O jogo foi um dos costumes mais arraigados que os europeus trouxeram para as terras do Novo Mundo. No Canadá, durante os invernos rigorosos que os mantinham ilnados em suas cidades, a diversão nos salões ajudava a esquecer os perigos, a passar o tempo e a afastar a solidão e o tédio das longas noites geladas.
A paixão do jogo entre os colonos franceses, em especial o jogo de cartas, foi de tal intensidade que as autoridades chegaram a proibir a certa altura os jogos de azar de qualquer natureza: "sobretudo a basseta, o faraó, o trinta-e-um, a roleta, o par ou pernão, o quinze, e muitos outros", como ficou registrado nas atas oficiais da época.
Mas alguns colonos levaram também outros tipos de baralhos com outras finalidades. Foi num desses baralhos "diferentes", de 78 cartas e figuras simbólicas, usado tanto para jogar como para ler a sorte, que Angélica foi buscar a chave de seu inquietante destino. Ainda que depois se recusasse a acreditar no que as feiticeiras videntes de Salem lhe -prometiam, nas misteriosas cartas do Taro...
"A Mulher, a Beleza, o Amor!", suspira o Cavaleiro de Malta. "Você é iluminada pelos deuses!"
No alto da falésia de onde se avistava o apanhado de casinhas e fortificações de Gouldsboro diante do mar aberto, Angélica sentou-se com as feiticeiras de Salem para a leitura das cartas do Taro. Sobre uma lápide de granito saliente, uma a uma, a vidente dispôs as laminas encantadas que tirara de uma grande bolsa de veludo: a Carroça, o Louco, a Heroína, o Arlequim, a Estrela-de-Davi... Ali estavam representadas todas as forças do Universo.
Debruçada sobre seu destino, Angélica divagava, e uma leve vertigem nasceu dessa contemplação. Finalmente, para onde a levaria aquela vida errante? Alcançaria a vitória e o sucesso?
"Sua estrela é bela", comentou a jovem maga. "Mas você falará com um homem morto."
Únicas a perceber o hermetismo de suas profecias encantadas, as três mulheres se inclinaram sobre a estrela mágica. Uma onda se quebrou à beira da falésia e o vento espalhou uma garoa salgada em seus cabelos.
Ao longe, tudo se harmonizava nos contornos da Baía Francesa. As velas brancas dos navios e os barcos de pesca entre as ilhotas passavam devagar sobre o espelho de água. Como num sonho...
Angélica e a estrela mágica
Anne e Serge Golon
Tendo deixado a filhinha Honorina aos cuidados da Madre Madalena de Bourgeoys, no Convento de Ville-Marie de Montreal, Angélica retornara para junto do marido, o Conde Joffrey de Peyrac, que a esperava a bordo da nau-capitânia de sua frota, o navio Arc-en-Ciel, ancorado ao largo do povoado de Tadoussac, no estuário do rio Saguenay, fronteira da Acádia com o Canadá.
Os iroqueses estavam pacificados, o Grande Chefe Utakê à frente, depois de longas confabulações e inúmeros cachimbos da paz trocados.
Os dois filhos maiores do casal, Florimond e Cantor de Peyrac, permaneciam na corte de Versalhes, onde defendiam com louvor os interesses da família junto ao Rei-Sol, Luís XIV.
Uma ameaça, porém, pairava sobre o futuro de felicidade sonhado por Angélica e o amado esposo: seus dois maiores adversários, o Padre Sebastião d'Orgeval e a Duquesa Ambrosina de Maudribourg, mortos ou vivos (pois, em se tratando de criaturas tão diabólicas não se podia afirmar nada com segurança), do meio das trevas continuavam a lhes opor uma resistência encarniçada.
OS ESCRÚPULOS, AS DUVIDAS E OS TORMENTOS DO CAVALEIRO
CAPITULO I
Uma personagem lendária
Ele sabia que ela estava pensando em Honorina. E que apenas seu braço viril nos ombros dela, apertando-a fortemente contra ele, podia trazer algum alívio a seu desgosto. Calados, os dois andavam solenemente, ao longo do primeiro convés, vagamente embalados pelo movimento dolente do navio ancorado. As névoas de verão, tépidas mas tão densas quanto as do inverno, isolavam-nos em seu passeio, atenuando os ruídos vindos da margem.
Joffrey de Peyrac dizia-se que o humor de Angélica poderia parecer surpreendente a muita gente.
Isso lhe agradava.
Ela era assim.
Um rei a esperava. Em seu palácio de Versalhes, um rei pensava nela.
Em meio às honras e à púrpura de uma multidão' palaciana, a preocupação primeira, oculta mas lancinante, daquele que era o mais poderoso monarca do universo ainda era - por força de uma paciência à qual estava resolvido a não renunciar e de uma generosidade que não media sacrifícios - conseguir que Angélica um dia se dignasse, deixando os sombrios e frios antípodas da América, reaparecer em sua corte.
Mesmo ali, do outro lado do Saguenay, próximo aos confins boreais de uma natureza selvagem, um chefe iroquês, maquilado com suas pinturas bárbaras, com a cimeira formada por seus cabelos orgulhosamente erguida, Utakewata, o adversário mais encarniçado da Nova França, apresentara-se diante de Joffrey de Peyrac e preenchera a maior parte do tempo destinado às parla-mentações de guerra a falar-lhe dela, a quem ele chamava Kawa, a estrela fixa, invocando o testemunho de suas tropas de que aquela mulher cuidara dele e o curara de seus ferimentos em Katarunk, depois de tê-lo salvado do escalpo de Piksarett, o abenaki, seu inimigo mortal.
Mais importante que qualquer tratado de paz com a Governador Frontenac, parecia ter sido, envolta pela fumaça das fogueiras e dos cachimbos passados de boca em boca, a exposição de uma narrativa épica, composta já de múltiplos episódios e na qual Angélica, essa graciosa e encantadora mulher entristecida, que naquele momento caminhava a seu lado, se tornava uma perso-nagern lendária.
Entre estes dois exemplos extremos - o rei da França, na longínqua Europa, e o chefe índio, que jurara exterminar todos os franceses do Canadá -, Joffrey de Peyrac não ignorava que havia no mundo uma multidão de homens os mais variados, príncipes ou pobres, loucos ou sábios, resignados ou desesperados, mas que, por terem cruzado seu caminho, conservavam-lhe a lembrança como uma luz acesa em sua obscura esperança de felicidade. Por terem ficado fascinados por sua beleza, comovidos por sua voz, alegrados por sua presença, jamais o curso de sua maj drasta existência seria o mesmo.
Ora, todos esses admiradores incondicionais teriam ficado muito pesarosos e surpresos se descobrissem o domínio exercido sobre aquele coração, considerado inacessível, insensível, descuidado, por uma menininha de sete anos, de cabelos cor de cobre sob um gorrinho verde, que ela havia deixado longe dali, brincando de roda.
Joffrey de Peyrac partilhava sua nostalgia e não a subestimava. Um junto ao outro naquela noite, combinando os passos, deixavam-se debruçar sobre tormentos de coração para os quais sua vida venturosa, perpetuamente entrecortada por responsabilidades futuras e por perigos, quase não lhes deixava tempo.
Sentiam-se bem, juntos, dizia-se ele. E lembrava-se do desagrado que lhe causara aquela separação, a campanha do Saguenay, em que o tempo todo se sentira irritado com sua ausência. Surpreso, perguntava-se como pudera, poucos anos antes, quando de sua chegada ao Novo Mundo, resolver-se a deixá-la um inver-no todo em Gouldsboro, enquanto ele se enfiava, com seus homens, no interior das terras. Isso lhe parecia uma aberração naquele momento... Perto dela, a vida se iluminava.
Cingiu-a com mais força.
Subiram alguns degraus e chegaram ao segundo convés. Continuaram a subir e alcançaram o balcão em forma de meia-lua na popa do Arc-en-Ciel.
Uma tonalidade rósea que tingia a névoa anunciava o poente, mas as brumas continuavam opacas, ocultando até as outras embarcações de sua frota.
Esta permanecia havia três dias diante de Tadoussac, à espera dos últimos contingentes de soldados e de marujos que regressavam do lago Saint-Jean, escoltando os- mistassins e os nipissings, que não ousavam aventurar-se a descer o rio para comerciar sem sua proteção.
E no entanto os iroqueses tinham se evaporado. Deixaram para Joffrey um "colar de contas de porcelana", um wampum em que estava escrito: "Não faremos guerra aos franceses enquanto eles permanecerem fiéis ao homem branco de Wapassu, Tecon deroga, meu amigo".
Assim que obteve essa promessa, o conde retomara rapidamente a descida para o Saint-Laurent, impaciente por reencontrar Angélica, que chegava de Montreal, onde deixara Honorina com as madres seculares da Congregação de Nossa Senhora. Fizera mal talvez, quando a encontrara, ao interrogá-la muito a respeito da menina, mas era-lhe muito afeiçoado e começava a sentir sua falta.
Angélica caíra numa profunda melancolia. Montreal era muito distante, disse ela, e estava arrependida por ter cedido às instâncias de Honorina, que queria ser interna "para aprender a ler e a cantar".
Por mais devotadas que fossem as religiosas da Congregação de Nossa Senhora, era um meio muito diferente daquele que a menina conhecera até então, e ela sofreria.
- Mas que ideia foi essa a dela de querer sair de Wapassu?! - exclamou subitamente Angélica, saindo de seu mutismo e erguendo para Joffrey seus olhos aflitos. - Tão pequena, por que essa ideia de querer nos deixar? A mim, sua mãe! A você, o pai que ela finalmente encontrou do outro lado do mundo! Será que não mais lhe bastávamos? Será que não éramos tudo para ela?
Ele reteve um sorriso.
Ali, na popa de um navio, nos limbos de uma neblina dourada pela aproximação da noite, egoisticamente, absurdamente feliz por tê-la toda para si, sentiu-se tocado por sua ingenuidade feminina, essa candura que a maternidade confere às mulheres e que parece marcá-las com um sinal de eterna juventude, como se, antes de serem investidas com essa glória misteriosa, não houvessem jamais vivido.
— Meu amor - disse ele, após refletir -, por acaso você esqueceu a lógica da infância? A lógica de sua infância?... Não me contou que, com dez ou doze anos, quis partir para as Américas e que empreendeu essa viagem com um bando de pequenos vagabundos, sem se preocupar nem um pouco, nem você nem eles, com o desgosto e a perturbação que com certeza teriam seus pais, abandonados por vocês?
— E verdade.
O encontro com seu irmão mais velho, Josselino, reavivara-lhe as lembranças. Ela se reconhecia de bom grado na Angélica' menina de Monteloup. As raízes profundas não tinham mudado. Mas, ao lançar um olhar adulto sobre seu comportamento àquela época, compreendia melhor as preocupações que havia causado a sua família.
— Creio - disse ela - que, impelida pela sede de aventura e liberdade, eu não tinha nenhuma consciência do que representava aquela viagem, nem que isso implicava uma separação dos meus.
— E você acredita que a pequena Honorina tenha alguma noção desta palavra que nos parte o coração: separação? Ela quer seguir seu caminho, tal como, num passeio, somos atraídos pelas flores de um caminho desconhecido e decidimos ir vê-las, sem considerar que toda a nossa vida vai com isso ser modificada... Penso em mim quando cheguei à adolescência. Eu devia tudo a minha mãe: a salvação, a saúde e principalmente a capacidade de andar, ainda que mancando. Minha primeira decisão, quando me vi apto a andar, foi aproveitar minha nova agilidade para mé lançar aos mares em busca de aventura. Eu fui até a China. Foi lá que conheci o Padre de Maubeuge. Meu périplo durou anos, três pelo menos na primeira viagem, e não acho que eu tenha me preocupado muito, durante esse tempo, em mandar notícias minhas ao palácio de Toulouse. Teria ficado muito surpreso se me dissessem que, ao agir dessa forma com minha mãe, para a qual eu era tudo, eu lhe causara algum sofrimento ou inquietação. Não só jamais duvidara de sua paixão por mim, de tal forma o vínculo que me prendia a ela me parecia indiscutível, mas, triunfando sobre perigos e mordendo os melhores frutos da terra, parecia-me que ela deveria estar ciente de minhas vitórias e minhas felicidades. E agora, quando me debruço sobre aquele período louco e candente de minha juventude através do mundo, dou-me conta de que, na verdade, nunca me passou pela cabeça que eu a deixara.
O clarão róseo se apagara. Nuvens passaram, tocando-os com um sopro mais frio. :
A confidência que seu marido acabara de fazer-lhe, ele, que tão raramente falava de si mesmo, comovera Angélica, mas, por uma associação de ideias, cuja génese escaparia fatalmente a Joffrey de Peyrac, suscitara-lhe também uma inquietação. Pois ela nunca pudera evitar a certeza de que Sabina de Castel-Morgeat, pela qual ele tivera certa inclinação durante sua estada em Quebec, se parecia com a mãe de Joffrey. A mulher do tenente-geral da Nova França, uma bela meridional de temperamento difícil mas de pupilas de fogo, busto opulento e desejável, usava a cantante língua d'oc do sul da França, linguagem hermética dos gascões. Angélica ficara morrendo de ciúme, mais pela reminiscência materna que Sabina podia despertar nele do que pelo que eventualmente teria havido entre eles. Ainda que houvesse sido ofensivo. Admirava-se por ter esquecido com tanta facilidade... como prometera à própria Sabina. Mas não gostava que alguma coisa fizesse Joffrey lembrar-se. E provavelmente tinha razão, pois, em seguida à evocação que acabara de fazer de sua mãe, como se seus pensamentos tivessem acompanhado os de Angélica, ele pronunciou estas palavras execráveis:
- É mesmo, você conseguiu saudar os Castel-Morgeat quando passou por Quebec?
Angélica sobressaltou-se e respondeu, meio ríspida:
- Como poderia? Você sabe muito bem que eles foram para a França, há dois anos já.
Espantado e conciliador, ele concordou.
- Tinha me esquecido. Teve notícias deles?
Ele estava totalmente indiferente.
- Não... Se nem dos presentes tive notícias, como poderia tê-las dos ausentes? Quebec estava vazia. Todo mundo estava nos campos, e não tive nenhum prazer nessa viagem. De todo modo, você não estava lá... e era horrível.
Ele a envolveu mais uma vez num abraço apaziguador. Seu nervosismo desde sua volta não lhe passara despercebido. Havia nele alguma coisa além de Honorina. Ela escondia uma decepção... ou uma inquietação. Sentira-o desde a primeira noite. Sabia que ela falaria quando achasse oportuno. Mais tarde.
Ela deixou cair a cabeça em seu ombro.
— Sem você, nada mais tinha graça. Lembrei-me de nossa chegada a Quebec. Não compreendo por que, naquela época, eu tinha tanto medo de ser aprisionada pelas exigências de meu título de esposa do Conde de Peyrac. Tornei a pensar em tudo isso quanj do fui olhar de longe a pequena casa de Ville-d'Avray. Por que eu tinha então tanta necessidade de me isolar, de me sentir livre?
— Suponho que estava cansada de ser a rainha de um bando de aventureiros que, no fundo das florestas ou nas margens selvagens, exigia sua atenção dia e noite, gente à qual você se dedicou de corpo e alma, um inverno e um verão inteiros, cuidando dos doentes, curando os feridos, reconfortando os aflitos, suportando seus humores... Isso eu compreendi, e aplaudi, em sua revolta e em sua sabedoria. Ao chegar a Quebec, você podia conhecer uma existência niais agradável. Estava também diante de uma outra tarefa importante. Havia tomado uma decisão que se mostrava necessária, e na qual eu não teria talvez pensado, inconsciente de tudo o que lhe fora pedido, de desafio, a obrigação de conquistá-los, que essa volta ao seio de seus compatriotas representava para você. Para essa obra, você tinha necessidade de se recolher, de reunir suas forças. Enfim, você talvez estivesse um pouco, espero, cansada de um esposo que, por ciúme, fizera pesar sobre você o jugo de sua violência.
— Não, eu queria, ao contrário, que você me pertencesse ainda mais, que nos reencontrássemos a sós e não sempre num palco de guerra ou de debates políticos, como estava acontecendo.
— Você estava coberta de razão, e foi melhor assim. Muitos imponderáveis ainda nos separavam, e eu me mostrara por demais insensível a seu direito à liberdade, meu belo pássaro selvagem. E você, em sua sagacidade, adivinhava que nem você nem eu éramos pessoas que se deixariam impressionar por compromissos aos olhos de uma sociedade mundana que era preciso seduzir e que ia disputar nossos favores; não confiando em meu amor, para pôr à prova minha fidelidade talvez, você me devolvia também minha liberdade.
— E você fez uso dessa liberdade?
— Não mais que você, meu anjo! - replicou ele, com uma breve risada.
Mas ao mesmo tempo que lhe devolvia esse dardo, que lhe arremessava essa flecha-de-parto, destinada a fazê-la entender que ele não deixara de ouvir certos rumores acerca de seu interlúdio com Bardagne, ele se inclinava para ela e pousava os lábios em seu pescoço, na altura dos ombros.
O hálito de Joffrey, o poder de sua boca terna, ávida e mágica, varriam os rancores que, havia muito, se tornavam insensivelmente sem objetivo entre eles. Depois de tantos anos de felicidade, a hora da verdade não significava mais nada. Ela não sabia resistir-lhe. Tudo se abolia e caía por terra. O milagre do desejo, que nunca se apagava entre eles, esse dom dos deuses que lhes fora concedido e que tantas vezes os salvara da ruptura, lembrava-lhes mais uma vez que, apesar das tempestades que, como para todos os demais, podiam assaltá-los e abalar-lhes a fé, um único sentimento permanecia: não podiam mais sobreviver um sem o outro. Ele era tudo para ela. Ela, para ele, era o fim de seu horizonte, o objetivo irrestrito de suas ambições.
Assim, encerrados na obscuridade do rio, da noite e das brumas, unidos como uma só pessoa e perdidos no encanto desses beijos, cada um dos quais, mais secreto e devorador do que o anterior, exprimia mil coisas não formuladas, inexprimíveis, como confidências ou gritos, protestos de amor ou confissões desvairadas, de um modo mais delicioso e verdadeiro que a menor palavra pronunciada, eles deixavam esta terra e abandonavam as mesquinhas querelas, os tristes combates do orgulho e da vaidade ferida, que fazem mais vencidos que vencedores, Causam mais feridas incuráveis que benefícios.
Ali onde se encontravam não havia mais explicações a dar, perdões a pronunciar.
Ao pé do navio, um ruído de remos batendo na água e em seguida se erguendo gotejantes veio arrancá-los de seu deleite.
Enquanto o halo de uma lanterna se aproximava, abrindo a obscuridade, viram embaixo uma chalupa deslizando com os seis remos levantados como fantasmas na neblina e que se aproximava e depois desaparecia para abordar o Arc-en-Ciel.
— Parece-me que vi o burel de um monge e as passamanarias de um uniforme. Talvez seja uma mensagem do Sr. de Frontenac.
— Oh! Senhor, por que não embarcamos antes? - gemeu ela. - Oxalá ele não venha novamente pedir-nos socorro. Agora que já fiz meu sacrifício por Honorina, estou com pressa de encontrar nossos conhecidos e nosso maravilhoso domínio de Wapassu.
Aguçaram os ouvidos e perceberam, por trás da neblina, que a noite que descia tornava azul-ardósia, opaca e estagnante, vozes e ruídos de cordas e de uma escada sendo manobradas. Os clarões surgiam e se apagavam logo como se tivessem dificuldade em aflorar, como se tudo quisesse recair imediatamente no torpor de um fim de dia de verão com tristezas de novembro, como se, ao abrigo nos limbos cúmplices de Tadoussac, se recusasse a se animar e a se ligar novamente a um mundo cheio de agitação e sobretudo de inimigos administrativos.
Nos navios ou na margem, todos tiveram a mesma reação:
- O que ele estará nos enviando lá de cima, de Quebec?! Mais complicações?!
Finalmente auréolas de claridade iam se firmando, e vislumbraram-se no portaló silhuetas confusas que transpunham a balaustrada e se equilibravam no primeiro convés
Bruscamente, Joffrey tomou Angélica novamente nos braços, estreitou-a com todas as suas forças e beijou-a nos lábios, fazendo-a quase perder o fôlego. Depois largou-a e afastou-a com um riso silencioso.
Ele se vingava dos importunos que vinham mais uma vez submeter-lhe suas preocupações e disputas. Ou estaria lhe instilando algum viático?
Joffrey retomou imediatamente sua atitude ao mesmo tempo despreocupada e distante de mestre do navio. Mas Angélica, reprimindo com dificuldade um acesso de hilaridade, levou mais tempo para reassumir a compostura. Ela afastava da fronte uma mecha inquieta, que persistia em escapar e se encrespar sob o perolado úmido da bruma. Depois, tossiu fracamente para disfarçar seu constrangimento e finalmente decidiu-se a olhar para os recém-chegados.
CAPÍTULO II
Um discurso inflamado
À luz das lanternas que os marujos carregavam, o Conde de Loménie-Chambord estava diante deles.
No primeiro momento Angélica viu apenas a ele. Em Montreal, tentara encontrá-lo, mas soubera por Margarida Bourgeoys que ele fora ferido na viagem de Frontenac aos iroqueses. Mas, tendo procurado por ele em vão no Hospital Joana Mance e nos sulpicianos, acabara por supor que o cavaleiro evitava encontrá-la.
Por esse motivo sentiu-se agradavelmente surpresa por tornar a encontrá-lo entre os visitantes e adiantou-se para ele sorrindo. Depois, cumprimentou o Sr. d'Avrensson, o rnajor de Quebec, que trazia uma mensagem do Sr. de Frontenac, o qual, segundo ele dizia, estava prestes a voltar a Quebec. O Sr. Topin, acompanhado de seus dois filhos, conduzira os dois oficiais em sua grande chalupa de uma só vela, desde a capital.
O religioso que os acompanhava era um recoleto que voltara para a missão de Restigouche, no golfo de Saint-Laurent.
O Conde de Peyrac convidou-os a descer à sala de jogos para tomar alguns refrescos antes de cearem em sua companhia.
Angélica estendera a mão ao Conde de Loménie-Chambord a fim de tomar-lhe o braço para que ele a conduzisse até o salão de jogos.
Mas, como ele permanecesse hirto e plantado como um pedaço de pau, seu gesto permaneceu inacabado. Sua primeira impressão penosa, quando o divisara de longe, confirmou-se. Seus passos não tinham mais a firmeza aliada à leveza própria dos guerreiros de estilo indígena que esse país formava. Seu andar pareceu-lhe vacilante e mesmo pesado a ponto de hesitar em reconhecê-lo nessa silhueta emagrecida, arqueada. Em suma, ele envelhecera. "Seu ferimento, provavelmente..."
Ela parou igualmente e ficou junto a ele, deixando os outros se afastarem.
- Fale-me de seu ferimento - disse ela.
Ele estremeceu e levantou a cabeça. Seu rosto, pálido e marcado, que ela podia ver apesar da penumbra que voltara ao balcão quando as luzes se apagaram, confirmou seus alarmes, mas, vendo que ela ia insistir em pedir-lhe notícias de sua saúde, ele a interrompeu com um gesto imperativo.
- Sei que você me procurou quando esteve em Ville-Marie - disse num tom abrupto, que ela jamais o vira empregar. - Eu lhe agradeço, Angélica, sua cortesia, mas não teria podido vê-la naquela oportunidade e falar-lhe com sangue-frio. Todavia, mais tarde, soube que não podia deixar que se afastasse e que fosse embora da Nova França sem lhe dizer todas as palavras que me pesavam no coração. É preciso que sejam ditas de uma vez por todas. É um dever, uma dívida sagrada. Por isso, sem estar ainda curado, embarquei para descer o rio antes que sua frota transpusesse os limites da província do Canadá.
Ele dava a impressão de pronunciar um discurso repetido palavra por palavra, dias e noites, e que ele sabia de cor.
- Enfrentei uma crise terrível, mas agora tudo me parece claro e vou falar. Sei, ademais, Angélica, que você é de fato a mulher anunciada que devia pôr-nos todos a perder. Reavivando algumas lembranças, pude desmontar seu método hábil, de uma engenhosidade perturbadora. Você fez do fato de ser amoral uma virtude. E, já que não tem nem noção do que seja isso, julgam-na isenta de pecado. Você é como Eva: inconsciente. Sem remorsos, pois não teve a intenção. Como segue apenas a seus dogmas, você se absolve de transgredir aqueles que não estejam nas leis. Se não a aprova, desculpa a heresia e se mostra indulgente com o vício, por espírito de justiça, você diz, caridade e alguns pretextos mais. E todos, todos, todos nós caímos na armadilha. Somos impotentes diante de você, como diante de crianças que põem fogo na casa. Ao mesmo tempo que as amaldiçoamos, não podemos querer-lhes" mal por isso: elas não sabem o que fazem!...
"Deve ter ficado maluco!", reconheceu Angélica para si mesma, pasma, após tentar inutilmente deter o fluxo de sua diatribe.
Mais um vento de loucura que se levantava!
Ele continuava, com uma voz monocórdia:
— Dir-se-ia que, tão bela, tão vivaz, você nasceu para exaltar a felicidade, para nos devolver o paraíso terrestre, e e.is que somos atirados a uma praia árida, tendo perdido o caminho da Salvação. Tarde demais para compreender que ele, que você, reunindo o encanto de sua inteligência ao de sua graça, levando ambos uma existência contrária à nossa, insistem em quebrar as imagens que regem nossas sociedades e nos dita nossos deveres.
— Ora, você quer se calar? - ela conseguiu finalmente intimá-lo com cólera.
Enquanto ele atacava somente a ela, não se deixou comover. Não era a primeira vez que um apaixonado frustrado a injuriava e a acusava de todos os pecados bíblicos. Mas não suportaria que ele atacasse Joffrey.
Ele não levou em consideração sua injunção e continuou, com uma veemência que se alimentara de agravos longamente abafados:
— Por sua vida, todos os dois ridicularizam nossos sacrifícios! Escarnecem de nossas renúncias.
— Cale-se!... Que bicho o mordeu, senhor? Se fez a descida do rio para vir me dizer essas patacoadas, poderia economizar suas fadigas. Nem meu esposo nem eu mesma merecemos que nos trate assim. Está sendo injusto, Sr. de Loménie, inutilmente ferino, e não perdoaria tais palavras nem tais pensamentos vindos de um amigo tão querido e que eu julgava tão certo, se não pressentisse que alguma coisa aconteceu que deve tê-lo transtornado desta forma.
Num súbito gesto de ternura, ela colocou dois dedos sobre sua face.
- Fale, Cláudio - murmurou. - O que está acontecendo, meu pobre amigo? Que foi que houve?
Ele estremeceu.
- O que houve foi que... ele morreu!
Cuspiu essas palavras num estertor, como o sangue de uma chaga interna.
- Ele morreu - repetiu, com desespero. - Morreu mártir dos iroqueses... Eles torturaram seu corpo!... Comeram seu coração! O Sebastião, meu amigo!... Eles comeram seu coração! E eu, eu o traí!
E, subitamente, ele explodiu em soluços terríveis, soluços de um homem extremamente infeliz e que se privou das lágrimas durante muito tempo.
Angélica pressentia essa explosão.
Os acontecimentos tinham tomado o rumo que ela receava. A notícia da morte do Padre d'Orgeval, perpetrada um ano antes nos confins do rio Hudson, só recentemente chegara oficialmente de Paris à Nova França. A colónia estava sob o impacto da notícia, e Loménie fora atingido.
Ela se aproximou e abraçou-o compassivamente. Ele então voltou-se para ela e soluçou, com a fronte apoiada em seu ombro. Ela o abraçou fortemente sem dizer nada, esperando que ele se acalmasse.
Sentia que ele se acalmava. E que fora um gesto de compaixão, de bondade e de ternura o que lhe faltara para suportar o anúncio da morte de seu amigo. Ele se rendia.
Pouco depois, tornou a erguer a cabeça, confuso.
— Perdoe-me.
— Não foi nada. Você não aguentava mais - disse ela.
— Perdoe sobretudo minhas palavras. Minhas acusações contra vocês parecem-me subitamente fúteis.
— E são de fato.
— ...E minhas suspeitas, insensatas.
— Com efeito.
— Sinto-me melhor. Não sei o que foi que me deu. Você é uma amiga, uma amiga de verdade. Isso eu sei. Sinto-o. Sempre senti isso. Uma amiga encantadora. E nada me deixa mais acabrunhado do que julgar descobrir subitamente o avesso das aparências e ouvir uma voz que denomina de traição a amizade que lhe devotei.
Ele tapava os olhos e parecia aturdido como se tivesse recebido uns socos.
— Como não julgá-la temível? - continuou ele, retomando finalmente o tom levemente humorado que era de praxe anteriormente entre eles. - Vim para cá, carregado de certezas e de rigor, dando razão a Sebastião pela desconfiança que ele lhe manifestou, decidido firmemente a fustigá-la com mil palavras que resolveriam para sempre, pela ruptura, a ambiguidade de nossa amizade, da simpatia que censuro a mim mesmo, tanto a que sinto por você como a que o Conde de Peyrac me inspira. E yejo-me chorando em seus braços como uma criança.
— Não se envergonhe de seu abandono, cavaleiro. Sem querer pregar num domínio que lhe é mais familiar que a mim, eu gostaria de lembrar-lhe que o Evangelho nos mostra Cristo buscando junto aos amigos um conforto para seus conflitos interiores.
— Mas não junto a -uma mulher - protestou Loménie, que parecia um adolescente abatido, vencido por seus conflitos.
-' Claro que sim, parece-me - disse ela gentilmente. - As mulheres também estavam lá, no caminho do sofrimento. Não apenas a Mãe, mas também as amigas, as amantes, a prostituta, Maria Madalena. Como você vê, estou em boa companhia... E, já que estamos falando de mulheres, posso perguntar-lhe se recebeu notícias de sua mãe e de suas irmãs? Espero que nenhum luto tenha vindo juntar-se a esse!...
Loménie respondeu que sua mãe e suas irmãs estavam bem de saúde. Não tivera tempo de ler com atenção suas longas missivas, pois, ao mesmo tempo, por esse correio dos navios da primavera, chegara-lhe a carta do Padre de Marville, falando-lhe dos últimos momentos de seu amigo de juventude, e ele não se refizera ainda do choque.
Pôs a mão em seu gibão, como se o envelope que guardava junto ao peito lhe queimasse.
- Luciano de Marville repetiu-me as últimas e terríveis palavras do moribundo... Ai de mim, contra você, Angélica. "Ela
é a causa de minha morte." E desde então isso me persegue. Talvez você não soubesse dessas condenações.
- Eu as conhecia - disse ela.
Angélica explicou-lhe que, encontrando-se em Salem, para onde o chefe dos mohawks enviara o Padre de Marville, estivera entre os primeiros a serem avisados. Apontando para ela, o jesuíta repetira o grito acusador:
"É ela! É ela! É por causa dela que eu morro!"
Prudentemente, Angélica evitou observar o quanto dejnprbi-do e falso havia em tal acusação. Quando se começavam a discutir as justificativas da hostilidade do Padre d'Orgeval para com eles, e principalmente para com ela, os argumentos eram a favor e contra os dois lados. Ela sentiu que o cavaleiro ainda não estava em condições de reconsiderar os fatos sob uma luz menos feroz, e calou-se.
Depois de alguns instantes de silêncio, Cláudio de Loménie revelou com uma voz cansada que o Padre de Marville enviara-lhe igualmente cartas e papéis encontrados com o missionário, e seu breviário. Já em Paris outras relíquias do mártir foram mandadas para a Igreja de Saint-Roch, pela qual o Padre d'Orgeval tinha devoção. Ainda não se possuía a capela de viagem, mas sabia-se que ela fora salva pelos catecúmenos iroqueses, que a haviam escondido numa aldeia à margem do Ontário. Ela seria mandada ulteriormente a Quebec.
— E o crucifixo do Padre d'Orgeval? Essa cruz que ele usava ao pescoço e que diziam ser incrustada com um rubi?
— Os bárbaros a guardaram. Depois, acreditando que, através daquele olho vermelho, Hatskon-Ontsi, como o chamavam, continuava a olhá-los, enterraram o objeto.
Ela o viu estremecer como um doente febril.
Angélica apanhou a capa, que ele deixava com indiferença deslizar pelos ombros, e envolveu-o com gestos de mãe com o filho negligente.
- Você está transido de frio. E eu também. Venha, mais tarde continuaremos nossa conversa, se fizer mesmo questão. Agora, porém, vamos pedir que nos sirvam uma boa xícara de café turco. Você, que é do Mediterrâneo, não pode desdenhar esse néctar. Talvez seja, como eu, sujeito às febres que se contraem nas viagens por aqueles lados. Isso lhe fará bem.
Quase carregando-o, ela o conduziu.
Subindo ao encontro deles, a silhueta de Joffrey surgiu, destacando-se em sombra negra contra as luzes de grandes lanternas.
Loménie deteve-se, como que novamente assustado.
— Ele - disse, numa voz cava. - Ele, sempre tão seguro de seu comando, tão triunfante, tão diferente de todos nós! Ele e você!... Interrogo-me com angústia: vocês dois não teriam vindo para acabar conosco, com Sebastião e comigo? E o que por vezes me pergunto. Não teriam vindo para vencer-nos?
— Que tipo de vitória? - perguntou ela. - E o que também me pergunto! Chega de discursos, cavaleiro. Vamos beber nosso café, e pare de se atormentar.
CAPITULO III
Reflexões apaziguadoras
Apesar das razões que apresentara a si mesma para ser indulgente com o Conde de Loménie-Chambord, havia ainda assim duas ou três reflexões e admoestações que Angélica tinha de fazer-lhe, pois seria prestar-lhe um favor colocá-lo diante de seus ilo-gismos e não deixá-lo divagar demais.
Pela manhã, avistando-o de longe, quando ele saía da pequena capela de Tadoussac, cujo sino gelado anunciara a missa e soara o primeiro ângelus, fez-se conduzir à praia.
Sob o dia ensolarado, ela notou melhor a súbita ação do tempo em sua fisionomia. Os belos cabelos castanhos não haviam escanecido, mas seu brilho como que se estiolara. Ele pareceu-lhe mais tocante nessa espécie de lassidão, com a magra silhueta envolta numa capa cinzenta, achatada no ombro por uma cruz bordada em tecido branco, emblema da Ordem de Malta.
Ele foi a seu encontro com aquele sorriso de acolhida cheio de encanto que ela lhe conhecia tão bem. Inclinou-se e beijou-lhe a mão, agradecendo-lhe sua bondade para com ele, o que provava que se lembrava confusamente da cena da véspera, mas que não guardara dela uma ideia suficientemente precisa para sentir-se constrangido, o que faria com que apresentasse suas desculpas. Mas ela julgou que não devia fingir-lhe esquecimento.
- Não posso deixar de dizer-lhe, senhor cavaleiro, que o que mais me choca nos discursos que me dirigiu ontem à noite e o esquecimento que parece demonstrar de certos testemunhos - disse Angélica. - A primeira vez que fomos a Quebec, suspeitavam que eu fosse a mulher diabólica anunciada por uma visão da Madre Madalena, do Convento das Ursulinas de Quebec. Ora, dessa suspeita fui inocentada.. Não sou aquela perigosa criatura que devia surgir para a desgraça da Nova França em geral e da Acádia em particular.
— Isso é mais do que evidente.
— A Madre Madalena afirmou-o, e você foi testemunha de sua declaração inequívoca.
— De fato. Fui um dos primeiros a me regozijar, com sua reabilitação, de que jamais duvidei.
Aparentemente, ele parecia ter esquecido uma parte de suas desagradáveis palavras da noite anterior. £ mais. Ela teria jurado que, no que se referia às acusações que dirigira a ela, não se lembrava de nada. Desconcertada, sua vindita caiu por terra e ela não insistiu.
- Fale-me de seu ferimento, meu caro amigo. Ele foi pior, parece-me, do que me foi dado saber, não?
Com um gesto, ele deu de ombros à pergunta.
— Isso não é nada! Uma flecha perdida. Mas tive de voltar para Lachine e Ville-Marie. Lamentei não ter podido acompanhar o Sr. de Frontenac a Cataracuí. Pois, encontrando-me nas proximidades do pequeno burgo de Quinté, à margem do lago Ontário, teria podido recolher a capela de viagem desse soldado de Deus, Sebastião d'Orgeval, morto por sua fé. Em vez disso, só, inútil, imobilizado na ilha de Montreal, entreguei-me a pensamentos sombrios.
— Que o confundiram. Disso eu creio que você tem consciência e que é a razão, a verdadeira razão, da perseguição à qual se entregou, em nosso encalço, até aqui, apesar de seu precário estado de saúde. E não a de vir me dizer coisas penosas. Refugiar-se junto àqueles que lhe são afeiçoados e que o compreendem não significa trair um amigo desaparecido. Cláudio, somos mais próximos de você do que muitas pessoas que o conhecem há mais tempo. Lembra-se de nosso primeiro encontro, em Katarunk. Da simpatia que experimentamos os três uns pelos outros naquele dia. Apesar de você ter vindo com seus aliados selvagens para nos massacrar e incendiar nossos estabelecimentos.
— Katarunk!... Oh, foi lá que tudo começou!
Ele deu alguns passos, agitado. Contou como ouvira falar deles pela primeira vez e as razões da campanha de Katarunk. Encontrava-se em Quebec e recebera uma convocação urgente do Padre d'Orgeval, que se achava então na missão acadiana de Nor-ridgewock, no sul de Kennebec. O jesuíta pedia a seu amigo, cavaleiro de Malta, e por esse motivo um oficial de alto posto, que tomasse imediatamente a direção de uma expedição para deter a invasão de um perigoso contingente de aventureiros ingleses, dizia ele, hereges com toda a certeza, que se instalava nas regiões semidesertas da imensa Acádia e que logo estaria nas fronteiras da província do Canadá. Era preciso aproveitar a ausência do pirata que os comandava para desferir um golpe decisivo, apoderando-se de seu mais importante posto no Kennebec, Katarunk. Sebastião d'Orgeval dirigia-se a seu amigo, o Conde de Loménie-Chambord, porque o Barão de Saint-Castine, na foz do Penobs-cot, no Atlântico, havia se furtado a isso, pretextando a distância.
Ele lhe indicava senhores canadenses, oficiais de confiança, que deviam ser convocados com ele: Ponf-Briand, o Barão de Mau-dreuil, o Sr. de L'Aubignière e, entre os índios batizados, Piksa-rett, o grande narrangasett, e suas tropas. Loménie organizara rapidamente essa campanha, sem informar nada a Frontenac. E, desde então, estava meio brigado com o governador.
Ele chegara primeiro a Katarunk e se apoderara do lugar.
Loménie sacudiu a cabeça como se quisesse expulsar uma reminiscência insuportável.
— ...Ele queria que, sem preliminares, de chofre, eu os abatesse, eu os apagasse. Suas diretivas, eu diria quase suas ordens, eram tão instantes e inapelaveis que fiquei perturbado. Eu desejava pelo menos parlamentar com o Sr. de Peyrac e julgá-lo antes de aniquilá-lo. Foi o que fiz.
— E logo compreendeu que não éramos seus inimigos, que tínhamos sido feitos para nos entendermos e que sua vinda a essa terra de ninguém seria proveitosa a todos.
— Julguei conveniente seguir uma linha diplomática mais apropriada. Tal como a situação se apresentava, o massacre teria sido impiedoso e recíproco.-E destruir-nos mutuamente não me pareceu que beneficiaria quem quer que fosse da Nova França, da própria França ou da Igreja e suas missões, que vocês tomavam sob sua proteção.
— E isso ele nunca nos perdoou.
— Eu acreditava poder explicar-lhe as razões de minha iniciativa e que ele se deixaria convencer... que ele compreenderia. Tínhamos sempre agido em conformidade um com a outro, no mais perfeito entendimento. Ora, dessa vez, subestimando seu julgamento,, eu o atingi mortalmente.
— Por que então, quando nos encontrou em Katarunk, pela primeira vez a pureza de intenções de suas estratégias lhe pareceu duvidosa, maculada por uma sanha inexplicável,.e-talvez... pela loucura?!... - acrescentou ela a meia voz, espreitando-lhe a reação.
O cavaleiro protestou com arrebatamento:
— Não! Jamais supus que ele estivesse louco. Deus me livre. Acreditava apenas, asseguro-lhe, que os dados do acontecimento e as consequências de sua destruição lhe escapavam, e... que ele compreenderia... que ele aprovaria. Eu era ingénuo...
— Você não conhecia talvez tudo sobre ele. Compreendo que você tenha sofrido uma decepção amarga. Ele teimou a manter seus projetos belicosos e quase suicidas. E é isso o que o atormenta... que lhe causa agora sofrimento? O que chama de sua traição a ele?
Loménie deu alguns passos, imerso em pensamentos.
— Se você soubesse... Se soubesse o que ele era para mim! Éramos tão unidos, e havia tanto tempo! Quando desejei acompanhá-lo ao seminário dos jesuítas, ele me dissuadiu da ideia. Aconselhava-me a Ordem de Malta. Assim, durante toda a vida, continuaríamos a nos completar. Ele seria meu guia espiritual. Eu seria seu braço armado... E, subitamente, pela primeira vez, nesse caso de Katarunk, eu me esquivava e recusava seu plano.
— Mesmo assim ele foi executado. Pelos cuidados de seus mais zelosos servidores: Maudreuil, L'Aubignière... Regozije-se. Katarunk desapareceu, incendiada... como ele desejava. E nós mesmos, não acha que foi um milagre termos conseguido escapar à fúria dos iroqueses, cujos chefes tinham sido assassinados sob nosso teto?
— Um milagre que vinha corroborar sua lenda de ser possuidora de poderes supraterrestres!...
Mas ele sorria ao pronunciar essas palavras. Ele retomava pé. Ela o apaziguara e o ajudara a ver aquele doloroso dilema com mais clareza.
CAPÍTULO IV
Os encantos de uma inteligência política - Os mistérios do Saguenay
No dia seguinte, quando a viu novamente, ele conservava o mesmo sorriso e parecia impaciente por abordá-la. Surpreendeu-a com uma pergunta inesperada.
— Você conheceu o Sr. Vicente de Paulo?
— O Sr. Vicente? - fez ela, embaraçada.
— O santo padre que foi conselheiro e confessor da rainha-mãe durante a menoridade de nosso soberano e que fundou tantas obras de caridade!
— Nessa época eu era ainda muito jovem e vivia em minha província, tendo pois pouca oportunidade de encontrar uma personagem tão importante. Mas é verdade que o acaso colocou-me em sua presença...
— Onde foi isso?
- Por ocasião da passagem da corte por Poitiers.
O cavaleiro pareceu encantado.
— Os fatos coincidem. Mas escute-me. E compreenderá por que lhe fiz essa pergunta. Quando eu era noviço dos cavaleiros da ilha de Malta, na Língua da França, tinha por condiscípulo um postulante como eu que se chamava Henrique de Rognier.
— Esse nome me lembra alguma coisa. Parece-me que me falaram dele recentemente... ou então... Não, uma lembrança que me veio num sonho... num pesadelo, parece-me. Mas continue... Você me intriga.
- Ele me contava que sua vocação religiosa fora indiretamente determinada pelo encontro que teve com o Sr. Vicente, em circunstâncias... Hum!...
Cláudio deLoménie-Chambord alisou o bigode, olhando-a com o canto dos olhos. Parecia que a história que ia evocar o distraía de seus pensamentos sombrios.
— Ele tinha nessa época dezesseis ou dezessete anos; como servia na corte junto à rainha-mãe, estava em sua comitiva na cidade de Poitiers... Percorria as ruas a serviço quando o acaso o fez encontrar uma adolescente de olhos verdes.
— Oh, o pajem!... - sobressaltou-se Angélica. - Aquele que me dirigiu galanteios.
— Então era mesmo você a jovenzinha de Poitiers de que falava tanto aquele cavaleiro? Devo prosseguir minha narrativa?
— Claro! Mas que coisa excitante! Se bem me lembro, esse pajem não me parecia muito disposto a entrar para as ordens.
— De fato!... Era um rapaz folgazão, tinha outras ideias na cabeça.
Loménie-Chambord ria.
- Então era você, Angélica, a fascinante menina que ele conduzia ao púlpito de Nossa Senhora, a Grande, de Poitiers, para lhe roubar alguns beijos e talvez mais.alguma coisa... já que não conseguiu encontrar outro lugar na cidade, ocupada pela corte e sua comitiva. Brincadeiras que foram interrompidas pela aparição do Sr. Vicente de Paulo, que, naquele dia, oficiava a missa.
O santo padre passou um sermão nos dois jovens loucos.
Angélica também ria, embora um pouco corada à lembrança desse episódio de sua adolescência. Loménie continuou a narrar:
- Henrique de Rognier, consciente de ter vivido um momento fora do tempo, sob o olhar daquele santo homem, confessou-me que era menos o encontro com o Sr. Vicente que o daquela jovem desconhecida que presidira a sua metamorfose. Ele lutou durante muito tempo contra o domínio dessa recordação. Era uma recordação imorredoura, dizia ele. Ficou doente. Julgou-se enfeitiçado. Um dia compreendeu que na pessoa da adolescente desconhecida, da qual só sabia o primeiro nome, Angélica, ele encontrara o verdadeiro amor. - O cavaleiro continuou, depois de uma breve pausa: - E, compreendendo também que jamais tornaria a encontrar esse amor, que nenhuma outra mulher poderia inspirar-lhe um sentimento semelhante àquele e que, de qualquer maneira, era inútil tentar encontrá-la, pois nos meios seculares, entre as loucuras da corte, um tal amor não podia nem viver nem se preservar, decidiu unir-se ao serviço Daquele que é a fonte de todo Amor, e se fez cavaleiro de Malta.
— Muito bem! Eis uma história edificante. Estou feliz em saber que não sou responsável apenas por desordens, como você pretende. Que fim levou ele?
— Oficial nas galeras de Malta, ele foi capturado durante um combate com os barbarescos e teve a mesma sorte que nossos irmãos: foi apedrejado nas colinas de Argel.
— Pobre pajem querido! E acrescentou, sonhadora:
— Eu o tinha esquecido.
- Ah! - fez Loménie, com um súbito grito. - E isso o que aumenta sua sedução: sua indiferença quase cruel. Como se es
quece daqueles nos quais planta sua lembrança como uma adaga que eles não conseguem arrancar do coração! Você é descuidada, você mesma o confessou. Menos de um!
Ele a considerou com uma interrogação ansiosa no olhar.
- Para os outros, que é você?...
Depois, sem esperar a resposta, murmurou, com exaltação:
— Um sinal de contradição. Um apelo, um grito que nos arranca de nós mesmos, como aconteceu com esse jovem Rognier.
— Ah! Não comece a se atormentar - protestou Angélica. - Vocês também, meus senhores, se afogam em contradições; para mim vocês são todos uns egoístas e ingratos, e choram pelo que não tiveram, sem saber se alegrar com o que lhes foi concedido... Você me fala como se eu tivesse passado a vida a destruir corações, à vontade, sem ter eu mesma sofrido por amor. Deus seja louvado que, de todos, somente a um pude amar de maneira inolvidável. Nem sempre estava a meu lado, e eu sofria esses tormentos da separação que você pensa ser o único a sentir.
— Eu sei. Feliz aquele que você não pôde esquecer. O amor que os une é daqueles que nos fazem crer no inexprimível. A noite passada, eu os olhava um junto ao outro e sem cessar seus olhos se certificavam da presença um do outro ou se alegravam por se ver. A noite em que chegamos com o Sr. d'Avrensson, avistei suas silhuetas unidas num beijo, no balcão do castelo de popa, e uma dor, cujo sentido me escapou, me apunhalou. Eu me julgava curado, imunizado por minha raiva contra você. E aqui está! E novamente eu me sinto melhor e feliz de viver. Você triunfa sempre com sua beleza loura. Triunfa sem sequer dar-se ao trabalho de conquistar. Inconsciente das rupturas que consumou, das tragédias que fez eclodir, dos destinos cujo curso mudou! Ele tinha razão de achá-la invencível e destruidora de sua obra. Morreu no barrote de torturas, amaldiçoando-a, e você não dá importância ao anátema que lançou contra você na hora da morte?
— Teria mesmo pronunciado esse anátema?...
— Você tacharia o Padre de Marville de mentiroso?...
— Não, mas...
Como comunicar-lhe a impressão, que nunca pudera evitar, de que uma mentira roía como um verme o interior daquele fruto?
Apesar de seu lado trágico, a cena que se desenrolara na antecâmara de Mrs. Cranmer, em Salem, deixava-lhe uma leve lembrança, a de ter assistido a uma comédia macabra, voluntariamente exagerada, se não fosse pelo jovem canadense Emanuel Labour, que caíra vencido por um desmaio que não era fingido. Pouco depois ele morreu em circunstâncias misteriosas. Exceto por isso, ter-se-ia acreditado estar num espetáculo.
E no mesmo instante teve de morder os lábios para não sorrir, pois, quanto mais pensava naquele confronto, tanto mais o lado risível lhe aparecia. Dentre as personagens símbolo do papismo e do calvinismo puritano, o jesuíta e o doutor em teologia bíblica, Samuel Wexter, era difícil dizer quem excedia em fanatismo, enquanto um gigante selvagem iroquês, descalço no brilhante la-jeto preto e branco, tocava com o penacho de sua cabeleira eriçada as traves bem enceradas de um borne da Nova Inglaterra, ao passo que, nos degraus da escada, como nas arquibancadas de um teatro, se escalonavam, sentadas, as mulheres da casa, entre as quais duas quacres mágicas, Ruth e Noémia, e ela mesma, em roupas de parturiente.
As imprecações do jesuíta tocaram-na menos que a surpreenderam. Elas se apagavam a ponto de cair no esquecimento. Foi a partir desse momento que ela sentira que o movimento da vaga, que não cessara de subir na direção deles atingindo-os com seus golpes, revertia, que o refluxo começava, pois o que contava era a mensagem contida no wampum que o chefe das Cinco Nações iroquesas, Utakê, enviara a Joffrey de Peyrac:
"Seu inimigo não existe mais".
Junto a ela, o cavaleiro de Malta, distraído por um instante pela história de Henrique de Rognier, recaía em sua obsessão.
- Sebastião dizia: nosso objetivo é fazer reinar em toda a terra uma só fé. Eu deveria tê-lo apoiado até o fim.
Ela colocou a mão em seu pulso.
— Meu caro Cláudio, nós somos, você e eu, os herdeiros de quase dois séculos de guerras de religião que afogaram a Europa no sangue e que nada resolveram quanto a fazer reinar uma só fé. Não poderíamos tentar construir o Novo Mundo em paz?...
— E podemos? É verdade que você é bastante convincente. E não o nego... Se lhe dessem ouvidos... Era também o que Sebastião temia em você: desviar os espíritos da grande obra de evangelização. Ele considerava um perigo o fato de sua sedução encobrir uma inteligência política.
— Política?! - exclamou ela.
Ouvindo-a rir, ele voltou-se vivamente para ela, que lhe surpreendeu o verdadeiro olhar, brilhante e suave, cheio de interesse por tudo o que vinha dela, e essa expressão que ele às vezes tinha ao vê-la, ao mesmo tempo sonhadora e fascinada, como se, descobrindo um aspecto inusitado da criação, ele se interrogasse sobre os caminhos desconhecidos, mas cheios de encantos, nos quais seu encontro o levava a se embrenhar.
— Seu riso! Ele parece lançar todos os nossos tormentos à obscuridade e revelar-nos a vontade de amor de Deus para conosco.
— Isso é magnífico. Mas, em vez de sempre me cumular, depois de poderes tão negros, de influências tão santas, você poderia pelo menos ficar num meio-termo, este que vou propor-lhe: considerar que nossa presença no Novo Mundo e nossa ingerência, se assim a chama, trouxeram até aqui mais bem do que mal, mais paz e vitória do que perturbações e desastres. O papel de um monge guerreiro não é lutar pela paz dos povos e dos oprimidos? Assumir a guerra de defesa é uma obra piedosa, e é preciso considerar-lhe os objetivos e a necessidade com cuidado, e só decidir-se pela espada em última instância, você vai reconhecê-lo. Inteligência política, você diz. Pois bem, se denomina política o fato de uma mulher se permitir refletir sobre a sorte do mundo e o futuro que os soberanos da terra preparam para nossos filhos, tem razão.
Era uma obrigação imperativa para uma mulher encarar em que sociedade iriam viver as crianças que ela pôs no mundo. Angélica afirmou que a responsabilidade de uma mulher parecia-lhe maior ainda nesse domínio que a dos homens e, aliás, que entre os iroqueses as mulheres tinham voz ativa.
Mas, se o Padre d'Qrgeval, no que lhe dizia respeito, vira-a como alguém que conduzia as tropas ao combate, não, esse tempo já pássara para ela.
— Nem por isso você deixou de deter minhas tropas - disse ele -, atirando em meus homens no vau de Katarunk.
— Era uma questão de habilidade em atirar. A decisão de detê-los vinha de meu esposo. Eu não conhecia nada sobre a América, que eu julgava deserta, ai de mim, ou pelo menos povoada de refugiados, como nós, que não teriam gutros inimigos além da natureza selvagem. Ai de mim! Eu estava completamente enganada. Não bastavam a invernada e as rivalidades já bem estabelecidas entre a França e a Inglaterra. Era preciso também que medíssemos forças com um santo. Sou apenas uma mulher, estou lhe dizendo.
— E uma mulher adorável.
Novamente perturbado diante dela, ele lhe beijou a mão rapidamente.
- Perdoe-me! Eu não passo de um pedante. Minha conduta é imperdoável.
Passaram desse modo uma parte dos dois dias seguintes a discutir, seja em terra, andando ao longo da praia, seja a bordo do Arc-en-Ciel, passeando pelo convés depois de uma refeição partilhada com o Conde de Peyrac e os oficiais, ou ao sair de um ofício na pequena capela.
Algumas vezes riam-se, reencontravam a convivência de uma amizade já longa e que se criara espontaneamente, e por vezes Loménie recaía em suas melancolias e angústias, como se despertasse subitamente a bordo de um precipício.
Havia um fantasma entre eles, mas, graças a essas conversas, Angélica conseguira fazê-lo encarar a situação de modo mais lúcido e sem subterfúgios. Conseguiu fazê-lo confessar que reconhecia que Sebastião d'Orgeval sempre professara em relação às mulheres um sentimento de desconfiança e, sob uma aparência policiada, e por vezes encantadora para com elas, uma hostilidade fundamental.
— Ele era tão feliz! - suspirou Loménie. - Órfão de mãe, eu soube, segundo confidências suas, que sua infância foi cercada apenas por horríveis criaturas femininas, grosseiras ou possuídas pelo espírito do Mal, lúbricas e até feiticeiras. Desconfiando da Mulher, ele desconfiava da Beleza e, mais ainda, do Amor...
— Uma trilogia à qual ele parecia ter dedicado um ódio impiedoso.
A palavra "ódio" pareceu chocar Loménie, mas ele evitou contradizê-la.
Andavam aquela noite novamente em direção ao Saguenay, depois de um ofício noturno que reunira para o rosário da Virgem Maria ceifadores cansados e selvagens, novamente desembarcados do alto Saguenay com suas peles para o comércio.
No dia seguinte, o Conde de Loménie retomaria o caminho para Quebec, enquanto a frota com os homens de Gouldsboro, depois de reunir seus tripulantes; ergueria velas para continuar a descer o rio-mar Saint-Laurent até o golfo do mesmo nome.
Eles discutiam, menos para se convencer que para trocar suas impressões, confessar um ao outro a inquietação e a tristeza partilhadas.
- Você é uma criatura iluminada - repetia o Conde de Loménie -, não pode compreender essa personagem.
— Mas você também, Cláudio, foi uma criança iluminada. E eu acho que foi por amá-lo que esse sombrio adolescente do Dau-phiné tinha necessidade de você, que você estivesse a seu lado para iluminá-lo. Ele o atraiu para o Canadá para isso. Não se deixe arrastar- às trevas de sua tumba.
— Como você sabe que ele era do Dauph;ng? - perguntou Loménie, surpreso.
— Creio que alguém me disse...
Mas ela pensava que sabia muito mais sobre a infância de Sebastião d'Orgeval do que o próprio Loménie. E ele a considerou com uma mistura de inquietação e de admiração, parecendo novamente invadido pelo receio de que ela possuísse poderes de adivinhação satânica ou de habilidade maquiavélica, como quisera convencê-lo D'Orgeval.
— Seja como for - continuou ele -, parece que sua aparição fez morrer entre nós, ele e eu, esse entendimento, quebrou esse elo que nos unia desde nossa juventude e que nos ajudara até então a viver e a engrandecer nossa vida pelos caminhos da conquista dos povos e do serviço de Deus. - Depois de uma pausa, ele continuou: - Retornando a Ville-Marie após o anúncio de sua morte, vi minha desgraça. Eu perdera tudo. Você me escapava enquanto mulher que inspirava meu coração, pois era a esposa de outro, ao qual era inútil disputá-la. E ele também me escapava, meu irmão que eu deixara, exilado ao longe, sem que eu elevasse minha voz para defendê-lo. Proaunciando-me por você, eu o havia ferido. Não tentei explicar-me com ele. Não podia dizer-lhe o quanto eu lhe devia... E ainda hoje sinto-me culpado por estar pronto a qualquer coisa para obter de você um simples sorriso, um gesto de amizade como aquele que deu aquela noite comigo. Somente isso, eu lhe asseguro, e isso é absurdo.
— Absurdo?!... Por quê? O absurdo é se sentir culpado com tão pouca coisa... Os gestos de amizade reaquecem o coração. E bom sentir-nos cercados por simpatia, assim como é também natural sentir-nos feridos pela antipatia. Não teríamos direito senão aos desacordos, em nossas relações com nossos semelhantes?... Em seu receio dos sentimentos afetuosos, seu rigorismo logo se tornará pior do que o dos puritanos, calvinistas, ou essa gente da Reforma que você censura tanto. __ A carne... - começou Loménie. Mas Angélica explodiu numa risada, gritando:
— Basta, basta de sermões!... A carne... É maravilhoso. Felizmente somos carne. - E, puxando-o pela mão, ela o conduziu até a extremidade do promontório.
— E agora, olhe...
— O quê?
A falésia caía a pique sobre a superfície da água, que se alastrava na foz do Saguenay. Mais acima, as flotilhas de canoas haviam sido arrastadas para a margem na estreita praia. Mas daquele lado, totalmente aberto, o céu ainda estava claro, num tom amarelo de erva-cidreira, e a superfície do rio brilhava como laca chinesa.
— Bastaria que vocês, religiosos, contemplassem a beleza deste horizonte para se comoverem. Mas há mais. Eu sinto que elas estão aí.
— Elas, quem?...
— Espere...
No mesmo instante, viram uma silhueta obscurecer o estuário, deslizando sob a água e desaparecendo, depois outras, numa dança harmoniosa semelhante a um sonho, até a eclosão de um gotejante domo prateado que se arqueou como uma ilha brotando das profundezas do mar, para mergulhar de novo, dirigindo para o céu uma cauda imperiosa com nadadeiras gémeas em forma de asas.
- As baleias!
O espetáculo era raro. As baleias haviam fugido fazia mais de meio século. Mas acontecia de as mães retornarem em direção às profundezas geladas do Saguenay para desovar seus filhotes ou para ali brincar em paz, alegremente, com algumas companheiras.
Angélica prometeu a si mesma que um dia voltaria com os gémeos, quando eles estivessem mais crescidos.
CAPÍTULO V
No abraço do rio - Uma assembleia de amigos e
outra de inimigos - "O importante é estar vivo"
Na noite em que chegaram, Joffrey de Peyrac pediu a seus visitantes que ficassem para cear com ele no salão do Arc-en-Ciel, e o próprio recoleto aceitara sem rodeios, assim como o truculento piloto do Saint-Laurent, o sr. Topin, e um de seus filhos, pois os viajantes estavam cansados de um dia inteiro de navegação no rio, que não era coisa simples para uma grande barca de uma vela, mesmo descendo a corrente.
"Essa m... de rio", dizia Topin com "uma mescla de estima e de raiva; "um dia esse monstro vai acabar nos devorando..."
Tendo mais uma vez escapado aos abismos, esses homens do rio expandiam-se sob o teto da grande sala de jogos, em torno de uma mesa bem provida, servida circunspectamente pelo despenseiro Tissot e seus ajudantes. O balanço do navio tinha a medida exata para que se sentisse estar ancorado e não em terra, cuja estabilidade tem algo de duro e de inquietante; para que se percebesse que o rio continuava a rodeá-los, aquele monstro frio, aquela serpente, abaixo e em volta deles, mas apenas a embalá-los como bebes em seus bercinhos, com um leve balanço que fazia estremecer o vinho francês nos grandes cálices de cristal e reverberar reflexos de rubis ou de ouro quando eles eram erguidos para beber à saúde uns dos outros e a felizes viagens.
Quebrando as regras da etiqueta, que indicavam seu lugar de anfitriã ou no centro da mesa, diante do Conde de Peyrac, ou numa das extremidades, com ele sentado na outra ponta, Angélica sentara-se a seu lado, como teria feito aquela noite, se não tivessem visitas.
Acabara de reencontrá-lo e queria ficar mais próxima a ele, aconchegar-se bem perto de seu calor, no perfume sutil de sua presença. Gostava de captar o odor de suas roupas em seus gestos, o odor tépido e refinado de seus cabelos quando ele mexia a cabeça, o odor de seu hálito quando se voltava para ela. Experimentava então o desejo de beijos secretos e prolongados, longe dos olhares de todos.
Era evidente que ela se comprazia em se colocar no âmbito de sua presença masculina. Mas paciência!
Quanto mais aprendia a viver ao lado dele, menos vontade sentia de partilhá-lo com os outros. Ora, a existência de ambos colocava-os a todo momento num pedestal, à testa de uma vida pública das mais movimentadas, e Angélica tinha de dar provas de obstinação e de imaginação para não ser requisitada a todo instante por deveres cerimoniais. Nisso Joffrey a ajudava, pois também ele cuidava de preservar o máximo possível suas horas de intimidade. A viagem no rio, como um casal, lhes dera grandes esperanças. Mas ele não pudera deixar Tadoussac com rapidez suficiente, e eis que as pessoas o procuravam.
O Sr. de Frontenac enviava mensageiros para transmitir ao Sr. de Peyrac notícias de sua expedição e seus agradecimentos pela ajuda que lhe dera. Loménie-Chambord vinha confiar-lhe seus tormentos e dúvidas.
Angélica decidiu beber para esquecer uma decepção que lhe entristecia o coração, não aquela, afinal mínima e passageira, de não poder estar por mais tempo sozinha com seu marido, mas, somada à melancolia de ter deixado a filha, a preocupação de ter encontrado o Cavaleiro de Loménie-Chambord tão mudado e abatido...
Tinha necessidade de algumas libações para dissipar sua terrível impressão.
Seu coração ainda estava confrangido pelos soluços daquele homem, aquele guerreiro de coração puro e valente que derreara em seu ombro, e as palavras que ele pronunciara em meio às lágrimas eram como o eco de um lamento que um outro, invisível e perdido, teria deixado escapar.
Ela bem que gostaria de esquecer aquele outro de que tanto se falava, aquele Sebastião d'Orgeval que sempre ressurgia no momento em que começavam a se reequilibrar e que, morto ou vivo, lhes suscitava incessantemente os piores aborrecimentos. Ela se sentia menos à vontade ainda pelo fato de as confidências de Loménie lhe despertarem, a despeito de si mesma, piedade, ainda que soubesse que havia por trás disso uma armadilha de que precisava desconfiar. "Ele", o jesuíta e Ambrosina sempre haviam tirado partido de sua generosidade, de sua bondade, para prejudicá-la... E ela quase se deixara apanhar...
Ela bebeu portanto, como teria engolido um remédio, um primeiro copázio de um vinho delicioso e, pouco depois, sentiu que sua alegria retornava. Poderia desempenhar-se melhor, interessar-se pelas histórias de D'Avrensson, dar a réplica ao exuberante Topin, que sempre tinha histórias de naufrágio para contar.
Aquela noite num navio com hóspedes de passagem e oficiais de sua tropa lembrava-lhe outro banquete naquele mesmo lugar, alguns anos antes, quando subiam o rio, dirigindo-se para a capital da Nova França: Quebec.
Tinham festejado com fausto e loucura, "à francesa", e cada um se sentira feliz o bastante para confessar segredos inconfessáveis de sua vida, o que estreitara seu entendimento em meio à neblina de novembro, espessa e glacial, enquanto continuavam a penetrar em surdina nas possessões do rei da França no Novo Mundo.
Como outrora, ela elevou seu cálice de cristal da Boémia, inesperado presente do Marquês de Ville-d'Avray, e, através dos rubis do vinho de Borgonha, viu o rosto de seus hóspedes nessa noite, pessoas de boa sociedade e que não mais constituíam uma ameaça potencial para eles. Naquela noite todos não passavam de uma assembleia de franceses, bons amigos, que se regozijavam com seu reencontro nos confins da fronteira de seus imensos territórios respectivos, com uma porção de novidades para contar um ao outro e lembranças comuns a evocar. Bastava lembrar a famosa noite do ataque dos iroqueses a Quebec, durante a qual Angélica ajudara o Major d'Avrensson a salvar a cidade enquanto o Sr. Topin corria ao longo do rio para apagar os fogos que balizavam o contorno da praia.
Ela via o Cavaleiro de Loménie-Chambord animar-se contando a batalha do riò Saint-Charles, falando do convento dos reco-letos transformado em fortaleza. O monge, em seu burel, lembrava-se dos detalhes. Religioso simples, bem-comportado, já no Canadá havia mais de vinte anos, ele pedira uma zurrapa para beber, o que não o impedia de se elevar ao nível da jovialidade geral.
O Sr. d'Avrensson fora encarregado pelo governador de agradecer ao Sr. de Peyrac por ter-lhe prestado o insigne serviço de vigiar e prevenir um eventual ataque iroquês a Quebec. Ele fez a seguir a narrativa da expedição do Sr. de Frontenac.
Em Cataracuí, no lago Ontário, onde mandara construir um forte rebatizado com seu nome, estava em seu feudo, em suas terras.
Naquele ano, como nos precedentes, Frontenac recebera sessenta chefes iroqueses para um encontro amistoso. Era já uma vitória tê-los feito vir e se reunir. O iroquês é generoso, mas obstinado.
Entretanto, gosta de negociar tanto quanto de lutar. Era por isso que o governador da Nova França os segurava. Tratava com dureza, mas com generosidade, a esses soberbos iroqueses. O Sr. d'Avrensson, presente a suas manobras, não se cansava de descrever-lhe as sutilezas e as fases.
Acabaram por arrancar-lhes a promessa de permanecer em paz com seus vizinhos, os utauais e os andastes, e de parar de massacrar sistematicamente os huronianos, ou o que deles restava.
Frontenac tinha a capacidade de admoestar os índios sem enfurecê-los. Sua vivacidade, sua maneira de brincar alegremente com seus filhos os enterneciam. Eles morriam de rir quando o ouviam executar perfeitamente seus sassakuas, seus gritos de guerra, que congelavam o sangue nas veias.
Para colocar-se em posição de conferenciar com sabedoria e lucidez, fizeram primeiramente dois grandes festins, desses festins em que não se comia nada, limitando-se a fumar, e que eles chamavam "festins" de devaneio". Cabe dizer que saíam deles mais bêbados e trôpegos do que após as mais desenfreadas libações, pois usavam um tabaco preto e duro que impregnava a garganta durante três dias.
Depois começaram os verdadeiros festins. Aí novamente notava-se a semelhança entre franceses e índios, e principalmente iro-queses. "O gosto pelos festins", antes ou depois da.batalha.
A cabeça do maior cão cozido foi dada ao Sr. de Frontenac, que a comeu até os olhos, o que não era a menor de suas ações heróicas.
Peixes diversos... Tomando-se o cuidado de não jogar as espinhas no fogo por causa dos espíritos das águas, que poderiam ficar aborrecidos.
Depdis de colocar numa grande fogueira o maior caldeirão que possuíam e no qual haviam cozido pedaços enormes de carne, os três grandes chefes, armados de um porrete, juntaram-se para empurrá-lo e derrubá-lo. Gesto simbólico, virar o caldeirão de guerra significava: "A guerra acabou. Aceitamos a paz".
Retirando com uma cabaça o cozido que ficara no fundo, os chefes acentuaram a solenidade de seu gesto, distribuindo essa bebida, muito encorpada e de gosto excelente, aos "principais" entre os franceses, de acordo com um costume que pedia aos antigos inimigos que se nutrissem da própria rendição de seus adversários, pois a chamavam de "caldo dos vencidos", e alguns insinuaram, numa brincadeira de mau gosto, que talvez estivesse temperada com ossos e carnes humanas dos recentes massacres, o que fez empalidecer os jovens oficiais recém-chegados ao Canadá.
Em suma, haviam enterrado o machado de guerra.
Sob o teto de madeira de lei do salão do Arc-en-Ciel, os convivas aplaudiram.
Mais uma vez, Frontenac mostrara-se audacioso e hábil a sua moda, que fazia tremer seus fiéis, mas que visava sempre o interesse fundamental da colónia.
Antes de deixar os iroqueses voltarem a seu vale nos Cinco Lagos, houve troca de wampums e de presentes.
Eles recusaram o sal, um artigo precioso, no entanto, pois, diziam, ele provocava sede, e a água os deixava pesados; cuidavam da flexibilidade de seus músculos, a fim de correr e puxar o arco melhor. Nunca sentiam sede. Seu insosso sagamité de milho cozido, condimentado com pequenos frutos ácidos, bastava-lhes.
Em compensação, aceitaram o presente, para eles luxuoso, de vários sacos de farinha, pois apreciavam muito pães de trigo. Um padeiro os acompanharia até seus domínios, para fabricar-lhes, no início do inverno, belas rodas de pão, que seria conservado durante todo o mau tempo.
Frontenac lhes deixou também um armeiro com dois companheiros, que os seguiriam até seus povoados de casas compridas para consertar suas armas de fogo e amarrar seus machados.
Como bom gascão que apreciava a vida, o Sr. de Frontenac gostava muito desses selvagens.
A alegria era geral em torno da mesa. A expedição anual fora bem-sucedida.
Para Angélica, a presença de Nicolau Perrot entre eles evocava suas dificuldades iniciais de relacionamento no Novo Mundo, os perigos que tinham enfrentado. Em comparação, ficou surpresa com a obra admirável que se realizara desde aquela época. Pois nessa noite eram todos franceses reunidos para beber a seu soberano e ao êxito das expedições do Governador Frontenac para estabelecer a paz do continente bárbaro, para felicitar-se dos tratados que aproximavam, sob o manto de suas sombrias florestas já disputadas e divididas, povos desejosos de se compreender, de trabalhar juntos para uma vida um pouco melhor.
Todos os seus esforços iriam ser questionados novamente pelo fato de, no fundo dessas mesmas florestas, ter-se perpetrado o fim funesto de um grande jesuíta? O estandarte dele, sua bandeira de guerra, era marcado por cinco cruzes, uma em cada canto e a quinta no meio, cruzes cercadas de quatro arcos e flechas.
Ela o vira flamular à frente dos abenakis, enquanto eles se arremessavam ao assalto da aldeia inglesa.
Que o Padre de Marville a desculpasse, mas isso não tinha nada de imaginário. Ela ouvira igualmente o jesuíta dar a absolvição, no acampamento, àqueles que iriam matar os "heréticos" de Katarunk, isto é, eles, os recém-chegados. Ela fora entrevista montada em sua égua, que ela se esforçava por reconduzir ao campo, e eis que esses espíritos habituados aos milagres-e aos prodígios designavam, a pobre Wallis como a licorne maléfica que anunciava as desgraças da Acádia. Assim começara a surda e árdua luta.
O Padre d'Orgeval fora um homem muito amado pelas pessoas simples, assim como pelos nobres penitentes,, e Angélica, lealmente, não procurara arrancá-lo do coração de seus amigos nem macular-lhe a imagem. E, agora que sua morte era conhecida, seu culto parecia reassumir um novo impulso.
Lembravam-se apenas do anátema pronunciado contra ela, esqueciam a perseguição de que tinha sido objeto, por desconhecerem seu encarniçamento'.
Essa deserção, que ela sentia latente e sem garantia de poder evitar, aumentava o mal-estar que ela trazia de sua segunda viagem à Nova França, apesar do inesperado encontro com seu irmão mais velho, Josselino de Sancé.
Seus pensamentos tornavam-se lúcidos e libertos do que tinham de triste. Dessa luta com o jesuíta ela revia imagens muito belas, ordenadas e grandiosas como as de uma ópera. Wallis, sua égua, encabritando-se na floresta de outono, o estandarte de cinco cruzes flutuando ao vento e a horda de selvagens urrando, expandindo-se na fímbria das florestas, percorrendo o vale em direção à aldeia inglesa.
Belas imagens para uma bela aventura! A aventura de sua vida comum na América.
Ela se voltava para Joffrey, como se ele pudesse ajudá-la a dispersar o voo de seus pensamentos um pouco loucos. É verdade que ele podia fazê-lo. E, quando estava perto dele, ela escapava rapidamente a suas apreensões, que frequentemente eram exageradas ou pelo menos prematuras. Ele permanecia calmo e filosófico. Pois, dizia, ao mesmo tempo que se mostrava vigilante, não se podia passar o tempo construindo um futuro de catástrofes e traições.
"Como me sinto bem quando estou ao lado dele!", repetia-se ela, aproximando-se ainda mais, quase tocando-o, e surpreendeu o olhar do Conde de Loménie, a quem não escapava seu movimento carinhoso e amoroso de mulher, expandindo-se à sombra do homem amado.
Mas ela não podia deixar de olhar para ele, de voltar a ele, a esse perfil de uma virilidade tão perfeita que para ela não havia homem que pudesse comunicar-lhe tal impressão de força e também de proteção sem limites.
Sua confiança nele era o fruto de seu amor total por ela, no qual ela acabara por acreditar e do qual sentia que ele estava habituado - impregnado, dizia ele por vezes -, que o levava a repetir-lhe com frequência que ela era tudo para ele, o que era a única coisa que lhe importava.
Joffrey encontrava o jeito de beber, franca e alegremente, sem jamais fazer com que sentissem que o fazia para afastar uma preocupação ou, como alguns, para se vingar de um mundo que lhes desagradava, no qual só reconheciam amargura. Ele bebia para saborear a excelência do fruto da vinha, dom de Deus, e se deixar levar a sua amável vertigem, sem fazê-lo por fraqueza. Bebia para fazer companhia a seus hóspedes, para honrá-los e torná-los felizes, pois a acolhida aberta e o bem-estar dispensado ao viajante faziam parte dos prazeres deste mundo, de uma arte de viver, de uma trégua obrigatória, para compensar a hostilidade e crueza reinantes, por outro lado, pela maldita terra.
Quando ele bebia, dir-se-ia que acolhia o vinho como acolhia todos, isto é, como um amigo com o qual nos alegramos e aprendemos a nos conhecer melhor.
Apenas seus olhos brilhavam um pouco mais, apenas o calor de seu sorriso tornava-se mais comunicativo, sua expressão, mais mordaz, e mesmo sardónica, como se tivesse se posto a contemplar do alto a fraqueza humana, com um leve toque de zombaria, mas sem maldade.
