Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A ESTRELA DO PERIGO
NÃO PARECIA ABSOLUTAMENTE com um planeta alienígena.
Larry Montray, parado na longa rampa que descia da gigantesca espaçonave, sentiu o contato frio da intensa desilusão e desapontamento. Darkover. Há centenas de anos-luz da Terra, um mundo estranho, sob um sol estranho... e não parecia haver a menor diferença.
Era noite. Lá embaixo, o espaço-porto estava todo iluminado, quase com a claridade do dia, por fileiras de refletores azuis-brancos; uma enorme extensão plana de rampas e pistas de concreto, os contornos das imensas naves estelares aparecendo meio vagos através das luzes; escadas e rampas subindo para as ruas elevadas e as formas escuras dos edifícios além. Mas Larry já vira espaço-naves e espaço-portos na Terra. Com um pai no serviço do Império Terráqueo, tinha de se acostumar a ver coisas assim.
Não sabia o que esperara do novo mundo... mas não imaginara que pareceria exatamente com a qualquer espaço-porto na Terra!
No fundo, esperara tanta coisa...
Claro que Larry sempre soubera que algum dia iria para o espaço. O Império Terráqueo expandira-se por mais de mil mundos, em torno de mil sóis, e nenhum filho da Terra jamais considerava a possibilidade de permanecer ali por toda a sua vida.
Mas ele se resignara a esperar pelo menos por mais alguns anos. Nos velhos tempos, antes das viagens estelares, um rapaz de dezesseis anos podia viajar como grumete num veleiro e conhecer o mundo. Nos primeiros dias das viagens estelares, quando as imensas distâncias significavam anos e anos nos abismos entre as estrelas, embarcavam ainda jovens como tripulantes... a fim de não estarem velhos quando a viagem terminasse.
Mas esses dias haviam passado. Agora, uma distância de cem anos-luz podia ser percorrida mais ou menos na mesma quantidade de dias, e homens, não meninos, tripulavam as espaçonaves e guarneciam as Cidades Comerciais do Império Terráqueo. Aos dezesseis anos, Larry se resignara a esperar. Não muito feliz com isso. Apenas se resignara.
E, de repente, chegara a notícia. Seu pai, Wade Montray, fora transferido para o Serviço Civil no planeta Darkover, à beira da Via-Láctea. E Larry - cuja mãe morrera antes que ele tivesse idade suficiente para se lembrar dela, e que não tinha outros parentes vivos - o acompanharia.
Ele vasculhara a biblioteca da escola e todas as salas de leitura locais à procura de informações sobre Darkover. Não encontrara muita coisa. Era o quarto planeta de uma estrela vermelha escura de tamanho médio, invisível no céu da Terra, e tão insignificante que só tinha um nome nos catálogos estelares. Era um mundo menor do que a Terra, tinha quatro luas, um nível cultural estagnado, sem muita tecnologia ou ciência. Os principais produtos exportados de Darkover eram areias medicinais e drogas biológicas, pedras preciosas, metais raros para instrumentos de precisão e uns poucos artigos de luxo, como sedas, peles e vinhos.
Uma breve nota de rodapé no catálogo excitara Larry a um ponto quase insuportável: Embora os nativos de Darkover sejam humanos, há várias culturas inteligentes de não-humanos presentes nesse planeta.
Não-humanos! Não eram vistos com freqüência na Terra. De vez em quando, perto de um espaço-porto, podia-se deparar com um joviano, carregando o seu tanque de respiração portátil, com gás metano; o oxigênio da Terra era tão venenoso para ele quanto o gás para um terráqueo. E, ainda mais raramente, podia-se ter um vislumbre insólito e emocionante de um homem-coisa, alto e alado, de um dos mundos exteriores. Mas nunca era possível vê-los de perto. Além do mais, era impossível pensar neles como pessoas.
Larry assediara o pai com perguntas insistentes, até que ele dissera, exasperado:
- Como vou saber? Não sou um manual de informações! Sei que Darkover tem um sol vermelho, um clima frio e uma língua que dizem ser derivada de antigas línguas da Terra. Sei que tem quatro luas e que há não-humanos ali... e isso é tudo. Por que não espera para descobrir quando chegar lá?
Quando o pai exibia aquela expressão, era melhor não insistir nas perguntas. Por isso, Larry guardara o resto das indagações para si mesmo. Mas uma noite, quando Larry arrumava as coisas em seu quarto, decidindo jogar fora pilhas de livros que não ia mais ler, brinquedos e diversas outras coisas, acumuladas ao longo dos anos, o pai bateu em sua porta.
- Ocupado, filho?
- Claro que não. Entre, papai.
Wade Montray entrou, acenando com a cabeça para os refugos na cama.
- Boa idéia. Não se pode levar mais que uns poucos quilos de bagagem, mesmo hoje em dia. Trouxe uma coisa para você... peguei no Centro de Transferência.
Ele entregou um pacote a Larry, que o virou, e verificou que era uma coleção de fitas para sua máquina de reprodução.
- Fitas da língua - explicou o pai -, já que parece tão ansioso em aprender tudo sobre Darkover. Pode se comunicar no Padrão, é claro... a língua que todo mundo fala no espaço-porto e na Cidade Comercial. A maioria das pessoas que vai para Darkover não perde tempo com a língua local, mas achei que você poderia estar interessado.
- Obrigado, papai. Começarei a passar as fitas esta noite. O pai tornou a acenar com a cabeça. Era um homem alto e retraído, de olhos escuros, aparência carrancuda - Larry desconfiava que seus cabelos vermelhos e olhos cinza vinham da mãe de que não se lembrava - e que quase não sorria ultimamente; mas naquele momento sorriu para Larry.
- É uma boa idéia. Descobri que ajuda muito ser capaz de falar com as pessoas em sua própria língua, em vez de esperar que falem a nossa.
Ele empurrou as fitas para o lado e sentou na cama de Larry. O sorriso desaparecera, o rosto voltara a ficar sisudo.
- Filho, quer mesmo deixar a Terra? Já me passou pela cabeça, várias vezes, que não é justo tirá-lo de seu lar, levá-lo para a beira do nada. Quase não aceitei a transferência, pensando nisso. Mesmo agora... - O pai hesitou. - Larry, se você preferir, pode continuar aqui, e irá se encontrar comigo daqui a alguns anos, depois que terminar os estudos.
Larry sentiu um súbito aperto na garganta.
- Deixar-me aqui? Na Terra?
- Há boas escolas e universidades aqui, filho. Ninguém sabe que tipo de educação poderá encontrar em Darkover.
Larry fitou o pai nos olhos, contraindo os lábios para evitar que tremessem.
- Não quer que eu o acompanhe, papai? Se deseja... se acha melhor se livrar de mim, não vou protestar. Mas...
Ele parou de falar, engolindo em seco.
- Filho! Larry!
O pai pegou suas mãos e apertou-as com força, por um minuto.
- Não diga isso de novo, está bem? Apenas prometi à sua mãe que você teria uma boa educação. E agora o arrasto pela metade do universo, numa aventura desvairada, só porque sinto uma comichão nos ossos e não quero mais permanecer aqui, como um homem sensato faria. É um egoísmo ir para tão longe, e ainda pior querer levá-lo comigo!
Larry respondeu, em voz pausada:
- Acho que devo ter saído a você neste caso, papai, porque também não quero permanecer no mesmo lugar por toda a vida, como o que chama de um homem sensato. Eu quero ir, papai. Não pode entender isso? Nunca desejei tanto qualquer outra coisa!
Wade Montray deixou escapar um longo suspiro.
- Eu esperava que dissesse isso... ah, como torci para que me desse essa resposta!
Ele largou as fitas em cima de uma pilha de roupas de Larry e se levantou.
- Muito bem, filho. Trate de aprender a língua. Deve haver mais que um tipo de educação.
Ao ouvir as fitas da língua, movendo a língua na tentativa de acompanhar as estranhas modulações darkovanas, Larry sentia seu excitamento crescer cada vez mais. Havia novos e estranhos conceitos e pensamentos naquela língua, e insinuações de coisas que atiçavam sua curiosidade. Um dos provérbios se gravara em sua imaginação, um fulgor estranho e tenso: É errado manter um dragão acorrentado por assar sua carne.
Havia dragões em Darkover? Ou seria apenas uma frase proverbial, baseada na lenda? O que o provérbio significava? E se tivesse um dragão que cuspisse fogo, seria perigoso pô-lo a trabalhar para você? Ou significava que era uma tolice usar algo grande e importante para alguma tarefa pequena e irrelevante? Parecia ser uma abertura para um mundo estranho, onde ele vislumbrava idéias inesperadas, animais exóticos, novas cores e pensamentos, através do bruxulear do desconhecido.
Seu excitamento aumentava a cada dia, até que foram para o imenso espaço-porto e embarcaram. A nave estelar era enorme e estranha, como uma cidade alienígena; mas a viagem em si fora uma decepção. Não fora muito diferente de um cruzeiro num grande navio, só que não se avistava qualquer mar. Passava-se a maior parte do tempo no camarote, ou numa das apertadas salas de recreação. Havia injeções e imunizações para tudo sob o sol - sob qualquer sol, corrigiu-se Larry -, e por isso ele ficara com o braço dolorido durante as duas primeiras semanas.
O único momento de excitamento ocorrera no início da viagem, pouco depois de se afastarem do sol da Terra, quando houvera uma excursão pela nave, para todos que não mais sentiam a náusea da aceleração. Larry sentira-se fascinado pelos alojamentos da tripulação, pelo convés de navegação, com salas ocupadas por silenciosos computadores, pelos robôs que cuidavam de quaisquer reparos necessários nas unidades de propulsão, por trás de escudos protetores de vidro e chumbo. Até vira as salas de propulsão, pela televisão. Eram radiativas, e até mesmo os tripulantes só podiam entrar ali nas mais graves emergências. O mais emocionante de tudo fora o vislumbre rápido da ponte de comando - o pequeno domo de vidro, com o inesperado panorama de cem milhões de estrelas cintilando. Larry, comprimindo-se contra o vidro quando chegara a sua vez, por um rápido instante, sentira-se subitamente perdido, muito pequeno e sozinho naquela profusão de sóis gigantescos, mundos girando pela eternidade, contra a escuridão interminável. Ao se afastar, estava atordoado, os olhos turvos.
Mas o resto da viagem fora um tédio só. Mais e mais, ele se absorvera em devaneios sobre o novo mundo, ao final do percurso. O próprio nome, Darkover, possuía uma estranha magia. Larry imaginava um imenso sol vermelho, bem baixo num céu lúrido, quatro luas em cores estranhas; a mente inventava formas fantásticas e impossíveis para os misteriosos não-humanos, que se apinhariam em torno da espaçonave. Quando receberam a ordem para permanecerem em seus camarotes, com os cintos de segurança presos, durante a longa desaceleração, o excitamento de Larry fervilhava.
Acompanhara o pouso pela TV; a aproximação do planeta, em seu véu de nuvens alaranjadas turbilhonantes, ao pôr-do-sol, com a passagem para a escuridão no lado da noite; sentira o tremor e a atração da nova gravidade, o frêmito de estranheza quando uma das pequenas luas iridescentes flutuara pela tela. Especulara qual das luas seria. Provavelmente Kyrrdis, concluíra, com seu tremeluzir azul-verde, como a asa de um pavão. Os nomes das luas eram uma canção de sereia de encantamento: Kyrrdis, Idriel, Liriel, Mormallor. Estamos aqui, pensou Larry, estamos realmente aqui.
Ele esperou, impaciente, mas disciplinado, o aviso pelo alto-falante autorizando os passageiros a abrir os cintos de segurança, pegar seus pertences e se reunir na sala de desembarque. O pai se manteve em silêncio ao seu lado, o rosto nada deixando transparecer; Larry se perguntou como alguém podia ser tão impassível, mas, não querendo demonstrar uma ansiedade infantil, também ficou calado. Não despregou os olhos da porta de metal, que se abriria para o mundo estranho. Quando o tripulante em seu uniforme de couro preto começou a abrir a porta, Larry quase tremia de excitamento. Uma claridade rosada filtrou-se pela primeira fresta da abertura da porta. O sol vermelho? O céu estranho?
Mas a porta abriu-se para a noite, e a claridade rosada era apenas a luz de maçaricos empunhados por operários de capacete, trabalhando no casco de metal de outra imensa nave. Larry, saindo para a rampa, sentiu o toque frio do desapontamento. Era apenas outro espaço-porto, igual ao da Terra!
Por trás dele, na rampa, o pai bateu de leve em seu ombro e disse, num tom gentil:
- Não fique parado aqui, filho, atordoado; seu novo planeta não vai fugir. Sei como deve estar excitado, mas temos de descer.
Com um suspiro profundo, Larry começou a descer a rampa. Deveria saber que seria uma decepção. As coisas que projetava em sua mente quase nunca eram o que imaginara.
Mais tarde, ele se lembraria de sua desilusão naquele momento, e riria de si mesmo; mas, na ocasião, o desapontamento foi tão intenso que ele quase pôde sentir seu gosto. O concreto parecia duro e estranho depois de semanas de gravidade incerta na espaçonave. Larry oscilou um pouco, antes de encontrar o equilíbrio certo, observou os pequenos veículos de carga circulando ruidosos pela pista, os homens em uniformes de couro preto ou cinza, com a insígnia do Império Terráqueo, sobre os quais as luzes azuladas projetavam um brilho frio. Além das luzes, havia uma linha escura de edifícios altos.
- A Cidade Comercial Terráquea - disse o pai, apontando. - Teremos aposentos nos prédios do quartel-general. Vamos entrar logo na fila. Deve haver muita burocracia.
Larry não se sentia sonolento - fora dia na nave estelar, pelo ciclo de tempo arbitrário -, mas bocejava depois da longa espera na fila, os passaportes e as credenciais conferidos, as bagagens recolhidas na alfândega. Ao saírem de uma cabine, ele levantou os olhos, apático, e foi nesse instante que prendeu a respiração. A escuridão se dissipava; o céu lá em cima, preto ao deixar a espaçonave, era agora de um cinza-pérola, estranho e luminoso. A leste, enormes raios escarlates, como uma vasta e tremeluzente aurora boreal, começavam a se espalhar e a dançar pelo cinza. As luzes tremiam, como se contempladas através do gelo. Depois, uma faixa vermelha apareceu no horizonte, pouco a pouco se expandiu para um enorme sol escarlate. Vermelho cor de sangue. Imenso. Inchado. Não parecia nem um pouco com um sol; parecia mais com um cartaz em neon. O céu passou de cinza para rosa, percorreu todo o espectro, até um estranho azul-lilás. Na nova claridade, o espaço-porto parecia insólito e fascinante.
À medida que a claridade aumentava, Larry pôde divisar, além dos prédios, uma linha de montanhas no horizonte... montanhas altas, irregulares, com penhascos e geleiras exibindo os reflexos vermelhos do sol. Uma lua de azul-cristal ainda pairava no pico de uma montanha. Larry piscou, aturdido, não conseguia parar de olhar para aquele sol impossível. Ainda fazia muito frio; não dava para imaginar aquele sol aquecendo o céu, como o sol da Terra fazia. Ainda assim, era como um imenso carvão em brasa, como uma fogueira, da cor de...
- Sangue, isso mesmo, um sol sangrento - comentou alguém na fila, por trás de Larry. - É assim que o chamam. E é o que parece.
O pai de Larry virou-se, e disse calmamente:
- Parece sinistro, eu sei. Mas não importa, pois na Cidade Comercial encontrará o tipo de iluminação que sempre conheceu, e mais cedo ou mais tarde acabará se acostumando.
Larry fez menção de protestar, mas o pai não lhe deu tempo, e acrescentou:
- Tenho mais uma formalidade a cumprir. Você pode esperar ali. Não há necessidade de ficar na fila comigo.
Obediente, Larry saiu da fila e se afastou. Haviam subido vários níveis àquela altura, em seu progresso de fila para fila, e se encontravam muito acima das naves estelares pousadas na pista. A cerca de trinta metros de distância havia uma arcada aberta, e Larry encaminhou-se para lá, curioso, ansioso em ver além do espaço-porto.
A arcada dava para uma vasta praça, vazia à claridade vermelha da manhã. Era pavimentada com lajes antigas e irregulares; no centro, havia um chafariz, esguichando uma água rosada. Na extremidade da praça, Larry avistou, com um pequeno choque do antigo excitamento, uma linha de prédios, as formas estranhas, fachadas curvas de pedra, as janelas em losangos. A luz refletia-se no que pareciam ser prismas de vidro colorido, fixados nas janelas.
Um homem atravessou a praça. Era o primeiro darkovano que Larry via, um homem encurvado, cabelos grisalhos, usando um culote folgado e um blusão com cinto, que dava a impressão de ser forrado com pele. Ele lançou um olhar indiferente para o espaço-porto, sem perceber que Larry o observava, e seguiu adiante.
Mais dois ou três homens passaram. Deviam ser trabalhadores a caminho de seus empregos, refletiu Larry. Duas mulheres, usando vestidos compridos, forrados de pele, saíram de um dos prédios; uma delas começou a varrer a calçada de pedras com uma vassoura penugenta de aparência esquisita, enquanto a outra trazia mesinhas e bancos lá de dentro. Outros homens surgiram; um deles sentou-se a uma mesinha, fez sinal para uma mulher, que pouco depois lhe trouxe duas tigelas, das quais saía um vapor branco para o ar gelado. O cheiro forte e agradável, um pouco parecido com o de chocolate amargo, lembrou a Larry que sentia frio e fome; a comida exalava um aroma apetitoso, e ele desejou ter algum dinheiro darkovano no bolso. Recordou, hesitante, algumas frases na língua que aprendera. Concluiu que seria capaz de pedir alguma coisa para comer. O homem à mesa levantava coisas que pareciam ser pedaços de macarrão, mergulhava na outra tigela, e comia em seguida, no maior cuidado, usando os dedos e um pauzinho comprido.
- O que está olhando? - indagou alguém.
Larry teve um sobressalto e virou-se para deparar com um menino, apenas um pouco mais jovem do que ele, parado à sua frente.
- De onde veio, Tallo!
Só ao ouvir a última palavra é que Larry compreendeu que o estranho lhe falara na língua darkovana, agora tão familiar, por causa das fitas. Então posso entender! Tallo... era a palavra para cobre; ele calculou que significava ruivo. O outro menino também tinha cabelos vermelhos, flamejantes, cortados em linha reta, em torno de um rosto moreno, fino e bonito. Não era tão alto quanto Larry. Usava uma camisa cor de ferrugem e um gibão de couro preso com cordões, botas de couro que subiam até os joelhos, a calça justa. Mas Larry se surpreendeu mais ao ver na cintura do menino, numa bainha de couro rachado, uma curta adaga de aço. Larry disse finalmente, hesitante, em darkovano:
- Está falando comigo?
- Quem mais? - As mãos do estranho, metidas em grossas luvas pretas, se aproximaram do punho da adaga, como se fosse um gesto automático. - O que está olhando?
- Apenas olhava o espaço-porto.
- E onde arrumou essas roupas ridículas?
- Ei, escute aqui! - protestou Larry, irritado com o tom grosseiro do outro. - Por que me faz todas essas perguntas? Estou usando as roupas que tenho.
Uma pausa, e ele acrescentou, beligerante:
- Diga-se de passagem, suas roupas também não me agradam. E por que acha que isso é da sua conta?
O menino piscou os olhos, surpreso.
- Será que me enganei? Nunca vi... Quem é você?
- Meu nome é Larry Montray.
O menino com a adaga franziu o rosto.
- Não posso entender. Você... perdoe-me, mas por acaso pertence ao espaço-porto? Não tenho a intenção de ofender, mas...
- Acabo de chegar, na nave Pantomime - informou Larry. O estranho tornou a franzir o rosto e murmurou, devagar:
- Acho que isso explica tudo. Mas fala a língua tão bem, e parece... deve desculpar meu engano, foi natural.
Ele fitou Larry em silêncio por um minuto inteiro, e depois se pôs a falar apressado, como se as comportas se abrissem:
- Nunca tinha falado antes com alguém do mundo exterior! Como é viajar pelo espaço? É verdade que há muitos sóis como este? Como são os outros mundos?
Mas antes que pudesse responder, Larry ouviu a voz do pai, alteada:
- Larry! Onde você se meteu?
- Estou aqui! - gritou ele, virando-se, e percebeu que se achava oculto pela sombra da arcada. - Só um instante...
Larry se voltou para o estranho, e descobriu, surpreso e exasperado, que o menino darkovano lhe dera as costas e se afastava, apressado. Logo desapareceu na entrada de uma rua estreita e escura, no outro lado da praça. Larry continuou parado ali, de rosto franzido.
O pai se aproximou num instante.
- O que estava fazendo? Apenas olhando a praça? Creio que não há mal nenhum nisso, mas... - Wade Montray parecia bastante agitado. - Com quem falava? Um dos nativos?
- Apenas um garoto da minha idade - respondeu Larry. - Papai, ele pensou...
- Não importa agora - interrompeu-o o pai, de uma maneira um tanto brusca. - Vamos procurar nossos aposentos e nos instalar. Você aprenderá muito em breve. Vamos indo.
Larry seguiu-o, perplexo e exasperado com a atitude do pai. Ele não costumava agir assim. Mas seu desapontamento inicial pela insipidez de Darkover desaparecera de repente.
Aquele garoto pensou que eu era darkovano. Mesmo com as roupas que estou usando. Ao me ouvir falar a língua, não percebeu a diferença.
Ele olhou para trás, quase ansioso, para a paisagem desaparecendo de Darkover, além do portão proibido. Passavam agora por uma rua de casas e prédios que eram iguais aos da Terra, e o pai de Larry suspirou... de alívio?
- É como se estivéssemos na Terra. Pelo menos você não sentirá saudade de casa aqui. - Ele conferiu o número num cartão abriu e uma porta. - Nossos aposentos são neste prédio.
Lá dentro, as luzes eram ajustadas para dar a impressão da claridade na Terra ao meio-dia, e o apartamento - cinco cômodos, no quarto andar - não diferia muito do que ocupavam na Terra. Durante todo o tempo em que desfaziam as malas, providenciavam comida, exploravam o apartamento, os pensamentos de Larry enveredaram por um novo e estranho padrão.
Qual o sentido de viver num mundo estranho se você se empenhava ao máximo para fazer com que sua casa, os móveis, a própria luz, tudo, enfim, parecesse com o que tinha antes? Por que então não permanecer na Terra, se era assim que você se sentia?
Muito bem, se eles queriam assim, não havia problema. Mas ele, Larry, trataria de conhecer Darkover mais do que aquilo.
Veria o que havia além daquele portão. O novo mundo era belo e estranho... e ele mal podia esperar para explorá-lo.
Saudade da Terra? Quem o pai pensava que ele era?
LARRY puxou A PESADA PORTA de aço do Edifício B e saiu para o frio penetrante do pátio entre os prédios. Parou ali, tremendo, e olhou para o céu; o enorme céu vermelho pairava baixo, descaindo devagar para o horizonte, onde nuvens de tempestade se acumulavam contra as montanhas, em tons vermelhos, escarlates e purpúreos.
Por trás dele, Rick Stewart estremeceu audivelmente, aconchegando-se em seu casaco.
- Que frio! Eu bem que gostaria que houvesse uma passagem fechada entre os prédios. E não consigo ver nada nesta luz. Vamos entrar logo, Larry. - Ele esperou um minuto, impaciente. - O que está olhando?
- Nada.
Larry deu de ombros e seguiu o outro rapaz para o Edifício A, onde ficavam seus apartamentos. Como podia explicar que aquela breve passagem diária entre o Edifício B - onde se localizava a escola para os filhos do pessoal do espaço-porto, do jardim de infância ao pré-universitário - e o Edifício A era a sua única oportunidade de olhar para Darkover?
Lá dentro, na claridade amarelada, como a da Terra, Rick relaxou e comentou, enquanto entravam no elevador:
- Você é esquisito. Pensei que a luz lá fora também doesse em seus olhos.
- Não é o que acontece comigo. Até que me agrada. E gostaria que pudéssemos sair para explorar os arredores.
- Dar um pulo ao espaço-porto? - Rick soltou uma risada. - Não há nada para ver ali, a não ser naves estelares, e já são uma coisa antiga para mim. Mas suponho que ainda são emocionantes para você.
Larry irritou-se com o tom divertido e condescendente na voz de Rick, que vivia em Darkover há três anos... e admitia, com toda a franqueza, que nunca estivera além do espaço-porto.
- Não é isso. Eu gostaria de dar um pulo à cidade... ver como é. - E, de repente, a contrariedade acumulada escapou. - Estou em Darkover há três semanas, e é como se não tivesse saído da Terra. Até mesmo na escola aqui, estudo as mesmas coisas que estudava lá. História da Terra, primórdios da exploração espacial, Literatura Padrão, matemática...
- Nem poderia ser de outra maneira - disse Rick. - Acha que qualquer cidadão terráqueo continuaria aqui se seus filhos não pudessem receber uma educação condizente? É o que se precisa aprender para ingressar em qualquer universidade do Império.
- Sei disso. Mas, afinal, não acha que deveríamos também estudar alguma coisa deste planeta, já que vivemos aqui?
Rick deu de ombros.
- Não vejo por quê.
Entraram no apartamento que Larry partilhava com o pai e largaram os livros escolares e o resto da parafernália. Larry foi até o dispensador de comida - pelo qual os alimentos preparados na cozinha central eram entregues nos aposentos individuais, através de um tubo pneumático, e debitados na conta dos moradores - e pediu refrigerantes e sanduíches e perguntou ao Rick o que ele gostaria. Os dois se acomodaram na sala e comeram vorazmente.
- Você é mesmo esquisito - repetiu Rick. - Por que se importa com este planeta? Não ficaremos aqui pelo resto da vida. De que adiantaria aprender tudo sobre Darkover? O que aprendermos nas escolas do Império Terráqueo será válido em qualquer planeta do Império para o qual nos enviarem. Quanto a mim, pretendo ingressar na Academia Espacial quando fizer dezoito anos... e isso é razão mais do que suficiente para mergulhar nos livros de navegação e de matemática!
Larry mastigou uma bolacha e reiterou, com uma ênfase obstinada:
- Pois me parece engraçado viver num mundo como este e não saber nada a seu respeito. Por que não ficar na Terra, se a cultura de lá é tudo o que lhe interessa?
A risada de Rick foi tolerante.
- É a primeira vez que sai da Terra, não é? Ora, isso explica tudo. Depois de conhecer alguns outros planetas, vai compreender que não existe nada fora da Terra além de bárbaros e colonos. A menos que queira fazer carreira em arqueologia ou história, por que atravancar sua mente com os detalhes?
Larry não podia responder. Nem tentou. Terminou de comer a bolacha e abriu o livro sobre navegação.
- Era este o problema que estava achando difícil?
Mas enquanto estudavam juntos, calculando órbitas interes-telares e traçando curvas de colisão, Larry ainda pensava, com uma ansiedade frustrada, no mundo lá fora... o mundo que, parecia agora, ele jamais conheceria.
Rick dava a impressão de que não se importava com isso. Nenhum dos jovens que ele conhecera na Cidade Comercial se importava. Eram terráqueos, e qualquer coisa fora da Zona Terráquea era alienígena... e não davam a menor importância. Levavam a mesma vida que teriam em qualquer planeta do Império, e era mesmo o que queriam.
Ficariam surpresos - mais do que isso, assombrados - se soubessem que ele aprendera a língua darkovana. Não poderiam conceber por quê. Um dos professores se mostrara um pouco compreensivo; ensinara Larry a escrever complicadas letras do alfabeto darkovano e até lhe emprestara alguns livros escritos em darkovano. Mas não havia muito tempo para se dedicar a isso.
De um modo geral, ele recebia a mesma instrução que teria na Terra. Darkover, até mesmo a luz do sol vermelho de Darkover, era excluída pelos muros e pelas lâmpadas amarelas, do mesmo tipo da claridade da Terra; e as mentes fechadas do pessoal da Zona Terráquea constituíam uma barreira ainda maior.
Depois que Rick foi embora, Larry guardou seus livros e sentou, de rosto franzido, pensativo, até que o pai chegou.
- Como foi seu dia, papai?
Ele sentia-se fascinado pelo trabalho do pai, mas Wade Montray não falava muito a respeito. Larry sabia que o pai trabalhava na alfândega e que sua função, de um modo geral, era evitar que qualquer contrabando passasse de Darkover para a Zona Terráquea, ou vice-versa. Parecia bastante interessante para Larry, embora o pai insistissem que não era muito diferente do trabalho que realizava na Terra.
Mas hoje Wade parecia um pouco mais comunicativo.
- Que tal pedir o nosso jantar? Estive tão ocupado hoje que não encontrei tempo para comer qualquer coisa. Surgiu um problema no escritório. Um dos Anciãos da Cidade nos procurou, furioso como um gato encharcado. Insistiu, que um dos nossos homens levara armas para a Cidade, e tivemos de investigar. Descobrimos que um jovem e tolo darkovano oferecera um bocado de dinheiro a um dos guardas do espaço-porto para lhe vender sua pistola e comunicar que a perdera. Interrogamos o homem, e ele acabou confessando. Claro que foi expulso da Guarda, e deixará Darkover na próxima espaço-nave. Que idiotice!
- Por que, papai?
Wade Montray apoiou o queixo nas mãos.
- Não conhece muito sobre a história darkovana, não é? Eles têm uma coisa que chamam de Aliança, assinada há mil anos, que torna ilegal alguém possuir ou usar qualquer arma que não seja do tipo que faz com que o homem que a use corra o mesmo risco que o homem a quem ataca.
- Não entendi muito bem, papai.
- Se você usa uma espada, ou uma faca, tem de se aproximar de sua vítima... e por tudo o que sabe, ele pode ter uma faca, e ser melhor do que você em seu uso. Mas armas de fogo, pistolas de raios, bombas atômicas... você pode usá-las sem qualquer risco de sair ferido. Seja como for, os darkovanos assinaram a Aliança, e antes de permitirem que o Império Terráqueo construísse um espaço-porto aqui, para o comércio, tivemos de oferecer garantias rígidas de que os ajudaríamos a impedir o contrabando de armas em Darkover.
- Não posso culpá-los por isso - comentou Larry.
Ele ouvira as histórias sobre as antigas guerras planetárias na Terra.
- O homem que comprou a arma do nosso guarda possui uma coleção de armas antigas e jura que só a queria para a sua coleção... mas ninguém pode ter certeza. E a verdade é que de vez em quando há contrabando cruzando a fronteira, por mais cuidadosos que sejamos. Por isso, tive um dia agitado, investigando o caso. E ainda providenciei para que dois estudantes de nossa escola de medicina aqui fossem para o interior de Darkover, para estudar as doenças que ocorrem ali. Alguns darkovanos estudam em nossa escola de medicina. A ciência médica deles não é muito desenvolvida, e eles têm o maior respeito por nossos médicos. Mas não é fácil, mesmo assim. Os nativos mais supersticiosos têm preconceitos contra qualquer coisa terráquea. E os darkovanos da casta superior não querem qualquer contato conosco, pois consideram que é abaixo de sua dignidade se relacionarem com alienígenas. Acham que somos bárbaros. Conversei com um de seus aristocratas hoje, e ele se comportou como se eu cheirasse mal.
Wade Montray suspirou.
- Eles acham que somos bárbaros - repetiu Larry, falando bem devagar - e, aqui, na Zona Terráquea, nós achamos que os bárbaros são eles.
- Tem razão. E parece que não há qualquer solução para isso.
Larry largou o garfo e indagou, abruptamente:
- Papai, quando terei a oportunidade de ver alguma coisa de Darkover? - Toda a sua frustração aflorou. - Tanto tempo aqui, e só pude ver, através do portão, a mesma coisa que vi no primeiro dia!
O pai recostou-se na cadeira e fitou-o com uma estranha expressão.
- Quer tanto assim conhecer Darkover?
A resposta de Larry não exprimia toda a sua ansiedade:
- Quero.
O pai tornou a suspirar.
- Não é fácil. Os darkovanos não gostam muito da presença dos terráqueos. E esperam que nos mantenhamos restritos às Cidades Comerciais.
- Por quê?
- É difícil explicar. - Wade Montray balançou a cabeça. -Acima de tudo, eles têm medo da nossa influência. Claro que nem todos são assim, mas a resistência é muito grande.
O rosto de Larry assumiu uma expressão desolada, enquanto o pai acrescentava:
- Posso tentar obter permissão, algum dia, para levá-lo numa viagem a uma das outras Cidades Comerciais. Poderia ver a paisagem no percurso. Quanto à Cidade Velha, perto do espaço-porto... é um lugar bastante turbulento, porque todos os tripulantes das naves estelares passam suas licenças ali. Estão acostumados aos terráqueos, mas não há muito para se ver.
Wade Montray suspirou mais uma vez.
- Sei como se sente, Larry. Mas acho que posso levá-lo ao mercado, se isso o livrar dessa ansiedade em conhecer alguma coisa fora da Zona Terráquea.
- Quando? Agora?
O pai riu.
- Está certo. Pegue um casaco. As noites aqui são bem frias. O sol pairava baixo no horizonte, uma imensa bola vermelha na beira do mundo, enquanto atravessavam a Zona Terráquea, passando pelo labirinto de prédios oficiais e descendo para os níveis que davam acesso ao espaço-porto. Não chegaram ao nível mais baixo. Encaminharam-se para o portão, de onde Larry contemplara a cidade ao chegarem; só que desta vez passaram por lá e se aproximaram de outro portão, na extremidade do espaço-porto.
Este era maior, guardado por homens de uniforme preto, com armas na cintura. Acenaram com a cabeça, em reconhecimento, para o pai de Larry, quando eles saíam para a praça.
- Não esqueça o toque de recolher, Sr. Montray. Todo o pessoal da Zona Terráquea que não estiver de serviço deve estar dentro dos portões até a meia-noite, pelo nosso horário.
Montray balançou a cabeça em concordância. Ao atravessarem a praça, lado a lado, ele perguntou:
- Como está se arrumando com o novo ciclo de sono, Larry?
- Não me incomoda.
Darkover tinha um período de rotação de vinte e oito horas, e Larry sabia que algumas pessoas encontravam dificuldades para se ajustarem a dias e noites mais longos, mas ele não tivera qualquer problema.
A praça entre o espaço-porto e a cidade darkovana de Thendara era enorme, aberta, começando a ficar escura, aos últimos raios do sol vermelho. Num lado, recebia a iluminação dos refletores do espaço-porto; no outro, já era pontilhada por algumas luzes mais pálidas, de uma tonalidade rosada. Na outra extremidade, havia uma fileira de lojas, por onde circulavam darkovanos e terráqueos. As mercadorias ali expostas eram de uma variedade surpreendente: peles, artigos de cerâmica, facas lavradas com bainhas brilhantes, os mais diversos tipos de frutas,
e coisas que pareciam ser balas e doces. Mas quando Larry parou para olhar, o pai disse, em voz baixa:
- Esta é apenas a parte para os turistas... os poucos que saem do espaço-porto. Pensei que preferia conhecer o velho mercado. Pode vir aqui a qualquer momento que quiser.
Entraram numa rua transversal, pavimentada com pedras irregulares, estreita demais para qualquer tipo de veículo. O pai andava depressa, como se soubesse para onde ia, e Larry pensou, com algum ressentimento: Ele já esteve aqui antes. Sabe para onde ir. E não percebeu que eu também queria conhecer tudo isto.
As casas eram baixas, a maioria de pedra, e pareciam muito antigas. Tinham muitas janelas, com vidros grossos, translúcidos, coloridos ou foscos, dispostos em vários padrões, de tal forma que nada se podia ver de fora. Entre as casas, havia estandes baixos, feitos de bambu ou madeira, e uma variedade de anexos.
Larry especulou como seriam as casas por dentro. Ao passar por uma delas, sentiu um cheiro intenso de carne assada; e por trás de outra casa, ouviu vozes de crianças brincando. Um homem desceu pela rua, devagar, montado num pequeno cavalo castanho; Larry percebeu que ele controlava o cavalo sem freio ou bridão, usando apenas o cabresto e as rédeas.
A rua estreita se alargou e desembocou num espaço aberto muito mais amplo, ocupado por estandes de bambu, tendas de lona multicoloridas e pequenos quiosques de pedra. A iluminação era precária, sem muitas luzes. Ao redor do mercado, havia cavalos e carroças, o que despertou a curiosidade de Larry.
- Cavalos?
Montray acenou com a cabeça.
- Eles não fabricam transportes de superfície de qualquer tipo. Tentamos interessá-los num mercado para autocarros e helicópteros, mas eles dizem que não gostam de abrir estradas, e de qualquer forma ninguém tem pressa. É um mundo bárbaro, Larry. Já lhe disse isso. Aqui entre nós... - Ele baixou a voz. - ...tenho a impressão de que muitos darkovanos gostariam de ter máquinas do tipo que usamos. Mas as pessoas que controlam o planeta querem manter seu mundo do jeito como é. Acham que é melhor assim.
Larry corria os olhos ao redor, fascinado.
- Confesso que eu detestaria ver este mercado transformado num vasto centro comercial mecanizado. Os que existem na Terra são horríveis.
O pai sorriu.
- Não gostaria de conviver com isso. É como todos os jovens, romantiza as coisas antigas. Mas, acredite em mim, as autoridades darkovanas não têm nada de romântico. Apenas é mais fácil para elas controlar a situação à sua maneira, mantendo o povo a fazer as mesmas coisas que sempre fez. Mas isso não vai durar muito tempo. - Wade Montray parecia ter uma certeza absoluta. - Assim que o Império Terráqueo mostrar ao povo como pode ser uma civilização estelar, o povo vai querer o progresso.
Um homem alto, de rosto duro, usando um manto comprido, lançou-lhes um olhar irado, os olhos azuis faiscando, e se afastou em seguida. Larry comentou:
- Aquele homem ouviu o que você disse, papai, e não gostou.
- Não fique imaginando coisas. Eu não falava tão alto assim, e além do mais bem poucos darkovanos conhecem as línguas terráqueas. São todos iguais. Comerciam conosco, mas não querem saber da nossa cultura.
O pai parou ao lado de uma fileira de estandes.
- Pode ver alguma coisa aqui que gostaria?
Havia tigelas vitrificadas, nas cores azul e branco, em diversos tamanhos, num lado, e outras similares, só que em verde e marrom, no outro lado. No estande seguinte, encontraram facas e adagas de vários tipos, e Larry descobriu-se a pensar no menino darkovano com uma adaga na cintura. Pegou uma adaga e examinou-a; ao rosto franzido do pai, soltou uma risada curta e pôs a arma de volta no lugar. O que faria com aquilo? Terráqueos não usavam facas.
Uma velha por trás de um balcão baixo se inclinava sobre uma enorme tigela de cerâmica, cheia de gordura borbulhante, torcia pedaços de massa e largava-os lá dentro. Por baixo da tigela, o fogo de carvão luzia como o sol vermelho, irradiando um calor agradável. As tiras de massa se contorciam como peixinhos dourados ao fritarem; vendo a mulher tirá-las, Larry sentiu uma fome súbita. Não falara darkovano desde aquele primeiro dia, mas no instante em que abriu a boca, quando as primeiras palavras saíram, compreendeu que tirara um bom proveito das fitas, pois sabia agora o que queria dizer, e como.
- Qual é o preço dos bolinhos, por favor?
- Dois sekals cada um, jovem senhor.
Larry tirou as moedas do bolso e pediu meia dúzia. O pai largou um pergaminho que examinava, no estande ao lado, e se aproximou.
- Esses bolinhos são ótimos - disse ele. - Já provei. Lembram nossas rosquinhas.
A velha ajeitou os bolinhos num pano limpo, deixando escorrer a gordura de cheiro adocicado, e depois pulverizou-os com um pó branco. Embrulhou-os numa folha de fibra marrom, e entregou-os a Larry.
- Seu sotaque é estranho, jovem senhor. Por acaso vem da cordilheira de Cahuenga?
No momento em que ela levantou o rosto todo enrugado, Larry descobriu que a mulher tinha olhos esbranquiçados e desfocados: era cega. Mas ela pensara que seu modo de falar era darkovano! Ele deu uma resposta neutra, pagou os bolinhos e mordeu um, faminto. Eram doces, cobertos com o que parecia ser açúcar cristalizado.
Continuaram a circular pelo mercado. De vez em quando encontravam homens uniformizados do espaço-porto, um ou outro civil, mas quase todos os homens, mulheres e crianças no mercado eram darkovanos, e olhavam para os terráqueos, pai e filho, com uma curiosidade um pouco hostil.
Larry pensou: Todos nos olham com surpresa. Eu gostaria de me vestir como um darkovano e me misturar com eles, de tal forma que não me notassem. Assim, poderia saber como realmente são. Desolado, ele mastigou um bolinho e logo parou diante de um mostruário de facas curtas. O darkovano no estande disse ao pai de Larry:
- Seu filho já tem idade para andar armado... ou será que os terráqueos não permitem que seus jovens sejam homens?
O sorriso era insidioso, o tom condescendente. Wade Montray franziu o rosto, irritado.
- Vamos embora, Larry?
- Claro, papai.
Larry sentia-se um tanto decepcionado. Mas, afinal, o que esperava? Começaram a voltar pelas fileiras de estandes.
- O que aquele homem quis dizer, papai?
- Em Darkover, você já teria idade legal... já teria idade suficiente para usar uma espada. E todos esperariam que sempre andasse com uma, para se defender, se necessário.
Abruptamente, o sol vermelho mergulhou além do horizonte e desapareceu por completo. No instante seguinte, como asas envolventes, a escuridão cobriu todo o céu, e uma neblina fina surgiu pelas passagens do mercado. Larry estremeceu, apesar do casaco grosso, enquanto o pai levantava sua gola. As luzes do mercado faiscavam, cercadas por brumas coloridas.
- É por isso que chamam o planeta de Darkover, da antiga palavra inglesa para escuridão - explicou o pai, já meio invisível na neblina. - Fique perto de mim, ou vai se perder neste nevoeiro. Mas vai se dissipar e virar chuva dentro de poucos minutos.
