabelo, aos pés de sua dama de companhia, quando o filho entrou. Era bonito, jovem, tudo que ela poderia ter desejado que fosse... só que era um prisioneiro. Os guardas estavam de pé à porta, para lembrá-la daquela triste realidade.

Ele se aproximou da dama de companhia e ajoelhou-se a seus pés. Joana ficou olhando, triste.

- Minha mãe - disse Arthur -, este é um encontro triste. Mas me alegro ao vê-la.

Os dois se abraçaram.

- vou apresentá-lo às minhas damas de companhia - disse a rainha substituta, mas naquele momento Joana não conseguiu prolongar a representação.

- Meu filho, meu filho - bradou ela -, não me reconhece? Arthur olhou perplexo da dama de companhia para a rainha.

- Sim - disse Joana -, sou sua mãe.

- Agora eu entendo - bradou Arthur.

- Eu tinha de esperar um pouco - disse Joana. - Meu coração está alegre demais.

Os dois se abraçaram com ardor, e depois se olharam como se estivessem se estudando.

- Você era um menino quando foi embora - disse Joana.

- Ah, minha mãe, tanta coisa aconteceu depois disso!

- Eu sentia muito orgulho de você, meu conde de Richmond.

- Infelizmente, minha mãe.

- Henrique vai tratar bem de você. Quem dera que você pudesse ficar aqui comigo.

- Venho como prisioneiro, majestade. Joana confirmou com um gesto da cabeça.

- Vamos, fale-me de sua terra. Fale-me sobre seu irmão e sua irmã... Ela perdeu o marido.

- Agincourt foi um desastre para mim.

- E foi uma vitória enorme aqui. Ainda estão fazendo suas representações e suas festanças, rezando suas missas de ação de graças. Os sinos estão tocando pelo país inteiro.

- A vitória de um rei tem de ser a derrota de outro, minha mãe.

- E você estava do lado errado.

- Parecia totalmente impossível que os ingleses pudessem triunfar.

- Na guerra, nada é certo - disse Joana. - Agora, temos de aproveitar ao máximo o que nos resta. Não vai demorar, disso estou certa.

Ela estava certa.

Naquele dia, Arthur foi levado de volta à sua prisão na Torre. O breve encontro acabara.

O rei festejou o Natal em Lambeth.

Estava inquieto. Obtivera uma brilhante vitória em Agincourt, mas tudo o que ela lhe trouxera fora Harfleur. Não chegara mais perto da coroa da França do que seus antecessores tinham chegado.

Depois de Agincourt, teria sido o máximo de loucura ter marchado contra Paris. Apesar de abatido e derrotado, o que restara do exército francês poderia ter impedido seu avanço. Se os franceses estavam em estado lastimável, o mesmo acontecia com os ingleses. Muitos de seus soldados estavam sofrendo de disenteria. Tinham sido excelentes em combate, mas não estavam em condições de suportar mais uma batalha durante algum tempo. Apesar de ser um bom general, ele vira que só havia uma coisa que podia fazer: voltar para casa e reunir mais soldados e mais mantimentos antes de começar uma nova campanha.

Podia se orgulhar do que conseguira. Os franceses tinham sofrido uma derrota fragorosa, e deviam estar desmoralizados. Não haveria mais barris de bolas de ténis enviados pelo arrogante delfim. Era bom pensar no que ele devia estar sentindo naquele momento. Foi um momento de glória, disso não restava dúvida, mas ele não deveria ficar cego pelo sucesso.

Precisava de homens que tivessem recuperado a saúde; precisava de suprimentos; e levantar um exército era uma tarefa dispendiosa.

Mas Agincourt fizera com que os ingleses ficassem orgulhosos outra vez. Tinham um rei que podiam admirar. Era como na época do grande Eduardo. O povo adorava um rei que fosse um grande soldado e pudesse levar conquistas para a honra do país e butins, é claro, para aumentar sua riqueza.

As comemorações deveriam ser feitas para lembrar ao povo o que Henrique levara para ele; antes que fosse solicitado a fornecer dinheiro para mais conquistas, o povo deveria poder celebrar aquelas que já tinham sido feitas. Mas o rei estava impaciente. Agincourt fora uma revelação. Chegava a sentir a coroa da França na cabeça.

Por isso, no Natal, enquanto ele festejava e brincava com os amigos e dançava e assistia aos pantomimeiros, seus pensamentos estavam na guerra. Planos formavam-se em sua cabeça. Tinha de continuar. Seria loucura não secundar a vitória com outra, enquanto os franceses sentiam-se tão desmoralizados e os ingleses estavam embriagados com a vitória.

O novo arcebispo Chicheley estava ficando fanático em relação aos lollardos e os perseguia sem trégua. Muitas vezes o rei pensava em John Oldcastle e ficava imaginando onde estaria escondido. Seria muito mais satisfatório se ele fosse lutar do lado de seu rei. Eram poucos os soldados melhores do que ele.

Se ele voltasse e lutasse do meu lado, pensava o rei, todo esse lollardismo seria esquecido.

Mas John não foi. Continuou escondido, sem dúvida tramando alguma coisa. Parecia tão decidido a defenderes lollardos quanto Henrique na conquista da coroa da França.

Henrique tinha de levantar dinheiro e continuar. Ali, ele estava perdendo tempo.

O povo apoiava-o. Queria mais conquistas. Estava ansioso pela prosperidade e o fim da guerra com a França e por ter o rei deles firme naquele trono.

As pessoas viviam, agora, na euforia de uma grande vitória. A vida parecia mais próspera. Não era, mas parecia e, pensou Henrique com um certo grau de cinismo, aquilo era praticamente verdade, até que despertassem para a realidade. Ele mandara que as ruas de Holborn fossem pavimentadas. Isso nunca fora feito antes, e o lorde prefeito de Londres, Sir Henry Burton, levara melhoramentos para as ruas de Londres ao pendurar lanternas, que eram mantidas acesas a noite toda.

O povo estava agradecido. Ele adorava seu rei.

Mas havia o eterno grito de "dinheiro!". Dinheiro para pagar os soldados, dinheiro para pagar as flechas e todas as armas de guerra. Dinheiro para os alimentos de que precisariam. Dinheiro! Dinheiro!

O rei seguiu a cavalo para Havering, para visitar a madrasta. Ela o recebeu com afeto, e conversou com ela sobre seus planos.

Joana ouviu, fingindo um entusiasmo que não conseguia sentir. Sua família estava do lado oposto. Aquilo era causa de irritação entre eles. Como podia ele jactar-se das glórias de Agincourt, quando aquela batalha levara a desgraça para tantos membros da família dela?

O afeto que até então ele sentira por ela estava com traços de uma leve antipatia.

Ela fora para a Inglaterra como segunda esposa de seu pai, e ali ficara rica. Ele ouvira dizer que ela era uma das mulheres mais ricas do país, mas como muita gente rica que se deliciara em acumular a riqueza, relutava em abrir mão dela.

- Meu filho veio me visitar - disse ela.

- Eu sei - respondeu ele. - Dei ordens para que o deixassem vir.

- Muito obrigada, majestade. Foi bondade sua. E isso me faz ousar perguntar se poderei tornar a vê-lo.

- Majestade, ele é um prisioneiro. É seu filho, mas também é um traidor. Não podemos deixar que traidores andem livremente de um lado para o outro do nosso país. A senhora tem de admitir que seria uma loucura.

Ela ficou em silêncio.

- Pretendo levar adiante a guerra na França, até levá-la a uma conclusão satisfatória -- prosseguiu ele. - Eu devia estar lá, agora... mas primeiro tenho de acumular mantimentos, equipamentos, pagar meus soldados e muita coisa mais.

- A guerra é uma atividade dispendiosa em recursos financeiros e, mais tragicamente, em sangue - disse Joana, séria.

- Foi o que vimos, senhora - disse o rei. - Mas minha causa é justa e estou decidido a conquistar a vitória. Preciso de dinheiro.

Os olhos dele percorreram o aposento. Ela vivia bem. Gostava de luxo. Era, na verdade, uma mulher muito rica.

- Estou contando com que os que me amam assim como uma causa justa façam suas ofertas - disse ele.

Ela confirmou com um gesto da cabeça.

- Sempre a considerei uma amiga.

- vou perguntar ao meu tesoureiro o que pode ser fornecido - disse ela, com cautela; já estava fazendo planos para mandar que os mais valiosos de seus bens fossem colocados em grandes baús e escondidos nos porões. - Tenho dado muito aos pobres - continuou ela. - Já não sou tão rica quanto antes.

Você está mentindo, pensou ele. Meu Deus, a mulher está do lado dos franceses. Está pronta a virar uma traidora, como o filho.

O rei retirou-se pouco depois. Estava contrariado. Ela acumulou fortuna no reinado do meu pai, pensou ele, e não quer me dar aquilo de que preciso tão desesperadamente.

Enquanto se afastava a cavalo, Henrique disse para o irmão Bedford:

- Não confio na rainha,

- Estive conversando com John Randolf, confessor dela replicou Bedford. - Ele disse que ela está sempre conversando em particular com aqueles dois feiticeiros, Colles e Brocart. Randolf não gosta deles, nem da influência deles sobre a rainha.

