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Cerca de dois anos depois de abolida a servidäo, no dia da Transfiguraçäo, os paroquianos da igreja de S. Nicolau de Tertre, repararam num "estrangeiro" que assistia à cerimónia: abriu caminho por entre a multidäo, afastando as pessoas e foi pôr enormes velas em frente das imagens mais veneradas da cidade de Driomov. Era um homem vigoroso, com uma grande barba anelada, quase parda, e uma massa compacta de cabelos negros, encrespados como os dos ciganos; tinha um grande nariz e, sob as espessas sobrancelhas em desordem, arrogantes olhos azul-cinzentos; viu-se que quando deixava cair os braços as mäos largas chegavam-lhe aos joelhos.
Para ir beijar o crucifixo, colocou-se entre as personalidades da cidade, facto que a estas desagradou muito particularmente; terminada a cerimónia, os homens mais importantes de Driomov demoraram-se no adro para trocar impressôes acerca do desconhecido. Uns diziam que devia ser um negociante de gado por grosso, outros que era um magistrado provincial, enquanto o governador da cidade, Eusébio Baimakov, pessoa pacífica, de fraca saúde mas de excelente coraçäo, declarava tossicando suavemente:
- É capaz de ser um antigo servo, talvez um caçador ou algum daqueles que tinham por missäo divertir os senhores.
Por seu turno, o mercador de panos Pomialov, mais conhecido por "viúvo hipócrita", homem de rosto bexigoso, feio, sensual, versátil e má-língua, opinou maldosamente:
- Viram as enormes patas que ele tem" Olhem para ele a andar: parece que é em sua honra que tocam todos os sinos.
O homem de ombros largos e de grande nariz caminhava
pela rua com passo firme, como se a terra lhe pertencesse;
vestia um capote azul de bom tecído e calçava botas grossas
de couro maleável; enfiara as mäos nos bolsos e apertava os
cotovelos de encontro às costelas.
Depois de encarregar Erdenskaia, a mulher que cozia o päo
do Senhor, para que se informasse sobre a vida deste homem,
os homens foram, enquanto os sinos badalavam, mastigar o
almoço. Pomialov convidou-os a tomarem chá, à tarde, no seu
jardim.
Mais tarde, outrós habitantes de Driomov avistaram o des-
conhecido do outro lado do pequeno rio, na "língua de vacav,
pequeno promontório pertencente aos príncipes Ratski; o ho-
mem seguia por entre os arbustos de vime, medindo o cabo
areento com passo largo e igual, ou entäo, colocando a mäo
a servir-lhe de pala, olhava a cidade, o Olka e o seu
afluente,
o Vatarakcha, pequeno riacho pantanoso e complicados mean-
dros.
Driomov é habitada por pessoas prudentes; nenhuma delas
ousou interpelar o estranho, nem perguntar-lhe o que andava
a fazer. Mas acabaram por lhe mandar Stupa, o guarda da
cidade, um bêbado que era o escárnio de todos; na frente de
todos e sem se preocupar com a presença das mulheres, Stupa,
despiu sem vergonha as calças e, com a boina amachucada no
címo da cabeça, atravessou a pé o Vatarakcha lamacento, en-
cheu de ar a enorme barriga de bebedola, aproximou-se do
desconhecido com um andar ridículo de ganso e, engrossando
a voz para ter mais coragem, perguntou:
- Quem és tu?
Näo se pôde ouvir o que respondeu o estranho, mas Stupa
voltou rapidamente para junto dos que o tinham mandado e
contou:
- Perguntou-me por que é que eu era täo feio. Tem olhos
maus e cara de bandido.
Ao fim da tarde, no jardim de Pomialov, Erdenskaia, mu-
lher de papeira que passava por saber muito bem deitar as
cartas e que era tida por mulher de grande sapiência,
contava
às personalidades, abrindo os olhos espantados:
- Chama-se Elias Artamonov, diz que quer fixar-se aqui:
para quê, näo consegui sabê-lo. Veio pela estrada da cidade de
Filu, e voltou pelo mesmo caminho, pelas três, quatro horas.
Nada de concreto pôde saber-se, no fim de contas, acerca
deste homem, e isto inquietava tanto como se alguém batesse
á noite na vossa janela para anunciar uma desgraça iminente
e logo desaparecesse.
Passaram-se umas três semanas; o caso estava quase esquecido
quando, subitamente, Artamonov reapareceu, mas desta
vez multiplicado por quatro. Foi imediatamente procurar Baí-
makov, a quem disse secamente:
- Aqui estäo novos habitantes que vêm colocar-se sob a
tua inteligente protecçäo. Peço-te que me ajudes a fixar-me
nesta terra, onde quero fazer uma vida honesta.
Calma e rapidamente contou que pertencera aos príncipes
Ratski: que nascera no seu domínio do governo de Kursk, nas
margens do Rat; que fora administrador em casa do príncipe
Jorge; que, ao ser abolida a servidäo, abandoaara-o, bem re-
compensado, e decidira montar por sua conta uma manufactu-
ra de línho. Era viúvo; os seus filhos chamavam-se Pedro, o
mais velho, o segundo, que era corcunda, Nikita, o terceiro,
Alexis, que era seu sobrinho, adoptara-o.
- Os nossos camponeses semeiam pouco linho - respon-
deu evasivamente Baimakov.
- Faremos com que passem a cultivar mais.
A voz de Artamonov era forte e áspera; quando falava, dir-
-se-ia que batia num enorme tambor; Baimakov, pelo contrá-
rio, sempre andara com precauçäo, falando suavemente como
se receasse despertar algo de terrível. Píscando os olhos ter-
nos, de uma cor triste de lilás, olhava os filhos de Artamonov
que tinham ficado à porta, encolhidos; eram muito diferentes:
o mais velho de peito largo, as sobrancelhas próximas, os
olhitos de urso que lembravam o pai; Nikita tinha os olhos
de rapariga, grandes e do mesmo azul escuro que o da sua
camisa; Alexis era um belo rapaz de cabelos encaracolados, a
face rósea, a pele branca, o olhar leal e alegre.
- Qual deles será soldado? - perguntou Baímakov.
- Nenhum, preciso de todos eles, e por isso os resgatei.
E acenando aos filhos com a mäo, Artamonov ordenou:
- Väo-se embora!
Quando, silenciosamente, uns atrás dos outros consoante
a idade, saíram, pousou a mäo pesada no joelho de Baimakov
e disse:
- Aproveito a ocasiäo para, como amigo, pedir a tua filha
para o meu filho mais velho.
Espantado, Baimakov estremeceu no banco e levantou os
braços para o céu:
- O quê? É a primeira vez que te vejo, nem sequer seí
quem tu és, e tu queres já que... Só tenho uma filha, é ainda
muito nova para se casar; e além disso ainda näo a viste, näo
sabes como ela é. . . Mas o que é que tu pensas?
Sorrindo por entre a sua barba ondulada Artamonov disse:
- Quanto a mim, podes pedir informaçÖes ao chefe da
polícia; deve favores ao meu príncipe, e este escreveu-lhe
para que me auxiliasse em tudo o que pudesse. Nada ouvi-
rás em meu desabono, juro-te por todos os santos! E a tua
filha já a conheço; conheço, de resto, toda a gente da tua ci-
dade; vim cá quatro vezes sem que o soubessem, informei-me;
o meu filho mais velho também veio e viu a tua filha: näo
tenhas medo.
Baimakov, impressionado como se estívesse a ser atacado
por um urso, pediu-lhe:
- Espera uns tempos. ..
- Näo quero esperar por muíto tempo, näo pode ser
- retorquiu severamente o homem, apressado. Depois, olhan-
do pela janela, gritou para o pátio:
- Venham cumprimentar o dono da casa!
Depois de se despedirem e de partirem, Baimakov olhou
com medo as imagens dos santos, persignou-se três vezes e
murmurou :
- Misericórdia, Senhor! Que espécie de gente é esta? Li-
vrai-nos da desgraça!
Batendo com a bengala no chäo, seguiu lentamente para o
jardim, onde, debaixo de uma tília, a mulher e a filha
faziam
compotas.
A mulher, bela e anafada, perguntou-lhe:
- Quem eram os rápazolas que estavam no pátio?
- Näo se sabe. Natália, onde está?
- Foi buscar açúcar.
- Buscar açúcar? - repetiu Baimakov num tom zangado,
sentando-se na relva. Açúcar. " bem verdade o que se diz:
a emancipaçäo provocará grandes desordens entre os homens.
A mulher olhou-o atentamente e interrogou-o, inquieta:
- Que tens tu? Estás outra vez doente?
- É da alma: creio que este homem veio para me substituir
na terra.
A mulher procurou tranquilizá-lo:
- Deixa lá! Ele há tantos, agora, que trocam a cidade pelo
campo.
- Pois é, pois é. Por agora, nada mais te digo; deixa-me
reflectir um pouco...
Cinco dias mais tarde, Baimakov caiu à cama; e ao cabo de
doze dias morreu; o seu desaparecimento lançou sobre Arta-
monov e os filhos uma sombra ainda mais negra. Durante a
doença do governador, Artamonov visitou-o duas vezes e con-
versaram demoradamente, a sós; da segunda vez, Baimakov
mandou chamar a mulher e, cruzando no peito a mäos cansadas,
declarou:
- Fala com ela, que eu já näo poderei ocupar-me mais das
coisas deste mundo; deixem-me descansar.
- Vem comigo - ordenou Artamonov. E, sem olhar se a
dona da casa o seguia, saiu do quarto.
- Vai, Uliana. Devemos acreditar que é o destino - acon-
selhou suavemente o governador à mulher, reparando que esta
hesitava em acompanhar a visita.
Era uma mulher inteligente, com vontade fírme, e que näo
dava um passo sem reflectir; mas, nesta altura, näo soube o
que se passava; uma hora depois voltou para junto do marido
e disse afastando as lágrimas com um movimento das suas
belas e longas pestanas:
- Enfim, forçoso é acreditarmos que foi o destino: aben-
çoa a tua filha!
A noite, trouxe ao pé do leito do marido a filha magnifica-
mente vestida e Artamonov empurrou o filho para o lado da
rapariga; os jovens, sem se olharem, deram-se as mäos, ajoe-
lharam-se, a cabeça ínclinada, e Baimakov, ofegante, colocou
sobre eles a antiga imagem da família ornada de pérolas:
- Em nome do Pai e do Filho. .. Senhor, que a Tua graça
nunca abandone a minha única filha!
Depois disse severamente a Artamonov:
- Lembra-te de que respondes pela minha filha perante
Deus!
O outro aceitou, tocando com a mäo no soalho:
- Näo o esquecerei.
E, sem uma palavra afectuosa para a futura nora, sem qua-
se a olhar nem ao filho, indicou-lhes a porta, com a cabeça:
- Väo!
Os noivos saíram e ele sentou-se na cama do doente e conti-
nuou num tom firme:
- Está tranquilo, tudo há-de correr bem. Durante trinta
e sete anos, servi os meus príncipes sem uma censura, e no
entanto o homem näo é Deus: pouco indulgente, custa a con-
tentá-lo. E tu, comadre Uliana, hás-de sentir-te bem: serás
a mäe dos meus rapazes; já lhes disse que te respeitassem.
Baimakov ouvia, olhando silenciosamente as imagens sa-
gradas, e chorava; Uliana soluçava, e o outro prosseguia sem
parar:
- Deixas-nos bem cedo, compadre, näo tiveste cuidado
contigo! E eu que tanto precisava ainda de ti!
Cofiou a barba e suspirou ruidosamente:
- Estou ao corrente da tua vida: eras inteligente, honesto,
gostaria que vívesses ainda ao meu lado cinco ou seis anos;
ambos dirigiríamos os negócios. Mas que fazer? É a vontade
de Deus!
Uliana interveio, magoada:
- Por que estás a grasnar, meu corvo, por que nos ame-
drontas? Talvez que...
Mas Artamonov levantou-se e cumprimentou Baimakov em
voz baixa, como se faz aos mortos.
- Obrigado pela tua confiança! Adeus, tenho de ir à outra
margem do Oka; chegou um barco com os meus móveis.
Quando partiu, Uliana começou a lamentar-se, indignada:
- Bruto de campónio, näo teve uma única palavra de ami-
zade para a prometida do filho!
O marido ordenou-lhe:
- Näo te lamentes, näo rne incomodes!
E, depois de um momento de reflexäo, acrescentou:
- Confia nele; tenho a impressäo de que este homem
vale mais que os da nossa terra.
Toda a cidade e os padres das cinco igrejas fizeram a Bai-
makov um enterro pomposo. Os Artamonov acompanhavam
o caixäo logo a seguir à viúva e à filha do defunto: o facto
chocou os habitantes. O corcunda Nikita, que seguia atrás dos
seus parentes, ouviu murmurar entre a multidäo:
- Ninguém sabe quem säo e meteram-se à frente de
todos!
Revirando os olhos redondos, cor de bolota, Pomialov sus-
surrava:
- O defunto Eusébio e Uliana sempre se mostraram prudentes e
näo faziam as coisas sem pensar; deve haver qualquer mistério;
aquele gaviäo deve tê-los seduzido, pois de contrário näo os
teriam aceite na sua família...
- Na verdade, näo se percebe muito bem. ..
- Exactamente: näo se percebe. Há com certeza, moeda
falsa no caso. Mas o Baimakov parecia viver honestamente...
Nikita escutava, de cabeça baixa, estendendo a corcunda
como se esperasse que lhe batessem. O vento soprava nas
costas da multidäo, e a poeira levantada por centenas de pés
acompanhava os homens numa nuvem de pó, embranquecen-
do os cabelos dos acompanhantes. Alguém disse:
- Olhem como a nossa poeira sujou Artamonov; está
todo einzento, o cigano...
Dez dias depois do enterro do marido, Uliana retirou-se
para um convento com a filha e alugou a sua casa a Artamonov.
Dir-se-ia que este e os filhos eram arrastados por um
turbilhäo: de manhä à noite víam-se por todas as ruas, per-
signando-se apressadamente quando passavam pelas igrejas.
O pai era ruidoso e exuberante, o filho mais velho pesadäo,
taciturno e, sem dúvida, receoso ou tímido; o belo Alexis
provocava os rapazes e lançava olhares atrevidos às rapari-
gas; Nikita, desde o nascer do Sol, andava com a marreca
pontiaguda na outra margem do rio, na "língua de vaca",
onde se juntavam como corvos, depois do voo, pedreiros e
carpinteiros que erguiam um comprido armazém de tijolos e,
um pouco ao lado, dominando o Oka, uma casa enorme de
dois andares com vigas de doze polegadas - uma casa que
lembrava uma prisäo. A noite, os habitantes de Driomov,
reunidos nas margens do Vatarakcha, mastigavam pevides e
sementes de girassol, ouviam roncar e ranger as serras, o
arrastar das plainas, o rasgar dos machados, e evocavam zom-
beteiramente a louca construçäo da torre de Babel, enquanto
Pomialov, à guisa de consolaçäo, predizia aos estrangeiros
toda a espécie de desgraças:
- Na Primavera, a água inundará estes horríveis edifícios.
Ou pode ser que se incendeiem antes; os marceneiros fumam
e há cavacos por toda a parte!
Basílio, o padre tuberculoso, fazia coro:
- Constroem em cima de areia.
- Väo mandar vir operários de fora: será a bebedeira, o
roubo, o deboche.
Gigantesco, cheio de gordura, inchado por todos os lados,
o taberneiro Luc Barski tranquilizava-os com voz rouca:
- Quanto mais gente, menos dificuldades para viver. Dei-
xem trabalhar as pessoas!
Nikita Artamonov fazia rir os homens da cidade: cortara
e plantara vimes numa grande extensäo; passava dias inteiros
a arrancar o lodo do fundo do Vatarakcha e a apanhar turfa nos
pântanos e, de corcunda apontada para o alto, arrastava tudo
num carrinho de mäo, espalhando a turfa e o lodo, em mon-
tículos negros, por cima da areia.
- Vai plantar uma horta - adivinharam os homens.
- O imbecil! Como se fosse possível fertilizar a areia!
Ao pôr do Sol, quando os Artamonov, em fila, com o pai
à frente, atravessavam o rio a pé e as suas sombras se
espelha-
vam na água esverdeada, Pomialov apontava-os a dedo:
- Olhem, olhem a sombra do marreco!
Todos viam que a sombra de Nikita, que seguia em tercei-
ro lugar, era singularmente trémula e parecia mais densa que
as sombras altas dos seus irmäos. Um dia, depois de grande
chuvada, a água do rio subiu e o corcunda tropeçou nas algas
ou enfiou o pé num buraco e caiu à água. Todos o assistentes
começaram a rir com malévola satisfaçäo. Só a pequena Olga
Orlov, uma rapariguinha de dezasseis anos, filha de um relo-
joeiro bêbado, soltou um grito de piedade:
- Ai o pobre que se vai afogar!
Deram-lhe uma bofetada:
- Näo grites, que näo é nada!
Alexis, que vinha atrás de todos, atirou-se ao rio, apanhou
o irmäo, segurou-o e, quando subiram para a margem, ambos
molhados e enlameados, Alexis seguiu em direcçäo aos habi-
tantes com um ar de desafio tal que todos se afastaram à sua
passagem e um deles disse, receoso:
- Parece um lobito! .. .
- Näo gostam de nós, observou Pedro.
O pai, sem parar, olhou-o de frente:
- Espera um tempo que häo-de gostar.
E ralhou a Nikita:
- Espantalho! Olha onde pÖes os pés para que ninguém
se ria de ti! Näo foi para sermos o escárnio dos outros que
viemos para aqui.
Os Artamonov näo se davam com ninguém; a sua casa
estava entregue a uma velha gorda, sempre vestida de negro,
que atava à cabeça um lenço cujas pontas se eriçavam como
se fossem cornos; dizia, numa linguagem inaudível, palavras
raras e incompreensíveis que nem pareciam ser russas; óor
ela, nada podia saber-se dos patrÖes.
- Säo calados como os frades, os bandidos...
Veio a saber-se que o pai e o filho mais velho iam muito
pelas aldeias vizinhas fazer contratos com os camponeses que
cultivavam linho. No decorrer de uma destas viagens, Elias
Artamonov, atacado por soldados desertores, matou um deles
com um peso de duas libras atado à ponta de uma correia,
partiu a cabeça ao segundo e pôs em fuga o terceiro. O chefe
da
polícia felicitou-o pela proeza, ao passo que o jovem cura da
pobre paróquia de Säo Elias lhe ordenava como penitência
que passasse quarenta noites a rezar na igreja.
Nas noites outonais, Nikita lia ao pai e aos irmäos a vida
dos santos e os ensinamentos dos Padres da Igreja, mais o pai
interrompia-o frequentemente:
- Isso é demasiada sabedoria para nós, ultrapassa o nosso
entendimento! Somos trabalhadores, näo devemos preocupar-
-nos cam tais coisas; nascemos para o trabalho rude. O faleci-
do príncipe Jorge lera mais de sete mil livros e, de tanto
pensar, até perdeu a fé em Deus. Visitara todos os países,
fora recebido por todos os reis, era um homem célebre! Mas
quando mandou construir uma fábrica de tecidos, o negócio
näo prosperou. Por mais que fizesse, nunca obtinha resultados;
e foi assim que durante a vida inteira viveu do päo dos
seus campnneses.
Quando falava, articulava bem as palavras, reflectia,
escutava atentamente as suas próprias palavras, depois
recomeça-
va a liçäo aos seus filhos:
- Tereis dificuldade em viver, pois a lei e a protecçäo está
em vós próprios. Por mim, nunca vivi segundo a minha vontade,
mas conforme me ordenavam. Muitas vezes via que as
coisas deviam fazer-se de outro modo, mas nada podia remediar;
tudo dependia do senhor, e näo de mim. Näo só tinha receio de
actuar como pensava, mas nem sequer ousava pensar, com medo de
baralhar a minha razäo com a do senhor.
Estás a ouvir-me, Pedro?
- Sim.
- Bom. Entäo, procura compreender. Vivíamos, mas näo
existíamos. É verdade que havia menos responsabilidade: näo
se andava sozinho, guiavam-nos. Sem responsabilidades a vida
é mais fácil, mas näo tem grande sentido.
Por vezes, falava deste modo uma hara ou duas, perguntando a
cada passo aos filhos se o escutavam. Sentado junto da
lareira, as pernas pendentes, desfazia os anéis da barba e,
sem pressas, forjava, malha por malha, a cadeia das suas
palavras. Uma quente obscuridade invadia a grande cozinha que
cheirava a lavado; por detrás da janela, a borrasca soprava,
batendo suavemente nos vidros, ou entäo o gelo estalava no
frio azulado. Sentado perto da mesa, em frente de uma candeia
de sebo, Pedro queimava papeis e fazia estalar de mana contar,
Alexis ajudava-o, Nikita entraçava habilxnente cestos de vime.
- E depois o czar deu-nos a liberdade. Mas é preciso saber
por que motivo no-la deu. Näo é sem razäo que se desprende um
cordeiro do estábulo e, neste caso, foi um povo inteiro,
milhares e milhares que foram libertados. É que o czar
compreendeu que pouco havia já a ganhar com os senhores, que
gastavam quanto possuíam. O príncipe Jorge, sim, esse
compreendera-o muito antes de nos darem a liberdade; dizia-me:
o trabalho servil näo rende nada. Entäo, confiaram em nós para
que trabalhássemos livremente. Agora, até o soldado deixará de
arrastar a sua espingarda durante vinte e cinco anos; mas cada
um terá que trabalhar, mostrando o que é capaz de fazer. A
nobreza acabou e hoje vocês também sois nobres, estäo a
perceber?
Uliana Baimakov esteve cerca de três meses no convento e, no
dia seguinte ao do seu regresso, Artamonov interrogou-a:
- Para quando o casamento?
Ela mostrou-se indígnada, os olhos acesos de irritaçäo:
- Mas o quê? Ainda näo há seis meses que o pai morreu, e
tu... Mas tu näo sabes que é um pecado?
Severamente, Artamonov interrompeu-a:
- Näo vejo nisso nenhum pecado, minha comadre. Os senhores
fazem pior, e Deus tolera-o. Eu falo por necessidade:
Pedro precisa de uma mulher para a casa.
Depois, perguntou quanto seria o dote. Ela respondeu:
- Näo darei mais de quinhentos rublos a minha filha!
- Terás que dar mais - respondeu com voz pausada e plácida o
homem robusto, olhando-a bem nos olhos.
Estavarn sentados à mesa, um em frente do outro, Artamonov
apoiado nos cotovelos, os dedos das duas mäos enfronhados na
lä espessa da barba, a mulher toda direita, sobrancelhas
carregadas, desconfiada. Já fizera os trinta, mas parecia
muito mais jovem; no rosto cheio e rosado brilhavam olhos
cinzentos, severos e inteligentes. Artamonov levantou-se,
endireitando-se:
- Tu és bela, comadre.
- E depois? - respondeu irritada e zombeteira. ada.
Partiu sem vontade, arrastando-se pesadamente, enquanto
a viúva o seguia com o olhar e mirava ao mesmo tempo o
espelho, murmurando despeitada:
- Demónio barbudo... Näo vejo meio de me ver livre de
ti...
Sentindo-se em perigo junto deste homem, subiu ao quarto da
filha, mas Natália näo estava. Pela janela, viu-a no pátio,
junto da porta das trazeiras. Pedro estava ao lado dela; a mäe
desceu correndo pelas escadas e gritou do patamar:
- Anda para casa, Natália!
Pedro cumprimentou-a.
- Näo é decente, meu rapaz, falar com uma rapariga quando a
mäe näo está presente; que isto näo volte a acontecer!
- É a minha prometida, lembrou Pedro.
- É o mesmo, nós temos os nossos usos.
Mas interrogou-se: nPorque estou eu zangada? Quando se é
jovem é que se ama! Procedi mal: parece que tenho inveja da
minha filha."
No entanto, no quarto, puxou com força as tranças da filha
e proibiu-lhe que falasse a sós com o noivo.
- O teu prometido, o teu prometido... Nunca se sabe-
observou com rudeza.
Uma obscura inquietaçäo perturbava os seus pensamentos;
passados alguns dias, mandou ler o seu futuro a Esdenskaia,
a gorda curandeira que tinha um tumor no pescoço que
lembrava um sino. Todas as mulheres da cidade lhe confiavam os
seus pecados, os seus receios e pesares:
- Nada tens a fazer - disse Erdenskaia; näo há que procurar,
minha amiga; aceita esse homem. Näo é por acaso que
tenho olhos que me chegam à testa - eu conheço os homens,
leio neles como no meu baralho de cartas. Repara como ele tem
sorte; todos os seus negócios prosperam; as pessoas aqui
babam-se de inveja. Näo, minha amiga, näo tenhas medo dele:
näo é uma raposa, é um urso.
- É isso mesmo: um urso - concordou a viúva.
E, suspirando, contou à bruxa:
- Ele faz-me medo. A primeira vez, quando veio pedir a mäo
da minha filha, fiquei aterrorizada. Parecia ter caído
subitamente das nuvens; ninguém o conhecia, e logo quis
unir-se connosco. É assim que se procede? Lembro-me de que
falava e eu olhava os seus grandes olhos atrevidos, e a todas
as palavras eu dizia: sim, estava de acordo com tudo, como se
ele me estivesse a apertar a garganta.
- Ele tem confiança na sua força - explicou a sapiente
sacnsta.
Mas näo ficou ainda tranquila, apesar de a bruxa, ao
acompanhá-la à porta do quarto sombrío, saturado de estranhos
per fumes, 1he dizer à despedida:
- Lembra-te sempre: é só nas histórias que os parvos têm
sorte...
Gabava tanto Artamonov que parecia comprada por ele. No
entanto, a grande Matriona Barski, sombria e seca como um
arenque salgado, pensava de outro modo:
- Toda a gente da cidade fala de ti, Uliana. Näo tens medo
destes estranhos? Toma cuidado! Näo deve ser por acaso que um
dos filhos é corcunda, foi certamente para castigar os pais
por algum pecado que o Senhor lhes impôs o nascimento de tal
monstro.
A viúva Baimakov sofria e, cada vez com mais frequência,
tratava mal a vi1va, embora verificando que a sua irritaçäo
era sem motivo. Evitava o mais que podia os hóspedes, mas
encontrava-os a todo o instante no seu caminho e, por isso, a
sua vida tornara-se um inferno.
A chegada repentina do Inverno que assolou subitamente a
cidade com sonoras tempestades, frios violentos, 1ançando
sobre as ruas e as casas montes de neve, cobriu de branco os
pombais e as torres das igrejas, 0s ríos e a água
apodrecida dos pântanos; em cima do gelo do Oka começaram os
pugilatos entre os citadinos e os camponeses das aldeias
vizinhas. Alexis ia todos os domingos tomar parte nestes
combates e regressava sempre sovado e furioso.
- Entäo, Alexis? - perguntava Artamonov. os lutadores
daqui säo mais espertos que os da nossa terra?
Esfregando os olhos azuis com uma moeda de cobre ou um
pedaço de gelo, Alexis ficava triste e calado. Apenas os seus
olhos de abutre brilhavam. Mas Pedro disse um dia:
- Alexis näo tem medo. Säo os seus camaradas, os rapa-
zes da cidade, que o sovam.
Artamonov, batendo com o punho em cima da mesa, perguntou:
- Porquê?
- Näo gostam de nós.
- Dele?
- De todos nós.
O pai voltou a bater com o punho na mesa mas com tanta
força que a vela, saltando do castiçal, se apagou; na
escuridäo ouviu-se um rugido:
- Falas-me sempre de gostar, como se fosses uma rapariga!
Que eu näo ouça mais essa palavra!
Ao reacender a vela, Nikita disse baixinho:
- Alexis näo devia bater-se. . .
- Para que as pessoas façam pouco, digam que um Artamonov
tem medo? Tu cala-te, parvalhäo! Näo passas de um verme!
Depois de ralhar com todos, Elias disse, passados alguns
dias, à ceia, afectuoso e carrancudo:
- Meus filhos, e se fôssemos à caça do urso? É muito
divertido. Fuí algumas vezes com o príncipe Jorge às florestas
de Riazan: apanhávamo-los com uma armadilha, os cav"lheiros; é
engraçadíssimo.
E, animando-se, contou algumas histórias de caçadas felizes.
Pouco depois, foi com Pedro e Alexis à floresta, onde
matou um enorme urso solitário. Em seguida, os irmäos foram
lá sozinhos e descobriram uma fêmea, que rasgou o casacäo de
Alexis, arranhou-lhe uma perna, mas os irmäos acabaram por
dominá-la, e trouxeram para a cidade um casal de ursinhos,
deixando para os lobos o corpo da mäe.
- Bom dia, como väo os teus Artamonov? - perguntavam
as pessoas da cidade à viúva de Baimakov.
- Bem.
- No Inverno, mata-se o porco - insinuava Pomialov.
Já há tempo que ela, sem o querer confessar, se sentia
magoada com a hostilidade que testemunhavam aos Artamonov,
gelada pela reprovaçäo co:n que os tratavam. Via-os fazer
uma vida sóbria, trabalhar em bom entendimento; na sua
conduta, nada havia de censurável. Vigiando cuidadosamente a
filha e pedro, verificava que este rapaz taciturno e de poucas
palavras mostrava-se bem mais sério do que os rapazes da sua
idade: näo procurava encontrar-se com Natália nos cantos
' escuros, apalpá-la ou murmurar-lhe ao ouvido coisas
obscenas, como os noivos da cidade. A estranha atitude de
Pedro, até a inquietava, de certo modo: na presença da
rapariga, mostrava-se frio, embora solícito e quase ciumento.
Näo será de ternuras, o marido - ia dizendo ela de si
para si.
Mas, um dia, ao descer as escadas, ouviu em baixo, na
entrada, a voz da filha:
- Väo caçar mais ursos?
- Sim,porquê?
- É muito perigoso. Alexis já foi arranhado.
- A culpa foi deie, näo devemos entusiasmar-nos demasiado! É
por isso que pensa em mim?
- Näo falei de si.
" Ah, a marota! " - pensou a mäe sorrindo e suspirando.
Quanto a ele, é um toleiräo."
Elias Artamonov insistia cada vez mais:
- Entäo, a boda? Se näo a marcamos, eles é que teräo pressa.
Uliana bem via que näo podia demorar mais, que a rapariga
dormia mal e näo conseguia dissimular a languidez que a
atormentava.
Pela Páscoa, levou de novo a filha ao convento. Quando
regressou, passado um mês, viu que o jardim abandonado
fora limpo; tinham podado as áleas, limpo as árvores, podado e
atado a mata de espinheiros; tudo fora feito por quem
sabia do seu ofício. Ao descer pela álea, até ao rio, avistou
Nikita: o coreunda reparava um muro derrubado pelas trovoadas
primaveris. Por baixo da longa camisa de linho que
lhe vinha até aos joelhos, os ossos da corcunda saíam
lastimosamente, escondendo quase toda a sua enorme cabeça de
cabelos claros e lisos; para evitar que lhe caíssem sobre o
rosto, Nikita atara-os com uma haste de vidoeiro. Acinzentado
no meio da folhagem toda verde, parecia um velho eremita
absorto no trabalho; ao levantar o machado, cuja lâmina
rebrilhava ao sol, cortava habilmente uma estaca, cantarolando
uma cançäo com voz aguda de rapariga. Para além
do muro, espelhava-se a água verde e sedosa onde os reflexos
dourados do sol brincavam como sombras.
- Deus vos ajude - disse Uliana com uma ternura que
a ela própria surpreendeu.
Nikita mirou-a com a doce luz dos seus olhos azuis e res-
pondeu, afável:
- Deus vos traga em graça!
- Foste tu quem arranjou o jardim?
- Fui eu.
- Está muito boníto. Gostas dos jardins?
Sempre ajoelhado, contou em poucas palavras que o príncipe,
seu senhor, o mandara aprender, aos nove anos, com um
jardineiro; e, entretanto, já fizera dezanove.
"É corcunda, mas näo tem aspecto de má pessoa - pensou a
mulher.
A noite quando tomava o chá com a filha, Nikita apareceu à
porta, uma braçada de flores nas mäos, um sorriso no rosto
amarelado, triste e feio.
- Aqui têm um ramo.
- Para quê? - perguntou ela, admirada, olhando sem
suspeíta as flores e as folhas muito bem dispostas.
Nikita explicou que na casa dos seus senhores todas as
manhäs escolhia flores para a princesa.
- Deste modo - respondeu a mulher, ruborescendo ligeiramente
e erguendo a cabeça - achas-me parecida com uma princesa? Era
uma linda mulher näo era?
- Vós também o sois.
Corando mais ainda, ela interrogou-se: Näo teria sido o
pai que o encarregou da liçäo?
- Bem, obrigado pela atençäo - disse, mas näo o convidou
para o chá e, quando Níkita se foi embora, pensou em voz alta:
- Tem uns lindos olhos; näo como os do pai, mas
provavelmente iguais aos da mäe.
E suspirou:
- Temos que nos habituar à ideia de viver com eles.
I Näo insistiu demasiado com Artamonov para retardar o
casamento até ao Outono, altura do aniversário da morte do
marido, mas declarou firmemente ao compadre:
- Näo te metas neste assunto, deixa-me fazer as coisas à
nossa maneira, conforme a tradiçäo. Aliás, só terás a
ganhar; logo serás recebido nas melhores casas e todos häo-de
festejar-te.
- Bem! - resmungou orgulhosamente Artamonov-
' näo tenho necessidade disso para que olhem para mim!
Magoada com esta arrogância, a víúva disse:
- Näo gostam de ti.
- Nesse caso, häo-de recear-me.
E, com um sorriso, encolhendo os ombros:
' - Pedro fala-me também de amor a cada passo. Que gente täo
estranha!
- A hostilidade também recai sobre mim.
- Näo te rales por isso, comadre
Artamonov ergueu o braço longo, apertou as mäos até que
' os dedos ficaram vermelhos.
, - Sei adestrar as pessoas; näo há-de passar muito tempo
que comecem a fazer-me festas. Pouco me importa que näo
gostem de mim...
' A mulher calou-se, pensativa, inquieta e cheia de medo:
uQue animal täo feroz!
E a sua linda casa começa a encher-se de raparigas amigas de
sua filha, todas das melhores famílias da cidade; vestem-se
sumptuosamente com os antigos vestidos de brocado, com
blusas de mangas em forma de baläo, de cassa ou de linho
, fino, bordados a seda, rendas nos punhos; calçam botinas de
pele de cabrito ou de marroquim macio; as compridas tranças
virginais säo enfeitadas com listÖes. Sobre o pesado vestido
' de linho prateado, fechado de alto a baixo por botÖes
dourados e entrançados, a noiva, um manto de brocado de ouro
nos ombros, fitas azuis e brancas nas tranças, está sentada,
imóvel,
no lugar de honra e, limpando com um lenço rendado o
rosto em suor, canta com voz firme:
Pelos prados, pelos prados verdes,
Pelas flores, as flores azuis,
Cai a água da Prinavera, A água täo fria, a água
perturbadora..
As amigas retomam em coro o último lamento da queixa
virginal:
Mandam-me täo jovem,
Empurram-me para a água,
Os pés descalços,
Nua, absolutamente nua...
Alexis, ínvisível entre a multidäo de raparigas, ri e grita:
- Que ridícula cançäo! Vestem uma rapariga com brocado, como
um pato numa celha branca, e gritam: "Nua, absolutamente nua!
Nikita está sentada junto da noiva; a sua casaquinha aumenta
e desfeia comicamente a corcunda até à nuca, os seus
olhos azuis, muito abertos, fixam em Natália um olhar estranho
como se receasse ver a rapariga esfumar-se e desaparecer.
A porta, enchendo-a toda, está Matriona Barski que,
revirando os olhos, exclama com voz profunda:
- Minhas meninas, cantais com pouca tristeza!
Avançando com grandes passadas de cavalo, ensina-lhes, muito
senhora do seu papel, que deve cantar-se à moda antiga, pois
convém preparar o casamento com emoçäo.
- Diz o ditado: "Está-se por detrás do marido, como por
detrás de um muro." Pois que todas o saibam: o muro é sólído,
nenhuma brecha o demolirá; é alto, ninguém o poderá transpor
Mas as raparigas näo a escutam; na sala, todos se apertam e
têm calor; empurram a velha e precipitam-se no pátio e no
jardim; no meio delas, como uma abelha entre as flores,
Alexis,
ruidoso e alegre, de camisa azul e calças de veludo, parece
embriagado.
A face radiante, os olhos muito abertos, erguendo à frente a
saia de lä, a Barski, como espessa nuvem de fumo, sobe
' ao quarto de Uliana e profetiza:
- A tua filha está contente, näo é bom sinal, näo é o
costume. A alegria no princípio dá sempre mau fim.
Ajoelhada, parecendo preocupada, a mäe procura num grande
baú de ferro forjado; à sua volta, no soalho, na cama,
estäo espalhados, como numa tenda das feiras, peças de seda,
, de lä, de tafetá, de algodäo de Moscovo, xailes de caxemira,
fitas, toalhas bordadas; um largo raio de sol incide nos
tecidos que rebrilham em mil cores, como uma nuvem no poente.
' - Näo é bom que um noivo viva antes do casamento na mesma
casa da noiva; os Artamonov deviam procurar outra casa.
- Devias tê-lo dito há mais tempo; agora já é tarde para
falar nisso - resmungou Uliana, debruçando-se sobre o baú
' para esconder o rosto contrariado.
Escutou a voz da outra que respondia:
, - Diziam que eras inteligente, e eu calava-me. Imaginava
que tu compreenderias. Mas que me importa isso? Quanto a
mím, o que importa é dizer a verdade: mesmo que as pessoas
' näo a queiram ouvir, Deus há-de escutar-me.
A Barski continua impassível, como um monumento, a cabeça
imóvel, como uma taça cheia de sabedoria até aos bordos; e
como näo obteve resposta, saiu, enquanto Uliana, ajoelhada
' no meio dos tecidos multicores, murmura, ansiosa e com
medo:
, - Senhor, ajudai-me! Näo me prives da razäo!
De novo, ouviu um rumor à porta; enfiou precipitadamente a
cabeça no baú para esconder as lágrimas; Nikita surgiu:
- A vossa filha mandou-me perguntar se queria que eu a
ajudasse.
- Obrigada, meu filho.
- Na cozinha, a pequena Olga Orlov entornou o melaço.
- Sim? Näo é nenhuma tonta, a pequena. Está mesmo a
calhar para ti...
- Quem poderia casar comigo?
No jardim, debaíxo de uma tília, estäo sentados à volta de
uma mesa redonda Elias Artamonov, Gabriel Barski, padri-
nho da noiva, Pomialov, o cortidor Jiteikine, um homem de
olhos sem expressäo, e o carpinteiraVoroponov; Pedro está de
pé, encostado ao tronco da árvore; os seus cabelos escuros
foram täo besuntados que a cabeça brilha como metal; escuta
respeitosamente as palavras dos mais velhos.
- Vocês têm outros usos - declara o pai, de olhar lon-
gínquo, enquanto Pomialov responde, condescendente:
- Nós, homens da Grande Rússia, somos um povo de gen-
te forte. . .
- Nós também...
- Conservamos as velhas tradiçÖes...
- Entre vós, há muitos morduäos, chuvacos...
Rindo, gritando, empurrando-se, as raparígas invadiram o
jardím e, rodeando a mesa com os vestidos coloridos, começa-
ram a cantar:
Olé, pelo compadre, o Grande,
Por Elias, por Elias, filho de Basilio,
Que no primeiro degrau parta uma perna,
Que no segundo parta a outra,
Que no terceiro torça o pescoço!
- Ricos cumprimentos, näo há dúvida! - exclama Arta-
monov surpreendido, dirigindo-se ao filho.
Pedro, com um sorriso prudente, olha as raparigas e coça a
orelha.
- E tu escuta lá também esta! - pede a Barski desatando
a rir:
Näo basta para o nosso compadre,
Para o ladräo de raparigas...
- Ainda näo chega? - pergunta Artamonov, pouco
vontade, batendo com os nós dos dedos em cima da mesa.
Já as raparigas continuavam, furiosamente:
' Da casa que te lancem para a rua,
; Da montanha sobre pedras,
, Para que näo te enganes,
Para que näo te gabes.
Os paises de longe,
' As cidades desumanas
,
Com nossas penas semeadas,
Com nossas lágrimas regadas...
' - Ora aí está o que vocês queriam! - diz Artamonov,
vexado. Ora bem, raparigas, sem querer ofender-vos, näo dei-
xarei de gabar a minha terra; lá os costumes säo mais
suaves,
, as pessoas mais hospitaleiras. Temos um ditado: "O Svapa e
o Ussoja correm pelo Seim; graças a Deus, näo é pelo Oka! "
' - Deixa passar o tempo. Ainda näo nos conheces - res-
pondeu a Barski, sem que pudesse saber-se se fazia um cum-
primento ou se ameaçava. Vamos, ofereça um presente às ra-
parigas.
- Que hei-de dar-lhes?
' - O que disser o coraçäo.
Artamonov ofereceu dois rublos de prata às raparigas e
, Pomialov comentou com azedume:
- És muito generoso, fazes asneiras.
- Que gente difícil de contentar! - protesta Elias, zan-
' gado por seu turno.
A Barski começou a rir baixinho, enquanto Jiteikine se
esga-
niçava com o seu riso fino e agudo.
A noite dos esponsais só terminou de madrugada; os con-
vidados foram-se embora; quase toda a gente adormecera em
casa; Artamonov, com Pedro e Nikita, ficara sentado no
jar-
dim; acariciava a barba e falava em voz baixa,
esquadrinhando o jardim, olhando as nuvens rosadas.
- Säo pessoas difíceis e pouco amáveis. Tu, Pedro, faz
tudo o que tua sogra te disser, embora sejam parvoíces de
mulher, mas assim é preciso. Alexis foi acompanhar as
raparigas.
o filho de Barski olha-o com maus modos! ... Tu, Nikita,
toma cuídado, uma vez maís. Näo deslustres o teu pai: se eu
fizer um buraco, tapa-o!
E olhando um toro de madeira, continuou, aborrecido:
- Lamberam tudo; bebem como cavalos! - Em que pensas.tu,
Pedro?
Passando pelos dedos um cinto de seda, prenda da sua noiva,
o filho respondeu pausadamente:
- Na aldeia, a vida é mais simples, mais tranquila. ..
- Muito mais. O que haverá de mais simples que dormir
o dia inteiro?
- Eles retardam a boda...
- Espera, acalma-te.
Finalmente, o grande e doloroso dia chegou para Pedro.
Ei-lo sentado no lugar de honra da sala; sabe que as suas
sobrancelhas se aproximaram, carregadas; sente que é feio, que
näo agrada assim à noiva, mas näo pode estar de outro modo;
as sobrancelhas parecem cosidas com um sólido fio. Olhando
por baixo os convidados, sacode a cabeça, o lúpulo cai sobre
a mesa e no véu de Natália. Ela também está triste; semicer-
rou os olhos, fatigada; muito pálida, amedrontada como uma
criança, treme de vergonha.
- " amargo! 1 gritam pela vigésima vez os rostos
avermelhados e cabeludos, os dentes à mostra.
Pedro volta-se, o pescoço rígido, como um lobo, levantou o
véu da noiva e, acariciando-lhe o rosto com o nariz e os seus
lábios secos, sentiu o frio acetinado da pele, o tremor
medroso
do ombro; tem piedade de Natália e, como ela, sente-se
envergonhado, enquanto o círculo se aperta e as pessoas
embriagadas berram:
- Ele näo sabe, o rapazäo!
- Nos lábios!
- Se fosse eu, já a teria beijado...
Uma voz de mulher bêbeda guincha:
- Beija-a! Experimenta outra vez!
- Amargo! - ruge Barski.
Os dentes cerrados, Pedro beija os lábios húmidos da
rapariga, ela treme, e muito branca, parece desfazer-se como
uma nuvem ao sol. Ambos têm fome, pois desde a véspera que ada
I. Durante o almoço da noiva, quer a tradiçäo que se diga
que a bebida é amarga, para que os noivos a adocem com os seus
beijos.
lhes deram para comer. Pedro sente-se ébrio pela emoçäo, pelo
odor penetrante dos alcoois, pelos dois copos de vinho
espumante que lhe fizeram beber, e tem medo que a noiva o
descubra. A sua volta, tudo vacila, se funde numa massa
colorida, ou se desfaz de todos os lados em bolas encarnadas
de caras desagradáveis. O filho lança ao pai olhares
mortificados e suplicantes; Elias Artamonov, desgrenhado,
inflamado, grita, olhando o rosto encarniçado da mäe da noiva.
- Brindemos com mel, comadre! O teu mel é täo doce
como quem o preparou!. . .
Ela estende o braço rolíço e branco; a pulseira de ouro, de
pedras coloridas, cintila ao sol, um fio de pérolas
acaricia-lhe o colo amplo. Ela também bebeu; os seus olhos
cinzentos sorriem com languidez, os seus lábios entreabertos
estäo frementes de volúpia, ela brinda, bebe e inclina-se
perante o compadre que, sacudindo a cabeleira, näo esconde o
seu entusiasmo:
- "s magnífica, comadre! Tens um porte de princesa!
Pedro repara vagamente que seu pai mal se tem de pé; por
entre o clamor embriagado dos convidados, distingue claramente
as observaçÖes pérfidas de Pomialov, as censuras da Barski, o
riso agudo de Jiteikine.
"Näo é uma boda, mas um tribunal" - pensa ele, enquanto
escuta:
- Mas reparem como aquele diabo olha Uliana!
- Vai haver outra boda, mas sem padre! ...
Estas palavras colam-se momentaneamente nos seus ouvidos,
depois ele esquece-as, quando o joelho e o cotovelo de
Natália o tocam, enchendo-lhe todo o corpo de um torpor
inquieto. Tenta näo a olhar, fica de cabeça quieta, mas näo o
consegue e de novo os olhos prescrutam com insistência para
o lado onde está a rapariga.
- Mas quando é que isto acaba? - murmura.
E no mesmo tom de voz Natália responde:
- Näo sei.
- Tenho vergonha...
- Também eu - ouve Pedro. E sente-se feliz porque a noiva
sente o mesmo que ele.
Alexis está com as raparigas; Nikita continua sentado junto
de uma pedra esguia, de barba molhada e olhos de cobre
amarelado numa face bexigosa. Do pátio e da rua, as pessoas
da cidade olham pelas janelas abertas; dezenas de cabeças
sucedem-se continuamente, agitam-se no ar azulado; as bocas
abertas cochicham, murmuram, gritam; as janelas assemelham-se
a sacos onde estas cabeças barulhentas väo rolar pela sala,
como melancias. Nikita observa particularmente a
figura de Tikhon Vialov, de largas faces cobertas por uma
espécie de lanugem arruivada e manchas vermelhas. Os olhos,
incolores à primeira impressäo, cintilam estranhamente ao
pestanejarem, mas só as pupilas estremecem, enquanto as
pálpebras permanecem imóveis. Parados, também, os lábios
delgados, obstinadamente cerrados, de uma boca pequena,
mal dissimulada por um bígode frisado. O peito apoiado no
rebordo da janela, o homem näo fazia ruido; só praguejava
quando alguém o empurrava, e entäo afastava as pessoas,
silenciosamente, com ligeiros movimentos dos ombros e dos
cotovelos. Tinha os ombros quase redondos e subidos, entre os
quais parecia afundar-se o pescoço, de tal modo que a cabeça
parecia emergir directamente do peito. Parecia igualmente
corcunda, mas Nikita descobria no seu rosto algo de bom, de
simpático.
Subitamente, um rapaz zarolho bateu com força num tambor,
depois insistiu com o dedo e o tambor gemeu, mugiu;
um outro, assobiando, pôs sobre os joelhos um enorme acordeäo
e logo se viu, no meio da sala, o rapazito que segurava o véu
da noiva. Estêväo Barski, gorducho e de cabelos encaracolados,
começar num rodopio, aos pinotes, enganiçando-se para
acompanhar o ritmo da música:
Olá, raparigas, que väo ao centro, A dançar de roda e a
cantar, Tenho o bolso cheio de dinbeiro Quem é que quer dançar
comigo?
O pai do rapaz, erguendo todo o enorme corpanzil, trovejou:
- Estêväo, honra a tua cidade e mostra o que sabes a estes
franganotes!
De um salto, Elias Artamonov pôs-se de pé, abanou a cabeça
esguedelhada como um espanador, o rosto vermelhusco, o nariz
ardente como um tiçäo, e gritou, voltando-se para a Barski:
- Näo somos frangos, mas galos! E veremos quem dançará mais
tempo! Alexis!
O rapaz, resplandecente como se tivesse sido envernizado,
observou com um sorriso o dançarino de Driomov e, subitamente
pálido, lançou-se numa dança incrivelmente rápida, gritando
como uma rapariga.
, - Ele näo sabe os versos! - disseram as pessoas de Driomov.
Imediatamente Artamonov lançou um rugido desesperado:
' - Alexis, olha que te bato!
Sem parar, Alexis, saltando rítmadamente, enfiou dois dedos
na boca, assobiou com força e cantou com voz sonora:
O nosso paträo Micbeu
Tinba cinco lacaios,
E agora o Micheu
Também é lacaio!
' - Vejam! Vejam! - rugiu vitoriosamente Artamonov.
- Olá! - comentou o padre num tom significativo, ao
, mesmo tempo que, erguendo um dedo, abanava a cabeça.
- Alexis será o mais forte - disse Pedro a Natália.
Esta respondeu timidamente:
- Ele é franzino.
Os pais excitavam os filhos como galos de combate; quase
bêbados, seguravam-se um ao outro, encostados, um deles
enorme, mal feito, lembrando um saco de aveia, enquanto dos
' olhos avermelhados escorriam lágrimas de satisfaçäo; o
outro, todo dobrado, como se se preparasse para saliar,
agitando os braços imensos, esfregando as ancas, os olhos
esgaseados. Pedro, ao ver que a pera do pai se agitava, disse
para consigo:
"Ele range os dentes. Vai entrar na funçäo.
- O Artamonov dança como um parvo! - exclamou a voz de
trompete de Matriona Barski. Dançar sozinho, se já se viu...
Elias Artamonov desatou a rir-lhe mesmo no nariz, olhando
bem a cara, redonda e sombria como um sudário, da Barski:
Alexís venceu, o filho dos Barski sai pela porta fora, mal se
tendo nas pernas, enquanto Elias, puxando brutalmente a mäe da
noiva pela mäo, ordena:
- Vamos, comadre!
Pálida, agitando o braço livre, ela resiste, irritada e näo
sabendo que fazer:
- Ó compadre, acha decente? Näo, näo...
Os convidados calam-se trocando sorrisos de cumplicidade;
Pomialov olha para a Barski, cujas palavras respingam como
azeite no lume:
- Mas que importância tem isso, Uliana? Anda, dança!
Deus há-de perdoar-te.
- Eu fico com o pecado! - vociferou Artamonov.
A bebedeira parece ter-lhe passado; o rosto enegrecido,
avança, como se marchasse para o combate, impulsionado por uma
vontade estranha. Empurram a viúva para os seus braços; a
mulher, um pouco embriagada, tropeça, ergue-se e,
transtornada, começa a bailar.
Pedro ouve um cochicho de estupefacçäo:
- Oh! Senhor! Ainda näo há um ano que enterrou o marido e já
casou a filha e agora pÖe-se a dançar!
Sem olhar a mulher, mas compreendendo que esta tem vergonha
da mäe, Pedro balbuciou:
- O pai näo devia bailar. ..
- A mäe também näo - responde ela com tristeza, baixinho; de
pé, num banco, ela olhava por entre o círculo apertado dos
convidados, sobre as suas cabeças; ia caindo mas agarrou-se ao
ombro de Pedro:
-- Devagar, disse ele afectuosamente segurando-a pelo braço.
Pelas janelas abertas, por cima das cabeças dos
espectadores, entravam os últimos raios do pôr-do-sol: no seu
claräo avermelhado um homem e uma mulher rodavam, como cegos.
No jardim, no pátio, na rua, havia quem se risse e gritasse,
enquanto na sala asfixiante o silêncio pesava mais. A pele
muito esticada do tambor ressoa, surda, o harmónio chia; no
meio, do círculo apertado dos rapazes e das raparigas, duas
pessoas continuavam a girar convulsivamente como se os
tivessem escaldado. Os rapazes e as raparigas contemplavam
esta dança, mudos e quedos, como se se tratasse de algo
extremamente importante; as pessoas sérias tinham vindo para o
pátio; só tinham ficado os que näo se podiam mexer, os
bebedolas que já näo davam um passo.
Artamonov, batendo com o pé no chäo, parou:
- Deste conta de mim, comadre! A mulher tremia e, por seu
turno, parou bruscamente, cnmo se à sua frente estivesse uma
parede. Depois, cumprimentando todos à volta, dísse:
' - Näo me censurem!
E, limpando o suor com o lenço, saiu a correr da sala,
enquanto no seu lugar se metia a Barski:
- Separem os noivos! Pedro, anda cá; rapazes, tragam-no!
' Artamonov, afastando os jovens, pôs os seus braços enormes
nos ombros do filho:
, - Anda e que Deus te faça feliz! Dá cá um abraço!
Os rapazes trouxeram o noivo. A Barski seguiu-os, murmurando
e cuspindo para todos os lados:
- Pf! Pf! Nem penas, nem doenças, nem desonra, nem vontade,
pf! Que o fogo e a água venham no seu tempo, näo para
desgraça, mas para felicidade!
Quando Pedro entrou atrás dela, no quarto de Natália, onde
estava feita uma cama sumptuosa, a velha sentou-se pesadamente
numa cadeira.
, - Escuta e näo te esqueças - disse com solenidade. Toma.
Aqui tens duas moedas de cinquenta copeques; mete-as nas
botas, debaixo dos calcanhares; Natália vai entrar,
ajoelhar-se-á para te descalçar as botas; näo lho permitas...
, - Mas para quê essas coisas? - perguntou Pedro com ar
cansado.
- Näo tens nada com isso. Tu recusarás três vezes, mas à
quarta consentirás; nesse momento, ela deve beijar-te três
vezes;
entäo, dás-lhe as duas moedas e dizes: Toma lá, minha
escrava e meu destino! " Näo te esqueças! Depois, despes-te e
deitas-te, voltando as costas. Ela pedir-te-á que a deixes
passar aqui a noite. Tu calas-te: só à terceira vez lhe
estenderás a mäo. Compreendeste? E depois...
Pedro olhou, espantado, o largo e sombrio rosto da
iniciadora; soprando pelas narinas, mordendo os lábios, ela
limpava-lhe com um lenço o pescoço e o queixo peludo e
proclamava, com voz autoritária e clara, indicaçÖes impudicas
e grosseiras.
Finalmente, repetiu à guisa de adeus:
- Näo acredites nos gritos nem nas lágrimas.. .
A velha saiu do quarto, vacílante, deixando atrás de si um
odor a álcool, e Pedro, num acesso de fúria, descalçava as
botas e atirava-as para debaixo da cama. Despiu-se rapidamente
e meteu-se na cama, os dentes cerrados, receando desatar aos
soluços de tal modo se sentia envergonhado.
- Animais, estúpidos animais...
No leito fofo, fazia calor; Pedro saltou para o chäo,
aproximou-se da sacada e abriu a janela; do jardim
chegaram-lhe, às lufadas, rumores de embriaguês, risos, gritos
de raparigas; silhuetas escuras erravam sob as árvores, no
crepúsculo arrocheado. A esguia flecha da tarre, dè onde
tinham levado a cruz para a redourar, enfiava no céu o seu
dedo enorme de cobre.
Para lá dos telhados, o Oka espelhava-se tristonho; um pedaço
de lua fundia-se sobre a água e, mais longe, as florestas
imensas espalhavam-se em massas negras. Foi entäo que se
lembrou de outra terra - a terra vasta de campos dourados - e
suspirou. Ouviu passos na escada e risos; atirou-se outra vez
para a cama; a porta abriu-se, ouviu um rum"r sedoso de fitas,
o pisar de botinas; alguém soluçava, a fechadura desandou.
Pedro levantou timidamente a cabeça: na penumbra, perto da
porta, distinguia-se uma forma esbranquiçada, agitando os
braços em cadência e curvando-se, receosa, chegando quase até
ao chäo.
- Ela está a rezar. E eu näo rezei.
Mas näo tinha vontade nenhuma de rezar.
- Natálía - disse baixinho - näo tenhas medo. Eu também
tenho medo. Näo posso mais.
E, ora alisando os cabelos com as duas mäos, ora coçando
a orelha, ele murmurava:
; - Näo farás nada dísso: näo precisas de me descalçar as
botas, nem de dizer essas baboseiras. Parvoíces. Näo chores.
Prudentemente, com passos oblíquos, foi até à janela,
dizendo devagar:
- Ainda se divertem.
, - Sim.
Intimidados, näo ousando aproximar-se um do outro, ambos
fatigados, falaram demoradamente de coisas inúteis. De
' madrugada, a escada rangeu, uma mäo tacteou a parede;
Natália foi à porta.
, - Näo deixes entrar a Barski - sussurrou Pedro.
- É a mäe - disse Natália.
Pedro sentou-se na cama e descontente consigo proprio,
disse, ansioso:
- Eu sou tímido, näo presto para nada; vai rir-se de mim,
com toda a certeza...
A porta abriu-se e Natália falou, baixinho:
' - A mäe chama-te.
Encostou-se ao fogäo, quase invisível sobre o fundo de
ladrilhos brancos, enquanto do outro Iado da porta, Pedro era
acolhido na escuridäo pela voz quente que cochichava, vexada
e aflita:
' - Que fazes, Pedro? Pois tu queres a nossa vergonha, a minha
e a de Natália? O dia vai nascer; daqui a pouco, vêm bater-vos
à porta: é preciso mostrar a todos a camisa da noiva para que
eles vejam que a minha filha é honesta.
' Com a mäo no ombro de Pedro, empurrando-o com a outra, ela
perguntava com indignaçäo:
- Que se passa? Tu näo tens força, näo tens vontade?
Näo me assustes, näo te cales...
Pedro respondeu com voz surda:
' - Tenho pena dela. Tenho medo.
' Ele näo via o rosto da sogra, mais julgou que ela se ria à
sucapa:
- Näo, vai, anda, vai fazer o teu serviço de homem! Reza ao
mártir S. Cristóväo. Vai! Deixa-me beijar-te...
Agarrando-o pelo pescoço e soprando-lhe no rosto um cheiro
quente de vinho, beijou-o com os seus lábios açucarados e
pegajosos; ele näo teve tempo de responder a este beijo;
os seus lábios soaram no ar.
Voltou ao quarto, correu o ferrolho da porta e estendeu
resolutamente os braços; a rapariga deu um passo em frente, e,
aconchegando-se no arco dos seus braços, disse com voz
trémula:
- Ela bebeu um pouco...
Pedro esperava outras palavras. Recuando para a cama,
balbuciava:
- Näo tenhas medo. Eu näo sou belo, mas sou bom...
Chegando-se cada vez mais para ele, ela disse muito baixo Já
näo me tenho nas pernas...
... Os habitantes de Driomov gostavam de festas, e a boda
continuou durante cinco dias; desde manhä até à meia-noite as
pessoas divertiam-se e deambulavam em tropel pelas ruas,
andando de casa em casa. Os Barski ofereceram um grande
festim, mas Alexis deu uma bofetada no seu filho que fora
insolente para com a pequena Olga Orlov. O pai e a mäe
queixaram-se a Artamonov, que se mostrou admirado:
- Mas onde é que se viram rapazes que näo bulhem?
Cumulava as raparigas com listÖes e gulodices, dava dinheiro
aos rapazes, embebedava os pais até eles caírem e, nesses
dias, emagreceu bastante. Mantinha-se afastado de Uliana, mas
os filhos notaram que ele lhe lançava olhadelas imperiosas,
irritadas. Por tudo e por nada fazia gala da sua força,
medindo-se à vara com os soldados da guarniçäo. Venceu na luta
um bombeiro e três pedreiros. Foi entäo que Tikhon Vialov,
aproximando-se dele, quase exigiu:
- Agora, luta comigo!
Surpreendido com estas palavras, Artamonov olhou o corpo
enovelado do pobre diabo:
- Ques és tu? Um fortalhaço ou um fanfarräo?
- Näo sei - respondeu o outro com ar sério.
I Agarrados pela cintura, ambos lutaram no terreiro
demoradamente. Elias espreitava as mulheres por cima do ombro
de Vialov, piscando-lhes o olho brejeiro. Era maior e mais
delgado que o seu adversário; Vialov encostando o ombro ao
peito de Artamonov, tentava erguê-lo, para depois o atirar por
cima da cabeça. Elias, adivinhando este propósito, exclamou:
- Näo és nada esperto, meu caro! Mesmo nada esperto!
E subitamente, respirando com força, agarrou em Vialov,
volteou-o por cima da cabeça e o pobre, ao cair, magoou-se nos
pés. Sentado no chäo, limpando o rosto cheio de suor, Vialov
explicou, pesaroso:
- Ele é forte.
- Bem vemos - responderam zombeteiramente.
fortíssimo - disse ainda.
Elias estendeu-lhe a mäo:
- Levanta-te!
Sem aceitar a mäo que lhe estendiam, o homem tentou
soerguer-se, mas debalde e, de novo, estendeu as pernas,
olhando de maneira estranha, os olhos parecendo liquefeitos.,
a multidäo que desaparecia. Nikita aproximou-se e
perguntou-lhe, pesaroso:
- Magoaste-te? Queres que te ajude?
' O homem sorriu:
- Os ossos doem-me. Sou mais forte do que o teu pai, mas
menos ágil. Bem, vamos atrás deles, meu bom amigo.
E, pondo amigavelmente a mäo sobre o corcunda, ambos
caminharam atrás dos outros, enquanto Vialov batia com os pés
no chäo, esperando assim aliviar a dor que sentia.
, Os noivos, extenuados de fadiga e de noites sem dormir,
vagueavam sem vontade pelas ruas, para se mostrarem por entre
a multidäo colorida, ruidosa e embriagada. Bebiam, comiam,
ruboresciam com as alusÖes obscenas, procuravam näo olhar um
para o outro e, passeando de braço dado, ou
, sentados um ao lado do outro, permaneciam calados como se
fossem estranhos. Esta atitude agradava muito à Barski que,
por tudo e por nada perguntava a Elias e a Uliana:
' - Ele foi bem educado, o teu rapaz? Repara, Uliana, repara
como ensinei a tua filha! E o teu genro? Quando anda, parece
um paväo: eu näo sou eu, ela näo é minha mulher!
Mas quando voltavam a casa e se deitavam, Pedro e Natália
abandonavam, com as suas vestes, tudo o que lhes era imposto e
que aceitavam docilznente, falando do dia passado.
- Bebem tanto aqui! - dizía Pedro, admírado.
- E na vossa terra, bebem menos? - perguntava a mulher.
- Achas que os campónios podem beber assim?
- Vocês näo parecem camponeses.
- Nós somos criados, o que é uma espécie de nobreza.
Por vezes, sentando-se, de mäos dadas em frente da janela,
respiravam silenciosamente os saborosos perfumes que vinham do
jardim.
- Porque te calas? - perguntava docemente a mulher.
E o marido respondia, também docemente:
- Näo temos vontade de dizer palavras grosseiras.
Ele desejaria escutar palavras extraordinárias, mas Natália
näo as sabia. E quando ele lhe falava das imensidades
infinitas das estepes douradas, ela interrogava-o:
- Näo há florestas, nenhumas, nenhumas? Oh! deve meter medo!
- O medo está nas florestas, dizia Pedro: O que é que pode
assustar nas estepes? Lá, estamos sozinhos rnim o céu e a
terra.
Uma vez, ambos olhavam em silêncio a noite estrelada,
sentados perto da janela, quando ouviram barulho, para o lado
do balneário; alguém corria, embatendo e quebrando os
morangueiros. Depois, ouviu-sé uma voz abafada e zangada:
- Mas o que é que tens, demónio?
Natália, a tremer, levantou-se:
- É a mäe!
O marido debruçou-se na janela, tapando-a com as suas costas
largas; distinguiu o pai que, enlaçando Uliana, a encostava à
parede, tentando deitá-la no chäo; ela agitava os braços,
batia-lhe na cabeça e, ofegante, murmurava:
- Larga-me, ou chamo!
E, a voz alterada, ela pediu:
-Meu querido, näo me toques, tem piedade de mim!
Pedro fechou a janela, sem barulho, e sentou a mulher nos
joelhos.
, Natália, inquieta, perguntava:
- O que foi? O que era?
' - É o pai - disse Pedro, encostando a mulher ao peito.
Näo percebes?
- Oh! mas o que é? - murmurava ela, medrosa e envergonhada.
O marido sentou-a na cama, dizendo, submisso:
' - Näo temos que julgar os nossos pais...
Com a cabeça entre as mäos, Natália agitava-se, soluçando:
, - Que pecado horrível!
- O pecado näo é nosso, deculpou Pedro. E repetiu as
palavras do pai: "Os patrÖes ainda fazem pior..." E mais vale
assim: näo andará atrás de ti.os velhos säo ingénuos: dizem
que é pecado venial divertirem-se com a nora. Näo chores!
, - Já tinha pensado nisso, quando andaram a dançar. Se a
obriga à força, o que acontecerá nesta casa?
Mas, fatigada pela emoçäo, depressa adormeceu; Pedro abriu
a janela, prescrutou o jardim: já näo viu ninguém, o vento da
madrugada começava a levantar-se, as árvores perfumadas
desapareciam nas trevas. Deixando a janela aberta, estendeu-se
ao lado da mulher, sem fechar os olhos, pensando no
que acabava de se passar. Como seria bom viver sozinho com
Natália numa quintazinha só deles! ...
, Natália acordou cedo; ele pareceu-lhe que ela acordara com
pena da mäe e, por ela, sentiu-se também ofendido. Descalça,
, vestida apenas com a camisa ela desceu quase a correr. A
porta do quarto da mäe, sempre fechada durante a noite, estava
entreaberta: ficou aínda com mais medo, mas olhando para a
cama, viu sob o lençol uma massa branca e, em cima do
travesseiro, cabelos escuros espalhados.
- Ela dorme. Ficou desgostosa, chorou...
' Tinha de fazer qualquer coisa, consolar a mäe ultrajada.
Natália foi ao jardim; a erva fria orvalhada, fazia-lhe
cócegas nos pés; o sol começava a nascer por detrás da
floresta, e os seus raios oblíquos cegavam-na. Cortou uma
flor dourada
' pelo orvalho, encostou-a ao rosto e refrescou-o, depois
começou a apanhar uvas e groselhas encarnadas, colocando-as ao
lado da flor, ao mesmo tempo que, sem rancor, pensava no
sogro.
Este, com a mäo pesada, bateu-lhe ao de leve nas costas e
perguntou sorrindo:
- Que lindo dia! Até apetece viver!
Parecia que ele nada mais tinha a dizer-lhe, e ela sentiu-se
um pouco magoada com estas pancadinhas afectuosas que lhe
lembravam as festas que costumam fazer-se aos cavalos.
- O malandro! - disse para consigo, tentando sentir aversäo
pelo sogro.
Os tentilhÖes e os estorninhos cantavam, os canários
pipilavam, as folhas das árvores e dos arbustos baloiçavam,
doce e sedosamente; ao longe, no fim da cidade, um pastor
tocava flauta; das margens do Vatarakcha onde se erguia a
fábrica vinham vozes humanas que escorriam lentamente no
silêncio límpido. Qualquer coisa estalou; I"Tatália, a tremer,
ergueu a cabeça: por cima, num ramo da macieira, um canário
debatia-se numa armadilha.
- Quem é que caça os pássaros? Será Nikita?
Um ramo seco partiu-se.
Quando Natália, ao entrar em casa, espreitou o quarto da
mäe, esta, acordada, estava deitada de costas, abrindo os
olhos admirada, os braços atrás da cabeça.
- O que há? És tu? - perguntou inquieta, erguendo-se sobre o
cotovelo.
- Näo é nada, trago-te groselhas para o chá.
Numa mesa, ao lado da cama, estava uma enorme garrafa de
kvass, quase despejada; o líquido espalhara-se pela toalha,
a rolha tinha caído para o chäo. Os olhos claros e severos da
mäe, rodeados por uma sombra azulada, näo estavam entumecidos
de lágrimas, como Natália esperava, e até pareciam mais
sombrios, mais profundos, e o seu olhar, sempre um pouco
altivo, tinha nesse dia uma expressäo desconhecida, era
longínquo e distraído.
- Os mosquitos näo me deixam dormir, terei que ir dormir no
telheiro - dizia Uliana tapando o pescoço com o lençol.
Picaram-me toda. Mas porque é que te levantaste täo cedo?
Porque foste descalça pisar o orvalho? Tens a camisa molhada.
Vais apanhar uma constipaçäo.
; Falava sem doçura e sem alegria, como se o fizesse através
dos seus próprios pensamentos. A inquietaçäo de Natália
transformava-se, pouco a pouco, na curiosidade hostil e
aguda da mulher.
- Acordei, pensei em ti... Tinha sonhado contigo...
- O que é que pensaste? - perguntou a mäe, olhando o
tecto.
- Tu agora dormes sozinha, sem mim...
Pareceu a Natália que as faces da mäe se coloriam, e que
quando esta respondeu, sorrindo: Eu näo sou de medos, o
seu sorriso era forçado.
- Anda, minha querida, vai-te; o teu marido já acordou.
Näo o ouves a andar? - indicou Uliana cerrando os olhos.
Ao subir lentamente as escadas, Natália dizia com desgosto e
quase com rancor:
"Ele dormiu com ela, foi ele que bebeu o kvass. Ela tem o
pescoço cheio de marcas; näo foram os mosquitos que a
morderam. Säo os sinais dos beijos. Näo o direi a Pedro. Ela
quer dormir no alpendre. E ela gritava...
- De onde vens tu? - inquiriu Pedro, olhando penetrantemente
o rosto de sua mulher. Ela baixou os olhos, sentindo-se
vagamente culpada.
- Fui apanhar groselhas, passei pelo quarto da mäe...
- E entäo, como está ela?
- Parece que tudo vai bem. ..
- Bem, comentou Pedro coçando a orelha. Bem.. .
E, sorrindo com ironia, esfregando o quexio ruivo escuro,
suspirou:
- Essa imbecil da Barski devia ter razäo: Näo acredites nos
gritos, näo te importes com as lágrimas!
Depois, perguntou, severo:
- Viste Nikita?
- Näo.
- Näo o viste? Ele anda no jardim à caça dos pássaros...
- Oh! - exclamou Natália assustada -, e eu que fui para lá
ssim, em camisa.
- Ora vês?
- Mas quando é que ele dorme?
Pedro calçando a bota tossiu com força, enquanto a mulher,
olhando-o de través, dizia a sorrir:
- Ele é corcunda, mas simpático, muito mais simpático do
que Alexis...
O marido voltou a tossir, mas mais baixo.
Todos os dias, ao nascer o Sol, quando o pastor reunia o
rebanho e tocava lugubremente numa comprida flauta de bétula,
o ruído dos machados começava do outro lado do rio; entäo, os
habitantes, enquanto tocavam pelas ruas vacas e cordeiros,
diziam uns para os outros, trocando sorrisos irónicos:
- Mal clareia, e eles já trabalham...
- A cupidez é inimiga feroz do descanso.
Por vezes, Artamonov julgava ter, finalmente, vencido a
indolente hostilidade da cidade; as pessoas de Driomov tiravam
respeitosamente a boina quando o encontravam e escutavam-no
atentamente a falar dos príncipes Ratski. Mas, quase sempre,
algum de entre os ouvintes, observava com certo orgulho:
- Os nossos patrÖes eram mais simples, mais pobres, mas mais
severos do que os vossos.
Nas noites da festa, sentado no belo jardim arborizado de
Barski, na margem do Oka, Artamonov dizia aos ricaços e aos
notáveis de Driomov:
- Vocês todos ganharäo com o meu negócio...
- Assim Deus o queira - respondia Pomialov. E, pelo seu
rápido sorriso canino, nunca se podia adivinhar se se
preparava para morder ou para lamber.
Tem o rosto rugoso, mal encarado numa barbicha de estopa, um
nariz acinzentado, que fareja com desconfiança, os
olhos cor de bolota espreitando com receio e manha.
- Deus o queira - repete. - A verdade é que sem ti também
vivíamos, mas é possível que contigo isto näo comece a ser
pior...
Artamonov respinga:
- O que tu dizes nem é franco nem de amigo.. .
Barski desata a rir, exclamando:
- Ele é assim!
No rosto de Barski vêem-se raros pedaços de carne escarlate;
a sua cabeça enorme, o pescoço, as faces, as mäos, tudo está
coberto de uma espessa lanugem de urso; näo se lhe vêem as
orelhas, e os olhos inúteis estäo escondidos em almofadinhas
de gordura:
- Toda a minha força se desfez em gordura - diz ele, rindo,
a boca aberta e enorme a mostrar os dentes quadrados.
Com os seus olhos muito claros, Voropronov, o carpinteiro,
observa Artamonov e proclama secamente:
' - É preciso tratar dos seus negócios, mas näo se devem
esquecer os de Deus. Costuma dizer-se: "Marta, Marta, tu fa-
zes muitas coisas, mas uma só é que importa."
Julgar-se-ia, täo claros e vazios säo os seus olhos, que
está mergulhado na meditaçäo e que vai pronunciar alguma
palavra extraordinária. Por vezes; começa:
- Evidentemente, Jesus também comia päo, de maneira
que Marta...
- Alto aí! - interrompia ocurtidor Jiteikine. Onde é que
vais?
Voroponov calava-se, mexendo as suas orelhas cinzentas,
enquanto Elias perguntava ao curtidor:
- Tu compreendes o meu negócio?
- Para quê? - respondia Jiteikine sinceramente admirado. - O
negócio é teu: tu é que tens de o perceber, meu sabichäo! Tu
tens o teu negócio; e eu, o meu.
Artamonov bebia a cerveja espessa, olhando por entre as
árvores a corrente tumultuosa do Oka e, à esquerda, o sítio
onde lhe entrava pelo flanco, na extremidade dos pinheiros e
dos pântanos, a serpente verde do Vatarakcha de complicados
meandros. Ali, na língua de terra, destacando-se sobre a areia
dourada, os cavacos e os restos de madeira luziam com
um brilho oleoso, os tijolos destacavam-se no meio dos
salgueiros pintalgados, e uma comprida fábrica avermelhada
alongava-se, igual a um caixäo sem tampa. O alpendre com
telhado de zinco que ainda näo foi pintado rutila ao sol e,
fundindo-se como se fosse mel, o vigamento amarelado da casa
de dois andares apontava para o céu quente as suas vigas cor
do ouro.
De longe, a casa lembrava um violäo, como dizia Alexis.
Foi lá que se instalou depois que resolveu afastar-se dos
rapazes e das raparigas da cidade; ele é täo provocador, täo
impetuoso que custa a aturá-lo. Pedro é mais calmo; há nele
qualquer coisa que perturba, e ainda näo compreendeu o que
pode fazer um homem audacioso.
No rosto de Artamonov perpassa uma sombra; por debaixo das
suas cerradas sobrancelhas espia os homens da cidade, de
sorriso nos lábios - estas pessoas que pouco valem, que säo
tímidas quando negoceiam, que näo têm uma vontade resoluta.
A noite, quando a cidade dorme, Artamonov, ao longo da
margem, desliza furtivamente, pelas trazeiras, para alcançar o
jardim da viúva Baimakov. No ar tépido, os mosquitos
ziguezagueiam e dir-se-ia que espalham pela terra o bom odor
dos pepinos, das maçäs, do funcho. A Lua gira no meio de
nuvens cinzentas, as sombras acariciam as ribeiras. Chegado
ao jardim, Artamonov entra de mansinho no pátio; ei-lo no
alpendre obscuro; vindo de um canto, um murmúrio inquieto
acolhe-o:
- Ninguém te viu passar?
