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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A ESTRELA DE SEIS PONTAS / Manuel Tiago
A ESTRELA DE SEIS PONTAS / Manuel Tiago

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Naquela rua animada por intenso movimento de carros e peões, estendia-se ao longo do passeio uma vistosa fachada com belos torreões e numerosas janelas circundadas de pedra branca. O edifício prolongava-se para um lado e para outro por um alto muro bordado de ameias da mesma pedra. À primeira vista dir-se-ia o antigo castelo de um grande senhor, sugerindo, para lá dos muros, a frescura de parques e jardins. Alguns pormenores destoavam porém dessa primeira impressão. As janelas, ainda que de elegante recorte, eram gradeadas. A arquitectura pesada, monumental, de grandiosidade suspeita. Quem parasse e observasse certamente pensaria: o que é isto?

Difícil adivinhar. Para lá da vistosa fachada e dos muros que davam para a rua, o panorama era outro. A partir de uma torre central coroada por uma cúpula recortada, partiam em seis direcções dispostas em estrela seis monstruosos edifícios. Monstruosos de facto. Cada qual com oitenta metros de longo e quatro filas sobrepostas de dezenas de postigos gradeados. Lá baixo, entre os edificios, vastos triângulos asfaltados e desertos. Em torno dos seis edificios e dos espaços triangulares, cercando-os de ponta a ponta, uma correnteza ininterrupta de casas baixas abarracadas que só num ponto se abriam para uma horta. Para lá, acima de um paredão, um estreito e comprido jardim bordado por uma casa comprida de rés-do-chão marcada também por uma fila de postigos gradeados. Para lá ainda, apertando como um anel todo o imenso conjunto, um fosso profundo e um alto muro com arame farpado marcado no topo por numerosas guaritas de tantos em tantos metros.

Tal era a estrela de seis pontas, observada por fora.

Lá dentro, a partir de um amplo espaço circular subjacente à torre central e separados deste por pesados gradões, abriam-se, com a grandeza e o eco de naves de uma catedral, os espaços interiores das seis alas da estrela. Em cada ala, de um lado e de outro, estendendo-se também de ponta a ponta no rés-do-chão, fileiras de portas chapeadas. Por cima um primeiro e um segundo varandim de ferro com outras tantas portas chapeadas. Em cada piso, a meio das alas, pontes estreitas igualmente de ferro ligando os varandins de um lado a outro.

Tal era à primeira vista a estrela de seis pontas observada lá dentro.

Quinhentas celas, quinhentos presos

Quinhentas celas, quinhentos presos, prisão maior celular. Para muitos, na gíria prisional, até saírem agasalhados num sobretudo de tábuas. Cinco, dez, quinze, vinte e mais anos a maior parte do tempo fechados numa cela. Um rectângulo de dois metros por quatro, iluminado por uma pequena janela gradeada junto ao tecto, para que o preso não veja o exterior. O chão de cimento. Uma estreita cama de ferro. A mesa, um tampo de setenta por quarenta centímetros forrado de zinco e suspenso da parede. Um banco com assento minúsculo. Um balde para as necessidades. Verdadeiro luxo, uma bacia metálica com torneira de água corrente aberta durante os primeiros minutos da manhã para

enxaguar o rosto e alguns minutos depois das refeições para limpeza das marmitas.

Doenças, mortes, agressões, lamentações, protestos, revoltas, castigos e um renovar dos internados tão lento que só perceptível por espaços de anos. Caras que deixam de ser vistas depois de serem em longos períodos a fisionomia viva da população prisional. Caras novas que aparecem com muitos anos à frente para ali passar. De resto, nesse decorrer arrastado e infindável do tempo, cada dia visto à superfície parece igual a todos os outros dias. Horário, rotina e ritual. Fardas e barretes de um castanho sujo com números estampados a branco. E os apitos estridentes, as formaturas e o conto, os cortejos à ida e à volta das oficinas, o cair metálico das bandeiras, o seco bater no cimento de tairocas e tamancos, o estrondo dos gradões de ferro e das fechaduras e ferrolhos, as correrias com os tabuleiros para distribuição do rancho, o entrecruzar dos ecos no imenso espaço vazio das alas, o fedor do despejo dos baldes nos nojentos poços de escoamento, o fedor da creolina e o fedor dos fedores na opinião de alguns - o fedor da sopa de couves bafientas e do peixe frito em óleo rançoso à hora do destapar das marmitas. Assim dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano. Para muitos o resto da vida.

Não é esse mundo que podem imaginar os passantes na rua fronteira, olhando a fachada acastelada e nobre com torreões em pedra branca a sugerir, para lá dos muros encimados por vistosas ameias, a frescura de parques e jardins.

 

 

 

 

               O passeio

Girando num vaivém ou conversando em grupos mais ou menos numerosos, parados uns, isolados outros, assim passavam os presos a hora do passeio, num dos pátios triangulares apertados no fundão das imensas e lúgubres fachadas das alas. Na mancha castanho sujo dos uniformes e dos barretes sobressaíam, como que ferrados a tinta branca, os números de identificação. O Outono húmido e frio ia avançando e muitos dos presos repuxavam a gola e faziam gestos bruscos batendo os braços para aquecer.

Entre os presos que nesse dia passeavam no pátio, o Nero sobressaía pela corpulência e estatura. Impunha-se pelo corpo e mais ainda pela terrível fama. Parado junto de outros, ouvia-os atento, sereno e inexpressivo. De quando em vez surpreendia-os com súbitas explosões de gargalhadas sem que se compreendesse o que o fazia rir.

O 509 também circulava arrogante exibindo a sua força. Com ele ninguém se metia.

Em grupo com alguns outros, o Mata-a-Velha, friorento, encolhido e sentado no chão, mal deixava despontar o nariz entre o barrete e a gola. Falava pouco e, como parecia meio apoucado, alguns metiam-se com ele a troçar.

O Silvino, tuberculoso que voltara uma vez mais à ala depois de uma das suas frequentes estadias nas celas da enfermaria, girava magrito e ágil ao longo do pátio. De quando em quando parava e tinha gestos estranhos. Apanhava rápido qualquer coisa do chão e corria junto à parede dos barracões das oficinas a observar o que quer que fosse.

O Fradinho, assim apelidado porque frequentara um seminário, deslocava-se em passinhos sumidos, mãos postas e movendo os lábios num murmúrio ininteligível.

O Tony, condenado por assalto e violação, distinguia-se pelo cabelo louro, olhar distraído, ar juvenil e desenvolto. Andava depressa, sozinho, de um lado para o outro, aquecendo com a marcha.

O Serpentina, epiléptico, alto, magro, esgrouviado, de palavra fácil e camaradão, falava com um e com outro.

Gordo e flácido o Catalão também passeava sozinho. Fora condenado por burla de muitos milhares de contos. Embora com largo e famoso cadastro, não se tinha por criminoso. Era apenas um homem inteligente que se sabia mais inteligente que os outros.

A um canto do pátio, o Augusto jardineiro da cadeia e o 402 conversavam calmamente. Havia já anos ali estavam e tinham-se tornado amigos. Mal tendo entrado na casa dos trinta eram optimistas, embora tivessem pela frente muito tempo a cumprir. O Augusto viera das serranias de Trás-os-Montes, condenado por crime de sangue. Falava a todos e era procurado por muitos para desabafarem ou pedirem um conselho. O 402 fora marítimo. O caso tivera lugar num bar do Cais do Sodré. Defendera-se numa desordem, matara, fora condenado. A muitos anos.

Naquele dia o Augusto e o 402 trocavam impressões sobre a possibilidade ou impossibilidade de uma evasão. Não havia memória de algum preso ter conseguido fugir. Contava-se que, em tempos, dois por pouco haviam falhado. Num trabalho de atenta investigação e observação de anos inteiros, tinham conseguido percorrer corredores e anexos, furtar-se à vigilância dos guardas, descer aos subterrâneos, abrir portas, cortar grades, descobrir o acesso aos esgotos e finalmente no dia D e na hora H meter-se nos esgotos até encontrarem uma saída. Chafurdaram horas inteiras na vasa e nos excrementos até que se lhes deparou em cima a fenda iluminada de uma tampa de acesso. Treparam e saíram. Era uma rua movimentada e, naquele estado, encharcados em trampa e exalando fedor à distância, onde poderiam eles ir? Ante o espanto dos transeuntes ainda correram sem saber para onde. Adiante entregaram-se a um pacífico e espantado polícia de serviço.

O Augusto e o 402 conheciam a história. Falaram dos vários esquemas imagináveis para uma fuga. O Augusto não se mostrava inclinado a considerar tal hipótese. Ao contrário, o 402, vigoroso e ágil como convinha ao marítimo que sempre fora, não pensava noutra coisa senão em fugir.

- Qualquer dia queres falar comigo e eu já cá não estou.

Como o Augusto esboçasse um gesto incrédulo, acrescentou numa voz segura: - Vais ver!

A hora do silêncio

A hora do silêncio tem uma existência física. Anuncia-se, avança, alastra e invade as celas trazendo consigo uma angústia húmida, pesada e sepulcral. Recolhidos os presos, fechadas ruidosamente uma a uma as portas chapeadas das celas na lúgubre cadência de fechaduras e ferrolhos, ainda nos primeiros minutos do acomodar de cada um no seu catre se ouve o clamor de vozes gritadas aqui e além e os monólogos de alguns falando para si próprios.

Depois vai-se extinguindo a ressonância geral e tomam-se mais espaçadas e nítidas misteriosas preces.

Uma voz fraca, implorativa, quase soluçada, difunde-se na ala.

- Perdoai-me, Senhor, os meus pecados! Perdoai-me o mal que fiz! Perdoai-me!

Todos reconhecem a voz do Velhote.

É também o momento escolhido para que um outro, o 210, em alta voz faça ouvir as contas da pena já cumprida e da pena por cumprir.

- 6 anos, 8 meses e 20 dias já passaram, faltam 16 anos, 3 meses e 2 dias...

Assim todos os dias. Já há alguns anos, desde que ali está.

De local indefinido ouvem-se gritos soltos amortecidos pela distância e o arranhar e a aspereza de uma tosse cavernosa. Vindos lá do fundo das caves ecoam de quando em quando abafados e inúteis protestos de algum preso castigado no segredo. Pouco a pouco os ruídos esvaem-se no amplo espaço e na atmosfera sombria das alas.

Antes do quase completo silêncio, uma vez mais se difunde no ar a convicta mas frouxa e implorativa prece.

- Perdoai-me, Senhor!, perdoai-me!

Depois mais nada. Tudo parece parar até ao despertar frio da manhã seguinte. Dir-se-ia que o imenso conjunto dos edificios em estrela não alberga centenas de vidas, antes é o túmulo gigantesco de centenas de enterrados vivos.

 

                   Um salteador do Alentejo

O Garino era um dos maiores amigos do Augusto jardineiro. Sabia muita coisa, falava bem e discorria com acerto acerca do que quer que se apresentasse à consideração. Quando dizia ser analfabeto, quem o ouvia não acreditava. Viera para ali há já uns bons anos e ainda não alcançara os trinta de idade. Alentejano, era um moço calmo que no geral falava em voz baixa e pausada. Quase sempre a sério com velada ironia. Só tinha repentes se lhe chegava a mostarda ao nariz.

Os que se gabavam de longos cadastros, terríveis façanhas e pesadas condenações não ligavam muito ao Garino. Sabia-se que fora chefe de uma quadrilha de coisas miúdas, de arrombamento e roubo de mercearias e casas de pasto. Parecia até estranho como o tinham enviado para ali.

Os veteranos sentiam-se deslustrados por tal companhia.

- Agora enviam para aqui toda a trampa - comentava o 509, condenado por três crimes de homicídio.

- Isto já não é o que era - comentava outro. - Eh pá! Por coisa tão pouca como vieste cá

parar? - perguntou-lhe um dia o Serpentina.

O Garino ouvia. Sorria mas não respondia.

Até que um dia o Augusto lhe fez também a mesma pergunta.

Ora, para o Garino, o Augusto não era um qualquer.

- Não estou aqui por aquilo que julgas - respondeu.

Contou então a sua história. Na casa dos pais metade do ano era miséria e fome. Em períodos mais apertados ele e os irmãos ainda crianças iam à bolota e muitos dias a bolota é que os salvava. A bolota não é boa só para os porcos. A bolota velada é mesmo saborosa. Nos meses de desemprego o pai participava em protestos dos trabalhadores ou abalava a procurar trabalho noutras paragens. Uma vez fora levado preso para Lisboa e lá estivera alguns meses. Nas ausências do pai eram os ganapos que tinham por força de encontrar o quer que fosse para comer. Ele, Garino, não hesitara.

Não ia deixar a família morrer à fome. Começou por rapinar pequenas coisas nas lojas e no mercado. Alguma fruta, umas batatas, pouco mais. Por essa época só uma vez ousara estender o braço e puxar um frango depenado, mas ao chegar a casa a mãe descompô-lo e só não lhe bateu porque ele fugiu.

Foi essa a primeira escola. De forma que aos catorze anos, concluindo que assim não resolvia nada, juntou-se a mais dois ou três parceiros e resolveram empreender coisa mais grossa. Mercearias e casas de pasto conheceram na época os assaltos nocturnos da pequena quadrilha. Acabaram por ser apanhados, julgados em tribunal de menores e enviados para um reformatório onde estiveram quase dois anos.

- Se foste para o reformatório porque te condenaram? - perguntou o Augusto.

- Depois te conto, agora tenho de ir - disse o Garino. E abalou.

 

                   Alta noite em segredo

Naquela noite alguma coisa de estranho se passou. Na ala C presos tomados de insónia foram surpreendidos por barulho invulgar. Repetido bater dos gradões do redondo, passos apressados no cimento, o subir em atropelo de dois lanços das escadas de ferro, passos ao longo do segundo varandim, o estrondo de fechaduras e ferrolhos e logo a seguir os ruídos na direcção inversa até se ouvir de novo o estrondoso bater dos gradões do redondo. Por três vezes se repetiu esta série de ruídos.

A cela do Parrana ficava no primeiro varandim, precisamente em frente da escada de acesso. Quando ouviu o barulho, correu a espreitar pela vigia cuja tampa estava ligeiramente levantada. Viu os vultos passarem mal distintos três vezes à vinda, três vezes à volta.

No dia seguinte, sem se saber de onde partira, correu a notícia. Percebia-se agora a razão por que na véspera tinham esvaziado as celas do terceiro varandim da ala C. A PIDE trouxera três presos para a Penitenciária. Um a um. Acompanhados até às celas por uma brigada, além do chefe dos guardas da cadeia e do chefe dos guardas da ala. Os três foram metidos em celas separadas por celas vazias, não fossem eles comunicar com sinais nas paredes. A porta de uma delas ficou de sentinela um pide à paisana, num banco ali colocado para o efeito.

A partir de então só o Virgolino, faxina de serviço, estreitamente vigiado pelo pide e pelo guarda da ala, ia até à portinhola da porta de cada uma das três celas buscar e levar o balde das necessidades e levar e buscar a marmita do rancho. Ninguém mais podia subir ao terceiro varandim. Rendido de três em três horas, dia e noite, o pide girava de ponta a ponta do varandim de um lado para o outro e ia espreitando incansavelmente pela vigia de cada uma das celas. Assim dias, semanas e meses.

 

             Da correccional a prisão maior.

Para o Silvino tudo o que fosse animal ou planta era sagrado. Por isso no passeio estacou indignado com o que via.

Vulto enorme, o Nero corria às gargalhadas, puxando um longo cordel na ponta do qual tinha atado e arrastava agora pela terra uma ratazana que apanhara não se sabe como. Cabeça revirada para trás, o Nero não a perdia de vista a ver o efeito. O bicho já não chiava nem reagia. Na massa do corpo mole ensanguentado apenas se distinguiam as pintas dos olhitos negros.

Um outro preso não se conteve:

- Este tipo é louco, ou quê? - e fez menção de lhe cortar o passo.

O Gonçalo apareceu nesse preciso momento.

- Não te metas que ele dá cabo de ti.

Curioso. O Gonçalo era daqueles em quem os outros não reparam. Todos sabiam quem era o Nero, o 509, o Mata-a-Velha, o Silvino, o Augusto, o 402, o Tony, o Serpentina, o Catalão, e mais uma série deles. Se alguém perguntasse se conheciam o Gonçalo ninguém responderia que sim. Já não era a primeira vez que aquilo sucedia. Aparecia não se sabe por que coincidência, intervinha falando em voz baixa e tranquila e em geral era ouvido. Também o foi essa vez.

Havia razões para o conselho.

O Nero fora preso havia meia dúzia de anos na sua terra natal, ilha da Madeira. Uma desordem, uma facada, condenação a meses de correccional. A sentença teria ficado por ali se no calabouço da prisão local as coisas não se tivessem agravado.

Já então o Nero tinha o hábito de troçar dos outros. Se troçava! Ofensivo, sarrazina, não largava os parceiros com graçolas. Dessa vez deu mau resultado.

O    outro era um bonacheirão que parecia não fazer mal a ninguém. Sentado no catre, olhava e ouvia sem nada dizer. O Nero engraçou com ele.

- Eh papa-açorda. Pareces uma semelha cozida. Igualzinho a uma semelha.

Bumba-bumba esteve nisto todo o dia. O outro suportou, suportou, a princípio com um sorriso contrafeito, depois sério e aborrecido.

- Eli papa-açorda - o Nero redobrava os ditos. - Não ouves? Que tens, pá? Falta-te a papa ou a colher? - e gargalhando de quando em quando pelas próprias graças, continuou a cantilena.

-Ao cair da tarde, deu-se o imprevisto. Transtornado, o bonacheirão ergueu-se em fúria e empurrou o Nero.

- Cala-te, filho de um corno!

Podia esperar-se tudo. Não o que aconteceu.

Enorme, possante, o Nero levantou com força hercúlea o pesado banco da sala e arremessou-o à cabeça do parceiro.

Perigo de vida, processo, reincidência, tribunal, condenação. O Nero passou de prisão correcional para prisão maior e foi transferido para a Penitenciária.

Os seus actos eram um misto de criancice e de ferocidade. Num dia acariciava amorosamente um gato que vadiasse no pátio. Noutro dia era capaz de enxotar o bicho a pontapé. E pior. Contavam alguns que uma vez, para demonstrar a força que tinha, segurara um gato pelas patas traseiras e rasgara-o de alto a baixo.

À primeira vista, embora pesado e enorme, o Nero parecia bom rapaz. Quando contrariado, os acessos de cólera metiam medo.

 

             O dinheiro enterrado do Mata-a-Velha

Chamavam-lhe o Mata-a-Velha e ele não se ralava. Parecia até ficar vaidoso por assim lhe chamarem. Muitos outros eram conhecidos pelos números. Alguns, poucos, pelos nomes verdadeiros. Outros ainda por alcunhas, vindas de trás ou por crisma da cadeia. Outros pela terra ou região de origem. Por alcunhas relativas ao crime cometido, eram raros. Um era ele, o Mata-a-Velha.

Baixito, apertado na fardeta de surrobeco, de poucos gestos, olhar apagado, não se dava por ele naquela Babilónia de homens marcados com números. A única coisa que sobressaía era o seu caso. Não tanto porque tivesse matado, nem mesmo por ter matado uma velha. Havia outros casos parecidos. Mas porque toda a Penitenciária sabia que o roubo fora avultado e que, preso e condenado o autor, nunca o produto fora descoberto. Estava bem escondido e seguro, esperando lá fora o fim da pena.

O Mata-a-Velha não falava nisso mas apreciava que outros falassem.

- Diz lá, pá, quanto te rendeu? - atirava o Garino, meio a sério meio a brincar, não tanto para saber, mas para gozá-lo.

O Mata-a-Velha calava-se.

- Está mesmo em sítio seguro? Tens a certeza de que ninguém deu com ele? - insistia volta e meia o Serpentina. Este a sério, por curiosidade. Nada. O Mata-a-Velha não se abria. O silêncio tranquilo valia por todas as confissões.

 

                   Na visita de Natal

O Natal passou-se como de costume. Rancho melhorado, lembranças trazidas pelas famílias. Tudo cuidadosamente inspeccionado. Tudo revolvido, remexido, esquadrinhado. Pão ou bolo cortado às fatias. Objectos por vezes desfeitos. Pois não fora uma vez encontrado dinheiro bem escondido na boca de uma cabeça de peixe frito? E não fora noutra ocasião descoberta uma serra de cortar metais metida no interior da sola de um sapato?

O ambiente era nesse dia de movimento e descontracção. Não para todos naturalmente. Entre outros, o Augusto, o Garino, o Nero, o Silvino, nunca tinham visita. Para as dezenas que a tinham era dia de festa.

Dois presos se distinguiam pelo elevado número de visitas que recebiam. O Capitão, capitão de nome e de carreira, condenado por uma série de burlas. E o Viseu, um hemiplégico analfabeto, condenado por homicídio.

Quanto ao primeiro, o número de visitas não era de estranhar. Dispunha de protecções e dizia-se à boca pequena que alguns daqueles que o visitavam teriam outras razões além da amizade. Era de facto estranho. Além da mulher, ali estavam a visitá-lo no Natal um advogado, um industrial e um alto funcionário. O artificial polimento na conversa não conseguia tapar uma comprometedora familiaridade. Para que tivessem lugar tais visitas, não era certamente o Capitão que tinha dívidas para com elas.

Quanto ao Viseu, o crime por que fora acusado tinha uma história misteriosa. Segundo contavam guardas e presos, não ficara claro por que o cometera, nem como o cometera, nem a corrida do próprio à polícia numa pressa de confissões que levariam à condenação.

- Mal se mexe, mal fala. É um pobrezito que não sabe o que faz. Se calhar nem ele próprio é capaz de dizer por que matou - tais eram os comentários mais correntes.

Ser ou não capaz de dizer poderia discutir-se. Dizer, não dizia a ninguém.

Maior admiração vinha ainda das numerosas visitas que recebia no Natal, das despesas certas de viagens e estadia na capital de uma família de aparente pobreza, dos presentes que lhe traziam, daquela concentração de familiares de todas as idades, incluindo um vistoso rancho de jovens e crianças. Qualquer coisa havia de exagero em tudo isso.

O Viseu parecia não dar por qualquer exagero. De volta da visita do Natal, caminhando trôpego e desajeitado, o semblante brilhava de felicidade.

Para o Nazaré, o Natal naquele ano ficaria marcado para toda a vida. Talvez porque o 31 viera para uma cela vizinha, passara a ser costume chamarem ao mesmo tempo os dois para irem à visita e colocarem-nos lado a lado no parlatório.

Ao longo de um comprido balcão e sob o olhar vigilante dos guardas, os presos estavam separados das visitas por duplas placas de vidro nas quais um círculo de buracos permitia que embora dificultosamente passassem as vozes. Como todos gritavam para se fazer ouvir, era necessário estar atento, não apenas ao som, mas ao mexer dos lábios e aos gestos, que valiam tanto como a linguagem dos surdos.

Naquele dia, o Nazaré não conseguiu dar atenção à mãe que o visitava. O olhar fugia-lhe para o lado, para o rosto da rapariga de visita ao 31. Um rosto mimoso onde brilhavam uns olhos enormes, húmidos e carinhosos que iluminavam a semiobscuridade do parlatório.

O guarda que os vigiava naquele dia era o Rinaldo, um touro de volume, de força, de teimosia e violência.

- Eh tu aí! - gritou ameaçador para o Nazaré. - Para onde estás a olhar?

O Nazaré recompôs-se. E de volta às celas arriscou soprar ao 31 que ia a seu lado: - É tua filha?

Impassível o 31 não respondeu logo.

- Não - disse por fim. - É minha irmã. - É mesmo gira! - não se susteve de dizer o Nazaré.

 

                               Os vicentinos

Durante o passeio, após a missa dos domingos, apareciam aqueles civis a falar com uns e com outros. Falavam sempre com os mesmos, porque em geral não eram bem recebidos. Quando algum os atendia, então agarravam-se como lapas e nunca mais os largavam. Eram os devotos de S. Vicente de Paula, padroeiro dos presos. A sua missão generosa era levar ajuda e conforto aos desgraçados. A ajuda consistia na distribuição de onças de tabaco e o conforto moral em cataquese e conversa mansa.

No exercício de tão generosa missão, destacava-se já há anos o doutor Biscaia, homenzinho redondo e de voz doce que não faltava um só domingo. O Mata-a-Velha era um dos seus preferidos. Metia-lhe discretamente nas mãos uma onça de tabaco, dizia uma dúzia de palavras e procurava outro.

O Mata-a-Velha chamava um figo ao tabaco e nem sequer ouvia as palavras do doutor. Tão-pouco queria saber do que o Garino lhe dissera um dia.

- Eh meco, tu aceitas essa porcaria? Sabes que tabaco é? Sabes que é uma mistura das beatas dos senhoritos? Lá nas festas recolhem as beatas dos cinzeiros, desfazem-nas e fazem esses embrulhinhos a que chamam onças. Olha bem e encontras tabaco queimado que foi mal escolhido.

O Mata-a-Velha encolheu os ombros.

- É uma vergonha - disse ainda o Garino. - Até chupas o cuspo dos gajos. Não devias aceitar.

O Mata-a-Velha acenava com a cabeça a concordar com o Garino. Mas, se não fumava daquele não tinha outro para fumar. E ia aceitando.

 

                           Interrogatórios

A situação dos três políticos do terceiro varandim da ala C prolongava-se já há meses sem alteração.

Os presos sabiam disso, mas habituados a castigos e a situações complicadas comentavam pouco. Além do mais não apreciavam políticos. Os políticos, quando em casos raros eram para ali enviados, não eram obrigados ao uniforme e não tinham número a marcá-los. Um que por ali tinha passado, personalidade conhecida e influente, ao ser-lhe concedido passeio com os outros presos, não falava a ninguém e nem sequer dava os bons-dias.

Os três da ala C estavam para ali metidos incomunicáveis sem até então provocarem particular curiosidade ou interesse. O que mais provocava ditos era o facto de lá em cima no terceiro varandim continuar sempre um agente da PIDE renovado de três em três horas. Tudo parecia assim parado e sem seguimento até que uma noite houve novidades.

O Virgolino, faxina da ala C, tinha o sono leve. Uma noite acordou sobressaltado com o violento bater do gradão do redondo. Depois, tal como meses antes quando a PIDE levara os três políticos para ali, ouviu passos apressados ecoarem no vazio da ala, certamente de várias pessoas, e de seguida subidas na escada metálica, o abrir ruidoso de uma das celas do varandim e passados instantes de novo passos e ruídos em sentido contrário até ao estrondoso bater do gradão e o silêncio que se seguiu.

Horas depois, já clareava o dia, repetiram-se os mesmos ruídos. Noites seguidas isso sucedeu.

- Estão a levar um dos gajos a interrogatório - disse o Virgolino ao Parrana cuja cela era no segundo varandim, junto à escada em caracol.

- Sim - concordou o Parrana que também dera pelo barulho. - Não lhe queria estar na pele. De certeza estão a arrear-lhe bem.

Passadas semanas, correu a notícia de que um dos presos do terceiro varandim da ala C enlouquecera e que a PIDE o levara da Penitenciária. Verdade ou mentira ninguém podia garantir. O certo é que o Virgolino passou a levar as latas do rancho apenas a duas celas do terceiro varandim.

O Silvino, os bichos e os homens

Tuberculoso pulmonar, o Silvino tinha crises que o retinham de cama semanas seguidas. Lá o mudavam para uma cela da enfermaria. Depois voltava às alas.

O Silvino era respeitado pelos outros. Uma forma muito particular de respeito. Não por ter pela frente uma condenação tão longa que, doente como era, dificilmente chegaria a cumpri-la. Não por um prolongado cadastro de roubos e arrombamentos. Mas porque todos - guardas e presos - reconheciam que era um homem bom, um homem sério, um homem de palavra. Além disso inteligente.

Por vezes surpreendia os outros com considerações sobre complexos problemas. Não eram disparates que dizia. Eram mostras de uma demorada reflexão. Ninguém poderia explicar donde viera tanta sabedoria.

No passeio dos doentes da enfermaria, quando se podia levantar e o tempo o permitia, cirandava pelo jardim. Dir-se-ia distraído e metido consigo próprio. Mas observava tudo em volta. Procedia por exemplo a sensacionais descobertas na vida da bicharada. Descobrira aranhas que cortavam malhas da própria teia para se libertarem de uma abelha, se por acaso caíra nela, e corriam a atacar e a sugar o intruso se se tratasse de uma mosca. Descobrira que a formiga de asa africana, tracejada no dorso a castanho, esvoaçava junto ao solo até ` descobrir uma gorda lagarta na raiz de uma planta e depois ia à distância escolher o esconderijo, voltava atrás, com força insuspeitada arrastava a lagarta, cavava alegremente um buraco, ferrava os ovos no corpo da lagarta, metia a lagarta no buraco e tapava e disfarçava o buraco num trabalho de construção e de arte digno de um qualificado engenheiro e arquitecto.

Se assim apreciava os bichos, ainda mais atentamente apreciava os companheiros. Dir-se-ia que os estimava a todos, embora sem intimidades nem fáceis confianças pois não entrava no jogo corrente das conversas, muito menos de conversas chulas. De si próprio dizia que, embora a vida que levara fosse uma fatalidade, não merecera outra. É certo que não conhecera pai nem mãe e que, fazendo andar para trás a memória, o mais distante que alcançava era ver-se só, talvez pelos cinco ou sete anos, à esmola nas ruas, estendendo a mão furtiva para qualquer cesto de fruta e procurando à noite abrigo no meio de barracas ou em qualquer vão de escada. Admitia entretanto que, com mais inteligência e vontade do que aquelas que tinha, poderia ter conseguido outro rumo na vida.