- Ele acha que ela pratica as artes malignas deles?

- É estranho ela ter ficado tão rica. O rei franziu o cenho.

- É possível que haja alguma feitiçaria nisso - replicou ele.

Sentiu um súbito acesso de raiva contra ela. Então conquistara sua fortuna manipulando artes misteriosas; e estava muito relutante em abrir mão de um só tostão.

Seus pensamentos estavam ocupados com a maneira pela qual ele poderia levantar dinheiro.

Quando voltou a Londres, decidira empenhar a coroa e suas jóias. Seu tio, o bispo de Winchester, iria adiantar-lhe cem mil marcos por elas; e Henrique venderia parte das jóias reais à Cidade de Londres, por dez mil libras esterlinas.

No mês de julho, dois anos depois da batalha de Agincourt, Henrique estava pronto para partir outra vez para a França. Seguiu com 26 mil homens a bordo de uma frota de mil e quinhentos navios.

Ele tomou, entre outros lugares estratégicos, Caen e Falaise. Mas a guerra ainda não estava ganha.

John Oldcastle, com seu bando de fiéis seguidores, passara quatro anos perambulando pelas montanhas galesas. No verão eles viviam ao ar livre e ficavam sentados em volta de uma fogueira quando a escuridão caía e conversavam sobre o dia em que estabeleceriam sua fé por toda a Inglaterra e levariam uma vida melhor para muita gente pobre. com a chegada do inverno, teria de haver um fim para aquela vida que agradava a todos eles; então, teriam de arranjar abrigo para a noite em qualquer estalagem ou chalé de beira de estrada, onde alguém lhes daria um lugar para se deitarem. O dia todo, John tentava recrutar homens para sua bandeira; mas era impressionante como se tornava difícil provocar entusiasmo pela batalha, mesmo entre os galeses que, como os irlandeses e os escoceses, em geral estavam prontos a atacar os ingleses.

Ele recebeu notícias sobre Agincourt e ficou satisfeito por saber que Henrique ganhara fama pelo país inteiro.

O Grande Harry, é como o chamavam com carinho, e havia uma relutante admiração até mesmo por parte de seus inimigos.

John sorriu, lembrando-se do jovem fanfarrão escarrapachado em sua cadeira da taberna bebendo, olhando para as mulheres, entoando canções típicas de tabernas. Fora uma época boa; mas não podia ter continuado para sempre. Nem ele nem Henrique eram do tipo de passar o tempo todo numa vida agitada, buscando emoções em brigas de tabernas.

De algum modo, ele sempre soubera que havia nos dois algo mais do que aquilo. Harry o encontrara na busca de uma coroa; assim que colocara aquele atraente objeto nas mãos, ele mudara. Quanto a John, também mudara. Ansiara por assuntos espirituais. Como era estranho a religião ter-se tornado todo o significado da vida para ele.

Falava com seus seguidores e com todos que quisessem ouvir. Sempre fora um orador eloquente. Fora isso que fizera com que Henrique se sentisse atraído por ele. Naquela época, ele usara seu raciocínio rápido para provocar risadas. Agora, era diferente.

Tudo o que importava era fazer os homens compreenderem o que ele tinha em mente. Deviam haver reformas na Igreja. Os homens tinham de adorar a Deus, não as aparências externas das cerimónias. Ele acreditava que todo o dinheiro despejado na manutenção dos esplendores da Igreja devia ser usado para melhorar a vida dos camponeses. Queria uma religião simples; queria humildade e paz espirituais para os homens e uma existência física mais digna.

Como dissera o pobre Sawtre, a cruz era um pedaço de madeira. Sim, um pedaço de madeira melhor do que os outros de seu tipo, porque Cristo morrera nela. Mas não devia ser adorada como tal. A salvação era obtida não através da cruz, mas de Cristo, que morrera nela.

John partira para o País de Gales depois de ser surpreendido numa casa em St. Albans. Procurara abrigo junto a um camponês de lá, que o admirava muito e estava pronto a arriscar a vida ao lhe dar uma cama em sua casa. Sua personalidade não podia ser escondida. com o tempo, pessoas iam à casa do camponês só para ouvi-lo falar.

Assim, no devido tempo, como parecia inevitável, ele foi denunciado, e o abade de St. Albans mandou seus empregados cercarem a casa; mas John tinha seus amigos, e uma hora antes de os empregados chegarem, estava cavalgando em direçao ao País de Gales.

Aquilo servira de lição e fizera com que ele percebesse a facilidade com que poderia ser capturado.

Ali, nas fronteiras galesas, entre as montanhas que ficavam entre o Severn e o Vyrnwy, encontrara seu refúgio. Mas teria de sair quando chegasse a primavera. Não era sua intenção ficar simplesmente escondido dos inimigos. Precisava conquistar amigos para sua causa.

Ele encontrara o esconderijo perfeito e decidira tranformá-lo em seu refugio. Seria o local para o qual voltaria se fosse perseguido; acreditava que sempre encontraria abrigo ali. Havia uma estalagem perto, que pertencia a adeptos fervorosos, gente em quem podia confiar. Ali, sentia-se em segurança para fazer planos. Moel-y-sant oferecia beleza e também segurança; passou a ser conhecido como o jardim de Cobham.

Ele sempre fora imprudente; não podia mudar sua natureza por inteiro em tão pouco tempo. Confiava no estalajadeiro, na mulher e nos filhos dele; esquecera-se de que os empregados vinham e iam, e não poderia encontrar a mesma lealdade entre eles. Esquecera-se de que havia uma possibilidade de que sua pista fosse seguida até aquele local e que poderia existir um plano para capturá-lo.

Lorde Charlton, em cuja propriedade John estava escondido, acabou sabendo da sua presença ali. Havia uma recompensa pela captura de Oldcastle que, devido a suas conexões e eloquência, era considerado uma grande ameaça não apenas para a Igreja, mas para a sociedade; e Charlton achou que não teria nada a perder - ao contrário, teria a ganhar-se entregasse Olcastle aos inimigos dele.

Começou, portanto, a fazer planos. Colocou um de seus criados na estalagem que desconfiava que Oldcastle frequentava. Em pouco tempo o espião confirmou que era verdade, e uma noite, quando John estava sentado na sala de estar da estalagem falando para amigos e discípulos, ouviu-se um grito de "A estalagem está cercada!". E então os homens armados da comitiva de Charlton invadiram o local.

John se levantou jogando a caneca no chão, mas percebeu que estava encurralado. Mas não seria preso sem lutar, e seguiu-se uma batalha.

John era grande e forte, e não foi fácil dominá-lo; mas enquanto lutava com um assaltante, uma das garçonetes que fizera amizade com o espião de Charlton apanhou um tamborete e atirou-o com tanta força contra John, que o tamborete quebrou-lhe a perna, deixando-o, assim, incapacitado, e ele caiu ao chão - presa de seus inimigos.

Era o fim. O que poderia fazer, sem poder ficar em pé? Foi agarrado em triunfo e levado para o castelo de Welshpool, o lar de Charlton, que não coube em si de satisfação com a captura.

A primeira coisa que ele fez foi mandar um mensageiro à corte. O rei estava na França, e o regente era seu irmão, o duque de Bedford.

Charlton recebeu de Bedford uma resposta que traduzia uma grande alegria. Oldcastle devia ir imediatamente para Londres.

As contusões que ele recebera na luta, das quais a principal era a perna quebrada, tornavam-lhe impossível montar a cavalo, mas Bedford não estava disposto a esperar. Ocorreu-lhe a ideia de que se o rei ficasse sabendo das dificuldades em que seu amigo se encontrava poderia, por uma questão sentimental, achar um meio de perdoá-lo. Se, argumentava Bedford, não tivessem deixado que Oldcastle fugisse da Torre - e às vezes Bedford se perguntava se Henrique fizera vista grossa para aquela fuga, que fora fácil - teriam sido poupados de muito trabalho.

Não, tragam Oldcastle para Londres. Que ele seja julgado depressa e condenado à morte dos hereges.

- Mandem-no imediatamente - ordenou ele. - Mesmo que ele tenha de viajar de liteira.

E assim, John foi colocado numa liteira puxada a cavalo e levado para Londres.

- Não quero que haja demoras - disse Bedford. - Esse homem deve ser julgado imediatamente.

John viu que aquilo era o fim. Agora, não podia haver fuga. Se ao menos pudesse ver o rei, se os dois pudessem ter uma discussão como aquelas que tanto haviam desfrutado no passado, estava certo de que teria condições de fazer com que Henrique compreendesse.

Mas Henrique estava no exterior, na França, procurando conquistar sua coroa. E John estava ali, em Londres, nas mãos do inimigo.

Ele foi levado de imediato à presença dos juizes e condenado a ter a morte dos hereges.

Ergueu bem a cabeça; encarou os juizes e bradou:

- Apesar de os senhores julgarem meu corpo, que é uma coisa insignificante, estou certo de que não podem fazer mal algum à minha alma, tal como Satã não conseguiu fazer à alma de Jó. Aquele que a criou irá, por sua infinita misericórdia e promessa, salvála. Disso não tenho dúvidas. Mantenho minhas crenças até a morte, pela graça do meu eterno Deus.

