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Entre as personagens estrangeiras da A comédia humana, os polacos ocupam lugar de relevo. É natural que os compatriotas da mulher com quem durante tantos anos se correspondera, que foi sua noiva secreta desde 1833 e com quem finalmente casou poucos meses antes de morrer, tenham despertado o interesse de Balzac. Além disso, eram os filhos de uma nação famosa por sua sorte infeliz, particularmente queridos pelos românticos. Paris, centro da emigração polaca, abrigava nesse tempo representantes realmente notáveis da Polônia, músicos, escritores, sábios—e também aventureiros, aristocratas pródigos e mendigos famintos. Balzac dava-se com Chopin, encontrava Miczkiewicz, frequentava o dr. Wronski, mistura de sábio e de charlatão, sem falar dos parentes da condessa Hanska, cuja extensa família tinha sempre representantes em Paris. Assim, pois, o quadro que, no preâmbulo de A falsa amante (em francês: La Fausse Maîtresse), o escritor traça da emigração polonesa de então é uma resultante de experiências pessoais; e o conde Adão Laginski parece encarnar bem certo tipo de ricos aristocratas poloneses que, impedidos de tomar parte na vida pública de seu país, se atiravam à dissipação e aos prazeres (Ver L’Étrangère, de Korwin-Piotrowska). Seu amigo Tadeu Paz, esse herói da abnegação e do sacrifício, tem os traços menos bem desenhados por estarem superidealizados; para tornar verossímil a sua abnegação sobre-humana, o escritor sente a necessidade de mesclar em suas veias sangue italiano e sangue polaco, isto é, de duas raças que na concepção romântica passavam como protótipos de idealismo e de paixão.
A figura desse amante generoso e desesperado foi em parte inspirada em certo conde Tadeu Wylezynski, primo de Eveline Hanska e, antes mesmo do casamento, seu primeiro amor. Não podendo desposar a prima rica, ele tê-la-ia adorado à distância silenciosamente, não só depois de casada, como também após o começo do idílio com Balzac.
Rival feliz, este lhe consagrou pelo menos este retrato idealizado, guardando-lhe até o nome. No momento da morte de Wylezynski, pouco depois da publicação de A falsa amante, o próprio romancista lembrava à amante essa identificação, que era um segredo dos interessados. (Lettres à l’Étrangère, carta do 11.X.1844.)
Ao tempo da publicação desta novela, o escritor queixava-se da dificuldade extraordinária do assunto. (Ibidem, carta do 20.X.1844.) Embora não especifique a natureza da dificuldade, a leitura da novela a indica, pois o autor não conseguiu vencê-la. Parece que o próprio Balzac achava o devotamento de seu herói um pouco exagerado.
Ele foi um dos maiores, talvez o maior, pintores das deformações causadas no homem pelo crime, pelo vício, pelo instinto; suas personagens preferidas são pervertidos monstruosos em que a deformação vai ao extremo limite, mas que nunca deixam de ser convincentes e obedecem à lógica do mecanismo das paixões. Mas, quando pretende retratar “uma dessas ações sublimes, menos raras do que acreditam os detratores dos tempos presentes e que [...] como as belas pérolas estão ocultas dentro de grosseiras conchas”, não chega mais a nos persuadir. A “mistificação sublime” com que Paz pretende esconder o seu amor à esposa do amigo é, ao mesmo tempo, engenhosa e ingênua demais. O herói vale-se de requintes incríveis e de truques insulsos para praticar o bem. Se a virtude necessariamente fosse tão complicada, quem não preferiria o vício?
paulo rónai
I - UM MISTÉRIO NO MEIO DA FELICIDADE
No mês de setembro de 1835, uma das mais ricas herdeiras do Faubourg Saint-Germain, a srta. du Rouvre, filha única do marquês du Rouvre, desposou o conde Adão Mitgislas
Laginski, jovem polonês proscrito.
Seja-me permitido escrever os nomes como eles são pronunciados, a fim de poupar ao leitor o aspecto das fortificações de consoantes, com as quais a língua eslava
protege as suas vogais provavelmente para não perdê-las, dado o seu pequeno número.
O marquês du Rouvre dissipara quase que completamente uma das mais belas fortunas da nobreza, à qual devera, outrora, sua união com uma srta. de Ronquerolles (Uma
srta. de Ronquerolles: a outra casou com o conde de Sérisy (Uma estreia na vida).). Por isso, pelo lado materno, a srta. Clementina du Rouvre tinha como tio o marquês
de Ronquerolles e como tia a sra. de Sérisy. Pelo lado paterno gozava da dita de ter como tio o singular cavalheiro du Rouvre, filho segundo da casa, solteirão que
enriquecera negociando com terras e casas. O marquês de Ronquerolles teve a infelicidade de perder os dois filhos que tinha por ocasião da epidemia de cólera. O
filho único da sra. de Sérisy, jovem militar de grande futuro, morrera na África na questão da Macta (A morte do jovem conde de Sérisy, a quem o oficial Oscar Husson
não conseguiu salvar apesar de toda a sua dedicação, é relatada em Uma estreia na vida.). As famílias ricas vivem atualmente entre o perigo de arruinar os filhos
se os têm em grande número, e o de se extinguirem se se limitam a um ou dois—singular resultado do Código Civil (Singular resultado do Código Civil: alusão à supressão
do direito de primogenitura, operada por um decreto da Revolução Francesa em 1790 e codificada no artigo 745 do Código Civil de Napoleão, que reza: “Os filhos ou
seus descendentes sucedem sem distinção de sexo nem de progenitura”. Balzac, de opiniões reacionárias em política, lamentava a abolição do direito de primogenitura,
esse vestígio do sistema feudal, destinado a preservar a riqueza e o poder das famílias aristocráticas.), que Napoleão não previu. Por obra do acaso, e apesar das
dissipações insensatas do marquês du Rouvre por Florina (Florina. Seu nome de família é Sofia Grignault; mais tarde se torna sra. Raul Nathan. Personagem de primeiro
plano do demi-monde balzaquiano; conhecê-la-emos no romance seguinte, Uma filha de Eva.), uma das mais encantadoras atrizes de Paris, Clementina tornou-se pois uma
herdeira. O marquês de Ronquerolles, um dos mais hábeis diplomatas da nova dinastia, sua irmã, a sra. de Sérisy e o cavalheiro du Rouvre convieram, para salvar suas
fortunas das garras do marquês du Rouvre, em dispor delas a favor da sobrinha, à qual prometeram constituir-lhe, cada qual, uma renda de dez mil francos, no dia
de seu casamento.
É perfeitamente inútil dizer que o polonês, embora sendo um refugiado, nada custava ao governo francês. O conde Adão pertencia a uma das mais antigas e ilustres
famílias da Polônia, sendo aliado à maioria das casas principescas da Alemanha, aos Sapiéha, aos Radziwil, aos Rzewuski, aos Czartoriski, aos Leczinski, aos Iablonoski,
aos Lubormiski, a todos os ski sármatas (Todos sobrenomes da aristocracia polonesa da época; a condessa Hanska, amante e noiva de Balzac, era Rzewuska em solteira.—Sármata:
polonês.). Mas não eram os conhecimentos heráldicos o que distinguia a França sob Luís Filipe, e aquela nobreza não podia ser uma recomendação junto à burguesia
que então imperava. De resto, quando, em 1833, Adão apareceu no Boulevard des Italiens, no Frascati (Frascati: famosa sorveteria fundada durante o Diretório na esquina
dos Bulevares com a rue de Richelieu; transformada em seguida em casa de jogo, existiu até 1837.), no Jockey Club, levou a vida de um rapaz que, tendo perdido as
suas esperanças políticas, tornava a entregar-se aos seus vícios e ao amor dos prazeres. Tomaram-no por um estudante. A nacionalidade polonesa, em consequência de
uma odiosa reação governamental (Uma odiosa reação governamental: provável alusão ao decreto pelo qual o governo francês, em fins de 1831, dissolveu o Comitê Nacional
Polonês.), caíra, no momento, tão baixo que os republicanos queriam erguê-la bem alto. A estranha luta do Movimento contra a Resistência (Depois da Revolução de
julho de 1830, na França, seus partidários dividiram-se em duas facções: a do Movimento, chefiada por Odilon Barrot, favorável a reformas progressistas e à ajuda
aos povos amotinados, e a da Resistência, de tendência conservadora.), dois termos que daqui a trinta anos serão inexplicáveis, fez um joguete do que devia ser tão
respeitável: o nome de uma nação vencida, à qual a França concedia hospitalidade, para a qual se inventavam festas, para a qual se cantava e dançava por subscrição;
enfim, uma nação que, por ocasião da luta entre a França e a Europa, nos oferecera seis mil homens em 1796, e que homens! Não se deduza disso que se queira dar razão
à Polônia (Não se deduza disso que se queira dar razão à Polônia: não obstante as suas simpatias pela Polônia, Balzac, contrariamente à maioria de seus confrades,
nunca tomou em público a defesa da causa polonesa. Um dos motivos dessa abstenção era a admiração do escritor ao poder absoluto do czar, a quem, segundo suas cartas,
ele considerava “o único soberano verdadeiro” e o único que “exerce o poder como deve ser exercido”; outro motivo não confessado, mas real, era o fato de ser o consentimento
do czar necessário para o casamento do escritor com Eveline Hanska, cujo marido morrera pouco antes da publicação desta novela. Por infelicidade do romancista, a
sua admiração ficou unilateral, pois o imperador da Rússia não consentiu na união planejada, e foi só em 1850 que Balzac pôde desposar Eveline, depois que ela renunciara
à sua fortuna em favor da filha e do genro. No entanto, as viagens de Balzac à Polônia deram muito que falar aos seus colegas de Paris, cuja desconfiança foi sem
dúvida aumentada por algumas gabolices do próprio romancista: assim é que nos meios literários se espalhou mais de uma vez o boato fantástico de que ele vendera
a sua pena ao imperador da Rússia.) contra o imperador Nicolau ou ao imperador Nicolau contra a Polônia. Em primeiro lugar, seria uma tolice introduzir discussões
políticas numa narrativa que tem por fim divertir ou interessar. E depois, Rússia e Polônia tinham razão, uma em querer a unidade de seu império, a outra em querer
ser livre. Digamos de passagem que a Polônia poderia conquistar a Rússia pela influência de seus costumes, em vez de combatê-la pelas armas, imitando os chineses,
que acabaram por “enchinesar” os tártaros e que “enchinesarão” os ingleses, assim o esperemos. A Polônia deveria polonizar a Rússia; Poniatowski (Poniatowski: trata-se
de Estanislau-Augusto Poniatowski (1732-1798), que com a proteção de Catarina II, da Rússia, de quem era amante, se tornou rei da Polônia e assinou as duas partilhas
da sua pátria.) o tentara na região menos temperada do império; mas esse gentil-homem foi um rei tanto mais incompreendido, porque talvez ele mesmo não se compreendesse
bem. Como se poderia deixar de odiar essa pobre gente que foi a causa da horrível mentira cometida durante a revista em que toda Paris pedia para socorrer a Polônia?
Fingiram considerar os poloneses aliados do partido republicano, sem se lembrarem de que a Polônia era uma república aristocrática. Desde então a burguesia não poupou
os seus ignóbeis desdéns aos poloneses que poucos dias antes eram endeusados. O sopro de um motim fez sempre os parisienses variarem do norte para o sul, sob todos
os regimes. É preciso relembrar essas reviravoltas da opinião parisiense para explicar como a palavra “polonês” era, em 1835, um qualificativo irrisório para o povo
que se julga o mais espirituoso e o mais cortês do mundo, no foco das luzes, numa cidade que empunha hoje o cetro das artes e da literatura. Existem, infelizmente,
duas espécies de poloneses refugiados: o polonês republicano, filho de Lelewel (Lelewel: Joaquim Lelewel, historiador e político polonês, um dos promotores da Revolução
de 1830, presidente do Clube dos Patriotas e, após a queda da Revolução, do Comitê dos Emigrados Poloneses, em Paris. Proibido pelo governo de Luís Filipe de residir
na França, transferiu-se para Bruxelas, em cuja universidade lecionou história moderna.), e o nobre polonês, do partido à cuja frente está o príncipe Czartoriski
( O príncipe Adão Czartoriski (1770-1861): fora presidente do governo provisório de Varsóvia e assinou, embora com pesar, a destronização do imperador Nicolau I.
Os democratas poloneses atribuíam à sua falta de energia o insucesso da Revolução. Depois da queda desta última, exilou-se em Paris, onde seu palácio, o “Hotel Lambert”,
foi durante trinta anos o ponto de encontro da desterrada aristocracia polonesa. Em 1833 os emigrados democratas romperam abertamente com ele e chegaram a publicar
na imprensa um manifesto, com mais de três mil assinaturas, em que o acusavam de não ter organizado a emigração polonesa, de não ter tomado atitude bastante enérgica
contra a pseudoanistia de Nicolau I etc.). Essas duas variedades de poloneses são a água e o fogo, mas por que querer-lhes mal por isso? Não são essas divisões encontradas
sempre entre os refugiados de todas as nações, seja lá onde for que eles estejam? Todos carregam consigo a sua terra e seus ódios. Em Bruxelas, dois padres franceses,
emigrados, manifestavam um profundo horror, um ao outro, e quando perguntaram o motivo a um deles, respondeu, apontando para o companheiro de desdita: “É um jansenista”.
Dante, de bom grado, em seu exílio, teria apunhalado um adversário dos Brancos (Brancos: nome de um dos partidos que, no tempo de Dante, lutavam pela hegemonia de
Florença. Partidário ardente dos Brancos, o poeta combateu os Negros e foi por estes exilado. Aos partidários de Czartoriski dava-se também o nome de “Brancos”.).
Esse o motivo das acusações dirigidas contra o venerável príncipe Adão Czartoriski pelos radicais franceses, e o do desfavor com que envolveram parte da emigração
polonesa os Césares de café e os Alexandres patenteados. Em 1834, pois, Adão Mitgislas Laginski teve contra ele os gracejos parisienses. “Ele é gentil, embora polonês”,
dizia Rastignac.
— Todos esses poloneses se diziam grão-senhores—comentava Máximo de Trailles (Máximo de Trailles: personagem importante de A comédia humana, que encontraremos em
O pai Goriot, Gobseck, Um homem de negócios etc.)—mas este paga suas dívidas de jogo, o que me faz pensar que já teve propriedades rurais.—Sem querermos ofender
proscritos, é permitido observar que a leviandade, a despreocupação, a inconsistência do caráter sármata justificaram a maledicência dos parisienses, que, aliás,
muito se pareceriam com os poloneses, em idênticas circunstâncias. A aristocracia francesa, tão admiravelmente socorrida pela aristocracia polonesa durante a Revolução,
não pagou na mesma moeda aos emigrados forçados de 1832 (Os emigrados forçados de 1832: os participantes da chamada Grande Emigração, que se refugiaram na França
depois da queda da Revolução de 1830.). Tenhamos a triste coragem de confessá-lo, o Faubourg Saint-Germain continua, nisso, devedor da Polônia.
Era o conde Adão rico, pobre, um aventureiro? Durante muito tempo, esse problema permaneceu sem solução. Os salões da diplomacia, fiéis às instruções recebidas,
imitaram o silêncio do imperador Nicolau, que considerava como morto todo emigrado polonês. As Tulherias ( As Tulherias: antiga residência dos reis da França, em
Paris; a corte.) e a maioria dos que lá recebiam a palavra de ordem deram uma terrível prova dessa qualidade política a que se dá o nome de sabedoria. Ignoraram
um príncipe russo com o qual antes costumavam fumar charutos durante a emigração, por parecer ter ele incorrido no desagrado do imperador Nicolau. Metidos entre
a prudência da corte e a da diplomacia, os poloneses de distinção viviam na solidão bíblica de Super flumina Babylonis (Super flumina Babylonis: primeiras palavras
da tradução latina do salmo CXXXVI, que deplora o cativeiro dos judeus na Babilônia, e que se citam frequentemente, em alusão à sorte triste dos exilados em geral.)
ou frequentavam certos salões que servem de zona neutra para todas as opiniões. Numa cidade de prazer como Paris, onde as distinções abundam em todas as camadas,
a leviandade polonesa encontrou duas vezes mais motivos do que precisava para viver a existência dissipada de rapazes.
