Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A ESTRELA
Segunda Parte
Estavam todos à mesa do pequeno-almoço na manhã seguinte quando ele desceu as escadas: os pais, Elizabeth e os Barclay. Teria sido o momento ideal para dizer a todos aquilo que tinha para dizer. Mas quando entrou na sala com a barba feita e um rosto muito pálido depois de duas horas de sono, mal conseguiu entrar na conversa animada que estava a decorrer.
— Ontem à noite deves ter chegado muito tarde — comentou Elizabeth baixinho, a meio de uma conversa com os pais. Estavam prontos para ir apanhar o avião, e os Hill comiam uma última refeição com os Barclay. Todos falavam dos planos de casamento e ele teve uma enorme vontade de gritar que se calassem, mas controlou-se. De repente, achou que não era nem a altura nem o local para lhes falar de Crystal. Achou que Elizabeth merecia que lhe contasse em primeiro lugar, e em privado.
Pegou na cafeteira de prata e serviu-se do café, permanecendo em silêncio. lan reparou e riu-se, incapaz de resistir àquela oportunidade para o provocar.
— Será que o meu futuro cunhado está de ressaca? Sei muito bem como são os colegas da faculdade. Cada vez que os vejo fico tão bêbedo que a Sarah me ameaça com o divórcio!
— Ai isso é que não! — retorquiu Sarah, dirigindo-lhe um sorriso meigo. — Só fiz isso naquela vez em que foste preso. — Todos os elementos do grupo se riram, com excepção de Spencer, que parecia inexplicavelmente infeliz.
— Anima-te, filho. Isso há-de passar, e podes beber qualquer coisa no avião. — Mas o que ele queria não era uma bebida, era Crystal.
Pouco depois, despediram-se dos Barclay, que seguiam directamente para Washington. Era extraordinário o facto de o juiz Barclay ter conseguido ir a São Francisco. Raramente se ausentava do Supremo Tribunal, mas aquela ocasião era especial. Teria ido à Lua para o noivado da ilha.
Elizabeth mal falou com ele até se instalarem no avião. Nessa altura olhou-o com urn ar muito sério. Sentia que havia algo de errado com ele, pois nunca o vira tão calado nem tão infeliz.
— Passa-se alguma coisa? — Era a frase ideal para começar, mas ele não teve coragem de a aproveitar. Os pais estavam do outro lado do corredor, e lan e Sarah mesmo atrás, e não queria que Elizabeth ouvisse as suas palavras na presença deles.
Spencer abanou a cabeça com um ar pouco convincente, e Elizabeth virou-se para a janela. Estava aborrecida, mas não tornou a dirigir-lhe a palavra. E pouco tempo depois adormeceu enquanto ele a observava. Só de olhar para ela sentia-se culpado. Mas não suficientemente culpado para avançar com o casamento. Não a amava. Agora sabia-o. Estava demasiado apaixonado por Crystal.
Ainda sentia o seu cabelo acetinado no rosto, os seus lábios nos dele... o toque da sua mão... achou que enlouqueceria antes de aterrar. Prometera levar Elizabeth a Poughkeepsie ainda essa noite. E receava ficar a sós com ela. Tinha de lhe revelar a verdade, mas detestava feri-la. Contudo, sabia que chegaria o momento de o fazer. Sentiu-se deprimido ao pensar na reacção dos pais, que ficariam perplexos, e na dos Barclay, que decerto iriam ficar furiosos. Mas tudo isso tinha de ser enfrentado. E estava disposto a fazê-lo.
Quando chegaram, os pais dele, juntamente com lan e Sarah, embarcaram num táxi para Nova Iorque, e ele dirigiu-se ao carro que deixara no aeroporto. Colocou as malas de Elizabeth no porta-bagagens, juntamente com as suas, e seguiram em silêncio durante os primeiros quilómetros. Por fim, Elizabeth achou a situação insuportável.
— Spencer, o que é que se passa? O que aconteceu ontem à noite? Estavas bem quando saíste. — Mas agora não estava bem. Isso era evidente para ambos, mas só ele conhecia o motivo. E sabia que tinha de lho revelar.
Durante um momento louco, Elizabeth lembrou-se da rapariga que vira cantar sábado à noite no Harry's, e recordou a expressão do rosto dele. Perguntou-se se isso teria a ver com tudo aquilo, mas tal era impossível. Ou não seria? Quando a vira, ele cara com cara de quem ia desmaiar.
— Passa-se alguma coisa que eu deva saber? — Olhou para Spencer, e ele manteve o olhar na estrada durante bastante tempo. Depois, sem dizer uma palavra, encostou à berma, parou o carro e virou-se para ela. Estava muito pálido e parecia angustiado. Sentia-se mal. Mas Elizabeth mostrava-se estranhamente calma enquanto aguardava.
— Não posso casar contigo. — Mal acreditava que proferira aquelas palavras, mas acontecera. E ainda mais inacreditável era o ar de Elizabeth. Parecia interessada, mas não muito preocupada.
— Não queres dizer-me porquê?
— Não sei se posso. — Não queria dizer-lhe que não a amava: seria um golpe demasiado cruel, e não era justo. Elizabeth não tinha culpa de não ser Crystal. Não era culpada de ele não ter ouvido os trovões e visto os relâmpagos quando a conhecera. Tinha tudo para lhe oferecer. Era inteligente, bonita, vinha de uma excelente família, entretinha-o, e ele gostava dela. Mas não a amava. — Só sei que não posso. Nunca seríamos felizes.
Elizabeth olhou-o e, por um instante Spencer achou que ela estava a divertir-se.
— Isso é a coisa mais estúpida que já ouvi. Nunca me passou pela cabeça que fosses cobarde.
— O que tem isso a ver com o caso? — Ele parecia ainda mais infeliz do que antes; Elizabeth acendeu um cigarro e observou-o.
— Tem tudo a ver com o caso. Estás apavorado Spencer Hill, e tens medo de enfrentar a situação e de lidar com ela. Estás disposto a desistir de tudo e a correr como um coelho. Toda a gente tem medo... e depois? Por isso vê se ganhas coragem, por amor de Deus! Sê um homem. Vai embebedar-te algures, vai chorar para junto dos teus amigos e encara a situação. Não te parece que todos os homens sentem o mesmo? — Mas nem todos os homens estavam apaixonados por Crystal. E Elizabeth mantinha um ar assustadoramente calmo enquanto o observava. — Porque não tiras uma semana de férias e te acalmas? Depois conversamos quando eu cá vier no fim-de-semana.
— Elizabeth, as coisas não são assim tão simples. — Ainda se estava a conter. Não queria dizer-lhe que voltara a ver Crystal... que se apaixonara por ela quando ela tinha catorze anos. Isso tê-lo-ia feito parecer louco, mas, para dizer a verdade, naquele momento era como se sentia, enquanto tentava explicar tudo à mulher de quem estava noivo.
— É simples, sim, senhor, mas só se tu quiseres. — Ela sorriu e atirou fora a beata. — Porque não ngimos que nunca tivemos esta conversa?
Spencer suspirou com um ar muito infeliz e recostou-se no banco, olhando para o pára-brisas sem nada ver.
— Acho que ainda és mais louca do que eu.
— Óptimo. Nesse caso, faremos um bom par, não é verdade?
— Não, não faremos, raios! — Virou-se para a olhar: — Não sou o que tu queres, nem nunca serei. Não quero as mesmas coisas que tu. Não quero fama, riqueza, nem «ser importante». Nunca serei o homem que queres que eu seja. Não quero.
— Então e eu, já que estamos a falar nisso tudo? Onde é que eu não cumpro os teus objectivos, pois é isso que queres dizer, não é verdade? Estamos a falar daquilo que não sou, não daquilo que não és. — Ela era sempre doorosamente sincera, e inteligente o bastante para saber o que estava a ver, embora desconhecesse as razões.
— Não precisas de mim. — Parecia uma razão muito fraca para romper um noivado, e até Spencer se sentiu um idiota ao dizê-la.
— E claro que preciso. Mas não tenho de andar por aí a lamentar-me, pois não? Ou é isso que querias? E por acaso amo-te, se é que isso tem alguma importância para ti. Mas não, não vou andar por aí a fingir que acredito em arco-íris, milagres e visões de anjos a tocarem harpa que me digam que te amo. Gosto de ti. Acho que és inteligente e divertido e que podes ir longe, se ao menos concederes a ti próprio uma oportunidade, e quando lá chegares, poderemos divertir-nos à grande. É só isso que quero. Achas que é assim tão horrível?
— Não é horrível. Nada é horrível. E tu não és horrível. E também gosto muito de ti... mas precisamos de mais qualquer coisa. — A sua voz parecia demasiado alta no pequeno espaço do habitáculo, mas ela pareceu não reparar. Spencer estava a implorar pela sua vida, mas Elizabeth aparentemente ainda não percebera. — Preciso de violinos, de harpas e de arco-íris. Acredito neles. Talvez seja apenas um romântico incurável, mas se nos decidirmos por menos do que isso, daqui a dez anos... cinco... dois... iremos arrepender-nos amargamente.
— Por acaso também temos uma excelente vida sexual. Não te esqueças disso.
Ele sorriu, devido à frontalidade dela. Mas Elizabeth tinha razão. Era ainda mais louco o facto de estar perdidaente apaixonado por uma rapariga com quem ainda não dormira. De repente, ao ouvir a noiva, e ao ouvir-se a ele próprio, perguntou-se se todos os seus sonhos com Crystal seriam pura ilusão. Com ela, tudo era harpas e violinos e sonhos e recordações e visões. Com Elizabeth, ele tinha coisas concretas. Mas precisava de ambas. Pelo menos assim o julgava.
— Ou será que o sexo para ti não é importante, Spencer? Pelo que vi, não diria isso. — Ela estava a rir-se dele, e Spencer não conseguiu evitar um sorriso.
— Acho que é importante.
— Pelo menos estás a ser sincero. Não muito corajoso, mas sincero, pelo menos. — Depois inclinou-se para ele, beijou-o no pescoço e acariciou-lhe a coxa. — Porque não paramos algures num motel e discutimos lá o assunto?
— Por amor de Deus, Elizabeth, estou a falar a sério! Acabei de te dizer que não quero casar-me contigo, e tu queres ir para um motel! Não me ouviste? Estás a. ouvir? Não te importas? — começava a ficar frenético.
— É claro que me importo. Mas não vou começar já a acenar com o lencinho. Creio que estás a comportar-te como uma criança de dez anos, e não vou fazer-te a vontade. Acho que ontem à noite aconteceu qualquer coisa que te apavorou, e nem sequer sei como é que adivinhei. E cheio de zelo religioso, ou algo igualmente idiota, queres pôr-te a milhas. Bem, não quero ouvir falar mais no assunto. Por isso, leva-me até à faculdade, vai para casa, vê se te acalmas e liga-me de manhã. — Era uma mulher muito calma, disso não haviam dúvidas. De certa forma, ele respeitava-a por isso, mas, por outro lado, cava apavorado. E era precisamente por esse motivo que não queria casar com ela, mas sim com Crystal. Elizabeth estava de novo a observá-lo quando ele pôs o carro a trabalhar com um ar de desespero. — Queres confessar alguma coisa a respeito de ontem à noite? É disso que se trata? Porque não procuras um padre e deixas que ele te absolva? Depois poderemos continuar a viver como duas pessoas normais.
— Isso não tem nada a ver com o assunto.
— Acho que tem, e creio que tu também achas. Sabes uma coisa, Spencer? — Ela acendeu outro cigarro e olhou calmamente para fora da janela. — Não estou interessada. Vai, isola-te, e tem a tua crise de conscience, como lhe chamam os Franceses, sem que ninguém veja, e sem destruir a nossa vida no processo.
— O casamento iria destruir a nossa vida. Acredita, eu sei o que estou a dizer. — Parecia muito sério, mas ela ainda não estava convencida.
— A infidelidade só por si não é uma razão válida para o divórcio, independentemente do que a lei possa dizer. Então se isto tem a ver com isso, se te andaste a divertir ontem à noite com os teus amigos, não me sobrecarregues com as tuas histórias sórdidas. Vê se te pões sóbrio como qualquer homem normal, decente e que se respeita, conta-me uma mentira, compra-me uma bela jóia e pára de te lamentar.
Spencer olhou para ela bismado.
— Estás a falar a sério?
— Não totalmente. Mas em parte. Ainda não somos casados. E se enlouqueceres de vez em quando, posso ceder em certas coisas. No entanto, depois de estarmos casados, posso vir a ser mais mal-humorada.
— Vou tomar nota disso. — Era uma rapariga extraordinária, e de repente parecia que ele estava a agir como se ainda fosse casar com ela, e não com Crystal. — Tens um espírito muito aberto.
— E por causa disso que estamos a ter esta conversa, não é?
— Não propriamente. — Ainda se recusava a falar-lhe de Crystal. Aquilo não era da conta dela. Contudo, Elizabeth simplificava as coisas, tratando tudo corno um romance de ocasião, passageiro, e estava disposta a compreendê-lo. Isso fazia com que falar com ela fosse ainda mais difícil. — Creio que tem a ver com uma disparidade naquilo que ambos queremos da vida. Em certos aspectos, quero mais coisas do que tu, e noutros tu queres mais do que alguma vez quererei. E isso, minha amiga, não é um casamento celestial.
— Isso não existe. — Tinham regressado à auto-estrada, e ela aproximou-se mais dele.
— É aí que discordo de ti: acho que existe.
— E eu acho que tu és maluco. — Pôs-lhe a mão na braguilha ao dizer aquelas palavras e ele guinou o volante, com uma expressão quase aterrorizada.
— Elizabeth, pára com isso!
— Porquê? Sempre gostaste disto. — Ele divertia-a. Estava a rir-se dele. E recusava encarar com seriedade o que ele lhe dissera.
— Ouviste alguma coisa do que eu te disse?
— Ouvi tudo. E francamente, meu amor, acho que são tudo tretas. — Tornou a beijá-lo no pescoço, e, apesar de não querer, Spencer começou a ficar excitado. Teve uma vontade súbita de fazer amor com ela só para a convencer. Mas convencê-la de quê? De que acabara tudo? Porque teria recusado acreditar nele? O que sabia ela que ele ainda ignorava? Elizabeth era extraordinariamente voluntariosa e teimosa.
— Não são tretas. Estou a falar a sério.
— Agora talvez estejas. Mas amanhã irás sentir-te atrapalhado. Vou poupar-te a essa atrapalhação não acreditando numa palavra do que disseste. Não achas que isto é desportivismo?
Ele tornou a encostar fora da estrada para olhar para ela, mas teve de se rir. Tivera medo que a jovem fizesse algo de disparatado e, em vez disso, ela nem sequer se impressionara com a notícia nem com os discursos. Mostrara-se completaniente inabalável. E o pior de tudo era que parte dele gostava disso.
— És muito mais louca do que eu.
— Obrigada. — E, com estas palavras. Elizabeth inclinou-se e beijou-o com força na boca, forçando a língua por entre os lábios dele, ao mesmo tempo que lhe abria devagar o fecho das calças. Ele tentou afastar-se, mas parte de si não o desejava.
—Elizabeth, não... — Mas ela beijava-o e acariciava-o ao mesmo tempo, e os impulsos que provocava eram demasiado fortes para que ele lhes resistisse, mesmo naquelas circunstâncias. Mal podia acreditar no que estava a acontecer, mas pouco depois encontravam-se os dois deitados no banco do carro, lutando desajeitados sob os casacos, com a saia dela puxada até à cintura e a roupa interior descida até um dos tornozelos. O vapor que se formara nos vidros do carro era testemunho da paixão de ambos. Foi breve e ardente, e Spencer sentiu-se completamente descontrolado. Depois, quando se afastaram, o episódio deprimiu-o. Mas Elizabeth estava de excelente humor.
— Isto foi ridículo — comentou ele, parecendo-se cada vez mais com um louco, repreendendo-se. Talvez estivesse com uma depressão nervosa.
— Eu achei muito agradável. Não sejas tão emproado. — E continuou a rir-se dele durante todo o caminho até Poughkeepsie. Deu-lhe um beijo muito terno na boca quando chegaram a Vassar, apesar dos protestos dele, e prometeu que iriam ter uma conversa muito séria no fim-de-semana seguinte, quando ela fosse a Nova Iorque. Em vez de se sentir aliviado ou culpado ou arrependido ou infeliz, no regresso à cidade Spencer sentiu-se um completo idiota. E foi só à noite, já na cama a pensar em Crystal, que abarcou o problema com Elizabeth. Tendo conseguido que ele se declarasse, ela não iria aceitar um não. Tudo o que ele desejava fazer era regressar à Califórnia para fugir com outra mulher. Aquilo assemelhava-se a uma ópera cómica, só que era um assunto muito sério. Até se sentiu tentado a ligar ao pai para falar sobre isso, mas estava convencido de que o pai o consideraria louco. E, por um momento, ele próprio não teve a certeza de que não o era.
Na manhã seguinte pensou em ligar .para casa da Sra. Castagna, para Crystal, mas ainda não podia dizer-lhe nada. Ela nem sequer sabia que ele estava noivo. Achou que não lhe devia telefonar até ter resolvido o assunto com Elizabeth. E ficou ainda mais furioso consigo próprio por ter feito amor com ela no carro a caminho de Poughkeepsie. Só lhe faltava, no meio de toda aquela confusão, que Elizabeth engravidasse. Mas já sabia que ela só se arriscava quando tinha a certeza de que nada podia acontecer. Contudo, até mesmo sem essa complicação Spencer encontrava-se perante um dilema insuportável. Só conseguia pensar em Crystal e no seu até agora mal sucedido noivado interrompido. De vez em quando, perguntava-se se Elizabeth teria razão e se haveria mesmo um casamento celestial. Afinal de contas, divertiam-se quando estavam juntos, na cama e fora dela, ela era inteligente, davam-se bem... mas Crystal era muito mais do que isso... embora ele tivesse de admitir que mal a conhecia. No final da semana já quase não conseguia pensar. Ponderara tanto e tantas vezes sobre que atitude tomar que já nada lhe fazia sentido. Nunca fizera. Só sabia que era atormentado pelas visões românticas que tinha de Crystal já há alguns anos, e que essas visões contrastavam fortemente com as realidades da mulher de quem ainda estava noivo.
Andou toda a semana com ar abatido, e um dos amigos da firma até fez um comentário, tentando ser prestável.
— Deve ter sido um fim-de-semana difícil Hill. — Spencer sorriu, mas no dia seguinte, quando foram jogar squash, estava tão distraído que perdeu os dois jogos. Depois, quando pararam para beber um copo, sentiu-se tão miserável que teve de desabafar. George Montgomery acabara de entrar na firma. Tinha a idade de Spencer e um futuro brilhante pela frente. Era sobrinho do sócio mais velho, Brewster Vincent.
Spencer levantou de repente a cabeça, desesperado por falar, e o outro homem pressentiu que ele estava bastante perturbado.
— O que é que te está a incomodar?
— Acho que estou louco.
— Creio que tens razão, mas quem é que não está? — George sorriu-lhe e pediu mais duas cervejas. — Há algum motivo para teres reparado nisso assim tão de repente?
Não sabia o que lhe dizer. Como é que podia falar-lhe de Crystal?
— Este fim-de-semana encontrei uma velha amiga e São Francisco. Já não a via há anos, e pensei que a tinha esquecido... mas de repente... céus, nem sei como explicar-te!
— Acabaste na cama com ela — sugeriu George com um sorriso. Acontecera-lhe uma coisa parecida dois dias antes de se casar. — Não te preocupes, isso é medo. Hás-de ultrapassá-lo.
— E se não ultrapassar? O que é que acontece? Para além disso, e para que saibas, não dormi com ela. — Afirmou-o para preservar a reputação dela mais do que a dele, como se isso importasse. George nem sequer a conhecia.
— Então, os meus pêsames. Não te preocupes Spencer. Hás-de esquecê-la. A Elizabeth é uma excelente rapariga. Entrar para a família do juiz Barclay não é nada mau.
Então era só nisso que as pessoas pensavam? Na importância da ligação ao pai dela?
Spencer olhou para ele, e de repente George percebeu que a coisa era a sério.
— Disse à Elizabeth que queria romper o noivado. George assobiou enquanto pousava o copo.
— Tens razão. Estás louco. E o que disse ela? Spencer abanou a cabeça:
— Nem quer ouvir falar no assunto. Diz que é um caso normal de medo e mandou-me parar com as lamúrias. — Era uma situação divertida, mas Spencer não a via dessa forma.
— Pelo menos é compreensiva. Ela sabe da outra rapariga?
Spencer tornou a abanar a cabeça com um ar infeliz.
— Não lhe contei. Mas acho que ela desconfia. No entanto, ainda não se apercebeu da seriedade do assunto.
— Mas a coisa não é séria — retorquiu George com firmeza.
— Ai isso é que é. Estou apaixonado por ela... pela outra, quero eu dizer.
— E demasiado tarde. Pensa no assunto. Pensa na confusão que irás provocar se romperes o noivado.
— E se não romper? Passarei o resto da vida a pensar noutra pessoa?
— Não. Acabarás por esquecê-la. — Parecia muito seguro, contudo Spencer não tinha tanta certeza. — Tens de a esquecer.
— As outras pessoas também rompem noivados — argumentou Spencer. Parecia agitado e, para piorar ainda mais as coisas, havia dias que já não dormia, o que o deprimira ainda mais.
— Mas não rompem o noivado com a filha do juiz Barclay. — George parecia categórico, e a sua atitude aborreceu Spencer. Todos ficavam muito impressionados por ela ser quem era, e ele nunca tivera a certeza de que isso fosse importante. Pedira-a em casamento porque gostava dela, porque era inteligente e cheia de vida, e julgou que poderiam ter uma vida interessante, e por fim, porque afirmara a si próprio que a amava. Mas nunca sentira isso. Sabia-o desde o início. Fora por esse motivo que não a pedira em casamento durante um ano inteiro. Depois, repentinamente, tinha achado que não faria mal. Mas enganara-se. E agora? Ainda não possuía as respostas.
— Por que motivo é isso tão importante, George? Que diferença faz quem o pai dela é?
— Estás a gozar? Não vais só casar com uma rapariga, vais casar com um estilo de vida, um nome, uma família importante. Não entras e sais sem mais nem menos de uma vida como a dela. Eles far-te-ão pagar pela desfeita, e mesmo que não o façam, o teu nome ficará na lama daqui até à Califónia. — Ao ouvir aquelas palavras Spencer pensou nos pais, e na decepção que iriam sofrer. Contudo, não podia casar-se só para lhes agradar.
— Poderei viver com isso, se for obrigado. — Mas será que poderia? E se Crystal não fosse a mulher certa para ele? E se fosse tudo uma paixoneta juvenil? Afinal de contas, mal a conhecia. — A questão que se coloca é a seguinte, George:
amo ou não a Elizabeth? E a verdade é que não sei. Como poderei amá-la se estou completamente apaixonado por outra pessoa?
— Acho que precisas de esquecer isso e voltar ao teu juízo perfeito. Vá lá, pago-te o jantar. Bebe uns copos, deita-te e, por amor de Deus, não lhe digas mais nada. Daqui a uns dias vais sentir-te melhor. Provavelmente, é isso que ela disse. Medo. Todos o têm.
No entanto, Spencer não estava assim tão certo. Pelo menos, naquela noite dormiu bem, e de manhã viu o anúncio do seu noivado no New York Times, com uma bonita fotografia de Elizabeth tirada em Washington, quando da tomada de posse do pai. Aquilo fazia com que tudo voltasse a parecer real, e quando se dirigiu à firma, perguntou-se se George não teria razão, se ele só teria de tirar Crystal da cabeça. Mas que iria dizer-lhe? Que cometera um erro? Que afinal de contas não a amava? E quanto a Crystal? Precisava dele, ou pelo menos de alguém. Não era justo para ela, e ficou abalado só de pensar em desistir de a ter. Mas não tinha de lhe dizer nada.
Nesse dia, em São Francisco, Crystal viu a notícia do noivado nos jornais. Ele nem sequer se lembrara disso enquanto tentava resolver o dilema. Crystal estava a jantar no Harry's co o resto dos colegas quando Pearl lhe estendeu o Chronicle com um ar interessado. Mas não ficou tão admirada como Crystal quando esta viu o rosto de Spencer a sorrir-lhe do jornal.
— Eles não estiveram aqui uma noite destas? Acho que fui eu que os atendi. — Pearl estava pensativa. Andava sempre fascinada com o jetset. — Acho que foi no sábado. Ela era um bocado emproada, mas recordo-me de que ele era muito simpático. Estava deslumbrado contigo. Devias ter-lhe visto a cara enquanto estavas a cantar.
Crystal sentiu as mãos gelarem, e os seus dedos tremiam quando devolveu o jornal à amiga. Já lera o suficiente. Dizia que Spencer Hill, de Nova Iorque, casaria com a lha do juiz Barclay, Elizabeth, e que ambas as famílias se haviam deslocado de avião à cidade por volta do Dia de Acção de Graças para celebrar e dar uma festa a quatrocentos amigos na mansão da Broadway. Hedda Hopper dizia que a festa fora incrível, com caviar, champanhe e um jantar volante que metia a um canto os da Casa Branca, e que Artie Shaw e a sua banda haviam tocado para o jovem casal até às primeiras horas da manhã. A data do casamento estava marcada para Junho, e o vestido de Miss Barclay iria ser feito pela loja Priscilia, de Boston. Crystal olhou para o prato com uma expressão incrédula. Ele não lhe dissera uma palavra acerca do noivado. Só lhe dissera que a amava. E que regressaria à Califórnia. Mentira-lhe. E ao recordar-se das palavras dele, sentiu o coração apertar-se. Acreditara nele.
—Já tinhas ouvido falar dele antes? — perguntou Pearl, mastigando a comida com cuidado. Ultimamente estava a engordar, mas ainda era uma excelente dançarina.
— Não — respondeu Crystal, abanando a cabeça, indo despejar o prato. Ainda estava cheio, mas já perdera o apetite. Nessa noite cantou com toda a sua alma, tentando não pensar nele, mas era escusado. Só conseguia pensar em Spencer, e dois dias depois, quando ele lhe ligou, quase se recusou a atender a chamada, mas a Sra. Castagna insistira.
— É interurbana! — gritara ela, impressionada, e as mãos de Crystal tremiam quando pegou no auscultador.
—Sim?
— Crystal? — Era a voz dele, e ela fechou os olhos. Não respondeu durante um grande bocado, mas ele tornou a repetir o nome dela, parecendo preocupado e infeliz.
—Sim?
— E o Spencer.
— Parabéns. — O coração dele quase parou quando ouviu aquela palavra, e nesse momento soube. Os Barclay deviam ter anunciado o noivado nos jornais locais. Desejava ter sido ele a contar-lhe, mas agora era demasiado tarde; ela já sabia.
— Regressei a Nova Iorque para o romper. Juro. Na noite em que cheguei falei com ela.
— Calculo que tenham ambos achado que não estavas a falar a sério.
—Não foi isso... eu... não sei bem como explicar.
— Não precisas. — Queria estar zangada com ele, e estava, mas, enquanto o ouvia, só conseguia sentir uma enorme tristeza. Perdera já tantas pessoas de quem gostava, que ele era apenas mais uma delas. Desaparecera. Saíra para sempre da sua vida. Tal como os outros. Porém, desta vez podia ter sido tudo tão diferente! — Não me deves nada Spencer.
— A questão não é essa... Crystal, amo-te... — Era uma coisa terrível para lhe dizer face ao anúncio do seu noivado.
— Não quero tornar as coisas ainda mais difíceis. Só quero que saibas isso. Talvez as nossas vidas estivessem demasiado distantes. Nunca tivemos oportunidade de nos conhecer...
— Era uma desculpa esfarrapada. Instintivamente, sabia como os dois se dariam bem, como eram feitos um para o outro. Mas ele escolhera uma realidade fria em vez de uma ilusão meiga. — As coisas complicaram-se muito depois de aqui ter chegado. — Crystal parecera-lhe tão irreal nessa altura, mas ao falar com ela pelo telefone, desejou abraçá-la de novo e senti-la perto de si.
Crystal chorava em silêncio enquanto o ouvia. Queria odiá-lo, mas não era capaz.
— Ela deve ser muito especial.
Spencer hesitou, querendo contar-lhe a verdade, que ela era muito mais especial para ele do que Elizabeth, mas isso não era real. Não podia ser. Ele não podia permitir que fosse.
— E muito diferente do que tu e eu sentimos. Não tem a mesma magia.
— Então porque estás noivo? — Ela já não entendia. Era tudo muito confuso.
— Para te ser franco, não sei bem. Talvez porque fosse demasiado complicado deixar de o ser.
— Isso não me parece uma razão muito boa para o casamento.
Ele era da mesma opinião, e pouco podia dizer-lhe em resposta.
— Eu sei. Sei que isto parece uma loucura, mas vou escrever-te... só para saber como estás... ou posso telefonar-
te? — Não suportava perdê-la de novo. Não outra vez. Precisava de saber que ela estava bem, e estar ali se ela precisasse dele, mas Crystal não desejava isso.
As lágrimas tornaram a correr-lhe pelas faces, enquanto ela abanava a cabeça.
— Não, por favor... vais casar-te. Nunca tivemos nada. Só um sonho. Não quero ter notícias tuas. Isso só serviria para me lembrar daquilo que nunca tivemos.
O que Crystal dizia era verdade, mas ele ficou ainda mais deprimido por saber que ela não queria estar em contacto com ele.
— Telefonas-me se precisares de alguma coisa?
— Como, por exemplo? — Ela sorriu por entre as lágrimas. — Que tal um contrato para um filme em Hollywood? Arranjas-me um?
— Claro... — Ele sorriu por entre as suas próprias lágrimas. — Por ti, faço tudo. — Tudo excepto aquilo que ambos desejavam mais do que a própria vida. E ele estava a estragar tudo, porque decidira que Elizabeth era a «escolha acertada». Ao falar novamente com Crystal, deixou de ter a certeza. Talvez ela tivesse razão em não querer que ele lhe telefonasse. Teve vontade de se meter no primeiro avião só para estar com ela, mas não podia fazer isso; pêlos dois, tinha de tentar e esforçar-se para que tudo desse certo com Elizabeth. — Acho que um dia destes vou ver o teu nome em néon... ou que estarei a comprar os teus discos. — E falava a sério.
— Talvez um dia. — Mas naquele momento, não pensava nisso. Só pensava nele, e em como lhe sentiria a falta. — Estou contente por te ter visto de novo... apesar disto tudo... valeu a pena. — Mesmo por alguns dias de sonhos. Pelo menos, vira-o. E abraçara-o. E tocara-lhe. E ele dissera-lhe que a amava.
— Não sei como podes dizer uma coisa dessas agora. Sinto-me um miserável... especialmente depois de teres sabido da notícia pêlos jornais.
Ela encolheu os ombros. Talvez agora já não importasse. Talvez nada importasse. Ele nunca fizera parte da sua vida. Fora apenas um sonho, do princípio ao fim... mas um sonho agradável. E depois, desejando ser mais forte, começou de novo a chorar; custava-lhe muito ter de dizer adeus a Spencer, sabendo que era para sempre.
— Espero que sejas feliz.
— Também eu. — Mas ele não parecia muito certo. — Promete que me telefonas quando precisares de mim. Estou falar a sério, Crystal. — Sabia que ela não tinha mais ninguém, com excepção dos Webster, e eles não podiam fazer muito por ela.
— Eu fico bem. — Ela sorriu e tornou a reprimir as lágrimas. — Sou rija, sabes?
— Sim... sei... quem me dera que não precisasses de o ser. Mereces ter alguém muito bom a olhar por ti. — Quis acrescentar: «E quem me dera ser essa pessoa», mas isso seria demasiado cruel, e inútil para ambos. Em seguida, sabendo que não havia mais nada a dizer, acrescentou: — Adeus, Crystal, amo-te. — Tinha lágrimas nos olhos, e mal conseguiu ouvir a resposta murmurada dela.
—Também te amo Spencer... A chamada caiu: ela desaparecera. Para sempre. Ele escreveu-lhe uma vez, só para lhe dizer como lamentava tudo aquilo e quanto significara para ele, como fora difícil pô-lo por palavras, mas a carta veio devolvida, ainda por abrir. Não soube se ela mudara de casa, mas achava que não. Era suficientemente ajuizada para não começar uma coisa que nenhum deles poderia terminar. E Crystal sabia que agora tinha de o esquecer. Não era fácil. Era a coisa mais difícil que já fizera, com excepção de ter deixado o rancho e o vale, mas obrigou-se a tentar esquecê-lo. Nem sequer quis tornar a cantar o que cantara na noite em que ele voltara para a ver. Tudo lhe fazia recordar Spencer, todas as manhãs, todos os dias, todas as noites, todas as canções, todos os crepúsculos. Cada momento que estava acordada era passado a pensar nele. Nos anos anteriores apenas tivera os seus sonhos, mas agora tinha tudo para tornar as coisas ainda infinitamente piores. Sabia a cor exacta dos olhos dele, conhecia o cheiro do seu cabelo, o toque dos seus lábios, o toque das suas mãos, o som da sua voz quando lhe murmurava. E agora tudo isso teria de ser esquecido; toda a vida pela frente e ninguém para amar; no entanto Deus tinha-lhe dado um dom, lembrava constantemente a Sra. Castagna, e Crystal tinha Pearl para lhe recordar que Hollywood ainda estava à espera. Mas agora, sem Spencer, nada disso parecia tão importante.
As coisas acabaram por voltar ao normal na vida de Spencer. Pensava muito em Crystal, mas estava determinado a ser um bom marido. Foi passar o Natal a Palm Beach com Elizabeth, e voltou de novo a ser o mesmo. Pensava muitas vezes em escrever a Crystal, mas não o voltou a fazer. Sabia que ela não queria ser incomodada, e sentia-se demasiado culpado. Quanto a Elizabeth ignorava tudo, como se se tratasse de um faux pas social que não devesse ser mencionado.
Apesar disso, tiveram um Natal agradável e regressaram da Florida descontraídos e bronzeados. Só faltavam seis meses para o casamento.
Normalmente, Elizabeth mantinha Spencer ocupado em festas em Nova Iorque e em viagens a Washington para visitar os pais. Ele mal teve tempo para pensar noutra coisa durante a Primavera, mas a lembrança de Crystal surgia-lhe com alguma persistência e ele fez os possíveis para a esquecer. Não valia a pena enlouquecer por causa dela. Estava a proceder correctamente, dizia ele a si próprio quase todos os dias.
A Sra. Barclay foi a São Francisco no princípio de Maio, para supervisionar os últimos pormenores. Iriam casar-se na Grace Cathedral, como Elizabeth desejava, e a recepção teria lugar no Hotel St. Francis. Quisera que fosse em casa, mas como convidara mais de setecentas pessoas, não tivera outra opção senão dá-la num hotel. Iria haver catorze escudeiros e doze damas de honor. Era o tipo de casamento acerca do qual Spencer já lera mas a que nunca assistira. E no dia seguinte ao do fim das aulas de Elizabeth, foram os dois de avião para São Francisco. Ela terminara o terceiro ano e iria pedir transferência para Columbia nesse Outono, para poder formar-se depois do casamento. Era a única condição que o pai lhes impusera antes de ter concordado com o casamento. Queria ver a filha licenciada, e só lamentava que ela não o fizesse em Vassar. Mas Elizabeth só queria estar com o marido. Iam muito animados no avião, e Spencer sabia que os aguardava inúmeras festas na Califórnia. Ainda faltava uma semana para o casamento, a 17 de Junho, e passariam a lua-de-mel no Hava. Ela estava ansiosa, e na semana anterior anunciara a Spencer que o iria deixar «a pão e água» antes do casamento. Ele provocou-a imenso no avião, afirmando que já não era responsável pêlos seus actos. Mas as oportunidades iriam ser mais limitadas do que antes. O pai dela instalara-o no Bohemian Club, tal como a todos os escudeiros que não eram da cidade, entre eles George, o colega de Spencer. Ainda se lembrava de como George tinha a certeza de que ele estava a proceder correctamente, e agora também achava o mesmo. Até ter voltado a pôr os pés em São Francisco.
De repente, deu consigo a pensar noite e dia em Crystal. Estava tão perto, e queria desesperadamente vê-la. Mas obrigou-se a não ir, bebendo mais do que o costume e agindo da forma que ele achava ser a mais lúcida. Teria sido uma crueldade para com ela. Spencer mergulhou de alma e coração nos planos do casamento e nas festas que eram todos os dias dadas em honra de ambos.
Houve festas em Atherton, Woodside, e várias em São Francisco, e na véspera do casamento os Barclay deram um grande jantar no Pacific Union Club para os convidados mais chegados. A despedida de solteiro de Spencer tivera lugar na noite anterior, e fora organizada por lan. Incluíra várias strippers e rios de champanhe, e Spencer tivera de resistir à vontade de passar pelo Harry's a caminho de casa para dizer a Crystal que ainda a amava. Tentou explicá-lo a lan de forma incoerente, mas depois lembrou-se de que não devia.
— Exactamente, filho — dissera lan com um sorriso —; bebemos sempre champanhe por copos de cristal.
Já no clube, tinham-no deitado na cama, pois ele precisara de ajuda, e no jantar de ensaio Spencer não estava em muito boa forma. Ninguém estava. E Elizabeth aparecera radiosa num vestido de noite de cetim cor-de-rosa. A mãe comprara-lhe vestidos lindíssimos em Washington e Nova Iorque, e agora ela usava o cabelo mais comprido, numa banana, o que fazia sobressair os incríveis brincos de diamantes que os pais lhe haviam oferecido. Tinham dado a Spencer um relógio Patek Philippe e uma cigarreira de platina com safiras e diamantes. Por sua vez, ele oferecera-lhes uma caixa de ouro que tinha gravado um verso de um poema de que o juiz Barclay muito gostava. E deu a Elizabeth um colar de rubis, com um par de brincos a condizer, que lhe levaria muitos anos a pagar. Mas sabia quanto ela gostava de rubis, e Elizabeth estava apenas habituada ao melhor. Naquela noite, no Pacific Union Club, quando sorriu à noiva soube que ela merecia.
O casamento foi ao meio-dia do dia seguinte, e os escudeiros saíram do Bohemian Club em várias limusinas. A noiva iria ter à igreja no Rolls Roce de 1937 que pertencera ao seu falecido avô e que ainda estava em óptimas condições. Os Barclay só o utilizavam em ocasiões importantes. Elizabeth exibia um ar muito feliz quando duas criadas e o mordomo a instalaram dentro do carro com a cauda do vestido, de quatro metros, cuidadosamente dobrada. O pai olhava-a cheio de admiração. Ela levava uma coroa de renda com pequenas pérolas, e presa a ela, cuidadosamente desenhada, estava a sua pequena e elegante tiara. O fno véu caía à sua volta como névoa, e o vestido de renda de decote subido realçava a elegância do seu corpo. Era um vestido incrível, um dia incrível, e um momento inesquecível. O motorista conduziu-os à Grace Cathedral, enquanto as crianças da rua apontavam para a noiva. Ela estava linda, e o pai teve de reprimir as lágrimas quando a acompanhou pela nave lateral ao som do Lohenrin e das vozes das crianças do coro que pareciam anjos a cantar.
Spencer viu-a aproximar-se, e sentiu o coração a pulsar. Era o momento por que tanto tinham esperado e finalmente chegara. Estava feito. E quando ela lhe sorriu através do véu, ele sabia que tinha feito a escolha mais acertada. Elizabeth estava linda. E dali a instantes, seria sua mulher. Para sempre.
Desceram a nave lateral, seguidos pelas damas de honor e pêlos escudeiros, sorrindo aos amigos, e pareciam nunca mais chegar ao im. Só saíram da igreja à uma da tarde, e chegaram ao St. Francis à uma e meia. Os jornalistas aguardavam-nos aí. Era o maior casamento que São Francisco via desde há muitos anos, e havia uma multidão nas ruas para ver a chegada das limusinas. Era evidente que ela era uma pessoa muito importante. Entraram no hotel e dançaram, comeram e beberam toda a tarde. Spencer pensou mais do que uma vez que se tratava de uma espécie de recepção política. Tinham vindo pessoas de Washington e de Nova Iorque. Vários outros juizes do Supremo Tribunal encontravam-se presentes, bem como os democratas mais importantes da Califórnia. E tinham recebido um telegrama do próprio presidente Truman.
Por fim, às seis horas, ela subiu para trocar de roupa e despiu o vestido que nunca mais tornaria a usar. Olhou-o com tristeza durante um momento, pensando nas muitas horas que passara a prová-lo, na atenção dos pormenores, mas agora teria de o pôr de parte, guardá-lo para as filhas. Vestiu um fato de seda branco e colocou um belíssimo chapéu Chanel. Os convidados atiraram pétalas de rosas quando eles saíram. Foram levados no Rolls até ao aeroporto. O voo para o Havai só partiria às oito, e quando pararam para beber qualquer coisa no restaurante do aeroporto, Elizabeth olhou para o marido e esboçou um sorriso vitorioso.
— Bem, miúdo, conseguimos.
— Foi muito bonito, querida. — Inclinou-se e beijou-a. — Nunca me hei-de esquecer de ti naquele vestido.
— Odiei ter de o tirar. Parece tão estranho que eu nunca mais o torne a vestir, depois de tantos cuidados e excitação com ele... — Sentia-se nostálgica, e durante o voo dormiu com a cabeça sobre o ombro de Spencer. Ele sorria, certo de a amar. Iam para o Havai e depois iriam passar uma semana no lago Tahoe com os pais dela, antes de o juiz Barclay regressar a Washington e de eles voltarem para Nova Iorque para procurar um apartamento. Ela iria viver para a casa dele até encontrarem o que queriam. Elizabeth tencionava viver em Park Avenue, o que era demasiado caro para o salário de Spencer, mas ela disse que também queria contribuir. Recebera um fundo fídeicomissório quando fizera vinte e um anos, mas ele não se sentia muito bem com ela a ajudá-lo. Ainda não tinham resolvido o assunto, e era por isso que era mais simples irem viver para casa dele até as coisas estarem decididas. E Elizabeth não tivera tempo de procurar nada enquanto estivera em Vassar.
Enquanto ela dormia e o avião voava para Honolulu, ele teve a certeza de que tudo iria correr bem. Ficaram instalados no Halekulani, em Waikiki, e os dias voaram, tendo sido passados na praia e várias vezes por dia no quarto a fazer amor. O sogro arranjara-lhes um cartão de membros temporários do Outrigger Canoe Club, e foi visitá-los uma vez para ver como iam as coisas, apesar dos protestos da esposa. Ela era de opinião que os garotos deviam ser deixados em paz, mas o juiz Barclay queria saber como estavam e ansiava por os receber na casa do lago Tahoe.
Regressaram no dia 23 de Junho, e estavam muito felizes e bronzeados quando chegaram. O juiz Barclay tinha um carro à espera deles, e Spencer dirigiu até ao lago, no mesmo dia em que Pearl mostrava a Crystal as fotografias do casamento que tinham saído nos jornais. Tencionara mostrar-lhas muito antes. O artigo falava do incrível vestido de noiva de Elizabeth e da sua cauda de quatro metros. Crystal sentiu um nó na garganta ao ler os pormenores, e olhou durante bastante tempo para a fotografia de Spencer, que segurava a mão da noiva e sorria.
— São um casal muito bem-parecido, não achas? — Pearl ainda se recordava que eles tinham ido ao clube no Inverno anterior. Possuía boa memória para rostos e nomes, e ainda se lembrava de ter lido uma notícia sobre o seu noivado por alturas do Dia de Acção de Graças.
Crystal não lhe respondeu. Dobrou o jornal e entregou-lho, tentando esquecer-se de que ainda o amava. Estava com um ar adoentado, e disse a Harry que sentia uma enorme dor de cabeça. Já havia artistas suficientes para actuarem nessa noite e a maior parte dos seus clientes não se encontrava na cidade. O Harry's tornara-se num clube muito popular, em grande parte devido a ela e à sua crescente reputação como cantora.
Nessa noite, quando se deitou e tentou esquecer as fotografias que vira nos jornais, Elizabeth e Spencer encontravam-se sentados na margem do lago e conversavam. Os pais dela já se tinham ido deitar, e era tarde, mas havia sempre muita coisa a dizer. E falavam sobre coisas que o pai dela dissera acerca da «caça às bruxas» de McCarthy1. Spencer discordara violentamente dele. Achava injustas muitas das acusações que eram feitas, e agora Elizabeth estava a provocá-lo, dizendo que ele era um sonhador.
— Isso são tretas, Elizabeth! A comissão anda para aí a acusar inocentes de serem comunistas. Isso é desastroso!
— O que te dá tanta certeza de que eles são inocentes? — perguntou ela com um sorriso. Concordava inteiramente com o pai.
— O nosso país não pode ser todo vermelho, por amor de Deus! E, para além do mais, ninguém tem nada a ver com isso.
— Como é que podes dizer uma coisa dessas com todos aqueles tumultos no Médio Oriente? O comunismo é actualmente a maior ameaça ao nosso mundo. Queres outra guerra?
— Não. Mas não estamos a falar de uma guerra. Estamos a falar de atitudes no nosso país. O que aconteceu à liberdade de escolha? O que aconteceu à Constituição? — Ele detestava falar de política com Elizabeth. Gostava dela quando faziam amor ou estavam de mãos dadas, ou apenas sentados ao luar. — Seja como for, não concordo com o teu pai. — Tinham discutido o assunto durante horas, e depois do longo voo do Hava e do percurso até ao lago Spencer estava exausto. — Vamo-nos deitar.
— E eu não concordo contigo — retorquiu ela com uma gargalhada.
— Talvez não, mas pelo menos tens outras coisas em que pensar, para além da política. — Ela sorriu e seguiu-o até casa, mas nessa noite ele estava demasiado cansado para fazer amor e ficara perturbado por regressar a São Francsco: sempre que ali ia pensava em Crystal.
No dia seguinte, manteve-a afastada da sua mente, pois foram fazer esqui aquático no lago e jantaram com uns amigos dos Barclay. O dia que se seguiu foi o do impacte das
Joseph Raymond McCarthy, senador republicano que, a partir de 1950, chefiou a Comissão de
Actividades Antiamericanas do Senado que pretendia acabar COTO a infiltração comunista na Administração. (N. ao T.)
notícias da Coreia. O Governo chamou-lhe «intervenção policial», mas Spencer achou que era mais uma guerra do que outra coisa. Os jovens estavam a ser chamados às fileiras e os reservistas convocados. Quando ouviu as notícias, percebeu o que significavam para ele e logo que se virou para a esposa, ela ficou horrorizada ao ouvi-lo.
— Fizeste o quê? — Tinha os olhos castanhos muito abertos, e era evidente que estava prestes a chorar.
— Pensei que não fizesse diferença, e quis ficar com a minha comissão. — Ele permanecera na reserva, e agora os oficiais reservistas estavam a ser convocados. Dentro em breve tempo estaria a caminho da Coreia.
— Não podes desistir agora da tua comissão?
— E demasiado tarde. — E era-o mais do que ele julgava. O telegrama que o mobilizava já se encontrava à sua espera no escritório. George Montgomery ligou-lhe nessa tarde e Spencer informou Elizabeth co um olhar grave. Não tinha medo de ir. De certa forma, até o desejava mas tinha imensa pena dela. Estavam casados apenas há duas semanas, e agora ele partia para a Coreia. Mandaram-no apresentar-se em Fort Ord, Monterey, e tinha dois dias para lá chegar. Elizabeth encontrava-se em estado de choque, e o juiz Barclay ficou muito sério quando ouviu as notícias.
— Queres que tente livrar-te disso, filho?
— Não, sir. Obrigado. Já servi no Pacífico. Não seria correcto fugir ao dever. — Tinha sentimentos muito fortes a respeito daquela questão, mas nessa noite Elizabeth lutou com ele com unhas e dentes. Haviam acabado de se casar, e ela não queria perdê-lo. Mas Spencer mostrou-se firme.
— Tenho a certeza de que tudo irá acabar em breve, minha querida. Não é uma guerra, é uma intervenção policial.
— É a mesma coisa! — gritou ela. — Porque não deixas que o paizinho trate de tudo? — Estava furiosa com ele, e implorara ao pai que a ajudasse, mas ele não o faria, a menos que Spencer assim o desejasse.
Na realidade, admirava-o por fazer uma coisa daquelas. Só tinha pena da filha. Ela mal despira o vestido de noiva e já ele partia para a guerra. Não parecia justo, até para ele, mas a única coisa boa que daí poderia advir era que, enquanto Spencer estivesse fora, ela poderia voltar para Vassar. Só lhe faltava um ano para terminar o curso, e isso mantê-la-ia ocupada enquanto Spencer estivesse na Coreia. Ele próprio fez os telefonemas necessários para Vassar no dia seguinte e ela ficou ainda mais aborrecida quando ele a informou do que fizera. No quarto, Elizabeth revoltou-se contra a crueldade do destino: numa questão de dias, tudo o que ela queria lhe escapava pêlos dedos. Casara com Spencer, e agora ele partia para a Coreia, enquanto ela regressaria à faculdade, como se nada acontecesse, como se não tivessem casado. O pai nem sequer a deixava ficar em Nova Iorque a viver no apartamento do marido.
— Spencer, não quero que te vás embora!
— Minha querida, tenho de ir. — Nessa noite, amou-a cheio de ternura e no seu íntimo desejou que ela fosse sempre assim tão terna. Gostaria de a ter deixado grávida. Dar-
-lhe-ia alguma coisa em que pensar e pela qual ansiar, e teria algo ainda mais importante para regressar. Mas ela usava sempre o diafragma e na altura crucial do mês obrigava-o também a precaver-se. Nunca corria riscos, mas desta vez ele não discutiu. Havia já muito em que pensar: ele tinha de apresentar-se em Fort Ord e ela regressaria a Washington com os pais dali a dias.
— Nem sequer posso car contigo em Monterey?
— Eles não me deixariam ver-te. Não vale a pena. Volta com os teus pais e descansa um pouco antes de as aulas começarem; verás que tudo se passará rapidamente. E nos fins-
-de-semana podes sempre ir a Nova Iorque e ficar no apartamento.
Tudo aquilo era um pesadelo para Elizabeth e, de certa forma, ele tinha pena dela. Mas, por outro lado, estava ansioso por partir. Gostara da camaradagem da guerra e o ano que passara à secretária em Wall Street fora bastante maçador. Não que ele o tivesse admitido a alguém, e muito menos à mulher, mas a ideia de ir para a Coreia excitava-o.
Ela foi com o marido de carro até Monterey, e após uma longa despedida, muito lacrimejante, regressou ao lago para junto dos pais. Voaria para Washington dali a dois dias. Nessa altura Spencer estava ocupadíssimo com um curso de revisão em treino de combate. Nem sequer teve tempo de lhe telefonar antes de ela partir com os pais, e quando Elizabeth se sentou no banco traseiro do carro dos pais na viagem de regresso ao Leste, chorou lágrimas amargas pelo marido. A mãe fez-lhe festas na mão e entregou-lhe uma reserva de lencinhos. O pai dormiu a maior parte da viagem. Estava cansado e tinha bastante trabalho à espera. Iria ser um longo Verão para todos eles. Elizabeth só esperava que a guerra da Coreia não fosse muito longa. Queria começar a sua vida com o marido.
Spencer esteve sete semanas em Fort Ord, a saltar obstáculos e a ser treinado em simulacros de combate. Parecia-lhe espantoso ter esquecido tanta coisa em cinco anos, mas, à medida que as semanas avançaram, foi ficando cada vez mais apto e em melhores condições, e o corpo parecia recordar-se de mais coisas do que a mente. Deitava-se todas as noites na tarimba, exausto, demasiado cansado para se mexer, para falar ou para comer, ou até mesmo para telefonar à mulher. Teve de fazer um esforço para lhe ligar de vez em quando, para que ela não casse muito preocupada. Estava furiosa por ele se encontrar longe quando podia estar em casa e ir a festas. Não fora assim que ela esperara passar os primeiros tempos do casamento, mas quem é que podia ter sabido que a guerra da Coreia iria surgir e mudar tudo? De certa forma, aquilo era para ele uma espécie de adiamento, mas um adiamento que ele não julgara querer. Tomara uma decisão ao casar, mas agora, quando falava com a mulher ao telefone, parecia que conversava com uma estranha. Ela falou-lhe das festas a que fora com os amigos dos pais, e contou-lhe que fora jantar à Casa Branca com os Truman. Era uma época estranha para Elizabeth: era casada, mas de certa forma parecia que não o era. Fora à Virgínia visitar uns amigos, e na semana seguinte a mãe iria levá-la para Vassar.
— Tenho muitas saudades tuas, querido. — Ela parecia muito mais nova do que antes, e Spencer sorriu.
— Eu também tenho muitas saudades tuas. Daqui a pouco volto para casa. — Mas nenhum deles sabia quando. Poderiam ser meses, ou anos, e só de pensar nisso Elizabeth ficava deprimida. Não desejava regressar a Vassar, não queria que ele se fosse embora, e mais do que uma vez repreendeu-o por ainda estar na reserva, mas agora era demasiado tarde. O mal estava feito e ele regressara ao Exército.
Deram-lhe duas semanas de licença antes de embarcarem, mas impuseram-lhe que não se afastasse mais de trezentos quilómetros, para o caso de quererem mandá-lo mais cedo. Esteve quase para não dizer a Elizabeth, pois sabia que ela viria a correr, e achava que não valia a pena. As aulas deviam começar dentro de alguns dias e não seria muito agradável para ambos tornarem a despedir-se: se o chamassem mais cedo, ela iria ficar muito desapontada. Finalmente, acabou por lhe falar da licença e Elizabeth concordou que não valia a pena ir ter com ele, havendo o risco de o mandarem embarcar mais cedo. Em vez disso, ela sugeriu-lhe que ficasse na casa de São Francisco, e, com uma expressão pensativa, ele concordou.
— Tens a certeza de que os teus pais não se importam? — Não queria impor a sua presença, mesmo que a casa estivesse desocupada.
— Não sejas parvo, agora és da família. Se quiseres, pergunto à minha mãe, mas sei que ela não se importa. — E quando Elizabeth lhe fez a pergunta Priscilia veio imediatamente ao telefone, incitando Spencer a ficar lá em casa. Tinha uma governanta que ocupava a casa na ausência dos Barclay, uma chinesa idosa que trabalhava para eles há muitos anos.
— Faz de conta que estás em casa. — Destestava que ele fosse enviado para a guerra, especialmente por causa da filha. Elizabeth andava muito triste desde que deixara Spencer na Califórnia. Seria um alívio voltar a mandá-la para a faculdade. Pelo menps teria algo que fazer enquanto esperava que o marido regressasse da Coreia.
Spencer alugou um carro e dirigiu-se à cidade, instalando-se num dos elegantes quartos de hóspedes da mansão dos Barclay. Tinha duas semanas por sua conta e pouco que fazer, mas era um alívio afastar-se dos homens com quem estivera a viver, e do mundo das botas da tropa e das placas de identificação. Estava preocupado com o que ouvira a respeito da acção na Coreia. Parecia uma pequena guerra muito feia, e Spencer no estava muito ansioso por regressar ao Pacífico. Tinha mais nove anos do que da primeira vez e menos vontade de ser atrevido e corajoso. Possuía muita coisa pela qual valia a pena viver, e uma morte heróica numa terra estranha era uma perspectiva que não lhe agradava por aí além, mas havia ocasiões em que se sentia excitado por estar de novo livre. Telefonara para a firma e todos os sócios mais velhos haviam sido muito amáveis, desejando-lhe boa sorte e informando-o de que estariam à espera dele, bem como o cargo, quando tudo terminasse. Mas um dia também teria de repensar tudo isso. Depois deste interregno já não tinha tanta certeza de querer voltar para Wall Street. Continuava muito mais interessado no trabalho criminal, e ali não havia espaço para isso. Mas também teria de falar com Elizabeth antes de tomar uma medida drástica. Suspeitava que ela o queria de volta à firma de Wall Street.
Spencer deu um longo passeio pela cidade na sua primeira tarde em São Francisco. Estava uma tarde de Agosto bastante quente e naquele dia Crystal fazia dezanove anos. Partilhava um pequeno bolo de aniversário no restaurante com os amigos, e Harry deu-lhe folga naquela noite. Ela comprou uma garrafa de champanhe para partilhar com a Sra. Castagna. Mudara-se há pouco para um dos quartos melhores, depois de o vendedor de seguros ter sido recrutado e enviado para a Coreia. Era um pouco maior e tinha uma janela que dava para o canto do jardim de alguém, mas tirando isso, pouca coisa mudara. Saía-se bem com as suas cantigas no Harry's, e recebera várias críticas favoráveis nos jornais. Até cantara em festas muito elegantes.
Boyd e Hiroko tinham ido visitá-la duas vezes, com a pequena Jane, quando Hiroko fora ver o Dr. Yoshikawa. O bebé nascera havia um mês, mas desta feita não houvera ninguém a ajudá-la. Ele apresentara-se com os pés para a frente e morrera antes de Boyd ter conseguido pedir ajuda. Tivera de ir até Calistoga, deixando Hiroko sozinha com Jane. Ainda bem que a parteira fora com ele (não lhe dissera que a mulher era japonesa), pois salvara-lhe a vida. Mas um mês mais tarde ainda estava de cama, e Crystal prometeu que iria visitá-los; contudo, temia regressar ao vale, até mesmo para visitar a amiga. Era demasiado doloroso. Sabia que Tom ainda andava metido com a irmã de Boyd, mas a última carta de Hiroko dissera que ele se realistara para ir para a Coreia. Boyd também fora chamado, mas como sofria de asma já há alguns anos, não foi aceite, o que também não fez mal. As coisas não teriam sido fáceis para Hiroko se ele a tivesse deixado sozinha entre vizinhos hostis. Cinco anos depois da guerra, tudo se mantinha na mesma: o ódio deles por ela não diminuíra. As recordações não se tinham apagado e os seus corações continuavam frios, especialmente agora, com as hostilidades na Coreia. Para eles, era tudo a mesma coisa: Coreanos, Japoneses, e a maior parte deles não sabia diferenciá-los.