Naquele mesmo dia, ele foi levado numa armação especial para os Campos de St. Giles, para o que agora era conhecido como o Cadafalso dos Lollardos. Viu a fogueira sendo armada abaixo das correntes pelas quais iriam pendurá-lo; e viu que sua hora chegara.

Uma multidão reunira-se para vê-lo morrer. John tinha muitos adeptos, mas nenhum dos que estavam nos Campos de St. Giles teria a ousadia de adiantar-se e defendê-lo por ser seu amigo. O cheiro acre da fumaça, a trémula agonia dos sofredores, deixavam-nos tremendo. Era um grande homem, John Oldcastle, chamado Lorde Cobham; estava pronto para morrer por suas crenças. Mas seriam poucos os que desejariam compartilhar da coroa do mártir.

Ele falou aos espectadores enquanto era acorrentado:

- bom povo cristão - disse ele -, tenha cuidado com esses homens, porque eles irão enganá-los e conduzi-los cegamente ao inferno com eles. Cristo disse claramente a vocês: "Se um cego guiar outro, os dois deverão cair numa vala."

Ele estava pendurado na horizontal acima das chamas que estavam subindo para lamber-lhe o corpo.

- Senhor Deus Eterno -bradou ele -, eu vos suplico que, pela vossa grande misericórdia, perdoai meus inimigos, se assim for de vossa vontade.

Houve um silêncio na multidão. Ela ouviu o grito dele quando as chamas o alcançaram.

E depois a fumaça escondeu-o.

 

HENRIQUE ESTAVA determinado a completar a conquista da França, e o que precisava mais do que qualquer outra coisa era de dinheiro.

Estava obcecado pela ideia de conquistar a coroa e convencido de que lhe pertencia por direito, e não deixaria que nada o impedisse de consegui-la. Achava que se seu bisavô, Eduardo III, tivesse continuado a luta depois de Poitiers, teria conseguido. Ele desistira cedo demais; tornara-se letárgico, obcecado pela luxúria; e o Príncipe Negro, que a teria conquistado, adoecera e morrera.

Ele, Henrique, era o escolhido.

Todos estavam de acordo, agora, de que era um grande guerreiro - do mesmo nível de Guilherme, o Conquistador, e Ricardo Coração de Leão. Homens como aqueles eram soldados dos pés à cabeça. Não permitiam que nada ficasse entre eles e seu objetivo. Henrique não era cruel só por ser cruel, mas se fosse necessário para o resultado de uma batalha, ele mataria sem piedade. Era um soldado antes de tudo; tudo estava subordinado à sua causa. Ele nunca procurava fugir a qualquer obrigação; devia compartilhar das dificuldades com seus soldados; deixava claro, para eles, que muito embora fosse o rei e líder, era um deles, pronto para passar frio ou morrer com eles. Tinha o poder de fazer com que o seguissem. Era bom para eles; orgulhava-se de sua imagem; sabia que aqueles homens iriam segui-lo às garras da morte, se assim ele ordenasse.

com um exército daqueles e um líder assim, ele sabia que não poderia falhar.

Quando soube de como Oldcastle morrera, sentiu muito, mas depois ficou com raiva. John tinha sido um tolo. Por que ele deixara a vida gloriosa de soldado para fazer campanha em favor das teorias lollardas? John, tornar-se um homem voltado para o espírito, um reformador! Era um absurdo. Devia ter estado com Henrique em Harfleur e Agincourt.

E agora, estava morto... e morrera daquela maneira. Como John era tolo!

Não havia tempo para lamentar a perda do gordo e velho mártir. Que Deus abençoasse sua alma, disse Henrique; e ficou contente por estar fora da Inglaterra quando o fato acontecera.

Como poderia ter ele dado a sentença contra o velho bufão? No entanto, ela fora justa. John tinha sido um herege confesso, e por isso estava certo que devesse ter a morte dos hereges.

Mas, agora, estava tudo acabado. Nada de olhar para trás. Nada de recordações da velha época das tabernas e das travessuras que eles tinham feito. John seguira seu caminho, e o rei seguira o dele.

E havia uma coroa a ser conquistada.

Dinheiro! Dinheiro! Ele precisava de dinheiro. Deixara Bedford no governo da Inglaterra. Podia confiar no irmão. Bedford era um ótimo soldado, e leal, também. Quase o homem que o irmão dele, o rei, era, segundo Henrique ouvira dizer, mas não tanto.

Não, não tanto. Mas um irmão que ele devia estar agradecido por ter.

- Você tem de me arranjar dinheiro - dissera ele a Bedford.

- Nossa madrasta é uma mulher muito rica - disse Bedford.

- Ela não ajuda como devia.

- Ah, a nossa madrasta. O coração dela está na França.

- Por Deus - bradara Bedford. - Neste caso, ela deve ser uma traidora de nosso senhor, o rei. vou achar um meio, irmão.

Bedford acharia um meio. Ele livrara o país de Oldcastle. Era o certo, é claro. O velho era um herege e fizera por merecer a morte dos hereges.

Sim, Bedford era um bom irmão. Cuidaria dos assuntos da Inglaterra enquanto Henrique conquistava a França.

Ele podia confiar em Bedford.

Havia algo de errado na casa da rainha em Havering Bower. Criados dos duque de Bedford tinham chegado no dia anterior, e Joana presumira que aquilo significava que o patrão deles estava indo visitá-la.

Agora vivia apreensiva. Arthur ainda estava preso, apesar de o terem transferido da Torre para o castelo de Fotheringay, e Joana esperava que ali ele estivesse numa prisão menos rigorosa. Sempre que membros da criadagem do rei ou do regente a visitavam, ela ficava com medo do motivo da visita.

Sabia que o rei estava na França e imaginava que ele devia estar sempre insistindo com Bedford para que lhe arranjasse dinheiro. Talvez ela devesse ter oferecido mais ao rei, quando ele fora procurá-la. Isso não teria ajudado. Ele ainda teria querido mais.

Roger Colles e Petronel Brocart a tinham avisado de que deveria manter uma vigilância acima do normal, porque estava entrando num período perigoso. Joana não precisava que lhe dissessem isso. A cada dia que passava, ficava mais cônscia do fato. Quanto mais aquela guerra durasse, quanto mais sucesso Henrique tivesse na França, mais perigosa se tornaria a posição dela.

Colles e Brocart lhe davam uma assistência constante, e embora seus prognósticos estivessem ficando cada vez mais sombrios, Joana queria ouvi-los. Havia uma dissensão entre eles e John Randolf. Essa dissensão sempre existira, mas parecia ter-se aprofundado ultimamente. Na verdade, ela nunca chegara a gostar de John Randolf; havia nele um ar de hipocrisia que não a agradara; ela o teria demitido do cargo não fosse a crescente apreensão que a cercava. Aquele não parecia ser o momento.

Mandou chamar John Randolf.

Seus criados voltaram com a informação de que ele estava trancado com os homens do duque de Bedford e já fazia algumas horas.

Aquilo a deixou muito apreensiva.

Ficou sentada com suas damas de companhia, e elas trabalharam juntas na tapeçaria que estavam fazendo. Ficaram mais caladas do que o normal. Estavam cientes de que algo de extraordinário estava acontecendo.

- O Sr. Bedford vai chegar hoje, creio eu - disse ela.

- Vai, majestade - foi a resposta. - Estão fazendo preparativos para ele na cozinha.

- Onde está Randolf? Quero falar com ele.

- Ele está conversando com os homens que vieram de Londres.

- O quê! Ainda conversando!

- É, majestade. Ninguém sabe sobre o que conversam. Estão trancados nas últimas duas horas, e há guardas do lado de fora da porta.

- Sobre o que eles devem estar conversando com Randolf? Ficaram todas caladas. Curvaram a cabeça para o trabalho que faziam. O que significa isso?, perguntou a rainha a si mesma, apreensiva.

Elas se assustaram com um tropel no pátio. Uma das mulheres largou o trabalho e correu para a janela.

- O que você está vendo? - perguntou a rainha, ainda sentada com a agulha na mão.

- Alguns homens estão indo embora.

- Homens de Bedford? - perguntou a rainha, com um evidente alívio no tom de voz.

- Não... não... majestade. É... É, sim. Randolf. Ele e dois outros estão saindo do pátio a cavalo.

Joana largou o trabalho e, com as outras, foi até a janela. Viu John Randolf saindo a cavalo do castelo com dois homens.

- Estão tomando o caminho de Londres - disse uma das mulheres.

Joana olhava com olhos arregalados. Por quê? O que poderia

significar aquilo?

Ela descobriria em breve.

Mais tarde, naquele dia, o duque de Bedford chegou. Joana desceu ao pátio para recebê-lo. Ele se parecia muito com o irmão, o rei, e dizia-se que era o mais leal e ardoroso adepto de Henrique. Tinha a tez mais afogueada do que Henrique, com um proeminente nariz curvo, queixo bem-marcado e testa ligeiramente recuada. Era um homem que não negligenciava seu dever; e assim como o irmão, não praticava a crueldade pelo simples prazer de ser cruel, mas não tinha compunção em tomar uma providência severa em benefício de uma causa que considerasse correta.