 

                     O show do Rotim

A falta de mulher era para muitos o mais duro castigo. Reagiam de maneiras diversas. Voltavam uns à adolescência estimulando a própria imaginação e satisfazendo-se a si próprios. Procuravam outros conversas, revelações e confissões. Os de mais recursos pagavam caro ao Vianinha, candongueiro-mor na prisão, fotos de mulheres nuas. Muitos faziam minuciosos projectos eróticos para quando saíssem da prisão. Muitos também que ali entravam desejando mulheres passavam com os anos a desejar também homens. Ou a serem forçados a aceitá-los.

No labirinto das conversas sobre a matéria, destacava-se um grupo que, com pequenas variantes na sua composição, se reunia regularmente no passeio a um canto dos enormes pátios triangulares. Era o show do Rolim.

O grupo juntava-se para ouvi-lo, porque em sexo o Rolim era um ás. Mais que um ás, um mestre. Difícil seria explicar tamanha experiência.

Os participantes habituais do grupo eram na quase totalidade aqueles cujo crime não ficara na história. Pelo menos ali não se falava deles. Gente apagada e tímida. Dado o assunto, um observador desprevenido poderia estranhar o completo desinteresse que votavam ao grupo os condenados por crimes de sexo. Nunca ninguém vira no grupo, ou mesmo de passagem parados a ouvir, nem o Tony que arrancava os brincos às mulheres violadas, nem o 101 que violara três filhas, nem o Elvas que atava as raparigas aos sobreiros. Uma única excepção era a do Resmas, velho decrépito que, sempre que lhe davam ouvidos, se gabava orgulhoso do que fizera a uma garota. O Resmas era dos primeiros a juntar-se ao grupo. E com um sorriso lambuzado e expressão aparvalhada ouvia tudo de princípio a fim sem perder palavra.

Nesse dia o Rolim perguntara a um dos do grupo quantas mulheres conhecera na vida e o outro respondera que, como toda a rapaziada, ia aos bordéis quando rapaz, depois casara e para ser franco desde então até ser preso não tivera outra mulher.

- És um desgraçado! - comentou o Rolim. - Prostitutas no sexo são produto falso. E se se trata de mulheres sérias não há uma só mulher que tenha em si tudo quanto pode dar prazer a um homem.

- A minha chega-me bem - insistiu o outro. - Assim passarás a vida sem saberes o que o prazer pode dar - sentenciou o Rolim.

- Ai passa, passa - gargalhou o Serpentina que parara junto ao grupo e sabia que o outro tinha ainda à frente muitos anos a cumprir. - Se calhar nunca mais vê o padeiro.

Noutro dia discutiram a beleza feminina.

- Aos trinta anos é quando a mulher é o máximo - dizia um. - Tem ainda o viço de moça mas já experiência de mulher.

- Para mim - dizia outro -, quanto mais novinha mais saborozinha. Não há nada como desmamar uma garota. É quando são mais giras e querem experimentar tudo.

O Rolim tinha opinião formada.

- Seios dos 15, boca dos 20, coxas dos 30, ancas dos 35, ombros dos 40 e sensualidade quando a tiver no momento exacto da vida. A beleza não é apenas da forma - explicava. - A mulher torna-se diferente quando faz amor. Pode ficar inerte e indiferente e então mesmo que muito bela é desagradável como um insuflado. Pode fazer tal espalhafato que se torna grosseira, apalhaçada e repelente. Se sente verdadeiramente, se respira sem fingimento, se geme, mesmo se grita, e no fim quebra com um sorriso e olhos fechados acusando o prazer que não quer deixar fugir, então essa mulher é nesse momento mil vezes mais bela do que é em todos os outros momentos da sua vida.

Era manifesto que o Rolim se deliciava com a própria eloquência.

Enquanto o Rolim falava, chegou-se ao grupo o Argentino, um preso de aspecto invulgar. De facto argentino, desmentia a ideia feita de que os sul-americanos são moreno-carregado. Mais alto que o comum dos presos, era louro, de pele clara e olhos azuis. Nos seus cinquenta anos bem conservados caminhava entre os outros com aparente indiferença. Desempenado e tranquilo. Assim se aproximou do grupo do Rolim e ficou impassível a ouvir. Percebia-se que prestava atenção. Não se percebia o que pensava do que o Rolim dizia.

Ainda este falava, o Argentino afastou-se tão tranquilo como viera.

 

           O Argentino num ajuste de contas

A postura sobranceira do Argentino destacava-o dos outros. Não dava confiança a ninguém e também ninguém procurava que a desse. Esse relacionamento era porém curioso. O seu aparente isolamento não o separava do meio. Qualquer coisa de indefinido e um tanto misterioso indicava que ele se sentia como sendo um de entre os outros e que os outros o sentiam um dos seus.

O Argentino fora condenado por ter matado um sócio infiel em negócios comuns. Estando o outro a dormir. À queima-roupa, com um Colt. Numa saraivada de balas de 9 milímetros, apontadas as duas últimas à cabeça, uma numa têmpora, outra entre os olhos como garantia. Falava-se num ajuste de contas. Contas de quê não se sabia.

As circunstâncias do crime revelavam uma mentalidade fria, reflectida e operacional. Era por isso e assim que o Argentino era conhecido.

O Augusto, o 402, o 333 também haviam matado a tiro. No ardor de uma escaramuça, numa rixa, num condicionalismo determinado de natureza social e moral, mesmo em legítima defesa. O Argentino não. O outro a dormir, uma chuva das balas de 9 milímetros do Colt e depois à queima-roupa uma na têmpora, outra entre os olhos. Talvez como justiceiro. Mais certo como carrasco.

O crime justificara a pesada pena e aos olhos dos outros presos o Argentino era conhecido por ser o autor de um tal crime. Mais tarde, não por declaração própria mas por inconfidência dos guardas, foi-se conhecendo melhor todo o seu passado e certamente não tudo quanto o ilustrava. À luz desse passado, a execução fria do sócio que o traíra aparecia apenas como um momento fortuito de toda uma longa série de outros crimes. Talvez ainda mais graves.

 

                       O Falua abre um cadeado

A vida igual e monótona de todos os dias ao longo dos anos era cortada por episódios que ficavam na história. Assim o que um dia aconteceu com o Falua.

O Falua não gostava de falar das suas façanhas. Que se saiba, só três vezes revelara o seu saber na matéria. Se não convencia, fazia vista.

Numa das vezes, os especialistas discutiam a forma mais simples de arrombar uma porta sem fazer ruído. O Falua foi peremptório na contestação dos outros.

- Qual gazua, qual pé-de-cabra - disse na sua voz de falsete. - Encaixas uma cunha de madeira encharcada por baixo da porta e vais dar uma volta. Vais a um café ou vais às putas que dá tempo. Quando voltas a porta está aberta.

Doutra vez discutiam a forma de arrombar a porta de uma igreja. Voltou à baila a chave falsa e o rebentar da fechadura. Houve mesmo um que lembrou a cunha encharcada.

- Nem penses - sentenciou o Falua. - As portas das igrejas pesam toneladas. Por essa forma ficavas à espera toda a vida. Só há um meio. Furas a porta, metes uma serra das finas e cortas a madeira pelo largo à volta da fechadura. Sai tudo inteiro, metes o braço e abres a porta por dentro.

Uns acreditavam, outros não. Os mais conhecedores da matéria diziam mesmo que o Falua era um aldrabão. Mas naquele dia arrumou-os a todos.

No passeio calhou estar de serviço o guarda Clemente. Nas relações com os presos tinha frequentes acessos de brusca agressividade. Ao mesmo tempo, tratava-os tu cá-tu lá e gostava de pô-los à prova.

- Vocês julgam que são capazes de tudo. São uns gabarolas. Vejam o cadeado deste gradão. Nenhum de vocês seria capaz de abri-lo... - e olhou em volta triunfante, certo de que ninguém aceitaria o repto.

- Posso experimentar? - ouviu-se a voz de falsete do Falua, os olhos matreiros a sorrir.

O guarda recusou primeiro, hesitou depois. O Falua insistiu e o guarda, olhando em volta a ver se algum colega estava a observar, acabou por autorizá-lo a mostrar a habilidade.

Com resguardo para o Falua não ver, foi marcada pelo guarda a chave do segredo nas seis roldanas de dez algarismos. O pesado cadeado foi engatado na grossa corrente envolvendo as duas partes do portão. Fechado o cadeado, desfeita a combinação, o guarda especou-se e esperou.

A pedido do Falua foram buscar uns metros de cordel. O Falua partiu-o em bocados, fez passar cada bocado por cada uma das seis roldanas do cadeado e por cada roldana pediu a um companheiro que agarrasse simultaneamente as pontas de cada pedaço de cordel e com energia e rapidez de trás para a frente fizesse rolar as roldanas.

A operação começou, os ajudantes do Falua amontoados à volta do cadeado bem se esforçavam no vaivém dos cordéis, mas aquilo demorava. A assistência engrossou e o guarda ria.

- Força, Falua! Por esse andar acabas por abrir as portas do inferno.

A gargalhada já era geral quando de súbito zás! um estalido e o fecho do cadeado saltou.

A história ficou para sempre contada de geração para geração. O Falua deixou de ser apenas o Falua. Passou a ser conhecido e indicado como Aquele Gajo Que Com Um Cordel Abriu O Cadeado Do Gradão.

 

                       O 402 tenta e falha

O 402 não mentira ao avisar o Augusto de que qualquer dia, se quisesse falar com ele, já ele não estaria lá. Era esse o seu firme propósito. Desde que fora condenado e o levaram para ali não pensava noutra coisa. Marítimo quase desde a infância tinha força, agilidade e coragem bastantes para encarar qualquer esquema. Não se inclinava para planos complicados. A vontade e a pressa de se ver lá fora levavam-no a concentrar a atenção na possibilidade de um trajecto que fosse o mais curto, o mais simples e o mais rápido possível.

Ao longo dos quatro primeiros anos observara atentamente nas suas raras deslocações qual era o local que se encontrava mais perto da rua. Avaliara os obstáculos. Um a um. E gizara um plano. Ir no rol dos presos à enfermaria, no local escolhido escapar à vigilância do guarda, atrasar-se uns segundos na marcha, trepar por um cano ao telhado do armazém da cantina, tentar furtar-se em corrida à observação de uma primeira sentinela, rastejar pelo telhado, galgar o edificio que dava para a rua, chegar às ameias de pedra branca do muro e jogar tudo por tudo: à vista de outra sentinela saltar e correr rua fora.

Assim imaginou e assim fez. Até ao muro, mais fácil e mais rápido do que previra. Chegado às ameias sentiu um deslumbramento. A rua larga animada pela intensa circulação abria-se na sua frente batida pelo sol. Depois a surpresa. O passeio empedrado ficava lá muito muito em baixo. A altura do muro era de longe superior ao que calculara. Ainda hesitou um breve segundo. A liberdade estava porém ali ao seu alcance. Lançou-se no espaço.

O disparo de uma sentinela não lhe acertou. Foi o que parecia mais fácil que falhou no último momento. Caindo pesadamente no empedrado do passeio não conseguiu levantar-se. Colado ao solo por uma perna partida e ensanguentada, ali ficou ante o espanto dos transeuntes até que os guardas vieram em alvoroço e de corrida reconduzi-lo lá para dentro. Por azar, no grupo dos guardas vinham o Rinaldo e o Bazuca, um e outro amigos de arrear forte. Apesar de ferido levaram-no de rastos e pelo caminho não cessaram os murros e os pontapés.

A tíbia fracturada e mal tratada, daria lugar a uma ferida profunda, ulcerada e infectada para sempre. O momento em que esperançoso tentara reiniciar a vida tornara-se o começo de uma lenta e inexorável agonia.

 

                     Greve da fome até à morte

O caso dos comunistas presos no terceiro varandim da ala C complicou-se subitamente. Havia já muitos dias um dos dois que restavam recusava-se a comer. O Virgolino, ao ir buscar as latas do rancho, encontrava-as tal como as deixara.

Acompanhado pelo pide de sentinela e o guarda de serviço à ala, fora lá à cela o enfermeiro, fora lá o chefe dos guardas. Diante do pide um e outro fizeram de conta que não viram nada de especial. O preso estava a fazer a greve da fome mas nenhumas medidas foram tomadas.

A notícia correu de boca em boca, chegou ao Garino e do Garino ao Augusto jardineiro.

- A PIDE quer lá saber - disse o Augusto. - Lá fora ninguém tem conhecimento disto. Se o homem leva a coisa por diante, tanto se lhes dá, deixam-no morrer e dizem que foi por doença.

Passado um mês o Augusto encontrou o Garino.

- Sabes alguma coisa? - perguntou.

- Vi o Virgolino. O homem continua sem comer e está-se a apagar.

Tinha razão. Poucos dias depois, já na hora do silêncio, foram buscá-lo à cela, levaram-no numa maca para uma cela da enfermaria. Chefe dos guardas, guardas, dois agentes da PIDE e o Benjamim e outros faxinas da enfermaria chamados para o transportar encheram a cela de roldão e ali ficaram apinhados. Vieram o doutor e o enfermeiro avisados para o efeito. Esquelético, cor de terra, maxilares e dentes desenhados sob a pele, olhos encovados e fechados, o homem não dava sinal de vida. O médico apalpou-lhe o pescoço, tentou descerrar-lhe as pálpebras, tomou-lhe o pulso e abrindo-lhe a camisa deixou exposto à luz um tronco felpudo só pele e ossos.

- Há quanto tempo está assim? - perguntou.

Informaram-no que havia já alguns dias.

Nesse momento os pides repararam que, na excitação do acontecido, toda aquela gente havia assistido à cena.

- Fora daqui! tudo fora daqui! - berraram exaltados correndo o pessoal aos empurrões.

O Benjamim pesava mais de cem quilos e tinha uma força tremenda. Olhava indignado tudo aquilo. Veio-lhe à cabeça uma vontade louca de berrar, de acusar, de ser ele a correr com os pides, de os desfazer à porrada. Foi um repente. Acabou por sair com os outros.

Daí em diante pouca gente teve conhecimento do que se passou. A única coisa certa é que o homem morreu.

- O gajo era teso - comentou o Silvino. - Mas morreu. Valeria a pena?

- Morreu não - corrigiu o Garino. - Mataram-no.

 

             Começa o namoro do Nazaré

Ao longo de dois anos, as visitas lado a lado do 31 e do Nazaré repetiram-se três ou quatro vezes. O Nazaré esperava as visitas em sobressalto. Não já pela mãe nem pelas novidades que lhe trazia, mas porque ia ver, olhar durante mais de meia hora a irmã do 31. Embora isso só sucedesse de longe em longe, essa visita tornara-se para o Nazaré o mais importante acontecimento da vida na prisão.

De volta para as celas ou no passeio dos presos o Nazaré foi adiantando comentários. O 31 era homem de poucas falas. Cara parada, era dificil adivinhar o que pensava. Mas, ao longo dos dois anos, frase a frase, as coisas foram-se esclarecendo.

- Simpatizo mesmo com ela - confidenciou o Nazaré num desabafo a esperar a reacção.

O 31 voltou-se para ele e demorou um pouco.

Não pareceu hesitar. As palavras saíram-lhe naturais e seguras como que informando de uma verdade há muito sabida.

- Ela também simpatiza contigo. Ainda hoje voltou a dizê-lo.

Nessa noite o Nazaré mal dormiu. Não lhe saía da memória o rosto da moça e o seu olhar. Deslumbrado imaginava o futuro. Preparou tintim por tintim nova conversa com o 31. Não podia perder a sorte que o bafejava. Tinha que adiantar as coisas.

Assim três dias depois no passeio, já com a conversa engatilhada, o discurso saiu-lhe inteiro e escorreito.

- Eh, 31. Ouve o que te quero dizer. Gosto mesmo da tua irmã. Tenho 25 anos e faltam-me só 5 anos para cumprir a pena. Tu disseste que ela também simpatiza comigo. Da minha parte isto é mesmo a sério. Não podia escrever-lhe?

O 31 parou, voltou-se para ele e olhou-o uns momentos de frente. Calado, inexpressivo e indecifrável. As palavras, como sempre, saíram serenas e seguras.

- Também tenho pensado nisso, pá. Foi bom falares. Eu só saio daqui a 8 anos e ela precisa de alguém que a ampare. Tu daqui a 5 anos já lá estás fora. Vou dar-te o endereço. O resto é convosco.

Algumas semanas depois o 31 deu o endereço ao Nazaré. Assim começava uma história de amor.

Agressão que ninguém viu

Num extremo do passeio da ala C produziu-se um pequeno rebuliço. Foi rápido. A alguns pareceu o início de uma desordem. Logo tudo ficou tranquilo e normal. Só depois repararam que caído no chão, meio encostado à parede das oficinas, jazia um dos presos com o rosto ensanguentado.

Os outros continuaram o passeio como se nada tivessem visto. Até o Silvino, sempre tão observador, passou mesmo ao lado como se em nada reparasse. Só passado um bom bocado um guarda se aproximou e deu pelo homem caído. Disparou então uma saraivada de perguntas. Que se passara? quem fora? porquê? Ninguém sabia nada. Ou quem sabia não respondeu. Nem mesmo o ferido.

Ao terminar o passeio formaram e regressaram às celas. No caminho o Serpentina disse ao companheiro que ia a seu lado:

- Aquilo foi o 509...

- Viste?

- Vi.

De facto vira. Não se apercebeu da razão do conflito, mas vira o 509, rápido e poderoso, segurar o outro pelos braços e assestar-lhe uma cabeçada em cheio no rosto.

- Deu-me cá uma vontade... - resmungou angustiado o Serpentina.

- Que podias tu fazer? - consolou-o o outro.

Era certo que ninguém denunciaria o 509. O risco seria demasiado.

A figura sobressaía do conjunto. Não que fosse exibicionista. Mas, além do tamanho, adivinhava-se na sua forma de estar uma força bruta pronta a desencadear-se. Chamavam particularmente a atenção as pernas arqueadas, a cabeça retesada sobre o pescoço imóvel e a expressão do rosto cheio e contraído com uns olhos minúsculos e fixos lá no fundo.

- Eli pá! - observou um. - O Javali mete medo...

- Cala-te tonto - interrompeu um companheiro. - Nem baixinho digas esse nome. Se ele te ouve, estás frito.

Ninguém se atrevia de facto a pronunciá-lo. Por semelhante descuido já alguns tinham pagado caro. Na verdade o 509 metia medo. Estava ali há alguns anos e ainda lhe faltavam quinze para cumprir. E era já longa a lista das brutalidades que lhe eram atribuídas.

 

       Morte na oficina de cartonagem

Aconteceu na oficina de cartonagem. O Nero não perdera o gosto de atirar graçolas aos companheiros. Graçolas tanto mais ofensivas e humilhantes quanto mais medo os outros tinham dele. Razões tinham para ter medo. Pelo corpanzil e pela fama. Naquele dia dera-lhe para embirrar com um tipo insignificante em quem ninguém reparava.

- Olá gordinho - atirou-lhe o Nero gargalhando. - Porque é que dás ao cu quando cortas o cartão? Ahn? diz lá.

E bum-bum, tal como sucedera no calabouço da Madeira, esteve assim a massacrá-lo toda a manhã. O outro não reagira. Nem pouco nem muito. O guarda de serviço até achava divertido. Mas um outro preso já há muito os observava com manifestos sinais de descontentamento. Indignavam-no as provocações do Nero cada vez mais grosseiras e ofensivas e a passividade do outro continuando o seu trabalho como se nada ouvisse. Por fim não se conteve e murmurou:

- Se fosse comigo...

O Nero olhou-o de lado com desprezo e continuou divertido a disparar as ofensas.

- Eh gordinho! Pareces mesmo uma gaja a dar ao rabo...

De novo o outro preso resmungou:

- Se fosse comigo, não era assim...

Disse-o só para si em voz mal perceptível. O pior é que o Nero ouviu.

Ninguém esqueceria o que aconteceu. O Nero deu dois passos rápidos, aproximou-se avolumando o próprio corpo, encostou-se ao outro e, fulminante, dando um urro, enterrou-lhe fundo no peito o facalhão do trabalho ajudando com o peso do corpo a lâmina a entrar.

Acorreram os guardas, a vítima foi levada e o Nero conduzido de seguida para uma das celas de castigo no subterrâneo. Viria a estar lá encerrado mais de três meses.

 

               Armas do crime

Por indecifráveis processos de comunicação no sistema geral de separação e isolamento das alas, a morte na oficina de cartonagem tornou-se rapidamente conhecida em toda a cadeia. Durante dois ou três dias, nos passeios e nas breves palavras trocadas ao sabor de encontros fortuitos, foi o assunto eleito.

Homicídio é palavra que classifica o crime mas não o descreve nem caracteriza. Situações diversas, razões diversas, motivações diversas, armas diversas.

Comentando a morte na oficina de cartonagem, cada qual referia um aspecto da questão. O erro da direcção da cadeia por ter posto o Nero a trabalhar na oficina depois de ter quase matado outro no calabouço da Madeira. O juízo sobre os dichotes provocatórios. A responsabilidade do morto que se metera onde não devia. A falta de vigilância do guarda de serviço. Sobre qualquer destes aspectos havia variadas opiniões e iria discutir-se anos inteiros.

Assim também em relação ao facalhão de trabalho, à arma do crime.

Afinal para matar tudo pode ser utilizado. Revólver e pistola. Caçadeira e espingarda de canos serrados. Navalha, faca e punhal. Machado, enxada e barra de ferro. Pedras e pedregulhos. Cordas e cintos. Venenos de infindável variedade. Também mãos desarmadas que estrangulam e destroem. Mil e uma formas de matar.

No recreio, ao sol, um grupo fazia balanço da matéria. Alguns espraiavam-se em esquemas complicados de casos conhecidos.

- Para que é tudo isso? - interrogou com voz fraca um moço em geral acanhado e silencioso.

- Eu limpei-lhe o sebo com um chapéu-de-chuva. Entrou-lhe na pança como uma baioneta.

Os outros riram. E a chacota prosseguiria, se outro dos presentes de rosto ladino e voz aflautada e trocista não acrescentasse um novo e surpreendente elemento de juízo.

- Vocês riem? Um chapéu-de-chuva é uma arma pesada. Não tem de admirar. Um lápis bem afiado e usado a preceito faz o mesmo serviço.

De novo a risota foi geral. Só um dos presentes achou demasiado brincar com coisas tão sérias.

- Tem juízo, garoto. Isto é para homens.

- Limpar um tipo com um tiro não é habilidade - replicou o ladino que sabia ter sido uma pistola a arma do outro no seu caso. - Com um lápis tenta a ver se és capaz.

Os ânimos aqueceram, os guardas notaram, aproximaram-se e o grupo desfez-se.

- O tipo é parvo vir com anedotas - comentou um na retirada.

- Anedota? - corrigiu outro. - Limpou mesmo o sebo a um meco com um lápis bem afiado. Parece impossível, mas foi assim.

 

                   Trabalho para a reinserção social

A morte na oficina de cartonagem foi também pretexto para moenga sobre as oficinas. Naqueles anos eram três: a de cartonagem, a de montagem de bicicletas motorizadas e a de móveis. Todas de empresas privadas, que auferiam elevados lucros graças à miséria dos salários. Instaladas nas casas abarracadas que cercavam em círculo o enorme conjunto das alas em estrela, as oficinas eram gabadas pelo Ministério da Justiça, pelos Serviços Prisionais e pela Direcção da cadeia, como o caminho certo, conforme diziam, para a "regeneração" e a "recuperação social" dos delinquentes. Por um lado, o hábito de trabalhar e de receber a recompensa afastaria por si mesmo a tentação do crime. Por outro lado daria possibilidades aos presos de juntar boa maquia num Fundo de Reserva para quando saíssem em liberdade terem dinheiro bastante para a sua reinserção social. As opiniões dos presos não confirmavam porém tais intenções.

Depois do ocorrido não se falou de outra coisa durante semanas inteiras na oficina de cartonagem.

- Os que mandaram o Nero para aqui - dizia um - é que são os responsáveis. Deviam saber que mais dia menos dia isso iria acontecer.

Outros aproveitaram a ocasião para darem curso ao seu descontentamento, preocupações e angústias.

- Já estou farto disto - dizia um. - Estou há cinco anos a cortar cartão para as embalagens e faltam-me dez para terminar a pena. Não aguento isto. Passar mais dez anos a cortar cartão para ganhar uns tostões? E se a empresa acabar antes? É uma intrujice, é o que é.

O Porto Alto tinha ideias mais arrumadas. Vindo de Benavente, falava de toiros e touradas como se não tivesse feito outra coisa na vida. Mostrava porém a cada momento ser homem de muitos outros conhecimentos e com experiência da vida. Tinha trabalhado dois ou três anos nas oficinas. Depois recusara-se a continuar e explicava porquê.

- O que nos dão é uma miséria. E dessa miséria tiram-nos quase tudo. Pagamos pela cela, pagamos pelo rancho, pagamos o uso e a lavagem das roupas, pagamos por tudo como se estivéssemos num hotel. Dois terços do que nos dão é-nos tirado. O Fundo Disponível até agora deu-me só para o tabaco e para papel e selos para escrever à família. E o Fundo de Reserva? Quanto me será entregue quando sair? Daqui a dez anos? Daqui a quinze anos? E para o que dá? Para um ou dois dias?

Fora das oficinas também se falou muito. O 333, investido em sacristão na missa dos domingos e em outras importantes responsabilidades, tinha uma visão menos materialista. Antes de mais fizera as contas. Nos trabalhos internos da cadeia menos de cinquenta presos. Quatro faxinas por ala, mais meia dúzia para limpeza no resto das instalações, mais quatro ou cinco para a horta e a jardinagem e uns tantos para trabalhos soltos como carregos, biblioteca, capela e sacristia.

- Já vocês vêem - explicava o 333. - Quanto muito, são cem os que têm trabalho. E os outros quatrocentos?

Não se limitava porém a colocar a questão. Falando aos domingos com o padre, ou quando calhava com os guardas e mesmo com o chefe dos guardas, tinha a resposta. Sim, o trabalho era importante, mas não era o que decidia do futuro.

- Para aqueles que pecámos só podemos encontrar salvação no arrependimento perante Deus e na esperança na Sua misericórdia.

- Este gajo acredita mesmo - comentou o chefe dos guardas.

- Um farsante, é o que é - disse o guarda Ernesto.

 

                        O mais grave crime do Garino

O Garino prometera ao Augusto contar o resto da sua história. Demorou tempo porque durante alguns meses andaram desencontrados no trabalho e no passeio. Na primeira ocasião cumpriu a promessa.

Sim, a coisa fora mais séria. Passara-se num daqueles prolongados períodos de desemprego e fome que varriam o Alentejo dos latifúndios. Os trabalhadores faziam concentrações, iam às Câmaras exigir trabalho, protestavam contra o governo. A única resposta eram as cargas da GNR, a ida apressada de brigadas da PIDE, espancamentos e prisões. O desemprego ficava na mesma. Na mesma também a fome negra.

Então o Garino jogou mais forte. Com dois ou três jovens amigos do seu antigo grupo de assaltos às mercearias, realizou um plano audacioso. Primeiro foram de noite ao estábulo de um ricaço e trouxeram de lá dois machos corpulentos que arrearam como puderam. Depois foram a um monte que antes tinham vigiado para apurar das existências. Porta rebentada, foi só tirar e carregar. Alguns sacos de trigo, outros de batatas e feijão e ainda o que havia numa salgadeira que estava fornecida. E aí vão eles, às aldeias e casas dispersas distribuir aquela riqueza.

Descobertos e apanhados, foram a Tribunal. Acusados de arrombamento, roubo e associação de malfeitores, foram todos condenados. Como chefe reconhecido e confessado da operação, o Garino apanhou a maior talhada: doze anos de prisão maior.

Antes de proferir a sentença o juiz olhou fixamente o acusado.

- Você não se pode queixar da sentença. Até fui generoso. Você é um comunista, é o que é! - disse numa voz implacável.

- Comunista, euuu? - exclamou o Garino verdadeiramente espantado.

Agora ria-se da cena, pois desde então aprendera muito.

- Se calhar até já o era - disse irónico ao Augusto contando o episódio.

- Deram-te duro - comentou o Augusto.

- Deixa - disse o Garino. - Foi uma das coisas mais acertadas que fiz na vida.

Trezentos contos à espera

Se havia qualquer dúvida acerca do que o Mata-a-Velha roubara, ele próprio um dia a tinha desfeito. Foi o Serpentina epiléptico que conseguiu tal resultado. Quando queria tirar nabos da púcara, o Serpentina não fazia perguntas. Bombardeava com afirmações, com insinuações, com suposições, com graças e insultos e enredava e atordoava de tal forma o interlocutor que este acabava por deixar escapar uma qualquer verdade escondida.

Assim foi naquele dia. O Serpentina seringou, seringou, até que depois de aguentar silencioso e indiferente, o Mata-a-Velha explodiu:

- Trezentos contos parece-te pouco? Faz lá as contas. Alguma vez eu ganharia em toda a vida tal quantia? Faltam-me só três anos. Depois poderei viver tranquilo.

O Serpentina esperava tudo mas trezentos contos era obra. Ficou siderado.

Mal tinha acabado de falar, o Mata-a-Velha pareceu arrependido.

- Disse-te só a ti. Agora vê lá se vais contar a alguém...

- Por quem me tomas? - retorquiu o Serpentina. - Não ouvi nada, não sei nada, é como se tivesses falado com um padre.