Até onde podia lembrar-se, ele tinha sido sempre assim. Já em Toulouse, vira esse brilhante príncipe das cortes de amor dedilhando seu violão, com seus olhos sorridentes por trás das fendas da máscara, presidindo à reunião de homens e mulheres, nem todos heróis de romances e princesas de pensamentos nobres, longe disso, mas que subitamente eram glorificados, transfigurados pelas magias conjugadas do canto, da filosofia cortesã, dos vinhos seletos e do Amor, que, convocado ao banquete, distribuía suas flechas.
Ela conquistara o mais cobiçado dentre eles, Joffrey de Peyrac. Podia dizer a si mesma: "Daqui a pouco, ficarei a sós com ele".
Não se cansava de contemplá-lo enquanto ele permanecia atento, acompanhando as peripécias da conversa, na qualidade de perito nessa justa não menos importante que a das lanças ou das espadas, conhecendo o valor de cada palavra, cada sombra ou luz, crispação ou sorriso que perpassava pelos rostos.
Havia nele, nessa espreita, alguma coisa do rei.
Mas ele era mais forte que o rei, e mais livre.
"Como eu o amo! O meu Deus, faça com que ele me ame sempre! Sem ele, eu morreria!"
"Bebi demais! Fruto da vinha, que traição você me fez! Será que se pode ver? Todos nós estamos rindo. Até Loménie! Abençoado fruto da vinha! O importante é estar vivo. E nós estamos vivos! Amanhã vou dizer ao pobre conde traído que crie coragem. O jesuíta morreu. E ele jamais soube como é bom beber entre amigos. Ele viveu tão-somente para as trevas. Eis por que perdeu. Senhor, perdoe-me! Eu deveria apiedar-me de um mártir."
No momento em que deixavam a reunião, sob a neblina estuante de mil gotículas cintilantes, ao se despedir, um pouco vacilante ao lado de seu mestre e senhor, Angélica leu ou julgou ter lido nas pupilas de Loménie-Chambord um pensamento que o trespassou como um dardo ao vê-los: "Esta noite eles vão se amar..."
Sua fisionomia se alterou novamente. Suas faces se encovaram. Nas mesmas circunstâncias, a Diaba, vendo-os a sua cabeceira, tão próximos e inseparáveis em sua conivência de amantes, soltara seu grito terrível de desespero enciumado, seu grito de criatura danada para todo o sempre...
CAPITULO VI
Afetos inconciliáveis
Terminava a parada em Tadoussac. Seus visitantes iam novamente partir rio acima. Em dois ou quatro meses, o inverno voltaria para encerrá-los com seus gelos.
Angélica conversou ainda um pouco com o Cavaleiro de Loménie-Chambord.
Percebendo-lhe a fragilidade, ela evitava atormentá-lo. Gostaria de sacudi-lo para acordá-lo, como a uma pessoa afligida por um pesadelo.
Ela procurou contentar-se com algumas palavras que ele deixava escapar: "Seus argumentos são justificáveis...", "Eu não me enganei..."
Mas essa era uma obra que devia ser recomeçada a cada dia que passava.
Certa vez, tirando do gibão uma carta que desdobrou com precaução, pois fora escrita numa casca de carvalho, ele quis ler-lhe passagens da última carta que o jesuíta lhe enviara, havia já muito tempo, um pouco depois da partida de Quebec, pouco antes que suas notícias tivessem cessado completamente.
Uma coisa estranha é que nessa última carta a seu amigo de infância o jesuíta não cessara de se referir ao perigo que a Dama do Lago de Prata representava. Dir-se-ia que estava possuído por uma obsessão e ummedo:
- "...Dela, você deve recear tudo, meu amigo! É uma mulher de poder, uma mulher política..."
- Deus, que tolice!
Mas Loménie continuava, numa voz suave e implacável, a desfiar o rosário dessas acusações insanas, cada uma das quais, porém, carregava, sob a aparência de mansuetude, de sábia advertência, sua gota de veneno.
— "...Poder dos sentidos, desenvolvido ao máximo, e ao qual, como pude observar, você não era insensível, por mais piedosa que seja sua vida, mas que não a distinguiria das outras mulheres, não fosse duplicada por uma inteligência que a leva a ambições de poder sobre o espírito dos homens e, o que é mais perigoso, a se assenhorear de suas almas, o que é sutil e insidioso, pois os conduz a uma liberalidade culposa em relação a disciplinas religiosas, a imperativos da lei santa ensinada pelo próprio Deus, um desconhecimento da natureza do pecado que pode levar gradativamente à mais radical perda de sua salvação. Mas deixemos isso..."
— Tanto melhor! - atalhou-o Angélica, que o escutava, taciturna.
— "...Não falemos senão do poder político que se oculta sob aparências encantadoras e como que ignorantes dos difíceis arcanos com os quais se encontram comprometidos os homens encarregados de dirigir os povos. Responsabilidades que, colocadas em mãos femininas, jamais deram resultados satisfatórios..."
— Isso é algo que tem de ser pensado... A Inglaterra não teve motivos de queixa contra sua grande Rainha Elizabeth I.
— "...Mas das quais algumas se apoderam de modo insidioso" - continuava o cavaleiro. - "Ouvi dizer que nosso rei, dissuadido de confiar nas mulheres nesse domínio, por horror a essas 'frondosas' enraivecidas que haviam arrastado os poderosos do reino contra ele durante sua menoridade, não podia suportar que nenhuma mulher, nem a rainha, nem mesmo a mais influente de suas amantes, lhe dissesse a mínima palavra sobre os negócios do reino. Ora, eu soube de boa fonte que por causa dessa única mulher, a Sra. de Peyrac, quando ela se encontrava em Versalhes, esposa de um outro fidalgo, o rei pôs de lado seu mutismo e pediu-lhe muitas vezes sua opinião sobre questões de diplomacia, chegando até a confiar-lhe embaixadas junto a soberanos estrangeiros..."
O Conde de Loménie ergueu a cabeça e examinou Angélica com uma mímica em que havia ao mesmo tempo surpresa e expectativa de um desmentido.
Mas ela contentou-se em suspirar.
— Parece que seu jesuíta sabia de tudo - disse ela, após um momento de silêncio. - Tudo... até isso.
— Sim, ele sabia tudo - repetiu Loménie, dobrando a carta com uma lentidão sonhadora. - Esse dom de adivinhação, de vidência, não nos indica que estamos diante de um santo, cujas adjurações pecaríamos por desdenhar?
— Quem lhe falou de vidência? - disse ela, dando de ombros. - Ele tinha opiniões em toda parte...
Poderiam ter discutido dois dias e duas noites sem chegar a um resultado satisfatório, aquele que Angélica desejava alcançar: devolver ao Cavaleiro de Loménie-Chambord a paz de espírito.
Eles giravam em torno do assunto. Ela esperou contudo que esses diálogos não tivessem sido inúteis. No que lhe dizia respeito, essas discussões com Loménie lhe haviam permitido delimitar melhor, ver de perto, essa personagem oculta que, mesmo morta, continuava a presidir seu destino, e concluíra por uma opinião que a ajudava a manter a cabeça fria, pois, mesmo nesse novo mito criado em torno dele, ela discernia menos força e mais fraquezas. Com o que ela sabia agora a seu respeito, via essa personagem como um prisioneiro de sinistros mandatos, como o carneiro-guia, cuja beleza dos cornos retorcidos, sua glória, é uma armadilha que causa sua perda quando eles se entrelaçam nas moitas e não conseguem livrar-se delas.
O que complicava tudo é que ele havia pertencido à ordem dos jesuítas, uma ordem cujo poder não parava de crescer. Formada pela elite de todas as nações, era um partido, pela ação enérgica das ideias, das mudanças filosóficas. Mas também, por sua defesa das leis estabelecidas, das intervenções divinas, o exercite de Deus, o exército de Roma, isto é, do papa. Cada ordem reli giosa suscitada a cada século não havia representado esse "parti do" que traduzia o pensamento de sua época e, podia-se dizer sua cor ideológica? Para o século em que Angélica nascera, a ordem mestra era a dos jesuítas.
Neles se reuniam as evoluções modernas e as recusas essenciais.
Mas no final das contas, pensando nisso, não tinha certeza de que esse ' 'bastião d'Orgeval fosse um "verdadeiro" jesuíta, como seu irmão Raimundo, por exemplo. Eles eram muito fortes e matreiros, mas. não tão hipócritas e intolerantes.
Ela antes o teria acusado de ter usado sua posição de jesuíta como um disfarce.
Via-o como que tecido por velhas raízes. Estendia a sombra de antigas maldições sobre uma terra virgem, recusando por suas atitudes as correntes do futuro que podiam nascer desse Novo Mundo, e todo aquele que se deixasse absorver por essa sombra, que se queria ao mesmo tempo insinuante e tutelar, perdia sua oportunidade de alcançar a nova luz.
Tinha sido uma luta entre o que eles traziam, Joffrey e ela, e o que ele defendia, num sobressalto de feroz autoridade pessoal.
Dessas decisões, o resto do mundo estava excluído. O que ele queria era a única coisa que tinha o direito de ser preservada, sua vindita, a única coisa a ser aprovada, e sua vingança, a única a ser executada.
Vingança contra quem?
"Contra você!... Contra você!...", gritou-lhe uma voz interior. "Mas por quê? O que foi que eu fiz?..."
Sob a enganosa roupagem de santidade, Sebastião d'Orgeval travava um estéril combate que só lhe dizia respeito e a seus próprios delírios, atrás do qual ela talvez fosse a única a adivinhar seu orgulho incomentável e a silhueta perniciosa da Diaba. "Ele julga tê-la enviado a nós para seu serviço... Mas foi o contrário. Era ela que o dominava, que sempre o dominara desde a mais tenra infância..."
Ela pensou nesta expressão: "tenra infância".
E imaginava, com um arrepio, as três crianças malditas nos va-lezinhos florestais do obscuro Dauphiné. Tudo era escuro naquela história.
Aqueles que D'Orgeval e Ambrõsina atraíam para suas sendas retrocediam, perdiam-se...
Será que Loménie não via isso? Pensou numa frase que ó cavaleiro de Malta pronunciara um dia a respeito de Honorina, a quem acabara de oferecer um pequeno arco e flechas.
"Apreciamos mimar a inocência. Só ela o merece..."
Tanta delicadeza, tanta finura num homem a enternecera. Hoje isso se estiolara, se evaporara. O jesuíta estendia sua sombra como a de uma árvore venenosa sobre aqueles que ele queria reconquistar e atrair para seu túmulo.
A época de inverno de Quebec surgia-lhe como um período abençoado por amizade e liberdades sorridentes. Apesar de algumas provações, erros e loucuras deste ou daquele, muita coisa boa adviera daquele tempo.
Ela não estava certa de poder agir sem inabilidade. Ele era um esfolado vivo.
As mínimas palavras ou alusões impensadas podiam fazê-lo oscilar no sentido contrário ao que se pretendia.
Ela suspeitava que as palavras "amor" e "prazer" eram insuportáveis a ele, excluído do amor, ele que no entanto se afastara voluntariamente do amor por sentimento mais elevado, que soubera fugir e distanciar-se dela com uma sabedoria tão serena e digna.
Havia instantes, o que era desolador, em que ele se parecia com Bardagne.
Ela não se conformava em vê-lo decair e perder sua aura.
Mas era obrigada a constatar que não se podia mais discutir com ele todas as questões delicadas ou deliciosas, como o faziam outrora, quando eram próximos como irmão e irmã, como amigos afetuosos, de maneira liberal e encantadora.
Parecia que ele não tinha mais vontade própria. Ele, que ela conhecera tão enérgico, tão lúcido e tão firme diante da tentação do amor, tão seguro de estar agindo corretamente, quando em Katarunk se aliara a eles, ou quando, mais tarde, os procurara em Quebec, desafiando as correntes de opinião contrárias, a fim de oferecer-lhes a caução de sua reputação na Nova França, era hoje semelhante a um navio sem mastro e sem bússola.
Algumas horas antes da partida, ela olhou de frente, quase com lágrimas nos olhos, e disse-lhe:
- Será que o perdi?
Mais uma vez sua expressão se alterou, e dir-se-ia que uma brisa que se elevava arrastava ao mesmo tempo as fumaças deletérias que asfixiavam sua alma.
- Oh, minha amiga, não! Não pense uma coisa dessas! Como eu poderia viver sem você? Ou ao menos sem o pensamento de que você tem por mim alguma amizade, que existe e que por vezes pensa em mim'; ó minha cara e doce amiga! Mas você tem de compreender que sofro com os golpes injustos infligidos a um amigo que me era muito caro!...
"E aqueles que ele me infligiu, injustos e mortais, rião o fazem sofrer?...", esteve a ponto de retorquir-lhe.
Mas conteve-se, persuadida da inanidade de sua reflexão, no momento. Além disso, não era de seu feitio espalhar aos quatro ventos os prejuízos e injustiças que julgava ter sofrido. Existe um pudor e um orgulho essencialmente femininos no silêncio de certos seres acerca dos ferimentos que recebem. Ela era como os cavaleiros das lendas que se compadecem das desgraças dos outros, voam em seu auxílio, ficam indignados com as injustiças que sofrem e, munidos de uma tão santa e generosa vocação de destroçar os inimigos dos outros, não pensam naqueles que os espreitam, esquecendo-se de sua própria sorte.
"Fora das lendas", disse a si mesma, "seria bom perceber que nossa armadura se encontra às vezes bem amassada e que nosso sangue escorre. Eu me deixo emocionar estupidamente pela sorte de meus amigos e eles se iludem, sem se preocupar com os golpes que nos são desfechados, com os desgostos que nos entristecem. Julgam-nos suficientemente fortes e privilegiados para nos consolarmos e nos defendermos sozinhos."
- Você nem sequer me pediu notícias de Honorina - lançou-lhe de supetão, revoltada. - Senhor cavaleiro, você me causa pena. E sua mudança de atitude só pode causar prejuízo à causa que defende, pois não poderei deixar de, mais uma vez, acusar seu jesuíta de ser o causador disso. Acabo de deixar Honorina, minha filhinha, aos cuidados da Madre Bourgeoys, e ficarei um ano inteiro sem vê-la; durante- esta viagem, por uma razão que ainda não compreendi inteiramente mas que nada tem de imaginária a Nova França me fez cara feia. Eu o procurava em Montreal para encontrar uma palavra de conforto, e você me fugiu. Entristecida, desço o rio e me afasto por muito tempo. - Depois de uma pausa, ela continuou: - Julga que era hora de vir me fazer compreender que perdi sua amizade? Como se isso me fosse indiferente?! Seria desconhecer o apego que tenho por meus amigos e que, ai de mim, constitui minha fraqueza. Você me trata como mulher política ou mulher calculista, leviana, que sei eu! Não. Sou apenas uma mulher, e você deveria ficar indignado por ver uma amiga como eu, que cuidou de você, o salvou, e que teve uma tolice de ter por você uma preferência, algumas fraquezas, pois eu o achava encantador, por me ver, como dizia, tratada com tanta sanha, tanto ódio, sim...
Ele a interrompeu, segurando-lhe a mão e beijando-a com paixão:
- Ê verdade, tem razão, perdoe-me!
Era essa versatilidade, tão pouco própria do caráter de seu amigo de Katarunk, que a atormentava.
— Perdoe-me! Perdoe-me mil vezes! Eu lhe suplico. Minha conduta é imperdoável. Eu sei, jamais duvidei. Sei que você está do lado da bondade...
— O que quer dizer que, apesar de suas virtudes, seu santo mártir, nosso adversário, não se privou de faltar à caridade em suas empresas contra nós, não é? Você o reconhece?
Teria desejado que ele se pronunciasse, que se decidisse a olhar a situação de frente, que fizesse uma escolha. O que o destruía era sempre oscilar, duvidar.
— E verdade - disse ele. - E, no entanto, havia nele bondade.
— Basta - atalhou-o. - Você me decepciona porque não quer livrar-se de seus tormentos.
E, vendo que ele levava a mão ao gibão, ela julgou que ele quisesse ler-lhe mais uma vez uma carta do Padre d'Orgeval.
— Basta, estou lhe dizendo. Não quero mais ouvir falar desse homem.
— Não é isso!
Ele a seguiu enquanto ela retomava o caminho para a praia, para voltar a bordo do Arc-en-Ciel, e tomou-lhe o braço, quase rindo.
- Você está enganada a meu respeito, você também. Saiba que em Montreal fui visitar sua pequena Honorina na Congregação de Nossa Senhora e que lhe trago uma carta de Margarida Bourgeoys dando-lhe detalhes sobre a jovenzinha!
Angélica sobressaltou-se, quase o beijou e reprovou-o vivamente por ter esperado até aquele momento para lhe transmitir essa boa
notícia.
Ele bateu no peito e reconheceu que a fadiga e a precipitação da viagem lhe haviam provocado uma espécie de entorpecimento da memória, a tal ponto que se esquecera da mensagem de que era portador. De todo modo, ter-se-ia lembrado. Não teria partido sem entregar-lhe aquele envelope, ter-lhe falado da menina. Ela não acreditou inteiramente nele. Suspeitou que quisera experimentá-la, fazê-la sofrer, recusando-lhe uma alegria para se vingar dela, vingar "o outro"... Isso lhe parecia tão pouco... Seu estado hipocondríaco era muito mais grave do que pensara. Não se surpreendeu ao saber que fora Margarida Bourgeoys quem mandara procurar o cavaleiro nos sulpicianos, sob o pretexto de entregar-lhe uma carta com notícias de Honorina de Peyrac a seus pais, antes que eles tivessem deixado a Nova França. Sem consultar ninguém, ela decidira ir a sua procura.
Ela agira bem, pois, não sem dificuldades, yiu-se reaparecer na última hora o antigo Loménie, de expressão amável e decidida, e que lhe falou, como só ele sabia fazê-lo, de suas conversas com a jovem Honorina e entregou-lhe, além do envelope da diretora, uma página de caligrafia da pequena aluna, coberta por grandes A aplicados, mas bem desenhados e alinhados, que Angélica dobrou e guardou no corpete como uma carta de amor.
Quando a hora da separação se aproximou, o Conde de Peyrac, que havia se eclipsado, trouxe por sua vez uma missiva que acabara de redigir para Honorina, um grande envelope lacrado com um grande sinete vermelho, pedindo ao cavaleiro a gentileza de ler pessoalmente o conteúdo a sua filha quando chegasse a Montreal. Juntou-lhe um anel que retirou do dedo, enviando-o à menina para que ela o usasse como "sinal de reconhecimento".
- Que ela saiba que permanecemos junto a ela.
Angélica, tomada de surpresa, acrescentou algumas palavras e confiou igualmente uma longa mensagem verbal para Margarida Bourgeoys e uns brinquedinhos para Honorina.
Loménie pediu-lhes que lhe perdoassem também por ter sido um comensal tão desinteressante. O ferimento que recebera no início da campanha de Cataracuí enfraquecera-o, pois havia perdido muito sangue. Sentia frequentemente um^aziq no cérebro. E talvez isso fosse verdade.
No último momento, pareceu dar-se conta de mais um esquecimento, mas foi por brincadeira, a fim de preparar-lhes uma surpresa.
Mandou trazer e colocar diante deles, na mesa, uma grande caixa quadrada, feita de cascas de árvore emendadas à maneira indígena.
Retirada a tampa, viu-se uma coleção de figurinhas de madeira, muito coloridas, que o cavaleiro começou a arrumar uma ao lado da outra; cada figurinha mantinha-se em equilíbrio num pequeno pedestal, também de casca de árvore.
Ele contou que soubera que o Frei Lucas, do convento dos re-coletos, no rio Saint-Charles, antes de entrar para o serviço religioso, dedicava-se à escultura e pintura de regimentos em miniatura para brinquedos de crianças. Decidira-se a encomendar-Ihe alguns soldadinhos de madeira para oferecer como sinal de acontecimento feliz ao jovem Raimundo Rogério de Peyrac.
- Para seu novo filho -- disse, voltando-se para Angélica e Joffrey.
O franciscano e ele tinham escolhido ilustrar alguns dos corpos da Casa do Rei, cujos uniformes haviam suscitado a admiração da gente de Quebec quando uma vintena de guardas das companhias francesas ali aparceram para escoltar o Sr. de La Van-drie, conselheiro de Estado no Conselho dos Negócios e Despachos, que fora enviado como mensageiro especial do rei. No ano seguinte, o conselheiro de Estado refez sua viagem - pois os negócios de peles que ele começara a tratar no Canadá compensavam o desconforto de algumas semanas de navegação; Loménie não hesitara em se informar junto a ele, assim como junto a um dos anspeçadas ou brigadeiros, comandante dos membros da escolta, acerca dos detalhes dos uniformes e da variedade das diferentes companhias que representavam a Casa do Rei, a prestigiosa instituição militar de homens de elite constituída durante séculos pelos reis da França, cujo renome fazia o inimigo tremer nos campos de batalha.
A variedade e a minúcia de execução das estatuetas suscitou a admiração geral. Passaram-nas de mão em mão.
Prova tocante, se isso fosse necessário, da afeição que o Conde de Loménie-Chambord tinha por seus amigos de Wapassu, apesar de sua posição independente, um pouco ligado demais aos heréticos franceses ou ingleses.
Durante o inverno, o Conde de Loménie não deixara de ir levar sua ajuda à iluminura das pequenas personagens que Frei Lucas talhava e pintava com o auxílio de um dos filhos do escultor-escrivão Le Basseur.
- Nosso filho mais novo ainda não deu os primeiros passos - disse Peyrac -, mas posso lhe assegurar que já está em idade de apreciar um presente tão belo e que ele, como sua irmãzinha, vai se divertir em contemplá-las e em dispô-las, se não para a batalha, pelo menos para o prazer da revista.
O Sr. de Loménie reconhecia ter passado momentos maravilhosos no calmo convento dos recoletos, com o Irmão Lucas e seu ajudante, ocupado em compor o pequeno exército, cada um deles utilizando alternadamente a goiva e o pincel e rejubilando-se antecipadamente com o prazer que haveria de ter um garotinho em alinhá-los e manobrá-los.
Pelo menos Utakê, o chefe iroquês, que expedira inicialmente o Padre de Marville e sua triste mensagem para o sul, à Nova Inglaterra, dera um ano de descanso ao pobre cavaleiro.
A estação dos gelos, que privava por cerca de sete a nove meses a província do Canadá de qualquer correio, fora clemente mantendo-o na ignorância de um luto que o chocara mais do que o previsto. Ainda que devesse estar preparado para isso, havia muito.
"Vê? Somos sempre seus amigos, e você não nos tinha renegado", dizia-lhe os olhos de Angélica enquanto ele descia a escada de corda até a chalupa que iria levá-lo para o pequeno navio de trinta toneladas, no qual reservara passagem para retornar a Quebec. Ele sorriu.
Continuou a sorrir enquanto lhes dirigia de longe sinais de Angélica, porém, vendo-o afastar-se, adivinhava, com o coração apertado, que, assim que estivesse longe deles, ele seria acometido novamente por seus escrúpulos, seus arrependimentos e até por seus remorsos lancinantes, que aprofundariam nele a marca de uma mágoa que era quase uma mágoa de amor. Dupla mágoa de amor, inspirada por uma mulher viva e um amigo morto. Não podendo servir um sem trair o outro, não podendo escolher um sem renegar o outro, não podendo defender um sem causar a perda do outro, não podendo, por amá-los ao mesmo tempo com uma paixão idêntica e diferente, arrancá-los de seu coração e de sua vida, apesar das preces, da disciplina, das meditações, das macerações, das confissões, não podendo banir de seu pensamento e de seu ser nem o jesuíta mártir, o amigo bem-amado de sempre, cuja presença próxima ele sentia, suplicando-lhe baixinho que o reabilitasse e prosseguisse sua obra de salvação para a glória de Deus e da França, nem ela, a mulher, a encarnação feminina de tudo o que lhe era proibido, a amiga também, aquela à qual não sabia que título dar, mas cuja imagem se apresentava incessantemente diante dele, cuja mais furtiva evocação, o nome pronunciado, um riso que evocasse o seu, um perfume tinham o poder de fasciná-lo até as lágrimas da emoção, até o benefício da alegria desvairada, da ternura e do reconhecimento, o Cavaleiro de Loménie não deixaria jamais de ser dilacerado, despedaçado entre dois afetos, dois deveres, dois compromissos.
Dali para a frente, ele iria atravessar o deserto, onde nenhuma voz consoladora se faz ouvir', onde não havia esperança, onde a divindade recusa deixar-se perceber, o que constitui a mais amarga e terrível provação para aquele que consagrou sua vida e sacrificou todos os prazeres da terra ao invisível Deus.
ENTRE DOIS MUNDOS
CAPÍTULO VII
A hora do sonho
Tinham finalmente içado velas e distanciavam-se de Tadoussac.
Angélica levou algumas horas para dar-se coma de que estava a sós com Joffrey, desembaraçados das contingências mundanas, ambos livres em um navio, que era do que mais gostava.
Iam reencontrar hábitos estabelecidos, cujo encanto não se cansavam de usufruir.
Estar sentados um junto ao outro, seja sob um toldo erguido no castelo de proa, quando fazia muito calor ou para se abrigar ao vento quando chovia, seja, ao cair da noite, no balcão do castelo de popa, para o qual se abriam as janelas de seus aposentos!
Ali, estirados no divã com almofadas orientais, usufruíam o encanto das conversas inconsequentes, numa quietude e disponibilidade de tempo de que raramente dispunham.
Tinham, Joffrey e ela, o privilégio de ter sido poupados, de ainda poder acender os fogos da ternura e do desejo.
Kuassi-Ba servia-lhes o café turco em pequenas xícaras de porcelana fina, apoiadas em admiráveis cálices decorados com arabescos chamados zarfs, que permitiam beber o café sem queimar os dedos. Todo esse aparato ritual para degustar o café que evocava o Oriente conduzia-os ao Mediterrâneo, a Cândia e à ilha de Malta, sobre o qual Angélica falara com o Conde de Loménie.
Ela lhe sugerira que passasse novamente pela França a fim de buscar ajuda e conselho entre seus irmãos, os Hospitaleiros de São João de Jerusalém, hoje denominados Cavaleiros de Malta. Mas ele recusara a sugestão. Queria ficar no Canadá, onde repousavam os restos mortais de seu amigo imolado pelos iroqueses. E no entanto o distanciamento lhe teria sido benéfico. E o sol.
- Gostei muito da bela luz que em Malta iluminava as salas do Grande Hospital. Os doentes eram servidos em baixelas de prata. Visitei a botica, as salas de cirurgia. Depois, no forte, viam-se flutuar as auriflamas de todas as galeras da Ordem de Malta, prontas a ganhar o mar para lutar contra os berberes.
Interrompeu-se subitamente. Depois, Joffrey viu-a mergulhar o rosto entre as mãos, murmurando: "O Senhor! Era ele!", e permanecer assim, como que absorvida por uma evocação cujos elementos lhe fugiam.
- Henrique de Rognier - disse ela, em voz alta.
Joffrey de Peyrac respeitou sua meditação. Esta com efeito fazia um giro complicado. Angélica era obrigada a se transportar a Salem, quando, depois do nascimento dos gémeos, fora acometida por um assesso de malária.
Sacudida por aquela febre que contraíra no Mediterrâneo, ela julgara ter voltado a Argel, quando ali se encontrava prisioneira do grande eunuco Osman Ferradji, vizir de Mulay Ismael, o rei. do Marrocos, para o qual ele a comprara. Em seu delírio, imaginava não haver ainda encontrado Joffrey. Ela se reconhecera nas ruas da cidade branca, conduzida por seus guardas muçulmanos. Numa encruzilhada, vira expirar, apedrejado pela multidão, um dos monges guerreiros capturados com ela na galera de Malta, e - em seu pesadelo - ele lhe gritava: "Eu lhe dei o seu primeiro beijo".
Recobrando os sentidos, em Salem, na Nova Inglaterra, entre os braços de Joffrey de Peyrac, atribuíra o amálgama barroco daquela cena incongruente a seu estado febril.
E se o cavaleiro apedrejado se chamasse Henrique de Rognier?!... A confusão já não seria tão barroca.
Fez um esforço para se lembrar.
Henrique de Rognier?!... Tinha agora quase certeza. Era exatamente esse o nome de um dos dois cavaleiros com os quais ela viajara numa galera de Malta, quando procurava Joffrey no Mediterrâneo.
Angélica ergueu a cabeça.
Impressionada, contou ao marido o episódio evocado pelo Conde de Loménie-Chambord. E o prolongamento desse episódio, que acabara de descobrir e de que não se dera conta, não tendo reconhecido o pajem de Poitiers, seu antigo namorado, sob a túnica vermelha com a cruz de hastes alargadas dos Hospitaleiros de Malta.
— E ele? Terá me reconhecido? Isso foi anos mais tarde, e eu viajava sobre o nome de Marquesa du Plessis-Bellière. Seja como for, ele só sabia meu primeiro nome.
— Pode estar certa de que ele a reconheceu. Olhos como os seus não se esquecem nunca.
— Ele não fez qualquer alusão a um encontro no passado. Ou talvez eu não tenha notado.
Entretanto, alguma coisa devia ter pairado entre eles para vir se introduzir anos mais tarde no delírio que ela tivera e lançar-lhe aquelas palavras que ele não quisera pronunciar.
Ela não conseguia lembrar-se de seus traços. Apenas sua silhueta, mais esguia comparada àquela, mais atarracada, do outro religioso, almirante da galera.
- Minha indiferença provavelmente o desencorajou de evocar comigo uma lembrança um pouco leviana. É verdade que naquela época só você tinha importância para mim. Eu estava disposta a enfrentar todos os perigos para localizá-lo.
Angélica refletiu novamente. Avaliou o quanto lhe teriam interessado as evocações do pobre Henrique de Rognier naquela época, e como recordara facilmente as aventuras estrangeiras. Vi-vonne, Bardagne, e mesmo Colin...
— Seria eu uma "descuidada",, como me censurava Cláudio de Loménie, exceto de um só... Você?
— Eu não me preocuparia em censurá-la... se eu for eventualmente esse único de que falou.
E, recordando-se da ardente esperança que a fizera enfrentar loucamente os perigos que uma mulher corria no Mediterrâneo, revia as etapas de sua aventura. Uma delas, a de Cândia, pusera-a diante do misterioso Rescator mascarado.
Na loucura da situação em que estava, não a reconhecera tampouco. Esse contratempo, que quase os reunira para serem separados ainda mais tragicamente, deixava-lhe um arrependimento do qual não podia se consolar.
- Gostaria tanto de ter conhecido seu palácio das Rosas, em Cândia! Nem bem eu havia fugido já me sentia presa de nostalgia, de tal forma estava seduzida por aquele pirata mascarado que acabava de me comprar. Mas eu quis fugir... Que tolice, quando penso nisso! O sonho, a felicidade estavam tão próximos!... Não! Não posso dizer que tenha sido uma tolice. Conrõ Velho Savary, tinha analisado essa evasão, com tanta obstinação!.... O dever de uma escrava não é tentar fugir?
Ele deu uma gargalhada.
- Isso é bem próprio de você! Como foi que não pensei nisso a tempo? Teria esquecido quem você era? Sua fuga? Sua ardente resolução diante de qualquer desafio? Ou... efetivamente, eu a conheci tão mal?... tao pouco ainda... Eu ainda não a conhecia muito bem quando nos separamos. Não sei. Eu quis renegar um amor que ganhara poderes demais sobre mim. Mas de tanto desejar substituir sua imagem por outra, a de uma mulher leviana e indiferente, teria eu mesmo me enganado?... E fui punido.
Ele lhe beijou a mão. Sorriram um para o outro. Estavam mais felizes do que poderiam exprimir em palavras.
Olhavam desfilar ao lado do navio que os transportava as longas correntes verdes e prateadas do Saint-Laurent. Apoiavam-se um no outro, ombro contra ombro, e beijavam-se durante instantes. Raramente eles se sentiam suficientemente em paz para afastar o véu de suas lembranças. Pois esse era um assunto delicado, e por muito tempo haviam receado magoar-se ao abordá-lo.
- Você tem razão, meu amor - disse ela. - Eu o procurava. Mas talvez ainda não merecêssemos encontrar-nos então. Está vamos cheios de desconfiança.
Ela tocou com o dedo as cicatrizes daquele rosto tão amado.
- Como foi que não adivinhei quem você era, apesar daquela reunião de piratas ferozes, daquele mercado de escravos onde você
vinha escolher pessoalmente o objeto de seus prazeres? Como não reconheci, sob sua máscara, apesar de sua barba, seu andar seguro?..- Eu estava perturbada. Eu também sou culpada. Devia tê-lo reconhecido por seu olhar, pelo toque de sua mão em mim! Hoie, parece-me indigno ter dado provas de tanta cegueira... Mas oor que você não se deu a conhecer imediatamente?
_ Lá diante de todos aqueles bandidos dos mares, daqueles luxuriosos muçulmanos que iam fazer seu mercado de mulheres no batistan de Cândia?!... Não, não poderia fazê-lo! E depois, na verdade, era a você que eu temia. Eu temia aquele primeiro olhar entre nós, adiava o momento de saber que a tinha perdido para sempre... que você amava outro, talvez o rei, sem dúvida o rei, e que não precisava de um esposo morto, banido ou pelo menos renegado aos olhos dos reinos cristãos, aos olhos de seu mundo de Versalhes. Inexplicável e desconhecida mulher, metamorfoseada longe de mim. Sem mim. Uma mulher no auge de sua beleza, de sua ousadia, de sua independência, e não aquela adolescente que eu acolhera em Toulouse, ainda que sua fragilidade inicial tenha me atingido até as entranhas quando a vi, vencida e entregue em sua nudez exposta. Mas isso passou. Eu a deixara ainda tão jovem... Era inevitável que eu visse naquela grande dama, que usava o nome de outro, uma esposa descuidada, indiferente.
— Menos de um. Você soube ganhar meu coração para sempre. Mas, duvidando de todas as mulheres, duvidou de mim. Não quis sequer compreender que eu empreendera aquela viagem louca e contra a vontade do rei unicamente para encontrá-lo. Atribuiu minha imprudência em me lançar a peregrinações perigosas a um capricho de estouvada, um pouco insensata e mesmo estupidamente ávida por ir verificar os benefícios que lhe podia trazer seu cargo de consulesa de Cândia.
— Como eu poderia imaginar tal prova de amor, por parte de uma mulher?
— Com efeito eis seu ponto fraco, apesar de sua ciência de amar aprendida com os trovadores. Você tinha ainda muito o que aprender, messire. Não sabia que era tudo para mim desde Toulouse?...
— Deve ser porque me faltou tempo para sabê-lo, para me convencer disso. A paixão é tão fugaz! A fidelidade, tão incongruente! O amor, a essência do amor, tão difícil de ser captado! E sua realização de cada dia, de uma vida inteira, tão pouco compatível com nossas existências, expostas aos mil golpes do munda-nismo, no caso dos poderosos, ou da sobrevivência, no dos miseráveis e perseguidos! O que você era para mim, única entre as mulheres, só me foi revelado quando a perdi, quando você me foi arrancada. Os trovadores não disseram tudo'. Eles apenas nos permitem entrever que o essencial é inexprimível. Eis o que me ensinaram a obscuridade dos cárceres e as andanças do banimento que apagava minha existência passada e me privava para sempre de sua presença.
— O que não impediu que passasse muito bem sem mim, a vogar de ilha em ilha e de palácios floridos a cortes otomanas...
— Confesso que foi um longo périplo cheio de desvios e de revoltas. Reconheço que no início eu não pensava que levaria tanto tempo para curar-me e principalmente para admitir um dia que jamais me curaria, jamais, dessa queimadura de amor que você, me havia infligido. Em que momento o compreendi? Várias vezes a verdade sè impôs. Terá sido quando Mezzo-Morte, em Argel, me impôs o dilema? Dizer-me o lugar em que você estava cativa, sob condição de que eu parasse de ser seu rival no Mediterrâneo?... Ou mais tarde, quando em Meknés foi preciso que eu encarasse sua morte e a separação definitiva de você, ainda que em sonho?... Então eu soube que, pior do que todas as dúvidas, era nunca mais revê-la. "Que mulher, meu amigo!...", dizia-me Mulay Ismael, dividido entre a fúria, a admiração e o arrependimento. Éramos ali dois mestres, dois potentados dos países da Barbaria e do Levante, e sobre nós planava o fantasma de uma mulher-escrava de olhos inesquecíveis, morta nos caminhos do deserto. Por vezes nós nos olhávamos e sabíamos que não acreditávamos inteiramente naquela morte. "Alá é grande", ele me dizia. Recusávamos o veredicto porque nos sentíamos muito fracos e vulneráveis.
Angélica escutava-o avidamente e se esforçava por não sorrir, de tal modo lhe parecia divertida aquela visão de Joffrey e Mulay Ismael abatidos.
Então eles riam e tornavam a se beijar, tocados por um intenso sentimento de triunfo -por se verem abraçados naquele momento, cumulados de alegrias e mercês, filhos, riquezas, vitórias, dos por companheiros devotados, longe do teatro daqueles trágicos acontecimentos evocados, a ponto de o cenário austero do grande rio do norte, suas margens distantes junto aos montes coroados de florestas negras, suas águas turvas e atormentadas, de profundezas assustadoras, suas escoltas de nuvens pesadas formando uma esquadra monumental, arrastando cortinas de chuva ou fugindo sob o sopro do vento, tudo o que criava em torno deles um cenário tão diverso daquele cenário candente e colorido do Mediterrâneo, parecer-lhes amistoso, seguro, confortando-os em suas certezas presentes de encontrar um no outro, um para o outro a hora do sonho alcançado e da felicidade sem fim.
CAPÍTULO VIII
Entre o passado e o futuro, quimeras assustadoras - Rumo ao mar
Angélica gostaria que aquela viagem durasse para sempre. O que era uma maneira de proclamar que desfrutava cada momento dela. A navegação no Saint-Laurent isolava. Para os navios que chegavam e que cruzavam, não era mais a extensão vazia do mar, mas tampouco a abordagem de uma praia. Viviam alguns dias - ou semanas - ali, fora do tempo. Saudavam-se algumas vezes de longe. Uns tinham pressa de chegar, pelo menos a Ta-doussac, onde começava a aventura canadense; outros, de empreender a travessia cujas verdadeiras peripécias só começariam para lá da Terra Nova.
Enquanto isso, continuavam as tempestades, as possibilidades de naufrágio, os que chegavam podiam também morrer de escorbuto nos porões e os que partiam, decidir permanecer no país.
Era um passeio que ganhava amplidão a cada dia que passava. Todo viajante que por ali passara uma vez reencontrava lembranças. Navegava-se entre dois mundos. O passado, o futuro. E era surpreendente tudo o que podia ocorrer naquele rio, tão vasto no entanto que as embarcações pareciam errar por ali sem obje-tivo, e cujas margens permaneciam, o mais das vezes, invisíveis uma da outra.
A bordo Angélica dormia um sono profundo e feliz. O balanço da navegação, a umidade das noites, frequentemente enevoadas, que abafava os ruídos, mergulhavam-na numa verdadeira letargia, o que não a impedia de despertar várias vezes durante a noite, nem que fosse apenas para se relembrar da alegria de estar viva, da qual certos períodos de paz nos tornam mais conscientes, e poder adormecer de novo ao lado dele.
Ao acordar aquela manhã, sentiu que o navio estava ancorado, apesar de o dia já ter nascido havia muito. Um odor de madeira queimada, de fogueiras acesas nas praias para defumar peixe, entrava pela janela aberta.
Endireitou-se na cama e viu a seu lado, no travesseiro, um pequeno objeto, um estojo de couro fino com um trabalho de dou-ração, e ao abri-lo encontrou um relógio belissimamente trabalhado, apesar de sua pequenez. Jamais vira um relógio tão sofisticado. Os ponteiros representavam duas flores-de-lis, e o mostrador de esmalte azul era constelado de flores douradas.
Uma fita de seda azuj permitia pendurá-lo ao pescoço. Ela soubera que isso estava em moda em Paris.
Levantou-se para ir ao balcão.
OArc-en-Ciel estava ancorado ao pé de um promontório, cujo nariz de rochas escuras enganchava farrapos de névoa. O céu estava bastante encoberto e o lugar parecia uma gravura sinistra para dramas que listrassem a miséria dos náufragos ou de piratas abandonados, com altas falésias à volta das quais giravam ruidosos pássaros marinhos de diferentes espécies.
Para Angélica, porém, fosse qual fosse o tempo e o cenário, tudo parecia agradável e oportuno.
Foi ao encontro de Joffrey no convés.
— Em honra de que acontecimento lhe devo esta manhã este encantador presente? - perguntou a ele.
— A uma emboscada de triste memória. Eu, de minha parte, não podia esquecê-la, pois, nestas mesmas plagas, numa noite escura e traidora, você me presenteou, ao me salvar, com o bem mais precioso: a vida, que nossos inimigos queriam mais uma vez me arrebatar. Chegando a tempo e como que por milagre, você abateu aquele que se aprestava a me assassinar: o Conde de Varange.
— Eu me lembro: Sainte-Croix-de-Mercy!
Então era ali?, pensou, olhando com curiosidade a praia que ela só abordara à noite. O lugar conservava um aspecto lúgubre. Havia, não. obstante, um pouco de animação na praia triangular, dominada por raízes de árvores, que trespassavam os escombros da falésia.
Canoas índias esperavam acostadas, meio puxadas sobre a areia, e, a algumas braças dali, balançava-se uma embarcação de dois mastros.
Os marinheiros, franceses da Europa, tinham vindo para encher os tonéis na fonte. Mas um pouco além, ha ravina, índios comerciavam com o patrão da pequena embarcação. Ao longo de todo o rio, o comércio de peles ia de vento em popa.
Achavam-se nas fronteiras de uma região desolada, o Labra-dor, com florestas profundas e pantanosas, que vomitavam echar-pes de brumas que vinham se arrastar pela superfície do rio. , Essas tribos de montanheses que habitavam as margens dos rios caudalosos e gelados eram das mais miseráveis; só se deslocavam envoltas numa nuvem de pequenas moscas pretas e tenazes, e avançavam com suas facas pelas matas inextricáveis dos bosques, onde, como único encanto, brilhava por vezes o ouro de ranúnculos aquáticos gigantes. A simples aproximação desses lugares apertava o coração de angústia.
Ali na falésia houvera outrora uma primeira feitoria e um oratório, agora quase abandonados. Fora lá que o Conde de Varan-ge, alucinado pela visão da Diaba, marcara um encontro com o Conde de Peyrac para matá-lo.
Angélica passou o braço sob o de seu marido. Uma sorte incrível permitira-lhe chegar a tempo. Se havia um lugar onde o espírito das trevas não prevalecera contra eles, esse lugar era ali. Mas o momento pareceu-lhe propício para fazer alusão à conversa que tivera recentemente com o tenente de polícia em Quebec.
- Garreau d'Entremont continua a bisbilhotar sobre o desaparecimento de Varange. Segundo as diretrizes da nova polícia, ele precisa de um cadáver, ainda que se trate do de um imundo discípulo de Satã.
Deram alguns passos ao longo do convés.
Apoiada em seu braço e sob sua proteção, suas decepções e aborrecimentos de Quebec se evaporavam, reduziam-se a pequenas escaramuças, cujo desenvolvimento e solução tinham sido adiados para as calendas gregas por essa longa e lenta revolução dos correios que toda investigação exigia. Quando estava para falar com seu marido, hesitou. Foi detida por essa impressão de que certas coisas desagradáveis ou que se temem ganham corpo ao ser formuladas em palavras e de que isso não valia a pena.
Uma vez que sua parada na baía de Sainte-Croix-de-Mercy, onde, séculos antes, houvera um pequeno posto de comércio e um oratório, evocava a lembrança do sinistro Varange, o último enviado da Diaba para detê-los em seu avanço, ela falou da convocação a que fora obrigada a comparecer. E era sempre a mesma coisa.
As suspeitas do tenente de polícia em relação a Varange eram corretas. Seu faro indicava-lhe que era junto a eles, os viajantes da Acádia, que devia procurar a solução do mistério. E também que esse caso estava ligado ao da perda do La Licorne e da Duquesa de Maudríbourg, que, esperada em Quebec, se evaporara com suas Moças do Rei nas margens da baía Francesa.
- Ele diz que os membros da sociedade doadora estão impacientes e que da França reclamam detalhes sobre o naufrágio do La Licorne e a morte da duquesa.
Ela explicou de que maneira, para tentar dar-lhe satisfação e ganhar tempo, tivera de fazer, com a ajuda de Delfina du Rosoy, uma lista das Moças do Rei que sobreviveram, mas...
- Fiz mal?
Não, não fizera.
Seria necessário falar das suspeitas de Delfina acerca de uma substituição de pessoa que fazia supor que a Duquesa de Maudríbourg não morrera e que poderia reaparecer? Calou-se, pois, quanto mais pensava nisso, mais isso lhe parecia sem pé nem cabeça.
Em Gouldsboro, perguntaria a Colin e provavelmente saberia o que acontecera com a irmã de Germana Maillotin. Escreveria então a Delfina para tranquilizá-la, acalmá-la.
Andando ao lado de Joffrey pelo convés do navio, onde tudo estava pacífico e bem-ordenado, não se sentia disposta a debater quimeras assustadoras e sem fundamento. Joffrey tivera tanto trabalho ao voltar para reconfortá-la e restituir-lhe seu bom humor!
Naquele mesmo momento, analisando o encontro que tivera com o tenente de polícia, ele se esforçava por demonstrar-lhe o lado animador desse encontro e por reduzir as reclamações vindas de Paris, a intrigas irritantes mas fúteis.
Ele desafiava quem quer que fosse que estivesse encarregado do caso do La Licorne e de sua proprietária, a Sra. de Maudri-bourg, a proceder e a fazer chegar ao Novo Mundo um inquérito que determinasse com exatidào o que acontecera a ambos.
Joffrey acreditava que, sob sua aparência rude, o Sr. d'Entre-mont mostrara que era um amigo seguro deles. Não dera ele a entender que tentaria evitar colocá-los sob acusação tanto tempo quanto lhe fosse possível? Sua função obrigava-o a procurar os assassinos do ignóbil Varange.
Angélica fizera bem em fazer-lhe aquela lista das Moças do Rei pára ser jogada como um osso aos reclamantes. Isso o ajudaria a fazer as coisas se arrastarem.
Ao que tudo indicava, ele não apreciava muito aqueles importunos de Paris que o fizeram deixar sua casa de campo em pleno verão para constrangê-lo a se mostrar mais uma vez desagradável com a Sra. de Peyrac, pela qual ele devia nutrir uma certa inclinação.
— Não creio que chegue a esse ponto - protestou Angélica, que não guardava uma lembrança muito boa de suas entrevistas com o arrogante javali.
— Digamos que ele aprecie conversar com uma mulher sedutora, que lhe lança olhares lânguidos para adulá-lo e que ele sabe estar mentindo descaradamente, sem poder censurá-la por isso. A irritação e a admiração dividem alternadamente seu coração e o torturam simultaneamente.
— Pobre Garreau! Ele, que já deve entregar-se à árida leitura do Malleus maleficarum para conhecer as práticas da feitiçaria que acarretam crimes de sangue sobre a pessoa humana, a fim de poder melhor capturar assassinos e envenenadores!
Os tribunais modernos, para pôr fim aos delírios da Inquisição, exigiam provas "materiais", o que tornava ainda mais difícil a missão dos policiais.
Se o Diabo se enfurecesse, seria necessário hoje aprender a combatê-lo com armas de homens, isto é, combater os próprios homens quando o Mal se instalasse em seus corações corrompidos. Eis por que Garreau d'Entremont não se sentia tentado a facilitar a tarefa àqueles que, da França, reclamavam satisfações sobre uma suposta benfeitora, que incluía entre seus amigos, que prepararam sua vinda ao Canadá, tipos como La Ferté, Saint-Edme, Varange e companhia, que ele considerava facínoras enviados em degredo às colónias em atenção a seus brasões. A mania de envenenar para resolver seus problemas espalhava-se como um flagelo.
Tinham rido muito naquela noite do festim no Saint-Laurent de que ela se recordava, quando, animados pelo vinho e falando da beleza da corte do rei em Versalhes, das festas que eram ali oferecidas, encarecendo o prazer de viver entre aquela sociedade brilhante da qual os separava um oceano, ela exclamara subitamente: "E os envenenadores!"
Eles riram às bandeiras despregadas, como se aquilo fosse uma piada hilariante. Havia realmente motivo para rir! Como se morrer na corte por um veneno derramado por uma alva mão coberta de anéis fosse menos trágico do que ser assassinado com uma punhalada nos submundos de Paris!
Essa estranha reação levara-a a escrever ao policial Desgrez, adjunto do Sr. de La Reynie, tenente de polícia do reino. Redigida em meio aos frios nevoeiros canadenses de novembro, aquela carta, que um dedicado lacaio do Sr. d'Arregoust conseguira entregar em mãos sem perder com isso sua vida, levava ao paciente caçador as armas de que necessitava para desmascarar aqueles que ele se esforçava por descobrir.
Nessa missiva ela lhe revelava tudo. O nome das feiticeiras implicadas nos crimes de Versalhes, endereços de suas pequenas casas, através de Paris, onde elas recebiam sua soberba clientela, o nome daquela que, outrora, "preparara a camisa", Atenais de Montespan, a amante do rei, e da Srta. Desoeillet, sua acompanhante, que, havia anos, servia de alcoviteira com a Mauvoisin.
Aquela carta tivera seguramente influência no curso dos acontecimentos. Ela se perguntava como Desgrez a teria usado... depois, preferiu dar outro rumo a seus pensamentos.
Não ia estragar esses preciosos dias ao sabor da corrente do rio, onde lhes era permitido, se não esquecer, pelo menos considerar de modo mais despreocupado as torpezas do jnundo, que não tardariam a ter de enfrentar novamente.
O gesto pelo qual Joffrey a aconchegava junto a si demonstrava-Ihe que ele seguia e partilhava seus pensamentos.
Estavam juntos e compreendiam-se mutuamente. Experimentavam a mesma embriaguez em se manter assim abraçados; ele, em sentir, harmonizado com seus passos, aquele corpo de mulher tão precioso, tão deleitável que, ao discriminar tudo o que havia de amável nele, não podia se indignar com o fato de que tantos outros o cobiçassem e o invejassem. Ela, plena dessa alegria extática e serena que por vezes apenas as crianças experimentam quando o sol brilha, quando as flores exalam seu perfume, e elas sabem que são amadas. Bastava-lhe experimentar o firme amplexo de seu braço enlaçando-a para não mais temer coisa alguma no mundo. Suas inquietações batiam asas e suas preocupações perdiam a importância. Ela vivia sob a proteção de suas noites de encantamento, em que aquele homem, reconhecido como chefe e temido pelas pessoas mais fortes, se revelava tão meigo e solícito, tão ardoroso quando a amava, tão ávido por suas carícias, tão atento em fazer brotar seus transportes e satisfazer seus mais vivos desejos, abandonos e loucuras, de que não se cansavam e nos quais o entendimento que, durante o dia, aproximara seus espíritos e animara seus corações se transmutava no plano carnal.
Em seguida, iam de preferência procurar enseadas para passar a noite, ou para se proteger dos ventos, na margem sul, mais hospitaleira.
Flanqueando as margens, percebiam-se os campos lavrados. Transportavam-se feixes de espigas, carregava-se o feno para a forração das colheitas e armazenagem. A pressa do verão, muito rápido, de que o inverno dependia, dava a todos aqueles que eles encontravam ares furtivos e desconfiados. O inimigo era o céu, às vezes sereno, invadido rapidamente por nuvens pesadas. Relâmpagos de calor não cessavam de fazer sinais mudos na noite, até o momento em que eclodia a tempestade, muitas vezes devastadora. Outro inimigo do habitante curvado sobre a gleba era o contínuo retorno das festas de descanso para celebrar os santos do paraíso.
Estavam tentando mudar isso, como os viajantes que partiam sem "feriados" para os Grandes Lagos ou o grande norte mudavam as interdições e as excomunhões. Mas viver no Canadá e salvar sua pele contra o inverno ou a ruína era bem diferente e exigia ajustes com o céu. Houve tempestades. As comportas do céu se abriam. Os navios começavam sua dança de São Gui-do. As tempestades do Saint-Laurent podiam ser tão terríveis quanto as do mar.
A viagem continuou sob um céu purificado.
Quanto mais avançavam para a embocadura do rio, mais raras se tornavam as costas habitadas e cultivadas.
De ambos os lados, até o infinito, o rio se estirava, se estendia, recamado por ondulações brilhantes, longos traços azul-celeste, atravessando largas superfícies imóveis de um estranho opaco, como as dos lagos tranquilos, ou lavradas e faiscantes ao sol.
Mas contra o casco dos navios viam-se deslizar correntes verde-mar e se formar negros turbilhões coroados de espuma branca.
Quando se reaproximavam das margens, desenhava-se a monotonia selvagem de uma gigantesca Bretanha, de falésias e de charnecas coroadas de florestas e coníferas pretas e atarracadas.
O mais importante censitário da região era Tancredo Beaujars, amigo da infância do velho Loubette. Ele foi visitá-los a bordo e evocou as lembranças dos "primeiros", quando, não tendo o navio da companhia chegado naquele verão a Quebec, Cham-plain teve de deixar a subsistência daqueles poucos colonos à caridade dos selvagens, e como ele mesmo, com dez anos de idade, e sua irmã Elisabeth e o tal Loubette, que tinha onze, tinham sido "colocados" para passar o inverno na casa dos Montagnass da esquina, o que lhes deixara a melhor lembrança de sua vida.
O rio continuava a se alargar. O dragão não cessava de abrir sua goela imensa, bocejava e cuspia ilhas, antes de desaguar no mar.
CAPÍTULO IX
O Marquês d'Estrée de Miremont
Depois de ter passado ao largo da senhoria de Mont-Louis, nas proximidades do rio Mataine, um dos quatro cursos de água que desciam dos montes Chikchoks, um navio, que lhes pareceu ser da Marinha Real, saiu da bruma da margem e provavelmente da embocadura do rio onde se ocultava e, depois de ter bordejado, enviou-lhes sinais de perigo.
Com certa prudência, Joffrey de Peyrac mandou reduzir o velame e designou para ir ao encontro do navio um de seus iates, ágil e pronto para a manobra. O vento estava tão favorável que era pena diminuir a marcha e não deixar uma parte das embarcações mais pesadas, como, por exemplo, o Arc-en-Ciel, continuar em seu ritmo. Mas o conde preferia aplicar a regra de ouro dos holandeses, gente de mar e de comércio se fosse preciso, e que relacionavam o êxito de suas expedições em torno do globo ao princípio de que uma frota deve ficar sempre agrupada.
Manobraram em meio a grandes gritos, enquanto os marinheiros se precipitavam para os ovéns, correndo ao longo das vergas e amaldiçoando o importuno.
O comandante do outro navio foi pouco depois levado a bordo do Arc-en-Ciel, e tratava-se de um oficial da Marinha Real, pois envergava um gibão justo até os joelhos com adornos vermelhos, uma echarpe de-cetim branco, calções pretos, meias de seda carmesim e um chapéu de feltro com plumas, uniforme imposto pelo Ministro Colbert, não tanto para obrigar os oficiais da marinha do rei a se vestirem bem como para reduzir a onda de passamanarias, bordados, babadinhos e agulhetas com que se cobriam. A reforma não se fizera sem uma grita geral. Sem todas essas bugigangas, franjas de ouro e plumas, como, numa batalha, os homens da tripulação iriam reconhecer entre eles os oficiais? Daí a nova decisão de dar um sentido aos diversos galões, aos quais ninguém queria renunciar: dourados ou prateados em número de um a quatro indicariam a função e o grau.
Os sapatos continuaram a ter saltos vermelhos, estilo carretel, e as camisas a apresentar punhos e golas, ou jabô, de renda. A rigor, a cor dos calções ficava por conta da fantasia, assim como a das plumas do chapéu, seu número e altura.
O recém-chegado não se privava de ultrapassar os limites.
Segurando o cabo da espada, ele se anunciou: Marquês Francisco d'Estrée de Miremont.
- Reconheci seu pavilhão, senhor - disse, inclinando-se muito e varrendo o assoalho com o penacho de plumas de seu tricórnio festonado -, e abençoei a oportunidade de sua chegada. E agora que o vejo continuo a me sentir pleno de satisfação, não só porque sei que seu encontro vai me livrar de uma situação difícil, mas também porque vai se encontrar satisfeita a curiosidade, despertada em mim e, asseguro-lhe, no espírito de todo meu estado-maior e de minha tripulação, até o último dos marujos, por tantas histórias concernentes a sua pessoa, assim como - com uma saudação ainda maior, ele mergulhou na direção de Angélica-a sua esposa, tão célebre por suas virtudes e façanhas como por sua beleza.
E como Joffrey de Peyrác, sem se deixar comover por tais declarações lisonjeiras, permanecia imóvel, esperando a continuação, o oficial se espantou:
— Não me pergunta, senhor, onde eu teria ouvido tais discursos concernentes a ambos, e de que renomados lábios os ouvi?
— Faço minhas suposições, senhor; por sua linguagem e suas maneiras, adivinho que os ouviu na corte.
— Acertou! Eu não apostaria com o senhor. Perderia plumas demais! Mas não se preocupou em saber que lábios proferiram essas palavras.
Fazendo o jogo com um sorriso, pois de nada adiantava querer distrair urhcortesão de suas maneiras habituais, Peyrac respondeu:
— Eu seria presunçoso declarando que os lábios foram numerosos, pois conheço a linhagem que se apoia à volta de Sua Majestade. Mas, se devo falar no singular, eu ousaria nomear o Sr. de Vivonne, seu almirante.
— Perdeu e ganhou, senhor! Quis mostrar-se demasiado modesto. De minha parte, pretendia falar da própria pessoa de Sua Majestade. E no entanto verdade que o Sr. de Vivonne também se interessa muito pelo senhor, o que é de seu dever, pois tudo o que se encontra além dos mares depende de sua jurisdição.
Não se sabia se seu olhar carregado significava que conhecia o segredo da escapada de Vivonne para a Nova França ou se queria apenas lembrar que oalto título do irmão da Sra. de Montespan lhe conferia todo o poder no que se referia às colónias. Essas mímicas variadas, cheias de subentendidos e de alusões, constituíam a linguagem hermética e codificada da nobreza cortesã nos círculos do rei, e era uma verdadeira arte saber manejá-la e interpretá-la.
Durante essas preliminares, os navios iam e vinham, fechavam e desdobravam suas velas para tentar maater as posições e resistiam com dificuldade à brisa que soprava da terra.
- Sr. d'Estrée de Miremont - disse Peyrac -, o senhor certamente observou que eu estava descendo o rio e que o vento estava a nosso favor. Tenho pressa de aproveitar essa esmola. Diga-me, por favor, sem mais rodeios, em que posso ajudá-lo. Sofre alguma avaria? Falta-lhe piloto costeiro para tornar a subir o Saint-Laurent, conhece as dificuldades que resultam do fato de este vento, que me é propício, poder impedi-lo em sua rota para Quebec?
- Quebec? Eu não vou a Quebec. O que iria fazer em Quebec?
Fez um gesto em direção à nascente, o que indicava o quanto fazia pouco-caso daqueles vagabundos do fundo das terras, ocupados com suas colheitas. Fora um lamentável incidente que o fizera, contra sua própria vontade, entrar na embocadura do Saint-Laurent. Pôs-se a narrar sua viagem e seus contratempos. Partira dois meses antes do porto de Brest, na extremidade da Bretanha, tendo em mente um obietivo bem preciso, que o fazia pousar o dedo na extremidade setentrional do mapa-múndi, naquele ponto em que todos os cartógrafos se contentavam em esboçar vagos contornos de ilhas e penínsulas indecisas, de um branco virginal, pois' nenhum teria ousado sugerir a presença ali de vegetação ou apenas de terra.
Em suma, o Sr. d'Estrée fazia parte dos "loucos pelas neves", que não hesitavam em ir fazer seus belos uniformes da Marinha Real Francesa cintilarem sob a luz polar do grande norte. Eram mais numerosos do que se pensava aqueles que não hesitavam em avançar para a translúcida irradiação de um sol que atravessa o horizonte como uma enorme rosa e nunca se esconde; esquadrinhando, na popa de um navio estalejante como uma casca de noz ameaçada, o caminho seguro do canal azul entre aquelas muralhas gigantescas, abruptas, cintilantes como falésias de diamantes, formadas pelos gelos flutuantes que os escoltavam, ele era daqueles que conseguiam descobrir e atingir, contra toda expectativa, essa espécie de Eldorado das praias polares, das quais se esperavam sabe-se lá que riquezas.
No início, fora a esperança de encontrar o mar da China a fim de encurtar a rota das especiarias. Mais tarde, fora a de encontrar ouro! Finalmente, mais tarde ainda, foram recompensados pelo pactolo das peles preciosas, procuradas cada vez mais para cima, nas tundras inacessíveis. E para muitos essas expedições dementes eram feitas por nada, a não ser pelo desejo, naquela terra dada aos homens, de ir mais longe para encontrar seres desconhecidos, que sobreviviam em jangadas de gelo, animais, paisagens nunca vistas, fenómenos jamais contemplados.
Os loucos pelas neves, exploradores dos pólos, constituíam uma raça à parte entre os navegadores do mundo inteiro; tinham pelos horizontes estéreis e gelados uma paixão quase voluptuosa, que fazia a morte pelo frio, fome ou escorbuto parecer-lhes doce e privilegiada.
Apesar de sua linguagem preciosa e seus jogos com as mangas de rendas, que ele era capaz de efetuar como qualquer outro diante do rei, o Sr. d'Estrée mostrou que era um ser daquela raça de homens.
Ora, ele estava pois voltando naqueles dias da baía de Hudson, na qual, havia sessenta anos já, bandeiras francesas, inglesas, cruzes erguidas e até um canhão dinamarquês esquecido atestavam as incursões que os ousados amantes do grande norte não haviam cessado de fazer à região. Para ele, não havia problemas, nenhuma avaria. O tempo estava perfeito, embora em meados de julho ainda flutuassem ali ondas preguiçosas de gelo, talhadas como monstros estapafúrdios: torrezinhas, capitéis com suas pontas verde-esmeralda ou azul-turquesa.
Mas, assim que desembarcaram nas margens esponjosas, incensadas por nuvens de moscas pretas, minúsculas, ávidas e sanguinárias, que belo negócio de peles realizara! que animação, meus amigos!
Da floresta de árvores anãs surgiam os índios odjibways e nipissings, que se lembravam da grande caldeira cheia de mercadorias, suspensa numa árvore por Button, para os selvagens errantes. De sua transação o Sr. d'Estrée trazia, por duzentas e cinquenta libras, peles belíssimas. Menos de castores, mas de raposa prateada, lontras negras, martas, visons e zibelinas.
Depois de ter visitado os estabelecimentos ingleses da Companhia da Baía de Hudson e, entre outros, o Forte Rupert, no fundo da bolsa meridional chamada baía James, e de ter incendiado algumas de suas barracas, retirara-se.
Mas, ao chegar vitorioso ao estreito de Hudson, margeando a costa nos arredores do rio Melville, encontrara-se face a face com uma embarcação muito impressionante de Sua Majestade britânica, que parecia decidida a empreender o mesmo caminho no sentido contrário e que, vendo-o surgir do lugar exato para o qual se dirigia, desconfiou que a raposa tinha acabado de visitar o galinheiro.
Houve então uma movimentada perseguição, a que o navio do Sr. d'Estrée, Llncomparable, não pudera furtar-se a não ser enfiando-se pelo estreito de Belle-Isle, entre o Labrador e a extremidade norte de Terra Nova, o que não conseguira deter seu caçador. Em suma, o navio francês não tivera outra alternativa senão lançar-se no estuário do Saint-Laurent, território da Nova França, no qual um navio inglês não podia ousar segui-lo sem cometer uma infração aos tratados de paz assinados entre os dois reinos.
Para maior segurança, o Sr. d'Estrée penetrara bastar ao longo da margem sul, buscando refúgio,na entrada do rio .Vlataine para ali ancorar. Desejava agora prosseguir sua viagem de volta para a Europa, mas continuava a recear que, ao sair da toca, o inimigo estivesse esperando por ele. Ele pensara que lhe seria mais fácil escapar se estivesse acompanhado, daí seu pedido de ajuda ao Sr. de Peyrac.
— Senhor - observou-lhe o conde -, deve compreender que, apesar de meu desejo de ajudá-lo, não posso entrar em hostilidades com o poder britânico, que me prejudicariam muito e poderiam tornar-me responsável por um conflito entre a França e a Inglaterra.
— Eu tampouco lhe pediria isso, mas apenas que me permitisse misturar minha embarcação a sua frota, com a qual ela se confundiria, e desse modo transpor, sob a proteção de seu pavilhão, o cabo de Gaspé. Para lá do cabo, creio que ele não tentará me causar problemas... Isso se tiver tido paciência suficiente para continuar a me vigiar, arriscando-se a ser surpreendido em nossas águas territorais.
Joffrey de Peyrac aquiesceu:
- Está bem! Eu não poderia recusar esse favor a um compatriota.
Durante seu relato, o Sr. d'Estrée não parara de lançar rápidos olhares a seus interlocutores, procurando adivinhar a opinião deles sobre sua expedição, censura ou aprovação, pois ouvira muitos boatos sobre eles e ali estava a oportunidade de saber se realmente seriam aliados dos ingleses, simpatizantes da Reforma, ou se o Sr. de Frontenac tinha razão em apresentá-los como amigos sinceros e sólidos apoios para a Nova França.
Além da cortês autorização concedida a ele pelo Sr. de Peyrac para se ocultar entre seus navios na qualidade de compatriota, nada pôde apurar.
Joffrey de Peyrac eludiu todas as discussões tendentes a decidir se o Sr. d'Estrée fizera mal ou bem em ir pilhar um pouco e prejudicar os estabelecimentos da Companhia da Baía de Hudson, com sede em Londres, mas que fora mais ou menos fundada por franceses do Canadá, os primeiros a atingir por terra as margens ' quela baía, cuja história prometia ser tão complicada e dividia ítre as hegemonias francesa ou inglesa como a da baía Francesa, na outra extremidade, ao sul.
Joffrey, acostumado com essas controvérsias, não o contrariava de modo algum, reconhecia os fatos e não censurava ninguém.
- O senhor parece conhecer um bocado a região - observou o oficiai francês com ar suspeitoso, pois tinha um apego quase amoroso pela baía de Hudson e suas margens.
O Conde de Peyrac sorriu com suficiente desinteresse para tranquilizar o ciumento, dizendo que fizera uma viagem recentemente ao alto Saguenay, viagem que o levara àquelas paragens da baía de Hudson. Não falou dòs iroqueses, que poderiam perfeitamente ter Interrompido de maneira sangrenta as transações comerciais do Sr. d'Estrée, nem que devia suas melhores.informações aos mapas, planos e descrições que seu filho mais velho, Florimond de Peyrac, com dezenove anos de idade, trouxera de uma expedição em torno da célebre baía, em companhia do filho dos Casteh Morgeat.
Prosseguindo, de comum acordo, a navegação do rio, o Sr. d'Es-trée foi convidado várias vezes a jantar ou a cear a bordo do Arc-en-Ciel.
Desde a primeira refeição, Angélica não deixou de observar a ausência do Sr. Tissot, o despenseiro. Como sua ausência se repetisse na visita seguinte do fidalgo francês, ela desejou saber se essa coincidência se devia apenas ao acaso. Caso contrário, suspeitava já quais as razões de sua ausência. O despenseiro não usou de rodeios.
- Tenho de evitar que o Sr. d'Estrée me reconheça. Ele vai com frequência à corte. Pode ser que tenha boa memória.
Antigo oficial da Boca do Rei, aquele homem, cujo passado pouco lhes era conhecido, tivera de transpor as fronteiras do reino e atravessar os mares para fugir à triste sina que por vezes
espreita o criado que "sabe demais".
- Em Quebec, quando estava conosco, você teve oportunidade de encontrar pessoas indesejáveis, e não pareceu recear nem aquele grão-senhor que se ocultava sob um nome falso.
-- Os responsáveis pelas cozinhas, víveres e pratos em Versalhes são inúmeros. Um verdadeiro exército. Acontece que, conhecendo de vista o Sr. de Vivonne por ter-lhe servido certos pratos, ele nunca me notou entre meus colegas quando eu presidia à mesa do rei. Em compensação, o Sr. d'Estrée era amigo íntimo do senhor ao qual tive de prestar alguns serviços que, como compreendi quase tarde demais, havia quem desejasse que eu esquecesse definitivamente. A fortuna que me ofereceram e que me havia tentado serviu-me para que eu fugisse. Apesar de ter se passado muito tempo, não pretendo ser reconhecido. Não existe um lugar no mundo onde um homem que sabe o que eu sei possa se sentir seguro.
- Eu o compreendo, Sr. Tissot; continue pois afastado. Seus ajudantes estão bem preparados e realizam seu trabalho da melhor maneira possível. Daqui a alguns dias passaremos por Gaspé e entraremos no golfo de Saint-Laurent. O Sr. d'Estrée nos deixará, para singrar para a Europa. Seja como for, não creio que devamos recear um ataque do inglês.
Ela passou a ver com outros olhos o volúvel e amável oficial da Marinha Real. Por trás do louco pelas neves despontava o cortesão. Uma vez terminada sua campanha e ancorado seu navio, ele abandonaria o porto de escala para correr a Versalhes e reencontrar amigos, mulheres influentes e protetores.
Era preciso intrigar junto ao trono, se se quisessem obter comandos brilhantes e lucrativos.
O incidente do Sr. Tissot, que parecia de pouca monta, assumira importância aos olhos de Angélica devido às fantasias que a haviam acompanhado quando, ao passar pelas paragens de Mercy, evocara o atentado de Varange.
O que teria acontecido, na corte, com aquelas histórias de veneno? Será que a moda do envenenamento havia passado? Pois era sem dúvida uma moda!...
Segundo o que lhe dissera Vivonne, o irmão de Atenaís de Mon-tespan, que se surpreendia por vê-la considerar com indignação a prática dos "caldos das onze horas" administrados aos "estorvos", esposos velhos ou rivais no amor, a das "missas negras", sacrilégios para obter riquezas ou honrarias, a compra de receitas de todo tipo às feiticeiras...
"Todo mundo faz isso...", dissera-lhe ele, considerando-a com um desprezo piedoso, como se ela tivesse perdido o juízo.
As cartas que recebia da corte, de Florimond, muito detalhadas sobre os prazeres, os bailes, os espetáculos de Versalhes, não faziam alusão a nada. E isso se devia a uma prudência elementar, que não podia permitir o simples enunciado de uma frase por escrito sobre tais abominações.
Os escritos matam. Aquele que tivesse tido a leviandade de expô-las numa correspondência assinada ter-se-ia arriscado, se sua carta fosse apreendida, a perder a vida.
As palavras são menos perigosas. Elas batem asas, se dissolvem, principalmente se são pronunciadas entre o céu e a água, num navio, nos antípodas desertos do grande norte.
Ela pensou em obter do Sr. d'Estrée algumas confidências sobre o que se passava na corte, tomando cuidado para que nenhuma palavra entre eles pudesse ser surpreendida por ouvidos indiscretos.
O que não impediu que o Sr. d'Estrée c|esse uma rápida olhada em volta quando ela o abordou em particular, na extremidade do segundo convés, e lhe pediu, com voz velada, que lhe dissesse a verdade sobre a desgraça da Sra. de Montespan, que lhe havia sido anunciada como definitiva em diversas cartas da França.
- Não posso acreditar numa coisa dessas! O senhor, que vive na corte, diga-me. Teria Atenaís de Montespan parado de pedir ajuda a sua adivinha, ou esta ter-se-ia retirado, com os bolsos cheios, privando suas ricas clientes da ajuda de suas práticas mágicas?
Foi então que o Sr. d'Estrée, desarvorado pela abrupta pergunta, lançou aquele rápido olhar temeroso a sua volta, e depois, vendo apenas a neblina ensolarada que empurrava o horizonte para o infinito, e que as únicastesternunhas próximas eram os pássaros do mar que passavam e repassavam nas alturas, pareceu medir a distância que o separava dos perigos de Versalhes e se tranquilizar.
- Informe-me, eu lhe peço - insistia Angélica. - Estou afastada de tudo, aqui, como vê. Nada tem a temer de mim. O que poderia eu nestes desertos fazer eontra o senhor com o que me irá confiar? Não pertenço a nenhuma sociedade. Mas compreenda que sou curiosa como toda mulher e me interesso pelo que acontece em volta do Rei-Sol e pelo destino de pessoas que conheci muito bem, e que provavelmente tornarei a ver um dia, mais cedo do que se pensa. Tenho de manter-me informada. Como pode adivinhar, isso não pode se dar pelas cartas que recebo. Não é por uma missiva, que pode ser apreendida por um espião qualquer, que se vai encontrar resposta a essas perguntas. Distraia-me, meu caro, dando-me uma visão rápida daquilo que se fala por baixo do pano. Eu lhe ficaria agradecida...
Depois de uma suprema hesitação, ele fez um gesto de consentimento. Compreendia que não seria conveniente contrariá-la. Sua reputação na corte e a de seu esposo não paravam de crescer. Seus dois filhos, providos em cargos de prestígio, detinham a atenção do soberano. E depois, afinal, repetia ele a si mesmo após um último olhar aos confins do rio, não estavam ali nos corredores de Versalhes, de Saint-Germain ou do Palais-Royal!
Podia permitir-se ser agradável a uma linda mulher que lhe dava a entender que se lembraria disso quando, por sua vez, se achasse nas boas graças do rei.
- Pois bem! Deixe-me dizer-lhe que, se seus correspondentes lhe falaram da desgraça da bela Atenaís, eles estão atrasados - disse ele. - Quando deixei o porto de Brest, após passar por Paris para receber minhas ordens junto ao ministro das Colónias, soube que a Sra. de Montespan, sua amiga, tinha voltado a Versalhes mais triunfante que nunca. É verdade que seu reinado conheceu alguns eclipses. Seu trono está abalado. Ela fazia cenas atrozes ao rei. E não foi essa a primeira desgraça em que incorreu. Foi exilada em Saint-Germain vários meses, há três ou quatro anos. Mas veja que maravilha! Ela voltou, e o rei lhe deu, um após outro, dois filhos, que ele se prepara para reconhecer como príncipes de sangue.
— Suas informações não me surpreendem. O rei jamais conseguiu passar sem ela! Sua beleza e seu entusiasmo o subjugam!...
— E mais que isso, e creio que a senhora já havia percebido! Sua pergunta de há pouco, a respeito da adivinha, era pertinente. Sem desmerecer a beleza da Sra. de Montespan nem subestimar o-domínio que ela exerce sobre o rei, em virtude de uma ligação de mais de treze anos, é certo que o ouro que ela deixou na escarcela das feiticeiras lhe foi de grande auxílio.
Angélica dirigiu-lhe um sorriso entendido.
— A Mauvoisin continua então a praticar? - perguntou, baixando a voz,
— Mais que nunca. Paris inteira vai à casa dela, os nomes mais ilustres do reino... Depois do primeiro impulso, dado pela Sra. de Montespan, sua oficina nunca está vazia. Quanto a Atenaís, a senhora a conhece, estou vendo. Então o que pensa?... Ela alguma vez deixou que outra mulher tomasse seu lugar junto ao rei?... Não! E isso nunca se dará. A nova favorita não tardará a se desgastar, como as outras.
— A Sra. de Maintenon?! - exclamou Angélica, cheia de preocupação com a pobre Francisca d'Aubigné, sua amiga de outros tempos, que, no entanto, era também amiga de Atenaís. Mas, com efeito, para esta, dominada pela paixão e pelo receio de perder o rei, nenhum laço de amizade devia importar agora.