Digamo-lo, enfim, Adão teve a princípio contra si o seu porte e as suas maneiras. Há duas espécies de poloneses, como há duas espécies de ingleses. Quando uma inglesa
não é muito bela, é horrivelmente feia, e o conde Adão pertencia à segunda categoria. Seu pequeno rosto, de aspecto bastante azedo, parecia ter sido comprimido num
torno. O nariz curto, os cabelos louros, a barba e os bigodes ruivos davam-lhe um ar de cabra, tanto mais acentuado por ser ele pequeno, magro e porque seus olhos
de um amarelo sujo impressionavam por aquele olhar oblíquo, tão célebre, devido ao verso de Virgílio (O verso de Virgílio (Bucólicas III, v. 9) fala do “olhar de
esguelha dos bodes” (transversa tuentibus hircis).). Como podia ele, apesar de tantas condições desfavoráveis, ter maneiras e um tom aprimorado? A solução desse
problema era dada quer pela indumentária de dândi, quer pela educação que lhe dera sua mãe, uma Radziwil. Se sua coragem alcançava a temeridade, seu espírito não
ia além dos gracejos correntes e efêmeros da conversação parisiense; mas não encontrava com frequência, entre os rapazes da moda, um que lhe fosse superior. Os rapazes
da alta sociedade falam hoje demasiado sobre cavalos, rendas, impostos, deputados, para que a conversação francesa se conserve o que foi. O espírito exige vagares
e certas desigualdades de posição. É provável que se converse melhor em Petersburgo e Viena do que em Paris. Pessoas do mesmo nível social não precisam mais de finuras,
dizem uns aos outros, muito simplesmente, as coisas como elas são. Os trocistas de Paris dificilmente podiam achar um grão-senhor numa espécie de estudante leviano,
que nas suas palestras passava frivolamente de um assunto para outro, que corria em busca de divertimento com tanto mais furor quanto acabava de escapar a grandes
perigos e que, tendo saído de seu país, onde sua família era conhecida, se julgava com direito de levar uma vida extravagante sem correr o risco da desconsideração.
Um belo dia, em 1834, Adão comprou um palacete na rue de la Pépinière. Seis meses depois dessa aquisição, seu trem de vida equiparou-se ao das casas mais ricas de
Paris.
No momento em que Laginski começava a se fazer levar a sério, viu Clementina nos Italiens e apaixonou-se por ela. Um ano depois, realizou-se o casamento. O salão
da sra. d’Espard (A sra. d’Espard: personagem importante de A comédia humana, amiga dos Chaulieu; heroína de A interdição.) deu o sinal para as felicitações. As
mães de família vieram a saber demasiado tarde que desde o ano novecentos os Laginski estavam incluídos entre as famílias ilustres do Norte. Por uma medida de prudência
antipolonesa, a mãe do jovem conde tinha, na época da insurreição, hipotecado seus bens, por uma quantia enorme, a duas casas judaicas, e colocara o dinheiro em
valores franceses. O conde Adão Laginski possuía oitenta mil francos de renda. Ninguém mais se admirou da imprudência com que—na opinião de muitas rodas—a sra. de
Sérisy, o velho diplomata de Ronquerolles e o cavalheiro du Rouvre cediam ante a louca paixão da sobrinha. Como sempre, todos passaram de um extremo a outro. Durante
o inverno de 1836, o conde Adão foi o homem da moda e Clementina Laginski tornou-se uma das rainhas de Paris. A sra. de Laginski faz parte hoje desse grupo encantador
de jovens damas onde brilham as sras. de l’Estorade, de Portenduère, Marie de Vandenesse, du Guénic e de Maufrigneuse (Heroínas, respectivamente, de Memórias de
duas jovens esposas, Úrsula Mirouët, Uma filha de Eva, Beatriz e Os segredos da princesa de Cadignan.), as flores da Paris atual, que vivem à grande distância dos
arrivistas, dos burgueses e dos fazedores da nova política.
Esse preâmbulo era necessário para determinar a esfera na qual se passou uma dessas ações sublimes, menos raras do que o acreditam os detratores dos tempos presentes,
e que são, como as belas pérolas, fruto de um sofrimento ou de uma dor e, que, semelhantes às pérolas, estão ocultas dentro de grosseiras conchas, perdidas, enfim,
no fundo desse abismo, desse mar, dessa onda incessantemente agitada, denominada sociedade, século, Paris, Londres ou Petersburgo, como quiserdes!
Se algum dia foi demonstrada a verdade que diz ser a arquitetura a expressão dos costumes, não se daria isso a partir da insurreição de 1830 sob o reinado da Casa
de Orléans? Pois, restringindo-se todas as fortunas na França, os majestosos palácios de nossos pais estão sendo incessantemente demolidos e substituídos por uma
espécie de falanstério onde o par de França de Julho mora no terceiro andar, acima de um empírico enriquecido. Os estilos são empregados confusamente. Como não existe
mais corte nem nobreza para dar o tom, não se vê nenhuma harmonia nas produções da arte. Por sua vez, nunca a arquitetura descobriu tão numerosos recursos econômicos
para macaquear o verdadeiro e o sólido, nem desenvolver tanta ciência, tanto gênio nas distribuições. Oferecei a um artista a orla do jardim de um velho palácio
demolido, e ele vos construirá um pequeno Louvre, abarrotado de ornamentos; nele encontrareis um pátio, cocheiras e, se fizerdes questão, também um jardim; no interior
ele acumulará tantas saletas e tantos corredores, saberá tão bem enganar a vista, que vos sentireis à vontade. Enfim, abundam de tal modo os aposentos que uma família
ducal faz suas evoluções na antiga casa do forno de um presidente togado. O palacete da condessa Laginski, na rue de la Pépinière, era uma dessas criações modernas
e estava situado entre um pátio e um jardim. À direita, no pátio, estavam os quartos dos criados, as cozinhas e demais peças de serviço, enquanto à esquerda se achavam
as cavalariças e os depósitos.
O cubículo do porteiro erguia-se entre dois bonitos portões. O grande luxo da casa consistia numa encantadora estufa, disposta junto a um boudoir no rés do chão,
no qual existem admiráveis salas de recepção. Um filantropo corrido da Inglaterra erguera aquela joia arquitetônica, construíra a estufa, desenhara o jardim, envernizara
as portas, ladrilhara as peças de serviços, enverdecera as janelas e realizara um desses sonhos semelhantes—guardadas as devidas proporções—ao de Jorge IV em Brighton
(Brighton: cidade da costa meridional da Inglaterra, no condado de Sussex, com o famoso Marine-Pavillon, residência preferida do rei Jorge IV.). O fecundo, hábil
e rápido operário de Paris esculpira-lhe as portas e as janelas. Haviam feito para ele imitações de tetos medievais ou de palácios venezianos e prodigalizado painéis
de mármore em quadros exteriores. Elschoët e Klagmann (Elschoët (corretamente: Elshoecht): Jean-Jacques Elshoecht (1797-1856), escultor francês, das relações de
Balzac.—Klagmann: Jean-Baptiste Klagmann, escultor francês (1810-1867) que se dedicou também a trabalhos de ourivesaria e arte industrial.) trabalharam o frontal
das portas e das lareiras, Schinner (Schinner: personagem balzaquiana, pintor, protagonista de A bolsa.) pintara magistralmente os tetos. As maravilhas da escada,
branca como um braço de mulher, desafiavam as do palácio Rothschild. Devido aos motins, o custo dessa loucura não excedeu a um milhão e cem mil francos. Para um
inglês, foi de graça. Todo aquele luxo, classificado de principesco por gente que não sabe mais o que é um verdadeiro príncipe, cabia no antigo jardim do palácio
de um fornecedor, um dos Cresos da revolução, que morrera em Bruxelas, falido, depois de uma reviravolta da Bolsa. O inglês morreu em Paris, de Paris, porque para
muita gente Paris é uma doença, e às vezes mesmo várias doenças. Sua viúva, uma metodista, manifestou um horror inexcedível pela pequena casa do nababo. Esse filantropo
era um vendedor de ópio. A pudica viúva deu ordem para vender o escandaloso edifício no momento em que os motins traziam à baila a questão da paz a qualquer preço.
O conde Adão aproveitou a oportunidade, já vereis como, pois nada estava menos de acordo com seus hábitos de grão-senhor.
Por trás daquela casa, construída com pedras talhadas como um melão, estendia-se o verde veludo de um gramado inglês, sombreado no fundo por um elegante e cerrado
bosquete de árvores exóticas, de onde emergia um pavilhão chinês com suas campânulas mudas e seus ovos dourados e imóveis. A estufa e suas dependências fantasistas
encobriam o muro de divisão ao sul. O outro muro que ficava em frente à estufa estava tapado por trepadeiras, dispostas em pórticos por meio de esteios pintados
de verde e reunidos por travessões. Aquele prado, aquele mundo de flores, as aleias recobertas com saibro, o simulacro de floresta, aquelas paliçadas aéreas, tudo
aquilo se desenvolvia dentro de uma área de vinte e cinco varas quadradas, que hoje valem quatrocentos mil francos, o preço de uma floresta verdadeira. Naquele silêncio
conseguido em plena Paris, ouve-se o cantar dos pássaros: melros, rouxinóis, piscos, toutinegras e muitos pardais. A estufa é uma enorme jardineira, onde o ar está
carregado de perfumes, onde se pode passear no inverno como se fosse em pleno verão. Os meios pelos quais se consegue a atmosfera que se quer, a tórrida, a da China
ou da Itália, são habitualmente ocultos ao olhar. Os tubos pelos quais a água quente circula, o vapor, um calórico qualquer, são cercados de terra e aparecem como
grinaldas de flores vivas. O boudoir é espaçoso. O milagre da fada parisiense chamada arquitetura é tornar tudo grande num terreno limitado. O boudoir da jovem condessa
foi o requinte do artista a quem o conde confiou a remodelação ornamental do palacete. Não é possível notar-se uma falta, pois existe uma infinidade de lindas ninharias.
O amor não teria onde pousar os pés num grupo de trabalhadores esculpido na China, pois há ali milhares de figuras estranhas, cinzeladas no marfim e cujo acabamento
necessitou da cooperação de duas gerações; taças de topázio queimado com pés de filigrana; mosaicos que inspiram o desejo de roubar; quadros holandeses como Schinner
os reproduz; anjos concebidos como Steinbock (Steinbock: personagem balzaquiana, aristocrata polonês exilado, escultor; desempenha notável papel em A prima Bete.)
os concebe, e nem sempre os realiza; estatuetas esculpidas por gênios perseguidos por seus credores (verdadeira explicação dos mitos árabes); os sublimes esboços
de nossos primeiros artistas; painéis de arcos para o forro de madeira das paredes e cujas molduras alteram com as fantasias das tapeçarias de seda indiana; reposteiros
que caem em pregas de ouro de travessões de carvalho negro, representando uma caçada completa; móveis dignos de madame de Pompadour; um tapete persa etc. Enfim,
último requinte, todas essas riquezas iluminadas por uma claridade coada através de duas cortinas de renda, o que as tornava ainda mais encantadoras. Sobre um consolo,
por entre objetos antigos, um chicote, cujo cabo fora esculpido pela srta. de Fauveau ( A stra. de Fauveau: Félice Fauveau (1799-1886), escultora que, graças a seu
passado de conspiradora monarquista, gozava de grande popularidade nas rodas aristocráticas.), revelava que a condessa gostava de montar a cavalo. Era assim um boudoir
em 1837, um mostruário de mercadorias que alegravam os olhos como se o tédio ameaçasse a sociedade mais inquieta e mais inquietante do mundo. Por que não havia ali
nada de íntimo, nada que incitasse ao devaneio, à tranquilidade? Por quê?... Porque ninguém tem certeza do amanhã e porque todos gozam da vida como usufrutuários
pródigos.
Certa manhã, Clementina dava-se ares de quem está refletindo, reclinada numa dessas maravilhosas espreguiçadeiras de onde a gente não se pode levantar, de tanto
que o estofador que as inventou soube compreender as aspirações da preguiça e o conforto do far niente (Far niente: expressão italiana que significa “não fazer nada”,
“vadiagem”.). As portas abertas da estufa deixavam chegar as exalações da vegetação e os perfumes dos trópicos. A jovem dama contemplava Adão, que fumava diante
dela um elegante narguilé, único modo de fumar que ela permitia naquele aposento.
Os reposteiros, arrepanhados por elegantes braçadeiras, patenteavam ao olhar dois magníficos salões, um branco e ouro, comparável ao do palácio Forbin Janson, o
outro em estilo Renascença. A sala de jantar, que não tinha em Paris outra que se lhe comparasse a não ser a do barão de Nucingen (Nucingen: personagem balzaquiana
das mais famosas, banqueiro milionário moldado em Rotschild.), achava-se na extremidade de uma pequena galeria pintada e decorada em estilo medieval. Do lado do
pátio, a galeria era precedida por uma grande antecâmara, de onde se avistavam, através das portas envidraçadas, as maravilhas da escadaria.
O conde e a condessa acabavam de almoçar. Estava-se no fim de abril e o céu era um manto azulado sem vestígio de nuvens. O casal desfrutara dois anos de felicidade
e fazia somente dois dias que Clementina descobrira em sua casa alguma coisa que se assemelhava a um segredo, a um mistério. Os poloneses são, impõe-se dizê-lo para
sua maior glória, geralmente fracos diante das mulheres; têm tanta ternura por elas que, na Polônia, lhes são inferiores; e, embora as polonesas sejam criaturas
admiráveis, os poloneses são ainda mais facilmente derrotados por uma parisiense. Por isso, o conde Adão, estonteado com as perguntas, não teve a inocente astúcia
de vender o segredo à esposa. Com uma mulher sempre se deve tirar partido de um segredo; a quem assim procede elas ficam agradecidas, como um tratante respeita o
homem de bem a quem não pode embrulhar. Mais valente do que conversador, o conde estipulara que só responderia depois de ter terminado seu narguilé cheio de tombaki
(Tombaki: espécie de tabaco turco.).
— Na viagem—estava ela dizendo -, quando havia uma dificuldade qualquer, tu me respondias: “Paz arrumará isso!”, só escrevias a Paz! De volta aqui, todos me dizem:
“O capitão!”. Quero eu sair, por acaso?... O capitão! Se se trata de pagar uma conta, o capitão! Meu cavalo tem trote duro? Fala-se ao capitão Paz. Enfim, é, para
mim, como no jogo do dominó, Paz a toda hora. Não ouço falar senão em Paz e não há meio de eu ver Paz. Que vem a ser Paz? Tragam-me de uma vez o nosso Paz.
— As coisas não andam, então, bem?—perguntou o conde, tirando o bocchettino (Bocchettino: “boquilha”. (Palavra italiana.)) do narguilé.
— Tudo vai tão bem que com duzentos mil francos de renda a gente se arruinaria com o trem de vida que levamos apenas com cem mil—disse ela.
Puxou o riquíssimo cordão da sineta, feito a pontos pequenos, uma maravilha. Um lacaio trajado como um ministro acorreu em seguida:
— Diga ao sr. capitão Paz que desejo falar-lhe.
— Se julga por esse modo vir a saber alguma coisa!...—disse o conde Adão, sorrindo.
Não é demais esclarecermos que Adão e Clementina, tendo casado em dezembro de 1835, tinham ido, depois de passar o inverno em Paris, à Itália, à Suíça e à Alemanha
durante o ano de 1836. Tendo regressado em novembro, a condessa iniciou suas recepções no fim do inverno, tendo-se apercebido então da existência silenciosa, apagada,
mas salutar de um factótum, cuja pessoa parecia invisível, esse capitão Paz (Paç), cujo nome se pronuncia como se escreve.
— O sr. capitão Paz pede desculpas à senhora condessa, mas está nas estrebarias e com um vestiário que não lhe permite vir em seguida: mas logo que tiver mudado
de roupa o conde Paz se apresentará—disse o lacaio.