Através da densa neblina, entre as luzes bruxuleantes, uma forma se destacou e adiantou-se devagar. A princípio, parecia um homem alto, protegendo-se contra o frio com um manto e capuz; mas depois, sentindo um estranho calafrio na espinha, Larry compreendeu que a forma à sua frente, encurvada, de ombros largos, coberta pelo manto, não era humana. Um par de olhos verdes, luminescentes como os olhos de um gato à luz de um lampião, virou-se na direção deles. O não-humano continuou a andar, lentamente. Larry parou, meio hipnotizado, fixado naqueles olhos penetrantes, quase incapaz de qualquer movimento.
- Afaste-se!
Num gesto brusco, o pai empurrou-o contra um muro. Larry tropeçou, perdeu o equilíbrio, caiu e estendeu uma das mãos, na tentativa de se segurar. A mão roçou na beira do manto do alienígena...
Uma dor intensa, ardente, fê-lo puxar a mão e jogou-o para trás, com toda a força, contra o muro de pedra. Era como o choque de um fio elétrico desencapado. O não-humano passou, ainda sem pressa, deslizando devagar. O rosto de Wade Montray se tornara muito pálido.
- Larry! Está machucado, filho?
Larry esfregou a mão; estava dormente, latejava.
- Acho que não. Mas o que era aquela coisa?
- Um kyrri. Eles possuem campos elétricos protetores, como acontece com alguns peixes na Terra. - A expressão do pai era sombria. - Há anos que não vejo nenhum numa cidade humana.
Larry, ainda atordoado, olhou para o vulto cada vez menor na distância, com o maior respeito, uma estranha reverência, e murmurou, fervoroso:
- De uma coisa tenho certeza: nunca mais ficarei no caminho de uma coisa assim.
A neblina começou a se dissipar, uma chuva gelada logo caiu. Sem falar mais nada, Wade Montray encaminhou-se apressado para o espaço-porto; andando depressa para acompanhá-lo - e não se importando com isso, porque o frio era enregelante, e o ritmo acelerado servia para mantê-lo aquecido -, Larry se perguntou por que o pai permanecia tão calado. Simplesmente por que sentira medo? Parecia mais do que isso.
Montray só voltou a falar quando se encontravam no apartamento, no Edifício A, a luz amarela quente e brilhante a envolvê-los, como um traje familiar. Larry, tirando seu casaco, ouviu o pai suspirar.
- E então, Larry, isso satisfez um pouco a sua curiosidade?
- Obrigado, papai. Montray arriou numa cadeira.
- Isso significa que a resposta é não. Muito bem, acho que pode visitar a seção para turistas e o mercado sozinho, se quiser. Mas é melhor não andar muito por lá sozinho.
O pai pediu um drinque quente no dispensador, voltou e tomou um gole, antes de falar de novo, a voz pausada:
- Não quero lhe impor condições, Larry. Serei franco com você. Gostaria que não fosse amaldiçoado por essa sua infernal curiosidade. Acharia melhor se fosse como os outros garotos aqui... contente em permanecer um terráqueo. Seria uma preocupação a menos para mim. Mas não vou proibi-lo de fazer suas explorações, se é isso o que quer. Se tivesse sido criado aqui, já seria considerado um adulto... com idade suficiente para usar uma espada, e bater-se em duelos.
- Como soube disso, papai?
O pai não o fitou. Virado para a parede, murmurou:
- Passei alguns anos aqui, antes de você nascer. Nunca deveria ter voltado. Sabia disso. Agora posso compreender...
Ele parou de falar, bruscamente, e foi para seu quarto. Larry não tornou a vê-lo naquela noite.
Se O PAI de LARRY esperava que aquele vislumbre de Darkover arrefecesse a sua ânsia pelo mundo fora da Zona Terráquea, estava enganado. A visão rápida e superficial da estranheza aguçara a sua curiosidade, sem satisfazê-la.
Mas, no final das contas, ele não me proibiu de deixar a Zona Terráquea. Era o que Larry dizia a si mesmo, em desafio, cada vez que atravessava os portões do espaço-porto, e saía para a cidade. Sabia que o pai desaprovava, mas nunca falavam a respeito.
A pé, sozinho, ele explorou a estranha cidade; a princípio, permanecendo próximo dos muros do espaço-porto à vista do ponto de referência mais alto, que era o prédio do quartel-general. Os terráqueos eram uma presença familiar, e os darkovanos do setor não prestavam muita atenção ao jovem terráqueo alto, de cabelos vermelhos. Alguns comerciantes, quando descobriram que Larry sabia falar sua língua, mostraram-se propensos a serem cordiais.
Encorajado por essas expedições à cidade, Larry foi se tornando pouco a pouco mais ousado. De vez em quando se arriscava além do distrito familiar do espaço-porto, explorando alguma rua transversal mais fascinante, entrando numa praça desconhecida.
Uma tarde, passou uma hora parado perto da porta de uma forja, observando um ferreiro pôr ferraduras de metal num dos pequenos e vigorosos cavalos darkovanos. Não se via uma coisa assim na Terra, não hoje em dia. Os cavalos eram animais raros, mantidos em zoológicos e museus.
Ele percebia os olhares curiosos ou hostis que às vezes o acompanhavam. Os terráqueos não eram muito populares na cidade. Mas ele fora criado na Terra, um mundo sossegado e bem policiado, e mal sabia o que era o medo. Com toda certeza, pensava ele, estava seguro nas ruas da cidade, em plena luz do dia!
Alguns dias haviam se passado desde que ele vira o ferreiro trabalhando. Voltou àquela área, fascinado pela cena; e depois, atraído por uma rua com jardins de árvores baixas e flores estranhas, saiu andando por ali. Não demorou muito a compreender que não prestara a devida atenção a seu rumo; a rua tinha várias voltas, cruzara com outras, e agora não tinha mais certeza do caminho por onde viera. Olhou ao redor, mas as casas altas impediam a vista dos prédios do espaço-porto, e ele não sabia que rumo seguir.
Larry não entrou em pânico. Estava convencido de que só precisava voltar sobre os seus passos para encontrar uma área familiar; ou, talvez, seguir um pouco mais adiante, para sair numa parte da cidade que conhecia.
E ele seguiu adiante. A rua com jardins acabou subitamente, e Larry se descobriu numa parte da cidade que nunca vira antes. Era tão diferente de tudo o que já conhecera até agora que se pôs a especular, a sério, se não se extraviara para um distrito não-humano. O sol já baixara bastante no céu, e ele começou a se preocupar um pouco com isso. Conseguiria mesmo, no final das contas, descobrir o caminho de volta?
Ele olhou ao redor, tentando se orientar na claridade minguante. As ruas eram irregulares ali, sinuosas; as casas eram quase coladas umas nas outras, feitas de colmo e pedras juntadas com o que parecia ser um cimento ordinário, sem janelas e escuras. A rua parecia vazia; e, no entanto, no momento em que parou para olhar ao redor, Larry experimentou a sensação desconcertante de que alguém o observava.
- Pare com isso! - disse ele, em voz alta. - Não comece a imaginar coisas.
Procurou avaliar a sua posição. O espaço-porto ficava a leste da cidade; portanto, deveria virar as costas ao sol e seguir nessa direção.
Alguém me observa. Posso sentir.
Ele se virou devagar, procurando se orientar. Devia entrar naquela rua, seguir em frente, para leste, e assim não poderia deixar de alcançar o espaço-porto. Talvez fosse uma longa caminhada, mas não se passaria muito tempo até alcançar um distrito familiar. Antes do escurecer, eu espero. Ele olhou para trás, nervoso, e enveredou pela rua estreita. Eram passos que soavam em sua esteira?
Ordenou a si mesmo que deixasse de imaginar coisas. Há pessoas que moram aqui. Têm o direito de andar pela rua. Portanto, qual é o problema se houver alguém atrás de mim? De qualquer forma, não há ninguém.
Abruptamente, a rua se revelou sem saída, terminando numa pequena praça, cercada por um muro de pedra baixo, com as entradas dos fundos de algumas casas. Larry franziu o rosto e sentiu vontade de praguejar. Teria de tentar de novo. E se o sol sumisse e ele fosse obrigado a vaguear na escuridão, sua situação se tornaria crítica! Larry virou-se para voltar pelo mesmo caminho e parou no mesmo instante.
Várias formas indistintas avançavam em sua direção, do outro lado da praça. Na parca claridade, tingida de púrpura, pareciam enormes e ameaçadoras, imbuídas de uma firme determinação. Larry pôs-se a andar, mas logo hesitou; os vultos se moviam mesmo... e bloqueavam o seu retorno pelo caminho por que viera.
Podia vê-los com mais nitidez agora. Eram meninos e rapazes, uns seis ou oito, mais ou menos de sua idade, ou mais novos,
vestidos em andrajos darkovanos; os cabelos mal cortados caíam pelos ombros, e todos tinham uma aparência insidiosa. Pareciam rudes, turbulentos, sem qualquer cordialidade, e Larry experimentou um momento de pânico. Mas disse a si mesmo, com firmeza: Não passam de um bando de garotos. E a maioria deve ser mais nova do que eu. Por que devo presumir que estão atrás de mim... ou que têm algum interesse por mim? Por tudo o que sei, pode ser apenas um bando de idiotas locais, a caminho de uma noite de diversão!
Ele acenou com a cabeça, polido, e foi andando na direção dos garotos, confiante de que se afastariam para deixá-lo passar. Em vez disso, cerraram fileira à sua frente, e Larry teve de parar, para não esbarrar de frente no líder, um garoto alto e corpulento, em torno dos dezesseis anos. Larry disse, em darkovano:
- Quer me deixar passar, por favor?
- Ora, ele fala a nossa língua! - O dialeto do garoto corpulento era tão estranho que Larry mal conseguiu entender as palavras. - Mas o que um Terranan do outro lado dos muros está fazendo aqui, nesta parte da cidade?
- O que você quer aqui? - indagou outro garoto.
Larry respirou fundo, fazendo um esforço para não deixar transparecer seu medo, e falou com uma cuidadosa cortesia:
- Estava passeando pela cidade e me perdi. Se um de vocês me dissesse que caminho devo seguir para chegar ao espaço-porto, eu ficaria agradecido.
As palavras polidas, no entanto, foram recebidas com acessos de risadas estridentes.
- Ei, ele se perdeu!
- Mas que pena!
- Ei, chiyu, espera que o chefão do espaço-porto venha procurá-lo aqui com um lampião?
- Pobre coitado! Sozinho na rua depois do escurecer!
- E nem é bastante grande para andar com uma faca! Sua mamãe sabe que saiu sozinho, garoto?
Larry não respondeu. Começava a sentir um medo terrível. Talvez eles se contentassem em agredi-lo com palavras... talvez não. Aqueles arruaceiros darkovanos podiam ser apenas garotos, mas as facas que tinham na cintura eram compridas e letais, e não podia haver a menor dúvida de que sabiam usá-las. Ele avaliou o líder com os olhos, especulando se seria capaz de enfrentá-lo numa briga. Era bem possível, já que o garoto alto parecia gordo, fora de forma... mas não conseguiria resistir a todo o bando ao mesmo tempo.
De qualquer forma, Larry compreendeu que estaria perdido no instante em que demonstrasse medo. Se apenas o provocavam, uma atitude ousada poderia ser o blefe que lhe permitiria escapar. Por isso, Larry cerrou os punhos, tentando com o gesto manter a voz firme e encarar o garoto.
- Saia da minha frente!
- E se eu lhe desse uma surra, terráqueo?
- Muito bem - disse Larry, por entre os dentes semicerrados - você pediu por isso, gorducho!
No instante seguinte, ele acertou um soco vigoroso no queixo do garoto, que deixou escapar um grito de surpresa e dor, mas logo se recuperou, ergueu os punhos e desferiu um golpe violento na barriga de Larry. Atordoado, Larry cambaleou para trás, fazendo um esforço para não perder o equilíbrio, mal conseguindo respirar.
O garoto chutou-o. E todo o bando o atacou, empurrando e batendo, gritando palavras que Larry não entendia. Formaram um círculo ao seu redor, fazendo-o perder o equilíbrio cada vez que se recuperava, empurrando e escarnecendo. A respiração de Larry saía em soluços de raiva.
- Se um de vocês brigar comigo de cada vez, seus covardes, vão ver só...
Um chute acertou sua canela; alguém deu uma cotovelada em sua barriga. Larry caiu de joelhos. Levou um soco na cara e sentiu o sangue escorrer do lábio. O terror o dominou, ao compreender que ninguém na Zona Terráquea sabia onde ele se encontrava, que podia não apenas levar uma surra, mas também ser morto.
- Deixem-no em paz, seus asquerosos coelhos da sarjeta! Era uma voz nova, firme e desdenhosa, sobrepondo-se aos gritos e zombarias escarninhos. Com ofegos e murmúrios de consternação, os garotos recuaram. Larry, ajoelhando-se devagar, limpando o sangue do rosto na trégua, piscou à súbita luz das tochas.
Dois homens altos, vestidos de verde, seguravam as tochas; mas as luzes e todos os olhos focalizavam o jovem entre as tochas.
Era alto, cabelos vermelhos, vestia um gibão de couro bordado, um manto de pele curto, e tinha a mão pousada no punho de uma faca. Seus olhos, de um cinza frio, pareciam arder em fúria, enquanto censurava o bando com palavras candentes:
- Nove... dez contra um, e ainda assim ele os enfrentava. Isso prova que os terráqueos são covardes?
Seus olhos desviaram-se para Larry, e ele gesticulou.
- Levante-se!
O chefe do bando tremia, literalmente. Inclinou a cabeça, balbuciando:
- Lorde Alton...
O recém-chegado silenciou-o com um gesto. Os garotos menores pareciam intimidados. O jovem de manto de pele deu um passo na direção de Larry, e seus lábios se contraíram num sorriso frio.
- Eu deveria ter imaginado que era você. Temos o compromisso de manter a paz na cidade, mas me parece que você pedia por encrenca. O que veio fazer aqui?
- Saí para dar uma volta e me perdi - explicou Larry.
Subitamente, ele se ressentiu do ar frio e arrogante de autoridade na voz do jovem. Empinou a cabeça, fitou-o nos olhos e acrescentou:
- Isso é um crime?
O jovem no manto de pele soltou uma risada breve. No mesmo instante, Larry reconheceu o riso e o rosto. Era o mesmo ruivo insolente que encontrara no seu primeiro dia em Darkover, o jovem que lhe falara no portão do espaço-porto.
O jovem darkovano olhou para o bando de garotos, que recuara, todos agrupados agora, apreensivos.
- Já não são mais tão corajosos, hem? Mas não se preocupem, não vim aqui para interromper a briga. - A voz era incisiva, impregnada de desprezo. - Mas terá de ser diferente.
Ele fez uma pausa e olhou para Larry.
- Escolha alguém do seu número... alguém do seu tamanho.. . e só um de vocês vai brigar com ele. - Os olhos avaliaram Larry, e o jovem acrescentou, pensativo: - A menos que tenha medo de brigar, terráqueo. Neste caso, eu o mandarei de volta para casa com meus guardas.
Larry irritou-se com a insinuação.
- Brigarei com cinco deles ao mesmo tempo, se não vierem com golpes sujos! - protestou ele, furioso.
O jovem darkovano inclinou a cabeça para trás numa risada.
- Um já é suficiente. Muito bem, garotos - disse ele, olhando para o bando -, escolham o seu campeão. Ou será que nenhum de vocês está disposto a enfrentar um terráqueo sem o apoio do resto da turma?
Os garotos olharam cautelosos para Larry e para os dois guardas enormes, ladeando o jovem aristocrata darkovano. Houve um longo momento de silêncio. O jovem soltou uma suave risada.
Finalmente, um garoto alto e magro, com mais de um metro e oitenta, um dente quebrado, um rosto amarelado e insidioso, cuspiu no chão.
- Lutarei com o... - Ele disse um epíteto que Larry não entendeu. - Não tenho medo de nenhum terráqueo, daqui até as Hellers.
Larry cerrou os punhos, avaliando seu novo oponente. Calculou que o garoto devia ser um ano mais velho, talvez mais. Alto e forte, com punhos enormes, parecia um terrível adversário. Aquela briga também não seria fácil.
Subitamente, o garoto correu para ele, desferindo uma sucessão de golpes, antes que Larry pudesse reagir, obrigando-o a recuar. Um soco atingiu seu olho, um segundo acertou no queixo. Ele teve de fazer o maior esforço para não cair, enquanto os outros garotos gritavam palavras de estímulo a seu companheiro. O que deixou Larry furioso. Ele avançou e desferiu um soco violento no queixo do adversário, seguido no mesmo instante por outro, no nariz. O sangue começou a escorrer do nariz do garoto, que atacou, numa raiva intensa. Mas Larry aparou os golpes com facilidade. Compreendeu que o garoto, apesar de ter um alcance maior, não contava com a vantagem de saber lutar. Ainda conseguia acertar um ou outro soco no corpo, mas Larry, usando com todo o cuidado seus conhecimentos de boxe, obrigou-o a recuar, lentamente, mantendo-o sempre desequilibrado, encaixando um soco depois do outro no queixo e no rosto. Baixando a cabeça, o desordeiro tentou imobilizá-lo; agarrou Larry pela cintura e levantou o joelho. Mas Larry acertou uma cotovelada em seu rosto, desvencilhou-se e desferiu um violento soco no olho do oponente.
O garoto cambaleou para trás, balançou, tropeçou e caiu sobre as pedras do calçamento.
- Venha, seu desgraçado! - berrou Larry, furioso. - Levante-se e lute!
O garoto fez um esforço para se erguer, ficou de joelhos, mas tornou a desabar no chão.
Larry deixou escapar um longo suspiro. Tinha os lábios partidos, sentia o gosto de sangue, os olhos doloridos, as costelas machucadas; e a sensação era de que batera com os punhos, as articulações em carne viva, num muro.
O jovem aristocrata gesticulou para um dos seus guardas, que foi se inclinar sobre o garoto inconsciente.
- Agora, todos vocês... sumam daqui!
A voz ressoava com um desdém intenso. Um a um, os garotos desapareceram nas brumas da escuridão.
Larry continuou parado, os dedos das mãos latejando, até que o último garoto deixou a praça.
- Obrigado - balbuciou ele.
- Não precisa me agradecer - disse o jovem darkovano, em tom brusco. - Mostrou que sabe muito bem se defender sozinho. Eu queria saber do que era capaz.
Ele fez uma pausa e sorriu.
- Pelo que me diz respeito, você ganhou a liberdade de circular pela cidade. Fez por merecer. Há vários dias que eu estava de olho em você.
Larry ficou surpreso.
- Como assim?
- Acha que um terráqueo de cabeça vermelha pode andar por lugares em que nenhum outro terráqueo jamais ousou ir sem que metade da cidade saiba? E o fato chegou ao conhecimento do Comyn.
Comyn... Era uma palavra que Larry não conhecia. O jovem darkovano continuou:
- Tinha certeza de que era apenas uma questão de tempo até que se metesse numa encrenca, e queria saber se ia se comportar como o típico terráqueo... - Outra vez uma insinuação de desdém na voz. - ...e tentar enfrentar os atacantes com armas de covardes, como seus guardas com suas armas, ou gritar para que a polícia viesse salvá-lo. Nenhum terráqueo enfrenta sozinho as suas dificuldades.
Outra pausa, outro sorriso.
- Mas foi o que você fez.
- Não seria capaz de resistir sem a sua ajuda. O darkovano balançou a cabeça.
- Não levantei a mão. Apenas cuidei para que a briga fosse honrada... e por mim, você pode ir a qualquer lugar da cidade que quiser, daqui por diante. Meu nome é Kennard Alton. Qual é o seu?
- Larry Montray.
Kennard disse uma frase darkovana formal, inclinando a cabeça. Tornou a sorrir.
- A casa de meu pai fica a poucos passos daqui, e estou de folga esta noite. Não pode voltar para a Zona Terráquea desse jeito.
Pela primeira vez, ele parecia tão jovem quanto era, a sobriedade formal desaparecendo na risada juvenil.
- Deixaria seu pessoal apavorado... e se tem um pai e mãe tão preocupados quanto os meus, não será nada agradável. Por isso, é melhor vir comigo.
Sem esperar pela resposta de Larry, ele virou-se, gesticulando para os guardas. Larry foi atrás, sem dizer nada, sentindo um excitamento contido. O que parecera uma situação terrível se transformava numa situação e tanto. Fora convidado a entrar numa casa darkovana!
Kennard encaminhou-se para uma das casas altas, cercada por um muro largo e baixo. Subiram por alguns degraus de pedra. Kennard fez um gesto estranho, e a porta se abriu. Ele virou-se.
- Entre, e seja bem-vindo. Venha em paz, terráqueo.
O momento parecia exigir uma resposta cerimonial, mas Larry só foi capaz de dizer uma palavra:
- Obrigado.
Ele entrou no vestíbulo amplo da casa muito bem iluminada, piscando com a inesperada claridade. Olhou ao redor, em curiosidade e espanto.
Alguém, em algum lugar, tocava um instrumento de cordas, que parecia ser uma harpa. O chão era de pedra translúcida, havia painéis finos pendurados nas paredes, parecendo cortinas. Um não-humano alto e peludo, com olhos verdes inteligentes, adiantou-se, tirou o manto de Kennard e, a um sinal, pegou também o casaco rasgado de Larry.
- É a noite de recepção da minha mãe, e por isso não vamos incomodá-la. - Virando-se para o não-humano, Kennard acrescentou: - Avise a meu pai que tenho um convidado lá em cima.
Larry subiu atrás pela escada comprida. Kennard abriu uma porta escura, cantarolou uma nota baixa, e a sala ficou toda iluminada, aquecida.
Era agradável, com divas baixos e cadeiras, uma prateleira com facas e espadas ao longo de uma parede, uma ave empalhada, lembrando uma águia, o retrato emoldurado de um cavalo, e numa mesinha o que parecia ser um tabuleiro de xadrez, ou de damas, com peças de cristal enfileiradas nas extremidades. Era uma sala luxuosa, mas não arrumada, pois havia peças de roupas espalhadas, e uma mesa com objetos diversos, que Larry não pôde identificar. Kennard abriu outra porta e disse:
- Entre aqui. Está com o rosto todo ensangüentado, e suas roupas no pior estado. É melhor se limpar e aproveitar para vestir também algumas roupas minhas.
Ele vasculhou por trás de um painel e entregou alguns trajes estranhos a Larry.
- Volte quando estiver apresentável.
O banheiro também era luxuoso, com ladrilhos de uma dezena de cores, dispostos em padrões geométricos. Os acessórios eram estranhos, mas, depois de algumas tentativas, Larry descobriu uma torneira de água quente e lavou o rosto e as mãos. A água quente foi agradável no rosto machucado, e ele constatou - contemplando-se no espelho - que saíra bastante contundido, entre a agressão de todo o bando e a briga individual em seguida. Sentiu alguma preocupação. O que diria seu pai?
Mas ele queria conhecer a vida darkovana de perto, e deixaria para se preocupar mais tarde com a reação do pai. Quando explicasse, o pai haveria de compreender. Tirou as roupas sujas e rasgadas e pôs a calça de lã e o gibão forrado de pele que Kennard lhe emprestara. Tornou a se contemplar no espelho; se não fosse pelos cabelos vermelhos cortados bem curtos, seria igual a qualquer jovem darkovano! E pensando nisso, compreendeu que não vira outros darkovanos de cabelos vermelhos além de Kennard. Mas devia haver alguns.
Ao sair do banheiro, ele encontrou Kennard sentado numa das cadeiras, uma mesinha à sua frente, com várias tigelas fumegantes de comida em cima. Ele gesticulou para que Larry sentasse no outro lado.
- Sempre estou faminto quando deixo o serviço. Coma alguma coisa.
Ele hesitou, olhando com alguma curiosidade para Larry, que pegou uma tigela e um pauzinho comprido, e riu em seguida.
- Ainda bem que sabe comer com isso. Eu não tinha certeza. A comida era saborosa, bolinhos de carne recheados com arroz ou cevada; Larry comeu com vontade, mergulhando os bolinhos de carne no molho de picles, como Kennard. Ao final, largou a tigela e comentou:
- Disse que vinha me observando enquanto eu explorava a cidade. Por quê?
Kennard pegou uma tigela que continha bolinhos fritos pequenos, pegajosos, tirou um punhado e ofereceu a Larry, antes de responder:
- Não sei como explicar sem insultá-lo.
- Pode falar. Provavelmente me salvou de sair bastante machucado, se não mesmo morto. Diga qualquer coisa que quiser. Tentarei não me sentir ofendido.
- Não é nada de pessoal contra você. Mas ninguém em Thendara quer ter problemas. Alguns terráqueos já foram espancados ou mortos na cidade. De um modo geral, eles próprios provocaram o que aconteceu. Não estou querendo dizer que você provocou... aqueles garotos são ratos de sarjeta e atacam pessoas inocentes. Mas outros terráqueos criaram problemas em Thendara e receberam o que mereciam. É uma coisa que deve ficar bem clara... quem provoca encrencas tem de ser punido, e o assunto é encerrado. Mas os terráqueos não aceitam isso. A qualquer momento que um dos seus sai machucado, os guardas da força espacial vêm aqui bisbilhotar, fazem um escândalo, insistem em longos julgamentos, interrogatórios, punições. Em Darkover, qualquer homem que seja bastante homem para usar calça em vez de saia é capaz de se defender; e se não puder, cabe à família resolver a questão. Nosso povo acha difícil compreender seus costumes. Mas assinamos um tratado com os terráqueos, e as pessoas responsáveis em Thendara não querem problemas. Por isso, tentamos evitar incidentes desse tipo... quando podemos fazê-lo de uma maneira honrosa.
Larry mastigou distraído uma das coisas doces. Eram recheadas com uma fruta ácida e pareciam pequenos pastéis. Começava a perceber o contraste entre seu mundo - ordenado, com leis impessoais - e Darkover, onde prevalecia um código bárbaro, individualista, cada um por si. Quando os dois se confrontavam...
- Mas era mais do que isso - continuou Kennard. - Fiquei curioso sobre você. Desde o primeiro dia em que o vi no espaço-porto. Quase todos os terráqueos preferem permanecer por trás de seus ombros... nem mesmo se dão o trabalho de aprender nossa língua. Por que você é tão diferente?
- Não sei. E também não sei por que eles são do jeito que são. Apenas... chame de curiosidade. - Uma súbita idéia ocorreu a Larry. - Quer dizer que, não foi por acaso que apareceu naquele momento? Estava me vigiando, não é?
- De forma intermitente. Mas foi por puro acaso que cheguei para interromper a briga. Estava de folga, voltava para casa e ouvi o barulho na praça. E de folga ou não, isso é parte do meu trabalho.
- Seu trabalho?
- Sou um oficial-cadete na Guarda da Cidade. Todos os homens da minha família começam como cadetes, quando completam quatorze invernos, trabalhando por três dias no ciclo, como oficiais da paz. De um modo geral, apenas supervisiono os guardas e confiro as listas de serviço. Que tipo de trabalho você faz?
- Ainda não trabalho. Apenas estudo.
E isso fez com que se sentisse de repente muito jovem e contrafeito. Aquele jovem tão confiante, não muito mais velho, já fazia um trabalho de homem... e não desperdiçava seu tempo sendo tratado como um colegial!
- E depois passa a fazer seu trabalho de homem, sem qualquer treinamento? - indagou Kennard. - Que coisa estranha!
- Seu sistema é que me parece estranho.
Larry sentiu algum ressentimento contra a suposição de Kennard de que o costume darkovano era o certo. Kennard sorriu.
- Para ser franco, eu tinha outro motivo para querer conhecê-lo... e se isso não tivesse acontecido, creio que mais cedo ou mais tarde encontraria outro modo de abordá-lo. Tenho a maior vontade de conhecer tudo sobre as viagens espaciais e sobre as estrelas. Nunca tive uma oportunidade de aprender qualquer coisa a respeito. Diga-me... como as Grandes Naves encontram o caminho entre as estrelas? O que as impulsiona? Os terráqueos possuem mesmo colônias em centenas de mundos?
- Uma pergunta de cada vez. - Larry soltou uma risada. - Não se esqueça de que ainda estou aprendendo sua língua.
Mas ele pôs-se a explicar navegação a Kennard, que escutou com toda atenção, fascinado, fazendo sucessivas perguntas, sobre as espaçonaves e as estrelas.
Descrevia sua única visita às salas de propulsão da nave estelar quando a porta foi aberta e um homem muito alto entrou. Como Kennard, tinha cabelos vermelhos, grisalhos nas têmporas, olhos fundos, penetrantes e severos, empertigado, bonito, de extrema distinção, usando um casaco escarlate bordado. Kennard levantou-se no mesmo instante, e Larry o imitou.
- Então é esse o seu amigo, Kennard? - O homem fez uma
reverência formal para Larry. - Seja bem-vindo à nossa casa, meu jovem. Kennard me disse que é muito corajoso e conquistou o direito à liberdade de vaguear pela cidade. Por favor, considere que também tem toda a liberdade em nossa casa, a qualquer momento que quiser. Sou Valdir Alton.
- Larry Montray, z'par servu - disse Larry, fazendo a mesma reverência que vira Kennard usar e dizendo a mais respeitosa frase darkovana. - A seu serviço, senhor.
- Sua presença é uma honra para nós. - O homem sorriu e pegou a mão de Larry. - Espero que nos visite com freqüência.
- Eu gostaria muito, senhor.
- Fala um darkovano excelente. É raro encontrar alguém do seu povo que nos ofereça sequer a cortesia de aprender nossa língua.
Larry não podia deixar de protestar.
- Meu pai fala ainda melhor do que eu, senhor.
- Então ele é um homem sensato - comentou Valdir.
- Pai - interrompeu Kennard, excitado; ele podia ser um jovem e confiante soldado nas ruas, mas ali era apenas um garoto, como Larry - ...Larry prometeu me emprestar alguns livros sobre viagens espaciais e sobre o Império! E obter permissão, se for possível, para me mostrar o espaço-porto!
- Quanto à segunda parte, não deve ficar desapontado se a permissão for recusada - advertiu Valdir, com um sorriso indulgente. - Podem pensar que você é um espião. Mas os livros serão bem-vindos; eu mesmo gostarei de lê-los. Conheço alguma coisa da Língua Padrão terráquea.
- Pensei nisso - admitiu Larry. - Não sabia se Kennard conhecia nossa língua. Pensei em livros que são constituídos em sua maior parte por desenhos e fotografias.
- Obrigado. - Kennard riu. - Sei ler, se for necessário... o suficiente para as listas de serviço e coisas assim... mas vivo ocupado demais para me tornar um estudioso. Também sei escrever meu nome. Mas por que deveria estragar os olhos para a caçada aprendendo o que qualquer escriba público pode fazer por mim? Mas se são livros ilustrados... vale a pena conhecê-los! Larry, surpreso demais para especular se seria polido, não pôde deixar de dizer:
- Não sabe ler direito a sua própria língua? Mas eu sei ler darkovano!
- Sabe? - Kennard parecia sinceramente impressionado. - Pensei que não tinha idade suficiente para empunhar armas... e sabe ler em duas línguas, e escrever ainda por cima! Quer dizer que é um estudioso por ofício?
Larry sacudiu a cabeça.
- Mas que idade você tem, se já saber ler?
- Completei dezesseis anos há três meses.
- Farei dezesseis no Mês Negro - informou Kennard. -Pensei que fosse mais jovem.
Valdir Alton, comendo os doces de uma tigela, interveio:
- Não quero faltar com a hospitalidade, Lerrys... - Ele falou o nome de Larry com o estranho sotaque darkovano. - ...mas já é tarde, e o toque de recolher do espaço-porto está prestes a começar. Kennard, acho que você deve acompanhar seu convidado, a não ser... Gostaria de passar a noite aqui, Lerrys? Temos amplas acomodações para hóspedes, e seria bem-vindo.
- Obrigado, senhor, mas é melhor eu voltar. Meu pai ficaria preocupado. Se alguém me indicasse o caminho...
- Meus guardas o levarão - disse Kennard. - Mas volte em breve. Estarei de serviço amanhã e no dia seguinte, mas... que tal o outro dia? Não gostaria de passar a tarde aqui?
- Seria um prazer.
- É melhor você ir com essas roupas - sugeriu Valdi -, pois as suas só servem agora como panos de chão. Não precisa se preocupar em devolvê-las, pois são as roupas velhas do irmão de Kennard.
Kennard levou-o até a porta, repetindo as exortações para que ele voltasse. Larry partiu, acompanhado pelos guardas silenciosos, e não demorou a alcançar o espaço-porto. Ainda absorvido na aventura, teve um choque quando o guarda no portão do espaço-porto o deteve, bruscamente.
- O que quer aqui a esta hora da noite? Ninguém mais pode entrar agora, a não ser o pessoal do espaço-porto!
Com um sobressalto, Larry lembrou-se de que usava um traje darkovano. Apresentou seu documento de identificação, e o guarda se mostrou espantado.
- Mas o que faz nessa roupa, garoto? E volta bem tarde; mais meia hora, e eu teria de enviá-lo ao comandante. Não sabe que não é seguro andar pela cidade à noite?
Ele reparou nos dedos esfolados de Larry, no olho esquerdo já roxo, e acrescentou:
- Ei, parece que se meteu mesmo numa encrenca! Aposto que vai levar uma surra de seu pai!
Era o que o próprio Larry começava a temer. Mas não havia outra coisa a fazer senão enfrentar as conseqüências.
Mas valera a pena, qualquer que fosse a reação do pai. Até mesmo uma surra, se chegasse a esse ponto.
Foi pior do que ele imaginara.
Assim que entrou no apartamento, deparou com o pai, o intercomunicador na mão, e ouviu sua voz preocupada dizer:
- ...saiu depois da escola e ainda não voltou. Já verifiquei com todos os seus amigos. O guarda no portão oeste viu-o sair, mas não voltar... Não quero parecer alarmista, senhor, mas se ele se perdeu na Cidade Velha... sabe tão bem quanto eu o que pode ter acontecido. Sei disso, senhor, e assumirei toda a responsabilidade por permitir que acontecesse; foi tolice da minha parte. Acredite, compreendo isso agora...
Larry murmurou, hesitante:
- Papai?
Wade Montray estremeceu, quase deixou cair o aparelho.
- É você, Larry?
Ele acrescentou pelo intercomunicador:
- Pode esquecer. Meu filho acaba de chegar. Claro. Pode deixar que cuidarei de tudo... Muito bem, Larry, venha até aqui, para que eu possa dar uma boa olhada em você.
Larry obedeceu, preparando-se para uma tempestade. Quando passou para a sala principal, e a luz incidiu em seu rosto, o pai empalideceu.
- Larry, seu rosto! O que aconteceu, filho? Você está bem? Montray se adiantou, pegou o filho pelos ombros e virou-o para a luz. Larry ficou tenso, tentou se desvencilhar.
- Está tudo bem, papai. Meti-me numa briga com um bando de garotos. Mas está tudo bem agora. - Ele se apressou em acrescentar: - Parece pior do que é.
O rosto do pai se contraiu, ele se virou por um instante. Quando tornou a fitar Larry, exibia uma expressão controlada e sombria, a voz soou calma:
- É melhor me contar o que aconteceu.
Larry iniciou o relato, procurando minimizar a importância da surra que levara, mas o pai interrompeu-o, ríspido:
- Poderia ter sido morto. Sabe disso, não é?
- Mas não fui. E foi muita sorte, papai, ter conhecido Kennard, e todo o resto. Valeu um pequeno problema... O que há de errado, papai?
- Cometi um erro ao deixá-lo ir à cidade sozinho. Sei disso agora. E não vai mais acontecer. Poderia ter sido mais grave. Isto é uma ordem: Não deve deixar a Zona Terráquea de novo... não no momento em que quiser, não em quaisquer condições.
Surpreso, indignado, mal acreditando, Larry protestou:
- Não pode estar falando sério, papai!
- Claro que estou.
- Mas então não me escutou! Nada assim jamais tornará a acontecer! Kennard disse que eu tinha ganho o direito de vaguerar pela cidade, e seu pai me convidou a voltar...
- Ouvi muito bem, Larry - interrompeu o pai -, mas já dei uma ordem, e não tenciono discutir mais a questão. Não deve mais deixar a Zona Terráquea... em nenhum momento. - Ele ergueu as mãos, quando o filho fez menção de protestar. - Não quero ouvir mais nada. Vá lavar o rosto, passar alguma coisa nesses ferimentos, e depois trate de se deitar. Ande logo!
Larry abriu a boca, mas tornou a fechá-la, lentamente. Nada adiantaria; o pai não o escutaria. Irritado, indignado, ele foi para seu quarto.
Não era típico do pai tratá-lo assim... como se fosse um garotinho que só tinha de receber ordens! Em geral, o pai argumentava. Enquanto lavava o rosto e passava anti-séptico nos machucados, ele fumegava por dentro, em silêncio. O pai não podia estar falando sério... não agora, não depois de tanto esforço de sua parte para ser aceito!
Ao final, ele decidiu deixar o problema em repouso até a manhã seguinte. O pai ficara na maior preocupação; talvez, depois que tivesse tempo para pensar a respeito, ouvisse a voz da razão. Larry foi deitar, ainda pensando, excitado, no novo amigo que fizera e na oportunidade que isso lhe abria... a possibilidade de conhecer Darkover de verdade, não o mundo do espaço-porto e dos turistas, mas o mundo estranho, alienígena e belo que se estendia além.
O pai compreenderia como isso era importante!
Mas não foi o que aconteceu. Quando Larry tornou a abordar a questão, ao desjejum, Montray assumiu uma expressão terrível, que teria intimidado alguém menos determinado que o filho.
- Eu disse que não quero nem falar sobre isso. Já dei minha ordem, e ponto final.
Larry mordeu o lábio, baixando o rosto carrancudo e furioso para seu prato. Mas logo, ardendo em indignação, tornou a erguer a cabeça e fitou o pai em desafio.
- Não posso admitir isso, senhor. Montray franziu o rosto.
- O que disse?
Larry experimentou uma sensação estranha, um frio de apreensão. Nunca desafiara abertamente o pai desde que tinha quatro ou cinco anos. Mas insistiu:
- Não quero ser desrespeitoso, papai, mas não pode me tratar assim. Não sou um menino, e quando diz uma coisa dessas, tenho direito, no mínimo, a uma explicação.
- Fará o que estou mandando, ou então...
Montray se conteve. Depois de um longo momento de silêncio, largou o garfo no prato e inclinou-se para a frente, o queixo apoiado nas mãos, os olhos irados. Mas limitou-se a dizer:
- É justo. Aqui está a explicação. E se ontem à noite você tivesse sido gravemente ferido, ou mesmo morto?
- Mas eu...
- Deixe-me terminar. Um garoto tolo sai para explorar a cidade e pode criar um incidente interplanetário. Se tivesse se metido numa encrenca maior, Larry, teríamos de usar todo o poder e prestígio do Império Terráqueo para tirá-lo. Se tivéssemos de fazer isso... ainda mais se tivéssemos de usar a força e armas terráqueas... perderíamos toda a boa vontade e tolerância que levamos anos para adquirir. Se houvesse uma luta, é claro que venceríamos. Mas queremos evitar incidentes, não ganhar batalhas, que nos custariam muito caro. Acha sinceramente que vale a pena?
Larry hesitou.
- E então, qual é a sua resposta?
- Acho que não, posto nesses termos.
Mentalmente, Larry comparou tal posição com o que Kennard lhe dissera: como os darkovanos ressentiam-se do uso de todo o poder da Terra só para "bisbilhotar" o que deveria ser uma briga particular entre um criador de encrencas e a pessoa que ele ofendia. Também significava que se Larry tivesse sofrido ferimentos graves, ou pior, os terráqueos atribuiriam toda a responsabilidade a Darkover, não apenas aos poucos jovens desordeiros que haviam causado o incidente. Ele tentou pensar na melhor maneira de explicar isso ao pai, mas Montray não lhe deu tempo:
- É essa a situação. Chega de explorações por conta própria; e não quero mais discutir essa questão, se não se incomoda. É assim que tem de ser. - O pai empurrou o prato para o lado e levantou-se. - E agora tenho de ir trabalhar.
Larry continuou sentado à mesa, dominado pelo ressentimento. Portanto, Kennard tinha razão, no final das contas. Parecia mesmo que toda Darkover e todo o Império Terráqueo tinham de se envolver.
Sua cabeça latejava, mal podia ver com o olho machucado, e tinha os dedos tão inchados que não conseguia segurar o garfo direito. Decidiu não ir à escola, e passou a maior parte da manhã na cama, dominado pelo amargo ressentimento. Isso significava o fim de sua aventura. O que mais havia ali? O mundo insosso do quartel-general e do espaço-porto, idêntico ao mundo que deixara na Terra. Poderia muito bem não ter saído de lá!
Ele separou os livros que prometera a Kennard. Não poderia sequer cumprir essa promessa! E Kennard pensaria que sua palavra não valia nada. Como poderia avisar ao amigo darkovano sobre a punição que lhe fora imposta? Kennard e seu pai haviam demonstrado amizade e hospitalidade... e ele nem seria capaz de manter a palavra empenhada!
Eles já não tinham os terráqueos em alta conta... e agora seria confirmada sua opinião de que os terráqueos não mereciam a menor confiança.
O dia se arrastou lentamente. No dia seguinte Larry voltou à escola, respondendo às perguntas sobre o olho roxo com a estória de que tropeçara numa cadeira no escuro. Mas no terceiro dia, à medida que se aproximava a hora da visita que prometera aos Altons, seu conflito foi aumentando.
Afinal, ele prometera!
O pai, fitando seu rosto enfurecido ao desjejum, comentara, um tanto lacônico:
- Sinto muito, Larry. Não é agradável para mim... negar uma coisa que você tanto quer. Algum dia, quando for mais velho, talvez compreenda por que tenho de fazer isso. Até lá, terá de aceitar meu julgamento.
Ele pensa que vai acabar com meu interesse por Darkover pelo mero expediente de me proibir de deixar a Zona Terráquea, refletiu Larry, magoado. Não sabe nada a respeito... e também não me conhece!
O dia transcorreu lentamente. Larry considerou e rejeitou a idéia de um apelo final ao pai. Wade Montray quase nunca dava uma ordem, mas, quando o fazia, nunca a revogava, e Larry sabia que o pai já tomara sua decisão no caso.
