Depois da vitória militar sobre espanhóis e holandeses, em 1668, Luís XIV é aclamado herói nacional. Os franceses, loucos de orgulho, concedem-lhe o título de Luís, o Grande.
A Grande França, dona de um esplendor e uma excelência incomparáveis, é senhora de todas as artes; sua língua, o idioma do Ocidente. Não seria justo que tal nação dominasse o mundo? A França-Sol torna-se digna do Rei-Sol.
A reação, porém, não tarda. A Europa começa uma cruzada contra Luís XTV, sob a liderança de Guilherme III, da Inglaterra, radical protestante e antifrancês. Pela primeira vez, a França vê-se obrigada a lutar contra todo o continente. O Grande Rei promove alianças, fomenta revoluções, subsidia golpes de Estado, estreita relações com Oriente.
Em Versalhes, Angélica é Recebida com honrarias de primeira dama. No apogeu de sua beleza, é a grande embaixadora nos bastidores: tem pleno poder junto ao rei apaixonado, desperta ciúmes exacerbados e vingativos. Mas, mesmo diante da glória das glórias de ser senhora do coração de tal rei, não lhe sai da lembrança outro amor. O único amor que ainda vive em seu coração...
"Você e eu, juntos...", devaneia o Grande Rei. "Que conquistas, que grandezas! Seríamos invencíveis..."
Angélica não podia viver longe da corte de Versalhes.
Requisitada pelos amigos e admiradores, incluindo-se entre etes o próprio rei, chegava o momento de a bela marquesa deixar seu retiro no castelo do Plessis, onde se refugiara para chorar a morte de Filipe, o segundo marido, e retornar ao palácio.
Mas nem tudo seriam rosas em seu caminho. Embora recebida com honras de princesa, aguardavam-na arriscadas aventuras, nas quais não faltariam o tempero do ciúme e da sedução. Na calada da noite conspiravam inimigos ardilosos. Seu filho corria perigo. Ela mesma seria ameaçada de envenenamento.
No fundo da alma, Angélica buscaria forças para enfrentar o mal e ressurgir com novo viço. De volta a Paris, mais fascinante do que nunca, encantaria os homens. E seu maior pretendente não seria outro senão Luís XIV em pessoa.
O futuro ainda lhe reservava agradáveis surpresas. Novas revelações sobre a morte de seu grande amor, o Conde Joffrey de Peyrac, dariam a sua vida um sentido inesperado...
Angélica a favorita do rei
Anne e Serge Golon
O inverno chegava. Angélica, profundamente abalada com a trágica morte de Filipe, o segundo marido, solicitara ao rei permissão para se retirar às suas terras do Pléssis. Apaixonado, Luís XIV concordara, não sem antes exigir-lhe a promessa de retornar: "Versalhes a esperará...", dissera o Rei-Sol, temeroso de perdê-la, A doce e bela marquesa ainda não se recuperara da perda do filho Cantor, desaparecido nas águas do Mediterrâneo, e agora estava duplamente amargurada. Buscava na solidão das terras do Poitou, nas proximidades de Monteloup, onde envelhecia seu pai, entre a babá e a tia Marta, o consolo para sua dor. Suas únicas ligações com a realidade eram a assídua correspondência de Sra. de Sévigné, a certeza dos conselhos paternais do intendente Molines, administrador dos bens da família, e a esporádica visita de algum tosco aldeão do lugar.
CAPITULO I
A tentação de Versalhes
O cavaleiro subia a aléia dos grandes carvalhos. Contornou o lago dourado pelos reflexos do-outono e ressurgiu diante da ponte levadiça em miniatura, tocando o sino dá entrada.
Angélica espreitava pelas quadradinhos dâ janela do quarto e viu o homem apear. Reconhecendo a libré dos criados da Sra. de Sévigné, compreendeu tratar-se de um correio, um ginete enviado pela marquesa. Jogou uma capa de veludo nos ombros e precipitou-se pela escada sem esperar que uma criada aprumada lhe trouxesse a missiva numa bandeja de prata. Dali a um momento, depois de enviar o homem às cozinhas para aquecer-se e restaurar-se, ela subia e sentava-se junto ao fogo, revirando a missiva nas mãos, encantada. Era apenas a carta de uma amiga, mas Angélica recebia-a com uma distração escolhida. O outono findava.
O inverno chegaria, e Deus sabe como o inverno no Plessis é triste. O lindo castelo Renascença, criado para cenário das festas campestres, tornava-se sombrio por sobre a ramagem desfolhada da floresta de Nieul. Com a noite, os uivos dos lobos chegavam, por vezes, até os limites ido parque. Angélica temia o retorno das noites lúgubres do inverno anterior, em que quase enlouquecera, amargando sua dor.
A primavera a acalmara, enquanto galopava pelos campos. Mas o aspecto sofrido da região voltava a entristecê-la. A guerra pesava aos camponeses. A gente do Poitou, revoltada, tornava a falar em afogar os coletores de impostos, e quando não era a miséria a despertar-lhes a violência, assomava-se o rancor das cidades protestantes, provocando sangrentos desentendimentos com os católicos. Situação perigosa, a que não viam saída. Angélica, aborrecida, recusava-se a ouvir as queixas e isolava-se cada vez mais.
O vizinho mais próximo era o intendente Molines. Mais adiante ficava Monteloup, onde seu pai envelhecia entre a babá e Tia Marta. E como visita não tinha senão ao Sr. du Croissec, fidalgo de província desajeitado, que grunhia como um javali e lhe fazia um arremedo de corte de que não sabia como se livrar.
A jovem rompeu o selo com impaciência e pôs-se a ler.
"Caríssima", escrevia a agradável marquesa, "venho a você com reprimendas e palavras afetuosas a que porá discernimento para não ver nelas senão a força do interesse que lhe tenho. Você me negligenciou por muitos meses. Depois se isolou, não deixando às amigas o consolo de reconfortá-la em sua provação. Com essa fuga, Ninon entristeceu-se como eu. Eu, que tendo renunciado ao amor, enchi meu coração de amizade e, ao sabê-la inútil, rejeitada, órfã, vejo-me despojada de meu único bem.
"Aí tem quanto às reprimendas. Não prosseguirei no mesmo tom. Amo-a muito, no que sou imitada por muitas pessoas, nem todas do sexo masculino. Pois seu encanto e simplicidade a fazem encontrar graça mesmo junto às que poderiam tê-la por rival. Lamentam sua ausência. Não sabem, às vezes, como prender uma fita ou roseta sem sua opinião. A moda hesita e teme enganar-se, por não receber o assentimento de seu bom gosto. Então se voltam para a Sra. de Montespan, que a ombreia nesse aspecto, e que, ela sim, não sente a sua falta. Ela reina. Por fim, retumbante e triunfante. E tanto mais por ter o marido recebido a recompensa por suas investidas. O rei enviou-lhe cinco mil libras, com a ordem de partir para o Roussillon e de lá não sair. Não se sabe se obedecerá, mas ele ali está agora.
"E, como lhe falava de moda, e que a Sra. de Montespan presidia às mudanças, não a surpreenderei se disser que ela tornou-a bastante cómoda para si. Lançou uma saia sustentada por finos arcos na frente, e não apenas atrás como antes, que permite à silhueta expandir-se em determinadas circunstâncias, com a maior discrição. Podemos apostar que o aumento da população dar-se-á bem com essa moda. A Sra. de Montespan é a primeira a aproveitá-la. Mostra-se petulante, mais bela que nunca, e o rei não tem olhos senão para ela. A pobre La Vallière não passa de um fantasma. Um fantasma condenado a vagar entre os vivos. O rei cansara-se do romance morno, das lágrimas suaves. Pedia uma amante que o honrasse, mais exigente, mais dura. frente ao mal. Dura, ela o será. Todo mundo se esfacelará. Não vejo ria corte mulheres que possam igualá-la e resistir a ela. Digo-o no momento, pois você não está ali. Ela também o sabe. Chama-a de 'aquele farrapo...' '
Angélica sufocara, mas sem ter com quem partilhar sua indignação retomara a leitura.
"Sob seu impulso, Versalhes está um encanto. Ali estive na segunda-feira e meus olhos se maravilharam. As três horas o rei, a rainha, Monsieur, Madame, Mademoiselle, príncipes e princesas, a Sra. de Montespan, seu séquito, cortesãos, damas, enfim, o que se chama corte da França, encontrava-se nos belos aposentos do rei. Tudo está divinamente-mobiliado, tudo ali é magnífico. A Sra. de Montespan é uma triunfante beleza a ser admirada por todos os embaixadores. Sim-," sua beleza está no auge, e seus adornos, e sua alegria. Tem espírito, fineza, expressões singulares, uma eloquência natural, que compõem uma linguagem particular mas deliciosa. Todos os que a cercam adotam o mesmo género e se fazem reconhecer por ele.
"Ela não sai se não for acompanhada pelos guardas do corpo. Quando ali estive, a Marechala de Noailles carregava-lhe a cauda do vestido. A da rainha era carregada por um simples pajem. Ela tem um aposento de vinte peças no primeiro andar. A rainha, um de onze, no segundo..."
Angélica ergueu a cabeça. A Marquesa de Sévigné não teria alguma intenção ao descrever o fausto e a glória da Sra. de Montespan? A encantadora mulher, tão indulgente, sempre fora bastante severa para com a bela Atenaís. Admirava-a, mas não lhe tinha simpatia alguma. "Acautele-se", repetia a Angélica. "Atenaís é uma Mortemart. Bela cqmo o mar, selvagem como ele. Se você a embaraçar, ela a engolfará no caminho!"
Havia muito de verdade em seu juízo. Angélica o soubera à pró pna custa. Por que a Sra. de Sévigné empenhara-se em convencê-la da vitória da beldade do Poitou? Contava com que Angélica se irritasse e voltasse a Versalhes para disputar um lugar que não lhe interessava? A Sra. de Montespan era a favorita. O rei não tinha olhos senão para ela. Então, tudo ia bem...
Ouviu-se uma ligeira batida na porta, e Bárbara apresentou-se trazendo o pequeno Carlos Henrique pela mão.
- Nosso querubim ficaria contente em poder saudar a mamãe.
- Sim, sim - fez Angélica, distraída.
Ela ergueu-se e foi até a janela. Nada se movia na natureza cinza, branca e preta.
- Ele pode brincar um pouco aqui? - prosseguiu Bárbara. - Dar-lhe-ia tanto prazer! Mas o quarto não está quente! A senhora deixou o fogo diminuir.
- Ponha-lhe uma acha.
O bebe permanecia junto à porta, segurando um pequeno moinho de vento. Vestia uma roupa de veludo, no mesmo azul de seus grandes olhos. Um chapéu de veludo azul com plumas brancas cobria os cachos brilhantes e dourados que caíam sobre a gola. Angélica sorriu-lhe maquinalmente. Agradava-lhe adorná-lo com luxo, pois era de fato encantador. Mas para que tantas despesas ali, onde ninguém poderia admirá-lo? Era pena!
- Devo então deixar o pequeno? - insistia Bárbara.
- Claro que não. Não tenho tempo. Preciso escrever à Sra. de Sévigné; o correio parte amanhã.
Bárbara viu na senhora um ar de preocupação. Suspirou e pegou na mãozinha do pupilo, que se deixou levar docilmente. Ao ficar só, Angélica aparou uma pena, mas não se apressou em escrever. Queria sobretudo refletir. Uma voz, de que se defendia a custo, repetia-lhe baixinho: "Versalhes a esperará".
Seria verdade? Talvez Versalhes a esquecesse e isso fosse melhor. Ela o quisera. Agora sentia-se triste. Viera.refugiar-se no Castelo do Plessis, para escapar a um desejo que não queria precisar, e por uma necessidade de expiação para com Filipe; não se detivera em Paris. A mansão do Cours Saint-Antoine parecia-lhe sinistra com os escuros corredores que evocavam Filipe e sua triste infância de pequeno senhor muito belo, muito rico e abandonado.
No Plessis, gozara o outono majestoso e afogara a solidão em longas cavalgadas pelo campo. Mas, com o frio, aquela existência morna lhe pesava.
Um criado veio saber se a senhora cearia no quarto ou na sala de jantar. No quarto, evidentemente! Embaixo congelava, e não mais se animava a presidir sozinha, agora duas vezes viúva, a longa mesa de banquetes cheia de prataria.
Quando se viu instalada a uma mesa junto à lareira, destapando as panelinhas em prata dourada para descobrir as surpresas de odor delicado, disse consigo, amargurada; que tinha tudo de uma velha viúva em declínio.
Não havia nenhum homem para rir com indulgência de sua encantadora gula... Para admirar-lhe as mãos, que untara e clareara com creme por mais de duas horas. Para elogiar-lhe o toucado. Angélica correu ao espelho, estudando-se longamente, e se achou perfeitamente bela.
E suspirou repetidas vezes.
No dia seguinte chegava uma equipagem. O Sr. e Sra. de Ro-quelaure, a caminho de suas terras no Armagnac, davam a volta para visitar a encantadora Marquesa du Plessis e entregar-lhe uma mensagem do Sr. Colbert.
A Duquesa de Roquelaure assoava-se bastante. Resfriara-se no caminho, dizia. Pretexto para esconder as lágrimas amargas que não podia conter. Aproveitou um momento em que se viu só com Angélica para confiar-lhe que o marido, enciumado com sua volubilidade, decidira subtraí-la aos prazeres da corte, encerrando-a no castelo distante.
- È bem o momento de mostrar-se ciumento - gemeu -, quando minha ligação com Lauzun pertence ao passado. Ele deixou-me muitos meses atrás. Sofri muito. Que pode encontrar de interessante na Srta. de Montpensier?
- È neta de Henrique IV! - observou Angélica. - Isso significa alguma coisa. Mas não posso crer que Lauzun se ponha a brincar imprudentemente com o coração de uma princesa de sangue real. Não pode ser sério.
A Sra. de Roquelaure afirmou que era, ao contrário, cada vez mais sério. A Grande Mademoiselle solicitara ao rei permissão para desposar o Duque de Lauzun, por quem sé achava violentamente apaixonada.
- E que respondeu Sua Majestade?
- A fórmula habitual. Veremos!... Parece que o rei cederá à paixão de Mademoiselle e à afeição que de há muito tem por Lauzun. Mas a rainha, Monsieur, Madame sentem-se ultrajados à ideia dessa estranha aliança. E até a Sra. de Montespan, que brada indignada.
- Por que se envolve nisso? Ela não tem sangue real.'
- E uma Mortemart. Sabe a que obriga uma alta linhagem. Lauzun não é senão um obscuro gentil-homem gascão.
- Pobre Péguilin! Você o menosprezou agora.
- Pobre de mim! - suspirou a Sra. de Roquelaure voltando a chorar.
A carta do Sr. Colbert era em outro tom. Pondo de lado as diversões e mexericos da corte, pedia à Sra. du Plessis que voltasse logo a Paris, para tratar de um negócio de sedas, que somente ela poderia levar a cabo. Angélica tergiversou dois dias, antes de responder, tempo de receber uma outra missiva enviada por um carro de aluguel. -
Era de Mestre Savary, o velho boticário.
"O Bei Solimão Bakhtiari, enviado do xainxá da Pérsia, está às portas de Paris", escrevia. "E a senhora não está aqui! E a múmia mineral tão preciosa será presenteada, desprezada e talvez perdida sem que possa salvar-me uma só gota. No entanto, me prometeu sua aliança, ó traidora! a única oportunidade de minha vida está perdida. A ciência, escarnecida, o futuro, comprometido..."
Duas longas folhas cobertas com uma caligrafia minúscula prosseguiam mesclando súplicas e imprecações.
Depois de lê-las, Angélica decidiu que nada mais tinha a fazer senão retornar a Versalhes.
CAPITULO II
Um tamborete para a Sra. du Plessis-Bellière
De Paris ela dirigiu-se a Versalhes.
Encontrou o rei no parque, depois do tapete de relva que a neve tornava em branco. Malgrado o frio intenso, o soberano não renunciava ao passeio diário. Se a estação' não permitia admirar-se flores e folhagens, ressaltava a beleza das linhas-retas, a harmonia das aléias ao redor dos bosquetes, com a secura de uma épura no cenário de inverno. As pessoas demoravam-se diante das novas estátuas em mármore cândido como a neve ou em chumbo colorido, cujos vermelhos, ouros e verdes acendiam um brilho no fundo dos bosques acinzentados.
A corte contornava o tanque de Apolo com vagar.
A superfície gelada refletia o grupo dourado formado pelo deus e seu carro puxado por corcéis, faiscando sob o sol, verdadeiro símbolo do astro do dia projetando-se numa apoteose.
A Sra. du Plessis-Bellière aguardava na volta de uma aléia, com o pajem Flipot carregando a cauda do pesado manto, suas duas acompanhantes, e seu primeiro gentil-homem, Malbrant Golpe de Espada.
Encaminhando-se até o rei, ela fez uma grande reverência.
- Surpresa agradável - disse o rei, inclinando levemente a cabeça. - Penso que a rainha rejubilar-sé"-á"como eu.
- Apresentei-me à rainha, que se dignou participar-me seu contentamento.
- Partilho-o totalmente, senhora.
Com nova mesura, o rei voltou-se para o Príncipe de Conde e retomou sua conversa com ele. Angélica misturou-se ao séquito, respondendo com amabilidade aos votos de boas-vindas. Mirava com avidez os trajes em torno, notando os novos detalhes. Em poucos meses sua roupa adquirira um aspecto terrivelmente provinciano e fora de moda. Seria a influência da Sra. de Montes-pan, já impondo todas as suas fantasias? Angélica esquecera-se de cumprimentá-la. Mas Atenaís dirigiu-lhe um sorriso resplandecente e acenou-lhe amigavelmente. Estava cada vez mais bela, era preciso reconhecer, o rosto encantador, de tez rósea avivada pelo frio, emoldurado por uma pele suntuosa, de um cinza quase azul, macia e como que viva.
Angélica notou que todas as peles eram muito belas. O rei trazia um grande regalo, na mesma pele do capuz da Sra. de Montes-pan, preso por um cordão de ouro. Muitos gentis-homens e damas imitavam-no. Angélica ouviu Monsieur discorrer, em sua voz de falsete, com a Sra. de Thianges.
- Acho essa moda absolutamente divina e estou disposto a entender-me plenamente com os amáveis moscovitas, a quem a devemos. Sabia que enviaram como presente, precedendo a embaixada, três carros com as mais belas peles que se possa imaginar: raposas, ursos, "skungs"... uma maravilha?!...
"Ah! Acabaram-se os regalos não maiores que uma noz", exclamou, olhando de esguelha, com ironia, para o de Angélica, "aquilo era mesquinho, avaro. Como pudemos contentar-nos com eles... Sim, o meu é em astracã.... Curiosos, todos esses anéis. Dizem que usam a pele de cordeiros recém-nascidos..."
Entretanto, o grupo subia lentamente a aléia real, de volta ao palácio colorido de sol e recamado dos reflexos das vidraças e espelhos. O frio intenso obrigara a acenderem-se todas as lareiras. Múltiplos rastos brancos de fumaça elevavam-se no céu azul.
Graças ao fogo das lareiras monumentais e aos braseiros ao longo das galerias, a temperatura no interior era suportável. No Salão de Vénus, onde armara-se a mesa do rei e todos se amontoavam, a impressão era de sufocamento. Angélica abandonou a um canto o pequeno regalo "não maior que uma noz". O vestido negro também estava deslocado.
Devendo ainda guardar luto pelo marido, resignara-se ao fato com mais facilidade por harmonizar-se o preto à cabeleira loura. Mas reconhecia nos detalhes do traje algo de comum que destoava dos demais. Sim, a Sra. de Montespan transformava a corte segundo sua vontade. Ocupando finalmente o lugar em que podia dar livre curso a seus talentos, tomava a corte nas mãos e marcava cada objeto com sua fantasia e espírito original e refinado.
Angélica, em pé junto aos outrps, avistava-a sentada à mesa dos príncipes, rindo e conversando, fazendo rir à menor palavra e dando a cada qual a oportunidade de brilhar. Era uma grande dama. Possuía todas as perfeições de sua posição. Sustinha com elegância inimitável e jovialidade admirável o peso dás novas prerrogativas, acrescidas de um bastardo real esperado para o início do novo ano. Os rostos à sua volta pareciam descontraídos.
A corte tornara-se alegre e menos rígida. A etiqueta sempre minuciosa adquiria a graça de um bailado antigo ao redor do deus sorridente.
Havia Grand Couvèrt naquele dia. O povo,admitido a ver o rei comer desfilava lentamente à entrada da sala e rejubilava-se com o rosto feliz do soberano. Atribuíam a descontração à alegria geral pela vinda do segundo príncipe, Filipe, Duque de Anjou, nascido em setembro e que, juntamente com a "Petite Madame", Maria Teresa, completava com felicidade a família real.
Mas também apontavam com o dedo a Sra. de Montespan. Era bela e agradável, a espertalhona!...
Burgueses, comerciantes e artesãos, o nariz vermelho de frio, envoltos em grossa lã, retiravam-se e volviam a Paris, secretamente honrados por ver seu príncipe com tão bela amante.
Mais para o fim da refeição, Angélica avistou Florimond servindo junto ao rei. Ele cerrava os lábios com aplicação e sustinha um pesado jarro em prata dourada, vertendo o vinho na taça que lhe estendia o Sr. Duchesne, primeiro oficial de copo. Depois de levá-la aos lábios, ele deu-a a experimentar ao pajenzinho, para estendê-la em seguida ao copeiro-mor, que ali deitou um pouco de água antes de oferecê-la ao rei. Ao final da refeição, enquanto todos se dirigiam ao Salão da Paz, Florimond, muito excitado e orgulhoso, alcançou a mãe.
- Viu, minha mãe, como me saio bem na função? Antes carregava apenas a bandeja. Agora devo carregar o jarro e provar o vinho. E maravilhoso! Se alguém tentasse um dia matar o rei, eu morreria em seu lugar...
Angélica felicitou-o por obter tão rápido um papel importante. O Sr. Duchesne, a quem encontraram, disse estar muito satisfeito com Florimond, que, sob uma aparência displicente, cumpria com muita consciência suas funções. Era o mais jovem e, no entanto, o mais hábil dos pajens, de memória ágil, muito tato e senso de ocasião, sabendo falar e calar-se no momento certo. Um perfeito cortesão em perspectiva. Infelizmente pensavam retirá-lo do serviço do rei, pois Monseigneur, o delfim, não se consolava com a perda do companheiro predileto. O Sr. de Montausier tratara do assunto com o rei, que o transmitira ao copeiro-mor. Talvez fosse o caso de o garotinho assumir as duas funções simultaneamente.
- Mas é demais para ele - protestou Angélica. - E preciso que tenha tempo para aprender a ler.
- Oh! Bolas para o latim. Aceite, minha mãe, aceite! - gritou o petulante Florimond.
Ela balançou a cabeça com um sorriso, dizendo que refletiria. Depois de seis meses, era a primeira vez que o via. Ele visitara rapidamente o Plessis por duas vezes. Achou-o ainda mais belo, com um ar seguro e suave. Talvez muito magro, pois, como todos os pajens, vivia de sobras roubadas, e dormia pouco e mal. Adivinhava-lhe a espádua frágil e nervosa por baixo do gibão e enterneceu-se, admirando-se de que fosse sua aquela criança cheia de vida e inteligência. Também vestia de negro, carregando luto pelo padrasto e pelo irmão. Nos altos espelhos incrustados em painéis dourados, Angélica viu passar sua silhueta de viúva com a mão no ombro de um pajem órfão, e uma súbita melancolia invadiu-a.