Crystal estava deitada na cama, depois de ter deixado a Sra. Castagna, e sentia-se feliz depois de dois copos de champanhe. Pensava na sua vida. Perguntou-se onde estaria Spencer, se ele também se teria realistado. Não que isso lhe interessasse. Ele saíra da sua vida. Deixara de existir. Excepto no seu coração, onde sempre estivera. E não podia deixar de se perguntar se o casamento lhe correria bem. Tentou não pensar nele naquele momento, mas não era fácil, e, devido ao champanhe Spencer continuava a assolar-lhe os pensamentos. Ela acabou por permitir-se pensar nele, como se fosse uma espécie de presente de aniversário.
Naquela noite estava muito calor no seu quarto, e decidiu ir passear até North Beach. Havia pessoas sentadas nas esplanadas dos restaurantes e a falar italiano nos passeios. Algumas crianças corriam umas atrás das outras, fugindo às mães no ar quente da noite; por um momento ela recordou a sua infância e lembrou-se de quando Jared a perseguia. Nessa noite vestia calças de ganga, uma camisa velha, as botas à cowboy e prendera o cabelo numa trança. Dirigiu-se à loja da esquina para comprar um gelado.
— Parabéns — murmurou a si própria, virando-se de seguida para regressar à casa da Sra. Castagna. O gelado pingava para o chão e ela tentava não o desperdiçar parecendo uma criança, inclinando-se para a frente enquanto lhe sujava as botas. Sorriu para uma rapariguinha que a observava. Mas não reparou no soldado alto de cabelo preto que a observava à distância. Sentira-se sozinho naquela casa vazia e nessa noite já caminhara vários quilómetros, pensando nela e na mulher, sentindo-se tentado pela primeira vez em muito tempo a ir ver Crystal. Mas contentara-se em passar pela casa onde já sabia que ela morava, quando a vira a seguir ao Dia de Acção de Graças. Calculou que ela estivesse a trabalhar, como deveria ter estado, e o seu coração começou a bater com muita força quando a viu. Era como reviver um sonho, a rapariga com umas calças de ganga e botas à cowboy inclinada sobre o passeio a comer um gelado: hesitou, não sabendo se devia aproximar-se. Achou-a uma rapariguinha, e depois, como se o sentisse a olhar para si Crystal virou-se e ficou imóvel. O gelado caiu-lhe das mãos. Endireitou-se, olhou para ele e desatou a correr para casa da Sra. Castagna, mas ele chegou lá antes dela.
— Crystal, espera... — Não sabia o que lhe iria dizer, mas agora era demasiado tarde. Tinha de a ver.
— Spencer, não... — Ela virou-se para o olhar, cheia de desejo, e nesse momento Spencer apercebeu-se de como errara ao deixá-la. Sem dizer uma palavra, agarrou na mão dela, e Crystal quis resistir, mas não foi capaz.
—Crystal, por favor... — implorava ele. Só sabia que precisava de lhe falar, nem que fosse por um minuto, tinha de vê-la, de abraçá-la e de estar junto dela. Crystal olhou para ele, e ambos souberam que a paixão ainda ali estava, exactamente onde a haviam deixado, só que ainda maior. Ele não disse uma palavra mas puxou-a para si e abraçou-a. Desta vez ela não resistiu.
Spencer percebeu que fora um idiota por ter dado ouvidos a Elizabeth, a George e a si próprio. Enganara-se quando casara com ela, quando aquilo que desejava era Crystal. Tentara fazer o que estava correcto e, apesar de tudo, não o zera. Tudo o que queria agora era aquela rapariga, com cabelo dourado e olhos cor de alfazema.
— Que vamos fazer Spencer? — murmurou ela enquanto ele a abraçava.
— Não sei. Aproveitar o máximo possível, creio eu, enquanto pudermos. — Era como um vício que recomeçava exactamente onde cara suspenso. Pensava em Elizabeth enquanto olhava para Crystal.
— Porque voltaste? — Ela referia-se ao local onde vivia;
não apenas a São Francisco.
— Porque tinha de voltar. Queria tornar a ver-te, ou pelo menos ver o local onde estive contigo pela última vez.
— E depois? — Ela olhou-o com tristeza, toda a sua força e resistência abandonando-a, deixando apenas o amor que sentia desde a primeira vez que o vira. — Agora és casado. — Lera sobre o casamento nos jornais. — Onde está... a tua mulher? — Odiava aquela palavra, e teve de se obrigar a dizê-la. Era mais fácil pensar agora como as coisas poderiam ter sido diferentes se ele tivesse rompido o noivado. Pensaram ambos nisso enquanto se olhavam e Spencer lhe segurava na mão e ansiava por beijá-la.
— Está em Nova Iorque. — Não queria dizer o nome dela, não agora, não na presença de Crystal. — Vou embarcar para a Coreia daqui a alguns dias, e fiquei com tempo livre... eu... Céus, Crystal, não sei o que dizer-te... Sinto-me um patife. Errei. Agora sei-o. E uma coisa horrível de dizer logo após o casamento. Julguei que estava a proceder correctamente. Foi isso que disse a mim próprio. Queria acreditar nisso, mas quando te vejo, a minha cabeça anda à roda... toda a minha vida fica virada ao contrário. Devia ter fugido contigo em Novembro, e desprezado o «correcto» e as atitudes nobres. Tinha acabado de ficar noivo... pensei... oh, credo... o que sei eu? — Parecia angustiado.
Contudo, por um momento, os olhos dela lançaram fogo na direcção dele, aqueles olhos cor de alfazema estavam irritados. A voz de Crystal parecia um grito, e ele não a culpou.
— E onde é que eu fico no meio disso tudo Spencer? A brincar contgo enquanto estiveres de licença?... Quando tiveres um fim-de-semana livre?... Quando conseguires escapar-te? E eu? E a minha vida, depois de me deixares? — Prometera a si mesma não voltar a vê-lo, mesmo que tivesse oportunidade, o que seria difícil. Não valia a pena. Ele tomara uma opção, e ela iria ultrapassar tudo isso, mesmo que ele o não fizesse. Fora por isso que devolvera a carta por abrir. — Em que estavas a pensar? — Agora estava visivelmente irritada, e isso só a tornava mais bela aos olhos de Spencer. — Num bocadinho de paródia antes de partires? Bem, podes esquecer o assunto. Vai para o inferno... ou volta para ela... é isso que farás seja como for, como aconteceu da última vez.
Desconsolado, ele olhou-a. Não podia negar aquelas palavras, ainda que o quisesse. Desejava prometer-lhe que não voltaria para Elizabeth, mas agora estavam casados, e não sabia o que fazer a respeito do assunto. Não podia dizer-lhe que o casamento terminara ainda antes de ter começado. Mas era só nisso que pensava e era só isso que desejava. Queria ficar com Crystal para sempre.
— Não posso prometer-te nada. Neste momento nada te posso dar, excepto aquilo que sou, neste momento, minuto a minuto. E talvez isso não seja muito... mas é tudo o que tenho para dar, isso e o meu amor.
— O que signica isso? — Os olhos dela estavam cheios de lágrimas enquanto o olhava, e a sua voz era grave e rouca. — Também te amo. E depois? Aonde é que isso nos levará daqui a seis meses?
— Por agora... — Ele sorriu-lhe com tristeza, não queria magoá-la, e perguntou-se se errara em ter vindo, mas não conseguira evitá-lo. — Por agora, vou enviar-te muitas cartas da Coreia... se desta vez as leres.
Crystal virou-se para que Spencer não a visse chorar. Ele era muito belo e ela amava-o há muito tempo. Quando tornou a observá-lo, percebeu que lá bem no fundo não se importava que ele fosse casado. Naquele momento, ele pertencia-lhe, e talvez valesse a pena aproveitar-se disso, até ele partir para a Coreia.
Crystal baixou a cabeça, pensando no que ele dissera, depois tornou a levantá-la devagar.
— Quem me dera ter coragem para te mandar embora...
— Mas não acabou a frase.
— Irei, se quiseres. Farei o que quiseres. — «... E sonharei contigo o resto da vida...» — É isso que queres, Crystal?
— Baixou o olhar na direcção dela e tocou-lhe no rosto com dedos longos e suaves, enquanto lhe falava. Amava-a. Teria feito qualquer coisa por ela. Era precisamente a espécie de amor de que falara a Elizabeth. O tipo de amor que nunca haviam tido, nem teriam, como ele agora sabia.
Ela limitou-se a abanar a cabeça, o olhar entrando no dele em adoração.
— Não, não é isso que quero. — Estava a ser franca, sempre o fora, e ele mal tinha coragem para ouvi-la, mas o seu coração estremeceu quando ouviu aquelas palavras. — Talvez seja a isto que todos temos direito... a alguns dias... a alguns momentos emprestados... — Não parecia muito, mas era tudo o que tinham e para ambos valia a pena.
— Talvez um dia haja mais... contudo, agora não posso prometer-to. Não sei o que irá acontecer. — Parecia perturbado, mas queria ser sincero. Ela dirigiu-lhe um sorriso estranho, pegou-lhe na mão e começou a subir os degraus da casa da Sra. Castagna.
— Eu sei.
Ele sentiu-se de novo como um rapaz enquanto a seguia, ainda de mãos dadas, observando aquela cabeleira brilhante e o corpo longo e esbelto subindo os degraus à sua frente. Crystal virou-se uma vez levando um dedo aos lábios, em sinal de silêncio. Tirou a chave de um dos bolsos das calças de ganga e deixou-o entrar no quarto. Não queria que a Sra. Castagna os ouvisse. Decerto faria um escândalo. Não gostava que as raparigas levassem homens para os quartos, nem que os hóspedes levassem mulheres. E de vez em quando isso acontecia, mas quando descobria pespegava-se em frente à porta dos quartos, desaprovando vivamente.
— Descalça-te — murmurou Crystal, tirando as botas e revelando um par de meias vermelhas que tinham pertencido ao irmão. Sorriu para Spencer quando se sentou na beira da cama, tornando a parecer uma rapariguinha. Havia momentos em que ele recordava facilmente a criança que ela fora, e depois, com a mesma rapidez, tornava a transformar-se numa jovem mulher muito apetecível.
Ele murmurou quando se sentou ao lado dela, e ela sorriu com timidez quando ele lhe tocou no cabelo, beijando-a de seguida. Era um beijo meigo, cheio de desejo, de gratidão por ela ter aceitado o pouco que ele tinha para lhe oferecer.
— Amo-te tanto... — murmurou ele para o cabelo dela —, és tão bonita... to boa... — Ardia de desejo, e teve de recorrer a todas as suas forças para não lhe rasgar as roupas. Mas quando lhe tocou na camisa com dedos trémulos, viu-a retrair-se ligeiramente. Afastou-se, perguntando-se o que teria feito, mas então ela beijou-o com fervor, obrigando-se de seguida a deixá-lo explorá-la. Ele observou-a, temendo assustá-la, certo de que ainda era virgem. — Tens medo?
Ela abanou a cabeça e tinha os olhos fechados quando ele a deitou suavemente na cama e a despiu devagar. Parou para baixar os estores, e quando ela ficou nua e linda em cima da cama estreita, ele despiu-se e ajudou-a a enfiar-se debaixo da roupa. Recordava-se de como era tímida quando criança, e não queria embaraçá-la, ou assustá-la, ou magoá-la. Queria que tudo corresse na perfeição e que aquele fosse um momento que nenhum deles esquecesse. Ela era ainda mais encantadora do que ele sonhara, e quando nalmente a penetrou, gemeram ambos baixinho. Ela contorceu-se nos braços dele, e ele beijou-a sem fim, abraçando-a e murmurando em voz baixa o seu amor por ela. Ficaram juntos durante muito tempo, e quando tudo terminou, ele puxou-a para junto de si, como se se pudessem tornar num só corpo e numa só alma se ele a abraçasse durante o tempo suficiente para que nada pudesse voltar a separá-los.
Crystal jazia sonhadora nos braços de Spencer, e ele franziu o sobrolho quando viu uma lágrima escorregar-lhe pela face.
— Crystal... estás bem? — Depois, sentindo-se culpado:
— Arrependeste-te? — Tinha tão pouco para lhe oferecer, não tinha o direito... mas sabia quanto a amava.
Mas ela abanou a cabeça e sorriu-lhe através das lágrimas, respondendo:
— Não estou arrependida... amo-te.
— Então o que é que se passa?
— Nada. — Tornou a abanar a cabeça, mas, por um momento, a lembrança de Tom envolveu-a, muito embora aquilo fosse diferente.
— Conta-me. — Ele puxou-a ainda mais para junto de si, e as lágrimas dela caíram-lhe sobre o ombro. Ela limpou-
-as, mas as lágrimas tornaram-se cada vez mais rápidas. Spencer abraçou-a suavemente, preocupado. Crystal precisava tanto dele, era tão vulnerável e tão nova, não tinha ninguém que a guardasse, excepto ele. Não era justo, e em breve teria de partir, deixando-a sozinha.
— Não te largo até me dizeres em que estás a pensar.
— Estava a pensar como sou feliz. — Sorriu por entre as lágrimas, mas ele não acreditou.
— Podias ter-me enganado. Teria jurado que estavas a chorar... — Adorava estar com ela, adorava o aroma doce da sua pele e os seus cabelos sedosos. Adorava tudo nela. — Passou-se alguma coisa contigo, não passou? — A voz dele era tão meiga que a fez chorar ainda mais. Ele suspeitara, mas não ousara perguntar-lhe, e a história de ela ter ido atrás de Tom Parker com a espingarda do pai não fora esquecida.
E agora, enquanto o olhava com tristeza Crystal assentiu.
— Queres falar no assunto?
Ela abanou a cabeça, tornando a parecer uma criança.
—Não posso... foi demasiado horrível.
— Deve ter sido. Mas já não importa, minha querida. O que quer que tenha sido, já passou. E se falares sobre o assunto talvez o teu fardo se torne mais leve.
Ela hesitou, olhando-o durante bastante tempo, perguntando-se o que diria quando lhe dissesse que Tom a violara. Depois, devagar, sabendo que podia confiar nele, contou-lhe aquela história horrível. Ele permaneceu deitado, muito quieto, agarrado a ela, deixando-a contar-lhe tudo através das lágrimas e dos soluços. Os olhos de Spencer brilhavam ao ouvi-la, mas a sua voz era meiga e bondosa, e ela sentiu-se segura nos seus braços.
— Devias tê-lo morto. Foi uma pena não o teres feito. Acho que o teria morto se lá tivesse estado. — E falava a sério, mas ela abanou a cabeça com veemência. Já sabia mais coisas. Mas era demasiado tarde para Jared.
—Eu estava enganada... se não tivesse... se... — Não suportava dizer de novo aquilo, nem sequer a Spencer. — Se eu não tivesse feito aquilo, ele não teria morto o Jared.. Oh, Spencer... a culpa foi toda minha... matei-o. — Soluçou sem parar nos braços dele, enquanto Spencer a beijava e a abraçava.
— A culpa não é tua. Nada daquilo foi... foi tudo um acidente, e por culpa do Tom, não tua. Foi ele quem o abateu, Crystal, não tu. Ele violou-te, e tu não tiveste a culpa.
— A alma inflamou-se-lhe só de pensar nisso, e os punhos fecharam-se involuntariamente com as imagens que ela lhe transmitira... o chão do celeiro... o rosto ignóbil sobre ela... a brutalidade dele... e o assassínio do irmão. Crystal olhou muito infeliz para Spencer:
— Quis matá-lo. Quis magoá-lo tanto como ele me magoou... isso não estava certo... e Jared morreu por isso. — Pagara o preço, e ela também, perdera o irmão, o lar, a família. Era um preço enorme a pagar pêlos pecados de Tom Parker e, por um momento, Spencer soube que se tivesse estado no lugar dela teria puxado o gatilho, e tinha muito melhor pontaria do que ela.
— Agora precisas de esquecer isso. Não podes mudar nada. Só podes decidir não guardar nada contigo.
— Não posso. A minha reacção matou o meu irmão.
— Não é verdade. — Sentou-se, e Crystal enroscou-se junto dele, que lhe pôs um braço sobre os ombros. — Não fizeste nada Crystal. Percebes isso? — Ela tornou a abanar a cabeça, e ele soube que nunca conseguiria convencê-la. Carregaria aquela mágoa durante o resto da vida, acreditando, por qualquer razão que não revelava, que fora a culpada por Tom a ter violado e sentindo que matara o irmão, acreditando que isso mudara a sua vida. Spencer não insistiu. — Agora tens de olhar para a frente, e pensar nas coisas boas que te aguardam. Tens as tuas canções, e um dia poderás ter uma grande carreira. — Depois acrescentou, com um sorriso: — E tens-me a mim. — Por um minuto... ou um dia... ou talvez para sempre.
Crystal sorriu-lhe, beijando-o com doçura no rosto, e ele, incendiado por nova paixão, retribuiu o beijo nos lábios dela. E enquanto se beijavam, perguntava-se o que aconteceria, que futuro lhes estaria reservado, se é que teriam algum futuro. Mas era demasiado cedo para pensar no assunto. Tudo era muito recente entre ambos. Passado algum tempo, ela acalmou-se e parou de chorar, encostando-se mais a ele.
— Achas mesmo que um dia terei uma grande carreira? — Parecia difícil de acreditar, mas ela gostava da ideia, e ele mostrava-se convicto, o que lhe agradava.
— Sim, acho. E estou a falar a sério. Tens uma voz belíssima. Um dia serás uma grande estrela Crystal. Acredito firmemente nisso.
— Não vejo como. — São Francisco parecia estar a anos-luz de Hollywood, mas ela ainda não desistira dos seus sonhos e gostava daquilo que fazia.
— Dá tempo ao tempo. Ainda agora começaste. A vida está a começar para ti. Quando tiveres a minha idade, as pessoas encherão as ruas, implorando para te ouvir.
Ela riu-se com a ideia:
— Obrigada, avô — brincou, enquanto os seus cabelos loiros tocavam no ombro dele.
— O respeitinho é muito bonito.
No entanto, a mão de Spencer a acariciar-lhe a anca exigiu-lhe toda a atenção, e momentos depois estava de novo nos seus braços, esquecendo tudo o resto, enquanto se entregava de coração aberto. Só queria o que lhes pertencia, e comparada com isso até Hollywood parecia pouco importante.
Nessa noite dormiu nos braços dele, respirando com suavidade, o rosto como o de uma criança, a cabeça no seu ombro. Spencer nunca se sentira tão feliz. Sabia que era por aquilo que sempre esperara.
E de manhã, foram dar um grande passeio e tomar o pequeno-almoço. Ela falou cheia de animação sobre o Harry's e disse-lhe que adorava cantar lá. Era como se tivessem estado sempre juntos, e Spencer sorriu enquanto a ouvia. A rapariguinha tímida desaparecera, e ele ficara com a mulher com que sempre sonhara.
Pareciam recém-casados e ninguém teria adivinhado que ele era casado com outra mulher. Crystal tagarelava alegremente quando ele se inclinou e a beijou. Sentia-se fascinado por tudo o que ouvia dela. Para variar, não era política nem o género de coisas de que ele falava com Elizabeth. Era apenas a vida real, e as coisas que interessavam tanto a Spencer como a Crystal.
Depois regressaram ao quarto dela e tornaram a fazer amor. Nessa tarde, quando a levou ao emprego, ficou atordoado ao aperceber-se de como sentia a falta dela. Todas as horas que passava longe dela eram dolorosas. Foi a casa dos Barclay buscar algumas das suas coisas para poder mudar-se para o quarto dela enquanto estivesse em São Francisco.
Lembrou-se de Elizabeth enquanto arruava as coisas. Mas ela não lhe parecia importante. Nada era importante. Apenas Crystal.
Cumpridor do dever, ligou à mulher depois de ter deixado Crystal no trabalho, e acordou-a, embora fossem já dez e meia. Ela disse que estava aborrecida e pareceu triste quando lhe perguntou quando é que embarcava para a Coreia.
— Ainda não recebi notícias. Ligo-te quando souber. — Depois informou-a de que iria para casa de uns amigos, pois sentia-se muito sozinho ali. Ela sorriu enquanto conversavam, e Spencer prometeu ligar dali a uns dias. Se ela precisasse, poderia deixar recado em casa dos pais. Ele telefonaria para lá de vez em quando. Mas a sua voz era fria, embora ela parecesse não se aperceber.
Meia hora mais tarde, saiu daquela casa. E Elizabeth abandonou a sua mente como se tivesse saído para sempre da sua vida. Era quase como se nunca tivessem casado. Mas ele negou-se a pensar no assunto quando nessa noite viu Crystal cantar, sabendo que as canções eram apenas para ele. Depois do trabalho, caminharam até à casa de Green Street. Ele nunca se sentira tão feliz, e ela estava muito bonita num vestido às flores. Deixava os de cetim no Harry's. Eram só para quando cantava, e parecia de novo mais jovem, com o cabelo solto, o rosto sem maquilhagem. Virou-se para ele com um sorriso tranquilo. Todas as suas dores pareciam tê-la abandonado assim que ele regressara à sua vida. E o mundo estava limitado a ambos.
— Spencer, escreves-me quando te fores embora? — perguntou ela com uma voz meiga, olhando-o.
— É claro que sim. — Mas ambos sabiam que quando ele regressasse teria de enfrentar a questão do casamento. E Spencer ainda não sabia o que iria fazer. Vivia o dia-a-dia, e Crystal não lhe pedia mais nada. Desta vez, ele não fez promessas que não podia cumprir, não lhe escondeu nada. Só sabiam o que tinham e, durante duas breves semanas, foi perfeito.
Spencer regressou a Monterey no dia 3 de Setembro, e dois dias mais tarde deveria apanhar um avião para Taegu, o qual faria escala em Tóquio. Antes de partir, regressou a São Francisco, para passar mais uma noite com Crystal. Harry dera-lhe folga naquela noite, e caminharam durante horas, de mãos dadas, a conversar. Desejavam que a noite não tivesse fim, e desejavam recordar-se de cada momento que tinham partilhado. Nenhum deles se arrependera de nada. Fora perfeito.
— Não estás arrependida, pois não? — Andava sempre preocupado com ela, mas dali a algumas horas pouco poderia fazer para a ajudar. Crystal teria de ser forte enquanto ele estivesse ausente, e talvez até para sempre depois disso. Mas força era algo que ela possuía em abundância. O que ele lamentava era o facto de não haver ninguém que tomasse conta dela, como ele teria gostado de fazer.
— Não, não estou arrependida. Amo-te demasiado para me arrepender de alguma coisa — respondeu ela com um sorriso. Tinha um ar tranquilo e parecia ter crescido ainda mais nas duas semanas que passara com ele. Sentia-se bem ao seu lado, e as noites que partilharam haviam sido repletas de amor. — Mas vou sentir muito a tua falta. — Depois acrescentou, cheia de preocupação: — Mantém-te a salvo, Spencer... não permitas que nada te aconteça.
— Não vai acontecer nada, tontinha. Eu fico bem. E o regresso será breve.
No entanto, nenhum deles sabia o que iria acontecer quando ele regressasse da Coreia. Parecia não haver ainda respostas fáceis, e talvez nunca as houvesse. Contudo, ele perguntava-se se as coisas não ficariam mais claras para ele com aquela separação. Sabia que um dia teria de fazer qualquer coisa. Não podiam continuar para sempre daquela aneira. Mas não fez quaisquer promessas a Crystal a respeito do futuro, nem ela lhas pediu. Dele só queria o que lhe tinha sido dado durante aquelas duas semanas, desde que, no dia do seu aniversário, ele a encontrara na rua a comer um gelado.
Regressaram ao quarto e fizeram amor pela última vez. Quando se vestiram, tinham ambos lágrimas nos olhos. Custava vê-lo de uniforme, e Crystal desceu furtivamente as escadas quando ele partiu para Monterey. Ficou à porta, descalça e em camisa de dormir.
— Volta para dentro. Telefono-te quando lá chegar — murmurou ele. Durante duas semanas haviam conseguido ' iludir a Sra. Castagna.
— Amo-te — disse ela por entre as lágrimas. Ele abraçou-a, desejando retê-la na memória e no corpo para sempre — queria que ela o recordasse, bem como às duas semanas que haviam partilhado, para o caso de não regressar. Afinal de contas, ia para a guerra, e só Deus sabia o que iria acontecer.
— Amo-te, Crystal. — Era tudo o que lhe podia dizer. Apressou-se a descer os degraus e a virar a esquina onde deixará o carro. Momentos depois passou, fazendo-lhe adeus, e Crystal subiu as escadas em silêncio até ao quarto, que ficara tão vazio sem ele. Spencer partira e ela sabia que talvez nunca mais o visse, mas tinha a certeza de que nunca o iria es- . quecer. Ele era-lhe demasiado querido, estava demasiado bem guardado no seu coração para que a pudesse abandonar, acontecesse o que acontecesse.
Spencer ligou-lhe quando chegou a Monterey. Chegara a , hora. Partiria nessa manhã às dez e meia. Ligou a Elizabeth depois disso, mas teve de se contentar em deixar-lhe um recado. Ela estava nas aulas, o que foi para ele um alívio. Já há dias que a evitava, e só lhe ligava quando sabia que a isso era obrigado. Era difícil disputar aquele jogo, e ela conhecia-o demasiado bem. Apercebia-se de todas as inflexões, de todos os estados de espírito, dissecava todas as frases. Mas até àquele momento, embora Spencer soubesse que deveria sentir-se mal, conseguira enganá-la. Não fora isso que tencionara fazer, mas todos os seus planos se haviam desvanecido no momento em que tornara a ver Crystal. Tivera de ficar junto dela enquanto ela quisesse. E cada momento fora inestimável.
E quando o avião com destino a Hickham Field, no Havai, partiu de Monterey, Spencer olhou pela janela e viu o que restava da costa oeste, conseguindo apenas pensar em Crystal. A rapariga dos seus sonhos, a mulher que ele amava para lá da razão.
Nesse preciso momento, ela olhava para o céu, sabendo que a sul dali ele partia para a guerra. Rezou pela segurança dele e fechou os olhos. De seguida, reprimindo as lágrimas, entrou em casa, dirigindo-se silenciosamente para o quarto que durante duas semanas partilhara com Spencer. De repente, pareceu-lhe que todo esse tempo havia sido apenas uns breves momentos. Ficara tanta coisa por dizer, tanta por fazer. Ele também quisera visitar o vale, mas Crystal mostrara-se reticente. Embora desejasse muito tornar a ver Boyd, Hiroko e Jane, não queria correr o risco de se encontrar por acaso com a mãe, a irmã ou até mesmo Tom. Não queria lá voltar e duas semanas mais tarde, quando Boyd lhe ligou da estação de serviço informando-a que a avó morrera, não mudou de ideias.
A avó Minerva iria ser enterrada no rancho, junto do pai e dejared. Morrera durante o sono, e Boyd ouvira dizer que a mãe dela ficara bastante perturbada, mas Crystal endureceu o seu coração, agradeceu-lhe o telefonema, e informou-o de que não iria.
— Mas obrigada por me teres avisado. — Era o fim de outro capítulo. Morrera mais um. A única família que lhe restava era Becky e a mãe e para ela ambas estavam mortas.
— Como é que está a Hiroko?
—Já conseguiu sair da cama. Mas... tem sido muito duro para ela... sabes... — Estivera de luto pelo bebé que morrera e já há dois meses que nada a consolava. Desta vez, o médico informara-a de que não podia ter mais filhos. Só ficaria Jane... a pequena Jane Heiko... o bebé que Crystal ajudara a nascer. A sua afilhada.
— Porque não vêm cá visitar-me? — Não lhe contou que estivera com Spencer. Era o segredo de ambos.
— Talvez um dia destes — respondeu Boyd. Depois acrescentou, hesitante: — Sabes que o Tom partiu, não sabes? Foi para a Coreia há duas semanas. Acho que a tua irmã não está muito bem. Pelo menos foi isso que a minha irmã me disse. Creio que ela tem muita sorte em ter-se visto livre daquele pulha! — Não se conseguiu conter, mas Crystal ficou impassível. Odiava-os, excepto a Boyd, Hiroko e Jane. A sua vida afastara-se demasiado da deles.
— Quem é que está a tomar conta do rancho?
— Acho que a tua mãe e a Becky. Têm suficientes empregados para se safarem, a menos que eles sejam todos alistados. — Iria ser como a guerra, pelo menos era o que parecia. Era tão cruel, após só cinco anos de paz! Mas pelo menos Boyd não iria para parte nenhuma. Ficara contente por Hiroko com o facto de ele ter sido rejeitado. — Estás bem Crystal?
— Estou óptima. Estou para aqui a cantar que me desunho. — Houvera muito mais do que isso, mas ela não desejava contar a ninguém, nem mesmo aos Webster. — Porque não pensam em vir até cá?
— Vamos tentar. E, Crystal... lamento o que aconteceu à tua avó.
Ela já quase se esquecera que fora por isso que ele lhe telefonara, e ele também, mas o velho Petersen estava a gesticular, mandando-o regressar ao trabalho, e ele tinha de desligar rapidamente.
— Obrigada, Boyd. Dá um beijo à Hiroko e à Jane. Avisa-me se pensares vir a São Francisco.
— Está descansada.
Boyd desligou e Crystal ficou parada a olhar para o ar no corredor da Sra. Castagna.
— Passa-se alguma coisa? — Ela surgia como um fantasma sempre que suspeitava que havia um telefonema interessante.
Crystal virou-se para ela com um suspiro.
— A minha avó morreu.
— Que pena! Era muito velha? — A Sra. Castagna sentia pena dela. Estava tão sozinha, e era tão jovem, bonita e decente.
— Tinha quase oitenta anos, acho. — Mas parecera ter cem e nunca tornara a ver a neta. Crystal não queria pensar mais no assunto. Era demasiado tarde. A avó Minerva partira. E ela já tinha com que se preocupar, com a ida de Spencer para a Coreia.
— Vais a casa para o funeral? — Gostava de saber tudo. Crystal abanou a cabeça.
— Acho que não.
— Estás zangada com a tua família, não é? — Nunca havia um telefonema, uma carta, excepto de umas pessoas chamadas Webster, e nunca ia a lado nenhum, excepto nas duas últimas semanas, com o rapaz que escondera no quarto. A Sra. Castagna fingira não reparar porque gostava dela.
—Já lhe disse, os meus pais morreram. — A Sra. Castagna anuiu, mas não acreditou. Os olhos de Crystal nada lhe disseram quando os observou atentamente. Era mais velha do que Minerva fora, mas tinha muita vida e não tencionava morrer nos tempos mais próximos.
— Como é que está o teu amigo?
A princípio, Crystal não respondeu. Sabia que ela tinha de estar a referir-se a Spencer e adoptou uma expressão neutra, começando a subir para o quarto.
— Está bom.
— Foi para algum lado?
Ela parou no cimo das escadas, olhando para a velha senhora com um olhar de dor que tudo dizia.
— Sim, para a Coreia.
A Sra. Castagna assentiu, e regressou à cozinha, para se pôr à janela. Já se interrogara a respeito dele. Sabia que estava hospedado lá em cima, mas Crystal estivera sozinha durante tanto tempo que nada lhes disse, o que não era normal nela. Crystal não lhe causara problemas durante um ano, e ele parecia ser bom rapaz. Só era pena que ela se deitasse com ele, mas com uma rapariga assim, sem pais nem família que tomassem conta dela, não era de admirar. E ele fora o único homem com quem ela vira Crystal. Parecia ser um bom homem, uma pessoa decente. Só era pena que tivesse ido para a guerra. Desejou, tal como Crystal, que ele sobrevivesse. E lá em cima, no seu quarto, Crystal jazia na cama estreita que partilhara com Spencer e chorava, rezando para o tomar a ver, para que ele vivesse e que voltasse para ela, talvez para sempre.
Os seis meses seguintes pareceram infindáveis para Crystal, que cantava noite após noite no restaurante, para Elizabeth, na faculdade, e para Spencer, na Coreia. Ele escrevia a ambas sempre que podia, mas às vezes sentia-se louco quando punha as cartas no correio. E se se enganasse, se as tivesse trocado, se tivesse colocado o endereço de Elizabeth e o nome de Crystal e mesmo assim a mulher recebesse a carta? Por vezes estava tão cansado que isso seria possível, mas o que é certo é que nunca se enganou. Limitava-se a estar preocupado com o assunto. E torturava-se constantemente quanto a tomar uma decisão.
Dissera a Crystal o que sentia, como a desejava e como a amava. Mas não fizera promessas para depois da guerra. Ainda não sabia o que iria fazer com Elizabeth, nem se queria ou não divorciar-se dela. Estava certo de que amava Crystal e que teria de desistir de uma delas, pois não poderia continuar para sempre naquela situação. Mas também devia algo a Elizabeth. Começara algo com ela, e a rapariga não tinha culpa de ele não a amar. Ninguém era culpado, mas o certo é que isso complicava as coisas. Contudo, ele andava demasiado ocupado a tentar sobreviver à guerra para poder tomar uma decisão. Tinha de esperar até regressar a casa, e entretanto escrevia a Elizabeth a respeito do que via, dos trajes, dos monumentos, dos costumes, das pessoas. Tinha a certeza de que ela ficaria fascinada por aquilo tudo, bem como pelas suas implicações políticas. Crystal não se apercebia menos das coisas, mas a esfera de interesses de ambas era diferente, e a necessidade que ele tinha do amor de Crystal era muito mais forte. Elzabeth escreveu-lhe a dizer como estava saturada das aulas, o que eleja ouvira antes, contando-lhe os jantares que os pais tinham dado durante as férias. Fora ficar várias vezes com lan e Sarah a Nova Iorque, mas estes andavam a ajudar uma pessoa a organizar uma nova caçada no Connecticut e passavam todos os fins-de-semana no Kentucky, a comprar novos cavalos a Sarah. Mais do que uma vez, Elizabeth comentou corno estava contente por não ter engravidado. Era precisamente o contrário daquilo que Crystal esperara, mas devido a toda aquela confusão Spencer sentia-se aliviado por nenhuma estar grávida.
As cartas de Eliabeth pareciam mais um jornal com as novidades de casa. As de Crystal alimentavam-lhe a alma e mantinham-no vivo.
Elizabeth formou-se em Junho, e os pais estiveram presentes, como é óbvio. Também convidou os pais de Spencer e parecia felicíssima por aquilo ter chegado ao fim. Ele recebeu a carta quando se encontrava em Pusan, quase a morrer devido à humidade e ao calor, ajudando os seus homens a encontrar caminho por carreiros estreitos entre os arrozais. Era um combate amargo, e mais do que uma vez Spencer sentiu que o lugar deles não era ali. Sabia que iria ter grandes discussões com Elizabeth quando regressasse a casa, isto se ainda continuassem casados. Era estranho pensar naquelas coisas enquanto lhe escrevia, especialmente porque ela não sabia o que ele estava a pensar, nem o que acontecera com Crystal antes de ele ter deixado São Francisco.
Nesse Verão, quando Elizabeth foi para o lago Tahoe como habitualmente Crystal decidiu por fm regressar ao vale. Já há muito que andava a pensar no assunto, e com Tom Parker longe dali, resolveu-se a ir. Só tinha de enfrentar as recordações dolorosas do pai e de Jared. Era estranho estar ali e hão ir ao rancho, mas não desejava ver a mãe nem Becky.
Ficou alguns dias com os Webster e soube-lhe bem estar de volta quando se deitou ao sol e inspirou o ar puro do vale. Até se obrigou a passar de carro em frente ao rancho, que parecia cheio de ervas e deserto. Todos os empregados haviam sido alistados, e Boyd informara-a de que a mãe contratara mexicanos à jorna, para lhe cuidarem das vinhas e dos milheirais. Ela e Becky haviam finalmente vendido o resto do gado. Foi Spencer quem lhe escreveu a informar que Tom fora abatido perto de Seul, e, quando leu a notícia, Crystal sentiu remorsos por ficar tão contente. Nunca lhe perdoaria a morte do irmão. Perguntou-se qual teria sido a reacção de Becky à notícia e se iria ficar no rancho com os três filhos e a mãe. Já lhe ocorrera que podiam vendê-lo. Odiava a ideia, mas já não podia fazer nada. O rancho pertencia à vida de outras pessoas, não à sua. Às vezes era difícil acreditar que já lá chegara a viver.
No Natal, Boyd e Hiroko decidiram finalmente ir ouvi-la cantar. Pareciam felizes. Tinham deixado Jane com a mulher do Sr. Petersen, que a adorava. Já fizera três anos e meio e pelas fotografias Crystal viu que ela se parecia cada vez mais com Hiroko. Eles ficaram impressionados com o bom aspecto de Crystal. Ela emagrecera ainda mais, o que realçava a sua excelente figura. E aprendera umas coisas novas com as das ao cinema. Os seus favoritos eram Um Americano em Paris e A Mulher que Nasceu Ontem. Pearl ainda a ajudava de vez em quando com a voz e com a dança. Mas nessa altura ela já ultrapassara em muito os conhecimentos da amiga.
Quando a ouviram, Boyd e Hiroko caram espantados com o poder da sua voz. Crystal transformara o Harry's numa mina de ouro. Ele elogiava-a junto dos amigos e não se admirou quando dois agentes de Los Angeles foram ao restaurante e deram a Crystal os seus cartões de visita, pedindo-lhe que lhes telefonasse. Convidaram-na a procurá-los quando fosse a Hollywood, e sugeriram que ela lá podia ir a qualquer altura fazer um teste para o cinema. Estava-se nos nais de Fevereiro, e Crystal ficou muito excitada. Mostrou os cartões a Pearl, mas ainda não se sentia pronta para ir para Hollywood. E no seu íntimo, queria que Spencer regressasse para junto de si. Falou dos agentes na carta seguinte, que ele recebeu um mês mais tarde, em Março, perto do paralelo 38.
Perguntou-se se ela iria a Hollywood procurá-los. Parte dele desejava que assim fosse, e outra parte queria que ela esperasse por ele para começar a viver. Sabia que isso não era justo, mas agora que estava tão distante receava perdê-la. Era jovem e bonita e merecia vencer na vida. Mas temia que ela começasse uma vida sem ele. Mal sabia que não havia o perigo de isso acontecer. Crystal só pensava nele.
Recebia cartas com menos frequência, mas ele informara-a de que as condições haviam piorado e que as constantes tentativas de tréguas falhavam, o que resultava em novas mortes e em inúmeras decepções. Spencer pareceu deprimido quando lhe escreveu a contar isso. Como toda a gente, queria que a guerra terminasse, mas ela parecia eternizar-se. E Crystal ficou perplexa quando ele lhe contou que estivera com Elizabeth em Tóquio. Referiu-se à mulher como se ela fosse apenas uma pessoa conhecida, mas Crystal ficou cheia de ciúmes. Porque não poderia ela ir também a Tóquio? Spencer já partira há tanto tempo, e ela esperava devotamente por ele em casa da Sra Castagna e a cantar no Harry's. Não havia mais nenhum homem na sua vida. Não queria nenhum. Só Spencer. E nenhum homem que ela conhecia se lhe comparava. Crystal tinha vinte e um anos, era deslumbrante, e amava-o mais do que tudo. O único senão era o facto de ele ser casado. A amiga Pearl incitara-a a procurar outra pessoa, mas sem resultados. Crystal não estava interessada, apesar das muitas ofertas. Os homens que iam ao Harry's ouvi-la cantar ficavam loucos por ela e estavam constantemente a assediá-la para sair, mas ela nunca aceitou. Era fiel a Spencer.
Parecia ficar mais bonita a cada ano que passava, e nesse Verão, Harry achou que ela nunca estivera melhor. Havia uma qualidade luminosa nela quando cantava que fazia com que toda a sala ficasse em silêncio. E havia nela uma doçura que ainda a tornava mais bela. Harry também sentia curiosidade por não haver nenhum homem na sua vida e às vezes perguntava-se se ela não veria alguém em segredo. Contudo, Crystal nunca falava da sua vida amorosa e ele nunca lhe fez perguntas.
Elizabeth começara a trabalhar, em Washington, no Comité de Actividades Antiamericanas, que investigava a infiltração comunista. Andava muito empenhada no seu trabalho e tinha um cargo de prestígio. Mudaram o curso de várias vidas em Hollywood e em Maio Elizabeth ficou furiosa pelo depoimento da bem conhecida dramaturga Lillian Hellman, que recusou depor argumentando que embora ela própria não fosse comunista, o seu depoimento poderia afectar a vida das pessoas com quem trabalhava e de quem gostava.
Uma noite, Elizabeth conversou longamente com o pai sobre aquele assunto e escreveu a respeito dele nas cartas que mandou a Spencer, explicando-lhe o que fazia e o que sentia em relação a McCarthy. Ele não tocou no assunto quando lhe respondeu, limitando-se a perguntar pela saúde dela e dos pais, não pelo emprego. Odiava aquilo que ela fazia. Elizabeth sabia que ele desaprovava, mas tinha de fazer aquilo em que acreditava e, além disso, gostava do seu trabalho. E não desistiria dele por nada, a menos que Spencer regressasse e voltasse para a firma de Wall Street. De qualquer forma, ela tencionava convencê-lo a mudar-se para Washington. E no Outono de 1952, decidiu desistir do apartamento dele de uma vez por todas. Comprou uma vivenda na Rua N, em Georgetown, co o dinheiro do seu fundo fideicomissório, e colocou a maior parte dos pertences de Spencer em caixas de cartão. Era uma bela vivenda de tijolo que lhe convinha perfeitamente e que cava perto das melhores lojas de Wisconsin Avenue. De vez em quando, Elizabeth ia com a mãe comprar antiguidades. Nesse Inverno, foram publicadas fotografias da casa na revista Look, as quais ela enviou a Spencer. E quando ele olhou para o artigo, reparou que nenhuma das fotograas incluía objectos seus. Perguntou-se o que teria ela feito com as suas coisas. De repente, sentiu que já não tinha um lar para onde voltar quando a guerra chegasse ao fim. Nem sequer sabia onde cava a casa, não a conseguia visualizar, excepto aquilo que vira nas fotografias. Parecia tudo tão estéril e perfeito. Não se imaginava a fazer amor com ela no quarto cheio de folhos onde ela posara. E ao vê-lo sentiu ainda mais saudades de Crystal e do seu quartinho em casa da Sra. Castagna. Quase tornou a enlouquecer só de pensar no que iria fazer quando a guerra acabasse. Devia alguma coisa a Liz? Não poderia fazer o que realmente queria?
Elizabeth passou o Natal em Palm Beach com os pais, como de costume, e depois disso tornou a ir a Tóquio ver Spencer. Desta vez ele temera vê-la e tivera de recordar a si próprio que ela era sua esposa, embora quando se encontraram lado a lado na cama ele mal lhe conseguisse tocar. E ela passou o tempo a falar do seu trabalho e de Joe McCarthy.
— Porque não mudamos de assunto? — sugeriu ele com cortesia. Estava cansado e muito magro e não queria ouvir falar na guerra que ela mantinha contra os supostos comunistas em nome de McCarthy. Tinha apenas um trabalho de investigação, mas quando alguém a escutava, ficava a pensar que Elizabeth era o anjo vingador de McCarthy. Ouvi-la deixava-o ainda mais deprimido. Sabia quem eram os verdadeiros comunistas e sentia-se cansado de lutar contra eles. Estava na Coreia há mais de dois anos e queria voltar para casa, mas a presente trégua fora de novo violada e ele começava a pensar que nunca sairia dali. Só queria dela um pouco de ternura e conforto. Mas Elizabeth era a mulher errada para isso, tal como Spencer começava a aperceber-se. Parecia mal reparar nele, só pensava no seu trabalho, nos amigos e nos pais. Aquilo nem parecia um casamento, mas ela é que era a sua mulher, não Crystal.
E quando tentou falar com Elizabeth acerca da guerra e da sua desilusão, ela ligou pouca importância ao assunto.
— Mal dês por ti já estás de volta a Wall Street. A princípio, ele não lhe respondeu, mas mais tarde contou-lhe o que estivera a pensar, só para sondar.
— Não me parece que volte para lá. — Ela anuiu, satisfeita. Isso adequava-se aos seus planos. Queria mudar-se definitivamente para Washington. Adorava a cidade.
— Há muitas firmas de advogados em Washington. Vais adorar, Spencer.
— Quero repensar a minha vida quando regressar a casa.
— Olhou para ela com um ar muito sério, tentado a falar-
-lhe de Crystal. A charada já durava há demasiado tempo, e era extenuante, mas aquele não era o momento mais propício. Em vez disso, ele propôs-lhe irem dar um passeio pelas ruas de Tóquio e apreciar os luxos do Hotel Imperial.
A maior parte dos oficiais com licença tinham ficado em Lake Biwa, mas fora o pai dela quem tratara das reservas. Queria que ficassem em primeira classe. Elizabeth adorava comentar a generosidade do pai: estava constantemente a falar-lhe das antiguidades que o pai lhes comprara para a casa nova, o pequeno candelabro francês, o tapete persa. Spencer já estava farto de ouvir falar naquilo. E sentia-se uma fraude ao escutá-la, fingindo estar interessado ou satisfeito ou grato. Assinara um contrato para uma vida de gratidão, percebia ele agora, e sabia que não era isso que desejava. Fazia-o sentir-se inferior e insignificante porque não tinha tanto dinheiro e tanto poder como eles. Era apenas isso que contava para os Barclay. E ele não desejava competir com eles. Queria uma vida que fosse sua num mundo onde fosse respeitado. Mas não podia falar-lhe disso agora, poucos dias antes de regressar à Coreia. Ela só falava de coisas pouco importantes para aquele momento. Spencer vira morrer mulheres e crianças, chorara sobre bebés mortos que encontrara à beira da estrada e que enterrara. Já há demasiado tempo que vivia com ideais despedaçados e sonhos distantes. E quando tentou falar-lhe nisso, ela nem sequer quis ouvi-lo. Era totalmente egocêntrica, não se apercebendo das agonias por que ele passara nos últimos dois anos. E por fim arrependeu-se de ter ido ao encontro dela. Jurou não o voltar a fazer se a guerra continuasse. Teria de esperar e resolver aquelas diferenças quando regressasse aos Estados Unidos. Ali era tudo demasiado irreal, demasiado estranho, e de certa forma demasiado doloroso.
Desta vez, ele regressou à frente ainda mais deprimido. Sentia-se afastado de todos e contraíra um ódio fervoroso pela Coreia e pelas desgraças que tinha de suportar lá. A princípio, tentou escrever sobre isso nas cartas que dirigia a Crystal, mas quando as relia decidia sempre não as enviar. Pareciam demasiado lamurientas e cobardes, pouco dignas de um homem. Em vez disso Crystal recebia longos silêncios que de vez em quando eram interrompidos por uma carta breve que a informava de que ele ainda estava vivo e que revelava lapidarmente nas últimas linhas quanto ele a amava. Spencer já não era capaz de comunicar com outras pessoas, nem mesmo com Crystal. Não conseguia dizer como estava cansado, doente com disenteria, desmoralizado pelas carnicinas, furioso pela morte dos amigos. E tudo aquilo acabou por fervilhar dentro dele até que deixou de escrever.
Quando isso aconteceu, o juiz Barclay pediu aos militares conhecidos que indagassem se ele ainda estava vivo, e eles responderam-lhe que ele se encontrava bem, só que muito ocupado a vencer a guerra. Mas Crystal não tinha conhecidos para quem se virar. Só sabia que ele deixara de lhe escrever, e a princípio pensou que morrera mas quando procurou, o seu nome não aparecia nas listas dos soldados feridos, mortos ou desaparecidos em combate. Estava algures, vivo, e deixara de lhe escrever. Ela demorou meses a compreender que ele não morrera, que as cartas não se tinham extraviado: Spencer deixara apenas de escrever. E ela presumiu que isso queria dizer que o amor de ambos chegara ao fim. A princípio foi difícil acreditar, depois de tudo o que tinham dito e partilhado, mas ao fim de alguns meses era evidente: tudo terminara. Depois de anos à espera dele Spencer deixara simplesmente de escrever. Talvez tivesse tornado a ver a mulher e decidido continuar casado. Mas pelo menos podia tê-la informado, podia ter dito alguma coisa, em vez de desaparecer no silêncio. A princípio foi-lhe muito doloroso, e, abandonada com as suas confusões, ela lamentou a perda dele. Lamentou-o quase como se ele tivesse morrido, e durante algum tempo foi isso que Crystal sentiu. Até tirou duas semanas de férias e foi a Mendocino. Aí, pensou muito e quando regressou soube que tinha de continuar, com ou sem ele.
Nessa altura, telefonou aos agentes que a haviam abordado meses antes, e depois de uma conversa breve decidiu ir a Hollyood fazer um teste.
Informou Harry nessa noite, quando regressou ao trabalho. Ele mostrou-se um pouco surpreendido, mas sempre soubera que era apenas uma questão de tempo até alguém a encontrar e lhe dar a oportunidade por que ela esperara toda a sua vida e que tanto merecia. Já não lhe restava mais nada por que esperar. Chegara o momento, e Crystal sabia que tinha de o aproveitar.
— Quem são esses tipos? — Harry desconfiava de toda a gente, e durante anos protegera-a como um pai, mantendo afastados os bêbedos e aqueles que a tentavam abordar. — Sabes alguma coisa deles?
— Apenas que são agentes de Los Angeles — respondeu Crystal co honestidade. Ainda havia nela uma aura de inocência.
— Então quero que leves a Pearl contigo. Ela pode ficar o tempo que for necessário. Se a coisa não der certo, volta para cá imediatamente com ela. Há-de aparecer outra oportunidade. Quero que esperes pela oferta certa.
— Sim, sir — respondeu Crystal corn um sorriso, parecendo de novo uma criança. Estava encantada por Pearl ir com ela. A perspectiva de ir para Hollywood ainda a assustava, mas sabia mais do que nunca que era isso que desejava. Há muito que as pessoas lhe diziam que um dia seria uma estrela, Boyd, Harry, Spencer, Pearl, e agora queria experimentar.
Harry organizou uma festa de despedida antes de Crystal partir, e deu-lhe algum dinheiro para ela se instalar num hotel decente. Crystal gastou a maior parte das suas poupanças a melhorar o guarda-roupa. Era difícil deixar Harry. Era um pouco como abandonar o lar. Ali zera amigos e encontrara segurança e agora partia para o mundo em busca de fama e fortuna. Crystal teria ficado apavorada se aquilo não fosse uma coisa que desejasse com tanto ardor.
Também era difícil deixar a Sra. Castagna. Deixou lá ficar um saco, mas saiu do quarto. A velha senhora chorou e ofereceu-lhe um dos últimos cálices de Xerez. Crystal sofreu muito ao deixá-la, mas prometeu escrever-lhe de Hollywood a falar das estrelas que viesse a conhecer.
— Se vires o dark Gable, manda-lhe os meus cumprimentos! — recomendou ela durante um último cálice da bebida. — E toma cuidado contigo! Estás a ouvir? — Crystal beijara-a ao partir e chorara quando deixara Harry.
— Se precisares de dinheiro telefona-me, está bem, miúda? — Mas ele já fora demasiado bom para ela. Crystal não teria ousado pedir-lhe mais, e estava decidida a não o fazer. Além disso, se o seu teste para actriz corresse bem, talvez em breve conseguisse um papel. Estava muito esperançada quando, numa terça-feira de manhã, partiu com Pearl de comboio, porque era mais barato. Já haviam reservado um quarto em Los Angeles e Crystal tinha uma reunião marcada com os agentes para a manhã seguinte.
Foi até ao escritório deles com os joelhos a tremer, envergando um simples vestido branco e sapatos da mesma cor, corn o cabelo apanhado e um pouco de maquilhagem. Tinha um ar limpo e puro e incrivelmente bonito. Com vinte e um anos, era ainda mais bonita do que aquilo que eles se recordavam. E quando olharam para ela, ficaram eufóricos com a sorte que haviam tido.
Mas o que Crystal não sabia, e que Pearl suspeitou, foi que eles eram dos menos bem sucedidos agentes de Hollywood. Ainda assim, conseguiram arranjar-lhe um teste para o dia seguinte e marcaram encontro com alguém que queriam que ela conhecesse. Era alguém que podia ser extremamente útil, se assim o entendesse.
As últimas raparigas que lhe tinham enviado haviam sido rejeitadas. Mas Ernesto Salvatore teria de concordar que aquela era uma beleza.
O teste para actriz quase a matou de susto, mas foi muito excitante e, depois de ter começado a descontrair-se, saiu-se bem. Crystal e Pearl passaram o resto do dia a ver as vistas. Fizeram o circuito turístico pelas casas das estrelas de cinema e foram ao Grauman's Chinese Theatre. Subiram e desceram Sunset Boulevard e pararam na Hollywood and Vine, enquanto Crystal ria a bandeiras despregadas deixando Pearl tirar-lhe uma fotografia. Riram-se as duas quando viram um transeunte a olhar para ela, a pensar que era uma estrela. Dava nas vistas ali e duas rapariguinhas foram pedir-
-lhe um autógrafo, convencidas de que ela era «alguém». Crystal adorou.
Depois regressaram ao edifício dos agentes. Tinham-lhe pedido que voltasse ao fim do dia, mas não haviam explicado nada. Crystal levou um vestido preto escolhido por Pearl, sapatos de salto alto pretos e uma combinação dura que fazia armar o vestido. Este tinha alças e revelava a brancura rosada dos seus ombros. Não tinha um grama de carne supérfluo. Tudo era suave, sedoso e perfeito. Pearl insistira para que ela levasse um chapéu grande e prendesse o cabelo debaixo dele. E ensinou-a também a tirá-lo.
Quando Pearl e Crystal chegaram ao escritório dos agentes, o homem de que eles haviam falado já estava à espera dla. Era alto, moreno e bem-parecido. Vestia um fato preto de bom corte, camisa branca e uma gravata estreita. Tudo nele sugeria que era alguém importante. Crystal calculou que devesse ter quarenta e cinco. Assim que a viu, ele soube que encontrara a galinha dos ovos de ouro.
Já vira o teste dela nessa manhã. Precisava de ser trabalhada, é claro, e não era nada sofisticada em termos de negócio, mas tinha uma boa voz e com aquela aparência até podia ser surda-muda. Daquela vez os agentes tinham razão. Ela era uma beleza.
Gostou do sorriso dela, e quando a saia preta se agitou, ele olhou as pernas que a iriam tornar famosa. Enquanto olhava para ele Crystal tirou o chapéu tal como Pearl lhe ensinara. Com um gesto gracioso, a sua cabeleira loira resvalou e os três homens quase ficaram sem fôlego quando aquela caiu suavemente sobre os ombros. O homem do fato escuro sorriu e levantou-se para se apresentar. Aquela rapariga era merecedora de Ernesto Salvatore. Avançou lentamente para Crystal, e ela viu algo intrigante nos seus olhos, quase como se ele pudesse ver dentro dela e descobrir os seus segredos mais íntimos. Mas não tinha nada a esconder-lhe. Nada nem ninguém.
— Ola, Crystal — cumprimentou ele. — Chamo-me Ernesto Salvatore, mas podes tratar-me por Ernie. — Apertou-lhe a mão e olhou para Pearl, perguntando-se se aquela ruiva seria a mãe dela. Também tinha umas belas pernas, reparou Salvatore, quando ela as cruzou com cuidado, mas não eram tão bonitas como as de Crystal. As dela eram longas e faziam-lhe lembrar uma rosa com um caule comprido. E gostava do ar inocente dela. Só precisava de um pouco de maquilhagem e de treino. Um professor de voz, alguém que a ensinasse a mexer-se, lições de representação durante um tempo e depois «Upa! Até ao cimo!» Mas ele nada lhe disse, nem aos agentes. Crystal observava-o muito nervosa, perguntando-se quem seria ele exactamente e por que razão a quisera ver.
— Podes estar no meu escritório na segunda-feira à tarde? Ela hesitou antes de responder, temendo confiar nele, depios acedeu:
— Creio que sim. Pearl sorriu perante a relutância da amiga e reparou no olhar aprovador de Salvatore. Este explicou-lhe onde ficava e deu o seu cartão de visita a Pearl, dirigindo um aceno de satisfação aos agentes. Daquela feita haviam conseguido. Depois de dezenas de fiascos e de raparigas sem graça, tinham por fim encontrado um verdadeiro diamante.
Salvatore era um empresário muito conhecido e algumas grandes estrelas tinham começado com ele, embora não muitas. E houvera alguns escândalos desagradáveis. Dois muito falados, suicídios de mulheres de que ele se ocupava e com quem tinha casos. E outros incidentes que ele não desejava recordar. Mais importante ainda, Ernesto Salvatore era a ponta de um icebergue que muitos temiam, pois estava muito bem relacionado. Bastava olhar para ele para se depreender algo. Mas Crystal de nada desconava: era demasiado ingénua para pressentir algo de estranho em Ernie Salvatore.
— Podes mudar-te para Los Angeles? — perguntou ele, olhando para os olhos da jovem. Perguntou-se quem seria ela e de onde viera. Parecia casta e inocente e ele interrogou-se se teria alguém que a protegesse, além da ruiva que a acompanhara à reunião. Mas estava-se nas tintas para saber de onde ela era. Iria torná-la famosa; iria transformá-la naquilo que ela sempre quisera ser: uma estrela. E bem grande.
Se ela deixasse.
— Sim, posso mudar-me para Los Angeles. — Durante toda a vida sonhara em vir para Hollywood, e agora iria fazer o que fosse necessário. Dentro dos limites da razão. Não tinha de responder perante ninguém... nem sequer perante Spencer.
Salvatore tinha uma voz grave, ardente, e uma aura de autoridade, e ela observou-o fascinada quando ele se aproximou para um exame mais pormenorizado. Mas gostou do que viu: era perfeita.
— Que idade tens?
— Vinte e um — respondeu com ar tranquilo. — Vou fazer vinte e dois em Agosto.
Já nem era menor de idade. Óptimo.
Era inocente, pura e exactamente aquilo que ele procurava havia anos. Iria jogar todas as cartadas. Até já sabia qual era o filme que mais lhe convinha. Bastava-lhe ligar ao realizador para mandar embora a actriz principal. Para Ernesto isso era canja, e tencionava fazer o telefonema na manhã seguinte.
Disse-lhe o que queria que ela fizesse: que fosse às compras, que comprasse umas roupas, muitas, disse ele, passando-lhe algumas notas que retirava de um rolo. E que fosse ao escritório dele na segunda-feira de manhã. Iria ter lá o realizador, ele poderia vê-la e nessa tarde já estaria a trabalhar no filme. Só rezava para que ela se conseguisse lembrar das falas, mas o professor de representação teria de lhe ensinar uns truques para a ajudar. Perguntou-se se a outra mulher também ficaria por ali, por isso virou-se e perguntou finalmente a Pearl se era a mãe de Crystal.