Não há provas de que tenha sido o Serpentina a espalhar a notícia. O certo é que passados tempos toda a cadeia a conhecia. Foi um espanto.

- Aquele gajo que ali vês - informou o Bazuca um outro guarda novato na Penitenciária 58 ninguém dá nada por ele. Matou uma velha e tem lá fora à espera bem escondidos trezentos contos que lhe roubou. Ninguém dá nada por ele e afinal é um espertalhão.

 

                     Um pedido de socorro

O Virgolino acordou a meio da noite com a impressão de ter ouvido ecoar, na amplitude da ala mergulhada no silêncio, o cair de uma bandeira e logo o som da sineta respectiva. Esperou um momento que da torre central viesse o forte soar metálico do abrir do gradão para que um guarda passasse e fosse ver do que se tratava. Nada ouviu. Passados alguns minutos, o som do cair da bandeira repetiu-se. E inesperadamente outro e outro toque da sineta. Alguém estava aflito. Da torre central não houve reacção e de novo tudo caiu em silêncio apenas cortado uns segundos pelo ecoar distante de uma tosse cavernosa vinda de lugar indefinido. Passou-se o tempo e o Virgolino acabou por adormecer.

Cedo de manhã, ainda antes da alvorada, o Rinaldo e outro guarda abriram a porta da cela. - Vem daí!

Em passo estugado levaram-no ao fundo do primeiro varandim. Um outro guarda estava imóvel junto da porta aberta de uma cela. Lá dentro, meio corpo na cama meio corpo descaído, o preso estava morto.

- Temos que o levar daqui antes do serviço - disse o Rinaldo. - Tu e o Benjamim da enfermaria fazem o serviço.

O Virgolino lembrou-se do que ouvira de noite.

- Eu ouvi de noite...

- Que ouviste, diz lá! - interrompeu violento o Rinaldo.

- ... a sineta tocou três vezes, eu ouvi...

- Tu não ouviste nada! - rosnou o Rinaldo. - Não ouviste nada, está certo?

O Virgolino fixou-o um momento. Possante, imóvel, ameaçador, pronto a qualquer brutal agressão. O Virgolino percebeu que queriam abafar culpas. Que podia fazer? Ainda hesitou, não insistiu.

O Nero sai do segredo em fúria

O Nero foi retirado do segredo nesse dia. Passara vários meses na escuridão. Berrara contra o castigo. Recusara comer durante quase uma semana.

Acabara por amansar. Ora passeava o corpanzil cá e lá horas e horas no curto e escuro espaço da cela, ora se deitava no catre dias inteiros a dormir ou dormitar. Por vezes dava-lhe para berrar a plenos pulmões, mas da voz vinda do subterrâneo espalhavam-se apenas vagos e indecifráveis sons pela imensidão das alas.

- Vá, isto acabou - disse o guarda Clemente ao abrir a porta do segredo já ao cair da tarde. - Pega na manta e no púcaro e vem daí.

O Nero espreguiçou-se até estalarem os ossos, bocejou ruidosamente, piscou os olhos ao sair da obscuridade, nada disse e seguiu os guardas. No caminho estes procuraram sem resultado meter conversa. Conduziram-no a uma cela numa das alas e foram-se embora.

Não tardou que se não ouvisse vinda de lá grande barulheira. O guarda de serviço acorreu a espreitar pelo óculo e o que se lhe deparou deixou-o estarrecido. Não podia crer no que via.

O Nero parecia um louco. Desfizera o banco em bocados, desmanchara a pobre cama, partira os ferros e com os ferros desfizera a bacia metálica e estilhaçara os vidros do "postigo". O colchão de palha de centeio estava desventrado e a palha rodopiava no ar misturada com os pedaços de ferro e madeira levantados pelo corrupio de pancadas desferidas. Aos urros o Nero girava e gesticulava como se estivesse num campo de batalha.

Vieram mais guardas mas não se atreveram a abrir a porta para pôr fim ao desatino. Só horas mais tarde o Nero sossegou e subitamente descontraído deixou-se tombar sobre os destroços e adormeceu.

Os guardas espreitaram, conferenciaram e deixaram-no assim até à manhã seguinte. De manhã acordou estremunhado, espreguiçou-se num levantar e torcer lento dos braços, olhou em volta e surpreso viu o que fizera. Olhou uma duas três vezes. Então levou as mãos à cabeça e começou à gargalhada.

- Ai Mãe Santíssima! - gritava e ria. - Ai minha rica Nossa Senhora!

Um guarda espreitou e encolheu os ombros. Depois da forma, do conto e do distribuir dos púcaros de café e do casqueiro três guardas abriram-lhe a porta e levaram-no para outra cela. O riso parara. Silencioso e tranquilo deixou-se conduzir.

 

                       O crime e o homem

Quem os visse nas formas, nas deslocações, no passeio, naquela mancha acastanhada das fardas marcadas a branco com os grandes números de identificação e arrastando ruidosamente tamancos e tairocas, tenderia a ver todos aqueles homens muito iguais uns aos outros, não apenas no aspecto mas no mal que haviam feito. Nenhuma apreciação poderia entretanto ser menos exacta.

Cada condenado pode ser classificado em termos jurídicos pelo crime cometido: homicida, salteador, burlão, ladrão, violador. Não pode com rigor, pelo crime cometido, ser classificado o ser humano. O crime classificado em termos jurídicos só por si não classifica o homem.

Centenas de presos estavam condenados por homicídio. Todos haviam matado. Entretanto o acto em si, as determinantes, o meio, as circunstâncias, a execução, por vezes a actuação ulterior eram tão diferentes que revelavam também seres humanos diferentes. Desde casos de ferocidade tocando o horror e a loucura a casos reveladores de aprumo cívico e mesmo coragem moral.

O Augusto, por exemplo, fora movido pela indignação das mais tenebrosas malfeitorias que um senhor lá da terra fizera à sua família, sedução e abandono de uma irmã, expulsão das terras e da casa com um cortejo de grandes desgraças. O Augusto chumbara o sujeito com um tiro de caçadeira, com a agravante de premeditação. O 402, quando marinheiro, matara numa desordem nocturna no Cais do Sodré. Fora em legítima defesa mas não a invocara em tribunal. De resto os seus sentimentos, ideias e atitudes eram positivos e generosos.

Salteadores e ladrões também os havia de todas as espécies. Casos de impiedade, violência e crueldade. Outros de homens bons que a sociedade e as circunstâncias da própria vida haviam empurrado ao acto. Assim o Garino. Assim o Silvino.

Também no que respeita aos condenados por violação, mal seria ajuizar de todos pela classificação jurídica do acto.

O Tony assaltava as mulheres em caminhos desertos, arrastava-as para as bermas e ao violá-las arrancava-lhes os brincos das orelhas, rasgando o lóbulo num brutal puxão. O Elvas contrabandista atava as raparigas aos sobreiros e assim as deixava depois. O 101 utilizara o poder paternal para violar as três filhas. O 325 intimidava as vítimas com navalha apontada à garganta. Os quatro de Leiria tinham raptado uma moça e a geral deixara-a despida, magoada e meio louca num pinhal deserto. Do Resmas, velho decrépito, ninguém sabia dizer como fora mas ele com um sorriso aparvalhado gabava-se do acto como a maior façanha da sua vida.

Certamente que o 230 não poderia ajuizar-se da mesma forma. Fora condenado por violar uma jovem de 12 anos da casa em que vivia. Com desenvolvimento precoce, criança-mulher, formosa, corpo torneado e vivo, a moça chegava-se, exibia-se, provocava, desafiava. Daquela vez foi de corrida ao quarto dele quando ele já estava deitado, beijou-o e fugiu deixando atrás de si uma fugaz imagem de nudez e excitação. O 230 não resistiu mais. Foi procurá-la, ela recusou, ele forçou-a sem ter sequer a ideia de que estava a forçá-la, a moça gritou, a família acorreu e o resto seguiu-se na polícia e no tribunal. No tribunal o 230 não citou as provocações, incluindo a que precedera imediatamente o acto. A violação de uma criança ficou provada e o 230 recebeu pesada condenação. Mais pesada que a do Tony ou a dos quatro de Leiria.

Para conhecer cada homem que ali está não basta dizer matou, roubou, assaltou, burlou, violou. Houve quem dissesse que não há crimes mas criminosos. Muitos que praticam crimes poderiam ter passado a vida inteira sem os praticar.

 

                 O isolado do terceiro varandim

A regra era a separação dos presos das seis alas. Comandados pelos apitos dos guardas, levados das celas em formatura, os presos de cada ala eram conduzidos à vez uma hora por dia para o ar livre nos largos espaços triangulares que intercalavam as imensas fachadas do edificio. Era sobretudo aí que se conheciam uns aos outros. Refeitórios onde os presos se vissem não havia: as latas do rancho vinham da cozinha em tabuleiros e eram distribuídas pelas celas. Sucedia assim, salvo transferência de uma ala para outra ala por motivo de serviço, que cada preso, ao longo de cinco, dez, vinte ou mais anos que ali passava, acabava por conhecer directamente apenas um número limitado de outros condenados. Ou conhecia um outro e deixava de o ver ao longo de muitos anos. Oportunidades de encontro de presos de alas diferentes só na missa, no posto médico e no passeio da enfermaria, uma vez que para as celas da enfermaria iam doentes de todas as alas. Sempre sob estreita vigilância.

O Augusto jardineiro, tendo a cela na ala A, já há muito não encontrava ninguém da ala C. Foi por acaso que encontrou o Parrana da ala C no posto de tratamento da enfermaria. Ficaram na bicha, um ao pé do outro.

- Então? - arriscou em voz baixa. - O político ainda lá está?

O Parrana certificou-se de que os guardas não estavam a ouvi-los.

- Está só um. Outro enlouqueceu. Outro mataram-no. Está só um.

- Continua isolado?

- Sim - respondeu o Parrana. - Só o Virgolino lhe pode levar o rancho. Não permitem que ninguém lá vá. Além do Virgolino ninguém mais lhe viu a cara.

O    Augusto abanou a cabeça.

- É de mais. Há já mais de dois anos que o têm ali fechado. É de mais.

- Mais de três anos - corrigiu o Parrana.

O    guarda aproximou-se e o enfermeiro chamou, irritado.

- Tu aí! Vens ao posto ou prà conversa? É a tua vez, chega aqui.

O 333 em defesa da própria honra

O 333 era talvez o preso que desfrutava de maior confiança do director, do chefe dos guardas, do padre, do médico, do enfermeiro e do rancheiro. Foram-lhe atribuídos alguns dos mais altos cargos conferidos a presos. Era o sacristão nas missas de domingo, o responsável da biblioteca e da distribuição e recolha de livros embora poucos houvesse e da distribuição do leite a doentes graves, o que por não ser frequente nem abundante não diminuía a responsabilidade.

Mesureiro para toda a gente, fazia vénias a torto e a direito. As feições eram secas, como que cortadas à machadada. Os olhos encovados, brilhantes e agressivos. Essa aspereza de feições era porém compensada pelos gestos amáveis, a voz pausada, a linguagem cuidadosa e a lisonja fácil que utilizava para quem quer que fosse. Tratava o director por Vossa Excelência Senhor Director, o chefe dos guardas por Senhor Chefe dos Guardas, os guardas por Senhor seguido dos nomes que conhecia de cor. Os outros presos tratava-os ou por irmão ou por amigo distinguindo-os entretanto segundo a origem social: doutor por doutor, capitão por capitão, engenheiro por engenheiro e assim por diante. Para os mais humildes falava do alto com ar protector. Alguns gozavam por tais maneiras, outros diziam que era o 333 que os gozava a eles.

O caso do 333 dera brado. Eram três na sociedade comercial. Os negócios iam mal, o dinheiro era pouco e ao 333, segundo ele próprio dizia francamente, colocou-se a alternativa: ou segurava algum antes da falência ou ficava na dependura. Nada há de mal que um homem queira sobreviver.

Em vez de pagamentos a fazer, meteu a massa ao bolso.

Tudo natural e lógico, como se vê e ele dizia. O pior é que os outros não gostaram, não estiveram pelos ajustes, forçaram um encontro e de papéis à vista e contas feitas chamaram-lhe ladrão. Até ali as coisas tinham ido menos mal. A acusação estragou tudo. Os ânimos exaltaram-se, berraram, descompuseram-se e, para pôr termo a tal bagunça, o 333 sacou de uma pistola e trás-trás, matou os dois sócios de uma só vez.

Como sempre, o Garino fez um comentário.

- Esta história parece fantasia, mas passou-se assim mesmo.

De facto, explicava o 333, como poderia ter sucedido de outra forma?

- O senhor juiz compreenderá, não podia fazer outra coisa - explicou no tribunal. - Foi em defesa da minha honra.

Por muito que pareça absurdo, dir-se-ia que o juiz compreendeu tão bem o acusado que a pena foi relativamente leve.

Agora os anos passaram, mas o 333 definiu uma linha de conduta: com o seu estilo próprio, lutava pela liberdade condicional.

 

                     O Malveira, um duro

Alguns guardas gostavam de submeter à experiência os condenados que ali chegavam com fama de valentões. Dirigiam-lhes piadas, ofendiam-nos, vexavam-nos, ameaçavam-nos. Se o preso de qualquer forma reagia o castigo era em proporção.

O Nero e o 509, o Javali, também haviam sido sujeitos à experiência. Os factos mostravam que nesses casos só havia duas saídas: ou fechar os olhos ou a violência brutal conduzindo a mortes mais dia menos dia. Passaram a fechar os olhos.

O Malveira não fugiu à regra. Entrou na Penitenciária com fama de duro e ficou sujeito à prova. Cadastro por confusos negócios de gado, desordens, um homicídio, pesada condenação. Não era alto nem encorpado. Seco, ossudo, todo ele se deslocava em movimentos bruscos como que retesado por uma forte pressão interna.

Os guardas começaram a experimentá-lo.

- Eh, Malveira! Limpa-me essa água do chão.

O Malveira olhou de mau modo mas limpou.

- Isso não está bem limpo, limpa melhor!

O Malveira tornou a limpar o que já estava limpo.

- Estás cego ou quê?! Não te faças fino. Limpa isso com jeito.

Era de mais. O Malveira soprou e atirou com o esfregão.

- Sabe, senhor guarda? Vá para o caralho!

Assim terminou a primeira experiência. A frase custou-lhe uma semana de segredo a pão e água. Entretanto os guardas não deixavam de o espicaçar.

- Este não é nenhum Nero, nem nenhum Javali - comentava o Bazuca deserto por situações em que pudesse malhar-lhe. - Quer ser duro, mas a bazófia passa-lhe depressa.

- A ver vamos - replicou o Clemente. - O tipo é pequeno, mas parece atrevido. Vai dar-nos trabalho.

As provocações continuaram.

- Eli, Malveira! - atirou-lhe um dia o Bazuca. - Para a outra vez lava melhor a marmita...

- Eli, Malveira! Aí! - atirou-lhe de outra vez. - Quieto na forma, não te faças fino, ouviste?

O Malveira dava sinais aparentes de docilidade. Não respondia aos ditos provocatórios. Mas qualquer observador atento podia ver nele uma tal tensão que era inevitável um dia a raiva iria estoirar.

 

               O isso passa do doutor Barnabé

O antigo médico não era mau sujeito. Não podia fazer grande coisa mas fazia o que podia. Recebia os doentes ou os que se queixavam de o ser, distribuía os poucos medicamentos de que dispunha, mantinha nas celas da enfermaria os casos mais graves e ia destinando as restantes celas aos pacientes de ocasião.

Quando se agravou o estado do comunista que fazia greve da fome no terceiro varandim da ala C, os pides que por turnos permanentemente guardavam a cela não chamaram médico, nem enfermeiro. Fizeram-no transportar moribundo para uma cela da enfermaria onde pouco depois morreu. Quiseram obrigar o médico a assinar uma certidão de óbito, mas ele recusou e ordenou a autópsia.

- Nem todos teriam essa coragem - disse o Benjamim ao informar do facto o Augusto jardineiro.

Um dia porém esse médico foi-se embora e mandaram um outro. Ninguém soube dizer para onde fora o antigo e donde viera o novo. O novo aliás não era nada novo na idade, antes era já bastante idoso, surdo como uma porta e completamente tarouco. O seu verdadeiro nome ninguém o sabia. Houve porém quem o crismasse e para todo o sempre ficou sendo conhecido como o doutor Barnabé.

O 402 atribuía-lhe o agravamento da grande ferida na perna resultante da queda quando tentara fugir. De princípio, quando ainda lá estava o médico antigo, trataram a ferida. Veio o Barnabé e passou muito tempo sem fazerem nada.

Por fim lá o levaram ao posto. O enfermeiro tirou o enorme penso ensanguentado e o Barnabé deitou uma rápida olhadela.

- Icho pacha - disse solenemente no seu sotaque regional levado ao extremo.

Pelos vistos era a expressão preferida do Barnabé depois de observar qualquer doente.

O Porto Alto era diabético num estado bastante avançado da doença. Os recursos não eram muitos, mas o enfermeiro, bem-disposto nesse dia, lembrou-se de que havia uns restos de ampolas de insulina e berrou aos ouvidos do doutor que desse uma delas ao doente.

- Incho... quê? - perguntou o doutor Barnabé.

O enfermeiro deu a injecção ao Porto Alto e, quando este se ia a retirar do posto para voltar à ala, o doutor quis consolá-lo.

- Icho pacha - disse-lhe paternalmente. Afinal não passou. Foram dar com ele desmaiado na cela e o Benjamim e mais outro foram chamados e levaram-no à enfermaria.

- Hipoglicémia - berrou o enfermeiro ao ouvido do Barnabé.

- Hipo... quê? - surpreendeu-se o doutor.

O Benjamim era faxina da enfermaria há alguns anos. Já vira casos semelhantes. Correu à própria cela a buscar um pouco de açúcar, meteu o açúcar na boca do Porto Alto e passados uns instantes este voltou a si.

O enfermeiro não fizera mais nada e estava mesmo disposto a nada fazer. Mas não interveio. O Benjamim era conhecido como pacífico, disciplinado e realizava os trabalhos de faxina e outros ainda menos atraentes como transportar suicidas e outros mortos. Estava sempre disponível para o que fosse. Pesava entretanto mais de cem quilos e o enfermeiro sabia que era de maus ventos quando o contrariavam.

 

                 O mestre com ar de xarroco

O grupo do Rolim não falhava nunca. Os participantes habituais ouviam-no admirados por tanta sabedoria. Quando apareciam dúvidas, problemas novos ou discordâncias, o Rolim encontrava a resposta certa e dominava a situação com à-vontade.

As suas prelecções sobre a importância para o verdadeiro prazer do homem de saber dar prazer à mulher continuavam entretanto a suscitar interrogações e até discordâncias.

- Se a mulher é fria, nada feito, amigo - contestou nesse dia um dos assistentes.

- Estás enganado - replicou o Rolim. - Só é frígida se não souberes trabalhá-la.

- Então desembucha - disse o outro. - Se é fria como é que a trabalhas?

- Quando eu era ganapo - acedeu o Rolim -, o que queria era saltar-lhes para cima. Quase não lhes dava tempo para nada. O que queria era vir-me.

- E então?

- Então, se continuasse a fazer sempre assim, nunca teria conhecido verdadeiramente uma mulher. O teu maior prazer só podes alcançá-lo quando dás também o maior prazer à tua parceira.

- Era o que eu fazia - gabou-se um dos participantes na conversa. - Não se podiam queixar. Punha-me nelas duas ou três vezes a fio.

- Que avaria - atalhou outro -, cinco ou seis fodas dava eu.

- Eu cá eram logo dez ou vinte - zombou o Serpentina.

- A questão não é essa - sorriu condescendente o Rolim. - Uma vez pode valer por muitas. O importante é preparar a mulher. Atrasar se for caso disso, descobrir os pontos mais sensíveis, muitas vezes em lugares inimagináveis. Saber despertar a impaciência, a pressa ou mesmo a fúria. Saber contrariar, fazer subir mais e mais o desejo atrasando mais e mais o grande momento até finalmente fazer explodi-lo. Se tomba cada um para seu lado, tudo foi certo.

Inesperadamente, o Nero, que se chegara ao grupo e acompanhara o discurso do Rolim, soltou uma gargalhada que a todos pareceu . a despropósito.

- Porque te ris? - perguntou o Rolim.

O Nero não parava de rir. Olhava o Rolim, o corpo insignificante escondido na fardeta enorme, o barrete com os 444 brancos enterrado até às orelhas, o rosto miúdo agora com uma indescritível expressão de espanto perante a risota.

- Eh homem! Ao ouvir-te pareces um professor, mas olhando para ti pareces um xarroco.

O doutor Biscaia continuava a aparecer aos domingos para consolar os presos. Coisa estranha. No fim de contas quem expunha as suas dores não eram os presos mas o doutor Biscaia. Vinha para ter dó dos presos e afinal parecia que eram os presos a ter dó dele.

- Tenha coragem, doutor - diziam-lhe aqueles com quem normalmente conversava. - Não perca a vontade de viver.

O caso era para isso. O doutor Biscaia tinha há anos a mulher gravemente doente. Dizia ser esclerose em placas, mas não era certo que fosse diagnóstico correcto. A infeliz há muito não se levantava da cama. Ia lá a casa uma mulher tratar do essencial, mas o peso da situação era ele, o doutor Biscaia, que o suportava. Viver naquela casa era um pesadelo. Talvez por isso aos domingos passava as manhãs na Penitenciária, a fazer bem como vicentino que era.

É verdade que além do número reduzido de assistidos pelo doutor Biscaia os presos em geral não simpatizavam nada com ele. Não gostavam do seu deambular pelo meio do pessoal como se fosse dono daquilo, chapéu na cabeça, voz baixinha e lamecha e aquele gesto aparentemente discreto, mas que sabia ser observado quando entregava as onças das beatas. O doutor ficaria certamente desapontado se ouvisse os nomes que falando entre si os presos lhe endereçavam.

A par desses, o doutor encontrava outros com palavras caritativas. Eram uns tantos, quase sempre os mesmos. Em boa verdade conversavam com ele por três razões. Ou porque se sentiam lisonjeados como se a conversa com pessoa a seus olhos tão importante fosse uma distinção. Ou porque sempre valia a pena a chatice de uma conversa para receber uma onça, como era o caso do Mata-a-Velha. Ou porque tinham a ilusão de que o doutor Biscaia, pelo que representava e pelas facilidades que tinha na prisão, sempre poderia fazer alguma coisa por eles.

Naturalmente, ouvindo as suas queixas da vida, diziam-lhe palavras de consolo. O doutor gostava particularmente de falar com o 333 quando conseguia encontrá-lo. O 333 ouvia-o atentamente, acompanhando as queixas com um aceno respeitoso e aprovativo de cabeça. No fim tinha sempre palavras apropriadas.

- Deus sabe o que sofre, doutor Biscaia. Não se pode contrariar a vontade de Deus. O sofrimento do homem redime-o dos seus pecados e pela sua bondade e devoção terá recompensa eterna.

O doutor Biscaia acenava também com a cabeça. Dir-se-ia que acreditava.

 

                           Cartas de amor

Agora o Nazaré não tinha pressa de sair da cela. Com frequência, à hora do passeio, dizia ao guarda que se sentia mal e pedia para ficar. Julgavam-no doente e lá o deixavam. Mas não, não estava doente. A doença, se doença se podia chamar, era outra.

Para ele agora os melhores momentos eram esses que passava fechado na cela. Lia e relia as cartas que recebia da irmã do 31. E o tempo passava rápido a relê-las e a escrever, a emendar e a reemendar as cartas de resposta.

Fechado na cela nem ouvia o tenebroso barulho de rotina da cadeia. Nada ouvia. Sonhava com o futuro. Passava horas a imaginá-lo. Eram reflexões sérias, projectos e planos que pouco a pouco ia construindo com rigor e preceito. Tudo quanto o esperava com os mais pequenos pormenores. No casamento ele iria de negro, ela de branco com amplo véu e grinalda de flores. Choviam os papelinhos e o arroz lançado ao ar à saída da igreja. A casa estaria já então caiada de novo, arrumada, arranjada, alegre em dia de sol. Tudo imaginava com sentimentos limpos que constantemente ganhava em si próprio. De tal forma que, quando o fluir da imaginação o levava à previsão do grande momento de a conhecer como mulher, quase indignado consigo próprio fugia à perseguição das imagens de nudez feminina e de aproximação fisica, que inevitavelmente teimavam a concluir cada curso do seu pensamento.

Agora o pior do tempo de prisão não era a prisão em si mas o tardar do momento ansiado quando o libertassem. A paixão era tanta que por vezes o assaltava de surpresa o terror de perder a sua amada.

"Meu amor", escreveu um dia. "Sei que três anos são muito. Muito para mim pelo dia que tarda. Muito para ti também, eu sei. Mas vale a pena esperar porque nos espera a felicidade."

A resposta recebida deixou-o maravilhado.

... "três anos, meu querido, são muito. Mas que é isso? Pelo que te amo, esperaria cinco ou seis"...

Certamente exagero ou uma forma de dizer, pensou o Nazaré. Em todo o caso, se ele se sentia apaixonado, porque não o estaria ela também? Além do mais, era uma forma de dizer, tão cativante, tão generosa, que lhe ateava as chamas da paixão.

Quando meses depois dessa carta calhou de novo ir à visita com o 31, procurou ler no rosto da moça o que as cartas lhe revelavam. Na penumbra do parlatório vizinho mal se divisavam as feições. Ele apercebeu-se porém de fugida, estava certo disso, de um olhar mais doce que sempre.

Reconduzidos pelo guarda, o Nazaré e o 31 voltaram às celas. Pelo caminho, o Nazaré ciciou um comentário.

- Custa a esperar, pá! - desabafou.

Só alguns passos adiante o 31 respondeu.

- Quem espera sempre alcança, amigo. Saiu-te

a sorte grande, que queres mais?

- Chiu ! ! - fez o guarda a impor silêncio. "Terrível este 31", pensou o Nazaré. "Não sente as coisas. Decerto nunca amou."

Era autorizado ter nas celas um fogareiro a petróleo ou uma lamparina a álcool para cozinhar ou aquecer o que fosse. O Catalão tinha uma lamparina. Uma tarde, pouco antes do conto, ainda abertas as portas das celas, verificou que se lhe acabara o álcool. Dirigiu-se ao guarda e perguntou se ainda podia ir um faxina comprar-lho à cantina.

Calhou estar o Rinaldo de serviço. Imóvel como um touro amansado. Ouviu-o sem o olhar sequer.

- Não, não pode - respondeu secamente.

Raio de resposta. A cantina estava ainda aberta e o que pedia era corrente pedir-se e a autorização em geral era dada. Ainda quis insistir.

- Não! - repetiu o Rinaldo. E com o seu passo sólido e pesadão, afastou-se ala fora.

O Catalão recolheu à cela resmungando. Mal o tinha feito, espreitou-lhe à porta um dos vizinhos que ouvira a conversa. Era o Fradinho. Pequeno e humilde caminhava curvado, as mãos juntas como se andasse a rezar. Tinha sido condenado por violação, mas sempre se afirmara inocente.

- Se quiser, eu arranjo-lhe um frasquinho.

O Catalão aceitou, o Fradinho foi-se e passado pouco tempo voltou com um frasco cheio.

O Catalão olhou o azul do álcool desnaturado e agradecido pagou três ou quatro vezes o preço. O Fradinho sabia bem que ao Catalão dinheiro não faltava. Pouco depois os guardas apitaram, procederam ao conto e com o estrondo habitual de fechaduras e ferrolhos fecharam as portas das celas.

Foi a surpresa. Ao acender o álcool na lamparina - pfum!, uma labareda súbita e apagou-se. Tentou mais uma, duas, três vezes e sempre sucedeu o mesmo. Pfum! uma labareda e tudo apagado.

O Fradinho fizera mistela e levara o Catalão à certa. Daquela mistela ninguém soube e o proveito foi certo. O Catalão não fez queixa, pois infringira a proibição de se fazer negócio com outros presos. Também não lhe foi possível tratar do caso directamente porque o Fradinho embora na cela vizinha sempre se esgueirou.

Até que um dia o apanhou mesmo de frente ali à porta. Chegou-se a ele, quase lhe encostando à cintura o bojo da barriga e fitou-o ameaçador.

- Usted fez uma coisa sucia. Eres un cabron - disse-lhe a voz a tremer no seu português espanholado.

O Fradinho não se atrapalhou.

- Usted está enganado - respondeu suavemente. - O material era do bom. Muy bueno.

Furioso, o Catalão voltou-lhe as costas e entrou na cela como um furacão, fazendo vento com o deslocar do balofo corpanzil.

O caso foi conhecido e o 333 um domingo na missa chamou o Fradinho à pedra. Estava à vontade para isso pois eram os dois muito devotos.

- Não o devias ter feito, irmão. Deus pode castigar-te.

- Não castiga, irmão - respondeu o Fradinho. - Estou inocente. - Os olhos tinham uma expressão de tamanha humildade que era difícil não acreditar.

- Ainda bem que estás inocente - disse o 333

- Ainda bem que me acreditas - concluiu o Fradinho.

O 333 sabia muito da vida e dos homens. O Fradinho estava a mostrar que não sabia menos.

 

                         O novo Director

Foi grande notícia para os presos que o Director da cadeia, o Martins-Lucas como os presos lhe chamavam, fora substituído por um novo Director, um jovem advogado sobrinho do ministro da Justiça. Podia supor-se que pretendia apenas um tacho. Mas não. O novo Director trazia na manga boas intenções e reformas quase revolucionárias na vida prisional.