"Versalhes a esperará", dissera o rei.
Não, ninguém a esperava. Em poucas semanas um capítulo da crónica da corte terminara, e um outro começara, sob o signo da Sra. de Montespan. Angélica olhou em torno com mal-estar. Esperava que surgisse de entre os grupos, indolente em seu esplendor, o chapéu ao braço numa cascata de plumas, aquele que fora uma das jóias da corte, o mais belo entre os gentis-homens, o Sr. Marquês du Plessis-Bellière, monteiro-mor, grande marechal de França...
Compreendeu que ele não mais existia. O cenário dos vivos fechara-se sobre sua presença. O vazio fora há muito preenchido.
Angélica permaneceu ligeiramente afastada. Florimond deixara-a para ir no encalço do insuportável cãozinho de Madame. A rainha chegara de seus aposentos é sentara-se junto ao rei; vinham depois num semicírculo os príncipes e princesas de sangue, e os grandes senhores e damas com direito'ao tamborete diante do rei. A Srta. de La Vallière achava-se a uma das extremidades... A Sra. de Montespan, em outra. Sentava-se, radiosa, fazendo farfalhar as amplas saias de cetim azul. Em seu triunfo por ter obtido um tamborete, ela, outrora dama de honra, deixava-se dominar por uma ponta de vulgaridade.
Os oficiais de boca começaram a circular, trazendo cálices de licor, aguardente de frangipana ou de aipo, rossoli, anisete, tisanas fumegantes azuis, verdes e douradas.
A voz do rei fez-se o.úvirt-
- Sr. de Gesvres - disse ao camarista-mor -, faça o obséquio de avançar um tamborete à Sra. du Plessís-Bellière...
As conversas diminuíram bruscamente. Com um único movimento, as cabeças voltaram-se para Angélica. Não era de bom-tom que os beneficiários de tão grande honra mostrassem alegria e reconhecimento exagerados. Angélica avançou, fez uma reverência e sentou-se junto à Srta. de La Vallière,
Ela pegou de uma bandeja um cálice de licor de cereja. A mão tremia-lhe um pouco.
- Com que então você obteve o "divino" tamborete - gritou-lhe a Sra. de Sévigné ao avistá-la. - Ah! Minha cara, já sei da notícia sublime. Todas a comentam, ninguém a compreende, salvo eu. Sabia que você não teria senão que aparecer. As pessoas iludiram-se, pois diziam que o rei dirigira-lhe somente duas palavras de saudação; mas que surpresa em seguida! Ah! Quisera lá estar!
A marquesa abraçou Angélica com arrebatamento. Chegara de Paris para assistir à nova peça de Molière. Como ela, numerosos convidados desciam das carruagens.
- Amanhã também haverá teatro, e baile, depois de amanhã... não sei mais quê, mas devemos ficar em Versalhes a semana inteira. Sabia que pensam em instalar a corte aqui, definitivamente?
Por insistência da Sra. de Montespan. Ela tem horror a Saint-Germain. Que achou de seu tamborete?
- Nada sei, palavra.
- Deve terrlhe lançado um olhar mais agudo que Um punhal!
- Confesso que não pensei em olhá-la naquele momento.
- Compreendo sua emoção, mas é pena. A satisfação poderia ser dobrada.
- Não a acreditava tão maldosa - disse Angélica, rindo.
- Não aprecio a maldade para mim. Mas a dos outros diverte-me bastante.
Penetraram na sala do teatro, em meio ao atropelo entre as cadeirinhas douradas.
- Fiquemos juntas - propôs Angélica. - Desejo voltar com você a Paris, após a peça. Assim poderemos conversar e recuperar muitos meses de silêncio.
- Está louca! Versalhes não a reencontrou para perdê-la. Você deve comparecer ao jantar durante toda a estadia de Suas Majestades.
Houve um tumulto junto à porta. A Sra. de Montespan fazia sua entrada.
- Ei-la que chega - cochichou a Sra. de Sévigné. - Não é esplêndida? Enfim, Versalhes tem uma verdadeira amante real, dâ descendência de Gabriela d'Estrées e de Diana de Poitiers. Intrigante, amiga das artes, esbanjadora, exigente, com esse fogo à flor da pele, esse apetite de amor necessário para dominar um homem, mesmo um rei! Conheceremos dias deslumbrantes sob seu reinado.
- Então por que desejou tanto que a substituísse? - perguntou Angélica sem rodeios.
A Sra. de Sévigné levou o leque ao rosto, não mostrando senão dois olhinhos espirituosos, suavizados por súbita tristeza.
- Porque tenho pena do rei - disse.
Fechou o leque, com um longo suspiro.
- Você tem tudo o que ela possui, e algo que ela nunca possuirá. Esse algo talvez faça sua força... a menos que faça sua fraqueza.
A cortina abriu-se, pondo termo às conversas. Angélica escutou distraidamente as primeiras réplicas. Meditava nas palavras da Sra. de Sévigné. Pena do rei?... Não parecia ser a espécie de sentimento que ele devesse inspirar. Não tinha pena de ninguém. Nem mesmo da pobre La Vallière! Angélica impressionara-se com a magreza, a expressão de tristeza assustadiça da ex-favorita. O fato de o rei obrigá-la a apresentar-se como antes, assistindo minuto após minuto ao triunfo da rival, beirava a crueldade. Atenaís tratava-a abertamente com desprezo. Por cúmulo de inconsciência ou cinismo, Angélica ouvira-a gritar:
- Luísa, ajude-me a prender esta faixa. O rei me espera, assim
atrasar-me-ei. ;
Docilmente, a pobre jovem retificára as dobras do adorno. Que esperava obter com sua humildade? A volta do amor daquele que permanecia a paixão de seu coração? Era pouco provável. Parece que o compreendia, pois comentava-se que repetidas vezes solicitara ao rei permissão para recolher-se ao carmelo. Mas o rei se opusera.
Angélica inclinou-se para a Sra. de Sévigné.
- Por que acredita que o rei se oponha à partida da Srta.. de La Vallière? - cochichou.
A Sra. de Sévigné, que começava a casquinar diante das réplicas de Tartufo, pareceu surpresa, mas respondeu a meia voz:
- Devido ao Marquês de Montespan. Ele pode Voltar e pretender que o filho da mulher lhe pertence por lei. Luísa serve de fachada. Enquanto não for abertamente repudiada, sempre poderão afirmar que o favor da Sra. de Montespan é uma calúnia.
Angélica agradeceu com uma inclinação de cabeça e voltou à cena.
Decididamente Molière tinha bastante espírito. Mas durante o espetáculo Angélica não cessou de se perguntar por que o Sr. de Solignac e os grandes nobres da Companhia do Santo Sacramento enraiveceram-se quando da apresentação da peça. Deviam ter a consciência pesada de mesquinharia, hipocrisia e falsidade para acreditarem-se atacados pela imagem daquele Tartufo de baixa ex-tração, ignorante, sem educação, que, ao abusar dos bons sentimentos, em nada lembrava a intransigência medieval daqueles senhores.
O rei, com seu bom senso escrutador, não se enganava. Sabia que o espírito da Igreja não se via atingido por uma pintura dos costumes que vinha a propósito. Os falsos devotos, que não são úteis nem a Deus nem aos homens, eram colocados em seu lugar, e o rei, bom cristão e nada mais, era o primeiro a divertir-se e segurar-se de tanto rir.
Não era difícil imitá-lo. Alguns, porém, riam amarelo. A batalha de Tartufo não terminara. Mas o rei, Madame e Monsieur, e até a rainha, protegiam-no. O espetáculo terminou sob aplausos.
Angélica encontrou em seus aposentos as criadas Teresa e Javotte entretidas em acender o fogo. Na porta estava escrito o PARA honorífico.
"Devo apresentar-me ao rei para agradecer-lhe pelos benefícios?", disse a jovem consigo, embaraçada. "Afetar, ignorar suas atenções seria grosseiro... Ou devo, ao contrário, esperar que me dirija a palavra?"
Permitiu-se tirar o vestido negro e envergou um outro, num cinza pálido bordado a prata, mais apropriado para a grande ceia.
Bateram levemente à porta. Era a Srta. de Brienne, bastante animada.
- Sabia que o pequeno boticário acabaria por obter-lhe um tamborete. Ah! Suplico-lhe, diga-me, que devo fazer, que devo prometer-lhe para que se ocupe de mim?... Como ele procede? Enverga uma veste de astrólogo para fazer invocações?... Devem-se engolir os pós que ele fabrica?... São muito ruins?...
Ela girava pelo quarto tirando os objetos de lugar. Deixou mesmo alguns caírem. Angélica agarrou no ar um frasco de perfume. Decididamente, a jovem tinha o juízo afetado. Aliás, atribuía-se a seu irmão Loménie de Brienne uma exaltação ora amorosa, ora religiosa, próxima da loucura.
- Acalme-se - disse, dando de ombros. - Mestre Savary nada tem a ver com isso. Acabo de chegar direto da província.
- Então... foi a Voisin que a ajudou?... Parece que é poderosa. A maior feiticeira de todos os tempos, disseram-me... Porém não ouso ir até ela... Receio ser amaldiçoada. Mas se não houver outro meio de obter um tamborete... Conte-me o que a mandou fazer... É verdade que é preciso cortar a garganta a um recém-nascido e beber-lhe o sangue?... Ou engolir uma hóstia feita com imundícies?
- Basta de tolices, minha cara! Você me atormenta. Não tenho mais comércio com a Voisin que com o boticário, ao menos no que concerne ao tamborete. O rei concede essa honra a quem quiser honrar, por sua vontade, sem sortilégios.
A Srta. de Brienne comprimia os lábios, entregue à sua ideia fixa.
- Não é tão simples! O rei não é fraco. Não podemos levá-lo a fazer o que não quer. Nada além da magia pode constrangê-lo. A Sra. de Montespan não foi bem-sucedida?
- A Sra. de Montespan viraria a cabeça a qualquer homem na força da idade. Nada existe de mágico no seu caso.
- Por certo! - escarneceu a jovem, com ar entendido. - Aliás, por que está mentindo? Todo mundo sabe que mantém relações com o pequeno mago de barba branca. Ele clama por você pelo palácio.
- Mestre Savary? Está em Versalhes?
- Viram-no com os delegados do comércio a quem Sua Majestade recebe em audiência neste momento.
- Se o tivesse dito antes! Ainda tenho tempo de vê-lo antes da ceia.
Pegou o leque, a estola, arrepanhou as saias e partiu rapidamente, seguida pela Srta. de Brienne, sempre insistente.
- Promete falar-Ihé dê mi-m?.
- Prometo - confirmou, para ver-se livre.
Mestre Savary avançou para ela gesticulando e levou-a a um canto.
- Cá está por fim, ó traidora!
- Mestre Savary, acabo de ver a comédia do Sr. Molière, e já basta de teatro por hoje. Por que está nesse estado?
- Porque tudo está perdido, ou quase. O Bei Bakhtiari está às portas de Paris.
- Já me escreveu a respeito. A essa altura penso que já teve a oportunidade de franquear as portas.
- Não, pobre de mim. A situação se envenena entre o rei e ele.
- Por que motivos?
- Ignoro-o. Mas é caso de o embaixador voltar para a Pérsia sem ser recebido por Sua Majestade... e com a "múmia". Que catástrofe!
- Que posso fazer por você?
- Quer então fazer algo? - perguntou, fremindo de esperança.
- Eu o prometi, Mestre Savary...
Ela impediu-o de prostrar-se e levar a testa junto ao chão.
- ...Mas não sei como ajudá-lo. Não está em meu poder aplainar as dificuldades surgidas entre Sua Majestade, o rei de França, e o embaixador do xainxá.
O boticário refletiu um instante.
- Há outra solução. Vá até Suresnes. Sua Excelência alojou-se na casa de campo do Sieur Dionis. E um antigo colonial, e sua vila possui banhos turcos, o que agradou ao Bei Bakhtiari.
- E que farei quando lá chegar?
- Primeiro assegurar-se-á de que a múmia se ache entre os presentes para o rei. E depois tratará de obter algumas gotas.
- Assim, simplesmente! E acredita que essa grande personagem irascível, a julgar por sua conduta insolente para o rei, apressar-se-á em receber-me, mostrar-me um tesouro tão precioso e ofertar-mo?
- Assim espero - disse o boticário, esfregando as mãos.
- Por que não vai você mesmo, se a coisa é tão fácil?
Savary ergueu os braços aos céus.
- Como é possível proferírem-se tais tolices?! Acredita que um velho bode como eu possa tentar abrir a boca sem que Sua Excelência faça saltar-lhe a cabeça com uma sabrada? Penso, no entanto, que terá ouvido mais indulgente para com uma das mais belas mulheres do reino.
- Mestre Savary, creio que me atribui um papel um tanto especial, para não dizer condenável...
O bom homem não se justificou.
- Eh! Eh! Cada qual com sua ocupação - disse ele. - Não sou senão um sábio, não é da minha alçada tentar seduzir um embaixador. Mas se Deus a fez mulher, e encantadora, devia ter planos nesse sentido.
Depois do que, deu-lhe as últimas instruções para a expedição a Suresnes. Não deveria ir de carruagem, mas a cavalo, animal nobre pelo qual os descendentes das legiões de Dário nutriam grande paixão.
Não deveria temer perfumar-se escandalosamente nem enegrecer as pálpebras. Angélica fê-lo prometer que estariam de volta no final da manhã, pois não desejava que o rei notasse sua ausência durante o passeio no parque.
Savary jurou-lhe tudo o que ela desejava e deixou-a, radiante.
CAPITULO III
Visita ao príncipe persa Bakhtiari
Não chamou a atenção o grupo de cavaleiros e da amazona que logo cedo franqueou os portões de Versalhes. Já era intenso o movimento de cavalos, carriqlas com carregamentos de picheis de leite fresco, de operários com seus carrinhos rumando para o canteiro de obras, e até carruagens trazendo para o lever, "o despertar do rei, os grandes senhores dos castelos vizinhos.
Encontraram Mestre Savary ao pé da colina, envolto num casa-cão negro e encarapitado num magro rocim.
- Admiro o cavalo de luxo com que "despertará a admiração de Sua Excelência Oriental - disse Angélica.
O ancião desdenhou a ironia. Com os olhos brilhantes por trás das grossas lentes do lornhão, murmurava mirando o grupo: "Perfeito! Perfeito!"
Na véspera, enquanto Angélica assistia ao baile, sentada, em razão do luto, haviam-lhe passado um bilhete:
"Não deixe de levar pelo menos quatro criados na incursão de amanhã. Não que esteja correndo perigo, mas para seu prestígio. Savary".
Com Malbrant Golpe de Espada, os bigodes claros ao vento, os dois lacaios e o cocheiro, todos belos latagões, Angélica compusera às pressas o "séquito" pedido, completando-o com Flipot.
Os quatro criados envergavam a libré azul e junquilho dos Plessis-Bellière e montavam cavalos negros como azeviche.
Ceres pateava, o pêlo arruivado reluzente, escovado para a ocasião.
- Perfeito - repetiu Savary. - No grande teatro do sultão de Bagdá não fariam melhor.
Foram a trote pela estrada salpicada de geada. Em caminho, Savary falou de Sua Excelência, o Bei Mohammed Bakhtiari.
- É um dos homens mais finos que conheço.
- Então o conhece?
- Em outros tempos... tive a oportunidade de estar com ele.
- Onde foi isso?
- Pouco importa...
O boticário quis mudar o rumo da conversa, mas acabou por ceder à curiosidade de Angélica:
- No Cáucaso, ao pé de Monte Ararat.
- Que fazia ali? Já estava à procura da múmia?
- Pst!, senhora. Não fale nisso abertamente. Por pouco não paguei caro minha indiscrição. Bakhtiari condenara-me a receber vinte e cinco chicotadas e a ser enterrado vivo num jarro de gesso, apenas a cabeça de fora, aguardando lentamente a morte. Fui salvo no último momento por um padre jesuíta muito influente na corte do xá da Pérsia.
- Você parece guardar rancor a Sua Excelência pelo tratamento.
- Sua crueldade não impede de ser letrado e grande filósofo. E de ter faro para os negócios, fato raro entre os persas modernos, em decadência, que aos poucos abandonam o comando aos mercadores sírios e arménios. Talvez o Bei Bakhtiari acabe um dia no trono da Pérsia...
Flipot interveio na conversa:
- Parece que ele traz um colar de cento e seis pérolas para a rainha e lazulitas grandes como ovos de pomba...
Angélica lançou-lhe um olhar desconfiado.
- Vê se vigia suas mãos e trate de manter-se na sela corretamente.
O criadinho não tinha de fato o hábito de montar a cavalo; escorregava para os lados, recuperando-se como podia sob os gracejos dos camaradas.
Angélica tomou a dianteira com Savary, que desejava ministrar-lhe uma rápida aula de persa.
- Se lhe disserem: Saiam o maleikum, respondei: Aleikum Saiam. E uma saudação. Para "obrigado" dizem: Barik Allah, que significa literalmente: Grande é Deus. Se ouvir o nome de Maomé, ajunte imediatamente: Ali vali ullah, oque quer dizer: Ali é seu vizir. Isso lhes dá prazer, pois -os persas pertencem ao cisma xiita e não ao sunita, como os árabes e os turcos.
- Creio que guardarei facilmente o "bom dia" e o "obrigado", porém, deixarei os profetas com você - disse-Angélica. - Mas que acontece lá adiante?
Haviam seguido pela estrada real, que contornava Paris pelo oeste, e agora chegavam a uma encruzilhada. Avistava-se ao longe um ajuntamento em torno de um estrado rodeado por lanças de policiais.
- Creio que é uma execução - disse Flipot, que tinha vista agu
Angélica fez uma careta. Agora distinguia ã roda enorme, a silhueta negra do confessor e os trajes vermelhos do carrasco e seus ajudantes contra o céu acinzentado e as árvores desfolhadas. Eram comuns as execuções nas cercanias de Paris, evitando aglomerações muito frequentes na Place de Greve. O que não impedia os moradores de Paris e seus arredores 4e afluírem como por milagre ao local do espetáculo.
O suplício da roda fora importado da Alemanha no século anterior. O condenado era atado, com os braços estendidos e as pernas afastadas, a dois madeiros em forma de cruz de Santo André, ou seja, em X. Cada travessa possuía entalhes profundos, em particular no lugar correspondente aos joelhos e cotovelos do supliciado. O carrasco erguia uma pesada barra de ferro e redobrava os golpes.
- Não chegamos tão tarde - rejubilou-se Flipot. - Mal quebraram-lhe as pernas.
Sua ama chamou-o em tom seco. Decidira enveredar pelos campos, evitando a cena atroz de um ser humano despedaçado sob o olhar de uma multidão atenta e fascinada.
Conduziu resolutamente a montaria para fora da estrada, por uma depressão na neve, seguida por Savary e os criados. Pouco adiante, porém, foram barrados por cavaleiros com a libré cinza de policial. Um jovem oficial gritou:
- Alto! Ninguém pode circular antes da ordem de dispersar.
Ele aproximou-se, fazendo uma saudação, e ela reconheceu o Sr. de Miremont, oficial da guarda de Versalhes.
- Tenha a amabilidade de deixar-me passar, senhor; devo visitar Sua Excelência, o embaixador do xá da Pérsia.
- Nesse caso, permitia-me conduzi-la até Sua Excelência - disse o oficial, inclinando-se.
E dirigiu-se ao local do suplício.
Angélica viu-se forçada a segui-lo. O oficial levou-a até as primeiras fileiras, junto ao estrado onde se elevavam os gritos roucos e espasmódicos do supliciado, a quem o carrasco acabava de romper os braços e a bacia com golpes secos.
Angélica pregara os olhos no chão para não ver a cena.
Miremont elevou a voz em tom deferente:
- Excelência, a Sra. du Plessis-Bellière deseja vê-lo.
A jovem ergueu os olhos e viu-se, estupefata, na presença do embaixador persa, montado num cavalo castanho.
O Bei Mohammed Bakhtiari tinha imensos olhos negros, cílios e sobrancelhas aveludados num rosto trigueiro, emoldurado por um colar de barba cerrada, negra e brilhante. Trazia um turbante de seda branca apanhado no centro por um diamante, encimado por leve penacho vermelho. Ao abrir-se, o cáftã de laméprateado forrado de arminho mostrava uma espécie de colete guarnecido com peças de prata lavrada, e uma longa veste de brocado rosa-pálido recamado de pequenas pérolas em desenhos de grandes flores e arabescos. A seu lado, também a cavalo, um pajenzinho das Mil e uma noites, vestido de seda em cores vivas e trazendo à cintura um pequeno punhal de ouro com uma esmeralda, carregava uma espécie de vaso em metal precioso, de onde saía um longo tubo arrematado por um cachimbo. Três ou quatro persas, em suas montarias imóveis, formavam a guarda do embaixador.
Este não se voltara ao ouvir o oficial. Olhos fixos no estrado, acompanhava o suplício com a maior atenção, estendendo a mão vez por outra para tirar uma baforada do narguilé. A fumaça escapava-se-lhe dos lábios rasgados e sensuais em nuvens azuladas e odoríferas que se desfaziam lentamente no ar gelado.
O Sr. de Miremont repetiu a frase com timidez e depois teve para Angélica um gesto de desculpa, como a dizer-lhe que Sua Excelência não entendia o francês. Nesse momento, interveio uma personagem que a jovem ainda não havia notado. Era um eclesiástico envergando a sotaina negra, o largo cinto e, no peito, o crucifixo dos membros da Companhia de-Jesus. Dirigiu sua montaria até Mohammed Bakhtiari e disse-lhe algumas palavras em persa.
Este voltou para Angélica o olhar vazio, um tanto exorbitado, mas que logo se fez brilhante e Suave. Com flexibilidade de serpente, o bei deslizou da montaria.
Angélica hesitava em dar a mão a beijar, quando percebeu que o embaixador acariciava o pescoço de Ceres, murmurando-lhe palavras suaves. Falou algo, depois, em tom imperativo.
O jesuíta traduziu:
- Senhora, Sua Excelência pede autorização para examinar a boca do animal. Diz que um cayalo de raça se conhece tanto pelos tornozelos como pelos dentes e palato.
Um tanto vexada, malgrado seu, a jovem observou secamente que o animal era suscétível, arredio e não recebia bem as familiaridades de desconhecidos. O religioso traduziu. O persa sorriu. Colocou-se diante do cavalo e pronunciou algumas palavras suavemente. Em seguida, aplicou as mãos às ventas da égua, que estremeceu, mas permitiu que lhe abrissem a boca e lhe inspecionassem os dentes, sem esboçar a mínima contrariedade. E deu um lambida na mão trigueira, cintilante de anéis, que a acariciava.
Angélica tinha a impressão de ser traída por uma amiga. Esquecia a roda e o pobre-diabo gemendo no estrado.
Era ela quem se mostrava bastante suscétível. Envergonhou-se de sua atitude ao ver o persa cruzar as mãos sobre o punhal de ouro e inclinar-se repetidas vezes com mostras de grande respeito.
- Sua Excelência, o Bei Bakhtiari, diz que é o primeiro cavalo digno desse nome que vê desde que desembarcou em Marselha. Pergunta se o rei de França possui muitos como ele.
- Cavalariças inteiras - afirmou ela sem pejo.