Ela sorriu, lisonjeada com a pergunta, mas abanou a cabeça.
— Não, sou apenas uma amiga.
— E a tua mãe? — perguntou ele, virando-se para Crystal: — Onde é que ela está? — As raparigas como ela costumavam ter mães ferozes que lhe causavam imensos contratempos. Era muito mais fácil quando não havia ninguém. Especialmente se mais tarde houvesse problemas.
— Morreu — respondeu ela tranquilamente na sua voz suave.
— E o teu pai?
— Também morreu. — Os seus olhos deixavam transparecer tristeza, e ele soube que ela falava verdade. Era ainda melhor do que pensara. Podia fazer exactamente o que quisesse com ela. Até gostava do nome. Soava bem para Hollywood. Crystal Wyatt. A rapariga iria longe. Agradeceu a todos, foi-se embora, e minutos mais tarde Pearl e Crystal imitaram-no. Esta parecia meio atordoada, e olhou para a amiga com um ar deslumbrado.
— O que significa isto tudo?
— Creio que conseguiste — respondeu ela, limpando as lágrimas de emoção. — Espera só até eu contar ao Harry!
Todavia, Crystal sentiu-se ligeiramente desapontada. Aquilo era tudo o que ela desejava, no entanto, sabia que não voltaria para o mundo confortável do Harry's. Agora estava no mundo real e sentiu algum medo do que lá iria encontrar.
— O que faz exactamente um empresário como ele? — indagou Crystal, pensando de novo em Salvatore.
— Não sei bem. Creio que é uma espécie de agente.
— Ele mete medo, não mete? — Crystal nunca encontrara ninguém assim e ainda não sabia bem se gostava dele.
— Não sejas tontinha — retorquiu Pearl. — Acho que é um homem muito atraente.
No entanto, os padrões de Crystal eram bastante diferentes dos de Pearl. E ela ainda andava perturbada com as recordações de Spencer.
Passaram o fim-de-semana a explorar Beverly Hills com um carro e um motorista que haviam aparecido misteriosamente no hotel, enviados por Ernie Salvatore. Viram dois filmes e foram ao La Brea Tar Pits. Na segunda-feira, Crystal reapareceu num dos vestidos que comprara com o dinheiro de Ernie. Ele chamara-lhe um adiantamento quando lho dera, mas mesmo assim sentia-se um pouco nervosa. Recebera quinhentos dólares, e embora a perspectiva de ir às compras com o dinheiro dele a excitasse, também a assustava. Porque estaria ele a fazer tudo aquilo? O que quereria dela? Recordou-se de histórias horríveis sobre agentes e empresários de Hollywood, mas tentou dizer a si própria que tudo era um sonho tornado realidade. Se não conseguia ter o homem que amava, pelo menos podia ter o seu sonho de estrelato e Ernie iria ajudá-la a consegui-lo.
Comprara quatro vestidos, dois pares de sapatos e três chapéus e ainda lhe tinham sobejado quase duzentos dólares. As roupas ficavam bem ao seu ar virginal, contudo tinham uma vaga sugestão a sexo: uma abertura aqui, um decote cavado, um pouco de rede, um botão aberto. Os saltos eram muito altos e as saias tufadas, suficientemente curtas para deixar vislumbrar as pernas que Salvatore quase aplaudira. E o tal realizador que esperava por ela no gabinete de Ernie ficou tão impressionado como ele esperara. Já lhe devia alguns favores, pelo que a contratação estava garantida. Prometeu despedir a actriz principal desde que Crystal soubesse falar e lembrar-se do guião. Mas o papel não era complicado, nem a história.
— Conseguiste, querida. — O realizador sorriu. — Começamos a filmar na próxima segunda-feira. Isso dá-te uma semana para estudares o guião e preparares-te.
Ela olhou-o espantada. Afinal, o sonho estava a tornar-se realidade. E tudo graças a Ernie. De repente, tudo em seu redor pareceu irreal e ela sentiu como se se estivesse a movimentar debaixo de água.
O realizador saiu pouco depois, não sem ter prometido enviar-lhe o guião, e logo de seguida Ernie estendeu-lhe um contrato.
— O que é que eu faço com isto? — perguntou ela. As coisas estavam a avançar com demasiada rapidez. Queria falar do assunto com alguém, mas não podia. Pearl parecia tão deliciada como ela e até Harry teria ficado encantado com Ernie Salvatore. Os agentes já lhe haviam dito que ele era um dos melhores empresários da cidade, e tinham-na entregue a ele sem receios. Haviam-na libertado. Mas algo lhe dizia que não devia confiar nele. Desejou poder falar com Spencer sobre o assunto, mas ele estava noutro mundo, e através do seu silêncio Crystal compreendera finalmente que a abandonara. Pouco mais velha era do que uma criança quando ele a deixara havia três anos, mas até mesmo ele lhe dissera que deveria ir para Hollywood. Talvez casse impressionado se ela o fizesse. Talvez um dia visse o nome dela no néon... talvez voltasse para Crystal quando ela fosse uma estrela... mas até mesmo isso parecia uma loucura. Ele voltara para Elizabeth. Tanto quanto sabia, já podia ter voltado para os Estados Unidos e nunca lhe telefonara. Os seus dias com Spencer já haviam chegado ao fim e agora tinha de pensar na tão almejada carreira. Finalmente. Sentia como se estivesse no Natal.
Salvatore estendeu-lhe uma caneta com um sorriso sabedor, e deu-lhe uma palmadinha na mão.
— Não tenhas medo, minha querida. Vais ser uma grande estrela. Isto é apenas o começo.
— O contrato é para este filme? — Ainda estava confusa e perguntava-se como o teria ele conseguido tão depressa. Teria sabido que ela ficaria com o papel? Tê-lo-ia trazido o director?
— Isto é um acordo entre nós. Assi, posso tratar de todos os contratos para os filmes que fizeres. É muito mais simples desta forma. Um contrato entre nós e eu trato do resto dos disparates por ti.
— Que tipo de disparates? — perguntou ela, encarando-o, e Ernie ficou menos divertido do que estava. Esta era inteligente. Mas também estava ansiosa por aquilo que ele lhe tinha para oferecer, e ele sabia-o. Comprara roupas, andara de limusina e, tal como todas as outras, estava mortinha por ser uma estrela. Todos os engodos haviam sido bem colocados. Só lhe restava assinar o contrato. E iria fazê-lo. Ele tinha a certeza. Todas assinavam.
— Não queres que eu te aborreça com todos os pormenores, pois não Crystal? — E depois riu-se, como se ela estivesse a ser infantil. — Confias em mim, não confias, minha querida? — Como poderia ela não conar? Os agentes tinham dito que ele era um dos melhores. Crystal olhou para Pearl, que acenou quase imperceptivelmente. Com isso, ela pegou na caneta, olhou para o contrato que não compreendia e assinou-o. — Perfeito. — Ernie tirou-lhe a caneta e depois pegou-lhe na mão, beijou-a e em seguida os olhos dele encontraram os seus, fazendo-lhe sentir um arrepio. O modo como a olhava era perturbador. Mas quando ele se tornou a afastar, ela disse para si própria que estava a ser estúpida. Ele sabia o que estava a fazer, e era obviamente bom nisso. Conseguira-lhe um papel, não conseguira? Mas também despedira alguém para o conseguir. Recusou-se a pensar nisso quando ele lhe disse que iria mudá-la para outro hotel, um melhor do que o que Harry reservara. Aquele ficava em Westwood.
—Já tenho dinheiro para isso? — Crystal nem sabia que papel iria representar no filme, mas Ernie riu-se das suas preocupações.
— É claro que tens. — Depois olhou para Pearl. — Também vai ficar? — Mas algo nos seus olhos disse que ela não era bem-vinda, e Pearl sentiu-o.
— Eu... bem... — Olhou nervosa para Crystal. Era como se nos últimos minutos se tivesse tornado desnecessária. — Creio que vou regressar a São Francisco. — Olhou para os dois como que a pedir desculpa, e Crystal ficou desiludida. Salvatore também se apercebeu disso e sorriu para ambas enquanto guardava o contrato. Enfiou-o numa gaveta onde, assegurou ele a Crystal, guardava os documentos mais valiosos.
— Porque não fica até à semana que vem, quando a Crystal começar a trabalhar? Depois disso ela ficará muito ocupada. E receio bem que esta semana já tenha algum trabalho.
Virou-se para ela com um ar paternal e explicou que desejava pô-la a trabalhar com um educador de voz. É claro que também teria aulas de representação, mas iria aprender muito nas filmagens, se estivesse atenta.
Pearl concordou em ficar até à semana seguinte, e Ernie garantiu a ambas que já estariam instaladas no novo hotel antes do cair da noite. Sugeriu-lhes então que fizessem as malas, para o motorista as levar para o hotel. Se elas não se importassem iria juntar-se-lhes mais tarde para um cocktail. Cinco minutos mais tarde, encontravam-se de novo no carro, mas Crystal estava estranhamente calada. Pensava em tudo o que acabara de lhe acontecer e em que ainda mal conseguia acreditar. Pearl falava sem parar, comentando a beleza dele, o seu ar agradável, a excelente oportunidade que Crystal tivera e como em breve seria uma estrela. Crystal não sabia o motivo, mas ainda não confiava nele. Não falou até chegarem ao hotel, e depois virou-se para Pearl enquanto dobravam as roupas para as meter nas malas.
—Achas mesmo que ele é de confiança?... Quero dizer. .. Oh, não sei... — Sentou-se numa cadeira e tirou os sapatos de salto alto, desejando poder usar calças de ganga nessa noite. Mas eleja a informara de que a partir de agora teria de ter cuidado com a sua imagem. Teria de usar roupas bonitas e sexys, maquilhagem, o cabelo bem arranjado, e tinha de ser vista por toda a cidade em todas as festas para que fosse convidada. E iria certificar-se de que ela seria convidada para todas. Parecia excitante, contudo ela não conseguia deixar de pensar por que motivo estaria ele tão desejoso de a ajudar. Partilhou os seus receios com Pearl, que lhe disse que era maluca.
— E claro que ele é de confiança. Estás a gozar? Olhaste bem para aquele escritório? O tipo deve ter gasto uns milhões de dólares só na decoração, ou algo parecido. Achas que ele tinha um escritório daqueles se não fosse importante? Querida, saiu-te a sorte grande e ainda não te apercebeste. Ele faz tudo isto porque sabe que um dia serás uma grande estrela. A única pessoa que ainda não o sabe és tu, tontinha!
Sorriu para a amiga, e Crystal deu uma gargalhada. Ao ouvir Pearl, sentiu-se melhor, e, depois de terem ligado a Harry antes de saírem do hotel, Crystal ficou de excelente disposição. Ele disse-lhe que estava muito orgulhoso e que ela se estava a tornar numa grande estrela. Afinal de contas, fora por isso que para ali fora. E conseguira exactamente o que queria. Tinham razão. Ela era louca por estar tão preocupada: não havia motivos. Apenas tinha de se recostar e apreciar o espectáculo.
A suite do novo hotel parecia saída de um filme, bem como o átrio, com veludos vermelhos e mármores brancos. Tratava-se de um hotel pequeno localizado num bom bairro, e era indiscutível que dava muito nas vistas. Mas Pearl disse-lhe que seria um óptimo local para ser vista, sugerindo-lhe que mudasse de roupa várias vezes ao dia e passeasse pelo átrio. Crystal riu-se da ideia, mas nessa tarde decidiu experimentá-la, e as duas mulheres riram a bandeiras despregadas quando Crystal mudou três vezes de roupa e regressou ao átrio para enviar uma carta, para pedir outra chave para a amiga e perguntar se alguém viera entregar um embrulho.
— Alguém te viu? — perguntou Pearl muito excitada. Insistira para que Crystal fosse sozinha, e esta ainda estava a rir-se quando regressara para descansar e vestir as calças de ganga. Trouxera-as à cautela juntamente com as botas de cowboy e as meias vermelhas de Jared, que ainda eram das coisas que mais gostava.
— Sim — respondeu Crystal ainda a rir, enquanto pendurava o vestido e tirava os collants. — O recepcionista viu-
-me. Se calhar pensa que sou prostituta.
— Espera só até ele ver os teus filmes; nessa altura saberá quem és! — exclamou com tanto orgulho que Crystal se virou lentamente para ela e atravessou o quarto para a abraçar.
Ela fora tão sua amiga durante os últimos quatro anos! Iria estranhar quando Pearl se fosse embora.
— Obrigada — agradeceu Crystal, baixinho.
— Porquê? — resmungou Pearl, mas sem conseguir ocultar o seu amor. Crystal tornara-se a filha que ela nunca tivera, e iria sofrer muito quando partisse no domingo para São Francisco.
— Obrigada por acreditares em mim. Nunca teria cá chegado se não tivesses sido tu e o Harry.
— Isso é a coisa mais idiota que já ouvi. Os agentes descobriram-te no restaurante. Não tivemos nada a ver com o caso.
— Tiveram tudo a ver. O Harry contratou-me, tu treinaste-me. Ensinaste-me tudo o que sei acerca de cantar num palco. Acreditaste em mim durante todos estes anos e agora trouxeste-me até cá. Isso é muita coisa!
— Não sejas tolinha. Limita-te a ser feliz. — Voltou-se para sorrir à amiga enquanto se dirigia ao enorme bar de formica vermelha e enfeites dourados. Tirou uma cerveja do frigorífico e em seguida sentou-se num banco alto de veludo preto e fez um brinde a Crystal com a garrafa. — À tua, miúda... — Em seguida, com um gesto que abarcava toda a suite que ele lhes reservara, acrescentou: — E ao Ernie!
— Ao Ernie! — concordou Crystal, servindo-se de uma Coca-Cola e pensando melhor a respeito dele do que de manhã. Já não sabia o motivo da sua preocupação, mas sabia que se preocupara. E parece que sem razão.
Ele chegou às seis horas para uma bebida, tal como prometera, encontrando Pearl um pouco tocada e Crystal em calças de ganga. Esta sentiu-se como se tivesse sido apanhada a copiar os trabalhos de casa. Sabia que deveria ter um ar esplendoroso e portar-se bem, pois ele falara-lhe das exigências morais nos contratos cinematográcos. E ali estava ela com umas calças de ganga apenas algumas horas depois de ter assinado o contrato. Mas ele riu-se para ela, e ainda mais para Pearl, e Crystal acabou por o achar mais simpático. E quando o observou com maior atenção enquanto ele abria a garrafa de champanhe que trouxera, acabou por considerá-lo bastante atraente. Mas o seu ar era diferente do de Spencer, que era muito distinto, corn o ar de u jovem guerreiro. Ernie parecia ter passado por todos os salões da Europa. Pelo menos foi assim que Pearl o descreveu depois de ter ingerido vários copos de champanhe. Apelidou-o de cortês e afável, mas passado algum tempo Ernie ignorou-a e concentrou-se em Crystal. Falou-lhe numa voz meiga, dizendo como estava contente por causa do contrato. Também depositou na mão dela um sobrescrito grosso. Era um sobrescrito cinzento, com o nome e morada dele gravados num papel muito caro.
— Esqueci-me de te dar isto esta manhã. Lamento imenso, Crystal. Normalmente não cometo erros destes. — Sorriu e fez um ar de quem estava habituado a ser perdoado. Estava habituado a muitas coisas, coisas com que Crystal nem sonhava.
— O que é? — perguntou ela, abrindo o sobrescrito com muito cuidado; ficou admirada ao ver um cheque. Quando o tirou, viu que estava assinado por ele. Por que razão estaria ele a dar-lhe mais dinheiro? Já lhe dera quinhentos dólares como «adiantamento». Mas adiantamento de quê?, perguntou-se, levantando os olhos e deparando-se-lhe ele a sorrir.
— Isto é o dinheiro que te devo por teres assinado o contrato. Não estavas à espera de fechar um grande negócio apenas com um beijo, pois não? Embora deva dizer que se for esse o caso me agrada bastante.
Crystal olhou-o atrapalhada. Não percebia nada daquele acordo.
— Deve-me isto? — Parecia divertida e encantada. Ainda não começara a fazer o filme e já ganhava dinheiro. E vivia eomo uma rainha no hotel que ele escolhera. Quem é que dissera que Hollywood era difícil? Essa pessoa devia ser louca... mas, por outro lado, não conhecia Ernie Salvatore. Ela começara mesmo de cima, tal como Pearl lhe havia dito.
— Na realidade, minha querida, devo-te dois mil e quinhentos dólares. Mas os quinhentos dólares foram um «adiantamento», tal como referi, por isso deduzi-os do teu cheque. — Não queria que ela achasse que lhe devia muito dinheiro, pelo menos não já, senão iria assustá-la. E não era isso que desejava. Ela tinha de sentir que recebia o dinheiro dele, o que era verdade. Recebera uma boa maquia nessa tarde pelo primeiro filme dela. Depois, pagar-lhe-ia um pequeno salário e ficaria com o resto, como constava do contrato que ela assinara. — Amanhã levo-te ao meu banco Crystal. Depois podes abrir lá conta. — Ela nunca tivera uma conta bancária e a ideia excitou-a. Bebeu outro gole do champanhe que ele lhe servia. Pouco depois ele levantou-se e desejou-lhes uma boa noite. Sorriu para Crystal quando ela o acompanhou à porta e deu-lhe um beijo na face antes de partir. Desta vez parecia não haver nele nada de estranho e ela começou a gostar dele. «Quem não gostaria?», dissera Pearl. Ele era tão bom para elas. O hotel, a suite, o champanhe... Crystal sorriu, exibindo o cheque.
— Não sei se deva gastá-lo ou emoldurá-lo. — Mas na manhã seguinte, decidiu-se facilmente pela primeira hipótese. Depois de a secretária de Ernie lhe ter ligado, ela foi ao banco e de seguida à joalharia em frente, onde comprou a Pearl a pulseira de berloques que ela estivera a namorar uns dias antes. Ela ficara fascinada porque todos os berloques estavam relacionados com o cinema. Óculos escuros, um megafone, minúsculos projectores e um pequeno quadro de ardósia que se abria e fechava como aqueles que iriam ser usados nas lmagens do primeiro filme de Crystal. Pearl chorou quando Crystal lha colocou, e passaram o resto da tarde a rir, a falar e agir como duas turistas. Ernie tornara a pôr a limusina à disposição delas, e nunca lhes ocorreu que ele o fizera para saber exactamente o que Crystal fazia. Parecia-lhes apenas uma enorme gentileza, e o motorista era muito simpático.
O professor de voz foi conhecê-la nessa tarde e quando cantou para ele ao piano, ele ficou admirado por ela ser tão boa. Só era pena não cantar no papel que representava no filme. Ele era simultaneamente seu professor de representação e falou-lhe do guião, dizendo-lhe que não se preocupasse. A semana passou a correr e Pearl partiu, depois de muitas lágrimas, abraços e promessas de lhe telefonar. De um momento para o outro Crystal ficou sozinha em Hollywood. Os seus sonhos haviam-se tornado realidade, iria começar a trabalhar no lme no dia seguinte e nessa noite, quando foi dar um passeio, deu por si a pensar em Spencer. Perguntou-se onde estaria ele, o que estaria a fazer e com quem. Se estaria na Coreia, ou de regresso a casa, e se teria saudades dela. Mas embora tentasse Crystal descobriu que não conseguia tirá-lo da cabeça, nem esquecer as duas semanas mágicas que haviam passado juntos. Independentemente do que lhe acontecesse, sabia que iria amá-lo para sempre. Ainda estava tão presente na sua mente como no dia em que partira e nos dias anteriores... tal como quando tinha catorze anos e se apaixonara por ele ao primeiro olhar quando do casamento da irmã.
— Bem, bem, que cara tão séria! Não te esqueças dela para um papel dramático. — A voz falou mesmo atrás e Crystal virou-se, admirada, deparando com Ernie. Afastara-
-se apenas alguns quarteirões do hotel, mas na sua mente estava a quilómetros de distância e não o ouvira aproximar-se.
— Achei que te deverias sentir sozinha sem a tua amiga, por isso resolvi ver como estavas. E na recepção informaram-me que tinhas ido dar um passeio. Importas-te que te faça companhia?
— É claro que não. — Ele fora tão bondoso, como poderia objectar a qualquer coisa que fizesse? E na verdade sentia-se mesmo muito sozinha. Pensar em Spencer nunca ajudava. Era sempre um golpe recordar que ele desaparecera no silêncio. Já acontecera o mesmo anteriormente... entre o casamento de Becky e o baptizado do bebé... depois de se terem voltado a encontrar em São Francisco, na altura em que ele ficara noivo, e novamente até uns dias antes de ele partir para a Coreia. Mas desta vez fora diferente. Dantes ela não tinha dormido com ele. Não o amara como o amava agora. Mas não valia a pena tornar a pensar no assunto. Não podia fazer mais nada. Ele desistira dela, deixara de lhe escrever, deixara de responder às suas cartas, e ela sabia que ele perdera o interesse muito antes disso. Às cartas cheias de amor e de palavras de saudade haviam-se sucedido pouco mais do que postais e depois nada.
— Estás xcitada por causa de amanhã? — perguntou Ernie, sorrindo e olhando-a com benevolência.
— Muito. — Estava a ser franca e ele gostou da sua aura de excitação. Era uma mudança agradável depois das vedetas gastas com que ele costumava sair.
— Vais sair-te muito bem. Talvez para a próxima te arranjemos um papel em que tenhas de cantar, para mostrares a todos do que és capaz. — Ouvira-a cantar no teste e sabia como ela era boa. Mas queria lançar o rosto antes de se preocupar com o resto e sabia exactamente o que estava a fazer.
— Gostaria muito que isso acontecesse. — Crystal tinha saudades de cantar, apesar de terem passado poucos dias desde que deixara São Francisco.
— O teu professor de voz disse-me que eras muito boa.
— Obrigada. — Ela sorriu-lhe e ele quase sentiu o corpo a tremer enquanto a observava. Depois teve uma ideia: já que ia ser seu confessor, ou tutor benévolo, bem que podia levá-la a jantar.
—Já foste ao Brown Derby? — perguntou ele com um ar inocente, mas o motorista informara-o de que não. Recebia diariamente relatórios da actividade dela. Queria certificar-se de que Crystal não era uma prostitutazinha que dormia com todos, destruindo a sua reputação e a dele. Mas até agora portara-se bem, se calhar porque a amiga Pearl estivera lá. Porém, ele achava que ela teria agido da mesma maneira se tivesse estado sozinha. Até se perguntara uma vez ou duas se ela não seria virgem. Era desse tipo, e isso agradava a Ernie. Dessa forma seria muito mais fácil treiná-la.
— Não, não fui. — Ela sorriu-lhe muito inocente e muito bela. Sob qualquer luz, fato, penteado, ou com calças de ganga, aquela rapariga era um espanto.
— Queres ir lá jantar esta noite? Mas aviso-te já que se formos trago-te de volta muito cedo. Precisas de uma boa noite de sono antes do dia de amanhã.
— Sim, sir. — Mas os seus olhos iluminaram-se. — Gostaria bastante. — A ingenuidade dela divertia-o. Aquela iria ser fácil.
Olhou para o relógio, fez uns cálculos e ofereceu-se para a acompanhar ao hotel. Iria buscá-la daí a uma hora. Ainda trazia calças cinzentas e casaco de tweed e queria mudar de fato antes de jantar.
— Estarei de volta às oito. E tenciono meter-te na caa às dez, aconteça o que acontecer. — E infelizmente, sem ele. Mas Ernie era demasiado esperto para se atirar já a ela. — Parece-te bem?
— Parece-me óptimo! — Ela inclinou-se para o beijar no rosto, como teria beijado um avô, e ele sentiu-se envergonhado quando a deixou à porta do hotel no Mercedes. Tinha vários automóveis e deixara uma das limusinas à disposição dela durante toda a semana. Mas preferia o Mercedes e queria estar sozinho com ela nessa noite. Quando a foi buscar ficou satisfeito ao ver que ela envergava um belo vestido branco de seda, com urna casaquinha a condizer. Crystal estava deslumbrante e ele ficou satisfeito por lhe ter feito o convite. Os restantes comensais do Brown Derby foram da mesma opinião.
Crystal entrou, conversando com ele acerca da sua vida no vale e depois ficou plantada no chão quando se apercebeu de que todos olhavam para ela. E olharam ainda com maior intensidade quando viram quem a acompanhava. Ele tinha mesmo habilidade para descobrir as raparigas mais bonitas da cidade. Ninguém o podia negar, e esta era a melhor de todas. Ernie parecia conhecer toda a gente no restaurante, e Crystal quase desmaiou quando viu um homem parecido com o Frank Sinatra passar por si. Ernie dirigiu-se devagar à mesa que reservara, cumprimentando toda a gente e apresentando-a a pessoas com que ela só pudera sonhar.
— Não fiques tão assustada — disse ele com meiguice, sorrindo. Ficara encantado com as reacções das pessoas. Ela saíra-se bem. O vestido branco chamava a atenção, especialmente quando ela tirou a casaquinha, pondo a descoberto um decote generoso. Não era algo que ela gostasse de exibir, por acaso até se esforçava por se tapar, mas Pearl insistira para que comprasse o vestido e ela decidira pô-lo para o jantar no Brown Derby. E estava contente com a escolha. Ernie disse que o adorava. Ele surpreendeu-a durante o jantar. Crystal sentiu-se muito à vontade.
Ernie era simpático e amável e tinha muito bons modos. Não havia nada de insinuante na forma como se dirigia a ela. Afinal de contas, não era um traficante de escravas brancas, era apenas um empresário, como ele se auto-intitulava. Ela confessou-lhe que sempre sonhara ser uma estrela de cinema. Era uma história que ele já conhecia, mas sorriu como se a ouvisse pela primeira vez. Gary Grant estava junto ao bar e Rock Hudson entrou para falar com alguém e ficou por ali durante algum tempo. Crystal olhava em volta maravilhada. Era muito mais do que aquilo com que ela ousara sonhar. Sentiu as lágrimas a assomarem-lhe aos olhos e olhou para Ernie, que ficou muito preocupado.
— Passa-se alguma coisa?
— Não posso acreditar que isto me esteja a acontecer! Ele sorriu. Gostava delas assim. Frescas e novas. Gostaria de ter ficado com ela até mais tarde para a conhecer melhor, mas queria-a repousada para o dia seguinte. O filme era o mais importante. Para Ernie, Crystal era mais do que uma rapariga. Era um investimento.
Conversaram durante o café e ele disse que gostaria de a ver pela cidade pelo braço dos homens certos. Discretamente, referiu-lhe uma lista de nomes que lhe iriam telefonar. Ela reconheceu alguns e pensou que'ele estava a brincar. No entanto, quando olhou para os olhos dele, viu que não.
— Porque está a fazer tudo isto por mim? — Ainda não o compreendia. Porquê ela? Mas Ernie sabia exactamente o que fazia.
— Um dia vais tornar-nos ambos muito ricos. — Sorriu como se tivesse encontrado um diamante no café: — Vais ser muito famosa.
— Como é que sabe? — Porque seria ela diferente das outras? Não se apercebia da sua beleza, especialmente agora com os vestidos que ele a incitara a comprar e com a maquilhagem cuidada. Estava muito longe das camisas de trabalho e das botas de cowboy, mas por enquanto não sentia a falta delas.
— Nunca me enganei — vangloriou-se ele, dando-lhe uma palmadinha na mão enquanto pedia a conta. Depois, enquanto esperava, fez a pergunta que o andava a intrigar desde que a conhecera.
— Estás envolvida nalgum romance? — Ela ficou pensativa e ele sorriu. — Por outra palavras, tens algum namorado? — Ela tinha-o percebido, mas estivera a meditar no assunto.
— Não, não tenho. — A sua voz era firme mas passou-lhe pelo rosto uma sombra de tristeza quando pensou em Spencer.
— Tens a certeza?
— Sim.
— Ainda bem. Mas tiveste? — Ela assentiu. — E onde está ele agora? — Queria ter a certeza de que ela estava livre e que não iria ter problemas. E claro que poderia livrar-se dele, mas não o desejava fazer.
— Não sei bem — prosseguiu Crystal. — Na Coreia, ou de regresso a Nova Iorque. Seja como for, já não é importante. — Mas teve de reprimir as lágrimas ao dizer aquelas palavras.
Depois recostou-se e viu Ernie cumprimentar os amigos que passavam pela mesa. Ele era atraente e gracioso e tinha um certo estilo que começava a agradar a Crystal. Nunca conhecera ninguém assim. Reparou que usava um único anel, de ouro e muito pesado, com um grande diamante. O fato era caro e a camisa branca fora feita por um fabricante de Lãs Vegas, mas parecia ser proveniente de um alfaiate de Londres. O homem possuía muito estilo e era óbvio que se preocupava com o seu aspecto. Era também muito sensual, mas havia nele uma energia que ainda a assustava um pouco. Ele escondia-o bem, mas as pessoas sentiam que Ernesto Salvatore era um homem que conseguia sempre o que queria. Contudo, quando se virou para ela não havia vestígios disso.
— Estás pronta para ir? — perguntou ele levantando-se. Conduziu-a, passando por uma dezena de rostos famosos. Alguns deles cumprimentaram-no, mas desta vez ele não parou. Avançou até à porta, fingindo não reparar nos olhares dirigidos a Crystal e poucos minutos depois deixou-a no hotel. Crystal agradeceu-lhe, ele partiu, e ela subiu as escadas para uma boa noite de sono antes do trabalho do dia seguinte.
No entanto, uma vez na cama não conseguiu dormir; contudo, daquela vez não estava a pensar em Spencer; interrogava-se acerca do empresário, e embora admitisse que ele era encantador, tal como Pearl dissera Crystal apercebeu-se de que Emie a assustava.
Crystal começou a trabalhar no filme tal como lhe prometera o professor, e foi tudo mais fácil do que aquilo que ela julgara. As horas de trabalho eram muitas e rigorosas, mas todos pareciam ansiosos por ajudá-la. Ela estudava as suas falas todos os dias e tencionava deitar-se cedo todas as noites, mas ficou impressionada com a grande quantidade de telefonemas que recebia de homens. Ernie falara-lhe em todos eles, por isso Crystal sabia que os telefonemas tinham sido mandados fazer, mas os homens mostravam-se sempre educados, agradáveis e encantadores. Chegavam de smokin, ao volante de carros dispendiosos, actores, cantores e dançarinos bem conhecidos. Ela até vira alguns deles no cinema. E levavam-na a todo o lado. Ao Chasen's, a Coconut Grove e ao Mocambo. Era tudo como um conto de fadas e as palavras faltavam-lhe quando tentava descrever tudo nas cartas que escrevia a Pearl. Falou-lhe das festas a que ia, das pessoas que conhecia, e por momentos perguntou-se se a amiga acreditaria nela. Era o tipo de história que se encontrava nas revistas, mas era verdadeira. Toda ela. E falou-lhe também do filme.
E a meio do filme, Ernie telefonou-lhe.
— Estás a divertir-te?
— Tenho saído todas as noites — disse ela com uma gargalhada e ele também se riu.
— Então como é que estás em casa a estas horas?
— Estava tão cansada que cancelei a minha saída. Achei que não me conseguia vestir mais uma vez. — Ele sentiu-se tentado a fazer um comentário, mas achou que ela ainda não estava preparada. Em vez disso, optou por uma resposta inocente e por não a assustar.
— Nem sequer uma vez? Só para mim?
— Oh, senhor Salvatore...! — exclamou ela em voz baixa. Estava exausta. Tinha de levantar-se todos os dias às quatro e estar nas filmagens às cinco e meia para a maquilhagem e para se vestir.
— O que aconteceu ao «Ernie»? Fiz alguma coisa de errado?
— Não, desculpe. — Ele parecia tão simpático e ela devia-lhe tanto que sabia não poder recusar um pedido dele. Desejou que ele não lhe tivesse ligado. Estava mesmo cansada.
— Não peças desculpa, lembra-te só da próxima. Que tal um jantar calmo? Nem sequer precisas de te vestir para seres vista.
Ela suspirou de alívio. Afinal, fora simpático da parte dele telefonar-lhe. Sorriu ao olhar pela janela.
— Posso levar calças de ganga?
— Com certeza. E traz um fato de banho, se tiveres.
— Aonde vamos? — perguntou ela intrigada e ligeiramente preocupada.
— A Malibu. A um sítio discreto que conheço. Podes estar descontraída e eu levo-te cedo para casa.
— Gostaria muito. — Vestiu-se à pressa, amarrou o cabelo, enfiou as calças de ganga, uma das velhas camisas que trouxera de casa e as botas de cowboy que já tinha há muitos anos. Quando se olhou ao espelho, tornou a reconhecer-se e soube-lhe bem não estar bem vestida e pintada.
Ele foi buscá-la no Rolls Roce dez minutos mais tarde e ela reparou que ele também levava calças de ganga. Ele sorriu, agradado pelo aspecto dela.
— As pessoas são tão estúpidas! Gostaria muito de te ver num filme com essa roupa, mas ninguém iria entender. — Reparou que ela se sentia muito bem com as botas e aquelas calças e recordou-se das histórias do vale que ela lhe contara durante o jantar em Brown Derby.
Naquela noite, ela esteve mais à vontade com ele do que já alguma vez estivera. Para isso contribuía a ausência de roupas caras e o facto de não estar num restaurante, onde todos a olhavam. Crystal não se lembrou de lhe perguntar para onde se dirigiam. Tagarelaram durante algum tempo acerca da infância dela no vale e da dele em Nova Iorque, e de repente ela viu que tinham parado junto a uma casa com vista para o mar.
— Onde estamos?
— Na minha casa de Malibu. Trouxeste um fato de banho? Tenho uma piscina interior. O mar é demasiado frio para estas bandas.
Ela sentiu um arrepio de medo, no entanto ele não lhe dera a entender que deveria preocupar-se. Mas as cicatrizes emocionais deixadas por Tom nunca tinham desaparecido completamente, e de repente ela perguntou-se o que pensaria Spencer se soubesse que ela estava ali com Ernie. Mas isso já não importava. E ele era casado. E aquela era a sua vida e a de mais ninguém. Repeliu Spencer da sua mente e seguiu Ernie até à porta, que ele abriu com uma única chave. Não estava lá ninguém, e Crystal sentiu medo.
— Não fiques assustada, pequena. — Ele sorriu-lhe com ternura. — Não vou magoar-te. Pensei apenas que precisavas de uma noite de folga.
Tinha razão, ela precisava mesmo, mas não sabia se ali estaria em segurança. O seu instinto dizia-lhe para não entrar, mas teve vergonha de armar um escândalo, uma vez que ele estava a ser tão simpático e que já fora tão bondoso para ela.
Seguiu-o, entrando, e viu que estava numa bela casa, com paredes de vidro e tectos altos, tapetes espessos brancos e enormes sofás de cabedal. A sala parecia ainda maior graças ao uso de espelhos. Do lado de fora das grandes janelas, o Sol punha-se lentamente sobre o Pacífico. Era lindo, e tudo lhe pareceu mais real. Lembrou-se do pôr do Sol no rancho, que costumava ver em tempos mais felizes, com o pai.
— Queres beber alguma coisa? — Ele dirigiu-se para o bar e abriu o frigorifico escondido atrás de uma porta espelhada, mas ela abanou a cabeça. Fazia tenções de se manter sóbria.
— Não, obrigada.
— Qualquer coisa sem álcool, talvez? — Ela pediu uma Coca-Cola e ele sorriu. Ela era mesmo uma miúda, por detrás daquele corpo magnífico. Nunca vira uma rapariga tão bonita e ainda se admirava por a ter encontrado. — Não bebes ou não confias em mim?
Ela hesitou e depois riu-se.
— Acho que as duas coisas.
— Esperta. — Ele serviu-se de um vodca com água tónica e convidou-a a sentar-se no sofá. Ela ainda estava a tentar descobrir onde ficava a piscina, mas agora que estavam lá dentro, a casa parecia muito maior. Quando entrara achara-a muito pequena.
— Encomendei jantar para nós os dois. Tenho a certeza de que está para aí algures muito bem escondido. Há um homem que vem cá todos os dias. Mas não uso esta casa muitas vezes. Vivo em Beverly Hills. — E sabia que ela estava a viver no hotel. — Podes usar esta casa sempre que quiseres Crystal. Vem até cá para te descontraíres. Depois de um dia de trabalho duro no filme, bem precisas.
Ela ficou sensibilizada pela amabilidade. Já fizera tanto por ela! Era difícil compreender o motivo. Para ganhar dinheiro, é claro, mas havia mais qualquer coisa. Também se encarregava de todas as pequenas coisas, das flores, dos pequenos presentes, da escolha dos seus acompanhantes, e agora daquilo: uma noite na praia com calças de ganga. Era mesmo isso que ela teria desejado. Ele estava sempre à altura; era mesmo o que fazia melhor; tinha uma grande capacidade para adivinhar os desejos dos outros.
Crystal encostou a cabeça ao sofá enquanto o Sol se punha atrás deles e suspirou satisfeita.
— Acho que este é o dia mais agradável que passei aqui.
— Óptimo. Gostarias de dar um mergulho antes de jantar ou preferes esperar? Talvez um passeio na praia? Ela sorriu.
— Gostaria muito.
Ernie pousou o copo e abriu a porta para a varanda. Uma brisa fresca entrou e ele seguiu-a pelas escadas até à areia. Crystal começou a correr, sentindo o vento no rosto e no cabelo, e pela primeira vez desde há muito sentiu-se verdadeiramente feliz. Parecia de novo uma criança a correr, e tirou as botas para molhar os pés no mar. Estava a escurecer, mas ele seguiu-a em silêncio, observando-a deleitado como um pai orgulhoso. Por m, ela regressou para junto dele, o rosto corado pelo ar fresco e pelo vento.
— Tens frio?
— Não, estou bem.
Ernie apercebeu-se de que ela estava com frio e tirou o casaco, colocando-o sobre os ombros de Crystal. Cheirava à água-de-colónia que ele usava. Crystal não se apercebera dela antes, mas gostou do cheiro. Perguntou-se se eleja fora casado, ou se tinha filhos, quem estaria atrás daquela fachada, mas ele não revelava nada de si próprio. Parecia estar ali apenas para lhe agradar e pouco depois levou-a para dentro e foi à procura do jantar. Encontrou uma lagosta fresca com maionese e uma salada de espinafres. No balde de prata de gelo gelava a garrafa de champanhe e junto estavam ovos cozidos recheados com caviar.
— Já alguma vez comeste caviar? — Ela abanou a cabeça, só ouvira falar dele, e Ernie dirigiu-lhe um sorriss paternal. — De início talvez não gostes. Há coisas assim. — Mas ela decidiu agradar-lhe e acabou por achar que o caviar não era assim tão mau. No entanto, quando se sentaram à mesa, em cadeiras confortáveis, Crystal descobriu que gostava muito mais da lagosta e do champanhe. Bebeu pouco e ele não a forçou a beber mais. Tinha tempo, e muito, e não a queria antes de ela o querer a ele. Sabia que ela acabaria por o querer. Estaria demasiado endividada para que isso não sucedesse.
Falaram acerca do vale, do pai dela, sobre todas as coisas importantes para ela, e ele ouvia-a como se a sua vida dependesse disso. Meia hora depois do jantar, ele tornou a sugerir-lhe um mergulho com um sorriso caloroso.
— Talvez te descontraísse.
Ela riu-se com aquela escolha de palavras.
— Se eu ficasse mais descontraída adormecia já aqui no chão. — Tivera um dia longo e muito difícil e a sobrecarga de trabalho já se fazia sentir. Para ajudar, o ar fresco do mar fizera-lhe sono. — Um banho não faria mal, isto se eu não me afogar depois de tanta lagosta.
— Não te preocupes, eu salvo-te.
Ela sorriu-lhe com gratidão, sem se aperceber da beleza da sua imagem, descontraída, com calças de ganga, botas, uma camisa velha e o cabelo loiro.
— Acho que já o fez.
— Espero bem que sim. — O seu benfeitor dirigiu-lhe um sorriso benevolente e disse-lhe onde poderia udar de roupa enquanto ia acender as luzes da piscina. Momentos depois ela apareceu num fato de banho branco que lhe tirou o fôlego. Crystal não fazia ideia da sua enorme beleza, o que também não era prejudicial. Ernie apreciava isso nela. E o público iria ser da sua opinião. Ele nunca se esquecia disso.
— Espero que esteja suficientemente quente. — Observou-a a entrar na água, e depois foi mudar de roupa enquanto ela boiava muito contente. A piscina era enorme e quente e ela achou que nunca se tinha sentido tão confortável. Olhou para Ernie com um ar muito satisfeito quando ele regressou envolto numa enorme toalha branca. Tinha-a enrolada à cintura e enquanto ela olhava, ele desenrolou-a e Crystal ficou estupefacta. Ernie estava nu. Virou discretamente a cara, com receio de o embaraçar, e ouviu-o rir.
— Não te preocupes Crystal. Não te vou violar. Nunca fui acusado disso. — Mas fora acusado de outras coisas de que ela nem fazia ideia. Entrou na piscina e ela começou a nadar, com receio de ver algo que não devesse. Quando passou junto dela, sorriu-lhe. — Porque não tiras também o teu fato de banho? Esta água está tão quente que parece a da banheira. — Parecia não ter outros motivos para fazer aquela sugestão, estava apenas muito à vontade consigo próprio e com ela. Não tentou tocar-lhe quando ela sorriu e tentou parecer despreocupada, mas sabia que a deixara nervosa por estar nu.
— Não, estou bem assim, obrigada.
— Como queiras, minha querida. — Ele era muito delicado e inteligente, nunca apressando o objecto das suas atenções. Todas acabavam por vir ter com ele, por um motivo ou por outro. Pouco depois, saiu da água e ficou de pé junto à piscina. Crystal, sem o desejar, reparou que ele tinha um corpo muito bem cuidado. Era alto, esguio e estava em forma; nadava todos os dias. Possuía o corpo de um homem muito mais jovem. Ofereceu-lhe mais champanhe, mas Crystal não ousou olhar para ele, o que o levou a perguntar-se se a rapariga seria virgem. Isso traria certos inconvenientes, é claro, mas nenhum obstáculo era insuperável. Ele teria estado a fazer o sacrifício por ela, mas quando a observou, foi obrigado a sorrir. Ela nadava corno um peixe, esforçando-se pateticaente por não parecer nervosa.
— Sentir-te-ias melhor se eu baixasse a intensidade das luzes? Acho que tenho uma grande fobia: detesto fatos de banho. Vais ter de me desculpar.
— Ora essa. — Ela tentava parecer adulta e comportar-se como achava que as estrelas de cinema se comportavam, mas ele estava a deixá-la bastante nervosa. E antes de conseguir responder, ele acendeu as luzes na sala. Ali na piscina havia apenas luzes fracas e as lâmpadas junto ao tecto pareciam velas.
— Estás melhor?
— Muito — mentiu ela.
Ernie bebeu um gole de champanhe e tornou a entrar na água. Desta vez nadou directamente para ela, agarrando-a com firmeza pêlos pulsos. Ela imobilizou-se, olhando-o nos olhos.
— O que me vai fazer? — perguntou, apavorada.
— Vou transformar-te numa estrela de cinema — murmurou ele, mas de repente Crystal perguntou-se o que quereria em troca. Talvez as histórias que ouvira sobre Hollywood fossem verdadeiras: rezou com fervor para que desta vez não o fossem... «Por favor, meu Deus, desta vez não.» — Não quero magoar-te. Crystal. Confia em mim. — Ela assentiu, incapaz de falar, enquanto ele a puxou para si e a beijou. — És muito bela... talvez a mulher mais bela que eu já vi. — Tornou a beijá-la e ela começou a chorar.
—Por favor... não... por favor... — Tremia com tanta violência que ele se comoveu.
— Desculpa, pequena. Não quis assustar-te. Só quero que sejas feliz. — Então, enquanto ela o observava, nadou até à borda, saiu da água e enrolou-se na toalha. Ela observou-o de boca aberta, espantada. Ernie gostava dela, admirava-a, não iria violá-la. De repente, sentiu-se uma idiota e foi sentar-se junto dele enquanto o seu anfitrião bebericava o champanhe.
—Lamento imenso... — Sabia que tinha de explicar o 'seu comprtamento. — Fui violada há quatro anos... acho que... pensei... — Começou a chorar e ele pôs-lhe um braço por cima dos ombros.
— Desculpa. Não tenhas medo de mim. Se fores sempre sincera comigo, nunca te magoarei. — Havia ali uma ameaça velada, mas Crystal ficou demasiado aliviada para reparar. Encostou-se a ele muito grata e deixou-o segurar no copo enquanto bebia uns goles de champanhe.
— Isto é tudo tão novo para mim. E aconteceu com tanta rapidez. Não sei o que hei-de pensar durante metade do tempo. Peço desculpa por me ter comportado como uma idiota.
— Não faz mal — retorquiu ele com um sorriso benévolo. — Es uma idiota bonita e gosto de ti. — Aquilo pareceu uma das frases de Spencer e a compreensão dele comoveu-a. — Queres regressar agora ao hotel Crystal? Sei que tens de te levantar cedo. Ou queres nadar mais um bocado?
Ela precisava de tornar a descontrair-se depois da sua tamanha estupidez, e olhou-o com os olhos muito abertos, o azul forte surpreendendo-o. Ela era encantadora.
— Gostaria de nadar mais um bocado. Importa-se? Está com pressa?
— É claro que não — respondeu ele, rindo. Desta vez baixou as guardas, e não ficou tão assustada quando ele voltou a tirar a toalha e entrou na água. Crystal nadou um pouco, depois pôs-se a boiar, e quando olhou para o lado, ele estava ali. Ernie virou-se de bruços, para não a constranger, e aproximou-se devagar, beijando-a. Desta vez ela não o afastou. Sentia que lhe devia isso por ter feito figura de parva antes, mas quando ele a beijou e a acariciou ao de leve nos seios, ficou admirada ao aperceber-se de que gostava. Nadou para longe dele, mas Ernie seguiu-a, sem qualquer violência, nadando com graciosidade, as mãos tocando nela e entrando-lhe pelo fato de banho enquanto a beijava. Crystal queria que ele parasse, mas ao mesmo tempo, num momento de loucura, apercebeu-se de que não queria. Nadou até aos degraus e tentou recuperar o fôlego, mas sentiu-o atrás de si, despindo-lhe devagar o fato de banho. Ela quis voltar-se, mas ele encostou-se a ela, as mãos explorando com habilidade. Crystal atirou a cabeça para trás, angustiada, e gemeu baixinho.
—Ernie, não... — Desta vez não havia convicção nas palavras, enquanto ele lhe tocava uma e outra vez, os dedos provocadoramente meigos. Ele era um mestre e ela apenas uma noviça. Fora até à ratoeira e ainda nem o sabia. — Oh, meu Deus... não... por favor... — Ernie parou de repente, como se por ordem dela, e o corpo de Crystal estremeceu. Virou-se para ele, expectante, e, sem dizer uma palavra, penetrou-a debaixo de água. Os olhos de Crystal abriram-se de admiração mas segundos depois foi invadida pelo prazer. Ele fez amor como uma sinfonia e quando o crescendo aumentou foi Crystal quem o puxou para mais perto, desejando que ele nunca mais parasse. Depois, quando ele lhe sorriu, sentiu-se atrapalhada. Não podia culpá-lo pelo que fizera, pois quisera-o. Não que desejasse Ernie, mas o que ele lhe fizera não se comparava a nada do que já conhecia. Nem sequer com Spencer.
— Estás zangada comigo? — Parecia preocupado, e ela franziu o sobrolho, zangada não com ele mas consigo.
— Não — murmurou —, não sei o que me aconteceu...
— Sinto-me lisonjeado. — Beijou-a ao de leve e tornou a tocar-lhe nos mamilos. Minutos depois ela tornava a desejá-
-lo. Passaram horas na piscina a fazer amor, e à meia-noite ele levou-a ao colo para o primeiro andar. O quarto estava cheio de veludos brancos e peles espessas — raposas, ursos
— e uma colcha de marta branca onde ele a deitou, encharcada. Limpou-a cuidadosamente com uma toalha, indo aos sítios certos com a toalha que estivera enrolada à sua cintura, depois, com dedos meigos e finalmente com os lábios e uma língua que entravam e saíam dela como pirilampos. Crystal gritava por Ernie quando ele finalmente acedeu, e passaram o resto da noite a amar-se. Ela nunca fizera nada parecido. Com Spencer fora diferente. Aqui havia angústia, medo. Quanto mais ele a possuía, mais ela desejava ser possuída. Era quase como uma droga, pensou ela, mas não era. Era um extraordinário poder que ele tinha, uma mestria e um desejo de lhe ensinar coisas novas. Mas ela estava com medo quando finalmente pararam.
— Que me estás a fazer? — Estava exausta e teria de partir para o trabalho dali a meia hora. Nunca passara por uma coisa assim.
— Todas as minhas coisas preferidas, queridinha. — E depois sorriu-lhe quase com malvadez. — Mais uma?
— Não... não... — Ela abanou a cabeça. Não conseguia explicar, mas sabia que tinha de se afastar, pois receava querer que ele voltasse a fazer o mesmo. Tomou um duche quente, depois um frio, mas ele deixou-a em paz. Quando desceu já vestida tinha à sua espera na cozinha café e pãezinhos. Olhou para ele. — Porque estás a fazer tudo isto por mim?
Ele riu-se e tocou-lhe no rosto com um dedo, sorrindo feliz.
— Porque és minha. Pelo menos enquanto assim o desejares. O que achas da ideia? — Parecia assustadora e errada. Contudo, ele dera-lhe a carreira que ela sempre quisera. Dera-lhe acompanhantes para as noites, até lhe dera roupas novas. E agora dera-lhe uma noite como ela nunca tivera. Que havia de errado nisso? Mas no íntimo ela sabia que havia algo mais. E sentia-se muito culpada. Pensar em Spencer quase lhe despedaçava o coração. As recordações daquilo que tinham partilhado pareciam, de alguma forma, manchadas. Fora tudo inocência e amor. Mas agora era diferente. Sentia-se uma meretriz. Não amava aquele homem, mas ele fora bom para ela, e se a desejasse durante algum tempo que mal havia nisso? O que estaria assim tão errado? Havia pessoas que lhe teriam dito que estava a brincar com o fogo e outras que ele era um homem bondoso. Ambas as opiniões eram verdadeiras. Ele era várias coisas. Mas por agora, não desejava fazer-lhe mal. Tornou a beijá-la com meiguice e quando ela saiu para o trabalho disse-lhe para levar o Rolls.
— Como é que regressas?
— Mando o meu motorista vir buscar-me. Não te preocupes, pequena. Eu fico bem. — Beijou-a com ternura, e só de lhe tocar Crystal recordou-se do que ele lhe fizera durante a noite. Não se parecia nada com aquilo que Tom Parker fizera no chão do celeiro... e ainda menos com aquilo que ela e Spencer tinham partilhado... aqui não havia amor, mas Ernie estava ali, era bom para ela... e o que importava isso, anal de contas?... Spencer partira. Para sempre.
Nessa tarde, quando Crystal regressou ao hotel, havia uma encomenda à sua espera. Levou-a para o quarto, desembrulhou-a com cuidado e os olhos abriram-se-lhe de espanto e de atrapalhação. Era uma pulseira de diamantes, enviada por Ernie. Não sabia o que fazer com ela, tinha medo de a colocar. Sentou-se com ela na mão, a tremer. Ainda se sentia horrorizada pelo que tinha feito na noite anterior. Nunca fizera nada do género nem queria tornar a fazê-lo. Contudo, quando Ernie ligou nessa noite, foi muito meigo e parecia adivinhar o que ela queria dizer.
— Gostaste da pulseira? — Parecia uma criança que tinha levado flores à mãe.
—Eu... sim... Ernie... é incrível. Mas não posso ficar com ela. — Fazia-a sentir-se como uma prostituta. Não existia amor entre eles, apenas as coisas espantosas que ele zera com o seu corpo.
— Porque não? As raparigas bonitas merecem coisas bonitas. — Pelo menos não disse que ela a merecera. — Posso passar por aí daqui a pouco?
— Não... eu... — Crystal começou a chorar em silêncio, ainda com medo dele e das suas próprias reacções. Não sabia o que lhe acontecera na noite anterior. Durante as filmagens sentira-se cheia de culpa, tentando não pensar em Spencer.
— Minha querida, não vou magoar-te. — Parecia triste, e ela teve pena dele. Afinal, não era culpado de ela se ter portado daquela maneira. Pelo menos Crystal assim o pensava. Ernie não a forçara. Só a enganara, com as suas carícias e dedos hábeis. — Só quero falar contigo um bocadinho.
— Encontro-me contigo no átrio.
— Tudo bem. Estarei aí daqui a meia hora. Chegou com uma camisa branca e um pulôver de caxemira sobre os ombros e beijou-a ao de leve no rosto, enquanto todas as cabeças presentes se viravam. Ele era uma figura muito conhecida em Hollywood e ela uma mulher muito bela.
Pediu bebidas no bar e Crystal sentou-se com um ar ligeiramente constrangido. Ele pegou-lhe na mão, parecendo adivinhar-lhe os pensamentos.
— Não te sintas mal pelo que aconteceu a noite passada. Foi uma coisa natural e muito bonita. Podemos ser amigos.
— Mas os amigos não faziam amor numa piscina à noite, e Crystal virou para ele os olhos cheios de lágrimas.
— Não sei o que aconteceu. — Desejava contar-lhe quanto amava Spencer, quanto tempo esperara por ele. Porém, não o fez. Aquilo que ele significara para ela antes de partir já não era importante. Tinha direito à sua própria vida, mas não com um homem como Ernie. Era demasiado rico, demasiado experimentado, demasiado poderoso, e ela sabia-o. — Acho que agi como uma louca. — Era uma desculpa esfarrapada, mas foi tudo o que conseguiu dizer-lhe enquanto ele bebia e sorria, novamente admirado com a sua beleza. Crystal tinha um rosto que fazia todos pararem e olharem para ele, e provocava nos homens o desejo de lhe tocar. Ernie vira excertos do filme dela no dia anterior e era visível que a câmara a adorava.
— Eu também agi como um louco. Mas não há mal nenhum nisso Crystal. És uma rapariga tão bonita que eu me descontrolei. Perdoas-me? — Sabia exactamente o que lhe dizer. Ela olhava-o com cautela. — Foi por isso que te mandei a pulseira. Para pedir desculpa pela noite de ontem. —Já conhecia os remorsos dela, e desejava que ela considerasse a pulseira um pedido de desculpas e não um pagamento. Sabia que isso era importante para Crystal. Ela era muito diferente das actrizes com quem ele saía, as quais se sentiam felizes em oferecer o corpo em troca dos seus favores. Mas esta rapariga era completamente o oposto. Era decente, meiga, e não se comparava a mais nenhuma. Mas era disso que ele gostava. — Desculpa, Crystal... — O seu olhar parecia tão sincero que ela começou a sentir-se melhor. Talvez tivessem os dois enlouquecido um pouco; Crystal tentou convencer-se de que fora tão responsável pela situação quanto ele, contudo não conhecia Ernie Salvatore. — Um dia irás considerá-la uma recordação dos teus primeiros tempos em Hollywood. Poderás mostrá-la aos teus lhos. — Crystal hesitara, mas Ernie mostrara-se tão magoado quando tentou devolver-lhe a pulseira que acabou por car com ela. — Podemos começar tudo de novo?
Ela assentiu devagarinho, sem saber ao certo se era aquilo que desejava fazer, mas sentiu-se de novo em dívida para com Emie quando ele lhe contou como ela ficara bem nas filmagens. Afinal de contas, era tudo graças a ele, e ficaram sentados durante um grande bocado a conversar sobre o filme. Ele já tinha outro à espera dela.
— Tão cedo? — perguntou Crystal admirada e sentindo-se muito grata. — Quando é que começa? — Estava hesitante e ainda envergonhada, e tentava esquecer-se do que vira quando ele ficara nu na beira da piscina.
— Uma semana depois de acabares este. Calculo que no princípio de Abril. — Falou-lhe das pessoas com quem iria contracenar e ela olhou-a abismada. Conhecia todos os nomes e alguns deles eram bastante importantes.
— Estás a falar a sério?
— Claro. — Não lhe disse foi quanto tivera de pagar para a meter no filme. — Desta vez é um papel secundário, mas creio que talvez te deixem cantar. E o elenco é fabuloso. Participar no mesmo filme que eles vai ser muito bom para ti. — Parecia saber o que era necessário para iniciar a carreira dela e esforçava-se bastante. E na manhã seguinte, Crystal viu o seu nome nos jornais. Era um artigo que falava do próximo filme que ela iria fazer. Tudo era verdade. Ele conseguira.
Nessa noite, depois do artigo sobre o novo filme dela, Ernie levou-a a jantar, e no dia seguinte havia uma fotografia de ambos nos jornais, e a legenda dizia: «Empresário Ernie Salvatore e a sua nova amiga, Crystal Wyatt.» Era como estar a ler sobre outra pessoa, e Crystal saboreou a notícia em silêncio. Enviou uma cópia a Harry e Pearl; ainda continuava a telefonar-lhes todas as semanas. Tinha imensas saudades deles, mas não tantas como de Spencer. Ainda se interrogava sobre se iria tornar a receber notícias dele, mas, no seu íntimo, tinha a certeza de que tal não aconteceria. E quando pensava nisso, sentia-se muito sozinha sem ele. O único amigo que tinha agora era Ernie.
Ele mandava-lhe flores, comprava-lhe prendas e embaraçou-a mais do que uma vez mandando o Rolls e o motorista buscá-la depois das filmagens. Mas não tornou a tentar seduzi-la. Estava à espera que ela fosse ter com ele, e sabia que ela acabaria por fazê-lo, de uma forma ou de outra. Duas semanas depois da primeira visita, tornou a convidá-la para a casa de Malibu. Ela hesitou, mas nessa altura já se sentia mais à vontade com ele, e achou que nada iria acontecer. Desta vez não foram para a piscina e caminharam lado a lado na praia. Crystal iria começar as filmagens do novo lme daí a semanas e tinham muito sobre que falar. De repente, ele virou-se para ela e sorriu. Havia nele algo de paternal, reconhecia agora Crystal. Tomara-a sob sua protecção, tomara as decisões por ela. Depois de quatro anos a lutar sozinha, aquilo era uma experiência, mas tinha de admitir que a apreciava.