Foi servida uma boa refeição, e enquanto ela durou, Joana se sentou ao lado do visitante, que conversou com ela sobre a guerra e as glórias de Agincourt, sobre a coragem do rei e o génio que ele demonstrava na conduta da guerra. Bedford lamentava não estar com o irmão na França; mas o rei atribuíra-lhe a tarefa de manter a lei e a ordem na Inglaterra durante sua ausência, e aquela era uma incumbência que ele procurava cumprir com o máximo de sua capacidade.

- Não deixaremos que nada... absolutamente nada... se coloque no nosso caminho, majestade; não importa o que tenha de ser feito, será feito.

Palavras ominosas, talvez.

Ela estava certa.

Assim que a refeição acabou, ele disse que havia questões sobre as quais queria conversar, e Joana o levou para uma antecâmara e começou perguntando:

- Onde está meu confessor?

- Ele foi para Londres.

- Não dei permissão para que ele fosse.

- Não, minha senhora. Ele foi por ordem minha, que é a ordem do rei.

- Por quê?

- Este é um assunto doloroso, e eu preferiria conversar com a senhora sobre ele do que deixar que outros o fizessem. A senhora é minha madrasta e sempre houve amizade entre nós.

- E ainda há, espero - disse ela.

Bedford ficou calado, e ela olhou para ele alarmada.

- Por favor, diga-rne sem mais demora o que isso significa - disse ela.

- vou dizer. A senhora tem dois feiticeiros trabalhando para a senhora. Os nomes deles, pelo que sei, são Roger Colles e Petronel Brocart.

- Esses homens são meus empregados. Eu não os chamaria de feiticeiros.

- O que são, então, majestade?

- São homens que conhecem os astros... eles prevêem o futuro.

- E de vez em quando arranjam o futuro.

- Não compreendo o que o senhor quer dizer.

- Devia estar claro. A senhora quer que determinada coisa aconteça e... esses homens providenciam isso.

- Como seria possível? O futuro está nas mãos de Deus.

- Mas muitas vezes pode ser ajudado por certos métodos.

- O senhor está falando em enigmas.

- Perdoe-me. Seu confessor nos contou muita coisa. Disse ele que esses dois homens sob suas ordens trabalham com os poderes do demónio.

- Esse homem é um louco e um mentiroso.

- Majestade, ele é um minorita.

- Eu diria que ele é um mentiroso, ainda que fosse o arcebispo de Canterbury. Ele sempre foi ciumento. Ele odiava a amizade que eu mostrava pelos astrólogos.

- Ele disse que eles estavam com a senhora quando o falecido rei estava doente.

- Ó, que Deus me ajude - murmurou a rainha.

- A doença de meu pai era uma doença repugnante. Muita gente dizia que havia feitiçaria envolvida nela.

- Fiquei com seu pai. Tratei dele. Ele me amou até o fim.

- Isso não prova que a senhora não tenha participado de trabalhos prejudiciais a ele.

- Isso é um absurdo. Que vantagem a morte dele me trouxe? Era melhor para mim quando ele estava vivo. Ele jamais teria permitido que eu fosse tratada como estou sendo agora.

- Se a senhora fosse culpada do que alguns dizem que é, ele teria desejado que a senhora respondesse pelos seus pecados.

Joana cobriu o rosto com as mãos.

- Eu amava o rei - murmurou ela. - Tratei dele durante a doença. Ele queria que eu ficasse perto dele o tempo todo.

Bedford ficou calado.

- Ele sofreu muito - continuou ela. - Não apenas com a dor, mas com a horrível desfiguração.

- Qual foi a doença que atacou meu pai? - disse Bedford.

- Dizia-se, na época, que ela fora contraída por influências maléficas.

- É mentira. Seu pai teria sido o primeiro a afirmar isso. Ele sabia que eu o amava, que eu podia tratar dele melhor do que ninguém.

- Foi o que pensamos então.

- Do que mais o senhor veio aqui me acusar?

- De praticar feitiçaria, de trabalhar contra o rei!

- Trabalhar contra o reil Como poderia eu fazer isso? Ele é meu amigo. Ele sempre foi meu amigo.

- A senhora não demonstrou muita amizade quando fez a ele uma contribuição tão parcimoniosa quando ele precisou fazer a guerra na França.

- Dei o que tinha para dar.

- Meu pai a deixou rica. Dizem que a senhora é uma das mulheres mais ricas do país.

Agora ela percebeu tudo. Era o seu dinheiro que procuravam. Que tola se mostrara ao não dar ao rei o que ele queria quando fora procurá-la. O irmão era o tenente dele. O plano deles era extorsão. Joana sentiu um leve alívio. Se era seu dinheiro que queriam, poderiam poupar-lhe a vida.

Claro que poupariam. Não teriam a ousadia de tirá-la. Henrique não tinha como ofender o duque de Bretanha nem a Casa da França até aquele ponto. Fazer guerra era uma coisa, mas assassinar membros da família era outra.

- Então o senhor vai acreditar na palavra de um padre traiçoeiro contra a minha?

- Vamos investigar, é claro. Enquanto isso, resolvi colocá-la sob guarda.

- Aqui em Havering?

- Não, a senhora irá para o castelo de Pevensey. Lá, Sir John Pelham será seu anfitrião.

- O senhor quer dizer meu carcereiro?

- Ele vai cuidar bem da senhora e tratá-la como exige a sua posição.

- Mas eu serei prisioneira dele.

- E se for culpada, senhora, seus bens serão confiscados para a coroa.

- Ah - disse ela -, compreendo. Eles serão de alguma valia para o rei levar adiante sua guerra na França.

Bedford ficou calado.

Joana se resignou. Conhecia os enteados. Eles conseguiam fazer com que eles mesmos acreditassem que estavam agindo com justiça e tudo com que se importavam, na verdade, era levar dinheiro para os cofres públicos. Ela devia ter percebido isso antes.

- Há um pedido que tenho a fazer - disse ela. - Meu filho Arthur está em Fotheringay. É prisioneiro de Henrique, como eu serei. Não poderíamos ficar presos no mesmo lugar?

Bedford pareceu horrorizado.

Ela viu os pensamentos correndo uns atrás dos outros na cabeça dele. Dois deles em um só castelo! Que tramas poderiam armar!

- A senhora irá para Pevensey - disse ele, com frieza. - E agora, prepare-se. A senhora partirá amanhã.

Ele se curvou e se retirou. Joana correu os olhos à sua volta. Em breve aquele local em que vivera durante a viuvez seria uma lembrança. Pensou, então, em Colles e Brocart. Talvez eles devessem tentar fugir para a França. Seria mais prudente eles fugirem, ou ficarem? Se fossem apanhados, alguma coisa poderia ser provada contra eles, apesar de serem inocentes. No entanto, se fugissem, isso seria considerado uma admissão de culpa. Ela devia avisá-los e deixar que tomassem a decisão.

No dia seguinte, Joana partiu para Pevensey. Quando chegou ao castelo, foi tratada por Sir John Pelham com o respeito devido à sua posição, e portanto não podia reclamar da recepção que tivera.

Se ao menos pudesse ter ficado com Arthur em Fotheringay, teria se sentido um pouco contente, porque em pouco tempo ficou claro que nenhuma acusação seria apresentada contra ela. Colles e Brocart nem mesmo tinham sido interrogados. Mas a riqueza dela Tora confiscada.

Bedford atingira sua finalidade. A imensa fortuna de Joana estava, agora, nas mãos do rei.

Ficaria prisioneira dele, à espera de uma decisão sua.

 

KATHERINE DE VALOIS, princesa da França, imaginava qual seria seu destino. Será que seria mesmo a esposa do rei da Inglaterra? Houve época em que parecia que sim, mas agora não tinha tanta certeza. Nada parecera alguma vez muito certo em sua vida.

Seus dezessete anos tinham sido turbulentos. Às vezes, ela se perguntava como sobrevivera a eles. O pai era louco-não o tempo todo, era verdade, mas ninguém podia certificar-se de quando ele cairia naquele desolador estado. A mãe era uma maquinadora era chamada de Jezebel, e talvez com razão. Dominara a infância de Katherine, e a garotinha tivera um medo terrível dela, enquanto era tomada de um sentimento muito profundo - uma admiração pela sua resplandecente beleza, uma admiração por sua vitalidade, e uma percepção do seu poder, que às vezes parecia maléfico. A rainha parecia uma deusa que governava a vida dos filhos - às vezes maligna, às vezes benigna, e à qual deviam total submissão.

Isabeau de Baviera era reconhecida como a mulher mais bonita da França, e como estava casada com um homem que, muito embora fosse o rei, de vez em quando se tornava um pouco mais do que um imbecil, talvez não fosse surpreendente que ela, uma mulher cheia de energia, assumisse as rédeas do governo e tentasse governar a França.

Katherine só podia regozijar-se por ter saído da infância. Pelo menos agora podia compreender o que acontecia à sua volta e praticar um pouco de autopreservação.