Eliminou o barrete. Eliminou os grandes números dos presos até então chapeados nas costas, nas calças e no barrete e substituiu-o por uma pequena fita colada ao peito com o número respectivo. Até parecia um enfeite. Aumentou o tempo de recreio. Passou a receber os presos em audiência. Criou uma sala comum para presos em vias de reabilitação. E, segundo logo correu de boca em boca, deu ordens terminantes para melhorar o rancho e não serem exercidos em quaisquer circunstâncias castigos corporais.

As novas fardetas anunciadas tardaram a chegar. Quando chegaram foi um sucesso. Sem os grandes números brancos, cabeça ao léu. Na nova indumentária os presos sentiam-se respeitados. Fazia-lhes bem, indiscutivelmente.

Entre os guardas as opiniões sobre tais medidas eram diversas. Assim, por exemplo, apoiando o novo Director o Ernesto dizia que até ali nem tudo estava certo e que alguma coisa se tinha de fazer. Ao contrário, o Bazuca chamava a tudo aquilo uma asneirada, insistia em que o novo Director era ainda muito garoto e não tinha experiência e bufando entusiasmava-se tanto na crítica que os colegas se afastavam para não se comprometerem. O Rinaldo, ouvindo os colegas, não tugia nem mugia. Não precisava de ser dito que aquela ordem de serviço proibindo doravante castigos corporais, para ele Rinaldo não era de aplicar. De um aspecto, todos os guardas se queixavam. Sem os grandes números nas costas e no barrete os presos praticavam toda a casta de faltas e escapavam-se entre os outros sem que pudessem ser identificados.

Da parte dos presos, não havia duas opiniões. O novo Director estava no certo. Que se saiba, houve só uma nota de menos entusiasmo. Foi do 402.

- É sol de pouca dura... - disse sem mais.

 

                     Rancho e petiscos

Com a entrada em funções do novo Director, o rancho melhorou. Claro que, havendo como havia boa quantidade de óleo rançoso em armazém, tinha de se gastar. O mesmo com o feijão-sacana duro como pedras por ter apanhado água depois de ensacado. Em compensação aquele peixe intragável e de nome feio, servido habitualmente uma ou duas vezes por semana, desapareceu durante algum tempo. Menos frequentes também os casqueiros queimados e esborrachados bons para deitar fora.

As modificações desencadearam um pouco por todo o lado, quando havia ocasião, conversas sobre velhas patuscadas e comeres regionais.

- Não há nada melhor que uma açorda de sável - dizia convicto o Porto Alto, vaidoso da Lezíria do Tejo donde viera.

- Não digas - contestou o Falua. - Eu já provei e é só pão e espinhas.

- Provaste uma gaita - replicou o Porto Alto. - Ou então quem a fez não sabia fazê-la. Se é bem feita, nem uma só espinha poderás encontrar.

O 333 que ouvira sorriu, mas não disse nada.

O Nazaré andava demasiado absorvido pela correspondência com a irmã do 31. No passeio circulava isolado e pensativo. Não se conteve porém ao ouvir num grupo uma frase a seu ver disparatada.

- A cobra-do-mar? A cobra-do-mar não se come.

- Posso dizer uma palavrinha? - atreveu-se a entrar na conversa. - Vocês estão com certeza a falar da moreia. Parece cobra mas não é. Feio será, mas...

- Só vê-la faz vómitos - interrompeu o outro.

- Será feio, mas é saboroso. O que é preciso é cortar em postas finas e fritar bem. Até ficar tostadinho. Come-se tudo.

Na onda de tais conversas, o Elvas contou uma vez como alguns malteses preparam o porco.

Primeiro vão a um monte. Escolhem um porco dos mais pequenos. Dão-lhe vidro moído com alguma coisa de comer e o porco sorve tudo brutamente. No dia seguinte não pára de grunhir, de guinchar e de cagar sangue. Os manajeiros julgam que tem peste e enterram-no. À coca os autores da façanha vão lá desenterrá-lo e começa a função. Bem lavado e enrolado inteiro em barro previamente preparado para o efeito, é colocado a assar numa grande fogueira. Demora mas assa. Depois é só tirar da fogueira, quebrar e tirar o barro, cortar pedaços à escolha e enfardar até fartar.

- Não vão comer o porco inteiro - observaram.

- Nem é para isso - respondeu o Elvas. - Tira-se o que apetece e enterra-se o que fica para não deixar rasto.

Cada qual citava os petiscos da sua terra como os melhores do mundo. Para os do Porto o sarrabulho e as tripas. Para os do nordeste a feijoada à transmontana. Para os alentejanos o ensopado de borrego, as açordas, as migas, o gaspacho. Para os algarvios os carapaus alimados, o xerém, a sopa de lingueirão e o arjamolho. E assim por diante.

Para todos, dois petiscos indiscutíveis: as sardinhas assadas e o caldo verde.

- É por isso que somos portugueses - ciciou malicioso o Falua.

 

                       A oficina do Catalão

Estava o pátio coalhado de presos em passeio, apareceu um grupo estranho de civis bem vestidos e engravatados acompanhados pelo chefe dos guardas e pessoal da administração. Deslocavam-se em passo rápido resvés aos edifícios. Abrindo uma porta desapareceram da vista dos presos.

- O que é que os gajos irão fazer à oficina do Catalão? - perguntou um.

Ainda outro não tinha dado resposta, nova surpresa. Acompanhado por dois guardas, o Catalão foi conduzido até à oficina.

Aquela oficina tinha adquirido rápida celebridade e aura de mistério. Os presos chamavam-lhe a oficina do Catalão. O Catalão não gostava. Chamava-lhe laboratório. Ainda no tempo do Martins-Lucas, antigo director, fora instalada custosa aparelhagem com autorização superior dos Serviços Prisionais. O Catalão fazia ali experiências para o fabrico de um novo combustível líquido. Fora-lhe mesmo autorizado dar uma conferência de imprensa onde referira tanto os progressos das suas investigações como as reformas inovadoras do regime prisional propiciando aos presos a revelação das suas capacidades.

Da visita à oficina naquele dia, soube-se depois que fora organizada pela direcção da cadeia e especialistas enviados pela Direcção dos Serviços Prisionais.

- Querem ver que o Catalão inventou mesmo um novo carburante!... - comentavam alguns.

Que o Catalão tinha um cadastro notável por burlas e abusos de confiança era certeza adquirida. Reconhecia-se ao mesmo tempo ser homem de experiência, conhecimentos, inteligência e inventiva. Não que o seu aspecto o revelasse. Era um tipo volumoso, redondo, balofo, todo pneus de gordura, rosto com barbela e papos quase disformes. Tudo isso esquecia quem falava com ele. O que sobressaía era um olhar fino, atento e inteligente e um fluir de palavras calmas e convenientes. Dificil se tornava não acreditar.

Ainda no tempo do Martins-Lucas obtivera apoio para a instalação da oficina. O novo Director da cadeia apoiara também e, dizendo-se confiante no êxito, inscrevera a experiência no seu projecto inovador.

Alguns presos não partilhavam de tal confiança.

- Aqui há o sábio e o tonto - disse um dia o Garino. - O Catalão é o sábio porque já campa. O tonto é o director porque julga vir a campar.

 

           Sobre a origem comum dos animais

Alguns gostavam de ouvir Silvino discorrer acerca dos bichos e da natureza. Acontecia porém às vezes ir tão longe nas suas fantasias que ganhou fama de ser um tanto lunático. Assim um dia, na sua voz fraca e pausada, falando dos insectos que povoavam o jardim.

- Olhamos para eles, perseguimo-los, matamo-los. Entretanto somos da mesma massa e vimos da mesma fonte. Um inglês descobriu em tempos que o homem descendia do macaco. Quer dizer que tanto o macaco como o homem descendemos de um macacão avô de um e de outro. Vocês podem pensar que não é verdade. Mas somos primos, sem qualquer dúvida.

Os que o ouviam achavam graça. Mas o Silvino falava a sério. E não ficava por ali.

- A nossa família é ainda muito maior - continuou. - Já vistes muitas vezes esqueletos de outros bichos. E podeis ver fotografias de esqueletos de bichos que viveram há muitos milhares e mesmo milhões de anos e desapareceram da terra. Na biblioteca há um livro com essas fotografias. Peçam ao 333. E já reparastes com olhos de ver como são por dentro os coelhos, os cães, os gatos, os bois, os cavalos? Tal como no homem, são os pulmões, o estômago, o fígado, os rins, as tripas e tudo o resto. E os esqueletos? os ossos? São caveiras, são colunas, são pernas, são braços, são costelas, são dentes de tamanhos diferentes mas muito semelhantes aos do homem.

Calou-se um momento e avançou ainda mais.

- Pode parecer-vos um disparate, mas não é. Bem vistas as coisas toda a bicharada tem sistemas de vida semelhantes aos do homem. Olhos, boca, intestinos, sexo. Até uma mosca macho se põe numa mosca fêmea tal como um homem. Cá para mim vimos todos da mesma cepa.

- E um percevejo? e uma pulga? e um piolho? - interrompeu o Serpentina.

O Silvino não respondeu. Se respondesse, o Serpentina ficaria decerto ainda mais admirado. Porque fazia as perguntas a brincar tendo o não como a resposta certa. E o Silvino de certeza lhe responderia a sério que sim.

 

                             Tentação

Aquela não esperava o Capitão. Na nesga da porta entreaberta da cela, apareceu espreitando um dos faxinas que por vezes lhe levava o rancho. Rosto jovem, os olhos negros e vivos percorreram toda a cela num relance e acabaram por fixar-se no Capitão. O moço não entrou. Pela nesga da porta ficou só a cabeça enfiada para o espaço interior.

- Há novidade? - acabou por perguntar o Capitão.

- Queria pedir-lhe um favor, senhor capitão - as palavras foram acompanhadas por um sorriso malicioso e atrevido. É só um favorzinho que lhe peço pelo respeito que lhe tenho.

Aflorando pela parte entreaberta, a cabeça sem corpo parecia de um roberto em espectáculo de feira.

- Diz lá!

- Olhe, senhor capitão, eu às vezes venho aqui à sua cela trazer-lhe o rancho. E o senhor tem aí em cima da mesinha o seu relógio. Por amor de Deus tire o relógio da mesa. Ponha-o no pulso, ponha-o onde quiser, mas tire-o daí. Porque se não faz o que lhe peço, um dia levo-lho de certeza.

Dito isto, a cabeça sumiu-se.

- O tipo é parvo - rosnou o Capitão de si para si.

Não era. Falava verdade e com a melhor das intenções. O certo é que um dia o relógio desapareceu. O Capitão queixou-se aos guardas relembrando as palavras do faxina e reclamou que se apurasse quem era o ladrão. Os guardas anunciaram a ocorrência ao chefe dos guardas, este comunicou ao Director e este ordenou que se esclarecesse o caso. Fizeram-se investigações mas nunca foi descoberto nem o relógio nem quem o tirara.

 

                 O pardal e a sua noiva

Os presos das alas B e C tinham passeio no vasto pátio triangular que se estendia afogado entre as imensas fachadas das duas alas. Uns de cada vez a horas diferentes. Quando os de uma ala andavam no passeio, era frequente aparecerem mal divisados rostos espreitando num ou noutro postigo gradeado da fachada da outra ala. Se o guarda se apercebia, logo apitava para que os curiosos encarrapitados lá dentro nas grades se retirassem. A cena repetia-se cada dia. Repetia-se ao longo dos meses.

Repetia-se ao longo dos anos. Fazia parte dos usos e costumes.

Foi numa Primavera que, durante o passeio, os presos da ala C repararam por acaso num acontecimento insólito.

- Olha, olha! - gritaram alguns.

A um dos postigos gradeados da ala B surgiu um braço estendido para logo a mão largar cá para fora um passarito que, em rápido voo, como se quisesse fugir da prisão, se afastou até desaparecer veloz para lá do muro exterior e das sentinelas.

O misterioso postigo gradeado da ala B passou a ser atentamente observado sempre que os da ala C andavam no passeio. Entre as muitas dezenas de postigos que em quatro filas se perfilavam ao longo da enorme fachada de um ocre desbotado, aquele era o único que merecia atenção.

Mesmo aqueles que, como o Catalão ou o Javali, fingiam não reparar sequer no caso, não deixavam de irresistivelmente lançar uma olhadela naquela direcção. Muitos em grupo olhavam e comentavam. O 333 passando por lá numa dessas ocasiões e conhecendo mal o caso não resistiu sem dizer:

- As andorinhas, meus amigos, são as aves de Nossa Senhora...

- Não são andorinhas - atirou-lhe irónico o Garino. - É um pardal.

E logo acrescentou:

- E diga lá, ó mestre. Os pardais de quem são? de Nosso Senhor?

Abespinhado o 333 afastou-se estugando o passo.

- Blasfemos! - sussurrou.

Alguns ouviram e riram.

A cena repetiu-se e ganhou novos contornos. O passarito já tinha sido identificado - era de facto um pardal. Largado no espaço através das grades, voava sempre a direito para lá do muro e das sentinelas. Passado um bocado voltava, não hesitava entre as muitas dezenas de postigos da fachada e igualmente a direito apontava e aportava ao mesmo postigo gradeado donde partira e onde a mão amiga o acolhia.

Passadas semanas uma novidade. O pardal voltou acompanhado. Agora eram dois pássaros largados a voar e que mais tarde voltavam à mesma cela. A observação destes factos e a expectativa do que viesse a acontecer tornou-se a ocupação preferida dos presos da ala C durante o passeio.

O Nero então era uma loucura. Ficava ali no meio do pátio, especado à espera. Quando sucedia passarem os passaritos juntos à ida ou à volta, lançava gritos de entusiasmo.

- Eh rapazes! Isto é mesmo bacano!

Um dia porém o casal partiu e não voltou. Durante semanas os olhares fixaram o postigo esperando ver de novo a largada dos pardais e o seu regresso. Nada. Nem um nem outro voltaram. Um vago sentimento de tristeza invadiu durante o passeio os presos da ala C. Inventaram explicações. Como poderiam adivinhar?

Só muito mais tarde um guarda contou o ocorrido. Na ala B todos conheciam a história. O pardal voltara com a noiva e os dois esvoaçaram alegremente pela cela do seu amigo. Um erro de cálculo estragou tudo. Querendo obter o mesmo resultado com a pardaloca, o amigo do pardal resolveu fechar o postigo durante os dias que fossem necessários para o efeito. A reacção foi inesperada. O casal assustado esvoaçou nervosamente largando penas contra os vidros e as grades do postigo até que os dois passaritos cansados, encolhidos e trémulos se acolheram num canto. Quando finalmente, já com poucas esperanças no resultado, o preso abriu o postigo, eles não esperaram mais e largaram como flechas até se sumirem para lá dos muros e das sentinelas. Para sempre.

 

               Um homem calado

Como aquilo começou ninguém soube nem procurou saber. Talvez porque ambos eram brincalhões

O brincalhão com brincalhão muitas vezes dá para

O torto. O certo é que a um canto do pátio o Falua

O o Serpentina se envolveram à pancada. Murro cá, murro lá, genica de criar bicho. Antes porém que os guardas de momento distraídos se voltassem e vissem a cena, um outro preso agarrou-os com força e decisão inesperadas, separou-os e ficou parado e silencioso como se nada tivesse acontecido. Era o Gonçalo.

Voltando-se, os guardas viram os dois um tanto descompostos, o Falua endireitando o tacho na cabeça, o Serpentina metendo a fralda para dentro. Aproximaram-se.

- Há novidade?

Ninguém respondeu. Os guardas ainda olharam um e outro desconfiados. Depois afastaram-se.

Entretanto o Gonçalo desaparecera no meio dos companheiros. Era o que se chama um homem desapercebido e calado. Pouco falava com os outros e os outros não falavam dele. Podiam quando muito tê-lo visto, e muito raramente, conversar com

O    Augusto ou o Garino. Tão-pouco se sabia ou se comentava donde era e que crime cometera. Fazia tudo quanto os outros faziam na rotina da vida da cadeia. Mas ninguém dava por ele.

Sucedia apenas, e várias vezes sucedeu, que em momentos complicados de conflitos aparecia, como que surgido do chão, tão calmo, tão manso, tão seguro, tão certo, que os outros acatavam o seu gesto ou indicação. Os companheiros. E até os guardas.

 

               O crime do ginecologista

Na ala C tinham particular verdete ao preso da cela 8. Podia até parecer estranho como contra ele se concentravam tão fortes e gerais sentimentos de condenação, censura, rancor e desprezo.

Talvez pelas rezas que declamava na cela. Além dele havia é certo outros que rezavam alto. Todas as noites se espalhava ecoando, no vazio do espaço, a voz do velhote arrependido: "Perdoai-me, Senhor!, perdoai-me!" Também o 333, sacristão-bibliotecário-responsável da distribuição de leite rezava alto mas em voz comedida e com uma leve nota discordante: às suas manifestações de devoção não escapava por vezes uma nota quase imperceptível de ironia. O Velhote era sincero sem qualquer dúvida, mesmo admitindo que já não regulava muito da bola. O preso da cela 8 era um caso à parte. Médico de profissão, só lhe dava o fervor religioso quando pressentia que os guardas se aproximavam para abrir a porta da cela ou para espreitar pelo óculo. Então punha-se de joelhos, juntava as mãos numa súplica, olhava para o alto implorativamente esperando que vissem o espectáculo e despejava orações de texto ininteligível. Possivelmente porque não conhecendo o catecismo improvisava a letra.

- Acaba lá com a farsa! - atirou-lhe um dia um guarda abrindo a porta.

Como que acordando, voltou-se para o guarda como se nada de extraordinário se tivesse passado.

- O senhor guarda disse?...

Outra vez, ao destapar a lata do rancho e ao ver o feijão-sacana com o peixe malcheiroso, comentou para o faxina:

- Não havia lá nada melhor para me trazeres?

O faxina não gostou das maneiras.

- Olha, cara de cu - respondeu. - Já que assim queres, trago-te uma tachada de trampa para poderes meter nela o focinho.

O desprezo por ele era geral.

Apesar das muitas protecções, o doutor não conseguira safar-se. Fora longe de mais. A repetição da façanha tinha sido durante alguns anos o essencial da sua vida. Para o efeito escolhia as doentes mais jeitosas que como ginecologista o consultavam. Escolhia também hora apropriada e marcava a consulta. O resto era fácil. Punha as doentes a dormir

e abusava delas. Com os cuidados que utilizava antes, durante e depois, julgava ele que nunca seria descoberto. Haverá crimes perfeitos. O dele não o foi. Por uma coisa e por outra, nasceram suspeitas, depois conversas, depois queixas e investigações. Apuraram-se numerosos casos e decerto ficaram por apurar muitos mais. O inventivo doutor, quando deu por ela, tinha já contra si um processo com seiscentas folhas. Choveram os pedidos pois era de boas famílias e tinha colegas e amigos de respeito. Além disso o seu crime não o deslustrava apenas a ele mas à profissão, ao meio social, à classe. O tribunal foi reconhecidamente generoso ao dar-lhe apenas 6 anos de prisão maior.

Agora rezava alto, nunca faltava à missa do domingo, obedecia às ordens que recebia e no passeio diário mantinha-se à parte e não falava a ninguém pois entendia que nada tinha a ver com criminosos.

 

               O Gato, homem de talento

O Gato era para muitos motivo de orgulho, quase uma lenda. Não pelo crime que praticara pois, por muito que seja de espantar, ninguém falava nisso. Mas por ser reconhecidamente um homem de talento.

A primeira grande prova dera-a cinco anos atrás quando trabalhava na oficina de montagem de bicicletas motorizadas. O modelo era bom, mas tinha um defeito: os travões comiam os pneus. Da casa viera a indicação para suspender a montagem porque as vendas diminuíam. Foi então que o Gato avançou.

- Eu resolvo isso.

O encarregado, embora duvidando, fez a experiência. O facto é que o Gato resolveu o problema alterando com imaginação o sistema de travões.

- O gajo sabe mais que os engenheiros - comentaram os companheiros.

A segunda grande prova deu-a num trabalho ainda mais complicado. Não se sabe quem decidiu, mas a decisão foi decerto tomada a alto nível: erguer na Penitenciária um pequeno monumento ao ministro da Justiça, autor de uma das muitas reorganizações dos serviços prisionais. A reorganização não era melhor nem pior que muitas outras anteriormente feitas. A diferença é que o autor ainda era ministro. Glória a quem a merece.

O busto foi encomendado a um escultor de preço, fundido em bronze numa oficina da cidade e colocado finalmente numa peanha de pedra no pátio de entrada da cadeia.

E a história ficaria por aqui sem posteridade se não tivessem decidido a inauguração solene do monumento com presença do ministro e discurso no local. O ministro apareceu impante e feliz. De repente, tornou-se carrancudo, cada vez mais carrancudo, dando sinais de inquietação e mexendo de tal forma pés e pernas que o Director, o Martins-Lucas, lhe perguntou baixinho:

- Sente-se mal, Senhor Ministro?

O ministro não respondeu. Aguentou. Só no fim da cerimónia teve um acesso de fúria. Havia razões para isso. Pela técnica escultórica utilizada, o rosto não era liso nem polido, antes na opinião de Sua Excelência parecia marcado por verrugas e excrescências.

Abalou danado com o caso e dias depois o busto foi retirado e o caso sujeito a reconsideração.

Ninguém sabe como surgiu o Gato na solução do problema. Talvez por se ter oferecido, tal como sucedera com os travões da motorizada. É porém absolutamente certo que se encarregou de fundir o busto, que lhe foi montada em local escolhido uma pequena oficina para o efeito e que finalmente saiu um busto com um rosto tão liso, polido e reluzente que dir-se-ia ter o ministro, naquele mesmo momento em que posara para o escultor, feito a barba e utilizado um after-shave de qualidade. A nova inauguração foi mais modesta, mas para glória do ministro e do Gato o pequeno monumento lá ficou.

Com tais provas a admiração era merecida. O Gato falava a todos de modo directo e frontal. Ele não marcava distâncias, os outros marcavam-nas. Dirigiam-se-lhe com familiaridade mas com contenção.

Dizia-se à boca pequena que aprópria cadeia e os empresários das oficinas lhe davam fortes gratificações. O Gato não confirmava nem desmentia. Sabia-se entretanto que as empresas de bicicletas assim como a dos móveis e ainda uma de metais que contactara quando da fusão do busto do Ministro, lhe haviam já oferecido trabalho bem remunerado para quando daí a três ou quatro anos saísse em liberdade.

- Este quando sair não vai ter dificuldades. Arranjará todos os empregos que quiser - assim se falava dele.

Era um dos raros casos em que um condenado podia com fundamento ter por certo que terminada a pena teria trabalho e futuro assegurados.

 

                   A alegria de amar

Para o Nazaré os dias passavam agora mais lentos porque lá fora o futuro estava à espera. Mas esses mesmos dias eram iluminados pelo amor que traduzia nas cartas que escrevia a Ivette (tal era o nome) e que se traduzia nas cartas que dela recebia.

É certo que escrever é escrever e falar é falar. Só através de correspondência não é fácil conhecer as pessoas. Desde logo havia certo contraste. As cartas do Nazaré eram apaixonadas mas contidas, falavam da vida e de projectos. As cartas da Ivette aqui e além, a par da seriedade do assunto, traziam talvez um excesso de paixão e impaciência e até de intimidade e atrevimento que, chocando um pouco o Nazaré, entretanto o deixavam em alvoroço. "Ai filho!" lia-se numa delas. "Confia que sou virgem e anseio com todas as fibras do meu corpo e do meu coração a noite do nosso casamento."

Carta lá, carta cá, o Nazaré esperava por vezes semanas ou meses, por nova visita em conjunto. Os guardas continuavam a levá-lo com o 31 e como sempre ficavam lado a lado no parlatório. O Nazaré cada vez dava menos atenção à mãe que o visitava. Não fazia senão olhar para a irmã do 31, esperando um olhar ou um gesto. A moça primava pela discrição. Só uma vez sorriu para ele, abertamente, inspirando-lhe redobrada coragem. Animado, logo noutra visita passadas semanas, assegurando-se de que os guardas não estavam a reparar, levou os dedos aos lábios e atirou-lhe um beijo.

O 31 viu e a reacção não se fez esperar.

- Assim não - repreendeu-o depois. - Eu facilitei as coisas, mas não quero sarilhos. Escreves o que quiseres, combinas com ela o que quiseres. Nas visitas é como se nada houvesse.

- Está bem, desculpa - concordou o Nazaré. - Assim tem de ser, assim será.

Desistindo de esperar mais qualquer sorriso ou gesto especial, devorava-a com o olhar apesar da relativa obscuridade do parlatório e dava curso livre à paixão nas cartas que lhe escrevia.

 

                     Três do mesmo ofício

O Argentino, o Catalão e o Capitão eram três homens muito diferentes. Havia porém neles qualquer traço comum que embora indecifrável aparentemente explicava a aproximação.

Quando o Argentino começou a chegar-se a um e a outro, houve dos dois reserva e retracção. A história da execução com tiros do Colt na têmpora e entre os olhos da vítima causava-lhes arrepios. Um e outro gostavam de um mamar mais doce. Depois foram ultrapassando a dificuldade. O Argentino era aprumado, correcto de palavras e mostrava apreciar as gabarolices de um e de outro. Pouco a pouco foi mostrando ser também um especialista na matéria dos dois.

O Catalão e o Capitão contavam as suas proezas. A bem dizer, do Capitão não se podia falar própriamente de proezas. Os roubos e fraudes tinham sido muitos e vultosos. Desfalques, abusos de confiança, assinaturas falsas, cheques sem cobertura. Quantias elevadas. Tudo isto porém por processos demasiado conhecidos e rotineiros para darem reputação e prestígio.

O Catalão era diferente. A história das suas burlas era ainda mais longa que o seu longo cadastro. De país para país, de traficância para traficância, cada qual sempre de vulto e fruto de esquemas audaciosos e complexos, deixando de cada vez para trás prateleiras de volumosos dossiers com as peças dos processos.

Conversando com os dois, o Argentino era mais reservado. Bem poderia porém ensinar-lhes muita coisa. Alguns dos seus feitos tinham mesmo alcançado destacada repercussão na imprensa. Tão sensacionais e bem urdidos, por vezes tão comprometedores para altas individualidades, que os jornalistas não afectos ao poder traduziam não contida simpatia pelo sujeito. As suas traficâncias, sendo de grande valor monetário, eram consideradas, em termos penais, quase inatacáveis.

Por exemplo, a operação da exportação do Brasil para a Europa de valiosíssimos carregamentos de peles de cobra e de crocodilo. Fora brilhante. Metera-se na falsa identidade de um zoólogo de mérito internacional reconhecido. Com Instituto Científico imaginário e papel timbrado respectivo. Com passaporte falso e cartões de universitário e de investigador. Elaborado o projecto de realizar com uma equipa uma expedição ao Amazonas, pusera-se em contacto com as autoridades brasileiras. Sequiosas de fama, reconheceram o mérito da iniciativa. Lá foi com estardalhaço. Recebido com cerimónias protocolares em universidades, institutos e esferas influentes, fez amizade com uns e untou as mãos a outros. Depois foi o trabalho de campo para o qual partia com aparato e do qual regressava sem barulho. Essa parte da encenação sempre foi mal conhecida. Provou-se apenas que, com elevadas protecções, conseguiu passar para a Europa, sem limitações e sem pagar direitos, verdadeiras fortunas das mercadorias escolhidas.

Fez muitas dessas. Agora, ouvindo o Catalão e o Capitão, falava sobretudo dos seus conhecimentos e amizades com gente graúda. As gabarolices dos dois provocavam-lhe mal disfarçado sorriso.

Não seriam decerto essas traficâncias que superariam a fama e renome pelo assassinato premeditado, frio e terrível do sócio que o atraiçoara. Havia ainda uma outra faceta da sua vida que, se conhecida, dava para uma mais exacta definição do que fora e do que era. Era essa parte da sua vida que explicava por que executara o sócio adormecido, à queima-roupa, com uma rajada de balas de 9 milímetros de um Colt. Duas finais, uma numa têmpora, outra entre os olhos. Ali na cadeia essa faceta só mais tarde se tornou conhecida.

 

                         Horror e loucura

O Capitão parara uns momentos quando um outro preso, varrendo o chão calmamente, lhe apareceu ao pé, se aproximou e pediu lume.

O Capitão dizia prezar a honra das Forças Armadas. Não dava confiança aos outros presos e abria três excepções. O Catalão que podia não ser engenheiro, mas que afirmava sê-lo, o 333 pelos lugares institucionais que desempenhava na vida prisional e o Argentino, mais pela majestosa pose do que pelo que dele se sabia. Aquele que agora lhe pedia lume tinha porém um ar tão tranquilo e bondoso que, ao passar-lhe o isqueiro, condescendeu em perguntar-lhe:

- Você donde é?

- De Estarreja - respondeu o outro com voz tranquila.

- Que fazia antes de vir para aqui? - interrogou o Capitão.

- Trabalhava nos lacticínios - respondeu com simplicidade.

Assim começou a conversa. Sem saber bem porquê, o Capitão interessou-se subitamente pelos lacticínios e, como o homem conhecia da matéria, disse pausadamente muita coisa acertada.

Quando iam a recolher, o Bazuca que os observara de longe perguntou:

- Então, senhor capitão, o Mata-a-Mãe contou-lhe tudo?

- O Mata-a-Mãe? O Mata-a-Velha, quer você dizer... - disse o Capitão que já ouvira falar no Mata-a-Velha mas ainda não sabia qual dos presos era.

- Não. Aquele com quem esteve a falar não é o Mata-a-Velha, é o Mata-a-Mãe. Se um dia calhar, dou cabo dele.

