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É um fim de dia de maio quando na residência setecentista da família Sogliano, toca o telefone. A família está reunida para o jantar: Orsola, mulher de Edoardo, os cinco filhos do casal, a sogra, Margherita, e as suas duas filhas. Estão todos a espera de Edoardo. É Orsola quem atende, e toma conhecimento, através da voz formal de um polícia, da morte do marido num acidente de automóvel. O golpe é tremendo: trinta anos de amor despedaçados num instante. Mas Orsola não pode saber que aquela mágoa avassaladora se vai transformar em breve numa dor ainda mais profunda, no momento em que descobre uma série de fotografias recentes do marido na companhia de um bonito rapazinho de olhos amendoados, que assina: "O teu filho Steve)). A partir deste início fulgurante, Sveva conta-nos a história daquela família ligada a indústria do coral nos últimos dois séculos. A história de Orsola - uma mulher livre e independente de Milão; de Edoardo - o herdeiro da mais importante família do coral de Torre del Greco, mas também a história de Margherita - uma mulher do sul, orgulhosa e de coração generoso.
Uma vez mais, Sveva Casati Modignani envolve o leitor numa história apaixonante de uma grande família, entre amores, luzes e sombras, alegrias e sofrimentos, sucessos e falhanços, tendo como pano de fundo um ambiente tão insólito quanto fascinante e pouco conhecido: o mundo do coral, essa matéria-prima que nos encanta há milhares de anos.
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Saverio bateu várias vezes a porta, sem obter resposta. Então rodou a maçaneta e entrou no quarto imerso na penumbra. A luz da manhã penetrava através das persianas
e um raio de sol iluminava o quarto dos pais. O macio tapete francês sobre o qual avançou permitiu-lhe aproximar-se da cama sem fazer ruído. A mãe dormia profundamente.
Saverio inclinou-se sobre ela.
- Mãe - sussurrou.
Orsola encrespou por um instante os lábios mas não reagiu.
- Mãe - repetiu, com uma voz mais decidida. Ela abriu os olhos. Saverio afagou-lhe a testa e sentou-se ao lado dela, na beira da cama. Orsola gostaria de poder retomar
o sono e colocar uma barreira entre ela e a realidade.
- Mamã, tens de te levantar. Já começaram a chegar as visitas pediu-lhe, com uma voz persuasiva.
- Não me importa. Quero que me deixem em paz - balbuciou Orsola.
- Sentes-te mal outra vez? Chamo, de novo, o médico? - perguntou, preocupado, porque na noite anterior Orsola tinha desmaiado. Sergio de Santis, médico da família
há vinte anos, chamado de urgência, tinha-lhe medido a tensão e receitado imediatamente um medicamento para a baixar, afastando assim riscos mais sérios. Depois
tinha-lhe dado uma injeção que a enviou para o mundo dos sonhos, ao mesmo tempo que lhe dizia:
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- A morte do teu marido não te atingiu apenas a ti, mas a toda a família. Sempre foste uma mulher forte; arranja coragem, porque todos precisam da tua ajuda. Quando
se foi embora recomendou que a deixassem descansar o máximo de tempo possível. Agora Orsola teria continuado a dormir se o filho mais velho não a tivesse acordado,
trazendo-a de volta a uma realidade que era muito semelhante a um pesadelo.
- Vou sentir-me pessimamente se não te fores embora - disse então, com um tom de lamento. Saverio emitiu um suspiro resignado, levantou-se e concluiu:
- Está bem. Eu invento qualquer coisa. - Beijou-a na face e saiu do quarto. Orsola sentiu-se invadir por uma onda de angústia que lhe apertou a garganta. Nunca imaginaria
que aos 50 anos, depois de uma existência serena, a vida lhe fosse reservar, numa rápida sucessão, duas provas tão difíceis e dolorosas: a primeira, a perda repentina
do marido, morto num acidente de automóvel e, logo a seguir, a descoberta casual de um segredo inquietante. Pensou na multidão de parentes e amigos que a esperavam
no andar de baixo. Não conseguia enfrentar abraços, apertos de mão, palavras de conforto, olhares carregados de pena, porque o seu sofrimento estava para além do
luto que a atingira. Pouco depois a porta do quarto voltou a abrir-se e perfilou-se à entrada a silhueta delgada de Margherita, a sogra.
- Posso entrar? - perguntou, num fio de voz. Orsola acendeu a luz da mesa de cabeceira, sentou-se na cama e respondeu:
- Entre, mãe, sente-se ao pé de mim.
- Como te sentes, filha? - perguntou a velha senhora. Margherita Sogliano era a sogra que qualquer mulher gostaria de ter. Doce, generosa, colaboradora, nunca invasiva,
tinha conseguido que Orsola, ao entrar em casa dos Sogliano, se sentisse imediatamente à vontade. Percebera que não era fácil, para uma rapariga de 20 anos, que
vinha do norte, filha de um sapateiro, a adaptação aos hábitos daquela família e da gente de Torre del Greco. A sogra,
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mais do que Edoardo, tinha-a levado pela mac), conduzindo os seus passos pelo mundo fascinante do coral. Os Sogliano eram ricos, com uma fortuna que remontava aos
primeiros decénios do século xix. Não pertenciam à aristocracia de sangue, mas à do coral. Com efeito, o mercado mundial do precioso material vermelho apanhado no
mar estava nas suas mãos e nas mãos de mais umas poucas famílias que há duzentos anos viviam e trabalhavam naquela pequena cidade agarrada às encostas do Vesúvio.
Eram armadores, pescadores, caçadores de negócios e artesãos dotados de fantasia e extraordinário talento artístico. Definiam-se como "a gente do coral". Residiam
em grandes moradias e antigos palácios que eram também sede das suas empresas. Para além dos quartos, dos salões, das salas de estar, havia também armazéns, laboratórios
e escritórios, animados desde a madrugada até à noite por um incessante ruído de vozes, pelo rumor das máquinas, pelos choros e pelas gargalhadas das crianças e
pelas canções de amor cantadas pelas operárias. E quando os patrões e os empregados almoçavam, entrecruzavam-se confidências apenas sussurradas e o aroma do café
sobrepunha-se ao cheiro intenso a mar do coral que não se dissipava nem sequer depois de os ramos terem sido lavados uma e outra vez, desbastados, cortados e polidos.
O coral encerra dentro de si o fascínio do mar e o mistério de uma natureza situada no limite entre o reino mineral, vegetal e animal. De facto, não é um mineral,
apesar de parecer uma pedra, não é um vegetal, apesar de ter o aspeto de uma planta, e não parece ser um animal, apesar de nascer das secreções de milhões de minúsculos
animais que lhe conferem robustez e a cor do sangue. Orsola respondeu então a Margherita, quando esta lhe perguntou como se sentia:
- Devia ser eu a perguntar-lhe como se sente. Pegou na mão da sogra e apertou-a com força. - Deus dá, Deus tira - sussurrou Margherita, com um suspiro carregado
de tristeza. Orsola gostaria de poder replicar que ela tinha uma dor a mais, mas não queria acrescentar ao sofrimento daquela mãe mais uma mágoa.
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- Daqui a pouco vão trazê-lo para casa e, até amanhã, ainda vai ser nosso - prosseguiu Margherita. E acrescentou: - Agora devias levantar-te e enfrentar a situação.
Vai fazer-te bem, porque a dor precisa de companhia para se tornar suportável. Orsola observou aquele rosto marcado pelos anos, os olhos claros enevoados de lágrimas,
os lábios finos dobrados pelo sofrimento e, num impulso, abraçou-a. Chegou-se muito a ela e confessou-lhe:
- Não consigo enfrentar os amigos e os parentes; ainda preciso de estar só.
- O teu marido já cá não está, vais ter muito tempo para a solidão - disse Margherita, ao mesmo tempo que se libertava dos braços da nora. - Agora vais ter de cumprir
o teu papel na família e na nossa comunidade. Tu és a senhora Sogliano, lembra-te disso pediu-lhe com ternura. Orsola pensou que, precisamente porque era a senhora
Sogliano, não podia apresentar-se às visitas, uma vez que estava demasiado confusa e perturbada com aquilo que tinha descoberto na noite da morte do marido.
- Veste-te e desce - disse Margherita ao sair do quarto. Quando ficou sozinha, Orsola levantou-se e entrou na casa de banho. A luz intensa do dia irrompia através
da porta envidraçada que dava para o jardim e, por um instante, cegou-a. Inclinou-se sobre o lavatório, abriu a torneira da água fria e molhou o rosto. Depois secou-se,
despiu a camisa de noite e entrou na cabina do chuveiro. Deixou que os jatos quentes da água lhe fustigassem o corpo enquanto recordava tudo o que tinha acontecido
na noite anterior. Era hora de jantar e, juntamente com os filhos, estava à espera de Edoardo para se sentarem à mesa, quando o telefone tocou. Atendeu ela. Um comandante
da polícia informou-a sobre o acidente de automóvel em que Edoardo perdera a vida. Dirigiu-se então rapidamente de carro a Nápoles, ao Hospital Cardarelli, acompanhada
pelos filhos, para o reconhecimento do corpo. Depois regressou a Torre del Greco para ir buscar a roupa que devia levar ao hospital para vestir o marido. Finalmente
entrou no escritório de Edoardo e abriu uma gaveta da secretária à procura de dinheiro. No meio dos papéis encontrou
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uma fotografia a cores que retratava um lindo rapazinho de olhos amendoados. Vestia uma T-shirt branca e tinha na mão uma raquete de ténis. Sorria para a objetiva.
Teria 9 ou 10 anos. Observou a fotografia distraidamente, com os olhos enevoados de lágrimas e o coração apertado pelo sofrimento, porque o seu adorado marido, o
pai dos seus fantásticos filhos, jazia numa mesa da morgue. Ao atirar a fotografia para a gaveta, esta virou-se ao contrário e revelou, na parte de trás, umas linhas
escritas com uma caligrafia infantil:
Querido pai, quando vieres ter comigo a Hone Kong vou desafiar-te para uma partida de ténis e tu vais ver como eu tenho estofo de campeão. Vem depressa, porque tenho
muitas saudades tuas. O teu filho Steve.
Por baixo acrescentara: 12 de maio de 2013.
Tinham passado dez dias desde aquela data. Os Sogliano, tal como outros industriais do coral, tinham um escritório de representação naquela grande cidade do Oriente,
que era destino de frequentes visitas. De repente, Orsola sentiu-se gelar. Começou a revistar a gaveta com as mãos trémulas e encontrou outras fotografias que retratavam
o marido ao lado da criança. Em todas elas, os dois estavam abraçados e sorriam para a objetiva. Fechou então a gaveta à chave, sentiu as pernas a tremer e desmaiou.
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Desde o início do século xix, os Sogliano viviam em Torre del Greco num palácio setecentista que pertencera aos Spinelli, uma nobre família napolitana a quem o compraram.
Uma das portas do monumental portão da entrada tinha sido fechada em sinal de luto e o trânsito, naquele troço da via Umberto I, tinha sido desviado para permitir
ao pessoal das cerimónias fúnebres a descarga do estrado, dos candelabros e dos panos de veludo negro e pesado que iam revestir a entrada e decorar o átrio e a escadaria,
conduzindo a procissão de visitantes ao salão verde, onde seria colocado o caixão. Margherita Sogliano tinha escolhido um caixão simples de madeira, sem frisos,
para receber o corpo do filho, atingido aos 55 anos por um enfarte do miocárdio que o tinha matado, fazendo-o sair da estrada enquanto, ao volante do seu Mercedes,
regressava a casa vindo de Nápoles: fora esse o relatório médico. Em poucas horas, a notícia do seu desaparecimento tinha dado a volta ao mundo e logo de manhã cedo
começaram a chegar telegramas, flores, telefonemas e e-mails de condolências. Com a passagem das horas, mensagens de pêsames chegavam de Paris, Londres, Nova Iorque,
Kobe, Tóquio, Hong Kong e Sidney. Edoardo Sogliano era considerado, em Itália e no estrangeiro, como um dos mais importantes industriais do coral de Torre del Greco.
O jornal Mattino, de Nápoles, publicou uma ampla reportagem com fotografias que percorriam as etapas mais relevantes da sua vida. Aparecia retratado na corte do
imperador do Japão, com
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o presidente dos Estados Unidos, com a rainha Isabel de Inglaterra, no Parlamento de Estrasburgo, num congresso de biologia marinha em Melbourne, com o presidente
da República Italiana no momento em que lhe atribuía uma comenda em Roma. No salão verde, Margherita Sogliano, ao lado das duas filhas e dos netos, recebia os amigos
que vinham expressar afeto e solidariedade. Pensou que aquela mesma cena se tinha repetido duas vezes: nos anos 60 quando, aos 18 anos, tinha morrido Michele, o
seu primogénito, enviado a Nova Iorque pelo pai para acompanhar os negócios da família e para tomar conta da joalharia na Quinta Avenida. Dez anos depois foi a vez
do marido, Saverio, ceifado por um cancro. Agora preparava-se para sepultar o seu segundo filho e Orsola, a viúva, ainda não tinha saído dos seus aposentos. Felizmente
estava ali Saverio, o filho mais velho de Edoardo, que substituía a mãe. Tinha 29 anos e era dotado, como o pai, de uma intuição vivaz para os negócios e, como a
mãe, de um forte sentido da responsabilidade. Margherita chamou Giulietta, a neta mais nova, que estava a receber umas colegas da escola.
- Diz, avó - disse Giuletta, indo ao encontro dela.
- A tua mãe não aparece e está toda a gente a perguntar por ela. Vai chamá-la - sussurrou-lhe.
- Tu já a chamaste e, antes de ti, o Saverio - murmurou a neta
por sua vez.
Margherita acariciou-lhe os cabelos acobreados que lhe desciam ,sobre os ombros, enroscados como pequenas serpentes. Giulietta era a sua neta preferida porque nela,
mais do que nas irmãs, CrisMa e Paola, se revia a si mesma quando era jovem: os mesmos cabelos ruivos, o mesmo temperamento forte e alegre.
- Manda-a descer - ordenou-lhe então, com um tom que não idmitia réplicas. Orsola estava sentada em frente ao espelho do toucador a espear os ganchos de tartaruga
no farto chignon que lhe ornamentava nuca. Vestia um tailleur em georgette de seda antracite. Ao pescoço trazia um colar de pérolas naturais em torsade com um fecho
antigo de coral de Sciacca.
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Giulietta entrou no quarto e parou a observá-la, refletida no espelho. A mãe era lindíssima e parecia ainda uma jovem. Sentiu o choro a apertar-lhe a garganta, enquanto
constatava que nunca mais ia voltar a ver o pai ao lado dela. Não conseguiu conter um soluço e só então Orsola se apercebeu da sua presença. Voltou-se, viu-a e foi
imediatamente ter com ela para a abraçar e a apertar contra si, afetuosamente.
- Minha pequenina, tens mil e uma razões para desesperares e para te zangares comigo, que ainda aqui estou, em vez de estar lá em baixo contigo e com os teus irmãos.
Mas agora tenho-te aqui apertada nos meus braços e não te deixo ir embora - sussurrou-lhe.
- Mas o pai deixou-me... não devia ter-me feito isto. Estou desesperada - balbuciou Giulietta, lavada em lágrimas.
- Estamos todos, minha pequenina - disse Orsola.
- Mas tu não choras, enquanto eu estou completamente perdida - confessou Giuglietta, a soluçar.
- Eu sou uma milanesa dura como uma sola e tu, pelo contrário, és doce como o teu pai. Coragem, vamos descer e reunir-nos ao resto da família. Desceram juntas ao
andar inferior e, mal se aproximaram do salão verde, ouviram o ruído das pessoas e a voz melodiosa das freiras que tinham vindo do convento próximo. Entraram no
salão, cujas paredes estavam repletas de vitrines que continham algumas obras-primas da arte da joalharia concebidas pela empresa Sogliano desde o século. XIX. No
centro da sala, sobre um estrado recoberto de veludo cor de ouro antigo, estava pousado o caixão dentro do qual repousava Edoardo. Estava rodeado à cabeceira pelos
filhos e pelas duas irmãs, Priscilla e Archetta. Só faltava Steve, o filho secreto, pensou Orsola, com o coração cingido num aperto doloroso.
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A multidão de visitas abriu-se para deixar passar Orsola, que avançava ao lado de Giulietta. Diante do caixão de Edoardo, a filha deixou-a para se juntar aos irmãos.
Cessou o ruído e no salão, de portadas semicerradas em sinal de luto, caiu o silêncio. Orsola baixou a cabeça e ficou parada aos pés do caixão, em recolhimento.
Recordou o rosto lindíssimo de Edoardo, emoldurado por uma farta cabeleira de um castanho avermelhado que lhe roçava o pescoço. A morte arrancara-lhe o homem que
tanto amara e que durante trinta anos tinha sido o companheiro de uma vida tranquila, deixando-a sozinha a guardar um segredo inquietante. Com aquele pensamento,
Orsola não conseguiu conter um soluço e as lágrimas cobriram-lhe os olhos. Reagiu imediatamente, levantou a cabeça e saiu do salão para ir ter com a sogra à sala
contígua. Margherita Sogliano tinha-se instalado numa poltrona forrada de seda adamascada num tom amarelo-ouro. Orsola inclinou-se sobre ela, deu-lhe um beijo ao
de leve na testa e sentou-se ao seu lado. Margherita pousou a mão sobre a da nora e sorriu-lhe, ao mesmo tempo que Titina e Rosária, as duas velhas criadas que tinham
entrado naquela casa muito novas, se aproximaram delas com deferência para exprimirem as suas condolências, enxugando os olhos com lenços debruados a preto.
- Obrigada - disse Orsola, e acrescentou: - Agora podem servir o café. A entrada da sala, cheia de amigos e conhecidos, surgiu monsenhor
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Antonio Bartiromo, o pároco da Basilica de Santa Croce. Era um homem de 60 anos com o corpo de um lutador. Nas suas homilias dominicais, pronunciadas com uma voz
poderosa, condenava com severidade os vícios dos seus paroquianos, sobre os quais se encarniçariam os anjos vingadores, fazendo justiça pelas suas patifarias, pela
sua avidez e pela falta de respeito pelos valores sacrossantos da família. Ao domingo, quando saíam da igreja, os paroquianos, mesmo os mais virtuosos, eram muitas
vezes percorridos por arrepios de mal-estar e acontecia sentirem-se culpados até quando não o eram. Mas em confissão, quando falava com algum deles, monsenhor Bartiromo
revelava a sua índole paternal, compreensiva e caridosa. Os habitantes de Torre amavam-no, ajoelhavam-se diante dele e imploravam, por seu intermédio, o perdão de
Deus. Entrou na sala com o seu passo de guerreiro, pegou numa cadeira, instalou-a diante das duas mulheres e deixou-se cair sobre ela, enquanto tirava um lenço do
bolso da túnica e enxugava o rosto afogueado.
- Estou a sofrer convosco, minhas amigas - começou, e as duas mulheres sabiam que aquelas palavras não eram palavras de circunstância.
- Obrigada, monsenhor - respondeu Margherita.
- O Edoardo merecia viver mais tempo, até para encaminhar os vossos filhos, que ainda são jovens e precisam de orientação - continuou o sacerdote. Depois olhou Orsola
nos olhos e prosseguiu:
- Mas tu preocupas-me mais do que eles. A tua calma não me diz nada de bom. Antes queria ver-te dominada por uma crise de choro do que assim tão contida e tão senhora
de ti.
- Eu estou bem - afirmou Orsola, num tom de voz vago.
- Antes assim - concluiu - porque, com a morte do Edoardo, vai cair tudo sobre os teus ombros e aquilo que vais ter de carregar não é um peso menor, já que te vai
tocar a ti manter sob controlo tanto os filhos como os negócios. Agora és tu a chefe desta empresa. Olha que te vão cair em cima propostas de todos os géneros. Algumas
poderão parecer-te tão aliciantes que até podem levar-te a pensar em ceder este imenso património, que representa dois séculos de
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história dos Sogliano. Mas a tua tarefa é transmiti-lo íntegro aos teus filhos. Se precisares de um apoio espiritual, sabes onde me encontrar; se precisares de um
apoio prático, procura-o apenas dentro da tua família e entre os colaboradores do Edoardo. Fui claro? Orsola anuiu, enquanto a sogra sussurrava: - Santas palavras.
Orsola sentiu-se grata ao religioso, que tinha expressado poucas mas sinceras palavras de conforto e que depois falara de questões práticas, evitando que a comoção
se apoderasse dela. Tinha de cerrar os dentes e não se deixar ir abaixo até que o marido fosse entregue à sua última morada. Depois abordaria o problema que a angustiava.
À sala continuavam a chegar pessoas que, depois de prestarem a última homenagem a Edoardo, na sala ao lado, desejavam também apresentar as suas condolências a ela
e a Margherita.
O sacerdote levantou-se, despediu-se das duas senhoras e retirou-se.
Os jovens Sogliano, um a um, foram ter com a mãe e com a avó e puseram-se em pé atrás delas, ao mesmo tempo que Titina e Rosária entravam a empurrar um carrinho
cheio de chávenas e cafeteiras de prata de onde se libertava o aroma do café. Naquele momento entrou don Onofrio Di Salvo, que tinha construido uma fortuna com a
produção de camafeus feitos com conchas dos mares tropicais. Era um homem de 70 anos, inteligente e dotado de um extraordinário intuito comercial. Falava o dialeto
local porque nunca tinha estudado italiano, a que recorria raramente, exprimindo-se numa estranha linguagem desarticulada. Apesar disso, entendia-se perfeitamente
com os compradores de todo o mundo. O pai tinha sido um pescador de coral e ele, com 8 anos, era já aprendiz na oficina, trabalhando ao lado de um lapidador. Rapidamente
começou a ornamentar conchas e, à medida que ganhava prática na arte de gravação na, cornalina, começou a produzir camafeus, revelando um excelente talento inato.
Há muito tempo que a sua empresa concebia pequenas obras de arte para as joalharias mais famosas em Itália e no estrangeiro. Os filhos, todos licenciados, trabalhavam
sob a sua direção e admiravam a sua habilidade e o seu profissionalismo.
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- Dona Margherita, dona Orsola - cumprimentou, com uma inclinação de cabeça. Margherita fez-lhe sinal para que se sentasse na cadeira que o monsenhor acabava de
deixar. Ele sentou-se, respirou fundo e disse:
- Estou aqui para lhes transmitir as minhas humildes condolências pela catástrofe que se abateu sobre as senhoras. - Respirou fundo mais uma vez e acrescentou: -
E depois estou aqui a oferecer o auxílio que, se precisarem, poderão pedir e serão servidas, porque a partida do vosso parente, para além de meu estimadíssimo amigo,
don Edoardo, me dilacera o coração, e por isso considerem-me sempre vosso servo para qualquer intenção vossa assim como da vossa caríssima família, também em nome
de todos os elementos da minha família, com as minhas exéquias também para os vossos caríssimos filhos. Apesar de angustiadas, as duas senhoras tiveram alguma dificuldade
em conter um sorriso, embora estivessem habituadas à sua linguagem.
- Agradecemos-te muito, Onofrio, e agradecemos também à tua família - replicou Margherita.
- Aceita um café? - perguntou Orsola, ao mesmo tempo que Titina se aproximava com uma chávena.
- Aceito em honra do amigo defunto - replicou e, antes de retirar a chávena da mão um pouco trémula da empregada, respirou fundo mais uma vez, concluindo o seu discurso,
certamente elaborado durante muito tempo. Entretanto na sala continuavam a entrar pessoas. Titina servia café a toda a gente e Rosária andava para trás e para diante
entre a sala e a cozinha a transportar cafeteiras vazias e a trazê-las cheias. Do salão ao lado chegava o cheiro das velas e das flores e o coro das freiras que
rezavam o terço. Naquele momento entrou na sala Vincenzo Scapece. O comendador Scapece, alguns anos mais velho do que Margherita, grande tombeur de femmes, como
ele próprio gostava de se definir, era o mais rico dos industriais do coral, porque a sua família tinha sido a primeira a adquirir uma enorme quantidade de coral
morto de Sciacca,
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cujo valor tinha aumentado ao longo do tempo e cuja cotação superava agora a do ouro.
- Aí vem a víbora - sussurrou Margherita à nora. - Deves ter sempre muito cuidado com ele - acrescentou.
- Esteja descansada. Não tenho vontade nenhuma de estabelecer qualquer relação nem com ele nem com outros - replicou Orsola, decidida.
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Onorato Spinelli, notário em Torre, era um dos amigos mais chegados de Edoardo. Eram da mesma idade e tinham frequentado as mesmas escolas, desde o infantário à
universidade, onde ambos se tinham licenciado em Direito. Depois Onorato prosseguiu os estudos para ser notário, tal como o pai e o avô, enquanto Edoardo se dedicou
logo à empresa familiar. Quando as pessoas começaram a sair do cemitério, depois de terminado o funeral, ele esperou que os Sogliano saíssem também para os abraçar,
um a um. Quando chegou a vez de Orsola, sussurrou-lhe: - Amanhã de manhã às nove vai ao meu escritório. Ela limitou-se a um gesto de assentimento. Orsola já tinha
decidido ir ter com ele, porque Onorato tratava desde sempre dos assuntos da família. Os dois homens estavam ligados por uma profunda relação de confiança, afeto
e estima recíproca que se estendera também às respetivas mulheres. Quando eram jovens, Orsola tinha muitas vezes secado as lágrimas de Emanuela Spinelli, que desesperava
porque não conseguia ter filhos. Ao regressar a casa depois do funeral, e pela enésima vez, Orsola perguntou a si mesma se Onorato saberia de Steve, o filho secreto
de Edoardo. Na manhã seguinte, com alguns minutos de antecedência, chegou ao palacete oitocentista sobre o porto, em cujo rés do chão ficava o escritório do notário.
No mesmo edifício, no terceiro andar, era a sua residência. Orsola entrou no escritório no momento em que a decana das empregadas, a velha Cesarina, estava a desativar
o alarme.
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Em Torre qualquer empresa, qualquer loja, qualquer escritório profissional era uma fortaleza inexpugnável, dotada de sistemas de segurança modernos e muito sofisticados.
Os habitantes da cidade achavam que os delinquentes paravam em Ercolano e, para se sentirem mais sossegadas, provavelmente as famílias tinham combinado pagar uma
certa quantia que garantisse a sua incolumidade. A marginalidade prosperava também em Torre, mas a nobreza do coral mantinha-se a uma certa distância da criminalidade,
sabendo perfeitamente que a transparência e a honestidade pagam mais do que a conivência.
- Dona Orsola, faça o favor - disse a secretária, ao mesmo tempo que a mandava entrar na antecâmara do escritório de Onorato. - O senhor doutor sabe que está aqui?
Devo avisá-lo?
- Não o incomode. Esperamos que chegue; foi ele que me marcou esta reunião - respondeu Orsola. Cesarina conduziu-a até ao gabinete do notário e convidou-a a sentar-se
numa das amplas poltronas de pele colocadas em frente a uma bonita escrivaninha antiga. Antes de a deixar sozinha, disse-lhe:
- Dona Orsola, estou realmente desolada com o que aconteceu. Orsola agradeceu. Sentia-se cansada, depois de ter passado uma noite praticamente insone ao lado de
Giulietta, que tinha querido dormir na cama matrimonial com a mãe. Ouviu a voz de Onorato a cumprimentar Cesarina e logo em seguida o notário entrou na sala, ao
mesmo tempo que pedia A secretária dois cafés.
Orsola levantou-se da poltrona e deixou-se cair nos braços afetuosos do seu velho amigo.
- Senta-te, Orsola - disse-lhe Onorato, ao mesmo tempo que ocupava o seu lugar a secretária. - Deves ter perguntado a ti própria por que razão a minha mulher não
te apareceu nem estava ontem no funeral.
- O que foi que aconteceu? - perguntou Orsola.
- Está no hospital há três dias. Foi operada de urgência por causa de uma gravidez extrauterina. Podia ter morrido.
- Não me disse que estava grávida.
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- Nem ela sabia - explicou Onorato. Cesarina entrou com o café e pousou-o na secretária. A seguir saiu rapidamente. Onorato continuou:
- Como sabes, há mais de dez anos que nos tínhamos resignado a não ter filhos, e logo agora que a Emanuela pensava ter entrado na menopausa, vê lá o que havia de
acontecer - comentou, com um ar sofrido.
- E agora como está? - perguntou Orsola, preocupada.
- Está fora de perigo, mas ainda não está bem.
- Posso ir visitá-la?
- Ela vai gostar de te ver. Nem imaginas a pena que ela teve de não ter estado ao teu lado neste momento tão difícil. Calaram-se para tomar o café, e depois Orsola
disse:
- Já tinha decidido vir ter contigo mesmo antes de me convocares.
- Para a leitura do testamento? - perguntou-lhe.
- Ignorava que houvesse testamento - respondeu ela, espantada.
- O Edoardo escreveu-o há dois anos, quando soube que tinha um problema cardíaco, e não vos disse nada para não vos preocupar.
- Mas tu podias ter-me dito - reagiu Orsola, ferida com aquela nova revelação, ao mesmo tempo que perguntava a si mesma, angustiada, que outros segredos lhe tinha
escondido o marido.
- O Edoardo confiou isso ao advogado, não ao amigo - justificou-se Onorato. - Para além do testamento, confiou-me uma carta para ti, com o pedido de ta entregar
se ele faltasse de repente. Foi por isso que te pedi para cá vires hoje de manhã. - Levantou-se, aproximou-se do cofre embutido na parede por detrás da secretária,
abriu-o, tirou um envelope e entregou-lho.
- Posso abri-la agora? - perguntou ela, com o coração a bater com tanta força que lhe cortava a respiração.
- Não queres lê-la em casa, quando estiveres sozinha?
- Não, quero ler agora - decidiu, ao mesmo tempo que rasgava o envelope com uma ligeira tremura de mãos. Tirou uma folha escrita com a caligrafia límpida e pequena
de Edoardo; Orsola leu aquilo que já sabia, umas poucas frases com
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que o marido lhe contava do filho, Steve. Voltou a dobrar a folha, hesitou alguns instantes e depois entregou a carta ao amigo.
- Quero que a leias tu também - disse-lhe. O notário leu com atenção, depois olhou para ela e sussurrou:
- Não sabia de nada. E tu?
- Eu descobri por acaso, na noite em que o Edoardo morreu.
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Quando Orsola, ao regressar do escritório do notário, chegou ao palácio Sogliano, sentiu, como sempre, o cheiro intenso do coral. Viu os dois filhos mais velhos,
Saverio e Cristina, a inspecionar uma remessa de coral que acabava de chegar da Tunísia dentro de um contentor de zinco. Tinham descarregado no meio do pátio, em
cima de uma grande mesa de madeira, formando um monte de pequenos ramos acinzentados, ainda impregnados de água do mar, porque os vendedores os tinham molhado para
os fazer pesar mais. Era a última compra feita por Edoardo e datava de uma semana atrás, quando lá tinha ido para adquirir aquela remessa. Os dois irmãos enterravam
as mãos no coral tosco, retiravam alguns ramos e avaliavam-nos, ao mesmo tempo que trocavam entre si comentários sussurrados.
Dos laboratórios chegava o ruído dos barris cheios de água que rodavam para retirar aos ramos a trama que os envolvia. As lâminas cortavam os ramos já desbastados
e limpos, que depois de arredondados eram furados pelas agulhas. Orsola notou a falta do ruído habitual, animado. A empresa e a casa ainda estavam de luto, refletiu.
Deu um suspiro carregado de dor e cumprimentou os dois filhos. - A avó andava à tua procura. Não sabíamos que tinhas saído - disse Cristina. - Vou já ter com ela.
Onde estão os vossos irmãos? - perguntou ela.
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- A Giulietta regressou à escola e o Gianni está com a Paola em Nápoles - respondeu Saverio. Orsola subiu ao primeiro andar e atravessou o terraço que dava para
o jardim. Margherita, sentada numa poltrona de bambu, tinha no colo um tabuleiro cheio de raminhos de coral que enfiava e atava
um a um. Titina, sentada num banco, trabalhava na sua renda de bilros e tagarelava enquanto mexia os dedos com grande agilidade.
- Bom dia, mãe - disse Orsola, ao mesmo tempo que se instalava na poltrona ao lado da sogra. Margherita sorriu-lhe e, ao olhar para ela, pensou que Orsola não demonstrava
efetivamente os 50 anos que tinha feito há pouco tempo, apesar dos fios brancos que se destacavam no meio dos cabelos negros e de uma retícula de minúsculas rugas
que se adensava entre os olhos e as têmporas. Era realmente uma bela mulher. A candura da pele, o sotaque milanês e a forma sóbria de vestir denunciavam as suas
origens setentrionais. Margherita perguntou a si mesma se a nora estaria consciente da responsabilidade que agora pesava inteiramente sobre ela. Competia-lhe gerir
a empresa no lugar de Edoardo, não podendo contar com as irmãs do marido, porque Priscilla, que tinha agora 65 anos, era viúva e não tinha filhos, geria uma ourivesaria
da família em Caserta, e Archetta tinha síndrome de Down.
- Minha querida filha, precisamos de conversar, eu e tu - começou Margherita. Depois voltou-se para a empregada: - Titina, traz-nos uma limonada fresca. A mulher
percebeu que as duas senhoras queriam ficar sozinhas e, abandonando o rebolo e os bilros, afastou-se.
- O Sergio veio visitar-nos. Sabias que o meu filho tinha problemas de coração? Ela abanou a cabeça, preferindo ocultar aquilo que tinha acabado de descobrir.
- Ao que parece, já há alguns anos, tinha a aorta em mau estado e nunca se tratou - explicou a sogra, e prosseguiu: - Morreu devido a um enfarte que talvez pudesse
ter sido evitado se tivesse seguido o tratamento prescrito pelo Sérgio. - Margherita conteve um soluço
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e passou a outro tema. - Temos de agradecer a todas as pessoas que nos enviaram as condolências. E vai ser preciso falar com o Onorato, para o caso de haver um testamento,
e despachar todo o processo da sucessão. - Depois acrescentou, num sussurro: - Com esta idade, era a minha vez de morrer, não a do meu filho. Mas afinal estou eu
aqui e ele...
- Ele deixou-nos, e todos nós agora precisamos muito de si, do seu afeto, dos seus conselhos - disse Orsola, e abraçou-a. - Obrigada - murmurou Margherita. Depois
levantou-se da poltrona e disse: - Desculpa, mas preciso de ir descansar umas horas. Esta noite não preguei olho. Orsola deu-lhe o braço e acompanhou-a até ao interior
da casa. Depois subiu ao segundo andar e isolou-se no seu quarto. Tirou da carteira a carta de Edoardo, deitou-se na cama e releu-a.
Meu amor, És a única mulher que amei e me fez feliz, és a pessoa mais importante da minha vida. Contigo construí uma grande e maravilhosa família. Estive mil e uma
vezes quase a confessar-te que tenho um filho, o Steve, nascido de um encontro ocasional com uma rapariga chinesa e que ocorreu em Nova Iorque, durante uma viagem
de trabalho, quando tu estavas doente e eu vivia aterrorizado com a ideia de que não te restabelecesses. Quando a mãe do Steve me comunicou que estava grávida, não
me pediu nada, não recebeu nada de mim, nunca mais voltei a vê-la, mas tomei conta do miúdo, para quem defini um percurso de estudos que já está pago até a universidade,
assim como uma pequena doação. Gosto muito do Steve, que não tem culpa de ter vindo ao mundo, e entrego-o à tua generosidade, ao teu amor, com a certeza de que decidirás
pelo melhor para ele, para os nossos filhos e para a nossa família, como sempre fizeste. Perdoa-me, não tive coragem de ser franco contigo porque, como qualquer
apaixonado, o medo de te perder foi mais forte do que a exigência profunda, sofrida e difícil de ser honesto contigo.
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Deixo-te o endereço de e-mail do avô do Steve, em Hone Kong, para o caso de quereres contactá-lo. Amo-te, meu amor. Edoardo
Orsola voltou a dobrar a carta e meteu-a na gaveta da mesa de cabeceira. Estava inquieta, triste, confusa, sem saber como avaliar e enfrentar a situação. Tinha de
ganhar tempo, refletir com calma e reencontrar alguma serenidade para perceber e decidir como comportar-se. à noite, durante o jantar, sentada A. mesa com toda a
família, anunciou:
- Amanhã de manhã vou a Milão, à minha velha casa da via Melzo, porque preciso de estar um pouco sozinha. Não se preocupem, estou bem, vamos falar mil e uma vezes
ao telefone, mas, por favor, deem-me algum tempo para reordenar as ideias e as emoções. Volto depressa, prometo.
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Milão
1
Apesar de estar há muito tempo perfeitamente integrada na vida e no ambiente de Torre, Orsola só se sentia completamente à vontade quando regressava a Milão, a cidade
onde nascera e crescera e na qual vivera até ao seu casamento com Edoardo. Pela primeira vez, ao fim de trinta anos, no momento em que descia do comboio na Estação
Central, não sentiu o abraço afetuoso com o qual a cidade a recebia à chegada. Atravessou a piazza Duca d'Aosta e respirou o ar de uma primavera tardia em relação
à do sul, que explodira já há algum tempo, num triunfo de luz e de cores. Uma vez que não tinha bagagem, decidiu ir a pé até à via Melzo. Aproveitou o passeio para
fazer umas compras na via Vitruvio, onde comprou fruta, legumes, pão, presunto e queijo. Enquanto caminhava em direção a casa, perguntava a si mesma se, depois dos
acontecimentos dos últimos dias, conseguiria reencontrar a serenidade e o equilíbrio que tinham caracterizado a sua vida. Ouviu o toque do telemóvel que levava no
bolso dos jeans. Atendeu Saverio, que queria saber se a viagem tinha corrido bem e tranquilizá-la relativamente à situação da família. Saverio, o primogénito, era
o mais responsável dos seus filhos, aquele que tinha repartido o amor e a atenção dos pais com os irmãos que vieram depois dele e com os quais sempre se preocupara.
Agora parecia querer tomar conta também da mãe. Orsola sossegou-o. - Gosto muito de ti - disse-lhe, à despedida. Amava todos os seus filhos em igual medida, mas
depositava nele uma confiança
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particular, porque era parecido com ela. Saverio era direto e explícito, como ela. O contrário do pai, que lhe repetia: "Não dês logo a entender aquilo que pensas
mas leva os outros a descobri-lo
a pouco e pouco." Atravessou o corso Buenos Aires e entrou na via Melzo. Quando chegou ao fundo da rua, entrou no átrio do edifício de fins do século xviii que fazia
esquina com a via Lambro. Em tempos, a portaria tinha sido gerida pela autoritária signora Gina, uma espécie de cérebro que sabia tudo de todos e considerava os
inquilinos como recrutas a quem devem ser impostas regras e disciplina. Cumpria as ordens do engenheiro Corsetto, o velho e riquíssimo dono do edifício, assediado
por um exército de herdeiros que esperavam entrar na posse do seu conspícuo património imobiliário. Efetivamente, após a sua morte, venderam tudo, inclusivamente
o edifício da via Me lzo, e os pais de Orsola compraram o apartamento no quarto andar, onde viviam desde sempre, através de um empréstimo a juros muito altos. Outras
famílias mudaram-se para casas menos dispendiosas. Entre os inquilinos que ficaram havia o casal Banfi, que tinha dois filhos: o mais velho, funcionário dos Caminhos
de Ferro do Norte, e a mais nova, Damiana, amiga de infância e colega de escola de Orsola. Damiana ainda ali morava, nunca casara e tinha uma boa loja de roupa na
via Borgospesso. A portaria tinha sido abolida e o espaço onde morara a signora Gina fora alugado a uma empresa que vendia papéis de parede. O prédio fora inteiramente
restaurado e tinham sido instalados os intercomunicadores e dois elevadores, um no átrio e outro de serviço, transformando aquele prédio modesto de outros tempos
num edifício importante, cuja administração foi confiada a um porteiro de dia e a uma eficiente empresa de limpeza. Depois da morte dos pais, quando estava casada
já há alguns anos, Orsola mandou restaurar o apartamento a um arquiteto que conseguiu transformá-lo numa habitação elegante. Agora, enquanto metia a chave na fechadura,
sentiu a tentação de tocar à porta de Damiana, que ficava no mesmo patamar. Depois apercebeu-se de que já passava das quatro da tarde e que a amiga estava com certeza
na loja a trabalhar. Então entrou em casa.
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Foi recebida pela penumbra e por um vago cheiro a humidade. Ligou imediatamente o quadro da luz e depois escancarou as janelas. Pousou na mesa da minúscula cozinha
os sacos das compras, arrumou as coisas no frigorífico, foi A casa de banho refrescar-se, entrou no quarto, despiu os jeans, o blusão azul e a T-shirt branca e trocou-os
por um roupão leve. Depois regressou A cozinha, ligou a máquina do café e, enquanto esperava que o café caísse na chávena, comeu uma maçã. A luz e a tepidez da tarde
tinham invadido os aposentos e ela começou a saborear o café na varanda da sala, onde se alinhavam vasos em que floriam viçosas petúnias brancas e roxas. Damiana,
que tinha as chaves do apartamento, assumira o encargo de tratar das flores da amiga e, de vez em quando, a empregada dela ocupava-se da limpeza do apartamento.
Orsola voltou a entrar na sala de estar, deixou-se cair no sofá e olhou em volta. Aquela sua residência milanesa estava decorada com poucos móveis, modernos, muito
bonitos e lineares. Tinha-a querido assim, básica, para contrabalançar o palácio Sogliano, sobrecarregado de móveis, quadros e objetos de decoração. Pensou que tinha
feito bem em regressar A sua velha casa de Milão. Só ali poderia refletir sobre os seus trinta anos de casamento, sobre a fantástica família que tinha construído
com Edoardo, e perceber o que devia fazer com todos eles e com o filho do marido. O toque do telemóvel, que tinha abandonado sobre a mesa da cozinha, não lhe dava
tréguas. Mas não se mexeu, nem para atender, nem para o desligar. Tinha estado em Milão pela última vez em fevereiro, com o marido; tinham passado juntos alguns
dias marcados por uma série de reuniões e almoços de negócios, mas também por serões tranquilos, sentados no sofá a conversar. Gostaria de poder agora recuperar
aqueles instantes para olhar Edoardo nos olhos e perguntar: "Há alguma coisa de ti que eu não saiba?" Naquele momento, finalmente, desatou-se o nó doloroso que a
tinha impedido de chorar ao descobrir aquele segredo inimaginável na gaveta da secretária do marido, e explodiu em soluços. Chorou a morte do homem que amava, cuja
perda deixava um vazio irremediável na sua vida.
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E não ouviu tocar A porta, não ouviu bater, não ouviu uma voz que a chamava. Só quando sentiu uma mão pousada no seu ombro voltou a si e, por entre as lágrimas,
viu Damiana, a amiga de sempre, que se debruçava sobre ela para a abraçar.
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2
Já tinha anoitecido quando Orsola foi ter com Damiana à cozinha.
- Como é que te sentes? - perguntou a amiga, ao mesmo tempo que pousava na mesa posta dois pratos de esparguete al pesto.
- Melhor... há dias que andava a conter as lágrimas... - respondeu Orsola. Sentaram-se uma em frente à outra e Damiana disse:
- Lembras-te de quando éramos jovens e chorávamos porque as nossas mães não nos deixavam sair com as amigas?
- Diziam: chorem, chorem, porque assim ficam com os olhos mais bonitos - recordou Orsola com um sorriso, e prosseguiu:
- E não explicavam por que não nos deixavam sair. Diziam apenas não. Ponto final.
- Noutros tempos os pais agiam assim, por muito que hoje isso possa parecer incompreensível - comentou Damiana. Ao contrário de Orsola, que era uma morena de traços
delicados, com um corpo magro, e baixa, Damiana era alta, bem constituída e tinha uma farta cabeleira loira. As duas amigas eram muito diferentes não só no aspeto
mas também no carácter. Orsola era reservada e silenciosa, enquanto Damiana era exuberante e barulhenta. Tinham nascido com um mês de distância uma da outra e tinham
aprendido juntas a gatinhar, a andar e a falar. Comeram o esparguete que exalava um odor a manjericão e a parmesão e que Orsola apreciou imenso.
- Fiz bem em regressar a casa - afirmou.
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- Apesar de isto ser apenas um apartamento de apoio, porque os últimos trinta anos da tua vida passaste-os em Torre, onde fica a tua verdadeira casa - observou Damiana,
ao mesmo tempo que servia à amiga uma segunda dose de esparguete.
- E tenho lá cinco filhos fantásticos. Mas só neste pequeno apartamento consigo ser verdadeiramente eu própria, e preciso de reunir todas as minhas forças para enfrentar
os problemas que me esperam em Torre - confessou Orsola, preocupada.
- Tenho a certeza de que tudo vai correr bem - tentou sossegá-la Damiana; depois, para a distrair, perguntou: - Lembras-te dos nossos sonhos de meninas?
- Havia sempre um marido para cada uma de nós. Desde pequena que tu te querias casar com o dono de uma gelataria porque a tua mãe nunca te comprava gelados e tu
vinhas comê-los a nossa casa - recordou Orsola.
- E tu querias casar-te com um poeta, porque tinhas uma paixão por Montale e declamavas os poemas dele todos de cor - evocou Damiana. - De qualquer modo, tu sempre
tiveste um marido, enquanto eu... esquece! Foi um falhanço atrás do outro, mas ainda tenho ilusões de encontrar o homem da minha vida - confessou.
Orsola conhecia bem os muitos amores infelizes da amiga, um dos quais com um rico notário, casado, que lhe prometera divorciar-se para viver com ela e que, no fim,
tinha ficado com a mulher mas que,
para aplacar os sentimentos de culpa, lhe oferecera uma boutique na
via Borgospesso da qual Damiana era ainda proprietária.
- E agora aqui estamos nós no ponto de partida: duas cinquentonas sozinhas a empanturrarem-se de esparguete - brincou Damiana.
Já era tarde e estavam cansadas. Levantaram-se da mesa e
Damiana prometeu que no dia seguinte mandava a empregada arrumar a cozinha.
- Apetece-te dormir sozinha? Queres vir para minha casa passar a noite? - perguntou, preocupada, no momento em que se despediu. - Eu bato-te à porta amanhã de manhã,
e sou eu quem te vai servir o pequeno-almoço na cama - respondeu Orsola, abraçando-a.
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Eram dez horas da noite. Àquela hora, em Torre, a sua família tinha há pouco acabado de jantar. Ligou para o telefone de casa. Atendeu a velha Titina, que a cumprimentou
e se apressou a dizer:
- Espere, vou chamar a Rosária. Emocionava-se sempre que tinha de falar ao telefone e preferia passar o auscultador a outra empregada. Orsola ouviu-a chamar Rosária
e depois resmungar:
- Aquela é surda como uma porta. - As duas velhas empregadas passavam os dias a implicar uma com a outra, a criticar-se à vez, mas eram inseparáveis.
- Quero falar com dona Margherita - disse Orsola assim que Rosária a cumprimentou.
- Sinto muito, já se foi deitar, estava muito cansada. Quer que chame o menino Saverio? - perguntou a empregada. Saverio já ali estava e pegou no auscultador.
- Mãe, como é que estás? - perguntou.
- Bem, obrigada. Sinto-me um pouco confusa, em baixo, mas está tudo bem. E por aí, como é que vocês estão?
- Fica o tempo que quiseres. Aqui está tudo sob controlo - garantiu o filho.
- És um querido. Gosto muito de ti. Agora vou dormir - concluiu Orsola. Pouco depois estava na cama e, contrariamente aos seus hábitos, não lhe apeteceu ler. Apagou
a luz e esperou adormecer imediatamente. Lembrou-se de Titina a pedir ajuda a Rosária e recordou a sua primeira visita a Torre, quando namorava com Edoardo e faltavam
já poucas semanas para o casamento. Tinham sido dias frenéticos de encontros com familiares e amigos, excursões diárias a Nápoles para fazer compras nas lojas mais
elegantes e passear na via Caracciolo, passeios a Posillipo, a Ercolano, a Caserta. Ela tinha-se deixado envolver pela exuberância da família Sogliano e precisava
de recorrer a pequenos expedientes para se isolar e ter alguns instantes para si. Um dia refugiou-se no terraço da cozinha, entre os vasos de tomilho e manjericão.
Pouco depois entraram na cozinha as duas empregadas que discutiam entre si:
- Don Edoardo deixou-se conquistar pelo fascínio da nortenha. Será que vai durar? - perguntou Titina à outra.
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- Tem de durar, já que vai casar com ela - respondeu Rosária. - A menina Orsola é muito diferente de nós. Vem de Milão, que é um lugar gelado, onde de inverno cai
neve. Lá as pessoas também são frias, nunca se riem e falam pouco e baixo. Eu, que não sou surda como tu, não consigo ouvi-la quando ela fala. - Tens razão, fala
baixinho, mas é muito bonita. O que saberá a pobrezinha sobre o coral, o nosso Vesúvio, as nossas tradições? Quando se dirige a nós trata-nos por "você". Trata dona
Margherita por "senhora". Onde é que já se viu? Devia tratá-la por mãe! Até a mim me tratou por senhora Titina. Mas onde é que já se viu? - É tímida, modesta, e
a riqueza da família Sogliano assusta-a. Sabe-se lá como é que eles vivem lá em cima, no norte, quando cai a neve - acrescentou após um instante de silêncio. - Eu
digo que se refugiam nas cavernas - brincou Titina, e começou a rir, logo imitada por Rosária. Naquele momento Orsola apareceu e, a sorrir, disse às duas mulheres:
- Mas no verão vivemos em cima das árvores.
Saiu da cozinha com um passo desenvolto, deixando-as atónitas.
Agora, quase a adormecer, sussurrou: - Sinto-me tão bem aqui, na minha caverna, longe de Torre, onde raramente está frio e nunca cai neve.
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- Sabes que as empregadas dos Sogliano, quando eu fui a Torre pela primeira vez, me classificaram como uma mulher das cavernas? - contou Orsola à amiga, a rir. Eram
oito horas da manhã e estavam a tomar o pequeno-almoço no terraço do apartamento de Damiana, enquanto a empregada, tal como ela prometera na noite anterior, fazia
a limpeza no da amiga. Orsola tinha acordado cedo e tinha saído para ir comprar brioches fragrantes na padaria da via Lambro, tendo decidido não se deixar dominar
pela dor e pelo medo dos problemas que a morte de Edoardo comportava.
- Uma mulher das cavernas? Não me parece um juízo muito lisonjeiro - comentou Damiana, ao mesmo tempo que agarrava um brioche recheado com compota.
- Não havia má intenção, eu era uma estrangeira que vinha do norte, de um outro mundo, de uma outra cultura. A seguir ao casamento, quando me conheceram melhor,
respeitaram-me e gostaram de mim. Depois, quando comecei a dar à luz um filho atrás do outro, tornei-me numa deles. Quanto à minha sogra, ama-me como se eu fosse
uma das suas filhas. Agora que o Edoardo já cá não está, para a família, para o pessoal da empresa, para os amigos, para toda a gente em Torre, eu sou aquela que
herdou o cetro do comando. Uma posição de prestígio que fui conquistando dia após dia em trinta anos de vida com ele. Apesar de agora perguntar a mim mesma se quero
realmente todas estas responsabilidades e este poder, que já não me permitem ser a milanesa transplantada
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para o sul. Não tenho saída: tenho de me tornar numa mulher do coral se quero conduzir a família e a empresa. Entendes, Damiana?
- Perfeitamente - respondeu a amiga, que tinha interrompido o pequeno-almoço e olhava para ela, pensativa. Sorriu-lhe e disse:
- Vais decidir da melhor maneira, como sempre. Mas agora vem comigo à loja e eu vou mostrar-te a minha coleção de verão de vestidos, que é realmente notável, só
que vou vender pouquíssimos porque a crise também atingiu a minha clientela, que é rica, mas que parece ter vergonha de adquirir futilidades. Ao fim da manhã, vamos
comer uma sanduíche no bar do Grand Hotel et de Milan e de tarde vamos ao cinema, até porque na boutique está a minha funcionária que é melhor do que eu a vender
vestidos. Depois reparou que Orsola tinha os olhos cheios de lágrimas.
- Tu estás a sofrer horrores e estás transtornada, minha pobre amiga. Eu fico aqui contigo, se é isso que tu queres - propôs Damiana, com doçura.
- Preciso de estar só. Desculpa, vou ter contigo à uma ao bar do
11 Grand Hotel. Agora volto para casa. Obrigada por tudo - disse Orsola, enquanto se retirava rapidamente. A empregada de Damiana, uma indiana de nome Kiki, tinha
precisamente acabado de arrumar o pequeno apartamento e foi-se embora. Orsola aninhou-se numa poltrona da sala de estar, ligou o leitor de CD e num instante espalharam-se
pela sala as notas da Sinfonia n.° 5, de Beethoven. Pensou na morte violenta, imprevista, de Edoardo e interrogou-se como teriam sido os seus últimos instantes de
vida, apesar de os médicos terem falado de um enfarte fulminante. "Faleceu antes de bater com o carro nos rails", tinham sentenciado. Orsola queria saber por que
razão, sabendo que tinha um problema cardíaco, o marido não se tinha tratado, por que razão se tinha recusado a tomar consciência da sua doença e de falar sobre
isso pelo menos com ela ou mesmo com o resto da família. Quereria castigar-se por aquele filho secreto? Ou ter-se-ia convencido de que era mais forte do que a doença?
Recordou umas férias na Sardenha, muitos anos antes, quando ela estava grávida do primeiro filho. Um dia foram para o mar num pequeno barco
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a remos. Ele mergulhou à procura de peixes e tardou em subir. Ela começou a ficar preocupada e fitava o fundo límpido do mar para tentar descobri-lo. De repente
o barco inclinou-se sob o peso de Edoardo, que estava a entrar no barco por detrás dela: o seu arpão tinha apanhado um grande rodovalho. Tinha sido tanto o medo
de o perder que se atirou contra ele, insultando-o e agredindo-o no peito. O barco começou a oscilar e foram parar os dois à água. Quando voltaram a subir, Edoardo
abraçou-a e sussurrou-lhe com doçura: "Nunca deves ter medo por minha causa. Eu sou imortal, sabias?" Perante aquela recordação Orsola sorriu, fechou os olhos e
ficou a ouvir até ao fim aquela fantástica sinfonia de que tanto gostava. A música serenou-a e deu-lhe energia. Abriu a janela, enfiou um tailleur de algodão que
repousava no armário há alguns anos e saiu. Apanhou o metro para chegar à piazza San Babila e seguiu pelo corso Matteotti. Os passos conduziram-na à ourivesaria
onde trabalhara durante algum tempo quando era jovem. Parou a observar as peças valiosas expostas na montra. Tinha mudado de dono, mas a qualidade das joias mantinha-se
a mesma. Depois foi até ao pequeno bar na esquina da via Verri, onde costumava almoçar uma refeição ligeira. Dia após dia convivera com Tonino, o jovem empregado
napolitano que, quando Orsola terminava com um café aquela refeição espartana, lhe oferecia um chocolate negro, dizendo-lhe: "Quando eu tiver uma namorada, vou à
ourivesaria onde trabalhas comprar um anel de noivado e tu dás uma palavrinha ao teu patrão para me fazer um desconto". O estabelecimento estava sempre cheio de
gente e um dia Tonino pediu-lhe o favor de receber na sua mesa um cliente de passagem. E foi assim que conheceu Edoardo. Naquela altura Orsola ainda não tinha feito
vinte anos. Era dezembro, Milão vivia num bem-estar quase descarado e as pessoas gastavam sem fazer contas. Orsola, que tinha concluído O magistério dois anos antes,
esperava conseguir uma vaga num concurso para professores. Entretanto trabalhava na ourivesaria do corso Matteotti.
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A oficina de Libero Luraghi ficava no pátio do edifício da via Melzo e tinha um letreiro que dizia: O ARTISTA DO SAPATO. Libero era um anarquista, como o pai, lia
muito, participava nos congressos do movimento e, sempre que podia, ajudava os companheiros em dificuldades. Há muito que já não sonhava mudar o mundo, mas gabava-se
do facto de o mundo corrupto em que vivia não o ter mudado a ele. "Pobre, mas honesto", dizia dele próprio, enquanto dava forma a solas e palas com aquelas mãos
grandes, nodosas, escurecidas pelo alcatrão. Raramente fazia sapatos novos, as mais das vezes punha meias-solas e consertava calçado já gasto que ele definia como
"produto industrial", destinado a durar poucas estações. Libero afirmava que a elegância de um indivíduo se vê nos sapatos e que os bonitos são feitos à mão e "duram
uma vida". "Vivemos na civilização do usa e deita fora", deplorava; reconfortava-se a ler e reler as histórias do anarquismo de Bakunin a Malatesta e a percorrer
as etapas gloriosas de um "movimento de pobres diabos", tal como o definia a mulher, Diletta. Em boa verdade, Libero nunca chegara a casar com Diletta Conforti,
apesar de, para todos os efeitos, a considerar sua mulher: os dois e a filha constituíam a família que tanto amava. A união com Diletta correu o risco de se desfazer
no dia em que tiveram de escolher o nome para a recém-nascida.
- Vai chamar-se Ribelle, como a filha do professor Molinari anunciou ele, referindo-se ao velho companheiro anarquista.
- Vai chamar-se Anna, como a minha mãe - decidiu ela.
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- Não quero nomes de santos nem de mártires - declarou ele. Então Diletta ameaçou deixá-lo, e como ele a conhecia bem e sabia que era bem capaz de o fazer, chegaram
a um compromisso: a menina ia chamar-se Orsola, um diminutivo do latino "Ursa", ou seja, Orsa. E se por acaso houvesse uma santa com aquele mesmo nome, paciência,
pelo menos não era um nome da tradição cristã, concluiu Libero. Orsola tornou-se a luz dos seus olhos. Com ague las mãos enormes, que contrastavam com a sua compleição
delgada, confecionou para a sua menina os primeiros sapatinhos de pele azul. Quando a filha lhe pediu um par de sapatos brancos para combinar com o vestido da Primeira
Comunhão, pôs-se a chorar porque as suas mulheres o tinham enganado e, contrariando os seus princípios de anarquista, frequentavam a paróquia. Depois de uma discussão
memorável com a companheira, baixou a grade da oficina, pendurou um cartaz que dizia ENCERRADO POR LUTO e partiu, deixando sós a mulher e a filha. Foi para Veneza
ter com um amigo anarquista, professor de Filosofia na Universidade Ca' Foscari, e derramou sobre ele a sua dor e a sua desilusão.
- Eu não fui batizado nem crismado, não me casei, e isso não me impediu de ser um companheiro honesto para a minha mulher. Agora descubro que ela se deixou iludir
por um padre e quer batizar a nossa filha e mandá-la fazer a Primeira Comunhão. Onde foi parar a minha liberdade de pensamento? - desabafou.
- A tua liberdade acaba onde começa a liberdade da Diletta que, apesar de ser católica, em muitas coisas pensa como tu, e por isso nunca te pediu para casares com
ela. Mas vocês tiveram uma filha que tem de frequentar a escola, tem de estudar e trabalhar num país católico. Queres que seja discriminada por toda a gente porque
não batizada nem crismada? Conforma-te, Libero. A nossa fé anarquista é, e continuará a ser, uma utopia. - Confessou-lhe também que se tinha casado com uma veneziana'nobre,
muito amiga do patriarca da cidade, e que não faltava a nenhuma função solene em São Marcos ao lado da mulher. Libero Luraghi ficou hospedado em casa do companheiro,
que vivia com a mulher no andar nobre de um palácio sobre o Grande
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Canal. Comeu à mesa com eles, no meio de linhos engomados e baixela de prata, servido por criados de libré. Ao fim de três dias regressou a casa. Voltou a abrir
a oficina e improvisou uma cama atrás da estante das peles. No dia seguinte, Orsola foi ter com ele e disse-lhe: - Pai, tenho muitas saudades tuas. - Era uma menina
graciosa como uma pintura e límpida como a água de uma fonte. - Se voltares para casa, eu renuncio a fazer a Primeira Comunhão. Libero abraçou-a e apercebeu-se de
que a sua menina era mais importante do que a crença política, e ninguém, nem sequer o seu companheiro veneziano, tinha mais vontade de lutar por um mundo diferente.
- A mãe como está? - perguntou-lhe. - Sempre a chorar. Mas tu já a conheces: antes quebrar... Mas disse-me: "Prefiro que tu não voltes à igreja, porque isso entristece
muito o teu pai". - Eu é que errei. Tu deves ser livre de fazer aquilo que queres. E agora vamos depressa ter com ela. Sabes, eu também tive muitas saudades tuas
e da tua mãe - confessou ele, abraçando-a. Tinham passado muitos anos desde aquele dia e agora Orsola era uma bela rapariga que olhava o futuro com esperança, acreditando
em grandes oportunidades. Naquela manhã Libero desceu à oficina e, como sempre, ligou o pequeno aquecedor elétrico para combater o frio rígido de dezembro.
Como artesão consciencioso que era, queria terminar todos os consertos antes do Natal, porque depois das festas ia a Marselha com Diletta para participar num congresso
anarquista sobre Pine e o massacre no Banco Nacional da Agricultura da piazza Fontana. Ele não podia deixar de cultivar os seus ideais e a companheira concordava
sempre com ele por amor, mais do que por convicção. Para além de tudo, nunca tinha estado em França, e a ideia de passar uns
'Anarquista e ferroviário italiano que morreu às mãos da policia italiana em 1969 depois de ter sido preso para averiguações na sequência da explosão de uma bomba
na piazza Fontana. (N. da T)
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dias em Marselha agradava-lhe bastante. Orsola estava contente por ficar sozinha em casa, até porque queria preparar-se para um novo concurso e contava com a companhia
de Damiana que, tal como ela, concluíra o magistério, embora tivesse renunciado A ideia de ser professora ao agarrar a oportunidade de um emprego modesto num escritório
notarial na piazza Sant'Erasmo. Orsola, por sua vez, fazia algumas substituições e, enquanto esperava por uma vaga para lecionar num colégio privado, aceitava trabalhos
temporários. Estava há mais de um mês a confecionar embrulhos de Natal e fazia entregas ao domicílio para a ourivesaria Mariani, no corso Matteotti. Como todas as
manhãs, antes de sair de casa, passava na oficina do pai e deixava-lhe um termos com o café já açucarado. Aquele gesto afetuoso fora sempre apanágio da mãe, mas
Diletta sofria do coração há alguns anos e os quatro andares que tinha de subir a pé para voltar a casa cansavam-na demasiado. Libero viu entrar a filha e o seu
rosto severo iluminou-se.
- O teu café, pai - anunciou Orsola, ao mesmo tempo que pousava a chávena na pequena mesa de trabalho, no meio de uma selva de pequenos pregos, sovelas e outros
utensílios.
- Obrigado - respondeu ele a sorrir, ao mesmo tempo que lhe estendia a face recém-barbeada para receber aquele beijo diário. Orsola vestia um casaco de fazenda de
lã que ele lhe tinha oferecido no outono, comprado numa loja elegante de vestuário inglês, e umas botas lindíssimas em carneira cor de tabaco feitas por ele. Gostava
de a mimar, até porque Orsola nunca pedia nada e entregava sempre com orgulho os seus poucos proventos à mãe.
- Um bom dia, pai - disse-lhe.
- Para ti também. E tem cuidado com os lobisomens - era a frase ritual de todas as manhãs, porque era muito cioso da sua filha e receava que alguém mal-intencionado
pudesse agredi-la ou enganá-la.
- Vou ter - prometeu ela, a sorrir, e saiu. Apanhou o metro e saiu na piazza San Babila, incorporando a multidão que se dirigia ao trabalho. Pouco depois chegou
ao edifício onde ficava a loja dos Mariani, entrou no átrio, cumprimentou
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o porteiro, tocou à porta blindada de entrada da ourivesaria, que ficava no átrio, e entrou pelas traseiras. Em breve o estabelecimento ia levantar a grade e ela
tinha de limpar o pó à montra, às duas mesas e às pequenas poltronas, mudar a água das jarras, borrifar o ar com uma essência levemente perfumada de muguet e organizar,
em cima de uma mesa semiescondida numa reentrância da parede, as fitas e as decorações para as embalagens de oferta. Não sabia ainda que aquele 15 de dezembro ia
ser o dia mais importante da sua vida.
Comuzzi era um camiseiro da via Verri que tinha uma clientela muito selecionada. Diletta recebia regularmente de lá as camisas cortadas para coser e rematar nos
pormenores, assim como os monogramas para bordar. Quando estavam prontas, passava-as a ferro de uma forma incomparável e Orsola tinha a tarefa de as entregar no
estabelecimento. Observando a habilidade da mãe na costura e utilizando retalhos de tecido e botões, Orsola aprendeu a fazer galões e guarnições alegres para embelezar
ovos de chocolate, panettoni e caixas de bombons para uma mercearia que ficava ao lado do camiseiro Comuzzi. Tinham sido este último e o merceeiro a dar boas referências
dela aos joalheiros Mariani, que andavam à procura de uma pessoa de confiança para a confeção de embrulhos e entrega de presentes valiosos ao domicílio. Naquela
manhã de dezembro, a senhora Mariani enfiou dois embrulhos pesados, estupendamente decorados por Orsola, dentro de um saco de tecido para não dar nas vistas. Orsola
tinha de entregar um serviço de café em prata maciça e uma caixa de mesa para Cigarros em ouro. Orsola saiu pelas traseiras e foi até ao portão, onde um táxi a esperava.
Naquele caos de trânsito pré-natalício, demorou um tempo infinito a efetuar as duas entregas e quando regressou à loja passava já do meio-dia. - Vai comer qualquer
coisa depressa, porque depois tens mais entregas para fazer e há coisas para embrulhar - disse o Sr. Mariani.
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Ela dirigiu-se rapidamente ao bar da esquina com a via Verri onde Tonino, o simpático empregado napolitano, lhe sugeriu, de entre os pratos do dia, o empadão de
macarrão que acabara de sair do forno. Orsola sentou-se à mesa do costume, retribuindo os cumprimentos de outros clientes que encontrava todos os dias. Pouco depois
veio o empregado com um prato que exalava um aroma convidativo e a habitual garrafa de água mineral com gás. Atrás dele estava um bonito rapaz com um ar um pouco
atrapalhado, um rosto de traços marcados, a pele salpicada de pequenas sardas e o cabelo castanho avermelhado.
- Importa-se que eu sente este senhor A sua mesa? Não temos mais lugares - disse Tonino. Ela anuiu e o desconhecido sorriu-lhe e agradeceu-lhe, enquanto afastava
a cadeira para se sentar em frente a ela.
- O que é que lhe trago? - perguntou o empregado.
- O mesmo que a menina está a comer - respondeu ele. Levantou-se para tirar o sobretudo e pousou-o nas costas da cadeira.
- Chamo-me Edoardo - apresentou-se, ao mesmo tempo que estendia a mão que a rapariga lhe apertou, dizendo: - Eu sou a Orsola.
- Olá, Orso la, bom apetite - replicou ele alegremente, enquanto
se sentava outra vez.
- Isso é coisa que nunca me falta - garantiu ela.
- Escolhi bem? - perguntou Edoardo.
- Muito bem - respondeu, pensando que aquele belo rapaz tinha um sotaque semelhante ao de Tonino, e que por isso devia ser de Nápoles. Quando colocaram o prato A
sua frente, Edoardo comeu o macarrão em meia dúzia de garfadas. Depois olhou para o relógio de pulso e disse:
- Tenho um encontro na via Cerva daqui a um quarto de hora. Não conheço Milão suficientemente bem para calcular com exatidão o tempo que demoro. Achas que vou chegar
atrasado?
- Vais chegar com alguns minutos de antecedência, se saíres já. Sabes o caminho? - perguntou, ao mesmo tempo que se levantavam da mesa e se dirigiam A caixa para
pagar a conta.
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5 -..:...-.:
- Mais ou menos. Vou até A piazza San Babila e depois apanho a via Borgogna. Não é? - perguntou, enquanto abria a carteira. E acrescentou: - Achas que aceitam cartão
de crédito? Fiquei sem dinheiro.
- Se não tens dinheiro, eu pago. Não é uma grande quantia, e vais ter de te despachar se queres chegar a horas.
- Fico-te infinitamente grato. Mas gostava de retribuir a tua hospitalidade. Conheces o restaurante St. Andrews? Orsola assentiu: conhecia-o, mas nunca lá tinha
estado. Era um sítio elegante e muito caro.
- Fui lá há uns meses, a convite de um cliente. Espero-te lá esta noite As oito. Peço-te que aceites o meu convite - insistiu Edoardo, enquanto vestia o sobretudo.
Orsola pigarreou, corou e balbuciou:
- Não sei se vou poder ir.
- De qualquer forma, eu estou lá a tua espera - replicou ele, afastando-se rapidamente, enquanto ela ficava ainda na fila da caixa. Regressou à ourivesaria com uma
ligeira sensação de vertigem. Não conseguia acreditar que um rapaz tão bonito, com modos de cavalheiro, a tivesse convidado para jantar no restaurante mais chique
da cidade. Enquanto ele se afastava, observou-lhe os sapatos e radiografou-os: sapatos de inverno, sola dupla, cosidos à mão, atacadores perfeitos. Passariam mesmo
o exame severo do pai com a pontuação máxima. Que profissão teria? Tinha entrevisto também o relógio de pulso: redondo, plano, pulseira de pele. Parecia um Patek
Philippe. Já para não falar do corte de alta costura do casaco e do sobretudo. Tinha sentido também o seu perfume: uma essência ténue de casca de laranja e madeira
de sândalo. Absolutamente delicioso. Pensou que era demasiado jovem para ser um empresário. Seria médico? Ou advogado? Claro! Os napolitanos são todos advogados
e alguns são excelentes. Não conhecia Milão, portanto estava ali de passagem. Provavelmente passara toda a manhã no tribunal e agora tinha uma reunião com um cliente.
"Direito civil ou penal?", sussurrou, ao entrar na joalharia.
- Vens a falar sozinha? - perguntou-lhe a senhora Mariani, que estava a polir com um pano umas pulseiras que tinham ficado em
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cima do tabuleiro, depois de um cliente ter escolhido uma para oferecer à mulher e outra, mais valiosa, para a secretária. - Eu... não... acho que não - balbuciou,
confusa, e dirigiu-se às traseiras para pousar o casaco e a carteira. - Abençoada juventude - suspirou a senhora, com um ar maternal, e pensou: aos vinte anos também
eu tinha a cabeça cheia de sonhos. Se eu pudesse voltar atrás... Agora que já passei os cinquenta, posso afirmar que foram os melhores anos da minha vida. Pouco
depois Orsola foi ter com ela e disse: - Recebi um convite para jantar, logo à noite, às oito. Gostava de ir a casa arranjar-me. Acha que posso sair um pouco mais
cedo, à tarde? - Claro que podes. Aliás, deves. Vou já despachar uma encomenda para fazeres a entrega e depois, no mesmo táxi, pedes para te levar a casa. Vemo-nos
amanhã de manhã - decidiu a senhora, com
um sorriso.
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Antes de regressar a casa, Orsola foi ao cabeleireiro, que lhe realçou a maciez e o brilho dos fartos cabelos escuros. Em casa observou os seus poucos vestidos e
apercebeu-se de que não tinha nada que se adequasse a um jantar elegante.
- Veste a saia preta plissada e a camisola preta de gola alta. Vais ficar perfeita - sugeriu a mãe.
- Pareço pronta para ir a um funeral - objetou, ao mesmo tempo que se mirava no espelho depois de ter vestido aquelas peças. - Talvez, se tu me emprestasses o teu
colar de pérolas... - propôs Orsola.
- Não se vai jantar ao restaurante mais chique de Milão com pérolas falsas. Mais vale não levares nada - decretou Diletta.
- E os sapatos? Não devia pôr um bocadinho de tacão? Só tenho as sabrinas e gostava de parecer um pouco mais alta - observou ela.
- Mas não és, e estás bem assim. Eu é que começo a ficar preocupada, porque nunca te vi tão excitada por te encontrares com alguém de quem apenas sabes o nome de
batismo. Tens o Renato que é um bom homem, tem uma posição sólida, há meses que te convida para sair e tu de todas as vezes arranjas uma desculpa para recusar. Agora
aparece este de quem não sabes nada e até lanças faíscas. Se o teu pai soubesse! Renato era o dono da loja de peles que ficava no átrio do edifício, ao lado da de
Libero. Era um homem de trinta anos que herdara a profissão do pai e trabalhava e vivia sob a severa égide materna.
- Mãe, o Renato tresanda a naftalina, sabes muito bem!
- E o Bruno? Andaste com ele dois anos e até fizeste amor, desgraçada! E depois deixaste-o.
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- É claro, queria casar comigo!
- Imagina que ultraje!
- Mãe, não vamos discutir. Eu não sei quem é este Edoardo, mas gostei logo dele.
- Digo-te eu quem é: um homem do sul cheio de dinheiro que está com vontade de passar um serão alegre com uma milanesa desinibida. Depois, assim que satisfizer o
capricho, desaparece - resmungou Diletta, que preferiria ter uma filha menos sonhadora e mais ponderada.
- Mãe, és pérfida. Apenas vou aceitar um convite para jantar e não sou nenhuma inconsciente. Prometo-te que vou ter um comportamento de rapariga exemplar e que vou
estar em casa por volta das onze. Juro.
- Se vieres mais tarde, liga-me. Tenho de dar alguma justificação
ao teu pai - disse Diletta, enquanto enfiava algum dinheiro na carteira da filha.
- Porquê?
- Nunca se sabe. Peço-te também para não vires para casa de carro. Chama um táxi antes de saíres do restaurante - ordenou ainda a mãe, com um tom que não admitia
réplicas.
- Porquê? - perguntou novamente a rapariga.