Tinham havido épocas horríveis quando ela era muito criança, e ela e seus irmãos e irmãs nunca sabiam o que lhes aconteceria de um dia para o outro. Tinham ficado ansiosos pelos dias em que o pai saísse do que ele chamava de "sua escuridão". Ele era bom e afetuoso, e quando saía daquele estado, tudo mudava como que por milagre. Mas em pouco tempo eles começaram a perceber que nunca podiam estar certos sobre quando as sombras tornariam a reclamá-lo.

Ela era muito criança quando do assassinato do tio Luís de Orleans nas ruas de Paris, mas ficara ciente de que acontecera alguma desgraça terrível. Na época, ela e seus irmãos e irmãs estavam no palácio St. Pol, onde não tinham o suficiente para comer. Ela não compreendera, então, o motivo pelo qual a vida mudara tão de repente. Do luxo para aquela pobreza abjeta parecera a ela um modo normal de vida. Mais tarde, é claro, soube que o pai estava em uma de suas crises e que sua mãe e o tio Luís de Orleans eram amantes e governavam o reino, porque sua mãe convencera o rei de que o irmão dele deveria ser o regente durante seus lapsos. com as irmãs e Luís, o delfim, e os dois irmãos mais novos, ela vivera da melhor maneira possível, com a ajuda de um ou dois criados mais subalternos. Todos os outros tinham ido embora, porque os salários não tinham sido pagos.

Durante muito tempo, ninguém fora visitá-los. Uma fase estranha, aquela - mas não de todo infeliz. Era impressionante a rapidez com que as crianças podiam adaptar-se a um meio de vida. Muitas vezes elas tinham passado fome, mas Katherine se lembrava, agora, da enorme alegria de ter uma caneca de sopa quente nas mãos e do momento extasiante em que ela lhe tocava os lábios. Hoje em dia, a sopa jamais tinha o mesmo sabor. Todos eles tinham ficado sujos; tinham piolhos nos cabelos e no corpo; eles riam quando os pegavam e competiam uns com os outros, jactando-se quando pegavam mais do que os demais. Olhando para trás, aquilo parecia um sonho.

À medida que ia crescendo, ela compreendia o que tudo aquilo significava. Sua mãe tirava as receitas dos cofres da família, para que pudesse ter uma vida voluptuosa com o amante. Tio Orleans não era melhor do que ela. Aquilo teria prosseguido se o pai deles um dia não tivesse saído de seus aposentos em St. Pol, piscando os olhos como se tivesse despertado de um sonho - sem a loucura e pronto para reinar outra vez.

Os filhos tinham sido levados às pressas para fora do palácio e de Paris. Foram rapidamente perseguidos e levados de volta, não sem antes terem sido lavados, vestidos e alimentados; e pouco depois o tio Luís de Orleans fora assassinado nas ruas quando saía dos aposentos da rainha. Aquele assassinato fora cometido por provocação do tio-avô de Katherine, o duque de Borgonha, que decidira pôr um fim ao governo de Orleans.

A mãe fora presa em Tours, e Katherine e sua irmã Marie tinham sido enviadas para o convento de Poissy, para serem educadas e criadas de uma forma adequada às princesas.

Foi uma reviravolta completa - das loucas aventuras do mundo fora dos muros do convento para a vida bem ordenada do lado de dentro. Havia aulas, orações - orações intermináveis -, vida tranquila, às vezes pensando na época agitada em St. Pol, quando ela sentia fome e andava maltrapilha mas, por algum motivo, não se sentia infeliz.

Marie se declarou desiludida com o mundo. Disse isso quando estava pensando na mãe. Marie estava ficando cada vez mais atraída pela vida no convento. Katherine jamais ficaria.

Sua irmã Isabella voltara da Inglaterra, onde fora rainha até o povo depor seu marido. Katherine pouco vira Isabella, mas sua irmã mais velha estava tão retraída e melancólica, que Katherine não pensara muito nela.

E então ela se casara com o filho do tio Orleans, e quando ele fora asssassinado, Isabella se tornara a nova duquesa. Pobre Isabella, não tinha sido feliz. Uma vez, tinha ido ao convento visitar as irmãs e lhes dissera que sua felicidade estava na Inglaterra, no túmulo de seu marido, Ricardo. Ela morrera quando seu filho nascera. Pobre Isabella!

- Que vida triste - disse Marie. - Uma pessoa se sentiria mais feliz dedicada ao serviço de Deus.

Marie estava ficando mais e mais distante a cada dia. Quando soube que Henrique, o rei da Inglaterra, queria casar-se com ela, disse que nunca se casaria com ninguém. Aquilo fizera com que ela se decidisse. Queria que o pai compreendesse que ansiava pela paz do convento e que o casamento não tinha encanto algum para ela.

Claro que as princesas tinham de fazer o que lhes mandavam. Mas o pai delas era um homem bom. Era de se esperar que Marie não fosse obrigada a se casar durante uma de suas fases obscuras pela mãe, que saíra do cativeiro e estava fazendo com que sua presença se fizesse sentida na corte outra vez.

- Ele queria Isabella - disse Marie. - Eu soube que ele estava apaixonado por ela quando era apenas o filho do duque de Hereford, e isso antes de o pai dele tirar o trono de Ricardo. Isabella não quis saber dele. Não queria saber de ninguém, exceto de Ricardo.

- Mas aceitou Charles de Orleans.

- Aceitou, porque foi obrigada. Eu soube que ela chorou o tempo todo da cerimónia.

- Pobre Isabella!

- Agora está morta. Como é muito melhor dedicar a vida a Deus!

A notícia da terrível derrota em Agincourt acabou chegando ao convento.

Katherine, agora com quatorze anos de idade, percebeu o que aquilo significava. Os ingleses tinham vencido. Dominariam a França, e o pai dela poderia até perder a coroa, porque era por ela que Henrique da Inglaterra estava lutando.

Era horrível, pois que esperança teria seu pai de rechaçar o inimigo, quando o país estava sofrendo uma convulsão interna? Desde o assassinato de Orleans, havia uma luta entre Orleans e Borgonha; e no centro dessa disputa estava seu pobre pai, com sua mente instável e uma esposa que era famosa pela voracidade e pelas intrigas adúlteras.

Não ficou de todo surpresa quando chegaram mensageiros ao convento.

Não era Marie que eles tinham ido procurar, mas Katherine.

- Sua presença é requerida na corte, alteza - foi a ordem. Marie a abraçou com emoção, mas Katherine sentiu o alívio

da irmã.

- Vai ser casamento para você - disse Marie. - Isso significa que me deixarão ficar aqui. Agradecerei a Deus essa bênção e, querida irmã, vou rezar por você.

E assim Katherine cavalgou para a corte do pai. Percebera que a vida isolada do convento não era para ela.

Ela foi recebida pelo pai e agarrou-se a ele, porque estava muito feliz por ver que os olhos dele estavam claros e não havia loucura neles.

- Adorada filha - disse ele, acariciando-lhe os cabelos. Como você está bem, e como ficou bonita! Parece feliz, e isso me alegra. Seja feliz enquanto puder, filha querida. Há coisas lamentáveis acontecendo com a França.

- Querido senhor meu pai, nada poderia me trazer mais felicidade do que vê-lo bem.

- Rogue a Deus que eu fique assim até que possa ver você com uma vida feliz.

- É algum casamento que o senhor tem em mente para mim.

- É, minha filha, com o rei da Inglaterra.

- Henrique. Aquele que pediu a mão de Isabella... e Marie...

- Ele quer uma princesa da França.

- E eu sou a única disponível.

- Filha querida, será um casamento brilhante. Pense, meu amor, você será rainha.

- Isabella era rainha. Isso não a deixou muito feliz.

- Ah, isso é diferente. Ela foi casada com Ricardo... um fraco.

- Ela o adorava.

- Aquilo não foi um casamento de verdade. Ela era apenas uma criança. Raramente o via, e ele a tratava como uma filhinha de estimação. Henrique é diferente. É um homem que está firme em seu trono. Você irá admirá-lo, passará a amá-lo e se tornará mãe de reis.

- Oh, não, meu pai. Deixe-me ficar aqui por algum tempo, apenas como sua filha.

- Parece que vai ficar - disse o rei, sério -, porque as condições que ele impõe são excessivas, e não podemos satisfazê-las.

Ela suspirou, aliviada.

- Você sabe que fomos derrotados em Agincourt - prosseguiu o rei. - Foi uma derrota desastrosa. Tínhamos forças superiores... mas eles foram demais para nós. Com um pequeno exército dizimado pela disenteria e doenças, ele veio com seus arqueiros, e nossas perdas foram enormes, e as dele, pequenas. Parece que ele é mais um igual ao bisavô e ao Príncipe Negro. Se for assim, com a França em sua situação presente, não poderemos resistir a eles. Henrique faz grandes exigências, e uma delas é a sua mão. Se ela não for concedida, ele diz que virá até aqui e pegará o que deseja. Um modo estranho de fazer a corte, disse eu a ele, vir procurar você coberto com o sangue de seus conterrâneos.

- E o que ele disse?

- Respondeu que ele é um soldado, com jeito de agir de um soldado, e que não tinha dúvidas de que quando se tornasse mulher dele você se acostumaria à sua maneira de agir.