— Que estava ele fazendo?
— Estava ensinando o modo de tratar um cavalo, que Constantino não escovava como ele queria—respondeu o criado.
A condessa fitou o lacaio: estava bem sério, e nem por sombras se permitiu realçar a sua frase com o sorriso que os inferiores esboçam quando falam de um superior
que lhes parece ter baixado até eles.
— Ah! Estava escovando Cora.
— A senhora condessa não vai montar a cavalo hoje de manhã?—perguntou o criado, que teve de se retirar sem obter resposta.
— É um polonês?—perguntou Clementina ao marido, o qual inclinou a cabeça afirmativamente.
Ao olhar para Adão, Clementina Laginski permanecia calada, com os pés estendidos sobre uma almofada, e a cabeça na posição da de um pássaro que à beira do ninho
ouve as vozes da mata. Mesmo para um blasé ela pareceria encantadora. Loura e delgada, com os cabelos penteados à inglesa, assemelhava-se naquele momento a essas
figuras quase fabulosas dos Keepsakes (Keepsake (em inglês): livrinho ilustrado de vinhetas e gravuras, destinado a ser oferecido como presente de Natal, de Ano-Bom
etc.) sobretudo quando vestia seu peignoir de seda à moda da Pérsia, cujas pregas fofas não ocultavam bastante os tesouros do seu corpo e a delicadeza de sua cintura
para que não se pudesse admirá-las através dos espessos véus de flores e de bordados. Ao cruzar-se por sobre o peito, a fazenda de cores brilhantes deixava ver a
parte inferior do pescoço, cuja tonalidade branca contrastava com as de uma rica guipura que lhe cobria os ombros. Os olhos, cercados por cílios negros, aumentavam
a expressão de curiosidade que contraía a sua linda boca. Sobre a fronte, bem modelada, notavam-se as rotundidades características da parisiense caprichosa, risonha,
instruída, mas inacessível às seduções vulgares. As mãos pendentes da extremidade dos braços da espreguiçadeira eram quase transparentes. Os dedos em fuso, encurvados
nas pontas, exibiam unhas que lembravam amêndoas rosadas, onde a luz se detinha. Adão sorria da impaciência da esposa e contemplava-a com olhos em que não transparecia
a saciedade conjugal. Aquela franzina condessa já tinha sabido tornar-se senhora de sua casa, pois que mal atendia à admiração de Adão. Nos olhares que de soslaio
dirigia a ele, talvez já houvesse a consciência da superioridade de uma parisiense sobre aquele polonês franzino, magro e ruivo.
II - OS PAZ
— Aqui está o Paz—disse o conde ao ouvir um passo que repercutia na galeria.
A condessa viu entrar um homem de belo tipo, alto, benfeito de corpo, em cujo rosto estavam estampados os traços dessa tranquilidade fruto da força e da coragem.
Paz vestira apressadamente uma dessas sobrecasacas apertadas, com alamares presos com botões oliváceos, antigamente chamados poloneses. Tinha a cabeça coberta por
bastos cabelos pretos, muito mal penteados, e Clementina pôde ver, brilhando como um bloco de mármore, uma fronte ampla, porque Paz trazia na mão o boné com viseira.
Essa mão parecia-se com a do Hércules do menino (O Hércules do menino: Balzac faz, sem dúvida, alusão ao Hércules menino, quadro de Agostino Carracci conservado
no Louvre em que se vê Hércules ainda criança estrangulando com a mão direita a serpente que o enlaça.). A mais robusta saúde florescia naquele rosto dividido ao
meio por um nariz romano, grande, que lembrou a Clementina os belos trasteverinos (Os trasteverinos: habitantes da margem direita do Tibre, em Roma.). Uma gravata
de tafetá preto completava o ar marcial daquele mistério de cinco pés e sete polegadas, de olhos de azeviche e de um fulgor italiano. Calças largas, pregueadas,
que apenas deixavam ver a ponta das botas, traíam o culto de Paz pelas modas da Polônia. Realmente, para uma mulher romântica, havia algo de burlesco no contraste
violento que se notava entre o capitão e o conde, entre o pequeno polonês de rosto minguado e aquele belo militar, entre este paladino e aquele palatino.
— Bom dia, Adão—disse ele familiarmente ao conde.
Depois se inclinou graciosamente ante Clementina, perguntando-lhe em que a poderia servir.
— O senhor é então o amigo de Laginski?—disse a jovem dama.
— Para a vida e para a morte—respondeu Paz, a quem o jovem conde dirigiu o mais afetuoso sorriso ao soltar a última baforada perfumada.
— Pois então por que motivo não come conosco? Por que não nos acompanhou à Itália e à Suíça? Por que se esconde de maneira a furtar-se aos agradecimentos que lhe
devo pelos contínuos serviços que nos presta?—disse a jovem condessa com certa vivacidade, mas sem a menor emoção.
Efetivamente, ela entrevia em Paz uma espécie de servidão voluntária.
Tal ideia, nessa época, era sempre acompanhada por certo menosprezo pelo anfíbio social, um ser ao mesmo tempo secretário e administrador, nem totalmente administrador,
nem totalmente secretário, qualquer coisa como um parente pobre—um amigo incômodo.
— É, condessa, porque nada tem a agradecer-me—disse ele com desenvoltura.—Sou amigo de Adão e é para mim um prazer cuidar dos interesses dele.
— E é também por prazer que ficas de pé—disse o conde Adão.
Paz sentou-se numa poltrona, junto ao reposteiro.
— Lembro-me de o ter visto no meu casamento e algumas vezes no pátio—disse a jovem senhora.—Mas por que motivo colocar-se numa situação de inferioridade, o senhor,
um amigo de Adão?
— Oh! A opinião dos parisienses me é completamente indiferente—disse ele.—Vivo para mim ou, se preferem, para os dois.
— Mas a opinião da sociedade sobre o amigo de meu marido não me pode ser indiferente.
— Oh!, minha senhora, o mundo satisfaz-se com esta expressão: “É um original”. Diga isso.
Depois de um momento de silêncio ele perguntou:
— Pretende sair?
— Quer ir comigo ao bosque?
— De bom grado.
Dito isso Paz saiu, saudando a condessa.
— Que criatura boa! É simples como uma criança!—disse Adão.
— Agora fale-me das suas relações com ele—pediu Clementina.
— Paz, meu amor—disse Laginski -, é de nobreza tão antiga e ilustre quanto a nossa. Quando foi dos seus desastres, um dos Pazzi fugiu de Florença para a Polônia,
onde se instalou com alguma fortuna, e lá fundou a família Paz, à qual foi dado o título de conde. Essa família, que se distinguiu nos belos dias da nossa república
real (Os belos dias da nossa república real: nos séculos XVII e XVIII, época de prosperidade do reino de Polônia, que por seu sistema de eleições para o trono lembrava
as constituições republicanas.), tornou-se rica. O tanchão da árvore derrubada na Itália vicejou tão vigorosamente que há vários ramos da casa condal dos Paz. Por
isso não te direi nada de extraordinário dizendo-te que existem Paz ricos e Paz pobres. Nosso Paz é o rebento de um dos ramos pobres. Órfão, sem outra fortuna além
da sua espada, ele servia no regimento do grão-duque Constantino (O grão-duque Constantino (1779-1831): filho de Paulo I e governador militar da Polônia.) quando
se fez a nossa revolução. Arrastado para o partido polonês, ele se bateu como um polonês, como um patriota, enfim como um homem que nada possui: três motivos para
se bater bem. No último encontro, julgou estar sendo seguido pelos seus soldados e atirou-se contra uma bateria russa, sendo aprisionado. Eu estava lá. Aquele rasgo
de coragem entusiasmou-me:—Vamos buscá-lo!—disse eu aos meus cavaleiros. Carregamos sobre a bateria em ordem dispersa, e libertei Paz, eu, o sétimo. Éramos vinte
ao começar a carga, e de volta éramos oito, contando Paz. Depois da venda de Varsóvia, não tivemos remédio senão buscar os meios de escapar dos russos. Por um acaso
singular, Paz e eu encontramo-nos à mesma hora e no mesmo lugar, do outro lado do Vístula. Vi os prussianos, que se haviam transformado em cães de caça dos russos,
aprisionarem esse pobre capitão. Quando se tirou uma vez um homem das águas do Estige (Estige: na mitologia, rio dos infernos.), fica-se ligado a ele. Aquele novo
perigo em que se achava Paz causou-me tanta pena que me deixei aprisionar com ele, com a intenção de servi-lo. Onde um naufraga, dois podem salvar-se. Graças ao
meu nome e alguns laços de parentesco com alguns dos homens de quem dependia a nossa sorte, porque naquele momento éramos prisioneiros dos prussianos, fizeram vista
grossa sobre a minha evasão. Fiz o meu capitão passar por um soldado sem importância, um homem da minha casa, e pudemos assim chegar a Dantzig. Metemo-nos num navio
holandês de partida para Londres, aonde abordamos dois meses depois. Minha mãe adoecera na Inglaterra e estava me esperando; Paz e eu tratamos dela até a sua morte,
que foi antecipada pela catástrofe da nossa aventura. Deixamos Londres e eu trouxe Paz para a França. Em tais adversidades dois homens tornam-se irmãos. Quando me
vi em Paris, com vinte e dois anos, com uma fortuna de mais de sessenta mil francos de renda sem contar o que restava de uma quantia proveniente dos diamantes e
dos quadros da família, vendidos por minha mãe, eu quis assegurar a sorte de Paz antes de me entregar às dissipações da vida parisiense. Eu tinha percebido um pouco
de tristeza nos olhos do capitão, e mesmo algumas vezes vi lágrimas que ele continha. Tivera oportunidade de apreciar a sua alma, que é essencialmente nobre, grande
e generosa. Era possível que lamentasse ver-se ligado por favores a um rapaz, seis anos mais moço, sem ter podido saldar seus débitos para com ele. Despreocupado
e frívolo como são os rapazes, eu tinha de me arruinar no jogo ou me deixar enlear por alguma parisiense, e Paz e eu podíamos um dia separar-nos. Embora resolvido
a suprir a todas as necessidades do meu amigo, eu percebia as probabilidades de esquecer essa obrigação ou de me ver impossibilitado de pagar a pensão de Paz. Enfim,
meu anjo, eu quis poupar-lhe o pesar, o pudor, o pejo de me pedir dinheiro ou de procurar em vão seu companheiro num momento de necessidade. Dunque (Dunque (em italiano):
“assim, pois”.), uma manhã, depois do café, com os pés na grelha de ferro da lareira, cada um de nós fumando o seu cachimbo, entreguei-lhe, depois de ter corado
bastante, tomado mil precauções, quando o vi olhando-me inquieto, um título de renda, ao portador, na importância de dois mil e quatrocentos francos...
Clementina saiu do seu lugar, foi sentar-se nos joelhos de Adão, passou-lhe o braço pelo pescoço, beijou-o na testa e disse-lhe:
— Meu tesouro, como te acho belo! E que fez Paz?
— Tadeu—disse o conde—empalideceu sem dizer nada...
— Ah! Ele chama-se Tadeu?
— Sim. Tadeu dobrou o papel, restituiu-me, dizendo:—Pensei, Adão, que entre nós fosse para a vida e para a morte, e que jamais nos separaríamos; não queres mais
saber de mim?—Ah!—fiz eu—É assim que interpretas a coisa? Pois não falemos mais no assunto; se eu me arruinar, tu também ficarás arruinado.—Olha—disse-me ele -,
não tens fortuna para viver como um Laginski; nesse caso não te parece que precisas de um amigo que se ocupe com os teus negócios, que seja para ti um pai e um irmão,
um confidente seguro?—Ao me dizer tais palavras, filhinha querida, havia no olhar e na voz de Paz uma calma que encobria uma emoção maternal mas que revelava também
uma gratidão de árabe, uma fidelidade de cão, uma amizade de selvagem, sem ostentação e sempre pronta. Aceitei a coisa como nós, poloneses, costumamos fazer, pondo-lhe
a mão no ombro e beijando-o na boca:—Pois então, para a vida e para a morte! Tudo o que eu tenho te pertence e faze o que quiseres!—Foi ele quem me comprou este
palacete por quase nada. Vendeu meus títulos na alta, tornou a comprá-los na baixa, e pagamos este barracão com o lucro. Grande conhecedor de cavalos, ele os negocia
tão bem que minhas estrebarias me saem por muito pouco e tenho os mais belos cavalos e as mais encantadoras carruagens de Paris. Nossa criadagem é composta de valentes
soldados poloneses, escolhidos por ele e capazes de se meterem no fogo por nós. Parecia que eu me estava arruinando e Paz dirige minha casa com uma ordem e uma economia
tão perfeitas que reparou por esse meio algumas irrefletidas perdas no jogo, tolices de rapaz. Meu Tadeu é ardiloso como dois genoveses, ávido de lucro como um judeu
polonês, previdente como uma boa dona de casa. Nunca pude decidi-lo a viver como eu vivia, quando solteiro. Tive por vezes de apelar para violências amistosas a
fim de o levar ao teatro, quando eu ia só, ou aos jantares que eu oferecia às minhas rodas alegres. Ele não gosta da vida dos salões.
— Do que gosta ele, então?—perguntou Clementina.
— Gosta da Polônia, chora por ela. Suas únicas dissipações foram os socorros enviados, mais em meu nome, do que no dele, a alguns dos nossos pobres exilados.
— Pois olhe, vou gostar desse bom rapaz—disse a condessa -, porque me parece simples como tudo o que é verdadeiramente grande.
— Todas as coisas bonitas que achaste aqui—disse Adão, que patenteava a mais nobre segurança ao gabar o amigo—Paz as desencavou, obtendo-as em leilões ou em oportunidades.
Oh! Ele é mais negociante do que os próprios negociantes. Quando o vires esfregando as mãos no pátio, podes ficar certa de que ele trocou um cavalo bom por um outro
melhor. Ele vive por mim, a sua felicidade consiste em me ver elegante, numa equipagem esplêndida. Os deveres que a si mesmo impõe, ele os realiza sem ruído, sem
ênfase. Uma noite perdi vinte mil francos no uíste.—Que dirá Paz?—a mim mesmo perguntei ao voltar para casa.—Paz entregou-mos, não sem suspirar; mas não me dirigiu
sequer um olhar de censura! Esse suspiro conteve-me mais do que as mil repreensões que em tais casos poderiam fazer os tios, as esposas ou as mães.—Estás com pena
desse dinheiro?—perguntei-lhe.—Oh! Nem por ti nem por mim, não; somente me lembrei de que vinte pobres Paz poderiam com aquilo viver durante um ano.—Compreendes
que os Pazzi valem os Laginski. Por isso nunca quis ver um subalterno no meu querido Paz. Tenho procurado ser tão grande no meu gênero quanto ele o é no seu. Nunca
saí de casa, nem voltei para ela, sem ir ver Paz, da mesma forma que o faria com o meu pai. Minha fortuna é dele. Enfim, Tadeu tem certeza de que eu me precipitaria
hoje num perigo para socorrê-lo, da mesma forma por que já o fiz duas vezes.
— Não é pouco o que estás dizendo, meu amigo—disse a condessa.—A dedicação é um relâmpago. Na guerra há dedicações, em Paris já não há mais.
— Pois bem!—replicou Adão—para Paz estou sempre na guerra. Nossos caracteres conservaram suas asperezas e seus defeitos, mas o conhecimento mútuo das nossas almas
estreitou os laços já tão apertados de nossa amizade. Pode-se salvar a vida de um homem e depois matá-lo se nele encontramos um mau companheiro, mas nós já experimentamos
o que torna as amizades indissolúveis. Entre nós há essa troca contínua de impressões felizes, quer de um lado, quer do outro, que sob esse ponto de vista torna,
talvez, a amizade mais rica do que o amor.
Uma linda mão tapou a boca do conde tão rapidamente que o gesto parecia uma bofetada.