— Ando já há algum tempo para te perguntar uma coisa, Crystal. — Hesitou, tornando a olhar para o pôr do Sol, e pegou-lhe na mão. — Que tal achas da ideia de vir ficar uns dias comigo?
— Aqui? — Ela pensou que ele estava a falar de um fim-de-semana, só conseguia pensar na noite em que tinham feito amor, e tornou a corar com as recordações.
Ernie sorriu: ela era ainda tão inocente e tão nova. Com quase vinte e dois anos, era ainda uma criança, pelo menos pêlos padrões de Hollywood.
— Aqui e não só, tontinha. Também em Beverly Hills. Achei que isso poderia ajudar a tua carreira, e seria mais agradável do que viver num hotel, para além de mais barato.
— Tentou apresentar a coisa em termos práticos, em vez daquilo que era na realidade: uma declaração.
— Não sei... eu... — Virou os seus olhos cor de alfazema para ele e até o núcleo duro de Ernie Salvatore derreteu um pouco. — Ernie, o que queres dizer? Já foste tão bom para mim, acho que não devia... não quero abusar. — Ainda não tinha percebido, e ele colocou um braço sobre os ombros dela.
— Quero dizer que desejo que venhas viver comigo. Quero estar perto de ti. — Houve um longo silêncio enquanto ela o observou e olhou com tristeza para o Sol no ocaso. Onde estaria Spencer? Para onde fora? Porque não estaria ele a fazer-lhe aquela declaração em vez de Ernie? — Hollywood é um sítio difícil. Quero oferecer-te a minha protecção. — Que mais poderia ela pedir? E, no entanto, sabia que não o amava.
Abanou devagar a cabeça.
— Não posso.
— Porque não?
Crystal olhou-o com um ar franco, pondo a sua carreira em perigo, mas sem poder mentir-lhe. Eleja fizera demasiado para a ajudar, pelo que não podia esconder-lhe nada.
— Porque não te amo.
Ernie não lhe disse que isso nada significava para si. Não era o amor dela que queria. Era o resto dela, o seu corpo para aquecer as noites, o rosto dela para vender aos cineastas. Lucrava bastante com o que ela fazia e lucravam também as pessoas muito importantes que o apoiavam. Era a figura de proa de um grupo interessante, mas, tanto quanto se sabia, era ele que importava. E ela ser-lhe-ia útil. Soubera-o desde o primeiro momento em que a vira.
— Talvez o amor surja depois. Somos amigos, não somos?
Ela anuiu, ainda a olhar para o Sol a pôr-se. Ernie fora bom para ela, melhor do que ninguém, mas aquilo que desejava era mais do que aquilo que ela queria dar-lhe. No entanto, tudo o que ele fazia por ela era grandioso: as roupas, os carros, os filmes, a pulseira de diamantes.
— Posso pensar no assunto durante algum tempo? Havia pessoas que teriam tremido só de pensar em repelir Ernie Salvatore, mas ele exibiu um ar paciente e bondoso enquanto se dirigiram para casa. Serviu-lhe um copo de vinho e ela foi bebendo enquanto ouviam música. Sentia-se em paz. Ernie nunca a pressionava, limitava-se a estar ali, e de certa forma compreendia o que ela queria: ser uma estrela de cinema. Era ainda um sonho infantil, contudo sabia que ele poderia torná-lo realidade. Mas não desejava sacrificar a sua integridade por esse sonho, vivendo com um homem que não amava. Mas o que mais lhe restava? Na realidade, nada tinha. Só um sonho. E a recordação de um homem que a deixara havia três anos e que não voltaria, independentemente de como ela o amava.
— Queres ir já para casa? — perguntou ele. Estava sempre disposto a fazer o que ela queria, e quando ela lhe sorriu, inclinou-se e beijou-a. Era a primeira vez que o fazia desde a noite em que tinham feito amor. Desde há duas semanas que ele se afastara um pouco e nada exigira dela. E agora também não exigia. Mas oferecera-lhe o seu coração e a sua casa, e isso para Crystal tinha muito valor. Ernie tornou a beijá-la, com muita ternura, e as suas mãos tocaram-lhe ao de leve. Crystal quis afastar-se, mas ele agarrou-a com uma força surpreendente.
— Não te vás — murmurou —, por favor...
Ela quase sentiu pena dele. Ernie dava-lhe tanto e pedia tão pouco em troca. Permitiu que ele a beijasse e passado pouco tempo o seu corpo começou a responder ao dele. Desta vez, foi Crystal quem despiu a roupa dele, e fizeram amor no enorme sofá branco, com os espelhos por cima e o pôr do Sol atrás.
Desta vez não houve remorsos, não houve surpresas. Crystal sabia o que fizera e porquê. Sentia que estava em dívida para com ele, por tudo o que ele fizera. Sabia que não o amava, mas não havia mais nada nem ninguém. Aquela era agora a sua vida. Hollywood, com o seu brilho e a sua magia, e ele era parte integrante. Já não podia resistir-lhe. Devia demasiado a Ernie e este tinha demasiado para lhe oferecer. A vida nunca fora fácil e ela já estava saturada. Com Ernie, as dificuldades iriam terminar.
Nessa noite caram em Malibu. Crystal não tinha de se justicar perante ninguém, não havia que regressar ao hotel. Ninguém se importaria, nem ninguém saberia. Nem Harry, nem Pearl, nem a velha Sra. Castagna. E quando regressou ao hotel, três dias mais tarde para buscar o correio, encontrou uma carta de Spencer que Pearl lhe enviara. Depois de todo aquele tempo ele acabara por lhe escrever, tentando explicar o seu longo silêncio. Dizia-lhe quanto odiava a guerra e que perdera a esperança durante algum tempo, mas que ainda a amava. Contudo, era demasiado tarde. Ela já concordara em ir viver com Ernie Salvatore. E a carta de Spencer não lhe dizia nada de novo. Ainda estava na Coreia, não sabia quando regressaria, e continuava casado. Ela fizera bem em ir para Hollywood. Talvez nada mudasse com Spencer. Mas amá-lo era um luxo que ela já não queria suportar. Vendera a alma a Ernesto Salvatore. E nunca respondeu à carta de Spencer.
Ernie ajudou-a a levar as suas coisas para a casa de Beverly Hills, e a vida de Crystal mudou da noite para o dia. Havia uma cozinheira, duas criadas, e ela tinha um quarto de vestir forrado a cetim cor-de-rosa que parecia um cenário adequado a Joan Crawford. Quando foi pendurar as suas roupas, descobriu que os roupeiros estavam repletos de coisas que ele lhe comprara. Sobre uma cadeira estava um casaco de marta branca. Ela vestiu-o sobre as calças de ganga e riu-se como uma rapariguinha, dando voltas enquanto se olhava ao espelho. Telefonou a Pearl e contou-lhe que se mudara para casa de Ernie. Pearl não pareceu ficar chocada nem admirada. Quando muito, um pouco ciumenta.
Iam juntos a todo o lado, aos melhores restaurantes, às maiores festas, às estreias e inaugurações e à entrega dos Óscares antes de ela começar o novo filme.
— Um dia estarás ali — murmurou-lhe ele quando Shirley Booth subiu ao palco para receber um Oscar como melhor actriz em A Cruz da Minha Vida. Gary Cooper recebeu um para melhor actor em O Comboio Apitou Três Vees, e Serenata à Chuva, com Gene Kelly, foi o melhor filme. Tudo aquilo era para ela um sonho, o sonho que alimentara desde a infância no vale.
— És feliz? — perguntou Ernie com um sorriso uma noite, depois de terem feito amor, e ela anuiu em silêncio. Sentia-se feliz, muito embora não o amasse. Ele cuidava dela, mimava-a, certificava-se de que todos a tratavam bem, e quando começou o novo filme Crystal foi tratada como uma rainha. Agora era uma pessoa importante: a rapariga de Ernie Salvatore. No entanto Crystal desejava mais do que isso. Desejava ser uma boa actriz e cantora, embora agora quase não cantasse. As canções faziam parte de outra vida. E ela concentrava-se essencialmente na representação. Mas aquilo que tinha com Ernie era agradável. Trabalhava bastante com o seu professor de voz e os professores de representação que iam agora a sua casa ensiná-la. Crystal tinha boa memória e dizia as suas falas na altura certa. Nunca chegava atrasada e nunca armava escândalos. Nas filmagens, as pessoas gostavam dela porque trabalhava bastante e estava bem preparada. Gradualmente, a comunidade de actores começava a conhecê-la e a respeitá-la. E a maior parte deles também conhecia Ernie. O Rolls vinha buscá-la à noite, e às vezes Ernie estava no banco traseiro com uma garrafa de champanhe num balde de gelo e dois copos de cristal. Era um estilo de vida de que ela apenas ouvira falar e que agora também era seu. Todo ele. O sonho tornara-se realidade. Tornara-se aquilo que sempre desejara, e por agora não se importava com o que tivera de sacrificar para o conseguir.
Acabou o segundo filme em finais de Maio e Ernie levou-a ao México durante uns dias. Dissera-lhe que tinha de tratar de uns negócios, e ela gostou de ver algo tão novo e tão diferente. Havia crianças amorosas nas ruas, descalças, com rostos radiantes e olhos grandes; roupas coloridas, paisagens bonitas. Ela adorou, embora não tivesse estado muito tempo com Ernie. Quando regressaram a Los Angeles, ele entregou-lhe um guião com um sorriso e um beijo, um dia ao chegar do escritório. Estava tão bem vestido e elegante como de costume, e havia momentos em que até parecia que estavam casados. Nessa altura Crystal já se habituara a ele, sentia-se bem ao seu lado, e ele nunca a obrigava a dizer o que não sentia. Isso não era importante.
— O que é isto? — perguntou ela com um sorriso. Essa noite iam dançar e jantar ao Coconut Grove.
— O teu Oscar. Parece que conseguiste, miúda. — Era um guião, mas para outro estúdio, com um papel talhado para ela. Crystal aparecia constantemente nos jornais, pois ele pagava uma fortuna aos seus homens na imprensa para despertar o interesse de toda a gente em relação a Crystal. E quando a levava algures, todos a olhavam com descrença. Ninguém tinha aquele aspecto, nem sequer em Hollywood. Ela tinha o ar desconfiado de uma corça a sair do bosque e um corpo que chamava a atenção de todos. Ele ensinou-a a vestir-se, a andar, a entrar numa sala de forma a que todos parassem o que estavam a fazer. E tinha de admitir que ela o fazia com naturalidade. Um dia iria ser uma grande estrela. Uma superestrela. Ernie já não duvidava disso, especialmente depois da oferta que lhe fora feita, e em breve haveria outras. Para além do mais, ela pertencia-lhe. E um dia, se fosse necessário, dir-lho-ia.
O guião era para um filme que começaria em Junho, e a mulher que tinham escolhido para actriz secundária discutira com a vedeta e fora necessário despedi-la. Procuravam desesperadamente uma substituta, e Crystal servia na perfeição. Além disso, já tinha reputação de ser uma pessoa de bom trato no trabalho, e em Hollywood isso era mais raro do que diamantes. Iria ser uma estrela e bem depressa.
Havia alturas em que Ernie se perguntava se a amava. Não que isso fosse importante para si. Já ultrapassara tudo isso. Tinha quarenta e cinco anos, cinco divórcios, dois filhos algures em Pittsburgh, ambos mais velhos que Crystal, e não os via desde crianças.
Crystal passou horas a ler o guião e a tomar notas. Era um bom papel e ficou admirada por lho terem dado. Falava mais do que nos dois filmes que fizera, e desta vez iria ser tudo mais difícil, seria necessária bastante emoção, teria de trabalhar bastante com os professores, mas estava a adorar.
— Ernie, é magnífico — disse ela quando o encontrou na piscina. Ele tinha lá um telefone, e passava a vida a fazer chamadas e a assinar papéis. Nem no Polo Lounge o deixavam em paz. As vezes passava lá a noite num bangaló com os sócios até um negócio estar fechado.
— É um bom filme Crystal. Irá ser muito bom para ti. Mas ela parecia preocupada quando se sentou junto dele.
— Achas que vou conseguir?
Ele riu-se e beijou um punhado do seu cabelo loiro. Antes das filmagens, as cabeleireiras levavam um tempo infinito a penteá-lo, mas ela recusara-se a cortá-lo. E era a única rapariga que ele conhecia em Hollywood que se preocupava se estaria à altura para o filme. A maioria queria papéis para subir na vida, sem se preocupar com a qualidade do seu trabalho, mas Crystal era diferente. Era isso que a diferenciava das outras, isso e a sua beleza. Ele escolhera uma rapariga destinada a vencer.
— Irás fazer um excelente trabalho.
— Vou ter de trabalhar que nem um burro para me lembrar de todas as falas.
— Não te preocupes.
Nessa noite foram celebrar, e ela trabalhou noite e dia antes do primeiro dia de filmagens.
Começaram no dia 9 de Julho, e durante as duas primeiras semanas ela mal dormiu. Trabalhava com os professores até depois da meia-noite. Levantava-se todos os dias às quatro da manhã. Às cinco, o motorista levava-a para o estúdio. William Holden e Henry Fonda também entravam no filme e Crystal ficou abismada quando os conheceu. Trataram-na com amabilidade e todos a respeitavam, mas ela nunca tinha tempo para fazer amigos. Trabalhava demasiado para poder perder tempo a falar e nunca ficava no estúdio depois de as filmagens terminarem. Os professores até iam ao seu camarim durante a hora do almoço.
Uma vez viu dark Gable no estúdio, de visita a um amigo, e achou que nunca vira ninguém tão bem-parecido. Falou disso a Ernie muito excitada, e ele riu-se:
— Espera só uns meses. Nessa altura, irá dizer aos amigos que viu Crystal Wyatt!
Ela sorriu. Ernie fazia-a sempre sentir-se tão importante. Contudo, mal o via durante as filmagens. Andava muito ocupada e não tinha tempo para sair. Sentia-se uma reclusa. Estava no camarim, quatro dias mais tarde, a estudar o papel quando alguém bateu à porta. Ouviu gritos excitados e abriu para ver o que se estaria a passar.
— Acabou! Acabou!
— O filme? — perguntou ela chocada, perguntando-se o que teria feito de errado. Mal tinham começado, e aquele deveria durar mais do que os outros. Tinham-lhe dito que tencionavam continuar até ao fim de Setembro.
— A guerra! — exclamou um dos técnicos com as lágrimas nos olhos. Tinha lá dois irmãos. De repente Crystal percebeu e cou sem fôlego. — A guerra da Coreia chegou ao fim!
Abraçaram-se e os olhos dela também se encheram de lágrimas. Tentava esquecê-lo há meses. E nunca respondera à carta que ele lhe enviara em Abril. Mas agora ele iria regressar a casa, tal como os outros. Spencer... o homem que ela traíra quando fora viver para casa de Ernie... e agora ele iria regressar. Mas para quem? Ainda estava casado com Elizabeth. E a menos que Pearl lhe dissesse, não saberia onde a encontrar. Por um momento, enquanto via os outros a rir e a chorar, perguntou-se o que iria agora fazer.
Elizabeth encontravase atrás do portão, esforçando-se por ver o rosto dele, enquanto era empurrada pela multidão que viera receber os soldados. Spencer demorara três semanas a ser libertado do serviço militar; ela quisera ir ter com ele ao Japão, para daí irem passar uns dias em Honolulu. Mas o Exército quisera que eles voassem até São Francisco, onde ele ficaria livre assim que pisasse terra firme. Os pais dela também lá estavam, bem como os dele, juntamente com trezentas mulheres que tagarelavam ansiosas. Eram as felizardas. Havia inúmeras outras que tinham ficado em casa a lamentar a morte dos maridos. Para elas, ninguém regressava a casa. Mas Spencer sobrevivera. Fora ferido uma vez, contudo fora apenas um ferimento superficial, e ele estava de volta ao combate uma semana mais tarde. Fora uma guerra desagradável, uma «acção policial» que custara muitas vidas, a segunda guerra em que ele combatera no espaço de doze anos.
Elizabeth tirara um mês de férias e iriam ao lago Tahoe com os pais dela. Os Barclay também tinham convidado os Hill mais velhos, embora Spencer ainda não o soubesse. E estava planeada uma enorme festa-surpresa para a casa de São Francisco.
Quando Elizabeth o viu sair do avião, endireitou o chapéu e ficou à espera, muito nervosa. Já havia muito tempo que não o via, e agora tudo iria ser diferente. Os seus encontros no Hotel Imperial tinham acabado por se tornar inoportunos, porque ele estava sempre sob pressão; agora Spencer regressava à vida real, à qual levaria algum tempo a acostumar-se. Praticamente não tinham vivido juntos antes da guerra, e já há três anos que ele partira. Com vinte e quatro anos, Elizabeth tornara-se uma mulher independente e estava profundamente envolvida no mundo da política. Era recebida em todo o lado e conhecera pessoas muito interessantes em Washington durante a ausência dele. Mas quando finalmente o viu, a última coisa em que pensava era na política. Ao olhar sobre a multidão Spencer parecia muito alto e magro. Em seguida, caminhou na direcção deles, conversando com alguns dos seus homens. Ainda não a vira. Ela viu-o apertar as mãos aos soldados, que depois se dirigiram apressados para as mulheres, e ele continuou a avançar pela multidão enquanto ela tentava aproximar-se dele. A Sra. Hill chorava ao ver o filho pela primeira vez em três anos, mas ele ainda não sabia que eles lá estavam. Os seus olhos pareciam tristes ao olhar para a multidão e nos cabelos haviam aparecido fios grisalhos. Com trinta e quatro anos estava ainda mais bonito do que na noite em que Elizabeth o conhecera em casa dos pais. De repente, com um olhar de surpresa, ele viu o rosto dela sob o enorme chapéu de palha, hesitou um momento, e depois largou o saco e correu na direcção da mulher, puxando-a para os seus braços e levantando-a no ar com uma pirueta enquanto os pais se aproximavam. Até o juiz Barclay tinha lágrimas nos olhos quando lhe apertou a mão e Priscilia chorava abertamente ao abraçá-lo.
— E bom ter-te de volta são e salvo!
— Obrigado. — Ele abraçou-os e beijou-os e a mãe viu qualquer coisa nos olhos dele que lá não estivera antes, e isso preocupou-a. Era o mesmo olhar de dor que ela conhecera quando o filho mais velho morrera. Parecia que Spencer tinha perdido algo na guerra: uma fé, uma crença, uma certeza que tivera antes. Aquela fora uma guerra na qual ele não acreditara.
Dirigiram-se à limusina que os aguardava e seguiram para a casa da Broadway, tagarelando, conversando, rindo e chorando. As duas mulheres mais velhas dirigiam uma à outra olhares de compreensão, acompanhados de sorrisos ternos. Eram mães e às vezes isso não era fácil. Só Elizabeth parecia contente a segurar a mão do marido, que lhe passara um braço por cima dos ombros. Tinham-se visto diversas vezes no Japão, ao contrário dos pais, que não o viam desde o início da guerra, três anos antes. Fora um longo período para todos eles, e Spencer denotava-o mais do que ninguém. Inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos, falando com todos e ninguém, enquanto Elizabeth tagarelava animadamente com a mãe.
— Mal posso crer que estou em casa. — Ainda não estava, mas aquilo já era suficientemente perto. Regressara ao solo americano e tinha a mulher ao seu lado. Mas havia ainda uma coisa por resolver. Pensava nela desde que saíra de São Francisco.
— Bem-vindo a casa, filho — disse o pai, fazendo-lhe uma festa no braço. As lágrimas interromperam-no e Spencer inclinou-se para ele, apertando-lhe com força a mão.
— Gosto muito de si, pai. Céus, espero que este país não se meta noutra guerra durante uns bons empos. Já tive a minha conta.
— Espero que desta vez não tenhas continuado na reserva — brincou Elizabeth, dirigindo-lhe um sorriso.
— Nem pensar — retorquiu ele com uma gargalhada. — Para a próxima vão ter de chamar outra pessoa. Vou ficar em casa a engordar, refastelado no sofá, enquanto a minha mulher tem filhos. — Disse-o meio a brincar e também para ver como paravam as modas. Havia muitas coisas que desejava discutir com ela e essa era importante. Elizabeth não fez qualquer comentário e sorriu, mas nada mudara quando fecharam a porta do quarto pouco depois de terem chegado à casa da Broadway. Ele atirou o uniforme para o chão, desejando vê-lo queimado, e depois de um duche aproximou-se de Elizabeth com cautela. Decidira muita coisa enquanto estivera ausente, mas não tudo. Elizabeth era agora mais real para ele porque já há muito tempo que não tinha notícias de Crystal, que regressara aos seus sonhos. Embora sentisse a falta dela, ainda não decidira o que fazer quanto a Elizabeth e ao casamento. Ela mudara bastante em três anos e havia muita coisa que ele desejava saber a seu respeito, em especial se desejava ou não ter filhos. Mas já há muito que Spencer decidira ser franco com ela. Queria saber exactamente quem ela era e o que desejava, e se isso não lhe servisse não iriam continuar casados. Tinha de lhe dar uma oportunidade, mas também se sentia com direito àquilo que desejava, e não sabia bem se isso era Elizabeth Barclay. Vira morrer muitos homens, vira demasiado sofrimento para agora desperdiçar a sua vida com a mulher errada. A vida era demasiado curta, e agora, com trinta e quatro anos, a sua já ia a meio. O sentido da vida era-lhe demasiado precioso para ser desperdiçado com uma mulher com quem não desejava sequer estar. E ele tocou no assunto quando ela se sentou na banheira para um banho de espuma perfumada, antes de se vestirem para o jantar.
Acabado de sair do duche Spencer sentou-se com cuidado na beira da banheira, com uma toalha à cintura, sentindo-se pouco à vontade com ela. Estava mais bonito do que nunca. Tinha o corpo firme como o de um adolescente. Haviam sido tempos difíceis para todos eles na Coreia.
— O que é que pensas a respeito de filhos? Ela olhou para cima com surpresa e sorriu.
— Em geral, ou a respeito dos meus próprios filhos? O irmão e a cunhada, Sarah, tinham anunciado que não desejavam nenhum e ela não ficara chocada com aquela decisão.
— Dos nossos. — Spencer não sorriu enquanto aguardava a resposta dela. Essa era outra das coisas por que ele não estava disposto a esperar.
— Não tenho pensado muito no assunto. Não era uma das minhas prioridades contigo ausente. — Sorriu e moveu as pernas com graciosidade na água coberta de espuma. — Porquê? Temos de resolver isso hoje? — Parecia aborrecida, e era estranho tê-lo ali a olhar para ela na banheira.
— Talve. Acho que até o facto de termos de «resolver» já quer dizer alguma coisa, não te parece?
— Não, por acaso não. Creio que ninguém se deve apressar a tomar uma decisão dessas.
— Tal como o teu irmão e a Sarah? — Spencer apercebeu-se de que queria discutir com ela. Desejava tomar uma decisão, e rapidamente. Ter duas mulheres na cabeça durante os últimos anos quase dera com ele em doido.
— Eles nada têm a ver com isto Spencer. Quero dizer, connosco. Tenho vinte e quatro anos, ainda não estou velha, e tenho um emprego muito importante em Washington. Não vou pô-lo em perigo por causa de um bebé.
Spencer ouvira a sua resposta. Mas ficara irritado com a forma como ela a dera.
— Parece-me que as tuas prioridades estão erradas.
— Tu vês as coisas de maneira diferente. Um filho para ti é só uma coisinha bonita que está em casa quando regressas do trabalho. Para mim, é um grande sacrifício. É uma grande diferença.
— Pois é. — Ele levantou-se, ajustou a toalha em torno da cintura, e ela sorriu, achando-o ridículo com a toalha cor-de-rosa. — Mas não deveria ser um sacrifício, Elizabeth. Deveria ser uma coisa que ambos desejássemos.
— Bem, não desejamos. Tu, sim, e talvez eu um dia também a deseje, mas não agora, não é a altura apropriada. O meu trabalho é demasiado importante.
Ele já estava farto de ouvir falar naquilo, e ela sabia bem o quanto ele odiava McCarthy.
— O trabalho é assim tão importante para ti? — Mas já sabia que o era. Ela só falara a respeito disso em Tóquio, quando se tinham encontrado.
— Sim — respondeu ela, olhando-o bem nos olhos. Não tinha medo de ser franca com ele, nunca tivera. — Este trabalho é muito importante para mim, Spencer.
— Porquê?
— Porque me faz sentir independente. — Era algo que ele não desejava numa esposa, e no entanto... havia algo nela. .. ainda não se habituara a viver com Elizabeth. Depois do casamento só tinham estado juntos duas semanas antes de ele partir, mas havia nela um certo desao, que o fez querer conquistá-la, contudo no seu íntimo sabia que Elizabeth nunca seria conquistada. — Pedi uma licença para vir até aqui encontrar-me contigo, mas vou regressar ao trabalho assim que regressarmos a casa. Espero que saibas isso.
— E sei, não sei? — Acendeu um cigarro enquanto ela o observava. A guerra fora dura para ele e para muitos outros. Conseguira sair bem dela depois de um período bastante difícil em que deixara de escrever a Crystal. Mas havia coisas que ele nunca esqueceria, tal como aquele homem que morrera nos seus braços, em vão, tudo por uma guerra que afinal nem era a deles. Sofrera muito, e era difícil agora regressar a casa e esquecer tudo. — E onde é a nossa casa, a propósito? Presumo que tenhamos abandonado Nova Iorque. E como é que eu fico? Desempregado, calculo.
— Também não gostavas muito do teu emprego — retorquiu ela com um ar frio. Era um adversário de valor. — Disseste-mo em Tóquio.
— Talvez. Mas seria agradável ganhar para viver. Não sou tão «independente», chamemos-lhe assim, como tu. Preciso de um emprego, Elizabeth.
— Tenho a certeza que o meu pai terá todo o prazer em apresentar-te a quem quiseres. E tenho algumas ideias sobre esse assunto, tal como algo no Governo. Seria muito adequado para ti.
— Sou democrata. Isso agora não está muito na moda.
— O meu pai também é, e eu também. Em Washington há espaço para todos. A questão é essa. Estamos numa democracia, não numa ditadura, por amor de Deus!
Aquilo era ridículo. Ele estava em casa há quatro horas e já estavam a discutir sobre política e sobre o trabalho dela, quando tudo o que ele queria era sentir-se de novo confortável e bem instalado junto da mulher que amava e que o amava. Mas não era nada confortável estar ali. Spencer não tinha casa nem emprego, e de repente sentiu-se perdido sem o Exército. Até isso o deixou confuso; desejara apenas regressar a casa e agora que já ali estava, sentia-se infeliz.
Vestiu-se, desceu e duas horas mais tarde ficou perplexo. Tinham sido convidadas para jantar duzentas pessoas que ele não conhecia. Era uma festa-surpresa, e o pai apercebeu-se de que ele ainda não estava preparado para ela. Passara rapidamente de Seul para São Francisco e era necessário um maior ajustamento. Nessa noite Spencer teve dificuldade em adormecer, e saiu para a rua. Caminhou quilómetros enquanto ouvia as sirenas do nevoeiro, dando consigo em North Beach. Mas de cada vez que ouvia um ruído, dava um salto, receando um atirador furtivo.
Estava à porta da casa da Sra. Castagna, olhando para as janelas, o coração a bater furiosamente. Era por aquele momento que sonhava regressar a casa. As janelas estavam todas às escuras. Teve vontade de entrar por uma e surpreendê-la. Mas tornou a perguntar-se por que motivo não teria ela respondido às suas cartas.
Tentou abrir a porta com uma mão trémula, mas aquela encontrava-se trancada, pelo que tocou à campainha. Durante algum tempo, ninguém respondeu; finalmente apareceu uma mulher com ar ensonado, embrulhada num roupão.
— Sim? O que deseja? — Falou através da porta, e ele conseguiu vê-la pêlos vidros. Era de meia-idade e pouco atraente.
— Desejava ver Miss Wyatt. — Vinha de uniforme, e era evidente que se tratava de um soldado.
A mulher ficou pensativa durante algum tempo e depois abanou a cabeça. Achava que já conhecia toda a gente, mas depois lembrou-se.
—Já cá não mora.
— Claro que mora — insistiu Spencer, apercebendo-se depois de que ela poderia ter-se mudado. Ficou assustado ao ver que não sabia onde ela estava agora. — Ela vivia no quarto do canto lá em cima — esclareceu ele, apontando. Mas isso fora há três anos. Talvez fosse por isso que não respondera às suas cartas.
— Ela foi-se embora antes de a minha mãe morrer. O coração de Spencer quase parou. A Sra. Castagna também partira. Tudo tinha mudado. Esperara tanto por aquele momento e agora ela partira, bem como tudo o que ele conhecia.
— Sabe para onde se mudou?
Ainda estavam a falar através da porta e a mulher não a abriu. Era já muito tarde, e não o conhecia. Era uma das filhas solteiras da Sra. Castagna e tomava agora conta da casa, com austeridade e muita cautela. Subira o preço das rendas e estava a pensar em vender a casa. Ela e os irmãos tinham decidido que era preferível ficarem com o dinheiro.
— Não sei para onde é que ela foi nem nunca a conheci.
— Por acaso não deixou um endereço?
A mulher abanou a cabeça e acenou-lhe com a mão, desejando que ele se fosse embora para poder regressar ao seu apartamento.
Spencer desceu as escadas e tornou a olhar para as janelas escuras. Ela partira, e não fazia ideia de onde a encontrar.
Depois foi até ao Harry's, certo de que a encontraria lá, e o estabelecimento estava a fechar quando chegou. O chefe de mesa tinha tirado o casaco e havia dois homens a esfregar o chão. As cadeiras estavam em cima das mesas.
— Desculpe, sir, já fechámos. — Ficou aborrecido ao ver Spencer entrar. As portas já deviam estar trancadas, mas era evidente que alguém se esquecera de o fazer e as deixara abertas.
— Eu sei... desculpe... a Crystal está cá? — Sentiu medo ao fazer a pergunta. E se não estivesse? E se lhe tivesse acontecido alguma coisa? Durante aqueles anos ele estivera preocupado consigo próprio e com as misérias da sua existência. Desiludira-a. Só Deus sabia o que lhe acontecera.
O chefe de mesa abanou a cabeça, ansioso para que Spencer se fosse embora.
— Ela mudou-se para Los Angeles. Mas temos uma miúda óptima a substituí-la. Volte amanhã à noite. — Mas a outra «miúda» era a única que ele amava e cuja recordação o ajudara a sobreviver na guerra.
—Sou um velho amigo. Acabei de regressar de Seul... Sabe por acaso onde é que ela está instalada em Los Angeles?
— Talvez ela tivesse mesmo ido para Hollywood. A ideia excitou-o, mas estava desejoso de a encontrar. Tinham muito sobre que conversar, muito para dizer, e ele devia-lhe uma explicação pelo longo silêncio. Mas o homem limitou-
se a abanar a cabeça, com um ar pouco interessado e compreensivo. Nada tinha a ver com soldados regressados da Coreia.
— Não. O Harry deve saber. Foi de férias durante duas semanas. Telefone quando ele regressar.
— E a... — Tentou lembrar-se do nome e conseguiu, aliviado. Que noite mais infeliz! — A Pearl... ela está cá?
— Volta amanhã às quatro. Pode telefonar-lhe a partir dessa hora. Ouça, amigo, tenho de fechar. Telefone amanhã.
— Depois acrescentou: — Constou-me que ela agora anda a fazer filmes. A Crystal, quero eu dizer. É pena que não cante. Era a melhor.
Sorriu, tentando mostrar-se amável enquanto acompanhava Spencer à porta, e este assentiu. Momentos depois encontrava-se lá fora, continuando sem fazer a mais pequena ideia do paradeiro de Crystal. Ela partira para Hollywood, tal como sempre sonhara. E agora tinha de enfrentar Elizabeth sozinho e decidir o que fazer com o casamento. Talvez fosse melhor assim. Talvez fosse melhor tomar a decisão de uma vez por todas antes de ver Crystal: depois iria ter com ela para começar do zero. Pensar nisso fê-lo arrastar-se até à casa da Broadway. E quando entrou no quarto, Elizabeth dormia profundamente. Não fazia ideia de que ele saíra. Tinha um ar tão tranquilo ali deitada, pensou, observando-a à luz da casa de banho. Perguntou-se com o que estaria ela a sonhar, se é que sonhava. Era tão terra-a-terra, tão prática. Até o seu regresso fora tratado como um acontecimento social, algo a ser organizado e planeado. Não havia ternura, carícias ou mãos dadas. Não fizera amor com ela desde que regressara, e a verdade é que nem sequer lhe apetecia.
Entrou na cama e apagou a luz, ficando a ouvir a respiração dela. Depois virou-se e olhou para Elizabeth no escuro, acariciando-lhe o cabelo e pensando que ela merecia mais do que aquilo que ele lhe dera. Ela abriu um olho, sentindo a presença dele, mas estava meio a dormir.
— Estás acordado? — Levantou a cabeça, tentando ver as horas, mas estava demasiado sonolenta para se concentrar.
— Que horas são? — murmurou.
— É tarde... dorme... — sussurrou Spencer, e ela virou-se, de costas para ele, acenando.
— Boa noite, Elizabeth. — Queria dizer-lhe que a amava, mas foi incapaz de proferir aquelas palavras. Só conseguia pensar que Crystal estava em Hollywood e que ainda não sabia onde a encontrar. Iria telefonar a Pearl no dia seguinte para o restaurante, e rezou para que ela soubesse. No entanto, decidira não contactar com Crystal até ter resolvido o que fazer com a sua vida. Isso não demoraria muito, e era mais justo para com ela. Mas desejava ardentemente tornar a vê-la. Fora um regresso bastante solitário, um dia há muito esperado que finalmente chegara. Agora que regressara, só sabia que se sentia um estranho.
Quando adormeceu já era madrugada, e sonhou com armas a disparar ao longe... havia alguém a falar-lhe durante os tiros... alguém que murmurava, dizendo algo que ele não conseguia ouvir por causa dos disparos... mas quando se -esforçou mais, chorando no sono... teve a certeza de que era a voz de Crystal.
Spencer descobriu no dia seguinte que já tinham feito planos para ele. Iriam para o lago Tahoe durante três semanas, os pais estariam lá nas primeiras duas, e os Barclay iriam organizar vários jantares para o entreter.
— E melhor comprares umas roupas antes de ires para o lago — aconselhou Elizabeth. Ele só tinha os uniformes, as botas e as placas de identificação, pouco adequadas para o estilo de vida no lago Tahoe. Ela acompanhou-o e ele sentiu-se de novo uma criança quando ela o ajudou na escolha e insistiu em meter tudo na conta do pai. Spencer tomou nota da importância e garantiu ao juiz Barclay que assim que chegasse a casa e reabrisse a sua conta bancária lhe enviaria um cheque. Permitira que Elizabeth fechasse a conta em Nova Iorque quando desistira do apartamento e se mudara para Georgetown.
— Não te preocupes com isso, filho — retorquiu o juiz Barclay com uma gargalhada. — Eu sei onde encontrar-te!
Tudo era tão fácil e preparado! Foram todos juntos para o lago, Elizabeth na carrinha com Spencer e os dois casais mais velhos na limusina. Pararam para almoçar em Sacramento e daí seguiram para o lago, onde tudo fora excelentemente organizado. Houve quase todos os dias convidados para o almoço, um jantar para cinquenta pessoas, iam nadar na parte da tarde e só dez dias mais tarde é que ele teve oportunidade de ir pescar com o pai. Estava sentado na borda do barco a motor a olhar para a água e William Hill olhou para ele com tristeza.
— Estás a ter algumas dificuldades em te readaptares? Spencer suspirou. Era um alívio estar sozinho. Havia uma enorme tensão entre ele e Elizabeth, e embora os Barclay o tratassem com extrema amabilidade, já estava saturado deles.
— Sim, estou. — Dirigiu um olhar franco ao pai e anuiu. — Nunca julguei que as coisas fossem assim depois do meu regresso.
— O que é que esperavas que fosse diferente? — Era um homem sábio com um coração bondoso e desejava ajudá-lo. Detestava vê-lo infeliz.
— Não sei, pai... Não tenho nenhum sítio a que possa chamar meu. Estive no país de outros durante três anos, e agora estou na casa de outros, a fazer o que os outros querem... sou demasiado velho para isto. Quero ir para casa, e nem sequer tenho uma.
— É claro que tens. Uma casa maravilhosa que eu e a tua mãe visitámos no Natal.
— Ainda bem para vocês. Vivo numa casa que nunca vi, com mobília que não comprei, numa cidade que mal conheço. — Pintara um quadro tão negro e estava com tanta pena de si próprio que o pai foi obrigado a rir-se.
— Não é tão mau como pensas. Concede a ti próprio uma oportunidade. Ainda nem há duas semanas que voltaste!
Spencer passou a mão pelo cabelo e o pai sorriu ao ver aquele gesto familiar. Era tão bom tê-lo de volta, vivo e de saúde: não estava preocupado com as reacções do filho. A seu ver eram normais. Ele e Alicia tinham falado sobre o assunto na noite anterior e ela sugerira que ele falasse com Spencer.
— Não sei, pai. — Pensou em falar-lhe do caso que tivera com Crystal antes de partir, mas não se atreveu. Ela era sua, e o que sentia por ela era uma coisa muito íntima. Pelo menos agora sabia onde ela estava. Pearl dera-lhe o número do telefone dela em Los Angeles e ele agarrou-se àquele pedaço de papel como se a sua vida dependesse dele. Pegara várias vezes no telefone durante as últimas duas semanas, mas obrigara-se a não lhe ligar. Era demasiado cedo. Ainda não se instalara, e sabia que tinha de o fazer primeiro. Mas Elizabeth agia como se tudo estivesse bem e isso tornava as coisas ainda mais difíceis.
Como que pressentindo que ainda havia mais qualquer coisa, William Hill decidiu fazer ao filho uma pergunta delicada.
— Ainda estás apaixonado pela Elizabeth, não estás? — Ela era um partido tão bom que ele detestaria ver aquele casamento destruído só porque Spencer se sentia nervoso e impaciente. Mas o filho não lhe respondeu durante um longo momento.
—Já não tenho a certeza de nada. Nem sequer sei se a conheço.
— Estiveste ausente muito tempo, filho. Na tua idade, e até na minha, três anos são uma eternidade.
— Quero ter filhos. Ela, não. Isso é básico, pai.
— Ela ainda é muito jovem. Dá-lhe também uma oportunidade. Vai para casa, instala-te, voltem a habituar-se um ao outro e depois tenta esclarecer as coisas. Ela irá ceder. Teve de viver sozinha durante os últimos três anos e é uma grande mudança ter-te de novo por perto.
Mas Spencer parecia desgostoso.
— Ela nunca está sozinha. Sempre teve o pai. Ele até pagava a minha roupa interior se eu deixasse. —Referia-se às recentes compras que fizera na cidade, e o pai dele riu-se.
— Na vida há problemas maiores do que esse, Spencer. Querem ambos ver-te feliz.
— Eu sei... lamento... devo parecer um ingrato. Mas estou tão confuso! — Tornou a olhar para o lago e depois para o pai. Desta vez falou em voz mais baixa, e havia nos seus olhos algo distante e triste que preocupava o pai desde que Spencer regressara. — Havia outra pessoa antes de eu me ir embora, pai... Uma pessoa que conheço há muitos anos. — Não lhe disse que ela tinha catorze anos quando a conhecera.
William Hill parecia triste quando olhou para o filho.
— Foi uma coisa séria?
— Sim — respondeu Spencer sem hesitação. — Muito. Elas são muito diferentes... tão diferentes como duas mulheres podem ser...
—Já a viste desde que regressaste? Spencer abanou a cabeça, mas tencionava fazê-lo. Era para isso que vivia.
— Então não o faças. Só vais complicar ainda mais as coisas. Estás casado com uma rapariga encantadora, tenta aguentar o casamento. Acaba o que começaste.
— A vida não tem mais nada? — Os seus cabelos brancos brilharam ao sol e William Hill ficou surpreendido ao vê-los.
— Às vezes, não. Às vezes, o casamento é apenas segurar as pontas, quer se queira quer não.
— Não parece muito divertido.
— Às vezes não é. — Estendeu a mão e segurou a do filho. — Aceita o conselho de um velho, Spencer, não compliques a tua vida. Seria um enorme erro. Fica com a Elizabeth. Ela é boa rapariga, e casaste com ela. Deves-lhe algo depois de ter esperado por ti todos estes anos. — Ele també o sabia. Fora por isso que regressara para junto dela, depois de três anos passados a sonhar com Crystal.
Nessa altura, o anzol do pai foi mordido por um peixe e estiveram ambos entretidos durante algum tempo. Depois, o pai olhou para Spencer, sensibilizado por este ter confiado nele. Só esperava tê-lo encaminhado na direcção certa.
— Pensa bem no assunto e sê paciente durante algum tempo. Tudo se há-de resolver. Nunca te perdoarias se a desiludisses agora. Pensa também nisso. Não deves nada à outra rapariga. Casaste com a Elizabeth. E agora tens de ficar junto dela.
Tudo fazia sentido, mas ele estava bastante deprimido quando ligou o motor e encaminhou o barco até à doca.
— Obrigado, pai. — Olhou-o durante algum tempo antes de entrarem em casa, e sentiu pela primeira vez que o pai o amava por aquilo que ele era e não como um substituto de Robert.
— Apanharam alguma coisa? — perguntou Elizabeth, muito animada quando eles regressaram. Adorava estar ali, a rever os velhos amigos e gostava também de todas as atenções que eram dirigidas a Spencer.
— Um par de sapatos velhos — respondeu ele com um sorriso. Estava com melhor aspecto do que nos últimos dias. A conversa com o pai aliviara-o bastante. — Três peixes...
— Inclinou-se sobre Elizabeth e ela ngiu tapar o nariz. — .. E um beijo para a minha mulher. — Mas pelo menos ela deixou que ele a beijasse. Depois disso foram para dentro, e Elizabeth limou as unhas enquanto ele tomava duche. Falou-
lhe da festa a que iriam nessa noite e ele olhou-a pensativo.
— Fiquemos em casa esta noite.
— Não podemos, querido. Estão a contar connosco. E são amigos do meu pai.
— Diz-lhes que estás com dor de cabeça ou que os meus ferimentos de guerra estão a doer. — Sorriu-lhe como um garoto, queria passar uma noite sozinho com ela. Ainda não haviam tido um momento de privacidade desde que ele voltara, mas ela não parecia importar-se.
— Amanhã. Prometo. — Mas na noite seguinte o irmão chegou e ela disse que seria uma falta de educação não saírem com eles. E na noite seguinte foram a uma festa de cerimónia. Era como se estivesse numa prisão, a beber champanhe em vez de água. Mas sentia-se sozinho na companhia dela e sempre rodeado de pessoas. Tentou explicar-lhe isso quando se achavam urna tarde deitados na praia, mas ela retorquiu que ele estava a ser tolo. — Como é que te podes sentir sozinho com todas estas pessoas agradáveis à volta?
— Porque ainda não estou preparado para isso. Quero estar sozinho contigo, apenas a falar, para nos conhecermos melhor de novo. — Mas ela recusou-se a compreender isso. E de um momento para outro, ele soube o que devia fazer. Decidira ir a Los Angeles no fim-de-semana. Já sabia o que iria dizer a Crystal. Tomara uma decisão. E quando regressasse diria a Elizabeth que queria o divórcio. Depois de se irem embora da casa do lago. Não queria causar uma cena com os pais de ambos ali.
— Mas os meus pais convidaram pessoas para te verem! — Elizabeth ficou furiosa. Tinham convidados quase todas as noites.
— Lamento. Não posso evitar. Tenho de tratar de uns assuntos em Los Angeles. — Falava com uma voz muito calma. Agora sabia o que iria fazer.
— O que é? — perguntou ela, olhando-o desconfiada. Spencer nem sequer tinha emprego...
— Uns investimentos que fiz quando terminei a faculdade.
— Não podem esperar?
— Não, nem mais um minuto. Isto é importante, Elizabeth. Tenho de ir. — Não telefonou a Crystal antes de partir. Ligar-lhe-ia de lá para fazer uma surpresa.
Elizabeth ainda estava de mau humor e ficou a almoçar com os pais quando Spencer partiu, deixando depois o carro em casa e apanhando um táxi para o aeroporto. Era um voo de duas horas, e quando lá chegou o tempo estava muito abafado. Era final de Agosto. Apanhou um táxi para a cidade e instalou-se no Hotel Beveriy Hills com o dinheiro que pedira emprestado ao pai. E assim que entrou no quarto, marcou o número que lhe tinham dado no Harry's. Foi atendido por uma criada que disse qualquer coisa como «Salvatore», fazendo-o sorrir. Ela alugava sempre quartos em casa de italianos. Perguntou por Crystal Wyatt e foi-lhe dito que ela estava a trabalhar. Pearl contara-lhe que Crystal estava a rodar outro lme. Sentiu-se feliz por ela, e também um novo homem ao perguntar onde a poderia encontrar. Achara de repente o rumo da sua vida. Estava de novo em paz e era senhor do seu destino. Pelo menos sabia que tomara a decisão certa.
— Na MGM — respondeu a mulher, dando-lhe o número do estúdio com toda a inocência. Ele assentou-o e apressou-se a sair do hotel, dando a um taxista o endereço que procurara na lista telefónica. O estúdio cava longe do hotel, e Spencer sentiu o coração aos pulos perante a perspectiva de a tornar a ver. Nunca sentira aquilo por ninguém, só por Crystal. Sabia que lhe devia muitas explicações e pedidos de desculpa por ter agido como um louco; que lhe devia muitas coisas, mas agora tinha o resto da vida para a compensar. E sorriu no banco do táxi, pensando nela e no futuro de ambos.
A entrada da MGM infundia respeito, e ele olhou em volta como um turista enquanto se dirigiam para o parque de estacionamento, depois de terem sido interpelados por um segurança. Disse-lhe que desejava ver Crystal Wyatt e qual o filme que se encontrava a rodar. O segurança respondeu-lhe que era um estúdio fechado e que precisaria de um passe para poder entrar. Mas quando Spencer lhe disse onde estivera e durante quanto tempo, o segurança hesitou e olhou por cima do ombro. O seu filho morrera na guerra e ele faria qualquer coisa por um soldado.
— Não diga a ninguém que o deixei entrar — disse ele, fazendo-lhe sinal para que entrassem, e Spencer agradeceu-lhe. O taxista dirigiu-se para o estúdio indicado pelo guarda enquanto dezenas de actores passeavam por ali em roupas espectaculares. Havia cowboys e índios, grupos de prisioneiros acorrentados e belas raparigas em fatos de banho e vestidos justos. Era um mundo muito diferente do Harry's em São Francisco. Quando pagou ao taxista, ficou um bocado a olhar em volta e depois dirigiu-se com cautela para o edifício. Este era enorme, quase como um hangar de aviões, e à distância viu pessoas aglomeradas sob as luzes fortes, um homem que lhes gritava enquanto tudo o resto permanecia em silêncio. Spencer ficou imóvel, e quando dez minutos mais tarde fizeram um intervalo, ele aproximou-se mais. Então, como num sonho, viu-a, de costas, mas mesmo à distância soube instintivamente que se tratava de Crystal. Lutou contra a vontade de correr e de a abraçar e aproximou-se devagar, sem querer perturbar ninguém, e então, como se o pressentisse, ela virou-se e ficaram ambos imóveis. Crystal continuava a mesma, só que mais bonita do que três anos antes. A criança desaparecera por fim, revelando aquela mulher magnífica. Tinha o cabelo preso num nó, muito bem penteado, e envergava um vestido sem alças branco e sapatos brancos de cetim, cobertos de brilhantes. Parecia saída de um conto de fadas. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, toldando-lhe a visão, e avançou devagar na direcção dele. Não falou, limitou-se a olhá-lo, como uma mulher num sonho, e pouco depois estava nos braços dele e beijava-o. Ele julgou que o seu coração iria rebentar. Nunca a amara tanto como naquele momento. Sobrevivera à guerra apenas para regressar para ela, para a abraçar de novo. Fora só isso que procurara em São Francisco e não encontrara. Mas encontrava-o ali, tal como sabia, com Crystal.
— Oh, meu Deus... não fazes ideia das saudades que tive de ti... — Enquanto a abraçava recordou toda a angústia que sentira, a solidão, a infelicidade, e as lágrimas rolaram pêlos rostos de ambos. Crystal sabia o que tinha feito e isso atormentava-a. Dissera a si própria que ele não iria voltar, mas ele voltara. Estava de novo ali. E ela vivia com Ernie Salvatore. Mas agora não conseguia pensar em Ernie. Não conseguia pensar em ninguém. Só em Spencer, que a apertava e a beijava, enquanto ela tocava no seu rosto com lábios famintos e dedos gentis. — Oh, querida, amo-te... — Nessa altura afastou-se um pouco e sorriu. — Estás tão bonita! — Sorriu-lhe como um pai orgulhoso. — Já és uma estrela de cinema?
Ela ficou atrapalhada e beijou-o de novo.
— Ainda não, mas já estou perto. Este filme é excelente. — Disse-lhe com quem contracenava e Spencer ficou impressionado. Ela acabara mesmo por conseguir enquanto ele estivera fora. Fora para Hollywood e já fazia filmes. Crystal tocou com um dedo nos lábios e murmurou: — Vão recomeçar as filmagens. Vem até ao meu camarim. — Ele seguiu-a em bicos de pés até ao aposento onde ela se vestia, comia e estudava durante horas. Era pequeno, limpo e estava arrumado e encontrava-se lá uma mulher a preparar a roupa para a próxima cena. Crystal sorriu, dispensou-a e depois virou-se para Spencer: — Estou livre durante mais uma hora. — Os seus olhos observaram o rosto dele, desejando saber por que motivo ele viera, onde estivera, quando chegara e se ainda estava casado. — Isto estará mesmo a acontecer? És mesmo tu? — Olhou-o e recordou os meses sem fim do seu silêncio. E quando se sentaram, de mãos dadas, ele tentou explicar-lhe tudo, a solidão, a dor e a sua confusão, o desespero por se encontrar lá, a sensação de que já nada importava excepto o sofrimento constante e a destruição que presenciava.
— Era como se as coisas de cajá não fossem reais... nem sequer tu, durante algum tempo, acho eu. Não conseguia falar com ninguém. E as cartas que me enviavam pioravam ainda mais as coisas. Tentavam fazer com que tudo aqui parecesse normal e feliz, o que criava um contraste ainda mais brutal entre a vossa vida cá e a minha lá. Acho que alguns dos homens mais velhos também sentiram o mesmo. Falámos bastante do assunto quando vínhamos no avião. Até essa altura ninguém quisera falar nisso. Ninguém desejava admitir como tudo fora mau; se o tivéssemos feito talvez não conseguíssemos suportar o que suportámos. — Ele nunca se sentira tão vazio, tão sem esperança e infeliz. —Já acabou tudo, creio eu... mas é difícil esquecê-lo. — Olhava-a com tristeza ao dizer aquelas palavras.
—Julguei que decidiras terminar tudo entre nós. — Crystal falava em voz baixa e triste; o ter julgado isso mudara a sua vida. Levara-a para Hollywood e empurrara-a para uma vida com Ernie. Achara que nada tinha a perder e ele fora muito bom para ela. Fizera muito para a ajudar e ela sentia que lhe devia bastante. Além disso, Ernie tornara as coisas muito fáceis.
Spencer pareceu chocado com aquelas palavras.
— Não teria feito uma coisa dessas sem falar contigo. Nessa altura não sabia o que fazer... continuava a receber cartas da Elizabeth, que me faziam sentir muito culpado. Ela estava à espera que eu regressasse para junto dela, que tudo continuasse como dantes, mas eu sabia que não podia fazer isso. Encontámo-nos algumas vezes em Tóquio e até isso tornava as coisas mais difíceis quando eu voltava. Era como passar um fim-de-semana com uma estranha. As coisas agora também estão assim. Regressei há duas semanas e já estou a dar em doido. — Olhou-a muito sério, e Crystal desviou o olhar. Agora era ela quem se sentia culpada. Era ela quem estava em dívida para com Ernie. — Procurei-te na noite em que regressei — prosseguiu ele. — Fui a casa da senhora Castagna, mas a mulher que lá estava disse que já partiras e depois fui ao Harry's, mas já havia fechado... — Tinha um ar tão desesperado como aquele que tivera na altura. Não ficou surpreendida por as coisas terem mudado em casa da Sra. Castagna. A sua última carta, há já vários meses, fora respondida por um postal enviado pelo filho, dizendo-lhe que a mãe falecera, e Crystal ficara muito triste com a notícia. Gostava muito da velha senhora. — Por fim, a Pearl deu-me o teu número e liguei esta manhã. A tua senhoria disse-me onde estavas e agora aqui estamos. — Sorriu, parecendo um rapazinho no Natal, e Crystal não lhe disse que quem o atendera não era a sua senhoria, mas a sua criada, ou, para ser mais precisa, a criada de Ernie.
— O que vais fazer a respeito da Elizabeth? — perguntou ela com o coração aos pulos, enquanto parte de si rezava para que ele não tivesse decidido divorciar-se. Isso tornaria as coisas mais fáceis para si, pelo menos por enquanto. Não podia abandonar Ernie sem mais nem menos, no depois de ele lhe ter arranjado trabalho no cinema e depois de tudo o resto que fizera por ela. Mas tal como Spencer em relação a Elizabeth, ela não o amava.
Spencer parecia calmo quando lhe respondeu. Pensara bastante no assunto durante o voo da manhã. Iria propor-lhe o divórcio assim que chegassem a Washington. Depois pegaria nas suas coisas, no que restava delas, e apanharia o primeiro avião para a Califórnia. Não tinha emprego. Poderia procurar um em Los Angeles tão facilmente como em Washington ou em Nova Iorque. Um advogado conseguia emprego em qualquer lado. E depois, assim que estivesse empregado, e obtido o divórcio, casaria com Crystal, se ela quisesse. Era tudo incrivelmente simples.
Sorriu para ela nessa altura. Estava demasiado feliz até para se sentir culpado.
— Vou divorciar-me da Elizabeth. Creio que já lho devia ter dito há muito tempo. Acho que sabia isso antes de me ter ido embora há três anos, mas parecia-me que não era correcto. Tínhamos acabado de casar. Não sei. Fui um idiota por não o ter feito na altura. Não posso continuar com esta charada durante muito mais tempo. E horrível fazer isto depois de ela ter esperado todos estes anos — comentou ele, lembrando-se do que o pai lhe dissera no lago —, mas nem sequer sei se ela se importa. Só pensa no trabalho e nas malditas festas. — Havia mais do que isso, mas não muito, por aquilo que ele vira desde que regressara da Coreia. — Ela está agora na casa do lago, e daqui a uns dias regressamos a Nova Iorque. — Olhou bem para os olhos de Crystal. — Está quase terminado. Posso estar de volta daqui a uma ou duas semanas, e, assim que arranjar emprego, entro com o pedido de divórcio e depois disso podemos casar-nos... — Estava certo de que Elizabeth seria razoável e aceitaria divorciar-se. Mas, de repente, ficou preocupado. E se as coisas tivessem mudado para Crystal? Embora depois do beijo que ela lhe dera não achasse isso. Mas acrescentou por precaução: — ... Isto se ainda me quiseres. — E se Elizabeth se quiser divorciar. Mas estava certo de que ela não recusaria depois de lhe dizer o que achava do casamento.
Crystal olhou-o durante bastante tempo, depois os seus olhos encheram-se de lágrimas e nada disse. Era isto que ela desejara anos antes, aquilo com que ela sonhara enquanto ele estivera ausente, e já perdera a esperança de o ouvir. Pensara que ele escolhera Elizabeth e nem sequer se dera ao trabalho de lhe dizer.
— Então? — perguntou ele, vendo as lágrimas a correr-lhe pelo rosto, sem saber se eram de alegria ou de desilusão. Tomou-a nos braços e apertou-a, enquanto ela chorava, e sorriu, olhando sobre o ombro dela. — Não chores, querida. As coisas não vão ser assim tão más. Prometo-te. Vou olhar por ti... juro que vou. — Era só o que queria. Afastou-a um pouco e olhou-a enquanto ela abanava a cabeça. Havia muitas coisas que ela ainda não lhe dissera.
— Talvez agora já não me queiras. — Tinha de lhe falar de Ernie.
— Não vejo porquê. A menos que te tenhas casado enquanto estive fora — disse ele com um sorriso, certo de que não era esse o caso —, mas até isso pode ser resolvido. Podemos ir até Reno daqui a seis semanas e casar, se estiveres casada. — Estava a brincar, mas ela olhava-o como se tivesse o coração destroçado. A realidade era pior. Ele ia finalmente libertar-se e ela estava presa a Ernie. Mas se ele lhe tivesse escrito... se mantivessem o contacto... se ele desse uma explicação... E depois ela lembrou-se da carta a que não respondera. Julgara que era demasiado tarde e não queria atormentar-se ou continuar a iludi-lo. A situação arrastara-se durante bastante tempo e ela pensara que quando ele escrevia a dizer que se encontrava com Elizabeth em Tóquio já tivesse decidido continuar com o casamento.
— Spencer... — Crystal lutou por encontrar palavras para lhe explicar, mas sabia que não iria ser fácil. — Estou a viver com uma pessoa. Com o meu empresário, para ser mais específica... é uma história muito comprida... e não sei o que te dizer.
Spencer ficou a olhar para ela com um ar infeliz, querendo ouvir, mas não era daquilo que estava à espera. Não sabia o que iria encontrar. Talvez encontrasse raiva, ou indiferença ou mudança. Mas não esperava encontrá-la ainda apaixonada por si e a viver com outra pessoa. E aquilo não lhe agradou.
— Quando vim para Hollywood, fui-lhe apresentada por dois agentes. Disseram-me que ele era o melhor da cidade, e num ápice ele conseguiu-me um papel num filme. Aliás, comecei a trabalhar na semana a seguir a cá ter chegado. Ele fez tudo por mim, comprou-me roupas, instalou-me num hotel, e pagou-o... — Não lhe falou de Malibu nem da pulseira de diamantes. — Assinei um contrato com ele, e ele faz tudo por mim Spencer. Devo-lhe muito... não posso abandoná-lo assim... não seria justo...
Aquilo soava a escravidão e Spencer mal podia acreditar no que estava a ouvir.
— Estás apaixonada por ele?