O bei franziu o cenho e falou precipitadamente, com cólera:
- Sua Excelência se espanta de que não tenham julgado apropriado enviar-lhe alguns como digno presente de sua posição. O Marquês de Torcy apresentou-se como um cavaleiro sofrível e retornou com os cavalos, pretextando que Sua Excelência, o embaixador do xá da Pérsia, não queria segui-lo... imediatamente... até Paris... e diz que...
A rapidez das palavras aumentava com o furor do persa, e o intérprete seguia-o com dificuldade.
- ... e diz que ainda não viu mulher digna de sua posição... Que nenhuma lhe foi ofertada... Nenhuma lhe foi enviada no mês que já está em França... que aquelas que fez vir não conviriam a um cunhal (carregador) de tão imundas... Pergunta se sua vinda é o sinal de que Sua Majestade, o rei de França... decidiu-se a fazer-lhe as devidos honras...
Angélica abria a boca, estupefata.
- Faz-me perguntas bastante estranhas, meu padre!
Um leve sorriso iluminou o semblante impassível do religioso. Era jovem, malgrado os traços severos, mas a tez fatigada testemunhava uma longa estadia no Oriente Próximo.
- Senhora, avalio como tais palavras parecem chocantes em meus lábios. Considere, eu lhe peço, que há quinze anos sou intérprete na corte do xá da Pérsia, e que devo traduzir o mais fielmente possível suas falas.
E acrescentou, não sem humor:
- Em quinze anos ouvi... e disse muitas coisas mais. Mas suplico-lhe, responda a Sua Excelência.
- É que... estou muito embaraçada. Não venho como embaixadora, e sim às escondidas do rei, que não parece, segundo creio, particularmente preocupado com a embaixada persa.
O rosto do jesuíta esfriou, e seus olhos amarelos tiveram um brilho glacial.
- É uma catástrofe! - murmurou.
Era visível que hesitava em traduzir a resposta. Felizmente os gritos cada vez mais lancinantes do supliciado desviaram a atenção de Mohammed Bakhtiari, que voltou os olhos para o estrado. Durante a conversa, o carrasco acabara sua obra. Após romper os membros e a bacia do condenado, dobrara-os e ligara-os como a um frango para atá-lo a uma roda de carruagem fixada na extremidade de um mastro, e que erguia para o céu o lastimável fardo. O infeliz agonizaria por longas horas no vento glacial, em meio ao vôo sinistro dos corvos que se agrupavam nas árvores próximas.
O persa emitiu uma exclamação de desapontamento e lançou-se em novo e violento discurso.
- Sua Excelência se queixa de não ter visto o fim do suplício - disse o jesuíta, dirigindo-se ao Sr. de Miremont.
- Lamento-o, mas Sua Excelência estava entretido com a senhora.
- Seria de bom-tom esperar que voltasse aprestar atenção àcerimonia.
- Apresente-lhe minhas desculpas, meu padre... Diga-lhe que não é o costume em França.
- Pífia desculpa - suspirou o religioso.
Ele aplicou-se, no entanto, em amansar a cólera de seu nobre senhor, que se acalmou, e cujo rosto iluminou-se ao emitir uma proposta que parecia arranjar tudo.
O padre permaneceu em silêncio. Instado a traduzir, disse com reticência:
- Sua Excelência pede que recomecem.
- Recomeçar o quê?
- O suplício.
- Mas é impossível, meu padre - disse o oficial de polícia. - Não há outro condenado.
O religioso traduziu. O bei mostrou os persas em formação atrás de si.
- Diz que tomem um homem de sua escolta... Ele insiste... Afirma que, se continuar a mostrar-se tão desagradável, queixar-se-á ao rei, seu senhor, que o decapitará.
Malgrado o frio, o Sr. de Miremont suava em bicas.
- Que fazer, meu padre? Não posso condenar alguém à morte dessa maneira.
- Posso responder-lhe de sua parte que as leis de seu país impedem que se toque num único fio de cabelo de qualquer hóspede estrangeiro. Não podemos, pois, imolar um de seus escravos persas, mesmo com o seu consentimento.
- Isso. Isso. Diga-lhe, suplico-lhe.
O Bei Bakhtiari dignou-se sorrir e pareceu apreciar o tato das leis francesas. Mas acarinhava sua ideia e súbito estendeu um braço impiedoso para Savary. O boticário lançou um grito e, saltando em terra, prostrou-se, a fronte na neve, berrando:
- Amman! Amman! Piedade! Piedade!
- Mas que acontece, meu padre? - perguntou Angélica.
- Como o embaixador perdeu o fim do espetáculo por sua causa, decidiu que o novo condenado deve ser escolhido entre as pessoas de sua escolta. Ele pretende, aliás, que um homem que ousa montar tal cavalo não merece viver.
O jesuíta concluiu entre dentes:
- Um homem que, ademais, entende e fala o persa à maravilha... Então a senhora não veio como embaixadora, mas tratou de munir-se de um intérprete!...
- Mestre Savary é um droguista que viajou muito e...
- Qual é exatamente o objetivo de sua visita, senhora?
- A curiosidade.
O Reverendo Padre Ricardo teve um sorrisinho sarcástico. Angélica disse, agastada:
- Não posso apresentar-lhe outro motivo... Mestre Savary, cesse com as prostrações e levante-se. Não estamos em Ispahan.
- Mas a coisa tem de ser resolvida - disse o religioso.
- Meu padre, espero que não pretenda torturar e matar um homem inocente, para o simples prazer de um príncipe bárbaro.
- Certamente não. Mas revolto-me contra a imperícia, a má vontade, a falta de cortesia de que o Bei Bakhtiari é vítima desde que chegou em França. Veio como amigo e bem pode retornar furioso, fazendo do xainxá um inimigo irredutível da França, e, mais grave ainda, da Igreja. Depois disso, nós, religiosos, que possuímos uma vintena de conventos em suas terras, em vão tentaremos impor nossa influência. A senhora pode compreender minha impaciência quando uma série de gafes estúpidas ameaça recuar por séculos o estabelecimento da civilização latina e cristã nos países que nada pedem senão o acesso a elas.
- Convenho em que esses problemas tenham sua gravidade, meu padre - disse o Sr. de Miremont, bastante aborrecido. - Mas por que ele faz tanta questão da roda?
- O embaixador não conhecia esse tipo de suplício. Ao sair a passeio, nesta manhã, veio dar ao local do suplício e resolveu imediatamente levar ao xá da Pérsia a descrição exata desse novo modo de tortura. De onde seu pesar por ter perdido alguns detalhes.
- Acho Sua Excelência bastante imprudente - disse Angélica com um sorrisinho.
O persa, que voltara à sua montaria com expressão terrível, lançou-lhe um olhar surpreso.
- Diria mesmo que admiro sua coragem - continuou a jovem.
Houve um momento de silêncio.
- Sua Excelência está pasmo - disse, por fim, o jesuíta -, mas sabe que as mulheres têm por vezes sutilezas que os cérebros masculinos ignoram, e está ávido por ouvir o que tem a dizer. Fale, pois, senhora.
- Pois bem. Sua Excelência não imagina que o rei dos reis poderia ver-se tentado a fazer mau uso da nova máquina?... Como por exemplo decidir que, dadas sua novidade e originalidade, ela se destinaria ao suplício dos grandes senhores de seu país?... E que seria bastante indicada experimentá-la com um dos maiores entre os grandes, seu melhor súdito, como Suà Excelência aqui presente? Sobretudo se sua missão for um fracasso para as esperanças do rei dos reis...
A medida que o jesuíta traduzia, o rosto do príncipe se desanuviava. Com grande alívio de todos, ele se pôs a rir.
- Fuzul Khanum! - exclamou. - Pequena esperta. Diabinha!
Com as mãos cruzadas sobre o peito, inclinou-se várias vezes para a jovem.
- Ele diz que seu conselho é digno do próprio Zoroastro... Que renuncia ao projeto de levar o suplício da roda a seu país... já que possui uma variedade impressionante deles... E pede-lhe que o acompanhe a sua morada... para oferecer-lhe uma colação.
O Bei Mohammed Bakhtiari encabeçava o cortejo. Era, de repente, todo encanto e atenção. O trajeto se fez em meio a uma troca de refinadas amabilidades, que os lábios do religioso desfiavam em tom de reza, e no curso das quais Angélica viu-se qualificada de "tenra gazela de Kashan", "rosa de Zendé Roud de Ispahan" e finalmente "lírio de Versalhes".
Logo chegaram à morada que o embaixador escolhera provisoriamente, enquanto aguardava sua entrada solene em Versalhes e Paris. Era uma casa de campo bastante modesta, o jardim de gramado amarelado com não mais que três ou quatro estátuas esverdeadas. O bei desculpou-se pela indigência do local. Alojara-se ali devido aos banhos turcos que o proprietário construíra, o que lhe permitia proceder às abluções rituais e manter-se em estado de asseio. A ideia de que as casas parisienses não possuíssem termas o confundia.
Ao estrépito da chegada, criados persas acorreram com sabres e punhais, trazendo atrás de si dois gentis-homens franceses. Um deles, cuja enorme peruca tentava compensar a pequena estatura, exclamou em tom acre:
- Mais uma cortesã! Padre Ricardo, espero que não conte alojar aqui tal criatura. O Sr. Dionis se opõe a que continuem a profanar sua morada.
- Eu não disse tal coisa - protestou o outro. - Compreendo que Sua Excelência necessite distrair-se...
- Blablablá! - interrompeu o homenzinho rabugento. - Se o príncipe deseja distrair-se deveria antes apresentar suas credenciais em Versalhes, em vez de comprazer-se em prolongar indefinidamente essa vergonhosa situação.
Ao obter a palavra, o jesuíta apresentou Angélica. O homenzinho ficou furta-cor.
- Aceite minhas desculpas, senhora. Sou Saint-Amon, introdutor de embaixadas, encarregado pelo rei de acompanhar Sua Excelência à corte. Perdoe-me a ignorância.
- Está perdoado, Sr. de Saint-Amon. Compreendo que minha chegada se prestasse a confusões.
- Ah! Senhora, lamente-me antes! Não sei que será de mim entre estes bárbaros de costumes vergonhosos, a quem não consigo convencer da necessidade de se apressar. E o Padre Ricardo, embora francês, e religioso, em nada me ajuda! Mire-lhe o sorriso trocista...
- E você me ajuda? - retrucou o jesuíta. - Você é um diplomata. Use, pois, de diplomacia. Não sou senão um intérprete, conselheiro quando muito, e acompanho o embaixador em caráter privado; podia considerar-se feliz por contar com um tradutor como eu.
- Seus serviços são os meus, meu padre, súditos que somos do rei de França.
- Esqueceu que sirvo a Deus em primeiro lugar?
- A Roma, quer dizer. Todos sabem que os Estados pontifícios têm mais valor para sua ordem que o reino de França.
Angélica perdeu o resto da altercação, pois o Bei Bakhtiari, tomando-a pelo punho, levara-a para o interior da residência. Atravessaram uma antecâmara com piso de mosaico, penetrando em nova peça, e seguidos pelos respectivos pajens, o do príncipe trazendo o indefectível narguilé ou kaliam, de onde saía uma fumaça grugrulhante, e Flipot, que arregalava os olhos admirados para o conjunto resplandecente das tapeçarias, tapetes e almofadas de colorido deslumbrante. Móveis em madeira preciosa, jarros e taças de faiança azul completavam o mobiliário.
O príncipe sentou-se, cruzou as pernas, e acenou para que Angélica o imitasse.
- Faz parte dos costumes franceses altercar em público a todo momento? - perguntou em francês lento, mas perfeito.
- Verifico com prazerl que Vossa Excelência fala muito bem nossa língua.
- Há dois meses que escuto o francês... Tive, pois, tempo de aprender. Sei principalmente como se dizem coisas desagradáveis... e muitas injúrias... É isso. E lamento-o... Pois tenho outras coisas para lhe dizer.
Angélica pôs-se a rir. O bei a contemplava.
- Seu riso é como uma fonte no deserto.
Calaram-se em seguida, como se pilhados em erro, pois já o religioso e Saint-Amon se juntavam a eles, ambos desconfiados a títulos diversos.
Sua Excelência, no entanto, não deu mostras de contrariedade. Voltou a falar em persa e pediu uma leve colação. Vieram janíza-ros com bandejas de prata lavrada, que despejaram em minúsculas taças de cristal uma beberagem quente, muito negra e de odor estranho.
-• Mas que é isto? - perguntou Angélica, um tanto inquieta, antes de levá-la aos lábios.
O Sr. de Saint-Amon bebeu-a de um gole é respondeu com horrível careta:
- Café! Parece que é esse o nome. Há mais de dez dias engulo essa imundície, esperando que o Bei Bakhtiari recompense minha cortesia subindo numa carruagem e dirigindo-se a Versalhes. Mas é bem provável que eu caia doente antes de consegui-lo.
Sabendo que o persa compreendia o francês, Angélica sentiu-se embaraçada, mas o bei permaneceu impassível. Por meio de gestos chamou sua atenção para as taças de cristal facetado e os curiosos cântaros em craquelê, numa deliciosa tonalidade de lápis-lazúli.
- São peças do tempo do Rei Dário - explicou o Padre Ricardo. - O segredo do esmalte perdeu-se, e os novos palácios não têm a mesma beleza das antigas termas de Ispahan e Mechhed, cobertas de preciosos ladrilhos, com mais de mil anos. O mesmo ocorre com as peças de ourivesaria, não obstante seu renome.
- Se a Sua Excelência interessam os objetos preciosos, que não admirará em Versalhes? - disse Angélica. - Nosso rei tem o gosto do fausto e se faz cercar de verdadeiras maravilhas...
O embaixador pareceu impressionado. Fez muitas perguntas a que Angélica respondia o melhor possível, descrevendo o imenso palácio, cintilante de douraduras e espelhos, os móveis concebidos por artistas, verdadeiras obras de arte em preciosos materiais, a riqueza da prataria única no mundo. Seu interlocutor ia de espanto em espanto. Por intermédio do Padre Ricardo, reprovou ao Sr. de Saint-Amon nada ter-lhe dito sobre aquilo tudo.
- Que interesse podem ter? A grandeza do rei de França não se mede pelo luxo, mas por seu renome. Essas pacotilhas de bazar envaidecem apenas os espíritos.
- Para um diplomata, você esquece por demais que está tratando com orientais - disse secamente o jesuíta. - Vejo, em todo caso, que a senhora, com algumas palavras, fez mais por seus negócios franceses que você em dez dias.
- Perfeito! Perfeito! Se você, representante da Igreja, aprova essa conduta de harém, não vejo que resposta a dignidade de um homem de alta posição possa ter. E, sendo assim, retiro-me.
Com essa declaração ácida, o Sr. de Saint-Amon pediu licença e saiu, seguido, logo após. pelo religioso.
Mohammed Bakhtiari voltou-se para Angélica com um sorriso que lhe punha um alvo brilho na face trigueira.
- O Padre Ricardo compreendeu que não necessito de intérprete para entender-me com uma dama.
Levou o cachimbo aos lábios, tirando curtas baforadas, sem desviar da visitante o olhar escuro e ardente.
- Meu astrólogo disse que... hoje, quarta-feira, era um dia "branco" feliz. E você veio... A você posso dizer... Inquieta-me este país. Seus costumes são estranhos e difíceis.
Com um gesto ordenou que o pajem.sonolento apresentasse as taças de sorvete de frutas, nugas e pastas transparentes. Angélica, hesitante, disse que não compreendia a inquietação de Sua Excelência. Que havia de tão estranho nos costumes franceses?
- Tudo... os felás... como se diz... gente da terra...
- Camponeses.
- Isso... que permanecem em pé, quando passo, olhando-me com insolência. Nenhum, em toda a viagem, qué tenha levado a fronte ao chão... Seu rei que quer que vá até ele como um prisioneiro... numa carruagem... com guardas às portinholas. E esse homenzinho que ousa gritar-jner "Rápido! Rápido! Para Versalhes!", como se eu fosse um sicJiak, um burro de carga, quero dizer, enquanto por deferência e honra ao grande soberano devo retardar o passo. Por que ri, ó bela Firuzé de olhos semelhantes à mais preciosa entre as pedras preciosas?
Ela tentou explicar-lhe que havia um mal-entendido. Em França as pessoas não se prostravam. As mulheres faziam a reverência. A título de demonstração, érgueu-se e fez várias reverências para grande prazer de seu hospedeiro.
- Compreendo... - disse - é uma dança... lenta e religiosa que as mulheres fazem diante de seu príncipe. Agrada-me muito. Farei com que minhas mulheres a aprendam... O rei finalmente me quer bem, pois enviou-a a mim. Você é a primeira pessoa que me parece divertida... Os franceses são tão enfadonhos!
- Enfadonhos! - protestou Angélica com veemência. - Vossa Excelência se equivoca. Os franceses têm reputação de muito alegres e divertidos.
- Ter-ri-vel-men-te enfadonhos! - escandiu o príncipe. - Os que tenho visto destilam enfado como a rocha do deserto destila o precioso líquido da múmia...
A comparação fê-la lembrar-se de Mestre Savary, por quem ali se achava.
- A múmia... Será possível, Excelência? Sua Majestade, o xá da Pérsia, ter-se-á dignado enviar um pouco do precioso licor a nosso soberano?
O rosto do embaixador anuviou-se, e ele teve para Angélica o olhar cruel com que o sultão cobre o escravo suspeito de traição.
- Como sabe... que o trago entre os presentes?
- Comentam-no, Excelência. Então a fama desse tesouro não cruzou os mares?
Apesar de impassível, o bei não pôde impedir que transparecesse sua perplexidade.
- Acreditava... que o rei de França não daria, em verdade, importância à múmia... Talvez me fizesse a afronta de rir, ignorando seu valor...
- Ao contrário, Sua Majestade avalia as grandes disposições do xá da Pérsia ao enviar tal presente. Ele não ignora ser esse líquido raríssimo. Nenhum outro país o possui além da Pérsia.
- Nenhum outro - afirmou o bei, cujas pupilas iluminaram-se com um fogo místico. - E o presente de Alá a um povo que foi o maior entre os maiores... que permanece grande por sua riqueza de espírito. Alá abençoou-o com o elixir precioso e misterioso. As fontes rarearam e agora a múmia é reservada aos sufis, os príncipes de sangue... As rochas que a destilam são vigiadas militarmente, por guardas do rei. Cada fonte é lacrada com o selo dos cinco principais oficiais da província... Respondem com a cabeça pela mínima gota.
- Qual será o aspecto desse licor?
O sorriso tornara aos lábios do bei.
- Você é curiosa e impaciente como uma odalisca... a quem seu senhor prometeu recompensa... Mas... gosto de ver brilhar seus olhos.
Bateu palmas, dando ordens ao guarda que acorreu.
Pouco depois, entraram dois serviçais com um pesado cofre de pau-rosa, com incrustações de ouro e nácar, ladeado por quatro janízaros empunhando lanças.
O cofre foi depositado numa mesinha junto ao divã, e o Bei Bakhtiari abriu-o com respeito. Continha um vaso de espessa porcelana azul, e gargalo longo e largo. O persa retirou-lhe a tampa de jade, e Angélica debruçou-se. Viu um líquido escuro e irisado, que lhe pareceu de consistência oleosa, e cujo odor penetrante nada lembrava de conhecido. Agradável ou desagradável? Não saberia dizê-lo. Ergueu-se, entontecida e com súbita dor nas fontes.
Salmodiando algumas preces a meia voz, o persa inclinou o vaso, vertendo algumas gotas numa custódia de prata; mergulhou ali um dedo e pousou-o suavemente na testa de Angélica e depois na sua.
- É um remédio? - perguntou ela debilmente.
- E o sangue da terra - murmurou, velando o olhar extático com as longas pálpebras -, a promessa vinda das profundezas... a mensagem misteriosa dos espíritos que comandam o mundo... La Ma ha Ma la! Mohhamedu rossul u lei Existe um só Deus. Maomé é seu profeta e Ali é seu vizir.
- Ali vali ullah - responderam os serviçais, prostrando-se.
Quando levaram o venerável líquido, Angélica pediu licença para retirar-se. A decepção do embaixador foi visível. Ela teve que empregar inúmeras perífrases e metáforas poéticas para fazê-lo compreender que em França as mulheres de certa condição não podiam ser tratadas como vulgarés cortesãs. Não eram conquistadas senão por uma corte sutil e longamente platónica.
- Nossos poetas persas souberam cantar a bem-amada - volveu o príncipe. - Disse o grande Saadi em outros séculos: "Aquele que cativaste conhece uma felicidade sempre nova. Um paraíso constante resguarda-o de envelhecer. Desde que te vi, sei para onde volver minha prece: E para teu Oriente que se eleva meu fervor..."
"E assim que devemos falar... para conquistar as difíceis mulheres de França?... Chamá-la-ei Firuzé-Khanum... Sra. Turquesa... É a primeira entre as pedras preciosas, emblema da velha Pérsia dos medas. O azul é a cor mais amada em nosso país..."
Antes que ela pudesse esboçar um gesto de recusa, ele tirou do dedo um pesado anel, colocando-o em seu anular.
- ...Sra. Turquesa... eis a expressão de minha alegria, quando seus olhos se erguem para mim. Esta pedra tem o poder de mudar de cor quando aquele ou aquela que a carrega tem a consciência pesada ou falsidade no coração.
Fixava-a com um sorriso suave e um tanto trocista, que a fascinava. Ela quis recusar, mas só pôde dizer, baixando os olhos para a pedra incrustada em ouro que lhe ornava a mão:
- Barik Allah!
O Bei Bakhtiari ergueu-se em meio a um roçagar de sedas. Tinha movimentos ágeis e felinos, que deixavam adivinhar uma força incomum, resultado dos exercícios de cavalaria e dos cbmbates de djerid (maça).
- Seus progressos no persa... são muito rápidos... Há muitas mulheres assim tão belas e encantadoras na corte do rei de França?
- Como seixos numa praia - disse Angélica.
Agora tinha pressa em escapar-se dali.
- Deixá-la-ei partir - disse o príncipe -, pois tal é o singular costume desse estranho país que envia presentes para logo tomá-los de volta... Por que o rei de França me faz tantos ultrajes? O xá da Pérsia é poderoso: pode expulsar os religiosos dos vinte conventos lá instalados... Pode recusar-se a vender a seda. Seu rei acredita que poderá obter seda como a nossa? Nas terras estrangeiras só crescem amoreiras riscadas de vermelho. Ao passo que, na Pérsia, o bicho-da-seda se alimenta das amoreiras de riscas brancas, e produz a mais fina seda... Não seria igualmente precioso o tratado que queremos assinar? Diga-o a seu rei. E agora desejava consultar meu adivinho. Permaneça.
CAPITULO IV
Flipot roça a morte
No vestíbulo, onde se achavam o jesuíta e os dois gentis-homens franceses, ele a deixou.
Voltou acompanhado de duas novas personagens: um ancião de barba branca mal tingida num ruivo agressivo e grande turbante com vários signos do Zodíaco, e o outro, mais jovem, de barba muito negra e dono de enorme nariz. Este último tomou a palavra com desenvoltura em excelente francês:
- Sou Agobian, arménio de rito católico oriental, mercador, amigo e primeiro secretário de Sua Excelência, e este é o mollah e astrólogo Hadji Sefid.
Angélica deu um passo para'fazer uma reverência, mas deteve-se ao ver o astrólogo recuar repetindo entre murmúrios a palavra "nedjess" (impureza).
- Senhora, não se acerque muito de nosso venerável capelão de embaixada, pois é um tanto rigorista e não admite contato com nenhuma mulher. Ele deve vir conosco para ver se seu cavalo não tem hehhoucet, quer dizer, má estrela.