— Mas é—disse ele.—A amizade, meu anjo, ignora as bancarrotas do sentimento e as falências do prazer. Depois de ter dado mais do que possui, o amor acaba dando menos
do que recebe.
— De um lado como do outro?—disse Clementina sorrindo.
— Sim—retorquiu Adão -, ao passo que a amizade só pode aumentar. Não tens por que fazer careta; nós, meu anjo, somos tão amigos como amantes; nós, pelo menos, assim
o espero, unimos os dois sentimentos no nosso casamento.
— Vou explicar-te o que fez de vocês dois tão bons amigos—disse Clementina.—A diferença da existência de ambos provém de seus gostos e não de uma opção forçada,
de sua fantasia e não das suas posições. Tanto quanto seja possível julgar um homem apenas entrevisto, e de acordo com o que dizes, aqui o subalterno pode tornar-se
em certos momentos o superior.
— Oh! Paz me é superior—disse ingenuamente Adão.—A única vantagem que tenho sobre ele é a do acaso.
A esposa beijou-o pela nobreza daquela confissão.
— A habilidade extrema com que ele oculta a grandeza dos seus sentimentos é uma imensa superioridade—continuou o conde.—Eu disse-lhe: “És um sonso, tens no coração
vastos domínios para onde te retiras”. Ele tem direito ao título de conde Paz, mas em Paris faz-se chamar apenas de capitão.
— Em resumo, é o florentino da Idade Média que ressurgiu trezentos anos depois—disse a condessa.—Há nele qualquer coisa de Dante e de Michelangelo.
— É verdade, tens razão, ele tem alma de poeta—respondeu Adão.
— Eis-me pois casada com dois poloneses—disse a jovem condessa com um gesto comparável aos que só o gênio artístico encontra na cena.
— Filhinha querida!—disse Adão, apertando Clementina nos braços.—Que pesar seria o meu se meu amigo não te tivesse agradado: tanto eu como ele o temíamos, embora
meu casamento o tivesse encantado. Tu o farás muito feliz, dizendo-lhe que o queres: ah!, como a um velho amigo.
— Vou então vestir-me; está um lindo dia, sairemos os três—disse Clementina, chamando a criada.
Paz levava uma vida tão subterrânea que a Paris elegante ficou a indagar quem seria que acompanhava Clementina Laginski, quando a viram ir ao Bois de Boulogne e
voltar entre Tadeu e o marido. Durante o passeio, Clementina exigira que Tadeu jantasse com ela.
Esse capricho de soberana absoluta obrigou Tadeu a esmerar-se na toilette. Ao voltar do passeio, Clementina preparou-se com certo coquetismo, de modo a impressionar
o próprio Adão, quando entrou no salão onde os dois amigos a estavam esperando.
— Conde Paz—disse,—vai acompanhar-nos à Ópera.
Disse essas palavras com o tom que, nas mulheres, significa: se recusar, brigaremos.
— De bom grado, minha senhora—respondeu Paz.—Mas como não tenho a fortuna de um conde, chame-me simplesmente de capitão.
— Pois bem, capitão, dê-me o braço—disse ela, tomando-o e levando o capitão para a sala de jantar, com gestos cheios dessa amorável familiaridade que encanta os
apaixonados.
A condessa colocou o capitão a seu lado, e a atitude deste foi a de um tenente pobre jantando em casa de um general rico. Paz deixou Clementina falar, ouviu-a, manifestando
sempre a deferência devida a um superior, não a contradizendo em nada e esperando uma pergunta formal antes de responder. Enfim, quase pareceu estúpido à condessa,
cujas faceirices naufragaram ante aquela fria seriedade e respeito diplomático. Debalde Adão lhe dizia:—Alegra-te de uma vez, Tadeu! Dir-se-ia que não estás em tua
casa! Até parece que te propuseste desconcertar Clementina!
Tadeu, porém, permaneceu pesado e como que adormecido. Quando os convivas ficaram sós, depois da sobremesa, o capitão explicou como sua vida fora organizada ao contrário
da que levam as pessoas da sociedade: deitava-se às oito horas e levantava-se de madrugada, tentando explicar assim sua atitude por um grande desejo de dormir.
— Minha intenção ao levá-lo à Ópera, capitão—disse Clementina, um tanto agastada -, era de distraí-lo; mas faça como quiser.
— Irei—respondeu Paz.
— Duprez canta Guilherme Tell (Duprez: Gilbert-Louis Duprez (1806-1896), tenor e compositor francês.—Guilherme Tell: ópera de Rossini.) - disse Adão -, mas quem
sabe se preferes ir ao Variétés?
O capitão sorriu e tocou a campainha, chamando o criado.
— Dê ordem a Constantino—disse Paz ao criado, quando este apareceu—para atrelar o carro em vez do cupê. Neste não caberíamos a gosto—acrescentou, olhando para o
conde.
— Um francês não se lembraria disso—comentou Clementina sorrindo.
— Ah! É que nós somos florentinos transplantados no Norte—retrucou Tadeu com uma finura de tom e um olhar que bem mostraram ser seu procedimento à mesa uma resolução
prefixada.
Por uma imprudência bem compreensível, foi demasiado forte o contraste entre o modo de proferir aquela frase e a atitude que Paz mantivera durante o jantar. Clementina
examinou o capitão com um desses olhares dissimulados que revelam ao mesmo tempo, nas mulheres, a surpresa e a observação. Por isso, durante o tempo em que os três
tomaram café no salão, reinou um silêncio bastante incômodo para Adão, incapaz de lhe adivinhar a causa. Clementina não provocou mais Tadeu. Por sua vez, o capitão
retomou sua rigidez militar, não mais a deixando, nem durante o percurso, nem no camarote onde fingiu dormir.
— Como vê, minha senhora, sou uma personagem bastante insípida—disse ele, no último ato de Guilherme Tell, no momento do bailado.—Não lhe parece que eu tinha razão
de permanecer, como se diz, na minha especialidade?
— Francamente, capitão, o senhor não é nem bazofiador, nem conversador, é muito pouco polonês.
— Deixe-me, pois—replicou ele -, cuidar de seus divertimentos, de sua fortuna e de sua casa; é só para o que presto.
— Tartufo (Tartufo: protagonista da peça do mesmo nome de Molière; tipo clássico do hipócrita.)!—disse o conde Adão, sorrindo.—Não se engane, querida, ele sabe sentir
e é instruído; se quisesse poderia fazer figura num salão. Olhe, Clementina, não dê muito crédito à sua modéstia.
— Adeus, condessa, já lhe demonstrei a minha boa vontade; vou aproveitar o seu carro para ir dormir mais cedo e mandá-lo-ei de volta.
Clementina saudou-o com uma inclinação de cabeça e deixou-o partir sem lhe dar resposta.
— Que casmurro!—disse ela ao conde.—Tu és bem mais gentil.
Adão apertou a mão da esposa sem que o pudessem ver.
— Pobre Tadeu querido! Ele esforçou-se por apagar-se em meu benefício, quando outro em seu lugar procuraria mostrar-se mais amável do que eu.
— Oh!—disse ela—Não sei se não haverá cálculo no seu procedimento: uma mulher comum teria ficado intrigada com ele.
Meia hora depois, enquanto Boleslas, o lacaio, gritava: “À porta!” e o cocheiro, tendo dado volta ao carro para entrar, esperava que os dois batentes fossem abertos,
Clementina perguntou ao marido:
— Onde mora o capitão?
— Ali!—respondeu o conde, mostrando um pequeno pavimento em ático, elegantemente edificado dos dois lados do portão de entrada, com uma janela sobre a rua.—Seu apartamento
estende-se por sobre as peças de serviço.
— E quem ocupa o outro lado?
— Ninguém, por enquanto—respondeu Adão.—O outro apartamento pequeno que fica por cima das cocheiras será para nossos filhos e seu preceptor.
— Ainda não está deitado—disse a condessa, vendo luz no aposento de Tadeu quando o carro chegou sob o pórtico de colunas, copiado do das Tulherias, que substituía
a vulgar marquise de zinco pintado.
III - MÁLAGA
O capitão, em robe de chambre, com um cachimbo na mão, olhava para Clementina, que ia entrando no vestíbulo. O dia lhe fora rude, e eis por quê: Tadeu sentira no
coração um abalo terrível no dia em que vira a srta. du Rouvre, quando levado por Adão aos Italiens, a fim de julgá-la, e, mais tarde, quando tornou a vê-la na mairie
e na igreja de São Tomás de Aquino, verificou ser ela a mulher que um homem deve amar exclusivamente, porquanto o próprio don Juan preferia uma entre as mille e
tre! Por esse motivo, Paz aconselhou com insistência a clássica viagem depois do casamento. Quase tranquilo durante todo o tempo que durou a ausência de Clementina,
seus sofrimentos recomeçaram depois da volta do gentil casal. Ora, eis o que ele pensava ao fumar seu lataki (Lataki (ou Latakiê): nome de uma cidade turca e do
tabaco produzido nas vizinhanças dela.) no seu cachimbo de cerejeira brava, de seis pés de comprimento, presente de Adão: “Só eu e Deus, que me recompensará por
ter sofrido em silêncio, devemos saber até que ponto eu amo! Mas como não possuir nem o seu amor nem o seu ódio!”.
E refletia exaustivamente sobre esse teorema de estratégia amorosa. Não se deve crer, entretanto, que Tadeu vivesse sem prazeres em meio à sua dor. Os sublimes enganos
daquele dia foram fontes de alegria interior. Depois do regresso de Clementina e de Adão, ele gozava, diariamente, satisfações inefáveis, ao ver-se necessário para
aquele casal que, sem a sua dedicação, teria marchado inevitavelmente para a ruína. Que fortuna poderia resistir às prodigalidades da vida parisiense? Criada em
casa de um pai dissipador, Clementina nada sabia da direção de uma casa, coisa que hoje mesmo as mulheres mais ricas e mais nobres são obrigadas a superintender.
Quem pode hoje ter um administrador? Adão, por sua vez, filho de um desses grão-senhores poloneses que se deixam devorar pelos judeus, incapazes de administrar os
restos de uma das maiores fortunas da Polônia, onde as há enormes, não era de temperamento a pôr freio nem às suas fantasias nem às da esposa. Se estivesse só é
bem possível que se houvesse arruinado antes do casamento. Paz impedira-o de jogar na Bolsa, não basta isso? Assim, pois, sentindo, apesar de sua vontade, que amava
Clementina, Paz não teve o recurso de abandonar a casa e sair a viajar para esquecer a sua paixão. A gratidão, chave do enigma que a sua vida apresentava, chumbava-o
àquele palácio, onde somente ele podia ser o encarregado de negócios daquela despreocupada família. A viagem de Adão e Clementina o fez ter esperanças no apaziguamento;
mas a condessa, tendo regressado ainda mais bela, gozando da liberdade de espírito que o casamento dá às parisienses, ostentava todas as seduções de uma jovem dama
e esse não sei quê de atraente que vem da felicidade ou da independência que lhe concedia um rapaz tão confiante, tão verdadeiramente cavalheiresco e tão apaixonado
quanto Adão. Ter a consciência de ser a pedra angular do esplendor daquela casa, ver Clementina descer do carro ao voltar de uma festa ou de partida, pela manhã,
para o bosque, encontrá-la nos bulevares na sua linda carruagem, como uma flor no seu envoltório de folhas, inspirava no pobre Tadeu volúpias misteriosas e plenas
que se expandiam dentro de seu coração, sem que jamais o menor vestígio transparecesse em seu rosto. Como poderia a condessa, naqueles cinco meses, entrever o capitão?
Ele escondia-se dela, disfarçando o cuidado que punha em evitá-la. Nada mais parecido com o amor divino do que o amor sem esperanças. Não deve um homem ter certa
profundeza no coração para se dedicar no silêncio e na obscuridade? Essa profundeza, na qual se acoita um orgulho de pai e de Deus, contém o culto do amor pelo amor,
da mesma forma que o poder pelo poder foi a palavra de ordem da vida dos jesuítas, avareza sublime por ser constantemente generosa e modelada finalmente sobre a
misteriosa existência dos princípios do mundo. Não é a natureza o efeito? E a natureza é encantadora, pertence ao homem, ao poeta, ao pintor, ao amante; mas não
é a causa, aos olhos de algumas almas privilegiadas e para certos pensadores gigantescos, superior à natureza? A causa é Deus. Nessa esfera das causas vivem os Newton,
os Laplace, os Kepler, os Descartes, os Malebranche, os Spinoza, os Buffon, os verdadeiros poetas e os solitários do segundo período cristão, as santas Teresas da
Espanha e as sublimes extáticas. Cada sentimento humano comporta analogias com essa situação, na qual o espírito abandona o efeito pela causa, e Tadeu atingira essa
altura em que tudo muda de aspecto. Presa das alegrias indizíveis de um criador, Tadeu era no amor o que conhecemos de maior nos fastos da genialidade.—Não, ela
não está totalmente iludida—dizia ele a si mesmo, acompanhando com os olhos a fumaça do cachimbo.—Ela poderá indispor-me para sempre com Adão se me tomar antipatia;
e se ela quiser namoriscar-me para me atormentar, que será de mim?—A fatuidade dessa última hipótese era tão contrária ao caráter modesto e à espécie de timidez
germânica do capitão que ele se censurou por tê-la concebido e deitou-se resolvido a aguardar os acontecimentos antes de tomar uma decisão.
No dia seguinte, Clementina almoçou perfeitamente sem Tadeu e sem se aperceber de sua desobediência. Coincidiu que aquele era o seu dia de recepção, o qual, em sua
casa, comportava um esplendor real. Ela não prestou atenção na ausência do capitão, sobre o qual pesavam os detalhes desses dias de aparato.—Bom!—pensou Paz ao ouvir
o rodar das carruagens que se retiravam, cerca das duas horas da madrugada—a condessa teve apenas uma fantasia ou uma curiosidade de parisiense.
O capitão retomou, pois, seus hábitos costumeiros, que haviam sido por um instante perturbados por aquele incidente. Distraída pelas preocupações da vida parisiense,
Clementina parecia ter esquecido Paz. É que não é brinquedo o trabalho de reinar sobre a inconstante Paris. Pensarão, acaso, que, nesse jogo supremo, se arrisca
somente a fortuna? Os invernos, para as mulheres da moda, são o equivalente do que foram outrora uma campanha para os militares do Império. Que obra de arte e de
gênio, uma toilette ou um penteado destinados a causar sensação! Uma mulher franzina e delicada conserva o seu duro e brilhante arnês de flores e diamantes, de seda
e de aço, das nove horas da noite às duas, e, muitas vezes, até às três da madrugada. Come pouco a fim de atrair a atenção para um talhe esbelto; a fim de enganar
a fome que sente durante a noite, toma taças de chá debilitantes, bolos açucarados, sorvetes que aquecem ou indigestos bocados de pastelarias. O estômago tem de
curvar-se às ordens da coqueteria. Acorda muito tarde. Tudo fica em desacordo com as leis da natureza, e a natureza é impiedosa. Apenas levantada, uma mulher na
moda faz a toilette da manhã, pensando na da tarde. Pois não tem ela de receber e fazer visitas, de ir ao bosque a cavalo ou de carro? Não tem ela de se exercitar
sempre no manejo dos sorrisos, de estar com o espírito sempre tenso para imaginar cumprimentos que não pareçam nem vulgares nem pretensiosos? E nem todas as mulheres
o conseguem. Por isso não nos devemos admirar ao ver uma dama que a sociedade recebeu em pleno viço apresentar-se emurchecida e desfeita ao cabo de três anos. Bastam
seis meses passados no campo para curar as feridas causadas pelo inverno? Hoje só se ouve falar em gastrite, doenças estranhas, desconhecidas pelas mulheres dedicadas
aos labores domésticos. Antigamente, as mulheres raras vezes se deixavam ver, hoje estão sempre em cena. Clementina tinha de lutar; começavam a citá-la, e, absorvida
pelos cuidados exigidos pelo combate ferido entre ela e suas rivais, pouco tempo lhe restava para o amor do marido. Não era demais que Tadeu estivesse esquecido.