- Tenho mesmo de te dizer? Se ele te trouxer a casa lá vai um beijo e, se calhar, mais alguma coisa. Está claro? Quando a mãe usava aquele tom, Orsola sabia que
tinha de obedecer. Apanhou o metro para ir até ao centro. Saiu na esquina da via Bagutta e percorreu-a quase a correr, não só porque estava atrasada mas também porque
tinha calçado umas meias finas e as sabrinas nos pés não a protegiam do frio. Edoardo estava ao balcão do bar a tomar um aperitivo. Tinha mudado de roupa e vestia
agora um casaco escuro. Parecia cansado, mas o seu rosto iluminou-se assim que a viu.
- Olá - disse. - Estava com medo que não viesses - acrescentou.
- Mas aqui estou eu - disse Orsola com um sorriso, ao mesmo tempo que um empregado os acompanhava à mesa e afastava uma cadeira de braços para que ela se pudesse
sentar. Tinha imaginado um lugar cheio de espelhos, molduras douradas
e candelabros com pingentes, mas afinal era muito austero, bastante escuro e os clientes, poucos àquela hora, mais do que falar, sussurravam. O empregado trouxe
a ementa. Orso la escolheu os pratos mais simples: risotto al salto2 como primeiro prato e, como segundo, dois OVOS estrelados sem trufa, esclareceu.
- Nem um bocadinho de trufa ralada? - perguntou o empregado.
- Não, muito obrigada - respondeu ela. Sabia que a trufa era muito cara e preferiu evitá-la.
- És sempre assim tão frugal? - perguntou Edoardo, quando o empregado se afastou.
- Acho que eu e tu pertencemos a mundos muito distantes e não quero parecer-te diferente daquilo que sou - respondeu placidamente.
- Mas esta noite és minha convidada e podias pôr de lado essa frugalidade. Eu acho que tu és uma rapariga muito orgulhosa.
- Talvez seja, mas não gosto de falar de mim, até porque não há muito a dizer. Enquanto espero colocação como professora, faço pequenos trabalhos temporários. Nesta
época confeciono embrulhos de Natal para uma ourivesaria do corso Matteotti e, como já sabes, à hora de almoço como qualquer coisa no bar onde tu apareceste. Agora
é a tua vez. Enquanto falava, Orsola observava-o com atenção. Edoardo tinha o cabelo castanho avermelhado, os olhos azuis e um olhar doce, vagamente melancólico.
Era parecido com Robert Redford, um ator de quem ela gostava muito, apesar de, depois de ver o filme A Golpada, se pudesse escolher, tivesse optado por Paul Newman.
Edoardo não tinha nada em comum nem com Renato, o tímido homem das peles que lhe fazia a corte, nem com Bruno, o rapaz com quem tinha andado durante dois anos e
que ostentava a sua virilidade com uma vontade incessante de posse e de domínio. Ela cansou-se dele rapidamente e quando ele a colocou perante uma escolha: "Ou casas
comigo ou eu deixo-te", respondeu imediatamente: "Quem te deixa sou eu".
2 Prato preparado com risoto aquecido e tostado numa frigideira antiaderente com azeite como uma panqueca. (N. da T)
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Edoardo tinha o estigma do verdadeiro senhor e agradava-lhe muito.
- Deves ser meiga e sensível, apesar de fazeres os possíveis por pareceres diferente. Gostava de te conhecer melhor - disse-lhe.
- Acho que não te vou permitir. Tu és um homem do sul e nós, os de Milão, sabemos como vocês são habilidosos a usar as palavras. E entretanto insistes em não falar
de ti - replicou, decidida.
- Eu trabalho com o coral - respondeu Edoardo.
- O que se usa para as joias?
- Esse mesmo.
- Pensava que tu eras advogado.
- E sou, no sentido em que me formei em Direito, mas nunca exerci. Nasci e vivo em Torre del Greco, a pátria do coral.
- E o que estás a fazer em Milão?
- A visitar clientes.
Quando era pequena e passava horas na oficina do pai, muitas vezes apareciam representantes de peles a visitá-lo. Usavam casaco e gravata, pareciam senhores, mas
eram apenas vendedores que ganhavam pequenas percentagens em cada negócio que fechavam. Orsola pensou então que Edoardo devia ser uma dessas pessoas. Começou a duvidar
das fantasias que tinha elaborado sobre ele. O pai dizia que esses homens eram fanfarrões e mentirosos. Aquele bonito rapaz que afirmava ser licenciado em Direito
tinha decidido armar-se perante ela ao convidá-la para aquele restaurante chique e depois... ao atingir o seu objetivo punha-se a andar rapidamente como o passarinho
que, com o frio, vem debicar a comida na nossa mão e depois, à primeira lufada de ar tépido, se vai embora. Estavam agora a saborear o café e a depenicar cascas
de laranja caramelizada. O restaurante tinha-se enchido de clientes. Orsola olhou para o relógio e disse:
- Já é tarde, tenho de voltar para casa. Obrigada pelo jantar.
- Era o mínimo que eu podia fazer. Eu levo-te - propôs Edoardo, enquanto fazia sinal ao empregado para pedir a conta.
- Agradeço-te, mas prefiro ir sozinha. Quando fui à casa de banho mandei chamar um táxi, que já deve estar lá fora à minha espera.
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O teu orgulho é quase patológico - comentou ele, divertido, enquanto enfiava uma mão no bolso interno do casaco para tirar a carteira e imediatamente deu uma gargalhada,
anunciando:
- Estou sem dinheiro! Deixei a carteira no outro casaco. Estás a ter uma influência negativa na minha imagem de cavalheiro perfeito. Orsola olhou para ele furibunda,
mas não disse uma palavra. Pegou na conta que o empregado estava a pousar em cima da mesa, leu a quantia e pagou, abençoando a mãe que lhe tinha enfiado na carteira
o dinheiro necessário. Edoardo agarrou-lhe no pulso e, com uma voz áspera, disse:
- Até parece que gostas de me humilhar. De qualquer modo, não vou permitir que sejas tu a pagar também desta vez. Ela libertou-se da mão dele e pôs-se em pé. Também
Edoardo se levantou e lhe ordenou:
- Agora voltas a sentar-te e esperas que eu ligue para o meu hotel e mande trazer aqui o dinheiro. Orsola olhou-o nos olhos e sussurrou, gélida:
- Não te atrevas a tocar-me outra vez, nem que seja com um dedo.
Em poucos minutos chegou ao vestiário, pegou no casaco, saiu do restaurante e entrou no táxi que a esperava.
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- Mas em que confusão é que tu te foste meter? - perguntou Diletta, alarmada, quando viu aparecer a filha naquele estado de fúria. Já estava pouco satisfeita consigo
mesma por ter mentido a Libero, dizendo-lhe que Orsola tinha saído com uma amiga. Como única resposta, a filha gritou:
- Deixa-me em paz, não me apetece falar!
- Baixa a voz, ou ainda acordas o teu pai. Eu tinha um mau pressentimento. O que foi que te fez aquele homem? - perguntou a mãe. Orsola tirou o casaco, descalçou
as sabrinas e enfiou as pantufas quentes. Depois entrou na cozinha e deixou-se cair numa cadeira. Pousou os cotovelos na mesa e cobriu o rosto com as mãos. Diletta
sentou-se diante dela, decidida a fazê-la contar-lhe alguma coisa. Mas a filha continuava calada. Então perguntou:
- Como é que tu pudeste confiar numa pessoa que não sabes quem é? Diz-me a verdade, fez-te alguma coisa de mal?
- Nada do que tu pensas, mas uma coisa pior: destruiu a imagem que eu tinha criado dele, fez-me sentir uma estúpida. Depois de me ter deixado pagar o almoço, arranjou
maneira de eu lhe oferecer também o jantar. Convidou-me para o melhor restaurante de Milão sem ter uma lira no bolso. Foi isso que ele fez. Agora já sabes tudo -
resmungou a rapariga. Diletta estava pálida, a sofrer, e o seu coração doente perdia pulsações. Orsola olhou para ela e sentiu-se culpada por lhe ter causado aquela
ansiedade.
- Tu é que tinhas razão, mamã - disse, ao mesmo tempo que lhe
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afagava o rosto -, eu não devia ter aceitado o convite de um desconhecido. Garanto-te que, se o tivesses visto, também caías como eu. Lindo, elegante como um figurino
de Paris, como diria o pai, com modos de cavalheiro. Mas afinal é um pelintra. Depois acabou por dizer: trabalha com o coral.
- Com o coral? Anda a vender coral? Quando eu era rapariga, logo a seguir à guerra, havia muitos vendedores em Milão, sobretudo de tecidos. Gente que andava de casa
em casa a vender tecidos de péssima qualidade a preços que pareciam interessantes. Nem imaginas o paleio que eles tinham. Vestiam-se como príncipes, mas não passavam
de uns pobres diabos. Coitadinha da minha menina! Agora aprendeste à tua custa que nem tudo o que luz é ouro - exclamou Diletta, que entretanto se começava a acalmar.
- Mamã, sinto muito pelo teu dinheiro, que se esfumou numa noite.
- Deixa lá. És jovem e não entendes o mundo. Esta noite recebeste uma lição de vida que te vai servir para evitar outras desilusões no futuro. Até te correu bem,
acredita - disse a mãe, a tentar animá-la. Orsola levantou-se, foi junto dela e deu-lhe um beijo.
- Não contes nada ao pai, por favor - pediu-lhe.
- Porque é que havia de contar? Só ia servir para lhe dar um desgosto - retorquiu a mãe.
- Mas tens a certeza de que ele está a dormir?
- Pouco antes de tu chegares fui ao quarto apagar-lhe a luz da mesa de cabeceira. Tinha adormecido a ler as reflexões de Etienne de La Boétie.
- Que seca, aqueles livros dele! E Montaigne, e Pascal... é claro que acaba por adormecer - comentou Orsola.
- Aqueles pensadores dão um sentido à sua opção de vida. Eu também os acho aborrecidos, mas quando ele mos explica até gosto. Na manhã seguinte, antes de ir trabalhar,
Orsola desceu as escadas com o habitual termos de café para o pai e, no átrio, esperava-a o homem das peles, de bata branca e laço vermelho a fechar o colarinho
da camisa. Entregou-lhe um pequeno vaso de cerâmica que continha uma estrela de Natal.
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É para ti - disse-lhe.
- Ah, muito bem, obrigada - respondeu com um tom apressado.
- Também queria convidar-te para jantar, uma destas noites insistiu, com um ar suplicante. Orsola gostaria que aquele galanteador atrapalhado e pouco
atraente fosse do seu agrado. Mas não era assim. Quanto mais ele a enchia de atenções, mais ela o detestava. Ao seu rosto inexpressivo
sobrepôs-se o rosto atraente daquele infame do Edoardo, e a sua raiva aumentou. Teve de fazer um esforço para não o mandar para o diabo.
- Estou com pressa, Renato. Por favor, desculpa.
- Mas não me respondeste - rebateu ele.
- Não sei se vou poder sair. Depois eu digo-te - retorquiu, e afastou-se rapidamente. Entrou na oficina do pai, que estava sentado à pequena mesa de trabalho a arrancar
os pregos de um tacão que tinha para arranjar.
- Aqui tens o teu café - anunciou-lhe, enquanto arranjava espaço em cima da mesa cheia de martelos, alicates, canivetes e sovelas, e onde pousou também, bem A. vista,
a estrela de Natal. - Flores vermelhas para o meu papá - cantarolou a sorrir.
- Há meia hora que aquele andorinhão do Renato anda a esvoaçar aqui à volta com essa plantinha na mão - observou Libero, ao mesmo tempo que desenroscava a tampa
do termos.
- Mais cedo ou mais tarde vai acabar por se cansar de andar atrás de mim - replicou ela.
- Aonde é que foste ontem à noite?
- A mãe não te contou?
- A tua mãe! Não diz a verdade nem que a torturem. Orsola observou aquele homem simples, honesto, armado com o fogo sagrado dos seus ideais, e transbordou-lhe do
coração todo o amor que sentia por ele.
- Pai, um dia espero encontrar um homem que se pareça pelo menos um bocadinho contigo - disse-lhe. Deu-lhe um beijo repenicado na face e saiu a correr. Libero fungou.
Estava comovido. Quando olhava para a sua "menina", sentia o coração cantar de alegria. Sabia que Orsola e Diletta
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tinham os seus pequenos segredos, mas fazia de conta de que não percebia. Quando Orsola chegou à loja, a senhora Mariani estava a beber um café nas traseiras. -
Como é que correu o teu jantar ontem à noite? - perguntou-lhe. - Tenho mesmo de lhe dizer? - De maneira nenhuma, até porque eu intuo a resposta pela tua cara. Orsola
arrumou o casaco no pequeno armário e resmungou: - Só pergunto a mim mesma como é que podem andar por aí solta certos indivíduos que deviam estar presos! - Ouve
o que eu te digo, não te massacres, não vale a pena - rebateu a senhora Mariani. - E agora vamos lá trabalhar. O dia decorreu com tranquilidade. Ao fim da tarde,
quase à hora do fecho, enquanto o joalheiro desmontava a montra, a mulher guardava o dinheiro e os cheques na carteira e Orsola arrumava a mesa, tocou a campainha
da entrada. O joalheiro olhou para o monitor e reconheceu o rosto de uma pessoa conhecida. - Abre depressa - ordenou a Orsola. Era o tom que o Sr. Mariani usava
para as visitas importantes. Orsola foi a correr abrir e encontrou à sua frente Edoardo, a sorrir-lhe ao mesmo tempo que lhe estendia um ramo de rosas vermelhas.
Furibunda, fechou-lhe a porta na cara. O Sr. Mariani olhou para ela, furioso, e perguntou: - O que foi que tu fizeste? - Eu conheço-o. É um desgraçado, um morto
de fome - respondeu Orsola, muito segura. - Pois ficas a saber que aquele cavalheiro tem realmente tanto dinheiro que podia comprar a minha loja e até o edifício
inteiro - disse o Sr. Mariani, num tom que não admitia réplicas, indo recebê-lo pessoalmente.
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Edoardo e o Sr. Mariani cumprimentaram-se com uma cordialidade muito particular. - Faça o favor de entrar, Dr. Sogliani. Peço desculpa, Orsola deixou cair o puxador
- mentiu o joalheiro. Edoardo entrou na loja e foi ao encontro de Orsola, que olhava para ele desconcertada. - São para ti - afirmou, ao mesmo tempo que lhe entregava
as rosas, e prosseguiu: - No teu lugar, teria reagido da mesma maneira. O joalheiro e a mulher observavam mudos aquela cena cujo significado lhes escapava. Orsola
sentiu o coração saltar-lhe no peito enquanto pegava nas flores. - Fazes alguma ideia de como eu me senti ontem à noite? - perguntou-lhe num sopro. - Eu sei, perdoa-me,
mas não me deste tempo de remediar a situação. Teria telefonado para tua casa, se ao menos tivesse o teu número. Peço-te por favor, vem jantar comigo, precisamos
de falar. E juro-te que desta vez não me esqueci da carteira. Orsola estava confusa, indecisa quanto ao que havia de fazer. Sentia alguma coisa por Edoardo, mas
não sabia o que pensar dele. - Eu não sei quem és, não percebo o que queres de mim. Por favor, deixa-me em paz. Restituiu-lhe o ramo de rosas, foi até às traseiras
da loja, pegou no casaco e saiu a correr. Queria regressar depressa a casa e contar tudo à mãe.
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subiu a correr os quatro lanços de escadas de casa e irrompeu no pequeno apartamento, onde encontrou Damiana à espera dela.
- O que é que estás aqui a fazer? - perguntou-lhe. Sabia que, àquela hora, a amiga frequentava um curso noturno no British Institute para conseguir um diploma que
lhe permitiria arranjar um emprego mais bem remunerado e mais brilhante do que aquele que tinha no cartório notarial.
- Quero tornar-me numa empresária e correr o mundo - tinha explicado a Orsola quando se inscrevera no British Institute. - Percebes o que quero dizer? Viagens, congressos,
reuniões de alto nível e a possibilidade de encontrar um homem fantástico que será o meu marido e o pai dos meus filhos. Muitos filhos, e assim deixo de trabalhar
e vou ser uma mulher rica e muito feliz.
- Precisas mesmo dessa treta toda para seres feliz? - perguntou-lhe Orsola, divertida.
- É inevitável. Tu e eu partimos em desvantagem e precisamos de recuperar.
- Eu só queria obter uma boa classificação num concurso para arranjar uma colocação. Fiz o magistério porque quero ensinar e continuar a estudar. Depois, gostava
de me casar e de ter um bom marido para amar como ele me amasse a mim, como se amam a minha mãe e o meu pai. Não me interessa que seja rico, mas é fundamental que
seja inteligente. Gostava de ter um companheiro que fosse romântico, que fizesse poemas para mim, que me falasse do seu mundo ideal, como faz o meu pai - disse Orsola
com um ar sonhador.
- Acorda, rapariga! - provocou-a Damiana. - Um homem de confiança leva-te à praia no verão e oferece-te um chalet aquecido em Sestriere no inverno. Quando Orsola
deixou Bruno, Damiana insultou-a:
- Es completamente louca. O Bruno é urn bonito rapaz, trabalha na empresa da família, podia garantir-te um nível de vida excelente. Mas naqueles anos em que tinham
andado juntos, Orsola constatara que Bruno não era de forma nenhuma o homem indicado para ela. Não ha, aborrecia-se no teatro, só ia ao cinema ver filmes de ficção
científica, evitava qualquer discussão que pudesse fazer
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vacilar as suas convicções e defendia que a mulher não era mais do que o produto mal conseguido de uma costela do homem. Quando Orsola lhe anunciou que ia deixá-lo,
olhou-a com ódio e respondeu-lhe:
- Não devias ter-me feito isso. Era eu que tinha de te deixar. De qualquer maneira, mais vale assim, até porque nunca mais vais encontrar um homem que queira casar
contigo. Nem mesmo Diletta tinha entendido perfeitamente aquela decisão da filha.
- O Bruno ia garantir-te um futuro tranquilo - comentou.
- Quer dizer que tu te juntaste com o pai para teres um futuro tranquilo? - desafiou-a. Orsola sabia da ansiedade com que a mãe vivera sempre ao lado do pai. Quantas
noites tinha passado na esquadra, quando ele era detido e interrogado pela polícia por ter cadastro como anarquista. Ela era apenas uma criança, mas lembrava-se
bem daquelas noites. Regressava a casa ao fim do dia, depois da escola, e encontrava Damiana à espera dela.
- Anda jantar a minha casa porque a tua mãe está na esquadra dizia-lhe a amiga. Agora Orsola perguntou-lhe:
- Onde está a minha mãe?
- O teu pai levou-a ao hospital porque não se estava a sentir
bem, e a minha mãe foi com eles. O coração, percebes?... Fica sossegada, eles voltam já - explicou Damiana. Orsola sentiu-se gelar. Num instante, desvanecera-se
a euforia com que tinha corrido até casa para contar A mãe o extraordinário
epílogo da sua aventura com o rapaz dos corais. Se Diletta se tinha
sentido mal, em parte a culpa era dela, porque na noite anterior tinha-a feito inquietar-se com aquela história absurda do jantar com
um desconhecido num restaurante chique. Como tinha podido ser
tão egoísta, a ponto de esquecer que a mãe devia ser tratada com
todos os cuidados?
- Quero ir já ter com ela - disse, preocupada.
- Tem calma. Foi há pouco tempo. Felizmente a minha mãe estava aqui quando ela desmaiou. Avisou imediatamente o teu pai. Ele
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percebeu que ela estava com dificuldade em recuperar os sentidos e chamou uma ambulância. O Libero garantiu-me que vai telefonar em breve para dar notícias - explicou
Damiana. - Eu faço-te companhia enquanto esperamos pelo telefonema.
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Diletta morreu naquela noite. Tinha quarenta e nove anos. Orsola e o pai, aniquilados pela dor, uma semana depois do funeral não conseguiam ainda reagir ao desgosto
que os dilacerava. - Nem sequer fui a tempo de a levar a Marselha. Queria tanto ir a França - disse Libero na manhã de Natal, enquanto fitava a chávena de café com
leite que a filha lhe tinha posto em cima da mesa. - E eu não consegui mostrar-lhe a carta do Ministério que me atribuiu uma vaga na escola da via Cusani - observou
Orsola, enquanto bebia o seu café. - Ia ficar muito contente - sussurrou Libero. - Sem ela, é como se me faltasse o ar para respirar. - Pai, hoje é o primeiro Natal
sem a mãe. O que é que vamos fazer? Não podemos deixar passar as horas sentados a mesa, desesperados. - O que é que propões? - perguntou Libero. - Não sei - respondeu,
desolada. - Sei eu. Vamos A missa - disse ele, e acrescentou: - Apesar de nunca me ter pedido, acho que a tua mãe sempre desejou que eu fosse A missa de Natal com
ela. Vamos os dois por ela. E no regresso vamos comer ao Piola no viale Abruzzi; depois tu vais fazer-me o favor de aceitar o convite da tua amiga Damiana, que está
em casa dela A tua espera. A minha Diletta não ia gostar de nos ver assim neste estado. - Concordo contigo - afirmou Orsola, animando-se. - Arranja-te depressa,
porque senão perdemos a missa das onze.
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ficas a saber que não faço isto apenas pela mãe, faço-o também por mim - decidiu ele, com um ar despachado. Depois da missa, quando saíram da igreja, pai e filha
olharam-se nos olhos e sorriram, como se a cerimónia religiosa os tivesse consolado e reconciliado com a vida.
- Se há dois mil anos os padres invadem as nossas vidas, alguma razão deve haver - resmungou Libero.
- Pai, não vais ficar religioso - disse Orsola.
- Isso nunca, apesar de o meu pai me dizer que, de alguma forma, Jesus foi um socialista. Talvez por ter expulso os vendilhões do templo e vociferar contra aqueles
hipócritas dos fariseus que são como os cardeais do Vaticano que pregam o bem e se portam mal.
- Eu gosto de pensar que a mãe está no paraíso e que, lá de cima, nos vê e continua a velar por nós - suspirou Orsola.
- A tua mãe está nos nossos corações, na nossa memória, no amor que ainda sentimos por ela. E esse o paraíso onde ela está.
- Eu sinto que a mãe está contente por nos saber tão próximos, por sentir que ainda falamos dela, por saber que nunca a vamos esquecer. Talvez tenhas razão, pai:
o paraíso onde ela está fica nos nossos corações. A vida eterna é a recordação dela que está em nós, e ela vai viver enquanto nós aqui estivermos para a recordar
- disse Orsola. No Piola estavam outras famílias a festejar o Natal. Segundo a tradição, o almoço natalício era à base de ravioli em caldo de frango, galinha recheada
e servida com legumes e panettone acompanhado pela doçura do Moscato d'Asti. Cada mesa era um pequeno núcleo de afetos que incluía crianças, pais, avós e tios. Orsola
e o pai, enquanto almoçavam, sabiam que não estavam sós, sentiam que Diletta estava com eles. De vez em quando, escorria-lhes uma lágrima pela face, mas imediatamente
olhavam um para o outro e sorriam. A dor esfumava-se lentamente na doçura da saudade. Regressaram a casa, caminhando lado a lado, naquela tarde fria de dezembro,
pelas ruas já desertas, depois do trânsito intenso que tinha precedido o Natal. Quando entraram no átrio do prédio onde viviam, Libero foi ao pátio e tirou da grade
da oficina o letreiro que dizia ENCERRADO POR Lupo. Ia retomar o trabalho logo a seguir à quadra natalícia.
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Foram acolhidos pela tepidez do pequeno apartamento onde, depois da morte de Diletta, reinava uma grande desordem: pratos por lavar empilhados na bancada da cozinha,
roupa atirada para cima das cadeiras nos quartos, móveis cobertos de pó.
- Vê-se bem que falta aqui a mãe - observou Libero com tristeza.
- Pois é - admitiu Orsola. - Mas agora vou pôr-me a trabalhar.
- Não. Tu vais para casa da tua amiga Damiana, que está à tua espera. Eu trato de arrumar isto. Damiana e os pais tinham vindo a casa deles na noite anterior para
os convidar para almoçar, mas eles tinham declinado o convite.
"Venham pelo menos depois de almoço tomar café connosco". insistira a Sra. Banfi.
- Vem tu também cumprimentar os pais da Damiana - disse Orsola, pois receava que, ao ficar sozinho, o pai se sentisse ainda mais triste.
- Mais logo vou ligar ao meu amigo Cesare - anunciou Libero.
- Durante estes dias ignorei os telefonemas dele, mas hoje sinto que tenho de reagir, e por isso vou passar por casa dele. A propósito, olha que em cima daquele
móvel há um monte de correio por abrir. Orsola pegou nas cartas e descobriu, no meio delas, uma que vinha de Torre del Greco. O remetente era Edoardo Sogliano.
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Querida Orsola,
Obtive o teu endereço através dos Mariani, a quem telefonei quando regressei a Torre del Greco, no dia a seguir ao nosso encontro na ourivesaria. Contaram-me do
luto que te atingiu. Imagino que sejam dias terríveis para ti e participo na tua dor com muito afeto. Regresso a Milão em fevereiro e gostava de voltar a ver-te,
até para me desculpar do meu comportamento absurdo. Espero que me concedas uma segunda oportunidade, porque gostei muito de ti e estou convencido de que foi o destino
que nos fez encontrar.
Um grande abraço, Edoardo
Orsola leu a carta duas vezes. Dobrou-a com cuidado, enfiou-a no bolso da saia, despediu-se do pai e tocou à porta dos Banfi. Sentiu-se imediatamente envolvida pelo
seu calor. O pai de Damiana pousou dois baralhos de cartas em cima da mesa, a mulher serviu-lhes um chocolate quente e estiveram a jogar durante duas horas. Depois
vieram visitá-los alguns parentes e Orsola propôs à amiga refugiarem-se em casa dela. - Estamos sozinhas, porque o meu pai foi ter com um amigo - explicou.
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Tal como prometera, Libero tinha arrumado os quartos. Fizera-o de um modo sumário, segundo um critério masculino muito diferente do conceito de ordem e de limpeza
que ela tinha. Mas, para o momento, estava bem assim.
- É muito triste esta casa sem a mãe - suspirou Orsola.
- É mesmo, até para mim. Lembro-me quando éramos pequenas e eu vinha lanchar a tua casa. A tua mãe estava na máquina de costura, a ouvir rádio, e nós encontrávamos
sempre alguma coisa boa em cima da mesa. Havia uma atmosfera tranquila e eu gostava muito de estar aqui. A tua mãe contava-nos as últimas novidades sobre a vida
aqui no bairro. Nunca saía, mas sabia tudo - recordou Damiana.
- Faz-me tanta falta! - sussurrou Orsola. Sentaram-se à mesa da cozinha e Damiana perguntou:
- Não queres ir ao cinema?
- Importas-te se deixarmos isso para amanhã? Queria estar em casa quando o meu pai regressar. Tenho medo que se sinta sozinho sem mim - confessou Orsola, preocupada.
- Daqui a menos de duas semanas vais começar a dar aulas. É o teu sonho que se realiza. Depois chega a primavera, vai estar menos frio, compramos as primulas para
pôr no peitoril das janelas e se calhar encontramos o homem das nossas vidas - disse Damiana, numa tentativa de distrair a amiga.
- Antes de a minha mãe morrer conheci um rapaz - confessou Orsola.
- A sério? Porque é que eu não soube de nada? Como era?
- Lindo como o sol e bastante misterioso.
- Não me digas! Anda lá, conta. Contou-lhe tudo. O encontro casual no bar, o convite para jantar, até ao momento em que Edoardo se apresentou na ourivesaria com
um enorme ramo de rosas vermelhas.
- Aqui está a carta que me escreveu e que eu li hoje, quando voltei do restaurante - concluiu, ao mesmo tempo que tirava o envelope do bolso. Damiana leu-a num ápice
e devolveu-lha.
- Devo admitir que o Bruno nunca teria conseguido escrever uma carta semelhante - comentou Damiana, divertida.
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- Esse não escrevia de todo. Pegava na caneta como se fosse uma enxada. Que estúpida eu fui em cair-lhe nos braços.
- Mas deixaste-o no momento certo, apesar de eu nessa altura não estar de acordo com a tua decisão.
- A minha mãe dizia sempre que as crianças, os bêbedos e as raparigas estouvadas têm um santo protetor - disse Orsola.
- De que estás A. espera para responder ao Edoardo? - perguntou Damiana.
- Vou responder, mas antes preciso de ter a certeza daquilo que lhe quero escrever. A minha experiência com o Bruno ensinou-me a ter prudência.
- O amor não tem nada a ver com a prudência - observou Damiana, excitada com a história da amiga.
- Ainda tenho de passar pelos Mariani para ir buscar o dinheiro que me devem, e imagino que me vão perguntar alguma coisa sobre o Edoardo. Assistiram ao espetáculo
com todas aquelas rosas que me ofereceu e que eu lhe devolvi. Foi o Sr. Mariani que me disse que o Edoardo é muito rico. E, sendo assim tão bonito, não me parece
possível que não tenha uma namorada. Até talvez tenha mais do que uma por esse mundo fora, como os marinheiros. Em suma, não sei nada dele. Percebes?
- Tornaste-te demasiado desconfiada. Se não te encontrares outra vez com ele, nunca vais saber quem é, verdadeiramente - comentou Damiana.
- Gostava tanto de poder conversar sobre isto com a minha mãe - suspirou Orsola.
- Ela já te ensinou tudo antes de morrer. Deu-te pernas para andar. Agora tens de caminhar sozinha, minha amiga.
- Achas que vou conseguir?
- Tenho a certeza - garantiu Damiana. Naquela noite, Orsola adormeceu tranquilamente. Quando Libero entreabriu a porta do quarto dela para lhe desejar uma boa noite,
já a filha dormia profundamente. Pensou que a vida estava finalmente a ganhar terreno à dor, como era justo que fosse, e ficou mais sossegado. Foi também para a
cama. Pegou num romance de Thornton
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Wilder, A Ponte de San Luis Rey, e procurou entre as frases sublinhadas uma que o tinha marcado particularmente. Encontrou-a e releu-a: "Há um pais dos vivos e um
pais dos mortos e a ponte entre um e outro é o amor". Voltou a fechar o livro, apagou a luz e imaginou que, vindos de margens opostas, ele e Diletta se encontravam
naquela ponte. Então sorriu e adormeceu. Na manhã seguinte, Orsola acordou-o com o café no quarto, como a mãe fazia todos os dias.
- Pai, já passa das dez - disse-lhe.
- Mas eu acabei de adormecer - protestou ele que, desde a morte de Diletta, nunca mais tinha dormido muito bem.
- Ligou a Sra. Mariani. Vai passar por aqui ao meio-dia para me entregar o envelope com o dinheiro que me deve, porque de tarde vai para fora. Vai de férias com
o marido e a loja fica fechada até ao dia 6 de janeiro - explicou. Libero sentou-se na cama, tomou o primeiro café da manhã e perguntou:
- São mesmo dez horas?
- E um quarto. Tenho de fazer limpeza à casa. Agora levanta-te, lava-te e veste-te - ordenou-lhe.
Libero pensou que a filha estava a repetir, com o mesmo tom, a ladainha quotidiana de Diletta. Quando chegou a Sra. Mariani, Libero tinha saído para dar uma volta,
porque não lhe apetecia encontrá-la.
- Paguei-te como se tivesses trabalhado até ao fim do ano - disse a Sra. Mariani, ao mesmo tempo que entregava a Orsola o envelope com o dinheiro. E acrescentou:
- És muito boa rapariga e merecias muito mais. Queres, de vez em quando, voltar à loja e dar-nos uma mão, se a escola não te ocupar o dia inteiro?
- Com muito gosto - respondeu Orsola.
- Eu e o meu marido decidimos dar-te um pequeno presente disse, enquanto tirava uma caixinha da carteira. Tinha dentro uns brincos de coral.
- Muito obrigada, minha senhora. Não precisava de se incomodar - retorquiu Orsola.
- São da empresa Sogliano. Os Sogliano são artesãos do coral
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há quase duzentos anos e as peças que fabricam são vendidas nas ourivesarias mais importantes do mundo. O Edoardo é um rapaz sério, que tem em cima dos ombros o
peso do negócio da família. A propósito, tomei a liberdade de lhe dar a tua morada. Espero não ter feito mal. Orsola pensou que tinha feito muitíssimo bem, mas não
disse nada. Limitou-se a sorrir.
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Damiana
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Sentada à mesa de um café, enquanto bebia um cappuccino, Orsola pensou que tinha vivido durante trinta anos envolvida pelo calor da grande família Sogliano que incluía,
para além de Margherita, a sogra, e das duas irmãs de Edoardo, Archetta e Priscilla, também um irmão do pai de Edoardo, o tio Renzino, solteirão empedernido, grande
bebedor e um bom garfo e um extraordinário narrador das histórias da família. Recordou que, habituada ao silêncio da casa de Milão, depois do casamento com Edoardo
tinha tido alguma dificuldade em conviver com todas aquelas pessoas e só conseguia relaxar à noite, quando se refugiava no quarto com Edoardo, um marido delicioso
e compreensivo, ou quando a sogra a convidava para a salinha dos seus aposentos e lhe falava dela, do marido que já não existia e dos filhos que criara. Um ano após
o casamento, Orsola deu à luz o seu primeiro filho e depois foi uma sequência de gravidezes, de compromissos sociais no âmbito da comunidade do coral e de viagens
de trabalho com Edoardo, que era um mestre escrupuloso e paciente. Aquele mundo, considerou Orsola naquele momento, já não tinha segredos para ela, e precisava agora
de ganhar coragem porque ia ter muitos problemas para enfrentar. O sol do meio-dia e o ar tépido levaram-na a pensar que durante demasiado tempo tinha feito de tudo
para demonstrar que era uma mulher forte que não se rendia às dificuldades. Agora, pelo contrário, só tinha vontade de se deixar andar, de estar sozinha. Veio-lhe
à ideia uma expressão frequente do pai, quando a mãe lhe dizia: "Passas o tempo sozinho na tua oficina sem
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fazer nada. Podias dar uma volta, ou vir até cá acima conversar comigo. Ele sorria e replicava: Beata solitudo, sola beatitudo3.
- Querido pai - sussurrou, enquanto retomava o caminho para ir ao encontro de Damiana, que a espicaçava para ela reagir e a induzia a não se deixar derrubar pelos
acontecimentos.
- Sabias que estás atrasada e que tens o telemóvel desligado? disse Damiana, que estava sentada numa poltrona do Grand Hotel, assim que a viu chegar.
- Desculpa - respondeu, ao mesmo tempo que se instalava ao lado dela.
- Já pedi. Carne seca de Grigioni com lascas de queijo Grana sobre uma cama de rúcula. Achas bem?
- Muito bem, obrigada.
- Então, a tua amiga está aqui, toda para ti, determinada a não te deixar ir embora enquanto não estiveres melhor - declarou Damiana.
- Não estou assim tão mal. Estou a tentar habituar-me à viuvez. Não é fácil, mas vou conseguir.
- Tenho a certeza disso. Sabes o que eu estava a pensar, enquanto esperava por ti? Que uma vez que não tive marido, nunca vou poder viver a experiência de uma viuvez.
- Tens assim tanto a certeza de que, se tivesses tido um marido, ele ia morrer antes de ti? - observou Orsola, divertida.
- É óbvio. Os homens bem-educados morrem sempre antes das mulheres. Se forem homens de bom gosto e autênticos senhores, têm até a elegância de morrer quando a mulher
é ainda jovem e pode refazer a sua vida - brincou Damiana. Depois mudou de tom e acrescentou: - Bem sabes como eu desejei ter um companheiro para toda a vida que,
infelizmente, nunca cheguei a encontrar. Ter-me-ia casado com qualquer um, só para ter um marido, porque nós, mulheres, ainda que afirmemos que somos muito emancipadas,
sem uma aliança no dedo continuamos a sentir-nos umas pobres solteironas. Um empregado pousou em cima da mesinha baixa de vidro dois individuais, os talheres e dois
grandes copos de vinho tinto.
Expressão latina que significa "Bendita solidão, única beatitude" (N. da T.)
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- Pedi um Fiano di Terredora, espero que te agrade - disse Damiana.
- És um anjo - respondeu Orsola. Naquele bar cheio de candeeiros e espelhos, repleto de clientes estrangeiros, os empregados moviam-se silenciosamente, com muita
discrição. Enquanto espetava com o garfo a carne com a cula e o queijo, Orsola retomou o fio da conversa com a amiga:
- Tu nunca encontraste um homem com quem casar porque nunca quiseste encontrá-lo. Não é verdade que terias aceitado uma proposta de casamento de qualquer um. Foste
sempre uma mulher bastante seletiva. Querias um homem que pudesse satisfazer as tuas numerosas expectativas. Mas se era rico não era bonito, se era bonito era pobre,
se era rico e bonito também era parvo. Lembro-me muito bem de todos os namorados que, por fim, acabavas por despachar.
- Quando encontrei o homem rico, bonito e inteligente, era um mentiroso, casado e aterrado com a ideia de deixar a mulher.
- Tu só querias o notário Caradonna porque sabias que não o podias ter. Se ele se tivesse divorciado, tu tinhas fugido à velocidade de uma lebre.
- Isso ainda está por provar. De qualquer modo, segura-te, agora tenho um namorado novo. Tem a minha idade, cinquenta anos bem medidos. É um empresário de alto nível,
uma pessoa que sabe muito de informática. É simpático e está apaixonado. E é solteiro.
- Parabéns! - exclamou Orsola, erguendo o copo.
- O único problema é que eu não sei onde está o defeito. Porque, estás a ver., uma pessoa que chega aos cinquenta anos sem nunca se ter casado tem forçosamente de
ter alguma coisa que não está bem - explicou Damiana, com um ar pensativo.
- Achas mesmo? Porque é que não admites, de uma vez por todas, que estás muito bem sozinha e, que não tens vontade nenhuma de andar a tropeçar num homem que, por
muito perfeito que seja, ia limitar a tua liberdade? Tu não te queres casar.
- E tu continuas a discutir os meus assuntos para evitares falar-me de ti. Julgas que não percebi? Não te posso forçar, mas sinto que há alguma coisa que não me
contas. Conhecemo-nos desde
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crianças, somos como irmãs, e desde que chegaste tenho a sensação de que me estás a esconder alguma coisa. Orsola não replicou, mas, entretanto, perguntou a si mesma
se não seria boa ideia contar-lhe a história do filho secreto do marido.
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2
Saíram do Grand Hotel e dirigiram-se em passo lento à boutique de Damiana. Orsola permanecia em silêncio. Pensava que, se arranjasse coragem para contar tudo à amiga,
se ia sentir aliviada de um peso que se tornava cada vez mais intolerável. Para além do mais, informá-la de um facto tão grave podia servir, eventualmente, para
o tornar mais aceitável. Apesar de a gravidade não se referir tanto à traição de Edoardo, consumada num momento de perturbação do qual se sentia em parte responsável,
mas sim ao facto de em Hong Kong existir uma criança linda e inocente que ainda não sabia que tinha perdido o pai. O pequeno Steve nunca mais ia jogar ténis com
Edoardo, o qual nunca mais ia responder às suas cartas. Orsola sentia nascer em si um sentimento de ternura por aquele rapazinho que, a julgar pelas fotografias,
tinha um ar muito simpático. Edoardo deixara-lhe o endereço do avô para contactar Steve, mas não o da mãe. Porquê? Eram os avós que tomavam conta da criança? Entretanto
Damiana falava e falava.
- Estás a ouvir-me? - perguntou-lhe, quando viraram da via Montenapoleone para a via Borgospesso.
- Sim.., não... não sei - respondeu Orsola.
- Estás com a cabeça noutro lugar. Deixa de cismar e preocupa-te em viver.
- É o que estou a fazer.
- Não, não é. O Edoardo já cá não está, mas a tua vida e a dos teus filhos têm de continuar. Portanto, agora vais-me fazer o favor
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de escolher um belo fato na minha loja - disse, enquanto entravam na boutique. Damiana tinha-se especializado em tailleurs. Era ela, com a ajuda de uma boa modista
e duas ajudantes, que desenhava os modelos relativamente clássicos, mas com algum detalhe coquete que os tornava únicos, até pela perfeição do corte e da confeção.
Utilizava tecidos da melhor qualidade e as suas peças nunca passavam de moda. Tinha uma clientela de jovens senhoras da classe média-alta; mulheres que podiam dar-se
ao luxo de adquirir roupas caras, mas que menosprezavam alegremente os grandes estilistas, considerando-os mais dignos de turistas ricos, desprovidos daquele sentido
da elegância muito milanés que privilegiava um vestuário discreto. A empregada que recebeu as duas amigas sussurrou ao ouvido de Damiana:
- Esteve cá a mãe do Dr. Bandini. Ocupou-me quase uma hora a provar um fato atrás do outro e não arranjou nada que lhe ficasse bem. Por fim disse que preferia ser
atendida por si e foi-se embora.
- Fez perguntas?
- Como sempre. Então a menina não está? Onde foi a menina? contou a empregada, acentuando a palavra "menina".
- É a mãe do Ermanno, o meu namorado de quem te falei - explicou Damiana. - Uma intrometida que me faz uma data de salamaleques, mas que não me suporta. Orsola sorriu:
era aquela a razão pela qual o namorado de cinquenta anos ainda não se tinha casado. Seria possível que Damiana ainda não se tivesse dado conta? Mais uma vez, a
amiga tinha encontrado um homem que não ia casar com ela. De qualquer forma, guardou aqueles pensamentos para si.
- Gosto deste blazer azulão - disse então, enquanto percorria as peças em exposição.
- É um shantung de seda muito bonito. Experimenta - disse a amiga, enquanto a empregada saía para ir almoçar.
- Com o que é que o ponho?
- Com o que tu quiseres. Até o podes pôr com jeans, mas se o usares com esta saia preta de cós alto em georgette fino fazes um conjunto muito elegante. Vai experimentar
no provador.
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Naquele momento tocou o telemóvel dela. - É ele, o Ermanno - anunciou antes de atender. Enquanto se despia e vestia a saia e o casaco, Orsola ouviu a conversa dengosa
com o namorado. - Estive a almoçar com a minha amiga Orsola. A tua mamã não te disse? Não, claro que não, ela adora os meus fatos mas gosta que seja eu a aconselhá-la.
Ah, estás a falar a sério? Queria ver o anel? Não lho mostraste antes de mo ofereceres? Mas como é que foste capaz, meu querido? É uma joia lindíssima e sabes bem
que a mamã quer ter tudo sob controlo! Mas é claro... vemo-nos logo à noite. Ah... esta noite tens de ficar com ela, porque está numa fase depressiva... percebo.
Não te preocupes, querido. Isso significa que eu vou ter mais tempo para dedicar à minha amiga. Depois falamos, beijos, beijos. Orsola saiu do provador. - Como é
que me fica? - perguntou. Damiana estava a despejar em cima da mesa o conteúdo da bolsa. - Já não sei onde meti o anel de noivado. Se o perdi, estou feita. Ofereceu-mo
anteontem a. noite, em minha casa. No dia seguinte chegaste tu e nunca mais pensei naquilo. Mas onde é que eu o meti? - O único sítio para ter um anel de noivado
é no anelar da mão esquerda - brincou Orsola. - Tirei-o porque me ficava apertado e me incomodava. Queria mandá-lo alargar, sem ele saber, obviamente. Que chatice!
- disse, desolada, ao mesmo tempo que se deixava cair em cima de uma poltrona estofada. - Damiana, olha bem para a minha cara. Uma mulher não se esquece do anel
de noivado e não o tira logo depois de o ter recebido. Não é o anel que te fica apertado, é o namorado. Percebes? Damiana arregalou para ela dois olhos carregados
de admiração. - Estás um espanto, Orsola. Esse azul elétrico fica a matar com o teu tom de pele. Quanto a... deixa-me que te diga, esses fios brancos nos cabelos..,
por que não fazes umas madeixas? Um remate escuro, talvez. E um bocadinho de maquilhagem não ia mal. Na nossa idade.., e tu que tens umas feições tão... Quem sabe
onde terá ido
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parar o anel. Oh meu Deus! Espero que não tenha ido parar ao lixo. Uma safira puríssima, garanto-te... Orsola deixou escapar uma gargalhada, a primeira depois da
morte do marido.
- Tu não queres o namorado, eu não quero esta roupa. Esperamos que a empregada volte e vamos ao cinema - decidiu. No Apollo estava em exibição uma comédia romântica
recheada de equívocos que separavam os dois apaixonados até ao glorioso final com marcha nupcial e tudo. Quando o filme acabou, eram cinco horas da tarde.
- Tenho mesmo de regressar a loja - disse Damiana.
- Eu quero voltar para casa. Mas antes ofereço-te um chá - propôs Orsola, enquanto entrava num bar da piazza San Carlo.
- Quem oferece sou eu. Tu já pagaste o cinema - respondeu Damiana, enquanto mexia na carteira a procura do porta-moedas. De repente lançou um gritinho de alegria:
- Encontrei-o! - Apertava entre os dedos o precioso anel de platina e brilhantes onde sobressaía uma safira aveludada. - Que alívio! Não fazes ideia de como o Ermanno
ia ficar zangado - continuou, ao mesmo tempo que deixava cair novamente o anel no fundo da carteira. Orsola não fez comentários, até porque sabia que, com ou sem
anel, aquele noivado estava destinado a naufragar. Regressou à via Melzo, sentou-se na pequena varanda a gozar o ar tépido do entardecer, ligou o telemóvel e retomou
o contacto com a família. Saverio informou-a sobre algumas questões relacionadas com os seguros inerentes ao acidente em que o pai tinha perdido a vida, Giulietta
protestou, indignada, por não ter tido autorização para dormir em casa de uma amiga, Margherita comunicou-lhe que Onorato, o notário, os tinha convocado a todos
para o seu escritório na segunda-feira seguinte.
- É preciso que tu também estejas, minha filha - disse.
- E estarei, mãe, prometo. Acho que vou regressar a Torre no domingo de manhã, e assim passamos a tarde todos juntos. Entretanto tenham cuidado com a Giulietta,
que está muito impaciente, e deem uns açoites ao Gianni, que é um preguiçoso. Tanto em casa como na empresa, as coisas corriam como sempre.
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A sua cunhada Priscilla tinha regressado a Caserta para tomar conta da ourivesaria, enquanto a outra cunhada, Archetta, voltara à seleção dos corais com as outras
operárias. Era eficiente e escrupulosa no seu trabalho, o único que sabia executar e que a enchia de orgulho, apesar de lhe causar problemas nos olhos, fazendo-os
lacrimejar. Mas não havia maneira de a convencer a usar óculos: tinha as suas vaidades e afirmava que isso a tornaria mais feia. Depois verificou o correio eletrónico,
após o que respirou fundo e fez aquilo que tinha em mente há vários dias: digitou o endereço do avô do pequeno Steve. Escreveu de fato um longo e-mail em inglês
que começava com: Sou a mulher do Edoardo Sogliano, o pai do seu neto e que concluiu com: Desejo no só conhecer o menino, a quem queria eu própria comunicar a notícia
da perda do pai, mas gostaria também de conhecer a mãe. Aguardo a sua resposta.
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3
A resposta chegou imediatamente. Começava com palavras de "sentidos pêsames" pela súbita partida do "excelentíssimo senhor Sogliano Edoardo", com o apelido antes
do nome, segundo o cos' tume chinês; o avô de Steve pedia desculpa pelo seu inglês pouco correto e exprimia a dor pela perda do pai do seu neto. Garantia que nunca,
mas nunca, teria a coragem de comunicar ao pequeno uma perda tão grave. Steve tinha deixado Hong Kong há poucos dias para regressar a Genebra, na Suíça, ao colégio
de Le Rosey onde vivia graças à generosidade "do seu excelentíssimo pai". Quanto à sua amada filha, a Sra. Cremonesi Wei, vivia em Itália há dois anos, tendo-se
tornado esposa do "excelentíssimo professor Cremonesi Renato". Morava em Milão, na via Conca del Naviglio, e esperava um filho. Indicava-lhe o número de telefone
e o endereço de correio eletrónico. Concluía pedindo-lhe para lhe comunicar o êxito do "conhecimento" com o neto. Entretanto ele ia acender velas diante das imagens
dos
antepassados para que favorecessem encontros harmoniosos. No fundo da página, Orsola encontrou ainda o endereço de correio eletrónico e o número de telefone do colégio
suíço. Ergueu os olhos ao céu. A luz plena do dia começava a extinguir-se docemente, das cozinhas erguiam-se os aromas da comida, o som dos televisores ligados,
as vozes imperiosas das mães e as vozes ternas das crianças. Olhou para baixo, para o pátio, onde o pai tinha tido a sua oficina. No seu lugar ficava agora a entrada
para um subterrâneo onde se guardavam os carros dos condóminos. A loja
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de peles tinha-se tornado um depósito de mercadorias e de Renato, o antigo galanteador, tinha-se perdido a memória. Entrou em casa. No quarto de vestir, abriu os
roupeiros onde estavam arrumados alguns fatos de Edoardo. Nas gavetas, cuidadosamente passadas e dobradas, estavam as camisas e a roupa interior. Foi então A cozinha,
pegou num grande saco de plástico para lixo e encheu-o com toda a roupa do marido para entregar na paróquia. Naquele apartamento onde tinha nascido e crescido, em
que tinha vivido tantas pequenas alegrias e algumas grandes tristezas, acariciado sonhos, cultivado esperanças em tempos já distantes, onde sempre que se interrogava
sobre o seu futuro o imaginava como uma linha reta que se perdia num horizonte luminoso, não queria conservar mais nenhum vestígio daquele marido misterioso. Agora
descobria que a chinesa vivia em Milão, que estava grávida, que tinha um marido e que se tornara na Sra. Cremonesi Wei. Quantas vezes, ao longo dos anos, o marido
tinha ido a Milão sozinho? Quantas vezes se tinha encontrado com ela? O filho que trazia no ventre seria do marido ou de Edoardo? Amarrou o saco e arrastou-o para
fora de casa, pousando-o no patamar, ao lado da porta de entrada. Se ao menos tivesse tido o pudor de a deixar na América, ou no país dela, a China. Não, Edoardo
tinha arranjado maneira de a trazer para Itália, para Milão, para a ter ao seu alcance. Quando ia a fechar a porta de casa, Damiana saiu do elevador. Viu o saco
a abarrotar e perguntou:
- Andaste a fazer arrumações?
- São coisas para a paróquia - respondeu rapidamente.
- Pareces-me muito zangada - observou a amiga.
- Talvez - respondeu Orsola.
- Gosto mais de ti assim. Quando te vejo lavada em lágrimas não tenho alma para te deixar sozinha. Logo a noite vou jantar a qualquer lado com o Ermanno e depois
não -sei se passamos a noite em casa dele ou na minha, mas em qualquer caso até amanhã de manhã não nos vemos. A propósito, e só para desmentir as tuas pérfidas
previsões, aqui está o meu anel de noivado - disse, mostrando-lhe
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a mão. E acrescentou: - Continua apertado, mas amanhã vou mandá-lo alargar. Despediram-se com um abraço. Orsola sentou-se no sofá com um pacote de bolachas e uma
lata de Iced Tea de pêssego. Ligou a televisão e ficou com os olhos fixos no ecrã, a ver, sem ouvir, um telejornal da noite. Finalmente adormeceu, e quando voltou
a abrir os olhos já era madrugada. Estremeceu, uma vez que tinha deixado a janela aberta para entrar o ar fresco da noite. Levantou-se com um esgar de sofrimento,
porque lhe doía o pescoço. Foi à casa de banho, despiu-se, tomou um duche e depois embrulhou-se num roupão de felpo macio. Os jatos de água quente tinham desfeito
aquela tensão muscular. Agora sentia-se melhor. Preparou um café, que bebeu lentamente numa chávena grande. Voltou a ligar o smartphone. Não tinha chamadas e viu
que também não havia e-mails. Parecia que o mundo se tinha esquecido dela. Apesar da sua necessidade de solidão, sentiu uma ponta de desilusão. Quando Edoardo era
vivo,
inundava-a de mensagens. O grande relógio pendurado na parede da cozinha marcava as seis e meia da manhã. Sentou-se à mesa e mandou um e-mail para o endereço do
colégio suíço, pedindo uma reunião para se encontrar com o pequeno Tang Steve. Se o computador portátil de Edoardo não tivesse ficado
destruído no acidente, juntamente com o smartphone, teria tido
a possibilidade de aceder ao seu correio eletrónico e dispor de mais informações para fazer alguma luz sobre os seus segredos. Agora só lhe restava aguardar por
uma resposta positiva da direção da escola suíça. Só depois de se encontrar com o rapaz ia decidir se deveria conhecer a mãe: a excelentíssima Sra. Cremonesi Wei.
Mais tarde foi tomar o pequeno-almoço a casa de Damiana, que
estava com um ar radiante e lhe anunciou:
- Logo A noite jantamos aqui em casa e vais conhecer o Ermanno, porque também o convidei a ele.
Orsola grunhiu o seu assentimento.
- Vejo que a noite não melhorou o teu humor. Não estarás com ciúmes pelo facto de eu, aos cinquenta anos, ter encontrado o homem da minha vida? - tentou provocá-la
Damiana. Orsola sorriu.
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- Fico feliz com isso, e peço-te desculpa por aquilo que te disse ontem - declarou com sinceridade, ao mesmo tempo que reparava que o anel de noivado tinha desaparecido
outra vez.
- Então explicas-me por que razão estás com esse mau humor tremendo? - insistiu Damiana.
- Estou preocupada. Na segunda-feira tenho de estar em Torre para a leitura do testamento do Edoardo. Há uma empresa que é preciso tocar para a frente da melhor
forma possível e o Saverio, apesar de ter sido muito bem orientado pelo pai, está a assumir responsabilidades maiores do que ele. O Edoardo era muito mais jovem
do que o meu filho mais velho quando ficou A frente da empresa, mas tinha a vantagem de não precisar de prestar contas sobre as suas escolhas aos outros irmãos.
Havia as duas irmãs, mas a Priscilla já tinha recebido a sua parte do património ao casar com o Pepe Russo e a Archetta... é aquilo que é, e não criava problemas.
Para além do mais, em trinta anos o mundo mudou. Nessa altura não havia crise. Agora, se tivéssemos de contar apenas com o nosso país, podíamos fechar a porta. Felizmente
há mercados em grande expansão e o meu marido, que lutava em todas as frentes, já tinha estendido as redes do negócio A China, à Rússia e à Índia. Mas há muitos
problemas para resolver - confessou Orsola, que estava muito ansiosa porque ainda não tinha chegado qualquer resposta da Suíça.
- Saberás dar conta de tudo de uma forma soberba - garantiu Damiana.
- Achas que sim? - perguntou Orsola, pouco convencida.
- Tenho a certeza - respondeu a amiga, e prosseguiu: - Isto é para ti... Deu-lhe um embrulho. Era o casaco que Orsola tinha experimentado na véspera.
- É um presente. Veste-o logo A noite, porque te fica lindamente. Orsola regressou ao seu apartamento .e preparou-se para sair. Queria fazer umas compras e visitar
as cinco joalharias do centro que eram clientes da firma Sogliano, a começar pela ourivesaria Mariani. Foi a pé até ao supermercado do viale Regina Giovanna e, mais
uma vez, mediu a diferença entre o norte e o sul. Aqui as frutas e os legumes eram decididamente mais caros e com pior aspeto.
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Enquanto metia no carrinho uma embalagem de salada mista, já cortada e lavada, ouviu o sinal de uma mensagem no telemóvel. Leu-a imediatamente. O colégio da Suíça
comunicava-lhe que à quinta-feira, ou seja, o dia seguinte, era dia de visitas. Podia apresentar-se de manhã, às nove horas. Correu até casa, consultou o horário
dos comboios, marcou um hotel para passar a noite, enfiou um bilhete debaixo da porta de Damiana para a avisar de que tinha sido obrigada a partir de repente e dirigiu-se
à estação.
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Viu-o entrar na pequena sala de visitas. Vestia jeans com uma camisa branca e um pulôver azul. Tinha cabelos negros e lisos, uns pequenos olhos orientais, escuros
e fundos, a pele rosada, o formato do rosto e a boca de Edoardo. Gostou dele imediatamente e sentiu por aquela criança uma onda de ternura.
- Olá, Steve - disse-lhe em italiano, dedicando-lhe um sorriso afetuoso enquanto ia ao encontro dele para lhe afagar a face com uma carícia. Depois sentou-se numa
poltrona. Estava cansada, tinha passado uma noite insone e estava ali há uma hora, já que tinha enfrentado previamente uma longa conversa com a Sra. Yvette Durand,
a diretora.
- Bom dia, minha senhora - respondeu Steve, com uma inclinação da cabeça.
- Eu chamo-me Orsola. Queres sentar-te, para podermos conversar um bocadinho? - propôs, ao mesmo tempo que lhe indicava a poltrona à frente dela.
- Merci, madame - respondeu ao sentar-se, ao mesmo tempo que a observava com curiosidade.
- Percebes bem a lingua italiana? Steve anuiu e esclareceu:
- Mas habitualmente falo inglês, e desde que estou aqui tenho de me esforçar por falar francês. O italiano é a lingua do meu pai, falo mal, mas entendo bem - replicou
com um ar muito compenetrado. Depois a sua atenção foi atraída pelo anel que Orsola trazia no dedo mindinho, e então disse: - Isso é um coral peau dange do mar do
Japão.
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- Conheces os corais?
- Alguma coisa.
- Eu venho de Torre del Greco, que é um lugar perto de Nápoles.
- Nunca lá fui. O meu pai vive em Torre. Durante um longo instante olharam-se intensamente nos olhos; os de Orsola estavam brilhantes de comoção perante a inocente
serenidade daquele pequeno homem tão bem-educado e tão sozinho.
- Eu sou a mulher do teu pai.
- Muito prazer em conhecê-la, minha senhora - replicou Steve, sem se perturbar.
- O teu pai falou-te de mim?
- Uma vez contou-me que tinha uma mulher muito bonita e muito simpática. E é verdade. O pai nunca me conta mentiras afirmou, sorrindo-lhe. - Disse-me que tinha mais
cinco filhos de quem gosta tanto como de mim.
- Sabes porque é que eu estou aqui? - perguntou ainda Orsola.
- Madame Durand avisou-me de que tem uma coisa importante para me comunicar.
- Uma coisa muito importante, Steve. E grave - sussurrou ela, ao mesmo tempo que lhe pegava numa mão e a apertava entre as suas. Depois sussurrou: - O teu pai teve
um acidente, há uma semana. Não teve coragem para continuar e o silêncio caiu no meio deles. Por fim foi o rapazinho que murmurou, com um fio de voz:
- Il est mort? Orsola anuiu e Steve atirou-se, desesperado, para os seus braços. Ela manteve-o apertado, enquanto o embalava e lhe acariciava os cabelos. Pensou
na solidão daquele menino nascido na América, como lhe tinha contado a diretora, criado na China e mandado para a Suíça, para um colégio de prestígio, longe do avô
e da mãe. Pensou nos seus filhos, criados no calor envolvente de uma grande família que os acarinhava de mil e uma maneiras, pronta para lhes secar as lágrimas,
para os consolar quando tinham os seus pequenos dissabores. Pensou no marido que, como defendia Giulietta, era de massa mole, e perguntou a si mesma quanto o teria
feito sofrer o afastamento daquele filho que, para não incomodar a família,
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tinha mantido longe de si. Sentiu que amava o pequeno Steve como se fosse seu filho. Instintivamente sussurrou-lhe:
- Acabamos de nos conhecer, mas eu já gosto muito de ti. Tirou um lenço da carteira, limpou-lhe as lágrimas e sorriu-lhe.
- Como é que foi o acidente? - perguntou Steve, entre dois soluços. Orsola contou-lhe e ele comentou:
- Então não sofreu.
- Foi isso que me garantiram os médicos - respondeu. Ele sentou-se outra vez na sua poltrona, enquanto limpava as lágrimas com as costas da mão.
- Achas que podemos sair para dar uma volta, tu e eu? - perguntou-lhe Orsola. - Gostava que nos conhecêssemos melhor e, de futuro, podias ir a Itália, a Torre, ver
a casa onde o teu pai viveu.
- Posso pensar nisso algum tempo? - perguntou Steve, sério.
- Claro - anuiu Orsola, sorrindo-lhe. Partiu de Genebra ao fim da tarde e, quando chegou a Milão, já era noite.
Aquela viagem breve e intensa tinha-lhe feito bem, tinha-a reconciliado com a memória do marido. Teve dificuldade em conciliar o sono, apesar do cansaço, porque
ao longo do dia tinha vivido muitas emoções que ainda a perturbavam profundamente. Foi acordada de manhã pelo toque da campainha e pelo ruído da chave que rodava
na fechadura. Era a empregada de Damiana: vinha fazer a limpeza e anunciar-lhe que o pequeno-almoço estava servido no terraço da amiga, que estava à espera dela.
No momento em que, de roupão, estava prestes a trincar uma fatia de pão barrada com manteiga e com mel, Damiana, que ardia de curiosidade, perguntou-lhe:
- Onde estiveste? Porque foi que partiste assim de repente?
- Fui a Genebra encontrar-me com uns clientes - mentiu.
- Tinha ficado com a ideia de que não ias trabalhar estes dias observou Damiana.
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- Mas trabalhei - rematou eta, e acrescentou: - Como é que vai o teu noivado?
- Não me lembro se já te disse que queremos casar o mais depressa possível. A questão é que eu não tenciono deixar esta casa, com tudo aquilo que gastei para a arranjar.
Nem posso pretender que o Ermanno venha viver para aqui, uma vez que ele tem um apartamento muito maior e mais bonito. Tivemos uma discussão porque eu lhe propus
que continuássemos a viver separados mesmo depois do casamento. Mas, como tu bem sabes, todos os salmos acabam em glória, e tivemos uma noite de sexo selvagem. Tinha
razão o Hemingway quando afirmava que as mulheres, depois dos quarenta anos, vivem uma sexualidade muito mais intensa. Orsola tinha outras coisas na cabeça e não
fez comentários. Disse apenas:
- Estou cansada. Agora vou expulsar a tua empregada do meu quarto e volto para a cama. Entrou em casa e o smartphone avisou-a de que havia correio para ela. Era
um e-mail de Tang Wei. Leu-o: Soube que ontem esteve com o meu filho. Se considerar oportuno, podemos encontrar-nos. Envio-lhe, pois, o número do meu telem6vel.
Orsola respondeu brevemente: Obrigada por me ter contactado. Vou ligar- lhe.
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A mulher que tinha à sua frente, numa atitude humilde, de rosto redondo, olhar baixo, maçãs do rosto altas, lábios finos, uma voz que era apenas um sussurro e vestuário
modesto, libertava uma força típica das mulheres só aparentemente submissas. O seu italiano seria perfeito se conseguisse pronunciar os erres, mas não era capaz.
- É uma honra para mim conhecê-la, minha senhora - disse, ao mesmo tempo que se levantava da mesa para a cumprimentar na pastelaria da via De Amicis, onde tinham
combinado encontrar-se.
- Por favor, sente-se - respondeu Orsola, e instalou-se diante dela. Orsola tinha-lhe telefonado no início da manhã e a excelentíssima Sra. Tang Wei, agora Cremonesi,
atendeu imediatamente. Explicou-lhe que tinha a manhã ocupada na escola da via De Amicis, onde dava aulas de música. A última aula era ao meio-dia e depois tinha
uma hora de intervalo. Podiam encontrar-se à uma e um quarto na pastelaria da esquina com o corso Porta Genova. Orsola observou aquela mulher graciosa, com um ventre
enorme que o camisolão largo não conseguia esconder.
- Soube pelo meu pai que o seu marido morreu. Sinto muito, por si e por toda a família - começou.
- Muito obrigada - respondeu Orsola e, após um instante de silêncio, perguntou-lhe: - Que tipo de relação tinha com o meu marido? A chinesa ignorou a pergunta e
fez um sinal ao empregado.
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- Podemos comer alguma coisa? - perguntou. Os clientes, nas outras mesas, comiam torradas, bolos ou panquecas recheadas. Pediram sanduiches de presunto e água mineral.
Depois, Wei contou-lhe:
- Há muitos anos que o Sr. Sogliano só se relacionava com o meu pai. E com o menino, claro está. Quando o Steve nasceu, ele foi buscar-me a Nova Iorque para nos
levar para Hong Kong. Tinha comprado para nós uma pequena casa no campo, na confluência do rio das Pérolas. Queria que o menino crescesse a aprender quer o cantonês,
a lingua falada no Kowloon, quer o mandarim, que é a Língua da China Ocidental. Para além do inglês, obviamente. Previa que o Steve, um dia, pudesse tratar dos negócios
dele na China. Considerava que a China se estava a ocidentalizar e que era importante afirmar-se naquele mercado. Por isso, nos primeiros anos fi cámos na China
e foi educado por mim e pelos meus pais. Quando fez 7 anos e já conhecia a nossa escrita, o Sr. Sogliano levou-o para um colégio, na Suíça. Ia ter com ele regularmente
e telefonava-lhe muitas vezes. - Fez uma pausa e continuou: - O seu marido e eu estivemos juntos apenas uns dias em Nova Iorque, depois ele foi-se embora. Procurei-o
dois meses depois, quando descobri que estava grávida, só porque achei que devia saber que eu esperava um filho dele - esclareceu. - Mas que tipo de relação foi
a vossa? - quis saber Orsola.
- A relação entre um homem e uma mulher que se encontram por acaso e criam a ilusão de que podem derrotar a solidão durante algumas horas.
- Não acha que eu devo saber alguma coisa mais? - disse Orsola, agressiva, desconcertada com aquela afirmação sobre a solidão do marido.
- Apenas posso falar por mim, porque conheci pouquíssimo o seu marido.
- Que papel teve o Edoardo no seu casamento com um italiano e com a opção de viver em Milão?
- O Sr. Sogliano não teve papel nenhum em tudo isso. Casei-me há três anos, quando o Steve foi para o colégio, e amo o meu
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marido. Finalmente encontrei a serenidade que procurei durante tantos anos. Agradeço-lhe por ter sido afetuosa com o meu filho e, se quiser, poderá voltar a visitá-lo
sempre que desejar. Apercebo-me de toda a sua desconfiança em relação a mim, e entendo-a.
O tempo irá demonstrar-lhe que sou sincera. Desculpe, mas tenho de regressar à escola - concluiu.
- Podemos voltar a encontrar-nos? Tenho tantas perguntas para lhe fazer - insistiu Orsola.
- Amanhã é sábado e não tenho aulas. O meu marido tem o hobby da pesca e vai para a margem do Ticino com um amigo. Eu vou estar sozinha. Podemos encontrar-nos em
minha casa à hora que quiser - propôs Wei.
- Vou ter consigo ao fim da manhã - respondeu Orsola. Depois de se terem despedido à porta da pastelaria, Orsola seguiu pela via Torino. Estava muito perturbada
e precisava caminhar para aliviar a tensão. Pensou Torre grande família: I
poderia imaginar as emoções e os sentimentos contraditórios que experienciava naquele momento, tão fortes que lhe cortavam a respiração.
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Orsola foi ter com Damiana à boutique e propôs-lhe irem dar uma volta as duas.
- Ótimo, vamos já - respondeu a amiga. Caminharam durante alguns minutos em silêncio e depois Orsola contou-lhe tudo: como tinha descoberto a existência de Steve,
a viagem A Suíça, o encontro com a chinesa.
- Amanhã vou a casa da Wei para saber mais sobre a história dela com o Edoardo - concluiu.
- Se avaliei bem a tua simpatia por aquele miúdo, mais cedo ou mais tarde vais contar a toda a gente que ele existe - observou Damiana, que a tinha escutado sem
dizer uma palavra.
- Acho que o vou fazer, até porque gostei mesmo dele. Mas antes
tenho de o dizer A minha sogra e aos meus filhos. Depois há as disposições testamentárias do Edoardo, que ainda não conheço. Será que incluiu o Steve na subdivisão
do seu património? Ter-lhe-á deixado apenas a quota legítima? Ou será que nem sequer o nomeou no testamento? Estou a viver um momento difícil e complicado,
i minha amiga - desabafou Orsola. Caminhavam lentamente, lado a lado, ao longo das pequenas ruas tortuosas do centro histórico. A medida que ia abrindo o seu coração
à amiga, Orsola sentia-se renascer, como acontece ao despertar depois de um longo sono atormentado por pesadelos.
- Gostava de ficar em Milão, porque esta é a minha cidade. Em Torre estão os últimos trinta anos da minha vida, mas foi aqui que eu nasci e cresci. Sempre tive a
sensação de estar quase de empréstimo
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lá em baixo, e agora que o Edoardo já cá não está e os meus filhos estão crescidos, começo a sentir o desejo de recuperar as minhas raízes - continuou. - Cuidado,
Orsola. Estás a elaborar perigosos desejos de fuga das tuas responsabilidades - preveniu Damiana. Orsola calou-se e achou que a amiga tinha razão. As fachadas austeras
dos edifícios devolviam o eco dos passos das duas amigas e absorviam as suas confidências, tal como tinham captado e guardado mil e um segredos ao longo dos séculos.
- Damiana, estou cansada. Nem sequer me apetece jantar. Amanhã tenho de estar outra vez com a chinesa. Vamos para casa - propôs Orsola. A amiga não fez comentários.
Mandou parar um táxi imediatamente e foram juntas para a via Melzo.
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Da estação do metropolitano de Sant'Ambrogio, Orsola foi até a via Conca del Naviglio. A chinesa morava num grande edifício burguês dos anos 60 com um jardim a.
frente que se prolongava até à rua e onde se distinguiam os topos de algumas magnólias em flor. Na campainha de latão leu os dois apelidos: Cremonesi-Tang. Carregou
no botão e, através do intercomunicador, uma voz disse:
- Quinto andar. - Sentiu o estalido metálico do trinco a abrir-se e entrou. O átrio estava deserto, a guarita da porteira tinha as cortinas descidas e ela questionou-se
a meia-voz:
- E se eu voltasse para casa? O desejo de ignorar aquela história, que a fazia sofrer, colidia com a curiosidade de a conhecer com todos os pormenores. Naquele momento,
a porta do elevador ao fundo do átrio abriu-se e surgiu a Sra. Cremonesi Wei, vestida com uma camisa longa de seda brilhante e corte chinês.
- Bom dia. Desci para a vir receber - disse-lhe, ao mesmo tempo que ia ao encontro dela com uma candura idêntica a. do filho. Orsola seguiu-a e, quando entrou no
apartamento, disse:
- Devia pelo menos ter-lhe trazido umas flores. Desculpe por não o ter feito.
- Não tem nada de que se desculpar. Apercebo-me de que está perturbada com outros pensamentos - replicou, enquanto avançava a frente dela em direção a uma sala de
estar espaçosa onde se destacava um piano de cauda. Não havia nada que evocasse a China, para além de uma série de telas, nas paredes, que reproduziam paisagens
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de arrozais e colinas e um grande poster que representava um esboço dos arranha-céus de Hong Kong.
- Fique à vontade - sugeriu, ao mesmo tempo que lhe indicava um divã. Saiu com ligeireza da sala para voltar a aparecer pouco depois com um tabuleiro. Pousou-o na
mesa de vidro e sentou-se numa poltrona à frente dela. Ofereceu-lhe chá de um bule de barro e uns pastelinhos minúsculos de farinha de arroz. Através das portadas
de vidro, que davam para a Conca del Nairrompia a luz clara do dia. Orsola observou Wei, da qual transparecia uma profunda serenidade interior que a fazia parecer
mais bela.
- Ontem à noite falei sobre o nosso encontro com o meu marido - começou a chinesa, depois de ter saboreado o primeiro gole de chá. - Aconselhou-me a não lhe esconder
nada, porque tem o direito de saber a minha história que, por um momento, se cruzou com a do seu marido sem nunca se separar completamente, mas apenas porque o nascimento
do Steve é um fio que não se pode quebrar. Antes de mais, gostava de lhe perguntar como era o Sr. Sogliano. Sabe, tivemos um filho, mas de facto eu não o conheci.
- Nunca deixava transparecer aquilo que pensava. Os Sogliano, como outras antigas famílias ligadas ao coral, têm origens hebraicas, e por isso a discrição, a parcimónia
e a timidez são peculiaridades inatas, como o gosto pelo comércio e a intuição para os negócios. O meu marido era tudo isto.
- Sinto muito que ele já não esteja cá, até pelo Steve, que está a sofrer imenso. Ontem à noite falei com ele, como sempre. Disse-lhe que amanhã de manhã vou ter
com ele e que vou lá ficar uns dias, porque sinto que precisa de mim - explicou Wei.
- Amanhã de manhã também eu me vou embora. Preciso de regressar a Torre e vou ter de falar do Steve aos meus filhos, que ainda não sabem de nada - replicou Orsola.
Ouviu-se um ruído de passos no fundo do apartamento.
- Pensei que estávamos sós - observou Orsola.
- E estamos. O meu marido não foi para o Ticino, como tinha planeado, mas vai sair. Se me permite, vou chamá-lo, para que a possa cumprimentar.
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Um instante depois surgiu à porta da sala um quarentão de rosto sorridente e com um físico imponente. Não tinha nada que denunciasse a sua origem mista, exceto os
olhos, levemente amendoados, que a perscrutaram com curiosidade por trás de umas lentes de míope. - Sei que a minha mulher precisa de falar consigo e não quero incomodar.