A austera personagem parecia ser pele e osso sob o cáftã de tela grosseira, apanhado por um cinto de metal. Trazia as unhas das mãos e dos pés longas e carminadas e calçava sandálias que pareciam talhadas em cartão. Não mostrou sentir o frio e a neve quando o grupo atravessou o jardim rumo aos estábulos.
- Qual o segredo para não se sentir frio? - perguntou a jovem, com humildade.
O ancião fechou os olhos e quedou-se mudo por um instante. Em seguida sua voz elevou-se, surpreendentemente jovem e melodiosa.
O arménio traduziu:
- Nosso padre diz que o segredo é simples: jejum e abstinência dos prazeres terrestres. Diz também que lhe responde, embora a senhora não seja senão uma mulher, porque não é portadora do mal. Nem seu cavalo é nefasto a Sua Excelência. O que é curioso, pois estamos num mês nefasto e portador do mal.
O velho homem contornava o cavalo, balançando a cabeça. Os assistentes silenciaram até que ele voltasse a falar:
- Ele diz que mesmo um mês muito nefasto pode tornar-se em dias melhores pela conjunção de preces sinceras e astros diversos. Que o sofrimento faz as preces mais agradáveis ao Todo-Poderoso. Diz que a dor não marcou seu semblante, mas sim sua alma como um sinete... de onde lhe veio a sabedoria que poucas mulheres possuem... Mas a senhora ainda não está no caminho da redenção, pois se apega às futilidades terrestres. Perdoa-lhe por não ser portadora do mal, e porque o cruzamento de seu caminho com o de seu mestre trará muitos benefícios...
Mal pronunciou essas agradáveis palavras, o mollah transfigurou-se. Franziu as espessas sobrancelhas tingidas de hena e seus olhos adquiriram um brilho fulgurante. A mesma expressão de surpresa e cólera refletiu-se no semblante dos persas presentes. O arménio exclamou:
- Ele diz que uma serpente esgueirou-se entre nós... e aproveitou-se da hospitalidade do príncipe para roubá-lo...
O dedo seco e nodoso, de unha vermelha, esticou-se energicamente para a frente:
- Flipot! - gritou Angélica, horrorizada.
Já dois soldados punham o pequeno lacaio de joelhos. Do casaco revirado, três pedras preciosas, uma esmeralda e dois rubis, caíram como gotas deslumbrantes na brancura da neve.
- Flipot! - repetiu Angélica, consternada.
O embaixador avançou vociferando, pousou a mão no punho de ouro que sobressaía no largo cinto e desembainhou um sabre curvo.
Angélica precipitou-se.
- Que vai fazer? Meu padre, intervenha, suplico-lhe. Sua Excelência não pode pretender cortar-lhe a cabeça...
- Em Ispahan, a coisa estaria feita - disse friamente o jesuíta. __ E eu arriscaria meu pescoço se interviesse. Deplorável incidente! Ultima das afrontas! Sua Excelência.jamais compreenderá não poder castigar esse ladrãozinho como manda o costume.
Empenhou-se em conter seu ilustre pupilo, enquanto Angélica debatia-se entre os janízaros que queriam afastá-la, e três guardas tentavam imobilizar Malbrant Golpe de Espada, que sacara sua arma.
- Sua Excelência transige em cortar-lhe os punhos e a língua - disse o arménio.
- Não cabe a Sua Excelência castigar meus servidores... Esse rapaz pertence-me. A mim compete decidir de sua punição.
O Bei Bakhtiari voltou-lhe o olhar fascinante e pareceu
acalmar-se.
- Sua Excelência-pecgunta que suplício lhe reservará.
- Ordenarei... que lhe dêem vinte e sete chicotadas e o encerrem vivo num jarro de gesso.
O príncipe parecia refletir. Teve uma exclamação gutural e, dando-lhes as costas, voltou para a casa com todo o seu séquito. Os guardas arrastaram Flipot, mudo de terror, expulsaram os franceses do jardim, e tendo-os colocado assim, porta afora, sem rodeios, fecharam os portões da propriedade.
- Onde estão os cavalos? - perguntou Angélica.
- Esses turcos do inferno ficaram com eles - resmoneou Malbrant Golpe de Espada -, e não creio que tencionem devolvê-los.
- Vamos ter que voltar a pé - disse um dos lacaios.
O cocheiro se lamentava:
- Um animal tão belo como Ceres! Que desgraça! A senhora marquesa não devia ter-se deixado enganar dessa forma por esses selvagens!
O dia ia mais adiantado do que Angélica acreditava. A noite chegava. Soprava o vento norte e uma leve neblina brotava de entre as moitas, velando o piscar das luzes distantes que para o leste anunciavam Paris. Ouviu-se um ruído de cascos pesados na estrada coberta de gelo e Mestre Savary surgiu, trazendo sua montaria pela brida.
Ao aproximar-se, começou a fungar como um cão de caça, enquanto o semblante se lhe iluminava.
- A múmia!... Ela lhe foi mostrada... Ah! Sinto-lhe o cheiro... sinto-lhe o cheiro...
- O que não espanta: minha roupa toda está impregnada desse mau cheiro. Não é fácil livrar-se do odor de sua múmia... Estou com terrível dor de cabeça. Pode gabar-se de arrastar-me a aventuras bem desagradáveis, Mestre Savary. Sabia que o embaixador achou perfeitamente normal apropriar-se de meus cinco cavalos? Quatro cavalos negros, mestiços de árabes, e minha montaria, uma égua puro-sangue que comprei por mil libras...
- Naturalmente! Tão belos animais! Sua Excelência não podia considerá-los senão como presentes.
- O seu não corria esse risco!
- Eh! Eh! Eu sabia o que fazia - escarneceu o velho boticário, dando um tapa amigável no flanco ossudo do velho rocim.
- E agora, como voltar a Versalhes? Nenhuma carruagem passa nesta estrada; e ademais não ousaria revelar a ninguém desdita tão estúpida quanto insultante.
- Proponho levá-la à garupa até Paris, hoje mesmo - disse Savary. - Quanto aos rapazes, a-duas léguas daqui encontrarão um albergue onde passar a noite; amanhã acharão um carro que os leve à cidade, e tomarão montarias em suas cavalariças.
- Simples, com efeito - disse Angélica, que começava a exasperar-se. - Imagina que tenho cavalariças cheias de cavalos que possa distribuir sem cuidado a todos os príncipes persas da terra...
Savary não se desconcertava e continuava a escarnecer como um velho duende brincalhão.
- Eh! Eh! Estou vendo uma pedrinha que bem vale cinco e até dez cavalos puros-sangues.
Angélica, contrariada, escondeu sob a capa a mão onde brilhava a turquesa milenar. Mestre Savary montou, divertido, enquanto os lacaios ajudavam a senhora a sentar-se atrás dele.
- Não importa o que diga, senhora - retomou o velho homem, enquanto o animal punha-se a trotar -, entendeu-se com o Bei Bakhtiari melhor do que reconhece.
- De modo algum! Não posso entender-me com uma personagem que julga normal brincar com a cabeça de seus semelhantes, e que, após receber-me amavelmente, põe-me para fora sem desculpa alguma...
- Questão de detalhe e de convenção, senhora. Os muçulmanos gozam a vida plenamente, mas ela não tem para eles o mesmo valor que para um cristão. Alá nos aguarda-no limiar da morte. Enviar um escravo para o outro mundo com uma sabrada não é fazer-lhe generosamente dom da liberdade e ofertar-lhe o paraíso ao mesmo tempo? Pois esse privilégio e concedido pelo Alcorão aos criados executados por seu príncipe. Estou certo de que o Bei Bakhtiari guarda a mais encantadora lembrança de sua visita. Mas, afinal de contas, a senhora não é senão uma mulher! - concluiu Mestre Savary com um desprezo oriental.
CAPÍTULO V
Novas ameaças de detenção - O húngaro Rakoczi propõe casamento a Angélica
Angélica, estafada, ainda dormia quando bateram à sua porta, às dez da manhã do dia seguinte.
- Senhora, estão à sua procura.
- Deixe-me! - gritou.
Voltou a dormir, mergulhando voluptuosamente num sono tão agitado como o trote do cavalo de Mestre Savary. Ao abrir os olhos, " deu com Javotte, que a sacudia com expressão alterada.
- Senhora, os dois oficiais insistem. Solicitam ser imediatamente recebidos.
- Esperarão... que acabe de dormir.
- Senhora - disse Javotte, com uma inflexão de voz -, tenho medo. Aqueles homens têm toda a aparência de quem veio detê-la.
- Deter-me? A mim?
- Puseram guardas nas saídas da mansão e ordenaram que se aprestasse sua carruagem.
Angélica levantou-se, esforçando-se por concertar as ideias. Que poderiam querer? Já se fora o tempo em que Filipe poderia pregar-lhe uma partida. E, ainda na véspera, o rei lhe ofertara um tamborete... Logo, não havia por que se afligir...
Vestindo-se às pressas, recebeu os oficiais dissimulando um bocejo. Javotte não se equivocara ao reconhecer a polícia do rei. Estenderam-lhe uma carta, a que rompeu o lacre com mão febril, malgrado seu. A mensagem solicitava que o destinatário acompanhasse seu portador. Era em verdade um mandado de prisão preventiva, que trazia o sinete do rei. A jovem caiu das nuvens. Imediatamente ocorreu-lhe estar sendo vítima de uma maquinação que usava o nome do rei para prejudicá-la. Perguntou, desconfiada:
- Quem lhes deu as ordens e a carta?
- Nossos superiores, senhora.;
- E que devo fazer?
- Seguir-nos, senhora.
Angélica voltou-se para os domésticos, que murmuravam com ansiedade à sua volta. Ordenou que Malbraht Golpe de Espada, o mordomo Roger e três outros criados selassem os cavalos para acompanhá-la. No caso de uma cilada, teria uma escolta para defendê-la.
O policial mais velho interpôs-se:
- Sinto, senhora, rríãs deve vir sozinha. Ordens do rei. O coração de Angélica bateu mais depressa.
- Estou sendo presa?
- Ignoro-o, senhora. O que posso dizer é que devo conduzi-la a Saint-Mandé.
A jovem subiu na carruagem, dando tratos à imaginação. Saint-Mandé?... Que havia mesmo em Saint-Mandé? Um convento onde talvez a enclausurassem sem apelação! E por que motivo? Jamais o saberia! Que. aconteceria a Florimond?
Saint-Mandé?... Não fora ali que o antigo superintendente das Finanças, o famoso Fouquet, construíra uma de suas casas de campo?...
Um suspiro de alívio escapou-lhe dos lábios. Ocorreu-lhe de repente que, com a prisão de Fouquet, o rei destinara seus bens a Colbert, que lhe sucedera. Era certamente Colbert quem se achava por trás dessa história. Estranha maneira de convidar uma jovem a sua casa de campo. Mesmo sendo ministro, dir-lhe-ia umas verdades.
Tornou, porém, a inquietar-se. Vira à "sua volta tantas prisões súbitas e inexplicáveis. Por vezes as pessoas voltavam algum tempo depois com um sorriso nos lábios. Tudo se arranjara. Mas, enquanto esperavam, seus bens eram embargados e seus papéis, remexidos. Angélica nada dispusera quanto à segurança de seu dinheiro.
"Que me sirva de lição", disse consigo. "Se escapar dessa, serei mais prudente e reservada em meus negócios."
A carruagem deixara as ruas barrentas de Paris e rodava mais rápido pela estrada coberta de gelo. Os carvalhos despojados de folhas indicavam a aproximação do bosque de Vincennes.
Por fim surgiu, à direita, a fachada da ex-residência de Fouquet, menos suntuosa que a de Vaux, mas cujo luxo "indecoroso" fora um dos motivos para a acusação do famoso financista, que agora apodrecia nos confins de uma fortaleza do Piemonte.
O pátio do castelo, malgrado o inverno e a geada, era um verdadeiro canteiro de obras. Havia escavações por todo lado, vigas e placas de gesso ao pé das paredes, algumas destas com enormes aberturas de onde brotavam canalizações em chumbo. Angélica teve que erguer as saias para saltar um feixe de canos que barrava a entrada. Um contramestre estendeu a mão para ajudá-la.
- Mas por que, diabos, o Sr. Colbert faz demolir sua casa? - perguntou-lhe.
- O Sr. Colbert conta retirar muitos milhares de libras das canalizações de chumbo - respondeu ele.
O oficial interpôs-se:
- Madame está incomunicável.
- Que se pode comunicar falando de chumbo? - protestou Angélica, recusando-se a levar a sério a aventura. Sentia-se tranquila, agora que poderia explicar-se com Colbert.
No interior, o trabalho de demolição prosseguia. Operários arrancavam do teto os motivos de estuque e alabastro executados pela equipe do grande artista Le Brun.
Aquele vandalismo revoltou Angélica, mas ela se absteve de dizê-lo. Havia outros pontos a atacar. Devia fazer por manter seu sangue-frio.
Muito calma, e em plena posse de si mesma, penetrou na ala do castelo onde o atual superintendente trabalhava, e que já havia passado pela raspadeira. "O luxo inusitado", que tanto reprovaram em Fouquet, parecia reduzir-se aos revestimentos em gesso dourado; com sua remoção, não restaram senão paredes de tijolos mal cozidos que em nada lembravam as construções de mármore de que tanto se acusara o antigo superintendente, metido para sempre na prisão.
No fim de um longo corredor, Angélica encontrou a fina flor de França comprimindo-se em rudimentares banquetas, num cenário de asilo para indigentes. Mas, se-Saint-Mandé era a antecâmara do ministro todo-poderoso, aqueles que tinham requisições a fazer não temiam esperar estoicamente em meio a correntes de ar.
Angélica avistou a Sra. de Choisy, a Sra. de Gamaches, a bela escocesa, dama de companhia da Duquesa Henriqueta, a Baronesa de Gordon-Huntley e o jovem La Vallière, que afetou não vê-la. O Príncipe de Conde, sentado ao lado do Sr. Solignac, reconheceu Angélica e quis ir ao seu encontro. O Sr. de Solignac reteve-o, cochichando-lhe qualquer coisa. O príncipe discutiu. Depois de longo conciliábulo, desprendeu a manga que Solignac segurava e avançou cortesmente, embora claudicante, pois a atmosfera não lhe era benéfica à saúde.
Mas os carcereiros sé interpuseram.
- A senhora está incomunicável, com perdão de Vossa Alteza.
E, para evitar um confronto com o poderoso Gondé, introduziram a jovem numa antecâmara menor, malgrado os murmúrios dos cortesãos, que viam tomar-se-lhes a vez.
Na outra peça não havia senão um peticionário, que ela jamais vira na corte. Era um estrangeiro. 01houo duas vezes, perguntando-se se não seria persa, pois tinha a tez queimada e os olhos puxados de um asiático. Mas vestia à europeia, tanto quanto o amplo e gasto casaco que o envolvia deixava adivinhar. No entanto, as botas de couro vermelho com borlas de ouro nas abas e o gorro de feltro debruado de pele branca de carneiro traíam-lhe a exótica origem. Notou que ele trazia uma espada.
Ele ergueu-se e saudou profundamente a recém-chegada, sem se importar com os dois beleguins. Num francês correto, mas que enrolava os erres, propôs-lhe que passasse à sua frente. Por nada no mundo desejaria que tão "encantadora" dama esperasse mais de alguns minutos em tão triste lugar. Ao falar, mostrava uma fileira de dentes deslumbrantes sob o fino bigode, muito negro, ligeiramente voltado para baixo nas comissuras dos lábios. Há muito que em França não se usavam bigodes tão grandes, à exceção dos homens da geração do Barão de Sancé. Em todo caso, Angélica jamais vira um tão inquietante como o do desconhecido, que lhe dava, quando se calava, um ar feroz e bárbaro. Estava fascinada por aquele bigode. A cada vez que o olhava, ele dedicava-lhe um sorriso cintilante e insistia em que passasse à sua frente. O policial mais velho acabou por dizer-lhe:
- A senhora está certamente grata, monseigneur, mas não esqueça que o rei o espera em Versalhes. Em seu lugar, solicitaria antes que a senhora tivesse um pouco mais de paciência...
O outro não pareceu escutá-lo e continuou a sorrir atrevidamente enquanto fitava Angélica, que começou a se sentir embaraçada.
Espantava-a menos a falta de educação do policial que a deferência que parecia testemunhar ao solicitante estrangeiro, o qual, fosse quem fosse, era homem bastante cortês.
Tentou aguçar o ouvido para saber se o interlocutor que se entretinha com o ministro ainda se demoraria.
Em consequência das demolições e reformas ordenadas pelo proprietário, a porta do gabinete de trabalho não se fechava bem. As vozes se aproximavam, anunciando o fim da visita.
- Não esqueça, Sr. de Gourville, que será o representante secreto do rei de França em Portugal, e que deve proceder como nobre que é - concluiu o Sr. Colbert.
"Gourville", pensou Angélica, "não era um dos cúmplices do superintendente condenado? Acreditava-o foragido, ou até condenado à morte por contumácia..."
Um gentil-homem com os olhos dissimulados por uma máscara surgiu no limiar da porta, acompanhado cordialmente pelo ministro, e passou com um cumprimento de cabeça.
O Sr. Colbert franziu o cenho. Hesitou um instante entre o húngaro e a jovem, mas o primeiro se encolhia. Sua expressão tornou-se então mais sombria e, fazendo sinal a Angélica para que entrasse, fechou a porta um tanto bruscamente aos dois policiais. Ele sentou-se, indicou uma poltrona à visitante e deixou pairar um pesado silêncio. Ao mirar-lhe as sobrancelhas severas e a expressão glacial, Angélica recordou que a Sra. de Sévigné chamava-o de "o Norte", e sorriu.
O Sr. Colbert teve um sobressalto, como se a inconsciência de Angélica o surpreendesse.
__ Senhora, pode dizer-me o motivo de sua visita ontem ao embaixador da Pérsia, Sua Excelência o Bei Bakhtiari? _ Quem o informou a respeito?
- O rei.
Ele pegou de sobre a secretária um papel dobrado, manuseando-o, aborrecido.
_ Recebi esta ordem do rei, nesta manhã, para que a convocasse e lhe pedisse explicações.
- Os espiões de Sua Majestade são expeditos.
- São pagos para isso - vociferou Colbert. - Então, que tem a dizer? Quem a levou a visitar o representante do xá da Pérsia?
- A curiosidade.
Colbert teve um novo sobressalto.
- Entendamo^nos bem, senhora. O caso é grave! As relações entre essa difícil personagem e a França chegaram a tal ponto que os que a visitarem podem considerar-se como fazendo o jogo do inimigo.
- Ridículo! O Bei Bakhtiari pareceu-me bastante desejoso de saudar o maior monarca do universo e admirar as belezas de Versalhes.
- Acreditava que estava a ponto de partir sem ter mesmo apresentado suas credenciais...
- Ele seria o primeiro a mostrar-se pesaroso. Bastaria um pouco de tato da parte daqueles rústicos que se colam a seus passos, Torcy, Saint-Amon e companhia...
- Senhora, está falando levianamente de diplomatas de carreira. Acaso pretende que não conhecem seu ofício?
- Não conhecem os persas, isso é certo. O Bei Bakhtiari deu-me a impressão de um homem... de boa vontade, no plano político, é claro.
- Então por que se recusa a se apresentar?
- Porque julga que o recebem mal, e que lhe fazem uma injustiça querendo levá-lo de carruagem, com guardas às portinholas.
- Mas é o cerimonial de praxe para a" recepção de todas as embaixadas no reino.
- Ele não quer assim.
- Que quer exatamente?
- Atravessar Paris a cavalo, sob uma nuvem de pétalas de ro
sas, com todos os parisienses prostrados.
E como o ministro permanecesse mudo:
- O que, em suma, depende de sua pessoa, Sr. Colbert.
- De mim? - surpreendeu-se -, mas nada entendo de etiqueta.
- Nem eu, tampouco. Mas sei o suficiente para reconhecer que não existe etiqueta que não possa ser dobrada em nome de uma aliança favorável ao reino.
- Conte-me tudo em detalhes - disse Colbert, enxugando o pescoço com gesto nervoso.
Angélica fez-lhe um breve relato da burlesca expedição, omitindo, no entanto, o assunto da múmia. Colbert ouvia com ar sombrio, sem sorrir, mesmo na passagem do suplício da roda, que Sua Excelência reclamara a título de demonstração.
- Falou-lhe nas cláusulas secretas do tratado?
- De modo algum. Apenas aludiu a que suas manufaturas jamais obterão seda como a da Pérsia... e falou também dos conventos católicos.
- Não falou de contrapartida militar do lado árabe ou moscovita?
Angélica sacudiu a cabeça numa negativa. O ministro mergulhou em profundas reflexões. Depois de respeitar sua meditação por um longo momento, Angélica retomou a palavra:
- Em suma - concluiu alegremente -, prestei um serviço ao senhor e ao rei.
- Não se precipite. A senhora se mostrou demasiado imprudente e desajeitada.
- Mas em quê, então? Não me alistei no exército, para estar impedida de visitar a quem me agrade sem a deliberação de meus superiores.
- E onde se engana, senhora, permita-me que lhe diga sem rodeios. Acredita poder avançar livremente; porém, quanto mais elevada for sua posição, mais prudência minuciosa se faz necessária. O mundo dos grandes é cheio de armadilhas. Por pouco não foi presa...
- Não o estou, então?
- Não. Assumo a responsabilidade de não detê-la até acertar este caso com Sua Majestade. Procure, no entanto, comparecer amanhã a Versalhes, pois creio que o rei desejará ouvi-la, após algumas verificações que se impõem. Ali estarei, também, e falarei do projeto que me ocorreu, e no qual a senhora seria de utilidade junto ao Bei Bakhtiari.
Reconduziu-a até a porta e disse aos policiais interrogativos:
- Podem partir. Missão terminada.
Tal foi o abalo de Angélica diante do desenlace feliz daquela visita forçada que se sentou na antecâmara, após a partida dos policiais, indiferente ao solicitante que entrava em seguida ao estrangeiro.
Foi este último que, saindo da entrevista e vendo-a na banqueta, propôs-lhe com seu forte acento procurar um fiacre de aluguel. Ele próprio não contava com outro meio para retornar a Paris.
Angélica seguiu-o-maqúinalmente, a cabeça vazia. Só cobrou consciência diante de sua própria carruagem, cujo postilhão se adiantava.
- Perdoe-me, senhof. Sou eu,.ao contrário^ quem lhe pede o prazer de subir em minha carruagem e tornar comigo a Paris.
O estrangeiro julgou com um olhar as gualdrapas de cor cinza com sutache prateado e a libré dos domésticos, e teve um sorriso apiedado.
- Pobrezinha - disse. - Sabe que sou mais rico que você? Nada possuo, mas sou livre.
"É um original", pensou ela, enquanto o carro punha-se em movimento.
Refazia com inexprimível alívio o caminho que naquela manha percorrera na incerteza. Reconhecia agora que tivera medo. Sabia que muitos mal-entendidos não se resolviam tão facilmente. Recobrando-se da depressão passageira, esforçou-se por manter a conversação com um homem educado, e que se mostrara afável quando já a consideravam uma empestada.
- Posso perguntar seu nome, senhor? Não creio tê-lo visto na corte...
- Mas eu a vi, no outro dia, quando Sua Majestade fê-la sentar, e você avançou, tão bela e tão grave, de vestido negro, como uma censura viva entre aqueles belos pássaros.
- Uma censura?