E contou a história. Aquele homem tranquilo, de ar bondoso, falando com acerto das coisas, matara a própria mãe. Para se desfazer do cadáver cortara-o em pedaços, salgara-o, encaixotara-o e despachara-o por caminho-de-ferro e sem remetente para uma estação distante.

O crime acabara por ser descoberto e ele condenado.

Entretanto, minutos antes, falando ao Capitão da sua vida e de como em tempos fora despedido de uma fábrica, dissera entre outras coisas:

- Pode acreditar, senhor capitão. Ainda hoje não sei por que fui despedido. Trabalhava como os outros, cumpria as minhas obrigações e nunca na minha vida fiz mal a ninguém.

O Capitão ficou horrorizado. Por profissão estava ligado a formas e meios de matar. Não matar um ou uma. Matar aos milhares, quantos mais melhor. De preferência militares, mas também civis, mulheres e crianças, quando necessário ou inevitável. Uma das actividades por que fora condenado dizia mesmo respeito a venda de material de guerra. Sentia porém profunda aversão pelos crimes de sangue.

- Que horror! - exclamou ante a informação do guarda. - De certeza é o crime mais horrível que se conhece.

O Bazuca meneou a cabeça.

- São todos da mesma laia. Se fossem todos limpos não se perdia nada.

 

                                 Outro caso

A gravidade de um crime em termos gerais nem sempre corresponde a traços mais graves da personalidade dos condenados. Homicídio classifica um crime. Homicidas são todos diferentes. Há homicidas nem piores nem melhores do que muitos que nunca o foram nem serão. Há outros cujos actos tenebrosos ultrapassam o imaginável em seres humanos e são em si mesmos só explicáveis por demência.

Além do Mata-a-Velha havia outros. O 158 desfizera à machadada o rosto da vítima pensando poder iludir a identidade. O 225 matara friamente uma criança, ao acaso, sem qualquer motivo aparente. E outro e outro. De todos os casos ali conhecidos o do Lagarto era o que causava mais calafrios.

Mesmo presos acusados de actos cruéis olhavam para ele como se o ignorassem. Como se não fosse um homem, mas um bicho repugnante, como pelo aspecto parecia: um lagarto branco, viscoso e frio.

Era assim de facto. Alguém se lembrara mesmo de chamar-lhe Lagarto Branco. Acabou por ficar conhecido apenas pelo Lagarto. Cabelos, sobrancelhas, pestanas e barba descoloridas, uma pele branca de cal com marcas avermelhadas sugerindo queimaduras de sol. Farripas brancas a espreitarem do barrete para a testa, olhar parado de um morto, gestos lentos e mecânicos. Mal falava, mal reagia, mas quando falava ou reagia fazia-o com inesperado tino. O tribunal dera-o por responsável dos seus actos. Cirandava pela cadeia, vassoura numa mão, balde na outra. Se varria, se não varria, ninguém o saberia dizer.

Na opinião geral, o crime que o Lagarto praticara era o mais tenebroso de todos os conhecidos. As raras vezes em que haviam feito comparações, o consenso dava o primeiro lugar ao Lagarto.

Em poucas palavras, porque palavras a mais deslustram a história, matara a mulher quando descobriu que ela o enganara, esventrara o cadáver, arrancara o fígado, cozinhara-o em iscas e, ao chegarem a casa para o almoço os filhos adolescentes, dera-lhes as iscas a comer. Estranharam o petisco num dia de semana, acharam um sabor esquisito, mas comeram sem nada suspeitar. Segundo a versão mais conhecida, foi no fim do almoço que ele lhes revelou que tinham comido o fígado da mãe. Segundo a mesma versão, um enlouquecera, outro com a emoção caíra morto redondo logo ali.

Agora o Lagarto arrastava-se inexpressivo de vassoura na mão. Não falava a ninguém e ninguém lhe falava.

- O lugar deste desgraçado não é aqui - comentava o Silvino. - O lugar dele é num manicómio.

O Garino tinha opinião mais radical.

- Para isto só a pena de morte. Um gajo destes não devia andar cá na terra. Chamar-lhe homem é uma vergonha para todos nós.

 

                           A fistula de quinze centímetros

Já há muito o Catalão se queixava de hemorróidas e de uma maldita fistula anal. Aquilo incomodava de verdade. Ainda pior porque ele era um monstro de gordura pesada e mole. De longe em longe davam-lhe um tubinho com uma qualquer pomada. Depressa se gastava o tubo e ficava tudo na mesma.

Por muito que surpreenda, a sorte dele foi ter-se ido embora o médico antigo que ia fazendo o que podia e ter vindo o pobre doutor. Barnabé e com o pobre doutor Barnabé a promoção de facto do enfermeiro a fazer muitas vezes de doutor.

Desesperado com dores, o Catalão arriscou de novo e foi ao posto. As primeiras vezes não teve sorte.

- Icho pacha - foi como sempre a resposta.

Como não passou e continuava a doer, o Catalão procurou outro caminho. Recursos não lhe faltavam. Untou e bem as mãos ao enfermeiro e este preparou uma consulta a preceito.

O que o doutor Barnabé não sabia, sabia o enfermeiro. Que existem uns aramezinhos que se introduzem nas fistulas para averiguar a profundidade e o trajecto. O Catalão pagara bem e o enfermeiro sugeriu o seu uso ao Barnabé.

- Podia talvez ver-se melhor com uma sonda. Não lhe parece, doutor?

- Uma chonda?!! que é icho?

O enfermeiro explicou, o Barnabé fez solenemente que sim com a cabeça, o Catalão esparramou-se na marquesa com as nádegas imensas e rosadas voltadas para o ar e o enfermeiro preparou-se para proceder ao exame.

- Deixa, eu facho icho - disse o Barnabé.

O enfermeiro ainda tentou reagir e fazer ele próprio o exame, mas o doutor, com súbita e inesperada decisão, fê-lo ele próprio.

- Dá cá icho, rapache - ordenou.

E metida e tirada a sonda apurou com inesperada mestria a profundidade da fistula.

- Caramba - espantou-se o enfermeiro -, quinze centímetros! Qualquer dia fica com dois buracos.

A título excepcional por ser para quem era - o Catalão não era qualquer um - e pela gravidade da situação, o director deu andamento ao caso e a operação foi realizada. Surpresa! A coisa era mais simples que o previsto. A fistula tinha apenas três centímetros e o Catalão acabou por ficar com o assento como novo.

O que de princípio não teve explicação foram os quinze centímetros do resultado do exame feito pelo doutor Barnabé.

Intrigado, o Catalão perguntou quando teve ocasião ao enfermeiro como se explicava que o exame acusasse uma profundidade de quinze centímetros e afinal o operador dissesse que era apenas de três.

- Você não diga a ninguém - confidenciou o enfermeiro. - Mas o doutor Barnabé não lhe meteu a sonda pela fistula, mas pelo cu acima!

 

                           Previsão do tempo

Aproximando-se o Verão o Silvino piorara e levaram-no de novo para uma cela da enfermaria. Dias na cama, dias levantado para a hora do passeio.

Viera agora para ali doente um preso que ninguém antes conhecera. O Benjamim, faxina da enfermaria, metera conversa e o outro com vaidade logo disse alguma coisa de si próprio. Era nem

mais nem menos que director, redactor, editor e proprietário de uma folhinha chamada O Semeador. Tiragem de milhares de exemplares. Indispensável, segundo ele, a quem trabalhasse na agricultura. Ensinava tudo que era necessário saber. Não apenas semear, como o nome da folha poderia sugerir, mas tudo, literalmente tudo. Semear, plantar, desterroar, mondar, regar, limpar, podar, empar, sulfatar, enxertar, tudo ali era tratado com profunda sabedoria. Até a altura própria para cada operação. Até indicações dos adubos apropriados às terras. Até a produtividade e os rendimentos.

E mais do que isso. A folhinha, única no género em Portugal, indicava com um ano de antecedência a previsão do tempo. Mês a mês. Rigorosa e confirmada. Tal previsão era de importância vital para os agricultores, como muito bem se entende.

O Silvino soube disso e na primeira ocasião, no passeio, abordou o homem. Este confirmou a informação dada ao Benjamim.

O Silvino sabia das estações do ano, do equador e dos trópicos, dos equinócios e dos solestícios, dos meses lunares e das fases da lua, dos efeitos da atracção da lua e do sol, dos ventos alísios e contra-alísios, dos centros ciclónicos e anticiclónicos, mas nada que lhe permitisse prever o tempo de cada mês do ano seguinte.

Perguntou ao homem como o fazia e este abriu-se com muita franqueza e manifesta segurança. A coisa era simples. Como referência tomava-se o mês de Julho do ano anterior. O dia um de Julho para Janeiro do ano seguinte, o dia dois para Fevereiro e assim de seguida até ao dia 12 para Dezembro. Em cada um destes dias observava-se atentamente o tempo e segundo o tempo que estivesse fazia-se a previsão.

- Disparate - não se conteve de dizer o Silvino.

- Dá sempre certo - respondeu o outro sem se desmanchar.

A conversa teve lugar em Junho, Julho aproximava-se e o Silvino propôs ao homem fazer ali mesmo a experiência, se ele ainda por ali estivesse. O homem concordou e semanas depois a experiência fez-se.

No dia um de Julho encontraram-se no passeio. O Silvino chegou à hora. O outro atrasou-se mas acabou por aparecer. Estava um autêntico dia de Verão. Calor, céu azul, atmosfera seca. Como referência para prever o tempo no mês de Janeiro não era famoso. Juntaram-se os dois para falar do assunto.

- Então? - perguntou o Silvino.

O outro parou a olhar o céu sem perder a compostura.

- Espere - respondeu.

E começou a andar ao lado do Silvino sem parar e continuando a olhar o céu. Assim decorreu quase todo o tempo do passeio sem avançar a previsão do tempo para o mês de Janeiro do ano seguinte.

Estava o passeio quase a terminar, o Silvino insistiu uma última vez.

- Então amigo, qual é a previsão?

Com afectada solenidade o outro parou e olhou ainda mais e mais o céu. Para um lado e para outro. Todo azul. Apenas espreitando no horizonte por cima do muro da cadeia, se via a ténue mancha acinzentada de uma frouxa neblina.

- Que vai você escrever na sua folha?

- É fácil - respondeu o outro categórico. - O céu está a indicar. Sinais de água. Chuva provável.

- Bom! - foi tudo quanto saiu ao Silvino.

O homem foi dali para uma das alas. Só passados dois anos o Silvino voltou a vê-lo de novo na enfermaria.

Não resistiu a perguntar-lhe com mal escondida ironia:

- Então, a previsão deu certa?

- Deu tudo certo, amigo. Agora é o meu sobrinho que edita a folha e continuam a vender-se muitos milhares.

O Silvino não fez mais qualquer comentário. Falando depois com o Augusto desabafou.

- Há gente que acredita em tudo. Até naquilo que sabe não ser verdade. Até nas próprias mentiras.

 

                       Deus, Sodoma e Gomorra

- Não há um único centímetro quadrado no corpo de uma mulher que não reaja a uma carícia. Se uma mulher se fizer cara, não lhe peças tudo. Pede-lhe só um centímetro quadrado do seu corpo. A sua escolha, qualquer que seja. Se to der e souberes trabalhá-lo, depois terás tudo o que quiseres.

Assim discorria o Rolim numa das suas palestras habituais. Estava falando embalado na própria oratória quando um dos assistentes lhe disparou uma pergunta directa que provocou o riso de alguns.

- Isso está muito bem, mas responde lá. Minete fazias?

O 333, que quando passava por ali parava uns momentos, apurou o ouvido.

- Dizendo essa palavra, estragas tudo - respondeu o Rolim.

- Fazias ou não fazias? - insistiu o atrevido.

- Muitos não se confessam - explicou o

Rolim. - A verdade é que tanto do homem para a mulher como da mulher para o homem é dos mais puros e dos mais elevados prazeres. Também tem naturalmente a sua ciência.

- Ciência uma gaita! - interrompeu o outro. - Porcaria é que é.

O Rolim não se deu por vencido.

- Se homem e mulher são saudáveis, asseados

O    normais, só por frieza, ignorância, preconceito ou cobardia é que o não fazem.

Indignado, o 333 afastou-se do grupo e seguiu caminho no cumprimento das suas obrigações.

O rumo da conversa alargou o próprio âmbito. Já falando de outra coisa, um do grupo, normalmente calado, acabou por se decidir e avançar com uma dúvida que há muito o inquietava.

- Apeteceu-me, tentei e ela resistiu como uma cabra selvagem. Conseguir, consegui. Depois é que foi o pior. Insultou-me, zangou-se mesmo a valer e criou-me um tal verdete que acabámos por separar-nos.

- Não soubeste fazer as coisas – sentenciou O Rolim.

Quiseram naturalmente saber como as coisas se faziam. O Rolim explicou os preparativos, as carícias necessárias, a observação atenta das reacções, a paciência e finalmente o momento de investir com aceitação e segurança.

- Pára com isso, pá, que eu não aguento - interrompeu um do grupo.

No decurso da longa explicação, chegara-se um jovem transferido recentemente de Monsanto. Alguém disse na altura que era carteirista, mas para um carteirista a pena não justificava vir para a Penitenciária. De alguma outra coisa era certamente acusado. Já um outro dia se chegara e ouvira atento e silencioso o que se dizia. Desta vez, de forma inesperada, interrompeu o Rolim.

- Eh velhinho! Pareces-me um daqueles que comem sardinhas assadas com garfo e faca. Nem pareces português a falar, pá!

E desencadeou numa série de sinónimos os nomes vulgares de tudo quanto o Rolim expressara em termos escolhidos.

- Fala português, pá, que a malta entende. O Rolim abespinhou-se.

- Já outro dia foi outro que veio com essa. É assim que se sujam as coisas. Além disso tu vens de Monsanto e lá parece que não gostam de mulheres. É tudo paneleiragem.

- Até que enfim, pá, já falas português. E aqui? Estou só aqui há alguns dias e já me dizem que é quase tudo. Fechados nas celas nem sei como se arranjam, mas é o que me disseram. Olha para o pessoal, pá, vê bem e diz-me os que o não são.

Os do grupo não gostaram destas palavras. Sabiam porém que se sucediam os casos. Ainda há poucos dias um guarda vira um moço sair da cela do Nero num passo apressado e descomposto e de corrida escapulir-se para a própria cela. Soube-se depois. Desde que o moço chegara à Penitenciária, louro, de pele delicada e ar infantil, logo começaram a chover dichotes e pretendentes. O Nero foi o mais operativo. Caçara-o de passagem, puxara-o com um safanão para dentro da cela e de navalha apontada às goelas arriou-lhe as calças abaixo e forçou-o.

O 333 voltara a chegar-se ao grupo de passagem. Cara de pau, difícil era adivinhar o que pensava do que ouvia. Por fim desembuchou ríspido mas paternal.

- Ai, meus filhos, que pouca-vergonha. Foi por essas e por outras que Deus destruiu Sodoma e Gomorra.

E afastou-se como que zangado.

Ponto final às reformas

As reformas do novo Director acabaram de forma inesperada menos de dois anos depois de implementadas. A única que se salvou foi a sala comum, embora a experiência mostrasse não ser das melhores.

Uma das medidas fora a audição dos presos que a solicitassem. Um dia por semana, de cinco minutos a um quarto de hora. Inscreviam-se, iam ao gabinete acompanhados por um guarda e expunham as suas razões.

 

           O Serpentina também se inscreveu.

No espaço de poucos dias tivera dois violentos ataques. No primeiro as convulsões tinham sido tão bruscas e poderosas que três faxinas entre os quais o Benjamim, que pesava mais de cem quilos, não conseguiram imobilizar aquele corpo comprido, ossudo e retesado que se dobrava e desdobrava rodando e batendo arqueado em sucessivos golpes secos no chão de cimento. No segundo ataque mordera de tal forma a língua que, ao voltar a si, mal podia falar. Reclamava transferência para um hospital e o Director recebeu-o.

Calmo e correcto, o Serpentina contou o acontecido e expôs a pretensão.

Também calmamente o Director respondeu-lhe:

- Compreendo muito bem a tua pretensão, rapaz. Mas estás melhor aqui que num hospital prisão. Aqui sempre tens passeio, lá ficas fechado numa enfermaria. Além disso a epilepsia é uma doença danada, não tem cura. Não vale nada ires para outro lado.

- Já não posso com a cela - interrompeu o Serpentina com ligeiro gesto de impaciência.

- O regime celular é o melhor para ti e para outros presos. Estás tranquilo e, se tens um ataque, escusas de dar o espectáculo aos outros.

- Gaita! - murmurou o Serpentina.

- Vejo que não estás de acordo - disse o Director -, mas que posso eu fazer?

- Gaita, gaita, gaita! - continuou o Serpentina com a voz a crescer.

- Lamento, mas que queres? Que te tire a doença que tens?

- Gaita! - gritou ainda o Serpentina, já num urro.

Foi então que se desencadeou a tempestade. O corpo inteiro entrou em movimento como uma mola de aço libertada de forte pressão. Com um braço varreu de uma assentada o tampo da mesa do Director espalhando à distância papéis, dossiers, um candeeiro e uma jarra de flores. Depois, ante o espanto paralisado do Director e um gesto incrédulo do guarda, foi a vez de uma estante com porta envidraçada. É difícil compreender como em tão breves segundos tudo foi estilhaçado e espalhado numa revoada pelo gabinete.

Vieram mais guardas, dominaram o Serpentina, amassaram-no a casse-tête, conduziram-no a uma cela da enfermaria e enfaixaram-no numa camisa-de-forças.

Adormeceu e quando voltou a si, de novo sereno, não soube explicar o que acontecera. Disse mesmo que de nada se lembrava. E foi com sincero espanto que sentiu as dolorosas nódoas negras.

Quanto ao Director, acabou de vez com as audições dos presos, e, não se sabe por que razões reflexas, foi liquidando uma a uma as reformas do regime prisional que até ali invocara com vaidade como a razão por que aceitara o cargo. Voltaram as fardas antigas e os barretes com os grandes números chapeados a branco. O tempo de recreio foi de novo reduzido. O rancho voltou à antiga reaparecendo o peixe intragável com o feijão-sacana duro como pedras.

Também não foi explicada a razão por que logo a seguir, sem que se conhecessem novos elementos para ajuizar do caso, fora encerrada a oficina do Catalão. Depois de cerca de dois anos de apoios e investimentos correu que se provara o que a maioria dos presos tinha já de há muito como ciência certa, pois o truque era conhecido: que o Catalão intrujara toda a gente com o suposto invento do novo carburante. A direcção da cadeia declarou-se implacável. O Catalão teve como castigo decidido pelo Director e fundamentado em longo relatório, ficar privado de visitas durante um mês.

Os presos interpretaram a seu modo tal decisão pois alguns sabiam, porque o próprio lhes dissera, que nesse mês o Catalão não esperava visitas.

- O Director antes também comeu do bolo. Estava feito com o Catalão e agora mijou-lhe nas botas - comentou o Falua.

 

                 Pagar os estragos, naturalmente

De volta do gabinete do chefe dos guardas ao qual fora chamado, o Serpentina dirigiu-se direito ao Benjamim. Para desabafar, furioso.

- Querem vocês saber? Eles estão loucos, ou quê? Então agora não dizem que eu tenho de pagar o que estraguei no gabinete do Director? Não dizem que tenho de ir trabalhar para uma oficina?

- Isso é da lei - disse o Benjamim. - O mesmo se passou com o Nero. Querem que vá trabalhar para as mobílias e que pague os estragos que fez na cela quando saiu do segredo.

- Eu não sei bem do que dei cabo - replicou o Serpentina. - Pelo que me dizem de tudo o que parti e pela miséria que pagam nas oficinas, podia estar a trabalhar a vida inteira que não pagaria os estragos.

- Também sei que o que pagam é uma miséria, mas respira-se um pouco de ar e sempre dá uns tostões. É melhor do que passar anos inteiros fechado na cela.

- A mim não me levam - protestou o Serpentina. - Que trabalhem os gajos.

- Podes ser obrigado, pá. É da lei - repetiu o Benjamim.

Acabaram por ir falar ao Silvino.

- Sim, há a lei - confirmou ele. - A lei é má, mas mesmo assim não a cumprem. Aqui o Serafim trabalha há anos como faxina, portanto serviços da cadeia. E a lei diz que nos serviços da cadeia só se pode ser obrigado a trabalhar três meses no ano. E tu, Serpentina, o que irias ganhar para os móveis? A lei diz que os presos que trabalham devem ganhar o mesmo que com o mesmo trabalho ganham lá fora. É mentira. A lei diz que os presos que trabalhem devem beneficiar dos mesmo direitos em relação a acidentes de trabalho. É mentira. Ao 88 foram três dedos à vida e nem um tostão recebeu. Tu vais trabalhar se quiseres. Se não quiseres ninguém te pode obrigar. Podem chatear-te, mas obrigar-te não podem.

Passados dias o Serpentina foi de novo chamado ao chefe dos guardas. Este insistiu em que deveria ir trabalhar para pagar os estragos. O Serpentina ouviu, ouviu, cada vez mais tenso e às tantas deu um berro.

- Gaita!

O guarda que o conduzira ao chefe era o mesmo que o conduzira ao Director quando de todo aquele destempero. Lembrando-se do berro que precedera o ataque de fúria disse algumas palavras ao ouvido do chefe.

- Está bem, está bem. Leva lá o homem.

E depois de eles saírem murmurou:

- Já não sei se isto é uma prisão, se é um manicómio.

 

                 Tumulto na ala B

Nunca ninguém explicou as razões. A única testemunha do início dos acontecimentos disse que vira o Bazuca dirigir-se ao Malveira com o casse-tête em riste para logo receber na cabeça um golpe fulminante da vassoura que o Malveira empunhava. Caiu redondo no chão, cabeça ensanguentada. Decerto a pancada lhe batera certeira com o forte aro de ferro da vassoura.

Durante uns segundos tudo pareceu parado. O Malveira especado olhando rápido para um lado e outro. O Bazuca esparramado no chão. Um preso assistindo à cena pegado ao solo.

De súbito tudo se agitou. Repetidos apitos de alarme partiram do redondo. À porta de várias celas apareceram presos a ver o que se passava. E enquanto o Bazuca se levantava recomposto e bufando, soou violento o bater do gradão e logo uma meia dúzia de guardas num furacão irrompeu ala dentro.

O Malveira esperou hirto e imóvel. Mas quando os guardas de corrida se aproximaram levantou a vassoura num vertiginoso rodopio e, rodando ele próprio em gestos velozes e calculados, atingiu e fez tombar dois ou três guardas. Alguns dos presos que tinham vindo espreitar entraram na baralha e ali se desenvolveu uma verdadeira batalha campal. O Malveira e os outros insurrectos acabaram por ser dominados. Açulados pelo Rinaldo e pelo Bazuca os guardas deram, deram, deram, pontapearam às cegas corpos e cabeças e por fim mobilizaram alguns presos para levar os feridos para os segredos da cave. Um em cada cela. Apesar de vencidos, ensanguentados e mal dando acordo de si, continuaram a ser espancados largo tempo.

- Já chega! - disse por fim o guarda Ernesto pondo-se à frente do Rinaldo que a bater parecia um touro enfurecido.

De facto chegava. Se continuassem, nenhum dos presos ficaria vivo.

Durante alguns dias, nenhum outro teve acesso à cave. Foi o Benjamim da enfermaria o encarregado de levar as latas do rancho aos castigados.

- Então? - perguntaram-lhe de volta os companheiros.

O Benjamim nada disse. Só alguns dias depois, encontrando o Garino, desabafou:

- Nunca vi coisa assim. Todos parecem uma papa de sangue. Estes gajos só a tiro.

- Nem sequer chamaram o enfermeiro ou o Barnabé - acrescentou.

Passaram semanas. De um dia para o outro deixaram de chamar o faxina para lhes levar o rancho aos segredos. Na Penitenciária ninguém mais os viu. Decerto foram transferidos. De noite.

 

                       Ano após ano

Alguns anos ficavam marcados por grandes acontecimentos como uma fuga, uma revolta, um homicídio, um número de suicídios superior à média, ou mesmo por acontecimentos menos espectaculares mas entrando por si mesmos na história e no imaginário. Outros anos, pior que os piores factos, decorriam na terrível e cruel rotina do castigar dos homens.

Com uma ou outra rara novidade, os dias passavam iguais, com as mesmas regras, o mesmo andamento, o mesmo ritual. Os apitos, o levantar, o ecoar do abrir ruidoso das celas, os despejos dos baldes, o fedor dos dejectos e da creolina, o conto, o estrondo dos gradões de ferro, o arrastar de tamancos e tairocas, a distribuição do café e do casqueiro, de novo o fechar de fechaduras e ferrolhos, o isolamento nas celas, o silêncio interno, a repetição dos ruídos para a distribuição das latas do almoço, o espalhar do cheiro do peixe frito com óleo rançoso ou do mofo do caldo de couves, os apitos, a forma, o passeio, os apitos, a forma, o recolher às celas, de novo o estrondo das fechaduras e ferrolhos, e o bater dos gradões de ferro, e ainda de novo o estrondo das fechaduras e ferrolhos para a distribuição do jantar, o espalhar dos cheiros nauseantes, e de novo apitos, e o último conto, e de novo fechaduras e ferrolhos, e então a hora do silêncio, os ruídos a rarearem e a atmosfera húmida e fria a avançar com a penumbra do fim de dia e a escuridão da noite.

Como sempre, dia após dia, o 210 a fazer em voz alta na cela as contas do tempo já passado e do tempo a passar. Dos anos, dos meses, dos dias de prisão já sofrida e dos anos, dos meses e dos dias de prisão ainda a sofrer. Contas feitas dia a dia. Contas rigorosamente certas. Em voz alta.

E como sempre, dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano, cada vez mais fraca e implorativa, a voz do Velhote na prece da hora do silêncio.

- Perdoai-me, Senhor!, perdoai-me!

Com ligeiras variantes, os últimos ruídos no silêncio sepulcral que avança. Protestos isolados, gemidos, ataques de tosse. O solitário bater forte do gradão do redondo, para passar sabe-se lá quem. Depois tudo como túmulo gigantesco fica quieto até ao buliçoso despertar da manhã seguinte.

- Já reparaste? - perguntou um dia o Garino ao Augusto. - É terrível estar aqui. Cada dia custa tanto a passar que por vezes apetece fazer um disparate. Depois pensas um pouco e ficas admirado porque já passaram anos inteiros.

 

                   O Vianinha, um grande senhor

Quem o visse e ouvisse não dava nada por ele. Franzino, sisudo, expressão parada, falando sempre a meia voz, passaria desapercebido se não fosse a fama. Entretanto era uma personalidade com poder real no meio. Do que fizera lá fora não se falava. Ali era o rei do mercado negro.

Vendia coisas que não se encontravam na cantina: cigarros, lâminas, cremes de barbear, sabonetes, lapiseiras, tudo naturalmente por preços duas ou três vezes superiores aos preços correntes no mercado. Tudo por encomenda. Podia também arranjar, para compradores seleccionados, fotografias de mulheres nuas, revistas pornográficas e mesmo pequenas doses de haxixe. Exercia ainda uma outra actividade mais lucrativa mediante modestíssima gratificação. Por exemplo, cem escudos de empréstimo a pagar dentro de duas semanas acrescentados com mais dez. Até parecia pouco a quem tanto precisava. Risco é risco que tem justo preço. Vianinha sabia fazer contas e uma taxa de 200 a 500% não lhe parecia excessivo.

Tais actividades eram geralmente conhecidas. Nem admirava. Embora fazendo transacções e negócios com o recato da sua humilde pessoa, sempre falando em voz baixa com naturalidade sem pressas e sem espalhafato, o número elevado dos que a ele recorriam e os olhares curiosos dos restantes tinham transformado o Vianinha numa verdadeira instituição.

Repetidas vezes fora visto em flagrante. Fora visto por presos e guardas a entrar com um embrulho na cela do Catalão e sair tranquilamente deixando lá o embrulho. Fora visto a falar com um e com outro, entregar coisas, receber dinheiro. Para cúmulo fora visto a aproximar-se serenamente do guarda que vigiava o passeio e parar junto dele sem nada dizer. As mãos do Vianinha e do guarda tocaram-se e o Vianinha continuou sem pressas o seu caminho.

 

                     O Porto Alto observara o gesto.

- Agora já é assim às claras - disse ao parceiro do lado.

Como actuava com completa impunidade faziam-se perguntas. Donde e como recebia os artigos? Onde os guardava ou escondia? Porque não lhe faziam uma busca à cela? Porque faziam os guardas vista grossa a tais actividades? O que teria ele feito para ser tão escandalosamente protegido?

Cada qual por si e por vezes em conjunto, os presos faziam tais perguntas. Ao Vianinha ninguém as fazia. O Vianinha era já uma peça oficialmente reconhecida. Diga-se: dificilmente dispensável.

 

                     O Rinaldo dá por ela

Às vezes os veteranos entravam com o Falua. Havia muitos cujos crimes pela extrema gravidade constavam da história. Homicídios, assaltos à mão armada, perigosas quadrilhas. O Falua não. Nas suas actuações era um solitário. Tudo pequenas coisas. Mas muitas.

- És um desgraçado - disse-lhe um dia o 509, o Javali, que reparando nele o olhava com desprezo. - Afinal pouco fizeste e estás aqui como qualquer de nós.

O Falua não se desconcertava.

- Tu é que pouco fizeste, pá. Mataste um, condenaram-te e pronto. Que fizeste mais? Eu fiz mais de vinte arrombamentos, fui preso várias vezes e

desta deram-me a talhada. E tu?