Vou fazer umas compras, porque estamos nas últimas semanas de gravidez e eu não quero que a Wei se canse. Depois vou passar por casa dos meus pais para os cumprimentar
e, portanto, deixo-as a sós - explicou. Tinha o ar atrapalhado dos estudiosos que se sentem mais à vontade no meio dos livros do que com as pessoas. - Não percas
a lista - recomendou a mulher. Aquela advertência, expressa com um tom levemente apreensivo, bastava para denunciar a escassa familiaridade do professor com as questões
práticas. Com efeito, Wei explicou a Orsola: - É terrivelmente distraído. Uma vez pedi-lhe para me comprar uma loção de limpeza e regressou a casa com uma embalagem
de detergente. Ouviram fechar a porta de casa. Então Wei descontraiu-se, instalou-se melhor na sua poltrona, fechou os olhos e cobriu o rosto com as mãos, como que
para se concentrar. Só então Orsola reparou que ela tinha umas mãos lindíssimas, de dedos longos e bem modelados, unhas curtas, rosadas, transparentes como conchas
minúsculas. Foi questão de poucos instantes, e depois as mãos voltaram a afagar o ventre proeminente. Nos seus lábios pairou a sombra de um sorriso muito suave e
disse: - Não é fácil, para mim, contar um episódio de há tantos anos, porque tenho de recordar uma grande parte da minha vida que nem sempre foi tranquila. Tem mesmo
a certeza, Sra. Sogliano, de que me quer ouvir? - Acho que sim - sussurrou Orsola. - Julgo que, uma vez que veio até minha casa, é porque quer mesmo ouvir, e a mim
também me vai fazer bem contar-lhe. Aceita mais uma chávena de chá? Orsola recusou e preparou-se para escutar.
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Tang Wei
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Tang Wei acabou de limpar a casa de banho dos aposentos do último andar do Ful Ion Hotel, enquanto Asako, a governanta dos pisos, dispunha as orquídeas frescas na
mesa de apoio da sala. Wei tinha iniciado o turno de trabalho as seis da manhã. Agora eram duas horas da tarde e dispunha de duas horas de intervalo para tomar um
duche, comer e descer até aos subterrâneos daquele grande hotel para os seus exercícios diários ao piano. Esse piano, um Bechstein de cauda, era um presente da Sra.
Carrie Harrington, a jovem e melancólica senhora inglesa, mulher do Sr. John Harrington, junto de quem tinha vivido até há poucos meses, numa residência do início
do século XIX no bairro inglês de Hong Kong. Wei tinha oito anos quando a Sra. Harrington a levou com ela, tendo-a encontrado por acaso num quarto do Ful Ion, onde
se tinha hospedado com o marido para uma breve estadia. O Sr. Harrington era dono de uma firma de importação-exportação com sede em Hong Kong. Exportava produtos
e manufaturas chineses para Inglaterra, de onde importava produtos e manufaturas para a China. Tinha ido a Taiwan tratar da expedição de uma remessa de leques e
a mulher estava com ele. Ela não se ocupava dos negócios do marido. Aproveitou aquela viagem para visitar inúmeras estufas e adquirir algumas plantas para pôr no
jardim da sua casa em Hong Kong. Tinha saído cedo, de manhã, para evitar o calor abafado do dia. Regressou quando a humidade começava a tornar-se insuportável e,
nos aposentos que ocupava no Ful Ion,
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surpreendeu a criança enquanto esta ajudava uma empregada a fazer a cama. A empregada, uma mulher de idade indefinível, desculpou-se pela presença da filha, suplicando
à senhora que não a denunciasse junto da direção, ao mesmo tempo que lhe explicava que as escolas estavam fechadas e que ela não ousava deixar a pequena Wei, a última
dos seus cinco filhos, sozinha em casa. A mulher falava mal inglês, mas Carrie entendeu imediatamente a situação. Observava aquela menina graciosa que parecia querer
esconder-se atrás da figura maciça da mãe, e pensou em como a vida tinha sido injusta com ela, que tanto desejara um filho e que afinal tinha de se contentar em
olhar com ternura para os filhos dos outros.
- Eu podia levá-la comigo para Hong Kong durante o período de férias. Estou mesmo a precisar de arranjar uma ajuda para a minha empregada - deu por ela a sugerir.
- Tenho de falar com o Sr. Tang Chiu, o meu marido - respondeu a empregada; olhou para a filha, dividida entre a dor de a deixar partir e o alívio de poder trabalhar
sem ter de a esconder. Wei viveu em Hong Kong, em casa dos Harrington, ate aos quinze anos, e aquele foi o período mais feliz da sua vida. A empregada da Sra. Harrington
não tinha qualquer necessidade da ajuda de uma menina, enquanto a melancólica patroa, que passava as horas a ler, a tratar das plantas do jardim e a tocar piano,
queria tê-la sempre junto a si para partilhar os seus dias com ela. Não levou muito tempo até que a senhora inglesa se apercebesse de que Wei era inteligente e recetiva.
Deu conta de que a menina a seguia com atenção quando tocava piano.
- Gostavas de aprender? - perguntou-lhe. Wei anuiu. Era tímida e falava pouco, mas os seus olhos falavam por ela.
- Então eu vou ensinar-te a tocar. Eu estudei e tenho um diploma do conservatório de Viena, uma lindíssima cidade europeia, berço de grandes músicos que a tornaram
famosa em todo o mundo. Um dia tens de a visitar - disse-lhe.
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- Leva muito tempo a aprender a tocar piano? - perguntou a menina.
- Anos de exercício constante, e para além disso é preciso ser dotado de sensibilidade musical. Se quem toca um instrumento se limitar a executar corretamente um
trecho, quem ouve não sente emoção nenhuma. A técnica é muito importante, mas a capacidade interpretativa é fundamental para se ser um bom pianista - explicou.
- Gostava de ser tão boa como tu, Nv Shi - suspirou Wei. Tratava-a por Nv Shi, senhora, assim como tratava o marido por Xian Sheng, senhor, apesar de ter um grande
desejo de pronunciar os nomes Carrie e John, coisa que não ousava fazer.
- Eu não sou assim tão boa como tu pensas. Abandonei a profissão de pianista quando me casei com o Sr. Harrington. Ele tem um trabalho importante e eu tomei a decisão
de ficar junto dele, e para além do mais queria filhos que, infelizmente, não vieram - disse num tom de tristeza. No fim das férias, a Sra. Harrington conseguiu
convencer os pais de Wei e a menina ficou em Hong Kong com ela. Para além de estudar piano, Wei frequentou uma escola privada católica, onde aprendeu o mandarim,
que era a sua lingua, e o inglês. Nas tardes livres, a sua Nv Shi levava-a a ver exposições de arte, sobretudo as dos pintores ocidentais do século xix, e para cada
quadro a Sra. Harrington fornecia-lhe uma explicação apaixonante, como uma história. Wei começava a gostar também de pintura. Aos doze anos tinha terminado a escola
primária e chegara assim o momento de escolher outro colégio. Wei regressou a Taiwan para estar algum tempo com a família. Os irmãos, entretanto, tinham casado e
viviam noutros lugares. O mais velho, com grande desgosto da família Tang, tinha casado com uma japonesa. Não havia muito boas relações entre chineses e japoneses
e, quando o filho se mudou com a mulher para Osaka, os pais de Wei choraram e prognosticaram o falhanço daquele casamento. A segunda filha tinha casado com um produtor
de flores e tinha-se mudado para outra ilha. Dos outros dois rapazes, um trabalhava no aeroporto internacional da ilha e o outro, emigrado em Nova Iorque, tinha
conhecido uma rapariga chinesa cujos pais possuíam uma loja de porcelanas em Brooklyn e tinha casado
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com ela. Era funcionário do parque de estacionamento do Hotel Marriott Marquis em Times Square.
- Uma diáspora! - comentou a mãe Asako, que continuava a trabalhar no Ful lon Hotel como empregada de quarto, enquanto o pai prestava serviços na cozinha do mesmo
hotel. Não viam Wei há quatro anos e choraram de alegria pela forma como ela tinha crescido tão bem.
- Só restas tu - disse o pai. - Daqui por alguns anos vou ter de te arranjar um bom marido. Estavam no minúsculo apartamento na periferia da cidade. Ela olhou em
volta com uma sensação de desconforto, porque tinha esquecido a pobreza da sua casa e daquele bairro, semelhante a um enxame em contínua atividade. Wei tinha regressado
para passar com os pais umas longas férias. Estava ali há poucas horas e já tinha saudades da casa dos Harrington. Sentiu como uma ameaça aquela promessa do pai
a propósito de um marido. A mãe apercebeu-se disso e disse-lhe:
- Não ligues ao que diz este velho resmungão, sempre preocupado com o futuro dos filhos. Primeiro precisas de crescer e aprender uma profissão. Ainda tens muito
tempo antes de ele te arranjar um marido.
Os Tang eram originários dos campos do continente. Sempre tinham sido camponeses, antes de se terem visto obrigados a mudar para uma ilha e inventar um trabalho
novo. Tang Chiu estava ligado às tradições da sua gente e, pelo menos no âmbito da família, tentava conservá-los. Tinha casado bem a filha mais velha e queria fazer
a mesma coisa também com a mais nova. Wei regressou a Hong Kong com uma sensação de libertação.
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Passaram-se ainda uns anos fantásticos, durante os quais Wei desabrochou e se tornou uma jovem mulher devorada pela paixão da música, que aprendia sob a orientação
segura da sua professora. A Sra. Harrington tinha decidido que não podia privar-se da companhia de Wei e foi ela quem assumiu o papel de professora de piano, prometendo-lhe
que, um dia, a levaria com ela A Europa: queria submetê-la ao exame severo do seu velho professor, que dirigia ainda o conservatório de Viena. Mas quando Wei completou
os quinze anos, começou a insinuar-se naquela casa uma atmosfera carregada de ansiedade. O marido da Sra. Harrington andava cada vez mais taciturno. A sua atividade
profissional marcava passo. De vez em quando ausentava-se para se encontrar com pessoas que até há algum tempo atrás frequentavam a sua casa e agora pareciam querer
distanciar-se. Regressava destas visitas com um humor cada vez mais sombrio. Fechava-se no escritório com a mulher e, pouco tempo depois, também ela saía dali prostrada.
- O meu marido tem vindo a encontrar obstáculos imprevistos na sua atividade - disse-lhe um dia. - Parece que aconteceu qualquer coisa que, como vocês dizem na China,
fez perder a face ao funcionário do partido no nosso distrito. - Wei sabia que perder a face era a pior coisa que podia acontecer a um chinês. Uma manhã, de madrugada,
a sua Nv Shi entrou de rompante no quarto dela e acordou-a. Estava a chorar.
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- Temos de sair imediatamente desta casa, porque um amigo disse-nos que vêm prender o meu marido. Wei ainda não estava completamente acordada e não conseguia entender
o que estava a acontecer.
- Está um carro à nossa espera. Veste-te. Anda connosco até ao aeroporto. Lá apanhas um voo para Taiwan. Nós temos um avião particular que nos vai levar a Tóquio.
Meteu-lhe na mão um envelope cheio de dinheiro e, quando estava prestes a separar-se dela, disse ainda:
- Não me parece que voltemos a ver-nos. Nem sequer sei dizer-te onde nos vamos fixar, mas não deixes de estudar. Já encarreguei alguém de te mandar o meu piano.
O piano chegou um mês depois em nome do seu pai ao Fullon Hotel. Com a ajuda de alguns colegas de trabalho, o Sr. Tang Chiu escondeu-o num espaço ao lado da garagem
subterrânea. Wei foi contratada como empregada de limpeza no mesmo hotel, no lugar da mãe que, naquele período, não se sentia bem e teve de ser internada no hospital.
Através das informações do pessoal, que tinha ligações de amizade ou parentesco com o do Crown Plaza de Hong Kong, os Tang ficaram a saber que a luxuosa residência
dos Harrington tinha sido ocupada pelo secretário local do partido e a firma de importação-exportação tinha mudado de dono. As mesmas fontes referiam que a causa
de tudo aquilo tinha sido a teimosia do empresário inglês, que se recusara a pagar o suborno ao politico do momento. Os anos felizes da jovem Wei tinham terminado.
Mas sobrevivia a sua paixão pela música. Por isso, quando terminava o seu turno de trabalho, ela descia até ao subterrâneo do hotel e sentava-se ao piano, onde se
esquecia do cansaço e treinava durante algumas horas. Depois regressava a casa, preparava uma refeição quente e levava-a ao hospital para dar à mãe, que tinha sido
submetida a uma intervenção cirúrgica aos intestinos.
- Nunca mais vou poder trabalhar como até agora - dizia-lhe a mãe, quase como que a desculpar-se da sua doença.
- Não precisamos de dinheiro. Aquilo que me deu a minha Nv Shi chega e sobra - respondeu ela.
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- Eu não tenho nada com isso. É teu e foi depositado no banco. Um dia pode ser-te útil - disse-lhe a mãe. Depois fez uma careta ao provar a comida que tinha vindo
de casa. - Tens de pedir ao teu pai que te ensine como é que se cortam os legumes. O Sr. Tang Chiu, graças à sua cultura camponesa, tinha a seu cargo o corte dos
vegetais na cozinha do hotel.
- Um aipo, uma cebola ou uma laranja têm uma alma como todas as criaturas vivas - costumava dizer-lhe. Quando tens de os matar para os cozinhar, tens de o fazer
respeitando a sua essência. Se os massacrares, perdem todo o sabor e é como comer cartão cozido. Wei desculpava-se, mas não sentia qualquer interesse pela cozinha.
Tinha uma única paixão: a música. Apercebia-se de que a Sra. Harrington, a sua professora, a tinha abandonado demasiado cedo e que tinha ainda muito para aprender.
Suspirava, cheia de nostalgia daqueles anos fantásticos que nunca mais voltariam.
- Não adianta atormentares-te com aquilo que já foi, deves antes olhar para a realidade. Daqui a pouco tempo vais ter de arranjar um marido, ter filhos e ser feliz
a vê-los crescer. Com aqueles ingleses viveste rodeada de todas as comodidades, mas foi tudo uma ilusão, como podes constatar. Acabou, Wei. Conforma-te - dizia-lhe
a mãe. Mas ela não se conformava. Sonhava com a Europa, Viena, os concertos, e em vez disso tinha de limpar os quartos e as casas de banho do hotel. Fazia-o com
muito cuidado, porque o pai a tinha recomendado ao diretor do pessoal, o temível Sr. Wang Chen, e ela não ia deixar ficar mal o pai.
- Estou a fazer o melhor que posso, mãe. Amanhã vou tentar preparar-te uma refeição melhor, mas tu despacha-te a melhorar respondia. Quando a Sra. Tang voltou para
casa, não regressou ao trabalho, porque no hospital lhe disseram que nunca mais deveria fazer um trabalho pesado. Desde então tinham passado muitos meses. Wei, que
era realmente muito graciosa, tinha muitas vezes de reprimir os galanteios dos colegas de trabalho e dos vizinhos. Depois de ter descoberto a quantidade de coisas
interessantes que a vida tinha para oferecer, não sentia qualquer atração pelo esperado papel subordinado da mulher.
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Naquele dia entregou A governanta do último piso a lista dos quartos arrumados, desceu ao subterrâneo, trocou alguns comentários de brincadeira com algumas colegas
que, como ela, tinham terminado o turno, e depois esgueirou-se para o aposento ao lado do parque de estacionamento onde a esperava, silencioso, sob uma tela de juta,
o seu piano.
Retirou a cobertura e dobrou-a com cuidado. Para deixar entrar alguma luz, entreabriu as pequenas janelas que davam para o jardim, escondidas por uma sebe de oleandros
perfumados. Abriu uma partitura e começou a estudar uma peça de Chopin.
Apesar de usar a surdina, o som dos seus exercícios musicais espalhava-se pelo jardim. Os hóspedes do hotel que almoçavam nas mesas exteriores pareciam não se aperceber,
mas os empregados que os serviam de vez em quando enfiavam-se dentro da sebe, inclinavam-se à altura das janelas e cumprimentavam-na. Não era um segredo para eles
a existência de um piano naquela cave, nem o facto de ser a filha de Tang Chiu que o tocava. Naquele dia, enquanto estava completamente concentrada numa passagem
difícil,
Wei lançou um grito de susto porque uma mão tinha agarrado o seu ombro. Levantou-se de um salto, pronta para fugir, e encontrou A frente dela a figura ameaçadora
do Sr. Wang Chen. Era um homem de cinquenta anos, temido por todos porque sabia ser pérfido com quem cometia algum erro e tinha o péssimo hábito de assediar as funcionárias,
quando eram jovens e graciosas. Algumas sofriam as suas agressões para não perder o trabalho, outras preferiam despedir-se. Wei sentia-se a salvo, porque era a filha
do respeitável Tang Chiu, especialista no corte dos legumes. Agora, porém, começou a sentir medo, porque o homem olhava para ela com um sorriso que não augurava
nada de bom. - Sabias que só podes martelar nessa geringonça porque eu te permito? - perguntou. Ela baixou os olhos e anuiu, desejando apenas conseguir fugir. Ele
estava quase em cima dela e Wei, que tinha ficado completamente hirta, foi acometida por uma náusea ao sentir o seu hálito que cheirava a alho.
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- Vejo que tens boas maneiras e que não te atreves a responder. É assim que se comporta uma mulher de bem - disse. Era sabido que o Sr. Wang Chen já tinha enterrado
duas mulheres, destruídas pela pancada, pelas gravidezes, pelo cansaço. Tinha um número impreciso de filhos, alguns já adultos e que já tinham construido a sua vida,
outros mais jovens de quem a velha Sra. Wang tomava conta.
- Enquanto eu te permitir, podes continuar a fazer barulho com o teu piano - acrescentou ainda. Depois virou-se e saiu. Naquele momento, Wei apercebeu-se de que
as pernas pareciam feitas de trapo. Então desfez-se em lágrimas e foi a correr para casa, ter com a mãe. Precisava de lhe contar tudo. A mãe ouviu-a e por fim disse:
- Podes sentir-te feliz, minha pequena Wei, porque o excelentíssimo Sr. Wang Chen falou com o teu pai hoje de manhã. Quer casar contigo.
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Wei nunca tinha tido um namorado, nem nunca o desejara, porque lhe bastava o amor pela música.
- Eu não me quero casar e, sobretudo, não quero aquele velho nojento - protestou, indignada com os pais.
- Tu não percebes nada e a culpa é só minha, porque em vez de te educar como os teus irmãos, deixei que aqueles ingleses te levassem e confiei-lhes a tua educação.
A tua Nv Shi encheu-te a cabeça de sonhos, mas agora regressaste a casa e és empregada de limpeza num hotel. Por muito bem que a vida te corra, um dia acabas por
casar com um empregado do hotel. Não te chega o exemplo dos teus pais, que estão a envelhecer e se matam de trabalho? Prometi-te a um homem rico, o diretor do pessoal.
Que importa que seja velho? Tu não sabes que um homem nunca envelhece? Só as mulheres envelhecem e, quando isso acontece, mais ninguém as quer. Nós somos velhos,
qualquer dia já cá não estamos e não queremos que a nossa filha mais nova fique sozinha e sem proteção - disse o pai. Wei não podia rebelar-se contra a vontade paterna.
Intuía que nem mesmo a mãe estava entusiasmada com aquela ideia, mas uma boa mulher chinesa não pode contrariar o marido, e uma filha respeitadora deve fazer o mesmo
com o pai. Só que Wei tinha crescido noutro lugar, e não tinha assimilado aqueles princípios invioláveis.
- Sabem os dois muito bem aquilo que se diz daquele nojento, e mesmo assim querem oferecer-me a ele numa bandeja? - protestou aos gritos.
- Fala com mais respeito do honorável Sr. Wang Chen, porque
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vai ser o teu marido, quer tu queiras, quer não. Quanto ao que dizem as pessoas, são coisas ditadas pela inveja, porque é um homem importante, tem uma grande casa,
possui muitos terrenos e ocupa um lugar de notável responsabilidade no melhor hotel da cidade. O destino quis que perdesse duas mulheres. Tu serás a luz da sua velhice.
Wei passou uma noite a elaborar improváveis pianos de fuga. Não podia contar com a irmã, porque sabia que ela não mexeria um dedo para fazer frente à vontade paterna.
Tinha ainda um número infinito de tios e primos, mas não os conhecia. Tinha crescido longe da família e, para todos eles, era quase uma estranha. Desde que regressara
de Hong Kong, encontrava-se de vez em quando com o irmão Wu, que trabalhava no aeroporto de Taiwan, e com a cunhada. Moravam no mesmo bairro. Podia pedir-lhe a ele
para convencer o pai a retirar a promessa feita ao Sr. Wang Chen. E assim fez, indo bater-lhe à porta de madrugada.
- Tu és louca, se pensas que eu posso fazer isso - disse-lhe Wu.
- Queres que o teu pai perca a face? Aquele homem era capaz de o despedir e de o envergonhar aos olhos de toda a gente como um homem sem honra. E depois, que história
vem a ser esta? Ao fim e ao cabo, o pai arranjou-te um marido rico. Wei foi trabalhar com a morte no coração. O seu destino estava já traçado. Antes de o verão acabar,
concluiu-se o contrato de matrimónio, e a partir daquele dia começou o seu inferno. Wei entrou no carro e sentou-se ao lado do marido, que lhe lançava olhares lascivos;
depois, e pela primeira vez, entrou na sua casa. Era uma grande construção de um só piso, no meio de um terreno que em parte era horta e em parte pomar. No pátio,
sentada numa cadeira de baloiço, estava uma velha com um ar mal-humorado, rodeada por um bando de crianças entre os quatro e os doze anos. Eram os filhos da segunda
mulher..,
- É esta a nova criada? - perguntou o mais pequeno, enquanto observava Wei com um sorriso malicioso. Os outros riam com um ar apalermado e um deles, o mais velho,
fez-lhe uma careta.
- Beija a mão à tua sogra - ordenou-lhe o marido. Wei obedeceu.
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- Não fizeste uma boa escolha, meu filho - observou a velha.
- Esta tem ar de quem não presta para nada. Tenho sede, traz-me de beber.
- A cozinha é lá ao fundo - disse o marido. - Despacha-te, vai preparar o chá - acrescentou, acompanhando a ordem com uma sapatada no fundo das costas. Wei entrou
num aposento imundo, onde havia pilhas de louça suja espalhada por todo o lado, restos de comida ressequida no chão, moscas a zumbir e baratas que corriam a esconder-se
debaixo dos móveis. Era então aquela a magnífica casa de que lhe falava, encantado, o seu pai? Era aquele o acolhimento reservado à terceira mulher que, segundo
o pai, devia representar a luz da velhice do marido? Porque é que o pai não estava ali para constatar em que inferno a tinha obrigado a entrar?
- Quando acabares de servir o chá à minha mãe, tens de arrumar isto e preparar o jantar - ordenou o marido. Depois, quando ia já a sair, acrescentou: - Ontem vendi
o teu piano, até porque já não precisas dele para nada. Wei nunca lhe daria a satisfação de chorar, apesar de ter recebido aquele golpe como uma ferida mortal. E
a partir daquele momento começou realmente a morrer. Até um instante atrás tinha dito a si mesma que seria capaz de aguentar tudo desde que tivesse o seu piano e
algumas horas por dia para afogar a dor na música. Mas agora apenas desejou morrer. E ainda não tinha experimentado o pior. Os filhos do marido, seis rapazes ingovernáveis,
insolentes e maldosos como o pai e a avó, durante o jantar começaram a fazer troça dela enquanto ela comia à parte, em pé, junto ao fogão, sob o olhar divertido
do marido e daquela bruxa da sogra. Só depois de todos se terem ido deitar e ela ter arrumado a cozinha o Sr. Wang Chen se dignou mostrar-lhe o quarto. Por muito
que estivesse decidida a não reagir, aquilo que viu deixou-a horrorizada. Numa cama antiga de madeira de sândalo, delicadamente esculpida, estava uma rapariga enroscada
sobre si mesma a dormir profundamente.
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- Estúpida! - berrou o marido. A jovem abriu os olhos e protegeu o rosto com as mãos, enquanto ele a enchia de murros e imprecava contra a velha mãe que ainda não
a tinha posto na rua. A rapariga começou a chorar e a balbuciar que tinha sido a senhora mãe a dizer-lhe que podia ficar até à manhã seguinte. Wei observava impassível
aquela cena revoltante. Viu-a levantar-se e fugir, ao mesmo tempo que o seu marido a enchia de pontapés e a cobria de injúrias. O marido não se preocupou em dar-lhe
uma explicação, nem ela pensou em pedi-la. Apenas se limitou a dizer-lhe: - Despe-te. Ela assim fez. Ele olhou com avidez para o seu corpo imaturo e teve um gesto
de impaciência. - Tenho mesmo de te dizer tudo? Deita-te - ordenou, e caiu imediatamente em cima dela. Naquele quarto sombrio o calor era sufocante. O fedor a alho
que exsudava da pele daquele homem deu-lhe náuseas. Violou-a, enquanto gania como um porco. Wei vomitou o jantar. Teve de mudar os lençóis e reparou que os limpos
tinham o monograma do Fullon Hotel. O honorável Sr. Wang Chen, o temível chefe do pessoal, sempre pronto para fustigar e despedir quem quer que fosse ao mínimo deslize,
era um ladrão. Saiu para o pátio. Atirou os lençóis sujos para um tanque de cimento que encheu de água. Quando regressou ao quarto, ele estava a dormir. Wei foi
a casa de banho e lavou-se debaixo do chuveiro. Mas por muita água que deixasse correr sobre o seu corpo, continuava a sentir-se suja e humilhada. Regressou ao quarto
depois de vestir um roupão do hotel. Pegou numa almofada da cama, pousou-a no chão, onde se deitou, e rezou intensamente para que a morte a acolhesse nos seus braços.
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Passaram seis meses. Wei estava no quinto mês de gravidez e todas as noites o marido a violava. Nos seus braços, Wei era uma boneca de trapo. Não falava e não se
queixava, já não sentia nada. - Estou doido por ti - babujava ele, enquanto se encarniçava sobre o seu corpo. De dia era a criada da família, que a atormentava de
mil e uma maneiras, de noite era a vítima inerte de um marido que tinha feito da maldade gratuita uma razão de vida. Batia-lhe por causa do seu silêncio obstinado.
Wei tinha deixado de falar desde o dia do casamento e, por muito que ele lhe batesse selvaticamente, ordenando-lhe que falasse, ela continuava calada. Era suficientemente
esperto para lhe dar murros no corpo, mas não no rosto, onde os outros poderiam ver os sinais da sua violência. Uma vez por mês acompanhava-a a cumprimentar os pais.
Antes exigia que ela fosse ao cabeleireiro pôr-se bonita e mandava-a vestir roupas ocidentais de marca. Wei não falava sequer com eles, que a observavam ansiosos,
porque tinham intuído a sua infelicidade e se sentiam culpados por isso.
Uma vez foi visitar a mãe sem o marido. Ao levantar um braço, a manga escorregou e a mãe viu um grande hematoma. Num impulso, estendeu uma mão e afastou-lhe o colarinho
da blusa. Viu
o resto.
Em casa dos Tang, as brigas verbais faziam parte do quotidiano, mas o marido nunca tinha levantado uma mão nem para ela nem para os filhos, mesmo quando eram pequenos
e faziam asneiras.
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Horrorizada, a mãe perguntou-lhe:
- Porque não nos disseste que ele te bate?
- Porque ele pode fazer de mim aquilo que quer. Até o meu pai fez de mim aquilo que quis. Obrigou-me a casar com ele - respondeu Wei. Viu que os olhos da mãe se
enchiam de lágrimas.
- Mesmo agora que estás grávida? - Wei não respondeu. Regressou a casa e retomou o seu lugar ao lado do marido, silenciosa e impenetrável como sempre. Por muito
que tivesse erguido uma barreira entre ela e a realidade, para evitar pensar e sofrer, e essa exclusão do seu terrível quotidiano a impedisse de experimentar emoções,
o olhar dilacerado da mãe tinha aberto uma nesga de luz sobre a sua condição de mulher de um carrasco feroz. Uns dias depois, o marido regressou furioso do trabalho.
Arrastou-a até ao quarto, violou-a e depois encheu-a de bofetadas, gritando:
- Que histórias é que foste contar ao teu pai? Puta! Ela não percebia, porque não tinha contado nada. Não sabia que o pai tinha irrompido no gabinete do marido,
que tinha atirado com toda a força a sua farda de trabalho para cima da secretária e que lhe tinha dito:
- A partir deste momento despeço-me, e o senhor chefe do pessoal vai parar imediatamente de bater na minha filha. Se não parar, eu denuncio-o às autoridades. O Sr.
Wang Chen sabia que aquela ameaça não passaria disso, porque ele estava atado com fio duplo à polícia, com quem trocava favores ilícitos. A ira daquele fedorento
cortador de legumes nem de leve o tocou. Mas a insolência tinha de ser punida.
- Sou eu que te despeço, velho estúpido. A tua filha é minha mulher e aquilo que eu lhe faço ou deixo de fazer não te diz respeito. Fora daqui! - berrou-lhe. Agora
o silêncio obstinado da mulher desesperava-o.
- Puta, responde! - ordenou-lhe, sem parar de a esbofetear. E Wei respondeu. Cuspiu-lhe na face. Para o honorável senhor chefe do pessoal aquilo foi um ultraje inaceitável.
Enfiou-lhe um pontapé no ventre. Wei caiu ao chão, dilacerada por uma dor lancinante, e perdeu os sentidos.
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Ele apercebeu-se de que a mulher estava a perder sangue. Então chamou a mãe.
- Está com uma hemorragia - disse a velha.
- O que é que se faz? - perguntou o filho.
- Pode morrer se sangrar muito - replicou ela, preocupada. Depois da afronta que recebera do sogro, pouco lhe importava que Wei morresse, mas pensou nas consequências.
Apesar de sentir as costas protegidas, era sempre possível que fosse aberto um inquérito e aquilo seria uma mancha na sua carreira.
- Ajuda-me a metê-la no carro. Preciso de a levar ao hospital disse à mãe.
- E o que é que vais contar aos médicos?
- Eu invento qualquer coisa - respondeu. Entretanto Wei tinha recuperado os sentidos e sofria em silêncio.
Quando a instalaram numa maca e a levaram para a sala de operações, tinha já perdido muito sangue e desmaiou outra vez. Enquanto a operavam e lhe davam uma transfusão,
os médicos viram a ruína daquele jovem corpo de mulher torturada. Também o viu a instrumentista, que era vizinha dos Tang e conhecia a família. O Sr. Wang Chen tinha
dito que a mulher tinha apanhado um coice de um cavalo, mas a mentira era evidente. A médica interrogou-se se os Tang saberiam a verdade. Quando, horas mais tarde,
a doente saiu da sala de operações, viu o marido de Wei na companhia de um comissário politico e pensou que ele não tinha perdido tempo a envolver no processo os
seus amigos cúmplices. Isso não a impediu de levar a cabo o seu propósito. Telefonou família Tang, falou com o pai de Wei e disse-lhe tudo. Explicou-lhe também que
a filha, que estava a lutar pela vida, tinha à frente dela uma convalescença longuíssima. Se sobrevivesse, não ia estar em condições de sair do hospital antes de
três semanas.
- É o tempo de que eu preciso - respondeu o Sr. Tang, sem fornecer mais explicações. Todos os dias, Wei recebia a visita dos pais, do irmão que trabalhava no aeroporto
e da cunhada, da irmã que tinha casado com
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o produtor de flores e do cunhado. Tinha sabido da perda do bebé que esperava e, apesar de falar pouco e não contar nada, tinha comentado: "Deus foi misericordioso.
Salvou-o". À medida que recuperava as forças, que as feridas fechavam e os hematomas desapareciam, Wei recuperava também o sentido da realidade que tinha apagado
durante tanto tempo. O médico que a operou disse-lhe que, apesar de ter tentado fazer um bom trabalho, a probabilidade de conseguir ter outro filho era remota. Ela
respondeu:
- Gostava tanto de recuperar o meu piano. - Ele não entendeu. O Sr. Wang Chen ia visitá-la de vez em quando, à noite. Não sabia das visitas dos pais de Wei. E uma
vez disse-lhe:
- Arriscaste-te a morrer. Espero que te tenha servido de lição. Nem o hospital nem os Tang tinham feito nenhuma denúncia. Sabiam perfeitamente que seria inútil.
Uma manhã chegaram os pais. Levaram-lhe roupa e entregaram-lhe o envelope com dinheiro que Wei tinha recebido da Sra. Harrington. O pai disse-lhe:
- Arranja-te depressa, vamos levar-te ao aeroporto. O teu irmão Lan está A tua espera em Nova Iorque.
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Wei estava livre. Os médicos do hospital ajudaram à fuga. A família Tang fez o resto. A rede apertada de parentes e amigos arranjou o passaporte, os documentos para
a viagem e tudo o que era preciso para o desembarque nos Estados Unidos. Em três semanas de hospital, Wei tinha-se curado fisicamente, mas não psicologicamente.
De início abandonou-se ao choro, devido, segundo diziam os médicos, à perturbação hormonal causada pela interrupção da gravidez. Mas ela sabia que aqueles prantos
torrenciais, que duravam horas, marcavam o regresso à realidade: antes tinha morrido, agora voltava a viver. No meio de um sono profundo acordava a tremer, dominada
pelo medo de apanhar uma tareia, e olhava com terror para a porta do quarto à espera de ver aparecer o marido com o seu nauseabundo hálito a alho. Depois apercebia-se
de que estava num quarto de hospital, que havia outras mulheres nas camas ao lado da sua, que estava numa zona inviolável. A medida que recuperava as forças, o marido
mostrava-se cada vez mais satisfeito e levava-lhe flores e doces para impressionar as outras doentes e mostrar como era generoso e afetuoso.
- Põe-te boa depressa - dizia-lhe em voz alta, para toda a gente ouvir. - Os teus filhos estão à tua espera - atribuindo-lhe assim a maternidade daquele bando selvagem
de miúdos pérfidos nascidos da segunda mulher defunta. Uma tarde apareceu a rapariga que Wei tinha encontrado enroscada na cama na primeira noite de casada.
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Estava bem vestida, maquilhada e perfumada. Ofereceu-lhe um ramo de orquídeas. Wei olhou para ela com desconfiança. Então a jovem sorriu-lhe e disse-lhe num tom
baixo:
- Podes levantar-te? Vamos ao corredor conversar.
- Estás diferente - disse Wei, enquanto a seguia para fora do quarto.
- Pois estou. Agora trabalho num sítio perto do aeroporto. Faço companhia a clientes sós. Percebeste? Wei percebeu.
- Porque é que estás aqui? - perguntou-lhe.
- Para te agradecer por me teres libertado de um pesadelo. Se ele não tivesse casado contigo, eu já estava morta de cansaço e maus tratos.
- Não acredito que o trabalho nesse tal sítio seja muito agradável - objetou ela.
- É um paraíso, acredita. E de qualquer modo faço isto para juntar dinheiro. Quero regressar a minha casa e voltar a trabalhar nos campos com a minha família, a
quem o Sr. Wang Chen enganou, quando me levou, dizendo que a mulher estava doente e que precisava de ajuda. A pobrezinha ainda não estava morta e ele já me tinha
violado. O resto não preciso de te contar. Toda a gente sabe o que ele te fez, e eu também soube. Mas se ele não tivesse casado contigo, provavelmente a esta hora
eu já estaria morta - contou-lhe. Foi-se embora, desejando-lhe boa sorte. Agora Wei preparava-se para ir ao encontro de um novo destino. Sentada no carro entre o
pai e a mãe, a caminho do aeroporto, recordou aquela visita quando passaram junto ao estabelecimento noturno onde trabalhava a rapariga. Não disse nada. Tratou de
confortar o pai, que não parava de lhe pedir perdão por lhe ter imposto uma situação tão miserável.
- Isto é uma culpa que eu vou levar comigo para o túmulo disse-lhe o velho Tang.
- Deixa de te censurar. Já está tudo acabado - disse a mulher.
- Pai, eu perdoei-te. Agora não sei se vou ter um futuro aceitável, mas sei que nunca mais vais intervir nas minhas escolhas disse Wei.
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E enquanto dizia aquilo apercebeu-se de que não tinha nenhuma possibilidade de escolha. Ia para a América com medo de ser localizada pelo marido, que não ia sofrer
impunemente aquela desfeita, que provavelmente se ia vingar no pai e que acabaria por a descobrir onde quer que fosse para a castigar à sua maneira. O irmão estava
à espera dela na porta de embarque e Wei confessou-lhe os seus receios. - Não precisas de ter medo dele - garantiu-lhe. - Eu sei o que estou a dizer. Viste os teus
documentos? Tu nunca foste casada. Agora és uma estudante em viagem de estudo. Era aquilo que dizia nos documentos e no passaporte. Wei não sabia como o seu clã
tinha conseguido levar a cabo aquela tarefa, mas estava aterrorizada e na sua vida futura excluiria para sempre a presença de um homem ao seu lado. Quando desembarcou
em Nova Iorque, o outro irmão, Lan, e a cunhada, Ichi, disseram-lhe que ela tinha ali caído como um dom do céu. Lan trabalhava na garagem do Marriott Marquis, Ichi
geria o negócio das porcelanas chinesas que pertencia a família. Tinham quatro filhos a precisar dos cuidados de uma tia. - Não precisas de te preocupar com o futuro.
Para nós não és um peso, mas a salvação - garantiu a cunhada. A sua viagem ao inferno tinha realmente terminado, apesar de ela ainda não acreditar nisso. A família
de Lan era barulhenta e alegre. Os quatro filhos, três raparigas e um rapaz, receberam-na com a curiosidade de todas as crianças ávidas de novidade. Eram chineses,
mas comportavam-se como americanos, não conheciam a sua lingua materna, e a tia vinda daquele lugar distante e um pouco misterioso era como um petisco que eles queriam
devorar.
A casa deles ficava em Brooklyn, numa rua tranquila ladeada de pequenas moradias de dois andares construídas nos primeiros decénios do século xx. Parecia, como na
China, que toda a gente se conhecia e em poucos dias Wei adaptou-se aquela nova realidade. Começou a tratar quase a tempo inteiro da casa e das crianças, mas desta
vez havia muita simpatia e alegria à volta dela. De manhã
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tomavam o pequeno-almoço todos juntos. Depois Lan seguia para Manhattan, Ichi ia ajudar os pais na loja e Wei levava a escola as duas sobrinhas mais velhas; em seguida
acompanhava os mais pequenos a brincar no parque, fazia as compras, regressava a casa e cozinhava. De tarde, entretinha-se a contar as crianças antigas histórias
chinesas e acabava por adormecer com eles no sofa a ver televisão. Quando saía sozinha ia à loja de instrumentos musicais onde estava exposto um piano em segunda
mão que ela gostaria muito de comprar. Guardava aquele desejo para si, enquanto olhava em volta, nos vários aposentos da casa, a pensar onde poderia colocá-lo sem
parecer invasiva. Mas por muito que examinasse, elaborasse deslocações de móveis, estudasse a melhor maneira de fazer o pedido, apercebia-se de que aquele instrumento
enorme seria realmente demasiado. Ao fim de algumas semanas começava a sentir-se abafada naquela casa e, uma vez que tinha consigo o dinheiro necessário, refletia
sobre a possibilidade de alugar um pequeno apartamento onde colocar o piano. No entanto, o medo que sentia ainda do marido opunha-se a este desejo. Tinha experimentado
a sua crueldade, sabia que tinha um braço comprido que podia chegar longe. O temível Sr. Wang Chen surgia ainda nos seus pesadelos noturnos, que se traduziam em
sonhos agitados, ainda que, vivendo naquela casa, tivesse a certeza de estar protegida pela família do irmão. Quase como se adivinhasse os seus pensamentos, uma
noite, quando as crianças estavam já a dormir e Ichi acabava de arrumar a cozinha, Lan disse-lhe:
- Não te sentes cansada de fazer de tia? Não sentes necessidade de ter uma casa só para ti? Era evidente que já tinha abordado o assunto com a mulher.
- Gostava de ter um apartamento pequenino onde colocar um piano, porque tenho muita vontade de voltar a tocar. Mas também preciso de arranjar trabalho para me poder
sustentar. Só que... Deteve-se.
- Só que? - perguntou ele.
- Tenho medo de estar sozinha.
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- Ainda te lembras do Sr. Wang Chen? Ela assentiu.
- Então vou ter de te dizer. O senhor Wang Chen deixou de pensar em ti no dia a seguir à tua chegada a Nova Iorque.
- E como é que tu sabes?
- Morreu. No escritório dele, no hotel.
- Como é que morreu? - perguntou, incrédula.
- Com uma corda no pescoço. Os jornais disseram que se suicidou pela vergonha de ter sido apanhado a roubar dinheiro no cofre do hotel. Wei respirou fundo, e depois
deixou-se cair na poltrona e desfez-se em lágrimas. Era um pranto libertador. Não acreditou nem por um instante na versão do suicídio. A sua gente, por muito branda
e submissa que fosse, tinha-lhe feito justiça. Naquela noite Wei não teve pesadelos e dormiu finalmente um sono tranquilo.
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6
Chegou mais um verão, explodiu, apagou-se nas cores do outono e o inverno regressou. O segundo inverno americano de Wei. Agora vivia num pequeno apartamento, não
muito longe da casa do irmão, que dividia com Julia, uma rapariga americana que vinha do Kansas, queria ser atriz e estudava teatro em Nova Iorque. Wei tinha um
piano que nunca mais ninguém lhe poderia tirar. Tinha um emprego e um Green Card. O seu corpo tinha desabrochado como uma flor exótica. O aspeto era o de uma bonita
rapariga asiática de rosto sereno. Guardava bem escondida, nas pregas da alma, a violência sofrida. Em suma, tinha encontrado um equilíbrio e estava determinada
a conservá-lo para sempre. Porém, uma noite de fins de janeiro, alguma coisa mudou na sua vida: conheceu Edoardo Sogliano. Wei tocava piano num dos bares do Marriottt
Marquis, das cinco da tarde As dez da noite. Começava a tocar quando aquele espaço era frequentado pelas senhoras que faziam uma pausa entre as compras e executava
trechos clássicos de música ligeira dos anos 50. Prosseguia com George Gershwin, Cole Porter, Irving Berlin e Leonard Bernstein durante a hora do aperitivo. Encerrava
com swing e os trechos célebres de Duke Ellington qudando os clientes tinham acabado de jantar e relaxavam com um whisky. À noite, os clientes eram essencialmente
homens de negócios, comerciantes e casais já não muito jovens em viagens de lazer. --
4 Visto de imigração permanente. (N. da T)
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O salário não era fabuloso, mas recebia gorjetas por vezes muito generosas. Acontecia às vezes algum hóspede tentar uma abordagem mais íntima do que o banal pedido
de um trecho musical. Ela demarcava-se com algumas palavras delicadas e um sorriso gelado. A presença no hotel do seu irmão Lan dava-lhe uma sensação de segurança.
Por vezes, à noite, depois das dez, os dois irmãos regressavam juntos a casa. Então parava em casa dele para desejar uma boa noite aos sobrinhos e para dar dois
dedos de conversa com Ichi. Com aquela família, que a tinha acolhido e sustentado durante meses, Wei sentia-se protegida. Ao domingo almoçava com eles e, a seguir,
ligava-se via internet à China, para que os seus familiares constatassem que se encontrava bem e que estava serena depois daquele longo parêntesis de horrores que
sofrera e pelos quais os Tang continuavam a sentir-se responsáveis. Com a passagem do tempo, Wei tornava-se cada vez melhor ao piano, até porque conseguia exprimir
plenamente os seus sentimentos ao interpretar os trechos dos autores de que gostava, de tal forma que chegava muitas vezes a comover quem a escutava. Uma noite,
enquanto o seu toque macio difundia como uma carícia as notas melancólicas de Rhapsody in Blue, ergueu os olhos do teclado e encontrou o olhar um pouco triste de
um homem que se parecia com Robert Redford, um ator que ela, amante do cinema americano, adorava. Estava sozinho, sentado a uma mesa à direita do piano, tinha na
mão um copo de whisky e ostentava um ar cansado. Ficou impressionada com a sua beleza e a marca europeia de um homem de classe. Pensou que fosse inglês. Ele sorriu-lhe
e ela retribuiu o sorriso. Quando acabou de tocar, ele foi até junto dela.
- És fantástica - disse-lhe.
- Obrigada - respondeu ela, baixando os olhos. Então ele tirou de uma jarra que estava pousada em cima da mesa uma pequena rosa branca e pousou-a sobre as teclas
do piano.
- Boa noite - disse-lhe. - Chamo-me Edoardo. E eu Wei. Boa noite para si também.
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Tocou as primeiras notas de uma célebre canção, Smoke gets in your eyes, enquanto ele se dirigia à saída do bar. Ela sorriu para si mesma, considerando que quase
sempre os homens sozinhos deixavam boas gorjetas, enquanto aquele lhe tinha deixado uma flor emprestada e o tinha feito com uma grande elegância, como se lhe tivesse
oferecido uma gargantilha de diamantes. Naquela noite regressou a casa com Lan e ficou a dormir em casa do irmão, porque tinha prometido a Ichi que a ajudava a fazer
o almoço de domingo, para o qual tinham sido convidados alguns amigos e parentes. Entre os convidados, também daquela vez não faltou o compatriota de turno, solteiro
e à procura de mulher. Os seus parentes, de facto, não aceitavam a ideia de que Wei quisesse renunciar a constituir uma família e, no último ano, tinham-lhe apresentado,
inutilmente, pelo menos seis aspirantes a noivos, todos dotados de boas referências. Agora era a vez de um tal Huxian, dono de uma próspera empresa de limpeza, que
se apresentou com doces, flores e vinho californiano. Era um rapaz agradável e espirituoso, que falou da sua boa situação económica e dos projetos de um alargamento
da atividade. Também com este, Wei foi simpática mas gélida. Lan e Ichi deram mais um suspiro resignado, porque não podiam imaginar até que ponto Wei se sentia nauseada
com a ideia de dividir a cama com um homem. Ao jovem que tinha ã sua frente, Wei sobrepunha a figura do defunto Sr. Wang Chen, sentia o seu hálito a alho e estremecia
de horror perante a recordação das violações sofridas, das tareias raivosas e dos insultos ferozes. Quando os convidados se foram embora, e ela se preparava para
regressar a Manhattan para trabalhar, disse à cunhada, que resmungava censuras: - É preciso que tu e o meu irmão se conformem. Eu já não tenho qualquer desejo de
arranjar um marido. Naquela noite, depois de ter tocado, regressaria a Brooklyn sozinha, porque Lan estava de folga. Faltavam alguns minutos para as dez. Havia poucos
clientes no bar. Wei bebeu um gole de sumo de fruta e piscou o olho a Henry, o pianista que ia ocupar o seu lugar
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no teclado e se exibiria até às duas da manhã. Ela tocou as primeiras notas de um trecho de Cole Porter e o colega sentou-se no banco ao seu lado e tocou com ela.
Terminaram com um aplauso dos clientes. Wei levantou-se e atravessou o bar para ir mudar de roupa. A entrada encontrou Edoardo parado à frente dela.
- Olá - disse-lhe. Pareceu-lhe rever um velho amigo e retribuiu o cumprimento.
- Já jantaste? - perguntou ele.
- Eu como sempre em casa - respondeu.
- Então eu acompanho-te - decidiu. A rapariga olhou para ele, perplexa, ao mesmo tempo que lia na expressão sofrida daquele homem a sua própria melancolia.
- Está bem. Mas antes tenho de me mudar. Encontramo-nos no hall - replicou. Saíram para Times Square e dirigiram-se a pé à estação do metropolitano da Quinta Avenida.
O frio fustigava-lhes o rosto com mil e uma agulhas de gelo e as palavras transformavam-se em pequenas nuvens de vapor que se esfumavam no escuro da noite. Quando
voltaram à superfície, em Brooklyn, entraram na rua ladeada de pequenas moradias de dois pisos.
- Pensei que morasses no bairro chinês - observou Edoardo.
- Aqui moram muitos italo-americanos e irlandeses. Aquela é a casa do meu irmão. Casou com uma chino-americana e os parentes da minha cunhada têm uma boa loja de
porcelanas naquela avenida ali ao fundo desta rua. Eu moro mais adiante - explicou Wei. A rua estava deserta, havia apenas um bêbedo que caminhava aos ziguezagues
a cantar uma antiga balada irlandesa. De uma janela iluminada chegaram as vozes de uma discussão feroz entre um homem e uma mulher. Os dois, de mãos enterradas nos
bolsos dos casacos, pescoço enfiado dentro das golas, membros rígidos de frio, pararam diante dos degraus de um velho edifício.
- Cheguei - anunciou Wei.
- Muito bem. Obrigado por me teres deixado acompanhar-te disse Edoardo.
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- Porque fizeste isto? - perguntou-lhe. - Não sei. Normalmente não vou levar a casa as raparigas de um piano-bar - respondeu ele. - E eu normalmente não aceito escolta
para regressar a casa - declarou, enquanto subia as escadas. - Boa noite, Wei - despediu-se Edoardo, ao mesmo tempo que ela enfiava a chave na fechadura. Wei abriu
a porta e voltou-se para observar aquele belo homem, um pouco triste, que continuava à espera que ela fechasse a porta. Então, num impulso, propôs-lhe: - Se ainda
não jantaste, posso dividir o meu jantar contigo.
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Edoardo subiu os degraus, observou-a intensamente durante um longo momento e depois disse:
- De que é que estás à espera para entrar em casa? Cá fora gela-se.
Wei avançou à frente dele pelas escadas. Quando entraram no pequeno apartamento foram acometidos por uma agradável lufada de calor.
Era uma casa mobilada com peças bastante desconchavadas e o chão de madeira gasta, papel de parede desbotado e janelas de guilhotina com estores esfarelados.
- A tua amiga não está cá? - perguntou Edoardo.
- Foi a casa dos pais passar o Natal e regressa amanhã. Tiraram os casacos e pousaram-nos numa cadeira. Wei foi à cozinha e ele foi atrás dela.
- Eu sou casado. Tenho uma família fantástica em Itália. Nunca procuro companhia. Esta noite estava com vontade de falar com alguém - confessou-lhe. Ela assentiu.
Ele estava dividido entre o desejo de fugir e a tentação de ficar.
- Eu tenho quase dezanove anos. Tinha um marido na China. Morreu. Agora vivo alegremente sozinha - explicou ela. Tirou do frigorífico um grande prato oval que parecia
a fotografia a cores de uma revista de cozinha.
- O que é isso? - perguntou, curioso.
- Arroz basmati com frango e amêndoas e um acompanhamento de tiras finas de legumes coloridos. O meu pai dizia que um
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cozinheiro só é realmente bom quando, ao ter de preparar um prato em dez minutos, gasta oito para cortar os legumes. Naquele armário há pratos e talheres. Tu pões
a mesa e eu faço o café - disse Wei. Sentaram-se à mesa da cozinha, um em frente ao outro. Começaram a jantar e depois tomaram café.
- Sinto-me bem contigo. Transmites-me uma sensação de conforto - confessou Edoardo.
- Nos teus olhos há tristeza - observou Wei.
- Também nos teus. Este teu viver "alegremente sozinha" leva-me a pensar que não tiveste um bom marido. Mas afinal com que idade te casaste?
- Obrigaram-me a casar quando eu tinha dezasseis anos e não foi um bom casamento. Mas não me apetece falar disso - rematou Wei. - Fala-me de ti. Ontem à noite estavas
com um ar cansado. Esta noite estás apenas triste.
- Ontem à noite tinha acabado de aterrar depois de um longo voo. Passo mais tempo em aviões do que em terra. Às vezes percebo a minha mulher, que nem sempre quer
vir comigo, sobretudo quando tem de aguentar longos percursos aéreos.
- Portanto, estás muitas vezes sozinho.
- Mais do que gostaria. Mas a mim também não me apetece falar disso. Estavam sentados ao lado da janela que enquadrava o céu.
- Olha para a lua, está maior e mais luminosa do que é costume. Quase me dá arrepios. Está tão próxima que podíamos acariciá-la. Faz-me lembrar um filme: O Feitiço
da Lua. Viste? É interpretado pela Cher, por quem a Julia, a amiga com quem vivo, é completamente doida, e fala de uma noite de lua como esta, que tem o poder de
enfeitiçar os homens e as mulheres.
- Eu não vou muito ao cinema - admitiu Edoardo.
- Eu sim, vou muitas vezes. Foi a Julia que me contagiou. Sabes, ela não se cansa de sonhar que um dia vai ser uma grande atriz. Mas por enquanto só conseguiu ser
protagonista do spot publicitário de um spray hidratante para os pés. De facto, só se veem os pés dela, macios e hidratados! - contou Wei, divertida.
- E tu, o que queres fazer quando fores grande? - perguntou-lhe.
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- Quando era pequena sonhava ser pianista de uma orquestra, mas as coisas correram de outra maneira. Para já considero-me cheia de sorte porque tenho um emprego
e posso tocar piano... daqui a algum tempo gostaria de pedir uma audição no conservatório para continuar a estudar música. E tu? Tinham acabado de jantar e passaram
para a sala de estar que, explicou Wei, era também o seu quarto. Bastava abrir o sofá para o transformar numa cama. Encostado a uma parede havia um piano vertical.
Edoardo sentou-se no banco giratório do piano e disse-lhe:
- Eu trabalho no mundo do coral. É uma profissão que herdei do meu pai, que o tinha herdado do avô, que por sua vez o tinha herdado do bisavô e por aí adiante. O
primeiro Sogliano de que temos notícia era um comerciante napolitano que vendia coral em bruto aos judeus de Livorno, em fins do século xviii. Originariamente éramos
judeus napolitanos, em eterno conflito entre a alma barulhenta, extrovertida e generosa da gente de Nápoles e a alma silenciosa, reservada e parcimoniosa do povo
judaico. Mas já nos primeiros decénios do século )(ix nos tínhamos tornado cristãos e tínhamos deixado Nápoles para passarmos a viver numa cidade vizinha, Torre
del Greco. É lá que eu vivo e trabalho. E tu, és budista? - perguntou Edoardo.
- Nós, os chineses das ilhas, praticamos o culto dos nossos antepassados e vivemos segundo as regras do mestre Confúcio, cujos ensinamentos conduzem todas as nossas
ações. As suas pérolas de sabedoria são transmitidas de pais para filhos. Agora vou preparar-te uma tisana com as nossas ervas. São cultivadas pelos meus pais, que
sempre foram camponeses. Vivem num bairro popular em Taipei, e o meu pai tem uma horta fora da cidade. Edoardo foi atrás dela até à cozinha.
- Então és de Taiwan - constatou Edoardo.
- Mas vivi durante quase oito anos em Hong Kong.
- Recentemente abri um escritório na Star Tower, em Hong Kong.
- Passas muito tempo na China?
- Não, não muito. Viajo muitas vezes por todo o mundo, mas a minha casa, a minha família e a minha empresa estão em Torre del Greco, em Itália.
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- Onde fica o Teatro alia Scala?
- Sim, mas isso é em Milão, no norte. Eu vivo no sul de Itália. Wei deitou várias ervas dentro de um bule. Misturou-as com Agua quente, filtrou-as e depois encheu
duas chávenas.
- Esta tisana vai ajudar-te a dormir bem e a ter sonhos bonitos disse, enquanto começava a saboreá-la.
- Também tenho de beber? - perguntou Edoardo, com um ar hesitante.
- Não, se és assim desconfiado. Não te estou a drogar para te assaltar - brincou Wei.
- Sou desconfiado, mas não pensei que me quisesses assaltar. Talvez quisesses aproveitar-te de mim de outras maneiras - insinuou, com um meio sorriso.
- Gostava de poder desejar uma coisas dessas. Mas agora preciso que vás embora, porque estou cansada e é quase meia-noite.
- E a Cinderela, que neste caso sou eu, tem de regressar a casa concluiu ele, enquanto enfiava o sobretudo. Já à porta, Edoardo estendeu uma mão para lhe fazer uma
carícia. Ela ficou hirta e recuou. Foi uma reação involuntária, até porque não precisava de se defender daquele homem, tão terno, que nunca seria capaz de a agredir.
- Desculpa - justificou-se -, o contacto com um homem é uma coisa que ainda me assusta. Ele não fez perguntas e começou a descer as escadas. Ela desceu atrás dele,
pousou-lhe uma mão no braço e murmurou:
- Podes dar-me um beijo, se quiseres. Ele sorriu e limitou-se a fazer-lhe uma festa. Depois foi-se embora. Wei entrou em casa e, da janela, viu-o afastar-se em direção
ao fundo da rua. Na manhã seguinte, quando abriu a porta para sair, encontrou
pousado no chão um bouquet de jasmins de Madagáscar brancos e perfumados, com um bilhete: "Dormi bem, tive sonhos bonitos. Obrigado. Edoardo".
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Ela enterrou o rosto no ramo de flores brancas para aspirar o seu perfume. Pensou que desde o momento em que saíra do pesadelo do seu casamento, Edoardo era o primeiro
homem que lhe transmitia uma profunda sensação de confiança, e perguntou a si mesma se voltaria a vê-lo naquela noite. Foi fazer umas compras e depois passou pela
loja de porcelanas para cumprimentar a cunhada. Ichi estava nas traseiras a abrir uma caixa de jarras acabada de chegar da China.
- Apareceste no momento certo. Vou já fazer o chá - disse-lhe Ichi. Juntou-se a elas a mãe de Ichi, enquanto o marido e um empregado atendiam os clientes.
- Os Jervolino trouxeram uma lista de casamento que é uma loucura. Estes italianos, quando se casam, não olham a despesas observou a senhora Dong.
- Hoje de manhã fui levar as crianças à escola, mas pareceu-me que o mais velho estava com um bocadinho de febre - disse Ichi.
- Onde puseste a lista dos preços dos bules? - perguntou o senhor Dong, à entrada do armazém.
- Mas não há maneira de eu poder tomar o meu chá em paz resmungou a senhora Dong.
- Hoje de manhã o meu marido começou aos gritos porque não encontrava o sabão da barba, e afinal estava com ele na mão - comentou Ichi. Assim que ficou sozinha com
a cunhada, perguntou-lhe: - O que foi que te aconteceu, Wei?
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- Porque perguntas?
- Pareces-me diferente do costume.
- Diferente, como? - Wei tinha sentido o coração acelerar
o ritmo e as faces tingirem-se de rosa, ao mesmo tempo que perguntava a si mesma se não seria o caso de falar a Ichi do homem que tinha conhecido.
- Pareces feliz.
- Nota-se assim tanto?
- Quero saber tudo. Wei não queria contar, mas deu por ela a dizer:
- Ontem à noite, um cliente do Marriott trouxe-me a casa e eu convidei-o a partilhar o meu jantar e... depois foi-se embora.
- Saltaste uma parte. O que aconteceu entre o fim do jantar e a saída de cena?
- Conversámos, só conversámos.
- Posso acreditar?
- Deves acreditar.
- Se foi só isto, porque é que ficaste corada? Wei saboreou o último gole de chá e depois disse:
- Porque pela primeira vez na minha vida estou a experimentar emoções que não imaginava que existissem. - Uma vez que já tinha deixado escapar aquelas confidências,
acrescentou: - Uma espécie de agradável vertigem entre o estômago e o cérebro. Por dentro sou só sorrisos.
- Então estás apaixonada! - exclamou a cunhada.
- Não me parece. Não sei. Nunca estive apaixonada, nem sequer quando era miúda. E de qualquer maneira ele deve ter mais de quarenta anos e é casado. É um italiano
que corre o mundo em negócios e que tem uma família fantástica. Não é aquele homem vulgar, seguro de si, pelo contrário, é um pouco triste. Daqui por uns dias vai-se
embora e eu nunca mais volto a vê-lo, mas ontem A noite fiquei A espera que me desse um beijo, antes de sair. Não o fez. A mim parece-me um milagre. Até ontem, em
cada homem que encontrava via um possível carrasco. Ao conversar com a cunhada, Wei percebeu que aquele encontro com Edoardo tinha sido como um bálsamo que, provavelmente,
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a tinha curado do medo dos homens. Passou o dia com Ichi e com os sobrinhos. Quando regressou a casa, assim que entrou no apartamento constatou que Julia tinha chegado.
Na entrada viu as malas dela abertas e na cozinha encontrou pratos sujos de comida. O frigorífico estava a abarrotar de nacos de vitela em vácuo e embalagens de
legumes. Julia dormia profundamente no seu quarto. Wei resignou-se a dar um mínimo de ordem as coisas. Depois foi até a sala, sentou-se no sofá e ficou ali algum
tempo a contemplar os jasmins de Madagáscar, que difundiam um perfume suave. Mais tarde enfiou-se debaixo do chuveiro, vestiu-se e preparou-se para ir trabalhar.
Era segunda-feira, o hotel tinha-se enchido de clientes e havia mais gente no bar do que era habitual. De vez em quando, Wei levantava os olhos da partitura e via
quem entrava e saía. Não havia sinais de Edoardo. As dez foi até ao balneário, mudou de roupa, vestiu o casaco e preparou-se para regressar a casa sozinha, porque
o irmão, naquela noite, acabava o turno a meia-noite. Chegou a estação do metropolitano, desceu as escadas e perdeu por um instante o comboio que ia para Brooklyn.
Àque la hora os transportes públicos eram menos frequentes e ia ter de esperar pelo menos um quarto de hora. Passou em revista os painéis publicitários, enquanto
uma nova vaga de pessoas ocupava o banco onde estava sentada. De repente pareceu-lhe sentir um perfume que já conhecia. Imobilizou-se, enquanto os seus sentidos
se aguçavam. O perfume tornou-se mais intenso e pareceu-lhe sentir, sobre o pescoço, uma respiração ligeira. Ao mesmo tempo que no túnel do metropolitano ressoava
o frémito cada vez mais marcado do comboio que se aproximava, um braço rodeou-lhe os ombros. O comboio parou e engoliu os passageiros que estavam a espera. Ela,
que não tinha dado um passo, voltou-se lentamente e viu Edoardo a sorrir-lhe. Olharam-se nos olhos, enquanto o comboio produzia o seu ruído metálico, diluindo-se
na escuridão. Ele inclinou-se sobre o rosto dela e beijou-a.
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Wei deitou-se na cama ao lado dele e apagou a luz. Então Edoardo encostou-se a ela e abraçou-a. Apertou-a contra ele e pouco depois adormeceu. Foi acordado pela
luz que entrava pelas janelas. Abriu os olhos e viu Wei.
- Bom dia - disse ela.
- Mas que horas são? - perguntou-lhe.
- Sete.
- Bom dia para ti também, minha chinesinha pequena. Anda cá. Abriu os braços e ela refugiou-se no seu peito. Ele cobriu-lhe o rosto de beijos e amaram-se com uma
ternura infinita. Wei descobriu como era bom fazer amor com um homem de quem gostava. Foi uma experiência nova e exaltante. Pediram para tomar o pequeno-almoço no
quarto e comeram com apetite. Wei estava consciente de que pouco tempo depois deixaria o quarto de Edoardo. Mas, entretanto, tinha vivido um momento mágico e nunca
mais ninguém poderia tirar-lho.
- Ainda vou ter de ficar mais três dias em Nova Iorque - disse-lhe Edoardo.
- Agradeço-te muito estes momentos que passei contigo - disse ela.
- Haverá mais até sexta-feira, se quiseres. Por isso vamos adiar a gratidão recíproca até ao momento de nos separarmos. Os períodos sombrios da vida parecem nunca
passar, enquanto
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os felizes se esfumam num relâmpago. Os três dias desvaneceram-se com a rapidez de três segundos. Nem por um instante Wei se iludiu quanto ao facto de Edoardo poder
ser o homem da sua vida, mas ficar-lhe-ia grata para sempre por a ter amado com tanta ternura e por a ter curado dos seus medos. Edoardo acompanhou-a a Brooklyn,
de onde seguiria até ao aeroporto. Antes de ela sair do carro, meteu-lhe na mão um pequeno estojo de joalheiro. Wei abriu-o. Dentro encontrou uns brincos de coral
em forma de flor com uma minúscula pérola no centro. Depois ajudou-a a sair do carro e foi com ela até à porta de casa.
- Obrigado, minha pequena chinesinha. Fui muito feliz contigo - sussurrou-lhe.
- Eu também - disse ela.
- Não sei se voltaremos a ver-nos, mas se precisares de ajuda, em qualquer momento, chama-me, porque eu virei - acrescentou, ao mesmo tempo que lhe entregava o seu
cartão de visita. Nos dias seguintes, Wei apreciou o quotidiano da sua existência muito mais do que era habitual, porque agora podia acreditar que, em qualquer parte,
estaria um homem terno e viril como Edoardo, que o destino a faria encontrar e que viria a ser seu marido. Contou aquela fantástica história que tinha vivido ao
irmão, à cunhada e à amiga com quem morava.
- Agora, por favor, parem de organizar almoços para me apresentarem candidatos ao papel de noivo. Quando chegar o momento, eu hei de encontrar o homem certo - garantiu.
Em meados de março teve uma notícia que a deixou gelada. Tinha ido fazer uns exames médicos para perceber por que razão tinha saltado dois ciclos menstruais. A sentença
da médica foi a seguinte:
- Sra. Tang, a senhora está grávida.
- Tem a certeza? - perguntou, aterrorizada.
- Tenho a certeza - respondeu a médica.
- Mas eu não posso ter filhos. Tiraram-me um ovário.
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- Mas continuou a ter menstruações todos os meses, o que significa que é fértil. Há algum problema com o pai? Podemos falar com ele, se quiser.
- É um estrangeiro. É casado e tem filhos. Regressou a Itália e não creio que volte a vê-lo - confessou.
- Está em condições de criar uma criança sem o apoio de um companheiro? - quis saber a médica. Wei levou algum tempo a refletir. Um filho complicava muito a sua
vida e obrigá-la-ia, dentro de alguns meses, a abandonar o trabalho. E, no entanto, a ideia de que uma vida crescia no seu ventre dava-lhe uma grande alegria. Por
um filho que lhe tinha sido negado, o destino oferecia-lhe outro. Deixaria o piano-bar e entraria com o pedido de uma audição no conservatório. Voltaria a estudar,
frequentaria a escola e ninguém ligaria muita importância ao seu ventre que ia crescendo. Esperou que Lan pudesse ajudá-la, mas ainda assim mandou um e-mail a Edoardo:
Diz-me se posso escrever-te sem que ninguém leia o teu correio.
Ele respondeu-lhe ao fim de uma hora. Querida Wei, estás bem? Tens algum problema? Este é o meu endereço pessoal, a que ninguém pode aceder para além de mim. Wei
mediu longamente as palavras a usar, porque não queria atribuir apenas a Edoardo a responsabilidade da sua gravidez, mas achava que era justo informá-lo de que esperava
um filho dele. Antes de mandar o e-mail quis que Ichi o lesse.
- Bem me parecia que aquela aventura não ia correr tão bem como tu dizias. Agora estás grávida! Quem vai tratar da criança? E estás preocupada em não pareceres uma
caçadora de homens ao informá-lo de que estás espera de um filho. Mas será que enlouqueceste? Nesta história ele teve a sua parte, tanto como tu. Portanto, ou o
chamas à pedra para que sustente a criatura, ou interrompes a gravidez - resmungou Ichi. Wei não estava à espera de tanto cinismo por parte da cunhada, que considerava
como uma irmã.
- Tu, que és mãe, propões-me que elimine o meu filho? - perguntou Wei, indignada. - Esperava que fosses ficar feliz por mim,
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e que o meu filho pudesse fazer parte da família; se não queres o meu filho, quer dizer que também não me queres a mim. Foi-se embora, batendo atrás de si a porta
da loja, regressou a casa, atirou-se para cima da cama e chorou. Agora estava só, desesperadamente só. Não ia contar nada, nem sequer a Edoardo, porque não queria
sofrer outra humilhação.
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- Vá a gente fiar-se nos parentes - lamentou Júlia, quando a surpreendeu lavada em lágrimas e Wei lhe contou a reação de Ichi.
- Na China temos o culto da família e apoiamo-nos uns aos outros, mesmo com os parentes mais afastados - explicou Wei.
- Pois é, mas aqui não estamos na China e a tua cunhada ocidentalizou-se depressa - constatou a amiga. - É verdade que te estás a meter numa grande trapalhada. Não
tens um dólar de lado e ainda vais ter que deixar de trabalhar. O teu belo conto de fadas concluiu-se com uns brincos e um filho que vai nascer daqui a sete meses.
- Exatamente - constatou Wei. Julia sentou-se ao lado dela no sofá e começou a afagar-lhe os cabelos.
- Ouve-me, porque tenho uma coisa para te dizer que tu vais gostar. Estou a chegar de um encontro com o meu agente. Assinei um contrato para mais dois spots televisivos
e, desta vez, vou aparecer na publicidade dos painéis de rua.
- Tu ou os teus pés? - perguntou Wei, limpando as lágrimas.
- Os meus pés, os meus preciosíssimos pezinhos, querida! E não é tudo. O Fred arranjou-me um casting para o papel da enfermeira lit de Stephanie no Beautiful. Não
sei se vou conseguir, porque vão ter de testar outras raparigas além de mim, e se me escolherem vou ter um contrato para vinte episódios! Não achas fantástico?
- É mesmo, eu vou torcer por ti - disse Wei com um sorriso.
- Por nós, minha querida. Porque finalmente vamos ter algum
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dinheiro, e então não vai haver problema, nem para ti, nem para a criança.
- És uma querida - disse ela, comovida, e abraçou-a. Em qualquer caso, escreveu num papel: "Estudante chinesa dá lições de piano a crianças e principiantes." Acrescentou
o número do telemóvel e o endereço de correio eletrónico, fez cinquenta foto-. cópias e distribuiu-as entre os comerciantes da zona, que a conheciam. Havia já muito
tempo que ensinava piano às filhas de Lan, de tal maneira que uma se tinha apaixonado pela música e queria frequentar o conservatório. Pensou fazer o mesmo com outras
crianças. Enquanto se preparava para ir trabalhar, recebeu uma chamada de Ichi que, lavada em lágrimas, lhe pediu desculpa por se ter portado mal com ela. A criança
de Wei seria também deles, disse-lhe. E fizeram as pazes. A noite, quando regressou a casa, antes de se deitar abriu o correio eletrónico à espera de encontrar algum
pedido de lições. Mas encontrou uma mensagem de Edoardo: Querida Wei, aqui são seis horas da manhã. Estou a caminho de Roma, onde vou apanhar um avião para Hong
Kong. Não voltaste a escrever-me. O que me querias dizer? Respondeu-lhe num impulso. Hoje de manhã estava feliz. Depois, a julgar pelas primeiras reações da minha
cunhada e da Júlia, não tenho bem a certeza de que aquilo que te vou dizer seja uma boa notícia. Estou a espera de um filho, meu e teu. Para mim é um milagre, porque
me tinham dito que não poderia engravidar. Quero dizer-te desde já que não pretendo envolver-te de modo nenhum nesta história, mas parece-me correto informar-te.
Na manhã seguinte encontrou, no seu correio eletrónico, três pedidos de informações sobre eventuais lições de música ao domicílio por parte de três famílias do bairro.
Mas nenhuma resposta de Edoardo. Aquele silêncio deixou-a triste. Talvez estivesse a ganhar tempo para absorver aquela novidade tão perturbadora. Wei passou uma
semana a marcar entrevistas com os pais de algumas crianças, a definir com a sua médica um programa a seguir
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durante a gravidez, a elaborar planos para o futuro próximo com 'chi e Lan e a partilhar o entusiasmo de Júlia, que tinha conseguido o papel de enfermeira na soap
opera mais popular da América. fot Entretanto continuava a tocar no Marriott e continuaria a fazê-lo até que a sua condição de mulher grávida se tornasse evidente.
Por vezes, enquanto tocava piano para os clientes do bar, os seus pensamentos voavam para outro lugar, para um mundo fantástico onde se via a si mesma com o seu
menino nos braços. Se fosse um rapaz chamar-lhe-ia Steve, se fosse uma menina, Carrie, como a amada Sra. Harrington. Onde teria ido parar aquele singular casal inglês
que, durante anos, a tinha criado com tanto amor, como se fosse uma filha. Nunca os esqueceria. Sem se dar conta, tinha já começado a dialogar com o bebé que crescia
dentro dela. Dizia-lhe para não se preocupar pelo facto de não ter um pai, porque ela havia de o amar duplamente. E depois havia o seu irmão Lan, que começava já
a gostar dele; tinha ido buscar ao sótão o berço que tinha sido dos filhos, e os brinquedos também. No fundo dos armários, a cunhada tinha descoberto botinhas e
várias roupas. Wei tocava, fantasiava e sorria. Quando entrou no terceiro mês de gravidez, recebeu um e-mail de Edoardo que dizia: Estou a chegar aí. Aquela notícia
preocupou-a.
- E se ele vier agora baralhar os meus planos? - perguntou a lchi.
- E se vier para te pedir que cases com ele? - atirou a cunhada.
- Ele já tem uma família e eu não vou permitir-lhe que estrague a vida por minha causa. Para além do mais, estou-lhe muito grata, mas não tenho a certeza de o amar.
- Se te anuncia que vem ter contigo, algum motivo deve ter comentou Ichi.
- Isso preocupa-me, mas não quero pensar no assunto - rematou ela. E fez bem, porque passaram várias semanas sem ele aparecer. Chegou de repente, quando ela já tinha
deixado de atuar no bar do Marriott e começara a dar lições de piano a duas meninas do
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bairro e a um reformado, um ex-agente da polícia que queria, naquela fase da vida, dar algum sentido aos seus dias a estudar música.
- As mulheres grávidas ficam sempre mais bonitas - disse Edoardo, quando Wei lhe abriu a porta de casa. Não estava à espera de o ver, ficou confusa e não soube responder.
- Eu sei que estamos em maio e que eu devia ter vindo há um mês, mas não era pior se me convidasses a entrar - continuou, a sorrir.
- Claro... entra. Estava a despedir-me de uma aluna - explicou, indicando a criança que tinha aparecido à porta da sala e que observava Edoardo com curiosidade.
- Mary Jane, veste a camisola e aperta-a bem. Por hoje a aula acaba aqui. Vemo-nos depois de amanhã - disse Wei.