Mas não era justo... e também não era certo! Angustiado, Larry se deparou com uma conclusão que todos os jovens acabam enfrentando, mais cedo ou mais tarde: o conhecimento de que os pais nem sempre estão certos... e às vezes podem se enganar por completo!
Errado ou não, ele acha que devo obedecer de qualquer forma! E isso é terrível. O que mais posso fazer?
Posso me recusar a obedecer. O pensamento aflorou de repente, como se isso nunca lhe tivesse ocorrido antes.
E Larry nunca desafiara deliberadamente o pai. O pensamento deixou-o ainda mais aflito.
Mas desta vez eu estou certo, o pai está errado, e se ele não pode perceber isso, eu posso. Assumi um compromisso, e se quebrar minha palavra, dois darkovanos - e darkovanos importantes - pensarão que os terráqueos não valem grande coisa.
É uma ocasião em que tenho de desobedecer a uma ordem de papai. Depois, aceitarei qualquer punição que ele quiser me aplicar. Mas não vou ignorar o compromisso que assumi com Kennard e seu pai. Contarei a eles por que não poderei visitá-los de novo, mas não insultarei a hospitalidade que me concederam ao desaparecer sem qualquer explicação.
Kennard salvou-me de ser massacrado, talvez de ser morto. Prometi uma coisa que ele quer - alguns livros -, e é o mínimo que lhe devo.
Larry sentia-se consternado com a perspectiva da desobediência, mas ainda estava convencido, no fundo, de que tinha toda a razão.
Se eu tivesse nascido em Darkover, refletiu, seria considerado um homem; com idade suficiente para fazer o trabalho de um homem, com idade suficiente para tomar minhas próprias decisões... e assumir as conseqüências. Chega um momento na vida em que a pessoa deve decidir por si mesma o que é certo e o que é errado, e parar de aceitar o que dizem os mais velhos. Papai pode achar que está certo, por tudo o que sabe, mas acontece que ele não conhece toda a estória... e eu conheço. Por isso, devo fazer o que acho que é certo.
Mas ele se perguntou por que se sentia tão angustiado por isso. E compreendeu que era terrível tomar uma decisão da qual não poderia voltar atrás. Talvez fosse castigado como uma criança, ao voltar; e concluiu subitamente que nunca mais tornaria a ser como antes. Não era apenas pela desobediência ao pai... qualquer menino podia fazer isso. Era por ter decidido, de uma vez por todas, que não mais estava disposto a permitir que o pai determinasse o que era certo e errado para ele. Se obedecesse ao pai, a partir de agora, seria porque refletira a respeito, e concluíra, como um adulto, que queria obedecer.
E isso doía. Larry experimentou uma estranha agonia, mas nunca lhe ocorreu mudar de idéia. Já decidira o que ia fazer. Agora, só restava decidir como fazê-lo.
O pai comentara que se ele, Larry, se metesse numa encrenca, arrastaria toda a Zona Terráquea para o problema. Era um fator que tinha de ser levado em consideração. E era bastante justo. Larry queria ter a certeza de que não haveria tal perigo.
E foi então que ele pensou: Eu poderia passar por um darkovano, se não fosse por minhas roupas. Já fui confundido com um darkovano, pelo jeito de falar. Se não estiver vestido como um terráqueo, não me envolverei em nenhuma encrenca.
Tratou de acrescentar para si mesmo, sombrio: Se alguma coisa me acontecer, os terráqueos não serão arrastados. Se não estiver vestido como um terráqueo, a responsabilidade será toda minha.
Num instante, ele tirou suas roupas e vestiu as darkovanas, emprestadas por Kennard. Contemplou-se no espelho. Parte dele reconheceu, com uma percepção irônica, que estava gostando da farsa. Era emocionante, uma aventura. A outra metade se mostrava sombria. Ao tirar tudo que o identificava como um terráqueo, deliberadamente, também renunciava ao direito de proteção pelo Império. Agora, ficaria entregue à sua própria sorte. Circularia pela cidade sem mais proteção do que as mãos podiam lhe proporcionar e com a salvaguarda que o conhecimento da língua lhe permitia.
Como se eu tivesse mesmo nascido em Darkover e vivesse por minha própria conta e risco!
Ele meio que esperava ser detido no portão, mas passou pela arcada sem que ninguém o contestasse, e encaminhou-se para a cidade.
Era a hora em que os trabalhadores voltavam para casa, e as ruas estavam apinhadas. Larry foi andando no meio da multidão, sem atrair qualquer olhar mais curioso, sentindo uma crescente excitação, que o deixava quase sem fôlego. A cada passo, parecia de certa forma que deixava mais para trás a pessoa que fora até aquele momento. Era como se o traje darkovano não fosse um disfarce, mas antes como se acabasse de descobrir uma camada mais profunda em si mesmo, pela qual passava a viver. O sol pálido e frio pairava alto no céu, projetando sombras púrpuras pelas ruas e vielas estreitas; Larry encontrou o caminho pela cidade com o instinto de um gato. Já quase se arrependia quando finalmente alcançou o distrito distante em que ficava a casa dos Altons.
O não-humano que ele vira antes abriu a porta, mas Kennard se encontrava parado no vestíbulo, e Larry especulou, por um instante, se o amigo darkovano estava ali à sua espera.
- Você conseguiu - disse Kennard, com um sorriso de satisfação. - Tinha a impressão de que não poderia vir, mas quando olhei esta tarde, constatei que viria.
As palavras eram desconcertantes. Larry tentou encontrar algum sentido, mas acabou concluindo que devia ser uma expressão idiomática darkovana que ainda não conhecia.
- Também pensei por um momento que não poderia vir... - murmurou ele, mas sem acrescentar mais nada.
O não-humano adiantou-se, e Larry estremeceu e deu um passo atrás, numa reação involuntária, recordando seu encontro com o outro na rua. Kennard apressou-se em dizer:
- Não precisa ter medo dos kyrri. É verdade que soltam descargas elétricas se estranhos encostam neles, mas este não vai machucá-lo, agora que o conhece. São servos de nossa família há gerações.
Larry deixou que o não-humano pegasse seu manto e examinou a criatura, curioso. Era ereto, com uma semelhança vaga com os humanos, mas todo coberto por um pêlo cinza, dedos preênseis compridos, um rosto como o de um macaco mascarado. Ele especulou de onde vinham os kyrri e que tipo de relações podia haver entre humanos e não-humanos. Algum dia saberia?
- Trouxe os livros que prometi - anunciou ele. Kennard pegou-os, com evidente ansiedade.
- Ah, isso é ótimo! Mas deixarei para vê-los mais tarde. Precisamos ficar parados aqui? Sabe jogar dardos? Vamos disputar uma partida?
Larry concordou, com o maior interesse. Kennard levou-o a uma sala lá embaixo, grande e bem iluminada, com paredes translúcidas, obviamente uma sala de jogos. Os dardos eram leves, perfeitos, com penas vermelhas e verdes de algum pássaro exótico. Depois que se acostumou com seu peso e equilíbrio, Larry descobriu que era um adversário à altura no jogo. Mas jogaram sem muito interesse, Kennard interrompendo a todo instante para folhear os livros, fascinado com as inúmeras fotografias, fazendo intermináveis perguntas sobre as viagens estelares.
Estavam num desses intervalos do jogo quando as cortinas do acesso à sala foram abertas e Valdir Alton entrou, acompanhado por outro homem, um darkovano alto, com cabelos castanho-avermelhados, partindo de uma testa alta, com duas faixas brancas. Usava um manto bordado de corte curioso. Kennard, com um sobressalto de espanto, fez uma reverência profunda e formal para o estranho. O homem olhou para Larry, que não quis parecer grosseiro e repetiu o gesto.
O homem murmurou uma frase de cumprimento polido e acenou com a cabeça para os garotos; mas quando seus olhos cruzaram com os de Larry, ele estremeceu, franziu as sobrancelhas, virou-se para Valdir e murmurou:
- Terráqueo?
Valdir não disse nada, e os dois se fitaram por um momento. O estranho balançou a cabeça, atravessou a sala e foi se postar na frente de Larry. Lentamente, como se forçado, Larry levantou o rosto para fitá-lo, incapaz de se desviar daquele olhar intenso e compulsivo. Experimentou a sensação de que era avaliado, definido, analisado; como se o olhar inquisitivo do velho fosse além das roupas emprestadas, penetrassem até os ossos, até seus pensamentos e memórias mais profundos. Era como estar sendo hipnotizado. Ele se descobriu subitamente a tremer, e depois, da mesma forma repentina, foi capaz de desviar os olhos, enquanto o homem lhe sorria, com uma nova gentileza nos estranhos olhos cinza. Ele se dirigiu a Valdir:
- Então foi por isso que me trouxe aqui? Não se preocupe; também tenho filhos. Apresente-me a seu amigo, Kennard.
- Lorde Lorill Hastur, um dos Anciãos do Conselho.
Larry já ouvira seu pai pronunciar este nome, com exasperação, mas também com certo respeito. E pensou: Espero que minha presença aqui não acarrete qualquer problema, no final das contas. Por um breve instante, ele quase se arrependeu de ter vindo; mas logo passou. A tensão na sala se atenuou, de uma forma indefinível. Valdir pegou um dos livros que Larry trouxera para Kennard e folheou-o, interessado. Lorill Hastur aproximou-se, deu uma olhada por cima de seu ombro, desviou-se e foi examinar os dardos. Pegou um, estendeu o braço para trás e arremessou-o no alvo, com absoluta precisão. Valdir largou o livro e olhou para Larry.
- Eu tinha certeza de que você conseguiria vir hoje.
- Eu queria vir, mas talvez não possa voltar - anunciou Larry.
Os olhos de Valdir se contraíram, em curiosidade.
- Acha que é muito perigoso?
- Não - respondeu Larry. - Isso não me incomoda. Acontece que meu pai prefere que eu não venha.
Ele parou por aí; não queria falar sobre a atitude do pai, ou daria a impressão de que reclamava de sua irracionalidade. Era uma coisa apenas entre o pai e ele, não devia ser partilhada com estranhos. O conflito tornou a envolvê-lo em tristeza. Gostava mais de Kennard do que de qualquer dos amigos que fizera na Zona Terráquea; mesmo assim, devia renunciar àquela amizade quase antes mesmo de poder explorá-la. Larry pegou um dardo, virou-o de um lado para outro, e depois arremessou-o, errando o alvo. Lorill Hastur tornou a fitá-lo.
- Por que se arriscou a problemas, talvez mesmo a uma punição, para vir aqui hoje, Larry?
Não ocorreu a Larry especular - não até muito mais tarde - como o Ancião soubera seu nome ou tomara conhecimento do conflito interior que lhe impusera uma opção. Naquele momento, parecia natural que o velho de olhos inquisitivos soubesse de tudo a seu respeito. Mas ele ainda não se sentia disposto a parecer desleal.
- Não tive uma oportunidade de fazer meu pai compreender. Ele acabaria compreendendo por que eu tinha de vir.
- E quebrar sua palavra seria um insulto - declarou Lorill Hastur, solene. - É parte do código de um homem tomar suas próprias decisões.
Ele sorriu para os meninos, virou-se e afastou-se, sem uma despedida formal. Valdir deu um passo para segui-lo, mas antes disse a Larry:
- É bem-vindo aqui, a qualquer momento que quiser.
- Obrigado, senhor, mas receio que não poderei mais vir. Não que eu não gostaria...
Valdir sorriu.
- Respeito a sua decisão, mas tenho o pressentimento de que voltaremos a nos encontrar.
Ele saiu da sala, atrás de Lorill Hastur. A sós com Kennard, Larry descobriu-se a indagar:
- Como ele sabia de tanta coisa a meu respeito?
- Lorde Hastur? Ele é um telepata, é claro. De que outra forma poderia ser? - A resposta de Kennard foi distraída, o rosto voltado para um livro de fotos tiradas no espaço profundo. -Que tipo de câmera eles usam para isto? Nunca consegui entender como uma câmera funciona.
E Larry, explicando o princípio do filme sensível, sentiu uma surpresa divertida, irônica. Telepata, é claro! Para Kennard, isso era corriqueiro, assim como uma câmera lhe parecia exótica e estranha. Era tudo uma questão de ponto de vista.
Cedo demais, o sol poente avisou-o de que era hora de partir. Recusou a exortação de Kennard para que ficasse mais um pouco. Não queria que o pai se alarmasse com sua ausência. Além disso, no fundo de sua mente, havia uma memória que parecia com uma ameaça - se fosse considerado desaparecido, o pai acionaria as engrenagens do Império Terráqueo para localizá-lo, criando problemas para seus novos amigos? Kennard acompanhou-o na saída. Parou na esquina, fitando-o com alguma tristeza.
- Não gosto de despedidas, Larry. Simpatizei com você, e gostaria...
Larry balançou a cabeça, um pouco embaraçado, mas partilhando a emoção.
- Talvez tornemos a nos encontrar.
Ele estendeu a mão. Kennard hesitou, pelo tempo suficiente para Larry se sentir primeiro ofendido, e depois preocupado com o receio de ter cometido alguma violação dos costumes darkovanos; depois, num gesto determinado, o jovem aristocrata estendeu as duas mãos, segurando a de Larry. Não havia como Larry saber que tal gesto era raro, há muitos anos, na casta darkovana a que os Altons pertenciam. Kennard murmurou:
- Não vou dizer adeus, mas apenas... boa sorte.
Ele virou-se e afastou-se apressado, sem olhar para trás. Larry seguiu para o espaço-porto, através da neblina que começava a se espalhar. Enquanto avançava pelos desfiladeiros escuros das ruas, os pés encontrando o equilíbrio de uma forma automática nas pedras irregulares do calçamento, ele sentia um pesar indefinido, como se visse tudo aquilo com a pungência de uma despedida. Era como se a vida tivesse lhe aberto uma porta esplendorosa, só para batê-la em seguida, deixando o mundo mais insosso, em contraste.
Mas, de repente, o sentimento de tristeza declinou, até desaparecer. Era uma coisa apenas temporária. Ele não seria um garoto para sempre. Chegaria o momento em que teria total liberdade, poderia explorar todos os mundos, a seu critério... e Darkover era apenas um, entre muitos. Saboreara hoje a liberdade de um homem... e algum dia a conquistaria durante todo o tempo.
Larry ergueu a cabeça e atravessou a praça que o separava do espaço-porto em passos firmes. Divertira-se, podia aceitar a punição que viesse. Valera a pena.
Ele experimentou a sensação curiosa de que revivia uma coisa que já ocorrera antes, ao entrar no apartamento. O pai o esperava, o rosto contraído, indecifrável.
- Onde você esteve?
- Na cidade. Fui à casa de Kennard Alton.
O rosto de Montray deixou transparecer uma raiva intensa, mas a voz se manteve controlada.
- Lembra que o proibi de deixar a Zona Terráquea? Vai me dizer que esqueceu?
- Não, não esqueci.
- Em outras palavras, desobedeceu deliberadamente.
- É verdade.
Era evidente que Montray continha sua fúria à custa de muito esforço.
- Então por que foi, quando eu tinha proibido?
Larry fez uma pausa, antes de responder. Estaria apenas inventando uma desculpa por ter feito o que queria? Mas logo teve certeza, mais uma vez, de que sua posição fora certa.
- Porque fiz uma promessa, papai, e achei que não era certo quebrá-la, sem uma razão melhor do que apenas a sua proibição. Era uma coisa que eu tinha de fazer, e você me tratou como um menino. E tentei providenciar para que você não fosse envolvido, nem o Império Terráqueo, se alguma coisa me acontecesse.
O pai disse, depois de um silêncio prolongado:
- E achou que deveria tomar essa decisão por si mesmo. Muito bem, Larry, admiro sua honestidade. Mesmo assim, recuso-me a admitir que você tenha o direito de ignorar minhas ordens, em principio. Sabe que não me agrada puni-lo. Contudo, deve se considerar, por enquanto, sob prisão domiciliar... não deve deixar o apartamento, sob qualquer pretexto, exceto para ir à escola.
Montray fez uma pausa, e um sorriso desolado lhe contraiu os lábios.
- Vai me obedecer, ou devo comunicar aos guardas para não deixá-lo passar sem me avisar?
Larry encolheu-se à severidade da punição, mas era justa. Era a única coisa que o pai podia fazer, do seu ponto de vista. Ele acenou com a cabeça, sem levantar os olhos.
- Qualquer coisa que disser, papai. Tem a minha palavra. Montray comentou, sem sarcasmo:
- Já me provou que significa alguma coisa para você. Confiarei em sua palavra. Prisão domiciliar, até eu decidir que posso confiar de novo a liberdade.
Os dias seguintes se arrastaram devagar, nenhum se distinguindo do anterior. As equimoses no rosto e nas mãos desapareceram, e sua aventura darkovana começou a parecer distante e vaga, como se tivesse ocorrido num passado remoto. Apesar de tudo, mesmo nos momentos mais terríveis da punição, que o privava até de coisas que antes não prezava - a liberdade de circular pelo espaço-porto e pela Cidade Comercial, visitar amigos e lojas -, Larry nunca duvidou de que fizera a coisa certa. Angustiava-se com o castigo, mas não se arrependia do ato que o acarretara.
Dez dias transcorreram, e ele já começava a se perguntar quando o pai julgaria conveniente encerrar a sentença, quando veio a ordem do comandante.
O pai acabara de entrar no apartamento, uma noite, quando o intercomunicador tocou. Ao desligar, Montray estava zangado e apreensivo.
- Sua brincadeira idiota deve ter conseqüências agora - anunciou ele, irritado. - Era do gabinete do Legado, no prédio da administração. Nós dois recebemos ordem para nos apresentar ali esta noite... e foi uma convocação prioritária.
- Se isso significa problemas para você, papai, sinto muito. Terá de dizer a eles que me proibiu de ir... e se não o fizer, eu direi. Assumirei toda a culpa sozinho.
Pela primeira vez, Larry sentiu que as conseqüências podiam se estender além de si mesmo. Mas não seria culpa minha... mas sim pelo fato de a administração ser irracional. Por que papai deveria ser culpado pelo que eu fiz?
Larry nunca estivera antes no prédio da administração. Ao se aproximar do enorme edifício branco, sentiu-se fascinado, ao ponto de esquecer que se encontrava ali para sofrer uma reprimenda. O prédio imenso, faiscando com metal branco e vidro, os corredores largos e a visão panorâmica de cada janela, mostrando a cidade darkovana lá embaixo e as montanhas além, deixou-o quase sem respirar de tanta emoção. O gabinete do Legado ficava lá no alto, iluminado pelos raios do sol vermelho, já quase desaparecendo no horizonte. Por um momento, ao entrar na sala envidraçada, um pensamento estranho aflorou na mente de Larry: Ele vê mais deste mundo do que deseja que os outros conheçam.
O Legado era corpulento, moreno, os cabelos grisalhos, com olhos pensativos, o rosto sempre franzido. Não obstante, exibia uma grande dignidade, e algo que fez Larry se lembrar de Lorill Hastur. O que será? Apenas o fato de que eles estão acostumados ao poder, ou a tomar decisões a que os outros devem se submeter?
- Comandante Reade... meu filho, Larry.
- Sentem-se. - Era uma ordem categórica, não um convite. - Quer dizer que você andou vagueando pela cidade? Fale-me a respeito... conte tudo o que fez por lá.
Seu rosto era indecifrável: sem raiva, mas também sem cordialidade. Reservando-se o julgamento. Nem gentil, nem in-delicado. Mas havia uma profunda autoridade em sua atitude, como se esperasse que Larry obedecesse sem hesitar; mas depois de dez dias encerrado no apartamento, Larry não se sentia muito propenso a ser humilde.
- Não sabia que era contra os regulamentos, senhor. E não prejudiquei ninguém, nada me aconteceu.
Reade deixou escapar um resmungo neutro.
- Deixe que eu decida isso. Apenas me conte tudo. Larry relatou toda a estória, suas andanças pela cidade, dia após dia, o encontro com o bando de arruaceiros e a intervenção de Kennard Alton. Encerrou com a última visita à casa dos Altons, deixando claro que fora sem o conhecimento e consentimento do pai.
- Portanto, senhor, não deve culpar meu pai. Ele não violou nenhuma lei.
Montray se apressou em declarar:
- Mesmo assim, Reade, assumo plena responsabilidade. Ele é meu filho, e serei responsável para que não faça isso outra vez.
Reade fez um gesto para que se calasse.
- Não é esse o problema. Recebemos uma comunicação do Conselho... em nome dos Altons. Ao que parece, eles se sentem profundamente ofendidos.
- Como assim? Por quê?
- Porque você não deu permissão a seu filho para manter a amizade... dizem que os insultou, considerando-os indignos de se relacionar com seu filho.
Montray levou as mãos às têmporas, atordoado.
- Oh, Deus!
- É isso mesmo - murmurou Reade. - Os Altons são importantes em Darkover... aristocratas, membros do Conselho. Uma esnobação ou menosprezo de um terráqueo pode criar encrencas.
Subitamente, sua voz explodiu em ira:
- Mas que garoto desgraçado! Não estamos preparados para esse tipo de episódio. Devíamos ter pensado nisso antes, feito os preparativos necessários, mas quando finalmente acontece, nem conseguimos aproveitar direito! Que idade tem o garoto?
Montray gesticulou para que o próprio Larry respondesse.
- Dezesseis anos, hem? - resmungou Reade. - Aqui, eles já são homens na sua idade... e devemos levar isso em consideração! O que pensa de tudo isso, jovem Larry? Pretende... alguma vez considerou a possibilidade de ingressar no serviço do Império?
Aturdido com a pergunta, Larry murmurou:
- Sempre foi essa a minha intenção, Comandante.
- Pois esta é a sua oportunidade.
Reade jogou na mesa um papel quadrado, grosso, com um texto em darkovano, e acrescentou:
- Ouvi dizer que você sabe ler essa coisa. Só Deus sabe por que se deu o trabalho de aprender, mas é bem conveniente para nós agora. Leia mais tarde, quando tiver a oportunidade. Acontece que também sei ler, embora a maioria do pessoal na administração não se preocupe com isso. É um convite dos Altons... enviado através da administração, como um tapa na cara: eles não gostam da maneira como os terráqueos tendem a exigir os canais competentes para as menores coisas... um convite para você, Larry, passar a próxima temporada na propriedade rural da família, com Kennard.
O rosto de Montray tornou-se sombrio, como se persianas baixassem sobre seus olhos.
- Impossível, Reade. Sei o que está pensando, mas não posso concordar.
A expressão de Reade não se alterou.
- Deve compreender a posição em que isso nos deixa. O garoto não está preparado para a tremenda oportunidade que esse convite abre, mas ainda assim temos de aproveitar a chance. Não podemos, de jeito nenhum, permitir que Larry recuse o convite. Sabia que há quinze anos tentamos obter permissão para que alguém visite as propriedades exteriores? É a primeira vez em anos que algum terráqueo tem essa oportunidade; se a rejeitarmos, talvez se passem anos até que surja outra.
A boca de Montray se contraiu.
- Já houve algumas.
- Sei disso. - Reade não discorreu a respeito. Em vez disso, virou-se para Larry. - Compreende por que tem de aceitar o convite?
E de repente, com a força visual de uma alucinação, Larry tornou a ver a figura alta de Valdir Alton, a ouvi-lo como se ele estivesse naquela sala terráquea: Tenho o pressentimento de que voltaremos a nos encontrar. Era tão real que ele sacudiu a cabeça para se livrar da impressão anormalmente intensa. Reade insistiu:
- Vai aceitar?
Larry sentiu um ímpeto retardado de excitamento. Conhecer Darkover... não apenas a cidade, mas muito além da Zona Terráquea, o mundo real, que não fora afetado pelo contato com a civilização da Terra! A perspectiva era um pouco assustadora, mas também irresistível. Alguma cautela ainda persistiu, no entanto, e ele disse:
- Importa-se de me dizer por que parece tão ansioso que eu vá, senhor? Pensei que os terráqueos receavam qualquer... qualquer confraternização com os darkovanos.
- Era o receio de que surgissem problemas - disse Reade. - Mas há anos que tentamos conseguir algo assim. Suponho que eles acharam que estávamos ansiosos demais, temiam que tentássemos alguma coisa. Posso explicar com a maior facilidade, Larry. Em primeiro lugar, não queremos ofender os aristocratas darkovanos. Mas há mais do que isso. Esta é a primeira vez em que darkovanos de poder e posição apresentam uma proposta para amizade pessoal com qualquer terráqueo. Eles negociam conosco, aceitam nossa presença aqui, mas não querem nenhum relacionamento pessoal. É como se fosse uma brecha no muro. Você tem uma oportunidade excepcional de ser... uma espécie de embaixador da Terra. Talvez possa lhes mostrar que não precisam nos temer. E também...
Reade hesitou.
- Bem poucos terráqueos jamais viram qualquer coisa deste planeta, exceto o que os darkovanos queriam que víssemos. Você deve manter registros minuciosos de tudo o que testemunhar, porque até mesmo uma coisa que não considerar importante pode ter um profundo significado para nós.
Larry percebeu tudo no mesmo instante.
- Está me pedindo para espionar meus amigos? - indagou ele, indignado.
- Claro que não - respondeu Reade, embora Larry sentisse que o comandante pensava que ele era perceptivo demais. - Só quero que mantenha os olhos bem abertos e que nos conte tudo o que vir. De qualquer maneira, tudo indica que eles esperam que você faça mesmo isso.
Montray interveio, enquanto andava de um lado para outro da sala, irrequieto:
- Não me agrada ver meu filho usado como um peão na política do poder. Nem pelos darkovanos tentando se aproximar de nós... e também não pelo Império Terráqueo, querendo descobrir tudo o que pode sobre Darkover!
- Está exagerando, Montray. Não se esqueça de que pelo menos alguns dos darkovanos da casta superior são telepatas. Não poderíamos infiltrar o garoto como um espião, mesmo que tentássemos. É apenas uma oportunidade de saber um pouco mais sobre eles.
Reade fez um apelo direto a Larry:
- Você disse que simpatizou com esse rapaz darkovano. Não faz sentido... tentar aprofundar os laços de amizade entre vocês dois?
Tal pensamento já ocorrera a Larry. Ele acenou com a cabeça. Montray disse, relutante:
- Ainda não me agrada, mas não há mais nada que eu possa fazer.
Reade fitou-o, e Larry ficou chocado com a rápida expressão de triunfo e poder que se insinuou no rosto do comandante. E pensou: Ele gosta disso. No instante seguinte, Larry se perguntou por que era capaz de percebê-lo tão a fundo. Tinha certeza de que sabia mais sobre o Comandante Reade do que o homem gostaria que ele soubesse. Por cima da cabeça de Larry, Reade disse a Wade Montray, a voz suave:
- Temos de fazer isso. Seu filho já tem idade suficiente, e não está assustado... não é verdade, Larry? Portanto, tudo o que temos a fazer é comunicar aos Altons que ele se sente orgulhoso e honrado com o convite para visitá-los... basta avisar quando.
De volta ao apartamento, o pai de Larry praguejou baixinho, sem parar, por quase quinze minutos.
- Está vendo agora em que situação se meteu - disse ele ao filho, finalmente, com uma profunda irritação. - Não me agrada, Larry, não me agrada mesmo! Mas suponho que se sente satisfeito... conseguiu o que queria!
Larry respondeu com toda a sinceridade:
- É interessante, papai, mas me sinto um pouco assustado. Reade quer que eu vá por todos os motivos errados.
- Fico contente por você perceber pelo menos isso. Eu deveria deixar que se enforcasse. A culpa é toda sua. Mesmo assim...
Montray se calou. Depois de um longo momento, levantou-se, adiantou-se e pôs as mãos nos ombros do filho, fitando-o com olhos inquisitivos. A voz saiu mais gentil do que Larry se lembrava de ter ouvido em muitos anos:
- Escute, filho, se não quiser realmente fazer isso, posso encontrar um meio de tirá-lo da enrascada. É meu filho, não um mero candidato a emprego no Império. Eles não podem obrigá-lo a ir. Não se preocupe com a possibilidade de me pressionarem... sempre posso pedir uma transferência para outro lugar. Deixarei este planeta desgraçado antes que o forcem a participar de seus jogos de poder!
Larry, sentindo as mãos do pai em seus ombros, compreendeu que lhe era oferecida uma chance - talvez a última que jamais teria - de voltar à sua condição anterior, de menino protegido. Podia voltar a ser o filho de seu pai, que o livraria daquela situação. O que significava que o passo que já dera, ao se declarar um homem, não era irrevogável, no final das contas. Podia retornar à idade da segurança, e o preço era mínimo. O pai cuidaria dele.
E se descobriu a querer isso, de uma forma quase desesperada. Mordera mais do que podia mastigar, e aquela era sua oportunidade de escapar. A alternativa o deixaria por sua própria conta e risco, num mundo estranho, desempenhando um papel estranho, representando sozinho seu mundo terráqueo.
E os Altons saberiam que sua decisão de homem não passara de uma mentira, que ele se apegava à segurança de ser um menino terráqueo, escondendo-se por trás de sua sociedade...
Larry respirou fundo, pôs as mãos sobre as do pai, e disse, afetuoso, com toda a franqueza:
- Obrigado, papai. Eu quase que gostaria de poder aceitar sua oferta. Sinceramente. Mas tenho de ir. Como você diz, eu me meti nessa encrenca, e agora tenho de tirar o proveito que for possível... por você, papai. Não se preocupe... tudo vai dar certo.
As mãos de Montray apertaram os ombros do filho. Seus olhos se encontraram.
- Eu já receava que você se sentisse assim, Larry... e bem que gostaria que isso não acontecesse. Mas creio que, sendo você quem é, não poderia ser de outra forma. Talvez eu ainda pudesse proibi-lo... - Um sorriso amargo estampou-se no rosto de Montray por uma fração de segundo. - ...mas descobri que você é muito velho para isso, e nem mesmo vou tentar.
Ele baixou as mãos, e no instante seguinte um sorriso largo espalhou-se pelo rosto preocupado.
- Ainda não me agrada, filho... mas estou orgulhoso de você.
A neblina da manhã já se dissipara nas colinas, mas ainda era densa no vale. Acima das nuvens rosadas, o sol vermelho pairava através das tênues brumas. Larry olhou para as copas das árvores emergindo das nuvens e respirou fundo, saboreando as estranhas fragrâncias das florestas alienígenas.
Cavalgava por último na pequena coluna de seis homens. À sua frente, Kennard olhou ao redor por um instante, levantou a mão em resposta a seu sorriso e tornou a se virar.
Larry se encontrava em Armida, a propriedade rural dos Altons, há doze dias. A viagem fora cansativa; não estava acostumado a andar a cavalo, e embora no início tudo fosse uma novidade agradável, logo se descobrira a pensar, pesaroso, nos confortáveis veículos de terra e ar das viagens terráqueas.
Mas a lenta excursão pelas florestas e montanhas pouco a pouco o conquistara para seu charme: as trilhas rochosas subindo para os picos, de onde se descortinavam deslumbrantes paisagens escarlates e púrpuras, adoráveis como o arco-íris, as passagens imersas em sombras através das florestas, com enormes torres brancas se destacando contra o horizonte aqui e ali, irradiando durante a noite um brilho luminescente. À noite, acampavam à beira da estrada, ou eram hóspedes em alguma fazenda, onde os darkovanos tratavam Valdir e Kennard com extrema deferência... e Larry também recebia uma quota desse respeito. Valdir não dissera a ninguém que o convidado e companheiro de seu filho era um terráqueo.
O lar dos Altons era uma vasta estrutura de pedras cinzentas, baixa demais para ser considerada um castelo, imponente demais para ser uma mera casa. Larry se ajustou ao lugar com a maior facilidade, passeando a cavalo com Kennard, ajudando-o a treinar seus cães de caça, aprendendo a atirar com as balistas de estranho formato que eles usavam por esporte, apreciando a estranheza daquela vida. Era tudo fascinante, mas não havia nada que pudesse contar a Reade que fosse beneficiar os terráqueos... e ele sentia-se contente por isso. Não gostara da idéia de ser o equivalente a um espião.
De um modo geral, os dias eram movimentados demais para permitir qualquer introspecção, mas às vezes, ao se deitar, à noite, ele se descobria a especular sobre os motivos para o convite. Gostava de Kennard, eram amigos, mas só isso era suficiente para que Valdir Alton ignorasse a longa tradição de Darkover de ignorar os terráqueos?
E não pôde deixar de se perguntar se a razão de Valdir não seria a mesma de Reade ao insistir em que ele aceitasse o convite... o fato de Valdir querer saber mais sobre os terráqueos.
Àquela altura, ele já se acostumara a passar longas horas a cavalo, e fora organizada uma caçada de três dias, em sua homenagem. Conseguira abater no primeiro dia um animal pequeno, parecido com um coelho, que fora cozinhado na fogueira do acampamento de noite. Orgulhava-se do feito, embora fosse a única coisa que atingira durante a longa caçada.
No alto da colina, ele emparelhou com Kennard, e pararam ali, deixando os cavalos descansarem, lado a lado, contemplando o vale.
- É muito bonito aqui em cima - comentou Kennard, depois de um longo momento de silêncio. - Eu costumava vir aqui com freqüência, há duas temporadas, mas agora o pai acha que é muito perigoso vir sozinho.
Ele gesticulou para a escolta, darkovanos que Larry não conhecia: um jovem de cabelos vermelhos bem vestido, de uma propriedade próxima, os outros das fazendas de Alton, trabalhadores diversos. Um deles vestia o uniforme da Guarda, mas o próprio Kennard usava um traje de montaria velho, um pouco menor do que o seu tamanho.
- Perigoso? Por quê?
- Fica muito perto das florestas - explicou Kennard - e, durante as últimas temporadas o povo do mato espalhou-se por esta região. Em geral, permanecem nas colinas. Não chegam a ser perigosos, mas não gostam dos humanos, e procuramos evitar qualquer contato. Além disso, estamos na fronteira do território das montanhas, e os homens das Cahuengas...
Ele parou de falar abruptamente, ficou rígido na sela, olhando atento para o outro lado do vale.
- O que foi, Kennard? - indagou Larry.
O jovem darkovano apontou. Larry nada viu, mas Kennard chamou o pai, com um grito estridente e insistente. Valdir virou seu cavalo e voltou a trote.
- Qual é o problema, Ken?
- Fumaça. A neblina dissipou-se por um instante, ali... -Kennard apontou. - ...e pude ver. Próximo do posto de vigia.
Valdir franziu o rosto e contraiu os olhos, protegendo-os com a mão.
- Até que ponto tem certeza? É pelo menos uma hora de viagem fora do nosso caminho... Não consigo ver nada com esta neblina.
Ele inclinou a cabeça para trás, como um cervo farejando o vento, esquadrinhando a distância, e ao final acenou com a cabeça.
- Tem razão, um vestígio de fumaça. Vamos verificar. -Valdir olhou para Larry. - Espero que não se incomode com o desvio.
- Claro que não. Mas espero que não haja nenhum problema, Lorde Alton.
- Eu também.
O rosto de Valdir se franziu em preocupação, e ele bateu com os calcanhares nos flancos do cavalo. Desceram pela trilha, os cascos fazendo um clamor surdo nas folhas por baixo. Ao se aproximarem do fundo do vale, a neblina se abriu um pouco, e os homens apontaram e gritaram. As narinas de Larry fremiram ao captarem o cheiro acre e estranho de fumaça. O sol se deslocara para o sul, e eles subiram por uma trilha larga, que levava ao topo de uma colina. Valdir Alton soltou uma imprecação, erguendo-se nos estribos, e apontando; depois, bateu com os calcanhares no cavalo e desapareceu no outro lado da colina. Kennard partiu em seu encalço, e Larry fez a mesma coisa, sentindo um ímpeto de excitamento e medo. Chegou ao topo da colina no momento em que Kennard soltava um berro de consternação; parou o cavalo e olhou para baixo, aturdido, vendo uma fumaça preta subir do meio das árvores.
Kennard desmontou, e começou a correr. O homem no uniforme da Guarda chamou-o e pegou sua balista. Larry percebeu, com um calafrio, que todos olhavam cautelosos para as árvores ao redor. O que podia haver por trás delas?
Valdir também desmontou e os outros seguiram seu exemplo, inclusive Larry. O silêncio profundo parecia mais sinistro por causa do suave canto dos pássaros a distância, no meio do bosque.
Depois, Kennard chamou; estava ajoelhado na trilha, ao lado do que Larry pensou ser um bloco de pedra cinza. Mas quando ele estendeu a mão, virando-o, Larry constatou, com um frio no estômago, que era o corpo de um homem num manto cinza.
Valdir inclinou-se sobre o corpo por um instante, empertigando-se em seguida. Larry ficou paralisado, contemplando a morte. Nunca vira um cadáver antes, muito menos o cadáver de um homem que morrera num ato de violência. Era um jovem, pouco mais que um menino, uma sombra de barba rala no rosto.
Havia um buraco enorme em seu peito, preto e ensangüentado. Era evidente que já estava morto há algum tempo.
Kennard empalidecera. Larry virou-se, sentindo-se tonto e nauseado, mas fazendo um esforço para não deixar transparecer, enquanto Valdir se afastava do morto.
- Cahuenga... o manto é Cahuenga, das colinas distantes, mas as botas e o cinto são de Hyalis - murmurou ele. - O Vigilante... mas não houve nenhum sinal de alarme quando o posto foi atacado.
Ele contornou o cadáver, cauteloso. O homem da Guarda gritou:
- Não vá até lá sozinho, Lorde Alton!
Com a balista na mão, ele correu atrás de Valdir. Kennard seguiu-os, e Larry, como se compelido, também seguiu na mesma direção.
Ruínas enegrecidas, ainda fumegantes, indicavam os contornos vagos de uma construção. Num pequeno trecho relvado, ao lado, estava caído o corpo de um homem. Quando Kennard e Larry o alcançaram, Valdir já se ajoelhava ao lado do corpo. Depois de um único olhar, Larry desviou o rosto dos olhos vidrados, com uma expressão de dor intensa; o homem sangrava de um talho enorme no lado, uma espuma escura saída dos lábios, agitada pela respiração estertorosa.
Por cima do corpo inerte, o outro aristocrata darkovano fitou Valdir, e depois pegou o pulso do homem agonizante. Franziu a testa em desalento. Levantando o rosto, Valdir murmurou:
- Ele deve falar antes de morrer, Rannirl. E vai morrer de qualquer maneira.
Rannirl contraiu os lábios. Acenou com a cabeça e tirou de uma bolsa de couro um pequeno frasco de vidro azul, com uma tampa de prata. Com extremo cuidado, desviando o rosto dos vapores que saíam do frasco aberto, derramou umas poucas gotas na tampa. Valdir abriu a boca do homem, e Rannirl deixou o líquido cair na língua à mostra. Depois de um momento, um intenso tremor percorreu o corpo do agonizante, seus olhos adejaram. A voz soou áspera, distante:
- Vai dom... fizemos o que podíamos... o sinal... o fogo... Valdir apertou as mãos inertes, com uma expressão terrível.
Havia algo em sua mão, uma coisa que irradiava um brilho frio e azul; comprimiu contra a testa do agonizante, e Larry viu que era uma pedra transparente. Valdir murmurou:
- Não consuma suas forças na tentativa de falar, Garin, ou morrerá antes que eu saiba o que preciso. Forme os seus pensamentos com clareza, enquanto puder, e compreenderei tudo. Peço que me perdoe amigo, mas pode salvar muitas vidas com este tormento.
Ele inclinou-se para o rosto agonizante, suas próprias feições se contraindo numa máscara sombria, iluminadas pela claridade azul irradiada pela estranha pedra, que flamejou de repente, ardeu, como se possuísse uma chama interior. Um espasmo de profunda angústia distorceu o rosto do Vigilante moribundo; ele estremeceu duas vezes, depois ficou imóvel. Valdir, com um suspiro angustiado, soltou suas mãos e empertigou-se. Tinha a testa coberta de suor. Cambaleou, e Kennard se adiantou para ampará-lo. Depois de um minuto, Valdir passou a mão pela testa suada e disse:
- Eles não venderam suas vidas por pouco. Havia uma dúzia de homens. Vieram do norte, e retalharam Balhar quando ele tentava alcançar o farol de alarme. Garin pensou a princípio que eram de Cahuenga, mas dois eram homens pálidos, encapuzados quase como os kyrri, e outro estava mascarado. Ele os viu sinalizar; carregavam um artefato que parecia um espelho-lanterna. Depois de tombar, Garin viu-os partir para o norte, na direção do Kadarin.
Rannirl assoviou baixinho.
- Se eles puderam dispensar tantos só para impedir que um sinal de alarme fosse acionado... não parece apenas uns poucos bandidos em incursão para saquear algumas fazendas no vale.
Valdir praguejou.
- Não somos suficientes para persegui-los, e só dispomos de armas de caça. E só Zandru sabe que outras obras do demônio foram cometidas por aqui. Kennard... - Ele virou-se para o filho. - ...vá acender o sinal de alarme. E depressa! É o mínimo que podemos fazer. Garin tentou rastejar até lá, depois que eles foram embora, julgando-o morto, mas as forças lhe faltaram...
A voz murchou na garganta; ele tornou a se inclinar, cobriu o rosto do morto com o manto e acrescentou:
- Ele não me resistiu. Mesmo para um homem enfraquecido por tantos ferimentos, e depois de uma dose da sua droga do demônio, Rannirl, isso exige uma coragem excepcional.
Valdir tornou a suspirar, recuperou-se em seguida e mandou que dois dos trabalhadores enterrassem os guardas mortos. No meio do bosque, uma picareta e uma pá começaram a escavar a terra. Depois de alguns minutos, Kennard voltou correndo.
- Não há como acender o farol de alarme, pai. Aqueles demônios se deram o trabalho de encharcá-lo com água, antes de partirem.
Valdir praguejou mais uma vez, furioso, e mordeu o lábio.
- As pessoas no vale devem ser avisadas, e alguém precisa segui-los, descobrir para onde vão. Não podemos partir aos quatro ventos ao mesmo tempo!
Ele ficou imóvel por um momento, o rosto franzido, pensativo.
- Se tivéssemos homens em quantidade suficiente, poderíamos atacá-los nos vaus, ou se pudéssemos alertar toda a região pelo farol de alarme...