Ela abanou a cabeça com um ar muito infeliz:
— Não, não estou. E falei-lhe em ti logo no princípio. Mas disse-lhe que acabara tudo entre nós. Era isso que eu achava na altura. Já não recebia notícias tuas há meses e pensei que tinhas decidido ficar com a Elizabeth... — A voz de Crystal fraquejou e começou de novo a chorar.
Spencer pôs-se a andar de um lado para o outro com um ar furioso.
— Estava preocupado em sobreviver, se é que isso te interessa. — Olhou-a cheio de frustração. Durante todo aquele tempo andara a rastejar pelo chão, cheio de gangrenas provocadas pelo frio, vivendo em valas pêlos campos da Coreia e ela achara que ele não a amava.
—Desculpa... estiveste ausente durante tanto tempo... e... as coisas aqui eram tão diferentes! Quis tanto ter êxito em Hollywood! — Aquilo era verdade, mas isso não facilitava as coisas para Spencer, que não estava a gostar nada do que ouvia.
— Tanto que tiveste de vender o corpo juntamente com o resto?
— Olha lá, raios! — exclamou ela, levantando-se, repentinamente tão furiosa como ele. — Quando saíste dos Estados Unidos estavas casado, ou não te recordas desse pequeno pormenor? Esperei quase três anos por ti, Spencer Hill, e durante metade desse tempo nem sequer te deste ao trabalho de me escrever. E, por fim, escreveste dez palavras numa folha de papel que podiam ter sido dirigidas a qualquer pessoa.
Não falaste de nós, nem do futuro, nem daquilo que irias fazer. Contavas que eu ficasse à espera e foi isso que fiz, durante demasiado tempo. Mas também queria ter uma vida. Tinha direito a mais do que ficar em casa da senhora Cstagna o resto da vida, à espera do Messias. — Ele não respondeu, porque tudo aquilo era verdade. Não o podia negar. — Por isso vim para cá e o Ernie tomou-me sob a sua protecção. É um homem poderoso Spencer. Um dia vai fazer de mim uma grande estrela. E não tenciono ficar junto dele para sempre, mas não me vou embora assim sem mais nem menos só porque tu queres. Devo-lhe mais do que isso e não quero transformar um amigo num inimigo. Ele tem sido bom para mim. Além do mais, se eu zesse uma coisa dessas ele poderia magoar-me um dia.
— Queres dizer sicamente? — Spencer parecia horrorizado, mas Crystal foi rápida a abanar a cabeça.
— É claro que não. A nível profissional. Podia destruir o meu contrato.
— Não tenhas tanta certeza. Ele não é idiota. Sabe que tem um bom negócio nas mãos. A propósito, que tipo de contrato assinaste com ele? — Também estava preocupado com essa questão, embora fosse de pouca importância para a relação de ambos.
— Um contrato normal. — Tentou parecer confiante, mas na verdade sabia muito pouco acerca do contrato. Ernie dissera-lhe sempre que não era importante.
— O que quer isso dizer?
— Ele serve de intermediário entre mim e os estúdios. Falam com ele, que trata de tudo por mim. — Era uma boa descupa, e ela acreditara.
— Quem é que te paga? É ele, ou os estúdios pagam-te directamente? — Spencer estava muito desconado. Já ouvir falar de contratos daqueles, com os empresários a devorarem as fortunas das grandes estrelas e os próprios actores a acabarem sem nada.
— É o Ernie quem passa os cheques. Assim pode deduzir os meus impostos.
—Já alguma vez viste os contratos com os estúdios ou os cheques dos teus honorários, passados por eles?
— É claro que não. — Crystal ficou aborrecida. — Ele trata de tudo por mim. É esse o seu trabalho. — Era preci samente isso que Spencer temia.
— Ento podes ter a certeza de que ele anda a fazer fortuna contigo e tu, minha querida, recebes uma ninharia daquio que pagam por ti.
— Isso não é verdade! — exclamou ela, defendendo-o rapidamente, mas sabendo também que a questão central não era o seu contrato com Ernie. — Seja como for, não posso abandoná-lo sem mais nem menos — disse, a ira desaparecendo quando se sentou, e olhou com tristeza para Spencer. — Poderia, um dia mais tarde. Mas ele não vai compreender se eu me fo embora amanhã e isso não seria justo. Nã mais do que tu teres abandonado a Elizabeth duas semanas depois do casamento. — Estava a tocar num assunto delica do, e sabía-o. Mas sentia-se em dívida para com Ernie, mesmo que Spencer não compreendesse. Fora demasiado bom para que ela pudesse virar-lhejá as costas por causa de Spencer.
— Então o que estás a dizer Crystal? Que acabou tudo? Que queres ficar com ele? — A sua voz temia ao fazer-lhe aquelas perguntas, não de raiva mas sim de medo.
No entanto, os olhos dela encheram-se de lágrimas ao responder. Apetecia-lhe sair do camarim, agarrada à mão de Spencer, e dirigir-se para a igreja mais próxima para se casar. Mas também sabia que não podia fazer isso. Não por enquanto. Queria resolver a situação com Ernie de forma delicada. E apercebera-se de algo importante: ele tomar-seia um inimigo temíve se casse zangado. E teria motivos para isso, se ea o abandonasse depois de toda a sua ajuda.
— Preciso de tempo. Preciso de tempo para falar com ele e para acabar este filme, e depois digo-lhe que preciso de viver sozinha ou qualquer coisa do género. Mas não posso fazê-lo numa semana Spencer. Levaste três anos com a Elizabeth. Dá-me um mês ou dois, pelo menos. Quero resolver tudo com muita calma. E estou a meio de um filme.
— Porquê tanto tempo? Porque tens medo que ele preju ique a tua carreira ou porque o amas? — Ainda não sabia bem o que é que ela sentia por aquele homem ou por que motivo se senta er dívida pra com ele. Não compreendia as complexidades do método de trabalho de Ernie nem o modo como ele brincava com os escrúpulos, os medos e a consciência de Crystal.
— Porque acho que lhe devo isso. Por cortesia, se não for por mais nada. Não se pode abandonar um homem que fez tanto por nós. E quero que ele continue a ser o meu em presário depois de o deixar.
— Isso pode não ser muito bo ideia Crystal. E, por amor de Deus, há muitos outros!
— Não tão bons como o Ernie. — Ele também a con vencera disso, e Spencer tornou a sentirse irritado ao ouvi-Ia. Parecia que iam ficar presos ao tipo para o resto da vida.
—Já pareces a Elizabeth a falar do McCarthy! Céus, regresso a casa depois da guerra, desejoso por me nstalar e ter uma via normal, e toda a gente está muito envolvida com a sua carreira prossional. Toda a gente menos eu. É engraçado, não é? — Estava com pena de si próprio, mas Crystal não sabia se o haveria de culpar. Sentia-se grata por ele ainda a querer depois de ter sabido de Ernie. Alguns homens ter-se-iam ido embora assim que ela lhes tivesse dito.
— Talvez arranjes emprego aqui. Os estúdios poderão até querer contratar-te. Todos têm batalhões de advogados.
Gostaria de dizer que Ernie podia arranjar-lhe qualquer coisa, mas não ousou, e só dentro em breve perguntaria a Ernie se o podia fazer.
— Que queres que eu faça enquanto espero por ti Crys tal? — Não percebia quais eram as regras, e ela estendeulhe a mão enquanto respondia.
— Tem paciência. Lamento tudo isto. — Atrapalhada, baixou o olhar. Ele inclinou-se e beijou-lhe o cabelo sedoso, puxando-lhe em seguida o queixo para cima para que ela o pudesse ver.
— Não te preocupes. Eu mereço isto. Podia ter sido muito pior. Podias ter-me mandado à fava. Tenho muita sorte por ainda me quereres.
— Amo-te — murmurou ela, e ele abraçou-a. Nesse momento bateram à porta e uma voz informou-a de que as filmagens se iniciariam dentro de dez minutos. Olhou para Spencer com um ar muito infeliz, não querendo que ele se fosse embora, mas tinha de voltar ao trabalho e depois teria de pensar numa mneira de contar a Ernie. — O que vais fazer agora?
— Podes passar algum tempo comigo, ou não te dá muito jeito? — Sabia aquilo que podia esperar de Elizabeth e dos Barclay.
— Não me parece que possa. — Nos seus olhos havia uma grande tristeza e ele tornou a beijá-la; Crystal desejou que Spencer nunca mais a deixasse.
— Então vou voltar para São Francisco. Telefono-te daqui a uns dias. E despacha-te, está bem? — brincou. Não estava satisfeito com a stuaço dela, mas podia suportá-la durante algum tempo. A culpa era sua por as coisas terem corrido daquela forma e não a condenava, embora a situação não lhe agradasse. Podia ter sido bem pior. Ela podia ter-se apaixonado por outra pessoa e casado. Raios, podia até já ter dois filhos. O que acontecera era desagradável, mas pelo menos Crystal ainda o amava.
Beijou-a com força e durante bastante tempo antes de partir, e ela mal conseguia perdê-lo de novo, mas desta vez seria por pouco tempo. Agora sabia onde ele se encontrava. Podia ligar-lhe, e ele prometera telefonar e informá-la do andamento das coisas na sua vida. Assim que dissesse a Elizabeth, tencionava regressar à Califórnia durante algumas semanas para procurar emprego; nessa altura ela já deveria estar no fim das filmagens e, esperava ele, a resolver o problema com Ernie. Tinham de arranjar um local para viver, e havia agora muito em que pensar. Isso dava esperança a ambos. Spencer tornou a beijá-la e abraçou-a, recordando o doce perfume do seu corpo.
— Detesto deixar-te mais uma vez — disse ele baixinho.
— Também eu — sorriu Crystal. Mas desta vez não seria por muito tempo, e quando tornassem a juntar-se seria para sempre.
— Volto em breve — prometeu ele. Ela assentiu. Tinham ambos muito que fazer durante o mês seguinte, muitos obstáculos a ultrapassar antes de poderem estar juntos.
Depois, com um último beijo, ele sau do camarim e ela acompanhou-o, ficando a olhá-lo com ua expressão de tamanha ternura que quem a visse compreenderia tudo. Quando ele lhe acenou, respondeu da mesma forma, para não perturbar o trabalho dos outros actores, mas nenhum deles viu Ernie a observá-los do fundo do estúdio.
Spencer regressou ao hotel e foi-se embora nessa mesma tarde. Não tivera exactamente o fím-de-semana que planeara e ainda se sentia chocado por Crystal estar a viver com outra pessoa, mas tinha de ser justo: também ele continuava com Elizabeth. E sabia que fora em parte por culpa sua que Crystal perdera a esperança e se envolvera com Ernie. Isso não lhe agradava nada e ansiava que ela o largasse. Além disso, estava preocupado com o contrato que Crystal assinara. Suspeitava que Ernie escondia mais alguma coisa do que aquilo que a jovem lhe contara.
Regressou de avião a São Francisco nessa mesma noite e alugou um carro. Sem saber para onde ir, dirigiu-se para norte. Só pensava nela, no seu ar quando ele a beijara no minúsculo camarim. O amor entre ambos continuava a existir, mas tinham-se ambos tornado mais fortes.
Chegou a Napa às dez horas, e prosseguiu viagem. Tencionava parar num motel, e quando viu as tabuletas soube porque seguira naquela direcção. Estava a prestar uma homenagem ao passado, e à criança que ela era quando a conhecera. Eram onze horas quando passou pela cidade, e parou junto ao rancho. A cerca estava fechada e a casa oculta por árvores, mas perguntou-se se o baloiço ainda lá estaria. Não ia ali há seis anos. E fora há sete anos que a conhecera.
Parou num motel e procurou os Webster na lista telefónica, mas não os encontrou e já não se recordava onde viviam. Porém, não fora ali para os ver. Fora ali por ela, e por aquilo que ela já tinha sido. Antes de Hollywood, antes da guerra, antes de Elizabeth, antes do homem com quem Crystal estava a viver... antes de todos eles... quando a vira pela primeira vez com um vestido branco, no casamento da irmã. Fora tudo tão simples naquela altura, no começo.
Ficou sentado no carro durante bastante tempo, depois ligou o motor. Tinha de pensar agora na sua vida, dera a ambos o prazo de um mês. Agora já não parecia muito tempo, mas naquela tarde parecera quase uma eternidade. Parou e jantou algures, numa cidade que não conhecia, e depois disso levou seis horas até ao lago Tahoe. Passou por cia de Donner Pass quando o Sol nasceu, e só conseguia pensar na rapariga que deixara na MGM, a ulher que aava e com quem iria casar.
Estacionou e entrou em casa, indo em bicos de pés até ao quarto onde Elizabeth dormia. Enquanto se despia, ela mexeu-se e olhou-o com urn ar ensonado.
—Já voltaste? — perguntou, meio a dormir. Ele assentiu, com medo de dizer mais. Estava demasiado cansado para dizer fosse o que fosse. E prometeu a si próprio que esperaria até deixarem o lago Tahoe.
— Dorme — disse, mas ela sentou-se na cama, observando-o atentamente.
— Pensei que só voltavas no domingo.
— Resolvi tudo mais depressa do que pensava. — Demasiado depressa, mas não suficientemente depressa. Tencionara passar o fim-de-semana com Crystal.
— Onde estiveste? — Elizabeth observava-o enquanto ele se despia, e ele evitou olhar para ela enquanto se enfiava na cama a seu lado.
—Já te disse. Em Los Angeles. Tive de tratar de uns assuntos.
— E trataste? — Falava com frieza, e já estava totalmente desperta.
— Mais ou menos. Não consegui estar com toda a gente, por isso vim mais cedo.
Ela assentiu, sem saber se acreditava nele. Achava-o diferente nos últimos dias, aliás, desde que regressara, e perguntou-se o que andaria a tramar.
— Queres falar do assunto?
— Nem por isso. Conduzi toda a noite. — Spencer fechou os olhos, esperando que ela se calasse, mas isso não aconteceu.
— Porque não ficaste na casa de São Francisco?
— Quis voltar.
— Foi muito simpático da tua parte. — Ele não soube se ela estava a ser sarcástica ou não, e a última coisa que tencionava fazer era perguntar-lhe. —Já andas a sentir-te melhor?
— Conversava como se estivessem a meio da tarde, e Spencer gemeu quando abriu os olhos e a viu sentada a seu lado.
— Por amor de Deus, Elizabeth! Porque não conversamos de manhã?
—Já é de manhã. — O Sol já ia alto e os pássaros tinham começado a cantar.
— Sim, já estou melhor. — Muito, depois de ter visto Crystal.
— Queres falar no assunto? — Elizabeth estava à procura de algo e se sondasse durante tempo suficiente acabaria por encontrar aquilo que procurava.
— Nem por isso. Não há nada de que falar. — Ainda não. Não com a família nos quartos em redor. Durante duas semanas não haviam tido privacidade, e ele desejava pelo menos isso quando lhe dissesse que queria terminar o casamento.
— Acho que há muito sobre que falar. Não sou estúpida, como sabes. — Ao sentar-se ao lado da mulher Spencer perguntou-se por instantes se ela saberia da existência de Crystal. Mas isso era impossível, a não ser que o tivesse mandado seguir. — Sei que há coisas que te têm incomodado. Falei com o teu pai há uns dias. Não é fácil regressar de uma guerra. Sei isso muito bem. Também não foi fácil para mim.
Spencer sentiu pena dela, e perguntou-se quanto lhe teria dito o seu pai. Desejou que ele não se tivesse entusiasmado e falado com Elizabeth do assunto.
— Foste uma valente durante todos estes anos. — Acendeu um cigarro, desejando poder dizer-lhe mais, dizer-lhe que ainda a amava. Se é que alguma vez a amara. Já não tinha a certeza disso. Os seus sentimentos por Crystal tinham eclipsado tudo o resto, e a sua relação com Elizabeth sempre fora muito diferente.
— Havemos de nos tornar a habituar um ao outro — disse ela com meiguice, olhando-o, e ele viu ternura no seu olhar. Sentiu que a havia traído. E já há muito tempo. Agora estava certo de que nunca se deviam ter casado.
— Tens a certeza de que é isso que queres? — Tocava num tema sobre o qual não quisera falar até deixarem o lago, mas ela estava a forçá-lo e dali a pouco teria de lhe dizer.
— Creio que sim. Foi por isso que esperei todo este tempo. Acho que o mereces. — Sorriu e isso fê-lo sentir-se pior. O pai tinha razão. Devia algo a Elizabeth. Mas não o resto da sua vida. Isso seria pedir demasiado. Era um preço demasiado elevado a pagar pêlos anos que ela esperara por ele.
— És uma mulher extraordinária, Elizabeth. — Mas em demasia. Spencer não queria ter de aturar alguém como ela. Elizabeth tinha as suas ideias próprias, os seus modos, a sua casa e a família, com quem ele tinha de competir. Neste esquema não havia espaço para Spencer, ou pelo menos ele assim o achava. Com Crystal poderia construir uma vida nova. Podia fazer tudo por ela. Podia partilhar o princípio de uma carreira, começar uma nova vida, ter filhos. E tudo isso era importante. — Não sei o que dizer-te. — Nessa altura virou-se para a mulher, e ela leu tudo no seu rosto. — Creio que não posso continuar assim. Acho que nunca deveríamos ter casado.
— É já um bocado tarde de mais, não te parece? Depois de todo este tempo? — Ela parecia zangada e magoada, mas não surpreendida. Já há dias que esperava aquilo. Antes de o juiz Hill falar com ela, já Elizabeth adivinhara. Ele dissera-lhe que Spencer se sentia um pouco «desapontado» e que ela necessitaria de muita paciência. Elizabeth achava que já tivera paciência suficiente. Durante três anos.
— Estive ausente três anos. Antes disso, passámos juntos duas semanas. E mudámos. Ambos. Já não quero as mesmas coisas que queria. Mal nos conhecíamos quando me fui embora e nos últimos três anos tornámo-nos uns estranhos.
— Não posso fazer nada. As coisas são mesmo assim. Mas depois de ter esperado três anos não vou desistir agora, se é isso que estás a sugerir. — Os olhos dela tinham uma expressão dura, e Spencer sentiu o coração apertar-se quando a olhou.
— Porquê? Porque não? Porquê continuar? Só nos vamos tornar ainda mais infelizes. — Tentava argumentar, mas percebeu que ela não estava interessada em escutá-lo.
— Não necessariamente. Temos muito para oferecer um ao outro. Sempre tivemos, sempre fui dessa opinião.
— E eu sempre duvidei. Disseste-me isso quando ficámos noivos.
— Disse-te que não me importava. Temos exactamente aquilo de que precisamos para um bom casamento. Boas carreiras, inteligência, vidas interessantes; são estas as coisas que compõem os melhores casamentos.
— De onde venho, as coisas não são assim. E o amor, a ternura, a lealdade, os filhos? — Mas fora ele leal para com Crystal, e vice-versa? Ambos viviam com outras pessoas. Tentou não pensar nisso enquanto falava com Elizabeth. Mas aquilo que tinham era mais do que aquilo com que Elizabeth poderia sonhar.
— Lês demasiados romances. Estiveste demasiado tempo afastado da vida real, Spencer. É claro que essas coisas são importantes, mas isso são acessórios, não coisas fundamentais. — Eleja sabia tudo o que ela dizia. Eram demasiado diferentes. Não se importavam com as mesmas coisas. Ele queria amor. E ela um grande negócio.
— Que sentes por mim? — perguntou ele de repente, olhando-a com ar angustiado. — Fala a verdade. Que é que sentes quando me deito ao teu lado à noite? Paixão, amor, desejo, amizade? Ou sentes-te tão só como eu? — Só haviam feito amor uma vez desde o regresso dele, e fora uma catástrofe.
— Tenho pena de ti — respondeu ela com frieza, olhando-o bem nos olhos. — Acho que andas à procura de uma coisa que não existe. Sempre andaste. — E se ele lhe dissesse que a tinha encontrado? Mas preferiu calar-se. Queria deixá-la, mas sem a magoar desnecessariamente. Não queria isso. Apenas desejava recuperar a sua vida. Mas era óbvio que ela não lha queria dar. — Acho que és um sonhador... e acho que tens de começar a viver no mundo que te rodeia, no mundo em que vivemos Spencer. Um mundo cheio de pessoas importantes com carreiras importantes. Todos fazem coisas úteis, não estão para aí sentados de mãos dadas com as mulheres e a fazer festas aos filhos.
— Então tenho pena deles, e de ti, se é assim que encaras as coisas.
— Tens de readquirir o domínio sobre ti mesmo, arranjar um emprego em Washington, começar a fazer amigos, dares-te com as pessoas que interessam...
— Tal como as pessoas que o teu pai conhece? — interrompeu ele, começando a ficar irritado. Estava farto deles e da sua busca constante de maior «importância». Aquilo que consideravam importante não lhe interessava minimamente. Em especial agora, depois de três anos na Coreia.
— Sim, como elas. O que têm de errado?
— Nada. Mas eu não gosto delas.
— Tens a sorte de elas falarem contigo! — Também estava zangada com ele. Já não suportava vê-lo com ar acanhado em todas as festas a que iam. — Tens a sorte de teres casado comigo. E tens também a sorte de eu ser demasiado esperta para me divorciar. Um dia vais ser alguém e eu vou estar aqui para garantir isso. E um dia, Spencer Hill, irás agradecer-me.
Ele olhou-a e riu-se. Riu-se até as lágrimas lhe caírem pelo rosto. Elizabeth era a mulher mais egocêntrica que ele conhecia, e além disso tinha a certeza que estava certa. Mas também era uma adversária poderosa.
— Exactamente, o que é que tencionas fazer de mim, Elizabeth? Que tal presidente? Ou rei? Isso podia ser giro... por acaso poderia agradar-me.
— Não sejas idiota. Podias muito bem ser aquilo que quisesses. Todas as portas em Washington estão abertas para ti, até ao Gabinete Oval, se jogares as cartas certas.
— E se jogar as erradas?
— A escolha é tua. Mas estou a falar a sério. Se queres o divórcio, não to vou conceder. — Ele ainda não lhe fizera a pergunta, mas ela já respondera.
— Porque queres continuar casada se eu não o quero? — Era incapaz de compreender, mas ela sabia bem o que sentia e explicou-lho em poucas palavras, levantando-se e dirigindo-se-lhe numa expressão dura:
— Não vou permitir que me faças passar por tola depois de todo este tempo. Esperei por ti, agora vais pagar as tuas dívidas. Se pensares bem, o preço não é assim tão elevado. Podia ser pior. — E acrescentou: — Além disso, amo-te. — Isso poderia tê-lo sensibilizado se ela o tivesse dito de outra maneira e um pouco mais cedo.
— Não sei se conheces o significado da palavra.
— Talvez não. — Estava implacável. — Mas se for esse o caso Spencer, podes ensinar-me. — E com isso dirigiu-se à casa de banho, trancando a porta. Ele ouviu-a encher a banheira e meia hora mais tarde Elizabeth reapareceu com um ar imperturbável, calças brancas e uma camisa de seda muito bem engomada, sapatos brancos, o colar de pérolas em volta do pescoço, e brincos de pérolas e diamantes. Era uma mulher bonita, mas nada nela o sensibilizava ou o confortava. — Desces para o pequeno-almoço ou queres dormir um bocado?
Ambos sabiam que ele não conseguiria voltar a dormir, mas Spencer estava com um ar bastante cansado. A noite tinha sido cansativa e a manhã não fora muito melhor. A recusa do divórcio era como uma punhalada no seu coração repleto de Crystal.
— Desço daqui a pouco.
— Óptimo. Os Houston esperam-nos para o almoço. Tenho a certeza de que ficaste satisfeito com a notícia.
— Encantado. — Mas de certa forma, estava mais aliviado desde que falara com ela. Pelo menos já não precisava de fingir que se sentia ansioso por continuar com o casamento. Elizabeth sabia o que ele pensava, e vice-versa. Tornou a olhar para a mulher antes de esta sair do quarto. — Estás a falar a sério, Liz? — Falava com suavidade. Queria que ela percebesse que não valia a pena continuarem juntos.
— Acerca de quê? De continuar casada contigo? — Ele assentiu. — Sim, estou.
— Porquê? Por que motivo não podes admitir que está tudo errado? Para quê forçar as coisas?
—Já te disse, não vou permitir que ninguém me faça passar por idiota. E, além disso, seria uma situação muito embaraçosa para o meu pai.
— Isso é a pior desculpa que já ouvi.
— Então pensa nas tuas, se quiseres. Mas falo a sério. E creio que, a longo prazo, ambos seremos felizes.
Ele não podia acreditar no que acabara de ouvir, mas, sem mais uma palavra, Elizabeth saiu do quarto e desceu para tomar o pequeno-almoço, enquanto Spencer ficava na cama a pensar em Crystal.
Ela já tivera os seus problemas nessa noite. Só terminara o trabalho às dez. Um dos projectores avariara-se e depois estragou-se uma grande parte do cenário. Ficaram ali durante horas, e quando chegou a casa já era meia-noite. Ernie esperava-a.
— O que fizeste hoje? — Permaneceu imperturbável vendo-a despir-se. Crystal estava exausta e passara a noite a pensar em Spencer, no que teria de fazer e no que iria dizer a Ernie.
— Nada de especial. Os projectores avariaram-se e ficámos parados durante horas. — Tinham-se queixado do calor, da longa espera e da má comida ao jantar.
— Só isso? — Ele aproximou-se devagar de onde ela estava, nua sob o roupão.
— Claro. Porquê?
Ele agarrou-lhe num punhado de cabelo, puxando-lhe a cabeça para trás de forma abrupta, com quanta força tinha, enquanto ela tentava respirar e libertar-se dele.
— Nunca me enganes!
—Ernie!... Eu... — Mas as palavras morreram-lhe nos lábios. Via nos olhos dele que sabia da visita de Spencer. — Um velho amigo foi visitar-me... nada mais...
Ele tornou a puxar-lhe os cabelos, e os olhos de Crystal encheram-se de lágrimas de medo e de dor.
— Não mintas! É o tipo da Coreia, não é? — Era inteligente e a altura era apropriada. Deduzira, a partir de um palpite, quando a criada lhe dissera que tinha telefonado um homem, depois fora ao estúdio verificar se ela recebia alguém. Chegou a tempo de os ver entrar para o camarim dela. E esperara bastante tempo até tornarem a sair, olhando um para o outro como dois amantes que há muito não se viam.
— Sim... sim... — Mal conseguia respirar enquanto ele lhe torcia o cabelo. — Era ele... desculpa... não pensei que ficasses aborrecido...
— Vaca estúpida! — Esbofeteou-a com força, atirando-a quase até meio da sala. — Se tornas a vê-lo ou a telefonar-lhe vai acontecer-lhe uma coisa muito desagradável. Percebeste, «Miss Pureza»?
—Sim... Ernie, por favor... — Estava horrorizada. Nunca vira antes aquela faceta dele.
— Agora despe-te. — Ela ofegou quando viu a expressão do rosto de Ernie, e ele nem sequer estava bêbedo. Mas havia nos seus olhos algo que a apavorou enquanto se dirigia a ela. Arrancou-lhe o roupão e ela ficou a tremer, nua. — E lembra-te de uma coisa: agora pertences-me! E a mais ninguém! Porque sou o teu dono. Percebeste? — Ela assentiu, as lágrimas a correr pelo rosto enquanto ele tornava a esbofeteá-la. Sem cerimónia, atirou-a para uma cadeira e tirou o seu próprio roupão, rindo-se do pavor que via nos olhos dela. — Exacto. Vou fazer exactamente aquilo que me apetece, porque tu és minha. — E possuiu-a com tal força e brutalidade que desta vez ela gritou de dor e não de prazer. Quando tudo acabou, atirou-a para o chão, onde ela ficou a chorar cheia de dores. Era exactamente o que Tom Parker fizera, mas de certa forma pior, porque ela confiara em Ernie. Devia ter fugido nessa tarde com Spencer. Sabia-o agora, mas era demasiado tarde. Era muito mais tarde do que ela julgava, e tinha medo do que ele poderia fazer a Spencer, no caso de estar a falar a sério. E ela não faria nada que pusesse Spencer em risco. Mesmo se isso a matasse.
Ernie olhou para Crystal, deitada no chão, e riu-se enquanto ela chorava, sem ousar olhá-lo.
— Levanta-te! — Içou-a de novo pêlos cabelos, enquanto ela olhava em volta, apavorada. — E se tornares a vê-lo de novo Crystal Wyatt... mato-te. — Depois foi para a cama enquanto ela ia vomitar à casa de banho. Quando se olhou ao espelho, os olhos que ali viu estavam vazios. Ele dera-lhe tudo e agora julgava que era propriedade sua. Mas uma coisa era certa: Crystal sabia agora o que aconteceria se tentasse deixá-lo para ir ter com Spencer.
A 6 de Setembro, Spencer foi de avião para Washington co Elizabeth e os sogros. Tivera urna semana terrível. A tensão entre ambos fora devastadora. Mas ela continuara a agir como se nada se passasse, decidida a continuar a ilusão do casamento. Não sabia o que teria de fazer para ela compreender, mas dali a um mês queria estar de volta à Califórnia com Crystal. E iria tornar a falar no divórcio assim que chegassem a Georgetown. Ficara bastante surpreendido com a resistência dela à ideia. Ele e Crystal haviam sido muito ingénuos quanto à vontade dos parceiros em desistir deles, e agora Spencer só pensava em convencer Elizabeth a conceder-lhe o divórcio.
Contudo, quando chegaram a Washington, ela mostrou-se tão orgulhosa da casa, andava tão ocupada com os amigos e com o emprego que ele mal a viu. Elizabeth contratou uma governanta para cozinhar e limpar, e o casal Hill parecia ser convidado para todas as festas da cidade. Spencer ficou desesperado. Sentia-se afogar num mar de gente, noite e dia, e de cada vez que tentava falar com Elizabeth ela conseguia evitar o assunto. Finalmente, na segunda semana depois de terem regressado a casa, ele explodiu ao pequeno-almoço. Ela acabara de lhe dizer que tinham sido convidados para almoçar em casa dos pais e que depois ele talvez gostasse de ir jogar golfe com o juiz Barclay.
— Por amor de Deus, Elizabeth, não podemos continuar assim! Não podes fingir que nada aconteceu. — Para ele, nada mudara desde o lago Tahoe nem desde muito antes.
—Já te disse o que pensava Spencer. É isto. Até morrermos. Podes deixar de lutar e começar a apreciar. — Tinha o mesmo ar frio e controlado de sempre e isso dava com ele em doido.
Sentou-se e passou uma mão pelo cabelo, no gesto familiar que ela ainda não passara a considerar com afecto. Na realidade, esse gesto aborrecia-a. Mas estava disposta a aguentar tudo. Aquela era a vida deles e ele era o seu marido.
— Temos de conversar. — Não desistia. Ela era uma mulher honrada e ele dava valor ao que fizera por si. Mas não era aquilo que queria. Agora sabia-o. Tinha a certeza. E não queria um casamento que fosse apenas fingimento e aparência.
— Sobre que queres conversar? — O tom da sua voz era gelado. Estava farta da dificuldade dele em adaptar-se. A seu ver, ele tinha tudo o que queria. Uma casa bonita, uma criada, uma mulher interessante com um bom emprego e sogros importantes. Mas Spencer não via as coisas dessa forma. Nem nada que se parecesse.
— Temos de falar acerca do nosso casamento. O olhar dela endureceu. Já falara naquilo antes e não estava interessada em aprofundar o assunto. Não iria conceder-lhe o divórcio. Ele teria de crescer e encarar a situação.
— Não há nada a dizer.
— Eu sei — retorquiu ele com tristeza. — O problema é precisamente esse.
— O problema é que ainda tentas ir contra isso, e quando deixares de o fazer, as coisas parecer-te-ão muito melhores. Olha para os meus pais. Achas que as coisas sempre foram fáceis para eles? Tenho a certeza que não. Chegaram a um acordo. Também podemos chegar, se aceitares as coisas como elas são — disse com frieza.
— Mas esta coisa para mim não é um casamento — retorquiu Spencer, tentando manter a calma.
— Não concordo contigo — contrapôs ela zangada, mas não triste. Estava farta de falar no assunto.
— Não estamos apaixonados. Nunca estivemos. Isso não
te importa?
— É claro que importa. Mas o amor surgirá mais tarde. — Parecia despreocupada, o que fez com que ele se sentisse
ainda mais louco.
— Quando? Quando é que achas que isso surgirá, Elizabeth? Aos sessenta e cinco, como a reforma ou um bónus? Ou existe no começo, ou então já não existe. E para mim nunca existiu. Tentei convencer-me do contrário, mas entre nós nunca houve amor. Quis afastar-me assim que ficámos noivos, e disse-te. Mas deixei que me convencesses e fui um idiota. Não foi justo para ti, nem para mim, e agora estamos a pagar por teres sido tão teimosa.
— E que preço estás a pagar? — Agora sentia-se furiosa e, finalmente, mostrava-o. — O preço do conforto, de teres uma mulher de que te podes orgulhar ou um sogro que é um dos homens mais importantes do país?
— Estou-me nas tintas para isso tudo, e tu sabe-lo bem.
— Não tenho assim tanta certeza. Estás-te nas tintas? Então porque casaste comigo, se não me amavas? — Era uma boa pergunta.
. — Disse a mim próprio que te amava. Pensei que conseguiríamos que tudo desse certo, mas isso é impossível e temos de encarar a realidade.
— Encara-a tu. Resolve-a. O problema é teu. Passas a vida a lamentar-te. Então pára de te lamentar e faz qualquer coisa.
— É isso que quero fazer, raios! — Deu um murro na mesa e teve vontade de atirar qualquer coisa a Elizabeth. — Quero o divórcio para que possamos ver-nos livres disto e começarmos a viver como seres humanos normais.
— Não vamos a lado nenhum Spencer. Estamos casados e é assim que iremos continuar, para o melhor e para o pior, até que a morte nos separe. Por isso, pára de te queixar e habitua-te. Mexe esse eu, arranja um emprego. Faz o que te apetecer, mas vê se percebes uma coisa: não te darei o divórcio!
Spencer sentiu o desespero envolvê-lo enquanto a escutava. Só queria voltar para junto de Crystal.
— Durante quanto tempo achas que podemos continuar assim?
— Para sempre, se tiver de ser. Tu é que sabes o quanto queres tornar as coisas difíceis.
— Queres mais do que isto? Eu quero. Quero alguém com quem possa conversar. Alguém que queira o mesmo que eu. Vida, amor, felicidade e filhos. — Estava à beira das lágrimas. — Elizabeth, quero ser feliz.
— Também eu — retorquiu ela olhando-o com frieza, e de repente lembrou-se de uma coisa. Nunca pensara no assunto, mas ainda se recordava da forma como ele olhara para a rapariga no clube em São Francisco, a seguir à festa de noivado, e de ele ter dito dois dias depois que já não se queria casar. — Spencer, há outra pessoa? — perguntou, olhando-o be nos olhos.
Ele não lhe podia responder. Não era isso que estava em causa. O que estava em causa era o facto de terem cometido um erro e de agora ser preciso encará-lo. O que acontecera depois disso não era da conta dela.
— Não, não há. — Não iria falar-lhe nisso. Não queria encapotar o assunto.
— Tens a certeza? — Conhecia-o melhor do que ele gostaria, mas Spencer abanou a cabeça, decidido a mentir-lhe a , respeito de Crystal.
— Não é importante. O que estou a dizer-te é bastante mais importante. Este casamento não está a correr bem a nenhum de nós nem irá correr.
Mas ela tocara-lhe num ponto fraco, isso era visível, e apercebeu-se.
— É importante. Tenho o direito de saber se há outra pessoa.
— Isso mudaria alguma coisa? — perguntou ele cauteloso.
— Não te concedo o divórcio, se é isso que queres saber. Mas revelar-me-ia algo a teu respeito. Acho que só te estás a queixar porque queres encobrir alguém, não é?
—Já te disse que a questão não é essa.
— Não acredito.
— Elizabeth, sê razoável. Por favor. — Que lhe podia dizer? Que havia outra mulher? Que ela era a mulher mais bela que ele já vira e que se apaixonara quando ela tinha catorze anos? E que agora queriam casar?
— O meu pai queria apresentar-te a umas pessoas importantes esta tarde. — Estava a ignorar tudo o que ele dissera. — Acho que devíamos ir.
— Por amor de Deus, estamos a falar da nossa vida! Porque não dás ouvidos à razão?
— Porque a tua ideia de razão é o divórcio, Spencer. A minha, não. E não vou permitir que saias da minha vida. É tão simples como isso. Não vou permitir que me envergonhes publicamente. Quero continuar casada. — Sempre quisera casar com ele, e conseguira aquilo que queria. Quase. Mas para ela isso era tudo o que se conseguia na vida. Quase tudo. Bastava-lhe, mesmo que a ele não, e não iria deixá-lo fugir tão cedo.
— Mas queres continuar casada assim?
— Sim — respondeu ela sem a mais pequena hesitação. — Um dos amigos do meu pai queria oferecer-te emprego hoje. Acho que nos deveríamos encontrar com ele.
— Estou farto dos amigos do teu pai e do teu pai.
— Ele é um democrata muito importante e é um trabalho no Governo. — Continuou a falar como se não o tivesse ouvido, e Spencer teve vontade de gritar. — E ele acha que lhe podias ser útil.
— Neste momento não quero ser útil a ninguém. Excepto a mim próprio. E a ti. Quero resolver esta embrulhada.
— Não há embrulhada nenhuma, Spencer. Pelo menos no que me diz respeito. E não vou deixar-te ir embora, por isso, esquece tudo isto.
E ao olhá-la Spencer percebeu que Elizabeth falava a sério. Nunca concordaria com o divórcio. Estava preso. Talvez para sempre.
— Estás a falar a sério, não estás?
— Completamente. — Olhou para o relógio. — Temos de lá estar ao meio-dia. Sugiro que te vás vestir.
— Não sou uma criança, Elizabeth. Não gosto que me digam o que devo fazer, quando me devo vestir, o que devo comer e quando devo ir a uma festa. Sou um homem e quero viver com uma mulher que me ame.
— Lamento. — Ela levantou-se e olhou-o com frieza. Ele destruíra essa possibilidade, mas mesmo assim não iria deixá-lo partir. E estava convencida de que havia outra mulher. Mas quem quer que ela fosse, não iria ficar com ele. — Vais ter de te contentar com isto, não é? — Saiu calmamente da sala e desceu uma hora depois com um fato azul-escuro bem engomado, mala e sapatos azuis de crocodilo que o pai lhe oferecera pelo aniversário. E detestando ter de ceder, Spencer vestiu-se também. Levava um fato cinzento e um rosto que seria perfeito para um funeral.
Ela conversou com ele como se nada tivesse acontecido entre ambos. Spencer achou que a sua vida tinha acabado. Pelo menos a parte que interessava. Já não havia esperança. E o amigo do pai era, como seria de esperar, um indivíduo importante. Ofereceu emprego a Spencer num departamento do Governo que lhe teria interessado, se ele quisesse continuar em Washington e se quisesse um emprego que lhe tivesse sido oferecido essencialmente por causa dos Barclay. Mas o emprego era bom. Era a primeira oferta que lhe interessava e disse ao homem que iria pensar, mais por boa educação do que por outra coisa. Só queria mesmo era falar com Crystal. Mas quando lhe ligou nessa noite, depois de Elizabeth se ter ido deitar, ficou a saber que ela não se saíra melhor. Ernie vigiava-a noite e dia, e uma ou duas vezes julgava ter sido seguida. Até tinha medo de falar com Spencer ao telefone, mas felizmente Ernie não estava em casa quando ele lhe ligou. Ela contou-lhe que Ernie a ameaçara. Mas, na realidade, agora temia pela vida de Spencer. Sabia que Ernie falava a sério.
Depois do que acontecera, Ernie costumava aparecer nas filmagens sem avisar, sentava-se no camarim, controlava-lhe as chamadas, embora ela recebesse muito poucas. A única coisa que estava autorizada a fazer era trabalhar e regressar a casa para Ernie. Este não tornou a bater-lhe, nunca mais a violou, nem sequer lhe tocou. Não precisava. Dissera-lhe que mataria Spencer. E no dia a seguir à violação, aparecera em casa com um enorme colar de diamantes. Dirigira-lhe um sorriso malévolo e no cartão que acompanhava o colar lia-se «Vê-o como um cinto de castidade. Beijos, Ernie.» Mas agora Crystal j á não tinha dúvidas do que lhe aconteceria se tentasse deixá-lo para se juntar a Spencer. Ele matá-los-ia. Tinha a certeza disso. E fora o que ele dissera.
Agora sabia o que tinha de fazer. Havia que deixar Spencer livre, para bem dele, mas não podia dizer-lhe porquê. Receava contar-lhe a verdade, com medo das suas retaliações, ou de que regressasse à Califórnia para a tentar libertar de Ernie.
— Como vão as coisas por aí? — Spencer parecia exausto ao telefone. Já passava da meia-noite e ele estava psiquicamente arrasado devido ao inglório esforço de tentar convencer Elizabeth a conceder-lhe o divórcio.
— Tem sido tudo muito difícil — respondeu Crystal numa voz calma. Era a primeira vez que falava com ele desde que se tinham visto, e as lágrimas encheram-lhe os olhos ao pensar no que iria ter de dizer. Mas isso era necessário, para bem dele.
— Isso é para rir, não é? — Ele tentava mostrar-se alegre, mas sentiam-se ambos deprimidos. Cometera o seu primeiro grande erro quando decidira casar com Elizabeth sabendo que não a amava. E dera ouvidos a toda a gente excepto a si próprio. Julgou que o estava a fazer pelas razões certas. Até tentara convencer-se de que a amava, e que os seus sentimentos por Crystal eram apenas uma paixoneta.
—Já falaste com a Elizabeth?
— Sim. Mas nada consegui. Ela recusa-se a colaborar, e se não lhe bater nem a apanhar na cama com outro não terei motivo para o divórcio, a menos que ela concorde. Mas não vou desistir. Dá-me mais algum tempo, Crystal, acabarei por convencê-la. — Ainda não sabia de que forma, mas teria de o fazer. No entanto, não estava preparado para as palavras de Crystal. Atingiram-no como um soco no estômago.
— Não precisas de fazer isso. Já conversei com o Ernie sobre o assunto e... — Quase se engasgou com aquelas palavras, mas obrigou-se a falar com normalidade. Era o papel mais difícil da sua carreira, mas acreditava que a vida de Spencer dependia disso e tinha de o convencer, independentemente do que ele viesse depois a pensar a seu respeito. Isso já não era importante. Começara a perceber qual era o papel de Ernie em Hollywood. Ouvira pessoas a falar dele no estúdio depois de o terem visto com ela. E os boatos sobre os seus conhecimentos apavoravam-na. Ernie escondia algo e, aparentemente, havia pessoas perigosas a apoiarem-no. E para elas Crystal representava muito dinheiro no futuro. — Ele acha que a minha carreira será prejudicada se eu o deixar agora. A publicidade poderia afectar-me de forma negativa — prosseguiu ela.
Spencer sentiu o coração parar ao ouvir aquilo.
— O que é que estás a dizer?
— Estou a dizer... — Esforçou-se por falar com alguma frieza, mas não estava habituada. A sua voz era normalmente repleta de ardor e paixão, tal como as suas canções. — Estou a dizer que acho que não deves vir para cá. Não estou preparada para mudanças.
— Vais ficar com ele? Por causa daquilo que as pessoas poderão dizer? Enlouqueceste?
— Não — respondeu Crystal, aparentemente tão a sério que sentiu o coração despedaçar-se com aquelas palavras, mas era melhor magoá-lo daquela forma do que permitir que Ernie o fizesse com os seus sabujos. — Acho que me descontrolei um pouco quando te vi. Não consegui evitá-lo... já passara tanto tempo... não sei. Talvez estivesse apenas a representar um papel... o papel do amante há muito perdido e da rapariguinha que uma vez o amara. — As lágrimas corriam-lhe pelo rosto como uma cortina de chuva, mas a sua voz mantinha-se firme.
— Estás a dizer-me que não me amas? Ela engoliu com esforço, pensando apenas nele, não em si e na vida vazia que a esperava.
— Acho que aconteceu tudo há muito tempo... creio que nos entusiasmámos ambos quando nos vimos.
— Não me venhas com essas tretas! Eu não me «entusiasmei» com nada. Sobrevivi a três anos daquela maldita guerra só para voltar para ti e para dizer que te amava. — Estava quase aos gritos, e teve de se obrigar a falar em voz baixa. Elizabeth estava a dormir no andar de cima e não queria acordá-la. — Talvez tenha esperado demasiado. Talvez tenha sido um idiota ao fazer uma série de coisas. Parece que dei cabo da vida de toda a gente, mas uma coisa te garanto: não me «entusiasmei» nem estava a representar quando te vi. Amo-te. Estou disposto a ir para aí e a casar-me contigo assim que resolva toda esta trapalhada, e gostaria de saber o que raio estás para aí a dizer.
—Estou a dizer... que acabou tudo. Houve um silêncio interminável de ambas as partes, e a voz dele era grave e rouca quando falou.
— Estás a falar a sério? — Tinha um soluço preso na garganta, mas reprimiu-o enquanto esperava.
— Sim. — Ela mal conseguia falar. — Sim, estou a falar a sério. A minha carreira é demasiado importante agora... e devo muito ao Ernie.
— E ele que te está a obrigar a dizer essas coisas? Ele está aí? — perguntou de repente. Isso explicaria tudo. Ela não podia estar a falar a sério. Vira o rosto de Crystal e sabia que ela ainda o amava. Pelo menos julgara isso.
— É claro que não. Ele não me obrigaria a dizer nada. — Era mais uma mentira a acrescentar a todas as outras que dissera para o proteger. — Não quero que venhas para cá. Acho que não devíamos voltar a ver-nos, nem como amigos. Não vale a pena, Spencer, acabou tudo.
— Não sei o que te hei-de dizer. — Estava a chorar, mas não queria que ela ouvisse. Por momentos, achou que sobrevivera à guerra para nada.
—Toma cuidado contigo. E, Spencer...
— Sim? — Parecia que alguém lhe morrera.
— Não quero que me telefones.
— Compreendo. Vive bem a tua vida. — Não sentia amargura, estava desfeito. — Mas quero que saibas uma coisa: se alguma vez precisares de mim, aqui estarei. Só precisas de me telefonar. E se mudares de ideias... — A voz dele fraquejou e pensaram um no outro, mas ela tinha de pôr fim a todas as esperanças dele, isso era muito importante.
— Não irei precisar. — O seu rosto tinha a lividez da morte, mas ele não o podia ver. Crystal fizera o que tivera de fazer, e agora no mundo só lhe restava Ernie. Era um pensamento horripilante, mas não podia deter-se nele agora. Durante aqueles últimos minutos, podia agarrar-se a Spencer, embora este não o soubesse. Ainda não queria desligar. Desejava ouvir a voz dele, ouvi-lo, estar perto dele pela última vez. — O que vais fazer a respeito da Elizabeth? — Era uma coisa importante, e ela já se interrogara a respeito disso.
— Não sei. Ela diz que não me deixa partir. Talvez não deixe, ou talvez se aborreça com a situação. É óbvio que não temos um casamento.
— Então para que é que ela te quer? — As lágrimas corriam-lhe pelo rosto enquanto tentava fazer conversa.
— Não quer ser ridicularizada. E creio que era isto que ela ambicionava. Alguém que jogasse golfe com o pai e que pudesse levar às festas. — Era uma perspectiva simplista, mas não em demasia, pelo menos pêlos padrões dele. Não era nada como o que ele partilhara com Crystal. E embora fosse estranho, por ter passado tão pouco tempo com ela, sentia que conhecia Crystal melhor do que conhecia a mulher ou do que a viria a conhecer. — Não sei o que vou fazer. — Ficar em Washington, regressar a Nova Iorque, abandonar a mulher ou aceitar o emprego que lhe tinham proposto. Já nada importava. Sentia-se um robô. — Seja como for, acho que é uma grande embrulhada, como se costuma dizer... ou será que isto não se diz?
— Diz-se, sim. — Crystal cou calada por um momento, ansiando por lhe dizer que o amava. Odiava deixá-lo a pensar que já não o amava. — Acho que é... uma embrulhada, quero eu dizer.
— Cuida bem de ti Crystal... — E depois as palavras que quase lhe despedaçaram o coração: — Amar-te-ei sempre. — E quando desligou o telefone, Spencer ficou sentado no escritório que Elizabeth decorara para ele, a chorar como uma criança que tivesse acabado de perder a mãe. Ali ficou a chorar durante horas, pensando nela, saboreando os momentos que tinham partilhado e tentando acreditar que ela sabia o que estava a fazer. Era difícil acreditar que era aquilo que ela queria, a carreira em vez dele. Sabia como os sonhos de Hollywood tinham sido importantes, mas de certa forma o que acabara de passar-se nem parecia dela. Contudo, agora tinha de respeitar os desejos de Crystal. Devia-lhe isso. Só tinha de descobrir como iria viver sem ela.
E na Califórnia, Crystal pousou o telefone com mãos trémulas. Tinha o corpo gelado e sabia que fizera a única coisa possível, embora sentisse que tinha destruído tudo o que lhe importava. Sem saber, vendera a alma a um homem maligno e agora teria de pagar um preço de que se iria arrepender para o resto da vida, e nada daquilo valia a pena.
Ficou a olhar para o vazio durante muito tempo, incapaz de acreditar que ele se afastara de vez. Era como se Spencer tivesse morrido, e fora ela quem o matara. Isso fê-la recordar-se do que sentira quando Jared morrera, o vazio, a culpa e a solidão que a tinham invadido.
— Porque é que estás tão alegre? — Ela olhou para cima, assustada. Não o ouvira entrar no quarto, mas Ernie estava ali à sua frente, com um ar zangado. — Passa-se algua coisa? — Ela abanou a cabeça. Não queria falar com ele. — Óptimo. Então veste-te. Esta noite vamos a uma estreia. E depois disso quero apresentar-te a uns realizadores.
— Não posso... — Olhou-o cheia de lágrimas. — Não me sinto bem.
— É claro que sentes. — Serviu-lhe uma bebida. Ela bebeu um gole e pousou o copo, não se sentindo melhor. A bebida não a iria ajudar. Nada iria. Mas Ernie dirigiu-lhe um sorriso encorajador: — És uma boa menina. Agora vai-
-te vestir. Temos de sair daqui a meia hora.
Ela olhou para ele como se estivesse a olhar para o vazio, e depois levantou-se, dirigindo-se devagar para o quarto enquanto ele a observava. Não sabia, mas ele estava satisfeito com ela. Estivera a ouvir a conversa telefónica no aparelho que tinha escondido no escritório.
Nessa noite Crystal saiu com Ernie e havia fotógrafos por toda a parte. Fotógrafos que a fotografaram deslumbrante pelo braço de Ernie. Ela manteve-se calada, muito pálida, mas ninguém reparou. Chegaram tarde à estreia, mas Ernie não se importou. Atraíra ainda mais as atenções. Deu-lhe uma palmadinha no braço quando entraram e ficou satisfeito por os realizadores terem gostado dela. Crystal mal lhes falou, ou a ele. Estava perdida noutro mundo, num mundo que já não existia. Aquele que um dia partilhara com Spencer.
No princípio de Novembro, Spencer tinha aceitado o emprego que lhe fora oferecido pêlos amigos do juiz Barclay. Parecia-lhe que se vendera, mas sabia que tinha de fazer algo para manter viva a sua mente. Não podia ficar sentado em casa à espera que algo mudasse. Nada iria mudar. Elizabeth não o deixaria partir, e Crystal dissera-lhe que não o queria ver de volta à Califórnia.
Todavia, para sua surpresa, pelo menos descobrira que gostava do emprego, e por volta do Natal as coisas tinham voltado ao normal, apesar de sentir que parte de si morrera quando desistira de Crystal. Isso fê-lo deitar mãos ao trabalho, dia e noite, descobrindo que gostava mais de política do que pensava.
Washington era excitante e divertida, e ele ter-se-ia sentido feliz não fora o vazio da sua relação com Elizabeth. Qualquer esperança de reaproximação fora destruída quando lhe pedira o divórcio. E no tumulto subsequente, era óbvio que ele não gostava dela e que ela não confiava nele. E Spencer sentia-se preso a Elizabeth pelas razões erradas.
Ela era uma companheira animada, espirituosa e divertida. Mas a vida de ambos mudara bastante depois de ele lhe dizer que não a amava. Fora um acto idiota, mas ele agira movido pelo desespero e pela emoção, na esperança de casar com Crstal. Elizabeth nunca tocava no assunto, mas ele sabia que não estava esquecido. Toda a paixão inicial desaparecera, e embora tivessem recomeçado a fazer amor, faziam-no com reservas e remorsos, ambos até com uma certa amargura. Mas para aqueles que os viam, pareciam um casal realizado, que se completava. Representavam bem esse papel e as desiluses eram mantidas em segredo. Elizabeth estava satisfeita com o trabalho dele, e para ela isso era o mais importante. O único contacto de Spencer co Crystal fazia-se nas escuras salas de cinema. Fora ver o primeiro filme dela, numa noite em que Elizabeth ficara a trabalhar até mais tarde, e depois de terem regressado de Palm Beach, leu no jornal que ela fazia parte do elenco de um filme importante.
Crystal ainda não se tornara uma grande vedeta, mas era requestada por toda a parte, e ele sabia que todos os estúdios que a queriam tinham de negociar com Ernie. Ela estava a acumular uma fortuna para ele e para os homens que o apoiavam. Fora por isso que ele ameaçara matá-la se ela o deixasse. Ernie estava a proteger o seu investiento. Os jornais diziam que ela devia começar o novo filme em Junho, e entretanto era notícia pelo braço de Ernie e junto de artistas bem conhecidos, com quem Ernie a mandava sair para conseguir mais publicidade. Crystal aparecia regularmente nas colunas sociais, sendo conhecida de um número cada vez maior de pessoas.
Estava bem lançada, mas Spencer estremecia ao pensar no que seria a sua vida ao lado de Ernie. Ficava doente só de pensar no assunto, e tentava não o fazer muitas vezes.
E quando ela começou o novo filme, em Junho, filmado em Palm Springs, Spencer encontrava-se em Boston com o seu novo chefe, a angariar apoiantes. Tinham falado com um jovem senador e teriam reuniões com vários outros antes de ele regressar a Washington. Elizabeth largou o emprego no Outono. Estava decidida a estudar Direito. E sentia-se satisfeita com Spencer. Estava a sair-se bem e o seu pai aprovava o que ele fazia. Isso fê-la tratá-lo com mais carinho. Ele não tornara a falar no divórcio e ela calculava que tivesse voltado ao estado normal.
Quando o telefone tocou numa fria tarde de Novembro, Elizabeth ainda estava nas aulas e Spencer acabara de chegar do escritório. Ainda não lera o jornal da tarde e nem ouvira as notícias. O seu coração parou quando pegou no telefone e ouviu alguém a soluçar. A telefonista tinha feito a ligação e ele sabia apenas que era uma chamada interurbana. Mas só ouviu a voz dela alguns minutos mais tarde, e ficou sem fôlego ao aperceber-se que era Crystal. Já há mais de um ano que não a via.
— Crystal... és tu?
Houve um silêncio do outro lado da linha, só se ouvindo o crepitar da electricidade estática. Por momentos, julgou que a ligação tinha sido cortada, mas depois ouviu-a de novo, a chorar de forma histérica e a dizer algo que ele não conseguiu entender. Perguntou-se se ela estaria ferida e estava ansioso por vê-la.
— Onde estás? De onde estás a ligar? — gritou ele em vão, e depois ouviu-a de novo chorar. A única palavra inteligível que dissera até à altura fora o nome dele. O resto era impossível de decifrar. Spencer olhou para o relógio e apercebeu-se que eram três horas da tarde na Califórnia. — Crystal... escuta... tenta controlar-te... fala comigo. O que se passa? — Aparentemente, tudo. E ele estava também quase a chorar de frustração. — Crystal, estás a ouvir-me?
— Sim — respondeu ela com um pequeno gemido, recomeçando depois a soluçar.
— O que foi, querida? Onde estás? — Esquecera-se do local onde se encontrava. Só conseguia pensar na rapariga do outro lado da linha. Desejou estar junto dela para a ajudar, mas graças a Deus ela telefonara-lhe. E se o outro filho da mãe lhe tinha tocado, ele matá-lo-ia.
O choro abrandou um pouco e ele ouviu-a tomar fôlego.
— Spencer... preciso de ti. — Ele fechou os olhos ao escutá-la, à espera do resto. — Estou na prisão.
Abriu imediatamente os olhos, e todo o seu corpo se retesou.
— Por que motivo?
Houve uma longa pausa e um soluço com o qual ela quase se engasgou, depois novamente silêncio.
— Homicídio.
Spencer sentiu a sala andar à roda.
— Estás a falar a sério? — Sabia que sim, e um arrepio percorreu-o.
—Não fui eu... juro... alguém matou o Ernie ontem à noite em Malibu. — Tentou explicar-lhe o resto, mas estava ainda demasiado abalada e ele não conseguiu percebê-la. Agarrou instintivamente numa caneta e começou a tomar notas do pouco que percebia. Ela estava na penitenciária de Los Angeles, e nessa manhã haviam encontrado o corpo na casa de Malibu. Depois tinham ido a Beverly Hills prendê-la por homicídio.
— Há alguma coisa que os leve a pensar que foste tu?
—Não sei... não sei... ontem discutimos na praia... alguém nos deve ter visto. Ele bateu-me. — Spencer fez um esgar, quase sentindo ele próprio a pancada. — E eu virei-me a ele, as foi só isso... depois deixei-o lá onte à noite. Ele disse que esperava uns amigos para tratar de negócios. Não sei quem eles eram.
Spencer continuava a tomar notas.
— Haverá alguém que saiba?
— Não faço ideia.
— Por que motivo discutiram? — Estava a representar na perfeição o seu papel de advogado.
— De novo por causa do contrato. Quis rescindi-lo. Ele tem-me cedido a vários estúdios como se eu fosse um carro. Fica com o dinheiro todo, e eu comecei a estar farta. Nem sequer me deixava escolher os filmes em que queria entrar. Estava apenas a usar-me... — Crystal recomeçou a chorar, percebera finalmente o que ele era, mas era tarde, demasiado tarde. Não podia livrar-se dele e já tinha perdido Spencer. — Odiava-o... mas era incapaz de o matar Spencer. Juro.