IV - MÁLAGA (CONTINUAÇÃO)
Entretanto, daí a um mês, em maio, poucos dias antes de partir para Ronquerolles, na Borgonha, ao voltar do bosque, ela entreviu, na alameda lateral dos Champs-Élysées,
Tadeu, trajado com apuro, extasiado ao contemplar a sua bela condessa na sua caleça, com cavalos fogosos e librés suntuosas, numa palavra o seu querido e admirado
casal.
— Olha ali o capitão—disse ela ao marido.
— Como ele se sente feliz!—respondeu Adão.—São essas as suas festas! Não há equipagem mais bem cuidada do que a nossa, e ele goza ao ver como todos invejam a nossa
felicidade. Ah! É esta a primeira vez que o notas, mas ele está aqui quase todos os dias.
— Em que estará ele pensando?—disse Clementina.
— Neste momento deve estar pensando em que o inverno nos custou muito dinheiro e que nós vamos fazer economias em casa do teu velho tio de Ronquerolles—disse Adão.
A condessa fez o carro parar junto a Paz e obrigou-o a sentar-se ao seu lado na caleça. Tadeu ficou rubro como uma cereja.
— Vou empestá-los—disse ele -, pois acabo de fumar um charuto.
— Adão não me empesta?—disse ela com vivacidade.
— Sim, mas é Adão.
— E por que motivo Tadeu não teria os mesmos privilégios?—disse a condessa, sorrindo.
Esse divino sorriso teve tanta força que venceu as heroicas resoluções de Paz; fitou Clementina com todo o fogo de sua alma nos olhos, mas fogo temperado pelo angélico
testemunho de sua gratidão, dele, homem que vivia somente por esse sentimento. A condessa cruzou os braços sobre o xale, recostou-se pensativa nas almofadas, amarrotando
as plumas de seu lindo chapéu, e pousou os olhos nos passantes. Aquele relâmpago de uma alma grande e até então resignada impressionou a sua sensibilidade. Qual
era, afinal de contas, a seus olhos, o mérito de Adão? Não é uma coisa natural ter-se coragem e generosidade? Mas o capitão!... Tadeu possuía, ou parecia possuir,
sobre Adão uma imensa superioridade. Que pensamentos funestos brotaram no espírito da condessa ao observar novamente o contraste da bela e tão completa natureza
que distinguia Tadeu com a da franzina constituição que, em Adão, indicava a degeneração forçada das famílias aristocráticas, que levam à insensatez de só se unirem
entre si? Esses pensamentos, só o diabo os saberia, porque a jovem senhora permaneceu com os olhos pensativos, porém, vagos, sem nada dizer até o palacete.
— Vai jantar conosco, do contrário fico zangada por sua desobediência—disse ela ao entrar.—O senhor é Tadeu para mim, tanto quanto para Adão. Sei das obrigações
que o senhor lhe deve, mas também sei quanto lhe devemos. Por dois rasgos de generosidade que, aliás, são tão naturais, o senhor é continuamente generoso, a qualquer
hora e todos os dias. Meu pai vem jantar conosco, bem como meu tio de Ronquerolles e minha tia de Sérisy, por isso faça toilette - disse ela, ao aceitar a mão que
ele estendera, para ajudá-la a descer do carro.
Tadeu subiu aos seus aposentos para vestir-se, com o coração ao mesmo tempo feliz e oprimido por uma terrível palpitação. Desceu no último momento e representou
outra vez o seu papel de militar, apto apenas para desempenhar as funções de administrador. Dessa vez, porém, Clementina não se deixou lograr por Paz, cujo olhar
a esclarecera. Ronquerolles, o mais hábil embaixador depois do príncipe de Talleyrand (Príncipe de Talleyrand: Charles Maurice de Talleyrand Périgord (1754-1838),
ministro das Relações Exteriores sob o Diretório, o Consulado e o Império, embaixador sob a Restauração e sob Luís Filipe—aparece aqui ladeado de nomes de duas personagens
inventadas por Balzac.), e que tão bem havia secundado de Marsay no seu curto ministério, foi informado pela sobrinha do alto valor do conde Paz, que com tanta modéstia
se fizera administrador do amigo.
— E como então é esta a primeira vez que vejo o conde Paz?—perguntou o marquês de Ronquerolles.
— Ora! Porque ele é manhoso e disfarçado—respondeu Clementina, que dirigiu a Paz um olhar para lhe dizer que mudasse de atitude.
Infelizmente, é forçoso confessá-lo, correndo embora o risco de tornar o capitão menos interessante, Paz, conquanto superior ao seu amigo Adão, não era um homem
forte. Sua aparente superioridade devia-a às suas desgraças. Nos seus dias de miséria e isolamento em Varsóvia, ele lia, instruía-se, comparava, meditava; mas o
dom de criação que faz os grandes homens, ele não o possuía, e mesmo, será coisa que se possa adquirir? Paz, grande somente pelo coração, nesse terreno alcançava
o sublime; mas na esfera dos sentimentos, mais homem de ação do que de pensamento, guardava para si o que pensava. Seu pensamento, assim, somente servia para corroer-lhe
o coração. E, de resto, que é um pensamento não expresso? Ante as palavras de Clementina, o marquês de Ronquerolles e a irmã trocaram um olhar significativo, assinalando
um para o outro a sobrinha, o conde Adão e Paz. Foi uma dessas cenas rápidas, como só se veem na Itália e em Paris. Nesses dois lugares do mundo, com exceção das
cortes, os olhos sabem dizer tudo. Para transmitir ao olhar todo o poder da alma, dar-lhe o valor de um discurso, pôr nele um poema ou um drama num único volver
de olhos, são precisas ou a extrema servidão ou a extrema liberdade. Adão, o marquês du Rouvre e a condessa não perceberam aquela luminosa observação de uma velha
coquete e de um velho diplomata; mas Paz, o cão fiel, compreendeu-lhe a profecia. Foi—notai-o—coisa de um segundo.
Pretender pintar a tormenta que devastou a alma do capitão seria tornar-se demasiado difuso, nestes tempos que correm.—Como! Já o tio e a tia pensam que eu posso
ser amado?—disse a si mesmo.—Minha felicidade agora depende apenas de minha audácia. E Adão?—O Amor ideal e o Desejo, ambos tão poderosos como a Gratidão e a Amizade,
entrechocaram-se, e, durante um momento, o amor levou a melhor. Aquele pobre e admirável amante quis ter o seu dia!
Paz mostrou-se espirituoso, quis agradar e, respondendo à explicação pedida pelo diplomata, narrou, a largos traços, a insurreição polonesa. Paz viu então, à sobremesa,
Clementina suspensa de seus lábios, considerando-o um herói, e esquecera que Adão, após haver sacrificado a terça parte de sua imensa fortuna, correra, ademais,
os azares do exílio. Às nove horas, depois de tomado o café, a sra. de Sérisy deu um beijo na testa da sobrinha, apertou-lhe a mão, e impôs ao conde Adão que a acompanhasse
à casa, deixando os marqueses du Rouvre e de Ronquerolles, os quais, daí a dez minutos, se retiraram, ficando Paz e Clementina a sós.
— Vou deixá-la, minha senhora—disse Tadeu -, pois vai ter com eles à Ópera.
— Não—disse ela -, não gosto de bailados e o de hoje, a Revolta no serralho, é detestável.
Houve um momento de silêncio.
— Há dois anos—disse ela, sem olhar para Paz -, Adão não teria ido sem mim.
— Oh! Ele a ama loucamente...—respondeu Tadeu.
— Ora, é justamente porque me ama com loucura que, talvez, amanhã não me ame mais—exclamou a condessa.
— São incompreensíveis as parisienses—disse Tadeu.—Quando são amadas com loucura, querem ser amadas razoavelmente; e, quando amadas razoavelmente, queixam-se de
que não as sabem amar.
— E têm sempre razão, Tadeu—replicou a condessa, sorrindo.—Conheço bem Adão, não lhe quero mal por isso; ele é leviano e sobretudo grão-senhor, gostará sempre de
ter-me por esposa, e jamais me contrariaria nos meus gostos; mas...
— Qual o casamento em que não há um mas?—disse suavemente Tadeu, procurando dar outro rumo aos pensamentos da condessa.
O homem menos pretensioso do mundo teria tido talvez o pensamento que quase enlouqueceu aquele apaixonado, e que foi o seguinte:—Se não lhe digo que a amo, sou um
imbecil—disse a si mesmo o capitão.
V - COMEÇO DAS PREOCUPAÇÕES DE MÁLAGA
Havia entre aquelas duas criaturas um desses terríveis silêncios saturados de pensamentos. A condessa examinava Paz de soslaio, do mesmo modo como Paz a contemplava
pelo espelho. Mergulhando na sua poltrona como um homem saciado que estivesse a fazer a digestão, um verdadeiro gesto de marido ou de velho indiferente, Paz cruzou
as mãos sobre o ventre, girou rápida e maquinalmente os polegares, um sobre o outro, e pôs-se a olhar estupidamente o fogo.
— Mas, fale-me bem de Adão!...—exclamou Clementina.—Diga-me que não é um homem leviano, o senhor que o conhece.
Essa exclamação foi sublime.
“Chegou, pois, o momento de erguer entre nós barreiras intransponíveis”, pensou o pobre Paz, arquitetando uma mentira heroica.
— Falar-lhe bem dele?—replicou em voz alta.—Eu quero-lhe demasiado para que a senhora me acredite. Sou incapaz de dizer mal dele. Desse modo... Minha senhora, meu
papel entre os dois é bem difícil.
Clementina baixou a cabeça e fitou a ponta dos sapatos envernizados de Paz.
— Vocês, gente do Norte, só têm coragem física, falta-lhes constância nas suas resoluções—murmurou ela.
— Que vai fazer sozinha, minha senhora?—perguntou Paz com um ar perfeitamente ingênuo.
— Não me vai fazer companhia?
— Peço-lhe que me perdoe por deixá-la.
— Como! Aonde vai?
— Vou ao circo, que estreia hoje nos Champs-Élysées, e não posso faltar...
— E por quê?—disse Clementina, interrogando-o com um olhar meio colérico.
— Quer, pois, que lhe abra meu coração—replicou ele, corando—e lhe confie o que oculto ao meu querido Adão, que pensa que eu amo somente a Polônia?
— Ah! Um segredo do nosso nobre capitão?
— Uma infâmia que a senhora compreenderá e da qual me consolará.
— Infame, o senhor?
— Sim, eu, o conde Paz, estou loucamente apaixonado por uma rapariga que percorria a França com a família Bouthor, donos de um circo semelhante ao de Franconi, mas
que só exploram as feiras! Fi-la contratar pelo diretor do Circo Olímpico (A família Bouthor era com efeito dona de um circo ambulante; os Franconi mantinham o Circo
Olímpico, de Paris.).
— É bonita?—indagou a condessa.
— Sim, para mim—respondeu ele melancolicamente.—Málaga, é esse o seu nome de guerra, é robusta, ágil e flexível. Por que motivo eu a prefiro a todas as mulheres
do mundo?... Francamente, não sei! Quando a vejo com os cabelos negros, retidos por uma faixa de cetim azul, flutuando por sobre os seus ombros cor de azeitona e
nus, vestida com uma túnica branca de bordos dourados e com um maiô de ponto de seda, que a transforma numa estátua grega, viva; com os pés calçados em sapatos de
cetim debruado, passando, com bandeirolas na mão e ao som de uma música militar, através de um enorme arco, cujo papel despedaça no ar, e o cavalo fugindo a todo
o galope, e ela recaindo graciosamente em cima dele, aplaudida, sem claque, por uma multidão em peso..., pois bem, fico emocionado!
— Mais do que por uma linda mulher no baile?—perguntou Clementina com um sorriso provocante.
— Sim—respondeu Paz com a voz estrangulada.—Aquela admirável agilidade, aquela graça constante, num constante perigo, se me afiguram o mais belo triunfo de uma mulher...
Sim, minha senhora, a Cinti (A Cinti: Laura Cynthia Montalant Damoreau, dita Cinti (1801-1863), cantora francesa.), a Malibran (A Malibran: Maria Felícia Garcia,
sra. Malibran (1808-1836), cantora espanhola, imortalizada pelas Estâncias à Malibran, de Musset.), a Grisi (A Grisi: Giulia Grisi, condessa Barni (1805-1840), famosa
cantora italiana.) e a Taglioni (A Taglioni: Maria Sofia Taglioni (1804-1884), famosa bailarina), a Pasta (A Pasta: Giuditta Pasta (1798-1865), cantora italiana.)
e a Elssler (A Elssler: Fanny Elssler, célebre atriz vienense (1810-1884), a quem se atribuía uma ligação amorosa com o duque de Reichstadt, filho de Napoleão.),
tudo o que reina ou reinou não me parece digno de desatar os coturnos de Málaga, que sabe descer e montar num cavalo a todo o galope, que escorrega por baixo dele
pela esquerda, para tornar a montar pela direita, que volteia como um branco fogo-fátuo em torno do mais fogoso animal, que pode manter-se na ponta de um único pé
e cair sentada com os pés pendentes do lombo do cavalo, sempre a galope, e que, enfim, de pé, sobre o corcel sem freio, faz ponto de meia, quebra ovos ou prepara
uma omeleta, com grande admiração do povo, do verdadeiro povo, camponeses e soldados! Antigamente, no carrossel, essa deliciosa Colombina equilibrava cadeiras na
ponta do nariz, o mais lindo nariz grego que já vi. Málaga, minha senhora, é a destreza em pessoa. De força hercúlea, não precisa mais do que de seu punho mimoso
ou de seu lindo pezinho para se desembaraçar de três ou quatro homens. Numa palavra, é a deusa da ginástica.
— Deve ser estúpida...
— Oh!—redarguiu Paz—É divertida como a heroína de Peveril do pico (Peveril do pico: em inglês Peveril of the Peak, romance de Walter Scott (1771-1832), cuja heroína,
Alice Bridgenorth, passa por uma série de aventuras fantásticas, sendo raptada e libertada várias vezes.). Despreocupada como uma boêmia, diz tudo que lhe vem à
cabeça, preocupa-se tanto com o futuro quanto a senhora com as esmolas que dá a um pobre, e por vezes deixa escapar coisas sublimes. Nunca a poderão convencer de
que um velho diplomata seja um bonito rapaz, e com um milhão não a fariam mudar de opinião. Seu amor, para um homem, é uma lisonja constante. Com uma saúde na verdade
insolente, seus dentes são trinta e duas pérolas do mais puro Oriente, engastados em coral. O focinho, é assim que ela denomina a parte inferior de seu rosto, tem,
segundo a expressão de Shakespeare, a frescura e o sabor de um focinho de vitela. E como isso causa cruéis pesares! Ela aprecia os belos homens, os homens fortes,
os Adolfos, os Augustos, os Alexandres, os saltimbancos e os palhaços. Seu instrutor, um horrível Cassandre (Os Adolfos, os Augustos, os Alexandres: tipos de beleza
masculina, provavelmente por alusão ao Adolfo, de Benjamin Constant, a Augusto, imperador romano, e a Alexandre, o Grande, rei da Macedônia. Cassandre é personagem
da comédia italiana, onde, entretanto, aparece como tipo do ancião crédulo, ludibriado por todos, inclusive seus filhos.), ministrava-lhe sovas tremendas aos milhares
para dar-lhe a sua flexibilidade, a sua graça e a sua intrepidez.
— O senhor está embriagado de Málaga!—disse a condessa.
— É só no cartaz que ela se chama Málaga—disse Paz com ar ofendido.—Mora na rue Saint-Lazare, num pequeno apartamento do terceiro andar, entre veludos e sedas, e
vive lá como uma princesa. Tem duas existências, sua vida de circo e sua vida de mulher bonita.
— E ela o ama?
— Ela me ama..., a senhora vai rir... unicamente porque sou polonês! Vê sempre os poloneses através da imagem de Poniatowski, atirando-se no Elster, porque, para
todos os franceses, o Elster (O Elster: rio perto de Leipzig, em que o general Poniatowski, o “Bayard polonês”, morreu afogado em 19 de outubro de 1812.), onde é
impossível uma pessoa afogar-se, é um rio impetuoso que tragou Poniatowski... No meio de tudo isso, minha senhora, sou muito infeliz...