- Porque não me avisaste da tua chegada? - perguntou-lhe quando ficaram a sós.
- Não tinha a certeza de conseguir incluir uma paragem em Nova Iorque na minha viagem de negócios.
- Senta-te e diz-me porque estás aqui. - Indicou-lhe o sofá.
- Para te ajudar - respondeu com simplicidade, e abraçou-a. Depois sentou-se ao lado dela. Estava mais bonito e mais jovem do que aquilo que Wei recordava.
- A mim e à criança não nos falta nada - garantiu-lhe. - Segundo os médicos que me operaram quando tinha dezasseis anos, a eventualidade de ter um filho era o mais
remota possível. Agora estou feliz por estar à espera de uma criança.
- E eu também estou - disse Edoardo.
- A sério?
- Não estaria aqui, se não estivesse.
- Não te quero complicar a vida - disse Wei, sorrindo. - Eu e a minha família já pensámos em tudo. Entretanto acabei o meu contrato com o Marriott. Quando o bebé
nascer, vou voltar a viver em casa do Lan, pelo menos durante os primeiros meses. O parto vai ser em finais de outubro e, até lá, vou continuar a dar aulas particulares
de música. Entretanto tive uma audição no conservatório
148
e aceitaram-me como aluna. Se tudo correr bem, quando a criança fizer dois anos eu vou ter um diploma e vou poder ensinar numa escola. Como vês, não preciso de ajuda
nenhuma. Desde que soube que estava grávida, sinto-me renascer. Sinto-me um vulcão de energia e fiz muitas mais coisas durante estes meses do que nos últimos anos.
Não quero nada de ti e, pela parte que me toca, a tua família nunca saberá nada sobre esta criança. - Agradeço-te por isso - disse Edoardo, segurando o rosto de
Wei entre as suas mãos e olhando-a com ternura. - De qualquer maneira, vou abrir uma conta em teu nome no teu banco. Todos os meses vais receber o necessário para
poderes viver desafogadamente, tu e a criança; mais tarde, eu encarrego-me dos estudos.
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TORRE DEL GRECO
1
Orsola não perdeu uma sílaba da longa história de Wei. Sentiu uma pena profunda pelos acontecimentos trágicos que tinham marcado a vida daquela mulher doce e corajosa.
O encontro com Edoardo tinha ocorrido dez anos antes e Orsola lembrava-se bem daquilo que tinha acontecido naquele período entre ela e o marido. Wei retomou o discurso:
- O resto, Sra. Sogliano, já conhece. O seu marido já tinha planeado o futuro do nosso filho. Num fundo gerido por uma instituição bancária depositou uma quantia
suficiente para lhe pagar os estudos: o colégio e a universidade a seguir, tendo deixado ainda um pequeno donativo em nome dele na Suíça.
- Explicou-lhe por que razão escolheu uma escola tão exclusiva? - perguntou Orsola, considerando que Edoardo sempre tinha querido que todos os seus filhos frequentassem
escolas públicas.
- O Sr. Sogliano levava muito a peito o destino da empresa e da família. Explicou-me que os filhos dispunham de um tecido de relações sociais consolidadas ao longo
do tempo, enquanto o Steve ia ter de o construir sozinho, e a melhor forma era que ele crescesse e estudasse com os filhos das pessoas influentes. Acho que pretendia
confiar ao nosso filho a gestão da empresa no Oriente. Mas não tenho a certeza, porque apenas comunicávamos raramente e por e-mail.
Aquele longo encontro deixou-a exausta. Orsola estava esgotada e queria voltar para casa.
153
No táxi que a levava de volta à via Melzo recordou a história de Edoardo com Wei, da qual, em parte, se sentia responsável. Quanto a Steve, talvez pudesse realmente
representar uma nova oportunidade para a empresa Sogliano, tal como o marido planeara para aquele menino que lhe tinha roubado o coração.
- Cá estás tu, finalmente - disse Damiana, que apareceu ao lado dela no momento em que estava a pagar o taxi.
- Estás a chegar da loja? - perguntou Orsola.
- Estou. E tu? Já almoçaste?
- Vou agora para casa comer uma sanduíche - respondeu rapidamente, porque não estava com vontade de se deixar envolver por um eventual convite da amiga. - Encontramo-nos
logo para jantar - acrescentou.
- Diz-me, pelo menos, como correram as coisas com a chinesa.
- Foi um encontro esclarecedor - respondeu, ao mesmo tempo que entrava no átrio do edifício. Damiana percebeu que Orsola não estava com vontade de falar e não insistiu.
Orsola fez um ovo estrelado e depois sentou-se no sofá da sala. Falar com a chinesa tinha-lhe feito bem, embora, enquanto Wei falava, se tivesse sentido dolorosamente
culpada porque ela também devia ter estado com Edoardo em Nova Iorque. Mas tinha sido um período muito difícil para ela e para o marido. Ligou o telemóvel e encontrou
uma série de chamadas. Tinha uma mensagem de voz de Giulietta, que lhe pedia autorização para dormir em casa de uma amiga, e outra de Gianni, que queria saber a
que horas chegava a Nápoles no dia seguinte para ir buscá-la à estação e levá-la para Torre. Não lhe apetecia falar com eles e respondeu-lhes com duas mensagens.
Uma para comunicar a Giulietta que a autorização estava concedida, outra para informar Gianni de que chegaria no dia seguinte, à uma e meia da tarde. O telemóvel
continuou a vibrar e respondeu à chamada de Emanuela, a mulher do notário Spinelli, que tinha regressado a casa da clínica. Depois das desculpas recíprocas por não
terem falado mais cedo, entregaram-se às respetivas mágoas e Orsola deu por si a dizer:
154
- Fui muito feliz, porque tive ao meu lado, durante trinta anos, um homem maravilhoso que, provavelmente, nem sempre consegui apreciar como merecia. O Edoardo faz-me
tanta falta que me sinto sufocar, como se me faltasse o ar. De repente estava com pressa de regressar a Torre, de deambular por aquela grande casa onde o marido
tinha nascido, onde tinha vivido e trabalhado, para tocar em todos os objetos que ele tinha tocado, e para estar perto dos filhos. Reservou pelo telemóvel um lugar
no comboio para Nápoles que partia dali a uma hora, fechou a casa e foi até à Estação Central. Chegou ao palácio Sogliano ãs dez e meia da noite. As luzes estavam
apagadas e reinava o silêncio naquele grande edifício. Só alguns gatos com cio, no jardim, erguiam ao céu os seus lamentos dilacerantes. Quantas vezes Edoardo teria
regressado a casa sozinho, como ela agora, e entrado naquele edifício silencioso? Teria dado uma volta pelas bancadas de trabalho, para verificar se tudo estava
em ordem, como ela estava a fazer agora? Teria apanhado do chão alguma lasca de coral, colocando-a numa caixinha e prometendo a si mesmo chamar a atenção do responsável
por aquele descuido? Orsola continuava a interrogar-se em relação à quantidade de pequenas e grandes coisas de Edoardo que ela sempre ignorara, porque não lhe pareciam
importantes e, afinal, eram parte integrante da personalidade do marido. Subiu ao primeiro andar e ligou o computador do escritório. Deu uma vista de olhos aos movimentos
de carga e descarga das mercadorias, leu os e-mails enviados e recebidos, verificou as informações relativas a despesas e a receitas, viu que Saverio tinha planeado
uma remessa para Taiwan na semana seguinte, enquanto Cristina tinha tomado nota de algumas ideias recentes do pai e as tinha posto na ordem do dia para a reunião
de segunda-feira. A ideia mais interessante era realizar um cigarro eletrónico em coral e malaquite. Tinha até desenhado alguns esboços e anotado os custos de projeto
e programação. Saiu do escritório que tinha sido de Edoardo e que agora passara a ser do filho, Saverio, como muitos anos atrás fora do avô, que tinha o mesmo nome.
155
Quanta criatividade e engenho tinham animado aqueles aposentos. Quanta história tinha passado através daqueles salões que ela agora percorria naquele silêncio noturno.
Ali tinham nascido os joalheiros de uma imperatriz, de algumas rainhas e das princesas da casa de Saboia. E também objetos de culto, como terços, ostensórios, crucifixos,
presépios em miniatura e ainda castiçais, jarras, agulheiros, ganchos e berços para os herdeiros ao trono de algumas famílias reinantes. Agora o país atravessava
um período de crise, mas quantas outras dificuldades tinham enfrentado os Sogliano ao longo de duzentos anos? Sempre tinham saído de cabeça erguida. Orsola ia fazer
todos os possíveis para superar a crise atual, com a ajuda dos filhos e os conselhos de Margherita. - Deus permita que ela viva ainda muito tempo - disse, enquanto
subia para os seus aposentos. Perguntou a si mesma se também o pequeno Steve teria um papel em tudo aquilo.
156
2
Tinha chegado ao segundo andar quando ouviu bater o portão da entrada e, logo a seguir, sentiu um ruído de passos no átrio. Orsola imobilizou-se e susteve a respiração,
porque aquela era a maneira de andar do marido.
- Quem é? - gritou, debruçando-se no corrimão. Então viu o filho Gianni, de vinte anos; ao lado dele apareceu Maria Sole De Magistris.
- Mãe! O que é que estás aqui a fazer? - perguntou o filho, enquanto começava a subir as escadas.
- Boa noite, Sra. Sogliano - exclamou Maria Sole, atrás de Gianni. Era a namorada, filha única de um armador que se encontrava em sérias dificuldades económicas
desde que os custos de transporte tinham caído e arrastado nesse desastre uma quantidade de pequenos aforristas de Torre que tinham investido na sua sociedade de
navegação.
- Gostava de saber o que é que tu andas a fazer ainda a pé a esta hora - replicou Orsola, ao mesmo tempo que começava a descer em direção aos dois jovens.
- Mãe, é sábado a noite - justificou-se o filho.
- E daí? - retorquiu, olhando-o com severidade. Depois voltou-se para a rapariga: - E tu, será que os teus pais sabem que tencionavas passar a noite em casa da família
Sogliano? Porque era isso que voces se preparavam para fazer. Maria Sole corou e Gianni ficou calado. Estavam no primeiro andar e Orsola indicou a porta de entrada
da cozinha.
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Entraram naquele aposento amplo, Orsola abriu o frigorífico, tirou a garrafa do leite e encheu um copo. Gianni era o mais frágil dos seus filhos, aparentemente o
mais submisso, mas na realidade o mais determinado a meter-se em confusões. Maria Sole era ainda menor e o pai aproveitaria sem hesitar a eventualidade de uma gravidez
da filha para descarregar sobre o responsável uma parte dos seus problemas económicos.
- Há quanto tempo duram estas noites em minha casa? - perguntou Orsola, enquanto se sentava à mesa da cozinha e convidava os dois jovens a fazerem a mesma coisa.
- Era suposto eu ir amanhã buscar-te a Nápoles - protestou Gianni, evitando responder.
- Mas afinal eu fiz-te uma surpresa, estou aqui e exijo uma resposta - replicou Orsola, severa.
- Esta ia ser a primeira vez - disse a rapariga, num sopro, quase a chorar. Orsola pensou que o instinto maternal a tinha guiado uma vez mais. Agora tinha ficado
ela sozinha a tomar conta dos filhos, não podendo mais contar com a presença de Edoardo, sobretudo A noite, quando se esvaziavam os laboratórios e ficava em casa
apenas um grupo reduzido de mulheres idosas: Titina e Rosária, a pobre Archetta e Margherita. Assim, os filhos sentiam-se livres de fazer tudo aquilo que queriam.
Se Saverio, Cristina e Paola, os mais velhos, eram totalmente responsáveis, Gianni e Giulietta ainda precisavam de ser acompanhados.
- Antes assim - rematou Orsola. Mandou Gianni levar imediatamente a casa Maria Sole e pedir desculpa aos pais da rapariga por terem chegado tão tarde. Os De Magistris
tinham uma casa sobre o porto, não muito longe da residência do notário Spinelli. Fez um cálculo rápido do tempo e disse:
- Daqui a vinte minutos espero-te no meu quarto. Temos de conversar.
- Boa noite, minha senhora. E peço imensa desculpa - disse Maria Sole quando se preparava para sair.
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Orsola sorriu-lhe, levantou-se da mesa, foi até junto dela e abraçou-a.
- És uma boa menina, Maria Sole. Os teus pais já têm preocupações que cheguem. Evita arranjar-lhes mais ainda - recomendoulhe. Depois foi até à varanda e ficou a
olhar para eles enquanto se metiam no carro. Deu um longo suspiro, regressou à cozinha e depois subiu até ao quarto. Estava a despir-se quando Gianni lhe bateu à
porta. Enfiou rapidamente um roupão e foi abrir. Recebeu-o com um sorriso e abraçou-o.
- Gosto muito de ti, meu patife - disse-lhe.
- Percebes que me obrigaste a fazer uma figura medonha? disse Gianni, ao mesmo tempo que se libertava do abraço da mãe. Imagina a figura que tu ias fazer com os
De Magistris se não fosse eu a deter-te - replicou ela, enquanto se instalava na chaise-longue aos pés da cama e convidava o filho a sentar-se ao lado dela. Ele
fez-lhe a vontade, contrariado.
- Pois muito bem! É a treta do costume. Os meus irmãos são perfeitos e eu sou o patinho feio - resmungou.
- Mas quando o patinho feio cresce, transforma-se no mais belo dos cisnes. Era esta a história que eu te contava quando eras pequenino.
- Blá blá blá! - replicou, imitando-lhe o tom de voz. - A verdade é que não me apetece estudar e o negócio familiar não me apaixona. O Saverio e aquelas duas bruxas
da Cristina e da Paola desprezam-me e eu não sei o que fazer da minha vida. Quando éramos pequenos e fazíamos asneiras, o pai pousava imediatamente o seu olhar acusador
em cima de mim. Agora que ele já cá não está, és tu que me tratas como um bebé - desabafou.
- De todos os meus filhos, tu és o mais dotado de boas qualidades. Despacha-te a tirá-las cá para fora - disse, enquanto lhe passava os dedos entre os cabelos. Apetecia-lhe
abraçá-lo com força e enchê-lo de beijos, mas conteve-se.
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- É só conversa. Não consigo deixar de pensar na figura triste que me obrigaste a fazer esta noite com a minha namorada - queixou-se. Depois levantou-se e dirigiu-se
a porta.
- Lamento muito - desculpou-se Orsola.
- Eu ainda lamento mais - rebateu ele, ofendido, ao mesmo tempo que saía do quarto. A mãe escondeu o rosto entre as mãos, suspirou e amaldiçoou a sua impulsividade.
Talvez devesse ter adotado outra estratégia com Gianni e Maria Sole. Mas qual? Cumprimentá-los alegremente e perguntar-lhes se se preparavam para ir fazer palavras-cruzadas?
Afastar-se com Gianni para lhe explicar que estava a fazer um disparate, deixando a rapariga sozinha nas escadas? Lembrou-se da mãe. Diletta era tão impulsiva como
ela e sempre a abordara sem rodeios. Também ela, algumas vezes, se sentira ferida, mas acabou sempre por entender as suas razões. No entanto, Orsola nunca a odiara
por isso. Quando muito, a distância de tantos anos, ficara-lhe grata. O filho, pelo contrário, mostrava-se refratário a qualquer tipo de argumentação e, uma vez
que tinha uma autoestima muito baixa, causava-lhe algumas preocupações. Meteu-se na cama, fechou os olhos e, pensando no marido que já ali não estava, sussurrou:
- A falta que me fazes. Adormeceu, e quando acordou estava mais cansada do que quando se tinha deitado. Naquele período havia na sua vida demasiadas questões importantes
para enfrentar e Orsola duvidava da sua capacidade para conseguir fazer frente a todas elas. Voltaram-lhe a memória as palavras de monsenhor Bartiromo: "Se precisares
de um apoio espiritual, já sabes onde me encontrar; se precisares de um apoio prático, procura-o apenas no seio da tua família e entre os colaboradores do Edoardo.
Sentiu que tinha chegado o momento de pedir um conselho ao velho pároco. E não deixaria também de conversar com Onorato, a quem reconhecia uma fiabilidade semelhante
a de Edoardo. Naquele momento, quase como se tivesse sido evocado pelos seus pensamentos, o notário telefonou-lhe.
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- A tua sogra avisou-te de que temos de nos encontrar para ler o testamento de Edoardo? - perguntou-lhe, e acrescentou: - Tinha pensado ir eu a vossa casa, para
evitar aquela procissão dos Sogliano no meu escritório.
- Quando e a que horas? - perguntou-lhe. - Amanhã ao fim da tarde, às sete, depois de os trabalhadores e funcionários se terem ido embora - respondeu. Depois, quando
já ia despedir-se, perguntou: - Como correu essa tua pausa em Milão? - Cansativa. Muitas emoções de que te falarei quando estivermos a sós, porque tenho de tomar
algumas decisões muito importantes.
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3
No dia seguinte, para a leitura do testamento de Edoardo, Priscilla tinha também vindo de Caserta; às sete horas em ponto, a família estava sentada à mesa da sala
de reuniões à espera que Onorato Spinelli abrisse o envelope amarelo, fechado com lacre. Rosária tinha servido umas bebidas, após o que se retirara para a cozinha
a fim de ajudar Titina a tratar do jantar. Os filhos pareciam bastante nervosos. Giulietta, logo de manhã, tinha tentado escapar, declarando que não queria saber
de testamento nenhum: - Não me interessa que o pai me tenha deixado alguma coisa ou não. Devia era ter-se preocupado em deixar-se a ele mesmo aqui connosco.
Orsola conseguiu convencê-la a participar na reunião e agora estava sentada à mesa, em silêncio. A tia Archetta tinha-se perfumado e arranjado, afirmando que aquele
era um momento solene no qual queria participar o melhor possível. Margherita tinha perguntado a si mesma se a filha teria consciência precisa do que era um testamento,
embora a tivesse ajudado a pôr o vestido de renda azul, digno de uma receção de gala. A irmã, Priscilla, estava ali apenas pelo dever. Não esperava nada mais do
que aquilo que já tinha recebido. - Por mais voltas que se lhe dê, um testamento significa dinheiro, e eu não preciso de nada, graças a Deus. Quando já cá não estiver,
a joalharia passa para os meus sobrinhos Sogliano. Qual é a
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necessidade de eu estar presente? - disse. Mas, de qualquer forma, ali estava com os outros. No dia anterior, Gianni tinha confessado a avó:
- Se o pai me tiver deixado um dinheirinho, faço a mochila e vou-me embora. Quero dar a volta ao mundo para conseguir alguma distância desta família que me sufoca.
- Até podes ir para o fim do mundo, mas nunca te vais libertar do coral. É como uma doença hereditária que vai viver dentro de ti durante toda a vida - replicou
Margherita.
- Vamos ver. Eu quero ser um homem livre, como o avô sapateiro que nunca conheci. Ele era pobre mas feliz. O meu pai, pelo contrário, com tudo aquilo que possuía,
sempre levou uma vida de escravo. Escravo do coral. Por fim morreu de cansaço. Que sentido é que isto faz? Meu pobre neto! Tu não sabes o que é a pobreza. Aos vinte
anos continuas a viver sem que nada te falte, e se desprezas tudo isto não ofendes apenas a memória do teu pai, mas ofendes-me também a mim e a todos os Sogliano
que viveram antes de nós. O coral foi a sua grande aventura e deu um sentido profundo as suas vidas. O coral é sinónimo de preocupações, mas é também de beleza,
fantasia, arte. O coral não é uma coisa, é um sonho que vive no espírito e no coração. Espero bem que o teu pai te tenha deixado dinheiro, e que tu o gastes todo.
Depois vais entender o que significa viver sem um tostão e sem um sonho - comentou a avó. Saverio e as duas irmãs mais velhas, Paola e Cristina, não tinham feito
comentários, sabendo que respeitariam as decisões do pai, que sempre fora o seu ídolo. Orsola e a sogra estavam sentadas as duas cabeceiras da mesa. O notário estava
de um dos lados, entre as duas irmãs de Edoardo. Os cinco filhos estavam todos do lado oposto. Onorato Spinelli abriu o envelope, retirou algumas folhas escritas
à mão, afinou a voz e começou a ler.
Cheguei aos cinquenta anos e não sei quando se vai apagar a minha vida. Na eventualidade de que todos os membros da minha família me sobrevivam, e também para apoiar
a minha
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mulher, Orsola, sobre cujos ombros vai recair o peso da família e da empresa, depois de ter refletido durante muito tempo, determino o seguinte...
Nesse momento fez uma pausa, deixando vaguear o olhar por todos os presentes. Estava visivelmente comovido, de tal forma que assoou ruidosamente o nariz e depois
disse:
- Isto não é muito profissional, eu sei, mas é duro ler estas linhas. O Edoardo, para mim, era como um irmão, e vocês sabem isso muito bem. Bebeu um gole de chá
gelado. Através das portas envidraçadas da varanda comprida que dava para a via Umberto I, com o ruído do trânsito que se intensificava àquela hora de ponta do fim
da tarde, irrompiam os raios oblíquos do sol poente, que iam iluminar a grande tela que representava um porto napolitano do século xvni pendurada na parede em frente.
- Doem-me os olhos - disse Archetta, que tinha uma conjuntivite crónica e, quando estava mais tensa, lacrimejava mais do que o habitual.
- Fecha-os - murmurou a mãe.
- Não, agora quero jantar - declarou.
- Agora não se pode. Estamos aqui para ouvir as palavras do teu irmão - disse ainda Margherita.
- Eu tenho fome - insistiu. Archetta era assim, não aguentava a tensão e procurava uma escapatória. Margherita olhou para o notário, como que a pedir a sua intervenção.
- Está bem, Archetta. Vai comer - autorizou.
- Gianni, vai com a tia à cozinha - ordenou Margherita.
- Eu vou sozinha - resmungou Archetta, e saiu da sala. Onorato retomou a leitura.
A minha mulher herda integralmente todos os meus bens móveis e imóveis. Será ela, a seu tempo, a subdividi-los em partes iguais pelos nossos filhos. Desejo, a esse
propósito, que não nasçam controvérsias entre os irmãos. Quando morreu o meu avô
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Edoardo, os seus filhos chegaram a um acordo e ao meu pai, Saverio, couberam o palácio e a empresa. O mesmo deverá acontecer com os meus filhos. Tocará também a
Orsola a tarefa de tomar conta da minha irmã Archetta, que não possui nada, mas é como se possuísse tudo, no sentido em que não deverá nunca faltar-lhe o amor, os
bens essenciais e o respeito de que sempre gozou. A minha irmã Priscilla não tem problemas económicos, mas um dia também ela pode ficar só e precisar de ser tratada
e assistida. Os meus herdeiros deverão assumir o encargo de a receber na casa onde nasceu e viveu durante tantos anos. À minha mãe confio a tarefa de acompanhar,
enquanto lhe for possível, a minha Orsola, porque a sua sensatez sera uma grande ajuda para ela. Desejo que os meus filhos não contraiam nunca dívidas com ninguém,
especialmente com os bancos, para fazer frente a despesas extraordinárias. Na falta de liquidez deverão esperar melhores tempos. Os Sogliano sempre cumpriram esta
regra e nunca se arrependeram disso. Da mesma forma, desejo que ponham em campo a sua prudência ao conceder empréstimos. Se emprestarmos dinheiro a um amigo, mais
cedo ou mais tarde tornar-se-á um inimigo. Por isso é bom que aprendam a nunca revelar aos outros a consistência da sua fortuna, a manter uma aparência discreta,
a esconder sobretudo os sucessos comerciais e a nunca os ostentar, por razão alguma. Para qualquer problema financeiro ou legal, poderão confiar no notário Onorato
Spinelli e no advogado Antonio Scarpetta, que sempre realizaram um excelente trabalho. Aos meus filhos Saverio e Gianni deixo os meus relógios de pulso, cujo valor
comercial é quase idêntico ao dos botões de punho em diamantes e coral que destino as minhas filhas. Se algum deles resolver entrar em conflito com a mãe, vai ter
que se entender comigo, porque nunca lhe vou permitir que passe uma noite tranquila. A ela devo muito mais do que todos vocês possam imaginar. Foi uma companheira
preciosa, que sempre soube entender-me e amar-me, assim como a minha família de origem.
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O notário deteve-se mais uma vez, porque estavam todos a chorar e, apesar de ao longo dos anos ter lido muitas últimas vontades e assistido a todo o tipo de reações
- do choro sincero à discussão entre parentes com direito a facadas - a dor, o amor e a saudade que unia os herdeiros de Edoardo eram um facto raro até para ele.
- Devo dizer que o meu amigo deixou uma imensa herança de afetos - comentou, comovido.
- O que é que diz mais? - perguntou Gianni, com os olhos cheios de lágrimas.
- Há uma cláusula que estou à espera de ler - disse Onorato.
Querida família, amo-vos a todos. Mãe, irmãs, filhos e tu, minha Orsetta, nunca mais se vão livrar de mim, porque eu vou ter um lugar privilegiado no coração de
cada um de vós. A minha família e o coral foram sempre a razão da minha vida. Entrego nas vossas mãos um grande património, porque compreende os valores incomensuráveis
da honestidade, da beleza e da arte. Cultivem projetos ambiciosos e realizem-nos, respeitando quem está à vossa volta, vos ajuda e vos ama.
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4
Seguiu-se um longo momento de silêncio. O sol tinha-se posto já e levantara-se do mar uma brisa que enfunava as cortinas de tule branco das janelas. O notário levantou-se.
- Se não houver perguntas, deixo-vos, porque precisam agora de ficar sozinhos e refletir.
- Eu tenho uma pergunta - disse Archetta, que entrou na sala nesse momento. Tinha o batôn borratado, numa mão trazia uma fatia de pão trincada e na outra a bolsinha
de noite pendurada no braço.
- Diz lá - retorquiu o notário.
- O que é que o meu irmão me deixou? O notário olhou para a família e a família olhou para ele. Orsola, com a prontidão de espirito que os outros não tinham, sorriu-lhe,
foi ao encontro dela e respondeu:
- O Edoardo deixou-te o maior dos tesouros da família, uma coisa que desejas desde sempre e que nunca tiveste a coragem de pedir. Sabes de que é que estou a falar?
- Não!
- Faz um esforço de memória, tia querida. É o objeto que mais amas. Sei que não te lembras dele, mas eu sou a tua memória. Há trinta anos, quando entrei nesta família,
tu foste mostrar-me o vosso museu. E no meio das joias mais antigas e preciosas mostraste-me uma coisa e disseste-me: "Não sei o que era capaz de dar para poder
usar isto, mas nem se lhe pode tocar".
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- O diadema da Imperatriz! - exclamou Archetta, de olhos arregalados.
- O Edoardo deixou-o a ti e vais poder usá-lo sempre que o desejares - garantiu Orsola.
- Que grande presente! - exclamou Archetta, feliz, ao mesmo tempo que cobria o rosto para esconder a emoção. Aquele diadema de coral, pérolas e diamantes tinha sido
desenhado e realizado por um trisavô, Giuseppe Sogliano, fazia parte de um conjunto que incluía brincos, colar e pulseira e tinha sido imortalizado num célebre retrato
da imperatriz Maria Luísa de Áustria, ao tornar-se duquesa de Parma, que agora estava exposto no Louvre, em Paris. Em princípios do século xx o conjunto foi posto
a venda numa famosa casa leiloeira de Londres e o avô Edoardo Sogliano resgatou-o. Agora estava guardado no museu da família. Margherita, Priscila e os filhos não
ousaram sequer respirar, de tal forma ficaram perplexos com a iniciativa de Orsola: pretendera fazer feliz a tia Archetta, a qual não tinha qualquer sentido prático
e não conhecia o valor do dinheiro que, de resto, nunca tinha usado para nada.
- Não o quero pôr para sair de casa, porque ainda mo roubam. Mas quero usá-lo esta noite ao jantar - afirmou Archetta. Então Margherita explicou-lhe com ternura:
- Esta noite já foram ativados os sistemas de alarme e, até amanhã de manhã, não podemos ir buscar o teu diadema. Fica para amanhã à noite. Está bem?
- Está ótimo. Estou tão contente!
- Amanhã à noite vais estar lindíssima e vamos todos fazer-te uma festa - garantiu Margherita, grata a Orsola por ter oferecido filha aquele momento de felicidade.
A reunião acabou, os filhos retiraram-se para os seus quartos, Paola e Cristina ajudaram as velhas criadas a pôr a mesa para o jantar e Orsola desceu ao rés do chão
para acompanhar Onorato a porta.
- Como correram as tuas pequenas férias em Milão? - perguntou ele mais uma vez.
- Foram esclarecedoras, como já te disse.
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- Queres encontrar-te comigo amanhã?
- Primeiro preciso de ter uma conversa com monsenhor Bartiromo. E também gostava de ouvir o parecer da dona Margherita.
- Liga-me tu. Queria que soubesses que amanhã à noite temos uns amigos a jantar. Gostaríamos de te ter connosco também. De qualquer maneira, a Emanuela vai ligar-te
- disse ele, abraçando-a. Orsola subiu as escadas e Gianni foi ao encontro dela, estendendo-lhe o telefone portátil.
- É monsenhor Bartiromo, para ti - anunciou. Ela pegou no telefone e o filho inclinou-se sobre o seu rosto, deu-lhe um beijo leve na face e disse-lhe: - Gosto muito
de ti, mamã. Orsola sorriu-lhe e depois falou com o pároco, a quem pediu um encontro.
- Se quiseres, encontramo-nos esta noite As dez horas, em minha casa - propôs monsenhor Bartiromo.
- Lá estarei - prometeu, e entrou na sala de jantar. A família estava à espera dela. Sentou-se A mesa e olhou em volta. Estavam todos insolitamente silenciosos,
porque provavelmente cada um deles meditava sobre as palavras de Edoardo. Orsola observava de soslaio os rostos pensativos dos filhos. Saverio estava tranquilo.
Tinha como certo o seu papel de dirigente na empresa Sogliano. Há muito tempo, antes ainda de acabar o curso, estava sempre ao lado do pai, tanto no laboratório
como no exterior. Conhecia todos os mercados do coral, em bruto e trabalhado. Edoardo depositava nele toda a sua confiança, da mesma forma que apreciava a criatividade
de Cristina que, num minúsculo ramo de coral, ao girá-lo entre os dedos, vislumbrava o perfil de um objeto artístico. Paola, que tinha estudado oceanografia e era
uma especialista subaquática, levava a cabo pesquisas sobre o estado de saúde dos mares com outros jovens colegas americanos e japoneses. Partia com entusiasmo para
longas e trabalhosas expedições que a mantinham longe de casa durante meses. Orsola sabia que ela tinha uma relação com um colega americano que vivia em Los Angeles.
Um dia acabaria por casar com ele e assim se mudaria para o outro lado do oceano.
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Gianni e Giulietta eram dois pontos de interrogação. Tinham crescido, tal como os outros, nas salas do laboratório. Gianni, aos dois anos, tinha sido apanhado a
brincar na pedra de amolar com um pedacinho de coral do qual conseguiu fazer uma bolinha quase perfeita. Depois, lentamente, foi-se afastando do coral, manifestando
sinais de alguma aversão. Agora era claro que não sabia o que fazer do seu futuro. Discutia frequentemente com os irmãos mais velhos, acusando-os de enfrentarem
a vida com palas nos olhos, e formava cada vez mais um grupo à parte com Giulietta, que era muito frívola. Davam-se ambos ares de grandes especialistas de heavy
metal e não perdiam um concerto dos grupos musicais que Orsola carimbava como grosseiros e desprovidos de cultura. Ambos estudavam com escasso aproveitamento e os
irmãos mais velhos mantinham-nos à distância, definindo-os como mandriões. No entanto, Gianni era o seu menino. Orsola perdoava-lhe quase tudo e justificava-o com
a convicção de que era o mais genial dos seus filhos. Da mesma forma que a avó privilegiava Giulietta, porque era parecida com ela e, ao contrário do que fazia com
os outros netos, a gratificava com uma infinidade de pequenas atenções. Orsola deu um suspiro profundo e disse, dando voz às suas preocupações: - O facto de o pai
me ter confiado o papel de chefe da família não significa que eu tenha de me encarregar das vossas escolhas. Cada um de vós deve tornar-se responsável pela sua própria
vida, quer queiram quer não. - O que é que pretendes dar a entender com esse tiroteio? - comentou Gianni, empertigado, porque tinha percebido que aquelas palavras
se dirigiam sobretudo a ele. - Exatamente aquilo que disse. Não há significados encobertos. - Ora aí está, em todo o seu esplendor, a glacial senhora do norte -
resmungou Giulietta, pondo-se do lado do irmão. Era evidente que as emoções acumuladas durante a leitura do testamento estavam à beira de explodir. Orsola levantou-se
de repente, pousou o guardanapo na mesa e disse:
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- São quase dez horas. Eu tenho um encontro. Peço desculpa, mas preciso de sair. Encontramo-nos amanhã de manhã. Desceu as escadas a correr e dirigiu-se A basilica
de Santa Croce.
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Don Girolamo mandou-a entrar para o escritório do pároco, que estava sentado à secretária diante de um mar de papéis a abanar umas folhas enquanto proferia insultos
em direção a um homem engravatado que estava muito direito à frente dele.
- E tu chamas a isto orçamento? Eu chamo roubo! - gritou o monsenhor. Viu Orsola A porta e acalmou-se.
- Entra, filha. Senta-te - disse-lhe. Depois dirigiu-se novamente ao homem e concluiu: - Eu não tenho os dinheiros de Judas. Há de ser outro fornecedor, animado
do sacro temor de Deus, quem me vai vender os bancos. Contigo está o assunto encerrado. E agora vai-te embora, antes que eu te despache ao pontapé.
- Pode procurar os fornecedores todos que quiser, mas um preço como o meu ninguém lhe vai fazer. Com todo o respeito, o senhor é um velho louco e irascível - vociferou
o outro, enquanto se apressava a sair, perseguido pelas últimas palavras de don Bartiromo:
- Paroquianos, vil raça danada! Depois sorriu a Orsola com um ar malicioso e disse:
- Na verdade, eram os cortesãos do Rigoletto. Mas de qualquer maneira ele não sabe e há de regressar com um orçamento mais decente. O problema dos bancos novos para
a igreja arrastava-se há meses. A "vil raça danada" dos paroquianos já tinha angariado e entregado na igreja uma soma considerável, mas uma vez que conheciam a prodigalidade
do velho pároco temiam que o dinheiro
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acabasse em esmolas e que os bancos, velhos, remendados e já precários, ficassem como estavam.
- Aceitas um café? - perguntou-lhe. A ira de um momento antes tinha desaparecido. Não esperou pela resposta. Carregou num botão e, como se estivesse A espera atrás
da porta, apareceu Peppina, a empregada que o servia fielmente desde sempre, com duas chávenas de café fumegante. Seguiu-se um silêncio sublinhado pelo tilintar
das colheres
a mexer o açúcar. O monsenhor tomou o café devagar, à espera que Orsola lhe abrisse o coração. E ela, que estava ali para lhe falar do filho secreto do marido, disse
afinal:
- Hoje foi a leitura do testamento do meu marido.
- Testamento... ato por vezes revogável, com o qual alguém tem a ilusão de impor a sua vontade mesmo depois de morto - resmungou ele. Orsola, que não estava com
disposição para divagações, prosseguiu:
- Confiou-me a responsabilidade de toda a família.
- Que outra coisa havia de fazer? Primeiro eram dois, agora a obrigação é apenas tua.
- Temo dissabores futuros entre os meus filhos. São cinco e cada um deles, mais cedo ou mais tarde, vai reclamar a sua parte. O património vai ter de se desmembrar
e nem todos me parecem responsáveis. Está a ver, monsenhor, quando morreu o meu sogro e a dona Margherita ficou sozinha com duas filhas e o Edoardo, não houve problemas,
porque a Archetta é o que é, e a gestão da parte dela ficou sempre a cargo do meu marido. A Priscilla foi arrumada com a villa de Sorrento e a loja de Caserta. A
dona Margherita cobriu a diferença com uma transferência de dinheiro e o Edoardo sentiu-se livre para avançar com a empresa sem dar contas a ninguém. Eu, pelo contrário,
tenho cinco filhos que não podiam ser mais diferentes uns dos outros. Primeiro o Gianni, e agora a Giulietta estão impacientes e não querem saber do coral. Será
que eu vou poder
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dividir equitativamente, como pretende o meu marido, um património que devia permanecer íntegro? - Minha querida, isso são questões legais. Porque é que me estás
a falar disso? - Porque também há questões morais. Estava a pensar nisso esta noite, enquanto estava sentada à mesa e sentia serpentear, em silêncio, uma espécie
de tensão entre alguns dos meus filhos. Se dependesse de mim, deixava tudo ao Saverio, porque nas mãos dele a empresa vai continuar a prosperar, como aconteceu com
o pai. Mas e os outros? - O direito de primogenitura desapareceu há muitos séculos e não vais poder mandar os outros para o convento ou, como faziam os senhores
de outros tempos, para o Exército - comentou o padre. - É por isso que estou aqui. Honestamente, sei que o Saverio e a Cristina dão o seu contributo para os negócios
há anos. Dos outros três, a primeira está ocupada com os seus estudos pelo mundo fora e os dois últimos são uns mandriões. Mas, quando chegar o momento, vão exigir
que tudo seja dividido em partes iguais. Para ser sincera, monsenhor, eu gostava era de fugir e... - E deixar que se esganassem uns aos outros. Muito bem! - interrompeu
o pároco em tom de censura. Orsola calou-se e o padre continuou: - O teu marido não te teria deixado esta responsabilidade se não estivesse convencido de que serias
capaz de a gerir da melhor maneira possível. Não conheço a consistência do vosso património mas, por alto, posso dizer-te que nenhum dos teus filhos vai morrer à
fome. Educa-os de forma a olharem a realidade de frente. Expõe-lhes estas ideias que te atormentam, responsabiliza-os. A solução virá por si, porque vão ser eles
a dar-ta, aos poucos, com o passar do tempo. Preocupa-te apenas em assegurar que haja harmonia entre eles, agora e sempre. Orsola recordou as más disposições de
Gianni e Giulietta quando tinham pedido ao pai, apenas poucos meses antes da sua morte, uma viagem aos Estados Unidos, a Vermont, reclamando a mesma quantia que
Saverio ia gastar numas férias no Oriente. Edoardo zangou-se e não deu dinheiro a nenhum dos três.
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Orsola calou-se, pensativa, e finalmente abordou o assunto mais importante:
- Para além de tudo, ainda há mais um rapazinho. O sexto filho do meu marido - disse num sussurro.
- O chinesinho - disparou monsenhor Bartiromo.
- Já sabia? - perguntou Orsola, espantada.
- Há anos, desde que nasceu. Até hoje fui o único depositário deste segredo, que o Edoardo me confessou precisamente aqui, nesta sala. Agora ele já cá não está e
a verdade veio ao de cima. Como foi que soubeste?
- Da pior maneira. Mas isso agora não importa, apesar de eu esperar mais sinceridade da parte dele.
- Não quero armar-me em paladino da sua memória, mas ficas a saber que eu também tive a minha parte neste segredo. Talvez te tenhas esquecido, mas naquele período
tu andavas completamente intratável. Chegámos à conclusão, o Edoardo e eu, de que era melhor ficar calado.
- Mas depois? Por amor de Deus, o Edoardo teve dez anos para me pôr ao corrente da existência deste filho!
- Tinha medo de te perder. Será que devo ser eu a revelar-te o amor que ele sentia por ti? É verdade, o Edoardo não tinha assim muito bom feitio, era fechado, introvertido,
sabes isso melhor do que eu, mas amava-te e não te queria magoar.
- Eu sei, eu percebi. E já conheci o menino e a mãe. A chinesa é uma boa pessoa, tem a sua vida, a sua família, o seu trabalho. O rapazinho é fantástico. Talvez
não devesse tê-lo conhecido, porque vê-lo e apaixonar-me por ele foi uma e a mesma coisa. É tão parecido com o Edoardo. É orgulhoso, bem-educado e sedento de afeto.
Neste momento acho que o meu dever é fazer com que os meus filhos o aceitem, apesar de saber que não vão ficar contentes e que o vão sentir como um intruso.
- E que mais podiam fazer?
- Recebê-lo com alegria. Não é mais do que uma criança com uma parte do mesmo sangue deles. Mas os meus filhos estão fechados nos seus pequenos egoísmos. Para além
do mais, com que ideia vão ficar do próprio pai?
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- Isso depende de ti, da forma como lhes apresentares a notícia. A minha sugestão é que antes de lhes comunicares, deixes passar ainda algum tempo até que eles reencontrem
o seu equilíbrio depois do luto. Quando os vires mais serenos, então poderás revelar-lhes a existência do irmão secreto. Orsola achou que o padre tinha razão: precisava
de se manter calma e esperar que a família encontrasse um novo equilíbrio.
- Muito obrigada, monsenhor. Mais uma vez, os seus conselhos foram preciosos. Quando regressou a casa, Saverio estava à espera dela com uma expressão que não augurava
nada de bom.
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6
Estava na sala contígua ao seu quarto e desculpou-se pela invasão do território. - O facto é que não conseguia dormir. Amanhã de manhã vou para o Japão e, desde
a morte do pai, ainda não conseguimos conversar os dois - começou. Orsola deixou-se cair numa poltrona, exausta, e observou o seu primogénito, tão sério e responsável,
tão discreto e silencioso, tão ligado à família e ao trabalho. Estava a perder cabelo e caminhava para uma calvície precoce, tal como o avô de quem herdara o nome
e que ela apenas conhecera através das fotografias. Saverio tinha vinte e nove anos e a maturidade de um homem de quarenta. Desde criança que se comportava como
um adulto. Por vezes, Orsola perguntava a si mesma se ele seria feliz. Por muito que se parecesse com o pai pelo sentido da responsabilidade em relação à família
e ao trabalho, não tinha os mesmos impulsos. Edoardo, sempre pacato e comedido, era no entanto capaz de gestos surpreendentes de uma alegria radiante. Não teria
sido talvez um clamoroso golpe de teatro escolher uma mulher do norte que não sabia o que era o coral e que lhe trouxera de dote apenas ela própria? Quantas pessoas,
ern Torre, tinham profetizado o falhanço daquilo que consideravam uma união sem sentido? Edoardo era assim mesmo. Quando se tratava de trabalho, escutava as sugestões
de toda a gente, mas no plano sentimental seguia unicamente o seu instinto. Com a idade de Saverio, já estava casado e tinha sido pai duas vezes.
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Saverio nunca tinha tido uma namorada. Nunca se tinha apaixonado. Dois anos atrás tivera uma relação com a filha de um joalheiro napolitano. Passaram juntos umas
longas férias no Canadá, mas quando regressaram a história já tinha terminado. Uma noite, forçando a sua natureza esquiva, Saverio abriu-se com ela e confessou-lhe:
- A Francesca censurava-me por gostar mais da minha família e da nossa empresa do que dela. Se uma mulher for assim tão superficial que não entenda quais são os
meus valores, não serve para mim.
- Duvido que consigas encontrar a mulher que procuras - respondeu ela. - O pai encontrou. Não acho que tu sejas uma exceção absoluta. Em algum lugar, neste vasto
mundo, haverá uma pessoa certa para mim - replicou. Agora estava ali a espera de falar, observando-a com o seu ar grave, irrepreensível, apesar de estar em pijama.
- Estou a ouvir, meu querido - respondeu ela. - Há questões práticas a esclarecer. Agora que o pai já cá não está, é preciso que sejam redefinidos os papéis, sobretudo
o meu. Pedi ao Gianni para me fazer uma coisa e ele respondeu-me que não tenciona receber ordens minhas. Nunca seria capaz de se comportar assim com o pai. Mais
um mês e os seus dois rapazes acabariam por se defrontar como galos de briga, refletiu Orsola. E a seguir iam nascer os dissabores entre as raparigas. No dia seguinte,
Saverio ia fazer uma longa viagem e ela sabia que, primeiro no Japão e depois em Taiwan, ele teria de tratar de algumas transações importantes de compra e venda.
Era bom que não estivesse distraído com outras preocupações. Falou-lhe com uma serenidade aparente, esforçando-se por dominar a sua ansiedade. - Ouve, meu querido.
O Gianni é um problema meu, porque ele não sabe que nasceu com o coral na cabeça e no coração. Debate-se como um animal na jaula, porque ainda ignora aquilo que
quer. - E comporta-se como um imbecil - protestou o filho. - Temos de lhe dar tempo.
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- Mas o tempo não espera por ele. Por exemplo, se não decidirmos depressa, todo aquele coral que o Mongiello tem em armazém vai parar a outras mãos. Aquele espertalhão
do Scapece já foi contar ao Mongiello que, atendendo à nossa situação, as negociações connosco se vão arrastar, enquanto ele pode comprar tudo e pagar imediatamente.
Eu amanhã vou-me embora. Não posso lá mandar a Cristina. Podia parecer uma falta de respeito em relação ao
Mongiello. Saverio referia-se a um velhíssimo negociante de coral que, não tendo herdeiros, encerrava a sua atividade, e como tinha sido muito amigo de Edoardo,
entrara em contacto com os Sogliano em primeiro lugar.
- Só isso? Amanhã de manhã, muito cedo, estou à porta dele e garanto-te que trago não só o que está em armazém como tudo aquilo que encontrar de apetecível lá em
casa - decretou Orsola.
- Mas não é tarefa tua, mãe - objetou Saverio.
- A minha tarefa é levar esta casa para a frente, e garanto-te que o farei. É verdade, o pai faz-nos muitíssima falta, mas já que passou os últimos trinta anos da
sua vida a ensinar-me primeiro a mim e depois aos filhos tudo aquilo que sabia, agora chegou o momento de demonstrar o que aprendemos com ele. Vamos trazer para
casa resultados de que o pai se pudesse orgulhar. Vai descansar sossegado, Saverio, e confia na tua mãe, e também no Gianni. Ainda vai chegar o dia em que vão trabalhar
os dois lado a lado e fazer grandes coisas juntos.
- Esquece o Gianni, porque pessoalmente corria-o ao pontapé.
- Tenho de te confessar uma coisa: às vezes até eu era capaz disso.
- Seria uma terapia salutar.
- Pelo contrário, seria muito contraproducente. Ainda não percebeste que ele te admira, que gostava de ser como tu? Mas falta-lhe a confiança em si próprio; considera-te
um modelo inatingível e então enche-se de raiva, de frustração, e arranja complicações. Confia, Saverio. Sabia que o filho ia refletir sobre tudo aquilo de que tinham
falado. Ele foi junto dela, deu-lhe um beijo e agradeceu-lhe.
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- Vemo-nos amanhã de manhã. Tomamos o pequeno-almoço juntos - prometeu-lhe ela, e dirigiu-se rapidamente ao seu quarto. Estava exausta.
Meteu-se na cama, apesar de saber que não ia adormecer, porque o desaparecimento do marido tinha produzido uma série inesgotável de problemas que, dia após dia,
hora após hora, lhe eram servidos em bandeja de prata, como se ela fosse o único comensal convidado para um banquete de comidas indigestas. Os filhos, apesar de
a amarem, não tinham escrúpulos em servir-lhe pratos de espinhas, antepondo as suas próprias necessidades às dela. Nem mesmo a sogra fazia uma ideia do mar de dificuldades
em que ela se debatia. Voltaram-lhe à ideia as palavras de Edoardo, quando ela lhe perguntava a razão de certas tristezas suas:
- Tenho demasiada carne ao lume e sou só eu a tomar conta dela para não queimar.
- Tira alguma, mesmo que ainda esteja crua - aconselhava ela.
- Mas se a puser de lado vai acabar por cheirar mal, como as questões que se deixam em suspenso.
- Posso ajudar-te? - perguntava-lhe, embora temendo que ele a arrastasse naquele vórtice de dificuldades para as quais ela intuía a sua incapacidade. Então ele sorria.
- Tu já me ajudas muito, todos os dias, todas as noites. Sabes o que vamos fazer? Vamos para a cama. Faziam amor e, por fim, ele sentenciava:
- Como dizia a Scarlett O'Hara, amanhã é outro dia. Agora, Orsola sussurrou:
- Tens razão. Amanhã é outro dia. Quando ia pôr o telemóvel a carregar, encontrou uma série de mensagens não respondidas. Entre estas havia algumas de Damiana. Era
quase meia-noite, mas ainda assim Orsola ligou-lhe.
- Finalmente! O que foi que te aconteceu? Fazes alguma ideia de como eu fiquei preocupada contigo? Partiste sem me avisar e não soube mais nada de ti - começou a
amiga, zangada.
- Damiana, estou cansada. Tu não podes imaginar as dificuldades com que me tenho deparado e, francamente, não estou com
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vontade nenhuma de falar sobre elas. Sabes o que eu queria? Queria uma varinha mágica que fizesse recuar o tempo e me fizesse voltar A adolescência, quando imaginava
o meu futuro em tons pastel, quando estava na oficina do meu pai e, enquanto ele remendava sapatos, eu fazia os deveres da escola. Ou então quando estava sentada
à mesa da cozinha, com a minha mãe a costurar e eu a fazer galões com os restos de tecidos. Ou quando eu e tu passeávamos no corso Buenos Aires e falávamos de namorados.
E digo-te mais uma coisa: estou outra vez com vontade de fugir. Porque não vamos, tu e eu, para uma praia num sitio qualquer? - propôs. Houve uns instantes de silêncio
e depois Damiana rebateu:
- Ou então podias regressar a Milão. Hoje o Alberto foi à loja e perguntou-me por ti.
- O Alberto? - exclamou Orsola. - Ele? - disse num sussurro.
- Casou-se - revelou Damiana.
- Casou-se?
- Dizes isso como se ele tivesse cometido um delito.
- Podias ter-me dito.
- Foste tu que me pediste para não voltar a pronunciar o seu nome. Lembras-te? De qualquer modo, separou-se há dois anos. A mulher dele era, e ainda é, minha cliente.
Uma bela mulher, que pertence a uma importante família veneziana. É médica, como o Alberto. Conheceram-se num congresso. Nos primeiros tempos, depois do casamento,
ele vinha com ela à boutique e olhava para mim como se estivesse à espera de ouvir notícias tuas. Acho que se casou na esperança de te esquecer e, a julgar pela
forma como correu o casamento, não conseguiu - contou-lhe. - Ainda está apaixonado por ti.
- Mas eu estou apaixonada pelo meu marido - afirmou Orsola. Porém, depois de se ter despedido de Damiana, recordou Alberto e o que se tinha passado havia dez anos.
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ORSOLA E ALBERTO
1
Era abril. Orsola estava em Milão com Edoardo e os outros industriais do coral de Torre del Greco, porque tinha sido organizada uma grande exposição de objetos de
coral no Castello Sforzesco. Eram dias de trabalho frenético, pontuados por encontros com compradores italianos e estrangeiros, conferências sobre o coral e sobre
a sua longa história, projeções cinematográficas sobre o mesmo tema, acesas discussões sobre o futuro deste mercado, mas também da economia em geral. Fechavam-se
excelentes negócios e os mais conhecidos joalheiros de Milão organizavam jantares para os expositores nas suas casas da cidade, assim como nas casas de campo. Alguns
dos industriais de Torre estavam alojados em hotéis, outros em casas de amigos. Edoardo e Orsola estavam na via Melzo, na casa onde ela tinha nascido e que tinha
sido restaurada. Orsola tinha organizado a remodelação do apartamento, conseguindo criar uma habitação elegante e confortável. Damiana fez a mesma coisa com o apartamento
dos pais. As duas amigas, aos quarenta anos, arranjavam muitas vezes maneira de estarem juntas.
- O que é que vocês têm ainda para contar uma à outra? - perguntava Edoardo, ás vezes, quando as surpreendia a sussurrar confidências. Naquele período, Damiana tinha
uma relação com Orlando, um médico radiologista de uma clínica de Milão, "feio mas muito doce e inteligente", como ela o definia. Uma manhã, Damiana, Orsola e Edoardo
saíram juntos, a primeira para se dirigir à sua loja na via Borgospesso, e os outros dois
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ao Castello Sforzesco. Tinham acabado de entrar no metro quando Damiana anunciou:
- Logo à noite vou com o Orlando a um jantar em casa do pro fessor Antonelli, professor de Obstetrícia e Ginecologia, e o meu namorado disse-me para eu vos estender
o convite. Parece que a mulher do Antonelli é uma apaixonada por joias em coral. Ele falou-lhe em vocês e ela quer conhecer-vos.
- Temos algum compromisso esta noite? - perguntou Edoardo a Orsola.
- Temos sim. É a única noite que temos livre e tínhamos planeado ficar em casa a descansar - respondeu ela. Edoardo dirigiu-lhe um olhar suplicante e disse-lhe:
- Vá lá, minha Orsetta querida, por uma vez vamos fazer uma coisa diferente, e damos uma vista de olhos a uma outra realidade! Quando queria alguma coisa dela, Edoardo
perdia a severidade habitual, sorria como uma criança e era irresistível. Ela cedia àquele fascínio e fazia-lhe a vontade. Por isso replicou:
- Está bem, nós também vamos.
- Vou já avisar a Sra. Antonelli. Oh, como ela vai ficar feliz por vos conhecer - exclamou Damiana, e apressou-se a sair do metro, enquanto os amigos prosseguiram
até à piazza Castello. Para aquele jantar Orsola usou um vestido de crepe de seda vermelho morango, de mangas compridas e um decote acentuado nas costas. Era suficientemente
justo para sublinhar a perfeição do seu corpo. Não ostentou joias, limitando-se a um anel no dedo mindinho com um grande coral de Sciacca encastoado em pavé de brilhantes.
O apartamento do médico ocupava inteiramente os dois últimos pisos de um edifício oitocentista no corso di Porta Romana. Ali conheceu Alberto Somaschini. A dona
da casa apresentou-o como o assistente do marido.
- É um médico fantástico e tem qualquer coisa a mais do que os outros - disse-lhe, enquanto ela contemplava com admiração aquele jovem que tinha uns olhos negros
aveludados e os cabelos encaracolados e escuros. Orsola sempre afirmara que um homem bonito, tal como uma
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mulher bonita, são assim porque o aspeto exterior exprime a beleza interior. Estava convencida de que a gente feia ou insignificante era assim porque o físico refletia
a escassa quantidade das suas qualidades morais.
- Repara bem - dizia a Damiana, quando eram jovens -, se encontrares uma mulher azeda, pálida, má pelo prazer de o ser, verás que tem uma cara pouco agradável e
um físico sem graça. É uma questão de harmonia, entendes?
- Então e o corcunda de Notre Dame? A história da bela e do monstro? - objetava a amiga.
- São invenções literárias - rematava ela. Também o Dr. Somaschini devia sentir-se atraído por ela, porque enquanto estiveram à mesa e também depois, na sala de
estar, olhava para ela de uma forma tão descarada que toda a gente deu conta, até Edoardo, o qual, felizmente, não era ciumento e gostava que a mulher fosse admirada.
Quando o serão terminou, Damiana já se tinha eclipsado com o seu radiologista e Edoardo chamou um táxi para regressar a casa.
- Nem pensar. O Alberto leva-vos no carro dele - decidiu a dona da casa. Depois voltou-se para o jovem médico, a pedir o seu assentimento.
No elevador, enquanto desciam até ao rés do chão, Orsola agarrou-se ao braço do marido, fletindo impercetivelmente o corpo para a frente. Aquilo não era bom sinal,
porque sofria há algum tempo de dores abdominais em concomitância com o período menstrual.
- Outra vez as dores? - perguntou Edoardo, apreensivo. Ela anuiu.
Quando saíram do elevador, o Dr. Somaschini perguntou:
- São fortes, essas dores?
- Depende - respondeu ela, ligeiramente irritada.
- Pois é, estás a ver como ela reage? Nem quer falar nisso - observou Edoardo, preocupado. Alberto voltou-se para Orsola e disse-lhe:
- Percebo perfeitamente o teu embaraço. Nenhuma mulher fala de boa vontade dos seus problemas com um homem desconhecido, mas acontece que eu sou ginecologista. Imagino
que tenhas um
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especialista que te acompanha, e pergunto a mim mesmo por que razão não te dirigiste a ele para uma consulta. Estavam parados no átrio, em frente ao portão ainda
fechado, e Orsola explicou: - Eu fiz isso, há um mês. Falou-me de um possível fibroma e tranquilizou-me dizendo-me que voltaria a ver-me dentro de alguns meses.
O meu marido sabe disto, mas acha que eu devia pedir uma segunda opinião. Edoardo preparava-se para intervir, mas o Dr. Somaschini replicou:
- Se o teu ginecologista, que te conhece, te tranquilizou, não há motivo de preocupações. No entanto, o teu marido tem razão. Uma vez que estás em Milão, se quiseres
posso marcar-te uma consulta para um exame mais específico. Edoardo fez disparar o trinco do portão e Orsola rebateu: - Agradeço-te, vou pensar na tua sugestão.
- Encostou-se ao marido e acrescentou: - Vamos, querido, ou vamos atrasar o nosso simpático acompanhante. Quando chegaram à porta do edifício da via Melzo, o médico
agradeceu a ambos as histórias fascinantes sobre o mundo do coral. Apertou-lhes a mão e esperou que entrassem no átrio antes de se ir embora. Quando ficaram a sós,
Orsola dirigiu-se ao marido com agressividade: - Será que percebes o embaraço que me causaste? - Porquê? O que foi que eu fiz? - perguntou ele, desolado. - Eu queria
ter-me enfiado pelo chão adentro, com vergonha. Era apenas um serão com amigos, que nem sequer conhecemos, e tu pões-te a pedir uma consulta de Ginecologia, obrigando-me
a fazer figura de parva. - Como é que eu posso não te dar razão? Orsetta, para me desculpar, apenas posso replicar que estou preocupado contigo, e uma vez que aquele
médico te sugeriu uma consulta com outro ginecologista, eu não ignoraria este conselho. Orsola calou-se. Edoardo tinha razão. Quando entraram em casa, dirigiu ao
marido um olhar terno e disse-lhe:
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- Perdoa-me, querido. Prometo-te que assim que voltarmos para casa eu vou logo ao médico. Naquela noite Orsola teve uma forte hemorragia, de tal maneira que Edoardo
chamou uma ambulância. Enquanto se dirigiam ao hospital mais próximo, ele pediu para a mulher ser transportada para a clinica do Dr. Antonelli.
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2
- Quem foi o cretino que lhe diagnosticou um fibroma banal? resmungou uma médica, enquanto uma enfermeira inseria no braço de Orsola uma agulha para o soro. - Mandem
entrar o marido, porque esta paciente tem de ser operada imediatamente. Orsola via e ouvia tudo aquilo que acontecia à volta dela, mas estava exausta e não tinha
forças para replicar. Respondera por monossílabos a uma série infinita de perguntas e agora apenas tinha vontade de desaparecer no vazio. Sentiu a presença de Edoardo
ao lado dela e ouviu a médica dizer:
- Perdeu muito sangue. Temos de fazer uma série de exames. E depois: - Liguem para casa do Dr. Scianna, ou do Dr. Somaschini, que estão de prevenção. De uma distância
sideral chegou até ela a voz de Edoardo a perguntar:
- É assim tão grave?
- Isso é o que vamos ver com os exames clínicos, muito sumários, dada a urgência de uma intervenção. Depois não ouviu mais nada. Quando regressou à realidade era
já dia. Uma massa fria e pesada pressionava-lhe o ventre. Estava presa por uma série de tubos de drenagem. Abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi a silhueta
de uma pessoa de bata verde. Esforçou-se por focar o vulto, que lhe fazia lembrar alguém, mas não sabia quem era. Estava tão cansada que voltou a fechar os olhos,
abandonando-se ao prazer de uma mão tépida que lhe afagava os cabelos.
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- Bom regresso junto de nós, Orsola! - disse uma voz masculina. Havia mais gente em volta a falar, a deslocar objetos, a abrir e fechar portas. Voltou a abrir os
olhos com dificuldade. O homem de bata verde, com o cabelo escondido dentro de uma touca e uma máscara pousada no queixo, pareceu-lhe o arcanjo Gabriel reproduzido
no fresco de uma igreja algures no campo que tinha visto
em pequena.
- Dr. Somaschini - disse, com um fio de voz. - Onde é que eu estou?
- Acabaste de sair do bloco operatório - respondeu ele, continuando a acariciá-la. A presença do médico dava-lhe segurança.
- Estávamos à espera que acordasses da anestesia. Agora a anestesista vai medir-te a tensão e depois irás para o teu quarto, onde vais encontrar um marido ansioso
que só quer ver-te. Como te sentes? Não lhe apetecia responder e limitou-se a assentir, enquanto outro médico fazia os controlos de rotina e lhe dava explicações.
- Não vai sentir dores, porque lhe preparei um cocktail fantástico para as neutralizar. Volto a vê-la logo A noite. Hoje e amanhã vai Odormir muito e a tranquilidade
vai ajudá-la a melhorar. Orsola caiu novamente num delicioso torpor. Às vezes adormecia. Ouviu a voz de Edoardo a perguntar qualquer coisa, depois reconheceu a do
Dr. Somaschini a responder:
- Tive de lhe fazer uma histerectomia radical. Tirei também
o ovário aparentemente são, que foi para análise. Era um carcinoma muito feio, acredite. Em qualquer caso, o exame histológico é que vai confirmar tudo isto. Ainda
está a receber plasma porque perdeu muito sangue. Caiu novamente no sono. De vez em quando regressava A realidade, alguém lhe media a temperatura ou a tensão, substituíam
a bolsa de gelo que tinha sobre o ventre, levantavam-lhe delicadamente as costas para ajeitar as almofadas. A certa altura sentiu a presença do marido ao lado dela.
- Old, Orsetta. Como estás? - Edoardo tinha o rosto marcado
pelo cansaço.
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- Bem. E tu?
- Pedi para me prepararem a cama, porque queria passar a noite contigo, mas o Dr. Somaschini quase me impôs uma enfermeira para a noite.
- Que horas são?
- Nove da noite. Sabes o que te aconteceu?
- Operaram-me e tiraram-me qualquer coisa da barriga.
- Exatamente. Agora vais ficar melhor.
- Os pequenos, como estão?
- Estão cheios de vontade de voltar a abraçar a mãe. Para já vais ter de te contentar com o Saverio e com a minha mãe. Vieram de Nápoles, de avião. Vêm ver-te amanhã
de manhã.
- Mas os outros, sozinhos, sem a avó...
- A Emanuela está com eles. Hoje a Dam iana veio visitar-te, mas tu estavas a dormir. Também ela volta amanhã. Depois veio o professor Antonelli, o chefe do serviço.
Estava com o Somaschini. Pareciam satisfeitos. Dizem que está a correr tudo bem e que agora já te vão tirar o plasma. Amanhã recomeças a alimentar-te.
- Vai descansar - disse Orsola, com uma voz muito fraca. Adormeceu novamente.
Depois ouviu um ruído de passos no quarto e alguém a levantar as persianas. Abriu os olhos. Uma enfermeira cumprimentou-a com um ar bem-disposto.
- Bom dia, querida. Agora vou sentá-la para fazermos a higiene.
- Que horas são?
- São seis horas da manhã. Mais tarde vão dar-lhe um chá e depois ajudam-na a levantar-se - explicou, ao mesmo tempo que lhe lavava a cara com água tépida e lhe
espalhava um creme hidratante nos lábios gretados. - Tem fome? - perguntou, enquanto a penteava.
- Eu diria que sim - respondeu Orsola.
- Vejo que está bem desperta, não tem febre e a tensão está dentro dos valores normais. Naquele momento o Dr. Somaschini entrou no quarto. Trazia uma bata branca
e ostentava um ar radioso. Atrás dele vinham duas enfermeiras.
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- Bom dia, Orsola - disse, sentando-se na beira da cama. - Sei que dormiste bem esta noite. E agora, como te sentes?
- Doem-me as costas - respondeu ela.
- É normal. Agora vou mandar levantar-te para te sentares na poltrona. As tuas costas vão agradecer-te por isso acrescentou. Depois voltou-se para as enfermeiras:
- Vamos retirar o soro e o cateter. Daqui a pouco vem a anestesista para ver se é preciso continuar com o analgésico. De qualquer maneira, acho que o podemos reduzir.
As duas enfermeiras circularam à volta dela para a libertar das cânulas.
- Poder mexer-me já é um alívio - observou Orsola, e tentou levantar- se.
- Quer fugir, minha senhora? - perguntou uma das enfermeiras, apressando-se a segurá-la.
- Sinto a cabeça a andar à roda - murmurou ela, voltando a cair em cima da cama. O Dr. Somaschini levantou-se da cama, ajudou-a a deitar-se e levantou-lhe a camisa
de noite. Pousou uma mão sobre o ventre enfaixado e perguntou:
- Dói?
- Não, mas sinto uma comichão muito incomodativa.
- É a ferida a cumprir o seu dever. Está a cicatrizar - sossegou-a. - Agora ajudem-na a sentar-se na poltrona - ordenou as duas enfermeiras. - E agora, vamos dar-lhe
alguma coisa de beber, e uma bolacha também? - acrescentou. Saíram as duas e eles ficaram sozinhos.
- Agora somos amigos íntimos. Andei a mexer nas tuas entranhas - brincou o médico. Tinha-se sentado numa cadeira de metal à frente dela. Naquele momento apareceu
à porta do quarto uma funcionária que, ao ver o médico, se retirou.
- Lembro-me do que disseste ao meu marido. Retiraste uma parte de mim a que eu estava muito ligada.
- Eu sei, mas aquelas bugigangas não gostavam de ti e, se não tivéssemos intervindo imediatamente, não sei se estaríamos agora aqui a fazer sala. ,À
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- Agora chamam-se bugigangas? - Otero e ovários, soa-te melhor? Entrou uma empregada com o chá e as bolachas. - Tenho de ir para o bloco operatório. Venho cá ver-te
mais tarde - prometeu. - Obrigada - disse ela num sussurro, e desejou que voltasse depressa.
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3
Os dias que se seguiram foram dos mais duros da sua vida. Orsola tinha a sensação de estar a enterrar-se nas areias movediças do desespero. Nos raros momentos em
que conseguia estar sozinha,
abandonava-se ao choro, sem que das lágrimas brotasse qualquer alívio. Três dias depois da intervenção começou a procissão da gente ligada ao coral que estava em
Milão e que lhe ia levar flores e outros presentes. Ela passaria muito bem sem estas visitas, mas conhecia bem a afetuosa, imparável intromissão das pessoas de Torre.
O filho mais velho, a sogra e o marido alternavam-se junto à sua cabeceira e ofereciam-lhe amor e mil e uma atenções. Ela não ousava dizer-lhes que queria ficar
algum tempo sozinha, para poder interiorizar o massacre daquele ato cirúrgico sobre a sua feminilidade. O professor Antonelli explicara-lhe que o Dr. Somaschini
tinha realizado quase um milagre, ao intervir rapidamente e com tanta perícia numa situação clínica alarmante. Nada daquilo a ajudava e ia deslizando lentamente
para a depressão. Só Alberto Somaschini conseguia transmitir-lhe confiança. O ginecologista tinha adquirido o hábito de passar por lá à noite, depois do jantar,
quando o quarto estava já deserto. Aproximava uma cadeira da cama, sentava-se ao lado dela e, invariavelmente, começava com estas palavras: - Estou muito satisfeito
contigo. Estás a melhorar muito depressa, mas não me agrada o teu humor.
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- O humor vai melhorar quando eu já não estiver no hospital. Uma noite apresentou-se seguido por uma enfermeira.
- Estás curada, Orsola - anunciou alegremente. Depois, afastando o lençol, disse: - Vamos retirar a ligadura. A enfermeira começou a desenrolar a ligadura elástica
que lhe comprimia o ventre, enquanto outra enfermeira trazia para dentro do quarto o carro dos curativos. Depois de lhe ter tirado os pontos, Alberto comentou, satisfeito:
- Está uma cicatriz lindíssima. Se levantares a cabeça, podes ver o corte que eu te fiz.
- Não quero ver. Basta-me saber que está ali para a eternidade protestou ela.
- Não é bem assim. Com o tempo acaba por desaparecer - respondeu ele. - Magoei-te?
- Um bocadinho - respondeu.
- Mentira. Não tens sensibilidade em volta do corte.
- E então, porque é que me perguntas se me magoaste?
- Para perceber até que ponto te queixas - rebateu ele, com um olhar malicioso. Depois virou-se para as enfermeiras que estavam a enfaixá-la outra vez e disse: -
Bem apertada, se fazem favor. Depois teve a preocupação de lhe baixar novamente a camisa de noite sobre as pernas e ordenou:
- Agora levanta-te e tenta andar. Diz-me que tal te sentes sem os pontos. Estendeu-lhe o roupão, ela vestiu-o e deu alguns passos no quarto.
- Estou muito melhor - constatou.
- Então, trazem-me aquilo que vos tinha mandado pôr no frio? - disse às enfermeiras que iam a sair do quarto. Depois voltou-se para Orsola e explicou:
- Temos de festejar a tua cura.
- Festejas com todas as tuas doentes? - perguntou-lhe, enquanto se instalava na poltrona.
- Festejei uma outra vez, antes desta. Com a minha mãe. Tinha o mesmo problema que tu. Operei-a eu, há cinco anos. Foi uma experiência terrível, pôr a descoberto
as entranhas da minha mãe
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sabendo que dali tinha saído a minha vida. Agora é uma velha gaiteira de setenta anos que goza a vida a viajar pelo mundo fora. Uma enfermeira pousou em cima da
mesa o champanhe e dois copos. Ele abriu a garrafa e encheu os copos até meio com aquele líquido borbulhante cor de âmbar.
- À tua saúde reencontrada - exclamou, fazendo tilintar os dois copos. Beberam um gole. Depois ele sentou-se numa cadeira de metal, à frente dela.
- Esta noite estou de serviço. Portanto, se não houver nenhuma urgência, tenho todo o tempo para responder às tuas perguntas, porque sei que as tens e também sei
que estás zangada.
- Quantos anos tens, Alberto? - perguntou Orsola.
- É a primeira vez que pronuncias o meu nome e gosto de te ouvir dizê-lo. Tenho trinta e cinco, sou alegremente solteiro e adoro o meu trabalho. Gosto do ventre
das mulheres grávidas, gosto de trazer ao mundo os filhos delas, fico triste quando surgem imprevistos difíceis, utilizo a brutalidade dos bisturis para extirpar
o mal. Contigo correu tudo lindamente. Estás curada, Orsola.
- Isso é o que tu dizes. Já não tenho nem útero nem ovários.
- Já tiveste cinco filhos. Não te chega?
- Tenho quarenta anos. Contava com mais dez anos de fertilidade. Como é que tu reagias se te tirassem os testículos? - provocou-o.
Alberto deu uma boa gargalhada. - Nem posso pensar nisso! Para um homem seria um drama, para uma mulher é diferente. Felizmente, vocês são diferentes. Daqui a pouco
tempo vais poder ter outra vez relações íntimas muito satisfatórias e ninguém, nem mesmo tu, vai dar conta de que te faltam as bugigangas. Isso eu posso jurar-te.
- Vou adoecer outra vez? - perguntou ainda, baixando a voz. O médico pousou o copo em cima da mesa, segurou entre as suas as mãos de Orsola e, olhando-a intensamente
nos olhos, declarou:
- Livrei-te de um mal que te ia matar. Agora estás completamente curada. Mas a pergunta é: Porque foste agredida por um
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carcinoma? As hipóteses são infinitas e todas discutíveis. Para afastar o risco de este problema se apresentar outra vez, vais ter de fazer umas sessões de quimioterapia.
Nos últimos tempos a Medicina fez grandes progressos e este tratamento já não é tão devastador... Orsola não o deixou acabar.
- Portanto vou ficar sem cabelo, vou ter febre, vou ter náuseas terríveis, vou cair nesta depressão que já me atingiu - disse, desesperada, ao mesmo tempo que se
levantava da poltrona e lhe fazia frente. Alberto levantou-se por sua vez e abraçou-a, sussurrando:
- Percebo que a quimioterapia te cause horror. Pensei em outras terapias alternativas, mas quero jogar pelo seguro, para que tu vivas por muito tempo e de ótima
saúde. És muito importante para mim, Orsola, e nem sequer sei porque', mas sei que é assim. Ela soluçava no seu ombro e a bata estava a ficar molhada de lágrimas.
- Para a quimioterapia vens aqui, à clínica, e eu vou estar perto de ti - murmurou-lhe, ao mesmo tempo que lhe afagava os cabelos. Manteve-a apertada contra si até
que ela parou de soluçar. Então segurou-lhe o rosto entre as mãos, limpou-lhe as lágrimas com os dedos e deu-lhe um beijo muito leve nos lábios.
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Orsola retribuiu aquele beijo e depois sussurrou:
- Obrigada. - E sorriu-lhe.
- Agora volta para a cama e tenta descansar tranquilamente recomendou-lhe. Orsola deitou-se e ele ajeitou-lhe o cobertor.
- O teu bip está a vibrar - avisou ela.
- Sinto muito - respondeu. Enfiou uma mão no bolso e desligou-o. Não se decidia a deixá-la.
- Alguém está a precisar muito de ti - insistiu ela.
- Eu sei, já vou - replicou Alberto. Fez-lhe uma carícia, atravessou o quarto e, quando ia a sair, disse: - Dorme bem. Amanhã de manhã deixo-te voltar para casa.
Orsola deu um suspiro profundo e fechou os olhos, saboreando uma serenidade miraculosamente reencontrada. Admitiu para si própria que nunca se tinha sentido tão
bem. Há meses, efetivamente, por muito que o seu ginecologista a. tivesse tranquilizado, alguma coisa no seu íntimo lhe sugeria que estava a ficar doente, e ficou
durante muito tempo inquieta.
- Eu tinha um cancro e aquele cretino) não dava conta - pronunciou baixinho, escondendo o rosto debaixo do lençol. - Grande parte da nossa vida não depende de nós,
mas do destino - acrescentou num sopro. Depois imaginou que Alberto era um anjo que abria as asas e a envolvia num suave abraço de penas, afastando dela o perigo.