— Podes prová-lo? Alguém te viu em Beverly Hills? Foste a algum lado? Telefonaste a amigos?
— Não. Ninguém. Nada. Fiquei com uma dor de cabeça horrível depois de ele me ter batido e fui para a cama. A criada estava de folga e nem sequer vi o motorista. — Nesse momento ele soube que fora por isso que a tinham prendido. Possuía um motivo, nenhum álibi e ninguém que corroborasse a sua história. — Spencer — a sua voz parecia de novo a de uma criança —, sei que não devia pedir-te isto... se calhar mandas-me dar uma volta... mas não tenho mais ninguém a quem recorrer... ajudas-me?
Houve de novo um longo momento de silêncio e ele ouviu-a assoar o nariz. Sabia o que tinha a fazer. Não havia decisão a ser tomada, nenhuma alternativa: iria à Califórnia.
— Amanhã estou aí. Tenho de arranjar alguém que te represente.
— Fazes isso por mim? Oh, céus Spencer... tenho medo. E se não conseguir provar que não estive lá? — Parecia de novo uma rapariguinha e ele enterneceu-se. Estava tão embrenhado na conversa que nem viu entrar a mulher. Ela cou no vestíbulo a ouvir tudo o que ele dizia a Crystal.
— Não te preocupes. Havemos de o provar. Agora escuta, eu não sou criminologista. Precisas do melhor. Não brinques com isto, Crystal... por favor. — Receava não conseguir ajudá-la, e havia muito em jogo. A vida dela. E a dele, indirectamente.
— Só quero que o faças... se tiveres tempo. — Ainda nem pensara nisso, mas ao ouvi-lo ficara mais calma e agora ocorria-lhe que ele talvez não tivesse tempo. Calculava que tivesse um emprego, que talvez não conseguisse afastar-se. Mas não era com isso que ele se preocupava. Nunca fora criminologista, apesar de isso muito o fascinar e embora a amasse muito.
— Falamos do assunto quando eu chegar aí. Precisas de alguma coisa, entretanto? — Estava de novo aos gritos. Havia interferências.
— Sim — respondeu ela sorrindo através das lágrimas —, de uma serra para as grades.
— Linda menina. Havemos de te safar. Aguenta-te. Estarei aí num instante. E Crystal... — Sorriu ao pensar nela, e nesse momento viu Elizabeth a observá-lo. Já não pôde acabar a frase. — Fiquei satisfeito por me teres telefonado. — Ela também ficara, mas sentia-se algo culpada ao fazê-lo depois de lhe ter dito, no último ano, que a deixasse em paz. Mas não tinha mais ninguém. E sempre o amara.
— Disse-lhes que eras o meu advogado. Não há problema, pois não?
— Nenhum. Diz-lhes que eu to confirmei agora. E não digas mais nada. Nada! Percebeste?
— Sim. — Mas parecia hesitante. Tinham-lhe feito tantas perguntas. Fora interrogada durante todo o dia, até ficar prestes a ter um ataque de histeria, altura em que a haviam deixado ligar ao advogado.
— Estou a falar a sério. Não lhes digas nada. Primeiro quero discutir o assunto contigo. Entendido?
— Sim. — Já parecia mais segura.
— Óptimo. — Ele estava satisfeito. — Vemo-nos amanhã. Vou livrar-te de tudo isso, acredita.
Ela agradeceu-lhe e começou de novo a chorar. Pouco depois Spencer desligou. Ficou a olhar para o telefone durante um bocado, e virou-se para ver Elizabeth a observá-lo.
— Sobre que era tudo isso?
Os seus olhares cruzaram-se durante um longo momento antes de ele responder. Sabia que tinha de dizer-lhe a verdade, ou pelo menos a maior parte. De qualquer forma, ela iria descobri-la assim que a história chegasse aos jornais. Crystal já era conhecida, e isso bastava para que os jornalistas metessem o assunto na primeira página.
— É uma velha amiga que está em apuros na Califórnia. — Susteve a respiração quando a viu franzir o sobrolho. — Vou para lá amanhã.
— Posso perguntar porquê? — perguntou ela com frieza, acendendo um cigarro.
— Quero ver o que posso fazer para a ajudar.
— Posso perguntar quem é essa amiga?
Ele hesitou uma fracção de segundo antes de responder:
— Chama-se Crystal Wyatt.
O nome não lhe dizia nada, ao contrário da expressão dos olhos dele.
— Não me parece que já tenhas falado dela. — Sentou-se com cuidado no sofá, mal tirando os olhos do rosto dele. Soube instintivamente que aquela era a mulher que se metera entre ambos. — Que tipo de amiga é ela Spencer? Uma velha paixão?
— Uma miúda que eu conhecia. Mas agora já é grande e meteu-se numa enorme embrulhada. — Não se sentou ao lado dela; parecia que havia uma parede de gelo a separá-los.
— Ah, sim? E o que tencionas fazer para a ajudar?
— Defendê-la, se possível, ou arranjar-lhe um bom advogado.
— De que é ela acusada?
— De homicídio — respondeu, encarando-a de frente. Houve um longo silêncio na sala, e ela assentiu.
— Compreendo. É grave, não é? Mas será que já te ocorreu, Sir Galaaz, que não és um criminologista?
— Foi isso que lhe disse. Vou ver quem consigo encontrar para a defender.
— Podes fazê-lo daqui — retorquiu ela com firmeza, enquanto apagava a beata.
— Não, não posso — ripostou Spencer, abanando a cabeça. Apercebeu-se que tinha de lá ir. Só para a ver. Ela ligara-lhe, desesperada, e não tencionava desiludi-la. Era a única oportunidade que tinha de a ajudar. A vida dela estava em risco, e sentia-se disposto a fazer qualquer coisa para a ajudar, até defendê-la se a isso fosse obrigado. — Parto amanhã de manhã.
— Se fosse a ti, não fazia isso — disse ela, olhando-o com firmeza. Havia naquelas palavras uma ameaça velada, mas ele manteve-se inabalável.
— Tenho de o fazer.
— Se fores, divorcio-me — contrapôs ela muito calma. Fora isso que ele quisera um ano antes, e agora ela oferecia-
-lho como ameaça. Mas independentemente do que Elizabeth dissesse ou fizesse, Spencer sabia que iria.
— Lamento ouvir isso.
— Ah lamentas? — Estava cada vez mais mordaz. — Mas era isso que desejavas. E Miss Wyatt? — Nunca mais se esqueceria daquele nome. — O que sentirá ela?
— A única coisa que ela sente agora, Elizabeth, é medo.
— Tinha as palmas das mãos húmidas ao enfrentar a mulher. Haviam finalmente chegado a um ponto de viragem. E demorara bastante tempo. — Não sei quanto tempo estarei fora.
— Eu estava a falar a sério. Não quero ser envergonhada publicamente pela figura de parvo que irás fazer.
— Poderemos falar do assunto quando eu regressar. — O divórcio já não era importante.
— Não me parece Spencer. É melhor pensares bem antes de partir. — O silêncio da sala envolvia tudo. — Tenho a impressão que tens certas ambições políticas e um divórcio não seria muito benéfico.
— Isso soa-me a chantagem.
— Chama-lhe o que quiseres. Mas isso dá que pensar, não dá?
— Não tenho alternativa. — Passou as mãos pêlos cabelos e nas suas têmporas havia cãs. Tinha trinta e cinco anos, e já há oito que amava Crystal. Agora ela precisava de si. Não iria decepcioná-la, independentemente da atitude de Elizabeth, ou das suas ameaças. — Elizabeth... ela precisa de mim.
— Estás apaixonado? — Mas ao olhá-lo apercebeu-se de que fizera uma pergunta desnecessária.
—Já estive. — Pela primeira vez Spencer estava a ser sincero. Era demasiado tarde para não o ser. O casaento de ambos fora um erro desde o início. Ele nunca deixara de desejar aquilo que não tinha. Aquilo que tivera por breves momentos com Crystal.
— E agora?
— Não sei. Já há muito que não a vejo. Mas não é por isso que vou. Vou porque ela não tem mais ninguém.
— Que comovente. — Elizabeth levantou-se e dirigiu-se para as escadas. — Pensa no que te disse. Antes de partires. Sugiro que lhe arranjes outro advogado.
Mas quando ela subiu para o quarto Spencer ligou para a companhia de aviação e reservou um bilhete. Encaminhou-se lentamente para o primeiro andar, perguntando-se o que lhes iria acontecer. Por agora nenhum deles era importante. Só lhe interessava Crystal. O assunto era sério. A vida dela estava em jogo, mas pelo menos vira-se livre de Ernesto Salvatore. No entanto, a que preço! Sabia que ela podia ser condenada a pena capital, ou pelo menos a prisão perpétua.
Fez a mala e ligou ao chefe, a informá-lo de que se iria ausentar para a Califórnia, a fim de resolver uns assuntos pessoais. Ele mostrou-se compreensivo e Spencer disse-lhe que ligaria assim que soubesse em que pé se encontravam as coisas. Depois foi para o quarto e encontrou Elizabeth a ler calmamente o jornal. Ela olhou para ele com uma expressão estranha, e ao olhar para o jornal Spencer viu que ela se debruçava sobre o assassínio de Ernie. Na primeira página constava uma grande fotografia de Crystal. Parecia menos bela do que na realidade, mas mesmo assim estava deslumbrante, com um chapéu de abas largas, um vestido decotado e o cabelo louro espalhado pêlos ombros, os olhos fitando directamente quem os observasse. Passado um longo momento Elizabeth levantou a cabeça. Tinha uma expressão estranha. Já vira aqueles olhos e lembrava-se bem dela quando olhou para o marido.
— É a rapariga daquele clube em São Francisco, não é?
— Lembrara-se. Isso era parte do encanto de Crystal. Depois de a ver uma vez, era impossível esquecê-la. E ele anuiu devagar. A verdade viera ao de cima. Mentira-lhe a respeito de Crystal desde o início, mas isso fora quando dizia a si próprio que estava apaixonado por Elizabeth Barclay. E assentiu devagar enquanto a fitava, sentindo pena, remorsos e culpa. Mas o casamento fora um erro desde o início e ambos o sabiam. — Tem graça, sempre pensei que era ela. Ainda me lembro da tua cara naquela noite. Parecia que tinhas sido fulminado por um raio.
Então ele sorriu. Foram essas as palavras que empregara há muito, ao falar daquilo que desejava. Já nessa altura estava a pensar nela, quando dissera a Elizabeth em Palm Beach que queria ouvir trovões e ver relâmpagos.
— Sempre vais? — perguntou ela.
— Sim.
Ela concordou e apagou a luz. E quando se deitou ao lado dela Spencer só conseguiu pensar em Crystal presa na Califórnia.
O portão abriu-se rangendo de forma desagradável, e ele foi conduzido a um pequeno aposento com uma janela bastante apla, uma mesa de madeira já velha e duas cadeiras. O guarda fechou a porta atrás de si quando saiu. Era horrível estar ali, e ficou atordoado quando viu Crystal, trajando uma bata azul, vir segura por um guarda, os braços atrás das costas, presos por algemas. Os olhos dela estavam muito abertos devido ao medo, e ele quase desfaleceu quando os carcereiros rodaram a chave, libertando-lhe as mãos, e a deixaram depois com ele. Mas como seu advogado Spencer não ousava sequer beijá-la. Só podia olhar para ela e sentir-se invadido pela mesma vaga de amor que sempre o assolara. Quando os olhos de Crystal encontraram os seus, não duvidou que ela o amava. O ano que passara pareceu desvanecer-se e ele sentiu-se forte ao lado dela.
Também suspeitava que a sala estava sob escuta e manteve a voz baixa, enquanto a observava e lhe segurava na mão, sem lhe dizer aquilo que sentia. Ela agarrou-o com firmeza e os seus olhos encheram-se de lágrimas. Sentira muito a falta dele e o último ano fora um pesadelo.
— Estás bem?
Ela assentiu e sentou-se, ainda agarrada à mão dele, e Spencer aguardou alguns minutos antes de lhe fazer as perguntas. Falaram de tudo, e ele ficou horrorizado com a história. Salvatore mantivera-a como uma escrava, bem protegida, na proverbial jaula dourada, mas nos últimos meses ela fora sua prisioneira e só podia fazer o que ele autorizava: os lmes, as festas, as apariações em público, as saídas. Passava o resto do tempo em casa, sob vigilância cerrada. E lutara constantemente contra ele. Mas não era uma ameaça. Não houvera outro homem na sua vida desde Spencer.
— Alguém vos viu discutir?
— As criadas — respondeu ela. — O motorista.
— E os amigos dele?
— Alguns. Ernie levava a maior parte deles para Malibu.
Mantinha os seus assuntos muito be guardados. — E ela tabé suspeitava que ele se encontrava com outras mulheres. Abusara dela várias vezes nos últimos meses, e deixara-a com um olho negro, que a levara a ficar afastada das filmagens durante duas semanas; a notícia chegara aos jornais. Disseram que ela tivera um acidente e que tinha o rosto demasiado ferido para poder trabalhar. Em vez disso trabalhara na banda sonora, uma vez que já começara a cantar nos seus filmes.
Spencer ficou abalado com aquela história.
— Porque não me telefonaste?
— Ele disse-me que te mataria se eu voltasse a falar contigo. Soube quem eras assim que te viu. Foi por isso... que te liguei o ano passado a dizer que tudo acabara. Tinha medo que te acontecesse alguma coisa. — Olhou-o com tristeza, sabendo a dor que causara, mas ele rejubilou. Afinal, ela amava-o e acabara com tudo para o proteger. Os seus olhos estavam cheios de amor quando a olhou sorrindo, e ela continuou, dizendo que Ernie também ameaçara matá-la, mais do que uma vez, em especial nos últimos tempos, quando ela discutia por causa do contrato. — O dinheiro ia todo para ele. Todo. Eu só recebia algum para comprar roupas. — «Tal como uma prostituta com o seu chulo», pensou Spencer, mas não o disse, limitando-se a ficar sentado, a ouvi-la e a tomar notas quando ela dizia alguma coisa que ele considerava importante. Fez-lhe perguntas acerca de datas, acontecimentos, pessoas e lugares. Fora uma época terrível para ela, uma vida construída sobre um pesadelo. — Eu costumava pensar que lhe devia muito. Nunca percebi o que ele fazia.
— Olhou para Spencer e o coração dele derreteu-se ao ouvi-la. Ainda mais agora que sabia por que motivo ela lhe tinha dito para não vir à Califórnia. — Acho que ele sempre pensou que eu era propriedade sua. Como um objecto. Algo que ele comprou por bom preço e com o qual fez muito dinheiro, tal como um bom investimento. E a princípio deixava-me pensar que fazia tudo por mim. — Olhou para Spencer com amargura: — Eu achava que lhe devia muito. Mas ele tirou-me tudo o que eu tinha para dar, até te tirou de mim.
Spencer lembrava-se disso muito bem.
— E depois?
— Tivemos inúmeras discussões.
— Em público?
— Às vezes. — Foi franca com ele. — Uma vez disse-lhe que iria rescindir o meu contrato e procurar um agente. Quase me matou. Acho que estava mais alguém metido no negócio, e ele receava a reacção dessas pessoas. Mas nunca o soube, porque nunca mais tornei a ver o meu contrato e fui muito estúpida por não o ter lido no dia em que o assinei.
— Até deixara de falar com Harry e Pearl. Salvatore acabara por separá-la de toda a gente. Só lhe era permitido trabalhar, entrando em filmes cada vez mais importantes e melhores. O investimento dera bom resultado. Tal como um cavalo de corrida campeão...
— Discutiste com ele na noite em que morreu?
— Só tivemos aquela discussão na praia de que já te falei. Mas dessa vez ripostei. Com força. Creio que ele tinha a orelha a sangrar quando regressei a casa, mas não me importei nada. Odiava-o. Spencer. Era um homem mau e acho que seria mesmo capaz de me matar.
— Alguém o viu a sangrar? Ou viu quando tu lhe bateste?
— Acho que um vizinho. Estava a passear na praia com o cão. Contou à Polícia que me vira agredir Ernie com um pau. Mas não foi assim, eu tinha na mão um bocado de madeira que apanhara do chão, mas bati-lhe com a outra mão.
— Spencer assentiu e tomou notas, ouvindo-a, enquanto um guarda passava junto da janela.
— E depois?
— Fui para casa, e ele bateu-me quando entrou.
— Deixou-te alguma marca? Ela abanou a cabeça.
— Desta vez, não. Ele tinha muito cuidado com isso. Não queria impedir-me de trabalhar. Se eu não trabalhasse, ele e os amigos perderiam dinheiro.
— Quem eram eles? Sabes? — Mas ela abanou a cabeça.
— O que aconteceu depois disso? — Estava a reconstruir a história com todo o cuidado. Queria pormenores exactos quando pedisse a um advogado para a defender. Queria o melhor que houvesse e lamentava nunca se ter ocupado de um caso criminal anteriormente. Ela precisava de alguém com qualidade. E ele iria arranjar o melhor.
Crystal suspirou e assoou o nariz a um lenço branco que ele lhe estendeu, depois olhou-o com gratidão e respirou fundo enquanto fechava os olhos e se tentava recordar do que acontecera.
— Não sei... andei de um lado para o outro lá em casa... discutimos durante bastante tempo. Parti um candeeiro.
— Como?
— Atirei-lho.
— Acertaste-lhe?
— Não — respondeu ela sorrindo com tristeza por entre as lágrimas —, falhei. — Depois o seu sorriso esmoreceu. — Em seguida, disse-me que estava à espera de alguém e que queria que eu voltasse para a casa de Beverly Hills.
— Disse quem era?
— Nunca o fez — respondeu ela abanando a cabeça.
— Alguém te viu sair? Um vizinho? Uma criada?
— Não estava lá ninguém. Encontrávamo-nos sozinhos.
— A que horas saíste de lá?
— Por volta das oito. Tinha de trabalhar no dia seguinte. Nesse dia estivera de folga. Mas queria ir para a cama. Ele disse que passaria a noite em Malibu. E depois... nunca mais ouvi nada dele. Pensei que estava tudo bem. Saí para trabalhar às cinco, o motorista levou-me como de costume. — Depois falou a soluçar: — Então a Polícia apareceu no estúdio às nove... disseram... disseram que ele morrera. Tinha sido encontrado com cinco balas na cabeça, e pensavam que havia morrido por volta da meia-noite.
— Encontraram a arma?
Ela tornou a anuir, com um ar assustado.
— Sim... estava na praia. Alguém tentara livrar-se dela, mas não a tinham lançado suficientemente longe, creio eu... e havia pegadas de uma mulher na praia... e Spencer... juro que não o matei! — exclamou ela a soluçar.
Ele apertou-lhe a mão.
—Já tinhas visto aquela arma?
Crystal assentiu.
— Era do Ernie. Vi-a na secretária dele algumas vezes, mas creio que ele deve ter receado que eu a utilizasse e por isso nunca mais a vi depois disso, até... até que a Polícia ma mostrou ontem de manhã.
— Conheces alguém que possa ter querido matá-lo?
— Não sei... não sei... — É claro que ela sofrera várias provocações no último ano, mas Spencer sabia que isso não significava que ela o tivesse morto. E com o tipo de conhecimentos que suspeitava que Salvatore tivera, poderia ter sido qualquer pessoa. Alguém que ele enganara com um contrato, uma mulher que tivesse abandonado, um homem a quem ele ganhara às cartas, um subalterno que o odiasse, ou até mesmo os seus chefes. Mas Spencer também sabia que quem quer que tivesse sido o culpado, se fizesse parte do submundo, seria tudo muito abafado e o verdadeiro criminoso nunca seria descoberto. Tinham deixado Crystal arcar com as culpas. E o laço servia-lhe muito bem em torno do pescoço.
— O que te parece que vai acontecer? — murmurou ela. Spencer não queria responder àquela pergunta. Se não conseguisse safá-la, ela poderia apanhar prisão perpétua, ou pior. Nem queria pensar no assunto. Só sabia que não podia permitir que isso acontecesse.
— Não te vou mentir. Vai ser um caso difícil. Tiveste uma oportunidade e um motivo, e não possuis álibi. Isso não é nada bom. E muitas pessoas sabiam dos teus problemas com ele, qualquer pessoa podia odiá-lo. Quem me dera que alguém te tivesse visto sair ou chegar à casa de Beverly Hills. Tens a certeza que ninguém te viu?
— Creio que não. Não imagino quem possa ter visto.
— Bem, pensa no assunto. E vamos precisar de um bom detective. — Já decidira pagar todas as despesas. Sabia que ela não tinha um tostão. Salvatore ficara com tudo.
— Que vais fazer agora? — indagou ela com olhos receosos. Tinha de regressar à cela, o que a apavorava. Todos os guardas tinham olhado para ela e várias detidas haviam mostrado um interesse considerável pela sua pequena «estrela de cinema», como lhe chamavam. Crystal Wyatt era notícia na Penitenciária de Los Angeles, e Spencer queria libertá-la o mais depressa possível. Mas todas as tentativas de lhe pagar a fiança nessa tarde foram infrutíferas. Tentou que as acusações passassem para homicídio involuntário, mas consideravam-no homicídio premeditado e ela teria de aguardar na prisão até ao julgamento. Spencer disse-lhe que tinha de tentar aguentar-se o melhor possível ali dentro, e depois regressou ao hotel para fazer alguns telefonemas. Falou com dois colegas da Faculdade de Direito que lhe deram os nomes dos melhores criminologistas de Los Angeles. Mas a maior parte deles não se mostrou muito entusiasmada com o caso, era uma coisa corriqueira, e mais do que um deu a entender que a história do mafioso e da namorada era demasiado banal. Quando desligou Spencer estava furioso, e ficou a olhar para o ar. A decisão fora tomada por ele, não teria confiado Crystal a nenhum daqueles homens, iria ele próprio ocupar-se do caso, e só rezava para que conseguisse valer a Crystal. Tinham tudo em risco. A vida dela e o futuro de ambos.
Nessa noite ligou a Elizabeth e ao departamento do Governo onde trabalhava, e disse-lhes que ficaria até ao julgamento em Los Angeles. O chefe não gostou nada do que ouviu e Elizabeth ficou furiosa. Spencer lembrava-se perfeitamente das ameaças que ela fizera antes de ele partir, mas agora nada disso era importante. A vida de Crystal encontrava-se em perigo, e ele estava decidido a defendê-la.
— E exactamente quanto tempo vai ser Spencer? — perguntou Elizabeth quando ele lhe disse que assumira a defesa de Crystal.
— Ainda não sei. Ela tem o direito de ser julgada daqui a trinta dias e o julgamento poderá levar semanas. Acho que vou cá ficar durante dois meses, talvez mais. — Suspirou e esticou-se no sofá enquanto conversavam. Fora um dia interminável, e além de ter registado a história de Crystal, não conseguira mais nada.
Elizabeth ficou furiosa com o tempo que ele tencionava ficar na Califórnia.
— Presumo que não tenciones vir a casa pelo Natal. — Faltava apenas um mês e, como de costume, eram esperados em Palm Beach.
— Não pensei que ainda fosse bem-vindo.
— Não és, as o que é que achas que vou dizer aos eus pais? — Então era esse o problea. Salvar as aparências era o mais importante, em vez de salvar o casamento. Mas não tinham um casamento que pudesse ser salvo e agora ele sabia a verdade sobre Crystal.
— Não me parece que tenhas de dizer-lhes algo. Vai tudo aparecer nos jornais durante o mês que vem. — Tinha sido fotografado por vários jornalistas quando saíra da prisão e contava ver-se nos jornais da manhã seguinte.
— Bestial. E o teu emprego? Acho que ainda não pensaste nisso. — Fora também o pai dela quem lho arranjara. Até parecia que lhe devia tudo, incluindo a filha.
— Pedi uma licença sem vencimento, o Governo ainda deve estar no mesmo sítio quando eu regressar, e se me despedirem, nada posso fazer. Terei de procurar outra coisa quando voltar, não é? — Se é que alguma vez iria voltar. Mas tudo isso poderia ser decidido mais tarde.
— Fazes tudo parecer muito fácil.
— Mas não é. No entanto, estou a fazer os possíveis por melhorar uma situação desagradável. A vida da rapariga está em perigo, Elizabeth. E não vou virar-lhe as costas.
—Já sei porquê. — Hesitou e ele suspirou. — Ela pode matar-te.
— Boa noite, Elizabeth. Ligo-te daqui a uns dias.
— Não o faças. Estou nas aulas e no fim-de-semana vou esquiar com uns amigos. E depois vou passar o Dia de Acção de Graças com os meus país.
— Manda-lhes cumprimentos. — Estava a ser sarcástico, mas ela não achou graça. Spencer já fora demasiado longe e Elizabeth estava quase decidida a não permitir que ele voltasse, mesmo que ele o quisesse.
— Vai pró Inferno!
— Obrigado. — Lá, pelo menos, poderia juntar-se a Crystal.
Passou dias a trabalhar com ela, a verificar a sua história, interrogando-a e contra-interrogando-a, mas ouvia sempre a mesma coisa. No terceiro dia soube que acreditava nela. Foi a várias audiências em lugar de Crystal e contratou um detective para verificar tudo, mas as coisas passaram-se como ela dissera, ninguém a vira sair nem entrar, e a única testemunha dissera que ela o agredira com um pau na praia, tendo ido ao ponto de dizer que ela não ficara abalada ao ver Salvatore sangrar. Não era nada agradável. E não havia forma de eludir o facto de ela haver tido oportunidade e motivo, para além de não poder provar o seu paradeiro na noite do crime.
Cada dia que passava Crystal ficava mais magra, e quando a via Spencer achava que os seus olhos estavam maiores. Parecia atordoada com tudo aquilo que lhe acontecera, e no dia de Natal Spencer sofreu bastante ao deixá-la na prisão para partilhar o magro peru com as outras reclusas. Ainda não tinham ousado dizer nada um ao outro sobre os seus sentimentos. Mas ele segurou-lhe na mão antes de sair, e os olhos de ambos diziam tudo. Estavam unidos.
Depois de alguns adiamentos, o julgamento fora marcado para 9 de Janeiro. Não fora Spencer quem os pedira. Queria acabar com aquilo tudo o mais rapidamente possível. E a história que tinham alinhavado era a da autodefesa. Era a única possibilidade que Crystal tinha e ele iria incluir no júri todas as mulheres que conseguisse.
Ligou para Palm Beach, para Elizabeth, na noite da Consoada, mas ela recusou falar com ele. Priscilla Barclay mostrou-se muito distante e disse-lhe com alguma frieza que lera sobre ele nos jornais. Mas as suas explicações não serviram de nada. O mesmo aconteceu quando ligou aos pais na manhã do dia de Natal.
— Que raio estás a fazer? — perguntou o juiz Hill, indo directo ao assunto. — Não és um criminologista. Vais perder o caso. — Mas era precisamente isso que Spencer temia.
— Não consegui que alguém suficientemente bom aceitasse o caso tão em cima da hora.
— Isso não é razão para te pores a brincar.
— Não estou, pai. Estou a fazer o melhor que sei.
— A Elizabeth não deve estar muito satisfeita.
— E não está.
— Não percebo. — O pai abanou a cabeça, abalado, quando Spencer lhe desejou um feliz Natal. Perguntara-se mais do que uma vez se seria aquela a rapariga de que Spencer falara quando regressara da Coreia. Era apenas um palpite, mas algo lhe dizia que sim, e se fosse esse o caso, iria haver sarilhos com os Barclay. Perguntou-se se o filho saberia o que estava a fazer. Mas de vez em quando Spencer ligava-lhe e ele dava-lhe conselhos. Também era da opinião que a autodefesa era a única possibilidade, embora não fosse muito grande.
Demoraram dez dias a escolher os jurados, mas no m Spencer conseguiu o que queria. Tinha sete mulheres e cinco homens, e todos tremeriam ao ouvir os abusos de Salvatore. Spencer comprou-lhe roupas para ela usar no tribunal, para que parecesse a rapariga de anos antes, inocente e pura. Crystal não tinha de fingir-se assustada, pois estava apavorada ao lado dele na sala de audiências. A acusação foi directa e brutal. Falou de uma rapariga que fora para Hollywood disposta a fazer tudo para conseguir o que queria, incluindo dormir com um homem que tinha o dobro da sua idade e que por acaso conhecia gente não muito recomendável. Não tentou ocultar quem fora Salvatore, em vez disso usou esse facto. E o promotor público saiu-se bem. Apontou para Crystal do outro lado da sala: fê-la parecer uma prostituta que coleccionava roupas caras, pulseiras de diamantes e que era gananciosa. Saíra-se muito bem a viver com a vítima, salientou. Assim como a sua carreira. Graças ao homem que matara a sangue-frio, era agora uma actriz relativamente conhecida. Enumerou todos os lmes em que ela entrara, fazendo parecer que ela nada fizera para merecer isso. Depois pintou um quadro de violência, uma rixa familiar que conduzira à morte do irmão, a levara a fugir de casa aos dezassete anos e a obter emprego num clube de segunda categoria em Los Angeles com o propósito de conseguir apanhar alguém que a pudesse ajudar a conseguir o que queria. E quando essa pessoa deixara de servir os seus objectivos, querendo rescindir o contrato, ela matara-a.
No entanto Spencer estava bem preparado e não poupou dinheiro para conseguir trazer a tribunal pessoas que a defendessem. Pearl falou da sua inocência, do seu trabalho esforçado, da sua moral. Harry descreveu-a não como uma cantora num bar de segunda, mas como um doce anjo. E Crystal chorou quando eles depuseram, olhando-os cheia de gratidão. O detective que Spencer contratara desencantara todos os empregados de mesa, todos os criados de Hollywood que tinham visto os maus tratos de Salvatore. Falou-se de violações na casa de Malibu, de um contrato que ela nunca compreendera, dos espancamentos, dos insultos e dos abusos de toda a espécie. Spencer até falou da sua violação ainda criança, enquanto Crystal olhava muito infeliz para as mãos, lembrando-se do episódio no celeiro com Tom Parker. Era uma rapariga que enfrentara vários reveses, mas que sempre conseguira sobreviver, uma rapariga que trabalhara com afinco, que se saíra bem, que nunca fizera mal a ninguém, até que Ernie tentara novamente violá-la, até que ele lhe batera, e a ameaçara, e em autodefesa ela o matara. Não valia a pena dizer que ela não o matara. Spencer sabia que perderia o caso se o fizesse, por isso apresentou-lhes o retrato de um monstro. Um monstro que tentara destruir aquela rapariga, sem família, sem amigos, sem ninguém no mundo que a defendesse. E o que ele disse fez com que os jurados odiassem Ernie pelo que ele fizera a Crystal. No último dia ela falou em sua defesa, parecendo tão jovem e inocente no vestido cinzento simples que todos os jurados a olharam enlevados. Quando Spencer acabou a sua argumentação, rezou para que os tivesse conquistado.
Era um caso bastante comovente, mas ainda assim o júri deliberou durante dois dias, revendo as provas, discutindo. Havia dois homens que ainda a consideravam culpada de homicídio premeditado. Entretanto, Spencer andava de um lado para o outro pêlos corredores com Crystal à espera do veredicto, mal ousando olhar para ela. Se tivesse perdido o caso, a vida dela chegaria ao fim. Era agonizante estar ali junto dela. Crystal pouco falava, olhando-o com uns olhos azuis muito abertos, e quando o oficial de diligências os mandou entrar, os joelhos dela tremiam tanto que mal conseguia acompanhar Spencer. O juiz mandou-a levantar-se, virou-se depois para o júri e perguntou qual o veredicto a que este chegara. Crystal fechou os olhos e esperou. Não conseguia pensar enquanto aguardava. Fora acusada de homicídio premeditado e não havia alternativa: ou era inocente ou era culpada. Tinha planeado a orte dele? Tencionara matá-lo? Sabia o que estava a fazer quando o alvejou a sangue-frio? Ou tê-la-ia ele ameaçado, estaria ela a lutar pela vida, tê-la-ia ele finalmente feito disparar? Se assim fosse, ela estava inocente, embora as pessoas fossem continuar a pensar que o matara. Encolhera-se perante essa perspectiva, e insistira junto de Spencer que não o assassinara, que nem sequer estivera presente quando ele fora alvejado. Mas Spencer sabia que nem podia tocar nisso. Tinha de limitar-se a construir uma história que apresentasse Crystal como vítima, e não Ernie.
— Qual o veredito a que chegaram, senhores jurados? Culpada ou inocente de homicídio premeditado? — Era tudo muito simples, e houve uma enorme pausa enquanto todos aguardaram.
O porta-voz do júri pigarreou e olhou para ela enquanto Spencer tentava ler-lhe no rosto. Estaria ele satisfeito? Ou lamentava aquilo que iria ter de fazer? Não viu indícios de nada no rosto do homem.
— Inocente, meritíssimo.
Tornou a olhar para Crystal corn um sorriso tímido enquanto o juiz batia com o martelo e dava a sessão por encerrada, e Crystal caiu nos braços de Spencer. Quase desmaiara. Fora claramente uma situação de autodefesa, disseram eles. Crystal estava livre. Apesar disso, via-se destinada a carregar para o resto da vida o estigma de homicídio. Estava livre para viver a sua vida, e sem pensar Spencer abraçou-a. Não ousara tocar-lhe naqueles dois meses, mas agora abraçava-a enquanto o tribunal enlouquecia em redor dos dois. Os repórteres entraram e disparavam flashes por toda a parte e Spencer saiu dali com ela o mais rapidamente que pôde. Tinha um carro com motorista à espera e tiveram de abrir caminho por entre a multidão. Fora um caso sensacional e quem quer que tivesse morto Ernie estava safo. Crystal assumira o homicídio, mas estava livre. Spencer conseguira-o.
Ela ainda chorava, mal acreditando na sorte, quando se afastaram do edifício do tribunal. Deixara os seus poucos haveres na prisão. Não queria voltar a vê-los. Nunca mais queria ver Hollywood nem as coisas que Ernie lhe dera. Queria apenas ir-se ebora. Pararam no hotel de Spencer por alguns minutos, ele fez a mala e uma hora mais tarde iam a caminho de São Francisco num carro alugado.
— Mal posso acreditar — murmurou ela enquanto ele conduzia rumo a norte. — Estou livre.
O mundo nunca lhe parecera tão doce. E numa tarde de Fevereiro, com Spencer a seu lado, deixou Hollywood dois anos depois de lá ter chegado.
Estavam já a trinta quilómetros da cidade quando Spencer encostou o carro na berma e parou. Ficou sentado a olhar para Crystal e de repente ela sorriu. Acabara tudo, o pesadelo terminara e ele salvara-lhe a vida. Spencer também sorriu e puxou-a para junto de si com tanta força que Crystal ficou sem fôlego por alguns momentos.
— Meu Deus, Crystal, conseguimos!
Ela ria e chorava ao mesmo tempo e afastou-se um pouco para o olhar, tornando a mergulhar nos braços dele, sabendo que nunca mais haveria de querer deixá-los.
— Tu é que conseguiste. Eu limitei-me a ficar sentada, cheia de medo.
— Também eu tive medo — admitiu ele, agarrado a ela. Depois recostou-se no banco e olhou-a como não ousara olhá-la desde que chegara à Califórnia. Mas ali não havia ninguém a observá-los. Estavam nalmente sós. E ele viera a olhar pelo espelho retrovisor desde o hotel para se certificar de que não eram seguidos por jornalistas. — Nunca tive tanto medo na minha vida. — Nem queria pensar no que teria acontecido se ela tivesse sido considerada culpada. Mas não fora. E agora tudo acabara. Precisavam ambos de recuperar o fôlego, e Spencer desejava passar algum tempo com ela para decidirem o que iriam fazer com a sua vida. De repente, desatou a rir. Haviam tido tanta pressa em sair da cidade que nem sequer sabiam para onde se dirigiam. — Para onde queres ir? — Instintivamente, ele dirigira-se para São Francisco.
— Não sei. — Ela ainda se encontrava em estado de choque. Olhou para ele. Quatro horas antes, a sua vida ainda estava em perigo e agora tinham o futuro pela frente. Levantou o rosto para o sol de Inverno, envergando o vestido simples que ele lhe comprara. — Apetece-me ficar aqui sentada um pouco a recuperar o fôlego. Nunca pensei que voltaria a estar cá fora.
Ele absteve-se de dizer que também chegara a pensá-lo.
Do hotel, ligara ao pai para lhe dizer que ganhara o caso, e o pai dera-lhe os parabéns, tendo-se mostrado ansioso por ler tudo nos jornais. Perguntara a Spencer quando é que tencionava regressar, e ele respondera que ainda não sabia. Precisa vam ambos de recuperar o fôlego e era agradável estarem longe da Polícia e dos jornalistas. Tinham-no enlouquecido durante o julgamento. Perguntou a Crystal se ela iria ter saudades.
— De Hollywood? — Pensou um pouco, e depois abanou a cabeça. — Nem por isso. O trabalho... as canções... a representação que fiz. Gostava bastante de tudo. Mas o resto é muito vazio. — E pagara um preço demasiado elevado, Quase a vida, por culpa de Ernie. Mesmo depois de morto ee quase acabara com ela. — Nunca mais poderei regressar.
— Porque não? Poderás um dia, se o desejares. — Mas perceberia se ela não o quisesse.
— Não, não posso. A cláusula da moralidade não permite que ninguém contrate uma assassina para um filme. — Soltou uma gargalhada, mas era uma gargalhada forçada. Ele tornou a ligar o carro e ela olhou pela janela. O mundo nunca lhe parecera tão doce, e o que lhe chamava mais a atenção eram as cores. Tudo era tão verde e tão azul e to belo! — Devo-te a vida — disse ela a Spencer. — Mas creio que já sabes isso. — Tocou-lhe na mão e aproximou-se dele, parecendo de repente muito jovem. A tensão desaparecera, tinha soltado o cabelo e apenas os seus olhos deixavam aida antever algum medo. Depois, enquanto lhe tocava ao de leve o rosto Spencer inclinou-se e beijou-a.
— Amo-te muito. Teria morrido se te tivesse acontecido alguma coisa. — Ela agarrou-o com força e ele passou-lhe um braço por cima dos ombros.
— Não sei o que teria feito se... — Mas Crystal não conseguiu acabar a frase.
— Não penses mais nisso Crystal — disse Spencer, olhando para a estrada e apertando a jovem nos braços. —Já acabou tudo.
Enquanto se dirigiam para São Francisco falaram do que ela iria fazer. Ainda não pensara no assunto. Só quisera sair de Los Angeles o mais rapidamente possível. Apetecia-lhe visitar Harry e Pearl e estar com Spencer. Tinham muito que conversar, especialmente agora que ele sabia que ela terminara tudo no ano anterior por causa das ameaças de Ernie e não porque deixara de o amar.
Chegaram a São Francisco às dez horas da noite e foram direito ao Harry's. Harry já ouvira as notícias. Abraçaram-se e choraram, ele ofereceu-lhes bebidas e depois disso Spencer levou-a para o Hotel Fermont. Reservaram dois quartos, para o caso de alguém ligar à imprensa. Eram lado a lado, pelo que ele ficou satisfeito. Crystal ficou à porta a olhar para ele; parecia-lhe que os joelhos se iriam dobrar. Ele agarrou-a e deitou-a na cama. E teve-a nos braços durante horas, redescobrindo tudo aquilo de que se recordavam. E quando finalmente ela adormeceu Spencer apagou a luz. Crystal só acordou de manhã. Ele já estava a pé, e tinha café e croissants à espera. Sorriu-lhe quando ela se espreguiçou e voltou a enfiar-se na cama a seu lado.
— Bom dia, «Bela Adormecida». Sentes-te melhor? Já ligara para o escritório e tivera uma longa conversa com o chefe. O que este dissera não fora nenhuma surpresa, e ele nada lamentava. O chefe achava que a sensação que Spencer causara nos últimos dois meses era incompatível com um cargo no Governo, o que lhes causara um certo embaraço. Esperavam que ele entendesse, e lamentavam bastante que tudo aquilo fosse aborrecer o juiz Barclay. Mas Spencer sentira uma vaga de alívio ao ouvir aquelas palavras. Não falou do assunto a Crystal. Sabia que ela iria ficar aborrecida. E o único recado que recebera fora um, bastante misterioso, proveniente de um jovem senador da Califórnia. O mais estranho era que Spencer nem sequer o conhecia.
Ficaram na cama e tornaram a falar do julgamento. Durante o pequeno-almoço ele mostrou-lhe os jornais. O assunto era primeira página em todos, e Crystal teve medo de ser reconhecida quando saísse.
— É uma maneira muito estranha de ficar famosa — disse ela com um sorriso enquanto comiam os croissants e bebiam o excelente café. Então Spencer fez uma sugestão que a deixou pensativa. Queria ir até ao vale visitar Boyd e Hiroko. Mas Crystal não queria ir. Sabia que iria ser demasiado doloroso. — Não quero voltar a ver o rancho. — Não iria suportar. Tinha a certeza que Becky já há muito se fora embora, Tom também, mas achava que a mãe ainda lá estava. E lá encontravam-se muitas recordações dolorosas. Mas com Spencer a seu lado, ela admitiu que as coisas seriam diferentes. — Então e tu? — perguntou ela, preocupada. — Não tens de voltar para casa? — Sabia que ele ainda não ligara a Elizabeth desde que haviam chegado a São Francisco.
Spencer não sabia o que dizer. Já não falavam há semanas. Só queria encarar o assunto depois do julgamento. E agora não queria deixar Crystal.
— Não estou com pressa. — Ainda não lhe dissera que perdera o emprego. Mas era um preço a pagar por ter salvo Crystal.
Nessa tarde passearam junto ao cais e ela comprou algumas roupas. Restava pouco do dinheiro que ganhara em Los Angeles. Ernie absorvera-o todo e ela deixara as suas coisas na casa de Beverly Hills. Não as queria, nem lhe apetecia vendê-las, mas teria de arranjar emprego em breve. Não podia permitir que Spencer a sustentasse durante o resto da vida. Voltava ao ponto em que começara havia alguns anos, sem casa e sem um tostão. Tinha mais quando chegara a casa da Sra. Castagna. Mas conseguira alcançar o seu sonho de Hollywood e saboreara-o durante momentos. Pelo menos agora tinha Spencer. Por um momento, ou por um dia. Sabia que ele teria de regressar a Washington. Mas sentia-se grata por todos os momentos que passavam juntos. Durante o julgamento não tinham falado de nada. E sob o olhar atento dos guardas, com os fotógrafos em toda a parte, ele não ousara tocar nela. Mas agora tinham alguns dias pela frente em que podiam desfrutar-se.
Regressaram ao hotel já ao fim da tarde e depois de Crystal ver que algumas pessoas a olhavam no átrio, resolveu que seria melhor comerem nos quartos. Agora muita gente a conhecia, e a maior parte pelas razões erradas. Tinham falado de muitas coisas nesse dia, de Washington, do seu trabalho e da sua vida lá. De como ele acabara por gostar de política e do mundo governamental, admitindo que isso o surpreendera. Crystal falou das pessoas que conhecera em Hollywood, das estrelas, do trabalho árduo. E confessou que apesar de Ernie, acabara por gostar.
— Acho que um dia iria ser uma boa actriz — disse ela depois de ele ter encomendado jantar para os dois. Estavam sentados muito juntos vestindo apenas os roupões comprados nessa tarde no I. Magnin. Sentiam-se bem perto um do outro e a intimidade de outrora sobrevivera a tudo o que se interpusera entre os dois.
—Já eras boa antes de teres ido para lá — retorquiu Spencer. Ainda se lembrava da voz dela e da forma como cantava no Harry's. — Talvez possas regressar um dia depois de as coisas terem acalmado.
— Não sei se isso me agradaria. — Falava com suavidade, e havia nos seus olhos uma enorme tristeza. — A vida lá é muito dura. — Mas se não queria Hollywood, para onde iria? Não sabia fazer mais nada a não ser representar e cantar. E agora tinha medo de mostrar a cara. Todos a conheciam. Harry voltara-lhe a oferecer o seu velho emprego na véspera, mas ela não o aceitara.
— As pessoas não se irão recordar do julgamento para sempre. A recordação irá desaparecendo. — De repente, Spencer lembrou-se do telefonema do senador e perguntou-se o que quereria ele.
O jantar veio em tabuleiros de prata, mas Crystal debicou a comida. Ele tocou-lhe suavemente na mão e perguntou-lhe em que estava a pensar.
Ela sorriu, com os olhos rasos de lágrimas, mas depois soltou uma gargalhada.
— Estava a pensar que gostaria de ir para casa, mas não tenho nenhuma!
Ele também se riu. Era verdade. Ela não tinha para onde ir, nem ninguém que a esperasse. Pearl oferecera-lhe um quarto, mas Crystal não queria ser uma sobrecarga e ainda não decidira se iria ficar em São Francisco. Muitos dos seus planos iriam depender de Spencer.
— Vamos até ao vale. Não temos de ficar lá. Paramos de visita ao Boyd e à Hiroko e depois seguimos para um lado qualquer. Precisas de tempo para pensar. Só passaram dois dias Crystal. Partamos amanhã.
Crystal hesitou durante bastante tempo, olhando para ele, e depois anuiu.
— Então e tu? Não podes ficar por cá a tomar conta de mim para sempre!
— Gostaria muito de o fazer — murmurou-lhe ele ao ouvido na penumbra do quarto.
— Tens a tua vida em Washington, Spencer, não é verdade? Pelo menos o que resta dela depois de eu te ter arrastado de lá para fora durante três meses. Acho que é um preço muito alto a pagar. — Pensava em Elizabeth, e não percebia muito bem aquele casamento. Desconhecia em que pé estava a relação de ambos. Ele nunca falava no assunto, ou então fazia-o muito raramente. Contudo, ela sabia que ainda continuava casado. Ernie desaparecera, ela já estava livre, mas não era esse o caso de Spencer. O espectro da mulher dele ainda pairava entre ambos, ou pelo menos na mente de Crystal. Spencer ligara-lhe uma vez, e deixara recado à criada de que se encontrava em São Francisco, embora omitindo que se encontrava no Hotel Fermont. Ainda não estava pronto para falar com ela. Não queria que ela entrasse em pânico se ligasse para o hotel onde ele ficara em Los Angeles e descobrisse que ele saíra de lá a seguir à leitura do veredicto. Sabia exactamente o que ela iria pensar e não lhe apetecia admiti-lo ou negá-lo. Da forma como estavam as coisas entre ambos, aquilo não era da conta de Elizabeth. Spencer recordava-se da ameaça que lhe fizera antes de ele partir, e perguntou-se se ela concordaria finalmente com o divórcio.
Então contou a Crystal que perdera o emprego, com um ar desinteressado, enquanto ela o olhava aterrorizada.
— Não perdeste!
— Perdi!
— Meu Deus! Estamos os dois desempregados! — Riu-se, mas sentia-se culpada. Ainda nessa manhã ele lhe dissera como gostava do trabalho no Governo e da política. O que faria ele agora? Então ele falou-lhe do telefonema do senador e ela incitou-o a ligar-lhe na manhã seguinte- — Achas-te capaz de concorrer a um cargo político?
— Se calhar. Ou talvez venha um dia a ser um juiz como o meu pai. — Sorriu-lhe. Tudo aquilo parecia ter pouca importância agora. O que importava era que ela estava em segurança e que ambos estavam juntos. Nada mudara entre eles durante nove anos. Spencer ainda pensava nela noite e dia e a única coisa que sabia era que não a queria deixar.
Falaram até altas horas da noite acerca das suas vagas aspirações políticas, dos filmes dela, e depois de coisas como filhos e cães e também sobre Boyd e Hiroko. Crystal estava ansiosa por tornar a vê-los na manhã seguinte, apesar do seu receio de visitar o vale. Tinham alugado outro carro e iriam partir cedo. Mal podia esperar por ver Jane. Já não a via desde que fora para São Francisco. A menina tinha agora sete anos, e provavelmente nem se lembrava de Crystal.
Por fim, foram para a cama e tornaram a fazer amor, e ele manteve-a nos braços durante muitas horas. Os anos que os tinham separado desfizeram-se de novo em momentos. Era como se o tempo que tinham perdido tivesse desaparecido e, abraçados, dormiram como duas crianças.
Seguiram para norte no dia seguinte, e Crystal passou a viagem a cantarolar as músicas da rádio, mergulhada nos seus pensamentos, enquanto ele sorria ao pensar como era agradável estar junto dela. Não lhe exigia nada, não havia desilusões, nenhuma diferença de opiniões, nem acusações. Inevitavelmente, isso fê-lo pensar em Elizabeth e nas diferenças entre as duas. Mas Crystal era como um sonho, sempre fora do seu alcance, sempre a fugir-lhe dos dedos, mas sempre bem à vista e exactamente onde ele queria.
Atravessaram a ponte de Golden Gate e seguiram para norte com o Sol bem alto no céu. Tudo era verde e novo, lavado pelas tempestades do Inverno que deixaram as colinas cor de esmeralda e reluzentes sob um céu da cor dos olhos dela. Crystal parecia em paz quando olhava para ele e sorriam um para o outro. Era agradável estarem juntos, e nem precisavam de falar.
Ela indicou-lhe o caminho e desta vez ele recordou-se do sítio onde viviam os Webster. Sentindo o coração a bater com força Crystal atravessou o minúsculo jardim e tocou à campainha. Esperaram bastante tempo até que a porta foi aberta por uma rapariguinha e os olhos de Crystal encheram-se de lágrimas.
— Olá! — cumprimentou a rapariga, levantando o rosto, e souberam de imediato que era Jane. Tinha os olhos orientais da mãe e cabelo ruivo-escuro, tal como no dia em que nascera. — Quem são vocês?
— Eu sou a Crystal e sou amiga da tua mãe. Não houve receio nos olhos de Jane e Spencer pegou na mão de Crystal.
— Ela está lá dentro a fazer o almoço.
— Podemos entrar?
Jane anuiu e desviou-se. A sala estava tal e qual Crystal se recordava: pouca coisa mudara. Podia ver-se que ainda eram pobres, mas eram ricos no amor que partilhavam. Havia fotografias de Jane, gravuras japonesas que Hiroko trouxera do Japão e a sala estava limpa, repleta com os tesouros que tinham. As lágrimas encheram os olhos de Crystal quando entrou na cozinha e viu a amiga. Hiroko estava a cantarolar en japonês, e virou-se, à espera de ver Jane. Os seus olhos abriram-se muito e as duas mulheres caíram nos braços uma da outra.
Ficaram bastante tempo abraçadas, os anos desvanecendo-se, tal como tinha acontecido com Spencer. Não se viam há bastante tempo, mas nada mudara entre ambas.
— Tive tanta pena de ri Crystal. — Depois viu Spencer a olhá-las e sorriu ao ver que estavam juntos. Ainda havia uma fotografia dele com Boyd no dia do seu casamento no Japão pendurada na parede da cozinha. — Estás tão bonita! — Tornou a beijá-la, depois limpou as lágrimas. De repente desataram todos a falar ao mesmo tempo enquanto Jane os observava, perguntandose quem seriam aquelas pessoas. Hiroko explicou-lhe que fora Crystal quem a ajudara a vir ao mundo, e Spencer ouviu uma história que desconhecia e olhou para Crystal admirado.
— Aí tens — brincou —, agora podias tornar-te parteira.
— Não contes com isso — retorquiu ela com um sorriso. Depois virou-se para Hiroko e falaram as duas durante bastante tempo, enquanto Spencer e Jane brincavam. Estava tudo bem com eles. O velho Sr. Petersen morrera e deixara a bomba de gasolina a Boyd. Hiroko perguntou a Crystal como ia a sua carreira de estrela de cinema, e falaram calmamente sobre o julgamento. Depois ouviram o motor de uma carrinha, e Boyd entrou com alguma pressa, desejando saber quem estava de visita. Vira o carro. Estacou à porta e abarcou a cena, depois lançou os braços em torno de Crystal, apertando de seguida a mão a Spencer.
— Temos lido muito a teu respeito — gracejou ele, aliviado por ver os dois. — Já desconfiava que eras capaz de aparecer por aqui.
Spencer disse-lhe que passara por ali dois anos antes mas que não fora capaz de descobrir a casa deles. Ficava junto a uma estrad secundária, e teria voltado a perder o desvio se Crystal não lhe tivesse indicado o caminho.
Hiroko fez almoço para todos, e Crystal ajudou-a, sentindo-se muito confortável naquela cozinha, aliás coo sepre se sentira. Passado algum tempo, Boyd contou-lhe todas as novidades. Becky voltara a casar e vivia no Wyoming com mais dois filhos. Depois hesitou, sem saber o que Crystal desejava ouvir naquele momento.
— A tua mãe tem estado bastante doente — disse ele muito calmo. Ela era a única família que restava a Crystal. Mas esta não queria vê-la agora, e já informara Spencer de que não queria visitar o rancho. Seria demasiado doloroso e sentiria muita solidão ao vê-lo passados todos aqueles anos. Havia seis anos que partira, seis anos desde que Jared morrera, e lá já não havia mais nada para ela, excepto a campa do pai e a do irmão. Mas perguntou a Boyd como estavam as coisas, interrogando-se sobre se a mãe teria ido para outro lado.
— Não, ainda lá está. Com o que resta. Venderam as pastagens já há alguns anos. Não há gado. Mas creio que as vinhas ainda produzem bastante, pelo menos foi isso que ouvi dizer. Já lá não vou há bastante tempo, mas sei que o doutor Goode a tem ido visitar muitas vezes. Ela adoeceu em Julho. — Fez outra pausa, olhando para Spencer e depois para ela. — Não me parece que ela dure muito mais tempo, Crystal. Se é que isso tem para ti alguma importância.
Ela abanou a cabeça com tristeza.
— Para mim já acabou tudo.
Ele assentiu. Fora isso que calculara.
— Tinha pensado escrever-te, para o caso de a quereres ver antes de morrer.
Crystal abanou a cabeça, tentando esquecer a sua infância. Já não pensava nisso, nem no rancho.
— Não me parece que valha a pena, e acho que ela também não havia de me querer ver. Nunca mais tive notícias dela desde que me fui embora. A Becky está cá? — Se a mãe estava a morrer, era natural que a irmã se encontrasse no rancho.
— A minha irmã disse-me que ela esteve cá no Natal. Mas eu não a vi. E já se foi embora. — Crystal ficou aliviada por ela já lá não estar. Becky não significava nada para si, nem nunca signicara. Aqueles que ela amara já haviam morrido, excepto as pessoas com quem agora conversava.
Depois do almoço foram todos dar um passeio, antes de Boyd regressar à bomba da gasolina. Prometeram ir fazer-lhe uma visita antes de se irem embora. Spencer e Crystal ainda não tinha decidido para onde iriam. Ele achava que ela talvez gostasse de visitar a região dos vinhos e de ficar numa pequena estalagem. Mas quando finalmente saíram de casa de Hiroko, Spencer virou no sido errado e de repente Crystal empalideceu. Estavam do lado de fora do rancho. Spencer também se apercebeu disso e olhou para ela preocupado.
— Queres que pare um pouco? Ninguém saberia que aqui estivemos. Se a tua mãe está assim tão doente, tenho a certeza que não andará para aí a passear.
Com um aceno imperceptível de cabeça Crystal apontou para uma estrada cheia de ervas.
— Vai dar ao rio. — Mas ele teve medo de danificar o automóvel e seguiram a pé, de mãos dadas. Caminharam durante bastante tempo, depois Crytal parou, ficando em silêncio, quando chegaram a uma clareira e avistaram as três campas. Jared, o pai e a avó estavam ali sepultados, como se à espera dela, e Crystal limpou as lágrimas. Ele passou-lhe um braço por cima dos ombros e voltaram para trás. Recordou-se do casamento de Becky e de ver Crystal corn um vestido branco e pés descalços, os sapatos atirados para algures, o cabelo brilhando como ouro à luz do Sol. A certa altura, Crystal afastou-se um pouco dele. Ficou parada a olhar para a casa onde nascera. Tornou a pensar no pai e sentiu uma grande dor.
— Queres entrar? Eu vou contigo — sugeriu Spencer, observando-a atentamente e pressentindo o sofrimento dela.
— Não sei o que dizer passado todo este tempo.
— «Olá» é um bom princípio! Ela virou-se e sorriu.
— Engraçadinho!
Riram-se e recomeçaram a andar, mas de repente a porta de rede bateu e viram que a enfermeira estava de saída. O Dr. Goode encontrava-se no alpendre e Crystal olhou para Spencer. Ele acenou a encorajá-la, ela hesitou durante bastante tempo, e depois avançou para a casa onde outrora tinham vivido as pessoas que amara e que agora continha apenas recordações desvanecidas.
— Vai — murmurou ele, e Crystal apertou-lhe a mão. Pouco depois subia os degraus da frente. Tinha as mãos húmidas e o Dr. Goode ficou a olhar para ela durante bastante tempo com uma expressão de estranheza. Tinha-a reconhecido, mas estava admirado com a sua presença. Já há muito tempo que estava ausente e fora-se embora no meio de um enorme escândalo.
— Como soubeste? — perguntou ele.
— Soube o quê? — retorquiu Crystal olhando-o e sentindo-se de novo uma criança.
— Ela pode morrer a qualquer momento. Agora está acordada, se quiseres ir lá dentro.
De repente Crystal perguntou-se se o choque não seria demasiado para a mãe depois de todo aquele tempo.
—Já não a vejo há seis anos. Não sei se ela me quer por perto numa altura destas.
— As coisas mudam quando as pessoas sabem que estão a morrer. — Falou calmamente, perguntando-se quem seria o homem. —Já casaste? — Ela respondeu que não com a cabeça e ele nada mais lhe disse. Não sabia onde ela estivera nem o que fizera. Andara muito ocupado a tratar dos doentes. Ouvira dizer que fora para Hollywood, a fim de se tornar uma estrela de cinema, mas naquele momento não se parecia com uma estrela. O médico achou-a na mesma, um pouco mais velha, talvez mais magra, mas ainda tão bonita como dantes. — Vai lá dentro cumprimentá-la. Ela agora já não pode fazer-te mal.
Crystal entrou devagar na cozinha, quase à espera de ver a avó, mas não havia ali ninguém agora. A sala estava às escuras, e tudo tinha um aspecto velho e usado. Já há muitos anos que mãos cuidadosas não reparavam nada. Parecia que a mãe deixara tudo deteriorar-se, tanto dentro como fora. Spencer seguiu-a pelo corredor até ao quarto da mãe, e ficou à espera enquanto ela batia à porta e entrava. Olivia estava deitada, e já quase nada restava dela. Mirrara, e tudo o que parecia restar eram os olhos, que fixavam Crystal.