Uma lágrima de raiva que tremeluziu nos olhos de Tadeu comoveu Clementina.
— Os senhores homens gostam do que é extraordinário.
— E as senhoras, então!—disse Tadeu.
— Conheço tão bem Adão que estou certa de que ele me esqueceria por alguma pelotiqueira como a sua Málaga. Mas onde a conheceu?
— Em Saint-Cloud, no mês de setembro passado, no dia da festa. Ela estava no canto do tablado coberto de tela, onde se fazem os malabarismos. Seus companheiros,
todos em trajes poloneses, faziam um barulho infernal. Vi-a muda e silenciosa e julguei perceber nela pensamentos melancólicos. E não era justificado para uma rapariga
de vinte anos? Foi o que me impressionou.
A condessa estava numa atitude deliciosa, pensativa, quase triste.
— Pobre, pobre Tadeu—exclamou. E, com a bonomia de verdadeira grande dama, acrescentou, não sem um fino sorriso:—Vá, vá ao circo.
Tadeu tomou-lhe a mão, beijou-a, deixando cair sobre ela uma lágrima ardente, e saiu. Depois de ter inventado uma paixão por uma amazona, devia dar-lhe certa realidade.
Na sua narrativa, nada havia de verdade a não ser o momento de atenção obtido pela ilustre Málaga, a amazona do Circo Bouthor, em Saint-Cloud, cujo nome acabava
de lhe chamar a atenção no cartaz do circo. O palhaço, subornado por uma única moeda de cinco francos, informara Paz de que a amazona era uma criança abandonada,
ou, quiçá, roubada. Tadeu foi ao circo, tornou a ver a bela amazona. Graças a dez francos, o moço das cavalariças, que lá substitui as costureiras do teatro, informou-o
de que Málaga chamava-se Margarida Turquet e morava na rue des Fossés-du-Temple, num quinto andar.
No dia seguinte, extremamente mortificado, Paz foi ao Faubourg du Temple e perguntou pela srta. Turquet, que durante o verão desempenhava as funções da “dupla” da
mais ilustre amazona do circo e as de comparsa no teatro do bulevar, no inverno.
— Málaga!—gritou a porteira, precipitando-se na mansarda.—Está aqui um belo senhor que quer vê-la! Ele está tomando informações tuas com Chapuzot, que está embromando
para me dar tempo para te avisar.
— Obrigada, tia Chapuzot, mas que dirá ele se me vir passar a ferro o meu vestido?
— Ora essa! Quando se ama, ama-se tudo que diz respeito à amada.
— É inglês? Essa gente gosta de cavalos.
— Não, deu-me a impressão de ser espanhol.
— Tanto pior! Dizem que os espanhóis vivem na miséria... Fique comigo, sra. Chapuzot, assim não terei ares de abandonada...
— A quem procura, senhor?—perguntou a porteira a Tadeu, ao abrir a porta.
— A srta. Turquet.
— Minha filha—disse a porteira, dando-se ares importantes -, aqui está alguém que quer vê-la.
Uma corda estendida, na qual havia roupa a secar, fez cair o chapéu do capitão.
— Que deseja, senhor?—disse Málaga, apanhando-lhe o chapéu.
— Via-a no circo, e a senhorita me lembrou uma filha que perdi; por afeição à minha Heloísa, com quem se parece de modo assombroso, quero ser-lhe útil, se é que
o permite.
— Como não! Queira sentar-se, general—disse a sra. Chapuzot.—Não se pode mais ser amável... nem mais galante.
— Não sou um galante, minha cara senhora—disse Paz.—Sou um pai desesperado que quer iludir-se com uma semelhança.
— Desse modo passarei por sua filha?—disse Málaga, com muita finura e sem suspeitar a profunda verdade dessa suposição.
— Sim, virei vê-la, de vez em quando, e, para que a ilusão seja perfeita, eu vou alojá-la num belo apartamento, ricamente mobiliado.
— Eu terei móveis?—perguntou Málaga, olhando para a Chapuzot.
— E criados—disse Paz—e todo o conforto.
Málaga olhou para o desconhecido disfarçadamente.
— De que país é o senhor?
— Sou polonês.
— Então, aceito—disse ela.
Paz saiu prometendo voltar.
— Isso, sim, que é uma alhada!—disse Margarida Turquet olhando para a sra. Chapuzot.—Tenho medo de que esse homem queira me amansar para realizar alguma fantasia.
Afinal! Arrisco-me.
VI - AS PREOCUPAÇÕES DE MÁLAGA
Passado um mês dessa singular entrevista, a bela amazona morava num apartamento deliciosamente mobiliado pelo estofador do conde Adão, porquanto Paz queria que comentassem
sua loucura no palacete Laginski. Málaga, para quem essa aventura representava um sonho das Mil e Uma Noites, era atendida pelo casal Chapuzot, seus confidentes
e ao mesmo tempo seus criados. Os Chapuzot e Margarida Turquet estavam à espera de um desenlace qualquer; mas, passado um trimestre, não souberam como explicar o
capricho do conde polonês. Paz vinha passar com ela mais ou menos uma hora por semana e durante essa hora ficava no salão, sem nunca querer penetrar no boudoir nem
no quarto de Málaga, onde nunca entrou, não obstante as mais hábeis manobras da amazona e dos Chapuzot. O conde informava-se dos pequenos incidentes que coloriam
a vida da rapariga, e cada vez deixava sobre a chaminé duas moedas de quarenta francos.
— Tem ar de quem está caceteado—dizia a sra. Chapuzot.
— Sim—respondia Málaga -, esse homem é frio como a geada...
— Mas assim mesmo é bom menino—exclamava Chapuzot, feliz ao se ver vestido com trajes de pano azul de Elbeuf, exatamente como um contínuo de um gabinete ministerial.
Pela sua dádiva periódica, Paz estabelecia para Margarida Turquet uma renda mensal de trezentos e vinte francos. Essa renda, acrescida com os magros vencimentos
do circo, permitiu a Málaga uma vida esplêndida, comparada com a sua miséria passada. No circo contaram-se estranhas histórias a respeito da boa sorte da rapariga.
A vaidade da amazona deixou que elevassem para sessenta mil francos os seis mil francos que custava o apartamento ao prudente capitão. No dizer dos clowns e comparsas,
Málaga comia em baixelas de prata. Aliás, ela comparecia ao circo em encantadores albornozes, xales de cashmere e deliciosas écharpes. Enfim, o polonês era a melhor
espécie de homem que uma amazona tivesse podido encontrar: nada arreliento, nem ciumento, dando a Málaga completa liberdade.
— Há mulheres que têm muita sorte!—dizia a rival de Málaga.—A mim, a quem se deve o terço das entradas, não acontece coisa parecida.
Málaga usava lindos berloques, e dava-se ares de importante (admirável expressão do diretor das raparigas de vida fácil), de carruagem no Bois de Boulogne, onde
a mocidade elegante começava a prestar-lhe atenção. Enfim, Málaga já era assunto de palestras nas rodas suspeitas das mulheres galantes, que atacavam a sua felicidade
por meio de calúnias. Diziam-na sonâmbula e o polonês era tido como um magnetizador que buscava a pedra filosofal. Alguns boatos que, bem mais envenenados do que
aquele, deixaram Málaga mais curiosa do que Psique (Psique: esposa de Cupido ou Amor que, segundo a lenda, não devia saber quem era o esposo, para poder conservar
a sua felicidade. Não consegue, porém, resistir à curiosidade e espreita o esposo, o que lhe acarreta terríveis consequências.) e ela os referiu, em prantos, a Paz.
— Quando tenho raiva de uma mulher, eu não a calunio, não ando dizendo que a magnetizam para encontrar pedras; digo que ela é corcunda e provo o que digo. Por que
me compromete o senhor?
Paz manteve o mais cruel silêncio. A Chapuzot acabou descobrindo o nome e o título de Tadeu; depois, no palacete Laginski, soube de coisas positivas: Paz era solteiro,
nunca tinham ouvido falar em filha morta, nem na Polônia, nem na França. Málaga então foi presa de medo.
— Minha filha—disse Chapuzot -, esse monstro...—(Um homem que se contentava em olhar de modo disfarçado—de soslaio—sem se animar a dizer nada de positivo—sem ter
confiança—uma bela criatura como Málaga—segundo a opinião da Chapuzot, ele tinha de ser um monstro) -, esse monstro está te amansando para te fazer praticar qualquer
coisa ilegal ou criminosa. Deus da Misericórdia! Se for você a júri, ou, e isso me faz tremer da cabeça aos pés, a ponto de eu ficar fria só de pensar, à polícia
de costumes, que ponham teu nome nos jornais... Se eu fosse você, sabe o que eu faria? Pois bem! No seu lugar eu prevenia a polícia, para minha segurança.
Um dia em que as mais loucas ideias fermentavam na cabeça de Málaga, quando Paz colocou as duas moedas de ouro em cima do veludo da chaminé, ela pegou o ouro e atirou-lho
na cara dizendo:
— Não quero dinheiro roubado.
O capitão deu as duas moedas aos Chapuzot e nunca mais voltou. Clementina estava, então, passando o verão na propriedade rural do tio, o marquês de Ronquerolles,
na Borgonha. Quando o elenco do circo não viu mais Tadeu no lugar habitual, houve um zum-zum entre os artistas. A grandeza de alma de Málaga foi, por alguns, classificada
de estupidez, e de esperteza por outros. O procedimento do polonês, exposto às mulheres mais sabidas, pareceu inexplicável. Numa única semana, Tadeu recebeu trinta
e sete cartas de cortesãs. Felizmente para ele, sua admirável reserva não despertou curiosidade na alta sociedade e permaneceu apenas como objeto de palestras nas
rodas duvidosas.
Dois meses depois, a bela amazona, crivada de dívidas, escreveu ao conde Paz a seguinte carta, que os dândis da época classificaram como uma obra-prima:
Poderá o senhor, a quem ainda me atrevo a chamar de meu amigo, ter piedade de mim depois do que aconteceu e que tão mal interpretou? Meu coração reprova tudo o que
o possa ter ferido. Se tive a felicidade de que o senhor achasse algum encanto em estar perto de mim do modo como o fazia, volte... Do contrário ficarei desesperada.
A miséria já chegou e o senhor não sabe tudo o que ela traz de coisas tolas. Ontem passei com um arenque de dois sous e um sou de pão. É isso um almoço para a sua
amante? Os Chapuzot, que pareciam ser-me tão dedicados, já não estão mais comigo. Sua ausência fez-me ver o fundo das afeições humanas... Um cão que a gente alimenta
nunca mais nos deixa, e os Chapuzot se foram. Um oficial de justiça, que se fez de surdo, penhorou tudo em nome do proprietário, que não tem coração, e do joalheiro,
que não quer esperar nem dez dias; porque com a confiança dos senhores, o crédito se vai! Que situação para as mulheres que só se podem censurar por sua alegria!
Meu amigo, pus no prego tudo o que tinha algum valor; nada mais me resta do que a sua recordação, e o inverno está a chegar. Durante o inverno fico sem aquecimento,
porque no bulevar só levam mimodramas, nos quais quase nada tenho a fazer senão uns papeizinhos insignificantes que não firmam uma mulher. Como pôde o senhor equivocar-se
com a nobreza dos meus sentimentos para consigo, pois que, afinal, não temos dois modos para exprimir nossa gratidão? O senhor, que parecia tão contente com o bem-estar,
como pôde deixar-me em apuros? Oh!, meu único amigo no mundo, antes de ir recomeçar a percorrer as feiras com o Circo Bouthor, porque aí, pelo menos, eu ganharei
com que viver, perdoe-me de ter querido saber se o perdi para sempre. Se me acontecesse pensar no senhor no momento em que pulo no arco, seria capaz de quebrar as
pernas por perder um tempo! Seja como for, é sua para toda a vida.
margarida turquet
— Esta carta—disse Tadeu com os seus botões, desatando a rir—vale bem os meus dez mil francos!
VII - ÂNSIAS DE PAZ
Clementina chegou no dia seguinte e nesse dia Paz reviu-a mais bela, mais graciosa do que nunca. Depois do jantar, durante o qual a condessa mostrou uma perfeita
indiferença por Tadeu, depois da saída do capitão, houve a seguinte cena no salão, entre o conde e a esposa. Simulando pedir um conselho a Adão, Tadeu, como por
descuido, deixara-lhe a carta de Málaga.
— Pobre Tadeu!—disse Adão à esposa depois de ter visto Paz retirar-se.—Que desgraça para um homem tão distinto servir de joguete para uma artista de circo da última
categoria. Ele assim perderá tudo, e até se aviltará, ninguém o reconhecerá mais daqui a pouco tempo. Tome, querida, leia—disse o conde, passando a carta para a
esposa.
Clementina leu a carta, que fedia a fumo, e atirou-a com um gesto de nojo.
— Por mais espesso que seja o céu que tenha nos olhos, ele terá com certeza percebido alguma coisa—disse Adão.—Málaga deve ter-lhe feito alguma tratantada.
— E ele volta lá!—disse Clementina.—E ele perdoará! É somente para essas horríveis mulheres que vocês têm indulgência!
— Elas precisam tanto disso!—disse Adão.
— Tadeu fazia-se justiça... quando não saía do seu lugar—disse ela.
— Oh! Meu anjo, você vai longe demais—disse o conde, que, de começo, feliz por diminuir o amigo aos olhos da mulher, não queria, entretanto, a morte do pecador.
Tadeu, que conhecia Adão a fundo, pedira-lhe o mais absoluto segredo; falara-lhe sob pretexto de desculpar suas dissipações e pedir ao amigo autorização a fim de
tirar uns mil escudos para Málaga.
— É um homem que tem um caráter altivo—disse Adão.
— Como assim?
— Mas por não ter gastado mais de dez mil francos com ela, e esperar semelhante carta antes de levar-lhe o dinheiro para pagar as dívidas! Para um polonês, francamente...
— Mas ele pode arruinar-te—disse Clementina com o tom azedo da parisiense quando manifesta a sua desconfiança de gata.
— Oh!, conheço-o—respondeu Adão -, ele nos sacrificaria Málaga.
— Veremos—duvidou a condessa.
— Se fosse preciso para a felicidade dele, eu não hesitaria em pedir-lhe que a deixasse. Disse-me Constantino que, durante o tempo de sua ligação, Paz, que sempre
fora sóbrio, voltou algumas vezes alegrete... Se ele se deixasse arrastar à embriaguez, isso me causaria tanto pesar como se se tratasse de um filho meu.
— Não me diga mais nada—exclamou a condessa, fazendo outro gesto de repugnância.
Dois dias depois, o capitão percebeu nas maneiras, no tom da voz, nos olhos da condessa os terríveis efeitos da indiscrição de Adão. O desprezo cavara um abismo
entre a encantadora dama e ele. Por isso Tadeu caiu numa profunda melancolia, corroído por este pensamento: “Tu mesmo te tornaste indigno dela!”. A vida se lhe tornou
pesada, o mais belo sol parecia empanado a seus olhos. Não obstante, sob essas ondas de amargas dores, teve momentos de alegria; pôde entregar-se, sem perigo, à
sua admiração pela condessa, que não prestou mais atenção nele quando, nas festas, encolhido num canto, calado, mas todo olhos e coração, não perdia uma única das
atitudes dela, um dos seus cantos quando ela cantava. Vivia enfim uma bela vida, podia tratar ele mesmo do cavalo que ela ia montar, dedicar-se à economia daquela
esplêndida casa, por cujos interesses redobrou os cuidados. Esses prazeres silenciosos foram sepultados em seu coração, como os de uma mãe cujo filho nada sabe do
coração materno; pois será conhecer, quando se ignora alguma coisa? Não era aquilo mais belo do que o casto amor de Petrarca por Laura, que, em definitivo, era recompensado
por um tesouro de glória e pelo triunfo da poesia que ela havia inspirado? A sensação que d’Assas (D’Assas: o cavaleiro Louis d’Assas (1733-1760), que, surpreendido
de noite pelos inimigos, sacrificou a vida soltando um grito para advertir os seus companheiros.) deve ter experimentado ao morrer não valerá por toda uma vida?