Calando-se uns segundos como se esperasse resposta e fitando atrevido o colosso, acrescentou numa voz ainda mais fina e matreira que habitualmente:

- Afinal sou eu que posso dizer que és um desgraçado porque pouco fizeste e estás aqui preso como qualquer de nós.

Aqueles que observavam a cena pensaram que o 509, com a força bruta que tinha, não iria conter-se e espatifaria o pobre do Falua.

Mas não. O 509 olhou de cima para baixo o atrevido mas viu-o tão frágil e tão insignificante que resolveu cuspir para o lado e afastar-se.

O Falua não tinha porém conserto. Assim era e assim continuou. Gostava de brincar e gozava com isso. Com a sua voz de falsete atirava os ditos como quem atirava pedras embrulhadas em papel de seda. Era dificil não achar graça. Dificil era também, se calculava mal com quem brincava, evitar alguns dissabores. A maioria dos guardas não lhe ligava. Um dia porém o Falua, talvez iludido e animado com o que se passara com o 509, teve a má ideia de se meter com o Rinaldo. Como era inevitável, os cálculos saíram furados.

Possante e maciço como um touro, o Rinaldo oferecia curiosa particularidade. Se um preso lhe perguntava se podia fazer isto ou aquilo, respondia logo que não. Isso aconteceu com o Catalão e com muitos outros. Se lhe perguntava pela negativa, respondia que sim.

- Senhor Rinaldo, posso ir encomendar ainda uns cigarros da cantina?

- Não senhor - respondia logo, mazombo e de mau modo, mal meneando a cabeça em sinal de desaprovação.

- Senhor Rinaldo, não posso agora ir encomendar uns cigarros da cantina, pois não?

- Pode sim senhor - respondia o Rinaldo com o mesmo ar impante.

O Falua utilizou o truque uma, duas, dez vezes e lá foi conseguindo respostas positivas. Até que um dia o Rinaldo deu pelo jogo e a brincadeira virou torto.

- Senhor Rinaldo, não posso ir ali entregar à cela do Porto Alto o isqueiro que me emprestou, pois não?

Contra o que se passara das outras vezes, o Rinaldo lançou um tal olhar lá das alturas da carranca que o Falua tomou logo consciência de que ele compreendera finalmente. Sentiu o sangue gelar-lhe nas veias e havia razões para isso. Num rompante o Rinaldo agarrou-o pelos ombros com as mãos pesadas e enormes e abanou-o com violência como a uma oliveira para fazer cair a azeitona.

- Ouve, malandro! Com quem julgas que estás a lidar, ahm?

Passados uns minutos, chamado outro guarda, o Falua, empurrado brutalmente para um escuro segredo da cave, estatelou-se no cimento.

Ali esteve alguns dias. Os factos viriam a mostrar que não perdeu o gosto pelo bom humor.

 

                   Duzentos retratos de mulher

A grande revelação do essencial da vida do Argentino tinha-se dado anos antes do homicídio por que fora condenado. Em Portugal também.

Vindo a Portugal pela primeira vez que se saiba, teve a pouca sorte de ser preso ao acaso em Lisboa numa rusga de rotina em cabarets. Toda a freguesia para um canto, em alarido, mãos no ar, identificação. Ao Argentino faltava um visto no passaporte. A coisa por si não era grave mas numa busca à suite do hotel de luxo em que se hospedava foi a surpresa.

O Argentino tinha em seu poder cerca de duzentos retratos de mulheres. Jovens e em geral bonitas. No verso prenomes, sem nomes de família, sem outra identificação. E um número, quase certo indicação da idade verdadeira ou falsa.

O achado levou a espiolharem na agenda. E a agenda trouxe novas revelações. Listas de moradas e telefones no Brasil, em França, na Itália. Nenhuma na Argentina. De Portugal, num papel à parte nomes de altas individualidades que a polícia considerou naturalmente nada terem a ver com o caso. Alguns endereços conduziram a polícia a prostíbulos caros reservados a portadores de cartões de convite difundidos pelos próprios fregueses. Dois deram pistas decisivas. Em hotéis de luxo foram dar com três jovens, uma francesa e duas italianas, recém-chegadas e formosas. Estavam de passagem para entrar no mercado do Brasil. Instadas pela polícia acabaram por esclarecer que era o Argentino quem tratava de tudo e tudo pagava. Contaram também que ele enviara recentemente uma portuguesa para o Brasil, que ela se dera mal, tivera medo e conseguira fugir e regressar. Temiam que a rede, se a encontrasse, lhe limpasse o sebo.

Para trás ficaram anos e anos de tráfico de brancas. Anos e anos empresário, artífice, operacional de mercado de escravas, de redes de raptos, de cárceres privados, de violações, de torturas e de assassinatos. Tudo ao nível da suspeita. Nada com provas suficientes. Quatro espaçados julgamentos em países diferentes. Quatro absolvições.

Apanhado em Lisboa com os duzentos retratos, também dessa se safou. Entre as suas especialidades contava-se a de fornecer a peso de oiro jovens anunciadas como sérias ou casadas, mesmo em alguns casos como virgens, para as orgias de ministros e outros grandes da ditadura. Dessa vez também, a experiência indicou-lhe o caminho para se safar. Escreveu a contar a situação e a pedir ajuda. Acertou, naturalmente. Os processos instaurados foi um ar que lhes deu e poucos dias depois foi libertado. Logo de seguida sumira-se para lá da fronteira, não deixando rasto.

A pouca sorte teve-a quando anos mais tarde voltou a Portugal. Foi a sua perda. Um outro do mesmo oficio, mostrando que não há nunca uma inteligência superior a todas as outras, foi mais esperto no negócio. Tendo acordado com ele uma rendosa leva para o Brasil, executou a operação, meteu o produto ao bolso e faltou ao combinado e aos encontros.

Passo mal calculado. O Argentino descobriu rasto e paradeiro, levou o Colt e pôs fim à história. Este homicídio, revelando o homem que ele era, ao fim e ao cabo fora apenas também um passo mal calculado na cadeia de vinte anos de outros crimes.

Com condenação tão pesada que a cumpri-la só muito velho sairia da cadeia, não dava entretanto sinais de se preocupar com tal perspectiva. Pelo contrário. Falava com o Catalão e com o Capitão como se tivesse lá fora todo o resto da vida à espera. Tinha as suas razões. Não esquecera os ministros e outra gente graúda que lhe deviam lúbricos préstimos e o silenciar de orgias e escândalos. Certamente também essa gente o não esquecera. A experiência já lhe havia ensinado em muitas ocasiões que há silêncios para obter os quais se faz tudo e mais alguma coisa.

 

                       A impossível façanha do Gato

Era raro os presos falarem em fugir. A opinião geral era que dali não havia fuga possível. Sabia-se que a direcção da cadeia tinha tido em conta as experiências. Da remota tentativa de fuga pelos esgotos. Da audaciosa tentativa do 402, oito anos antes. E de outras, abafadas à nascença. Os Serviços Prisionais fizeram cortar os esgotos com grades sucessivas em todas as direcções. Fizeram construir ratoeiras onde se afundariam na vasa os fugitivos se conseguissem cortar as grades dos esgotos. Mandaram tapar acessos, rodear o telhado dos armazéns com arame farpado, electrificar vedações, reforçar as sentinelas nos muros e no exterior.

O 402 ria de tudo isso. Falando com o Gato, repetia o que dizia ao Augusto sempre que o encontrava.

- Não há cadeia no mundo de onde não se possa fugir. Se eu fosse jovem e não tivesse esta perna maldita, não ficava por cá. Tu tens cabeça e tens pernas. Se pensares, encontrarás o caminho.

O Gato não comentou. Deu apenas uma pancada amigável no ombro do 402.

- Vejo que vais pensar - disse o 402 paternalmente.

O Gato pensou.

Pensou com tanto acerto que conseguiu o que até então ninguém conseguira. Não se sabe por que vias de comunicação, a notícia correu logo de manhã por toda a cadeia. Logo também se contaram versões variadas. Ao fim e ao cabo, ainda que muitos pormenores nunca tenham sido esclarecidos, o que ficou sendo verdade histórica encerrava uma ideia fundamental: o Gato escolhera para ponta final da fuga o sítio e a forma que pareceriam de excluir não apenas por serem os mais difíceis de imaginar, como por terem forçosamente de ser considerados impossíveis.

Fora encarregado de consertar as deterioradas clarabóias da torre central e dos telhados de uma das alas. Era um trabalho difícil, que exigia corte de metais e soldaduras e não se via que outro se não o Gato pudesse levá-lo a bom termo. Andava nisto há semanas, cirandando pelo telhado e trepando à torre central com ajuda de uma comprida escada içada para o efeito.

Até aí estava claro. Depois era o mistério. Como conseguira sair de noite da cela e chegar ao telhado da ala. Como conseguira sozinho levar a escada do telhado da ala para descer por ela para o telhado mais baixo dos edifícios da administração. O resto conhecia-se e era ainda mais de espantar. Mesmo em frente da entrada da cadeia, os edificios da administração estavam separados dos edifícios da casa da guarda que dava para o exterior por uma rua de uns quatro metros de largo. Aí circulava em permanência uma sentinela. Ora o Gato colocara a escada de telhado a telhado precisamente por cima e a poucos metros da sentinela e por lá passara para depois ir dar o salto e cair a poucos metros da sentinela da porta principal da cadeia, pouco distante do sítio onde anos antes o 402 esfacelara a perna. Disso não havia dúvida. A escada ficara lá como que a rir do sistema de segurança.

O Director não queria acreditar. Inspeccionou, investigou, viu e reviu o espectáculo da escada, mas não ficou convencido.

- Não, assim não foi, não era possível.

Ainda passados anos diziam os presos que o Director continuava a pensar tentando descobrir como o Gato conseguira realmente fugir da cadeia.

Os presos comentavam e riam. Verdade verdade também não percebiam como o Gato conseguira tal façanha.

 

                               Troca do rancho

O Virgolino era o único a ver o comunista isolado lá em cima numa cela do terceiro varandim da ala C quando lhe levava o rancho. Não gostava de falar nisso. Tinha recomendações expressas para nada dizer e assim fazia. Abria excepção falando com o Parrana pois tinha confiança nele. Fora o Parrana quem lhe dissera da vinda da PIDE, quando anos atrás trouxera para ali os três comunistas. O certo é que lá em cima no terceiro varandim, há quatro ou cinco anos, o último dos três continuava isolado e nada recebia de fora.

O Parrana pensou, pensou e falou ao Virgolino.

- O homem já deve estar enjoado do que lhe levas há tantos anos. Se tu metesses na lata do rancho outra coisa, eu de vez em quando dava do meu comer.

- Nem penses! - reagiu o Virgolino. - O guarda vê tudo. Não quero sarilhos.

O Parrana continuou a pensar e o Virgolino acabou também por pensar. Demorou mais de um mês a decidir-se, mas acabou por fazê-lo.

Assim uma vez trocou o rancho destinado ao isolado no terceiro varandim por bacalhau com batatas oferecido pelo Parrana. Foi uma vez. Tudo correu bem. Depois ambos acharam natural ter corrido o risco. E ficaram tão reconfortados com o próprio acto que de quando em quando voltaram a repeti-lo.

Dias depois, domingo, ao irem à missa e já na capela, o Garino colocou-se ao lado do Virgolino e, tal como tempos antes o Augusto perguntara ao Parrana, perguntou-lhe baixinho antes de começar a missa:

- Então, o homem ainda lá está?

O Virgolino acenou afirmativamente com a cabeça.

- Continua incomunicável?

O Virgolino confirmou com novo aceno. O Garino não se conteve.

- Chiça, isso tem que acabar! - e a voz saiu-lhe mais alto do que queria.

- Chiu! - fez de longe o 333, o sacristão.

O 333 procurava impedir que se aproveitassem da missa para encontros, combinações e negócios. Talvez seja inexacto dizer que procurava. Fingia que procurava para que o padre e os guardas o soubessem. Por ele estava-se nas tintas.

 

                       Morte do Mata-a-Velha

O Serpentina tivera um novo ataque na véspera e fora levado ainda a estrebuchar, a morder a língua e a espumar para uma cela na enfermaria. Passara a crise e ainda aturdido estava encostado à ombreira da porta da cela olhando distraído a galeria. De repente irrompeu um grupo de faxinas levando em charola um outro preso desmaiado. Por indicação do guarda sumiram-se numa cela vizinha. O Serpentina reconheceu o Mata-a-Velha. Um dos faxinas, ao sair da cela, disse para os outros:

- Este está arrumado.

Durante o dia as portas das celas da enfermaria mantinham-se abertas e a vigilância dos guardas não era apertada. Os doentes menos graves vinham até à porta das celas e por vezes conversavam uns com os outros. Quando o Serpentina viu que a ocasião era propícia, em três passadas foi espreitar à cela vizinha.

Era de facto o Mata-a-Velha. Tinham-no metido na cama, de costas, a manta subida até ao nariz. Estava imóvel e de olhos fechados. A respiração apressada e dificultosa.

- Mata-a-Velha - sussurrou o Serpentina. Não respondeu.

- Mata-a-Velha - repetiu. Nada.

O Serpentina abalou e voltou mais tarde. Desta vez Mata-a-Velha deu sinal de vida. Abriu os olhos e voltou a fechá-los.

- Como te sentes? - perguntou o Serpentina.

O Mata-a-Velha respirou mais fundo e as palavras saíram-lhe lentas e sumidas.

- Estou mal, pá. Já não me safo...

- Não digas! - atalhou o Serpentina e a cifra de trezentos contos saltou-lhe da memória. - Ainda estás para lavar e durar...

- Estou mal - repetiu o outro. - Já não me safo...

Calados uns minutos, foi o Serpentina a retomar a conversa.

- Pensas mesmo que vais morrer?

O Mata-a-Velha fez que sim com a cabeça. Não

havia dúvida de que estava mesmo mal.

O Serpentina foi-se e voltou passado um bocado.

- Ouve, Mata-a-Velha - e pousou-lhe mansamente a mão no ombro. - Sabes que podes confiar em mim. Diz-me onde tens o dinheiro enterrado que quando eu sair vou lá e entrego-o aos teus filhos.

A voz do Mata-a-Velha saiu num sussurro.

- Não tenho filhos...

- Então, entrego à tua rapariga... - sugeriu o Serpentina.

- Não tenho rapariga...

- Essa agora, eu não inventei. Foste tu que me falaste nela.

O Mata-a-Velha não respondeu logo. Depois abriu os olhos e a voz soprou fraca mas agressiva. - Perde daí o sentido, pá! Tu vais primeiro que eu.

Afinal o Mata-a-Velha foi primeiro que o Serpentina. Este contou ao Silvino a última conversa que tivera.

- Não há direito - comentou -, o gajo morreu e levou a massa com ele...

O Silvino era homem discreto e conhecedor da vida.

- A ti é que ele levou, Serpentina. O gajo não tinha nenhum dinheiro enterrado. Não tinha nem um chavo. Se insistiu nessa história, foi para se fazer valer. Que havia a malta de pensar se ele tivesse matado a velha sem ter conseguido nada? Ele próprio acabou por acreditar na história que inventou e os anos de prisão foram-lhe por isso mais leves.

 

                        Uma mulher à janela

O passeio da enfermaria era o único lugar donde, para lá dos telhados, dos armazéns, dos muros e das guaritas das sentinelas, se viam, a uns cento e tal metros, do outro lado da rua, casas da cidade. Os restantes pátios afunilados nos triângulos asfaltados entre as seis alas em estrela e o arco circundante dos edificios das oficinas tinham o céu como único horizonte para lá da cadeia. O passeio da enfermaria era uma abertura para o exterior, a visão tentadora de um espaço de liberdade.

Sucedia porém que as janelas que dali se viam se conservavam quase sempre encerradas. Quando abertas, ninguém se assomava a elas. Decerto por ser penoso aos habitantes dos andares altos ver o triste espectáculo interior da Penitenciária. Ou porque as mulheres não queriam sujeitar-se a qualquer gesto provocatório ou obsceno da parte dos presos. A experiência a isso aconselhava.

Havia porém uma excepção. Numa daquelas janelas, única em muitas dezenas de outras, aparecia uma mulher quando os presos andavam no passeio da enfermaria. Encostava-se ao parapeito e ali ficava, muitas vezes até os presos recolherem às celas. A distância não permitia que se divisassem as feições. Apercebia-se apenas ser para o cheio, cabeleira negra e abundante. Apercebia-se também quando se voltava para a rua ou quando se voltava para os presos.

Impossível essa mulher supor as paixões, as ilusões, os sonhos que a sua longínqua aparição provocava. Dificil ao comum dos mortais supor até onde podiam chegar sentimentos, atitudes e iniciativas. Por vezes dir-se-ia de loucos. O facto é que na maior parte dos casos o não eram. E, se se pudesse ir ao sentir da maioria dos que por ali andavam, raro seria aquele cujo olhar não era atraído e fixado irresistivelmente por esse vulto mal distinto da mulher à janela.

Por muito absurdo que pareça, o Porto Alto, homem sensato, condenado por mero azar em desordem numa largada de toiros, convenceu-se de que ela vinha à janela para o ver, de que era ele que ela olhava. E a imaginação voou tão longe que, embora fosse impossível discernir-lhe as feições, já as tinha como certas na sua imaginação. Numa enorme folha de papel grosso que conseguiu arranjar marcou em grandes letras: "Sou o José Pinto. Escreva-me para o número 225." E como a cela deitava para o passeio trepou ao postigo e, embora não pudesse saber se ela ainda estava à janela, estendeu os braços através das grades e expôs o anúncio para que ela o visse. Tantas vezes o fez que foi apanhado pelos guardas e transferido da cela da enfermaria para uma das alas.

- Ela viu de certeza - confidenciou ao Benjamim antes de ser transferido. - Qualquer dia aparece aí a carta.

O Nero foi outro. Quando esteve na enfermaria, também se convenceu de que era para ele que ela olhava. No passeio, de um lado para o outro, esticava o corpanzil para sobressair mais ainda. Cá e lá, andava apressado quando voltava as costas às casas e quando de frente para as casas desfilava lento e imponente olhos fixos na janela distante. Queria chamar a atenção, queria que ela o notasse e apreciasse. E julgou consegui-lo. Sabe-se lá porquê, isso sucedeu. Certo, certo, era para o Nero que ela estava a olhar! Quem poderia adivinhar a reacção do Nero? Ele, o agigantado terror de guardas e presos, deu uma cambalhota no chão, tirou o tacho da cabeça e às gargalhadas que não sustinha passou repetidamente a mão pelo crânio rapado.

- Ai, minha Nossa Senhora!... Foi mesmo, caralho!

O Falua, que tudo observara, parou a gozar com a cena. Mas o Silvino, que de novo ali estava internado, chegou-se a ele e preveniu-o.

- Tem juízo, pá. Finge que nada viste.

Com o 104 o caso poderia ter sido mais sério. Quando ia para o passeio, tinha sempre particular cuidado em arranjar-se. Como se fosse para uma festa. Lá fora andara em muitas feiras pois a sua especialidade tinha sido a vermelhinha e alguns negócios escuros. Não havia terra de feira onde não frequentasse os bordéis. E julgava que as moças gostavam dele. Agora ali no jardim da enfermaria, olhando a mulher à janela não podia deixar de fazer-lhe a corte. A distância, claro. Havia que jogar todos os trunfos. Um dos maiores cuidados era a escolha das meias. Calçava umas meias vistosas de riscas coloridas. Sentava-se no rebordo de um muro voltado para os prédios, perna traçada, puxando a calça para se ver a meia. Não para que os outros vissem, não. Isto para ela ver, indiscutivelmente para ela ver! Não é invenção nem imaginação, era isso mesmo.

Também dessa vez o Falua no gozo começou a rir e o 104 não gostou. O Gonçalo foi dar com ele junto à barraquita do jardim tenso e mal-encarado a afiar a navalha numa pedra. Afiava a navalha e olhava de longe o atrevido.

- Então, compadre - atirou-lhe o Gonçalo na sua voz mansa. - Está um dia bonito...

E deixou-se ficar ali ao lado, imóvel e silencioso. O 104 percebeu a razão por que ele ficara e resmungou baixo um palavrão. Por um segundo assaltou-o a tentação de lhe meter a navalha no bandulho. Se fosse outro talvez o fizesse. Sem saber ele próprio porquê sentia ser impossível fazê-lo ao Gonçalo, que continuava ali a dois passos, indefeso, como se não desse por ele, olhando distraído para o passeio e que entretanto ele 104 bem percebia que estava ali precisamente para evitar que fizesse um grande disparate.

Ainda deslizou cá-lá algumas vezes a navalha na pedra. Depois num gesto brusco suspendeu a operação.

O guarda Ernesto que estava de serviço à enfermaria notou que qualquer coisa andava no ar. O Falua com sorriso amalandrado. Alguns outros observando-o. Imperceptíveis cruzamentos de olhares. Incertezas no vaivém dos presos no passeio. E de repente e sem explicação o 104 a sair do recanto da barraquita do jardim e o Gonçalo a aparecer logo depois.

Faltava pouco para terminar o passeio e o Ernesto entendeu ser melhor não esperar. Apitou e mandou recolher os presos.

- O sacana roubou-nos dez minutos! - ouviu-se uma voz em protesto.

O que poucos souberam é que nesse dia talvez se tenha evitado um grave incidente do qual nunca a mulher da janela poderia adivinhar ter sido a causadora.

 

                     Assunto inesgotável

No grupo do Rolim a conversa girou naquele dia a partir das contestações impertinentes do moço que viera de Monsanto e nos últimos tempos parecia querer mostrar que não sabia menos que o mestre.

- Falas, falas, falas, mas é tudo paleio. As mulheres podem ser muito diferentes como dizes mas todas têm o mesmo buraco. Aí são todas iguais.

- Esse é o teu erro - sentenciou calmamente o Rolim. - Se há diferenças entre as mulheres, talvez a maior diferença esteja precisamente no sexo.

- Sexo, sexo, sexo, chama-lhe pelo nome, pá - replicou o moço. E logo despejou três ou quatro sinónimos.

- Diferentes no feitio - continou o Rolim -, diferentes no tamanho, diferentes na orla dos cabelos, diferentes na prontidão do orgasmo, diferentes porque para umas é prazer e para outras é dor. Tão diferentes que umas querem logo começar pelo fim. E outras acabam por recusar.

- Elas dizem não, não, mas é fita - interrompeu o outro.

- Mais um engano - corrigiu o Rolim implacável. - O não, não de uma mulher pode querer dizer duas coisas diferentes. Pode ser um apelo, uma indignação e uma recusa e pode ser precisamente o contrário: um incitamento, a previsão demasiado entusiasmante de um prazer que ela teme pela intensidade que prevê.

- Como distingues então um não de outro não? - avançou hesitante um dos ouvintes.

- Essa é uma questão de importância vital - explicou o Rolim. - Se não sabes distinguir, corres dois riscos. Ou contrarias a recusa e é como se a violasses. Ou tens dó dela e desistes como se te faltassem as forças precisamente quando ela mais te deseja.

- Como distingues então? - insistiu o outro.

O Rolim hesitou. Ao contrário do costume não

lhe saiu a resposta. Sempre tão seguro de si, desta

vez a expressão do rosto miúdo dominado pelo tacho com os grandes algarismos brancos do 444 traiu insegurança. O apito do guarda para recolher salvou-o da situação.

A um dos assistentes ocorreu então a já distante gargalhada e comentário do Nero.

- Ao ouvir-te pareces um professor, mas olhando para ti pareces um xarroco.

A meio da conversa o Argentino parara de passagem. Alto, sereno, visivelmente à parte dos outros mas perceptivelmente inserido no meio. Rosto imóvel, assistiu sem qualquer reacção. Depois seguiu adiante.

O Serpentina, que parara também junto ao grupo sem perder palavra do que expunha o Rolim, não tirara os olhos do Argentino. Quando este se retirou, gesticulou descontente.

"Gaita!", balbuciou para si próprio. "Não percebo este gajo. É capaz de saber mais que o Rolim mas não diz nada."

O Tony com tabes dorsal

Era o segundo caso de tabes dorsal. Pelo menos assim dizia o enfermeiro. Como não se conhecia outro nome da doença todos o repetiam. Alguns tinham ouvido ao médico dizer que era sífilis. Como o enfermeiro tinha superior autoridade, a doença ficou sendo conhecida pelo que ele dissera. No primeiro caso, o do 309, o processo foi lento. O preso começara a entristecer e a andar curvado e trôpego. Falava cada vez menos até que deixou de falar de vez. Agora, dobrado, quase num ângulo recto, arrastando os pés, babando-se, não continha urinas nem fezes. Já pouco parecia ter de um ser humano. Era uma coisa viva, sem pensamento nem tino. Para surpresa de um observador desprevenido, os faxinas tratavam-no com paciência, despiam-no, lavavam-no, arranjavam-no como podiam.

O segundo caso era agora o Tony. A evolução da doença fora repentina. Talvez nem tenha durado uma semana. Fora quase instantânea. Em poucos dias passara a um estádio igual ao do 309. Literalmente igual. Igual não era porém o tratamento que para com ele tinham os faxinas. Impacientavam-se e por vezes deixavam-no na cela no meio da porcaria.

- O que me faltava era mais esta - comentou o Benjamim quando viu o Tony naquele estado. - Que chafurde na merda, tanto se me dá.

 

                 Chafurdava, claro.

Tempos depois houve remexida. Entraram novos presos. Foram transferidos outros. O Tony e um outro saíram em liberdade condicional. A libertação do outro não provocou comentários. A do Tony mereceu bastantes.

- Pôr em liberdade aquele desgraçado para quê? - questionou o Benjamim. - Para cair para aí numa valeta?

O Tony, explicava um guarda, tivera quem se interessasse por ele e se comprometera junto dos Serviços Prisionais a acolhê-lo.

- Acreditas? - perguntou o Benjamim ao Augusto jardineiro. - Eu não acredito. Não acredito que alguém queira aquela merda lá em casa.

 

                           Amigos

No passeio da enfermaria, o Silvino conversava com o Augusto jardineiro. Era frequente. Falavam do mundo e da vida. Falando com o Augusto o Silvino não se espraiava, como quando falava com o Serpentina sobre a origem das espécies, o tempo e o espaço. A conversa era mais íntima e mais afectiva.

Ao longo dos anos tinham-se tornado amigos. Era bem diferente a vida que cada um tivera e o crime que os levara para ali. O Silvino, na margem da sociedade desde menino, aos tombos, sem qualquer apoio ou recurso, seguia quase como uma fatalidade o caminho da procura directa por meios próprios do essencial para sobreviver. Assim sempre até ser preso da última vez, já passados os quarenta. O Augusto tivera desde criança a vida normal, dura mas serena, de uma família serrana de agricultores pobres.

O que os aproximava e lhes dava gosto em se encontrarem e conversarem era a maneira semelhante na reflexão e nos sentimentos ao apreciarem as coisas. Nunca tinham falado das respectivas condenações nem do que as motivara. Era como se fosse matéria estranha à sua situação e aos seus interesses. Nesse dia porém, não se sabe qual foi a associação de ideias, o Augusto atirou uma curiosa pergunta.

- Ouve lá, Silvino. Se um dia arrombasses uma porta e entrasses numa casa sem saber quem era o dono e depois de lá estares visses pelas fotografias que encontrasses que era eu que lá vivia, o que é que fazias? Levavas à mesma o que lá houvesse?

Contra o costume o Silvino sorriu. A resposta não tardou.

- Julgas-me mal, Augusto - respondeu. – Se isso acontecesse, sentia-me tão envergonhado que largava tudo e queria ver-me a quilómetros de distância.

O Augusto, sempre de semblante sério, sorriu também.

Era certo, absolutamente certo, que o Silvino falava verdade.

 

                             A impunidade do 509, o Javali

O 509 aproximou-se e pediu lume, o Serpentina estendeu-lhe o isqueiro e o 509 acendeu o cigarro. Depois, quando o Serpentina estendeu a mão para receber o isqueiro de volta, o 509 meteu-o no bolso com a naturalidade de um autêntico proprietário e desandou em passo pesado e tranquilo.

O Serpentina fez menção de ir atrás pedir-lho, mas o Silvino agarrou-lhe o braço.

- Não te metas com ele que te sais mal.

- E o meu isqueiro! - espantou-se o Serpentina.

- Era! - disse o Silvino. - Agora já é dele.

O Serpentina não quis saber. Soltou-se, deu uma corrida e abordou o 509. Parado, tenso, este parecia de facto um javali prestes a arrancar.

- O isqueiro! - reclamou o Serpentina.

- Ah, o isqueiro... - exclamou o 509. Tirou-o do bolso e restituiu-o, sem mais nada.

Eufórico, o Serpentina voltou para o pé do Silvino.

- Afinal não é tão fera como dizes. Já mo deu! - Não te fies - replicou o Silvino. - Vais pagá-las. E caro.

O 509 foi um dos trinta presos indicados para ocuparem a "sala" criada e inaugurada como uma das poucas reformas do novo Director que não fora anulada. Era dificil compreender o que levara a escolher o 509. Porque a nova sala tinha sido anunciada como lugar próprio para processos de recuperação. O 509, é certo não tinha nenhum castigo. Nunca fora apanhado. Nunca houvera provas. Todos conheciam porém as suas malfeitorias mais ou menos graves, de que os outros presos eram vítimas.

- Estamos tramados - comentou um dos escolhidos quando viu o 509 no grupo dos trinta. - Este gajo vai tornar-nos a vida negra.

E tornou.

De manhã, ao procederem na sala à contagem, os guardas deram por falta de um preso. Não foi dificil encontrá-lo. Enrolado numa manta, o Serpentina estava na cama, de borco e sem sentidos.