O cortesão sacudiu os ombros.
— A senhora não me entendeu. Estou falando da nova favorita, a Sita. de Scoraille, uma linda loira de dezoito anos. Sua Majestade, frustrado, está na idade em que se reverenciam as jovenzinhas...
— Todavia, disseram-me que a Sra. de Maintenon...
— Não subestimo o prestígio que a governanta dos filhos ilegítimos do rei continua a usufruir. Ele a fez marquesa, o que não é pouca coisa. Mas o que ela pode fazer nessas complicações?... Ela se contenta em reunir sob suas asas as crianças que foram colocadas sob sua guarda .e subtraí-las à influência de sua terrível mãe, que tem outras coisas a fazer. Agradar ao rei e derrotar suas rivais ocupa-lhe todo o tempo. As piores misturas entram no palácio. O ano passado o rei ficou muito doente, e não foi febre quarta. A Sra. de Montespan deu a entender que não estava alheia a essas indisposições, dizendo que preferia privar-se dos favores do rei indisposto a vê-lo dirigi-los a outras.
— Se é assim, Sr. d'Estrée, sabendo o que o senhor sabe, não acha que é de seu dever avisar Sua Majestade... de um modo ou de outro?
— Está louca? - replicou ele, lançando-lhe um olhar de zombaria. - Se o que eu sei, se o que todos nós sabemos, cada um particularmente, viesse à luz, alguns estariam ameaçados de esquartejamento.
Sua reflexão despertava um sinistro eco.
Ele aludia ao suplício reservado aos regicidas. E eram considerados regicidas os que concebiam o projeto de atentar contra a vida do rei, mesmo se o projeto falhasse.
A condenação consistia então em amarrar cada braço e cada perna a um cavalo; os quatro cavalos, puxando em direções opostas, esquartejavam o suplicado até que cada animal carregasse consigo um pedaço de corpo desmantelado.
— Que está dizendo? - murmurou Angélica, horrorizada. - A Sra. de Montespan chegaria ao ponto de procurar envenenar o rei?...
— Eu não disse nada - protestou o oficial da Marinha Real, voltando-se vivamente.
Parecia arrependido de suas tagarelices. Mas, vendo seu ar de espera apaixonada, não pôde evitar de acrescentar:
- Não falemos de veneno mortal, mas apenas de pós afrodisíacos que a favorita titular mistura à comida do rei para reconquistá-lo. E, aliás, ela conseguiu o que queria, como lhe disse. Mas o resultado vai além do que ela esperava. Esses remédios que ele ingere à revelia explicam a enorme fome de carne fresca de que Sua Majestade foi tomado, o que, evidentemente, é desolador para a Sra. de Maintenon, que, contudo, ele não abandona, pois aprecia conversar todas as noites com ela; ele passa por seus aposentos para jogar sua partida de bilhar, mas ela se recusa a ele. Então se compreende... é um verdadeiro desfile: a Sra. de Louvigny, a Sra. de Rochefort-Théobon... Dizem que tudo o que cai na rede é peixe, se posso assim me exprimir: acompanhantes da rainha, criadas de quarto... já faz algum tempo que uma das filhas da Sra. de Montespan costuma substituí-la junto a ele nesses dias de indisposição, uma certa Desoeillet, e dizem que teve com ela um filho..: Mas para a nova favorita, que é, muito bonita e tocante, parece que foram outros encantos que agiram junto ao rei. Bastaria, dizem, sua loirice e juventude para atraí-lo... Enfim, os que o conhecem bem e não são novos na corte pretendem que um detalhe funcionou para que a atenção do rei se detivesse nela.
— Qual?
— Seu prenome.
— Qual é ele?
— Angélica!...
Ele dirigiu-lhe um trejeito cúmplice, depois, explodiu num riso, lançando a cabeça para trás, e a esse riso fizeram eco os gritos agudos das gaivotas, dos "loucos de Bassan", dos guinchos e das andorinhas-do-mar que enchiam as margens próximas e passaram acima deles com suas asas estalejantes, que pareciam indignar-se.
Que riso agudo e insultante de homem era aquele, trespassando aqueles ermos irisados?
Francisco d'Estrée estendeu subitamente o braço para a frente.
— Oh! Olhe lá ao longe!...
— O que foi? O inglês?...
— Não! Lá no fundo!... Aquelas cores tremendo.
Ela seguiu a direçao que ele lhe apontava no poente e viu, acima das sombras que se insinuavam na neblina, desdobrarem-se promontórios e montanhas de longínquos ondulados, tapeçarias de um rosa indefinido, que se orlaram de um verde e algas vivas atravessadas pelo sol, depois com uma bainha dourada festona-da. Isso se fundiu, assim que conseguiram fixar a visão. Mas houve ainda um súbito pestanejar no meio de um círculo de um branco incandescente, como o piscar de uma brilhante estrela que um deus brincalhão lhes enviasse do éter inacessível.
- Uma aurora boreal! - disse o Conde d'Estrée, com a voz tremula de emoção. - Deus, que beleza! Isso é raro nesta estação. É um sinal! O frio já está chegando. Os gelos vão fechar-se novamente. O inglês faria bem em se apressar, senão será obrigado a invernar no Forte Rupert, e eu queimei todas as suas casas. Ele continuava a rir, mas era um outro riso, e as luzes dispersas de um sol invisível colocavam em seu rosto, sem pós nem maquiagens, bronzeado pelas queimaduras do frio, o reflexo de um ardor infantil.
- Tomara que tenha renunciado a me alfinetar na saída dos estreitos!
Ele voltou para bordo de seu navio, para preparar-se para qualquer eventualidade.
Depois de ultrapassarem Anticosti, uma grande ilha comprida, com quase trezentas milhas, habitada apenas por ursos-brancos e pássaros, o perigo de que aparecesse um navio inglês numa emboscada pareceu afastado. O Sr. d'Estrée voltou, acompanhado de seu porta-estandarte, para despedir-se e prodigalizar seus agradecimentos.
- Uma vez que nada de desagradável ocorreu, permitam-me felicitar-me por esse contratempo que me deu a imensa oportunidade de travar conhecimento com personagens célebres, e muito, na corte, apesar de seu afastamento do Rei-Sol. Não se passa um dia sem que sê ouça evocar em Versalhes seja aquela que deixou a reputação de ser uma das mais belas mulheres do reino, seja aquele que parece dar a nossos estabelecimentos da América um novo impulso e uma segurança que lhes faltavam há muito tempo. E verdade que vocês têm lá como embaixadores dois jovens senhores, seus filhos, que souberam ganhar o favor de Sua Majestade.
Até então ele não fizera alusão a qualquer encontro com Florimond e Cantor. Negou qúé os conhecesse bem. Eram falatórios da corte. Interessara-se ao saber que aqueles jovenzinhos, providos em altos cargos por Sua Majestade, vinham da América. Agora os conhecia melhor.
Ele entregou a Angélica, como prova de reconhecimento pela ajuda recebida, um pequeno frasco de certo valor; excusou-se pelo fato de o modelo ser um pouco comum, daqueles que iam levar o renome da França para as capitais longínquas tanto em terras do grão-mogol como nas grandes cidades espanholas do Novo Mundo. Por isso, sem querer persuadi-la de que desse frasco de prata dourada.só existisse um único exemplar, concebido apenas para ela em sua-inspiração original, ele desejava^issi.m mesmo deixar-lhe uma lembrança, penhor de sua admiração ilimitada. - De .todas as maravilhas encontradas, a senhora é a primeira. Eu a descreverei ao_rei.
A LEITURA DO TERCEIRO SE ENARIO
CAPITULO X
Chegada a Gouldsboro, terra de milagres
Toda vez que Angélica voltava a Gouldsboro, toda vez que, através do fulgor de brumas de frémitos nacarados ou sobre a mais rara tela azul-rei do céu, ela via brilhar o rosa suave dos dois grandes mamilos do monte Désert que anunciavam a entrada do lugar, uma excitação feliz se apoderava dela.
De nada adiantaria lembrar-lhe a avalancha de dramas e de afrontas que aquelas paragens já lhe haviam preparado e que talvez fosse reencontrar.
Para ela, elas continuavam marcadas por uma magia paradisíaca que a maravilhara no exato momento em que percebera no nevoeiro espesso atravessado por arcos-íris o ruído da corrente da âncora desenrolando-se para imobilizar o barco, que chegava ao fim de sua primeira travessia longa, enquanto ela se mantinha em pé no convés, com Honorina apoiada a ela. Em seu íntimo erguera-se aquele grito silencioso de tantos perseguidos egressos da prisão e da morte, eque lhes inspira b desejo de cair de joelhos.
"O Novo Mundo!..."
Tudo podia acontecer naquela terra nova, pensara ela, e ela o aceitava antecipadamente. Pois finalmente eles estavam livres e salvos.
Toda vez que voltava a Gouldsboro, revivia aquele momento que fora para ela como a introdução de um sangue novo, que a galvanizara.
Ao tocar o Novo Mundo, os perseguidos, os vencidos reencontravam suas qualidades de homens, e alguns, pela primeira vez. i
Apesar do que tivera de sofrer em seguida naquelas praias, Angélica não esquecia sua primeira impressão, de indescritível bea-titude.
A ela se juntaram, nos dias seguintes, as alegrias miraculosas de encontrar vivos seus dois filhos mais velhos, e jamais se esqueceria do instante em que avistara Cantor, nu como um jovem deus do Olimpo, vogando na crista das ondas na gruta das Anémonas, gritando: "Olhe-me, minha mãe!" Isso se juntava ao sonho premonitório que tivera Florimond antes de partir para a América com Natanael de Rambourg. Ela julgara estar sonhando... ou que estivesse morta. Ali com frequência tudo se revestia do aspecto de um sonho, tal era o contraste com a existência no Velho Mundo, como costumavam chamá-lo.
Gouldsboro continuaria, pois, para sempre, a ser o lugar das realidades que se assemelham a miragens, recompensas descomunais, felicidades que fulminam como um raio.
E essas disposições felizes, que lhe tornavam a alma leve e o coração cantante, despertavam sua impaciência de reencontrar aqueles que se haviam associado - nem sempre com benevolência, era preciso confessá-lo - a suas .primeiras horas vividas naquelas praias.
Havia os húguenotes de La Rochelle, que ela e Joffrey tinham conseguido salvar da prisão e das galeras, e, entre eles, sua terna amiga Abigail, casada com Gabriel Berne, seus filhos Marcial, Severina e Laurier, que ela considerava como filhos adotivos... a velha Rebeca, sua criada, Tia Ana, os Manigault, os Carrère etc.
Preparava-se também para rever Colin Paturel, o que jamais ocorria sem que sentisse emoção e um vivo prazer, de que não mais se censurava. Se analisava o sentimento que lhe inspirava a visão de seu "governador", alto e maciço, aproximando-se deles com seu andar seguro de homem do mar, habituado ao balanço dos navios, levantando os braços em sinal de boas-vindas em meio à agitação ruidosa das crianças que sempre o escoltavam, ela encontrava apenas aquele sentimento repousante, reconfortante, de nele reconhecer um amigo que professava para com mbos um apego e uma devoção sem limites. Ouando Colin estava perto deles, Joffrey e ela se sentiam três carregar o fardo, a partilhar as responsabilidades. Sabiam que fidelidade de Colin em relação a eles jamais faltaria.
A maré do meio-dia levou-os em águas calmas pelo canal, que apenas pilotos experimentados podiam atravessar. Houve manobras antes de lançar âncoras, pois várias embarcações de diferentes tonelagens, com as velas erguidas, congestionavam a enseada. Nos preparativos da chegada, Angélica não prestava atenção ao número reduzido de embarcações que convergiam para eles, ex-ceto as canoas indígenas, sempre dispostas a rodear um novo navio, por curiosidade ou desejo de vender peles e obter aguardente.
Acomodando-se na chalupa que os levava para o porto, foi apenas depois de algumas braças, ao erguer os olhos e examinar sorridente a paisagem familiar, que estava tão contente de rever, que compreendeu que havia algo de insólito que não deixava de evocar-lhe sua recente decepção ao abordar Quebec no verão.
- Mas... não há ninguém para nos receber - disse, voltando-se para Joffrey.
Com efeito, nunca tinham visto Gouldsboro tão vazia, embora a palavra "ninguém" não fosse absolutamente exata.
Discernia-se um certo movimento de marinheiros, que passavam de lá para cá, rolando barricas, transportando fardos, ou outras pessoas que passeavam com a indolência de tripulantes durante uma breve escala, mas, entre elas, ninguém conhecido. Não havia nem sinal dos amplos vestidos sombrios das damas de La Ro-chelle, tomando lugar enl posições de destaque na praia, nem gorros e colarinhos brancos em torno de rostos que ocultavam sua alegria de revê-los sob uma contenção calvinista. Nada de criancinhas correndo aos galopes através das poças, salpicando lama por todos os lados, e nem sequer o voo de pássaros para acompanhar com seus gritos as saudações de boas-vindas; nada de milicianos com armas e uniformes ou casais mais coloridos e expansivos, formados pelos antigos piratas de Colin casados com Moças do Rei ou com encantadoras acadianas encontradas nos arredores da baía Francesa.
Por mais absorvidos que estivessem os habitantes em suas ocupações, nunca acontecera de os artesãos, lavradores ou pescadores, comerciantes, empregados ou carregadores, deixarem de abandonar suas tarefas para apresentar-se díante^deles e saudá-los por sua volta a Gouldsboro, porto franco e colónia fundados pelo Conde de Peyrac e sustentados por sua fortuna.
- O canhão não atirou para anunciar nossa chegada? - observou Angélica, que se deu conta no mesmo instante de que não fora dada nenhuma resposta do forte a esse anúncio.
Lançou um olhar interrogador e perplexo ao rosto do marido, mas ele mesmo, sem no entanto mostrar muita emoção, parecia igualmente surpreso. Seus olhos notavam com vivacidade cada detalhe inusitado no cenário, que sempre era familiar e novo para eles, pois Gouldsboro se transformava incessantemente. Era como reencontrar o rosto de uma criança que havia crescido.
O exame revelou que dois ou três fios de fumaça preguiçosos sobre algumas casas provavam que seus habitantes ali se encontravam. E, em meio ao vaivém dos marinheiros estrangeiros na grande praça, perceberam um homem idoso que parecia passear tranquilamente e que jogava um pedaço de pau a seu cachorro para fazê-lo correr, imagem que tinha alguma coisa de tranquilizador e que parecia confirmar que Gouldsboro não fora objeto de um ataque, risco que jamais estava totalmente excluído.
Mas em vão olharam em todas as direções, assim como todos os que se encontravam na chalupa: nem sinal de Colin Paturel surgindo com seus grandes gestos, acompanhado por sua escolta, nenhum movimento de soldados nas seteiras do forte, nada de adolescentes alegres pegando suas barcas e remando para vir ao encontro deles.
Como naqueles brinquedos de vidrilhos orientais em que o menor movimento precipita as cores e transforma o desenho a cada instante, Angélica vira desfilar em seu espírito todas as catástrofes imagináveis: piratas sanguinários da ilha da Tortue francesa ou da Jamaica inglesa haviam se apoderado de Gouldsboro, os índios, iroqueses e abenakis, haviam massacrado a população, ou então os ingleses de Massachusetts, comandados por Phipps tinham-na extraditado para reassumir a posse do Maine, aue a Inglaterra e a França disputavam entre si, a menos que fossem os huguenotes de La Rochelle que tivessem partido por livre e espontânea vontade para a Nova Inglaterra ou para as ilhas das colónias inglesas, como frequentemente diziam pretender fazer. Ou então, naquele vaso fechado onde tiveram a audácia e a imprudência de amontoar espécimes humanos diversos, papistas e reformados, piratas e piedosos burgueses, acabaram por matar-se uns aos outros. O que sempre havia previsto o Marquês de VilWAvrayL.
Todavia, a bandeira azul com escudo de prata do Conde de Peyrac continuava a flamular no alto do forte, ao lado das duas auriflamas, uma com as armas de La Rochelle, em nome da comunidade huguenote, a outra representando um Coração de Maria trespassado por uma espada, uma obra de arte bordada pelas ursulinas de Quebec, que Angélica e Joffrey tinham oferecido a Colin Paturel e a seus companheiros quando de sua primeira volta da Nova França. Em vista daquelas três auriflamas, podia-se augurar que todo mundo se encontrava ali. Mas, pouco a pouco, ao se aproximarem, perceberam que a maior parte das casas tinha as portas e janelas fechadas, e era isso o que dava à aldeia seu aspecto hostil ou de semimorta.
"Já sei! A doença!", pensou Angélica, aterrorizada. "A epidemia! A peste! Talvez a varíola..."
Mas nesse caso Colin teria erguido a bandeira negra!... A menos que o governador já estivesse morto!... E com isso todo mundo estaria desnorteado e sem iniciativa.
Depois, pouco a pouco, uma explicação que a fez empalidecer atravessou-a como um raio: a ideia de que a Diaba, ressuscitada, tivesse desembarcado... Com efeito, nesse caso, era compreensível o aspecto estranho de Gouldsboro. O que pesava sobre Gouldsboro era um malefício! e o terror!
CAPITULO XI
Fria recepção em Gouldsboro - Reencontro com os "anjos" de Salem
A quilha de chalupa chocou-se contra a margem de areia que se elevava bruscamente em direção aos primeiros terraplenos, nos quais se dispunham as mercadorias, fora do alcance das marés altas.
A chalupa ficara à deriva. Joffrey de Peyrac, com um sinal, mandara mudar a direção, e eles embarcaram rumo à extremidade do porto, em vez de perto do embarcadouro novo em folha que, sobre pilotis, avançava bastante na enseada. O longo dique de madeira levava à grande hospedaria da Sra. Carrère, chamada Albergue sob o Forte, onde os viajantes de todas as nações não deixavam de ir beber uma pinta de vinho francês quando chegavam. Mas naquele dia ela também parecia vazia, com portas e janelas barricadas, e o Conde de Peyrac, desconfiando de todas aquelas casas cegas, surdas e mudas, preferiu desembarcar num ponto mais afastado.
Talvez também seu olho de águia tivesse notado naquele lado silhuetas que, ainda que semi-ocultas dos olhares da grande praça, pareciam estar reunidas para esperá-los.
Aceitando a ajuda de dois marujos para chegar à praia sem ter de molhar seus lindos sapatos, última moda em Paris, que quisera calçar para homenagear - parecia que inutilmente - seus amigos de Gouldsboro, Angélica-pisou na areia úmida e, erguendo os olhos, viu-os a sua frente, imensos e negros, esperando-os.
Em sua libré cor de fogo, o "velho" Siriki, destacando-se da mbra de uma barca encalhada, adiantou-se, seguido por sua mulher a behpeuhl Akashi, cujo porte soberano não diminuíra nem m pouco, apesar dos blusões e saias com que tivera de ataviar ua nudez escultural de negra sudanesa. Mas a expressão selvagem de seus traços fora substituída por um orgulho e uma doçura que apenas a maternidade pode conferir às rainhas de Sabá.
Ela carregava uma fascinante boneca cor de ébano, que fixava nos recém-chegados grandes olhos arregalados.
O filho mais velho de Akashi, o filho das savanas africanas, com o qual ela fora vendida aos negreiros, um menino de cerca de dez anos, de pernas curtas e cabeça enorme, ao qual chamavam "o feiticeirinho", estava com eles, e havia no sorriso iluminado dessas quatro personagens, inclusive no do bebe, que ainda não tinha dentes, mas do qual emanava uma feliz e pacífica inocência, o mesmo brilho de alegria maravilhada, uma tão ingénua e franca satisfação de estar no mundo e de encontrar seus amigos que a inquietação experimentada por Angélica se rompeu como uma tela escura, cujos farrapos se rasgassem ao vento de forma irrisória.
Siriki, após inclinar-se com muita dignidade, designou o bebé com um gesto solene.
- Tenho a honra de lhes apresentar minha filha recém-nascida, Zoé - anunciou, com um júbilo indisfarçável.
A jovem Zoé tinha apenas dois meses. Estava notavelmente desperta sob a touca de babados que dissimulava a estopa preta de seus curtos cabelos cobertosj entre a cintilação de pequenos aros de ouro que já haviam colocado em suas minúsculas orelhas. Seus olhos, cheios de ousadia e de afeição pelo mundo ao redor, seduziram-nos. Uma maravilha!
Siriki explicou que lhe dera ó nome de Zoé, que em grego significa a vida, e, mais ainda, a própria essência da vida.
O velho Siriki era letrado.
— Eis uma notícia feliz - disse Peyrac.
— Mas onde estão os outros? - perguntou Angélica, depois de congratulações. - Como se explica que somente vocês tenham vindo acolher-nos, Siriki?
— Não ouviram nossa saudação de chegada? - interrogou o conde. - Não estou vendo nem o governador, o Sr. Paturel. O que está acontecendo em Gouldsboro?
— O vento do Diabo soprou - respondeu o velho Siriki, erguendo a mão num grande gesto bíblico que fez estender-se sobre o horizonte cinza-azulado do mar sua palma aberta cor de rosa murcha. - Uns fugiram. Outros se encerraram em suas casas. Mas não temam nada. Os que fugiram voltarão e os que se fecharam sairão...
— Quando vai ser isso?
— Quando perderem o medo... Quando forem afastadas as razões de seu medo.
O "feiticeirinho" estendeu em silêncio um dedo para a ponta da praia, e eles se voltaram para a direção indicada por ele.
- Ah! Aí está o Sr. Paturel!
Colin chegava rapidamente, fazendo em alguns momentos um gesto que dessa vez queria expressar mais contrariedade ou consternação do que alegria.
- Vai tudo mal - dizia ele de longe. - Bem que ouvi seus tiros de canhão, mas eu estava na enseada Azul, e para voltar por terra leva mais tempo...
Enquanto ele se aproximava, puderam observar-lhe a expressão preocupada; ele sequer dirigiu a Angélica oihabitual e rápido olhar de suas pupilas azuis, que sempre se iluminavam e se enterneciam ao vê-la, atravessadas por aquele brilho de admiração, uma homenagem à sua beleza, que, por assim dizer, não deixa jamais insensível um coração de mulher.
— O Sans-Peur do Sr. Vanereick chegou esta manhã, e tive de pilotá-lo até o lugar de sua ancoragem... Se tivesse sido avisado de sua volta mais cedo... Receava manifestações daqueles cabeças-duras... Mas, pelo que vejo, graças a Deus, tudo está calmo!
— Oh! Que está calmo, está! - disse Angélica. - Calmo até demais! Colin, pelo amor de Deus, informe-nos... O que está acontecendo? Que drama ocorreu?
— Tem alguma queixa contra esses marinheiros estrangeiros que estou vendo na praia? - perguntou Peyrac.
— Que nada! O navio deles arribou ontem. São ingleses da Inglaterra. Não é a primeira vez que fazem escala entre nós antes de voltar para a Europa. Eles nos traziam mercadorias de Londres e da Nova Inglaterra.
— Foi então a chegada do Sr. Vanereick que causou perturbações?
— Bem... Sffrí é não.
— Colin, você está escondendo alguma coisa! - exclamou Angélica, que tinha a impressão de que ele não queria falar diante dela.
— Senhora, pode ficar certa de que não lhe ocultarei nada. Prometo. Mas, antes, permita-me conversar a sós com o Sr. de Peyrac.
Os dois homens afastaram-se alguns passos e falaram um com o outro, com as costas meio voltadas para ela. Colin expressava-se com veemência. Tinha um ar embaraçado que não lhe era habitual, pois era difícil dizer o que podia embaraçar Colin Patu-rel, mais conhecido outrora nas Pequenas Antilhas pelo nome de Barba de Ouro, o Sangrento, e, no Marrocos, pelo de Rei dos Escravos das Galés de Meknés, chamado Colin, o Crucificado, Colin, o Normando, que havia chafurdado no sangue, no crime e nas traições sob todos os céus do mundo. Batalhas, grilhões, assaltos de piratas com a faca entre os dentes faziam-no apenas franzir o sobrolho numa leve mímica aborrecida.
Agora sua fronte de pele bronzeada sulcava-se de profundos vincos, enquanto a meia voz ele punha o Conde de Peyrac a par de uma situação que lhe parecia tão obscura quanto complicada. Angélica, paradoxalmente, começou a sentir-se mais segura.
"Aposto que é uma história de comadres", disse a si mesma, pois, apesar de seu sangue-frio e de sua sabedoria, Colin pertencia a essa raça de homens que prefere um combate de abordagem com sabre a ter de enfrentar as gritarias femininas.
A Diaba?... Não!... Siriki não teria se mostrado tão contente e sereno.
Dirigiu sua atenção a Akashi e a seus filhos. Mas eles continuavam a sorrir, cobertos da mais perfeita euforia naquele dia, que lhes permitia apresentar aos senhores de Gouldsboro aquele tesouro de que eram depositários, a pequena Zoé, com suas pupilas egípcias, de ágata branca, com íris brilhantes como diamantes negros.
Joffrey de Peyrac voltava em direção a ela, meio sorrindo também.
- Nada de grave, minha querida. Essas damas têm um génio! Um génio que acarretou muita confusão para nosso amigo Paturel, apesar dç uma notícia que tem tudo para alegrá-la.
O navio inglês, vindo de Salem, trouxera a bordo suas duas amigas Ruth e Noémia, a quem chamavam as "quacres mágicas" e a cujos talentos eles deviam a vida de seus dois últimos filhos, Raimundo Rogério e Gloriandra. Os gémeos, nascidos prematuramente em Salem, estavam à beira da morte quando elas chegaram à casa de Lady Cranmer, onde Angélica acabara de dar à luz, e, com sua ciência, trouxeram-nos de novo à vida.
Ao ouvir que essas duas amigas, às quais devia tanto, se encontravam em Gouldsboro, Angélica pulou de alegria.
- Onde elas estão?
Depois, vendo a expressão de Colin, refreou seu entusiasmo e esperou a continuação.
Colin explicava que, na ausência do conde e da condessa, que as apresentaram e patrocinaram em sua primeira estada em Gouldsboro, a vinda daquelas duas estranhas neo-inglesas provocara como que uma brutal reação da população local, uma mistura de pânico e de intolerância, e faltou pouco para que as duas jovens mulheres de Massachusetts, ao aparecer na praia com suas capas pretas de capuz pontudo, não fossem linchadas. "As feiticeiras! As feiticeiras!..."
Ao vê-las, um surto de solidariedade nacional pareceu soldar num único bloco os habitantes de Gouldsboro; papistas e hu-guenotes subitamente se lembraram de que, para os franceses, o inimigo hereditário continuava a ser antes de mais nada o inglês. Um falso pretexto. Mas foi o pretexto que todos os habitantes deram à recusa unânime de abrir suas casas às duas mulheres de Salem; e o comandante, assim como a tripulação do navio londrino que as havia trazido, se sentiram ofendidos, julgando-se insultados como súditos de Sua Majestade britânica, e começaram a se atracar com os mais obstinados. Foi preciso acalmar os ânimos, garantir ao comandante que ele podia, como de costume, pegar água potável e embarcar víveres, comprar ou trocar mercadorias: peles, vinhos franceses etc.
Em seguida, todos se fecharam em suas casas, como Aquiles sob sua tenda. O governador renegado gostaria de poder pôr à disposição das amigas do Sr. e da Sra. de Peyrac o conforto de sua residência pessoal, mas foi impossível. Compreendeu que as duas visitantes não poderiam pôr o nariz para fora e passear através do local sem provocar um motim, pois cada um as espreitava através dos batentes e dos interstícios arrumados para as armas em caso de ataque. Mandara pois que as levassem para fora da aglomeração, pelo caminho da falésia, que levava ao Acampamento Champlain, onde estavam instalados os refugiados ingleses.
— Sinto-me aliviada!... Seus compatriotas puderam acolhê-las...
— Infelizmente, não! - suspirou Colin.
Também aí as coisas iam mal. Se os ingleses reunidos no Acampamento Champlain tinham conseguido se entender ano sim, ano não, entre suas diferentes seitas, e se não praticavam nenhuma segregação mesmo em relação a Cromley, o escocês, que era católico e que eles consideravam como chefe de seu clã, um mesmo receio sagrado atingira e reunira num grupo fechado os ingleses ao verem as "feiticeiras", pois estava escrito na Bíblia: "Matarás o feiticeiro, não lhe permitirás viver..."
O Antigo e o Novo Testamento estavam ligados contra elas. Ruth e Noémia tiveram de se contentar com um abrigo a meio caminho da falésia, num lugar perto de uma fonte, onde havia uma cabana e uma cruz fincada.
- Foi o máximo que pude oferecer a elas - disse Colin, abatido. - Creia-me, senhora, sinto-me desolado!
Não tivera tempo para recolocar suas ovelhas no caminho correto.
A chegada do dunquerquense Vanereick, que se dizia corsário do rei da França, mas que todos, dos mares quentes das Antilhas aos mares frios da Terra Nova, consideravam um perfeito pirata, aumentara a perturbação. Vanereick, todos sabiam, era um grande amigo de Joffrey de Peyrac, um irmão da costa para ele. Era nessa qualidade que ele vinha todos os anos descansar, seja na costa leste em Tidmagouche, seja em Gouldsboro. Em sua última passagem, ele provocara confusões devido à presença de sua querida Inês, de que o julgavam separado, mas que reencontrara no Sans-Peurséu lugar de senhora absoluta; presença que foi agravada pela de duas ou três outras beldades de olhos escuros, tez mais ou menos bistre e cabelos negros, que dançavam como ninguém suas endiabradas danças espanholas sob a luz do luar, junto às fogueiras da praia.
Os membros do Conselho de Gouldsboro saíram de suas casas para se opor igualmente a esse desembarque. "Não lhe daremos permissão desta vez para entrar no porto", haviam decidido; "esse escândalo anual já durou demais."
Gritaram que suspeitavam que Colin quisesse mandar abrir um lupanar em seus muros. Já não bastava ter-lhes imposto as "feiticeiras".
Côlin atendeu ao mais urgente, saindo de xaveco da enseada e apreséntando-se diante do dunquerquense para conduzi-lo até outro molhe, nas redondezas, a enseada Azul.
— Foi então que ouvimos suas salvas de boas-vindas. Não imaginávamos que estivessem de volta. Aposto que, se esses impetuosos fariseus soubessem que vocês estavam tão próximos, ter-se-iam mostrado mais cordatos.
— "Quando o gato não está, os camundongos dançam" - disse Angélica. - E, quando não receiam ver-me fazê-los engolir suas imprecações, os justos e os perfeitos se fartam de tanto entregar-se a sua santa cólera!... Que corja! Eles bem sabem que me magoa mais ver maltratarem meus amigos que a mim mesma. Parece que foram os únicos que não nos viraram as costas - disse ela, voltando-se para Siriki e sua pequena família. - E no entanto não devem ser eles os que menos se arriscam vindo até aqui.
Siriki reconheceu que não tinha sido nada fácil "escapar".
— Quando se ouviu o canhão do Arc-en-Ciel soar, Sara Mani-gault me proibiu de aparecer diante de vocês. Havia uma palavra de ordem em favor de uma manifestação por ausência, que todo mundo devia respeitar. Mas nós conseguimos, minha esposa e eu, sair pelas dependências de serviço.
— Decididamente, eles "são incorrigíveis! Não existe nenhum senso de lógica nessa gente, apenas paixões partidárias. Que loucura se apoderou deles?
- O vento do Diabo soprou! - repetiu Siriki, com uma enigmática compunção.
Colin Paturel confirmou que durante o mês de agosto reinara constantemente um calor pesado, e que o vento que agitava a pesada umidade punha os nervos à flor da pele, trazendo somente fadiga, e nenhum alívio. Estavam apenas aturdidos, desnorteados. Logo que se franqueava a barra de recifes que defendia a enseada, encontrava-se um mar crestado de branco que tornava a navegação difícil e a pesca má.
Enquanto falavam e se explicavam, seu grupo atravessara toda a extensão da praia e chegara às margens do Albergue sob o Forte.
- Extremos! - propôs Colin. - Temos de tomar um copo de boa acolhida para nos acalmarmos.
Mas Angélica recusou.
- Estou por demais encolerizada e não quero me arriscar a encontrar diante de mim as damas de Gouldsboro reunidas, fazendo-me suas caras antipáticas... Não seria a primeira vez, e elas continuam a imaginar que um dia eu me renderei a suas razões virtuosas e deixarei de reclamar justiça e caridade como bem me parecer e para quem me convier.
Tinha pressa de correr ao encontro das duas pobres visitantes inglesas repudiadas, a fim de fazê-las esquecer, por sua solicitude, a acolhida hostil que lhes fora dada em seu domínio da baía Francesa.
Dirigiu-se inicialmente ao forte, para onde estavam sendo levados seus cofres e bagagens. Joffrey encontrou-a escovando vigorosamente os cabelos diante de um espelho já colocado sobre o consolo.
Apesar do humor versátil da população, sempre se sentia contente por voltar a Gouldsboro, disse ela.
Por vezes se perguntava por que gostava de todas as coisas ali. Pois, sob um pretexto ou outro, a tragédia sempre os esperava naquele lugar.
Mas um dia ela se zangaria.
- E você, meu senhor e mestre, pare de rir de meus desgostos. Eu sei que sou estúpida, mas não quero sua comiseração nem que zombe de minha constante ingenuidade, que me impele a acreditar que o ser humano pode se emendar e preferir a harmonia e a felicidade cotidiana às querelas.
- Não estou rindo - disse Peyrac -, e tomarei cuidado para não caçoar.
Tomou-a nos braços e beijou-a com ardor.
- É você que tem(razão, meu amor. É você que é um tesouro inestimável; os homens são loucos e insensatos. Como crianças impotentes e furiosas, eles se vingam de que a vida, mãe exigente, não lhes permitiu serem sós do mundo e impor a todos suas convicções pessoais, frequentemente também loucos e insensatos porque se mostram congelados em regras imutáveis. Eles se vingam de que, por sua simples presença, você lhes faz lembrar suas inconseqúências. Eu lhes censuraria a conduta se não soubesse que, no fundo, eles nos são afeiçoados, a você principalmente, pois a adoram. Não rio, não, somente sorrio em pensar na nova justa que se prepara entre seus huguenotes de La Rochelle e você, sua egéria predileta, da qual não sei se poderiam se privar. O espetáculo será de primeira, e eu o aprovo de todo o coração. Mas esses são conflitos de almas e corações, que você sabe muito bem resolver. De minha parte, preciso cuidar de meus piratas, arrependidos mas culpados de falta de hospitalidade, outros igualmente ofendidos como nosso bravo Vanereick. Estou incumbido dessa tarefa. E leve a nossas irmãs mágicas minhas saudações.
Ele beijou-lhe a mão, e ela tomou o caminho da falésia.
Pois bem! Gouldsboro estava deserta!... E agora?
Azar deles se preferiam se fechar em casa e se privar de uma festa... Dessa vez não tinham medido esforços em sua ação comum, destinada a demonstrar sua reprovação!
Entregue à alegria de rever seus "anjos" de Salem, ela começou a esquecer seu desapontamento. Tratou de assumir uma expressão calma e divertida enquanto caminhava através das ruelas e dos atalhos, que serpenteavam entre as cercas dos jardinzinhos em volta das casas. Olhos seguiam sua caminhada.
Mas a ordem de silêncio e deserção foi mantida. Ela não encontrou vivalma.
Todavia, subindo o caminho arenoso entre o mato já alto, teve a nítida impressão de que alguém, que descia em sua direção, desaparecera precipitadamente atrás das moitas.
Ela passou, sem procurar saber quem era aquele que ousara transgredir as prescrições dos Manigault, Berne e consorte, saindo de casa, e que tremia de medo" de ser reconhecido. Conhecia o lugar ao qual haviam relegado as visitantes de Salem, e por momentos, continuando a subir, conseguia perceber a cruz erguida contra a transparência do céu.
Lá de cima, tinha-se a mais bela vista sobre o porto, o estabelecimento, a enseada e as lonjuras semeadas de ilhas. Passeara por ali muitas vezes. No início, ia para ali a fim de meditar, consciente da fragilidade dessas poucas "casas de madeira clara" que começavam a ser edificadas, sob a proteção de um forte de madeira primitivo.
Quando de sua visita, o jesuíta Luís Paulo Maraicher de Ver-non, malvisto pelos huguenotes, fora ali escondido e, pelo que se lembrava, fora ele que erguera aquela cruz e construíra uma cabana para se alojar com seu pequeno ajudante, Abbal Neals, a criança sueca abandonada que ele recolhera nos cais de, Nova York. Construíra igualmente um altar rudimentar para celebrar a missa, um confessionário com algumas tábuas para atender aos católicos do lugar, ou seja, os índios batizados e os brancos de Gouldsboro e de Pentagouet.
A seguir, habituaram-se a relegar ali os viajantes de passagem que não queriam receber em casa de alguém ou no interior do burgo. Numa comunidade de situação precária e isolada, era preciso ser prudente.
Gouldsboro não era mais, como no início, uma grande família onde todo mundo se conhecia e se vigiava, mas não era ainda uma cidade com suas leis, seus guardas, suas instituições, seus funcionários, onde o indivíduo anónimo, suspeito, se acha aprisionado, desde sua chegada, pelo espartilho da disciplina urbana, o que neutraliza suas ações danosas. Do desconhecido, do estranho, daquele que não se conhece e que se mistura aos outros, o que se temia eram os roubos, cujo culpado nunca se conseguia encontrar, as brigas de bêbados, cujas causas permaneciam obscuras, mas em que os membros da população se arriscavam a ser implicados. E acima de tudo: o incêndio, ateado por negligência ou por maldade, e que poderia liquidar o trabalho de vários anos numa única noite.
Quando Angélica chegava ao cimo, descobrindo num só relance o panorama onde dançavam, sacudidas pelo vento, as cores misturadas do céu e do mar, da floresta e das praias e rochedos, pensou ter visto entre as plantas um brilho de lápis-lazúli; subitamente um homem vestido com uma sobrecasaca de cetim azul-claro e usando um chapéu festonado com plumas agitadas apareceu diante dela, empunhando em cada mão uma pistola, apontadas em sua direção.
Ele lhe barrava o acesso ao terrapleno onde se encontrava a cabana, firmada à sombra das primeiras árvores da floresta.
- Alto lá! Fique onde está! - disse-lhe, em inglês. - Quais são suas intenções?
Angélica perguntou a si mesma, confusa, se a todos os problemas estaria se juntando mais o imprevisto do desembarque de bostonianos ou de piratas ingleses que ela receava e que teriam se aproximado de Gouldsboro por terra. Depois, julgou compreender o que se passava.
— Vim para visitar minhas amigas de Salem, Ruth Summers e Noémia Shiperhall; disseram-me que estão» alojadas aqui.
— Quer mal a elas?
— Claro que não!
— Não vai aproveitar de minha permissão para passar, a fim de insultá-las e causar-lhes prejuízo e dolos?...
— Que está dizendo! Elas são minhas amigas, estou lhe dizendo. Eu sou a Sra. de Peyrac, esposa do senhor de Gouldsboro...
— Welll Estou reconhecendo-a - conveio o jovem oficial inglês, afastando-se para deixar o caminho livre. - Eu a vi no ano passado, milady. A senhora voltava de Salem, onde tinha dado à luz duas crianças gémeas.
No momento em que Angélica chegava à esplanada, viu surgirem de um galpão, construído ao lado da cabana, as silhuetas escuras de suas amigas. Elas se atiraram nos braços umas das outras.
Angélica percebeu que receara não vê-las nunca mais.
Conhecendo sua situação precária entre os puritanos de Salem frequentemente temera por suas vidas. Não podia acreditar em seus olhos ao reencontrá-las ali, em suas capas com capuz, cujo tecido lhe pareceu um pouco mais gasto e remendado, com a letra "A" vermelha bordada num tecido grosso sobre o coração. Seria a claridade do sol, que lançava uma luz crua que acentuava as cores e as sombras, o que a fez observar no belo rosto de Ruth minúsculas rugas no canto das pálpebras, uma tez mais pálida, e em volta dos olhos azuis de Noémia, olheiras mais pronunciadas?
Sua mão posta em seus ombros surpreendeu a curvatura de costas muito magras, adivinhou a ossatura de pulsos demasiado frágeis, e isso as tornava mais terrestres e revelava o que eram as pobres mágicas: duas jovens míseras, solitárias, repudiadas em toda parte. E por todos.
Enquanto as abraçava, ela se desfazia em protestos e lamentações pela má acolhida que haviam recebido, desolando-se por não ter estado presente... E já se apagavam diante de seus olhos aquelas marcas de fragilidade humana que julgara discernir, e que já não via no brilho de seus doces sorrisos e de suas pupilas de um azul seráfico.
- Que está dizendo, minha irmã? Estamos muito bem alojadas e num lugar maravilhoso. A água da fonte é tão boa!
Noémia foi até o galpão e voltou com uma jarra e um copinho.
- Beba, minha irmã. O calor está forte e o vento resseca os lábios.
Angélica bebeu, achou a água deliciosa e percebeu como estava com sede.
Era exatamente o lugar de onde reconhecera o cenário de Gouldsboro, tal como na visão da Madre Madalena, preparado para a chegada da Diaba. Ali também ela se confessara ao Padre de Vernon, algumas horas antes de sua morte dramática.
— A cruz não as aborrece? - perguntou, sabendo que os qua-cres repudiavam os objetos de culto, fonte de idolatria.
— Why? A cruz é símbolo para todos. A força que se lança para o alto. A força vertical e horizontal, a força da terra que resiste. É no ponto de encontro que tudo acontece,, ali onde esteve o coração trespassado por uma lança...
Reencontravam de súbito sua linguagem e o tom de suas conversas em Salem. O entendimento entre elas renovava-se sem esforço. Deram alguns passos, de braços dados. A relva baixa avançava até longe ao longo dos promontórios, com um cortejo de epilóbios malva e de papoulas, que desciam margeando as fendas até as praias ao pé das falésias.
Era preciso ter cuidado, na maré alta. O mar se engolfava naquelas chanfraduras estreitas, por vezes uma lâmina mais forte chocava-se no fundo do beco sem saída, saltava e se liberava num gigantesco gêiser de espuma, que era visto a alturas surpreendentes e que podia, ao se retirar, arrastar os transeuntes imprudentes, que avançavam demais nas margens. Pelo menos, arriscavam-se a ser copiosamente molhados.
O que lhes aconteceu por duas vezes.
- O mar está bravo hoje.
E recuaram enquanto um novo feixe espumoso eclodia, recaindo como que decepcionado por vê-las se distanciarem.
- O mar furioso e terno!... - disse Ruth Summers. - Desde que estamos aqui ele nos faz companhia. Sentamo-nos para contemplá-lo, vendo através dele a face do Todo-Poderoso e a amizade de uma natureza que não nos deseja mal ao nos...
Voltando para o pequeno acampamento, Angélica reviu o oficial de sobrecasaca azul e, na outra extremicjade do planalto, duas silhuetas com gorros de lã, usando calções curtos até os joelhos, moda entre os marinheiros ingleses, e empunhando mosquetes.
— Mas afinal quem são esses homens? Um deles barrou-me a passagem quando cheguei, pretendendo conhecer minhas intenções em relação a vocês antes de deixar que eu me aproximasse.
— Eles se declararam nossos guardiães. Pertencem à tripulação do navio que nos trouxe de Salem. Como você se lembra, no ano passado, quando saímos de Gouldsboro, o capitão de um navio inglês nos acolheu a bordo, um homem de Londres, cuja embarcação foi armada por um dos favoritos do rei. Quer dizer que é um capitão que tem grandes meios para tratar de seus negócios em torno do globo. Mostrou-se franco, cortês, como alguns que vêm da Inglaterra, um pouco desdenhoso em relação aos colonos da América e, como todo anglicano, zombeteiro para com os puritanos que dirigem Massachusetts, que, no entanto, governaram muito bem a Grà-Bretanha quando ela se declarou sem rei. Se o que diz é verdade, ele não podia absolutamente, com sua sobrecasaca vermelha e todas as suas plumas, agradar a nossos edis de Salem, que, nesse primeiro retorno, nos esperavam no porto com seus guardas. Pela acolhida, nosso capitão mostrou-se desconfiado de que estivessem querendo nos levar ao pelourinho, e quando falaram em nos levar, ele interveio. - Depois de uma pausa, ela continuou: - Não sei o que foi que lhes contou. Invocou, creio, seu esposo, que nos recomendara a ele e prometeu sua clientela para a compra de bacalhau e trazer-lhes cutelaria. Sem fazê-los pagar impostos. E, enquanto mandava encher de maçãs recém-colhidas seus tonéis, escoltou-nos até nossa casa, que felizmente não havia sido incendiada, e prometeu-nos, ao partir, que voltaria no ano seguinte e que pediria notícias de nossa saúde. Ele manteve a promessa. Desde sua vinda a Salem este ano, propôs trazer-nos a Gouldsboro, a fim de nos apanhar mais tarde, antes de voltar para a Europa. E o governador, que no entanto não é muito acessível, acedeu a sua proposta sem dificuldades, com a condição de que nos trouxesse mais uma vez.
— E aqui, seu compatriota e defensor teve novamente de protegê-las.
— Esses homens do mar estão sempre alerta. Uma coisa de nada faz com que levem a mão à coronha de suas pistolas. Vêem em toda parte inimigos. Assegurei-lhes que não havia motivo para recear por nossas vidas aqui, mas o capitão, de acordo com seu governador, Mr. Colin - ela pronunciava "Cólin" -, preferiu manter guardas à noite. Não queríamos tornar a voltar imediatamente, pois sentíamos que vocês não iriam tardar a chegar...
— Veja como os seres humanos são desconcertantes - disse Ruth, num tom confidencial. - Os habitantes nos fizeram cara feia, mas duas ou três pessoas da aldeia já vieram até aqui as escondidas para nos pedir um remédio ou cuidados...
Era provavelmente um daqueles visitantes que Angélica avistara descendo a trilha e tentando esconder-se no mato, enquanto ela subia no sentido inverso.
- Continua a ser como em Salem - continuou Ruth. - De dia eles gritam que somos seres do Diabo, mas na calada da noite vêm pedir um -benefício de saúde, que só pode ser de Deus, pois é para uma vida melhor...
O galpão onde foram alojadas parecia ter sido construído recentemente no local da antiga cabana, mais exígua.
— Parece que querem transformar este galpão em posto de trocas - disse Ruth -, mas eu acho que seria melhor fazer aqui um lazareto, onde os doentes epidêmicos pudessem ser tratados, isolados de suas famílias. O ar é tão puro aqui...
— Por que não foram à casa de minha amiga Abigail? - perguntou Angélica, atormentada pela sanha de Gouldsboro. - Ela as teria recebido, e vocês conhecem o caminho para a casa dela...
— Nós estivemos lá. Mas a casa estava fechada, barricada. Não sei se havia alguém lá dentro, mas ninguém se manifestou nem respondeu a nossas chamadas.
"Até Abigail!", pensou Angélica, subitamente deprimida. Continuava a olhar a sua volta. Faltava alguma coisa... ou alguém!
- Onde está Agar? - gritou. - Sua pequena ciganinha?
Inquieta, perguntava-se se os dirigentes de Salem não a teriam mantido como refém para garantir a volta das duas mulheres...
- Agar morreu - disse Ruth Summers.
- Eles a mataram - acrescentou Noêrflia Shiperhall, como um eco.
Sentaram-se num banco, à sombra do galpão.
O drama ocorrera na época mais sombria do inverno, naqueles meses em que o mar de tinta estende seus rolos de espuma até o interior das terras, e quando se patinha pelas ruas e pelos atalhos, sulcados por pesadas carroças puxadas por bois, numa lama vermelha, cor de sangue pisado, onde derrapam os cavalos, onde oscilam as carriolas, que precisam ser empurradas com os ombros para sair do caminho, aqueles meses em que o humor fica amargo e em que o medp se apodera dos espíritos, submetidos à meditação das noites demasiado longas.
Não se sabe que capricho dera na pequena Agar para deixar a casa à fímbria da floresta, onde se encontrava protegida da chuva e sair sob o aguaceiro.
Por onde correra naquele tempo selvagem? De quem teria a cigana zombado no caminho? Aquela criança sorridente... Teria sido atraída pelo mercado, cujo movimento aprecia- tanto? A chegada de um navio?...
Uns disseram que ela havia roubado... na estalagem, um queijo ou um ovo... Não chegaram a um acordo. Outros, que havia "induzido em tentação" um respeitável pastor que a repreendia, a menos que houvesse sido um marinheiro da Virgínia - todos condenados! - que lhe lançava sementes de girassol como se faz com um macaquinho.
Também sobre isso ninguém se entendia.
Explodiram gritos de raiva, anátemas, insultos e blasfémias. A multidão, de punho levantado, armada com pesados porretes, banquinhos, cabos de chicote, tudo o que lhes caía nas mãos, juntara-se sobre aquele corpo dançante de jovem louca que, mesmo em pleno inverno, na falta de flores, gostava de se enfeitar com folhagens, uma coroa de hera, ramos de teixos no peitilho!... Não precisavam ter batido tanto, para acabar com ela!
Suas mães adotivas não sabiam quais os cidadãos de Salem que tinham vindo mais tarde furtivamente depositar o corpo abatido na terra encharcada, junto ao círculo de pedras brancas...
- Ela vivia fugindo nos últimos tempos - reconheceu Ruth Summers, sacudindo a cabeça. - Creio que ela se pôs a procurar, e isso sem maldade, aquele ou aquela a quem eu devia o fato de ter sido aprisionada durante várias semanas.
Ela suspirou:
— Um duro e triste inverno! Brian Newlin também morreu.
— Brian Newlin?,..
— O homem com quem me casei em Salem, depois de me converter ao congregacionalismo. Por ser daqueles que tinham o direito de perseguir, e não dos que eram perseguidos, como o: quacres, entre os quais eu nascera.
— De que ele morreu?
A jovem não respondeu imediatamente, e em seu fino rostol muito pálido, Angélica discernia novamente os estigmas das provações e provações intermináveis.
- Ele me trazia livros - disse, após um momento de silêncio -, e foi isso o que causou sua perdição. Eu encontrava seus pacotes de livros para lá do círculo de pedras: Baxter, mas também Erasmo, le é proibido. Sonetos satíricos de Harvey. Tudo de que eu gosiava. Eu, uma mulher, não tinha o direito de ler. "Você me dá mais .que um pedaço de pão", eu disse a ele um dia, quando me encontrei com ele em meu caminho.
' 'Eu sei', respondeu, desviando os olhos. Fomos vistos conversando. Eles viram que, longe de me repudiar com horror, meu antigo esposo, que eu havia ofendido, se aliava a mim.
"Odiando ainda mais o homem que abdica de seu poder absoluto sobre sua mulher, e sobretudo diante de sua mulher culpada, odiando-o mais ainda que à própria mulher, eles o condenaram à forca por insanidade mental. Diziam que eu lhe colocara um verme no cérebro. E talvez seja verdade. Ainda que o início de sua transformação estivesse ali antes que eu aparecesse, pois ele já lia às escondidas os poemas de Gabriel Harvey.
"No caminho do suplício, eles lhe fizeram todo tipo de perguntas, a fim de provar à multidão que ele era insano, e com efeito aquele homem taciturno pareceu exaltado e disse palavras estranhas.
" 'Penteem suas barbas', ele gritava, 'e todos no palácio!... para meu julgamento!', ou então, aos juízes: 'N$o comam nem cebola nem alho, pois seu hálito, por causa de seus discursos, deve ser fresco!... Jemam 0 poeta, pois o olho do poeta, revirando-se de delírio, vai da terra ao céu e do céu à terra...'
" 'Eu, que lhe falo, Brian', disse-lhe John Knox Mather quando chegavam ao cadafalso, 'de nada me adiantou ouvi-lo no caminho do suplício e de nada me adiantou ouvi-lo no tribunal; eu, que sou doutor em teologia e em todas as espécies de artes e ciência, não consigo compreender coisa alguma em suas palavras. Você é, portanto, um insano.'
"Brian parou e olhou-o nos olhos com uma insolência e um desdém de que eu não obteria julgado capaz. 'Saiba que há mais coisas no universo, Horácio, do que sonha sua vã filosofia!...' As pessoas se perguntavam por que ele chamara o Dr. Mather de Horácio... Ele ainda gritou: 'O mundo está fora dos eixos!... Maldito seja você, por ser eu quem o deva consertar!...'
"Foi apenas mais tarde que eles compreenderam que, aquele tempo todo, ele não fizera outra coisa senão citar-lhes Shakespeare."
E Ruth Summers começou a rir, e depois as lágrimas perolaram seus cílios pálidos de loira inglesa.
- Qúergfaríde alma foi destruída! - murmurou.
Angélica teria desejado dizer-lhe, assim como a sua amiga: "Fiquem! Fiquem! Não voltem a Salem, pois eles acabarão por matar a vocês também".
Elas se anteciparam.
— Não se censure coisa alguma! Esse é nosso destino! Não viemos para ficar. Viemos apenas para lhe trazer feijões de nosso campo, daqueles que você apreciava tanto, refogados e cobertos com creme morno e molho de ácer, aos domingos. Colhemos seiva de ácer na primavera em nosso bosque atrás da casa, e o cozinhamos a nossa moda para dar-lhe a consistência do mel. Vamos lhe trazer dois potes. E também lhe trazemos, selado com chumbo, um pouco do melhor chá da China, essas folhas que produzem uma bebida que mata a sede e tonifica, e que lhe fazia tanto bem, remédios em quantidade para seu boticário, dentre os quais a casca desses salgueiros que nascem junto ao lago onde são feitos os julgamentos de Deus, e que é excelente contra a febre... Mas basta de anúncios apetitosos! Temos coisas mais importantes a fazer, e nosso tempo é medido. Viemos sobretudo para lhe reler o terceiro setenário dos tarôs, aquele que você não quis ouvir, por medo do futuro,
— Como adivinharam que eu queria ouvi-lo hoje?
— Nós a vimos no rio - disse Noémia.
CAPÍTULO XII
O chá à moda da Nova Inglaterra - Abigail e o retorno à boa ordem em GouldsBoro
- Você estava sozinha na popa de um navio - prosseguiu a jovem inglesa de Salem, como se descrevesse uma imagem precisa. - Descia o rio em meio à neblina. Nesses limbos, sombras de sua vida a escoltavam. Elas a seguiam e a precediam. Nesse rio, as sombras de sua vida gostam de se reunir, quando a cortina está prestes a se abrir para um novo ato. E os papéis são redistribuídos novamente. Assim, algumas dessas sombras, que estavam atrás de você, vão passar a sua frente, mostrando-se a você. Aquelas que tinham estado por muito tempo afastadas se reaproximavam e lhe faziam sinal: "Aqui estamos. Você tinha se esquecido de nós". Aquelas que você se habituara a considerar como familiares se distanciavam. Nesse movimento você se sentia angustiada, e lamentava não ter querido conhecer o terceiro setenário, a terceira estrela que falava de uma súbita viagem, de uma mudança, que a assustava. Tomada pelo pressentimento diante dos anúncios do destino, lamentava não poder lembrar-se das razões que lhe havíamos dado para não temer antecipadamente, pois, naquela estrela, lêramos triunfo, êxito. Lêramos o sinal de sua vitória. Lamentando pois não ter querido tirar o véu, você pensava em nós...
Angélica reconheceu lu estado de espírito quando, recentemente, estava descendo o Saint-Laúrent.
— Eu me lembrava de uma Carroça que anunciava não sei que viagem, cuja eventualidade eu preferia ignorar. Mas era pueril de minha parte. E mais tarde lembrei-me de que vocês falavam também de vitória.
- E não de uma vitória passageira. Mas a própria vitória. Aquela que constrói uma vida nova sobre outras bases, tal era seu destino entrevisto e em direção ao qual você caminha, e que de agora em diante se aproxima. Por isso, adivinhando seu arrependimento, pegamos nossas cartas, fechamos nossa casa e nos dirigimos ao porto onde, aproximadamente à mesma hora, aparecia o homem de Londres de sobrecasaca azul. E aqui estamos nós... Mas, primeiro, voltemos para dentro para nos proteger do sol e do vento, e vamos beber o chá, pois, pela altura do sol, já está na hora.
. Na lareira formada por três pedras colocadas num canto do entreposto, Noémia pusera uma chaleira cheia de água.
O mobiliário era mais que rudimentar. Uma tábua colocada sobre um estrado servia como mesa.
Feixes de palha jogados na terra batida e uma manjedoura cheia de feno novo provavam que o lugar servia também, na ocasião, de estábulo e estrebaria.
As duas jovens mulheres garantiram que haviam dormido muito bem, sob a guarda de seus marinheiros ingleses, que estavam lá fora em torno do fogo e aos quais elas levavam de tempos a tempos uma xícara daquele chá, que eles engoliam fazendo caretas.
Os rudes ingleses julgavam uma vez mais que os colonos da Nova Inglaterra não faziam nada como todo mundo, e, por eles, teriam preferido um pouco de gim ou de rum àquele chá apreciado no Novo Mundo. A metrópole britânica ainda não entrara na rota do famoso chá, enquanto os puritanos do Novo Mundo, dissidenters, batistas, congregacionalistas, em seus diferentes exílios nos Países Baixos, ou pela anexação da Nova Amsterdam na América, tinham aprendido com os holandeses o gosto de uma infusão rara e custosa, importada da China, de uso medicinal, e que a alta sociedade de Haia transformara em moda.
Tornara-se mais que uma moda, um ritual. Em Massachusetts, em todas as casas de pessoas abastadas, bebia-se o chá da China
a determinadas horas, e Angélica, em casa de Mrs. Cranmer, observara que havia um cómodo reservado para essa finalidade, em geral uma das pequenas salas junto ao vestíbulo.
Ela sorriu ao vê-las retirar de suas pobres bagagens e dispor sobre a tábua rústica finas xícaras de porcelana, vilídas da China, e apenas nas quais, afirmavam todos os adeptos do ritual, o chá podia ser bebido. Refinamento que não combinava com sua austeridade. Eles tinham respeito pelo comércio, veneravam a raridade de uma folha e de uma baixela trazidas de tão longe pelo heroísmo de seus homens do mar e da solidez dos" navios construídos em seus estaleiros do Novo Mundo.
Ruth disse que aquelas xícaras e aquele bule tinham sido dados a elas por Mrs. Cranmer, em agradecimento por terem cuidado de seu pai, o velho Samuel Wexter, e terem-no salvado.
Deplorou não poder preparar, por falta de ingredientes, aquela panaceia que tinha muitas vezes dado a ele para lhe restaurar as forças: um chá muito forte misturado com ovos mexidos, leite, nata, baunilha e torradas na manteiga...
Depois, pediram notícias de seus "Babies", os gémeos, e cantarolaram a canção de ninar com que os embalavam:
"Devolvam, devolvam,
Devolvam minha bela a mim.
Oh! Soprem os ventos sobre o oceano.
Oh, soprem os ventos sobre o mar".
Um chamado alertou-as.
O homem de sobrecasaca azul dirigia-lhes sinais, agitando as pistolas.
- Vem vindo alguém! - gritou-lhes.
Uma mulher subia em sua direção, correndo apesar da inclinação da encosta e do peso da cesta que carregava nas costas, assim como dos cestos que arrastava. Devia estar presa de uma forte agitação. Viam-se mechas de cabelos, que em sua pressa lhe escapavam de sob a touca.
- É sua amiga Abigail Berne.
Angélica nunca vira Abigail tão desarrumada.
Entretanto, era-lhe forçoso reconhecer naquela mulher descabelada e carregada como um asno a calma Abigail, sua amiga ro-chelesa.
- Ah! até que enfim as encontro - gritou ela, ao vê-las. - E você também está aqui, Angélica! Deus seja louvado! Estamos salvas!
Pôs os pacotes no chão e, ofega'nte e vermelha, começou a arrumar os cabelos sob a touca.
- Gabriel me prendeu... Para me impedir de acolher e ajudar a suas amigas, que chegavam da Nova Inglaterra. Já ouviu falar de semelhante loucura da parte de um homem que... que... Jamais acreditei que ele fosse capaz de uma coisa dessas! Ele não me amordaçou, mas é como se fosse!...
Seus olhos brilhavam com as lágrimas retidas.
— Em todo caso, ele me encerrou no telheiro, de modo que não consegui responder a seus chamados quando foram bater a minha porta - disse, voltando-se para as duas jovens inglesas - e nem ser ouvida por vocês nem por ninguém.
— Quem a soltou?
— Laurier... Não é uma vergonha que um menino pequeno como ele seja testemunha da maneira como o pai trata a esposa?... Sou apenas sua segunda mãe, mas o menino tem respeito e afeição por mim... E uma indignidade!...
Tomou fôlego. Sua tensão diminuía. Era evidente que, depois dessa explosão, inusitada em seu temperamento pouco inclinado à cólera, ela se sentisse esgotada, como depois da passagem de um tufão.
- Mas o que foi afinal que deu em toda essa gente? - Gemeu. - Parece que uma tromba-d'água, um turbilhão, os arrasta!
A beira das lágrimas, ela se deixou cair nos ombros de Angélica.
— Oh! Angélica! Eu o amava tanto!... O que vai ser de mim? E se ele enlouquecer como os outros, meu Gabriel!
— Venha beber o chá que preparamos, enquanto ele ainda está quente - encorajaram-na as inglesas.
As três mulheres a cercaram e conduziram-na ao. abrigo do teto de folhas. Noémia despejou a infusão rosada nas xícaras.
- Não estávamos abandonadas, como vê, cara Mrs. Berne. Tínhamos chá, pão preto para nos restaurar as forças e... milicianos para nos guardar.
Ela designava os homens lá fora, que haviam retomado sua vigia. Abigail explicou:
— Eu lhes trazia víveres e bebidas. E também apanhei algumas mudas de roupa, pois não sei se vou voltar a viver sob o teto daquele tirano...
— Abigail! E suas filhinhas?...
— Severina levou-as, por ordem do pai... como se eu fosse uma mãe indigna, e fosse preciso tirá-las de mim... Já se viu tamanho desatino?...
— Beba! Falaremos disso depois...
Abigail bebeu obedientemente e pareceu se acalmar. Ela sacudia a cabeça.
— E verdade que Gabriel mudou muito... Não é mais o mesmo depois do que aconteceu a Severina.
— Que foi que aconteceu com Severina? - inquietou-se Angélica, que se reconfortou intimamente dizendo-se que, uma vez que Severina fora encarregada de levar suas pequenas irmãs, estava viva, e isso era o mais importante.
— Oh! é verdade, você não está a par... - suspirou Abigail, com ar cansado. - Na primavera, antes de embarcar com Honorina, você passou tão rapidamente por nossa cidade.... Não tivemos tempo de conversar. Você estava levando Honorina para Montreal, e isso era muito triste. Não reveríamos mais aquela criança - lamentou-se a meiga Abigail Berne, que arranjou um pretexto para, à evocação de Honorina, mergulhar o rosto em seu lenço e derramar as lágrimas que estava segurando,
— Minha amiga! minha querida! estou desolada - murmurou Angélica, envolvendo-lhe com o braço os ombros sacudidos pelo choro. - As responsabilidades nos devoram. Quanto mais nossos negócios entram nos eixos, quanto mais os.perigos se distanciam, tanto menos^empo temos para estar com os amigos e desfrutar de uma paz tão duramente obtida.
— É que é preciso lutar também para conservá-la - disse a jovem mulher, sorrindo em' meio às lágrimas. - Eu me pergunto se a manutenção de nossas vantagens não exige de nós mais esforços do que os simples combates do início para chegar a elas. Oh! o que foi isso?
As quatro deram um grito, pois uma bola peluda acabara de saltar sobre a mesa num pulo ágil.
— Senhor Gato!...
— Eu pensei que ele tivesse subido a bordo conosco - contou Angélica, depois de ter acariciado seu amigo das horas difíceis. - Só demos por sua falta em Tadoussac.
— Ele passou o verão em nossa companhia.
— Não nos preocupamos muito, pois sabemos que ele só faz o que lhe dá na cabeça.
O Senhor Gato viajava conforme suas conveniências, e não por decisão dos outros. Ignoravam-se que interesses ou presciência faziam-no deixar um lugar ou permanecer nele, mas isso dependia apenas de sua vontade. Bastava que desaparecesse no momento de partir, se não quisesse ir de viagem, ou que se enfiasse nas bagagens ou a bordo dos navios, se fosse de seu agrado participar dela.
Dessa vez, por uma razão obscura, a viagem para Montreal não o inspirara, e ele preferira esperar a volta de Angélica na praia de Gouldsboro, teatro de suas primeiras aventuras.
- Será que me seguiu, ou veio à frente de algum visitante? -inquietou-se Abigail.
Pela porta do galpão, viam os marinheiros do navio inglês se agruparem, olhando para o atalho, e parecerem relaxar a vigilância, até então feroz.
Dessa vez subia para a esplanada um grupo cujo aparecimento podia fazer esperar que tudo tivesse se acalmado no estabelecimento de Gouldsboro.
Ladeando Joffrey de Peyrac e Colin Paturel, reconheciam o alegre corsário dunquerquense Vanereick, que subia animadamente. Tirou o chapéu e sacudiu-o assim que percebeu as silhuetas femininas no alto da falésia.
Um belo homem, de uns trinta anos de idade, vestindo uma sobrecasaca vermelha recamada, os acompanhava.
- É ele, o capitão do navio de Londres que nos protege - explicou-lhe Ruth Summers.
Um pouco atrás, mas fazendo cara alegre, o Sr. Manigault e aquele a que continuavam a chamar de "advogado" Carrère representavam a comunidade majoritária do lugar, os huguenotes franceses de La Rochelle.
Uma das filhas de Manigault, Sara ou Débora, assim como Jeremias, que voltara do colégio de Harvard para passar o verão, acompanhavam-nos, levando igualmente um carregamento de cestos.
Pelo que tudo indicava, a vida de Gouldsboro recomeçava a seguir seu curso normal.
Naquela noite haveria uma festa na grande praça diante do Albergue sob o Forte, e a oportunidade de admirar a bela Inês y Perdito Tenares dançando o fandango ao som das castanholas.
CAPITULO XIII
O caso de Severina Berne
Angélica adiara para o dia seguinte a leitura de sua terceira estrela. Queria primeiro esclarecer • caso de Abigail. Dirigiu-se à casa dos Berne e em. ou, de vento em popa.
- Onde ele está?...
Abigail voltara para casa, onde encontrara suas duas filhinhas. Mas estava sozinha e triste.
— Ele não voltou. Avisaram-me que ele tinha de tratar de uns negócios com uns pescadores bostonianos que arribaram no monte Désert. Eu me pergunto até quando ele vai ficar de cara amarrada.
— Aproveitemos sua ausência para conversar à vontade. Abigail diga-me em resumo o que aconteceu com Severina que provocou a ira do pai contra ela e, parece, contra mim.
Pela idade da bela moça, desconfiava que se tratava de uma história de amor.
— Gabriel embirrou com você pois a julga responsável por essa desgraça, por tê-la levado, no ano passado, naquela viagem na qual ela encontrou todo tipo de pessoas nocivas a sua candura. Ele repete que foi sua maneira de pensar que a influenciou.
— Explique-se melhor! Tudo isso é muito vago.
A pobre Abigail não conseguia falar. A confissão lhe era custosa. Ela se repetia,~recomeçando a narrativa por outro ponto.
- O inverno foi muito duro. Gabriel não melhorou de humor. Estava furioso contra nós. Censurava-se por ter deixado sua filha ainda tão jovem acompanhá-la nessa viagem à Nova Inglaterra, onde elá poderia sentir-se tentada pela frivolidade de uma vida debochada,, da qual, infelizmente, tivemos a prova.
— Uma vida debochada? Na Nova Inglaterra! Entre os puritanos! Isso não me parece verossímil. Mesmo entre os batistas ou os luteranos, ela não pôde encontrar nenhuma oportunidade para...
— Nossos cálculos contudo não nos deixam dúvidas. Parece que foi durante essa viagem que ela conheceu aquele que...
Finalmente, mergulhando de cabeça, Abigail confessou o drama que transtornara, durante aquele ano, aquela família tão pacata e feliz da margens da baía Francesa.
No outono, pouco depois da partida de sua caravana para Wa-passu... Não, pensando melhor, havia sido mais tarde, pois a neve já começara a cair e.o Natal se anunciava, Severina tivera uma hemorragia. Por sorte, ela não hesitara em avisar sua madrasta, chamando-a de seu celeiro, à noite, e esta, com "a ajuda e os conselhos da Sra. Carrère, em cuja discrição se podia confiar, assistira a jovem naquilo que se revelaria ser um aborto de dois ou três meses, ocorrido espontaneamente. O acidente não teve consequências maiores para sua saúde. Ela se restabeleceu rapidamente. Mas a vergonha e a infelicidade haviájn entrado no lar dos Berne, e Severina, apesar de teimosa, não negava, mas se recusava a dar detalhes e a pronunciar palavras de arrependimento.
- Não conseguimos fazê-la confessar de quem estivera grávida. Nossas deduções nos persuadiram de que ela devia ter cometido esse deslize durante sua ausência, no verão. Julgamos compreender que não se tratava de um rapaz de Gouldsboro. Mas não conseguimos descobrir mais nada. O certo é que está tão apegada a essa lembrança que não manifestou nenhum arrependimento por sua conduta. Chegou até a sorrir diante da cólera de seu pai. A única coisa Ifue a entristecia era ter perdido aquela criança, que ela começara a esperar em segredo. Creio que teria levado a gravidez até o fim, orgulhosamente. Diante de nossas admoestações, ela respondia: "Dame Angélica me compreendia". Isso exasperava Gabriel... e foi o que o levou a dirigir contra você um pouco de seu rancor. Não creio que eu tenha me mostrado muito severa com ela; sou apenas sua segunda mãe. Eu lhe disse: "Severina, você precisa crescer, testemunhar menos insolência e leviandade". Mas ela estava zangada conosco porque compreendeu que nos felicitávamos com seu aborto, que evitou o escândalo.
— Ela nunca foi fácil - concordou Angélica. - Em La Ro-chelle, sofria por ser humilhada pelo fato de ser protestante. Isso forjou-lhe um temperamento rebelde aos imperativos dos adultos. Mas eu me defendo, Abigail, de tê-la encorajado a se comportar dessa maneira, com esse excesso de liberdade e esse desdém pelos preceitos, dos quais ela apenas percebia o constrangimento e não que são fundados sobre o respeito à vida e sobre a mais elementar prudência. Pois uma jovem grávida, mesmo que se conceda que haja um amor bem sólido, é sempre uma tragédia. Estou desolada que ela tenha lhe causado esse desgosto, e posso lhe afirmar que o partilho e que compreendo seu julgamento a esse respeito, apesar de eu ser católica e você, protestante.
— Angélica - disse Abigail, pousando a mão em seu braço. - Nada nos separa nem separará jamais. Você é minha irmã. E mais. Uma amiga. Em muitos pontos, você é estranha para nós, é verdade. Mas, quando chegou a La Rochelle, foi como se o sol ou o vento do mar de um dia bonito entrasse em nossas escuras casas, um pouco congeladas. Você me fez pensar nesses anjos mensageiros da Bíblia que se vêem surgir cheios de luz e de entusiasmo e que não se mostram ternos para os homens timoratos. Protetores, entretanto, eles vêm nos lembrar que o dia do Senhor está próximo, que é preciso que despertemos, que nos ponhamos a caminho. Foi assim que a recebi, na consciência do benefício que ia representar para nós sua presença tão pouco habitual, apesar do ciúme que me feriu imediatamente. Pois eu sempre amara Gabriel. Mas com demasiada indulgência, não ignoro. Eu soube que você iria sacudi-lo, recolocá-lo no verdadeiro caminho de sua vida.
— No qual ele devia perceber que você era feita para andar a seu lado, você, a encantadora Abigail que ele não via, por estar absorvido em seus livros de contas.
— De que adianta um homem ser animado pelo sopro de Deus para dedicar-se a uma vida tão medíocre? - disse Abigail.
— Seu Gabriel é um felizardo por tê-la a seu lado, e eu me encarregarei dè iembrar-lhe isso.
— Num certo, sentido, tanto ele como eu compreendemos o que Severina queria dizer quando se referia a você ao falar do amor. Eu também devo a você ter sabido amar melhor, ter compreendido que o amor era um dom do céu e que era preciso abandonar-se a ele sem remorsos - acrescentou, enrubescendo. - Ainda hoje não ignoro que jamais poderia dar a Gabriel o mesmo que você. Mas que importa? O que tenho "a oferecer a ele, sou a única que pode fazê-lo. Eu lhe dou segurança. "Ele receia tudo o que sai demais dos quadros permitidos. Entretanto, ele tem um limite. Minha docilidade não é omissão, mas amor. Não pude aprovar seu comportamento para com suas amigas de Salem, nem que lhe queira mal de uma maneira injustificada e exagerada pelo que sucedeu a Severina.
— Abigail, você é meu consolo. Eu a teria compreendido se você se inclinasse como uma boa esposa, mas agrada-me ver que não me renegou.
— Você me ensinou a manter a cabeça levantada, Angélica, e em circunstâncias ainda mais mortificantes para uma mulher do que as que acabam de me ser infligidas. Aprendi a lição. Quantas coisas já vivemos nessas praias!
— Siriki acha que o vento do Diabo sopra por vezes por aqui.
— As paixões turbilhonam. O vento sopra e passa. Quando volta a calma, felicitamo-nos por não termos nos entregado, a não ser o mínimo possível, a sua fúria sorrateira.
— Tratar-se-ia de Natanael de Rambourg? - refletiu Angélica, voltando ao caso de Severina. - Só pode ser ele. Abigail, você deveria ter-me posto a par disso mais cedo. Falarei com Severina e também com Mestre Berne. Ele vai me ouvir. Suas preocupações paternas não justificam de maneira alguma seus modos de tirano doméstico.
Elas conversaram bastante, com confiança e prazer. Enquanto isso o eco das disputas atiçadas por sentimentos exagerados, palhas que tinham de sef rejeitadas como sarmentos ressecados, afastava-se delas.
Angélica era a única mulher no mundo com a qual Abigail podia discutir a respeito do que a preocupava.
— Dir-se-ia, Angélica, que você se mantém na encruzilhada da vida para dela receber as riquezas que vêm de todas as direções.
— E não sem sentir com frequência muita angústia, e hesitar, como neste momento. Nestes anos todos, tudo se ordenou. Retomamos nossas bases. Tivemos êxito. E agora eu sei que tudo vai oscilar novamente, pois a natureza parece que não se contenta com a vitória apenas... Talvez você me censure por estar assim à espreita, por procurar compreender, aceitar, como você diz, o que vem de todas as direções.
— Não só não a censuro, mas invejo sua coragem. Pois eu não poderia segui-la em tudo.
Assim, Abigail confessou que ficara horrorizada com a ideia de que Angélica queria ler o futuro nos tarôs, pois essa era uma prática que, ainda naqueles dias, talvez mais que antigamente, podia conduzir à fogueira.
— Bem, mas é preciso que eu conheça as grandes linhas de nosso destino e de que espécie é minha vitória - disse-lhe Angélica.
— Certamente. E não serei eu quem irá dissuadi-la - reconheceu Abigail, rindo. - Pois estou tão curiosa quanto você.
CAPITULO XIV
O enigma da estrela mágica
— Vocês se lembram de como estavam dispostas as lâminas desta estrela? - perguntou Angélica.
— Certamente! Era uma estrela tão linda! E nós a pusemos muitas vezes diante de nós para contemplá-la pensando em você.