Ela colocou a mão sobre a do pai.

- Estou com medo - disse ela.

O pai pareceu muito triste, e ela continuou:

- Mas tenho de cumprir com meu dever e prometo ao senhor, meu pai, que se for necessário me casar com esse homem, eu o farei de bom grado, pela França.

- Minha boa filhinha - disse o rei, e parecia prestes e debulhar-se em lágrimas.

Queria dizer a ele que a perspectiva não era de todo desagradável. Desejava experimentar o casamento e esperava que o marido fosse um homem forte, que soubesse o que queria, que não fosse amaldiçoado pela triste sombra da loucura. O vencedor de Agincourt, o homem que alegava que conquistaria e dominaria a França - sim, ele parecia um marido digno de uma princesa.

Foi uma fase triste. As negociações tinham fracassado. Henrique exigia demais. Luís, o delfim, que estivera tão bem de saúde e que sarcasticamente enviara as bolas de ténis a Henrique, morrera de repente. Dizia-se que nunca se recuperara da vergonha de Agincourt. Estivera muito certo de que levaria Henrique para Paris como seu prisioneiro - ou pelo menos sua cabeça numa estaca. Depois do resultado, ele caíra em melancolia, e um dia seus assistentes entraram em seus aposentos e encontraram-no morto. Disseram que de tristeza.

O príncipe Jean se tornara delfim e, quando poucos meses depois foi atacado por uma doença misteriosa que o matou numa questão de dias, começou-se a dizer que havia um azar sobre a França. Aquilo era um sinal. O rei louco, dois de seus filhos morrendo com um pequeno intervalo entre eles; os ingleses atacando triunfantes todos os cantos do país. O que poderia significar isso?

Havia um novo delfim, Carlos. A rainha foi acusada de ter envenenado os filhos; o rei mergulhara na loucura; havia peste e fome em Paris.

O que acontecerá depois disso?, perguntava-se Katherine.

A primeira coisa que aconteceu foi a chegada da rainha a Paris. Ela foi imediatamente procurar Katherine.

Ainda estava tão bonita, que Katherine não pôde deixar de olhá-la com admiração. A rainha abraçou a filha, e havia lágrimas em seus olhos magníficos.

- Minha adorada filha-bradou ela. Sua filha adorada... que ela deixara passando fome no palácio de St. Pol, por cujo bemestar não mostrara interesse algum até aquele momento! Katherine ficou perplexa, mas sentiu a antiga fascinação tomando conta dela e lembrou-se de como, quando criança, se escondia em posições que davam cãimbras na esperança de uma oportunidade de dar uma olhada na gloriosa deusa.

- Por que a senhora veio aqui? Pensei que estivesse em Tòurs.

- Eu fugi. Sim, saí da minha prisão em Tòurs. Precisam de mim aqui, e minha grande preocupação é seu futuro... e o futuro da França. Porque os dois são a mesma coisa. Você pode salvar a França, Katherine.

- Como assim?

- Você é bonita. Você saiu a mim, querida filha.

- Ó não, não. Eu jamais poderia ser igual à senhora.

- Talvez não. Ainda assim, é bonita, e é sempre bom ser bonita. Sou capaz de jurar que quando ele a vir irá achá-la irresistível. Ele foi um jovem inconsequente. Sempre gostando de mulheres. Ó sim, ele verá que tem de se casar com você. É a nossa saída dessa situação lamentável, que nunca teria acontecido se eu não tivesse sido presa... se Luís não tivesse morrido... Pouco importa, Katherine. Você e eu vamos salvar a França.

- Como, senhora?

- Primeiro, quero que pintem um retrato seu. Quero que ele veja esse belo rosto... que tem o formato do meu; os grandes olhos negros. Sim, será muito importante quando ele vir seu retrato.

- Eu gostaria de não ser entregue a ele como parte de um tratado.

A rainha suspirou.

- Isso é uma coisa com a qual nós, de sangue real, temos de nos acostumar, Katherine. Pense, você será rainha da Inglaterra e haverá um fim para essas guerras sem sentido.

- E se eles a manderem de volta para Tours?

- Tenho um forte aliado - disse ela. - Borgonha está me apoiando, agora.

Borgonha! Orleans! Para ela, não importava qual fosse. Só queria uma aliança com aquele que pudesse lhe dar poder.

Rouen estava para cair em suas mãos. Ele não poderia falhar. A França começava a desmoronar. Aquele era o momento de usar suas vantagens.

O pobre do Carlos louco teria de ceder; fora um golpe de sorte para Henrique o delfim Luís ter morrido - embora ele tivesse a esperança de vingar-se dele por causa daquele insulto com as bolas de ténis. E depois, Jean. Tais acontecimentos eram valiosos para provocar o terror em uma nação.

Eles viam naquilo a mão contrariada de Deus.

Deus estava do lado da Inglaterra. Aquilo fora óbvio em Agincourt, quando um pequeno exército inglês saíra com uma vitória tão completa.

Enquanto Henrique estava acampado diante de Rouen calculando que antes que se passasse um dia a cidade seria sua, chegaram mensageiros vindos da corte da França.

Tinham algo para ele. Um retrato.

Ansioso, ele o examinou. Era jovem e bonita, e se parecia com Isabella. Isabella tinha sido o seu primeiro amor, e ele nunca mais se esquecera dela por completo. Talvez ela não fosse tão bonita quanto imaginara; mas se lembrava de tê-la visto pela primeira vez, e acima de tudo lembrava-se da devoção dela por Ricardo. Queria alguém assim, alguém para amá-lo, adorá-lo, para continuar fiel por toda a vida dele.

Katherine da França se parecia muito com a irmã. Os mesmos olhos escuros, o rosto oval, as massas de cabelos pretos e a forma resoluta dos lábios.

vou conquistá-la, pensou ele. Dentro em pouco ela será minha mulher.

Rouen caíra; o rei estava em Melun. Alguma coisa precisava ser feita.

Combinou-se um encontro da rainha e sua filha com Henrique. Aconteceria em Pontoise.

Às margens do rio, tendas e pavilhões tinham sido armados. Eram tão elegantes quanto os franceses poderiam fazê-las-de veludo azul e verde, ornamentado com ouro. Foi uma ocasião magnífica, e na barcaça real ricamente decorada com a flor-de-lis, Katherine chegou com a mãe e o duque de Borgonha. O pai não tinha condições de acompanhá-las devido a outro acesso de loucura.

Katherine foi levada para o mais ricamente decorado dos pavilhões, e logo depois se ouviram gritos para proclamar a chegada do rei da Inglaterra.

Henrique estava acompanhado de seus dois irmãos, Clarence e Gloucester, e mil homens armados, e quando entrou na tenda os olhos de Katherine estavam fixos nele, e o coração dela bateu acelerado de tanta emoção.

Henrique se adiantou e primeiro curvou-se para a rainha e depois a beijou. Depois, voltou-se para Katherine. Os lábios dela se abriram; e ela estava sorrindo; e ele retribuía o sorrindo. Colocou as mãos nos ombros dela e beijou-lhe os lábios.

Aquilo foi uma descortesia, mas ela ficou encantada; e o rei também.

Katherine gostaria que eles estivessem a sós e que ela pudesse conversar com ele.

Mas aquele não era o momento.

Estava sentada entre sua mãe e o duque de Borgonha, e Henrique estava sentado em frente a eles, com um irmão de cada lado. Ela ficou satisfeita ao perceber que durante todo o processo Henrique não tirara os olhos dela.

A conferência acabou cedo demais para Katherine, e quando terminou não tinham sido feitos quaisquer acordos definitivos.

Haveria outra conferência, disse sua mãe.

- Para mim, está claro que o rei se apaixonou pela minha filha - acrescentou ela, com orgulho.

Mas a paixão de Henrique não era tão grande a ponto de ele desistir de qualquer uma das exigências. Elas eram excessivas.

- Ainda não fomos derrotados - disse Borgonha. Houve outro encontro em Pontoise.

- Desta vez - disse a rainha -, Katherine não irá conosco. Henrique ficou nitidamente decepcionado, mas foi inflexível

como sempre, e a conferência terminou num impasse.

Henrique tinha certeza de que atenderiam às suas exigências.

- Vamos esperar alguns dias - disse ele ao irmão. - Eles cederão.

Ficou desconcertado quando viu os pavilhões sendo retirados, o que era um sinal de que os franceses não tinham nada mais a dizer. Tentou mais uma entrevista com o duque de Borgonha.

- Eu lhe digo uma coisa - bradou ele -, vamos nos casar com a filha do rei da França ou expulsaremos o rei deste país... o senhor também, senhor de Borgonha.

- O senhor pode ameaçar fazer isso - foi a fria resposta -, mas antes de conseguir me expulsar do meu país, ficará muito exausto.

Katherine se sentia decepcionada. Estava certa de que Henrique a desejava. E no entanto, ele a deixara ir embora. Talvez nunca mais tornasse a vê-lo.

A guerra continuava. Henrique estava quase às portas de Paris. Não havia nada que os franceses pudessem fazer, exceto negociar a paz.

Mensagens de Borgonha e da rainha da França foram entregues no acampamento de Henrique. Estaria ele de acordo com uma nova reunião?