Descoberto, saltou à vista a camisola interior numa poça de sangue. Vieram mais guardas, chamaram faxinas e levaram-no para uma cela da enfermaria.

Tratado de dois golpes nas costas, passadas algumas semanas estava de novo fino. Nunca ficou apurado e provado quem fora o autor da agressão. Tão-pouco a arma foi encontrada apesar das buscas realizadas. Lembrando-se da cena dias antes por causa do isqueiro todos pensaram que fora o 509, o Javali. Quase se pode dizer que por dedução certa todos sabiam que fora ele. Ninguém referiu porém nem o número nem o nome. Ele e todos os outros da sala, foram chamados ao chefe dos guardas. Foi-lhes perguntado se tinham dado por alguma coisa. Ninguém dera por nada.

- Estava a dormir - respondeu como muitos outros o próprio 509.

O caso foi encerrado, sem lhe ser atribuída importância de maior.

 

                     O Catalão e o Capitão na visita

Pelo corredor que conduzia a uma sala destinada a certas visitas reservadas, passaram nesse dia acompanhadas de um guarda duas moças garridas de andar vivaço.

- Lá vão as chocas do Capitão - comentou o Falua que por acaso as viu.

Chocas não seriam. E só uma era do Capitão. A outra era do Catalão.

Essas duas visitas especialmente autorizadas em comum e fora dos parlatórios eram motivo tanto de inveja como de chacota. De inveja natural pois os outros tinham que receber as visitas nos parlatórios e além disso o Capitão e o Catalão já eram entradotes e de triste figura e as moças eram de estalo. De chacota porque os próprios davam pretexto.

O sítio destinado a tais visitas, se no Verão era frio, no Inverno era gelo. Aqui começara o escândalo. No quadro dos favores especiais recebidos, os dois interessados haviam conseguido que lhes facilitassem nem mais nem menos que o uso de dois sacos de borracha com água quente. Destino pouco comum: os joelhos gelados das pobres raparigas. Apesar de invulgar talvez isso passasse dasapercebido. O pior é que, ao findar da visita e antes da retirada, Capitão e Catalão vinham à porta despejar para a valeta a água ainda fumegante dos sacos de borracha.

Os que viam a cena morriam a rir.

- Então, filha, a água do Capitão estava quentinha?

- Eh grande safado! porque não metes o saco por dentro das calças para encher o que lá falta?

O Catalão e o Capitão sabiam de tais comentários, por dentro ficavam furiosos mas fingiam não perceber.

 

                           Invernia

Nesse dia, como em muitos outros dias, como por vezes semanas a fio, não houve passeio. A chuva fustigava as imensas fachadas desbotadas das seis alas dispostas em estrela. Debaixo de chuva envolto numa nuvem cinzenta, o imenso edifício parecia uma coisa morta. Parecia. Pois lá dentro arrastavam-se centenas de vidas. Lá dentro repetiam-se as obrigatórias operações do ritual de todos os dias. Apitos, barulhos, ruídos, movimentos, cheiros, formas, contos. Uma diferença. Tirando os cerca de cem que trabalhavam nas oficinas e nos afazeres internos da cadeia, os outros quatrocentos ficavam todo o tempo fechados nas celas. Fechados. Sós.

As reacções eram naturalmente diversas. Alguns tinham como passatempos autorizados fazer nó a nó cintos ou bolsas de cordel. Outros passavam os dias em interminável passeio de um lado para outro tal como bichos enjaulados. Outros recordavam os feitos que os trouxeram para ali. Outros faziam projectos para o futuro nem que esse futuro ficasse para lá de dez, quinze ou vinte anos de prisão que lhes faltava cumprir. Outros deixavam-se embalar por imaginações eróticas. Outros deitavam-se e dormiam ou faziam por dormir. Outros como que hibernavam, incapazes de pensar fosse o que fosse. E outros ainda, perdida a noção do tempo que parecia interminável, estavam atentos a todos os ruídos, sempre à espera do momento em que, para receberem o rancho ou para o conto, lhes abrissem a porta quebrando o isolamento e a solidão. Então espreitavam cá para fora, para a imensidão da ala tão solene como uma nave de catedral e sentiam assim um ilusório bafo de espaço, amplitude, atmosfera e liberdade.

Contava-se que um escritor conhecido pedira e lhe fora dada em tempos autorização da cadeia para ficar fechado vinte e quatro horas numa cela. Justificara o pedido por estar escrevendo um romance e haver no romance um personagem que sofria pesada condenação. Ele, escritor, queria ter ao vivo a experiência do que podia sentir um condenado a quinze anos de pena maior, ficando tantos anos fechado numa cela. Um dia não é bem a mesma coisa de quinze anos, ou seja, contando três bissextos, cinco mil quatrocentos e setenta e oito dias. Mas o escritor considerou satisfatória a experiência.

Não consta que o romance uma vez escrito e editado tenha sido enviado para a biblioteca da Penitenciária. Não consta portanto se algum condenado teve ocasião de lê-lo. Seria sem dúvida de interesse conhecer as opiniões.

 

                   Assaltos na serra de Sintra

Salvo para alguns casos de particular confiança, não era autorizada a entrada de jornais nem a posse de rádios. Muito pouco sabiam os presos do que se passava lá fora. Importantes notícias do mundo e mesmo do país ou nunca chegavam, ou chegavam com atraso que atingia anos inteiros. Uma excepção. Crimes particularmente graves, prisões, condenações eram logo conhecidos e difundidos com mais pormenores do que aqueles que os jornais relatavam.

Como chegavam tais notícias, parecia um mistério. As visitas tinham lugar em parlatórios com separação de chapas de vidro e na presença e sob apertada vigilância dos guardas. A correspondência era aberta, atentamente lida por chamados assistentes sociais e só entregue depois de censurada e carimbada. Os presentes que os familiares levavam aos presos eram controlados e esquadrinhados. Nas oficinas uma estreita vigilância cortava as conversas entre presos e pessoal que ia do exterior. Restavam os guardas. Em princípio deveriam ser os mais zelosos cumpridores das regras estabelecidas. Mas, por muito que surpreenda, a ideia corrente era a de que notícias dessas eram os guardas os primeiros a dá-las aos presos.

O 402 tinha a esse respeito uma opinião própria.

- Se entra dinheiro não autorizado, se entram revistas pornográficas, se entra haxixe, porque não hão-de entrar essas notícias?

Uma notícia houve que pela sua natureza durante muitas semanas despertou a imaginação dos presos.

Na serra de Sintra sucediam-se os assaltos à mão armada. Malveira da Serra, Lagoa Azul, Capuchos, estradas da Pena e do Penedo, S. Pedro, por toda a serra se sucediam os assaltos. Carros que circulavam caíam em emboscadas e um mascarado de arma na mão despojava os viajantes.

O assaltante não era apanhado e começavam a correr histórias. Num caso, dando com um desgraçado que tinha positivamente os bolsos vazios, o mascarado entregara-lhe um bom par de notas. Noutro caso, tendo o condutor desmaiado com o susto, o assaltante tomou conta do volante e conduziu o carro até à entrada da vila. Noutro caso, dando de caras com um conhecido cacique local acompanhado de duas beldades, obrigou o homem a sair do carro e a despir as calças e levou o carro até alguns quilómetros de distância. Fora essas tropelias, tinha-se por certo que, em dezenas de assaltos, o mascarado arrecadara grossas maquias.

Passaram meses, organizaram batidas, montaram esperas. O mascarado, ora fazendo longas pausas, ora actuando de surpresa, continuava senhor do terreno.

Na Penitenciária, a história passava de uns para outros com as mais variadas versões e apreciações. Salvo aqueles para quem nada no mundo pode provocar interesse e entusiasmo, os assaltos da serra de Sintra tornaram-se como que um moderno romance de cavalaria.

 

                     Triste fim da paixão do Nazaré

A notícia estoirou como uma bomba. Em poucos dias toda a Penitenciária a conheceu. O 31 levara à certa o Nazaré. O endereço que anos antes lhe dera como se fosse da irmã que o visitava era afinal de um bordel onde tinha uma amiga, a Ivette, com quem combinara a partida. As cartas do Nazaré eram lidas pelas raparigas que em conjunto ditavam ou escreviam as respostas. Nem todas as sentiam da mesma forma. Algumas riam, outras choravam. Algumas queriam meter nas respostas provocações eróticas e mesmo obscenas, outras propunham palavras que correspondessem aos sentimentos próprios que a cada uma os sentimentos expressos do Nazaré provocavam.

A ideia que prevaleceu foi da Ivette, a amiga do 31.

- Vê-se que o gajo é porreirinho. Faça-se a brincadeira mas não há que magoá-lo.

Assim, salvo ligeiros deslizes, as cartas para o Nazaré foram sempre autênticas cartas de amor. Até sinceras.

A reacção na Penitenciária foi diversa. Algumas raras vozes se levantaram contra o abuso. A reacção universal foi porém diferente. Impiedosa. O 31 passou a ser olhado com o respeito que tanto ali como lá fora atraem os grandes farsantes. O Na

zaré como um tonto merecedor da chacota. Choveram os ditos provocatórios. - Eh Nazaré! Quando é o casamento?

- Eh Nazaré! Não me convidas para o casório?

Gritavam assim quando ele passava. Gritavam ao cair do dia já depois do recolher, a partir dos postigos que davam para os vastos espaços do passeio. Nunca mais o largaram.

O Nazaré não conversou com ninguém sobre o que sentiu. Não pediu qualquer explicação ao 31. Deixou apenas de falar-lhe. Deixou também de ir à visita durante largos meses não dando à mãe qualquer explicação. Também durante largos meses deixou de ir ao passeio, para se poupar aos ditos dos companheiros.

Cerca de um ano após o ocorrido, ao abrirem a porta da cela deram com ele enforcado, suspenso pelo cinto fixo lá em cima nos ferros da janela.

- Este ano já são cinco - disse o Benjamim chamado com outros para levar o corpo.

- Não fica por aqui - sentenciou calmamente o Silvino, quando soube do sucedido.

 

                         Como o Viseu foi condenado

Lá na terra e para os investigadores, o caso do Viseu fora muito tempo um mistério. O cadáver tinha sido encontrado num campo deserto nos arredores da aldeia. A marca de dois tiros. Na cabeça e no peito, ambos certeiros e ambos mortais. Ninguém ouvira os tiros. Ninguém dera por qualquer encontro, discussão ou conflito com a vítima, um tipo lá da terra, de má fama. A polícia apareceu, foi ao local, procedeu aos exames de rotina, ouviu familiares, ouviu uns, ouviu outros, mas não apontou qualquer suspeito.

Falava-se em duas pistas. Uma eram as próprias balas. Tendo a polícia procurado saber quem possuía armas, só dois aldeões apresentaram caçadeiras e o merceeiro correu a mostrar uma pistola. Não fora tiro de caçadeira e as balas da pistola não coincidiam com a arma. Outra pista era um isqueiro que um polícia disse ter encontrado perto do cadáver mas que entretanto não mostrara a ninguém.

Passadas semanas, a opinião geral era a de que o homicida não seria da terra. E já se considerava que nunca seria descoberto quando um dia reapareceu um agente, mostrou na taberna um isqueiro de um amarelo invulgar e perguntou se alguém sabia quem era o dono.

A partir daí, precipitaram-se os acontecimentos. Arrastando-se como podia, o Viseu foi à vila e ficou preso. Confessou ser ele o dono do isqueiro e descreveu-o de forma a não deixar qualquer dúvida. No dia seguinte, conduziu a polícia a um ermo distante e indicou o local onde enterrara a arma. A voz era entaramelada e pouco distinta, mas a confissão foi clara e as provas não ofereciam dúvida.

O Viseu não explicou as razões do acto. Talvez ele próprio não as soubesse.

A polícia procurou a família. Um irmão, a mulher, um rancho de filhos. Pareciam fulminados pelo acontecido. Só davam indicações atrapalhadas.

Olhando para o Viseu, vendo-o trôpego, coxo de uma perna bamba, os braços ancilosados e de movimentos dificultosos, a boca arrepanhada, os agentes não queriam crer.

- Para que é que você queria a pistola? - perguntou um.

Não deu explicações. Encolheu simplesmente os ombros.

- Caramba - comentou outro -, como é que você assim conseguiu ter uma pontaria tão certeira?

- Sim, é dificil explicar - comentou um terceiro. - Nem ele sabe o que fez.

O tribunal não teve a mesma opinião. Condenou o Viseu a oito anos de prisão maior celular seguidos de doze de degredo, convertíveis em dezoito anos de prisão maior celular.

Na prisão, o Viseu não se queixava. Parecia conformado. Surpreendia mesmo a boa disposição que se podia adivinhar na expressão, nos gestos e na prontidão para fazer o que lhe mandavam.

Com o intervalo de alguns meses as visitas eram para ele dias de grande alegria. Vinham visitá-lo o irmão, a cunhada e os sobrinhos. Amimavam-no com presentes. E despediam-se com iniludíveis gestos de carinho.

Liberdade condicional

A liberdade condicional era para uns uma esperança. Projecto ou plano para outros. Não caía do céu, nem por decisão espontânea de qualquer juiz. Era necessário conquistá-la. Para conquistá-la nenhuns caminhos mais propícios que as boas graças de protectores importantes ou o arrependimento perante Deus. Não pelo segredo da oração mas pela persistência no espectáculo.

Havia excepções. Na ala C, o Velhote todos os dias pedia em altos brados perdão dos seus pecados. Era demasiado sincero e pobre para ser perdoado. Outros mais conhecedores do mundo tinham razão para esperar e para agir. Agora numa ala, mais tarde numa cela da enfermaria onde seria colocado a título permanente, não por estar enfermo mas por ser médico e protegido, o violador de doentes anestesiadas passava horas de joelhos para que os guardas espreitando pelo óculo o vissem nessa postura. O Fradinho, sempre de mãos postas e rato de sacristia, lembrava a cada passo a sua religiosidade digna dos anos passados num seminário. O 333, que matara os dois sócios para defender a sua honra, era o dedicado sacristão nos serviços da capela. Qualquer destes tinha o prémio quase ganho.

Os bons exemplos são de seguir. Para o confessionário, aos domingos, subindo e descendo quase em bicha a escada de caracol que do redondo conduzia à capela, era um corrupio de arrependidos contando ou reinventando os seus crimes, batendo com a mão no peito e pedindo ao padre não só indulgências mas também uma recomendação aos serviços prisionais. Para liberdade condicional ou indulto encurtando a pena.

A julgar pelos resultados e pelo que diziam alguns, Deus de tempos a tempos acudia aos que assim se lhe dirigiam. De facto era para acreditar na intervenção divina. Pois, se não fora a diligência de Deus, dificilmente se compreenderia que a Direcção da cadeia e os Serviços Prisionais facilitassem em alguns casos a liberdade que com outros critérios levaria a prevenir a reincidência.

O Fradinho saíra quatro anos antes da pena cumprida. Fora condenado por violação, homicídio e suspeita de se ter desfeito do corpo da vítima. A violação fora confessada. O homicídio não. A vítima desaparecera é certo mas nada se provara contra ele. Saído em liberdade, todos jurariam que não se iria meter noutra. Passados meses os jornais deram a notícia. O Fradinho tentou violar uma mulher, esta conseguiu escapar, deitou-se à água num rio, gritou, foi salva e denunciou-o. Com o novo crime renasceram as suspeitas não provadas do primeiro. Investigação e aperto fizeram o resto. O Fradinho confessou ter morto e enterrado a primeira vítima e a polícia foi escavar a terra e descobriu os restos no sítio indicado.

A ligeireza, incompetência e irresponsabilidade na apreciação da personalidade de cada homem acrescentavam dia a dia o rol de erros de observação, de conhecimento e de decisão. Não apenas naturalmente em relação à liberdade condicional.

Assim foi também com uma notícia espantosa que de boca em boca correu velozmente a Penitenciária. O Tony não estava doente. Nem a famosa tabes dorsal nem qualquer outra enfermidade. Fora tudo fita. Imitara tão bem o papel que enganara todos.

- Eh rapazes! - comentou o Benjamim. - O gajo levou-nos bem à certa. Foi um artista, não há dúvida.

O pior é que, uma vez em liberdade, o Tony voltou à mesma. Já a polícia lhe atribuía novos crimes. Com o seu carimbo: o arranque violento dos brincos das orelhas das mulheres violadas. Ainda não fora apanhado, mas os jornais já o davam como o criminoso certo.

- Agora foi este, mas não fica por aqui... comentou o Garino.

Se calhar tinha razão. Entre outros, o Argentino, o Capitão e o Catalão já falavam como se tivessem liberdade condicional à vista. O doutor violador de doentes anestesiadas não dava a ninguém confiança para dizê-lo. Tem porém de considerar-se como certo que, se não tivesse protecções e promessas, não continuaria a trabalheira das suas rezas espectaculares.

 

                   Reflexões do Silvino

Esperto e curioso, o Serpentina gostava de ouvir o Silvino. Ficara-lhe na memória e na dúvida o que ele dissera acerca de uma origem comum de toda a bicharada. Um dia voltou ao assunto.

- Aquilo que disseste foi a brincar ou a sério? - perguntou.

- Se fosse a brincar nem o dizia. Ainda te acrescento mais. Tu podes ver muitas plantas com sistemas de vida e órgãos que mal se distinguem dos animais. Até na reprodução. Há o macho e há a fêmea. O pólen, o pó amarelo, tal como o esperma no homem, no macaco, no cão ou no gato, fecunda o sexo feminino das flores.

O Serpentina riu-se.

- Eh meco, não exageres.

- Exagero porquê? Porque a uma planta faltam os nervos e os miolos? Fica a saber. Se uma maçã tivesse nervos e miolos eu não me atreveria a trincá-la para a não magoar.

Nas palavras do Silvino havia tanta convicção

que o Serpentina perdeu a vontade de rir.

- Talvez... - disse incrédulo.

Agora os dois em celas da enfermaria, passavam

o passeio a conversar.

Estimulado pelas perguntas do Serpentina, o Silvino revelava a amplitude da sua reflexão.

Duvidando de tudo à partida, atravessando um período de grande excitação, o Serpentina ia para a cela e aquilo não lhe saía da cabeça. Estava já convencido de que o homem descendia do macaco mas achava absurda a teoria do Silvino de que todos os animais tinham uma origem comum. Ainda mais o que dizia das plantas. Pensava, repensava e as dúvidas aumentavam. Além do mais pelo tempo que teria sido necessário para tão extraordinária evolução e transformação.

O Silvino já tinha encontrado resposta para a questão.

- Os sábios dizem que a terra foi formada há uns tantos milhões de anos. É pouco. Na minha ideia virá o dia em que os sábios chegarão à conclusão de que tais contas estavam erradas e de que a evolução dos seres vivos durou dez ou cem vezes mais do que o tempo que até agora calcularam.

Dizia isto com a mesma simplicidade e convicção com que explicava ali no jardim da enfermaria a vida das aranhas e da formiga africana.

O Silvino tinha também ideias formadas acerca do espaço. Aí quando discorria, era mais difícil ao Serpentina, apesar da sua fecunda imaginação, acompanhá-lo.

- Já tenho pensado - dizia o Silvino - que o infinito é uma imaginação do homem precisamente porque o homem não o pode imaginar. Também já tenho pensado que o universo pode ser circular e que no universo as rectas são curvas.

Embora percebendo o espanto do Serpentina continuou imperturbável.

- Já tenho pensado que se pudesses caminhar sempre a direito, sempre, sempre, sempre, por séculos e séculos, sempre a direito, acabarias por vir dar ao mesmo sítio.

E numa outra onda:

- Tu olhas o espaço e perguntas a ti próprio: como acaba isto? Onde acaba isto? Olhas uma mosca e concluis: isto é só isto, não é quase nada, acaba aqui. Tenho pensado muito e creio que é um erro. O mundo que está para dentro do mais pequeno ser é tão imenso como o mundo que está para fora. No primeiro, por mais que dividas haverá sempre o que se possa dividir e no segundo, por mais que adiciones haverá sempre o que possas

adicionar.

Nesse dia, o Augusto jardineiro estava por ali a cuidar das plantas e a regá-las. Inquieto, o Serpentina deixou o Silvino e foi ter com ele.

- É pá, nunca supus. O Silvino é bom tipo, gosto dele, sabe muito, é inteligente, mas não está bom da tola. Está completamente varrido com as suas teorias.

O Augusto conhecia bem um e outro e procurou sossegá-lo.

- Não te aflijas. Se a inteligência trabalha é porque se está vivo. Se o Silvino consegue falar assim do espaço, é porque tem os pés assentes na terra.

O Serpentina quase se assustou com tal resposta.

- Também tu?

O Augusto bateu-lhe amigavelmente no ombro. - Ou sou eu que estou maluco, ou são vocês

que o estão - disse ainda o Serpentina antes de se

afastar. - Se calhar sou eu.

O "homem do eléctrico"

A um canto do pátio, num pequeno grupo, a conversa decorria com entusiasmo. Dois dos presos eram veteranos na prisão. Os outros tinham chegado apenas há alguns dias, vindos de uma cadeia comarcã.

- Vocês vêem este aqui com cara de inocente? - perguntou um veterano apontando outro.

- De certeza já ouviram falar. É "o homem do eléctrico".

O visado contou a história.

- O tipo caiu como um anjinho. Cacei-o à saída da estação. Vi logo que era um matarruano. Não sabia nada de Lisboa e perguntou-me por

Campo de Ourique. O homem, disse-lhe eu, eu vou para lá podemos ir juntos. Metemo-nos num eléctrico e como de costume quando veio o revisor comprei um bilhete para ele e mostrei o meu passe. Pela cara de espanto do bimbo pensei logo: vais cair, já não te safas. Antes que ele fizesse qualquer pergunta, atirei-lhe logo sabes amigo? isto é bom negócio! O senhor está nele? perguntou o bimbo de boca aberta e olhos arregalados. Naturalmente, disse eu, sou sócio. O resto foi canja. O gajo entusiasmou-se, encontrámo-nos nos dias seguintes, demos mais umas voltas de eléctrico para eu tornar a mostrar o passe. Dois dias depois vendi-lhe um eléctrico.

Os outros riram com vontade e acabada a conversa separaram-se para dar às pernas.

- O gajo é um espanto! - comentou maravilhado um dos novatos que ouviu a história.

Um veterano dirigiu-se a ele e estragou o efeito da brincadeira.

- Não te deixes levar. É tudo aldrabice. O homem que vendeu um eléctrico já morreu há muitos anos. A história é muito antiga. Esse que vos contou está cá por outra coisa. Tantas portas arrombou e tantos tiros deu que acabou por ser caçado.

Lá-lá, estavam assim conversando, passou por eles com o ar emproado do costume o doutor da cela 8 da ala C. Como sempre não falou a ninguém.

- Por quem se toma aquele pedaço de merda? - comentou o Javali.

- E contigo, anjinho! - atirou-lhe outro logo adiante quase lhe cortando o passo.

O doutor não olhou e fingiu não ter ouvido.

Em geral, nenhum preso era completamente excluído do convívio pelos outros. Havia naturalmente relações preferidas, amizades e também incompatibilidades, conflitos e ódios. Exclusão geral só casos raros. Era o caso do Lagarto que dera o fígado da mulher a comer aos filhos. E era o caso do doutor emproado que anestesiava as doentes para abusar delas e que, expressando desprezo por todos os outros, dava como mau actor o constante espectáculo de rezas e arrependimento.

 

                             Um gesto do Gonçalo

Transmontano como o Augusto, o Gonçalo conversava com ele quando a ocasião se oferecia. Os casos eram semelhantes. Ambos vítimas de graves e revoltantes injustiças. Ambos involuntariamente envolvidos em situações que os levaram à cadeia por culpa de outros, não por culpa própria. Um morto num caso, um ferido grave no outro. A sociedade ou aqueles que nela mandavam, de responsáveis tornam-se acusadores. Fazem a lei e condenam.

- Tenho andado a ver se falo contigo - disse o Gonçalo ao Augusto quando nessa manhã o encontrou. - Saio para a semana e lembrei-me de ver contigo uma coisa.

Pensara muito naquilo. Pensara meses e meses. Respeitava ao político isolado na ala C.

- Sabes bem o que são as nossas serranias e as nossas aldeias. Ali ninguém dava com ele. Eu deixo-te a minha direcção. Se conseguires um dia falar com ele diz-lhe que quando sair, se me procurar, poderá viver por lá o tempo que quiser. Temos pouco, mas não lhe faltará nada.

O Augusto tinha uma noção mais realista das coisas. Primeiro não sabia se alguma vez poderia transmitir a oferta. Depois não lhe parecia que o homem, se viesse a ser libertado, fosse refugiar-se nas montanhas. Não quis entretanto desfazer a ilusão.

- Está tranquilo. Se tiver ocasião, farei o que pedes.

O Gonçalo saiu em liberdade pouco tempo depois. Nunca soube se o Augusto conseguiu ou não passar a mensagem. De qualquer forma é de presumir que durante muito tempo, lá por aldeias serranas de Trás-os-Montes, se sentisse intimamente estimulado pela oferta que fizera. É também de admitir que alimentasse a esperança de algum dia lhe bater à porta o comunista desconhecido há longos anos isolado na ala C.

 

                           Os Ravioli

- Olha para aqueles! - disse de súbito um preso para outro.

O outro olhou.

A parte, chegados há poucos dias, formavam um pequeno grupo. A farpela, o tacho, os números eram os da norma. Alguma coisa porém os distinguia. Ainda jovens, dir-se-ia mais barbeados, mais limpos, como que passados a ferro. Além disso todos usavam sapatos. E engraxados. Rostos sérios, graves, sem falar olhavam os três na mesma direcção. Para onde, ninguém reparou.

- São os Ravioli.

- Ah!

O nome ninguém sabia dizer donde lhes viera. O caso fora largamente falado nos jornais e era conhecido de toda a cadeia. Assaltos a bancos, meias de mulher a mascará-los, caçadeiras com canos serrados, barragens, tiroteios, morte de um GNR, documentos falsos, uma inumerável acumulação de crimes graves.

Era a primeira vez que apareciam no passeio. Todos olhavam para eles. Os três parecia não olharem para ninguém.

No dia seguinte um qualquer foi pedir-lhes um cigarro. Mal o olhando, um dos três puxou de um maço de americanos, deu-lhe um, acendeu-lho com um isqueiro e não lhe prestou mais atenção.

- Vê-se que são bons tipos - comentou o beneficiado puxando uma fumaça.

O Silvino tinha opinião diferente. Não a dizia a ninguém. Observava e concluía de si para si. Naquela presença cuidada de homens na flor da vida, naquela sobranceria, naqueles rostos tratados e aparentemente serenos e indiferentes, lia fria determinação e crueldade.

Nos tempos que se seguiram, os Ravioli provocaram reacções contraditórias. Antipatia de um - idolatria de outros. Sempre lavados, com barba feita em contraste com o descuido geral, não im plicavam, não criavam problemas, não tinham palavras desagradáveis para ninguém. Sempre os três juntos e isolados, revelavam-se porém tão diferentes dos outros que pareciam ter vindo para ali por engano.

Era manifesto que desprezavam os companheiros e particularmente os que tinham fama de força e valentia, como o Javali e o Nero. O contraste entre estes veteranos heróis do crime e os três salteadores de bancos com caçadeiras de canos serrados era tão evidente que não podia escapar à maliciosa observação do Garino.

- Aqui tendes a moderna geração, rapazes! - disse aos que estavam perto. - O futuro é a estes que pertence.

 

                   A pergunta do encarregado

Depois de transferências de um lado para outro, o Garino tinha passado já há uns dois anos de faxina da ala A para a oficina de cartonagem. Recebia a mesma miséria, mas sempre era trabalho diferente e mais limpo.

Recentemente entrara para ali um novo encarregado, homem ainda moço que todos os dias vinha de uma terra industrial dos arredores. Tinha um tratamento sereno, sem os modos repressivos habituais. Dava-se bem com os presos e os presos davam-se bem com ele.

Fora dos assuntos de trabalho tornou-se corrente o Garino trocar com ele palavras soltas, quase de fugida, escapando à atenção dos guardas. Pequenas observações, pequenos comentários, que os aproximavam.

Uma vez num encontro ocasional, o Augusto perguntou-lhe como se dava na oficina. A resposta referiu a mais importante novidade.

- Há lá agora um encarregado que é um tipo fixe.

Por vezes o Garino apercebia-se de pequenas hesitações do encarregado, como se lhe quisesse dizer qualquer coisa mais do que estava dizendo. Esse mais qualquer coisa acabou por revelar-se um dia num disparo.

- Ouve lá, não estão por cá presos políticos?

Por razões difíceis de explicar, era precisamente essa a pergunta que há muito o Garino esperava. Se não a pergunta, o assunto. Em poucas palavras, com cuidado para que o guarda não ouvisse, contou o que se passara com os três comunistas do terceiro varandim da ala C e como, ao fim desses anos, um deles lá continuava completamente isolado numa cela.

A conversa ficou por ali. O encarregado não fez comentários.

- Isto é coisa nova - disse o Garino contando ao Augusto o ocorrido. - E a primeira vez que me acontece uma coisa destas. Eu disse-lhe o que ele queria, mas o que é que o gajo quer mais?

- Tem cuidado - aconselhou o Augusto. - Eles têm bufos em todo o lado.

 

                         Desvenda-se o mistério

Finalmente fora descoberto numa casa isolada perto de Lourel o paradeiro do assaltante mascarado da Serra de Sintra. Manhã cedo, a polícia em força cercou a casa e confiante foi bater à porta. A recepção foi menos normal do que o costume em tais casos. De dentro choveram as balas e surpresos os polícias recuaram. Quando passados minutos, fazendo fogo, investiram e invadiram a casa, o homem já lá não estava.