— Olá, mãe.
Olivia ficou admirada, mas não tanto como Crystal pensara. Era como se tivesse sabido que ela viria visitá-la, e se não fosse, não se importava.
— Como tens passado?
Não falou do dia em que ela partira, nem da dor que lhe causara, nem da morte dejared, ou do que Tom fizera. Estava apenas deitada, olhando para a filha mais nova, à espera de morrer e poder juntar-se aos outros.
—Bem.
A mãe não ouvira falar do julgamento. Já não sabia nada, nem sequer se importava. Há meses que o seu mundo estava limitado ao quarto.
— Ouvi dizer que tinhas ido para Hollywood. É verdade?
— Sim, fui. Durante algum tempo.
— O que estás a fazer agora?
— A visitá-la — respondeu Crystal co um sorriso, mas não viu nenhum nos olhos da mãe; estava demasiado cansada.
— Presumo que já saibas o que vai acontecer ao rancho. Calculei que te procurassem depois de eu morrer. A Becky disse que o Boyd Webster sabia onde te encontrar.
— Sempre soube. E o rancho? Sempre vai vendê-lo?
— Isso agora é contigo. Foi sempre muito para mim, mas o teu pai deixou-o e tive de ficar cá a viver. E agora é teu. A Becky ficou furiosa durante algum tempo. Mas agora vive bem. Tem um bom marido. Sabias que o Tom morreu na Coreia?
—Já me tinham dito. — Mas só conseguia pensar naquilo que a mãe acabara de dizer. Sentou-se com cuidado na cadeira de baloiço ao lado da cama e com cautela agarrou a mão da mãe. Esta não objectou e deixou-a ficar ali como um ramo nos dedos de Crystal. — O que quis dizer com isso do rancho?
— É teu. Foi assim que ele quis. Eu pude usufruir dele enquanto vivi. Mas depois disso ele queria que o rancho ficasse todo para ti. Disse que eras a única que se preocupava com a terra. — Ao ouvir aquelas palavras os olhos de Crystal encheram-se de lágrimas. O pai deixara-lhe o rancho e nunca lhe dissera nada. Tinham-na deixado partir, sem lhe dizer que um dia o rancho seria dela. — Agora até podes ficar na vivenda que foi da tua irmã, se quiseres. Já não é usada há muitos anos. Eu já não duro muito — disse ela, tirando a mão da da lha —, daqui a pouco tudo isto é teu.
— Não fale assim. Tem alguém que lhe faça o comer?
— Sim. As raparigas da igreja costumam passar por cá. Tenho muita comida, o doutor Goode visita-me duas vezes por dia e a maior parte das vezes traz a enfermeira.
Fechou os olhos, demasiado cansada para continuar a falar. E enquanto caía no sono Crystal levantou-se e olhou para ela, para a mulher que lhe zera tanto mal, que nunca fora capaz de a compreender nem de a amar, que guardara aquele segredo durante tanto tempo. Era difícil sentir qualquer coisa por ela agora, excepto piedade. Estava a morrer. E depois tudo aquilo seria de Crystal. Era incrível! Saiu do quarto em silêncio e viu Spencer ali parado. Fez-lhe sinal para que a seguisse, e já lá fora ela sentou-se nos degraus da frente e olhou-o espantada.
— Não vais acreditar naquilo que acabei de ouvir.
— Ela perdoou-te tudo — aventou ele com um sorriso, e ela sorriu-lhe também.
— Não, é demasiado tarde para isso. Ela está já demasiado doente para se preocupar com essas coisas. — Olhou para os campos que eram quase seus e sentiu uma vaga de amor pela terra; fora precisamente por isso que o pai lha deixara. E depois recordou-se das últmas palavras dele: «Nunca desistas disto, pequenita... do rancho...» E sentira-se tão culpada quando se fora embora! Tornou a olhar para Spencer: — O meu pai dexou-me o rancho quando morreu, e elas nunca me disseram nada. Acho que era por isso que me odiavam tanto. Porque ele mo deixou todo. — Parecia em estado de choque. Vira a mãe ao fim de todos aqueles anos, e agora aquilo. Abanou a cabeça e levantou-se: — O que irei fazer com tudo isto?
— Viver aqui e ter uma vida agradável. É um sítio encantador. Ou pelo menos já o foi e poderá muito bem tornar a sê-lo. Aposto que as vinhas dão muito lucro. E talvez os milheirais também.
— Spencer — disse ela com um sorriso —, estou em casa.
— Pois estás. Podes crer que estás. E nem sequer estavas com vontade de cá vir hoje. — Sorriram os dois, e depois lembraram-se da moribunda. Dirigiram-se para o carro, sem saber o que fazer a seguir.
— Ela disse que se quiséssemos podíamos ficar na vivenda.
— Podíamos? Ela sabia que eu estava cá?
—Não... está bem... ela disse que eu podia. Mas deve estar tudo sujo. — E não tinha vontade de ficar ali enquanto a mãe estava a morrer. — Vamos ficar a outro lado, depois voltamos.
Ele concordou e entraram no carro. Seguiram para a bomba da gasolina, despediram-se de Boyd e disseram-lhe que iriam voltar. E nessa noite ele ligou-lhes para o hotel onde estavam hospedados. Crystal ligara a Hiroko para deixar o número de telefone. A mãe morrera pouco depois de ela ter saído do rancho. Crystal ficou sentada durante bastante tempo, sem saber o que sentia. Não era dor, nem perda, nem sequer ira. Quase tudo desaparecera, excepto a recordação distante da mulher que conhecera em criança. E agora o rancho era seu, tal como o pai desejara. Não fazia ideia do que iria fazer com ele, mas pelo menos agora tinha um sítio onde viver.
Ela e Spencer regressaram no dia seguinte, e dois dias mais tarde a mãe foi sepultada junto dos familiares. Crystal hesitou dois dias enquanto ficaram na casa de Hiroko e Boyd; finalmente decidiu mudar-se para a casa principal do rancho, ficando no seu antigo quarto com Spencer. A sua cama ainda lá estava e o chão continuava a ranger nos mesmos locais. De certa forma, nada mudara. Mas tudo estava diferente. Ao fim da tarde caminharam pêlos campos até ao local onde se tinham visto pela primeira vez, e Spencer sorriu-lhe. A vida às vezes era bastante estranha. Crystal ainda mal acreditava no que lhe acontecera: ainda há dias nada tinha no mundo e agora era dona do rancho que o pai lhe deixara.
Beijaram-se enquanto o Sol se punha e regressaram a casa de mãos dadas, gratos pêlos preciosos momentos que tinham partilhado, quando Crystal começou a cantar baixinho.
Spencer percorreu com ela o rancho no dia seguinte. A maior parte das terras estava coberta por ervas e já não havia trabalhadores. Só as vinhas estavam mais ou menos bem cuidadas, e viram dois mexicanos a tratar delas quando passaram de carro.
Nadaram no riacho, que ela adorara quando criança, depois sentaram-se na margem embrulhados em cobertores, rindo-se e acariciando-se, e Crystal entoou as canções que cantara com o pai. Sentiu uma certa culpa como se se estivesse a rir na campa da mãe, mas não era isso. A mãe morrera para ela já há muitos anos e o rancho era uma última prenda do pai.
Quando regressaram a casa, pôs a velha chaleira ao lume e isso fê-la recordar-se da avó com o seu avental branco imaculado. Contou a Spencer algumas das suas primeiras recordações, e ele ouviu-a deleitado. Por fim, falaram de Washington e de quando ele voltaria para lá.
— E a Elizabeth? — Ambos sabiam que ele tinha de tomar uma decisão. Mas esta surgiria por si própria se ele ficasse tempo suficiente com Crystal. Não conseguia imaginar-se a deixá-la de novo, e ambos sabiam que ele não o desejava. Já não via Elizabeth há três meses, e estava quase certo que com um pouco de pressão da parte dele ela lhe daria o divórcio. Era um grande vexame para ela o facto de Spencer ter largado tudo em Washington e ter ficado na Califórnia com Crystal. E esta desejava que ele ficasse ali, mas queria que fosse ele a tomar a decisão. Não queria que ele desistisse da vida que tinha em Washington, se era isso que desejava. Nada tinha para oferecer em comparação com a vida que ele tivera com Elizabeth e co os Barclay. Soubera na véspera que o rancho mal produzia para se sustentar. Crystal conseguiria sobreviver ali, mas, comparada com Elizabeth, nada tinha. A única coisa que possuía era o seu amor por Spencer e tudo o que sentia por ele desde o casamento de Becky.
Ele lembrou-se de ligar ao senador nessa tarde, e Crystal estava a lavar a loiça enquanto ele fazia a chamada. Ouvia rádio e levantou os olhos quando o ouviu desligar o telefone. Sorriu e limpou as mãos às calças de ganga novas que
comprara.
— Que tal?
Ele cou a olhar para ela. Estavam a acontecer coisas estranhas a ambos. O jovem senador da Califórnia seguira o julgamento com bastante avidez e queria que Spencer fosse trabalhar com ele quando regressasse a Washington, o que o senador esperava que fosse depressa. Tinha um cargo importante a oferecer-lhe, na preparação da sua campanha, e, pelo menos daquela vez, nada se devia ao juiz Barclay.
— É isso que queres? — perguntou ela depois de ouvir a explicação. Era um cargo de grande prestígio de que ele iria gostar, mas Spencer não queria regressar a Washington e deixá-la. Queria viver com ela ali, em Aexander Valley.
— Era precisamente isso que eu teria desejado há seis meses. Teria dado o braço direito para o conseguir. — Sentou-se numa das velhas cadeiras da cozinha e ela serviu-lhe um café. — Mas agora, não sei. Prefiro ficar aqui contigo.
— Puxou-a para o seu colo e olhou para ela, ainda atordoado com a proposta do senador.
— O que lhe disseste? — Observava-o atentamente. Precisava de saber o que era melhor para ele e aquilo que ele realmente desejava.
— Disse que lhe ligava para a semana quando regressasse. Ele volta para Washington amanhã à tarde. Custa-me a crer que esteja a falar a sério, mas deve estar. — Depois da catástrofe estavam ambos com muita sorte. — Mas onde é que isso nos deixa? Virias comigo? — Quase se esquecera de Elizabeth. Naquele momento só contava Crystal.
— Isso agora não é importante. O que interessa é em que situação ficas.
Ele bebeu um gole do café fumegante, olhou-a com ar pensativo, e admitiu que aquilo era o que sempre desejara. De repente, o horizonte político estava abrir-se para ele, mas demasiado tarde, pois agora tinha Crystal. Não queria perdê-la de novo, nem sequer por um emprego como aqueIe. Mas ao ouvi-lo falar da política, ela apercebeu-se de como ele gostava daquilo. E também sabia que iria sair-se bem com uma mulher como Elizabeth. Todas as esperanças de Spencer morreriam se casasse com uma mulher como ela, acusada de ter morto Ernie. O escândalo tê-lo-ia arruinado, e depois o que lhe restaria? A vida de agricultor. Não fora talhado para ela. Estava destinado a coisas mais elevadas, e nessa noite, depois de ter feito amor com ela Spencer achou-a muito calada. Perguntou-se o que a estaria a incomodar, embora talvez fosse a casa e as recordações que lhe trazia. Estava tudo tão velho e gasto, tal como a mãe antes de morrer. Havia ali uma aura de dor, até que se saía lá para fora e via a majestade do vale.
— Em que estás a pensar? — Fez-lhe uma festa no cabelo e apertou-a junto de si. Ela sorriu-lhe com tristeza ali na cama estreita que outrora partilhara com Becky.
— Estava a pensar que já é altura de regressares a Washington e enfrentares os touros. — Era o maior sacrifício que ela faria, mas sabia que era necessário.
Ele abanou a cabeça.
— Não quero tornar a deixar-te — contrapôs ele. — Já passámos por bastante. Merecemos isto.
Ela soergueu-se num cotovelo e baixou os olhos para ele.
— Não pertences aqui, meu amor. Estás destinado para coisas mais grandiosas do que governar um velho rancho como este. — Tinha a certeza daquilo, mas ele não a queria ouvir.
— Então e tu? Não sejas ridícula. Há três meses eras uma estrela de cinema, e agora olha para ti! Voltaste para onde partiste.
— É diferente Spencer. — Deu-lhe um beijo na ponta do nariz. — Isso era tudo faz-de-conta. Aquilo que fazes é importante. Um dia podes vir a ser um grande homem. Até podes chegar à Presidência. — Mas isso nunca sucederia se o deixasse ficar com ela. Não ali. Não em parte alguma, casado com uma assassina. Crystal podia custar-lhe tudo. E não iria permitir uma coisa dessas. Spencer tinha de voltar para Elizabeth. Ela era exactamente o género de esposa de que ele precisava. — Quero que voltes agora para Washington.
— Porquê? — Ele olhou-a admirado. — Como podes dizer uma coisa dessas?
— Porque o teu lugar é lá. Ainda não acabaste o que tinhas a fazer. Tens sítios onde ir, pessoas a visitar, ideias ainda não nascidas a partilhar com as pessoas que precisam de ti. Eu passei um bom bocado, mas isso foi tudo divertimento, e a um preço demasiado alto. Já não quero mais. Tu queres. É essa a diferença. — Vira a expressão nos olhos dele depois do telefonema ao senador. Não podia privá-lo daquilo. E sabia que se o zesse, ele poderia vir a odiá-la mais tarde.
— E o que é que eu faço? Deixo-te aqui? Porque não vens comigo? — Os seus olhos imploravam-lhe.
— Para Washington? — perguntou Crystal com um sorriso.
— Porque não?
— Porque iria destruir-te num instante, apesar de todo o amor que sinto por ti. Pensa naquilo que arrasto atrás de mim. Fui acusada de homicídio Spencer. E o júri limitou-se a dizer que eu o fiz em autodefesa. Não disse que eu não o matara. A tua carreira acabaria assim que eu aterrasse em Washington, e tu sabe-lo.
— Não vou voltar. — Ele puxou-a para junto de si, apertando-a com força, com medo de a perder.
Mas ela falou muito séria na escuridão, e as suas palavras assustaram-no.
— Não vou permitir que fiques aqui.
— Porque não?
— Porque isso iria destruir-te.
Ele não lhe respondeu, e depois de ela ter adormecido, Spencer ficou acordado durante bastante tempo, abraçado a ela, a ouvi-la respirar. Sabia que se a deixasse morreria, ou pelo menos parte dele. Para sempre. Mas no dia seguinte ela tornou a falar no assunto, e foi categórica. Por fim Crystal soube o que havia a fazer. Tinha de o mandar embora, a qualquer preço, mesmo que tivesse de dizer que não o amava. Mas não foi preciso chegar a esse extremo. Limitou-se a dizer que ainda não estava pronta para viver com ele. Queria ficar sozinha no rancho, apesar de parecer insensível depois de tudo o que ele fizera por ela. Com vinte e quatro anos, depois de tudo o que passara Crystal não queria pensar em casamento. Disse que precisava de ficar sozinha, mas ele não acreditou. Lembrou-se de quando ela lhe ligara cerca de ano e meio antes e lhe dissera que não o amava, para o salvar de Ernie.
Spencer estava devastado quando regressaram a casa vindos do riacho.
— Porque queres ficar aqui sozinha?
— Porque preciso. É tudo. Quero ficar sozinha para fazer o que me apetece. Tenho direito a isso, não?
Spencer ficou muito ferido, e Crystal teve de reprimir as lágrimas toda a noite enquanto ele a abraçava. Discutiram durante alguns dias, mas ela manteve-se rme, e depois de uma semana de agonia soube que o convencera. Ele iria aceitar o cargo em Washington, mas garantiu que viria vê-la muitas vezes. Ela sabia bem o escândalo que isso iria causar, e prometeu a si mesma não permitir tal coisa. Tinha de ser forte por ele. Sabia que qualquer laço que mantivessem, qualquer contacto, qualquer relação poderia destruí-lo. A reputação dela estava agora manchada e se ele fosse outro tipo de homem a história teria sido diferente. Mas Spencer tinha a vida pela frente, e os seus olhos iluminavam-se de cada vez que falava do novo emprego em Washington com o senador da Califórnia. Ela não iria tirar-lhe isso nem o que daí pudesse advir. Um dia, ele poderia fazer grandes feitos e não iria ser ela a impedi-lo. Crystal também sabia que o lugar dele era junto de Elizabeth, independentemente de Spencer lhe afirmar o contrário. Mas quando pensava em desistir dele, Crystal sentia-se como uma mulher que abandona os filhos na soleira de uma porta.
Ele partiu ao fim de uma tarde, e beijaram-se com ardor e durante bastante tempo, enquanto o Sol se punha atrás deles. Spencer ainda insistiu para que ela o acompanhasse, mas Crystal recusou até ao fim. Spencer só acedeu em ir com a condição de regressar em breve para a ver, mas ela foi mais esperta. Ficou de pé com ar altivo, acenando-lhe como se esperasse vê-lo de novo, mas tal não era verdade. Seria demasiado perigoso para ele, e com o tempo Spencer acabaria por agradecer-lhe. Deitou-se na cama depois de ele ter partido, chorando como se o seu coração fosse rebentar. Ele tornara a partir, e apesar de todo o amor que ela sentia por ele, daquela vez tinha de ser para sempre. Libertá-lo fora a última dádiva de Crystal. Era tudo o que lhe restava para dar. Ele tinha tudo o resto: o seu coração, a sua alma, o seu corpo.
Crystal ofereceu a vivenda a Boyd e a Hiroko e eles mudaram-se em Março, depois de tudo limpo e pintado, de terem arrancado as ervas daninhas e plantado um jardim. Contratara dois homens para tratar do milho, e mais mexicanos para trabalharem na vinha. Boyd ia todos os dias para a bomba da gasolina, mas Hiroko e Crystal trabalharam como escravas para porem a casa de novo em ordem, com a ajuda da pequena Jane.
E em Abril, quando o sol já estava quente, e depois de ter esfregado paredes todo o dia e de as pintar ao anoitecer, Crystal quase desmaiou. Hiroko ajudou-a a sentar-se e olhou-a com uma expressão preocupada. Passava-se algo com ela, embora Crystal o negasse. Mas os dois últimos meses haviam sido duros, e o julgamento antes disso, e pior ainda fora a época que passara com Ernie. No entanto, o mais difícil era a saudade que tinha de Spencer. Este ligara-lhe várias vezes, mas ela fora sempre muito vaga, insistindo que ainda não era altura de voltar. Spencer estava a trabalhar para o senador, dirigindo a campanha em Washington, e adorava o trabalho, mas mesmo assim desejava voltar para ver Crystal. Ela disse-lhe com alguma frieza que andava a encontrar-se com uma pessoa da cidade e que já tinha o rancho bem controlado. Quanto a ele voltara para Elizabeth que, mais uma vez e apesar de tudo, recusara o divórcio.
Hiroko colocou um pano húmido sobre a testa de Crystal e sentou-se a seu lado, insistindo para que a amiga fosse ao médico.
— Não sejas ridícula. Estou bem. Só já não estou habituada a trabalhar tanto. — Mas o rancho voltara a ter um aspecto limpo, quase melhor do que dantes. O pai dela teria sentido orgulho, e Boyd mal podia acreditar nas modificações que ela fizera em tão pouco tempo. Só regressara havia dois meses.
Três dias depois ela tornou a desmaiar, desta vez enquanto arrancava as ervas do jardim. Jane encontrou-a estendida no chão e correu a chamar a mãe. Gostava da sua nova casa e da nova amiga, e Crystal prometera ensinar-lhe a montar, no Verão. Mas desta vez Boyd levou-a de carro à cidade, deixando-a em frente ao consultório do Dr. Goode.
— Mexe-me esse eu lá para dentro Crystal Wyatt, ou será que tenho de te arrastar?
Crystal sorriu-lhe: estava um dia muito quente, mas ela sentia frio e trazia uma camisola grossa. Teve medo de que fosse alguma coisa séria, e era. O Dr. Goode disse-lhe de forma muito concisa que ela estava grávida. Ela ficara a olhá-lo com uma expressão descrente mas, ao fazer as contas, soube que ele tinha razão. Nessa noite contou a Hiroko.
— Que é que tencionas fazer? — perguntou Hiroko calmamente. Sabia bem quanto Crystal amava Spencer e que o mandara embora para o seu próprio bem, não porque já não o amasse.
Crystal olhou-a com tristeza, mas não tinha dúvidas quanto ao bebé nem quanto ao que queria.
— Vou ter o meu lho. — Era tudo o que lhe restava dele, e tinha um lar para a criança. Deveria nascer no nal de Novembro. Calculou que devesse ter engravidado da primeira vez que tinham feito amor em São Francisco.
Boyd ficou atordoado quando Hiroko lhe deu a novidade e Crystal obrigou-o a jurar segredo, para seu desgosto. Achava que ela devia contar a Spencer. Mas Crystal foi categórica. Spencer estava muito longe. E Crystal iria certificar-se de que ele ficava por lá.
— Queres dizer que não tencionas contar-lhe? Ela abanou a cabeça. Essa era a última coisa que faria. Já lhe custara um emprego, e o que lhe estava a acontecer agora era demasiado importante.
— Não vou dizer a ninguém, excepto a vocês os dois. — Nem sequer contaria a Harry e a Pearl. Eles faziam parte de outra vida. E Crystal iria ficar no vale até ter o filho. E à medida que o ventre crescia nos meses de Verão, só conseguia pensar no lho de Spencer. Era a única grande alegria da sua vida... a última recordação de Spencer.
Crystal tivera razão Spencer adorava o emprego. Trabalhar para o jovem senador era exactamente o que ele desejara. Ficava até tarde no escritório e as suas responsabilidades eram enormes. Viu-se de repente no centro do mundo político, e aí o seu passado de advogado conferia-lhe bastante prestígio, ao ponto de pensar concorrer um dia ao Congresso. Mas gostava demasiado do senador para se afastar naquele momento.
Até Elizabeth andava satisfeita, e essa era a única razão pela qual, mais uma vez, não lhe concedera o divórcio. Apesar do seu desempenho no tribunal, e do romance que ela calculava que ele tivera, Elizabeth conseguira por fim aquilo que desejara. Era casada com «uma pessoa importante». Ficara furiosa com o regresso dele, e durante a primeira semana ele mal a vira. Preparava-se para mudar de casa. Com ou sem Crystal sabia que não podia continuar casado. O tempo que passara com ela demonstrara-lhe o que tinha perdido com Elizabeth e já não estava disposto a viver sem isso. Teria preferido ficar sozinho, como lhe disse, quando finalmente falaram do assunto. E ele não lhe mentiu nem apresentou desculpas nem explicações.
— Não é bom para nenhum de nós. Mereces melhor, e eu também.
Passara uma semana após ele ter aceitado o emprego, e depois das ameaças feitas antes do julgamento e do tempo que ele ficara fora Spencer não podia acreditar que ela não lhe concedia o divórcio. Não lhes restava nada, e ela sabia que ele passara as últimas semanas com Crystal.
— Acho que é altura de acabar com tudo. Ela andava intrigada com o trabalho dele. Era a primeira coisa que Spencer fazia que ela achava ter algum mérito. E as pessoas comentavam o excelente trabalho que fizera na defesa da estrela de cinema. Em vez de zangada, ficou orgulhosa, e ele percebeu como a conhecia mal. Para Elizabeth só contava a fama, a qualquer preço, até mesmo à custa do casamento.
— Porque não esperamos algum tempo, Spencer? Como já esperámos tanto, bem que podemos ficar juntos mais uns meses.
Estava com uma expressão afectada, e não se sentia nada romântica. Mas ele também não. Sabia que os dias nos quais fingira que amava Elizabeth já há muito tinham acabado e não queria continuar a fingir. Queria liberdade, e foi exactamente isso que lhe disse.
— Por que motivo queres continuar com isto, Elizabeth? Já nem sequer somos amigos. Não te importas? Mas a verdade é que ela não se importava.
— Gosto do que estás a fazer, Spencer. — Ser mulher do assessor de um senador intrigava-a.
— Estás a falar a sério? — perguntou ele chocado.
— Sim. Estou disposta a manter isto, se tu estiveres. Aliás, não vou deixar-te ir embora. — Como de costume, era directa. — Deves-me isso.
Ele ficou lívido.
— Porquê?
— Fizeste-me passar por idiota com aquela rapariga, e se pensas que me vou divorciar para que te possas casar com ela, estás maluco.
Spencer não lhe disse que Crystal o mandara embora, aconselhando-o a manter o casamento para bem da sua carreira.
— Gostaria de casar com ela. — Não ia mentir-lhe. — Mas a verdade é que ela não quer.
— Então ou é idiota ou muito inteligente. Não sei bem qual das duas hipóteses.
— Ela diz que quer ficar sozinha e que prejudicaria a minha carreira.
— Tem razão. E é mais esperta do que eu pensei. — Elizabeth não lhe disse que aquelas palavras lhe tinham indicado quanto Crystal amava Spencer. Não iria defender a causa de Crystal junto dele e queria continuar casada. — Ela vai regressar a Hollywood?
Ele abanou a cabeça:
— Não, foi para casa. Isso já acabou para ela.
— E onde é que ela mora? — Estava curiosa. Parecia aconselhável saber o mais que pudesse sobre a adversária.
— Isso não interessa.
— Vais voltar a vê-la? — Sabia pela expressão dos olhos de Spencer que ele o faria se Crystal o deixasse. Mas pressentia que algo acontecera antes de ele regressar e suspeitava que Crystal o mandara embora. Ele não teria vindo de outra forma. Mas agora que o tinha de volta, iria fazer tudo para ficar com o marido. — Es um idiota se continuares envolvido com ela. Não creio que o teu senador gostasse da ideia.
— O problema é meu, não teu. — Não queria falar de Crystal com a mulher. Pensava nela noite e dia. Mas quando lhe ligava, ela ainda era categórica ao dizer-lhe que queria ficar sozinha. Dizia-lhe que a vida de ambos era demasiado diferente, e nada do que ele dissesse a demoveria.
Entretanto, ele andava tão ocupado com o trabalho que as semanas pareceram voar e acabou por não mudar de casa, nem voltou a tocar no assunto. Spencer via os pais dela com menos frequência do que dantes, embora o juiz o tivesse felicitado pelo novo emprego. E também estava satisfeito com Elizabeth. A filha fora educada para ser mulher de um homem importante e agora Spencer podia dar-lhe o que ela sempre desejara.
Spencer nunca percebeu porquê, mas continuou a viver na casa de Georgetown. Estava sempre demasiado ocupado para se mudar e Elizabeth deixava-o em paz. Ia com ele a festas, ajudava-o a receber e tinha uma vida própria muito preenchida, com actividades sociais, amigas e a faculdade. Nunca se queixou sobre o status quo, e passado alguns meses, Spencer apercebeu-se de que estar casado com ela era útil. Sentia-se culpado por ver as coisas daquele prisma, mas Washington era uma cidade estranha, e os políticos eram-no ainda mais. E não lhe fazia mal nenhum ser casado com a filha do juiz Barclay.
No Outono fazia seis meses que começara a trabalhar para o senador e andava tão ocupado que era indiferente à mulher com quem estava casado. Nunca a via, excepto nas festas em que ela estava na mesma sala que ele.
Mal tinha tempo para telefonar a Crystal, que lhe surgia sempre muito fria quando falavam. Disse que estava bem e falou-lhe do rancho, mas deixou claro que não queria tornar a vê-lo. Mandara-o para casa, para Elizabeth e para Washington, e ele estava de novo encurralado. Era precisamente aquilo que ela lhe desejara e soubera por instinto que era aquilo de que ele precisava.
Spencer só tomou a ver a família no início de Novembro. Elizabeth preparou um jantar muito vistoso e os pais dele vieram de Nova Iorque e ficaram em casa deles. De novo, o juiz Hill se congratulou por ter insistido com o filho para que continuasse casado com ela depois dos dias perturbados a seguir à Coreia. Os Barclay também estavam contentes, e ninguém perguntou quando tencionavam ter filhos;
via-se que estavam bastante ocupados, e em Junho Elizabeth acabara o curso de Direito.
— Imaginem só — brincou o pai de Spencer —, dois advogados debaixo do mesmo tecto. Podem abrir a vossa própria rma.
Se assim era, pensou Spencer, era a única coisa que tinham em comum. Mas Elizabeth nada denunciou e mostrou-se tão encantadora como sempre. Todos adoravam a mulher de Spencer. Avizinhava-se para ambos um futuro muito sorridente e o juiz Barclay sugerira que depois de algum tempo a trabalhar com o jovem senador, Spencer poderia pensar na sua própria carreira e concorrer a um cargo político. Tal como Elizabeth, achava que ele devia concorrer ao Congresso. Mas era demasiado cedo. Spencer estava demasiado envolvido no seu cargo, e afundava-se cada vez mais no trabalho para fugir à solidão do casamento. Com trinta e seis anos, já tinha ido longe. Mas no processo perdera aquilo que mais desejava... não a mulher... mas a rapariga que conhecera no rancho havia seis anos. Perdera Crystal.
Crystal também organizou o seu jantar de Acção de Graças: recheou um peru, fez tartes de uva-do-monte e de inhame, cozeu maçarocas e serviu-o na cozinha acabada de pintar. Hiroko e Boyd vieram ao jantar com Jane, e Boyd sorriu ao ver como a barriga de Crystal estava grande quando ela se sentou à mesa. Foi Jane quem agradeceu ao Senhor por aquela refeição. O bebé devia estar prestes a nascer. E Boyd sabia sem nada lhe perguntar que Spencer não tinha conhecimento do filho. Sofria ao ver a solidão estampada no rosto da amiga, mas ela mostrara-se categórica desde o início e não mudara de ideias, apesar de isso lhe custar muito. Boyd achava que ela ainda recebia notícias dele de vez em quando. Crystal falou-lhes do êxito dele em Washington, como assessor do senador, mas ficou calada durante a maior parte do jantar.
O rancho parecia agora muito diferente, tudo estava limpo e pintado de fresco. Ele mal reconheceu a casa quando se sentou para jantar na grande mesa de carvalho ao meio da acolhedora cozinha amarela. Já nem conseguia imaginar ali a mãe dela e felizmente que Crystal também não. Ainda pensava no pai quando dava passeios a pé. Não podia montar até ao nascimento do filho, mas parecia ter muito que fazer e transformara o quarto de Jared no quarto do filho. Pintara-o de azul-claro e pendurara cortinados brancos com ilhós.
— E se for uma rapariga? — brincou Boyd nessa noite, antes de se irem embora. Ela sorriu-lhe calmamente:
— Não vai ser.
Na manhã seguinte, quando Hiroko a visitou, encontrou-a sentada no quarto com uma expressão muito concentrada. Aquilo fê-la recordar-se de algo e, enquanto observava, viu o rosto de Crystal contorcer-se de dor.
— O bebé vem a caminho, não é?
— Sim. — Crystal sorriu apesar da dor, e momentos depois estava agarrada aos braços da cadeira. Não conseguia falar, e Hiroko correu para junto de Boyd, pedindo-lhe que fosse chamar o édico. Havia meses que insistiam para que ela fosse para o hospital, mas Crystal dissera que queria ter o filho em casa. Era conhecida, os filmes que fizera ainda estavam em exibição, e mais do que urna vez as pessoas tinham reparado nela na cidade, pondo-se a olhar e perguntando-se se seria a mesma mulher. Ela não queria que ninguém soubesse do filho, especialmente a imprensa. A notícia não se podia espalhar. Se assim fosse, haveria um escândalo e a coisa chegaria também aos ouvidos de Spencer. Crystal queria evitar isso a qualquer preço. Mas o preço, como Boyd e Hiroko bem sabiam, podia ser o bebé. Tinham perdido o segundo filho dessa forma, e teriam também perdido Jane se Crystal lá não estivesse. Mas o Dr. Goode dissera que ela era jovem e robusta. Não havia razões para que uma rapariga de vinte e quatro anos não pudesse dar à luz em casa se assim o desejasse.
Boyd telefonou ao Dr. Goode, e ele apareceu uma hora mais tarde. Nessa altura Crystal mal conseguia respirar por causa das dores. Tinha o rosto encharcado em suor e Hiroko estava sentada ao seu lado, segurando-lhe na mão como Crystal fizera com ela. Boyd levou Jane lá para fora e deixou-a a brincar no jardim, enquanto o Dr. Goode e Hiroko trabalhavam.
Hiroko foi um pouco até lá fora ao final da tarde; parecia preocupada e exausta, e disse ao marido que fosse para casa com a filha. O Dr. Goode dissera que o parto ainda poderia levar algumas horas.
— Ainda não há nada? — Boyd estava preocupado com a amiga. Já se encontrava em trabalho de parto há bastante tempo e era difícil imaginar que o bebé ainda não tivesse saído.
— O médico disse que o bebé é muito grande. — Boyd observou-lhe o rosto, recordando-se da sua própria experiência com Jane, mas a sua mulher sorriu antes de voltar a entrar. — Talvez em breve.
Foram as mesmas palavras que ela disse a Crystal pouco depois, enquanto esta se esforçava por expulsar o bebé de dentro de si, com a ajuda das mãos experimentadas do Dr. Goode. Ele fora o médico que se recusara a socorrer Hiroko sete anos e meio antes e a tratar dela durante a gravidez porque perdera o seu filho na guerra com os Japoneses. Mas observava-a agora, e cou tocado pela sua ternura, compaixão e sabedoria. Hiroko parecia estar iluminada por algo profundamente caloroso, amável e religioso, e durante breves momentos teve vontade de lhe pedir desculpa. Sabia que o segundo filho dela morrera e perguntou-se se a poderia ter ajudado. Hiroko nada disse quando viu que ele a observava, e limitou-se a encorajar Crystal em silêncio, deixando-a apertar-lhe as mãos e chorar quando as contracções vinham mais longas e mais fortes; mas o bebé continuava a não querer sair.
— Talvez tenhamos de a internar — disse o Dr. Goode. Começava a pensar em cesariana, mas Crystal soergueu-se e olhou-o com tal violência que ele ficou perplexo.
— Não! Eu fico aqui! — Um ano antes fora acusada de homicídio. E para pôr fim à carreira de Spencer só lhe faltava agora um filho ilegítimo. Se alguém pensasse que o filho era dele, a notícia estaria nos jornais já na manhã seguinte. — Não! Vou conseguir sozinha... oh, meu Deus... — Teve outra contracção antes de conseguir dizer mais qualquer coisa, e, sabendo quais as intenções do médico, fez mais força. Dessa vez o bebé desceu mais um pouco, ela tornou a fazer força e o médico assentiu.
— Se conseguires fazer mais umas dessas, talvez tenhamos o bebé cá fora em menos de nada.
Ela esboçou um sorriso ténue para Hiroko, e sem dizer para onde ia, o médico afastou-se para ligar à enfermeira. Avisara-a de que talvez viesse a precisar de uma ambulância no rancho Wyatt. Poderiam ter de levar Crystal para o hospital de Napa. Não queria arriscar a vida dela se o parto continuasse por muito mais tempo. A enfermeira prometeu ficar a postos e avisar o motorista da ambulância, para o que desse e viesse. Mas quando regressou para junto de Crystal viu que ela fizera alguns progressos.
— Outra vez!... isso mesmo... empurra agora com força!... com mais força!
Ela já não tinha mais forças, os olhos quase lhe saíam das órbitas, tinha o rosto vermelho e esforçara-se tanto que parecia sentir o corpo prestes a explodir devido a uma enorme tensão, como se um comboio a rasgasse. Já não podia parar, tinha de continuar a fazer força até que Hiroko a olhou muito espantada. De entre as pernas de Crystal surgiu uma carinha vermelha, com a cabeça cheia de cabelo preto espesso, e o bebé chorou zangado quando o Dr. Goode lhe pegou pêlos ombros e o puxou para fora, colocando-o de seguida sobre o ventre da mãe. Crystal estava tão cansada que mal conseguia falar, mas sorriu ao filho por entre as lágrimas e riu-se ao olhar para ele.
—É tão bonito... oh, é tão bonito...
E até Hiroko viu que ele era uma cópia de Spencer.
Crystal dirigiu um sorriso vitorioso ao médico depois de ele ter cortado o cordão umbilical; depois Hiroko lavou-a e embrulhou o bebé num cobertor branco.
O médico sorriu em resposta.
— Deixaste-me preocupado durante algum tempo. Aquele teu honizihho deve pesar mais de quatro quilos.
Pesaram-no na balança da cozinha, e o médico tinha razão. O filho de Spencer pesava seis quilos e meio. O Dr. Goode devolveu-o aos braços da mãe e ela tornou a sorrir-lhe. O filho era uma dádiva de Deus, e era exactamente isso que ela lhe iria chamar. Zebediah... «Dádiva de Deus». Era um nome forte para uma criança forte, nascida do amor que ela sentira durante muito tempo pelo seu pai.
O médico ficou mais alguns momentos enquanto ela e o bebé dormiam em paz. Fora um dia de muito trabalho para todos, especialmente para Crystal. Saiu do quarto em silêncio e encontrou Hiroko sozinha na sala de estar. Ela ofereceu-lhe uma chávena de chá fumegante, e depois de alguma hesitação ele aceitou-a. Era-lhe difícil ainda agora falar com ela, mas naquele dia Hiroko ganhara o seu respeito, e ele teve pena de que isso não tivesse acontecido mais cedo.
— Ajudou-me muito, senhora Webster — disse ele com cuidado, e ela sorriu. Era muito sábia para a idade que tinha. A sua vida não fora fácil, mas trouxera-lhe grandes bênçãos, graças ao marido e a Crystal.
— Obrigada — agradeceu, sorrindo-lhe timidamente.
Quando se foi embora, o médico apertou-lhe a mão. Não era um pedido de desculpas, para isso já era demasiado tarde, mas era um primeiro passo para a aceitação.
O Dr. Goode comentou o assunto na manhã seguinte com a enfermeira, já no seu consultório. Demorara dez anos, mas finalmente tinham-lhe perdoado o facto de ser japonesa e haviam compreendido que Hiroko Webster era uma boa mulher. Ela reparou que depois disso as pessoas a olhavam de maneira diferente, e um dia, quando foi à mercearia com Jane, a mulher da caixa registadora sorriu-lhe e disse-lhe «olá» depois de dez anos a atendê-la em silêncio.
O bebé de Crystal crescia forte e saudável. Ela recuperou bastante depressa e quando o filho fez um mês, baptizaram-no na igreja onde a sua irmã se casara. Chamou-se Zebediah Tad Wyatt, e os padrinhos foram Boyd e Hiroko Webster. Depois da cerimónia, Crystal deixou Jane pegar-lhe. Ela lutou com o peso da criança adormecida, e todos se riram. Depois levantou o rosto com uma expressão preocupada e fez a Crystal uma pergunta que lhe provocou lágrimas.
— Quem vai ser o pai dele?
Crystal reprimiu as lágrimas e baixou o olhar para Jane, que tinha nos braços o filho de Spencer.
— Acho que ele só me tem a mim. Talvez isso signifique que tenhamos de o amar um pouco mais. — E perguntou-se se um dia Zeb lhe colocaria a mesma pergunta.
— Posso ser a tia dele?
— Claro que sim. — As lágrimas correram pelas faces de Crystal quando os beijou. — Tia Jane. Ele vai gostar muito de ti quando for maior!
A criança parecia satisfeita quando devolveu Zebediah Wyatt aos braços da mãe.
A 26 de Novembro de 1956, Zebediah festejou o seu primeiro aniversário. Ingrid Bergman rodara Anastásia nesse ano, depois de ter saído do tipo de escândalo que Crystal se sentia tão grata por ter evitado. Não era tão conhecida como a actriz sueca, mas depois do julgamento do ano anterior poderia ter sido fonte de escândalos e dava graças a Deus por isso não ter sucedido.
Foi a própria Crystal quem preparou o bolo de Zeb, e ele riu de contentamento ao enfiar as duas mãos na massa enquanto Jane ajudava a limpá-lo. Tinha já oito anos e adorava o bebé. Era o seu companheiro de brincadeiras favorito.
Hiroko começava a ser aceite, de forma tácita, pelas pessoas que a tinham banido durante uma década. Mas Jane ainda pagava o preço pela coragem dos pais, e a maior parte dos seus colegas da escola troçava dela chamando-lhe mestiça. Isso tornou-a muito tímida e medrosa e também muito sábia. Mas com os meigos ensinamentos de Hiroko, começava a adquirir o dom do perdão e da paciência. Levava Zeb para todo o lado no rancho, e era uma grande ajuda para Crystal, que andava muito ocupada a supervisionar tudo e às vezes até a cavar. O rancho ia bem e ela vendera um pequeno terreno para pagar alguns melhoramentos. Mas também sabia que nunca iria obter muitos lucros, apenas o suficiente para sobreviver. O melhor que poderia fazer era tornar o rancho auto-sufíciente, para assim pagar as suas primeiras necessidades e as de Zeb. Nunca iria torná-los ricos nem sequer permitir-lhes pequenos luxos, e já há meses que ela andava preocupada.
Via os Webster a lutar pela sobrevivência e não os deixava pagar a renda, pois, à semelhança do rancho, a bomba da gasolina também não dava grandes lucros. E agora ela tinha que pensar em Zeb. Pensava que em breve teria de arranjar um emprego e poupar algum dinheiro para o futuro do filho. Sabia que nunca venderia o rancho. Ainda se recordava das palavras do pai, que lhe dissera para não vender aquela terra, e não o faria sob pretexto algum. Aquela era a sua casa, e a de Zeb, e agora a dos Webster.
Não referiu nenhuma das suas preocupações quando Spencer telefonou. Continuava a fazê-lo de vez em quando, mas, com receio que ele ouvisse o filho, era sempre lacónica. E ele telefonava com frequência cada vez menor. Só o torturava ouvir a voz de Crystal, mas ela dissera-lhe claramente que não desejava vê-lo. Tinha receio que ele visse Zeb se regressasse, e o filho era um segredo que ela guardava com a própria vida. Sabia que Spencer estava a sair-se bem, lera uma vez um artigo sobre ele na revista Time, e de vez em quando apareciam referências a ele até nos jornais locais.
Na Primavera de 1957, o país gozava de prosperidade económica, mas isso parecia nada ter a ver com a realidade de Crystal. Ela teria de fazer algo em breve. O Inverno fora difícil e já não era possível ocultar as dificuldades. Tinha de se empregar para conseguir mais dinheiro.
Zeb fez ano e meio e corria atrás de Jane por todo o lado. Esperava ansioso que ela regressasse da escola ao final do dia. E numa tarde de Maio, Crystal e Hiroko seguiam-nos pela estrada de terra que passava por entre as vinhas. Crystal tomara a decisão na noite anterior, depois de meditar no assunto durante meses. Era a única coisa que sabia fazer, e dois anos depois, o escândalo já fora esquecido. Tinha de regressar a Hollywood para tentar a sua sorte. Hiroko olhou-a com tristeza ao ouvir aquelas palavras. Sempre se perguntara se Crystal regressaria algum dia à cidade. E de certa forma isso não a surpreendeu. Ficariam destroçados ao vê-la partir, ela podia até vender o rancho. Mas Crystal tranquilizou-os de imediato, e o que disse a seguir espantou Hiroko.
— Que*ro deixar o Zeb contigo. — Observava-o a andar atrás de Jane, enquanto a criança mais velha se ria, e Zeb dava as gargalhadas prazenteiras que tanto alegravam a sua mãe. A cada momento, a cada dia, ele fazia-lhe lembrar o pai.
— Vais para Los Angeles sem ele? — Hiroko mal podia acreditar.
— Tem de ser. Olha o que aconteceu à Ingrid Bergman. Posso levar anos a entrar noutro filme. Talvez nunca e deixem. Mas vale a pena tentar. É a única coisa que sei fazer. — E sabia que fora boa naquilo. Vira um dos seus filmes no ano anterior e ficara intrigada ao ver-se na tela. E agora, com vinte e cinco anos, havia na sua expressão urna certa maturidade que parecia ter aumentado ainda mais a sua beleza, embora ela não o soubesse. Faria vinte e seis anos nesse ano, e tinha de pensar no filho. Mas a altura de ir era aquela, antes de envelhecer e antes de ser esquecida. Perdera o contacto com toda a gente de lá, propositadamente, e agora teria de começar tudo de novo. Mas desta vez teria de o fazer no duro, sem apresentações fáceis através de um homem como Ernie. Não voltaria a aceitar favores de ninguém. Aprendera essa lição. Nessa noite Hiroko contou ao marido, e ele ficou tão admirado como ela ao saber que Crystal ia partir.
— Vai deixar o Zeb connosco? — Hiroko assentiu, e Boyd ficou sensibilizado. Era a prova máxima de como ela conava neles. Sabiam quanto Crystal amava o filho, e em Junho, Crystal chorou sem parar durante uma semana antes de o deixar. Era como se lhe estivessem a arrancar a alma, mas ela tinha de o fazer, para bem dele. Era melhor agora do que dez anos mais tarde; nessa altura seria tarde de mais para ela. Pêlos padrões de Hollywood, Crystal não estava a ficar mais nova.
— E se ele se esquecer de mim? — perguntou ela a chorar à amiga, enquanto Hiroko a via sofrer com aquela separação. Perguntou-se se ela teria forças suficientes.
Num dia límpido de Junho, ela beijou-o pela última vez e ficou durante muito tempo no alpendre ao sol da manhã a observar a terra, sentindo no coração a mesma dor que sentia sempre que olhava para aquilo que lhe fora deixado pelo pai. Segurou Zebediah bem junto a si, cheirou a doçura da sua pele e depois, com um soluço reprimido, entregou-o a Hiroko.
— Toma conta dele...
Zeb chorou e estendeu os bracinhos. Nunca se afastara dela nem por uma hora, desde que nascera. E agora ela ia abandoná-lo. Prometera voltar logo que pudesse, mas as suas finanças não lhe permitiriam muitas viagens.
Boyd levou-a à cidade e ficou a vê-la subir para o autocarro. Ela voltou atrás e tornou a abraçá-lo, os olhos cheios de lágrimas enquanto ele a abraçou.
— Toma conta do meu bebé...
— Ele vai ficar bem. Toma mas é conta de ti. — Não conseguia deixar de pensar no azar que ela tivera antes, mas desta vez Crystal estava mais velha e mais experiente.
Parou dois dias em São Francisco para comprar roupas, e teve bastante cuidado na sua escolha. Precisava de aproveitar o pouco dinheiro que tinha e desta vez sabia exactamente do que precisava. Comprou vestidos que lhe realçavam o corpo, não demasiado ousados, e apercebeu-se de como emagrecera a trabalhar no rancho. Com as calças de ganga nunca reparara, mas agora via o peso que perdera; contudo, isso tornava as suas pernas mais longas, a cintura mais fina e o busto maior. Comprou chapéus que lhe realçavam o rosto e sapatos de salto alto com os quais mal conseguia andar. Visitou também Harry e Pearl e jantou com eles. Uma das noites que lá ficou cantou no restaurante, apenas para ver como se sentia, em memória dos velhos tempos, e ficou admirada por ainda conseguir cantar. Mas regressar ali fê-la recordar-se da noite em que Spencer a encontrara a seguir ao seu noivado. Tudo em toda a parte a fazia recordar-se dele. Só desejou que Los Angeles não a fizesse recordar Ernie.
Chegou a Hollywood no dia seguinte, e sentiu-se uma desconhecida. Ninguém pareceu prestar-lhe atenção quando se registou num hotel barato. Era apenas mais um rosto bonito que ali chegava para ser descoberto.
Esperou um dia, para ganhar coragem, e ligou duas vezes para casa. Zeb estava a alimentar-se bem; tinha ido à casa grande à procura dela, mas Jane seguira-o e trouxera-o de volta, e Hiroko insistiu que ele parecia feliz. E na manhã seguinte, com mãos trémulas, ligou a um dos agentes que conhecera havia alguns anos. Já fazia cinco anos que chegara a Los Angeles com Pearl, mas desta vez Crystal sabia o que estava a fazer. Ele marcou um encontro com ela para essa tarde, e Crystal compareceu. Mas o agente foi muito brusco.
— Não posso arranjar-te nada, já que queres saber.
— Porquê? — perguntou ela, muito triste. O agente ainda a achava arrebatadora. Era lamentável, mas era verdade. Não podia usá-la.
— Porque mataste um homem. Esta cidade é muito estranha. Toda a gente faria qualquer coisa para conseguir o que quer, e ninguém tem princípios. Mas no que toca às cláusulas da moralidade nos seus contratos, os estúdios querem virgens. Querem que toda a gente fique fora de alhadas, e faça tudo muito bem. Não se pode ser homossexual ou maluco ou ter um grande apetite sexual. Se alguma actriz engravida, se alguém dorme com a mulher de outro, se se matar outra pessoa, acaba tudo. Aceita o meu conselho, querida, volta para onde estiveste nestes dois últimos anos e esquece isto tudo.
As coisas eram tão simples como ele as punha, e Crystal pensou em fazer o que ele dizia. Mas tinha dinheiro suficiente para car ali pelo menos dois meses, e ainda não estava disposta a desistir. Falou com mais três agentes na semana seguinte, e eles disseram-lhe a mesma coisa, embora em termos ligeiramente mais subtis. Contudo, a mensagem era a mesma. A sua carreira em Hollywood chegara ao fim. Admitiram que os dois últimos filmes que ela fizera estavam bons, que a sua voz era excelente, e todos os realizadores disseram que tinham gostado de trabalhar com ela. Mas, apesar de tudo isso, nenhum dos estúdios a queria.
Duas semanas depois de ter chegado, num dia de sol radioso, Crystal estava sentada num restaurante a beber um sumo quando viu um dos actores com quem tinha contracenado. A princípio ele olhou-a de longe, depois aproximou-se lentamente.
— Crystal, és mesmo tu? — Ela assentiu e tirou o chapéu, sorrindo. Fora muito amável apesar da sua fama, e tinha sido agradável trabalhar com ele.
— Sim. Pelo menos é o que acho. Como tens passado, Lou?
— Bem, obrigado. Onde é que te enfiaste durante este tempo todo?
— Desapareci. — Ambos sabiam porquê, mas ele não referiu o assassínio de Ernie nem o julgamento.
— Que vieste cá fazer? Estás a trabalhar nalgum filme? — Ainda não ouvira dizer que ela estava de volta, não a vira na cidade e nunca tinham sido muito chegados, mas simpatizava com ela. Sempre achara que fora uma infelicidade que as coisas lhe tivessem corrido mal. Verdadeira profissional, ele sempre achara que um dia seria uma grande estrela. Mas Ernie pensara o mesmo.
Ela riu-se e abanou a cabeça:
— Não, não estou a trabalhar — respondeu com um olhar de resignação. — Ninguém me quer tocar.
— Os tipos aqui são muito duros. — Ele também tinha alguns problemas, pois corriam boatos de que era homossexual. E tivera de casar com a irmã do amante. Agora tudo voltara à normalidade. Ninguém estava disposto a aceitar a verdade em Hollywood. Era necessário jogar pelas regras ou então esquecer tudo. — Quem é o teu agente?
— A mesma coisa.
— Merda. — Ele sentou-se, desejando poder ajudá-la, e depois teve uma ideia. —Já foste falar directamente com algum realizador? Às vezes isso resulta. Se eles te quiserem, fazem o possível e o impossível e a magia acontece: voltas a trabalhar de um dia para o outro.
Ela tornou a abanar a cabeça:
— Creio que no meu caso as coisas podem não ser tão simples.
— Olha... onde é que estás instalada? — Ela disse-lhe e ele tomou nota num guardanapo. — Não faças nada. Não te mexas. Eu ligo-te. — Lamentava imenso a sua sorte quando se afastou, sabia que a situação era delicada, quanto a ela não esperava que ele a ajudasse nem que lhe ligasse.
Duas semanas depois, quase desistira e estava cheia de saudades de Zeb quando o telefone tocou no seu quarto quente. No fim de Julho, Crystal já estava disposta a desistir e a ir para casa. Não valia a pena passar ali o mês de Agosto. Mas quando atendeu o telefone, era Lou...
— Tens um lápis Crystal? Toma nota. — Ditou-lhe dois nomes, um de um realizador e outro de um produtor muito conhecido. Faziam o tipo de filmes que recebia Óscares da Academia, e ela teve vontade de rir quando ele lhe sugeriu aqueles dois nomes. — Olha, falei com ambos, são uns tipos bestiais. O realizador não sabia bem aquilo que podia fazer por ti, mas está disposto a tentar. Mas o Brian Ford mandou-me ter a certeza que tu lhe ligavas.
— Não sei, Lou. Creio que já desisti, mas, mesmo assim, obrigada.
— Olha — ele parecia aborrecido —, se não lhes ligares colocas-me numa posição desagradável. Disse-lhes que precisavas mesmo de voltar a trabalhar. Precisas ou não precisas?
—Preciso... mas... será que eles sabem do julgamento?
— Estás a gozar? — respondeu ele com uma gargalhada triste. Dezasseis pessoas tinham-lhe dito para a mandar bugiar. Sabiam do julgamento. Todos sabiam. — Esquece isso. Que tens tu a perder, excepto bolsos vazios?
Lou tinha razão, e ela ligou a ambos na manhã seguinte. Frank Williams foi franco, disse que seria quase impossível ela arranjar trabalho, mas ofereceu-se para lhe fazer um novo teste, e se ficasse bom, ela poderia utilizá-lo. Decidiu tratar primeiro desse assunto, e depois disso ligou ao produtor.
O primeiro teste que ela fez ficou fraco. Crystal estava nervosa e teve a impressão de que esquecera tudo o que soubera. Mas Frank insistiu para que ela zesse outro, e o segundo já ficou melhor. Observaram-no os dois e o produtor disse-lhe onde é que ela tinha errado. Crystal sabia que precisava de um novo professor, mas não tinha dinheiro para lhe pagar. Perguntou-se se valeria a pena telefonar a Brian Ford. O teste não era nada de extraordinário, ela sentia-se cansada e estava calor, e o seu passado não a ajudava. Mas em atenção a Lou, fez o telefonema, para que os esforços do amigo não tivessem sido em vão. Pelo menos assim poderia dizer-lhe que tentara antes de regressar para o rancho e para o filho. Estava quase contente por não ter conseguido. Já não suportava continuar afastada dele.
A secretária de Brian Ford marcou-lhe uma reunião para a tarde do dia seguinte, parecendo saber quem ela era. No dia seguinte Crystal apanhou um táxi para o escritório. Ficava na parte norte de Hollywood e ela passou a viagem a olhar nervosamente para o taxímetro. Esquecera-se de como os táxis eram caros. Estava na cidade há exactamente cinco semanas e o seu pouco dinheiro desaparecia rapidamente. Havia alguns dias em que quase tinha medo de comer, e devido ao calor e às saudades de Zeb mal tinha apetite.
A secretária pediu-lhe para esperar. Por fim, após o que pareceu uma eternidade, mandou-a entrar. Crystal levava um vestido branco com uma longa racha na saia comprida e penteara o cabelo cor de platina até ele ficar brilhante. Daquela vez levou-o solto, como costumava usar quando era criança. Usava também sandálias brancas de salto alto e luvas, mas quase nenhuma maquilhagem. Estava farta de ter que se arranjar, de fingir ser algo que não era. Ansiava por regressar a casa e vestir as calças de ganga, e aquela era a última paragem. Queria acabar com tudo aquilo e ir-se embora, e isso podia ler-se nos seus olhos quando a secretária a mandou entrar. Era uma sala enorme, muito bem decorada, com vários Óscares alinhados numa prateleira, uma lareira, uma grande secretária de vidro e uma espessa alcatifa cinzenta. Quando olhou para o outro lado da sala Crystal viu um homem robusto com cabelo branco como a neve, olhos azuis, e quando ele se levantou, viu que era um gigante. Media um metro e noventa e dois e tinha uma voz grave e melodiosa. Fora actor havia muitos anos, mas decidira que havia coisas mais interessantes do que decorar falas. Aos vinte e cinco anos já era realizador e dez anos mais tarde produzia filmes importantes. Agora, com cinquenta e cinco, tinha atrás de si duas décadas de história cinematográfica. Há anos que fazia bons filmes e era respeitado por toda a gente. Crystal apercebeu-se de que era uma honra ele querer vê-la e isso revelava o respeito e admiração que tinha por Lou.
Ele dirigiu-lhe um sorriso amável, convidou-a a sentar-se, ofereceu-lhe um cigarro, que ela recusou, e acendeu um para si, estreitando os olhos enquanto a observava. Tinha ar de quem montava ou caminhava pêlos campos tal como o pai dela fizera e não de quem estava sentado a uma secretária a produzir filmes. Não possuía a fluência nem os modos polidos do falecido Ernesto Salvatore. Era um homem digno e importante.
— O Lou disse-me que teve bastantes dificuldades desde que chegou.
Ela assentiu, completamente à vontade. Ele parecia quase um pai.
— Acho que já era de esperar. — E ambos sabiam o motivo, mas ele foi suficientemente cortês para não tocar no assunto.
— Teve alguma sorte? — Semicerrou os olhos atrás do fumo do cigarro, enquanto ela abanava a cabeça.
— Nenhuma. Volto amanhã para casa.
— É pena. Tive uma boa ideia para si. — Mas ela já nem sabia se isso lhe interessava. Tudo o que fizesse iria afastá-la por mais tempo de Zeb, e não desejava que tal acontecesse. — Estamos neste momento a preparar um novo filme. Gostaria de incluir nele um pequeno papel para si. Só para a colocar de novo em circulação. Nada de muito especial. Mas poderia dar-nos a oportunidade de vermos a reacção das pessoas.
— É o lme de algum estúdio? — Já sabia que nenhum estúdio a deixaria trabalhar, independentemente da pouca importância do papel, mas ele abanou a cabeça e olhou para ela. Frank Williams já lhe mostrara o teste de Crystal e ele gostara.
— Não, estou a fazê-lo como independente. É claro que eles tratarão da distribuição. Mas não têm voto na escolha de actores. — Pensara até em sugerir que ela adoptasse um novo nome, mas não quis fazê-lo. Apesar do que tinha feito, Crystal Wyatt começara por ser conhecida como uma boa actriz. — Quer pensar no assunto? Só começamos em Setembro.
— Quer que assine um contrato consigo? Ele sorriu e tornou a abanar a cabeça:
— Só para este filme. Não tenho escravos. — Nessa altura ela percebeu que ele sabia de toda a sua história com Ernie, mas que apesar disso estava disposto a dar-lhe trabalho. Sentiu-se invadida por uma onda de gratidão, e teve vontade de tentar.