Ao despir-se, ele resmunga com graça:
- Aborrece-me andar às escondidas! Achas que sou um garoto?
- Nesse caso, näo podes ter uma amiga.. .
- Näo a teria se Deus näo ma quisesse dar.
- Cala a boca, näo digas heresias! Ambos ofendemos a Deus,
eu e tu!
- Bom, bom. Havemos de falar nisso noutra altura. Ah!
Uiiana que pessoas estas, as daqui! ...
- Deixa lá, näo te importes - cicia a mulher e,
demoradamente, freneticamente, ela apazigua-o com as suas
carícias, depois, satisfeita, informa-o minuciosamente acerca
das pessoas da cidade: diz-lhe de quem deve desconfiar, quem é
inteligente, quem é desonesto, quem possui dinheiro.
- Se souberem que precisas de madeira, Pomialov e Voroponov
tentaräo comprar as florestas dos arredores para te
prejudicarem.
- Já é tarde de mais: o príncipe vendeu-mas.
' Em redor e por cima deles, a escuridäo é de um negro
impenetrável. Eles näo vêem nada, nem sequer os olhos um do
outro, e falam täo baixinho que só eles se escutam. Respira-se
um odor de feno e de ramos de bétula; do chäo sobe uma
agradável frescura húmida. A cidadezinha adormeceu num pesado
silêncio, um silêncio de chumbo; por vezes, ouve-se deslizar
uma ratazana ou a chiada de alguns ratinhos; de hora a hora,
no campanário de S. Nicolau, o sino rachado lança para
as trevas sons surdos, doentios, trémulos.
- És uma bela mulher! -admira Artamonov acariciando o corpo
quente e opulento da sua amante. Como és vigorosa!
Porque tiveste só uma filha?
- Além de Natália, nasceram-me mais dois; eram débeis e
morreram.
- É que o marido näo valia nada...
- Näo me acreditas, murmura ela, mas, antes de ti, nem
sequer sabia o que era o amor. Por vezes, as amigas falavam-me
disso, mas eu näo as acreditava e dizia para comigo: a
vergonha é que as leva a mentir. Foi só a vergonha que o meu
marido me ensinou; metia-me na cama, como se subisse ao
cadafalso. Rezava para que Deus lhe desse sono, para que näo
me tocasse. Era um homem bom, inteligente, mas Deus näo lhe
dera talento para o amor...
O que ela conta excita Artamonov e, ao mesmo tempo,
espanta-o; acariciando o peito forte, ele murmura:
- Eu... eu também näo sabia, julgava que para uma mulher
qualquer homem era bom.
Sente-se mais viril, mais inteligente ao lado desta mulher
que é, durante o dia, uma dona de casa tranquila, que näo se
altera e que a cidade considera pela sua inteligência e
educaçäo. Um dia, emocionado pelas suas carícias, ele diz:
- Compreendo o que arriscas por mim. . . Näo devíamos ter
casado os nossos filhos. Eu é que devia ter-te desposado...
- Os teus filhos säo simpáticos; ainda que soubessem
algo a nosso respeito, näo haveria grande mal, mas se na
cidade se soubesse...
Ela tremia toda.
- Paciência - sussurra Elias.
Uma vez, ela mostrou-se curiosa e perguntou:
- Diz-me: mataste um homem e nunca sonhas com ele?
Cofiando a barba com indiferença, Elias respondeu:
- Näo; durmo bem e nunca sonho. E, afinal, sonhar para quê?
Nem sei como é isso. Bateram-me com qualquer coisa, mal
consegui ficar de pé, agarrei num pau e desanquei o primeiro,
depois o segundo, enquanto o terceiro fugia.
Suspirando,rosnou,vexado:
- Se os imbecis te querem fazer mal, perante Deus tens que
fazer qualquer coisa...
Permaneceu deitado algum tempo em silêncio.
- Adormeceste?
- Näo.
- Vai, anda, que daqui a pouco é dia. Vais já trabalhar?
Oh! bem depressa te cansarás de mim...
- Näo penses nisso. Näo me cansei nos dias de trabalho,
e há os dias de festa, responde com orgulho Artamonov enquanto
se veste.
O tempo está fresco e ele desaparece na penumbra nacara-
da da manhä que desponta. Leva as mäos atrás das costas,
debaixo do capote que se arrebita como o rabo de um galo.
Esmagando debaixo dos pés os restos de madeira, pensa:
"Alexis lá anda a esmurrar-se. É impetuoso mas bom, no
fundo. "
Deitou-se sobre a areia, nos ramos secos, e adormeceu
rapidamente. No céu esverdeado ilumina-se a aurora
acariciadora; o sol ergue-se e avança, todo ouro, espalhando
com orgulho o leque dos seus raios; os operários acordaram e,
ao avistarem o enorme corpo do paträo, dizem uns para os
outros:
- Lá está ele.
Uma picareta ao ombro, Tikhon olha Artamonov e pisca o
o olho: parece querer passar por cima dele e que näo é capaz.
O gritos, os ruídos, toda esta agitaçäo de formigas, näo
despertam o homem robusto que ronca como uma serra mal afiada,
deitado no chäo, de rosto voltado para o céu. O homem passa,
voltando-se, os olhos pestanejando, como se lhe tivessem
batido na cabeça. Alexis, corn uma camisa de linho branco,
as calças azuis, sai de casa para ir nadar: rápido e
ligeiro, contorna prudentemente o tio: dir-se-ia que receia
que ao pisar os ramos o acorde. Antes do dia clarear, Nikita
partiu para a floresta, de onde traz todos os dias um ou dois
carros de folhas apodrecidas que vai lançar no monte, no
jardim. Já plantou bétulas, aceráceas, sobreiros, cerejeiras
e, agora, abre na areia para as árvores de fruto profundos
buracos que tapa com lodo e folhas podres. Aos domingos,
Tikhon Vialov vem ajudá-lo.
- Plantar jardins - diz ele - é um trabalho que näo faz mal
Coçando a orelha, Pedro Artamonov vai e vem, vigiando o
trabalho. A serra, rangendo molemente, entra na madeira,
ouve-se o arrastar assobiado dos tamancos, o rasgar sonoro
dos machados, o gordo deslizar da argamassa, o gemido da
' pedra de afiar que lambe o ferro do machado. os
carpinteiros erguem uma viga e cantam a "DubinuchkaH. Uma voz
jovem, e sonora inicia uma copla:
, Zacarias foi a casa da Maria
, E pôs-lhe as mäos na cara...
' - Que cançÖes täo feias! - diz Pedro dirigindo-se a Vialov.
Este, metido na areia até aos joelhos, replica:
- O que se canta näo tem importância. . .
- Näo tem importância?
- As palavras näo têm alma.
"Este homem é incompreensível" - pensou Pedro ao afastar-se
dele e lembrando-se de que, quando o pai ofereceu a Vialov o
lugar de capataz, este respondera enquanto olhava os pés
de Artamonov:
- Näo, näo gosto disso, näo sei mandar. Antes quero ser
guarda...
...o Outono chegou, húmido e frio; os jardins cobriram-se
de uma cor de ferrugem, e as florestas negras, direitas como
molhado soprava, empurrando para o rio pequenos ramos
cortados. Todas as manhäs, chegavam ao alpendre carros cheios
de linho, puxados por cavalos macilentos. Pedro recebia a
mercadoria, reparando cuidadosamente se os campónios
atarracados e barbudos traziam linho suado, molhado na água
para pesar mais, pois näo queria comprar linho simples pelo
preço do comprido. Via-se e desejava-se e com os camponeses. O
impaciente Alexis discutia furiosamente com eles. E o pai fora
a Moscovo, logo seguido pela sogra de Pedro, dizendo que ia em
peregrinaçäo.
A noite, ao beber o chá, Alexis, irritado, queixava-se:
- Aborreço-me aqui, näo gosto das pessoas.
Pedro irritava-se sempre com estas queixas.
- Näo mereces outra coisa. Incomodas toda a gente. E
gabas-te a cada passo que dás.
- Se me gabo, é porque tenho razÖes.
Sacudindo os seus cabelos ondulados e claros, erguendo os
ombros, endireitando o peito, os olhos insolentamente
semicerrados, ele olhava os seus irmäos e a cunhada. Natália
evitava-o, como se o receasse, e falava-lhe secamente.
Depois do almoço, quando o marido e Alexis voltavam à
fábrica, ela ia ao quartozinho de Nikita, que lhe lembrava o
de um monge, e ali, como os bordados nas mäos, sentava-se
junto à janela, numa cadeira de bétula que o corcunda
habilmente construíra. De manhä à noite, este, que exercia as
funçÖes de guarda-livros, escrevia, calculava, mas quando
Natália entrava, ele parava para lhe falar da vida dos
príncipes, das flores que cresciam nas suas montanhas. Falava
com voz suave de rapariga, uma voz aguda e acariciadora; os
olhos azuis-escuros olhavam pela janela, para além do rosto da
mulher: ela, debruçada
sobre o seu trabalho, calava-se com ar pensativo, como nos
calamos quando estamos sós. Ficavam assim uma hora, duas
horas, sem quase levantarem os olhos; mas, de vez em quando,
Nikita, prudentemente e sem saber como, envolvia a cunhada com
o terno calor do seu olhar azul, e as suas enormes
orelhas de cäo tornavam-se róseas. Este olhar furtivo forçava,
por momentos, Natália a olhá-lo por seu turno, com um estranho
e gracioso sorriso em que Nikita julgava, por vezes, sentir
que ela adívinhava a sua perturbaçäo, mas de outras vezes este
sorriso parecia-lhe vexado e magoado. Entäo, ele baixava
os olhos como um réu.
' A chuva bate e escorre por detrás do vidro, deslavando as
' cores pálidas do Veräo; ouvem-se os gritos de Alexis, o
rosnar do ursinho que, entretanto, está preso a uma corrente,
no pátio; as mulheres batem o linho, cadenciadamente. Alexis
entra ruidosamente: molhado, sujo, o chapéu inclinado para
trás, nem por isso deixa de lembrar um dia de Primavera; a
rir, conta que Tikhon Vialov cortou um dedo com o machado.
- Diz que foi sem querer, mas vê-se bem porquê: näo quer
fazer o serviço militar. E eu que me alistaria de boa vontade
para sair daqui!
' E, todo negro, rosna como um urso:
- Viemos meter-nos no cu do diabo!
Depois, estende a mäo e exige:
- Dá-me quinze copeques, quero ir à cidade.
- Que vais lá fazer?
- Näo é da tua conta.
E desaparece cantarolando:
A rapariga já vai a camznho
E leva doces ao seu namorado...
- A brincadeira ainda lhe sai cara! - diz Natália. - As
minhas amigas vêem-no muitas vezes com Olga Orlov, que só
tem quinze anos... A mäe já lhe morreu e o pai é um bêbado...
Nikita näo gosta da maneira como ela falou; julga ver nas
suas palavras demasiada tristeza, demasiada inquietaçäo e uma
espécíe de ciúme. O corcunda olha silenciosamente pela janela;
no ar húmido balançam-se os ramos dos pinheiros, cujas carumas
verdes deixam escorrer gotas de chuva, iguais a gotas de
prata. Estes pinheiros foi ele que os fez crescer, assim como
todas as árvores em redor da casa.
Pedro entra, taciturno e cansado.
- Natália, é hora do chá!
- Ainda é muito cedo!
- Já te dise que é a hora do chá - grita ele. E, quando
a mulher saiu, senta-se no seu lugar e começa a resmungar:
- O pai abandonou o negócio. Giro como uma roda, sem
saber para onde vou. E se as coisas näo correm como ele quer,
ainda é capaz de se zangar. ..
Nikita fala-lhe suavemente, timidamente, acerca de Alexis e
da jovem Olga, mas, com um gesto, Pedro interrompe-o: é
evidente que estas historietas näo o interessam.
-Näo tenho tempo para me ocupar de raparigas! Mesmo
a minha mulher, só a vejo à noite, quando me deito; de día,
sou cego como um mocho. Isso näo passa de parvoeira...
E, coçando a orelha, disse, gravemente:
- Uma fábrica é coisa que näo se dá com o nosso feitio.
Devíamos ter ido para a estepe, comprar terras e cultivá-las.
Haveria menos barulho e mais proveito...
Elias Artamonov regressou bem disposto, rejuvenescido;
mandara aparar a barba, o que tornara ainda mais largos os
seus ombros; os olhos brilhavam com mais intensidade, e
tinha o ar de uma charrua arranjada de novo. Majestosamente
recostado no sofá, dizia:
- Os nossos negócios devem marchar mílitarmente! Haverá
trabalho para vocês, para os vossos filhos e para os vossos
netos. Trabalho para trezentos anos. Nós, os Artamonov,
faremos progredir esta regiäo.
Com o olhar, procurou a nora e exclamou:
- Tu inchas? Se for um rapaz, já sabes que podes contar com
uma rica prenda.
A noite, ao deitar-se, Natália disse ao marido:
- O pai é muito amável quando está bem disposto.
Pedro encarou-a de lado e respondeu secamente:
- É muito amável, na verdade; prometeu-te um presente...
Mas, passados quinze dias ou três semanas, Artamonov
mostrou-se menos expansivo e distante. Natália interrogou
Nikita:
- O pai, com quem é que se zangou?
- Näo sei, näo o percebemos.
Nessa noite, à mesa, Alexis declarou com voz clara e firme:
- Pai, mande-me para o regimento. ..
- O quê? - inquiriu Elias, surpreendido.
, - Näo quero viver aqui...
- Desapareçam! - ordenou Artamonov aos filhos. Alexis
levantou-se também e ele gritou-lhe:
- Tu ficas!
As mäos atrás das costas, remexendo as sobrancelhas,
olhou demoradamente o rapaz e disse, por fim:
- E eu que julgara ter educado uma águia!
- Näo posso habituar-me a esta vida!
- Histórias! O teu lugar é aqui. Foste-me entregue pela tua
mäe. E é tudo!
Alexis deu um passo, as pernas entorpecidas, mas o tio
agarrou-o pelo ombro:- Näo era assim que eu devia falar-te;
o meu pai falava-me com as mäos. Compreendes?
E acrescentou, procurando convencê-lo:
- Mas tu näo viste que tens um grande futuro? Que nunca mais
eu te ouça a choramingar... Ficou sozinho, por muito tempo, de
pé, junto da janela, apertando a barba contra o punho, olhando
a neve húmida que caía; depois, quando por detrás dos vidros
tudo ficou escuro como uma cave sem luz, partiu para a cidade.
A porta das traseiras da casa Baimakov já estava fechada;
bateu à janela; Uliana veio abrir e perguntou-lhe,
descontente:
- O que é que aqui vens fazer a uma hora destas?
Sem responder, sem se despir, entrou na sala, atirou com o
chapéu para o chäo, sentou-se em frente da mesa, encostou-se
aos cotovelos, os dedos enfiados na barba, e contou-lhe o
que acabava de se passar com Alexis.
- Ele näo é dos nossos. A minha irmä divertíu-se com o
paträo, e aí está... A mulher reparou se as cortinas estavam
bem corridas e apagou a vela; num canto, em frente das imagens
santas, luzia pàlidamente um lâmpada azulada numa peanhazinha
de prata.
- Casa-o depressa, que assim o prenderás - disse ela.
- Sim, é o que tem de se fazer. O píor é que näo é tudo.
Sem ardor näo se pode procriar nem matar. Pedro mostra-se
apático, é uma desgraça. Trabalha como se nada fosse dele,
como se tudo pertencesse ainda ao senhor; ele continua a ser
um criado, näo sente a sua liberdade, compreendes? Já nem
falo de Nikita: é um pobre inocente, só pensa nos jardins e
nas flores. E por isso esperava que Alexis se interesasse
pelos negócios. . .
Ela procurava tranquilizá-lo:
- Começas a inquietar-te antes do tempo. Espera, quando
a roda andar mais depressa, todos se sentiräo puxados, todos
se habituaräo.
Conversarám assim até à meia-noite, sentados lado a lado, na
tranquilidade morna do quarto; num canto, vacilava uma
nuvem opaca de luz azulada, tremia a flor tímida do fogo. Mas
enquanto se queixava do pouco entusiasmo dos filhos, Artamonov
näo esquecia as pesoas da cidade:
- Têm uma alma mesquinha.
- Näo gostam de ti, porque tens sorte: nós, as mulheres,
gostamos daqueles que triunfam, mas para vocês, homens, a
sorte dos outros é uma catarata na vista.
Uliana sabia acalmar e consolar. Mas Elias Artamonov teve
uma exclamaçäo despeitada, quando ela disse:
- Só há uma coisa de que tenho um medo de morte: ficar
grávida de ti...
- Em Moscovo, os negócios prosperam como o fogo - continuou
ele levantando-se e abraçando a mulher. - Ah, se fosses um
homem!
- Adeus, amor, vai!
Beijou-a com força e partiu.
Um dia, Erdenskaia veio trazer Alexis num trenó, todo
esfarrapado, moído de pancada, desmaiado. Auxiliada por
Nikita, ela friccionou-o todo com rábano moído e aguardente;
ele gemia sem pronunciar uma palavra. Artamonov andava pelo
quarto, de um lado para o outro, como uma fera, arregaçando e
desarregaçando as mangas da camisa, rangendo os dentes e,
quando Alexis recuperou o sentidos, ele berrou, ameaçando com
o punho:
- Quem te fez isso" Fala!. .
Entreabriu dolorosamente o olho inchado, ofegante, cuspindo
sangue, Alexis suplicou:
- Acaba comigo...
Natália, apavorada, começou a chorar ruidosamente; o sogrou
bateu com o pé no chäo:
- Basta! Desaparece daqui!
Alexis segurava a cabeça nas mäos, como para a arrancar,
e gemia.
Depois, afastando os braços, caiu de lado e näo se mexeu
mais, abrindo a boca ensanguentada; na mesa, perto da cama,
uma candeia tremelicava; sombras percorriam o corpo dorido;
Alexis parecia cada vez mais negro e inchado. Os seus irmäos
, estavam aos pés da cama, silenciosos e tristes, o pai
continuava a passear pelo quarto, interrompendo:
- Escapará desta?
Mas, no oitavo dia, Alexis levantou-se, cuspindo sangue, com
uma tosse húmida; começou a frequentar os banhos de vapor,
onde ficava horas e horas a beber aguardente com pimenta; nos
olhos, brilhava uma chama sombria e irritada, tornando-os
ainda mais belos. Näo queria dizer quem lhe tinha
batido, mas Erdenskaia soube que fora Stepan Barski, com
mais dois bombeiros e um Morduäo, o guarda de Voroponov.
Quando Artamonov perguntou a Alexis se era verdade, este
respondeu:
- Näo sei.
- Mentes!
- Näo vi nada; cobriram-me com um capote.
- Escondes qualquer coisa, insistiu Artamonov.
Alexis olhou-o bem de frente, com olhos onde havia um
mau claräo, e disse:
- Hei-de curar-me.
- Come mais - aconselhou Artamonov. E, por entre a
barba, acrescentou:
- Por uma coisa dessas, deviam lançar-lhes o galo vermelho,
assar-lhes as patas...
Redobrou de cuidados para com Alexis, de teimosa afeiçäo.
Trabalhava ostensivamente, procurando, sem esquecer o
seu objectivo, inspirar aos filhos a paixäo pelo trabalho.
50 51
- Façam tudo, que nada vos detenha - ensinava ele - e
fazia muitas coisas que poderia entregar aos outros,
demonstrando uma clarividente e animal habilidade que lhe
permitia saber exactamente o ponto onde a sua força depararia
com a maior resistência e qual o meio mais eficaz para a
vencer.
A gravidez da nora prolongou-se de modo anormal; quando,
decorridos dois dias de sofrimento, Natália deu à luz uma
rapariga, ele comentou, decepcionado:
- Bem, paciência. . .
- Agradece a Deus o favor que te fez, aconselhou severamente
Uliana. Hoje é o dia de Santa Helena do linho.
- A sério?
Pegou no calendário, folheou-o e ficou contente como uma
criança:
- Quero ir ver a tua filha!
Colocando sobre o peito da nora uns brincos enfeitados com
rubis e cinco moedas de ouro, declarou:
- Tòma! Näo tiveste um filho, mas estou à mesma contente!
E perguntava a Pedro:
- Entäo o galinha choca está satisfeito? Eu, quando tu
nasceste, fiquei contente!
Pedro espreitava medrosamente o rosto cavado, extenuado,
quase irreconhecível de sua mulher; os olhos tinham-se
afundado e, do fundo, miravam os seres e os objectos, como
se se lembrassem de alguma coisa há muito esquecida; com um
lento movimento da língua, humedecia os seus lábios
mordiscados.
- Por que é que ela se cala? - perguntou ele à sogra.
- Gritou muito - explicou Uliana, empurrando-o para fora do
quarto.
Durante dois dias e duas noites, ele escutara os clamores da
mulher. Primeiro, lastimara-a, receando que ela morresse;
depois, ensurdecido pelos gritos, atordoado pela agitaçäo da
casa, cansara-se de queixas e de receios. E procurava, entäo,
afastar-se para o mais longe possível, aonde näo chegassem os
gemidos da mulher, mas foi debalde: o eco desses gritos
ressoava-lhe na cabeça, levando-o a incríveis pensamentos.ta,
um machado ou uma enxada na mäo; o corcunda cortava, po-
; dava, fazia covas, corria com o saltitar mudo de uma
toupeira; parecia andar às voltas e por isso Pedro o
encontrava a ; cada instante.
- Se ela puder salvar-se -afirma Pedro ao irmäo.
O corcunda, enterrando profundamente a enxada na areia,
perguntou:
- Que diz a parteira?
- Ela tranquiliza-nos, promete. Porque estás a tremer?
- Doem-me os dentes.
Na noite do parto, sentado no patamar, junto de Nikita e de
Tikhon, Pedro contava, sorrindo com ar sonhador:
- A minha sogra pôs-me a criança nos braços e eu, de
alegria, nem lhe senti o peso, por pouco é que näo a atirei ao
tecto. Custa a compreender: tanto sofrimento por uma coísa täo
pequena. . .
Coçando o queixo, Tikhon observou com a sua calma habitual:
- Todos os sofrimentos humanos têm como causa coisas sem
importância.
- Como? - interrogou Nikita com severidade.
O guarda respondeu, bocejando num tom indiferente:
- É assim mesmo.
Vieram chamá-los para a ceia.
A criança era forte, pesada, mas passados cinco meses morreu
asfixiada e a mäe por pouco é que näo foi vítima do mesmo
acidente.
- Deixa lá, deixa lá - dizia no cemitério Artamonov ao
filho, à guisa de consolaçäo. - Ela dar-te-á outros. Pelo
menos, agora, já temos aqui alguém nosso; a âncora está, pois,
lançada. O que está à tua volta pertence-te, assim como a
terra que pisas; o que está em cima e debaixo da terra é teu.
Pedro concordou, acenando com a cabeça e olhando a mulher;
as costas curvadas, ela tinha os olhos fixos no pequeno
montículo de terra que Nikita nivelava cuidadosamente.
A mulher limpava as lágrimas que lhe corriam pelas faces
com um movimento täo rápido e täo convulsivo que dir-se-ia -
lhado, e murmurava:
- Senhor, Senhor...
Alexis marchava, voltava por entre os túmulos para ler as
inscriçÖes; emagrecera e parecia mais velho do que era
efectivamente. O seu rosto, que nada tinha de camponês,
adquirira, ao cobrir-se com pelos escuros, um aspecto
queimado, enfumado; os seus olhos insolentes, mergulhados em
negras sobrancelhas, lançavam sobre toda a gente olhares
hostis; falava com voz surda, que parecia tornar
propositadamente indistinta e, quando lhe diziam para repetir,
ele respingava:
- Mas tu näo compreendes?
E praguejava. Mostrava-se maldoso e escarninho para com os
irmäos. Ralhava a Natália como a uma operária e quando Nikita
lhe disse um dia em tom de censura:
- Näo deves tratar Natália desse modo.
Ele respondeu:
- Eu sou um doente.
- Ela é boa.
- Nesse caso, que me ature!
Alexis falava frequentemente do seu estado doentio e sempre
com uma espécie de orgulho, como se a doença fosse uma
qualidade que o distinguia dos restantes homens.
Na volta do cemitério, seguindo ao lado do tio, foi-lhe
dizendo:
- Devíamos ter cemitério só para nós; mesmo depois de
mortos, custa ficarmos deitados perto de tais pessoas...
Artamonov sorriu:
- Talvez um dia. Teremos tudo: igreja, cemitério, escola,
hospital. Espera!
Ao atravessarem o Vatarakcha encontraram, encostado ao
parapeito da ponte, um homem miserável que lembrava um
funcionário despedido por bebedola. Trazia um casibeque
acastanhado e no fio; no rosto flácido, invadido por pêlos mal
cortados, cinzentos e espessos, mexiam-se lábios entumecidos,
mostrando restos de dentes enegrecidos; os seus pequenos olhos
luziam, húmidos e inquietos.
Artamonov desviou-se, cuspiu, mas, reparando que Alexis
cumprimentava o pobre diabo com um afável aceno da cabeça,
perguntou:
- Quem é?
- Orlov, o relojoeiro.
' - Parece, na verdade, um Orlov!
- É inteligente, insistiu Alexis. Perseguiram-no...
Artamonov olhou o sobrinho pelo canto do olho e näo
disse nada.
Chegou o Veräo seco e tórrido; para lá do Oka, as florestas
ardiam; de dia, sobre a terra, planava uma nuvem opalina de
acre fumado; à noite, a Lua era de um encarnado desagradável
e as estrelas, que a bruma privava dos seus raios, picavam o
céu como pregos de cobre; a água do rio, onde se reflectia o
céu perturbado, lembrava uma corrente de espessa e fria
fumarada subterrânea.
Depois da ceia, os Artamonov, abrasados de calor, tomavam o
chá no jardim, debaixo da ramaria do freixo; as árvores tinham
crescido, mas a massa da sua folhagem rendada näo chegava para
dar frescura, nas noites brumosas. Os grilos cantavam,
gafanhotos metálícos saltavam, o samovar assobiava.
Natália, a blusa desabotoada, servia silenciosamente o chá;
a pele do seu peito tinha uma cor de manteiga; o corcunda,
sentado, de cabeça baixa, afiava os paus para as gaiolas de
pássaros; Pedro coçava a orelha, dizendo a meia voz:
- Näo vale a pena arreliar as pessoas e o pai irrita-as.
Alexis, tossindo com uma tossezinha seca, olhava para o lado
da cidade, como se esperasse alguma coisa, o pescoço
estendido.
Na cidade, o sino soou lugubremente.
- O toque de finados ou o fogo? - perguntou Alexis, pondo a
mäo a servir-lhe de pala e erguendo-se de um salto.
- O que é que tens? É o relógio que dá as horas.
Alexis partiu, enquanto Nikita, depois de um instante de
silêncio, disse, baixinho:
- Pensa sempre que há fogo.
1. Orlov. em russo, vem de =águia .
54 ; 55
- Tornou-se mau, observou prudentemente Natália. E era
täo alegre...
Com a gravidade dos mais velhos, Pedro admoestou a mulher e
o irmäo:
- Tratam-no como dois parvos e a vossa piedade fere-o.
Vem deitar-te, Natália.
Foram-se embora. O corcunda seguiu-os com os olhos, de-
pois levantou-se também e sentou-se perto da rede, onde fizera
a cama com feno.
A rede estava em cima da relva e de lá via, para além do
muro, as casas sombrias da cidade, de onde sobressaíam os
campanários e a torre dos bombeiros.
A criada arrumava a mesa, a louça tilintava; ao longo do
muro passaram tecelÖes; um levava redes, o outro arrastava
pesadamente um balde de ferro, o terceiro fazia saltar faíscas
do isqueiro, tentando acender o cachimbo. O cäo rosnou, a voz
calma de Tikhon Vialov martelou o silêncio:
- Quem vem lá?
Sobre a terra, o silêncio parecia täo tenso como a pele de
um tambor; o mais pequeno ranger da areia sob os pés dos
tecelÖes repetia-se com desagradável nitidez. Nikita gostava
muito do mutismo das noites. Quanto mais completo, melhor
Nikita podia concentrar em Natália a força da sua imaginaçäo,
mais vivamente brilhavam para ele os olhos amados, sempre um
pouco amedrontados ou admirados. Nesses momentos,
imaginava facilmente mil acontecimentos favoráveis: acaba de
descobrir um rico tesouro que oferece a Pedro, e este cede-lhe
Natália; ou, entäo, é atacado pelos ladrÖes e Nikita comete
proezas täo extraordinárias que o pai e o irmäo lhe oferecem
Natália para o recompensar; ou, ainda, surgiria uma epidemia
que mataria toda a família e só eles os dois ficariam vivos,
para que pudesse mostrar a Natália toda a felicidade que
guardara no peito.
Era já cerca de meia-noite quando viu por cima dos telhados
das casas, subindo das núvens imóveis dos jardins, outra núvem
que se elevava lentamente na bruma cinzento-escura do céu;
pouco depois, a núvem iluminou-se, na base, por um reflexo
púrpura. Nikita, compreendendo que era um incêndio, correu
para casa e, no pátio viu Alexis, que escalava com presteza o
telhado do celeiro.
- O fogo! - gritou Nikita.
O irmäo continuando a subir, respondeu:
- A sério?
- Parece que já o esperava -, exclamou o corcunda. E,
surpreendido, parou no meio do pátio.
- É claro que o esperava. O que é que isso tem de
extraordinário? Com uma seca assim, há sempre fogos.
- Temos que acordar os tecelÖes...
Mas estes, despertos por Tikhon, já corriam uns atrás dos
outros a camínho do rio, soltando alegres exclamaçÖes.
- Sobe comigo - propôs Alexis, encavalitado na aresta do
telhado. Docilmente, o corcunda subiu dizendo:
- Se Natália se assusta. ..
- E tu näo tens medo que Pedro te faça outra marreca?
- Porquê? - inquiriu suavemente Nikita. O outro respondeu:
- Para te ensinar a näo lhe cobiçares a mulher.
O corcunda ficou por muito tempo sem poder articular
palavra; via-se a escorregar do telhado, a cair, a magoar-se
de encontro ao chäo.
- O que é que tu dízes? Devias pensar primeiro... -
balbuciou ele.
- Bem, bem. Eu tenho olhos... Mas näo te assustes, disse
Alexis com uma satisfaçäo que há muito näo mostrava; ele
contemplava, por entre as mäos, as línguas de fogo que
baloiçavam, perturbando o silêncio com um ruído surdo e falava
com animaçäo:
- Säo os Barski que estäo a arder! Têm no pátio uns vinte
tonéis de sebo. Mas o fogo näo chegará aos vizinhos, vai
deter-se no jardim.
"Tenho que fugir daqui", pensava Nikita, olhando ao longe
as trevas rasgadas pelas chamas; ali, no ar avermelhado,
erguiam-se árvores de ferro forjado e sobre a terra, também
avermelhada, corriam homens pressurosos, grandes como
duendes; viam-se mergulhar nas chamas forquilhas compridas e
delgadas.
56 " 57
- Aquilo arde bem - observou Alexis com satisfaçäo.
No pátio, Pedro, estremunhado e irritado, resmungava;
Tíkhon Vialov respondia-lhe indolentemente, enquanto que, como
num quadro, Natália, olhando da janela, fazia o sinal da cruz,
repetidamente.
Nikita continuou sentado no telhado até ao momento em que no
local do fogo ficou apenas um montäo de tiçÖes brilhantes como
o ouro, em volta das negras colunas das chaminés. Depois,
desceu, saiu do pátio pela porta das traseiras e chocou com o
pai, molhado, negro de fuligem, sem boné, o
casaco rasgado.
- Aonde é que vais? - interrogou este, meio zangado;
arrastou Nikita até ao pátio e, avistando no telhado a
silhueta branca de Alexis, ordenou, furioso:
- O que é que fazes aí? Desce! Tens de poupar a saúde,
imbecil. . .
Nikita seguiu para o jardim, sentou-se num banco, sob a
janela do quarto do pai e, pouco depois, este fechando com
violência a janela, disse com voz surda:
- Tu queres dar cabo de ti? E envergonhar-me? Espera, que eu
já te ensino...
Alexis respondeu, resmungando:
- A culpa foi tua, que me lembraste. . .
- Cala-te! E dá graças a Deus que a língua desse miserável
tenha emudecido...
Nikita levantou-se e, sem barulho mas rápido, foi para o
outro lado do jardim, para observar a armadilha.
No dia seguinte, ao pequeno almoço, o pai contou:
- Deitaram-lhe o fogo. Foi esse bêbado do relojoeiro.
Moeram-no com pancada e é provável que näo escape. Dizem que
Barski o arruinara e, como andava de mal com o filho, o
Stepan... mas näo se percebe bem.. .
Alexis bebia tranquilamente o seu leite, enquanto Nikita,
sentindo tremer as mäos, escondeu-as entre os joelhos e
apertou-as. O pai, que o observava, perguntou:
- Por que estás a tremer?
- Näo me sinto bem.
- Anda tudo doente, aqui; só eu é que continuo. . .
E sem mesmo acabar de beber o chá levantou-se e foi-se
embora.
' A fábrica de Artamonov enchia-se rapidamente de homens; a
duas verstas, nas colinas cheias de mato, por entre raros
pinheiros, construíram-se pequenas cabanas atarracadas, sem
pátio, sem resguardos, que, de longe, lembravam colmeias.
Para os operários solteiros, Artamonov mandara erguer, no
alto duma ravina pouco profunda - o leito seco de um riacho
sem história - uma comprida barraca com três chamínés e
diversas janelinhas, para melhor conservar o calor; estas
janelas davam à barraca o aspecto de uma cocheira e os
operários chamavam-lhe o "palácio dos potros".
' Elias Artamonov tornava-se de uma arrogância cada vez mais
ruidosa, mas sem a presunçäo do homem rico; era simples para
com os operários, aceitava os convites para as suas bodas,
baptizava-lhe os filhos, gostava de cavaquear, nos dias de
festa, com os velhos tecelÖes; aconselhado por eles, dissera
aos camponeses que semeassem linho nas terras abandonadas e
nas florestas destruídas pelo fogo, e todos, por este modo,
tinham alcançado bons resultados. Os velhos tecelÖes admiravam
este paträo bem disposto, viam nele um mujique a quem a sorte
sorria e apontavam-no aos jovens:
- Aqui têm como devem orientar os negócios!
Elias Artamonov, por seu turno, dizia aos filhos:
- Os camponeses säo mais sensatos que as pessoas da cidade:
estas säo de corpo débil e espírito cansado; o homem da cidade
é avaro mas sem ousadia. Tudo o que faz é mesquinho, frágil.
Os das cidades nunca conhecem o justo sentido da medida, ao
passo que o camponês se mantém solidamente nos limites da
verdade; näo corre por aqui e por ali. E a sua verdade é
simples; por exemplo, Deus, o päo, o czar. Todo o mujique é
simples: é nele que devemos confiar. Tu, Pedro, tu que falas
com severidade aos operários e apenas do seu trabalho; isso
näo basta. Deve tagarelar-se um pouco. Algumas graçolas näo
fazem mal. Um homem bem disposto faz-se compreender melhor.
58 " 59
- Eu näo sei brincar - respondeu Pedro, coçando a orelha,
como era seu jeito.
- Aprende. A brincadeira dura um instante, mas dispÖe bem
por uma hora. Alexis também mostra pouco jeito, grita, é
severo...
- Säo uns malandros e uns fingidos - retrucou Alexis com
insolência.
Artamonov repreendeu-o severamente:
- Tu conheces porventura os homens?
Mas sorriu por entre as barbas e para que näo vissem que
sorria começou a mastigar päo. Lembrou-se da habilidade e do
bom senso com que Alexis discutira com a gente da cidade, a
propósito do cemitério: os habitantes de Driomov näo queriam
deixar sepultar no seu cemitério os operários de Artamonov e
foi necessário comprar a Pomialov um bocado de terreno para lá
fazer um cemitério particular.
Nikita via que Vialov trabalhava bem e com presteza,
mostrando na sua tarefa maior sabedoria que nas suas palavras
estranhas e por vezes inesperadas. Como o seu pai, sabia
encontrar sempre em qualquer trabalho o ponto de menor
resistência; poupava as forças e servia-se da manha. Mas havia
ainda uma diferença sensível: o pai fazia tudo com ardor, e
Vialov parecza trabalhar contrafeito, por condescendência,
como um homem que se sabe capaz de fazer outra coisa melhor.
Além disso, falava pouco, condescendente, grave, com um
certo desinteresse, que parecia significar:
- Sei muito mais coisas, poderia dizê-las.., Nikita julgava
nuvir sempre nas afirmaçÖes de Tikhon alusÖes que lhe
inspiravam a respeito deste homem despeito, medo e, até, uma
inquieta e aguda curiosidade:
- Tu conheces muitas coisas - dizia a Vialov.
Este respondia devagar:
- É por isso que vivo. Se as sei, näo é uma desgraça; sei
para mim. O meu dever está escondido no cofre do avarento,
ninguém o vê, está descansado...
Tikhon nunca se importava com o que pensavam as pessoas;
contentava-se em observá-las indiscretamente com os seus olhos
piscos de pássaro e, como se tivesse adivinhado os pensamentos
dos outros, de repente começava a falar daquilo que devia
guardar para si. Por vezes, Nikita desejava que Vialov
trincasse a língua, que a cortasse, como ele cortara um dedo.
E esse dedo cortara-o de maneira equisita, näo na mäo direita,
mas na esquerda.
O pai, Pedro e todos os outros consideravam Vialov um pobre
idiota, mas Nikita näo pensava do mesmo modo. Um sentimento
todo feito de curiosidade e de medo ligava-o a este
incompreensível camponês de queixo saliente. Este sentimento
de medo reforçara-se sobretudo depois que Vialov, quando um
dia regressavam da floresta, lhe dissera, inesperadamente:
- Parece que continuas a minguar! Devias dizer-lhe, meu
pobre fenómeno, que talvez ela, que parece boa, tenha piedade
de ti.
O corcunda parou; o coraçäo apertado pelo medo, as pernas
petrificadas, balbuciou, desorientado:
- Dizer o quê, e a quem?
Vialov limitou-se a olhá-lo e recomeçou a andar; Nikita
agarrou-o pelo braço mas Tikhon afastou-o e disse ainda:
- Para que andas a fingir?
Colocando no chäo a bétula que acabara de arrancar na
floresta, Nikita olhou à sua volta; tinha vontade de esmagar a
face rugosa de Vialov, desejaria obrigá-lo a calar-se,
enquanto o outro, olhando-o de través, continuava
tranquilamente, como se tratasse de coisas sem importância:
- E mesmo que ela näo fosse boa, talvez ela quisesse fingir
que o era. As mulheres säo curiosas, todas gostam de passar de
um homem para outro, para saber se há algo mais doce que o
açúcar. E nós, quem é que nos quer? Uma vez, duas vezes, e
eis-nos contentes e bem dispostos. E tu andas a murchar.
Experimenta, diz-lhe, talvez ela queira...
Nikita julgou ver nestas palavras uma piedade amigável; era
uma novidade, desconhecida por ele, e isso picava-lhe a
garganta, mas ao mesmo tempo tinha a impressäo de que Tikhon o
despia e o deixava nu.
- Näo estás bom da cabeça - disse.
Na cidade, os sinos tocaram, anunciando a última missa.
Tikhon abanou os troncos que levava ao ombro e continuou a
andar, batendo no chäo com a enxada de ferro e falando sempre
no mesmo tom.
- Näo tenhas medo de mim. Tenho pena de ti, és um homem
simpático, curioso. Vocês todos, os Artamonov, säo muito
curiosos... Mas tu näo tens o feitio de um corcunda e, no
entanto, näo deixas de o ser...
O pavor de Nikita transformou-se numa quente tristeza que
lhe perturbava os olhos; tropeçava como um bêbado e tinha
vontade de se deitar no chäo e descansar. Implorou, baixinho:
- Näo fales mais nisso.
- Já to disse: é como se fosse um cofre...
- Esquece. Näo digas nada na frente dela.
- Eu nunca lhe falo. E por que havia de dizer?
Até chegarem a casa, fizeram o caminho em silêncio.
Os olhos azuis do corcunda tornaram-se maiores, mais
redondos, mais tristes; olhava as pessoas sem as ver, por cima
do ombro; e fícou ainda mais taciturno, mais distante.
- Porque andas triste? - perguntou ela.
Nikita respondeu:
- Tenho muito que fazer.
E afastou-se rapidamente.
Ela ficou um pouco magoada; já näo era a primeira vez que
sentia que o cunhado a tratava com mais brusquidäo do que
antes. Ela levava uma vida aborrecida. Em quatro anos, tivera
duas filhas, e andava outra vez grávida.
- Porque é que tens só raparigas, que queres tu que façamos
delas?, resmungou o sogro quando a segunda nasceu.
Näo lhe deu nenhum presente e queixou-se a Pedro:
- De netos é que preciso, e näo de genros. Queres que os
estranhos destruam tudo o que andamos a fazer?
A cada palavra do sogro, a mulher sentia-se culpada; sabia
que o marido também andava descontente. A noite, deitada ao
seu lado, ela olhava pela janela as estrelas longínquas e
acariciando o ventre orava mentalmente:
- Senhor, se puderes dar-me um filho...
Mas por vezes tinha vontade de gritar ao marído e ao sogro:
- Hei-de ter só filhas, para vos irritar. . .
Sentia vontade de fazer qualquer coisa que espantasse,
inesperada, algo de bom que atraísse o afecto dos bons, ou de
mau para os amedrontar a todos. Mas nada sabia inventar, nem
bom, nem mau.
Levantada de madrugada, descia à cozinha e preparava com a
cozinheira os acepipes para o chá, voltava a subir, a correr,
para dar de comer às fílhas, servía depois o chá ao sogro, ao
marido, aos cunhados, voltava a dar de comer às filhas, depois
cosia e pespontava toda a roupa; a seguir ao almoço ia para o
jardim, com as crianças, e lá ficava até ao chá da tarde.
Dobadeiras manhosas entravam e, na passagem, gabavam a beleza
das meninas; Natália sorria, embora näo acreditasse nos
cumprimentos: as filhas pareciam-lhe feias.
Por vezes, entre as árvores, avistava Nikita, o único homem
que lhe testemunhava afecto mas, agora, quando o convidava a
sentar-se junto dela, ele respondia, o rosto contrito:
- Desculpe, näo tenho tempo.
A pouco e pouco, chegou a admitír que a atitude afectuosa do
corcunda era fingida;-o marido deixava-o junto dela para que
os espiasse, ela e Alexis. Tinha medo de Alexis porque ele lhe
agradava: sabia que, se o cunhado tentasse, ela näo saberia
resistir-lhe. Mas ele nada queria e näo lhe ligava
importância:
Natália sentia-se ferida com isso e quase o odiava.
As cinco horas, bebíam o chá, às oito ceavam, depois Natália
lavava as crianças, alimentava-as, deitava-as na cama, rezava
demoradamente, ajoelhada, e estendia-se ao lado do marido,
sempre na esperança de conceber um filho. O marido, se a
desejava, resmungava, logo que se deitava na cama:
- Já basta. Deita-te.
Persignando-se apressadamente, interrompia a oraçäo,
chegava-se para junto dele, dócil. Por vezes, o que era raro,
Pedro gracejava:
- Por que rezas tanto? Os outros näo teräo que rezar. ..
A noite, quando o choro da mais nova a acordava, depois de
ter dado a mama e de a acalmar, aproximava-se da janela
e ficava por muito tempo a olhar o jardim, o céu, pensando em
si própria, em sua mäe, no sogro, no marido, em tudo o que
lhe trouxera o dia trabalhoso que, no entanto, decorrera sem
dar por isso. Parecia-lhe estranho já näo escutar as vozes
habituais, as cançÖes alegres ou tristes dos operários, os
barulhos e `os rumores múltiplos da fábrica, o seu rumorejar
surdo de abelha; este ruído incessante e febril enchia o dia
inteiro, o eco flutuava nas salas, arrastava-se pela folhagem
das árvores, acariciava os vidros; este rumor do trabalho que
se ouvia sempre nem deixava pensar.
Pelo contrário, na calma nocturna, no silêncio adormecido de
tudo o que vive, relembrava as histórias fantásticas de Nikita
de mulheres capturadas pelos tártaros, as vidas das santas
monjas e dos mártires; por vezes, acudiam-lhe também os
relatos de vida feliz e alegre, mas, em regra, eram coisas que
a magoava que lhe vinham à mente.
O sogro continuava a olhá-la como se ela näo existisse, e
ainda bem; pois muitas vezes, ao encontrá-la num corredor ou
num quarto, palpava-a cinicamente, dos seios aos joelhos, com
um olhar penetrante, e cheirando-a com hostilidade.
O seu marido era seco e frio; sentia que por vezes a olhava
como se ela o impedisse de ver qualquer coisa escondida atrás
das suas costas. Muitas vezes, depois de despido, chegava a
näo se deítar, ficando por muito tempo sentado na borda da
cama, uma das mäos apoiada nos cobertores, e, com a outra,
coçando a orelha ou apertando a barba de encontro à face, como
se tivesse dor de dentes. O rosto sem beleza enchia-se de
rugas, queixoso ou irritado; nessas alturas, Natália näo
ousava deitar-se.
Ele falava pouco e apenas das coisas da casa; algumas vezes,
mas muito raramente, evocava a existência dos camponeses e dos
senhores que Natália näo compreendia. No Inverno, aos
domingos, no Natal e nos dias santos, levava-a até à cidade.
Atrelavam ao trenó um belo potro de olhos de cobre amarelo
estriados com veiazinhas de sangue; o animal sacudia a cabeça
raivosa e agitava-se. Natália, que tinha medo do potro, ainda
ficou com mais quando Tikhon Vialov disse:
- É um animal cheio de nobreza, que fica furioso quando os
outros o obrigam a andar.
Por vezes, a mäe acompanhava-os. Natália invejava a sua
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vida livre, o brilho feliz dos seus olhos. O seu ciúme
tornava-se ainda maior e mais cruel quando ela notava o
à-vontade com que o sogro gracejava com Uliana, acariciando a
barba e admirando a amante, enquanto esta se pavoneava, dando
às ancas e gabando-se impudicamente na frente dele da sua
beleza. Já há muito tempo que na cidade se sabia das relaçÖes
entre Uliana e o compadre e, julgando-a severamente,
mantinham-na à margem. As pessoas gradas tinham proibido às
fílhas, amigas de Natália, que a visitassem, pois a mäe era
uma depravada, e ela própria desposara um homem estranho e
sombrio, desajeitado e orgulhoso; por isso, as pequenas
alegrias da sua vida de rapariga pareciam a Natália grandes e
admiráveis.
Sentia-se vexada por verificar que a mäe, outrora täo
franca, se tornara manhosa e hipócrita; com certeza tinha medo
de Pedro e, para que ela näo o soubesse, lisonjeava-o pela sua
inclinaçäo para os negócios. E receando certamente os olhos
zombeteiros de Alexis, tinha atençÖes para com ele, falava-lhe
baixinho e dava-lhe presentes. No dia dos seus anos,
ofereceu-lhe um relógio de porcelana, com figurinhas que
representavam cordeiros e uma mulher coroada de flores.
- Este relógio deixaram-no como penhor de três rublos apenas
- explicou. - É antigo, näo funciona. Quando Alexis se casar,
enfeitar-lhe-á a casa.
" Também eu poderia ter enfeitado a minha com ele" - pensou
Natália.
A mäe interrogava-a minuciosamente acerca da sua vida e
dava-lhe fastidiosos conselhos:
- Durante a semana, näo vale a pena estares a pôr
guardanapos na mesa; eles sujam-nos logo com os bigodes e as
barbas.
Até aí, Nikita agradara-lhe, mas agora olhava-o apertando os
lábios, falava-lhe como a um empregado suspeito de
desonestidade e recomendava à filha:
- Toma cuidado e näo o queiras ao pé de ti, que os marrecos
säo uns matreiros.
Por diversas vezes, Natália esteve para se queixar à mäe, do
seu marido, da falta de confiança que nela depositava, chegan
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do a ordenar ao corcunda que a vigiasse, mas havia sempre
qualquer coisa que a impedia de falar.
E o pior era que a mäe, alarmada igualmente por ela näo ter
filhos, interrogava-a acerca da sua intimidade nocturna com o
marido; perguntava tudo, impudicamente, sem rodeios; um
sorriso iluminava-lhe os olhos húmidos, a sua voz murmurada
tornava-se cariciosa, a sua curiosidade perturbava penosamente
Natália, que ouvia com alívio o sogro perguntar:
- Vamos de carro, comadre?
- Antes quero ir a pé.
- Bem, eu acompanho-te.
Pedro dizia à mulher, pensativo:
- A tua mäe é inteligente, sabe lidar com o pai. Quando
cá está, ele mostra-se menos severo connosco. Ela devia vender
a casa e passar a viver aqui.
"Näo penso assim, tinha vontade de responder Natália, mas
näo ousava, e agastava-se ainda mais com a mäe, por vê-la
assim amada e feliz.
Sentada junto à janela do jardim, o trabalho entre as mäos,
ela escuta parte de uma conversa entre Nikita e Tikhon; eles
estäo por detrás dos arbustos, perto do balneário, e através
do ruído brando da fábrica filtram-se as palavras tranquilas
do velho:
- O aborrecimento vem dos homens, eles é que o fazem e
provocam!
" Como é verdade - pensa Natália.
Mas a voz agradável de Nikita protesta:
- Näo acho. E os bailes e os jogos? Sem os homens näo
haveria alegria.
Também é verdade, concorda a mulher, admirada.
Ela vê que à sua volta toda a gente fala com a certeza do
que diz; todos sabem alguma coisa e sabem-na bem; ela vê
realmente que as palavras simples, certas, utilizadas
oportunamente, significam para cada homem uma parcela de
sólida verdade; e é pelas suas palavras que as pessoas se
distinguem, que se tornam notadas, fazendo-as tilintar e
brincando corno se o fizessem com as suas correntes do
relógio. Ela näo conhece tais palavras, näo sabe exprimir os
seus pensamentos e, incompreensíveis, confusos como o nevoeiro
do Outono, os pensamentos pesam-lhe, embrutecem-na e, cada vez
com maior frequência, ela diz para consigo, mortificada e
angustiada:
- Sou uma tonta, näo sei nada, näo compreendo nada..." - O
urso é maroto, sabe onde está o mel - murmura Tikhon por entre
a folhagem das framboezas.
"Também é verdade" - pensava Natália. E, a tremer,
recorda-se de como Alexis matou um urso de que gostava: até ao
décimo terceiro mês, o urso, domesticado e tratado como se
fosse um cäo, entrava na cozinha e, erguendo-se nas patas
traseiras, pedia päo fungando suavemente e piscando os olhos
sorridentes. Era muito engraçado, era bom e parecia
compreender o que lhe faziam. Toda a gente gostava dele.
Níkita tratava-o, penteava os tufos do seu pelo espesso e
emaranhado, levava-o ao rio para ele se banhar, e o urso tinha
tal ternura pelo corcunda que, quando este se ia embora, o
animal, o focinho no ar, cheirava o ar com ansiedade, corria
rosnando através do pátio e tentava entrar no escritório onde
estava o seu amigo: por diversas vezes partiu os vidros e os
caixilhos da janela. Natália divertia-se dando-lhe päo branco
molhado em melaço e o urso aprendera também a mergulhar o päo
na gamela; com alegres grunhidos, balançando-se nas suas patas
felpudas, metia o päo na boca rósea e de grandes dentes,
chupava o molho açucarado, os olhitos brilhantes de felicidade
e a sua grande cabeça acariciava os joelhos de Natália num
convite para brincar com ele. Tudo quanto lhe diziam o animal
parecia começar a compreendê-lo.
Mas uma vez Alexis embebedou-o com aguardente: o urso bêbado
começou a dançar, a dar pinotes, subiu ao telhado do balneário
e, tirando os tijolos, começou a desfazer a chaminé, numa
brincadeira a que os operários achavam muita graça.
Desde entäo, nos dias de festa, para divertir as pessoas,
Alexis dava de beber ao urso e o animal habituou-se de tal
modo que começou a perseguir todos os operários que lhe
cheiravam a álcool e näo deixava passar Alexis no pátio sem se
precipitar sobre ele. Amarraram-no, mas o urso desfez a casota
e, arrastando a corrente à qual tinham ligado um grande
tronco, começou a andar pelo pátio, agitando as patas e
sacudindo a cabeça.
66 " 67
Quiseram apanhá-lo, mas arranhou a perna de Tikhon, derrubou
um jovem operário e deu uma patada em Nikita.
Nessa altura, Alexis pegou num comprido fueiro e enterrou-o
com toda a força no ventre do urso. Natália viu o animal
sentar-se nas patas traseiras e agitar as da frente como para
pedir perdäo às pessoas que gritavam furiosamente à sua volta.
Alguém pôs nas mäos de Alexis um machado e o rapaz
descarregou-o, sucessivamente, nas pernas do animal, que
rugiu, estrebuchou nas suas patas feridas de onde escorria
sangue que logo cobria o chäo e se coagulava. Com grunhidos
lamentosos, o animal pareceu estender a cabeça para aparar
nova machadada, e Alexis, as pernas afastadas, mergulhou outra
vez a lâmina na nuca do urso; o machado entrou täo
profundamente nos ossos que Alexis, o pé apoiado no corpo
peludo, teve dificuldade em retirá-lo do crânio.
Natália sentiu a morte do animal, mas sentiu ainda mais o
saber que o seu intrépido cunhado, täo esperto, täo alegre e
täo vaidoso andava atrás de uma garota insignificante e que
näo lhe ligava importância, a ela, Natália.
Todos cumprimentaram Alexis pelo seu à-vontade e pela sua
bravura; o pai, batendo-lhe no ombro, gritava:
- E dizes tu que andas doente!
Nikita sumira-se do pátio, enquanto Natália chorava. O
marido, despeitado e surpreendido, acabou por lhe perguntar:
- E se matassem um homem na tua frente entäo que é que
farias?
E gritou-lhe, como a uma criança:
- Basta de lágrimas, parvalhona!
Ela chegou a pensar que ele lhe ia bater e, sustendo as
lágrimas, recordou-se da primeira noite em que ele se mostrara
täo afectuoso e tímido. Lembrou-se também de que ele nunca lhe
batera, ao passo que todas as suas amigas apanhavam dos
maridos e, reprimindo os soluços, disse-lhe:
- Desculpa, tenho tanta pena do urso...
- É de nós que deves ter pena e näo do urso - respondeu ele
a meia voz, quase meigo.
No dia em que ela se queixou, pela primeira vez, à mäe da
rudeza do marido, esta disse-lhe:
- O homem é como uma abelha e para ele nós somos as flores;
eles procuram o nosso mel: é isso que temos de aceitar.
Temos de sofrer, minha pequena. Os homens fazem tudo, têm mais
preocupaçÖes do que nós, constroem igrejas, fábricas. Repara
no que fez o teu sogro num sitio onde nao havia nada. . .
Elias Artamonov procurava, cada vez mais furiosamente,
aumentar e consolidar os seus negócios, como se pressentisse
que já näo tinha muito tempo para o fazer. Em Maio, poucoantes
do dia de S. Nicolau, chegou uma caldeira a vapor, destinada
ao segundo edifício da fábrica. Veio num barco, que acostou à
margem arenosa do Oka, no sítio onde se espalha
preguiçosamente a água pantanosa do verde Vatarakcha. Havia um
trabalho custoso a fazer: arrastar a caldeira mais de
trezentos metros num chäo de areia.
No dia de S. Nicolau, Artamonov ofereceu aos operários um
opíparo festim, muito bem regado com aguardente e cerveja.
Arranjaram-se as mesas no pátio, as mulheres enfeitaram-nas
com ramos de pinheiros, de bétula, com ramos das primeiras
flores da Primavera e depois vestiram trajos coloridos, como
as flores. O paträo, rodeado pela família e por alguns
convidados, sentara-se no meio dos velhos tecelÖes; trocava
graçolas apimentadas com as operárias de língua afiada, bebia
muito, excitava habilmente os convidados e, mexendo com a mäo
a barba já grisalha, gritava, animadíssimo:
- Vamos, rapazes! Näo é verdade que a vida é bela?
Admiravam os seus ditos e ele sentia-o e ficava ainda mais
satisfeito por ser como era. Brilhava, resplandecia como este
dia de Primavera cheia de sol, como a terra inteira, enfeitada
com a verdura juvenil das ervas e das folhas, aspirando o odor
das bétulas e dos pinheiros que erguiam já para o céu os seus
frutos; naquele ano, a Primavera chegara cedo e quente,
cerejeiras e lilases começavam a florir. Tudo estava em festa,
tudo era alegria e até as pessoas pareciam, nesse dia,
floridas com o que nelas havia de melhor.
O teceläo Boris Morozov, um velho magro de rosto de cera,
escondido por detrás de uma barba que de cinzenta passara a
esverdeada, muito branco e lavado como um morto, levantou-se,
68 " 69
apoiado ao ombro do filho mais velho - homem dos seus sessenta
anos - e berrou, agitando a mäo ossuda e descarnada:
- Reparem: tenho noventa anos, noventa e tantos, rapazes!
Fui soldado, combati Pugatchev, estive na revolta, em Moscovo,
no ano da peste, sim.. . Derrotei Bonaparte.. .
- E quem é que acariciaste? - gritava-lhe Artamonov ao
ouvido, pois o teceläo era surdo.
- Duas esposas, sem contar com as outras. Olha: sete
rapazes, duas raparigas, dezanove netos, cinco bisnetos - aqui
tens o que teci! E todos vivem em tua casa, todos estäo
aqui...
- Dá-me ainda mais! - exclamava Elias.
- Outros viräo! Sobrevivi a quatro czares e a duas czarinas!
Vivi näo sei com quantos patrÖes; todos morreram e eu continuo
a viver! Teci quilómetros de pano. Tu, paträo, tu és um
verdadeiro paträo, tu viverás muito tempo. És um mestre,
gostas do teu ofício, ama-lo. Näo fazes mal às pessoas. Tu és
um ramo da nossa árvore, sim! Para ti, a sorte é a legítima e
näo a amante que acaricia e depois se vai embora! Continua,
pois! E que tenhas saúde, irmäo, que sempre tenhas saúde e
força!. ..
Artamonov abraçou-o, ergueu-o, beijou-o, exclamando com
alegria:
- Obrigado, rapaz! Hás-de ser o meu gerente!
Os presentes gritavam, riam e o velho teceläo, comovido,
levantado ainda, agitava no ar as mäos esqueléticas e soltava
pequenas gargalhadas:
- Ele é diferente, näo é como os outros! ..
Uliana Baimakov, sem se sentir envergonhada, enxugava
lágrímas de ternura:
- Tanta alegria! - disse-lhe a filha.
Ela respondeu assoando-se:
- Um homem como este foi para a alegria que o Senhor o
criou!
- Aprendam, meus rapazes, como se deve viver com as pessoas,
exclamava Artamonov dirigindo-se aos filhos. Olha, Pedrito!
Depois do jantar, as mulheres arrumaram as mesas e começaram
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a cantar; os homens mediram forças lutando e puxando à vara;
Artamonov, presente em toda a parte, lutava e dançava; a festa
durou até de madrugada e, ao primeiro raio de sol, uns
sessenta operários, o paträo à frente, seguiram para o Oka,
formando um bando ruidoso, como na pilhagem, bêbados,
cantando, assobiando, transportando aos ombros grossos
troncos, alavancas de carvalho e cordas; o velho teceläo,
arrastando-se atrás deles, rosnava a Nikita:
- Ele conseguirá o que quer! Conheço-o...
O monstro vermelho, igual a um touro sem cabeça, foi
facilmente desembarcado do barco para a margem, ataram-lhe
cordas e, com gritos e rugidos, arrastaram-no com o auxílio de
rolos ao longo de tábuas colocadas em cima da areia; a
caldeira balançava levemente e seguia, parecendo que a goela
redonda e estúpida do monstro se abria com espanto em face da
alegre força dos homens. O pai, entusiasmado, ajudava a
arrastar a caldeira, aconselhando:
- Devagar, devagar!
E, batendo com a mäo no flanco vermelho do monstro de ferro,
repetia:
- Cá vai ela, cá vai ela...
Só faltavam uns cem metros para chegar à fábrica, quando a
caldeira se inclinou mais bruscamente e, de mansinho,
escorregou do tronco, enterrando na areia a bocarra obtusa.
Nikita viu uma nuvem de poeira cinzenta junto das pernas do
pai. Os homens, irritados, afadigavam-se em redor da pesada
massa tentando pôr-lhe o rolo por baixo, mas já näo podiam
mais; a caldeira continuava obstinadamente enterrada na areia
e, resistindo a todos os seus esforços, parecia afundar-se
cada vez mais. Artamonov, uma alavanca na mäo, lutava no meio
dos operários, incitando-os:
- Vamos, rapazes, outra vez, todos juntos! Vamos! ...
A caldeira mexeu-se, mas de novo se afundou pesadamente e
Nikita viu o pai sair de entre a multidäo dos operários; os
seus gestos e a sua figura eram estranhos: com a mäo sob a
barba, segurava a garganta e, com a outra, tacteava o ar, como
fazem os cegos; o velho teceläo saltitava atrás dele,
lembrando:
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- Come um pouco de terra...
Nikita chegou junto do pai e este, num soluço, cuspiu-lhe
sangue aos pés e disse com voz surda:
- Sangue.. .
O seu rosto tornou-se cinzento, piscou os olhos espantados,
o queixo tremeu-lhe e todo o enorme corpo inteligente se
encolheu,receoso:
- Magoaste-te? - perguntou Nikita dando-lhe a mäo. O pai
cambaleou, empurrou-o e respondeu a meia voz:
- Creio.. . que uma veia rebentou. ..
- Come terra, digo-te!. ..
- Deixa-me em paz, vai-te embora.. .
E voltando a cuspir sangue com abundância, Artamonov
murmurou com espanto:
- Isto corre. Onde está Uliana?
O corcunda queria ir a casa, mas o pai segurava-o pelo ombro
e, a cabeça baixa, arrastava-se pela areia, como se escutasse
o ranger dos próprios passos, que mal se ouviam entre as
exclamaçÖes furiosas dos operários.
- O que é que há? - perguntou e seguiu para casa, andando
com prudência, como se marcha sobre uma tábua por cima de um
rio profundo. Uliana, de pé, no patamar, despedía-se da filha;
Nikita reparou que, ao olhar o seu pai, todo o seu belo rosto
se voltou estranhamente, como uma roda, à direita, depoís à
esquerda, e empalideceu:
- Gelo! - pediu, quando o pai, dobrando sem querer as pernas
se deixou cair num degrau das escadas, soluçando e cuspindo
sangue cada vez mais. Como num sonho, Nikita escutou a voz de
Tikhon:
- O gelo é água, näo se pode substituir sangue por água...
- Ele devia mastigar um bocado de terra...
- Tikhon vai procurar um padre...
- Levantem-no, tragam-no - comandava Alexis; Nikita pegou no
braço do pai, mas pisaram-no com tanta força que por um
instante ficou sem ver; depois, os seus olhos viram ainda mais
claro, gravando com dolorosa avidez tudo o que se passava no
estreito quarto do pai e no pátio.
Tikhon montara um grande cavalo negro mas näo conseguia
dominá-lo; o animal, recusando sair do pátio, saltava,
voltava-se, levantava a cabeça, afugentava as pessoas: tinha
naturalmente medo do incêndio deslumbrante que o sol acendera
no céu; finalmente, passou a porta de um salto, começou a
galopar, mas, ao passar em frente da massa vermelha da
caldeira, i atirou com Tikhon para o chäo e voltou ao pátio,
soprando e agitando a cauda.
Alguém gritou:
- A trote, miúdos...
No rebordo da janela, sentado, Alexis, torcendo a barbicha
negra e pontiaguda; o seu rosto mau, que nada tem de rústico,
parece mais afilado e coberto de pó; olha sem pestanejar, por
cima da cabeça das pessoas, o leito onde está o pai, dizendo
com voz desconhecida:
- Calculei mal. É a vontade de Deus. Ouvem meus filhos?
Que Uliana seja como a vossa mäe, estäo a ouvir? E tu,
Uliana, olha por eles, por amor de Cristo! Ai! ... Mandem sair
os estranhos. ..
- Cala-te! - gemeu Uliana, pondo-lhe na cabeça mais um
pedaço de gelo. Näo há estranhos aqui.
O pai engoliu o gelo e, com um suspiro de hesitaçäo, disse:
- Näo julguem o meu pecado, pois Uliana näo é culpada.
Natália, fuí severo para contigo, mas näo foi por mal.
Dá-nos rapagÖes. Pedro, Alexis, vivam sempre em harmonia.
Sejam bons para com os operários: é boa gente. Tu, Alexis,
casa com ela, com a tua... näo tem mal!
- Pai, näo nos deixe - suplica Pedro, ajoelhando-se. Mas
Alexis puxando-o pelas costas, murmuza:
- Que estás a fazer? Näo penses...
Com uma faca da cozinha, Natália parte o gelo num grande
prato; o gelo estala e caí, acompanhando os seus soluços.
Nikita vê as lágrimas que se juntam ao gelo. Um raio de sol
penetra no quarto, reflecte-se no espelho e treme,
transformado em mancha disforme, na parede, diluindo as
figuras de compridos bígodes de chineses no papel azul como um
céu nocturno.
Nikita mantém-se aos pés do pai, esperando que este se
recorde dele. Uliana, sentada à cabeceira do ferido, ora
penteia os cabelos espessos e ondulados de Elias, ora limpa
com uma
72 " 73
toalha o fio de sangue que corre sem parar do canto dos
lábios, ou as gotas de suor que aparecem nas têmporas e na
testa; debruçada sobre os seus olhos já baços, fala suave e
fervorosamente, como se rezasse, enquanto que ele, uma das
mäos pousada no ombro da mulher e a outra no seu joelho,
pronuncia dificilmente as últimas palavras:
- Eu sei... Que Cristo te proteja! Enterrem-me no nosso
cemitério, näo quero ficar no da cidade. Näo quero ir lá para
baixo...
E, tomado por uma grande angústia, murmurou:
- Calculei mal, Senhor! Calculei mal...
Um padre, curvado mas enorme, com uma barba de Cristo e os
olhos tristes, chegou.
- Espera um pouco, padre - diz Artamonov, que volta a
dirigir-se aos filhos:
- Meus filhos, nunca se separem. Vivam unidos. O negócio näo
se faz com discórdias. Pedro, és o mais velho, respondes por
tudo, está a ouvir-me? E agora saiam...
- E Nikita? - lembrou Uliana.
- Nikita, tratem-no bem. Onde está ele? Väo, andem...
Mais tarde... E Natália...
Morreu, sangrado de todo, pouco depois do meio-dia, quando o
resplendor benfazejo do sol brilhava ainda no zénite. Estava
deitado, a cabeça ligeiramente erguida; o seu rosto de cera
parecia preocupado e os seus olhos fechados pareciam olhar
pensatívamente as mäos enormes cruzados no peito, com
resignaçäo.
Nikita tinha a ímpressäo de que, na casa, todos tinham menos
medo e receio do que espanto. Esta estupefacçäo, adivinhava-a
em todos, exceptuando Uliana: ela continuava sentada junto do
morto, silenciosa, sem chorar, como gelada, surda a tudo, as
mäos postas nos joelhos, sem desviar os olhos do rosto imóvel
e a barba de neve.
Pedro, a face emagrecida, falava muito alto ao entrar no
quarto onde o pai estava amortalhado e onde, alternando com
nikita, uma religiosa gorda rezava oraçÖes. Olhava o pai,
querendo interrogá-lo, persignava-se e, passados dois ou três
minutos, saía, de mansinho. Via-se a sua silhueta forte no
jardim ou no pátio: parecia procurar qualquer coisa.
Alexis, ocupado, tratava do enterro; corria, a cavalo, até à
cidade, voltava, entrava de súbito no quarto, interrogava
Uliana acerca do funeral e da refeiçäo fúnebre.
- Espera - respondia ela. E Alexis, suado, cansado,
desaparecia. Natália vinha, tímida, compadecida, oferecia à
mäe chá ou alimentos. A mäe ouvia-a com atençäo e respondia:
- Espera.
Nikita, enquanto o pai vivera, näo sabia se o amava;
receava-o, embora esse receio näo o impedisse de admirar o
trabalho ardente deste homem que näo tinha ternura para ele e
apenas reparava que o filho existia. Mas agora tinha a
impressäo de que só ele o amara verdadeiramente,
profundamente; uma angústia indescritível invadia-o, sentia-se
cruel e brutalmente ferido pela morte brusca deste homem
forte; esta angústia e este sentimento de ofensa sufocavam-no.
Sentado num canto, em cima de uma mala, aguardava a sua vez de
ler as oraçÖes, repetindo mentalmente as palavras das oraçÖes
conhecidas e olhando à volta. Uma penumbra suave enchia o
quarto, onde vacilavam as flores amarelas e vivas das velas.
Ao longo das paredes, colavam-se fantasticamente chineses de
bigodaças erguendo caixas de chá; de cada lado, havia dezóito
chineses, aos pares, subindo uma fila até ao tecto, e descendo
a outra. Numa das paredes desmaiava o luar oleoso e com esta
luz, os chineses pareciam mais ágeis e desciam mais
rapidamente.
De súbito, através do murmúrio monótono das oraçÖes, Nikita
ouviu que alguém perguntava insistentemente em voz baixa:
- Pois ele morreu? Senhor!. . .
Era Uliana que interrogava e havia na sua voz uma afliçäo
täo pungente que a religiosa, interrompendo a leitura,
respondeu com ar contrito:
- Morreu, minha boa mäe, foi a vontade divina...
74 " 75
Näo podendo suportar mais, Nikita ergueu-se e saiu
ruidosamente do quarto, odiando a religiosa com todo o
coraçäo.
Tikhon estava sentado na porta das traseiras., num banco;
partia bocados de madeira e enterrava-os na areia e, com os
pés, mergulhava-os täo profundamente que eles deixavam de
se ver. Nikita, sentando-se ao seu lado, olhou-o em silêncio;
lembrava-lhe o pobre idiota do António, que morava na cidade.
O louco, que tinha um rosto fechado, um pé aleijado e olhos
redondos de mocho, fazia círculos na areia, com um pau,
construía gaiolas com pauzinhos e, terminada a edifícaçäo,
esmagava-a com os pés, cobrindo-a com areia, ao mesmo tempo
que dizia:
O Cristo ressuscitou, ressuscitou!
O carro já näo tem uma roda.
Buturmá, dôdô, dôdô, But"urmá,
Dôdô, dôdô, dôdô, o Cristo...
- Que coisa, hein? - disse Tikhon e, com uma palmada
no pescoço, matou um mosquito, limpou a mäo no joelho, olhou a
Lua pendurada num ramo de salgueiro, por cima do rio, depois
deixou de olhar a massa disforme da caldeira.
- O mosquito nasceu em boa hora, este ano, continuou
tranquilamente. Sim, ora aí está, um mosquito vive, ao passo
que...
O corcunda, invadido por um estranho medo, näo o deixou
acabar e lembrou-lhe num tom zangado:
- Mas tu mataste o mosquito.
Afastou-se precipitadamente e, passados uns minutos, näo
sabendo o que fazer, voltou ao quarto do pai, tomou o lugar da
religiosa e começou a ler. Procurando esquecer a sua angústia,
aplicou-se nas oraçÖes e näo ouvia Natália entrar; e, de
súbito, átrás de si, ouviu o suave murmúrio da sua voz. Sempre
que ela estava perto, ele sentia-se capaz de dizer ou fazer
algo de extraordinário, ou terrível, e, neste momento, receava
falar mesmo sem querer. Baixando a cabeça, erguendo as costas
deformadas, a voz perturbada, ouviu, por entre a cadência da
oraçäo, as palavras soluçadas das duas mulheres:
76
- Tirei a cruz que ele trazia ao peito, e usá-la-ei...
- Mäe, querida mäe, também eu estou sozinha...
Nikita levantou a voz para abafar este murmúrio húmido, mas
näo podia deixar de escutar:
- O Senhor näo quis suportar o pecado.. .
- Sozinha, na casa dos outros...
- "Aonde irei eu, ao olhar o Teu rosto e ao enfrentar a Tua
cólera, para onde fugirei?".
Nikita modulava cuidadosamente o clamor do medo e do
desespero, enquanto se lembrava do triste ditado: "Viver sem
amar é uma desgraça, viver amando é uma dupla desgraça" e,
confundido, sentia na infelicidade de Natália brilhar para ele
uma esperança de felicidade.
De manhä, vieram da cidade, de carro, Barski e o governador
Jacob Jiteikine, um homem redondo de olhos vazios a quem
chamavam o "mal cozido" e que parecia, na verdade, ter
apodrecido numa massa crua; entraram na sala onde estava o
defunto, fizeram-lhe uma reverência, e ambos olharam com
receio e desconfiança o seu rosto escurecido; sem dúvida, esta
morte surpreendera-os. Depois, Jiteikine disse a Pedro com voz
mordente, cáustica:
- Creio que tencionam enterrá-lo no vosso cemitério.. .
É verdade ou näo? Seria ofender a nossa cidade, daria a
impressäo que vocês näo querem misturar-se connosco, que näo
querem viver em boa amizade com a gente da cidade. É verdade?
Alexis, rangendo os dentes, disse em voz baixa ao irmäo:
- PÖe-os na rua!
- Comadre! - exclamava Barski dirigindo-se a Uliana -
será possível? Mas é uma afronta!
Jiteikine interrogava Pedro:
- Näo foi Gleb quem vos aconselhou? Näo, näo pensem nisso. O
vosso pai é o primeiro fabricante do distrito, criou uma nova
indústria. " uma personalidade, um ornamento da nossa cidade.
O próprio chefe da polícia está admirado e perguntou se vocês
eram ortodoxos.
Näo deiXava de falar, sem dar atençäo às tentativas de Pedro
para o interromper, e quando, finalmente, este pôde
77
declarar que assim era a vontade de seu defunto paí, Jiteikine
acalmou-se subitamente:
- Seja como for, viremos ao funeral.
Era evidente que a visita tinha outro objectivo. Jiteikine
desviou-se para um canto da sala onde Barski, apertando Uliana
de encontro à parede, lhe falava ao ouvido, mas, antes que
Jiteikine tivesse tempo de se aproximar, Uliana invectivou-o:
- És um imbecil, compadre, pÖe-te a mexer daqui para fora!
Os lábios e as sobrancelhas fremiam. A cabeça erguida, disse
a Pedro:
- Estes, de combinaçäo com Pomialov e Voroponov, pedem-me
para vos convencer que lhes vendam a fábrica, e oferecem-me
dinheiro para eu os ajudar...
- Saiam, senhores - disse Alexis, apontando-lhes a porta.
Sorrindo, tossicando, Jiteikine seguiu à frente de Barski,
enquanto Uliana, sentando-se em cima da mala, chorava e gemia:
- Querem que desapareça a sua própria recordaçäo.
Alexis, furioso, afirmou solenemente, olhando o rosto de
Artamonov:
- Talvez eu seja pior, mas antes queria morrer do que viver
como estes desvergonhados! Preferia que me abrissem a cabeça!
- Escolheram bem a altura para virem mercadejar, resmungou
Pedro, voltando-se também para o lado do pai.
Aproximando-se de Nikita, Natália murmurou:
- E tu, por que é que näo dizes nada?