Abruptamente, ele pareceu chegar a uma decisão.
- Não dispomos de efetivos suficientes para segui-los, e de qualquer forma eles têm uma dianteira muito grande. Mas trata-se provavelmente de um ataque em grande escala. Precisamos alertar as pessoas no vale... e poderemos encontrar um batedor capaz de segui-los pela trilha muito melhor do que nós. Além do mais, não deve acontecer coisa alguma antes do anoitecer. Valdir olhou para o sol, que tremia escarlate no zênite.
- A caçada acabou. Vamos comer alguma coisa, e depois iniciaremos a viagem de volta. Kennard, você e Larry... - Ele hesitou. - Gostaria de mandar vocês dois de volta a Armida, mas não podem cruzar a região sozinhos. Terão de nos acompanhar.
Ele fez uma pausa e fitou Larry.
- Receio que isso possa implicar uma cavalgada árdua.
Os homens terminaram de enterrar os mortos. Valdir vetou uma fogueira e determinou que os homens comessem os alimentos frios. Sentaram para comer, discutindo o posto incendiado e os guardas mortos, num dialeto que Larry quase não entendeu. Ele não conseguia comer; o alimento parecia ficar preso em sua garganta. Era a primeira cena de violência e morte que testemunhava, e deixara-o angustiado. Sabia que a violência não era desconhecida em Darkover, e ele próprio já tivera uma breve experiência, na briga com os garotos, mas agora assumia um aspecto sinistro e assustador. Com uma nostalgia quase dolorosa, ele desejou voltar à segurança da Zona Terráquea.
Ou essa segurança seria também uma mera ilusão? Havia violência, crueldade e medo ali também, ocultos por trás das fachadas, e apenas ele tomava conhecimento agora de todas essas coisas? Larry engasgou com o pedaço de biscoito seco que pusera na boca, e desviou o rosto do olhar inquisitivo demais de Kennard.
O vulto alto de Valdir Alton surgiu à sua frente. O lorde darkovano arriou na relva, ao seu lado, e disse:
- Lamento que sua caçada tenha de terminar assim, Lerrys. Não era o que planejávamos.
- Acha mesmo que estou preocupado com uma caçada quando há pessoas mortas? - indagou Larry.
Os olhos de Valdir eram penetrantes.
- Nunca aconteceu nada assim em sua vida antes? Não há nada assim em seu mundo? Tudo na Zona Terráquea é sempre certo, com o respeito absoluto às leis?
Mais uma vez, como já ocorrera antes, com Lorill Hastur, Larry experimentou a sensação de que seus pensamentos estavam sendo lidos. Com uma pequena pontada de medo, recordou como Valdir Alton sondara a mente do Vigilante agonizante.
- Creio que também há violadores da lei na Terra e na Zona Terráquea. Só que aqui parece tão...
- Tão próximo e tão pessoal? - indagou Valdir. - Diga-me uma coisa, Lerrys: Um homem fica mais ou menos morto quando é liquidado por uma arma de fogo ou por uma bomba do que quando é...
Ele acenou com a cabeça na direção das covas dos Vigilantes, e seu rosto assumiu uma expressão amarga quando acrescentou:
- Essa parece ser a principal diferença entre seu povo e o nosso. Pelo menos os homens que mataram o pobre Garin não agiram de uma distância em que teriam uma segurança total!
Contente por ter alguma coisa a distingui-lo da memória do morto com um ferimento ensangüentado no peito, Larry respondeu:
- O importante é que a maioria do nosso povo não mata outras pessoas, em quaisquer circunstâncias. Temos leis e a polícia para cuidar dessas coisas por nós.
- Enquanto aqui achamos que cada homem deve cuidar pessoalmente de seus problemas, antes que se ampliem para guerras - declarou Valdir, a voz firme. - Se qualquer homem me ofende, causa danos à minha propriedade ou família, rouba o que me pertence... é meu dever pessoal exercer a vingança contra ele... ou perdoá-lo, se julgar conveniente, sem arrastar outros que nada têm a ver com o caso para a briga.
Larry tentou analisar a questão, o contraste entre o individualismo intenso do código darkovano e a aceitação pelos terráqueos de uma sociedade ordenada, baseada em normais e leis.
- Um governo de leis, não de homens - comentou ele. Como Valdir alteasse as sobrancelhas, Larry explicou:
- Essa é a teoria original por trás dos governos terráqueos.
- Enquanto o nosso é um governo de homens... porque as leis não podem ser outra coisa senão a expressão dos homens que as fazem - disse Valdir.
Sua expressão era solene, e Larry compreendeu que ele podia ter iniciado a conversa para afastar os pensamentos de seu jovem hóspede da cena de violência inusitada, mas agora se concentrava por completo no que dizia.
- É um dos motivos pelos quais não queremos aumentar nossas relações com os terráqueos, Lerrys. Sem querer ofendê-lo pessoalmente. É verdade que temos guerras em Darkover, mas são escaramuças locais, em pequena escala, combates corpo a corpo. Poucas vezes são maiores do que isto... - Ele gesticulou para as ruínas enegrecidas do posto de vigilância. - A pessoa que comete um crime é logo punida, e a questão se encerra com isso, sem envolver toda uma região no conflito.
- Mas...
Larry hesitou, lembrando que era um hóspede de Valdir. O homem mais velho exortou-o:
- Pode falar.
- Kennard me contou algumas coisas a respeito, senhor. Existem rivalidades antigas, e quando alguém é punido pelas coisas que cometeu, sua família se vinga... e isso não leva a mais e mais problemas e vinganças, ao longo dos anos? Seu sistema, no fundo, não resolve coisa alguma. Pessoas realmente à margem da lei... como esses bandidos... não deveriam ser punidas pelas forças da lei?
- Você é mesmo muito perceptivo - comentou Valdir, com um sorriso desolado. - Essa é a única falha no sistema. Usamos os próprios métodos deles para nos vingarmos do que fizeram; eles nos atacam, nós os atacamos em revide, e assim nos tornamos tão ruins quanto eles. Para ser franco, Lerrys, o problema é ainda mais profundo. Darkover parece passar por um daqueles momentos difíceis de viver... um tempo de mudança. E a presença dos terráqueos não ajudou em nada. Também sem qualquer ofensa pessoal, a existência de uma civilização altamente técnica no planeta deixa o nosso povo insatisfeito. Vivemos da maneira como os homens devem viver... em estreito contato com as coisas reais, não amontoados em cidades e fábricas.
Ele olhou ao redor, além do posto incendiado, para as altas montanhas, e acrescentou:
- Não pode perceber isso, Lerrys?
- Posso, sim - admitiu Larry.
Mas uma pontada de dúvida o invadiu. Quando fizera o mesmo comentário, o pai o acusara de ser um romântico. Os darkovanos davam a impressão de que queriam continuar a viver como se a mudança não existisse, mas quer gostassem ou não, a era espacial havia chegado a seu planeta... e eles próprios haviam permitido a presença do Império Terráqueo para comerciar.
- Tem razão - disse Valdir, lendo seus pensamentos. - Posso compreender a mesma coisa... a mudança é inevitável, quer gostemos ou não. Mas quero que ocorra de uma maneira ordenada, sem maiores tumultos. O que significa que me tornei bastante impopular entre muitas pessoas da minha própria casta. Por exemplo, organizei este sistema de defesa, com postos na fronteira e Vigilantes, para que os fazendeiros não tenham de enfrentar sozinhos os bandidos que vêm do outro lado do Kadarin. E há algumas pessoas que consideram isso uma flagrante violação de nosso código de responsabilidade individual.
Ele fez uma pausa.
- Qual é o problema?
Larry não podia deixar de indagar:
- Está lendo meus pensamentos?
- Isso o incomoda? Não bisbilhoto, Lerrys. Nenhum telepata o faz. Mas quando você projeta seus pensamentos para mim de uma forma tão clara... - Valdir deu de ombros. - Nunca conheci um terráqueo que fosse tão aberto ao contato.
- Não, não me incomoda. - E Larry descobriu, para sua surpresa, que isso era mesmo verdade. A idéia não o perturbava nem um pouco. - Se mais terráqueos e darkovanos pudessem ler as mentes uns dos outros, talvez se compreendessem melhor, e não teriam medo uns dos outros, assim como nós dois não temos medo.
Valdir sorriu, gentilmente, e levantou-se.
- É tempo de partirmos. - Uma pausa, e ele acrescentou, em voz baixa: - Mas não se iluda, Lerrys. Nós temos medo de você. Pode não saber, mas é capaz de se tornar muito perigoso.
Ele se afastou, apressado, enquanto Larry o observava, aturdido, sem saber se ouvira direito.
A trilha para o vale era íngreme e sinuosa, e por algum tempo Larry teve de concentrar toda a sua atenção em permanecer na sela. Mas logo a trilha se alargou, ficou mais fácil, e ele percebeu que sentira de novo o cheiro de fumaça do posto incendiado. O vento teria mudado de direção? Ergueu a cabeça e parou o cavalo. Quase que no mesmo instante, Valdir, seguindo à sua frente, levantou o braço num sinal, parou também, virou a cabeça para o vento e farejou, antes de anunciar, a voz tensa:
- Fogo.
- Outro posto? - perguntou um dos darkovanos.
Valdir, balançando a cabeça de um lado para outro – quase como se esperasse ouvir o ruído das chamas, pensou Larry -, subitamente ficou imóvel, como uma estátua. Nesse momento, Larry ouviu o som de um sino, profundo, ressoando pelo vale. Repicou e repicou, num estranho padrão. Enquanto o pequeno grupo de cavaleiros mantinha-se imóvel, ainda escutando com toda a atenção, outro sino soou, mais fraco, mais distante, mas repetindo o mesmo ritmo lento. Poucos minutos depois, um terceiro sino acrescentou suas badaladas ao coro. Valdir disse, em tom de urgência:
- É o toque de incêndio! Kennard, seus ouvidos são melhores do que o meu... de quem é o toque?
Kennard escutou, rígido na sela. Reproduziu o ritmo com os dedos, por um instante.
- É o toque de Aderis.
- Pois então vamos logo! - gritou Valdir.
Todos desceram a encosta em disparada. Larry, espantado, sacudiu as rédeas e seguiu-os, tão depressa quanto podia. Com dificuldade para se manter na sela, não querendo ficar para trás, ele se perguntou qual seria o problema.
Quando alcançaram o topo de uma pequena colina, ele pôde ouvir melhor o clamor do sino, mais alto, mais insistente, e avistou no vale lá embaixo um pequeno agrupamento de telhados.. . a aldeia de Aderis. As ruas fervilhavam de homens, mulheres e crianças; ao descerem a última encosta, entrando na rua principal da aldeia, foram cercados pelos homens, que ficaram em silêncio assim que viram Valdir Alton.
Valdir desmontou e fez sinal para que seu grupo o acompanhasse. Larry também se adiantou, e descobriu-se ao lado de Kennard.
- O que está acontecendo?
- Incêndio na floresta - respondeu Kennard, fazendo em seguida um sinal para que ele se calasse.
Todos prestavam atenção a um homem, que ainda apontava na direção das colinas no outro lado do vale. Larry, virando-se na direção indicada, avistou apenas um nevoeiro espesso, cada vez mais escuro, que poderia ser uma nuvem... ou fumaça.
A multidão na rua da aldeia aumentava cada vez mais, enquanto o sino continuava a tocar. Kennard virou-se para Larry, e explicou, falando depressa:
- Quando irrompe um incêndio nestas colinas, os sinos repetem o toque da aldeia que o viu primeiro. Antes do anoitecer, todos os homens em condições físicas de ajudar estarão aqui. É a lei, quase que a única lei nossa que ultrapassa as fronteiras da propriedade de um homem.
Larry podia entender o motivo; mesmo numa terra que desdenhava as leis impessoais, os homens deviam se reunir para combater o grande inimigo impessoal que era o fogo. Valdir virou a cabeça, divisou os dois rapazes parados ao lado de seus cavalos, e se aproximou apressado. Parecia aflito e remoto outra vez, e Larry compreendeu por que alguns homens sentiam medo de Lorde Alton quando ele assumia aquela expressão.
- Vardi cuidará dos cavalos, Kennard. Iremos para as encostas do sul, onde há necessidade de linhas de fogo. Lerrys...
Ele franziu o rosto e balançou a cabeça, antes de acrescentar:
- Sou responsável por sua segurança. O incêndio pode descer por esta encosta, e por isso as mulheres e as crianças serão enviadas para a próxima aldeia. Vá junto; enviarei uma mensagem para alguém ali, que o receberá como hóspede, até o final da emergência.
Kennard se mostrou surpreso, e Larry quase que pôde ler seus pensamentos; a expressão nos olhos de Kennard era em grande parte para ele. O alienígena deveria ser enviado para a segurança junto com as mulheres, enfermos e crianças?
- Lorde Alton, eu não...
- Não há tempo para discutir. - A voz do darkovano era ríspida, os olhos intimidativos. - Você ficará são e salvo ali.
Larry sentiu uma raiva súbita e intensa, quase uma coisa física. Não serei enviado para longe junto com as mulheres! O que eles pensam que eu sou? Valdir Alton já começara a se virar; parou de repente, de uma forma tão abrupta que Larry especulou se expressara seu protesto em voz alta.
- Qual é o problema, Lerrys? Fale depressa. Tenho um dever a cumprir.
- Não posso ir com os homens, senhor? Eu...
Larry procurou pelas palavras certas, tentando exprimir alguns dos pensamentos irados que fervilhavam em sua mente. Como se ecoasse seus pensamentos, Valdir disse:
- Se fosse um dos nossos... mas seu povo vai me considerar responsável se alguma coisa lhe acontecer...
Larry, absorvendo depressa o que Valdir falara sobre os códigos darkovanos, respondeu:
- Mas está lidando comigo, não com todo o meu povo! Valdir sorriu, contrafeito.
- Se é isso o que você quer, está bem. Mas devo adverti-lo de que é um trabalho árduo e perigoso.
Larry não disse nada, e Valdir gesticulou e arrematou:
- Vá com Kennard. Ele lhe dirá o que fazer.
Larry se afastou apressado, ao encontro de Kennard, compreendendo que transpusera outra ponte. Podia ser aceito pelos darkovanos em seus próprios termos, como um homem - igual a Kennard -, não um menino que devia ser protegido.
Depois de um intervalo confuso, ele se descobriu parte de um grupo de cavaleiros, com Valdir na vanguarda, Kennard ao seu lado, meia dúzia de darkovanos estranhos ao redor, seguindo na direção do nevoeiro denso e baixo. Enquanto avançavam, o cheiro de fumaça foi se tornando mais forte, e outros cheiros desconhecidos impregnaram o ar. Partículas de poeira pairavam no ar, fragmentos de fuligem negra caíam em seus rostos, ardiam nos olhos. Seu cavalo tornou-se irrequieto, refugando e relinchan-do, à medida que a fumaça adensava. Ao final, tiveram de desmontar e puxar os cavalos pelas rédeas.
Até aquele momento, o fogo fora apenas a fumaça subindo contra o céu, com um cheiro acre e penetrante; mas ao passarem entre as duas colinas que bloqueavam a vista das encostas cobertas pela floresta, Larry pôde avistar um brilho escarlate, e ouviu um som estranho e forte, a distância. Um pequeno animal, parecido com um coelho, passou em disparada, quase sob os cascos dos cavalos, fugindo às cegas.
Valdir apontou. Contornou uma sebe alta, e saiu para uma campina ampla, cuja relva cinzenta se encontrava bastante pisoteada. Inúmeros homens e garotos se movimentavam no centro, e havia uma tenda armada na beira. Depois de um momento de confusão, Larry percebeu que os agrupamentos aparentemente ao acaso eram ordenados e objetivos. Um homem idoso, encurvado, de passos trôpegos, adiantou-se para pegar os cavalos. Larry entregou seu animal e seguiu apressado atrás de Kennard, para o centro do campo.
Um garoto mais ou menos da sua idade, usando uma blusa de aniagem e um blusão de couro, gesticulou para eles. Acenou com a cabeça para Kennard, em reconhecimento, olhou para Larry com o rosto franzido e perguntou:
- Sabe usar um machado?
- Receio que não.
O jovem darkovano estranhou um pouco o seu sotaque, mas logo deu de ombros, esquecendo o assunto.
- Então pegue isto.
Ele tirou de uma pilha de ferramentas uma coisa que parecia um ancinho, com dentes compridos, e entregou a Larry. Acenou-lhe para que seguisse em frente. Larry ergueu os olhos para a outra extremidade da campina, observando a beira da floresta. Parecia muito verde e tranqüila, mas por cima das copas, a distância, podiam-se avistar as chamas. Kennard tocou de leve em seu braço.
- Venha comigo. - Ele ofereceu um sorriso a Larry e acrescentou: - Não pode haver a menor dúvida sobre o lugar para onde devemos ir.
Larry ajeitou o ancinho no ombro e juntou-se ao grupo de homens e garotos que se encaminhavam para o clarão distante.
Uma ou outra vez, durante aquela tarde longa e confusa, ele se perguntou, de uma forma um tanto remota, por que se metera naquilo, mas a especulação foi de curta duração. Era apenas um de uma longa fileira de homens e garotos, com ancinhos, enxadas e outras ferramentas, tentando abrir um aceiro entre as chamas distantes e a aldeia. Embora tosca e simples, era a técnica conhecida mais antiga para lidar com os incêndios na floresta... criar um vasto espaço em que não houvesse coisa alguma que pudesse propagar o fogo. Com ancinhos, enxadas, pás e picaretas, eles removiam as moitas secas e as agulhas de pinheiros, deixavam a terra nua, sem mesmo a relva, uma faixa larga em que nada havia para arder. Homens com machados derrubavam árvores no espaço escolhido; os garotos menores arrastavam os troncos, e no instante seguinte entrava em ação a turma que escavava e limpava o resto do terreno. Larry logo ficou com os músculos doloridos e com as mãos ardendo do cabo do ancinho, mas continuou a trabalhar, uma unidade anônima entre dezenas de homens, que não paravam de chegar. Quando um trecho ficava todo limpo, eles passavam para outro. Garotos menores circulavam com baldes cheios de água; Larry bebia ao chegar sua vez, largando o ancinho e encostando os lábios na beira do balde. Quando estava escuro demais para se ver alguma coisa, ele e Kennard foram retirados da linha e substituídos por uma turma nova, que passou a trabalhar à luz de tochas. Os dois desceram a encosta, exaustos, até o acampamento, e entraram na fila para as tigelas de ensopado, servido por velhos que cuidavam de tudo ali. Depois de comerem, enrolaram-se em cobertores e deitaram na relva para dormir, cercados por inúmeros outros.
Larry acordou antes do amanhecer, a garganta e os pulmões cheios de fumaça. Sentou. O rugido do fogo parecia ominoso e ameaçador; os homens ainda estavam reunidos no centro do acampamento. Ele reconheceu o vulto alto de Valdir Alton, ouviu as vozes excitadas. Largou o cobertor e levantou-se. Kennard também ficou de pé, ao seu lado. Na semi-escuridão, os contornos de Kennard eram vagos.
- Alguma coisa está acontecendo ali - murmurou ele. -Vamos descobrir o que é.
Os dois jovens esgueiraram-se com o maior cuidado entre as fileiras de homens adormecidos. Ao chegarem perto, a luz do fogo iluminou um homem alto, num manto cinza, cabelos vermelhos opacos, com mechas brancas. Larry reconheceu o rosto austero e ascético de Lorill Hastur. Ao seu lado, envolta por uma pelerine fechada, estremecendo, havia uma mulher franzina, de aparência frágil, com massas de cabelos flamejantes. Kennard assoviou baixinho.
- Uma leronis, uma feiticeira... e Lorde Hastur! O incêndio deve ser pior do que imaginávamos! - Ele puxou Larry pelo pulso. - Vamos nos aproximar... quero ouvir tudo!
Em silêncio, eles se encaminharam para o pequeno grupo. Valdir Alton estendeu uma manta no chão para a mulher, que sentou, olhando para o clarão do fogo distante, como se estivesse hipnotizada.
- O fogo alcançou as linhas na encosta norte - informou Valdir. - Eles ficaram perto demais das chamas e tiveram de bater em retirada. Providenciamos equipes com burros para abrirem novas linhas e se afastarem depressa, mas não havia homens em quantidade suficiente trabalhando ali. Só tínhamos um clarividente, e ele não foi capaz de determinar com precisão a direção do incêndio.
Lorill Hastur disse, com sua voz profunda:
- Viemos tão depressa quanto podíamos. Mas não há muito o que possamos fazer, até o sol nascer. - Ele virou-se para a mulher. - Onde estão as nuvens, Janine?
Ainda olhando fixamente para o céu, a mulher respondeu:
- Muito longe. E não são suficientes. A sete vars de distância.
- Mas teremos de tentar - declarou Valdir. - Caso contrário, o incêndio cruzará as colinas para oeste e queimará... pelos infernos de Zandru, pode queimar todo o caminho até o rio! Não podemos perder tanta floresta assim!
Larry ouviu as palavras com um estranho arrepio de medo. Descobriu-se a pensar, angustiado, em seu próprio mundo.
Com tratores e escavadeiras, poderiam abrir linhas de fogo com seis metros de largura em poucas horas. Com substâncias químicas, poderiam abafar o fogo pelo ar e extingui-lo em uma hora. Ali, não tinham sequer aviões ou helicópteros para observar do ar a direção das chamas.
Kennard fitou-o, com uma expressão irônica, e Larry especulou, mais uma vez, se falara em voz alta, mas o amigo darkovano não disse nada. A escuridão começou a se desvanecer, e através do ar impregnado de fuligem puderam ver o céu se tingindo de púrpura, no amanhecer.
- O que eles vão fazer? - indagou Larry.
Kennard não respondeu.
A mulher gesticulou para Lorill Hastur, que sentou de pernas cruzadas sobre a manta, na sua frente. Valdir Alton permaneceu de pé, por trás deles, sem qualquer expressão definida no rosto, concentrado e calmo.
A mulher tinha alguma coisa na mão. Era uma pedra azul, faiscando, pálida no amanhecer púrpura, e Larry se lembrou da pedra azul que Valdir segurara em sua mão ao sondar a mente do Vigilante agonizante. Um pequeno calafrio de apreensão percorreu sua espinha, e ele estremeceu ao vento frio.
Os três ficaram imóveis, tensos, como imagens esculpidas. Kennard apertou o braço de Larry, que sentiu todo ò excitamento do amigo; queria fazer uma dúzia de perguntas, mas a concentração das três pessoas de cabeça vermelha o manteve em silêncio. Limitou-se a esperar.
Os minutos se arrastaram, lentamente, e a pedra azul na mão da mulher faiscou. Larry quase que podia ver a tensão que se irradiava entre os três. A manhã foi se tornando cada vez mais clara, e no horizonte a leste um brilho avermelhado iluminou o clarão escarlate do incêndio distante. A claridade aumentou, espalhando-se pelo céu.
E de repente a mulher soltou um suave suspiro, que Larry sentiu como sinistro e gelado. Kennard tornou a pegar seu braço e apontou para cima. Nuvens se acumulavam, densas, deslocando-se depressa pelo céu pálido, surgindo do nada. Eram cúmulos enormes, cirros mais tênues e mais velozes, vindo do horizonte... de todos os horizontes! Não tangidas pelo vento normal, mas se acumulando ali, procedentes de todos os pontos cardeais, umas por cima das outras. O sol foi encoberto, a campina escureceu pouco a pouco, e Larry estremeceu no frio súbito... mas não de frio. Deixou escapar a respiração num longo suspiro. Kennard afrouxou os punhos cerrados. Não desviava os olhos do céu.
- Há nuvens suficientes - murmurou ele -; se ao menos despejassem chuva! Mas sem vento, se as nuvens apenas ficarem paradas aqui...
Larry considerou as palavras murmuradas como uma licença para romper o silêncio. As indagações se atropelavam, e se condensaram numa pergunta balbuciada:
- Como eles conseguiram isso? Foram eles que trouxeram as nuvens para cá?
Kennard acenou com a cabeça, sem dar muita importância.
- Claro. Não é nada de mais. Eu também posso fazer... um pouco. Num bom dia. E eles são o Comyn... com os mais fortes poderes psíquicos de Darkover.
Larry sentiu outro calafrio subir e descer por sua espinha. Telepatia... e agora nuvens deslocadas pelo poder de mentes treinadas!
Seu condicionamento terráqueo protestou: Impossível, bobagem supersticiosa! Eles observaram a direção das nuvens, e reforçaram sua reputação com a predição de que as nuvens, se acumulariam aqui para chover! Mas mesmo enquanto pensava assim, ele sabia que não era verdade. Não se encontrava mais no mundo seguro e previsível da ciência terráquea, mas sim na estranheza de um mundo alienígena em que esses poderes eram mais corriqueiros do que uma câmera.
- E agora? - indagou ele.
Como se em resposta, Valdir disse, do centro do círculo:
- Agora, vamos rezar por chuva. Seria ótimo.
Ele levantou a cabeça, avistou os jovens e chamou-os.
- Comam a primeira refeição conosco. Assim que clarear mais um pouco, serão enviados de novo para as linhas de fogo. A menos que chova.
- Que Evanda o ouça - murmurou a mulher, a voz rouca.
Lorill Hastur virou-se, concedeu um sorriso de saudação a Kennard, mas se tornou impassível ao deparar com Larry. Sob o olhar do homem, Larry compreendeu de repente que tinha o rosto sujo de fuligem, as mãos empoladas, em carne viva, as roupas rasgadas e suadas. Só depois percebeu que o estado de Valdir Alton não era muito melhor. Notara no dia anterior, vagamente, que os homens nas linhas de fogo eram de todos os tipos, alguns com as mãos macias e roupas elegantes dos aristocratas, outros com os andrajos dos mais pobres. Era evidente que a posição social não fazia a menor diferença: ricos e pobres trabalhavam juntos contra aquele perigo comum. Entre todas as pessoas no acampamento, apenas os dois telepatas não se achavam marcados pelo trabalho árduo.
Mas ele logo reparou na fadiga nos olhos da mulher, nos sulcos profundos no rosto de Hastur. Talvez o trabalho deles tenha sido o mais árduo...
Kennard cutucou-o, e ele aceitou, de um dos velhos, um pedaço de pão e uma caneca amassada com uma bebida que parecia chocolate amargo. Encontraram um trecho de relva não enlameado e sentaram para comer, os ouvidos sintonizados para o distante rugir das chamas. Kennard comentou, sombrio:
- Eles podem trazer as nuvens e concentrá-las, mas não podem fazer com que se transformem em chuva. É verdade que às vezes o mero peso das nuvens faz com que se condensem em chuva. Vamos torcer.
- Se vocês tivessem aviões... - murmurou Larry.
- Para quê?
- Na Terra, pode-se fazer chover de aviões - explicou ele, recordando as lições meio aprendidas na escola. - Lançam uma substância química nas nuvens... cristais... iodeto de prata, ou até mesmo gelo seco. Não sei direito como funciona, mas condensa as nuvens em chuva...
- Como o gelo pode ser seco? - indagou Kennard, num tom quase rude. - Parece um absurdo, como dizer água seca ou um vivo morto.
- Não é gelo de verdade - corrigiu Larry. - É um gás... um gás congelado, dióxido de carbono, o gás que a gente respira. Cristaliza-se numa coisa que parece neve, só que muito mais fria do que gelo ou neve... e queima, se você tocar.
- Não está brincando?
- Espero que não - interveio Valdir, abruptamente, por trás deles. - Kennard, o que Lerrys acabou de lhe dizer? Captei uma parte, mas não pude entender...
Larry experimentou uma estranha sensação, ao compreender que Valdir se encontrava a uma distância em que não poderia ouvi-lo. O lorde darkovano fitava-o com uma intensidade quase agressiva.
- Fazer chover? Neste caso, parece que os terráqueos possuem uma magia maior do que a nossa. Fale-me sobre esse método de fazer chuva, Lerrys.
Larry repetiu c que dissera a Kennard, e o homem mais velho franziu o rosto, imerso em pensamentos. Sem falarem nada, Lorill Hastur e a mulher frágil de cabelos vermelhos haviam se aproximado e escutado a conversa. Lorill Hastur disse:
- O que acha, Valdir? Você conhece alguma coisa de estruturas atômicas. É viável?
Os homens que haviam dormido na campina começavam a recolher suas ferramentas, formando grupos, recebendo as ordens para o trabalho do dia. Larry olhou para a beira da floresta. Parecia muito verde. Por cima, no entanto, estendia-se o manto de fumaça, e ainda soava o rugido incessante do incêndio. Valdir também se virou e contemplou as nuvens que pairavam sobre as árvores em chamas.
- O fogo exala o mesmo gás que respiramos - murmurou ele. - Deve haver uma grande quantidade de dióxido de carbono no ar.
- Podemos deslocá-lo para o frio do céu exterior - sugeriu
Lorill Hastur. - Seria bastante fácil. E de lá, se cair sobre as nuvens...
- Não há tempo a perder - interveio a mulher. Os olhos fechados, a voz remota, ela acrescentou: - Uma tempestade de fogo irrompeu no outro lado da floresta e avança para as aldeias naquela área. As linhas de fogo não conseguirão contê-la. A chuva é a única esperança. Há umidade suficiente naquelas nuvens para apagar o incêndio... se pudéssemos provocar uma chuva.
- Podemos tentar - disse Valdir.
Os três ingressaram outra vez no mesmo silêncio concentrado, o próprio ar entre as três formas imóveis parecendo tremer com uma força invisível. Larry olhou para Kennard.
- Sabe o que eles vão fazer? Como podem...?
- Podem teleportar o gás por cima das nuvens - explicou Kennard. - Se o frio puder congelá-lo...
Larry já começara a se acostumar com aqueles estranhos poderes. Se a telepatia era possível, então a teleportação era apenas um pequeno passo a mais...
- Se eles podem teleportar, então por que simplesmente não teleportam água suficiente de um rio, ou de algum outro lugar, para apagar o incêndio?
- Peso demais envolvido - explicou Kennard. - Até mesmo as nuvens... eles não deslocaram as nuvens diretamente, apenas ar suficiente para criar um vento que as empurrou para cá.
Ele se calou, os olhos fixados no pai; e quando Larry fez menção de falar, gesticulou impaciente para que ele permanecesse em silêncio.
E o silêncio na campina ao amanhecer pareceu se aprofundar; não havia qualquer som, exceto o ruído distante e indistinto do fogo. O céu nublado escureceu ainda mais, tornou-se mais denso, assustador. Larry observou um grupo de homens se encaminhando para as linhas de fogo; ele e Kennard deveriam
acompanhá-los. Mas continuaram parados ali, esperando, observando os três telepatas...
Abruptamente, houve um silvo intenso no fogo distante. Larry, virando-se, avistou uma tremenda erupção de fumaça e fogo, e mais sentiu do que ouviu o som aterrador. Depois, o silêncio voltou a reinar, abafado, tenso e profundo.
Por cima de sua cabeça, as nuvens se agitaram, se contorceram, mudaram de forma várias vezes, se fundindo, cada vez mais escuras.
E depois o céu e as nuvens de repente se dissolveram - foi a única maneira que Larry encontrou para descrever o que aconteceu, mais tarde - e fluíram para as linhas verticais de um aguaceiro. A floresta em chamas chiou, crepitou numa espécie de desespero. Nuvens enormes e densas de fumaça, vapor e fuligem se elevaram para o céu, ao mesmo tempo que um vento súbito soprava uma chuva de fagulhas. Larry ficou encharcado em um segundo, antes que a chuva se concentrasse, caindo quase toda sobre a floresta, mas deixando a campina intacta, exceto pelas gotas iniciais. As chamas, visíveis por cima das copas das árvores, definharam e se extinguiram, sob o vapor e fumaça. O som sibilante foi se tornando mais alto, rugiu, depois murchou e silenciou.
A chuva cessou.
Encharcado, tremendo, Larry olhou espantado para Valdir e para os dois telepatas vestidos de cinza. Haviam concentrado as nuvens e dominado a própria força da chuva para combater o incêndio!
Valdir fez um sinal para os rapazes. Eles atravessaram a relva úmida, Larry ainda um pouco atordoado. Ele se gabara da ciência terráquea; seria capaz de igualar aquilo?
- Este incêndio acabou - murmurou Valdir, num tom de profundo alívio. - Larry, eu queria lhe agradecer; sem o que nos disse, nenhum de nós saberia como fazer. Não tenho palavras para expressar nosso reconhecimento.
A situação se tornou ainda mais desconcertante. Aqueles homens possuíam forças e poderes com que a ciência nem sonhava... e, no entanto, ignoravam uma noção simples como pulverizar as nuvens! Como não podia falar sem revelar aquela mistura de respeito com surpresa pela insuficiência dos conhecimentos, Larry permaneceu calado. Valdir virou-se para Lorill Hastur e disse:
- Agora talvez possa compreender a minha posição. Sem os conhecimentos deles...
Mas antes que ele pudesse concluir a frase, um clamor de sinos irrompeu da aldeia lá embaixo. Valdir empertigou-se; os dois telepatas trocaram olhares. Mais além, outro sino repicou, e mais outro, não mais no padrão de alarme de incêndio, mas um brado de alerta estrondoso. Os homens no acampamento, assim como os outros que voltavam do incêndio extinto, largaram suas ferramentas, aturdidos. Surgiu um crescente murmúrio de apreensão, de medo. Valdir praguejou, furioso.
- Deveríamos ter imaginado... Kennard fitou-o, sem entender.
- O que é, pai?
A boca de Valdir contraiu-se em amargura.
- Um estratagema... o incêndio foi ateado para nos desviar das aldeias, a fim de que os bandidos pudessem atacá-las sem qualquer dificuldade... enfrentando apenas velhos, mulheres e crianças!
O acampamento, até então ordenado, se transformou de repente numa cena de total confusão, enquanto os homens se juntavam em grupos, agitados, correndo para seus cavalos. Em poucos minutos, o acampamento esvaziou-se quase que por completo, os homens desaparecendo em silêncio em todas as direções. Valdir observou, com os lábios contraídos.
- Os atacantes podem ter uma surpresa - disse ele, depois de um longo momento. - Eles nunca imaginariam que conseguiríamos controlar um incêndio tão depressa. Mesmo assim...
Ele fez uma pausa, sombrio e indignado.
- Não tive a menor chance... Diga-me, Larry, como seu povo enfrentaria um ataque assim?
- Creio que nos juntaríamos para lutar - respondeu Larry. Valdir soltou uma risada curta e soturna.
- Certo. O problema é que eles não podem entender que isso é tão urgente quanto o fogo... - Ele interrompeu a frase com um gesto violento. - Que Zandru se apodere de todos eles! Kennard, para onde levaram nossos cavalos?
Quinze minutos mais tarde eles seguiam a galope para a aldeia, Valdir ainda em silêncio, sombrio. Kennard e Larry não ousaram se intrometer em sua raiva. Larry ainda se debatia com o senso de espanto. Os poderes que aqueles darkovanos possuíam. .. e a maneira irregular e assistemática com que os usavam!
Ele começava a formular uma teoria sobre o motivo que levara Valdir a convidá-lo a visitar sua propriedade. Era evidente que Valdir tinha uma vaga noção do valor de uma qualidade que parecia alheia ao modo devida darkovano, algo que os terráqueos possuíam. Larry mal sabia como descrever. Era a coisa de que Kennard escarnecera ao dizer: "Vocês, terráqueos, não conseguem cuidar de seus problemas pessoais sozinhos... precisam arrastar todo mundo." Talvez se pudesse chamar de espírito comunitário, ou a capacidade de realizar um trabalho coletivo. Os darkovanos não sabiam como se organizar; mesmo no combate ao incêndio, não houvera um líder único, e cada grupo atuava independente. Também agora, não havia a menor possibilidade de se unirem contra o perigo comum dos bandidos. E Valdir, que podia perceber a sucessão de fracassos por trás daqueles esforços dispersos, queria mudar esse antigo padrão. Mas não haviam lhe dado nenhuma chance.
Os outros darkovanos que haviam participado da caçada de três dias - há quanto tempo parecia ter sido! - cavalgavam um pouco atrás, sem querer interferir na preocupação de seu lorde. Para Larry, os sentimentos de Valdir pareciam tão claros quanto se ele próprio os acalentasse. Kennard também seguia em silêncio, ao lado de Larry, refletindo sobre a disparidade por trás dos códigos antigos e a tentativa de seu pai de mudar as coisas. Para Larry, era quase como se Kennard expressasse seus pensamentos em voz alta... o pai não podia fazer nada errado, mas como chegara a essas conclusões?
Assim que se afastaram da área do incêndio, não houve mais qualquer sinal das nuvens, ou da breve chuva; apenas a camada alta de fumaça e fuligem, pairando sobre a floresta, a distância, indicava onde o fogo ardera. Mesmo isso logo desapareceu por trás das colinas quando fizeram uma parada, no ponto em que o caminho se bifurcava, na base de uma encosta coberta por árvores, para deixarem os cavalos descansar, e comerem os alimentos frios dos alforjes. Kennard comentou, distraído:
- Vai ser bom voltar para casa.
Larry acenou com a cabeça. Ainda se sentia dolorido do trabalho árduo na linha de fogo, a que não estava acostumado e tinha as mãos empoladas, em carne viva.
- As minhas também - murmurou Kennard, exibindo suas mãos, pesaroso. - Era de supor que a esta altura já estivessem bastante calejadas. O mestre-de-armas da Guarda de Thendara não teria a menor compaixão comigo. Diria que faltei aos exercícios com a espada por vezes demais.
Larry abriu o alforje para pegar o pequeno estojo de primeiros socorros que trouxera. Tinha o emblema do Serviço Médico. Kennard observou, curioso, quando ele abriu o estojo, revelando vidros e tubos.
- Tome aqui. Experimente isto nas suas bolhas - sugeriu Larry, hesitante, depois de espalhar o pó em suas próprias mãos.
Kennard seguiu o seu exemplo, mas cheirou o anti-séptico, curioso.
- Posso dar uma olhada?
Kennard examinou os vidros e os tubos, e depois comentou:
- Seu povo faz coisas muito esquisitas!
- Algumas coisas do seu também são muito estranhas - respondeu Larry. - A idéia de telepatia ainda me parece esquisita demais... e teleportação ainda por cima!
Kennard deu de ombros.
- Acho que tem razão, embora para mim sejam coisas muito simples.
Ele olhou para o pai. Valdir, parecendo um pouco menos inacessível agora, virou-se, acenou com a cabeça para o filho, tirou algo do bolso do gibão e jogou para Kennard. Era uma pequena bolsa de camurça, com um embrulho de seda dentro, que Kennard abriu para mostrar uma pedra azul faiscante.
- Claro que não sou tão bom quanto meu pai, mas ainda assim... tome aqui, dê uma olhada.
Cauteloso, Larry tocou na pedra azul, que irradiava algum calor. Ele hesitou, recordando como Valdir sondara a mente do Vigilante agonizante.
- Não se preocupe - tranqüilizou-o Kennard. - Sabe que eu não lhe faria qualquer mal, não é?
Envergonhado de seu medo, Larry fixou os olhos na pedra azul. Em suas profundezas, cores tênues pareciam se mover; e de repente, quando ele levantou os olhos para Kennard, alguma barreira desapareceu. O jovem darkovano parecia mais próximo, mais fácil de compreender. Num repentino relance de percepção, Larry teve uma visão dos pensamentos de Kennard, como se a essência da personalidade do amigo se tornasse clara para ele: o intenso orgulho de família de Kennard, o tremendo senso de responsabilidade por seu trabalho, os medos que às vezes o invadiam, o amor que sentia pelo pai e por sua jovem irmã-de-adoção, até mesmo a amizade afetuosa que dedicava a Larry -o que o deixou um pouco embaraçado - e a emoção que beirava a reverência com que considerava a viagem do amigo pelo espaço e sua origem terráquea...
Tudo isso num breve relance, enquanto a pedra azul parecia arder; e depois se desvaneceu, a barreira voltou a seu lugar, e Kennard lhe sorriu, um tanto hesitante. Ocorreu a Larry que Kennard sabia agora tanto a seu respeito quanto ele sabia sobre Kennard. Não se importava... mas não era fácil se acostumar à idéia!
Pelo menos, depois de provar uma amostra, ele não podia mais duvidar da existência da telepatia!
Kennard guardou a pedra. Larry, percebendo que o estojo de primeiros socorros ainda se encontra em sua outra mão, apressou-se em metê-lo no bolso.
Não tinha como saber naquele momento que o contato entre ele e Kennard haveria de salvar a vida de ambos...
Haviam MONTADO de novo e viajado por uma hora quando alcançaram uma passagem estreita entre duas colinas cobertas de árvores. Já estava escuro no fundo das encostas, pois o sol declinava no horizonte; Valdir, na vanguarda, parou seu cavalo e esperou pelos outros.
Os olhos de Kennard fixaram-se no pai, inquisitivos, e Larry, ao seu lado, pôde captar seus pensamentos, daquela maneira que ainda lhe parecia tão estranha: Não gosto deste lugar. Cada moita pode esconder uma dúzia de bandidos. É um cenário perfeito para uma emboscada... Seria a minha primeira luta, a primeira vez em que me defrontaria com um perigo concreto, não apenas a repressão aos arruaceiros nas ruas da cidade. E me pergunto se o pai sabe que estou com medo.
Larry sentiu a pele se arrepiar, numa estranha mistura de excitamento e medo. Nos últimos três dias, sua vida até então serena fora lançada num turbilhão de violência e perigo. Era uma novidade para ele, mas de certa forma não de todo desagradável.
Passavam pelo meio do pequeno vale quando Larry ouviu, em meio ao barulho dos cascos, um som diferente, partindo do meio das moitas. Ele ficou rígido na sela. Valdir, alerta, percebeu o movimento e parou no mesmo instante, olhando ao redor, cauteloso. Um grito áspero e rouco saiu de trás das árvores... e logo homens montados os atacaram por todos os lados.