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Com esta fantasia adormeceu. Na manhã seguinte, Alberto apresentou-se com o professor Antonelli. O diretor do serviço ostentava um sorriso radioso.
- Minha cara senhora, sabe que correu tudo muito bem? Discuti o seu caso com o Dr. Somaschini e estamos ambos de acordo. Como precaução, a senhora deverá fazer algumas
sessões de quimioterapia.
- Eu sei - afirmou ela, ao mesmo tempo que se sentava na cama.
- Não vai ser uma terapia demasiado agressiva e por isso as perturbações subsequentes serão mais ligeiras. O Alberto vai voltar a vê-la daqui a um mês e definirá
consigo o programa terapêutico. A propósito, a minha mulher manda cumprimentos. As suas histórias, e as do seu marido, fascinaram-nos. Quando voltarem a Milão, temos
de estar juntos outra vez.
- Com certeza - prometeu ela.
- Já organizei o teu processo clínico - comunicou-lhe Alberto.
- Deves ligar por qualquer problema que surja, mesmo o mais insignificante. Também te deixo o número do meu telemóvel. Pouco depois chegou o marido, que lhe levou
roupa para poder sair.
Quando chegaram a casa era já meio-dia. Damiana estava à espera dela, com o almoço pronto para os três. A sogra e Saverio tinham regressado a Torre dois dias antes,
quando terminou a exposição no Castello Sforzesco e os stands foram desmontados. Aquela iniciativa, firmemente apoiada por Edoardo, tinha-se revelado um sucesso
pela afluência de público e pelos encontros comerciais.
- Tudo está bem quando termina bem - disse o marido ao sentar-se A mesa. Orsola estava cansada e limitou-se a depenicar uma fatia de carne assada e uma peça de fruta.
- Preciso de me deitar - anunciou. Damiana foi atrás dela, deixando para Edoardo a tarefa de arrumar a cozinha.
- No hospital explicaram-te que tens de te enfaixar todos os dias durante pelo menos um mês? - perguntou-lhe.
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- Mandaram-me fazer isso e proibiram-me o chuveiro enquanto não caírem todas as crostas da ferida - respondeu Orsola.
- Tens de te lavar parcialmente, durante uns tempos.
- Queria pelo menos ir ao cabeleireiro.
- Fraca como estás? Nem pensar. Amanhã de manhã eu lavo-te a cabeça e seco-ta. Sou muito boa nisso.
- És mais do que uma querida, és uma irmã - disse Orsola a sorrir, enquanto se enfiava na cama feita com lençóis perfumados.
- Agora descansa. Vemo-nos logo à noite - replicou a amiga, ao mesmo tempo que fechava as persianas do quarto.
- Tinha-me esquecido de como era confortável a cama da minha casa - murmurou com um bocejo. Foi acordada pelo toque delicado do marido que lhe afagava os cabelos.
Ela abriu os olhos, sorriu-lhe e ele disse:
- A falta que me fizeste, minha Orsetta. Era tão bom e tão terno, aquele marido, que Orsola sentiu o coração encher-se de gratidão.
- Preparei-te um chá e uma tarte de maçã. Tens vontade de te levantar?
- Claro, estou cheia de fome - respondeu.
A tarde já ia longa e estavam os dois novamente juntos, a conversar tranquilamente.
- Aluguei um carro com condutor. Vou levar-te para Torre daqui a dois ou três dias. Achas bem? - perguntou-lhe.
- E o teu carro?
- O Porsche é muito desconfortável para uma senhora convalescente. O Saverio levou a avó para casa nele.
- Não me tinham dito nada.
- Ias ficar preocupada. Mas o Saverio é um rapaz com bom senso, e eu confio plenamente nele.
- Não achas que já podíamos ir embora amanhã de manhã?
- Está fora de questão. A viagem é demasiado longa e foi o teu ginecologista quem sugeriu que eu te levasse de carro só daqui por alguns dias.
- Estou cheia de vontade de ver os meus filhos - declarou Orsola.
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- Sobretudo os dois pequeninos. Foram tão queridos com os telefonemas que me fizeram.
- Os teus filhos adoram-te, mas não tanto quanto eu - afirmou ele, dando-lhe um beijo na testa.
- Eu sei, querido, e agradeço-te por tudo. À noite jantaram outra vez com Damiana e, quando foram para a cama, Orsola saboreou o prazer de se aninhar entre os braços
do marido.
- Sabes que durante muito tempo não vamos pod... - disse, num tom baixo.
- Eu sei e, francamente, não me incomoda nada. Aquilo que eu quero é saber que estás de boa saúde - garantiu-lhe. Orsola pensou no Dr. Somaschini e perguntou a si
mesma como seria dormir ao lado dele.
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- Percebes que eu nunca mais vou ter fluxo menstrual, com todas as consequências que daí resultam? - disse Orsola, que tinha voltado a cair em depressão.
- Porque é que não pensas no aspeto positivo? Desde adolescentes que trazemos em cima de nós este tormento, pior do que a barba diária para os homens - tentou consolá-la
Damiana.
- Tu não podes entender - ripostou Orsola, olhando para a amiga com raiva. Estava em camisa de noite e tinha-se aninhado no sofá, em casa de Damiana, depois de Edoardo
ter saído para visitar alguns clientes, aproveitando assim aquela permanência forçada em Milão.
- Acaba com essas lamúrias! - provocou Damiana.
- Não aceito censuras vindas de ti, que és sã como um pero e não sabes dos medos que me começam a dominar - reagiu Orsola.
- Agora culpas-me por eu estar bem? Continuavam as mesmas. Discutiam assim desde que eram crianças e nenhuma delas queria pousar as armas.
- És mesmo insuportável - replicou Orsola.
- Obrigada. Então sabes o que te digo? Estou farta da tua choraminguice. Só pergunto como é que o tell marido consegue aturar-te. Tu queres que o mundo gire à tua
volta, porque só tu existes, enquanto os outros representam apenas a esteira do astro luminoso que tu és. Orsola levantou-se do sofá e atravessou a sala para se
retirar com um ar de rainha ofendida, plenamente consciente de ter ultrapassado
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os limites com a sua amiga de sempre: não tinha desculpa, até porque Damiana, durante aqueles dias, tinha estado junto dela com todo o seu afeto e estava a dizer-lhe
a verdade. Ela continuava a lamentar-se, em vez de reagir e de agradecer a sorte que a tinha posto nas mãos de um excelente ginecologista, a quem devia a vida. Antes
de sair da sala de estar parou e, apontando um dedo acusador em direção a Damiana, gritou:
- É assim que tu encaras a solidariedade entre mulheres. Tu raciocinas como um homem. Tem vergonha! Saiu de casa da amiga e bateu com a porta. Enfiou-se na cama,
ligou a televisão e pôs-se a ver um episódio de uma telenovela. Edoardo ligou-lhe para o telemóvel para a avisar de que almoçava fora com um cliente.
- Só aceitei o convite porque sei que a Damiana te vai preparar alguma coisa boa - disse o marido. Pois, a sua amiga tinha feito uma pausa no trabalho para não a
deixar sozinha.
- Discuti com ela - confessou então.
- É o costume - comentou o marido. - Bem, trata de fazer as pazes depressa. Um beijo, minha Orsetta. Nunca ninguém dava importância àquelas brigas. Quando eram pequenas
e, por uma palavra ou um gesto errado, se atiravam uma outra, as mães assistiam divertidas àquelas discussões e Diletta sentenciava:
- É pior do que se fossem irmãs.
- Desta vez passei mesmo das marcas - considerou Orsola. Deslizou para fora da cama e abriu a porta para regressar a casa da amiga. Damiana preparava-se para fazer
a mesma coisa. Olharam-se da soleira dos respetivos apartamentos e começaram a rir.
- Somos duas palermas - constataram ao mesmo tempo.
- Anda lá, vem para minha casa - disse Orsola, que se pôs de
lado para deixar entrar a amiga.
- Vamos fazer um café? - propôs Damiana.
- Bem forte. Preciso de uma boa dose de energia - respondeu Orsola.
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Foram tomá-lo no quarto. - onde é que tinha ficado? ? - perguntou Damiana.
- Já não me lembro.
- Gostava de te contar qualquer coisa alegre.
- Porque não me contas coisas do teu radiologista?
- O Orlando? É um bom homem, um profissional escrupuloso, um taciturno que só se torna loquaz quando levanta o copo. Então consegue divertir-me. Conheci-o há algum
tempo em casa dos Antonelli. Como já te disse, a mulher é minha cliente e, compra para aqui, compra para ali, ficámos amigas. Dou-me bem com ela, porque é uma mulher
muito interessante. Tem a sorte de ser uma dona de casa de luxo, mas tem muita atividade em obras sociais. Ajuda as crianças que estão no hospital, é fantástica
a recolher fundos para as famílias dessas crianças, que são muitas vezes paupérrimas...
- E o Orlando?
- Tem o hobby do voo. Possui um pequeno avião que lhe custa uma fortuna em manutenção e insiste para eu tirar o brevet de piloto. Apresentou-me os amigos do clube
dele. São uns fanáticos. De vez em quando há um que se estatela em qualquer sítio e, quanto a mim, o Orlando vai ter o mesmo fim.
- Pela maneira como falas, não me pareces muito apaixonada observou Orsola.
- De facto, não estou - admitiu Damiana.
- Então porque é que andas com ele?
- É um perfeito chevalier servant.
- E chega-te isso para o considerares um namorado?
- Não me percebeste. Ele é um cavalheiro como já não se encontram. Um homem que, se no meu caminho houver uma poça, é capaz de estender o casaco por cima para eu
não me molhar.
- O meu marido também faz isso, mas eu não o considero um chevalier servant.
- Tu és uma mulher cheia de sorte, ainda que não te apercebas disso.
- Já começas.
- Digo aquilo que sei e vejo. Já fizeste quarenta anos e parece que tens menos dez. Tens uma família fantástica, uma sogra
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encantadora, um marido doido por ti. Tiveste um acidente de percurso, é verdade, mas não duvido que te vais sair em grande. O teu ginecologista adora-te e nutre
por ti uma paixão insana...
- O quê? - perguntou Orsola.
- No hospital toda a gente deu conta. Sabes como é um hospital, é uma pequena aldeia onde se sabe tudo de toda a gente. O Alberto Somaschini perdeu literalmente
a cabeça contigo. A mim, uma coisa dessas nunca me aconteceu.
- Espera, espera! Tu estás a revelar-me uma coisa tremenda, com a mesma tranquilidade com que me dirias que hoje está a chover.
- Pensei que soubesses. Orsola levou uma mão ao peito, na esperança de acalmar o batimento acelerado do coração. Após um longo silêncio, disse a meia-voz:
- É isso que se murmura?
- O que mais se poderia dizer, depois das cenas que fazia a toda a gente para receber rapidamente os resultados dos teus exames, para verificar os analgésicos para
que tu não tivesses dores, para discutir com os colegas sobre o percurso da doença... Até telefonou para Cincinnati a expor o teu caso, de resto absolutamente comum,
como diz o Orlando, ao cirurgião com quem trabalhou nos dois anos em que esteve nos Estados Unidos. E chegou mesmo a falar com um nutricionista do instituto oncológico
para se aconselhar sobre a dieta certa para ti. Vá lá, Orsola, não faças de conta que não te apercebeste de nada!
- Devo confessar-te que o Alberto me entusiasma mais do que eu queria - admitiu, quase de má vontade.
- Mas isso é normal. Ele salvou-te e tu só podes adorá-lo. Se considerares que é de uma beleza estrondosa, que é o solteirão mais desejado do corpo clínico, que,
ao contrário daquilo que normalmente acontece, não se mete com nenhuma mulher do hospital, se tiveres tudo isto em conta...
- Acrescenta o facto de me ter beijado, aliás, não, de nos termos beijado - revelou Orsola. Damiana olhou para ela, estupefacta.
- Agora é que estás mesmo metida num sarilho.
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Orsola sorriu, comovida, diante do cartaz pendurado ao fundo do átrio do palácio Sogliano onde estava escrito em letras garrafais: BEM-VINDA MÃE. - Os meus patifes
são uns queridos - sussurrou, virada para o marido, que a amparava enquanto subiam as escadas até ao quarto. - Não sei se te lembras que também são meus - gracejou
Edoardo. - A propósito, onde é que eles estão? - perguntou ela, enquanto faziam uma paragem no patamar do primeiro andar. - Devem andar por aí. Estás a esquecer-te
de que só devíamos chegar logo ao fim do dia. Tinha sido ela a insistir para partirem de manhã cedo e a viagem desde Milão tinha sido muito confortável. Comodamente
deitada no assento traseiro da limusine, tinha adormecido por vezes e, apesar de se sentir ainda um pouco fraca, não estava efetivamente cansada. Chegaram ao cimo
das escadas, ao mesmo tempo que o motorista que os tinha levado a Torre trazia a bagagem para dentro de casa.
- Eu vou ao quarto arranjar-me - disse Orsola. - E eu vou mandar o motorista embora e espero por ti na sala. Vou tentar apanhar a Titina para ela te arranjar alguma
coisa de comer - respondeu Edoardo. A casa parecia deserta. Era sempre assim ao domingo A. tarde. Tinham escolhido de propósito regressar naquele dia para evitar
a receção ruidosa que lhes dedicariam os empregados.
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Orsola apreciou a atmosfera acolhedora dos seus aposentos. Quase tinha esquecido o prazer de reencontrar a intimidade envolvente dos recantos que ela e o marido
tinham arranjado depois do casamento, adequando o espaço às suas exigências. Despiu-se, lavou-se parcialmente, como fazia há vários dias, verificou o estado da ferida
que ia empalidecendo lentamente, e esperou que chegasse depressa o momento em que ia poder mergulhar numa banheira cheia de água quente, ou enfiar-se debaixo do
chuveiro.
Naquele período tinha descoberto o prazer de andar por casa de camisa de noite e roupão. Antes de sair de Milão, Damiana quis retribuir o presente de um colar de
coral, oferecendo-lhe um fato em veludo de seda cinza prata. Resolveu usá-lo. Só se ia vestir para o jantar, quando se fosse sentar à mesa com toda a família. Desceu
ao primeiro andar e percorreu o salão verde, onde reinava um silêncio insólito e muito agradável. Abriu a porta da sala amarela e a surpresa colou-a ao chão. Os
filhos, perfilados por ordem de idades, receberam-na com um grito: "Viva a mãe", após o que soltaram no ar uma nuvem de balõezinhos coloridos. Um a um, abraçaram-na.
Ela ficou comovida e chorou de alegria. Giulietta, a mais pequena, ofereceu-lhe um raminho de lírios-do-vale embrulhado num tule branco, fez-lhe uma vénia muito
cómica e recitou em verso:
- Mãe, mamãzinha, onde estiveste? Tu nem sabes bem que falta fizeste. Nós vamos cantar, para te receber, e uma dança alegre... não me lembro do resto! - disse, voltando-se
para os irmãos, aflita.
- ... nós vamos fazer - gritaram em coro. A sogra, sentada no sofá no meio das duas filhas, sorria, satisfeita. Titina e Rosária, muito direitas num canto da sala,
com os olhos vermelhos de comoção, assoaram ruidosamente o nariz. Edoardo segurou-a por um braço e levou-a até uma poltrona. Saverio sentou-se ao piano, Cristina
pegou na guitarra, Paola, Gianni e Giulietta esperaram o sinal dos dois irmãos mais velhos
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e entoaram um tema divertido que tinha sido um sucesso havia muitos anos e que falava de cigarras e formigas. Então começaram a dançar. Era evidente o esforço para
se moverem em sintonia nos passos de uma coreografia ingénua e muito rudimentar, mas tudo exprimia o grande amor que efetivamente sentiam pela mãe. Orsola ria e
chorava.
- Tu já sabias - disse, voltando-se para o marido.
- Andam a ensaiar há dias - respondeu ele, que a mantinha abraçada, sentado no braço da poltrona. - Os nossos patifes adoram-te. Os dias do sofrimento, do medo e
da aflição tinham mesmo acabado. Ela tinha uma família fantástica e ninguém poderia nunca quebrar aquele universo de amor que ela contribuíra para criar. Lentamente,
Orsola foi-se reapropriando dos seus ritmos habituais, pontuados pelos cuidados com os filhos, pelas horas de laboratório a supervisionar o trabalho das operárias,
pelos jantares com os amigos, pelas conversas com o marido na tranquilidade da noite. Chegou maio. Edoardo partiu para os Estados Unidos e Orsola regressou a Milão,
após ter entregado os filhos a Margherita, confiando no bom senso e na autoridade do filho mais velho. Damiana foi buscá-la a estação, levou-a para casa e tranquilizou-a.
Ia ficar ao lado dela durante todo o tempo em que ela tivesse necessidade da sua assistência. Na manhã seguinte levou-a a clínica para tirar sangue. Tinham passado
quarenta dias após a intervenção cirúrgica. Nesse dia ia fazer o primeiro tratamento de quimioterapia e os médicos precisavam de avaliar as suas condições. Quando
saiu da sala das colheitas de sangue, uma médica disse-lhe:
- Venho lembrar-lhe que tem uma consulta com o Dr. Somaschini. Orsola sabia-o, porque Alberto lhe tinha ligado no dia anterior para marcar uma hora.
- O senhor doutor pediu-me para a avisar de que tem muito tempo para tomar um bom pequeno-almoço, já que ele não vai poder vê-la antes das dez. Tinha uma hora pela
frente. Ela e Damiana aproveitaram esse
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intervalo e foram a um bar no Corso di Porta Romana tomar um cappuccino e comer um brioche. Desde o momento em que tinham voltado a encontrar-se, evitaram cuidadosamente
nomear Alberto. E também naquela manhã ignoraram o assunto. Assim que subiram ao serviço de Ginecologia e Obstetrícia, a amiga instalou-se num banco do corredor
e ela foi bater a porta do gabinete de Alberto. Quando entrou, ele levantou-se da secretária e recebeu-a com um sorriso luminoso.
- Como estás? - perguntou, ao mesmo tempo que lhe indicava uma cadeira à frente dele.
- Isso és tu quem me vai dizer - respondeu ela. Ele apontou para umas folhas de papel que tinha a frente e declarou:
- Recebi os resultados do laboratório. Os teus valores estão ótimos.
- Não haverá uma pálida esperança de que eu possa evitar... Não conseguia sequer pronunciar a palavra "quimioterapia".
- Claro que podias, mas eu não te ia deixar.
- Porquê?
- Porque é este o protocolo da cura e vai ser seguido até ao fim. Porque as estatísticas já nos demonstraram que, no estádio atual dos nossos conhecimentos, a quimioterapia
é uma garantia para casos como o teu. Portanto, amanhã de manhã voltas aqui ao hospital. Reservei-te um quarto sossegado e confortável. De acordo com o diretor do
serviço, acertámos as doses. Vais despachar-te em duas horas. E eu, durante essas duas horas, vou estar lá contigo a fazer-te companhia. Agora vai para o gabinete
ali ao lado para eu te examinar. À entrada da porta apareceu uma enfermeira sorridente que lhe disse:
- Faça o favor, Sra. Sogliano. Ajudou-a a pôr as pernas sobre os apoios da cadeira de exame e cobriu-lhe o ventre com um lençol. Alberto entrou logo a seguir e aproximou
um banco da extremidade da cadeira, enquanto a enfermeira lhe chegava o carro dos instrumentos. Ela sentiu o ruído das luvas de borracha que ele tirou de uma caixa
esterilizada; enquanto as calçava, disse-lhe:
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- Agora não fiques tensa e não grites porque o aparelho está frio. Orsola contraiu os músculos, horrorizada com aquele arnês de aço que a penetrava, mas não se queixou.
- Por favor, relaxa - repetiu ele com doçura. Examinou-a durante alguns intermináveis segundos a sua intimidade e depois concluiu:
- Já terminámos. Tirou as luvas e destapou-lhe o ventre. Observou a costura e constatou, satisfeito:
- Está tudo fantástico, Orsola. Já te podes vestir. Espero por ti ali ao lado. A enfermeira ajudou-a a descer da cadeira e chegou-lhe a roupa, dizendo-lhe:
- A senhora não sabe a sorte que teve em ir parar as mãos do Dr. Somaschini. É o melhor. É uma pessoa que faz milagres.
- Eu sei - concordou ela. Recordou a voz de Diletta, a sua mãe, que lhe dizia: O Arcanjo Gabriel anunciou à Virgem o nascimento de Jesus. Não foi por acaso que Deus
lhe confiou aquela tarefa. O Arcanjo Gabriel, de facto, é o mais fiável de todos os anjos e, se tiveres confiança nele, há de socorrer-te sempre". A enfermeira saiu
e Orsola entrou no gabinete do médico. Alberto estava a espera dela, em pé, ao lado da secretária.
- Logo a noite vais ter de levar uma injeção. Tens alguém que ta dê?
- Não sei. Talvez a Damiana, tenho de lhe perguntar. Está ali fora à minha espera. De qualquer maneira, não há problema. Posso arranjar uma enfermeira - respondeu,
com frases entrecortadas, porque estava uma pilha de nervos. Então ele abriu os braços e sorriu-lhe.
- Vem cá, Orsola. Ela encolheu-se contra o peito do médico, enquanto ele lhe afagava os ombros. Lentamente, a tensão dissolveu-se. Ela saboreou aquele bem-estar
que ele lhe transmitia e ergueu o rosto para o olhar nos olhos.
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Alberto debruçou-se sobre ela e os lábios de ambos encontraram-se. Depois ele deu um longo suspiro e confessou:
- Pensei em ti todos os dias nestas longuíssimas semanas em que estiveste longe. Estou apaixonado por ti. Nunca farei nada para te tirar a tua fantástica família,
mas quero que saibas que te amo. Logo a noite vou a tua casa e sou eu que te dou a injeção.
212
7
- Estás muito calada - constatou Damiana, quando regressavam de táxi à via Melzo.
- Não me apetece falar - respondeu Orsola.
- Coitadinha! Já não te bastava o calvário da doença, ainda tens de gerir um galanteador assíduo - brincou a amiga.
- Ouve, vamos ao cabeleireiro. Apetece-me pôr-me bonita uma última vez antes de perder o cabelo. Depois dedicamo-nos às compras. Preciso de comprar roupa para os
miúdos. E passamos a tarde no cinema - propôs Orsola.
- Tudo bem. Mas depois do cabeleireiro convido-te para almoçar no Don Lisander.
- Combinado - exclamou Orsola, inventando um entusiasmo que não sentia. Ao fim da tarde Edoardo ligou-lhe de Nova Iorque, quando ela estava a entrar em casa depois
de se ter despedido de Damiana. Queria saber da consulta e perguntar-lhe a que horas lhe poderia telefonar no dia seguinte.
- Tens de dizer à Damiana como eu lhe estou agradecido por tomar conta da minha Orsetta - pediu-lhe.
- Eu digo. Quando sais daí?
- Daqui por uns dias - respondeu ele, - E vou diretamente para a China, a não ser que tu precises de mim.
- Então encontramo-nos em Torre, porque nessa altura já eu estou em casa - explicou ela.
- Acho-te estranha, minha Orsetta. Tens a certeza de que está tudo bem?
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Orsola estava perturbada, inquieta e preocupada, apesar de ele estar a milhares de quilómetros de distância, a trabalhar.
- Está tudo ótimo, querido - tranquilizou-o. - Amanhã, depois da quimioterapia, já não vai ser assim, mas até amanhã de manhã estarei radiosa. Por isso, fica sossegado.
- Gosto muito de ti - disse ele.
- Também eu gosto muito de ti - respondeu ela com sinceridade, e desligou a chamada. Orsola gostaria que o marido ali estivesse, ao lado dela, para a manter afastada
de Alberto, já que sozinha não conseguia lutar contra a doença e contra a perturbação que ele lhe provocava, porque aquele homem lindíssimo tinha-lhe salvado a vida.
Chegaria isso para se sentir atraída por ele?
- Chega e sobra - disse para si mesma, enquanto arrumava num armário os sacos com as compras. O telemóvel começou a tocar. Era Alberto.
- Daqui a meia hora estou em tua casa. Vou levar-te a jantar fora - anunciou-lhe. Desligou a chamada sem lhe dar tempo de rebater. Ela vestiu um tailleur de veludo
negro, calçou umas meias elegantes de seda opaca, pegou na carteira e foi tocar à porta de Damiana para lhe dizer que se encontravam no dia seguinte, sem lhe dar
explicações. Saiu para a rua no momento em que Alberto parava o carro em frente à porta do edifício.
- Marquei uma mesa no restaurante do Grand Hotel - informou-a.
Orsola anuiu e ele explicou:
- Almoço lá de vez em quando com as minhas irmãs, porque têm uma ótima cozinha.
- Não sabia que tinhas irmãs.
- Duas. A Marisa, a mais velha, é pediatra. A Giovanna dedicou-se à vertente oposta, a Geriatria. Eu segui as pisadas do meu pai, que era professor de Obstetrícia.
- Era?
- Faleceu há quinze anos.
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- Porque é que ainda não te casaste? - disparou ela à queima-roupa. - Boa pergunta, para a qual não tenho nenhuma resposta. Tive como modelo os meus pais que, ao
fim de trinta anos de casamento, ainda faziam faísca. Cada um deles era a metade da mesma maçã. Só quando te conheci achei que talvez tu fosses a metade que eu ainda
não tinha encontrado. Parece uma banalidade, mas não sei explicar de outra maneira a força que me empurra para ti. Apesar de
saber que nunca te poderei ter. Um porteiro tomou conta do carro de Alberto, eles atravessaram o hall do hotel e entraram no restaurante. - Deixas-me escolher os
pratos mais indicados para ti? - perguntou Alberto, enquanto percorria o menu. - Se me disseres quais são - respondeu Orsola. - Legumes grelhados como entrada, minestrone
de arroz e tortilha com espargos. Para terminar, compota de maçã com canela. - Mas isso é uma dieta de hospital! - protestou. - Amanhã vais ter um dia pesado e isto
a que tu chamas dieta deveria tornar-se o teu estilo de alimentação. Mas disso eu falo-te noutro dia. Entretanto, eu também vou pedir o mesmo.
- Não posso rebelar-me contra o meu médico, pois não? - De maneira nenhuma.
Jantaram a conversar como se fossem velhos amigos. Iam pedir café quando Alberto disse: - Gostava de te levar a minha casa, mas não sei como pedir-te nem sei como
responderias. Orsola calou-se, depois olhou-o nos olhos e disse-lhe: - Respondia-te que sim, se a tua casa fosse do outro lado da porta deste restaurante. Sei que
se vai transformar em não durante o percurso daqui até tua casa. - Achas que nos davam guarida aqui, por esta noite? Desejo-te tanto, Orsola. Subiram ao segundo
andar do Grand Hotel escoltados por um empregado que abriu a porta de uma suite e, logo a seguir, desapareceu. Alberto deu o braço a Orsola e entraram nos aposentos.
Depois de a ter instalado na cama começou a despi-la, lentamente,
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com delicadeza. Cobriu-a com o lençol acetinado, tirou o casaco e debruçou-se sobre ela, cobrindo-lhe o rosto de beijos, ao mesmo tempo que lhe dizia, feliz:
- Amo-te tanto.
- Despe-te - sussurrou ela, enquanto lhe alargava o nó da gravata.
Alberto tirou a roupa e deslizou para junto dela. Então perguntou-lhe num murmúrio:
- Achas mesmo que eu já posso... Ele olhou para ela, confuso.
- Ainda não fizeste amor?
- Tinha medo de sentir dores. Então Alberto sorriu e disse-lhe:
- Espero fazer-te feliz. Orsola fechou os olhos e abandonou-se nos seus braços.
216
Aquela primeira sessão de quimioterapia não foi tão terrível como Orsola tinha receado. Sentia-se muito fraca, não tinha fome e esforçou-se, à noite, por tomar um
chá com bolachas. Não sentiu náuseas e não teve febre. Alberto, que chegou depois do jantar, auscultou-a, mediu-lhe a tensão e obrigou-a a beber um sumo de laranja.
Acariciou-lhe o rosto, arranjou-lhe a roupa da cama e disse-lhe:
- Amo-te. - Esperou que ela adormecesse e voltou à sala de estar, onde Damiana o esperava.
- Como é que ela está? - perguntou-lhe.
- Tudo bem - respondeu ele. - A Orsola é uma mulher forte. Amanhã vai estar melhor e depois de amanhã vão as duas passear. Mas nestas primeiras noites vou ficar
perto dela.
- Queres arrastar a Orsola para um precipício? Está casada e feliz e o marido continua muito apaixonado por ela - declarou Damiana, preocupada.
- Eu podia apanhar um avião, ir ter com o marido onde quer que ele esteja e dizer-lhe que amo a Orsola, mas de facto não tenho a certeza de que ela o quisesse. É
esse o meu problema, por isso vou fazer as coisas de modo a que ela não se aproxime do precipício. Amo-a demasiado para me arriscar a fazê-la sofrer. Damiana sorriu.
Aquele homem lindo e apaixonado enternecia-a. Despediu-se e foi para casa. Assim que ficou sozinho, Alberto entrou no quarto em bicos de pés. Orsola dormia profundamente.
Então ele despiu-se e enfiou-se
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na cama ao lado dela. Escutou por uns instantes a sua respiração regular e adormeceu também. A certa altura acordou ao sentir que Orsola se levantava. - Aonde vais?
- perguntou-lhe. - Vou a. casa de banho - respondeu, enquanto saía da cama. - Fica quieta e espera por mim. Eu vou contigo. - Estava já em pé, enfiou as calças e
foi ter com ela. - Sentes-te tonta? - Só um bocadinho. É bom acordar e encontrar-te aqui. Mas que horas são? - Quase sete. Faço-te um café? - perguntou. - Lês-me
o pensamento - respondeu Orsola, ao entrar na casa de banho. Lavou-se de forma sumária, olhou-se ao espelho, viu a palidez do rosto e beliscou as faces para ganhar
alguma cor; enfiou o roupão e foi até à cozinha. Alberto tinha-lhe preparado o pequeno-almoço com iogurte magro, sementes de linho, girassol, sésamo e abóbora, e
uma chávena de café. - De onde vieram estas sementes? - perguntou. - Trouxe-as eu ontem a noite. Tens de tomar isto todos os dias. Contêm muito cálcio, e para além
disso substituem os queijos, que deves excluir da tua dieta. Não faças essa cara de enjoada e come-as com o iogurte. É uma ordem do médico. - Tu não tomas o pequeno-almoço?
- Daqui a hora e meia tenho de estar no bloco. Por isso visto-me e vou a correr para o hospital. Para Orsola foi um dia interminável. Estava demasiado fraca para
se aguentar em pé, demasiado cansada para conseguir ler e para ouvir a conversa de Damiana, que nunca a deixou sozinha. Falou ao telefone com a sogra, com os filhos,
com o marido e com os amigos de Torre. Alberto, que lhe ligou repetidas vezes durante o dia, foi ter com ela depois de jantar e libertou Damiana,
que regressou a casa. Ao fim de dois dias Orsola estava melhor e saiu sozinha. Damiana tinha voltado ao trabalho e foi Orsola quem preparou o jantar. Na
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manhã do sétimo dia regressou ao hospital para o controlo de rotina. Alberto ligou-lhe para lhe dizer que estava tudo a correr as mil maravilhas e a noite foi buscá-la
para a levar a jantar fora. Estavam ambos com uma ótima disposição. De mãos dadas, passearam pelas ruas silenciosas do centro, escutando o ruído dos próprios passos.
- Sabes que volto para Torre amanhã? - disse Orsola. - Vou esperar que passem estas duas semanas e depois vamos estar juntos outra vez. Se eu seguisse o meu instinto,
não te deixava ir embora. Mas não devemos pedir demasiado a sorte, porque ela pode atraiçoar-nos. Agora vou levar-te a casa. Não te esqueças, minha querida, que
ainda temos esta noite toda para nós - disse Alberto, abraçando-a. Na manhã seguinte levou-a a estação, viu-a entrar na carruagem e sorriu-lhe quando ela apareceu
a janela, um instante antes de o comboio partir.
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9
- Saverio, na tua opinião, como está a mãe? - perguntou Edoardo ao filho. - Está bem. Porque me perguntas? - respondeu o rapaz. - Sei lá! A mim parece-me cada vez
mais estranha - comentou o pai. - Tu achas? - Saverio estava um bocado atrapalhado. - Lembras-te como ela estava no inverno passado? - Intratável. Nem me lembres
isso. Felizmente já não está assim. - Claro, nessa altura sentia-se mal e não dizia nada a ninguém. Depois descobrimos que tinha um tumor. Por sorte agora está curada,
mas ficou, não sei como hei de dizer, estranha - observou Edoardo, com um ar apreensivo. - A mim parece-me a mãe de sempre: meiga, simpática, cheia de atenções -
afirmou o filho. - Está ausente. Olha para nós, sorri, mas está a milhares de quilómetros de cada um de nós. Pai e filho confabulavam na varanda que dava para o
jardim onde Orsola se tinha refugiado a apanhar sol numa espreguiçadeira. Alberto tinha-lhe dito que não ia procurá-la e ela tinha-lhe prometido que lhe telefonava
se sentisse alguma perturbação. Estavam ambos a respeitar o pacto. Orsola e Edoardo tinham regressado a Torre há uma semana e ela fazia os possíveis por o encher
de atenções, por lhe dedicar pequenos gestos afáveis. Fingia entusiasmo relativamente à sua última viagem aos Estados Unidos e à China, em que tinha obtido resultados
excelentes. Usava a máscara da mulher tranquila na tentativa
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de se convencer sobretudo a si mesma. Repetia para si que a atração por Alberto não ia perturbar o seu equilíbrio familiar, mas tinha alguma dificuldade em gerir
aquela situação, até porque os sentimentos de culpa a atormentavam. O momento mais difícil foi aquele em que se encontrou na cama ao lado de Edoardo e ele deu início
a uma sedução cerrada, prelúdio de um amplexo que faltava entre eles há muito tempo. Ela fechou-se como um caracol, e depois conseguiu murmurar:
- Não consigo, querido, desculpa. Ele dirigiu-lhe um olhar aflito.
- Estás curada. Porque é que não consegues? Ela escondeu o rosto na almofada e começou a chorar. Ele levantou-se de repente, saiu do quarto e ela ouviu-o caminhar
na sala contígua, como um animal enjaulado. Queria muito entregar-se a Edoardo, não por si mesma, mas por ele. No entanto, não era capaz. Amava o marido infinitamente,
mas desejava Alberto, o arcanjo lindíssimo a quem devia a vida. Limpou as lágrimas e foi ter com ele a sala. Edoardo estava em pé, diante da porta envidraçada aberta
sobre a noite, a fumar. Tinha a testa franzida como nos piores momentos.
- Lamento muito - começou ela, com os olhos vermelhos de choro.
- Esquece, por favor - replicou ele. Apagou o cigarro e serviu-se de um whisky. Bebeu um longo trago. Ela aninhou-se num canto do sofá, em silêncio.
- Eu preciso de falar com o médico. Quero saber como está a minha mulher - disse Edoardo, irritado. Orsola sentiu-se gelar. Em vinte anos de casamento, podia contar
pelos dedos de uma mão as vezes em que tinha visto o marido tão zangado. Tinha acontecido, por exemplo, num dia em que apanhou um operário a roubar coral. Não foi
o valor do furto que desencadeou a sua ira, mas o facto de ele pagar generosamente aos seus funcionários. Não o denunciou para não fazer sofrer os pais do rapaz,
mas carregou no coração uma amargura que durou vários dias. Outra vez tinha-se enfurecido por ter descoberto que os
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voracissimos Scapece não tinham respeitado o pacto, assinado por todos os elementos da associação dos industriais do coral, de não baixar a cotação do ouro vermelho
em relação a um grupo de usurpadores de um país africano que adquiria toneladas de objetos em coral. Orsola recordou aquela história no momento em que o marido disse:
"Eu preciso de falar com o médico". Pensou que ele ia descobrir a sua relação com Alberto e ela não ia mexer um dedo para o impedir. Por isso replicou:
- Espanta-me que ainda o não tenhas feito. Limitaste-te a pedir informações A Damiana. Se falares com o ginecologista, vai confirmar-te aquilo que já sabes: eu estou
curada e estou a fazer quimioterapia como terapia preventiva. Mas acho que um marido não deveria limitar-se a informações em segunda mão. Edoardo pousou o copo numa
consola, foi junto dela e inclinou a cabeça:
- Se as coisas estão assim, porque é que eu não posso fazer amor com a minha mulher?
- Os meus pensamentos estão noutro lugar, e se aceitasse fazer amor contigo só te podia oferecer um corpo. Serve-te, se insistes tanto, mas ficas a saber que me
vou sentir violentada. De repente, o marido olhou para ela e, abraçando-a, disse-lhe:
- Desculpa, tenho muitas coisas de que me fazer perdoar, a primeira das quais é não ter percebido completamente o que estava a acontecer. Eu não te quero nos meus
braços como se tu fosses um objeto. Saberei esperar porque te amo muito, desculpa minha Orsetta. Semeou no rosto de Orsola uma quantidade de pequenos beijos que
lhe confirmaram, melhor do que as palavras, todo o amor que sentia por ela. Orsola chorou, desejando poder contar-lhe a estranha atração que Alberto exercia sobre
ela, como se, ao ter-lhe salvo a vida, ela lhe pertencesse de alguma forma e não pudesse esquivar-se dele. Agora, enquanto estava estendida na espreguiçadeira do
jardim, ouviu a troca de frases entre Edoardo e Saverio e sentiu-se tocada pela aflição do marido. Aquela história com Alberto tinha de terminar porque ela amava
Edoardo, o homem da sua vida, e disso ela tinha a certeza.
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10
- Segunda-feira da próxima semana tenho de voltar a Milão para a segunda sessão de quimioterapia - anunciou Orsola a Edoardo.
- Eu vou contigo, levo-te ao hospital na terça-feira para os exames preliminares e, como ainda vais estar em forma, quero levar-te às compras. Tenho necessidade
de te encher de presentes, Orsetta. Não me digas que não devo gastar dinheiro, porque já basta a minha avareza de judeu para me travar - brincou.
- Pensei que tinhas de fazer o circuito europeu - observou ela, displicentemente. Tremia perante a ideia de Edoardo querer encontrar-se com Alberto, o qual não lhe
telefonava, mas ligava a Damiana todos os dias para ter notícias dela, após o que a amiga lhe transmitia aquilo que ele tinha dito.
- Lembras-te, Orsola, quando andávamos nos primeiros anos do liceu e havia sempre uma colega que fazia de correio entre nós e os nossos namorados? - disse-lhe Damiana
uma noite.
- Era a Brambati. Ninguém lhe ligava, mas era a confidente dos rapazes e vivia o seu papel com muita seriedade. Naquele tempo ela ouvia aquelas idiotices babosas
do Menardi, tomava apontamentos
e submetia-me ao resumo exato dos delírios amorosos dele - recordou Orsola.
- Pois é, eu transformei-me na Brambati. Às vezes, à noite, o Alberto mantém-me ao telefone durante meia hora e fala-me de ti
como se tu fosses uma Nossa Senhora que ele nunca vai poder ter. Começo a ficar cansada deste papel.
223
Agora Edoardo respondeu-lhe:
- Em Milão apanho um avião para Paris, depois vou a Barcelona e a Madrid e dali vou a Londres. Mas só parto na quarta-feira, quando te derem o soro. Depois, como
de costume, a Damiana fica no meu lugar.
- Quando voltas?
- O último encontro coincide com o teu regresso a Torre. Estavam à mesa com a família toda. Margherita discutia com a amada filha Archetta, que fazia uma birra.
Queria um vestido de noite novo para ir à festa de aniversário de uma amiga e a mãe tentava inutilmente explicar-lhe que o armário dela estava a transbordar de vestidos
elegantes. Toda a gente sabia que, no fim, Archetta acabaria por levar a melhor, porque ninguém conseguia nunca recusar-lhe aquilo que ela queria. As crianças trocavam
piadas e comentários. Gianni e Paola faziam bolinhas com miolo de pão e atingiam Giulietta, que estava quase a chorar porque tentava por sua vez confecionar aqueles
pequenos projéteis sem conseguir. Cristina e Saverio planeavam um fim de semana em Sorrento com uns amigos. Uma bolinha lançada por Gianni acertou no prato de Edoardo,
que ficou furioso, ameaçou expulsar da sala de jantar os dois filhos mais novos e gritou: - Já não suporto ter à minha mesa estes pequenos insurretos que não sabem
o que é ter boas maneiras. Caiu o silêncio. Edoardo levantava raramente a voz, mas quando o fazia, tanto em casa como na oficina, toda a gente se calava. Naquela
noite Gianni dirigiu ao pai um olhar de desafio e gritou com uma voz histérica:
- Tu pegas sempre connosco. Comigo, sobretudo. De qualquer maneira, já toda a gente sabe que a Cristina e o Saverio são os teus preferidos. Orsola interveio:
- Pede imediatamente desculpa ao pai. Gianni, que tinha dez anos, estava a revelar-se um rebelde. Orsola disse para si mesma que devia haver uma razão para aquele
filho, que era o seu preferido, ser mais complicado do que os outros.
224
Em qualquer caso, aquele desafio não podia ser ignorado. Levantou-se, foi junto dele e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Gosto muito de ti, meu pequenino querido. Pede desculpa ao pai e assim eu fico a saber que tu também gostas de mim. Gianni baixou os olhos para o prato e disse
com uma voz límpida:
- Pai, desculpa.
- Obrigado, Gianni, por teres reconhecido o teu erro - respondeu Edoardo. Depois voltou-se para Orsola e perguntou-lhe num sussurro: - O que foi que lhe disseste
para o amansar?
- Que gosto dele - murmurou ela.
- Só isso?
1 - E achas pouco?
- És fantástica, minha Orsetta - disse-lhe em surdina. Na segunda-feira seguinte chegaram a Milão ao fim da tarde. Enfiado debaixo da porta de casa encontraram um
bilhete de Damiana para a amiga. Orsola leu-o. - É para avisar que vai chegar tarde a casa e que, de qualquer modo, amanhã de manhã vai comigo ao hospital - disse
Orsola de, pois de ter lido a nota.
- Então liga-lhe e diz-lhe que durma um sono tranquilo, porque desta vez estou cá eu.
- Vou já ligar - replicou ela, e isolou-se na varanda com o telemóvel na mão.
- Ele também vai lá estar à tua espera - avisou a amiga.
- Já imaginava. Está bem assim. Vemo-nos amanhã à noite anunciou, e desligou a chamada. Ficaram em casa, jantaram o que havia no congelador e foram cedo para a cama.
Enquanto se enfiava debaixo dos lençóis, Orsola recordou as noites que tinha passado com Alberto. O sentimento de culpa em relação a Edoardo pesava-lhe no coração
como um rochedo. Sentia-se culpada pelo seu próprio silêncio sobre a atração que sentia pelo médico e debatia-se entre a necessidade de ser sincera com Edoardo e
o medo de lhe infligir uma dor inútil, porque sabia que a história com Alberto não ia durar. Da sala
225
chegou até ela a voz do marido, que estava a falar ao telefone com os filhos.
- A mãe está a descansar e vocês portem-se bem, porque ela precisa de muita tranquilidade - explicava a um deles. Naquele momento sentiu que o amava ainda mais por
todas aquelas pequenas e preciosas atenções. Quando ele foi ter com ela, encontrou-a já a dormir. Na manhã seguinte, no hospital, depois de ter tirado sangue, Orsola
estava com o marido A procura de um lugar para se sentar, a espera que alguém a chamasse para outros exames; de repente, do fundo do corredor, com o seu passo inconfundível,
Alberto avançou em direção a eles. A bata branca, desabotoada, abria em leque sobre a camisa imaculada, e pareceu a Orsola que o Arcanjo Gabriel estava a abrir as
asas para voar ao encontro dela. Ele viu-a a ela e a Edoardo e cumprimentou-os; depois voltou-se para Edoardo e disse:
- Vou pedir para me mandarem o mais depressa possível os resultados das análises porque esta minha paciente é especial para mim.
- É especial sobretudo para mim, acredita - precisou Edoardo. Ela olhava alternadamente para os dois homens, ao mesmo tempo que o batimento do seu coração acelerava
de tal maneira que lhe cortava a respiração.
- Espero que as plaquetas estejam dentro dos valores normais. Em qualquer caso ligo-vos mais tarde para confirmar, e assim amanhã de manhã a tua mulher vai poder
fazer a segunda sessão de quimioterapia - comunicou o médico a Edoardo. - Lembra-te de que, durante alguns dias, a Orsola precisa de uma dieta líquida. Obriga-a
a beber muita água e também muitos sumos de fruta. Quanto à injeção desta noite... Edoardo não o deixou acabar.
- A Orsola disse-me. Não te preocupes, eu dou-lha.
- Ótimo - rematou Alberto, e afastou-se.
226
4 simmininommuum
11
Da clinica, Orsola e o marido dirigiram-se a pé ao largo Augusto e entraram na pastelaria Taveggia, para comer uns brioches recheados com compota, enquanto saboreavam
um café americano com leite. Pelo caminho tinham comprado uma série de jornais e agora, sentados a uma mesa na salinha ao lado do bar, folheavam-nos e comentavam
as notícias do dia. A manhã estava a chegar ao fim quando Orsola atendeu o telemóvel. Era Alberto. Ouviu-o, assentiu e finalmente disse:
- Obrigada por tudo. Vou fazer isso.
- Então? - perguntou Edoardo.
- Os resultados dos exames são bons. Querias ir às compras comigo, não é verdade? Então chegou o momento de poderes gastar à grande. Entretanto levas-me ao cabeleireiro,
porque tenho de cortar o cabelo. Sabes que preciso, não sabes?
- Nem ousava perguntar-te, mas imaginava que tivesses de o fazer - respondeu ele, fazendo-lhe uma festa. - Mas depois volta a crescer, não volta?
- Daqui até lá vou ficar careca. E então? - disse ela, à espera que ele tirasse uma conclusão.
- Vamos comprar uma peruca. É só isso, o teu conceito de esbanjar dinheiro?
- Da última vez que fui ao cabeleireiro estive a ver as perucas que havia à venda. São muito caras e eu queria comprar três.
- Porque não trinta? Uma para cada dia do mês? - gracejou Edoardo.
227
Para aquela rapadela impiedosa, Orsola foi instalada numa cabine reservada; quando saiu, o marido quase não conseguiu reconhecer a mulher. Diante dele estava uma
bonita rapariga, vestida com um fato de linho branco, apertado com um cinto alto em pele de um verde esmeralda vivo que sublinhava uma silhueta perfeita. Do bolso
do peito despontavam os bicos de um lencinho de seda da mesma cor, que se repetia na cabeleira. Orsola, com efeito, trazia uma peruca verde esmeralda de cabelos
lisos com uma pequena franja a cobrir a testa e sorria-lhe com um ar divertido.
- Meu Deus, estás uma mulher de cartaz publicitário! - exclamou Edoardo.
- E ainda não viste as outras duas perucas. Uma é vermelho morango e a outra azul Nossa Senhora - anunciou ela. - Não te resta senão ir A caixa e pagar a conta -
acrescentou.
- Nunca na minha vida tinha dado tanto nas vistas - disse Edoardo, satisfeito, quando saíram para a rua e as pessoas se viravam a olhar para aquela bonita rapariga
que caminhava segura, de mão dada com o homem elegante que seguia ao seu lado. Edoardo quis oferecer-lhe um tailleur de seda no tom das outras duas perucas. A noite,
antes de se deitar, Orsola descobriu a cabeça. Olhou-se ao espelho, conteve as lágrimas e embrulhou a cabeça rapada num lenço, porque não queria que o marido a visse
sem cabelo. Na manhã seguinte Edoardo levou-a à clínica e, enquanto se afastava para apanhar o táxi que o levaria ao aeroporto, cruzou-se com Alberto Somaschini.
- A minha mulher entrou agora. Toma conta dela - pediu-lhe.
- Claro - garantiu Alberto. Damiana foi buscá-la ao hospital, levou-a para casa e ficou com ela até à noite, quando o médico tocou A campainha.
- Como é que ela está? - perguntou a Damiana, que lhe tinha aberto a porta.
- Agora está a dormir. Não teve febre, mas está completamente
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exausta. Não comeu nada e só bebeu porque eu a obriguei. Vou deixar-vos, porque também estou cansadíssima - respondeu. Alberto esteve atento a Orsola toda a noite
e ela deixou-se tratar com docilidade. - Querida, acorda e levanta-te - sussurrou-lhe. - Que horas são? - perguntou ela. - São sete. Daqui a meia hora tenho de sair
e quero ver-te tomar o pequeno-almoço antes de me ir embora - disse Alberto, enquanto vestia o casaco. Orsola abriu os olhos e constatou que, durante a noite, o
lenço lhe tinha escorregado da cabeça. - Não quero que tu me vejas assim - balbuciou, confusa. - Estás lindíssima - rebateu ele. Ajudou-a a levantar-se, levou-a
à casa de banho, pô-la diante do lavatório e disse-lhe: - Lava a cara. Estou ali à tua espera. Orsola entrou na cozinha com as mãos entrelaçadas sobre a cabeça,
enquanto Alberto afastava a cadeira para ela se sentar. Uma vez que continuava a cobrir a cabeça, ele observou: - Tens o crânio mais sexy que eu alguma vez vi. Agora
bebe o sumo e come as tuas sementes.
Ela olhou enjoada para a comida que estava em cima da mesa, bebeu sem vontade o sumo de laranja e anunciou: - Vou outra vez para a cama. Estou demasiado cansada.
Ele compôs-lhe a roupa, deu-lhe um beijo na testa, saiu, tocou à porta de Damiana, que foi abrir ainda ensonada, e disse-lhe: - A tua amiga hoje não está em grande
forma. Desta vez a conversa é um bocado mais pesada, mas logo A. noite vai estar melhor. Eu tenho de ir a correr para o hospital. Depois ligo-te para me dares notícias.
Obriga-a a comer, porque não quis tomar o pequeno-almoço. Por favor, Damiana, desculpa por te ter acordado tão cedo. No fim de semana Orsola já tinha recuperado,
pegou nas suas perucas e no domingo foi jantar com Alberto ao Baretto, o restaurante que tinha substituído o St Andrews, encerrado já há alguns anos.
Levava um vestido violeta com a peruca vermelho morango e olhar para ela era um regalo para os olhos.
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Estavam ambos muito silenciosos. Ele estudava a ementa para escolher os pratos mais indicados para Orsola, ela perscrutava aquele amigo fantástico que nutria em
relação a ela uma dedicação quase paterna. Analisava a franja escura e luzidia das suas pestanas, a testa lisa, a mãos bem modeladas. Quando o marido a tinha acompanhado
ao hospital para a segunda sessão de quimioterapia e partira a seguir, Alberto tinha-se sentado ao lado dela, estendida numa cama, depois de lhe ter enfiado na veia
a agulha para o soro.
- Ontem de manhã vi-te com o teu marido e fiquei capaz de morrer - confessou-lhe.
- Eu estava a sofrer por ti e por ele - respondeu Orsola, e acrescentou: - Tu e eu estamos metidos numa história impossível, porque eu amo o meu marido e a minha
família.
- Eu sei. Mas tu acreditas no amor à primeira vista? - perguntou ele, triste. Orsola não respondeu e limitou-se a sorrir-lhe com doçura. Agora Alberto ergueu os
olhos da ementa e observou:
- Daqui a poucos dias o teu marido vai voltar para te afastar de mim para sempre. É mesmo verdade? - Não esperou que ela respondesse e murmurou: - Queres vir a minha
casa, esta noite?
- Será que uma última noite de amor vai anular o teu desespero e o meu? - respondeu ela, olhando-o intensamente nos olhos. Ele estendeu uma mão para apertar a de
Orsola.
- Proporcionaste-me momentos fantásticos e eu vou fazê-los durar durante toda a minha vida - murmurou Alberto, comovido.
230
ORSOLA
1
Tinham passado dez anos depois daquela noite. Durante alguns meses, depois de cada sessão de quimioterapia, Orsola voltou a encontrar Alberto no hospital para os
controlos periódicos. Ele viu-a algumas vezes no seu consultório, na via Big e depois, se ela estivesse sozinha, almoçavam no restaurante do Grand Hotel, a dois
passos do consultório. Um dia ela disse-lhe:
- Está a tornar-se cada vez mais difícil para mim continuar a encontrar-me contigo. Imagino que para ti seja a mesma coisa. Talvez devesse arranjar outro ginecologista.
- Eu também acho. Vou recomendar-te um colega meu que trabalha no Cardarelli de Nápoles. Tenho muita consideração por ele e vou falar-lhe do teu caso. Vou escrever-te
já os contactos dele concordou Alberto. A partir daí não voltaram a encontrar-se, apesar de Orsola pensar nele, de vez em quando. Agora, num impulso, marcou no telemóvel
o número de Alberto, quase esperando que tivesse mudado entretanto. Mas ele atendeu ao primeiro toque.
- Orsola - disse.
- Olá - respondeu ela.
- Como estás? Soube do teu marido. Sinto muito por ti e por toda a tua família.
- Obrigada. Eu soube do teu casamento e da separação.
- Estou condenado a ficar solteiro toda a vida.
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- Onde estás agora? - No hospital. Esta noite tenho de acompanhar uma doente um pouco difícil. Continuo a ajudar a nascer os filhos dos outros. E tu? - Estou com
mil e um problemas para resolver, tanto com os meus filhos como com a empresa, e é um grande cansaço, físico e psicológico. - Calou-se por um instante e acrescentou:
- Vivemos uma história fantástica, os dois. - Uma daquelas que deixam marca. Já não estava A espera que me ligasses. Achas que podemos voltar a encontrar-nos? -
Não sei. Provavelmente, se não tivéssemos estado juntos, tu estavas agora casado e feliz e tinhas um exército de filhos. Sinto-me responsável pela tua solidão. -
Mas eu nunca estive sozinho. Tu estavas sempre comigo. Estavas também quando arranjei uma mulher. De facto foi ela que me deixou, porque não conseguia viver a partilhar
o marido com o fantasma de outra mulher. Mas tu estás a chorar! - Estou tão cansada, Alberto. - Vem ter comigo. - Agora não. Quando estiver mais tranquila. - Estão
a chamar-me. Tenho de te deixar. Tem cuidado contigo e telefona-me. Orsola desligou a chamada e apagou a luz da mesa de cabeceira. Limpou as lágrimas com a dobra
do lençol e, pouco depois, adormeceu.
Às cinco tocou o despertador e ela levantou-se de um salto. Queria preparar o pequeno-almoço para Saverio e despedir-se dele antes de partir. Saverio foi ter com
a mãe no momento em que ela estava a pôr a mesa da cozinha para dois. Leite a ferver, café acabado de fazer e uns folhados recheados com ricotta acabados de sair
do micro-ondas estavam alinhados em cima da mesa de mármore. Apesar de estar bem barbeado, perfumado e vestido com cuidado, Saverio tinha ainda os olhos inchados
de sono. Orsola sentiu uma onda de reconhecimento por aquele rapagão, tão parecido com Edoardo, que encarava o trabalho com um grande sentido de
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responsabilidade. Enquanto ele trincava um folhado, ela estendeu uma mão para lhe compor uma madeixa de cabelo que lhe caía sobre a testa. Naquele momento, Gianni
apareceu na cozinha de rompante. Também ele estava vestido e barbeado. À maneira dele, evidentemente. Trazia uns jeans rasgados, uma T-shirt esbambeada, preta, com
o desenho fosforescente de uma caveira e o nome de um grupo rock.
- Estou a interromper o namoro? - perguntou, tendo captado o gesto afetuoso da mãe.
- Também queres tomar o pequeno-almoço? - perguntou Orsola, ignorando a provocação.
- Se puder - respondeu Gianni, sentando-se ao lado do irmão.
- Vou levar-te ao aeroporto, e assim passo pela alfândega a ver se chegou de Marrocos aquela remessa de coral de que estamos à espera. Saverio e Orsola olharam-se,
espantados, e não ousaram fazer comentários. Gianni era sempre o último a levantar-se, de manhã, e depois cirandava pela casa a resmungar e a criticar tudo e toda
a gente. O que lhe tinha acontecido? Orsola ofereceu-lhe uma chávena de café com leite e perguntou:
- Querido, estás bem?
- Acho que sim. E tu, meu irmão, podias ao menos agradecer-me pela colaboração - replicou.
- Acho-te um bocado cansado. Não dormiste bem? - perguntou-lhe Orsola, a tentar perceber o que tinha acontecido a Gianni.
- Esta noite estive a analisar o balanço dos nossos negócios no estrangeiro. Há alguns dados que não batem certo para mim. Hoje de manhã quero verificar os registos
e perceber o que é que não me convence - respondeu, tranquilo.
- Pois, o pai nos últimos tempos tinha comentado qualquer coisa a propósito disso - concordou Saverio. - Se enquanto eu estiver fora me traçares um quadro da situação,
fico-te realmente muito grato.
- Gianni, deixa ver se eu entendo. Até ontem este nosso trabalho desagradava-te e agora... - interveio a mãe.
- Continua a desagradar-me, mas o meu irmão, sozinho, não
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pode tratar de tudo e portanto, pelo menos para já, decidi dar-lhe
uma ajuda - explicou, enquanto devorava o segundo folhado.
- Bem-vindo a bordo, meu irmão - disse Saverio com um sorriso.
Foram-se embora juntos, a dar um ao outro pancadinhas e em-
2 purrões e a trocar uma série de epítetos divertidos. Orsola deixou-se cair numa cadeira e cobriu o rosto com as mãos. Não sabia se havia de rir ou chorar de alegria.
Nunca acreditara em milagres, mas aquilo que tinha acontecido naquela manhã de junho, A mesa da cozinha, era uma coisa que se parecia muito com isso. E convenceu-se
de que o marido, onde quer que estivesse, continuava ainda a guiar os destinos da família. Orsola parou o carro em frente ao portão da villa Rosita, uma construção
baixa e larga imersa numa mata de pinheiros marítimos do Vesnvio. O portão elétrico abriu-se lentamente, depois de ter sido enquadrada por uma câmara de videovigilância.
Percorreu uma alameda coberta de saibro que serpenteava pelo interior de um jardim de agaves floridos e dálias rubras. Ultrapassou o edifício que albergara as oficinas
para a laboração do coral, agora desertas, e parou diante da entrada da villa. Saiu do carro e veio ao encontro dela um empregado indiano.
- Bom dia, dona Orsola. A dona Rosita está à sua espera no alpendre - disse o homem. - Eu acompanho-a. Dona Rosita, placidamente sentada numa poltrona de vime,
saboreava um granizado de café, protegida por dois pastores alsacianos que se levantaram de um salto com a chegada da visita, emitindo uma rosnadela surda.
- Quietos, meus meninos - ordenou dona Rosita. Os dois cães aninharam-se outra vez, um de cada lado da dona, enquanto esta se levantava para abraçar Orsola e a convidava
para se instalar ao pé dela.
- Bem-vinda, minha querida. Aceitas um granizado?
- Preferia um café - respondeu. Depois comentou: - O amarelo fica-lhe muito bem, está fantástica. A senhora, uma industrial do coral com oitenta anos, trazia efetivamente
uma camisa comprida de seda cor de açafrão e, à volta do pescoço, uma grande torsade de coral rosa japonês. Os cabelos
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curtos, obstinadamente pintados de preto, assim como as sobrancelhas, emolduravam um rosto cansado e melancólico.
- Tu achas? Eu arranjo-me, eu pinto-me, eu visto-me na ilusão de derrotar a degradação da velhice, à qual estou grata por apenas me ter enfraquecido a vista, porque
assim quando me vejo ao espelho não distingo bem a mina em que estou.
- Eu lembro-me de como era há trinta anos: a senhora do coral mais bonita de Torre. A sua beleza não a abandonou, dona Rosita disse Orsola. Judy, o empregado indiano,
serviu o café e anunciou:
- O senhor comendador está ao telefone. Pede para ter paciência e esperar cinco minutos.
- A minha paciência com ele dura há sessenta anos - comentou Rosita. Depois, com um gesto, mandou embora o empregado.
- Aposto que está ao telefone com o Scapece. Aquele, quando cheira um negócio, não larga a presa. É pior do que uma lapa. Para além do mais, tem um bando de netos,
todos para arrumar. Propõe-se comprar a casa, o laboratório e o parque, com todos os anexos, incluindo o nosso museu. Que coisa triste, aproximarmo-nos do fim da
vida e ver gente à nossa volta, como cães esfomeados, a disputar o que resta.
- Dona Rosita, espero que entre essa gente não inclua os Sogliano, porque don Edoardo, o meu pobre marido, não tinha feito nenhuma proposta a don Ciro - esclareceu
Orsola.
- Minha filha, nesta nossa terra de gente relacionada com o coral, os Sogliano são os reis. Os outros, incluindo nós, os Mongiello, somos apenas vassalos ricos.
Alguns de nós são muito mais ricos do que a casa reinante, mas os Sogliano estão sempre no seu lugar para nos lembrar que a riqueza não é tudo e que o estilo não
é mercadoria que se venda. Podes sentir orgulho na herança que o teu marido te transmitiu, a ti e aos teus filhos. Nós, na nossa pequenez, sempre tentámos imitar-vos
- declarou dona Rosita. Os cães despertaram daquele aparente torpor e começaram a correr e a abanar a cauda para saudar o dono que tinha saído de casa e, apoiado
numa bengala, avançava com um passo pouco firme em direção às duas senhoras.
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Orsola foi ao encontro dele e o velho don Ciro apoiou-se nela também, antes de se deixar cair numa poltrona.
- Já ouviste o rosário de queixumes da minha mulher? - perguntou-lhe.
- Vim cá na esperança de levar a bom termo a sua proposta, don Ciro. O meu filho Saverio partiu de madrugada para o Japão. Portanto... Ele interrompeu-a.
- Excelente rapaz, aquele teu Saverio. Será um exemplo também para o Gianni. Já tomaste o café? Muito bem. Então, ouve. Tenho em armazém novecentos quilos de coral
de Sciacca e seiscentos de Barberia. É tudo teu, e até podes mandar buscá-los imediatamente. Quanto ao resto... Orsola interrompeu-o por sua vez.
- Obrigada, don Ciro. Mas como combinamos o pagamento?
- Neste momento tens demasiadas preocupações para poderes tratar destas coisas. Fico feliz por o meu coral ir parar as mãos dos Sogliano. Não sei se esta linguaruda
da minha mulher te disse, mas ficas a saber que tudo o resto vai ficar para a fundação Mongiello. Admiras-te por termos instituído uma fundação? Queremos tirar da
rua muitos jovens que não sabem o que fazer da sua vida. Oferecer-lhes a possibilidade de aprenderem uma profissão difícil e digna. Porquê mandá-los cavar na horta
do desemprego e da delinquência? A quem, senão a eles, podemos deixar as riquezas acumuladas por mim e por quem veio antes? Mais vale que trabalhem e que continuem
a produzir obras de arte que se possam exportar para o mundo inteiro. Este nosso mundo, cheio de coisas feias, tem de se salvar. A beleza, aquela que nós produzimos
há decénios, contribuirá para a salvação. Então, Judy, o meu café! - terminou, levantando a voz.
- Não sei como lhe agradecer, don Ciro - disse Orsola, que não estava a espera de tanta generosidade.
- Eu é que nunca estarei suficientemente grato a don Edoardo Sogliano por tudo o que fez pela nossa comunidade, e por mim também. Era um homem de poucas palavras,
mas um empreendedor generoso e de vistas largas. Era ainda um rapaz quando lhe caiu
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em cima o peso da administração da empresa. Podia ter escolhido entre a vida despreocupada do estudante e a vida espinhosa do empreendedor. Naquele tempo, veio ter
comigo, já que eu era amigo do pai, e disse-me: Don Ciro, oriente-me". É claro que a dona Margherita o tinha educado bem, mas eu tratei dele como se fosse meu filho.
Fizemos muitas viagens juntos. Ele observava, ouvia, aprendia. Lembro-me da nossa viagem a África. Dois homens de Torre no continente negro. Ninguém apostaria um
tostão naquela nossa aventura de pioneiros. Mas afinal o tempo acabou por nos dar razão.
Orsola conhecia aquelas histórias e outras mais, porque Edoardo e a sogra já lhas tinham contado. Assim como sabia que daquela viagem aventureira a África, Edoardo
tinha levado para casa antigos ornamentos e colares de coral e âmbar do deserto, que tinham contribuído para enriquecer o museu da família. Mas teria don Ciro sido
igualmente protetor se o herdeiro Sogliano tivesse sido uma mulher? Agora entregava-lhe grande parte do conteúdo do seu armazém, recusando-se a falar em dinheiro.
Por isso replicou:
- Don Ciro, espero não ter razão no que estou a pensar, mas o senhor fala e fala e não me faz um preço. Será que não se sente vontade para falar de dinheiro por
eu ser mulher?
- Oh, já percebeste! Ele é um machista insuportável - interveio dona Rosita. Eu nunca pedi nem dei dinheiro a nenhuma mulher. E tenho orgulho nisso. Eu acerto tudo
com o Saverio - resmungou don Ciro. E prosseguiu: - Mas isto, minha querida Orsola, não significa que não te estime. E agora despacha-te a mandar buscar o coral.
- Anda comigo, filha. Vamos embora, porque já não aguento ver este velho resmungão - sugeriu a dona Rosita, levantando-se da poltrona com agilidade. Acompanhou Orsola
ao carro e disse-lhe:
- Está com pressa de partir. E eu também não vejo a hora de me ir embora. Depois de sessenta anos de trabalho, vamos finalmente fazer umas férias.
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3
Orsola, Gianni e Cristina estavam no depósito blindado a admirar a quantidade de coral que tinha acabado de chegar do armazém dos Mongiello quando Margherita foi
ter com eles. Cada um deles tinha um ramo na mão e rodava-o entre os dedos, a refletir, num silêncio quase religioso, sobre aquela estranha matéria do mar que, uma
vez trabalhada, produziria objetos de grande beleza. Cristina criava valiosos objetos ornamentais, Gianni avaliava o seu valor de mercado, Orsola pensava em como
o marido teria ficado feliz se tivesse visto aquela bênção. Marghenta, por seu lado, lembrava-se de quando era pequena e lhe falavam do pai, o professor Giovanni
Lanzetta, catedrático da cadeira de Anatomia Comparada na Faculdade de Ciências da Universidade Federico II de Nápoles, um dos primeiros estudiosos de Biologia Marinha
que tinha participado na corrida dos habitantes de Torre em direção às jazidas de Sciacca, ao longo da costa siciliana. Em poucos anos, os pescadores de coral tinham
apanhado cerca de onze milhões de quilos de um coral que, de alguma forma, tinha sido considerado de segunda qualidade por causa da cor um pouco apagada; só mais
tarde se percebeu o valor de um material que era único - nunca se encontraria nada igual nos mares de todo o mundo.
- Isto é coral morto - sentenciou naquela época o pai de Margherita. Agora, à distância de mais de um século, a velha senhora disse:
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- Estes minúsculos ramos sofreram as erupções dos vulcões submersos, a violência dos tsunamis e as devastações que provocaram no nosso mar. A força incontrolável
da natureza arrancou-os e quando regressou a calma, já sem vida, foram arrastados pelas ondas que lentamente os transportaram até à grande fossa ao largo de Sciacca.
Repousaram durante milénios, antes que o acaso os trouxesse à luz e o engenho do homem os transformasse em objetos preciosos. Ninguém fez comentários. Saíram do
armazém, Gianni fechou a maciça porta blindada, reativou o sistema de alarme e, juntos, subiram até aos escritórios. Orsola mandou um e-mail a Saverio para o avisar
de que a mercadoria estava a salvo e depois prosseguiu: O Mongiello recusou-se a falar em dinheiro. Diz que trata disso contigo, mais tarde, porque agora vai de
férias com a mulher. Eu não insisti, porque a prioridade era ter o coral em casa. Recusou um recibo ao Gianni quando o foi buscar com alguns homens e disse-lhe textualmente:
catraio, não me chateies. Don Ciro Mongiello nunca se armou em esperto, nem com o fisco, nem com os amigos. A mercadoria apenas muda de depósito, do meu para o dos
Sogliano. Ponto final." O que é que havemos de fazer? O que é que o pai teria feito? Saverio respondeu-lhe imediatamente: Mãe, tu és o máximo! Ainda não percebeste
que é um presente? Orsola respondeu: Porquê? E Saverio escreveu:
Agora tenho que fazer. Vai ter com a avó, ela que te conte. Dona Margherita, como todos os dias ao fim da tarde, tinha ido ao cemitério dar as boas-noites ao marido
e aos dois filhos que ali repousavam. Sentava-se no banco, dentro da capela dos Sogliano, deixava correr entre os dedos as contas do rosário e depois entregava-se
a breves solilóquios que diziam respeito à família e à empresa e que se concluíam com a pergunta: "Tu que dizes? Achas bem fazer isto?" Obviamente não estava à espera
de respostas, mas aclarava as ideias. Depois confessava candidamente que, por muito
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dolorosa que tivesse sido a separação do marido e dos dois filhos, não tinha pressa nenhuma de ir ter com eles. "Estou de boa saúde e continuo a amar a vida", afirmava,
desejando que aquele ritual da visita do fim da tarde continuasse ainda durante uns bons tempos. Quando viu a nora aparecer à porta da capela, dirigiu-lhe um sorriso
e disse: - Anda sentar-te aqui. Sabes, estava a conversar, como sempre, com os nossos homens. - Eu queria falar consigo, longe de todos. Queria perguntar-lhe a razão
pela qual os Mongiello nos ofereceram aquela enorme quantidade de coral tão valioso. - Don Ciro quis saldar uma dívida com oitenta anos. Todos nós temos a memória
longa e certas coisas, tanto boas como más, não esquecemos. Sem os Sogliano, os Mongiello, como industriais do coral, tinham morrido há cem anos. Não sabias disso?
- Não, se soubesse não lhe vinha perguntar. - Durante aqueles anos, a gente do coral, depois de o apanhar em bruto, lavava-o, deixava-o secar e depois punha-o no
banco. Porque ali estava a salvo. Os compradores iam ao banco, pagavam o preço estabelecido e depois levavam-no com eles. Eram tempos difíceis, porque depois das
enormes quantidades de coral retiradas da jazida de Sciacca, os preços tinham caído. Ano após ano, inexoravelmente, o coral estava a passar de moda. Perdia o seu
significado ornamental e também o da superstição adquiridos ao longo dos séculos. Já os egípcios, que o consideravam sagrado para Isis, o reduziam a pó e o espalhavam
pelos campos para os proteger dos escaravelhos. E, mais tarde, os romanos atribuíram-lhe a virtude de estancar as hemorragias e de proteger as crianças das convulsões
e das dores da dentição. Na Idade Média dizia-se que protegia dos raios e do granizo. No século xix oferecia-se às amas, para que continuassem a produzir bom leite.
Quanto coral nós vendemos no Lacio e em Ciociaria, terras de amas extraordinárias! Depois foi a queda. Os Mongiello, que eram armadores, concluíram as últimas expedições
com perdas avultadas e, para evitar a desonra da falência, venderam tudo, até a frota dos barcos da pesca do coral. Como sempre acontece nestes casos, muitas famílias
do setor, as que tinham investido pouco, engordaram com as
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desgraças dos outros. Os Sogliano, que tinham sido armadores por sua vez, tendo farejado o perigo algum tempo antes, tinham-se retirado da pesca e incrementado a
laboração do coral, procurando novos mercados em Londres e noutras capitais europeias. Mas o pai do meu sogro comprou enormes quantidades de coral bruto aos Mongiello,
ajudou-os a saldar as dívidas e depois financiou-os para abrirem a primeira oficina. A seguir cedeu-lhes uma parte do coral ao mesmo preço de falência a que, sempre
a eles, o tinha comprado. Foi a salvação, para os Mongiello, que reconstruíram um grande património. Agora, o último da família, aquele velho mal-encarado do Ciro,
quis acertar as contas. Percebes o que aconteceu? - contou a sogra. - Para além do mais, don Ciro não está lá muito bem; quanto tempo poderá viver ainda? Não tem
herdeiros e lembrou-se de nós - acrescentou.
- Ao fim de quase cem anos?
- Volto a dizer-te: a gente do coral tem a memória longa e alguns, como os Mongiello, são autênticos senhores - concluiu Margherita.
- Mas ele não especificou que nos estava a dar um presente.
- Porque não o teríamos aceitado. Limitou-se a dizer que o seu coral mudava de depósito, do armazém dele para o nosso. Sogra e nora regressaram a casa quando era
já hora de jantar. A família estava a sentar-se à mesa e Archetta ostentava, como todas as noites, o seu diadema de coral vermelho fogo de Barberia.
- Que linda estás, tia Archetta - disse Giulietta, sabendo que a fazia feliz.
- Eu sei. Com este diadema na cabeça sinto-me uma rainha. O meu irmão deu-me um grande presente e nem penses em pedir-mo emprestado, porque nunca o vou dar a ninguém
- declarou. Depois baixou a voz, levou o indicador aos lábios a significar que ia dizer alguma coisa importante, e murmurou: - Hoje, nas oficinas, e nos escritórios
também, houve uma grande animação entre os empregados.
- A sério, Archetta? E sabes dizer-me porquê? - perguntou a mãe com doçura.
- Por causa do coral que entrou no armazém! Agora estamos mais ricos do que os Scapece.
- Tia, gostas de ser rica? - perguntou Cristina.
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Que pergunta! Olha que eu sou Down, mas não sou estúpida rebateu, agastada. As vezes, Archetta dava umas respostas fulminantes que deixavam a família perplexa. Naquela
noite, a ausência de Edoardo pesava particularmente sobre o coração de todos eles, de tal forma que Orsola disse:
- O pai está aqui connosco, e é o mais feliz de todos.