Essa sensação, Paz a experimentava todos os dias, sem morrer, mas também sem a compensação da imortalidade. Que haverá, pois, no amor para que, não obstante essas
delícias secretas, Paz fosse consumido pelos pesares? A religião católica engrandeceu de tal forma o amor que nele uniu, por assim dizer, indissoluvelmente, a estima
e a nobreza. Não existe amor sem as superioridades das quais se orgulha o homem, e é de tal forma raro ser amado quando se é desprezado que Tadeu se finava devido
às feridas que ele voluntariamente se fizera. Dizer-se a si mesmo que ela o teria amado, e depois morrer?... Isso teria pagado de sobra a vida do pobre apaixonado.
As angústias de sua situação anterior pareciam-lhe preferíveis a viver perto dela, cumulando-a com as suas generosidades, sem ser apreciado nem compreendido. Enfim,
ele queria a compensação de sua virtude! Emagreceu e amarelou, ficou de tal forma doente, consumido por uma febrícula que, durante o mês de janeiro, foi obrigado
a permanecer na cama, sem querer consultar médico. O conde Adão sentiu grandes inquietações pelo seu pobre Tadeu. A condessa teve então a crueldade de dizer numa
roda de amigos:
— Deixa-o, não estás vendo que ele tem algum remorso olímpico?
Esse dito insuflou em Tadeu a coragem do desespero; levantou-se, saiu, tentou distrair-se e recuperou a saúde. No mês de fevereiro, Adão perdeu uma quantia importante
no Jockey Club, e como tinha medo de que a mulher soubesse, pediu a Tadeu que pusesse tal quantia na conta de suas dissipações com Málaga.
— Que há de extraordinário que aquela artista te tenha custado vinte mil francos? Ninguém tem nada a ver com isso, a não ser eu, ao passo que se a condessa soubesse
que eu perdera no jogo, isso me diminuiria no seu conceito e ela ficaria preocupada quanto ao futuro.
— Ainda mais essa!—exclamou Tadeu, dando um profundo suspiro.
— Ah! Tadeu, esse favor saldaria as tuas dívidas, mesmo que eu já não te devesse tanto.
— Adão, terás filhos, por isso te peço, não jogues mais.
— Málaga nos custa ainda vinte mil francos!—exclamou a condessa daí a poucos dias, ao saber da generosidade de Adão para com Tadeu.—Dez mil francos antes, trinta
mil ao todo! Mil e quinhentos francos de renda! O preço do meu camarote nos Italiens, a fortuna de muitos burgueses... Oh!, vocês, os poloneses, são incríveis!—disse
ela, colhendo flores na sua bela estufa.—Não ficas mais aborrecido do que isso?
— Esse pobre Paz...
— Esse pobre Paz, pobre Paz—replicou ela, interrompendo-o -, afinal para que nos serve ele? Vou eu mesma pôr-me à frente dos negócios da casa! Tu lhe darás os cem
luíses de renda que recusou, e ele que se arranje como quiser com o Circo Olímpico.
— Ele nos é muito útil, economizou para nós, neste último ano, no mínimo, quarenta mil francos. Enfim, querido anjo, ele nos colocou cem mil francos no banco Rotschild,
e um administrador tê-los-ia roubado.
Clementina apaziguou-se, mas nem por isso deixou de tratar Tadeu com dureza. Alguns dias depois, pediu a Paz que fosse vê-la naquele boudoir onde, um ano antes,
ela se surpreendera a compará-lo com o marido; desta vez recebeu-o a sós sem ver nisso o menor perigo.
— Meu caro Paz—disse-lhe ela com a familiaridade sem consequência dos grandes para com os subalternos -, se quer realmente a Adão como afirma, deve fazer uma coisa
que ele jamais lhe pediria, mas que eu, esposa dele, não hesito em exigir do senhor...
— Trata-se de Málaga?—perguntou Tadeu, com profunda ironia.
— Pois bem! Sim—disse ela -, se quer acabar seus dias conosco, se quer que nos conservemos bons amigos, abandone-a. Como é possível que um velho soldado...
— Tenho apenas trinta e cinco anos e nenhum cabelo branco.
— Pois parece que os tem—disse ela -; vem a dar no mesmo. Como é possível que um homem tão bom calculador, tão distinto...
Foi horrível que essa frase tivesse sido dita com a evidente intenção de despertar nele a nobreza de alma que Clementina julgava extinta.
— Tão distinto quanto o senhor é—continuou após uma pausa quase imperceptível que provocou em Paz o esboço de um gesto -, deixa-se engodar como uma criança! Sua
aventura celebrizou Málaga... Pois bem! Meu tio quis vê-la e viu-a... De resto, não foi ele o único, porquanto Málaga recebe muito bem todos esses senhores... Eu
acreditei na nobreza de sua alma... Que horror! Vejamos, será para o senhor tão grande perda, que não possa ser reparada?
— Minha senhora, se eu conhecesse um sacrifício a fazer para reconquistar a sua estima, eu o faria em seguida; mas deixar Málaga não é um...
— Na sua situação, se eu fosse homem, é o que eu diria—respondeu Clementina.—Pois bem! Se eu considerar isso um grande sacrifício, não terá motivo para zangar-se.
Paz retirou-se, temendo praticar alguma tolice, pois sentia-se invadir por ideias aloucadas. Foi dar um passeio ao ar livre, com roupa muito leve apesar do frio,
sem poder aplacar o fogo que lhe queimava as faces e a fronte... “Acreditei na nobreza de sua alma!”—continuava ouvindo essas palavras. “E dizer-se que faz apenas
quase um ano que, segundo Clementina, eu sozinho teria batido os russos!” Lembrou-se de abandonar o palacete Laginski, engajar-se nos sipaios e fazer-se matar na
África; mas deteve-o um angustioso terror. “Sem mim, que será deles? Não tardariam em se arruinarem. Pobre condessa! Que vida horrível para ela ver-se reduzida a
viver só com trinta mil libras de renda! Vamos”, pensou, “visto estar ela perdida para mim, tenhamos coragem e terminemos nossa obra.”
VIII - O BAILE MUSARD
Todos sabem que, depois de 1830, o Carnaval, em Paris, teve um desenvolvimento prodigioso que lhe deu feição europeia e se tornou muito mais burlesco e animado que
o extinto Carnaval de Veneza. Será isso devido ao fato de que a diminuição desmedida das fortunas fez os parisienses inventarem o divertimento coletivo, como fizeram
com os seus clubes, salões sem dona de casa, sem polidez, e baratos? Seja como for, o mês de março multiplicava, então, esses bailes, onde a dança, a farsa, a alegria
ruidosa, o delírio, as imagens grotescas e os gracejos afiados pelo espírito parisiense conseguem efeitos gigantescos. Essa loucura tinha, então, na rue Saint-Honoré
seu Pandemônio, e em Musard (Musard (1789-1853): músico francês que alcançou reputação europeia como chefe de orquestra dos bailes públicos e dos bailes da Ópera.),
seu Napoleão, um homenzinho feito a propósito para dirigir uma música tão poderosa quanto a multidão enlouquecida e para conduzir o galope—essa ronda do sábado -,
uma das glórias de Auber, pois o galope só teve a sua forma e a sua poesia depois do grande galope de Gustavo (Auber: Daniel-François Auber (1782-1871), famoso compositor
de música leve e graciosa, autor de óperas.—Gustavo: Gustavo II ou o baile mascarado, ópera de Auber com palavras de Scribe (1833), cujo galope granjeou celebridade
mundial.). Esse imenso final não poderia servir de símbolo de uma época em que, faz cinquenta anos, tudo desfila com a rapidez de um sonho? Ora, o sério Tadeu, que
carregava em seu coração uma imagem divina e imaculada, foi propor a Málaga, a rainha das danças do Carnaval, para passarem a noite no baile Musard quando soube
que a condessa, disfarçada até os dentes, devia ir ver, com duas outras jovens senhoras, acompanhadas pelos maridos, o curioso espetáculo de um desses bailes monstruosos.
Na terça-feira de Carnaval do ano de 1838, às quatro horas da manhã, a condessa, envolta num dominó preto e sentada na bancada de um dos anfiteatros daquela sala
babilônica, onde, desde então, Valentino (Valentino: Henri-Justin-Armand-Joseph Valentino (1787-1865), chefe de orquestra da Ópera, depois da Ópera Cômica; organizador
de concertos que acabaram em 1841.) dá seus concertos, viu, no galope, Tadeu, fantasiado de Roberto Macário (Roberto Macário: tipo moderno da velhacaria audaciosa
e esperta; tornou-se famoso graças a uma criação de Frédérick Lemaître na comédia do mesmo nome, da autoria de Benjamin Antier e do próprio Lemaître.), desfilar,
conduzindo a amazona, vestida de índia, com a cabeça enfeitada com plumas, como um cavalo na cerimônia da coroação, e saltando por sobre os grupos, como um verdadeiro
fogo-fátuo.
— Ah!—disse Clementina ao marido. Vocês, poloneses, são gente sem caráter. Quem não teria tido confiança em Tadeu? Ele deu-me a sua palavra, sem saber que eu estaria
aqui vendo tudo, sem ser vista.
Alguns dias depois, Paz acompanhou-os ao jantar. Depois da refeição, Adão deixou-os a sós, e Clementina repreendeu Tadeu de maneira a fazê-lo compreender que não
o queria mais em casa.
— Sim, minha senhora—disse Tadeu, humildemente -, tem toda a razão, sou um miserável, pois lhe havia dado minha palavra. Mas que quer, tinha resolvido separar-me
de Málaga depois do Carnaval... De resto, serei franco: essa mulher exerce um tal domínio sobre mim que...
— Uma mulher que se faz expulsar do baile Musard pelos agentes de polícia, e por que dança!
— Convenho, aceito a condenação, deixarei sua casa, mas a senhora conhece Adão. Se lhes entrego a direção de sua fortuna, a senhora terá de desenvolver uma grande
energia. Embora eu tenha o vício de Málaga, sei, apesar disso, cuidar dos seus interesses, dirigir a criadagem, ocupar-me dos menores detalhes. Permita, pois, que
me retire somente depois de verificar que está em condições de continuar minha administração; têm agora três anos de casados e estão ao abrigo das primeiras loucuras
que a lua de mel provoca. As parisienses e as de melhores títulos, sabem, hoje, administrar muito bem uma fortuna e uma casa. Pois bem! Quando eu estiver convencido
não tanto de sua capacidade, mas de sua firmeza, deixarei Paris.
— Quem falou agora foi o Tadeu de Varsóvia e não o Tadeu do Circo—respondeu ela.—Volte-nos curado.
— Curado... Nunca—disse Paz com os olhos baixos, contemplando os lindos pés de Clementina.—A senhora não sabe, condessa, quanto essa mulher é espirituosa e desconcertante.—E
sentindo que a coragem se ia, acrescentou:—Não há senhora da alta sociedade, com seus ares afetados, que valha essa natureza franca de animal jovem...
— O fato é que eu nada desejaria ter de animal—disse-lhe a condessa, fitando-o com um olhar de víbora enraivecida.
A partir dessa manhã (A partir dessa manhã: melhor—dessa noite, pois a conversa de Clementina e de Paz se realizou numa noite, depois do jantar.), o conde Tadeu
pôs Clementina ao corrente dos seus negócios, tornou-se seu preceptor, ensinou-lhe as dificuldades da gestão de seus bens, o verdadeiro preço das coisas e o modo
de não se deixar roubar pelos fornecedores. Ela podia confiar em Constantino e fazer dele seu mordomo. Tadeu formara Constantino. No mês de maio, a condessa pareceu-lhe
perfeitamente em condições de administrar sua fortuna, pois Clementina era uma dessas mulheres que têm um golpe de vista exato, instintivo, e em quem o dom de dona
de casa era inato.
IX - UMA SITUAÇÃO ESTRANHA
Essa situação provocada por Tadeu com tanta naturalidade acarretou uma horrível peripécia para ele, porquanto seus sofrimentos não deviam ser tão suaves quanto ele
queria crer. Esse pobre amante não levara em conta o acaso. Ora, Adão adoeceu muito seriamente. Tadeu, em vez de partir, serviu de enfermeiro ao amigo. O devotamento
do capitão foi incansável. Uma mulher que tivesse tido interesse em exercitar sua perspicácia teria visto no heroísmo do capitão uma espécie de castigo que as almas
nobres se impõem para reprimir os maus pensamentos involuntários; mas as mulheres ou veem tudo, ou não veem nada, segundo o seu estado de alma. O amor é sua única
luz.
Durante quarenta e cinco dias, Paz velou, atendeu Mitgislas sem que parecesse pensar em Málaga, pela simples razão de que nunca pensara nela. Ao ver Adão à morte
e não morrendo, Clementina convocou os mais célebres médicos.
— Se se salvar desta—disse o mais célebre dos doutores -, será exclusivamente por um esforço da natureza. Compete aos que cuidam dele espreitar esse momento e secundar
a natureza. A vida do conde está nas mãos dos seus enfermeiros.
Tadeu foi comunicar a sentença a Clementina, que se achava naquele momento sentada no pavilhão chinês, tanto para repousar das fadigas que suportava como para dar
campo livre aos médicos e não os constranger. Ao seguir as sinuosidades da alameda ensaibrada que ia do boudoir ao rochedo sobre o qual se erguia o pavilhão chinês,
o apaixonado de Clementina sentia-se como se estivesse no fundo dos abismos descritos por Alighieri. O desgraçado não previra a possibilidade de vir a ser marido
de Clementina e se havia metido, ele mesmo, num poço de lama. Chegou com a fisionomia desfeita, sublime de dor. Sua cabeça, como a da Medusa, transmitia desespero.
— Morreu?...—perguntou Clementina.
— Eles o desenganaram; pelo menos acham que só a natureza o poderá salvar. Não vá, eles ainda estão lá e Bianchon (Bianchon: médico, uma das personagens preferidas
de Balzac. Foi ele que, embora em vão, procurou salvar Luísa de Chaulieu (Memórias de duas jovens esposas); ele que, sem querer, soube pelo conde de Granville o
segredo da dupla vida deste (Uma dupla família); ele quem nos contou um caso divertido de Rastignac (Estudo de mulher).) vai tirar ele próprio os aparelhos.
— Pobre homem! A mim mesma pergunto se não o aborreci algumas vezes—disse ela.
— A senhora o fez muito feliz, fique tranquila a esse respeito—disse Tadeu -, e até foi muito indulgente para com ele.
— Seria uma perda irreparável para mim.
— Mas, querida senhora, admitindo mesmo que o conde sucumba, já não o tinha julgado?
— Eu o amava sem cegueira—disse ela -, como uma mulher deve amar o marido.
— Deve portanto—disse Tadeu com uma voz que Clementina não lhe conhecia—sentir menos do que se perdesse um desses homens que constituem o orgulho de uma mulher!
Seu amor e toda a sua vida! Pode ser sincera com um amigo como eu... Eu sentirei muito a sua perda!... Muito antes de seu casamento, eu fazia dele um filho e lhe
havia sacrificado minha vida. Ficarei, pois, no mundo, sem interesse. Mas para uma viúva de vinte e quatro anos a vida é ainda bela.
— Mas o senhor bem sabe que eu não amo ninguém—disse ela com a impetuosidade da dor.
— A senhora não sabe ainda o que é amar—disse Tadeu.
— Oh! Marido por marido, tenho bastante bom senso para preferir uma criança como o meu pobre Adão a um homem superior. Vai fazer trinta dias que vivemos a nos perguntar:
viverá ele? Essas alternativas preparam-me para essa perda, tanto como ao senhor. Posso ser franca consigo. Pois bem! Eu daria minha vida para conservar a de Adão.