— Posso pensar no assunto durante uns dias? — Mas ambos sabiam que seria a única oportunidade dela. Crystal não estava a fazer-se difícil, apenas precisava de decidir se valeria a pena tornar a deixar Zeb.
Ele apertou-lhe a mão, acompanhou-a à porta e ela sentiu-se estranhamente à vontade com ele. Lou tivera razão. Brian Ford era um homem digno e estava a abrir-lhe a porta de volta ao cinema. Ficou acordada a pensar no assunto durante toda a noite, e ligou-lhe na manhã seguinte a dizer que aceitava. Ford pareceu ficar satisfeito e informou-a de que lhe mandaria o contrato e o guião.
— Peça a um advogado que examine o contrato por si. — De novo, mostrava-se muito diferente de Ernie. — Só precisa de comparecer nas filmagens a quinze de Setembro.
Eram as melhores novidades que ela ouvia naquela semana. Podia ficar com Zeb durante Agosto e metade de Setembro. Telefonou a Lou a agradecer-lhe e ele deu-lhe o nome do seu advogado, que mais tarde tratou do contrato. Nessa tarde Crystal voltou para casa de avião depois de ter dado a Ford a sua morada. E nessa noite estava no autocarro de regresso ao vale. Ainda se sentia sensibilizada pela forma como Brian Ford a tratara e, à noite, sentada na cozinha agarrada ao filho, sorriu para si própria. Resultara! Conseguira! Mas a melhor parte era estar de volta junto do filho. Durante seis semanas correu e brincou com ele, nunca o abandonando mais do que alguns momentos.
Boyd e Hiroko sentiam-se entusiasmados por ela, e seis semanas depois Crystal tornou a partir de avião. O papel era pequeno, mas Ford certificara-se de que era bom. Queria que ela se saísse bem. Achava que Crystal tinha talento e simpatizava com ela.
Possuía uma franqueza que ele muito apreciava, uma abertura, um carinho e uma coragem calma fruto dos tempos difíceis por que passara. Era um forte contributo para a sua beleza e reforçava a sua actuação. E como de costume, ao ver as provas ao fim de cada dia, soube que tivera razão. Ela era boa. Muito boa. Ofereceu-lhe outro filme depois desse e no Natal, quando regressou para junto de Zeb, já tinha dinheiro suficiente para comprar a todos bons presentes. Teve de voltar logo a seguir para Los Angeles, e trabalhou arduamente até Março, mas o segundo filme era bom e quando estreou, os críticos adoraram-na. O passado foi repentinamente esquecido. Ela voltava a ser a preferida, mas só que desta vez pelas razões certas. Era uma boa actriz que entrava em bons filmes, realizados por um dos produtores mais prestigiados de Hollywood. Não havia inconsistências, pressões, contratos enganosos nem submundo. O fantasma de Ernie Salvatore fora enterrado e Crystal Wyatt não só sobrevivera como triunfara.
Spencer viu o seu segundo filme uma noite, em Washington, em que estava sozinho e ficou estupefacto ao vê-la de novo no cinema. Já havia meses que não lhe ligava e nada sabia do ressurgimento da sua carreira. Ficou sentado a olhar para o ecrã, sentindo um grande peso no coração. E na manhã seguinte tentou ligar-lhe. Mas ninguém atendeu no rancho e ele não fazia ideia de como encontrá-la em Hollywood. Contudo, também não valia a pena fazê-lo. Ela deixara tudo bastante claro da última vez que falara com ele: não queria que ele lhe telefonasse. Spencer tinha a vida preenchida. Era agora o principal assessor do senador e decidira não concorrer para o Congresso.
Estava-se no começo de 1959, quando Crystal principiou outro filme. Tinha o seu próprio apartamento e pela primeira vez sentia-se segura no trabalho. Todos os estúdios a desejavam agora, mas ela gostava de trabalhar com Brian Ford. Isso limitava-a um pouco, mas ela adorava a qualidade dos seus filmes e aprendera muito. Começara também a ganhar muito dinheiro. Ele levava-a a jantar de vez em quando, eram bons amigos, mas nunca quis dela mais do que aquilo que ela lhe oferecia. Crystal vivia unicamente para o filho. Falava com ele pelo telefone todas as noites e ia sempre a casa nos intervalos entre os filmes.
Uma noite estava no Chansn's a jantar com Brian quando ele lhe perguntou com um sorriso:
— O que é que te faz passar a vida a ir ao norte? — Calculava que fosse um homem, porque nunca a vira envolvida com nenhum, mas ela sorriu e hesitou antes de responder. No entanto, sabia que ele era de confiança, e sentindo-se estranhamente comunicativa, contou-lhe.
— O meu rancho e o meu filho. Ele está em casa de uns velhos amigos enquanto eu estou a trabalhar.
Brian Ford franziu o sobrolho, e quando voltou a falar fê-lo em voz baixa.
— Crystal, alguma vez foste casada? — Ela abanou a cabeça, tal como ele esperava. — Não contes isso a ninguém. Lembra-te do que fizeram à Ingrid Bergman. Correm-te da cidade tão depressa que nem sabes o que te aconteceu.
— Eu sei — disse ela com um suspiro. — É por isso que o deixo lá. Parece que as pessoas toleram o homicídio, mas não lhos ilegítimos.
— Que idade tem ele? — Tinha curiosidade em saber quem era o pai. Talvez tivesse sido por causa da criança que ela matara Ernie. Não lhe perguntou nada, mas pensou nisso enquanto ela respondia.
— Dois anos e meio.
Ernie morrera havia três anos e meio, e isso disse-lhe o que ele desejava saber.
— Então não é filho do Ernie.
— Credo, não! — Ela riu-se. — Preferia ter-me matado a ter tido um filho dele. Ele também sorriu.
— Não posso dizer que discordo de ti. Sempre tive pena que te tivesses envolvido com ele. Alguém devia tê-lo matado muito antes de ti.
— Não fui eu quem o matou — retorquiu ela com voz calma, olhando-o bem nos olhos. — Mas a minha única defesa foi fazer com que o caso parecesse legítima defesa. Não havia testemunhas que me tivessem visto a sair de Malibu nem a chegar a casa. E a Polícia disse que eu possuía motivos e tivera a oportunidade. Tomámos o único caminho possível na altura. E ganhámos. Creio que agora é só isso que importa. — Só que as pessoas ainda pensavam que ela tinha matado um homem, e isso custava-lhe. Aos olhos dos outros Crystal era uma assassina. Ao pensar no assunto, achou espantoso ter conseguido voltar a trabalhar. Ergueu os olhos para Brian co um sorriso, cheia de respeito por ele. — Obrigada por confiares em mim. Ensinaste-me muito.
— Estas coisas funcionam sempre para os dois lados. — Depois tornou a pensar no homem: — O pai do rapaz vive contigo no rancho? — Calculava que era por isso que ela regressava sempre a casa depois de um filme, não apenas por causa do lho mas também por causa do pai dele.
Ela abanou a cabeça. Já estava conformada. Tivera razão em mandá-lo embora. Ficava sempre contente por saber que Spencer se estava a sair bem. Já abandonara a vida dela, mas Crystal ficara com Zeb, até à morte. Era uma dádiva especial... a sua pequena dádiva de Deus. — O pai partiu antes de ele nascer. Nem sequer sabe da existência do filho.
Brian olhou para ela durante bastante tempo, cheio de novo respeito por ela.
— Passaste uns maus bocados. — Crystal sorriu. Arrependia-se de alguma coisa que fizera na vida, mas não do filho. Então falaram do novo filme e Brian tinha outros planos. Ele sorriu enquanto pagava a conta: — Um dia destes vamos arranjar-te um Oscar!
Contudo, ela não estava ansiosa para que isso acontecesse. Voltara a ser uma estrela, e desta feita uma das grandes. As pessoas reconheciam-na em toda a parte e pediam-lhe muitas vezes autógrafos quando saía. Até a reconheciam agora quando regressava ao rancho, mas aí ela era muito discreta. Não queria que ninguém descobrisse Zeb e fosse contar aos jornalistas.
Brian voltou a sair com ela várias vezes depois disso, e quando o filme terminou deu uma grande festa para os colaboradores. Pediu a alguns amigos para ficarem até mais tarde e Crystal encontrava-se entre eles. Enquanto viam o Sol nascer, serviram-lhes um pequeno-almoço mexicano no pátio da casa. Ele falou-lhe dos filhos. Ambos tinham morrido na guerra e o seu casamento não resistira a esse choque. Ele e a mulher tinham acabado por divorciar-se e ela regressara para Nova Iorque. Brian disse a Crystal que isso mudara rapidamente a sua vida. Não desejava voltar a casar e agora ela percebia por que razão ele declinara os seus convites para ir ao rancho. Brian tinha conhecimento da existência de Zeb, não estavam envolvidos emocionalmente, Crystal apenas quisera ser amável para com um amigo. Mas ver o filho dela tê-lo-ia magoado muito. Ele explicou-lhe que já não gostava de estar perto de crianças, pois elas faziam-no recordar-se dos filhos. Tanto Crystal como Brian tinham pago um preço demasiado elevado pela sua vida, mas esse facto tornara-os mais fortes. Isso revelava-se na qualidade dos filmes dele e na forma como ela representava.
Falaram durante horas, e depois de os outros se terem ido embora ele acompanhou-a a casa de carro. Dali a uns dias ela regressaria ao rancho. Tencionava passar aí o Verão e começar a trabalhar num novo filme no Outono. Pela primeira vez era para outro realizador. Mas Brian encorajara-a a fazê-lo, dizendo que a mudança seria benéfica. E tinha outro projecto para ela depois disso. Parecia que os projectos que ambos partilhariam se estendiam por muitos anos. Quando chegaram ao apartamento de Crystal, a jovem convidou-o a subir, mas ele disse que estava demasiado cansado após aquela noitada. Foi-se embora, mas telefonou-lhe ao fim da tarde. Perguntou-lhe se ela queria jantar com ele antes de partir e ela ficou sensibilizada com o seu telefonema.
Foram a um restaurante em Glendale e sentaram-se a uma pequena mesa a um canto, e quando o observou Crystal reparou que Brian tinha nos olhos uma expressão bastante triste. Perguntou-se o que o estaria a perturbar e fcou admirada quando ele pegou na sua mão.
— Não sei como te dizer isto. Já há muito que penso no assunto e agora parece uma idiotice. — Ela não fazia ideia do que o incomodava, e segurou na mão dele, sorrindo-lhe com doçura. Gostava bastante daquele homem. Tinha cinquenta e sete anos, ela faria vinte e oito nesse Verão e sentia-se tocada pelo valor daquela amizade. — Gostaria de passar algum tempo contigo quando regressares. Deve ser estranho ver-te a trabalhar para outra pessoa. Vou sentir a tua falta.
Ela soltou uma ligeira gargalhada.
— É claro que irei passar algum tempo contigo. E não vou ficar fora muito tempo. Além disso, em Janeiro começamos a trabalhar no novo filme.
Ele apercebeu-se que ela não tinha compreendido.
— Estou a dizer que gostaria de ir contigo para qualquer lado durante uns dias. — Ela pareceu ficar surpreendida. Brian nunca lhe dissera nada daquele género. — Es a primeira mulher com quem eu falo desde há muito tempo. — Ainda estava admirado por lhe ter falado dos filhos. Nos últimos anos não contara a ninguém. Passava sozinho a maior parte do seu tempo livre, a cuidar do jardim, a ler, a dar longos passeios a pé, a trabalhar as novas ideias e a ler guiões para futuros filmes. No meio do caos de Hollywood, Brian era um homem sólido, pacífico, distinto e solitário, com uma grande inteligência e dignidade.
— Não queres vir comigo até ao rancho? — tornou ela a convidar. Mas desta vez perguntou-se o que aconteceria. Ele sorriu e abanou a cabeça:
— É a única oportunidade que tens de ficar sozinha. Não quero ser um intruso. Podemos ir a qualquer lado quando regressares. — E depois o quê? Continuariam a ser amigos? Ela estava um pouco preocupada, mas a caminho do apartamento ele tranquilizou-a. Queria pouco mais dela do que aquilo que já tinha. — Não quero com isto dizer que estou apaixonado por ti Crystal. Não estou. Creio que nunca mais me apaixonarei. Já tive tudo isso. E a minha vida agora é muito tranquila — continuou ele com um sorriso enquanto seguiam no carro. — Não quero filhos, casamentos, obrigações, mentiras. Quero uma amiga com quem goste de falar, alguém que esteja comigo de vez em quando, mas não sempre. Não quero mais do que isso, e às vezes parece-me que embora sejas muito mais nova do que eu também queres as mesmas coisas. Queres trabalhar com afinco, saires-te bem e regressar ao teu rancho no m. Estou certo?
Ela assentiu. Brian conhecia-a muito bem.
— Sim, estás certo. Já tive tudo o que desejei na vida. Um homem que amei mais do que tudo, êxito... e agora o Zeb. Para mim basta. — E pagara por tudo aquilo com bastante sofrimento.
— Não, não basta. Um dia gostaria de te ver com algém de quem gostasses. Mas agora, sendo um pouco egoísta — disse ele com um sorriso —, ficaria contente se pudesses passar algum tempo com um velhote.
Aquela palavra fê-la rir. Ele parecia vinte anos mais novo, ou pelo menos dez. Tratava bem do corpo. Jogava ténis, nadava bastante, raramente ficava a pé até tarde e nunca entrava em farras. Ela nunca ouvira dizer que ele estivesse envolvido com a estrela de cinema mais recente, nem com actrizes mais antigas. Achava que ele era exactamente aquilo que parecia, um homem bem sucedido, trabalhador e muito simpático.
— Quando voltas? — perguntou ele.
— A seguir ao Dia do Trabalho. — Iria começar um novo filme pouco depois dessa data, e ele pareceu ficar satisfeito. Estava disposto a esperar, pois não desejava visitá-la no rancho.
Nesse Verão, ligou-lhe algumas vezes para o vale, mandou-lhe alguns livros de que achou que ela iria gostar, e um espectacular chapéu de cowbo pelo aniversário. Crystal celebrou o seu vigésimo oitavo aniversário na companhia de Boyd e Hiroko, no rancho. De vez em quando pensava em Brian, pois ele era diferente dos homens que conhecera até ali. Não havia paixão, ardor, nenhum do amor que ela e Spencer haviam partilhado, nenhuma da fealdade que Ernie trouxera para a sua vida, nem puseiras de diamantes ou casacos de peles. Só um chapéu de cowbo, livros bons, e cartas ocasionais que a faziam rir e que falavam da vida de Hollywood que nunca mudava, mas que fingia mudar quase a toda a hora, todos os dias. E quando regressou a Los Angeles ele esperava-a, tal como prometera, antes do Verão. Foram passar uns dias a Puerto Vallarta e não houve desaparecimentos, mistérios, tal como acontecera quando Ernie lá fora em negócios com uns «amigos», os amigos que provavelmente o tinham morto e a haviam deixado arcar com todas as culpas, quase sendo presa.
O novo filme estava a correr bem e ninguém parecia reparar na nova relação dela. O seu envolvimento com Brian era tão discreto como ele próprio. Crystal descobriu que ele estava vagamente envolvido na política e que dava vultosas quantias aos democratas. Gostava especialmente do jovem Jack Kennedy, que nesse ano iria concorrer à Presidência. A pouco e pouco as pessoas foram-se apercebendo do seu envolvimento com Brian. Nunca viam Crystal com mais ninguém. Mas em Hollywood Brian Ford era sagrado. Ninguém fazia comentários a respeito dele, não vasculhavam as suas acções, e mantendo-se à sua sombra, a notoriedade de Crystal parecia diminuir, e ela gostava disso. Já era suficientemente badalada. A sua carreira fora fulminante, mas agora era uma actriz respeitada. E em Abril, Brian conseguiu aquilo que desejava. Crystal ficou perplexa com a sua nomeação. Na noite da entrega dos Óscares, ficou paralisada e sem fôlego na cadeira quando o sobrescrito foi aberto e o seu nome lido em voz alta. Não podia acreditar. Recebera o Oscar de Melhor Actriz. E isso tinha ainda mais significado para ela porque o filme era de Brian. Ele apertou-lhe a mão enquanto o nome dela era lido e Crystal continuou sentada durante mais um minuto, com medo de se mexer e receando ter ouvido mal. Depois levantou-se e avançou pela coxia enquanto todos a aplaudiam e as câmaras a filmavam. Mal acreditava que aquilo lhe estava a acontecer, e viu tudo esborratado quando subiu ao palco e pegou com mão trémula no Oscar. Depois olhou para a assistência, para o local onde sabia que Brian estava sentado.
— Não sei o que dizer — disse ela para o microfone, a sua voz tão rouca e melodiosa como sempre —; nunca pensei que um dia estaria aqui, a fazer isto... por onde começo? O que devo dizer? Tenho de agradecer a tanta gente que acreditou em num! O mais importante de todos, claro, é Brian Ford, sem o qual eu andaria a apanhar uvas e milho num vale muito distante daqui. Mas também a outras pessoas... às pessoas que já há muito acreditam em mim... a um homem chamado Harry que me deu um emprego de cantora quando eu tinha dezassete anos... — E enquanto ela dizia aquelas palavras Harry começou a chorar no restaurante de São Francisco onde todos estavam a ver a televisão. —... E a uma senhora muito especial chamada Pearl, que me ensinou a dançar e veio comigo para Hollywood... ao meu pai que me disse que fosse para o mundo atrás dos meus sonhos... a todos os realizadores com quem trabalhei e que me ensinaram aquilo que sei... aos meus colegas neste filme... e a Louis Brown, que me apresentou a Brian Ford... É a vocês que devo tudo. — Levantou o Oscar com lágrimas nos olhos. — Devo-vos isto. Também agradeço aos meus amigos Boyd e Hiroko, que tomam conta daquilo que mais amo — fez uma pausa, sorrindo, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces —, e um obrigada muito especial à pessoa que me fez crescer, que é tudo para mim... Zeb, que eu amo acima de tudo. — Dirigiu um sorriso especial para a câmara, sabendo que ele deveria estar a vê-la. — Obrigada a todos.
Cumprimentou então a assistência, com o Oscar bem erguido, e regressou ao seu lugar acompanhada por fortes aplausos. Todos sabiam que ela viera de baixo e sabiam muito do que lhe acontecera. Sabiam do julgamento e tinham-lhe perdoado. Haviam-na aceitado e dado a maior recompensa possível. Brian passou-lhe um braço pêlos ombros quando ela se sentou. As lágrimas ainda lhe corriam pelo rosto e ele abraçou-a, dirigindo-lhe um sorriso de triunfo.
— Ele é um menino cheio de sorte — murmurou, enquanto as câmaras continuavam a filmar e se detinham na multidão que ainda aplaudia. Os fâs dela estavam contentes e as pessoas cujos nomes ela tinha dito comemoravam nas suas casas. Lou Brown assistia a tudo com uns amigos e ficou feliz por ela, Boyd e Hiroko estavam quase em choque enquanto brindavam à sua saúde. Pearl ainda não parara de chorar desde que ouvira o nome de Crystal e Harry oferecia a todos os clientes champanhe de Napa Valley. E em Washington, Spencer faltou a um jantar e estava na cama com uma forte constipação. Ficara a olhar para Crystal, pensando como ela chegara longe e quanto desejava poder ter lá estado para partilhar tudo. Fora um idiota ao tê-la deixado escapar e por ter regressado sozinho a Nova Iorque, e às vezes perguntava-se se ela teria feito tudo propositadamente. Se tinha querido que ele voltasse para Elizabeth e Washington para que continuasse a sua carreira na política. Era o género de coisa que ela seria capaz de fazer, mas agora era tarde de mais para mudar fosse o que fosse. Spencer estava demasiado envolvido na política e ela tinha agora outras pessoas na vida. Vira-a abraçar o homem com quem estava sentada. E calculou que ele fosse o bem-amado Zeb a que ela se referira. Era um homem cheio de sorte, pensou Spencer, e só esperava que ele a tratasse bem. Ela estava linda. Mas ele conhecia o outro lado de Crystal, o lado que o ajudara a conseguir os seus sonhos, o lado que partilhara com ele os seus segredos... a criança que ele conhecera... a mulher com que regressara ao vale. A mulher que ele amara mais do que a própria vida e que agora, depois de todo aquele tempo, ainda amava. Pensou em enviar-lhe um telegrama, mas não sabia para que morada e ao aperceber-se disso ficou ainda mais triste. Perdera-a, ela desaparecera e fora a melhor coisa que acontecera na sua vida. Desligou o televisor e deitou-se, continuando a pensar em Crystal.
Nessa noite o pequeno Zeb também foi para a cama a pensar nela. Já tinha quatro anos e meio e sorrira quando a ouvira dizer o seu nome.
— É a minha mãe! — exclamara, e entregara a sua Coca-Cola a Jane, enquanto olhava para o ecrã. Perguntou-se o que estaria ela a fazer ali, mas Hiroko sossegou-o, dizendo que em breve ela estaria de volta.
Sentiam-se todos muito orgulhosos dela, e Brian Ford mais do que todos. Partilhavam uma relação especial, e se ele fosse mais novo e a sua vida tivesse sido diferente, ter-se-ia aproximado mais dela do que aquilo que inicialmente tencionara. Aquilo que tinham servia a ambos. Era algo simples, sincero e puro. Não havia enganos, mentiras, compromissos, promessas. Apenas a amizade e o facto de ele apreciar a companhia dela. Ela insistira em oferecer-lhe um jantar e depois ele levou-a a dançar. Crystal disse que ainda estava em choque, mas Brian não ficara admirado por ela ter ganho. Merecia tudo; além disso, ele estava contente porque o seu filme também fora premiado. Fora uma grande noite para ambos e quando finalmente a deixou Crystal ficou sentada no seu apartamento a olhar para o Oscar, que colocara sobre uma mesa. Era uma espantosa homenagem a que lhe tinham prestado. Uma noite inesquecível. Era a recompensa por ter regressado a Hollywood e ter feito tudo como devia ser. Pensou no pai... em Spencer... e Zeb... nos homens que mais amara. Dois deles já tinham desaparecido. Mas tinha Zeb, e um dia haveria de lhe ensinar o que aprendera com todos eles. A ser honesto e decente, a trabalhar muito, a viver bem e a amar de todo o coração, independentemente do preço, e a nunca ter medo de seguir os seus sonhos, para onde quer que eles o levassem.
As eleições nesse ano foram uito excitantes e na companhia de Brian, Crystal foi contagiada por essa excitação. Ele foi ao Leste uma ou duas vezes durante as campanhas, enquanto ela ficava a trabalhar num dos seus novos filmes. Quando regressou, descreveu-lhe a agitação que reinava em Washington. Estava lá quando Jack Kennedy venceu, e pareceu surgir uma nova era. Os dias de Camelot, com a sua bela esposa, a filhinha amorosa e o rapaz recém-nascido.
Crystal passou com Zeb o quinto aniversário do filho, e quando regressou a Hollywood ficou admirada por ter sido convidada para o baile inaugural. Nessa altura já teria acabado o filme que estava a fazer, mas mesmo assim hesitou. Havia velhos fantasmas em Washington que ela queria evitar, e tinha receio de encontrar Spencer.
— Tens de ir — disse Brian. — É uma grande honra que nã podes declinar. E estamos numa época especial. — Sabia que, tal como o tempo que passava com ela, essa época poderia nunca mais voltar. Estava feliz pelo jovem senador e queria que Crystal conhecesse ambos. Pressionou-a tanto que ela acabou por concordar. Não foi fácil decidir regressar. Lera nos jornais que Spencer fora nomeado assessor de Kennedy e sabia que ele iria estar presente. Mas rezava para que a multidão fosse sucientemente grande para não se encontrarem. Não queria voltar a vê-lo. Tinham-se passado seis anos e demasiado tempo. Não desejava tornar a reacender a saudade e a dor. Apenas queria o que tinha: as recordações e Zeb, que a esperava sempre que ela conseguia libertar-se do trabalho e ir até ao rancho para estar com ele.
Comprou o seu vestido ao costureiro Giorgio. Era prateado, e Brian assobiou quando ela lho mostrou, e riu-se.
— Bem, conseguiste, miúda, pareces mesmo uma estrela de cinema com isso. — Contrastava bastante com os tailleurs discretamente elegantes da Primeira Dama. Mas aquele vestido tinha a sua própria elegância, tal como Crystal Wyatt. O vestido reluzia, e Brian sorriu e beijou-lhe a mão. Sabia que a estreia dela nos círculos presidenciais iria ser um êxito. E foi.
O baile inaugural foi mais bonito do que ela tinha imaginado. Havia várias festas e na realidade dois bailes, e ela achou que a Primeira Dama estava deslumbrante no seu vestido Oley Cassini. Havia multidões de espectadores por toda a parte, e Crystal foi reconhecida e assinou centenas de autógrafos aos admiradores. Brian, num smoking de muito bom corte, sentia-se muito orgulhoso dela. Fazia nesse ano cinquenta e nove anos, mas estava com o ar mais robusto e mais atraente de sempre.
— Tu também estás muito bonito — brincara ela enquanto ele se vestia no Statler Hotel. Reservara aquela suite havia meses e ela teve de admitir que estava contente por ter ido com ele.
A relação de ambos era a mesma desde o início, um companheirismo agradável e um romance muito discreto que a maior parte das pessoas ainda não tinha notado, mas os que tinham não o comentavam. Crystal gostava bastante dele e Brian satisfazia-lhe certas carências. Era alguém real com quem podia falar em Hollywood, e muitas vezes pedia-lhe opinião em assuntos do rancho. E também era fisicamente satisfatório, mas não havia nenhuma chama ardente, sofrimento, paixão ou dor. Só a sensação agradável de estar com um homem que respeitava e admirava.
Nessa noite foram a ambos os bailes e ele apresentou-a ao presidente. Ela ficou admirada com a beleza dele, ao lado da esposa bonita e aristocrática. Esta tinha um ar muito tímido e estava a falar em francês com uma pessoa, mas quando foi apresentada a Crystal disse-lhe que gostava muito dos seus filmes.
Dançaram até altas horas da noite, e foi na altura em que Brian foi buscar o casaco dela que Crystal viu finalmente Spencer. Estava junto à porta com vários outros homens e falava animadamente com elementos dos Serviços Secretos. Ela começou a afastar-se, sentindo-se invadida por uma onda de desejo. Queria que Brian regressasse para que pudessem ir-se embora, mas este parecia estar a demorar-se uma eternidade. E quando ela se virou, o brilho do vestido chamou a atenção de Spencer e ele parou de falar. Pediu desculpa aos homens e pouco depois estava junto dela, admirando-a, espantado com a sua beleza tal coo antes. Estendeu a ão e tocou-lhe suaveente no braço, quase que para confirmar se ela era real. E era. Quase em demasia.
—Crystal... — Tinham passado seis anos. Seis longos anos, repletos de tempos difíceis e tempos agradáveis, o rancho, os filmes e o filho dele.
— Ola, Spencer. Calculei que te ia encontrar. Parabéns.
— A sua voz soou baixa na sala ruidosa, mas ele ouviu todas as palavras, achando que nunca a tinha visto mais bela do que naquela noite, com o vestido prateado que moldava como um véu de gelo o corpo perfeito que ele ainda recordava.
— Obrigado. Percorreste um longo caminho — disse ele com um sorriso. As suas palavras possuíam vários significados. Os anos tinham-na transformado na grande vedeta que ela desejara ser, e agora que conseguira Crystal estava satisfeita. Mas isso nada era comparado ao que ainda sentia por ele. Ao vê-lo todas as recordações regressaram, a alegria e a dor, e o desejo que ainda tinha dele. — Vais cá ficar durante bastante tempo? — perguntou ele com um ar casual.
— Alguns dias. — Crystal foi propositadamente vaga, e rezou para que ele não conseguisse ouvir o seu coração. — Tenho de regressar à Califórnia. — Spencer assentiu e ela perguntou-se se ainda seria casado. E no outro lado do salão, Elizabeth sentia-se em glória. O marido era um dos assessores de Kennedy. Aos trinta e um anos ela conseguira o que queria. A única mulher que invejava naquela sala estava casada com o presidente, mas até mesmo esse sonho poderia um dia tornar-se realidade. Agora tudo era possível. Spencer era um homem importante, até para os Barclay
— Onde estás instalada?
Ela hesitou, mas depois achou que não fazia mal responder-lhe. Ele tinha a sua vida e ela tinha Brian. |
— No Statler.
Ele assentiu e Brian reapareceu com o casaco de pele de raposa prateada. Crystal não teve alternativa senão apresentar os dois homens. Brian sabia quem ele era, mas nunca se tinham visto e perguntou-se como teria Spencer conhecido Crystal. A ligação dela a Brian era óbvia, mas a expressão nos olhos de Spencer não podia ser ignorada. Ela despediu-se e partiram, mas na limusina Brian achou-a muito calada. Crystal olhava para a neve que caía. Ele nada disse até chegarem ao hotel, mas depois teve de lhe fazer a pergunta.
— Onde é que conheceste o Spencer Hill? — Tanto quanto sabia, Crystal nunca fora a Washington. Vira-o no ano anterior com Jacky Kennedy e simpatizara de imediato com ele. Um dia iria ser um homem importante, aliás, já o era, e Brian sabia como ele era indispensável para o jovem presidente.
Crystal pôs um ar desprendido ao correr o fecho do vestido e sorriu-lhe, mas o seu olhar era triste. Brian viu nele algo que nunca vira, uma espécie de dor quase insuportável.
— Conheci-o há muitos anos no casamento da minha irmã. Esteve na guerra do Pacífico com o meu cunhado. — E acrescentou, virando-lhe as costas: — E defendeu-me no julgamento.
E de repente ele soube. Fora incapaz de descobrir antes. Caminhou lentamente até ela e olhou-a com uma expressão triste.
— É ele o pai do teu filho, não é? Houve uma longa pausa, e ela acabou por anuir, afastando-se.
— E sabe?
Ela abanou a cabeça:
— Nem nunca saberá. É uma história muito comprida, mas ele tem a sua vida e um bom futuro. Se tivesse ficado comigo teria perdido tudo isso. — Dera-lhe a dádiva da liberdade na altura certa, e era bom saber que não tinha sido em vão. Spencer aproveitara-a bem.
— Ele ainda te ama — disse Brian, sentando-se pesadamente. Soubera que um dia aquilo teria de acontecer, mas mesmo assim lamentava-o. Vira os olhos de Crystal e os de Spencer.
— Não sejas ridículo. Já há seis anos que não o via. Mas na manhã seguinte, quando Brian foi tomar o pequeno-almoço com alguns políticos amigos Spencer telefonou-lhe. Crystal sentiu o coração aos pulos quando ele disse o seu nome e confessou a si própria que estava a ser estúpida. Spencer queria vê-la antes de ela partir, as Crystal insistiu que não podia.
— Crystal, por favor... em memória dos velhos tempos... — Velhos tempos que lhe tinham dado um filho.
— Acho que não devíamos. E se algum jornalista te visse? Não vale a pena.
— Deixa que eu me preocupe com isso. Por favor... — Ele implorava-lhe e ela também estava morta por vê-lo. Mas com que finalidade? E mesmo que Brian tivesse razão ao achar que ele ainda a amava, vê-la só iria fazer pior a Spencer. Crystal tentou afastá-lo de novo, mas desta vez ele não permitiu.
— Está bem, então onde? — Parecia nervosa. Tinha medo da imprensa e de Brian. Ele nunca se mostrara possessivo, mas não queria magoá-lo. Na noite anterior vira o sofrimento no rosto dele e gostava de o convencer que nada daquilo merecia a sua preocupação. Spencer Hill já não fazia parte da vida dela. Nem nunca mais faria.
Spencer deu-lhe a morada de um barzinho que conhecia e ela prometeu encontrar-se lá com ele às quatro horas. Brian ainda não regressara, e ela foi de táxi, em vez de utilizar a limusina que ele deixara à sua disposição. Receava que o motorista pudesse falar com algum jornalista se a reconhecesse, ou a Spencer.
Crystal levou um enorme chapéu de peles, um casaco também de peles e um par de óculos escuros, e quando lá chegou eleja a aguardava. Spencer tinha neve no cabelo, que estava mais grisalho do que da última vez que o vira no rancho. E quando olhou para ele não conseguiu impedir-se de pensar no aspecto dele da primeira vez que o vira, com calças brancas, o blazer e a gravata vermelha, o cabelo preto brilhante e o sorriso caloroso. Não mudara muito, mas ela sim. Com vinte e oito anos, a rapariga que fora com catorze já tinha sido esquecida.
— Obrigado por teres vindo — agradeceu ele, pegando-lhe na mão enquanto ela se sentava. — Tinha de te ver, Crystal. — Ela sorriu, apercebendo-se de novo como o filho era parecido com ele, o filho que dera à sua vida todo o seu significado e toda a sua alegria. — Saíste-te muito bem — continuou com um sorriso. — Vi todos os teus filmes. Ela sorriu, sentindo-se de novo muito jovem.
— Quem é que teria pensado nisso quando...
— Lembro-me da primeira vez em que me disseste que querias ser uma estrela de cinema — interrompeu Spencer. — Ainda tens o rancho?
Ela assentiu.
— O Boyd e a Hiroko vivem comigo. Vou lá sempre que posso. — «Para ver o teu filho... o nosso bebé...»
— Gostaria muito de lá voltar um dia destes. Aquelas palavras fizeram-na estremecer. Mas sabia que pelo menos nos quatro anos seguintes ele estaria muito ocupado para sequer se lembrar do rancho. Depois fez-lhe a pergunta que lhe ocorrera na noite anterior.
— Ainda estás casado? — Nada lera nos jornais acerca de um divórcio, e como Kennedy era católico, suspeitava que ele não se divorciara, senão não teria sido escolhido para o cargo que agora tinha.
Ele assentiu, pensativo.
— É uma questão de moda. Nunca houve nada ali, e depois do meu regresso... ela sabia de nós. O mais engraçado é que não se importou. Quis continuar casada lá pelas suas razões, que não eram as minhas. E agora conseguiu o que queria — prosseguiu ele com um sorriso, tornando a parecer um rapaz —, ou pelo menos assim o julga. Tal como tu querias ser uma estrela de cinema, o sonho dela era ser casada com alguém importante. Seguimos os nossos caminhos separadamente, mas ela organiza umas festas muito agradáveis. — Parecia mais desiludido do que amargurado. Desistira da mulher que amara e passara mais de dez anos casado com uma estranha. — Parece-me que todos conseguimos o que queríamos, não é verdade? — Estrela de cinema, assessor do presidente e mulher de alguém importante. A única coisa que faltava era a que tinha mais importância. A mulher que ele amava já há quinze anos. — Quando é que regressas?
— Amanhã.
— Com o Brian Ford?
— Sim — respondeu ela encarando-o. Sabia o que ele desejava saber, mas não lho quis dizer e ele não perguntou. Era demasiado doloroso.
— Entraste em filmes muito bons.
— Obrigada — agradeceu Crystal com um sorriso; havia tanto que desejava dizer, mas sabia que não podia.
— Vi-te na entrega dos Óscares, quase chorei. Estavas linda Crystal... ainda estás... nada mudou, estás cada vez melhor.
— E mais velha — acrescentou ela com uma gargalhada. — Ainda me lembro de pensar que uma pessoa com trinta anos já estava quase morta!
Ele riu-se também. Crystal era ainda tão jovem e tão bonita! Isso fazia-o sentir-se com cem anos de idade e muito sozinho.
Falaram ainda durante mais algum tempo, e depois ele olhou para o relógio. Detestava ser obrigado a partir, mas tinha de a deixar. Fora convidado para jantar na Casa Branca às sete da tarde e ainda tinha de ir buscar Elizabeth a casa e de vestir o smoking antes da actuação dessa noite.
— Posso dar-te uma boleia? — perguntou Spencer.
— Acho que não devias. — Ainda estava preocupada, e ele sorriu-lhe.
— Preocupas-te de mais. Não sou o presidente. Apenas um assessor. Ao contrário do que a minha mulher julga, não sou assim tão importante.
Ela entrou na limusina com ele e dirigiram-se para o hotel. Spencer não lhe perguntou por que motivo nunca casara e Crystal no lhe perguntou por que razão não tinha filhos. Falaram sobre o baile na noite anterior, e de repente o carro parou. Ele olhou-a com tristeza e apertou-lhe as mãos nas suas.
— Não quero deixar-te outra vez. Os últimos seis anos sem ti foram horríveis. — Fora aquilo que lhe quisera dizer quando telefonara e fora por isso que a quisera ver. Desejava pelo menos que ela soubesse que ainda a amava.
— Spencer, não... é demasiado tarde para nós. Conseguiste uma bela posição. Não dês cabo dela.
— Não sejas tonta. Daqui a quatro anos tudo isto poderá já ter desaparecido, mas nós não. Ainda não aprendeste isso?
Não achas que o facto de continuarmos a sentir o mesmo após quinze anos tem algum signicado? Quanto tempo queres esperar? Até eu ter noventa anos?
Ela riu-se, e Spencer, de olhos fechados, inclinou-se e beijou-a. Crystal quase ficou sem fôlego ao beijá-lo, e quando se afastaram, tinha os olhos cheios de lágrimas. Para bem dele, não podia ceder, mas desejava-o desesperadamente. E ele não estava a facilitar-lhe as coisas.
— Se eu for à Califórnia, acedes em ver-me?
—Eu... não... Brian... não.
Então ele fez-lhe abruptamente a pergunta que quisera fazer antes.
— Estás a viver com o Ford?
Ela abanou a cabeça. Tinham ambos evitado aquilo, pelas razões de cada um.
—Não, vivo sozinha...
Ele sorriu feliz, beijando-a de novo, enquanto o motorista estava de pé lá fora ao frio, à espera que acabassem de falar.
— Ligo-te assim que puder.
— Spencer!...
Ele calou-a com um último beijo, tornando a sorrir.
—Amo-te... sempre te amarei... e se pensas que podes mudar isso, é melhor desistires.
Tinham ido demasiado longe, resistido demasiadas vezes, tentado demasiado, perdido e ganho e perdido outra vez. Já não conseguiam esquivar-se. Ela sabia, tal como ele, que pertenciam um ao outro. Mas aqueles momentos roubados poderiam custar a Spencer tudo o que ele construíra, e ela não queria que tal acontecesse.
Olhou-o durante bastante tempo, cheia de preocupações.
— É isso mesmo que queres?
— Sim... apesar de poder ser muito pouco, Crystal... é algo.
— Amo-te muito — murmurou ela junto ao pescoço de Spencer, depois abriu a porta e saiu. Apertou-lhe a mão, agradeceu-lhe a boleia e desapareceu no interior do hotel, sentindo os lábios dele ainda quentes nos seus, e perguntou-se o que iria acontecer.
No dia seguinte Crystal e Brian partiram de avião para a Califórnia, e mantiveram-se ambos em silêncio, enquanto ele lia e ela olhava pela janela. Brian não desejava ainda dizer-lhe nada, mas sabia. Passara a tarde a ligar-lhe para o hotel e quando a vira na noite anterior, lera toda a história nos seus olhos, porém só queria desejar-lhe boa sorte e dizer-lhe para ter cuidado. Finalmente, discutiram o assunto no avião durante o almoço, e ele suspirou, enquanto olhava para a estrela que criara, mas que merecia todas as coisas boas que lhe tinham acontecido. A sua infância não fora das mais agradáveis e ele pedia a Deus para que não houvesse mais escândalos. Aquele poderia ser demasiado grande para ela e para Spencer.
— Quero que saibas que podes contar sempre comigo. Serei sempre teu amigo — disse Brian a Crystal que chorou ao ouvir aquelas palavras. Tinham partido para Washington como amantes e amigos e agora tudo acabara. Mas Brian soubera sempre que aquele dia iria chegar. Só esperava que tardasse. Haviam vivido dois anos juntos e sabia que não lhe podia pedir mais do que isso. Na realidade, não queria mais. Nunca quisera casar com ela. O problema era que Spencer também não, pois não podia. Referiu isso a Crystal, mas nada daquilo era novidade. Ela suspirou e assoou-se. Haviam sido dois dias bastantes difíceis, apesar do esplendor do baile.
— Eu sei disso tudo, Brian. A coisa já se arrasta há quinze anos.
Ele ficou perplexo.
— Antes do teu filho?
— Muito antes. Estou apaixonada por ele desde os catorze anos de idade.
— Então porque não casaram? Será que ele nunca te pediu em casamento?
— Pediu, mas nunca na altura certa. Toda a minha vida tem sido uma comédia de equívocos. Reencontrámo-nos depois de ele ficar noivo. Em seguida, depois de casar, ele percebeu que não a amava. Foi para a Coreia e eu envolvi-me com o Ernie, e quando ele regressou achei que devia demasiado ao Ernie para o poder deixar nessa altura. Não é anedótico? Depois o Ernie não me deixou partir quando eu quis, e a Elizabeth não concedeu o divórcio ao Spencer. A coisa continuou assim durante anos, como duas pessoas loucas que não conseguem afastar-se uma da outra. Ele tornou a pedir-me em casamento depois do julgamento, mas nessa altura tinha já aspirações políticas e um excelente emprego a aguardá-lo, e uma mulher acusada de homicídio não é exactamente do que se precisa para ganhar umas eleições. Por isso pus fim a tudo, para bem dele.
Ele olhou-a com admiração renovada, e adivinhou o resto.
— Depois descobriste que estavas grávida e não lhe disseste nada.
Ela anuiu. Brian adivinhara.
— Não foi propriamente uma vida fácil. E agora?
— Não sei. — Ela e Brian tinham concordado em pôr fim à sua relação, mas isso não resolvia as coisas com Spencer. Signicava apenas que ela estava de novo livre, mas ele não: entre a mulher e o trabalho como assessor de Kennedy, Spencer estava tudo menos livre, e ela sabia-o. — Ele quer vir à Califórnia sempre que puder. E depois?
— Eu digo-te. Um dia descobres que tens cinquenta anos e que estás apaixonada por um homem casado com outra mulher, e esperas que ele apareça duas vezes por ano. E se um dia ele concorrer à Presidência? O que acontece? Acabará tudo, e nessa altura que idade terás? Acho que deves procurar um homem simpático, casar com ele e ter mais filhos antes que seja demasiado tarde. — Mas ele não se oferecia como voluntário, e ambos sabiam que não queria casar-se nem ter mais filhos. Nunca hesitara a esse respeito e fizera uma vasectomia no ano anterior, o que facilitara as coisas para Crystal.
A questão agora era com Spencer e o que aconteceria a seguir. Como amigo, Brian não aprovava a situação e achava que ela estava a ser idiota. Se Spencer não podia casar com ela agora Crystal deveria abandoná-lo. Mas era mais fácil dizer do que fazer, e quando ele apareceu em Los Angeles seis semanas mais tarde, as horas que passaram juntos estiveram repletas do amor e da paixão que haviam partilhado desde o início. Passaram todo o tempo no apartamento dela, sem nunca sair, e dois dias depois ele partiu, deixando um enorme vazio na vida dela, enquanto esperava pelo seu regresso. Mas só três meses mais tarde é que ele teve oportunidade de o fazer. Aquilo não era maneira de viver, mas era tudo o que tinham, momentos roubados, dias escondidos, fechados no apartamento dela, com o seu segredo. Por conseguinte, havia rumores constantes e suposições acerca do homem com quem ela andava. E ao fim de um ano a ver Spencer às escondidas, ela começou um «romance» com a estrela de cinema com quem normalmente trabalhava, que por acaso era homossexual e estava igualmente ansiosa por manter secreta a sua vida privada. Crystal também via Brian de vez em quando, e ele censurava-a sempre depois de perguntar se ela continuava a encontrar-se com Spencer.
Zeb tinha na altura já sete anos e estava ansioso por ir a Hollywood visitá-la. Ela consentiu finalmente e deixou-o ir com os Webster, que ficaram tão maravilhados como ele. Foram todos à Disneylândia e divertiram-se muito. Ela prometeu-lhe que o deixaria regressar em breve, mas ele ficou feliz por regressar ao rancho com os Webster e Jane, a quem se referia muitas vezes como irmã. Ela tinha catorze anos e era tão bonita e delicada como a mãe. Crystal levara-os a visitar alguns estúdios e perguntou-se porque não os teria deixado vir mais cedo. Ninguém parecia suspeitar de nada e Zeb não se parecia minimamente com Crystal.
No Verão de 1963 fez dois anos que ela e Spencer se encontravam em segredo, e Crystal estava agora conformada com o seu destino. Não voltara a tentar dissuadi-lo. Sabia que não o poderia deixar partir de novo. Não podia viver sem ele, e parecia não haver necessidade disso. Ninguém suspeitava de nada, e Elizabeth estava-se nas tintas para o que ele fazia. Andava sempre muito ocupada com os amigos, a trabalhar com comissões, a exercer Direito nos seus tempos livres e a organizar festas. Na sua vida não havia espaço para um marido.
Em Novembro, Crystal estava a trabalhar noite e dia num filme; era também de Brian e tinha bastante qualidade. Ele jurou que ela haveria de receber outro Oscar com ele, e ela encontrava-se num intervalo das filmagens, a conversar com os colegas, quando ouviu as notícias. O presidente fora alvejado em Dallas. O seu coração bateu fortemente enquanto corria até um gabinete onde alguém dispunha de um televisor para ver as notícias. A princípio julgava-se que alguns dos assessores também tinham sido alvejados, e ela observou horrorizada o assassínio dele no carro, a cabeça no colo da mulher, e depois a fachada do hospital para onde tinha sido levado. Às onze e trinta e cinco, hora da Califórnia, o locutor anunciou com voz embargada que o presidente morrera. O corpo seria transportado de avião para Washington, para o funeral. E mostraram o rosto da mulher dele, desfigurado pela dor, mas nada foi dito acerca de Spencer. O rosto de Crystal estava branco quando as pessoas começaram a chorar à sua volta. E ela não sabia a quem telefonar. Desesperada, ligou para o escritório de Brian. Ele também ouvira as notícias e estava a chorar quando ela ligou.
— Tenho de saber se o Spencer foi ferido — disse ela a soluçar. — Sabes a quem ligar?
Houve um grande silêncio enquanto ele pensava no que aquilo significava para ela. A morte dele a acrescentar ao resto seria demasiado sofrimento.
— Vou ver o que posso fazer. Ligo-te já para aí. — Mas demorou horas a conseguir falar com uma das pessoas que conhecia na Casa Branca, e ela passou todo o dia como que em transe, à espera de notícias. Eram nove da noite quando ele finalmente lhe telefonou. Lyndon Johnsonjá tomara posse, e Jack Kennedy regressara a Washington enquanto todo o país chorava e a mulher continuava com o tailleur manchado de sangue enquanto o caixão era transportado.
Quando Crystal ouviu a voz de Brian começou a chorar, com medo das notícias, mas ele conseguiu tranquilizá-la.
— Ele está bem Crystal. Regressou a Washington. Está na Casa Branca. — Ela escutou-o como que num sonho, depois pousou o auscultador e chorou por Jack ejackie, e pêlos dias de Camelot, desaparecidos para sempre, mas chorou também de alívio por Spencer, que não fora ferido.
O funeral foi uma sinfonia de dor, e à passagem do caixão duas crianças choravam e um rapazinho saudava o seu pai pela última vez. O país parou a chorá-lo. O seu assassino foi morto e o mundo ficou em estado de choque. Foi uma época que ninguém iria esquecer e Crystal não conseguia falar com Spencer. Não havia meio de saber como é que ele estava, ou o que lhe acontecera, e não fazia ideia se continuaria a trabalhar com Lyndon Johnson. Brian deu duas semanas de folga aos seus actores. Todos precisavam de algum tempo para se recompor, e por deferência para com o presidente, que ele estimara, o escritório fechou, de luto.
Crystal regressou de avião ao rancho e passou as noites e os dias com Boyd e Hiroko a ver as notícias. Até Zeb chorou quando viu o funeral na televisão e ele e Jane deram as mãos enquanto observavam os inconsoláveis filhos dos Kennedy.
E em Washington, Spencer tomou uma decisão. Estivera atordoado durante vários dias e nunca chorara tanto na sua vida. Houve despedidas sentidas e depois a chegada agridoce dos Johnson. Mas ele sabia que não podia servir mais ninguém como servira JFK. No seu íntimo, sentira que o amara verdadeiramente.
Demitiu-se no dia a seguir ao funeral, e passou horas a chorar em silêncio enquanto arrumava o seu gabinete. Regressou a casa com as suas caixas, os seus livros e as suas recordações de um homem que nunca seria esquecido.
Elizabeth viu-o chegar e olhou-o em choque. Fora ao funeral com o pai. Spencer tivera de ir com os colegas.
— O que estás a fazer? — perguntou ela no meio da sala de estar, a olhar para ele.
Spencer parecia exausto e mais idoso dos que os seus quarenta e quatro anos. Sentia-se um velho, sem esperança e sem sonhos. E fora por isso que tomara aquela decisão. Demitira-se porque sabia que o sonho terminara para ele e desistira de muitos outros sonhos que não poderiam ser seguidos após a morte daquele homem que tanto significara para ele.
— Demiti-me. Vim para casa, Elizabeth.
— Mas isso é uma loucura! — exclamou ela. Spencer não podia fazer-lhe aquilo. Sabia que ele ficara perturbado, mas a Presidência iria sobreviver, com ou sem Kennedy. Ele não podia abandonar tudo sem mais nem menos. Ela não o permitiria. — Não te compreendo. — Parecia amarga e zangada. — Tiveste o sonho de todos na palma da mão e abandonaste-o sem mais nem menos?
— Não o abandonei, ele morreu. Foi assassinado — respondeu.
— Muito bem, sei que é uma altura difícil. Mas o Johnson também vai precisar de ajuda.
No entanto Spencer abanou a cabeça, levantando uma mão cansada.
—: Por favor, Elizabeth. Acabou tudo. Entreguei esta manhã a minha demissão. Se queres o cargo, vai em frente, terei todo o gosto em telefonar ao presidente em teu nome.
— Não sejas estúpido. E agora? — Ele nem sequer podia concorrer para o Congresso, pois não preparara as bases.
Spencer virou-se para ela com um sorriso estranho. Sabia exactamente o que queria fazer e para onde iria a seguir.
— Agora, Elizabeth, o dia terminou. Estou catorze anos atrasado. Mas sei que não quero acordar uma manhã, descobrir que tenho sessenta e cinco e perguntar-me para onde raio foi a minha vida.
— O que quer isso dizer? — O presidente fora assassinado, mas isso não significava também o fim de tudo para eles. O que havia de errado com Spencer? Mas ele agarra va-se ao seu último sonho e desta vez sabia que não o queria perder.
— Quer dizer que me vou embora. Já cá estou há demasiado tempo. Acabou tudo para mim.
— Queres dizer nós? — Ela recusava-se a entender, mas ele assentiu.
— Exactamente. Não sei se te aperceberias disso se eu não to dissesse.
— E o que tencionas fazer? — Tentava não o mostrar, mas estava assustada.
— Vou para casa, seja ela onde for. Vou-me embora. Para já, para a Califórnia. E para Crystal.
— Vais sair de Washington? — Ela ficou atordoada. Spencer estava a desperdiçar tudo.
— Sim. Tive o que de melhor havia, e agora vou-me embora. Vou exercer Direito algures, ou talvez meter-me na política local, mas não tenciono cá ficar e não vou continuar casado contigo. Quero o divórcio, Elizabeth. E quer concordes, quer não, as coisas irão ser assim. Já não preciso do teu consentimento. Estamos em mil novecentos e sessenta e três, não em mil novecentos e cinquenta.
— Perdeste a cabeça. — Ela sentou-se e ficou a olhar para ele. Tinha trinta e cinco anos e ele acabara de lhe destruir a vida.
— Não — disse ele tristemente, abanando a cabeça —, acho que a encontrei. Nunca nos devíamos sequer ter casado e tu sabes isso muito bem.
— Que absurdo! — Continuava tão elegante como sempre, na sua imitação perfeita da Primeira Dama, com o seu fato Chanel e o chapéu em forma de embalagem de comprimidos. Mas também isso acabara. Tudo acabara.
— A única coisa absurda foi o facto de eu ter deixado que me convencesses a ficar aqui todo este tempo. Ainda és nova, tens a vida toda pela frente. Podes concorrer ao Congresso, se é isso que desejas. Mas depois do que acabou de acontecer — comoveu-se, ao pensar no homem que tanto estimara —, já não quero nada disto. Podes ficar com tudo. A excitação, a emoção, as desilusões, o sofrimento.
— És um cobarde. — Ela quase cuspiu aquelas palavras, mas ambos sabiam que não correspondiam à verdade.
— Talvez; talvez esteja apenas cansado. — E triste. E tão sozinho que podia chorar. Agora queria ir para junto de Crystal, para o lugar que lhe pertencia.
— Vais voltar para ela, não vais? — «Ela» era a única palavra que Elizabeth empregava para se referir a Crystal.
— Talvez. Se ela me quiser.
— És um idiota, Spencer. Sempre foste. És demasiado bom. — Mas ele virou-lhe as costas e subiu para o quarto, a fim de arrumar as suas coisas, desta vez para sempre. E nessa noite, quando saiu de casa, foi de vez.
— Vou ligar a um advogado assim que chegar à Califórnia — anunciou ele junto à porta. Era uma estranha despedida para uma mulher com quem vivera quase catorze anos, mas não havia mais nada a dizer-lhe, e Elizabeth não respondeu quando ele fechou a porta e foi passar a noite a um hotel antes de partir para a Califórnia na manhã seguinte.
Spencer ligou a Crystal já bastante tarde para lhe contar as novidades. Não lhe telefonava desde que partira para Dailas. Mas ela não estava em casa e ele decidiu surpreendê-la em Los Angeles. O voo foi longo, e ele estava mergulhado nos pensamentos, só sentindo alegria pelo facto de a ir ver daí a horas. Mas não estava ninguém no seu apartamento, então decidiu ir procurá-la no estúdio onde sabia que ela se achava a trabalhar.
Tinham muito que conversar, e ele ainda não tomara inteira consciência do que acontecera. Estava livre. Abandonara tudo, sabendo que estava a fazer o que devia ser feito. Agora só queria saber o que ela sentia em relação à sua atitude, e sentiu um arrepio de medo quando saiu do táxi e se encaminhou para o estúdio de som. E se fosse já demasiado tarde para ela? Se tudo se tivesse arrastado por demasiado tempo? Se ela não quisesse casar com ele? Era possível, mas pouco provável. Spencer sabia quanto ela o amava, sabia o que significavam um para o outro. Fora a única coisa de que não duvidara nos últimos anos.
Todavia, o estúdio de som estava vazio e ele foi informado de que os actores estavam de folga durante duas semanas, de luto pelo presidente. Ficou parado durante algum tempo, perguntando-se o que devia fazer a seguir. Depois descobriu. Alugou um carro, achando melhor não telefonar a Crystal. Era o único local onde sabia que ela devia estar.
A viagem demorou catorze horas, mas ele não quisera ir de avião. Apetecia-lhe guiar e pensar nela e no que fariam agora. Parou uma vez na berma da estrada para dormitar quando se sentiu cansado e duas vezes para comer. Mas quando o Sol se levantou sobre o vale, sentiu-se feliz e sentiu perto de si o espírito do amigo perdido. Atravessava uma época estranha num mundo estranho, mas sabia que tinha agido bem. Chegou ao rancho às sete da manhã. O Sol já ia alto no céu, mas o ar estava frio. Era um belo dia de Novembro. Spencer viu um rapazinho a correr pêlos campos e abrandou para o observar. Por momentos pensou que fosse Jane, mas ao observá-lo com mais atenção, viu que se enganara. Tinha cabelo preto brilhante e estava a chamar alguém quando Spencer saiu do carro e ficou a olhar para ele. Parecia ter cerca de oito anos, e quando viu o desconhecido ali parado a olhar para ele, o garoto parou e pôs-se também a olhar, avançando depois na sua direcção.
Spencer não moveu um músculo enquanto observava o rapazinho, e quando este se aproximou, quase ficou sem ar. Já vira aquele rosto, há muito tempo, quando ele próprio era uma criança. Era um rosto que conhecia bem, o seu; era como se estivesse a ver-se em criança. Spencer avançou devagar para o rapaz. De repente soube o que tinha acontecido, e que ela nunca lhe contara.
— Olá! — O garoto acenou-lhe com a mão, e Spencer deteve-se com os olhos cheios de lágrimas. Não sabia o que havia de dizer-lhe, limitou-se a sorrir enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto. Depois viu Crystal ao longe. Ela parara, assustada por o ver ali, querendo chamar Zeb, mas era tarde de mais, e começou a correr, como se quisesse mandá-lo embora. Mas já não valia a pena, agora a única coisa que via era Spencer. Ele sorria para o rapaz, e para ela, e chorava suavemente quando ela se aproximou. Estava são e salvo, regressara a casa, por um minuto ou uma hora ou um dia ou pelo tempo que ela o quisesse. Crystal viu-o aproximar-se de Zeb, pegar-lhe na mão, e continuou a correr na direcção deles. Era demasiado tarde. Ele descobrira. O seu segredo era agora também dele... e de Zeb... alcançou-os no momento em que Spencer lhe pegava ao colo e abraçou os dois. Ele baixou os olhos para ela enquanto Zeb os observava, fascinado.
— Não sabia que vinhas. — Aquela teve graça, e Spencer desatou a rir, sem ter vergonha das lágrimas.
— Há muitas coisas que não me disseste Crystal Wyatt.
— Não me perguntaste. — Ela sorriu através das lágrimas enquanto ele a beijava.
— Para a próxima não me posso esquecer de o fazer. Nessa altura Zeb escapuliu-se, atrapalhado com o que estava a ver, e desatou a correr pelas vinhas, tal como ela fizera em criança e como os filhos vindouros fariam. Spencer pegou-lhe na mão e caminharam lentamente até à casa do rancho enquanto conversavam e o rapazinho os observava. Spencer olhou para Crystal quando chegaram aos degraus do alpendre, depois levantou os olhos para o céu. Aquele dia de Inverno estava bastante soalheiro... mas ele quase jurava que à distância ouvira trovões e vira relâmpagos. Beijou-a, e depois entraram os três em casa. Finalmente em casa. Juntos.
Danielle Steell
O melhor da literatura para todos os gostos e idades