No cimo da falésia, Angélica, Ruth e Noémia sentaram-se na relva baixa, em torno de uma lápide de granito saliente, sobre a qual Ruth dispôs as cartas que retirou de sua grande bolsa de veludo.
- Aqui está a Carroça, que a desagradou tanto - disse a vidente, apontando para a carta. Você não nos deu tempo para dizer-lhe que ela tem várias significações. Mas quando sai assim no alto, em primeiro lugar, tendo como oponente o Louco, trata-se com efeito de uma viagem imprevista... que vai acontecer... sem que se tenha programado... Partida rápida, sem preparação.
- Como quando saímos de La Rochelle, em algumas horas.
Ali no Novo Mundo suas viagens eram previstas, preparadas. Tinham um objetivo determinado. Quando terminava o inverno, eles tornavam a descer o Kennebec em direçào a Gouldsbo-ro. Depois, embarcavam para a NovaÉhglaterra ou para a Nova França com armas e bagagens, presentes para distribuir, mercadorias, provisões.
— Você falou de fuga e de derrota?
— Bem rapidamente, talvez - reconheceu a jovem mulher. - De qualquer maneira, como o Louco está em oposição, repito: é uma viagem... inesperada, como uma fuga... Mas é preciso lembrar que a Carroça em si mesma tem uma dupla significação, uma das quais a de vitória sobre os inimigos. Então prefiro dizer que essa viagem com ares de fuga, já que será rapidamente decidida, é indispensável, pois terá por, objetivo deter ou neutralizar inimigos.
"Que viagem e em que direção?", interrogou-se Angélica.
Ruth pegou-lhe o pulso para acalmá-la.
- Não comece a ficar nervosa. Essa viagem não lhe diz muito respeito. E lembre-se de minha recomendação. As forças convocadas aqui são poderosas. São as forças do Sopro. Respeite-as, mantendo-se calma. A estrela é bela. Nada se consumou ainda. Seu destino avança, mas tanto hoje como no ano passado é apenas o anúncio do que a envolverá e estará em ação no momento em que tudo começar. Vou lhe dizer por quê, daqui a pouco, e qual a carta que confere importância aos outros arcanos, assim como seu sentido transcendente. - Ela continuou: - Vejo aqui a Força e, diante dela, a Justiça. A Força é o leão, símbolo do Sol, e talvez seja um soberano. E em todo caso o homem soberano em face da justiça. Isso quer dizer que o homem, seja ele quem for, lhe devolve as armas, lhe restitui o que lhe é devido. A equidade reina. O equilíbrio, alterado pelo homem, foi restabelecido por ato de justiça, e esse estado permanecerá, pois é um dos pilares de sua vida futura. Que pode desejar de melhor, você que batalhou tanto tempo para que sua voz chegasse ao ouvido do tirano, ou do mestre, ou de não importa que homem, que recusava direitos de vida a sua feminilidade? - Depois de uma pausa, ela continuou: - No eixo oposto, há as Estrelas e a Temperança, que confirmam o setenário na ideia de vitória geral, de duração no triunfo, tanto mais certa por ser fruto de uma longa e razoável constância. As Estrelas são a paciência, porque são a aceitação da vida, tal como ela é, tal como ela se apresenta. Imperfeita, muitas vezes sórdida, mas também maravilhosa, embriagadora. Com esse material é preciso fazer a vida que nos e dada. Pode-se fazê-]o porque se está acima de tudo isso, porque se está protegido pelas Estrelas. Você está apta a isso por natureza, apesar de seu temperamento impaciente. Quando, pois, em contrapartida, se encontra a Temperança, compreende-se como são excelentes as cartas distribuídas a você. A Temperança indica: o que estava na obscuridade vem à luz. De um lodo negro surge o outro. É preciso ir devagar para realizar essas coisas, deixar que os fenómenos evoluam: revelações, transmutações... Colocadas assim em oposição, as Estrelas e a Temperança, sim, não é de todo mau. Por que as Estrelas primeiro e depois a Temperança? É uma disposição melhor!... Porque a paciência das Estrelas nos lembra que você é protegida pelo cosmos^ Por outro lado, é preciso que a obscuridade venha à luz. È uma tarefa longa, somente a proteção do cosmos pode permitir que à realize. - Então, concluiu: - Enfim, no meio, viramos este arcano, o Mundo, que lança sobre todos os outros uma poeira de vitória e de glória. Eis o signo de sua vitória. Não uma vitória passageira, mas que se estende sobre a anunciada renovação. Pois em primeiro lugar o Mundo, colocado desta maneira, é uma possibilidade de vida bem longa. A Heroína, você, é avisada de que inúmeras vias se abrem diante dela, e que isso não a impede de percorrer várias delas, pois os anos não lhe estão contados. Realizada a liberação, ela pode fazer o que quiser de sua vida e ainda dar vida e várias vidas. O tempo lhe foi dado, a vitória superior e não apenas material e prática. O Arlequim foi afastado.
— Onde está o Arlequim?
— É a carta ainda não virada. E, com efeito, ele não tinha quase nada a fazer neste setenário. O Arlequim, o funâmbulo, em equilíbrio instável sobre a corda, se imiscui nos negócios de comércio vitoriosos, nos negócios financeiros projetados. Doravante sua fortuna está feita, construída. Sua aposta é mais elevada e seu desígnio, mais vasto. Há muito tempo que você aprendeu a passar sem ele. A Estrela-de-Davi, que temos diante de nós, tem outras ambições. Você tem de reiniciar uma. vida nova. Não se trata talvez de uma forma de vida nova, mas de você, surgindo de uma longa elaboração como uma pessoa completamente diversa. O Mundo é o indivíduo que se reencontra com a oportunidade de refazer a vida, se o quiser; isso representa pelo menos uma. pureza. Todas as possibilidades lhe são oferecidas, homem ou mulher. Eis por que é representado por um ser andrógino, de preferência uma mulher que se despe: porque ele se encontra nu diante de seu destino, puro, nada a ocultar, nada a lamentar.
Debruçada sobre as cartas, Angélica examinou mais de perto a representação do Mundo: um ser de carne e de beleza, coroado de louros, segurando em ambas as mãos bastões de ouro, enquanto a sua volta choviam gotinhas de prata.
— É uma mulher, pois representa a você, e você a vê "orvalhada", como costumamos dizer, de todas as graças, alegria, euforia, contemplação. O ser vitorioso está deslumbrado.
— O que está segurando?
— No início, raios, que tomaram a forma mais grosseira de bastões, como, nas estatuetas orientais, vêem-se representados os raios das forças telúricas. Mas aqui todas as forças: o Bem e o Mal, a Fraqueza e a Força, o Ying e o Yang, para os chineses, ou seja, o princípio feminino e o masculino. Tudo nas mãos. O triunfo.
— Quando isso acontecerá?
— Já aconteceu! - murmurou ela. - Mas você ainda tem de passar por uma última prova no tempo e no espaço.
E colocando o dedo sobre o Louco de cinto dourado:
- É ele quem o diz, o Louco. Pois a Carroça, que você teme, não é perigosa. Mas, associada ao Louco, significa: provação. O Louco não é um insensato, como alguns o querem considerar. É apenas aquele que se diferencia. Aquele de quem nada se diz, porque não se entende em que consiste "a diferença". É o homem que não corresponde ao código estabelecido pelos outros homens para que sejam semelhantes entre si e sigam o costume geral, a lei comum. Ele não é como os outros. O que não quer dizer que não seja notável. É aquele que não é culpado e que parece culpado aos olhos dos seus e da lei reconhecida. Sua lei esta em si mesmo e seu juiz, no alto. Pois a graça plana acima da lei. È ele, ou ela, que admite ou comete certas loucuras, pelas quais será censurado e talvez rejeitado. Ele as comete, não por espirito de loucura, mas par obedecer a uma sabedoria mais elevada, que arde dentro dele, a despeito de si mesmo...
Ela se interrompeu, olhando-as alternadamente.
— É você, somos nós. E o homem que você ama, o Conde de Peyrac, seu esposo, ligado a todos e, todavia, afastado de todos... E é ele, ali - acrescentou, com um movimento em dire-ção ao homem de sobrecasaca azul-clara que prosseguia em sua espreita austera, pronto para abater com um tiro de pistola quem quer que quisesse prejudicar as duas infelizes mulheres, consideradas como loucas perigosas e feiticeiras. - E o homem de Londres também, seu capitão de sobrecasaca vermelha, que não nos esqueceu e veio nos procurar para nos levar a você
— E Brian Newlin, provavelmente também? - disse Angélica.
— Sim, é verdade. Obrigada, minha irmã, por ter mencionado isso. Assim soldados, não estamos sozinhos. Inúmeros são os loucos dos arcanos superiores que dançam à roda. E cada um teve seu mastim mordendo-lhe o calcanhar. Mordida que desperta o Louco, esquecido de seu destino, e que, não fosse isso, adormeceria. Proibido de dormir, Messire Louco! Ele é também o livre-arbítrio, não nos esqueçamos. E de que adiantaria ser livre para escolher o próprio caminho, se, em vez de fazer a escolha, dormisse! Mordida! O cão morde-nos o calcanhar. É preciso despertar, é preciso partir, é preciso aceitar a necessidade de agir. E preciso transpor a prova imposta, senão as promessas do destino não se cumprirão de modo algum. Você, você sabe já que superará a prova, pois o triunfo aqui está e se impõe.
— Se não é uma viagem, então que tipo de prova é? - perguntou Angélica, após um momento de silêncio. Pois receava aproximar-se de uma revelação temível, em torno da qual elas não paravam de girar, desde o início, corroo raposa rondando o galinheiro.
Essas lâminas de cores vivas, e que pareciam refletir amistosamente um futuro ornado com todos os êxitos e vitórias, encerravam perfeitamente o espinho venenoso prometido por sua postura muito airada e que a faria claudicar.
E esse cachorro, mastim rabugento?... Devia levar à sério esse mastim simbólico, que Ruth e Noémia olhavam, parecia-lhe, com indiferença, se não indulgência, provavelmente por estarem familiarizadas com sua mordida estimulante?
A pergunta de Angélica, Ruth respondeu:
- Não sei.
Então, vendo que decepcionava Angélica por sua recusa em querer conhecer mais alguma coisa a fim de informar-lhe, fez um esforço. Depois de lançar um olhar para Noémia, caiu em profundo devaneio.
E, com os cotovelos apoiados aos joelhos e as faces apoiadas às palmas das mãos, seu olhar perdia-se no horizonte móvel do mar semeado de ilhas. Essa extensão de azuis cambiantes movia-se como uma seda sacudida, por mão displicente, balançando-se no limite do céu. Suas dobras drapejavam em volta das rochas alongadas, alinhadas em esquadro e coroadas de um verde brilhante.
Uma leve vertigem nascia dessa contemplação. O vento chegava em rajadas súbitas, amiúde carregado de garoa salgada. Via-se explodir, a bordo da falésia, o penacho de espuma dos vagalhões, antes de ouvir-se seu ruído. Um sopro mais violento revirou o capuz de Ruth e seus cabelos flutuaram. Opacos e dourados, tinham ao sol uma textura luminosa que lhe fazia como que uma auréola. Angélica, em meio a essa loirice, percebeu melhor os cabelos brancos, aqueles que os tormentos interiores, as rupturas irreparáveis, o desgate das injustiças e das súbitas renegações fazem nascer antes da idade. "A feiticeira!..." E ela reviu a feiticeira de sua infância. Era a primeira ou segunda Melusina?... Era mais a primeira, aquela que tinham enforcado. Tinha belos cabelos brancos frisados, que ela deixava flutuar aos ombros e que enfeitava com flores, o que lhe dava o ar de uma alegre menina velha. Mais camponesa, mais redonda que Ruth Summers, mas tão sábia e adivinha quanto ela. As feiticeiras!... As feiticeiras dos campos. Quantos passeios fizera Angélica quando menina em sua companhia! Quantos mistérios lhe haviam sido revelados... As feiticeiras das florestas!... Quantas não haviam- sido queimadas ao longo dos séculos...
A jovem inglesa prolongava sua meditação.
Finalmente, num tom solene e quase sepulcral, ela pronunciou:
- Você falará com um morto!
Angélica sentiu um calafrio glacial passar-lhe pela raiz dos cabelos.
- Que está querendo dizer?
- Não sei exatamente - respondeu a inglesa, sacudindo a cabeça. - Está vago! É estranho.
Angélica viu-se honrada por uma visão do Além, como Madre Madalena, e não sentiu nenhum entusiasmo diante da ideia.
— Não quero ter que falar com um morto.
— Como você é teimosa! Quer conhecer sua sorte, quer saber tudo sobre o invisível e não aceita nada!... E se seu destino fosse ser odiada, apedrejada... como o nosso?!
— Não o quero de modo algum. Já tive minha cota de apedrejamentos!...
— Pois bem, você tem razão, minha cara. E tudo se concilia? O que você adquiriu pelos obstáculos de sua vida é não mais pertencer aos vencidos... Eis por que em toda parte só vemos glória e triunfo para você... Escute mais uma coisa. É inútil e imprudente querer dar às revelações dos tarôs uma imagem demasiado precisa. Nossa interpretação é suspeita. E, como eu lhe dizia ainda há pouco nesta carta, talvez seja o rei, seu soberano, ou talvez seu esposo, ou talvez ambos, ou talvez um outro homem que se pareça com eles. Essas coisas, a gente só sabe depois... E o símbolo que nos apareceu... De que adianta soltar nossa imaginação imperfeita? Seja, pois, humilde e paciente diante das predições. Você compreenderá quando chegar o dia.
Depois elas começaram a rir como crianças cúmplices quando são as únicas a perceber o hermetismo e a graça de suas brincadeiras e disputas.
Uma onda quebrava à beira da falésia, e o vento espalhava sua garoa salgada.
Tudo estava calmo e suave, tudo se harmonizava. Até a ingenuidade pacífica que a distância conferia aos barquinhos entrevistos nas lonjuras da baía Francesa, nas velas brancas dos navios ou nas dos barcos de pesca, escurecidas pelo caucho. Todos rivais, sabia-se, obstinados em fazer triunfar seus desígnios e em contrariar os dos outros, mas que, por trás do tom pastel do nevoeiro, pareciam apenas perseguir um sonho elegíaco.
O vento brincava com os cabelos das três mulheres inclinadas sobre a estrela mágica.
CAPITULO XV
A partida das videntes
"Elas não falaram do Homem Brilhante nem da Papisa...", pensou Angélica enquanto descia ao porto para presidir à partida de suas amigas. Não estava inteiramente satisfeita. Apesar do anúncio dessa avalancha de triunfos e de vitórias certas, Angélica, que trazia de seu périplo à Nova França uma sensação de ameaças confusas, surpreendia-se de que as sutis videntes tivessem esquecido de lhe falar daquelas duas personagens, que anteriormente haviam descoberto com terror, o Homem Negro, a Mulher Negra, sua cúmplice, que também designaram pelos vocábulos "Homem Brilhante" e "Papisa", e que definiram em termos surpreendentes, se se pensasse que não sabiam nada sobre eles e jamais tinham ouvido falar a seu respeito.
Que seja! Eles estavam mortos e enterrados. O esquecimento das videntes parecia garanti-lo.
Mas Angélica esperava ser inteiramente assegurada por Ruth e Noémia acerca desses fugazes signos ou presságios.
Ora, Ruth, depois de ter anunciado, como por descuido, uma "prova", e ter-lhe definido, sem muita segurança e com certa dificuldade, a natureza mórbida, nada acrescentara. Seja por estar distraída, seja por estar menos ligada a Angélica do que em Salem, ou menos preocupada com ela, talvez atingida mais do que o confessava em sua saúde e em seu coração pela morte de Agar e pelas sevícias sofridas nas prisões, a maga não via mais longe.
Sua quietude diante do destino de Angélica era total. Tudo se banhava no azul para o futuro da Imperatriz, como os tarôs a haviam identificado, Angélica, a Heroína dos três setenários vitoriosos.
Com grande ruído, apoiado em dois marinheiros ingleses, um bêbado de sua tripulação era trazido, vomitando ao mesmo tempo o produto de suas exageradas libações no Albergue sob o Forte e uma enxurrada de injúrias contra esses "frog eaters", ou "comedores de rãs" franceses, que, contudo, o haviam cumulado generosamente de vinhos franceses de excelente qualidade.
Amarraram-lhe os pés e as mãos e o jogaram no fundo de uma chalupa.
Chegou o momento das despedidas.
Ruth Summers voltou-se para Angélica.
— Não se atormente!
— Estaria me atormentando sem motivo?
— Você se atormenta antes do tempo. E é uma tolice. Consome suas energias contra fantasmas impotentes. -
Havia um pouco mais de gente no porto do que a sua chegada.
Joffrey viera saudá-las e trazer-lhes presentes, entre os quais, um corte de tecido preto para que mandassem fazer capas mais confortáveis.
Angélica, a seu lado, olhou-as afastar-se no barco, que dançava na crista das ondas, apertadas uma contra a outra em suas capas escuras com capuz comprido, que as faziam parecer duas gralhas pretas entre seus protetores, os oficiais e fidalgos ingleses, de sobrecasacas azuis, vermelhas, com saiotes, plumas nos chapéus festonados, jabôs e punhos de renda balançando ao vento, e os marinheiros com seus gorros lisxrados de azul e branco, que remavam entoando uma velha canção de despedida das margens do Tamisa.
Elas voltavam para Salem, uma cidadezinha tão bonita do Novo Mundo, com seus lilases, suas abóboras e seu pelourinho...
CAPITULO XVI
Confidências de Severina
- Venha ajudar-me - disse Angélica a Severina Berne.
Depois da partida das duas inglesas, cuja presença perturbara a população, mas às quais muitos tinham recorrido em segredo, em busca de cuidados e de remédios, foi votada pelo Conselho, por sugestão das visitantes, a decisão de transformar em lazareto a edificação junto à falésia.
Carpinteiros e marceneiros foram reforçar as vigas, os gonzos e as fechaduras da porta, tapar os buracos do telhado com ripas novas, recérn-cortadas da madeira clara das laricas. Colocaram-se algumas tábuas ao longo da parede como prateleiras, onde se alinhariam frascos, caixas, bacias, almofarizes, bocais, e fizeram-se subir duas ou três grandes arcas vazias para a roupa-branca, algodão, rolos de bandagens, cobertas, óleo e velas para a iluminação, e reservas de lenha. Era preciso agora varrer o chão de terra batida, lavar a mesa e os escabelos.
Angélica subiu a trilha acompanhada pela adolescente; atrás dela vinha um enxame alegre de meninas, entre as quais se encontravam Doroteia e Jeanneton, da ilha de Monegan, e a inglesinha que escapara dos massacres de Brunswick Falis, Rose Ann, filha dos Williams.
Um pouco mais tarde, enquanto as pequenas ajudantes levavam cestas de detritos para jogá-los fora, Angélica e Severina, armadas com sólidas vassouras de ramos de carvalho, começaram a limpar vigorosamente o lugar e os arredores. Angélica abriu fogo.
— E agora, diga-me, você tem notícias de Natanael de Rambourg?
— Por que dele? - interrogou Severina, desviando os. olhos.
— Porque ele talvez tenha bons motivos para se informar sobre você!
Severina ergueu os ombros e deu uma breve risada zombeteira, suavizada por um laivo de indulgência.
- Ele? Isso me surpreenderia muito! O que ele tenrna cabeça?... Nada. Menos que nada! Ele voga como uma grande gaivota perdida nas tempestades!... E mesmo assim!... nem isso. Uma gaivota se esforça por reencontrar os seus, se preocupa com sua subsistência. Enquanto ele, nadai... Ele não pensa em nada! Nutre projetos nebulosos. Não sabe nada...
Parou de varrer e voltou para Angélica seu rosto de grandes olhos negros, brilhantes e animados.
— Imagine que ele nem sequer sabia de onde vem-o termo "hu-guenote", com que nós, reformados franceses, fomos agraciados. Não sabia nem mesmo que era uma alteração da palavra alemã "Eidgenossen", quer dizer "confederados" e que foi transformada em "eyguenet" pelos partidários genebrinos, que queriam aderir à Confederação Helvética contra o Duque de Sabóia francês. E como, mais tarde, nós, calvinistas, nos declarássemos também contra todas as doutrinas antigas, nossos adversários deram-nos a alcunha, que vinha de Genebra, a cidade de Calvino: "eyguenet", que se modificou pouco a pouco para "huguenot". Eu, eu sei tudo isso. Tia Ana é muito sábja e eu estou sempre com ela. Mas ele! Sua ignorância... é uma lástima!... Meu pai tem razão em dizer que os nobres da religião reformada são ainda mais tolos e mais ignorantes que os da religião católica.
— Se você o achava tão estúpido, e tão pouco atraente, não compreendo por que...
Severina pôs-se a varrer furiosamente; depois, abandonando a vassoura, correu para Angélica e atirou-se em seus braços.
— Oh! Dame Angélica! E por sua culpa...
— Não diga isso! Seus pais me acusam das piores coisas, de lhe haver dado maus conselhos, de lhe haver encorajado... e não sei o que mais...
- Foi por ter me encorajado que meu entendimento se abriu para o mistério do amor. Eu pensava em casamento, dote, um bom partido. Um dia compreendi que o amor não tinha nenhuma lógica. Que o verdadeiro amor é como o raio, que nós todos temos direito a ele, mas que o perdemos, por não... reconhecê-lo, por não nos inclinarmos diante dele... Não sei me exprimir... As palavras são insuficientes... Seria preciso falar horas e a propósito de um domínio invisível aos olhos humanos... E verdade, eu o achava pouco inteligente, pouco bonito, antipático. E, no entanto, como lhe explicar o que aconteceu? Foi no ano passado. O mesmo navio inglês que naqueles dias se aprontava para levantar velas levando também vossas amigas da Nova Inglaterra. Elas haviam subido até nossa casa para se despedir. Tive um pressentimento. Eu tinha a certeza de que ele ia tentar ir embora, apesar de todo o trabalho que eu tivera para trazê-lo a Goulds-boro. Ele ia partir e eu não o reveria mais. Deixei a casa pelos fundos e corri até a praça. Encontrei-o na multidão e, como eu tinha pressentido, carregando suas bagagens e sua velha bolsa para a passarela de embarque. A partir daquele momento, não posso lhe descrever o que aconteceu. Foi como se tivéssemos começado a andar sobre uma nuvem. Assim que me aproximei dele e nossos olhares se encontraram, ele largou a bolsa e nos demos as mãos. Andamos e, sem falar, afastamo-nos da cidade e nos enfiamos na mata. Que força havia em nós! Que seiva! Ele não sabia nada. E eu tampouco. Era á primeira vez. Amamos pela primeira vez juntos, sem saber coisa alguma. Que encantamento, apesar da dor! O céu que explode! Seu deslumbramento, que o transfigura! Minha sujeição, que o satisfazia e que me satisfazia!... Oh! tenho certeza de que Adão e Eva no paraíso terrestre, na primeira vez, não foram tão felizes. Você tinha razão, Dame Angélica. O êxtase vale todas as penas, todos os sacrifícios!... - Então concluiu: - Não, não me censure. Você se preocupa comigo porque sou um pouco sua filha, mas eu sei que aprova que se siga audaciosamente o próprio caminho. Aquele que me defende de tudo nem por isso é exemplar. Quanto às censuras que lhe fazem meus pais...
E Severina, rindo, sacudiu a cabeça, lançando sua bela cabeleira negra em todas as direções, como uma bandeira.
- Não! Não! Cara Dame Angélica, não são apenas suas palavras nem as da carta que me leu. É seu exemplo, estou lhe dizendo! É toda a sua pessoa. É o que você vive com seu esposo. Tudo isso me fez comprender que o Amor existia. E também o que há entre Abigail e meu pai. Mesmo que isso lhes desagrade... Eu disse a eles. Meu pai estava furioso por eu ter-lhe observado isso. Eu tinha de encontrar alguma coisa para me defender de sua cólera, quando me vi obrigada a confessar...
Passando do riso às lágrimas, ela se entristeceu, baixou a cabeça.
- Perdi o fruto de meu amor - murmurou com amargura.
Ela conteve um soluço e contou sua decepção. Vira seu sangue fugir com aquele fruto da esperança, desaparecerem aquelas perspectivas de alegrias novas, de mudanças de vida que representa a vinda de uma criança'.
- Sim, eu sei, eu a compreendo...
Angélica se lembrava de sua aflição numa circunstância análoga. Por pouco não arrancara com as unhas o olho do fidalgo que a escoltava e a levava prisioneira para Paris quando, por sua culpa, a carroça virou e ela compreendeu que ia perder uma ténue promessa de amor.
Naquele momento, não tinha sido sua sorte, nem presente, nem futura, não tinha sido nem Joffrey, nem Colin, ambos desaparecidos, o que lhe importava. Mas apenas a perda de uma promessa de um filho. As mulheres são assim!
- Que pena que você não estivesse lá, Dame Angélica! Ninguém podia me compreender! Só pensava numa coisa: que a vizinhança não se inteirasse do caso.
Angélica tentou fazê-la compreender a que ponto a imerecida provação, a que o pobre Berne e sua mulher, tão meiga e boa, teriam sido submetidos, arriscaria transtornar-lhes a vida.
- Ter de responder às perguntas pérfidas, sofrer o riso, a crítica e a injustiça de seus amigos, defender-se, defender a filha, exigir para a criança inocente uma vida normal. E eles o teriam feito. Mas quem sabe não teriam sido obrigados a romper com sua comunidade, que cultiva a reprovação com tanta satisfação? E a deixar Gouldsboro? E Laurier? E. Marcial? O mundo é assim. Você não pode querer-lhes mal por isso.
— Eu não quero saber deles e nunca lhes perdoarei.
— Não seja tão intransigente, pequena virgem louca! Agora você é uma mulher e não mais uma menina que pensa que tudo lhe é- devido, tanto da vida como dos outros. Você guarda esse amor! Pois bem! Prepare-se para o esposo que deve chegar. Vou escrever a Mestre Molines em Nova York. Ele localizou meu irmão Josselino, depois de anos de desaparecimento. Não me surpreenderia se encontrasse seu Natanael. Então era nele que pensava quando me disse: "Tenho no coração um segredo de amor que me ajuda a sobreviver"?
— Era.
Angélica contou como Honorina, que ficara muito impressionada com essa frase, fizera, levando a mão ao coração, a mesma declaração ao despedir-se dela no parlatório de Margarida Bourgeoys.
- Honorina! Querida irmãzinha! - disse Severina com um sorriso melancólico. - Como ela é imprevisível e divertida! Eu daria tudo para conhecer o nome de seu segredo de amor. Provavelmente jamais o saberemos. Ela sempre teve ideias que julgava demasiado importantes para confiar a adultos irresponsáveis.
Continuaram a varrer o chão, de novo em silêncio. Angélica perguntou:
— Então, nenhuma notícia?
— Dele? Não, nenhuma. Todavia, eu não perdi as esperanças, e aguardo sem impaciência. Aguardo a volta dele. Não quero absolutamente outro. Ele voltará. O que experimentamos juntos nenhuma outra mulher pode lhe dar. E ele não conseguirá esquecê-lo. Nem eu tampouco.
CAPITULO XVII
A ira de Gabriel Berne
Gabriel Berne detivera-se à beira do caminho para dardejar um olhar: sombrio e reprovador sobre um grupo de moças e crianças, que estouravam de riso às escondidas olhando os três filhos MacGregor e seu pai vestirem seus xales de lã xadrez com cinturão. Eram quatro escoceses na cerimónia. Se essa apresentava um quê de galhofa, que provocava a hilaridade juvenil ou o interesse dos transeuntes curiosos, não tinha em si nada de repreensível.
No entanto, parecia inspirar a Mestre Berne reflexões desagradáveis e amargas, que o absorviam de tal modo que, ao perceber a presença de Angélica a alguns passos dele, não pôde mais evitá-la. O que já vinha fazendo havia alguns dias.
Angélica, que o procurara em toda parte, não querendo deixar Gouldsboro sem ter tido com ele uma conversa, assim que o viu observando um espetáculo dejfcia se apressara a ir a seu encontro.
Aborrecido por ter-se deixado surpreender, seu antigo mestre de La Rochelle resolveu passar ao ataque.
- Veja só essas donzelas! - disse ele com um gesto amplo em direção ao grupo de jovens sorridentes, e sem sequer saudá-la. - Elas cacarejam como galinhas, cochicham entre si reflexões indecentes sobre esses indivíduos grosseiros que ousam, em pleno dia, apresentar-se em -público só de camisa, sem calças, exibindo-se assim num povoado de bons costumes.
Angélica desviou sua atenção para a cena que o indignava tanto.
Sob a agradável luz de um sol matutino, os três robustos rapazes e seu pai, robusto também, apesar de suas costeletas encanecidas, acabavam de surgir à soleira da cabana, onde haviam passado a noite. Estavam realmente vestidos apenas com suas camisas de fraldas longas.
Esses escoceses do Novo Mundo usavam a camisa tradicional, ainda tingida de açafrão, que diziam ser um tecido irlandês, e que, em outros tempos, costumavam impregnar de pez para que resistisse à chuva e à água salgada do mar.
Adiantaram-se alguns passos e colocaram-se afastados uns dos outros, depois começaram por cobrir-se gravemente com suas grandes boinas azuis com pompons, enfiando a seguir as meias de lã vermelha que deram aos habitantes das Highlands o apelido de "red shanks", ou "canelas vermelhas", e que eles ataram sob os joelhos displicentemente com um talo de mato ou de palha. As fraldas de suas camisas farfalhavam ao vento, o que deixava Mestre Berne agastado.
- Por que não usam trapos? Em Londres, ouvi seus oficiais dizerem que era cómodo para açoitá-los.
Desde muito, rompendo com todo o exército, os escoceses da ilha Monegan estavam longe de tais lembranças. Depois de ter amarrado um lenço com dois nós em volta do pescoço, eles empreendiam a fase importante de seu vestuário, ou seja, vestir-se com seus grandes plaids, com os desenhos e as cores de seu clã, o dos MacGregor, vindos da Escócia em 1628 com Sir William Alexander, e a maior parte dos quais emigrou para a baía Francesa para constituir família.
Primeiramente os quatro homens colocavam seus cinturões no próprio chão, a uma distância exata uns dos outros.
Depois, cada um deles estendia sobre o cinturão seu plaid, ou tecido xadrez colorido, de droguete, e que lhes servia como cobertor à noite, tomando cuidado para que a parte que formaria a saia ou kilt fosse mais curta que a outra. Dobravam cuidadosamente o plaid, de modo que as duas extremidades da cintura terminassem por se sobrepor de ambos os lados, deitavam-se sobre ele, prestando atenção para que a bainha ficasse mais ou menos na altura dos joelhos, e puxavam sobre eles as fraldas.
Afivelavam os cinturões. A seguir, levantando-se, cada um arrumava a seu gosto a caída mais longa do tecido, como teriam feito as mulheres com um manto abaulado por trás ou puxado no ombro. Quando fazia frio, eles se enrolavam com ele, cobrindo até a cabeça.
Habituados a divertir as multidões quando apareciam fora de suas ilhas, eles saudaram alegremente os pequenos espectadores, que os haviam aplaudido e os seguiram enquanto desciam para a grande praça e se dirigiam ao Albergue sob o Forte.
Berne voltarà-se, sem responder a sua cordial saudação.
— Nossa terra foi invadida por indesejáveis, pessoas sem decência.
— Creio que, em vez disso, é sua consciência pesada que o faz ver com maus olhos os hóspedes de Gouldsboro, dentre os quais essa gente de Monegan é certamente a mais agradável. Ainda que sejam escoceses e não usem trapos, pois é isso o que o preocupa, é bem provável que sejam também presbiterianos, isto é, como você, adeptos da Reforma... Mas... Chega. Vim fazer-lhe algumas censuras, Mestre Berne, e não pense que poderá evitá-las! Como ousou tratar uma mulher tão maravilhosa como Abigail como fez, chegando a aprisioná-la, a impedi-la de pedir socorro, a afastar-lhe os filhos? É a primeira vez que ouço falar de um homem civilizado que se permite um tal comportamento para com uma esposa que não o merecia de forma alguma. E, no entanto, Deus é testemunha de que encontrei muitos estúpidos desconfiados e indivíduos indignos em toda a minha vida! Nenhum, estou lhe dizendo! Tinha de^er você, Mestre Gabriel Berne, de La Rochelle, quem iria ultrapassar os limites! Você merecia que ela se comportasse como aquela que lhe emprestou seu nome, a Abigail da Bíblia, que acabou por se cansar de seu urso de marido, Nabal, o homem de Maon, um homem muito rico, que possuía bens em Carmelo. "O nome desse homem era Nabal, e sua mulher se chamava Abigail. Era uma mulher de bom senso e bela de rosto, mas o homem era duro e mau..." Você sabe o que aconteceu a esse Nabal quando a pobre Abigail se cansou de correr de todo lado para reparar suas injustiças e evitar as efusões de sangue que a grosseria e a má-fe de seu esposo provocavam?... Será preciso que eu lhe relate o acontecido?
— Não, pelo amor dos céus! - protestou Berne, que tentara em vão interrompê-la. - Não é preciso, eu conheço minha Bíblia melhor que você.
— Duvido. Em todo caso, não vou fingir que ignon as razões que o induziram a esse ato imperdoável para com sua Abigail. Queria impedi-la de receber minhas amigas que vinham de Salem para me ver. Antes de condená-lo vou ouvir sua defesa. O que lhe fizeram aquelas mulheres?
— Elas são inglesas, feiticeiras e pecadoras.
-"Aquele que for sem pecado atire a primeira pedra."
Ela sabia que Mestre Berne não suportava ouvi-la citar as Escrituras. Ao mesmo tempo que a admirava, que a venerava em segredo, ele achava que sua maneira de viver e de pensar, julgada por ele como "ateia e libertina", não a autorizava a se referir aos Livros Sagrados, e sua evocação da Bíblia a propósito do comportamento de Abigail, esposa de Nabal, deixara-o sobre brasas, tanto mais que não podia retrucar-lhe nada.
— Ainda por cima - continuou Angélica -, elas são belas e amáveis, o que é, eu sei, uma falta imperdoável aos olhos de certas pessoas... Espíritos amargos e misóginos, entre os quais eu gostaria de não ter de incluí-lo.
— Estava escrito: "Não permitirás ao feiticeiro viver".
— A isso eu respondo: elas só fazem o Bem. Ora, foi escrito: "E pelos frutos que se reconhece a árvore". Isso posto, e para acabar com a odiosa atitude que se permitiu tomar, não só em relação a Abigail mas também em relação a nossas convidadas inglesas, saiba que é para mim muito doloroso ver amigas que me são caras recusadas por outros amigos, aos quais meu coração está igualmente afeiçoado. Isso me coloca diante de uma escolha impossível, a que nãò posso me decidir sem pesar, sem mágoa para meu coração, e que não farei. Mas que me obriga a censurar aqueles que, por sua falta de caridade, me colocam diante de tal escolha...
Berne enrubescia, empalidecia, sufocava.
- Você, tem porém de confessar que as pesssoas às quais aludiu são muito estranhas - disse ele, enfurecido. - E deve reconhecer que está errada em lhes conferir sua amizade - acrescentou, num tom tanto mais fraco quanto mais ia perdendo pé, como de costume, diante de seus argumentos e da luz de seus olhos verdes.
Ele sair se mal. Os olhos de Angélica se escureceram como um céu tomentoso. Ela teria dado um murro na mesa, se houvesse alguma à mão.
- E você, Mestre Berne, Jião acha que é também um homem muito estranho?... E que eu teria muitas razões para retirar-lhe minha amizade? Pelo mal que tenho visto você cometçr, tanto quanto seria uma ingratidão de minha parte fazê-lo, por todo o bem que lhe devo?
Gabriel Berne estava tão vexado e desorientado que começara a andar apressadamente, fazendo gestos com os braços, e não conseguia concluir, não encontrando palavras para se exprimir, além de algumas frases desconexas.
- E um perigo para nassos filhos... Basta olhá-las de longe... O exemplo das torpezas...
Angélica seguia-o, sem se desconcertar.
— Você era mais indulgente com as pecadoras em sua juventude - continuou ela. - Lembro-me de quando você voltava do templo de Charenton, depois de ter assistido ao culto com seus amigos estudantes, e, ao ver uma mulher descalça correndo sob a chuva, a colocou na garupa de seu cavalo. Se bem entendo, hoje a deixaria chafurdando na lama, a pobre puta que fugia de Paris.
— Não fale assim - insurgitv-se ele, chocado.
— O que mais eu era a seus ofnos naquela época? E no entanto você se mostrou generoso, um rapaz cordial e franco, cheio de compaixão e sem segundas intenções de se aproveitar de minha desgraça.
— A gente muda com a idade - defendeu-se Berne. - As responsabilidades, com que nos sobrecarregam os anos, obrigam-nos à prudência. Excetuando-se aquela época em Paris, que meu pai me concedeu para que eu fizesse minha primeira farra, sou um homem comum. Não sou nenhum herói. Sim, a juventude sonha com façanhas, obter ju'stiça para os infelizes, reformar o universo. Mais tarde, porém, submeti-me às razões de meu pai, que era um sábio. Como ele, sou um homem que reprova a aventura, sem espírito belicoso, respeitador da lei.
- Oh! Claro! Eu sou testemunha. Espírito belicoso?!... Parece-me que lhe restava uma boa dose dele quando se defendia com bastonadas dos bandoleiros que atacavam seu comboio de mercadorias nos arredores de Sablesd'Olonne. E quando, diante de meus olhos, em La Rochelle, estrangulou os esbirros de Baumier e enterrou os corpos sob o sal, enquanto os policiais e os prepostos dos Negócios Religiosos, que procuravam um pretexto para prendê-lo, batiam em sua porta; seu respeito à lei me parece
suspeito.
Gabriel Berne estremeceu, deteve-se de chofre e examinou-a com um olhar perdido, como se os acontecimentos aos quais ela aludira houvessem desaparecido totalmente de sua memória.
Ela lhe sorriu, contente de lembrar-lhe o tempo de seus furores e de suas paixões desenfreadas
Ele fez um esforço para falar com calma.
— Primeiro - expôs -, naquele tempo em que vivíamos na França, os burgueses tiveram de aprender a lutar para conservar seus bens. Seus defensores titulares de outrora, os nobres, não mais manejavam a espada a não ser para os duelos ou para se pavonear diante do rei. Depois, La Rochelle é uma cidade tomada desde Richelieu, ocupada por estrangeiros, por inimigos ferrenhos, que querem expulsar dela seus habitantes nativos. Nós, huguenotes, os primeiros entre os discípulos da Reforma, e isso há mais de um século, nascíamosna luta e a continuávamos, de geração para geração. Não conheço nada além disso, e jamais sonhei com coisa diferente.
— Se bem o compreendo,' vocês eram homens do povo, pacíficos e sem preocupações. Com efeito, a vida era mais simples em La Rochelle do que aqui, com seus impostos dobrados porque mantinham sua fé protestante e deviam pagar os dos convertidos, isentos por vários anos, viviam em absoluta calma com seus filhos, que eram sequestrados na rua para ser confiados aos jesuítas, e com os "provocadores" da polícia, que importunavam suas mulheres e suas filhas, e que deviam estrangular com suas próprias mãos antes de colocar no sal e depois fazer desaparecer no poço do Sr. Mercelot, vocês...
— Era uma luta com a qual estávamos acostumados - gritou Berne. - E além disso o problema não é esse. Você não pode compreender. Ser arruinado, para pessoas como nós, como eram meu pai, meu avô, é mais ou menos como perder a vida, pior ainda! E é isso-o que nos torna amargos e duros. É uma inépcia, uma vergonha, uma coisa que magoa muito. Quando se atingiu, pelo trabalho e com sacrifícios, o objetivo fixado por nós, e quando se teve êxito em realizações inesperadas, a gente se sente em paz com Deus e consigo mesmo. Sente-se que se cumpriu o dever para com os filhos e ancestrais. Meu pai desejava ver-me reassumir e fazer prosperar sua casa de comércio. Vendo que eu me preparava para isso, ele me abençoou em seu leito de morte, entregando-me o fruto de seu trabalho, cujo belo desenvolvimento você viq. Perde tudo o que faz nossa existência, abandonar também a obra de várias gerações em algumas horas, abandoná-la em mãos de gatunos e libertinos, e... católicos... àsvezes me arrependo. O certo teria sido ficar em La Rochelle, entre nossos muros.
— E morrer nas galeras?
— Não sei... Isso talvez tivesse sido melhor.
— Isso é bem próprio de um homem!... Você não faz caso da sorte de seus filhos, que teriam ficado sem defensor.
Como para ilustrar suas palavras, o jovem Laurier apareceu, com as bochechas coradas, os cabelos esvoaçantes, carregando com ar glorioso e compenetrado Wus baldes de conchinhas, e seguido de um bando de crianças mais novas, munidas de baldi-nhos ou de cestinhos gotejantes de água, onde se amontoava sua colheita de praia.
Gabriel Berne desviou os olhos com humor, recusando-se a render-se.
— Você nos obriga ao heroísmo!
— Enquanto só tiver isso a me censurar, não me sentirei muito em falta, se bem que correr através da charneca com os Dragões do Rei nos calcanhares, e empurrando uma tropa de huguenotes recalcitrantes, a fim de que não se deixem matar pelos golpes de sabres, não figure entre a melhores lembranças de minha vida, nem entre as mais divertidas. Exasperado, Berne resolveu não responder.
Ambos sabiam, enquanto iam e vinham com agitação andando das últimas casas da aldeia até a orla da floresta, que essas cutiladas verbais contornavam um assunto que seria preciso abordar: as extravagâncias da filha querida e culpada de Mestre Berne: Se-verina. Finalmente, como que para chegar a ele por um atalho, ele falou de seu filho mais velho, Marcial. Novamente, tratava-se de enviá-lo para continuar seus estudos na Nova Inglaterra. Os que ele, bem ou mal, fizera em La Rochelle iam longe, e o rapaz, muito brilhante, corria o risco de tornar-se um "explorador de desfiladeiros", como se denominavam em Charente os moleques e adolescentes, sempre em seus barcos na água, o que não os tornava menos loucos e instáveis que os "exploradores de bosques" da América. Como estes, que faziam fortuna com o comércio de peles, também queriam enriquecer. Faziam-no pela cabotagem ao longo das costas e entre as ilhas, de que a baía Francesa era pródiga. Os jovens não custavam a acumular um pecúlio secreto, devido à troca, ao comércio, somado a um pouco de pirataria com os acadianos das senhorias da Grande Península, quando o navio da sociedade fundadora demorava muito a chegar. Enfim, não se sabia o que esses meninos traficavam, nem os aborrecimentos que sua pequena confraria podia trazer aos adultos, que não tinham mais nenhuma autoridade sobre eles. Seus pais tinham precisado fugir de sua pátria e estavam sempre a deplorar a perda de seus bens. Eles eram, de qualquer modo, do Novo Mundo. Sabiam acomodar-se a isso melhor que os antigos, o que os fazia menosprezar suas opiniões.
Encarando a situação por esse prisma, com efeito, ela era sombria, concordou Angélica. Mas, de sua parte, ela achava, e seu marido também, que a atividade dos jovens "exploradores de desfiladeiros" tinha sido preciosa para Gouldsboro. Seus vigorosos adolescentes patrulhavam os arredores como a vanguarda de um povo em transformação e o defendiam contra as surpresas.
Quanto a Marcial, apesar de passar a metade de seu tempo na água com seus companheiros, também servira de secretário ao governador Paturel, função que continuava a preencher, pois o jovem que Angélica arranjara para substituí-lo se escafedera, sem sequer se dignar a despedir-se.
— Você se refere a esse... esse Natanael de Rambourg? - perguntou Berne, que perdeu a voz e ao mesmo tempo ficou parecendo um touro furioso diante da muleta vermelha de uma tourada espanhola. - Não me surpreenderia se aquele grande pateta sem escrúpulos, a que você faz alusão, fosse... fosse...
— O namorado de Severina - completou Angélica. - Pois bem! Se for assim, e é assim, por que o lamentaria? Você está sempre com medo de que ela se enrabiche por um papista. Pode ficar sossegado. Posso lhe confirmar que o pretendente é da religião reformada, e sua família, de alta linhagem. Você não sofrerá nenhuma desonra concedendo-lhe sua filha!
— Eu seria desonrado se entregasse minha filha a um incapaz, e que já a desonrou! - fulminou Berne. - Os grandes nobres arruinaram a causa da Reforma.
Ele embarafustou por um discurso confuso, em que acusava os grandes nobres que haviam abraçado a causa da Reforma de tê-lo feito menos por convicção religiosa do que para erigir um partido diante do poder real. Felizmente, a burguesia piedosa, austera, laboriosa tinha emprestado às novas formas de crença sua verdadeira feição.
Isso tudo para explicar que mestre Berne não tinha mais razões para considerar o Sr. de Rambourg, o último com esse nome, como um partido honroso, considerando sua falta de recurso, nem como um partido lisonjeiro, por seus costados de nobreza.
Sua filha Severina não era nem inferior, nem superior àquele Natanael intempestivo. Aqueles dois jovens simplesmente não pertenciam ao mesmo mundo, à mesma casta, o que colocava barreiras intransponíveis a sua união.
- Mestre Berne - disse Angélica -, convém lembrar-lhe que estamos na América, e que, longe dos mexericos de nossa terra natal, suas concepções de casta são superadas e fora de moda. Olhe-me. Eis-me diante de você. Nasci Sancé de Monteloup. Desposei o Conde Joffrey de Peyrac de Morens d'Irristru. Na discussão que nos opõe neste momento, se eu sinto que nossos temperamentos se chocam e que temos algumas boas verdades a nos dizer sem cerimonia, em compensação, nenhuma barreira de casta parece paralisar nossa franqueza mútua, você, na qualidade de grande burguês de La Rochelle, eu, na qualidade de possuidora de costados de nobreza que remontam a Hugo Capeto, ou a algum rei daquele tempo, segundo as informações do Sr. Molines.
— No seu caso, é diferente!
— Não!... Aqui todos nós somos diferentes e semelhantes. É o que nos aproxima e o que constitui nosso valor. Com frequência baixo os olhos e olho para seus sapatos.
— Meus sapatos?... Mas por quê?
— Porque, sejam ou não os mesmos que usava na ocasião, eu sempre me lembro de que calçavam os pés de meu salvador, que vi pelo respiradouro da prisão, os pés do homem que passava e que eu não sabia se era burguês, juiz, guarda, padre ou fidalgo, e ao qual eu gritava: "Quem quer que seja, salve minha filha, que está abandonada sozinha na floresta!" Por causa dessa lembrança, jamais brigarei com você, embora já o tenha merecido mil vezes. Eis por que volto àquilo que me aflige hoje. Outrora, quando você me levou para sua casa, fez-me bem, pela delicadeza de seu coração. Estava com frequência triste e rabugento, mas era bom. Aqui você tem tudo para ser feliz; por que deixa endurecer seu coração?
— Em La Rochelle eu estava em casa. Era fácil ser bom e justo. Sou um homem comum, repito, e penso que a maioria dos homens prefere seus hábitos a uma felicidade fugaz, para a qual têm pouca aptidão e que exige deles uma paixão à qual sua natureza não os conduz, que, os interessa menos que...
— Que alinhar números... Eu sei. Você me faz rir, Mestre Berne! Vi quando estava tomado de paixão e pronto a sacrificar tanto seu comércio como sua vida, e até sua alma. Julga que é o único e o primeiro ao qual esses sacrifícios são pedidos?... Quem pode dizer que Abraão não amava sua boa cidade de Ur, e que não tenha achado fora de propósito que Deus viesse dizer-lhe: "Levante-se e vá aapaís que eu lhe mostrarei"?
Mestre Berne não quis ouvi-la.
— Basta! Eu a proíbo, entendeu, eu a proíbo de continuar a me citar a Bíblia!...
— Seja! Eu me calarei. Mas o corrigirei também. A Bíblia e o Evangelho fazem parte dos livros sagrados da tradição, tanto para os católicos como para os protestantes. E lhe lembrarei que adoramos o mesmo Cristo.
Gabriel- Berne furtou-se à discussão.
- Chega-se sempre à mesma conclusão - disse ele. - E preciso... segui-la ou perdê-la... Você revoluciona, você demole tudo! Você nos constrange a pegar os suportes do quadrode nossa vida e transformá-los em lenha. Crac! Crac! Mas saiba que um dia isso não mais será possível. Vai chegar um dia em que não poderei mais segui-la, em que minha fé, minhas crenças... me obrigarão a romper, me obrigarão a...
Fez um gesto de cortar.
— A repudiá-la... Os dois! Você e ele. Apesar de toda a ajuda e benefícios que devemos ao Sr. de Peyrac. Digo isso para lhe provar que não se trata de sentimentos pessoais-e afetivos, mas de princípios.
— De minha parte, considero que a amizade não é uma questão de princípios nem de dogmas. Quando tenho alguém no coração, não posso arrancá-lo com tanta facilidade, e você sabe que tem nele um bom lugar, há muito, muito tempo. Mestre Berne, sou sua criada.
Sem mais protestos, ele sacudiu a cabeça.
- Você é desconcertante...
Ele suspirou.
- As mulheres têm necessidade de harmonia. Elas não podem viver sem estar sempre se aquecendo ao calor de seus sentimentos.
Ela deslizou o braço sob o dele.
- Perder-me ou seguir-me, você disse? Que ideia! Eu o conheço, você é um homem hábil. Arranjará um jeito de ao mesmo tempo não seguir e tampouco me perder.
Subiram novamente, de braços dados, o caminho.
- É um órfão - continuou Angélica em voz alta -, um pobre menino sem família. - Ele compreendeu que ela falava de Natanael. - Vagueia pelas costas da América, onde não encontra seu lugar, pois está só e é francês, e reformado, ainda por cima. Meu irmão teve o mesmo dilema, sendo sozinho, francês e católico, antes de encontrar uma mulher que o amasse. Esse Natanael é um exilado, como todos nós, que teve de fugir à morte que o ameaçava em sua terra natal. Acho que você me aprovará se eu escrever a Molines. Ele sabe de tudo. Ele o encontrará e saberá o que aconteceu com seu património na França e quais as possibilidades de obter, por venda ou concessão, o valor mais elevado.
— As coisas não melhoraram para os huguenotes da França, se as notícias que nos chegam são exatas.
— Há todavia leis que continuam em vigor, a que podemos recorrer, enquanto não são revogadas...
— Seria preciso falar com o rei - disse Berne. - Alguém que ele estivesse disposto a ouvir com confiança, e que não lhe mentisse. Você, talvez!...
Angélica estremeceu e não respondeu nada.
"Senhor!",-pensou. "Pobrezinhos! Se eles imaginam que minha intervenção junto ao rei possa ter algum peso num caso como esse... O que sou eu, eu, distante, uma mulher diante da coalizão dos jesuítas, dos devotos, que persuadem o rei de que a França está convertida e que o Edito de Nantes se tornou caduco por ser inútil? E depois, ser-me-ia preciso tornar a atravessar o aceano. Voltar à corte. Não. Ainda não estou pronta para isso!
Em volta da casa de Abigail, os pés de framboesa atraíam roli-nhas. Eram lindos pássaros, de aparência frágil e graciosa, plumagem bege e azulada, pescoço'delgado e comprido, e cujo gorjeio ininterrupto chegava a ser atordoante.
Oshab itantes vizinhos aos bosques queixavam-se disso. Abigail, que se alegrava com tudo, amava-as. Ela dizia que aqueles arrulhos adormeciam as crianças melhor do que uma canção de ninar.
Da soleira da porta ela olhou sorrindo para Angélica e seu esposo, que subiam em sua direção.
— Não está com ciúme, Abigail? - gritou-lhe de longe Angélica.
— Agora não, Mas já estive. Horrivelmente. Quando em La Rochelle eu a via perto dele, e quando o vi, quase pela primeira vez desde que o conhecia, levantar o nariz de sua- Bíblia ou de suas contas, e olhar uma mulher com outros olhos...
— O que eu lhe dizia, Mestre Berne? Você teria algum dia ganho esse tesouro que é Abigail, se tivesse permanecido em La Rochelle? Foi preciso pelo menos que tivéssemos sido sacudidos em pleno mar e que ela o tivesse visto ferido para se-trair. Senão, não teria jamais revelado seus sentimentos. Não é verdade?
— Jamais! - afirmou Abigail. - Tanto mais que você era uma rival cuja beleza e encanto condenavam todas as minhas possibilidades. Fiquei desesperada!... à beira do suicídio!...
— As mulheres são loucas! - resmungou Berne, adentrando a casa com um ar fingidamente ofendido.
Mas tinha enrubescido sob os fogos cruzados dessa disputa simulada, e descobria que não era nada mau ser alvo da rivalidade entre duas soberbas damas. Incontestavelmente, era hoje mais jovem do que na época em que vivia enterrado em suas contas.
- Mas os homens são loucos também! - conveio, sentando-se no lugar de costume, diante da lareira. E pegou a mão de Abigail para pousar-lhe os lábios com fervor. - Loucos por preferir o hábito à felicidade... à felicidade de amar? Você tem razão, Dame Angélica.
A FORTALEZA DO CORAÇÃO
CAPÍTULO XVIII
De volta a Wapassu - A doença de Dom Juan Alvarez
Todo ano, ao voltar a Wapassu nos inícios de outubro, Angélica prometia a si mesma que no ano seguinte se concederia uma temporada de verão em sua residência preferida. A obrigação de aproveitar os meses ensolarados para efetuar as longas viagens à costa, ou visitas à Nova França e à Inglaterra, privava-a de viver em Wapassu a época da floração, que era também a das colheitas de símplices para as reservas medicinais.
Por sorte, granjeara entre seus amigos, os Jonas, e várias mulheres do povoado, preciosos adeptos da ciência; em sua ausência, e de acordo com suas instruções, eles se incumbiam de recolher as plantas, conforme as datas recomendadas.
Ninguém descansava em Wapassu e em nenhum domínio.
O fim de estação, que, em seu esplendor, podia ser breve, era particularmente ocupado. Enquanto se entregavam às últimas grandes caçadas, às amplas colheitas de frutos dos bosques e das charnecas, e de cogumelos, os que chegavam subindo do sul, em caravanas cada vez mais numerosas, deviam sem tardar lançar-se, após as primeiras efusões, a trabalhos supremos, arranjos supremos, supremas inspeções antes da estação fria.
Todas as tarefas, que o desconforto do inverno tornaria mais difíceis, se não impossíveis, deviam ser executadas. O armazenamento da lenha para aquecimento já fora executado. Fabricavam-se antecipadamente os feixes de archotes.
Consertavam-se as raquetas, os reboques, os trenós.
Ressoavam os ecos das marteladas nos últimos retoques das casas e dependências de criados, onde famílias com seus porcos, vacas, cavalos iam se fechar em cercados feitos de estacas; cujas pontas em breve emergiriam a custo de sob a neve.
Se o 'inverno permitia um relativo repouso, todos podiariTdí-zer que ele era bem ganho.
Uma morada é uma coisa que recomeça todos os dias. Aquela do grande forte de Wapassu, ampliada a cada aho, com suas dependências e o número de pessoas que ali se encerravam, com as atividades comuns que ali se desenrolavam, necessitava do trabalho atento e dirigido de várias equipes. Os fogos, os aquecedores, a defumação, a salgação, o preparo dos pães, a faxina, as lâmpadas também, e as velas.
Da costa tinham sido trazidos vários tonéis de um belo óleo de marsuíno, que produzia uma luz branca.
Naquele ano, Angélica tivera tempo de percorrer os bosques para fazer uma provisão de bagas que, depois de cozidas num grande caldeirão, deixavam na superfície da água uma cera fina, de cor verde-suave. Essa cera, depois de novamente derretida e coada em moldes, produzia velas perfumadas.
Passando pelo posto do holandês no Kennebec, numa conversa fortuita com o velho Josuah, fora-lhe confiado o segredo que ela lamentava ter visto o Padre d'Orgeval levar consigo para o túmulo: o das velas verdes. O velho empregado de Pieter Bog-gen ensinara-lhe que se fabricavam com as bagas de um arbusto, chamadas waxberries. Admirou-se não ter lhe perguntado isso antes. O velho Josuah, apesar de inglês, era tão versado nos segredos das plantas quanto um índio. Lançado, ainda criança, com os peregrinos do Mayflower, na rústica costa deserta do Massa-chusetts, vira morrer, em seu primeiro inverno ali, mais de dois terços dos colonos desembarcados. A necessidade obrigara sua geração a conhecer tudo sobre a natureza circundante.
Não escondeu que fora ele quem, anos antes, havia ensinado o fabrico dessas velas ao jesuíta de Norridgewock, o Padre d'Or-geval, que precisava de iluminação para seu santuário.
— Ele vinha por ali - disse, mostrando um atalho que nascia na floresta. - Nunca tive medo de um Toga Negra, nem dos franceses.
— O que ele vinha procurar em sua sucursal?
— Um pouco de quinquilharia: pregos, cobertas e pão de farinha de trigo. Ele falava todas as línguas algonquinas e o iroquês. Tinha um sorriso, quando se sentava em minha cabana, não sei dizer que tipo de sorriso, era... como se ele se divertisse, como se fôssemos cúmplices de algo.
— Estaremos falando do mesmo homem? Ele sabia que você era inglês?
O velho Josuah não parecia desconfiar que seu visitante de sotaina era um grande matador de ingleses. Acolhera-o com a simplicidade dos peregrinos do Mayflower, cuja seita, passando por Leiden, na Holanda, soubera atenuar o rigor dos primeiros reformados para deixar subsistir em seus corações e em seus costumes apenas a doçura dos preceitos evangélicos.
Essa descoberta do segredo das velas verdes, que desejara tanto, deixou-lhe um sentimento estranho. Tudo o que se relacionava com aquele inimigo desaparecido apresentava-se como que em falsete. Ela conservava a impressão de que "as coisas não deviam ser bem daquele modo". Contudo, quando acendeu uma daquelas velas numa palmatória de prata, não pôde evitar um sentimento fugidio de desforra e alívio ao pensar que ele não era mais deste mundo.
Um pouco depois do aniversário de.seu primeiro ano de vida, os gémeos deram seus primeiros passos, saudados pelas ovações e risos da população do forte. Ria-se bem menos algum tempo depois, quando, andando infatigável pela casa, subindo nos escabelos e abrindo as portas, puseram a criadagem em polvorosa. Amas-secas, bordadeiras, nutrizes pediram ajuda à guarda.
Irmãos e irmãs de leite diversos-tinham levantado vôo ao mesmo tempo. Formavam um pequeno bando.
Desde a partida de Honorina, Carlos Henrique passara a ser o mais velho. Contavam muito com ele, pois era atencioso, cheio de ternura e dedicação para com Raimundo Rogério e Gloriandra, que se habituaram a não passar sem sua presença.
Honorina teria ficado feliz em ver os cabelos de Raimundo Rogério crescerem em grandes tufos de um loiro castanho, em que talvez se percebessem reflexos acobreados.
Os de Gloriandra, de um negro profundo, cobriajn-lhe os ombros. Ela parecia uma bonequinha com olhos de anjo. Observou-se que era muito voluntariosa, mas jamais colérica. E sob a aparência de uma doce infanta, muito ativa.
Mas esses traços de caráter não se evidenciaram ou não foram reconhecidos senão com o passar do tempo. Angélica-achava que, como não a contrariavam nunca e como a deixavam fazer tudo o que queria, tivera poucas oportunidades de demonstrar sua personalidade. Era um pouco misteriosa.
Muitas vezes Angélica tomava-a nos braços, falava-lhe baixinho, sondando aquele olhar azul que a fixava, mas não saberia dizer em que ela pensava.
- "Como você é bela! - murmurava ela, apertando-a contra si, beijando sua redonda bochecha fresca. A criança sorria. A felicidade irradiava dela de um modo calmo que Angélica sentia sem que fosse preciso interrogar-se, exultando ao pensamento de que pusera no mundo uma criança feliz.
Em outros momentos, lembrando-se de seus nascimentos, lembrando-se de que tinham estado desenganados e do concerto das focas que haviam se aproximado de Salem durante a noite como que para celebrar não se sabe qual acontecimento onírico, reencontrava suas impressões de então. Olhando para Gloriandra, perguntava-se o que a afligia naquela menina tão pequena, tão viva e aparentemente tão ajuizada. Parecia-lhe por vezes que ela não estava ainda "completamente ali". Estremecia e a abraçava com mais força, tomada por um pressentimento.
- Não se vá. Fique conosco!...
Percebeu que Joffrey também experimentava o mesmo. Mas ele não se inquietava. Achava normal, dizia, que uma criança que nascera em conjunturas tão violentas e perturbadoras hesitasse em se ligar definitivamente à terra. Ele lhe sorria com amor, erguia-a no braço, no qual ela parecia um brinquedo, e a levava a seu laboratório, onde lhe mostrava todo tipo de coisas brilhantes, de formas estranhas, gemas, ouro.
Com efeito, as pessoas encarregadas da vigilância da "princesi-nha" faziam-se menos perguntas que seus pais. Ela estava com muito boa saúde e, em determinadas horas, achavam-na tão "infernal" quanto seu gémeo.
Este deixara de intimidar seu mundo com seus ares distantes. Ele se escondia atrás da irmã, em caso de reprimenda, mas, sendo mais alto que ela, dava a impressão de protegê-la.
A vida era um turbilhão com as crianças, seus animais, o cachorro, o gato, que se dignara acompanhá-los a Wapassu, o que era bom sinal.
Os índios, em volta do forte, chegavam em número cada vez maior a cada ano que passava. Desde o início das intempéries, viam-nos trazer seus anciões e seus doentes. Mais tarde, quando voltaram, alguns haviam desaparecido nas tempestades ou morrido de fome.
Um pouco antes do Natal, Angélica dera um giro pelas famílias, pois todos os verões chegavam novos habitantes.
Conheceu os lolardos ingleses, que tinham vindo do sudeste pelas florestas.
Pertenciam a uma seita de marginais cristãos do século XIII que, assim como os valdenses, de Jean Valdo, de origem lionesa, rejeitados pelas "grandes igrejas", sobreviviam esporadicamente, mas muito afeiçoados a suas crenças.
Seu chefe explicou-lhe que, de. modo concreto, os lolardos consagravam-se ao auxílio aos doentes e ao enterro gratuito dos mortos. Eles cantavam então seus hinos fúnebres muito baixinho, de onde vem a designação de "lolardos", do médio-holandês "lullen" ou "lollen": "cantar suavemente".
Ali, cada qual tinha liberdade para contar sua história ou o que quisesse a respeito dela. Sendo grandes viajantes diante do Eterno, por gosto ou pela força das circunstâncias, tinham prazer em ouvir falar dos países e de tradições desconhecidas.
As reduzidas comunidades, sobretudo familiais, parcelas, farrapos de comunidades, não tendo nenhuma maioria, evitavam a disputa.
Não procuravam irmãos, mas um pedaço de terra para lavrar e fazer frutificar.
Não tinham amarras.
Para o futuro, 'seu trabalho, aceito e realizado^era sua pátria, sua subsistência cotidiana servia para garantir o objetivo de seus esforços, o salário que recebiam e que punham de lado em caixinhas, cofrinhos ou saquitéis, e que costumavam enterrar em lugares secretos; isso fazia parte do futuro e do sonho.
Foi feita uma reunião para perguntar aos representantes da população de Wapassu o que achavam de festejar juntos o Natal.
Talvez tenha sido essa a primeira vez, desde que as querelas religiosas ensanguentavam o mundo cristão, que chefes de seitas diferentes reconheceram que o Natal, isto é, o dia do nascimento daquele que eles chamavam de Messias, era uma festa comum a eles, e que nada os impedia, depois de cumpridos os ritos pessoais, de celebrá-la còm um grande banquete e troca de presentes.
Ela viu Joffrey atravessar o hall de entrada rapidamente e o ouviu lançar uma frase para o lado.
— Ele se refugiou em casa de Lymon White! Angélica foi a seu encontro.
— De quem está falando?
Depois, vendo que ele se apressava a sair, jogou uma manta nos ombros e o seguiu. Era a hora que precedia a ceia, mas a noite caía cedo agora. Estava muito escuro. O vento estava carregado de rumores de seu sopro nos ramos. Uuya primeira neve caíra à tarde e formava um tapete delgado sobre o chão gelado.
Distanciaram-se do forte, de onde subiam os agradáveis eflúvios que precediam as refeições da noite. Dois soldados espanhóis vinham atrás carregando lanternas. Joffrey de Peyrac explicou-lhe o que o inquietava, e ela o sentiu preocupado e contrariado, o que raramente lhe acontecia. Compreendeu que se censurava por não haver sido suficientemente atencioso e ter assim permitido a Dom Juan Alvarez enganá-lo. Mas deveria ter-se informado sobre ele muito antes, mesmo tendo o capitão de sua guarda espanhola dado ordens de silêncio a seus homens. Ao chegarem, os trabalhos, os preparativos para o inverno, a inspeção das edificações construídas no verão, o conhecimento dos novos habitantes haviam tomado todo o seu tempo. Vira Dom Alvarez apenas rapidamente, e havia alguns dias deixara de vê-lo. Finalmente, ao se informar, soubera - e mesmo assim tivera de arrancar a confissão palavra por palavra de Juan Carillo, que não abria a boca três vezes por ano - que o fidalgo espanhol, doente havia muitos meses e sentindo-se,à beira da morte, refugiara-se na casa do inglês Lymon White, pois desejava dar o último suspiro sem importunar o numeroso grupo que morava no grande forte, e que não deixaria de ficar muito tocado e entristecido.
Essa seria a primeira morte em Wapassu.
Lymon White, um dos quatro primeiros mineiros que operaram em Wapassu, ocupava o antigo alojamento, que havia abrigado a primeira invernagem dos homens de Peyrac quando ele viera, com mulher e filhos. Quando, a seguir, puderam se instalar com mais largueza, o inglês preferira ali ficar, pois tinha seus hábitos e gostava da solidão. Ele era mudo, pois os puritanos de Boston tinham lhe cortado a língua, sob acusação de blasfémia.
Era um homem piedoso, trabalhador, muito competente e prestativo. Pedira para conseguir certos trabalhos de tratamento do mineral, para os quais as antigas instalações do pequeno fortim eram ainda suficientes. Ademais, como um armeiro por profissão, tendo sido encarregado, na primeira equipe, da manutenção das armas, continuava a assumir essa atividade, que evidentemente ganhara vulto. Periodicamente, levavam-lhe armas para revisar, consertar, lubrificar. Encontravam-se em sua casa fuzis, mosquetes, espingardas de caçar patos, arcabuzes com mechas e com rode-tes, fuzis de pederneira, pistolas várias e até balestras... assim como braçadas de lâminas de espadas, sem guardas, sem cabos, muito procuradas pelos índios, que as transformavam em um instrumento caseiro universal e de .combate, por ocasião da caça e da pesca.
Quando se entrava na grande sala, deparava-se com um verdadeiro arsenal. Ele fabricava também pólvora e balas.
Angélica gostava de rever aquele primeiro abrigo, que lhe evocava lembranças de dias que, depois de atravessados com êxito, julgava felizes.
O inglês mudo instalara o espanhol em sua própria cama. Ao ver Dom Juan Alvarez apoiado em travesseiros, muito magro, muito pálido, Angélica teve uma má impressão. Ela também se censurou por não ter concedido a todos suficiente atenção. Havia muita gente.agora em Wapassu, muitas crianças de que cuidar, muitos tagarelas a escutar, e os que queriam calar-se e ir dar seu último suspiro num canto qualquer tinham as melhores condições para isso.
- Mas por quê?... - disse-lhe ela, precipitando-se de joelhos junto a sua cabeceira. - Caro Dom Alvarez, você nunca quis deixar-nos cuidar de você! Não quer rebaixar-se diante de uma mulher nem para pedir-lhe uma xícara de chá. E eis em que estado se encontra agora...
Ela aproximou a mão do peito do doente, mas ele a reteve. Era o gesto instintivo de um homem no auge do sofrimento, e ao qual o menor toque faria gemer.
- Não, senhora! Sei que suas mãos são curadoras. Mas é tarde demais para mim.
Ela sentira o tumor.
Joffrey de Peyrac dirigiu em espanhol algumas admoestações amistosas a seu capitão dos guardas.
Enquanto voltavam para o forte, ela adivinhava sua tensão, uma dor calada dentro dele, cuja vibração a atingia, pois sempre o julgara de bronze. Havia quantos anos tinha junto dele ?-guele grupo de mercenários espanhóis? Onde os recrutara? Que combates tinham atravessado juntos?...
O conde perguntou:
— Que pensa de seu estado?
— Ele está perdido!
E acrescentou imediatamente:
- Mas eu o curarei...
"Ela o curou!... Ela o curou!... Parece que ele está curado!" O rumor se espalhou, e ninguém queria acreditar. Como Angélica, várias vezes, todos os dias, dirigira-se com sua bolsa e suas plantas à cabana onde o espanhol estava moribundo, e como falava pouco a esse respeito e não fazia confidências, a opinião geral admitia a gravidade da d oença de Dom Juan Alvarez. E, pouco a pouco, estabelecera-se aquela contenção melancólica que plana sobre todos os atos da vida quando se espera, sem dizê-lo, um fim próximo.
Alguns consideravam que o Natal seria triste e enlutado.
No Natal, Dom Juan Alvarez ainda não pôde participar das festividades, mas recebeu em grupos seus amigos, que foram levar-lhe seus votos. Estava sentado numa grande poltrona em forma de tetraedro, que era o único mobiliário do inglês e no qual ele se sentava para ler a Bíblia.
A recompensa de Angélica era o brilho feliz no olhar do homem que amava.
- Que tesouro eu não recebi nesta terra com você? - murmurou ele, erguendo-a nos braços para apertá-la melhor contra si.
Ela observou-lhe então que não teria dito "eu o curarei", se tivesse sentido que era impossível. Sentia que podia curá-lo, simplesmente.
E havia aqueles livros, todos aqueles livros de ciência médica, que ele mandara buscar-lhe, e aquelas garatujas de Shapleigh, que diariamente ela decifrava, receitas espantosas, cuja composição estudara; havia também lembranças daquilo que lhe ensinara a feiticeira Melusina.
Durante aqueles anos na América, ela pudera, na calma de Wa-passu, entregar-se a trabalhos e experiências, de que teria sido afastada na França, tanto devido a sua situação social como pela suspeição que pesava sobre qualquer mulher que se dedicasse a curar, desde a caça às bruxas, enquanto homens ignorantes, mas universitários, chamados médicos, tomavam seu lugar junto à cabeceira dos doentes.
Ela passava longas horas nos. dois grandes cómodos onde Jof-frey mandara instalar sua botica, e que logo poderia rivalizar com as das abadias mais célebres.
Durante a doença do espanhol, ela mandara levar para a casa de Lymon White uma grande quantidade de bocais e de saquinhos de plantas, depois que descobriu uma despensa desativada, com paredes recobertas por um revestimento que impedia a umi-dade. Além de armaria, o antigo posto de Wapassu se tornava um entreposto de farmacopeia. Esse detalhe, mais tarde, teria sua importância.
A neve se instalara, mas suas grandes tempestades não tinham ainda se desencadeado. Puderam levar o espanhol para o forte para sua convalescença. Prepararam um aposento para ele, junto ao dos Peyrac, e as crianças faziam-lhe visitas. Ele era padrinho de Raimundo Rogério, como um dos outros milhares espanhóis era o de Gloriandra. Em Salem, como eles montavam guarda ao pé da escada no momento de batizar os recém-nascidos moribundos, a parteira irlandesa requisitara-os para servir de padrinhos, ao lado de suas filhas, que seriam as madrinhas. Não era fácil encontrar os católicos numa cidade como Salem. O céu enviara-lhes espanhóis.
Começaram a cavar trincheiras e abrir caminhos na neve com pesados pranchões colocados em forma de triângulo, e que eram puxados por cavalos. -
Para ir de uma casa a outra, Angélica tomava com frequência Carlos Henrique pela mão e o levava por aqueles caminhos.
Ele se parecia com Jeremias Manigault, seu jovem tio, e tinha os olhos escuros de Jenny.
Um dia em que voltavam juntos tranquilamente, Angélica surpreendeu-se a refletir intensamente sobre aquela criança, enquanto seus passos faziam a neve ranger. Ele não tinha ninguém. Tratavam-no com carinho, e todo mundo gostava crele e o mimava, mas ele não pertencia a ninguém. Jenny nunca mais voltaria. E fora a ela que o entregara.
— Carlos Henrique - disse -, chame-me de mamãe.
— Como Honorina e os gémeos?
— Sim, como Honorina e os gémeos.
CAPÍTULO XIX
Notícias de Florimond - O fio que não podia ser rompido
Graças às cartas de Florimond, os anos de separação entre eles e seus dois filhos mais velhos não foram marcados por esse pesado e opaco silêncio que em geral se estabelece entre aqueles que atravessam o oceano e aqueles que são deixados para trás.
Florimond tinha vivido na França mais tempo que seu irmão. Tinham lembranças precisas, que seu espírito sociável o fazia evocar.
Ele escreveu que tinha ido rever, na Rue des Francs-Bourgeois, seu primeiro alojamento, onde, entre os dois e três anos, haviam vivido com a criada Bárbara, enquanto sua mãe dirigia a Taverna da Máscara Vermelha. Depois, seguindo a pista, como um digno explorador de bosques, reencontrara Davi Chaillou e javotte, que se tornaram comerciantes prósperos e continuavam a fornecer chocolate à alta sociedade parisiense, apesar da nova concorrência do chá.
Sabia que seus filhos estavam presentemente em ótimas condições de saúde.
Requisitados para o serviço do rei, que exigia presença cotidia-na em Versalhes, os dois irmãos e seus serviçais tiveram de procurar um teto nas proximidades do palácio.
Com alguma dificuldade, haviam encontrado, situada perto de um lugarejo do Chesnay, uma dessas casinhas que se construíam incessantemente para toda a população que gravitava em torno do soberano.
Tinham ali vivido alegremente, mas apertados, ao que parecia, até o dia em que Messire Cantor mudou de armas e bagagens, pois encontrara, oferecidas por belas mãos, acomodações mais vastas, mesa posta... e o restante.
Sobre este tema, "os amores de Cantor", Florimond não se abria muito.
Ao menos em sua última carta ele dava resposta a uma frase enigmática de uma carta anterior: "Encontrei o vestido dourado". Ele encontrara por acaso uma das irmãs de Angélica.
Sua tia, a Sra. Hortênsia Fallot, era, dizia ele, a única mulher de Paris, e provavelmente do reino, em quem a nova moda do penteado fontange feito de fitas assentava.
Esse Florimond tinha um jeito de formular os cumprimentos que devia granjear-lhe £s boas graças de todos. Apresentara-se com seu irmão Cantor no domicílio de sua tia, que morava num palacete, no bairro do Marais, famoso por ser habitado por pessoas de elite. Angélica refletia que sua irmã não devia ter embelezado com a idade. Mas Hortênsia agradara aos sobrinhos, aos quais relatou com muito espírito lembranças da infância dela e de Angélica, e depois somente da sua, partilhada com Angélica no Castelo de Monteloup. "Eu tingia muito ciúme dela", confessara. "Queria que ela 'desaparecesse'. Ai de mim! Ela desapareceu, e depois tornou a desaparecer. E lamentei-o muito, apesar de todos os aborrecimentos que ela nos causou."
Foi então que ela lhes falara do vestido de ouro. "Ela deixou em minha casa, com suas bagagens, um vestido dourado que usara em seu casamento ou numa apresentação ao rei. Nunca ousamos desfazer-nos dele nem vendê-lo mesmo quando ficamos numa pobreza total em virtude da desgraça que o processo de seu esposo atraiu sobre nós."