Valdir soltou um berro de advertência. Larry, naquele primeiro momento de choque paralisante, viu os cavaleiros, homens altos, em longos mantos peludos, de cabelos compridos e barbudos, montados em cavalos enormes e magros, de uma raça desconhecida, avançarem a uma velocidade incrível. Não havia tempo para fugir, fiem tempo para pensar. Subitamente, ele se descobriu no meio dos atacantes e viu os darkovanos desembainharem suas espadas. Kennard, o rosto muito pálido, tinha a adaga na mão, e com a outra tentava controlar seu cavalo.
Larry teve apenas uma fração de segundo para perceber tudo isso - e experimentar um repentino e intenso senso de pânico, por ser o único no grupo que estava desarmado e nada saber de combate - antes que tudo se misturasse numa confusão vertiginosa, cavalos esbarrando em cavalos, gritos numa estranha língua, o estrépito seco de aço contra aço.
O cavalo de Larry empinou e disparou para a frente. Ele segurou as rédeas em desespero e sentiu que escapuliam de seus dedos, queimando as mãos empoladas, com uma breve pontada de dor. Depois, sentiu que perdia o equilíbrio e resvalava para o chão, as pernas vergando sob seu peso. Meio atordoado, ainda conservou a percepção suficiente para rolar por uma curta distância, afastando-se dos cascos de seu cavalo frenético. Alguém tropeçou em seu corpo prostrado e caiu para a frente, sobre a relva; o homem se levantou no instante seguinte, com um grito rouco de raiva, e avançou para Larry, com uma faca na mão. Larry rolou para ficar de costas, encolheu o corpo e ergueu o pé ao encontro da faca que descia em sua direção. Com um senso de total irrealidade - Isto não é real, não pode ser! -, ele viu a faca girar num arco alto e cair a três metros de distância. O homem, desequilibrado, cambaleou para trás; logo se recuperou e tornou a atacar Larry, segurando-o com as duas mãos. Larry ergueu os cotovelos, empurrou com toda a sua força e conseguiu se desvencilhar. Fez um esforço para ficar de joelhos, mas o atacante se lançou contra ele de novo, e seu rosto - rude, barbudo, com olhos amarelos malignos - ficou bem próximo, ameaçador. Sua respiração malcheirosa esquentou o rosto de
Larry, e as mãos se adiantaram para a garganta do jovem terráqueo. Apavorado, mas ao mesmo tempo com uma súbita lucidez, Larry se descobriu a pensar: Ele não tem mais a faca, é gordo, está fora deforma.
Larry ficou inerte, relaxado e caiu para trás, arrastando o homem. Antes que pudesse recuperar o equilíbrio, Larry levantou os pés para seu peito, num movimento quase convulsivo, e empurrou com toda a sua força. Acertou em cheio na barriga do homem. O bandido soltou um grito de agonia e tombou em gemidos, as mãos comprimindo a barriga, numa agonia alheia a tudo mais.
Larry tornou a ficar de joelhos, firmou-se e pôs todo o peso do corpo num soco, que atingiu o homem no nariz.
O bandido arriou no chão, desmaiado, e não se mexeu mais.
E no momento em que Larry se empertigava, recuperando o equilíbrio, encontrando uma pausa para sentir medo outra vez, alguma coisa o atingiu por trás da cabeça, com toda a força.
O estrépito de espadas e facas tornou-se uma trovoada, uma explosão... e depois virou um silêncio terrível e irreal. Ele teve a sensação de que caía. Mas nunca sentiu o choque com o chão.
Estava escuro. Ele se sentia todo dolorido, com cãibras; todo o corpo doía, a cabeça latejava numa dor insuportável. Tentou se mexer, soltou um som rouco e abriu os olhos.
Nada pôde ver a princípio, e foi dominado pelo pânico. Depois, divisou formas vagas, através do pano áspero que cobria seu rosto. Tentou mexer as mãos e descobriu que estavam amarradas. A dor intensa persistia. A sensação era de cascos de cavalos ressoando em sua cabeça. E logo descobriu que era isso mesmo. Estava pendurado de barriga para baixo, as mãos encostadas no corpo quente e peludo de um cavalo.
Compreendeu, atordoado, que se encontrava vendado, sendo levado na sela de um cavalo. Com essa constatação, veio o pânico. Fez outro esforço para mover os braços, e foi então que sentiu uma ponta de aço espetando suas costelas, através das roupas.
- Fique quieto - ordenou uma voz áspera, num dialeto tão bárbaro que Larry mal conseguiu entender as palavras. - Sei que as ordens são para não matá-lo, mas não haveria mal nenhum em derramar um pouco do seu sangue... e se tornaria mais fácil de carregar! Fique quieto!
Larry ficou inerte, a cabeça em turbilhão. Onde estava? O que acontecera? Onde se encontravam Valdir e Kennard? A lembrança da luta aflorou. Estavam em inferioridade numérica. Os outros teriam sido também capturados? Por quanto tempo permanecera inconsciente? Para onde o levavam? Um medo frio o invadiu; era prisioneiro de bandidos darkovanos e se achava sozinho, longe de seu povo, num mundo estranho, cujos habitantes eram hostis à Terra.
O que fariam com ele?
Os cavalos continuaram a andar pelo que pareceram horas, até que finalmente pararam, e Larry foi puxado com violência para o chão.
- Uma boa presa - disse uma voz, falando o mesmo dialeto áspero e bárbaro. - E um modelo de bom comportamento para aqueles filhos de Zandru. O herdeiro de Alton, nada menos... estão vendo as cores que ele usa?
- Pensei que o filho de Alton fosse mais velho - comentou outra voz.
- Ele é pequeno para a sua idade - disse a primeira voz, em tom desdenhoso. - Mas tem a marca do Comyn... os cabelos de fogo. Além do mais, nenhum plebeu jamais usa roupas assim, nem monta um dos cavalos de Alton.
- A não ser quando voltamos de um ataque - ressaltou outra voz, com uma risada.
Larry ficou gelado de medo. Kennard seria também um prisioneiro?
Mãos rudes o levantaram, o pano foi removido de seu rosto,
e alguém o empurrou para a frente. Era o crepúsculo, caía uma chuva fina, e as gotas geladas fizeram-no estremecer. Ele piscou, desejando poder levar as mãos amarradas à cabeça, e olhou ao redor.
Tinham parado dentro das ruínas de um prédio antigo, as pedras se erguendo ao redor. Soprava um vento frio. O captor de Larry tornou a empurrá-lo para a frente.
Havia uma dúzia de bandidos ao abrigo das ruínas, mas ele não viu sinal de Kennard, Valdir ou qualquer de seus companheiros.
Deparou com um homem alto e forte, usando um manto escarlate imundo, todo rasgado. Por baixo, usava um colete e um culote de couro, que outrora haviam sido da melhor qualidade, cobertos de bordados. O capuz do manto caía para trás, mas o rosto do homem era invisível; uma máscara de couro, com aberturas para os olhos e nariz, escondia todas as suas feições, até os lábios finos e cruéis. Tinha seis dedos em cada mão. A voz era áspera e rouca, mas ele falava o dialeto da cidade, sem o sotaque bárbaro dos outros.
- Você é Kennard Alton-Comyn, filho de Valdir?
Larry tornou a olhar ao redor, transtornado, mas não havia mais ninguém à vista, e sua mente compreendeu de repente o erro que os bandidos haviam cometido.
Pensavam que ele era Kennard Alton - e por isso o tomaram como refém - e não ousava sequer lhes revelar o engano! O que fariam se soubessem que era um terráqueo?
As palavras do homem afloraram - Um modelo de bom comportamento... o herdeiro de Alton! O que dava a impressão de que não queriam matá-lo... pelo menos não imediatamente. Mas como poderia evitar que descobrissem sua identidade terráquea? O que Kennard faria?
O homem mascarado repetiu a pergunta, o tom mais ríspido. Larry deixou escapar a respiração devagar, tenso. O que Kennard faria... ou diria?
Ele pensou na arrogância de Kennard diante dos garotos na rua, poucas semanas antes. Empertigou-se a toda a sua altura e disse, lentamente, porque procurava pelas palavras certas, as frases coloquiais, mas isso proporcionou um efeito de dignidade:
- Não é cortesia em sua terra declarar o nome do anfitrião antes de perguntar pelo nome de um... um hóspede?
Ele sabia que jogava por sua vida. Observara a arrogância dos aristocratas darkovanos, e sentia que o desdém que tinham por aqueles bandidos era tão grande quanto o ódio. Ajeitou o manto nos ombros - graças a Deus que usava trajes darkovanos! - e manteve-se impassível diante do olhar do mascarado.
- Como quiser - disse o homem, os lábios se contraindo.
- Mas não espere qualquer cortesia, filho do Hali-imyn. Sou chamado de Cyrillon dos Caminhos da Floresta... e você é Kennard N'Caldir Alton-Comyn.
- Adiantaria alguma coisa negar isso? - indagou Larry.
- Muito pouco.
Larry sentiu que os olhos de Cyrillon penetravam pelos seus.
- O que quer comigo?
- Não a sua morte, a menos... - Os lábios cruéis se contraíram de novo. - ...que torne isso necessário. É um peão, filho de Alton, e de imenso valor para nós, mas pode chegar um momento... e nunca duvide disso... em que sua morte seria mais sensata do que sua vida em nosso poder. Portanto, não conte muito com a sua segurança, chiyu, nem pense que pode fazer o que bem quiser e que não ousaríamos matá-lo.
Ele contemplou o jovem em silêncio, por tanto tempo e com uma expressão tão sinistra, que Larry não pôde deixar de estremecer. Ficou gelado de terror, a ponto de perder o controle e bradar que haviam cometido um erro. Ao final, Cyrillon rompeu o contato e declarou:
- Temos uma longa viagem pela frente, por terreno difícil. Irá conosco de bom grado, ou será carregado como um fardo.
Mas saiba que nos caminhos que vamos percorrer os homens precisam de seus braços e pernas, do uso dos olhos, de toda a sua habilidade. Os desfiladeiros não são fáceis nem mesmo para homens livres. Se eu o deixar livre, vai assumir um compromisso de honra, como Comyn, de que não fará nenhuma tentativa de escapar?
Ocorreu a Larry que uma promessa feita sob ameaças não precisava ser honrada, não implicava nenhuma obrigação. E, com toda a certeza, pouparia a si mesmo de muitos problemas se desse sua palavra. Ainda hesitou por um momento; e depois, tão nítido como se estivesse à sua frente, viu o rosto de Kennard... solene, com um orgulho infantil, imbuído do rígido conceito de honra darkovano. Um terráqueo poderia se contentar com menos? O mesmo orgulho impregnou sua voz quando decidiu assumir o papel que lhe cabia.
- Um compromisso de honra com um ladrão e proscrito? Um homem que... - Outra vez a mente de Larry disparou, recordando as estórias que Valdir lhe contara sobre os códigos de batalha. - ...um homem que carrega o filho de seu inimigo coberto por um manto, em vez de abatê-lo numa luta justa?
Ele tornou a hesitar, e depois as palavras surgiram, quase como se ouvisse Valdir a pronunciá-las:
- Aquele que viola as leias da estrada e as leis da guerra não tem o direito de trocar palavras de honra com homens honrados. Falarei com você como um igual apenas com a espada. Já que é um homem sem honra, não vou sequer macular minha palavra. Se quer que eu vá para algum lugar, terá de me levar à força, porque não darei um passo de bom grado na companhia de renegados e proscritos!
Ofegante, ele se calou. Cyrillon fitou-o num silêncio sinistro, os lábios contraídos, ameaçador, por tanto tempo que Larry se intimidou e teve de recorrer a toda a sua força de vontade para continuar impassível. Por que falara daquele jeito? Que impulso absurdo de desempenhar o papel de um Alton o levara a pronunciar aquelas palavras? Haviam aflorado sem o controle consciente, sem um segundo pensamento! Talvez fosse mais sensato não enfurecer o proscrito.
E ele estava mesmo enfurecido; a mão de Cyrillon apertou o punho da faca com tanta força que as articulações ficaram esbranquiçadas, mas a voz soou calma:
- Boas palavras, meu rapaz. Mas não lamente depois pelas conseqüências. Amarre-o, Kyro, e faça um bom trabalho desta vez.
Ele se dirigira a alguém por trás de Larry. O homem cortou as cordas que prendiam seus pulsos, e depois puxou-as para a frente. Tornou a amarrá-las, com um lenço grosso de lã, que tirou do próprio pescoço; estendeu por cima tiras de couro, que sem a proteção se cravariam na carne. Deixaram os pés livres, mas passaram uma corda por sua cintura, prendendo a outra extremidade na sela de seu captor. O homem pegou um pouco de água e molhou as tiras de couro. Cyrillon acompanhou tudo em silêncio e declarou ao final:
- Dou estas ordens em sua presença, Alton, para que saiba o que esperar. Não quero que seja morto; é mais útil para mim vivo. Mesmo assim, Kyro, se ele tentar escapar, corte o tendão de uma de suas pernas. Se ele tentar se arrastar e atrasar nossa subida, depois que chegarmos à montanha, corte sua garganta. E se ele provocar algum distúrbio, ao passarmos pela Prateleira do Demônio, corte a corda e deixe-o cair no abismo... e já foi tarde!
Larry sentiu o coração parar; mas, embora o rosto empalidecesse, os olhos não vacilaram. Cyrillon acrescentou:
- Ótimo. Já nos entendemos.
Ele virou seu cavalo, e Larry percebeu, sem saber como, que o desapontara.
Cyrillon queria que eu ficasse assustado, que suplicasse. Encontraria alguma satisfação em ver um Alton implorando... a ele! Mas como sei disso?
O homem que mantinha Larry cativo levantou-o para a garupa de seu cavalo.
- Por enquanto, podemos cavalgar - disse ele, sombrio, com uma insatisfação óbvia. - Não me crie problemas, rapaz; não tenho estômago nem para torturar um filhote do Hali-imyn. Mas também não deve duvidar de que ele falou sério.
Os outros bandidos estavam montando. Larry, rígido, com frio, apavorado, contemplou a muralha alta das montanhas que se erguiam à frente.
E, apesar de todo o medo, foi invadido por um inesperado e insaciável excitamento e curiosidade. Quisera conhecer a vida estranha e emocionante do mundo alienígena... e ali, no sopé daquelas montanhas desconhecidas, sob um sol insólito, via tudo com absoluta clareza. Mesmo com Kennard, houvera a sensação de que tudo era um pouco diferente, porque ele era terráqueo, um alienígena.
Larry compreendia que não havia base sequer para o ligeiro otimismo que sentia. Por tudo o que sabia, Valdir, Kennard e todos os seus companheiros podiam estar mortos no vale em que haviam sido emboscados. Ele era levado - sozinho, desarmado, um prisioneiro, um alienígena - para um dos territórios mais selvagens e perigosos de Darkover.
Mesmo assim, o otimismo indefinível persistia. Ele continuava vivo e ileso... e quase que qualquer coisa poderia acontecer em seguida.
Larry estava sonhando
E no sonho se encontrava na Terra, Darkover ainda era uma quimera distante e romântica. Saíra para acampar, dormia ao ar livre, numa velha floresta (ou por que sentiria tanto frio, com a terrível umidade da chuva alcançando até os ossos?)
E depois, no sonho, surgiu um tênue brilho azul, uma voz disse, urgente: Onde você está? Onde você está? Estivemos bastante ligados, por um longo tempo, e poderei segui-lo e descobri-lo, se conseguir fazer contato. Mas não deixe que eles descubram que é um terráqueo...
Meio impaciente, Larry tentou excluir a voz-urgente, recuperar o sonho tranqüilo. Voltou à Zona Terráquea; daqui a pouco seu pai viria acordá-lo... Alguém deixara o ar-condicionado ligado no máximo; fazia frio ali, mais frio até do que na noite darkovana... e qual era o problema com seu braço? Por que sua cama era tão fria? Por acaso adormecera no chão? Com um pequeno gemido, ele se virou, abriu os olhos e retornou ao presente angustiante. Tornou a fechar os olhos, apertando com força, num espasmo de desespero. Estava na fortaleza dos bandidos na montanha, desamparado, sozinho, um prisioneiro. Durante o dia, ainda era capaz de conservar alguma esperança, mas naquele momento era apenas um menino assustado, perdido num mundo estranho.
Seu braço esquerdo fora forçado para trás com a maior brutalidade, amarrado nas costas, a mão esquerda na omoplata, numa espécie de arreio de couro. Os dedos há muito que estavam dormentes. Na primeira noite de sua captura, o homem que o carregara na garupa pela trilha na montanha o tirara da sela, entorpecido e desamparado, e o levara para junto da fogueira; com alguma compaixão, cobrira-o com uma manta e cortara as tiras de couro em seus pulsos para que pudesse comer. Mas depois o mascarado dera suas ordens, e dois homens trouxeram o arreio de couro. Já prendiam sua mão direita nas costas quando Cyrillon, cujos olhos frios pareciam estar em toda parte ao mesmo tempo, dissera, ríspido:
- Vocês são cegos? O pequeno bresuin é canhoto.
Não haviam sido gentis, mas ele tentara não resistir, nem se debater; o medo ainda o dominava, mas não lhes daria a satisfação de suplicar. Apenas uma vez, em desespero, pensara em usar o último recurso... revelar que não era o refém que tanto cobiçavam...
Mas o que aconteceria então? Era bem provável que não se incomodassem com um prisioneiro sem qualquer importância; podiam até matá-lo de imediato. E ele não queria morrer; embora agora, gelado, desesperado, com dor, até pensasse que a morte poderia ser melhor.
Ele virou-se, todo dolorido e correu os olhos por sua prisão.
Uma tênue claridade se insinuava pelas janelas, com cortinas puídas, fechadas por tábuas pregadas. O quarto era espaçoso, os painéis corroídos por cupins, as cortinas mofadas pelo tempo. A cama era grande e rebuscada, mas não havia lençóis, nem cobertas, apenas um velho colchão de crina de cavalo e dois tapetes de pele. Os outros móveis eram velhos e deprimentes, mas ele refletiu que tinha sorte por não se encontrar em alguma masmorra sórdida; pelo breve vislumbre do exterior da fortaleza, ficara com a impressão de que havia muitas masmorras sob os tenebrosos muros de pedra.
Até agora, não fora ferido ou torturado. E contava com a liberdade daquele quarto. Podia se alimentar com a mão direita, mas nunca imaginara como alguém se tornava desamparado com um só braço; não conseguia sequer se equilibrar direito quanto andava. Traziam comida de manhã e à noite, uma espécie de pão, recheado com nozes, um mingau de algum tipo de cereal, tiras de uma carne até saborosa, uma coisa indefinida, com gosto de sabão, que ele imaginava ser uma espécie de queijo.
Então ele sentou na cama, ouvindo passos no corredor. Podia ser alguém com seu desjejum, mas ele logo reconheceu os passos pesados e irregulares de Cyrillon des Trailles. Cyrillon só o visitara uma vez antes, para verificar o que havia em seus bolsos.
- Não tem armas - dissera o homem chamado Kyro, mostrando as coisas que Larry carregava.
Cyrillon as examinara. Franzira o rosto, curioso, ao ver o estojo de primeiros socorros terráqueo, e depois o jogara num canto; testara a lapiseira de Larry com a ponta do dedo e a guardara em seu bolso. Dera uma olhada rápida nas outras coisas e as largara ao lado de Larry: algumas moedas, um lenço amarrotado, um caderninho de anotações. O canivete despertara seu interesse.
- O que é isto?
Larry abriu o canivete, e depois se censurou mentalmente; poderia usá-lo de alguma forma, embora a lâmina principal estivesse quebrada - usava-a em grande parte para cortar barbantes e construir modelos. Tinha também um saca-rolhas, uma lâmina menor magnetizada e um gancho para abrir caixas de alimentos.
- Uma faca? - disse Kyro. - Não pode deixá-lo com isso! Cyrillon deu de ombros, desdenhoso.
- Com uma lâmina que não é mais do que o meu dedo mínimo? Não serve para nada! - Ele largou o canivete com as outras coisas. - Só queria saber se ele tinha alguma das armas do Comyn.
Cyrillon soltou uma risada estrondosa e saiu do quarto. Larry não tornara a vê-lo até aquela manhã, quando ouviu seus passos pesados lá fora.
Sentiu um impulso infantil de se esconder embaixo da cama; mas conseguiu se controlar e levantou-se, trêmulo. Três homens entraram, seguidos um momento depois por Cyrillon, ainda mascarado.
Larry já percebera, àquela altura, que Cyrillon, apesar de todo o seu desprezo, tratava-o com um respeito que beirava a cautela. Não podia entender o motivo. Cyrillon parou a alguma distância da cama e ordenou:
- Venha conosco, Alton.
Larry obedeceu, submisso. Tinha bom senso suficiente para saber que um gesto de desafio não ajudaria em coisa alguma - exceto para seu orgulho - e poderia acarretar um tratamento ainda mais abusivo. Era melhor poupar suas forças até poder fazer alguma coisa realmente efetiva.
Conduziram-no a uma sala em que havia um fogo aceso. O tremor de Larry tornou-se tão intenso que Cyrillon, com um gesto desdenhoso, mandou que ele se aproximasse da lareira.
- Esses pirralhos do Comyn são todos moles... pode se esquentar.
Depois que ele se esquentou, Cyrillon gesticulou para que sentasse num banco. Tirou uma coisa envolta em pano de uma bolsa de couro. Fitou Larry, contraindo os lábios.
- Não ouso esperar que torne isto mais fácil para mim... ou para você mesmo, jovem Alton.
Ele tirou do pano uma pedra azul, e Larry constatou que era do mesmo tipo estranho da pedra que Kennard lhe mostrara. Esta se achava engastada num aro de ouro, com duas alças nos lados.
- Exijo que olhe esta pedra para mim - declarou Cyrillon. - Se achar mais fácil para seu orgulho, pode dizer depois ao seu pessoal que assim agiu sob a ameaça de uma faca em sua garganta.
Ele riu, aquela risada rouca e assustadora, que soava como o grito de uma ave de rapina.
Cyrillon esperava que ele demonstrasse algum poder psíquico? Larry sentiu uma pontada de medo. Sua personificação de um darkovano haveria de fracassar agora, com toda a certeza. Ele sentiu a mão tremer quando Cyrillon lhe entregou a pedra. Ergueu os olhos...
Uma dor explosiva atingiu seus olhos, toda a cabeça. Ele fechou os olhos, apertando-os com força, espasmódico, contra a sensação insuportável de torção... de olhar para algo que não deveria existir no espaço normal. Sentiu-se nauseado. Quando tornou a abrir os olhos, descobriu que Cyrillon o fitava com uma sombria satisfação.
- Muito bem. Você possui a visão, mas não está acostumado a pedras de tamanho poder. Olhe de novo.
Larry, desviando os olhos, sacudiu a cabeça em recusa. Cyrillon levantou-se, cada movimento impregnado de ameaça. Muito calmo, sem altear a voz, ele disse:
- Vai olhar de qualquer maneira.
Ele pegou o braço imobilizado de Larry e exerceu uma pressão que causou a sensação de ferros em brasa se espalhando pelo ombro lesionado.
- Não vai?
Meio desfalecido, Larry arriou para a frente no banco. A pedra escapuliu de sua mão inerte, e ele sentiu que mergulhava numa inconsciência quente, escura e até agradável, de certa forma.
- Muito bem - disse Cyrillon, recuando alguns passos. -Dêem-lhe um pouco de kirian.
- É muito perigoso - protestou um dos homens. - Se ele tem o poder de alguns dos Altons...
Cyrillon interrompeu-o, impaciente:
- Não o viu ficar nauseado ao olhar para a pedra? Ele ainda não tem o poder. Vamos correr o risco.
Larry sentiu um dos homens agarrar sua cabeça e puxá-la para trás; o outro, com o maior cuidado, destampou um pequeno frasco, do qual saíram vapores estranhos, incolores. Larry, recordando como Valdir sondara a mente do Vigilante agonizante - o que ele fizera? -, sacudiu a cabeça para trás, debatendo-se; mas o homem que o segurava por trás comprimiu os polegares contra seu queixo, obrigando-o a abrir a boca, e o outro esvaziou o frasco sobre sua língua.
Larry ainda se debateu, esperando calor, um ácido, vapores, mas se surpreendeu ao constatar que o líquido, gelado, não tinha qualquer gosto. Pareceu se evaporar quase antes mesmo de tocar na língua. A sensação foi extremamente desagradável, como se algum gás estranho explodisse em sua cabeça. A visão se turvou, mas logo tornou a clarear. Cyrillon suspendeu a pedra diante de seus olhos; e Larry compreendeu, com um alívio angustiado, que era agora apenas um clarão azul, sem haver mais a sensação nauseante de torção.
Cyrillon observava, com total atenção. Como sombras se agitando no clarão azul, formas foram se tornando claras para Larry. Alguns homens passaram a cavalo, o vulto alto e reconhecível de Valdir à frente, com duas colinas de contornos esquisitos por trás. A imagem se desvaneceu, e surgiu o rosto de Lorill Hastur, envolto por um capuz cinza. Por trás dele, Larry reconheceu, vagamente, o quartel-general terráqueo no espaço-porto. As sombras indistintas voltaram, mas ele logo avistou uma figura pequena e corpulenta, num cavalo cinza, correndo contra o vento...
Larry percebeu o que estava acontecendo. De alguma forma, através daquela pedra mágica, via imagens, que transmitia em seguida para Cyrillon des Trames... por quê? Através de Larry, ele tentava espionar as pessoas nos vales? Soltando um grito, Larry ergueu o braço para a frente dos olhos, e as imagens tremeram, se turvaram, desapareceram por completo. Uma fúria cega o invadiu, contra aquele homem implacável, que o usava assim - usava Kennard Alton, como ele pensava, contra seu próprio povo -, uma explosão de ódio como nunca sentira contra qualquer ser vivo. Gostaria de destruí-lo...
E enquanto a ira aflorava, intensa e incontrolável, Cyrillon des Trailles soltou um gemido de agonia, arrancou o cristal de sua mão, e com a força do desespero deu um tapa no rosto de Larry. No momento em que Larry caiu, Cyrillon, dobrado em dor, desferiu um chute em sua direção, errou e arriou no banco, fraco e trêmulo. Um dos homens disse:
- Eu avisei que não devia lhe dar kirian. E a dose foi grande demais.
Cyrillon balbuciou, a voz engrolada:
- Adivinhei mais do que sabia... a raça amaldiçoada gerou um recessivo! O garoto nem sequer sabia o que estava fazendo! Se eu tivesse um ou dois assim em minhas mãos, toda a raça desgraçada de Cassilda voltaria para o fundo do lago, e o Acorrentado em Ouro tornaria a reinar! Por Zandru o quanto conseguiríamos com alguém assim do nosso lado!
O outro homem declarou:
- Devemos matá-lo agora, antes que encontrem algum meio de usá-lo contra nós!
- Ainda não - disse Cyrillon. - Qual será a sua idade? Parece uma criança, mas todos esses pirralhos das Terras Baixas são moles demais.
Um dos homens soltou uma risada.
- Ele não parecia nem um pouco mole um momento atrás, quando fez você gritar como um gato escaldado!
Cyrillon murmurou:
- Se ele fosse mesmo tão jovem quanto parece, eu poderia... reeducá-lo à minha maneira. Mas sempre posso tentar. E talvez ele suporte mais do que isso, até aprender... a controlar seus poderes.
Larry, caído no chão, ainda imóvel, na esperança de que o esquecessem, experimentou uma perplexidade maior do que o medo. Fora mesmo ele quem fizera aquilo? Neste caso, como? Afinal, não tinha nenhum daqueles poderes darkovanos!
Um dos homens inclinou-se. Sem qualquer gentileza, puxou Larry, obrigando-o a se levantar. Cyrillon acrescentou:
- Muito bem, Kennard Alton, quero lhe advertir que é melhor não tentar esse truque de novo. Talvez tenha sido puro reflexo, e não conhece os seus poderes. Se isso é verdade, eu o aconselho a aprender a se controlar. Na próxima vez, chutarei suas costelas até sufocá-lo. Agora... olhe para a pedra!
O clarão azul deixou Larry ofuscado. E depois, com uma estranha intensidade, figuras e formas, que não sabia interpretar, surgiram e sumiram... Como Cyrillon fazia aquilo? Ou será que simplesmente ele estava sendo hipnotizado?
Houve uma explosão azulada, e dentro de sua mente a voz do sonho tornou a falar: Eu apaguei tudo. Ele não é telepata e não ousa forçá-lo. Não tenha medo; ele não pode captar a mensagem que você recebe agora... mas não posso manter o contato por muito tempo... É inútil, por enquanto...
Kennard?
Larry pensou: Estou perdendo o juízo...
O clarão azul aumentou, ficou insuportável. Larry ouviu Cyrillon resmungar alguma coisa - uma ameaça? -, mas nada via, apenas aquele azul apavorante.
E com um alívio profundo e absoluto, pela primeira vez em sua vida, Larry Montray desmaiou.
UM DIA se SEGUIA a outro, todos lentos e arrastados, no quarto em que Larry era prisioneiro; pouco a pouco, seu otimismo original foi diminuindo, até se extinguir por completo. Estava ali, e não tinha como prever se algum dia sairia daquele lugar. Sabia agora que era mantido como refém contra Valdir Alton. Determinara a situação através dos fragmentos de informações que arrancara de seu carcereiro. Cyrillon e outros de sua espécie haviam pilhado as terras mais baixas desde tempos imemoriais. Valdir fora o primeiro a organizar os habitantes da região para a resistência, construindo os postos de vigilância, que davam o alarme para ataques iminentes, e Cyrillon considerava, de uma forma irracional, que isso era injusto. Era contrário ao antigo código de honra darkovano, de que cada homem devia defender o que era seu. Ao manter o filho de Valdir como prisioneiro, ele esperava bloquear essa iniciativa e impedir retaliações.
Só que eles não tinham o filho de Valdir em seu poder; e Larry supunha que, mais cedo ou mais tarde, Cyrillon acabaria descobrindo isso. Não lhe agradava pensar no que aconteceria então.
Quando o quarto dia escurecia para a noite, ele ouviu sons na floresta; passos apressados nos corredores, cascos de cavalos no pátio, homens gritando ordens. Frustrado, olhou para a janela, tão alta que não lhe possibilitava ver o que acontecia lá fora. Tomou uma decisão, arrastou um pesado banco para baixo da janela e subiu. Podia ver apenas por cima do peitoril largo, divisar o que se passava no pátio.
Quase duas dúzias de homens se reuniam ali, selando cavalos, escolhendo armas de uma grande pilha num canto do pátio pavimentado. Larry divisou o vulto alto e magro de Cyrillon, circulando entre os homens, parando aqui para falar com alguém, inspecionando uma cilha ali, censurando alguém mais adiante, derrubando outro com o punho enorme, rápido como uma serpente a dar o bote. O grande portão foi aberto, e os homens montaram para sair.
A fortaleza ficaria vazia? Desguarnecida? Larry correu os olhos pelo pátio, na maior frustração. Encontrava-se a pelo menos dez metros de altura do pátio; um pulo sobre a relva talvez não o matasse, mas cair em cima de pedra...? O muro por baixo da janela era completamente liso por uns três metros, mas talvez, com o uso das duas mãos, conseguisse encontrar pontos de apoio até a platibanda. Com uma das mãos presa nas costas, no entanto, seria a mesma coisa que tentar andar por uma corda bamba até o pico da montanha mais próxima.
Larry desceu do banco. Com toda a certeza, haviam deixado alguém na fortaleza... talvez apenas o velho fraco que trazia sua comida.
Se ele tivesse uma arma...
Haviam deixado seu canivete, mas a lâmina principal estava quebrada, e a lâmina magnetizada restante tinha apenas cinco centímetros. Os móveis no quarto eram todos sólidos demais para que pudesse quebrar algum e obter uma espécie de porrete. Se pudesse de alguma forma acertar um golpe na cabeça do velho, na próxima vez em que entrasse no quarto...
Parecia não haver nada que lhe permitisse improvisar uma arma, por mais simples que fosse. Com as duas mãos, poderia jogar o casaco no velho e talvez sufocá-lo. Ao que tudo indicava, eles haviam tomado precauções contra os truques telepáticos do Comyn, mas nem tentavam se precaver contra um ataque comum. .. e, no entanto, não havia nada no quarto que pudesse ser usado como uma arma.
Larry sentou, o rosto franzido, e analisou a situação por um longo momento. Se conseguisse quebrar a janela, talvez um fragmento comprido do vidro pudesse servir.
Ele ouviu passos arrastados no corredor, e um pensamento aflorou... quase tarde demais. Arriou no chão, e com a mão livre empenhou-se em desamarrar a bota. Era pesada, uma bota de montaria darkovana, e se acertasse atrás da cabeça do homem... Mas era um trabalho lento, com uma só mão, e antes que ele tirasse a bota, a chave girou na fechadura, a porta foi aberta bruscamente, como se o homem tivesse recuado e desferido um chute. Depois, o homem apareceu na porta. Trazia uma bandeja com comida numa das mãos, e a outra empunhava um chicote, comprido, ameaçador. Levantou-o, pronto para o golpe, e disse, em seu dialeto bárbaro:
- Nada de truques, garoto!
Larry arrancou a bota, meio desajeitado, só com a mão direita, e arremessou-a contra a cabeça do homem.
Assim que jogou, porém, ele percebeu que erraria o alvo. Viu o velho estremecer em sobressalto, os pratos na bandeja baterem uns nos outros. O chicote, como se imbuído de vida própria, foi agitado e se enrolou no pulso livre de Larry. O homem soltou o chicote, com uma risada sinistra.
- Pensei que poderia usar algum truque assim - escarneceu ele.
E tornou a levantar o chicote, atingindo os ombros de Larry, embora sem muita força. Lágrimas escorreram dos olhos de Larry, mas na verdade era mais uma advertência do que um golpe... pois Larry sabia que um golpe com um chicote assim, desferido com toda a força, cortaria as roupas e a carne a fundo.
- Quer mais um pouco? - indagou o homem, sorrindo. Furioso e frustrado, Larry baixou os olhos. O homem acrescentou, jovial:
- Coma o seu jantar, garoto. Não tente nenhum truque, e não vou machucá-lo... combinado? Não há nenhum motivo para não nos darmos bem durante a ausência do chefe, não é mesmo?
Depois que o homem saiu, Larry pegou a bandeja, desolado. Não tinha a menor vontade de comer; mesmo assim, comera tão pouco nos últimos quatro dias que se sentia atormentado pela fome. A ignomínia final foi que nem conseguiu calçar a bota com uma só mão. Tirou os pratos da bandeja, apático, mas no instante seguinte franziu as sobrancelhas. Em vez das tiras de carne seca e do pão habituais, havia uma espécie de peixe grelhado, quente e fumegante, e uma caneca da mesma bebida com gosto de chocolate que ele tomara na Cidade Comercial.
Desajeitado, usando apenas a mão livre, mas faminto, ele devorou o peixe, até roeu as espinhas. Era um peixe desconhecido, com um gosto esquisito, mas sua fome era grande demais para que se mostrasse exigente. Recostou-se ao final, tomando a bebida, devagar. Especulou sobre a mudança. Talvez Cyrillon - que obviamente sentia algum medo dele, desde o episódio com o cristal - o considerasse muito valioso como refém, e vendo a comida mais ordinária voltar intacta, decidira alimentá-lo melhor, mantê-lo em boa saúde, com o ânimo elevado.
A claridade que entrava pela janela alta insinuou-se pelo chão. As sombras eram de um púrpuro-claro, a luz rosada e cintilante. Estranhas partículas dançavam nos raios rosados.
Larry, a fome saciada, sonolento, acomodou-se da melhor forma possível, observando as partículas. Percebeu de repente que em cada uma havia um homem minúsculo, rosa e púrpura, empunhando uma lança, que parecia uma fibra de açafrão. Fascinado e curioso, ele viu os homenzinhos descerem pelos raios de sol, e se agruparem no chão. Formaram regimentos, e mais outros continuaram a descer pelos raios rosados, até cobrirem o chão por completo. Larry piscou e teve a impressão de que eles se fundiram, para desaparecerem em seguida.
Um enorme inseto preto, quase da largura de sua mão, esticou a cabeça trêmula de um buraco no chão. Sacudiu os fios fosforescentes da barba e falou.... num terráqueo perfeito, para a curiosidade apática de Larry.
- Você está drogado, é claro. - A voz do inseto era alta e estridente. - Devia estar na comida. Por isso é que trouxeram um jantar muito melhor que nas outras vezes, para terem certeza de que comeria tudo.
Os homenzinhos rosa e purpúreos reapareceram no chão e enxamearam sobre o inseto, gritando em vozes estridentes, formando sílabas que não faziam o menor sentido:
- An chry amorgobush! Travertinafo mibbsy!
À medida que cada homenzinho tocava nos fios fosforescentes, desaparecia numa fumaça verde.
A porta se abriu, convidativa. Alguém murmurou, a uma enorme distância:
- Nada de truques desta vez, hem?
O velho se encontrava parado ali, e o crepúsculo na sala se aprofundou, para depois clarear no amanhecer. O homem com o chicote escarneceu de um canto. Os homenzinhos rosa e purpúreos rastejavam por todo o seu copo, e Larry soltou uma risada ao ver o carcereiro coberto pelas estranhas criaturas; um deles desapareceu em seu bolso, outro dançou em sua cabeça calva. Vagamente, Larry sentiu alguém se inclinar em sua direção e levantar uma pálpebra fechada. Como podia ver com os olhos fechados? Larry riu de novo, pelo absurdo.
- Nada de truques - repetiu o carcereiro.
Todos os homenzinhos rosa e purpúreos gritaram em coro:
- Nada de truques, disse ele!
Por trás do homem, a porta foi aberta, e Kennard Alton apareceu, com um manto verde-escuro, uma adaga na mão. Os homenzinhos rosas e purpúreos subiram por suas pernas e quase o encobriram por completo. Ele levantou a adaga, que se transformou num ramo de tulipas rosa, e golpeou as costas do velho bandido. Larry ouviu-se rir, mas a risada saiu como um toque de trombeta, enquanto as tulipas rosa mergulhavam nas costas do homem, e incontáveis pássaros pretos saíram dali, em revoada, aos gritos estridentes. Kennard chutou o homem caído, que sumiu sob um enxame dos homenzinhos rosa e purpúreos, rindo em notas isoladas, como pequenos sinos. Kennard atravessou o quarto. Os homenzinhos tornaram a subir por suas pernas, sentaram em seu nariz e desceram pelos raios de sol, quando Kennard inclinou-se para Larry.
- Vamos embora! Cada minuto a mais que passarmos aqui aumenta o perigo. Alguém pode chegar de repente. Não tenho certeza se o velho é o único guarda que ficou no castelo.
Larry fitou-o e soltou uma risada despreocupada. Os homenzinhos rosa e purpúreos no nariz de Kennard começaram a subir, abrindo pontos de apoio em seu queixo com pequenas picaretas de luz verde. Larry riu de novo.
- Tire os gremlins de seu queixo primeiro.
- Por Zandru!
Kennard tornou a se inclinar, e tulipas rosa cascatearam de sua camisa. Suas mãos apertaram os ombros de Larry como quebra-nozes.
- Quero algumas nozes - disse Larry, rindo.
- Trate de se levantar e venha comigo! Larry piscou e disse, claramente, em terráqueo:
- Você não está de fato aqui, e sabe disso. Assim como os gremlins rosa e purpúreos também não estão. É apenas um produto da minha imaginação. Pode sumir, fantasia. Uma fantasia com um pigmento púrpura.
A fantasia tornou a se inclinar para Larry. Tinha nas mãos o que parecia ser uma tigela de pimenta com feijão. Começou a jogar em Larry, punhado por punhado. Foi desagradável; a cabeça de Larry latejava, e o feijão batia em seu rosto como bofetadas e escorria pelo queixo. Ele berrou, em darkovano:
- Não jogue o feijão! Está duro demais! É melhor comermos! A visão-Kennard empertigou-se, como se tivesse levado uma facada, e murmurou:
- Shallavan! Mas por que deram a Larry? Ele não é telepata! Será que acreditaram...
Larry protestou quando Kennard se transformou numa pá mecânica e levantou-p de lado. A próxima coisa de que tomou conhecimento foi da água escorrendo por seu rosto e de Kennard Alton, muito pálido, parado à sua frente, fitando-o.
Era mesmo Kennard. Ele era real. Larry balbuciou, trêmulo:
- Pensei... que você fosse... uma pá mecânica. É...
Ele baixou os olhos para o chão do quarto. O velho se encontrava estendido ali, o sangue coagulado no blusão de couro. Larry apressou-se em virar o rosto.
- Ele está morto?
- Não sei, e não me importo - respondeu Kennard, sombrio. - Mas nós dois morreremos se não sairmos daqui antes de os bandidos voltarem. Onde está sua outra bota?
- Joguei nele. - Larry tinha a sensação de que sua cabeça ia rachar. - E errei.
- Bom... você não está mesmo acostumado a essas coisas. Calce a bota... - Kennard fez uma pausa. - Mas o que é isso?
Ele examinou o arreio de couro, a raiva faiscando nos olhos.
- Pelos infernos de Zandru, que coisa sórdida! Kennard sacou a adaga e cortou o couro. A mão de Larry, dormente, com cãibras, pendeu inerte ao lado do corpo. Ele não podia mexer os dedos, e Kennard, praguejando baixinho, ajoelhou-se para ajudá-lo a calçar a bota.
Larry compreendeu que não fazia idéia do tempo em que estivera drogado. Tinha uma vaga idéia do carcereiro entrando uma ou duas vezes antes, mas sem ter certeza. Ainda se sentia atordoado demais para fazer algo mais além de se manter de pé, cambaleando, diante de Kennard.
- Como chegou aqui? Como me descobriu?
- Você foi confundido comigo. Poderia deixar que enfrentasse o destino que reservavam para mim? Era responsabilidade minha encontrá-lo.
- Mas como? E por que veio sozinho?
- Mantivemos contato pelo cristal, e por isso pude segui-lo - explicou Kennard. - Vim sozinho, porque sabíamos que se houvesse um ataque total eles poderiam matá-lo no mesmo instante. Mas devemos deixar a conversa para depois. Neste momento, temos de sair daqui antes que Cyrillon e seus demônios voltem.
- Eu os vi partir - murmurou Larry. - Acho que só o velho ficou.