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Gianni ergueu bem alto o copo de vinho e propôs:
- Vamos fazer um brinde ao pai.
- E à longa e atribulada história da nossa família. Mas lembrem-se disto: os lutos e as inúmeras dificuldades que nos atingiram nunca nos deitaram abaixo, assim
como os sucessos e as alegrias nunca nos exaltaram. Continuemos a olhar em frente sem nunca perder de vista a coesão da família e a dedicação ao trabalho - propôs
Margherita Sogliano, erguendo por sua vez o copo para brindar.
- E que assim seja - concluiu Orsola, erguendo o seu copo, imitada pelos filhos.
- Agora podes servir - disse Margherita A empregada, que esperava muito direita junto A consola. Entre duas garfadas de lasanha, Gianni voltou-se para Cristina.
- Hoje vi os teus esboços para a nova coleção. Já os fizeste em cera? - perguntou.
- Ainda não, porque ainda não tenho a certeza em relação aos fechos dos colares e das pulseiras - explicou a irmã. - Para além disso, preciso de dois ramos bons,
um de Cerasuolo e outro de Sciacca, para os fotografar.
- Para fazer o quê? - perguntou Giulietta.
- Pediram-me para escrever um artigo para uma revista do Ministério do Ambiente. Tenho de explicar as diferenças de estrutura entre o coral morto e o vivo.
- Pagam-te para isso? - perguntou Gianni.
- Não sei - respondeu ela, com indiferença.
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- Mas uma vez que és tu que escreves... - interveio Giulietta.
- E atendendo a que são assuntos meus... - interrompeu Cristina.
- Eu ajudo-te a procurar os ramos para fotografares - ofereceu-se o irmão. Orsola e a sogra entreolharam-se e sorriram uma a outra, porque os jovens Sogliano, apesar
das esporádicas rebeliões, as incursões a outras realidades, os projetos revolucionários que excluíam o coral, ao fim e ao cabo estavam ali todos a tratar do negócio
da família. No fim do jantar, Archetta pediu a Titina:
- Traz-me o estojo. - Referia-se a caixa antiga de madeira forrada a veludo e camurça que era o invólucro do seu diadema. Tirou-o com um gesto delicado e solene,
pousou-o com cuidado no estojo, fechou-o e entregou-o a Titina.
- Volta a pô-lo no meu quarto.
- Eu vou comer um gelado ao Miglio d'Oro. Quem vem comigo? - perguntou Cristina. O Miglio d'Oro era o hotel mais bonito da zona e, A noite, o jardim verdejante,
refrescado por fontes e repuxos, era frequentado pelos jovens expoentes do mundo de Torre.
- Mama, também posso ir? - perguntou Giulietta.
- Esquece. A tua irmã é grande e não te quer levar - disse Orsola.
- É isso mesmo - rematou Cristina, enquanto saía da sala de jantar.
- Eu vou contigo - ofereceu-se a tia Archetta.
- Obrigada, não é preciso incomodares-te - tentou escapar Giulietta.
- Vamos jogar umas cartas? - interveio Gianni, voltado para a irmã.
- Mas tu não tens de ir ter com a Maria Sole?
- Ela não sai hoje A noite - respondeu.
- Rosária, faz-me uma tisana e leva-ma à minha sala - disse dona Margherita.
- Eu levo-lhe a tisana - ofereceu-se Cetta, a empregada de trinta anos que tinha sido contratada há pouco tempo para ajudar as duas
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mais velhas. E explicou, num tom baixo, a Margherita que Rósária, há algum tempo, se queixava de dores fortes nos joelhos. - Mas não quer que se saiba - acrescentou.
- Amanhã de manhã vai ser preciso chamar o médico, mesmo sabendo que vamos ferir o seu orgulho - decidiu Margherita, enquanto se dirigia à sala, seguida pela nora.
- E também me parece que a Titina não está numa forma extraordinária - observou Orsola. - Por estes dias estive a pensar que era preciso arranjar outra empregada
para ajudar a Cetta. O que acha, mãe? Vamos pedir um conselho ao monsenhor Bartiromo? Era sempre o pároco da basilica de Santa Croce que sugeria as pessoas melhores.
Margherita anuiu e explicou:
- Há duas noites que tenho de me levantar da cama para ir ver como está a Rosária. Diz que está bem mas, como vês, não podemos acreditar nela. O palácio Sogliano
precisava de muito pessoal, mas tanto os empregados que se ocupavam dos trabalhos mais pesados como as costureiras que realizavam tarefas mais delicadas trabalhavam
ali apenas de dia. À noite cada qual regressava a sua casa, à exceção de Rosária, Titina e Cetta. Tinha sido o marido de Margherita a implementar aquele sistema,
afirmando que os tempos de Fernando de Bourbon, quando os criados dormiam nas escadas do palácio real e só conheciam a alegria de um leito quando estavam moribundos,
tinham passado há muito tempo. Sogra e nora instalaram-se nas suas poltronas na sala pequena e Cetta serviu as tisanas. Enquanto Margherita tomava a sua, de flor
de laranjeira, Orsola esfarelava nervosamente uma casca de limão cristalizada. Sentia que tinha chegado o momento de lhe falar da existência de um neto desconhecido,
mas não sabia por onde começar a conversa.
- Gostaria de ir a Genebra nestes próximos dias - começou a dizer.
- Acho que vais ter de começar a viajar com mais frequência, agora que o nosso Edoardo já cá não está - observou a sogra. - Não podes pensar em deixar tudo em cima
do Saverio. Três quartos da
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nossa produção destinam-se ao estrangeiro e os nossos agentes na
China, no Japão, na Índia e na Rússia têm de ser controlados. Já para não falar no mercado americano. O teu filho precisa da tua ajuda e tu sabes como te deves mexer
no nosso meio.
- De facto estava a pensar em Genebra... - tentou esclarecer Orsola, mas a sogra deteve-a.
- E Inglaterra, França, Alemanha? Não podemos dar a impressão de que, morto o Edoardo, estamos a perder terreno. A firma Sogliano não pode, aliás, não deve dar-se
ao luxo de largar a presa. Estamos a viver momentos muito difíceis. Vê só as condições para que nos arrastaram tanto os políticos como os bancos... Gente ávida,
corrupta e incompetente. Nós, que trabalhamos com o coral, sabemos desde sempre que o nosso trabalho está estreitamente ligado à nossa capacidade de andar pelo mundo
fora, a observar outras realidades e a fazê-las nossas. Alguma vez te contei de um bisavô
Sogliano que ia ao Japão quase exclusivamente por terra? Percorria a Europa toda, apanhava o transiberiano, chegava a Vladivostok e dali, de barco, ia até Kõbe para
vender o nosso coral e comprar pérolas. O filho ia para o oriente em barcos a vapor e eram viagens que duravam semanas. E às vezes eram viagens em vão. Conheces
a história dos dois irmãos Liverino, quando foram convidados para ir a Rangoon, mas à custa deles? Essa merecia ser contada num livro...
- Eu, de facto... - interrompeu Orsola novamente. Da sala de jantar chegaram até elas as vozes de Giulietta e Gianni que, sabe-se lá como, enquanto jogavam cartas,
tinham começado a cantar uma das muitas baladas dos anarquistas, aprendidas com a mãe, que lhas tinha ensinado quando eram pequenos. "É por vós explorados, por vós
trabalhadores, que estamos algemados a par com malfeitores" cantavam com as suas vozes límpidas.
- Ouve-os, ouve como são queridos os nossos meninos - disse dona Margherita, satisfeita, e prosseguiu imperturbável: - Então, os dois irmãos Liverino, em grande
segredo, porque, como sabes, aqui ninguém diz nada a ninguém, foram à Birmânia, convidados pelo governo militar comunista, para comprar pérolas. Estávamos nos
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anos 60 e as pérolas da Birmânia tinham um diâmetro superior às japonesas e australianas, e um brilho extraordinário. Os Liverino julgavam que iam sozinhos mas afinal,
durante a viagem, descobriram que no avião havia mais cinquenta compradores de várias nacionalidades, todos viajando por conta própria.
- Mãe, eu conheço essa história. Regressaram de mãos vazias. Não só não conseguiram comprar as pérolas como também se arriscaram a ir parar a uma prisão birmanesa,
e nem sequer conseguiram ter sucesso com os rubis - resumiu Orsola. E continuou: - Mas eu queria contar-lhe uma história que ainda não conhece, e que tem como protagonista
um menino de 9 anos que se chama Steve. Voltaram a ouvir as vozes dos dois irmãos Sogliano que cantavam outra balada dos anarquistas: "Morreu Umberto I, o malfeitor,
viva Gaetano Bresci, o vingador."
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Margherita escutou, impassível, a história de Orsola, sem nunca a interromper. Depois fez-se silêncio. Obviamente, os dois irmãos tinham-se cansado de cantar e já
se tinham afastado. Margherita Sogliano parecia uma estátua. Levantou uma mão para afastar a gola do vestido de seda azul-escuro que trazia, como que para respirar
com mais facilidade.
- Quero sair. Anda comigo comer um gelado. Podemos ir até ao porto. Quero respirar o ar do mar - disse.
- Mãe, tem a certeza de que quer sair? Não está demasiado cansada? - perguntou-lhe, preocupada. Com um rápido movimento juvenil, a senhora levantou-se da poltrona.
- Vamos - retorquiu. Sentaram-se a uma mesa ao ar livre numa esplanada a pique
sobre o mar, enquanto as ondas preguiçosas batiam contra os rochedos. A sombra escura do Vesiavio impunha-se, silenciosa, sob as estrelas. Eram apenas dez horas
e a gelataria ainda estava agradável: uma hora mais tarde estaria cheia de clientes, em grande parte jovens.
- Morango e pistácio - pediu dona Margherita ao empregado.
- Para as duas - acrescentou Orsola, observando a sogra de soslaio para ver se estava bem.
- Quando eu era pequena, estes estabelecimentos eram apenas casas pobres de pescadores. Eu vinha até aqui de Nápoles, onde
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vivia, com a minha mãe, as minhas duas irmãs e a minha avó, uma tribo de mulheres, todas hóspedes dos Sogliano, os nossos numes tutelares. Torre era uma grande aldeia,
agora é uma cidade. Eu não fazia ideia de como ia ser a minha vida, era uma criança e vivia no presente. O palácio Sogliano era o reino da abundância, a minha casa
o reino de uma miséria digna, mas nem sequer disso eu tinha consciência. As vezes a minha mãe chorava e eu perguntava a mim mesma a razão de tantas lágrimas. Rapidamente
aprendi que a vida proporciona mais sofrimentos do que alegrias e, no intervalo entre o choro e o riso, há o quotidiano cinzento, com todos os seus problemas. Uma
pessoa cria a ilusão de que, ao envelhecer, a sabedoria nos preserva, como uma boia de salvação, das emoções mais fortes, tanto no bem como no mal, porque a linha
de atracagem já está ali, A frente dos nossos olhos, e a ressaca nos empurra docemente para a margem. Mas não é assim. Antes de atingir a margem da paz eterna, ainda
temos de sofrer, de nos interrogar, de descobrir coisas que nem sequer imaginávamos - disse Margherita, e era claro que não falava tanto para a nora como para si
mesma. Durante o percurso de carro do palácio Sogliano até ao porto, Orsola esteve quase a confessar também à sogra a sua transgressão conjugal, não certamente para
fazer um ato de contrição, mas mais por um sentido de equidade, para não parecer a mulher santa de um homem que a tinha traído. Agora achou que tinha feito bem em
calar-se, porque Margherita não precisava de mais traumas.
- Mãe, está cansada e eu também. O gelado estava bom e soube-nos muito bem. Vamos para casa? - propôs Orsola.
- Olha quem ali está - exclamou Margherita, apontando o olhar para trás de Orsola. Ela voltou-se e, na outra extremidade da esplanada, viu os dois filhos, que uma
hora atrás cantavam os hinos anarquistas, sentados a uma mesa com don Vincenzo Scapece. O poderoso industrial sorria e conversava animadamente com os dois jovens.
- O que é que ele quererá deles? - perguntou Orsola, inquieta.
- Se calhar nada, mas ainda assim vamos andando, antes que nos vejam, embora possas estar sossegada, porque don Vincenzo nunca
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seria capaz de me pregar nenhuma partida - concluiu Margherita, enquanto entravam no carro. Quanto a mim, está a servir-se da ingenuidade dos meus dois pequenos
para conseguir informações. Lembra-se da fábula do corvo e do queijo? Está a adulá-los, mas os meus filhos não são assim tão inconscientes para caírem na rede dele.
- Espera que eles cheguem a casa e já vais ficar a saber mais coisas - concluiu Margherita. - Por mais voltas que a gente dê, o coral acaba sempre por prevalecer
sobre tudo o resto. É como uma doença crónica, dizia o Edoardo, e ninguém se livra dela - comentou Orsola. - Dizes isso porque já te aconteceu quereres livrar-te
dela? - perguntou a sogra. Orsola anuiu.
- Também a mim me aconteceu, mais do que uma vez. Depois percebi que, assim como o coral às vezes adoece mas nunca morre, também nós, que lidamos com ele, às vezes
gostávamos de o sacudir de cima dos ombros, mas ficamos enredados naqueles ramos para toda a vida. - Uma vez o Edoardo contou-me a história de um velho industrial
do coral que sempre dormiu com um ramo de cerasuolo na mesa de cabeceira para lhe poder tocar de noite, quando acordava. - Don Domenico Jorio! Lembro-me bem dele.
Dizia sempre: "Quem acorda de manhã cedo, ganha o coral". Estas palavras estão gravadas na sua lápide e podes lê-las se fores ao cemitério. Nora e sogra regressaram
ao palácio Sogliano, mergulhado em silêncio e, enquanto subiam a escadaria, Orsola comentou: - Ainda não percebi porque é que nós, mulheres, que dedicamos uma tão
grande parte da nossa vida ao coral, continuamos numa posição subordinada em relação aos homens. - Consegues imaginar uma mulher do princípio do século xx a deixar
em casa os filhos e o marido para ir ao Japão vender objetos de coral e comprar pérolas? - Não, uma vez que nunca nenhuma mulher o fez. Mas se uma única tivesse
tentado...
253
- Não tinha conseguido nada, porque nenhum oriental aceitaria alguma vez fazer negócios com uma mulher...
- Podiam ao menos ter acompanhado os maridos nas suas viagens.
- Tu fizeste-o?
- Eu não gosto de viajar. Tinham chegado aos aposentos de Margherita, que se deixou cair na cama. Orsola sentiu que tinham finalmente chegado ao ponto crucial, à
volta do qual a sogra girava há duas horas. Orsola baixou-se para a ajudar a tirar os sapatos.
- Obrigada, querida. Eu faço isso sozinha. Um dia destes vou contar-te alguma coisa de mim. Tive um casamento feliz durante muito tempo. Era uma mulher com bastante
graça e muito apaixonada, mas antes do casamento houve um tempo em que dei por mim entre dois fogos e tive que escolher de que lado ficar. É uma longa história,
minha querida. Ouviram bater o portão do palácio. Os filhos tinham regressado, e Orsola debateu-se entre duas curiosidades: ouvir aquilo que a sogra tinha para lhe
contar, ou ir ter com os filhos para os interrogar sobre o encontro com o comendador Vincenzo Scapece.
- Vai ter com os pequenos. Temos tempo para as nossas confidências. E... a propósito, gostava de conhecer o meu netinho novo.
- Obrigada, mãe. Já esperava ouvi-la dizer isso. É um rapazinho fantástico e merece o nosso afeto.
- Não contes nada aos teus filhos, pelo menos por enquanto. Já têm problemas que cheguem. E lembra-te de nunca te lançares com demasiada fúria contra don Scapece.
Não é aquele diabo que toda a gente pinta e está estreitamente ligado à história da nossa família.
254
6
Saverio tinha mandado um e-mail eufórico de Taiwan, e os irmãos estavam a comentá-lo, quando Orsola entrou na sala contígua
ao seu quarto. Gianni leu a mensagem à mãe: Parece que o desaparecimento do pai reforçou a ligação dos nossos clientes com os Sogliano. Estão a encher-me de mimo,
a
maneira deles, mas mesmo muito. Aumentaram as encomendas e decidiram, de olhos fechados, reservar a nova linha que a Cristina acabou de esboçar, desenvolvendo uma
ideia do pai. Gostava que lhe chamássemos Edoardian, em sua memória. O que dizem?
- Responde-lhe imediatamente. Diz-lhe que a Cristina está a trabalhar nisso e que amanhã à noite já vamos ter o protótipo em cera - disse Orsola.
- Há sempre o dilema do fecho. Se o fizer em ouro e brilhantes, isso vai aumentar demasiado o custo. Só se fizer um fecho escondido... - comentou Cristina.
- Escondido, não. A vista. Uma plaquinha de malaquite trabalhada e debruada a ouro rosa - interveio Giulietta.
- Coral laranja, malaquite verde e ouro rosa. Acho que é uma ideia - anuiu a irmã. E prosseguiu: - A malaquite tem de ser esculpida, mas quero evitar os motivos
do costume. Estava a pensar num desenho diferente...
- A coroa do nosso logótípo - exclamou Giulietta, porque gostava muito daquela ideia.
- És fantástica, maninha - interveio Gianni.
255
- Vamos falar com o Rino, amanhã de manhã - disse Cristina. Rino era o mestre gravador, que trabalhava há mais de trinta anos na empresa Sogliano. Orsola escutava
em silêncio a discussão entre os filhos e sentia-se feliz com aquele entusiasmo. Quanto a Gianni, nutria ainda alguma perplexidade sobre ele, porque temia que o
interesse manifestado pela empresa familiar pudesse naufragar A primeira dificuldade, após anos de contestação. Tinha ainda de perceber o porquê daquele encontro
com don Vincenzo e, sobretudo, havia as palavras pronunciadas por dona Margherita que lhe criavam uma certa confusão: E lembra-te de nunca te lançares com demasiada
fúria contra don Scapece. Não é aquele diabo que toda a gente pinta e está estreitamente ligado história da nossa família". Qual seria o significado daquela afirmação?
- Eu vou deitar-me. Se me quiserem dizer alguma coisa, já sabem onde me encontram - declarou ao retirar-se. Ninguém foi ter com ela e, por fim, o cansaço venceu
todas aquelas perguntas A espera de uma resposta. De manhã, quando desceu para tomar o pequeno-almoço, só encontrou Giulietta.
- Os teus irmãos ainda estão a dormir? - perguntou Orsola, ao mesmo tempo que tocava a campainha para servirem o café.
- Não sei. Acordei há pouco tempo - respondeu a rapariga, contendo um bocejo. Cetta levou para a mesa uma cafeteira fumegante, o jarro do leite, os folhados frescos
e uma compota de laranja.
- Onde estão os outros? - perguntou-lhe Orsola.
- A dona Margherita ainda está a dormir, a Rosária resolveu ir ao médico por causa das dores e a Titina foi com ela.
- Estou a falar dos meus filhos, o Gianni e a Cristina.
- Ah, os meninos? Não sei! Armaram um terramoto na cozinha, antes de eu descer - queixou-se.
- Devem estar no laboratório - concluiu Orsola. Cetta afastou-se a resmungar. Enquanto bebericava o café, Orsola perguntou a Giulietta:
- O que fizeram ontem A noite?
256
- Brindámos aos tempos de ouro da anarquia, quando bastava um Gaetano Bresci para se verem livres do tirano. O Gianni acha que hoje o herói anarquista que se imola
pela causa já não faria sentido. E quem é que se elimina? Noutros tempos o infame era o rei, hoje os infames são muitos e nem sequer se conseguem identificar todos.
Mas quem é que está por trás de todos estes desastres? O Gianni acha que há poderes que atuam na sombra e fazem de tudo, mas ninguém sabe quem são, nem para que
fins põem em campo as suas estratégias perversas - respondeu Giulietta. - Se o meu pai ainda aqui estivesse, teria uma resposta pronta, como é evidente - comentou
Orsola de fugida, porque o assunto que lhe interessava mais era outro. E pegou nele por alto. - Não saíram? - Fomos dar uma volta e encontrámos don Vincenzo, que
nos convidou para comer um gelado. - Só isso? - perguntou cautelosamente. - Deu-nos os parabéns pela aquisição do armazém do don Ciro e depois quis saber como estamos.
Foi muito afetuoso, até nos convidou para uma festa em casa dele, dizendo que nós, os mais novos, nos devíamos dar mais com a família dele. O Gianni ainda ficou
com ideias, mas não vamos... Lembras-te do que o pai dizia de don Vincenzo?
- Que sabe sempre mais qualquer coisa do que o diabo - respondeu Orsola. - Mas eu pergunto a mim mesma se será justo pintar tão mal o homem, porque vejo que os Liverino,
os Ascione, os Borriello, os Ráiola, os De Simone e os outros todos se dão com ele tranquilamente.
Orsola estava de acordo com a filha. Por vezes, as pessoas que receamos, quando as conhecemos mais a fundo, são melhores do que se pensa. Mais tarde desceu até aos
escritórios e encontrou Gianni no gabinete de Saverio, que tinha sido do pai e, antes ainda, do avô. Estava sentado no chão no meio de um mar de velhas pastas de
arquivo a abarrotar de correspondência e fotografias. - O que é que estás a fazer? - Estou a dar uma vista de olhos pela história da família e da
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empresa Sogliano. Olha, mãe. Há patentes reais, patentes republicanas e cópias de faturas ainda escritas à mão - explicou-lhe, mostrando-lhe papéis amarelecidos.
- E vê só que quantidade de fotografias. Olha que cómica, esta. Era uma fotografia a preto e branco que retratava um estranho trio de jovens em fato de banho numa
praia rochosa. Atrás havia uma legenda: "Marina di Chiaia. Verão de 1940. Margherita Lanzetta a apanhar sol com Saverio Sogliano e Vincenzo Scapece". - Às vezes
as fotografias dizem-nos muito mais do que as palavras omitidas - disse Orsola, ao constatar que a jovem Margherita, enfiada num cómico fato de banho que a tapava
mais do que um vestido, olhava embevecida para o lindíssimo Vincenzo, enquanto Saverio simulava indiferença. - Quero esta para mim - disse a Gianni. Passaram-se
os dias e Orsola andava cada vez mais enredada nas malhas do trabalho. Ficava mais tempo no laboratório e nos escritórios do que em casa. Deu por ela a recusar convites
de jantares para ficar em família a discutir questões de trabalho. Às vezes era preciso recorrer à avó Margherita, a memória histórica da família e da empresa. Em
trinta anos de vida em Torre, Orsola tinha acumulado uma quantidade de conhecimentos que agora se tornavam úteis e, por vezes, pensava em Milão como uma terra distante
que lhe estava a fugir. Uma noite, depois de jantar, Margherita disse-lhe: - Já estamos em julho. Felizmente, este ano o grande calor ainda não chegou. Gostava de
ir A. Suíça conhecer o meu neto. Orsola decidiu fazer a viagem de avião. No voo que as levaria de Nápoles a Genebra, apercebeu-se de que aquele meio de transporte,
que sempre temera, não era assim tão terrível. Durante a viagem, mostrou à sogra a velha fotografia que a retratava ao lado do marido e do diabólico Scapece. Margherita
sorriu e disse: - Chegou o momento de te contar a minha história.
MARGHERITA
1
Mattino, glorioso jornal diário de Nápoles, fundado por Edoardo Scarfoglio e Matilde Sera°, naquele dia de 1926 anunciava em grande título: "PREZADO DOCENTE UNIVERSITÁRIO
TRUCIDADO PELA MÃO ASSASSINA DE UM CONTÍNUO". E o subtítulo explicava: A sua culpa? Distribuir gratuitamente aos seus alunos as sebentas que o funcionário oferecia
contra pagamento". Aos 40 anos, o professor Giovanni Lanzetta foi atingido pelas costas com quatro facadas, no pátio da universidade, à vista de várias testemunhas.
Durante o processo, o advogado do contínuo baseou a defesa apenas na enfermidade mental do seu cliente, para lhe evitar a prisão perpétua. Os juízes não insistiram
mais para indagar o motivo do delito, mas decidiram em qualquer caso prender o homem para o resto da vida. O professor deixou a mulher, ainda muito jovem, e três
filhas. A mais pequena, Margherita, tinha apenas dois anos. Com a perda do salário do marido, a viúva debatia-se com grandes dificuldades económicas, de tal maneira
que a certa altura teve de vender o grande apartamento de Posillipo e mudar-se para um mais pequeno no corso Vittorio Emanuele. A pequena Margherita, apesar de fazer
de conta que estava a brincar, ouvia sempre as confidências que a mãe trocava com as amigas que as iam visitar ou com quem elas iam ter. Uma vez Margherita apanhou
uma conversa entre Antónia e Clotilde Sogliano, que tinha vindo visitá-las de Torre del Greco, onde vivia:
261
- E aquela gente não voltou a incomodar-te? - perguntou a visita.
- Minha amiga, eu sou mulher, tenho uma família só de mulheres. Em que é que eles nos podiam incomodar? Para eles as mulheres são menos que nada. Não sabias? As
jovens e bonitas servem-lhes como brinquedo. As outras só servem para fazer filhos e levantar o braço a gritar "Viva o Duce" - respondeu Antónia.
- Mas toda a gente percebeu que aquele processo do assassinato do teu marido foi uma farsa - observou Clotilde.
- E essa "toda a gente" fez ouvir a sua voz? Não houve um sequer que tenha tido a coragem de dizer: o professor Lanzetta foi morto porque era contra o regime, que
se serviu de um pobre contínuo demente para o fazer calar para sempre - constatou amargamente a viúva.
- E as provas? Se as havia, fizeram-nas desaparecer. Deve ter havido muitas testemunhas. Mas quem ia ousar fazer alguma coisa contra o partido? Eles são donos e
senhores de tudo, e servem-se do medo e dos instintos mais baixos das pessoas. E a cultura? Tu lês os jornais? Estão atulhados de banalidades, de lugares comuns
e de erros grosseiros. Coitado do país em que se mata a cultura e se exalta a musculatura! Fazem-se torneios e competições de atletas, mas onde foi parar a ginástica
mental? E, entretanto, nós, mulheres, contamos menos que nada, minha amiga - lamentou-se Clotilde.
- Como viúva e mãe de três filhas, tentei arranjar um lugar como professora de Letras. Fizeram-me esperar durante um ano e, precisamente há uns dias, disseram-me:
"Minha senhora, esqueça este assunto. Há professores que têm mais direitos do que a senhora, que é proprietária rural". Percebes, Clotilde? Eu, que herdei do meu
marido as terras da Lucania, que me rendem uma miséria, sou proprietária rural. Eu sei que o administrador que lá está me rouba, mas não posso fazer nada, porque
ele é o regedor, ligado com duplo fio ao poder. Margherita, enquanto as duas irmãs brincavam com as bonecas, escutava aqueles sussurros sem lhes captar o sentido,
mas colhia, no entanto, uma mensagem de resignação, enquanto observava as mãos gretadas da mãe que tinha chamado a si todos os trabalhos
262
da casa, depois de a última empregada ter sido despedida porque Antónia não podia pagar-lhe o salário. Quando recebia visitas, a mãe penteava-se cuidadosamente,
vestia a camisa de seda branca com folhos de renda e espetava o camafeu contornado de minúsculos brilhantes na fita que apertava a gola. As outras joias, bem mais
valiosas, iam e vinham da casa de penhores. Da última vez que as tinha resgatado, Margherita viu-as espalhadas em cima da coberta de cetim da cama. Havia anéis,
pulseiras e brincos de ouro, pedras coloridas, um conjunto com coral, uma bolsa de noite em malha de prata e uma cigarreira de ouro. Margherita observava, encantada,
aquela joias que a mãe nunca usava. Ela olhou com amargura para as três filhas e disse: - Esperava dividir isto entre vós, quando crescessem e se casassem. Mas acho
que vou acabar por vender também isto, como já vendi a casa de Posillipo. Quando Antónia recebia de Lucania as magras remessas do administrador, comprava logo para
as suas meninas um pacote de, amendoins, avelãs e sementes de abóbora, que elas adoravam, e cinquenta gramas de café, que deixava torrar no forno; depois concedia
a Rosina, a filha mais velha, o privilégio de rodar a manivela do moinho do qual saía um pó castanho que, comprimido no filtro da máquina, produzia um excelente
café, panaceia para muitos males do corpo e do espírito. Outras vezes a mãe arranjava-se muito bem e as meninas também e levava-as a visitar a princesa Eugenia Pascale
di Belmonte, que era sua madrinha de batismo. Entravam em fila indiana no salão rococó, com tapeçarias chinesas e grandes vasos Ming, num dos quais Margherita se
enfiou quando tinha dois anos e que, perante as lágrimas da dona da casa, teve de ser partido para a poderem tirar de lá. Aquilo foi uma mancha terrível sobre as
qualidades de educadora da mãe e foi preciso deixar passar alguns meses antes que aquele sinal de má educação fosse perdoado, considerando que a esse perdão não
foi alheia a desgraça que tinha atingido as Lanzetta. A mãe e a princesa falavam entre si num napolitano culto intervalado de palavras em lingua francesa.
263
A princesa elegante e a jovem viúva pobre choravam no ombro uma da outra. A aristocrata, depois de mandar embora o empregado de libré que acabara de servir uns gelados
requintados onde se percebiam os sabores da manteiga e dos ovos, começava a dizer horrores de todos os fascistas, a quem ela chamava camorristas modernos, e entre
eles incluía o príncipe, seu marido, que a tinha deixado para se juntar com uma cantora de variedades que tinha metade da idade dele.
- É este o exemplo que nos vem da nova classe dominante: anulação de todos os valores mais sagrados. Se em Itália não houvesse o fascismo, o meu caro falecido nunca
me teria deixado - dizia, considerando morto o cônjuge traidor que estava mais vivo e animado do que nunca. O "caro falecido", quando tomou conhecimento daquele
terrível epíteto, contratou dois jograis famosos em toda a cidade de Nápoles e mandou-os para debaixo da varanda do palácio com o objetivo de fazerem uma serenata
que amaldiçoasse a princesa, esperando que o palácio se desmoronasse e, ao ruir, arrastasse a mulher. O palácio não se desmoronou e a princesa, por sua vez, contratou
um grupo de prostitutas que uma noite, num famoso café concerto, entoaram um coro angélico e, sobre as notas de Celeste Aida, forma divina, puseram em pratos limpos
as carências físicas do "velho príncipe". Desta história, a "Nápoles de bem" riu-se durante meses e o epíteto "caro falecido" nunca mais abandonou o príncipe de
Belmonte. Agora, a princesa Eugénia, que conhecia muito bem a situação das Lanzetta, disse a Antónia:
- Minha filha, tu tens de voltar a casar.
- Eu já tive um marido e mataram-no - respondeu ela.
- Então vais ter outro que eu te encontrei.
- E quem é? - perguntou Antónia, aflita.
- Um que tem o nome parecido com o teu, Antonio Piscopo, oficial da Marinha. Quarenta anos, solteiro, bom salário e bom carácter. São estas as qualidades que importam.
- E as qualidades que não importam, quais são? - indagou a viúva.
264
- Tem mau hálito, não sei porquê. Ele anda sempre no mar mas, quando regressar a casa de licença, tu manda-lo mastigar sálvia, casca de limão e umas pastilhas de
anis - disse a princesa, para retirar importância ao caso.
- Se aos quarenta anos ainda não arranjou uma mulher que o queira, deve ter mesmo mau hálito - objetou Antónia.
- Não, acredita em mim. Não é assim tanto. A questão é que ele ainda não se casou porque... em suma, já percebeste.
- Não.
- Antónia, ele é impotente! Mas, se não exibir uma mulher, Inunca mais vai fazer carreira na Régia Marinha de Sua Majestade. Não te esqueças que o nosso chefe do
governo exibe a sua virilidade como uma medalha de mérito e impõe a todos os homens que façam a mesma coisa. Da primeira vez casaste-te por amor, agora voltas a
casar por amor às tuas filhas. É uma transação honesta e digna, acredita. Foi assim que Margherita teve um padrasto. Um bom homem que nunca estava em casa e, quando
estava, tinha a capacidade de se tornar invisível. '
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2
Naquele ano houve três grandes acontecimentos. O primeiro foi que a viúva Lanzetta passou a ser a senhora Piscopo e com o marido, nomeado capitão de fragata, e as
três filhas, fizeram uma segunda mudança de casa para irem viver num vasto apartamento na via Partenope. Voltaram a ter uma empregada para os trabalhos pesados,
e o café, a grande fraqueza de Antónia, voltou a perfumar a casa. O segundo foi a entrada de Itália na guerra, ao lado da Alemanha nazi. A aliança, decidida por
aquela mente brilhante de Mussolini, levou o país à ruína. E, entre um e outro, houve um terceiro acontecimento excitante. Rosina, a irmã mais velha de Margherita,
casou com um brasileiro rico, que conheceu durante uma receção em casa da princesa de Belmonte, a qual exibia o "caro falecido" no papel de "segundo marido", depois
de o infame se ter redimido dos seus pecados, ter declarado publicamente que a esposa era a mulher mais divertida do mundo e ter jurado manter-se-lhe fiel para o
resto dos seus dias. À distância dos anos, Margherita ainda recordava aquela faustosa receção no palácio Belmonte e os preparativos que a tinham precedido. O vestido
de noite era obrigatório, mas quatro vestidos novos, para Antónia e as três filhas, constituíam uma despesa com que a senhora Piscopo não ousava sobrecarregar o
marido. Lembrou-se então de que tinha nos armários algumas velhas cortinas de veludo de seda vermelho e decidiu fazer dali quatro fantásticos vestidos de noite,
cortados e cosidos por ela e pela filha mais velha. Quando se apresentaram no salão de festas dos príncipes de
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Belmonte, a dona da casa foi ao encontro delas de braços abertos e sussurrou a afilhada:
- Estão as quatro lindíssimas. E os vossos vestidos também são lindíssimos. Depois vais-me dizer quem é a tua modista.
- Foram feitos pela Rosina e pela mãe - revelou Margherita com orgulho. Antónia corou, balbuciando:
- Querida madrinha, a necessidade aguça o engenho.
- Meninas, vão para a outra sala, onde está o grupo dos jovens. Tu, Antónia, e tu, Rosina, venham comigo, porque vos quero apresentar umas pessoas - disse a princesa.
Entre os hóspedes vindos de longe, estava o senhor Ruiz Costa Valente, comerciante brasileiro, exportador de café, que ignorava as boas maneiras da sociedade napolitana
mas sabia bem o que queria. No fim da festa propôs a Rosina:
- Quer ser minha mulher? A rapariga tinha ficado deslumbrada com a impetuosidade do brasileiro e com o seu fascínio exótico. No entanto, replicou:
- Mas, senhor, eu nem o conheço.
- Se aceitar casar comigo, vai conhecer-me muito em breve respondeu ele. Enquanto falava com ela, tinha-a encaminhado até varanda, onde a apertou contra si e a beijou,
dando em seguida uma grande gargalhada.
- Mas tu não sabes beijar - exclamou, divertido. Rosina, que ao contacto com aqueles lábios carnudos se sentiu derreter, corou e esteve quase a chorar de vergonha,
enquanto Ruiz a apertava com força nos seus braços.
- No meu país as raparigas são um bocado mais despachadas, mas em qualquer caso eu tenho de te instruir e até vai ser uma tarefa agradável, porque debaixo da aparência
de uma boneca de trapos eu sinto o fogo - declarou, feliz. Ela soltou-se com raiva daquele abraço e, a chorar sem contenção, foi a correr para dentro A. procura
da mãe. Antónia estava a conversar com outras senhoras sentadas num imenso sofá, enquanto a orquestra tocava um tango. Viu a filha num estado deplorável, afastou-se
e perguntou-lhe, preocupada:
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- O que foi que te aconteceu?
- Aconteceu que a pedi em casamento replicou o brasileiro, que tinha seguido Rosina e estava agora atrás dela.
- Na nossa terra não é costume as pessoas comportarem-se assim - rebateu Antónia, para defender a filha.
- Perdoe-me, minha senhora. Eu sou um homem direto e não conheço os usos do velho continente - desculpou-se Ruiz Costa Valente, que não parecia embaraçado.
- Senhor, na nossa terra é prova de boa educação formular a pergunta aos pais da rapariga, tanto mais que a minha filha tem apenas dezoito anos e ainda é menor -
respondeu ela, severa. O brasileiro dirigiu-lhe uma profunda vénia, levou uma mão altura do coração e prosseguiu, com um sorriso impertinente:
- Minha senhora, eu peço-lhe a honra de poder casar com a menina Rosina.
- A honra ser-lhe-á concedida se a menina Rosina estiver de acordo, mas apenas lhe dará o seu consentimento depois de eu ter referências suas - replicou. Não lhe
disse que a princesa de Belmonte já a tinha informado sobre todos os pormenores quando ambas tinham visto os dois jovens afastarem-se em direção à varanda. E eram
ótimas referências.
- Se excluirmos o aspeto um pouco grossier da sua educação. Sabes, ele é meio índio e meio português e lá eles ainda são selvagens. Quanto ao resto, tem muitas terras
ao sol e é armador.
- Já deitou o olho à minha Rosina.
- Quisesse Deus! Arrumava-se confortavelmente em cima de uma montanha de dinheiro. Mas não contes com isso, porque ele só veio a Itália fechar uns negócios - disse
a madrinha. Agora, quando as quatro regressavam a casa, Antónia perguntou à filha:
- O que pensas tu daquele forasteiro? Gostas dele?
- Não - respondeu Rosina, amuada.
- Sou tua mãe e quero a verdade. Gostas dele?
- Sim - admitiu, ao mesmo tempo que baixava os olhos e recomeçava a chorar.
- Sim, sin gostas mesmo muito - sussurrou a senhora, enquanto
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lhe dava umas pancadinhas afetuosas no ombro. Depois voltou-se para as outras duas filhas e anunciou: - Meninas, a Rosina está arrumada e, ao que parece, até muito
bem. Tenho pena que o vosso pai não esteja aqui a festejar connosco. Um mês depois, a mais velha das irmãs Lanzetta embarcava de Nápoles num navio que a levaria
ao Rio de Janeiro. A princesa Eugénia, que tinha largamente contribuído para as despesas daquele casamento, celebrado sem ostentação mas com
uma extrema elegância, quando voltou a ver Antónia disse-lhe:
- Uma já foi. Daqui a não muito tempo vai ser preciso arrumar as outras duas.
- Há tempo, madrinha - defendeu-se Antónia.
- Em relação à segunda, não tenho grandes esperanças. É um bocadinho insossa, pobre criatura. Mas tens mesmo a certeza de que ela é filha do teu marido?
- Princesa, o que é que está a insinuar? - disse Antónia, escandalizada.
- Bem, a primeira e a terceira saíram uma maravilha, mas a do meio, vais desculpar-me, é uma coisinha insignificante. Era preciso procurar entre os alunos do pai.
Já são todos professores e, no meio deles, somos capazes de descobrir alguém sem demasiadas pretensões, até mesmo um pouco aborrecido, que lhe pegue. A franqueza
da princesa raiava muitas vezes a ofensa, mas Antónia, por muito que sofresse, não levou a mal, reconhecendo intimamente que Matilde não tinha saído tão bem.
- Para Margherita, a ruiva, tenho outras preocupações, porque é rebelde e incapaz de obedecer às regras. Não conheceu a autoridade paterna e acha que tudo lhe é
permitido. Vai dar-te muito que fazer - sentenciou.
- O que é que está a dizer, madrinha? Ainda é apenas uma menina - protestou timidamente Antónia.
- É realmente verdade que as mães ficam cegas com os filhos. Aquela menina, como tu a vês, tem dezasseis anos e umas formas que explodem dentro dos vestidinhos apertados
que tu te esforças inutilmente por alargar e alongar. Não baixa os olhos diante de ninguém, muito menos diante dos homens, e quando são bonitos
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lança-lhes um olhar de gata. Arranja-lhe um marido, e arranja-lho depressa, minha amiga. - Vamos passar o verão em Torre, em casa dos Sogliano. A Clotilde tem dois
rapazes que são pouco mais velhos do que a Margherita Quem sabe... - replicou ela, na esperança de uma das suas filhas casar com um Sogliano. E pensou em Renzino,
que tinha dezoito anos, era mais instável do que um mar revolto e, provavelmente, era feito A medida para a sua ruiva. Dois dias depois, da varanda do Palazzo Venezia,
em Roma, Mussolini anunciou ao país que a Itália tinha entrado na guerra. O comandante Antonio Piscopo, que estava em casa numa licença de trinta dias, foi novamente
chamado ao serviço. Antónia deixou Nápoles e foi para Torre com as duas filhas.
270
3
- Este ano vamos fazer praia em Marina di Chiaia. Felizmente, os meus dois filhos ainda não têm idade para serem chamados para a tropa. O outro diz que vai ser uma
guerra relâmpago e nós, que nunca acreditámos nele, desta vez queremos acreditar com todas as nossas forças - declarou Clotilde Sogliano a Antónia, ao recebê-la
na casa de Torre.
- Não vamos a Capri? - perguntou Margherita, com um ar desiludido.
- Margherita! Não sejas impertinente - ralhou a mãe.
- É apenas espontânea. Os meus filhos também protestaram, mas o pai decidiu assim. Diz que quando o país está em guerra, não é altura para as pessoas se divertirem,
apesar de, felizmente, até agora nada parecer ter mudado. Estavam no jardim do palácio Sogliano e enquanto Clotilde tricotava um camisolão, Antónia, que era realmente
muito habilidosa com a agulha e linha, executava um bordado complicado com minúsculas contas de coral no decote de um vestido de noite da amiga. Os filhos tinham
ido dar uma volta pelas ruínas de Pompeia, levando como guia um professor de história local.
- Mas tu ouviste a rádio? Foi assinado o Armistício entre França
e Itália - anunciou Antónia.
- E tu achas que acabou?
- Recebi, por vias travessas, uma carta do Piscopo. Afirma que em breve os italianos vão ocupar a Somália britânica. Com os ingleses ainda estamos em guerra.
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- Vamos falar de outra coisa, porque fico cheia de angústia. Quero mostrar-te um livro que acabei de ler e que mexeu imenso comigo. É do Buzzati.
- O Deserto dos Tártaros? Já o li, e causou-me uma tristeza infinita. Prefiro o Wodehouse que, com aquele sentido de humor tão britânico, me levanta o moral. Olha
aqui, como é que tu achas que está a ficar este bordado? - perguntou, levantando o vestido em direção à amiga.
- Uma maravilha. És realmente extraordinária e tens bons olhos, felizmente. Descansa agora e vamos a casa preparar um granizado. Quando estavam a chegar a casa ouviram
ecoar as vozes alegres dos filhos à entrada do palácio.
- Acabou o sossego - resmungou Clotilde.
- Mãe, temos fome - gritou Renzino.
- É verdade que a escola acaba cedo de mais. Devia continuar até outubro, quando começa o novo ano escolar - disse Clotilde a Antónia.
As crianças irromperam no jardim, acaloradas e felizes.
- Também querem um granizado? - perguntou a senhora Sogliano.
- Um gelado era melhor - respondeu Saverio. Sentaram-se à sombra de um alpendre, enquanto as raparigas entravam em casa para ajudar a empregada a preparar os gelados.
- Divertiram-se? - perguntou Antónia as filhas.
- Imenso, mamã - disse Margherita. E prosseguiu: - O professor Javarone explicou-nos coisas muito interessantes sobre a vida quotidiana dos nossos antepassados de
há dois mil anos. Mãe, sabias que as mulheres romanas tomavam banho em cuecas e soutien? Não usavam nada daqueles fatos de malha pesada como nós.
- Essas mulheres eram pagãs e não tinham o sentido do pudor interveio a irmã.
- És tão aborrecida - criticou Margherita.
- Mais vale ser aborrecida do que ser uma descarada como tu respondeu a irmã.
- Logo à noite, eu e tu temos de conversar - sussurrou Antónia à filha mais nova.
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- Uff, mãe! Estás sempre com os olhos pregados em mim e ainda ligas a esta trombuda - protestou Margherita, referindo-se à irmã. Regressou ao jardim com a lata dos
biscoitos, ao mesmo tempo que a empregada alinhava em cima da mesa umas grandes taças de vidro cheias de gelado. Foi sentar-se entre Vincenzo Scapece e Saverio Sogliano,
que definia como "os meus cavaleiros". Era a mais nova do grupo e a mais cortejada, porque era a mais bonita, com a sua pele clara, cheia de sardas, e a sua cabeleira
flamejante, apanhada numa longa trança que lhe descia pelas costas. Mas ela já tinha escolhido os seus preferidos e estava sempre com eles, enquanto Renzino desesperava
para se intrometer naquele trio, sem conseguir.
- Tenho dois bilhetes para o cinema ao ar livre. Logo à noite vão passar um filme com o Osvaldo Valenti e a Luisa Ferida. Quem vem comigo? - perguntou Renzino, desejando
ardentemente que Margherita aceitasse. Margherita ficou calada e a irmã respondeu por ela:
- A mãe não nos deixa sair à noite.
- E depois do jantar vamos ter de fazer uns trabalhos de casa para férias - ajudou a irmã mais nova.
- De facto, nós também temos de estudar - disseram os seus cavaleiros, felizes por saberem que Margherita não ia sair.
- Está-se mesmo a ver que vou ter de ir com a mãe. Ela gosta de histórias cor-de-rosa - lamentou-se Renzino.
- Vemo-nos amanhã, na praia - disse Margherita e, sem se despedir de ninguém, foi para casa. Aquelas saídas repentinas, aparentemente sem motivo, deixavam os dois
rapazes preocupados; estavam perdidamente apaixonados por ela e tinham feito entre eles um pacto de lealdade: Margherita seria dos dois, ou de nenhum deles. A noite,
quando estavam já nos seus quartos, Antónia abordou a filha mais nova.
- Querida, tenho a impressão de que tu te achas mais adulta do que és na realidade. A Matilde acha que és descarada. O que foi que tu fizeste para merecer aquele
juízo?
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- Perguntas-me a mim? Vira-te para a menina sabichona - respondeu a pequena, irritada.
- Mas eu quero saber por ti - insistiu Antónia.
- Não fiz nada - rebateu.
- Fizeste, sim! Durante o passeio, estiveste o tempo todo a fazer charme com o Vincenzo e com o Saverio - contou a irmã.
- O que tu tens é inveja, estás doida pelo Vincenzo e ele nem sequer olha para ti - insinuou a irmã mais nova. Antónia pensou que a sua madrinha tinha razão. Precisava
de arranjar rapidamente um marido para Matilde e de não perder Margherita de vista.
- Parem as duas de se provocarem uma à outra. Hoje recebi notícias da Rosina, e agora vou ler-vos a carta dela - disse, com um grande sorriso. - Também se dirige
a vós. Então oiçam:
Querida mãe, queridas irmázinhas, é muito bom estar casada com o Ruiz. Não podem imaginar as amabilidades que o meu marido tem comigo. E não só ele, também toda
a sua família é pródiga em atenções. Entretanto está a ensinar-me a montar a cavalo e garanto-vos que é um desporto muito divertido. A propósito, agora uso calças
compridas. Fazem-me uma impressão estranha, mas parece que o meu marido gosta muito de me ver assim. Por enquanto só cavalgo a trote. Entretanto estou a aprender
português, que é uma língua bastante difícil. O Ruiz diz que o Mussolini fez mal em entrar na guerra, e eu penso no pobre comandante Piscopo que, embora se importe
muito com as subidas de posto, certamente preferiria obtê-las sem ter de combater. Tenho muitas saudades das três, mas sobretudo de ti, mamã querida. Se a guerra
acabar depressa, na próxima primavera o meu marido vai levar-me a Nápoles. Já planeei a próxima viagem de regresso, porque quero que venham comigo visitar esta terra
lindíssima que é o Brasil.
- Também há um pós-escrito - continuou Antónia. - Diz que nos mandou uma encomenda de coisas boas e, entre elas, um saco de café para mim.
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Essa encomenda chegou a Nápoles cinco anos depois, quando a cidade, assim como o resto do país, era um monte de destroços. Entretanto, o comandante Piscopo, marido
muito discreto e padrasto inexistente, tinha caído a pique no Mediterrâneo, ao largo da Grécia, com o seu navio e os seus homens. A Marinha concedeu a Antónia uma
pensão como viúva de um herói de guerra. Saverio Sogliano e Vincenzo Scapece tinham sido chamados para o Exército, mas enquanto estudantes universitários conseguiram
obter um posto no Ministério da Marinha e apenas usaram as armas uma vez, para disparar uma salva quando os americanos chegaram à cidade.
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4
A guerra não poupou sequer o edifício onde viviam Antónia e as duas filhas. Quando ficaram sem casa, as três mulheres foram recebidas em Capri, na villa dos Sogliano.
Ali Matilde conheceu um engenheiro naval genovês que, durante a campanha da Rússia, tinha contraído uma tuberculose. Agora estava curado e a família mandara-o para
Capri em convalescença. Chamava-se Luigi Canepa. Casou na ilha com a segunda Lanzetta e levou-a com ele para Génova, onde o esperava um trabalho nos estaleiros Ansaldo.
A testemunha de casamento da noiva foi o velho príncipe de Belmonte. O comentário da princesa foi: - Há sempre um testo para cada panela. Nunca conheci um casal
mais enfadonho do que aqueles dois. Nem quero imaginar que raça de filhos vão eles trazer ao mundo. Antónia, pelo contrário, disse: - O meu genro é um bom homem,
a minha filha ama-o e espero que sejam felizes. Nenhuma das duas imaginaria nunca que, depois do fim da guerra, aquela esposa insossa deixasse o marido para se juntar
com um oficial americano dos marines, filho de criadores de porcos em Montana, e que para ali se mudasse para criar porcos com grande satisfação. Nos anos que se
seguiram, Antónia recebeu, com as cartas que a filha lhe enviava regularmente, vários recortes de jornais que falavam dela como a vencedora de numerosos concursos
para os porcos mais bonitos. "Aqui sinto-me à vontade", escrevia Matilde, "estava cansada
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daquelas conversas de sala, que eu detestava. Estou muito apaixonada pelo meu Jack, que me dá tudo aquilo que eu preciso: estima, carícias, muito trabalho e muita
alegria. Fui feita para viver em Montana e não sabia. Diz àquela tonta da minha irmã que aqui há rapazes lindíssimos que sonham com uma mulher italiana, até porque
nós sabemos cozinhar muito melhor do que as mulheres deles. Que se despache a vir ter comigo." - Eu, no meio daqueles selvagens? A minha irmã é a mesma palerma de
sempre - concluiu Margherita. A mãe calava-se, suspirava, e apercebia-se da sua própria incapacidade para tomar conta daquela filha ingovernável. Quando o sul foi
libertado, Margherita tinha dezanove anos. Era de uma beleza fulgurante e convencia-se de que era feliz dividindo o seu coração e as suas atenções entre Vincenzo
Scapece e Saverio Sogliano. Os dois amigos inseparáveis, entretanto, tinham alugado um apartamento em Nápoles, na via Chiaia. Frequentavam a mesma faculdade, estudavam
juntos e, sempre juntos, acertavam-se para dividir os favores de Margherita, que os amava em igual medida. Este escandaloso ménage a trois não era um segredo nem
para Antónia nem para Clotilde Sogliano, que faziam os possíveis por o esconder aos olhos de todos. Clotilde, para além do mais, andava angustiada com o seu Renzino,
que tinha ido combater para África ao lado dos alemães. Tinha sobrevivido a campanha da Líbia e a da Cirenaica, e depois fora feito prisioneiro pelos ingleses. Por
essa altura a família deixou de receber notícias. Clotilde pediu a Antónia para ir ter com ela a Torre, com a filha, porque precisava do seu conforto e isso serviria
também para afastar de Nápoles a bela Margherita. Antónia fechou o pequeno apartamento alugado no regresso de Capri e partiu com a filha, que não pôs problemas em
segui-la. Chegaram ao palácio Sogliano, onde a atividade tinha retomado o ritmo produtivo de outros tempos. Finalmente chegaram também notícias de Renzino, que tinha
sido libertado. Mudara-se para
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Tobruch, na Líbia, metera-se em negócios com outro italiano e não tinha nenhuma intenção de regressar à pátria. Mandou também algumas fotografias dele com o amigo
e as respetivas mulheres indígenas.
- Antónia, o Renzino arranjou uma negra! - exclamou Clotilde, desesperada. - Com que coragem é que eu vou dizer isto ao meu marido?
- É mesmo verdade que esta guerra mudou o mundo - lamentou-se Antónia.
- Já não bastava a promiscuidade descarada entre homens e mulheres. Até as negras, agora! Com todas aquelas doenças que devem ter!
- Realmente, sabe-se lá quantas doenças é que os brancos lhes pegaram a elas. Sem falar nas vergonhosas carnificinas levadas a cabo em África pelos alemães e pelos
italianos. Não quero falar do nojo que sinto relativamente A "raça eleita" do Hitler, falo por nós, que desde os tempos das santas cruzadas, de cada vez que desembarcámos
no continente africano semeámos horrores de todos os géneros. Um dia, esta gente vilipendiada ainda se vai vingar de nós - declarou Antónia.
- Eu estou desesperada por causa do meu filho, que não quer voltar, e as tuas considerações irritam-me.
- O teu filho vai voltar. Espera que ele se canse de tudo aquilo, e depois volta.
- Como tu fazes com a Margherita? Antónia começou a chorar.
- Será que podemos mudar as coisas? - perguntou. Longe dos seus "cavaleiros", Margherita passava os dias no laboratório. Confabulava com o marido de Clotilde, tinha
iniciado uma correspondência cerrada com as duas irmãs e um dia, quando estavam à mesa, disse:
- Com o fim da guerra começam a abrir-se novos mercados. Tanto nos Estados Unidos como na América do Sul, o produto italiano é muito apreciado. Os americanos que
estavam em Nápoles levaram uma grande quantidade de lembranças em coral. Quem sabe se não valerá a pena ir até lá estudar a situação.
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- É isso que as tuas irmãs te dizem nas cartas? - perguntou Antónia.
- Exatamente isso - confirmou Margherita.
- Eu não menosprezaria a opinião da tua filha - disse Sogliano.
- É sobre isso que estão sempre a conversar os dois? - perguntou Clotilde ao marido.
- Pois é. Acho que chegou o momento de abrir um estabelecimento só nosso em Nova Iorque. Tu e eu vamos partir em breve para a América - disse à mulher. Clotilde
e Antónia trocaram um olhar de entendimento. Era uma ocasião a não perder para separar definitivamente Margherita de Vincenzo e Saverio.
- Quero que tu e a tua filha venham connosco - disse dirigindo-se a Antónia. Antónia e Margherita regressaram a Nápoles para tratar dos documentos para a viagem.
Margherita foi ter com os seus cavaleiros que, no apartamento da via Chiaia, já tinham sido informados sobre a partida da amiga.
- Porque não te opuseste a essa decisão? - perguntou Saverio.
- Não queremos que fiques com um americano, porque de certeza que vais lá encontrar um batalhão de pretendentes - protestou Vincenzo.
- Pois eu, pelo contrário, acho que esta é a ocasião certa para escolher com qual de vocês os dois eu quero ficar para sempre - disse Margherita.
- Eu também estou cansado de te partilhar com ele. Casa comigo, Margherita. Serei um marido fantástico - afirmou Vincenzo, seguro. Aquela era a primeira vez em que
se falava de casamento entre os três.
- Que rico amigo! - resmungou Saverio.
Aquela foi também a primeira vez em que os dois amigos se olharam com um ar feroz. Vincenzo tinha dado o primeiro passo e, em seguida, Margherita dirigiu um olhar
interrogativo a Saverio, que era menos impulsivo mas estava igualmente determinado a tê-la só para si. Efetivamente, disse:
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- Eu ainda não estou preparado para me casar, mas se me deres dois anos peço-te para seres minha mulher, e isto, Margherita, é uma promessa solene.
- Vou pensar nisso. Ainda faltam duas semanas para a partida disse Margherite.
- E no meio dos dois adversários, enquanto estiveres na América, vai aparecer um terceiro pretendente que te vai roubar a nós sentenciou Vincenzo, preocupado.
- Não me agrada nada que vocês discutam por minha causa queixou-se ela. - Tenho de escolher um dos dois, não podemos continuar assim.
- Porque não, se estamos os dois de acordo? Uma semana estás com ele, e na semana seguinte estás comigo - replicou Vincenzo.
- Achas mesmo? - perguntou ela, irritada com a proposta de Vincenzo.
- Vamos parar de dizer disparates! - resmungou Saverio, e saiu, batendo com a porta de casa atrás de si.
- Endoideceu - disse Vincenzo.
- E que mais podia fazer? - perguntou Margherita.
- Podia fazer amor contigo. Mas uma vez que se foi embora, vamos nós para ali, para o quarto? - propôs, ao mesmo tempo que tentava abraçá-la. Margherita esquivou-se
e saiu. No dia seguinte, Saverio foi ter com ela a casa e levou-lhe um ramo de rosas amarelas.
- São banais, mas não sabia dizer-te de outra maneira que te amo muito e que tenho ciúmes.
- Estás com sorte por a minha mãe não estar cá. Entra - sugeriu, comovida. Saverio abraçou-a num impulso e manteve-a apertada contra si. Aproveitando a ausência
de Antónia, naquela tarde Margherita fez amor com ele.
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5
Em Nova Iorque, os Sogliano alugaram um apartamento mobilado num bonito edifício sobre Madison Avenue, onde moravam também Antónia e Margherita. Rosina, o marido
e os filhos tinham ido ter com eles, e estavam hospedados no Hotel The Pierre A princípio foram dias de grande euforia. Eram convidados para todo o lado pelos amigos
americanos dos Sogliano. E depois havia os passeios a Central Park, as excursões aos arredores, os cinemas e os teatros, as compras nos grandes armazéns. E era preciso
também descobrir o sítio certo para abrir uma loja onde vender as joias Sogliano com pérolas e corais. Era um investimento dispendioso que don Sogliano, escrupuloso
administrador para além de comerciante experiente, tinha de suportar se quisesse incrementar os seus negócios. Entretanto, o apartamento tinha-se tornado uma espécie
de central operativa. Dali partiam e chegavam telegramas de Torre del Greco, de Tobruch, do Japão, e telefonemas de todo o lado, inclusivamente de Montana, onde
os dois criadores de porcos adiavam dia após dia a partida para Nova Iorque porque a filha de Antónia, grávida do primeiro filho, estava com alguns problemas. -
Eu vou ver como está a Matilde - decidiu Antónia, que não sabia uma única palavra de inglês nem tinha nunca viajado antes, embora parecesse à vontade em todo o lado
e se movimentasse com extrema desenvoltura. Margherita divertiu-se com os filhos de Rosina e criou amizade com aquele cunhado fascinante, que continuava a ser um
marido
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apaixonado. De resto, também ele, tal como os Sogliano, aproveitou o seu tempo na cidade para tratar dos negócios e, uma vez que as crianças estavam entregues a
uma ama inglesa, para além da empregada que os Ruiz tinham trazido do Brasil, as duas irmãs tiveram muito tempo para estarem juntas e para se divertirem. Após quase
um mês da chegada a Nova Iorque, enquanto tomavam um chá no bar do Hotel The Pierre, Margherita confessou a Rosina:
- Receio estar grávida.
- Estás a brincar, não estás? - disse a irmã, alarmada.
- Nunca estive tão séria nem tão preocupada. Estou com vinte dias de atraso, e tu sabes que eu sempre fui pontual como um relógio.
- Quem é o pai?
- O Saverio Sogliano - sussurrou.
- E o Vincenzo? - indagou Rosina.
- Não sei como é que ele vai reagir - confessou Margherita.
- Eu já sabia, eu sentia que esta história disparatada havia de acabar mal. Até te escrevi sobre isso, mas quando é que tu alguma vez ouviste alguém? Já pensaste
no que a mãe vai dizer quando souber?
- Não me pregues um sermão, porque não é preciso. Se eu não tivesse de prestar contas ao Vincenzo e ao mundo sobre a minha situação, se calhar até conseguia estar
feliz com isto.
- És completamente palerma - reagiu a irmã, e os outros hóspedes voltaram-se e olharam para elas com um ar de reprovação, porque Rosina tinha levantado a voz. Margherita
começou a chorar convulsivamente. Então Rosina arrastou-a para fora do hotel e disse:
- Ouve bem o que eu te vou dizer. Tens de ir a um hospital, marcar uma consulta e fazer uma raspagem. Não tens outra alternativa para manteres uma postura de respeitabilidade.
- Mas ia perder a minha autoestima. Não me livro de um filho para manter a reputação. Tenho pena, porque a mãe vai sofrer imenso. Mas se ela superou a dor pela trágica
perda do nosso pai, também vai superar a do nascimento de uma criança de uma filha que não é casada.
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- Para além de palerma, também és doida. Não contes com a minha ajuda se decidires ter esse filho.
- Pobre desta criança. Ainda agora começou a desenvolver-se e tu já a queres fazer desaparecer. Nunca, mas nunca! - declarou Margherita.
- Margherita, só te estou a avisar: tu vais desencadear uma guerra entre os Scapece e os Sogliano. Por fim, as duas famílias vão renegar-te e tu vais acabar sozinha,
como a nossa pobre mãe - profetizou Rosina. Quando regressou a casa, Margherita tinha os olhos inchados e vermelhos.
- O que foi que aconteceu? - perguntou-lhe Clotilde.
- Nada. Discuti com a Rosina.
- E quando é que tu não discutes com alguém? - brincou Clotilde.
- Quer saber porquê?
- Não, não quero saber - respondeu ela, que estava prestes a sair e tinha pressa. Mas antes de ir embora acrescentou: - Olha que a tua mãe telefonou. Foste tia pela
quarta vez. A tua irmã teve um rapaz e está bem. A Antónia diz que fazias bem em ir ter com ela a Montana, porque estão à tua espera. Margherita ficou sozinha em
casa e aproveitou para pedir uma chamada intercontinental para Nápoles. Enquanto esperava a ligação, andou às voltas pelo apartamento, dominada por uma grande inquietação.
Rosina tinha razão, pensava, agora havia o risco de se desencadear uma guerra entre os Scapece e os Sogliano, e ela ainda ia acabar sozinha com uma criança nos braços,
mas considerou que, entre os dois admiradores, aquele que sempre lhe oferecera garantias de maior responsabilidade e solidez era Saverio Sogliano. O telefone tocou.
- Nápoles em linha - avisou a telefonista. Logo a seguir ouviu a voz de Vincenzo Scapece.
- Quando regressas? - perguntou Vincenzo.
- Muito em breve. Acho que volto de avião. Entretanto queria falar com o Saverio respondeu.
283
- Está em Torre. Porque é que queres falar com ele e não comigo?
- Porque é com ele que vou casar. Seguiu-se um longo silêncio, de tal maneira que Margherita pensou que a chamada tinha caído.
- Apunhalas-me assim com tanta tranquilidade? - perguntou ele.
- Não foi uma escolha indolor. Sempre gostarei de ti, Vincenzo, mas isso não muda a minha decisão. Por favor, diz ao Saverio que eu chego em breve. Entrou no avião
sozinha, a tremer de medo, mas absolutamente determinada a pôr no sítio certo as peças da sua vida. Quando aterrou em Roma, Saverio estava no aeroporto e recebeu-a
com um enorme ramo de rosas.
- Pus umas velas e levei umas flores a Nossa Senhora, e ela ouviu-me - disse ele, feliz, apertando-a contra si. Enquanto regressavam a Torre de carro, Margherita
perguntou-lhe:
- Como é que o Vincenzo reagiu?
- Partiu para as ilhas Fiji.
- Onde é que isso fica?
- Algures no Pacífico, entre a China e a Austrália. As palavras dele, antes de partir, foram de desafio.
- Que desafio?
- Um desafio próprio entre gente do coral. Disse: "Vou fazer uma reserva de pérolas e corais, mas não só. Também vou comprar conchas e tartaruga. Vais pagar muito
caro, Saverio". O jovem Sogliano estava com um ar de triunfo. Com uma mão segurava o volante do seu Alfa Romeo e com um braço rodeava os ombros magros da namorada.
- Não estejas assim tão seguro de ti, porque ainda não sabes tudo - disse Margherita.
- O que mais há para saber? Escolheste ser minha namorada e isso chega-me. Daqui a dois anos, tal como eu tinha planeado, serás minha mulher, e eu vou ser o homem
mais feliz do mundo.
- Não me parece que possamos deixar passar tanto tempo,
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porque eu estou à espera de um bebé. Lembras-te do que aconteceu na véspera da minha partida para Nova Iorque? - disse Margherita. Lentamente, o braço de Saverio
deslizou dos ombros de Margherita. Encostou o carro à berma da estrada e parou. Depois voltou-se para ela e disse:
- Isso significa que vamos ter de nos casar em tempo recorde porque, como tu bem sabes, eu mantenho sempre os compromissos que assumo - replicou com um ar grave.
- Claro que sei, e foi por isso que fiz amor contigo. Tu és o homem da minha vida - declarou Margherita. Após alguns segundos de silêncio, Saverio abraçou-a de repente
com força e sussurrou:
- Amo-te, e estou feliz por casar contigo e por ter um filho teu.
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6
Saverio estava debruçado sobre o berço do pequeno Michele e sorria-lhe, feliz. Margherita aproximou-se e levantou o menino. Foi sentar-se ao lado da janela, desabotoou
a camisa e ofereceu-lhe o seio. Saverio sentou-se ao lado dela e disse:
- Estou muito apaixonado pelo meu filho e pela sua lindíssima mãe. Só aguardo o momento de ter outro filho.
- Deixa-me respirar, querido. Talvez no ano que vem - replicou ela.
- Talvez? Não tens a certeza?
- A gravidez, tal como eu me apercebi, é um grande compromisso, e as dores do parto aterrorizaram-me. Gostava de ter tempo para me esquecer delas - explicou.
- Não me faças sentir culpado por ser um homem - brincou ele.
- O que vamos fazer logo à noite? - perguntou Margherita. Havia um jantar social no Yatch Club e para Margherita seria a primeira saída social depois de um mês de
vida retirada.
- Não sabes? - perguntou Saverio. Sabia perfeitamente, e até se tinha preparado para isso, comprando em Nápoles uma saia évasé de tafetá negro e uma blusa de seda
branca que exaltavam a sua beleza. Sabia que ia encontrar Vincenzo Scapece, que não via há mais de um ano, e queria apresentar-se o melhor possível, apesar de recear
aquele encontro. A rapariga que se tinha deixado cortejar por dois pretendentes já não existia. No seu lugar havia agora uma jovem esposa apaixonada
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pelo marido e concentrada na sua tarefa de mãe de um bebé lindíssimo. Vincenzo andava ainda em viagem na altura do casamento de Margherita com Saverio. A notícia
tinha-lhe chegado na costa australiana, para onde tinha viajado a seguir as ilhas Fiji. Dois meses
depois do casamento chegou a Torre o seu presente para o amigo fraterno: uma lança de pesca com a ponta em coral, e uma carta:
Sei que foi a Margherita que te escolheu e nunca farei nada para perturbar o vosso equilíbrio de casal, porque gosto de ambos. Mas tu conheces-me e sabes que não
sei perder. Por isso vou vingar-me de ti no campo profissional. Vou tornar-me no mais rico dos homem do coral e tu vais ter de pedalar para ires atrás de mim. Desejo-te
felicidades e filhos varões.
Vincenzo regressou seis meses depois, quando faltavam poucas semanas para o nascimento do bebé que, oficialmente, seria um prematuro. Os dois amigos voltaram a ver-se
por ocasião de uma receção da Câmara de Comércio americana em Itália. Abraçaram-se com uma emoção sincera. Saverio estava com os pais, Vincenzo vinha acompanhado
pela sua namorada japonesa, filha do embaixador do Japão em Roma. Era uma criatura etérea, que parecia saída a flutuar de uma antiga aguarela em pergaminho. À mesa
começou a descascar as uvas, bago após bago, antes de as comer. A sua voz era um sussurro e o sorriso apenas uma sombra ligeira à flor dos lábios.
- O que tencionas fazer? Vais casar com ela? - perguntou Saverio ao amigo.
- A benevolência do embaixador dá-me jeito - respondeu ele.
- Então é uma questão de interesse.
- Claro. Tenho um objetivo que tu conheces bem - respondeu Vincenzo a sorrir, ao mesmo tempo que dava ao amigo uma pancada amigável no ombro. E casou com ela, primeiro
em Itália e depois no Japão. De Tóquio, partiram os dois de comboio em direção a Kõbe.
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Houve um acidente ferroviário tenebroso, com muitos feridos e alguns mortos. A mulher de Vincenzo perdeu a vida. Agora era viúvo, mas entretanto tinha garantido
uma rede inportante de amizades no país do Sol Nascente. Naquela noite ia comparecer, como toda a gente, no jantar do Yacht Club.
- Claro que sei - respondeu então Margherita, ao mesmo tempo que voltava a apertar o colarinho da camisa e segurava o bebé direito contra ela, para que pudesse digerir.
Depois esclareceu: - Não sei se me apetece muito participar nessa festa. Apareceu a ama que tomava conta do menino. Margherita entregou-lho e saiu do quarto com
o marido.
- Porque não dizes antes que não queres voltar a ver o Vincenzo? - perguntou Saverio.
- Sim e não - disse ela, seguindo atrás dele em direção aos escritórios da empresa. Entraram no gabinete de Saverio. Ele foi sentar-se à secretária e Margherita
sentou-se à frente dele.
- De que é que tens medo? - perguntou-lhe.
- Não é medo, querido. Só que não sei o que lhe vou dizer.
- Não lhe digas nada.
- Porque será que os homens tornam tudo tão simples?
- Porque será que as mulheres complicam tudo e nos complicam a vida?
- Porque são mais sensíveis, porque captam as nuances. Sei perfeitamente que vivemos em Torre onde, quer queiramos quer não, acabaremos por nos encontrar. Mas num
contexto oficial, onde toda a gente observa tudo e vê até aquilo que não existe, eu preferia evitar. Aquilo que houve entre nós, antes do nosso casamento... começou
a dizer, mas ele interrompeu-a.
- Houve e já não há. E mais, sinto orgulho por ter casado com uma mulher que me preferiu a outro homem que a cortejava. Tu não tens nada de que te censurar, meu
amor - afirmou Saverio. Margherita levantou-se, atirou-lhe um beijo com as pontas dos dedos e, quando ia a sair, disse:
- Amo-te.
- Eu sei - respondeu ele a sorrir, e começou a trabalhar.
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Margherita tomou um banho relaxante com uns sais perfumados que tinha comprado em Londres, numa perfumaria da Jermyn Street, durante a lua de mel. Em três semanas
deram uma volta pelas capitais europeias, deslocando-se de comboio ou de carro, porque Saverio arranjava sempre maneira de conjugar férias e trabalho. Assim visitou
as joalharias de maior prestígio, que eram já clientes dos Sogliano, e também conheceu muitas outras, nos centros históricos que estavam na moda nas cidades de província.
Regressaram com uma discreta carteira de novos clientes, enquanto o pai, por seu lado, tinha conseguido abrir uma loja na Quinta Avenida em Nova Iorque. Terminada
a lua de mel, Saverio partiu para os Estados Unidos e ela desceu às oficinas para aprender os segredos da profissão. - Jesus, que linda está, dona Margherita: parece
uma pintura - disse a empregada, quando ela a chamou para lhe levar o roupão. - Não é verdade. Estou com uns seios enormes e a barriga ainda não desinchou - rebateu
ela, olhando-se ao espelho. Não gostava de receber elogios. Apenas aceitava com satisfação os que vinham do marido.
E naquela noite Saverio não lhos poupou, quando foi ter com ela a tentar com dificuldade enfiar os botões de punho na camisa. Estava preparada para enfrentar amigos
e conhecidos, sobretudo Vincenzo Scapece. Ela e o marido encontraram-no em frente à entrada do Yacht Club. Estava a fumar um cigarro e aproximou-se deles, dirigindo-lhes
um largo sorriso. Sempre fascinante, pensou Margherita sem qualquer envolvimento emotivo. Sorriu-lhe por sua vez e estendeu-lhe a mão, que ele tocou levemente com
os lábios. Depois Vincenzo deu uma pancadinha no ombro do amigo. - A tua mulher está ainda mais bonita desde que casou. Depois voltou-se para ela: - O casamento
e a maternidade fizeram de ti uma obra-prima. - Tu também estás em grande forma. Pensava que te ia encontrar um bocado deprimido, depois daquilo que aconteceu -
disse ela, referindo-se ao luto recente.
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- E estou, mas não quero entristecer os amigos - replicou Vincenzo.
Ela gostaria de poder dizer-lhe que não estava nada convencida da sua dor. Subiram as escadas para entrar no restaurante, que se ia enchendo de convidados. Chegaram
também os pais de Saverio e sentaram-se todos àmesma mesa, no meio de um grande ruído de vozes, cumprimentos e exclamações alegres. A dado momento o diretor do restaurante
aproximou-se da mesa deles e sussurrou:
- Don Saverio, uma das suas empregadas está ao telefone. Diz que precisa de falar consigo. Ele levantou-se imediatamente e quando regressou à mesa anunciou em voz
baixa:
- O Renzino regressou. Está lá em casa e não está sozinho. Trouxe uma mulher com ele.
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7
- Eu e o teu pai vamos já para casa. Pede desculpa por nós aos outros - disse dona Clotilde ao filho.
- Nós vamos convosco - replicou Margherita.