A tia Hortênsia levara-os ao sótão e mostrara-lhes o vestido dourado, arrumado numa arca. "Espero que sua mãe volte para lhe devolver este vestido, mas, infelizmente, ele está totalmente fora de moda."
Assim o passado e o presente irrompiam pelas cartas de Florimond naquele forte de madeira no fim do mundo, trazendo um perfume de moradias opulentas, com assoalhos e móveis tratados com cera de abelhas com benjoim, que era o cheiro das casas que impregnava até as paredes, por trás das tapeçarias, obtido à custa de anos, se não séculos, de unções lubrificantes.
Os assoalhos de Wapassu ainda não haviam chegado a isso, mas, nos apartamentos, havia agora tapetes, assim como tapeçarias, que davam um aspecto elegante, sem contar que contribuíam para conservar o calor, protegendo contra ventos encanados.
Para o próximo ano, Angélica pensava levar a Job Simon, na costa leste, o quadro de seus três filhos, pintado por seu irmão Gontran, a fim de que o ebanista pudesse talhar e dourar uma moldura digna da beleza da obra.
Quadros nas paredes, espelhos, alguns objetos raros, como os que chegavam todos os anos a Gouldsboro, vindos da Europa ou da Nova Inglaterra; cada um deles recriava um cenário que lhe permitia não esquecer o áspero vento e os turbilhões de neve assobiando do lado de fora, mas proteger-se e isolar-se deles. Cada exilado trazia consigo um doce elo que o ligava a sua vida anterior, e que por vezes não passava de um objeto, uma jóia, um livro. Ele o plantava em sua nova existência e na de sua família como teria plantado um ramo para que reflorisse pela vida afora com a linhagem ancestral e, sobretudo - e era o que Angélica notava em casa de muitos -, para manter um pouco o cenário da vida que, com muita frequência, tinha sido miserável ou atormentada pela perseguição, mas que era o cenário da vida de sua infância e do país onde havia nascido.
Ela mesma, que acreditava - pelo excesso de provações que havia sofrido no reino de França - ter rejeitado tudo, emocionava-se folheando as cartas de Florimond, e imaginava a vida daquele bairro do Marais, que conhecera tão bem. Ali estava uma noticia que muito a alegrara, saber que personagens do passado que reconhecia, com as quais partilhara inícios difíceis, para as quais augurara um belo futuro, tendiam a desmoronar como jogos de bolas, quando, ao fim de inúmeros anos, ela se informava de seu destino. Tantas reviravoltas, tanta luta!
O jovem missivista lamentava em muitas circunstancias não poder vir para junto dos pais pedir o conselho ou a ajuda que só deles podia esperar.
Desses dois seres que, juntos ou cada um de seu lado, tinham enfrentado traições, perigos e todas as variedades da vilania humana, ele aprendera - ou foram-lhe transmitidos pelo sangue: a confiança, à habilidade, o olhar lúcido sobre as extravagâncias e as covardias dos homens, o senso da recusa de fazer-se cúmplice, e todas as espécies de dons e de capacidades, que são em geral apanágio daqueles que viveram muito ou daqueles que- pagaram muito caro sua ingenuidade e sua confiança primeira. Esse senso, nele quase espontâneo, fazia desse homem tão jovem, que tinha um ar louco e aturdido, que ria de tudo, saudava encantadoramente, deleitava o rei com mais audácia e tato que muitos cortesãos tarimbados, uma personagem cautelosa e muito apta a se defender mas também a descobrir num olhar muito perspicaz, e que um dia poderia lhe ser fatal, todas as torpezas, crimes e complôs sórdidos que, em nome do interesse, da ambição, da avidez das paixões mais vis e mais descontroladas, dos sentidos ou do coração, transformavam a corte do monarca mais reputado do universo numa cloaca inominável.
Tendo aceitado um cargo junto ao soberano, Florimond o assumia convictamente. Tinha o senso das responsabilidades tjue lhe cabiam num dado posto. Ele as ampliada voluntariamente.
Angélica compreendeu que seu filho, encarregado de servir o rei, se sentia encarregado também de velar por ele. Luís XIV, pela arte com que praticava seu ofício de rei, inspirava profundas devoções.
Florimond escrevia:
"O querida mãe, em muitos pontos seu julgamento me seria precioso, você, que conheceu os arcanos mais complicados da corte..."
Devia ter hesitado diante da última frase, mas redigiu-a de modo que não pudesse prestar-se a nenhuma suspeita de malevolên-cia, caso aquele envelope caísse em mãos de espiões, a soldo dos diferentes partidos.
Ao responder-lhe, ela também teve de conter sua pena e tomar cuidado.
"Eu sei os perigos que se podem encontrar no seio dessa multidão cortesã..."
Mas, enquanto escrevia, ela se sentia calma. Não temera por eles quando eles haviam partido, munidos de sua juventude e sua temeridade, para assumir seus cargos na corte. Iriam forçosamente passar em meio das intrigas como quando transpunham as vagas perigosas na gruta dos Arcos-Iris, confiantes em seus talentos e gritando: "Olhe! Olhe! Mãe, como é fácil!"
Sentia suas forças, que eles deviam forjar e aguçar com suas próprias mãos. Florimond sempre gostara de explicar com todas as nuanças sentimentos que o atravessavam, mas era forte e independente, e ela sabia que ele se sentia melhor só por ter podido contar-lhe suas preocupações e se abrir com ela, e podia apostar que encontrara uma solução.
Sentia-se próxima deles, apesar da distância.
"Um dia, talvez... eu voltarei..."
Mas, a despeito do encanto das ruas de Paris e das grandezas de Versalhes, não podia imaginar-se vivendo na outra margem.
Estava tão feliz naqueles dias tranquilos! Tantas coisas haviam sido feitas... Havia as duas criancinhas. Joffrey podia ter tempo para vê-las crescer.
Havia os trabalhos, a que podiam se dedicar com inteira liberdade.
Tantas vezes fora rompido o fio que os unia a todos e a família fora separada!
Mas isso acontecera numa época em que muitas coisas lhe eram ocultas.
Hoje, na segurança do amor, daqueles anos todos vividos com Joffrey, esses dias tão diferentes, mas todos iluminados por sua presença, esses dias de Wapassu que, mais que outros, teciam o sólido tecido de sua felicidade, haviam modificado seu olhar interior.
Hoje, o fio não podia mais ser rompido.
Era uma doce sensação.
Fechava os olhos e-unia-se a eles em pensamento, não inquieta, na verdade; evocava seus três filhos ausentes, pois tinha confiança em sua imunidade.
Oh, certamente, daria tudo para saber o que se escondia atrás do que Florimond chamava de "os amores de Cantos"; ou então, espírito invisível dos bosquetes de Versalhes, admirar o belo porte do jovem mestre dos prazeres do rei, abrindo o baile de uma festa noturna, ou ainda, nas margens do Saint-Laurent gelado, ao abrigo do teto. nevado da Congregação de Nossa Senhora, avistar a pequena Honorina escrevendo com cuidado: J.MJ., Jesus, Maria, José, no alto de sua página de caligrafia.
Seu olhar escapava pela janela enquanto seu coração visitava os distantes.
Imaginava-os vivendo suas vidas com audácia e prazer, e era o que podia acontecer-lhes de melhor.
CAPITULO XX
Desgrez e a loucura satânica - Por umas poucas horas de sonho Florimond em Paris...
Naquela manhã ensolarada de inverno, que fazia sorrir as fachadas das casas da Ponte de Notre-Dame, no Sena, Florimond de Peyrac encontrava-se no segundo andar de uma delas, numa modesta peça burguesa onde ninguém jamais pensaria em ir procurá-lo, conversando com um policial de alta categoria, o Sr. Francisco Desgrez, braço direito de uma das personalidades mais eminentes do reino, o tenente de polícia civil e criminal, Sr. de La Reynie, que marcara um encontro secreto com ele ali.
- Agradeço-lhe, Sr. de Peyrac - dizia Francisco Desgrez -, pelas numerosas informações que me trouxe. Reunindo-as às nossas, recolhidas com maior dificuldade, pois temos menos facilidade que você para nos aproximarmos daqueles que queremos desmascarar, ser-nos-á possível apresentar ao rei, um dia, um relatório seguro, em que serão expostas acusações que, infelizmente, lhe serão bem cruéis. Mas ele é homem para encará-las de frente. Com efeito, ele está sempre nos dizendo que deseja que se esclareçam totalmente crimes cujos autores, supõe-se, se encontrariam entre pessoas de suas relações e cuja reputação é conhecida até pelo povo. Ele ainda tem a ilusão de que a verdade deve ser estabelecida a fim de que sua corte seja isenta de qualquer suspeita de escândalo. Ele espera que uma justiça tão minuciosa quanto imparcial, após as investigações, igualmente minuciosas e imparciais, de sua polícia, revele o exagero desses boatos e que alguns culpados de pouca importância, oferecidos com exemplos, bastem. - O policial continuou: - Que seja. Ele fraquejará talvez diante da amplitude do desastre, más devemos ao menos fornecer-lhe elementos inatacáveis para a abertura de um tribunal público, que ele exige e quer que seja anunciado o mais cedo possível. Eis por que não lhe ocultarei que é principalmente seu irmão, o jovem Cantor, que eu desejaria encontrar hoje. Seu testemunho me seria precioso, pois ele é o único dentre nós que conheceu e viu de perto uma das mais perigosas envenenadoras do século, amiga dessa Marquesa de Brinvilliers, que eu iive a honra, há alguns anos, de poder deter e mandar enviar para o cadafalso. Mas a outra escapou-me das mãos e fugiu para as Américas. Seu irmão viu-a e pode me informar sobre seu destino. Esse seria um dos nomes de pouca importância para nosso soberano a serem introduzidos entre os primeiros dossiês, que serviriam de fundo para a abertura dessa câmara de justiça a outros, mais dolorosos de se ouvir, que se seguirão.
— Meu irmão está ocupado com seus amores - respondeu Flo-rimond, com uma expressão afetada de um velho pai de família barbudo -, e se para mim esses divertimentos galantes não têm muito peso, para ele é diferente. Além disso, devo observar-lhe que ele não é muito falante por natureza", e que não obterá dele uma só palavra, se não lhe aprouver falar.
— Viremos a nos entender - disse Desgrez com um leve sorriso. - Não se esqueça de que carreguei a ambos no colo, quando eram crianças!
— Está bem! - aceitou Florimond, com um suspiro de resignação fingida. - Vou tentar arrancá-lo do leito de sua amada, o que não será tarefa fácil. Cuidarei para que venha a sua presença, mesmo que tenha de escoltá-lo eu próprio.
Depois que Florimond de Peyrac se retirou com presteza, Francisco Desgrez deixou sua escrivaninha e foi até a janela olhar lá embaixo o Sena, que corria entre os arcos da ponte.
Seus olhos voltaram a errar pelo lajedo branco e preto da sala. Era uma coisa automática. E ele sorriu, pois era a primeira vez havia muito que ele se recordava da forma marmórea, digna e fiel, de seu cão Sorbonne, ali naquele lugar, aos pés da mesa.
- Bons tempos... - murmurou.
Seus dedos giraram a pequena chave de uma gaveta. Ele a abriu, e ali estava ela, a carta. Pegou-a com cuidado, pois estava gasta nas dobras, e suspendeu-a suavemente até o rosto.
Conhecia as palavras de cor.
"Desgrez, meu amigo Desgrez,
Eu lhe escrevo de um país distante. Você sabe qual. Deve sabê-lo ou imaginá-lo. Sempre soube tudo sobre mim..."
Quando pegava aquela carta entre os dedos, não era para relê-la. Era pelo conjunto, pelo que ela representava: o papel, a caligrafia, o pensamento de que ela segurara a pena que traçara aquelas linhas, de que seus dedos leves e elegantes haviam dobrado aquela carta, que um pouco de seu perfume a impregnava, um pouco de sua presença impalpável estava ligado a ela.
Era um gesto que fizera com frequência, e teria preferido ser supliciado na roda a confessá-lo a alguém. Mas não podia resistir a ele, nem evitá-lo.
Encarregado de uma missão que o condenava ao maniqueís-mo, o que mais b assustava, após tantos anos acossando o crime, era ver tantas pessoas de bem praticá-lo com tamanha inconsciência, como se a sociedade de seu tempo tivesse retornado à prática, por vezes considerada virtude, do assassinato das civilizações pagãs. E, como tal regressão era impossível depois de tantos anos de cristianismo, era preciso aceitar a ideia de que um contágio de loucura satânica, de demência inconsciente, estivesse se apoderando dos corações,- dos cérebros e das almas como uma epidemia que os tivesse tornado cegos aos limites naturalmente traçados entre o horrível e o normal.
Como toda epidemia, esse delírio seria passageiro. Era daqueles homens que deviam sabê-lo e ao mesmo tempo não se deixar atingir nem destruir.
O que o asstistavatambém a ponto de desconcertá-lo era a espécie de exaltação mística, principalmente entre as mulheres, com a qual certos culpados se espojavam no mal, lavando as mãos em sangue.
"Então, na noite de Paris, a cidade que mergulha nas piores torpezas e não sabe disso, a única coisa que tenho é sua carta, em que apoio meu rosto.
"...Conheci uma mulher que seria bem capaz de enterrar um punhal no coração de um monstro, mas para defender seu filho, e nisso ela permanecia mulher, pois toda mulher deve ser capaz de matar para defender seus filhos.
"...Estas com quem tenho hoje de me haver, qué pude deter graças a esta carta, e que vêm sentar-se nesta cadeira e.às quais interrogo, seriam em vez disso capazes de fincar um punhal no coração de seu próprio filho, e por vezes o fazem, se isso lhes permitir encontrar o Diabo e obter uma parcela de seu poder infernal. Por isso me parecem frias e já putrefatas como a morte, por mais belas que sejam. Quando, durante um interrogatório, sou acometido pelo asco, já me ocorreu distanciar-me alguns passos, abrir esta gaveta, lançar um olhar nesta folha com sua caligrafia que está sempre aqui, ou que levo comigo quando tenho de me deslocar, ou então... olhar o Sena pela janela... e dizer baixinho: 'Marquesa dos Anjos! Marquesa dos Anjos...' O sortilégio age! 'Sei que você existe... e quem sabe voltará...'
"Em algum lugar do mundo permanece uma luz... E é ela.
"Em alguma longínqua noite do Novo Mundo, que imagino tenebrosa, gelada e atravessada por mil gritos estranhos e desconhecidos, ela redigiu para mim estas palavras. Num navio, parece-me que era um navio, ela traçou estas linhas.
" 'Desgrez, meu amigo Desgrez, eis o que tenho a lhe dizer...'
"E só de lê-las reencontro a vertigem que me atingiu quando, quebrando o lacre do envelope entregue por um mensageiro discreto, compreendi quem as havia escrito, e que ela se dirigia a mim.
"...O sabor de seus lábios sobre os meus, jamais esquecido... Seus beijos ardentes, que enobreceram os lábios de um infecto policial que passa a vida a berrar insultos para aterrorizar e obrigar pessoas abjetas a confessar... Seu olhar, apenas para "mim, que me envolve com sua luz,'o sopro de sua voz no vento: 'Adeus, adeus, meu amigo Desgrez...'
"Foi isso o que me permitiu manter-me humano..."
Alguém arranhou a porta.
Um dos arqueiros que estavam de guarda junto a sua morada avisou-o da chegada de outro visitante.
Este entrou pouco depois, introduzido pelo guarda, e Desgrez, ao reconhecê-lo, dedicou-lhe um amplo e cordial sorriso.
- Eu o saúdo, Sr. de Bardagne. Sente-se.
O recém-chegado, sem responder ao convite, permanecia de pé, de chapéu na cabeça. Olhou a sua volta e indagou subitamente:
— Não foi o jovem Florimond de Peyrac que acabei de ver, saindo de sua casa?
— Com efeito.
Nicolau de Bardagne empalideceu, corou e tartamudeou:
— Meu Deus! "Eles" estão em Paris.
— Não, ainda não. Mas seus filhos mais velhos encontram-se numa embaixada junto ao rei desde há quase três anos...
— Quase três anos! - repetiu o outro. - Realmente, todo esse tempo já! - Depois, com muita frieza, e ainda recusando-se a sentar-se, informou que aquela era sua primeira viagem à capital depois de seu retorno do Canadá, e que estava pondo em execução aquilo que prometera a si mesmo fazer nessa circunstância, ou seja, procurar o senhor oficial de polícia Francisco Desgrez e informá-lo daquilo que pensava a seu respeito e de sua conduta maquiavélica para com ele. Levara muito tempo para descobrir toda a negritude de seus atos. Ele, Nicolau de Bardagne, acreditara que, quando Francisco Desgrez o recomendara ao rei para uma missão na Nova França, fizera-o em consideração a sua experiência e a seus talentos, ao passo que Desgrez sabia já perfeitamente... digamos que ele imaginava perfeitamente quem o representante do rei ia encontrar lá e o papel que tal pessoa desempenhara em sua vida, de modo que, ignorando o passado da dita pessoa, ele escrevera ao rei um relatório que o infelicitava para sempre no conceito de Sua Majestade. E tudo isso foi ainda mais martirizante pelo fato de que, durante todo aquele duro inverno em Quebec, um desses invernos que nos mantêm meses na expectativa e na ignorância de uma resposta, ele se felicitara por sua competência, acreditara ter agido da melhor forma possível, como um" imbecil, como um ingénuo que era! Desgrez escutava-o, com as mãos para trás e o rosto impassível.
— Eec longo inverno, nas geadas de Quebec; lamenta tê-lo vivido?
— N... Não.
— Então de que está se queixando?
— Não acha infinitamente humilhante essa fraude? Ela, ela soube imediatamente quais eram as molas de sua maquinação, que papel de fantoche você havia me atribuído. Em nenhum momento ignorou que eu estava sendo ridicularizado.
— Ela teve pena de você?
Nicolau de Bardagne sentiu-se enrubescer e baixou os olhos, evitando o olhar perspicaz do policial.
- Sim! Ela teve pena de mim - reconheceu, com uma voz sufocada.
Ele não sabia, vendo os ombros largos de Desgrez, que se voltara bruscamente para a janela, que rosto lhe mostraria seu interlocutor, após essa confissão.
Viu seus ombros sacudindo convulsivamente. O outro apresentou sua face hílare, iluminada por um longo sorriso que punha à mostra seus dentes brancos.
- Foi exatamente o que pensei que aconteceria! Ah! Ah! Ah!... Não existe no mundo mulher mais leal e generosa! Ela é capaz de tudo. De tudo, para reparar uma injustiça, para consolar um coração ingénuo injustamente, miseravelmente ferido por um vil beleguim de polícia. Meu caro, você é bem ingrato por me que rer mal, se me deve tal consolo.
Ele esfregava as mãos,
- Ah! Ah! Quantas vezes ela deve ter pensado, ao ver como eu o havia embaído completamente: "Esse Desgrez! Que escrevinhador do diabo!" Veja, eu me contento com isso: que ela me insulte em seu coração!...
Seu riso extinguiu-se bruscamente e eles permaneceram em silêncio.
- Ela voltará? - murmurou enfim Bardagne.
— O rei a espera... Mas, compreenda bem, meu caro. Você... Eu!... O rei!... Não teremos jamais nada além de migalhas... E está bem assim... E é isso o que é infinitamente precioso... É isso o que torna inesquecível o encontro que tivemos com ela. Pense pois a que ponto somos privilegiados... Um dia, passando com sua comitiva por sua província, acompanhada ou não do homem que ela adora, passando, estou dizendo, por Berry para ir à Aqui-tânia, ela ou eles se deterão em seu solar... Você a receberá a sua mesa... Apresentar-lhe-á seus jardins, seu campo, e, quem sabe?, sua encantadora mulher, seus filhos felizes...
"Não está pronto para viver pacientemente a espera, em troca dessas poucas horas de sonho?...
"E eu?... Eu, o policial temível, que faz tremer o espadachim pago para um crime e o nobre senhor que lhe pagou para cometê-lo, eu, que sujo as mãos mexendo com tantas intrigas malcheiro-sas, que estou sempre a assar na grelha de minhas perguntas marotas inúmeras criaturas, cada qual mais hedionda que a outra, cujos lábios só fazem mentir, cujo coração é de pedra, quando não podre como uma pêra passada caída do pé, eu, que trabalho para sanear Paris e a corte, e que persigo incansavelmente bandidos e feiticeiras, envenenadores e assassinos, que agulhão julga que me esporeia nessa ingrata e por vezes perigosa tarefa? Que ela volte um dia para junto de nós, sem arriscar sua vida. Que um dia, a não aspiro a nenhuma outra recompensa, ela possa, do fundo ae uma antecâmara e reconhecendo-me de longe na multidão dos cortesãos, dedicar-me um pequeno sorriso, um pequeno piscar de olhos. Eis os verdadeiros segredos dos homens. Aqueles de que se honram. Que os enchem de júbilo, que lhes provam sua boa estrela!... Que um encontro fortuito, breve quase sempre, por vezes dilacerante, lhes permita dizer-se ao longo de toda a sua vida: 'Pelo" menos, uma vez eu a amei'."
CAPITULO XXI
A Ciência do Amor - "A senhora merece" - Um dom do céu Cantor em Versalhes...
A Marquesa de Chaulnes jogava piquete com os senhores de Sougré, de Chavigny e D'Oremans quando, no fundo da galeria, passou um jovem pajem, vestido de branco, que, sem que percebessem sua aproximação, se encontrou subitamente atrás dos jogadores, com um punho apoiado ao quadril.
Era apenas um joguinho, pois o rei estava em Marly, mas as personagens instaladas em torno da mesa não se deixaram perturbar pela presença do rapaz, que continuava ali, postado numa imobilidade total.
- Quem o envia, Sr. de Peyrac? - perguntou o Sr. de Sougré, agastado.
Ele reconhecera o caçula dos dois irmãos vindos da Gasconha, conforme seus nomes; outros diziam que teriam vindo da Nova França, o que era menos brilhante.
Desde o início, eles souberam se colocar no círculo do monarca, e o mais velho obtivera prontamente o cargo de mestre dos prazeres do rei, muito cobiçado e muito honroso àquele que o ocupava, pois era tão disputado por seus benefícios quanto difícil de preencher.
- Nós lhe fizemos uma pergunta, jovem Cantor - interpôs o Sr. de Sougré, que se gabava de ser íntimo dos dois irmãos, de que o rei gostava abertamente e que levara para a corte com a consideração de embaixadores.
Apesar de sua juventude, eles pareciam já ter percorrido o mundo e, o que era mais surpreendente, conhecer tudo sobre Versalhes.
A Sra. de Chaulnes, que, até então preocupada com cartas medíocres que punham em risco sua jogada, não prestara atenção ao intruso, ergueu os olhos para ele e chocou-se com duas coisas: ele era de uma beleza luminosa e só tinha olhos para ela.
A Sra. de Chaulnes, por sua fina cintura, seus seios perfeitos, nem muito pequenos nem muito avantajados, sua tez delicadamente rosada, sem ser vermelha, inalterável na emoção, sua pele fina sem ser frágil, sua cabeleira de um loiro acinzentado, era dessas mulheres às quais se atribuem eternamente trinta anos e que parecem, seja como for, não transpor jamais o marco dos quarenta.
Entretanto, embora fosse mais jovem que a Marquesa de Montespan, sentia-se mais tocada pelos prejuízos da idade do que a impetuosa marquesa, que, no desabrochar de maternidades recentes, continuava a impor à corte o temperamento ardente de uma natureza irrigada por um sangue caloroso, servido por um corpo no ápice da beleza e petulância.
Na Sra. de Chaulnes a apreensão pela idade era uma sensação interna. Ela evitava qualquer confidência sobre o assunto. Sabia que nada transparecia e que todos e todas, ao contrário, ihvejavam-lhe o ar de juventude, que a fazia por vezes ser confundida, pelos não-iniciados, com uma das damas de honra, recém-saídas de um convento ou de sua província para a corte, a fim de ali aprender, a serviço dos poderosos, as maneiras do mundo da nobreza, no qual o destino as fizera nascer. Quando, após uma tal confusão, os fautores se assombravam, ela ria e lembrava que chegara a corte com catorze anos e fizera suas primeiras campanhas no Louvre, sobre a férula da Sra. de Maray.
Naquela época, as damas de honra mais jovens aprendiam a dançar com o rei, que tinha sua idade.
A Sra. de Chaulnes era de-uma habilidade impecável. Mais de vinte anos de experiência na corte haviam lhe ensinado todas as sutilezas e armadilhas.
Açafata da rainha, soubera ser-lhe devotada, sem desagradar ao rei, e preencher suas funções sem impor sua presença. Viam-na em toda parte, o que hão a impedia de se retirar e de se refugiar em seu pequeno apartamento na Rue des Réservoirs, a pouca distância do palácio, em Versalhes, por fadiga ou para uma escapada galante, ou simplesmente quando lhe dava vontade. Sabia que havia adquirido a solidão necessária para agradar num alto posto, e ninguém teria pensado em emitir contra ela alguma censura, de tal modo parecia inconcebível que o merecesse, pois"todos estavam convencidos de que todas as suas empresas dependiam da própria perfeição e do cumprimento de seus deveres e de sua tarefa. Ela era uma perfeita dama da corte. Tato, impertinência comedida, tino, solicitude nas danças, passeios e às mesas onde se jogavam cartas e se sacudiam as trombetas.
Ela jogava bem, ganhava com modéstia, perdia com graciosidade, e jamais deixara em suspenso uma dívida de jogo por mais de uma hora.
Acostumados a vê-la viver aparentemente dependente dos outros, em seu serviço, e efetivamente como a mais independente das damas de Versalhes, ninguém se lembrava mais se ela era viúva ou se seu marido ainda era vivo e, nesse caso, onde ele residia. Em suas terras? No exército?... Na corte, quem sabe?...
Assim era a mulher que, naquela manhã, erguendo os olhos das cartas que segurava nas mãos, avistou um jovem senhor que fixava os olhos sobre ela. Seus olhos tinham o brilho e a dureza das pedras preciosas e a cor da esmeralda.
Por uma razão desconhecida, e que se devia talvez ao reflexo dos espelhos ou dos vitrais da janela que dava para o Jardim do Meio-Dia, seu rosto e todo o seu ser pareciam petrificados de claridade, como se fosse luz e não sangue o que circulava em suas veias. Reflexão que ela fez enquanto um silêncio profundo se instalava e se adensava, até que as pessoas presentes, e portanto ela mesma, se sentissem meio estupidificadas.
Ela ouviu-se perguntar, numa voz longínqua ainda que potente:
- E essa agora!... O que lhe sucede, messire?... Eu lhe peço, entregue sua mensagem!...
- A mensagem, senhora, é que a senhora me agrada muitíssimo.
Sua gravidade conferia à declaração um toque de insolência. A Sra. de Chaulnes ergueu-se inteiramente, inexplicavelmente desamparada por seu domínio mundano.
— O que... o que quer dizer?...
— Que eu seria o homem mais feliz do mundo se me recebesse, senhora, em seu leito!...
— Você perdeu a cabeça!
— A senhora tem tão pouca estima por seus encantos que não possa compreender minha solicitação e, achando-a audaciosa, julgá-la no entanto natural e uma simples homenagem a suas perfeições?
— Você desconhece sua idade? - lançou-lhe ela. E assustou-se à beira de acrescentar, num grito: "E a minha?"
— Minha idade? É ela, senhora, o que me conduz diante de sua pessoa. A ignorância, que é seu apanágio, tem-me causado mais embaraços que meu ardor em amar me confere privilégios. Tendo praticado pouco o amor, e jamais com uma dama de seu nível, de sua beleza e de sua soberba, pareceu-me ter visto em sua divina pessoa, senhora, tão segura em sociedade e sábia, parece-me, em tudo, uma resposta a meu tédio.
A Marquesa de Chaulnes ficou sem fala. Ela gaguejou:
— Seu... seu tgdio... Sua pretensão ultrapassa o imaginável... Eu o aconselho a esperar... você ainda cheira a leite e ousa...
— Esperar!... Seria, senhora, adepta de Astréia, dessas preciosas que exigem de seus amantes que as esperem cinco ou dez anos, a fim de "pôr à prova a sinceridade e a constância de seus sentimentos?... Isso não lhe assenta bem. E não creio absolutamente nisso. Pois certos rumores, que se pretendem malevolentes, mas que para mim aumentaram suas atrações, a descrevem como pouco cruel e pronta a oferecer seu sacrifício no altar de Vénus quando o sacrificador lhe compraz!
— Ora, viram, que insolente! - exclamou a Sra. de Chaulnes com uma gargalhada estridente.
E com um olhar perdido ela procurava apoio a sua indignação junto a seus parceiros. Mas eles não lhe prestaram qualquer ajuda. Petrificados, com as cartas nas mãos e a cabeça dirigindo-se ora para um ora para outro, todos apresentavam os sintomas do assombro. A vivacidade e a mordacidade do diálogo não lhes davam tempo para-contar os golpes.
A Sra. de Chaulnes não se dava conta de que, no estado de perturbação em que a intrusão e as palavras do rapaz á tinham lançado, e pelo grande constrangimento e estupor de seus amigos, as lágrimas tinham começado a correr-lhe pelas faces, traçando um sulco prateado no veludo do pó-de-arroz.
— Você merecia que eu aceitasse sua proposta!
— Seria uma honra, senhora. Onde? E quando?
— Em minha casa, Rue des Réservoirs. Após a refeição da rainha.
— Estarei lá.
Tanta altivez e condescendência gelada por parte de um pajem a petrificavam e quase a aterrorizavam. Ela quis livrar-se, com zombaria:
- Então irá? E vai me oferecer o frescor de suas faces, a firmeza de seus lábios e... de seu vigor ainda jovem?...
- E a senhora, o que me oferecerá em troca?...
Ela rebateu, ousada, provocante, fora de si:
- A Ciência do Amor, já que a pediu... belo pajem! Acha pouco?!...
E, sem querer nem poder mais suportar, trémula por uma raiva que não saberia definir, recolheu seus lucros e o leque, fazendo-o estalar como um chicote ao fechá-lo, e depois saiu.
Os parceiros de jogo voltaram a si no estado de espírito de pessoas que inopinadamente tivessem cedido a um breve sono e despertassem com tempo para ter um sonho extraordinário.
O hábito de não deixar passar qualquer acontecimento sem comentários induziu-os, apesar de seu aturdimento, a emitir algumas palavras.
— O jovenzinho é bastante atrevido - disse o Sr. d'Oremans. - Sua fortuna está garantida!
— Que fortuna! - resmungou o Sr. de Chavigny, dando de ombros. - Ele é mais rico do que ela, e é público e notório que ele e o irmão possuem o favor do rei.
— Então?... O que foi que lhe deu?
— O que foi que lhes deu?
— Nela, principalmente.
— Não! Nele!...
— Não! Nela...
Voltando a seus aposentos, a marquesa pôs seus serviçais em polvorosa requisitando-os para mil tarefas e suplicando-lhes ao mesmo tempo que se dessem toda a pressa do mundo. Não queria mais ninguém dentro de casa. Não sabia mais nem o que queria nem o que esperava. Jamais gostara de crianças, e por isso não tivera filhos. Por sua ausência, eles a haviam privado dos privilégios que se conferem apenas às mães, especialmente se elas põem no mundo um herdeiro. Especialmente, e talvez por causa disso mesmo, os homens jovens desagradavam-lhe, e ela percebia que aqueles extremamente jovens, na idade em que a criança se torna púbere, inspiravam-lhe uma estranha cólera. Detestava suas vozes mutantes, suas maneiras insolentes de machinhos que tomam o poder. Aquele não era tão jovem. Dar-lhe-ia uns dezes-seis ou dezessete anos. Mas não lhe faltava insolência.
Alternadamente, preparou-se para lhe fechar as portas, para fazer-lhe um sermão ou, se ele insistisse... para fugir, debater-se...
Será que viria? Se ele não viesse, estava disposta a gestos extremos, a reações dementes, tais como quebrar de raiva os frágeis bibelôs que amava, destruir seus quadros preferidos e até seu guarda-fogo de seda brocada-de Lyon novinho em folha.
Mas se ele viesse... Consumia-se antecipadamente de terror.
E, quando o viu diante dela, teria acreditado se alguém lhe tivesse dito que ele havia montado aquela mascarada e fomentado aquele complô unicamente com a finalidade de vir apunhalá-la sem testemunhas.
Seus sentimentos deviam estar evidentes em sua fisionomia, pois, ao cabo de um instante, ela se surpreendeu.
- Senhora, que terror a agita?... Tenho comigo minha espada. Se alguém a ameaça, mostre-mo, estou pronto a rachá-lo ao meio.
— É verdade, sinto medo.
— Do que tem medo?
— De você... Não compreendo o que quer.
Ele permaneceu furto, tomado de grande perplexidade; depois, um sorriso aflorou-lhe aos lábios. Atravessou com alguns passos o espaço que os separava e, ajoelhando-se, jogou os braços em volta dela, apoiando a fronte contra seu seio. Ela ficou tão abalada que vacilou, mas ele a susteve firmemente, com um vigor in-suspeitado.
- Senhora, o que teme de mim? Não passo de um.jpvem ignorante dos arcanos do amor. Sua pessoa inspirou-me confiança, e sua beleza, esta perturbação e estes tormentos que me impelem à audácia de desejá-la. O resto está em suas mãos. Fale e eu obedecerei. Ensine-me e eu aprenderei. Entrego-me a você.
Ela o levantou.
Seus dedos tremiam ao desabotoar-lhe o gibão, deslizando de um botão para outro do longo colete de seda brocada. Despiu-o como a uma criança.
Receara, a ponto de sentir um aperto na garganta, sua falta de empenho, sinal, persuadia a si mesma, de lassidão, de decepção, e talvez até de repulsa pelos sinais da idade que lera nela, até o dia em que se deu conta de que ele não punha qualquer reticência em responder a seus pedidos, e que tinha uma solicitude de um ser jovem, cheio de vida, em-satisfazer o que outros, menos valentes, lhe censuravam como exigências. Se havia algum sinal, era ele quem o esperava dela.
Ela aprendeu a murmurar aquelas palavras de súplica que jamais pronunciara:
"Mais... Espere uni pouco! De novo!..."
Súplicas às quais ele acedia não só com ardor, mas com reconhecimento.
Apoiada assim por evidentes e indiscutíveis testemunhos do gosto e da necessidade que ele tinha dela, a Sra. de Chaulnes tranqúilízou-se. Parou de atormentar-se com seus silêncios. Tanto mais que, quando se obstinava em saber-lhes o motivo, ele não fazia mistério de seus pensamentos. Era uma criança simples.
Tremula e receando desagradar-lhe, mas, por outro lado, ávida de saber tudo a respeito dele, ela perguntava, tocando-lhe a fronte, afastando-lhe uma mecha encaracolada:
- Onde você está?... Em que está pensando?...
Ela o contemplava em sua beleza perfeita, meio apoiado num cotovelo e com o outro braço estendido, repousando num joelho, que soerguia o lençol rendado, e seu peito nu brilhava como mármore, nos jogos de luz e sombra da alcova.
- Pensava nele - dizia. - Está tão longe... E tão só! É uma criatura dos bosques. Julgam-no feroz, tomado pela alma de um demónio... Mas não é isso. Ele é movido por uma inteligência humana, mais inteligente por vezes do que os humanos que o perseguem. Sim, alguns de seus congéneres são ferozes, malévolos, pois muito sábios em se defender e em prejudicar, em des
truir as armadilhas, em tornar a vida insustentável àqueles que os atormentam... Mas o meu foi cr: io muito perto dos homens...
Ela acabou por compreender que -le lhe descrevia um animal selvagem, uma espécie animal desconhecida na França, daquelas Américas de onde ele estava voltando.
- Eles assustam porque a natureza colocou-lhes uma máscara preta em torno dos olhos como as dos bandoleiros de estrada, e possuem duas presas agudas e longas em cada lado da mandíbula, como os vampiros, mas se você soubesse como eles têm uma força interior tão comovente... - disse, tornando-se quase loquaz para lhe falar daquele animal, que ele dizia ter criado desde pequenino e que, ao crescer, o seguia a toda parte como um cão ou um gato domesticado.
- Ele pensa em mim... Um dia nós nos esqueceremos, mas eu sei que ele ainda pensa em mim, apesar da força da vida dos bosques à qual voltou: E se não me esquece é porque nem tudo acabou entre nós. Às vezes sinto que ele me chama. Não é um
pedido de ajuda, ele não tem medo de nada. É uma relação, compreende?... Está ligado a mim... O que você pensa disso? O que
teremos ainda de fazer juntos, ele e eu?
A Sra. de Chaulnes fez um esforço para encontrar uma resposta, um conselha adequado, e esse esforço levou-a de volta a infância, quando, muitas vezes, na torre do castelo de seu pai, conversava com uma velha coruja.
Mas, repentinamente, ele sorriu, tomado de remorsos diante de sua fisionomia preocupada.
— Bela amiga, esse é um assunto sem graça para deter a atenção de uma bela dama da corte.
— Tudo o que vem de você, meu querido, é-me precioso. Amo sua inocência e você me devolve a minha.
— Vamos experimentá-la então! - gritou ele, segurando-a enquanto a cobria de beijos gulosos. Em seus belos braços musculosos, levemente cobertos por uma penugem loira, ela se encantava, maravilhava-se, perdida de amor.
Gostava que ele fosse tão espirituoso sob aparências ingénuas, e tão pleno de sensualidade sob aparências verdadeiramente cheias de candura. A ponto de se perguntar se alguma vez antes conhecera a sensualidade, o prazer.
Ao lado daquilo que ele lhe dispensava, o que os outros homens lhe haviam trazido não passava de mercadoria falsificada.
Enfim, ela soube por sua camareira que ele sorria apenas para ela.
— Mesmo na presença do rei, senhora, e, apesar das amabilidades que Sua Majestade tem para com ele, esse jovem não abre um sorriso. Foi seu cocheiro que me disse, e soube-o pelo criado de quarto do rei, o Sr. Bontemps.
— Então... você diz... Serei a única a lhe arrancar um sorriso?
— Nem o rei, estou lhe dizendo! Nem eu mesma! E olhe que tentei. Apenas a senhora. Isso significa que gosta da senhora e de sua companhia. Não vejo outros motivos.
— Realmente! É o que você crê? - hesitava a Sra. de Chaul-nes, esperando o veredicto da donzela com uma ansiedade tão chorosa que esta renunciou a malícias e deixou que o coração falasse.
Julgando-a fina e graciosa, a Sra. de Chaulnes colocara-a a seu serviço para poupar-lhe uma vida inteira carregando baldes num pátio de fazenda.
- A senhora o merece - disse ela, gentilmente. - A senhora o merece, creia-me. Por sua beleza e por sua bondade.
"Está sendo devorada pela luxúria", afirmava o Sr. de Maray, aquele cortesão profissional e quase de nascimento - nascera às escondidas nos corredores do Louvre de uma aia da Rainha Ana d'Áustria, num dia de grande cerimónia em que a soberana devia ser assistida por todas as suas damas -, conhecia tudo a respeito de todos, a crer-se, como ele dizia, que todos lhe faziam confidências detalhadas sobre sua vida mais íntima. Ora, isso não era verdade. Ao contrário, sabendo que ele adivinhava o menor segredo com um olhar, fugiam-lhe, sempre que tinham alguma coisa a esconder-lhe. Mas era em vão. Dir-se-ia que ele ocultava em cada canto de alcova um diabrete espião a seu serviço.
A Sra. de Scudéry, com mais elegância, falando do estado em que se encontrava a Sra. de Chaulnes, afirmou, na linguagem das "preciosas", que estava caindo de moda desde que Jean-Baptiste Molière, o comediante do rei, começara a ridicularizá-la, "que ela se perdera no bosque da Paixão para chegar à gruta do Descaminho, que conduz ao palácio das Sublimidades Secretas", o que era meio alambicado, mas traduzia bem a realidade.
Foram dias, meses de loucuras sem limites. Para a Sra. de Chaulnes a vida girava em torno das horas deliciosas de espera, cuja ansiedade era sempre satisfeita além das expectativas e dos candentes tormentos que elas haviam atiçado, horas deleitosas em que ele se abandonava a seus mais delirantes ensinamentos, mes-,mo que fosse para repetir-lhe logo a lição com um alegre e infatigável fervor.
Ela lhe atribuía todas as belezas, todos os encantos, todas as delícias. Chamava-lhe de seu regalo. Não lhe descobria nenhum defeito.
Ela o dissuadia de correr, depois do amor, para aspergir-se com água. Seu forte odor de adolescente a embriagava, parecia-lhe o mais excitante dos afrodisíacos.
Dizia-lhe: "Beba! Coma!" .
Servia-lhe ela mesma um vinho de malvasia, olhava-o beber, enquanto seus dentes resplandeciam contra o cristal, olhava-o, com um lençol branco deslizando-lhe dos ombros nus, escolher um pêssego, que tinha sua loirice e sua face encarnada, mordê-lo com uma ferocidade que era apenas apetite e prazer de existir.
Pois, para cúmulo de sua adoração, ela descobria que aquele jovem príncipe, perfeito, belíssimo, que adquirira poder total sobre ela e que teria facilmente podido, com uma palavra mordaz, uma careta, um bocejo, fazê-la sofrer mil danaçòes, não tinha qualquer maldade.
Ela estava ébria, delirante.
Banhava-se na felicidade, sem ousar dizer a si mesma que era a felicidade.
Era mais que a felicidade.
Nem lhe passava pela cabeça confessar sua nova paixão para receber absolvição por ela, como fizera até então, a cada uma de suas extravagâncias amorosas.
Ao contrário. Era tal a loucura que dela se apoderara que muitas vezes, desperta, na doçura das noites serenas, contemplando-o adormecido a seu lado, à luz dourada do velador, contemplando aquele corpo virginal e distante, aquele lábio carrancudo, mas que não faria carranca ao beijo com o qual ela o entreabria para acordá-lo, acontecia-lhe de perguntar-se com humildade e surpresa, e também com uma imensa gratidão a Deus, que boa ação teria ela feito, em sua vida egoísta e frívola, para merecer aquele dom do céu.
CAPÍTUL0 XXII
Uma criança especial -Catarina Tetakwita --- Honorina em Montreal
Honorina estava ajudando Madre Bourgeoys a fazer velas. A superiora da Congregação de Nossa Senhora encarregava-se com frequência desse trabalho. Gostava de lembrar que era filha de um mestre fabricante de velas de Troyes.
Uma pequena aluna a assistia. Para a menina era uma honra, |íma recompensa. Para a hábil pedagoga, representava uma oportunidade de falar amigável e confidencialmente com uma das crianças a ela confiadas. Naquele momento era Honorina de Peyrac. Ela fora incumbida de estender as mechas de algodão, em torno das quais a religiosa derramava num molde, com o auxílio de uma concha, a cera derretida.
Honorina, muito compenetrada de seu papel, lembrou que no forte de Wapassu também se fabricavam velas..
Ela também ajudava a "mãe a escolher as plantas para as tisanas.
Margarida Bourgeoys interrogava-a e a ouvia com interesse. A aventura daqueles europeus, que tinham vindo instalar-se no interior da região mais impenetrável da América do Norte, abandonada até pelas tribos indígenas nativas, que tinham sido dizimadas ou que haviam voltado para as costas, evocava-lhe, pela audácia da empresa, a~fé na vitória, o espírito que animara a pequena fundação de Ville-Marie em seus inícios. Por outro lado, não era a primeira vez que ela se interrogava sobre as reticências que sentia na criança a propósito de um lugar onde, conforme as aparências,.eja fora muito feliz.
- Não quero voltar a Wapassu - disse bruscamente Honorina.
Madre Bourgeoys ficou intrigada, até que Honorina-acabou por confessar-lhe o verdadeiro motivo de seu desagrado.
— Eu não consigo ver o velho na falésia da montanha, e todos o vêem. Isso é injusto. Eu acreditava que, quando se têm olhos para ver, a gente vê tudo.
— Não, infelizmente. Seria demais para cada u-rri'de nós. Os olhos da alma escolhem o que lhes é necessário para fazê-la descobrir o mundo de sua vida. Não podemos receber todos os presentes ao mesmo tempo. Seja paciente. Um dia, esse presente lhe será dado.
Honorina gostava da maneira como a diretora lhe tratava como a um adulto, quando se falava de assuntos sérios, voltando depois para as questões familiares.
Ao abrir-se com ela, Honorina deixou aparecera ponta da orelha de alguns de seus rancores dissimulados, mas não era jamais o que a religiosa esperava, como manifestações de ciúme de seus jovens irmãos gémeos ou de egoísmo.
Mas seus irmãos mais velhos tinham-na abandonado, o que parecia ter sido para ela a coisa mais tocante, sobretudo Cantor.
Já seu urso Lancelote a havia deixado. Nao o encontrara mais, quando voltara de Quebec. "Eles" tinham deixado que ele voltasse para os bosques. Queria convencer-se de que ele, pelo menos, dormia bem abrigado numa toca durante o inverno.
Mas os lobos! Os lobos! Quem falaria com os lobos, agora que seu irmão Cantor não estava mais lá, nem ela?
- Cada um de nós pode apenas fazer uma pequena parte da tarefa, no que se refere aos outros - explicou Madre Bourgeoys, intimada a responder por aquele olhar ansioso.
E ela falou de todas as crianças às quais ensinara a ler, que ela cercara de cuidados e que, agora, estavam grandes, passavam por provações longe dela, corriam por vezes grandes perigos entre os pagãos ou no rio, sem que ela pudesse socorrê-las de nenhuma maneira, apesar de toda a afeição que tinha por elas.
— Mas podemos sempre continuar a ajudar de longe, amando.
— Sim, o amor dos amantes - disse Honorina, com um ar entendido.
Madre Bourgeoys olhou-a com curiosidade, depois sorriu, lembrando-se de uma missiva que havia escrito à Sra. de Peyrac.
— Sim, o amor dos amantes - repetiu ela. - Ele não teme nada e pode tudo, pois ele se origina no amor divino e só se preocupa com o bem do ser amado. Ele torna possível o impossível. E é assim que podemos ajudar aqueles que nos deixam, aqueles que estão longe de nós.
— Até os lobos?...
— Até os lobos. São Francisco de Assis poderia dizer-lhe isso.
Depois de acertadas essas duas questões, Honorina parecia aliviada de um grande peso. Ela tagarelou, enquanto dispunham em fila os moldes de folha-de-flandres, para seis ou oito velas.
Depois de ter falado de algumas das pessoas de Wapassu, ela descreveu os gémeos, e foi tomada de nostalgia.
— Gostaria de revê-los - gemeu. - Eles são tão engraçados! Não falam, mas entendem tudo o que eu digo. A senhora me deixará partir no verão com os exploradores de bosques para chegar a Wapassu pela floresta?
— Pela floresta?... Mas é uma loucura!
— Por quê? Eu me vestiria de menino e ficaria bem-comportada na canoa...
— É uma região cheia de perigos. Disseram-me que se perdem as pistas, os rios são pouco navegáveis. Os homens mais rudes se esgotam para atravessá-los.
— De navio é muito demorado. Eu sei, olhei os mapas de meu pai e de meu irmão Florimond.
"O que será que está-querendo inventar?", pensou a diretora. "Se puser na cabeça fugir para os bosques como as pequenas índias!"
- No verão - continuou em voz alta -, seus pais virão visitá-la, e eles virão de navio. Que alegria para todos nós quando eles chegarem! Mas, daqui até lá, é preciso fazer muito progresso em linguagem.
Começaram a retirar dos moldes as velas já frias, e Honorina devia limpá-los, raspando os resíduos de cera com sua faquinha.
— Você está contente por aprender a ler e a escrever? - perguntou Madre Bourgeoys, que já conhecia suficientemente a pequena interna para saber que esta, interrogada com doçura, não fazia segredo de suas opiniões. -
— Vim para isso - respondeu a garotinha, sem interromper seu trabalho.
Angélica avisara à superiora que fora Honorina que pedira para vir para Montreal, e a madre estava interessada em obter a confirmação da própria menina, que, talvez, não scfembrasse mais disso, ou tivesse agido por capricho, ou, e era o que preocupava a educadora, por uma dessas razoes de rancor ou de ciúme que pouco a pouco ela revelava, pueris mas importantes para a paz interior, e às vezes tão imprevistas que não se podiam criticar os adultos mais bem-intencionados e atentos por não as ter percebido.
Censurou-se por dar a sua pergunta uma formulação que sabia ser capciosa, mas às vezes não era preciso plantar verde para colher maduro?
- Não ficou sentida por seus pais terem-na enviado tão longe para aprender a ler e a escrever? Pois Montreal é ainda mais longe que Quebec.
Honorina interrompeu seu trabalho para olhar demoradamente a diretora. Havia uma vaga severidade no fundo de suas pupilas, que, no entanto, se suavizaram. Ela como que sorriu. E Margarida Bourgeoys pensava que não havia nada mais belo e emocionante no mundo do que um olhar de criança que lhe entrega sua alma cândida com uma perfeita confiança e uma perfeita inocência.
- Fui eu quem quis vir - respondeu enfim Honorina, num tom que subentendia "como se a senhora não o soubesse". - Eu a vi em Tadoussac e também na catedral quando se cantava o te-déum, e sempre gostei da luz que existe em torno de sua cabeça.
A religiosa teve um leve estremecimento de emoção ao ouvir essa resposta inesperada.
- Minha filhinha, é verdade que você não é uma criança como as outras. É preciso aceitar isso sem se revoltar nem censurar àqueles que nem sempre a compreendem. Pois você vê coisas que bem poucos vêem.
— Mas eu não gosto da luz que existe em volta da cabeça de Madre Delamare - continuou Honorina, juntando cuidadosamente as lascas de cera branca. - Se a senhora partir, Madre Bour-geoys, eu também quero partir.
— Mas, minha criança, não tenho intenção de partir.
— Não me deixe, se Madre Delamare ficar na direção. Ela não é como a senhora e não gosta de mim.
"É verdade", pensou a santa diretora.
Fez uma pequena cruz na fronte de Honorina, dizendo-lhe que era preciso rezar a Deus. Acariciava pensativamente os longos cabelos acobreados e seu gesto era de bênção.
Depois voltou às questões práticas.
— Minha criança, o verão logo estará aí. Você vai sentir calor com seus longos cabelos. E não quer que os trancemos. E se eu os cortasse, só até os ombros, para que você ficasse mais à vontade?
— Minha mãe não quer. É só tocar em meus cabelos que ela faz uma cena.
Contou como quisera fazer um penteado iroquês, e todos os aborrecimentos disso resultantes.
A história divertiu Margarida Bourgeoys imensamente. Ela riu, e com uma alegria tão franca e juvenil que Honorina, encantada com seu sucesso e por ter conseguido desanuviar a superiora, que ela achava um tanto quanto severa, voltou alegremente a jogar bola no jardim com suas amiguinhas.
Nesse jogo de bola participavam amiúde crianças iroquesas da missão de Khanawake. Elas eram recebidas na Congregação de Nossa Senhora quando um. mercado ou providências junto aos franceses, ou compras, as"traziamcom suas famílias a Montreal.
A reserva dos iroqueses convertidos fora várias vezes deslocada, pois, instalada nos primeiros anos perto do lago dos huro-nianos, tornara-se um objetivo de reide para seus compatriotas pagãos, e fora preciso transferir a maioria dos iroqueses cristãos para Montreal, ao abrigo dos fortes e das aldeias francesas.
Estava agora estabelecida na margem direita do Saint-Laurent, defronte a Lachine, no local denominado Khanawake: o salto, o rápido.
Vinte anos antes, ficava mais perto da cidade, em Kentakê La Prairie, e contava cinco cabanas. Agora, havia mais de cinquenta e cerca de mil pessoas. Fazia quatro anos que ela se transferira para a margem dá portagem, no limite da fronteira protegida dos bárbaros, pois os jesuítas queriam, por sua vez, distanciar-se o máximo possível da vizinhança dos franceses, que julgavam prejudiciais aos neófitos.
Madre Bourgeoys dizia que os índios iroqueses convertidos eram um exemplo para todos. Apesar dos massacres de "que tinham sido vítimas por parte dos pagãos, eles se sentiam responsáveis pela salvação de seus irmãos e se mantinham ligados por amizade a suas famílias das Cinco Nações. Conseguiam suportar o fato de terem se tornado um povo sem território e sem raízes, porque na realidade não se consideravam separados do povo da Casa Comprida que, lá longe, vivia no vale Sagrado, onde reinavam o milho, a abóbora e o feijão, sob a proteção solar dos campos de girassol.
Honorina lamentava não poder vê-los chegar à casa de Nossa Senhora, carregados de armas e de pinturas de guerra, mas, tendo ouvido os comentários de Madre Bourgeoys, reconheceu que ela também gostava de encontrar os iroqueses da missão de La Prairie. Gostava de sentar-se com eles, quando vinham aprender sua língua, e de se gabar com eles de conhecer muito bem Tahu-taguete, o grande capitão dos senecas, e Utakê, o Deus das Nuvens.
Eles a chamavam de Nuvem Vermelha.
Entre as mulheres que acompanhavam as crianças quando elas passavam vários dias em Ville-Marie, havia uma jovem índia com a qual Honorina gostava de brincar, cantar, rezar. Uma amável luz provavelmente aureolava, aos olhos da francesinha, a fina cabeça coberta por tranças negras, presas na testa pela tradicional tira bordada com miçangas.
Ela se chamava Catarina. Fora expulsa da tribo dos mohawks, ou agniers, porque queria viver segundo o ideal cristão e ser ba-tizada como a mãe, uma algonquina cristã, raptada pelos" iroqueses. Toda a família de Catarina morrera numa epidemia de varíola, à qual apenas ela sobrevivera.
Órfã, maltratada por seu tio, que queria impor-lhe um esposo, acabara caindo na reserva de Khanawake. Ela irradiava felicidade por ter encontrado seu lugar favorito, perto das igrejas e das capelas onde vivia o Deus de amor que escolhera como eleito de seu coração. Seus compatriotas acrescentaram a seu nome de batismo, Catarina ou Kateri, mais fácil de pronunciar, o de Te-rakwita, de duplo sentido como os nomes símbolos que escolhiam oara si, pois queria dizer "aquela que derruba os obstáculos , e testemunhava sua vontade de sobreviver às provações que a haviam atingido, mas também "aquela que anda com as mãos para a frente para não se ferir nos obstáculos", pois devido a varíola que a vitimara com a idade de quatro anos, ficara meio cega.
O LOUCO E SEU CINTO DOURADO
CAPITULO XXIII
Visita ao túmulo da Diaba - Indícios de uma trama palaciana
Tinham chegado a Tidmagouche, na costa leste, na véspera. Foram avisados de que a enseada estava ocupada pela frota de pesca sazonal, e à qual se juntavam navios de partida para a Europa, enquanto outros chegavam depois da travessia do oceano, lançaram âncora mais ao sul, numa angra diante da ilha Saint-Jean, e dirigiram-se ao posto por terra, acompanhados por mem-íi>ros da tripulação e homens de sua casa, que transportavam sobre a cabeça, nas costas, pendurados em varas carregadas ao ombro, sacos e arcas para uma instalação sumária.
O lugar permanecia muito pobre, excetuando-se os ordenamentos portuários, entrepostos e barracas, onde moravam os pescadores bretões e de Saint-Malo, que anualmente alugavam as praias.
A antiga casa fortificada de Nicolau Parys recebia o Conde de Peyrac e sua mulher quando eles permaneciam no lugar por alguns dias.
Não se tivera ainda tempo de torná-la mais espaçosa e acolhedora.
A cada vez o conde prometia a si mesmo ordenar obras ali, mas faltava um homem de confiança no lugar para dirigi-las, fora o velho Job Simon, ocupado com suas pescarias para seu comércio e com seu ateliê de esculturas e douraduras e figuras de proa, para consolo seu ou do genro Nicolau Parys, pouco agradável e sem capacidade para abrir e supervisionar um canteiro de obras em sua ausência.
Tidmagouche continuava pois a ser uma escala.
Angélica jamais voltava para lá por iniciativa própria, embora a excitação dos dias intensos e decisivos que ali vivera, por ocasião de seu duelo com a Diaba, e que tiveram por teatro aquele canto perdido da costa, a instigasse. Assim que o vento lhe trazia às narinas o odor salobre dos pesqueiros, mesclados àquele cheiro balsâmico da floresta superaquecida do verão, em segundo plano, voltavam-lhe à memória certos episódios.
Tidmagouche era também a parada a meio caminho entre Que-bec e Gouldsboro. E suscitava, pois, apesar de tudo, um sentimento de ansiedade feliz à ideia de voltar a seus domínios do sul, ou então, como naquele momento, de reencontrar, além de seus amigos de Quebec, Honorina, que desejavam visitar demoradamente em Montreal, assim como a família do irmão reencontrado de Angélica*
Por todas essas razões, Angélica estaria muito disposta a não permanecer ali mais de vinte e quatro horas. Mas era um ponto de encontro, e Joffrey sempre tinha muitas questões a tratar ali.
Naquele ano, os gémeos participaram da viagem ao Kennebec, que reconduziu os turistas de inverno de Wapassu a seu porto de armamento em Gouldsboro. Discutiu-se o problema de levá-los também até a Nova França. Mas a dupla escolta, que o deslocamento dos pequenos príncipes exigia, as atrapalhações que isso poderia causar sem necessidade para uma viagem ao mesmo tempo curta e demasiado longa para crianças pequenas, fizeram-nos abandonar o projeto. Já contavam em Gouldsboro com uma corte que lhes disputava o favor. Abigail ficaria tomando conta deles.
Deixando o Sr. Tissot e sua equipe arrumando a casa, sobre a qual se acabara de hastear a bandeira azul com escudo de prata, ela saiu, reconheceu, do alto do terrapleno, a meia encosta onde estava construída a casa, o vasto anfiteatro da baía sob-suas brumas matinais, franziu as pálpebras sob a luz difusa, ouviu os ruídos confusos que subiam em sua direção com uma espécie de preguiça, como se as atividades realizadas embaixo - trabalhos dos pescadores nas guilhotinas para preparar os bacalhaus, idas e vindas dos barcos ou de grupos de marujos, que se deslocavam para vir buscar água na fonte, ou então entregar seus peixes aos cutelos dos limpadores de peixe etc. - fossem obra de fantasmas.
E, era irresistível, não podia deixar de evocar aquela que, em seus trajes excêntricos, com sua delicadeza de estatueta de Tana-gra, seu sorriso inocente, seus grandes olhos comoventes, tinha se comprazido a reinar uma época nesse reino deserdado, povoado de homens isolados, solitários, ingénuos ou brutais, cândidos como crianças ou viciosos como demónios, que os acasos e as obrigações da pesca ao bacalhau lançavam àquelas praias, no lapso de um verão, ao pé das costas e das falésias, fora do espaço e do tempo, como na ilha maldita de uma estrela perdida.
No ano anterior, ao voltar de sua viagem à Nova França, abalada pela perturbação que lançaram em seu espírito as elucubrações de Delfina du Rosoy e o interrogatório do tenente de polícia Garreau d'Entremont, tentara expulsar de seu pensamento preocupações nebulosas, e evitar, para deixar que o tempo decantasse essas informações, uma certa providência. Agora, nessa viagem de ida em companhia de Joffrey, e que tencionava fazer com ele ,até o fim, sentia-se numa disposição de espírito mais favorável.
Uma correspondência que a esperava ali, da Sra. de Mercour-ville, uma epistológrafa prolixa, anunciava-lhe que Delfina du Rosoy estava esperando um filho para o fim de agosto, o que, calculou Angélica, lhes permitiria estar presentes para o feliz acontecimento, pelo menos para o batismo. Uma outra carta afetuo-sa de Margarida Bourgeoys, datada do mês de junho, pois fora confiada aos primeiros barcos que podiam deslocar-se até a foz do Saint-Laurent, liberto de seus gelos, dava-lhe notícias pormenorizadas e satisfatórias sobre sua filhinha, e a mensagem era acompanhada por uma folha coberta por grandes letras caprichadas: "Minha querida mãe. Meu querido pai..." Não ia mais longe, pois isso bastava para encher a página, mas aquela primeira prova tangível da boa saúde e gentileza de Honorina e de seus progressos em caligrafia enchera-os de alegria.
A estridente fanfarra dos insetos celebrava a bela estação.
Angélica tomou o atalho e subiu através da relva alta, reduzida quase a palha pelo calor. Era a primeira vez que se arriscava por ali, e até "então, quando fizera escala em Tidmagouche, evitara voltar a cabeça para o lado dos bosques.
Encontrou o túmulo.
Pelo que se lembrava," pois tivera de assistir ao enterro por conveniência, era exatamente ali.
Apesar da vegetação que tomava conta de tudo, s cruz de madeira se erguia, apenas meio tombada de lado devido ao-trabalho ativo, a seus pés, de uma colónia de formigas.
Aparentemente, ninguém se preocupava em carpir em volta daquela tumba havia anos. Depois do sepultamento, Joffrey de Peyrac mandara colocar sobre a terra recém-aplainada uma lousa pesada e dera uma boa esmola, a um dos pescadores bretões, escultor de pedra em seu país, a fim de que ali gravasse os nomes e sobrenomes, sem epitáfio, da rica, nobre e piedosa duquesa francesa que viera morrer tragicamente no Novo Mundo, numa praia deserdada.
O bretão fizera seu trabalho conscienciosamente, e, se tivera dificuldades para fazer caber o nome Ambrosina e o sobrenome Maudribourg na lápide, pudera fazê-lo mudando de linha e apertando um pouco as letras no final. Conseguira esmerar-se ainda numa pequena cruz e, sob ela, na data do falecimento. A data de nascimento era desconhecida.
"A crer em sua aia, Petronilha Damourt, ela era mais velha que eu", lembrou Angélica. "Mas dava a impressão, por suas maneiras timoratas, que fosse muito mais nova. Ali estava mais uma que encontrara o segredo da eterna juventude. Mas por intenção de Mefistófeles!"
Pensando nisso, teria sido tão bela e tão jovem? Ou seria o efeito de um encanto o que emanava de sua pessoa e lançava areia nos olhos dos outros?
Angélica inclinou-se para decifrar a inscrição, corroída por uma teia de aranha de liquens dourados. Ela raspou-a, afastou um pouco plantas e depósitos de poeira incrustados, e seu dedo seguiu o traçado de cada letra:
"Aqui repousa Dame Ambrosina de Maudri-bourg"
Levantou-se e afastou-se alguns passos para olhar de longe o túmulo. Não sentia naquele momento nenhum sobressalto de medo ou de ressentimento, como toda vez que o nome daquela mulher era pronunciado diante dela.
Quem repousava ali? Ela, o corpo, os despojos mortais da Diaba, o espírito súcubo denunciado pelo padre jesuíta Luís Paulo Ma-raicher de Vernon, ou uma pobre moça devotada a sua ama, Henriqueta Maillotin, e que, por ela e seus ocultos cúmplices, fora odiosamente enganada, sacrificada, assassinada?
Angélica, no momento em que traziam da floresta, numa maca, os restos mortais da Duquesa de Maudribourg, não quisera, acometida de uma crise nervosa, aproximar-se do cadáver, do qual feconhecera de longe apenas os farrapos de saia manchados, amarelos e azuis, de suas estranhas vestes.
Mas Marcelina, que tinha bom coração, querendo oferecer àquele corpo mutilado alguns cuidados piedosos, ao menos envolvê-lo numa mortalha antes que fosse enterrado, falara-lhe daquele rosto irreconhecível... "Uma pasta de carne e ossos... como se lhe tivessem batido, esmagado a golpes de malho..." Ninguém notara sua observação, que .ela aliás não comunicara a todos. Preferiam explicar o fato pela intervenção dos lobos e linces.
"E os cabelos, Marcelina?... Como eles eram?... Compridos?... Pretos?..."
Provavelmente empapados de sangue, com tufos arrancados... Todavia, um dia teria de fazer essa pergunta a Marcelina.
Voltou a sentar-se perto do túmulo.
Aquele zumbido dos insetos o lugar se tornava suave, sereno. E ela se surpreendeu, pois não sentia aquele mal-estar de Tidmagouche. Epilóbios malva, hastes de ouro cintilantes, altas como círios, brotando a sua maneira desordenada, cercavam-na, abrigando-a contra o vento, que fazia ondular seus cimos num movimento contínuo de acalanto. Ancólias brancas, pequenos ásteres malva de-miolo amarelo, os róseos tremaçQS dos prados misturavam-se ao mato invasor; uma campainha começava a revestir a cruz com uma inocente liana.
"Ela não está aqui! Se estivesse... as flores não nasceriam", pensou Angélica.
Tornou a levantar-se e afastou-se, depois de ter, -em todo caso, se aventurado a fazer um sinal-da-cruz, e dizendo-se que sua reflexão a propósito das flores era pueril, pois a natureza zomba perfeitamente dessas nuanças.
Supondo que, por sua malícia e seu domínio sobre Nicolau Parys ou outro qualquer desses homens que ela subjugava, a Duquesa de Maudribourg tivesse podido salvar a vida, Angélica não podia imaginá-la reaparecendo tão perigosa quanto antes.
Essas lutas, que são provações, esses combates, não devem poder se renovar nas mesmas condições e com as mesmas personagens, pois tanto umas como outras saem delas mudadas.
No que concernia ao passado, achava que não havia combatido muito mal, mas que naquele momento nem por isso deixaria de se iludir pelas astúcias e os sorrisos sedutores da finória. Depois teve um calafrio e se inclinou com humildade, lembrando-se de certos lampejos nos olhos de Ambrosina, que brilhavam através do âmbar de suas pupilas de mulher sedutora e que não se podiam atribuir a um ser humano. Por aqueles olhos de mulher o Demónio olhava algumas vezes. Diante de um tal encontro com o espírito das trevas, nenhuma criatura podia se vangloriar de não tremer, e mesmo os mais fortes, não sucumbir, paralisados, como lebres diante do olho da serpente.
"Mea culpa/", disse a si mesma. "Se adquirir alguma experiência nesse combate, que ela seja pelo menos a de não me acreditar mais forte do que o ser infernal. E por essa pretensão que eu correria o risco de me deixar mais uma vez enganar."
"Com essas coisas não se brinca", dizia o Marquês de Ville-d'Avray, por mais brincalhão que fosse. "Reconheci a caligrafia de Satã nessa garatuja. Minha cara, não toque nisso!"
Pedira ao jesuíta Jeanrousse para analisar a caligrafia da Sra. de Maudribourg, e ele, ao que parece, persignara-se várias vezes.
O marquês levava muito a sério os perigos ocultos que ela representava, sem por isso renunciar a sua preciosidade mundana e deixar de cobrir Ambrosina de cumprimentos e de bancar o ingénuo, o que era a melhor defesa.
"Oitenta legiões, minha criança querida, não são o mesmo que nada!... Sim, eu fiz alguns estudos de demonologia", lançava ele negligentemente, com o dedo mindinho erguido, enquanto retirava um docinho de seu frasco de confeitos...
O fato de ter passado a seu lado os dias sinistros de Tidmagou-che fizera-a perceber que ele era com efeito muito sábio em todo tipo de ciência.
Enquanto estava enternecida com a lembrança do marquês, eis que ele apareceu. Em carne e osso, andando lentamente de lado, apoiando sua bengala de cabo de marfim com a mesma elegância soberana de um rei, esmagando resolutamente com seus saltos vermelhos os cascalhos da praia no caminho arenoso e fazendo refletir ao sol lambuzado de brumas da costa leste o cetim de seu fraque e as flores de seu colete bordado. ., Ao vê-la ele se deteve. O sorriso promissor, que jamais deixava de aflorar-lhe aos lábios, se expandiu.
- Angélica! - gritou. - Você aqui? E eu que não sabia!
Refeita de seu estupor, ela o examinou, sem poder .acreditar em seus olhos.
- Sr. de Ville-d'Avray! Eu o julgava na França!
— Ora, vim apenas ver Marcelina - disse ele, como se se tratasse de uma visita entre vizinhos.
— Você atravessou o- oceano para visitar Marcelina?!...
— Ela o merece - replicou ele com altivez. - E eu queria trazer-lhe o filho para um abraço.
Como ele estava, aquele "diabo de quatro patas" do Querubim? Muito bem e um perfeito homem de corte, a crer em seu pai.
- E depois, não se esqueça de que ainda sou o governador da Acádia. Acha que eu iria deixar os irmãos Defour e todos os seus bandidos da região encherem suas burras em minha ausência imaginando que nunca mais teriam de me pagar seus dividendos? Não digo pelo Sr. de Peyrac. Em Paris, seu banqueiro sempre me entregou seu dízimo no prazo. No entanto, considerando o estatuto particular dessa parte da costa leste, que sempre foi considerada exterritorial, ele poderia ter encontrado um pretexto para eximir-se disso. O velho Parys nunca se deu muito ao trabalho de me satisfazer. Hoje, está morto... Na França e na miséria!... Foi bem feito para ele! Seu genro veio avisar-me. Isso posto, não estou descontente com minha viagem. Todo mundo vomitou.
— Vai prosseguir para Quebec?
— Quebec! Nem pensar! As coisas lá estão azedando. Entretanto, estou oscilando em meus projetos. Veja: ontem eu estava em Shédiac e ia voltar para Chignecto, onde deixei Querubim, quando soube que o Sr. de Frontenac ia arribar em Tidmagou-che. Preferi vir esperá-lo aqui a ir a seu encontro, no golfo, onde a gente se perde por aquelas ilhas.
— O Sr. de Frontenac está a caminho da costa leste... Ninguém nos disse nada.
— Sou o único a sabê-lo... Tenho meus espiões. Sempre muito dedicados... Observe, se o Sr. de Peyrac estava com você, ele não tardará a ser avisado também. O Sr. de Frontenac vai chegar no Reine Anne, nau capitânia, acompanhado do Llndompta-ble e de um pequeno navio de trezentas toneladas, Le Vaillant. Mas pensei em esperá-lo. Nunca é mau, numa travessia, ter companhia. E depois, em seu caso, estou persuadido de que o Sr. de Frontenac apreciará a presença de um amigo seguro, como eu sou dele.
— Ele pretende partir para a França?! Ville-d'Avray balançou a cabeça, baixando as pálpebras.
— Por ordem do rei.
Após olhar para todos os lados, ele lhe confiou:
— As coisas estão indo muito mal para ele. Seus inimigos, entre os quais os jesuítas, estão prestes a vencer a resistência de sua reputação.
— Isso aconteceu tão subitamente!... Que poderão imputar ao governo do Sr. de Frontenac?...
— A intriga é uma arma que não se preocupa com essas coisas! O que é certo... e sou o único a sabê-lo... pois ele ainda não sabe, nem sequer desconfia... mas eu direi a você... é que falavam, quando parti, em demiti-lo do governo da Nova França... Mas, paul ainda está em tempo, antes que venha a público, avisá-lo, se ele não estiver a par.
- Você não está exagerando?...
Angélica estava consternada. Primeiramente, não se habituava a conversar com pessoas que encaravam as viagens através do Atlântico como uma simples viagem em carruagem de Paris a Tours.
No Canadá, havia duas raças de pessoas bem distintas. Aquelas que não hesitavam em atravessar o oceano para ir discutir seus negócios na metrópole, sem se preocupar com tempestades, piratas e enjoo, e aquelas que preferiam morrer a tornar a pôr os pés no convés de um navio. Sem decidir de modo tão extremo, Angélica estava mais inclinada para os da segunda espécie do que da primeira.
As angústias de sua primeira viagem tinham gravado em seu espírito impressões de distâncias intransponíveis e de separação definitiva.
Ao ouvir falar da partida de Frontenac para a França, não podia conceber que estivesse de volta a Quebec antes do inverno, * como ele pretendia, e considerava essa notícia como uma catástrofe.
— Quem pode querer prejudicar esse excelente governador? Você, que tem seus acessos à corte...
— Oh! Muito poucos! - fezo marquês, com um gesto de desconsolo. - Você sabe que Sua Majestade não gosta de mim. Quando estive em Versalhes, apesar de tantos anos de ausência, o rei, cuja memória é excepcional, franziu o cenho ào me ver. Como homem prudente que sou, tinha de reserva minha estocada secreta, e logo lhe falei de você. Desde então, ele me tolera, mas não faço alarde disso. Todavia, minhas palavras não lhe desagradaram, pois, tendo casualmente aludido a sua ciência e a seu gosto pelas plantas e ervas aromáticas e medicinais, ouvi dizer que ele pediu ao Sr. Le Nôtre que fizesse, em sua intenção, um canteiro de ervas, num canto de sua horta. Ah! Você não foi esquecida, cara Angélica. Vi seus filhos. Falar-lhe-ei a respeito disso. Eles são muito estimados. Vi de relance a Sra. de Castel-Morgeat, muito bela!...
Dirigiu-lhe uma piscada, cujo sentido Angélica, no momento muito preocupada, não pôde captar.
Encontraram-se na praia com o Conde de Peyrac, ao qual indicaram a chegada de navios da Marinha Real procedentes de Que-bec, a bordo dos quais dizia-se encontrar-se o governador, o Sr. de Frontenac,
Ville-d'Avray confirmou. Estava satisfeito com a surpresa que sua aparição causava, e mais ainda por provar que estava a par de tudo antes dos outros, mesmo dos negócios da colónia.
Enquanto ao longe apareciam pirâmides de velas brancas enfunadas e as altas torres douradas dos navios de linha, Joffrey fez ao marquês a mesma pergunta que dirigira Angélica:
— Você imagina quem possa querer predudicar na França o Sr. de Frontenac?
— Não, infelizmente! Mantenho-me meio afastado dos boatos, pois não tenho interesse em ser notado... Uma pessoa de minha confiança no Ministério da Marinha falou-me de uma petição que o antigo proprietário da costa leste, Nicolau Parys, teria entregue ao rei, ao voltar da América, para participar-lhe sua obra do Novo Mundo e reclamar uma gratificação ou uma pensão que ele julgava merecer. Mas ele agora está morto, o que diminui consideravelmente a força de suas reclamações, e sem ter, pelo visto, obtido ganho de causa.
"A demanda seria antes dirigida contra você, Sr. de Peyrac. Defenda-se se o genro dele se julgar com direitos, por causa dessa petição."
CAPITULO XXIV
O navio de Ville-d'Avray - As preocupações do Governador
Frontenac - O genro de Nicolau Parys - A conjuração de Peyrac
Da praia, preta de gente, eles olhavam os navios evoluírem. A enseada de Tidmagouche, habituada a frotas mais modestas, jamais recebera um número tão grande de visitantes ilustres.
Ville-d'Avray indicou com a ponta da bengala a Angélica uma embarcação menor que as que estavam de chegada, mas traba-I lhada com esculturas e douradas como um relicário, que levantara âncoras e evoluía com muita grandiosidade, a fim de deixar aos grandes navios de Sua Majestade a possibilidade de se disporem na baía.
- É meu navio... Não se lembra? Aquele que o Sr. de Peyrac me ofereceu para compensar a perda de meu pobre Asmodée, afundado pelos bandidos.
Na parte da frente, Angélica julgou ter visto como figura de proa uma belíssima sereia de longos cabelos e um busto inspirador.
Mas, quando o barco evoluiu, logo se evidenciaram as decorações do castelo de popa. Cercadas por uma profusão de guirlan-das e de frutos dourados, as vivas cores do quadro tutelar eram encimadas por uma bandeirola com o nome daquele belo pássaro dos mares.
— Aphrodite!...
— Felizmente você prometeu ao Sr. de Saint-Chamond que não daria a sua presa de guerra um nome pagão, como Asmodeu - disse Angélica, rindo.