Não é a independência das mulheres, em Paris, a autorização de se deixarem levar pelos simulacros do amor de homens arruinados e esbanjadores? Eu pedia a Deus que
me deixasse esse marido, tão condescendente, de tão bom gênio, tão pouco arreliento e que começava a temer-me.
— A senhora é sincera e eu lhe quero mais ainda por isso—disse Tadeu, tomando e beijando a mão de Clementina, que o deixou fazer.—Em momentos tão solenes, há não
sei que satisfação em encontrar uma mulher sem hipocrisia. Pode-se conversar consigo. Vejamos o futuro; suponhamos que Deus não a ouve e eu sou um dos que estão
mais dispostos a bradar-lhe: Deixai-me o meu amigo! Sim, essas cinquenta noites não enfraqueceram meus olhos e fossem embora precisos mais trinta dias e trinta noites
de cuidado, a senhora, condessa, dormiria enquanto eu velasse. Saberei salvá-lo da morte se, como eles dizem, ele pode ser salvo por cuidados. Enfim, suponhamos
que, apesar de mim e da senhora, o conde morra. Pois bem! Se a senhora fosse amada, oh!, mas adorada, por um homem de grande coração e de um caráter digno do seu...
— É possível que eu tenha desejado loucamente ser amada, mas não encontrei...
— Se a senhora tivesse sido enganada...
Clementina olhou fixamente para Tadeu, supondo nele antes cupidez do que amor, e cobriu-o com o seu desprezo, medindo-o da cabeça aos pés e esmagando-o com duas
palavras:—Pobre Málaga!—proferidas em três tons que só as grandes damas sabem achar no registro de seus desdéns. Ela levantou-se, deixou Tadeu aturdido, pois não
se virou, caminhou com passo digno para o seu boudoir e subiu ao quarto de Adão.
Uma hora depois, Paz voltou ao quarto do amigo e, como se não tivesse recebido um golpe mortal, prodigou seus cuidados ao conde. A partir desse fatal momento tornou-se
taciturno; teve, ademais, um duelo com a doença, combatendo-a de modo a provocar a admiração dos médicos. A qualquer hora viam-se seus olhos acesos como duas lâmpadas.
Sem manifestar o menor ressentimento contra Clementina, ouvia-lhe os agradecimentos sem os aceitar como se estivesse surdo. Dissera consigo:—Ela me deverá a vida
de Adão!—e essas palavras, escrevia-as, por assim dizer, em traços de fogo no quarto do doente. No décimo quinto dia, Clementina foi obrigada a restringir seus cuidados,
sob pena de sucumbir pelo cansaço. Paz era infatigável. Finalmente, no fim do mês de agosto, Bianchon, o médico da casa, que respondia pela vida do conde, disse
a Clementina:
— Ah! Minha senhora, não me deve obrigação nenhuma. Não fosse o seu amigo, não o teríamos salvado!
X - CONCLUSÃO
No dia seguinte à terrível cena do pavilhão chinês, o marquês de Ronquerolles viera ver o sobrinho, porquanto partia para a Rússia em missão secreta, e Paz, fulminado
na véspera, dissera qualquer coisa ao diplomata. Ora, no dia em que o conde e a esposa saíram pela primeira vez na caleça, no momento em que esta ia atravessar o
portão, entrou um gendarme ao pátio do palacete e perguntou pelo conde Paz. Tadeu, sentado no banco da frente da caleça, voltou-se para receber uma carta que trazia
o carimbo do Ministério das Relações Exteriores e colocou-a no bolso de um modo que impediu Clementina e Adão de lhe falarem a respeito. Não se pode negar às pessoas
da boa sociedade a ciência da linguagem não falada. Não obstante, ao chegarem à Porta de Maillot, Adão, usando dos privilégios de um convalescente, cujos caprichos
devem ser satisfeitos, disse a Tadeu:
— Entre dois irmãos que se querem como nós não há indiscrições; tu sabes o que contém essa mensagem, dize-me portanto o que é, que estou ardendo de curiosidade.
Clementina olhou para Tadeu com olhos de mulher zangada e disse ao marido:
— Faz dois meses que ele anda enfadado comigo, por isso não me permitirei insistir.
— Ora, meu Deus—respondeu Paz -, como não posso impedir os jornais de publicá-lo, vou revelar-lhes este segredo: o imperador Nicolau concedeu-me a graça de me nomear
capitão num regimento destinado à expedição de Khiva (A expedição de Khiva: organizada em 1839 pela Rússia sob o comando do general Perowski contra o kan de Khiva,
no Turquestão, para fazer contrapeso às conquistas inglesas no Afeganistão.).
— E tu vais?—indagou Adão.
— Vou, meu caro. Vim capitão, e volto capitão... Málaga poderia levar-me a fazer asneiras. Jantaremos juntos amanhã pela última vez. Se eu não partisse em setembro
para Petersburgo, teria de ir por terra e não sou rico: além de que devo deixar a Málaga uma pequena independência. Como não garantir o futuro da única mulher que
soube compreender-me? Málaga me considera grande, acha-me bonito! É bem possível que me seja infiel, mas seria capaz de passar pelo...
— Pelo arco, para o senhor, e recairia justamente em cima do cavalo—disse apressadamente Clementina.
— Oh!, a senhora não conhece Málaga—disse o capitão, com profunda amargura e um olhar repleto de ironia, que deixaram Clementina pensativa e inquieta.
— Adeus, jovens árvores deste belo Bois de Boulogne, onde as parisienses passeiam, onde passeiam os exilados que aqui encontram uma pátria. Tenho certeza de que
meus olhos não tornarão a ver as árvores verdes da alameda de Mademoiselle, nem os da estrada das Damas, nem as acácias, nem o cedro dos largos... Nos confins da
Ásia, obedecendo aos projetos do grande imperador que escolhi para meu senhor, tendo alcançado, quem sabe, o comando de um exército, à força de coragem, à força
de arriscar minha vida, talvez me lembre com saudade dos Champs-Élysées, onde, uma vez, me fizeram passear ao lado. Enfim, sempre me lembrarei com pesar dos rigores
de Málaga, a Málaga de quem falo neste instante.
Disse isso de maneira a fazer Clementina estremecer.
— Quer então muito a Málaga?—perguntou ela.
— Sacrifiquei-lhe a honra que nunca sacrificamos...
— Qual?
— Mas a que queremos conservar, a qualquer preço, aos olhos do nosso ídolo.
Depois dessa resposta, Tadeu manteve-se num silêncio impenetrável, e só o quebrou quando, ao passar pelos Champs-Élysées, disse, apontando para um alpendre de tábuas:
— Ali está o circo!
Pouco antes do jantar, foi à embaixada da Rússia e de lá ao Ministério do Exterior e no dia seguinte partiu para o Havre, pela manhã, antes de a condessa se levantar.
— Perdi um amigo—disse Adão, com lágrimas nos olhos, ao saber da partida do conde Paz -, um amigo na verdadeira acepção do termo, e não sei o que o levou a fugir
de minha casa como da peste. Não somos amigos para nos indispormos, um com o outro, por causa de uma mulher—disse ele, olhando fixamente Clementina—e, entretanto,
tudo o que ele ontem dizia de Málaga... Mas se ele nunca tocou, nem a ponta do dedo, dessa rapariga...
— Como o sabes?—perguntou Clementina.
— Ora, tive naturalmente a curiosidade de conhecer a srta. Turquet, e a pobre, a si mesma, não pôde, até hoje, explicar a absoluta reserva de Tadeu...
— Basta, senhor—disse a condessa, que se recolheu aos seus aposentos, dizendo-se, a si mesma:—Teria sido eu vítima de uma mistificação sublime?
Acabava apenas de proferir essa frase, no seu íntimo, quando Constantino lhe entregou a seguinte carta que Tadeu rabiscara durante a noite:
Condessa, ir ao Cáucaso para me fazer matar e levar comigo seu desprezo, é demasiado; deve-se morrer de uma vez. Adorei-a desde a primeira vez que a vi, como se
adora uma mulher a quem se ama sempre, mesmo depois de sua infidelidade, eu, que era grato a Adão, que a tinha escolhido e que a senhora desposava, eu pobre, eu
o administrador voluntário, dedicado, de sua casa. Nessa horrível desgraça, encontrei a mais deliciosa vida. Ser em sua casa uma mola indispensável, saber-me útil
ao seu luxo, ao seu bem-estar, foi para mim uma fonte de gozos; e, se esses gozos eram intensos em minha alma quando se tratava de Adão, imagine o que seriam quando
uma mulher adorada era sua origem e seu efeito! Conheci os prazeres da maternidade no amor; conformava-me com essa vida. Como os pobres das estradas reais, eu ergui
para mim uma cabana de pedras na orla de vossa bela propriedade, sem lhe estender a mão. Pobre e infeliz, cegado pela felicidade de Adão, era eu quem dava. Ah!,
a senhora estava cercada por um amor puro como o de um anjo da guarda, que velava quando a senhora dormia, que a acariciava com o olhar quando a senhora passava,
que se sentia feliz de existir, enfim, a senhora era o sol da pátria para este pobre exilado que aqui lhe está escrevendo com os olhos cheios de lágrimas, ao pensar
nessa felicidade dos primeiros dias. Aos dezoito anos, não sendo querido por ninguém, eu tomara por amante ideal uma encantadora dama de Varsóvia, a quem eu dedicava
meus pensamentos, meus desejos, e que era a rainha de meus dias e de minhas noites! Essa mulher de nada sabia, mas para que dizer-lhe?... Eu amava meu amor. Julgue,
por essa aventura de minha adolescência, como eu me sentiria feliz por viver na esfera de sua existência, de tratar de seu cavalo, de conseguir moedas de ouro bem
novas para a sua bolsa, de estar atento ao esplendor de sua mesa e de seus saraus, de vê-la eclipsando fortunas superiores à sua, tudo por minha habilidade. Com
que ardor eu me precipitava por essa Paris, quando Adão me dizia:—Tadeu, ela quer tal coisa! É uma dessas alegrias impossíveis de exprimir. A senhora desejou ninharias,
num prazo determinado, que me obrigaram a fazer coisas impossíveis, a correr em cabriolé, durante horas; e que delícia movimentar-me por sua causa! Ao vê-la sorridente,
entre suas flores, sem que me visse, fazia-me esquecer que ninguém me amava... Enfim, continuava a ser como aos dezoito anos. Certos dias em que a felicidade me
virava a cabeça, eu ia, à noite, beijar o lugar em que, para mim, seus pés tinham deixado rastros luminosos, como outrora eu fiz milagres de ladrão para ir beijar
a chave que a condessa Ladislas tocara com suas mãos, ao abrir uma porta. O ar que a senhora respirava era balsâmico; havia para mim mais vida em aspirá-lo, e nele
me sentia como se está, dizem nos trópicos, acabrunhado, por exalações saturadas de princípios criadores. É forçoso dizer-lhe essas coisas para explicar-lhe a estranha
fatuidade de meus pensamentos involuntários. Teria preferido morrer a revelar-lhe meu segredo! Deve lembrar-se dos poucos dias de curiosidade durante os quais quis
ver o autor dos milagres que por fim a tinham impressionado. Acreditei, perdoe-me, minha senhora, acreditei que viesse a amar-me. Sua benevolência, seus olhares
interpretados por um enamorado pareceram-me tão perigosos para mim, que me atribuí Málaga, pois sabia que há ligações que as mulheres não perdoam; fiz isso no momento
em que vi meu amor transmitir-se fatalmente. Esmague-me agora com o desprezo com que me cobriu a mancheias sem que eu merecesse; mas creio ter certeza de que, na
noite em que a sua tia levou o conde com ela, se eu lhe tivesse dito o que acabo de escrever, eu ficaria como o tigre domesticado que tornou a sentir sob o dente
a carne viva, que sentiu o calor do sangue, e...
Meia-noite
Não pude continuar; a lembrança daquele momento ainda está muito viva! Sim, delirei naquele instante. Nos seus olhos estava a Esperança, a Vitória e os seus pavilhões
vermelhos teriam brilhado nos meus e fascinado os seus. Meu crime foi pensar tudo isso, talvez erradamente. Só a senhora é juiz dessa terrível cena, na qual pude
recalcar amor, desejo, as mais invencíveis forças do homem, sob a mão gelada de uma gratidão que deve ser eterna. Seu terrível desprezo castigou-me. A senhora demonstrou-me
que não nos podemos reerguer do asco e do desprezo. Amo-a como um insensato. Morto Adão, eu teria partido; com mais forte razão devo partir, Adão salvo. Não se arranca
um amigo dos braços da morte para traí-lo. De resto, minha partida é o castigo do pensamento que tive de o deixar morrer quando os médicos me disseram que sua vida
dependia dos enfermeiros. Adeus, senhora; tudo perco ao deixar Paris, e a senhora nada perde, não me tendo mais a seu lado.
Seu dedicado
Tadeu Paz
— Se meu pobre Adão diz ter perdido um amigo, que terei eu então perdido?—a si mesma disse Clementina, abatida, os olhos fitos numa flor do tapete.
Eis a carta que Constantino, em segredo, entregou ao conde Adão:
Meu caro Mitgislas, Málaga contou-me tudo. Em nome de tua felicidade, nunca digas a Clementina uma palavra sobre as tuas visitas à amazona e deixa-a crer sempre
que Málaga custou-me cem mil francos. Com o caráter que tem, a condessa nunca te perdoaria, nem tuas perdas no jogo, nem tuas visitas a Málaga. Não vou para Khiva,
e sim para o Cáucaso. Estou com o spleen, e do jeito que vou, serei daqui a três anos o príncipe Paz ou estarei morto. Adeus; embora eu tenha retirado sessenta mil
francos no banco Nucingen, estamos quites.
Tadeu
— Que imbecil sou eu! Quase me cortei há pouco, ao falar na amazona—disse Adão com os seus botões.
Faz três anos que Tadeu partiu e os jornais não falaram ainda de nenhum príncipe Paz. A condessa Laginski interessa-se muito pelas expedições do imperador Nicolau.
É russa de coração, lê avidamente todas as notícias que chegam daquele país. Uma ou duas vezes, cada inverno, diz com ar indiferente ao embaixador: “Sabe o que é
feito do nosso pobre conde Paz?”.
Ai de nós! A maioria das parisienses, essas criaturas tão perspicazes e espirituosas—segundo dizem -, passa e passará sempre ao lado de um Paz sem o ver. Sim, mais
de um Paz passa despercebido; mas, coisa espantosa! Há os que passam despercebidos mesmo quando são amados. A mulher mais simples do mundo exige mesmo do homem mais
extraordinário um pouco de charlatanismo; e o mais belo amor nada significa quando se apresenta em estado bruto; precisa da mise-en-scène da lapidação e da ourivesaria.
No mês de janeiro de 1842, a condessa Laginski, adornada com a sua doce melancolia, inspirou a mais desabrida paixão ao conde de La Palférine (La Palférine: personagem
balzaquiana, aristocrata arruinado e aventureiro, querido das mulheres (Um homem de negócios, Um príncipe da Boêmia etc.).), um dos leões mais atrevidos da Paris
atual. La Palférine compreendeu quanto a conquista de uma mulher defendida por uma Quimera seria difícil e contou com uma surpresa e com o devotamento de outra,
um pouco ciumenta de Clementina, para arrastar essa encantadora dama.
Incapaz, não obstante todo o seu espírito, de suspeitar semelhante traição, a condessa Laginski cometeu a imprudência de ir com aquela pseudoamiga ao baile de máscaras
da Ópera. Cerca das três horas da madrugada, levada pela embriaguez do baile, Clementina, para quem La Palférine ostentara todas as suas seduções, consentiu em ir
cear e subia para o carro daquela falsa amiga. Nesse momento crítico, segurou-a um braço vigoroso e, apesar de seus gritos, foi levada para o seu próprio carro,
cuja portinhola estava aberta, e que ela ignorava estar ali.
— Ele não saiu de Paris—exclamou ela ao reconhecer Tadeu, o qual fugiu quando o carro levou a condessa.
Teve jamais uma mulher um tal romance na vida?
A todo momento, Clementina espera rever Paz.
Paris, janeiro de 1842
Honoré de Balzac
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