- Nem pensar nisso - retorquiu don Sogliano. Durante aqueles anos, Renzino tinha ampliado um hotel em Adis Abeba que batizara como Hotel Europa. De vez em quando
pedia dinheiro, e tanto o pai como o irmão não ousavam poupar na ajuda, apesar de saberem que era dinheiro deitado fora porque o "pobre Renzino" não tinha o sentido
dos negócios e era um sonhador. Algum tempo atrás, porém, perante o enésimo pedido de um empréstimo, o pai respondera-lhe com um seco "não" e justificara a recusa
explicando-lhe que a família tinha investido tudo na aquisição e na abertura de uma loja de prestígio em Nova Iorque. Renzino não voltou a dar sinais de vida e o
pai esperava que tivesse começado a raciocinar sobre a sua irresponsabilidade. Agora, sem anunciar, tinha regressado a casa com uma mulher. Assim, enquanto os pais
regressavam a casa, Saverio comunicou aos outros convivas a notícia da chegada inesperada do irmão. Depois voltou-se para a mulher.
- Margherita, trata-se do meu irmão e eu também quero lá estar para perceber o que está a acontecer - explicou.
- Então eu vou contigo. O que é que eu fico aqui a fazer, sozinha? - disse ela.
- Fica, por favor. É uma noite importante e é preciso que algum Sogliano participe nela.
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Ela assentiu e perguntou, num sussurro:
- E depois, como é que volto para casa? Saverio olhou para o amigo e disse:
- Vincenzo, mais tarde, faz-me o favor de levar a minha mulher
a casa.
- Obrigado pela confiança - respondeu o antigo rival.
- Em ti não confio, serpente venenosa. Confio na Margherita brincou Saverio.
- Fez isto de propósito - disse Vincenzo a Margherita, quando os Sogliano se retiraram. Ela fitou o seu velho pretendente com um ar pensativo, considerando que ele
tinha razão: Saverio tinha querido deixá-los a sós.
- Durante todo este tempo, culpabilizei-me por não te ter sequer telefonado para me despedir de ti, como se nunca tivesse havido nada entre nós. Gostaria de te ter
explicado porque escolhi o Saverio, gostaria de te ter dito que gostei muito de ti, apesar de ter decidido casar com ele. Estou-te grata pelos momentos que vivemos
juntos, tu, o Saverio, e eu. Quero que saibas que és o meu melhor amigo.
- Porque o preferiste a ele? - perguntou-lhe Vincenzo, depois de a escutar.
- Apercebi-me de que tu sempre quiseste aquilo que o Saverio tinha. Acho que me amaste porque ele me amava. Queria ter-te dito isto há um ano atrás, mas não houve
tempo, porque tu já tinhas partido e eu não sabia como contactar-te.
- Eu sabia que tinha perdido uma mulher especial, e não posso deixar de detestar o Saverio, que te conquistou - disse-lhe Vincenzo, olhando para ela com um ar triste.
Abriram-se de par em par as portas da sala de jantar e entrou um batalhão de empregados com grandes tabuleiros cheios de comida. A euforia ruidosa daquela centena
de comensais não impediu que Margherita e Vincenzo tivessem um breve momento de intimidade.
- Mas o que é que nós estamos aqui a fazer, tu e eu? - perguntou Vincenzo.
- O nosso dever social. Estamos ligados ao coral, como todos os outros convidados. E estamos aqui para falar de nós e dos nossos
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problemas, para nos gabarmos dos nossos sucessos, para identificar as figuras mais indicadas entre as quais escolher o novo presidente da nossa associação - respondeu
Margherita com um tom paciente. Naquele momento sentaram-se à mesa do atual presidente da associação o presidente da Câmara e o comandante da polícia local, acompanhados
pelas respetivas consortes. Por último sentou-se don Peppino Priore, o velho pároco, que conhecia os segredos de muitos deles.
- Porque é que o teu marido e os teus sogros não estão aqui? perguntou logo o padre.
- O Renzino regressou de África - respondeu Margherita.
- De repente? - perguntou.
- De repente - anuiu. " - Não me faças arrancar-te as palavras com um saca-rolhas! disse o padre, impaciente.
- Don Peppino, se eu soubesse mais alguma coisa, dizia-lhe. Se for lá a casa, amanhã de manhã, a dona Clotilde conta-lhe tudo replicou Margherita.
- Diz mas é àquele filho pródigo que não venha ter comigo para descarregar a consciência - recomendou o pároco, e considerou o assunto encerrado.
- Não acham que este goraz está delicioso? - perguntou o presidente da Câmara.
- Desde que começámos a recuperar da miséria da guerra, deixámos de apreciar os peixes pobres do nosso mar. Agora nos restaurantes as pessoas querem salmão e lagosta,
e se uma pessoa pede um goraz é olhada de lado, porque é um peixe barato.
- A propósito de novas modas, sabem que agora vendem lenços de assoar de usar e deitar fora? - disse Vincenzo Scapece.
- O que significa usar e deitar fora? - perguntou a mulher do comandante da polícia. As conversas banais eram o prelúdio para os raciocínios mais sérios que seriam
abordados entre o último prato e a chegada da sobremesa.
Na mesa mais próxima alguém se tinha posto a citar trechos de histórias antigas inerentes ao seu "pão do dia a dia".
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- Já em 1450, num testamento, fala-se de um nobre que deixava à filha uns adornos de prata dos quais alguns tinham aplicações de coral. Nesse tempo, tal como hoje,
o coral ligava-se com o ouro, a prata e outras pedras. - Em tempos mais remotos, a formação do coral foi identificada com o sangue da Medusa: mole na água, endurece
e petrifica assim que entra em contacto com o ar. E só depois se tornou também símbolo do sangue de Cristo - disse um outro comensal. - Já então se acreditava que
o coral afastava a má sorte e que favorecia e tutelava a abundância. - Gostaria de ir para casa - disse Margherita, que se sentia finalmente pacificada consigo mesma
e com Vincenzo. Queria saber o que estava a acontecer com o regresso do cunhado e da mulher misteriosa.
- Eu levo-te - respondeu Vincenzo. - Deixa lá. Eu trato da dona Margherita - interveio don Peppino, que já sabia de cor os discursos daquela gente, que finalmente
acabavam por o aborrecer. - Diz ao teu marido que desobedeci às ordens dele para cumprir uma ordem superior - brincou Vincenzo. Mas quando ela se inclinou para lhe
dar um beijo na face, como ia fazer com os outros comensais, ele sussurrou: - Nunca te vou esquecer.
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O palácio estava mergulhado no silêncio. Eram quase onze horas da noite e toda a gente se tinha retirado para os seus quartos. Só Saverio estava acordado à espera
dela, na salinha, enquanto verificava um mar de papéis.
- Voltaste cedo.
- A tempo para a última mamada do Michele - replicou ela.
- Porque é que o Vincenzo não subiu? - indagou Saverio.
- Foi don Peppino quem me trouxe. O jantar ainda não tinha acabado, mas eu estava com pressa de voltar para casa.
- És a inconsciente do costume. Aquele padre conduz como um bêbedo, já sabes - lamentou o marido.
- Foi por isso que vocês, os paroquianos, lhe ofereceram um carro? - brincou Margherita. Algum tempo antes, as famílias mais ricas de Torre tinham-se juntado para
lhe oferecer um Fiat, que tornaria menos cansativas as deslocações do pároco, tanto quando tinha de ir falar com o Bispo, a Nápoles, como quando ia levar o seu conforto
às famílias da terra. Antes disso, don Priore deslocava-se numa motocicleta ruidosa que remontava aos tempos de antes da guerra e que estava sempre avariada. O padre
conseguiu a carta de condução com um examinador que fechou os dois olhos para o deixar passar, acreditando na misericórdia do Senhor.
- Estás adorável - disse ele a sorrir.
- Vou trocar de roupa e depois venho ter contigo, porque quero saber o que aconteceu - disse Margherita, e saiu da sala.
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Voltou a aparecer pouco depois com o bebé nos braços, que protestava porque tinha fome. Sentou-se numa poltrona e deu-lhe o peito.
- O Renzino trouxe com ele uma cantora de variedades, como ele diz. Uma mulher que desempenha a profissão mais antiga do mundo, quanto a mim. A mãe e o pai estão
furibundos, até porque ele a apresentou como sua namorada. Cedeu o hotel a um fiancés, porque estava cheio de dívidas e, tanto quanto eu percebi, tenciona instalar-se
aqui com a prostituta - contou o marido. Margherita observou o rosto preocupado de Saverio. O papel de pai de família tinha-o transformado completamente. Tinha crescido
rapidamente e já não havia vestígios do estudante despreocupado que conhecera alguns anos atrás.
- Casámo-nos há pouco mais de um ano e já parecemos um casal de velhos beatos. O Renzino regressa derrotado, com uma mulher que provavelmente o ama, e tu já a classificaste
como prostituta. E um bocadinho de compreensão, não?
- Se eu te mostrasse o monte de documentos que me entregou, antes da compreensão ias ter vontade de lhe bater, àquele desgraçado. E pensar que, como irmão mais velho,
devia ser ele a dar os bons exemplos. Mas não. Como sempre, a mãe tem muita pena dele, porque sabe-se lá quanto é que o pobre Renzino sofreu em África, primeiro
como soldado e depois como prisioneiro. O pequeno Michele, já saciado, tinha adormecido, e Margherita tocou à campainha. A ama foi buscá-lo.
- Entregaste-mo limpo e perfumado, mas já está sujo outra vez disse Margherita.
- Vou mudá-lo para depois ele dormir como um anjinho. Nunca vi uma criança tão sossegada como esta - disse a ama, enquanto pegava nele ao colo. Quando ficaram a
sós, Margherita disse ao marido:
- Até eu tenho pena do teu irmão. Já alguma vez pensaste nos horrores a que ele assistiu durante a guerra? Achas mesmo que estas coisas se podem esquecer facilmente?
Eu lembro-me como ele era em pequeno. Era o mais sensível de todos nós.
- Mas os anos passam e as pessoas tornam-se adultas. Ele
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continuou criança - observou Saverio. - Para além do mais, não se regressa a casa impondo à família que acolha esta espécie de Bela Otero, que ainda por cima tem
um nome que mete medo, Jo lie Georgette.
- É francesa?
- Australiana de Sydney, diz ela. Fala um inglês de subúrbio e na realidade chama-se Mary McDonald. Diz que a família é de origem irlandesa. O pai arranja cabos
de eletricidade nos campos e a mãe é costureira.
- Trabalhadores honestos, portanto. Mas diz-me como ela é. É bonita? - perguntou Margherita, curiosa, pois considerava aquela história muito excitante.
- Não sei. Mal olhei para ela. A mãe chorava e o pai estava com alguma dificuldade em conter a raiva. Aquela mulher não pode ficar em nossa casa. Amanhã vamos estar
nas bocas de toda a gente - lamentou Saverio.
- Querido, vamos para a cama. Eu estou cansada e tu também estás. Amanhã esta situação vai parecer-nos menos dramática. Quando estavam já deitados, Saverio abraçou
a mulher e disse-lhe:
- Obrigado, meu amor. Tu consegues sempre levar-me à razão. És realmente uma companheira preciosa e eu sou um marido cheio de sorte.
- Obrigada por essas palavras bonitas. Vamos dormir? Apagaram a luz, mas Saverio começou a dar voltas na cama. Margherita voltou a acender o candeeiro da mesa de
cabeceira e perguntou-lhe:
- Queres que vá à cozinha preparar-te uma camomila?
- Porquê? Eu não estou inquieto.
- Estás sim senhor.
- Gostava de saber como correram as coisas com o Vincenzo disparou, explicando assim a razão da sua inquietação. Margherita fez-lhe uma carícia.
- Nunca duvides de mim. Agradeço-te por me teres oferecido a possibilidade de um esclarecimento que nunca tinha existido. Acho que o Vincenzo percebeu, tal como
eu percebi, que está determinado a ficar acima de ti nos negócios. É um invejoso, conhece-lo
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melhor do que eu. Gosta de ti, mas não gosta de perder e, uma vez que lhe correu mal comigo, agora quer recuperar com o prestígio profissional. Prepara-te para isso.
- Sabes o que me importa o prestígio? Em relação aos Scapece, a nobreza dos Sogliano tem mais de cem anos e nunca ninguém nos tirará esta primazia. Vá, vamos dormir
- disse Saverio a bocejar, já pacificado. No dia seguinte, quando toda a família tinha já tomado o pequeno-almoço, num silêncio carregado de tensão, e depois de
todos se terem dispersado pelo palácio, Renzino apareceu A porta da salinha onde estavam apenas Margherita, a ama e o bebé.
- Posso falar contigo? - perguntou timidamente à cunhada. Margherita apercebeu-se de que aqueles longos anos de afastamento tinham transformado o seu belo cunhado
num homem vagamente desleixado. Renzino encarnava a figura do perdedor que renunciou A luta.
- Claro que podes, aliás, deves - respondeu a sorrir, ao mesmo tempo que ia ao encontro dele e o abraçava. Depois fez um sinal A ama para os deixar a sós.
- Finalmente encontro alguém que me sorri nesta casa - suspirou ele. - Estou tão infeliz. Tu sabes como eu gosto de rir e de brincar. Mas a minha família conseguiu
fazer-me sentir um hóspede indesejável.
- Pois bem, eu quero que tu me faças rir. Agora vamos pedir para nos trazerem um café e depois contas-me tudo - propôs ela, ao mesmo tempo que o convidava a sentar-se
na poltrona ao lado da sua.
- Queres que te conte das minhas duas mulheres somalis? Recebi-as de presente de um chefe tribal ao qual tinha oferecido um corno de coral. Mas posso falar-te da
beleza das mulheres berberes, do Egito e do fascínio arcano das esfinges, dos desenhos misteriosos das pirâmides, mas também da forma como Deus está muito mais presente
na assustadora, silenciosa desolação do deserto do que na opulência das nossas igrejas, de como são mais inocentes as mulheres africanas que se oferecem com naturalidade
a um desconhecido do que as nossas virgens cheias de malícia. Não te quero contar da
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fome nem da sede que passei, nem das brutalidades a que assisti, nem das doenças que me atormentaram. De tudo isso não direi nunca uma palavra, porque me envergonhei
demasiadas vezes de ser um italiano civilizado e quero esquecer. Entrou uma empregada para servir o café. Margherita esperou que se afastasse e depois perguntou:
- Porque não me falas desta Mary McDonald? - A desgraçada está no meu quarto. Não tem coragem para aparecer depois do acolhimento gélido que lhe dedicaram. É uma
boa rapariga, acredita. Só tem tido um bocado de azar, como eu. - Tu não tens azar, Renzino - disse Margherita, enquanto pousava a chávena do café, depois de ter
dado apenas um gole. - Tu tens a tua família que gosta de ti, acredita.
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9
Os Sogliano nunca tinham abandonado os amigos em dificuldades. Margherita sabia-o bem, uma vez que tinha usufruído, com a mãe e as irmãs, da sua proteção em tempos
longínquos. Foram ainda mais protetores em relação ao filho, apesar de não se resignarem a aceitar a companheira. Dona Clotilde classificou-a como uma cantora de
variedades de ínfima categoria.
- Está aqui há seis meses e ainda não aprendeu uma palavra de italiano - sublinhava, para apoiar o seu juízo negativo. Entretanto, don Sogliano tratou de a pôr apresentável,
dando ao filho dinheiro para lhe comprar um guarda-roupa, para pagar as despesas do dentista e para comprar um piano onde ela se pudesse exercitar.
Margherita levou-a ao laboratório para a ensinar a distinguir os corais em função do tamanho, e conseguiu fazer dela uma boa trabalhadora. Saverio acabou por aceitar
que o irmão o acompanhasse nas suas viagens de negócios e depois disse ao pai:
- O Renzino não é nenhum estúpido, mas tem um grande defeito: confia em toda a gente. Foi por isso que aqueles espertos se aproveitaram dele e lhe ficaram com o
hotel. E sabe-se lá que mais lhe teriam tirado se, ao negar-lhe os empréstimos, não o tivéssemos forçado a fechar tudo e voltar para casa.
- Por isso mesmo, não me apetece envolvê-lo nos nossos negócios.
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No entanto, se lhe déssemos a gestão de uma loja... O que é que tu achas? - perguntou o pai a Saverio.
- Tu é que mandas, e já deves ter alguma coisa em mente - replicou o filho.
- Gostaria que o mantivesses junto de ti durante mais uns seis meses para depois o mandar para Nova Iorque. Estás de acordo?
- Porquê tanta pressa? Primeiro vamos ver como é que ele se entende com a loja de Nápoles. É perto e podemos controlá-lo melhor.
- Queria livrar-me daquele peso morto que ele tem com ele confessou, referindo-se à amante australiana. - Já estamos cheios de sorte por ele não querer casar com
ela - acrescentou.
- Pai, aquela Mary é um peso para ele também, só que o Renzino é de tal maneira generoso que não ousa dar-lhe ordem de marcha.
- O instinto nunca me traiu. Ele tem de a levar para a América. Ali há de acontecer qualquer coisa. Em Nova Iorque, aquele "qualquer coisa" preconizado por don Sogliano
aconteceu de facto. Renzino apaixonou-se pela direção daquele prestigioso ponto de venda e Jo lie Georgette conseguiu um contrato para um espetáculo de dança acrobática
numa transmissão televisiva.
O primeiro bailarino apaixonou-se por ela e a rapariga, que não pedia mais do que ser amada, recebeu de Renzino os votos sinceros de uma vida mais satisfatória.
A Torre, enquanto a família comemorava a segunda gravidez de Margherita, chegou a notícia da renovada liberdade do filho distante.
- Mais um motivo para brindarmos e para estarmos felizes acrescentou don Sogliano.
- Pai, tinhas razão - disse Saverio.
- Segue sempre o teu instinto, meu filho. Ele nunca te há de trair - avisou o pai, mais uma vez. Seguiram-se anos serenos. Margherita deu à luz uma filha, a que
chamaram Priscilla. Depois houve a dor causada pelo terceiro nascimento, o de Archetta, que se revelou imediatamente afetada pela síndrome de Down. Don Sogliano
preferiu-a aos outros filhos. Arranjou-lhe os melhores professores, fez dela uma hábil nadadora
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e ofereceu-lhe sempre o melhor. O único problema foi que Archetta nunca conseguiu entender os números, e menos ainda o valor do dinheiro. Depois nasceu Edoardo.
Foi um parto difícil e, ao fim de dois dias e uma noite de dores dilacerantes, Margherita disse ao marido:
- Saverio, ficas avisado, este é o último filho que te dou. O marido anuiu: - De acordo. Espero bem não incorrer em nenhum erro de navegação. - Mais do que esperar,
deves desejá-lo pela tua saúde porque, se isso acontecesse, eu esganava-te com as minhas próprias mãos. Se a ameaça era uma brincadeira, o pedido era iniludível
e Saverio, conhecendo a mulher, preocupou-se em não falhar nunca
a rota.
Os filhos iam crescendo felizes. O laboratório era o seu quarto de brinquedos. Margherita sentava-se ao balcão com as trabalhadoras, ajudando-as quando era precisa
mais uma mão para despachar uma encomenda. As crianças observavam e aprendiam; eram ávidas de conhecimento e entusiasmavam-se muito mais ao escutar histórias de
lendas dos tempos longínquos ligadas ao mundo do coral do que as fábulas dos irmãos Grimm. Salvamentos milagrosos efetuados por Nossa Senhora e pescas abundantes
favorecidas pelos santos contavam-se entre as suas histórias preferidas. Ao crescer iam sendo cativadas pela descrição das frotas que partiam de Torre e, navegando
pelo Mediterrâneo, pescavam arduamente aquele material precioso. Queriam saber das pobres mulheres daquele lugar que, na ausência dos maridos e de um sustento, se
prostituíam para matar a fome à família enquanto esperavam o regresso dos barcos do coral. Queriam saber do rei Fernando de Bourbon que, pela primeira vez, deu emprego
às mulheres nas fábricas para lhes proporcionar meios de subsistência; de como as mulheres aprenderam os trabalhos mais delicados, por exemplo, o corte dos ramos
minúsculos, a perfuração das contas, a escolha em função da cor e a confeção dos colares. - Imaginem, meninos, que em finais do século )(Ix Torre del Greco tinha
oito mil habitantes. Um quarto deles andava no mar
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a apanhar coral e três mil mulheres trabalhavam na manufatura. Muitas delas eram especialistas na perfuração e conseguiam trabalhar com muita rapidez - contava Margherita.
O ouvinte mais ávido era Michele, até porque era o mais velho dos seus filhos, e também o mais sensível. Se don Sogliano preferia a pequena Archetta, porque era
a mais desfavorecida, Margherita sabia esconder habilmente o amor imenso que sentia pelo filho mais velho. Em Nápoles, os Sogliano possuíam um apartamento na via
Chiaia, no mesmo edifício que albergava a sua prestigiosa loja de pérolas e corais. No momento de entrar para o liceu, Margherita decidiu que o filho ia frequentar
a mesma escola onde Saverio tinha estudado. Por isso mudou-se com o filho para a via Chiaia, levando também consigo o pequeno Edoardo, durante cinco dias por semana,
enquanto as duas raparigas, Priscilla e Archetta, ficavam em Torre com o pai. Durante aqueles anos Saverio tinha reduzido as viagens, criando uma rede de vendedores
e agentes que viajavam por ele. Michele era um aluno brilhante, dotado de uma memória prodigiosa. Enquanto os colegas de escola passavam as tardes a fazer os trabalhos
de casa, ele demorava meia hora a preparar as matérias para o dia seguinte e, uma vez cumprido o seu dever, descia até A loja. O estabelecimento da via Chiaia era
gerido por uma parente de dona Clotilde, grande conhecedora do coral para além de ser uma mulher com muita classe, assistida por duas empregadas de muita confiança
e uma jovem aprendiza. Michele era uma presença discreta quando entravam os clientes, mas quando estava apenas o pessoal queria saber tudo: o critério com que eram
feitas as montras, o número de peças guardadas no cofre, o seu valor comercial, a diferença entre o antigo e o moderno, as preferências da clientela em função da
nacionalidade. Ao fim de semana, quando regressava a Torre com a mãe e o irmão mais novo, trazia com ele uma lista de perguntas para fazer ao pai, que passava com
ele a tarde de sábado a explicar-lhe os complexos mecanismos da venda.
303
Aos dezoito anos, concluído o liceu com excelentes resultados, Saverio levou-o consigo a Nova Iorque numa viagem de prémio. Aquilo, para don Sogliano, era também
um viagem de trabalho, porque a loja da Quinta Avenida andava a marcar passo há algum tempo e os relatórios semestrais de Renzino, que era o responsável por ela,
não o satisfaziam. Michele acabou por passar mais tempo na loja do que a passear pela cidade nas excursões que o pai tinha organizado para ele. A saúde de Renzino
estava debilitada desde que tinha regressado de África. Sofria de diabetes, complicados por periódicas febres reumáticas que o obrigavam a ficar na cama dias e dias,
entregando a gestão ao seu assistente, um belo homem de trato aristocrático mas de vistas curtas. - Tu vais ter de regressar a Itália para te tratares. Precisas
de uma vida mais tranquila, acompanhado pela família - disse Saverio, seriamente preocupado com ele. - Ficas em casa seis meses e, uma vez recuperado, regressas
à América - decidiu. - E quem fica aqui a controlar a situação? - Aqui vai ficar o Michele. - Mas ele ainda só tem dezoito anos! - O meu filho é mais maduro e responsável
do que um homem feito - afirmou Saverio.
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Naquela noite, pai e filho foram ver um filme publicitado em toda a cidade de Nova Iorque através de vistosos cartazes luminosos: 007 Licença para Matar. Deixaram-se
cativar pelas intrigas espetaculares, pelas diabólicas engrenagens de morte e pelo fascínio das belíssimas espias. Depois dirigiram-se a casa a pé, a conversar mais
como amigos do que como pai e filho.
- Sabes que o tio não está lá muito bem, não sabes? - perguntou Michele.
- Quero levá-lo comigo para Itália. Precisa de um tratamento adequado e de uma família que tome conta dele - revelou-lhe finalmente Saverio.
- Acho bem. Mas qual de nós fica a tratar da loja? Aquele impecável mister Harry Dalton não me parece à altura - observou Michele.
- Gostavas de tomar conta dela durante algum tempo? - perguntou Saverio. O filho arregalou os olhos.
- Estás a falar a sério?
- Nunca falei mais a sério na minha vida.
- E a universidade?
- Podes tirar um ano sabático. Eu também fiz isso nos tempos da universidade, mas não era tão despachado como tu, na tua idade.
- Achas que a mãe vai estar de acordo? - perguntou.
- Vai chamar-me inconsciente. Lembras-te como aprendeste a nadar, quando eras pequeno?
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- Levaste-me para o mar no barco de borracha e atiraste-me à água. No entanto, antes disso já eu sabia chapinhar na água. - Chapinhas no coral desde que nasceste.
Agora, se estiveres de acordo, vou atirar-te ao mar com a certeza de que vais nadar. No dia seguinte, quando telefonaram para explicar esta decisão a Margherita,
ela ficou numa fúria. - Tu és completamente louco - disse ao marido. E ordenou-lhe: - Deixa-me falar com o meu menino. - Com certeza, vou-to passar, mas aproveito
para te lembrar que o teu menino também é meu, que já é crescido e que alguns meses de distância das tuas saias só lhe vão fazer bem. Já andaste tempo suficiente
em cima dele e o Michele é de tal maneira forte que, em vez de se deixar embalar como uma criança, mostrou a garra que tem. Nova Iorque vai ser a sua grande experiência.
De resto, trata-se de alguns meses, até o Renzino estar restabelecido e retomar o seu lugar - explicou pacientemente Saverio. - Quero falar com o meu filho - gritou
ela. Michele, orgulhoso da responsabilidade de que o pai o investira, conseguiu tranquilizar a mãe. Os problemas surgiram algum tempo depois, em pleno inverno, quando
o tio Renzino demorava a regressar a Nova Iorque e Michele adoeceu com uma broncopneumonia. Apesar de dedicadamente assistido por amigos de confiança dos Sogliano,
Michele tardava a melhorar. O pai escreveu-lhe uma longa carta, suplicando-lhe que resistisse porque estava a arranjar uma solução para o trazer rapidamente para
casa. Em março, quando Saverio regressou a Nova Iorque para levar o filho de volta a Itália, encontrou A sua frente um jovem magríssimo que continuava obstinadamente
a trabalhar. - As contas estão em ordem. Nos últimos quatro meses aumentámos a faturação em quarenta por cento, A vontade - disse imediatamente.
- Eu sei. És um campeão, mas agora a tua mãe reclama-te. Partimos imediatamente. Michele sorriu. Aquele foi o primeiro momento de alegria após meses de sofrimento.
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De regresso a Torre, os cuidados e o amor da mãe não tiveram o efeito esperado. Michele continuava sem apetite e a febre que o perseguia enfraquecia-o cada vez
mais. No hospital descobriram que tinha uma hipertrofia cardíaca congénita que, aliada à broncopneumonia, que nunca fora ultrapassada, tinha agravado as suas condições
físicas. Morreu no fim de abril, um mês depois do regresso dos Estados Unidos. Margherita amaldiçoou o marido, que regressou a Nova Iorque unicamente para encerrar
a loja Sogliano e confiar a um agente imobiliário a incumbência de vender o apartamento em que Michele tinha vivido durante alguns meses. Nunca mais regressou aos
Estados Unidos e, vencido pela dor, alguns anos mais tarde ele próprio ficou doente.
- Cancro da próstata - sentenciou o médico. - Vamos tentar operá-lo, mas não sei se o conseguiremos salvar, porque a doença está num estado avançado. Margherita
pensou que aquilo era o castigo de Deus por ter afastado o filho. Mas não lhe disse nada. Seguiram-se anos de tratamentos intensos e devastadores, e só quando ficou
claro que estava a morrer Saverio pediu perdão à mulher.
- Não podias saber, querido, como eu também não sabia, que o nosso Michele tinha nascido com uma malformação no coração disse-lhe Margherita que, durante aqueles
anos, tinha andado dolorosamente a digerir a perda do seu primogénito e começara já há algum tempo a conformar-se também com a do marido.
- Não teria morrido tão jovem se tivesse continuado a viver com a família - objetou ele.
- Quem sabe? Os gregos antigos diziam que morre cedo quem os deuses amam. Saverio, a vida deu-nos muito, talvez demasiado, e por fim veio buscar uma parte das suas
dádivas. Nada de tudo isto dependeu de nós - tentou consolá-lo.
- A vida ofereceu-me a minha mulher. És uma mulher excecional, Margherita. Tivemos anos fantásticos; conserva-os na tua memória, porque te vão ser úteis nos momentos
difíceis que vais ter de o enfrentar. Confio-te as nossas duas raparigas e peço-te que protejas
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a Archetta, a luz dos meus olhos. Quanto ao Edoardo, segue-o de perto. Ele vai herdar o património da família e, a partir de agora, vai ter de estudar e trabalhar.
Está plenamente consciente daquilo que o espera, sabe que vai encontrar obstáculos, dificuldades e desilusões. Prometi-lhe que terá sempre o teu apoio - disse Saverio.
- E assim vai ser - garantiu-lhe.
- Sabes, veio cá o Vincenzo há algum tempo. Conversámos muito. É um pirata, mas é também um amigo, o amigo mais querido que eu alguma vez tive. Durante todos estes
anos demos muita luta um ao outro, mas sempre combatemos com lealdade. Eu sei que, se houver necessidade, ele vos ajudará.
- A acabar num buraco? - perguntou-lhe com um tom irónico.
- A não cair lá dentro. Deu-me a sua palavra, e eu acredito nele.
- Concordo contigo - afirmou Margherita.
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STEVE
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- Apesar da sua fama de ganancioso, o Vincenzo Scapece é um cavalheiro, e eu gostei muito dele. Dois anos depois da primeira mulher japonesa, casou-se com uma excelente
senhora e traiu-a de todas as formas. Dizia: ovou à caça de fantasmas". Acho que continuou a persegui-los, sem nunca os encontrar, os arrepios da paixão juvenil.
Nunca tentou perturbar o meu casamento com o Saverio, e estou-lhe grata por isso - concluiu Margherita. O avião em que Orsola e Margherita viajavam preparava-se
para aterrar em Genebra. - Mas tu estás a chorar, minha menina - constatou Margherita. - A sua história comoveu-me e também me ajudou a entender alguma coisa sobre
mim e sobre os meus sentimentos. Obrigada. Tinham chegado. Desligaram-se os motores do avião e os passageiros começaram a sair. Orsola e a sogra saíram do aeroporto
e foram de táxi até ao Hotel Président Wilson, o hotel onde Edoardo se hospedava sempre. O sol declinava sobre as águas tranquilas do lago, no meio da cadeia de
montanhas de cumes cobertos de neve. - Sempre que venho à Suíça tenho a sensação de entrar num desenho animado de Walt Disney. É tudo tão ordenado, tão limpo, tão
fino, tão elegante, parece quase artificial, não achas? Nós vimos de uma civilização ruidosa, às vezes opulenta, quase sempre miserável, onde as cores, tal como
os sentimentos, não conhecem as meias-medidas, onde o sol te cega e te corta a respiração, o gelo te rebenta, as pulsões não conhecem barreiras - comentou Margherita.
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- Na Suíça, pelo contrário, temos o mundo almofadado das grandes riquezas - replicou Orsola.
- E dos pequenos sentimentos - disse a sogra.
- Está nervosa? - perguntou a nora.
- Deste conta? É por isso que estou para aqui a falar à toa - explicou. Levavam uma pequena mala de viagem cada uma, que o empregado do hotel retirou da mão do taxista.
- Bem-vindas, senhoras Sogliano - disse um rececionista deferente, que aclarou a voz antes de acrescentar: - Chegou cá a notícia... da perda... do Dr. Sogliano.
Permitam-me que exprima as condolências em nome de todo o pessoal.
- Obrigada - disse Margherita.
- A direção do hotel reservou para as senhoras uma das nossas melhores suites, ao mesmo preço da suite standard que o doutor Sogliano reservava sempre - quis esclarecer
o eficiente rececionista. Tiveram dois quartos, duas casas de banho e uma sala comum onde encontraram flores, fruta e doces, para além da cortesia de uma série de
tratamentos no spa do hotel.
- Achas que vamos ter tempo para estas frivolidades? - perguntou Margherita.
- Acho que amanhã vamos ter mais em que pensar. O Steve vai estar connosco até à hora do jantar e eu interrogava-me como o íamos entreter durante todo o dia.
- Se calhar o rapaz também está com o mesmo problema que nós. Entretanto trouxe-lhe um presente. Achas que ele vai gostar? - perguntou Margherita, mostrando-lhe
um livro. Era O Diário de um Banana. - Foi o empregado da livraria que mo sugeriu - acrescentou. Estavam ambas agitadas; fizeram um jantar ligeiro, deitaram-se cedo
e, na manhã seguinte, às dez horas, estavam a conversar com a diretora do colégio. A diretora tinha dispensado Steve das habituais atividades escolares e aconselhou-as
a levarem-no de volta ao colégio ao primeiro sinal de insatisfação.
- O Steve tem estado ansioso à espera da vossa chegada. Podem encontrá-lo no jardim. - Em seguida conduziu-as até à saída das traseiras do edifício.
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- Mãe, espere aqui por mim. Vou ter com ele sozinha - disse Orsola, ao mesmo tempo que descia os degraus que davam acesso a um parque de árvores seculares. Steve
estava com mais dois miúdos, um pequeno indiano e um loiro nórdico. Orsola observou aquele trio com uma sensação de pena. Crianças depositadas como encomendas postais
num ambiente dourado por parentes demasiado ricos e demasiado ocupados com os seus problemas pessoais para tomarem conta deles. É claro que se habituavam depressa
a tecer uma rede de ligações internacionais, aprendiam a nadar com estilo, a montar a cavalo, a jogar golfe, a falar os idiomas de todo o mundo, a inventar um código
de comunicações próprio, mas sobretudo aprendiam a calar os sentimentos. Alguns tornar-se-iam empresários gélidos, preocupados unicamente com os resultados económicos
das empresas que tinham sido chamados a dirigir; outros comportar-se-iam como grandes mandriões, a delapidar o património da família; outros ainda precipitar-se-iam
no poço profundo dos vícios ilícitos. Crianças que não conheciam o calor dos afetos e que, quando passavam as férias com a família, regressavam inundados de presentes
inúteis e caros, de trejeitos enjoativos, apercebendo-se, com a sensibilidade aguda de todas as crianças, que os seus "queridos" não viam a hora de se libertarem
de uma presença incomodativa. De resto, também Edoardo o tinha depositado ali, arrancando-o ao afeto dos humildes avós chineses e da mãe, que conseguira penosamente
reconstruir a sua existência. Orsola apercebia-se da necessidade de recriar rapidamente um mundo de afetos para aquele menino desamparado e ia fazê-lo, independentemente
da reação dos filhos. Mas precisava também de arrancar o consentimento aos parentes chineses de Steve. Steve viu-a, afastou-se dos dois companheiros e foi ao encontro
dela quase a correr.
- Olá, Orsola - disse, pondo-se em sentido.
- Olá, Steve - disse ela. - Posso dar-te um abraço? Os companheiros deram meia-volta e afastaram-se a dar empurrões um ao outro. Orsola abraçou Steve e apertou-o
contra o peito. Depois sentou-se num banco de pedra e ele pôs-se ao lado dela.
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- Como estás? - perguntou-lhe.
- Terminei o ano letivo com os melhores resultados - respondeu.
- Isso já eu sei, e dou-te os meus parabéns. Mas quero saber como estás - insistiu, batendo levemente com a palma da mão sobre o peito.
- No fim do mês o meu padrasto, o senhor Cremonesi, vem buscar-me para me levar de férias a Itália com a minha mãe e a minha irmazinha que nasceu há pouco. Chamaram-lhe
Carrie. A minha mãe explicou-me que lhe deu este nome para recordar a sua Nv Shi, uma pianista inglesa que a criou. Tu mantiveste a promessa e vieste ter comigo.
Obrigado. Eu estou bem, e tu como estás? - respondeu Steve.
- Eu estou a combater em muitas frentes, meu pequeno amigo. A morte súbita do teu pai trouxe muitos problemas. Para além de tudo, tenho de acompanhar os meus filhos.
O mais velho, o Saverio, assumiu a responsabilidade de gerir a nossa empresa, e os dois mais novos estão a começar a perceber que o contributo deles também é necessário.
E depois tenho-te a ti, meu menino. Acho que te toca por direito um lugar na família Sogliano. Também isto é um nó que eu tenho de desatar e tenciono fazê-lo da
forma mais justa - explicou-lhe, tendo a consciência de que Steve tinha urna capacidade de compreensão elevada para uma criança da sua idade. Efetivamente, replicou:
- Percebo, mas não sou eu que tenho de me impor. Orsola levantou-se, imitada por ele, e dirigiram-se juntos às escadas.
- Hoje trouxe uma pessoa comigo - confessou-lhe.
- Eu sei. É a mãe do meu pai.
- Vamos ter com ela - disse Orsola. Margherita estava sentada no átrio do colégio com uma expressão ansiosa, com as mãos agarradas à carteira e assim que viu Steve
ficou rígida. Procurava nos seus traços alguma coisa que lhe recordasse o filho desaparecido. E descobriu-o, na forma do rosto e dos lábios.
- Bonjour, madame - exclamou Steve.
- Bonjour, Steve, je suis ta grand-maman - sussurrou ela, e descontraiu-se, finalmente.
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2
Estavam numa lancha que cortava suavemente a superfície da água e os transportava a um restaurante a pouca distância de Genebra. - Sabes, escolhi este sítio para
almoçarmos juntos porque os proprietários são de Torre, como nós, e conhecemo-nos há muito tempo. Ao sábado é frequentado por famílias e no verão há palhaços e mimos
do teatro napolitano que se exibem no relvado para divertir grandes e pequenos durante a refeição - explicou Margherita ao rapazinho, que estava sentado à frente
dela, ao lado de Orsola, que lhe segurava uma mão. - Conheces a máscara do Polichinelo? Margherita falava sem parar, para preencher o silêncio de Steve. Era evidente
que a sua pequena mente viajava num outro planeta e aquela avó, surgida do nada, tentava conhecer os seus pensamentos. E Steve revelou-os, de repente, enquanto ela
lhe ilustrava a maravilha de um prato de macarrão.
- Os adultos fazem sempre coisas que depois escondem porque não são boas? - perguntou.
- Explica-te melhor, porque eu não percebo o que tu queres saber - respondeu a avó. Ele voltou o rosto para a janela e observou um voo de gaivotas;
depois disse:
- Não faz mal, não é importante.
- Eu acho que a tua pergunta é muito importante - disse Orsola, reforçando o aperto na mão de Steve. Ele olhou novamente para Margherita e explicou:
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- O meu pai manteve-me sempre escondido e só agora que ele morreu é que eu te conheci, a ti e à Orsola. Isto significa que eu não era uma coisa boa para ambas. As
duas mulheres calaram-se e ele prosseguiu: - A minha mãe também me dizia: "Não faças demasiadas perguntas ao teu pai, porque nem sempre ele te pode responder". Mas
se eu não era uma coisa boa, porque é que ele gostava de mim? - Tenho a certeza de que os filhos, e tu incluído, foram aquilo que de melhor o teu pai teve na vida.
Só era complicado confessar Orsola que tinha tido um filho de outra mulher. O teu pai não queria fazer sofrer ninguém, e muito menos a Orsola, porque a amava muitíssimo,
e por isso nunca nos falou de ti. Mas deixou uma carta para a informar da tua existência e para que fosse ter contigo e tomasse conta de ti. Também eu aqui estou
agora e gosto muito de ti, porque és meu neto, tal como os outros filhos do Edoardo - explicou Margherita, contendo um soluço. - Nós gostaríamos de te acolher na
nossa família, se tu também o desejares, mas temos de falar sobre isso com a tua mãe - acrescentou Orsola. - Tout est tellement compliqué! - exclamou Steve. - Então
vamos dar tempo ao tempo, para nos conhecermos melhor, e o resto virá por si - concluiu Margherita, divertida com a reação do neto. Tinham chegado ao pequeno cais
em frente ao restaurante. Saíram da lancha, atravessaram a prancha e caminharam por um prado de erva verde-esmeralda. Algumas crianças brincavam a correr, outras
faziam um círculo em volta de alguns acrobatas que se exibiam, logo imitados, de forma cómica, por dois palhaços. Steve parou a olhar para eles, curioso. Mais à
frente havia pessoas sentadas As mesas a comer pizza, calzoni e frituras de peixe. O dono do restaurante, envergando um traje napolitano, foi ao encontro deles e
cumprimentou-os com uma vénia. - Dona Margherita! Olhem só como o mundo é pequeno - disse, quando a reconheceu. - Eu vi o apelido Sogliano entre as reservas,
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mas não imaginava que fosse a senhora. E este jovem? Nós não nos conhecemos.
- Bom dia. Eu sou o Steve - disse o rapaz, estendendo-lhe a mão.
- Aniello, para o servir - disse o dono do restaurante, enquanto os escoltava até uma mesa na primeira fila, para que Steve pudesse
assistir ao espetáculo enquanto comia.
- Como é que te correm as coisas, Aniello? - perguntou Margherita.
- Com a ajuda de Deus, dos santos e de Nossa Senhora, não nos podemos queixar. O que posso trazer? Pizza - gritou Steve, que tinha recuperado a descontração própria
da infância e, depois de a ter devorado, se juntou às brincadeiras das outras crianças.
- Meu Deus, depois daquelas questões terríveis que ele levantou, sempre recuperámos alguma alegria - disse Orsola à sogra.
- É um miúdo precoce e muito ponderado. Não vai ser fácil aprofundar uma relação com ele - comentou Margherita.
- Quanto a mim, vai ser mais simples do que imaginas. É um livro aberto.
- Não tenho assim tanto a certeza. Tem dentro dele dúvidas, perguntas e medos.
- Temos de arranjar uma maneira de estarmos mais próximas dele, mas no fim deste mês vai de férias com a mãe e depois tem de regressar ao colégio - observou Orsola.
- Sinto-me muito atarantada. Tenho aqui o livro que lhe comprei e nem sequer arranjei maneira de lho dar. Tens de falar com a mãe dele para perceber se vamos poder
tê-lo connosco durante uns dias - disse Margherita.
- Vai ser amanhã mesmo, quando regressarmos a casa. - Podias ficar em Milão e ir falar com a mãe do Steve - propôs Margherita.
- Mas o que é que eu lhe posso dizer? Proponho-lhe que renuncie às férias com o filho para ele poder estar connosco? Ou fazemos metade das férias cada uma, como
se faz com os filhos dos divorciados?
- Podias pedir-lhe para te encontrares com eles, onde estiverem
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a passar férias. Uma vez que ela tem uma recém-nascida para cuidar, talvez até te ficasse grata pela ajuda.
- Nem pensar. Nem sequer sei quem ela é. Ou seja, sei, mas não nos conhecemos. Aquele longo encontro que eu tive com ela não foi assim muito fácil. Os meus sentimentos
também andam aqui pelo meio, mãe.
- Assim como os do Steve, não te esqueças disso. Ele é mais importante que tu e que eu - sublinhou Margherita. A meio da tarde, os saltimbancos foram-se embora.
O restaurante estava já quase vazio e Steve, afogueado e feliz, regressou A mesa.
- Diverti-me muito. Obrigado - disse. - Já tinha estado outras vezes no circo, mas só podia estar sentado a ver. Aqui é diferente.
- Querido, acho que temos de ir embora - disse a avó.
- Podemos voltar cá outra vez?
- Com certeza - respondeu Orsola, enquanto entravam na lancha que os ia levar de volta ao colégio.
- Logo A noite, quando a minha mãe ligar, tenho de lhe contar tudo.
Quando o barco se afastou da margem, Margherita abriu a carteira, pegou no livro que trazia com ela e entregou-lho.
- Trouxe-te uma coisa para leres.
- Obrigado. Espero que seja em italiano, porque quero aprender bem a lingua do meu pai. Oh, O Diário de um Banana! Um colega meu de turma, que é de Turim, já me
tinha falado neste livro.
- Então o empregado da livraria deu-me uma boa sugestão disse Margherita, satisfeita. E, num impulso, anunciou-lhe: - Ouve, Steve. Resolvi ficar em Genebra até ao
próximo sábado, porque assim podemos voltar a ver os saltimbancos e, se amanhã ou nos próximos dias te apetecer fazer alguma coisa comigo, basta que me ligues para
o hotel. O que achas?
- E a Orsola? - perguntou Steve.
- Ela tem de ir a Milão, mas vais ter oportunidade de a voltar a ver muito em breve - esclareceu Margherita. A sogra queria ficar sozinha com o neto, e Orsola decidiu
fazer-lhe a vontade.
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3
Ao fim da tarde, depois de ter chegado a Milão, Orsola foi ter com a sua amiga Damiana à boutique. - Ainda está assim tanta gente na cidade? - perguntou-lhe, depois
de a cumprimentar. - Imagina! Com o calor que está, as minhas clientes já partiram há vários dias. Eu vou ter a loja aberta mais duas semanas e depois fecho para
férias - respondeu a amiga. - Acho-te melhor do que há dois meses atrás. - Conta-me coisas do teu namorado e da mãe intrometida - continuou Orsola, sentando-se num
banco acolchoado. Damiana mandou embora a empregada, que acabava de chegar depois de ter feito uma entrega num hotel próximo: - Amanhã de manhã chego tarde. Portanto
manda à costureira os dois vestidos para arranjar. - Depois voltou-se para Orsola: - Primeiro fala-me de ti. - A minha sogra quase me impôs que me viesse embora
de Genebra. Queria ficar sozinha com o neto, para o conhecer melhor. Neste momento, a minha preocupação constante é a reação dos miúdos, que ainda não sabem de nada.
Receio que possam armar-se em juizes do pai, e eu não ia gostar nada que o fizessem. Gianni, o mais estouvado dos cinco, de repente virou trabalhador responsável.
Não sei de onde saiu aquela repentina mudança de rota, nem sei se é apenas fogo de vista. Não sei nada, em suma. - Acaba com essa coisa de andares sempre tão tensa.
As crianças não beneficiam em nada com uma mãe ansiosa.
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- Damiana, tu não tens filhos, por isso não podes saber o que significa lidar com cinco personalidades diferentes umas das outras, com diversos graus de sensibilidade
e maturidade. Amam-se, mas discutem muitas vezes por uma coisa de nada e pretendem igualmente a minha aprovação.
- Só te posso invejar, porque sabes bem a pena que eu tenho de não ter tido filhos. De qualquer modo, lembra-te de que para além da tua família também existes tu,
com as tuas exigências, o teu sacrossanto direito à serenidade - recomendou Damiana. - Olha, são quase sete e meia. Vou fechar a loja e vamos comer qualquer coisa,
porque não tenho nada feito em casa. Sobre a cidade pesava um ar abafado e o calor de julho tardava a baixar com as sombras da noite. Saíram para a rua. Damiana
trocou cumprimentos e alguns comentários com os proprietários das lojas mais próximas que, como ela, estavam a descer as grades. Pouco depois as duas amigas estavam
sentadas na esplanada do Don Lisander a saborear um bife tártaro com salada, acompanhado por um espumante fresquissimo dos irmãos Berlucchi.
- Sabes, o meu último namorado deixou-me da pior maneira, com uma mensagem no telemóvel. Isso já te dá a dimensão da mesquinhez e covardia daquele homem - contou
Damiana.
- Porque é que não admites que fizeste tudo para que ele te deixasse? - retorquiu Orsola, a perder a paciência.
- Também é verdade que perdi definitivamente a preciosa safira de noivado e que lhe disse que não suportava a mãe. Mas, se ele estivesse realmente apaixonado por
mim, devia ter-me entendido, devia ter vindo ter comigo e dizer-me: "Perdeste o anel? Não faz mal, eu ofereço-te outro". E também: "Já meti a minha mãe na ordem,
nunca mais vai interferir na nossa vida" - continuou Damiana, pouco convencida.
- Estou a ver como estás a sofrer, como aquele falhanço te destruiu - retorquiu Orsola, com ironia.
- Vai-te lixar. O que vale é que eu tenho as costas largas e estou habituada a que ninguém me entenda, nem mesmo a minha amiga mais querida.
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- Vamos pedir uns morangos selvagens - propôs Orsola, para encerrar um assunto que se estava a tornar maçador.
- Não, eu quero uma grande fatia de bolo recheado com creme e natas, porque tenho de compensar as carências afetivas com açúcar e gorduras. Orsola anuiu a sorrir
e disse:
- Também eu. Não és a única a ter necessidade de amor. Damiana pensou que a amiga sempre tinha vivido submersa , por avalanches de amor: o marido era louco por ela,
Alberto estava ainda apaixonado por ela, os filhos amavam-na incondicionalmente. Que mais queria para perceber que era uma mulher cheia de sorte? Enterraram no mesmo
momento os garfos no bolo fofo e perfumado de baunilha. Depois, Orsola disse:
- Há umas noites atrás liguei ao Alberto.
- O que foi que disseram?
- Pouquíssimas palavras. Ele estava de serviço e foi chamado à sala de partos. Explicou-me que a mulher o deixou porque não tolerava aquele casamento a três: ela,
ele e o meu fantasma.
- Como a Diana de Inglaterra com a Camilla - brincou Damiana. E acrescentou: - Continua. O que disseram mais um ao outro?
- Que talvez voltemos a encontrar-nos.
- Parece-me uma ótima proposta.
- Ótima para quem? Para ele? Para mim? Ou para ti, que assim sempre podes viver através de mim uma história de amor que não quiseste viver na primeira pessoa?
- Como dizia a tua mãe, às vezes és realmente pérfida - reagiu Damiana. - Não sei o que vais decidir fazer, mas pelo que me diz respeito confesso-te que, francamente,
aos cinquenta anos começo a aperceber-me do sentido do ridículo quando imagino uma paixão arrebatadora entre mim e um homem .da minha idade. Estas coisas devem deixar-se
para os jovens, que ainda têm que descobrir a vida. Os corpos compactos, elegantes, elásticos de dois jovens a fazer amor são uma imagem linda, quase sacra, porque
satisfaz um instinto que Deus ofereceu a cada um de nós. Os corpos já cansados, que começam a mostrar as primeiras cedências da idade, não
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me agradam, apesar de psicólogos e sexólogos nos ecrãs televisivos exaltarem a sexualidade entre os idosos. Para além do mais, eu não me sinto só. Os amigos, as
boas leituras e os meus interesses preenchem-me a vida. Se aos vinte anos tivesse encontrado um amor louco, como te aconteceu a ti, agora seria feliz por estar ao
lado do meu companheiro. Não tive essa sorte, e por isso chegou o momento de aceitar o meu destino: quero envelhecer com dignidade, sabendo que tenho A minha volta
poucos amigos bons, um trabalho de que gosto, o afeto dos meus sobrinhos e a capacidade de sentir ainda muita curiosidade em relação ao mundo que me rodeia. - Sabes
o que te digo? Concordo plenamente! - exclamou Orsola. - O que não impede que logo A noite, se calhar, eu ligue ao Alberto.
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4
Naquela noite, sozinha na casa da via Melzo, Orsola recordou a história da sogra e constatou que Margherita tinha sido uma mulher mais livre e independente do que
ela. Ainda agora, com aquele neto surgido do nada, estava a reagir A sua maneira. Tinha-a praticamente expulsado de Genebra, porque decidira estabelecer com o neto
uma relação familiar que pudesse ser o apoio de que precisava para superar a dor do luto e dar um novo sentido ao seu ocaso. Margherita era um exemplo extraordinário
de feminilidade e vitalidade. Sob aquela aparente doçura, e apesar da idade avançada, era ainda forte como uma leoa. Concluiu que era um modelo a imitar. Por isso,
decidiu que ia ao dentista fazer a limpeza semestral, que ia marcar uma consulta com as excelentes esteticistas do Dr. Maurizio Bottari para uma série de tratamentos
que deviam incluir os pés, as mãos, o rosto e pelo menos algumas deliciosas massagens relaxantes. Em suma, ia proporcionar a si própria cuidados e atenções. Ia também
renovar o guarda-roupa para o outono e procurar numa livraria as obras dos autores de que gostava: Vito Mancuso, Gianfranco Ravasi, Andrea Camilleri, Marco Malvaldi.
E depois queria um Ernest Hemingway Il para mergulhar na aventura e um Alan Bennett para dar umas gargalhadas saudáveis. Ia também dar um salto à sua velha paróquia
para deixar uma oferta ao pároco que socorria algumas famílias pobres, não para pacificar a consciência, mas porque estava habituada a dar contribuições à igreja,
sabendo que iam parar às mãos certas, e também para satisfazer e cumprir a filosofia daquele anarquista
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Libero Luraghi, o seu pai, que lhe tinha ensinado a participação concreta nas necessidades dos mais fracos. Armada destes propósitos, enfiou-se na cama, desligou
o ar condicionado porque o quarto estava fresco e adormeceu. Ouviu um grande barulho e acordou com uma sensação de irritação pelo facto de o seu sono ter sido precocemente
interrompido.
Quando olhou para o despertador, apercebeu-se de que tinha dormido durante onze horas consecutivas. Saltou da cama como uma mola. A empregada de Damiana estava a
preparar o pequeno-almoço.
- De onde vem toda esta maravilha? - perguntou-lhe Orsola, ao
ver em cima da mesa café, salada de frutas e bolinhos quentes recheados de creme pasteleiro. - Foi a sua amiga que mandou. - Já percebi, vem tomar o pequeno-almoço
a minha casa - disse,
e enfiou-se na casa de banho. Pouco depois as duas amigas estavam sentadas A mesa.
- Este calor mata-me - começou Damiana. - Se calhar é porque
estou a envelhecer, mas hoje nem sequer me apetece ir para a loja.
- É o ar abafado de Milão e o cansaço de um ano de trabalho
que te cortam as pernas. Precisas de descansar - disse Orsola, para
a animar.
- Mas tu estás fresca como uma rosinha de maio. E estás com
aquele olhar malandro de quem a pregou ou está para a pregar insinuou Damiana.
- É mais a segunda. Está a apetecer-me passar uns dias a encher-me de mimos e de compras. - Eu também entro no programa?
- Só pela parte que diz respeito ao guarda-roupa de outono, que
vou comprar na tua loja, e ao jantar. Mas nada de trabalho na cozinha, só restaurantes. - Estou nessa. Ainda não te disse que no fim do mês vou de férias com duas
amigas. Vamos para norte, de carro, até Paris, e depois sempre para cima até Calais. Talvez cheguemos a Inglaterra. Queres vir connosco?
- Precisava de me organizar. Nós fechamos o laboratório durante
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quinze dias em agosto. Os miúdos devem ir para qualquer lado e eu não posso colar-me a eles, até porque, justamente, não me iam querer. A minha sogra, como faz já
há alguns anos, vai mudar-se para a villa de Positano com os parentes que chegam do Brasil. Em suma, a tua proposta parece-me perfeita. Tocou o telemóvel.
- Acabei de o ligar e já tenho uma filha à minha procura - resmungou Orsola antes de responder. - Diz, Cristina.
- Pode saber-se o que é que andas a fazer, tu e a avó? - disse Cristina com um tom agressivo.
- Estás curiosa ou só preocupada? - exclamou Orsola.
- Desculpa, mas não voltámos a ter notícias vossas desde que partiram. Agora a avó diz que tu estás em Milão.
- De facto, estou em minha casa. A avó queria ficar sozinha. Tu e os teus irmãos têm alguma coisa contra? - perguntou, irónica.
- Se calhar estás a fazer-nos alguma falta - admitiu a filha.
- Mas eu volto em breve, estejam sossegados e liguem se houver problemas. Gosto muito de ti - concluiu. Desligou a chamada com um ar de evidente satisfação. Damiana,
que não tinha perdido uma palavra da conversa da amiga, comentou:
- Nunca te tinha visto tão decidida com os teus filhos.
- Estou a tentar recomeçar a viver também a minha vida. Foste tu que me disseste para o fazer, ontem à noite.
- A sério? Levaste-me à letra!
- Porque tens razão. Vemo-nos logo à noite? Era uma despedida, que Damiana se apercebeu sem fazer comentários.
Tal como tinha prometido a si mesma, Orsola passou alguns dias a tratar de si. Só à noite, quando as lojas fechavam, ia ter com Damiana para jantarem juntas.
- Com esta capa de humidade eu fico um farrapo, enquanto tu, desculpa se me repito, mas é uma coisa que até me dá raiva, pareces uma rosa fresca de orvalho - constatou
a amiga, com um olhar de inveja.
- Se o meu aspeto te ofende, peço desculpa - exclamou Orsola.
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- Só me dá nervos - resmungou Damiana. - Gostava muito de te ver agonizar como eu. Dava-me algum conforto.
- Obrigada, querida. És realmente uma amiga - respondeu, irónica.
- E agora, vamos lá ver, o que é que tu fazes durante todo o dia?
- Durmo, leio, faço massagens relaxantes, vou às compras mas, sobretudo, estou em paz comigo mesma - respondeu. Então Damiana sorriu e exclamou:
- Já não era sem tempo! Então, vens de férias comigo?
- Claro! E agora que já jantámos, vamos para casa. Saíram do elevador, deram as boas-noites uma a outra e Orsola fechou-se em casa, preparando-se para se deitar.
Mas antes telefonou a Alberto. Ele atendeu ao primeiro toque.
- Onde estás? - perguntou.
- Em minha casa, em Milão.
- Então vamos encontrar-nos - propôs imediatamente.
- Está bem para ti amanhã à noite? Podemos jantar juntos.
- No Baretto, às oito? - perguntou Alberto.
- Vou lá ter contigo - respondeu Orsola. Desligou a chamada, sufocou um bocejo e foi para a cama.
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Alberto esperava-a em frente A entrada do restaurante e, quando a viu, foi ao encontro dela. Olharam-se, sorriram um ao outro, abraçaram-se. Ele deu-lhe a mão e
levou-a para dentro do restaurante, onde um empregado diligente os recebeu e os acompanhou A mesa. - Posso servir um aperitivo? - perguntou. - Espumante para os
dois - ordenou o médico. Quando o empregado se afastou, segurou uma mão de Orsola entre as suas e perguntou-lhe:
* - Então, onde é que tínhamos ficado?
- Aqui, neste restaurante, há dez anos - respondeu Orsola. Ele anuiu. - E tu estás mais bonita do que nessa altura. - Com alguns fios brancos nos cabelos, como tu,
de resto. - Orsola - disse -, como estás? - Estou um pouco emocionada. O empregado veio servir o espumante gelado e uns minúsculos canapés quentes. Ela olhou em
volta. As mesas estavam ocupadas pelos clientes do costume, discretos, educados. As senhoras, muito bronzeadas, vestiam roupas elegantes, enquanto os companheiros
tinham um ar cansado e estavam menos bronzeados. - Estás só separado ou divorciaste-te? - perguntou Orsola. - A minha mulher deixou-me há dois anos. Esforcei-me
por ser um bom marido, mas parece que apenas consegui ser um companheiro afetuoso e bastante distraído - explicou ele.
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- Provavelmente tinha razão.
- Seguramente tinha razão.
- Sentes falta da tua mulher?
- Sinto a tua falta - respondeu ele, a sorrir. Começaram a saborear uma entrada de vieiras grelhadas.
- Eu tenho 50 anos, sou uma senhora de meia-idade. Tu és jovem, um rapaz, comparado comigo, e devias ter uma mulher jovem ao teu lado.
- Ora, são essas as palavras que me fazem irritar. A um homem verdadeiramente apaixonado não interessa a idade da sua mulher. Estou obcecado por ti, percebes? Qualquer
coisa que eu faça, veja ou pense, gostaria de partilhar contigo. Quando tentava dividir com a minha mulher um bom momento, apercebia-me de que não conseguia porque
estava a pensar em ti. Por fim, ela percebeu e foi-se embora. Sabes quantas vezes me detestei e te odiei por esta minha obsessão?
- Sinto muito, mas entende que a nossa história já devia ter sido posta de lado, por todas as razões que tu conheces - disse, e prosseguiu: - Tenho pena que o teu
casamento tenha acabado, mas não me sinto responsável por esse falhanço. Quanto a mim, tu és como a Damiana, persegues as tuas quimeras e tens medo da vida a dois.
Eu acho que, num casamento, o quotidiano pode apagar o fogo do desejo porque mostra impiedosamente as fraquezas do outro, faz saltar os mal-entendidos e as incompreensões
e, se tudo isto não pressupõe um empenhamento de vida em comum, pode ser o fim. Tu não deixaste de pensar em mim porque nos separam quilómetros de distância, porque...
- Acaba lá com essa argumentação, porque eu não te acompanho a esse nível. Apenas sei que estou apaixonado por ti e talvez tu também não me tenhas esquecido - afirmou
Alberto. Não se tinham apercebido da presença do empregado, que tentava chamar a atenção deles para a ementa. Optaram por uns tagliolini com flor de abóbora e lagostins
salteados com legumes grelhados.
- Então, estou errado? - perguntou-lhe, quando o empregado se afastou. Orsola não respondeu, limitou-se a sorrir-lhe.
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Ele acariciou-lhe uma mão e sussurrou: - Os anos passam, mas tu manténs-te firme como uma rocha. Tenta deixar-te ir, por favor. - Fiz isso uma vez e tornei tudo
muito difícil, para mim e para ti - constatou, desejando que ele não replicasse. Naquele momento, Alberto levantou uma mão para saudar quatro homens que tinham acabado
de entrar na pequena sala e que se aproximaram da mesa deles. Alberto levantou-se para os cumprimentar.
- O Dr. Galli o Dr. Squinzi, o Dr. Allegri... Orsola arregalou os olhos para um deles, o Dr. Sérgio De Santis, porque não estava à espera de o encontrar. - Sérgio!
- exclamou, surpreendida. Depois voltou-se para Alberto e explicou: - É o médico de Torre, o nosso médico de família. Sérgio observava-a com curiosidade, apesar
de saber que o seu companheiro era o ginecologista que a tinha operado muitos anos antes.
Orsola, porém, perguntava a si mesma o que faria ele em Milão com aqueles médicos da clínica. Intuindo os pensamentos de Orsola, Sérgio explicou: - Fomos os quatro
colegas de faculdade. Depois de ter acabado o curso, e já que tinha traído o coral para estudar Medicina, decidi aplacar os meus sentimentos de culpa regressando
à minha terra de origem. Nesse momento, Alberto esclareceu: - E Milão perdeu um excelente internista. - Depois acrescentou: - Só não vos digo para se juntarem a
nós porque já acabámos de jantar e eu ia agora levar esta senhora a casa. - Amanhã de manhã regresso a Torre - disse Orsola a Sérgio. - Eu também. Reservei um lugar
no comboio das dez - respondeu Sérgio. - Fantástico, é o mesmo comboio. Assim fazemos a viagem juntos - replicou ela. Despediram-se e em seguida o grupo de médicos
foi escoltado por um empregado até à respetiva mesa, enquanto Alberto e Orsola acabavam de tomar o café.
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- É um sujeito excelente, aquele Sérgio - comentou Alberto.
- É um ótimo médico e um grande amigo. Os De Santis são uma estirpe antiga de gente ligada ao coral, tal como os Sogliano. Ele, que é o último de oito filhos, preferiu
a Medicina A profissão da família e trata os seus conterrâneos há vinte anos - explicou Orsola.
- É um bonito homem - insistiu Alberto.
- Nunca o considerei sob esse aspeto. Mas, agora que me chamas a atenção, devo dizer que é verdade. Sabes, durante anos manteve uma relação com uma mulher bastante
conhecida, uma importadora de pérolas, famosa no nosso meio, casada e separada. Depois ela mudou-se para os Estados Unidos e ele ficou sozinho. E continua a fazer
a sua vida de solteiro. Levas-me a casa? Quando entraram no carro, Alberto perguntou-lhe:
- Não voltamos a ver-nos, pois não?
- Mas vamos continuar a recordar a nossa história, que foi fantástica. Não achas? - respondeu Orsola, com ternura. Saíram do carro e Alberto acompanhou Orsola até
ao portão do prédio. Abraçaram-se como velhos amigos, olhando-se nos olhos com uma sombra de melancolia.
- Amar-te-ei sempre, querida - disse ele.
- Nunca te esquecerei - respondeu ela. Orsola abriu o portão, depois virou-se para ele e atirou-lhe um beijo com as pontas dos dedos. Ele fingiu agarrá-lo com a
mão e sorriu-lhe.
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6
Tocou a. porta de Damiana, que abriu imediatamente, quase como se estivesse atrás da porta a espera dela. - Entra - disse, dando-lhe passagem. Trazia um pijama branco,
de algodão leve, tinha a cara brilhante
de creme e os cabelos enrolados em madeixas apertadas com pinças. - Já te vais deitar? - perguntou Orsola. - Ia agora para a mesa - respondeu. - A esta hora? - Antes
estive a fazer uma obra de restauro: cera nas pernas, no buço, creme depilatório nas axilas, creme esfoliante em todo o corpo, máscara tonificante na cara, chuveiro
morno. É tão agradável tratarmos de nós mesmas - explicou Damiana, enquanto avançava a frente dela em direção à cozinha, onde estava a mesa posta. O apartamento
da amiga pareceu a Orsola particularmente acolhedor e agradável. - Estou a sentir um perfume novo que acho muito agradável - observou. - É Soir de Lune, da Sisley,
o meu novo creme de corpo. Comprei-o na perfumaria, antes de regressar a casa. Agora vou comer qualquer coisa. O que é que te posso oferecer? - Só um copo de água
com gás. Sentaram-se a mesa, uma em frente à outra, enquanto Damiana espetava o garfo numa taça de salada verde com pedaços de ovo cozido e lascas de parmesão.
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- Estive com o Alberto e jantámos juntos no Baretto.
- E... - pediu Damiana, enquanto continuava a comer.
- Mais nada. Somos dois amigos que gostam muito um do outro.
- Percebo... - disse Damiana. - Se me tivesse acontecido a mim encontrar uma pessoa como o Alberto, tinha ido até ao fim do mundo com ele. Mas já se sabe que, de
nós as duas, quem tem sorte és tu.
- Nem te respondo. Mas comunico-te que amanhã regresso a Torre.
- E o teu guarda-roupa de outono? Tinha-te posto de lado vestidos, casacos...
- Guarda tudo para a próxima vez - disse Orsola. Esvaziou o copo de água fresca e levantou-se.
- Amanhã de manhã ainda tenho umas coisas para fazer, por isso não nos vemos. Despeço-me de ti agora - anunciou, ao mesmo tempo que a amiga se levantava também para
se despedir dela.
- Então espero por ti no fim do mês? - perguntou Damiana.
- Está mesmo a apetecer-me passar umas belas férias contigo respondeu Orsola a sorrir, e abraçou-a. Entrou em casa, descalçou as sandálias de salto alto, tão bonitas
como incomodativas, despiu o vestido de seda azul e vestiu um roupão confortável. Depois tirou o telemóvel da carteira e ligou-o. Apareceram logo duas chamadas não
atendidas de Margherita. Por isso ligou-lhe.
- Não tinha nada de urgente para te dizer, para além de te confirmar que saio de Genebra amanhã de manhã - comunicou-lhe
a sogra.
- Eu parto às dez e chego a Torre à tarde - disse Orsola, e esteve quase a dizer-lhe que tinha encontrado Sérgio e que ia fazer a viagem com ele. Depois pensou que
ia ter de fornecer demasiadas explicações e preferiu ficar calada. Disse então: - Como correram as coisas com o Steve?
- O meu neto é adorável. Encontrámo-nos todos os dias. A propósito, falaste com a mãe dele? - perguntou Margherita.
- Sabe, estive a pensar que devia ser a senhora a fazê-lo, uma vez que é a mãe do Edoardo. Margherita não fez comentários.
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Orsola preparou a mala para o dia seguinte, desligou o ar condicionado e refugiou-se no quarto. Sentou-se à mesa de toilette, um belo móvel de fins do século xix,
com espelho basculante, que herdara da mãe, que por sua vez o herdara da avó e a que Diletta chamava a minha petineuse, diante da qual se sentava para se pentear
e pôr pó de arroz na face. Noutros tempos, sobre o tampo do móvel havia uma escova oval com cabo de prata para os cabelos, um pente, uma taça com os ganchos, outra
para o pó de arroz com um pincel, uma escova retangular para a roupa, um frasco azul de água de rosas Roger & Gallo-, um boião de creme de noite e um frasco de cristal
com um vaporizador em forma de pera de borracha revestido de seda rosa que continha água de colónia. Todos aqueles objetos se tinham perdido e agora, nesse mesmo
tampo, havia cremes anti-age, tão caros quanto inúteis, tónicos e loções, frascos com flocos de algodão hidrófilo, tesouras para as unhas e pinças para as sobrancelhas,
e um frasco de Eau du Soir da Sisley, o seu perfume favorito. Noutros tempos, no espelho estava pendurada uma mantinha de algodão, guarnecida de rendas, que a mãe
pousava nos ombros quando se penteava. Onde teria ido parar? Agora já não se usava, como também não se usavam as redes para o cabelo que Diletta punha de noite.
Nessa altura, como agora, não havia cosméticos porque Diletta, tal como Orsola, não se maquilhava. Abriu um boião de creme hidratante, tirou dois dedos daquela pasta
perfumada que oferecia a ilusão da eterna juventude e começou a espalhá-lo no rosto que tinha acabado de lavar. Entretanto observava uma série de fotografias enfiadas
na moldura do espelho. Algumas eram de um tempo imemorável, colocadas ao lado de pequenas imagens religiosas e de um velho retrato de Mikhail Bakunin. Orsola nunca
entendera o que tinha o grande pai do anarquismo a ver com a imagem da Virgem a esmagar a serpente debaixo dos pés e com a do Padre Pio a mostrar as mãos com os
estigmas. Provavelmente o retrato de Bakunin tinha sido ali enfiado pelo pai para troçar da veia mística da mulher, ou para significar que não havia diferença entre
os santos e os revolucionários, uma vez que uns e outros eram animados pela fé num ideal que todos deveríamos perseguir.
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Enquanto massajava as faces com movimentos circulares, Orsola perguntou a si mesma se os santos e os anarquistas teriam alguma vez aspirado à serenidade, porque
aquele era agora o seu ideal de vida. Limpou os dedos com um lenço de papel e, da moldura do espelho, retirou uma pequena fotografia dos pais a preto e branco. Libero
e Diletta eram jovens, e a foto devia ter sido tirada durante uma festa de família, porque ao fundo se distinguiam, desfocadas, outras pessoas sorridentes e alguns
móveis de casa. O pai envergava um colete e uma camisa branca de mangas arregaçadas, fechada no pescoço com uma fita negra A Lavalliere. Sobre a testa caíam-lhe
madeixas de cabelo despenteadas, o rosto mostrava uma expressão inspirada e tinha os braços levantados, como se fosse um maestro. - Aposto que tinha posto os amigos
a ouvir o Orfeu de Monteverdi - disse, com um sorriso nos lábios. Aquela era a ópera lírica que ele preferia e que definia como a mãe de todas as óperas que viriam
depois. A mãe, sentada A mesa, observava-o com um sorriso complacente. Diletta preferia as canções populares milanesas à música clássica. Sabia letra e música da
balada em honra de uma tal Rosetta que percorria o passeio de San Lorenzo, onde se prostituía; quando morreu, "todos os rufiões se vestiram de negro para levar Rosetta
ao cemitério". Aquela era uma das primeiras canções que Orsola tinha aprendido com a mãe, juntamente com outra mais recente sobre um gato morto pela Ninetta, uma
velha manca e rabugenta, que levou umas pauladas do dono do gato. O homem chorou e quando foi preso, explicou: "A justiça não me favoreceu, a Ninetta está viva e
o gato morreu". Pensou que os pais tinham tido sorte. Tinham vivido honestamente do seu trabalho, alimentando-se de sonhos impossíveis, tinham-se amado e acreditado
num mundo melhor. Enfiou na moldura do espelho aquela velha fotografia e tirou outra com as cores um pouco esbatidas, que a retratava a ela com Edoardo, em fato
de banho, numa pequena praia na Sardenha. Ela estava estendida numa toalha e o vento despenteava-lhe os cabelos enquanto apanhava sol. O marido estava inclinado
sobre ela e tinha na mão um tubo de protetor solar para lhe espalhar nas costas.
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Gostaria de voltar atrás trinta anos para recuperar aquele instante da sua viagem de núpcias, que tinha sido fantástica, cheia de promessas e esperanças de um futuro
luminoso. Naquele dia
Edoardo disse-lhe:
- Ninguém é mais feliz do que eu. Tenho uma mulher para amar, a perspetiva de muitos filhos para criar e um trabalho sólido ao qual me dedicar.
- Só isso? - respondeu ela, na brincadeira.
- Porquê? Que mais querias? - perguntou ele, enquanto lhe fazias cócegas nas plantas dos pés. A rir, e a tentar libertar os pés que ele lhe segurava, gritou-lhe:
- Quero sexo, muito sexo, só sexo. Sorriu perante aquela recordação e disse para si mesma que agora, aos cinquenta anos, aquilo que queria era apenas serenidade.
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7
Na Estação Central caminhou ao longo da plataforma do comboio para Nápoles. Junto das carruagens de primeira classe viu Sérgio. O médico foi ao encontro dela.
- Qual é a tua carruagem? - perguntou-lhe.
- A número três.
- Também a minha. Olha que coincidência! Beijaram-se na face e entraram no comboio. Ela vestia uns jeans leves, uma T-shirt branca sem mangas que lhe descobria os
braços ainda bem modelados, e calçava umas sandálias rasas de couro que mostravam uns pés bem cuidados com as unhas pintadas de vermelho escuro. Ele trazia uma Lacoste
azul-clara e umas calças de linho um pouco gastas. Arrastava um trólei pesado que enfiou no espaço entre dois assentos; depois pegou no saco de Orsola e pousou-o
no suporte da bagagem. Sentaram-se um em frente ao outro. A carruagem estava quase vazia.
Ele pousou em cima da mesa de apoio um maço de jornais.
- Já tomaste o pequeno-almoço? - perguntou
- É a minha prioridade assim que me levanto. E tu?