- Talvez me exprima mal. Você surgiu tão diferente dos outros, que tive vontade de gritar: Não ela! Não ela! Tirem-na deste lugar.
- Felizmente você conteve seus gritos!
- É preciso - suspirou o estrangeiro. - A todo momento lembro a mim mesmo que estou em França. Os franceses não têm a espontaneidade de outros povos. Agem com a cabeça e não com o coração.
- De onde vem você?
- Sou o Príncipe Rakoczi, e meu país chama-se Hungria.
Angélica inclinou a cabeça com polidez. Disse consigo que perguntaria a Mestre Savary, que tanto viajara, onde se situava a Hungria. Ele devia-lhe isso após todos os aborrecimentos a que a arrastara por sua bendita múmia.
O príncipe contou que, embora de origem elevada, abandonara todos os bens para consagrar-se a seu povo, cuja miserável condição o comovera. Fomentara uma revolta para derrubar o rei da Hungria, o qual se refugiara junto ao imperador da Alemanha.
"Então é um país da Europa", pensou ela.
- Durante algum tempo a Hungria foi então uma república. Depois veio a repressão. Horrível! Fui denunciado por meus partidários, por um bocado de pão. Mas consegui fugir e refugiar-me em um convento. Atravessei as fronteiras, perseguido por todo lado, e vim para a França, onde achei boa acolhida.
- Alegro-me por você. Que lugar habita em França?
- Nenhum lugar. Sou um errante, como meus antepassados. Espero voltar à Hungria.
- Mas ali correrá risco de morte!
- Voltarei, no entanto, quando obtiver o concurso de seu rei para fomentar uma nova revolta. Tenho a alma de um revolucionário.
Angélica mirou-o com olhos arregalados. Era o primeiro revolucionário que via em carne e osso. Mais osso, talvez. A paixão da anarquia não lhe permitia engordar. Mas havia em seu olhar uma luz a um tempo mística e alegre que afastava as palavras apiedadas ou zombeteiras. Aquele revolucionário acuado parecia contente com sua sorte.
- Como pode esperar que nosso rei lhe ofereça dinheiro para ajudá-lo a derrubar outro rei? Ele tem, ao contrário, horror a tais desordens...
__ Em seu país, talvez. Mas, junto aos outros, um revolucionário é um peão, que tem sua utilidade de tempos em tempos. E tenho esperanças.
Angélica permanecia pensativa.
- Dizem, com efeito, que Richelieu sustentou Cromwell com dinheiro francês, sendo em verdade responsável pela decapitação do Rei Carlos I da Inglaterra, embora este fosse primo do rei de França.
O estrangeiro teve um sorriso distante.
- Não conheço a Inglaterra, mas sei que os ingleses voltaram a ser dominados por ramos reais hereditários. Nenhum sangue novo veio renovar o poder. Não é uma nação amadurecida para uma nova aventura. Tampouco a França está pronta. Mas nós, húngaros, que recebemos a herança de muitas raças livres, nós o estamos.
- Mas aqui tambénr somos livres - protestou Angélica.
O húngaro irrompeu num riso de tal modo histérico que o cocheiro retardou a marcha e se voltou, tornando em seguida a conduzir a atrelagem a trote, meneando a cabeça. A senhora marquesa era boa pessoa, mas frequentava indivíduos cada vez mais bizarros!
O estrangeiro recompôs-se.um pouco. Depois gritou:
- Chama ser livre chegar entre dois policiais até o ministro de um reino policial?
- Foi um mal-entendido - disse Angélica, contrariada. - Você mesmo viu que os policiais partiram sem mim.
- Sim. Mas, o que é pior, eles a seguem. Jamais poderá escapar-lhes. A menos que trabalhe com eles e para eles. O que quer dizer vender sua liberdade e sua alma. Se quer escapar a esse destino, deve partir.
A jovem começava a irritar-se com o inflamado discurso.
- Partir? Que ideia! Cheguei a uma situação bastante invejável, e asseguro-lhe de que me sinto muito bem assim.
- Com a cabeça que tem, não por m-uito tempo, creia-me.
- Minha cabeça? Que tem de particular?
- É a cabeça de um arcanjo vingador, incorruptível, que brande o gládio da justiça e rompe os vínculos viscosos dos comprometimentos. Seu olhar trespassa. Os seres sentem-se nus diante de você. Não haverá fundo de prisão que apague essa luz. Acautele-se!
- Há verdade no que diz - reconheceu Angélica, meneando a cabeça com um sorriso melancólico. - Sei que sou bastante intransigente. Mas não tema por mim. Paguei caro os erros da juventude para não aprender a ser prudente.
- Escrava, quer dizer.
- Seus termos são exagerados! Se faz caso de minha opinião, dir-lhe-ei que não há regime perfeito sobre a terra e que a condição dos miseráveis não é invejável em nenhum país. Você é uma espécie de apóstolo. E os apóstolos sempre acabam na cruz. E muito pouco para mim!
- Um apóstolo deve ser celibatário, ou renunciar à família ao menos. Eu, ao contrário, gostaria de fundar uma, porém em liberdade. E penso nisso desde que a vi. Seja minha mulher e fujamos juntos!...
Angélica saiu-se como o fazem as mulheres em situações espinhosas: rindo e mudando de assunto.
- Oh! Veja aquelas pessoas que vêm à nossa frente. Que acontece?
Haviam entrado em Paris e, em uma das estreitas ruas do Quar-tier Saint-Paul, um brilhante cortejo obrigou a carruagem a se deter. Um grupo andrajoso de pobres-diabos, recrutados sem dúvida por uma ninharia, escoltava uma divisão da ronda que acabava de fazer alto na pracinha. Instalaram no centro uma espécie de patíbulo onde se balançava um manequim de palha, trazendo ao peito um grande cartaz branco. Um sargento da ronda, o comissário de bairro e um auxiliar representavam o lado oficial da cerimónia. Quando o manequim chegou ao alto da forca, ouviu-se um rufar de tambores prolongado. A multidão uivava:
- A fogueira com os prevaricadores!
- Morte aos exploradores do povo!
- Imagens revolucionárias - murmurou o húngaro com olhos brilhantes.
- É onde você se engana, meu caro - disse Angélica, satisfeita por contestá-lo. - Essas pessoas aplaudem precisamente um ato de justiça do rei. Trata-se de uma "execução em efígie", aplicada a condenados à morte que conseguiram evadir-se para o estrangeiro.
Pôs a cabeça para fora, informando-se sobre quem enforcavam na imagem do boneco de palha. Um bravo burguês, bastante satisfeito, disse-lhe tratar-se do Conde Hérauld de Gourville, recebedor de talha da Guiana, convicto de peculato e desvio dos fundos do Estado, antigo cúmplice de Fouquet, cujo processo viera à luz. Era bom saber que aqueles que haviam abusado da ingenuidade dos contribuintes padeciam seu aborrecimento!...
A carruagem conseguiu abrir carúinho.e prosseguir viagem. Angélica permanecia pensativa, imitada por seu companheiro, a quem o espetáculo mergulhara em profunda meditação.
- Pobre infeliz - suspirou -, pobre vítima da tirania, obrigado a viver para sempre longe da pátria, onde não pode retornar sem risco de vida... Quantos proscritos vagam assim pelo mundo, expulsos do lugar em que nasceram pela férula de reis déspotas...
- Férula que, sem dúvida, devem ter merecido. Mas que não se comova tanto a sorte-do Sieur Gourville e a dureza do rei para com ele. Se lhe dissesse que esse condenado está bem, em França, e mesmo a serviço secreto do rei... Ou, numa palavra, que era ele o mascarado que vimos sair do gabinete do Sr. Golbert esta manhã.
Rakoczi, os olhos brilhantes, pegou-lhe o punho com mão nervosa.
- Está certa do que diz?
- Mais ou menos certa,
- Ai está por que seu rei pagar-me-á, a mim, um revolucionário, para combater um outro rei - disse, triunfante. - Por que tem duas faces. Atira como pasto à multidão estúpida a efígie dos culpados, e contrata em segredo seus serviços. Assina a paz com a Holanda e encoraja a Inglaterra a declarar-lhe guerra. Negocia com Portugal os ataques à Espanha, com quem tem aliança. E precisa de mim, Rakoczi, para enfraquecer o imperador da Alemanha. O que não o impede de sustentar esse mesmo imperador em São Gotardo, contra os turcos, nem o impede de reclamar o direito de capitação, assinado com esses mesmos turcos. É um rei muito poderoso, discreto e hábil. Ninguém o conhece. E fará de vocês todos marionetes sem alma.
Angélica puxou o manto sobre os ombros. As palavras do húngaro provocavam-lhe uma curiosa sensação de calor e frio. Irritada até a ponta das unhas, escutava-o; no entanto, fascinada.
- Ao ouvi-lo, não se sabe se o odeia ou admira.
- Odeio sua função. Admiro-o como homem. É mais rei que todos os que conheci. Mercê de Deus, não é o meu. Pois não nasceu quem o abaterá do trono.
- Você tem uma mentalidade curiosa. Fala como um basbaque da feira de Saint-Germain, sem outro objetivo que o de brincar de massacre com as cabeças dos reis.
Longe de irritar-se, o príncipe estrangeiro divertiu-se com aquela reflexão.
- Gosto da alegria dos franceses. Surpreende-me a alegria dos que vejo quando passeio em Paris. Não há artesão em sua barraca que não cante ou assobie um refrão enquanto trabalha. Disseram-me que é para olvidar o sofrimento. As cabeças que se vêem por trás dos vidros das carruagens são menos alegres. Por quê?... Os grandes do reino não têm o mesmo direito de cantar para olvidar seu sofrimento?...
A carruagem chegava à Mansão de Beautreillis. Angélica perguntava-se como despedir aquele homem sem melindrá-lo, quando ele saltou em terra e estendeu a mão para ajudá-la a descer.
- Eis sua mansão. Eu tinha um palácio.
- Não lhe sente a falta?
- Só começamos a gozar realmente a vida quando nos desprendemos dos bens deste mundo. Não esqueça o que lhe pedi, minha cara.
- Sobre o quê?
- Ser minha mulher.
- É um gracejo?
- Não. Você me toma por louco por não estar habituada a homens apaixonados e sinceros. A paixão de toda uma vida pode nascer num segundo. Por que não confessá-la, então, de imediato? Os franceses põem os sentimentos, como as mulheres, em coletes de ferro. Venha comigo. Eu a libertarei.
- De modo algum. Tenho meu colete em apreço - disse Angélica, rindo. - Adeus, meu caro. Você me faz dizer tolices.
CAPITULO VI
Os conselhos de Angélica são requisitados na corte - O rei convoca-a para uma consulta
Retornando a Versalhes pela manha, Angélica dirigiu-se aos aposentos da rainha para saber se ainda era seu o pequeno cargo adjunto à açafata.
Disseram-lhe que a rainha e suas damas de honra haviam descido ao vilarejo de Versalhes, em visita ao padre da paróquia. A rainha ia numa cadeirinha, as damas, a pé; não deviam, portanto, estar longe.
Angélica saiu ao seu encontro.
Quando atravessava os jardins do norte, uma saraivada de bolas de neve abateu-se sobre ela. Voltando-se para enfrentar o gracejador, novo projétil atingiu-a, fechando-lhe a boca. Ela vacilou, escorregou e desmoronou em meio a uma nuvem de saias e de poeira branca.
Péguilin de Lauzun, às gargalhadas, saiu de trás de um maciço.
Angélica estava furiosa.
- Pergunto-me até que idade você continuará com tais gracejos. Ajude-me a erguer-me.
- Não, senhora! - gritou Péguilin, que tombou sobre ela, rolou-a na neve, beijou-a, fez-lhe cócegas no nariz com seu regalo, até que ela pedisse clemência entre risos.
- Assim está melhor - disse, pondo-a em pé. - Você vinha de cenho fechado, o que não assenta em Versalhes, nem em sua encantadora carinha. Ria! Ria!...
- Péguilin, você esqueceu da desgraça que me atingiu há tão pouco tempo?
- Sim, esqueci - disse, despreocupado. - Devemos esquecer como nos esquecerão, quando formos prestar contas ao Criador. E você não viria à corte, se não quisesse esquecer. Basta de filosofia. Preciso que você me ajude, minha pequena.
Tomou-lhe o braço e conduziu-a pelo dédalo de teixos podados que o inverno transformara num gentil exército de pães de açúcar.
- O rei acaba de consentir em nosso casamento - disse com mistério.
- Que casamento?
- Ora! O da Srta. de Montpensier com este obscuro gentil-homem gascão chamado Péguilin de Lauzun. Mas você não está a par? Ela está apaixonada por mim. Por várias vezes suplicou ao rei permissão para despòsar-me. A rainha, Monsieur, Madame, bradaram, observando que tal união seria contrária à dignidade do trono. Que importa? O rei é justo e bom. Ele gosta de mim e não acredita dever impor o celibato à sua parenta, que, aos quarenta e três anos, não pode mais aspirar a um pretendente ilustre. Enfim, malgrado a grita desses velhacos, ele disse: SIM.
- É sério, Péguilin?
- Nada há mais sério!
- Isso me entristece.
- Sem razão. Bem valho o rei de Portugal, um gordo porco ulceroso, que disputou no passado a mão de Mademoiselle, ou o príncipe da Silésia, uma criança de fraldas que ela teve entre seus pretendentes.
- Não é por ela que me entristeço, mas por você.
Deteve-se para contemplar aquele rosto familiar, de onde a juventude não se apagaria tão cedo, e os olhos sempre vivos, malgrado as leves rugas das pálpebras.
- Que pena! - suspirou ela.
- Serei Duque de Montpensier - continuou Péguilin - e ainda terei um dote magnífico. Pelo contrato, Mademoiselle me abandona perto de vinte milhões. Sua Majestade escreve a todas as cortes, anunciando o casamento da prima. Creio estar sonhando, Angélica. Jamais aspirei a tanto em minhas ambições: o rei será meu primo! Não consigo acreditar. De onde meu medo. Você tem que me ajudar.
__ Não vejo em quê. Seus negócios estão bem encaminhados.
- Mas a fortuna é caprichosa. Enquanto não me unir à encantadora princesa, não dormirei tranquilo. Tenho muitos inimigos, a começar por toda a família real e os príncipes de sangue. O Sr. de Conde e seu filho, o Duque d'Énghien, estão furiosos comigo. Você podia com seu encanto acalmar ó príncfpe, junto a quem você goza de bastante crédito, e ao mesmo tempo tranquilizar o rei, que pode se deixar influenciar peios protestos dele. A Sra. de Montespan prometeu-me seu apoio, mas não conto muito com ela. Nesse género de política, penso que duas amantes valem mais que uma.
- Não sou amante do rei, Péguilin.
O gentil-homem pendeu a cabeça para um lado e para outro como um pássaro zombeteiro atento a um ritornelo.
- Talvez não! Mas talvez seja pior - cantarolou.
Saíram dos jardins e sevirífn diante dos gradis do pátio principal. Uma voz de homem chamou-os de uma carruagem que chegava:
- Ei! Ei!
- Vejo que você é bastante requisitada - disse Péguilin. - Não quero retê-la. Posso contar com sua ajuda?
- De modo algum. Minna intervenção ser-lhe-ia prejudicial.
- Não ma recuse. Você "ignora seu poder. Não quer admiti-lo, mas o faro de um velho cortesão não se engana. Afirmo-o mesmo: você tem pleno poder junto ao rei!
- Tolice, meu pobre amigo.
- Não está percebendo. Você é um espinho, cortante e delicioso, no coração do rei. É um sentimento que ele jamais conheceu e que o desconcerta. Você está tão próxima que ele não acredita desejá-la... Mas pensa atingi-la, e você foge... Seu alheamento precipita-o em tormentos indizíveis.
- Tormentos que têm por nome Sra. de Montespan...
- A Sra. de Montespan é um bocado escolhido, provisão segura, refeição sólida de carne e espírito, tudo o que é preciso para reconfortar os sentidos e a vaidade de um monarca. Ele precisa dela. Ele... Mas você... Você é a fonte no deserto, o sonho de quem nunca sonhou... A mulher mais simples que possa existir... A mais incompreensível... A mais próxima... A mais distante... A inatacável... A inesquecível - concluiu com ar lúgubre, mergulhando o punho no jabô de rendas.
- Você fala quase tão bem como o embaixador persa. Começo a compreender como arrastou a pobre Mademoiselle i xlo estranha aventura...
- Promete falar ao rei sobre mim?
- Se tiver oportunidade, defendê-lo-ei. Agora deixe-me ir, Pé-guilin. Devo ver a rainha.
- Ela precisa menos de você do que eu. Ademais, aí está alguém que deseja igualmente arrancá-la aos serviços de Sua Majestade.
O homem que os interpelara descera precipitadamente da carruagem e tentava alcançá-los.
- É o Sr. Colbert. O caso não é comigo - disse Péguilin. - Não sei lidar com dinheiro.
- Estou contente por encontrá-la - disse o ministro. - Entrevistar-me-ei com Sua Majestade, e em seguida a convocaremos.
- E se Sua Majestade não quiser mais saber de minha existência...
- Um gesto de mau humor... justificado, convenhamos. Mas o rei se renderá a meus argumentos. Venha, senhora.
O otimismo do Sr. Colbert mostrou-se, contudo, prematuro. A entrevista prolongou-se além do tempo normal de uma simples discussão.
Da banqueta do Salão da Paz, onde ele lhe pedira que o esperasse, Angélica viu chegar seu irmão Raimundo de Sancé, cuja silhueta alta e austera, numa sotaina negra, fendia a multidão matizada dos cortesãos.
Ela não tivera ocasião de encontrá-lo desde seu casamento com Filipe. Viria apresentar suas fraternais condolências? Ele o fez, comovido, mas ela logo compreendeu não ser aquele o objetivo da entrevista.
- Minha cara irmã, deve espantá-la ver-me à sua procura na corte, onde meu, ministério raramente me traz.
- Pensava, no entanto, que você tivesse sido confessor, ou algo semelhante, da rainha.
- O Padre José foi nomeado em meu lugar. Meus superiores preferiram colocar-me à testa de nossa casa de Melun.
- O que quer dizer...
- Que sou um superior, ou algo assim - disse, sorrindo -, das missões francesas de nossa ordem no estrangeiro, particularmente dos conventos no Oriente.
__ Ah! Ah! O Padre Ricardo...
__ Exatamente!
- O Bei Bakhtiari... Sua recusa em subir numa carruagem, as eafes do Sr. de Saint-Amon, a incompreensão do rei e os dramas morais e materiais que advirão...
- Sua vivacidade sempre causqir-me admiração, Angélica.
- Grata, meu caro Raimundo. Mas penso que seria particularmente limitada se não o tivesse compreendido.
- Então sejamos diretos! O Padre Ricardo, com quem estive há pouco, estima que só você pode arranjar as coisas.
- Sinto, Raimundo, mas o momento foi mal escolhido. Estou à beira da desgraça.
- O rei, no entanto, recebeu-a com muitas honras. Disseram-me que você obteve umutamboréte.
- É exato, mas que fazer? O humor dos poderosos é mutável - suspirou Angélica.
- É preciso trabalhar menos o humor do rei que o do embaixador. Desde que chegou à França, o Padre Ricardo não sabe a que santo recorrer. Cometeram a tolice de enviar Saint-Amon, diplomata, se querem assim, mas cuja religião reformada é infelizmente o oposto daquela dos orientais.-De onde o acúmulo de mal-entendidos que conduziram à situação presente, em que nem o rei nem o príncipe podem recuar sem perder prestígio. Mas sua visita de ontem trouxe uma trégua considerável. O embaixador mostrou-se curioso em conhecer Versalhes, falou do rei com respeito e pareceu compreender que os costumes franceses podem ser diferentes, sem esconder intenções humilhantes. O Reverendo Padre Ricardo atribui essa melhora à sua presença. "As mulheres têm por vezes sutilezas, um instinto, uma sabedoria, que nos homens, com nossa razão, não conseguimos alcançar", disse-me. Ele confessa que não pensou em elogiar as flores e porcelanas de Versalhes, para convencê-lo a apresentar suas credenciais. "Os orientais", disse-me ainda, "são sensíveis à"irifluência de, uma mulher inteligente, em alguns pontos mais próxima deles que nossos cérebros masculinos do Ocidente, didáticos e cartesianos." Em suma, quer que lhe peça para que prossiga em sua feliz intervenção.
- Você podia tornar a Suresnes num dia próximo, talvez com uma mensagem de conciliação do rei ou um convite... Ao que parece você não tratou Sua Excelência com timidez ou medo, ou com a curiosidade incómoda que demonstra a maior parte dos franceses que dele se acercam.
- E por que me conduziria tão tolamente? - perguntou Angélica.
Ela acariciou com o dedo a turquesa de reflexos celestes.
- Esse persa é um homem encantador... à parte sua pequena mania de querer cortar a cabeça de todo mundo. Mas você não pensou, Raimundo, que junto dele minha alma correria um risco maior que minha vida?
O jesuíta considerou sua irmã, divertido.
- Não se trata de comprometer sua virtude, mas de usar sua influência.
- Sutil nuança! Os vinte e seis conventos da Pérsia bem valem algumas olhadelas langorosas ao enviado do xainxá!
Nada mudou no semblante regular do Reverendo Padre de San-cé, nem seu sorriso, marcado por uma ponta de humor:
- Vejo que você nada tem a temer - disse ele -, pois não há muita coisa que lhe dê medo. E vejo também que você adquiriu uma arma que não conhecia: o cinismo.
- Vivo na corte, Raimundo.
- Você parece culpar-me. Onde, então, queria você viver, Angélica? Para que mundo se sente que foi criada? A província? O claustro?
Ele sorria, mas em seu olhar duro e brilhante ela viu a força de uma espada destinada a trespassar as almas.
- Tem razão, Raimundo. Cada qual com sua ocupação, como diria Mestre Savary. E então bastante importante o entendimento com os persas?
- Se o Bei Solimão fracassar, seremos imediatamente expulsos dos conventos fundados, não sem sacrifício, no século passado, sob o impulso de Richelieu. Temos casas até no Cáucaso, em Tiflis, Tatum, Baku etc....
- Fazem muitas conversões?
- Não é questão de conversão, mas de estar lá. Sem contar que as minorias católicas arménias e sírias precisam de nós.
Angélica abrira sobre os joelhos o leque que usava naquela ma-hã em que pequenas cenas exóticas, pintadas em seda, contornavam uma alegoria das cinco partes do mundo, emoldurada por uma oval de pérolas: um hindu com chapéu de plumas de avestruz, um negro montado num leão semelhando um dragão... O Sr. Colbert surgiu diante deles, interrompendo suas meditações.
__ Nada feito - disse, abatido. --- O rei está tão furioso com você que me admiro de ainda vê-la'na corte. Ele não quer ouvir falar de sua intervenção.
- Não o havia advertido?
Ela apresentou seu irmão, o Reverendo Padre de Sancé. O Sr. Colbert, embora não o confessasse, tinha certa desconfiança para com os membros da Companhia de Jesus. Seu espírito astuto via ali inteligências à sua altura, capazes de levar-lhe a melhor se se apresentasse a ocasião. Mas seu semblante iluminou-se ao compreender que o jesuíta ser-lhe-ia útil. -'
Posto ao corrente dos fatos, Raimundo não encarou a situação tragicamente.
- Penso discernir a causa principal da irritação do rei. Você se recusa a dizer o motivo de sua visita ao embaixador.
- Não o direi a ninguém.