Depois, riu ainda mais ao descobrir a cena pintada no tombadilho, e que representava Afrodite nascendo da espuma do mar, e, como era de esperar, uma belíssima mulher nua, cujos traços podiam suscitar nos iniciados uma impressão familiar.
— Você conseguiu afinal realizar o mais extravagante de seus caprichos.
— Tive muita dificuldade, mas consegui encontrar o artista. Não é preciso? - perguntou, jubiloso. - Todo mundo a reconhece. O quadro do Sr. Paturel, em seu Coeur-de-Marie, perto deste, não vale nada.
— Você não misturou um pouco demais os géneros e os símbolos?! Lembra-se de que este navio, antes de lhe pertencer, esteve em mãos dos cúmplices da Sra. de Maudribourg, e que fazia parte da frota que ela fretou para vir nos desalojar e trucidar?
— Precisamente!... Haverá uma melhor proteção para exorcizar essa embarcação do que colocá-la sob a égide da deusa da Beleza e da sua, que se confundem numa só e mesma pessoa? Eu a reencontro sempre radiosa e dotada de um encanto que você possui, dir-se-ia, a despeito de si mesma, o que a torna inatacável. Toda vez que se poderia esperar vê-la perder ou então ter deixado evaporar-se ou alterar-se a essência deliciosa, ao contrário, a reencontramos mudada, mas ainda mais sedutora. Como você faz? Penso no rei. Eu lhe direi. Pois ele a espera, mas sinto que ele teme também esse momento em que, após tantos anos de ausência de sua parte, de devaneios para ele, você irá reaparecer. Vou poder, com muito tato, naturalmente, tranqúilizá-lo.
— Não se meta nisso.
— O Angélica, como você é dura comigo!
Depois das manobras de praxe, as chalupas atracaram, e o Governador Frontenac, em trajes simples, entre os novos uniformes da Marinha Real, encaminhou-se a passos largos para o Conde de Peyrac e sua mulher.
- Estou feliz por encontrar a ambos antes de prosseguir minha viagem. É uma loucura, talvez. Mas creio que me aprovarão. Tomei a decisão de ir à França a fim de falar com o rei. Não creio que ele censure minha iniciativa. Trata-se apenas de uma viagem de ida e volta. Mas é indispensável que nos entendamos pessoalmente. Pois há pessoas aqui que me desservem.
Angélica olhou para o lado de Ville-d'Avray. Segundo o que ele lhe dissera, ela julgara compreender que o Sr. de Frontenac era chamado pelo rei numa posição de semidesgraça. O marquês continuava então a ser um mentiroso, e sua propensão a criar, com ar inocente, a discórdia teria aumentado, exercendo-se junto aos poderosos?
Ele respondeu a sua interrogação muda, levantando os olhos para o céu com uma expressão de piedade.
Depois, dirigindo-se a Frontenac, como se falasse com um doente grave, disse-lhe:
— Viajaremos juntos. Vai ser muito agradável.
— Nossa! Você está aqui?! - resmungou Frontenac ao vê-lo. - Escolheu um mau momento para voltar. Quebec está insustentável!
— Não tenho nenhuma intenção de ir a Quebec...
Frontenac estava muito alegre, embora lamentasse, por aquela viagem imprevista, ser privado naquele ano de sua expedição ao fago Ontário, ao Forte Frontenac, a fim de receber suntuosamente os iroqueses e verificar com eles que a machadinha de guerra estava bem enterrada.
Depois de ter pesado os prós e os contras, dizia ele, tomara a decisão de aproveitar o verão e a possibilidade de navegação para ir purgar as querelas desfavoráveis com quem de direito.
Fora sua esposa, que estava muito bem na corte de Versalhes, quem lhe pusera a pulga- atrás .da orelha.
Falando dela, julgou dever dirigir-se mais diretamente a Angélica.
- Apesar de nosso profundo desentendimento conjugal, você sabe que a presença constante na corte de minha mulher Ana de La Grange é muito favorável, pois ela não poupa esforços na defesa dos interesses do Canadá, sobretudo trabalhando para destruir as cabalas que se tramam junto ao rei contra mim. - Depois de uma pausa, ele continuou: - Mas desta vez ela me deu a entender que não consegue descobrir de onde vem o mal, mas que a pressão é muito forte e hábil. A Srta. de Montpensier, sua amiga de sempre, e que como você sabe é uma intrigante muito ativa, faz corpo mole. Tenho de ir. Note que não-sei se essas damas não atribuem poder demais a minha influência. Abusei muito das relações quase que familiares que ligavam meu brasão ao dos Bourbons. Meu pai foi amigo de infância de Sua Majestade, Luís XIII, que me levou à pia batismal. Mantive o hábito de considerar o rei meu primo, e não tenho com ele muita cerimónia. Mas não posso decepcionar a condessa, que sabe que eu tenho grande respeito por suas opiniões. Não tenho nada a perder. Em Que-bec, tudo vai de mal a pior e, com efeito, não é ficando aqui que se poderá esclarecer o imbróglio.
Ele mostrou-lhes uma carta do bispo, cuja cópia conseguira com um de seus espiões, e que o recriminava, acusando-o de ter mandado construir o Forte de Cataracuí para enriquecer-se clandestinamente com as peles.
— Até o bispo me abandona, apesar de eu tê-lo apoiado contra os jesuítas. Carlon também está me puxando o tapete...
— O intendente? Pensávamos que estivesse em desgraça.
— E está, mas nem por isso deixa de me contrariar, para apoiar um parente dele que faz a lei em Montreal e que eu quis prender. Ele julga que, desacreditando-me, ficafá do lado certo. Ele se ilude... Seu substituto já está a caminho... Mas Carlon espera-o sem arredar pé, pois disseram-lhe que se tratava apenas de uma nomeação de favor, para conservar-lhe o posto enquanto ele for à França a fim de prestar contas. Eu, pelo menos, parto sem ter entregue meus poderes a ninguém. Meu secretário despachará os negócios correntes. O novo intendente vai ter problemas com isso. Parece que ele traz ordens.
— Ordens de quem?
— É o que vai ser preciso esclarecer. Nem o Sr. de La Vandrie, que me trouxe os despachos do rei pelos primeiros navios, está a par!... A menos que esteja fingindo.
— O rei não pode destituir as autoridades da colónia sem preliminares.
- Então, ele precisa ser avisado... E é por isso que vou à França. Mas trata-se apenas de uma visita ao rei.
Ele suspirou, preocupado.
- Mais um golpe dos jesuítas - resmungou. - A lembrança do Padre de Maubeuge, contemporizador, e que mantinha aqueles rapinantes dos Grandes Lagos em sua função aparentemente religiosa, dobrou os sinos da moderação.
A fim de conversar com eles mais confidencialmente, ele se aproximou do grupo formado por Joffrey de Peyrac, Angélica e Ville-d'Avray, que rodeavam os oficiais da frota de Peyrac, que ele também conhecia por ter recebido em seus salões do Castelo Saint-Louis: Barssempuy, D'Urville, Le Couénnec, etc.
Deixando os representantes da Marinha Real e seus jovens tenentes e cadetes emplumados sacudir seus lenços para dissipar o incómodo cheiro de salmoura e de óleo de fígado de bacalhau, que corria sob o sol, enquanto os pescadores bretões que trabalhavam nas salgações, curiosos por ver mais de perto aquele belo mundo, acercavam-se em seus molambos impregnados de água do mar e aventais de couro cobertos de escamas de peixe, ele continuou a meia voz:
- Vocês não podem imaginar o espírito que reina em Quebec. Faz lembrar o ano que precedeu o tremor da terra ou, então, antes de sua vinda, quando ali estava aquele D'Orgeval que queria reinar sobre tudo e sobre todos e que o conseguia, apesar de suas maneiras humildes e ponderadas. Ninguém era mais mestre em sua missão, sua cabana, sua palhoça, nem governador em seu palácio. Eu dei um suspiro de alívio ao saber de sua morte e por vê-lo convertido em mártir pela Igreja e em herói da Nova França. Não poderia ter terminado melhor. Digo-lhes isso sem rodeios. Seja como for, morto ou vivo, ele mé causa muitas preocupações. Há quem lembre suas palavras, querendo arrastar todo mundo a uma guerra para poder honrar-lhe a memória. No momento em que eu saía de Quebec, correu um boato de que as canoas em chamas da chasse-galerie haviam passado por cima da cidade. De minha parte, não as vi, mas vocês sabem que, todas as vezes que isso acontece, o povo fica muito impressionado.
Vê nisso o anúncio de calamidades ou uma mensagem do além, lançado por aqueles que estão a bordo e que vêm nos lembrar a nós, vivos, nosso dever. Pois bem, dessa vez, ele estava nela.
— Quem?
— D'Orgeval. Eles o viram e o reconheceram, garantiram-me. Em companhia dos primeiros mártires, jesuítas e. exploradores de bosques. O que posso fazer contra isso? Loucos! Vi-me obrigado a enviar a polícia contra um bando de raivosos que queria ir à ilha de Orléans para prender Guilhermina de Montsarrat-Behars, uma senhoria que dizem ser feiticeira. Preciso fazer o rei compreender os conflitos que tenho de enfrentar deste lado da terra e o mal que os jesuítas causam a seus interesses de monarca do Novo Mundo, incitando assim as consciências.
Joffrey de Peyrac pousou apaziguadoramente a mão no ombro de seu compatriota gascão.
- Meu caro amigo, você tem a sua frente muitos dias de travessia. O sol está a pino. Se continuarmos nesta praia, logo derreteremos como os fígados desses bacalhaus todos. Recomendo-lhe vir refrescar-se a bordo de nosso navio. Convido-o a cear conosco esta noite, e poderemos falar novamente sobre tudo isso e traçar alguns planos.
Sua voz e seu gesto pareceram serenar Frontenac, que reencontrou seu sorriso.
O Conde de Peyrac encaminhou-se para junto do Sr. de La Vandrie e de seu estado-maior e convidrfu-os a tomar um café turco, à sombra de sua modesta residência colonial, toda feita de achas de madeira e com subsolo de pedras para as adegas e o depósito de pólvora.
Essa cortesia dispensava-o de recebê-los mais tarde em companhia de Frontenac. Após tomar uma bebida deliciosa e dar uma volta pela propriedade, numa atmosfera de fornalha, eles se retiraram para seus navios, felizes por reencontrar ali um pouco de brisa marinha, enquanto o Sr. Tissot começava a preparar a grande sala do forte para receber condignamente, à noite, o governador da Nova França.
O genro de Nicolau Parys era um homem pesado e taciturno, de cerca de trinta anos. Nascera no censo de Saint-Pierre do cabo Breton, na época em que não devia haver ali mais que quatro cabanas de colonos e uma capela para os mic-macs da região. Não havia mais que isso presentemente. Nem por isso deixava de ter agilidade de espírito e capacidades comerciais. A invasão das frotas sazonais e dos marinheiros do Velho Mundo se encarregava de desemperrar os pequenos colonos da Acádia. Lentos por natureza, todavia. Mas quando pôde falar e dar sua opinião, ele se defendeu com vigor.
O velho, com efeito, apresentara sua solicitação ao rei, mas isso na época de sua volta das Américas, havia três a quatro anos. Não se podia, pois, acusá-los pela leitura daquelas páginas, que talvez o soberano nem sequer tivesse se dignado a olhar, das mudanças súbitas que acabavam de se manifestar na política colonial desses senhores de Paris. Em seguida, o velho se casara de novo. Depois, morrera numa longínqua província, onde se soube que ele fora se estabelecer, a fim de desfrutar sua esposa e a fortuna que havia obtido com a venda de seus domínios da Acádia e também com uma generosidade bastante ulterior do rei; sua viúva tornara a casar-se com uma alta personalidade da religião, um intendente ou alguém de uma função parecida, de modo que ela parecia ter-se desinteressado da herança americana. |Tudo isso lhe fora anunciado de chofre, assim como à filha do dito Nicolau Parys, por uma carta que chegara naquela primavera, num dos primeiros barcos bretões.
Ele exibiu, retirando-o de uma bolsa de pelúcia com cordões, um volumoso maço de papéis, que devia ter-lhe custado, assim como à mulher, um bocado de tempo e de suor para decifrar, e tê-los feito passar por todas as cores do arco-íris durante sua leitura, pois ali estavam, redigidas pelos notários e funcionários civis, as primeiras e únicas notícias que recebiam do velho desde sua partida, mas cuja conclusão lhes havia feito, a sua mulher e a ele, dar um grande suspiro de alívio, pois que, após ter sabido, de cambulhada, da apresentação de suas memórias em Versalhes, seu casamento, sua morte, eles chegaram à única conclusão capaz de tranquilizá-los: aquela madrasta - viúva intempestiva - não se moveria para vir disputar-lhes sua herança. Seja como for, o velho devia ter deixado alguma coisa. Talvez "por ali", onde, além de sua fortuna trazida da América, ele sempre lhes havia dito que havia bens - e os notários pareciam fazer alusão ao fato de haver alguma coisa para raspar - , em todo caso, ali, na Acádia.
- "Aqui", meu amigo - interrompeu-o Ville-d'Avray - , a coisa está limpa e não levará tempo para se relacionar num pergaminho, com todos os sinetes e parágrafos necessários. Não espere rechear um processo" sem fim para retomar posse dos territórios que seu sogro vendeu ao Sr. de Peyrac. Eu fui testemunha da cessão dos direitos estabelecidos na devida forma diante do Sr. Carlon, o intendente da Nova França. Ele lhe deixou Canso, "praias" para alugar aos pescadores, que lhe entregam uma parte das jazidas de carvão-de-pedra. Quanto ao que possa haver "lá", nada o impede aparentemente de embarcar para lá e ir verificar pessoalmente, na França, o que se passa.
O genro de Nicolau Parys partiu novamente com sua mulher, sem insistir. Depois de refletir longamente e meditar diante de uma garrafa de bom gim inglês que arranjara na Terra Nova, ele disse à esposa que era uma questão de paciência. Era preciso esperar. Saber, em primeiro lugar, de que lado o vento sopraria.
Eis que começavam a murmurar que o Sr. de Frontenac partia em desgraça, tinha sido "chamado de volta". O intendente Carlon iria segui-lo? Nesse caso, de que valeriam os direitos do fidalgo de aventuras sem pavilhões, sem fé nem lei, assim chamado Conde de Peyrac, que recebia o dízimo de todas aquelas indústrias da costa leste? Teriam muitas oportunidades de fazê-lo mudar-se, quer exibindo as leis da herança, quer fazendo-o rejeitar pela Marinha Real como pirata ou aliado dos ingleses.
Seria então sua vez, genro de Nicolau Parys, de ser o rei da costa leste. Quanto a ir desafiar aqueles bandidos dos Países Velhos, na Europa, também nisso era melhor esperar. No ano seguinte, talvez. Por ora, ia apenas escrever àqueles notários, escrivães e advogadozinhos, anunciando sua chegada, a fim de que eles lhe guardassem seus escudos em lugar quente.
Em Tidmagouche, no forte de quatro torrinhas, construção de aparência modesta, uma sala de proporções amplas, apesar de seu teto pouco alto, permitia preparar uma mesa dotada de todos os refinamentos com os quais Joffrey de Peyrac gostava de honrar seus hóspedes. Quando havia oportunidade, podia-se tomar oarte ali em festins dignos ao menos das recepções oficiais de Que-bec com vinhos escolhidos, pratos variados, servidos na baixela de-ouro, e naquela noite puderam-se admirar, em honra ao governador, copos com pés de cristal da Boémia, com reflexos vermelhos, de uma beleza maior do que a dos do próprio rei.
O Sr. Tissot, o despenseiro, oficiava em grande aparato, com seus quatro assistentes, oito garçons para os assados e um bando de ajudantes de cozinha, todos mais bem-vestidos do que um grupo de comediantes representando diante do rei.
O Sr. Frontenac ficou tocado pelo fato de ser recebido tão prin-cipescamente, pois esperava comer frugalmente um pedaço de caça no convés de seu navio ancorado.
Ele chegou à noite, acompanhe i pelo Sr. d'Avrensson, major de Quebec, que voltaria para a pitai depois de sua partida, pelo grupo habitual de seus conselheiros e dirigentes de sua casa, e de algumas personalidades da cidade que pertenciam ao síndico.
Estava muito casmurro, por haver provavelmente refletido anteriormente sobre seu projeto, mas os vinhos acabaram com seu |humor aborrecido. Readquiriu a jovialidade. E, no ardor de um fim de banquete, em que narrativas de batalhas, feitos gloriosos e façanhas, de que tinha boa provisão cada um daqueles senhores, prosseguiam por histórias da corte e façanhas, foi levado a evocar, a citar, o famoso poema que, em seu triunfo libertino e glorioso - pois, na época, doze anos mais velho que Luís XIV, roubar ao rei sua ardente amante só servia para atestar seus grandes talentos de sedução e de sua sempre vigorosa virilidade - lhe custara um exílio, disfarçado em honraria, do outro lado do Atlântico. Mas, como bom gascão que era, não se arrependia de nada, pois divertira-se muito com o escândalo provocado.
Ele cantarolou:
"Estou encantado de que o rei, nosso sire,
Da Montespan esteja apaixonado
Eu, Frontenac, quase morro de rir
Sabendo com que ele está enfeitado!
E direi, sem grandes gestos,
Ficaste apenas com meus restos
Ó rei!
Ficaste apenas com meus restos!!"
Tendo a excelência das bebidas criado um clima de amável conivência, a assistência riu à vontade.
O senhor escarnecido estava longe. O respeito que ele inspirava por sua presença aos mais bajuladores dava lugar, a-uma maligna satisfação por imaginá-lo, suscetível como um simples mortal, zangar-se a ponto de pensar em vingança. Nessa época era Frontenac que se desejava agradar, com um pensamento oculto de reconhecimento por sua audácia que os recompensava dos desdéns e vexações que o rei não se cansava de infligir a sua volta, e que era preciso sofrer erri silêncio e com reverência.
Benfazeja liberação para rancores recalcados, e à qual se abandonavam sem remorsos, sabendo que ela seria breve e passageira.
Depois de dissipados os vapores do álcool, certas pessoas presentes, recolocadas nos caminhos palacianos, não deixariam de reconsiderar a anedota e reavaliar o crédito do tão insolente governador.
Frontenac não esperou ficar sóbrio para compreendê-lo. Teria percebido um aviso amigável nos olhos "ide seu anfitrião?
Reconheceu que aquele não era o momento de evocar tais lembranças, já que estava se lançando às incertezas de uma travessia para falar amigavelmente com o rei.
Angélica sentia-se mal por ele, pois ele parecia confiante. Esperava de sua providência junto ao rei um grande benefício para a colónia. Entretanto, sendo um político perspicaz, devia desconfiar de alguma coisa, e vinha, havia algum tempo, alimentando uma inquietação, pois, pouco a pouco, conforme conversava, ouvindo as diversas opiniões, prestando atenção nas entonações de um e de outro, não pôde ignorar que seu círculo, seus melhores conselheiros, seus amigos mais fiéis e mais francos, tais como o Conde de Peyrac, não partilhavam seu otimismo.
- Pode ser que esteja cometendo um erro, mas eu não poderia renunciar a essa visita à França, pois sinto que é necessária.
— E tem outra escolha? - lançou Ville-d'Avray. - Não foi o rei que o convocou?
— Você está redondamente enganado. Fui eu que tomei a decisão de ir. Pergunte ao Sr. de La Vandrie.
— O Sr. de La Vandrie é um velhaco que o inveja, que o odeia e que lá alinhou três de seus amigos para substituí-lo em seu cargo de governador.
Frontenac sobressaltou-se, engasgou, bebeu um copo de água, que o criado lhe oferecia, depois se acalmou.
— Não acredito numa palavra dessas suas baboseiras. Eu já havia refletido sobre a oportunidade de reencontrar o rei.
— E quando La Vandrie chegou, trazendo no bolso sua ordem para voltar, e muito embaraçado para executar sua missão, vendo-o com tanta disposição para partir, contentou-se em encorajá-lo.
— Aquele patife!... Se você diz a verdade, vou ao encontro dele e far-lhe-ei mostrar-me as cartas, que, por covardia, não me entregou.
— É inútil que lhe demonstre ter adivinhado seu jogo. Assim, fique de sobreaviso!...
» - E se eu for preso no porto e conduzido à Bastilha?
— As coisas não chegaram a tal ponto! - protestou Ville-d'Avray, num tom que insinuava que não estavam muito longe disso.
— Mas seja franco - gritou subitamente Frontenac, precipitando-se para Ville-d'Avray e sacudindo-o pelo jabô. - Diga de uma vez o que sabe.
Ville-dAvray garantiu que não sabia muita coisa. Quando ele partira em maio - e estavam no começo de agosto - eram apenas boatos, e nas baixas esferas dos ministérios. Teria apostado que o rei não estava a par de nada e continuava a encarar com benevolência aquele Frontenac, ao qual devia uma auspiciosa reconciliação com o Sr. e a Sra. de Peyrac.
Mas é preciso dizer que os boatos proliferaram rapidamente e que ele, Ville-d'Avray, havia se atrasado na Acádia no moinho de Marcelina, a Bela. Se, ao voltar para a costa, ele se preocupava com Frontenac é que, primeiro, conhecia as intenções do Sr. de La Vandrie e soubera de sua vinda, segundo, tinha um bom faro, e jamais se-enganara quando o nariz lhe avisava que as coisas iam mal para algum de seus amigos.
Frontenac voltou-se para Joffrey de Peyrac como que para pedir-lhe uma opinião. O conde encorajou-o a manter sua atitude de governador sempre a postos e a ir procurar o rei para discutir com ele negócios de seu cargo.
— O rei aprecia aqueles que fazem seu trabalho conscienciosamente, e você faz parte desse tipo de pessoas. O féi da França jamais se privaria de um servidor que ele considere de valor, simplesmente para agradar a intrigantes.
— Isso é verdade - reconheceu Frontenac. - Mas existe aquele soneto - disse, lastimoso. - Eu zombei dele, e ele jamais me perdoará por isso.
Depois encolerizou-se pensando em todas as falsas acusações e tolices que seus inimigos tinha acumulado contra ele, e que, por mais mesquinhas que fossem, podiam abalar seu crédito junto a um monarca pouco inclinado à indulgência para com ele.
- Sabia que, para me criar problemas, chegaram até a me censurar por ter escolhido como emblema real e nacional na Nova França a bandeira branca com flores-de-lis dos Bourbons? Eu sei perfeitamente que ela data apenas de Henrique IV e que os franceses tiveram dificuldade em admiti-la, porque a bandeira branca era a dos huguenotes e lembra o penacho protestante branco de Henrique de Navarra, quando ele guerreava contra os católicos e matava Paris de fome, antes de se tornar Henrique IV, o primeiro dos Bourbons. - Depois de uma pausa para respirar, continuou: - Tampouco ignoro que os franceses gostam ainda da auriflama ou bandeira vermelha de Saint-Denis, e mesmo da mais antiga, a azul da capa-magna de Saint-Martin. De minha parte, confesso minha preferência pela bandeira azul-celeste da cavalaria, à qual nosso soberano Luís XIV acrescentou o sol dourado. Mas quando cheguei ao Canadá, tive de aceder a outras considerações, pois me encontrava-diante de um dilema. Paraos iroqueses, o vermelho representa a guerra e, mesmo, a morte. Enquanto o branco significa: paz, e o dourado: riqueza. Ocorria, pois, que a bandeira branca com flor-de-lis dourada, raramente utilizada na França, representava aqui, simbolicamente, muito mais. Eis por que eu a escolhi.
— E fez muito bem! O rei não pode criticá-lo por ter, para representá-lo, honrado a insígnia de seus ancestrais genealógicos, os Bourbons!
— Como se pode saber... - murmurou Frontenac, com ar desanimado. - Meu gesto pode ter-lhe sido apresentado sob outra perspectiva... As pessoas são tão maldosas... e tão tolas! Tudo é motivo para me arruinar. Chegaram até a dizer que eu encorajei os iroqueses a nos guerrearem porque eu lhes emprestara um ar-meiro para consertar suas armas. E no entanto eu possuo - disse Frontenac, com uma impetuosidade comovente - uma boa quantidade de colares de wampum de um valor inestimável que me foram entregues, em várias oportunidades, pelos chefes das Cinco Nações. Eu poderia testemunhá-lo ao rei.
Os convivas trocaram um olhar de comiseração, e Ville-d'Avray fez um muxoxo.
— Duvido muito que o rei e o Sr. Colbert compreendam a importância desses troféus desconhecidos.
— No entanto, eles representam a paz na América do Norte. A paz com os iroqueses. A rota aberta do Mississipi...
— Seja como for, essas são sutilezas que é necessário explicar de viva voz a Sua Majestade e ao Sr. Colbert - disse o Sr. d'Avrensson.
— E por alguém cujas palavras nem um nem outro estaria propenso a pôr sob suspeita. Em todo caso, eu, apesar da afeição que tenho por você, não vou me encarregar disso. Estou queimado, desde o caso dos postiços chineses de Monsieur.
— Mas eu me defenderei!
Seria pois preciso demolir um a um seus ataques.
O que mortificava Frontenac era que pudessem acusá-lo por se bater pelo bom andamento de seu governo a fim de fazer fortuna.
No caso do Canadá, ele havia feito sua caixinha particular.
- Se procuram prejudicar-me a esse ponto, não farei cerimônias em denunciar o comércio dos jesuítas...Depois, compreendendo que esses mexericos indisporiam o rei, tanto mais que na corte os jesuítas estavam sempre por perto e trabalhavam ativamente às ocultas, ele se calou.
- Não! Não! - gritou de repente com um gesto que quase varreu da mesa seu cálice, que um criado segurou no momento exato. - Não, não posso empreender uma missão tão importante com tão poucos trunfos, tão poucas ajudas eficazes, diligentes, sinceras. Trunfos?!"Que estou dizendo? Como se eu tivesse algum! Vou chegar carregado de calúnias como flechas. Com o terreno preparado por facciosos que não fazem a-mínima ideia sobre nossos trabalhos e sobre os perigos que enfrentamos nestes territórios selvagens; eles só pensam em me prejudicar. E se, além disso, cada vez que eu abrir a boca para pleitear pela causa do Canadá diante do rei, planar entre ele e mim a lembrança de meus erros, que esperança eu posso ter de me fazer ouvir? Que resultado esperar? E todavia - continuou tristemente - só tenho em vista a salvação e a grandeza da Nova França, sobre a qual flâmula sua bandeira com flores-de-lis. .
Apoiando o cotovelo à mesa, ele deixou cair a fronte entre as mãos e ficou pensativo. "E preciso, é preciso", ouviram-no repetir várias vezes. "Não há outra solução. Senão esta viagem será um fracasso, uma mascarada!"
Ele levantou a cabeça, com ar decidido e os olhos brilhando de desespero; a incerteza desaparecera dè sua fisionomia.
- Que importa que isso pareça uma manobra ousada, uma astúcia? Já estou acostumado a isso, e o rei não se opõe a ser pego de surpresa, uma vez que seja pela vitória de suas ambições e com a intenção de servi-lo. Ora, estou convencido: apenas um homem a meu lado, falando por mim, pode dissuadi-lo de dar demasiada importância a minha pessoa e a minhas travessuras de antanho, um só homem pode deter-lhe a atenção e fazê-lo esquecer, pode fazer-se ouvir por ele, porque é o único capaz, por uma sequência de fatos, claros e sem paixão, de despertar o interesse de Sua Majestade por essas questões coloniais que o aborrecem e até o exasperam, tanto mais que ninguém em seu círculo pode ou quer jamais desyendar-lhe o mistério; um só homem, estou dizendo. Você, Sr. de Peyrac.
De pé, ele permaneceu um longo momento fixando um ponto a sua frente, como se seu olhar se perdesse na reverberação vermelha do vinho através do cristal. Depois, erguendo o copo e voltando-se para seu anfitrião: - Sr. de Peyrac de Morens d'Irristru, irmão de meu país - disse ele -, em nome da amizade que nos une, dos serviços que nos prestamos mutuamente, em nome dos vastos e belos proje-tos que fizemos para o benefício e a paz dos povos dessas regiões às quais estamos afeiçoados, eu lhe peço encarecidamente, eu lhe peço humildemente, eu lhe conjuro: acompanhe-me!
CAPITULO XXV
Uma ruptura inevitável
— Irmão de meu país, eu lhe conjuro, acompanhe-me à França para pleitear minha causa e a da Nova França - exclamou Frontenac dirigindo-se ao Conde de Peyrac.
— Isso nunca! - respondera como um eco uma voz de mulher, a de Angélica, assim que compreendeu o sentido das palavras que acabavam de ser pronunciadas.
— Isso nunca! - repetiu, num tom categórico.
E ao mesmo tempo soube que Frontenac tinha razão, e que aquilo seria feito porque... era... a melhor solução!
Molines, numa de suas últimas cartas, fazia alusão aos benefícios de uma "visita", que atenderia à longa paciência do rei. Mesmo que fosse apenas no terreno político!
- Não! Não! Isso jamais! Não o deixarei partir!
A Europa era longe demais! O oceano, grande demais. Quando se passava de um continente a outro, era para sempre.
Ela cessara de olhar na direção do leste. Exceto a partir do momento em que seus filhos se encontravam lá. Mas seu filhos voltariam. Hoje tratava-se de sua vida. E sua vida era Joffrey. Não podia viver sem ele. Havia jurado que nunca mais se separariam. Não seriam separados por uma situação em que a distância, os perigos, a ruptura consumada e irreparável, criavam o risco de que se tornasse definitiva.
E o oceano era isso!
Joffrey, pisando em solo francês, era isso!...
Joffrey de Peyrac diante do rei! Era sua perda.
Não, jamais, jamais o deixaria partir.
Ela repetiu: - Isso nunca!
E olhava alternadamente com ar de desafio àqueles homens que, cada um a sua maneira, acolhiam, ratificavam e julgavam sua rea-ção impulsiva, sua emoção, sua revolta. Uns com espanto, outros ofuscados, contrariados, divertidos ou intrigados. Frontenac não compreendia. Estava tão contente pelo que acabara de conceber... Jamais teria pensado que a oposição pudesse vir da Sra. de Peyrac. Ville-d'Avray, este, compreendia, mas isso não o surpreendia. Ele sabia o que era amar e de que amor vivia aquele coração de mulher. Ele pensou que havia perspectivas a serem debatidas e que já se podia começar a fazer as apostas.
Quanto a Joffrey... Não, Angélica não queria ler na fisionomia de Joffrey aquilo que estava certa de ter descoberto: que ele aceitava a proposta de Frontenac... Ele ia traí-la, abandoná-la!
Precipitou-se para fora e afastou-se, depois de ter atravessado o lugarejo por um caminho que ladeava as falésias, quase correndo, como se correr lhe permitisse fugir à prova que ia se instalar entre seus ombros, o dilema que ia torturá-la, que lhe seria preciso discutir, debater não só consigo mesma mas com os outros, para, no fim, inclinar-se, com o coração partido, e viver aquela coisa inimaginável, intolerável, que havia jurado que nunca mais admitiria, aceitaria, deixaria a vida impor-lhes: a separação.
Depois de ter andado até o fim de uma trilha que dava direta-mente numa praia, ela voltou e derreóu-se, com o corpo e o espírito exaustos, junto a uma cruz bretã, ali erguida havia mais de um século pelos aventureiros pescadores de bacalhau. Depois tornou a levantar-se e afastou-se rapidamente, lembrando-se de que fora naquele lugar que a pobre Maria, a Meiga, fora lançada nos rochedos pelo abjeto secretário de Ambrosina, Armando Dacaux. Não conseguia concatenar duas ideias, e só sabia repetir que odiava aquela horrível costa leste, que só lhe trazia infelicidades.
Acabou sentando-se na beira do caminho, e tanto pior se fora naquele mesmo lugar que havia soluçado nos ombros de Piksarett, o abenaki, quando imaginava que Joffrey a enganava com sua pérfida rival: a Diaba.
Tudo isso perfejicia ao passado. Uma batalha travada e ganha, e da qual saíra modificada e mais forte.
E eis que se reencontrava fraca diante de um nove obstáculo.
"A Fuga! A Derrota! Eis o que significa o Louco que o mastim morde no calcanhar!! Não! Não! Isso, não! Chega de fugas ou derrotas para nós, pelo menos no sentido de desastres que não se podem assumir e que nos conduzem à beira da morte física ou moral.
"Podemos assumir tudo agora. E então?... O que diziam as lâminas dos tarôs?... 'Uma viagem não desejada que terá de realizar', açulados pela mordida do mastim... Uma obrigação à qual é impossível furtar-se. O Louco vestido de azul-celeste - espírito-e seu cinto dourado - místico... Uma viagem? - que seja. Se isso deve inscrever-se em nosso destino de salvaguarda e de vitória. Mas não a separação... Não! Outra vez, não! Outra vez, não!... O suplício, essa angústia, essa fatalidade... A separação, não. Eu me oporei a ela com todas as minhas forças!..."
A separação era o mar das Trevas. Era ela na margem de cá e ele na margem de lá.
Tinham chegado juntos ao Novo Mundo e travado juntos lado a lado uma batalha comum para sua vitória comum.
As separações episódicas, que lhes tinham" sido impostas, eon-; tribuíam para consolidar essa vitória, cujo símbolo era para eles a possibilidade de tornar a viver em paz, um ao lado do outro, como lhes prometera o alvorecer de seu amor, quando depararam com a certeza da felicidade, em Toulouse.
Haviam falado muitas vezes daquele primeiro momento decisivo de sua paixão.
Era como um raio sobre suas cabeças!
Não tinham merecido que pelo menos, na terra nova, o que lhes fora devolvido não lhes fosse novamente tomado?
O que acontecia era uma fenda, um precipício cavado.
Não! Não podia deixar que o erro fosse novamente cometido... Deixá-lo distanciar-se.
Quando voltou-se para o Forte de Tidmagouche, Joffrey de Peyrac esperava-a em seu apartamento. Provavelmente, pela janela, vira-a chegar. Estava de braços cruzados. Apoiava-se ao peitoril da janela, naquela posição desenvolta que ele costumava adotar para repousar a perna lesada, com o pensamento voltado para a reflexão, com aquele olhar que via todas as coisas e um pequeno sorriso no canto dos lábios-para não inquietar... e às vezes, para inquietar.
"Oh! Você é inconfundível!", pensou ela, "uma forma de homem isolada neste vasto mundo. Com seus pensamentos, seus sonhos, sua ciência, seu vigor e suas fraquezas. E eu, se você desaparecesse, cairia no vazio!"
— Se você desaparecesse, eu cairia no vazio - disse, em voz alta.
— Que loucura você pronunciar tais palavras - respondeu ele -, você, minha querida, que gosta de corcovear solitariamente montada na caprichosa égua de sua vida?
- Não existe mais nada - respondia ela -, você tomou tudo.
Sua própria existência estava varrida. Sob sua proteção, sob sua égide, sim, ela podia sonhar com liberdade, seguir suas pistas secretas, seus desígnios pessoais. Mas quando imaginava seu afastamento, ela se tornava apenas um coração prisioneiro, era tomada de novo pelas obsessões da vida das mulheres, de todas as mulheres que correm atrás de um homem que vai embora, que se agarram a suas roupas, quebram as unhas em sua couraça, beijam os pés do cavalheiro montado já em sua sala, se arrojam à poeira do chão enquanto ele se afasta.
- As mulheres têm muita sorte de poder se entregar a tais efusões - disse ele, beijando-lhe as pálpebras e as faces molhadas de lágrimas. - Elas têm muita sorte de que lhes concedam o direito aos gritos às lágrimas, às mãos postas, aos descabelamentos, à fronte na poeira, manifestações que não deixam de trazer alívio a uma dor excessiva. O que me será permitido, a mim, um homem, quando você me deixar, você, que é o refúgio de meu coração, a consolação de minhas amarguras e a permanente promessa das mais amorosas exaltações que foi dado a um homem conhecer? O que direi, pobre homem que sou, entregue ao tédio de urria vida que não terá outros sóis senão a esperança de revê-la o mais breve possível, submetido aos áridos exercícios de encontros diplomáticos, sobre os quais sequer terei o conforto de conversar com você em seguida? Eu, que devo me sacrificar à comédia de um mundo inepto e fútil, sem ter a satisfação de sacudir sua soberba embotada apresentando a seus olhos a mais espantosa e arrebatadora das criaturas do universo, não tenho para me distrair na noite de longas e astutas manobras políticas senão a. certeza de ruminar que, não havendo nenhuma mulher que possa me satisfazer e me distrair como aquela que me falta, o recurso é sonhar com ela na solidão, esperando que, de seu lado... Com a testa mergulhada em seu ombro, ela consentiu em sorrir e depois rir. Ergueu a cabeça.
- Não acredito numa só palavra de seus protestos e você não me inspira compaixão pela sua sorte. Só tenho dúvidas a respeito deles, sobretudo no que se refere ao último.
Ela colocou-lhe os dedos sobre os lábios, impedindo-o de protestar.
- Nada de promessas... Eu lhe disse, não creio em nada e não quero acreditar em nada... Não quero sequer pensar, encarar, imaginar, que você vai viver longe de mim... Sim, que importa? Tudo que me é indiferente! Que importa quem seja você longe de mim? Você existe, e longe de mim. Como eu poderia suportar tal coisa?
E soluçou de novo.
- Eu vou morrer!...
Ela rolava a cabeça contra o peito dele, aprisionava-o em seus braços como se quisesse segurar até a saciedade as reservas de seu calor, de seu odor, de tudo o que amava nele. Seus braços enlaçavam-na, essa vibração da vida que percorria seu grande corpo, e que passava em cada um de seus gestos, de suas expressões, e que lhe conferia uma voluptuosidade de cada instante, a saborear em segredo, e da qual ela vivia.
Ele era tão cheio de vida que os outros, todos os outros, ao lado dele, iriam parecer-lhe não só insípidos, mas mortais, sim, mortalmente entediantes, insuportáveis.
— Então, realmente - disse ele -, não quer se persuadir de que eu serei muito infeliz sem você?!...
— Não. Não tenho confiança alguma. Conheço-o muito bem! Você tem tanto prazer no governo dos homens, em domar as cabalas e os elementos, em destruir os obstáculos, em construir a partir de nada, em reedificar o que foi destruído... Você é um homem. O próprio rei é sua meta. Você não duvida de que irá enredá-lo, pois lhe foram dados a oportunidade e o momento. Você terá tanta coisa a fazer, façanhas tão brilhantes a realizar que não verá o tempo passar!
— E você não fará o mesmo, minha cara? - disse ele, segurando-lhe o rosto entre as mãos vigorosas e quentes, a fim de obrigá-la a olhá-lo nos olhos. - Eu também a conheço bem. E, graças a Deus, o amor pela vida que em você existe a ajudará em todas as coisas, durante minha ausência, e eu sei que a reencontrarei, depois que triunfar sobre seus inimigos, sobre os meus, e sempre bela, e mais bela ainda!
— Que seja, terei de me resignar a minha parte sorte de esposa. É mais aflitiva que a sua, pois são os homens que se vão.
— As mulheres também, às vezes. Você subestima a importância que adquiriu em minha vida. Sou eu que vou sofrer imaginando-a distanciar-se, voltando para Gouldsboro, para uma vida à qual durante longos meses serei estranho, sem ter o direito de clamar meu sofrimento ou pelo menos a inquietação e, com sua licença, o ciúme, que me apunhalam por sabê-la novamente sozinha, senhora de sua vida, sem contar que a situação que deixo para trás, na América, pode se agravar. Será preciso esquecer que você pode se encontrar em perigo.
Essas palavras, em que ela sentia vibrar uma sincera ansiedade, ajudaram-na a se recuperar.
— Quanto a mim, eu garanto. Não receio por mim, você pode partir em paz.
— Então, pague-me com a mesma moeda. Creia'em mim quando lhe digo que por amor a você saberei me preservar e enfrentar todas as dificuldades. Sua aflição neste momento não tem sentido. De que se trata, se pensarmos com sangue-frio? De um inverno que teremos de passar longe um do outro, mas não um sem o outro. A missão de que o Sr. de Frontenac quer me incumbir ao lado dele é de grande importância. Você o sabe tanto quanto eu. Desta vez creio que nossa intervenção junto ao rei é necessária. Tudo pode ser salvo ou perdido por uma palavra não pronunciada, um relato que decidirá sobre guerras inúteis, banimentos nefastos. Durante esse combate, você estará junto de mim, como eu estarei junto de você...
Assim, de tanto mover com prudência, num tabuleiro desordenado, peões que pareciam todos razoáveis e anódinos, numa partida que não podiam recusar, ele conseguiu atenuar sua primeira e cega reação de recusa.
Em seus braços, prendendo-o contra si, ela consentia em admitir que - sim - uma instância mais elevada,- e 'que colocava sua sorte e seu futuro, o das crianças, de suas possessões, de seus amigos, de seus aliados, em jogo, os obrigava a esse sacrifício. Que, a um exame mais atento - sim -, comparado às vantagens que adviriam desse sacrifício, isso representava tão-só uma provação mínima. Tudo sairia bem, não cessava ele de repetir. Aqueles meses de separação passariam depressa.
De fato, ela acreditava nele. Sabia que tudo daria certo. Via-o atravessando o mar sem incidentes. Alguma -vez se deixara ele capturar? Alguma vez naufragara? Via-o desembarcando num porto da França, onde seus "correspondentes" estariam a seu lado para descerrar em torno dele aquela cortina de proteções e de cumplicidades que ele havia tecido para ele e para os seus em todos os cantos do mundo. Via-o diante do rei. E nada mais simples e natural que isso! Um homem ilustre do reino, de uma antiga família da Aquitânia, retomava seu lugar entre seus pares.
"Isso teria de acontecer um dia", teria dito Molines.
O rei! Joffrey de Peyrac! Dois homens que teriam tanto menos dificuldades em se reconhecer e se entender - longe dos rancores do passado e das reticências sentimentais - pelo fato de ser o pretexto daquela volta e daquela reunião imprevista aquilo que mais importava àqueles homens: a grandeza do rei da França em suas possessões da América. Luís XIV gostava de verificar tudo por si mesmo. E Angélica tinha confiança em Joffrey. Ele era tão forte, tão hábil....Tinha opiniões tão claras e tão completas sobre tudo e todos...
CAPÍTULO XXVI
A dor da separação - A última noite de amor - O adeus - O consolo de Abigail
No dia seguinte, saindo de casa, ela encontrou o Marquês de Ville-d'Avray, que a esperava e lhe tomou o braço automaticamente. Caminhando pela trilha arenosa, pousando o pé e a ponta de sua bengala com sua graça habitual, ele começou a conversar com ela a respeito dos jardins do rei.
— Não estou falando dos jardins e parques para recreação, mas dos pomares. Seu esplendor, nascido da beleza de todos os frutos, legumes e flores, mesclados e dispostos com um gosto e uma ciência perfeita, encantam a vista como se passeássemos num quadro de um pintor. Quanto ao aroma, o perfume das peras, junto ao muro dos cem degraus, contra o qual o rei mandou plantar cinquenta pereiras em espaldeiràs, esse perfume que se exala na tepidez de um fim de verão faria desfalecer, numa volúpia tão deliciosa quanto inocente, uma pessoa de sua natureza.
— Por que você me.fala desses refinamentos, quando nos encontramos bem longe e precisamente cercados por uma natureza selvagem e ingrata como só ela, para falar apenas do odor com que nos cercam essas sempiternas secagens de bacalhau? E em Wapassu não consegui nem mesmo fazer florescer uma macieira normanda...
Por isso mesmo, se eu evoco em contraste o domínio do jardineiro do rei, é por saber que seu amor pela vida a torna sensível à evocação de tais coisas e pode incitá-la a querer revê-las.
— Estêvão, você sabe que não posso acompanhar o Sr. de Pey-rac, sabe muito bem. Tudo me prende à América. Meu lugar é junto a meus filhos, aos nossos amigos e companheiros e associados dedicados, -e, acrescento, sem falar da obrigação que tenho de permanecer presente na ausência de meu marido, não estou certa de .que algum dia decida voltar à Europa.
— Você voltará! Voltará! Lembre-seL. Quando eu a convidava a ir a Quebec, você dizia: "É impossível para mim pôr os pés em território francês sem me encontrar em perigo-". E depois foi visitar-me e passamos uma temporada de inverno tão agradável em nossa pequena capital, que sua estada serviu para estreitar ainda mais nossos laços de amizade.
— Resultados felizes que parecem bem comprometidos de repente!
— Ora, que está dizendo? Como você é pessimista, cara Angélica! Não há nada! É apenas uma intriga de alguns ciumentos e impertinentes que lançou subitamente Frontenac fora dos eixos e o impeliu a ir se explicar em Paris. No fundo, esse boato de que o rei o Convocou, não sei se é verdadeiro! Frontenac tem razão. Ele conseguirá varrer sua casa. Isso não passa de uma intriga dos "coloniais", de comerciantes de peles, de jesuítas intolerantes, e sobre a qual, aposto, o próprio rei não ouviu falar.
Ele parecia muito seguro.
Ela se perguntava se ele lhe escondia alguma coisa ou se era ela que, enfraquecida pelo apego que tinha por Joffrey, o homem de sua vida, enfraquecida pelo hábito de felicidade, atribuía à prova que a esperava proporções dramáticas, buscando-lhe, sem razões, pretextos sinistros.
Uma vez admitido o fato, e ainda que continuasse dolorida, aturdida, como se tivesse levado uma surra, e apesar de tudo tomada por uma reticência, para não dizer medo, que, em alguns momentos, lhe dava vontade de gritar, era preciso retomar as aparências cotidianas.
De imediato, essa decisão acarretaria outra. O objetivo de seu deslocamento atual era Honorina, que deviam visitar. Ela pensou continuar em direção a Quebec e Montreal, subir novamente o grande Saint-Laurent... Mas Joffrey se opôs a isso, e sua reação provou a Angélica que sua desconfiança estava desperta e que, sem a presença do Sr. de Frontenac, ele não queria que ela ficasse na Nova França.
"E Honorina?!..."
As decepções se acumulavam. E numa súbita avalancha de pequenos fatos revelados, a alegre despreocupação de seu cruzeiro para ir visitar a filha era substituída por uma brusca incerteza.
Depois de dois dias de debates e de oscilações diversas, foi decidido que o navio de Job Simon, o Saint-Corentin, levando a bordo o Tenente de Barssempuy para dirigir a expedição, transportaria até Quebec e Montreal os viajantes aos quais já haviam prometido passagem. O Sr. de Vauvenart e sua amiga La Den-telliere, Ademar, Iolanda e seus filhos, que haviam resolvido apresentar aos parentes acadianos de Quebec, Yann Le Couénnec, que desembarcaria para encontrar a Mourisca, etc.
Barssempuy e o oratoriano Sr. Quentin continuariam até Montreal como mensageiros do Sr. e da Sra. de Peyrac. Eles veriam Honorina, conversariam com Madre Bourgeoys, visitariam o Sr. do Lobo e sua família, trariam notícias e correspondência, tornariam a pegar em Quebec o casal Ademar-Iolanda e Yann, assim como, talvez, sua prometida.
Angélica escreveu cartas para todas as direções. O pensamento de que Honorina receberia visitas de Gouldsboro e de Wa-passu e de que trariam notícias da menina depois de visitá-la não bastava para acalmar seus desgostos.
- Irei até Ville-Marie para vê-la pessoalmente - prometeu-lhe a boa Iolanda. - Poderei dar-lhe mais detalhes sobre ela. Verme a consolará um pouco de não vê-la, senhora, este ano.
Teria Honorina necessidade de ser consolada?, perguntou-se Angélica. Ela sentia a menina tão distante, tendo provavelmente se tornado tão diferente! Devia ter-se acostumado a sua vida de menina, partilhando jogos, estudos e rezas com crianças de sua idade, sob a doce férula das encantadoras irmãs da Congregação de Nossa Senhora. Era para Angélica que a separação era mais dura. A frustração que sentia a propósito de sua filha, que se rejubilara tanto por rever em breve, somou-se à opressão que lhe causava a aproximação das partidas.
Depois do Saint-Corentin, se fariam ao mar o Reine-Anne, com Frontenac e as pessoas de sua comitiva, La Gloire du Soleil e o Mont-Désert, comandado pelo Conde de Peyrac.
No momento da partida do Saint-Corentin para Gaspé, Angélica atraiu Iolandá para um canto.
— Traga-a de volta - disse-lhe num tom insistente. - Traga-a, se seu coração lhe disser que o faça. Traga-a. Eu faço alusão a isso em minha carta a Madre Bourgeoys. Vai provavelmente achar-me uma mãe fraca e louca, mas, na ausência de fríeu marido, estou aterrorizada por senti-la tão longe por um ano mais.
— E se a menina me parecer feliz e não tiver vontade de voltar? - indagou Iolanda, que conhecia a adolescente. - Lembre-se, senhora, de que foi ela quem quis ir para o convento, para a casa de Madre Bourgeoys.
Angélica ainda hesitou.
- Se ela estiver bem e feliz, então deixe-a. Nós nos veremos no próximo verão... Mas... Não se fie apenas no que ela lhe disser. Olhe em torno de si. Verifique se ela não corre nenhum risco. Se lhe parecer que podemos perder nosso crédito na Nova França e ter dificuldades para voltar depois, traga-a. Confio em você. Estou escrevendo até a meu irmão. Vou falar igualmente com o Sr. de Barssempuy.
E, quanto mais o dia e a hora se aproximavam, tanto mais compreendia todos os sofrimentos e a coragem daquelas mulheres de outrora, que olhavam seus cavaleiros partir para as Cruzadas durante anos a fio, quando não para sempre.
"Não era a mesma coisa. As pessoas daquela época não se amavam como nós. Seria preciso um coração de pedra para suportar essas separações, um espírito vazio e obtuso, preocupado apenas com a materialidade cotidiana, com uma existência embrutecida naqueles rudes castelos-fortalezas perdidos na Idade Média, ou com a necessidade de distribuir golpes de espada pelo simples gosto pelo sangue e pela força bruta."
Depois ela se arrependia e pedia perdão a seus ancestrais, reconhecendo que eles partiam para resgatar o túmulo de Cristo, evocava as canções de gesta que preenchiam as belas horas das vigílias de Wapassu, Aude expirando de dor nos braços do Imperador Carlos Magno ao receber a notícia da morte de Rolando, o Valente.
O amor, o amor-paixão, o amor místico, atravessava a história dos homens. Um canto eterno, cujas inflexões dilacerantes e patéticas ela ouvia, o do adeus dás mulheres aos homens que se vão, que partem para a guerra, da mulher que vê distanciar-se o amado, esse bravo, esse valente encarregado de sustentar o mundo, de defender o fraco e o oprimido, de reclamar justiça pela força de seu braço musculoso, brandindo a espada pesada, a pesada lança, o pesado machado, o pesado mosquete, defendendo a mulher e a criança, com seus meios de homem, amiúde irrisórios, amiúde brutais e sangrentos, mas com aquela valentia que é seu apanágio, o resgate do caos, no qual ele se debate, que só pode construir-se na luta.
Joffrey inverteu a imagem.
- Você partirá antes de nós, minha querida. Assim, não terá de sofrer vendo nossas velas desaparecerem no horizonte.
Mas ela não quis. Era uma mulher como as outras. E as mulheres ficam no cais.
Ele aproximou o rosto do seu e repetiu várias vezes, com os c^hos fechados: "Minha querida! Minha querida!"
O vento os arrancaria um do outro irresistivelmente e, a seguir, separados e com o coração penando, pouco acostumados a essa ruptura, destituídos de uma parte de si mesmos, partiriam cada um para uma determinada aventura, uma tarefa de fato que somente eles podiam realizar e que deveriam cumprir sozinhos; e, se para Joffrey suas linhas já estavam bem traçadas e se podia medir a responsabilidade e preparar-lhe as etapas, ficava surpreso por pressentir que era"à Angélica que estava destinado o fardo mais pesado, o combate mais árduo. Então ele se sacudia como um cavalo que desperta e, do mesmo modo como havia aplainado, dissipado sua inquietude desmedida por ele acalmando-a, ele se esforçava por dissipar a sua, para ela sem razão, não fosse o fato de que, também para ele, a prova da ausência que os separara por longos anos havia deixado em seu ser sequelas de angústia que o condenavam a jamais estar seguro sobre seu destino, exceto se fosse ele quem ficasse a seu lado para cuidar dela.
Angélica viu-o por instantes andar de lá para cá com preocupação. Não era no que ele projetava expor ao rei que ele pensava, o que seria bem de seu feitio, pois, assim que era investido de uma tarefa ou de um objetivo, começava a abordá-lo sem delongas. Ele a surpreendeu revelando-lhe que não parava de se perguntar qual residência era preferível para ela em sua ausência.
Wapassu não era demasiado longe, demasiado afastado da costa? Ele lhe sugeria que passasse o inverno com as crianças em Gouldsboro. De repente, sentia-se como os ingleses. Para ela, ele queria o mar livre, pelo qual se pode fugir; o mar lhe parecia um cúmplice benevolente ao qual confiar suas vidas preciosas.
— Na oportunidade, se alguma coisa acontecer, você poderia ir para Salem ou para Nova York, para a casa do Sr. Molines...
— O que você receia?
— Nada, na verdade... Mas, em Gouldsboro, você ficaria menos sozinha, mais cercada de pessoas.
— Gosto de Wapassu. Lá eu ficarei bem cercada de pessoas e em minha casa. Além disso, acho minha presença necessária. É um posto avançado, e aqueles que o mantêm têm necessidade de que um de nós esteja presente no inverno, não acha?
Evidentemente um deles devia permanecer em terras da América para cuidar da bandeira dos franceses de Gouldsboro e de Wapassu.
Havia enfim o fato de que a estratégia espontaneamente posta em prática convinha a uma evolução comedida de suas relações com o rei. Começariam por um negócio entre homens. A mulher, pomo da discórcia, apareceria mais tarde, em sua hora e num clima sereno.
Sob a violência de seu pesar, todas as defesas se aboliam, e jamais o Conde de Peyrac percebera com tanta verdade a intensidade de seu amor por ela. Jamais estiveram tão próximos um do outro, e isso mesclaria aos dias sombrios que precediam a partida lembranças de adoração, de abandono e de ternura jamais igualados, porque jamais ousados, talvez, com que nutria os devaneios de sua ausência. Era no momento em que não havia mais nenhuma barreira entre eles que lhes era preciso separar-se. Pelo menos, era esse o sentimento deles: a injustiça cruel da separação os surpreendia em plena felicidade, num maravilhoso ápice de seu entendimento mútuo. Pois o conhecimento mútuo é como a perfeição do prazer amoroso. Não se pode pretender atingir-lhe os limites.
O que eles viveram abria um novo capítulo da história de sua vida comum, quando eles julgavam fechar com sofrimento uma página luminosa e sem nuvens de seu amor.
"Nem bem nos encontramos, eis-nos separados", queixava-se Angélica, o que era meio injusto, pois um longo período de vários anos lhes fora concedido para viverem um ao lado do outro, mas ela traduzia seu sentimento de não ter podido ainda saborear suficientemente o milagre de seu reencontro, seu pesar de ter levado tanto tempo a curar-se de sua desconfiança em relação a ele no início e não ter desfrutado plenamente cada dia, cada hora. Todavia, isso também não era assim. Cada hora, cada dia desses anos todos que acabavam de viver no Novo Mundo haviam tecido a trama de seu amor de um modo mais sólido, mais cintilante, mais indestrutível.
A última noite encontrou-os, no refúgio do forte, de pé diante do vermelho do céu, beijando-se como loucos, como afogados, repetindo que aquela era a última prova exigida deles, que cada um ia ganhar para o outro o direito de permanecer para sempre juntos, que não estavam se separando e que se sustentariam pelo pensamento.
Dessa vez, dizia-lhe ele, acariciando-lhe os cabelos, cobrindo de beijos sua fronte para acalmá-la, dessa vez, se ela quisesse, eles não se separariam. Se ela quisesse, poderia ajudá-lo, não apenas ficando ali na América, cuidando de Gouldsboro e de Wapassu, mas ficando ligada a ele-por se.u amor, cuja extensão total finalmente ele via. Era o que eles tinham esquecido de fazer outrora, era o que ainda ignoravam da primeira vez. Eles não se amavam o bastante.
A ausência rompera o fio de prata de sua paixão. Eles se encontraram diante do vazio, uivando de desejo frustrado, de decepção, que eles acreditavam definitiva, mutilados por uma perda que julgavam irreparável, como crianças diante de um brinquedo quebrado.
Era então que teriam podido se apoiar mutuamente. Mas já não o haviam feito? Não fora esse grande amor uivante que os conduzira finalmente um para o outro? "Agora cremos na força do Amor. Não nós deixemos mais enganar por- temores injustificados, por medos sem fundamento, por desconfianças que não passam de futilidades.
"E a nostalgia da presença, a sede do reencontro, o aborrecimento com essa ausência que priva nossa carne de parte de nós mesmos, que forjará os laços, a força de atração entre nós. Essa atração não é apenas um laço que não se pode romper, mas é nosso sustentáculo, a multiplicação de nossos poderes, de nossa resistência nas lutas que nos serão pedidas."
- Pensarei continuamente em você, meu amor - dizia ele.
— Como antigamente. Com saudade de seus belos olhos. Mas não;como antigamente, com medo e desconfiança, atribuindo à mulher que eu adorava, porque a tinha perdido, indiferença e leviandade, o esquecimento próprio a todas as mulheres. Conheço agora aquela que você é. Você é você. E eu amo tudo em você. Não receio nada de você. Eu lhe quero a você. É tudo o que me encanta. Eu aprendi, e isso por seu dom de cada dia, que sou a chama de sua vida, como você é a chama da minha. Nada pode apagar esse fogo, e é isso o que me importa. - Ele continuou.
— Seja forte, meu amor, seja você mesma,"seja a alegria dos olhos e do coração de todos os nossos povos e de todos os nossos reinos. Viva, ria, cante, arraste a seu redor a alegria de viver, inspire a todos, por sua simples visão, a alegria de amar, de rir, de construir. E assim como a vejo que eu a amo. Tal como a conheço eu a aprovo. Para mim, você não tem defeitos e jamais teve. Você é meu tesouro, meu universo, minha vida. Continue a viver, continue a ser, continue a reunir seus amigos a sua volta, a cuidar, a colher seus símplices para aliviar os sofrimentos, continue a ouvir a narrativa das lendas, a falar com todos, você verá. O vento soprará em nossas velas sem tempestade e logo estarei de volta. É apenas um inverno que passará. Os dias se sucederão como você os ama, cada um diferente e trazendo seu pequeno teatro de dama e de comédias. Você verá! É só um inverno que passará. Preserve-se! Preserve-se bem viva. É tudo o que lhe peço. Era tamanho seu sofrimento naquela última noite, que eles se sentiam sem forças e sem desejo. Foi só ao alvorecer, depois de um sono aniquilado nos braços um do outro, que eles acordaram, misericordiosamente libertados, sorrindo comf que para a eternidade, naquela suave claridade da aurora, e que se abraçaram, trazendo àquele último momento o encantamento, a alegria e o esquecimento, a atenção e o ardor, o delírio e a ternura que teriam podido sonhar para sua última hora de amor nesta terra.
- Fique tranquila, eu cuidarei dele - murmurava Ville-d'Avray enquanto estreitava Angélica pelos ombros, num abraço amorosamente protetor. Ele estava dividido, lamuriava-se, "teria preferido ficar junto a você, mas eu lhe servirei melhor partindo. Cuidarei do Sr. de Peyrac, tomarei conta dele", repetia. - E não é um juramento vão. Na corte, sou um esperto cão de fila, conheço tudo sobre todos e ninguém me engana.
Por enquanto decidira permanecer em terra junto de Angélica até o último momento, para ajudá-la a atravessar as primeiras horas dolorosas da separação.
O Aphrodite embarcaria na próxima maré, e ele afirmava que não demoraria a reunir-se ao grosso da frota.
Quanto a Querubim, que já não dava tempo de ir buscar em Chignecto, estava pronto a passar um ano na baía Francesa, esperando que não esquecesse suas boas maneiras e seu alfabeto, penosamente assimilados.
Aquelas praias já haviam visto tantas partidas! Era preciso manter as aparências. Sob os olhos de um público habitual desse teatro, Angélica e Joffrey de Peyrac podiam mesmo assim beijar-se, pois não estavam em Boston, mas com a contenção que convinha a seu nível de aristocratas franceses. Joffrey de Peyrac não esquecia ninguém em suas despedidas e recomendações.
Depois voltava para Angélica, pensando que não havia na terra olhos mais belos que os dela.
Entretanto, ela o surpreendeu no último momento, adjurando-o num tom baixo e urgente:
— Prometa-me!. Prometa-me!...
— Eu a escuto!
— Prometa-me que não irá a Praga.
— A Praga?!...
— Nà'~ há tempo para explicações... Basta que -prometa. Ele prouietcu. Ela era decididamente imprevisível. Praga?! E verdade, lembrou-se. Era uma cidade à qual, como
sábio, ele sempre quisera ir...
Enquanto ele tomava lugar na chalupa, olhava para Angélica com um reflexo divertido nos olhos. "Minha mulher adorável! Minha imprevisível!"
Angélica sentia-se satisfeita e aliviada por não haver esquecido, no último momento, de arrancar-lhe aquela promessa.
O Sr. de Frontenac, ao nomear, no outro dia, a feiticeira da ilha de Orléans, lembrara-lhe uma vaga predição de Guilhermina. Era preferível tomar todas as precauções contra a sorte...
Esse leve incidente quebrou a emoção insustentável despertada pelos primeiros movimentos dos remos que arrancavam a barca e a conduziam até o navio que, a algumas braças dali, entre as ordens lançadas aos gajeiros, começava a vibrar com todos os preparativos para a partida. La Gloire du Soleil era um navio muito bonito, que Joffrey de Peyrac encomendara aos estaleiros de Salem, e que fazia sua primeira travessia.
Por muito tempo, de pé na popa da embarcação, o Conde de Peyrac olhou na direção da terra, onde ia diminuindo uma silhueta muito amada, a única que ele via em meio à multidão.
Nunca deplorara tanto que a força do homem não pudesse remover todas as montanhas, que não pudesse viver aquela provação no lugar do ser que ele adorava. Seu sentimento de impotência forçou-o a ir buscar mais acima os meios de a socorrer.
"Ficarei perto de você, sempre, eu lhe prometo, ficarei perto de você continuamente, meu amor, minha beleza, minha criança adorada. E minha força somar-se-á a sua no combate."
Seu ajudante, Enrico Enzi, julgou ver ca ar-se o rosto subitamente pálido daquele mestre sem fraquezas e, pela primeira vez desde que o acompanhava através de viagens e perigos, aventuras e tragédias, nas pupilas negras e cheias de desafio, um brilho que se assemelhava ao das lágrimas.
Angélica embarcava novamente no Arc-en-Ciel, que estava sendo aparelhado ao mesmo tempo que o Apbrodite. Teve de reconhecer que a presença do petulante marquês foi de grande ajuda.
Depois de tê-la forçado a dividir com ele um frasco de vinho fino, ele vez uma crónica das mais detalhadas sobre a corte de Versalhes e a de Monsieur, em Saint-Cloud, onde a nova senhora, uma princesa palatina que ele desposara em segundas núpcias, uma criatura forte e jovial, fazia reinar um clima agradável, e finalmente falou-lhe longamente de seus dois filhos, Florimond e Cantor.
No mar, chegou o momento em que os dois navios, após muitas trocas de sinais com os braços, depois com as bandeiras, se separaram, um singrando em direção a oeste e enfiando-se com a noite para o mar das Trevas, o outro inclinando-se em direção ao sul, costeando o litoral selvagem da Nova Escócia, que enviava a Angélica, daí em diante sozinha a bordo, seus perfumes de charnecas floridas.
Em Gouldsboro, ela se jogou nos braços de Abigail e chorou com vontade. Abigail, depois de tê-la pacientemente deixado |splicar-se e expandir-se, sentando-se junto a ela, cheia de doçura e compaixão, fez-lhe uma pergunta:
— Você tem, além desse contratempo, dessa separação de alguns meses de seu esposo que lhe foi imposta, alguma outra razão para se desesperar?
— Sim e não - conveio Angélica. - Eu compreendi que é o destino das mulheres conhecer a prova da separação, que certamente lhes é mais penosa que para os homens. Quem, entre esposos que se amam, pode vangloriar-se de ter atravessado uma vida inteira sem jamais ter se separado? Nestes tempos conturbados, mais que em outra época qualquer... Mas a isso se acrescenta um mal-estar que me faz recear que outros aborrecimentos se anunciam.
Ela confessou que pensava numa frase que Piksarett lhe dissera: "Confie em sua intuição". E tinha medo de ter uma intuição, que aquele acabrunhamento fosse menos o sinal de uma mágoa pessoal e natural, que podia ser superada, do que o aviso de desgraças que iam se abater sobre ela, sobre todos, na ausência de Joffrey.
- Eu não sei o que me aflige, mas sinto em alguns instantes uma angústia... No entanto, na verdade, não receio-por ele, tal como não receei ao ver meus filhos se distanciarem. Eu os sentia, como -Joffrey, bastante fortes.
Por ser Abigail e por saber que a serena jovem escutava com a mesma indulgência atenta tanto os balbucios de um bebé como as enigmáticas declarações de Severina, os clamares de uma Sra. Manigault e as racionalizações de Tia Ana, Angélica arriscou-se a fazer-lhe um apanhado de seus receios, que não tinham qualquer fundamento sério, mas que não podia deixar de repetir quando o bom andamento da vida, que ela teria desejado que fosse sempre harmoniosa e feliz, começava a emperrar e a ranger como uma roda de carroça mal engraxada.
- Como você vê, Abigail, é como uma lufada de vento no mar, que muda bruscamente a cor do tempo a nossa volta. Tudo se torna frio, tudo fica escuro.
Voltou ao ano anterior, quando havia percebido o ambiente mudado de Quebec, em sua última viagem, o que podia ser devido, muito naturalmente, à agitação do verão. Mas houvera, e esse era um fato bem colocado, a investigação-pedida por Garreau d'Entremont a propósito do La Licorne e "das Moças do Rei.
Pôs Abigail a par do trabalho que fizera com Delfina du Rosoy, a impossibilidade de conhecer o destino de uma das Moças do Rei, a suspeita que nascera dessas dúvidas: que a Diaba estivesse viva.
— Você falou disso ao Sr. de Peyrac?
— Dizer-lhe o quê?
Num dado momento qualquer, a irmã de Germana Maillotin desaparecera, e ninguém sabia dizer nem onde, nem como.
- Agora surge essa convocação do Sr. de Frontenac. Tudo isso talvez não tenha nenhuma correlação, mas não gosto desse feixe de embaraços e de reveses, de intrigas e mal-entendidos que se acumulam.
Abigail ouvia-a com atenção. Ela disse enfim que, quando duas pessoas analisavam uma situação, por mais imprecisa que ela fosse, isso já servia para esclarecê-la. Era já encará-la sob um aspecto diferente. Havia o complô contra eles, e podiam felicitar-se por terem sido tomadas medidas enérgicas. Na França, Joffrey de Pey-rac não se deixaria lograr, e saberia acertar no coração do polvo, se havia algum.
Abigail e ela concordaram em que os meses vindouros estavam pesados de possíveis reviravoltas. Era preciso ficar atento, redobrar a prudência. Era um período de transição.
- Tudo é movimento - concluiu Abigail. - Luz e sombra. Sol e tempestade. Seria enganar-nos acreditar que podemos estar vivos e nos manter fora do movimento.
O VENTO DO DIABO
CAPÍTULO XXVII
Chafurdando na onda amarga
O turbilhão começou com a volta prematura do casal Ademar e Iolanda.
Eles ali estavam, um perto do outro, com aquele ar aturdido, rígido e desajeitado de pessoas simples das estatuetas mal pintadas, e que ostentavam de bom grado.
Angélica, que saía do forte levando os gémeos pela mão e se dirigia para a taberna, a fim de fazer uma boa refeição, começo/ j ao avistá-los, a se perguntar de onde eles saíam, se eram realmente eles, e onde os teria visto da última vez. Tendo, finalmente, determinando que fora em Tidmagouche, qual teria sido seu último périplo? Pelo que se lembrava, vira-os distanciar-se, munidos de seus dois filhos, no Saint-Corentin, o bergantim de Job Simon, com a intenção de visitar a família em Quebec, depois estender a viagem até Montreal a fim de saber notícias de Hono-rina e, se possível, trazê-la de volta.
Ainda que tivesse se beneficiado de melhores 'ventos, não podiam estar já de volta.
O que significava isso?
Depois de um longo silêncio, durante o qual o casal se assemelhou mais que nunca àos santinhos de madeira, Angélica acabou por perguntar:
— Que fazem aqui? Onde está Honorina?
— Não se pôde ultrapassar Gaspé - respondeu Iolanda, com uma voz lúgubre.
— Por quê?
— Naufrágio.
— O Saint-Corentin afundou - completou Ademar.
— Afundou!
— Sim, afundou!
-Desde, que estavam naquela região de selvagens, jamais algum navio da frota de Gouldsboro havia afundado.
Eles morriam de velhice, passavam das travessias trínfais do oceano à cabotagem das costas. Mas nenhum deies naufragara.
Angélica ficou alguns segundos incrédula.
- Uma tempestade? - informou-se enfim.
Considerando as possibilidades, não se podia esquecer que o Saint-Laurent era um rio sujeito a furores tão dementes quanto os do mar.
Eles fizeram um sinal negativo e se entreolharam com um movimento rígido da cabeça, como marionetes. Ia já começar a zangar-se com eles para ajudá-los a lembrar-se e a falar, quando Iolanda decidiu.
- Atiraram em nós.
- Uma bala! Duas balas em nossas obras vivas! - continuou Ademar. - E eis que o Saint-Corentin se afunda e todos chafurdamos na onda amarga.
Depois de terem começado, falavam os tiois ao mesmo tempo. Isso acontecera quando o pequeno iate já havia entrado bastante na embocadura do Saint-Laurent.
De uma outra embarcação, um navio grande, vagamente entrevisto na neblina, que era muito espessa, um raio fulgurara, e o eco surdo de um tiro de canhão os alcançara ao mesmo tempo que um choque os lançara ao chão. Atingido, o barco começou a gemer e a se inclinar, enquanto os homens se precipitavam pa ra ajudar os carpinteiros a vedar a vazão de água.
Enquanto dava ordem para lançar à água a grande chalupa e aconselhava os passageiros, entre os quais algumas mulheres, a se acomodarem ali, o Sr. de Barssempuy descia para a pequena canoa com quatro homens da tripulação. Remando vigorosamente, eles se dirigiram para a silhueta do grande navio imóvel, enorme como um fantasma ameaçador. De pé, gritando muito e agitando a bandeira do Sr. de Peyrac, Barssempuy repetia em seu porta-voz que eles eram de Gouldsboro, e que ia exigir explicações, ajuda e socorros.
Viram-nos desaparecer, e o barco provavelmente abordou a embarcação do outro lado.
Durante esse tempo, obedecendo às recomendações do capitão, todos os ocupantes do Saint-Corentin que não precisavam trabalhar nos reparos desceram à chalupa.
Foi bom terem feito isso, pois pouco depois, do meio do nevoeiro cada vez mais denso, um novo brilho jorrou e, dessa vez, o barco de Job Simon, atingido na linha de flutuação, oscilou e submergiu.
— Todo mundo escapou?
— Infelizmente, não! Dois homens, que não tiveram tempo de tornar a subir do porão inundado, desapareceram com o Saint-Corentin.
Os outros, lançados à água, entre os quais o velho Job Simon, que bufava, cuspia e falava da danação que o perseguiria até o fim dos dias, tinham sido apanhados pela chalupa, que, sobrecarregada e ameaçada continuamente de afundar por sua vez, permaneceu sozinha na superfície do rio, desviada por longas correntes geladas do grande rio, no meio das brumas.
- Será que vocês não sonharam?
Ela procurava em seus rostos sinais de perturbações de espírito, ou - esperou-o um instante - o complô armado por eles para uma brincadeira, sem graça, sem dúvida, mas que teriam resolvido fazer por desatino.
Não! Seu abatimento-,-sua consternação, seu aturdimento, que ainda os dominava, não eram fingidos.
Iolanda começou a soluçar.
- Onde estão seus filhos? - perguntou Angélica, tomada de uma terrível suspeita.
A jovem mulher chorava ainda mais.
Enfim, em meio a lágrimas, soluços e fungações da vigorosa acadiana, Angélica conseguiu saber, com alívio, que as duas crianças, Melánie e Anselmo, encontravam-se em segurança na casa da avó, a renomada Marcelina, a Bela, no moinho de Chignecto.
Mesmo assim as pobres crianças tinham quase perdido a vida naquela chalupa, que derivava como um tamanco muito pesado.
Tinha acabado por encontrar novamente uma grande barca de um colono do lugar, Trancredo Beaujars, que os recolhera e levara até seu censo, engastado nas falésias de Gaspé. Amigo do Sr. e da Sra. de Peyrac, depois de ouvir sua narrativa, ele lhes recomendara que não tentassem prosseguir para Quebeb. Em sua opinião, estava se preparando alguma desgraça com'aquele novo governador que haviam mandado para substituir o Sr. de Fron-tenac. Podia apostar que havia sido a embarcação oficial que o conduzia que lhes dera esse golpe baixo.
"Voltem para casa o mais depressa possível e avisem o Sr. de Peyrac", dissera-lhes o velho Beaujars.
Ele lhes emprestara seu pequeno cúter e seu piloto: "Vocês o trarão de volta quando puderem com um carregamento de carvão-de-pedra do cabo Breton e alguns pacotes de bom bacalhau seco.
De posto em posto, os náufragos haviam retornado a Tidma-gouche. E eis que, ao querer atravessar o braço de mar entre a costa leste e a ilha Saint-Jean, ele tinha sido invadido por uma massa de focas que haviam se enganado em sua rota de migração hereditária.
- Bem, não se pode dizer que o novo governador seja responsável também por isso - disse Angélica.
- Quando os homens começam a perder a cabeça, a própria natureza enlouquece - disse Ademar, sentencioso. - A menos que seja o contrário. Quando a natureza enlouquece, os homens perdem a cabeça!
Ademar assumira seu tom de homilias choramingas dos primeiros tempos. Gemendo, ele comentou:
- Ah! Duzentas mil focas no estreito! Creia-me, senhora, quando a natureza se engana é a coisa mais terrível que se possa ver.
E é também um sinal. O fim do mundo não está longe! Digamos que o começo das catástrofes... catastróficas.
Detidos pela história das focas enganadas em sua migração, por não se sabe que transtorno das estrelas, da lua ou do sol, eles arribaram do lado de Shédiac, e depois a pé, tinham atravessado o istmo para alcançar a parte de trás da baía Francesa.
Deixando as crianças com Marcelina, embarcaram imediatamente para ir avisar Gouldsboro.
— Tancredo falava de um novo governador - assustou-se Angélica. - Não será um novo intendente?
— Ele disse governador.
— E Barssempuy e seus homens caíram nas mãos desses piratas? Falem!
— Aí está! Enquanto se debatiam, uma metade para descer para a chalupa e a outra para tentar salvar o Saint-Corentin, que adernava - a segunda bala ainda não fora disparada -, eles tinham tido como que uma impressão, quando o nevoeiro abriu um pouco, de ter visto o tenente Barssempuy numa verga, enforcado.
— Enforcado?
— Não fomos só nós que vimos. Pergunte àqueles lá.
Ademar apontava dois homens, que se dirigiam ao grupo formado diante do albergue por Angélica e seus filhos, e que confirmaram o relato alucinante.