Começou então uma batida digna de filmes americanos. Cortaram estradas e caminhos e conseguiram retomar-lhe e seguir-lhe o rasto. Acabara por emboscar-se já para lá do Telhal nos terrenos escalvados e rugosos da serra da Carregueira. A operação não foi fácil. Cercado, o fugitivo recebeu novamente a polícia a tiro. Como fazia fogo certeiro, o assalto durou. Tiro cá, tiro lá, decorreu o dia inteiro sem resultado.

Ao findar da tarde caiu um angustiante silêncio nas encostas. Difícil seria perceber o que pensavam fazer sitiantes e sitiado. Pouco habituada a tais situações, a polícia não se decidia a actuar. Cessado o tiroteio, o fugitivo como que se sumira.

Só já lusco-fusco a coisa se resolveu. Inesperadamente, surgindo veloz por detrás de umas moitas, o fugitivo arriscou uma corrida. Cinco, dez metros e uma bala solta cortou-lhe o caminho. Depois de tanto tiro falhado, aquele acertara em cheio no alvo. O homem estava morto.

O caso foi assim conhecido na Penitenciária e a opinião geral gabou a valentia do mascarado da serra de Sintra. Se assim foi quando ainda se desconhecia a sua identidade, a admiração converteu-se em veneração e em lenda. O mascarado da serra de Sintra era o Gato, o talentoso Gato, que anos antes realizara a mais espectacular fuga da Penitenciária jamais conhecida.

A gatinha cinzenta

Juntaram-se vários presos a ver o espectáculo. Era uma gatinha nova, de um cinzento macio e olhos verdes e aguados. Atitudes e gestos surpreendentes. Em incessante movimento, deitava-se de costas, bamboleando levemente o corpo e agitando as pernas com languidez. Lentamente. Expondo o ventre de um pêlo mais claro e acetinado. Depois rodava mansamente sobre si própria como que espreguiçando-se ao retardador. Miava sem parar. Um miar frouxo, suave, profundo e meigo.

Silenciosos, os homens especavam-se ante a cena. Fixos, sem conseguirem despregar a vista. Alguns, disfarçadamente, mão no bolso das calças, acariciavam-se a si próprios como se fosse a eles que a gatinha estivesse provocando.

- Eh rapazes! - não se susteve um de exclamar. - Parece mesmo uma mulher!

- O contrário é que está certo - comentou outro. - Há mulheres que com o cio parecem gatas.

Não puderam continuar. Ouviu-se um apito. O recreio terminara. Formaram a dois, os guardas procederam ao conto e num triste cortejo reconduziram os presos às celas.

Dias depois, ao trabalhar na horta junto ao muro, o Augusto deu com o corpo morto da gatinha cinzenta. Enrolado, amachucado, rígido, manchado de sangue já enegrecido. Concluiu que alguém a tinha usado brutalmente e matado depois. Resolveu não participar e logo ali a enterrou.

Depois pensando, pensando, concluiu que só podia ter sido um outro preso que também trabalhava nas hortas e já uma vez fora apanhado com outro bicho. Mais se convenceu quando no mesmo dia o encontrou e lhe viu numa mão e cara abaixo uns arranhões ainda frescos que o próprio não soube explicar.

O Augusto não contou nada a ninguém. Entendeu que ali coisas dessas quando aconteciam o melhor era enterrá-las como aos bichos mortos e não falar mais nelas.

 

                                 A revolta do peixe-caralho

A Direcção da cadeia procedeu a investigações. O chefe dos guardas, os chefes das alas, o assistente social, o próprio Director, realizaram demorados interrogatórios de dezenas de reclusos. Nada encontraram que indicasse ter havido um plano para o motim. Como que para atestar que tinha havido conspiração e chefes, mandaram ao acaso uns tantos para o segredo a pão e água. Nada descobriram. Com grande probabilidade por nada haver a descobrir.

Entretanto as causas dos acontecimentos estavam à vista. Anos e anos a fio, cinco anos segundo uns, mais de dez anos segundo outros, duas três vezes por semana era dado como almoço feijão-sacana com peixe-caralho. O feijão ainda vá, se servido de quando em quando. O peixe a que fora dado tal nome, porque ninguém lhe conhecia outro qualquer, era verdadeiramente intragável. Cheirava a lixo velho e sabia a creolina. Corria entre os presos que o guarda rancheiro fizera fortuna com tal prato.

O motim rebentara à hora do almoço, quando os faxinas distribuíam pelas celas as latas do rancho. Ao ouvirem alguns gritos ressoando pelas naves das alas, os guardas de serviço não deram de início importância ao facto. Depois foi a surpresa. A algazarra ganhou toda a cadeia de mistura com um batuque ensurdecedor de latas e ferros. Perante os protestos exaltados, os guardas de serviço nas alas correram a fechar as portas das celas com estrondo das duas voltas das fechaduras e o bater dos pesados ferrolhos.

A situação agravou-se em poucos minutos. Pelos postigos gradeados das celas voaram latas de rancho para os triângulos dos passeios, espalhando por todo o lado peixes e feijões. Cerca de 300 latas foram contadas depois quando da limpeza. E quanto mais nas alas os guardas faziam soar estridentes apitos de alarme, mais crescia a algazarra unificando toda a Penitenciária num gigantesco coro de protesto.

Castigados à sorte o Porto Alto, o 31, o Falua e mais uns tantos foram metidos nos segredos da cave. Com excepção do Catalão, do Capitão, do 333 e também do Nero, do Javali e de mais alguns geralmente perdoados de castigos, todos os presos foram privados do passeio e visitas durante um mês.

O prato contestado deixou de ser servido durante um ano inteiro. Depois voltou, embora menos frequente.

 

                     Conversa surpreendente

O Porto Alto tivera aquela maluquice. Convencera-se de que a mulher à janela na casa fronteira do outro lado da rua era para ele que olhava. Nem ele sabia como fora possível tal coisa: escrever numa grande folha de papel e exibir cá para fora pelo postigo gradeado da cela a indicação do nome com letras enormes para que a mulher desconhecida o pudesse ler à distância e lhe escrevesse. Grande .maluquice certamente. De curta duração. Tirando isso, o Porto Alto era um homem sensato.

Nesse dia recebia a visita da companheira. Visita habitual, serena, falando das questões correntes da vida e do futuro. Mas nesse dia perdeu-se na conversa.

Bem queria continuar a dar atenção ao que lhe dizia a mulher. Por mais que o quisesse não conseguia. A atenção foi-lhe fugindo pouco a pouco para a conversa do parlatório ao lado.

Quem lá estava era o 101 e quem o visitava era uma filha. Os presos falavam muito dessa visita. Porque o 101 fora condenado por ter violado três filhas e aquela era a única que o visitava. Dizia-se e tudo indicava ser verdade que as outras e o resto da família tinham cortado com ele.

Por muito que espreitasse, o Porto Alto não conseguia ver através das grades e duplas vidraças o rosto da rapariga. Em compensação e com surpresa a voz dela chegava-lhe nítida, tranquila e suave.

- Sim, pai. Trago-te o que pedes. Eu arranjo, não te dê cuidado. Não posso tirar-te daí, mas posso ajudar-te.

Depois de uma pausa:

- Vejo que estás a chorar, pai. Não chores, senão também eu choro.

Ainda nova pausa e de novo a voz suave da rapariga.

- Tem coragem, sim?

- Não tomas atenção a nada do que te digo - protestou a mulher do Porto Alto.

Já não teve tempo de repetir. A visita terminara e os guardas reconduziram os presos às celas.

Isolamento quebrado

Sempre que a ocasião o permitia as conversas de fugida do Garino com o encarregado na oficina de cartonagem foram-se tornando cada vez mais íntimas. O encarregado dava notícias do que se passava no mundo e falava por vezes de lutas do operariado da sua terra. O Garino referia as lutas passadas dos trabalhadores alentejanos. A confiança recíproca foi-se de tal forma reforçando que um dia o encarregado fez uma proposta explosiva.

- Ouve lá! Não seria possível fazer chegar uma coisa pequena que eu te entregasse ao camarada que está isolado?

O Garino não ficou sequer admirado com a palavra camarada. Nunca a tinha ouvido assim mas achou natural. Umas atrás das outras, várias respostas lhe ocorreram sucessivamente: é impossível, é quase impossível, não é possível, é muito difícil. A resposta que lhe saiu foi porém outra:

- Vou ver!

Foi ver. Não tinha agora qualquer contacto com pessoal da ala C. Houve que encontrar outro caminho. Dele para o Augusto, do Augusto para o Virgolino. Ele, Garino, estava ganho para o risco. O necessário era ganhar os outros.

Demorou mais de um mês a verificar a possibilidade. O Augusto mostrou-se desde logo pronto para ajudar, como se há muito esperasse uma proposta do género. O Virgolino foi mais difícil. Primeiro disse que não. Depois que ia pensar. Finalmente fez uma pergunta concreta.

- Passar-lhe o quê? Se é uma arma, nem penses nisso.

Não, não era uma arma. O encarregado vindo dos arredores esclareceu o Garino que se trataria apenas de um pedacinho de sabão azul, precisamente do mesmo que a cadeia fornecia aos presos. Mais pequeno que um pequeno sabonete. O Garino, o Augusto e o Virgolino acharam estranho, mas compreenderam do que se tratava e estiveram de acordo em participar na operação.

O encarregado demorou a concretizar o projecto. Certamente lá fora havia também ligações e coisas complicadas a tratar. Finalmente, talvez dois meses depois de haver o acordo dos participantes, o encarregado passou um pedacinho de sabão azul para as mãos do Garino, este passou para o Augusto, o Augusto para o Virgolino e não foi difícil a este aproveitar um pequeno descuido do guarda e deixá-lo na cela do destinatário.

- Entregaste-lhe? - quis-se certificar o Augusto.

- Entregar entregar não entreguei - respondeu

o Virgolino. - Deixei-lho na cela.

- Não vai perceber - inquietou-se o Augusto. A dúvida e a inquietação permaneceram durante muitas semanas.

Até que um dia, quando o Virgolino punha a lata do rancho na cela, o preso isolado lhe meteu no bolso um pedacinho de sabão semelhante ao que lhe fora entregue.

O Virgolino entregou ao Augusto, o Augusto ao Garino, o Garino ao encarregado.

Passados dias, ao entrar na oficina, este disse ao Garino:

- Tudo em ordem.

Outros dias passados, encontrando o Augusto, o Garino disse-lhe radiante:

- Continua lá fechado, mas já não está só!

Onde se esclarece o crime do Viseu

Afinal o caso do Viseu era bem diferente do que todos julgavam. O próprio tribunal fora enganado e se enganara. Durante anos o Viseu não contou a ninguém o que verdadeiramente acontecera. Até àquele dia. Talvez porque naquele dia, ao voltar a si depois de uma tontura que o derrubara, pensou que a morte lhe batera finalmente à porta. Talvez apenas porque o Silvino sempre tinha tido para ele boas palavras ao longo dos anos. Por uma razão ou por outra, contou-lhe tudo. Pouco a pouco, porque falava com dificuldade.

Não, não fora ele, Viseu, o autor do crime. O autor fora o irmão. Naquele dia ao entardecer, por mero acaso vira-o passar por um atalho ao sair da aldeia. Achou estranho. Trôpego e assustado seguiu-o por entre urzes e silvados. Adiante deu com ele discutindo na penumbra com alguém que na altura não conseguiu ver. O Viseu não percebia as palavras, mas o tom ainda que contido era colérico. De súbito ouviu dois tiros e o baque de um corpo. No escuro brilhou uma pequena chama sobre o rosto do caído. A ver se estava vivo? Logo a seguir o irmão passou quase rente na retirada.

Nos dias seguintes começou a espiá-lo. Viu que se afastava pelos campos e acabou por surpreendê-lo a enterrar a pistola num sítio deserto.

O Viseu não encontrava explicação para o caso, mas também não a procurava. O seu temor era que descobrissem que fora o irmão. Que havia de ser daquela família? Daquele rebanho de filhos?

Tudo se passou bem até ao dia em que o agente reapareceu e mostrou na taberna um isqueiro perguntando se alguém sabia quem era o dono. Ao ter conhecimento disso, o Viseu sentiu um baque no coração. Lembrou-se da pequena chama junto ao solo na noite do crime. E lembrou-se de que o irmão tinha um isqueiro de estimação de um amarelo vivo vistoso, precisamente a cor daquele que o agente mostrava na taberna. Se a investigação continuasse, acabariam por descobrir a verdade.

O irmão era a vida da família. Ele não valia nada, era um peso morto. Não demorou a pensar, agiu logo. Com tanta eficácia que a condenação foi certa.

 

                     Novos projectos do Catalão

O Catalão recomeçou a ser visto volta e meia a caminho do gabinete do Director e da assistente social.

O 333 apanhou-o uma vez no caminho.

- Então, senhor engenheiro, como ha passado? - perguntou num misto de português e espanhol fazendo vénia respeitosa. - Muito folgo em vêrlo de salúd. Lamento lo que hace tiempos lhe sucedeu. Se Diós quiser para a próxima terá más suerte.

Um dos raros companheiros a quem o Catalão dava confiança era o 333.

- Oiga mio amigo - respondeu baixando a voz. - Las cosas estan bien encaminadas. Me voy a dedicar ahora a Ia investigacion para Ia cura del cancer.

- Sério?! - fingiu espantar-se o 333. - Que ba, sério, claro!

- Bueno, estoy seguro que desta vez Deus estará a seu lado, senhor engenheiro. - Cierto estará.

Ficaram ainda um momento a olhar de frente um para o outro. Rosto balofo do Catalão, rosto cortado à machadada do 333, num e noutro os olhos vivos e cúmplices.

- Até à vista se Diós quiser, senhor engenheiro. - Hasta Ia vista, amigo mio.

E seguiram os seus caminhos. O 333 a distribuir as parcas dietas de leite. O Catalão a falar com o Director.

 

                                 Não havia razão para o susto

Pesadão, coxo, mas seguro de movimentos a lembrarem o seu longínquo passado de marinheiro, o 402 dirigiu-se ao Garino de passagem, parou um momento e deu-lhe a notícia.

- Para teu governo. Meteram o Virgolino no segredo.

Logo seguiu adiante não fosse um guarda reparar.

O Garino não estava certo se o 402 o vira alguma vez falar com o Virgolino. Decerto vira. Também decerto associara isso com o facto de Virgolino ser o faxina da ala C que levava o rancho ao comunista isolado no terceiro varandim.

"Houve azar", pensou o Garino.

Dias depois conseguiu falar com o Augusto jardineiro e deu-lhe a notícia.

- Houve azar. Se o Virgolino fala, temos sarilho.

Analisaram a situação. De facto o sarilho seria grande se o Virgolino falasse ou se por outra forma descobrissem a ligação que fora estabelecida com a entrega do pedacinho de sabão. A PIDE não tardaria a cair-lhes em cima. Mais porém que o susto sentiam que o pior era que a ligação tão laboriosamente estabelecida seria liquidada logo à nascença. E o isolado no terceiro varandim sofreria não se sabe mais o quê.

Passaram dias com ansiedade. O Virgolino continuava no segredo. Fora substituído pelo Parrana no trabalho de faxina e na ida à cela do comunista.

Um mês depois o Virgolino foi reconduzido à cela. Soube-se então a razão do castigo. Não fora pela entrega do pedacinho de sabão. Disso não sabiam, nem ele falara. Aconteceu porém que ao entregar a lata do rancho o guarda levantou a tampa.

- Que é isto?! - espantou-se. - O rancho é arroz e trazes aqui bacalhau cozido?

O Virgolino foi atirado de roldão para o varandim e a porta da cela fechada com estrondo. A lata voltou para trás, o comunista ficou sem almoço, o Virgolino foi metido na cela e depois foi interrogado e levado para um segredo nas caves. Tomara a responsabilidade da troca do rancho e não falou nem do Augusto, nem no pedacinho de sabão, nem do Parrana que oferecera o bacalhau.

Dias depois, estando toda a ala com as portas das celas fechadas, o guarda Ernesto, nessa altura de serviço, abriu a porta da cela do Virgolino e foi direito ao assunto.

- Vocês tiveram sorte. O vosso mal é tomarem-nos por parvos. Pela minha parte, a primeira vez que vos topei foi há mais de um ano. Deixei passar. Também acho que não está certo ter o homem assim isolado tantos anos, sem poder sequer comer qualquer coisa do seu gosto como sucede com qualquer de vocês. Mas não cuides que fizeste bom trabalho. Comigo passou. Desta vez calhou-vos o Rinaldo e o Rinaldo, como sabes, olha para tudo e não perdoa.

Semanas mais tarde o Augusto teve ocasião de encontrar o Virgolino e soube do que acontecera.

Olhou-o de frente e segurou-lhe o braço num momento.

- Assim é de homem.

O Virgolino tinha porém mais uma novidade a dar.

- O que eu fiz - disse em voz baixa - pode o Parrana continuar a fazer. Conheço-o bem e é de confiança.

Mais um Natal de todos os anos

O Natal naquele ano foi igual aos outros. Alguns presos menos, alguns presos mais. As prendas das famílias segundo as posses e os preços. Sempre a expectativa, o bulício, a excitação dos que tinham visita e a decepção, a amargura ou a indiferença da grande maioria que a não tinha.

Cada visita um caso. Cada caso uma situação. Cada situação uma conversa. Tantas e tantas que, se as paredes, os vidros e as grades dos parlatórios tivessem memória, dificil lhes seria reterem a lembrança de todas.

Duas talvez jamais esquecessem.

Uma vez mais o Porto Alto na visita com a mãe foi distraído pelo ciciar da conversa no parlatório vizinho entre o 101 e a filha. A única que o visitava pois as outras e toda a família tinham cortado com ele.

Já ao terminar a visita o Porto Alto apurou o ouvido.

- Estás sempre triste, pai. Não te aflijas por isso - dizia na sua voz tranquila e suave a rapariga. - O que passou passou.

E já no fim:

- No mês que vem volto cá. Não fiques a afligir-te, pai.

Também como todos os anos o Viseu foi chamado ao parlatório. Lá foi, trôpego, sacudindo o corpo, com o braço bambo a abanar. Como os outros anos, lá estava toda a família, irmão, mulher, filhos e filha agora já grandes, envolvendo-o no parlatório com palavras carinhosas que se ouviam mal através dos vidros duplos e das grades mas que soavam no conjunto como uma carícia. O Viseu respondia com a sua voz entaramelada. No rosto deformado esmaecido na penumbra espelhava-se alegria e emoção.

Por acaso calhou nesse dia o Silvino e o Garino

terem-se encontrado e estarem no passeio donde se

via passarem as visitas enquadradas pelos guardas.

O Silvino descobrira na parede por debaixo dos postigos das celas qualquer coisa de novo que nunca vira. De dezenas de crisálidas que há muito marcavam com pintas negras o ocre desbotado da caiação saíam por buraquinhos redondos pequenos vermes misteriosos. O Silvino preparava-se para falar ao Garino da sua nova descoberta quando o Garino se antecipou chamando-lhe a atenção para o cortejo das visitas que chegavam.

O rancho da família do Viseu distinguia-se pelo número, pelo grupo de jovens, pela aparente alegria.

O Silvino guardara o segredo que o Viseu lhe revelara acerca-do crime por que fora condenado. Nesse dia pela grande confiança que tinha no Garino contou-lhe a verdade.

O Garino explodiu.

- O quê? Não pode ficar assim. O homem não pode ficar aqui toda a vida por um crime que não cometeu.

Logo propôs ao Silvino que os dois procurassem o Director ou se dirigissem aos Serviços Prisionais.

Calmo, o Silvino abanou a cabeça.

- Era o pior que podíamos fazer. Íamos estragar a felicidade do homem. Aleijado como é, seria sempre um inútil. Teria uma vida desgraçada, vivendo da esmola ou à custa dos outros. Salvando a família, a sua vida ganhou sentido. Pode ser disparate, mas quando olho para ele penso que se há santos na terra ele é um deles.

O Garino não se deixou logo convencer pela sabedoria do companheiro. Protestou ainda.

- E o irmão? e a família? como podem eles aceitar tal sacrificio?

Para estas perguntas o Silvino não encontrou resposta. Atribuindo ao irmão e à família do Viseu a mesma compreensão que ele próprio tinha, ficou calado como se não quisesse pensar mais nisso. Não o conseguia. Depois na cela fazia a mesma pergunta a si próprio. A pergunta do Garino voltava e voltava. Mas a dúvida não o fazia mudar de opinião.

Quinhentas histórias, uma só história

De tempos a tempos, ao longo dos anos que passavam, o 402 era volta e meia transferido alguns dias para uma cela da enfermaria. A ferida da perna, que resultara do salto para a rua quando oito anos atrás tentara a fuga, não mais sarara. Continuava aberta e infectada. Encostada ao osso, enorme, funda, roxa, sempre ensanguentada, parecia a cruel mordedura de uma fera. Quando a chaga se agravava, ele não podia mexer-se e lá o levavam para a enfermaria. Passados dias voltava a andar coxo e pesadão e ainda na enfermaria tinha ocasião de ir até ao jardim ao passeio diário. Sentava-se no baixo muro divisório da horta e ali falava com um e com outro que o procuravam. Envelhecera rapidamente e, carregado de artroses, tosse cavernosa e respiração ofegante, dificilmente nele se reconhecia o jovem marítimo de quando uma dúzia de anos atrás fora condenado.

Nessas curtas estadias fora da ala, encontrava sempre momentos para conversar com o Augusto jardineiro. Era de longe em longe, mas tinham continuidade as conversas.

Tinham passado oito anos desde que o 402 tentara a fuga e falhara no último momento caindo e esfacelando a perna. De saúde arruinada já não podia ter esperanças. Mas ao longo dos anos procurara sempre incuti-las ao Augusto.

- Se eu tivesse as tuas pernas já cá não estava - insistia. - Podes circular pelo jardim da enfermaria e pelas hortas. Chegas perto dos muros sem ninguém desconfiar. Já tens ido ao bairro dos guardas. Com coragem consegues safar-te.

O Augusto não estava inclinado a seguir o conselho.

- Fugir fugia e depois? Para onde ia? Que ia fazer? Ou passava o resto da vida a fugir, ou voltavam a apanhar-me e então ficava a apodrecer     aqui. Já cá estou há doze anos. Faltam-me seis.

Ainda custa. Mas depois volto para a terra e para a família e posso refazer a vida.

       Não tinham reparado que os escutava um outro preso, um jovem que viera recentemente para a Penitenciária. Deram com ele a escutar, olhos escuros a brilharem de atenção.

- Que queres? - atirou-lhe o 402. - Há novidade?

- Ouvi a conversa e já estudei o caso - respondeu o moço senhor de si. - A mim não me terão cá muito tempo.

       E foi-se.

       - Com tanta gana é capaz de falar verdade -sorriu o

Iam continuar a conversa passou por eles o 333

no seu passo apressado, com a vasilha do leite a distribuir pelos doentes. O Augusto lembrou-se do insólito caso do 333: roubara os sócios da firma e como lhe chamassem ladrão matara os dois a tiro       em defesa da própria honra.

- Ele há cada história - comentou.

       O 402 pareceu reflectir. Depois falou. Via-se

pelo que disse que a reflexão vinha de longe.

- Essa é uma das quinhentas histórias que estão enterradas no túmulo de seres vivos que é esta casa. Uma das quinhentas.

- Cada qual tem a sua - murmurou o Augusto.

- Para alguns que aqui estão a prisão é um episódio da vida - continuou o 402. - Faz parte dela, está ligada a ela, por vezes sem ela o resto da vida não tem sentido. Eu estou aqui a vida inteira apenas por um segundo da minha vida. Um segundo, nem mais. Aconteceu, podia não ter acontecido.

Parou um pouco. Depois continuou.

- A minha história é toda a vida afinal passada aqui. Pelo andar da carruagem já de cá não saio.

- A vida não acabou ainda - consolou-o o Augusto.

Calaram-se uns instantes.

- Sabes que mais? - o 402 retomou a conversa. - Aqui há de tudo. Somos uns melhores que outros, mas somos todos seres humanos. Se falas de histórias há duas espécies de histórias. As quinhentas histórias diferentes dos quinhentos presos que aqui agora estamos. Sempre histórias que começam e histórias que acabam.

Depois de uma nova pausa continuou:

- E há a história que não acaba, uma só história, a história desta casa, destes muros, das grades, das celas, dos segredos, por onde passaram, não os quinhentos que agora cá estamos, mas os milhares e milhares que por cá têm passado.

 

                   Um dia mais, um dia menos

Nesse dia, como todos os dias, semana após semana, mês após mês, ano após ano, a vida decorreu no ritual de sempre.

O silêncio da noite cortado pelos apitos da alvorada e o súbito expandir do barulho da movimentação geral da cadeia. O ruidoso e cadenciado abrir (umas atrás das outras) das fechaduras e ferrolhos das celas. O bater de tairocas dos faxinas circulando com os baldes dos despejos. O baque metálico dos baldes ao serem atirados para o chão de cimento. O fedor espalhando-se nas alas logo misturado e coberto pelo da creolina. Novos apitos, formatura, conto. A distribuição do café e do casqueiro. O deslocar em cortejo para as oficinas. De novo ferrolhos e fechaduras, agora com o novo bater das portas e o isolar dos reclusos nas celas. Depois o amortecer dos ruídos e o alastrar do vazio da imensidão das alas, cortado apenas pelo bater desencontrado das tairocas e tamancos dos faxinas e o barulho de marteladas, de serras e de máquinas vindo das oficinas.

A meio do dia o espalhar do cheiro enjoativo a mofo das couves da sopa e do peixe frito em óleo rançoso impregnando a humidade viscosa do ar, do solo, das paredes, de tudo. A meio do dia para o almoço nova reanimação e repetição de ruídos e movimentos. E de novo o recolher e de novo o relativo silêncio. E de novo o barulhento abrir das celas, nova formatura, desfile para o passeio. Nova formatura, novo recolher, até à tarde a nova repetição de movimentos, deslocações e ruídos e dos cheiros para o jantar.

E como sempre, ao findar do dia a formatura nas alas para o conto, cada qual à porta da sua cela. Como sempre o apito dos guardas, o recolher e a série cadenciada do ruidoso fechar das fechaduras e ferrolhos. Mais de quinhentos presos, mais de quinhentas celas. E mais a sala, com o bater próprio e isolado de um só gradão.

Nesse dia como em muito outros, acompanhando o progressivo escurecer, o frio e a humidade invadiram a imensidão das alas, entraram nas celas, como que colando-se ao cimento e ao ferro das estruturas. Como sempre na hora do silêncio os ruídos foram amortecendo. E rompendo debilmente a atmosfera ouviu-se a eterna súplica do Velhote:

- Perdoai-me, Senhor!, perdoai-me!

Mal se percebendo, vindo de outra cela, o murmúrio das contas certas do 210.

- 13 anos, 3 meses e 10 dias... Faltam só 9 anos, 8 meses e 20 dias.

Salvo a diferença dos números, a resposta parecia igual a tantas outras que dera muitas centenas de vezes ao longo dos treze anos passados. Houve entretanto nesse dia novidade na resposta. Ao dizer "só faltam" o 210 empregara não a palavra "ainda" como fizera até então, mas a palavra "só" pela primeira vez desde que começara a contar. A palavra escapara-lhe, sem saber porquê. Logo deu por ela. O tom de orgulho e descontracção com que em geral fazia as contas como que estacou num inesperado choque de reflexão. Como se pela primeira vez avaliasse os anos que ali passara e sobretudo os muitos que faltava passar. Mas quem na imensidão da estrela de seis pontas poderia adivinhar o que ia no espírito daquele preso fechado e só na sua cela de entre as quinhentas celas onde fechados e sós estavam quinhentos presos?

E os ruídos que pouco a pouco se apagam. E o silêncio da noite que avança.

O Parrana acordou estremunhado com o estrondo do gradão do redondo e o ruído de passos, de ferrolhos e fechaduras de uma cela. Veio-lhe à memória o bulício que sete anos atrás ouvira quando a PIDE trouxera os políticos para o terceiro varandim. Viriam finalmente buscar também no silêncio da noite o que desde então há mais de sete anos lá em cima estava isolado? Mas não. Nem o barulho vinha do varandim.

No dia seguinte saberia a razão do inesperado movimento nocturno. O guarda da ronda espreitando pelo óculo para a cela do Serpentina dera com ele enforcado. Pela forma de sempre: estrangulado pelo cinto preso na grade do alto postigo.

- Mais um - disse o Benjamim chamado como era hábito. Porque era discreto e porque tinha força bastante para alancar com um morto.

Precisamente nesse dia lá fora na rua passou pelo passeio fronteiro uma mulher levando o filho pela mão. Era a primeira vez que por ali passavam. O moço olhou curioso o majestoso edifício, os torreões de pedra branca, o elegante recorte das ameias.

- Mãe, o que é?

- Não sei, filho - respondeu a mulher. - Deve ser o palácio de algum ricaço.

- Mãe, porque é que as janelas têm grades?

- Não sei, filho - respondeu a mulher. - Talvez porque lá dentro há muita riqueza e têm medo que os ladrões assaltem o palácio para roubar.

- Ah! - admirou-se o moço.

Ia ainda a perguntar alguma coisa mais, mas um eléctrico de passagem provocou tal ruído que o moço se conteve e já não fez a pergunta. Foi talvez melhor assim. Porque talvez a mãe não soubesse responder-lhe.

 

                                                                                Manuel Tiago 

 

 

                      

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