Ficou comovido por verificar que se lembravam dele e mais
feliz ainda por ser Natália; näo podendo esconder um sorriso
de alegria, respondeu, também em voz baixa:
- Oh! sabes, nós os dois...
Mas a mulher afastou-se dele com ar pensativo.
Quase todas as notabilidades da cidade assistiram ao funeral
de Elias Artamonov. O chefe da polícia, um velho alto e magro
de queixo chato e de suíças acinzentadas, veio também;
coxeando majestosamente, pisava a areia ao lado de Pedro e
repetiu duas vezes:
- O defunto tinha-me sido vivamente recomendado por Sua
Alteza o príncipe Ratski e bem mereceu esta recomendaçäo.
Mas logo a seguir disse:
- Custa a acompanhar o enterro quando é a subir.
E saiu de entre a multidäo, parou à sombra de um pinheiro e
ficou a ver desfilar, como soldados numa parada, as pessoas da
cidade e os operários.
O dia estava bonito, brilhava um sol generoso que dardejando
atxavés das manchas gordas de verde e amarelo descia
sobre a multidäo colorida que, entre duas colinas de areia,
subia lentamente para o cimo duma terceira, onde havia já uma
dezena de cruzes apontadas para o céu azul e ensombreado
devido aos enormes ramos de um velho pinheiro torcido.
Alguns gräos de areia cintilavam; ouvia-se o cantochäo pesado
dos padres; tropeçando e saltítando, António, o maluquinho,
seguia na cauda do cortejo, olhando, com os olhos redondos e
sem sobrancelhas, a areia que pisava, baixando-se, apanhando
pelo caminho pequenos ramos e escondendo-os no peito ao mesmo
tempo que cantava agudamente:
O Cristo ressuscitou. Ressuscitou.
O carro já näo tem uma roda...
Quando cantava isto, as pessoas piedosas injuriavam-no e
batiam-lhe. E, desta vez, o chefe da polícia ameaçou-o com o
dedo, dizendo:
- Cala-te, parvajola!
Na cidade näo gostavam de António e por ser morduäo ou
chuváquio, ninguém acreditava que pudesse ser um "inocente sem
mácula", pelo que o receavam e consideravam como um profeta da
desgraça. Por isso, quando, na refeiçäo fúnebre, chegou ao
pátio dos Artamonov e passou por entre as mesas a gritar
estupidamente: "Kuiatyr, kuiatyr, o diabo está na
78 " 79
torre, ai, ai, vai chover, Kaimas chove negro! ", alguns
malandrÖes comentaram ao ouvido uns dos outros:
- Nesse caso, os Artamonov näo teräo sorte. ..
Pedro ouviu. Pouco depois, viu que Tikhon Vialov perseguia o
louco e escutou as perguntas que este lhe fazia:
- O que é que quer dizer Kaimas? Näo sabes? Anda, pÖe-te a
andar...
Rapidamente, um ano passou sem qualquer incidente, a näo ser
o das habituais enchentes que, no Outono, descem das
montanhas. Os cabelos de Uliana tornaram-se cinzentos e as
tristes rugas da velhice cavaram-se-lhe nas fontes. Alexis
transformou-se muito; era mais atencíoso, mais afecuoso, mas
estava sempre cheio de pressa; fustigava toda a gente com
pequenas brincadeiras e palavras felinas. Trabalhava com uma
vontade que inquietava bastante Pedro. Dir-se-ia brincar com a
fábrica como fizera com o urso que acabara por matar. Começou
a ter uma estranha paixäo por tudo o que se vê nas casas
nobres; além do relógio que Uliana lhe dera, levou para o seu
quarto outros objectos täo bonitos quanto inúteis; pregou na
parede um quadro bordado com pérolas, representando uma roda
de raparigas. Näo esbanjava e por isso parecia incompreensível
que gastasse o seu dinheiro com estas futilidades.
Depois, começou a vestir os fatos caros que estavam na moda.
Tratava da barba pontiaguda e negra, barbeava as faces e
deixava cada vez mais de ser simples e rústico. Pedro,
sentindo que o primo se transformava num estrangeiro para ele,
observava-o furtivamente com uma desconfiança cada vez maior.
Na administraçäo da empresa, Pedro mostrava-se täo prudente
como era receoso com os homens. Andava devagar, deslizava para
o trabalho, piscando os olhos de urso, como se esperasse ver
fugir aquilo de que se aproximava. Por vezes, cansado com as
preocupaçÖes que lhe dava o negócio, sentia-se envolvido na
nuvem fria de um aborrecimento que o inquietava; nesses
momentos, via na fábrica um animal de pedra, mas bem vivo, um
animal deitado, colado ao chäo, espalhando
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sobre a terra as suas sombras largas como asas, com uma
chaminé erguida como uma cauda e uma horrível bocarra
quadrada; as janelas brilham, de dia, como dentes de gelo e, à
noite, no Inverno, como dentes de ferro aquecidos ao rubro
pelo furor. E parece que a verdadeira, a secreta missäo da
fábrica näo é a de tecer quilómetros de linho, mas uma outra
que ameaça Pedro Artamonov.
No aniversário da morte do pai, depois de uma cerimónia no
cemitério, toda a família se reuniu no lindo quarto de Alexis,
que proclamou com emoçäo:
- O pai recomendou-nos que vivêssemos em paz; assim deve
ser, pois somos todos prisioneiros destas palavras.
Nikita reparou que Natália, sentada a seu lado, estremecera
olhando o cunhado com espanto. Mas Alexis continuou:
' - E, no entanto, apesar da nossa boa amizade, näo devemos
prejudicar-nos uns aos outros. O negócio é de todos, mas cada
um de nós tem a sua vida. Näo é verdade?
- E depois? - perguntou Pedro com gravidade, olhando por
cima da cabeça do primo.
- Sabem que vivo com a menina Orlov. Agora, vou desposá-la.
Lembras-te, Nikita, ela foi a única que teve pena de
ti, quando caíste à água...
Nikita concordou com a cabeça. Era talvez a primeira vez que
se sentava täo perto de Natália e era täo bom näo sentir
vontade de se mexer, de falar ou de ouvir o que os outros
diziam. E quando Natália, estremecendo sem que se soubesse
porquê, lhe encostou levemente o braço, ele sorríu olhando por
debaixo da mesa os joelhos da cunhada.
- Creio bem que é o meu destino - prosseguia Alexis. -
E, depois, com ela, a minha vida será diferente. Näo quero
que venha morar para aqui, tenho medo que vocês näo se
entendam.
Levantando os olhos onde se via um grande pesar, Ulíana
Baimakov veio em auxílio de Alexis.
- Conheço-a muito bem é uma bordadora excepcional. E
instruída. O pai era um bêbado. E que ela, desde pequena,
começou a ganhar para si e para os seus. Mas é senhora do seu
nariz. Talvez Natália näo se entendesse com ela.
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- Entendo-me com toda a gente - replicou Natália, vexada,
enquanto o marido, olhando-a de través, dizia ao irmäo:
- Na verdade, tu é que sabes o que deves fazer.
Dirigindo-se a Uliana, Alexis pediu-lhe que lhe vendesse a
casa:
- Para que a queres toda só para ti?
Pedro apoiou-o:
- Tu devias morar connosco.
- Vou dar a boa nova a Olga - disse Alexis.
Quando partiu, Pedro, puxando Nikita pelo ombro,
perguntou-lhe:
- Estás a dormir? Em que é que pensas?
- Alexis faz bem.. .
- Bem? V'eremos... É essa a tua opiniäo, mäe?
- É evidente que deve casar com ela. Mas sabe-se lá como
viveräo! É boa rapariga, mas um pouco ingénua.
- Que parentesco! - disse Pedro com ironia.
- Talvez näo me tenha explicado bem - dizia Uliana com
hesitaçäo, como se prescrutasse as trevas onde tudo vacila, se
confunde, foge aos olhos. - Ela é esperta. O pai tinha boas
coisas e ela vinha escondê-las em minha casa, para que o pai
näo as vendesse para beber; Alexis trazia-mas, à noite, e eu,
depois, fazia que lhas dava. Tudo o que está neste quarto
pertence a Olga, é o seu dote. Ela diz que tem coisas raras,
que valem muito. Seja como for, näo gosto muito dela, é
demasiado orgulhosa.
Pedro, voltando as costas à sogra, olhava pela janela. No
jardim, cantavam os estorninhos espertalhÖes. Lembrou-se do
que dizia Tikhon:
- Näo gosto dos estorninhos: parecem diabos.
"É um idiota, este Tikhon e, por ser parvo, é que se torna
notado." Sempre em voz baixa, sem vontade, e parecendo pensar
noutras coisas, Uliana contava que a mäe de Olga Orlov, uma
mulher da nobreza mas pessoa de pouca vergonha, tornara-se
amante de Orlov, quando o marido ainda era vivo, e viveu com
ele perto de cinco anos.
- Era um artista; fazia móveis, reparava os relógios,
esculpia figuras de madeira; tenho uma destas escondida em
minha casa, uma mulher toda nua, e Olga julga que é o retrato
da sua mäe. Bebiam os dois. Quando o marido morreu, casaram-se
e, no mesmo ano, ela afogou-se quando tomava banho, por causa
de estar bêbeda.
- É isso, é isso o amor - disse ínesperadamente, Natália.
A estas palavras inoportunas, Uliana deitou à filha um olhar
de censura, e Pedro observou, com um sorriso irónico:
- Näo se tratava de amor, mas de bebedeira.
Toda a gente se calou. Ao reparar em Natáliz, Nikita via que
o relato de sua mäe a emocionara; torcia sem parzr a franja da
toalha; o seu rosto simples e bom ruborescera e adquirira uma
expressäo de maldade desconhecida.
Depois da ceia, Nikita foi sentar-se num banco do jardim,
perto dos lilases, por baiYo da janela de Natália. Lá em cima,
Pedro dizia com voz pausada: "Alexis sabe o que quer. E é
inteligente! E logo a seguir Natália exclamou:
- Vocês säo todos inteligentes! Só eu, aqui, é que sou
estúpida. Alexis tem razäo: somos todos prisioneiros. E eu sou
a vossa prisioneira...
Nikita ficou transido de medo e de pena; com as duas mäos
agarrou-se ao banco; uma força desconhecida erguia-o,
puxava-o, enquanto que, em cima, ressoava, cada vez mais alta,
a voz da mulher amada, acordando nele ardentes esperanças.
Natália estava a arranjar os cabelos quando as palavras do
marido nela acenderam um mau fogo. Encostou-se à parede,
apertando atrás das costas as mäos que tinham vontade de
bater, de rasgar; engolindo as palavras, com solúços secos,
falava sem ouvir, sem reparar nas exclamaçöes de seu marido
estupefacto; ela dizia que era uma estranha em casa, que
ninguém a amava, que vivia como uma criada.
- Tu näo gostas de mim, nunca me falas de nada, pÖes-te em
cima de mim como uma pedra e pronto! Porque näo gostas de mim?
Näo é verdade que sou a tua mulher? Que é que eu tenho de mal,
diz? Repara como a mäe vivia com o teu pai, como eu tinha
inveja deles...
- Gosta de mim como sou - propôs Pedro que, sentado
82 " 83
no rebordo da janela, fixava o rosto contraído da mulher.
Achava estúpido o que ela dizia, mas via com estupefacçäo que
a sua dor era legítima e aceitável. E o pior era que essa dor
poderia transformar-se num desentendimento duradouro, trazendo
novas maçadas e inquietaçÖes. Ora, quanto a preocupaçÖes, já
ele tinha que chegasse.
A branca silhueta da mulher em camisa de noite vacilava,
ondeava, ameaçava desaparecer. Natália ora falava baixo ora
gritava, "quase: parecia estar num baloiço, subindo e
descendo...
- Vê, vê como Alexis gosta da sua... De resto, é fácil
gostar dele: é alegre, veste bem, enquanto que tu... Nunca
tiveste uma palavra afectuosa para ninguém, nunca ris. Com
Alexis, eu poderia viver à minha vontade, mas nunca ousei
trocar uma palavra com ele; puseste ao pé de mim, para me
espiar, esse corcunda, esse porco surrateiro...
Nikita ergueu-se e, de cabeça baixa, entontecido, correu
para o fundo do jardim, afastando com as mäos os ramos que lhe
chegavam aos ombros.
Pedro levantou-se, por seu turno, aproximou-se da mulher,
puxou-a pelos cabelos e, voltando-lhe a cabeça, mergulhou os
seus olhos nos dela.
- Com Alexis? - perguntou em voz baixa mas séria. Estava täo
surpreendido com as palavras da mulher que näo podia zangar-se
e näo tinha nenhuma vontade de lhe bater; sentia cada vez mais
claramente que a mulher dizia a verdade:
ela aborrecia-se! Compreendia o aborrecimento, mas tinha de a
acalmar e, para o conseguir, bateu-lhe com a cabeça na parede,
perguntando-lhe suavemente:
- O que é que disseste, imbecil? Com Alexis?
- Larga-me, larga-me, se näo grito...
Com a outra mäo, agarrou-a pela garganta e apertou: o rosto
da mulher tornou-se violeta e ela, esgotadas as forças, deixou
de debater-se.
- Porca! - disse aínda, empurrando-a de encontro à parede,
antes de se afastar. Entretanto, ela passou à sua frente,
dirígindo-se para o berço onde a criança começara a chorar.
Pedro teve a impressäo de que a mulher passara por cima
dele.
A sua frente, baloiçava, escorregando de urn lado para o
outro,um pedaço de céu azul carregado onde cintilavam as
estrelas.
Agora, a mulher estava sentada perto dele: com as costas da
mäo, poderia esbofeteá-la. O rosto näo tinha expressäo,
parecia de madeira, mas pelas faces corriam-lhe lágrimas
lentas, preguiçosas.
, Ao dar o seio à menina, ela fixava, através das lágrimas, um
canto do quarto, sem reparar que a criança deixara de mamar:
o seio escorregara e a menina gemia, chuchava no ar e
voltava a cabecita para todos os lados. Sacudindo-se, como se
saísse de um pesadelo, Pedro disse:
- CompÖe o seio, näo vês?
- Uma mosca nesta casa, aí está o que eu sou - murmurou
natália. - Uma mosca sem asas. ..
- Eu também estou sozinho. Näo há sobre a terra dois Pedros
Artamonov...
Sentia confusamente que näo soubera dizer a verdade; ora,
para acalmar a mulher e colocar-se a si próprio ao abrigo do
perigo, era precisamente a verdade que devia ser dita, uma
verdade simples, indiscutível, que Natália teria imediatamente
compreendido: nunca mais ela o aborreceria com as suas
recriiminaçÖes parvas, os seus choros e todas as suas novas
maneiras de se exprimir. Reparando com que neglígência e falta
de jeito deitava a filha, ele disse-lhe:
- Tenho um negócio a dirigir! Uma fábrica é diferente de
semear trigo ou plantar batatas. " um problema. Ao passo que
tu näo tens preocupaçÖes nenhumas.
Falou, primeiramente, em tom grave e severo, procurando
aproximar-se desta verdade que näo podia definir e que .se
esfumava. E foi quase como a queixar-se que disse:
- A fábrica näo é uma coisa simples - repetia, sentindo que
as palavras lhe faltavam e que ao fim e ao cabo nada mais
tinha a dizer.
De pé, as costas voltadas, a mulher baloiçava
silenciosamente o berço. A voz grossa e tranquila de Tikhon
veio em seu" auxílio:
- Paträo, ó paträo!
- Que há? - perguntou, aproximando-se da janela.
84 " 85
- Vem cá - pediu o velho com insistência.
- Maçador - resmungou Pedro. E à mulher, num tom de censura:
- Estás a ver? Nem de noite descanso.. . E tu a fazer o que
fazes...
Tikhon, sem nada na cabeça, os olhos inquietos, esperava-o
no patamar, olhou o pátio iluminado pela lua e disse em voz
baixa:
- Acabo de tirar Nikita da corda. ..
- O quê? De onde?
E, com se se metesse pelo chäo abaixo, Pedro sentou-se num
degrau.
- Näo te sentes, vem vê-lo. Ele chama-te...
Sem se levantar, Pedro murmurou:
- O que é que eIe tem?
- Já está melhor, deitei-lhe água. Vem...
Amparando o paträo pelo braço, Tikhon levou-o para o jardim.
- Foi no balneário que preparou as coisas; prendeu uma corda
a uma trave e...
Pedro, os pés subitamente colados no chäo, repetia:
- Mas porquê? O desgosto pela morte do pai?
O homem parou também:
- Chegava a beijar-lhe as camisas...
- O quê? Mas quais camisas?
Tacteando o chäo com os pés descalços, Pedro observava o cäo
que, tendo saído do meio dos arbustos, o mirava com um ar
interrogador agitando a cauda. Ele tinha medo de ir ver o
irmäo, sentindo a cabeça vazia e näo sabendo o que dizer a
Nikita.
- Ah!, vocês vivem como cegos - murmurou o velho.
Pedro calava-se, esperando o que ele ia dizer ainda.
- As camisas da patroa estavam estendidas ali, depois de as
lavarem...
- Mas porquê...? Espera!
Com um pontapé, Pedro repeliu o cäo; ao mesmo tempo,
imaginou a pequena silhueta do corcunda beijando uma camisa
feminina. E, subitamente, uma suspeita brusca entonteceu-o,
aniquilou-o; sacudindo o velho pelos ombros, perguntou-lhe
rangendo os dentes:
- Eles beijaram-se? Viste-os?
- Eu vejo tudo. Mas a patroa näo sabe de nada disto...
- Estás a mentir!
- Porque havia de mentir? Näo estou à procura duma
recompensa. . .
E, como se abrisse à machada uma clareira nas trevas, Tikhon
contou em poucas palavras o infortúnio do irmäo.
Pedro acreditou que ele dizia a verdade; ele próprio a
adivinhara, há muito tempo, nos olhos azuis de Nikita, nos
serviços que prestava a Natália, nas pequenas atençÖes que ele
tinha por ela.
- Por isso... - murmurou. E pensou em voz alta: tinha muito
que fazer para reparar nisso.
Depois, empurrando Tikhon, disse:
- Anda.
Näo queria ser o primeiro a receber o olhar de Nikita;
chegado à porta, antes mesmo de distinguir o irmäo na
obscuridade, perguntou com voz trémula, colocando-se atrás de
Nikhon:
- Que fizeste, Nikita?
O corcunda näo respondeu. Mal se distinguia, num banco,
perto da janela; uma luz indecisa caía-lhe no ventre e nas
pernas. Em seguida, Pedro verificou que Nikita estava sentado,
a marreca encostada à parede, a cabeça inclinada; a camisa
molhada, rasgada de alto a baixo, colara-se à corcunda do
peito; os cabelos estavam igualmente molhados e, numa das
faces, havia uma estrela escura de onde irradiavam fios de
sangue.
- Sangue? Tu estás ferido? - murmurou Pedro.
- Näo, eu é que o magoei, com a pressa - respondeu Tikhon em
voz alta, antes de se afastar. Pedro receava aproximar-se do
irmäo. Ao ouvir as suas próprias palavras, que lhe pareciam
estranhas, coçava a orelha, queixando-se e censurando:
- Que vergonha! Ofender assim a Deus! O meu irmäo...
- Sei - respondeu Níkita com uma voz rouca e näo me
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nos estranha. Näo pude suportar por mais tempo. Deixa-me
ir embora. Ireí para um convento. Estás a ouvir? Peço-te com
toda a minha alma...
Tossiu águdamente e calou-se.
Pedro, comovido sem saber porquê, recomeçou, doce e
afectuosamente, a ralhar-lhe e disse a concluir:
- No que respeita a Natália, foi certamente o diabo que te
perturbou...
- Oh! Tikhon! - gemeu Nikita. E eu que te pedira para nada
dizeres. Ao menos, näo lho digam a ela, por Cristo!
Ela rir-se-ia, magoá-la-iam. Apesar de tudo, tenham piedade de
mim. Por vós, servirei a Deus toda a minha vida. Näo lho
digam, nunca lho digam! Tikhon, tu é que falaste, tu é que
falaste...
Murmurava, a cabeça estranhamente direita, imóvel, e esta
atitude amedrontava Pedro. O velho respondeu:
- Se näo fosse este acidente, nunca teria dito nada. Por
mim, ela näo virá a saber...
Perturbado pela comoçäo, Pedro prometeu:
- Juro pela cruz que nada direi.
- Obrigado! Por mim, vou retirar-me e viver num convento.
E Nikita calou-se de novo, como se adormecesse.
- Näo te sentes bem? - perguntou-lhe o irmäo. - Dói-te o
pescoço?
- Näo é nada - disse Nikita com voz rouca. - Väo-se embora.
. . - Espera por mim - murmurou" Pedro, passando à frente do
velho e saindo.
Chegou ao jardim e aspirou profundamente os suaves perfumes
da terra orvalhada. A sua emoçäo desapareceu sob uma nuvem de
ansiosos pensamentos. Marchava, procurando näo fazer nenhum
ruído: precisava de silêncio para voltar aos seus pensamentos
que, de resto, o enchiam de medo; tinha a impressäo de que
nasciam, näo dele, mas de fora, da sombra nocturna em que
esvoaçavam como morcegos. Sucediam-se täo rapidamente que näo
conseguia reuni-los e dizê-los através de palavras; só retínha
os contornos complicados, as malhas, os centros, e em todos se
encontrava Natália, Alexis, Nikita, Tikhon, todos girando,
confusa e rapidamente, num círculo esfumado: e ele, no meio do
círculo, estava sozinho. Só conseguia exprimir por palavras as
ideiás mais simples:
" preciso que a minha sogra venha viver connosco o mais
depressa possível; Alexis deve ir-se embora. Devia ser mais
delicado para com Natália. "É isso o amor." Mas ele näo foi
por amor, mas por causa da sua desgraça, que enlaçou a corda
no pescoço. Tem razäo de ser frade, ninguém pode fazer nada
por ele neste mundo. Tem razäo. Tikhon é parvo; ele devia
ter-me falado há mais tempo."
Mas näo eram esses pensamentos incontroláveis e confusos que
o perturbavam e amedrontavam, fazendo-o olhar com receio a
penumbra espessa e húmida da noite. Ao longe, na aldeia dos
operários, ouvia-se, indistinta, uma cançäo melancólica.
Mosquitos zuniam. Pedro Artamonov sentia imperiosamente a
necessidade de activar e de acabar rapidamente com a sua
inquietaçäo. Sem dar por isso, chegara às moitas de lilás,
sob a janela do seu quarto de dormir; sentou-se e ali ficou
por muito tempo, os cotovelos nos joelhos, o rosto apertado
entre as mäos, os olhos pregados na terra negra; o chäo,
debaixo dos seus pés, mexia-se, subia, como prestes a cair de
novo.
"Nikita sabe dispor admiravelmente a areia. No convento
será jardineiro. Tem muito jeito."
Näo viu que a mulher se aproximava e teve um sobressalto
quando, na sua frente, apareceu, como surgindo da terra, uma
forma branca, mas cuja voz familiar o tranquilizou um pouco:
- Perdoa-me, em nome de Cristo, eu perdi a cabeça. ..
- Deus te perdoará; também eu perdi a cabeça - disse
generosamente, feliz porque a mulher o viera procurar e
satisfeito por näo ter que imaginar as palavras suaves com que
devia fazer-lhe esquecer a sua discussäo.
Voltou a sentar-se e Natália ficou, timidamente, ao lado.
Tinha necessidade de dizer mais alguma coisa e, por isso,
continuou:
- Compreendo que te aborreças. A casa näo é alegre. Como
havemos de ser alegres? Meu pai achava a alegria no trabalho e
que todos os homens deviam trabalhar, exceptuando
89
os mendigos e os nobres. Toda a gente vi ve para fazer alguma
coisa. Por meio da obra, näo se distinguem os homens.
Falava com prudência, receando dizer maís do que queria e,
ao escutar-se, achava que o fazia como homem de negócios
sério, como verdadeiro paträo. Mas sentia também que as
palavras eram de certo modo exteriores, que deslizavam à
superfície dos seus pensamentos, que eram impotentes para os
traduzir. Tinha a impressäo de estar sentado na beira de um
poço, para onde em qualquer momento podia empurrá-lo alguém
que o escutasse e lhe murmurasse:
- Tu näo dizes a verdade.
Felizmente que a mulher, encostando a cabeça ao seu ombro,
murmurou:
- Estás comigo para toda a vida, näo compreendes?
Ele enlaçou-a, apertou-a contra ele, ouvindo o seu ardente
murmúrio:
- É um pecado näo o compreender. Tomaste uma rapariga, ela
deu-te filhos e tu é como se näo estivesses presente, a tua
alma anda longe de mim. É um pecado, Pedro. Quem está
mais próximo de ti do que eu, quem te acompanharia como eu num
momento difícil?
Foi como se a mulher o tivesse arrancado da terra e o
voltasse no ar, agradavelmente amolecido, mergulhado num
friozinho refrescante; falou-lhe quase com reconhecimento:
- Prometi calar-me, mas näo posso!
E, apressadamente, repetiu a Natália tudo o que o velho
Tikhon lhe contara sobre Nikita.
- Ele beijava as tuas camisas, enquanto secavam no jardim: a
que ponto perdera a cabeça! E tu tiäo sabias, nunca tinhas
desconfiado?
Sob o seu braço, o ombro da mulher estremeceu violentamente.
"Ela lamenta-o?", pensou Pedro.
Mas, indignada, ela respondeu precipitadamente:
-Nunca, nunca reparei nele! Ah!, o fingido! É bem verdade
que todos os corcundas säo uns fingidos! ...
"Ele mete-lhe nojo? Ou será um disfarce?" - interrogou -
-se Pedro, que lembrou à mulher:
- Ele era atencioso para contigo.
- Bem, e depois? - respondeu a mulher num tom provocante. -
"Tulun" também é bom...
- Apesar de tudo... "Tulun" é um cäo!
- Foi também como um cäo que o puseste perto de mim, para
que ele me vigiasse, me guardasse contra teu pai, contra
Alexis... E eu bem o percebi... Que nojo ele me fazia e como
eu me sentia vexada!
Näo havia dúvida de que Natália estava magoada e indignada:
sentia-se pela sua pele que estremecia, pelos movimentos
convulsivos dos seus dedos que puxavam e apertavam a sua
camisa. Mas o homem, näo acreditando nesta indignaçäo que
achava exagerada, quis fazer ainda maís uma derradeira
tentativa:
- Tikhon salvou-o a tempo: tinha enrolado uma corda ao
pescoço. . .
A mulher amoleceu e deixou-se cair, exclamando com
verdadeiro tremor:
- Näo... O que é que dísseste? Senhor! ...
"Logo, ela mentia", decidiu Pedro. Mas ela, erguendo
bruscamente a cabeça, como se tivesse recebido uma pancada na
testa, começou a soluçar raivosamente:
- O que é que vai acontecer agora? Com a morte do teu pai,
as pessoas deixaram de falar, mas aí está o pretexto para que
voltem a falar. Oh! Senhor! Um irmäo enforca-se, o outro vai
casar näo sei com quem, com uma amante... Mas o que há,
afinal? Ah! Nikita! Que vergonha!
Com um suspiro de alívio, o marido acariciou vigorosamen-
te o ombro da mulher:
- Näo tenhas receio: ninguém o saberá. Tikhon nada dirá, é
amigo dele e tämbém näo tem motivos para se queixar de nós. E
Nikita quer fazer-se frade...
- Quando?
- Näo sei.
- Que seja o mais depressa possível! Como é que hei-de poder
falar-lhe? Como poderei vê-lo?
Depois de um momento de silêncio, Pedro propôs:
- Vai vê-lo...
90 " 91
Mas, estremecendo como se a tivessem picado, a mulher
quase gritou:
- Näo me mandes lá, que näo irei, näo quero ir, tenho
medo...
- De quê - perguntou vivamente Pedro.
- Do enforcado. Näo vou, faz o que quiseres. Tenho medo...
- Vamos deitar-nos! - disse Artamonov, levantando-se.
- Por hoje, basta de arrelias.
Caminhando lentamente ao lado da mulher, sentia que este dia
lhe trouxera um pouco de tudo, do mau e do bom, e que ele,
Pedro Artamonov, era um homem que, até entäb, se ignorara a si
próprio - um homem cheio de inteligência e de manha que
acabava de iludir com habilidade alguém que importunava a sua
alma com sombrios pensamentos.
- É bem certo que estás mais perto de mim do que todos -
dizia ele à mulher. - Quem poderia estar mais próximo? Deves
sabê-lo: só tu... E tudo há-de correr bem. Está I descansada.
Passados doze dias, Nikita Artamonov, um pau na mäo, um saco
de couro na corcunda, seguia de madrugada por caminho areento
e movedíço, enegrecido pelo orvalho; caminhava com passo
rápido, como se tivesse pressa de esquecer as despedidas dos
seus. Ainda mal acordados, tinham-se reunido na sala de
jantar, ao lado da cozinha. Sentaram-se todos,
cerimoniosamente, trocaram raras palavras; era visível que
ninguém tinha uma palavra a dizer a Nikita, pois partia por
sua livre vontade. Pedro mostrava-se amável, satisfeito, como
um homem que acaba de fechar um bom negócio. Disse uma ou duas
vezes:
- Já temos na família quem reze por nós...
Natália, indiferente, servia chá com precauçäo, as suas
orelhinhas de rato ardiam; por vezes, saía da sala, com ar
pesado; a mäe, silenciosa e pensativa, com um dedo molhado de
saliva, esfregava as têmporas grisalhas; só Alexis, mais
agitado do que habitualrnente, ínterrogava o primo erguendo os
ombros:
- Mas como é que pensaste nisso? Foi de repente? Näo
compreendo.. .
Sentada a seu lado, Olga Orlov, pequenina e de nariz
comprido, erguendo as sobrancelhas carregadas, mirava à
vontade todos os circunstantes. Os seus olhos desagradaram a
Nikita: eram demasiado grandes para o seu rosto, demasiado
insistentes para uma rapariga, pestanejavam de mais.
Nikita sentia-se pouco à vontade no meio de todos e dizia
para consigo, inquieto:
"Queira Deus que Pedro näo lhes conte... Quero é ir-me bem
depressa." Pedro foi o primeiro a despedir-se; aproximou-se do
irmäo, beijou-o e disse com voz trémula:
- Bem, querido irmäo, adeus...
Mas Uliana interrompeu-o:
- Sabes que, antes de se dizer adeus, é preciso, primeiro,
sentar-se, calar-se e rezar-se.
Tudo isto se fez rapidamente. Pedro aproximou-se de novo do
irmäo e disse:
- Perdoa-nos. Escreve-nos para que te mandemos o enxoval.
Enviar-te-emos tudo sem demora. Näo te canses muito com as
oraçÖes. Adeus. Reza por nós.
Uliana, traçando sobre Nikita o sinal da cruz, beijou-o três
vezes na testa e no rosto; depois, começou a chorar sem se
saber porquê. Alexis, depois de apertar com força o primo nos
seus braços, olhou-o nos olhos e disse:
- Que Deus te acompanhe! Cada um tem o seu destino.
No entanto, näo percebo como é que resolveste täo
precipitadamente...
Natália fora a última a aproximar-se, mas sem se encostar ao
cunhado, uma das mäos de encontro ao peito, saudou-o
gravemente e disse em voz baixa:
- Adeus, Nikita.. .
Apesar de ter amamentado já três filhos, tinha os seios
rijos como os de uma rapariga.
E foi tudo. Faltava Olga: pôs na mäo de Nikita a sua
mäozinha
92 93
quente, dura como madeira - ao pé o seu rosto era ainda mais
desagradável-e perguntou estupidamente:
- É verdade que se vai fazer monge?
No pátio, uma trintena de velhos tecelÖes despediram-se do
corcunda; Boris Morozov, surdo e encanecido, gritava agitando
a cabeça:
- O soldado e o frade säo os primeiros servidores do povo.
Os primeiros.
Nikita foi ao cemitério para se despedir do pai; ajoelhou em
frente da sua sepultura e, em vez de orar, começou a sonhar:
como se modificara a sua vida! Quando o sol nasceu de todo e
uma larga sombra angulosa, cuja forma se parecia com o nicho
do feroz "Tulun", se espalhou pela relva do túmulo, lavada
pelo orvalho, Nikita, inclinando-se até ao chäo, disse:
- Perdoa-me, pai!
E chorou com soluços de mulher, lamentando amargamente a sua
antiga voz, clara e sonora.
Quando se encontrava a uma versta do cemitério, Nikita
avistou bruscamente o velho Tikhon: uma enxada ao ombro, um
machado ao cinto, encontrava-se no meio duns arbustos, ao lado
do caminho, como uma sentinela.
- Vais-te embora? - perguntou.
- Sim. Que fazes aí?
- Vim arrancar uma árvore. Plantá-la-ei ao lado da janela da
minha cabana.
Ficaram um minuto a olhar-se em silêncio, depois Tikhon
desviou os olhos rasos de lágrimas.
- Anda. Vou acompanhar-te um bocado...
Seguiram, silencíosos. Foi Tikhon quem rompeu o silêncio:
- Que grandes orvalhadas! Säo perigosas: anunciam a seca e a
má colheita.
- Deus nos livre delas!
Tikhon respondeu com algumas palavras indistintas.
- O quê? - perguntou Nikita, um pouco receoso: esperava
sempre deste homem palavras singulares, irritantes.
- Eu disse que Deus talvez no-las evite.
Mas Nikita estava certo de que Tikhon dissera outra coisa
que näo queria repetir.
- Tu näo acreditas na bondade divina? - perguntou num tom de
censura.
- Porquê? - respondeu placidamente Tikhon. - Neste momento,
precisamos de chuva. Estas orvalhadas säo perigosas, mesmo
para os cogumelos. Ora, em casa de um bom paträo, tudo vem com
o seu tempo.
Nikita abanou a cabeça suspirando.
- Tens maus pensamentos, Tikhon.
- Näo. Eu näo penso com os meus olhos.
Deram mais uns cinquenta passos em silêncío. Nikita olhava,
no chäo, a sua sombra larga. Tikhon acompanhava a sua marcha,
tamborilando com os dedos no cabo do machado.
- Qualquer dia irei visitar-te. Estás de acordo?
- Vem, que gostarei de ver-te. És um homem curioso.
- Isso é verdade.
Tirou o chapéu e deteve-se:
- Bem, entäo, adeus.
E, coçando a cara, acrescentou pensativo:
- Gosto de ti. Tu és bom. O teu pai tinha o corpo
inteligente, mas tu tens a alma...
Tendo posto o pau no chäo e acomodado o saco, Nikita beijou
Tikhon, sem nada dizer, e este apertou-o com força nos seus
braços, repetindo:
- Bem, irei ver-te. . .
- Obrigado!
No sítio onde o caminho fazia uma curva brusca no pinheiral,
I`Jikita voltou-se. Apoiado à enxada, Tikhon, o chapéu debaixo
do braço, continuava no meio do caminho, como se näo quisesse
deixar passar nínguém; o vento agreste da manhä soprava,
agitando levemente os cabelos da sua cabeça desagradável.
De longe, Tikhon lembrava vagamente o António maluco.
Fensando neste homem incompreensível, Nikita Artamonov
acelerou o passo, enquanto na sua memória ressoava o refräo
obsediante:
Cristo ressuscitou, ressuscitou...
O carro já näo tem uma roda...
94
Capitulo segundo
Só nove anos depois da morte de seu pai os Artamonov
acabaram de construir a igreja e a consagraram ao profeta
Elias.
Tinham levado sete anos a construí-la; Alexis era o
responsável por esta lentidäo.
- Deus pode esperar, näo há necessidade de pressas - dizia
com desenvoltura e, por duas vezes, utilizou para outros
fins os tijolos destinados ao templo - a primeira vez para o
terceiro edifício da fábrica e a segunda para o hospital.
Depois da cerimónia da bênçäo, os Artamonov, tendo
organizado outras cerimónias religiosas junto das sepulturas
do pai e das crianças, esperaram que a multidäo abandonasse o
cemitério e, näo parecendo, por delicadeza, reparar que Uliana
Baimakov continuava ao pé do jazigo familiar, sentada num
banco, sob as bétulas, seguiram lentamente para casa. Näo
tinham pressa; a refeiçäo solene oferecida ao clero, aos
amigos, aos empregados e aos operários, só começava às três
horas.
Era um dia cinzento, o céu enegrecera como no Outono; um
vento húmido que anunciava chuva açoitava a ramaria dos
pinheiros, zurrando como um cavalo fatigado. Na parte ruiva da
estrada areenta, negras e pequenas silhuetas de homens
agitavam-se, descendo para a fábrica, com os seus três
edifícios, dispostos em círculo, agarrados à terra, como dedos
vermelhos convulsivamente alongados.
Apontando-os com a ponta da bengala, Alexis disse:
- O nosso pai gostaria de ver o nosso trabalho!
- Sentiria pena por terem assassinado o czar - respondeu
97
Pedro, depois de um mornento de reflexäo, näo querendo repetir
o que dissera o irmäo.
- Ora! Ora! Ele näo era muito de penas. E näo vivia com o
espírito do czar, mas com o seu.
Enfiando ainda mais a boina na cabeça, Alexis parou,
olha_ndo as mulheres; a sua, pequena, bem feita, vestida com
um fato simples, de cor escura, caminhava com passo leve
sobre a areia calcada, limpando os óculos com um lenço. Tinha
o aspecto duma professora de aldeia, ao lado da rotunda
Natália, que vestia um casaco de seda negro, enfeitado com
perolazinhas negras; um véu violeta-escuro encobria os seus
belos cabelos acastanhados.
- A tua mulher está cada vez mais bonita.
Pedro näo respondeu.
- Nikita também näo veio passar connosco o fim do ano.
Estará zangado?
Alexis, quando o tempo estava húmido, ainda tinha dores no
peito e na perna; andava coxeando, encostado à bengala.
Queria esquecer a impressäo triste da cerimónia fúnebre e a
melancolia deste dia cinzento e, obstinado, tentava obrigar o
irmäo a falar.
- A tua sogra ficou ao pé da sepultura a chorar. Ainda näo o
esqueceu. É uma boa mulher. Disse a Tikhon que esperasse por
ela e a acompanhasse: ela queixa-se da asma e diz que tem
dificuldade em andar.
Pedro repetiu a meia voz, contrito:
- Difícil.
- Estás a dormir? O que é que é difícil?
- Temos que despedir Tikhon - respondeu Pedro olhando de
lado, para as colinas cheias de pinheiros.
- Porquê? - perguntou o irmäo, surpreendido. - É boa pessoa,
cuidadoso, activo...
- E estúpido -acrescentou Pedro.
As mulheres aproximaram-se: Olga, com uma voz agradável e
forte para o seu tamanho, disse ao marido:
- Quero convencer Natália a mandar Elias para o liceu, mas
ela tem medo.
Natália, grávida, caminhava saracoteando-se como uma vata
bem alimentada; declarou com voz arrastada e fanhosa, no tom
de uma irmä mais velha:
- Na minha opiniäo, o liceu é mau. Reparem em Helena:
nas cartas, ntiliza palavras que näo compreendo.
- Toda a gente deve instruir-se - observou severamente
Alexis, tirando o boné e limpando o suor da testa, ao mesmo
tempo que mostrava a sua calvície precoce que, subindo em
ângulos agudos, tornava ainda mais comprido o seu rosto.
Interrogando o marido com os olhos, Natália replicou:
- Pomialov bem diz: a instruçäo torna os homens selvagens.
- Sim - disse Pedro.
- Estäo a ver? - exclamou Natália com satisfaçäo.
Mas o marido acrescentou, pensativo:
- Todos devem aprender.
Alexis e Olga puseram-se a rir; Natália censurou-os:
- Mas entäo, parecem esquecidos de que voltam do
cemitério...
Cada um lhe pegou por um braço e caminharam mais depressa.
Mas Pedro atrasou-se e disse:
- Vou esperar a mäe.
Tikhon Vialov, esse homem desagradável, aborrecera-o.
Antes de a cerimónia principiar, no cemitério, Pedro, olhando
ao longe a fábrica, dissera em voz alta, näo para se gabar,
mas simplesmente para exprimir o que via:
- O negócio prosperou...
E logo ouvira atrás de si a voz tranquila do velho:
- O negócio é igual ao mofo numa cave: aumenta sozinho.
Pedro näo lhe respondeu e nem sequer se voltou, mas a
estupidez manifesta e contundente destas palavras indignou-o.
Trabalha-se, fazem-se viver algumas centenas de pessoas,
pensa-se no trabalho de manhä à noite, näo se faz mais nada,
näo pensamos em nós próprios tantos säo os cuidados que a
fábrica traz, e, subitamente, um imbecil vem dizer que os
negócios correm por eles, sozinhos, e näo graças ao cérebro do
paträo! E este pobre díabo näo deixa de resmungar näo se
sabe bem o quê sobre a alma e o pecado!
Sentado na berma do caminho, no tronco dum velho pinheiro,
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Artamonov coçou a orelha e lembrou-se de que um dia se
queixara a Olga, dizendo:
- Nem há tempo para pensar na alma.
Ela, entäo, fizera-lhe uma pergunta singular:
- E a tua alma näo vive contigo?
Julgara tratar-se de uma brincadeira de mulher, mas o rosto
de pássaro de Olga era grave: por detrás dos óculos, os seus
olhitos negros brilhava com afecto:
- Näo compreendo - disse ele.
- E eu näo compreendo que se fale da alma separando-a do
homem, como se fosse uma criança achadiça.
- Näo compreendo, repetiu Pedro, e deixou de ter vontade de
falar com esta mulher. Sentia-se muito longe dela e
compreendia-a com dificuldade, apesar de recear que esta
simplicidade aparente dissimulasse a manha.
Pelo contrário, nunca gostara de Tikhon Vialov. Era sempre
sem prazer que encarava o seu rosto, coberto de manchas, os
olhos estranhos, estas orelhas coladas ao crâneo e escondidas
nos cabelos arruivados, a barba que crescia devagar, o seu
andar lento, mas certo, este corpo pesado e forte. A sua calma
era ao mesmo tempo ínvejável e desagradável; e, mesmo no
trabalho, irritava. Trabalhava, de resto, como uma máquina, só
raramente merecendo uma censura, e assim também irritava.
O pior era que este homem, de ano para ano, se incrustava cada
vez mais no negócio, com o ar de se imaginar uma peça
essençial na vida dos Artamonov. Coisa curiosa, as crianças,
os cäes e os cavalos gostavam dele. O velho "Tulun", que se
tornara mau por estar sempre preso, só deixava aproximar-se
Tikhon, e o filho mais velho de Pedro obedecia maís
rapidamente ao velho do que ao pai ou à mäe.
Para se desembaraçar de Vialov, Pedro ofereceu-lhe o lugar
de guarda da igreja ou de guarda florestal; Tikhon abanou
negativamente a cabeça:
- Näo é bom lugar para mim. Se te estorvo, dá-me um mês de
férias, descansarás de mim e eu aproveitarei para ir visitar
Nikita.
Ele dissera "descansarás de mim". Estas palavras sem nexo e
insolentes, ao mesmo tempo que a recordaçäo do irmäo
100
que fora esconder-se para além dos pântanos, num miserável
convento, no meio de florestas, provocou-lhe uma suspeita
terrível: Tikhon, além do que contara sobre I"'ikita, quando
este tentara enforcar-se, devia saber ainda qualquer outro
segredo vergonhoso; parecia esconder, na verdade, outras
desgraças e os eus olhos piscos ameaçavam:
"Näo me toques, pois precisarás de mim... " Fora já por três
vezes ao convento. Um saco às costas, uma vara na mäo,
caminhava sem pressas; parecia pisar a terra por
condescendência para com ela; de resto, era exactamente esse
aspecto de condescendência que assumia quando fazia qualquer
coisa.
Quando voltava e o interrogavam acerca de Nikita, Tikhon
respondia com frases curtas e pouco claras; tinha-se a
impressäo de que sabia mais do que dizia:
- Ele vai bem. Tratam-no com todas as atençöes. Disse-me
para vos agradecer os vossos cumprimentos e presentes.
- Que diz ele? - perguntava Pedro.
- Que queres que conte um frade?
- Mas que diz? - perguntava Alexis com impaciência.
- Fala de Deus. Interessa-se pelo tempo e, a propósito, diz
que chove pouco. Queixa-se dos mosquitos; há lá muitos
mosquitos. E, é claro, perguntou-me por vocês.
- O que é que ele perguntou?
- Inquieta-se com vocês, lastima-vos.
- A nós? Porquê?
- Por tudo. Vocês vivem a correr, ao passo que ele está
parado; por isso, tem pena da vossa agitaçäo.
Alexis - desatando a rir - exclamava:
- Que embrulhada!
As pupilas de Tikhon pareciam desprender-se, os seus olhos
saltavam:
- Näo sei o que ele pensa, limito-me a repetir o que ele
disse. Sou uma pessoa simples.
- Sim, tu és simples... - concordava ironicamente Alexis.
- No género de António, o maluquinho. . .
O vento envolveu Pedro Artamonov com uma brandura perfumada,
o céu abriu-se; entre as nuvens, na profundidade
101
de um pedaço de azul, o sol mostrou-se. Pedro olhou-o, ficou
maravilhado e mergulhou ainda mais profundamente nas suas
reflexÖes.
Achava um pouco vexatório que Nikita, depois de ter
oferecido ao convento mil rublos, e de guardar para si,
durante toda a vida, cento e noventa rublos por ano, tivesse
renunciado em proveito dos irmäos à sua parte na herança
paterna.
- Que significa esta oferta? - resmungava Pedro.
Mas Alexis declarou, muito satisfeito:
- Que queres tu que ele faça com o dinheiro? Que o dê a
esses frades manhosos para os engordar? Näo, ele tomou uma
decisäo prudente. Temos a fábrica mas também temos filhos.
Natália mostrou-se comovida.
- Ele näo se esqueceu do que fez - disse ela com satisfaçäo,
limpando com o dedo uma lágrima solitária que corria
pelo seu rosto vermelho. - Será para o dote de Helena.
Mas na alma de Pedro a conduta de Nikita espalhou uma
sombra: na cidade comentava-se a sua ida para o convento em
termos maldosos e pouco afectuosos para com os Artamonov.
Pedro dava-se bem com Alexis, embora verificando que o
esperto do irmäo se encarregara da parte mais fácil do
negócio: ia à feira de Nijni, fazia duas vezes por ano a
viagem a Moscovo e, no regresso, contava histórias fantástícas
acerca da prosperidade dos industriais da capital.
- Vivem com tanto fausto como os nobres.
- Näo é difícil viver como um senhor - respondia Pedro.
Mas o irmäo, sem compreender, extasiava-se:
- Quando um negociante manda construir uma casa, é uma
verdadeira catedral. E os filhos säo instruídos.
Apesar de bastante envelhecido, mostrava uma vivacidade
juvenil, e os seus olhos de abutre brilhavam de autêntica
alegria:
- Porque estás sempre täo carrancudo? - perguntava ao irmäo.
E permitia-se ensiná-lo:
- É preciso que trabalhemos, divertindo-nos. Os negócios näo
gostam de tristezas.
Pedro reparava que Alexis se parecia com seu pai, mas
compreendia-o cada vez menos.
- Estou doente, lembrava por vezes Alexis. Mas näo poupava a
saúde, bebia muito vinho, passava noites inteiras a jogar às
cartas e, provavelmente, em matéria de mulheres, näo se
mostrava esquisito. O que é que pretendia, afinal, na vida?
Näo era, parecia, nem ele próprio nem o seu lar. A casa
Baimakov há muito que necessitava de grandes reparaçÖes, mas
Alexis pouco se ralava. Os seus filhos nasciam débeis e
morriam antes dos cinco anos; só Miron, um rapazínho vivo e
ossudo, com mais três anos que Elias, sobrevivera. Alexis e a
mulher tinham uma ridícula paixäo pelos objectos inúteis; a
sua casa estava atravancada com toda a espécie de móveis
ricos, e ambos tinham prazer em dá-los como presentes. Assim,
ofereceram a Natália um curioso armário ornamentado com
porcelana, à sua mäe uma poltrona de couro e uma esplêndida
cama de bétula da Carélia, enfeitada com bronzes. Olga sabia
bordar quadros de pérolas, e o marido ainda lhe trazia outros
quando voltava das suas viagens através da província.
- Tu queres ser um original - disse um dia Pedro, a quem o
irmäo dera uma mesa monumental, toda esculpida, com uma
infinidade de gavetas, mas Alexis, batendo com a mäo no tampo
da mesa, exclamou:
- Até canta! Coisas destas já näo apareceräo, dentro em
breve. Em Moscovo, evidentemente...
- Melhor farias se comprasses pratas, como têm os nobres...
- Dá tempo ao tempo. Tudo se comprará. Em Moscovo...
A dar crédito a Alexis, as pessoas que vivem em Moscovo säo
mais ou menos malucas; tratam menos dos seus negócios do que
de viver como grandes senhores. E preocupam-se em comprar aos
nobres tudo o que podem, desde as propriedades até às chávenas
de chá.
Em casa do irmäo, embora com uma pontinha de irritaçäo e
inveja, sentia-se mais à vontade do que na sua própria casa.
Näo compreendia porquê, assim como também näo compreendia por
que é que Olga lhe agradava. Esta, ao lado de Natália, tinha o
aspecto de uma criada de quarto, mas os candeeiros näo
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lhe metiam medo e näo acreditava que o petróleo fosse
fabricado pelos estudantes com as gorduras dos suicidas. A sua
voz pastosa ouvia-se com agrado e tinha belos olhos, pois os
óculòs näo escondiam o seu brilho acariciador; no entanto,
falava das pessoas e dos negócios de maneira chocante, pueril,
distante; Pedro surpreendia-se com isso e zangava-se.
- Nesse caso, na tua opiniäo, näo há culpados? - perguntava
Pedro com ironia.
Ela respondia:
- Há, mas eu näo gosto de julgar ninguém.
Pedro näo a acreditava.
Ela tratava o marido como se fosse mais velha do que ele e
sabia que era, na verdade, mais inteligente do que Alexis.
Este näo se conformava, chamando-a "tia" e dizendo-lhe por
vezes com despeito:
- Basta, "tia", tu aborreces-me. Eu sou uma pessoa doente;
bem podes tratar-me com mimo.
- Já te dou mais mimo do que mereces.
Ela sorria ao marido, com um sorriso que Pedro gostaria de
ver também no rosto de Natália. Esta era um esposa perfeita,
uma excelente dona de casa; sabia salgar à perfeiçäo os
pepinos, cuidar dos míscaros, fazer doces de fruta; em casa,
os criados trabalhavam com a precisäo das peças de um relógio.
Natália näo se cansava de prodigalizar ao marido um amor
tranquilo, repousado como o creme. Näo fazia despesas
supérfulas.
- Quanto temos agora, no banco? - perguntava, e
preocupava-se: - Vê lá se o banco é de confiança, se näo está
para falir.
Quando pegava em dinheiro, o seu belo rosto tornava-se
severo, os seus lábios escarlates cerravam-se mais fortemente,
enquanto os olhos brilhavam com um esplendor oleoso e
corrosivo. Ao contar as notas coloridas e sujas, pegava-lhes
com os seus dedos gorduchos com tanta cautela como se receasse
que elas voassem como as moscas.
- Como é que divides os lucros com Alexis? - perguntava ela
na cama, depois de ter completamente saciado com carícias o
marido. - E ele näo te rouba? Ele é manhoso.
Tanto a mulher como ele säo uns pilhas. Deitam a mäo a tudo!
Sentia-se rodeada de ladrÖes e dizia:
- Näo tenho confiança em ninguém, a näo ser em Tikhon.
- Nesse caso, confias num idiota - resmungava Pedro com
lassidäo.
- Idiota, mas honesto.
Quando Pedro, pela primeira vez, foi com ela à feira de
Nijni ficou täo admirado com a gigantesca extensäo deste
mercado pan-russo, que lhe perguntou:
- Que dizes a isto?
- É bonito - respondeu ela; - há de tudo com fartura e as
coisas säo mais baratas do que na nossa terra.
Depois, começou a enumerar o que pretendia comprar:
- Vinte e cinco quilos de sabäo, uma caixa de velas, um saco
de açúcar.
No circo, fechava os olhos quando os artistas entravam na
pista.
- Ah! os indecentes andam todos nús! Näo achas que me pode
fazer mal olhá-los, por causa da criança? Melhor seria que näo
me tivesses trazido para ver estes horrores, pois talvez
esteja grávida de um rapaz.
Nesses momentos, Pedro Artamonov sentia-se invadido por um
aborrecimento esverdeado e espesso como o lodo do Vatarakcha,
onde só uma espécie de peixes podia viver - a gorda
e estúpida taínha.
Natália rezava sempre com a mesma aplicaçäo; depois das
oraçÖes, ao deitar-se, excitava o marido a disfrutar o seu
corpo roliço. A sua pele exalava o odor das casas onde se
guardam as latas de conservas, os escabeches, o peixe fumado,
os presuntos. Pedro sentia cada vez mais que a mulher
exagerava, que as suas carícias o esgotavam.
- Deixa-me, estou cansado - dizia-lhe.
- Bem, entäo, dorme descansado - respondia ela docilmente e,
assim que adormecia, levantava as sobrancelhas admiradas,
sorrindo como se com os olhos fechados visse algo de muito
agradável e que nunca vira.
Nas horas em que Pedro, cheio de um morno aborrecimento,
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sentia que já näo desejava Natália, ela procurava lembrar-lhe
como ele a tinha visto, no dia terrível em que lhes nasceu o
primeiro filho. A décima nona hora das suas dores decorria com
uma torturante lentidäo, quando a sogra, cheia de medo, toda
desfeita em lágrimas, mandara entrar Pedro no quarto onde se
respirava um ar quente. Torcendo-se na cama revolta, revirando
os olhos deformados por dores horríveis, despenteada, suada,
irreconhecível, a mulher recebeu-o com uivos de animal:
- Adeus, Pedro... vou morrer. Há-de ser um rapaz... Pedro,
adeus...
Os lábios, inflamados pelas dentadas, mal se mexiam e as
palavras pareciam vir, näo da garganta, mas do ventre que
descia para os pés, monstruosamente inchado, pronto a
rebentar. O rosto azulado inchara também; respirava como um
cäo fatigado, deitando de fora uma língua inflamada e
trincada; agarrava nos cabelos, puxava-os, arrancava-os, sem
deixar de mugir, de berrar, procurando persuadir, vencer
alguém que näo queria ou näo podia ceder-lhe:
- Um r-rapaz. ..
Lá fora, rugia o vento; por detrás da janela, as cerejeiras
agitavam-se e rumorejavam; sombras tremiam nos vidros; Pedro
viu-as saltitar, ouviu o ruído e, perdendo a cabeça, gritou:
- Tirem as cortinas! Pois vocês näo vêem?
E, apavorado, fugiu, enquanto a mulher continuava a gemer
desesperadamente.
Hora e meia depois, a sogra, muda de felicidade e de fadiga,
levava-o de novo junto da cama da mulher; Natália recebeu-o
com o olhar radioso de um mártir, e com uma voz fraquinha,
como bêbeda, disse:
- É um rapaz. Um filho.
Ele inclinou-se, encostou-lhe a face ao seu ombro e
murmurou:
- Isto, mäe, näo esquecerei até à sepultura, fique a saber!
Obrigado, obrigado...
Pela primeira vez, chamava-a "mäe", tendo posto nesta
palavra todo o seu medo e toda a sua alegria; fechando os
106
olhos, ela acariciou-lhe os cabelos com mäo cansada e fraca.
- É um rapagäo - disse a parteira, de rosto enrugado e
grande nariz, mostrando a criança com tanto orgulho como se
ela própria o tivesse posto no mundo. Mas Pedro näo via o seu
filho; à sua frente, tudo se esvaía perante o rosto morto da
mulher, com buracos negros no lugar dos olhos.
- Ela näo vai morrer?
- Olha, olha - disse com voz forte e alegre a parteira de
rugas - se se morresse disto já näo haveria parteiras!
Entretanto, o rapaz tinha nove anos; era uma criança forte e
saudável; no seu rosto de testa larga e de nariz arrebitado
brilhavam grandes olhos graves, de um azul escuro - a mäe de
Alexis e Nikita tinham os mesmos olhos. Um ano depois, nasceu
outro filho, Tiago, mas, desde os cinco anos, Elias, a fronte
ampla, tornara-se a personagem mais importante da
casa. Mimado por todos, näo obedecia a ninguém, e vivia
independente, arranjando com uma constância surpreendente as
mais perigosas e incómodas situaçÖes. As suas brincadeiras
tinham quase sempre um carácter bastante singular, o que
inspirava ao pai um sentimento próximo do orgulho.
Um dia, Pedro encontron o filho no alpendre; o rapazinho
tentava consertar um velho carrinho de mäo.
- O que vais fazer disso?
- Um barco.
- Mas ísso näo pode andar.
- Comigo, tem que andar! - respondeu a criança com a
convicçäo provocadora do seu avô.
Pedro näo conseguiu convencê-lo da inutilidade dos seus
esforços, mas, embora admoestando-o, pensava:
"Tem as ideias do avô."
Elias procurava obstinadamente alcançar o seu objectivo;
todavia, näo conseguiu fazer um barco com a celha e as rodas
do carro. Entäo, com um pedaço de carväo, desenhou as rodas
nos lados da celha; arrastou-o até ao rio, meteu-se lá dentro
e afundou-se no lodo. E, sem medo, gritou às mulheres que
lavavam roupa:
- Ó mulherezinhas! tirem-me daqui se näo afogo-me! ...
A mäe mandou destruir a celha e Elias foi castigado; a
107
partir desse dia, näo ligou mais atençäo à mäe do que à irmä
Tatiana, de dois anos. Era um rapazinho afadigado que passava
o tempo a cortar, esculpir, escavacar, arranjar. E, ao vê-lo,
o pai pensava:
- Há-de ser alguém. É um construtor.
Por vezes, Elias passava dias inteiros sem se preocupar com
o pai; depois, de repente, aparecia no escritório, subia para
os joelhos de Pedro e ordenava:
- Conta-me qualquer coisa.
- Näo tenho tempo.
- Mas eu também näo tenho tempo.
O pai, sorrindo, afastava a papelada.
- Bem: certa vez, uns camponeses...
- Sei já tudo sobre os camponeses; conta-me outra coisa que
seja engraçada.
Mas o pai näo sabia nada engraçado.
- Vai ter com a tua avó.
- Está hoje constipada.
- Entäo, vai procurar a tua mäe.
- Se lá fosse, ela queria logo lavar-me.
Artamonov ria: o filho era o único ser que o fazía rir com
um riso bom e fácil.
- Bem, vou ter com Tikhon - declarava Elias, procurando
saltar dos joelhos do pai.
Este segurava-o:
- O que é que ele te conta?
- Tudo.
- Mas o quê?
- Ele sabe tudo. Viveu em Balakhno. Lá constroem barcos...
Um dia, Elias, caindo de um telhado, esfolou a cara; a mäe,
ao castigá-lo, gritava:
- Se sobes para o telhado, transformar-te-ás num
monstrozinho, num corcunda!
Vermelho pelo ultraje, a criança näo chorou, mas disse à mäe
num tom ameaçador:
- Se me bates mais, mato-me.
Ela contou esta ameaça ao pai, que sorriu:
- Näo lhe batas, manda-o ter comigo.
O filho foi e parou no meio da sala, as mäos atrás das
costas; Pedro, que tinha pela criança uma curiosidade e uma
comovida ternura, perguntou-lhe:
- Porque foste malcriado para com a tua mäe?
- Eu näo sou parvo - respondeu o filho sem hesitar.
- Näo és parvo. Mas és mal educado.
- Ela bate-me. Tikhon diz que só se bate nos parvos.
- Tikhon? Tikhon é um...
Mas, sem saber porquê, Pedro hesitou em tratar o velho por
parvo. Andava a todo o comprimento do escritório, observando o
rapazinho, de pé, junto da porta, sem saber o que dizer.
- Mas tu também bates no teu irmäo Tiago. ..
- Ele é parvo. E näo lhe doí, porque é gordo.
- Entäo, por ser gordo, bates-lhe?
- É avarento.
Pedro concluía que näo sabia educar o filho e que este o
adivinhava. Teria sido talvez mais simples e mais normal
puxar-lhe as orelhas, mas a sua mäo recusou erguer-se sobre
esta cabeça desgrenhada, querída e inquietante. Só o facto de
pensar em qualquer castigo sob o olhar atento e curioso destes
olhos azuis näo o punha à vontade. E, depoís, o sol
excitava-o: era sempre nos dias cheios de sol que Elias se
mostrava mais turbulento. Embora dando ao filho os conselhos
tradicionais, Pedro lembrava-se do tempo em que também
escutava as mesmas palavras que igualmente näo o
impressíonavam, que näo permaneciam na sua memória e só lhe
inspiravam aborrecimentos e um medo logo dissipado. Pelo
contrário, as sovas, mesmo merecidas, esquecem-se
dificilmente: isso Pedro Artamonov sabia-o também, e muito
bem.
O segundo filho, Tiago, gorducho e róseo, tinha a cara da
mäe. Chorava muito e até com uma espécie de prazer; antes de
verter lágrimas, berrava, as faces inchavam e esfregava os
olhos com os dedos. Era pouco corajoso, comia muito e
gulotonamente; depois, cheio de comida, adormecia ou começava
a gemer:
- Mäe, estou doente!
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A filha, Helena, só estava em casa no Veräo; era uma
autêntica menina que tinha o aspecto de uma estrangeira.
Com sete anos, Elias começou a aprender a ler com o padre
Gleb, mas, tendo sabido que o filho do contabilista Nikonov
aprendia, näo num livro de oraçÖes, mas num volume ilustrado
intitulado "As Nossas Leituras", declarou ao pai:
- Näo quero aprender mais, doi-me a língua.
Foi necessário interrogá-lo, demorada e afectuosamente, para
que ele desse explicaçÖes:
- Paulo Nikonov aprende no livro "As Nossas Leituras" e eu
no livro dos outros.
Por vezes, este rapaz vivíssimo, como se tivesse chocado
contra qualquer obstáculo, ficava horas inteiras sentado
sozinho debaixo de um pinheiro, numa pequena colina, atirando
para a água esverdeada do Vatarakcha pinhas secas.
" Aborrece-se" - dízia o paí para consigo.
Também ele vivia semanas e meses embrutecido pelo ruido da
fábrica; girava, girava, depois, subitamente, via-se num
espesso nevoeiro de pensamentos confusos, caía no
aborrecimento, sem chegar a compreender o que o cegava mais:
se as preocupaçÖes do negócio ou o aborrecimento que lhe
traziam estas preocupaçÖes, no fundo monótonas. Muitas vezes,
nesses momentos, revoltava-se contra um homem e começava a
odiá-lo surdamente, por qualquer palavra infeliz: foi assim
que num dia cinzento quase odiou Tikhon Vialov.
Este caminhava, dando o braço a Uliana e dizendo:
- Nós, os Vialov, somos uma famlia numerosa...
- Entäo, porque é que näo vives com os teus? - perguntou
Pedro, aproximando-se da sogra e amparando-a. Tikhon
afastou-se sem responder. Artamonov repetiu a pergunta com
severa insistência. O velho, semicerrando os olhos incolores,
respondeu com indiferença:
- Já näo tenho ninguém, mataram-nos todos.
- O que é que queres dizer com isso que os mataram?
Quem os matou?
- Dois dos meus irmäos foram mandados para Sebastopol: foi
lá que morreram. O mais velho meteu-se, na revolta na altura
em que os camponeses estavam perturbados pela liberdade; o meu
pai também esteve na revolta, era contra a batata. Quando nos
obrigaram a comer batatas, quiseram chicotear-nos: ele fugiu e
afogou-se no gelo, que se abriu. Depois disso, minha mäe teve
mais dois filhos, doutro marido, também Vialov - eu e
Sérgio...
- E onde está o teu irmäo? - perguntou Uliana, piscando os
olhos rasos de lágrímas.
- Mataram-no.
- Parece que recitas histórias - comentou Artamonov,
irritado.
- A senhora distrai-se com isso, anda um pouco tristonha, e
entäo eu...
Sem concluir a frase, debruçou-se, apanhou do chäo um ramo
seco e atirou-o para longe. Caminharam em silêncio, dois
ou três minutos.
- Quem matou o teu irmäo? - perguntou de repente Artamonov.
- Quem é que mata? O homem mata - disse tranquilamente
Tikhon, enquanto Uliana juntava suspirando:
- E por vezes é a peste...
... Vieram, no meio do Veräo, dias pesados. Sobre a terra,
no céu amarelecido e fumarento, pairava um silêncio terrível,
implacável, tórrido; por toda a parte, ardiam arbustos e
florestas. De súbito, um vento seco e quente elevava-se
impetuosamente, ruidoso, assobiando ferozmente, arrancando às
árvores as folhas calcinadas e as carumas arruivadas dos
pinheiros; levantava nuvens de areia, arrastava-as sobre a
terra com ramos, cascas, penas de aves; empurrava as pessoas,
procurando despí-las e refugiava-se nas florestas, onde ateava
os incêndios.
Na fábrica, muitos operários estavam doentes. Artamonov
ouvia por entre o rumor dos fusos e das lançadeiras, tosses
secas e arrastadas; via os tecelÖes de rostos aborrecidos e
impacientes, observava os seus gestos lentos; a produçäo
diminuiu, a mercadoria tornou-se de má qualidade; o número de
110 " 111
dias de ausências aumentava desmedidamente, os homens bebiam
mais, as crianças portavam-se mal. O alegre marceneiro
Serafim, um velho de face rósea e pueríl, fabricava sem parar
pequenos caixÖes e, muitas vezes também, construía com tábuas
de pinho as urnas para os adultos cuja tarefa acabara.
- É preciso organizar festas - dizia Alexis com insistência;
- temos que distrair as pessoas, dar-lhes vontade para
trabalharem!
Ao partir com a mulher para a feira de Nijni, aconselhou
ainda uma vez:
- Organiza uma festa: as pessoas ressuscitaräo! Acredita:
a alegria cura todos os males.
- Trata tu disso - ordenou Pedro à mulher. - Faz o melhor
que puderes; que tudo seja abundante.
Natália resmungava, descontente, e ele inquiriu, furioso:
- E entäo?
Assoando-se com força à ponta do avental, em sinal de
protesto, a mulher respondeu:
- Já ouvi.
A festa começou com uma cerimónia de acçäo de graças.
O padre Gleb celebrava majestosamente; emagrecera ainda
mais, estava mais seco; a sua voz rachada, ao pronunciar
palavras solenes, parecia queixar-se, como se usasse as suas
últimas forças para suplicar; as faces acinzentzdas dos
tecelÖes tísicos permaneciam severamente fechadas e
piedosamente serenas; muitas mulheres soluçavam. Quando o
padre èrguia para o céu fumarento os seus olhos tristes, as
pessoas imitavam-no, olhando com o mesmo ar de súplica o Sol
descarnado e quente através da fumaça, julgando sem dúvida que
o doce padre avistava alguém no céu que ele conhecia e o
escutava.
Depois da cerimónia, as mulheres trouxeram mesas para as
ruas da aldeia e os operários instalaram-se comodamente perto
das gamelas de madeira, cheias até cima de aletria e de carne
de carneiro. A volta de cada gamela, juntavam-se uns dez; em
cada mesa, havia uma vasilha cheia de cerveja forte, fabricada
em casa, e outra vasilha mais pequena, com aguardente. As
pessoas, abatidas e fatigadas, sentiram-se com coragem. O
silêncio que cobria a terra como um chapéu ardente foi
abalado,
112
afastou-se para os pântanos e florestas incendíadas; na
aldeia, soltaram-se vozes alegres, ruído de colheres de
madeira, risos de crianças, gritos de mulheres, tagarelices de
jovens.
A abundante refeiçäo durou perto de três horas; em seguida,
depois de ter acompanhado a casa os homens que tinham
bebido de maís, a mocidade reuniu-se à volta de Serafim, o
marceneiro bem posto e apurado. A camisa e as calças de brim,
de tanto lavadas, tinham-se tornado de cor azul-clara; o seu
rosto róseo e luzidio, de nariz comprido, brilhava de
entusiasmo, e os olhitos piscavam-lhe de alegria. O bem
humorado fabricante de caixÖes parecia possuído por uma
alegria celestial que assentava bem com o seu nome. Sentado
num banco, a guzla pousada nos joelhos, mal tocando nas cordas
com os dedos escuros, torcidos como raízes, entoou com forçada
tristeza uma cançäo fanhosa, com a música dos pedintes cegos:
Aqui tendes boa gente, uma história para vos divertir
Para que demonstrem a vossa esperteza...
E piscando o olho às raparigas, no meio das quais estava,
majestosa, a sua própria filha, a tecedeira Zenaida, de seios
opulentos e olhos vivos, continuou, erguendo a voz, ainda com
maior tristeza:
Eis Jesus no seu belo paraíso; No per fume da frescura
celeste, Sob uma grande tilia de flores douradas.
Está sentado num trono de cortiça, Distribuindo ouro e prata,
dando as pedras preciosas, Para recompensar os ricos,
Por que eles säo, os ricaços, Generosos para com os
pobrezinhos, Por que amam os miseráveis, Alimentam os en
fermos e os mendigos.
De novo, piscou o olho às raparigas e, bruscamente, a sua
113
voz frágil entoou uma cançäo para dançar, enquanto Zenaida, os
braços atrás da cabeça, à maneira das ciganas, sacudia os
seios, soltava um grito surdo e começava a pular, acompanhada
pela cançäo sonora do pai e a toada das cordas:
Quem rouba prata Fica de pernas partidas!
Quem rouba ouro Na chama é gueimado!
Pérolas, rubis preciosos, Näo säo mais que tapa-olhos!...
O ritmo da guzla e o modo como Serafim cantava provocaram os
assobios dos rapazes; entäo, as raparigas e as mulheres
iniciaram outra cançäo para bailar:
Navios velozes andam pelos mares Para levar lindas prendas às
raparigas. ..
Zenaida, batendo no chäo com os calcanhares, prosseguia com
voz aguda:
De Pachka a Palachka
Do linho para as camisas;
De Teriochka a Matriochka
Dois brincos para as orelhas.
Elias Artamonov estava sentado num monte de tábuas, ao
lado de Paulo Nikonov, um rapazinho magro cuja cabeça
envelhecida, de raros cabelos, girava no cimo de um pescoço
comprido, enquanto os olhos ávidos, cinzentos e medrosos,
saltavam da sua face acinzentada. Elias gostava muito do velho
e tinha prazer em ouvir a guzla e a voz malandra e cómica de
Serafim. Mas a rapariga de saia vermelha, girando loucamente,
provocara violentas assobiadelas com a sua cançäo indecente e
gritante. Ficou ainda mais desgostoso quando Nikonov lhe disse
a meia voz:
- Zenaida é uma desvergonhada. Deita-se com toda a gente. Já
era com o teu pai, pois eu vi, certa vez, que ele a apalpava.
- Para quê? - perguntou ingenuamente Elias.
- Mas tu bem o sabes...
Elias baixou os olhos. Sabia por que se apalpam as raparigas
e ficou aborrecido por ter feito a pergunta.
- Estás a mentír - respondeu, desgostoso e näo quis
ouvir mais o que Nikonov lhe murmurava.
A moleza deste rapaz que tinha medo das pancadas, a
monotonia das histórias insípidas que contava acerca das
raparigas da fábríca desagradavam-lhe, mas Nikonov era muito
hábil em fazer voar os pombos. Elias gostava de pombos e, além
disso, sentia um certo prazer em defender um rapaz fraco dos
outros rapazes da fábrica. Depois, Nikonov descrevia
formidavelmente tudo quanto via, embora só visse coisas
desagradáveis e parecesse sempre, assim como Tiago, queixar-se
do mundo inteiro.
Ficou mais uns minutos calado e acabou por ir até casa.
Tomavam chá, no jardim, sob a sombra quente das árvores
cinzentas de poeira. Numa mesa grande, estavam os convidados:
o padre Gleb, o mecânico Koptev, negro e ondulado
como um cigano, o contabilista Nikonov, muito bem lavado, a
barba muito rapada. Tinha uma grande bigodeira e uma bossa na
testa; entre esta e o nariz abria-se um sorriso, escondendo
nas rugas trémulas da pele os buraquinhos dos olhos.
Elias sentou-se ao lado do pai, recusando acreditar que este
homem tranquilo se tivesse metido com a indecente tecedeira. O
pai, com a mäo pesada, acariciou-lhe silenciosamente o ombro.
Todos se desfazíam em água, devido ao calor, transpirando e
falando molemente; só a voz sonora de Koptev soa-
va täo bem como nas noites frias e cristalinas de Inverno.
- Vamos à aldeia? - propôs Natália.
- Sim, vou vestir-me - disse Pedro. Levantou-se da mesa e
seguiu para casa; passado um minuto, Elias correu atrás dele e
apanhou-o já no patamar.
- Que queres tu? - perguntou-lhe o pai afectuomente.
Elias, olhando-o bem nos olhos, interrogou:
114 115
- É verdade que apalpaste a Zenaida?
Elias teve a impressäo de que o pai tinha medo; näo se
surpreendeu: considerava-o uma pessoa tímida, com medo de
todos; por isso, era assim taciturno. Por diversas vezes,
Elias tivera a sensaçäo de que o pai receava. Para o
tranquilizar, disse-lhe:
- Näo acredito, mas quero que me digas.
O pai levou-o para o vesu'bulo e deste para o quarto,
fechando a porta. Depois começou a andar de um lado para o
outro, fungando; passeava deste modo quando se zangava.
- Anda cá - disse o velho Artamonov, parando junto da mesa.
Elias aproximou-se.
- Quem é que te disse?
- Foi Paulo, mas eu näo acredito em nada.
- Ah! pois tu näo acreditas?
Pedro acalmou-se e olhou de perto a larga testa do filho, o
seu rosto grave e duro. Coçava a orelha e reflectia: era bom
ou mau que o filho näo tivesse acreditado nas historietas
tolas de um rapazola? Mas näo encontrava palavras para
responder ao filho, nem como devia dizer-lhas. Näo tinha
vontade de lhe bater. E, no entanto, precisava de fazer
qualquer coisa, pelo que concluiu que o mais simples era
dar-lhe uns bofetÖes.
Erguendo um braço que recusava levantar-se puxou-o pelos
cabelos e resmungou:
- Näo deve fazer-se caso do que dizem os imbecis, ouviste?
Depois, largando-o, ordenou:
- Vai para o teu quarto, e näo saias de lá. Sim, näo saias.
O filho encaminhou-se para a porta, a cabeça baixa e
abandonada, como se ela näo lhe pertencesse, enquanto Pedro,
olhando-o, dizia para se desculpar:
- Ele näo chora. Näo o magoei.
Tentou zangar-se:
- Toma tento no que te digo, se näo...
Mas nada iludia o sentimento de piedade que tinha pelo
filho: sentia-se ferido por ele, e descontente de si próprio.
"É a primeira vez que lhe bato - pensou, olhando com
desgosto a sua mäo vermelha e cabeluda. A mim, bateram-me mais
de cem vezes, antes dos dez anos."
Mas isto näo era uma consolaçäo. Olhou o Sol pela janela,
igual a uma mancha de gordura numa água suja, escutou o rumor
convidativo da aldeia, depois, sem vontade, foi ver a festa;
ao passar em frente de Nikonov, disse-lhe em voz baixa:
- O teu enteado conta parvoíces ao meu Elias.
- Já vou tratar dele - propôs logo o contabilista; contente.
- Que näo dê à língua - acrescentou Pedro, olhando de través
o rosto inexpressivo de Nikonov e pensando com alívio:
" Como é simples! " A aldeia recebeu os patrÖes com ruidosa
alegria: sorrisos meio bêbados, adulaçäo; com os seus sapatos
novos, as pernas envoltas em fitas de linho, à moda morduana,
atacadores encarnados, Serafim rodopiava em frente de
Artamonov, batendo com os pés e gritando louvores:
- Olá, olá, guem é que lá vem?