Eles eram da baía Francesa e tinham feito parte da tripulação do Skint-Corentin. Salvos do naufrágio, tinham trazido os familiares para abrigá-los sob a proteção do porto franco de Gouldsboro.
Vendo-os ainda tremendo e prestes a chorar como crianças, ela os levou para a casa de Colin Paturel para expor-lhe os fatos um a um. Podia-se especular sem parar sobre os dados do incidente, desde um erro de tiro devido à neblina até a notícia de uma declaração de guerra entre a França e a Inglaterra, que ainda não teria chegado à América.
Havia ainda a morte inexplicada, inexplicável de Barssempuy. Ela esperava que fosse uma notícia falsa. Simpatizava com aquele jovem que, pensando bem, nao era mais tão jovem, mas que a comovera com seu amor puro e sincero por Maria, a Meiga, uma das Moças do Rei. Esta fora covardemente assassinada por Armando Dacaux, o secretário da Diaba, e ele nunca se conformara com sua perda. Amor e sofrimentos resgatavam naquele homem de aventuras sua vida de rapinas e de crimes, vivida anteriormente como tenente de Barba de Ouro, o pirata normando de sangrentas façanhas.
- Enforcado!? - repetia ela. - É impossível. Nem mesmo um capitão inglês extraviado no Saint-Laurenr ousaria... aquela pobre gente, aterrorizada, devia ter visto mal.
"Chafurdando na onda amarga", como dizia Ademar, e no desatino do primeiro tiro de canhão, cegados pela neblina, que só lhes deixava ver partes de seus atacantes, deviam ter imaginado o pior. E Joffrey se fora! E o Sr. de FrontenáC também!...
Havia no emaranhado das conjunturas e das notícias, que se amontoavam e chegavam fora de hora, como que uma lembrança da desordem que reinava quando a Diaba havia chegado. O mesmo avanço insidioso.
Incapaz de precisar o que sentia, ela só pôde pensar: "Isto vai de mal a pior".
A sucessão dos acontecimentos não lhe deixou tempo para levar adiante sua avaliação.
CAPÍTULO XXVIII
"Ela está chegando"
A Diaba! A teia de aranha de suas habilidades estendia-se pouco a pouco para envenenar suas vítimas, paralisar as vontades, adormecer as vigilâncias, transvertir as aparências!...
Angélica sentia a rede recompor-se em volta deles.
Desse modo, mal se dera conta disso quando, num final de manhã, ouviu clamores procedentes do porto. Entretanto, ao ver uma mulher descabelada que se debatia, segura por vários ho-mensf teve um choque. "Não, não pode ser."
Crianças corriam, gritando:
- Dame Angélica! Venha depressa! Uma mulher com o mal-caduco acaba de desembarcar.
Teve de reassumir imediatamente sua calma, a única atitude possível para reduzir as manifestações histéricas, que começavam a se traduzir por gritos estridentes.
De longe, via uma silhueta de mulher jovem que tentava escapar das mãos que a agarravam.- Sem a touca, que ela arrancara na crise, todos os seus cabelos estavam soltos e lhe ocultavam o rosto. Com certeza era uma estrangeira, ou seja, desconhecida no litoral da baía Francesa, pois as pessoas de Gouldsboro exibiam aquela expressão ao mesmo tempo indiferente e vagamente galhofeira que se assume diante daqueles que contemplam um espetaculo cuja incongruência não acarreta à comunidade nenhuma implicação constrangedora, já que se trata de pessoas "desconhecidas". Embora se pudesse ler em alguns rostos um pouco de piedade, pois é sempre triste ver um ser humano atingido pela perda da razão, a maioria estava intrigada, se não aliviada, pela cena, e formou uma escolta junto a Angélica, quando ela se adiantou e penetrou no círculo formado em volta dã infeliz, que estava caída de joelhos.
— O que está acontecendo? Quem é essa mulher?
— Quem sabe? Não quis nos dizer seu nome - explicou um dos marinheiros, que a segurava pelo braço.
E apresentou-se como sendo um bretão, tripulante de um bacalhoeiro sazonal. Fora encarregado de levar até ali, em sua grande chalupa, aquela coitada que, desde o golfo de Saint-Laurent, vinha repetindo "Gouldsboro! Gouldsboro!" e pedindo "por caridade", de um estabelecimento a outro, passagem para Gouldsboro.
Enquanto ele falava, a mulher, jovem, muito delgada e bem-feita de corpo, permanecera prostada e semi-ajoelhada, pois era mantida nessa posição por todos aqueles pulsos, sem os quais certamente teria deixado o rosto prostrar-se contra a areia, quase desfalecida. Todavia, ela se acalmara assim que ouvira a voz de Angélica, ou seria uma coincidência, pois, naquele momento, a atenção desviara-se dela e haviam finalmente cessado de vociferar-lhe, em todas as línguas e de todas as maneiras, que "permanecesse tranquila". Mas pôde-se vê-la subitamente efetuar um movimento convulsivo, como os peixes que julgamos mortos e que, num salto supremo, conseguem jogar-se por cima do barco, pois, escapando às mãos que a seguravam e lançando-se aos pés de Angélica, envolveu-lhe os joelhos com ambos os braços.
Depois, erguendo a cabeça, gritou, numa voz feroz e desesperada:
- Ela está chegando! Ela esta chegando!
Angélica, estupefata, reconheceu, por mais pálida, terrosa e suja que estivesse, a fina esposa do oficial de marinha, Gildas, do regimento de Carignan-Salliere, Delfina Barbier du Rosoy em pessoa. Tivera ocasião de revê-la no ano anterior, durante sua última estada em Quebec.
- Delfina! É mesmo você! Delfina, o que lhe aconteceu? Por que veio? E nesse estado! Responda-me.
Os lábios da jovem, com os cantos cobertos por uma espuma esbranquiçada, tremiam. Parecia ter dificuldade em soltar a língua e em engolir.
- Está com sede - disse alguém..
Os bretões confirmaram que ela vinha se recusando a comer e a beber havia vários dias, repetindo apenas: "Gouldsboro, depressa! Depressa!"
- Ou com medo.
Angélica tomou o rosto de Delfina entre as mãos e falou-lhe com doçura, a fim de ajudá-la a se recuperar. Ela chegara a bom porto, garantiu-lhe, ia agora refrescar-se e repousar. Ali em Gouldsboro não podia acontecer-lhe nada de mau...
Suas palavras acabaram por alcançar o espírito esgotado, e o olhar da jovem mulher perdeu pouco a pouco sua fixidez. A recém-chegada fez um esforço para se explicar.
— Eu a vi - conseguiu articular, com dificuldade. - Eu a vi! Eu sabia que nossos pressentimentos eram corretos e que não seria tão simples nos livrar deles para sempre. Ela nos alcançou! Estamos perdidas! Eu a vi.
— MSs quem?
— Ela! - sussurrou Delfina du Rosoy, cujas pupilas se dilataram. - Você sabe muito bem. Ela! A duquesa, a Benfeitora. Ela, a...
Ao pronunciar a última palavra, desfaleceu e caiu.
Angélica mandou que a transportassem ao forte, para seu quarto, e a deitassem em sua própria cama. Era o lugar mais cómodo para cuidar de alguém e ouvir suas confidências!
Começou por umedecer-lhe os lábios, como a uma doente febril, depois a fez beber devagar um pouco de água fresca; como tinham previsto, a viajante estava terrivelmente sedenta. Delfina bebeu demoradamente, o que a reanimou e lhe deu um pouco de cor. Deixou-se cair contra os travesseiros com um profundo suspiro, mas logo foi invadida por tremores.
- Meu Deus! O que vai ser de nós? - gemia, torcendo as mãos.
- Ela sempre me odiou, sobretudo a mim. Odiou-me por haver-lhe escapado, pelo menos por ter tentado escapar-lhe... Ela vai me matar, vai matar Gildas, meu pobre marido. Ela jurou destruir-me. Mesmo nò decorrer dos últimos anos, eu acordava à noite ouvindo-a chamar-me, prometendo que se vingaria de mim, setenta vezes sete... E eis que ela ressurgiu do túmulo! Oh! Dame Angélicaj ajude-me...
— Quero muito ajudá-la, mas você tem de acalmar-se e relatar-me os fatos que causaram tal terror.
— Pois bem! Eu a vi, ali, viva diante de mim, e vi que ela me viu! Deus, que horror!
— Onde foi isso, Delfina? Onde você estava no momento em que a viu?... Em sua cama?... sonhando?...
— Não! No cais, como todo mundo. Estava vendo o desembarque do novo governador que nos fora anunciado, acompanhado de sua esposa, da França, e, de repente, eu a vi ali, cercada por sua corte. Ah! Meu sangue congelou-se em minhas veias. Soube que o momento havia chegado. Era ela!
— Não se deixou enganar por uma semelhança? Jamais deixou de recear sua ressurreição...
— E com razão!... Não tínhamos já adivinhado toda sua malignidade? Desde que o desaparecimento de Henriqueta Maillo-tin ficou demonstrado, eu não tinha mais esperança.
Ela insistiu, veemente.
— Não o sabia, como eu? O túmulo lá em Tidmagouche é o de Henriqueta Maillotin, a irmã de Germana, que pagou bem caro sua dedicação àquela que ela queria salvar. Eles a assassinaram, desfiguraram-na e depois a abandonaram na floresta, vestida com as roupas da duquesa, enquanto esta ficava novamente livre, podendo continuar seus malefícios.
— Como sobreviveu aos ferimentos?
— O velho Nicolau Parys encarregou-se de tudo. Não lhe faltavam tampouco cúmplices ou refúgio nas ilhas... Não se esqueça. Ele era o rei da costa leste, mais poderoso que todos os sagamores índios e até que o Sr. de Ville-d'Avray. Foi o que aconteceu, tenho certeza. Dois cúmplices do Inferno... que mereciam um ao outro.
- E, caso seja ela, por que teria esperado tanto tempo para reaparecer?
A jovem mulher alteou os ombros.
— Como se vai saber... Para ela, o tempo não existe. Ela é eterna. E um demónio. Um demónio que deixou o tempo passar, para que a esquecessem... para justificar aquela morte, que lhe permitiria escapar ao tribunal da Inquisição... Recuperar sua saúde, sua beleza... Escapar às nossas possíveis denúncias. Na França, para onde voltava, ela era perseguida como cúmplice da Sra. de Brinvilliers. Tinham-na ferido gravemente... Ela estava em péssimas condições... quando você a arrancou das mãos deles.
— O velho Parys morreu.
— E por isso que ela está voltando! Veja, tudo se liga. Os anos?! O que representam para ela? Tão breves para nós, que trabalhamos em reconstruir nossas felicidades destruídas! Para ela, o tempo suficiente talvez para acabar com seu velho amante, para arruiná-lo, assassiná-lo e fazer-se desposar por outro, que lhe permitiria, sob um novo nome, reaparecer no Canadá, onde, sabendo tudo a respeito de todos, ludibriaria outras pessoas e aperfeiçoaria sua vingança contra nós.
— Supondo que seja ela, já que você a reconheceu tão pronta e facilmentef*outras pessoas não teriam também ficado intrigadas? Ela se arrisca a ser denunciada, mesmo agora.
— Por quem? Todos aqueles que o testemunharam fizeram silêncio sobre esse caso. Quem ousaria?
— O intendente Carlon, por exemplo. Ele não é dos menos importantes.
Delfina riu, com desencanto.
— O intendente, que poder tem ele? Está numa situação bem precária para bancar o denunciante... Sabe que se exporia ao ridículo ou... à morte. O novo governador tem todos os poderes nas mãos, inclusive, no momento, o de intendente.
— Isso não impede que...
— Sim... Pois você ignora que o novo governador é casado, e que sua mulher o acompanhou ao Canadá, e que... a esposa do novo governador, a Sra. de Gorrestat... é ela? - Depois de uma pausa tensa, continuou: - Quanto aos outros, ela os enganará. Não perdeu nada de seu poder diabólico. Esse poder é maior e está mais oculto do que nunca. Ela enganará a todos, tanto em Quebec como aqui, como também a iludiu quando desembarcava, por assim dizer, náufraga e usando roupas rasgadas proposi-talmente, com os cabelos que ela idolatrava, perfumados e soltos, e ninguém, ninguém percebia nada, mesmo você, que se apressou em socorrê-la, até nós, que a adorávamos e só queríamos vê-la perfeita e bela. Quantos seres humanos amam a ilusão e temem a realidade! Ela gostava de brincar com essa necessidade de sonho e de esquecimento. Ela os adormecerá como aos outros, irá fasciná-los com seu riso e suas palavras graciosas, com seus olhares cheios de subentendidos e de promessas.
Ao ouvir essas palavras, Angélica teve a impressão de ver, voltado para ela, o rosto de Ambrosina, e de estar presa no feixe dourado de seu olhar, sedutor.
r- É impossível! - gritou com todas as suas forças, recusando a realidade. - Delfina, seria mesmo ela?
— Ela estava diferente, talvez. Um outro rosto, outros traços... Cabelos de outra cor - mas isso se consegue facilmente - e penteados num estilo de uma moda... uma moda que não lhe fica bem. Muito diferente. Está menos bela... parece mais velha...
— Está vendo!?
— Mas seu olhar é o mesmo, seu sorriso, suas maneiras, e ela me olhava... Eu estava também paralisada como uma lebre sob o olhar de uma serpente. Ela passou perto de mim, na multidão, com sua escolta, sempre sorridente, e me disse, sem que ninguém pudesse ouvi-la: "Esta noite, você morrerá!...", fixando-me o rosto e quase sem mover os lábios.
— Você teria realmente ouvido essas palavras? Reconhecido sua voz?
Delfina suspirou e fechou os olhos, com ar cansado.
- Responderei por isso diante de Deus. E seu olhar me dizia isso. Então, lembrando-me de sua habilidade e da presteza com que desfechava seu golpe, compreendi que não devia mais dar-lhe uma única oportunidade de me encontrar, aocair da noite, quando me enviaria seus matadores. Quebec é uma ratoeira; tinha de fugir naquele mesmo instante, se quisesse escapar.
Aproveitando-me da confusão da chegada, joguei-me numa chalupa que, pouco depois, me conduziu, com outros passageiros, a um pequeno navio que se dirigia a Tadoussac. Ele partiu na maré seguinte, e a tripulação, que adiara a partida, a fim de assistir à chegada daquele navio oficial que trazia o governador e funcionários do rei, muito interessada nas notícias que haviam recebido, não prestou atenção em minha presença. E... Interrompeu-se, parecendo enfraquecida.
- Eis-me aqui - concluiu. - Eis-me aqui, perdida, moribunda, depois dessa terrível viagem. No início, eu não tinha nenhuma noção do lugar aonde poderia levar-me aquela chalupa. Queria apenas fugir, afastar-me o máximo possível de Quebec... Antes da noite. Depois, pouco a pouco, uma ideia tomou conta de mim: encontrá-la, pois você era a única... a única que poderia me compreender, acreditar em mim.
Calou-se, e um longo estremecimento sacudiu-a mais uma vez.
— Mas, minha pobre Delfina - disse Angélica, medindo as palavras -, você não receia ter cedido a um impulso, a uma impressão, demasiado apressados? Essa pessoa se encontrava entre os recém-chegados, muitos rostos estranhos. Você sabe como é a confusão que acompanha a chegada dos navios. Uma semelhança... e você acreditou...
— Não! Não! Um olhar daquele não se esquece! E aquele sorriso de triunfo, quando me viu... Esperavam o novo governador, o Sr. de Gorrestat e sua esposa... e era ela, estou lhe dizendo.
— Uma semelhança fortuita com a grande dama anunciada a fez lembrar outras circunstâncias penosas.
A jovem mulher estremeceu e dirigiu a Angélica um olhar vazio.
- Não acredita em mim?
Para desviá-la de sua obsessão,- Angélica perguhtou-lhe:
— Onde está Gildas?
— Gildas? - fez Delfina, com o olhar ausente.
— Sim! Gildas, seu esposo.
A outra passou a mão pela testa várias vezes.
-Gildas! ah, sim! - disse, como que saindo de um sonho.
— Pobre amigo! Tomara.que... Não! Felizmente ele não sabe de nada. Ele não compreenderá nada. Ela não pode causar-lhe mal. E, seja como for, fugi dele.
— Mas enfim, Delfina, seu marido! Você o avisou?
— Não! Não!" Parti tão depressa! Era preciso. Seus olhos haviam dito: "Antes desta noite!" Eu só podia fazer uma coisa. Desaparecer imediatamente, o rio estava ali... conheço*sua diabólica habilidade e como ela sabe armar muitas redes ao mesmo tempo, onde vamos nos pespegar como moscas, antes mesmo de ter podido discernir a aranha que, no centro, nos espreita. Mas eu a conheço muito bem. Muitas vezes, com algumas palavras, ela me punha a par de seus planos, e eles já se cumpriam, como se as palavras pronunciadas fossem serpentes saindo de .sua boca e pondo-se em marcha imediatamente rumo ao objetivo que ela lhes indicava.
Enquanto Angélica se indagava sobre o crédito que devia dar a sua narrativa, Delfina pareceu voltar a si. Sentou-se na beirada da cama, depois se leyantou com gestos comedidos. Olhando a sua volta e como que reconhecendo o lugar onde se encontrava, alisou com as mãos o vestido amarrotado e dirigiu-se à janela.
Apoiou-se ao peitoril, olhando para fora. Estava calma. Pouco a pouco, uma expressão de alegria melancólica e de ternura nasceu, iluminando sua fisionomia. Levantou os dois braços lentamente, num gesto que poderia ter sido de súplica ao céu, mas que tinha a estranha graça de um encantamento.
- Oh! Gouldsboro! Gouldsboro! - murmurou. - Como eu a amo e como a odeio ao mesmo tempo! Meu calvário começou aqui, mas também meu renascimento. Tudo se revelou e ela foi revelada. Como eu a odeio, Gouldsboro, por não me ter feito saber quem era ela, e como a amo por me haveres libertado dela!
Quando Delfina estava em Gouldsboro, tinha demonstrado muita coragem naquelas vicissitudes. Angélica logo a considerara superior a suas companheiras, que, instintivamente, se agrupavam a seu redor, e sempre apreciara suas qualidades de sangue-frio e autocontrole. Apenas a Duquesa de Maudribourg tivera o poder de mistificá-la, e ela fora uma das primeiras a percebê-lo com clareza.
Havia provado não Ser o tipo de pessoa que enlouquece por qualquer coisinha.
Sem se voltar para Angélica, Delfina recomeçou a falar. Sua voz agora estava normal e como que resignada, velada por uma triste censura.
- Por que duvida de mim, Sra. de Peyrac? E por que quer tomar-me por louca? - Continuava a olhar para fora. - Você se defende em vão de não ter partilhado meus temores. Desde o início, me interrogava sobre muitas de minhas companheiras. E nós nos compreendemos, quando fazíamos a lista pedida pelo Sr. d'Entremont. Mas eu sou como você, eu sei que sempre se espera, quando nada acontece para expor as quase certezas que se guardam em segredo, com medo de, se as exprimirmos, vê-las ganhar forma. Deve-se pelo menos extrair da experiência e das advertências uma prudência salutar, e a coragem de estar pronta para o pior. Sou assim. Sempre fui. E foi o que, desta vez, me permitiu salvar a vida. E você deveria antes felicitar-me, Dame
Angélica, por não ter hesitado um só instante, ao invés de se inquietar com minha conduta e meu desatino. Você me conhece bem. Sabe que ela pode, nossa demoníaca, fazer-me cometer gestos de loucura aparente, mas não tomar-me louca.
Ora, fora esse raciocínio que Angélica acabara de fazer. Desconcertada e não sjbendo mais o que pensar, observou Delfina com perplexidade, estudou a silhueta emaciada que se perfilava contra a luz, e um detalhe chamou-lhe a atenção.
- Delfina, disseram-me que você estava grávida. Se meus cálculos estão corretos, você deveria estar no sexto ou sétimo mês.
Delfina dobrou-se ao meio, como sob o golpe de uma dor insuportável.
- Eu o perdi - gritou, soluçando. - Cobriu o rosto com as duas mãos. - Oh! meu Deus! Uma tão grande felicidade prometida... E depois... acabou-sd-Pobre criança! Pobre Gildas! Que tristeza para ele, que estava tão feliz!
Esse drama podia fornecer uma outra explicação. Sua decepção subira-lhe à cabeça.. Isso acontece às vezes. Delfina adivinhou-lhe o pensamento.
- Você está enganada. Não foi em Quebec que isso aconteceu - disse, voltando para junto dela. - Em Quebec, eu me sentia bem e me preparava para uma feliz maternidade. Talvez tenha sido seu olhar o que o matou em mim, mas creio que foram as fadigas e os tormentos dessa horrível viagem. Ofegante, fez "um relato dilacerante de seu aborto.
- Aconteceu naquele maldito barco, por causa da horrível tempestade que nos sacudiu ao atravessar o golfo de Saint-Laurent. Nós, os passageiros, no porão, éramos jogados de uma parede para a outra, machucados.pelas mil pancadas. Pouco depois da tempestade, senti como se minhas entranhas estivessem se rasgando, quase desmaiei e, pouco depois, ele estava ali, no sangue, naquele chão imundo. Oh! meu pobre filho!...
Ela soluçou desesperadamente, balançando-se para trás.
- ...Ele era tão pequenino e tão terno, tão maravilhoso! Os marinheiros quiseram jogá-lo ao mar, como alimento para os alcatrazes. Arranquei-o de suas mãos e apertei-o contra o seio pelo tempo que me foi possível. Por fim, o capitão deve ter compreendido meu tormento e me trouxe um pequeno cofre de madeira, que lastreou com chumbo. Coloquei com minhas próprias mãos o pequeno ser inacabado dentro dele. Levei-o até o convés. Queria ser a única a entregá-lo ao mar. Mas, quando estava chegando ao ar livre e batido pelo vento, fui surpreendida por um barulho infernal. Dir-se-ia que todos os gritos das almas penadas se desencadeavam. Aproximando-me da amurada, vi o mar preto de focas que haviam se engolfado por engano no estreito e que uivavam para nós, enloquecidas e tristes, pondo em risco com os solavancos o próprio navio. Como eu permanecesse petrificada, aterrorizada por aquele espetáculo e aqueles uivos roucos, o capitão tomou-me a caixa das mãos e jogou-a ele mesmo no mar. Mas, graças a Deus, vi-a afundar logo, em meio aos roncos daqueles animais pretos e luzidios.
"O capitão era um homem corajoso", admitiu Delfina. Permaneceu silenciosa, deixando as lágrimas escorrerem-lhe pelo rosto.
- Na escala seguinte, no golfo, as índias cuidaram de mim. Mas eu não via mais ninguém. Só pensava numa coisa: chegar até você. Eu repetia: "Gouldsboro! Gouldsboro!" O capitão confiou-me àquele bacalhoeiro, e embarquei no barquinho da queles que me prometeram trazer-me a vossa presença.
Calou-se, esgotada. Angélica estava desolada. E realmente, pensava, o destino das mulheres é demasiado ingrato. Pouco antes, pronta a acusar Delfina de fraqueza, ela se perguntava agora como a razão da pobre moça pudera resistir a tantas provações.
Seu relato provava que ela se mantivera totalmente lúcida. O pormenor das focas no estreito, de que falara Ademar, era exa-to. E a visão delas devia ter tornado ainda mais doloroso para a jovem mãe o sacrifício de se separar do pequeno ser. Delfina não estava louca. Ao contrário, enfrentara com muita força de espírito o mais duro dos sacrifícios.
- Pobre criaturinha! - murmurou Delfina, com uma tristeza infinita. - Pobre criança querida! Esse terá sido, entre as primeiras vítimas da volta da Diaba, seu primeiro crime. E haverá outros!
"Haverá outros", avisara Delfina du Rosoy. "E cuide-se, Angélica, pois é por causa do ódio que tem por você que ela voltou ao Canadá."
Às vezes ela corria até a janela para olhar do lado do porto, como que se preparando para vê-la surgir.
- Sossegue, Delfina! Ela não vai aparecer imediatamente. Seja como for, não possui o dom da ubiquidade para voar de Quebec a Gouldsboro.
Rodeou com o braço os ombros magros e trémulos de Delfina.
— Você tem de repousar, minha pobre Delfina. Eu cuidarei de você. Aqui, você irá poder dormir em paz, o que não faz há dias. Repito-lhe: você está em segurança aqui.
— E se ela, não a encontrando em Quebec, resolver partir, singrando para Gouldsboro?
— Não arribará amanhã.
— Claro que sim, ela pode arribar amanhã - chorou Delfina, de um modo infantil.
— Não, não! Reflita. Você deixou Quebec no mesmo instante, exatamente quando ela estava desembarcando. Se ela chega como esposa do novo governador, é preciso que seja recebida, que se instale... Supondo que a tenha realmente reconhecido, não vai se lançar imediatamente em seu encalço.
— Oh! sim, ela pode fazê-lo.
— Mas nào!
— Ela pode'mandar seus esbirros...
— Estou lhe dizendo que, seja como for, temos vários dias diante de nós para preparar nossas baterias. Vamos falar sobre tudo isso com o Sr. Paturel. Aqui, estamos entre amigos, muito bem defendidos.
Apertou seu abraço amistoso em torno do pobre corpo descarnado, embalando-a, querendo acalmá-la. E isso a impedia de pensar no futuro, pois receava que, se se pusesse a-pensar, entrasse em pânico.
— Acalme-se - repetia pela centésima vez. E, ao fim de argumentos corriqueiros, disse:
— Minha amiga, não importa o que aconteça, lembre-se de que o auxílio e a paz são dados na terra àqueles que desejam ver triunfar o Bem... Não importa o que aconteça. E mesmo que ela devesse surgir diante de nós, escoltada por todos os demónios da terra e dos infernos, lembre-se e não se esqueça.jamais! Deus permanece o mais forte.
CAPITULO XXIX
Amigas solidárias contra o Demónio
À noite Angélica instalou Delfina em casa de Tia Ana, que costumava alugar um quarto em sua moradia.
Não pôde conversar com Colin Paturel como pretendia, pois ele estava em visita de inspeção. Tinha também de cuidar de seus filhos, que foi buscar na casa dos Berne. Trocou duas palavrinhas com Abigail sobre a chegada inopinada de Delfina du Ro-soy, mas eludiu a história que aquela lhe contara. Queria persuadir-se, ao menos diante de Abigail e até obter provas mais concretas, de que uma semelhança, uma confusão tinham abalado Delfina.
Quase acreditava nisso ao despertar na manhã seguinte, ao começar um novo dia em que não. faltariam atividades. Teria de pensar em sua partida para Wapassu e cuidar do que seria preciso levar com a caravana.
Mas um rumor que anunciava a chegada de visitantes vinha da praia, e ela não pôde"deixar de precipitar-se para o porto e de perscrutar os grupos longínquos, receando distinguir entre eles a silhueta de uma odienta mulher. Então, raciocinava: "Supondo que seja ela, não tenho mais nada a temer, agora. Ela foi vencida. Estou pronta a recebê-la".
Mas, quando vieram avisar-lhe que duas damas estrangeiras a procuravam, ficou convencida de que vira realmente, vira bilhar lá embaixo, à beira da água, o vermelho, o azul e o amarelo ouro dos trajes da duquesa.
"Chegou o momento!", disse a si mesma, detendo-se para reunir suas forças. Reabriu os olhos. Nada de vestimentas suntuo-sas, nem cores vivas nos ombros das duas viajantes que acabavam de desembarcar, e que eram, como de hábito, escoltadas por um grupo de. pessoas; e se a Polaca, subindo vagarosamente a praia pedregosa de Gouldsboro, xingando e implicando com seu pequeno criado, podia se colocar ao nível dos acontecimentos imprevistos, não era uma surpresa desagradável, e sua silhueta não podia se confundir de maneira alguma com a inquietante figura de elfo da, por assim dizer, ressuscitada, muito bela.e perigosa Dame de Maudribourg, que se tornara a Sra. de Gorrestat.
A Polaca esbravejava, pois seu peso a obrigava a afundar até o tornozelo na areia molhada.
- Ajude-me - disse, estendendo para Angélica, que não voltava a si, seu braço gorducho. - Pois bem! Sim, sim! Sou eu! O que você pensava? Que eu não seria capaz, como qualquer um, de subir num navio para lhe fazer uma visita em sua Gouldsboro, no fim do mundo?
A garoa havia molhado uma espécie de edifício alto de seda que ela carregava no topo da cabeça, e que ela endireitava de tempos a tempos com um tapinha, quando ele tornava a cair lasti-mavelmente.
— É uma fantange - explicou. - Parece que a amante do rei, aquela que se chama Angélica como você, só se enfeita com isso. E sua Sra. de Gorrestat lançou a moda em Quebec.
— "Minha" Sra. de Gorrestat? - interpelou Angélica. - O que isso significa?
— Juliana me informou - sussurrou-lhe Janine Gonfarel com uma piscadela entendida. - Sei de tudo. Mas bico calado! A gente vai conversar sossegadamente, e tenho muitas coisas para lhe contar. O que é premente é um bom prato de sopa com toucinho, acompanhado de um copo de vinho tinto, pois não me aguento mais de pé, de tanta fraqueza.
Angélica avistou Juliana; era a segunda viajante. Mais uma Moça do Rei que havia naufragado com o La Licorne e que sentia necessidade de voltar ali em circunstâncias perturbadoras. Seu esposo, Aristides, o pirata arrependido, não estava longe; ele subia a trilha que vinha do embarcadouro carregando as bolsas de couro curtido daquelas damas e, apesar do jabô de rendas, do uniforme de boa lã com abotoaduras de tartaruga e do tricórnio, colocado levemente atravessado mas na medida necessária para marcar sua honorabilidade desenvolta, ele se mostrava apreensivo por se encontrar em Gouldsboro, que o vira, num tempo remoto, todo acorrentado e prisioneiro.
- Se não fosse Juliana, a senhora não me veria aqui - disse ele, ao avistar Angélica. - Mas ela quis deixar Quebec, como se o diabo estivesse perseguindo-a.
E acrescentou, baixando a voz:
- Parece que a Benfeitora, a "duchesa" do Diabo, está viva!
Desde que Janine Gonfarel lhe lançara aquele "sua Sra. de Gorrestat", Angélica se sentia incapaz de pronunciar uma palavra e de se expandir, como o teria exigido a situação, em protestos de surpresa e de alegria. Uma bola glacial instalara-se em seu estômago. Com efeito, ela compreendia que, até então, não dera fé à história de Delfina. Agora, seria preciso render-se às evidências: Ambrosina, a Diaba, tinha voltado!...
Em silêncio, guiou suas visitantes, que, sem se dar conta de seu mutismo, contentavam-se com seu sorriso mecânico e faziam perguntas e respondiam, excitadas e aliviadas por terem enfim chegado a seu destino, após dias de navegação.
Ela as fez entrar no Albergue sob o Forte, depois levou-as para um cómodo contíguo à grande sala, onde poderiam conversar sem ser ouvidas e sem ser objeto da curiosidade pública.
Como que atraída e atendendo a uma intuição, Delfina du Rosoy já se encontrava ali é lançou-se num ímpeto ao pescoço de Juliana.
- Quer dizer então que também você a reconheceu! - exclamou, esquecendo em sua emoção as distâncias que sempre mantivera em relação à pobre Juliana, quando faziam parte do mesmo contingente das Moças do Rei, trazidas ao Canadá por sua Benfeitora, a Sra. de Maudribourg.
A alegria de Juliana ao reconhecer Delfina foi surpreendente, pois elas sempre haviam se evitado.
- Delfina, minha amiga, algumas vezes eu a achava pernóstica, mas nós naufragamos juntas, não é verdade? Juntas padecemos morte e paixão com aquela diaba, vivemos anos em Quebec na paz e no bem, e estou feliz por ver que você conseguiu escapar.
Estavam pois ali.
— Então é realmente verdade? Você também, Juliana, a reconheceu? - perguntou Angélica.
— Se reconheci?! Claro que sim. É ela. Não há dúvida. E sobretudo são seus olhos. Seu rosto mudou um pouco, por causa dos ferimentos que recebeu. Eu a vi bem de perto. Está menos bela. Mas é ela. Vi suas cicatrizes.
Pelo menos Juliana não se enganara jamais a respeito da Benfeitora, o que lhe valera, na época, a hostilidade de suas companheiras.
— Que choque! Eu já a havia esquecido há muito tempo, aquela imunda! Para mim estava morta e enterrada. E eu só tinha ouvido falar sobre a chegada dessa tal de Sra. de Gorrestat. Não tive tempo de ir ao porto para saudar o novo governador e sua mulher. É que tenho um trabalho de responsabilidade na Santa Casa, com todos esses doentes e feridos que nos trazem, índios e franceses. E daí, levaram-nos Henriqueta.
— Que Henriqueta?
— Henriqueta Goubay, a dama de companhia da Sra. de Bau-mont. As duas acabavam de chegar da França com os navios, na primavera. Eu tinha visto Henriqueta. Ela falava de Paris. Estava noiva do intendente da casa da Sra. de Baumont. Estava feliz. E eis que a traziam moribunda ao hospital. Um acidente, disseram... Um tombo! Acorri depressa, pois fizemos parte da mesma confraria, não é verdade? Vi imediatamente que ela estava perdida e, quando me inclinei sobre ela, dizendo-lhe "Minha pobre Henriqueta, diga-me o que lhe aconteceu", já o padre chamado por Madre Jannerot chegava com os últimos sacramentos; ao levantar os olhos, senti um olhar que me atraía, e eu a, vi, a alguns passos, do outro lado do leito, e foi assim que a reconheci, porque ela estava olhando para mim e sorrindo. Julguei que fosse uma visão. O Diabo, e depois compreendi. Deus! que terror! A Sra. de Baumont me dizia que a Sra. de Gorrestat, que era sua vizinha, tivera a bondade de socorrer Henriqueta, quando esta caía do telhado, ao qual subira para verificar se a escada de incêndio estava bem fixada; em seguida ela a mandara apanhar e levar em sua carruagem à Santa Casa, pedira que chamassem um padre. Quem sabe se Henriqueta-não caiu ao vê-la lá do alto e reconhecê-la à janela do palacete vizinho? Quem sabe se a outra não acabou com ela na carruagem?... Quem jamais saberá?... Em todo caso, eu, se não morri na mesma hora, foi porque sou forte e, além disso, eu tinha uma espécie de pressentimento desde que o Resmungão veio me fazer perguntas sobre o La Licorne, dizendo que da França estavam reclamando nossos nomes e situações. E depois, já vi muita coisa para saber que tinha de me defender. Aproveitei a cerimonia da extrema-unção, e pernas, para que te quero! Escapei por uma porta dos fundos da Santa Casa. Primeiro procurei Delfina, e não a achei em casa. Não há tempo, disse a mim mesma. Comecei a correr à procura de Aristides, que estava nos bosques, com seu alambique.
— Essa duquesa é capaz das coisas mais extraordinárias! - resmungou Aristides. - Tive de deixar pela metade a fabricação de uma dessas aguardentes que nem o próprio governador tem em sua mesa, para seguir minha Juliana, na mesma hora, embarcar... sem nem saber para onde!...
— Talvez eu tenha lhe salvado a vida duas vezes - disse Juliana. - Você poderia envenenar-se com sua mistura.
Angélica escutava suas vozes alternadas, sem conseguir se decidir ainda se teriam todos sido vítimas de uma loucura coletiva.
Tinham ocorrido fenómenos anormais, que transtornavam os espíritos simples: as canoas incendiadas no céu, as tempestades, as focas no estreito...
- Em todo caso, Henriqueta está morta - concluiu Juliana -, e se não tivéssemos fugido, logo seria nossa vez.
A Polaca começou a contar a meia voz, com um ar misterioso:
- Quanto a mim, certamente, compreendi imediatamente... Essa "governadora" não me agradou nem um pouco, muito melosa... Mas não é a uma. macaca velha que se ensina a fazer caretas. Disse-me logo de início que vinha a minha casa e me dava sorrisos porque lhe haviam informado que eu tinha a melhor mesa da cidade, depois, pouco a pouco, começou a falar de você: "A Sra. de Peyrad Você conhece a Sra. de Peyrac?", e então, quando eu pronunciava seu nome, Angélica, parecia que ela lambia os beiços, passando a língua pelos lábios.
— Descreva-a para mim.
— Não sei direito. Fora os olhos, que às vezes parecem ouro, às vezes negros como a noite. Mas isso não teria bastado para me abalar a fazer uma viagem. Aconteceu outra coisa... Certa manhã, trouxeram-me um recado do Convento das Ursulinas dizendo alguma coisa sobre meus candelabros de madeira, que eu mandara dourar e que estavam prontos. Só que meus candelabros estavam há muito tempo em meu oratório e não me lembrava de nenhuma encomenda. Mas você sabe que tenho por princípio tratar bem as pessoas da Igreja e procurar agradar-lhes, e, fosse qual fosse o engano, disse a mim mesma que aquela talvez fosse uma forma disfarçada de me mandar dizer que queriam me ver lá em cima. Falei bem alto para todos- me ouvirem que eu ia buscar meus candelabros nas ursulinas e fiz-me levar até lá numa cadeirinha. Na oficina de douração, vi Madre Madalena, que ali trabalhava sozinha; quando ela me viu, pensei que fosse desmaiar, de tal modo pareceu aliviada, como se eu tivesse o poder, por minha aparição, de trazer-lhe a hóstia consagrada.
— Oh! Você veio, cara dama - disse-me, quase beijando-me as mãos. Ela me puxou para perto de sua bancada. - E por sorte - continuou ela, olhando em volta - estamos sozinhas. Oh! Sra. Gonfarel, você, que é amiga da Sra. de Peyrac, é preciso que faça chegar a ela uma mensagem. Você lhe dirá que desta vez eu a reconheci.
- Quem? - perguntei-lhe.
- A Diaba da Acádia. - E, como eu olhasse para ela como se não entendesse, ela disse: - Mas não ouviu falar, boa dama Gonfarel, você, que sabe de tudo, da visão que tive há muitos anos sobre a Diaba da Acádia?
- Claro que sim - disse eu. - Oh! conheço essa visão de cor, como todo mundo, e sei também que tiveram a insolência de associar a ela a Sra. de Peyrac. Mas a senhora a inocentou. E agora diz que viu a verdadeira?... - Bem baixinho, contou-me que ela era a nobre dama que se apresentara no dia anterior com o novo governador no parlatório das ursulinas. De vez em quando uma irmã vinha espionar. Ela dava uma olhada e parecia que Madre Madalena estava sendo surpreendida em falta.
"- Mas, minha irmãzinha - disse-lhe, falando também bem baixo. - Se a senhora está persuadida disso, de que essa dama, que, para dizer a verdade, não me agrada muito, é sua Diaba, então por que não informar o bispo ou seu confessor? Cabe às pessoas da Igreja se ocupar dela, sem mais complicações, e sem meter nossa amiga Sra. de Peyrac nessas histórias de visões, das quais ela já teve o bastante, não acha, minha irmãzinha?...
Ela começou a chorar.
- Eu disse a todos eles...! Mas eles não acreditam em mim.
Compreendendo tudo então, resolvi partir. Você deve ser avisada, você é a mulher que se opõe a ela. E a você que ela procura... para se vingar, ao que parece."
— Ela não me encontrou em Quebec, onde deve ter ido me procurar em primeiro lugar. Quanto a vir até aqui, não vai ser uma expedição fácil para ela. E desta vez estamos prevenidas. Estamos seguras aqui, e um governador do Canadá, novo ou não, não tem aqui nenhuma influência.
— Mas ela poderia ir a Montreal - gemeu Delfina.
— A Montreal!
E subitamente Angélica empalideceu. Um suor de angústia subiu-lhe às têmporas.
Montreal significava Honorina.
Em Montreal havia Honorina.
E se, ao saber que a filha de Angélica estava interna em Ville-Marie, a horrível criatura decidisse ir de Quebec a Montreal para atacá-la?...
Angélica viu refletido em todos os rostos o terror que nela despertava uma tal suposição.
— Mas por que fugiram como lebres? - gritou, voltada para as outras. - Seria preciso, ao contrário, não perdê-la de vista e, se ela partisse para Montreal, subir no mesmo barco que ela!
— No mesmo barco que ela? - repetiu Juliana, abrindo os olhos horrorizados.
- Seria preciso vigiá-la, denunciá-la, impedi-la de fazer malefícios!... Não compreendem?!... Se ela for a Montreal, e se for verdadeiramente ela-, Honorina vai cair em "suas" mãos!...
A Pois " pôs-se de pé como uma bola", saindo da sala batendo a porta.
Voltou um pouco depois, como um pé-de-vento, acompanhada da Sra. Carrère e de suas filhas, que, ato contínuo, lançaram através da mesa escudelas, tigelas, braçadas de colheres e de facas, distribuíram copinhos, plantaram três cântaros de estanho, coroando tudo com duas enormes bacias fumegantes de uma caldeirada de mariscos e de guisado de carne.
Angélica viu-se sentada num banco por punhos peremptórios, que ela não soube se pertenciam à Sra. Carrère ou à Polaca, talvez às duas, diante de um prato e um copo cheios, e com os talheres nas mãos como uma menina, e a Polaca levou-lhe aos lábios o copo de vinho declarandõ-lhe que, se ela não o engolisse na mesma hora, ela a obrigaria a engoli-lo com mais destreza do que o carrasco de Paris, quando lhe derramava duas chaleiras de água fria no estômago para fazê-la confessar que havia roubado duas onças de aguardente do cabaré da esquina.
- Bons tempos aqueles! Claro que sim. Nunca mais voltaremos a eles. Somos livres. Mas não deixarei que nenhuma dessas bandidas de grandes damas envenenadoras venha nos envenenar até aqui. Beba e coma, depois falaremos. Eu disse à patroa: "Minha comadre, a senhora é alberguista. Alimente-nos depressa e bem. Não podemos continuar assim, senão vamos ter um ataque".
Renunciando a pensar, Angélica aceitou partilhar aquela refeição com suas amigas, esgotadas pelas emoções e fadigas da viagem.
CAPITULO XXX
Honorina em perigo
— Vigiá-la?... Denunciá-la?! Você tem cada uma! - disse a Polaca quando elas recuperaram as forças e se sentiram menos enervadas. - Viu o que aconteceu com Henriqueta? E com a Sra. Le Bachoys?... Ela age depressa, essa assassina, e está bem servida. Enquanto nós, diante dela!... Se não acreditaram em Madre Madalena, acha que tenhamos chance de nos fazermos ouvir? Juliana ou eu...?
— Mas então quem vai salvar Honorina? - gritou Angélica, torcendo as mãos.
A distância, o tempo que era preciso para chegar a Montreal, dias, semanas, quase meses, ainda que se tenha sorte, a obtusa inconsciência dos seres, erguiam-se diante dela como muralhas gigantescas que a impediriam de voar em socorro da filha bem-amada.
Precipitou-se para fora e correu para a casa de Colin, que felizmente estava de volta.
- E em primeiro lugar não é certo que essa mulher vá se dirigir imediatamente a Montreal - arguiu Mestre Berne. - Ela e seu esposo têm obrigações para com os cidadãos de Quebec, o que irá retê-los na capital. Depois, a estação estará por demais avançada para uma viagem por via fluvial.
O conselho se realizava na casa do Governador Paturel, para onde se dirigiram depois de ter convocado os Berne, a fim de pô-los a par dos acontecimentos e pedir-lhes a assistência de sugestões e encorajamento.
Colin não fez nenhuma observação quanto à verossimilhança de uma ressurreição da antiga Benfeitora das Moças do Rei. Depois de ouvir atentamente uns e outros, e ter mantido silêncio durante algum tempo, sob os olhares ansiosos das pessoas presentes, não se perdeu em palavras vãs.
Para começar, propôs que se enviasse imediatamente a Montreal, mas por terra, um mensageiro, um emérito explorador dos bosques que conhecia todas as pistas e lugares de transporte, bem provido de dinheiro miúdo, pacotilha ou aguardente para dar aos selvagens, e que se faria conduzir por canoa, o mais rapidamente possível, até Ville-Marie, levando uma carta de Angélica a Madre Bourgeoys recomendando-lhe encarecidamente que zelasse especialmente por Honorina, que não se separasse dela sob nenhum pretexto e que não a entregasse a pessoa alguma. Se ela julgasse conveniente, que prevenisse o Sr. do Lobo. De acordo com ele, que encontrasse uma passagem a bordo de um navio, que a traria, de etapa em etapa, pelo menos até Gouldsboro; A estação ainda permitiria que ela descesse o Saint-Laurent antes da chegada dos gelos.
Angélica voltou ao forte, a seus aposentos, para escrever a carta, enquanto Colin Paturel ia procurar um viajante.
Ela se absorveu na redação de sua epístola, quase embalada pelo ranger da pena de ganso no papel, aliviada de poder fazer alguma coisa por Honorina.
Hesitou em sublinhar para a religiosa o perigo que podia representar naquela oportunidade a mulher do novo governador, a Sra. de Gorrestat, se por acaso ela fosse visitar Montreal. Sob hipótese alguma, não se devia deixar aquela mulher aproximar-se de Honorina. Resolveu falar claro, sublinhando duas vezes o nome da dita Dame de Gorrestat, que era, explicava, sua inimiga figadal e de longa data. Esperava que a superiora a levasse a sério. Madre Bourgeoys era muito sensível e intuitiva, e Angélica pensou que não se deixaria engambelar por uma Ambrosina.
Vez por outra, Angélica .levantava os olhos da carta. Contra as vidraças do fortim, aqueles belos vidros claros vindos da Europa, abatia-se uma chuva de verão, cobrindo-os como pequenas lágrimas. E Angélica via a natureza partilhar suas penas. O mar se revoltara subitamente, batendo na praia com violência como uma lavadeira enfurecida, fazendo as ondas espumarem com uma exuberância tenaz. Ouvia-se a areia mexer-se sob as pancadas.
Alguém batia à porta e, como ela não respondesse, Colin permitiu-se entreabrir a porta sem-esperar seu consentimento.
Tranqúilizou-se vendo-a sentada à escrivaninha junto à janela, escrevendo aplicadamente.
Ele teria feito tudo para aliviar seu fardo.
E disse que havia refletido.
O melhor seria, depois de avisar Margarida Bourgeoys de que um perigo cujos detalhes não poderia explicar-lhe senão mais tarde ameaçava a pequena Honorina, que Angélica lhe pedisse expressamente para confiar a criança ao mensageiro, o qual, reunindo-se a um grupo de tratistas ou índios que estavam deixando o Saint-Laurent e descendo para o Maine, poderia assim trazê-la até Wa-passu. Essa viagem, apesar de mais difícil, seria infinitamente mais rápida que seguir a via fluvial e fazer o costeamento por mar. Enquanto as primeiras neves não caíssem, a expedição seria possível.
- A menina é vigorosa - disse ele. - Foi criada quase à moda selvagem. Passar longos dias em canoa, transpor os trechos interrompidos do rio, dormir em chão duro, tudo isso não lhe custará nada. Ao contrário, ela ficará encantada por ser tratada como um rapazinho canadense. Honorina terá então oportunidade de usar seus pequenos calções de fidalgo, não acha?
Além disso, Colin encontrara o mensageiro e considerava um sinal do céu e um encorajamento para o segundo projeto ter reconhecido nele o mestiço Pedro André, filho de Maupertuis, um dos mais fiéis comensais do início, que Honorina conhecia bem. O rapaz tinha vindo a Gouldsboro pelas montanhas de Vermont, trazendo peles que desejava trocar, nos navios de Boston, por quinquilharias e cutelaria inglesa.
Ele deixou imediatamente seu comércio e se declarou pronto a retomar a pista com seu índio irmão para ir em socorro de Honorina.
Partiu à noitinha.
Angélica fizera-lhe suas recomendações de viva voz, pondo-o a par do que continha a carta urgente, mas insistindo em que o objetivo principal de sua missão era conseguir que Honorina lhe fosse confiada, a fim de levá-la até Wapassu. Colin conversou bastante com-ele a esse respeito. Proveram-no de víveres, de carne-seca, da melhor aguardente, o que lhe permitiria encontrar guias e carregadores sem dificuldade, de escudo* de ouro para os montrealenses. No caminho, disse ele, também se abasteceria de peles, moeda de troca indispensável, tanto mais que chegaria ao final da feira de peles do outono. Contra tudo isso e mais sua habilidade de rapaz da região, suas cumplicidades e sua dedicação, nem todas as manobras artificiosas de uma mulher de governador teriam ganho de causa.
Ele conhecia bem Margarida Bourgeoys, que lhe ensinara a ler, e ela teria confiança nele.
Angélica não conseguiu pregar os olhos, seguindo em pensamento o avanço de Pedro André, transportada em sonho a Wapassu, vivendo aquele momento em que iria poder apertar Honorina contra o coração.
Somente naquele instante o caso da ressurreição de Ambrosi-na deixaria de ter importância. Que os outros se houvessem com aquele demónio súcubo!
Bem abrigados em seu forte de Wapassu, guardados, tanto por seus soldados experientes como pelos gelos do inverno, Angélica e Honorina, com os pequenos príncipes, poderiam esperar a volta da primavera e de Joffrey, aproveitando os dias, que trariam cada qual novas alegrias. Havia as crianças, os amigos, as brincadeiras dos bichos, as visitas dos índios e as mudanças do céu e da terra. Certos dias, a tempestade assobiaria e seriam as vigílias junto à lareira, as narrativas, as canções; e outros dias, o sol dirigiria seu bale de ouro e azul em volta da resplandecente neve, e haveria então as farras das panquecas e merveilles (doce de massa frita, cortada em pedaços, e que se come polvilhada de açúcar) do carnaval e da embriaguez do esqui e dos passeios alegres no frio vivificante.
Colin as recebia a sua-mesa.
Consciente da confusão daquelas mulheres, implicadas a despeito de si mesmas numa série de acontecimentos desagradáveis, em que suas vidas estavam ameaçadas, e sua tranquilidade, questionada, ele lhes oferecia, mais por sua presença do que por seus conselhos, o apoio de que tinham necessidade. Cuidava para que repousassem e se alimentassem, pois sabe-se como uma mulher, esposa, mãe ou amante inquieta perde facilmente o sono, a vontade de beber e de comer.
Por isso, enviava guardas para convocá-las na hora das refeições por solenes convites. E elas reencontravam a calma ao sentar-se em sua companhia. Incitava-as a conversar, encorajando a Sra. Gonfarel a descrever-lhes Quebec. Não se arriscavam a entedíar-se, ouvindo-a. Ás vezes, ele dirigia a Angélica um olhar insistente, a firri de que fizesse um esforço para terminar a porção de alimento que havia em seu prato; sentindo-se cuidada com tanta afeição, a virulência de sua preocupação se atenuava. Ele tinha, como Joffrey, o dom de desdramatizar uma situação sem, contudo, negar-lhe a gravidade.
- Seus filhos são mais sensatos que você - dizia ele. - Olhe como comem bem, como senhores.
Pois as crianças muitas vezes estavam presentes, às vezes com Abigail, Berne e suas filhinhas, Laurier, Severina, às vezes com outros, que ele convidava.
Graças a ele, estavam confiantes e muitas vezes até alegres. Podiam dizer a si mesmos que cada dia que passava permitia ao mensageiro, correndo ou em canoas, por montes, bosques e rios, aproximar-se de Montreal e da menina.
E sempre restava uma esperança, que ajudava a manter sua confiança.
— "Ela" não pode ir a Montreal nesta estação.
— O mensageiro chegará a tempo.
Delfina, rodeada por pessoas amigas, deixava sua expressão acuada, readquiria suas cores.
Um pequeno cúter entrava no porto. Era o Saint-Antoine, do Sr. de La Fallière, que não tinham visto naquela estação.
Sua prole estava, como de hábito, a seu lado e se espalhava entre a população infantil com gritos jubilosos.
O Sr. de La Fallière disse que, voltando de Quebec, passara exatamente pelo censo do Port-aux-Huitres para pegar sua família e embarcara jipvamente, a fim de saber das novidades em Gouldsboro.
— Quando esteve em Quebec? - perguntararmlhe logo, enquanto ele tomava lugar à mesa da Sra. Carrère, diante de um bom queijo flamengo, no qual logo fincou sua faca, começando um bale bem-ordenado entre as salsichas, o naco de pão e a boca, só se interrompendo para empurrar tudo para dentro com um copo de cerveja ou para lançar, como teria feito, com as gaivotas, um pedaço a um de seus filhos, que aparecia, descalço, e o pegava no ar e fugia, enquanto surgia outro.
— Há coisa de um mês - respondeu, entre dois bocados. - Eu queria conversar com o novo governador sobre essas questões de encargos que me foram subtraídos pelo Sr. de Ville-d'Avray.
Mas chegara muito tarde. O novo governador não estava mais lá. Partira para Montreal com a esposa, a fim de se fazer aclamar como vice-rei ao longo de todo o Saint-Laurent.
— Com a esposa!...
— Uma senhora muito gentil, pelo que dizem - comentou La Fallière, que, pouco sutil e trabalhando vigorosamente com as mandíbulas, não percebeu o pesado silêncio que acolhia suas palavras.
— Por que essa pressa em ir a Montreal logo de chegada? - perguntou Colin, traduzindo a pergunta que tremia em todos JS lábios.
— Sabe-se lá!
O senhor de Port-aux-Huitres interrompeu suas atividades gastronómicas para refletir.
- Sim! Ele poderia ter me esperado. Perdi meu tempo. Não podia me arriscar a persegui-los ainda mais longe, pois então eu é que teria dificuldades para voltar a minha família. Os índios dizem que o inverno virá cedo. Eu teria ficado preso nos gelos.
- Então concluiu: - Mas esse novo governador parece que tem fogo no rabo, e sua mulher, mais ainda.
CAPÍTULO XXXI
Antes da partida para Wapassu sortilégio contra a Diaba
Angélica dobrou-se sobre o ombro de Abigail.
- O mensageiro vai chegar tarde demais. Ela vai matá-la! Ela vai matá-la!
Abigail estremeceu, mas manteve-se serena. Seus longos cílios claros baixaram para ocultar o brilho aterrorizado dos olhos. Angélica tinha necessidade de ouvir principalmente palavras confiantes. :
Abigail levou-a de volta a sua casa.
Reunidos a sua volta, todos os membros da família Berne prodigalizaram-lhe múltiplas garantias, demonstrando que a sorte não agiria contra eles.
Marcial calculava o tempo que deveria levar um navio oficial para subir o Saint-Laurent. E, supondo que a Sra. de Gorrestat não fosse imediatamente à casa da congregação, ou que Margarida Bourgeoys soubesse mostrar-se desconfiada, Pedro André teria tempo de sobra para chegar, diziam-lhe.
Ele iria nas casas do vento.
E Angélica abençoava o país do Canadá, que forjara aquela raça de exploradores de bosques, que se podia dizer que eram aptos a realizar façanhas fora do comum, vencendo todos os obstáculos, quando qualquer homem normal se declararia vencido.
Quem podia provar, encareciam, que aquela mulher estava a par da presença da filha de Angélica na ilha de Montreal? Talvez ela o ignorasse. Talvez nunca ficasse sabendo, não?
- Ela não tardará a sabê-lo. É uma pessoa tão perversa!
E só de imaginar Ambrosina, a Diaba, rondando as ruas de Ville-Marie, à procura de Honorina, ficavam arrepiadas. _
De vez em quando, as crianças pequenas, Elizabeth, Apolina e os gémeos, que brincavam juntas, percebiam a ansiedade dos adultos, precipitavam-se~para Angélica e pediam para abraçá-la estendendo-lhe os bracinhos. Carlos Henrique não ousava mostrar-se tão exuberante. Ele se mantinha calado,.à sombra de suas cadeiras, e Abigail, compreendendo que ele partilhava sua preocupação e estava angustiado, pegava-o no colo.'
O gato, por sua vez, ficava de lado, empoleirado, num canto de mesa, franzindo as pálpebras e olhando-os de longe com ar dubitativo.
Gabriel Berne observou-lhes que tudo o que podia humanamente ser feito em Gouldsboro havia sido feito. Era agora ao espírito que deviam recorrer, pois, se o quisessem, todos eles teriam aquelas forças que removem as montanhas.
Frequentemente, quando se encontrava só nos dias seguintes, ela se detinha e olhava a paisagem de Gouldsboro, que jamais parecera tão tranquila, desfiando os dias de uma vida cotidiana sem surpresas. O vento do Diabo soprava. Mas soprava alhures.
Ele seguia, varrendo dessa vez uma área muito mais vasta que aquele pequeno rincão do mundo.
Soprava em certas almas, certos corações. Subitamente, tomado por um terror incomunicável, o indivíduo que via, que sabia, percebia-se estranho ao próprio irmão.
Então, na solidão mortal daquele que é isolado pela maldição no seio de uma multidão indiferente, começavam o encontro e a reunião momentâneos daqueles que são enviados para partilhar a dor ou para partilhar o drama. Um drama cujo desenrolar se limitava a um ato breve, em meio ao desenrolar de outro drama, mais grandioso ou mais hermético. O "porquê" escapava... Não se podia saber tudp. Só se podia ver alguns passos à frente naquele turbilhão. O vento do Diabo soprava, mas ele não soprava para todos.
O segredo ia de um a outro dos iniciados, e, até o último ato, deviam fazer o jogo escondido, sem nem por isso se distrair do jogo das aparências, pleno de ciladas.
Lembrando-se de que havia salvado a vida de Ambrosina, Angélica revoltava-se por vê-la ressurgir para ameaçar sua filha. Era injusto demais!
Ela não queria vítimas. Proibia vítimas. E sobretudo Honorina, a pequena Honorina!
Via-a quando se mantinha, grave e atenta, entre suas companheiras, para fazer a roda, a pequena Honorina na boniteza de seus oito anos, pousando sobre o mundo um olhar confiante e, em sua avidez de viver, de amar e ser amada, sem poder compreender que lhe fossem cruéis, que a repudiassem ou que a rejeitassem sem motivo, quando não fizera nada de mau!
Angélica lançava seu grito inte> ->r, que convocava, do fundo do horizonte, os exércitos dos céus. virem guerrear pela justiça.
"Santo Honório, Santo Honório... Você, erguendo sua cabeça no frontão da pequena capela votiva... construída lá embaixo no vento áspero das alturas do Gatinais, onde se refugiavam os rebeldes do rei... abandonará a criança que lhe foi entregue em seu solo? E batizada com seu nome?!... E você, abade?! Abandona-la-á?
"Lesdiguières! Lesdiguières! Acuda-me!!!"
Ao erguer os olhos para o céu, impelida por um impulso de raiva e de exigências supraterrestrés, viu junto dela as três silhuetas escuras dos escravos-, que ali estavam havia alguns instantes, quatro, se se contasse a jovem Zoé, passando por cima do ombro de sua mãe Akashi a carinha redonda, de um belcr negro brilhante, em que se arregalavam dois grandes olhos atentos.
- Dame Angélica - disse a voz de Siriki, perfurando as brumas de sua desdita -t sabemos o-perigo que pesa sobre sua filha.
Bakari-Temba se propõe a ajudá-la.
- Quem é Bakari-Temba? - perguntou Angélica, depois de fazer um esforço para voltar à realidade.
- O filho de Akashi. Seu filho mais velho. Que veio com ela do país das ervas secas, na África, de onde também sou originário.
Em sua última passagem, Angélica só pudera ver de longe a pequena família do fiel servidor dos Manigault. Ela apenas sabia que a bela Akàshi estava de novo grávida.
Seus olhos dirigiram-se ao menino que Siriki lhe designava. Ele não crescera desde o dia em que Joffrey de Peyrac o comprara no cais dè Newport, e quando Angélica, voltando à consciência depois de uma grave enfermidade, o vira ao lado de Timóteo, o que a fizera acreditar que se encontrava ainda no reino de Marrocos, no harém de Mulay Ismael. Ele não cresceria mais. Isso dava a impressão de que sua cabeça se tornara maior e suas pernas, mais frágeis e mais tortas, enquanto se acentuava a curvatura desviada de um ombro.
— Temba propõe ajudá-la - repetiu Siriki.
— Ajudar-me? Mas como ele pode me ajudar? - espantou-se Angélica, acariciando maquinalmente a carapinha do pobre gnomo.
Siriki lançou um olhar à esposa, e depois, tendo recebido dela um sinal de aprovação, começou um relato que faria com a máxima brevidade mas que era indispensável para que ela pudesse compreender a conveniência de sua proposta.
Na região de onde vinham Akashi e seu filho, uma tradição obrigava as tribos a sacrificar os recém-nãscidos débeis ou enfermos. A dura vida que aqueles negros nus, guardiães de rebanhos, enfrentavam no coração de uma savana infestada de animais selvagens, à margem de uma floresta habitada por raças estrangeiras, antropófagas e primitivas, obrigava os honens a ser vigorosos, guerreiros habilitados em todos os exercícios da caça e da batalha. Não havia lugar para bocas inúteis. As crianças condenadas eram colocadas no alto de um formigueiro gigante, que ficava a pouca distância da aldeia e cujos habitantes carnívoros se encarregavam de eliminar muito rapidamente a mísera existência.
Quando a rainha pôs no mundo - desgraça sem precedentes - uma criança que dava sinais de ser corcunda e deformada, não pôde furtar-se à lei.
O recém-nascido fora levado sem cerimonia aos insetos vorazes.
Dois dias mais tarde, um caçador, que seguia a pista de um leão, passando pela "torre" das formigas, ouviu os vagidos de um bebe. Aproximando-se, verificou que não apenas a criança condenada continuava viva, mas que as formigas tinham "descabanado", como se dizia ali no Novo Mundo.
Diante desse sinal da proteção dos-deuses sobre ela, a débil criança foi devolvida à mãe, a Rainha Akashi.
Sendo o único disforme e desgracioso- no seio daquela tribo de homens e mulheres esplêndidos, crescera cercado pelo medo e pelo respeito por seus dons de magia, que não demoraram a se revelar.
Passaram os mercadores de escravos com seus arcabuzes e pagaram ao rei vizinho da grande floresta para ir provocar os caçadores da savana e atraí-los para fora de suas muralhas.
Aproveitando-se dessa ausência, raptaram todas as mulheres e crianças que haviam permanecido na aldeia.
Foi assim que a rainha e seu filho cambaio se encontraram na costa do Senegal e passaram das mãos de seus raptores árabes às de um negreiro holandês, e depois alcançaram, na primeira escala, Saint-Eustache, depois Saint-Domingue, para acabar caindo, mercadoria invendável e declarada como calamitosa, naquele cais de Newport, no Estado de Providence, uma das sete colónias inglesas do norte da América, onde o lastimável casal atraíra a atenção do Conde de Peyrac, que, por compaixão, os havia comprado.
Naquele momento, sabendo do perigo que pairava sobre a filha de seu benfeitor, o pequeno feiticeiro solicitava a autorização de fazer o que ele chamava, em sua língua do oeste africano, um bilongô, isto é, uma operação mágica.
- Ele viu em sonho a mulher má. Ele assegura que pode fazer alguma coisa para impedi4a de causar danos. Já preparou, em madeira e osso, uma estatuinha semelhante a ela.
Por sorte, a criança africana pudera trazer, em seu êxodo, os principais instrumentos de que tinha necessidade para suas conjurações, e aquela pequena bagagem não lhe fora retirada, pois os escravos eram bem tratados nos navios holandeses, se se mostrassem dóceis.
Como se exibisse seus brinquedos preferidos ou o produto de uma pesca ou de uma colheita de que estivesse orgulhoso, ele entreabriu um saco de pele de antílope e mostrou a Angélica diversos amuletos, cujo uso ela desconhecia: uma garra de pantera na ponta de um cabo peludo, plumas, saquitéis de pêlos, poeiras e pós, anéis de crina de diversos tamanhos.
Numa madeira dura, ele começara a esculpir uma grosseira estátua quie se supunha representar Ambrosina. A cabeça, o pescoço bastavam, disse ele. Seria preciso incrustar-lhe pedras da cor de seus olhos...
— A senhora é cética - reconheceu Siriki, que não desviava o olhar do rosto de Angélica. - É um erro ser cética num momento tão grave, em que a vida de sua filha está em jogo.
— No entanto, como você pode ver, a ciência dos sortilégios de seu pequeno feiticeiro não lhes poupou, nem a ele nem a sua mãe, de serem raptados pelos mercadores de escravos.
Siriki rolou uns olhos brancos, terríveis.
- A senhora esqueceu que os dois plantadores que compraram Akashi por sua beleza em Saint-Eustache e Saint-Domingue morreram nas horas seguintes e sem tê-la tocado? E que foi por essa razão que os ingleses e os franceses das Antilhas procuraram livrar-se dela, enviando a Rhode Island, em desespero de causa, sem sequer ousar matá-la, por medo de atrair desgraças maiores?
Como ela se calasse, ele prosseguiu, numa voz moderada:
- Não sabe que a magia é a arma do fraco? O que resta à mulher, à criança, ao escravo, contra a força obtusa do homem e de suas armas de ferro e de fogo? Mas poucos são iniciados. E eis por que o homem estende incessantemente seu poder sobre o fraco com sua força e suas armas, não lhe deixando nenhuma escapatória. A senhora me dirá que eu também sou um homem, um macho, que engendrei a pequena Zoé, mas, como minha bem-amada Akashi e seu filho, não sou nada mais que eles, pois sou escravo. É preciso ser um homem prisioneiro, ter caído em mãos dos mais fortes para compreender o que pesa sobre as mulheres, as crianças e os fracos. Pois eu passei da fraqueza da criança à do oprimido. - Ele continuou: - Os mercadores de Islã raptaram-me de minha tribo quando eu ainda não atingira a idade de ser enviado pelos meus, armado com duas azagaias, para matar meu primeiro leão na savana, a fim de provar que eu me tornara um homem. Os mercadores árabes me arrastaram pelas areias, me bateram, me deixaram passar fome, me sujaram, mas eu não era suficientemente bonito ou jovem para agradar a um paxá, nem suficientemente forte para servir de carregador; demasiado fraco quando cheguei do outro lado do deserto para ser submetido à operação dos eunucos, eu não era nada, meu corpo estava tão descarnado que não podia sequer honrar o mercador que me vendia. Fui embarcado junto com um lote. Em La Rochelle, Amos Manigault me comprou, por mais inútil que eu fosse, e em sua casa aprendi o culto do Deus que viera para defender os fracos e oprimidos... Pouco me importa que seus adeptos, meus senhores, tenham perdido um pouco a consciência da doutrina. Em sua casa, o Deus crucificado me sussurrava: "Vim para você. Conheça minha língua e conheça meus poderes..." Quando trabalha para a defesa do fraco e do inocente, a magia é o instrumento de Deus.
Tomou fôlego e, antes que ela pudesse interrompê-lo, prosseguiu com mais animação:
- A senhora esqueceu que Jesus foi um mágico e só se fez conhecer por essa arma? Quem mais fraco que aquele Jesus entre os homens de sua época? Um homem do povo, um artesão, trabalhando com as mãos, pobre, cidadão de uma cidade ocupada por povos guerreiros, entre os quais os romanos, de gládio em punho, com seus capacetes, cobertos com couraça de couro e reinando sobre toda a terra! Quem era ele, aquele homem jovem desarmado que não podia, apesar de seu vigor, usar a violência e se impor pela força e pelo manejo das armas?... Tudo lhe fora recusado em sua infância e juventude, exceto a opressão... O poder mágico fez a força. Ele expulsou os demónios que atormentavam as pessoas pobres e que tinham se introduzido em toda a parte, multiplicou os pães, curou os enfermos, ressuscitou os mortos... E seus discípulos, os primeiros cristãos? Gente pobre também, ignorante, o que eles eram sem o milagre diante do qual poderosos, ricos e levitas não puderam fazer nada a não ser se inclinar e até cair de joelhos dizendo "eu acredito"...?
- Siriki, você me atordoa com suas pregações! - suspirou Angélica. - Já não sei o que você está dizendo!...
Imediatamente o grande negro dirigiu algumas palavras em sua língua ao menino, que lhe respondeu em frases loquazes. Em seguida,, tudo se passou muito depressa.
— Ele diz que está certo de possuir os poderes sobre o demónio dessa mulher, se puder possuir um objeto, uma roupa que lhe tenha pertencido, que ela tenha usado ou tocado, e que o melhor seria aparas de unhas ou mechas de seus cabelos...
— Objetos? aparas de unhas? daquela mulher? Você está louco! Quem ousaria conservar consigo a menor coisa que tenha pertencido àquela criatura?... Se houvesse alguém nesse caso, há muito teria jogado tudo ou mandado queimar com o auxílio de rezas. Eu sei que a Sra. Carrère se livrou das agulhas com as quais consertou-lhe as vestes;
O velho Siriki refjetiu e propôs:
- E se fôssemos perguntar as duas mulheres que vieram de Quebec e que vieram recentemente?
O grupo saiu à procura de Delfina e da Polaca. As duas soltaram grandes gritos.
- Um objeto? uma roupa pertencente a ela? Deus nos livre! A primeira coisa que faríamos seria jogá-los no fogo. De qualquer maneira, nós pusemos sebo nas canelas, sem nem ter tempo de pegar nossos próprios trapos!
Afirmação contra a qual se opôs Aristides Beaumarchand, que carregara as valises da Sra. Gonfarel, pois elas eram bem pesadas.
Como a conversa tivesse lugar no Albergue sob o Forte, a Sra. Carrère aproximou-se e confirmou que não só jogara fora as agulhas que serviram para remendar os trajes da duquesa, por assim dizer arruinados no naufrágio, mas também o dedal e os retro-ses da linha que foram usados nesse trabalho. Havia hesitado um pouco com pena de jogar fora tudo, pois os aviamentos custavam caro naquelas paragens, mas preferia aquilo a tudo o que pudesse ter tocado de perto ou de longe ou lembrar-lhe aquela mulher maléfica e envenenadora, que quisera enviá-la "adpatres".
Nesse momento chegou Severina Berne, que ouvira falar de suas investigações. Ela se lembrava de que Tia Ana, em casa de quem morava uma parte do inverno a fim de fazer-lhe companhia, dizia ter recebido da Duquesa de Maudribourg um xale de índia, em agradecimento a sua hospitalidade. Ela havia com efeito hospedado a duquesa num galpão pegado a sua casa. Tia Ana demorou um pouco para compreender o que lhe perguntavam. Sua coabitação com uma diaba não havia, entretanto, alterado em nada sua saúde nem a de sua companheira e criada, a velha Rebeca. Sem ter tido necessidade de utilizar a cânfora, recomendada para expulsar os espíritos malignos da roupa de cama, nem réstias de alho para afastar os vampiros, tinham ambas superado sem danos a sinistra aventura.
O xale, disse ela, que lhe fora dado pela Sra. de Maudribourg, ela nunca usara. O que provava que tinha mais juízo do que parecia. Nem sequer o tocara. Apesar das conversas ajuizadas que tiveram uma com a outra, Tia Ana não sentira simpatia pela Sra. de Maudribourg. O xale ficara no galpão, e vira-o recentemente, num dia em que procurava nos baús uns livros de matemática, além de uma sacola de tapeçaria contendo fitas para o pescoço e objetos de toucador, que a Sra. de Maudribourg esquecera. Tudo devia estar lá ainda, pois, desde aquela época, não tinham tido tempo, nem ela, nem Rebeca, nem Severina, de dar uma arrumada naquele anexo, muito cómodo, que lhe servia de despejo.
Correram até lá.
Tia Ana, que ninguém se dispôs a ajudar, mergulhou alegremente naquele lugar que ela chamava de seu "cafarnaum".
- Ah! Aqui estão os objetos que aquela senhora deixou!
Ela se virava e estendia inocentemente para eles o xale empoeirado, a pequena bolsa de tapeçaria, que, ao ser aberta, revelou colares de fitas, mais um pente, uma escova e - achado mirífico! -, na escova e no pente, cabelos!, que, longos e negros, continuavam ali enganchados.
Diante daqueles vestígios assustadores que ninguém, inclusive Angélica, Severina e a Sra. Carrère, quereria tocar nem por todo o ouro do mundo, e que Tia Ana acabou colocando no chão, o jovem Bakari foi ajeelhar-se.
Olharam-no de longe fazer diferentes passes rituais, resmungando, cuspindo a distância em pequenos jatos, acompanhados de ruídos semelhantes aos silvados da serpente, enquanto suas mãos, com as p"ontas dos dedos juntas, imitavam os movimentos sincopados de cabeças de répteis expelindo veneno em direção aos mencionados objetos.
Temba acabou por recolher, como se impunhasse pinças, o xale, os colares de fitas, o pente e os cabelos, para encerrá-los separadamente em saquitéis diferentes, feitos de pele de bexiga de alce, munidos de um cordão corrediço, e depois colocou tudo num grande alforje de couro mal curtido. Segurou com -urna das mãos o alforje enquanto com a outra segurava a bolsa de "medicinas".
Observaram uma sudação, formada por pequenas contas na fronte larga abaulada da criança, que o molhava como o orvalho brilhando num granito escuro, pois os poros da pele dos negros, muito finos, muito fechados, tornam a transpiração muito difícil.
Dé pé, com as pálpebras baixadas, ele pronunciou uma série de frases num tom monocórdio e com uma expressão de sofrimento, e depois, passando diante deles, saiu,-sem olhar para ninguém.
Lentamente eles saíram do galpão e se despediram de Tia Ana, que a cânfora da matemática e o alho das cogitações científicas pareciam preservar para sempre do ataque dos sortilégios.
Angélica observou no grande Siriki e na alta e soberba Akashi uma cor acinzentada.
— O que foi que ele lhe disse?
— Ele disse que é um demónio muito forte. Muito forte, muito escolhido, assistido por múltiplos demónios. Mas não é preciso ter medo. Quando ele tiver acabado com o espírito principal, os outros pequenos espíritos fugirão como piolhos de um cadáver, e não haverá mais nada a temer da parte deles... Vai ser difícil, muito difícil, mas ele afirma: sua filha será salva. Sua magia será mais forte, pois ele vai recorrer a Zambi, que é o deus do céu, e mais poderoso que o deus da terra.
— Ele corre perigo?
— Pode morrer - sussurrou Siriki. - E Akashi "sabe disso.
Na véspera de sua partida para Wapassu, ela jantou a sós com Colin.
Fez-lhe bem ficar sentada em sua presença, sem ser obrigada a fingir, falar, responder.
A sólida calma que emanava dele e o amor apaixonado que sentia inspirar-lhe adormeciam seu sofrimento como um remédio.
Com boa vontade, conseguiu levar aos lábios algumas colheradas de sopa. Sempre que erguia os olhos, via seus olhos azuis fixados nela.
— Em que está pensando, Colin?
— Eu pensava... Como as mulheres se tornam inacessíveis quando seu filho está em perigo! E como nós, homens, nos sentimos impotentes para defendê-las dessa angústia!
— Você tem mais poder do que julga. Ê bom não ser a única a amar uma criança.
E lembrava-se de Joffrey inclinando-se diante da pequena Ho-norina, ainda um bebé, que lhe perguntava ardorosamente:
- Por que você me ama? Por quê?
E ele, respondendo-lhe, com uma grande reverência:
- Porque sou seu pai, senhorita.
Ela não estava sozinha.
Colin pousou a grande mão quente sobre a dela.
- Você não está sozinha - disse fazendo eco a seu pensamento. - Nosso amor vela por você. Nosso amor vela por ela.
E repetiu com segurança a mesma frase que Siriki havia dito:
- Não receie nada. Sua filha será salva.
A ODISSEIA DE HONORINA
CAPITULO XXXII
Honorina foge da "mulher de olhos amarelos"
Honorina sabia que a mulher de olhos amarelos queria sua morte. E pior ainda!