- Não duvido. Conheço sua obstinação, cara Angélica. Se não o diz ao rei, por que esperar "maior indulgência para conosco? Achemos um motivo mais plausível para sua atitude inqualificável... Vejamos... Mas por que não apresentar as razões que lhe expus há pouco? Você irá a Suresnes, a meu pedido, para um contato com o Padre Ricardo, cuja delicada situação o impede de receber-me abertamente entre aqueles muçulmanos desconfiados. Que acha, Sr. Colbert?
- Penso que a explicação é hábil se for habilmente apresentada.
- O Reverendo Padre José é o confessor do rei. Irei agora até ele. Que acha, Angélica?
- Penso que esses jesuítas são realmente notáveis, como diria meu amigo, o policial Desgrez.
Deixaram-na a passo largo, e ela divertiu-se acompanhando com o olhar as silhuetas do atarracado homem de Estado e do religioso espigado, que se refletiam no soalho de madeira preciosa, ao longo da galeria.
O número de passantes havia subitamente diminuído.
Angélica deu-se conta de que morria de fome e de que a hora já ia avançada. A corte inteira se dirigira ao jantar do rei. Ela decidira fazer o mesmo, mas continuava a devanear, mirando seu leque.
- Procurava por você - disse junto dela uma voz feminina quase receosa.
Angélica surpreendeu-se ao ver a Grande Mademoiselle. Que estaria transformando assim o timbre autoritário da neta de Henrique IV?
"É verdade, seu casamento!", pensou apressando-se a fazer uma reverência. ..
Mademoiselle fê-la sentar-se junto de si e tomou-lhe as mãos com emoção.
- Já sabe da novidade, minha cara pequena?
- Quem não sabe e não se rejubila com ela? Que Vossa Alteza me permita desejar-lhe meus mais sinceros votos de felicidade!
- Não fiz boa escolha? Diga-me, haverá gentil-homem como ele, com tanto valor aliado a tanto génio? Não o acha encantador? Não o tem em grande amizade?
- Decerto que sim - disse Angélica, recordando o incidente em Fontainebleau.
Mas a memória de Mademoiselle era curta e sua fala não tinha segundas intenções.
- Se você soubesse da impaciência e do transe em que vivo desde que o rei deu seu consentimento!
- Mas por quê? Tranqúilize-se e rejubile-se sem inquietação. O rei não pode voltar atrás.
- Queria estar certa como você - suspirou a Srta. de Montpensier.
A cabeça altiva pendia-lhe com suavidade desconhecida. O colo era tão belo como nos tempos em que o pintor Van Ossel pintava-lhe o retrato para enviá-lo aos príncipes pretendentes da Europa. Tinha a mão graciosa e, nos olhos de um lindo azul, a luz ingénua e arrebatada de uma adolescente às voltas com seu primeiro amor.
Angélica sorriu-lhe.
- Vossa Alteza está plena de beleza!
- Verdade? Como você é boa em dizer-mo. Minha felicidade é tão grande que deve refletir-se em meu semblante. Mas temo que o rei não mantenha sua palavra até o contrato. Aquela néscia Maria Teresa, e meu primo D'Orléans e sua peste de mulher uniram-se para arruinar meus projetos. O dia inteiro eles bradam seus protestos. Se você me ama, podia tentar destruir seus argumentos junto
ao rei. __ Pobre de mim, Alteza, eu... -_ Você tem grande influência sobre o espírito do rei.
- Mas quem pode gabar-se de ttr grande influência sobre o espírito do rei? - gritou Angélica, cedendo à irritação... - Vossa Alteza o conhece! Devia saber que não obedece senão a seu próprio julgamento. Pode ouvir opiniões, mas quando toma uma decisão não o faz por influência de outros, como diz, e sim por crer ser aquela a decisão acertada. O rei jamais partilha sua opinião; nós partilhamos a opinião do rei.
- Então se recusa a interceder em meu favor? No entanto ajudei-a o melhor que pude, outrora, quando você se viu envolvida na história de seu primeiro; marido, acusado de feitiçaria.
Com que então Mademoiselle punha o táto de lado! E sua memória não era tão curta...
Angélica quase despedaçou o leque, à força de virá-lo nervosamente entre as mãos. Prometeu, por fim, com precipitação, que, se a ocasião se lhe apresentasse, buscaria conhecer os sentimentos do rei com relação ao caso. Em seguida pediu permissão para retirar-se, a fim de encomendar uma sopa e um pão, pois estava em jejum desde a véspera, sem ter mesmo tido tempo para um copo de vinho após a missa.
- Nem pensar! - disse a Grande Mademoiselle, tomando-a pelo braço. - O rei deve receber o doge de Génova e seu séquito na sala do trono. Em seguida haverá baile, loteria e fogos de artifício. O rei quer que todas as damas compareçam em sua honra. E você em particular. Senão arriscar-nos-emos a vê-lo tão furioso como ontem, quando você partiu para não sei onde.
CAPITULO VII
O amor estreita sua armadilha em torno de Angélica
Enquanto dormia, ela vivia um sonho que vinha se repetindo há algum tempo. Via-se estendida na relva de uma campina e sentia frio. Ao tentar cobrir-se com a vegetação, percebia, de repente, que estava nua. Punha-se então a esperar o sol, inquieta, espreitando as alvas nuvens que passavam preguiçosamente no céu muito azul. Sentia por fim a carícia de um raio de sol em sua pele e se aquietava. Uma impressão extraordinária de felicidade e bem-estar a possuía até dar-se conta de que a sensação de calor não vinha do raio de luz, mas de uma palma de mão em seu ombro. Então voltava de imediato a sentir frio repetindo para si mesma: "Naturalmente faz frio por ser inverno. Mas por que a relva permanece verde?" E continuava a debater-se entre o frio do inverno e a relva verde do verão, até que despertasse, tiritante, esfregando o ombro onde a sensação da palma quente e suave persistia.
Como sempre, ela acordou nessa noite batendo os dentes e puxou as cobertas, que em sua agitação lançara para fora da cama. Tinha tanto frio que hesitou em chamar uma das senhoritas de Gilandon, que dormiam na peça vizinha, para acender o fogo.
Os aposentos que ocupava em Versalhes compreendiam dois quartos e um pequeno quarto de banho, cujo lajedo de mosaico apresentava caimento para o escoamento de águas.
Angélica pensou em aquecer-se com um pedilúvio de flores de tomilho. Sobre um réchaud de carvão, a água da chaleira conservava-se morna. Ela afastou as cortinas da alcova e procurou com o pé as chinelas de cetim azul forradas de pluma de cisne. Crisântemo latiu.
- Pst!
Um pêndulo de timbre argentino engrenou seu carrilhão ao longe. Angélica sabia que não havia dormido por muito tempo. Mal dera a meia-noite! Era a hora fugitiva em que, quando não havia baile, nem medianoche ou espetáculos feéricos, o grande palácio de Versalhes silenciava para um breve repouso.
Ao inclinar-se, ainda à procura da chinela, Angélica descobriu, junto à alcova, como se traçado por um fino pincel de luz, o contorno retangular de uma pequena porta, que nunca notara antes. A luz bruxuleante de uma vela, por trás dela, vinha agora revelar-lhe. Alguém tateava procurando a lingúeta invisível da fechadura. Ouviu-se um leve clique e a faixa de luz alargou-se enquanto a sombra de um homem projéíava-se na tapeçaria da parede.
- Quem está aí? Quem é? - perguntou Angélica em voz alta.
- Sou Bontemps, primeiro criado de quarto do rei. Nada tema, senhora.
- Sim, eu o reconheci, Sr. Bontemps. Que deseja?
- Sua Majestade deseja vê-la.
- A esta hora?
- Sim, senhora.
Angélica envolveu-se no chambre sem uma palavra. Os aposentos PARA a Sra. du Plessis-Bellière eram luxuosos mas escondiam suas armadilhas.
- Pode aguardar um instante, Sr. Bontemps? Gostaria de vestir-me.
- Por favor, senhora. Tenha, no entanto, a bondade de não despertar suas criadas. Sua Majestade deseja que se observe a maior discrição e que esta porta oculta não seja conhecida senão de algumas pessoas de confiança.
- Terei cuidado.
Acendeu sua vela naquela que Bontemps trazia e passou para o gabinete vizinho.
Não há muita coisa no mundo que lhe dê medo", dissera-lhe Raimundo.
- Sr. Bontemps, ajude-me, por obséquio, a acolchetar meu vestido.
O criado do quarto de Luís XIV inclinou-se e pousou o castiçal em um consolo. Angélica tinha consideração por esse homem afável, de uma distinção sem servilismo e posição nem sempre invejável. Era ele o responsável pela casa do rei, e pelo alojamento e abastecimento da população da corte. Luís XIV, que não passava sem ele, deixava uma infinidade de detalhes a seu encargo. Antes de importuná-lo nos momentos difíceis, era Bontemps quem não hesitava em pagar de seu próprio bolso. O rei chegara a dever-lhe sete mil pistolas, avançadas para as mesas de jogo e as loterias.
Angélica debruçou-se sobre o espelho e deitou um pouco de carmim nas faces. Como seu manto estivesse no quarto vizinho, ocupado pelas donzelas de honor, ela deu de ombros, dizendo:
- Pouco importa. Estou pronta, Sr. Bontemps.
Não foi sem dificuldade que as pesadas saias passaram pela porta dissimulada. Após esta ter sido fechada em silêncio, Angélica achou-se num estreito corredor, que mal tinha a largura e a altura de um homem. Bontemps fê-la subir uma pequena escada em caracol e depois descer três degraus. A estreita passagem, longa como um túnel, prolongava-se, dando voltas, entrecortada por gabinetes e pequenos salões fechados, que ela adivinhava sumariamente mobiliados por uma cama, um tamborete ou uma secretária, destinados a, sabe-se lá, que hóspedes misteriosos ou a que encontros.
Revelava-se uma Versalhes insuspeitada, de espiões e criados, de entrevistas secretas, visitas incógnitas, tramitações inconfessáveis, encontros clandestinos. Uma Versalhes obscura, cavada na espessura das paredes e entrelaçando seu labirinto invisível ao redor das salas douradas e iluminadas pela luz do dia.
Após o último reduto, onde uma banqueta e uma pequena tapeçaria pareciam aguardar os visitantes de uma cidade subterrânea, uma porta se abriu para um espaço mais amplo. O teto elevou-se bruscamente, denunciando uma peça dos aposentos reais.
Olhando à sua volta, Angélica reconheceu o gabinete do rei.
As luzes de dois castiçais de seis braços refletiam-se na mesa de mármore negro e revelavam a presença do soberano, debruçado com aplicação sobre seu traba lho.
Três grandes lebréus, que dormitavam diante do fogo crepitante da lareira, soergueram-se com uma rosnadela e depois tornaram à postura anterior.
Bontemps atiçou o fogo, colocou-lhe uma acha, e, recuando, indiu-se como uma sombra na parede.
Luís XIV, uma pena entre os dedos, ergueu a cabeça. Angélica viu-o sorrir.
- Tome assento, senhora.
Ela sentou-se, expectante, em uma poltrona. O silêncio prolon-
gou-se por um longo momento. Nenhum ruído ali chegava, amortecido pelas pesadas cortinas azuis com flores-de-lis de ouro puxadas sobre as portas e janelas.
Por fim o rei ergueu-se e veio postar-se diante dela com os braços cruzados.
- Com que então ainda não deu o toque de atacar? Nem uma palavra? Um protesto? No entanto arrancaram-na de seu sono! Que é feito de sua cólera?"
- Sire, estou às ordens: de Vossa Majestade..
- Que esconderá essa súbita humildade? Que réplica fustigante como uma chicotada? Que tirada?
- Vossa Majestade faz o esboço de uma harpia, o que me deixa bastante envergonhada. E essa a opinião que faz de mim, sire?
O rei não respondeu diretamente.
- O Reverendo Padre Josélouvou-me seus méritos durante mais de uma hora. É homem de bom senso, espírito aberto e grande ciência, e de quem aprecio os conselhos. Não seria, pois, apropriado negar-lhe a absolvição quando os grandes espíritos da Igreja estendem sobre você a proteção de sua indulgência. Que lhe sugere o que acabo de dizer para provocar esse sorriso trocista?
- Não contava ser chamada a esta hora da noite para ouvir elogios aos méritos de seu austero confessor.
. O rei pôs-se a rir.
- Diabinha!
- Solimão Bakhtiari chama-me de Fuzul-Khanum.
- O que quer dizer...
- A mesma coisa. Aí está a prova de que"o rei de França e o embaixador do xá da Pérsia podem ter pontos de vista semelhantes. - E o que veremos. Ele estendeu as mãos para a frente com as palmas abertas.
- Bagatela, preste obediência a seu soberano.
Angélica pousou as mãos nas do rei com um sorriso.
- Protesto minha fidelidade ao rei de França, de quem sou devotado vassalo.
- Assim está bem. Agora venha por aqui.
Fazendo-a erguer-se, levou-a para o outro lado da mesa, onde se via um grande mapa desenrolado.
Entre á malha de latitudes e meridianos e o vôo dos Éolos soprando dos quatro pontos cardeais, estendia-se uma larga mancha azul, na qual inscreviam-se em letras desenhadas em branco e ouro quatro palavras prestigiosas: "Maré nostrum - Mater nostra", antiga qualificação ainda usada pelos geógrafos para o Mediterrâneo, berço das civilizações: "Nosso mar - nossa mãe".
O rei apontou alguns lugares.
- Aqui, a França... Ali, Malta. Aqui Cândia, último baluarte do cristianismo. Depois caímos em domínio turco. Aqui está, como vê, a Pérsia, o leão sobre o sol nascente entre a meia-lua da Turquia e o tigre da Ásia.
- Foi para falar-me da Pérsia que Vossa Majestade convocou-me em hora tão tardia?
- Desejaria que fosse para lhe falar de outra coisa?
Angélica, com os olhos no mapa, sacudiu a cabeça, recusando-se a encontrar-lhe o olhar.
- Não! Falemos, pois, da Pérsia. Que interesse tão distante país pode ter para o reino de França?
- Um interesse que não lhe é indiferente, minha cara: a seda. Sabia que ela representa três quartos de nossas importações?
- Eu ignorava. É muito, de fato. Para que precisamos de tanta seda em França?
O rei irrompeu em risadas.
- Para quê? E é uma mulher que o pergunta! Mas, minha cara, acredita que poderíamos passar sem nossos brocados e cetins, sem nossas meias de vinte e cinco libras, sem nossas fitas e casulas? Não, antes privar-nos de pão. Assim são os franceses. Seu grande negócio não são as especiarias, nem o óleo, nem o trigo, nem as quinquilharias, mas a moda.
- No tempo de meu pai, o Sr. de Richelieu procurou impor uma certa austeridade aos trajes...
- Você conhece o resultado: não conseguiu senão fazer subir o preço dos tecidos, tornando-os raros e clandestinos. Aí está o problema, para o qual seria importante um novo acordo comercial com o xá da Pérsia: os franceses precisam da seda, mas ela é muito cara, e o empreendimento, ruinoso.
Ele enumerou, preocupado:
- Pagamento aos persas... peagem aos turcos... peagem aos intermediários de Génova, Metz e Provença... E necessária outra solução.
- O Sr. Colbert não pensa substituir as pesadas importações pela fabricação local? Ele falou-me em transformar as manufatu-ras de Lyon.
- Projeto a longo prazo. Ainda não temos o segredo dos processos orientais para a fabricação de brocados e lamés. As amorei-/ ras que ordenei fossem plantadas no Midi levarão longos anos para se desenvolver.
- E não fornecerão seda igual à da Pérsia. São amoreiras de riscas negras, quando na Pérsia o bicho-da-seda alimenta-se de amoreiras de riscas brancas, que crescem nos altos platôs.
- Quem a informou tão bem a respeito?
- Sua Excelência, o Bei Bakhtiari.
- Falou-lhe do comércio de sedas? Suspeita então ser essa a parte mais importante de nosso encontro? Pareceu-lhe a par de nossas dificuldades?
- O Bei Solimão é um fino letrado, poeta, e refinado... a seu modo; possui os ouvidos do rei da Pérsia para os talentos de corte, mas tem igualmente outras qualidades, menos apreciadas naquele país, porém mais perigosas para nós: é excelente homem de negócios, qualidade bastante rara em um príncipe de sua linhagem, pois que os grandes senhores persas relegaram toda ativida-de comercial aos arménios e sírios.
O rei suspirou com ar resignado.
- Devo decididamente render-me às razões do Sr. Colbert e do Reverendo Padre José, você parece de fato ser a única pessoa capaz de desenredar esta difícil meada... de Seda.
Olharam-se rindo, como cúmplices num acordo que não necessitava ser expresso. Um brilho surgiu nos olhos do rei.
- Angélica... - disse com voz surda.
Depois, compondo-se, retomou em tom natural:
- Todos os que enviei até ele não me disseram senão tolices. Tanto Torcy como Saint-Amon apresentaram-no como um bárbaro grosseiro, incapaz de dobrar-se a nossos costumes, sem consideração para com o rei, de quem é hóspede. Mas meu instinto advertia-me de que ele é tal como você o descreve: fino e astuto, cruel e delicado.
- Estou convicta, sire, de que, se o tivesse encontrado em lugar de seus plenipotenciários, não teriam surgido dificuldades. Vossa Majestade possui o dom de penetrar com o olhar o íntimo de cada um.
- Pobre de mim! Certos passos são interditos aos reis. Mas es-
j tes devem saber empregar os variados talentos das pessoas de que
se servem. Talvez seja essa a tarefa mais importante e a maior qualidade dos príncipes. Caí em erro ao não atentar o suficiente para aqueles que enviei ao embaixador. Saint-Amon, com sua carreira de introdutor de embaixadas, parecia-me adequado. Não refleti sobre seus defeitos. É um huguenote, aborrecido e desconfiado corno os de sua religião, mais inclinado a impor a torto e a direito os princípios de sua consciência rígida que a servir com habilidade aos interesses de seu rei. Não é a primeira vez que reflito sobre essas pessoas da religião reformada. Mesmo os melhores escapam ao controle pela curiosa intransigência de seus preceitos. Cuidarei doravante para não mais tê-los em altos serviços.
Ele teve o gesto de quem traçasse com a pena uma intransponível barreira. O semblante, antes endurecido, reencontrava sua calma habitual.
- Você teve a bondade de voltar a tempo para ajudar-nos, minha cara.
- Não era o que Vossa Majestade dizia esta manhã...
- Eu o reconheço. Seria próprio de um espírito tacanho pretender jamais se enganar. Sei o que devo obter e o que devo evitar. Você é o meio mais seguro de alcançar esse objetivo, pois, se não nos entendermos com o embaixador do xá da Pérsia, podemos apostar alto como este expulsará nossos jesuítas e não nos dará sua seda. A sorte de uns e outros está em suas mãos.
Angélica mirou seus dedos, onde luzia a turquesa.
- O que devo fazer? Qual será meu papel?
- Penetrar no espírito desse príncipe, e informar-me como tratá-lo sem cometer erros. E, se for possível, descobrir as armadilhas que poderia preparar-nos essa tortuosa personagem.
- Em uma palavra, seduzi-lo. Devo tentar cortar-lhe os cabelos, como Dalila?
O rei sorriu. -
- Deixo-lhe a decisão sobre o que for necessário.
Angélica mordeu o lábio.
- A empresa não é fácil. Demandará muito,tempo. Pouco importa.
- Acreditava que todos tinham pressa em ver o embaixador apresentar suas credenciais.
- Todos... menos eu. A princípio senti-me contrariado quando informaram-me das reticências do Bei Solimão. Mas deixei que as coisas caminhassem e agora, ao contrário, desejo retardar a entrevista. Quero receber antes a embaixada moscovita, que está a caminho. Falarei mais livremente com o persa depois. Pois, se os moscovitas estiverem de acordo, será necessário descobrir um novo itinerário para a seda por via terrestre, ao abrigo da rapinagem turca, genovesa e tutti quanti.
- As mercadorias não mais nos chegariam por mar?
- Não. Fariam a antiga rota tártara doscomerciantes de Samar-canda até a Europa. Veja! Cá está o caminho da seda que quero refazer, pelas estepes da Transcaucásia, Ucrânia, Bessarábia e Hungria. Depois vêm os territórios de meu primo, o rei da Baviera. Assim, o périplo está completo. E, feitas as contas, custará menos que as pilhagens dos bárbaros e as peagens ruinosas que devemos pagar por via marítima.
Ao inclinarem-se com um mesmo movimento sobre o mapa de prestigiosas evocações, suas cabeças aproximaram-se e Angélica sentiu os cabelos do rei roçarem-lhe a face.
Ela ergueu-se bruscamente, perturbada. Uma sensação de frio acometeu-a. Contornou a mesa para sentar-se diante do rei e notou que, durante a conversa, o fogo se apagará. Isso fê-la tiritar. Afligia-se por estar sem seu manto, mas devia aguardar que o rei a dispensasse.
O rei, no entanto, não parecia disposto a fazê-lo e continuava expondo os projetos de Colbert para as manufaturas de Lyon e Marselha. Por fim, interrompeu-se:
- Você não mais me escuta. Que tem?
Angélica apertava os cotovelos, transida, e hesitava em responder. O rei era de compleição extraordinariamente robusta. Ignorava o frio, o calor, a fadiga e não admitia tais fraquezas naqueles que tinham a honra de privar de sua companhia. Queixar-se provocava seu mau humor e arrastava, por vezes, à desgraça. A velha Sra. De Chaulnes, que se lamentara em voz alta do vento glacial durante uma revista na praça de armas, o rei pedira "que fosse curar o reumatismo em seu castelo".
- Que aconteceu? - insistiu o rei. - Você parece abandonar-se a meditações perigosas. Espero que não me faça a afronta de recusar a missão que acabo de confiar-lhe.
- Não, sire, não. Se tal fosse minha intenção, não o teria escutado. Vossa Majestade acredita-me capaz-de deslealdade?
- Acredito-a capaz de tudo - disse o rei com ar sombrio. - Não pensou então em me faltar?
- Certamente não.
- Então que acontece? Por que tomou, de súbito, esse ar assustado?
- Tenho frio.
O rei teve um gesto de espanto.
- Frio?
- O fogo apagou-se, sire. Estamos no meio do inverno e são duas horas da manhã.
No semblante de Luís XIV lia-se uma expressão de surpresa divertida.
- Com que então existem fragilidades sob sua força! Jamais ouço alguém se lamentar aqui.
- Ninguém ousa, sire. Temem em demasia desagradá-lo.
- Enquanto você...
- Eu o temo, também. Mas temo mais ainda cair doente. Como, então, poderia executar as ordens de Vossa Majestade?,
O rei dedicou-lhe um sorriso pensativo, e pela primeira vez ela teve a impressão de que aquele coração orgulhoso descobria um sentimento desconhecido: a ternura.
- Está bem - disse em tom resoluto. - Desejo continuar a entrevista, mas não a farei perecer.
Desacolchetou o gibão marrom de espesso veludo, retirou-o e colocou-o nos ombros da jovem.
Ela sentiu-se envolver pelos eflúvios de seu calor masculino, junto com o perfume de íris, leve e penetrante, que era do agrado do soberano e evocava o prestígio e o temor de sua presença. Experimentou um prazer quase sensual em trazer para o peito as bandas agaloadas de ouro da vestimenta, muito grande para ela. A mão que o rei pousara em seu ombro ali deixara a,mesma sensação ardente que experimentara no sonho.
Ela fechou os olhos, e depois abriu-os.