- É ele mesmo que vem lá.
- E guem o traz?
- " ele que vem pessoalmente.
Ivan Morozov que, com a barba grisalha e os cabelos
compridos lembrava um padre, dizia em voz baixa:
- Estamos satisfeitos contigo. Muito contentes.
Mamaeev, outro velhote, gritava com entusiasmo:
- Os Artamonov tratam as pessoas como grandes senhores.
E Nikonov dizia a Koptev, bastante alto para que todos o
ouvissem:
- Säo pessoas reconhecidas que sabem agradecer a quem lhes
faz bem.
- Mäe, estäo a empurrar-me! - gemia Tiago, que trzzia uma
camisa de seda cor-de-rosa que lhe dava o aspecto de um baläo.
A mäe, trazendo-o pela mäo, sorria com imponência às mulheres
e recomendava ao filho:
116 " '' 117
- Olha aquele velhote a dançar...
O marceneiro rodopiava infatigavelmente, saltitava, cantando
sempre:
Ó bate, meu pé, Bate com força.
O sapato é mais leve que a bota, A mulher mais meiga que a
rapariga.
Näo era a primeira vez que saudavam assim Artamonov.
Tinha todas as razÖes para näo acreditar na sua sinceridade;
mas gostava e disse a sorrir:
- Obrigado, obrigado! Todos nos entendemos bem, é o que é
preciso.
E pensava:
"Que pena näo estar cá o Elias, para ver como festejam o
pai."
Sentiu necessidade de espalhar o bem, de oferecer às pessoas
algum reconforto: depois de pensar um instante, disse, coçando
a orelha:
- Temos de aumentar para o dobro o hospital das crianças.
Abrindo inteiramente os braços, Serafim deu um salto para
trás:
- Ouviram? Um "viva" pelo paträo!
Vigorosamente, os homens ergueram um "viva"; rodeada pelas
mulheres, Natália, exclamou, enternecida:
- Mulheres, väo buscar mais três barricas de cerveja.
Peçam-nas a Tikhon. Väo!
O entusiasmo das mulheres foi ainda maior, enquanto Nikonov,
abanando a cabeça, declarava com emoçäo:
- Uma autêntica recepçäo de arcebispo.. .
- Mäe! mäe! tenho calor - gaguejava Tiago.
Esta alegria foi em breve perturbada pelo maquinista Volkov,
um homem de barba negra e olhos grandes como ameixas; correu
para Natália, arrastando desajeitadamente uma criança magra,
quase desfalecida pelo calor, a pele azulada e cheia de
borbulhas; Volkov berrava como um histérico:
118
- Que hei-de fazer? A rninha mulher morreu. Com o calor.
E deixou me ficar o miúdo. Que hei-de fazer?
Lágrimas amareladas escorriam dos seus olhos loucos; levando
o maquinista para longe de Natália, as mulheres diziam, como
que a desculpar-se:
- Deixa-o lá. Bem vês que näo está em perfeito juízo. A
mulher era um galdéria, uma tuberculosa. E ele também está
doente.
- Mas tirem-lhe, entäo, a criança - aconselhou Artamonov com
um gesto descontente. Imediatamente, diversos pares de braços
femininos se estenderam para o corpito mole, mas Volkov fugiu,
praguejando.
Apesar de tudo, as coisas tinham corrido bem, tudo fora
alegre e movimentado, como convém a uma festa. Ao fixar o
rosto dos novos operários, Artamonov pensava com certo
orgulho:
"O número aumenta. Se o pai visse..."
Subitamente, a mulher lamentou-se:
- Escolheste uma altura má para castigar Elias. Teria podido
ver como gostam de ti.
Artamonov, sem responder, lançou a Zenaida um olhar dúbio:
ela seguia à frente de uma dezena de raparigas que cantavam
com voz baixa e desafinada:
Ele passa por mim, Olba-me com simpatia:
Talvez quisesse Ser o meu amante.
"Porca! - pensou Pedro. - E a sua cantiga também é
indecente."
Pegou no relógio, viu as horas e, näo se sabe porquê,
mentiu:
- Vou a casa, pois deve ter chegado um telegrama do Alexis.
Caminhava rapidamente, reflectindo no que era preciso dizer
ao filho: acabou por achar algo de bastante severo mas
afectuoso. Porém, ao abrir a porta do quarto de Elias,
esqueceu-se de tudo. O filho, de joelhos em cima de uma
cadeira, os cotovelos apoiados no peitoril da janela, olhava a
púrpura enfumarada do céu; a penumbra enchia o quartinho com
uma poeira cinzenta; na parede, numa grande gaiola, cirandava
um melro que, preparando-se para dormir limpava o bico
amarelo.
- Ainda aí estás?
Elias estremeceu, voltou-se, desceu da cadeira, devagar.
- Vês, dás ouvidos a todas as poucas vergonhas.
O filho estava de pé, a cabeça baixa; o pai compreendeu que
ele fazia aquilo de propósito para lembrar que tinha sido
arrastado pelos cabelos.
- Porque te pÖes assim? Levanta a cabeça.
Elias ergueu-se mas näo olhou o pai. O melro começou a
saltitar por entre as grades, assobiando suavemente.
"Está zangado" - pensou Artamonov, sentando-se na cama de
Elias e enfiando um dedo no travesseiro.
- Näo se devem escutar parvoíces.
Elias perguntou:
- Mas o que se há-de fazer quando as dizem?
A sua voz séria agradou ao pai. Pedro continuou, mais
afectuosamente:
- Escutas e logo esqueces. Se à tua frente disserem uma
asneira, deves esquecê-la.
- E tu, também a esqueces?
- É evidente. Se me lembrasse de tudo quanto me dizem, o que
seria de mim!
Falava devagar, escolhendo com cuidado as palavras mais
simples, embora compreendesse quanto eram inúteis. Em
breve se perdeu na sua obscura prudência e exclamou
suspirando:
- Anda cá.
Elias aproximou-se, devagar. O pai, apertando-lhe os rins
entre os joelhos, pôs as mäos na testa do filho e ficou
impressionado por ver que ele continuava a recusar-se a
endireitar a cabeça:
- Continuas zangado? Olha para mim.
Elias olhou-o de frente e foi ainda pior, pois perguntou:
- Porque me bateste? Se eu te disse que näo acreditava no
Paulo...
Artamonov näo respondeu logo. Viu que o filho, por uma
espécie de milagre, era seu igual, que se levantara até à
importância de uma pessoa adulta, ou, entäo, que a diminuira
até ao seu nível:
"Ele é demasiado susceptível para a sua idade..."
Este pensamento veio rápido. E levantou-se, começou a falar
atabalhoadamente, procurando levar o filho a uma pronta
reconciliaçäo:
- Näo te fiz mal. Devem castigar-se as crianças. O meu pai
também me batia, näo julgues. E a minha mäe. E o palafreneiro,
o empregado, o lacaio alemäo. E quando é um parente que bate,
é menos vexatório, mas se for um estranho, custa bem mais. A
mäo de um pai é sempre leve.
Percorrendo os seis passos que separavam a porta da janela,
apressava-se a concluir a conversa, receando que o filho
fizesse novas perguntas.
- Tu vês, tu escutas coisas que näo deves ouvir -
resmungava, sem atentar no filho, que se encostara à cama. É
preciso que eu te eduque. Vou mandar-te para a cidade. Queres
aprender?
- Sim.
- Bom.
Sentia vontade de acariciar o filho, mas algo de indefinido
o impedia. De resto, já näo se lembrava se o pai e a mäe o
acariciavam depois de qualquer desgosto.
- Anda, vai brincar. Mas näo deves acompanhar com o Paulo.
- Ninguém gosta dele.
- Com razäo, pois é um malandrete.
Ao sair, parado sob a janela, Artamonov dizia para os seus
botÖes que as coisas com o filho näo tinham decorrido bem.
"Mimei-o, e já näo me receia.
Um rumor vinha do lado da aldeia: gritos e cançÖes de
raparigas, surdo ruído de vozes, o gemer do acordeäo. E eis
que, junto à porta, ressoam as palavras de Tikhon:
- Porque estás em casa, menino? É dia de festa e ficas
120 " 121
em casa? Vais estudar? Muito bem. Näo conhecer, é näo nascer,
como se diz. Eu vou aborrecer-me sem ti, menino.
Artamonov teve vontade de gritar:
KTu mentes, eu é que vou aborrecer-me! O patife, gaba o
filho do paträoH - pensou, descontente.
Quando mandou o filho para a ádade, instalando-o em casa do
irmäo do padre Gleb, que devia prepará-lo para o liceu, Pedro
sentiu realmente que havia um vazio na sua alma e
aborrecimento em casa.
Este mal-estar parecia-se com o que experimentava no quarto,
quando a luz da candeia a que se habituara se extinguia e ele
voltava a acordar.
Antes de partir, Elias mostrou-se täo turbulento que
dir-se-ia querer deixar de si má recordaçäo. Disse à mäe
tantas inconveniências que ela se esbulhou em lágrimas, abriu
as gaiolas a todos os pássaros de Tiago e ofereceu a Nikonov
um melro que prometera ao irmäo.
- Porque fazes tantas maldades? - perguntou-lhe o pai.
Elias, sem responder, contentou-se em baixar a cabeça, e
Artamonov teve a impressäo que o filho, para o arrelíar, lhe
lembrava aquilo que ele tanto queria esquecer. Admirava-se de
sentir o lugar que tinha no seu coraçäo o rapazito.
HO meu pai inquietar-se-ia deste modo por mim? "a A memória
respondia-lhe que nunca achara o seu pai um ser täo próximo de
si e täo amado, mas apenas um paträo severo que mostrava muito
mais cuidados por Alexis do que por ele.
uSerei melhor do que o meu pai? - interrogava-se Artamonov,
e ficava perplexo, näo sabendo se era bom ou mau.
Ficava absorto nestes pensamentos, que surgiam
inesperadamente, mesmo no trabalho. A empresa alargava-se
ruidosamente, fixava no paträo centenas de olhos, exígia uma
atençäo cada vez maior, mas, quando qualquer coisa lhe
lembrava Elias, Artamonov via as suas preocupaçöes de negócios
diluirem-se como os fios de uma merda apodrecida, e precisava
de um grande esforço para os ligar de novo solidamente.
Tentava, para ocupar o vazio deixado pela partida de Elias,
ocupar-se mais do filho mais novo, mas verificou com mágoa que
Tiago näo o consolava.
- Pai, compra-me um bode - pedia Tiago, que pedia sempre
qualquer coisa.
- Para que queres um bode?
- Para andar em cima dele.
- Isso é estúpido. As bruxas é que montam nos bodes.
- Mas Helena deu-me um livro com ilustraçÖes, e lá se vê um
menino a cavalo num bode.
O pai pensava:
"Elias näo acreditaria na ilustraçäo. E logo exigiria que
lhe falassem da bruxa.
Näo gostava que Tiago, depois de bulhar com os filhos dos
operários, viesse queixar-se:
- Eles fazem-me mal...
Era evidente que o filho mais velho gostava de díscutir e de
lutar, mas nunca se queixara de ninguém, apesar de ser por
vezes sovado pelos companheiros. O mais novo pelo contrário,
era cobarde, preguiçoso, procurando sempre chupar ou mastigar
qualquer rnisa. Nalgumas ocasiÖes, era incompreensível e mau.
Um dia, ao pequeno almoço, quando a mäe ia dar-lhe o leite,
ele empurrou-a com o braço e o leite espalhou-se e queimou-a.
- Eu bem sabia que ias espalhar o leite - observou
Tiago,sorridente.
- Viste e näo disseste nada? Isso näo se faz - observou
o pai. - A tua mäe queimou os pés.
Tiago, piscando os olhos, continuou a mastigar em silêncio.
Passados dias, o pai ouviu-o no pátio, exclamando
precipitadamente:
- Eu vi que ele queria bater-lhe; avançou, aproximou-se e
deu-lhe por trás...
Artamonov debruçou-se da janela e viu que o filho, agitando
os braços, conversava com Paulo Nikonov. Chamou Tiago,
proibiu-o de andar com Nikonov e quis dar-lhe alguns conselhos
prudentes, mas, tendo reparado no branco-malva dos seus olhos
de pupilas muito claras, afastou o filho, suspirando:
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- Vai, olho vazio.
Prudentemente, como se caminhasse num chäo escorregadio,
Tiago desapareceu, os cotovelos de encontro aos lados, as
palmas estendidas como se transportasse um objecto pesado e
incómodo.
- Parvo, parvalhäo - gritou o pai.
A filha, grande e de poucas palavras, tinha em si algo de
aborrecído, que a tornava parecida com Tiago. Gostava de
permanecer deitada, lendo livros, engolindo muita compota com
chá e ao jantar comia sem apetite bocados de päo, mexia com a
colher no prato da sopa, como para agarrar uma mosca,
beliscava os lábios sanguíneos e vermelhos e dizia muitas
vezes à mäe, num tom que ficava mal a uma rapariguinha:
- Isso já näo se faz. Já näo é moda.
Um dia,. o pai interrompeu-a:
- Queres ser täo sabichona e näo sabes como se faz o tecido
das tuas camisas. Näo queres vir ver?
- Se quiser - respondeu.
Levou o vestido dos domingos, pegou num chapelinho, que o
tio Alexis lhe oferecera, e seguiu docilmente o pai,
procurando näo sujar nem rasgar o vestido. Por diversas vezes,
espirrou e quando os operários lhe desejavam boa saúde,
ruborizada e sem um sorriso no rosto altivo, respondia-lhes
silenciosamente com um aceno da cabeça. O pai falava-lhe do
negócio, mas reparando que ela näo se interessava pelas
máquinas, mas apenas pelo sítio onde punha os pés, calou-se,
ferido pela indiferença da filha por uma fábrica que lhe dava
tantas preocupaçÖes. Ao sair da oficina de tecelagem,
perguntou-lhe, no entanto:
- E entäo?
- Há muito pó - respondeu olhando o vestido.
- Pouco viste - disse Pedro com ironia, antes de acentuar
num tom de censura:
- Porque estás sempre a levantar o vestido? O chäo está
limpo e o vestido é bastante curto.
Ela despregou os dois dedos que seguravam a saia e disse,
para se desculpar:
- Isto cheira a óleo.
Artarnonov, irritado sobretudo pelos dois dedos, resmungou:
- Toma atençäo. Com dois dedos, pouca coisa pode
segurar-se...
Num dia de mau tempo em que ela lia, deitada num sofá, o
pai, sentando-se ao lado, perguntou-lhe o que lia.
- A história de um médico.
- Bem, entäo trata-se de ciência.
Mas olhando para as folhas do livro, indignou-se:
- Porque estás a mentir? Säo versos. É em verso que se fala
de ciência?
Com palavras apressadas e embaraçadas, ela contou-lhe uma
história incrível: Deus autorizara Satanás a seduzir um médico
alemäo, e Satanás mandou o diabo junto do médico.
Coçando a orelha, Artamonov procurava compreender o sentido do
conto, mas näo conseguia e irritou-se com as palavras que a
filha empregava.
- Era bêbado, esse médico?
Reparou que Helena ficara perturbada com a pergunta e, sem
esperar mais explicaçÖes, exclamou com humor:
- Afinal, deve ser uma fábula. Os médicos näo acreditam no
Diabo: quem te deu esse lívro?
- Foí o maquinista Koptev que mo emprestou.
Pedro lembrou-se do olhar sonhador que tinham por vezes os
olhos de Helena e julgou necessário avisar a filha:
- Koptev näo pode ser marido que te convenha; näo aceites as
suas conversas.
Na verdade, Tiago e Helena eram mais aborrecidos, mais moles
do que Elias, via-o cada vez mais claramente. E, a pouco e
pouco, verificou que o seu amor por Elias cedeu o lugar ao
ódio por Paulo Nikonov. Quando avistava o rapazelho, pensava:
" Foi por causa deste malandrote.. ."
Tinha por ele uma repulsa física. Nikonov andava de costas
curvadas, voltando sobre um pescoço frágil uma cabeça ansiosa
e, mesmo quando corria, Artamonov tinha a impressäo de que ele
se esquivava como um bicho receoso. Trabalhava muito,
engraxava as botas e escovava os fatos do avô, rachava
124 " 125
e transportava a lenha, esvaziava as águas sujas da mzinha,
lavava a roupa do irmäo no rio. Operoso mmo um pardal, sujo,
desajeitado, tinha para todos um sorriso obsequioso, um
sorriso de cäo, e desde que desrnbria Artamonov
cumprimentava-o de longe, curvando o pescoço de ganso,
deixando cair a cabeça sobre o peito. Artamonov quase sentia
prazer quando via a criança, sob uma chuva de Outono, ou no
Inverno, soprar para aquecer os pés entorpecidos, apoiado num
só pé, como uma cegonha, e enmlhendo a outra perna, de onde
escorregava
uma bota velha, esfarrapada e esburacada. Tossia apertando o
peito com as mäos azuladas e torcendo-se como um saca-rolhas.
Tendo sabido que o rapaz guardava no balneário dois casais
de pombos, Artamonov disse a Tikhon que lhes abrisse a porta e
que näo queria mais o garoto naquele lugar.
- Ele acaba por cair do telhado e aleijar-se. Olha: está
tudo podre.
Entrando uma tarde no seu gabinete, viu o miúdo esgravatar
no soalho com um canivete e limpar com um pano molhado a tinta
espalhada.
- Quem entornou esta tinta?
- O pai...
- Näo foste tu?
- Juro que näo.
- Porque estás a chorar?.
De joelhos, oferecendo a cabeça às pancadas, Paulo nada
dizia; entäo, Artamonov, esmagando-o com o olhar, disse com
satisfaçäo:
- Foi bem feito.
Mas, de súbito, darividente durante um segundo, sorriu por
entre a barba, sentindo que fora ridícula e pueril esta
animosidade para com um gatotelho insignificante.
ec Que divertido! - disse para consigo, com indulgência, e
atirou para o chäo uma moeda de rnbre.
- Toma, vai comprar bolos!
A criança avançou para a moeda os ossitos sujos dos dedos,
com prudência, como se receasse que o cobre o queimasse.
- O teu padrasto bate-te?
- Sim.
- Que queres? Toda a gente apanha - consolou-o.
Dias depois, Tiago queixou-se de que Paulo o maltratara, e
Artamonov, embora näo acreditasse, recomendou ao contabilista,
por uma questäo de hábito:
- Chicoteia bem o teu enteado.
- É o que faço - garantiu Nikonov respeitosamente.
No Veräo, quando Elias veio passar as férias, trazendo fatos
desconhecidos, os cabelos curtos, a testa ainda maior,
Artamonov começou a detestar Paulo com maís violência do que
nunca, vendo que o filho se obstinava em andar com tal aborto.
Quanto a Elias, tornara-se de uma polidez desagradável:
dizia "vós" ao pai e à mäe, andava de mäos nos bolsos,
considerava-se em casa como um convidado, irritava o irxnäo
até o deixar num acesso de desespero lacrimoso e agastava de
tal modo a irmä que esta lhe atirava com os livros à cara:
numa palavra, conduzia-se como um perfeito e verdadeiro
libertino.
- Eu bem o previra - gemia Natália. - Toda a gente afirma
que a educaçäo provoca a insolência.
Artamonov calava-se, observando o filho com inquietaçäo;
parecia-lhe que, embora Elias fizesse muitas loucuras, era sem
alegria e como que forçado. Os pombos reapareceram no telhado
do balneário: pavoneavam-se, arruihando, sobre a aresta,
enquanto Elias e Paulo, sentados na chaminé durante horas e
horas, conversavam com animaçäo, quando näo obrigavam os
pombos a voar. Nos primeiros dias que se seguiram à chegada do
filho, o pai propôs-lhe:
- Conta-me a tua vida; por mim, já te contei muitas coisas,
e agora é a tua vez.
Elias, rápida e apressadamente, falou de coisas pouco
interessantes, insistindo nas partidas que os rapazes faziam
aos professores.
- Porque lhes fazem partidas?
- Eles aborrecem-nos.
- Mas näo acho bem. É difícil aprender?
- Näo. É fácil.
- Näo mentes?
- Veja as minhas notas - respondeu Elias erguendo os
126 I 127
ombros, enquanto os olhos fixavam o céu e o jardim. O pai
perguntou-lhe:
- Que estás a ver?
- Um falcäo.
Artamonov suspirou:
- Bem, vai lá, diverte-te. Näo quero que te aborreças
comigo.
Ficou sozinho e lembrou-se de que também ele, quando era
criança, se aborrecia quase sempre ou tinha medo quando o pai
lhe falava.
- Arrelia os professores. É uma coisa em que nunca pensei
quando o padre me castigava com o chicote. Parece que a vida
já é menos dura para as crianças.
Antes de regressar à cidade, Elias só fez um pedido ao pai:
- Permita que o Paulo guarde os pombos no balneário.
Sem nada prometer, o pai respondeu:
- Näo é possível consolar todos aqueles que säo infelizes.
- Nesse caso, autoriza - decidiu o filho. Vou dizer-lho.
Ele vai ficar contente.
Artamonov ficou magoado pelo facto de Elias, que se
preocupava com os prazeres de um valdevinos, ter sido incapaz
de proporcionar um pouco de alegria à sua exístência de pai.
E, a seguir à partida do filho, sentiu uma antipatia maís
tenaz ainda contra o enteado do contabilista. De tal modo que,
quando, na fábrica ou na cidade, alguma coisa o irritava,
Artamonov via surgir imediatamente no centro das suas
massadas, um garoto sujo e esfarrapado que sobrepunha, com os
seus ossos frágeis todos os maus pensamentos, todos os maus
sentimentos. Realmente, o garoto estava em toda a parte,
desaparecia como a sombra da noite e, correndo daqui para
além, tal um diabinho perverso, tornava-se cada vez mais
impossível.
Num dia tranquilo de fim de estaçäo, Artamonov, aborrecido e
fatigado, saiu para o jardim. A noite caía; no céu esverdeado,
varrido pelo vento, lavado pelas chuvas, morria, sem aquecer,
o Sol cansado do Outono. Num canto do jardim, Vialov juntava
as folhas caídas; um rumor triste e mole espalhava-se pelo
jardim; por detrás das árvores, a fábrica roncava, uma
fumarada cinzenta misturava-se preguiçosamente à limpidez do
ar, sujando-o. Para näo ver o velho, para näo lhe falar,
seguiu para o lado oposto, perto do balneário, cuja porta
estava entreaberta.
- Ele deve estar aqui...
Olhando prudentemente, Pedro viu, na sombra, a pequena
silhueta do seu inimigo deitada num banco: a cabeça pendente,
as pernas bem separadas, entregava-se ao vício da infância.
Por um segundo, Artamonov ficou satisfeito, mas logo pensou em
Tiago, em Elias e, cheio de medo e de nojo, gritou:
- Que estás a fazer, meu porcalhäo?
A mäo de Paulo, cessando de se agitar, ergueu-se; saiu de
cima do banco, abriu a boca, gritou ainda e rolou como uma
bola aos pés do homem robusto; com prazer, Artamonov assestou,
com o pé direito, no peito do garoto e parou; a criança
pareceu estalar, disse qualquer coisa imperceptível e caiu
para o lado.
Num instante, Artamonov teve a impressäo de que o pontapé
libertara a sua alma dos trapos sujos, do peso que o oprimia.
Mas, passado um minuto, olhou para o jardim, escutou, abriu a
porta e, baixando-se, disse a meia voz:
- Vamos, levanta-te!
A criança estava deitada, um braço estendido para a frente,
o outro sob um dos joelhos; uma das pernas dava a impressäo de
ser muito mais curta; parecia dirigir-se suavemente a Pedro e
o seu braço estendido era de um comprimento anormal e
terrível. Artamonov cambaleou, encostou-se à porta, tirou a
boina, e limpou com o forro a testa subitamente coberta de
um suor abundante.
- Levanta-te, que näo direi nada a ninguém - disse,
baixinho, compreendendo já que matara a criança: via escorrer
da face apoiada ao soalho, serpenteando, um fio de sangue
escuro.
"Matei-o", pronunciou Pedro mentalmente. Esta palavra täo
curta, täo simples entontecia-o. Artamonov meteu a boina no
bolso do casaco, persignou-se olhando estupidamente o pequeno
corpo miseravelmente encarquilhado; um pensamento rudimentar
martelava preguiçosamente na sua cabeça:
128 1 129
- Direi que foi sem querer. Que lhe bati com a porta. A
porta é muito pesada.
Deu meia volta e sentou-se pesadamente no banco. Atrás dele
apareceu Tikhon, a vassoura na mäo. Com os seus olhos
líquidos, fixava Paulo, coçando pensativamente o rosto
enrugado.
- Foi assim... - começou Artamonov com voz forte,
segurando-se ao rebordo do banco.
Mas Tikhon, abanando a cabeça, interrompeu-o:
- Era fraco, o pequeno, e desajeitado... Quantas vezes lhe
disse para näo subir lá para cima...
- Como? - interrogou Pedro com um receio misturado de
esperança.
- Vais matar-te - dizia-lhe eu. - E tu também o preveniste,
lembras-te? Para subir, é preciso agilidade. Ele está
desmaiado?
O velho pôs-se de joelhos, apalpou o pescoço e o braço da
criança, tocou-lhe no rosto e, depois, limpando o dedo e
esfregando-o como um fósforo que se quer acender, disse:
-Talvez tenha acabado. Ele estava pronto, pouco faltava
já...
Tikhon falava calmamente, os seus movimentos eram lentos, e
tudo nele era normal, mas o paträo, incrédulo, esperava
palavras de ameaça e de reprovaçäo. No entanto, o velho deitou
uma olhadela para o quadrado cortado no tecto e ouviu o
arrulho dos pombos, continuando no mesmo tom pacíficn; e
simples:
- Subia pela porta: punha um pé no banco, o outro no
loquete, depois sobre a porta e, entäo, agarrava-se ao rebordo
da abertura, subia à força dos braços. Mas os seus braços eram
fracos: deve ter caído e batido com o coraçäo de encontro à
porta.
- Eu nada vi - disse Pedro.
As suposiçÖes que lhe sugeria o instinto de consetvaçäo
sucediam-se rapidamente no seu espirito:
aEstá a mentir? Finge? Prepara-me uma armadilha, quer ter-me
nas mäos? Ou näo terá realmente adivinhado, por ser täo
estúpido?
Esta última hipótese era a mais provável. Tikhon tinha o
aspecto de um imbecil; abanava a cabeça, como se tivesse
batido com a testa, e suspirava:
- O pó, o pó! Porque há seres assim? Vou avisar a mäe.
Talvez o padrasto näo tenha pena: esta criança näo servia para
nada.
Artamonov ouvia com atençäo suspeita as palavras do velho,
procurando descobrir alguma que soasse falso. Tikhon falava,
como habitualmente, sem curiosidade.
- Chut! - pediu, enquanto apurava o ouvído: no pátio, uma
voz de mulher chamava, irritada:
- Paulo! Paulo!
Tikhon acariciou a face:
- Está aqui o teu Paulo. Podes preparar as lágrimas...
"Näo, é um imbecilH - decidiu Artamonov que, tirando a
boina do bolso, seguiu para o jardim, examinando atentamente a
pala quebrada.
Durante quinze dias ou três semanas, sentiu-se abalado por
uma vaga de medo obscura, sob a ameaça quotidiana de uma
desgraça nova, desconhecida. A porta vai abrir-se, Tikhon
entrará e dirá:
- É claro que sei tudo...
Mas, exteriormente, tudo ia bem; as pessoas, dóceis em regra
em dar à luz os filhos ou enterrá-los, acolheram calma e
simplesmente a morte da criança. Nikonov colocou no pescoço
amarelo uma gravata nova, negra, e o seu rosto bem lavado
adquiriu uma expressäo de gravidade modesta, como se o
contabilista tivesse, finalmente, recebido uma recompensa há
muito tempo merecida. Grande, magra, com um rosto de cavalo, a
mäe do morto, silenciosamente e sem lágrimas, apressou-se a
enterrar o filho; pelo menos, Artamonov teve essa impressäo.
Näo parava de arranjar o quarto do morto, deslocando a pequena
coroa na testa azul do cadáver, fechava com precauçäo as
pálpebras acobreadas que escondiam os olhos e persignava-se
constantemente, com absurda rapidez. Pedro reparou que ela
tinha o braço täo cansado que durante a cerimónia näo
conseguiu, por duas vezes, erguer a mäo - o braço direito
caía-lhe, quebrado.
130 " 131
Sirn, deste lado, tudo corria sem novidade. Os Nikonov
mostraram um agradecimento exagerado e incómodo por ele
ter contribuido para as despesas do enterro; aliás, receoso de
despertar as suspeitas de Tikhon por uma excessiva
generosidade, Artamonov näo lhes dera muito dinheiro. Ainda
näo acreditava que o velho fosse täo estúpido como dissera no
balneárío. Por duas vezes, o balneário o colocava em primeiro
plano, fazendo-o penetrar cada vez mais profundamente na vida
de Pedro. Era estranho e terrível. Artamonov chegou a pensar
que devia queimar o balneário ou demoli-lo, tanto mais que
estava velho e podre. Devia construir outro, noutro local.
Pedro, que observava Tikhon atentamente, verificava que este
continuava a ser o mesmo, vivendo pesarosamente, por
uma espécie de condescendência; sempre lacónico e rude como
um polícia com os operários, que näo gostavam dele,
mostrando-se particularmente brutal e mau para com as
mulheres.
Só a Natália falava noutro tom, näo como a uma patroa, mas
como a uma parente, a uma tia ou a uma irmä mais velha.
- Porque és täo atenciosa para com Tikhon? - perguntou
diversas vezes Artamonov à mulher, que respondia:
- Ele afeiçoou-se à família.
Se o velho tivesse amigos, se frequentemente se ausentasse,
poder-se-ia julgar que pertencia a uma dessas seitas que, nos
últimos anos, se multiplicavam. Mas Tikhon só tinha um amigo,
o marceneiro Serafim, ia muitas vezes à igreja e rezava com
fervor. Quando orava, abria uma boca horrível, como se se
preparasse para gritar. Por vezes, ao reparar nos olhos piscos
do velho, Artamonov ficava receoso, parecendo-lhe que tais
olhos escondiam uma ameaça; e tinha vontade de o agarrar pelo
pescoço e de Lhe gritar:
- Anda, fala!
Mas as pupilas de Tikhon näo se alteravam, e a calma do seu
rosto adormecia a inquietaçäo de Artamonov.
No tempo em que António, o louco, vivia, vinha
frequentemente à casita do velho, ou, à noite, sentava-se-lhe
ao pé, no banco, perto da porta das trazeiras, e Tikhon
interrogava o doido:
- Näo respondas de qualquer maneira: pensa e explica-me:
"kuiatyr", o que significa?
- "Kaimas"! - retorquia alegremente António, começando a
cantarolar:
Cristo ressuscitou! Ressuscitou...
Espera!
O carro já näo tem uma roda.
- Que é que queres dele? - perguntou, um dia, Artamonov, com
um despeito que ele próprio näo compreendia.
- Que me explique estas palavras extraordinárias.
- Mas säo palavras de um parvo!
- Os parvos devem ter a sua razäo - respondia estupidamente
o velho.
Em resumo, näo valia a pena falar com ele. Numa noite
inquieta de insónia, Artamonov sentiu que já näo tinha forças
para suportar o fardo que pesava sobre a sua alma; acordou a
mulher e contou-lhe o que se passara com o pequeno Nikonov.
Natália, abrindo silenciosamente os olhos ensonados, ouviu-o e
respondeu, bocejando:
- Eu esqueço os meus sonhos.
Mas, de súbito, ficou comovida:
- Oh! Tenho medo que Tiago "faça isso. . .
- O quê? - perguntou o marido, surpreendido. E quando ela
lhe explicava claramente o que receava, ele disse só para si,
coçando a orelha:
"Näo devia ter dito nada."
Nessa noite, sob o rumor e o assobio da borrasca, tomando
mais profundamente consciência da sua solidäo, descobriu o que
podia esclarecer e explicar o assassínio: fora o amor pelo seu
filho e o receio que tinha por ele que o levaram a matar um
rapaz depravado, um camarada perigoso para esse filho. Isto
dava ao seu ódio obscuro pelo jovem Nikonov um motivo
inteligível, e isso aliviava-o um pouco. Mas tinha vontade de
se libertar completamente de tal fardo e colocá-lo sobre
outros
132 ". 133
ombros. Mandou chamar o padre Gleb, por näo querer falar-lhe
de um pecado extraordinário durante a confissäo dos pecados
vulgares.
O padre, magro e curvado, veio à noíte e foi sentar-se
molemente num canto: ficava sempre nos cantos mais obscuros,
mais acanhados, como para esconder a sua vergonha. A sua
silhueta, metida na velha sotaina escura, confundia-se com o
couro roçado do sofá; apenas a mancha do seu rosto ressaltava
vagamente no fundo crepuscular; nas suas têmporas, gotas de
neve derretidas brilhavam nos cabelos em pó cristalino e, como
sempre, apertava com o punho ossudo os longos pêlos da sua
barba rara.
Artamonov, näo ousando abordar o essencial, falou da rápida
corrupçäo do povo, da sua preguiça, da embriaguez, das suas
indecências; depois, cansado de falar destas coisas, calou-se
e começou a andar de trás para diante. Entäo, do canto
crepuscular escorreram as palavras do padre, que se
assemelhavam a uma queixa:
- O povo, ninguém se ocupa dele; näo está habituado e näo
sabe tratar da sua vida espiritual. As pessoas instruídas...
mas eu näo me permito censurá-las... de resto, há poucas
pessoas instruídas. E, bem o sabeis, näo se adaptam à vida
normal, à vida do povo. Desejam muitas coisas mas näo o
essencial. A revolta sedu-los, pelo que as autoridades as
perseguem, em suma, tudo vai mal entre nós. No meio desta vä
agitaçäo, só há uma voz que se ergue cada vez mais alta, uma
voz que se dirige à consciência do povo e tenta imperiosamente
despertá-lo: a de um tal conde Tolstoi, filósofo e escritor. É
um homem notável, que fala corajosamente, até à temeridade,
mas como... veja, ele ataca a igreja ortodoxa...
Falou demoradamente de Leäo Tolstoi. Artamonov näo o
compreendia muito bem; no entanto, a voz pesarosa do padre,
saindo da penumbra como um suave regato e desenhando a figura
quase fantástica de um homem extraordinário, afastava
Artamonov de si próprio. Sem esquecer por que chamara o padre,
Pedro deixava-se, a pouco e pouco, invadir por um sentimento
de piedade por este homem. Sabia que os pobres da cidade
consideravam o padre Gleb um tonto, por ser desinteressado,
acolhendo bem a todos, celebrando bem e cantando de maneira
particularmente comovente o responso dos mortos.
Artamonov achava tudo isso natural: assim é que se devia ser
padre. A animosidade geral do clero da cidade e dos notáveis
contra o padre Gleb tornara-o simpático para si. Mas é
necessário que o pastor espiritual seja severo: o seu dever é
conhecer e dizer algumas palavras que väo díreito ao fim e que
inspiram o receio e o desgosto do pecado. Esse poder,
Artamonov sabia que o padre Gleb näo o possuía. Depois de
escutar o padre, que, receando sem dúvida magoar, se exprimia
sem vigor, em frases incertas e hesitantes, Artamonov declarou
bruscamente:
- Mandei-o vir, padre Gleb, para dizer que este ano näo
celebrarei a Páscoa.
- Mas porquê? - interrogou pensativamente o padre e, sem
esperar a resposta, acrescentou:
- A vossa consciência responderá por essa falta.
Artamonov julgou encontrar tanta indiferença na linguagem do
padre Gleb como na do velho Tikhon. O padre, que era pobre,
näo trazia botas de borracha: a neve derretida escorria das
suas pesadas botas de camponês e transformara-se em água, e as
solas nadavam, enquanto ele continuava a falar, queixando-se,
mas sem azedume:
- Quando se vê ó que se passa, uma só coisa consola: ao
aumentar, a maldade reúne-se, dir-se-ia que para ser mais
fácil vencê-la. Sempre o observei: forma-se, primeiro, um
pequeno núcleo de mal, depois o mal enrola-se à volta como o
fio em redor do fuso. É difícil vencer o que está disperso, ao
passo que o que fica unido pode cortar-se de um só golpe com a
espada da justiça. ..
Estas palavras permaneceram na memória de Artamonov e nelas
achou alguma consolaçäo: o pequeno centro era Paulo.
Näo era para ele que se dirigiam todos os pensamentos
sombrios? Ele é que os atraía. E chegou ao ponto de admitir
que seria justo oferecer à conta do seu filho uma parte do seu
pecado. Com um suspiro de alívio, convidou o padre a tomar
chá.
A sala de jantar era clara, íntima; o ar tépido era
impregnado de odores agradáveis; na mesa, o samôvar fervia
cuspindo
134 " 135
amavelmente o vapor; sentada num sofá, a sogra de Artamonov
cantava com voz agradável à neta de quatro anos:
Do brilhante relâmpago Agui estäo os presentes:
Ao apóstolo Pedro O Veräo aguecedor, A S. Nicolau Os lagos e
os mares, Ao pro feta Elias Uma lança de ferro.. .
- É uma cançäo pagä - observou o padre, sentando-se à mesa e
sorrindo com ar confundido.
No quarto, Natália disse ao marido:
- Alexis regressou; vi-o. Está cada vez mais doido com
Moscovo. Oh! tenho bastante medo...
No Veräo, no pescoço branco e no rosto corado e liso de
Natália, apareceram pequenos pontos vermelhos: eram minúsculos
como pontas de alfinete, mas molestavam-na e, duas vezes por
semana, antes de se deitar, untava-se com uma pomada cor de
mel. Era nisso que se ocupava, sentada em frente de um
espelho: as mäos iam e vinham, as pontas dos seios ondulavam
pesadamente por baixo da camisa. Já deitado, os braços debaixo
da cabeça, Pedro olhava a mulher; achava que ela tinha o
aspecto de uma máquina e que a pomada cheirava a esturjäo
cozido. Quando Natália, depois de ter murmurado uma oraçäo, se
deitou e, segundo o honesto hábito do seu corpo saudável, se
ofereceu ao marido, este fingiu dormir.
"Pequeno centro - pensava ele. Eu também sou um fuso.
Giro, mas quem é que fia? Tikhon disse-me um dia: "O homem fia
e o diabo tece." Que cabeça desaparafusada!
Impulsionada por Alexis, a empresa alargava-se cada vez mais
através das colinas areentas que dominavam o rio; estas tinham
perdido o seu tom dourado, o brilho argênteo da mica
desaparecera, as chispas agudas do quartzo desapareciam, a
areia amontoava-se. De Primavera a Primavera, as ervas
daninhas näo deixavam de crescer, verdejantes e de um brilho
mais vivo ainda; à volta da fábrica, as árvores do jardim
abriam-se todas em flor; as folhas de Outono, ao apodrecerem,
fertilizavam a areia gorda. A fábrica, cujo martelar era cada
vez mais forte, respirava a inquietaçäo; centenas de fusos
giravam, rocas gemiam; todo o dia as máquinas ofegantes
sopravam, o rumor preocupado do labor prosseguia sem parança;
tinha-se prazer em sentir-se mestre de tudo isto - um prazer
que ia até à admiraçäo, até ao orgulho.
Mas, por momentos, e era cada vez mais frequente, a fadiga
apoderava-se de Artamonov; evocava os seus anos de infância, o
pequeno rio Rat, calmo e límpido, os largos espaços, a vida
simples dos camponeses. Entäo, sentia-se arrebatado por mäos
invisíveis e tenazes que o faziam rodopíar; na sua cabeça,
cheia de um incessante tumulto, só havia lugar para as
preocupaçÖes dos seus negócios; o fumo ondulado da chaminé da
fábrica cobria tudo com uma sombra de tédio e de morna
tristeza.
Nas horas e nos dias em que este humor o dominava, os
operários desagradavam-lhe muito particularmente; parecia-lhe
que se tornavam menos robustos, perdiam a sua resistência de
camponeses, que se deixavam invadir por näo se sabía qual
irritabilidade feminina, que eram susceptíveis por tudo e por
nada, que respondiam com insolência. Viu-se nascer neles algo
de desordenado, de instável. Anteriormente, no tempo do pai,
viviam mais com a família, mais unidos, näo se embriagavam
tanto, näo andavam em bodas täo continuadamente; agora, pelo
contrário, tudo se confundia: os homens eram mais vivos e até
mais inteligentes, parecia, mas eram menos assíduos no
trabalho, maus uns para com os outros, e tinham sempre o ar de
espreitar. A juventude, sobretudo, era descabelada e
irreverente; a fábrica roubava em pouco tempo aos rapazes o
que neles havia de rústico.
Foi preciso mandar para um asilo de doidos o motorista
Volkov; e havia só cinco anos que, depois de um incêndio,
chegara à fabrica, forte e belo, acompanhado por uma mulher
136 " 137
escorreita. Passado um ano, esta começou a transviar com uns e
com outros e tanto bateu no marido que ele ficou tuberculoso:
ambos se tinham ido já.
Artamonov tinha visto muitos homens consumidos com
brevidade. Em cinco anos, registaram-se quatro assassinatos:
dois no decorrer de zaragatas, outro por vingança; finalmente,
um velho teceläo, por ciúmes, cortou a garganta a uma jovem
tecedeira. Por vezes, zaragateavam até ao sangue, até se
ferirem gravemente.
Nada disto parecia produzir em Alexis qualquer efeito. Cada
vez se compreendia menos. Tinha algo de comum com esse
brincalhäo do marceneiro Serafim que, com uma alegria e um bom
humor sem igual, confeccionava para as crianças fisgas, gaitas
ou urnas. A convicçäo de que tudo ia e continuaria a ir bem
iluminava os olhos de abutre de Alexis. Contava já três
sepulturas no cemitério; só sobrevivia o filho Miron, um rapaz
sólido e tenaz, construído à pressa com longos ossos e
cartilagens, e que tinha o costume de torcer os dedos com uma
violência que os fazia ruidosamente estalar. Com treze anos,
já usava óculos, o que diminuía um pouco o nariz comprido de
pássaro e ensombreava os seus olhos desagradavelmente claros.
Passeava sempre com um livro na mäo, um dedo täo fortemente
apertado, entre as páginas que o livro parecia ter sido
pregado. Falava de igual para igual com o pai e com a mäe; ou,
antes, näo falava: impunha-se, o que a eles agradava. Quanto
a Pedro, sentindo claramente que o sobrinho näo gostava dele,
pagava-lhe na mesma moeda.
Alexis näo era sério nem sólido. Artamonov via que entre a
sua vida e a do irmäo, havia quase tanta diferença como entre
um convento e uma barraca de feira. Alexis e a mulher näo
tinham amigos na cidade, mas nas suas salas acanhadas que
lembravam quartos de arrumaçäo cheios de velhos objectos
esboroados, reuniam-se, em dias de festa, pessoas duvidosas: o
médico da fábrica, Iakovlev, um homem com dentes de ouro,
gozäo e mau; o engenheiro Koptev, autêntico bêbado e jogador;
o preceptor de Miron, um estudante a quem a polícia proibira o
prosseguimento dos estudos, e a mulher, de nariz aquilino, que
tocava guitarra e fumava cigarros. Outros resíduos humanos a
frequentavam; todos com igual audácia falavam contra os padres
e as autoridades, e era manifesto que todos se julgavam
pessoalmente muito inteligentes. Artamonov sentia que näo eram
homens autênticos, e näo mmpreendia o que é que Alexis
procurava neles. Ao ouvir as suas exclamaçÖes, lembrava-se das
queixas do padre:
KEles querem muitas coisas mas näo o essencial."
Näo procurava saber onde estava o essencial; sabia que era
no trabalho.
O preferido de Alexis parecia ser Koptev, essa espécie de
boémio barulhento; estava sempre embriagado, mas havia nele
algo de audacioso e inteligente; repetia mais frequentemente
do que os outros:
- Tudo isso säo patetices, filosofia! A indústria, sim, é a
técnica!
Mas, ao mesmo tempo, Artamonov suspeitava em Koptev näo
sabia o quê de herético e de destruidor.
- É um rapaz perigoso - disse ao irmäo.
Este mostrou-se surpreendido.
- Koptev? Porquê? É um jovem, mas sério, forte, uma
inteligência. Precisávamos de muitos milhares como ele.
E acrescentou rindo:
- Se tivesse uma filha, dar-lha-ia em casamento, reunindo-o
aos nossos negócios.
Pedro afastou-se, aborrecido. Quando näo jogavam às cartas,
sentava-se, sozinho, no seu sofá preferido, amplo e macio como
uma cáma; observava as pessoas, coçando a orelha, e recusava
chegar a acordo com qualquer deles; pelo contrário, tinha
vontade de discutir com todos, näo apenas porque eles parecíam
näo saber da sua existência, mas também por outros motivos.
Mas tais motivos näo os discernia muito bem, nada sabia por si
próprio e só raramente arriscava dificilmente uma palavra:
- O padre Gleb falava-me de um conto...
I.ogo Koptev o desarmava:
- Mas o que é que isso pode ínteressar-lhe? Um conto?
Mas é o último suspiro da Rússia campónia. . .
Gritava, apontava insolentemente Pedro com o dedo, e
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todos os outros, ao escutá-lo, assemelhavam-se também a
ciganos, pessoas de uma raça nómada, sem fogo nem origem.
"Formigas, pensava Pedro, parasitas."
Um dia, declarou:
- Näo há razäo para se dizer: o negócio näo é um urso, e näo
fugirá para a floresta. O negócio é um verdadeiro urso:
aperta-te, segura-te. O negócio domina o homem.
- Ora aí está! - comentou Koptev. Onde haveria outro país
para se falar assim? Onde? Vejam o perigo!
E o irmäo Alexis perguntou-lhe com ar zombeteiro:
- É Tikhon que te dá essas ideias?
Pedro ficou irritadíssimo e, ao voltar a casa, disse à
mulher:
- Olha por Helena; esse boémio do Koptev anda à volta dela.
Alexis faz o seu jogo; Helena é um bom partidQ que ele näo
merece. Procura-lhe um marido.
- Procurar-lhe um marido, aqui? - inquiriu Natália,
preocupada. Na cidade, é que deve procurar-se. Além disso, ela
é ainda täo jovem...
- Vigia para que näo ta levem.
Esta graça de Artamonov causou na mulher uma grande vontade
de rir.
Quando, por momentos, Pedro conseguia romper o círculo
limitado das suas preocupaçÖes profissionais, sentia-se de
novo envolvido por cerrado nevoeiro feito de animosidade por
outrem e descontentamento por si próprio. Só havia uma tarefa
a cumprir: o amor pelo filho, mas este amor fora empanado pela
sombra do jovem Nikonov, ficando mergulhado sob o peso do
assassinato. Quando olhava Elias, tinha por vezes vontade de
lhe dizer:
- O que fiz foi por medo de ti.
A sua razäo näo era bastante subtil para dissimular que este
medo só surgira um instante antes do assassinato, mas
Pedro compreendia que só ele, por pouco que fosse, podia
justificá-lo. No entanto, quando falava com Elias, näo ousava
pensar no camarada do filho; receava, por desatençäo, o crime,
que desejaria revestir de um aspecto de heroísmo.
Via o filho crescer rapidamente, mas longe de si. Elias
mostrava-se mais calmo, falava mais docemente à mäe, já näo
arreliava Tiago, gostava de brincar com a irmäzita Tatiana,
zangava Helena sem a magoar, mas em tudo que dizia notava-se
uma espécie de frieza pensativa. Miron instalou-se no lugar de
Nikonov. Os dois primos quase nunca se deixavam, discutiam
interminavelmente, com gestos largos, aprendiam juntos, liam
sentados lado a lado, sob as árvores do jardim. Elias nunca
ficava em casa: viam-no de manhä, ao chá, e, logo a seguir, ia
para a cidade, para casa do tio, ou, para os bosques,
acompanhado por Miron e Gori"tsvetov, um rapaz moreno, de
cabelo farto, insinuante, e olhos irónicos que parecíam estar
sempre espreitar.
- Que prazer sentes em andar com esse farroupilha? -
perguntou Natália ao filho, desgostosa.
Pedro Artamonov viu tremer as sobrancelhas finamente
traçadas de seu filho.
- Farroupilha é uma palavra que fere, mäe. Bem sabe que
Alexandre é sobrinho do nosso padre Gleb; é russo, portanto,
e, no liceu, é o primeiro.
A mäe retrucou, desdenhosa:
- Os farroupilhas sobem sempre ao primeiro lugar. ..
- Como é que o sabe? - insistiu obstinadamente o filho.
Há apenas quatro judeus na cidade, e säo todos pobres, com
excepçäo do farmacêutico.
- E quarenta farroupilhas. E na cidade de Filu só há disso,
assim como na feira de Nijni:..
Com uma insistência ofensiva, Elias repetiu:
- Farroupilha é uma palavra feia. ..
Entäo, Natália, batendo com a colher no prato, gritou,
indignada:
- Dás-me liçÖes? Talvez näo saiba o que é preciso dizer?
Näo sou cega; bem vejo esse patife que procura arrastar-vos
todos, incluindo Tikhon: digo-o, é adulador como um
farroupilha e os aduladores säo perigosos. Conheci um...
- Basta! - interrompeu asperamente Pedro.
Prestes a chorar, ela queixou-se:
- Já näo se pode dizer nem uma palavra...
Elías calou-se, compungido, enquanto a mäe lhe lembrava:
- Fui eu que te .pus no mundo. . .
140 " 141
- Obrigado! - disse Elias afastando a chávena vazia; o pai
olhou-o de lado e sorriu, coçando a orelha.
Compreendia, pelas palavras da mulher, que esta tinha medo
do filho, assim como noutros tempos receara os candeeiros de
petróleo, e, ainda recentemente, uma cafeteira complicada
oferecida por Olga: continuava a julgar que a cafeteira podia
rebentar. Ao pai, também Elias inspirava algo que se
assemelhava ao medo ridículo que a mäe tinha dele. O rapaz era
incompreensível. Os três amigos eram incompreensíveis.
Que achavam eles de divertido em Tikhon? A sua estupidez?
Elias respondia docemente:
- " preciso compreender também a estupidez.
Esta resposta agradou a Artamonov:
- Tens razäo: vivemos no meio da estupidez.
Mas, logo, acrescentou:
a Säo as palavras de Tikhon."
Depositava no filho as maiores esperanças; quando via Elias,
de mäos nos bolsos, assobiando devagarinho, observar pela
janela os operários no pátio, percorrer a oficina de tecelagem
ou ir num passo ligeiro até à cidade operária, Artamonov dizia
para consigo, contente:
"cSerá um paträo vigilante. E ocupar-se-á da fábrica de
maneira diferente da minha: atrelaram-me a ela mmo um animal
de carga, e eu puxo."
Pedro sentia-se um pouco vexado por seu filho ser täo pouco
comunicativo e só se exprimir, quando resolvia falar, com
frases curtas, com palavras que pareciam ter sido preparadas
antecipadamente e que näo davam vontade nenhuma de prolongar a
conversa.
nÉ um pouco sernH - pensava Artamonov, mas consolava-se ao
verificat que Elias era bem melhor do que o ruidoso e falador
Goritsvetov, do mole e preguiçoso Tiago, e de Miron, que
perdia rapidamente toda a juventude, falava rnmo um lívro,
tornava-se impertinente e parecia um destes funcionários para
quem os livros contêm, em relaçäo a cada aconteámento, uma lei
imperiosa.
As semanas de férias decorriam rapidamente, e já as crianças
se Preparavam para partir. Ora, enquanto Natália dava a Tiago
bons conselhos, Artamonov dizia a Elias coisa diferente da que
desejaria dizer-lhe. Mas como referir-se ao tédio que sentia
por viver no meio da nuvem sussurrante das monótonas
preocupaçÖes de empresa? Näo se fala destes assuntos com
garotos.
Artamonov desejava tanto viver uma impressäo nova e que
näo fosse inevitável como a chuva, a lama, a neve e o calor,
que acabou por encontrar ou imaginar alguma coisa. Certo dia,
perdido no meio de florestas, foi surpreendido por uma
trovoada de Junho, acompanhada de saraiva, do estrépito
ensurdecedor dos trovÖes e da explosäo azul das nuvens. Uma
torrente de água, invisível nas trevas, invadiu o caminho; a
terra, liquefeita sob os cascos dos cavalos, cobria as rodas
da carruagem. Tremiam quando, por um segundo, a fria chama
azulada iluminava com um claräo ameaçador o rumor confuso da
terra em fusäo, enquanto que nas bermas do caminho árvores
negras apareciam, por entre a rede cristalina da chuva,
erguendo-se das trevas húmidas. Os cavalos invisíveis
detiveram-se, empinados; a água batia-lhes nos cascos;
Joaquim, gordo cocheiro bonacheiräo, acalmava os animais. O
granizo, depois de ter enchido a floresta com um ruído gelado,
deixou de cair, ,sucedendo-lhe um violento aguaceiro cujos
milhÖes de pesadas gotas, tamborilando nas folhagens, enchiam
a obscuridade de um uivo cinzento.
- Temos de chegar a casa dos Popov - disse Joaquim.
E eis que Artamonov, apertado num vestuário de empréstimo,
näo ousa mexer-se; está sentado timidamente, como num
sonho, perto de uma mesa, na penumbra acolhedora e seca de uma
sala quénte; o samôvar de níquel ronrona; uma grande
mulher delgada, de cabelos amiivados, com um amplo vestido
escuro, deita o chá. No seu rosto pálido brilham belos olhos
cinzentos; muito simplesmente, sem se queixar, com voz doce
e resignada, conta a Artamonov a morte recente do marido e
confia-lhe que quer vender a propriedade, a fim de se instalar
na cidade e abrir um colégio para raparigas.
- Foi o seu irmäo quem me aconselhou: é um homem simpático,
vivo e original.
Pedro, com um suspiro de inveja, examinava tudo quanto o
142 " 143
rodeava. Quando, na juventude, percorria a província
acompanhando o pai, entrara muitas vezes nas casas dos nobres,
mas nunca notara algo de particular e sentira-se sempre pouco
à vontade em relaçäo às coisas e aos seres: nesta"casa, pelo
contrário, nada o molestava, encontrando ali näo sabia bem o
quê de acolhedor e de bom. Um grande candeeiro com quebra-luz
espalhava uma luz leitosa sobre a baixela e a prata da mesa e
na cabeça negra, de cabelos lisos, de uma rapariga cujos olhos
pareciam abrigados por detrás de uma pala verde; a rapariga
tinha à frente um caderno onde desenhava, com um lápis
delgado, fazendo um ruído leve que näo a impedia de escutar as
palavras da mäe. A sala näo é grande, está cheia de móveis;
todos os objectos parecem ali enraizados, cada um deles vive e
fala, assim como os três quadros de cores vivas pregados na
parede; num deles, em frente de Pedro, um fantástico cavalo
branco atravessa um pico altaneiro; a sua crina muito comprida
quase chega ao chäo. Tudo é admiravelmente íntimo, pacífico, e
a linda voz da hospedeira ressoa como uma cançäo melancólica e
longínqua. É num meio assim que pode passar-se a vida inteira
sem preocupaçÖes, sem nada fazer de mal; quando se tem por
esposa uma tal mulher, pode-se estimá-la e falar de tudo com
ela.
Por detrás da porta que abre para o terraço, por entre o
meio círculo dos vídros multicores, o céu negro iluminava-se
com explosÖes azuis, mas já näo era medonho.
De madrugada, Artamonov partiu, levando devotamente uma
ímpressäo de intimidade e de paz afectuosa e a imagem quase
imaterial da suave mulher de olhos cinzentos que tinha
organizado esta paz. Enquanto vogava na sua carriola sobre os
charcos de água que reflectiam indiferentemente o ouro e o sol
ou as manchas sujas de nuvens dispersas pelo vento, pensava,
cheio de tristeza e de inveja:
"Assim é que é viver!"
Sem saber porquê, näo falou à mulher deste encontro e
escondeu-o a Alexis; mas näo se sentiu à vontade quando,
passadas semanas, foi a casa do primo e lá encontrou a senhora
Popov, sentada no sofá, ao lado de Olga. Alexis trouxe-o junto
do sofá:
- Apresento-lhe o meu primo.
A mulher estendeu a mäo sorrindo:
- Já nos conhecemos.
- Mas como? - admirou-se Alexis. - Quando foi? Porque näo me
disseste?
Pedro viu no espanto do primo apenas maldade e sentiu os
pêlos da barba mexerem estranhamente; respondeu coçando a
arelha:
- Esquècí-me.
Alexis, apontando-o com o dedo, gritava:
- Olhem como ele está encarnado de vergonha. Linda resposta,
meu pequeno. Achas que pode esquecer-se uma senhora assim,
depois de a termos visto? Reparem: as orelhas ardem-lhe,
aumentam!
Quanto à senhora Popov sorria com simpatia, sem ironia.
Bebia-se por grandes cálices de cristal um doce de mel que a
senhora Popov trouxera a Olga - um mel dourado como o âmbar
que picava agradavelmente na língua e inspirava a Pedro
deliciosas palavras; mas näo conseguia pronunciá-las, pois o
primo, agitado como sempre, nunca parava de gracejar.
- Näo, näo tenha pressa em vender. Deve fazê-lo a uma pessoa
que goste de calma; é um local para o repouso da alma.
Ao passo que as pessoas como nós, que podemos oferecer-lhe?
Os terrenos näo säo extensos e as árvores säo raras, mas o
valor näo é exagerado; de resto, quem, por aqui, a näo ser as
lebres, precisa de florestas?
Pedro disse, por seu turno:
- Näo deve vender.
- Porquê? - perguntou a senhora Popov, bebendo
pensativamente o mel, e suspirou: Tem de ser.
O olhar atento de Olga e o frémito dos seus lábios, que
dissimulavam um sorriso, desagradaram a Pedro. Bebeu o seu mel
com ar sombrio e näo respondeu à pergunta da senhora
Popov.
Passados dois dias, no escritório, Alexis anunciou-lhe que
teneionava conceder um empréstimo à senhora Popov, ficando com
as móveis como penhor.
144 " 145
- A propriedade pouco vale, mas os móveis.. .
- Näo faças isso - disse resolutamente Pedro.
- Porquê? Conheço o valor dos móveis. ..
- Näo faças isso.
- Mas porquê? - exclamava Alexis. Levarei lá a casa um
conhecedor, um perito.
Pedro abanava a cabeça; tinha grande vontade de
desaconselhar ao primo esta operaçäo, mas, näo achando as
objecçÖes, foi direito ao fim:
- Façamos ambos o empréstimo: tu dás metade e eu a outra
metade.
Alexis olhou-o fixamente com um sorriso:
- Começas a fazer loucuras?
- Talvez tenha chegado a altura - replicou Pedro.
- Cuidado: enganas-te - observou Alexis. - Experimentei tudo
e nada consegui...
Depois de ter visto duas ou três vezes a senhora Popov,
Artamonov começou a sonhar com ela. Colocava-a a seu lado e
logo via surgir-lhe à frente uma existência admiravelmente
fácil, boa, bela exteriormente, interiormente tranquila, onde
näo havia necessidade de ver diariamente dezenas de pessoas
negligentes na sua tarefa, sempre descontentes, que ora
gritavam e se queixavam, ora mentiam é tentavam enganar, e
cujas adulaçÖes indiscretas eram täo irritantes como a sua
hostilidade mal dissimulada e que nunca cessava de aumentar.
Assim se compunha facilrnente o quadro de uma vida estranha
a todas as coisas, afastada da gorda aranha vermelha da
fábrica que alargava continuamente a sua teia. Via-se como uma
espécie de gato gordo, bem no quente, tranquilo, amado e
acariciado pela amante, e que nada mais ambiciona. Nada.
Assim como o pequeno Nikonov fora, antes, para ele, o ponto
negro à volta do qual se juntava tudo o que era desagradável e
custoso, também a senhora Popov passara a ser o iman
que atraía todos os seus bons e maus pensamentos. Recusou ir
com o primo que, acompanhado por um velhote com óculos, foi a
casa da viúva fazer o inventário do mobiliário.
- Olga julga-te apaixonado pela senhora Popov.
Entäo, Artamonov propôs-lhe:
- Cede-me a tua parte.
Alexis, desagradavelmente surpreendido, interrogou-o
demoradamente para saber o que queria ele fazer com a dívida,
e disse, por fim:
- Escuta: o lucro näo é nenhum. Ela näo tem com que pagar e
os móveis valem alguma coisa. Compreendes: é preciso
economizar...
Chegaram a acordo e Alexis disse, num esgar:
- Boa sorte. O negócio vale a pena.
Pedro sentiu também que acabava de realizar um bom negócio:
conseguira um bom lugar para repousar.
- Näo se diz a tua mulher? - perguntou Alexis, piscando o
olho.
- Como quiseres.
E, observando-o, Alexis recomeçou:
- Olga julga-te apaixonado pela senhora Popov.
- Isso é comigo.
- Näo refiles. Na nossa idade, quase todos os homens fazem
loucuras.
Pedro, irritado, respondeu de modo grosseiro:
- Deixa-me em paz.
Em breve sentiu que Olga lhe falava com mais simpatia, com
uma espécie de comiseraçäo; o facto desagradou-lhe e,
como estava em casa dela, numa tarde de Outono, perguntou-lhe:
- O teu marido veio contar-te histórias acerca da senhora
Popov?
Colocando a sua mäo pequenina sobre a de Pedro, ela
respondeu:
- Isso näo irá muito longe.
- Näo irá a parte nenhuma - disse Artamonov, batendo com o
punho no joelho. - Ficará comigo. Näo podes compreender. E a
ela, nada digas.
A senhora Popov näo lhe inspirava nenhum desejo; aparecia
nos seus sonhos, näo como uma mulher que se ambiciona, mas
como o indispensável complemento de uma vida boa e quieta.
Mas quando esta mulher veio instalar-se na cidade e a viu
frequentemente em casa de Alexis, sentiu-se subitamente
aturdido.
146 " 147
Um dia, encontrou-a junto de Olga, que adoecera; as mangas da
blusa arregaçadas, debruçada sobre uma bacia, ela
xnolhava uma toalha, curvava-se, reerguia-se; admiravelmente
esbelta, com pequeninos seios de rapariga, era
irresistivelmente sedutora. De pé, junto da porta, Artamonov
olhava silenciosamente os seus braços brancos, as suas pernas
firmes, as suas ancas; ficou täo subitamente perturbado pelo
ardente nevoeiro do desejo que julgou sentir à volta do seu
corpo os braços da senhora Popov. Esforçou-se por responder
aos seus bons dias com um aceno de cabeça, encaminhou-se para
a janela e sentou-se, ofegante e perguntando, aflito:
- O que estás _a fazer, Olga? Näo está bem.. .
Era a primeira vez que uma mulher exercia sobre ele uma
acçäo täo poderosa, täo profunda: ficou com medo, com o vago
pressentimento de um perigo, de uma ameaça. Mandou o cocheiro
buscar um médico, e seguiu a pé para a fábrica.
Estava-se no fim de Fevereiro; o degelo anunciava uma
tempestade; suspenso sobre a terra, um nevoeiro acinzentado
escondia o céu e reduzia o espaço às dimensÖes de uma taça
entornada, de onde escorria lentamente sobre os pêlos do
bigode de Artamonov e da sua barba, um pó cinzento e frio que
dificultava a respiraçäo. Artamonov, ao pisar a areia mole,
sentia-se täo espezinhado, täo esmagado como na noite da
tentatíva de suicídio de Nikita e no momento da morte de Paulo
Nikonov. Estes dois acontecimentos igualmente o acabrunharam;
mas o terceiro parecia-lhe ainda mais perigoso. Era evidente
que nunca poderia fazer desta senhora a sua amante. Desde já
verificava que o repentino desejo que tivera pela senhora
Popov, ao colocá-la de novo entre as mulheres banais,
ensombreara e quebrara algo que lhe era querido. Conhecia
demasiado bem o que era uma esposa, e näo tinha razäo alguma
para considerar que uma amante pudesse, de qualquer modo,
valer mais do que a mulher cujas carícias obrigatórias e
maçadoras o deixavam quase insensível.
"O que é que é preciso?" - interrogava-se. Tens vontade de
porcarias? Tens uma mulher.
Sempre que se sentia ameaçado, tinha o intenso desejo de
atravessar o mais breve possível o perigo, de o deixar atrás
de si e de näo mais se voltar. Ficar imóvel em face do perigo,
é a mesma coisa que atrasar-se numa noite escura no fraco gelo
primaveril que recobre um rio profundo; quando era jovem,
vivera por vezes esta angústia, e toda a sua carne guardava
ainda essa recordaçäo.
Depois de viver alguns dias num pesado entontecimento,
depois de uma noite de insónia, saiu de madrugada para o pátio
e viu que "Toulon", o cäo preso à corrente, estava estendido
no chäo, coberto de sangue; havia ainda pouca luz e o sangue
parecia negro como pez. Pedro afastou com o pé o cadáver
enregelado; "Toulon" abriu a boca, mostrando os dentes e um
olho aberto. Artamonov empurrou a porta de Tikhon e perguntou:
- Quem matou o cäo?
- Fui eu - respondeu o velho, tendo uma chávena de chá na
palma da mäo.
- Porquê?
- Voltou a morder.
- A quem?
- A Zenaida, filha de Serafim.
Pedro ficou pensativo e disse, a seguir:
- Pobre animal.
- Fui eu quem o criou. Mas até contra mim começava a rosnar.
É verdade que o próprio homem se enraiveceria se estivesse
amarrado à corrente.
- Tens razäo - respondeu Artamonov, e foi-se embora,
fechando cuidadosamente a porta atrás de si e pensando: "Por
vezes, ele tem bom senso."
Ficou alguns instantes de pé, no meio do pátio, escutando o
rumor que vinha da fábrica. Num canto afastado luzia uma
mancha amarela: uma luz na janela de Serafim, encostada à
parede da estrebaria. Artamonov seguiu para lá e olhou pelos
vidros: Zenaida, em camisa, estava sentada junto de uma mesa e
cosia; quando ele entrou no quarto, ela perguntou, sem
levantar a cabeça:
- Porque voltaste?
Mas, levantando os olhos colocou o trabalho na mesa e
ergueu-se sorrindo e exclamando:
148 " 149
- Oh! Senhor! Julguei que era o meu pai.
- Parece que "Toulon" te mordeu.
- A valer! - disse com uma espécie de orgulho; e pondo o pé
numa cadeira, puxou a camisa: "Olhe."
Artamonov olhou rapidamente a perna branca, ligada acima do
joelho, e aproximando-se da rapariga, perguntou-lhe
com voz surda:
- O que andavas a fazer de madrugada no pátio?
Ela interrogou-lhe o rosto com o olhar, sorriu com ar
compreensivo, soprou com força a chama, apagando-a, e disse:
- É preciso fechar a porta.
Meia hora depois, Pedro Artamonov seguia para a fábrica, sem
pressa, agradavelmente aliviado; coçava a orelha, cuspia,
lembrando com estupefacçäo as carícias audaciosas da
tecedeira, e sorria: parecia-lhe que tinha enganado alguém...
Entrou na vida desvergonhada das raparigas da fábrica como
um urso numa colmeia. No princípio, ficou surpreendido
com a crueza audaz das palavras e dos sentimentos, que
ultrapassava tudo o que ouvira contar acerca desta vida: tudo
ali era desvendado, mostrado com provocante impudor; este
impudor que as cançÖes evocavam e lamentavám, Zenaida e as
suas amigas chamavam-lhe amor, um amor bem picante, amar-
go, que embebedava mais do que o vinho.
Artamonov sabia que as pessoas da fábrica chamavam ao
casebre de Serafim "A Armadilha" e que tinham posto a Zenaida
o nome de "a bomba". O marceneiro chamava à sua casa "o
Convento". Sentado num banco, perto da lareira, a
guzla segura por uma toalha bordada e enrolada ao pescoço,
abanava alegremente a cabeça encaracolada e, piscanda o olho,
gritava:
-Divirtam-se, freirinhas! Säo freiras, paträo, que pensas?
Servem o demónio da alegria, e eu sou o prior, o padre.
Manda-nos um rublozinho para alegrar a existência!
Quando recebia o dinheiro, guardava-o nas meías e, tocando o
seu instrumento, cantava alegremente:
Uma senhora no fundo do in ferno
Queria gelo assado;
E os diabos däo-lhe fricçÖes,
A doida, com os seus tiçÖes!
- Tu sabes cada cantiga! - exclamava o paträo, admirado,
enquanto o velho se queixava:
- Um crivo, eu sou um crivo! Dá-me qualquer coisa e dela
farei uma cantiga. Sou assim: um crivo.
E contava:
- Foram uns senhores que ma ensinaram: cavalheiros
distintos, os Kutuzov e o senhor Japuchkine, que também se
embebedava. Fazia-se passar por pobre, o maroto! Andava a pé,
com uma caixa às costas, dir-se-ia que era um simples vendedor
de mercearias, mas anotava tudo o que via e escutava.
Escreveu, escreveu, depois foi ter com o Czar: "Repare, Sire,
em que pensam os vossos mujiques." O Czar olhou, leu e ficou
com a alma täo perturbada que ordenou a libertaçäo de todos os
mujiques e a construçäo de um monumento de cobre em
honra de Japuchkine; além disso, mandou-o a Suzdal e orde-
nou que lhe dessem todo o vinho que quisesse, por conta do
tesouro. " que Japuchkine tinha visto também muitas coisas
secretas entre o povo: mas näo beneficiavam o Czar e näo as
queria revelar. E em Cuzdal o homem morreu de tanto beber,
sendo provável que lhe tivessem furtado as suas notas.
- Parece-me que mentes - observou Pedro.
- Exceptuando às raparigas, nunca menti - dizia o velho.
- Näo gosto. (Mas era difícil saber quando brincava ou näo.)
- Mente aquele que sabe a verdade - proclamava; eu näo
posso mentir, pois näo conheço a verdade. Ou, antes, se
quiseres, dir-te-ei: vi montes de verdades, e por isso
declaro: "A
verdade é uma fêmea que só é bela enquanto jovem."
Mas, se ignorava a verdade, sabia um número infinito de
histórias acerca dos senhores, os seus divertimentos e penas,
riquezas e crueldades, e quando evocava tudo isto acrescentava
sempre com manifesto pesar:
- Todos acabaram. Desapareceram da vida, nem eles próprios
se entendem. Descarrilaram...
Com o dedo descrevia um círculo por cima da cabeça e, bai-
xando rapidamente a mäo, traçava um outro no soalho.
150 " 151
olho:
Já näo têm boda! - acrescentava e cantava, piscando o
Havia senhores
Que só comiam veado.
E assim comeram
Todos os bens dos pais.
Serafim falava igualmente de salteadores e de bruxas, de
mujiques revoltados, do amor fatal; dizia como, de noite, os
dragÖes de fogo visitam as viúvas inconsoláveis, e exprimia-se
täo bem que a filha, que nunca ficava, de resto, muito tempo
no mesmo lugar, o escutava em silêncio com a avidez sonhado-
ra de uma criança.
Artamonov observava com mágoa que em Zenaida havia
um misto de pouca vergonha irreprimível e de cálculo. Por
mais de uma vez se lembrou da calúnia realmente profética de
Paulo Nikonov.
"Porque escolhi esta? Há outras mais belas. Quando o meu
filho o souber, vai ser bonito.. . "
Reparava também que os divertimentos de Zenaida e das
suas amigas eram para elas uma tarefa obrigatória, assim como
é para os soldados o serviço militar. E chegava por vezes a
pensar que pelo seu impudor elas procuravam aturdir-se a si
próprias. Zenaida näo tardou a irritá-lo com a sua cupidez e
os seus constantes pedidos de dinheiro: insistia sempre,
enquanto Serafim se limitava a gastar dinheiro para comprar um
certo vinho açucarado - que chamava, näo se sabia porquê,
vinho de rabäo - e ainda salsichas que temperava com alho,
marmelada e päo.
Artamonov simpatizava com este velho brejeiro, divertido
e bom operário, que, aliás, agradava a toda a gente; na
fábrica,
puseram-lhe o nome de "consolador", alcunha em que Pedro
via mais verdade do que troça e onde a troça era por vezes
afectuosa.
Compreendia mas näo apreciava a amizade de Serafim por
Tikhon; este parecia agravar mais ainda a sua antipatia. Quan-
do do aniversário de Vialov, por fazer vinte anos que se en-
contrava ao serviço dos Artamonov, Natália quis dar a este
acontecimento uma particular solenidade.
- É um homem raro! - afirmava ela ao marido. - Em
vinte anos, nunca nos fez mal. E está lustroso como uma vela
de cera.
Para felicitar o velho, o próprio Pedro levou-lhe presentes.
Foi recebido por Serafim, endomingado; Tíkhon ficou atrás
dele, a cabeça curvada, mirando as botas do paträo.
- Toma, dou-te um relógio. A minha mulher manda-te
este tecido para um capote. E aqui tens dinheiro.
- O dinheiro é de mais - balbuciou Tikhon; depois acres-
centóu: -obrigado.
Ofereceu ao paträo vinho açucarado trazido por Serafim e
logo o velho começou a gracejar.
- Tu, paträo, sabes o que valemos, e nós sabemos quanto
vales. Compreendemo-lo bem: o urso gosta da mel, o ferrei-
ro forja o ferro. Para nós, os senhores eram os ursos, ao
passo
que tu és um ferreiro. Bem sabemos que tens nas mäos um ne-
gócio difícil.
Entäo, Vialov, volteando entre os dedos o seu relógio de
prata, disse, olhando-o:
- O negócio é como uma rampa: marcha-se à beira do
poço e a ela nos agarramos.
- Exactamente! - proclamou Serafim, encantado. - É
isso. Se näo fosse assim, cair-se-ia, naturalmente.
- Vocês näo sabem o que dizem - comentou Artamo-
nov; - é que vocês näo säo patrÖes. Näo podem perceber.
Näo encontrava palavras suficientemente categóricas, em-
bora as afirmaçÖes de Tikhon o tivessem irritado imediata-
mente. Näo era a primeira vez que Tikhon se esforçava por
exprimir a sua obscura e tenaz ideia, que exasperava cada vez
mais o paträo. Ao reparar na cabeça rígida, abundantemente
empastada, do velho, Artamonov buscava as palavras fulmi-
nantes e fungava, coçando a orelha.
- Há preocupaçÖes de toda a espécie, claro - dizia Sera-
fim, conciliador. - Há-as más e há-as boas. . .
- A faca é boa, mas o pescoço näo a quer - resmungou
Tikhon.
152 ( 153
O paträo teve vontade de injuriar violentamente o herói da
festa, mas, contendo-se näo sem dificuldade, inquiriu severa-
mente:
- Porque te interessas sempre pelo negócic? Näo te com-
preendo. . .
Tikhon, olhando por debaixo da mesa, concordou:
- É difícil compreender...
O marceneiro retomou a palavra:
- Ele só admite os negócios que näo fazem mal.. .
- Espera, Serafim, deixa-o falar.
Entäo, Tikhon, sem se mexer, mostrando ao paträo o crâ-
nio coroado por uma calva cinzenta, larga como a mäo, sus-
pirou:
- É o diabo para os que aprenderam os negócios com
Caim...
- Aí está o que ele quer dizer! - proclamou Serafim ba-
tendo no joelho.
Artamcnov levantou-se da cadeira e, irritado, aconselhou
ao velho:
- Farias melhor se näo falasses do que näo percebes. Sim. .
.