- Neste caso, não é de admirar que o tenham dopado. Ficaram com medo de que usasse algum truque telepático. A maioria das pessoas tem medo dos Altons, embora não pudessem saber se você já tinha idade suficiente para desenvolver o laran... a força. Eu mesmo não tenho muito. Mas vamos logo embora!
Kennard foi até a porta e entreabriu-a por uma fração.
- Pela maneira como ele gritou, se houvesse alguém por perto, já teria aparecido. Talvez você tenha razão. Todos os outros devem ter partido.
Saíram para o corredor, andando na ponta dos pés e desceram a longa escada. Kennard comentou:
- Espero que não encontremos ninguém. Se eu não sair pelo caminho por que entrei, seria muito fácil me perder aqui.
Larry não percebera antes como era enorme a fortaleza dos bandidos. Ele saiu de sua cela trêmulo, os passos trôpegos. Kennard teve de ampará-lo, até que conseguisse se manter de pé sem tremer. Ainda tonto pelo efeito da droga, teve a impressão de que percorreram quilômetros de corredores, estremecendo a cada som distante, comprimindo-se contra as paredes quando algo que parecia um passo ressoava no fundo de um lance de escada. Mas logo se desvanecia na distância, e o velho castelo voltava a ficar silencioso.
Um enorme portão assomou diante deles. Kennard empurrou Larry para junto do muro e deu uma espiada, farejando o ar, como um caçador, antes de murmurar:
- Parece que está tudo quieto. Vamos correr o risco. Não sei onde ficam os outros portões. Vi-os saindo e tratei de aproveitar a oportunidade.
O ar fresco, muito frio, parecia penetrar até os ossos de Larry, mas dissipou de sua cabeça os últimos vestígios da droga. Ele olhou ao redor. Por trás se erguia a encosta da montanha, um paredão rochoso íngreme, salpicado aqui e ali de moitas e algumas árvores. Diante deles se estendia a trilha estreita, descendo entre vales e colinas, através das montanhas. Kennard murmurou:
- Vamos sair agora... e correndo. Se houver alguém observando daquelas janelas... - Ele gesticulou, nervoso, para a sombria fachada da fortaleza por trás. - Se o velho não morreu, ou se há outros guardas, teremos talvez uma hora de dianteira, antes que comecem a nos procurar.
Ele contraiu os músculos por um instante.
- Agora... corra!
E Kennard saiu correndo pelo pátio, na direção dos portões, com Larry em sua esteira. O braço doía intensamente, por ter estado tanto tempo imobilizado, os pés ainda não tinham muita firmeza, mas mesmo assim Larry alcançou a beira da floresta apenas alguns segundos depois de Kennard. O jovem darkovano fitou-o, um pouco menos impaciente. Pararam ali, a respiração ofegante, olhando um para o outro, com uma indagação sem palavras. E agora?
- Só há uma estrada nestas montanhas - murmurou Kennard -, e é a que os bandidos usaram. Podemos segui-la... a alguma distância, e nos escondendo se ouvirmos alguém se aproximar. Há muita floresta daqui até Armida... eles não terão como revistar tudo. Mas...
Ele fez uma pausa e gesticulou ao redor.
- Acho que eles também têm torres de vigia ao longo do caminho. Teremos de permanecer sob a proteção das árvores, noite e dia. Toda esta região...
Kennard fez outra pausa, pensando, e Larry viu, com toda a nitidez, em sua imaginação, a terrível jornada através de penhascos e abismos que o trouxera até ali. Kennard balançou a cabeça.
- É por isso que não guardam seu baluarte; acham que já são bastante protegidos pela trilha da montanha. É preciso ter bons cavalos, criados nas montanhas, acostumados a trilhas assim, para se percorrer este caminho. Deixei meu cavalo no outro lado da montanha. É provável que alguém já o tenha encontrado, a esta altura. Eu esperava...
O som profundo de um sino de alarme ressoou de repente, os ecos espalhando-se pela floresta; um pássaro gritou, estridente, alçou vôo, e Kennard estremeceu, praguejando baixinho.
- Despertaram toda a fortaleza... alguns homens devem ter ficado! - Ele agarrou o braço de Larry, muito tenso. - Em dez minutos, toda esta parte da floresta estará enxameando com bandidos. Vamos embora!
Larry correu, sentindo as pontas dos galhos prenderem em suas roupas, tropeçando em sulcos e pequenas elevações, a respiração ofegante, no frio intenso. À sua frente, Kennard se esquivava de obstáculos, volta e meia contornava árvores; meio cambaleando, a cabeça latejando, Larry corria em seu encalço, desesperado, não querendo ficar para trás.
A impressão foi de que se passaram horas antes que Kennard arriasse numa pequena depressão, formada pelos galhos caídos de uma árvore. Larry arriou ao seu lado, deixando a cabeça pender para a relva úmida e gelada. Por alguns momentos, tudo o que pôde fazer foi respirar. Pouco a pouco, o coração se acalmou, quase voltando ao normal, e a escuridão se dissipou da frente de seus olhos. Soergueu-se, apoiado num cotovelo, mas Kennard empurrou-o para baixo.
- Continue deitado!
Larry obedeceu com a maior satisfação. O mundo ainda girava... e depois de um momento, o giro se tornou vertiginoso, e tudo sumiu na escuridão.
Quando ele recuperou os sentidos, Kennard se encontrava ajoelhado ao seu lado, a cabeça erguida, um ouvido inclinado para o vento.
- Eles podem ter batedores em nossa pista - murmurou ele, tenso. - Tive a impressão... Escute!
A princípio, Larry nada ouviu, pois não tinha os sentidos aguçados para a floresta. Depois, muito distante, subindo e descendo, como um longo gemido, escutou um grito estridente, que foi aumentando de intensidade, até que seus ouvidos vibraram. Teve de comprimir as mãos contra a cabeça, a fim de atenuar a tortura do som, que se desvaneceu por um instante, mas logo tornou a ressoar, como uma sirene. Ele olhou para Kennard, que estava muito branco.
- O que é isso? - sussurrou Larry.
- Banshees - balbuciou Kennard, num fio de voz. - Eles podem seguir a pista de qualquer coisa viva... farejar o calor do corpo. Se nos descobrirem, estamos perdidos.
Ele praguejou, ofegante, num meio soluço.
- Maldito Cyrillon... ele e todos os seus bandidos... que Zandru os açoite com escorpiões no sétimo inferno... que Nao-talba torça seus pés nos tornozelos...
A voz se elevava para um nível quase histérico. Ele parecia pálido de exaustão. Larry segurou seus ombros e sacudiu-o com força.
- Isso não vai ajudar! O que podemos fazer?
Kennard parou de praguejar. Lentamente, a cor retornou a seu rosto, e ele ficou imóvel e prestou atenção ao gemido de sirene, que subia e descia.
- A cerca de um quilômetro e meio de distância - murmurou Kennard, tenso. - Mas eles correm como o vento. Se pudéssemos mudar nosso cheiro...
- Devem estar farejando o cheiro das minhas roupas - disse Larry. - Tiraram meu manto. Se eu...
Kennard levantou-se, saiu correndo e jogou-se em cima de arbustos cinza. Por um momento, observando-o rolar e se contorcer entre as folhas, Larry pensou que as dificuldades da jornada na montanha haviam levado à loucura o amigo darkovano. Mas, quando Kennard sentou, tinha uma expressão calma, embora o rosto estivesse muito pálido.
- Venha até aqui e faça a mesma coisa - ordenou ele. - Esfregue as folhas por todo o corpo, especialmente nas botas...
Larry compreendeu tudo e foi pegar um punhado de folhas. Ardiam em suas mãos, mas ele seguiu o exemplo de Kennard, esfregando-as no rosto e nas mãos, espremendo a seiva nas roupas e nas botas. As folhas tinham um cheiro acre e pungente, que provocaram lágrimas em seus olhos, como cebolas cruas; mas ainda assim ele continuou a esmagar as folhas contra as roupas e as botas.
- Pode ou não dar certo - comentou Kennard -, mas pelo menos teremos uma chance mínima... a menos que o cheiro destas folhas atraia aquelas coisas infernais como a erva-dos-gatos atrai os felinos. Se eu soubesse mais alguma coisa sobre esses animais...
- O que são os banshees?
- São os pássaros-espíritos, enormes... mais altos do que o homem mais alto, com asas compridas e finas, pendentes... não podem voar. As garras são capazes de arrancar suas estranhas com um só golpe. São cegos, normalmente vivem na neve das montanhas e podem farejar qualquer coisa quente que se movimente. E gritam assim... como espíritos do outro mundo.
Durante todo o tempo, ele e Larry continuavam a espremer as folhas, esfregando-as na pele e nos cabelos, encharcando as roupas com a seiva. O odor era repugnante, e Larry pensou que qualquer coisa com olfato poderia localizá-los a quilômetros de distância, mas talvez os banshees fossem como os sabujos da Terra, focalizados num cheiro específico e treinados a não seguirem qualquer outro.
- Só Zandru sabe como Cyrillon e suas hordas conseguiram
treinar essas criaturas infernais - murmurou Kennard. - Escute... estão se aproximando. Vamos embora. Teremos de correr de novo, mas procure não fazer barulho.
Eles se embrenharam outra vez pela floresta, subindo a encosta, com alguma lentidão. Larry tentava se deslocar em silêncio, mas ouvia os gravetos estalarem sob seus pés, as folhas secas farfalharem, o rangido dos galhos em que esbarrava. Em contraste, Kennard parecia avançar com a leveza de uma folha. E sempre, atrás deles, o uivo estridente dos banshees subia e descia, se desvanecia por um instante e tornava a soar, vibrante, até dar a impressão de que preenchia todo o espaço. Larry logo sentiu que tinha de gritar junto com o gemido de sirene, que fazia seus tímpanos latejarem, ecoava por todo o crânio, até não restar mais espaço para qualquer outra coisa que não a agonia pulsante.
A trilha por que seguiam agora foi se tornando mais íngreme, e ele tinha de segurar galhos e arbustos, apoiar os pés em pedras, para continuar a subir. Suas roupas estavam rasgadas, o rosto todo cortado, o fedor das folhas cinza o envolvia por completo. Havia uma camada profunda de neve na encosta, o frio era cada vez pior, e o nevoeiro da noite se adensava, até que Larry mal conseguia ver as costas de Kennard, apenas uns poucos passos à sua frente. Subiram por mais algum tempo, e em seguida desceram para um vale, onde Kennard diminuiu o ritmo, esperando que Larry o alcançasse. A respiração entrecortada, Larry comprimiu as mãos contra o crânio dolorido, num novo esforço para bloquear o uivo estridente dos banshees.
Diminuiu por um momento, desapareceu num silêncio desconcertante, para logo recomeçar e sumir de novo. O som parecia decrescer na distância. Kennard, o rosto apenas uma mancha no nevoeiro denso, suspirou, exausto, e arriou no chão.
- Podemos descansar por um minuto, mas não mais do que isso - balbuciou ele.
Larry jogou-se para a frente, mergulhando no mesmo instante num sono profundo. Teve a impressão de que foi apenas no instante seguinte - mas estava bastante escuro agora, uma chuva fina caía, encharcando-os - que Kennard sacudiu seus ombros, para acordá-lo. Os uivos dos banshees tornavam a povoar o ar... e deste lado da encosta!
- Eles devem ter encontrado a moita das folhas eris e calcularam o que fizemos - murmurou Kennard, a voz saindo arrastada, entre os dentes semicerrados. - E o cheiro daquelas folhas deixa uma pista que uma mula de focinho quebrado pode seguir daqui até Nevarsin.
Larry contraiu os olhos, esquadrinhando a escuridão. Mais abaixo, na encosta, parecia haver um brilho, um tênue reflexo, ao luar.
- Há um córrego no fundo do vale?
- É possível. Se houver...
Kennard oscilava de cansaço. Larry, embora com todos os músculos doloridos, descobriu que os últimos vestígios da droga haviam se dissipado de sua mente e que o breve sono o revigorara. Passou o braço pelos ombros de Kennard e guiou os passos trôpegos do amigo.
- Se conseguirmos alcançar a água...
- Eles também vão perceber esse truque - balbuciou Kennard, desesperado.
Larry sentiu um tremor percorrer seu corpo, atingindo até os ossos. Kennard apontou para cima, e Larry acompanhou seu olhar. No alto da encosta, delineada contra o céu, havia uma forma que podia deixar qualquer um paralisado de medo.
Um pássaro? Mas nenhum pássaro podia ter aqueles contornos enormes e finos, as asas caídas, como um manto pendente, uma cabeça que parecia uma caveira, com um bico enorme, vermelho, fosforescente. A aparição esticou o pescoço comprido e escuro, e um grito terrível vibrou pelo ar, com uma intensidade apavorante.
Larry sentiu que Kennard se tornava rígido sob seu braço; o amigo olhava para cima, fixamente, como uma ave hipnotizada por uma serpente.
Para Larry, no entanto, era apenas outro horror darkovano; podia ser terrível... mas ele já vira tantos horrores que ficara entorpecido. Puxou Kennard com firmeza, levando-o pela encosta abaixo, na direção do reflexo distante. O uivo do banshee subiu e desceu, atrás dos dois, enquanto continuavam a descer pela floresta, indiferentes agora ao barulho ou ao rumo. O brilho da água surgiu diante deles. Jogaram-se no córrego, com o maior estrépito, tornaram a se levantar e começaram a correr, tropeçando nas pedras. Larry caiu duas vezes na água gelada, as roupas encharcadas congelaram no ar frio, mas nem assim ele diminuiu a velocidade. O uivo do banshee era cada vez mais alto, mas depois diminuiu, numa sucessão de ganidos desconcertantes, quase uma lamúria de quem se sentia trapaceado, correndo em círculos. Mais uivos e gemidos se seguiram. Larry e Kennard correram dentro do córrego pelo que pareceram horas, e Larry tinha a sensação de que seus pés eram blocos de gelo. Kennard cambaleava; caiu várias vezes, de joelhos, até que tombou de cabeça na água e ficou imóvel. Nenhuma das exortações de Larry fez com que se levantasse. O jovem darkovano simplesmente chegara ao final de sua fantástica resistência.
Larry arrastou-o para a margem do córrego, levou-o para o abrigo da floresta e sentou, escutando os uivos e os gemidos dos banshees frustrados diminuírem a distância. Muito longe, na encosta, avistou o brilho de tochas. Vasculhavam as moitas, mas com os pássaros batedores enganados, não tinham como encontrar a pista dos fugitivos. Mas não conseguiriam descobrir a pista mais adiante, córrego abaixo? Larry, consciente da fome, lembrou-se de que há um ou dois dias - antes de ser drogado - guardara um pedaço de pão no bolso. Pegou-o, deu uma mordida, pôs-se a mastigar, depois partiu o pão ao meio e guardou a outra metade no bolso, para Kennard comer mais tarde. Foi nesse instante que a mão tocou em metal, e ele sentiu os contornos do estojo terráqueo de primeiros socorros. Era pequeno, talvez não contivesse nada que pudesse ajudar nos cortes e nas equimoses, mas...
Claro! Ele deu um puxão na mão de Kennard. O amigo se mexeu, gemeu, Larry pôs o pão em sua mão e sussurrou:
- Acho que sei como podemos despistá-los, mesmo que tornem a encontrar nosso rastro no ponto em que deixamos o córrego. Coma isto e preste atenção.
Ele tateou no estojo de primeiros socorros, no escuro. Encontrou o tubo pela metade de ungüento de queimadura, que usara depois do incêndio, tirou a tampa e sentiu o cheiro intenso do composto químico.
- Isto deve despistá-los por algum tempo.
Larry passou uma camada fina do ungüento nas suas botas, depois nas de Kennard. Ainda mastigando o pão, Kennard acenou com a cabeça, em aprovação.
- Eles podem farejar as folhas eris, mas não esta coisa. Descansaram um pouco, e depois, cautelosos, começaram a subir pela encosta. Havia bastante cobertura, através dos arbustos, embora os espinhos cortassem os rostos e as mãos. O culote de couro de Kennard não sofreu tanto quanto as roupas de pano de Larry, mas ele também sangrava, enquanto o sol vermelho começava a dissipar as nuvens. Alcançaram o topo da encosta e deitaram na rocha, exaustos demais para darem outro passo. Parecia não haver qualquer sinal dos homens ou dos banshees no vale que haviam deixado.
- Eles podem ter suspendido a caçada - murmurou Kennard. - Os banshees são pássaros noturnos e se tornam letárgicos ao sol. Talvez consigamos agora escapar sem mais ameaças.
Aconchegando-se com o manto, Kennard ficou de joelhos e esquadrinhou o vale distante, todo coberto pela floresta. Perto do topo da encosta, onde se encontravam, havia muitas moitas e coníferas baixas e raquíticas. A neve persistia em algumas depressões, ainda não esquentadas pelo sol. Um pouco mais abaixo, começava a linha de árvores altas, moitas densas. Não se via nenhuma casa, nenhuma fazenda, nenhum trecho de terra aberta, nenhuma figura em movimento. Só se podia avistar um falcão circulando pelo céu, e as árvores silenciosas lá embaixo. Haviam escapado da fortaleza de Cyrillon. Mas à crescente claridade vermelha, seus olhos se encontraram, e o mesmo pensamento era evidente em ambos.
Haviam escapado dos banshees e dos bandidos. Mas estavam a centenas de quilômetros do território conhecido e seguro... sozinhos, a pé, quase sem armas, no meio das grandes florestas inexploradas da região mais selvagem de Darkover.
Estavam vivos.
E isso era o máximo que podiam dizer.
O SOL foi subindo pelo céu. Na depressão em que eles se encontravam deitados, alguns raios frios penetraram em seu refúgio, e Kennard se mexeu. Tirou o manto, estendeu-o para secar ao sol, depois despiu-se por completo e gesticulou para que Larry fizesse a mesma coisa. Como Larry, tremendo, hesitasse, Kennard disse, ríspido:
- As roupas úmidas vão deixá-lo congelado mais depressa do que a pele fria. Tire também as botas e ponha as meias para secar.
Larry obedeceu, ainda tremendo, e agachou-se num trecho de rocha aquecido pelo sol. Enquanto as roupas secavam, ao vento forte das alturas, eles verificaram os recursos de que dispunham.
Além do estojo de primeiros socorros - que continha apenas um pouco dos medicamentos mais corriqueiros -, Larry tinha seu canivete, com a lâmina principal quebrada, o saca-rolhas e a pequena lâmina magnetizada. Kennard examinou-o com as sobrancelhas alteadas e um sorriso, e deu de ombros. Larry ainda tinha outro pedaço de pão, um caderninho de anotações, um lenço e algumas moedas.
Kennard, que viera preparado para uma longa jornada, estava mais bem equipado, com a adaga afiada, uma caixa de pederneiras, além de pão e carne-seca na bolsa de couro pendurada na cintura.
- Não é muita coisa - comentou ele. - Trouxe mais e escondi perto do lugar em que deixei o cavalo, pois esperava que pudéssemos seguir naquela direção. E podemos obter alimentos na floresta, embora eu não tenha tanta certeza das coisas aqui quanto nos bosques de Armida. Não vamos passar fome, mas temos um problema pior.
Ao olhar inquisitivo de Larry, ele acrescentou, relutante:
- Estamos perdidos, Larry. Meu senso de orientação desapareceu por completo quando escapamos dos banshees, ontem à noite. Tudo o que sei é que nos encontramos a oeste da fortaleza de Cyrillon... e ninguém das Terras Baixas ou do Comyn jamais se aventurou tão longe nestas montanhas. Nunca mesmo. Ou se isso aconteceu, nenhum viveu para contar a estória. Não podemos voltar para leste, na direção de Armida... teríamos de atravessar o território de Cyrillon... nem fazer um círculo para o norte, entrando na área das Cidades Secas.
Seu rosto tremeu, embora ele tentasse mantê-lo impassível.
- É um vasto deserto... areia, sem água, sem comida. Seria melhor pedir a Cyrillon que nos oferecesse abrigo por uma noite. Para o sul, há a cordilheira das Hellers... e nem mesmo guias profissionais ou montanhistas se aventuram por lá sem os equipamentos adequados. Já pratiquei um pouco de montanhismo, mas tenho tantas condições de escalar as Hellers quanto você de pilotar uma espaçonave terráquea.
Só restava uma possibilidade.
- Para oeste então?
- A menos que queiramos passar de novo pelo território de Cyrillon, com banshees e todo o resto. Pelo que sei, só há floresta nessa direção. É uma região inexplorada, mas, se seguirmos o rumo do sol poente, devemos sair em algum lugar perto das terras de Lorill Hastur. Passaremos ao norte das Hellers...
Kennard traçou um mapa tosco no chão.
- Estamos aqui. E queremos chegar aqui. Mas só os deuses sabem o que existe entre os dois pontos, ou quanto tempo levaremos. - Ele fitou Larry, com um olhar firme. - Não me agradaria fazer uma viagem assim, mesmo em companhia de meu pai e de uma dúzia de seus soldados mais corpulentos. Mas, se me ajudar, bredu, podemos tentar.
Olhos nos olhos, Larry se lembrou do momento de profundo contato entre os dois, através do cristal azul do poder psíquico. A palavra bredu o surpreendera. Significava, literalmente, amigo... mas a palavra comum para amigo era com'ii. Bredu podia significar alguém íntimo, como num relacionamento familiar - um primo ou irmão -, ou podia significar irmão amado. Era uma palavra que expressava a confiança que aquele jovem darkovano, que salvara sua vida, depositava nele. Kennard, sozinho, efetuara uma jornada desesperada para socorrê-lo... e se encontrava prestes a iniciar outra, com a ajuda de Larry.
Era o momento mais solene na vida de Larry. Estava quase paralisado pelo medo, e podia sentir o medo de Kennard como se fosse seu; mais profundo, porque o darkovano conhecia mais os perigos que teriam de enfrentar. E, no entanto...
- Estou disposto a tentar, se você também estiver... bredu - murmurou Larry.
E nesse instante ele compreendeu que, se necessário, daria sua vida por Kennard... como Kennard arriscara a sua por ele.
Foi apenas uma fração de segundo. Depois, Kennard partiu o resto do pão de Cyrillon e disse:
- Vamos acabar de comer. Precisamos de força. E também tenho isto... - Ele tirou do bolso o embrulho de seda que continha o cristal azul. - Ajudou-me a encontrá-lo, porque sua mente ficou sintonizada depois que olhou a pedra. Por isso, quando eu me perdia, bastava olhar a pedra e pensar em você... e sabia qual era a direção certa.
Larry desviou os olhos da pedra. Fazia-o pensar naquele momento terrível, quando se achava sob o poder de Cyrillon.
- Cyrillon me obrigou a olhar para uma pedra assim.
O efeito da informação em Kennard foi um choque. Todo o seu rosto se contraiu, empalideceu.
- Cyrillon... tem uma dessas!
Em poucas palavras, Larry relatou o que acontecera. Kennard umedeceu os lábios ressequidos com a língua.
- Que Avarra nos proteja e oriente! Ele pode não saber como usá-la, mas, se algum dia aprender, ou se por acaso gerar um telepata com uma de suas mulheres, nem os próprios deuses poderiam salvar Darkover de seus poderes malignos! Para não mencionar que ele pode nos localizar... como eu localizei você.
- Ele tem medo da pedra.
Larry explicou como sabia disso, mas Kennard sacudiu a cabeça.
- Ainda assim, ele correria o risco; é evidente que arriscaria muito para recapturá-lo. Ah, Zandru, o que devo fazer?
Ele cobriu o rosto com as mãos e permaneceu imóvel por um longo momento, a pedra azul ainda em sua mão. Finalmente baixou as mãos, o rosto branco, contraído em terror.
- Nós... devemos destruir a pedra de Cyrillon. Sei o que devo fazer, mas tenho medo, Larry... tenho muito medo! - Era um brado de pavor. - Não há outro jeito!
- Por quê?
A expressão de Kennard era sombria. Mostrou a Larry uma marca estranha no braço, como uma tatuagem.
- Porque prestei o juramento de morrer antes de permitir que qualquer das armas do Comyn caia nas mãos de pessoas assim.
Larry sentiu um calafrio de medo percorrer seu corpo. Voltar, deliberadamente, para o poder de Cyrillon, destruir a pedra...
- O que faremos? - indagou ele, num tom irônico e sarcástico. - Batemos na porta da frente e pedimos a ele, com toda a polidez, para nos deixar entrar?
Kennard balançou a cabeça.
- Pior do que isso, e não posso fazer sozinho - murmurou ele, a voz quase inaudível. - Precisarei da sua ajuda. Que
Aldones nos guarde! Se ao menos eu pudesse alcançar o pai com isto... mas não é possível...
- Afinal, o que tem de fazer?
- Você não entenderia! - Kennard falou com alguma veemência, mas se controlou com um esforço visível e acrescentou, a voz mais suave: - Desculpe. Você também está envolvido e terá de me ajudar. Tenho de usar isto...
Ele fez uma pausa, apontando o cristal azul em sua mão.
- ...para destruir a pedra de Cyrillon. E precisamos agir agora.
- Mas como posso ajudar? - Larry sentia-se aturdido e assustado. - Não sou um telepata.
- Deve ser, se lutou com Cyrillon até um impasse, através da pedra. Também não entendo. Nunca ouvi falar de nenhum terráqueo que fosse telepata. Mas é óbvio que nós dois estamos em contato. Talvez tenha absorvido de mim, não sei direito. Mas temos de tentar.
Ele desembrulhou o cristal, e Larry desviou os olhos. A perspectiva de fitar de novo aquela coisa o deixava nauseado. A lembrança de Cyrillon forçando-o a isso fez com que seu ombro lesionado doesse.
Mas Kennard precisava fazer aquilo... e Kennard se arriscara à morte para salvá-lo. A voz firme, Larry perguntou:
- O que devo fazer?
Kennard se ajeitou no chão, as pernas cruzadas, olhando para a pedra, e Larry não pôde deixar de se lembrar dos três iniciados que haviam provocado a chuva para extinguir o incêndio na floresta. Sem esperar por uma ordem, ele sentou diante de Kennard, que murmurou:
- Apenas entre em contato comigo... e se mantenha firme. Não rompa o contato, o que quer que aconteça.
O azul do cristal engolfou todo o espaço. Larry sentiu Kennard como um ponto de fogo e ficou tenso, projetando todas as suas energias, toda a sua vontade, para apoiá-lo...
Sentiu uma chama azul, inativa a princípio, despertar de repente e se elevar. Espalhou-se, como um fogo elétrico, e Larry experimentou a sensação de que se debatia, se afogava. O corpo doía, toda a cabeça vibrava, o mundo parecia girar, vertiginoso, e ele saiu rolando pelo espaço azul, enquanto chama azul se encontrava com chama azul. Sentiu Kennard tremer, girar também e desaparecer numa distância insondável. O fogo o engolfava...
E de algum lugar surgiu um tremendo ímpeto de força, estrondosa, avançando em sua direção, a mesma força que lançara Cyrillon através da sala. Larry projetou essa força para o azul desconhecido. As chamas se encontraram, se fundiram, afundaram...
A floresta era verde e brilhante em torno deles, e Larry sorveu . o ar, ansioso, como um homem se afogando. Kennard estava estendido sobre as folhas, pálido e esgotado, a mão meio inerte, ainda segurando o cristal. Mas não havia nenhum fogo azul no interior da pedra agora. Era apenas uma pedra incolor, que faiscou uma ou duas vezes, enquanto Larry observava, e depois se desmanchou num sopro de vapor azul. A mão de Kennard ficou vazia. Ele sentou, o peito arfando, e balbuciou:
- Já não existe mais. Eu a destruí... embora tivesse de destruir a minha também para consegui-lo. E poderia ter nos orientado até as terras de Lorill Hastur. - Kennard franziu o rosto, numa expressão amargurada. - Mas é melhor do que deixar uma pedra-da-estrela em poder de Cyrillon. Agora, só temos de enfrentar os perigos comuns. Bom...
Ele deu de ombros e fez um esforço para se levantar.
- Temos um longo caminho a percorrer, e só precisamos seguir o rumo do sol para oeste. Vamos começar.
Larry pegou suas roupas, já secas, e começou a vesti-las, reprimindo a curiosidade, mil e uma perguntas. Conhecia Kennard muito bem, àquela altura, para saber que já recebera toda a explicação que o amigo jamais lhe daria. Em silêncio, ele guardou o canivete, o estojo de primeiros socorros, enfiou os pés nas botas. Ainda em silêncio, seguiu Kennard, descendo pela encosta oeste da montanha, embrenhando-se pela vasta região inexplorada que se estendia entre a fortaleza de Cyrillon e as terras de Lorill Hastur.
Durante todo aquele dia e o seguinte, eles desceram pela mata, em que não existia nenhuma trilha, seguindo a rota do sol para oeste, dormindo à noite em depressões cobertas por folhagem, comendo de forma comedida o pão e a carne que restavam das provisões de Kennard. Na noite do segundo dia deitaram sem jantar, limitando-se a mastigar uns poucos bagos ressequidos, parecendo o fruto da roseira, bastante azedos, mas que aliviaram um pouco a fome.
O dia seguinte foi terrível, e tiveram a maior dificuldade para passar entre os arbustos. Mas pararam cedo. Kennard virou-se para Larry e pediu:
- Dê-me seu lenço.
Obediente, Larry entregou-o. Estava amarrotado e sujo, e ele não podia imaginar para que Kennard o queria. Sentou e observou Kennard rasgar o lenço em tiras finas, amarrando umas nas outras, até dispor de uma corda retorcida relativamente comprida. Sem fazer qualquer barulho, Kennard procurou ao redor, até encontrar um buraco no chão; puxou um galho baixo, prendeu a corda improvisada ali, fazendo um laço com a outra extremidade. Gesticulou para que Larry deitasse e ficasse imóvel, seguindo o seu exemplo. A sensação foi de que se mantiveram em silêncio por horas. Larry sentia cãibras, o corpo todo dormente, e Kennard virou-se para fitá-lo, furioso, quando se arriscou a aliviar um músculo dolorido com um movimento mínimo.
Muito tempo depois, um pequeno animal projetou o focinho inquisitivo do buraco; no mesmo instante, Kennard puxou o laço, e a criatura foi levantada pelo ar, debatendo-se.
Larry estremeceu, mas logo refletiu que, no final das contas, comera carne durante toda a sua vida, e aquele não era o momento para ter melindres. Observou, sentindo-se vagamente inútil e supérfluo, enquanto Kennard torcia o pescoço do animal, esfolava-o e estripava-o, juntava gravetos secos para acender uma fogueira.
- Seria mais seguro não acender um fogo - comentou ele, com um sorriso amargo -, mas não aprecio carne crua... e se ainda estiverem em nossa pista depois de tanto tempo, estamos mesmo sem sorte.
O pequeno animal peludo não era muito maior do que um coelho; eles comeram toda a carne num instante e ainda roeram os ossos. Kennard desmanchou a fogueira e cobriu o local com folhas, a fim de não deixar pista alguma.
Naquela noite, ao se deitarem para dormir, Larry passou muito tempo acordado, sentindo-se um tanto contrafeito; invejava um pouco a habilidade de Kennard - estaria perdido e desamparado na floresta sem os conhecimentos do amigo - mas era dominado por uma inquietação persistente, que nada tinha a ver com isso. A floresta era povoada por ruídos estranhos, os gritos distantes de aves noturnas, as passadas de estranhos animais, e Larry tentou dizer a si mesmo que sua apreensão era causada apenas pela estranheza de tudo aquilo. Na manhã seguinte, quando se preparavam para partir, ele não parava de olhar ao redor, até que Kennard notou e indagou, com alguma irritação, qual era o problema.
- É que estou ouvindo... mas sem chegar a ver... uma porção de coisas - murmurou Larry, relutante.
- Imaginação - disse Kennard, dando de ombros.
Mas a inquietação de Larry persistiu. Aquele dia foi muito parecido com o anterior. Continuaram a avançar pela floresta, subindo e descendo encostas, forçando a passagem pelos arbustos. Atravessaram uma área que parecia de floresta plana, mas era repleta de árvores mortas e ravinas profundas.
À noite, Kennard capturou uma ave e já ia acender a fogueira para assá-la quando percebeu a apreensão de Larry.
- O que há com você?
Larry limitou-se a balançar a cabeça, sem dizer nada. Sabia - sem saber como sabia - que Kennard não devia acender aquela fogueira, e parecia tão insensato que sua vontade era gritar para descarregar a tensão. Kennard fitou-o com uma expressão que se situava entre a impaciência e a compaixão.
- Você está esgotado, é esse o problema, e por tudo o que sei, Larry, ainda se encontra meio envenenado pela droga que lhe deram. Por que não deita e dorme um pouco? Descanso e comida o ajudarão mais do que qualquer outra coisa.
Ele tirou da bolsa a caixa de pederneiras e se concentrou em acender o fogo...
Larry soltou um grito, meio inarticulado, e pulou para segurar o pulso do amigo, derrubando as pederneiras. Kennard, num acesso de raiva, largou a caixa e acertou um golpe no rosto de Larry, com toda a força.
- Olhe só o que fez!
- Eu... - A voz de Larry falhou. Nem mesmo se ressentia da agressão. - Não sei por que fiz isso.
Kennard postou-se à sua frente, a fúria dando lugar, pouco a pouco, à perplexidade e à compaixão.
- Você está delirando. Pegue aquela pederneira... Larry obedeceu, e ele recuou, cauteloso.
- Vai me criar mais problemas, ou teremos de comer a carne crua?
Larry arriou no chão e cobriu o rosto com as mãos. A centelha pegou na isca; Kennard ajoelhou-se e aumentou a chama, alimentando-a com gravetos secos. Larry permaneceu sentado, imóvel, nem mesmo o cheiro da carne assando pôde prevalecer sobre o denso e crescente nevoeiro de aflição que o envolvia. Não viu que Kennard o observava, com o rosto franzido, numa consternação cada vez maior. Quando Kennard tirou a ave assada do fogo e partiu-a ao meio, Larry se limitou a sacudir a cabeça. Estava faminto, o cheiro da carne deixava sua boca aguada, os olhos ardendo, mas o medo, como um miasma ao seu redor, predominava sobre tudo. Mal ouviu Kennard falar. Pegou a carne que o jovem darkovano pôs em suas mãos e levou-a à boca, mas não conseguiu mastigar, nem engolir. Ao final, Kennard disse, gentilmente:
- Está certo. Talvez você queira comer mais tarde.
Mas as palavras soaram muito distantes, através daquela coisa insólita que engrossava cada vez mais e dominava-o por completo. Podia captar os pensamentos de Kennard, assim como via o brilho das brasas na fogueira meio apagada. Kennard achava que ele, Larry, começava a perder o contato com a realidade. Larry não o culpou por isso. Ele próprio pensava a mesma coisa. Mas o conhecimento não era capaz de romper o medo entorpecedor, que crescia e crescia...
E que aflorou de repente, como uma onda impetuosa. Ele se ouviu gritar, em alarme, e levantou-se, mas já era tarde demais.
A clareira enxameava de vultos agachados. Kennard gritou e levantou-se também, mas os dois foram cobertos por uma enorme rede, feita de cipós, que os imobilizava de forma inexorável, por mais que se debatessem.
O denso nevoeiro da apreensão se dissipou, e Larry voltou a ficar lúcido, alerta, consciente do novo cativeiro. A rede os juntara, mas não os derrubara; podiam avistar os vultos ao redor, à luz das tochas fosforescentes. E os novos atacantes não eram humanos.
Tinham os contornos de homens, embora fossem menores; eram peludos e se encontravam nus, exceto por um saiote de folhas ou fibras entrelaçadas preso na cintura, com enormes olhos rosados e dedos preênseis nas mãos e nos pés. Agruparam-se em torno da rede, falando em vozes estridentes, que pareciam o chilrear de pássaros. Larry olhou para Kennard, que murmurou, tenso:
- O povo da floresta. Não-humanos. Vivem nas árvores. Não sabia que podiam chegar tão ao sul. Provavelmente foram atraídos pelo fogo. Se eu imaginasse...
Ele olhou para a fogueira se extinguindo, pesaroso. As criaturas a cercavam, soltando gritos estridentes, remexendo com varas compridas, cautelosas, jogando terra em cima, até que finalmente conseguiram cobri-la por completo. Depois, calcaram o lugar em que antes havia a fogueira, com alguma exultação, numa espécie de dança da vitória. Uma das criaturas aproximou-se da rede e fez um longo discurso, em sua língua estridente; nenhum dos rapazes entendeu uma só palavra, mas o tom era furioso e triunfante. Kennard comentou:
- Eles têm pavor do fogo e odeiam os humanos por usá-lo. Receiam um incêndio na floresta. Para eles, o fogo significa morte.
- O que vão fazer conosco?
- Não sei.
Kennard fitou Larry em silêncio por um longo momento, com uma intensa curiosidade, antes de acrescentar:
- Na próxima vez, confiarei em seu pressentimento. É evidente que você possui alguma precognição, além de telepatia.
Para Larry, o povo da floresta parecia com macacos... ou como os kyrri, só que menores e sem a enorme dignidade das outras criaturas. Ele esperava que não tivessem também a capacidade de provocar choques elétricos dos kyrri.
Logo se tornou patente que não era esse o caso. Eles apertaram a rede em torno dos pés dos rapazes e os obrigaram a andar, puxando os cipós, mas não houve qualquer violência além disso. Percorreram algumas dezenas de metros e chegaram a uma trilha larga. Kennard assoviou baixinho ao vê-la.
- É evidente que passamos a maior parte do dia no território do povo da floresta. É bem provável que tenham nos vigiado durante todo o tempo, e talvez não tivessem nos incomodado, se não acendêssemos a fogueira. Eu deveria ter pensado nisso.
Era mais fácil andar naquela trilha. Larry perdera a noção do tempo, mas cambaleava de cansaço quando, muito mais tarde, chegaram a uma clareira ampla, iluminada pela fosforescência de fungos que cresciam em árvores enormes. Depois de uma discussão em sua língua estridente, as criaturas prenderam a rede na árvore mais próxima e subiram pelo tronco da que ficava ao lado.
- Será que vão nos deixar aqui? - murmurou Kennard. Um puxão repentino na rede revelou que isso não ocorreria.
Lentamente, a rede começou a subir, e logo os dois ficaram suspensos no ar. Kennard gritou em protesto, e Larry também reclamou, mas era óbvio que o povo da floresta não pretendia correr qualquer risco. O lento movimento cessou, e Larry especulou se ficariam pendurados ali, como um par de salames, dentro da rede; mas, depois de um intervalo angustiante, a subida recomeçou. Kennard praguejou, em voz baixa.
- Eu deveria ter cortado a rede no instante em que eles nos deixaram!
Ele pegou a adaga e começou a serrar, frenético, os cipós que os prendiam. Larry pôs a mão em seu braço.
- Não faça isso, Kennard. Só serviria para cairmos. - Ele apontou para baixo, mostrando que se achavam a uma grande distância do chão. - E se eles vissem, tirariam a faca. É melhor escondê-la.
Kennard, compreendendo que Larry tinha razão, guardou a faca dentro da camisa. Os dois continuaram quase grudados, enquanto a rede subia mais e mais, na direção das copas das árvores; e agora, em vez de desejarem cortá-la para escapar, temiam apenas que a rede se rompesse. A claridade aumentou ao passarem pelos galhos inferiores das imensas árvores, e finalmente, com um solavanco que jogou um contra o outro, a rede foi puxada para cima de um galho grosso, no acampamento do povo da floresta. Larry murmurou, em tom de urgência:
- Um de nós é capaz de vencer dois deles. Talvez possamos lutar para escapar.
Mas o enxame de criaturas acabou com seu otimismo. Devia
haver uns quarenta ou cinqüenta, homens, mulheres e algumas crianças peludas. Pelo menos uma dúzia dos homens correram para a rede, cercando Larry e Kennard, e começaram a arrastá-los. Quando eles pararam de se debater, e através de sinais indicaram que seguiriam sem resistência, um dos homens - com um rosto fino e peludo de macaco, mas olhos verdes inteligentes - adiantou-se e começou a soltar os complicados nós da rede, com seus dedos preênseis e competentes. O povo da floresta, no entanto, não parecia disposto a correr qualquer risco de uma fuga, pois cercaram de perto os prisioneiros, para impedir alguma tentativa. Larry concluiu que era impossível escapar, pelo menos no momento, e olhou ao redor, estudando o estranho mundo da aldeia suspensa.
Entre as copas de um círculo de enormes árvores, fora construído um chão de grandes troncos cortados, coberto com o que parecia ser uma esteira de juncos trançados. Balançava um pouco, de forma desconcertante, a cada movimento e passo; mas Larry, percebendo que sustentava a multidão do povo da floresta, concluiu que podia suportar imensos pesos. Como criaturas tão simples podiam ter calculado aquele incrível feito de engenharia? Mas se os castores eram capazes de construir represas que desafiavam a engenhosidade dos engenheiros, refletiu ele, aqueles não-humanos deviam ter condições de algo similar nas copas das árvores.
Uma claridade esverdeada filtrava-se das folhas por cima, permitindo-lhe divisar um círculo de cabanas, construídas à beira do piso. Eram cobertas por folhas verdes, e videiras cresciam ao redor, com cachos tão suculentos que Larry descobriu de repente que se sentia sedento.
Foram empurrados para o interior de uma das cabanas, uma grade se fechou, e ficaram prisioneiros.
Prisioneiros do povo da floresta!
Larry arriou no chão, exausto, e comentou:
- Da frigideira para o fogo.
Diante do olhar perplexo de Kennard, ele repetiu o comentário em seu tosco darkovano. Kennard sorriu, irônico.
- Temos um ditado semelhante: "A caça que escapa da armadilha para o caldeirão."
Kennard tornou a pegar a faca e começou a serrar os cipós grossos que formavam a prisão. Foi em vão, pois ainda eram verdes, com enormes nós, entrelaçados, e resistiam à faca como se fossem barras de ferro. Depois de uma longa careta, ele guardou a faca e sentou, olhando sombrio para o chão coberto de musgo.
As horas se arrastaram. Podiam ouvir as vozes estridentes e distantes do povo da floresta, como pássaros chilreando nas copas das árvores, o som às vezes lembrando grilos. No musgo no chão da cabana havia numerosos insetos, que não paravam de fazer barulho, e de vez em quanto erguiam a cabeça, inquisitivos, sem medo, para os dois rapazes, como se fossem animais domésticos.