O rei, de joelhos diante da lareira, ali dispunha com simplicidade achas de lenha e atiçava o fogo dos carvões.
- Bontemps está-repousando um pouco - disse como desculpa por atitude tão incongruente -, e não quero nenhuma outra pessoa no sigilo de nossa entrevista.
Ele ergueu-se e limpou as mãos. Angélica mirava-o como a um estranho que surgisse naquele instante no recinto. Em mangas de camisa, com o longo colete bordado cujo corte ressaltava o busto vigoroso, ele lembrava um jovem burguês. Recordou-se de que ele conhecera muitas vicissitudes materiais, confinado à pobreza: as asperezas da vida no campo, mas também as dos êxodos nas estradas intransitáveis, os castelos miseráveis onde a corte em fuga se alojava, em meio a correntes de ar e sobre molhos de palha, nos idos de 1649. Fora então, talvez, que o pequeno rei de calções esburacados aprendera a acender o fogo para aquecer-se.
Angélica olhava-o de um modo diferente. Ele notou-o e sorriu.
- Por algumas horas durante a noite esqueçamos as regras de etiqueta. Elas são severas e rigorosas para com os reis, que devem, por assim dizer, uma satisfação pública de todas as suas atitudes e gestos a todo o universo... e diria mesmo a todos os séculos. É uma disciplina necessária a eles, aos que os rodeiam e aos que os contemplam, e que os impede de vacilar oú fugir à imagem que fazem deles. Mas a noite é igualmente um refúgio necessário, onde gosto de reencontrar, por vezes, meu próprio rosto - concluiu, levando as mãos às fontes.
"Será o rosto que mostra às suas amantes?", perguntou-se Angélica.
E pensou, num ímpeto, que a Sra. de Montespan não era digna dele.
- A noite posso voltar a ser um homem.... - continuou o rei. - Agrada-me bastante vir trabalhar na calma deste gabinete. E aqui meditar, bocejar e falar a meus cães, sem que tudo o que diga seja preciosamente recolhido.
Acariciou a fina cabeça do lebréu que se estendia para ele.
- A noite posso ver quem me agrada sem provocar imediatamente mexericos, uma revolução no palácio e mesmo rumores políticos... Sim, a noite é uma preciosa cúmplice dos reis!
Ele calou-se. Em pé diante dela, apoiava-se na mesa numa atitude de abandono, os pés semicruzados. As mãos permaneciam calmas, movimentavam-se pouco. E Angélica admirou-se de que aquele homem, que mal dormia e mantinha uma contínua encenação, trabalhando, mas também recebendo, dançando, caminhando, caçando, interessando-se pelos mais árduos problemas e atento aos mínimos detalhes, não demonstrasse o mínimo nervosismo.
- Gosto de seu olhar - disse o rei de repente. - Uma mulher que mira um homem desse modo insufla-lhe toda a coragem possível, todo o orgulho, e, se esse homem for rei, provoca-lhe a vontade de conquistar o universo.
Angélica pôs-se a rir.
- Seus povos não lhe pedem tanto, sire. Basta-lhes que os conserve em paz dentro de suas fronteiras, penso eu. A França não lhe pede as fadigas de Alexandre.
- É onde você se engana. Os impérios se conservam, assim como são conquistados, com vigor, vigilância e trabalho. Mas não acredite que as obrigações de que lhe falo me sejam penosas. O ofício de rei é nobre, grande e delicioso para aquele que se sente digno de ser bem-sucedido nas coisas em que se engaja. Certamente não é isento de pena, fadiga e inquietação. E a incerteza é o que mais causa desespero: torna necessário logo tomar o partido que pareça o melhor... Mas essa responsabilidade me convém perfeitamente...
"Ter os olhos abertos sobre a terra inteira... Receber a todo momento notícias de todas as províncias e nações, saber o segredo de todas as cortes e as fraquezas de todos os príncipes e ministros estrangeiros... Ser informado sobre uma infinidade de coisas que acreditam ignorarmos. Descobrir o que os súditos escondem com o maior cuidado. Descobrir os objetivos mais remotos de meus próprios cortesãos, seus mais obscuros'interesses, que vêm ter a mim por interesses contrários... Notar a cada dia o progresso de gloriosas empresas e a felicidade dos povos, arquitetada e forjada por nós... Não sei, em verdade, por que outro prazer deixaria este, se o acaso assim o permitisse. Mas paro por aqui, minha cara. Estou abusando de sua atenção e de sua paciência. E vejo chegar o momento em que me olhará face a face, dizendo: tenho sono!"
- Ouvia-o, no entanto, com paixão.
- Eu o sei. Perdoe-me a reflexão maldosa. E também esse o motivo por que gosto de têíla junto a mim. Porque você sabe ouvir à maravilha. Você me diz: quem não ouve o rei? Todos se calam quando ele fala. É verdade. Mas há muitos modos de ouvir e percebo, amiúde, em meus-interlocutores o servilismo, a solicitude estúpida em aprovar. Mas você escuta com o coração, com todas as faculdades de sua inteligência e com grande desejo de compreender. Isso me é preciso. E-me frequentemente difícil encontrar com quem falar, e existe, no entanto, grande utilidade em conversar. Quando falamos, a mente.completa seus próprios pensamentos, antes confusos, imperfeitos e apenas esboçados. A conversa excita-a e aquece-a, levando-a, insensivelmente, de objeto em objeto, bem mais longe do que o faria a meditação solitária, e descortina-lhe uma infinidade de expedientes, através dos argumentos que lhe opõe. Mas basta por ora. Não quero mais retê-la.
Bontemps, que numa banqueta atrás da porta secreta dormia o sono leve e desconfortável dos servidores, pôs-se imediatamente em pé. Angélica refez em sentido inverso o labirinto noturno e, antes de deixá-lo, devolveu ao criado o gibão do senhor.
A vela que deixara no quarto consumia-se projetando grandes sombras no teto. Àquela luz, Angélica descobriu uma máscara pálida contra a parede e duas mãos que sobre uma saia desfiavam um rosário. A mais velha das senhoritas de Gijandon velava piedosamente, aguardando o retorno de sua senhora.
- Que faz aqui? Não a havia chamado - disse Angélica, contrariada.
- O cão latia. Perguntei se a senhora precisava de alguma coisa e, como não respondeu, temi que estivesse doente.
- Poderia estar simplesmente dormindo. Você tem muita imaginação, Maria Ana. Que coisa aborrecida! Ser-me-á necessário recomendar-lhe discrição?
- É escusado pedir, senhora. Precisa de algo?
- Já que você está de pé, acenda o fogo e coloque cinco ou seis carvões no esquentador para aquecer a cama. Estou gelada.
"Assim não imaginará que estou vindo de uma outra cama", pensou, "mas o que, então, poderá imaginar? Contanto que não tenha reconhecido Bontemps enquanto ele segurava a porta..."
Não chegou o curto sono que esperava, encolhida entre os lençóis. Dali a somente três horas, a Sra. Hamelin, a "velha" de coifa de rendas, passaria pelos corredores de Versalhes e abriria as cortinas da alcova real. E o dia de Luís XIV começaria.
Angélica ainda ouvia-lhe a voz harmoniosa, um pouco lenta, expondo o fruto de seu pensamento a um tempo tão secreto e universal. Pensava que ele tinha algo de heróico, tal como os príncipes da Renascença italiana, pois era jovem, seguro, sedutor, amante da glória como eles e apaixonado pela beleza, o que não era uma exigência masculina muito em voga.
Seus beijos não a haviam aprisionado, como o fazia agora aquela voz em seus ouvidos.
CAPITULO VIII
Dificuldades da embaixada junto ao príncipe persa
O Bei Bakhtiari saltou para a.sela com agilidade. A égua Ceres, muito à vontade sob oslexóticos arreios de largos estribos, sequer olhou Angélica, que acabava defchegar á Suresnes.
Cavaleiros persas, com punhais junto ao peita e sabres à ilharga, avançaram pela aléia de árvores cinzentas, tendo nas mãos um longo bastão ou djerid pintado em cores vivas, e formaram um semicírculo ao redor do príncipe. Este tomou das mãos de seu pajem um outro djerid. Retesando-se nos estribos franjados de ouro, lançou um grito agudo e arrastou consigo os cavaleiros, que desapareceram a trote por trás da frondosidade do pequeno parque.
Angélica experimentou a humilhação de se ver plantada na escadaria de entrada, quando anunciara sua visita naquela manhã mesmo.
O arménio Agobian, que permanecera junto dela, disse-lhe:
- Eles voltarão. Formarão duas colunas paralelas e lhe apresentarão nosso djerid boz. É um combate praticado por nossos guerreiros desde os tempos mais longínquos. Sua Excelência ordenou a cerimónia em sua honra.
Os cavaleiros não haviam de fato se distanciado muito. Ouviu-se quando se detinham fora da aldeia e retomavam um trote precipitado que logo se transformou em galope desenfreado. Surgiram em duas alas, ululando e brandindo em círculos os pesados bastões. Alguns levavam a destreza ao ponto passar, em pleno galope, sob o ventre dos cavalos, tornando à sela sem nada deixar cair em terra.
- Chamamos esse volteio de "djiguite", e naturalmente um de nossos mais hábeis djiguites é Sua Excelência. Mas ele não segue sua fantasia para não enlouquecer seu novo cavalo, que se tornaria haram, viciado. Deve custar-lhe não poder mostrar-lhe toda a sua destreza, senhora - disse o arménio.
As duas fileiras de djiguites detiveram-se de chofre junto à escadaria, o que fez com que muitos cavalos derrapassem na neve derretida. Afastando-se da aléia, formaram sobre a relva duas alas de combatentes.
A um sinal de Bakhtiari, as duas alas investiram com ímpeto uma sobre a outra, girando o djerid. Misturaram-se, por fim, e cada qual, trazendo o bastão sob o braço, à guisa de lança, tentava desmontar ou desarmar o adversário.
Quando uma investida fracassava, os combatentes separavam-se, tomavam distância e precipitavam-se uns sobre os outros em novo combate singular.
Os cavaleiros apeados, ou que perdiam o djerid, deixavam a liça.
O embaixador permanecia na luta, malgrado a inferioridade de seu cavalo. Não se tratava de cortesia da parte de seus adversários. O Bei Bakhtiari vencia-os pela flexibilidade, vigor e destreza.
O djerid boz logo terminou. O senhor persa encaminhou-se para a visitante com um deslumbrante sorriso no rosto trigueiro.
- Sua Excelência observa que o djerid boz é o exercício predileto em nossa nação, desde os medas. Batiam-se assim, no tempo do Rei Dário, e é provável que o costume nos tenha chegado de Samarcanda, capital do Turquestão, onde florescia uma brilhante
civilização.
Em público, o Bei Bakhtiari continuava a desconhecer o francês e servia-se de seu intérprete. Angélica não quis ficar devendo a tanta erudição.
- Os cavaleiros da Idade Média francesa afrontavam-se em torneios semelhantes.
- Adquiriram o gosto nas cruzadas ao Oriente.
"Breve persuadir-me-ão de que lhes devemos nossa civilização", pensou Angélica. A reflexão pareceu-lhe em parte verdadeira. Era bastante ignorante, mas a leitura dos sermões ensinara-lhe não poucas coisas sobre a Antiguidade e a história das civilizações. Herdeiro do deslumbrante império assírio, o Bei Bakhtiari ainda não compreendera que fazia parte de um povo decadente. Agora Angélica sabia quais os assuntos que a polidez exigia. Devia falar de cavalos. Mais uma vez Sua Excelência louvpu os méritos de Ceres.
- Ele diz que jamais viu em sua;própria terra um cavalo a um tempo tão dócil e fogoso. O rei deírança honrou-o sobremaneira com o presente. Em nosso país, um cavalo -como esse poderia ser trocado por uma princesa de sangue real.
Angélica disse que a égua era proveniente, da Espanha.
- Aí está um país aonde gostaria de ir - disse o embaixador.
Mas nada lamentava, pois sua missão não somente o levara a conhecer o soberano mais poderoso do Ocidente como também as mais belas mulheres escolhidas na corte do grande monarca, o que não era senão de justiçai Angélica aproveitou aquela disposição favorável para pergímtar-lhe quando se apresentaria ao poderoso monarca.
O bei ficou pensativo. Disse, com um suspiro, que aquilo dependia em parte de seu astrólogo e em parte do grau de techrifat, de dignidade, que atribuiriam a sua embaixada.
Entraram na casa enquanto conversavam e penetraram no salão decorado à oriental. Assim que baixaram a tapeçaria que fechava a entrada, ele pôs-se a falar em francês.
- Não posso apresentar-me a um rei sem um cerimonial digno dele e do soberano do Oriente que me envia.
- Não é o que nosso... grão-vizir, o Marquês de Torcy, lhe propunha?
- De modo algum! - explodiu o persa. - Queria levar-me de carruagem entre guardas infiéis, como um prisioneiro. E, ademais, aquele rematado mentiroso lacaio de vizir pretendia que me apresentasse ao rei com a cabeça descoberta... Juntou a insolência à indignidade, pois temos que estar descalços e de cabeça coberta, como numa mesquita, diante de Deus.
- Conosco dá-se o inverso. Em nossas" igrejas devem-se descobrir as cabeças diante de Deus. Suponho que, se um francês chegasse ate seu rei com calçados, Vossa Excelência o faria tirá-los.
E verdade. Mas, se tiver escolta de honra insuficiente, ser-lhe-á fornecida uma... para.honrar o visitante... e para dignidade do xá. Seu rei é o soberano mais importante... Ele deve honrar-me com uma entrada triunfal, digna de seu reino, sem o que ver-me-ei obrigado a retornar sem cumprir minha missão. O tom era firme e pesaroso. Angélica ousou perguntar:
- Não se arrisca à desgraça por não cumprir sua missão?
- Arrisco minha cabeça... mas prefiro-o à desonra pública em seu país.
Ela compreendeu que a situação era mais grave do que se supunha.
- As coisas se arranjarão - disse.
- Não sei.
- É preciso. Senão ter-lhe-ei trazido a desgraça... o nehhoucet...
- Bravo! - aplaudiu o persa, divertido.
- E cometeria o crime de fazer mentir um santo homem, que garantia que eu não lhe seria prejudicial. Cortar-lhe a cabeça seria a prova de sua falta de intuição. Seria uma grande humilhação para ele. Meu raciocínio é falso, Excelência? Não sou senão uma mulher, e estrangeira.
- Creio que não se enganou - disse o bei, sombriamente -, e seu cérebro está mesmo acima de sua beleza. Se minha missão for bem-sucedida, saberei que presente pedir a seu rei...
Um tumulto de envolta com o som agudo de pífaros fez-se ouvir por trás da tapeçaria.
- São meus servidores, que vêm para o banho. Recomendam-se abluções depois do violento exercício do djerid boz.
Dois escravos negros entraram com uma grande bacia de cobre cheia de água fervente, seguidos por outros criados com toalhas, frascos de perfume e pastas odoríferas.
O Bei Bakhtiari seguiu-os até a peça vizinha, talvez a dos famosos banhos turcos que o Sieur Dionis fizera construir. Angélica daria uma olhadela de bom grado, mas sua curiosidade pareceu-Ihe escabrosa. Em certos momentos, os olhares do bei deixavam-na pouco à vontade, e, quanto mais penetrava em sua mentalidade oriental, mais seu papel de embaixadora parecia-lhe arriscado, comportando préstimos, para não dizer obrigações, que não estava de modo algum disposta a consentir.
Pensou vagamente em retirar-se. Faria com que lhe dissessem que os costumes franceses impediam-na de ficar mais de duas horas em conversa com um homem. A menos que o persa se enfurecesse, considerando sua partida uma nova afronta, o que evidentemente envenenaria ainda mais os negócios que devia estabelecer.
Diante do movimento que esboçou para levantar-se, o pajenzi-nho precipitou-se. Devia estar encarregado cíe distraí-la. Aproximou a pesada bandeja de guloseimas, correu à cata de outras almofadas, colocando-as sob suas costas e braços. Pegou um defu-mador cheio de carvões incandescentes, jogou-lhe uma pitada de pó e, de joelhos, apresentou-o para que ela aspirasse a fumaça azul e odorífera.
Decididamente, era preciso partir. Aquele quarto onde estagnavam perfumes densos e inusitados, o príncipe que retornaria com suas pupilas escuras, sua galanteria velada pelo humor, sua dignidade escondendo cóleras imprevistas tinham sedução em demasia.
O pajenzinho alvoroçbu-se. Destapou as taças de prata dourada e os frascos de porcelaiía azul, e com chilreios de passarinho encorajou a visitante a sefvir-sé. Em desespero de causa, levou-lhe aos lábios uma taça de prata com um licor verde e dourado. Ela bebeu e achou-o semelhante à angélica do Poitou. A variedade de geléias a divertia. Havia-as de todas as cores, alternadas com pirâmides de pastas transparentes verdes e rosa e nugas de pistácios. Angélica provava-as, recusando as que pareciam enjoativas, pedindo os sorvetes de frutas que se conservavam numa espécie de sorveteria. Quis fumar no narguilé, mas ao percebê-lo o pajenzinho opôs-se, revirando os olhos, aterrorizado. Depois dobrou-se em dois, irrompendo num riso agudo. Angélica imitou-o, achando delicioso poder refestelar-se em meio a tanta opulência.
Ainda ria até as lágrimas, lambendo os dedos com geléia de rosa, quando o Bei Bakhtiari apareceu na soleira.
Ele pareceu encantado.
- Você é adorável... Lembra-me uma de minhas favoritas. Ela e gulosa como uma gata.
Tomou um fruto de uma taça e atirou-o ao pajenzinho com uma ordem. A criança, sempre rindo, agarrou a recompensa no ar e com dois pulos ganhou a saída.
"Aquele reizinho mago me fez beber algo terrivelmente forte", disse Angélica consigo.
Não era embriaguez o que sentia, mas uma vaga calorosa como a felicidade e que a deixava com a sensibilidade à flor da pele.
Não lhe escapou a nova aparência de Bakhtiari. Vestia.apenas calças de cetim branco, ajustadas na barriga da perna, e que se alargavam em cima, seguras por um cinto salpicado de pedrarias.
O busto nu e liso, ungido de pastas perfumadas, mostrava uma anatomia perfeita e vigorosa como a de um felino. Não trazia turbante. Os cabelos negros, lustrosos de óleo, estavam puxados para trás e caíam até onde nasciam os ombros. Com gesto vivo, livrou-se das sandálias bordadas e estendeu-se nas almofadas.
Levando o cachimbo aos lábios com gesto indolente, fixou o olhar em Angélica.
Ela mostraria má vontade em não compreender que as discussões de protocolo estavam encerradas. Mas de que falar, então?
Morria de vontade de também estender-se nas almofadas. A rigidez do corpete impediu-a, e a bárbara armadura que lhe comprimia o talhe, obrigando-a a manter-se tesa, apareceu-lhe como o símbolo devuma educação prudente, e que permitia às pecadoras o benefício da reflexão. Por outro lado, parecia-lhe impossível partir sem explicação. E ela não tinha nenhuma vontade de fazê-lo. Nenhuma, realmente! Mas permaneceria sentada. Graças ao corpete. O corpete era uma bela invenção! Devia ter sido criado pela Companhia do Santo Sacramento. Angélica pôs-se a rir às gargalhadas, balançando-se para a frente e para trás, tanto a ideia lhe parecia divertida.
O persa estava visivelmente radiante com seu contentamento.
- Pensava em suas favoritas - disse Angélica. - Descreva-me suas roupas. Usam vestidos como no Ocidente?
- Em seus aposentos, ou com seu mestre e senhor, vestem um leve saruah bufante e uma túnica curta e sem mangas. Quando saem, envergam um tchardé negro e opaco com apenas uma malha de gaze para poder enxergar. Na intimidade não usam senão um xale leve como uma teia de aranha, feito da penugem das cabras do Beluchistão.
Angélica tornou a mergulhar o dedo na geléia de rosas.
- Que vida estranha! Que pensamentos terão essas mulheres enclausuradas? E a favorita... aquela que é gulosa como uma gata, que disse de sua partida?
- Nossas mulheres nada têm a dizer... nada... em relação a essas coisas. Mas a favorita nada pode dizer por outro motivo. Ela está morta...
- Oh! Que pena! - disse Angélica, pondo-se a cantarolar enquanto mordiscava um pedaço' de lukum.
- Morreu sob o chicote - disse o bei lentathente. - Tinha um amante entre os guardas do palácio."
- Oh! - exclamou ela.
Pousou delicadamente a guloseima e mirou o príncipe com olhos arregalados de terror.
- É assim que as coisas se passam? Conte-me. Que outros castigos infligem às suas mulheres infiéis?
- Atamo-las de costas com o amante, e as expomos na mais alta torre de vigia do palácio. Os lachehors, ou abutres, começam por comer-lhes os olhos, e isso é demorado. Já me aconteceu de ser mais clemente:'matei--duas com minha própria mão, atravessando-lhes a garganta com um punhal. Não tinham sido infiéis, mas furtavam-sé"" a mim por capricho.
- São afortunadas - disse Angélica sentenciosamente. - Você as livrou de sua presença e lhes deu o paraíso.
O Bei Bakhtiari estremeceu e pôs-se a rir.
- Pequena Firuzé... Pequena turquesa... Tudo o que vem de seus lábios é surpreendente e vivo como a flor das campainhas-brancas do deserto, ao pé do Cáucaso. Não me ensinará a difícil lição... de como amar as mulheres do Ocidente... Você disse que o homem deve falar bastante... Falar e cantar a bem-amada... Mas e depois? Quando vem a hora do silêncio? Quando chega a hora dos suspiros?...
- Quando for do agrado da mulher!
O persa deu um salto, o rosto crispado de cólera.
- É falso - disse rudemente. - Tal humilhação não pode ser infligida a um homem... Os franceses são valentes guerreiros...
- No combate do amor. devem inclinar-se.
- E falso - repetiu. - Quando uma mulher recebe seu senhor, deve imediatamente despir-se, perfumar-se e oferecer-se a ele.
Com um movimento ágil achou-se junto dela, e ela se viu estendida nas almofadas macias, que se amoldavam a seu corpo e a envolviam em penetrantes perfumes. Enquanto a segurava, o Bei Bakhtiari inclinava para ela seu sorriso cruel. Angélica pôs as mãos em seus ombros para repeli-lo, e o contato daquela pele dourada fê-la estremecer.
- Ainda não é chegada a hora - disse.
- Acautele-se. Por insolência bem menor uma mulher merece a morte.
- Não tem o direito de matar-me. Pertenço ao rei de França.
- O rei enviou-a para meu prazer.
- Não! Para honrá-lo e conhecê-lo melhor, pois confia em meu julgamento. Mas, se me matar, expulsá-lo-á ignominiosamente de seu reino.
- Queixar-me-ei de que você se conduziu como uma cortesã indócil.
- O rei não aceitará a desculpa.
- Enviou-a para mim.
- Não, estou lhe dizendo. Isso não depende dele.
- De quem, então?
Ela fixou em seus olhos seu olhar de esmeralda.
- De mim somente!
O príncipe afrouxou o abraço e considerou-a com ar perplexo.
Angélica pôs-se a rir, incapaz de erguer-se nas almofadas muito moles. Longe de ter a vista turva, tudo lhe parecia resplandecente como se a peça tivesse sido invadida pelo sol.
- Há um mundo entre o sim e o não de uma mulher... - murmurou. - O sim representa grande vitória, e aos homens de minha raça agrada lutar por ele.