Saíu da casa, indignado, murmurando para consigo que
tinha de despedír Tikhon. Despedi-lo já amanhä. Ou, pelo
menos, dentro de oito dias. No seu escritório, esperava-o a
se-
nhora Popov. Ela deu-lhe secamente os bons dias, como uma
estranha, sentou-se numa cadeira, bateu no soalho com a sua
sombrinha e declarou que näo podia pagar de uma vez só os
juros da hipoteca.
- Näo tem importância - disse Pedro em voz baixa, sem
a olhar. E ouviu-a responder:
--Se näo quiser dar-me novo prazo, poderá recusar-mo.
Falou com um ar vexado, bateu de novo, no chäo, com a
sombrinha e foi-se embora täo repentinamente que, quando
ele ergueu os olhos, já a viúva atravessava a porta.
- Está zangada - adivinhou Artamonov. - Mas por-
quê?
Uma hora depois, chegava a casa de Olga e, atirando para
o sofá com a boina, solicitava:
- Diz-lhe: eu näo tenho necessidade dos juros, nem do seu
dinheiro. Dinheiro, aquilo? E que ela näo se atormente,
percebes?
Enquanto desfazia a meada de seda colorida, espalhando
sobre a mesa as caixinhas de pérolas, Olga respondeu, pen-
sativa:
- Eu compreendo, mas duvido que ela cnmpreenda.
- Nesse caso, faz-lho compreender. O que é que me pode
interessar que tu compreendas?
- Obrigada - exclamou Olga, cujos olhos brilharam.
O seu sorriso agastou Pedro.
- Näo brinques - interrompeu com brutalidade. - Näo
espero levar o meu porco para a sua horta. Näo imagines que
é o que espero.
- Oh! homem! - afirmou Olga com um suspiro, voltan-
do a cabeça, como que a duvidar.
Pedro insistiu:
- Tens de acreditar. Eu sei o que digo. ..
- Estás absolutamente certo?
Havia simpatia nas observaçÖes de Olga e Artamonov sen-
tia-o. Via que, através dos óculos, aqueles olhos o fixavam
com compaixäo, quase com ternura, mas irritava-se ainda mais.
Procurava debalde as palavras claras e convincentes; olhava
pelo párapeito da janela onde, entre as folhas carnudas das
begónias, semelhantes a orelhas de animais, flores pendiam em
cachos harmoniosos.
- É da sua propriedade que tenho pena. Uma propriedade
magnífica, sabes... Ela nasceu lá...
- Näo, nasceu em Riazan...
- Enfim, habituou-se a viver lá, é a mesma coisa. Foi lá
que, pela primeira vez, a minha alma adormeceu tranquila-
mente. . .
- Acordou - rectificou Olga.
- Adormecer, acordar, para a alma é a mesma coisa...
Falou-lhe demoradamente do que näo era muito claro para
si próprio. Encostada à mesa, Olga escutava e, quando as
palavras de Artamonov acabaram, ela disse:
- Agora, ouve-me. ..
E contou-lhe que Natália, tendo sabido que Pedro visitava
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a tecedeira, ficara muito magoada, chorando e queixando-se
dele. Mas Artamonov ficou impassível.
- Ela é esperta - disse ele a brincar. - Nem por uma só
palavra me deu a entender que sabia. É a ti que se queixa?
Mas ela näo gosta de ti...
Depois de pensar um instante, acrescentou:
- Chamam a Zénaida "a bomba". É verdade: ela libertou-
-me de todas as porcarias.
- Tu dizes horrores.
Olga fez uma careta e recomeçou, suspirando:
- Lembro-me de te ter dito, um dia, que a tua alma era
uma criança encontrada. É verdade, Pedro, tu tens medo de
ti mesmo como de um inimigo...
Estas palavras impressionaram-no.
- É demasiado insolente. Achas que sou um garoto? De-
vias pensar que te falo de coraçäo nas mäos, que näo tenho
mais ninguém com quem possa falar deste modo. Näo há pro-
cesso de conversar com Natália. Por vezes, apetece-me bater-
-lhe. E tu... Ah! as mulheres! ...
Pôs a boina e, de súbito, tomado por um mudo aborreci-
mento, foi-se embora, pensando na mulher. Já havia muito
tempo que näo pensava nela, embora, todas as noites, depois
de orar em voz baixa, ela se deitasse com uma ternura estra-
nha ao seu lado.
" Ela sabe e, no entanto, aproxima-se de mim - murmurava
cheio de cólera. - Porcaria! "
A sua mulher era um caminho conhecido onde Pedro, mes-
mo às cegas, teria andado sem hesitar. Näo tinha vontade ne-
nhuma de pensar nela. Mas recordou-se de que a sogra, que
morria lentamente num sofá, toda inchada, o rosto vermelho
horrivelmente engrossado, o fixava com uma maldade cres-
cente; dos seus olhos, outrora täo belos e entretanto sem vida
e húmidos, corriam lágrimas piedosas; os seus lábios contraí-
dos mexiam-se, mas a sua língua paralisada pendia, muda, fora
da boca, impotente para falar. Com a mäo esquerda meio
inerte, Uliana metia a língua na boca.
- Aquela sente... Tenho pena dela...
Precisou, todavia, de grande força de vontade para rom-
per com Zenaida. Logo que o fez, as recordaçÖes desagradáveis
que lhe ficaram da tecedeira levaram-no a ohsediantes pensa-
mentos; um outro Pedro Artamonov nascera, vivendo ao lado
do primeiro, e seguindo-o. Esta duplicidade aumentava e per-
turbava tudo o que o autêntico Pedro tinha de fazer. O recém-
-chegado, aproveitando habilznente os momentos em que a
melancolia, como um vento brusco, se apoderava de Artamo-
nov, vinha ciciar-lhe irritantes e amargas reflexÖes:
- Trabalhas como um cavalo e para quê? Tens que comer
para toda a tua vida. É a vez do teu filho trabalhar. Par amor
dele, mataste uma criança. Uma dama agradou-te, começaste a
correr atrás das raparigas.
Cada vez que tal pensamento o assaltava, a vida parecia-
-lhe mais sombria e melancólica.
Artamonov näo soube em que momento exacto Elias deixa-
ra de ser uma criança. Näo foi, de resto, o único aconteci-
mento que lhe passou despercebido. O mesmo aconteceu com
o noivado e o casamento de Helena, que casou na cidade com
um rapaz vivo, de bigodes negros, filho de um joalheiro; e o
mesmo se passou com a morte da sogra, que se esvaiu. numa
tórrida e trovejante tarde de Junho. Näo tiveram tempo de a
estender na cama, quando retiniu um troväo que a todos ame-
drontou:
- Fechem as portas e as janelas! - gritou Natália, tapan-
do as orelhas; a perna disforme da mäe escorregou-lhe das
mäos e o calcanhar bateu no chäo, com um rumor abafado.
Pareceu a Pedro Artamonov que näo reconhecia, sequer, o
filho, quando no quarto entrou um rapaz delgado, de fato
cinzento-claro, o rosto emagrecido e pálido, de bigode. Tiago,
forte e gordo na sua blusa de colegial, mudara menos. Os
fílhos
cumprimentaram polidamente e sentaram-se.
- Vêem - disse o pai andando pela sala - a avó morreu.
Elias, sem responder, acendeu um cigarro, enquanto Tiago
observou com uma voz diferente:
- Felizmente estamos de férias, pois de contrário näo teria
vindo.
Sem dar atençäo às palavras lorpas do filho mais novo,
Artamonov examinou o rosto de Elias; mudara muito e torna-
156 " 157
ra-se mais firme; a testa escondida por mechas de cabelo cas-
tanho, era menos alta, mas os olhos azuis pareciam mais pro-
fundos. Pedro, ao mesmo tempo bem disposto e pouco à von-
tade, pensava que puxara, um dia, os cabelos deste homem
pensativo, de vestuário austero; mal podia acreditar. Quanto
a Tiago, limitara-se a crescer; aumentava sempre, mantendo-se
täo gordo como dantes, com os mesmos olhos alegres. E a sua
boca era ainda a de uma criança.
- Tu cresceste enormemente, Elias - disse o pai. - Bem,
começa a tomar conta dos negócios e daqui a três ou quatro
anos começarás a dirigi-los.
Brincando com a cigarreira, Elias fixou atentamente o pai e
respondeu:
- Quero estudar mais.
- Por quanto tempo?
- Quatro ou cinco anos.
- Tanto tempo... E que estudas?
- História.
Artamonov näo gostava que o filho fumasse; além disso, a
cigarreira era de mau gosto; podia ter comprado coisa me-
lhor. Mas os projectos de Elias e, sobretudo, o facto de os
ter
apontado imediatamente, chocaram-no muito.
Apontando com o dedo o telhado da fábrica, por onde saía
vapor, através de um tubo delgado, e de onde vinha o rumor
surdo do trabalho, o pai disse, gravemente, procurando, no en-
tanto, adocicar as palavras:
- Deixa-te de histórias e trata da fábrica. Queremos fazer
linho, a História näo é connosco. Tenho cinquenta anos, é
tempo de me substituirem.
- Miron e Tiago substitui-lo-äo. Miron será engenheiro
- respondeu Elias e, passando o braço pela janela sacudia a
cinza do cigarro. O pai observou:
- Miron é o meu sobrinho, näo o meu filho. Enfim, mais
tarde falaremos...
Os rapazes levantaram-se e sairam. O pai acompanhou-os
com um olhar vexado e surpreendido. Mas eles nada tinham
para lhe dizer? Ficaram ali cinco minutos, um disse uma asnei-
ra e bocejou, o outro pôs-se a fumar e as palavras que pronun-
ciou foi para magoarem o pai. Lá väo eles a atravessar o
pátio.
Ouve-se a voz de Elias:
- Queres ir ver o rio?
- Näo, estou cansado. A viagem. . . O rio näo se vai embo-
ra até amanhä. A mäe tem pena da avó, mas já näo chora;
sofreu muito por causa do enterro.
Conforme o seu costume, antecipando-se às coisas
desagradáveis, para as resolver, Pedro Artamonov näo deixou ao
filho mais de oito dias de calma e, entretanto, reparou que
Elias dizia "vós" aos operários e falava muito, à noite, com
Tikhon e Serafim, sentado com eles, à porta da casa. Um dia,
chegou a tempo de ouvir Tikhon proferir estas palavras ab-
surdas:
- Está muito bem. Viver pobre, é viver sem nada. Tens
razäo: se näo houvesse cupidez, as coisas chegariam para to-
dos.
Serafim concordava:
- Eu sei-o. Há muito tempo que o ouvi dizer...
A conduta de Tiago era mais compreensível: percorria as
oficinas, olhava languidamente as raparigas ou, trepando ao
telhado da estrebaria, ficava a espreitar o rio quando, à
tarde,
as mulheres lá iam tomar banho.
- Pequeno touro - pensava o pai. - É preciso pedir a
Serafim que o vigie, para que ele näo apanhe alguma doença.
Naquela terça-feira, o dia fora cinzento, melancólico e sua-
ve. Bem cedo, durante uma hora, uma chuva fina, avara e
preguiçosa, caiu sobre a terra. Cerca do meio-dia o sol mos-
trou-se, olhou sem vontade a fábrica e a junçäo dos dois rios
e escondeu-se entre as nuvens escuras, afundando-se na sua
moleza macia, ao tempo em que Natália, dormindo, abando-
nava o rosto avermelhado nas travesseiras de penas.
Antes do chá da tarde, Artamonov perguntou a Tiago:
- Onde está o teu irmäo?
- Näo sei. Estava lá em baixo, na colina, sentado debaixo
de um pinheiro.
- Chama-o. Näo, näo vale a pena. Vocês däo-se bem?
Julgou que o filho mais novo sorria imperceptivelmente.
- Sim, damo-nos bem.
158 " 159
- A sério? Quero saber a verdade...
Tiago baixou os olhos, reflectiu:
- Näo temos as mesmas ideias.
- Quais ídeias?
- Em geral, acerca de tudo.
- Mas sobre quê?
- Ele fala sempre de acordo com os livros e eu apenas
conforme o meu bom senso, tal como vejo.
- Ah! - exclamou o pai, incapaz de aprofundar mais a
questäo.
Pôs aos ombros um casaco de linho, pegou na bengala, pre-
sente de Alexis, cujo castäo de prata representava um pássaro,
tendo na ponta uma bolazinha, e começou a andar, olhando
por baixo da mäo, a servir lhe de pala, em direcçäo ao rio e à
colina. Elias, de camisa branca, estava deitado debaixo duma
árvore.
"A areia está hoje húmida. O imprudente pode constipar-
-se."
Sem presa, pesando honestamente as palavras que ia dizer
ao filho, o pai seguiu, calcando os ramitos secos que
estalavam
ao serem pisados. O filho, deitado de costas, lia um livro vo-
lumoso batendo levemente nas páginas com um lápis. Ao ruí-
do dos seus passos rodou o pescoço, viu o pai, colocou o lápis
no meio das páginas do livro, fechando-o com ruído; em segui-
da, sentou-se, as costas apoiadas no tronco do pinheiro, aca-
riciando com um olhar afectuoso o rosto do pai. Artamo
nov, fatigado, sentou-se, por seu turno, numa raiz em for
ma de arco que saía da terra.
- Hoje, näo quero falar-te de coisas sérias, pois temos
tempo. Vamos apenas conversar um pouco.
Mas Elias, apertando os joelhos com os braços, disse a
meia voz:
- Sabe, pai, eu resolvi dedicar-me à ciência.
- Dedicar-se - repetiu o pai. - Como se dedica um pa
dre à sua igreja...
Queria falar num tom agradável, mas as palavras adqui
riam um som pesado, quase irritado; zangado consigo pró-
prio, bateu com a bengala na areia. E logo principiou uma
160
cena incompreensível e inútil; o azul dos olhos de Elias en-
sombreou-se, as suas sobrancelhas bem desenhadas aproxi-
maram-se, agitou os cabelos para trás e declarou com uma
obstinaçäo maldosa.
- Näo serei industrial, näo serei capaz disso...
- Tikhon também fala assim... - interrompeu o pai,
sorrindo com ironia.
Sem dar atençäo a estas palavras, o filho começou a expli-
car porque näo queria ser industrial nem, em geral, paträo
de uma empresa, fosse qual fosse; falou demoradamente, uns
dez mínutos, e, por vezes, o pai julgava encontrar nestas
palavras uma certa verdade, que respondia, aliás, aos seus
confu-
sos pensamentos; mas, no fim de contas, via que Elias falava
sem razäo, como uma criança.
- Espera - disse, enterrando a bengala na areia, ao pé
do filho. - Espera, tudo isso é falso. Säo loucuras. É pre-
ciso autoridade; sem autoridade o povo näo pode viver. Sem
interesse, ninguém trabalhará. Sempre se disse: "Onde está o
meu ganho? " Tudo gira à volta deste fuso. Olha quantos di-
tados há a este respeito: "O compadre teria sido um
verdadei-
ro santo, se a alma näo reclamase a sua parte." Ou este: "Mes-
mo um santo reza pelo proveito." Ou ainda: "Mesmo a má-
quina que näo tem alma, precisa de ser oleada."
Falava sem se enervar e, lembrando-se dos provérbios ade-
quados, impregnava abundantemente as suas palavras de toda
a prudência. Estava satisfeito por se exprimir com calma, sem
procurar as palavras, encontrando-as pelo contrário facilmen-
te, e estava certo de que a conversa acabaria bem. O filho ca-
lava-se, fazendo deslizar areia de uma mäo para a outra, sepa-
rando as carumas ruivas dos pinheiros e soprando-as depois.
De repente, disse também com calma:
- Tudo isso näo me convence. Já näo se pode viver com
essa prudência.
Artamonov ergueu-se, apoiando-se à bengala, sem que o
filho o ajudasse.
- Entäo o teu pai näo diz a verdade?
- Há outra verdade.
- Mentes! Näo há mais nenhuma.
161
E, de bengala apontada para o lado da fábrica, o pai re-
nhou-se rapidamente para o cimo da colina, enquanto o filho
petiu: lhe gritava nas costas:
- A verdade é aquela! O teu avô iniciou-a, eu pus nela a -
Näo matou apenas um: está lá em baixo um cemitério
minha vida, agora é a tua vez. E é tudo. E tu, que queres?
inteiro com todas as pessoas que a sua fábrica assassinou!
Queres viver como um bem-aventurado do trabalho dos ou
Artamonov parou, voltou-se. Elias, o braço estendido,
apontros. Näo está mal achado! A História! A História näo é
uma tava com o livro as cruzes, por entre o céu cinzento. A
areia
rapariga: näo se pode desposar. E, afinal, o que é essa
parvoíce estalou sob os pés de Artamonov, que se recordou de
que,
da História? Para que serve? Näo to permitirei... pouco antes,
ouvira outras palavras que também o feriram,
Sentindo que se enervava inutilmente, Artamonov procu- a
propósito da fábrica e do cemitérío. Desejaria recuperar as
ou atenuar o efeito das suas palavras. suas palavras
irreflectidas; o filho devia esquecê-las. Entäo,
- Eu compreendo: gostarias de viver em l"Ioscovo, a vida
marchando apressadamente ao encontro do filho, como um
lá é mais divertida. Alexis também... urso, gritou, levantando
a bengala e procurando assustar Elias:
Elias pegou no livro, soprou as areias e respondeu: - Que
disseste, canalha?
- Autorize-me a continuar os meus estudos. Elias
colocou-seatrás da árvore:
- Näo! - gritou o pai, batendo com a bengala no chäo. - -
Páre! Páre! Que vai fazer?
Näo me peças isso!
O pai bateu no tronco com a bengala, que se partíu. Lan-
Elias levantou-se também e, olhando por cima dos ombros
çando aos pés do fílho um pedaço que se enterrou obliqua-
do pai, os olhos brancos, disse, quase a meia voz: mente na
areia, ameaçou:
- Nesse caso, prosseguirei sem autorizaçäo. - Ponho-te no
olho da rua! .. .
- Proibo-to!
E afastou-se rapidamente, tropeçando, sentindo a sua razäo
- Näo se pode proibir um homem de viver como quer - ir e vir
através das palavras de pesar e de cólera, como a lan-
'retrucou Elias abanando a cabeça. çadeira na teia
enrodilhada.
- Um homem? Tu és meu filho, e näo um homem. Ora, -
Expulsá-lo-ei! A miséria há-de obrigá-lo a voltar. E en-
um homem! Tudo o que tens é meu! täo verá. O imbecil!
Estas palavras proferiu-as inadvertidamente. Adoçando a Do
tropel desordenado das suas ideias, ressaltavam breves
voz, continuou, acenando com a cabeça em tom de reprovaçäo
pensamentos, e compreendia confusamente que näo se conduzira
bem, que fora demasiado longe, que ele próprio ateara a
- É assim que pagas os meus cuidados? Imbecil. . . sua
própria irritaçäo.
Via que Elias enruborescera e que as suas mäos tremiam:
Chegado às margens do Oka, sentou-se, fatigado, limpou
tentava escondê-las nos bolsos das calças, mas elas näo chega-
o suor do rosto e contemplou o rio.
vam a entrar. Numa pequena enseada pouco profunda, um grupo de
Pedro, receoso de que o filho dissesse alguma palavra por-
peixes nadavam, furando a água como agulhas de aço. De-
ventura irreparável, apressou-se a acrescentar: pois, agitando
majestosamente as barbatanas, outro peixe pa-
- Por ti, matei um homem.. . Talvez. .. rou, nadou,
voltou-se de lado, olhou o céu acinzentado com um
Artamonov juntou: "talvez", porque desde as primeiras
palavras olho avermelhado, e provocou uma série de círculos
sobre a percebeu que näo devia ter falado assim a este garoto,
água.
que abertamente se recusava a compreendê-lo. Artamonov,
ameaçando-o com o dedo, disse em voz
"Vai perguntar-me: qual homem?" - pensou, e encami- alta:
162 " 163
- Eu te direi, eu te direi. . .
E voltou-se, sentindo que as suas palavras soavam falso.
O curso calmo do rio transportava a sua cólera; o silêncio
ensombreado e tépido levava-o a pensamentos plenos de uma
admiraçäo estúpida. O mais espantoso era que este filho que
ele amava e que, há vinte anos, era objecto constante da sua
in-
quietaçäo, se tivesse repentinamente, em poucos minutos, eva-
dido do seu curso, deixando-lhe uma dolorosa irritaçäo. Arta-
monov estava convencido de que, nestes vinte anos, diária e
infatigavelmente, só pensara no filho, só vivera com toda a
esperança nele, de amor por ele, aguardando sempre de Elias
algo de extraordinário.
- Como um fósforo: ardeu, desapareceu. O que é, afinal?
O céu enevoado tingiu-se de uma cor rósea; num canto,
surgiu uma mancha mais clara, igual ao brilho oleoso do lustro
num lençol húmido e fresco; o nevoeiro flutuou num vapor
ligeiro sobre o rio.
Quando Artamonov chegou a casa, a mulher, já despida,
o pé esquerdo apoiado no joelho redondo da sua perna direíta,
cortava as unhas, de sobrancelhas carregadas. Lançando o ma-
rido um olhar de trav és, perguntou:
- Para ondé mandaste Elias?
- Para o diabo - respondeu, enquanto se despia.
- Tu zangas-te sempre - suspirou Natália.
O marido näo respondeu. A chuva bateu nos vidros, um
rumor húmido espalhou-se pelo jardim.
- Elías faz-se orgulhoso com a instruçäo recebida.
- A mäe dele é uma estúpida.
Natália resmungou e, depois de se persignar, deitou-se, en-
quanto Pedro, acabando de se despir, se dispunha a insultá-la
com prazer.
- O que é que sabes fazer? Nada. As crianças näo te res-
peítam. Que lhes ensinaste? Só és boa para uma coisa: comer
e dormir. E engordurar a cara.
A mulher respondeu, deitada:
- Quem os mandou aprender? Eu bem te disse.
- Cala-te!
Ele calou-se também, escutando a chuva bater com uma
164
violência incessante nas folhas das cerejeiras plantadas por
Ni-
kita.
- O corcunda escolheu a melhor parte. Nem filhos, nem
negócios. Abelhas. Eu nunca me ocuparia de abelhas. Cada
um procura o mel conforme entende.
Ao voltar-se com tanta precauçäo como se estivesse deitada
sobre vidro, Natália mal aflorou com o rosto o ombro do ma-
rido:
- Discutiste com Elias?
Envergonhado de contar o que se passara entre ele e o
filho,rosnou:
- Näo se discute com crianças, ralha-se-lhes.
- Ele foi para a cidade.
- Voltará. Em parte alguma se é alimentado de graça.
Quando passar pela miséria, regressará. Dorme, näo me in-
comodes.
Um minuto depois, disse:
- Tiago näo precisa de aprender mais.
E, passado outro instante:
- Amanhä vou à feira. Estás a ouvir?
- Sim.
"Mas que é isto?" - interrogava-se Artamonov, os olhos
fechados, mas revendo o rosto de larga testa e lembrando-se
do brilho insuportavelmente vexatório que se desprendia dos
olhos de Elias.
"Despediu-se do pai como um canalha. Correu-o como um
mendigo... "
A incompreensível rapidez desta ruptura espantava-o. Ti-
nha a impressäo de que Elias há muito tempo resolvera afas-
tar-se. Mas que o levara a tal? E ao evocar as palavras
duras
e reprovadoras do filho, Artamonov pensava:
"Foi Miron, esse patife, que lhe deu volta à cabeça. Qué os
negócios prejudicam o homem, é uma ideia de Tikhon. O im-
becil, o imbecil! Ah! quem ele foi escutar! E estudou! Mas o
que é que aprendeu? Tem pena dos operários, mas näo a tem
do seu pai. E foge para cultivar a sua virtude à margem! "
Este pensamento reavivou ainda mais o rancor contra Elias.
"Näo, enganas-te. Näo irás longe! H
165
Nessa altura, lembrou-se de Nikita, que se recolhera num
sítio tranquilo.
"Obrigaram-me todos a ficar aqui, mas eles väo-se em-
bora."
Logo Artamonov distinguiu que näo era assim, que Alexis
näo fugira; gostava tanto da fábrica como o pai. Era avaro,
insaciavelmente avaro, e na sua casa vivia-se com simplici-
dade. Pedro lembrou-se de ter dito, um dia, a Alexis, depois
de uma rixa entre bêbados, na fábrica:
- O povo estraga-se.
- É evidente - respondeu Alexis.
- Estäo todos furiosos, näo se sabe porquê. Dir-se-ia que
têm um par de olhos só para nos vigiarem.
Alexis mncordou de novo e declarou com um leve sorriso:
- Também é verdade. Penso às vezes que era com aqueles
olhos que Tikhon via o pai lutar contra os soldados, quando
do teu casamento. Depois, também lutou. Lembras-te?
- Oh! Tikhon é um idiota...
Alexis interrompeu-o gravemente:
- Queixas-te frequentemente de que o povo se estraga.
Mas isso näo é connosco: é com os padres, com os professo-
res, sei lá! Médicos, autoridades, todos. Eles é que devem
vigiar o povo- É a sua mercadoria; nós somos compradores.
Tudo se estraga, a pouco e pouco, meu velho. Tu envelheces,
eu também. Mas näo irás dizer a uma rapariga: para quê viver,
se temos de envelhecer?
"Ele é inteligente o demónio - pensou Artamonov. - Tem
bom senso.H
E ao escutar a linguagem fácil do primo, toda enfeitada
com novos provérbios, invejou a sua vivacidade; depois, pen-
sou em Nikita: o pai contava com o corcunda para os recon-
fortar, mas ele desapareceu, depois daquela absurda história
com a mulher.
Artamonov voltou a pensar em muitas coisas nessa noite
chuvosa. No amargor das suas reflexÖes apareciam, como um
fio de fumo, muitos outros pensamentos estranhos: o indefi-
nível rumor da chuva traziam-nos, impedindo-o de se justi-
ficar.
" Qual é a minha falta? " - interrogava-se, e sem encontrar
a resposta, sentia que esta questäo era natural. De madrugada,
resolveu bruscamente ir visitar o irmäo que estava no conven-
to: talvez que junto deste homem esperto, livre das tentaçÖes
e das preocupaçÖes, encontrasse algum alívio e a possibilidade
de uma soluçäo decisiva.
Aproximava-se já do convento, numa diligência puxada por
dois cavalos, e pensava, abalado pelos sobressaltos do ca-
minho:
"Näo é difícil permanecer num cantinho. Mas correr pelas
ruas!... Na cave, o pepino näo se estraga, mas ao sol apo-
drece. "
Há quatro anos que näo via o irmäo; o último encontro fora
breve e aborrecido. Pedro julgara que o corcunda näo estava
à vontade e ficara pouco satisfeito com a sua visita. Encar-
quilhado, seco, escondido como um caracol na sua concha,
falara com voz amarga, näo de Deus, de si próprio ou dos
parentes, mas apenas das necessidades do convento, dos
peregrinos, da miséria do povo; exprimia-se quase contrafeito,
com
visível esforço. Pedro ofereceu-lhe dinheiro e ele respondera
em voz baixa, com ar distante:
- Dá isso ao prior, que eu de nada preciso.
Via-se que todos os frades consideravam com respeito o
padre Nicodemo (o nome religioso de Nikita). O prior - um
homem enorme, ossudo e peludo, surdo de um ouvido - pa-
recia um fauno de sotaina; fixando em Artamonov o brilho
inquietante dos seus olhos negros, disse muito alto:
- O padre Nicodemo é o ornamento do noss,o pobre con-
vento.
O mosteiro, escondido num pequeno outeiro, por detrás de
uma muralha de pinheiros bronzeados, de pontas cerradas, aco-
lheu Artamonov com o toque diário dos seus pequenos sinos:
era o convite para as vésperas. O porteiro, alto e magro, com
uma cabeça de criança e um barrete desbotado e roto, abriu
a porta das trazeiras, gaguejando:
- S... s... s... seja...
E, de uma só vez, expirou, num silvo:
. . . benvindo. . .
166 " 167
Uma nuvem azul-escura cobrira metade do céu e mantinha-
-se imóvel por cima do convento, esmagando tudo sob uma
sombra espessa, húmida e asfixiante, enquanto o sino de co-
bre continuava a soar.
- Näo posso erguê-la sozinho - disse o frade com ar con-
trito, ao procurar levantar do carro a caixa onde vinham os
presentes destinados a Nikita e, com o pequeno punho negro,
bateu na caixa.
Pedro, fatigado e cheio de pó, dirigiu-se lentamente, pelc
jardim, para a pequena cela branca do irmäo, instalada confor-
tavelmente entre cerejeiras e macieiras; enquanto andava di-
zia para si que näo devia ter vindo e que teria sido melhor ir
à feira. O caminho pedregoso, cheio de raízes, agitara e em-
brulhara os seus tristes pensamentos, que tinham sido substi-
tuídos por um tédio avassalador, precisamente na altura em
que ambicionava descanso e esquecimento.
- Seria necessário uma boa festa e uma boa mulher...
Viu o irmäo sentado num banco, no meio de um semicírcu-
lo de pequenas tílias; à sua frente, como se vê numa gravura
conhecida, estavam diversos peregrinos; um mercador de bar-
ba negra, vestido com um capote de linho, um pé envolto em
trapos e metido nos restos de uma bota de borracha; um velho
anafado que lembrava um eunuco; um rapaz de cabelos com-
pridos, de queixo afilado e olhos de peixe; Munine, o padeiro
de Driomov - um brigäo e um bêbado - sentado à sua fren-
te, como um ladräo em frente do juiz, exclamava com voz
rouca:
- É verdade. Deus está longe.
Riscando traços com o seu bastäo branco na terra calcada,
Nikita, sem olhar os peregrinos, ensinava:
- E quanto mais o homem fica baixo, mais Deus se ergue
por cima dele, afastado pelo fedor da nossa corrupçäo.
"Ele consola-os?" - pensa Artamonov, e sorriu de si pró-
prio.
- Deus vê que acreditamos, mas passivamente; ora, a fé
que näo actua para que serve? Quando nos socorremos uns aos
outros, onde está o amor? E que pedimos em nossas oraçÖes?
Sempre bagatelas. Com certeza, é preciso orar, mas...
Ergueu os olhos, mirou por um instante o irmäo, silencio-
samente, fixamente, de baixo a cima. Lenta e pesadamente,
brandiu o bastäo, como se se preparasse para castigar alguém.
Levantou-se, curvou a cabeça, benzendo a assistência com o
seu crueifixo, mas em vez de recitar uma prece, disse:
- Está aqui o meu irmäo, que veio para me ver.
Com os seus olhos acobreados, feiamente redondos, o velho
calvo olhou Pedro e persignou-se largamente, com ostenta-
çäo.
- Deus seja convosco - acrescentou Nikita.
Os assistentes dispersaram como um rebanho que regressas-
se do pasto; o velho e o padeiro rezaram, apoiados nos coto-
velos, o mercador segurando o pé doente.
- Bom dia. Dá-me a tua bênçäo.
Com o seu longo braço, sernelhante a uma asa devido à
manga da sotaina, o padre Nicodemo afastou as mäos unidas
do irmäo estendidas para ele, e declarou sem alegria, num mur-
múrio :
- Näo te esperava.
Apontou o bastäo para o lado da cela e, à frente do irmäo,
seguíu devagar, atirando as pernas tortas, uma das mäos apoia-
da ao peito, perto do coraçäo.
- Envelheceste - observou Pedro embaraçado.
- É para isso que se vive. Agora sofro das pernas. A regiäo
é húmida.
Nikíta parecia ainda mais corcovado; a ponta das costas e
do ombro direito tinham subido, torcendo mais ainda o corpo
entorpecido, que parecia maior; o frade lembrava uma aranha
sem cabeça que, cega, se arrastasse em ziguezagues ao longo
do camínho. Na cela estreita e limpa, o padre Nícodemo tornou-
-se maior e mais impressionante ainda. Quando tirou o capuz,
o crânio ossudo e meio calvo, dando a impressäo de näo ter
pele, começou a luzir com um brilho mate, como o de um
morto: das têmporas, por detrás das orelhas, os cabelos grisa-
lhos pendiam em tufos desiguais. O rosto estava também
ossudo, de cera; os ossos descarnados; os olhos descoloridos
näo brilhavam, o olhar parecia concentrado na ponta do nariz,
gross" e viscoso, sob o qual se mexiam as fitas sombrias dos
lábios ressequidos. A boca alargara-se; dividia o rosto por
uma fenda profunda e os pêlos cinzentos sobre o lábio supe-
rior eram particularmente desagradáveis. Em voz baixa, como
se prestasse atençäo a qualquer ruído, e parecendo ter difi-
culdade em achar as palavras, o frade dizia a um outro irmäo,
nédio e louro:
- O samovar, päo e mel.
- Falas täo baixinho...
- Caíram-me os dentes.
O frade sentou-se à mesa num banco de madeira pintado
de branco.
- E em casa, väo bem? Tikhon ainda é vivo?
- Sim. Que queres tu que lhe chegue?
- Já há muito que näo me visita.
Calaram-se. Quando Nikita mexia o braço, a sotaina fazia
um leve rumor, e este agravava mais a perturbaçäo e o mal-
-estar de Pedro.
- Trouxe-te doces. Manda buscar a caixa para aqui. Tenho
vinho. Podes beber vinho?
O irmäo respondeu com um suspiro:
- Näo säo muito severos. A vida é difícil. Depois que o
nosso convento é mais frequentado, até aparecem bêbados.
Bebe-se. Que queres? O sopro do mundo envenena-nos. Os
frades também säo homens.
- Ouvi dizer que vinham muitas pessoas para te ver.
- Por ignorância - atalhou o frade. - Sim, vêm pessoas,
rodopiam à minha volta. Procuram a santidade, um homem
justo. Conselhos para a vida. Viveram, até hoje, e de repente
exclamam: Näo se sabe viver... Näo se pode mais...
Confundido por estas palavras, Artamonov comentou:
- Fingidos! Suportavam a escravidäo, e näo podem supor-
tar a liberdade. O freio está-lhes demasiado largo...
Nikita näo respondeu.
- No tempo dos senhores, näo se passeava, näo havia vaga-
bundos.
O corcunda olhou-o rapidamente e baixou os olhos.
Achando com dificuldade as palavras e interrompendo a
conversa com largas pausas, falaram até que o irmäo laico
lhes trouxe o, samôvar, o mel perfumado e päo quente que
ainda cheirava a cevada. Fixavam atentamente o homem lou-
ro, que abria com pouco jeito a tampa da caixa. Pedro pousou
na mesa um prato com caviar fresco e duas garrafa5.
- "Porto" - leu Nikita. O prior gosta desse vinho. É um
homem inteligente que compreende bem as coisas.
- Eu, bem pouco compreendo - confessou Pedro em ar
de desafio:
- Compreendes o que é necessário; para que queres saber
mais? É perigoso compreender de mais.
O frade suspirou, circunspecto. Pedro julgara descobrir cer-
to pesar nas suas palavras. O brilho da sotaina suja
distinguia-
-se na penumbra mal iluminada por uma candeia, num canto,
e por uma lâmpada de vidro amarelo, colocada em cima da
mesa. Pedro reparou com que sofreguidäo calculada o irmäo
bebera um copito de "Madeirav. Disse ironicamente:
"Ele é esperto."
Depois de cada copo, Nikita, os dedos secos e muito brancos,
cortava um bocado de päo, molhava-o no mel e, sem
pressa, mastigava-o; a sua magra barbicha grisalha tremia. O
frade näo parecia bêbado, mas os olhos perturbados tinham-se
tornado mais límpidos, embora continuasse a concentrar o
olhar na ponta do nariz. Näo querendo embriagar-se na pre-
sença do irmäo, Pedro bebia prudentemente e pensava:
"Näo pergunta por Natália. Da última vez, também näo me
pediu notícias. Envergonha-se. Näo pergunta por ninguém.
Nós somos profanos, ao passo que ele é justo. Os homens pro-
curam-noa.
Apertando com humor a barba de encontro ao peito e coçan-
do a orelha, disse:
- Soubeste escolher, quando te escondeste aqui. Está-se cá
bem.
- Dantes, sim. Agora nem por isso. Há peregrinos a mais.
Estas visitas...
- Visitas? - Pedro sorriu com ironia. - Como ao den-
tista...
- Queria ir para um sítio mais retirado - disse o frade
deitando cuidadosamente vinho nos copos.
- Onde se esteja mais tranquilo - concluiu Pedro com
o mesmo sorriso, enquanto o frade, depois de beber, passou
pelos lábios o trapo escuro da sua língua e abanando a cabeça
ossuda, prosseguiu:
- Vê-se bem" que o número de pessoas aumenta e que pro-
curam esconder-se para ficarem livres de preocupaçÖes...
- Näo reparei nisso - replicou Pedro, sabendo, todavia,
näo dizer a verdade. - Tu é que estás escondido, tinha von-
tade de dizer.
- As preocupaçÖes acompanham-nos como as sombras...
As palavras de censura surgiam por si mesmas na língua
de Pedro, que queria discutir, ralhar ao irmäo e, pensando no
filho, afirmou com voz irritada:
- É o homem que procura os cuidados, que quer a miséria.
Faz o teu trabalho, näo pretendas um espírito forte, e viverás
tranquilo.
Mas o irmäo, absorto nos seus pensamentos, näo tinha pro-
vavelmente escutado; sacudiu bruscamente o corpo anguloso,
a sotaina assentou sobre ele, em ondas negras; torcendo os lá-
bios, empregou frases claras, e como se, por seu turno, se
zangasse:
- Eles vêm pedir-me: instrui-nos! Mas o que sei eu? Que
posso ensinar? Näo sou um sábio. O prior é que me inventou.
Sou igual a um homem injustamente condenado. Condena-
ram-me a ensinar. E porquê?
"Ele faz alusÖes - pensou Artamonov. - Tem vontade
de se queixar."
Compreendia que Nikita tinha razÖes para se queixar e, em
cada visita, esperava recriminaçÖes.
Entäo, coçando a orelha, adiantou-se, sentenciosamente:
- Muitas pessoas lamentam a sua sorte, mas isso de nada
serve.
- Sim, näo se vê ninguém contente - respondeu o cor-
cunda, os olhos fixos no canto onde luzia a candeia.
-A ti o nosso pai encarregara-te de seres o nosso
consolador. ßem, nesse caso consola-nos.
Os lábios de Nikita entreabriram-se com ironia; empunhou
a barbicha grisalha, apagou o sorriso, e recomeçou a espalhar
na penumbra palavras que chocavam Pedro e lhe inspiravam,
além de curiosidade, a apreensäo de um perigo.
- Aqui esforço-me por fazer acreditar que sou um sábio.
Naturalmente, esse é o interesse do convento, para atrair gen-
te. Mas para mim é um emprego difícil. Uma tarefa custosa,
meu velho. Como consolar as pessoas? Eu digo-lhes: é preciso
sofrer, mas bem vejo que toda a gente está farta de sofrer.
Digo-lhes também que esperem. Mas o quê? Deus já näo as
consola... Há um padeiro que vem aqui...
- É dos nossos lados. Chama-se Murzine, é um bêbado
- observou Artamonov, querendo afastar o perigo que pres-
sentia.
- Ele crê-se já o juiz de Deus. Para ele, Deus deixou de
ser o senhor do mundo. Atrevidos como este, há muitos,
actualmente. Vem igualmente um homem, sem barba, viste?
Esse é um homem mau, o inimigo de todo o universo. Chegam,
interrogam-me. Que heí-de dizer-lhes? Vêm só para me em-
baraçar.
O frade animava-se. Lembrando-se da atitude do seu ir-
mäo, quando das visitas anteriores, Pedro reparou que os
olhos de Nikita já näo tinham o antigo piscar de arrependi-
mento. Entäo, ficava-se tranquilizado pela consciência que o
corcunda demonstrava pela sua falta: um culpado näo tem
o direito de se queixar. E eis que agora censurava, declaran-
do-se injustamente condenado. E Artamonov receava que o
irmäo lhe dissesse:
- Tu é que me condenaste!
Distraído com a corrente do relógio, buscava as palavras
para se defender:
- Sim - dizia o corcunda, que parecia sinceramente satis-
feito com o que deplorava - sim, as pessoas incomodam cada
vez mais, têm ideias mais ousadas. Näo há muito tempo, este-
ve aqui uns quinze dias um sábio, pessoa ainda nova, mas que
näo parecia muito ajuizado. O prior incumbira-me da liçäo:
"É preciso que o reconfortes com a tua simplicidade, dir-lhe-
-ás isto e aquilo." Mas eu näo me lembro das ideias dos
outros.
E o sábio atormentava-me horas inteiras, falava, falava; eu
nem sequer percebia e muito menos adivinhava o que pensava.
"Näo se pode - afirmava - reconhecer o Diabo no
mestre da nossa carne, é cair no dualismo e injuriar o corpo
de Cristo com que comungamos: Recebam o corpo de Cristo,
bebam na fonte da imortalidade." E blasfemava: "Que Deus
tenha cornos, mas apenas um, pois de contrário será impos-
sível viver." Cansou-me tanto que esqueci todas as recomen-
daçÖes do padre Teodoro e gritei: "A tua carne é só aparên-
cia, o teu espírito apenas destruiçäo." Depois, o prior
ralhou-
-me, dizendo que eu proclamara uma blasfémia estúpida. Sim,
estás a ver.
Pedro divertiu-se com o relato que mostrou o irmäo sob
um aspecto calamitoso, facto que o tranquilizou um pouco.
- É difícil falar de Deus - observou.
- Sim, é difícil - concordou o padre Nicodemo. E per-
guntou com voz untuosa e amarga: Deves recordar-te de que
o pai nos ensinava: "Näo somos mais do que trabalhadores,
essas coisas säo demasiado sábias para nós."
- Sim.
- O padre Teodoro recomenda-me que leia. Leio, mas para
mim o livro é como uma floresta longínqua que produz um
rumor confuso. O livro näo responde ao nosso tempo. Hoje,
as pessoas têm ideías que näo se podem encontrar nos livros.
Há seitas em toda a parte. Raciocina-se como se se contassem
os sonhos, ou como se se bebesse. Esse Murzine, por exem-
plo...
O frade bebeu outro "Porto", mastigou um naco de päo,
fez uma bola com a migalha, e atirando-a para cima da mesa,
continuou:
- O padre Teodoro pretende que todo o mal vem da in-
teligência; o Diabo fez dela um cäo que morde, excita-o e o
cäo ladra. É talvez verdade, mas vexatório reconhecê-lo. Há
aqui um médico, um homem simples e alegre, que pensa de
outro modo. A inteligência, diz, é uma criança, para ela tudo
é brinquedo, tudo a diverte; ela quer saber como se fazem as
coisas e o que está lá dentro. E, entäo, naturalmente, des-
troi...
- Essas palavras säo perigosas - observou Pedro.
De novo, estas afirmaçÖes chocavam-no, inquietavam-no,
agitavam-no: a sua acuidade, o seu imprevisto espantavam-no
e amedrontavam-no. Outra vez sentiu vontade de diminuir,
de esmagar Nikita.
" Ele está bêbado" - dizia para se tranquilizar.
No pequeno quarto, o ar tornara-se asfixiante; o cheiro do
carväo e do óleo da candeia fazia desaparecer os 'pensamentos
de Pedro. No pequeno quadrado negro da janela, folhas er-
guiam-se imóveis e metálicas. O irmäo, como uma aranha,
continuava a tecer suave e obstinadamente a sua teïa.
- Todos os pensamentos säo perigosos. Sobretudo os mais
simples. Olha para Tikhon...
- Ele é meio maluco...
- Näo, näo tens razäo. O seu espírito é muito sério. No
princípio, tinha medo de falar com .ele; vontade e medo ao
mesmo tempo. Mas, com a morte do pai, aproximámo-nos bas-
tante. Tu näo amavas tanto o pai como eu. Nem tu nem Ale-
xis sentiram a injustiça dessa morte, ao passo que Tikhon a
compreendeu. Näo foi contra a estupidez da religiosa que me
revoltei, nessa altura, foi contra Deus, e Tikhon logo o
adivi-
nhou. " Um mosquito vive - sentcnciou - e o homem. . . "
- Tu divagas - observou severamente Pedro. - Bebeste
de mais. De que religiosa estás a falar?
Nikita recomeçou, com insistência:
- Tikhon afirmou: "Se Deus é o mestre do mundo, a chu-
va só deve cair no seu tempo, quando beneficiar o trigo e os
homens. E os incêndios näó vêm todos dos homens: säo os
raios que incendeiam as florestas." E porque foi necessário
que
Caim pecasse para a nossa morte? Porque teve Deus necessi-
dade disso? Os corcundas, por exemplo, para que servem?
"Ah! Ah! Já estou a ver - disse para consigo Pedro, sor-
rindo por entre a barba, e sentindo-se tranquilo com as recri-
minaçÖes do irmäo contra Deus. - Felizmente, o frade näo
se queixa da família."
- Näo compreendem nada da história de Caim. Quando
Tikhon mo disse, fiquei como que enfeitiçado. Depois da
morte do nosso pai é que pensei no caso. Disse para mim: Vou
para um convento, isto passará... Mas näo. Estes pensamen-
tos näo me largam.
- Dantes näo os mencionavas.
- Näo se pode dizer tudo de uma vez só. Sern os peregrinos,
talvez me tivesse calado toda a vida, eles é que perturbam a
minha consciência. E receio que as palavras de Ti-
khon se misturem nas minhas. Näo, é um homem inteligente,
embora eu talvez näo goste dele. Também ele pensou a teu
respeito: É, disse, um homem que se mortificou pelos filhos,
e estes säo uns estranhos para ele...
- E que mais ainda? - interrogou Pedro com humor.-
O que sabe ele da minha vida?
- Ele sabe. Os negócios, afirma ainda, säo um engano. . .
- Já ouvi isso. É preciso pôr esse imbecil na rua, mas ele
sabe de mais sobre as nossas vidas.
Artamonov, com estas palavras, queria lembrar a Nikita
a triste noite em que Tikhon o tirara da corda, mas, na reali-
dade, pensava no jovem Nikonov. O frade näo entendeu a alu-
säo, aproximou os lábios do copo, molhou ä língua no vinho,
lambeu os lábios e continuou as frases metálicas:
- A vida maltratou Tíkhon. Por isso se afastou de tudo
cómo um homem arruinado...
Era preciso desviar o frade destas ideias.
- Mas já näo acreditas em Deus? - interrogou Pedro,
espantado por esta pergunta que desejava cáustica ter sido
proferida noutro tom.
- Já näo se distinguem os que crêem - respondeu o frade
passado um instante. Toda a gente pensa muito, mas a fé
näo se vê tanto. Ora, quando se crê, näo há necessidade de
pensar. Aquele que me falava dos çornos de Deus...
- Deixa isso - aconselhou Pedro, olhando em redor.-
Todas essas coisas säo motivadas pelo tédio e pela ociosidade.
Seria preciso amarrá-los todos com cadeias de ferro.
- Näo, näo pode acreditar-se nos dois, simultaneamente
- insistiu Nicodemo.
Pela segunda vez, o sino tilintou; as badaladas ritmadas
chegavam aos vidros negros da janela.
- Vais à igreja?
- Näo, näo posso estar de pé.
- É aqui que rezas por nós?
O frade näo respondeu.
- Queria dormir um bocado, a viagem fatigou-me.
Nikita encostou silenciosamente os seus extensos braços à
cadeira, ergueu cautelosamente o corpo anguloso e chamou:
- Dmitri!
E voltou a sentar-se, indicando com ar contrito:
- Desculpa, esqueci-me de que dorme no albergue. Man-
dei-o embora. Queria conversar à vontade, e por aqui só há
espiÖes e delatores.
Com pormenores inúteis, explicou a Pedro o caminho do
albergue. Pedro, ao mergulhar na obscuridade, debaixo de
uma chuva fresca e miúda, pensava:
"O falador näo queria que me viesse embora."
De súbito, tomado por um medo já experimentado, Arta-
monov sentiu que marchava outra vez à beira de uma ravina
profunda em que podia cair de um momento para o outro.
Apressou o passo, as mäos tensas, apalpando com os dedos
o pó húmido, os olhos obstínadamente apontados na longín-
qua mancha de uma lanterna.
"Näo - dizia febrilmente, tropeçando - isto de nada me
serve. Parto àmanhä. Näo, näo. Que se passou? Elias voltará.
É preciso fírmeza na vida. Repare-se em Alexis, que ri de
tudo. Também poderia rir-se de mim."
Tentava pensar em Alexis por näo querer pensar em Nikita
nem em Tikhon. Mas, quando se deitou na cama dura do al-
bergue do convento, terríveis pensamentos acerca do frade e
do velho trabalhador o assaltaram. Que espécie de homem era
este Tikhon? A sua sombra projectava-se em tudo, reencontra-
va-se nos discursos pueris de Elias, as suas ideias
enfeitiçavam
Nikita.
"Um consolador! - dizia ironicamente, pensando no ir-
mäo. Mas Serafim, simplório marceneiro, consola bem mais."
Näo conseguia adormecer; os mosquitos mordiam-no, por
detrás das paredes vozes de homens murmuravam. Pedro sus-
peitou que devia ser o padeiro Murzine, o mercador da perna
doente e o homem com rosto de capado.
- Provavelmente, estäo a embebedar-se.
Por vezes, o guarda do convento batia lá de baixo; depois,
à pressa, como se receasse um atraso, tocou para a missa e,
com o ruído do sino, Pedro adormeceu.
O irmäo veio vê-lo: estava como na véspera, no jardim, com
o mesmo olhar oblíquo, estranho e maldoso, observando de
baixo para cima. Artamonov arranjou-se rapidamente, vestiu-
-se e pediu um cavalo até à próxima muda.
- Porque partes já? - perguntou o frade sem se admirar.
- Pensava que ficarias alguns dias.
- Os negócios näo mo permitem.
Beberam chá. Por muito tempo, Pedro procurou o que po-
deria perguntar ao irmäo. Finalmente, achou:
- Tens entäo vontade de partir?
- Sim, mas eles näo querem.
- Porquê?
- Sirvo-os, sou-lhes útil.
- Ah! sim. E onde contas ir?
- Talvez em peregrinaçäo.
- Com as tuas pernas doentes?
- Há homens sem pernas que viajam.
- É verdade - concordou Pedro.
- Dá cumprimentos a Tikhon.
- E a quem mais?
- A toda a gente.
- Bem. E näo pedes notícias de Alexis?
- Para quê? Conheço-o. Eu talvez parta em breve.
- Näo te podes ir embora no Inverno.
- Porquê? Há pessoas que viajam no Inverno.
- Também é verdade - aprovou de novo Pedro, e ofere-
ceu dinheiro ao irmäo.
- Obrigado. Será para mandar reparar o moinho. Näo
vais despedir-te do prior?
- Näo tenho tempo. O carro já ali está.
Ao separarem-se, os dois irmäos abraçaram-se. Näo era fácil
abraçar Nikita, que näo pôde abençoar o irmäo, pois a mäo
direita prendeu-se na sotaina. Pedro suspeitou que ele fez de
propósito. Encostando a corcunda de encontro ao peito de
Pedro, Nikita pediu com voz surda:
- Perdoa-me se ontem falei demais...
- Näo. E näo somos irmäos?
- A noite, pensa-se, pensa-se. . .
- Sim, sim. Vamos, adeus...
Quando saiu da porta do convento, Pedro voltou-se e viu
ainda junto da parede branca a silhueta do irmäo, parecida
com uma pedra.
- Adeus - murmurou, tirando a boina; uma chuva fína
polvilhou-lhe a cabeça, abundantemente. O caminho seguia
por entre um pinhal, tudo era silêncio, só as carumas rangiam
como cristal sob as pérolas da chuva. Um frade saltitava no
banco do veículo, o cavalo era ruço e tinha as orelhas despe-
ladas.
"O que é que dizem? - pensava Pedro. - Deus faz cho-
ver quando näo é preciso... Tudo é efeito da maldade, da
inveja, da fealdade. Da preguiça. Näo há preocupaçÖes. O
homem sem cuidados é como um cäo sem dono."
Olhou à sua volta, encolheu-se, entendendo que, realmen-
te, chovia sem necessidade e outra vez os pensamentos moro-
sos o enrodilharam numa nuvem cinzenta. Para os afastar,
bebia aguardente em cada paragem.
A noite, a cidade fumarenta surgiu ao longe; um comboio
ofegante cortou a estrada, assobiou, lançou o vapor, entrou
pela terra dentro e desapareceu num buraco redondo.
178
Capitulo terceiro
Quando lembrava os dias tumultuosos vividos na feira de
Nijni, Artamonov sentia uma espécie de surpresa ansiosa que
atingia as raias do pânico: tinha dificuldade em acreditar que
viu, efectivamente, tudo o que a memória lhe representava e
que ele próprio aqueceu na enorme cuba de pedra, cheia de
barulho, de música ruidosa, de cançÖes, de gritos de êxtase
bêbado, de urros angustiados e pungentes de seres
enlouquecidos. Tudo isto era agitado, cozinhado por um homem
alto,
de cabelos encaracolados, de casaca e chapéu alto, com olhos
de mocho, enfiados num rosto barbeado e azul. O homem fazia
estalar os lábios grossos e, ao enlaçar e empurrar Artamonov,
gritava:
- Imbecil! Cala-te! É o baptismo da Rússia, compreendes!
O baptismo anual, no Volga e no Oka.
Tinha rosto de cozinheiro e o fato de um destes
transportadores de tochas que se contratam para acompanharem
ao
cemitério os mortos endinheirados. Pedro recordava-se vaga-
mente que lutara com este homem e que depois beberam am-
bos conhaque, misturando-lhe sorvetes, e que o outro dizia,
soluçando:
- Escuta, pois, o grito da alma russa! O meu pai era padre
e eu sou um canalha!
A sua voz era forte, mas mole; lançava sobre toda a assis-
tência uma sombria torrente de palavras desconhecidas, que
perturbavam irresistivelmente:
- Consumaçäo da carne! Combate contra o Diabo! Dai-lhe
o seu sujo tributo, a esse porco! Domina a tua carne
revoltada,
Pedro! Sem pecado, näo há arrependirnento; sem arrependi-
mento, näo há salvaçäo! Lava a tua alma! Tomamos banho,
lavamos o corpo? E a alma? A alxna pede um banho. Dai espa-
ço à alma russa, à alma cantante, grande, santa!
Pedro, enternecido, chorava também, e balbuciava:
- É uma órfä, a alma, uma criança recolhida, é verdade!
Esquecem-na, näo têm piedade dela!
E todos clamavam:
- É verdade, é justo!
Um homem calvo, de barba ruiva, de rosto afogueado o
orelhas violetas, gordo, ágil, girava como uma toupeira, com
frenéticos gemidos de mulher:
- Estêväo, é a verdade! Adoro-te! Amo-te até à morte!
Há três coisas que amarei até morrer: tu, a água-pé e a verda-
de. A verdade sobre a alma!
E, como os restantes, chorava e cantava:
Tendo vencido a morte pela morte...
Pedro acompanhava-o, repetindo as palavras do louco An-
tónio:
O carro já näo tem uma roda...
Também ele julgava amar o moreno Estêväo; escutava os
seus gritos com prazer, e se por vezes os discursos extraordi-
nários deste homem lhe faziam medo, proporcionavam-lhe,
noutras, uma emoçäo deliciosa e profunda, como se abrissem
uma porta para um caos negro e ruidoso, na direcçäo de um
claro e tranquilo asilo. A expressäo "alma cantante"
agradava-lhe mais do que tudo; estas palavras tinham algo de
muito
verdadeiro, de tocante e confundiam-se, na sua mente, com
este quadro: num dia quente, no meio de uma rua poeirenta de
Driomov, um velho forte de barba grisalha, esquelético como
a morte, gira com ar cansado a manivela de um órgäo, em
frente do qual uma rapariguinha de uns dez anos, com um ves-
tido azul amachucado, canta, a cabeça inclinada para trás, os
olhos fechados, forçando a sua vozita fraca:
Já nada mais espero da vida... a
A näo ser a li"erdade e o esguecimento... o
Ao recordar a rapariga, Artamonov ciciava ao homem de
orelhas violetas:
- A alma é cantante! É verdade!
- Estêväo! - berrava o ruivo. - Estêväo sabe tudo! Pa-
ra qualquer homem, ele possui uma chave.
Inflamando-se cada vez mais, o barba ruiva prosseguia:
- Estêväo, amigo do homem! Vai! Advogado Paradisov,
leva-nos para um sítio debochado. Permito tudo...
O "amigo do homem" era o pastor e o guia de um bando
de industriais e por toda a parte onde levava o seu rebanho
bêbado, a música troava, as cançÖes erguiam-se, ora tristes,
até estalarem a alma em lágrimas, ora alegres e acompanhadas
por uma dança desenfreada; a música deixava no ouvido ape-
nas uma recordaçäo de sons surdos numa caixa enorme e asso-
bios agudos de uma flauta de"esperáda. Quanto se entoavam
cançÖes melancólicas e arrastadas, as paredes de pedra dos
cabarets parecíam estreitar-se e asfixiar, mas quando o coro
acompanhava num ritmo rápido e alegre, e rapazes vestidos
de cores diversas dançavam furiosamente, dir-se-ia que o ven-
to abalava e enchia as muralhas. Sentiam-se tumultuosamente
baloiçados, projectados da alegria para a tristeza, e, por mo-
mentos, tal êxtase invadia, incendiava Pedro Artamonov, que
sentia vontade de fazer algo de extraordinário, de espantoso-
de matar alguém e, caindo de joelhos aos pés das pessoas,
suplicar-lhes:
- Julguem-me, castiguem-me! Dêem-me o pior dos cas-
tigos!
Tinham estado no "Torníquet", um cabaret de loucura onde
o soalho com as tábuas, o público, os criados, girava lenta-
mente, só deixando imóveis os cantos da sala saturada de ruído
e a abarrotar de visitantes, como um travesseiro inchado
com peaas. O meio do soalho girava e mostrava, num canto,
um monte de músicos frenéticos com instrumentos de corda;
noutro, um coro de mulheres coroadas de flores; no terceiro, a
baixela e as garrafas do balcäo reflectiam a luz dos lustres;
o quarto era cortado pela porta de entrada: quando as pessoas
chegavam ao círculo giratório, vacilavam, caiam, agitando os
bráços, e desapareciam por entre os risos ensurdecedores da
assistência.
O amigo do homem, o moreno Estêväo, explicava a Arta-
monov:
- É estúpido mas bem achado! O soalho está colocado em
vigas, como dois dedos afastados; as vigas estäo fixadas num
eixo, de onde partem dois braços horizontais, ligados cada um
a uma parelha de cavalos que, ao marcharem, fazem andar o
soalho. É simples? Mas tem um sentido. Deves saber, Pedro,
que em tudo há um sentido escondido, ai de nós!
Levantava para o tecto um dedo onde uma pedra esver-
deada brilhava como um olho de lobo, enquanto um mercador de
peito largo e cabeça de cäo, puxando Artamonov pela
manga, o fixava persistentemente como olhos vidrados de
cadáver e perguntava alto, como se fosse surdo:
- E Dunia, que dirá disto? Quem és tu?
Sem esperar resposta, interrogou outro vizinho:
- Quem és tu? E que vou eu dizer a Dunia?
Depois, encostando-se à casta da cadeira, praguejava:
- Vai-te, demónio!
E berrava freneticamente:
- Vamos para outro lado!
Em seguida, viu-se sentado, como um cocheiro, no lugar de
uma viatura puxada por dois cavalos cinzentos, e, dali,
anunciava a todos os transeuntes que encontrava:
- Vamos a casa de Paula! Venham connosco!
Chovia; no carro, iam cinco: um homem estendido aos pés
de Artamonov, protestava:
- Ele enganou-me, hei-de enganá-lo. Ele. . . Eu. ..
Numa praça, perto de uma pequena colína em forma de
bola, o carro voltou-se; Pedro caiu e feriu-se na cabeça e num
cotovelo; sentado na relva húmida, olhava o ruivo de orelhas
violetas subir à grade de uma mesquita protestando:
- Deixem-me! Quero baptizar-me tártaro, quero fazer-me
maometano, deixem-me!
O moreno Estêväo, agarrando-o pelos pés, obrigou-o a descer
e levou-o. Uma multidäo de persas, tártaros, bukharos saía
' das lojas; um velho de túnica amarela e turbante verde
ameaçou Pedro com o seu bastäo:
- Russos, demónio!
Um graduado da polícia que tinha um rosto que parecia
de cobre ajudou Pedro a pôr-se de pé indicando:
- É proibido fazer escândalo.
Chegaram fiacres; os cocheiros ajudaram a subir os bêbados
e partiram; no primeiro, o amigo do homem, de pé, gritava
fazendo do punho porta-voz. A chuva cessara, mas o céu
continuava negro, ameaçador e irreal; viam-se relâmpagos
que riscavam nas trevas fendas de luz, e o medo aumentou ainda
quando os cascos dos cavalos soaram na ponte de madeira do
canal. Artamonov esperava ver a ponte desmoronar-se e toda
a gente morrer na água imóvel, gelada, negra como pez.
No pesadelo destes quadros destroçados, Artamonov
procurava e näo encontrava no meio das pessoas atoladas na
porcaria senäo um homem que desconhecia. Este homem bebia
até cair, e esperava avidamente do minuto seguinte um"
acontecimento absolutamente extraordinário - o mais essencial,
o mais feliz dos acontecimentos, para se manter sempre numa
angústia infinita, ou entäo elevar-se a uma alegria igualmente
infinita.
A imagem mais perturbadora que lhe ficara na memória,
como uma mancha brilhante, fora a de uma mulher, Paula
Menotti. Revia-a numa sala enorme de paredes nuas, a terça
parte da qual era ocupada por uma mesa atulhada de garrafas,
de vidros e de taças multicores, ramos de flores e de frutos,
baldes de prata com caviar e champanhe. Impaciente, uma deze-
i na de homens ruivos, calvos, esfusiantes, estavam sentados
à volta da mesa; algumas das cadeiras estavam desocupadas e
uma delas enfeitada com flores.
o moreno Estêväo estava de pé no meio da sala; levantando,
como uma vela, a bengala enfeitada com um castäo de
ouro, o rdenou:
- Eh! seus porcos, esperem para comer!
Alguém respondeu com voz surda:
- Já esperámos de mais!
- Silêncio! - gritou o amigo do homem. Quem manda sou
eu.
'Bruscamente, houve menos luz e, atrás da porta, soaram os
golpes surdos de um tambor; Estêväo foi direito à porta e
abriu-a; um homem gordo entrou, balançando-se, caminhando
como um ganso, batendo vigorosamente no tambor:
- Bum, bum, bum...
Mais cinco homens, todos graves e solenes, dobrados em
dois e puxando como cavalos, trouxeram para a sala um piano
de cauda, arrastando-o com toalhas ligadas aos pés. Na tampa
negra c brílhante estava deitada uma mulher nua,
maravilhosamente branca, de uma nudez terrivelmente impudica.
Estava deitada de costas, as mäos sob a nuca; os cabelos
castanhos desfeitos, confundindo-se com o verniz negro,
pareciam enraizados na tampa. Quanto mais avançava para a
mesa, e mas nitidamente se desenhavam as formas do seu corpo,
os tufos das axilas e do ventre magnetizavam o olhar.
As rodinhas de cobre rangiam, o soalho estalava, o tambor
soava surdamente; os homens atrelados ao pesado carro pararam,
endireitaram-se. Artamonov pensavz, que os assistentes
iam estoirar a rir: tudo, entäo, teria sido compreensível.
Mas, pelo contrário, todos os convivas se levantaram, olhando
a mulher soerguer-se, despegando-se mansamente da tampa do
piano. Dir-se-ia que, deitada num espesso pedaço de noite,
duro como pedra, ela acabava de acordar: era um verdadeiro
conto de fadas. Uma vez de pé, a mulher atirou para trás dos
ombros a pesada e abundante cabeleira, bateu com os pés,
cobrindo de pó branco o brilho profundo da laca: ouviram-se
estalar as cordas com o seu bater de pés.
Duas pessoas entraram: uma velha de cabelos brancos, com
óculos, e um homem de casaca; a velha sentou-se mostrando
ao mesmo tempo os dentes amarelecidos e as teclas bícolores
do piano; o homem de casaca ajustou o violino, fechou um
olho arruivado, apontou, agitou o arco do instrumento e, no
canto grave das cordas do piano, insinuou-se a voz aguda,
assobiante do violíno. A mulher nua balanceou-se com um
movimento ondulante, abanou a cabeça; os cabelos cairam-lhe
insolentemente sobre os seios erectos, escondendo-os; e
começou a agitar-se, cantando lentamente, suavemente, com uma
voz anasalada, longínqua, sonhadora.
Olhando-a, os homens calavam-se, a cabeça ligeiramente
erguida, os mesmos olhos cegos. A mulher cantava sem vontade,
como que sonhando, quase; os seus olhos húmidos estavam
asscstados para lá da cabeça dos presentes. Artamonov nunca
pensara que um corpo de mulher pudesse ser täo esbelto, täo
magnificamente belo. Ela, acariciando os seios e as ancas,
continuava a sacudir a cabeça; parecia que os seus cabelos se
alongavam, e que ela também se alongava, aumentava, se
espalhava, cobria tudo, de tal modo que, depois dela, nada
mais se via, como se mais nada existisse. Artamonov
recordava-se muito bem de que, nem por um instante, ela lhe
despertara o desejo de a possuir, mas que lhe inspirara apenas
um medo que oprimia pesadamente o seu peito, tanto ela exalava
um espanto maléfico. E, no entanto, compreendia que, se esta
mulher o ordenasse, ele a seguiria e faria tudo o que ela
quisesse. Ao observar os outros, a certeza tornou-se de facto
muito maior.
"Todos a seguiriam."
A bebedeira passava-lhe e teve ímpetos de se ir embora
subrepticiamente Estava absolutamente decidido a escapar-se
quando ouviu alguém murmurar:
- É uma tcharussa. O abismo da natureza. Compreendes?
Uma tcharussa.
Artamonov sabia que uma tcharussa é, numa floresta
pantanosa, uma clareira onde, mais do que noutros pontos, a
erva é sedosa, verde e atraente, mas, se lá se pÖe o pé, é-se
arrastado para um pântano sem fundo. Apesar disso, olhava a
mulher, subjugado pelo irresistível poder da sua nudez. Quando
ela deixava cair sobre ele o seu olhar húmido, ele sentia
estremecer os ombros, encolhia o pescoço e, desviando a
cabeça,
via homens horrendos e meio bêbados abrirem uns olhos täo
estupidamente espantados como os habitantes de Driomov ao
contemplarem, certo dia, um trolha que acabava de se estatelar
no chäo, caído do telhado da igreja.
Estêväo, sentado no parapeito da janela, os lábios grossos
pendentes, acariciava a testa com a mäo trémula; dava a
impressäo de que ia cair no chäo. De súbito, arrancou os
punhos da camisa e arremessou-os para um canto.
Os movimentos da mulher tornaram-se mais rápidos, mais
convulsivos; torcia-se como se, ao querer saltar do piano, näo
o conseguisse; as suas exclamaçÖes abafadas tornaram-se mais
surdas, mais terríveis. O que havia de mais pavoroso era o
movimento coleante das suas pernas, os seus bruscos meneios da
cabeça, enquanto que os cabelos espessos, voando sobre os
ombros como asas, voltavam a cair como um velo de animal
sobre as costas e o peito.
De repente, a música parou, a mulher saltou para o chäo,
o moreno Estêväo envolveu-a num roupäo amarelo-ouro e
fugiu com ela, enquanto os homens estrebuchavam, berravam,
aplaudiam e se estreitavam uns aos outros; brancos como
mortos no seu lençol, os criados apressaram-se, os copos e as
taças tilintaram e todos começaram a beber avidamente como
num dia tórrido. Comiam e bebiam mal, grosseiramente; as
cabeças debruçadas sobre a mesa eram quase repugnantes de
ver: dir-se-iam porcos sobre a sua gamela.
Entraram os ciganos. A assistência, agastada com as suas
cançÖes e danças, atirou-lhes com pepinos, guardanapos, e eles
desapareceram; Estêväo trouxe em seu lugar um ruidoso rancho
de mulheres; uma delas, baixa e forte, de vestido vermelho,
veio sentar-se nos joelhos de Pedro, aproximou-lhe
dos lábios uma taça de champanhe, e chocando-a contra a sua,
propôs:
- Bebamos, amigo, à saúde de Dmitri!
Ela era leve como uma formiga e chamava-se Pachuta; to
cava muito bem guitarra, cantava com voz terna:
Sonhei numa bela manhä azuL...
e, quando a sua voz sonora pronunciava com uma profunda
tristeza:
Sonhei com a minha juventude perdida...
Artamonov acariciava-lhe amigável e paternalmente a cabeça,
consolando-a:
- Näo desesperes! És ainda jovem, näo tenhas medo...
A noite, ao estreítá-la, fechava muito os olhos, para melhor
rever a outra, Paula Menotti.
Nas raras horas em que a bebedeira passava, ficava muito
surpreendido por verificar que a estranha Pachuta lhe custava
os olhos da cara e dizia:
" Que traça!"
Estava admirado com a arte com que as mulheres da feira
arrebatavam o dinheiro, e com que insensatez gastavam o que
ganhavam durante as noites de depravaçäo e de embriaguez.
Tinham-lhe contado que, por amor de Paula, o homem com
rosto de cäo, um dos maiores negociantes de peles, esbanjava
dezenas de milHares de rublos, e que lhe dava três mil de cada
vez que ela se punha toda nua. Outro, aquele das orelhas
violetas acendia os charutos com notas de cem rublos e metia
maços de rublos entre os seios das mulheres.
- Toma, alemä, toma, que eu tenho muito!
Para ele, todas eram alemäs. Artamonov via, agora, em
cada uma delas o nu impudor desta Paula de enormes cabelos e
tinha a impressäo de que todas as mulheres - estúpidas
ou intelígentes, sonsas ou desvergonhadas - lhe eram hostis, e
até na sua própria esposa ele descobria agora uma certa
inimizade.
"Traças", pensava, ao rever a roda colorida de jovens e
lindas mulheres, que a sua memória lhe representava em vivas e
claras cores.
Näo conseguia compreender como e Porque as pessoas
trabalham, ficam insensíveis pelos negócios, com o único
objectivo de juntarem o mais que podem e que em seguida
esbanjam o dinheiro, atirando-o aos punhados aos pés de
raparigas de duvidosa reputaçäo. E todos säo homens
importantes, sérios, com mulher e filhos, donos de fábricas
enormes!
"O pai teria feito, talvez, a mesma coisa", dizia tomado por
uma quase certeza.
Quanto a .ele, tinha a impressäo, näo de participar nesta
vida, nesta loucura, e de ser apenas o espectador ocasional e
involuntário. Mas estes pensamentos embebedavam-no mais do que
o vinho, e só este podia extingui-los. Viveu três se manas
neste pesadelo de deboche e só caiu em si com a chegada de
Alexis.
Artamonov estava deitado no chäo, num reles e duro colchäo.
Perto dele, um balde de gelo, uma garrafa de limonada
e um prato de couves ácidas abundantemente polvilhadas com
rabäo ralado. Num sofá, a boca aberta e as sobrancelhas
arqueadas, como as de Natália, estava Pachuta deitada,
deixando uma perna branca de veias azuladas com unhas que
pareciam escamas de peixe. Por detrás das janelas urravam as
mil bocarras ávidas da grande feira russa.
Através do zunido de que o deboche enchera a sua cabeça,
e a dor lancinante do seu corpo envenenado, Artamonov evocava
tristemente os acontecimentos e os divertimentos da noite
passada, quando, subitamente, como se saisse de uma parede,
apareceu Alexis. Saltitante e batendo com a bengala no
soalho, aproximou-se e começou:
- Entäo, continuas aí a chafurdar? Passei ontem todo o dia,
e esta noite inteira, à tua procura, mas de madrugada
deixei-me arrastar também pelo turbilhäo.
Chamou imediatamente o criado, pediu limonada, conhaque,
geln; precipitou-se em direcçäo ao sofá e tocou no ombro
de Pachuta:
- Levanta-te, menina!
Abrindo os olhos com dificuldade, a rapariga resmungou:
- Vai para o diabo! Deixa-me tranquila!
- Tu é que vais para o diabo! - replicou Alexis sem se
zangar.
E, agarrando-a pelo braço, obrigou-a a sentar-se, abanou-a
e apontou-lhe a porta:
- Rua!
- Deixa-a - interveio Pedro.
, Mas o irmäo tranquilizou-o, sorrindo:
- Näo te incomodes; se a chamam, ela volta.
- Oh! demónios - queixou-se a mulher, enquanto vestia já a
saía.
Alexis, como um médico ordenava:
- PÖe-te de pé, Pedro, tira a camisa, fricciona-te com gelo!
Pachuta apanhoa do chäo o chapéu amachucado, colocou-o na
cabeça, mas, vendo-se ao espelho pregado por cima do sofá,
disse:
- Até pareço uma rainha!
E, atirando o chapéu para debaixo do móvel, bocejou
demoradamente.
- Entäo adeus, Dmitri. Näo esqueças a minha morada:
Limiansky, quarto 13.
Pedro, cheio de pena disse ao irmäo, sem se erguer:
- Dá-lhe dinheiro.
- Quanto?
- Uns. .. cinquenta rublos.
- É demasíado.
Alexis deu uma nota à mulher, seguiu-a e fechou a porta
com cuidado.
- Näo foste generoso - observou Pedro, provocante. On-
tem. o chapéu custou-lhe mais do que isso.
Alexis sentou-se numa cadeira, apoiou as mäos na bengala,
encostou-lhe o queixo e perguntou secamente, com autoridade:
- O que é que fazes?
- Bebo - respondeu insolentemente o irmäo, que se levantou e
começou a esfregar-se com gelo, soltando gritinhos
de pato.
- Bebe, mas näo percas a cabeça. E tu...
- Que fiz eu?
Alexis aproximou-se dele e, fitando-o como a um
desconhecido, interrogou em voz baixa, acompanhada por uma
espécie de assobio:
- Já näo te lembras? Há uma queixa contra ti. Bateste num
advogado e atiraste com um polícia para o canal... Já te
esqueceste? ! ...
Enumerou täo demoradamente os malefícios de Artamonov que
este disse para consigo:
" Está a mentir. Quer meter-me medo."
Perguntou:
- Qual advogado? Histórias...
- Sim, ao moreno, bem sabes... mas como é que ele se chama?
- Já uma vez tínhamos zaragateado - indicou Pedro que
começava a sentir-se livre dos efeitos do álcool.
O irmäo prosseguia, ainda maís severamente:
- E porque insultaste pessoas respeitáveis? E a tua família?
- Eu?
- Sim, tu! Injuriaste a tua mulher, Tikhon, a mim próprio;
falavas de um garoto, berravas: Abraäo, Isac, o cordeiro. O
que é que isso quer dizer?
Pedro, invadido pelo medo, deixou-se cair sobre uma cadeira:
- Näo sei. Estava bêbado.
-Näo é uma razäo! - quase gritou Alexis, saltitando,
como se galopasse num cavalo manco. Há qualquer coisa de
estranho: "O que o homem em jejum tem no espírito, o bêbado
tem-no na língua." É isto. Näo conta as suas histórias de
família pelos cabarets. O que é que queres dizer com Abraäo, o
sacrifício e todas essas baboseiras? Prejudicas os nossos
negócios, enodoas o meu nome. Porque é que te puseste nu,
como se estivesses no banho? Felizmente que o meu amigo Loktev
assistiu a esse escândalo e teve a ideia de te pôr a dormir
com conhaque e de me chamar telegraficamente. Foi ele quem me
contou tudo. Primeiro, rimos, depois principiámos a ouvir o
que dizias.
- Toda a gente grita! - murmurou, abatido, Pedro, a
quem as palavras do irmäo voltavam a mergulhar na sua
embriaguez, enquanto o outro continuava em voz baixa:
- Está bem,. mas ninguém fala dos seus negócios como tu.