- Idem. Acordar com fome é um sinal de boa saúde - respondeu.
- Eu sei. Dizias-me sempre isso quando os meus filhos eram pequenos e vinhas vê-los sempre que estavam doentes. Mas a mim nunca me tinhas perguntado isso.
- Se quiseres, posso começar a partir de agora a fazer perguntas.
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Apesar de nos conhecermos há vinte anos, tinha muito mais confiança com o Edoardo do que contigo - explicou. Orsola observou o belo rosto cordial de Sérgio e, pela
primeira vez, deteve-se a avaliar o seu ar sincero, os olhos azuis sorridentes, a pele cor de âmbar típica de muitos meridionais, a cabeleira farta e cândida. Tinha
cinquenta anos, tal como ela, mas lembrava-se dele aos trinta, quando começara a exercer a profissão em Torre. Já nessa altura tinha os cabelos brancos, como o pai,
De Santis, industrial do coral, e uma das suas irmãs, que os tingia de negro. Também Sérgio a observava com curiosidade.
- Podes começar a fazer perguntas - disse-lhe.
- És muito amiga do Dr. Somaschini? - perguntou Sérgio, quando o comboio iniciou a marcha.
- Sim, somos amigos, apesar de já não nos vermos há dez anos, desde que fiquei curada.
- Devo presumir que voltaste a vê-lo porque estás outra vez com algum problema? - perguntou Sérgio, preocupado.
- Já o saberias. Não, felizmente estou muito bem de saúde.
- É um alívio ouvir-te dizer isso. Fiquei apreensivo quando vos vi juntos no restaurante, ontem A. noite - confessou Sérgio, e preparava-se para lhe fazer outra
pergunta que decidiu não fazer. Passou uma hospedeira com o carrinho das bebidas e um funcionário da carruagem-restaurante anotou as reservas para o almoço.
- Se calhar agora é a minha vez de te fazer perguntas - disse Orsola.
Ele sorriu e anuiu. O comboio avançava a grande velocidade, atravessando paisagens cheias de sol, mas no interior da carruagem o ambiente era confortável.
- Porque foi que não nos encontrámos mais vezes? - perguntou-lhe. Sérgio apenas se dava com a gente do' coral quando havia noites de convívio. Sempre que chegava
a casa dos Sogliano para ver alguém que não estava bem e coincidia com a hora de almoço, Margherita e Edoardo convidavam-no para ficar. Ele aceitava raramente, mas,
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quando estavam à mesa, Orsola captava muitas vezes o seu olhar risonho sobre ela. Era simpático, tinha um sentido lúdico da vida, brincava a propósito de tudo e
conseguia desdramatizar as situações mais graves. Na altura em que ela adoeceu, foi operada e regressou a casa, ele foi visitá-la. Orsola contou-lhe o sucedido com
todos os pormenores, que de resto ele já conhecia.
- Os médicos dizem-me que, mesmo sem os meus preciosos órgãos femininos, vou viver perfeitamente. Eu não acredito. Sem hormonas vai-me crescer a barba, no mínimo,
e depois o que mais me vai acontecer? - perguntou-lhe, desolada.
- Vais ficar com voz de homem, vão desaparecer-te os seios e vai despontar-te uma pilinha - respondeu-lhe, assumindo um ar grave.
- Nessa fase, vais abandonar marido e filhos para ires à caça de mulheres.
- Como é que tu podes ser tão irreverente? Porque é que não me levas a sério? - lamentou-se Orsola, a rir. Então, com uma voz muito doce, Sérgio disse-lhe:
- És uma mulher bonita e continuarás a sé-lo para o resto dos teus dias. A tua feminilidade nunca será tocada por este incidente. Considera-te feliz, Orsola, por
teres encontrado alguém que te salvou a vida. Agora, enquanto o comboio viajava em direção a Nápoles, Sérgio respondeu à pergunta de Orsola:
- E se eu te dissesse que mantinha as distâncias porque gostava de ti? Aquela confissão não devia ter sido fácil para ele, uma vez que as faces se cobriram de um
ligeiro rubor. Orsola apercebeu-se disso. No entanto, desafiando a sua índole divertida, perguntou:
- É uma piada?
- Nunca falei tão a sério - respondeu-lhe. - Agora vamos comer.
- Espera um instante, deixa ver se eu percebo - disse ela.
- Não há nada para perceber. Apenas podes tomar conhecimento da minha confissão, ou ignorá-la. Pronto, vamos lá - replicou, avançando à frente dela em direção A.
carruagem-restaurante.
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Um empregado entregou a ementa a Sérgio que, depois de a ter lido, pediu duas caprese que não constavam da lista de pratos disponíveis. - Muito bem escolhido, as
cap rese, e sabe porquê? - disse o empregado, que tinha acabado de distribuir penne alrarrabiata aos passageiros. - Porque a massa acabou e vocês hoje têm no frigorífico
dois belos tomates para salada e duas mozzarelle de búfala? - brincou Sérgio. - Tudo verdade, senhor, exceto no que diz respeito à búfala. As mozzarelle são de leite
de vaca, mas garanto-lhe que são frescas - respondeu o empregado. Sérgio e Orsola conversaram enquanto comiam e, quando chegou o café, ele resolveu abordar o assunto
que o apoquentava. - Tu não imaginas a coscuvilhice que existe no meio médico. Há dez anos, naquela clinica de Milão, havia muita gente que sabia que o brilhante
ginecologista Somaschini tinha perdido a cabeça com uma paciente. Quem também sabia disso era um dos meus colegas que ontem à noite estavam comigo no restaurante.
E contou-me. - Nessa altura eu era uma mulher bastante jovem, e o meu extraordinário médico apenas me dedicou mais algumas atenções do que às outras pacientes. Mais
nada. Em qualquer caso, agora eu sou uma viúva de meia-idade...
- Muito atraente - interrompeu-a Sérgio. - E totalmente desinteressada de complicações sentimentais - apressou-se Orsola a esclarecer.
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- Foi o Steve que te mandou isto - disse Margherita, ao mesmo tempo que lhe entregava um cartãozinho branco enrolado. E prosseguiu: - Estou um pouco cansada. Não
te importas que eu me deite por uns minutos? Orsola acabava de regressar a Torre e não estava ninguém em casa para além das empregadas e da sogra, que tinha chegado
de Genebra antes dela. Orsola foi ter com ela ao quarto.
- Deixo-a sozinha? - perguntou.
- Não, anda para aqui, para junto de mim. Sentou-se na cama e desenrolou o cartãozinho. Steve tinha desenhado, com lápis de cera de cores ténues, o almoço no restaurante
junto ao lago de Genebra, com os saltimbancos ao fundo e, em primeiro plano, Orsola e Margherita sentadas à mesa.
- Este rapazinho tem talento artístico! - constatou, espantada.
- Eu também acho. Tal e qual o avô. O meu marido desenhava com a mesma facilidade com que escrevia, um pouco como a Cristina - observou Margherita, com um ar satisfeito.
- E, portanto, o Steve também a conquistou a si.
- Eu diria que sim. Hoje liguei à chinesa, depois de ele me ter manifestado o desejo de conhecer os irmãos. Ela já sabia tudo, porque ele fala com ela todas as noites.
Diz que o marido, o professor Cremonesi, se ofereceu para o trazer a nossa casa. Temos de comunicar aos miúdos - explicou Margherita.
- Agora descanse. Vemo-nos à mesa - disse Orsola, e levantou-se.
- Mas eu estou com vontade de falar, se tiveres tempo para me ouvir - deteve-a a sogra.
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Orsola sentou-se novamente na cama.
- Sou toda ouvidos.
- Tencionas ser uma viúva para o resto da tua vida? - perguntou com doçura.
- Por enquanto, ainda estou a fazer o meu luto. De qualquer forma, o Edoardo não é facilmente substituível. Era um verdadeiro homem, em todos os sentidos, e cada
dia me faz mais falta.
- E dizes-me isso a mim, que era mãe dele? O facto é que eu penso nos teus cinquenta anos acabados de fazer, e lembro-me de quando eu própria fiquei viúva. Amei
o meu marido como tu amaste o teu, mas apesar da dor da viuvez senti muito a falta de um homem, até porque ainda era jovem quando fiquei sozinha. Não me olhes com
esse ar de espanto; os filhos e o trabalho não são tudo. Margherita não deixava de a surpreender e Orsola disse:
- A mãe é realmente uma grande mulher, e eu tenho muita sorte por poder contar com o seu afeto.
- De mim não recebeste nada mais do que aquilo que mereces. Estou a tentar dizer-te que, se encontrares uma boa pessoa de quem gostes, ainda estás a tempo de refazer
a tua vida. Mas não esperes demasiado tempo e, se possível, escolhe um homem que conheças, porque os estranhos podem reservar surpresas más.
- Vou pensar nisso. Obrigada pelos seus conselhos - disse Orsola, e deu-lhe um beijo na testa. - Agora fique aqui a descansar. Encontramo-nos à mesa - concluiu.
Saiu do quarto e foi para o dela, no segundo andar. Esvaziou a mala, tomou um duche para se refrescar, escolheu um vestido ligeiro de algodão e desceu para jantar.
Os filhos já estavam na sala de jantar e, enquanto esperavam por ela e pela avó, riam de qualquer coisa que ela ignorava. Observou-os por um instante, a pensar que
agora navegavam em galáxias que lhe eram estranhas. Dentro de alguns anos, um atrás do outro, iriam todos embora. Dali a dez anos ela assumiria o papel que agora
era da sogra, mas entretanto tinha de aprender a viver a sua própria vida e isso era um exercício para o qual não estava preparada.
- Mãe! - gritou Giulietta. Foi a correr ao encontro ela, abraçou-a e disse-lhe uma quantidade de coisas.
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Orsola foi recebida com alegria também pelos outros filhos e dedicou um pensamento de gratidão a Edoardo, que a ajudara a criar aquela bela família.
- Pode saber-se o que é que tu e a avó andaram a fazer? - perguntou Saverio.
- Sobre isso falaremos depois de jantar, na minha sala - disse Margherita, ao entrar.
- É alguma coisa que nós não sabemos? - perguntou Gianni, depois de ele e os outros terem abraçado a avó.
- Já disse que falamos sobre isso mais tarde - repetiu Margherita. Depois voltou-se para Cetta, que estava à espera ao lado da consola, e disse: - Podes servir.
Archetta, que até àquele momento tinha ficado em silêncio, agitando-se na cadeira, resmungou:
- Vocês põem-me nervosa. Eu vou jantar no meu quarto, porque não quero saber de nada. - Levantou-se da mesa, pegou no prato e caminhou com um passo de rainha para
fora da sala de jantar. Durante o jantar cruzaram-se mil e uma conversas mas, de vez em quando, os irmãos trocavam olhares enviesados, tendo percebido que estava
para chegar uma notícia importante. No fim da refeição, Cetta perguntou se podia servir o café.
- Mais tarde, quando eu tocar. Agora vai ter com a minha filha e vê se ela precisa de alguma coisa - ordenou Margherita, e dirigiu-se A sala, seguida pela nora e
pelos netos. Na sala encontraram Titina a ver um programa de televisão.
- Onde está a Rosária? - perguntou Margherita.
- Na cama. Diz que tem sono - respondeu a empregada, e desapareceu imediatamente. Margherita sentou-se no sofá, Orsola instalou-se ao lado dela e os filhos dispuseram-se
A frente delas.
- E agora ouçam-me sem me interromperem - começou Margherita. - A vossa mãe foi comigo a Genebra para eu poder conhecer um menino. Tem 9 anos, chama-se Steve Tang,
a mãe é uma mulher originária de Taiwan e o pai é o meu filho Edoardo, o vosso pai.
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9
Margherita e Orsola contaram aos irmãos a história de Steve, da sua mãe chinesa e do encontro com Edoardo. Não descuraram nenhum pormenor. Quando se calaram caiu
na sala um silêncio atónito, que Gianni quebrou em primeiro lugar.
- Então quer dizer que o Steve é nosso irmão?
- É um filho bastardo do pai. Estou errada? - perguntou Cristina, com um ar agressivo.
- Não posso acreditar! O meu pai não era capaz de fazer semelhante coisa - disse Giulietta, que estava quase a chorar.
- Não admito que nenhum de vós se permita julgar o vosso pai declarou Margherita. - Tanto eu como a vossa mãe conhecemos o vosso irmão e é uma criança muito só e
carente do calor de uma família. Eu penso em vós com a idade dele, e lembro-me como eram amados, mimados, barulhentos e felizes. Ele não tem ninguém com quem partilhar
a sua vida. Orsola mostrou aos filhos o bonito desenho a pastel que Steve tinha entregado a Margherita para esta lhe dar a ela.
- Olhem para esta pequena obra de arte que ele desenhou para mim - disse. Os filhos passaram a folha de uns para os outros.
- É um bonito desenho - murmurou Cristina.
- Tu e a avó estão bem reconhecíveis - observou Gianni.
- Gosto da escolha das cores - disse Giulietta.
- E isto é ele com o vosso pai - disse Orsola, mostrando uma das muitas fotografias que retratavam Steve com Edoardo.
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- Se quiserem, podem ler o que está escrito na parte de trás, porque assim vão perceber que o vosso pai amava muito este filho e que sacrificou a sua relação com
ele para não vos perturbar. Houve silêncio outra vez.
- Bern, não têm nada a dizer? - perguntou a avó. Depois voltou-se para Saverio: - Sobretudo tu, que não abriste a boca. Saverio manteve uma expressão impassível,
abanou a cabeça
e murmurou:
- Gostaria de saber mais alguma coisa, mas não já. Por enquanto estou a tentar digerir a notícia. - Pegou na fotografia do pai com Steve e perguntou: - Posso ficar
com ela? Orsola anuiu. Margherita e Orsola acharam que os jovens Sogliano estavam prestes a abrir uma brecha no muro de hostilidade que ambas tinham dado como certo.
- Algum de vocês tem mais alguma pergunta? - perguntou Orsola.
- Agora onde está este menino? - perguntou Giulietta. "
- Em Genebra. Frequenta o colégio Le Rosey, que o pai escolheu para a sua formação. Tenham em conta que a mãe vive em Milão com o marido, que é um italo-chinês especialista
em sinologia,
e que teve uma filha há pouco tempo. O Steve é um aluno brilhante. Quando era pequeno e vivia em Taiwan com os avós, o pai ia ter com ele e falava-lhe de nós, da
nossa família, do mundo do coral...
- Pois é! Inscreveu-o no colégio de maior prestígio da Europa observou Cristina.
- E obviamente os custos eram por conta do pai - reforçou Gianni.
- Tens alguma coisa a dizer sobre isso? - desafiou Orsola.
- Por favor! Só estava a pensar que o filho da culpa lhe ficou muito caro - replicou.
- Gianni, acaba com isso! - ordenou Saverio. Levantou-se, meteu a fotografia no bolso e saiu da sala. Os outros irmãos seguiram-no. Orsola e a sogra olharam uma
para a outra e, ao mesmo tempo, deram um suspiro de alívio.
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- Já quebrámos o gelo - disse Margherita.
- Estava com medo que corresse pior - confessou Orsola.
- Estou muito cansada. Vou para o meu quarto - anunciou
a sogra. Orsola refugiou-se nos seus aposentos. Estava exausta e cheia de calor. Naquela noite dormiu profundamente, acordou cedo, desceu para tomar o pequeno-almoço
e encontrou Gianni que, inesperadamente, a cumprimentou com um largo sorriso.
- Levantas-te todas as manhãs a esta hora? - perguntou-lhe.
- Já vais perceber, com todo o trabalho que tenho no estaleiro... - respondeu, e trincou uma fatia de bolo acabado de sair do forno.
- O que é que estás a fazer, exatamente? - perguntou a mãe, enquanto deitava um fio de leite na chávena do café.
- Estou a pôr em ordem todo o arquivo da empresa. No meio da papelada velha vai uma grande confusão: coisas de família misturadas com documentos comerciais, esboços
de joias misturados com registos de vários tipos. Parece que o pai não tinha vontade nenhuma de meter as mãos naquelas coisas, mas agora alguém tem mesmo de o fazer.
Sabias que tínhamos um palácio em Roma, no Campo de' Fiori? Foi vendido nos anos 30 e, com essa venda, o bisavô comprou dois palácios em Nápoles - contou-lhe.
- Porque é que não pedes ajuda à avó?
- Tencionava pedir. Mas, mudando de assunto, estive a pensar naquele irmãozinho e digo-te sinceramente que não me importava nada de o conhecer.
- Fico feliz e creio que, lá de cima, o teu pai te agradece.
- Mãe, tenho de te dizer isto: és uma grande senhora. Outra mulher, no teu lugar, ia armar um pé de vento.
- Eu e o teu pai tivemos um período difícil há dez anos, quando eu estive doente, e ele sentiu-se muito só einfeliz.
- Foi quando te operaram àquele tumor?
- Precisamente. Eu andava intratável. Como diz a tua irmã, o pai era um homem sensível e sofreu muito. Superámos juntos aquele período de crise. Para o teu pai,
a família e os filhos eram todo o seu universo afetivo.
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- De qualquer maneira, agora vais ter de te entender com a Giulietta, que se fechou como um caracol e não quer ouvir qualquer argumento - avisou-a.
- São só ciúmes - disse Orsola. - O pai sempre foi o ídolo dela comentou. Recordou a Gianni que quando a irmã era uma miúda com poucos anos mergulhava nos braços
do pai e lhe dizia: - Pai, diz-me que sou a tua princesa.
- Não és a minha princesa - respondia ele, a brincar.
- Porque não? - perguntava, quase a chorar.
- Porque és a minha rainha. Enfeitiçaste-me o coração e poderás sempre pedir-me aquilo que quiseres, porque eu sou o teu rei e posso conceder-to - replicava Edoardo,
ao mesmo tempo que a agarrava por baixo dos braços e a levantava muito alto.
- É verdade que quando eu crescer tu vais casar comigo? - perguntava a menina.
- Todos os reis casam com a sua rainha.
Então Giulietta pedia ao pai para a pôr no chão e andava a correr pela casa fora a anunciar a toda a gente que o pai ia casar com ela. Aqueles episódios repetiam-se
com frequência. Mas aos 8 anos Giulietta apaixonou-se por um colega da escola e a história acabou. Gianni, que era mais velho do que ela, lembrava-se disso e confirmou:
- Está com ciúmes, tens razão, mãe. Orsola levantou-se, aproximou-se do filho e pousou-lhe um beijo nos cabelos, sussurrando:
- Obrigada.
- Eu é que te agradeço, por tudo - respondeu ele. Orsola passou a manhã entre o escritório e o laboratório e sentia-se feliz porque os filhos estavam todos ali,
com ela, a trabalhar em harmonia.
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10
De tarde, Orsola e Margherita foram ao notário da família. Onorato Spinelli convidou-as a sentarem-se nas poltronas em frente à secretária e sentou-se também, pronto
para as escutar. Cesarina, a secretária, serviu-lhes café e depois eclipsou-se, fechando atrás de si a dupla porta insonorizada, para que as vozes não passassem
para o exterior.
- Dona Margherita, a senhora desafia as leis do tempo. Nunca diga quantos anos tem, porque ninguém ia acreditar - começou o notário.
- Onorato, mete a viola no saco, porque os anos pesam-me e só Deus sabe como eu queria ter no mínimo uns vinte a menos, sobretudo agora que tenho um neto novo que
gostava muito de ver crescer - disse Margherita.
- Então já o conheceu?
- Acho que está apaixonada por ele - interveio Orsola.
- É verdade - confirmou a velha senhora, com um sorriso feliz. E já falaram sobre isso com os miúdos? - perguntou o notário.
- Sim, e digeriram bem a notícia. Agora só queríamos saber que atitude tomar relativamente A mãe, saber quais são as nossas responsabilidades e até que ponto nos
é pprmitido intervir sobre as decisões relativas ao futuro do meu neto - disse Margherita.
- Até porque não nos agrada nada saber que ele está lá para cima, na Suíça, sozinho. Aquela escola dourada oferece-lhe muito, mas exclui o afeto de uma família e,
tendo já falado com a mãe do Steve, percebi que, por muito que ame o filho, agora tem um marido
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e uma recém-nascida para criar. Para além do mais, nutre ainda uma espécie de obsequioso respeito pelas decisões do Edoardo. Ele confiou o Steve aos avós que vivem
na China para a deixar livre para poder refazer a sua vida, e depois escolheu aquele colégio na Suíça para ele estudar - explicou Orsola.
- Estariam a pensar numa adoção? - indagou o amigo.
- É uma hipótese - respondeu Orsola.
- Já pensaram na bisbilhotice que isso vai desencadear?
- Onorato, tu já me conheces. Quando é que a bisbilhotice alguma vez me preocupou? Aquele menino não é o primeiro nem será o último dos filhos ilegítimos de Torre.
Sei que as pessoas gostam de falar, sobretudo quando está envolvida uma família importante como a nossa. A mim, pelo contrário, a única coisa que me preocupa é ter
a consciência tranquila e tratar da minha família, e o Steve é um membro da família - esclareceu Margherita. Onorato anuiu.
- A mãe do menino deu-me autorização para ficarmos aqui com ele uns dias. Queremos ver como ele se sente num contexto novo e agitado. Finalmente, acho que devia
ser ele a escolher se prefere continuar no colégio ou viver e estudar aqui, em Torre, como fizeram os irmãos. O resto virá com o tempo, mas a adoção é o nosso objetivo.
Por enquanto chama-se Tang, como a mãe e o avô chinês, e eu queria que um dia se chamasse Steve Sogliano Tang, até porque me parece justo que não esqueça as suas
raízes - prosseguiu Orsola.
- Não sou um especialista em direito de família, mas quando chegar o momento indico-vos um colega de Nápoles que é muito entendido na matéria. Sei que pode ser um
processo longo e aborrecido, complicado pelo facto de ele não ser cidadão italiano. A propósito, é chinês ou americano? - perguntou. Não sabiam. O que as duas senhoras
queriam era tomar conta dele a tempo inteiro.
- Parece mesmo que esta história vos está a proporcionar uma segunda juventude - constatou Onorato, a olhar para elas, satisfeito. Quando regressaram a casa, Margherita
e Orsola estavam aliviadas, quase felizes. Em casa, Saverio e Titina receberam-nas no átrio, dizendo:
348
- A pobre Rosária não está nada bem. Chamámos o médico, que está agora com ela. Havia já alguns dias que Rosária dava sinais evidentes de enfraquecimento. Titina
contou-lhes que, naquela manhã, ela não tinha querido levantar-se porque sentia sono e ao meio-dia, quando tentara dar-lhe qualquer coisa para comer, lhe fizera
um sinal negativo com a mão, após o que voltara a adormecer. À tarde, tanto ela como Cetta tinham inutilmente tentado acordá-la, mas ela dormia profundamente.
- A respiração dela mal se sentia. Pousei-lhe um ouvido no peito e ouvia bater o coração devagarinho - disse Titina, a chorar. Orsola chamou os filhos que acorreram
imediatamente ao quarto dela, e Saverio chamou Sergio. Agora estavam ali todos, no quarto da empregada, à volta do seu leito, enquanto o médico lhe auscultava o
batimento cardíaco. Ergueu-se quando entraram Orsola e Margherita e abanou a cabeça.
- Está em coma - explicou.
- Saiam todos, por favor. Tu, Titina, podes ficar - disse Margherita, ao mesmo tempo que encostava uma cadeira à cama e se instalava ao lado de Rosária que tinha
servido os Sogliano durante toda a sua vida. Orsola e os filhos saíram em silêncio e foram para a sala.
- Só de pensar o que eu a fiz zangar quando era miúda... Estou cheia de remorsos, coitada da Rosária - disse Giulietta, desolada.
- Ela e a Titina eram o alvo das nossas brincadeiras - concordou Saverio.
- Lembras-te quando tirámos os lençóis do cesto da roupa suja e nos apresentámos na cozinha disfarçados de fantasmas? - recordou Cristina.
- Que pestes! - disse Orsola.
- A sério - concordou Gianni. - Dessa vez quase desmaiou de susto.
- Mas quando recuperou andou atrás de nós com a vassoura e, como não conseguiu apanhar-nos, atirou-a contra nós como se fosse uma lança - acrescentou Cristina.
349
Sérgio apareceu à porta da sala com Margherita e anunciou:
- Infelizmente, a Rosária deixou-nos. O desaparecimento da velha criada, considerada como um membro da família, deixou toda a gente muito triste, e naquela noite
quiseram recordá-la com um jantar em sua honra, servindo a comida que ela sempre preferira: esparguete com tomate e pimento, pão com azeite e sal. Depois rezaram
o terço com monsenhor Bartiromo, que tinha vindo benzer o caixão. Por fim regressaram à sala e Titina entregou a Margherita o testamento da amiga: deixava aos meninos
Sogliano as economias de uma vida, uma boa quantia de dinheiro depositado nos correios.
- Era quase rica - constatou Saverio, surpreendido.
- Nunca gastou nada com ela - observou a avó.
- Eu proponho que se empregue este dinheiro numa campa sumptuosa - disse Gianni.
- Assim vai poder vê-la do paraíso e ficará feliz - concordou Margherita. Sérgio despediu-se e Orsola foi com ele até ao portão.
- Apetece-te dar um passeio comigo até ao porto? - propôs-lhe. Orsola anuiu. Estava mesmo a precisar, depois de um dia tão intenso.
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11
Uma brisa noturna soprava, atenuando o calor. Orsola e Sérgio desceram a pé, caminhando lado a lado, até à beira-mar.
- Lembro-me de um passeio como este com o meu pai, que veio para o meu casamento com o Edoardo. Eu tinha vinte anos e ele tinha, mais ou menos, a idade que nós temos
agora. Não estava muito entusiasmado com aquele casamento, e até ao último momento não deixou de me repetir: "Mas tens mesmo a certeza? Olha que ainda estás a tempo
de dar meia-volta". Querido pai, não passa um dia que eu não pense nele, e faz-me muita falta, tal como a minha mãe - sussurrou Orsola.
- Mas tu estavas apaixonada pelo Edoardo - observou Sérgio.
- Estava doida por ele, e ele por mim. Uniam-nos o amor, as afinidades intelectuais e a atração física - explicou ela. Sentaram-se nos degraus de pedra do molhe
e Sérgio acendeu um cigarro.
- Podia continuar durante horas a contar a minha vida com o Edoardo. Fui muito feliz com ele - acrescentou Orsola.
- Não te feches nas recordações, porque podes adoecer de nostalgia - disse Sérgio, fazendo-lhe uma carícia no rosto. Ela sorriu e voltaram-lhe A memória os versos
de um poema de Pascoli que tinha aprendido de cor quando andava no liceu: La nube nel giorno piii nera fu quella che vedo pift rosa nell'ultima sera'.
- Tens razão. Com o passar do tempo idealizo o Edoardo; mas
5A nuvem mais negra do dia foi aquela que eu vi mais rosa ao cair da noite. (N. da T)
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por que não havia de o fazer, se este pensamento me faz sentir bem? - perguntou ao amigo.
- Porque te arriscas a viver no passado em vez de olhar para o futuro - respondeu Sérgio.
- E isso incomoda-te? - perguntou ela, divertida. Ele riu-se com vontade.
- Outra das tuas qualidades é a franqueza absoluta - disse, levantando-se de repente. Estendeu-lhe uma mão para a ajudar a levantar-se. Ela ergueu-se com um impulso
excessivo e achou-se nos braços dele. Sentiu o perfume de Sérgio e apreciou o toque ligeiro dos seus lábios quando ele a beijou na boca. Havia gente no molhe e ela,
soltando-se daquele abraço, disse:
- Já fomos vistos por meio milhar de pessoas. Vão começar os boatos.
- Estás preocupada?
- Nem um bocadinho, até porque, daqui a pouco, vão ter um assunto muito mais suculento para comentar - revelou Orsola, e contou-lhe a história do pequeno Steve.
- Se as coisas se resolverem segundo os teus desejos, já pensaste que vais ficar com a preocupação de criar aquela criança?
- Já criei cinco e estou bem treinada - replicou ela.
- Mas tinhas o teu marido contigo. Agora vais estar sozinha. Sabes, não é totalmente verdade que basta uma mãe para criar um filho, porque a figura paterna é igualmente
fundamental - sublinhou o médico.
- Estás outra vez a tentar levar a água ao teu moinho? - observou Orso la, divertida.
- Também, mas não só.
- Tenho o Saverio e o Gianni, que podem representar um bom sucedâneo de pai. Retomaram o caminho de casa, enquanto Sérgio insistia:
- Os teus filhos têm a vida deles, os estudos, o trabalho, as namoradas...
- Enquanto tu ambicionas o papel de pai, uma vez que não tens filhos. Porque não tens, não é verdade?
- Não, que eu saiba.
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- Portanto, devo admitir que não te deixas desencorajar facilmente - comentou Orsola.
- Já percebeste - disse ele. Tinham chegado ao palácio Sogliano e estavam diante do portão da entrada. Ela estendeu-lhe a mão, que ele aflorou levemente com um beijo.
Quando entrou no quarto, Orsola encontrou Giulietta na cama.
- Estava a ver que nunca mais chegavas. Já deste conta de que é quase meia-noite? - disse, agressiva.
- Mas à décima segunda badalada, tal como a Cinderela, aqui estou eu - respondeu a brincar.
- Onde foste? Com quem estiveste? - continuou a rapariga.
- A que é que se deve esta inversão de papéis? - perguntou Orsola, sem esperar pela resposta. Foi à casa de banho despir-se, vestiu um pijama, e regressou para junto
da filha.
- Vi-te sair e depois regressar com o médico - bufou a rapariga. Orsola enfiou-se na cama, ao lado dela.
- E depois? - perguntou a mãe.
- Sempre soube que ele tem um fraquinho por ti.
- A sério?
- Não me digas que nunca deste conta!
- Nunca, juro-te.
- Bem, esta história não me agrada nada. Devias ter ficado em casa, como todos nós, que estamos a respeitar o luto pela pobre Rosária.
Orsola levantou um braço, rodeou os ombros da filha e puxou-a para si.
- Não me fui divertir, fui só dar um passeio até ao porto. Não sou uma mulher do norte insensível, e tu sabes. A morte da Rosária, que conheço há muito mais tempo
do que tu, encheu-me de tristeza e leva-me a pensar no inevitável em qtie tu não pensas, e que é o facto de termos na família mais duas mulheres de idade: a avó
e a Titina. Só peço a Deus que as conserve connosco muito tempo, mas sei que não podemos ir contra as leis da natureza e portanto vai haver outros lutos, outros
sofrimentos. O desaparecimento do pai não obedeceu a estas leis e foi uma tragédia repentina que mudou
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as nossas existências. Acrescenta a isso a descoberta do teu irmão Steve - disse-lhe. Giulietta afastou-se da mãe e esclareceu:
- Meio-irmão.
- Chama-lhe o que quiseres. Digamos antes que o pequeno Steve não tem a tua sorte, nem a sorte dos teus irmãos. Nos olhos dele há desconsolo, solidão, necessidade
de pontos firmes. O teu pai amou-o muito e nós, por amor a ele, faremos a mesma coisa. Não concordas? Giulietta olhou para ela e protestou:
- A mais pequena desta casa sou eu.
- Até quando, querida? Tens quase dezassete anos, és uma mulher, provavelmente já tens um apaixonado.
- Mais do que um. Eu tenho muita saída - afirmou, segura.
- Pois com certeza. Uma vez que toda a gente te ama, não podias dar um bocadinho de amor ao Steve?
- Vou pensar nisso - respondeu. Levantou-se da cama e declarou: - Vou dormir para o meu quarto. Gosto muito de ti, mamã. A propósito, ele também te vai chamar mãe?
- Ele tem uma mãe. Agora só precisa de ter uns irmãos afetuosos.
- Santa paciência - bufou e, enquanto se dirigia à porta, acrescentou: - Mas o teu passeio noturno com o Sérgio De Santis não me convence.
Orsola sorriu e apagou a luz. No silêncio aconchegante do quarto recordou o rosto de Sérgio, ao qual se sobrepôs o de Edoardo, e ouviu a voz do marido a perguntar-lhe:
- Queres casar comigo?
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ORSOLA E EDOARDO
1
- O mundo muda, os costumes evoluem, mas vocês, os do sul, continuam sempre os mesmos. O ciúme domina-vos - queixou-se Orsola, dirigindo a Edoardo um olhar feroz.
Depois foi à casa de banho.
- Não tenho ciúmes, mas como todos os homens estou inseguro. Receio que tu faças comparações com o teu primeiro namorado e que ele tenha sido melhor do que eu.
- Edoardo, por favor! Eu era apenas uma miúda. Queria descobrir como era fazer amor e percebi rapidamente que o sexo, se não houver um entendimento profundo, se
torna um exercício árido e até um bocado aborrecido. Ele era um rapaz arrogante, que se gabava de ser rico, considerava a mulher uma subespécie do homem e admirava-se
porque eu não o adorava o suficiente. E devo dizer-te que aquela experiência me fez crescer. Portanto, por favor, fica sossegado. Edoardo deu-lhe um beijo na face,
dedicou-lhe um olhar cheio de alegria e disse:
- Tenho fome. Despacha-te, vamos descer para comer. Eram os primeiros dias de março. Ela tinha-se decidido a telefonar-lhe quase dois meses após a morte da"mãe e
depois de ele lhe ter mandado muitas mensagens.
- Já não estava à espera de te ouvir - disse-lhe.
- Tive umas semanas muito difíceis. Também comecei a dar aulas. Deram-me uma turma do último ano da primária um pouco desastrada. Em suma, estou a começar a viver
- respondeu Orsola.
357
- Tenho muita vontade de te ver, mas vou ter de ir ao Japão e só regresso daqui a dez dias. Vou apanhar um voo para Milão e assim que chegar ligo-te - prometeu.
Orsola falou sobre ele com o pai, que se arrastava penosamente entre a casa e a oficina, cheio de melancolia pela perda de Diletta. Tinha levado para a loja o gira-discos
e ouvia Orfeu sem voltar a exibir-se na imitação de um maestro, mas a chorar comovido pelo enredo da ópera em que Orfeu desafia o mundo das sombras para encontrar
a sua Eurídice. Orsola regressava da escola e, antes de subir para aquecer o jantar, que tinha preparado na véspera, entrava na oficina para o chamar. Encontrava-o
a coser, sentado a sua banca, enquanto no ar se espalhava a música poderosa de Claudio Monteverdi e ele cantava:
- Addio, oh miei sogni. Han speme i miei desiri. Per lei soffrir vo tutto, ed ogni duolo sfidaró. - E chorava.
- Pai, acaba com isso - dizia-lhe, parando o disco. Libero secava as lágrimas, sorria-lhe e respondia:
- A tua mãe foi a minha vida. Gostava que o Hades existisse realmente, porque assim podia descer para a ir buscar.
- Mas não existe e eu preciso de ti - rebatia a filha.
- Pai, aquele Edoardo de quem te falei vem a Milão para me ver - disse-lhe um dia.
- é aquele que não tinha dinheiro para pagar a conta do restaurante e depois se descobriu que é um capitalista rico?
- Não sei se é um capitalista, sei que a família é bastante rica mas ele, apesar disso, trabalha muito.
- Bah! Ao menos olhaste-lhe para os sapatos?
- Feitos A mão, fabrico requintado.
- Mocassins ou de cordões?
- De cordões, obviamente.
- Um ponto a favor dele. E tu gostas desse rapaz do sul?
- Imenso, pai.
- Felicidades - resmungou Libero, que teria preferido um operário,
é Adeus, oh meus sonhos. Têm esperança os meus desejos. Por ela estou disposto a sofrer tudo e desafiar todas as dores. (N. da T)
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um artesão ou então um intelectual empenhado na luta contra os poderes corruptos e, melhor ainda, se fosse um companheiro anarquista. Naquela manhã, na escola, enquanto
ensinava aos alunos os rudimentos da análise lógica aplicada à sintaxe, o seu pensamento voava para Edoardo que, àquela hora, a bordo de um avião, sulcava os céus
para aterrar em Milão. O simples facto de ele desafiar a lei da gravidade viajando em aviões gigantescos fazia-o parecer um herói, porque ela nunca, mas nunca, ousaria
entrar num avião. Regressou da escola e almoçou com o pai que, logo a seguir, se retirou para o seu quarto para fazer uma sesta. Ela começou a arrumar a cozinha.
Nesse momento tocou o telefone. Era Edoardo.
- Estou em Milão, entrei agora no meu quarto, no hotel. Vou tomar um duche, ponho-me apresentável e vou ter contigo onde quiseres. Orsola, que nunca se tinha sentido
tão emocionada, respondeu:
- Estou em casa a lavar a louça. Encontramo-nos às cinco na via Manzoni, na casa de chá Alemagna.
- Então até logo - respondeu ele. Ela acabou de arrumar a casa, mudou de roupa e penteou-se com cuidado, preparou o café para o pai e acordou-o. Libero tomou o café
e depois, quando ele ia descer para a oficina, ela anunciou-lhe:
- As cinco tenho um encontro com o Edoardo. Não sei a que horas volto porque provavelmente jantamos juntos. Importas-te se eu te deixar sozinho?
- Só não me importo se me disseres que estás contente - replicou Libero. Ela abraçou-o, feliz. Saiu para ir ter com Edoardo e parecia-lhe que tinha asas nos pés.
Ele estava à espera dela à porta da casa de chá, a olhar em volta para ver se a descobria. Foi ao encontro dela e Orsola deixou-se abraçar, ao mesmo tempo que a
felicidade lhe explodia no coração como uma torrente impetuosa. Achou que conhecia aquele homem desde
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sempre, que desde sempre Edoardo lhe estivera destinado, e riu-se de alegria, dizendo para si mesma que nunca mais o ia deixar. Entraram na casa de chá, sentaram-se
a uma mesa na penumbra, encomendaram chá e bolos, e depois ele disse:
- Conta-me tudo. Como poderia descrever-lhe a felicidade que a invadira ao voltar a vê-lo, o conforto que lhe chegara com as suas mensagens naquelas longas semanas
de dor pela perda da mãe, as lágrimas do pai que tentava inutilmente vencer a solidão?
- Começa tu - replicou Orsola.
- Lembras-te daquele dia naquele bar cheio de gente na esquina da via Verri, quando me fui embora a correr porque tinha um encontro de trabalho e tu pagaste a minha
conta? Depois de te ter deixado perguntei a mim mesmo se quereria viver contigo para o resto da minha vida e a resposta foi sim. Gostaria de te ter dito isso A.
noite, no restaurante, mas estavas com um ar severo e eu senti-me um pouco atrapalhado. Depois fiz mais uma péssima figura. Em suma, o resto já sabes. Uma hora depois
saíram do Alemagna e, quando ele a ia levar a casa, Orsola disse: Onde estás hospedado?
- No Principe de Piemonte..
- Até quando ficas cá?
- Tencionava ainda estar contigo amanhã, que é sábado. Mas no domingo tenho de regressar a casa.
- Amanhã é sábado e eu não tenho aulas. Gostava de estar contigo até te ires embora. Foram para o hotel sem deixarem por um instante de conversar. E só depois de
terem feito amor Orsola ligou ao pai.
- Estou com o Edoardo e vou ficar com ele esta noite também. Não me digas nada, pai, porque eu já sei tudo. Só queria que não te preocupasses, porque eu estou feliz
- disse-lhe. Libero, após alguns instantes de silêncio, perguntou:
- Não vais querer casar com ele, pois não?
- Se ele me pedir, eu digo que sim. É do sul, eu sei, mas estou tão apaixonada, pai.
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Depois desceram ao restaurante e ai, enquanto saboreavam um risotto alia milanese, Edoardo perguntou:
- Queres casar comigo?
361
2
Comeram o risotto, e quando um empregado levantou os pratos Edoardo disse:
- Estou a ficar ansioso. É um sim?
- Claro que caso contigo - respondeu ela. - Não estava à espera que mo pedisses, e associarei sempre o teu pedido de casamento à cor e ao perfume do risotto. Só
que nos meus sonhos românticos imaginava uma estufa cheia de flores coloridas das quais eu sentia o perfume suave, e depois estavas tu, ajoelhado à minha frente,
com uma mão estendida a oferecer-me um anel fantástico dentro de uma caixa de veludo, enquanto no ar pairavam as notas de uma valsa de Strauss e os anjos me faziam
cócegas na cara com as suas asas. Edoardo deu uma gargalhada cheia de alegria.
- És incomparável, minha Orsetta. De qualquer maneira, faz de conta que aqui existe tudo aquilo que descreveste, com a ajuda da tua fantasia. Quanto ao anel, vais
tê-lo amanhã. Vamos juntos aos Mariani, em relação a quem eu tenho uma divida de gratidão, porque sem eles nunca mais te tinha encontrado. Vou escolher um anel para
ti, vou enfiar-to no dedo, vou deitar fora a caixa e, se o tirares, vou sofrer imenso.
- Eu também gostava de te dar um presente, assim que chegarmos ao hotel - disse Orsola, olhando para ele com um ar malicioso.
- Se eu bem entendo as tuas intenções, acho que Deus te criou num momento de extrema euforia. Amo-te, minha Orsetta.
- Orsetta7?
Diminutivo de orsa, ursinha (N. da T.)
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- É assim que te vejo. Um urso fêmea, de pelo imaculado e macio, capaz de me esmagar, e eu estou tão apaixonado que te deixo fazer tudo.
- Agora despacha-te a acabar a sobremesa porque há uma cama grande e fofa A nossa espera. No dia seguinte dirigiram-se ao centro de mãos dadas. Estavam felizes.
- O meu pai não vai ficar muito contente com o nosso casamento - confessou-lhe ela, com alegria.
- O que é que eu tenho de errado? - perguntou Edoardo, preocupado.
- Ele é um velho anarquista e está convencido de que os ricos são uma raça à parte, indigna da sua menina.
- Então, se queres que te diga a verdade, a minha família também não vai ficar felicíssima por eu te ter escolhido a ti.
- Porque sou uma proletária?
- Porque és do norte e não pertences ao nosso mundo. Quase sempre as famílias de Torre se ligam entre si. Mas também sei que a minha mãe tem confiança em mim e vai
perceber que escolhi a mulher certa.
- E a namorada que tinhas antes de me conheceres a mim?
- Muito boa rapariga, mas nunca tencionei casar com ela, e ela sabia.
- Mas eu gostava de saber mais alguma coisa sobre essa rapariga. Tinham chegado perto da ourivesaria Mariani.
- Escolhe: ou te falo dela, ou compro o teu anel de noivado.
- Escolho o anel - decidiu Orsola, sem hesitar. Pouco depois, Orsola tinha no dedo uma aliança de brilhantes Top Wesselton com lapidação baguette e montados em ouro
amarelo. Era um anel valioso, embora pouco exuberante. Mas Libero reparou imediatamente nele quando Orsola entrou na oficina ao lado de Edoardo, e deixou escapar
um trejeito de desapontamento.
- Pai, este é o homem que eu amo - começou, apresentando-lhe Edoardo.
363
Libero apertou-lhe a mão e disse, ao mesmo tempo que os empurrava para fora da oficina:
- Subam, já lá vou ter convosco. Edoardo entrou no pequeno apartamento, olhou em volta e reparou na ordem e na limpeza que reinavam naquela casa modesta. Viu numa
consola uma série de retratos de família e, numa parede, os rostos emoldurados de Bakunin e de Errico Malatesta, o mais famoso anarquista italiano. Dirigiu então
um olhar interrogativo a Orsola.
- Cada um tem os seus pontos de referência. Há quem acredite no Padre Pio e não tenha dúvidas, e quem acredite na desobediência ao poder e tenha muitas dúvidas -
explicou Orsola.
- O encontro com o teu pai não nasceu sob um bom auspício observou Edoardo.
- Pois é... - respondeu Orsola. - Vou preparar um bom risotto com flor de abóbora e assim comemos juntos. Quando Libero entrou na cozinha, a filha estava a terminar
o arroz com a manteiga e o parmesão, enquanto o namorado punha
a mesa.
- Então és tu o namorado da minha menina - disse, com um ar de desapontamento.
- Não gosta de min pois não? - perguntou Edoardo, a meia-voz.
- Não tenho nada contra ti, meu filho. Até podias ser um libertário, filho de um companheiro de militância, que eu não ia gostar de ti na mesma, porque me vais levar
a minha filha. Se ao menos fosses uma pessoa dos nossos lados, eu ate engolia o sapo, mas tu vais levá-la para longe e eu vou vê-la raramente. É isso que me entristece
- confessou.
- Sinto muito - murmurou Edoardo. - O facto é que eu estou mesmo muito apaixonado pela sua filha - acrescentou. Orsola, comovida, abraçou o pai. Depois sentaram-se
à mesa e comeram o risotto que tinha um aspeto convidativo e um aroma apetitoso. Enquanto saboreava aquele prato milanês, Libero observava de soslaio os dois jovens
e apercebia-se claramente da paixão que os unia. Por isso sorriu e disse:
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- Com ou sem a minha bênção, vocês vão fazer aquilo que têm em mente, e então mais me vale estar satisfeito.
- Obrigado - disse Edoardo.
- Só espero que o noivado seja longo - brincou, tendo percebido perfeitamente que Edoardo tinha muita pressa de casar com Orsola e de a levar embora.
- Querido pai - disse ela -, estamos muito apaixonados e queremos casar-nos o mais depressa possível. Sabia que o pai estava ainda a sofrer pela perda de Diletta,
e agora aquele afastamento da filha ia agravar a sua solidão; lamentava sinceramente, mas o amor por Edoardo era mais forte do que tudo.
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3
Orsola saiu do comboio em Nápoles e viu Edoardo à espera dela na plataforma. Com ele estava um homem bastante avantajado que lhe sorria.
- Este é o tio Renzino, o irmão do meu pai - apresentou-o Edoardo, e apressou-se a tomar conta da bagagem da noiva. O homem segurou-a pelos braços, espetou-lhe dois
beijos sonoros nas faces e disse:
- Pois, sou o tio solteiro e estroina. Bem-vinda, pequena mulher das brumas. Eu estive em Milão uma única vez, numa noite de janeiro, com um frio que me arrancava
as orelhas e um nevoeiro que não se via daqui para ali. Sentia-me como o Tote e o Peppino De Filippo num filme famoso que me fez rir imenso: Os tios da província.
- Nós, os do sul, manifestamos abertamente os nossos sentimentos, e ao que parece o tio gostou muito de ti - sussurrou Edoardo à namorada, apercebendo-se da aflição
no rosto de Orsola. Dirigiram-se ao carro, que estava estacionado à. saída da estação, e Renzino disse:
- Sabes, quando o meu sobrinho disse à família que tencionava casar-se com uma rapariga de Milão, estávamos à mesa, e por pouco não nos engasgámos com a comida.
- Mulheres e bois... - respondeu Orsola.
- E, depois, a que se casou com o boi acabou muito mal - interrompeu Renzino, e desatou a rir-se.
Inicio do provérbio italiano 0vioglie e buoi dei paesi tuoi" (mulheres e bois da tua terra), que significa que cada um deve casar-se e trabalhar no lugar onde nasceu.
(N. da T)
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Orsola esperou que o resto da família não fosse assim tão extravagante, porque começava a sentir um ligeiro mal-estar. De tal maneira que disse a Edoardo:
- Estava à espera que viesses buscar-me sozinho.
- Conforma-te, vais ser refém da minha família durante todo o tempo em que aqui estiveres - respondeu ele, com um sorriso divertido.
- Não me tinhas dito isso - disse entre dentes.
- Não terias vindo. Vais ver, também não vai ser o fim do mundo. No entanto, quando chegou ao palácio Sogliano, achou que era mesmo. Assim que passou o portão, enquanto
percorria o vasto átrio, firmemente segura pela mão de Edoardo, viu uma série de rostos a espreitar pelas portas dos laboratórios e um miúdo ranhoso que atravessou
a correr e a gritar:
- Chegou a milanesa! Sentiu um murmúrio de vozes que se encadeavam em sussurros:
- Jesus, que linda que ela é! Parece uma pintura. Edoardo fez um breve gesto com a mão e os rostos desapareceram, o tio Renzino escapuliu-se e os dois começaram
a subir a escadaria.
- Sinto-me um animal raro exposto no jardim zoológico - disse Orsola, quase a chorar. Então Edoardo pousou as malas num degrau, abraçou-a e beijou-a com paixão.
- Estás no sul. O que é que esperavas?
- Um pouco de discrição - respondeu ela.
- Prometo-te que, logo à tarde, te levo para o meu refúgio de Ercolano. Ali estaremos sozinhos. Pararam no primeiro andar, onde os esperava uma empregada com um
vestido de quadradinhos azuis e brancos e um avental branco.
- Bem-vinda, menina. Eu sou a Rosária, ao seu serviço - disse, com uma ligeira vénia. Depois, sem esperar uma resposta, tomou conta das duas malas de Orsola e começou
a subir em direção ao segundo andar. Ela fez menção de a seguir, mas Edoardo deteve-a.
- Já chegámos. A minha mãe está na sala - explicou, enquanto a conduzia através de um grande salão para o qual davam muitas portas.
- O que é que há no andar de cima? - perguntou, intimidada.
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- Dois aposentos. Um ainda está por arranjar, o outro é meu.
- Logo à noite eu e tu vamos estar sozinhos? - perguntou.
- Tu vais estar sozinha. Temos de manter as aparências. Eu vou dormir no primeiro andar, num quarto ao lado do da Archetta respondeu ele, seguro. Algumas das portas
entreabriram-se, sem que ninguém se manifestasse. Edoardo rodeou os ombros de Orsola para lhe dar coragem e empurrou-a até ao fundo. Pararam diante de uma porta,
Edoardo bateu e, sem esperar uma resposta, abriu e sussurrou-lhe:
- A minha mãe está à tua espera. Chama-se Margherita. - Entraram e Orsola viu uma mulher alta e elegante, de costas voltadas. Tinha os cabelos acobreados, apanhados
num grande puxo preso na nuca por ganchos de tartaruga. Trazia um vestido de seda verde-esmeralda, apertado na cintura por um cinto de pele azul escuro, tal como
os sapatos de salto alto que acentuavam a elegância das pernas. Estava a compor uma jarra com rosas amarelas e azuis no centro de uma mesa redonda da época napoleónica.
A mulher virou-se e sorriu-lhe. Orsola reconheceu nela alguns traços do rosto de Edoardo.
- Orsola, bom dia - disse, ao mesmo tempo que se dirigia a ela e lhe estendia uma mão onde sobressaía um anel com duas pérolas, uma branca e uma negra.
- Bom dia, minha senhora - respondeu Orsola, e sentiu o calor da sua mão.
- Bem-vinda a minha casa - prosseguiu a senhora, enquanto lhe dava o braço e a convidava a sentar-se numa poltrona. Depois voltou-se para o filho: - Querido, por
favor, vai dizer que podem servir daqui a dez minutos. Estivemos à vossa espera para o almoço. Enquanto Edoardo saía da sala, a senhora sentou-se diante de Orsola
e perguntou-lhe:
- Estás cansada? A viagem é longa e já sei que não gostas de aviões. Deves ter-te levantado muito cedo. De qualquer modo, e para o caso de estares um pouco assustada,
ficas a saber que depois do almoço com a família vais ter o resto da tarde para estar com o teu namorado. Tinha um tom amigável, afetuoso.
- Estou embaraçada, mas por amor ao Edoardo vou fazer os possíveis por não começar a chorar - confessou.
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Margherita sorriu-lhe mais uma vez.
- Quero tranquilizar-te quanto à nossa benevolência em relação a ti. Nunca imaginei que o meu filho fosse escolher uma mulher do norte, mas, se o fez, isso significa
que tu tens valor. Portanto, faz-te forte e vamos enfrentar os Sogliano juntas. Orsola conheceu a tia Archetta e a tia Priscilla com o marido. Também ali estava
obviamente o tio Renzino e, prontas para servir uma lasanha com carne picada, Titina e Rosária, as duas empregadas da casa. Pareciam todos muito alegres, enquanto
Edoardo não perdia Orsola de vista, dizendo-lhe com o olhar: "Amo-te, não desanimes." Finalmente, a meio da tarde saíram do palácio.
- Obrigado - disse Edoardo, quando entraram no carro para ir a Ercolano.
- Só mesmo pelo amor que te tenho - respondeu-lhe.
- Eu sei, mas acabas por te habituar - garantiu-lhe. Passaram uma cancela, entraram num vasto jardim e pararam diante de um pequeno edifício antigo que dava para
o mar.
- Isto era uma casinha de lazer dos Bourbon. Será o nosso refúgio durante o tempo em que estiveres aqui - disse-lhe, e levou-a pela mão. Orsola observou a beleza
das salas pintadas com frescos e a elegância da decoração. Edoardo conduziu-a a um pequeno quarto onde se impunha um grande leito com uma colcha de cetim dourado.
Ele tirou-lhe os sapatos e as meias, desabotoou-lhe a jaqueta, inclinou-se sobre ela e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Queres dormir ou queres fazer amor? Orsola, exausta, respondeu:
- Dormir, por favor. Sentiu-o deitar-se ao lado dela e puxá-la contra ele para a abraçar, e depois adormeceu. Quando acordou, estava a cair a noite.
- Bem-vinda, minha Orsetta - disse Edoardo, feliz. Ela olhou em volta e recordou onde estava e por que estava ali. Nesse momento levantou-se, olhou para o namorado
e disse:
- Então esta casinha era o teu matadouro.
369
- Não gosto dessa definição tão crua - replicou ele, ao mesmo tempo que se levantava e se aproximava dela para a abraçar. Orsola repeliu-o e continuou:
- Com quantas mulheres fizeste amor nesta cama?
- Poucas. Mas o que é que isso te importa?
- Pois bem, eu não vou fazer amor contigo neste quarto. Eu não faço parte do grupo dessas "poucas" com quem estiveste. Se a tua família resolveu que é necessário
manter as aparências, eu manterei também a substância, e tu nunca me devias ter trazido aqui.
- Não me digas que estás com ciúmes! - exclamou Edoardo, em cujos lábios pairava um sorriso.
- Sim, estou com ciúmes - admitiu com firmeza.
- Mas tu não és uma mulher do sul.
- Sou uma mulher que defende a sua própria dignidade, que não gosta de mentiras nem de subterfúgios. E agora vamos regressar a Torre - decidiu, enquanto calçava
as meias e os sapatos. Edoardo deu uma gargalhada poderosa:
- Orsola, tu és completamente doida. Não queres que eu tenha ciúmes do namorado que tiveste antes de mim, mas tens ciúmes das mulheres que aqui estiveram antes de
ti?
- Estou furiosa porque pensaste em fazer amor comigo num sítio que eu não considero próprio para os nossos sentimentos. Achas que não me apetece fazer amor? Estou
com uma vontade louca, mas não o farei, e já te expliquei porquê - rematou, ao mesmo tempo que saía do quarto, decidida. Edoardo foi ter com ela, segurou-a por um
braço e disse, olhando-a com ternura:
- Porque é que eu me fui apaixonar por uma mulher como tu?
- Não sei - respondeu Orsola. - Se ainda achas que queres casar comigo, ficas a saber que eu não vou tolerar nenhuma traição e, se alguma vez acontecer traires-me,
arranja maneira de eu não o saber nunca, porque ias perder-me para sempre. Então Edoardo apertou-a com força contra si e sussurrou:
- Como é que eu podia não me apaixonar por ti? Nunca te vou trair, minha Orsetta. Dou-te a minha palavra.
370
PALÁCIO SOGLIANO
1
Agora, estendida na sua cama no palácio de Torre, Orsola pensou que, pelo contrário, ele a tinha traído com a chinesa e ela o tinha traído a ele com o ginecologista
que a salvara. A traição de Edoardo ocorrera no momento em que, justamente, tinha deixado de se sentir amado. Orsola, por outro lado, atribuía a sua fugaz história
com Alberto ao trauma da doença. Mas nenhum dos dois tinha confessado ao outro a sua própria culpa, receando despedaçar aquele casamento que era aquilo que tinham
de mais precioso. Coitado do Edoardo, pensou. O que lhe devia ter custado manter em segredo a existência de Steve. Dos dois, a mais egoísta tinha sido ela. O marido
fora um homem sólido, fiável, generoso. Sobre esta certeza, finalmente, adormeceu. De manhã, quando desceu à sala de jantar, já toda a gente tinha tomado o pequeno-almoço
e saído. Restavam apenas Gianni e Margherita, que estavam a falar da pobre Rosária.
- Qual era o apelido dela? - perguntou Gianni A avó.
- Esposito, tal como a Titina. Eram ambas filhas do pecado, foram abandonadas e criadas pelas freiras.
- O nosso irmão também é filho da culpa mas... - começou a dizer Gianni, e Orsola interveio imediatamente.
- Não digas disparates! - disse num tom perentório. - Ele teve um pai que tomou conta da sua educação e tem uma mãe que gosta dele e se preocupa com ele.
- A Rosária e a Titina só encontraram algum afeto quando
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entraram em nossa casa, e ficaram a dever esta oportunidade inesperada a dona Clotilde, a minha sogra, que as recebeu e tratou com afeto, assim como tinha tratado
com afeto a minha mãe e as três filhas, a Rosina, a Matilde e eu - explicou Margherita.
- A tia brasileira que morreu e a tia americana dos porcos - esclareceu Gianni.
- A propósito, daqui por uns dias chegam os netos da tia brasileira com os respetivos cônjuges - lembrou Orsola.
- Os tios Antonio e Consuelo - esclareceu novamente Gianni, que estava a passar em revista a história da família.
- Como sempre, vou buscá-los ao aeroporto com o teu irmão concluiu Orsola.
Apesar da distância e da passagem do tempo, as relações com os parentes das duas Américas nunca tinham afrouxado. A avó Lanzetta tinha morrido no Rio quando a filha,
Rosina, acabara de dar à luz a terceira filha, Juanita, que se tinha tornado freira de clausura e estava agora num convento em Jerusalém. Matilde, a irmã de Margherita
que tinha deixado o marido para ir atrás do seu americano, tinha deixado de tratar da criação dos porcos mas, apesar da idade avançada, conduzia ainda a família
com a garra de uma matriarca. Também os filhos de Matilde vinham a Torre. Faziam-no sempre depois da festa de Ação de Graças. Os brasileiros, por sua vez, preferiam
o verão. Ficavam uns dias em Torre e depois, durante duas semanas, instalavam-se na villa de Positano. Por fim alugavam um carro e davam uma volta por Itália.
- Desta vez vou eu contigo buscá-los ao aeroporto - disse Gianni, que demonstrava cada dia mais vontade de colaborar. Ao fim da tarde foi realizado o funeral de
Rosária e, A saída do cemitério, onde monsenhor Bartiromo lhe tinha dado a bênção, Orsola aproximou-se do velho pároco e disse-lhe:
- Queria dizer-lhe que já toda a família sabe do filho secreto do meu marido.
- Como é que reagiram? - perguntou ele, enquanto se dirigia ao carro.
374
- A minha sogra está apaixonada por ele e os miúdos concordaram em conhecê-lo. Queremos que venha a Torre. O padre sorriu e comentou: - Dos Sogliano eu não estava
à espera de outra coisa. Entretanto ouvi dizer que os negócios correm bem, portanto... - Portanto é preciso que o senhor se despache a munir a igreja de bancos novos,
porque de contrário os Sogliano não vão providenciar as verbas para o restauro daquele fresco de que o senhor tanto gosta. - O que é que estás a fazer comigo? Chantagem?
- Parece-me evidente. - Pois bem! O dinheiro para os bancos já não existe. E ainda é preciso mais algum para ajudar aquelas pobres famílias que investiram todas
as suas tão suadas economias naqueles armadores que as deixaram na miséria - começou o pároco a barafustar, enquanto
entrava no carro.
Sem perder tempo, na manhã seguinte Orsola foi bater à porta da casa do padre e, sem falar, entregou-lhe um cheque chorudo. Monsenhor Antonio Bartiromo sorriu. -
Que Deus te abençoe. E fica sabendo que não estás só. O temível Scapece excedeu-se. Todos os outros industriais do coral estão a cumprir o seu dever. Espero que,
um dia, estes desgraçados que foram tão perfidamente burlados encontrem alguma justiça. - A justiça que se arrasta nos nossos tribunais? - perguntou Orsola, nada
espantada pelo facto de don Vincenzo Scapece ter generosamente expressado a sua caridade. - Acredita em mim. A justiça, mesmo lenta, acaba por atingir o alvo - garantiu
o pároco. Saborearam um café preparado pela empregada, com os grãos fragrantes que chegavam diretamente do Brasil e que os Sogliano se preocupavam para que nunca
faltasse ao padre. Agora, enquanto Orsola se despedia, monsenhor Bartiromo perguntou, quase de fugida: - A propósito, já sabes, certamente, que o Gianni e a Maria
Sole...? - concluiu a parte final da pergunta com gestos, cruzando em cadeado os indicadores das mãos.
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Um pouco espantada, Orsola replicou:
- Eu sei que... - e encostou simplesmente os indicadores das próprias mãos.
- Estão assim, digo-to eu - insistiu o padre, e voltou a encadear os dedos.
- As mães são sempre as últimas a saber - resmungou Orsola.
- Deixa lá as contestações e agradece o bom senso da rapariga, que o meteu na ordem - comunicou-lhe.
- Não percebo - disse Orsola.
- Primeiro cozinhou-o até chegar ao ponto e depois deu-lhe ordens: ou ganha juízo e trabalha, ou ela o deixa - revelou o padre, com um sorriso malicioso.
- A Maria Sole fez isso?
- Ela, que felizmente não se parece com o pai.
- Agora percebo a razão por que o Gianni mudou tanto, de repente - disse, com pressa de se despedir do pároco.
- Normalmente o padre diz o pecado, mas não o pecador. Neste caso abri uma exceção porque não há pecado e parece-me que os dois têm intenções sérias para o futuro.
Orsola saiu da sacristia com um passo ligeiro e desejou que aquela história durasse muito tempo.
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2
O pequeno Steve tinha chegado a Torre havia dois dias, acompanhado pelo professor Cremonesi, o padrasto. Os Sogliano deveriam entregá-lo na semana seguinte, levando-o
à praia onde a mãe o esperava com a irmã recém-nascida. Em poucas horas, Steve tinha conquistado a simpatia de toda a gente. Agora estava sentado no jardim, à mesa
de pedra, a jogar damas com Giulietta. Entre uma jogada e outra, conversavam os dois em voz baixa e aprendiam a conhecer-se.
- O que é que recordas do nosso pai? - perguntou-lhe a rapariga. Ele levantou os olhos do tabuleiro e disse:
- A sua imensidão.
- Não percebo.
- Era um homem imenso, comparado com o avô Tang. Tinha mãos grandes, olhos grandes, pernas compridíssimas. Eu tinha dificuldade em acompanhá-lo quando me levava
a passear. Ensinou-me a dar cambalhotas, a nadar e a jogar ténis, a falar italiano, a distinguir o coral japonês, grosso e com veios brancos, do coral do Mediterrâneo,
pequeno e muito valioso - explicou.
- Parece-me que também te ensinou ajogar damas, porque me estás a ganhar uma partida atrás da outra. Ele a mim nunca me ensinou isto - replicou Giulietta.
- O pai não jogava damas. O meu mestre foi o avô Tang.
- Da próxima vez temos de jogar alguma coisa em que eu não me sinta em desvantagem. Talvez te desafie para o ténis.
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- Vai ser uma partida duríssima, porque aí eu sou mesmo bom.
- Sabes o que te digo? Detesto os melhores da turma. Vou regressar ao laboratório, onde tenho trabalho à minha espera, e tu inventa um jogo para jogares sozinho
- replicou, irritada.
- Se quiseres, da próxima vez eu deixo-te ganhar - disse ele. Nesse momento Giulietta fez-lhe uma carícia.
- Anda comigo para o laboratório. Vou pedir à tia Archetta que te ajude a separar as contas - disse-lhe.
- O que quer dizer separar as contas?
- Significa dividir as bolinhas de coral trabalhado em função do tamanho. A tia é uma especialista nisso - explicou Giulietta.
- Porque é que quando estamos à mesa a tia Archetta põe na cabeça um diadema de coral?
- Pergunta-lhe a ela.
- Já lhe perguntei e ela respondeu que aquilo foi um presente do meu pai. Acho a tia um bocado esquisita.
- É velha, mas mantém a inocência de uma menina. Naquele momento Margherita vinha a sair do laboratório, que tinha ido mostrar a Rosita Mongiello, um privilégio
que raramente concedia a um estranho. Escutaram ambas as últimas frases de Giulietta e do irmão mais novo e sorriram.
- Estás a ouvir? Aqueles dois conversam como se se conhecessem desde sempre. É um prazer ver como o menino se está a integrar na nossa família - explicou Margherita,
enquanto conduzia a amiga em direção ao jardim. Dona Rosita, na véspera da sua mudança definitiva para a Côte d'Azur, tinha vindo despedir-se dela. Apesar de ter
declarado que tinha encerrado o capítulo do microcosmos da gente do coral, ardia de vontade de saber mais alguma coisa sobre o filho secreto de Edoardo, o tema principal
de todos os mexericos. As duas senhoras sentaram-se à sombra do jasmineiro e dona Margherita disse:
- Sabes o que foi que me levou a querer que o Steve nos visitasse? Não o fiz por generosidade, ou pelo sentido do dever, mas por puro egoísmo. Aquele miúdo distrai-me
dos pensamentos melancólicos da velhice. Dá-me muita alegria tratar dele. é muito inteligente,
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curioso em relação a tudo e suave como uma mozzarella fresca. Infelizmente, daqui a alguns dias vamos ter de o levar de volta à mãe. Entretanto nós vamos semeando,
e esperamos que seja ele a pedir para se mudar definitivamente para a nossa casa. Acho que, no futuro, podia tornar-se uma peça importante no nosso negócio. Começaram
a degustar um gelado de fruta que Cetta acabava de servir.
- E a tua nora, como é que ela vive esta situação? - indagou dona Rosita.
- Foi ela a primeira a apaixonar-se pelo Steve. Portanto, podes sossegar os mexericos com a informação de que os Sogliano receberam do falecido don Edoardo um belíssimo
presente, um bálsamo para a ferida do nosso luto.
- Percebo. Deus dá e Deus tira. Agora deu-vos uma criança para amar - concordou dona Rosita, já prestes a despedir-se.
- Quando voltas a fazer-nos uma visita? - perguntou a dona da casa.
- Quem sabe? Don Ciro não está em grande forma. Espero que o descanso o ajude a recuperar. Se calhar voltamos para passar uns dias na altura do Natal, sabendo que
vou ter como presente vosso aquele panetone requintado que mandam fazer todos os anos ao Giuseppe, o pasteleiro de Pioltello.
- Sempre o tiveste, de há trinta anos a esta parte. Também o terás este ano - garantiu Margherita, e acompanhou-a até à porta do palácio. Depois entrou em casa e
esperou a chegada da nora e de Gianni, que estavam a regressar de Roma, onde tinham ido receber os parentes brasileiros. Foi então que Giulietta foi ter com ela
e anunciou, angustiada:
- O pequeno Steve não está bem. Meti-o na cama.
- Como não está bem? - perguntou Margherita, preocupada.
- Está a arder, tem o rosto em chamas e queixa-se de dores de garganta. Margherita foi buscar gelo picado ao congelador da cozinha, deitou-o num copo e regou-o com
um xarope de ginja. Enfiou-lhe uma palhinha e avançou A frente da neta em direção ao quarto do menino.
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Steve parecia estar a dormir. Tocou-lhe na testa com os lábios, ardia. Ele abriu os olhos e dirigiu-lhe um olhar triste.
- Agora toma isto, que é bom - disse a avó, enquanto lhe chegava o copo de granizado. Depois voltou-se para a neta: - Chama o médico, encontra-o onde quer que ele
esteja e diz-lhe que venha depressa. Giulietta saiu rapidamente e ela sentou-se na cama ao lado do neto, que sugava avidamente o granizado.
- Dói-te a garganta, não dói? - perguntou-lhe. Ele assentiu.
- Já te aconteceu outras vezes? Steve anuiu novamente.
- Também os teus irmãos, quando eram pequenos, ficavam doentes como tu. Mas o médico tem de te ver e por isso já o mandei buscar. Agora este gelo vai refrescar-te
um bocadinho. Eu fico aqui contigo. Steve acabou o granizado e depois adormeceu. Ela continuou ao lado dele.
Sérgio de Santis chegou pouco depois, escoltado por Giulietta, Cristina e Saverio. Estavam todos preocupados com Steve.
- Há gente a mais neste quarto. Saiam todos, menos a dona Margherita. Depois examinou o doente, inspecionando-o com mãos experientes, auscultando-o e observando
a garganta com uma lanterna.
- És um belo menino, cheio de saúde. Só estás com uma amigdalite feia. Vou dar-te imediatamente um remédio e logo à noite já vais estar melhor. Amanhã estás curado
- garantiu.
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3
Das escadas chegou um ruído de passos, uma grande algazarra e gargalhadas excitadas. Tinham chegado os brasileiros. Pouco depois, Orsola e Gianni irromperam no quarto
de Steve, preocupados com a notícia da sua doença.
- Fiquem sossegados. É só uma amigdalite - explicou Margherita. Gianni debruçou-se sobre o irmão mais novo, que olhava para ele com um ar aflito.
- Olá, campeão. Não pareces estar em grande forma.
- Sinto muito - balbuciou Steve, tentando sorrir, mas estava demasiado exausto.
- Queres que avisemos a tua mãe? - perguntou Orsola, pousando-lhe uma mão na testa. Ele disse que não com um aceno de cabeça, e Sérgio acrescentou:
- Não há razão para assustar a mãe por causa de uma amigdalite banal. Daqui por dois dias vai estar melhor do que antes. - Voltou a meter os instrumentos na pasta,
fechou-a, e enquanto Margherita se sentava novamente ao lado da cama do menino voltou-se para Orsola.
- Nunca te vi tão apreensiva com os teus filhos - comentou, observando-a com um ar interrogativo.
- Sinto-me responsável pela saúde do Steve - justificou-se.
- Vamos para ali - disse-lhe, enquanto a empurrava para fora do quarto. Quando chegaram a sala, o médico voltou a abrir a mala e com um gesto resoluto pediu-lhe
para se sentar.
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- Quero medir-te a tensão - disse. - Desde que o Edoardo faltou não voltei a controlá-la, e naquela noite tiveste um pico preocupante. Não se brinca com as tensões,
já sabes. Ela estendeu-lhe o braço, ele enfiou-lhe a faixa do aparelho, encheu-a de ar, a faixa apertou o braço com força e depois afrouxou.
- Estás com um fantástico 13/6 - diagnosticou. E logo a seguir comentou: - A morte do teu marido quase te mandava a ti também para o outro mundo.
- Não foi a dor da perda do Edoardo que me fez ficar naquele estado, mas a descoberta do filho secreto, que agora toda a gente considera um presente do meu marido
- explicou. Sérgio anuiu.
- O Edoardo foi um homem extraordinário, mas evita passar o resto dos teus dias a venerar a recordação dele, porque isso não ia fazer bem à tua saúde física e mental.
E não penses que te estou a falar por interesse pessoal. Entre as minhas pacientes tenho algumas viúvas tristes, secas, sugadas pelo fantasma do marido. Pensa naquela
famosa rainha de Espanha, Joana, a Louca, como a cognominaram...
- Aquela que tinha sempre com ela o caixão com o corpo do marido? Essa era realmente louca. Não tenho vontade nenhuma de me
deixar secar. O facto é que, meu amigo, a lembrança do Edoardo me dá muita alegria. Nunca me senti tão tranquila, tão animada pela vontade de fazer muitas coisas,
tão apaixonada pela vida. Mas tu és um homem e não consegues penetrar nos mecanismos da psicologia feminina - replicou Orsola. Considerou o quanto estava viva nela
a recordação de todos aqueles anos em que tinha tido o privilégio de viver ao lado de Edoardo, a paixão e a ternura que lhe tinha dedicado, as confidências, os projetos
e as ansiedades que tinha partilhado com ela, à noite, quando se isolavam no seu apartamento. Perguntou a si mesma, com alguma consternação: "Será possível estar
apaixonada por um homem que já não existe?" Dos outros aposentos chegava a algazarra dos parentes que tinham acabado de chegar.
- E depois dizem que nós, napolitanos, somos barulhentos: não conhecem os brasileiros - comentou Sérgio a sorrir, ao mesmo tempo que se despedia.
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Orsola desceu as escadas à frente dele, sussurrando:
- Aguardam-me dias de fogo. Alugámos uma sala para um grande jantar no Yacht Club. A minha sogra convidou muitos amigos.
- Eu sei. Também me convidou a mim - replicou ele. - E tu, quando é que vais tirar uns dias para descansar? - perguntou-lhe, enquanto atravessavam o átrio.
- No fim do mês vou com a Damiana, a minha amiga de sempre. Um grupo de quatro mulheres à deriva pelo norte da Europa. É uma coisa que eu nunca fiz antes, e esta
perspetiva anima-me imenso respondeu Orsola. Quando chegaram ao portão, Sérgio perguntou-lhe:
- Pensaste em nós dois? Orsola sorriu e anuiu sem falar.
- Então? - quis saber. Dedicou-lhe um olhar carinhoso e disse:
- És um amigo precioso e eu não quero perder-te. Mas quanto ao resto, a vida já me deu mais do que eu poderia desejar e sinto-me plenamente satisfeita.
- Então prepara-te para passares umas belas férias - respondeu o médico. - A propósito, no fim do mês eu também vou dar uma volta pelo norte da Europa, com mais
dois colegas solteiros como eu. Imagina se o acaso nos fizesse encontrar, sei lá, na Normandia, ou junto ãs falésias brancas de Dover. Orsola sorriu.
- Quem sabe! Tudo pode acontecer - replicou. Viu-o entrar no carro e regressou ao primeiro andar para tratar de Steve.
Sveva Casati Modignani
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