A resposta dele foi: "Não. Não confio em nenhum de vocês, exceto na princesa Katherine. Se eu negociar com algum de vocês, será só com ela."

Aquilo era impressionante. Mas acontece que Henrique sempre desprezara as convenções.

- Não há nada que possamos fazer - disse a rainha. - Temos de ceder a Henrique. Ele tem de se casar com Katherine.

Ela mandou chamar a filha.

- O rei da Inglaterra está exigindo sua mão. Você está sorrindo. Parece que isso é de seu agrado.

- Gostei muito dele - disse Katherine -, e já está na hora de eu me casar.

A rainha soltou uma gargalhada.

- Acho que você pode se parecer comigo em mais de um detalhe. Escreva um bilhete para ele. Diga-lhe que está ansiosa por falar com ele. Nossa situação é desesperadora. Ele estará em Paris em breve se não o detivermos. Mas ele não deverá vir em guerra.

Katherine se sentou, como lhe pediram, e escreveu uma carta para Henrique. Lamentara profundamente não vê-lo havia tanto tempo, porque o breve encontro dos dois no pavilhão em Pontoise dera a ela o desejo de vê-lo mais do que qualquer outra coisa no mundo.

Era uma carta ousada para ser escrita por uma princesa, mas estava lidando com um homem ousado.

- Ele vai querer mais do que a mão de Katherine - disse Borgonha.

As condições seriam duras, mas teriam de aceitá-las. O dote de Katherine seria a coroa da França depois da morte do pai dela. O rei da Inglaterra deveria tornar-se, com o casamento, o regente da França.

Henrique não cabia em si de contente. Parecia que seu objetivo fora alcançado.

Quando Katherine foi levada à sua tenda, ele, sem cerimónia, agarrou-a nos braços.

- Majestade, majestade - protestou ela, mas estava sorrindo de satisfação.

- Até que enfim-bradou ele. - Tenho sonhado com você, Katherine. Malditos sejam aqueles que nos mantiveram separados por tanto tempo.

Ela já não era mais a jovem que Isabella fora, mas o fazia lembrar-se muito dela. Isabella morrera aos 22 anos de idade, pobre e triste Isabella; e depois de todas as demoras, Katherine estava com dezenove anos.

- Jurei que me casaria com você na hora em que a vi pela primeira vez na tenda em Pontoise - disse ele.

- Eu sei. Eu também desejava isso.

- Katherine... Katherine... que quantidade enorme de batalhas tive de lutar para conquistá-la!

- Espero que considere que a luta valeu a pena, majestade. Estavam encantados um com o outro. Ele estava com 33 anos.

Já não era mais um jovem.

- Pela verdade de Deus! - bradou ele. - Tenho muito o que recuperar.

Na igreja de Notre-Dame, na cidade de Troyes, Henrique, com a rainha e Katherine, estava presente à assinatura do tratado. Henrique estava magnífico numa armadura polida, e agora Katherine se sentia profundamente apaixonada por ele. O rei da França não pudera estar presente, mas aquilo era uma ocorrência tão frequente, que sua ausência praticamente não foi percebida. Ali, no altar principal, a França estava se rendendo a Henrique da Inglaterra.

Depois, o casal ficou noivo, e Henrique colocou solenemente um anel de valor incalculável no dedo de Katherine. Insistiu para que ela ficasse, agora, sob seus cuidados, pois não confiava nos franceses e, em vista de tudo que tinham entregado, ele achava que mesmo que aqueles que tinham feito a negociação a cumprissem, bem poderia haver alguma facção rebelde que tentasse tirar dele os merecidos espólios.

Henrique insistiu para que o casamento não demorasse muito.

Foi num belíssimo dia de junho que ele e Katherine se casaram na igreja de Troyes. Houve um júbilo universal, porque todos viam no casamento um fim da guerra que atormentara o povo por tanto tempo.

Ela terminara tão honrosamente para a França quanto se podia esperar, porque não parecia tão humilhante render-se ao marido da princesa quanto seria fazê-lo para um estranho.

Henrique estava decidido a homenagear sua mulher. Mandara que os preparativos fossem os mais suntuosos.

Os franceses observavam, perplexos. Os preparativos deles eram grandiosos, mas mais contidos. Mais elegantes, foi o veredicto deles, mas ao mesmo tempo admiravam a ostentação dos ingleses.

"Dá a impressão que ele é o rei do mundo inteiro", era o comentário.

Katherine, enfim, lhe pertencia. Os dois se deram as mãos, e ele sorria para ela com uma intensidade apaixonada. Katherine estava encantada. Não se parecia com Marie. Gostava do que via nos olhos de seu amado.

O arcebispo cumpriu a cerimónia de benzer o leito nupcial; e houve a cerimoniosa procissão até a cama, e bebidas e alimentos foram levados para o feliz casal. Eles beberam o vinho e tomaram a sopa, segundo o velho costume francês; e por fim foram deixados a sós.

- Este é o momento pelo qual eu esperava ansioso desde que a vi pela primeira vez - disse Henrique.

E Katherine ficou satisfeita.

 

KATHERINE ESTAVA de cama em Windsor, aguardando o nascimento do filho. O rei, é claro, ainda estava guerreando. O casamento não provocara a paz pela qual todos haviam rezado. Não se podia esperar, talvez, que o novo delfim abrisse mão de seus direitos, e ele decidiu ser contra o tratado. Além do mais, era muito improvável que todos os franceses fossem ficar calmamente de lado e ver o país ser entregue aos ingleses, muito embora seu rei louco fosse manter o título até morrer.

De modo que Henrique estava agora na França esperando a notícia do nascimento do filho deles.

Ela estava feliz. Nascera para ser mulher dele. Ela e Henrique combinavam muito bem. Ela ria ao ouvir as aventuras que ele tivera na juventude, quando todo mundo pensava que seria um desastre o dia em que subisse ao trono. Era um homem de desejos apaixonados - quer fosse em seu quarto, quer no campo de batalha. Era um homem que ficava obcecado por um ideal; para Katherine, ele era um herói conquistador. Ela não se importava que ele tivesse dominado seu pai e seu país. Ela considerava o irmão, o delfim, um inimigo, porque ele era inimigo de Henrique.

Assim Henrique a reivindicara para ele e os dois estavam encantados com o casamento.

Ele oferecera-lhe uma coroação magnífica e ela fora coroada na abadia de Westminster pelo arcebispo Chicheley, num frio dia de fevereiro. O banquete que se seguira fora o mais suntuoso já servido no grande salão de Westminster.

Henrique estava decidido a reverenciá-la.

Pouco depois, para satisfação dos dois, ela ficara grávida.

Seu filho deveria nascer em dezembro.

- Você tem de estar ao meu lado quando nosso filho vier ao mundo - disse ela a Henrique; mas ele riu, e Katherine percebeu que se ele achasse necessário entrar em combate, nem ela poderia detê-lo.

A conquista era a vida dele. Era um grande amante, mas antes de tudo era um soldado. O prosseguimento da guerra significava mais para ele, do que qualquer outra coisa. A parenta de Katherine, Joana, que fora a rainha do pai de Henrique, continuava presa em Pevensey.

Henrique acreditava em feitiçaria e lhe dissera que Joana a praticara contra ele. Não acreditava muito que aquilo fosse verdade, porque sempre gostara da madrasta, até precisar do dinheiro dela para ajudá-lo a fazer a guerra.

Ele era implacável. Katherine sabia disso. Mas era um homem... da cabeça aos pés; e estava contente por tê-lo como marido.

Quando saíra a cavalo ao lado dele, ficara emocionada; quando os olhos dele tinham procurado os dela numa reunião, seu coração pulara de alegria. Não podia haver dúvida do amor que havia entre os dois.

Ele ia se ausentar outra vez. Ela podia reclamar e expressar desagrado, mas Henrique não ligava. Sua presença era necessária na França.

- E você não estará aqui para o nascimento da criança - reclamou ela.

- Você aguentará isso sem mim - disse ele.

- Neste caso, assim que puder irei para o seu lado. Isso, você não poderá impedir.

Henrique riu dela.

- É bem possível que eu não queira impedir - respondeu ele.

Ela achou divertido quando ele começou a ter suspeitas sobre o nascimento do filho.

Ele andara ouvindo astrólogos.

- Há uma nuvem sobre Windsor - disse ele. - Predizem que ela estará lá em dezembro. Katherine, nosso filho não deve nascer em Windsor. Ela é um mau agouro.

- Fique aqui e assegure-se de que ele não nascerá lá. Ele tornou a rir e beijou-a.

Mas, mesmo assim, partira para a guerra.

E agora Katherine estava de cama ali... em Windsor. Henrique não estaria com ela quando seu filho nascesse. Muito bem, ela iria desobedecê-lo de propósito.

Ele não ficaria zangado; assim que o filho nascesse, ele se esqueceria do local de nascimento.

Era um castelo magnífico; feito para ser o lugar de nascimento de reis. Katherine queria um menino - um rei para suceder a Henrique. Era o que os dois queriam. E por que não iria ele nascer em Windsor?