Felizmente que Loktev teve a ideia de os embebedar
copiosamente. É provável que eles esqueçam. Mas bem sabes que
estamos em guerra: hoje Loktev é um amígo, mas amanhä será um
inimigo encarniçado.
Sentado numa cadeira, a nuca apertada de encontro à parede
que tremia devido ao barulho frenético da rua, Pedro ca-
lava-se, esperando que este tremor se dissipasse, levando o
caos da bebedeira que lhe tomava a cabeça, bem com todos
os seus receios. Näo conseguia lembrar-se de nada que o irmäo
lhe contava. E sentia-se vexado de ouvír Alexis falar como um
juíz e como o mais velho; esperava, cheio de pânico, o que ele
tinha ainda a dizer.
- Que tens tu? - interrogava o outro sem parar de saltitar.
Tinhas dito que ias ver Nikita...
- Fui vê-lo...
- Eu também. Quando responderam ao meu telegrama anunciando
que näo estavas lá, fiquei assustado, é claro, assim
como todos. Pode-se ser assassinado quando se vive num mundo
vil como este.
- Näo sei o que me deu - confessou Pedro, o rosto lastimoso.
- Mas repara: desacreditas os nossos negócios! Mas de que
sacrifícios se trata? Serás tu um persa? Gostas de rapazinhos?
Quais rapazinhos?
Alisando com as mäos o cabelo e a barba, Pedro declarou por
entre a rede dos seus dedos:
- Elias... tudo isto por causa dele...
E lentamente, com hesitaçäo, como se procurasse um caminho
na escuridäo, contou a Alexis a sua disputa com o
filho; näo precisou de acrescentar mais nada, o irmäo
interveio com alívio:
- Ora, ora! É apenas isso? Lotkev tinha pensado nalguma
história asiática e escandalosa. T'rata-se, entäo, de Elias?
Desculpa-me, irmäo, mas näo foste razoável. É preciso que os
negociantes sejam instruídos, que possam desempenhar todos os
lugares, e tu...
Afirmou demorada e eloquentemente que os filhos dos
comerciantes devem tornar-se engenheiros, funcionários,
oficiais. Um rumor ensurdecedor entrava pela janela: veículos
paravam em frente do teatro, gritos de vendedores de sorvetes
e de bebidas frescas. O som da música no pavilhäo do Brasil,
todo de ferro e vidro, construído sobre pilares, no canal, era
particularmente insuportável. O rufar dos tambores faziam-no
pesnar em Paula Menotti.
- Aconteceu-me näo sei o quê - repetiu Artamonov, que, com
uma das mäos, tacteava a orelha, e com a outra deitava
conhaque no copo de limonada. O írmäo tirou-lhe a garrafa e
avisou:
- Toma cuidado, se näo vais embebedar-te novamente.
Estás a ver, o meu Miron será engenheiro, conforme deseja.
Quer ir ao estrangeiro: bom. Só temos a ganhar com isso.
Tens de concordar que a nossa classe é a maíor das
potências...
Pedro nada queria perceber. Ao ouvir o irmäo falar
animadamente, pensava que ele conseguira conquistar a estima
e a amizade das pessoas ricas e provavelmente mais inteligente
do que ele, pois dominava todo o comércio do país; que o outro
irmäo se recolhera num convento, adquirindo a fama de
um sábio e de um justo, ao passo que ele, Pedro, era vítima
dos acontecimentos. Porquê? Que fizera ele?
- E näo deves também censurar as pessoas de destaque por se
conduzirem mal - dizia entretanto Alexis com uma
insidiosa suavidade. Näo é por vício que o fazem, mas por
excesso de força. O advogado pode ser um canalha, mas vê bem
as coisas e é inteligente. É claro, säo pessoas idosas, alguns
velhos já, e portam-se como garotos, mas os garotos também säo
loucos porque a sua força aumenta. E, afínal, repara
que as mulheres säo aborrecidas, nada excitantes, enervantes.
Näo falo da minha Olga: essa coloco-a à parte. Há mulheres
estúpidas e inteligentes ao mesmo tempo; dir-se-ia que säo
cegas do olho que vê o mal: Olga é dessas. Näo podemos
desgostá-las: ela näo vê o mal, näo acredita na maldade. Näo
dirás o mesmo de Natália; tens razäo quando afirmas que é uma
máquina doméstica.
- Eu disse isso? - inquiriu Pedro com um espanto pouco
convicto.
- Loktev näo o tería adivinhado.
Pedro queria fazer outras perguntas ao írmäo. Mas receava
lembrar a Alexis o que este já esquecera. Sentia nascer em
si um sentido de inveja e de animosidade para com o irmäo.
"Ele está cada vez mais inteligente, o demónio..."
Achava que o irmäo tinha algo do corredor excitado a
chicote, de uma raposa toda cheia de manhas. Os seus olhos de
abutre agastavam-no, o seu dente de ouro que luzia por detrás
do lábio superior em frémitos convulsivos, o seu bigode
grisalho marcialmente direito, a barbicha alegre e os dedos
aduncos como unhas de pássaro; o indicador direito que näo
deixava de delinear no vazio desenhos complicados que
particularmente lhe desagradavam. Alexis, com o seu casaquinho
cinzento-ferro, tinha o aspecto de um negociante bichoso.
De repente, Pedro desejou que o irmäo se fosse embora:
- Tenho sono - disse semicerrando os olhos.
- É normal - admitiu o irmäo. - Hoje näo sais.
"Dá-me liçÖes camo a um garoto" - pensou Pedro, vexado,
ao acompanhá-lo. Foi ao canto onde estava o lavatório e
parou, ao ver marchar sem barulho ao seu lado um homem que se
parecia consigo - um homem tristemente arrepiado, de rosto
; amargurado, os olhos muito abertos, que acariciava com a
mäo vermelha a sua barba molhada e o seu peito cabeludo.
Por alguns segundos recusou-se a acredítar que fosse a sua
imagem reflectida no espelho por cima do sofá, depois com
um pobre sorriso voltou a esfregar com um pedaço de gelo o
peito, o rosto e o pescoço.
" Vou meter-me num fiacre para ir à cidade" - decidiu
enquanto se vestia. Mas, tendo enfiado uma das mangas do
casaco, atirou-o para cima de uma cadeira e com o dedo apertou
com força o botäo da campainha:
- Chá, bastante forte! - disse ao criado. - E alguma coisa
salgada. E conhaque, também.
Olhou pela janela; as largas portas das lojas tinham
fechado; ao longo da rua, pessoas arrastavam-se pela quente
escuridäo; à entrada do teatro um globo cor de opala
crepitava; algures, muito perto, mulheres cantavam.
- Traças...
- Pode fazer-se a cama? - interrogou uma voz nas costas
de Pedro. Voltou-se bruscamente; uma mulher, velha e ccga de
um olho, estava à porta, uma vassoura e uns panos na mäo.
Saiu sem nada dizer para o corredor e foi de encontro a um
homem de óculos escuros e de chapéu negro. O homem disse pela
porta entreaberta.
- Sim, nada mais.
Tudo ia mal, todos o obrigavam a pensar, a buscar nas
palavras um sentido escondído. E Artamonov encontrou-se
sentado a uma mesa redonda sobre a qual assobiava um pequeno
samovar; por cima da sua cabeça, o vidro da lâmpada zunia como
se mäo invisível o empurrasse ligeiramente. Na sua memória
surgiam estranhas figuras de homens furiosamente embriagados,
refräos de cançÖes, pedaços das frases imperativas
do irmäo, olhos brilhantes que notara à passagem, e apesar
de tudo sentia a cabeça vazia e sombria, apenas atravessada
por um raio delgado e trémulo, no qual estes homens dançavam,
giravam como gräos de pó, impedindo-o de pensar
nas coisas verdadeiramente importantes.
Bebia chá quente e forte, engolia o conhaque, queimava a
boca, sem ter a consciência de que se embebedava; mas a sua
inquietaçäo crescia, queria ir-se embora. Tocou a campainha.
Veio um homem que flutuava vagamente, sem rosto.
- Ivan, traz-me licor, mas do verde, sabes?
- Sím, licor "chartreuse".
- Mas tu chamas-te Ivan?
- O meu nome é Constantino.
- Bem, vai lá.
Quando o criado lhe trouxe o licor, Artamonov perguntou :
- Foste soldado?
- Näo.
- Mas respondes como um soldado.
- O meu emprego é parecido: tenho que obedecer.
Artamonov reflectiu, deu-lhe um rublo e aconselhou:
- Podes näo obedecer. Manda-os todos à... e começa a vender
sorvetes. Aí tens.
O licor era apimentado como melaço e azedo como amoníaco. A
cabeça de Artamonov tornou-se mais leve, mais clara;
tudo nela se condensara; ao mesmo tempo, a rua tornou-se
menos barulhenta, só ficando um vago rumor que se afastava
devagarinho, deixando atrás de si o silêncio.
"É preciso obedecer - dizia Artamonov. - A quem?
Eu sou um paträo, e näo um lacaio. Sou paträo ou näo sou? "
Mas estas reflexÖes foram bruscamente interrompidas,
dissipadas, afastadas pelo medo. Artamonov descobriu o homem
que o impedia de fazer uma vida despreocupada e fácil - a vida
de Alexis, a vida das outras pessoas com habilidade para
se arranjarem; este impedimento era u.m homem barbado,
sentado à sua frente, ao pé do samovar, taciturno, os dedos
da i mäo esquerda mergulhados na sua barba, uma face apoiada
, contra a outra mäo espalmada, olhava tristemente Pedro
Artamonov, como para se despedir dele, e ao mesmo tempo tinha
' o aspecto de se queixar, de o censurar; olhava-o e chorava;
lágrimas escaldantes corriam das suas pálpebras avermelhadas
e na sua barba, perto do olho esquerdo, uma enorme mosca
passeava; subiu até à testa como no rosto de um morto, parou
na sobrancelha, olhou para o olho.
- Entäo, canalha? - perguntou Artamonov ao inimigo.
O outro näo se mexeu, näo respondeu: só os lábios se
mexeram.
- Choras? - rosnou Pedro com uma alegria má. Perdeste-me,
malandro, e agora choras? Tens pena? Ah! ah!. ..
Pegando na garrafa que estava em cima da mesa, deu com
ela, com toda a força, no crâneo do outro. Ao rumor do gelo
partido, à queda do samovar e dos pratos caídos junto da
mesa derrubada, acorreram pessoas; näo eram muitas mas cada
uma delas se separava em duas, se alargava; no mesmo segundo,
a velha de um só olho baixava-se para apanhar o sa movar e
mantinha-se direita.
Sentado no chäo, Artamonov escutava vozes queixosas:
- Já é noite, todos dormem.
- Partiu o espelho.
- Isto näo se faz...
Artamonov, os braços abertos, vogava à deriva e rugia:
- Foi a mosca...
No dia seguinte, à tarde, veio Alexis, que examinou
cuidadosamente o irmäo como um médico observa um doente, ou
o cocheiro um cavalo, e declarou, penteando o bigode com
uma escovazinha:
- Estás muito inchado, näo podemos regressar deste modo
a casa. Aliás, podes ser-me útil aqui. Manda cortar a barba,
Pedro. E compra outras botas, as tuas botas säo de carroceiro.
Os maxilares apertados, Artamonov seguiu docilmente o
írmäo ao barbeiro. Alexis explicou com solenidade a maneira
como deviam ser cortados a barba e o cabelo. Na sapataria,
escolheu as botas para Pedro. E este, vendo-se num espelho,
achou-se um caixeiro de qualquer lojeca e sentiu que as botas
o apertavam na planta do pé. Mas nada disse, compreendendo
que o irmäo tivera razäo: o novo corte dos cabelos, a mudança
das botas, tudo era necessário. Era necessário recompor-se,
esquecer o que a orgia nele deixara de perturbador, de
terrível, de pesado.
Apesar do nevoeiro que sentia no cérebro e a lassidäo do
seu corpo envenenádo, extenuado, experimentava ao observar o
irmäo um sentimento cada vez mais complexo, uma mistura
de inveja e de respeito, de secreta zanga e má vontade. Este
homem magro e esperto, de olhar incisivo, brilhava e
pontificava, dominado pelos negócios cem uma insaciável paixäo
que jogador. Quando almoçavam ou jantavam juntos nos melhores
restaurantes da feira, na companhia dos grandes'comerciantes,
Pedro veríficava näo sem surpresa que Alexis se tornava
engraçado, pr"urando fazer rir e dívertir os ricaços, e que
estes, sem parecerem reparar nesta atitude, testemunhavam
por Alexis simpatia e estima, e escutavam atentamente os seus
ditos.
Komotov, dono de uma fábrica de fiaçäo, enorme e barbudo,
ameaçava-o com um dedo cor de cenoura, mas dizia-lhe
afectuosamente, volteando olhos de boi e fazendo estalar os
lábios:
- Tu és um maroto, Alexis, uma raposa manhosa!
Enganaste-me...
- Meu caro! - protestava Alexis com entusiasmo. - Trata-se
de competência, näo é verdade?
- É verdade. Näo esperes, joga o ás de trunfos!
- Meu caro, quero uma liçäo.
E Komolov aprovava:
- Sim, é preciso aprender.
- Senhores - dizia Alexis brandindo o garfo, sempre
entusiasta, mas já insinuante; - senhores, o meu filho Miron,
um rapaz inteligente, um futuro engenheiro, contava-me
que em Siracusa havia um sábio muito ilustre que dizia do rei:
Dá-me um ponto de apoio e levantarei o mundo.
- Esse...
- Levantá-lo-ei - proclamava. - Senhores! a nossa classe
tem um ponto onde se apoiar: o rublo! Näo precisamos de
sábios para levantar as coisas. Só precisamos de mais
funcionários! Senhores, a nobreza estiola, näo nos prejudica.
Mas precisamos de funcionários que sejam nossos, e todos
aqueles de que precisamos devem ser nossos, filhos de
negociantes, para poderem compreender os nossos negócios.
Os homens gordos e calvos concordavam alegremente:
-- Tens razäo!
E o usurário Loktev, um velhote ossudo e zarolho, de nariz
comprido, acrescentava rindo polidamente:
- Ele tem um espírito de autêntico rato; sabe tudo: onde
está o toucinho, onde ele é raro, aí esgaravata. A sua saúde!
Erguiam-se os copos. Alexis brindava com satisfaçäo,
dirigindo-se a todos, enquanto Loktev, batendo com a sua mäo
de críança no ombro de Komolov, dizia:
- Enfim, há pessoas inteligentes entre nós.
- Sempre as houve - respondia orgulhosamente Komolov. - O
meu pai; antes de ser alguém, era um simples descarregador.
- Dizem que o teu pai começou por degolar um arménio
rico - observou Loktev rindo, mas o industrial barbudo
declarava desatando a rir:
- Mentiras! É por estupidez que se diz entre nós: Venceu
por ser um patife. A teu respeito correm também boatos
esquisitos.
- A meu respeito também - admitiu Loktev, suspirando. As más
palavras säo moscas que vcam. . .
Artamonov escutava-os, fungando, comendo muito, procurando
beber menos, e tinha a sensaçäo deprimente de se encontrar
entre tais pessoas como um animal de outra espécie.
IVestes homens, que ontem ainda eram simples camponeses, havia
algo de aventureiro e de heróico que obrigava à admiraçäo.
Como em seu pai. Sim, o pai teria sido um dos seus, nos
negócios como no deboche; teria provavelmente, como eles,
199
andado atrás de mulheres e o dinheiro teria desaparecido das
suas mäos como cavacos que ardem. O dinheiro näo é mais do
que isto para estas pessoas que, infatigavelmente, com todas
as suas forças, devastam o campo, a terra inteira.
Mas o seu irmäo näo se identificava com nenhum destes
importantes personagens e, por momentos, Pedro, apesar da
animosidade que Alexis. lhe inspirava, sentia-o mais fino,
mais esperto e até mais perigoso.
- Senhores - chamava Alexis com o frenesi de um possesso -
pensem só na força inesgotável que temos nas mäos, nesses
incontáveis milhÖes de camponeses! O camponês é,
simultaneamente, o trabalhador e o comprador. Onde o encontra-
mos em täo grande quantidade? Em parte alguma! E já näo
precisamos mais de alemâes, de estrangeiros: nós próprios
podemos fazer tudo!
- É verdade! - respondiam os convivas convencidos e
barulhentos.
Falava da necessidade de aumentar os direitos de alfândega
sobre as mercadorias estrangeiras, da compra de terras
pertencentes à nobreza; estava ao corrente de tudo e Artamonov
via com surpresa que as pessoas aprovavam com entusiasmo
tudo o que ele dizia.
"Nikita tinha razäo ao dizer que conhecia a vida" - pensava
ele com um misto de inveja.
Apesar da sua saúde delicada, Alexis também frequentava as
mulheres. Tinha há muito tempo uma amante oficial, uma
moscovita, bela mulher majestosa de voz de mel e olhos
radiosos, que dirigia um coro feminino. Garantia-se que ela
andava pelos quarenta, mas ao reparar no seu rosto de um
branco mate e nas faces rosadas, ninguém lhe poderia dar mais
de trinta.
- Meu pequeno Alexis, meu falcäo - dizia ela mostrando os
dentes afiados de raposa, e, como uma mäe, cobria Alexis
com o seu corpo.
Näo podia ignorar que Alexis reparava nas raparigas do
coro; devia sabê-lo, mas isso näo a impedia de continuar sua
amiga. Pedro, mais de uma vez, ouvira o irmäo pedir-lhe o pa-
recer acerca de certas pessoas ou de determinados negócios.
Isso admirava-o e lembrava-lhe as relaçÖes de seu pai com
UliaI na Baimakov.
i, "Ah, o demónio! " - pensava, olhando o irmäo.
Mesmo os seus excessos tinham um carácter especial. Um gordo
palhaço alemäo mostrava num circo um porco vestido de casaca,
de chapéu alto na cabeça e botinhas macias nos pés:
o porco caminhava apoiado nas patas trazeiras, imitando o
andar de um mercador. O público divertia-se muito e os
mercadores riam, mas Alexis entendeu a história de outro modo:
ficou irritado e convenceu o bando a roubar o animal.
Convenceram o guarda do estábulo, roubaram o porco e
comeram-no solenemente, com muitos molhos, preparado pelo
proficiente cozinheiro do hotel Barbatenkow.l Aos ouvidos de
i Pedro Artamonov chegou vagamente a notícia de que, com
a pena, o palhaço se enforcara. Tudo o que observara na
pessoa de Alexis, durante a feira, inquíetou-o vivamente.
"É um espertalhäo. Sem consciência. Seria capaz de me
arruinar completamente sem sequer dar por isso. E näo por
cupidez, apenas por que o jogo a tanto o arrastava."
' O sentimento deste perigo tornou-o lúcido e pô-lo de novo
säo.
Pedro regressou sozinho a casa, pois Alexis foi até Moscovo.
Num dia de Setembro, húmido e ventoso, chegou a Driomov. Os
seus guisos tilintavam, as botas entravam na terra mole, os
cavalos da diligência trotavam alegremente entre os
I pinheirinhos baixos cujo alinhamento rígido velava imóvel
na estreita fita do caminho pantanoso. O céu estava pintado
com uma pasta cinzenta de nuvens e na cabeça de Artamonov,
pesada pelo vinho, tddo era igualmente acinzentado e morno.
, Experimentava um sentimento idêntico ao que se tem quando
acaba de se acompanhar ao cemitério um ente querido, mas
que nos aborreceu bastante. Lamenta-se a morte e ao mesmo
tempo pensa-se agradavelmente que näo mais o reencontraremos,
que näo virá maçar-nos com confusas exigências, mudas
; censuras - por tudo o que incomoda a vida de um homem
verdadeiramente vivo.
1. Facto verídico relatado por P. D. Bobarykeni no jornal a0
Correio Russo H.
200 . 201
"É preciso trabalhar e eis tudo! " - murmurava, tentando
raciocinar. Todos os homens vívem do trabalho. Sim. . . "
Lançou-se na tarefa, com todas as suas forças. Os belos
dias do fim do Veräo sucediam-se com serenidade, alternan-
do com o brilho melancólico das noites de luar.
Quando acordava na penumbra nacarada das madrugadas
outonaís, Artamonov ouvia a sereia imperiosa da fábrica e,
meia hora depois, iniciava o seu rumor, o murmúrio incessante,
o ruído surdo, mas poderoso e familiar ao ouvido, do trabalho.
Do início do dia ao fim da noite, na porta dos armazéns, os
gritos dos camponeses e das camponesas que vinham trazer-lhe o
linho; perto do cabaret que um dos inúmeros Morozov abrira nas
margens do Vatarakcha, os bêbados cantavam, o
harmónio gemia. No pátio, Tikhon Vialov grave e pontual
como uma máquina, severo para com os homens, caminhava, a
vassoura, a pé ou o machado na mäo; sem pressa, varria,
cavava, cortava, gritava aos camponeses e aos operários.
Serafim, de fato de ganga, sempre muito limpo, ia e vinha. Em
casa, Natália funcionava também como uma máquina, muito
contente com os ricos presentes que o marido lhe trouxera da
feira, e, mais ainda, com a sua calma igual e silenciosa. Tudo
corria bem, tudo parecia solidamente construído; a fábrica, as
pessoas, e até os cavalos, tudo trabalhava, como impulsionado
através dos séculos. E, täo rápidos como as nuvens arrastadas
pelo vento, passavam os meses, corriam os anos.
Artamonov, de cabeça baixa como um touro percorria os
edifícios da fábrica, caminhava na rua da aldeia, amedrontando
as crianças, e em toda a parte descobria algo de novo, de
estranho; nesta casta empresa, ele parecia quase um inútil
- um espectador. Verificava com satisfaçäo que Tiago se punha
ao corrente do negócio, e parecia, até, satisfeito com o
seu trabalho; a sua conduta näo só desviava Artamonov de
pensar no filho mais velho, mas reconciliava-o, até, com
Elias:
"Passo bem sem ti, sabichäo. Continua os teus estudos."
Repleto, com faces róseas e olhos satisfeitos que, ao
sorrírem, reflectiam como que bolas de sabäo de todas as
cores, Tiago arrastava com gravidade a sua pessoa anafada e,
embora de perto lembrasse estranhamente um pombo, dava, de
longe,
a ilusäo de um paträo sério e competente. As operárias
olhavam-no com simpatia; ele arrastava-lhes a asa,
semicerrando os olhos vuluptuosos, e gravitava à volta delas,
incapaz de dissimular sob a sua fingida gravidade impulsos de
galo novo.
"O pai coçava a orelha, sorria e pensava:
" De Paula e que tu precisavas, idiota! .. . "
Sentia-se contente pelo facto de Tiago, quando ia a casa do
tio, näo se místurar às intermináveis discussÖes entre Miron e
o amigo, o depenado e barulhento Goritsvetov. Miron näo se
parecia eom o filho de um industrial. Magro, o nariz grande,
óculos e uma tunicazinha com botÖes dourados que tinha nos
ombros as suas iniciais, parecia um juiz de paz.' Quando
estava de pé ou sentado, mantinha-se direito como um soldado e
falava em tom altivo e impertinente. Pedro entendia que o
filho dizia apenas coísas inteligentes, mas Miron näo lhe
agradava.
- Isto, meu velho, é filosofia - dizia o rapaz num tom
sentencioso, os braços em asa de cesto, as mäos nos bolsos do
casaco. É fílosofice que vem da fraqueza, da incapacidade.
Porém, Artamonov tinha igualmente a impressäo de que
Goritsvetov falava também com sensatez. Pequeno, a camisa
negra sob o uniforme de estudante, mostrando à vontade, os
olhos pisados como se näo dormisse, o rosto sombrio e agudo,
cheio de espinhas, Goritsvetov gritava sem ouvir ninguém,
agitando convulsivamente as mäos e insistindo com
Míron:
- Conseguirá fazer nascer o sol com o apito das suas
fábricas, e a fazer desaparecer o nevoeiro dos pântanos, e das
florestas, graças às máquinas, é verdade, mas o homem, que
fará dele?
Alteando as sobrancelhas, enrugando a testa, Miron compunha
os óculos e repetia com voz seca e eadenciada:
- Filosofices, histórias! Conversas e sofismas, meu amigo.
A vida é uma luta; o lirismo, a histeria estäo nela deslocados
e ridículos...
As palavras dos dois adversários saltavam como pombos. hIa
Rússia. todos os funcionários andavam uniformizados. (N. do
T.)
202 ; 203
brancos no meio de pombos cinzentos. E Artamonov observava:
"Claro: novos pássaros, novas cançÖes."
Compreendia vagamente o objecto da discussäo e, ao observar
Tiago, via com prazer que o filho acariciava a penugem clara
do lábio superior para esconder um sorriso irónico.
"Bom - pensava Artamonov. - E Elias o que diria? "
Goritsvetov clamava:
- Depois de acorrentar a terra e o homem depois de fazer do
homem o escravo da máquina...
Torcendo o nariz, Miron replicava:
- O homem com quem te preocupas é um mandriäo. Morrerá se
amanhä näo compreender que a sua salvaçäo está no progresso da
indústria...
"Quem possui a verdade? Qual dos dois é o melhor?"-
interrogava-se Pedro.
Goritsvetov desagradava-lhe ainda mais do que o sobrinho;
havia nele qualquer coisa de mole, de pouco seguro; pelos seus
gritos, via-se que tinha medo; näo se comedia, como um bêbado,
sentava-se à mesa antes dos donos da casa, mexia
constantemente nos garfos e facas, comia mal e depressa,
queimando-se e engasgando-se. Havia nele, como em Alexis, algo
de saltitante, de inútil e de mau.
As pupilas escuras dos seus olhos inflamados tinham uma
fixidez de cego; cumprimentava Pedro sem dizer nada,
estendendo-lhe irreverentemente uma mäo escaldante e calosa, e
retirava-a precipitadamente. Em suma, era um inútil, e näo se
percebia qual o interesse de Miron por ele.
- Näo fales, Estêväo, come - aconselhava Olga.
Ele respondia com voz rangente:
- Näo posso, nesta casa pregam-se teorias perniciosas.
Pedro estava surpreendido com a atençäo silenciosa de Alexis
nas discussÖes dos estudantes; por vezes, embora raramente,
apoiava o filho:
- Tens razäo! Onde está a força, está o poder; ora, a força,
na indústria...
Olga, a testa já com rugas, o pequenino nariz avermelhado
pelas lentes fortes dos óculos sem armaçäo, sentava-se a
seguir ao jantar e ao chá, bordando junto da janela;
silenciosa e atentamente, interminavelmente, bordava, a
pérolas, flores de um brilho intenso. Pedro sentia-se melhor
em casa do irmäo do que na sua: era mais interessante, e havia
lá sempre bom vinho.
Ao regressar a casa na companhia de Tiago, perguntava:
- Percebes o que eles discutem?
- Sim - respondia secamente o filho.
Para dissimular a sua incompreensäo, Artamonov interrogava
com severidade:
- l"Ias o que pretendem?
Tiago explicava contrafeito, em termos breves, mas claros;
deduzia-se das suas palavras que, segundo Miron, a Rússia
devia viver como o resto da Europa, enquanto Goritsvetov
pensava que ela possuía soluçÖes próprias. Entäo, Artamonov
sentia a necessidade de mostrar ao filho que ele também tinha
a esse respeito as suas ideias, e declarava sentenciosamente:
- Se os estrangeiros vivem melhor do que nós, näo viriam
para a nossa terra.
Esta ideia era de Alexis, e Pedro considerava-a também sua.
Ficou aborrecido e o filho agravou ainda mais o seu
descontentamento ao anunciar:
- Podemos viver sem gabar a nossa inteligência, sem todas
estas conversas...
Artamonov resmungou:
- Com efeito...
Cada vez com mais frequência, sentia-se chocado com pequenos
vexames, pequenas surpresas que o mantínham à margem,
limitando-o ao papel de um espectador que deve pensar em tudo
e tudo ver. No entanto, à sua volta, tudo se modificava,
imperceptível mas rapidamente; em toda a parte, nas
palavras e nos actos, transparecia a novidade e a inquietaçäo:
Um dia, durante o chá, Olga declarou:
- A verdade é que a alma está farta e já näo se quer mais
nada.
- Sim - concordou Pedro.
Mas os óculos de Miron cintilaram e começou a pregar à mäe:
204 205
- Isso näo é verdade, mas a morte. A verdade está no
trabalho e na acçäo.
Quando saiu, levando um grande rolo de papel, Pedro observou
a Olga:
- O teu filho é impertinente contígo.
- Näo.
-Ah! é!...
- É mais inteligente do que eu - disse Olga. - Eu näo
sou instruída, muitas vezes digo asneiras. Em geral os nossos
filhos säo mais inteligentes do que nós.
Artamonov recusava-se a admiti-lo e respondeu com um sorriso
irónico:
- Aceito que digas asneiras. Os velhos eram mais sábios
quando proclamavam: Os filhos trazem-nos penas, e as filhas
duplicam-nas. Percebeste?
As palavras de Olga sobre a inteligência das crianças
perturbaram vivamente Pedro: ela queria aludir certamente a
Elias. Pedro sabia que Alexis lhe mandava dinheiro, que Miron
lhe escrevia, mas, por orgulho, nunca perguntava onde nem como
vivia o filho. Olga, que adivinhava este sentimento,
informava-o com delicadeza, como por acaso. Assim ele soubera
que Elias habitara Arkangel, näo sabia porquê, encontrando-se
actualmente no estrangeiro.
"Que fique por lá: tomará juízo e compreenderá que foi
parvo. "
Por vezes, ao pensar em Elias, admirava-se da teimosia do
filho: todos lhe pareciam inteligentes. Por que esperava
Elias?
Em casa do irmäo, via com frequência a senhora Popov e a
filha continuava bela, triste, mas serena e longínqua. Ela
falava-lhe pouco e no mesmo tom com que ele, outrora, falava
a Elias, quando julgava tê-lo magoado injustamente. Em de-
terminados momentos de calma, a sua imagem erguia-se diante
dele, sem despertar, aliás, outro sentímento além do espanto:
uma pessoa que se torna agradável, em quem se pensa bastante,
mas de que näo se precisa. É inexplicável esta sensaçäo de näo
poder conversar com ela, a mesma que se tem
perante um surdo-mudo.
Sim, tudo mudava. Mesmo os operários tornavam-se mais
caprichosos, maus, tuberculosos, e as suas mulheres mais
barulhentas. O rumor da cidade operária começava a ser
inquietante; à noite, pareciam ouvir-se uivos como os dos
lobos e até a areia suja grunhia, encolerizada.
Os operários näo querem trabalhar, entregam-se à vadiagem.
Rapazes que näo têm de se queixar de nada, nem de ninguém,
aparecem de súbito no escritório a reclamar dinheiro.
- Para onde väo? - perguntava Pedro.
- Ver o que se passa por aí.
- Mas o que é que lhes dá? - dizia Pedro ao irmäo.
Alexis, com ar de raposa e aos risinhos, indicava que os
operários se agitavam em toda a parte.
- Por aquí, ainda as coisas correm menos mal, tudo está
tranquilo, mas em Petersburgo... Os nossos ministros, os
nossos funcionários, säo incompetentes...
E perdia-se em afirmaçÖes täo ousadas, täo estúpidas que o
irmäo o admoestava:
- Loucuras? Säo os senhores que tentam apoderar-se do poder
do Czar; os nobres empobrecem. Nós näo precisamos de estar no
poder para enriquecer. O teu pai, nos dias de festa,
passeava com as botas ensebadas, ao passo que tu trazes
sapatos vindos do estrangeiro e usas gravatas de seda. Devemos
ser trabalhadores do czar e näo dos porcos. O czar é um
carvalho, é dele que nas chegam as bolotas de ouro.
Alexis escutava-o com um sorriso irónico que o irritava
ainda mais.
Pedro entendia que, em geral, se abusava dos sorrisos
irónicos; este hábito novo era ao mesmo tempo triste e
estúpido.
Aliás, no capítulo dos motejos, nem os tinha mais
reconfortantes nem täo divertidos do que Serafim, o
imperecível marceneiro.
Pedro passara a ter verdadeira amizade pelo Consolador.
De vez em quando tinha acessos de tédio que lhe davam uma
irresistível vontade de beber. Tinha vergonha de se embebedar
em casa do irmäo, e sobretudo näo quería que a senhora Popov o
visse bêbado. Em casa, Natália, nestas circunstâncias, voltava
tristemente as costas, e observava um silêncio de vítima; ele
preferiria que ela o censurasse, e assim, por seu turno,
poderia injuriá-la. Mas ela tomava o ar de uma mulher roubada
e, em vez de o excitar à cólera, inspirava um sentimento
próximo da piedade. Entäo, Artamonov ia ter com Serafim.
- Tenho vontade de beber, meu velho!
O alegre marceneiro aprovava, sorrindo:
- É uma coisa täo normal como o Sol no Veräo! Estás
fatigado, morto. É preciso reagir. Tens um negócio importante
a dirigir: é bem diferente de um cravo no rosto.
Guardava para o paträo licores e álcoois de um
extraordinário sabor. Tirando de todos os cantos garrafas
multicores, dizia com orgulho:
- Fui eu quem os inventei, e a viúva de um diácono é que os
fabrica. Um verdadeiro pimento esta mulher. Prova lá deste:
faz-se com flores de bétula, esmagadas e açúcar. Que tal o
achas?
Sentava-se e, enquanto bebia, conversava:
- Sim, a viúva näo tem sorte. De cada vez que arranja um
amante, é um ladräo. Mas ela näo pode passar sem eles, de tal
modo o sangue lhe arde nas veias.
- Eu vi uma dessas na feira - dízia Artamonov.
- É claro - admitia Serafim. - Nessas terras, a coisa é
escolhida. Bem o sei.
Serafim conhecia tudo, pessoas e coisas. Contava com piada
as histórias familiares dos empregados e dos operários da
fábrica. Falava de todos com igual afabilidade e tratava a
filha como uma estranha.
- Lá se arranjou, a cadela. Está com Sedov, o serralheiro, e
däo-se bem. Todo o animal acaba por encontrar a sua toca...
O quartozinho de Serafim era agradável e asseado, cheio de
perfume resinoso das bétulas. A penumbra tépida näo perturbava
a luz discreta da lâmpada de ferro branco pregada na parede.
Depois de beber, Artamonov queixava-se dos homens, e o velho
reconfortava-o:
- Näo tem importância, tudo vai bem! As pessoas começaram a
correr, eis tudo. O homem estava deitado, a pensar, sempre a
pensar e, de súbito, levantou-se e começou a andar.
Poís bem, que ande! Näo fiques triste, tem fé no homem.
Acreditas em ti?
Pedro Artamonov calava-se, perguntando se tinha fé em si
próprio, enquanto a voz sonora e viva de Serafim o consolava:
- Näo olhes como se é, se se é bom ou mau: näo é para durar,
o mal de ontem é o bem de hoje. Eu vi tudo, mau e
bom. Às vezes, penso e digo: Aqui está o bem! E ele já
desapareceu. Estou aqui, mas ele näo: foi levado como o pó,
pelo vento. Mas o que é que eu sou? Uma mosca entre os homens,
nem sequer me vêem. Ao passo que tu...
Serafim erguia o dedo com um gesto significativo e
calava-se.
Estes discursos agradavam duplamente a Artamonov: realmente
consolavam-no e divertiam-no; no entanto, Artamonov bem via
que o velho representava, mentia e falava, näo de acordo com o
que sentia, mas para cumprir o seu mister de consolador de
homens. Pedro, que via claro no jogo de Serafim, pensava:
"Ele é esperto. Nikita näo seria capaz de ser assim."
E imaginava todos os consoladores que vira na vida: as
mulheres impudicas da feira, os palhaços dos circos, os
prestidigitadores, os domadores de feras, os cantores, os
músicos, o moreno Estêväo, "amigo do homem". Também Alexis
tinha algo de comum com estas pessoas. Pelo contrário, nada
havia de parecido em Tikhon nem em Paula Menotti.
Quando a bebedeira chegava, dizia a Serafim.
- Estás a mentir, velho mafarrico!
O marceneiro, afagando os joelhos pontiagudos respondia
gravemente:
- Reflecte: como posso mentir se näo conheço a verdade?
Digo-te do fundo do coraçäo: näo conheço a verdade. Como posso
mentir?
- Neste caso, cala-te.
- Mas näo sou mudo - las.timava-se com graça Serafim,
enquanto um sorriso lhe iluminava o rosto. Estou velho: o
pouco que tenho a viver, passo-o bem sem a verdade. Os
jovens é que devem preocupar-se com isso, para tanto usam
óculos. O senhor Miron, que usa óculos, vê logo o lugar de
todos e de cada um.
Artamonov ficava satisfeito por Serafim näo gostar de Miron
e ria sonoramente quando Serafim pegava na guitarra e cantava
atrevidamente:
O pássaro vai para a fábrica
Olhando por baixo dos óculos:
Mas eu sou o mais esperto
E todos os outros säo parvos.
- Essa leva endereço - comentava Artamonov.
O marceneiro, entusiasmado, continuava:
Näo é um falcäo nem mocho
Que tira as penas dos pardais:
É Alexis filbo de Elias,
O santo de Deus!
E isto agradava também a Artamonov. Depois, Serafim
atacava Tiago sem receio:
Tiago beija Maria,
E a amiga näo compreende...
Por vezes, ficavam assim entretidos até de madrugada;
Tikhon vinha bater à porta e acordava o paträo, se este dormia
ainda, dizendo placidamente:
- É tempo de voltar a casa, a sereia vai apitar, os
operários podem ver-te, e näo parece bem...
Artamonov gritava:
- O que é que näo parece bem? Eu sou o paträo!
Mas obedecia; ia-se embora, cambaleando pesadamente;
deitava-se, dormia por vezes até à tarde e voltava a passar a
noite junto de Serafim.
O alegre marceneiro morreu de repente, no trabalho, quando
fazia um caixäo para o filho de Morov, o enfermeiro, que se
afogara. Artamonov quis acompanhar o velho ao cemitério; foi à
igreja, a abarrotar de operários, assistiu à cerimonia
eelebrada pelo padre ruivo que substituira o velho Gleb, que
abandonara, um dia, o sacerdócio, sem razäo aparente, e partiu
näo se sabe para onde. Na igreja, um coro dirigido por Grekov,
homem com aspecto de gato, que era o professor da escola da
fábrica, interpretava cânticos agradáveis; havia muita gente
nova.
- É domingo - disse Artamonov, para explicar o número de
presentes.
Foram também jovens tecelÖes que transportaram o caixäo
pequeno e leve; os operários maís idosos seguiam ao lado;
Zenaida, vestida indecentemente com uma saia corolida, seguia
atrás do corpo, o ar sombrio, mas sem verter uma lágrima,
acompanhada pelo serralheiro Sedov, de ombros largos, bem
vestido. Afastado, Tikhon Vialov esmagava pesadamente a areia.
O Sol resplandecia, o coro cantava, harmonioso e potente, e
notava-se no enterro uma estranha falta de tristeza.
- Um belo enterro - disse Artamonov limpando o rosto suado.
Tikhon parou, olhou para os pés, reflectiu e disse:
- Era amável e alegre, como este instrumento...
Girou com o braço pelo ar.
...Este instrumento que um velhote levava na rua, enquanto
uma rapariga cantava. Era uma coísa que consolava.
Olhou severamente o paträo, sem respeito, o que indignou
Artamonov, e acrescentou:
- Divertia toda a gente; näo fazia mal a ninguém, mas apesar
disso näo vivia como um justo.
- Um justo! Um justo! - disse o paträo, rebatendo-o. - Estás
amarrado a essas ideias. Toma cuidado, que ficarás
enraivecido, como o "Toulon".
E, voltando-lhe as costas, Artamonov seguiu para casa.
Era meio-dia, mas já fazia bastante calor; a areia do
caminho e o azul do céu tornavam-se mais ardentes. Ao fim da
tarde, o sol formou montanhas de nuvens brancas que, vogando
lentamente para o oriente, tornaram o ambiente ainda mais
sufocante. Artamonov deu uma volta pelo jardim, depois saiu
para a rua. Tikhon ensebava os gonzos da porta que,
enferrujados devido às chuvas da Primavera, rangiam
desagradavelmente.
- Porque estás a fazer uma coisa dessas num dia de festa?
- perguntou Artamonov desinteressado, sentando-se num banco.
Tikhon, olhando-o de lado, com o branco do olho, respondeu a
meia voz:
- Serafim era um homem prejudicial.
- Em quê?
Entäo, palavras estranhas soltaram-se como baratas negras:
- Tinha demasiada memória lembrava-se demasiado das coisas.
Recordava-se de tudo quanto via. Mas o que é que se pode ver?
O mal, a agitaçäo inútil. E contava tudo isso em toda a parte.
Causou uma grande perturbaçäo.
Continuou o trabalho, falando:
- Devia tirar-se a memória às pessoas. Faz crescer o mal.
Devia ser assim: uns viveram, morreram, e toda a sua maldade,
toda a sua estupidez se foi com eles. Outros nasceram, näo se
lembram do mal, mas lembram-se do bem. Também a minha memória
me faz sofrer. Estou velho, quero descansar. Mas onde está o
repouso? O repouso encontra-se no esquecimento...
Nunca Tikhon falara tanto tempo de uma só tirada, nem de
modo täo irritante. As suas palavras, estúpidas como sempre
pareceram nessa altura particularmente odiosas a Artamonov; ao
olhar a sua barba desgrenhada, as pupilas líquidas, esta
fronte de pedra, destroçada pelas rugas, Artamonov
espantava-se com a fealdade crescente do velho. As rugas eram
de uma profundidade anormal: dir-se-iam golpes profundos
num tronco; o rosto de maçäs salientes, desnudadas pela
velhice, adquirira o tom acinzentado da pedra-pomes, o nariz
estava poroso como uma esponja.
"Envelheceu imenso - pensou Artamonov, com satisfaçäo. -
Disparata. Já näo pode trabalhar, devo despedi-lo.
Indemnizá-lo-ei."
Tendo numa das mäos um pincel e na outra o sebo liquefeito,
Tikhon aproximou-se do paträo e, apontando com o pincel o
edifício da fábrica de uma cor vermelha escura de carne
crua,rabujou:
- Devias ouvir o que eles dizem lá em baixo, o belo Sedov, o
zarolho Morozov, o irmäo Zakhar e até Zenaida. Falam
abertamente: um negócio feito com os braços dos outros, é
prejudicial e deve ser destruído...
- Essas parecem-me as tuas ideias - ralhou o paträo.
- As mínhas? - Tikhon abanou a cabeça. - Näo, näo säo as
minhas. Eu näo compreendo tais manigâncias. Que cada um
trabalhe para si, e já näo há mal. - Mas eles dizem:
Tudo é feito por nós, portanto devemos ser os donos! E, bem
vistas as coisas, tudo é feito por eles. Meteram-te num
negócio, tu puxaste-o por bom caminho, e agora...
Artamonov, suspirando profundamente, levantou-se, me-
teu as mäos nos bolsos, e falou energicamente, näo sem se
atrapalhar um pouco, fixando as nuvens por cima da cabeça de
Tikhon:
- Bem: é certo que passaste aqui a tua vida comigo. Mas
estás velho, já te custa...
- E Serafim dizia com eles... - prosseguiu Tikhon, que,
visivelmente, näo escutava o paträo.
- Bem, é altura de descansares...
- Para toda a gente, claro...
- Um instante: és uma pessoa difícil. ..
Tikhon, au ouvi-lo falar de despedimento, näo se admirou.
Plácido, murmurou:
- Está bem.
- É evidente que te darei uma indemnizaçäo - prometeu
Artamonov, desconcertado com a calma de Tikhon, que começou a
ensebar as botas cheias de pó, sem responder. Artamonov
declarou com toda a energia de que era capaz:
- Bem, adeus!
- Está bem - respondeu outra vez o velho.
Artamonov seguiu para o outro lado da água, esperando
encontrar lá um sítio fresco; debaixo do pinheiro exactamente
onde descutira com Elias, Serafim fizera com uns ramos de
bétula uma espécie de trono. Avistava-se toda a fábrica, a
casa, o pátio, as moradias dos operários, a igreja, o
cemitério.
212 ; 213
As grandes janelas da escola e do hospital rebrilhavam como
gelo; homens iam e vinham como dobadouras, continuando a
"nterminável teia da empresa, e homens mais distantes e
pequenos corriam sobre a areia da cidade operária. Perto do
adro da igreja, entre os troncos cinzentos dos salgueiros,
pastava um minúsculo rebanho de cabras; pertenciam ao
enfermeiro zarolho do hospital, neto do velho teceläo Boris
Morozov: as mulheres da fábrica compravam o leite de cabra
para os filhos. Por detrás do hospital, num quadrado de terra
sem vegetaçäo, vedado por uma grade, passavam homens, de fatos
amarelos e bonés brancos, que lembravam doidos. Em redor
da fábrica, os pássaros - pardais, gaios, gralhas - tinham-se
multiplicado; corujas piavam, voando apressadamente de
um lado para o outro fazendo espelhar o cetim branco do seu
peito, pombos cinzentos caminhavam pelo chäo; os pássaros
eram particularmente numerosos em redor da taberna instalada
na margem do Vatarakcha, onde paravam os camponeses que vinham
vender o linho.
Já há tempos que este vasto negócio näo dava a Artamonov nem
prazer nem orgulho; era apenas uma fonte de vexames de toda a
espécie. Näo podia suportar o sobrinho, nem o irmäo e os
amigos a gritar, gesticulando como ciganos no mercado,
discutindo sem repararem nele, o mais velho. Mesmo quando
falavam da fábrica, esqueciam-no, e quando ele se fazia
lembrar, escutavam-no em silêncio, parecendo aceitar a sua
opiniäo, mas fazendo afinal o que entendiam, tanto nas grandes
como nas pequenas coisas. Isto vinha de longe - desde que,
contra o seu parecer, eles mandaram construir ao lado da
fábrica uma central eléctrica; Artamonov em breve verificou
que era mais vantajoso e menos perigoso, mas apesar de tudo
näo esquecia a afronta. Suportara muitas, o número aumentava
sem cessar, e as afrontas tornavam-se a cada passo mais
notórias.
A conduta do sobrinho era particularmente odienta e
insolente; terminara os estudos, vestia casacos de couro que
nada tinham de russo, toda a sua pessoa brilhava, desde os
óculos de aro de ouro até aos sapatos amarelados, piscava o
olho, fazia trejeitos e proclamäva:
- Isto está velho, tio. Os ternpos mudaram, tío.
Parecia ter medo do tempo, como um servo receia o paträo.
Mas era tudo o que receava: quanto ao resto, era de uma
intolerável audácia. Um dia, chegou ao ponto de anunciar:
- Compreenda, tio, que com pessoas como vós e outros, a
Rússia näo poderá viver.
Artamonov ficou täo escandalizado que nem sequer pediu
explicaçÖes. Foi-se embora, vexado, e esteve várias semanas
sem ir a casa do irmäo, näo falando a Miron quando o
encontrava na fábrica.
Miron pretendia casar com a filha de Vera Popov, que era
alta e esbelta como a mäe, entretanto grisalha e sempre
glacial.
A rapariga tinha, como todas as pessoas, um sorriso
desagradável. Voltava o pescoço, abria enormes olhos e,
cantarolando por entre dentes, zunindo como uma mosca, passava
o tempo desde manhä à noite a bordar com linhas coloridas um
pano de linho. Usava um chapéu de palha ligado ao pescoço por
uma fita, e o chapéu baloiçava-lhe nas costas; os cabelos eram
também cor de palha; vestia-se sem esmero, a saia deixava
mostrar as pernas quase até os joelhos.
O fingido do Goritsvetov näo era menos desagradável;
mexendo-se como um gaviäo, aparecia bruscamente, desaparecia,
voltava a surgir e precipitando-se sobre as pessoas como
um cäozinho rabujento, repetia:
- Vocês querem fazer da nossa Rússia de alma rica uma
América sem alma, fabricando ratoeiras para os homens...
Por vezes, Artamonov destrinçava nestas palavras uma
parte de verdade mas, com maior frequência, elas lembravam-lhe
as tontices de Tikhon Vialov, embora näo conhecesse homens
menos parecidos do que este ser saltitante e convulso e o
sóbrio Tikhon, que ficava indiferente perante fosse o que
fosse. Goritsvetov, correndo para Isabel Popov, punha-se a
interrogá-la:
- Sendo uma intelectual, porque näo diz nada?
Ela mantinha o rosto altivo, imóvel; apenas os olhas
cinzentos, cor de Outono, sorriam; Artamonov escutava palavras
desconhecidas, incompreensíveis:
/ 215
- É a agonia do romantismo - bradava Miron, limpando as
lentes dos óculos com uma pelezinha de camelo.
Alexis deslocava-se a Moscovo; Tiago engordava, mantendo-se
gravemente à margem, falava pouco, mas as suas palavras deviam
ser de prudência, pois irritavam Miron e Goritsvetov. Tíago
deixara crescer uma barbicha à tártaro e, ao mesmo tempo que o
seu pêlo aloirado, a sua moça era cada vez mais aparente;
Artamonov gostava de ouvir o filho declarar
desinteressadamente a estas pessoas audaciosas:
- Tanto querem ser senhores, que acabaräo em pantanas; bem
melhor seria se vivessem com simplicidade.
Quando Isabel Popov partiu precipitadamente para Moscovo, a
fim de desposar Goritsvetov, Artamonov e Tiago acharam o caso
muito divertido. Miron näo escondia a sua irritaçäo; torcendo
a barbicha pontiaguda que em nada se assemelhava à barba dos
comerciantes, pronunciava, com evidente
falta de sinceridade:
- As pessoas como Goritsvetov pertencem a uma raça que
desaparece. Näo há no mundo pessoa täo inútil como ele os da
sua igualha.
Tiago replicou para o excitar:
- Mas foi um desse que, sob as tuas barbas, te roubou aquela
que ambicionavas.
Miron, encolhendo os ombros, respondeu:
- Eu näo sou romântico.
- O quê? Quem? - perguntou Artamonov.
Entäo, Miron falou no tom categórico de um juíz que lê a
sentença:
- Ninguém percebe o que é um homem romântíco. O tio
também näo o compreende. É um enfeite, como uma peruca numa
cabeça calva, ou entäo a precauçäo que toma um malandro ao
ajustar uma barba falsa.
"Ah! Ah! Foste iludido! " - disse Artamonov para consigo,
mas sem prazer.
Estas pequenas satisfaçÖes consolavam-no um pouco dos
múltiplos vexames que lhe infligiam estas pessoas cheias de
projectos, que, com as suas mäos aduncas, se apoderavam mais e
mais do negócio e o deixavam de parte, sozinho. Mas
até na solidäo soube encontrar, inventar algo de doloroso e ao
mesmo tempo agradável; o isolamento revelava-lhe um ser novo,
embora já vagamente conhecido, um Pedro Artamonov diferente,
com outro carácter.
Um homem sério cruelmente mortificado; a vida tratou-o mal.
Começara por ser servidor submisso de seu pai, junto do qual
nunca sentiu qualquer alegria, e que o casou com uma
mulher estúpida e aborrecida e lhe colocou aos ombros uma
tarefa enorme e difícil. " certo que a mulher o amava, e o seu
primeiro ano de vida comum näo fora desagradável, mas agora
sabe que até a impúdica Zenaida é mais atraente e ardorosa no
amor. Quanto às raparigas ladinas e loucas de feira, mais vale
näo pensar nelas. A sua mulher tremera a vida inteira:
primeiro receou Alexis, depois os candeeiros de petróleo, a
seguir as lâmpadas eléctricas: quando estas se acendiam,
Natálía recuava e persignava-se. Envergonhou-se dela, na
feira, num estabelecimento de fonógrafos:
- Oh! näo! - gritava. - Näo compres isso! É talvez um
demónio que geme dentro dessa máquina; a sua alma está lá
dentro escondida.
Entretantn, tinha medo de Miron, do médico Iakovlev, da sua
filha Tatiana; engordara horrorosamente mas passava sempre os
dias inteiros a comer. Por pouco, Nikita enforcara-se por
causa dela. Os filhos näo a respeitavam. Quando ela
aconselhava Tiago a casar-se, ele replicava com insolência:
- Mäe, farias melhor se comesses qualquer coisa.
Ela respondia, dócil e hesitante:
- Creio que näo me apetece.
E começava a comer.
Um dia, o pai disse a Tiago:
- Porque te ris da tua mäe? Ela tem razäo, deves casar-te.
- Näo chegou ainda a altura de aturar uma família -
respondeu calmamente.
- Vocês têm sempre medo do tempo - comentou o pai com bom
humor. O filho contentou-se em encolher os ombros sem nada
acrescentar.
Também ele dizia ao pai:
- O pai näo compreende.
216 I 217
Dizia-o com simpatia, mas, contudo, é inconcebível que
um pai compreenda menos que um filho. É com ontem, e näo com
amanhä que se vive: e isto é válido para todos.
O filho mais velho, o seu preferido, desapareceu. O amor que
lhe tinha levou-o a cometer um acto de que näo quer
lembrar-se.
A filha mais velha, Helena, uma mulher de fartas ancas e
rosto largo, estragada pela fortuna e por um marido ébrio,
era-lhe totalmente estranha. Magnificamente vestida, uma
quantidade de aneis nos dedos, raramente visitava os pais.
Agitava as pulseiras e berloques e, espreitando com desprezo
por entre o seu leque de ouro, dizia num voz dolente:
- Cheira täo mal esta casa! Tudo está podre e cheio de
mofo. Deviam construir outra. Acham que ainda se pode viver
ao lado de uma fábrica?
Artamonov surpreendera-a quando perguntava à mäe:
- E o pai, na mesma? Deve aborrecer-se tanto com ele!
O meu marido é um bêbado e anda sempre atrás de mulheres, mas,
ao menos, é divertido.
Tinha pelo asseio uma mania irritante. Antes de se sentar
numa cadeira, limpava-a com o lenço; perfumava-se tanto que as
pessoas tinham de espirrar. O desprezo que mostrava pela
maneira de viver dos pais levava Artamonov a vingar-se da
irritaçäo que a filha lhe causava. Quando ela estava, passeava
propositadamente pela casa e mesmo pelo pátio em trajos
menores, apenas com um roupäo entreaberto, os péus nus numas
sandálias de borracha. Durante as refeiçÖes mastigava
ruidosamente e arrotava como um Bachkir. A filha ficava
indignada:
- Isso näo se faz, pai.
Mas era esta indignaçäo que ele procurava:
- Desculpe, minha senhora - dizia. - Eu näo passo de um
campónio...
E mastigava e arrotava ainda com mais violência.
A filha viajara pelo estrangeiro e, à noite, na sua vozinha
indolente e untuosa, contava à mäe mil puerilidades: em tal
cidade as mulheres lavavam com escova e sabäo as paredes
externas das casas; noutra havia, tanto no Veräo como no
Inverno, um nevoeiro tal que os candeeiros ficavam acesos o
dia inteiro e mesmo assim mal se via. Em Paris, vendiam-se
por todo o lado fatos feitos, e havia uma torre täo alta que
do cimo se avistavam cidades para além dos mares.
Tinha discussÖes e até disputas com a irmä mais nova.
Tatiana crescia: era magrita, de pele morena, de carácter
azedo, por näo ser bonita. Lembrava um diácono, talvez por
causa da sua trança curta, do peito chato e do nariz azulado.
Ficava em casa da irmâ e näo voltava, sem que se soubesse
porquê, a terminar os seus estudos no liceu, estava de acordo
com Miron no sentido de se limitar o poder do czar, e começara
a fumar.
Quando vinha passar o Veräo à fábrica, enchia a mäe de
guloseimas, como se faz a uma criada, falava por entre dentes
ao pai, lia dias inteiros, e, à noite, ia para casa do tio de
onde a acompanhava Iakovlev, o médico dos dentes de ouro. Näo
podia dormir, e passava as noites a matar os mosquitos nas
paredes, esmagando-os com as pantufas e, a cada pancada,
parecia ouvir-se um tiro de revólver.
A volta de Artamonov tudo se tornava estranho, gritante,
insolentemente estúpido - tudo, desde os discursos ousados de
Miron até às cançÖes idiotas do mecânico Vaska, coxo de uma
perna e de cabeça desgrenhada, parecido com uma vassoura. Aos
domingos, Vaska, que fazia a corte à cozinheira, passava todo
o tempo debaixo das janelas da cozinha e, tocando harmónio,
urrava, de olhos fechados:
Repara que te tornaste O meu hábito de desgraça.
Quero ver a todo o instante O teu rosto, o teu rosto.
Há muito tempo que Olga näo falava de Elias, enquanto que o
novo Pedro Artamonov, o homem mortificado, pensava cada vez
mais no fílho mais velho. Certamente, Elias recebera já o
castigo devido pela sua desobediência: a mudança de atitude de
Alexis a seu respeito confirmava-o significativamente. Uma
noite, ao chegar a casa do irmäo e ao despir os abafos no
vestíbulo, Artamonov ouviu Miron, de regresso de Moscovo,
declarar:
- Elias é um dos homens que olham a vida através dos
218 I 219
livros, estes que säo incapazes de distinguir uma vaca de um
cavalo.
"É mentira" - pensou Artamonov, encontrando uma espécie de
consolaçäo no reparo hostil do sobrinho.
Alexis perguntou:
- Ainda pertence ao mesmo partido de Goritsvetov?
- Pior ainda - respondeu Miron.
Ao entrar na sala, Artamonov ameaçou-os mentalmente:
"Esperem que ele volte, e veräo... "
Miron falou, a seguir, de Moscovo, queixou-se com irritaçäo
da estupidez do governo; Natália e o filho chegaram, e Miron
falou-lhe na necessidade de construirem uma fábrica de papel:
há muito tempo que ruminava este projecto.
- Tio, nós temos dinheiro que dorme - dizia Natália,
ruborescendo täo fortemente que as orelhas se mexeram,
replicou alto:
- Onde dorme ele? Em casa de quem?
Artamonov sentiu-se bruscamente invadido pelo tédio como se
tivessem aberto a porta de uma sala onde tudo é täo conhecido
e fastidioso que a mesma parece vazia. Este aborrecimento
súbito, que vínha de fora como o nevoeiro, tapava as orelhas,
cegava os olhos, provocava uma sensaçäo de fadiga e de
receio, fazendo pensar na doença e na morte.
- Estou farto dessas tretas - disse. - Quando me deixaräo
descansar?
Tiago resmungou:
- Já temos preocupaçÖes que cheguem.. .
E Natália gritava:
- Já há operáríos a mais! Em toda a parte se vêem bêbados e
se ouvem palavras grosseiras.
Artamonov aproximou-se da janela: no jardim, Tikhon Vialov,
de pé, a cabeça baixa, apontava com o dedo uma macieira a uma
rapariga.
"A espécie de Adäo" - pensou Pedro, sacudindo o
aborrecimento. Tais pensamentos longínquos passavam muitas
vezes díante dele como ratos. A sua brevidade dava-lhe prazer,
gostava deles por näo o inquietarem: passavam, desapareciam, e
nada mais.
Tikhon continuava no mesmo sítio: Pedro Artamonov ficara
muitíssimo magoado por ver o irmäo aceitá-lo ao seu serviço,
quando, depois de uma desapariçäo que durou mais de um
ano, Tikhon regressou, portador de uma má notícia: Nikita
abandonara o convento. Pedro estava convencido de que o velho
sabia onde Nikita se encontrava e que, se o näo indicava, era
simplesmente por gostar de ser desagradável. Artamonov
discutira a seu respeito asperamente com Alexis, embora este
se defendesse com eloquência:
- Mas reflecte: em toda a sua vida este homem trabalhou para
nós, e pusemo-la na rua. Parece-te bem?
Pedro sabia que isto näo estava bem, mas a presença de
Tikhon na casa ainda era pior. A mulher, pela primeira vez
na sua existência, tomou o partido de Alexis. Dizia com
firmeza desusada:
- Näo acho bem, Pedro. Podes bater-me, mas näo acho bem.
Acabaram por convencê-lo e acalmá-lo. Mas o homem ultrajado
insi'stia:
"Vês: a tua vontade näo constitui lei para ninguém. Estás a
ver? "
Para Artamonov, este homem ultrajado era cada dia mais
visível, tangível. Transportando com precauçäo o seu corpo
pesado até ao pinheiro da colina, Pedro sentava-se na cadeira
e, pensando neste homem, lastimava-o sinceramente. Era ao
mesmo tempo doce e amargo imaginar um homem infeliz,
incompreendido, que ninguém apreciava, embora fosse bom.
Surgia na imaginaçäo täo facilmente como, nos dias quentes,
se forma no azul vazio, sobre os pântanos, o vapor branco das
nuvens.
Ao contemplar a fábrica e tudo o que ela trouxera, o homem
dizia:
- Poder-se-ia viver doutro modo, sem tudo isto.
Artamonov, o industrial, respondia:
- Essas ideias säo de Tikhon.
- O padre Gleb dizia a mesma coisa. E Goritsvetov, e muitos
outros. Sim, os homens debatem-se como moscas numa teia de
aranha.
220 " 221
- Viver sem cuidados é impossível - replicava sem ânimo o
industrial.
Por vezes, esta muda discussäo de dois homens num só era
particularmente ardorosa e o homem ultrajado, intratável,
urrava:
- Lembras-te de que quando estavas bébado, na feíra,
confessavas na frente de todos que imolaras o teu filho como
Abraäo imolara Isaac, mas que o jovem Nikonov fora substituído
pelo cordeiro, lembras-te? É verdade, é verdade! E foi
esta verdade que te levou a bater-me com uma garrafa?
Asfixiaste-me, mataste-me! Também me sacrificaste. E a quem, a
quem? Ao Deus chavelhudo de que falava Nikita? A ele?
Ah!. .
Aquando destas discussÖes täo crueis, o industrial Artamonov
fechava os olhos para näo deixar correr lágrimas de vergonha,
más, amargas. Mas as lágrimas escorriam, irresistíveis;
ele limpava-as nas faces e na barba com as mäos que esfregava
em seguida, uma contra a outra, até que elas secassem: entäo,
olhava estupidamente as mäos inflamadas e violetas. E bebia
"Madeira" em grandes goles, mesmo pela garrafa.
Mas, apesar das lágrimas amargas que chorava, o homem
ofendido era täo agradável e necessário a Artamonov como o
rapaz do balneário que, com a luva macia e tépida, com o
cheiro amável do salbäo, esfrega a pele das costas, no sítio
onde näo o podemos fazer sozinhos, pois a mäo näo chega lá.
...De súbito, algures longe, para lá da Sibéria, um punho
vigoroso ergueu-se e começou a bater sobre a Rússia.
Alexis saltitava agitando o jornal, e gritava:
- É a roubalheira!, a pilhagem!
E, estendendo para o tecto a sua pata de ave, apertava
violentamente os dedos assobiando:
- Nós os... Nós lhes...
O médico de dentes de ouro, as mäos nos bolsos, encostado
aos tijolos quentes do fogäo, mastigava:
- Será talvez a eles que nós...
Naturalmente, este homem esguio, de um louro ardente, näo
deíxava de brincar, fosse com o que fosse; falava de
doenças e da morte com o mesmo pequeno rictus que tinha
para falar da pouca sorte no jogo; Artamonov achava nele o
ar de um estranho que sorri por obrigaçäo, porque näo chega a
compreender os homens de quem está longe. Pedro näo gostava
dele, näo tinha confiança nele e quem o tratava era um
médico da cidade, um alemäo taciturno chamado Kron.
Enrodilhando com ar preocupado a barbicha, num esgar como se
lhe doesse a cabeça, Miron andava de um lado para o outro da
sala e pontificava:
- Antes de se lançarem nesta empresa, deviam ter feito uma
aliança com os ingleses.
- Qual empresa? - interrogava Artamonov.
Mas nem o irmäo nem o seu inteligente sobrinho conseguiam
explicar-lhe como principiara esta guerra. Observava
com satisfaçäo o embaraço destas pessoas omniscìentes e cheias
de à-vontade; sobretudo o irmäo parecia-lhe ridículo;
ao vê-lo, julgar-se-ia que esta guerra inesperada o atingia a
ele, Alexis Artamonov, mais do que a ninguém, impedindo-o de
realizar algo de muito importante.
Uma procissäo percorreu a cidade. Os comerciantes barbados,
pisando grave e piedosamente com os pés fortes a neve
abundante, marchavam, como numa compacta manada de bois, atrás
do clero rechonchudo e dourado; elevavam-se imagens e
bandeiras; o coro reunido de todas as igrejas da cidade
entoava alto e solene:
- Senhor, ajudai-nos...
As palavras da oraçäo, que mais parecia uma reivindicaçäo,
dissolviam-se em vapor branco saído das bocas arredondadas,
transformava-se em gelo nas sobrancelhas e nos bigodes dos
chantres, cobriam as barbas dos comerciantes.
O governador da cidade, Voroponov, o filho do construtor
de carroças, cantava com voz particularmente aguda, exigente,
e falsa. Este homem gordo de faces vermelhas e olhos cor de
nácar, herdara do pai, ao mesmo tempo que a fortuna, o ódio
invencível pelos Artamonov. Estes, sete, seguiam juntos: à
frente, Alexis coxeava, dando o braço à mulher; atrás, Tiago
222 I 223
com a mäe e a irmä Tatiana, ern seguida Miron e o médico;
Artamonov, com botas macias, era o úlzimo.
- A naçäo - disse Miron a meia voz.
- Passam-se as forças em revista - respondeu o médico.
Miron tirou os óculos e limpou-os com o lenço, enquanto o
médico acrescentava:
- Há-de ver, que sova!
- Näo, esse monte de madeira näo arderá täo cedo. . .
- Basta! - ordenou Artamonov ao sobrinho que, tendo-o olhado
oblíquamente, colocou os óculos no comprido nariz, depois de
previamente o apalpar.
- Senhor, salva os Teus fiéis! - gritava Voroponov,
exigente, assobiando a palavra "salva"; depois, voltava-se, o
pescoço teso como um lobo, para observar as outras pessoas,
agitando, näo se sabia porquê, o seu chapéu de castor.
Fresca, roliça, opulenta, uma mulher de quarenta anos, a
filha de Pomialov, viúva pela terceira vez e a mais completa
desvergonhada ,da cidade, cantava com bela voz grave.
Artamonov ouvira-a aconselhar a Natália, em voz baixa:
- Devias mandar o teu marido para a guerra, minha fílha;
com o seu ar terrível, punha o inimigo em debandada.
E perguntava a Tiago:
- Entäo, afilhado, porque näo te casas, galarós?
Artamonov abanou a cabeça; as palavras, como moscas,
impediam-no de pensar em coísas importantes.
Afastou-se, subiu para o passeio e, abrandando o passo,
deixou passar à frente a torrente humana, extraordinariamente
negra, naquele dia, sobre a neve espessa e pura. As pessoas
caminhavam, lançando vapor com samovares a ferver.
A frente dos seus alunos, Vera Popov, o rosto fechado;
";alhetas de neve brilham no seu cabelo grisalho; as suas
sobrancelhas polvilhadas de neve tremem quando ela inclina a
cabeça. Artamonov lastimou-a:
"A tonta. Andar a guardar patos."
Depois, uma extensa vaga de crânios rapados ondulou: os
alunos das suas escolas da cidade; seguiu-se metade de uma
companhia de soldados, comandada pelo tenente Mavrine,
conhecido na cidade pela sua fleuma; todos os dias, desde o
princípio das enchentes até aos primeiros nevÖes, nadava no
Oka; todos sabiam que era mantido pela mulher de Pomialov.
O oficial de gendarmes Nesterenko, personagem com bigodes de
chinês, marchava gravemente como um ganso, com passo de homem
bem comido, enquanto a sua doentia esposa
dava o braço ao irmäo, filho do falecido governador Jiteikine,
proprietário de uma fábrica de curtumes. Dizia-se que se
divertia com as freiras e que lera setecentos livros. Tocava
admiravelmente num tamborzinho, arte que ensinava às
escondidas aos soldados.
Depois, passou num trenó o obeso Estêväo Barski, na
companhia do bêbado do genro e da filha, que coxeava. Em
seguida, escorreu a massa sombria do povo: pequenos burgueses,
curtidores, tecelÖes, carpinteiros, mendigos, velhas mulheres
inúteis que se pareciam com ratos. Uma neve vagarosa salpicava
as cabeças descobertas, e, de longe, vinha a implacável
reclamaçäo de Voroponov:
- Senhor, salva os Teus fiéis!
"Em que é que Deus pode necessitar dos Seus fiéis? É
incompreensível" - disse Artamonov. Näo gostava das pessoas
da cidade e, fora das suas relaçÖes comerciais, näo conhecia
quase nenhuma. Sabia que elas também näo gostavam dele, que o
consideravam orgulhoso e mau, mas que estimavam bastante
Alexís, por este se preocupar com o embelezamento da cidade;
mandara pavimentar a rua principal, plantara na praça um grupo
de tílias, fizera ao longo do Oka um jardim e uma
avenida. Miron e Tiago eram temidos: achavam-nos de excessiva
avareza, sempre dispostos a tudo apanhar.
Ao olhar esta lenta procissäo de homens recolhidos,
Artamonov tornava-se mais sombrio: muitos rostos desconhecidos
e muitos olhos de todas as cores fixavam-no com igual
hostilidade.
Junto da porta de entrada da casa de Alexis, foi
cumprimentado por Tikhon. Artamonov perguntou:
- Entäo, já se batalha?
Silenciosamente, com um gesto familiar da sua mäo pesada,
Tikhon acariciou o rosto. Pela primeira vez depois que se
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conheciam, Artamonov interrogava este homem com confiança:
- Que dizes tu daquilo?
- Bagatelas - respondeu Vialov como .se esperasse a
pergunta.
- Para ti tudo säo bagatelas - observou evasivamente
Artamonov.
- Claro. Seremos nós cäes? Näo somos animais.
Por entre os flocos da neve fina, Artamonov prosseguiu o
caminho.
A neve, que caía agora com mais intensidade, escondera
quase inteiramente a multidäo, ao longe, entre os montículos
brancos das árvores e dos tectos.
Depois da morte de Serafim, o Consolador, Artamonov ia
distrair-se a casa da viúva do subdiácono Paraklitov, uma
magrizela de idade incerta que se parecia com uma garota e com
uma cabra negra.
Era dócil e sempre da sua opiniäo:
- É isso, meu querido - exclamava. - Sim, sim, meu querido!
Artamonov bebia muito, mas raro se embebedava e irritava-se
que os seus pensamentos tristes e porfiados fossem täo
demorados a desfazer-se nos bons e saborosos alcoois da
Paraklitov. Os primeiros instantes de bebedeira eram custosos,
tornavam ainda mais ásperas, mais amargas as reflexÖes de
Pedro sobre si próprio e sobre os homens e, tingindo toda a
existência com uma má cor verde de pântano, comunicavam-lhe
uma rapidez fervente. Parecia a Pedro que começava a
girar, a girar e que ia, passado um instante, ser projectado
para fora. Rangendo os dentes, ouvía subir em si uma sombria
revolta, observa-a, depois gritava à viúva:
- Porque näo dizes nada? Conta o que sabes!
Ligeira, a mulher saltava-lhe para os joelhos, como uma
cabra, e abrindo um livro invisível, lia:
- A Pomialov despediu o tenente Mavrine, que perdeu no jogo
das cartas trezentos e vinte rublos; quer levá-lo à justiça,
pois tem recibos. O gendarme instalou a mulher aqui, näo por
ela estar doente, mas por ter uma amante na cidade.
- Tudo isso säo porcarias - comentava Artamonov.
-" Sim, meu querido, e que porcarias!
Estes rumores acerca dos feios incidentes da cidade
misturavam-se aos pensamentos de Pedro, fortaleciam a sua
aversäo pelas pessoas de lá, essas pecadoras. Em vez dos seus
pensamentos, erguiam-se e volteavam as cenas de estúrdia da
feira; homens de cabeça perdida, os olhos embriagados, mas,
nunca saciados, ávidos, desorientados, esbanjavam o dinheiro,
nada poupando, entregando-se, no selvagem furor da carne, a
todas as extravagâncias, seguindo uma mulher impudicamente
nua, de uma brancura que cegava...
Pedro Artamonov ingurgitava em silêncio os álcoois
multicores, mastigava cogumelos ácidos e viscosos e, com todo
corpo etilizado, sentia que o que no mundo há de mais sedutor,
de mais autêntico, de mais terrivelmente poderoso, se
encontrava escondido nesta mulher impudica da feira que, por
dinheiro, se mostrava nua, e pela qual homens de destaque
perdiam fortunas, compostura, saúde. Ao passo que, em toda a
vida, nada lhe fica a ele, a näo ser a cabra negra.
- Despe-te - grunhia. E dança!
- Dançar sem música? - dizia a viúva desabotoando-se -
Devia chamar-se Noskov, o caçador, que toca bem harmónio...
No meio destes divertimentos, o tempo passava sem que se
desse por isso; por vezes acontecimentos inconcebíveis
saltavam da torrente dos dias perturbados. No Inverno, correu
o boato de que os operários de Petersburgo tinham querido
demolir o palácio e matar o czar.
Tikhon Vialov declarava:
- Eles seriam até capazes de demolir as igrejas. Com
certeza. O povo näo é de ferro.
No Veräo, contou-se que num mar russo navegava um navio,
também russo, que bombardeava as cidades.
Tikhon afirmou:
- É possível. Habituaram-se à guerra.
De novo, procissÖes com imagens percorreram a cidade;
o governador Voroponov, de casaca coçada, transportava o
retrato do czar e exigia:
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- Senhor, socorrei-nos!
Desta vez, gritava ainda mais alto, ainda mais maldosamente,
mas, todavia, sentia-se inquietaçäo no seu apelo de socorro.
Bêbado, sem chapéu, uma espingarda de dois canos na mäo,
Jiteikine, cuja calvície violeta cintilava, seguia à frente
dos seus operários, enraivecidos e berrando:
- Atençäo, rapazes, näo entregaremos a Rússia aos ladrÖes!
De quem é a Rússia? Nossa?
- É nossa! - gritavam em uníssono os curtidores, täo
embriagados como o paträo. E quando encontravam os tecelÖes,
seus inimigos, travava-se uma batalha. Agrediram à bengalada o
dr. Iakovlev, atíraram para o Oka o velho farmacêutico judeu,
tendo aïnda Jiteikine perseguido demoradamente o filho pela
cidade; atirou-lhe dois tíros mas apenas conseguiu cravar
alguns chumbos nas costas do alfaiate Bruskov.
A fábrica deixou de trabalhar; a juventude, arregaçando as
mangas, correu à cidade, apesar das exortaçÖes de Miron e das
outras pessoas sensatas, apesar dos gritos e das lágrimas das
mulheres.
Dir-se-ia que a fábrica, esvaziada, sem alma, se encolhia
sob o vento que também se revoltava, uivava, assobiava, se
transformava em chuva gelada, batia de encontro às chaminés
uma neve peganhenta que em seguida a própria chuva lavava e
dispersava.
Sentado junto de uma janela, Artamonov olhava estupidamente
o vaivém, no caminho da cidade silhuetas escuras de homens e
de mulheres, semelhantes a formigas; através dos vidros
chegava o eco de gritos e tinha-se a impressäo de que as
pessoas estavam embriagadas. Junto à porta de entrada, um
acordeäo rangia; na multidäo de operários, Krotov, o mecânico
coxo, cantava:
A terra tornou-se demasiado peguena:
Luta-se contra os nipónicos.
Eles näo deixam de nos agredir.
Nós respondemos atirando-lhes com imagens.