Pouco a pouco, a luz verde foi se desvanecendo; ficou mais frio, mais escuro, até que não restava mais nenhuma claridade. Os ruídos cessaram, e a aldeia do povo da floresta adormeceu. Os dois continuaram sentados, na escuridão. Larry pensou, com uma nostalgia quase angustiada, no mundo limpo e tranqüilo da Cidade Comercial terráquea. Por que sentira vontade de sair de lá?
Teria luzes e sons ali, comida e companhia, pessoas falando sua própria língua...
Na escuridão, Kennard se remexeu, murmurou alguma coisa incompreensível e voltou a dormir, exausto. Larry sentiu uma vergonha súbita de seus pensamentos. Sua busca por aventura o levara àquele lugar, contra todas as advertências... e tudo indicava que Kennard partilharia o destino obscuro, qualquer que fosse, que lhe estava reservado, nas mãos do povo da floresta. Pelos padrões darkovanos, ele, Larry, já era um adulto. Podia pelo menos se comportar como tal. Procurou o canto mais quente da cabana e tirou as botas e o casaco. Num súbito impulso, estendeu o casaco sobre o vulto adormecido de Kennard. Depois, enroscou-se sobre o musgo e dormiu.
Foi um sono pesado e longo; Larry despertou no momento em que Kennard puxava sua manga e a porta se abria. Mas só se abriu por uma fresta; alguém empurrou uma bandeja de madeira para dentro e tornou a fechá-la. Ouviram a tranca ser ajustada por fora.
Havia alguma claridade, esquentara um pouco. Ao mesmo tempo, os rapazes avançaram para a bandeja. Estava cheia de alimentos: as uvas suculentas que cresciam em torno das caba-nas, nozes de casca macia, que Larry conseguiu abrir com a lâmina quebrada do canivete, e uma substância mole, com o cheiro de mel. Foi uma refeição substancial. Ao final, olharam um para o outro, nenhum dos dois querendo ser o primeiro a falar sobre a aparente desesperança da situação em que se encontravam.
Larry acabou se manifestando, enquanto examinavam os entalhes elaborados da bandeja:
- Eles têm ferramentas?
- Têm, sim. Possuem excelentes facas de sílex... vi vários exemplares no museu de artefatos não-humanos em Arilinn. Além disso, alguns habitantes das montanhas negociam com eles... trocam facas e ferramentas por certas coisas que eles produzem, como corantes e ervas medicinais. Nozes e frutas. Essas coisas.
- Ou seja, eles parecem possuir uma cultura própria, bastante complexa.
- É verdade. Mas temem e odeiam os humanos, provavelmente porque usamos o fogo.
Larry, recordando o incêndio na floresta, ocorrido poucos dias antes, não podia culpar o povo da floresta por seus medos. Examinou o recipiente em que viera o mel. Era feito de argila, não cozido, crestado ao sol. O que mais podia fazer uma cultura sem fogo?
Ainda restavam algumas frutas e nozes na bandeja, de tão abundante que fora a refeição. Ele comentou:
- Espero que não estejam nos engordando para o banquete no domingo.
Kennard riu.
- Nada disso. Eles não comem sequer animais. São completamente vegetarianos, pelo que sei.
- Neste caso, o que querem conosco? Kennard deu de ombros.
- Não sei... e também nem sequer imagino como perguntar a eles!
Larry manteve-se calado por um momento, pensando, e depois indagou:
- Você não é telepata?
- Não dos melhores. De qualquer forma, a telepatia transmite pensamentos codificados em palavras... e emoções. Dois telepatas que não falam a mesma língua possuem conceitos tão diferentes que se torna quase impossível um ler a mente do outro. E tentar ler a mente de um não-humano... nem mesmo um lorde Hastur muito eficiente ou uma leronis (uma feiticeira, como a que você viu no incêndio) conseguiriam. Eu não seria capaz de sequer tentar.
E não havia solução, ao que parecia.
O dia passou lentamente. Ninguém se aproximou da cabana. Ao anoitecer, outra bandeja, com frutas, nozes e cogumelos, foi empurrada pela porta, e a anterior retirada. O terceiro dia veio e passou, sem que nenhum dos dois encontrasse um meio de escapar da situação crítica. O carcereiro passou a entrar na cabana, entregando a nova bandeja com comida e recolhendo a outra. Era grande e forte - para um membro do povo da floresta -, mas claudicava. Parecia cordial, mas cauteloso. Kennard e Larry discutiram a possibilidade de dominá-lo e depois tentarem fugir. Poderiam escapar da cabana, mas ainda se encontrariam na aldeia do povo da floresta... e com centenas de quilômetros de floresta ao redor para percorrerem. Por isso, contentaram-se em formular um plano atrás do outro, todos inúteis. Nenhum deles parecia sequer remotamente viável.
No que devia ser o meio-dia do quarto dia - a julgar pela claridade mais intensa -, a porta da cabana foi aberta, e três membros do povo da floresta entraram, seguidos por um quarto, que tudo indicava ser uma espécie de chefe, pela deferência com que os outros o tratavam. Como os outros, usava apenas o saiote de folhas preso na cintura, mas tinha pendurada no pescoço uma fieira de contas de argila e bagos vermelhos, e possuía uma aparência de indefinível dignidade, que fez Larry, por algum motivo, pensar em Lorill Hastur.
Ele fez uma ligeira reverência e disse, num dialeto darkovano compreensível, embora um tanto estridente:
- Bom-dia. Espero que tenham sido bem tratados e estejam confortáveis.
Os dois rapazes se levantaram no mesmo instante, aturdidos. Podiam entender o que ele dizia! Os guardas cercando o chefe levaram a mão às facas de sílex, mas logo recuaram, ao constatar que nenhum dos dois prisioneiros se adiantava. Kennard gritou:
- Confortáveis coisa nenhuma! Por que nos mantém aqui como prisioneiros?
Os guardas murmuram alguma coisa, em choque e consternação, e o chefe virou-se, em reação ao que parecia ser uma ofensa óbvia. Kennard mudou de tática sem hesitação. Fez uma reverência profunda.
- Perdoe-me. Eu... - Ele lançou um olhar angustiado para Larry. - Fui precipitado ao falar. Nós...
Larry interveio, falando o mesmo dialeto:
- Temos sido bem alimentados e mantidos fora da chuva, se é a isso que se refere, senhor. - A palavra que ele usou também podia ser traduzida como "Excelência". - Mas poderia nos conceder a honra de explicar por que fomos tirados de nosso caminho e trazidos para este lugar muito úmido, de onde não nos permitem sair?
A expressão do chefe era solene.
- Seu povo destrói a floresta com a coisa vermelha que devora as árvores. Os animais morrem. Eram observados, e quando usaram a coisa vermelha que devora as árvores, tratamos de capturá-los.
- E quando vão permitir que continuemos a nossa viagem? - indagou Kennard.
O chefe fez um gesto negativo.
- Só temos uma proteção, apenas uma, contra a coisa vermelha que devora as árvores. Sempre que um de vocês entra no território do Povo do Céu, nunca mais torna a sair. Assim, sua gente ficará com medo de vir para o nosso mundo, e não mais precisaremos temer a coisa vermelha que devora as árvores e destrói nossas cidades.
Kennard, irritado, levantou suas mangas. Ainda havia cicatrizes vermelhas de queimaduras nos braços.
- Escute aqui, seu... - Ele parou de falar, fez um esforço para se controlar. - ...Sua Grandeza. Há poucos dias, eu, minha família e meus amigos passamos muitos dias tentando apagar um incêndio. Não é o meu povo que destrói as florestas. Nós... estamos fugindo das pessoas impiedosas que costumam atear fogo a florestas.
- Então por que fizeram... o que chama de fogo?
- Para cozinhar nossa comida.
A expressão do chefe se tornou solene outra vez.
- E seu tipo de... de homem... - A palavra foi pronunciando com um patente desdém. - ...come nossos irmãos que têm vida!
- Os costumes são diferentes - insistiu Kennard, obstinado. - Mas não destruímos suas florestas. Até prometemos que não acenderemos nenhum fogo enquanto estivermos em seu território, se nos deixar partir.
- Vocês são do tipo que fazem fogo. Não os deixaremos ir embora. Já tomei minha decisão.
Ele virou-se, saiu da cabana, acompanhado pelos guardas, e a porta foi trancada de novo.
- Parece que estamos mesmo perdidos - murmurou Kennard, sentando no chão, o queixo nas mãos, o olhar perdido no espaço.
Larry também se sentia desesperado. Era evidente que o povo da floresta não lhes faria qualquer mal. Mas também era evidente que seriam mantidos naquela prisão - bem alimentados, bem abrigados, mas enjaulados como animais - até morrerem.
Ele se descobriu a pensar como se fosse do povo da floresta. Se você dependia da floresta para viver, o fogo era seu maior medo... e parecia óbvio que, para eles, o fogo era uma coisa selvagem, que nunca podia ser controlada. Larry recordou a dança de alegria triunfante quando conseguiram apagar a pequena fogueira acesa por Kennard. Ele perguntou, pensativo:
- Você ainda tem a caixa de pederneiras e iscas, não é? Kennard apreendeu a idéia no mesmo instante.
- Mas é isso mesmo! Podemos abrir o caminho com tochas, e ninguém ousaria chegar perto de nós!
Mas seu ânimo murchou logo em seguida.
- Não. Haveria o perigo de incendiar tudo por aqui. Não podemos destruir a aldeia de criaturas inocentes.
E Larry acompanhou seus pensamentos. Era melhor permanecer na prisão indefinidamente - afinal, estavam sendo bem tratados, alimentados de forma apropriada - do que assumir o risco de destruir a aldeia daquelas criaturas inocentes. Que não eram capazes de sequer matar um coelho para comer. Mais cedo ou mais tarde, encontrariam outro meio de escapar. Até lá, não se arriscariam a destruir o povo da floresta, que não lhes fizera mal algum.
Foram interrompidos pela entrada do carcereiro, claudicando, como sempre, com uma bandeja de comida - nozes, mel e
ovos de alguma ave. Larry fez uma careta... ovos crus? Ele calculou que deveria ser uma iguaria para as criaturas e que ofereciam o melhor tratamento possível aos prisioneiros-hóspedes. Mas um ovo cozido seria uma refeição muito mais agradável.
Kennard perguntava ao carcereiro, através de sinais, como ele machucara a perna. A criatura se agachou, esticando a cabeça; até parecia mesmo com o enorme carnívoro que imitava. Fez um gesto de garra desferindo um golpe brutal e se jogou no chão musgoso da cabana, todo encolhido, simulando uma dor intensa, e depois mostrou a ferida infeccionada. Larry ficou nauseado ao vê-la; a coxa inchara quase ao dobro do tamanho, e um pus esverdeado escorria. O carcereiro deu de ombros, com um ar de estoicismo, apontou para sua faca de sílex, gesticulou, debateu-se como um homem sendo contido, pulou numa perna só, cruzou as mãos, fechou os olhos e prendeu a respiração, como um morto. Pegou a bandeja em seguida e saiu da cabana, claudicando.
Kennard, o rosto contraído, murmurou:
- Entendeu tudo? Ele indicou que terão de cortar sua perna em breve, ou vai morrer.
- E é tão desnecessário! - exclamou Larry, veemente. - Só é necessário lancetar a infecção, alguns antibióticos e cuidados para manter a ferida limpa...
Subitamente, ele estremeceu.
- Kennard, ainda está com aquele pote em que veio o mel?
- Claro.
- Não sou bom em acender um fogo com pederneira e isca, mas você poderia fazê-lo? Um fogo pequeno, dentro do pote? O suficiente para esterilizar uma faca? E para esquentar um pouco de água?
- O que está...
- Tive uma idéia, e pode dar certo. - Larry tirou do bolso o estojo de primeiros socorros. - Tenho um pouco de talco anti-séptico e antibióticos. Não muito, mas deve ser suficiente, considerando que a criatura deve ter a constituição resistente de... de uma dessas árvores, para sobreviver a um golpe assim e ainda conseguir andar.
- Se acendermos um fogo, Larry, é bem provável que eles nos matem.
- Por isso, vamos acendê-lo dentro do pote, escondido. O velho parece inteligente... o que conversou conosco em darkovano. Se mostrarmos que o fogo não pode escapar de um pote de argila...
Kennard percebeu tudo.
- Pelos infernos de Zandru, Larry, pode dar certo! Mas, pelos deuses lá em cima, quer dizer que você é um curador de feridas entre seu povo, como meu primo, Dyan Ardais?
- Não. Acontece apenas que tais conhecimentos são comuns a todos os garotos do meu povo, como...
Ele procurou por uma comparação apropriada, e Kennard, acompanhando seus pensamentos, como sempre, sugeriu:
- Como o conhecimento de esgrima entre meu povo? Larry acenou com a cabeça. Assumiu o comando, dando instruções:
- Se o sujeito gritar, seremos contidos e não conseguiremos terminar o que temos de fazer. Portanto, vamos imobilizá-lo e impedir que grite. Depois, você o controla, enquanto cuido de sua perna. Só teremos uma chance... e não podemos perdê-la!
Ao anoitecer, os preparativos estavam prontos. A claridade era precária, e Larry sentiu-se apreensivo, embora a luz do fogo no pote ajudasse um pouco. Esperaram, quase sem respirar. E se tivessem mudado o carcereiro? Ou se eleja morrera do ferimento? Mas depois de um momento, ouviram seus passos característicos. A porta foi aberta.
Ele viu o fogo no pote. Abriu a boca para gritar.
Mas o grito não chegou a sair. O braço de Kennard envolveu-o pela garganta, e uma mordaça tosca e improvisada, feita com a aba da camisa de Larry, foi enfiada em sua boca. Larry sentia-se
um pouco nauseado. Sabia o que devia ser feito, mas nunca fizera nada parecido antes. Estendeu a faca sobre o fogo, até ficar em brasa, deixou-a esfriar um pouco, e depois, cerrando os dentes, fez um talho comprido na perna inchada e infeccionada.
Houve um esguicho imediato de pus esverdeado do ferimento. Larry limpou-o. Parecia que o pus nunca deixaria de escorrer, e foi uma coisa nauseante, mas ao final o sangue apareceu, e ele pôde ver a carne por baixo.
Larry limpou o ferimento várias vezes, com a água quente do segundo pote; assim que ficou limpo, da melhor forma possível, ele salpicou o anti-séptico em pó, cobriu com o pedaço de pano mais limpo de que dispunha - um fragmento de atadura que ainda restava no estojo de primeiros socorros - e tirou a mordaça da boca do carcereiro.
Há muito que o homem deixara de se debater. Piscou, numa surpresa atordoada, olhando para a perna, que tinha agora apenas um talho limpo. Depois se levantou, fez meia dúzia de reverências profundas e saiu da cabana, de costas.
Larry arriou no chão, exausto. Especulou se o que acabara de fazer punha suas vidas em perigo. Os costumes do povo da floresta eram muito diferentes, não havia como prever coisa alguma; podiam considerar aquilo tão imperdoável quanto matar um coelho.
Depois de algum tempo, por exortação de Kennard, ele sentou e comeu alguma coisa. Precisava se alimentar... mesmo que experimentasse a sensação de que era a sua última refeição. Alimentaram o pequeno fogo com folhas secas e cozinharam os cogumelos por cima. Por algum tempo, sentiram-se quase festivos. Muito mais tarde, ouviram passos e trocaram um olhar, sem necessidade de palavras.
Chegou o momento. Vida ou morte?
Kennard não disse nada, apenas pegou a mão de Larry, apertou-a e entrelaçou os braços. O gesto podia ser desconhecido, mas Larry compreendeu que era não apenas um sinal de amizade, mas também de afeição e ternura. Sentiu-se um pouco embaraçado, mas murmurou:
- Se for a má notícia... lamento muito tê-lo envolvido nisso... mas foi um prazer conhecê-lo.
Um instante antes de a porta se abrir, Larry viu tudo num súbito lampejo de percepção: era o chefe do povo da floresta, com uma expressão solene, mas sozinho e sem armas. Ou seja, pelo menos não seria a morte imediata.
- Vi o que vocês fizeram por Rhhomi. Não posso acreditar que sejam maus. Mas são do tipo que faz fogo. - O chefe sentou, com uma extrema dignidade. - Ninguém é jovem demais que não possa ensinar, nem velho demais que não possa aprender. Devo aprender com vocês, estranhos?
Kennard apressou-se em dizer:
- Já declaramos que não queremos fazer mal a nenhum de vocês, Honrado Chefe.
- Sei disso. - Mas era para Larry que ele olhava, e acrescentou, de uma forma aparentemente irrelevante: - Entre meu povo, meu título é de O Velho, e o que é a idade senão sabedoria? Tem sabedoria para me oferecer, filho de uma terra estranha?
Larry pegou o pote de mel, onde ainda havia algumas brasas. O Velho encolheu-se todo, mas tratou de se controlar, com um esforço visível. Larry tentou explicar tudo em seu darkovano simples; afinal, a língua era estranha tanto para ele quanto para aquela criatura alienígena.
- O fogo é inofensivo aqui - disse ele, procurando as palavras certas. - Veja, as paredes de seu pote de argila mantêm o fogo inofensivo, impedindo-o de queimar mais alguma coisa. Se o alimentar com... com gravetos e folhas secas, vai ser de utilidade, em vez de fazer mal.
O Velho inclinou-se, dominando o medo arraigado, encostou a mão no pote e murmurou:
- Quer dizer que pode se tornar um servo, não o amo? E uma faca limpa nesse fogo pode curar?
- Isso mesmo - respondeu Larry, passando por cima da teoria dos germes. - E um ferimento lavado com água quente pode sarar melhor do que um ferimento sujo.
O Velho levantou-se, com o pote nas mãos, e declarou, solene:
- Por esta dádiva de cura, meu povo agradece. E como um sinal de nosso reconhecimento, estão agora sob a nossa proteção, dentro da floresta. Usem isto... - Ele estendeu duas grinaldas de flores amarelas. - ...e ninguém do nosso povo jamais lhes fará mal algum. Mas não façam as chamas vermelhas que devoram as árvores em nosso território.
Larry, sentindo que O Velho se dirigia a ele, respondeu com a mesma solenidade:
- Tem a minha promessa.
O Velho abriu a porta da cabana.
- Estão livres para ir embora.
Meio sem jeito, eles puseram as grinaldas de flores amarelas por cima da cabeça. As criaturas da floresta recuaram quando O Velho avançou, com o pote que continha as brasas nas mãos. Ele entregou-o a uma mulher e disse:
- Coloco isto em suas mãos. Você e suas filhas e as filhas de suas filhas devem alimentá-lo, e terão a responsabilidade de evitar que escape.
A cena tinha uma solenidade tão profunda que Larry, por algum motivo - talvez apenas por alívio -, sentiu vontade de rir. Mas manteve a expressão séria, enquanto eram escoltados até a beira da aldeia do povo da floresta, onde lhes indicaram uma escada comprida, pela qual podiam descer. Depois de um longo tempo, com infinito alívio, eles voltaram a pisar em chão firme.
Eles ANDARAM durante todo aquele dia pelas trilhas na floresta. De vez em quando, pelo canto dos olhos, vislumbravam um movimento, mas não viram qualquer sinal do povo da floresta. Dormiram naquela noite ouvindo sons por cima, mas agora sem medo, porque sabiam que as grinaldas de flores amarelas os protegeriam naquele território.
Nenhum dos dois falara da fuga. Não havia agora necessidade de palavras entre eles. Mas, no segundo dia - um dia nublado, sem sol, com perspectiva de chuva -, quando sentaram para comer a refeição de bagos e cogumelos, que cresciam abundantes ao longo das trilhas, Kennard finalmente falou:
- Deve saber que haverá incêndios. Casas vão queimar. Talvez mesmo florestas. Eles não são humanos.
- Não tenho a mesma certeza - comentou Larry, pensativo. - Entre os terráqueos, seriam chamados no mínimo de humanóides. Possuem uma cultura.
- Mas acha que foi seguro lhes dar o fogo? Eu nunca ousaria fazer isso, mesmo que tivéssemos de morrer ali. Por mais séculos do que posso contar, humanos e não-humanos viveram juntos em Darkover num certo equilíbrio. E agora, com o povo da floresta usando o fogo...
Ele deu de ombros, desolado, e Larry começou a perceber as implicações do que fizera, mas disse, obstinado:
- Ainda assim, acho que eles vão aprender. Cometerão erros, usarão da forma errada algumas vezes, mas aprenderão.
Sua cerâmica vai melhorar, com o uso do fogo. Talvez até aprendam a cozinhar os alimentos. Vão crescer, se desenvolver. Nada permanece estático.
Uma pausa, e Larry acrescentou o credo terráqueo:
- Uma civilização muda... ou morre.
O rosto de Kennard ficou vermelho, numa raiva súbita e soturna. Larry, compreendendo pela primeira vez desde o resgate que continuavam alienígenas um para o outro, percebeu outra coisa. Kennard estava com ciúme. Fora o salvador, o líder, mas Larry é que os libertara, quando Kennard hesitaria em tomar a iniciativa, por medo da mudança. Larry assumira o comando... e Kennard passara para segundo plano.
- É um princípio terráqueo, a mudança - murmurou Kennard. - Para melhor, ou para pior, mas sempre a mudança. Não importa quão boa seja uma coisa... trate de mudá-la, apenas pela mudança.
Larry, com uma crescente sabedoria, ficou em silêncio. Sabia que havia um conflito mais profundo do que jamais poderiam resolver apenas com palavras: toda uma civilização baseada na expansão e crescimento, contra outra baseada na tradição. Ele sentiu vontade de dizer: "De qualquer forma, estamos vivos", mas absteve-se. Kennard salvara sua vida muitas vezes. Não podia se gabar de que estava agora igualando a contagem.
Naquela noite, alcançaram a beira do território do povo da floresta, entrando numa área de colinas rochosas, inexploradas, sem trilhas, cobertas apenas por moitas aqui e ali. Mais além, estendiam-se as montanhas, e depois...
- O desfiladeiro fica nessa direção - disse Kennard -, e no outro lado está o território de Hastur. Estamos perto de casa.
Ele parecia esperançoso, até mesmo alegre, mas Larry percebeu o tremor em sua voz. Ainda teriam de percorrer quilômetros de desfiladeiros e ravinas, sem trilhas definidas, e atravessar o desfiladeiro no alto das montanhas. O dia era escuro, sem sol, os picos encobertos, mas mesmo a distância Larry pôde constatar que a neve era profunda.
- Fica muito longe?
- Talvez quatro dias de viagem, se fosse pradaria aberta ou floresta - respondeu Kennard. - Ou um dia num cavalo rápido, se algum cavalo pudesse andar por esses caminhos infernais.
Ele parou, o rosto franzido, observando o labirinto de desfiladeiros.
- O pior é que se torna difícil, com o sol encoberto, determinar o caminho que devemos seguir. Daqui até o passo, devemos viajar para oeste. Mas sem o sol para nos orientar...
Kennard ajoelhou-se, e Larry chegou a se perguntar se ele estava rezando, mas depois verificou que o amigo apenas examinava as tênues sombras projetadas pelo sol encoberto.
- Enquanto pudermos avistar o pico da montanha, só precisamos segui-lo. Bom... - Ele se levantou, dando de ombros, cansado. - ...acho que é melhor começarmos logo.
Kennard desceu na direção de um dos desfiladeiros. Larry, invejando sua demonstração de confiança, foi atrás. Sentia-se exausto e faminto, os pés doloridos, mas não se mostraria menos determinado do que Kennard.
Durante todo aquele dia e o seguinte eles subiram e desceram pelas encostas rochosas, cheias de espinheiros. Não havia perigo de fome, pois os arbustos, embora espinhemos e de aparência árida, ofereciam bagos suculentos e nozes maduras. Naquela noite, Kennard conseguiu pegar diversas aves pequenas, que se alimentavam sem medo naquela abundância. Já haviam deixado o território da povo da floresta, e por isso ousaram acender uma fogueira; e Larry teve a sensação de que nenhum jantar festivo jamais fora tão saboroso quanto a carne daquelas aves, assada sobre um fogo mínimo e comida meio crua, sem sal. Kennard comentou, enquanto comiam:
- Este lugar é um paraíso para os caçadores. As aves não demonstram qualquer medo.
- E são deliciosas - acrescentou Larry, partindo um osso para sugar o suculento tutano.
- É até possível que encontremos um grupo de caçadores - sugeriu Kennard, esperançoso. - Talvez alguns homens de Hastur venham do outro lado das montanhas para caçar aqui... onde os animais vagueiam numa incrível abundância.
Mas ambos se calaram sobre o corolário de tal declaração. Se ninguém caçava ali, onde a caça era tão esplêndida, isso significava que devia ser quase intransponível o desfiladeiro nas montanhas que os separava da segurança.
O terceiro dia foi mais nublado do que o anterior, e Kennard parou várias vezes, a fim de examinar as sombras cada vez mais tênues, e calcular a posição do sol. O terreno subia agora, as ravinas eram mais íngremes, com mais espinheiros, as encostas mais difíceis de escalar. Quase ao anoitecer, uma chuva fina começou a cair, e nem mesmo Kennard, apesar de toda a sua habilidade, conseguiu acender uma fogueira. Mastigaram frio o resto da carne assada no dia anterior, comeram algumas frutas e dormiram juntos, em busca de calor, numa fenda protegida pela rocha.
A chuva continuou por todo o dia seguinte, e a claridade púrpura não oferecia qualquer indicação do sol ou de sombras. Larry, observando Kennard se tornar cada vez mais calado e tenso, não pôde mais conter sua ansiedade e disse:
- Estamos perdidos, Kennard. Tenho certeza de que seguimos na direção errada. Repare só... as encostas descem, e deveríamos estar subindo, na direção das montanhas.
- Sei que estamos descendo, cabeça-de-pudim, porque entramos num desfiladeiro - respondeu Kennard, ríspido. - No outro lado, o caminho torna a subir. Não percebe?
- Com esta chuva, não posso ver nada - respondeu Larry, com toda a sinceridade. - E tem mais, acho que você também não pode.
Kennard virou-se para ele, furioso.
- E você acha que pode fazer melhor?
- Não falei isso - protestou Larry.
Kennard, muito tenso, continuou a procurar por uma sombra. Parecia completamente inútil. Não tinham sequer certeza da hora do dia, e assim a posição do sol não poderia ajudar, caso houvesse uma sombra; com aquela chuva fina e escura, não se podia determinar se era o início da tarde ou o crepúsculo. Ele ouviu Kennard murmurar, quase em desespero:
- Se ao menos eu pudesse avistar o pico da montanha! Era a primeira vez que o jovem darkovano parecia desesperado, e Larry sentiu a necessidade de confortar e tranqüilizar.
- A situação não é tão ruim assim, Kennard. Não passaremos fome aqui, e mais cedo ou mais tarde a chuva vai cessar, o sol voltará a brilhar, e avistaremos o passo. E quando isso acontecer, o topo de qualquer colina nos indicará o rumo certo. Por que não procuramos um abrigo agora e esperamos a chuva passar?
Ele não esperava por uma concordância imediata, mas também não estava preparado para a violência e fúria com que o jovem darkovano se virou.
- Seu idiota infernal! O que pensa que eu faria se estivesse sozinho? Acha que não tenho o bom senso para fazer o que qualquer garoto de dez anos com juízo suficiente para amarrar os cordões de suas botas faria numa chuva assim? Mas com você...
- Não estou entendendo...
- Nem poderia! - berrou Kennard. - Você nunca compreende nada, seu desgraçado, seu Terranan!
Pela primeira vez, em toda a amizade dos dois, a palavra saiu como um insulto. Larry sentiu o sangue afluir ao rosto. Kennard salvara sua vida, é verdade, mas havia um limite para tudo.
- Se acha que tenho tão pouca noção...
- Escute - disse Kennard, - com uma violência contida -, meu pai deu garantias aos lordes Terranan pela sua segurança.
Acha que você poderia simplesmente desaparecer? Afinal, os terráqueos nunca podem deixar que um homem viva a sua própria vida ou morra a sua própria morte. De jeito nenhum. Se você desaparecesse ou morresse durante uma visita a meu povo, acha que os terráqueos acreditariam que foi apenas um acidente, e não uma conspiração? Vocês, terráqueos, são tão cegos da mente, não possuem telepatia suficiente para saber quando um homem fala a verdade, não passam de uns idiotas insolentes, e ousariam... isso mesmo, ousariam!... duvidar de meu pai, um lorde do Comyn e dos Sete Domínios! Kennard respirou fundo.
- É isso mesmo, salvei-o por minha honra e porque juramos amizade, mas também porque, se não o levar de volta a seu povo são e salvo, os malditos terráqueos vão bisbilhotar tudo, se intrometer, procurar vingança!
Ele parou de falar. Tinha de fazê-lo. Perdera o fôlego por completo com a explosão, o rosto vermelho de fúria, os olhos ardendo. Larry, num súbito terror, sentiu a raiva do jovem darkovano como uma coisa terrível, quase letal. Compreendeu de repente que estivera muito próximo da morte naquele instante. A fúria desencadeada de um telepata - e ainda muito jovem para controlar seu poder - abateu-se sobre Larry com o ímpeto de força de uma nave. Atingiu-o como uma onda rebentando. Forçou-o a ficar de joelhos.
Ele se intimidou diante da investida. E depois, tão repentinamente quanto surgira, Larry compreendeu que tinha força para enfrentar. Fitou Kennard, muito sério, e declarou, em voz bem alta:
- Escute, meu amigo... - Ele usou a palavra bredu. - ...eu não sabia disso. Não fiz as leis do meu povo, assim como não foi você quem provocou a rivalidade de sangue que levou os bandidos a nos atacar.
Larry espantou-se com a firmeza com que resistiu à violenta ofensiva de raiva. Pouco a pouco, Kennard se acalmou. Larry sentiu que as ondas vermelhas da fúria do darkovano se desvaneciam, até que o jovem à sua frente voltou a ser pouco mais que um menino, e assustado ainda por cima. Ele não pediu desculpas, mas Larry também não esperava por isso.
- Portanto, Lerrys, deve compreender que é tudo uma questão de tempo.
Larry sabia que o uso da forma darkovana de seu nome era um pedido de desculpa tácito.
- E assim como você se importa com seu povo, eu também me importo com meu pai - continuou Kennard. - Este é o primeiro dia da estação das chuvas. Eu esperava já termos deixado as colinas e atravessado o passo a esta altura. Fomos atrasados pelo povo da floresta, caso contrário já estaríamos em segurança agora, e uma mensagem seria enviada a seu pai. Se ao menos eu ainda tivesse a pedra da estrela...
Ele se calou por um momento, depois deu de ombros.
- Bom, essa é a lei do Comyn. - Kennard respirou fundo. - Para que lado você disse que achava que era o oeste?
- Não disse - declarou Larry, com sinceridade.
Ele não soube, até muito mais tarde, que fizera uma coisa excepcional: confrontara a fúria desencadeada de um Alton e um telepata... e saíra incólume. Ao recordar o incidente, depois, haveria de tremer; mas naquele instante sentiu-se apenas aliviado por Kennard ter se acalmado.
- Mas não há sentido em andar em círculos - acrescentou ele. - Todos esses desfiladeiros parecem exatamente iguais para mim. Se tivéssemos uma bússola...
Larry suspendeu a frase no meio. Pôs-se a revistar seus bolsos, frenético. Os bandidos não lhe haviam tirado porque a lâmina principal estava quebrada. O povo da floresta nem sequer o vira. Como uma arma, era inútil. Nem mesmo conseguira usá-lo para ajudar Kennard a limpar e estripar as aves que haviam comido.
Mas tinha uma lâmina magnetizada!
E uma lâmina magnetizada, usada da maneira correta, poderia transformar-se numa bússola improvisada...
Não encontrou o canivete na revista dos bolsos; e depois se lembrou de que, durante o período em que fora prisioneiro do povo da floresta, temendo que pudessem considerá-lo uma arma, por menor que fosse, guardara-o no estojo de primeiros socorros. Pegou-o, passou a lâmina magnetizada numa pedra e testou-a contra o metal da lâmina quebrada. Conservava o magnetismo. Agora, se pudesse se lembrar de como era feito... Fora uma anotação de pé de página em seu livro de matemática na infância, já meio esquecida. Kennard observava como se o cérebro de Larry tivesse se fundido. Larry experimentou primeiro com um pedaço de barbante, depois olhou para os cabelos compridos de Kennard, e pediu:
- Dê-me um fio dos seus cabelos.
- Perdeu o juízo?
- Claro que não. Ao contrário, creio que finalmente o recuperei. Deveria ter pensado nisso desde o início. Se tivesse verificado a direção certa quando o sol ainda brilhava, com uma visão clara do passo à nossa frente, saberia...
Sem levantar a cabeça, ele pegou o fio de cabelo que Kennard lhe estendeu, cauteloso, como se estivesse se submetendo a um lunático. Ele prendeu o cabelo na lâmina magnetizada e esperou. A lâmina era pequena e leve, não muito maior do que as agulhas usadas nas primeiras bússolas improvisadas. A lâmina oscilou por alguns segundos e depois parou.
- Mas que absurdo supersticioso... - Kennard parou de falar por um instante. - Você deve ter alguma idéia em mente. Qual é?
Larry começou a explicar a teoria da bússola magnética, mas Kennard logo o interrompeu:
- Todo mundo sabe que um certo tipo de metal... você o chama de ímã... atrairá outro. Mas como isso pode nos ajudar?
Por um instante, Larry se desesperou. Esquecera o nível da tecnologia darkovana - ou sua ausência - e não sabia como podia explicar, numa única e fácil lição, os dois pólos magnéticos de um planeta, a teoria da bússola magnética que sempre apontava para o pólo verdadeiro, a maneira de seguir a direção indicada. Tentou começar, mas logo percebeu que não tinha como explicar o campo magnético em torno de um planeta. Para começar, não conhecia o vocabulário tecnológico necessário em darkovano... se é que existia algum, o que ele duvidava. Lembrou-se do chefe do povo da floresta chamando o fogo de "coisa vermelha que devora as árvores". Sentiu isso enquanto tentava discorrer sobre correntes magnéticas. Acabou desistindo, levantou a bússola improvisada com uma das mãos e disse, desolado:
- Kennard, não posso lhe explicar isto, assim como você não pode me explicar como destruiu aquela sua pedra azul... ou como seus psíquicos conduziram uma porção de nuvens pelo céu para apagar um incêndio. Mas eu os ajudei, não é mesmo? E deu certo, não é? Não podemos ficar em situação pior do que já estamos. As naves terráqueas encontram seu caminho entre as estrelas usando esse tipo de... de ciência. Portanto, pode pelo menos me deixar tentar!
Kennard demorou um pouco a responder:
- Acho que você tem razão. A situação não pode piorar. Larry ajoelhou-se e traçou na terra um mapa tosco da região, o que se lembrava da cordilheira que avistara a distância.
- Aqui estão as montanhas e aqui é a beira da floresta. Qual a distância que percorremos antes de você perder a noção exata do rumo?
Hesitante, o rosto franzido no esforço de recordar, Kennard indicou um percurso.
- E isso foi... há quanto tempo exatamente? Procure ser o mais acurado que puder, Kennard. Há quantos quilômetros deixou de ter certeza absoluta do rumo?
Kennard pousou um dedo num ponto do mapa improvisado.
- Ou seja, andamos mais cinco horas desde esse ponto. Larry fez um círculo em torno do ponto indicado por Kennard como a última localização positiva.
- Podemos estar em qualquer ponto deste círculo, mas se continuarmos a seguir para oeste, acabaremos por alcançar as montanhas... sem possibilidade de erro.
Ele tentou não pensar no que encontrariam pela frente. Kennard considerava apenas como o obstáculo final, mas a viagem com os bandidos, através de penhascos e abismos assustadores - amarrado, na garupa de um cavalo, como se fosse um mero alforje - incutira-lhe um horror permanente às montanhas darkovanas, um horror que haveria de durar pelo resto da sua vida.
- Se der certo... - murmurou Kennard, cético, para logo assumir uma expressão contrita. - O que tenho de fazer primeiro? Há algum ritual específico para o uso desse... desse amuleto?
Larry, pela força de vontade, reprimiu um acesso de riso meio histérico. Em vez disso, falou num tom solene:
- Apenas cruze os dedos e torça para que dê certo.
Ele se pôs a interrogar Kennard sobre as pequenas discrepâncias, sobre as estações, sobre o nascente e o poente do sol. Darkover - era óbvio, pelos extremos de clima - devia ter um eixo muito inclinado, e seria preciso calcular a que ponto do norte ou do sul do oeste verdadeiro o sol se punha naquela época do ano e naquela latitude. Não podia deixar de abençoar agora o professor na Zona Terráquea que lhe emprestara o livro sobre geografia darkovana, caso contrário não teria como se certificar de que se encontravam no hemisfério sul, e não no norte. Ele se atrapalhou na tentativa de explicar o equador a Kennard.
Um ou dois graus não fariam diferença - não com uma cordilheira que se estendia por centenas de quilômetros, e que não poderiam errar, mesmo que quisessem -, mas quanto mais perto chegassem do passo, mais cedo retornariam à segurança. E mais cedo o pai de Kennard se livraria da situação crítica em que se metera. Larry ficou espantado ao constatar como se sentia responsável.
A bússola se firmaria se a deixasse balançar livremente, sem o movimento da mão. Tudo o que teriam de fazer depois seria fixar o rumo aproximado e segui-lo, conferindo o rumo outras vezes, a intervalos de alguns quilômetros.
Mais uma vez, ele percebeu que assumira o comando da expedição, e Kennard, apesar de toda a sua relutância, era obrigado a acompanhá-lo. Era uma coisa que o incomodava, e sabia que Kennard não gostava. Só torcia para que não provocasse outra explosão de raiva.
Larry levantou-se, olhando para o mapa improvisado. Estava encharcado, com frio, mas assumiu um ar de confiança, que na verdade estava longe de sentir.
- Se vamos arriscar, a direção é para oeste, Kennard. Vamos começar a andar. Estou pronto, se você também estiver.
O avanço era lento e difícil, através de desfiladeiros e encostas, com paradas de hora em hora para consultar a bússola improvisada, sobre o mapa redesenhado. Larry acabou por reduzir esse processo, desenhando o mapa numa folha do caderno de anotações. A chuva continuava, implacável, embora não muito forte, nunca um aguaceiro, mas persistente... um chuvisco, gelado, que logo parecia pior do que um temporal. Larry sentia o braço imobilizado pelos bandidos dormente e dolorido, mas não havia nada que pudesse fazer, a não ser ranger os dentes e pensar em outra coisa. Naquela noite eles se cobriram com folhas mortas, numa vã tentativa de se resguardarem um pouco da chuva. As roupas estavam molhadas, a pele úmida, as botas e as meias encharcadas. Os alimentos que mastigavam sempre estavam molhados, bagos, nozes, frutas, uma raiz que parecia uma batata crua. Kennard poderia pegar algum pequeno animal sem qualquer dificuldade, mas haviam concordado tacitamente que a carne azedaria os bagos e os cogumelos, que eram preferíveis à carne crua. E Kennard jurou que naquela chuva, naquela estação, nem mesmo um kyrri seria capaz de conseguir uma faísca para acender uma fogueira.
Perto do anoitecer, no dia seguinte - Larry perdera a noção do tempo, nada existia agora, a não o penoso avanço através de ravinas e encostas encharcadas, no meio de espinheiros -, Kennard parou de repente e virou-se para ele.
- Devo pedir-lhe desculpas. Aquele seu brinquedo funciona, e sei disso agora.
- Como pode saber?
Larry sentia-se agora exausto demais para se importar com qualquer coisa.
- O ar se tornou mais rarefeito, a chuva mais fria. Não tem dificuldade para respirar? Devemos estar subindo bem depressa na direção das montanhas... algumas dezenas de metros só nas últimas horas. Não notou que o lado oeste de cada ravina é mais alto e mais difícil de escalar do que a anterior?
Larry pensara que era apenas seu cansaço que lhe proporcionava essa impressão; mas, agora que Kennard confirmava, parecia mesmo que o terreno mudara de características. Era mais árido, as encostas mais longas e mais íngremes, os bagos, as nozes e os cogumelos, antes tão abundantes, haviam definhado para uns poucos, esparsos, e mais azedos.
- Estamos entrando nas montanhas, com toda a certeza -acrescentou Kennard -, o que significa que devemos parar mais cedo esta noite e procurar todos os alimentos que pudermos carregar. Não há nada nos passos das montanhas além de neve e gelo, e umas poucas aves, que fazem seus ninhos nos penhascos mais altos e se alimentam dos bagos que existem lá por cima... e que por acaso são venenosos para os humanos.
Larry sabia que podia ter encontrado a saída para alguns dilemas sérios através da ciência terráquea, mas sem os conhecimentos de Kennard ambos teriam morrido em diversas ocasiões.
Não foi fácil encontrar os alimentos; passaram horas recolhendo o suficiente para um jantar frugal e mais umas poucas refeições escassas. Durante o dia seguinte, a vegetação diminuiu, até quase desaparecer por completo. Kennard, no entanto, estava quase exultante. Se de fato se encontravam tão perto das montanhas, deviam estar se aproximando do passo. E ao final da tarde, como uma dádiva inesperada, o nevoeiro e a chuva fina se dissiparam por um breve período, e eles avistaram o pico alto, com o passo por baixo, brilhando em malva e violeta, do reflexo do sol vermelho na neve, a menos de quinze quilômetros de distância. A presença do sol se prolongou por apenas cinco minutos, mas foi suficiente para que Larry ajustasse e conferisse o cartão de bússola improvisado, determinando o curso para o desfiladeiro. Depois disso, sempre que uma encosta íngreme ou platibanda rochosa os obrigava a se desviar do curso, ele assinalava a posição e podia corrigir o rumo em seguida. Assim, sabia agora que, em vez de seguirem mais ou menos na direção correta, estavam indo direto para seu destino.