O ancestral favorito de Henrique, Eduardo III, nascera lá. Tinham-no chamado de Eduardo de Windsor, e se ela tivesse um filho homem, iria dar-lhe o nome do pai. Ele deveria ser Henrique de Windsor.

E assim ela iniciou os trabalhos do parto e por fim seu filho nasceu.

Ela o chamou de Henrique, em homenagem ao pai.

- Malditas sejam as profecias deles, meu filho - disse ela.

- Meu pequenino Henrique VI, você vai ser mais um igual a seu pai.

Quando a notícia foi levada até Henrique, ele ficou encantado. Um filho! Não era isso que todo rei desejava? Tinha a sua bela e apaixonada Katherine, e era típico dela aumentar suas perfeições dando-lhe um filho homem!

- A rainha insiste em chamá-lo de Henrique - disseram-lhe.

- Isso não me desagrada-disse ele com um sorriso. - Vida longa para o nosso jovem Henrique VI.

- E que ele demore muitos anos para subir ao trono, majestade.

O rei ficou calado de repente. Ele disse:

- Onde ele nasceu?

Eles hesitaram em dizer, conhecendo suas preocupações.

Quando soube por eles, ficou branco - não de raiva, mas de medo.

Depois, disse pausadamente como se outra pessoa estivesse falando por intermédio dele:

- "Henrique nascido em Monmouth Reinará por pouco tempo e ganhará muito,

Mas Henrique de Wmdsor reinará por muito tempo e perderá tudo."

Olhou espantado para aqueles que o cercavam. E então acrescentou:

- Mas seja tudo como Deus quiser.

- Majestade - disse seu irmão Gloucester. - Está se sentindo bem?

Henrique levou a mão à testa.

- Senti uma coisa estranha - disse ele. - Foi a notícia de que o menino nascera em Windsor. Pedi à rainha que não tivesse o filho lá.

- Em Windsor, majestade? É um local adequado para o nascimento de um príncipe.

Henrique deu um tapinha no ombro do irmão.

- Tem razão, irmão. O que importa isso? Um belo menino, não? E um Henrique.

Seis meses depois do nascimento, Katherine convenceu Henrique a deixar que ela fosse para perto dele. A criança ficou sob os cuidados de suas amas-de-leite e ela partiu, acompanhada pelo duque de Bedford e um exército de vinte mil homens.

Era assim, na qualidade de uma rainha, que deveria viajar pela França, enviando mensageiros na frente para avisar o marido de sua chegada.

Quando Henrique soube que ela chegara à França, sentiu uma mistura de alegria e desânimo. Havia alguns meses ele vinha se sentindo mal e não conseguia esquecer a rapidez com que seu pai fora atacado pela doença.

A doença dele não era de provocar desfiguração. Estava sofrendo da disenteria que vira arruinar tantos de seus soldados. Ela o deixava fraco e esgotado. Era aconselhado a descansar, mas não queria, assegurando a si mesmo que acabaria com a indisposição que se recusava a acreditar que fosse tudo, menos passageira.

Mandou uma mensagem à rainha para avisá-la da chegada da filha, e como o rei estava gozando de um de seus períodos de lucidez, os dois se juntaram a Henrique e cavalgaram com ele ao encontro da filha.

Katherine ficou chocada ao ver a mudança em Henrique e declarou que estava na hora de ela vir para junto dele, pois estava claro que ele precisava de cuidados. Ele sorriu fracamente e disse que tinha demais o que fazer para se tornar um inválido.

Eles seguiram viagem para Senlis e, lá, Katherine insistiu que ele descansasse.

- Esqueça a guerra por uns momentos - suplicou Katherine.

- Os médicos dizem que você precisa repousar.

Henrique sorriu para ela.

- Você é uma sedutora, minha querida rainha, mas não devo ser atraído para longe do meu dever.

- Quando você partirá de Senlis?

- Ao amanhecer - disse ele. -Venha, vamos nos recolher agora. A noite é muito curta.

E assim os dois se recolheram, mas durante a noite Henrique passou muito mal, e Katherine viu que ele não poderia viajar ao amanhecer. Ele lutou contra a lassidão que o dominara e mandou que lhe trouxessem a armadura.

Embora mal pudesse ficar em pé, foi vestido e ficou pronto para partir e seguiu para Melun à frente de seus homens, enquanto a rainha voltava para Rouen.

Mas enquanto se aproximava de Melun, ficou evidente, até mesmo para ele, que não podia seguir mais adiante. Não adiantava fingir que nada havia de errado.

Prepararam-lhe uma liteira, e ele foi levado de volta para Senlis.

Henrique sabia que lhe restava pouco tempo. Acreditava ter desagradado a Deus de alguma forma, porque estava apenas com 35 anos de idade. Era pouca idade para se morrer, e seu trabalho não estava terminado. Chegara mais longe do que qualquer rei inglês antes dele. Tinha sido um guerreiro mais brilhante até do que Eduardo

I e Eduardo III. Seu povo o amava; a coroa da França estava quase em suas mãos, e agora iria morrer.

A consciência castigava-o. Provocara muita angústia em seu pai. Quando jovem, ele vivera sem pensar em coisa alguma a não ser no próprio prazer. John Oldcastle pagara

por suas loucuras passadas; morrera como um mártir. Mas ele, o rei, o que fizera? Praticamente conquistara a França, mas por algum motivo divino não lhe deixariam completar a tarefa.

Henrique queria pedir perdão a todos aqueles que havia prejudicado. Queria saber onde falhara.

Lembrou-se, de repente, de sua madrasta. Joana, que fora acusada de feitiçaria - não porque houvesse qualquer prova contra ela, mas porque ele precisara do dinheiro dela para ajudar a realizar a guerra.

Precisava reparar o mal que fizera. Tinha de fazê-lo logo, enquanto lhe restasse tempo.

Tudo deveria ser devolvido a ela.

Mandou chamar seu escriba. Ele deveria escrever exatamente o que fosse ditado. Tudo deveria ser devolvido à rainha Joana, e ela deveria ser posta em liberdade. Sabia que ela fora acusada injustamente.

- Façam isso já - ordenou ele. Depois disso, sentiu-se melhor. Mandou chamar os médicos.

- Digam-me, eu vou morrer?

- Sempre há esperanças, majestade.

- Eu quero a verdade - retrucou ele. - Não pensem em me poupar. Quero saber quanto tempo me resta.

- Vossa Majestade deve pensar na sua alma - foi a resposta -, pois a menos que seja vontade de Deus decidir o contrário, não poderá viver por mais de duas horas.

Duas horas, refletiu ele. Só me restam duas horas. O que será do meu filho... ainda um bebé?

- Mandem meu irmão até aqui. Mandem meu tio Exeter. Eles foram e ficaram de pé ao lado da cama.

- John - disse ele -, você tem sido um bom irmão para mim. Seja para o meu filho um amigo tão bom quanto foi para mim.

- Serei - disse Bedford.

- E meu bom tio Exeter. O senhor deve ser o regente da Inglaterra e o guardião de meu filho. Se gostar de mim, cuide dele.

- Pode confiar em mim - disse Exeter.

- É Warwick que estou vendo ali? Nosso bom primo, seja o governador de meu filho. Ensine-lhe o que ele deve aprender. Faça isso em minha homenagem, eu lhe peço.

Warwick caiu de joelhos.

- Meu caro senhor - disse ele -, se isso tiver de ser, irei servi-lo tal como servi ao senhor.

- Tenho bons amigos - disse o rei. - John - prosseguiu ele -, você precisa consolar minha rainha. Ela é jovem; é a criatura viva mais sofredora. Cuide dela.

- Juro que farei como você quer - disse Bedford.

- Neste caso, nada mais me resta a fazer se não morrer em paz.

E assim ele morreu.

Katherine ficou profundamente abalada. Estava com 21 anos de idade e na sua melancolia parecia mais moça.

O corpo do rei foi colocado numa carruagem puxada por quatro cavalos e, com uma cavalgada de acompanhantes, foi levado para Abbeville. Foi uma procissão impressionante, porque em torno da carruagem cavalgavam quatrocentos homens armados vestindo armaduras pretas, os cavalos cobertos de veludo preto e as lanças seguras com a ponta para baixo. Os demais acompanhantes estavam vestidos de branco e caminhavam lentamente, levando tochas acesas e entoando canções fúnebres.

Eles passaram de Abbeville para Montreuil e, com isso, para Calais. Quando chegaram a Dover, foram recebidos por procissões de bispos e sacerdotes, e assim levaram o rei para a capital de seu país.

Ele foi enterrado na capela do Confessor na abadia de Westminster, e uma capela foi designada em sua homenagem.

Assim que o funeral acabou, Katherine se dirigiu às pressas para Windsor, para ver o filho.

Ele estava com nove meses quando o pai morreu.

Ela o levou de imediato para Londres e seguiu numa carruagem pelas ruas com ele sentado no colo. Eles tinham crispado as mãozinhas dele em torno de cetro, mas não

puderam colocar a coroa na sua cabeça de bebé.

Não importava. O significado estava claro. Henrique V estava morto, e o calamitoso reinado de Henrique VI começara.

 

 

                                                                                                    Jean Plaidy

 

 

 

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