O vento trazia da cidade um leve rumor como se lá estivesse
cantando um enorme samovar, contendo a água de um lago
inteiro. O carro de Alexis chegou ao pátio; à frente, vinha o
enfermeiro zarolho Morozov. Olga saltou para o chäo,
embrulhada num xaile; Artamonov, cheio de medo e esquecendo o
seu mal das pernas, levantou-se de um salto e foi ao encontro
dela:
- Que aconteceu?
Sacudindo-se como uma galinha, ela disse:
- Quebraram os vidros da nossa casa, foram os curtidores...
Artamonov, deixando-a passar, teve um sorriso e disse:
- Aí está o resultado de falar de mais. Vocês gritavam e
agora vêem. Näo, o czar...
E, subitamente, ouviu Olga responder-lhe alto, irritada,
insólita:
- Deixa-me! O teu czar é um homem desonesto!
- No que respeita a czares, tu lá sabes - respondeu,
confundido, coçando a orelha.
A irritaçäo da velha de óculos, sempre täo suave, que näo
falava de ninguém, surpreendeu-o; havia nas suas palavras
uma sinceridade indiscutível, embora, inútil, lastimável como
o grito de um rato chiando contra um boi que, sem o ver nem o
querer, lhe pisara o rabo. Artamonov sentou-se de novo e
começou a reflectir.
Há várias semanas que näo via Olga; evitava encontrar o seu
filho com quem discutiria. No fim do Veräo, Pedro Artamonov,
de cama, as pernas inchadas, fora visitado por Voroponov,
suado e solene, que, ao fazer estalar os seus grossos
lábios azulados, lhe propôs a assinatura de um telegrama
suplicando ao czar que näo cedesse a ninguém o poder. Embora
muito admirado com a ousada iniciativa do governador,
Artamonov assinou o papel, certo de que assim desagradaria ao
irmäo e ao sobrinho, e esperando que Voropanov, receberia de
Petersburgo uma reprimenda memorável. Näo te metas naquilo que
näo te diz respeito, idiota beiçudo, näo estejas a fazer-te de
importante!
Voroponov meteu o papel no bolso da sua casaca, abotoou
todos os botÖes, e começou a queixar-se de Alexis, de Miron,
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do médico, de todos aqueles que, cedendo inconscientemente
ou por interesse às excitaçÖes dos judeus, se insurgiam
contra o czar; Artamonov sentia um certo prazer ao ouvir
estas recriminaçÖes e aprovava; só quando os lábios azulados
de Voroponov começaram a censurar Vera Popov é que ele o
interrompeu severamente:
- A senhora Popov nada tem com isso.
- Näo tem? Nós sabemos...
- Vocês näo sabem absolutamente nada...
- As suas palavras podem sair-lhe caras - dísse o governador
em tom ameaçador, e partiu.
A noite, o sobrinho e a filha lançaram-se sobre Pedro,
açulados como cäes, sem respeito pela sua velhice:
- Que fizeste, pai? - gritava Tatiana, e os olhos
desorbitados saltavam do seu rosto sem beleza. Tiago, de pé,
junto da janela, batia com os nós dos dedos nos vidros, e
Artamonov tinha a impressäo 'de que o filho também o
desaprovava, enquanto Miron, cáustico, inquiria:
- Leu o que estava escrito nesse papel?
- Näo - disse Artamonov -, näo o li, mas sei-o; está lá
escrito que näo se deve deixar aos cäes demasiada liberdade.
Estava satisfeito por ver Miron e Tatiana zangados, mas o
silêncio de Tiago desconcertava-o; confiava na seriedade do
filho; tinha a impressäo de ter agido contra os seus
interesses, mas o amor-próprio impedia-o de arrastar Tiago
para a discussäo e perguntar-lhe o que pensava. Permanecia
deitado, resmungando e rugindo, e Miron, agitando o nariz,
repetia:
- Mas compreenda: o czar está rodeado por uma cáfila de
patifes, e é preciso que eles sejam substituídos por pessoas
honestas...
Artamonov sabia que Miron pretendia exactamente ser uma
dessas pessoas honestas, e que Alexis partira para Moscovo, a
fim de conseguir a designaçäo do filho como candidato à Duma
do Império. Era ao mesmo tempo rísível e alarmante ver
o seu ridículo sobrinho a dar conselhos ao czar. De súbito,
Alexis, chegou a correr e começou a grasnar e saltitar.
- Que fizeste, ó insensato?
Censurou-o como se falasse com um empregado.
- Vai para o diabo! - urrou Artamonov. - Querem dar-me
licença? Väo todos para o diabo! Ponham-se na rua!
Ele próprio ficou espantado com esta súbita explosäo de
cólera.
Agora, sentado num canto da sala, ouvindo o que Olga contava
sem azedume acerca da revolta na cidade, ele evocava esta
disputa, tentando compreender quem tinha razäo.
Ficara especialmente perturbado com a pueril irritaçäo de
Olga. Mas esta falava já com tranquilidade a até com ternura.
- Os nosos tecelÖes foram täo simpáticos! Correram
imediatamente com os operários de Voroponov e com os
curtidores! E 1á ficaram, para guardar a casa.
Natália, muito medrosa, choramingava:
- É da vossa casa que vem toda a desordem... É bem feito!
Tudo vem da vossa casa!
Miron chegou e, sem dar os bons dias, começou a andar pelo
quarto de um lado para o outro, mecanicamente, ameaçando:
- Isto há-de ficar-lhes caro a todos esses Voroponov e a
todos esses Jiteikine, por ensinarem o povo a revoltar-se. As
coisas näo ficaräo assim, häo-de pagá-las. As liçÖes de
revolta que däo os amigos de Elias Artamonov chegam. E se
estes se misturam também...
Artamonov näo respondeu.
Depois da cena da petiçäo de Voroponov, Miron tornara-se-lhe
definitiva e irremediavelmente odiento, embora continuasse a
ter a fábrica entre as suas mäos. Miron dirigia-se com
habilidade e segurança; os operários escutavam-no ou receavam,
agitando-se menos que os da cidade.
O vento diminuira e confundira-se com a neve espessa.
Esta caía, direita, pesada, em grossos flocos, tapando as
janelas como uma cortina branca: näo se via nada no pátio.
Ninguém falava a Artamonov, e este sentia que todos, com
excepçäo da mulher, o consideravam responsável por tudo:
revoltas, mau tempo, a má conduta do czar.
- Onde está Tiago? - perguntou a mäe com inquietaçäo.
- Onde está ele?
230 231
Miron franziu o nariz com desprezo e respondeu sem olhar a
tia:
- Deve estar escondido na cidade, no seu poleiro.
- O quê? Onde? - murmurou Natália, amed,rontada.
Artamonov pensou:
"Esta parva é capaz de náo saber que Tiago tem uma amante.
E, de súbito, declarou categoricamente:
- Bem, bem, vivam como quiserem! Trabalhem. Sim, é verdade:
já näo percebo nada disto. Estou demasiado velho...
O diabo é que sabe! Vivi, vivi, e cheguei ao ponto de nada
perceber.. .
Capitulo guarto
Até aos vinte e seis anos, Tiago Artamonov viveu feliz e
tranquilo, sem grandes aborrecimentos, mas, depois, o tempo,
inimigo dos homens que amam a vida pacífica, começou a
fazer partidas a Tiago. Tudo começou numa noite de Abril,
depois das desordens que abalaram o povo paciente.
Tiago fumava, estendido num divä, saboreando esta sensaçäo
de saciedade que näo deixa nenhum desejo, e que apreciava
acima de tudo, vendo nela todo o sentido da vida. Era täo
agradável, depois de um bom jantar como depois da posse de uma
mulher.
A mulher, roliça e bem proporcionada, estava no meio da
sala, perto da mesa, olhando sonhadoramente a chama violeta e
irritada do fogareiro de álcool, debaixo da cafeteria; os
braços nus e o rosto infantil, iluminados pela luz de uma
lâmpada com quebra-luz encarnado, revestiam-se de um tom de
crosta de pastel saborosamente dourado. Os seus cabelos
escuros desatados cobrem-lhe engraçadamente o pescoço e os
ombros; em cima do corpo nu, Paulina enverga um roupäo de
Bukhara amarelo-ouro, nos pés tem pantufas de marroquim verde.
Há nela qualquer coisa de muito leve, qualquer coisa que näo
é realmente russa.
Uma cara simpática de garoto, lábios carnudos, olhos
abertos, redondos como cerejas. Apesar de saciado dela, Tiago
sente ainda prazer em olhá-la. Ela é sem dúvida
incomparavelmente melhor do que todas as raparigas e mulheres
que conheceu; seria perfeita se näo fosse täo estúpída.
233
- Näo quero café, queridinha - disse Tiago por entre o fumo.
Paulina, sem o fixar, perguntou:
- E eu?
- Eu näo sei o que tu queres - respondeu Tiago, bocejando.
- Sim, tu sabes - recomeçou a mulher com voz caprichosa,
lançando as palavras e abanando a cabeça; durante um par de
minutos, Tiago escutou as suas observaçÖes azedas, depois
sentou-se, atirou com o cigarro fora e, calando os sapatos,
disse a seguir a um suspiro:
- Näo compreendo a tua insistência em estragar o nosso
contentamento. Sabes que näo posso casar contigo, enquanto o
meu pai for vivo...
Paulina, como habitualmente, cumulou-o de palavras
desagradáveis :
- Oh! tu, espécie de aranha, se um dia estiveres bem
disposto... Já te conheço: para ficares bem disposto serias
capaz de me vender ao algibebe, sim! Tu és um homem
desonesto...
Tiago ficava particularmente horrorizado quando lhe chamavam
aranha; nos momentos de ternura, ela chamava-lhe outro nome,
que o divertia: Sem Vergonha. E ele entendia que nesse dia,
pelo menos, ela teria podido evitar a discussäo; duas horas
antes, ele dera-lhe cem rublos.
- A gritar, nada conseguirás - replicou ele, calmo; pôs o
chapéu, estendeu-lhe a mäo: - Adeus.
- Indecente! Voltaste a deitar as beatas para o chäo...
Um vento húmido varria a rua; as sombras das nuvens lambiam
o chäo, como para levar os charcos; a Lua mostrava-se de vez
em quando e a água das poças, coberta por uma delgada camada
de gelo, brilhava como cobre. Naquele ano, o Inverno
teimava em näo ceder o lugar à Primavera; ainda na véspera,
caira uma grande neväo.
Tiago caminhava sem pressa, as mäos nos bolsos, a pesada
bengala debaixo do braço, reflectindo na estranha,
inexplicável estupidez das pessoas. Que lhe faltava a esta
simpática parvinha da Paulina?
I,eva uma vida calma, sem cuidados, recebe bastantes
presentes, veste-se bem, gasta mais de cem rublos por mês.
Tiago sabe, sente que lhe agrada. Que há-de querer mais?
Porque quer casar-se?
- É täo estúpida como um rato num frasco de compota -
concluiu, empregando um ditado de sua invençäo que repetia
frequentemente. A vida parecia-lhe simples, nada exigindo do
homem que ele näo possuísse. No fundo, era evidente que
todos os homens têm uma só aspiraçäo: a plenitude do repouso;
a agitaçäo do dia é apenas um prelúdio sem gosto à
tranquilidade da noite, a estas horas em que se fica frente a
frente com uma mulher, depois do que, voluptuosamente
satisfeito de carícias, se adormece num sono sem sonhos. Eis o
que é realmente importante e autêntico. A estupidez das
pessoas assenta no facto de todos, aberta ou secretamente, se
julgarem mais inteligentes do que os outros, imaginam-se assim
porque inventam, sem saber porquê, mil coisas supérfluas,
talvez devido a uma espécie de cegueira que os leva a
singularizarem-se pelo medo de se perderem entre os homens, e
de näo mais se reencontrarem.
Elias é parvo, os livros fizeram-lhe perder a cabeça, quando
andava ainda no liceu, e depois meteu-se com os socialistas.
Tiago recebera diversas afrontas, e ainda há pouco fora
necessário mandar-lhe dinheiro para a Sibéria. A mäe é de uma
estupidez insuportável, embora inofensiva. Mais insuportável
ainda e mais custosa, a estupidez do pai, velho urso pesadäo,
manifestamente incapaz de viver com os homens, sempre bêbado e
sujo. O tio Alexis, saltitante e agitado, é ridículo:
quer eleger o filho para a Duma e, para lá chegar, lê todos os
jornais, mostra-se amável para com as pessoas da cidade,
cumprimenta os operáríos, como uma rapariga da vida.
Mas sobretudo Miron, pivete de nariz comprido, é de uma
estnpidez atroz; convencido de ser o homem mais inteligente da
Rússia, vê-se já como ministro; näo esconde que só ele sabe o
que se deve fazer e como devem pensar todas as pessoas. Do
mesmo modo que o pai, tenta conquistar os operários;
interessa-se pelas suas diversÖes, organizou uma equipa de
futebol, fundou uma biblioteca: é querer apanhar os lobos com
cenouras.
234 " 235
Quanto aos operários, tecem o belo linho mas continuam
vestidos com andrajos, vivem no meio da porcaria e
embebedam-se. Também eles, na sua massa, estäo enfeitiçados
por uma estupidez que lhes é própria, e se mostra com impudor;
já nem têm a malícia vulgar dos camponeses. Tiago
preocupava-se mais com os operários do Que com todo o resto,
porque diariamente lidava com eles e porque, há muito tempo,
desde a juventude, näo gostava deles. Nessa época, tivera
graves conflitos com jovens tecelÖes por causa das raparigas,
e alguns dos seus rivais pareciam näo ter, até agora,
esquecido as ofensas. Quando era ainda imberbe, tinham-no
apedrejado por duas vezes, de noite. Diversas vezes, a mäe
teve de dar dinheiro para fazer esquecer o escândalo e obrigar
as mulheres a calarem-se. Entäo, admoestava-o de modo
singular:
- És um verdadeiro galo! Mas espera, ao menos, o casamento.
Ou, entäo, agarra numa delas e vive com ela. Se se queixarem
de ti ao teu pai, ele pôr-te-á fora de casa, como fez com o
Elias...
Durante os dois ou três anos de agitaçäo, Tiago nada
observara na fábrica de particularmente alarmante, mas os
discursos de Miron, os suspiros inquietos do tio Alexis, os
jornais que o mais jovem dos Artamonov näo gostava de ler e
que, com uma pressa inoportuna e um tom ameaçador näo
dissimulado, falavam do movimento operário e reproduziam os
díscursos dos deputados operários na Duma - tudo ísto
inspirava a Tiago antipatía pelas pessoas da fábrica, ao mesmo
tempo que o sentimento vexatório de depender deles. Julgava
ter aprendido a esconder habilmente este sentimento por
pequenas concessÖes às reivindicaçÖes, por sorrisos e graças.
Mas, em suma, as coisas näo iam muito mal. No entanto,
sentia-se por vezes bruscamente apreensivo e oprimido por
uma espécie de mal-estar, como se, ele, Tiago Artamonov,
o paträo, fosse há muito tempo o hóspede de homens que
trabalhavam para ele e que já estavam cansados disso,
contentando-se em olhá-lo, silenciosos e metidos consigo, mas
parecendo anunciar:
- Entäo, näo te vais embora? Já é tempo!
Nas horas em que tinha esta impressäo, pressentia
confusamente que um grande perigo, um perigo que o ameaçava
pessoalmente, se escondia, fervia invisível, na fábrica.
Tiago estava convencído de que o homem é simples, que acima
de tudo prefere a simplicidade, que, por si próprio, näo
inventa e näo pensa em coisas inquietadoras. Estas ideias
pouco claras vivem algures, para lá do homem, e só quando este
fica por elas contaminado deixa de ser ínteligível. Mais vale
näo conhecer, näo atear estes pensamentos asfixiantes. Mas por
mais hostil que lhes fosse, Tiago sentia que estes pensamentos
existiam fora dele, e via que sem conseguir desapertar os nós
corridos da estupidez geral, eles envolviam toda esta
simplicidade, esta clareza com que gostava de compor a sua
vida.
Entre todos aqueles com quem conversava, o velho Tikhon
parecia-lhe o mais inteligente; quando observava a sua atítude
calma para com as pessoas, a sua condescendência no trabalho,
Tiago invejava-o. Tikhon era inteligente, mesmo quando dormia:
fazia-o com a orelha colada ao chäo, como se espreitasse.
Um dia Tiago perguntou ao velho:
- Tu sonhas?
- Para quê? Näo sou uma mulher com cio - respondeu Tikhon e,
nestas palavras, Tiago sentiu algo de concentrado, de
repousante, de inabalavelmente forte.
"Sonhos de mulher com cio" - pensava o jovem Artamonov, ao
ouvir em casa do tio Alexis as conversas e as discussÖes. E
sorria interiormente. Mas, em geral, tinha dificuldade em
pensar: quando estava mergulhado nas suas reflexÖes caminhava
pesadamente, como se levasse um grande fardo e, a cabeça
baixa, olhava para os pés. Foi assim que, nessa noite, ao
voltar de casa de Paulina, näo viu surgir à sua frente uma
forma acinzentada e forte, que levantou a mäo; Tiago ajoelhou,
tirou do bolso do sobretudo um revólver, encostou-o à perna do
agressor e disparou; o tiro partiu, fraco e surdo, mas o
homem deu um salto para trás, bateu com o ombro numa parede,
estrebuchou e caiu por terra.
Só entäo Tiago sentiu muito medo, tanto que tentou debalde
gritar; as mäos tremiam e as pernas recusaram-se a
òbedecer-lhe quando quis erguer-se. A dois passos, um homem
sem chapéu, de cabelos ondulados, debatia-se no chäo, tentando
igualmente levantar-se.
- Vou matar-te, canalha! - afirmou Tiago com voz rouca,
apontando a mäo armada com o revólver. O homem voltou para ele
o rosto largo e balbuciou:
- Já me mataste, já chega...
Nessa altura, Tiago reconheceu-o e, surpreendido, balbuciou
por seu turno:
- Noskov? Mas és tu, meu patife?
O medo desaparecia rapidamente, transformando-se num
sentimento que se assemelhava à alegria e que vinha da
consciência de ter felizmente vencido a agressäo e, sobretudo,
pelo facto de o agressor näo ser um operário da fábrica, como
chegara a pensar, mas um estranho.
Noskov era um caçador que tocava acordeäo nos casamentos;
vivia só, tendo chegado à cidade em 1906, depois das
desordens; desde entäo, vivia em casa da viúva do diácono
Paraklitov e, até àquela noite, ninguém ouvira dizer mal dele.
- É entäo disto que tratas? - perguntou Tiago, erguendo-se e
olhando à volta.
Tudo estava silencioso, apenas o vento sacudia os ramos das
árvores por cima da parede.
- De que é que eu trato? - interrogou secamente Noskov, em
voz alta. - Quis dívertir-me, fazer-lhe medo, nada mais. E
você, logo - zás! Mas näo terá os agradecimentos,
acautele-se! Também eu tive medo...
- A sério? - disse Artamonov, com o tom altivo de um
vencedor. - Bem, levanta-te e vamos à esquadra.
- Näo posso andar, você estropiou-me.
Noskov pegou no chapéu, olhou para dentro e acrescentou:
- Para quem é da polícia, näo há receios.
- Verernos. Levanta-te!
- Näo a receio - repetiu. - Como poderá provar que fui eu
que o ataquei e näo você quem primeiro disparou? Esta é a
primeira.
- Bom. E a segunda? - perguntou Tiago com um sorriso
sardónico, apesar de surpreendido com a calma de Noskov.
- Em segundo lugar, sou um homem útil para si.
- Isso säo histórias. Fábulas!
E, apontando o revólver à cara do tocador de harmónio,
Tiago, subitamente furioso, ameaçou-o:
- Vou partir-te a cara!
Noskov levantou os olhos, depois baixou-os em direcçäo ao
chapéu, declarando pausadamente:
- Näo faça escândalo. É rico mas nada conseguirá provar.
Digo que queria divertir-me. Conheço o seu pai, toquei muítas
vezes harmónio para ele...
Com um gesto brusco, pôs o chapéu na cabeça e arregaçou a
calça, grunhindo; depois, tirando do bolso um lenço, atou-o à
perna ferida, acima do joelho. Näo deixava de resmungar, mas
Tiago, desorientado com a singular conduta do autor da
agressäo falhada, já näo escutava o que ele dizia.
Com uma vivacidade que näo lhe era habitual, Tiago Artamonov
reflectia; evidentemente, Noskov devia ficar ali, encostado à
parede, ele devia voltar à esquadra, chamar um polícia para
que vigiasse o ferido, e ir em seguida à esquadra contar a
agressäo. Mas far-se-ia um inquérito, Noskov contaria as
loucuras do pai em casa da viúva do subdiácono. Tinha
provavelmente amigos, brigÖes do seu género que procurariam
vingá-lo. Mas o homem näo podia ficar sem castigo...
A noite tornava-se cada vez mais glacial; sentia frio na mäo
que segurava o revólver; a esquadra ficava longe, e certamente
toda a gente dormia naquele momento. Tiago furgava, irritado,
näo sabendo que resolver, lamentando näo ter morto logo o
homem, que tinha as pernas arqueadas, como se tivesse passado
a vida dentro de um tonel. De súbíto, ouviu palavras cujo
carácter inesperado o agitou:
- Vou falar-lhe com franqueza, embora se trate de um segredo
- dizia Noskov, sempre às voltas com a perna. - Se continuo
aquí, o interesse só é seu, pois vigio os seus operários. Foi
talvez propositadamente que tentei amedrontá-lo, mas, na
realidade, devia prender um homem, mas, afinal enganei-me. . .
- Diabo! - disse Tiago. - Quem?
- Näo o sabeis, mas em casa da viúva do subdiácono, no
238 " 239
balneário, reunem-se os socialistas e falam aixxda em revoltas
lêem livros...- Näo é verdade - respondeu Tiago em voz baixa,
embora convencido de que o era. - E quem? Quem se reune?
- Näo posso dizer-lho. Quando os prenderem, sabê-lo-á.
Noskov, encostando-se à parede, ergueu-se e disse:
- Empreste-me a sua bengala, pois de outro modo näo poderei
andar.
Tiago, baixando-se, apanhou a bengala, deu-a a Noskov e
voltando-se perguntou.
- Foi entäo por isso que te... que se atirou a mim?
- Eu näo me atirei contra si. Enganei-me. Esperava outra
pessoa. Deixe lá. Näo pense mais no caso. Em breve, verá que
falo verdade. Queria que me desse dinheiro para eu me tratar.
E é tudo.. .
Encostado à parede e à bengala Noskov arrastava lentamente
as pernas arqueadas, afastando-se das hortas, em direcçäo às
casas negras dos arredores da cidade. Andava como se
perseguisse as sombras frias das nuvens e, quando se afastou
uma dezena de passos, chamou em voz baixa:
- Senhor!
Tiago aproximou-se rapidamente, Noskov declarou:
- Nem uma palavra a ninguém acerca deste incidente! De
outro modo... acho que me compreende...
Agitou a bengala e continuou o seu caminho, deixando Tiago
confundido. Devia pensar em muitas coisas ao mesmo tempo e
decidir imediatamente se agira como convinha. Evidentemente,
se Noskov vigia os socialistas, é um homem útil e até
necessário, mas é capaz de ter mentido, enganado Tiago para
ganhar tempo e vingar-se, depois, do seu fracasso e do tiro de
revólver? Mentiu ao dizer que se enganara, é evidente. E se
tivesse sido incitado pelos operários a matá-lo? Entre os
tecelÖes da fábrica, havia um grupo importante de faladores,
agitadores, mas era difícil acreditar que, entre eles,
existissem socialistas. Os operários mais sérios, tais como
Sedov, Krikunov, Maslov e o" outros, tinham sido os primeiros
a pedir recentemente, e até a exigir, o despedimento de um dos
mais incorrigíveis provocadores de desordens. Näo, Noskov
devia tê-lo enganado. Devia falar do incidente a Miron? Noskov
disse:
- Dentro em breve, há-de ver que digo a verdade.
Tiago acompanhou com os olhos o caçador, até que este
desapareceu a coberto da noite. Primeiro, tudo parecia simples
e ciaro: Noskov atacara com evidente propósito de roubar, e
Tiago disparara sobre ele. Mas, em seguida, surgia algo de
inquietante, de complicado, que se assemelhava a um mau sonho.
Noskov seguia ao longo da parede com uma pressa estranha;
atrás dele, as sombras erguiam-se em forma esquisita de
farrapos singularmente espessos; era a primeira vez que Tiago
via as sombras arrastarem-se täo pesadamente atrás de um
homem.
Agitado, fatigado pelas suas reflexÖes, o jovem Artamonov
resolveu calar-se e esperar. Mas näo deixava de pensar em
Noskov; tornava-se aborrecido, sentia-se adoentado e, à hora
do almoço, quando os operários saíam das oficinas, de pé,
junto da janela do escritório, examinava-os e tentava
adivinhar quem, de entre eles, era socialista. Seria, por
exemplo, o mecânico Vaska, coxo e negro de fuligem, a quem
Serafirn ensinara a compor cançÖes täo engraçadas?
Passados alguns dias, Tiago passeava a cavalo quando avistou
na orla da floresta o gendarme Nesterenko, com uma blusa de
couro, calçado de grossas botas, a espingarda na mäo, o
cinturäo cheio de caça. O rosto voltado para a floresta, as
costas para a estrada, Nesterenko, a cabeça pendida, as mäos
levantadas para as faces, acendia um cigarro; iluminado pelo
sol, as suas costas de couro coçado pareciam de ferro. Tiago,
tomando uma brusca decisäo, aproximou-se do gendarme e disse
de afogadilho:
- Näo sabia que andava por aqui!
- Há três dias que a minha mulher está cada vez pior.
Nesterenko anunciou a notícia com muita animaçäo, e
acrescentou, batendo no cituräo:
- E está a ver, eu. .. Nada mau, hein?
- O senhor conhece Noskov, o caçador? - perguntou Tiago em
voz baixa.
Surpreendido, as sobrancelhas louras do homem abriram-se,
240 " 241
os bigodes à chinês mexeram-se, apanhou uma das pontas,
piscou os olhos fixando o céu. Vendo-o assim, Tiago disse:
"Ele vai mentir. "
- Como é que disse? Noskov? Quem é?
- Um caçador. Tem o cabelo às ondas e as pernas tortas...
- Sim? Creio que já vi um tipo assim na floresta. Tem má
pontaria... Mas porque faz a pergunta?
Entretanto, o gendarme näo largava o rosto de Tiago, atento
e interrogador, os olhos cinzentos de pupilas marcadas por um
ponto claro.
Tiago contou resumidamente o que se passara com Noskov.
Nesterenko escutava-o, olhando o chäo, onde, com a coronha
da espingarda, esmagava uma pinha. Depois, perguntou sem
levantar os olhos:
- Porque näo falou nisso à polícia? Isso é com ela, e era
também o seu dever.
- Mas se ele diz que vigia os operários, isso também lhe
respeita a si...
- Bem - retrucou o gendarme apagando o cigarro de encontro à
madeira da espingarda. E, olhando de novo Tiago com os olhos
semicerrados, falou com ar importante, em termos ambíguos;
segundo o que ele dizia, Tiago näo devia ter escondido à
polícia a tentativa de agressäo, mas agora era demasiado tarde
para a denunciar.
- Se o tivesse levado imediatamente à esquadra, tudo se
esclarecia! Mas, hoje, como poderia provar que foi ele quem o
atacou? Ele ficou ferido? Sabe, o medo pode fazer disparar
sobre um homem... Acidentalmente, sem intençäo, por
imprudência. ..
Tiago percebeu que Nesterenko estava a usar de manha,
embrulhava as coisas de propósito e parecia até querer
intimidá-lo, como para acabar com a conversa. E quando aludiu
à possibilidade de um tiro disparado por medo, as suspeitas de
Tiago reforçaram-se: "Ele está a mentir.
- Sim, meu caro. Já que ele se faz passar por bufo, o
pássaro pagará. Havemos de lhe perguntar o que sabe.
E, pondo a mäo no ombro de Tíago, disse:
- Dê-me a sua palavra de honra de que toda esta conversa
242
fica entre nós. O interesse é seu, compreende? Posso contar
com a sua palavra?
- Mas com certeza.
- Näo falará em nada ao seu tio nem ao seu primo. " certo
que ainda näo lhe falou? Bem, deixemos que tudo continue o seu
rumo. E nem uma palavra a ninguém! De acordo? O caçador
feriu-se a si próprio, o senhor nada tem a ver com o caso.
Tiago sorria: agora era um homem diferente, afável e alegre,
que lhe falava.
- Até outro dia - despedia-se o gendarme. - Lembre-se: conto
com a sua palavra.
Artamonov regressou a casa mais tranquilo; à noite, o tio
mnvidou-o a acompanhá-lo à capital; aceitou com prazer. Mas
passados oito dias, no regresso, quando almoçava com o tio,
ouviu com redobrada inquietaçäo o que contava Miron:
- Nesterenko é mais esperto do que eu julgava: apanhou três,
na cidade: o professor Modestov e mais dois.
- E na fábrica? - inquiriu Tiago.
- Também levou alguns: Sedov, Krikunov, Abramov e mais cinco
rapazes. Os gendarmes da capital é que vieram buscá-los, mas a
coisa deve ter sido preparada por Nesterenko, de modo que a
doença da mulher serviu-nos para alguma coisa.
Sim, ele näo é parvo. Tem medo que o matem...
- Já näo se mata ninguém - observou Alexis.
- Hum.. . - fungou Miron. - Na cidade, também prenderam esse
caçador. . .
- Noskov? - perguntou em voz baixa Tiago, amedrontado.
- Näo sei. Vivia em casa da viúva do subdiácono. Era na casa
dela, no balneário, que os revolucionários se reuniam,
enquanto o teu pai se divertia, em casa, com a viúva, como
deves saber. Perigosa rnincidência...
- Claro, claro - comentou Alexis, abanando a cabeça calva.
Mas que queres que lhe façam?
Os olhos de Tiago obscureceram-se e já näo pôde ouvir o que
contavam o tio e o primo. Dizia para consigo: Noskov foi
preso, é evidente que é também um socialista e näo um ladräo,
e que foram os operários que lhe ordenaram que matasse ou
243
ferisse o seu paträo - os operários que ele, Tiago, julgava
mais sérios e pacíficos! Sedov, que já näo era novo e andava
sempre bem vestido, o serralheiro Krikunov, alegre e delicado,
o simpático Abramov, bom cantador, operário hábil em todas as
coisas. Podia lá supor que eles eram também seus inimigos?
Teve igualmente a impressäo de que, nos últimos dias, o
rumor e a agitaçäo tinham aumentado na casa do tio. Iakovlev,
o médico dos dentes de ouro, que nunca dizia bem de ninguém e
olhava sempre para longe, com olhos estranhos, fazia-se notar
ainda mais; brandia os jornais com ar ameaçador:
- Sim - gritava fazendo rebrilhar os dentes - começam a
mexer-se, a despertar. As pessoas parecem-se com criados
preguiçosos que, ao saberem da chegada inesperada dos donos
e, receando ser despedidos, se apressam, fustigados pelo medo,
a vat"rer, limpar, pôr em ordem a casa mal dirigida.
- Os seus discursos säo ambíguos, doutor - replicava Miron
com um esgar. Sempre anarquista, céptico...
Mas o médico falava cada vez mais alto, os seus discursos
alongavam-se, as suas palavras inquietavam Tiago. De resto,
todos pareciam ter medo, predizendo uns aos outros desgraças
iminentes, ateando mutuamente os seus receios. Era até de
admitir que as pessoas receavam os seus próprios actos,
pensamentos e palavras. Para Tiago, era o resultado do aumento
da estupidez geral; pelo contrário, o seu medo, longe de ser
imaginário, tinha razäo de ser; sentia que lhe tinham feito um
nó invisível à volta do pescoço, um nó que se apertava cada
vez mais e o arrastava para uma grande e inevitável desgraça.
Este medo aumentava ainda quando, passados dois meses,
Noskov reapareceu na cidade, e Abramov, o crânio rapado, magro
e amarelo, voltou à fábrica:
- Dá-me outra vez trabalho? - perguntava sorrindo.
Tiago näo ousou recusar.
- l"Täo se está bem na cadeia?
Abramov, sorrindo sempre, respondeu:
- Está-se pouco à vontade! Se o tifo näo ajudasse o governo,
näo sei onde poderia meter as pessoas.
uSim - pensou Tiago, depois de aceitar o teceläo - tu
sorris, mas eu sei em que pensas.
Na mesma noite, Miron fez-lhe, por causa de Abramov, uma
cena violenta, quase o injuríou, bateu mesmo com o pé no chäo,
como se falasse a um lacaio:
- Tu és doido! - gritava, e o seu nariz tornava-se mais
encarniçado de furor. - Paga-lhe já amanhä. . .
Decorridos alguns dias, Tiago, que, de manhä, se banhava
no Oka, foi abordado pelo tenente Mavrine e por Nesterenko.
Aproximaram-se num barco todo cheio de canas de pesca; o
fleumático tenente fez silenciosamente um sinal a Tiago com a
cabeça e logo se afastou para o meio do rio, enquanto
Nesterenko dizia em voz baixa ao despedir-se:
- O senhor fez mal em ter despedido Abramov; lamento muito
näo ter podido avisá-lo.
- Foi Miron - balbuciou Artamonov, respirando o pronunciado
cheiro a álcool que se desprendia da boca do gendarme.
- Sim? - observou Nesterenko. - Mas isso näo dependia de si?
- Näo.
- Näo?
- " pena. Esse homem ter-nos-ia sido útil. L uma boa isca.
E, olhando Tiago com olhos cúmplices, todo nu, dourado ao
sol, a pele brilhante como escamas de uma carpa, o gendarme
inquiriu:
- Voltou a ver o seu amigo caçador?
Nesterenko riu baixinho como homem satisfeito de si próprio.
- Sabe porque é que ele o atacou? Queria comprar uma
espingarda de dois canos. As paixöes, säo sempre as paixÖes
que guiam os homens, meu caro! Este caçador ser-nos-á muito
útil, agora que lhe aperto as goelas, graças ao erro que
cometeu consigo. . .
- Qual erro? Pois se me diz que...
- Um erro, meu amigo, um erro! - repetiu com insistência
244 245
e, agitando a água, fazendo o sinal da cruz sobre o
peito, meteu-se no rio, marchando como um cavalo.
"Que o diabo vos leve a todos!" - pensou Tiago tristemente.
De súbito, como se se tivesse fechado a porta de um quarto
cheio de ruídos, veio a morte.
A meio da noite, Tiago foi acordado pela mäe toda lacrimosa:
- Levanta-te, depressa. Tikhon acaba de chegar com a notícia
de que morreu o tio Alexis.
Tiago egueu-se num pulo, gaguejando de espanto:
- Mas como? Ele nem sequer estava doente...
Cambaleante, respirando com dificuldade, o pai entrou no
quarto.
- Tikhon - resmungou. - Onde ele está nada de bom há a
esperar. Vês, Tiago? Assim, de repente...
Descalço, um roupäo sobre a camisa de noite, coçava a
orelha, olhava à sua volta, como se estivesse num lugar
desconhecido, e arquejava.
" Como foi? " - pensava Tiago.
- Morreu sem se confessar - disse a mäe, que parecia um
enorme saco de farinha.
Partiram no carro. Tiago, sentado no lugar do cocheiro,
olhava Tikhon correr à sua frente, a cavalo, enquanto a sua
sombra se espraiava de lado e dançava sobre a estrada como a
enfiar-se pelo chäo.
Olga recebeu-os no pátio; ia e vinha, de um lado para outro,
vestida com uma saia branca e uma camisola; sob a claridade da
Lua, parecia azulada, transparente, e era de admirar que
uma sombra escura projectasse a sua silhueta nas pedras lisas
do pátio.
- A minha vida acabou - disse suavemente.
HKutchum", um cäo negro, seguia-lhe os passos.
Curvado pelo meio, Miron estava sentado num banco, sob a
janela da cozinha; numa das mäos tinha um cigarro aceso, na
outra baloiçava os ócvlos cujas lentes brilhavam, assim a
armaçäo dourada. Sem óculos, o nariz de Miron ainda parecia
mais comprido; Tiago, em silêncio, sentou-se-lhe ao lado,
enquanto seu pai, de pé, olhava a janela aberta, um a um
mendigo esperando a esmola. Olga dizia a Natália numa voz
exaltada, prescrutando o céu:
- rläo vi rnmo aconteceu. Num instante, o ombro fimu-lhe
frio mmo a morte, a boca entreaberta. Nem sequer teve tempo, o
meu querido, de me dizer uma derradeira palavra.
Ontem, queixava-se do coraçäo.
Olga falava baixinho e sombras pareciam cair também das
suas palavras.
Miron, atirando com o cigarro apagado, encostou a cabeça
ao ombro de Tiago e gemeu docemente...
- Näo calculas como ele era bom...
- Que queres? - respondeu Tiago, sem achar outras palavras.
Tinha de dizer também qualquer coisa à tia, mas o quê?
Calou-se, fï"ando o chäo, arrastando os pés.
O pai, soprando, seguiu com a precauçäo para a casa; Tiago
foi atrás dele, na ponta dos pés. O tio estava deitado,
coberto com um lençol; na cabeça, viam-se as pontas do lenço
atado à volta do queixo; os pés inchados pareciam querer furar
o lençol. A Lua, encoberta de um lado, deitava pela janela um
olhar claro, a musselina da rnrtina megia-se; no pátio, o cäo
uivou e, mmo para 1he responder, o velho Artamonov exclamou
alto, persignando-se:
- Viveu sem custo, e sem custo morreu...
Pela janela, Tiago avistava agora Vera Popov, toda de negro
como uma religiosa, andar pelo pátio, ao lado da sua tia.
De novo Olga, ergaendo a voz, mntava:
- Morreu a dormir...
- Näo te faças esperto! - resmungou Vialov dando ao cavalo
uma porçäo de feno; sacudia a cabeça pata impedir que o animal
1he apanhasse a orelha. O velbo Artamonov veio à janela e
grunhiu:
- Ele resmunga, o idiota, näo entende nada...
"cNäo se deve dizer nada" - pensou Tiago e, saindo para
o patamar, olhou as sombras branca e negra das duas mulheres
246 I 247
varrendo o pó das pedras que se tornavam mais ciaras.
A mäe conversava com Tikhon, que aprovava com a cabeça, e o
cavalo acenava da mesma forma; no olho, luzia-lhe uma
mancha de cobre. Pedro Artamonov saiu de casa e a mulher
disse-lhe:
- Deviam mandar um telegrama a Nikita; Tikhon sabe onde ele
está.
- Tikhon sabe! - repetiu Pedro írritado. - Miron, anda, vai
lá!
Miron levantou-se, saiu, chocou no batente da porta com o
ombro e acariciou-o.
- Previne também Elias! - gritou-lhe nas costas o velho
Artamonov, de pé, encostado à parede. Miron respondeu:
- Elias näo pode vir.
- Vivi com ele trinta anos - contava Olga, que parecia ela
própria surpreendida com as suas palavras. - E, antes do
casamento, já nos conhecíamos há quatro anos. O que é que vou
fazer agora?
Pedro aproximou-se de Tiago:
- Onde está Elias?
- Näo sei.
- Estás a mentir!
- Näo é altura de se falar em Elias, pai.
O doutor Iakovlev entrou, com o passinho curto e perguntou
ainda no pátio:
- Está no quarto dele?
Imbecil - pensou Tiago. - Näo o ressuscitarás.
A impossibilidade de fugir a estas horas de tristeza
abatiam-no. A sua volta, tudo era penoso, inútil: as pessoas,
as suas palavras, o cavalo ruço luzindo ao luar como bronze e
este cäo negro que sofria em silêncio. Parecia-lhe que, ao
falar da sua vida feliz com o marido, a tia Olga se gabava: a
sua mäe, num canto, soluçava com estrépito mas sem vontade; o
seu pai tinha os olhos fixos, o rosto parado; numa palavra,
tudo era pior e mais difícil do que julgara.
No dia em que enterraram o tio Alexis, no momento em que,
sobre o caixäo já descido na cova, atiravam punhados de
areia amarela, apareceu o tio Nikita.
" Bem precisávamos deleH - pensou Tiago olhando o frade
encostar a sua silhueta angulosa a uma bétula que outrora ele
próprio plantara.
- Chegas tarde - observou o pai aproximando-se de Nikita e
limpando as lágrimas do rosto; o frade, como uma tartaruga,
enfiou a cabeça na corcunda. Tinha um aspecto lastimoso; a
sotaina desbotara com o Sol, o capuz adquirira uma cor de
balde velho de ferro branco, as botas estavam rotas.
O rosto cheio de pó inchara; os olhos esgaseados fixavam as
costas das pessoas que rodeavam a cova; falava ao irmäo num
voz indistinta, a barbicha grisalha tremia. Tiago olhou à sua
volta, furtivamente; dezenas de olhos miravam o frade,
curiosamente; com certeza, aqueles que olhavam este enfermo,
irmäo e tio de ricos personagens, esperavam algum escândalo.
Tiago sabia que toda a cidade estava convencida de que
os Artamonov tinham afastado o irmäo para um convento, a fim
de o desapossarem da sua parte da herança, depois da
morte do seu pai.
Com uma voz de tenor, o padre Nicolau, gordo e afável,
exortava Olga:
- Näo ofendamos o Senhor com os nossos gemidos e as nossas
lágrimas, pois é a Sua vontade. . .
E Olga, sempre com a mesma voz exaltada, respondia:
- Mas eu näo choro, eu näo me queixo. ..
As mäos tremiam-lhe; com gestos estranhamente conwlsivos,
apalpava a saia, procurava esconder no bolso a bola do
seu lenço molhado de lágrimas.
Tikhon, para ajudar o guarda do cemitério, enchia o coval;
ao lado, Miron parecia petrificado, enquanto o frade corcunda
dizia baixinho a Natália numa voz lastimosa:
- Como mudaste! Näo te reconheceria.
E, tocando com o dedo na sua corcunda da frente, acrescentou
estas palavras deslocadas e inúteis:
- A mim todos me reconhecem. Aquele é o teu filho Tiago? E o
outro, o alto, é o de Alexis, Miron? E as raparigas?
Elas näo estäo cá? Vamos embora, vamos...
Tiago ficou no cemitério. Pouco antes, tinha descoberto
Noskov entre a assistência, no meio dos operários; o caçador,
248 ", 249
ao passar à sua frente na companhia de Vaska, o mecânico rngo,
lançara a Tiago um olhar mau e interrogativo. Em que pensava
este homem? Näo podia deixar de sentir rancor aquele que lhe
dera um tiro e que podia tê-lo morto.
Tikhon aprogimou-se e, sacudindo a areia do casarn, disse:
- Ele tinha pena deles, o paträo, e no entanto... E Nikita,
que está täo magro...
- Há aqui um caçador, Noskov - remmefou Tiago. -
parou.
- O quê?
- Os operários lastimam o meu tio...
- Cenamente.
- Há aqui um caçador, Noskov - recomeçou Tiago.-
Queria falar-te dele...
- Um cavalo cai, todos o lastimam - mntinuava Tikhon,
pensativo. - O paträo vivia a correr, e morreu à força de
andar depressa. Como se tivesse ido de encontro a qualquer
misa. Ainda ns véspera de morrer me dizia...
Tiago calou-se, mmpreendeu que as suas palavras näo seriam
ouvidas pelo velho. Queria falar a Tikhon, pois desejava falar
no caso a alguém. O pensamento de Noskov torturava-o mais do
que todo o resto.
Na véspera, na cidade, este homem de pernas arqueadas,
de cara estúpida de soldado, aprogimara-se dele, na esquina
de uma rua, tirara a boins e, olhando em frente, voltara-se e
dissera:
- Tenho uma dividazinha a rnbrar-lhe. Prometeu-me qualquer
misa para tratar a perns. Aliás, o seu tio acaba de morrer,
será pelo descanso de sua alma. E eu tenho uma oportunidade -
um belo harmónio para divettir o seu paps. . .
Tiago, embasbacado, olhava-o sem nada dizer. E Noskov
juntara, sentencioso e categórim:
-E como trabalho por si mntra os inimigos da Rússia...
- Quanto? - perguntou Tiago.
Depois de uma pausa, Noskov respondeu:
- Trinta e cinco rublos...
Tiago deu-lhe o dinheiro e afastou-se, quase s rnrrer,
indignado, medroso.
KToma-me por um imbecil, julga que tenho medo dele, o
parvalhäo! Espera pela volta... "
E agora, ao regressar lentamente a casa, Tiago só pensava
nos meios de se desembaraçar deste homem que com certeza
procurava arrastá-lo para o matadouro, como um boi.
As horas barulhentas da refeiçäo do funeral prolongavam-se
indefinidamente. As pessoas diveniam-se fazendo cantar o
diámno e os chantres diversos eRequiem". Jiteikine embebe-
dara-se de tal modo que teve a indecência de derlamar,
brandindo o garfo ameaçador:
Os combatentes tonbam com os dias passados
E com as batalhas em que lutaram...
Estêväo Barski, enquanto metiam no carro o seu corpo
mole como um travesseiro de penas, desfazia-se em
cumprimentos:
- Meu amigo, gostava verdadeiramente do teu irmäo. Um jantar
como este näo se esquece fàcilmente!
Tiago ouviu o pai, que tinha bebido bem, responder,
irónicamente e aborrecido:
- Bem depressa o esquecerás, para voltares com as tuas
patifarias.
Fora o pai que rnnvidara Jiteikine, Barski, Voroponov e
outras pessoas importantes da cidade, contra a vontade de
Miron, visivelmente indignado. Ficou à mesa apenas meia
hora, depois levantou-se e saiu. Olga eclipsou-se
discretamente atrás dele, seguida pourn depois pelo frade,
importunado sem dúvida pelas perguntas que os convivas, meio
embriagados, lhe faziam acerca da vida no convento. O velho
Artamonov conduzia-se como se quisesse ofender toda a gente,
e, até ao fim do repasto, Tiago esperou uma discussäo entre o
pai e os convidados.
A mäe, incomodada pelas atençöes de Vera Popov pela tia
Olga, aborreceu-se e saiu. Pedro Artamonov teimou em dormir no
escritório de Alegis. Tiago achava tudo isto absurdo, baroco,
inútil, e enervava-se mais ainda. Depois de se deitar
uma hora ou duas num divä, esperando baldadamente o sono,
250 " 251
veio para o pátio e viu ao lado de Tikhon, sentada num banco
sob a janela da cozinha, a forma escura do frade, que lembrava
singularmente uma máquina partida. Quando tirava o capuz da
cabeça calva, Nikita parecia mais pequeno, mais largo, o rosto
engelhado tinha um aspecto infantil. Segurava um copo na mäo
e, no outro banco, estava uma garrafa de kvass.
- Quem está aí? - interrogou suavemente. E logo respondeu a
si próprio:
- "s tu, Tiago? Vem sentar-te um pouco com os velhos.
E, erguendo o seu copo à Lua, achou o líquido turvado.
A Lua desapareceu para além da torre da igreja, envolvendo-a
numa luz brumosa e argêntea, fazendo-a assim ressaltar
bizarramente da quente penumbra nocturna. Sobre a torre, as
nuvens davam a ideia de enormes nódoas sobre veludo azul.
uKutchum", o cäo preferido de Alexis, percorria
melancolicamente o pátio, cheirando a terra; ia, cheirava e,
de súbito, a cabeça voltada para o céu, uivava profunda e
interrogativamente.
- Basta, " Kutchum" - disse Tikhon a meia voz.
O cäo chegou-se, colocou a sua grande cabeça entre os
joelhos de Tikhon e uivou outra vez.
- Ele sente - disse Tiago. Näo lhe responderam, mas sentia
vontade de falar para näo pensar mais.
- Digo que ele compreende - repetiu com insistência.
O velho observou com ternura:
- Näo há dúvida.
- Em Suzdal, o cäo do convento reconhecia os ladrÖes pelo
cheiro - acrescentou o frade.
- De que estavam a falar - perguntou Tiago.
O frade bebeu kvass, limpou os beiços com a manga da túnica
e respondeu abrindo a boca desdentada:
- Tikhon verificou que as pessoas mostram de novo tendência
para se revoltar. Tudo indica que sim. Pensa-se
muito.. .
- Säo os negócios que os preocupam - afirmou Tikhon
brincando com as orelhas do cäo.
- Mande o cäo embora - ordenou Tiago. Ele traz pulgas.
O velho tirou dos seus joelhos as patas de eKutchum" e
empurrou-o com o pé. O rabo encolhido, o cäo sentou-se e duas
vezes uivou tristemente.
Os três homens olharam-no e um deles teve este breve
pensamento: Tikhon e o frade tinham talvez mais pena do cäo
que ficara órfäo do que do seu dono que acaba de ser
enterrado.
- Haverá uma revolta - disse Tiago olhando prudentemente os
cantos sombrios do pátio. Lembras-te, Tikhon, quando prenderam
Sedov e os seus camaradas?
- É claro.
O frade tirou do bolso da sotaina uma caixinha de ferro,
tomou uma pitada de rapé, dizendo ao sobrinho:
- Vês, também faço isto. É bom para os olhos, e a minha
vista diminui.
Espirrou e continuou:
- Mesmo nos campos, prendem pessoas...
- Há espiÖes em toda a parte - concluiu Tiago, esforçando-se
por falar com naturalidade. -Espiam toda a gente.
Tikhon pronunciou-se:
- Se espiam, nada saberäo...
Tiago, indeciso, murmurou, arrepiado com a fresquidäo
nocturna ou devido ao medo:
- Entre nós, também os há. Correm estranhos boatos sobre
Noskov, o caçador. Ele é que teria denunciado Sedov e todos os
da cidade. ..
- Que imbecil! - exclamou Tikhon passado um momento.
Estendeu a mäo para o cäo, mas logo a assentou no joelho;
Tiago verificou que näo devia ter falado e que as suas
palavras cairam no vazio. Näo pôde, no entanto, impedir-se de
prevenir Tikhon:
- Mas näo fales a ninguém de Noskov...
- Falar para quê? Isso näo é comigo. De resto, a quem havia
de falar? Ningúém acredita em ninguém.
- Sim - disse o frade - já näo se acredita em nada.
Falei depois da guerra com os soldados feridos, e vi que eles
também näo acreditavam já na guerra! Em toda a parte, ferro,
Tiago, ferro, máquinas. A máquina trabalha, a máquina canta,
fala! Säo homens novos, homens de ferto necessários para
252 " 253
esta existência de ferro. Há-os que o sabem, e eu encontrei
alguns! Dizem: Mostraremos o que somos aos que säo moles!
Outros, pelo contrário, ficam ofendidos. Ser mandado por um
homem, já se está habituado, mas pelo metal é vexatório! O
machado, o martelo, tudo o que se pode segurar na mäo, já é
habitual mas um objecto de mil e quinhentos quilos... e
que, todavia, parece vivo!... Tikhon suspirou, depois com um
rir diferente, desconhecido de Tiago, e exclamou:
- Vai o carro à frente dos bois! Ah!, demónios!
- E há muitos descontentes - prosseguiu o frade. - Durante
três anos viajei por toda a parte, vi. Ah! sim!, eles es-
täo cheios de cólera! E näo é contra o que devia ser. É a de
uns contra os outros. O mundo é culpado, tanto pela
inteligência como pela estupidez. E foi o padre Gleb que mo
disse e tinha razäo.
- Ele ainda é vivo? - perguntou Tikhon.
- Deixou de ser padre - retorquiu Nikita. Vende livros pelas
feiras.
- Era um bom padre - observou Tikhon. Ia confessar-me a ele.
Mas só por ser pobre é que fazia de padre, pois julgo que näo
acreditava em Deus.
- Näo, acreditava em Cristo. Cada um crê à sua maneira.
- Daí a confusäo - garantiu Tikhon, com firmeza, e de
novo teve um sorriso malévolo.
O velho Artamonov, descalço, em camisa de noite, veio
sem ruído até ao patamar, olhou o céu pálido e disse aos que
estavam sentados debaixo da janela:
- Näo consigo dormir. Por causa do cäo. Além disso, vocês
estäo para aí a grunhir.. .
No meio do pátio, as orelhas espetadas, o cäo uivava de vez
em quando e olhava o buraco negro da janela aberta, esperando
sem dúvida que o dono o chamasse.
- E tu, Tikhon, martelas sempre as mesmas coisas - recomeçou
Artamonov. Olha-o, Tiago: aqui está um homem que teimou na sua
ideia como um lobo caído na armadilha. O mesmo aconteceu ao
teu irmäo. Sabes o que aconteceu a Elias, Nikita?
- Ouvi já falar.
- Sim, pu-lo na rua. Saltou para cima de um cavalo que näo
lhe pertencia e partiu a galope. Para onde? " certo que
nem todos renunciariam à riqueza para ir viver näo se sabe
aonde...
- Alexis, homem de Deus, fez o mesmo - lembrou de
mansinho Nikita.
O velho Artamonov levou a mäo á testa, permaneceu um
bocado em silêncio, depois caminhou para o jardim dizendo a
Tiago:
- Traz-me um cobertor e almofadas; talvez aqui possa dormir.
Obeso, todo de branco, os cabelos despenteados, o rosto
inchado, a cor terrosa, quase metia medo.
- Näo deves falar de máquinas, Nikita - disse, parando no
meio do pátio. - O que sabes tu de máquinas? A tua missäo é
falar de Deus. As máquinas näo molestam ninguém...
Tikhon interrompeu-o, irreverente e teimoso:
- Por causa das máquinas, a vida encarece e há mais barulho.
Artamonov, afastando com um gesto tais palavras, seguiu
lentamente para o jardim, enquanto Tiago, marchando à sua
frente com almofadas, pensava, moroso e descontente:
aParentes: um pai; um tio, mas de que me servem? Näo
me ajudam nada.:a Pedro Artamonov näo convidou o irmäo a
instalar-se em sua casa; o frade firnu em casa de Olga, num
sótäo, depois de ter avisado que näo permaneceria muito tempo.
Quase näo o viam; só aparecia quando rezavam; tratava do
jardim, cortava os ramos secos, arrastava-se pelo chäo como
uma tartaruga, arrancava as ervas daninhas. Cheio de rugas, só
ossos, dirigia-se às pessoas em voz baixa rnmo para lhes
confiar segredos importantes. Invocando a sua má saúde, sou ia
à igreja, rezava pouco em casa, näo gostava de falar de
Deus e evitava claramente todo este género de conversas.
Tiago verificava que o frade passara a ter por Olga viva
ami7."de, que a taciturna Vera Popov o estimava e que o
próprio Miron, quando escutava o tio falar das suas
peregrinaçÖes e da próxima viagem, näo faziá esgares; contudo,
depois da morte do pai, Mïron tornara-se ainda mais arrogante,
mais seco; dava ordens na fábrica como se fosse o mais velho
e tratava Tiago como um simples etnpregado.
O frade prescrutava o rosto vermelho e Iargo de Natália com
a benevolência que tinha por tudo e por todos, mas falava-lhe
menos que aos outros. Ela, de resto, desabituara-se de falar,
limitando-se a respirar. Os seus olhos estúpidos ficavam
parados, e só em raros momentos se via luzir no seu olhar
perturbado a inquietaçäo que lhe causava a saúde do
marido, o medo que lhe inspirava Miron ou a terna satisfaçäo
que sentia ao pé do calmo e repleto Tiago. O frade e Tikhon
näo mantinham já boas relaçÖes, rosnavam um contra o outro
e, sem discutirem, passavam sem se cumprimentarem.
A silhueta angulosa e negra do tio trouxe uma sombra mais à
vida de Tiago; ao avistar o frade enchia-se de penosos
pressentimentos; o seu rosto fechado, macilento, fazia-o
pensar na morte. Tiago olhava tudo o que se passava em casa do
cimo das uas próprias preocupaçöes. Estas aumentavam
constantemente.
Tiago, com o seu faro de macho sabido nas coisas do amor,
sentia que Paulina se tornara mais fria com ele, e a atitude
do fleumático tenente Mavrine confirmava as suas suspeitas.
Agora, quando se encontravam, o tenente limitava-se a levar,
negligentemente o dedo ao boné e fechava os olhos, como a
examinar algo longínquo e muito pequeno, ao passo que
anteriormente se mostrava amável e atencioso. No círculo, ao
pedir a Tiago que lhe emprestasse dinheiro para jogar as
cartas ou atrasar a data em que devia satisfazer o pagamento
de uma dívida, dissera-lhe por mais de uma vez, com ar de
aprovaçäo.
- Você tem aspecto de artilheiro, Artamonov... - ou
fazia-lhe qualquer outro cumprimento menos agradável. Tiago
icava lisonjeado com as boas graças do oficíal que dir-se-ia
colado em borracha, e que espantava a cidade pelo desprezo
que mostrava pelo frio, pela sua energia, pela sua força e
ainda pela intrépida ousadia que näo podia deixar de possuir.
Observava as pessoas com aspereza e exprimia-se rouca e
imperiosamente:
- Sou um homem fleumático e tenho horror dos exageros.
Tendo discutido, um dia, quando jogava as cartas, com o
director dos Correios, um velho adoentado, mas cáustico, que
toda a cidade receava, Mavrine declarara-lhe:
- Diga-se sem exagero que você é um velho idiota.
Suspeitando nele um rival, Tiago receava entrar em con lito
com o tenente, mas nunca pensava em ceder-lhe Paulina, qde lhe
agradava cada vez mais. Todavia, prevenira-a mais do que uma
vez:
- Toma cuidado. Se descubro alguma coisa entre ti e Mavrine,
deixo-te.
Por outro lado, a ansiedade que lhe provocava o caçador
Noskov aumentava. Este espreitava Tiago à saída da cidade,
perto da ponte sobre o Vatarakcha, surgia inesperadamente e
reclamava o dinheiro, mirando a boina.
Havia nele algo de estranho e de sinistro por aparecer
sempre no mesmo sítio, saindo das urtigas, dos cardos e de um
espesso caramanchäo de ervas daninhas que cresciam por baixo
dos salgueiros tortos. Era onde se erguia, dois anos antes, a
casa do jardineiro Pamfilo. Este fora assassinado, a casa
incendiada, os salgueiros calcinados. A terra argilosa,
misturada com carväo e cinza, fora entretanto arrasada pelos
jogadores de bola; no meio de vestígios de alicerces de
tijolos estava um fogäo e a sua chaminé; nas noites claras,
uma estrela esverdeada, bastante baixa no céu, tremia em cima
do cano. Noskov, calcando as urtigas, saía devagar detrás do
fogäo, tirava lentamente a boina e balbuciava:
- Há na sua fábrica um destes bandos...
- Nada tenho a ver com eles - respondia Tiago com humor, e
Noskov replicava-lhe insolentemente:
- " verdade, näo é o senhor que os organiza, mas esse
assunto também lhe diz respeito.
" Que pena que eu näo o tenha Iiquidado - dizia para consigo
pela décima vez, com pesar. E ao dar o dinheiro ao espiäo,
Tiago acrescentava:
- Sê prudente.
- Eu sei.
- Näo me metas nessas coisas.
- Para quê? Esteja tranquilo.
"Sim, sim. Provavelmente, considera-me um imbecil...
Embora compreendendo que Noskov era um homem útil,
Tiago Artamonov estava convencido de que ele devia pensar em
vingar-se do tiro. Desejava-o. Ou amedrontando os operários ou
comprando-os com dinheiro roubado ao próprio
Tiago, levá-los-ia a matá-lo. Nos últimos tempos, Tiago
julgara notar que os operários o fixavam com mais atençäo e
animosidade.
Miron continuava a clamar que os operários se agitavam, näo
para melhorarem a sua situaçäo, mas por que, de fora, lhe
tinham inspirado esta ideia täo absurda, louca, de que deviam
apoderar-se dos bancos, das fábricas e, em geral, de toda a
organizaçäo do país. Quando falava assim, sentava-se,
levantava-se, passeava pela sala, voltava o pescoço metendo um
dedo por baixo do colarinho, embora o seu pescoço fosse esguio
e o colarinho da camisa bastante largo.
- Já näo é o socialismo; só o diabo sabe o que é! E o teu
irmäo é um dos que preconizam esta linda invençäo! O nosso
governo de velhas corujas...
Tiago verificava que Miron só contava tudo isto para
convencer os seus ouvintes e convencer-se a si próprio do
direito que tinha a um lugar na Duma. Todavia, os discursos
irritados do primo deixavam na alma de Tiago uma impressäo de
medo, aumentando o sentimento que tinha da sua própria
fraqueza, no meio de centenas de operários. Chegava a sentir
algo que se assemelhava a um autêntico acesso de terror. Certa
manhä, foi desperto por gritos, berros no pátio da fábrica:
levantando a, cabeça da travesseira, viu precipitar-se sobre a
parede branca e lisa do armazém uma multidäo exasperada de
sombras que saltavam agitando os braços; dir-se-ia que
arrastavam todo o edifício. Bruscamente, coberto de suores,
pensou num grito mudo:
uUma revolta!
Esta torrente de sombras, mais terríveis, näo se sabia
porquê, do que homens vivos, desapareceu rapidamente. Tiago
compreendeu que se travara em frente da porta da fábrica uma
dessas desordens costumadas de segunda-feira: quase sempre,
depois de uma festa, havia daquilo. Mas na sua memória
persistiu esta corrida angustiante de manchas escuras e
gritantes. Toda a existência se tornara täo alarmante que a
própria vista de um jornal era desagradável e que näo se tinha
vontade de o ler.
Tudo o que havia de simples, de claro, sumia-se; o doloroso
surgia de todos os lados, novas pessoas apareciam.
Um belo dia, a irmâ Tatiana trouxe da vila próxima um ma-
rido: um pequeno russo esguio, com boina de engenheiro;
ligeiro, o passo rápido, muito alegre, era mais novo dois anos
que Tatiana. Todos, a começar por ela, começaram logo a
chamá-lo pelo nome de famBia: Mitia. Tocava guitarra, cantava;
uma das suas cançÖes preferidas parecia a Tiago insultuosa
para a irmä e indignava muito a mäe:
Oh! Senhor! A minha mulher morreu:
Que ela seja bendita!
Meu Deus, abre-1he a porta
Do teu paraíso!
Mas Tatiana näo se ralava com isso; como toda a gente,
divertia-se com este homem, a quem a sua própria mäe dizia
muitas vezes com ternura:
- ö canariozinho! Continuas a cantar, meu palhaço?
Como os pombos, Mitia tinha a faculdade de comer imenso.
O velho Artamonov ao contemplá-lo como num sonho,
surpreendido, perguntava piscando o olho:
- Com uma disposiçäo assim, tu bebes? Sabes beber?
- Talvez - respondeu o genro, e à ceia demonstrou que
podia beber copíosamente.
Estivera em toda a parte: no Volga, nos Urais, na Crimeia,
no Cáucaso; conhecia um número incalculável de engraçados
provérbios, de histórias, de anedotas; parecia ter chegado de
um país sem preocupaçöes onde só reinava a alegria.
- A vida é bela - proclamava.
Meteu-se logo no turbilhäo da fábrica; agradou aos
operários; os jovens riam, os velhos tecelöes aprovavam com
simpatia com um aceno da cabeça e o próprio Miron, ao ouvir a
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sua linguagem brilhante, deixava aflorar aos seus lábios um
sorriso.
E eis que Mitia, que atravessa o pátio na companhia de
Miron, segue para o quinto corpo do conjunto da fábrica; esta
construçäo, quin2o dedo do aglomerado de tijolos vermelhos,
mal acaba de ser lançado à terra; ergue-se no meio de andaimes
onde correm os carpinteiros, vendo-se as enxós brilharem como
o ouro e as lentes dos óculos de Miron; este estende o braço,
como um general numa antiga grawra popular; Mitia, agitando a
cabeça, mexe também os braços como se atirasse algo para o
chäo.
Tiago olha-os da janela do escritório. Também gosta do
cunhado: na sua presença, sente-se alegre, esquecem-se muitas
coisas más. Tiago inveja o carácter deste homem, e tem por ele
uma estranha desconfiança; parece-lhe que näo ficará ali por
muito tempo, que amanhä se dirá actor ou barbeiro, ou
desaparecerá täo subitamente como veio. Mitia tinha ainda
outra qualidade: näo era avarento, näo procurava saber qual
era o dote da mulher. Também podia ser manha de Tatiana. Mas o
pai, quando näo estava bêbado, bradava:
- Foi para este russo que eu trabalhei...
Por seu turno, Miron casou-se.
- Permitam-me que apresente a minha mulher - disse um dia,
ao regressar de Moscovo, e pôs à sua frente uma boneca toda
bonita, de olhos azuis, com uma cabecinha encaracolada e
inclinada para o lado. Tinha as dimensÖes de um brinquedo, mas
uma silhueta täo perfeita que a Tiago näo lhe parecia uma
verdadeira mulher; lembrava antes a figurinha de porcelana que
enfeitava o relógio preferido do tio Aiexis. A cabeça desta
estatueta tinha-se quebrado e foi colada um pouco de lado; o
relógio estava colocado numa prateleira, e a estatueta,
desviando-se dos homens, mirava-se no espelho. Miron anunciou
que a mulher sc chamava Ana, e que tinha dezoito anos, mas
esqueceu-se de dizer que ela lhe trouxera duzentos e cinquenta
mil rublos e que era filha única de um fabricante de papel.
- Aqui está como as pessoas se casam - grunhiu Pedro
Artamonov, fixando em Tiago os seus olhos vermelhos. E tu, tu
arrastas-te só Deus sabe quem! E Elias, varreram-no da
nossa existência como se fosse um excremento.
Andava com dificuldade baloiçandn pesadamente o seu corpo
fatigado e amolecido. Parecia a Tiago que o pai, farto deste
corpo, expunha de propósito toda a fealdade terrível da
sua nudez senil; passeava quase despido, num roupäo
desapertado, os pés nus nas sandálias, o peito oseilante, rnmo
fazia noutros tempos na frente de Helena, para a irritar. Por
vezes, ia ao escritório e ficava lá bastante tempo, distraindo
Tiago, queixando-se de ter dado todas as suas forças à fábrica
e aos filhos, de ter vivido toda a existência agarrado ao
negócio, no meio de preocupaçÖes, sem nunca ter sentido
nenhuma alegria.
O filho escutava-o em silêncio, tendo a impressäo de que
estas queixas que aliviavam o pai o inchavam a ele, tornando-o
grande como uma destas torres que o Sol avista de manhä antes
de descobrir as casas dos homens, e às quais dirige o último
adeus quando parte com a noite. Mas, destas queixas,
Tiago extraía uma conclusäo instrutiva para si próprio: viver
como o fizera o pai era absurdo.
E sempre verificava que depois de se cansar das queixas, uma
ardente comichäo, um desejo inquieto de gritar às pessoas, de
as enganar, se apoderava de Pedro Artamonov. Ia ter com a sua
mulher, sentada a uma janela que abria para o jardim, as mäos
inúteis pousadas nos joelhos, os olhos inexpressivos fixados
num só ponto, sentava-se ao lado dela e repetia:
- Em que pensas? És gorda, mas nem assim te vêem. As
crianças näo olham para ti. Tatiana fala com mais simpatia à
cozinheira do que a ti. E Helena esqueceu-te, näo volta mais"
Terá arranjado outro amante? E Elias onde está ele?
Mas näo se divertia ao dizer estas coisas à mulher: logo a
seguir, o seu rosto violáceo cobria-se de lágrimas que
pareciam correr näo apenas dos olhos mas de todos so pontos da
pele muito excitada, dos ouvidos, do queixo.
- Parece que morreu! - resmungava o velho cheio de nojo e
ia-se embora, agitando as mäos como para afastar o fumo.
Näo, isto näo o divertia.
Já näo arreliava Tiago, mas este julgava sempre que o pai
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o olhava com uma piedade que magoava. Por vezes, suspirava:
- ö olho vazio!
Miron era inacessivel às mofas; o pai evitava-o com receio,
e Tiago compreendia razäo. Na fábrica e em casa, todos
receavam Miron, todos desde a sua mäe e a sua mulher de
porcelana até ao criadito que abria a porta. Quando Miron
atravessava o pátio, a sua sombra alongada parecia criar o
silêncio em seu redor.
O velho Artamonov näo se divertia em arreliar o genro, e
este gracejava consigo próprio: preferia talvez fazê-lo ele do
que os outros. Tatiana, grávida, o ventre enorme, tomara ares
importantes; deitava-se depois do almoço, lendo três livros ao
mesmo tempo, depois ia passear, acompanhada pelo marido
que mrria como um cäozito.
O velho Artamonov mandava atrelar os cavalos e ia à cidade
discutir com o irmäo e mm Tikhon. Muitas vezes Tiago o
observara.
- Entäo, estudante de sotaina - dizia Pedro ao frade-
perdeste-o, o teu Deus?
Nikita, arrastando a corcunda, apertava com força os joelhos
com as mäos, e queixava-se baixinho:
- Näo tens razäo...
- Näo tenho razäo? Tu näo usas o capuz da ordem; o chapéu
que trazes na cabeça mente, o teu hs'bito mente. és
um frade bem estranho...
- A minha alma é que sabe...
- Ora, ora. Näo, tu perdeste no jogo, enganaste-te. Devias
ter casado, em tempos, com uma rapariga pobre, uma órfä; ela
teria sido feliz por te dat filhos; agora, serias avô, mmo eu.
E tu tiveste a ousadia... lembras-te?
Rojando-se lentamente, mmo uma enorme tartaruga, o frade
afastava-se, enquanto Pedro subia a casa de Olga, para lhe
falar da feira e dos deboches de Alexis. Mas isso também näo o
divertia; a velhota, depois da morte do marido, näo
parava, mudava os móveis, os objectos, olhava pela janela. Ia,
de cabeça direita, e, embora usasse óculos, vivia aos
apalpÖes, batendo no soalho com a bengala, a mäo direita
estendida. E aos malévolos relatos do velho, respondia com um
leve sorriso:
- Podes dizer o que quiseres: nada acrescentaräo as tuas
palavras nem de bom nem de mau a Alexis, tal como o conheço.
- Ele tinha razäo para dizer: tu só vias por um olho.
- Näo vejo quase nada de ambos - replicava Olga. - Já näo
vejo: ontem parti o copo preferido de Alexis, de tal modo
estou cega.
Artamonov tentara irritar também Tikhon, mas näo era fácil.
O velho näo se zangava: desviando o olliar, suspirava e
respondia breve e calmamente.
- Vives há muito tempo - dizia Artamonov.
Tikhon replicava sabiamente:
- Há quem viva mais.
- Mas porque viveste tu? Diz!
- Toda a gente vive!
- Está claro, mas nem toda a gente passa a vida a varrer o
pátio, a despejar o lixo...
Mas Tikhon tinha ideias próprias:
- Quem nasceu, deve viver até à sua morte - respondia,
enquanto Artamonov, sem o escutar, continuava:
- Viveste toda a tua vida de vassoura na mäo. Näo tens
mulher nem filhos. Nunca tiveste preocupaçÖes. E porquê? O
meu pai ofereceu-te outro lugar e näo o quiseste. Porquê essa
teimosia? Diz!
- É demasiado tarde para o perguntar a mim próprio-
respondia Tikhon olhando para outro lado.
Artamonov, irritado, insistia:
- Repara como as pessoas enriqueceram durante a tua vida.
Procuravam todos viver melhor, economizavam. ..
- Economizavam, economizavam, e era o demónio que
compravam - dizia Tikhon carregando os oo.
Tiago julgava que o pai ia zangar-se e injuriar Tikhon, mas
o velho, depois de um instante de silêncio, mastigava palavras
ininteligíveis e afastava-se: Tikhon, sem mr, ficou sem
cabelos e tornou-se de um tom uniforme de argila, näo cedia às
manobras da velhice, mantinha um corpo sólido e tinha até uma
certa beleza. Exprimia-se em tom cada vez mais grave e
doutoral.
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Tiago achava que ele, mais do que o seu pai, tinha as palavras
e a conduta de um paträo.
Tiago acreditava em cada dia mais firmemente que estava a
mais entre os seus, nesta casa onde a única pessoa que lhe
era simpática era um estranho: Mitia. O cunhado näo lhe
parecia inteligente nem parvo: fugia a todas as suas
observaçÖes, continuando diferente dos outros.
A maneira como tratava Miron confirmava a sua superioridade:
duro, autoritário, imperioso com todos, Miron tinha boas
relaçÖes com Mitia; discutia frequentemente com ele, sem nunca
se zangar, e até nestas discussÖes conservava uma
certa prudência.
De manhä à noite, ouviam-se vozes diversas gritando por toda
a casa:
- Mitia! - chamava Tatiana.
- Onde está Mitia? - perguntava a mäe.
E o pai corava ao debruçar-se na janela:
- Mitia, vem almoçar!
Mitia galopava através das fábricas como uma raposa, hábil
em varrer com o auxílio de palavras engraçadas e brincadeiras
o que havia de seco e de vexatório na severidade de Miron para
com os operários e empregados. Aos operários chamava-lhes
amigos.
- Meu bom amigo, näo é isto - dizia Mítia ao contra-mestre
dos marceneiros, um homem forte e barbudo; e tirava do bolso
um caderninho vermelho e um lápis, começando a desenhar em
cima de uma tábua e explicando:
- Vês? " assim? E como isto? E como aquilo? Como vai isso?
- Sim, sim - respondia o contra-mestre. - Trabalhamos à
maneira antiga, conforme nos ensinaram...
- Näo, meu caro, é preciso adquirir novos costumes, é mais
vantajoso.
O contra-mestre concordava:
- Sim, com efeito. Muito obrigado...
Pela maneira viva como tratava dos negócios, Mitia lembrava
o tio Alexis, mas näo era täo sôfrego no lucro. A sua conversa
alegre fazia pensar em Serafim. O sogro também o dissera.
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Um dia, à ceía, Mitia dissipara, varrera o mau humor geral.
Artamonov disse, sorrindo:
- No tempo em que tínhamos um consolador, Serafim. ..
Uma vez, depois de uma das altercaçÖes frequentes entre
Pedro e Miron. Tiago ouviu Mitia dizer a este último:
- A mistura do horrível e do repugnante com o piedoso
é uma mistura verdadeiramente russa!
Mas logo acrescentou, à guisa de consolaçäo:
- Mas näo faças isso! Tudo passará depressa, desaparecerá.
Estamos a purificar-nos. . .
Numa noite de festa, bebiam chá no jardim. Artamonov
queixou-se:
- Eu vivi toda a minha vida sem festas.
Logo o genro replicou, desenvolvendo as suas ideias
simpáticas:
- A culpa foi sua e de mais ninguém! É o homem que prepara
as festas; a vida é uma bela mulher, quer presentes,
distracçÖes, jogos; é preciso viver com satisfaçäo. Em cada
dia, pode achar-se qualquer coisa que nos agrade.
Falou demoradamente com a habilidade de um tocador de gaita;
todos, à volta da mesa, se tinham calado. Quando o escutavam,
sentiam-se tomados por uma espécie de torpor. Tiago
tambén sentia a magia das suas palavras, achava nelas a
verdade, mas o mesmo tempo tinha vontade de lhe perguntar:
- Mas porque casaste com uma rapariga estúpida e feia?
Tiago descobria na conduta de Mitia para com a mulher algo
de falso, uma atençäo demasiado acentuada; parecia-lhe que a
irmä também tinha consciência disso: vivía silenciosa,
indignava-se por tudo e por nada e falava mais frequentemente
com Miron acerca de política do que com o seu alegre marido.
Além de política, ela nada mais sabia.
Por vezes, Tiago começava a pensar que Mitia, longe de ter
vindo de um país de alegria e despreocupado, fugira de algum
buraco negro e mau; subira até pessoas desconhecidas e novas
e, na sua alegria de as ter encontrado, dançava à sua frente,
fazia-as rir, enternecia-se por vê-las täo numerosas, e ficava
por isso muito admirado. Era este espanto que Tiago achava um
pouco deslocado; era a surpresa de uma criança numa loja de
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brinquedos, mas de uma criança bastante inteligente para
distinguir imediatamente os mais belos brinquedos.