Só que o caminho se tornara árduo, cada vez mais. Havia encostas rochosas íngremes que tinham de subir de quatro, apoiando-se em fendas e saliências escorregadias; e houve um momento em que tiveram de atravessar uma trilha de pouco mais de cinco centímetros, por cima de um abismo, que deixou Larry pálido, suando de terror. Kennard superava os obstáculos sem muita dificuldade, e parecia recuperar um pouco de sua antiga e arrogante confiança de líder, o que irritou Larry. Não era culpa sua não ter sido treinado para escalar paredões rochosos, nem se tornava um seguidor passivo só porque alturas assim o deixavam nauseado e tonto. Ele rangia os dentes, jurando para si mesmo que seguiria Kennard a qualquer parte... muito embora tivesse a impressão de que Kennard poderia várias vezes optar por caminhos mais fáceis, e procurasse restabelecer sua liderança da expedição ao demonstrar que possuía uma capacidade de montanhista superior.
As provisões esgotaram-se naquela noite; eles dormiram, famintos, com frio, molhados, numa encosta coberta por geada, um pouco mais plana do que o resto... ou melhor, Kennard dormiu. Larry tinha dificuldade até para respirar. Kennard despertou quando o dia começou a raiar, muito antes de haver uma claridade plena, e disse:
- Sei que você não dormiu, mas é melhor partirmos logo. Se tivermos sorte, alcançaremos o passo antes do meio-dia.
Na semi-escuridão desoladora da manhã, Larry não podia ver o rosto do amigo, mas nem precisava. As emoções eram tão patentes como se ele estivesse dentro da mente de Kennard: No outro lado do passo há comida, território habitado, abrigos aquecidos, pessoas a quem podemos pedir ajuda. Mas não será fácil atravessar o passo. Não me agradaria fazê-lo nem mesmo com guias experientes para ajudar. Se não nevar, conseguiremos passar... se a neve já não estiver profunda demais. O garoto terráqueo será capaz de agüentar? Já está exausto. Se ele vacilar agora...
E o desespero nesse pensamento deixou Larry acabrunhado. Kennard pensava: Se ele vacilar agora, ficarei sozinho... e terá sido tudo por nada...
Larry especulou se imaginara tudo aquilo, se a altura e a jornada extenuante afetavam sua mente. Aquele tipo de escuta mental não fazia o menor sentido. E o embaraçava, ainda por cima. Desesperado, ele tentou fechar a mente contra isso, mas as apreensões de Kennard vazavam por todas as barreiras.
Larry poderá resistir? Conseguirá seguir em frente? Terei forças suficientes para nós dois?
Em silêncio, sombrio, Larry decidiu que, se alguém desistisse, não seria ele. Podia estar com frio e com fome, mas ensinaria uma lição àquele arrogante aristocrata darkovano.
Cansara-se de ser ajudado durante todo o tempo, tratado como um fardo, como o mais fraco!
Os terráqueos podiam ser considerados fracos? Não haviam sido os terráqueos os primeiros a cruzar o espaço? Não haviam dado o salto no escuro, antes dos propulsores estelares, viajando por anos e anos entre as estrelas, naves desaparecendo para sempre, e mesmo assim a civilização da Terra não se espalhara por todos os mundos habitados? Kennard podia se orgulhar de sua bravura, de sua herança darkovana, mas os terráqueos também tinham do que se orgulhar! Afinal, também tinham, de certa forma, sua arrogância, e era tão compreensível quanto a arrogância darkovana.
Desde o início, presumira que era de algum modo inferior, num mundo darkovano, numa sociedade darkovana, por se tornar um fardo para Kennard. E se a situação fosse inversa? Kennard não sabia como uma bússola funcionava. Ficaria totalmente aturdido com os propulsores de uma nave estelar ou mesmo de um simples veículo de superfície.
Mesmo que morresse ali, nas montanhas, mostraria a Kennard que, aonde um darkovano ia, um terráqueo podia segui-lo! E depois, quando voltassem a seu mundo, desafiaria Kennard a tentar segui-lo por algum tempo no ambiente dos terráqueos... e veria se um darkovano era mesmo capaz de seguir um terráqueo!
Ele se levantou, com um sorriso irônico, revirou os bolsos, à procura de alguma migalha de pão - não havia nenhuma -, e disse:
- Quanto mais cedo, melhor.
A inclinação era ainda mais íngreme agora, e começaram a encontrar trechos cobertos de neve. Avançavam com o maior cuidado, procurando evitar qualquer escorregão, que significaria uma queda fatal. Sentia dormente o braço lesionado, e por duas vezes não conseguiu segurar direito um ponto de apoio, mas recusou orgulhoso as ofertas de ajuda de Kennard.
- Darei um jeito - murmurou ele, os lábios contraídos. Chegaram a um trecho assustador, com pedras cobertas de gelo espalhadas sobre uma platibanda à beira de um abismo, sem qualquer sinal de uma trilha. Kennard, que seguia na frente, pôs o pé na platibanda, hesitante... e a pedra caiu, numa avalanche em miniatura. Ele cambaleou, à beira do abismo, mas no mesmo instante Larry se adiantou, captando o lampejo de medo em sua mente, agarrou-o e puxou-o com toda a força... de tal forma que o peso do rapaz mais velho quase arrancou o braço dormente do encaixe. Manteve-o assim, até Kennard recuperar o equilíbrio. Ficaram juntos, ofegantes, Kennard dominado pelo medo e alívio, Larry com uma mistura de pavor e dor; alguma coisa parecia ter se rompido no ombro lesionado, e o braço pendia inerte ao lado do corpo, irradiando ondas de agonia, quando tentou mexer um dedo. Kennard finalmente enxugou o suor da testa.
- Pelos infernos de Zandru, pensei que fosse morrer! - murmurou ele. - Obrigado, Lerrys. Estou bem agora. Você...
Ele fez uma pausa, percebendo a imobilidade de Larry.
- Qual é o problema?
- Meu braço - balbuciou Larry, trêmulo.
Kennard tocou no braço com dedos cautelosos e deixou escapar um longo assovio. Deslocou as pontas dos dedos por cima, com uma expressão de absoluta concentração. Larry experimentou uma sensação estranha e ardente até os ossos, sob o contato; depois, sem qualquer palavra de aviso, Kennard agarrou subitamente o ombro e deu uma torção violenta e atroz. Larry gritou de dor; não conseguiu evitar. Mas, assim que a dor se desvaneceu, ele compreendeu o que Kennard fizera. Kennard balançou a cabeça.
- Eu tinha de pôr no lugar, antes que os músculos ao redor congelassem. Ou seriam precisos três homens para segurá-lo, enquanto se ajustava o braço de volta, lentamente.
- Como soube...?
- Sondagem profunda - respondeu Kennard. - Não posso fazer isso com freqüência, nem por muito tempo. Mas eu...
Ele hesitou, não concluiu a frase. Larry ouviu-a, mesmo assim: Eu lhe devia pelo menos isso. Só que agora ambos estamos exaustos!
- E ainda temos de atravessar essa platibanda! - disse Kennard, em voz alta.
Ele começou a tirar o cinto e mandou Larry fazer a mesma coisa. Perplexo, Larry observou-o prender os dois cintos e passar as extremidades por seus pulsos.
- É uma pena que você não possa usar a mão esquerda, Lerrys. Foi terrível os bandidos descobrirem que era canhoto. Agora, vamos iniciar a travessia. Seguirei na frente. É o pior lugar possível para sua primeira lição de montanhismo neste tipo de platibanda, mas não há outro jeito. Sempre tenha pelo menos três pontos de apoio. Nunca desloque um pé sem que o outro e as duas mãos estejam bem firmes em seus apoios. E o mesmo se aplica a qualquer das mãos.
A frase inacabada foi outra vez bastante clara para Larry: Nossas vidas estão agora em suas mãos, porque ele é o mais fraco.
Pelo resto de sua vida, Larry recordaria aquela hora e meia angustiante da travessia da platibanda de sete metros de comprimento. Havia lugares em que o menor movimento desencadeava a queda de pequenas pedras e neve; e só podiam permanecer grudados em seus pontos de apoio, como moluscos, o rosto comprimido contra o paredão rochoso. Por cima e por baixo, havia apenas a encosta íngreme; e se voltassem, para procurar um caminho mais fácil, jamais conseguiriam efetuar a travessia. Em meia dúzia de ocasiões, Larry escorregou, e só os cintos que uniam os dois impediram que despencasse para o nevoeiro e para o nada lá embaixo. No meio do caminho, uma neve fina começou a cair, e Kennard praguejou, usando palavras que Larry nunca ouvira.
- Isso era tudo o que precisávamos!
Subitamente, ele pareceu se animar, estendeu o pé, com toda a cautela,e acrescentou:
- Ora, Larry, é isso aí... tem de ser o pior. Nada mais terrível poderá acontecer. Daqui por diante, as coisas só podem melhorar. Vamos continuar... o pé esquerdo desta vez. Experimente aquele pedaço de rocha cinza. Parece bastante sólido.
Mas afinal alcançaram um terreno mais firme, e arriaram na neve, exaustos, a respiração profunda e lenta, ofegantes como corredores que acabaram de concluir uma maratona. Kennard, acostumado às montanhas, foi o primeiro a se recuperar, como sempre. Levantou-se e disse, exultante:
- Eu falei que ia melhorar! Olhe só, Larry!
Ele apontou. Um pouco acima, a menos de trinta metros de distância, podiam avistar o passo, protegido entre saliências rochosas. Era uma passagem natural, coberta pela neve, mas com uma inclinação tão suave que podiam andar empertigados.
- E no outro lado do passo, Larry, há pessoas... o meu povo... amigos que nos ajudarão. Um abrigo quente, comida... Parece bom demais para ser verdade.
- Eu me contentaria com pés secos e com alguma coisa quente para comer - murmurou Larry.
E foi nesse instante que ele se sentiu paralisado, enquanto Kennard continuava a se encaminhar para o passo. A tensão terrível e arrepiante, que o dominara pouco antes de ser capturado pelo povo da floresta, voltou a se manifestar. Apertou-o pela garganta, forçou-o a correr atrás de Kennard, agarrá-lo com o braço bom, puxá-lo para trás. Não podia falar; mal conseguia respirar. A onda arremeteu, se avolumou, a precognição, o conhecimento prévio de um perigo assustador...
E aflorou. Ele podia respirar de novo. Ofegante, tornou a puxar Kennard e apontou. Ouviu o amigo darkovano soltar um grito, abafado pelo gemido de sirene que ressoou pela passo rochoso. Acima deles, uma cabeça enorme e horrenda, sem penas, sem olhos, ergueu-se, seguida por um corpo desgracioso, com um brilho fosforescente. E avançou para os dois, meio desajeitado, mas com uma velocidade alarmante, bloqueando o acesso ao passo. O uivo de sirene foi aumentando cada vez mais, até que parecia encher todo o ar, povoar o mundo inteiro.
Era mesmo bom demais para ser verdade. O passo era o ninho de um banshee, o temível pássaro-espírito.
Por um instante, em pânico cego, Larry virou-se e desatou a correr. A rapidez com que o banshee percebeu a mudança na direção do movimento tornou a paralisá-lo, em terror; mas, durante essa fração de segundo de imobilidade, ele sentiu um lampejo de esperança. Kennard também saíra correndo, tropeçando num pânico impotente. Larry deu um salto em seu encalço, e puxou-o para trás, com toda a força.
- Pare! - gritou Larry, urgente. - O banshee sente o calor e o movimento! Fique absolutamente imóvel!
Kennard debateu-se, tentando se desvencilhar. Larry murmurou: "Desculpe, companheiro", e acertou um soco violento em seu queixo. O jovem darkovano - esgotado, indefeso - arriou na neve, atordoado demais para se levantar, ou fazer mais do que olhar ressentido para Larry. Também se jogando no chão, Larry ficou imóvel, sem mexer um músculo sequer.
O banshee parou de repente, virando a cabeça cega de um lado para outro, confuso. Andou para a frente e para trás por um momento, desnorteado, a aparência desgraciosa e as asas pendentes dando-lhe a aparência de um enorme gordo de manto. Ergueu a cabeça e tornou a soltar o uivo aterrador e paralisante.
É isso, pensou Larry, resistindo ao impulso de tapar os ouvidos. Todas as criaturas ouvem esse som terrível e tratam de fugir... e o pássaro sente o movimento!. Tem alguma coisa parecida com o campo eletrostático dos kyrri... só que sente o movimento e o cheiro.
Naquele banco de neve...
Devagar, movendo uma fração de centímetro de cada vez, temendo que o menor movimento mais rápido pudesse alertar o banshee outra vez, Larry levou a mão ao bolso, para pegar o estojo de primeiros socorros. Estava quase vazio, mas talvez ainda contivesse o suficiente do anti-séptico de forte cheiro químico para não cheirarem como qualquer coisa viva... ou boa para se comer, pensou ele, angustiado.
- Pode me ouvir, Kennard? - sussurrou ele. - Não mexa um músculo sequer agora. Mas quando eu salpicar esta substância ao redor, mergulhe naquele monte de neve... e se cubra todo, como se sua vida dependesse disso.
E provavelmente depende mesmo, pensou Larry.
- Agora!
O cheiro da substância química era intenso; o banshee, virando a cabeça contra o vento, fez estranhos movimentos de repulsa. Virou-se, começou a se afastar, e nesse instante Larry e Kennard começaram a escavar a neve, frenéticos, cobrindo seus corpos.
Estavam seguros... por enquanto. Mas como atravessariam o passo?
E depois ele recordou as palavras de Kennard sobre os banshees. Eram pássaros noturnos, tornavam-se letárgicos ao sol. A fosforescência de suas cabeças provava que não eram criaturas da luz do sol normal.
Se pudessem sobreviver à noite...
Se não morressem congelados...
Se nenhum outro banshee sentisse o calor deles através da neve que os cobria...
Se o sol brilhasse no dia seguinte o suficiente para aquietar os enormes pássaros...
Se todas essas coisas acontecessem, então talvez eles conseguissem sobreviver àquele último obstáculo.
Senão...
Subitamente, todos esses ses, projetando-se das explosões de medo de Kennard, enfureceram-no. Tinha de haver uma saída! E Kennard parecia ter desistido; estava apenas estendido na neve, em silêncio, aparentemente à espera da morte.
Mas não haviam passado por tanta coisa para morrerem ali, na última etapa da jornada. Daria um jeito para atravessarem o passo, nem que tivesse de escavar o caminho por toda a neve, com as mãos nuas...
O banshee parecia ter ido embora. Com a maior cautela, Larry começou a levantar a cabeça. Depois, pensando melhor, cobriu-a de neve, antes de erguê-la, para esquadrinhar o passo. Menos de trinta metros. Se pudessem de alguma forma rastejar pela neve...
Ele sacudiu o ombro de Kennard. O jovem darkovano não se mexeu. Era evidente que aquele último terror esgotara sua resistência. Ele murmurou:
- Voltamos ao ponto em que estávamos... quando deixamos a fortaleza de Cyrillon...
A fúria de Larry explodiu:
- Depois de me arrastar por metade do planeta, pretende ficar deitado aqui e morrer, quando nos encontramos tão perto da segurança?
- Os banshees...
- Ora, que seu deus Zandru leve os banshees! Vamos conseguir passar por eles, ou não vamos, mas pelo menos temos de tentar! Vocês, darkovanos... tão orgulhosos de sua coragem quando se trata de uma questão de bravura individual! Enquanto você podia bancar o herói...
Ele fustigava Kennard com suas palavras, de uma forma deliberada.
- ...foi tão bravo quanto era capaz! Quando podia me fazer parecer pequeno! Mas agora, quando tem de trabalhar comigo, prefere desistir, deitar para morrer! E Valdir ainda acha que pode fazer alguma coisa com seu povo? Mas nem seu próprio filho é capaz de calar a boca, escutar e cooperar! Ele tem de ser um herói, ou não quer fazer nada, contenta-se em deitar para morrer!
Kennard engoliu em seco. Seus olhos ardiam, e Larry preparou-se para outra erupção da terrível ira dos Altons. Mas foi contida antes de começar. Kennard cerrou os punhos, mas murmurou, sombrio:
- Eu o matarei por isso algum dia... mas neste momento vai descobrir se um terráqueo pode liderar um Alton em seu próprio mundo. Tente.
- É assim que se fala - disse Larry, num tom jovial proposital, para irritar ainda mais a dignidade desesperada de Kennard. - Se vamos morrer de qualquer maneira, pode muito bem ser enquanto estivermos fazendo alguma coisa. Que se dane a morte com dignidade! Vamos obrigar o banshee a lutar por seu jantar, se o quer de fato... chutando e golpeando!
Kennard pôs a mão no punho da adaga.
- Ele terá uma luta... Larry segurou seu pulso.
- Não! Ele sente o calor e o movimento. Esqueça seu heroísmo. O que precisamos agora é de bom senso. Sei que você é corajoso, mas tente demonstrar que também possui alguma inteligência!
Kennard ficou imóvel. Os lábios mal se mexeram quando falou:
- Muito bem. Eu disse que o seguiria. O que devo fazer agora?
Larry pensou depressa. Arrancara Kennard de seu acesso de desespero, mas agora tinha de lhe oferecer alguma coisa. Se pretendia mesmo assumir o comando, tinha de fazê-lo de fato... e tomar alguma iniciativa!
O banshee sentia o calor e o movimento.
Portanto, devia ser um pouco parecido com os kyrri; e a única maneira de ludibriá-lo era com o frio e com a imobilidade. Ou então...
A idéia aflorou de repente.
- Escute! Você corre numa direção, e eu noutra...
- Tirar a sorte para ver quem vai morrer? Aceito isso. Ele pega um de nós, mas o outro escapa ileso?
- Não, seu idiota! - Larry nem pensara nisso. Era um conceito darkovano nobre e honrado, mas parecia desnecessário. - Ambos escapamos ilesos... ou nenhum dos dois. Pensei em outra coisa, em confundir o banshee. Eu me movimento. Ele parte atrás de mim. Paro no mesmo instante, me enterro na neve, fico imóvel... e enquanto ele tenta me farejar de novo, você corre em outra direção. Ele vai atrás. Você pára, e eu recomeço a correr. Talvez possamos confundi-lo, fazendo-o correr de um lado para outro, pelo tempo suficiente para atravessarmos o passo.
Kennard fitou-o com um crescente excitamento.
- Pode dar certo!
- Muito bem, vamos começar... fique imóvel!
Larry levantou-se e começou a correr. Viu o enorme banshee virar em sua direção, como se atraído por um tropismo, e depois partir em seu encalço, a toda a velocidade. Ele gritou para Kennard, mergulhou na neve, cobriu-se depressa, frenético, e ficou imóvel, não ousando fazer qualquer movimento, quase sem respirar.
Sentiu mais do que viu o enorme pássaro parar, virar-se ao redor e sacudir a cabeça em irritação. Como sua presa conseguira chegar até ali? Kennard correu por cerca de vinte metros, na direção do passo, gritou e mergulhou na neve. Larry tornou a se levantar, e desta vez tentou correr por uma distância longa demais; chegou a sentir o bafo quente da repulsiva criatura em sua nuca e ficou todo arrepiado, na expectativa do golpe que o estriparia. Caiu na neve, cobriu-se e permaneceu imóvel. O gemido de sirene do pássaro confuso se elevou, espalhando-se pelo ar, e Larry pensou: Oh, Deus, não deixe que Kennard entre em pânico de novo...
Ele ergueu a cabeça, cauteloso, observou Kennard se jogar na neve, ficou de pé e correu de novo. O pássaro virou-se, avançou em sua direção, soltou um uivo e passou a correr era círculos, alucinado, balançando a enorme cabeça.
O uivo do banshee definhou para pequenos gritos aterrorizados. No instante seguinte, a criatura caiu de costas na neve, se contorcendo. Larry gritou para Kennard:
- Venha! Corra o mais que puder!
Ele se lembrou dos cursos de psicologia. Os animais, em particular os animais muito estúpidos, confrontados com uma situação desconcertante, fora de sua experiência, logo desmoronam, sofrem um colapso total. O banshee continuava estendido na neve, guinchando num colapso nervoso.
Eles correram, ofegantes e trêmulos. As nuvens de repente se dissiparam, e o pálido sol darkovano surgiu, com o brilho da manhã.
Exausto, Larry alcançou a parte mais alta do passo. Parou ali, fazendo um esforço para respirar, com Kennard ao seu lado.
Diante deles a trilha descia, e podiam divisar, a distância, campos cultivados, a fumaça saindo pelas chaminés de pedra de várias casas, as encostas arborizadas dos contrafortes.
Exaustos, famintos, eles regalaram os olhos com a riqueza da região lá embaixo. Kennard apontou. Bem longe, quase fora do alcance da vista, havia uma torre cinzenta, meio encoberta pela neblina.
- O castelo Hastur... nós conseguimos!
- Ainda não - advertiu Larry. - Falta um longo caminho a percorrer. Agora, é melhor deixarmos esta área de neve, enquanto o sol brilha, e antes que apareçam os irmãos, os primos e os tios do banshee.
- Tem toda a razão.
Eles foram descendo pela trilha estreita, sem querer pensar em tudo o que acontecera. Pelo menos o sol brilhava, e por enquanto se encontravam seguros.
Só agora Larry se permitiu refletir sobre o seu cansaço. Os pés pareciam gelados e quentes, alternadamente, os dedos estavam brancos de escavar a neve. Sugou-os e bateu uns contra os outros, fazendo um esforço para reprimir os gemidos pela dor provocada com a volta da circulação. Mas acompanhou o ritmo de Kennard. Assumira a liderança... e não pretendia renunciar agora!
As encostas naquele lado tinham muitas árvores, mas a maioria era de coníferas e espruces, e ainda não havia qualquer sinal de alimento. Mais abaixo, encontraram uma árvore carregada de maçãs, úmidas e murchas da tempestade recente, mas ainda comestíveis; encheram os bolsos e sentaram lado a lado para comer. Larry pensou num tempo tranqüilo, apenas alguns dias atrás, quando haviam sentado assim, pouco antes do alarme de incêndio na floresta. A impressão era de que vivera por anos e cruzara incontáveis colinas e vales - não apenas de forma figurativa, mas também literal - desde então.
Kennard o fitava com o rosto franzido, e Larry se lembrou, com um tremendo esforço, de que haviam trocado palavras ásperas no passo. Kennard disse:
- Agora que escapamos do perigo... você falou palavras que se situam além do perdão. Somos bredin, mas vou obrigá-lo a engolir todas!
Oh, não! Não aquilo de novo!
- Esqueça, Kennard. Eu apenas tentava salvar nossas vidas. Não havia tempo para usar o tato.
Kennard está irritado porque salvei nossas vidas, quando ele não conseguiu. Quer acertar as contas à maneira darkovana... com uma luta. Em voz alta, Larry disse:
- Não vou lutar com você, Ken. Salvou minha vida muitas vezes. Eu não seria capaz de golpeá-lo... da mesma forma que não o faria com meu próprio pai.
Kennard tremeu de raiva.
- Covarde!
Larry deu uma mordida deliberada na maçã. Era azeda.
- Os insultos não vão me fazer mal. Pode continuar, se isso o faz se sentir melhor. - Uma pausa, e ele acrescentou, gentilmente: - Seja como for, o que provaria, a não ser que você é mais forte do que eu? Nunca duvidei disso, por um momento sequer. E ainda estaríamos unidos pelo que passamos. Sobrevivemos juntos... por que deveríamos terminar tudo com uma briga, como se fôssemos inimigos, em vez de amigos?
De propósito, ele usou de novo a palavra bredin. Estendeu a mão.
- Se falei alguma coisa que o magoou, peço desculpas. Você também me magoou algumas vezes, e assim, por seus próprios códigos, estamos quites. Vamos trocar um aperto de mão e esquecer todo o resto.
Kennard hesitou, e por um momento de amargura Larry temeu que ele repelisse o gesto e quase desejou que tivessem morrido no passo. Haviam se tornado tão íntimos que suas mentes eram como uma só... e um afastamento agora doía como o corte de uma faca.
E depois, quando o sol rompia por uma nuvem, Kennard sorriu. Estendeu as duas mãos e segurou a de Larry entre elas.
- Pegue outra maçã - foi tudo o que ele disse. Mas era o suficiente.
A trilha de descida era difícil, mas conseguiram, com o medo dos banshees e com a crescente habilidade de Larry, descer mais depressa do que haviam subido. Exausto, faminto, Larry sentia um alívio desmesurado na atual situação, apesar de não haver caminhos definidos na floresta, os alimentos serem escassos e ainda precisarem de vários dias de caminhada até alcançarem uma área habitada. Tinham visto lá de cima, do passo, mas estava bem distante.
E, no entanto, o otimismo o dominava, cada vez mais intenso, como uma onda impetuosa, como...
Como o crescimento de seu medo quando corriam o perigo iminente de captura pelo povo da floresta e ainda não sabiam disso!
Que tipo de aberração eu sou? Como é possível? Não sou telepata. E é uma coisa que não se pode aprender.
Mesmo assim, ele continuava a sentir aquela esperança irresistível... quase como uma enorme alegria. A floresta parecia mais verde, o céu de um malva mais brilhante, o sol vermelho faiscava glorioso. Seria apenas alívio pela fuga? Ou...
- Kennard, será que poderíamos encontrar alguma expedição de caça nesta parte da floresta?
Kennard, conhecedor da floresta, soltou uma risada irônica.
- Quem caçaria por aqui... e para quê? Não encontramos nenhum sinal de caça, embora seja possível haver algumas frutas mais adiante. - Uma pausa, e ele acrescentou, ainda um tanto soturno: - Você parece otimista demais.
Ele ainda está zangado porque teve de se submeter ao meu comando. Mas vai superar.
Chegaram a uma saliência rochosa na encosta e contemplaram um vale verdejante lá embaixo, tão lindo que Larry, em sua inexplicável alegria, sentiu-se quase extasiado, fascinado pelas árvores, pelo pequeno córrego prateado. Passarinhos cantavam. E em meio a todos os sons, eles ouviram uma voz cantando. A voz de uma criatura humana.
Um momento depois, através das árvores, um vulto alto apareceu. Cantava, numa língua melodiosa e desconhecida. Kennard parecia meio hipnotizado e sussurrou:
- Um chieri! Humano?
A criatura tinha forma humana, embora fosse muito alta, e tão esguia que parecia frágil. Seria um homem? Ou mulher? A voz era clara e alta, como a de uma mulher. Usava uma túnica comprida, de uma substância cinza, brilhante e sedosa. Cabelos claros compridos caíam pelos ombros franzinos. A mão era branca, quase translúcida à luz do sol, e os ossos do rosto tinham uma beleza triangular, delicada, meio misteriosa, como se fosse um elfo.
Incontáveis passarinhos voavam em torno de sua cabeça, seu canto melodioso harmonizando com o do chieri.
- Ei, vocês, viajantes desavisados! Saiam daqui, antes que assustem meus passarinhos, ou lançarei uma palavra malfazeja contra vocês!
Kennard adiantou-se, erguendo as mãos, num gesto de rendição e respeito. Larry recordou o respeito que o jovem darkovano demonstrara com Lorill Hastur. Aquilo era mais do que respeito, era deferência, quase submissão.
- Filho da graça - disse ele, quase inaudível -, não pretendemos lhe causar mal nenhum, nem a seus passarinhos.
Estamos perdidos e desesperados. Meu amigo está machucado. Se não puder nos ajudar, pelo menos não nos dê seu desfavor.
O rosto belo e hermafrodita, subitamente visível ao sol, se abrandou. Erguendo a mão, o chieri deixou que os passarinhos voassem livres, num turbilhão. Depois, a criatura fez sinal para que se aproximassem; e quando começaram a descer a encosta, exaustos, avançou na direção dos dois.
- Mas vocês estão feridos! Têm cortes e equimoses, sentem fome. Atravessaram aquele passo terrível, povoado pelas criaturas malignas?
- Isso mesmo - confirmou Kennard. - E percorremos uma longa distância, desde a fortaleza de Cyrillon des Trailles.
- O que são vocês?
- Sou Comyn, dos Sete Domínios - respondeu Kennard, com o último resquício de dignidade. - Este... este jovem é meu amigo e bredu. Dê-nos abrigo, ou pelo menos não nos faça mal.
A expressão do chieri tornou-se gentil.
- Perdoem-me. Coisas malignas descem às vezes dos desfiladeiros mais altos, sujam meus poços, assustam meus passarinhos. Ainda bem que me temem... mas nem sempre os vejo. Mas vocês...
O chieri fitou-os, um olhar penetrante, antes de acrescentar:
- Não pretendem nos causar mal algum.
O olhar deixou Larry fascinado. Kennard sussurrou:
- É um poderoso leronis!
- Sou chieri. Deveria saber mais, filho de Alton.
- Conhece meu nome?
- Conheço. É Kennard, filho de Alton. E também conheço seu amigo. Só que não tenho nenhum dos seus poderes do Comyn. Mas você está exausto, e seu amigo sente muita dor; portanto, chega de conversa por enquanto. Podem seguir por um caminho íngreme?
O chieri assumiu uma expressão quase contrita.
- Devo me precaver, nesta terra.
Larry empertigou-se e declarou:
- Posso ir a qualquer lugar que for necessário.
- Empresta-nos a sua graça, filho da luz. E abençoado seja o lorde de Carthon por seu encontro com Kierestelli, ao lado dos poços de Reuel.
- Essa estória ainda é conhecida? - O rosto alienígena tinha uma expressão divertida. - Mas haverá tempo mais tarde para as lendas antigas, filho dos Sete Domínios. Chega de conversa agora. Vamos embora.
O chieri virou-se e começou a subir. Foi uma longa escalada, e Larry suava de exaustão, tinha a impressão de que o braço lesionado iria se soltar a qualquer momento, antes de alcançarem o topo. Ao final, Kennard quase que o carregava. Mas logo o próprio Kennard estava cansado demais para isso, e o chieri amparou-o, passando um braço em torno de cada um. A criatura podia parecer frágil, quase sem ossos, mas possuía uma força incrível.
Entraram num platô cercado por sebes e passaram por uma porta de vime entrelaçado, que dava acesso ao cômodo mais estranho que Larry já vira.
O chão era de terra, não enlameado ou ressequido pelo sol, mas coberto de grama e musgo, com um grilo cantando em algum lugar; era quente e fragrante sob seus pés.
O chieri inclinou-se e tirou as sandálias. A um sinal seu, os dois jovens removeram suas botas e meias encharcadas.
As paredes eram de vime entrelaçado, com telas de pano penduradas, deixando passar a claridade, mas não permitindo que se visse através. Havia trepadeiras no telhado de colmo, com flores enormes, em forma de trombeta, perfumando tudo ali. Era uma suave fragrância. Uma porta aberta no outro lado levava a um jardim fechado, onde uma fonte esguichava para uma tigela de pedra, a água escorrendo em seguida num pequeno regato. Um fogo ardia num braseiro de argila, com uma armação de ferro por cima, da qual pendia um caldeirão fumegante, exalando um aroma apetitoso de comida quente. Os jovens sentiram seus olhos lacrimejarem ao cheiro. Havia poucos móveis, apenas um ou outro banco e uma arca, com um tear no fundo.
Assim que entraram, o chieri ergueu as mãos e disse, em sua voz firme e clara:
- Entrem em boa hora, e que nem o medo nem o perigo os perturbem dentro destas paredes.
Isso feito, ele virou-se para Larry e acrescentou:
- Você está ferido, sente dor, foge de coisas malignas. Senti suas mentes no passo. Não perguntarei nada, até comerem e repousarem.
O chieri foi até o braseiro. Kennard arriou na relva, exausto, e murmurou:
- Quem é você, filho da graça?
- Pode me chamar de Narad-zinie, o nome que tenho entre seu povo. O meu próprio nome seria estranho a seus ouvidos e comprido demais.
O chieri tirou de uma arca taças de prata, simples, mas de extraordinária beleza, e despejou uma bebida. Ofereceu uma taça a cada um. Larry provou; era um vinho delicioso, mas muito forte. Quase que no mesmo instante, a sensação de completa exaustão se desvaneceu, e ele se tornou alerta, observando o chieri tirar o caldeirão do braseiro.
- Mingau é um alimento insuficiente para viajantes com os pés doloridos. Farei bolos também. Mas não devem beber mais vinho até comerem. Enquanto isso...
O chieri apontou para a fonte. Larry, subitamente envergonhado de suas roupas sujas e rasgadas, foi se lavar, molhar a cabeça. Kennard seguiu seu exemplo.
Quando Larry voltou, havia coisas que pareciam panquecas numa grelha por cima do braseiro. O aroma era tão apetitoso que ele ficou com água na boca. O chieri serviu a comida em bandejas de madeira. Havia tigelas de mingau, as panquecas com uma textura suave, tigelas com leite quente e mel, e uma coisa que tinha o gosto de queijo. Os sabores eram estranhamente picantes, mas os dois rapazes estavam com fome demais para se importar; devoraram tudo, e o chieri serviu mais panquecas e mel. Satisfeitos ao final, eles se recostaram e correram os olhos pelo cômodo. As primeiras palavras de Larry pareciam irrelevantes:
- O povo da floresta poderia evoluir para algo assim, Kennard, em vez do que você teme.
O chieri respondeu por Kennard:
- O povo da floresta, nos tempos distantes, era da mesma família que nós, mas depois deixamos as árvores, passamos a usar o fogo, que eles temiam, e nossos caminhos se afastaram. São nossos irmãos mais jovens, crescem mais lentamente em sabedoria. Mas talvez seja mesmo a ocasião oportuna para o que este filho de dois mundos fez.
Larry fitou aturdido o rosto estranho e belo do alienígena.
- Sabe... de tudo isso?
- Os poderes do Comyn são poderes do chieri, pequeno irmão. - O chieri estendeu o corpo comprido na relva. -Suponho que não tem paciência para longos relatos, e por isso direi apenas o seguinte, Kennard... os chieri viviam em Darkover muito antes de vocês terráqueos chegarem e nos fazerem ir para o fundo das florestas.
- Mas não sou terráqueo! - protestou Kennard, com raiva e espanto. - Larry é o terráqueo!
O chieri sorriu e disse, gentilmente:
- Esqueci que para seu povo a passagem de uma vida é como um sono para o nosso. Vocês dois são filhos da Terra. Eu estava aqui, um jovem entre meu povo, quando a primeira nave da Terra chegou, uma nave perdida e avariada, e seus passageiros foram obrigados a permanecer aqui. E veio um tempo em que esqueceram suas origens; mas o nome que deram a este mundo... Darkover... reflete sua língua e seus costumes.
Foi uma estranha narrativa a que ele fez, com Kennard e Larry deitados, à vontade, escutando quase com incredulidade.
A nave terráquea fora uma das primeiras a cruzar o espaço entre as estrelas. Os tripulantes, algumas centenas de homens e mulheres, foram obrigados a ficar em Darkover, e depois de dezenas de gerações - que para os chieri pareciam ter sido um curto período - espalharam-se pela maior parte do planeta.
- Kennard, você falou sobre o lorde de Carthon... que era do seu povo... que se encontrou com uma mulher do meu povo, Kierestelli; e ela o amou, deu-lhe um filho, morreu em seguida, mas os sangues haviam se misturado. Esse filho, Hastur, amou uma jovem de seu povo, Cassilda, e da união nasceram sete filhos, que originaram os Sete Domínios, de que você tanto se orgulha.
O cruzamento para produzir os novos poderes telepáticos com maior intensidade haviam levado a sete formas puras de telepatia, cada uma com seu Domínio, ou família; e cada uma com seu tipo específico de laran, ou poder psíquico.
- Os Hasturs. Os Aillards. Os Ridenow. Os Elhalyn. Os Altons... seu clã, jovem Kennard. E os Aldarans.
- Aldaran foi exilado do Comyn - comentou Kennard, com alguma amargura. - Eles venderam nosso mundo aos terráqueos!
O rosto belo do chieri assumiu uma estranha expressão.
- Deveria dizer quando os terráqueos voltaram, pela segunda vez. Aldaran foi o primeiro a recepcionar seus irmãos há muito esquecidos, pois os darkovanos não se lembravam mais de seus ancestrais. Talvez, entre os Aldarans, a herança terráquea nunca tenha sido esquecida. Quanto a você, pequeno filho de Darkover e da Terra...
Ele fez uma pausa, fitando Larry com extrema gentileza.
- ...está exausto, precisa dormir. Mas sei muito bem por que tem tanta pressa. Neste momento mesmo... - O rosto do chieri tornou-se distante. - ...Valdir Alton dá conta de seu destino a esses novos terráqueos, que também esqueceram que os humanos de Darkover são seus irmãos. Na verdade, todos os povos são irmãos, embora se esqueçam disso muitas e muitas vezes. E porque você dois também são do,meu povo, vou ajudá-los... embora adoraria continuar a conversa. Pois sou velho, de uma raça em extinção. Nossas mulheres não geram mais crianças, e um dia os chieri serão apenas uma lembrança, só viverão no sangue daqueles que foram seus conquistadores.
Ele suspirou.
- Nossas florestas eram lindas naquele tempo. Mas o tempo e a mudança sempre chegam para todos os homens e todos os mundos, e vocês estão certos ao falarem com reverência de Kierestelli, ao chamarem Cassilda de abençoada, pois foram as primeiras a misturar sangue com sangue, e assim garantiram a sobrevivência dos chieri no sangue, se não na memória. Mas estou velho ... e falo demais. Em vez disso, deveria agir.
O chieri levantou-se. Com seus estranhos olhos cinza – olhos que pareciam com os de Lorill Hastur, compreendeu Larry - atraiu a atenção total dos dois rapazes, até que nada mais restava, a não ser o cinza dos olhos, enquanto o espaço girava e girava...
Uma luz intensa e quente explodiu nos olhos dos dois. Uma luz amarela. Estavam de pé num chão de ladrilhos, intensamente iluminado, numa sala toda envidraçada, dando para o espaço-porto de Darkover, e diante deles, em atitudes de desafio, se encontravam Valdir Alton, a Comandante Reade... e o pai de Larry.
Eles dormiram. Estavam descansados, alimentados, com roupas limpas, cabendo agora a Kennard vestir algumas peças de Larry.. Mais uma vez, sentaram diante de Valdir Alton, de Wade Montray e do Comandante Reade, concluindo o relato de suas aventuras. Valdir disse, ao final, com uma expressão solene:
- Sempre ouvi falar dos chieri, mas não sabia que ainda existia algum no fundo da floresta. E o que contaram sobre nossa herança mista é estranho... e perturbador.
Seus olhos se encontraram com os de Wade Montray, exibindo uma confusão inesperada.
- Mas o velho chieri falou uma verdade que eu já conhecia. O tempo e a mudança são inevitáveis em todos os mundos, até mesmo no nosso. E se nossos filhos puderam cruzar as montanhas juntos, em harmonia... e nenhum dos dois conseguiria sobreviver sozinho, precisavam dos conhecimentos um do outro... então talvez nossos mundos sejam iguais.
- Pai - interveio Kennard, também solene -, decidi uma coisa, ao voltar. Não fique zangado, pois é uma coisa que não posso deixar de fazer. E farei com o seu consentimento agora, ou sem o seu consentimento quando alcançar a maioridade. Vou embarcar numa nave para a Terra e aprender tudo o que puderem me ensinar ali, em suas escolas. E depois de mim, outros também seguirão.
Valdir Alton mostrou-se perturbado, mas acabou acenando com a cabeça.
- Você é um homem, livre para escolher, e talvez a opção seja sensata. Só o tempo dirá. E você, Lerrys...
- Quero aprender sua língua, senhor, e sua história. É um absurdo viver aqui sem aprender nada... não apenas para mim, mas também para todos os terráqueos que se instalam em Darkover.
Valdir tornou a acenar com a cabeça.
- Então fará isso como um filho em minha casa. Você e meu filho são bredin; nossa casa é sua.
- Talvez algum dia tenhamos uma escola para que os filhos dos dois mundos aprendam mais uns sobre os outros - comentou Reade. Ele olhou para os dois rapazes. - Eu os nomeio consultores especiais da Seção de Ligação Terra-Darkover. E agora tratem de concluir logo sua educação interplanetária.
- Mais uma coisa - disse Valdir. - Creio que precisamos aprender com a Terra sobre incêndios na floresta, e o que fazer com bandidos e banshees. E depois usaremos o conhecimento à nossa maneira.
Ele fez uma pausa, fitou Wade Montray e acrescentou: - Perdoe-me a intromissão, mas sou Alton. Acho que deve contar a seu filho, agora, por que o chieri pôde dizer que ambos eram de sua espécie.
Wade Montray foi se postar diante do filho.
- Você cresceu, já é um homem. - Ele umedeceu os lábios. - Larry, você nasceu em Darkover, e sua mãe era da casta superior darkovana, uma Aldaran, que renunciou a seu povo por mim e me acompanhou quando retornei à Terra. Não quis trazê-lo para cá por muitos anos, pois não queria vê-lo dividido entre dois mundos, como aconteceu comigo. Tentei mantê-lo distante de Darkover, mas o chamado foi muito forte para você. Assim como também tem sido para mim.
O rosto de Montray se contraiu.
- Assim, ficará dividido entre dois mundos alienígenas apartados... como eu...
Larry estendeu a mão para o pai.
- Acontece que os darkovanos não são alienígenas. Houve um tempo em que também eram terráqueos. E os terráqueos são parentes dos darkovanos, até mesmo dos que não têm sangue chieri em suas veias. O chamado não é de mundos alienígenas... mas de irmãos de sangue, que querem se compreender de novo. Não será fácil, mas... - Os olhos de Larry procuraram os de Kennard. - ...é um começo.
Wade Montray balançou a cabeça, lentamente, angustiado, e de repente Valdir Alton fez uma coisa sem precedentes para um aristocrata darkovano. Meio sem jeito, por falta de prática, estendeu a mão para Wade Montray, e os dois trocaram um aperto, enquanto o Comandante Reade sorria, radiante.
Era de fato um começo. Os problemas surgiriam mais tarde... pois toda mudança sempre acarreta problemas. Mas era um começo, e, como ensinar ao povo da floresta a usar o fogo, os benefícios superariam os riscos.
O primeiro passo fora dado.
Larry e Kennard dariam o seguinte.
E, depois, viriam outros milhares de passos.
Os mundos irmãos haviam se reconciliado.
Marion Zimmer Bradley
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