Quando o olhar da dama caíra sobre ela, no parlatório, sentira-se muito mal.
E de noite sonhara com aqueles olhos amarelos pousados nela. "Dama Lombarda, a envenenadora."
E desde que Madre Bourgeoys se fora, estava habitada por uma doença que a impedia de respirar e quase que de dormir. Se tivesse explicado os sintomas dessa doença à madre enfermeira, talvez ela dissesse que se chamava medo.
Jamais sentira aquela enfermidade.
"Nem a ursa que queria nos matar para defender seu filhote era tão feroz como essa mulher de olhos amarelos..."
Madre Jalmain e suas amiguinhas, que se extasiavam - "Você vai subir numa carruagem cdih a mulher do governador" -, eram estúpidas. Quando a dama voltasse, elas a obrigariam, com um montão de sorrisos e de frases idiotas, a seguir aquela mulher horrível, a partir com ela. E ela sentiria fèchar-se sobre o pulso aquela mão, como da primeira vez, mas desta vez Madre Bourgeoys não estaria ali para intervir. E ela não poderia fazer nada!
Contra isso, nem seu arco e suas flechas poderiam fazer alguma coisa. Se ela tentasse, todo mundo riria e zombaria dela. E ela se deixaria arrastar. E se tornaria prisioneira!...
Quando a avisaram de que a Sra. de Gorrestat passaria à tarde para levá-la à festa, resolveu se esconder. Mas logo a descobririam.
Pensou em fugir. Mas para onde?
"Vou para a casa de meu tio e minha tia do Lobo, perto de Lachine."
Era bom lembrar-se disso.
"Eu tenho uma família!" Fazia parte daquela família. Uma família tem o dever de defender aqueles que pertencem a ela, como nas tribos. Ao passo que, com estranhos, mesmo quando gostam muito da gente, nunca se pode estar segura de que um dia não se afastem. Não se faz parte de sua família.
"Meu tio, minha tia, meus primos", repetia a si mesma com satisfação. E sua tia era tão gentil!
Percebendo que a porta do jardim estava aberta, quase pôs em execução seu plano. Com pena de deixar as duas caixas de tesouros, deteve-se e, por causa dessa hesitação, foi obrigada a acompanhar as outras ao pátio de recreio, para o lanche das dez horas, uma fatia de pão com manteiga e uma pêra.
Honorina colocou o pão e a fruta no bolso de seu avental de algodão. A estrada era comprida, e precisaria comer na viagem.
Sem ser notada, conseguiu voltar para casa e subir ao andar onde ficavam os dormitórios.
Não foi fácil subir no banquinho colocado sobre uma cadeira para alcançar a prateleira. Recuperando suas duas caixas e descendo ao chão sem nenhum dano, Honorina apoderou-se do alforje índio de Mélanie Couture - aquilo iria ensiná-la a não emprestá-lo mais -, no qual guardou seus pertences, e colocou-o a tiracolo.
Agora acompanhava a margem do rio, feliz por ter podido sair do jardim e distanciar-se sem ser notada. Não estava muito certa sobre a direção que devia tomar, avançando hesitante. Uma neblina azulada dava um tom pastel aos arredores, afogava os contornos dos arbustos de vime e os ramos dos salgueiros. A margem longínqua se apagava.
Se a neblina ficasse mais densa, Honorina esperava tornar-se desse modo invisível.
Detinha-se por instantes quando seu olhar era solicitado pela dança nervosa de uma libélula ou pelo zumbido de um enxame de moscas. Permanecia ali, sonhadora, uma pessoinha num vestido de cetim e um blusão de verão, com o alforje batendo-lhe no meio da perna. E, nos ombros, seus cabelos, que escapavam da touca de cambraia de linho branca, punham uma mancha de aurora através das névoas.
Uma voz jovem cantou, por trás da folhagem pendente dos salgueiros, e uma barca de uma só vela, que acabara de ser lançada à água, deslizou, indo chocar-se contra a margem.
O piloto, Pedro Lemoine, um rapaz forte, reconheceu Honorina.
— Passeando, senhorita?
— Tenho de ir à casa de meu tio e minha tia - respondeu Ho-norina, muito importante. - Os Senhores do Lobo, em Saint-Pierre.
Sob uma súbita inspiração, acrescentou:
— Pode levar-me até lá?
— Por que não? - disse o rapaz, com solicitude.
Filho do rio, só se sentia feliz quando manobrava seu barquinho, e não perdia nenhuma oportunidade de saborear, em navegações sem fim, a liberdade de ser seu único mestre, entre o céu e as águas.
Ele a fez subir, sentou-se num banco e, depois de alcançar remando o meio do rio, ergueu a vela quadrada, assobiando.
O vento estava bom. Evitando as correntes, cujas astúcias conhecia bem, o jovem barqueiro não levou duas horas para chegar à gruta onde os habitantes da região de Saint-Pierre arribavam.
Do outro lado da paróquia de Saint-Martin, o nevoeiro se dissipara, e o rio reapareceu sob o-céu azul, luzindo como"uma pele de serpente, agitado por redemoinhos que anunciavam os saltos de Lachine.
Fora um passeio encantador. Tinham cantado, cada um por sua vez ou em coro, todas as canções de seu repertório de escola ou de igreja.
Pedro Lemoine conhecia algumas, pois estivera uma vez nos Grandes Lagos, e ofereceu o primor de uma canção que começava assim:
"Estou de volta das regiões altas
Adeus, todos os selvagens..."
- Você tem de andar mais um pouco - disse-lhe ele, depois de ajudá-la a tomar pé na margem -, mas vou ensinar-lhe um ,atalho. Quando tiver subido até a faia vermelha lá longe, não tome o Caminho do Rei, que dá uma volta muito grande, mas pegue a direita e, após percorrer um bosquezinho,'se encontrará diante de um atalho que atravessa grandes pastagens. A mansão do Sr. do Lobo fica no fim.
Ela olhou-o distanciar-se, continuando suas canções. Que sorte ele tinha de ser um rapaz e poder ir para os bosques, até os mares Doces e até o vale dos iroqueses!
Pôs-se a caminho, confiante, pois reconhecia os lugares. Já havia passado por ali quando viera com sua mãe.
Angélica, antes de deixá-la, recomendara-lhe que fosse ver sua família se ficasse triste. Mas, até então, não ficara triste o bastante para ter vontade de visitá-los. Pois sentia-se muito feliz em casa de Madre Bourgeoys. Seu tio e sua tia tinham ido visitá-la vez por outra, mas fizera-lhes cara feia, nem sabia mais por quê.
Apesar disso, porém, estava certa de que o tio a defenderia.
Ele diria: "É a filha de minha irmã! Não se aproximem!"
Ela também, quando fosse grande, defenderia os filhos de Gloriandra. Diria: "É a filha de minha irmã". Tentou imaginar Glo-riandra com filhos...
Saltava corajosamente. Fazia muito calor. O suor molhava-lhe a testa. O alforje estava ficando pesado. Passou-o para o outro ombro. Perguntou a si mesma se estaria habilitada a defender também os filhos de Florimond e de Cantor.
Cantor, na certa, não quereria. Não tinha confiança nela e a excluía da família. E Florimond era muito espertalhão para deixar seus filhos terem necessidade da proteção de alguém que não fosse ele mesmo.
Seria obrigada a limitar-se aos dois gémeos. Não eram muito jeitosos e certamente ficariam reconhecidos se os ajudasse. E, antes de mais nada, não poderiam discutir, porque ela era a irmã mais velha.
Essas considerações, que lhe absorviam o espírito, permitiram a Honorina percorrer um longo trecho. Ao erguer a cabeça, que conservava inclinada devido à intensidade de suas reflexões, viu diante de si o atalho de que falara Ptdro Lemoine e que atravessava vastos campos em suave declive, onde pastavam carneiros e vacas.
Tomou o atalho. Novamente caminhou com a fronte baixa para não se desencorajar diante da distância a transpor. Julgou quvir, pairando acima dos prados, um ruído de rodas sacolejan-tes e de cavalos galopando, mas não lhe deu atenção. O caminho subia. Ela estava cansada.
Avistou finalmente, do outro lado da encosta, as chaminés da mansão do tio Josselino. Seu coraçãozinho bateu. Logo estaria "em família". Tia Luce viria recebê-la e, quando se inclinasse para beijá-la, Honorina poria os braços em volta de seu pescoço e esconderia o rosto na sombra de seu ombro. Que bom que havia mulheres como a tia Luce, que gostam de crianças e não têm absolutamente medo delas!
Apressava-se, e tinha a garganta seca e ardente, de tal modo estava ofegante.
Chegou ao alto da colina, e o atalho prosseguia diante dela através do planalto, mas agora via, não muito longe, toda a mansão com sua fachada branca um pouco rosada de sol e o belo e grande telhado azul.
Cercas fechavam os campos pelos quais caminhava. Um grupo de pessoas estava apoiado a elas: fidalgos, pois, a contraluz, viam-se os penachos de seus chapéus de plumas.
Acabavam de chegar de-carruagem pelo caminho difícil que, aberto numa extensão de uma légua, era chamado "Caminho do Rei". Eles se interpunham entre Honorina e a casa do tio. Uma mulher usando muitos babados estava entre eles.
Ao reconhecê-la, a menina parou, petrificada.
A mulher de olhos amarelos!...
CAPITULO XXXIII
Salvamento in extremis
Naquele galpão empoeirado para onde a levaram, atrás da casa de madeira, vetusta e desabitada - o proprietário estava na França -, que um jardim malcuidado isolava das outras moradias e da rua, eles a olhavam sem piedade, insensíveis a-seu terror.
- Ela é mais malvada que todas as freiras reunidas - disse Ambrosina, rangendo os dentes -, mas não adiantou nada ficar com medo e fugir de mim.
Examinou a pequena forma, trémula, de pé diante deles, e se deleitou em imaginar, por trás daquele rosto redondo de criança aterrorizada, o rosto de Angélica, desesperada.
Rejubilava-se e estremecia de alegria histérica. Enfim, poria em ação a vingança meditada durante tanto tempo.
- Voltaremos para buscá-la - disse ela -, e então nos divertiremos muito com você, meu amorzinho!... Você se arrependerá de ter nascido e de ter sido filha de sua mãe!
Ela se aproximava rapidamente, e seus olhos luziam cada vez mais.
- Sim, pode lamentar ser filha dela! Escute bem. É por causa dela que vou fazê-la perecer sob os tormentos... Quer experimentar o que lhe reservo?
Agarrou uma mecha de cabelos que saía da touca e puxou-a com tanta violência que-arrancou um pouco de carne. Honori-na não deu um grito. Ela abria a boca, e não saía nenhum som.
Ambrosina explodiu numa gargalhada.
- Estão vendo, ela ficou muda de medo!... E inútil preocupar-se. Ela não chamará ninguém. E não é preciso pôr corrente na porta. Não se mexerá tampouco. Retiremo-nos. Perdemos bastante tempo perseguindo-a. Poderiam estranhar minha ausência. Depois das cerimonias, voltaremos... E a levaremos... para onde, vocês sabem.
Apesar do que ela dissera, eles puseram a corrente, e Honorina ouviu a chave girar no cadeado.
Isso não mudava nada. A mulher de olhos amarelos tinha razão. Ela não fugiria, pois não podia se mexer.
Honorina experimentava um sentimento de vergonha terrível e de raiva contra si mesma. Isso lhe provocava mais dor do que o ferimento junto à fronte e do qual sentia o sangue correr num filete na têmpora e na face.
A serpente que adormece a lebre.
"Eu sou a lebre." Quanto mais o terror crescia, mais ficava paralisada, em vez de correr e lutar! Abria a boca, e não saía nenhum som, nunca mais sairia. "Estão vendo, ela ficou muda!", dissera a mulher, num riso execrável.
Nunca mais iria correr, rir. Seu pensamento estava congelado em sua cabeça. Seu coração derretia. Tinha a impressão por instantes de desaparecer no fundo de si mesma, como se estivesse se afogando, e depois voltava à superfície e então era mais horrível do que antes, porque agora se lembrava.
O tempo passava, o tempo durava... a sombra avançava.
Ouviu um alarido longínquo, ruído de vozes, atravessado por um riso demoníaco.
"Eles" estavam voltando.
"Quero morrer."
A porta se abria...
Não era a porta, mas uma tábua que fora deslocada na parede vacilante da cabana e, pela fresta de luz, deslizou uma silhueta frágil e flexível. Honorina reconheceu a jovem índia Catarina, com a qual se divertira muito no parlatório, no dia da festa.
"Kateri! Kateri!", quis gritar. "Salve-me!"
Mas a iroquesa não podia ouvir aquele grito interior, que não ultrapassava os lábios, nem vê-la, pois a penumbra aumentara.
"Ela é quase cega!... Não me verá! Estou perdida!"
Desmaiando-de aflição, repetia-se: "Ela não me verá! Ela não me verá!!!" Até o instante em que compreendeu, num delírio de alegria, que fora por causa dela que Catarina Tetakwita entrara no celeiro, que era a ela, à pequena Honorina, que estava procurando.
Pois, distinguindo-a finalmente, imóvel em seu canto como uma estátua, como um totem de madeira, deu um suave e triunfante sorriso.
Do lado de fora, as vozes, o riso satânico se aproximavam.
A indiazinha pôs um dedo sobre a boca. Fez sinal a Honorina para que a seguisse. Depois, compreendendo que ela não podia mover-se, levantou-a em seus braços franzinos.
Tendo vindo buscar sua inocente vítima para uma imolação abominável, os que chegavam, parados diante do galpão e seguros da impotência da menina, não se apressavam em girar a chave. Saboreavam antecipadamente os prazeres malsãos - os únicos de que a maioria deles, perdidos de vícios e deboches, ainda podia se prevalecer - que inspiram aos homens depravados o terror e as torturas infligidas ao fraco e indefeso, submetido a seu poder. Os demónios trocistas que se agrupavam atrás de sua egé-ria, prontos para assisti-la em seu cruel e luxurioso divertimento, lembrar-se-iam mais tarde de que, ao se aproximar, tinham visto uma mulher índia carregando uma criança, e cuja fina silhueta, envolta num xale vermelho, desaparecera na curva do caminho.
- Oh! Catarina! Você me salvou! - disse Honorina, pondo os braços em volta do pescoço da jovem iroquesa. - Oh! Catarina, você me salvou in extremis!...
OS FOGOS DO OUTONO
CAPÍTULO XXXIV
Notícias de Honorina
Pelas trilhas do Maine americano, entre o Kennebec e o Penobscot, caminhava a caravana e, sob os ramos das árvores, crianças pequenas filosofavam.
— Quando a Desgraça vem, o Senhor Gato não vem.
— Como é a Desgraça?
— E um homem preto com um saco nas costas.
— Será que a Desgraça vai comer o Senhor Gato?
Carlos Henrique e os gémeos discutiam sobre a ausência do Senhor Gato, que desaparecera no momento da partida da caravana para Wapassu, o que os privava de seu companheiro de brincadeiras até a estação seguinte. E Angélica não gostava disso. Não que temesse pelo Senhor Gato. Ele sempre reaparecia triunfalmente nos lugares onde lhe agradava estar. Mas Angélica não podia deixar de pensar que, se ele a abandonasse, é porque devia ter sérias razões para isso.
E, enquanto os passos das mulas, que levavam as crianças, e os de seu cavalo ressoavanriia trilha pedregosa, ela se perguntava se o gato não estaria fugindo da maldição da Diaba sobre ela, como dos miasmas contagiosos.
Era sobre isso que conversavam ás crianças, cada uma bem segura em sua poltroninha assentada sobre a mula, atenta à cavalgada. Não tinham ficado surdas às conversas que haviam agitado Gouldsboro e, pelo que Angélica compreendia daquela importante discussão, da qual Carlos Henrique era ao mesmo tempo intérprete e comentarista - pois a linguagem dos gémeos, que eram aliás muito loquazes, exigia por vezes esclarecimentos -, tinham forjado em suas cabecinhas uma imagem gigantesca e sombria daquela Desgraça, que haviam sentido planar sobre os adultos inquietos.
— Eu não quero que a Desgraça coma o Senhor Gato - disse Gloriandra., cujos lábios róseos tremeram à beira dos soluços.
— O Senhor Gato não se deixa comer - tranqúilizou-a logo Angélica. - Ao contrário, ele é bem capaz de furar os olhos da Desgraça.
— Mas a Desgraça não tem olhos - respondeu-lhe Raimundo Rogério, olhando-a com ar altivo e arregalando as pupilas marrom-escuras, contrastantes com os cabelos encaracolados çastanho-dourados e a tez alva. Quando ele fitava alguém daquele modo, só se podiam ver-lhe os olhos.
Angélica gostava daquela tagarelice durante o caminho.
Um por vez, colocava-os-na frente de sua sela e, durante algumas horas, pela intimidade dos braços em torno de um pequeno corpo confiante, sentia palpitar aquele pequeno coração movido por impulsos novos e aquele espírito desperto como o de um pássaro ao acordar, em seus primeiros cantos. Tecia assim os laços estreitos e calorosos entre ela e eles, que se fortaleceriam e se enriqueceriam ao longo de suas vidas. "Meu filho!" "Milha filha!" "Minha mãe!"
Os olhos azuis de Gloriandra e seus cabelos negros, mais belos que a mais bela das noites, a beleza-feiúra^ de Raimundo Rogério, o "conde ruivo", que, a vida toda, fascinaria sem que se pudesse determinar por quê, e em que sentia aquela determinação de combate que devia ter sido a de Joffrey criança, quando decidira recusar a morte, no cesto do aldeão católico.
E depois aquele Carlos Henrique, a criança estrangeira, marcada pelo destino, garoto valente, com tanta alegria contida quando o pegava por sua vez sobre o cavalo, lembrava-lhe o olhar da criança desaparecida cujo nome ele usava.
O alce é um animal melancólico, de temperamento soturno, que aprecia a umidade.
Em seu trajeto, costumavam passar por um laguiriho verde-luminescente, onde sempre viam, tomando água, um alce, cujas galhadas soberbas se abriam como asas contra o céu.
Angélica estava quase convencida de que era sempre o mesmo animal, um pouco maior a cada ano, e que vinha esperá-los ali.
Dizia-lhe: "Bom dia, guardião do Kennebec".
Depois disso, as crianças passaram a repetir a saudação.
Levaram quase um mês para tornar a subir o Kennebec e chegar a Wapassu.
Como a estação ainda estivesse no início, nada apressava a caravana, e podiam parar nas etapas já familiares.
Em Wolvich, aldeia inglesa do Maine onde nascera seu amigo-inimigo Phipps, Angélica pensava encontrar Shapleigh, o homem das ervas medicinais. Ele não apareceu e, lamentando não tê-lo visto, assim como a sua esposa índia, seu filho e sua nora, que amamentara Gloriandra, prosseguiram em sua rota. Angélica estava igualmente contrariada por não tê-lo encontrado, pois suas provisões de casca de quinina para a malária estavam no fim, e ele era o único que poderia fornecê-la.
O estuário do grande rio desdobrava sua rede complicada de múltiplas penínsulas e ilhazinhas, cobertas de pinheiros negros, cujos ramos baixos mergulhavam na água.
Todos os verões, os piratas das Pequenas Antilhas subiam as primeiras milhas de seu estuário, numa vaga esperança de Eldorado, para chegar ao posto do holandês Pieter Boggen, na ilha de Houssnock, cujas maiores riquezas eram representadas pelo fabrico de grandes bolas de pão de trigo, que os índios da região apreciavam muito, e barris de cerveja.
Os piratas consolavam-se em torno de uma panela de sua mistura fervente, cujo segredo era conhecido pelo holandês, na qual entravam dois galões do melhor vinho madeira, três galões de água, sete libras de açúcar, aveia moída fina, passas, limões, especiarias... tudo isso flambado numa grande tigela de prata.
Passaram em seguida ao largo da missão desativada de Norrid-gewock, que fora do Padre d'Orgeval, detiveram-se alguns dias na mina de Sault-Barré, mantida pelo irlandês 0'Connell. Desde que ele se casara com a parteira Glória Hillery, seu génio melhorara um pouco.
Durante essa viagem houve apenas um incidente, mas de monta.
Um pouco depois que deixaram a mina de Sault-Barré, os primeiros carregadores retrocederam, com uma fisionomia alterada, dizendo que tinham visto iroqueses em grande número. Fazia anos, desde o drama de Katarunk, que se desenrolara naquelas paragens, que nenhum grupo de iroqueses, que vinham no verão para pilhar e matar, fora observado na região. - .
- Não eram huronianos?
Mas os indígenas eram categóricos. Seu instinto, arduamente aguçado pelos massacres do passado, não os enganava. Alguns começaram a deslizar para a retaguarda da caravana, com a intenção de fugir. Os soldados da vanguarda vieram se agrupar junto a Angélica e as crianças.
Ela se mantinha montada e, olhando a sua volta, reconheceu que não estavam longe do lugar denominado angra das Três Nu-trizes. Muitas construções tinham sido ali erguidas em seguida, pois dali se prosseguia por. água, com as montarias, em balsas.
- Tentemos continuar até aquele posto - propôs Angélica. - Poderemos nos reunir e construir um campo de defesa, se for preciso.
Não estava realmente preocupada. Tinha em suas bagagens a "palavra" das Mães das Cinco Nações Iroquesas, que já lhe fora útil em Quebec.
Com os olhos procurou acima do rio o vigia, que não devia estar longe. E eis que, na outra margem, entre as árvores, tão imóvel quanto as árvores, segundo seu hábito teatral, ela reconheceu Utakê, o chefe dos mobawks.
Era ele, apesar do penteado diferente.
Seu penacho estava mais curto e rígido como uma escova, engomado com cera tingida com vermelhão e atravessado por uma única pluma de corvo preta.
Estava sozinho. Mas, tão longe do vale dos Cinco Lagos, podia-se supor que nao fora sozinho até aquelas regiões inimigas e que cada árvore da floresta ocultava um iroquês à espreita.
CGonnell, que escoltava a caravana até a próxima etapa, respirou ruidosamente.
A última vez que os iroqueses haviam passado por ali, ele perdera tudo naquele horrível incêndio de Katarunk, toda a sua reserva de peles. Esperava que não fosse começar tudo de novo...
Utakê levantou a mão e saudou Angélica, dizendo:
- Saúdo-a, Orakawanentaton!
Para maior solenidade, ele enunciava o nome completo que eles lhe haviam dado e que era o da estrela Polar, "aquela que nos guia no firmamento e não se desvia da rota salvadora que indica".
Ela respondeu:
— Saúde a você, Utakewata.
— Viemos lavar as ossadas de nossos mortos - anunciou Utakê.
O rio era estreito e podiam falar um com o outro, sem levantar muito a voz. Havia como que um eco, que ricocheteava na superfície da água.
- Chegou o momento de prestar homenagem a nossos mortos de Katarunk. Não podemos ainda levá-los para os seus, para o grande festim dos mortos, mas devemos lavar seus ossos e envolvê-los nas roupas de castor novas para honrá-los. Ficariam zangados conosco se não os visitássemos, a eles, nossos irmãos e chefes, assassinados traiçoeiramente em Katarunk. Mais tarde, voltaremos para levá-los ao país das Casas Compridas, que é seu lugar, mas, hoje, eles precisam receber nossa visita e ser consolados por nossa presença. - Ele continuou: - Não poderemos, infelizmente, contar-lhes as façanhas da grande Federação Iroquesa. As promessas que lhes fizemos, a você e a seu esposo Teconderoga, e também a Onôncio, acorrentam os orgulhosos
iroqueses, prisioneiros como mulheres em suas aldeias e em suas culturas, o que lhes fará perder o gosto pela arte da guerra, enquanto esses cães huronianos, assim como os algonquinos nómades, vermes da terra, aproveitam para aguçar o gume de seu machado e polir a bola de seu tomabawk. Mas que importa! Demos nossas palavras e não voltarei atrás. Para agradá-la, lancei meu grito: osquenon, que quer dizer "paz". E não o retiro, e torno a repeti-lo.
Ele levantou o braço mais uma vez e lançou seu grito:
- Osquenon!...
que foi repetido, num grande clamor surdo, pelos invisíveis guerreiros, escondidos por trás das árvores e do mato cerrado.
- Osquenon!...
O grito de paz sozinho causava mais impressão do que qualquer grito de guerra da Europa.
Utakê reiterou suas promessas e a garantia de que só vinha acompanhado por cerca de duzentos guerreiros encarregados de representar as Cinco Nações junto aos antigos falecidos - o que fez estremecer seus interlocutores -, para cumprir um dever sagrado e tradicional, e afirmou que suas intenções eram pacíficas e ninguém sofreria com sua passagem pela região se não tentassem atacá-los e impedi-los de atravessar o Kennebec para voltar para casa.
— A cerimónia deve durar de seis a oito dias. Durante esse tempo, permaneçam em seu acampamento um pouco mais acima, e que ninguém se mexa antes da hora. Quando souberem que a festa dos mortos terminou, estaremos bem longe e não haverá risco de que um só dentre nós possa ser preso a traição.
— Como seremos avisados de que a cerimónia está encerrada e que podemos continuar viagem?
— Uma águia sobrevoará seu acampamento.
— "Uma águia sobrevoará o acampamento!" Eis aí! E muito simples! - resmungava 0'Connell. - Como querem que nos habituemos a viver nestas regiões? E dizer que eles vão se munir de magníficas peles de castor, que representam uma fortuna, para envolver velhos despojos de esqueletos ou de corpos apodrecidos, cheios de pus e de vermes, e enterrar tudo isso em seguida. Que desperdício!
Mas ele teve, como os outros, de suportar com paciência seu desagrado no acampamento durante os seis ou sete dias que durou a festa dos mortos.
O antigo Katarunk não ficava longe, e por vezes vogava no cimo das árvores um rumor de tempestade, um longo grito: "Haê! Haê!"
— Este é seu grito de guerra?
— Não. Este se chama o grito das almas!...
Quando uma águia sobrevoou o acampamento, tão alto, tão tranquila, ninguém queria acreditar. Puseram-se novamente a caminho, um pouco timidamente. Não aconteceu nada...
As últimas acácias, as primeiras grandes massas de coníferas, carvalhos e tulipeiros se espaçavam, e depois as colónias reais dos aceres, cujas variedades se distinguiriam melhor quando os fogos do outono viessem colorir de púrpura suas folhas pontiagudas.
Seguindo as linhas dos cimos, atravessavam as florestas refrescantes que guarneciam os picos dos maciços graníticos, e do alto avistava-se a peneplanície estrelada de lagos glaciários, depois as montanhas mais elevadas do Maine, apontando ao longe num céu azul, tomaram feições soberbas, como a irrupção dos cantos de coros solenes ou dos metais e trombetas de uma ampla orquestra.
Um brusco frio de algumas noites iluminou o ouro palpitante das bétulas, cujas frondes ostentavam ainda todos os verdes do verão. Os dias permaneciam escaldantes e era preciso parar nas horas mais quentes.
Delírio, orgia de cores...
A montanha ao longe, malva, os aceres rosa, vermelho-cereja, e o ouro novamente, o ouro-verde, o ouro-mel, âmbar, refletindo-se nos lagos de um azul-escuro que se tornavam prateados no centro e violeta-escuro ou esmeralda ao longo das margens.
Angélica pensava em seu irmão Gontran, que saberia pintá-los nos tetos de Versalhes.
Nas profundezas dos bosques, onde se mexiam clarões de fornalha, o gaio azul lançava seu grito estridente.
Mais adiante, reencontraram cavalos. A caminhada não apresentava mais as dificuldades da primeira viagem, uma ponte atravessava o desfiladeiro da Tartaruga, onde o sinal dos iroqueses estava erguido diante de Angélica, parecendo interditar-lhe o acesso às regiões do outro lado.
Dois dias antes de chegarem, uma tempestade arrastou torrentes de água através da pista praticável que seguia um leito de rio seco.
Foi preciso mandar de volta os cavalos, deixar a maior parte dos fardos à espera num esconderijo cavado no flanco de uma falésia e continuar a pé, contas crianças levadas aos ombros.
O bom tempo voltou. Os dois dias de marcha e de escaladas à margem das cascatas que marcavam os saltos, trechos de rio interrompido, passaram rapidamente, como um passeio.
E chegou o momento, sempre apreciado, em que, chegando a floresta, puderam ouvir o mugir das vacas que, nas cercanias de Wapassu, nos vastos espaços pantanosos, atualmente drenados, pastavam pacificamente.
Às margens do lago cor de ardósia, com tonalidades profundas, os caniços dourados erguiam as hastes rígidas, enquanto entre eles se esgarçava o ruivo milha, onde foliavam os animais de caça.
Ela avistou também, na falésia, os traços do Velho da Montanha, realçado pelos raios de sol do entardecer. E seu coração se corifrangiu ao pensar em Honorina, que se entristecia tanto por não conseguir vê-lo. Não_parava de pensar em Honorina. Mas esforçava-se por não dar asas à imaginação, recusando-lhe insistir sobre as provas cruéis que tinham marcado a curta vida da criança no passado e sobre as ainda mais cruéis e atrozes que a ameaçavam no presente ou num futuro próximo. _ -
Mantinha o espírito imóvel num nível de confiança onde se inscreviam em letras sobre pedra estas palavras: "Você será salva, minha filha".
Pouco importava como.-De preferência seguindo o périplo do mensageiro. Contava as etapas, depois as providências que precisariam ser tomadas para a "evasão" de Honorina.
Os prognósticos mais otimistas não permitiriam esperar que Honorina os aguardasse em Wapassu, mas logo a veriam chegar com Pedro André.
Em Wapassu, tudo estava no devido lugar: os estábulos, seus aposentos, as salas comuns, os entrepostos, o grande poço no pátio de entrada, e dois outros internos, nas cozinhas, como se encontravam nas casas quebequenses e montrealenses.
Mulheres, crianças dedicavam-se a suas ocupações.
Suspendiam as brancas roupas estendidas nas margens, perto da água marrom, a água humosa, que lava melhor do que todas as outras.
Passagens de gansos selvagens permitiram a confecção de conservas saborosas.
Dos wigwams em forma de domos do pequeno acampamento indígena subiam, eretos como de um incensório, filetes de fumaça preguiçosa.
Do torreão, Angélica demorou-se na contemplação da noite que descia sobre os grandes espaços escalonados até o horizonte, e cujos dourados e púrpuras se apagavam, sufocados pela sombra que avançava.
A bandeira azul com escudo prateado de Joffrey de Peyrac flanulava acima do forte.
Entretanto, a calma idílica de Wapassu ocultava outra face.
Na euforia do retorno e da alegria de reencontrar sua casa, ela não se deu conta disso, a não ser dias mais tarde.
Subitamente, o estabelecimento pareceu-lhe despovoado. Faltava a maioria dos homens, inclusive Porgani, o italiano. Sua proficiência na guarda e proteção do posto, na ausência do Sr. de Peyrac, demonstrada em diversas oportunidades, designava-o como chefe inconteste. Surpreendeu-se por não vê-lo vir a seu encontro. Antine, o coronel do contingente de mercenários, que ele havia agrupado em seu cantão helvético de origem, o substituía, diligentemente. Ele e seu adjunto Curt Ritz continuavam a assumir a defesa militar, mas não tinham sob suas ordens mais que três soldados. A explicação que lhe deram foi a de praxe, e não constituía motivo de preocupação.
Os outros todos, disseram-lhe, participavam das grandes caçadas de outono com as tribos metallaks.
No primeiro outono em que vieram, despojados, sem provisões e quase sem teto para a invernada, a grande caçada que precede o frio, e da qual participaram as tribos convocadas por Mopuntuk, o chefe dos metallaks, permitira-lhe sobreviver por vários meses. Desde então, ela se tornara uma tradição.
Como naquele belo verão indígena que se evocava, uma excepcional demência do outono presente conferira à expedição um caráter festivo. Tomás e Bartolomeu, os dois filhos de Elvira, tinham recebido autorização de participar. As mulheres e crianças que ficavam atribuíam tanta importância às festividades previstas para a volta triunfaLdos caçadores como às preparações mais modestas, que eram sua atribuição no momento, no fim da estação: colheita de bagas, posteriormente secas em peneiras trançadas, ou de cogumelos, enfiados em cordões e estendidos como rosários entre as vigas dos tetos.
Essas tarefas miúdas exigiam muito tempo de mão-de-obra, e Angélica, desde a primeira inspeção, viu que nada fora feito ainda, e que faltava muito para isso.
Notou também que os repolhos, do outro lado da encosta, não tinham sido cortados e virados para congelar com os primeiros gelos. Uma parte ]á devia ter sido posta em barricas na salmoura para o Sauerkraut, que ajudava a combater o escorbuto.
Deram-lhe como desculpa que tinham ficado com medo de que faltasse sal. Com efeito, ela estava trazendo algumas sacas de sal, carregadas nos lombos das mulas ou nas costas dos homens. Para convencer os soldados, disse-lhes que fossem cortar os repolhos com seus facões, lembrando-lhes que o Sr. de Peyrac fazia questão de suas barricas de chucrute e que ficaria descontente se não fossem cortados.
- Sr. Antine, restam-lhe poucos homens, o posto não está meio desguarnecido? E se acontecesse alguma coisa?... Sei lá...
Mas os felizes moradores de Wapassu voltaram para ela olhares espantados. O que iria acontecer em Wapassu? Um forte que reunia a sua volta uma,aldeia e que todos, num perímetro de centenas de léguas se habituaram a considerar, apesar da construção franco-inglesa, como a parada, a baldeação, o refúgio indispensável, o ponto »eutro em que podiam se realizar parlamentaçÕes e se concluir acordos de comércio ou de aliança. A atmosfera ali encontrada lembrava, conforme diziam algumas pessoas que haviam viajado para os paises da África, essa trégua que se estabelece em volta dos pontos de água quando, ao crepúsculo, leões e gazelas vêm ali beber, lado a lado.
Angélica gostaria de crer nessas boas palavras.
O sol permaneceu imutável.
Cada dia ganho era a garantia de uma viagem mais segura para Honorina, sem ter de enfrentar os tornados, árvores quebrando-se sob o vento, o risco de as canoas virarem.
O menor rumor à fímbria dos bosques fazia-a esperar a caravana de Pedro André, o mestiço.
Certo dia, um índio, que rondava o forte, aproveitou que ela saía da muralha para abordá-la. Ele lhe fazia sinais para que o acompanhasse, sem qualquer explicação, apesar de suas perguntas, contentando-se em multiplicar os sorrisos e piscadelas, e acentuar sua mímica importuna. Eia acabou por dizer a si mesma que ele queria levá-la até os seus, mulher ou criança doente, e resignou-se a acompanhá-lo.
Ele subiu a colina atrás do forte, atravessou o bosquezinho que coroava a crista do monte, depois tornou a descer, certificando-se de que ela continuava a segui-lo, até o fundo de uma ravina escavada pelo leito de um regato, ressecado pelo verão.
Ali se erguia, na encosta da margem, um soberbo e gigantesco arbusto de sumagre, de um vermelho mais flamejante que a sarça ardente que apareceu a Moisés. Dessas folhagens e daqueles ramos glorificados pelas cores do outono, a voz que se elevava, de um ser escondido nas copas, parecia menos próxima de querer entregar uma mensagem divina, como para o genro de La-bão, que de procurar imitar o rugido de um urso irascível.
Havia como que um ronco de borborigmos, rosnados indistintos entre os quais Angélica acabou por distinguir, em francês, este chamado:
— Vizinha! Vizinha!
— Quem é você? - perguntou ela.
— Seu vizinho.
— Mas qual? Apareça.
— Está sozinha?
-• Sozinha? Sim... fora esse índio que me trouxe até aqui.
Alguma coisa se mexeu nos arbustos. Tinha a aparência, o peso e a robustez de um urso, e um explorador dos bosques canadense, cuja touca vermelha se confundia com as folhagens de sumagre, apareceu.
Ela o reconheceu pelas botas.
— Sr. Banistère!
— Pode chamar-me Banistère de La Case. Ganhei meu processo de nobilitação.
— Felicito-o.
Uma silhueta mais baixa deslizava junto dele. Era o mais velho de seus quatro filhos.
- Venham ao forte vocês dois para repousar e refazer suas energias.
O arrogante Banistère olhou em torno, suspeitosamente.
- Nem por sombra! Não quero de modo algum ser visto, nem q ue se possa dizer que fui visto em sua casa. Julgam-me a caminho dos mares Doces, e deixei minhas canoas e carregamentos em Sault-Maagog. Fiz um desvio enorme para chegar até aqui, pelo tabernáculo de Nosso Senhor! Mas era preciso que eu falasse com você em segredo.
Com um sinal imperioso, ordenou ao índio que se aproximasse, e com outro disse ao filho que desse um passo à frente. O índio, agitado e sorridente, estendia uima garrafa revestida de casca de árvore, costurada e vedada com resina, enquanto o garoto, puxando um barril por sobre o oimbro, destapou-o e despejou no recipiente uma medida de bebida. Um forte cheiro de álcool elevou-se como um incenso acre, imisturando-se aos aromas de folhas secas e de frutos dos bosques que reinavam naquela concavidade do barranco superaquecido.
A um sinal sem réplica da mâo de Banistère, que era grande como uma raqueta, o índio se escondeu.
-i "Eles" matariam pai e mãe por um pouco de álcool - murmurou Banistère, com desprezo. Lançando um olhar ao filho, arrancou-lhe o gorrinho. - Costuma-se saudar uma dama quando se é um senhor francês da província do Canadá. Ele mesmo mantinha grudado na testa baixa seu próprio chapéu. Angélica quis insistir em convidá-los para ir a sua casa, mas ele pôs um dedo sobre os lábios e se apr.oximou dela, enquanto seus olhos não paravam de vigiar os arredores.
Ele sempre se julgara perseguido pela sociedade de Quebec, e sua desconfiança não parecia pronta a se dissipar, apesar do êxito de seu processo. Sussurrou:
— Venho trazer-lhe notícias da pequena vizinha, sua filha!...
— Minha filha! Honorina!
— Psiu! - ordenou mais uma vez.
— Honorina! - repetiu Angélica, baixinho. - Oh! Diga-me, eu lhe suplico. Onde ela está?
— Ela está com os iroqueses.
CAPITULO XXXV
Atchonwithas, a feiticeira - Um ataque de surpresa
Era uma clara manhã do início de outubro. Um súbito sabor no ar fazia pensar nos dias de inverno.
Um frescor que açoitava o sangue e vivificava as ideias.
Angélica sempre se lembraria desse momento, em que o peso que a oprimia se aliviara. Honorina estava salva.
Passava contudo por todas as fases do terror e da angústia, da cólera impotente, ao compreender que seus pressentimencos não a tinham enganado, que Ambrosina ressuscitada procurara, por todos os meios, vingar-se dela sobre sua filha. Estremecia ao descobrir com que habilidade a horrível mulher se empenhara em afastar da pobre menina todos os que pudessem defendê-la e protegê-la, e ao saber da sanha que empregara para encontrá-la novamente, quando a criança conseguira escapar-lhe.
Por isso, diante do medo retrospectivo que experimenta.va, sua decepção por o mensageiro póf ela enviado não ter vencido Ambrosina, pouco faltando para isso, ao que parecia, e por saber que sua filha se encontrava agora tão longe, a mais de seiscentas milhas de Wapassu, se apagava frente à certeza de saber que ela estava em segurança, graças à intervenção de uma jovem cristã iroquesa, que conseguira subtraí-la aos projetos criminosos de seus perversos carrascos.
Depois de ter crivado de perguntas o pobre Banistère, menos ágil que ela, e ter sabido o essencial, deixou-o fazer o relato a sua maneira. .
Tudo acontecera por causa da mulher do novo governador, disse ele, a Dame de Gorrestat. E, por sorte, nenhum dos governadores que até então tinham vindo para a Nóvã França trouxera esposa. Pois aquela valia por doze. Ao mesmo tempo, em Montreal, falava-se de uma menina interna do convento das freiras seculares da Congregação de Nossa Senhora que havia fugido, ou fora raptada, enfim desaparecera, e Dame de Gorrestat, que se dizia amiga da família, oferecia uma fortuna aos hábeis batedores ou "viajantes" que pudessem fazer a busca e encontrá-la.
- Hipócrita - não se conteve Angélica, tremula.
Ele fora até o castelo onde o governador havia sido acolhido, assim como sua esposa, sua escolta e seus serviçais, e encontrara-se com alguns famosos exploradores de bosques experientes, que conheciam os diaktos de todos os povos selvagens, para além dos sioux.
- Ela deu a cada um de nós uma bolsa cheia de luíses de ouro e nos disse: "Encontrem-me a menina e lhes recompensarei em dobro". Foi quando tive a ideia de procurar pelos lados de Khanawake, a reserva dos iroqueses batizados, defronte a Lachine. Ao mesmo tempo, a mulher do governador disse que queria visitar aqueles pobres selvagens sanguinários da missão de Khanawake que tinham finalmente se convertido à fé cristã, e atravessou o rio com todos os seus homens e mais os jesuítas, contentes de mostrar a ela os frutos de seu labor missionário. Formaram uma bela frota para atravessar o Saint-Laurent. Imaginei que aquela senhora tinha tanto faro quanto nós, pois seguia a pista do mesmo modo. Nem bem entrei no acampamento já se ouvia falar de bordo, e toda a bela companhia desembarcava vindo da ilha de Montreal. E Dame de Gorrestat começou a percorrer as alamedas da missão entre as casas compridas de neófitos e batizados iroqueses.
Quanto a ele, Banistère, dirigiu-se à grande cabana dos agniers Seu filho já estava saindo de lá, dizendo-lhe: "Papai, ela está a dentro! Estamos ricos!"
Nunca se enxerga muito bem nas longas cabanas dos iroqueses. E preciso ter bom olho. Mas ele a reconhecera logo. E lhe dissera: "Ei! não é você, garotinha, que estão procurando por toda a ilha de Montreal?"
Ela o agarrara com as duas mãos pela manga: "Vizinho, minha mãe guardou suas botas e seus escudos, e um dia no caminho você nos salvou de um soldado que estava nos maltratando. Salve-me mais uma vez da mulher de olhos amarelos. Ela é muito má".
- E uma menina muito fina. Soube pronunciar as palavras certas: "Vizinho! Vizinho! não me atraiçoe, pelo amor de minha mãe".
Angélica escutava-o com a respiração suspensa e as juntas dos dedos brancas de tanto apertar as mãos entrelaçadas.
O rude indivíduo parecia ter ficado impressionado pela cena e a tensão dos iroqueses que moravam na longa casa onde Ho-norina fora recolhida e que se declaravam todos prontos a dar suas vidas para não deixá-la ser recapturada pela mulher que ela temia tanto.
- Todos esses iroqueses que estavam lá, mulheres, crianças, velhos e alguns bravos que quiseram abraçar a fé cristã, me cercavam e diziam: "Akwirashes, você está louco? Não vê que essa mulher que está aí é um demónio?"
Os que haviam visto a Sra. de Gorrestat na cidade e que conheciam sua singularidade chamavam-na Assontekka, nome que os iroqueses dão à lua, quando se referem a seu aspecto inquietante., e que literalmente significa: "Ela traz a noite".
Mas a maioria a chamava de Atchonwithas, que quer dizer: "dupla face" e, aplicado a uma mulher, "feiticeira".
Em torno dele, os selvagens murmuravam. Estavam apavorados, quase escandalizados dever que o padre jesuíta, que eles respeitavam tanto, não era sensível corroo eles à irradiação negra que emanava da grande dama francesa, à qual todo mundo fazia reverências. Enquanto isso, ela entrava nas cabanas e prodigalizava preciosos sorrisos, mas seus olhares procuravam avidamente em todos os recantos e eram como flechas envenenadas.
Na cabana dos agniers-, os selvagens cercavam Banistère.
- Akwirashes - disseram-lhe -, você que foi irmão de sangue de um de nossos grandes chefes, atualmente morto, mas que conserva um pouco de seu espírito em si, como pode se mostrar tão insensato? Se entregar a menina, o ouro dessa mulher o sufocará. Ele causara -sua morte e, o que é pior para você, sua ruína.
Ele sabia o que isso significava.
- Feche o bico - intimou ao filho. - Se der com a língua nos dentes, eu o escalparei com minhas próprias mãos.
Quando os visitantes passaram diante da cabana onde estava escondida a menina, deu um jeito de obstruir-lhes a entrada com seus ombros maciços, e ninguém conseguiu olharpara dentro.
Um primo da jovem Catarina Tetakwita chamou-o à parte: "Amanha de madrugada a menina estará conosco no caminho do Vale dos Cinco Lagos. Ninguém a perseguirá até lá, pois nenhum suspeito penetra no território dos cantões iroqueses, sem arriscar a cabeleira. Quanto à mulher branca, seu sexo e posição social não lhe permitem ultrapassar as corredeiras de Lachine. Não pode voar nos ares, embora sua alma negra seja bem capaz disso. Mas sua condição humana a retém no chão. Nosso chefe Utakê lhe ficará reconhecido do que você puder fazer pela criança e por sua família".
Foi assim que o Sr. Banistère de La Case desviara-se de seu caminho, que devia conduzi-los à ponta sul do lago dos Illinois, para seus quartéis de inverno de coletor de peles, a fim de passar primeiro por Wapassu e avisar os pais de Honorina do destino de sua filhinha.
A Sra. de Gorrestat não conseguira apanhá-la. Não havia meio de se acalmar, e recusava-se a partir para Quebec, o que os mon-trealenses começavam a ver com maus olhos, apesar de todas as honras que lhe deviam.
Tinham já uma reclusa estrangeira na cidade na pessoa da Sra. d'Arreboust, e não lhes agradava muito ser cumulados com outras pessoas piedosas em seu território.
Angélica apertou várias vezes com afeição as mãos calejadas de seu antigo vizinho. Não sabia como lhe demonstrar seu reconhecimento, e olhava-o com uma mistura de inveja e de arrebatamento, ao pensar que tinha encontrado Honorina bem viva e fora de perigo.
— Como ela está? Descreva-ma. Como ela está?
— Contente - disse Banistère, depois de ter refletido longamente, com o embaraço de um homem pouco habituado a se debruçar sobre esse tipo de exame. - Oh! evidentemente, uma pequena iroquesa besuntada de gordura de urso dos pés à cabeça, mas... contente... Sim, posso garanti-lo! Contente!...
— Posso imaginar - disse Angélica, com um pálido sorriso. - Ela, que sonhava tanto em viver nos bosques!...
— Não se preocupe... Ela estará bem com os selvagens. Eles são bons com as crianças e gostam dela. Já estavam todos rindo em volta dela com a história que ela lhes contava. Mas agiram com prudência enviando-a ao vale dos iroqueses, em vez de mantê-la em Montreal, onde a mulher má teria acabado por encontrá-la. Utakê, o grande chefe dos agniers, é seu amigo. Ele a toma sob sua proteção e, na primavera, a devolverá. É apenas um inverno.
Ele dizia as mesmas palavras que Joffrey: "E apenas um inverno". Quando estava indo embora, voltou.
- Tome cuidado, vizinha. Essa mulher não gosta muito de você. E os índios a chamam de Atchonwithas.
Afastou-se e desapareceu, seguido por seu rebento, e sem que o menor ruído de seus passos se fizesse ouvir.
Voltando para casa, ela cambaleava através da campina, dominada pela embriaguez de uma alegria desmedida.
Honorina escapara às garras de Ambrosina. Honorina fora salva.
Ao passar junto a uma das fontes que lhes fora revelada por Mopuntuk, ajoelhou-se, bebeu a água gelada com fervor, banhou o rosto escaldante. Lembrava-se de Honorina dizendo-lhe, na véspera do nascimento dos gémeos: "E preciso beber! A água é pesada! Ela ajuda os anjos a descer..."
Pensou nas fontes sagradas das províncias, onde se vai implorar um milagre. O património era o mesmo.
Havia uma fonte sagrada perto da Capela de Saint-Honoré.
No forte, Raimundo Rogério e Gloriandra foram a seu encontro, chorando amargamente.
Eles andavam de mãos dadas, o que era seu supremo reconforto nas vicissitudes da dura existência, e, apesar de seus choros, achou-os tão belos que os pegou no colo, beijando-os apaixonadamente.
— O que foi, meus bonequinhos?... Que infelicidade se abateu agora sobre vocês?
— O cachorro boboca foi embora - informou Carlos Henrique, que aparecia sempre atrás dos dois pirralhos.
Podia-se deduzir de suas explicações que o cão boboca se fora.
Seguira-a quando ela se afastara, mas não voltara..
Ela se lembrou de que, enquanto estava falando com Banistè-re, tivera a impressão de ter visto um animal se insinuar pelos cerrados.
Teria farejado seus antigos donos? E, se os reconhecera, teria decidido acompanhá-los... até os Grandes Lagos?
Depois da deserção do gato, a do cão deixava as crianças inconsoláveis.
Angélica mandou os maiores chamá-lo pelas charnecas e valezinhos.
"Se ele os seguiu quer dizer que é mesmo um tolo", disse a si mesma. "Ou mais inteligente do que julgávamos..."
- E agora, se começar um incêndio, como seremos avisados?- perguntou Carlos Henrique.
A volta dos caçadores não tardaria. E preparavam-se as grades para a defumação das carnes que eles trariam. Preparava-se a festa do outono. Foi um misericordioso eclipse de todas as apreensões.
Misericordioso? Ou nefasto?...
Imensos tapetes púrpura, juncados de airelas vermelhas, desciam até o lago, junto ao antigo fortim da primeira invernada, habitado apenas pelo inglês mudo, Lymon White, em meio a suas armas. Dedicava-se ali aos trabalhos de mineração, e era encarregado da fabricação das balas e da pólvora.
Escoltada pelos gémeos e por Carlos Henrique, e depois de ter convocado todas as mulheres e crianças que encontrou pela frente munidas de cestas, Angélica partiu com seu bando para a colheita. Era um dia claro e limpo, e o odor das bagas maduras impregnava o ar. Cada um se preparou, com pentes de madeira, para colher a maior quantidade possível de frutas antes do pôr-do-sol.
Angélica parara e ria vendo as três crianças perto dela com a carinha lambuzada de vermelho. O fortim de Lymon White ficava a alguns passos dali, e ela olhou amistosamente para seu primeiro e rústico abrigo, onde haviam decorrido dias heróicos, mas não destituídos de encanto.
O inglês de cabelos longos e brancos e um sorriso mudo apareceu na soleira da porta e fez-lhe de longe uma saudação de boas-vindas.
Ouviu Judy Goldmann, a filha mais velha da família de qua-cres recolhida no ano anterior, gritar. Naquele momento acabara de deixar a adolescente, que, carregando duas cestas cheias, voltava para um reboque onde se derramava em recipientes de cortiça maiores o resultado da colheita, antes de levá-lo para o forte.
Voltando-se, Angélica viu um índio que, pegando Judy pelo punho, a arrastava rapidamente, apesar de sua resistência. Simultaneamente, outros gritos se levantaram. Um índio, com o to-mahawk erguido, descia a escarpa saltando através dos arbustos de airelas. E, enquanto assistia à cena sem poder ainda, em sua surpresa, captar-lhe o sentido, um apertão quente e gorduroso segurou-lhe o antebraço. Viu a mão vermelha sobre ela! e o pequeno bracelete de plumas em torno de um punho musculoso, cor de terracota. O rosto pintado de um abenaki inclinava-se a duas polegadas do seu, mas não era o de Piksarett.
Ela se sacudiu e se debateu, gritando:
- Largue-me! - em todos-os dialetos que lhe vinham aos lábios.
As cruzes, os rosários e os colares de dentes de urso do índio pulavam em seu peito, mas ele não largava a presa, e isso lhe lembrava o ataque e o assalto à aldeia inglesa de Brunswick Falls.
Um tiro ressoou.
O selvagem que a segurava deu um salto de peixe fisgado pelo anzol, depois caiu, arrastando-a em sua queda.
Lymon White, da soleira da porta, ombreara um dos fuzis de cano longo a seus cuidados e atirara. Pois, do lugar em que estava e olhando em direção à colina, via o que ela não podia ver.
E, quando Angélica, empurrando a mão inerte do selvagem abatido, acordou, viu-também e compreendeu. Não havia mais um segundo a perder.
Não era. a primeira vez que esse espetáculo se oferecia a seus olhos, mas ninguém o teria imaginado, instantes antes. Da orla da floresta, vinda das alturas, uma nuvem de índios, brandindo tomahawks, desciam em sua direção através do tapete de púrpura dos campos de airelas vermelhas.
- Corra, depressa... corra, para a frente - disse a Carlos Henrique, apontando-lhe a cabana de Lymon White.
O inglês mudo precipitou-se para diante do menino, agarrou-o, jogou-o no interior da cabana, mirou e atirou mais uma vez para cobrir a corrida de Angélica, que, com um gémeo embaixo de cada braço, arremessou-se atrás dele na grande sala de entrada do antigo fortim.
- Feche a porta. Coloque a trava. Depressa!
Lymon White não precisava ser estimulado. Assim que puxara o pesado batente, o baque de um gume de machadinha fez-se ouvir ao fincar-se na madeira.
Logo que a pesada barra de carvalho foi colocada nos suportes de ferro, o mudo pegou o fuzil, retirou urna outra arma do cabide e jogou-a para Angélica. Apontando-lhe o quarto, onde havia uma cama, fez-lhe sinal para que colocasse ali as crianças e depois subisse com ele pela escada que levava ao telhado.
O telhado do primeiro posto de Wapassu fora construído como uma plataforma de defesa coberta, pois, fora a porta principal, muito enfiada na terra e que não tinha um acesso fácil, a casa só podia ser invadida por cima. Havia uma curta muralha com seteiras, que permitia abrigar-se para atirar.
Saltando do alçapão, Angélica e o mudo abriram um fogo cerrado, e cada tiro acertava o alvo.
Diante de sua resistência, os índios retrocederam, mãntiveram-se a uma boa distância, pareceram confabular e depois, voltando-lhes as costas, afastaram-se rapidamente em direção ao grande forte.
A primeira onda de assalto fora silenciosa e pouco numerosa. Agora ouviam, vindo de todo lado, urros, gritos, chamados. Mas a gritaria parou depressa e um silêncio estupidificante pairou no ar. Exceto por alguns cadáveres de abenakis estendidos nos mirtilos, a cena precedente poderia ter sido sonhada.
"Mas... que loucura é essa...", pensou, boquiaberta.
De onde estava, só podia ver a parte de cima do torreão e, um pouco mais embaixo, o baluarte da ala esquerda do forte. Mas o que percebeu a sufocou.
Sobre o torreão, alguém, cujo uniforme não conseguia identificar por causa do parapeito, descia a bandeira azul com escudo prateado do Conde de Peyrac; depois, pouco depois, subia ao longo da haste uma outra bandeira e, apesar da distância, ela pôde decifrar-lhe o desenho.
Era, nos quatro cantos da seda branca, a mancha vermelha de um coração, e no centro um coração também trespassado por uma espada.
Maquinalmente pôs-se a recarregar a arma, aquela que lhe passara o inglês, nos primeiros instantes do ataque. Era um fuzil de pederneira alemão, com uma -coronha de faia esculpida com cenas de caça em relevo. Bela arma, mas muito pesada, acrescida além disso de uma pequena caixa de palhinha que continha acessórios - espoletas, várias cargas de pólvora, um saco de balas, o que aumentava o peso, mas lhe permitia recarregar mais rapidamente. Tivera de atirar várias vezes antes que Lymon White deslizasse para perto dela com outras munições e uma braçada de mosquetes de reserva.
Entretanto, não teve tempo para escolher outra arma, mais fácil de manejar.
Um fidalgo apareceu do outro lado da colina e começou a descer na direção deles. Estava sem armas. Era um oficial vestido com um casaco de tecido cinza, marcado com uma cruz branca.
Reconheceu o Conde de Loménie-Chambord.
CAPITULO XXXVI
O fim do Conde de Loménie-Chambord e a destruição de Wapassu
Com as mãos agarradas ao fuzil, ela o viu aproximar-se. Quanto mais ele se acercava, mais sua tensão aumentava. Receava deixá-lo aproximar-se e, todavia, ele era seu amigo. Quando chegou suficientemente perto para ouvi-la, gritou:
- Pare, Sr. de Loménie. Não continue, ou eu atiro!
Ele obedeceu, olhando em sua direção, e, ao vê-la, pareceu não acreditar em seus próprios olhos.
Esboçou um movimento para avançar, mas ela o reteve mais uma vez.
- Não avance. De onde estou, posso perfeitamente ouvi-lo. Você me deve explicações.
Não queria que ele a abordasse nem que saísse de sua linha de mira. A troca das bandeiras no alto do torreão era um gesto de declaração de guerra inaceitável e que podia justificar de sua parte a maior das desconfianças.
Ignorava o que acontecera com os defensores do grande forte. Se o recebesse para parlamentar, tudo podia acontecer. Enquanto conversasse com ele, os soldados e aliados de Loménie-Chambord, talvez por ordens suas, poderiam invadir o fortim. Lymon White não podia defendê-lo sozinho. Uma vez caído esse último baluarte de resistência, a situação tornar-se-ia irreversível.
- Sra. de Peyrac?!
- Senhor cavaleiro?
Viu-o empalidecer como a morte.
E como ele não acrescentasse nada, disse:
— Eu o escuto.
— Cara Angélica, renda-se.
— A quê? Ou melhor, a quem?
— A lei divina. Aqueles que receberam as virtudes necessárias para ser seus guardiães.
— É o novo governador... ou sua egéria de mulher que colocou entre os guardiães da lei divina?
Ele assumiu um ar subitamente aturdido e desconcertado.
- De quem está falando?
Parecia ignorar que havia na Nova França um novo governador.
- Então, se não é aquele sinistro títere... ou sua diaba de mulher que o enviam... Então é "ele" - disse ela, com os olhos brilhantes -, é aquele cujo estandarte acabou de hastear, que o envia, sempre "ele", nosso inimigo ferrenho, mesmo-morto. E você, seu instrumento dócil.
- Angélica - gritou -, você precisa compreender!...
Ele deu um passo à frente.
Ela recuou para o abrigo da seteira, mantendo-o sempre na mira.
- Não se aproxime!
Ele se deteve.
Falava com doçura para tentar amansar-lhe o furor. Dizia que, estando em campanha havia mais de um mês, haviam-lhe indicado um bando de iroqueses que rondava dos lados do Kennebec.
Foi então que, passando por Wapassu, tivera uma inspiração do céu, que dava resposta a muitas perguntas cruciais que ele se fazia havia meses.
— Soube que havia chegado o momento de cumprir uma missão à qual outrora me furtei.
— Compreendo! Renovar o ataque frustrado a Katarunk... Sem pensar que atacava a mim e a meus filhos.
— Não podia suspeitar que você estivesse presente. Sua partida e a do Sr. de Peyrac fora anunciada, como em todos os verões.
— E você veio como um ladrão!... Como em Katarunk, mais uma vez!
Ele não queria ouvi-la, e prosseguia o que tinha a dizer, a fim de poder executar até o fim sua missão, como teria subido ao calvário.
— Vai seguir-nos, Angélica, com.seus filhos e serviçais. De Wapassu desceremos até a baía Francesa, para retoma? essa maravilhosa região da Acádia. A estação ainda o permite.
— E você conta comigo para lhe entregar nossos estabelecimentos do Kennebec e do Penobscot e lhe abrir caminho para Gouldsboro?
— Minha amiga - respondeu ele -, você é umírmulher, uma mulher encantadora e que não quero absolutamente julgar, mas uma mulher. É preciso que compreenda. Nem você nem seu esposo poderão ter razão sobre um santo. Ao morrer, Sebastião d'Orgeval mostrou-nos o caminho e recolocou as coisas em sua ver(dade. A dúvida e a procura de outros caminhos conduzem à heresia. O esquecimento dos interditos, ao pecado. Devemos fustigar o Mal.
— Você está enganado. O Mal não está onde o julga ver. Você é, sempre foi, nosso amigo.
— Fui cego, como Adão. Você foi para mim a tentação. Só vim a percebê-lo muito tarde. Mas renda-se, Angélica. E será perdoada.
— Você está louco. Tudo o que diz é falso, e você o sabe! Cavaleiro, volte à consciência, desperte. A Mulher Tentadora não está aqui. Ela não está aqui. Você foi traído... Foi traído por si mesmo... Emende-se... Retire suas tropas. Reúna seus selvagens... Deixe-nos em paz!
Cometeu talvez o erro de acrescentar:
- Wapassu não lhe pertence, e eu o defenderei até o fim. Agindo dessa maneira, você viola os tratados e desautoriza o rei.
Ele se empertigou, como um doido.
- Toda parcela da terra pertence a Deus - disse, forçando a voz - e tem de ser entregue às mãos daqueles que o servem segundo suas leis. Foi dito: "Quem não for por mim será contra mim".
Parecia tomado por um turbilhão de pensamentos contraditórios, que desfiguravam de angústia seu belo rosto.
- Você foi a tentação - repetiu. - Eu não queria saber e, no entanto, tudo é sempre igual e recomeça. A eterna tragédia. A mulher que sempre leva à perdição o homem, nomeado guardião dos preceitos e da vontade de Deus. Eu deveria ter me lembrado e jamais esquecer que Adão sucumbiu àquela voz tentadora que lhe transvestia o erro.
Subitamente Angélica sentiu a fadiga de seus braços, que sustentavam o pesado mosquete. Não se exercitara durante o ano. A crispação nos ombros infligia-lhe uma dor aguda, que repercutia na nuca e até nos músculos do rosto, imobilizados para que não perdesse de vista o alvo.
Na ponta de sua arma, havia aquele homem vestido de cinza, com uma cruz branca no peito como um sinal de sua loucura mística, e que continuava lentamente a avançar, pronunciando palavras que ela considerava aberrantes... e até estúpidas.
"Principalmente estúpidas...", pensou, com vontade de gritar de exasperação.
Conhecera-o tão próximo e tão transformado, um espírito cheio de luz e verdade, que não receava deixar os antigos caminhos para tentar perceber mais além outros aspectos da mensagem esquecida.
Onde estava seu amigo de Quebec, que pousara tão castamente os lábios no seus, no jardim do governador?...
O oficial, o gentil-homem, o cavaleiro de Malta, que ali estava tentando levá-la para sua perda nos arcanos, por assim dizer, religiosos de um jogo político de guerras e de massacres sem fim, não passava de sua carcaça, sem alma. "O outro", o fanático, o jesuíta, seu amigo predileto, apòderara-se dele e lhe corroerá o coração.
Sabia agora que ele a olhava com outros olhos, os olhos do jesuíta morto, e que, contra sua visão, não tinha mais argumentos.
E eis que ele recomeçava a avançar.
- Pare! Pare! - urrou Angélica. - Não se aproxime!
Ergueu-se, enlouquecida também, submergida de desespero diante do fantasma de seu amigo, o cavaleiro, que se deixara invadir pela vontade de outro, que se deixara apanhar, sem mesmo o saber, nas redes da cúmplice demoníaca do jesuíta, Ambrosina, presente em terras do Canadá. Ele avançara com um rosto irradiante de doçura enquanto ela lhe suplicava que se detivesse; ergueu-se, desvairada de dor e de revolta, assustada com sua impotência, desatinada com-a ideia de que poderia ceder à tentação que a invadia de 'nder-se para acabar com tudo e não perdê-lo, tomada de pânic /endó fundir-se a vontade de resistência, descobrindo que sua certeza de dever defender, custasse o que custasse, Wa-passu começava a ser abalada, que ia se perturbar a lucidez que lhe fazia compreender que, se se rendesse, seria pior, seria sua perda e a de seus filhos, em breve, que por sua rendição entregaria os seus e suas obras à dispersão e ao esquecimento, que por sua desistência abandonaria Joffrey, que, ao longe, lutava por eles contando com sua valentia, que o trairia, despojando-o de tudo, golpeando-o uma última e derradeira vez, e dessa vez seria ela que o golpearia.
"Eles" teriam conseguido isso, no fim. Consumar a perda do homem "acima dos outros", e sobretudo a de seu amor, seu in-sultante amor. Jamais!
Levantou-se, pois; estava alucinada, lutando contra as formas evanescentes dos monstros invisíveis, nascidos de suas palavras, que ela sentia se lançarem sobre ela para paralisá-la e amordaçá-la, e gritou com uma voz mudada, que ressoou longe no horizonte dos bosques e das montanhas:
- Você está enganado! A serpente não está aqui!... Está lá, de onde veio... Ela enroscou-se em você... Apoderou-se de você, Sr. de Loménie. E o sufoca... Ela o sufoca!...
Subitamente, compreendendo que ele podia aproveitar-se de seu diálogo, de sua loucura para fazê-la largar a arma, e que se expunha, ali de pé, à bala de algum atirador emboscado, recuou para o abrigo da seteira, ombreou novamente a arma, com o dedo no gatilho e o rosto apoiado à coronha, sentindo as esculturas entrarem-lhe na carne e mordê-la, mas não teve nenhuma volúpia de raiva. "Minha arma", disse baixinho, "não me traia! Só tenho você!"
- Não avance mais, cavaleiro, ou o mato.
Sem ouvi-la, ele continuou em sua direção como se não a visse... ou, ao contrário, vendo somente a ela. Atirou.
Agora estava ali, estendido na campina, e fazia horas, parecia-lhe, que ela permanecia diante daquele corpo imóvel, que não podia socorrer.
Estava ali, morto por ela, ele, seu amigo, o cavaleiro de Malta, tão tristemente abandonado na morte, e cujo corpo magro, ágil no manejo das armas, nos exercícios da prece, nos refinamentos dos mundanismos, reencontrava em seu último sono o aspecto de doçura e elegância.
A noite caía e, na luz sulfurosa do poente, que acentuava as sombras e claridades, começou a perceber nos confins daquele corpo sem vida o lento avanço de um filete de sangue.
Hipnotizada, sua guarda se tornava maquinal. Não sentia mais a dor nos braços enrijecidos, esquecida do significado de sua presença à beira de uma muralha feita de achas de madeira.
A mão do mudo em seu braço reconduziu-a à realidade.
Ele lhe explicava: "Não há mais ninguém. Eles se retiraram para o forte".
- Voltarão à noite - disse ela.
Ele abanou a cabeça afirmativamente com uma mímica que significava que infelizmente havia grandes possibilidades de que tentassem à noite retomar o assalto. Lembrava-se do que aprendera quando da escaramuça de Katarunk: que se deviam temer mais os índios batizados que os outros, pois não tinham medo de lutar à noite.
Dirigiu a atenção para a paisagem, agora calma e recoberta pela penumbra.
A brisa do crepúsculo trazia até eles o cheiro da fumaça.
Ela continuava a perceber, em sombra perfilada, o torreão e a torrezinha de canto, para os lados de Wapassu.
Se todos os sitiantes haviam se retirado para o forte, isso provava que se tratava de um grupo restrito, composto para efetuar um reide de outono, destinado a travar uma campanha fulgurante, breve e definitiva, nos estabelecimentos estrangeiros do Kennebec e do Penobscot.
Ora, seu chefe militar fora morto, talvez o único oficial habilitado a dirigir a expedição.
Na ignorância do que, ia acontecer após aquela morte, a vigilância noturna de Angélica e do mudo não podia ser relaxada.
Angélica não queria adormecer aquela noite. Deixou a guarda da plataforma com o mudo, o tempo suficiente para ver como estavam as crianças. Estavam dormindo na grande cama, depois de terem comido mirtilos e bolachas que White lhes dera. Verificou todas as saídas. Depois examinou os frascos ou garrafas de bebidas alcoólicas que havia na casa. Encontrou uma aguardente com gengibre, que ele mesmo fabricava, e engoliu uma boa tragada. Subiu novamente com munições, mais um pacote de fuzis e de pistplas em bom estado, e granalha para, se fosse preciso, encher a colubrina.
Anunciava-se uma noite sem lua. O crepúsculo muito azul, muito claro, sem neblina, permitia ainda ver o homem abatido, uma massa negra em forma de cruz desenhada no chão pelo corpo do Cavaleiro de Loménie-Chambord.
O inglês desceu para postar-se junto à porta e vigiar todas as saídas pelas quais podia ocorrer um ataque.
Enfim, tudo se confundiu numa obscuridade opaca. Angélica permanecia à espreita, cercada de armas, deixando queimar a isca da mecha, pronta para o que viesse, não querendo perder um instante para acender a pólvora, de tal modo receava que, se usasse mechas turcas, sistema de acender menos arcaico, o tiro falhasse, caso estivessem úmidas ou estragadas.
A noite avançava e, congelada em sua postura de sentinela, segurando a arma com um dedo no gatilho e o pensamento paralisado, sentia a aproximação de um inimigo imprevisto, assediando-a pelo interior, um veneno em suas veias amarrando-a.
Ela se transformava, transmutava-se em pedra, em estátua de sal.
Não sabia o que lhe acontecia.
O choque como que de uma guarita que lhe caísse nos ombros quase a fez cambalear e cair como um bloco.
Junto a ela uma diminuta chama amarelada atravessou a sombra, que não percebera estar tão densa, e o rosto lívido do mudo lhe apareceu, iluminado por partes, no halo de um vapor cintilante que lhe dava a aparência de um sonho.
Bem próximo dela, ele lhe explicava de novo alguma coisa por sinais. Movia os lábios finos sobre a boca sem língua, um buraco negro, levantando o dedo para o firmamento várias vezes. Estaria lhe recomendando que tivesse confiança no céu?
Parecia antes avisá-la de que o perigo vinha lá de cima.
Vendo que ela não compreendia, viu-o mudar de tática e aproximar de suas mãos, que seguravam o mosquete, a chama de sua pederneira. Não foi a sensação de queimadura mas apenas a de calor que lhe provocou subitamente uma dor intolerável e, ao mesmo tempo que compreendia o estado de seus dedos, colados, mortos e lívidos como aço, decifrava a mensagem enunciada pelos lábios do mudo e o que queria designar com o dedo erguido para as profundezas da noite sem estrelas.
- O frio!
Sobre o outono cintilante e abrasivo de seus fogos, algumas horas antes, o frio acabava de cair com a subitaneidade de uma catástrofe planetária.
Se a pesada coberta de pele que Lymon White acabara de colocar-lhe nos ombros por pouco não a derrubara sob seu peso, era porque Angélica estava simplesmente se congelando.
Quando o calor da pederneira conseguiu restabelecer-lhe um pouco a circulação nas mãos, teve de desgrudá-las cuidadosamente, uma após outra, da arma, antes de abrigá-las nas espessas luvas forradas que ele também trouxera.
A circulação que voltava a suas mãos entorpecidas dava-lhe vontade de gritar.
Então, sempre através de-sinais, ele lhe indicou que acendera o fogo na parte de baixo da casa e cobrira bem as crianças em sua grande cama.
Ao alvorecer, a noite foi substituída por um alto muro cinzento de névoa reverberante de gelo, que se detinha a alguns passos do fortim. Por volta do meio-dia, a neblina se retirou como que a contragosto, descobrindo um trecho de campina, cujo verde ainda vivo, esfolado pelos rastos vermelhos dos arbustos de airelas, brilhou como uma desforra, uma censura indignada à brutal aparição dos primeiros frios, e ela pôde ver que o corpo do Cavaleiro de Loménie-Chambord desaparecera.
"Eles" tinham pois vindo buscá-lo, ao abrigo da noite. Mas, provavelmente, desconcertados com a morte de seu coronel e com a mudança de temperatura e a resistência ferrenha do fortim, não procuraram aproveitar-se disso para retomar seu assalto e apoderar-se dele.
No meio do dia, aquela neblina opaca e hermética, como uma personagem hostil, tornou a fechar-se, afogando tudo..Mas o frio excessivo cedia e, na grisalha circundante, grandes flocos de neve começaram a voejar.
No dia seguinte, a neblina continuava ali e a neve enterrava tudo.
Ela subia quase até a plataforma, isto é, até o teto da pequena casa, obstruindo-lhe a porta e as janelas.
Angélica e o mudo passaram a noite revezando-se na espreita e no trabalho de desobstrução alternadamente, pois as rajadas de neve empurravam o gelo sob seu abrigo. Depois, com cascas de árvores e pás, edificaram um segundo telhado para proteger a pólvora e os cartuchos.
O recuo dos canadenses efetuou-se a sua maneira, isto é, como um sopro e sem ruído.
Os dois sentinelas não souberam nada, não compreenderam a realidade a não ser quando um surdo clarão rosa se desenvolveu por trás da tela movente da neve.
Era o meio da noite, e Angélica julgou que fosse a aurora. Mas o clarão rosa se estendia, sem dissipar as trevas de um mundo fechado, em que a neve apressada, silenciosa, trabalhava lentamente.
Esse clarão gigantesco do outro lado da colina, finalmente compreendeu, era o do imenso incêndio que, naquela noite, devorou o-grande forte de Wapassu, a Castelania, como o haviam denominado os "viajantes" que se habituaram a desfrutar.sua hospitalidade.
O fogo, a neve, foi uma estranha competição para ver quem devoraria, quem enterraria com mais ferocidade.
O furor do vento atiçando as chamas amortecia os efeitos da queda da neve, cuja abundância teria talvez conseguido sufocá-las. Quantas horas durou o incêndio?
Angélica e o inglês, sob a tempestade de neve, foram obrigados a abandonar a plataforma do telhado, pois, continuamente forçados a sacudir a obsedante mortalha da neve, mal se davam conta de que tinham ainda uma casa sob os pés.
Insinuando-se pelo alçapão, arrastando as armas consigo, tinham a impressão de descer ao seio da terra para fugir a sua superfície, que se tornara inabitável.
O pesadelo cessava quando reencontravam o silêncio, o calor, a luz e a estagnação benfazeja de um lugar que já não estava entregue à histeria dos elementos.
As crianças brincavam como camundongos com o que Lymon White pusera a sua disposição: areia numa tina, copinhos...
Quando Angélica e Lymon White aventuraram-se para fora do abrigo, uma semana depois, já era demasiado tarde.
A neve que caíra, soterrando as ruínas enegrecidas, interditava-Ihes o acesso. Depois, o gelo foi encerrando as vastas regiões numa carapaça, impossível de atacar sob tal revestimento, e depois as tempestades congelaram a neve, e mais neve...
Aproveitando um dia em que o nevoeiro de novembro se dissipava, o mudo amarrou seu par de raquetes atravessado nas costas, pegou uma ínfima porção de alimento em seu alforje, apanhou seu fuzil e uma boa quantidade de munições t, depois de ter explicado a Angélica que ia tentar dirigir-se para o sul para alcançar o Kennebec e a costa, a fim de informar aos seus os últimos acontecimentos, deixou o abrigo do fortim. Jamais um homem deveria arriscar-se sozinho naquela estação. Apesar de tudo, ela esperou.
O tempo passou. Dias mais curtos, noites mais longas e profundas. Breves claros, durante os quais deslizava para fora a fim de ínspecionar as armadilhas ou espreitar uma caça na mira do fuzil, mas em vão. E a tempestade uivante tornava a fechar sua cortina. A lembrança e a amargura da destruição de "Wapassu deixaram-na, apagando-se para dar lugar apenas a uma obsessão.
Era prisioneira do inverno, com três crianças pequenas, e, se nenhum socorro chegasse até eles dali a algumas semanas, todos os quatro, naquele fortim soterrado, arriscavam-se a morrer de fome.
O blizzard uivante e louco, batendo cegamente daqui e dali, parecia lembrar que o ser infernal recebe por vezes autorização para se desencadear sobre a terra. Para suspender o cortejo das calamidades engendradas pela Diaba, quando afinal viria o Arcanjo?
Anne e Serge Golon
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