Na casa e na fábrica, duas pessoas tinham pelo marido de
Tatiana uma franca antipatia: o tio Nikita e Tikhon Vialov. A
este perguntou Tiago se Mitia lhe agradava, ao que o velho
respondeu tranquilamente:
- Ele näo é seguro.
- Em quê?
- É uma mosca que poisa sobre qualquer porcaria.
Tiago ainda interrogou o velho, mas este nada mais soube
dizer de claro.
- Tu vês por ti mesmo - observou. - Bem podes reparar que é
uma pessoa que sabe falar.
O frade, seu tio, disse quase a mesma coisa:
- Ele faz muito pó - disse sorrindo. - Já vi muitos desses
belos conversadores. Desviam o povo. E perdem-se a si próprios
nas palavras.
Era estranho ouvir este suave enfermo falar com uma
irritaçäo, quase com maldade, contrárias ao seu carácter. E o
que surpreendia ainda mais era ver Tikhon e o tio Nikita
estarem täo de acordo para apreciarem o marido de Tatíana,
pois os dois velhos continuavam a dar-se mal, numa hostilidade
manifesta embora muda, evitando-se e mal se falando. Tiago
achava que, uma vez mais, a estupidez humana se mostrava:
porque näo se entendiam pessoas a quem a morte pode fulminar
amanhä?
O tio Nikita sucumbia. Tiago tinha a impressäo de que o pai
o ajudava a isso; em cada um dos seus encontros, enchia o
frade de censuras:
- Toda a minha vida vivi entre as pessoas como um boi e tu
como um gato. Só pensam em instalar-te num sítio mais quente e
mais fofo: nem sequer reparam que és corcunda.
Eu, pelo contrário, julgam-me mau, mas onde está a minha
maldade? Em toda a minha vida, eu...
Enfiando a cabeça na corcunda, o frade, tossindo, implorava:
- Näo te zangues.
Tiago também näo podia ver o pai de peito nu, coberto de
cabelos grisalhos: mal dissimulava um sentimento de nojo.
De tempos a tempos, via-se obrigado a dizer para consigo:
"É o meu pai. Nasci dele."
Mas isto näo embelezava o pai, e näo lavava o nojo de Tiago:
era até humilhante e vexatório ter nascido deste homem.
Quase todos os dias, Pedro Artamonov ia à cidade, para
observar a agonia do frade. Ofegante, subia a custo ao sótäo e
sentava-se na borda da cama de Nikita, fixando-o com os olhos
vermelhos e inflamados. Nikita, sem dizer palavra, tossicava,
olhando o tecto, esfregàndo continuamente com as mäos
inquietas a sotaina, como para apagar algo de invisível. Por
vezes, levantava-se, sufocado pelos acessos de tosse:
- Tu ranges? - perguntava-lhe o irmäo.
Nikita arrastava-se até à janela, agarrado aos ombros de
Pedro, à cama ou às cadeiras; a sotaina pendia sobre ele como
um véu num mastro quebrado. Sentava-se à janela e olhava, de
boca aberta, o jardim e ao longe, o eriçado sombrio e irritado
da floresta.
- Descansa - dizia-lhe o irmäo, coçando a orelha viscosa.
E ao descer anunciava a Olga:
- Ele range. Deve estar por pouco.
Veio um gordo frade para convencer os Artamonov a mandarem
Nikita para o convento; era lá, que, segundo as regras, ele
devia morrer e ficar enterrado. Mas o corcunda suplicou a
Olga:
- Vocês me levaräo para lá quando eu morrer.
E, por três vezes, pediu:
- Mandem fazer uma tampa bem alta para que näo me esmague.
Näo esqueçam!
Morreu quatro dias antes da declaraçäo de guerra, e na
véspera pediu aos parentes que prevenissem o convento.
- Que venham buscar-me, terei tempo de morrer antes de eles
chegarem.
Na manhä do dia em que Nikita morreu, Tiago ajudou o pai a
subir ao sótäo; este, tendo-se resignado, olhou o rosto
escuro, consumido, de olhos meio fechados, a boca reentrada;
Nikita disse numa voz singularmente alta:
- Perdoa-me!
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- Mas porquê? - perguntou Pedro Artamonov.
- Pela minha audácia. ..
- Mas tu é que deves perdoar-me - disse o mais velho. -
Arreliei-te com frequência...
- Deus näo condena o gracejo - garantiu, baixinho, o frade,
enquanto o irmäo continuava, depois de um instante
de silêncio:
- Como estás agora. ..
- Ah! sim, eu esqueci - observou apressadamente o frade,
interrompendo o irmäo. Tiago, diz a Tikhon que corte o pequeno
ácer, perto do caramanchäo. Que o corte.
Tiago sofria ao ouvir esta voz demasiado clara, olhando os
ossos deste peito, de saliências monstruosas, lembrando os
cantos de uma caixa. Na verdade, já nada restava de humano
neste montículo de ossos imóveis, cobertos de negro, nem
nestas mäos que conservavam um crucifixo de cobre. Tinha
piedade do seu tio, mas näo podia deixar de perguntar: porque
é que os velhos e, em geral, os parentes morrem à vista de
todos?
Depois de esperar ainda se o irmäo dizia mais alguma coisa,
o pai, saiu, encostado a Tiago, a cabeça baixa, em silêncio.
No fundo, disse:
- Está a morrer.
- Sim? - inquiriu Miron sentado a uma mesa, metade do corpo
escondida pela enorme folha do jornal; ao mesmo tempo que se
informava, näo desviava os olhos; finalmente, pôs o jornal em
cima da mesa e disse à mulher:
- Eu tinha razäo, lê!
A mulher rechonchuda rolou para a mesa, enquanto a mäe,
sentada à janela, perguntava com medo:
- " verdade, Miron, vem aí a guerra?
- É o segundo Artamonov que desaparece - lembrou Pedro em
voz alta.
- Com certeza säo mentiras - disse Miron dirigindo-se à
mulher ou a Tiago, o qual, debruçado por seu turno sobre o
jornal, lia os telegramas alarmantes, interrogando-se sobre o
que tinham de alarmante para ele, pessoalmente.
Artamonov ergueu os braços e foi para o pátio. O sol tinha
aquecido tanto as pedras que o calor penetrava através das
solas macias das suas botas de veludo. Do cimo da janela,
caíam as palavras secas e doutorais de Miron; Tiago, de pé, o
jornal na mäo, viu o pai ameaçar alguém com o punho violáceo.
Os frades chegaram no terceiro dia, cedo; eram sete, todos
diferentes de altura e corpulência, mas pareceram a Tiago
todos iguais como recém-nascidos. Só o maior de entre eles,
um magro de barba muito cerrada cuja voz sonora e alegre näo
convinha nem a um frade nem à circunstância, parecia näo ter
rosto; era calvo, o nariz confundia-se com as faces, e como
rosto ficavam-lhe apenas dois buraquinhos entre a calva
e a barba. Precedia todos os outros, um grande crucifixo na
mäo; ao caminhar, levantava os pés com a lentidäo de um cego e
cantava em três tons:
- Deus santo, com voz de baixo.
- Santo poderoso, com voz de tenor.
- Santo imortal, tem piedade de nós! - concluía com
uma voz täo estridente que os garotos corriam à sua frente
para olharem com espanto esta barba onde se escondia uma
boca de três vozes.
Quando o enterro chegou à praça, esta encontrava-se cheia
com os habitantes, os reservistas e os soldados do tenente
Mavrine; no centro da multidäo encontrava-se um pequeno
grupo: as autoridades e o clero. O fleumático tenente, solene
como um monumento, plantara-se à frente dos seus soldados;
o Sol iluminava-o, os diáconos e os padres em forma de cone
erguiam-se como ídolos de ouro, desfazendo-se ao sol; o brilho
das casulas reflectia-se no tenente Mavrine; em frente ao
altar, um gordo oficial agitava o seu boné, saltitando.
O frade de voz tripla, ao baloiçar o seu crucifixo negro,
parou em frente desta parede humana e declarou num tom
grave:
- Afastai-vos.
As pessoas afastaram-se, näo à sua frente, mas à frente do
comprido cavalo baio de Ecke, o subchefe da polícia; este,
agitando a luva branca, seguiu em direcçäo ao frade, colocou o
seu cavalo no meio da rua e interpelou-o com voz descontente
e aborrecida:
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- Aonde ides? Mas näo vêdes? Para trás!
O frade, erguendo o crucifixo, entoou:
- Deus santo...
- Viva! - gritou o oficial e, na praça, mil vozes gritaram
furiosamente:
- Viva!
Ecke, erguendo-se nos estribos, gritava ao mesmo tempo:
- Meu caro, peço-lhe que vá pela ruazinha! Dêem a volta!
Senhor Miron, peço-lhe! Bem vêem que aqui o entusiasmo é
geral, ao passo que vocês...
Na frente do caixäo, o velho Artamonov, encostado a Tiago
e à mulher, olhou o rosto de madeira de Ecke e, num tom
aborrecido, disse aos frades que transportavam o corpo:
- Dêem a volta, padres. . .
E acrescentou num soluço:
- É sem dúvida a última vez que mando...
Tudo isto pareceu a Tiago inconveniente e até um pouco
ridículo, mas quando seguiram pela ruazinha onde morava
Paulina, viu-a à frente do cortejo; tinha um vestido branco,
um chapéu rosa, e no peito opulento traçava rápidos sinais da
cruz.
"Ela vai admirar Mavrine", disse logo Tiago para consigo, e
sufocou com a poeira e a irritaçäo. Os frades estugaram o
passo, o homem de barba negra cantou mais baixo, mais
tristemente, enquanto o coro se calava de todo. A saída da
cidade, em frente da porta do matadouro, esperava uma estranha
carriola, coberta com um pano negro, puxada por dois cavalos
pigarços; colocaram o caixäo no carro e a cerimónia fúnebre
principiou. Da rua vinha como num tubo o rugir dos cobres; a
música tocava "Deus salve o Czar", os sinos das três igrejas
badalavam, o gritó poierento, fumarento, espalhava-se:
- Viva!
Tiago ouviu ainda a voz forte de comando do tenente Mavrine:
- Em fila!
Depois da cerimónia, teve de ir a casa da tia, assistir por
bastante tempo à refeiçäo fúnebre, e ouvir os grunhidos surdos
do pai:
- Quem foi o idiota que deu ordem para deixarem a carreta em
frente do matadouro?
- Foi a polícia - respondeu Mitia calmamente, e explicava:
Sabe, prejudicava: o entusiasmo popular e uma carreta, säo
coisas que näo ligam. . .
Miron, engulindo um sorriso, expunha ao dr. Iakovlev, que
se tornava particularmente notado nos dias de pena e de
tristeza:
- Se lhe cairmos todos em cima. .. No fim de contas, no
mundo, o número é que decide. ..
- Näo, é a técnica - replicou o médico.
- A técnica? Sim, mas...
Só à noite cerca das dez horas, Tiago pôde escapar-se e
correr a casa de Paulina, sobressaltado por uma inquietaçäo
que nunca experimentara, pressentindo que algo de insólito ia
acontecer. E, naturalmente, aconteceu:
- Oh! - exclamou a cozinheira quando Tiago, atravessando o
pátio, entrou na cozinha; sentou-se pesadamente num
banco, perto do fogäo.
- Porca faladora - disse Tiago, e detendo-se em frente da
porta do quarto, ouvindo os passos nítidos de um soldado e uma
voz militar que bem conhecia:
- É preciso reflectir: sim ou näo? Pense nisso.
"Ele näo a trata por tu", pensou Tiago, "é provável que nada
se tenha ainda passado".
Mas, assim q_ ue abriu a porta, teve a certeza de que tudo
se consumara: o fleumático tenente, as sobrancelhas
severamente juntas, estava no meio do quarto, a blusa
desabotoada, as mäos nos bolsos; näo abotoara ainda um dos
suspensórios e Paulina estava sentada no sofá, as pernas
cruzadas, agitando um dos braços; os seus olhos móveis estavam
redondos, muito redondos, e o rosto, muito vermelho,
tornava-se carmezim.
- E entäo? - perguntou o fleumático tenente, confirmando
definitivamente com esta pergunta todas as suspeitas de
Tiago. Este deu um passo em frente, pôs a chapéu numa cadeira
e, com voz alterada que nem ele próprio conhecia, declarou:
- Venho do enterro... do jantar...
- Ah, sim? - disse o tenente num tom de dono da casa.
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Paulina chupava tanto o cigarro que este começou a crepitar.
Por entre o fumo, explicou, absolntamente à vontade:
- O sr. Mavrine aconselhava-me a ser enfermeira.
- A sério" - respondeu Tiago com um sorriso irónico.
Entäo, o fleumático tenente, deu um passo para ele e
inquiriu na sua voz clara:
- Que significa esse sorriso? Tome nota de que näo gosto de
exageros! Tenho horror deles!
Durante dois ou três minutos Tiago sentiu-se atravessado por
correntes que ferviam de vergonha e de fúria; quando elas
passaram, deixaram-lhe a convicçäo esmagadora, quase dolorosa,
de que esta mulherzinha lhe era täo necessária como
qualquer parte da sua própria pessoa e que näo podia tolerar
que lha arrancassem.
Esta ideia reavivou a sua cólera, o seu corpo gelou-se,
levantou-se, meteu uma das mäos no bolso:
- Näo se aproxime! - disse ao tenente, sentindo que os olhos
lhe saíam da cabeça a ponto de lhe fazerem mal.
- P...porquê? - perguntou o tenente, dando mais um passo.
A sua maneira odienta de dobrar as letras sempre desagradara
a Tiago, mas nesta altura tornou-o furioso; tentou tirar a mäo
da algibeira e gritou:
- Vou matar-te!
O tenente Mavrine segurou-lhe a mäo e apertou-lhe
brutalmente o pulso; o revólver disparou, no fundo do bolso;
depois, Tiago teve a impressäo de que o seu braço, com uma dor
aguda, se partia pelo cotovelo, a mäo saiu-lhe do bolso, o
tenenté tirou-lhe o revólver e disse atirando-o para cima de
um sofá:
- Falhado!
No entanto, uma voz ciciava:
- Tiago! Tiago! Sr. Mavrine! Senhores! Mas estäo doidos?
Isto é um escândalo! E por causa de quê?
- Vamos! - gritava com voz tonitruante o fleumático tenente,
puxando Tiago pela barba e obrigando-o assim a cumprimentar.
Pede-me perdäo, idiota!
A cada palavra, cortando mesmo em duas as mais compridas,
ele puxava pela barba, depois, com uma leve pancada no queíxo,
largou-a.
- Oh!, é vergonhoso!, vergonhoso! - murmurava Paulina,
segurando o tenente pelo cotovelo.
Tiago näo podia mexer o braço direito, mas, os dentes
cerrados, afastava o tenente com a mäo esquerda; ele bramia;
lágrimas de humilhaçäo corriam pelas suas faces.
- Proibo-te de me tocares! - berrou o tenente, e empurrou
Tiago para o sofá, sentando-o em cima do revólver. Entäo,
Tiago, ocultando o rosto entre as mäos para esconder as
lágrimas, caiu, meio desmaiado, mal ouvindo, por entre o ruído
que lhe avassalava a cabeça, os gritos de Paulina:
- Meu Deus, isto é indigno! E sois vós, vós! Que escândalo!
Porquê?
- Vá para o diabo, menina! - disse o tenente com uma
voz de chumbo. - Aqui tem um rublo para si, chega! Tenho
horror dos exageros, mas vós sois ordinária, a mais ordinária
das...
Com passos pesados, o tenente desapareceu, batendo a porta,
deixando atrás de si o ligeiro tilintar dos vidros do lustre e
um grítinho de Paulina. Tiago levantou-se, as pernas moles
e vacilantes; todo ele tremia; Paulina estava no meio do
quarto, debaixo do lustre; a boca aberta, sem palavras,
olhando a nota suja que ele lhe pusera na mäo.
- Bácora - disse Tiago - porque fizeste isso? E dizias...
Devia matar-te...
A mulher fixou-o, atirou a nota para o chäo e, indignada,
clamou em voz rouca e arrastada:
- Que desvergonhado!
Deixou-se cair no sofá, dobrada, a cabeça entre as mäos,
enquanto Tiago, batendo-lhe no ombro, gritava:
- Levanta-te! Quero o meu revólver!
Sem se mexer, ela perguntou, ainda espantada:
- Entäo näo me amas?
- Detesto-te.
- Mentes. Ainda me amas.
Saltou täo prestamente para os seus joelhos que Tiago näo
teve tempo de a repelir, agarrou-se-lhe ao pescoço e, com uma
272 " 273
insistência furiosa, queimando-o com beijos mordentes,
soprando-lhe nos olhos e na boca um hálito quente, ela
murmurou:
- Mentes, tu amas-me. E eu também. Sim, amo-te, toda, toda!
Ficou vencido. Apertou-a, beliscou-a, beijou-a balbuciando,
ofegante:
- Sem vergonha... tu bem sabes...
Uma hora depois, estava sentado no sofá, ela deitada a seus
pés e, baloiçando-a, pensava com admiraçäo:
"Como passou depressa! "
Enquanto ela dizia com ar cansado:
- Estava furiosa, queria abandonar-te. Só tratas dos teus,
enterra-los e eu, entretanto, aborreço-me. Hoje, hás-de
amar-me mais porque tens ciúmes. Quando há ciúme...
- Se pudéssemos ir embora daqui - disse Tiago.
- Sim, para Paris. Eu sei falar francês.
Näo tinham acendido nenhuma luz; asfixiava-se no quarto
obscuro; na rua, reservistas e mulheres gritavam, embora
tivesse passado a meia-noite.
- Nesta altura, näo podemos pensar em ir para o estrangeiro.
Anda lá a guerra - lembrou Tiago. A guerra, que os leve o
diabo!. . .
Paulina voltou a falar do que a interessava:
- Só os cäes näo têm ciúmes. Olha para todos os dramas,
todos os romances, tudo vem do ciúme...
Tiago sorriu, tremendo.
- O tiro saiu, a bala podia ter-me ferido na perna;
felizmente, só há um buraquinho nas calças.
Paulina pôs o dedo no buraco e disse, de repente, num so-
luço, com um furor concentrado:
- Que pena que näo tivesses tido tempo de lhe dar um tiro!
Uma bala na sua barriga de borracha!
- Cala-te - interrompeu Tiago abanando-a brutalmente.
Mas ela continua a soprar entre dentes, sempre furiosa:
- O bandido! Como me insultou! Como vocês säo todos!
Näo compreendem nada das mulheres!
E descobrindo os dentes juntinhos de raposa, acrescentou:
274
- Se uma mulher vos engana, näo quer dizer que näo gosta de
vocês!
- Cala-te, já te disse! - gritou Tiago, e apertou-a täo
violentamente que ela gemeu.
- Oh!, eu sinto que tu me amas, meu sem vergonha, sem
vergonha! .. .
Deixou-a de madrugada, afastando-se com passos rápidos,
tendo a impressäo de vitória num jogo perigoso. A suave
alegria da sua alma aumentava ainda pelo facto de, quando
partiu e ao querer guardar o revólver, Paulina lho esconder e
se recusar a dar-lho. Teve de confessar que tinha medo de sair
sem arma e contar a história de Noskov.
Ficou encantado com o receio de Paulina. A sua emoçäo
deu-lhe a certeza de que lhe era realmente querido, de que ela
o amava. Proferindo uAh!", erguendo os braços, ela censurou-o:
- Porque näo me tinhas falado nisso?
E dizia febrilmente:
- Claro, é muito interessante um detective! Assim, por
exemplo, Sherlock Holmes, leste? Mas na nossa terra é possível
que os detectives sejam uns malandros?
- Como vês - confirmou Tíago.
Ao dar-lhe o revólver, ela quis verificar se funcionava bem,
e convenceu Tiago a disparar sobre o fogäo. Tiago teve de se
deitar no chäo, ela deitou-se também, ele disparou, e do fogäo
espirrou cinza. Paulina deu um grito, rolou sobre si própria,
levantando a mäo, dizendo baixinho:
- Olha!
Havia no soalho um buraquinho oblíquo e profundo.
- Quando se pensa que a morte saiu por ali! - disse Pau-
lina, suspirando e franzindo as sobrancelhas finamente dese-
nhadas.
Nunca Tiago a vira täo amável, täo próxima. Quando lhe
falou de Noskov, os seus olhos miraram-no com um espanto
pueril e o rosto pontiagudo de garota já nada tinha de mal-
dade.
"Ela näo tem consciência do seu erro" - pensou Tiago, sur-
preendido, e esta ideia tornou-se-lhe agradável.
275
Ao acompanhá-lo à porta, disse, acariciando-lhe a barba:
- Ah! Tiago, Tiago! ... Mas é a sério entre nós? Ah! meu
Deus! ... E aquele bandido...
Paulina fechou o punho e, agitando-o com indignaçäo, quei-
xou-se:
- Que bandidos, Senhor!
De súbito, pegando bruscamente a Tiago pelo braço, fran-
ziu o sobrolho dizendo baixinho:
- Espera! Está aqui uma menina, com toda a certeza!
Depoís, calma, fez sobre Tiago o sinal da cruz e deixou-o
partir:
- Vai, queridinho...
O tempo estava fresco, orvalhara abundantemente, o vento
da madrugada suspirava, o céu coloria-se de um verde naca-
rado e o ar cheirava a maçäs.
HNäo há dúvida, foi por despeito que me enganou. Tenho
de a desposar assim que o pai morrerH - disse, generoso, e
logo se lembrou das singulares palavras de Serafim, o Conso-
lador:
- Toda a rapariga é uma afogada, agarra-se mesmo a uma
palha. " nessa altura que devemos segurá-la.
Näo era sem inquietaçäo que Tiago pensava no fleumático
tenente: Mavrine nada tinha de um bocado de palha, estava
furioso e com certeza tentaria prejudicá-lo. " certo que ia
ser
mandado para a "frente". Mesmo ao pensar em Noskov, Tiago
estava mais tranquilo, o que näo o impedia de lançar à sua
volta olhares suspeitos, de escutar e de apertar na algibeira
a
coronha da arma; com efeito, era muitas vezes a estas horas
que Noskov o espreitava.
Mas, quinze dias mais tarde, o pânico que o caçador inspi-
rava a Tiago Artamonov veio adensar-se. Num domingo, ao
passar num bosque que acabava de comprar para aproveitar
a madeira, Tiago avistou Noskov, que abria caminho por entre
os taludes, cheio de ratoeiras, um saco às costas.
- Que rico encontro! - disse o caçador aproximando-se
e tirando a boina; usava-a como os militares, inclinada para
a direita, e, para a tirar, pegava-lhe, näo pela pala, mas por
cima.
Sem responder a este estranho cumprimento, em que sentia
uma ameaça, Tiago cerrou os dentes e apertou o revólver na
algibeira; Noskov ficou um momento em silêncio, mexendo
no forro da boina e fixando Tiago.
- Entäo? - acabou por perguntar Artamonov.
Noskov levantou os olhos do chäo e, alisando os cabelos re-
beldes e hirsutos, disse claramente:
- A sua amiguinha travou conhecimento com a filha do
padre Sladkopevtsev. Diga-lhe que se deixe daquela amizade.
- Porquê?
- Porque sim.
E depois de ouvir tocar os sinos da cidade, acrescentou:
- " do fundo do coraçäo que lho aconselho, porque lhe
quero bem. E entretanto vai dar-me..:
I.evantou os olhos para o céu e calculou:
...trinta e cinco rublos.
"Devia abater este cäo" - pensava Tiago ao contar o di-
nheiro.
O caçador pegou nas notas, deu meia volta nas suas pernas
tortas, os ferros das armadilhas tilintaram e Noskov, sem pôr
a boina, desapareceu nas moitas; Tiago sentiu que este homem
se lhe tornara ainda mais odiento.
- Noskov! - chamou a meia voz, e quando o optro pa-
rou, meio escondido pelos ramos dos pinheiros, Tiago suge-
riu-lhe:
- Devia abandonar esse ofício.
- Porquê? - perguntou Noskov, estendendo a cabeça.
E Artamonov julgou ver passar nos olhos vazios do caçador
uma expressäo de medo ou de ferocidade.
- É um ofício perigoso - explicou Tiago.
- É preciso conhecê-lo - disse Noskov, cujos olhos se
apagaram. Para quem näo conhece, tudo é perigoso.
- Isso é contigo.
- Está a falar contra o seu interesse.
- Que interesse pode haver no ódio? - balbuciou Tiago,
que lamentava ter iniciado a conversa com o espiäo e dizia
para si: "E ainda raciocina, este imbecil! ... "
Noskov, no entanto, continuava, sentenciosamente:
276 277
- É impossível viver de outro modo. Para cada um o seu
ódio, a sua miséria. Adeus. räo Mordvinov, de faces moles de
mulher. Näo conseguia acreditar que este homem fosse capaz de
matar alguém.
Voltou as costas a Tiago e mergulhou na verdura espessa
dos pinheiros. Tiago escutou o rumor dos ramos secos, depois
"Foi um feliz acaso" - pensou com alívio. Paulina também
concordou.
seguiu rapidamente para a clareira, onde o esperava um
cavalo atrelado e partiu, a trote, para a cidade, ao encontro
de Paulina. - Certamente, melhor foi assim - disse ela,
franzindo gravemente as sobrancelhas, - porque se o matassem
de outro modo, ter-se-ia falado... - Que canalha! - disse esta
com um espanto quase alegre. - Ele sabe que ela veio ver-me.
Ainda bem! Mas lamentou depois:
- Porque te ligas com mulheres daquelas? - censurou - Teria
sido mais interessante apanhá-lo, obrigá-lo a arreiago, sem
parecer zangado. pender-se, e em seguida, enforcá-lo ou
fuzilá-lo. Tu leste...
Mas, irritada por seu turno, puxando a mantilha amarela - Tu
dizes parvoíces - interrompeu Tiago.
que lhe tapava o peito, ela expandiu-se em queixumes: Alguns
dias tranquilos decorreram. Tiago fez uma viagem
- Primeiro é no teu próprio interesse! Depois, queres a
Filu. No regresso, Miron disse-lhe, inquieto:
que eu tenha cäes, gatos, um Mavrine? Estou sempre sozinha -
Temos ainda uma história complicada. Por ordem das
como uma prisioneira; näo tenho ninguém para sair comigo.
autoridades superiores, Ecke iniciou um inquérito para saber
Ela é simpática, traz-me revistas, romances; interessa-se
por em que condiçÖes se afogou esse caçador. Mandou prender
política, fala de tudo. Andámos juntas no liceu Popov,
depois Mordvinov, Kiriakov e o estúpido de Krotov, todos os
que zangámo-nos. . .
tinham ido à pesca com o caçador. Mordvinov tem a cara
arranhada, uma orelha rasgada.- E tocando-lhe com o dedo no
ombro, ela acrescentou, com Pensa-se que há política no caso.
crescente irritaçäo:
Näo na orelha rasgada, evidentemente...
- Julgas que é fácil viver como uma amante que se esconDe
deteve-se junto do piano, agitando o "lorgnon" e olhando
de? Sladkopevtsev diz que uma amante é como a borracha: para
um canto, os olhos meio fechados. Com o casaco de couro é
macia no apalpar e tem-se necessidade dela. Ela tem uma
liamachucado, as calças coçadas, as botas poeirentas, parecia
gaçäo com o vosso médico, e nenhum deles o esconde, mas tu
um mecânico. Mas as suas faces ossudas, barbeadas há pouco,
escondes-me como um mal; tens vergonha de mim como se e o
bigode davam-lhe o aspecto de um militar. E, contasse o
eu fosse torta ou corcunda; mas repara que eu näo sou um que
contasse, o rosto imóvel näo se alterava:
monstro. . .
- Que época estúpida! - dizia com ar pensativo. - Eis-
, - Tem calma - disse Tiago - eu casarei contigo! Estou -nos
metidos em nova guerra. Batalha-se, como sempre, para
a falar a sério. desviar os olhares da nossa própria
estupidez, que somos inca-
Como sempre, Tiago deixou-a, tranquilo. Mas oito dias de-
p"es, que näo temos energia para combater. E no entanto,
pois, de manhä, um dos operários, Elaguine, veio contar-lhe
quanto a nós, o problema actual é apenas interno. Num Esta-
que, de madrugada, o teceläo Mordvinov, ao querer salvar o
do de camponeses é o partido operário que sonha apoderar-se
caçador Noskov, em riscos de se afogar, ia-se afogando tam-
do poder! E esse partido conta nas suas fileiras Elias
Artamo-
bém, e foi para o hospital. Ao ouvir isto, Tiago ficou
senta-
nov, o filho de um industrial, um homem pertencente a uma
do, as pernas estendidas, para poder enfiar ainda mais pro-
classe chamada a realizar a grande obra de europeizaçäo técni-
fundamente nos bolsos a suas mäos trémulas.
ca e industrial do país! Absurdo, absurdo! Aquele que trai
os
"Eles afogaram-nov - dizia e procurava ver o bonachei-
interesses da sua classe devia ser castigado como um crimi-
noso, pois, no fundo, é trair o Estado... Compreendo um in-
278 " 279
telectual, um Goritsvetov, que näo está ligado a nada, näo
sabendo que fazer de si, porque näo é dotado, que é incapaz
de trabalhar e só é bom para ler e falar. Em suma, na Rússia,
a propaganda revolucionária é a única coisa de que os homens
que näo servem para nada podem ocupar-se.
Tiago teve a impressäo de que Miron falava como se tivesse
à sua frente uma sala cheia de gente; piscava cada vez mais os
olhos, e acabou por fechá-los completamente. Tiago deixou de
o ouvir, pensando apenas naquilo que o interessava pessoal-
mente: como acabaria o inquérito acerca da morte de Noskov,
que consequências teria para ele, Tiago?
A mulher de Miron, grávida e gorda como uma cómoda,
entrou; examinou o marido e disse-lhe com voz cansada:
- Vai mudar de fato!
Docilmente, Miron colocou o "lorgnonH no naríz e foi-se.
" Passado cerca de um mês, todos os que tinham sido presos
foram postos em liberdade. Num tom severo que näo admitia
objecçÖes, Miron disse a Tiago:
' - Despede-os todos!
i
Já há muito que Tiago se acostumara insensivelmente a obe-
" decer às ordens secas do primo; achava nisso até certo
prazer,
pois ficava livre de toda a responsabilidade na direcçäo da
fa'brica. Todavia, protestou:
- Devemos ficar com o motorista.
- Porquê?
- É alegre. Há muitos anos que trabalha para nós. Distrai
os operários.
- Ah! sim? Pois entäo fica com ele.
E, passando a língua pelos lábios, acrescentou:
- Com efeito, os palhaços têm a sua utilidade.
Durante algum tempo Tiago disse que, no fim de contas,
tudo continuava bem; a guerra deixara de agitar as pessoas,
que passaram a reflectir melhor. Mas, habituado aos
aborreci-
mentos, pressentia que estes ainda näo tinham acabado, e es-
perava vagamente que outros surgissem. Näo aguardou muito
280
tempo: Nesterenko reapareceu na cidade, dando o braço a uma
senhora alta, que se parecia com Vera Popov.
Encontrou-se com Tiago na rua e, assim que o avistou,
cumprimentou-o e perguntou-lhe:
- Pode passar por minha casa dentro de meia hora? Estou em
casa do meu sogro. Minha mulher está à morte; näo toque na
porta principal, para näo incomodar a doente. Entre pelo
pátio. Até logo.
A hora foi pesada para Tiago e pareceu-lhe de uma extensäo
anormal. Quando se sentou, com ar cansado, numa sala cheia de
armários com livros, Nesterenko disse-lhe em voz baixa:
- Sabe, o nosso amigo foi liquidado. Näo há dúvida nenhuma,
embora näo se possa prová-lo. Trata-se do seguinte: a
sua amiguinha dá-se com a menina Sladkopevtsev, que foi
presa recentemente em Filu. Näo é verdade?
- Näo sei - respondeu Tiago, que se sentiu coberto de
suores. O gendarme, aproximando a sua mäo do nariz do
interlocutor e examinando as unhas, disse com grande calma:
- Sim, eu sei que sabe.
- Com efeito, creio que elas se conhecem.
- Exactamente.
"Que me quer ele?" - interrogava-se Tiago ao observar
subrepticiamente a face plana e cinzenta, de veiazinhas
vermelhas, nariz grande e olhos turvos, de onde parecia saltar
um pesado tédio e correr em fios ácidos um odor de vinho.
- Näo estou a falar-lhe oficialmente, mas como alguém que
lhe quer bem e que se preocupa com os seus interesses -
prosseguia a voz enrouquecida. - Bem vê, meu caro... atirador.
O gendarme calou-se, sorriu, depois explicou:
- Chamo-lhe atirador porque sei que noutra circunstância se
serviu sem êxito de uma arma de fogo. A menina Sladko-
pevtsev tem relaçöes com a sua amiguinha. Agora, reflicta
nisto: o género de actividade do caçador Noskov näo podia ser
conhecido de ninguém, a näo ser por si e por mim. Eu,
naturalmente, estou de fora; Noskov, embora molengäo, näo era
estúpido e...
Nesterenko, suspirando, olhou para debaixo da mesa:
281
- Nada é eterno. Resta você...
Parecia a Tiago que näo eram palavras que saíam da boca
daquele homem, mas invisíveis e finos laços que o prendiam
pelo pescoço, apertando-o tanto que tinha o peito gelado, que
o seu coraçäo parava e que à sua volta tudo era abanado e
gritante como uma tempestade de Inverno. No entanto,
Nesterenko falava com uma lentidäo evidentemente calculada:
- Creio, estou quase convencido de que proferiu palavras
imprudentes, näo é verdade? Lembre-se...
- Näo - disse Tiago, receoso de que a sua voz o traísse.
- Tem a certeza? - perguntou o oficial cofiando o bigode
com os dedos vermelhos.
- Näo - repetiu Tiago abanando a cabeça.
- Estranho. Muito estranho. De resto, tudo é reparável.
Aqui tem: é preciso substituir Noskov por alguém que lhe será
útil. Um tal Minaev vai apresentar-se-lhe. Dar-lhe-á trabalho,
näo é assim?
- Certamente - acedeu Tiago.
- Pronto, é tudo. Acabou. Mas seja prudente, peço-lhe.
Nem uma palavra às senhoras! Nem uma só! Compreende?
"Trata-me como um garoto, como um imbecil" - pensou
Tiago.
Depois, o gendarme falou da próxima emigraçäo de aves, da
guerra, da doença da mulher, que a irmä dele vínha agora
tratá-la.
- Mas temos de esperar o pior - disse Nesterenko e, cofiando
os bigodes, puxou-os até aos ouvidos.
nÉ preciso fugir - dizia Tiago. - Ele vai aterrorizar-me.
Tenho de partir. "
"Que o diabo vos leve a todos - pensava caminhando ao longo
do Oka. Que necessidade tenho de vocês? Sim, que necessidade
tenho?
Uma chuva fina, anunciando o Outono, aspergia
preguiçosamente a terra. A água amarela do rio turvara-se; no
ar tépido flutuava algo que tornava ainda mais pesada a
angústia de Tiago. Näo se podia viver tranquila e
simplesmente, sem todas estas preocupaçÖes escusadas e
estúpidas?
Mas, como uma fila de carroças numa tempestade de neve,
os meses seguiam-se, ligavam-se, pesadamente carregados com
novas inquietaçÖes.
LTm dos Morozov, Zakhar, voltou da guerra, a cruz de S.
Jorge ao peito, o cabelo rapado, a cabeça tostada, coberta
de chagas vermelhas; tinha uma orelha arrancada e, no lugar da
sobrancelha direita, um sulco púrpura, sob o qual se escondia
urn olho esvaziado, sem vida, enquanto o outro olhava, atento
e severo. Logo se tomou de amizade com o mecânico Krotov, e
ouviu-se o aluno coxo de Serafim, o Consolador,
cantar:
Chove, faz vento
E eu, na trincheira,
Ajudo como um farroupilha
A Europa a guerrear.
Tiago perguntou a Zakhar:
- Nós fazemos mal a guerra?
- Näo há com que a fazer bem - respondeu o teceläo.
A sua voz uivava, insolente, e reencontrava-se nas suas
palavras o eco da audácia desesperada das cançÖes do mecânico.
- Falta-nos um chefe - declarava ao paträo. - Os que nos
comandam säo uns crápulas.
Este homem e o mecânico Volkov faziam-se notar
especialmente, como lampeÖes acesos na noite de Outono. Quando
o alegre marido de Tatiana apareceu com umas calças ridículas,
largas e da mesma cor do capote surrado de Zakhar, o mecânico,
ao vê-lo, pôs-se a cantar:
Säo calças de homenzitos,
A di ferença já se viu:
Uns aumentam na cabeça,
Outros aumentam no c...
Com grande espanto de Tíago, o seu cunhado näo se zangou,
antes encorajou o mecânico a continuar com as suas
282 " 283
impertinências. Os operários riam também, mas a alegria
atingiu o auge quando Zakhar Morozov trouxe para o pátio um
cäozito de pêlos compridos, de cauda abundante e
orgulhosamente levantada; no extremo desta cauda, baloiçava,
atada com um fio, a cruz branca de S. Jorge. Miron, näo
podendo admitir esta insolência, mandou prender Zakhar e
Tikhon guardou o cäozito.
Pelas ruas deambulavam estropiados, cegos, manetas, homens
diversamente mutilados, vestidos com capotes de soldados; à
sua volta tudo se revestia da cor purulenta dos seus
vestuários. Estes soldados enfermos, alquebrados, eram levados
a passear pelas senhoras da cidade, sob a direcçäo de Vera
Popov que, delgada e magra, se parecia com uma vassoura.
Tentara alistar Paulina, mas esta, abanando a cabeça, começou
aos gritos e a queixar-se:
- Näo posso, näo posso. Olha-os, Tiago, säo todos jovens,
bem parecidos e todos estropiados! E depois este cheiro que
deitam... Ouve, vamos daqui para fora.
- Mas para onde? - perguntava tristemente Tiago, vendo que a
amante se tornava cada vez mais nervosa, fumava exageradamente
e cheirava imenso a tabaco. De resto, todas as mulheres, na
cidade e sobretudo na fábrica, eram piores, grunhiam,
queixavam-se da vida cara; os seus maridos vinham, assobiando,
pedir aumentos de salário, e no entanto trabalhavam cada vez
menos. A noite, a aldeia ficava cheia de rumores de cólera
desconhecidos. Entre os operários, ia e vinha o serralheiro
Minaev, de uns trinta anos, moreno, grave, de comprido nariz
de judeu. Tiago evitava-o medrosamente, procurando
näo encontrar o olhar do serralheiro, que via tudo de modo
sombrio, como se tentasse, e näo o conseguisse, lembrar-se de
alguma coisa que esquecera.
O pai, como um destroço, vagueava pelo pátio, arrastando
penosamente as pernas doentes. Entretanto, dos seus ombros
largos, pendia uma peliça de viagem. Detinha as pessoas,
perguntando-lhes severamente:
- Aonde vais?
E quando lhe respondiam, fazia um gesto com a mäo e
exclamava:
- Vai, vai! Fingidos, percevejos, que se alimentam com o
meu sangue!
A sua face violácea, inflamada, tremia de nojo; o lábio
inferior pendia; Tiago, na frente dos outros sentia-se
envergonhado. A irmä Tatiana passava os dias inteiros de
jornal na mäo, täo constantemente apavorada que as orelhas se
lhe tornaram vermelhas. Miron, como um pássaro, ia à capital a
Moscovo ou Petersburgo; na volta, batia no chäo com o largo
tacäo dos seus sapatos americanos e, com perversa alegria,
falava de um mujique bêbado e indecente que se colara ao czar
como uma sanguessuga.
- Recuso-me a acreditar que tal mujique exista! - dizia
obstinadamente Olga, quase cega, sentada ao lado da nora, num
divâ em que se mexia e gritava o seu neto Platäo, de dois
anos. - Säo histórias...
- Admirável! Admirável! - proclamava o bem disposto marido
de Tatiana. - Prodigioso! É o campo que se vinga!
Esfregava as mäos com alegria. Era o único que esperava, com
firme convicçäo, dïas de lazer.
- Meu Deus! - clamava Tatiana com despeito. - O que é
que te alegra tanto? Näo percebo.
Mitia, abrindo uma boca espantada, grasnava:
- Como, näo compreendes? Mas pensa! O campo vinga-se
de tudo o que sofreu. Esse mujique é o veneno destruidor que
ele destilou.
- Perdäo - dizia Miron, com um esgar. - Ainda näo há muito
tempo, você falava de outro modo...
Mas Mitia, quase delirante, murmurava, compenetrado,
misturando as palavras:
- É um símbolo, e näo um mujique banal. Há três semanas
festejaram o tri-centenário do seu poder, e já...
- Asneiras - comentou Miron, sibilino.
Como sempre, o dr. Iakovlev sorria ironicamente, enquanto
Tiago pensava que se tais discursos chegassem aos ouvidos do
gendarme Nesterenko...
- Porque falam nisso? Para que serve? - inquiria E
aconselhava-os:
- Deíxem-se dessas coisas.
Tíago verificava que Miron também parecia
extraordinariamente distraído e ansioso, e isso
impressionava-o muito. Só lVIitia continuava como sempre,
girando como uma toupeira, desfazendo-se em graças, cantando à
noite, acompanhando-se à guitarra:
Ó Senhor, a minha mulher morreu...
Mas Tatiana já näo gostava das suas cançÖes.
- Aborrece-nos com isso! - dizia ela e ia tratar dos filhos.
Mitia sabia acalmar os operários. Devido aos seus conselhos,
miron comprou aos camponeses farinha, trigo, ervilhas, batatas
e vendeu tudo aos operários pelo preço de custo, aumentando
apenas as despesas de transporte. Os tecelÖes ficaram
contentes, e Tiago observou que a fábrica depositava mais
confiança neste homem alegre do que em Miron; este, aliás,
díscutia cada vez mais frequentemente com o marido de Tatiana.
- Você segue o vento? - perguntava de chofre, sem esquecer o
seu furor.
E era a sorrir que iVlitia replicava:
- A vontade do povo... os direitos do povo...
- Eu pergunto quem é você, ao fim e ao cabo? - gritava
Miron.
- Ainda näo acabaram de berrar? - inquiria o velho
Artamonov.
Mas Tiago notava nos olhos embaciados do pai lampejos de
satisfaçäo; o velho tinha prazer em verificar que o genro
discutia com o sobrinho, ria-se ao ouvir os comentários
irritados de Tatiana, sorria quando a mulher pedia
timidamente:
- Tatiana, dá-me mais chá...
Nada se passava que näo fosse inquietante, sem qualquer
ligaçäo com o que existia anteriormente. A tia Olga, que de
repente ficou absolutamente cega, constipou-se e morreu em
dois dias; passados alguns dias sobre a sua morte, a cidade e
a fábrica ficaram desorientados com um troväo: o czar
abdicara!
- Vamos ter a República? - perguntou Tiago ao irmäo, que
enfiava alegremente o nariz no seu jornal.
- Sem dúvida, a República! - respondeu Miron; debruçado
sobre a mesa, tanto se apoiou no jornal aberto que este
se rasgou ruidosamente. Isto pareceu a Tiago um mau preságio;
Miron endireitou-se, tinha uma cara espantosa e proclamou com
voz estranha, gritante, mas afectuosa:
- A economia, a regeneraçäo da Rússia vai começar, eis o que
haverá, meu velho!
E abriu os braços como que para abraçar Tiago, mas logo
baixou um deles, continuando com o outro estendido, em
gestos de semáforo, e anunciou que partia no dia seguinte para
Moscovo.
Mitia também gestirulava como um cocheiro friorento que
procura aquecer-se, e gritava:
- Finalmente, tudo marchará bem; o povo vai, finalmente,
proferir a sua palavra poderosa que há tanto tempo amadurece
na sua alma.
Miron já näo discutia com ele; mordia os lábios com um
sorriso pensativo. Quanto a Tiago, via que era verdade: tudo
continuava admiravelmente, todos estavam contentes. Mitia,
do alto do patamar, contava aos operários o que se passava em
Petersburgo, os operários davam vivas, depois, puxando Mitia
pelos braços e pelas pernas, atiravam-no ao ar. Mitia,
enrodilhado como uma bola, subia alto, enquanto Miron, quando
chegava a sua vez, parecia quebrar-se no ar, como se os braços
e as pernas näo fizessem parte do seu corpo. Mitia foi
rodeado pela multidäo dos velhos operários, e Voinov, um
teceläo enorme e musculado, gritou-lhe no rosto:
- Tu és um homem que compreendeu! Rapazes, um viva para ele!
Gritavam o viva, enquanto o mecânico Krotov, cujo crânio
pelado brilhava, aos berros, clamava como bêbado:
Tinham-nos à margem Bem longe do trono do czar!
Aproximam-se e o que se vê?
Uma gralha de olhos redondos!
Os outros encorajam-no:
- Anda, Krotov!
Também quiseram atirar com Tiago, mas ele fugiu e
escondeu-se em casa, convencido de que os operários, depois de
o terem lançado ao ar, näo o apanhariam, deixando-o esmagar-se
no chäo. A noite, sentado no escritório, ouviu no pátio, sob a
janela, a voz de Tikhon:
- Porque me tiraram o cäo? Vende-mo. Farei dele um bom
cäo.
- Ó velho pensas que é a altura de criar cäes? - respondeu
Zakhar Morozov.
- O que é que isso te importa? Vende-mo, toma lá um rublo.
Queres?
- Deixa-me em paz!
Tiago, debruçado da janela, disse:
- E o czar, viste, Tikhon?
- Sim - respondeu o velho, e depois de olhar a esquína da
casa assobiou alegremente:
- Derrubaram o czar!
Tikhon baixou-se, puxando o cano da bota, e disse:
- Eles estäo entusiasmados. Cá está a palavra do Antonio, o
louco: "O carro já só tem uma roda!. .. "
Ergueu-se e desapareceu na esquina da casa, chamando
suavemente:
- "Toulon", "Toulon"...
As semanas, alegres e tumultuosas, passavam como uma
roda; Miron, Tatiana, o médico, e toda a gente em geral
tornaram-se amáveis uns para com os outros. Vieram
desconhecidos da cidade e levaram com eles o serralheiro
Minaev. De-
pois, a Primavera chegou, tépida e cheia de sol.
- Escuta, queridinho - dizia Paulina - eu näo percebo nada
do que se passa. O czar renunciou a reinar, estropiaram,
mataram os soldados, correram com a polícia, em toda a parte
säo os civis que mandam, como é que vamos viver? Todos faräo o
que lhe apetecer e com certeza Jiteikine näo me deixará
descansar. Nem ele nem todos aqueles que me fazem a corte e
que eu recusei. Hoje, que tudo é de cada um, já näo posso
mais, näo quero viver mais aqui, quero ir viver onde ninguém
me conheça! E, se se fez a revoluçäo e todos säo livres,
foi naturalmente para que cada um vivesse como lhe apetecia.
Paulina estava cada vez mais apressada, mais faladora. Tíago
via nas suas palavras algo de irrefutável, e procurava
tranquilizá-la:
- Espera mais um pouco, isto vai arrumar-se, e entäo.. .
Mas já näo acreditava que a agitaçäo acalmasse; via que,
diariamente, na fábrica, o ruído era maíor, mais ameaçador.
O homem que se habituou a ter medo encontra sempre um motivo
de receio. Tiago começou a recear o crânio moreno de
Zakhar Morozov. Este adquirira o aspecto de um pequeno
czar, os operários seguiam-no como os carneiros seguem um cäo.
Mitia girava à sua volta como uma coruja presa. De facto,
Morozov assemelhava-se agora a um cäo enorme que aprendeu a
andar nas patas trazeiras. A pele queimada do seu crânio
estalara nalguns sítios; por vezes, enrolava um turbante à
volta da cabeça, uma toalha pertencente a Tatiana e que
Mitia lhe dera. Esta cabeça desmedida esmagava Zakhar, di-
minuía-o; caminhava täo vagarosamente como o gordo chefe da
polícia Ecke, os polegares enfiados debaixo do cinto de
soldado gasto e, mexendo os outros dedos como barbatanas,
clamava:
- Ordem, camaradas!
Mandou julgar três operários que tinham roubado linho;
interrogava-os com voz forte para que se ouvisse em todo o
pátio:
- Compreendem que roubaram?
E logo ele próprio respondia:
- Säo vocês mesmos e somos nós os roubados! Acham que se
pode roubar agora, filhos de câes?
Condenou os ladrÖes a serem chicoteados, e dois operários
ofereceram-se para os castigar com varas de salgueiro,
enquanto o mecânico Krotov dançava e cantava freneticamente:
Agui está como se apanham os mosguitos,
Aqui estäo os juizes que hoje temos...
Parou bruscamente, mastigou algumas palavras abrindo os
braços, depois gritou:
- Senhor, tende piedade de nós!
Mitia gritou:
- Bravo!
Corria por toda a parte, vestido com umas calças cinzentas,
uma boina de couro, atirada para a nuca; o suor luzia no seu
rosto louro, enquanto os olhos verdes lhe brilhavam com
uma alegria delirante. Na véspera, durante a noite, discutira
violentamente com a mulher; Tiago ouvira, no quarto deles,
primeiro um murmúrio, depois os gritos que Tatiana já näo
podia abafar:
- Tu és um palhaço! Um homem desonesto! As tuas convicçÖes!
Os mendigos näo têm convicçÖes! Mentiras! Ainda näo há um mês,
todas as tuas convicçöes... Basta! Amanhä, vou
para junto da minha irmâ, na cidade. Sim, levo comigo os
nossos filhos...
Tiago näo ficou surpreendido: há muito tempo tinha visto que
Mitia se tornava cada vez mais odiento, mas ficava espantado e
até orgulhoso por ter sido o primeiro a verificar quanto este
homem era duvidoso. Actualmente, a sua própria mäe,
que em tempos amava Nikita tanto como os seus galos, dizia:
- Como ele se tornou diferente, parece um garoto!
Mitia exclamava:
- Tudo corre admiravelmente! A vida é bela, a vida é sábia!
Mas tem de se deixar de julgar que os lobos e os carneiros
podem viver juntos, minha querida Tatiana! Sob este aspecto,
estás atrasada!
Miron perguntou-lhe, azedo e seco:
- Que dirás amanhä?
- Tudo o que a vida me indicar. Sim. E depois?
Tatiana e Miron andavam à volta de Mitia com tantas
precauçÖes como se ele estivesse coberto de porcaria. Alguns
dias mais tarde, Mitia partiu para a cidade levando tudo o que
tinha: três grandes maços de livros e um cesto com a sua
roupa.
Tiago observava que se andava de um lado para outro sem
objectivo, como durante um incêndio; de todos se exalava uma
estupidez manifesta e nada augurava o fim próximo destes dias
insensatos.
- Bem - disse um dia a Paulina - estou resolvido, vamos
embora! Primeiro até Moscovo e, lá, resolveremos...
- Finalmente! - gritou com alegria Paulina que o abraçou.
Com a noite de Julho, que enchia o jardim com o rumor do
crepúsculo, entrara pela janela um odor de terra amolecida
pela chuva e aquecida pelo Sol. Era belo, mas tristonho.
Tirando do pescoço os braços quentes e húmidos de Paulina,
Tiago disse sonhadoramente:
- Tapa o peito... Veste-te! É preciso seriedade.
Paulina saltou-lhe dos joelhos, correu em dois saltos até à
cama, vestiu um roupäo e sentou-se tranquilamente ao lado de
Tiago.
- Estás a ver - dizia apertando com tanta força a barba de
encontro ao rosto que os pélos rangiam -, estás a ver: é
preciso refiectir, procurar um sítio onde se esteja tranquilo.
Um país onde näo seja preciso compreender nada, nem tratar dos
problemas dos outros.
- Evidentemente - respondeu Paulina.
- É preciso agir com prudência. Miron diz que os comboios
andam chcios de soldados desertores. É preciso ter um aspecto
pobre...
- Sim, mas leva todo o dinheiro que puderes...
- Claro. Farei de modo que a minha família näo saiba aonde
vou. Darei a entender que parto para Novgorod, percebes?
- Mas porquê às escondidas? - perguntou Paulina,
surpreendida e desconfiada.
Ele näo sabia porquê: esta ideia ocorrera-lhe naquele
instante, mas sentia que era boa.
- Oh!, sabes, com o meu pai, com Miron... Interrogar-me-äo.
E é inútil. O dinheiro está em Moscovo. Posso encontrar 1á
muito, e bom...
- Sobretudo, vamos embora depressa! ßem vês que a vida aqui
é impossível. Tudo está caro, näo se encontra nada. E
provavelmente väo começar a pilhar: como poderá viver-se de
outro modo?
Olhou para a porta e começou a murmurar.
- A cozinheira era simpática, mas agora tornou-se insolente
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Näo! - gritou Tatiana procurando levantar-se da cana
e parece andar sempre bêbeda. É capaz de me degolar enquanto
durmo. E porque näo, se a confusäo é täo grande? Ontem,
ouvia-a falar baixinho com alguém. Disse para comigo: Meu
Deus, cá está! Mas, ao entreabrir devagarinho a porta, vi-a de
joelhos, rugindo: "é terrível".
- Espera - disse Tiago, interrompendo a vaga de
consideraçÖes - eu parto à frente. . .
- Näo - protestou ela. - Näo, primeiro eu! Dar-me-ás
dinheiro e...
- Mas näo tens confiança em mim? - interrogou Tiago, magoado
e descontente.
A resposta foi categórica:
- Näo, näo tenho confiança! Sou honesta e digo-te
francamente. Em quem pode ter-se hoje confiança, se todos se
traiem uns aos outros, a começar pelo czar? E tu em quem tens
confiança?
Ela era persuasiva, mas mais persuasivos ainda eram os seus
seios, que saíam do roupäo entreaberto. Tiago cedeu: decidiram
que ela partiria no dia seguinte, esperando-o na cidade de
Filu.
No dia seguinte, Tiago queixou-se de dores de cabeça e do
estômago, o que näo era de surpreender, pois, nos últimos
meses, emagrecera bastante; tornara-se apático, distraído, e
os seus olhos brilhantes embaciaram-se. Passados oito dias,
seguia pela estrada em direcçäo à estaçäo; o carro rolava
devagar na berma do caminho esburacado, de pedras arrancadas,
que se erguiam entre charcos profundos, onde secava uma lama
amassada e gretada. Também atrás de si deixava uma
vida esburacada, esboroada, enquanto num buraco, no meio de
nuvens de fumo, luzia a mancha esbranquiçada de um Sol
agonizante.
Passado um mês, Miron Artamonov, ao voltar de Moscovo, disse
a Tatiana, debruçando a cabeça e examinando-lhe a palma da
mäo:
- Tenho uma triste notícia a dar-te: em Moscovo, recebi a
visita da rapariga com quem Tiago vivia; contou-me que uns
homens - hum, como se ainda os houvesse! - o tinham agredido e
atirado pela portinhola da carruagem.
deira.
- Atirado de um comboio a andar. Morreu passados dois
dias e foi enterrado, graças aos cuidados dela, num cemitério
de aldeia, perto da estaçäo de Petuchki.
Tatiana levou em silêncio o lenço aos olhos, os seus ombros
agudos tremeram, o vestido negro agitou-se ao longo do
seu corpo, como se esta mulher magra de pescoço esguio
começasse a derreter-se.
Miron compôs o "lorgnon", esfregou as mäos, fez estalar os
dedos, ouviu o convite de um sino solitário que tocava as
vésperas, depois, caminhando pela sala, declarou:
- Para quê chorar? Entre nós, era um homem perfeitamente
inútil. E, desculpa, mas era de uma estupidez indecente. Bem,
é de lamentar. Sim...
- Oh! meu Deus - lastimou-se Tatiana, cerrando as pálpebras
avermelhadas e alisando as sobrancelhas com um dedo
molhado de saliva.
- Essa desvergonhada - continuava Miron, de mäos nos bolsos
- apresentou-se - muito mal, aliás - como a viúva
inconsolável, mas estava täo luxuosamente vestida que é
evidente que roubou Tiago. Afirma que nos escreveu.
Tatiana abanou negativamente a cabeça.
- Tinha a certeza disso. Penso que o melhor é nada dizer ao
teu pai nem à tua mäe; deixemo-los acreditar que Tiago
está vivo, näo achas?
- Sim, é melhor - respondeu Tatiana.
- Aliás, creio que o teu pai já nada compreende, mas a minha
tia afogar-se-ia em lágrimas...
Abanando a cabeça, Tatiana disse:
- Em breve, morreremos todos...
- É possível se continuarmos aqui. Mas eu vou já mandar
partir a minha mulher e os meus filhos. Aconselho-te a partir
também sem esperares que Zakhar Morozov... Mas nada diremos
aos velhos. Desculpa, vou para casa, minha mulher está
doente...
Abanou com o braço comprido a mäo da prima e partiu,
dizendo:
292 293
- Näo calculas como é difícil viajar nesta altura. Os
caminhos encontram-se num estado incrível.. .
O velho Artamonov vivia num meio torpor, mergulhado
lentamente num sono cada vez mais profundo. Durante a noite e
na maior parte do dia, estava na cama: o resto do tempo
passava-o num cadeira, sentado à janela. Por detrás dos
vidros, o vazio azul ficava por vezes salpicado de nuvens. O
vidro trazia-lhe a imagem de um velho inchado, rosto enorme,
olhos enfiados na carne, de barba grisalha e emaranhada.
Artamonov olhava o seu rosto e pensava:
É engraçado, o mosquito. A mulher chegava, debruçava-se
sobre ele, abanava-o, choramingava:
- " preciso partir, tens de te tratar...
- Vai-te embora - respondia preguiçosamente Artamonov.
Vai-te, burra. Aborreces-me. Deixa-me tranquilo.
E, sozinho, escutava o rumor alegre dos homens que se
agitavam no pátio, no jardim, em toda a parte. No entanto, a
fábrica continuava queda.
O ínterlocutor familiar, o homem enganado que reanimava
outrora Artamonov com o ferrete das suas pequenas ideias,
desaparecera, morrera. E fizera bem, pois o velho tinha
dificuldade em pensar; näo sentia nenhuma vontade de o fazer:
já há muito tempo, verificara a inutilidade da reflexäo,
porque era impossível compreender fosse o que fosse. Para onde
tinham partido Tiago, Tatiana e o genro?
As vezes, interrogava a mulher:
- Elias voltou?
- Näo.
- Ainda näo?
- Näo.
- E Tiago?
- Também näo.
- Andam a passear. Entrementes, Miron devora as nossas
coisas.
- Näo penses nisso - aconselhava Natália.
- Vai-te embora!
Ela refugiava-se num canto e lá ficava sentada, contemplando
com os seus olhos embaciados aquele que fora o homem a quem
consagrara toda a sua vida. A cabeça tremia-lhe, as mäos
de gestos hesitantes pareciam quebradas; emagrecera, mirrada
como uma vela de sebo.
Por vezes, e era cada vez mais frequente, Pedro Artamonov
era desperto por uma agitaçäo inexplicável que enchia a casa;
chegavam estranhos, ele observava-os, esforçando-se por
compreender as suas observaçÖes ruidosas, ouvindo os clamores
da mulher:
- Meu Deus, mas que quer dizer isto? Porquê? Mas é ele o
paträo, somos nós os patrÖes! Deixem-me levá-lo, ele precisa
de ser tratado, tenho de o levar à cidade... Deixem-mo levar!
"Ela quer esconder-me. E porquê? " - interrogava-se
Artamonov. Imbecil! Toda a vida se conduziu assim. Tiago é
parecido com ela. E os outros também. Ao passo que Elias
parece-se comigo. Esperem um pouco que ele volte, ele porá
isto na ordem. ..
Chovia, nevava, fazia muito frio; a tempestade urrava e
assobiava.
Artamonov saiu deste estado de semi-sonolência por uma
sensaçäo de fome aguda. Viu-se no jardim; através dos vidros e
nos ramos molhados divisava-se um céu arroxeado, estranhamente
próximo; dir-se-ia que estava ali mesmo, atrás das árvores, e
que se podia tocar-lhe com a mäo.
- Tenho fome - disse Artamonov.
Näo lhe responderam.
Uma bruma húmida e azulada invadia o jardim; perto, estavam
dois cavalos, um cinzento e o outro baio, a cabeça de um
pousada no pescoço do outro; atrás deles, um homem de camisa
branca, sentado num banco, desfazia um grande embrulho de
cordas.
- Natália, estás a ouvir? Dá-me de comer...
Outrora, quando, saindo do seu torpor, chamava a mulher,
esta, que estava sempre ao pé, chegava logo; mas hoje, näo
estava ali.
- Será possível? - perguntou Artamonov, cujas ideias se
esclareceram. - Estará doente?
Ergueu a cabeça; junto do balneário, qualquer coisa brilhava
entre as moitas; soube mais tarde que era uma espingarda com
baioneta às costas de um soldado esverdeado, invisível entre
os ramos. No pátio, alguém gritava:
-- Querem rir, camaradas? Vocês chamam a isto tratar dos
cavalos? Mas nem os porcos se tratam assim. Porque näo
guardaram o feno, porque o deixaram molhar? E se eu te metesse
na cadeia, fícarias contente?
O homem de camisa branca pôs no chäo as cordas e levantou-se
dizendo a meia voz, voltado para o soldado:
- Ainda um que se mostra importante!
- Actualmente, há mais chefes do que havia - respondeu o
outro.
- Mas quem é que os nomeia?
- Säo eles próprios. Agora, meu velho, tudo acontece por
si, como nos contos de fadas.
O homem aproximou-se dos cavalos e segurou-os pela crina.
Artamonov gritou com toda a força que podia:
- Ouve lá, chama a minha mulher.
- Cala-te, velho - responderam-lhe. Olha, aqui está um que
pede a mulher...
Os cavalos afastaram-se. Artamonov passou a mäo pelo rosto,
pela barba, palpou os dedos frios, a orelha, olhou à roda.
Estava deitado sob uma macieira cujas maçäs vermelhas pendiam
em cachos. O sol era forte. Pedro estava tapado com a sua
peliça de raposa coçada e com um pesado casaco de Inverno. Mas
näo sentia muito calor. Näo compreendia porque estava ali.
Talvez limpassem a casa, como na véspera das festas. Mas de
qual festa? Porque havia cavalos no jardim e o soldado ao pé
do balneário? E quem barafustava no pátio?
- Näo passas de um garoto estúpido, camarada. O quê, os
homens estäo fatigados? É muito cedo para se estar cansado.
Sem os imbecis...
Este grito longínquo, mas ensurdecedor, enchia a cabeça de
barulho. E Pedro tinha a impressäo de näo ter pernas; a partir
do joelho, estavam inertes. A macieira na parede fora pintada
por Ivan Lukine, um ladräo que a seguir assaltara a igreja e
morrera na prisäo.
Alguém entrou, trazendo consigo uma sombra fria e um
pronunciado cheiro a sebo:
- Ev identemente que sou eu. ..
A resposta de Tikhon espantou ainda mais Artamonov. O velho
trabalhador abriu os braços como se nadasse por cima
do soalho rangente.
- Quem é que grita deste modo?
- Zakhar Morozov.
- E este soldado que faz aqui?
- É a guerra.
Depois de um instante de silêncio, Artamonov perguntou:
- O inimigo chegou cá?
- É a ti que fazem a guerra.
O paträo observou com severidade:
- Näo gracejes, velho pateta, eu näo sou teu camarada!
Ouviu esta plácida resposta:
- É a última guerra, eles näo querem mais nenhuma.
E hoje todos säo camaradas. Mas para um imbecil, é verdade
que estou bastante velho.
Era evid_ente que Tikhon estava zangado. Sentou-se aos pés
do paträo, o chapéu na cabeça. No pátio, uma voz rouca
comandou:
- E depois das oito horas ninguém nas ruas!
- Onde está a minha mulher? - quis saber Artamonov.
- Foi procurar päo.
- Como, procurar päo? O päo näo é tijolo, näo se encontra no
chäo.
No jardim, o crepúsculo tornava-se mais cerrado, mais azul;
perto do balneário, o soldado bocejou, resmungou; já näo se
via, só a sua baioneta luzia como um peixe na água. Artamonov
queria fazer a Tikhon muitas perguntas, mas calava-se:
nada compreenderia das respostas do velho. E, depois as
perguntas saltavam, baralhavam-se, sem que pudesse compreender
qual delas era a mais importante. E tinha muita fome.
Tikhon taramelava:
- Sou um imbecil, mas fui o primeiro a compreender a
verdade. Sabes, como isto começou? Eu bem o dissera: será a
prisäo para todos! E chegou. Limparam-vos como pó com um pano.
Sim, o Diabo polia e tu ajudava-lo. E para quê tudo isto?
Pecados, pecados, até näo se poderem contar. Eu olhava
sempre, admirado. Quando acabaria isto? E até que vocês
chegaram a este ponto. Tudo vos chegou transformado eir,
chumbo. .. O carro só tem uma roda.
"Ele divaga" - pensou Artamonov, mas interrogou, apesar de
tudo:
- Porque estou aqui?
- Expulsaram-vos de casa.
- A Miron também?
- A toda a gente.
- E.. . Tiago?
- Morreu há muito tempo.
- E Elias onde está?
- Parece que é desses. É provável pois se näo fossem eles, a
tua vida...
"Ele divaga - decidiu Artamonov, e calou-se, pensando:
Perdeu a razäo, o pobre velho. Era de esperar."
O céu encheu-se de pequenas estrelas pálidas; antigamente,
näo as havia iguais. Nem tantas.
Tikhon tirou o chapéu e, apertando-o entre as mäos, voltou
a murmurar:
- Toda a vossa estupidez de pessoas mesquinhas vos chegou
com um soluço. Para os pobres, custa menos.
De súbito, perguntou noutro tom:
- Lembras-te do enteado do teu contabilista?
- Sim, e depois?
Pedro Artamonov näo conseguia descobrir se esta pergunta
inesperada o amedrontava ou simplesmente o admirava. Mas
compreendeu logo que Tikhon recomeçou:
- Tu mataste-o, assim como Zakhar matou o cäozito. E porque
o mataste?
Entäo, tudo se tornou claro para Artamonov: Tikhon acabara
por denunciá-lo, e, embora doente, tinham-no prendido.
Mas ficou menos amedrontado do que indignado por esta
estupidez monstruosa. Ergueu-se nos cotovelos, levantou a
cabeça e começou a falar baixo, num tom de censura e de
íronia, a língua amarga e a boca seca:
- Mentes! Aliás, para as faltas há também a prescriçäo.
Tu deixaste passar todos os prazos. Sim! E endoideceste.
Esqueceste-te de que foste testemunha, e neste caso...
O velho interrompeu-o:
- O que é que eu disse? É claro, eu näo vi, mas compreendi.
Quis ver o que tu ias fazer. Menti, e tu ficaste contente.
Eu olhava, olhava, esperava, esperava... E vocês säo todos os
mesmos. O teu irmäo Alexis levou o bêbado do sogro a deitar
fogo à taberna de Barski; o teu pai adivinhou-o e lá conseguiu
que o bêbado lá ficasse. Nikita também o sabia, ele também näo
precisava de ninguém para saber a verdade. Devia ter-se calado
mas por rancor contra ti, contou-mo. Eu disse-lhe: "És frade,
deves esquecer tudo isso; eu recordar-me-ei." Vocês
aterrorizavam-no com os vossos negócios. Obrigaram-no a
enforcar-se, e depois a meter-se num convento, para que
rezasse por vocês. Mas ele nem sequer ousava rezar por vocês,
tinha medo! Sim, tinha medo! ... Foi por isso que perdeu
Deus...
Tikhon parecia capaz de falar interminavelmente, até ao
fim dos dias. Falava baixo, pensativamente e, na aparência,
sem ressentimentos. Na profunda e quente escuridäo da noite,
quase nada se via. A sua linguagem rugosa, que lembrava o
rumor nocturno das baratas, näo fazia medo a Artamonov, mas
acabrunhava-o, espantava-o até ficar mudo. Com um suspiro
prolongado, como se acabasse de aliviar os seus ombros de um
fardo, Tikhon continuava a remexer com a sua voz monótona o
passado inútil.
- Vocês, os Artamonov, também me fizeram perder a fé;
por causa de vocês, Nikita desviou-me; perdeu Deus e fez-mo
perder... Vocês näo tinham Deus nem o Diabo. Era para iludir
as pessoas que tinham imagens de santos em casa. O que é que
têm? Näo se chega a compreender. Vocês parecem ter alguma
coisa. Mentirosos. Viveram da mentira. Agora, vê-se tudo,
despiram-vos...
Tendo conseguido com dificuldade mexer o seu corpo,
Artanonov tirou as botas terrivelmente pesadas, mas a planta
dos pés näo sentiu o soalho e o velho teve a impressäo de que
as pernas estavam separadas dele, tinham-se ido, enquanto ele
continuava suspenso no ar. Com medo, agarrou-se aos ombros de
Tikhon.
- O que é? - perguntou o velho afastando brutalmente as mäos
de Artamonov. - Näo me toques! Já näo tens força bastante para
me estrangular! O teu pai tinha força, mas ela foi-se com as
fanfarronices. Digo-te que vocês me fizeram perder a fé, e eu
nem seí como hei-de morrer. Olhei-vos demasiado, demónios...
Artamonov tinha cada vez mais fome, e o estado das suas
pernas fazia-lhe muito medo.
- Irei efectivamente morer? Ainda näo tenho setenta e cinco
anos, Senhor!
Tentou deitar-se de novo, mas näo teve forças para arrastar
os pés.
Ordenou a Tikhon:
- Ajuda-me, levanta os meus pés.
Depois de colocar no banco as pernas inertes do seu antigo
paträo, Tikhon cuspiu, sentou-se outra vez, e começou a enfiar
a mäo no chapéu: qualquer coisa brilhava na sua mäo. Artamonov
olhou mais atentamente: era uma agulha; na escuridäo, cosia os
seus cabelos, assim mostrando a sua loucura. Por
cima dela, um morcego, todo cinzento, voava. Três résteas de
luz amarela espalharam-se pelo jardim e uma voz longíngua, mas
distinta, declarou:
- Para trás, camaradas, näo podem entrar. ..
Tikhon sobrepôs-se a esta voz:
- E o teu pai matou igualmente o meu irmäo.
- Estás a mentir - disse, sem saber porquê, Artamonov
mas a seguir inquiriu:
- Quando foi?
- Ah! sim, quando...
- Porque é que inventas tudo isso, meu doido? - gritou de
súbito com indignaçäo Artamonov que se sentia esgotado,
derrotado pela fome. - Que me queres tu? És a minha
consciência, o meu juiz? Porque näo disseste nada durante mais
de trinta anos?
- Ah! sim, porque nunca disse nada? Reflectia.
- Acumulavas o ódio. Anda, vai denunciar-me à polícia...
- Já näo há polícia.
- Vai dizer-lhes: Ele deu-me de comer e de beber durante
toda a minha vida, julguem-no! Denunciaste-me, näo foi?
Entäo que queres ainda? Ameaça-me, amedronta-me, pede-me
dinheiro!
- Tu näo tens dinheiro, já näo tens nada. E nunca tiveste
nada. E os juizes näo me interessam. Eu é que sou o meu
juiz.
- Entäo de que me ameaças, doido?
Porém, Tikhon nada tinha de ameaçador, e Artamonov
verificava-o vagamente. Tikhon rosnou:
- É o fim de todos os Cains. Porque mataram o meu irmäo?
- Quanto ao teu irmäo, estás a mentir!
Os dois velhos falaram mais rapidamente, interrompendo-se
mutuamente.
- Eu minto? Estava com o meu irmäo, nesse momento. ..
- Com quem?
- Com o meu irmäo. Fugi quando o teu pai o matou. Foi devido
ao seu sangue que o teu pai morreu. Para quê derramar o
sangue?
- Chegas demasiado tarde. . .
- Ah! derrubaram-vos, dominaram-vos; já näo tens defesa. Ao
passo que eu fico de fora, como sempre. . .
- Tu endoideceste. . .
Artamonov sentia que o antigo empregado o empurrava para um
canto, para um buraco onde tudo era indistinto,
incompreensível, terrível. Repetia com insistência:
- Chegas demasiado tarde. Quanto ao teu irmäo, mentes, tu
näo o tinhas, as pessoas como tu nunca têm nada...
- Têm a sua consciência...
- Foste tu quem fez perder a cabeça ao meu filho Elias!
- Foram vocês, os Artamonov, que me fizeram perder a cabeça,
foi Nikita quem me perturbou!
- Ele dizia, pelo contrário, que tinhas sido tu!
- Quantas vezes senti vontade de matar o teu pai! Um dia,
estive para lhe dar com uma picareta na cabeça... Vocês
säo manhosos...
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-Tuéqueoés...
- Vocês inventaram Serafim. Também ele me perturbou:
näo fazia mal a ninguém, mas vivia na iniquidade. Como era
possível? Em toda a parte, manhas...
- Quem vem lá? Aonde ides? Mas já vos disseram, idiotas, que
näo se pode circular depois das oitos horas! ...
Tikhon levantou-se, aproximou-se da porta, mergulhou na
escuridäo. Artamonov, despedaçado de fome, de fadiga, de
emoçäo, viu qualquer coisa negra e larga atravessár pelo
jardim as três faces de luz ondulante. Fechou os olhos, à
espera de um acontecimento terrível.
- Encontraste? - perguntou Tikhon a alguém.
- Sim.
Era a voz da mulher de Artamonov. Onde teria ido? Porque o
deixara sozinho com este velho?
Artamonov reabria os olhos, ergueu-se nos cotovelos olhando
para a porta que duas formas negras cerravam. Bruscamente,
lembrou-se que durante toda a vida perguntara quem era culpado
para com ele ou por causa de quem a sua existência fora täo
dolorosamente complicada, envenenada por uma mentira nunca
descoberta. Agora, tudo se esclarecia.
A mulher aproximou-se dele, debruçou-se e murmurou:
- Finalmente, Deus seja louvado...
- Aqui tens, Tikhon, aquela que é a causa de tudo!-
disse resolutamente Artamonov, e soltou um suspiro de alívio.
- Ela era avara, ela é que me arrastava, sim!
Rugiu triunfalmente:
- Foi também por causa dela que o meu irmäo Nikita se
perdeu. Bem o sabes...
Artamonov sufocava. Era surpreendente que a mulher näo
se zangasse, näo se amedrontasse, näo chorasse. Acariciava-lhe
a cabeça com a mäo trémula e ciciava com voz angustiada
mas afectuosa:
- Devagar, näo grites. Todos säo maus, aqui.. .
- Dá-me de comer...
A mulher pôs-lhe na mäo um pepino e um grande pedaço de päo:
o pepino estava quente, o päo colava-se nos dedos como pasta.
Artamonov admirou-se:
- O que é? É para mim? " tudo?
- Mais baixo, por Jesus - murmurava Natália - näo se
encontra mais nada. E com estes soldados...
- É esta a minha recompensa por tudo o que fiz, por tudo
o que receei em toda a minha vida?
Apalpava o päo e adivinhava que acontecera qualquer coisa de
insuportável, de inadmissível e que Natália näo tinha culpa
nenhuma.
Atirou o päo de encontro à porta, dizendo com voz surda mas
firme:
- Näo o quero.
Tikhon apanhou o päo e soprou-lhe; Natália estendeu-o de
novo ao marido, murmurando:
- Come, näo te zangues...
Artamonov, repelindo-a, fechou os olhos com força, e repetiu
entre dentes com um furor feroz:
- Näo o quero! Vai-te embora!
Máximo Gorki
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