- Compreendo - disse o príncipe após um momento de reflexão.
- Ajude-me, então, a erguer-me - disse-lhe, estendendo a mão com indolência.
Ele obedeceu. Parecia-lhe uma fera domada, cujo olhar brilhante não a deixava. Sua força a espreitava, pronta para o bote ao mínimo sinal de fraqueza.
- Que qualidades deve apresentar um homem para que uma mulher diga sim?
"Que seja belo e selvagem como você", quase lhe respondeu, dominada por sua presença. Quanto tempo aguentaria esse jogo perigoso? Calafrios regulares sacudiam-na, provocando-lhe arrepios febris. Mas não se tratava de mal-estar e sim de uma espécie de exasperação amorosa, que somente um abraço apaixonado, a um tempo selvagem e refinado, poderia acalmar. Sabia quanto eram desejáveis seu sorriso, seus lábios molhados e seus olhos um tanto vagos, e fruía o ver-se assim reclamada, enquanto se perguntava "por quanto tempo mamer-se-ia na corda bamba, e para que lado cairia, o do sim ou o do não.
O bei encheu uma pequena taça de prata e estendeu-lha. Angélica experimentou o frescor do metal em seus lábios e reconheceu o verde licor.
- E o segredo de cada mulher - disse - saber por que um homem lhe agrada. Um o faz por ser moreno. Outro, por ser louro.
Estendeu o braço, desenvolta, e deixou que o licor se escoasse num filete verde sobre õ magnífico tapete persa.
- Chaitum! - diss'e o príncipe, entre dentes. - Diabinha.
-...Um porque é suaye, è outro pode matar com o punhal num assomo de cólera... '
Conseguira, por fim, erguer-se. Asseverou a Sua Excelência que estava radiante com a visita, e trataria de fazer chegar ao rei o essencial de suas queixas, que lhe pareciam razoáveis e justificadas. O Bei Bakhtiari disse, com um lampejo de ameaça no fundo dos olhos, que em seu país selava-se a amizade com a permanência do convidado "por mais tempo quanto mais profunda fosse a amizade".
Angélica sacudiu a cabeça. Um anel de seus louros cabelos balançava-lhe na testa e seus olhos brilhavam como champanha. Sua Excelência tinha razão, mas, por esse mesmo preceito de obrigação e amizade para com seu próprio rei, ela devia voltar e ficar junto deste o maior tempo possível.
- "Schac"! - lançou com ar contrafeito. - "Mula"!
Vinda de fora, uma voz entoando salmos atravessou as espessas tapeçarias.
- Não está na hora de sua prece vespertina? - perguntou Angélica. - Por nada no mundo desejaria que"uma mulher estrangeira o fizesse faltar a seus deveres. Que diria o mellah?
- Chaitum! - repetiu o embaixador.
Angélica esticou as saias, retificou o toucado e apanhou o leque.
- Defenderei seu ponto de vista em Versalhes e tentarei aplainar as dificuldades de protocolo. Mas posso levar a promessa de que defenderá os vinte conventos católicos da Pérsia, Excelência?
- Já era meu intento incluí-la no tratado... Sua religião' e seus padres não se sentirão rebaixados por dever sua... salvação à intervenção de uma mulher?
- Vossa Excelência, em seu orgulho, veio ao mundo sem passar pelo ventre de uma mulher?
O persa não teve palavras e decidiu-se por rir, sem dissimular sua admiração.
- Você seria digna de ser sultana bachi.
- Que vem a ser isso?
- É o título que se dá àquela que nasceu para dominar os reis. Não há senão uma por serralho. Não é escolhida. Ela mesma se impõe por qualidades que acorrentam a alma e o corpo do príncipe. Ele nada faz sem consultá-la. Ela governa as outras mulheres e somente seu filho será o herdeiro.
Acompanhou-a até a tapeçaria que fechava a sala.
- A primeira qualidade de uma sultana bachi é desconhecer o medo. A segunda, que saiba o valor do que oferece.
Com gesto pronto tirou todos os anéis e encheu-lhe as mãos com eles.
- São para você... E a mais preciosa... Merece ser adornada como um ídolo.
Angélica ficou ofuscada pelos rubis, esmeraldas e diamantes engastados em fino ouro. Mas, também num gesto pronto, devolveu-os ao proprietário.
- Impossível!
- Junta nova afronta a todas as que me infligiu?
- Em meu país, quando uma mulher diz não, também diz não aos presentes.
O Bei Bakhtiari deu um longo suspiro, mas não tentou dissuadi-la. Sob o sorriso de Angélica, recolocou os anéis, um a um.
- Veja - disse-lhe ela, estendendo a mão -, conservo o que me deu em sinal de aliança. Sua cor não mudou.
- Sra. Turquesa, quando tornarei a vê-la?
- Em Versalhes, Excelência - respondeu alegremente.
Fora, tudo lhe pareceu horrível e morno. A estrada lamacenta, o céu carregado no horizonte, sobre a neve que caía. Fazia frio. Esquecera-se do inverno e de que se achava em França. E de que devia retornar a Versalhes para prestar contas de sua missão, pavonear-se, ouvir boatos sem fim, sentir fome, frio, dores nos pés e pernas, e perder dinheiro'no jogo.
Mordeu o lenço com violência, a ponto de romper em lágrimas.
- Sentia-me bem, há pouco, sobre-as almofadas. Sim. Quisera ter-me abandonado ao amor, sem constrangimento e sem pensar. Oh! Por que tenho uma cabeça? Por que não -ser como um animal, que nada pergunta?...
Odiava o rei. Durante toda a visita, não pudera evitar o sentimento de que o rei servia-sè dela como de uma aventureira, cujo corpo tinha um papel nos tratados diplomáticos. Richelieu, no século anterior, primara em servir-se de conspiradoras inteligentes, fogosas e belas, possuídas pelo demónio da intriga, e que adoravam movimentar-se, comprometer-se e... prostituir-se por importantes desígnios que muitas vezes ignoravam. A Sra. de Chevreuse, velha amiga de Ana d'Austria, que Angélica encontrara na corte, era o tipo sobrevivente. Sempre à espreita de uma atuação, os belos olhos de pálpebras agora enrugadas vigiando a formação de um complô, afetando ares misteriosos à menor notícia, inspirava na jovem corte insolente um misto de piedade e divertimento. Angélica viu-se no futuro, como uma participante da Fronda, envelhecida, trazendo um daqueles chapéus militares de feltro com plumas de avestruz tão em desuso.
Quase chorou de pena de si mesma. Aí estava o que o rei queria fazer dela. Agora que tinha "sua" Montespan, pouco lhe importava onde e para quem Angélica dispensasse seus favores. Devia "servir" à causa real! Era quanto bastava.
Com os nervos arrebentando, Angélica fez-se conduzir até Sa-vary, para pedir-lhe um medicamento que lhe permitisse dormir sem mergulhar nos sonhos voluptuosos de Xerazade.
O boticário, munido de um pequeno pincel, escrevia nomes em latim em grandes vasos de madeira, nos quais dispunha seus pós e ervas. Para iludir a impaciência repintara-os, todos, com cores vivas. Não pensava senão na "múmia". Ele precipitou-se, na louca esperança de que Angélica lhe tivesse trazido o precioso frasco.
- Espere ao menos que o embaixador a ofereça a Sua Majestade! E não lhe garanto que possa ter-lhe acesso depois...
- Poderá. A senhora pode tudo! E não esqueça do fausto na recepção! Fausto! E muitas flores.
- Estamos no inverno.
- Que importa? E preciso flores. Em particular gerânio e pe-túnias. São as flores preferidas dos persas.
Na carruagem, ela lembrou-se de que se esquecera de pedir-lhe um medicamento para os nervos. Também se esquecera de falar do tratado da seda ao Bei Bakhtiari. Decididamente, jamais seria uma boa embaixadora.
CAPITULO IX
"Sire, ela é digna de Vossa Majestade", diz Binet
- O rei disse NÃO --- cochichou-lhe alguém assim que pôs o pé na escada que levava aos aposentos reais. -
- A quê?
- Ao casamento de Péguilin com Mademoiselle. Está tudo desfeito. Ontem o Sr. Príncipe e seu filho, o Duque d'Enghien, vieram jogar-se aos pés de Sua Majestade, mostrando-lhe a desonra que, para eles, príncipes de sangue, significaria tão baixa aliança. Seriam a troça das cortes da Europa. E ele, que começava a fazer tremer o mundo, passaria por um monarca sem o senso de grandeza de família. Acredita-se que o rei partilhe essa opinião. Ele disse: Não. E comunicou-o esta manhã à Grande Mademoiselle, que desesperada refugiou-se em prantos no Palácio do Luxemburgo.
- Pobre Mademoiselle!
Na antecâmara da rainha, Angélica encontrou a Sra. de Mon-tespan, rodeada por suas damas e terminando de se aprestar. Luísa de La Vallière, de joelhos a seus pés, espetava alfinetes.
O vestido era de veludo encarnado, bordado de ouro e prata e com muitas pedrarias. Uma longa echarpe-branca, que se devia drapear para disfarçar-lhe as formas, preocupava a Sra. de Montespan.
- Não deste modo! Assim. Ajude-me, Luísa. Só você sabe lidar com essa seda. É tão escorregadia. Mas que maravilha, não é mesmo?
Angélica estava estupefata. Luísa de La Vallière, com a simplicidade de uma dama de companhia, acompanhava no alto espelho a correção de um laço ou de um drapeado.
- Creio que assim está bem... Bravo, Luísa, você achou o movimento exato. Ah! Não passaria sem você para os trajes de gala. O rei é terrivelmente exigente! Mas você tem mãos de fada. É verdade que se formou no serviço junto a mulheres de gosto, a Sra. de Lorraine e a Sra. d'Orléans. Que pensa, Sra. du Plessis, você que nos fita com esses olhos arregalados?
- Parece-me perfeito - disse Angélica entre dentes.
Ela tentau afastar com a ponta do pé um dos cãezinhos da rainha que se esganiçava desde que ela entrara.
- Seu traje negro lhe desagrada - disse Atenaís, virando-se diante
do espelho. - Pena que tenha que trazer o luto. Que pensa, Luísa?
La Vallière, novamente ajoelhada aos pés da rival, ergueu para Angélica os olhos azuis, baços no magro semblante.
- A Sra. du Plessis está ainda mais bela de negro - murmurou.
- Mais bela que eu de vermelho, talvez? Luísa de La Vallière permaneceu em silêncio.
- Responda! - gritou Atenaís, com o olhar carregado como o mar sob uma tempestade. - Este vermelho não vale nada, confesse-o!
- O azul assenta-lhe melhor.
- Não poderia dizê-lo antes, criatura néscia! Vamos, tire-o... Désoeillet, Papy, ajudem-me a sair dele; Catherine, traga rápido meu traje de cetim, aquele que uso com os diamantes.
A Sra. de Montespan emergia das saias, juntando gritos aos latidos do cão, quando o rei entrou, em trajes de corte, à exceçao do enorme manto de flores-de-lis que envergaria no último momento. Vinha dos aposentos da rainha e Bontemps o seguia. O rei franziu levemente o cenho.
- Ainda não está pronta, senhora? Apresse-se. O rei da Poló nia não tarda a chegar e devo tê-la a meu lado.
A Sra. de Montespan encarou-o com indignado espanto. O real amante não a acostumara a tais rudezas. Mas o rei estava melancólico. Atormentava-o a mágoa que infligira à prima, a Grande Madémoiselle, e as explicações veementes de que a favorita custava a achar o vestido adequado não o comoveram.
- É um detalhe que você de há muito devia ter acertado...
- Não me ocorria que Vossa Majestade não gostasse do vestido vermelho! Oh! É muita injustiça! -
Misturava os gritos aos do furioso cãozinho. O rei tentou dominar o barulho sem elevar muito; a voz: ' - Saia desse estado. A hora avança... Previno-a, em todo caso, de que amanhã partimos para Fontainebleau. Tome a tempo as medidas necessárias.
- E eu, sire - perguntou a Srta. de La Vallière -, também devo aprestar-me para a viagem a Fontainebleau?
Luís XIV lançou um olhar sombrio à silhueta macilenta da antiga amante.
- Não - disse rudemente -, é inútil.
- Que devo fazer então?"- gemeu.
- Permaneça em Veísalhes... Ou, então, vá a Saint-Germain. A Srta. de La Vallière rompeu em prantos sobre uma banqueta.
- Assim, sozinha, sem nenhuma companhia...
O rei agarrou o cãozinho, que o exasperava, e jogou-o em seus joelhos.
- Aí tem sua companhia. Isso lhe basta!
Ele passou diante de Angélica sem saudá-la. Depois, reconsiderando, perguntou-lhe secamente:
- Esteve em Suresnes, ontem?
- Não, sire - respondeu ela no mesmo tom.
- Aonde foi?
A feira de Saint-Germain.
- Fazer o quê?
- Comer filhoses.
O rei enrubesceu até a peruca. Submergiu na peça vizinha e Bontemps impediu discretamente que a porta batesse. A Sra. de Montespan saíra com suas damas por outra porta, em busca do vestido azul.
Angélica aproximou-se da Srta. de La Vallière, que soluçava baixinho.
- Por que permite que a atormentem? Por que aceita tantas humilhações? A Sra. de Montespan brinca com você de gato e rato, e sua docilidade exaspera-lhe os instintos cruéis.
- Você também me traiu - disse com voz sufocada.
Angélica respondeu com tristeza:
- Não lhe jurei fidelidade. E jamais me considerei sua amiga. Mas engana-se. Não a traí, e meu conselho é sem cálculo. Deixe a corte. Retire-se com dignidade. Por que aceitar a chacota dessa gente sem coração?
Uma chama pura transfigurou por instantes aquela fisionomia gasta.
- Minha falta foi pública, senhora. E Deus quer, sem dúvida, que a expiação também o seja.
- O Sr. Bossuet encontra em você uma boa penitente. Mas acredita mesmo que Deus exija tantos tormentos? Você consome nisso sua saúde,'seus nervos.
- O rei se opõe a que me retire para o claustro, como tantas vezes lhe pedi.
Lançou um olhar magoado para a porta que ele fechara há pouco tão violentamente.
- Talvez me ame ainda - disse em tom baixo. - Talvez volte um dia.
Angélica conteve-se para não dar de ombros.
Um pajem, que acabava de entrar, inclinou-se diante dela.
- Faça o obséquio de seguir-me, senhora. Sua Majestade a chama.
Não era comum uma mulher penetrar no gabinete das perucas, situado entre a câmara do rei e a Sala do Conselho.
Luís XIV escolhia uma peruca sob a égide de Sieur Binet e seus assistentes.
Em torno, cabeleiras repousavam em armários envidraçados, com formas que variavam segundo o rei fosse à missa, à caça, recebesse embaixadores ou passeasse no parque. De espaço em espaço, cabeças de estuque serviam aos arranjos e reformas.
Naquele dia Binet insistia em que o augusto cliente usasse a peruca "à la royale", cujo volume majestoso adequava-se mais a uma estátua do que a um ser vivo.
- Não - disse o rei. - Reservê-mo-la para as ocasiões importantes, como a recepção a esse difícil embaixador persa.
Lançou um olhar a Angélica, que fez uma reverência.
- Aproxime-se, senhora. Esteve ontem em Suresnes, não é fato?
Ele recobrara a urbanidade e os gestos cheios de uma unção de ator, natural nele. Mas isso não bastava para acalmar a irritação de Angélica.
Binet, com todo o aprumo de um fornecedor da corte, dirigiu-se ao fundo da peça com seus acólitos, para a difícil pesquisa da
peruca apropriada. '
- Apresente-me os motivos de sua insolência - disse o rei a meia voz. - Estou desconhecendo uma das mulheres mais suaves da corte.
- Estaria eu reconhecendo o rei mais cortês do mundo?
- Agrada-me ver seus olhos brilharem e seu narizinho fremir de cólera. Fui um pouco seco, é verdade.
- Foi... odioso. Não faltou, em verdade, senão a rainha para que assumisse o ar de um galo regendo o galinheiro.
- Senhora!... Está se dirigindo ao rei!
- Não. A um homerrrque brinca com ocoração das mulheres.
- Quais mulheres?
- A Srta. de La Valliere... A Sra. de Montespan... eu... enfim, todas.
- Jogo bem delicado, esse de que me acusa. Como conhecer o coração das mulheres? La Valliere o tem em demasia. A Sra. de Montespan não o tem... Você... Se tivesse ao menos a certeza de brincar com seu coração... Mas ele não foi atingido.
A cabeça baixa, vencida, Angélica esperava o gesto que a expulsaria para sempre.
- Cabeça teimosa, que não sabe curvar-se - disse o rei.
Ela ergueu os olhos para ele. A melancolia daquela voz a desconcertava.
- Nada vai bem, hoje - disse ele. - O desespero de Mademoiselle quando lhe comuniquei a decisão que fui obrigado a tomar, com relação a seu casamento, transtornou-me. Ela lhe tem em amizade, creio. Irá consolá-la.
- E o Sr. de Lauzun?
- Ainda ignoro a reação do pobre Péguilin. Suspeito que esteja mergulhado em terrível desespero. A decepção será cruel. Mas saberei compensá-la. Viu o Bei Bakhtiari?
- Sim, sire - respondeu Angélica, submissa.
- Como estão nossos negócios?
- Bem encaminhados, creio.
Nesse instante, a porta abriu-se com estrondo e Lauzun surgiu, os olhos exorbitados e a peruca de través.
- Sire - disse bruscamente, sem desculpar-se pelo inapropriado da aparição -, venho perguntar a Vossa Majestade como pude merecer que me desonrasse...
- Vamos, vamos, meu amigo, acalrríe-se - disse o rei com doçura. Sabia o quanto a cólera do favorito tinha de desculpável.
- Não, sire, não, não posso aceitar tanta humilhação...
Num gesto arrebatado, tirou a espada e apresentou-a ao rei.
- Tirou-me a honra, tome-me a vida... Tome-a... Não a quero mais... abomino-a!
- Componha-se, conde.
- Não, não, está acabado... Tome-a, estou lhe dizendo. Mate-me, sire, mate-me!
- Péguilin, sinto o quanto isso o desagrada, mas terá uma compensação: elevá-lo-ei tão alto que cessará de lamentar a união que tive que proibir.
- Não quero suas dádivas, sire... Nada devo aceitar de um príncipe que se desdiz.
- Sr. de Lauzun! - gritou o rei com voz cortante como a lâmina de uma espada.
Angélica, assustada, deu um pequeno grito. Lauzun, ouvindo-o, voltou para ela a sua raiva.
- Cá está, pequena imbecil, tão estúpida quanto incapaz! Onde se meteu ontem, descarada, quando lhe pedi que vigiasse os movimentos do Sr. Príncipe e de seu filho?
- Basta, conde - disse o rei em tom glacial, interpondo-se com dignidade. - Saia, agora. Perdoo sua exaltação, mas não desejo revê-lo na corte senão resignado e submisso.
- Submisso! Ah! Ah! - gargalhou Lauzun. - Submisso! Aí está sua expressão predileta, sire. Não precisa senão de escravos... Se por capricho lhes permita erguer um pouco a cabeça, devem estar prontos a abaixá-la e voltar à poeira quando esse capricho passar... Suplico a Vossa Majestade que consinta em meu afastamento. Amava servi-lo, mas jamais poderei rastejar...
Lauzun saiu sem a mínima saudação. O rei lançou um olhar frio a Angélica.
- Posso retirar-me, sire? - perguntou a jovem, constrangida.
Ele aquiesceu com a cabeça.
-...E não se esqueça, quando retornar a Paris, de consolar Mademoiselle.
- Eu o farei, sire. Í
O rei postou-se diante do alto psichê, emoldurado em bronze dourado.
- Se estivéssemos em agosto, Sr. Binet, diria que está havendo uma tempestade...
- De fato, sire.
- Infelizmente não estamos em agosto - suspirou o rei. - Fez sua escolha, Sr. Binet?,
.- Aqui está: uma peruca de grande nobreza, mas cujas duas filas de cachos ao longo da-linha mediana estendem-se na horizontal e não na vertical. Chamo-à "a embaixador'.'.
- Perfeito. Você tem' sempre senso de ocasião, Sr. Binet.
- A Sra. du Plessis-Beílière sempre o elogiou... Incline um pouco a cabeça, sire, para que coloque a peruca adequadamente.
- Estou recordando. Foi pela Sra. du Plessis que você entrou a meu serviço... Ela o havia recomendado. Conhece-o há muito tempo, creio.
- Sim, há muito tempo, sire. O rei mirava-se ao espelho.
- Que pensa dela?
- Sire, ela só é digna de Vossa Majestade.
- Não me compreendeu,,senhor. Falava da peruca. Eu também, sire - respondeu Binet, baixando os olhos.
CAPÍTULO X
Cortejos e embaixadas
No amplo salão, Angélica indagou em honra de quem os cortesãos estavam engalanados, mas eles o ignoravam.
- Aposto nos moscovitas - disse-lhe a Sra. de Choisy.
- .Não seria uma recepção ao rei da Polónia? O rei comentava- o há alguns instantes com a Sra. de Montespan - disse Angélica, contente por mostrar ter acesso às melhores fontes.
- Em todo caso, trata-se certamente de uma embaixada. O rei convocou todos os senhores estrangeiros. Veja aquele indivíduo de bigodes de bárbaro que nos olha fixamente. Gela-me o sangue, palavra!
Angélica volveu maquinalmente a cabeça na direção indicada e reconheceu o príncipe húngaro Rakoczi, que conhecera em Saint-Mandé. Ele imediatamente atravessou o vasto espaço do amplo corredor, para fazer-lhe uma reverência. Vestia-se nesse dia como um gentil-homem, com peruca e tacões vermelhos, mas substituíra a espada por um punhal de cabo cinzelado em ouro com pedras azuis.
- Cá está o Arcanjo - disse, radiante. - Poderia conceder-me alguns instantes, senhora?
"Tornará a pedir-me para ser sua mulher?", pensou ela. Não temendo, porém, que ele a raptasse em meio a tal multidão, acompanhou-o cortesmente até o vão de uma janela próxima, enquanto fitava as pedrinhas azuis do punhal, que lhe recordavam vagamente algo.
- São turquesas da Pérsia - explicou ele.
- Firuzé em persa.
- Choma pharzi harf mizanit? Fala o persa? Angélica esboçou um gesto de negação.
- Meus conhecimentos não chegam a tanto... Seu punhal é muito belo.
_ É tudo quanto me resta de minha passada riqueza - disse com certo orgulho, a um tempo constrangido e insolente. - Ele e meu cavalo Hospadar. Hospadar tem sido um fiel companheiro. Consegui atravessar as fronteiras com ele. Mas, desde que cheguei em França, tenho sido obrigado a deixájlo numa cavalariça qualquer de Versalhes, pois os parisienses não podem vê-lo sem perseguir-me com gracejos.
- E por que motivo?
- Saberá quando conhecer Hospadar.
- Mas que tem a dizer-me, príncipe?
- Nada. Queria apenas' contemplá-la por alguns instantes e tirar-lhe daquela multidão ruidosa, para tê-la só para mim.
- Sua ambição é grande, príncipe. Raramente agaleria de Versalhes tem estado tão lotada.
- Seu sorriso põe uma leve covinha em sua face. Você sorri facilmente, já o havia notado. Não há motivos para tal, no entanto. Que faz aqui hoje?
Angélica lançou-lhe um olhar perplexo. Os ditos sempre imprevistos do estrangeiro causavam-lhe inquietação. Malgrado seu francês excelente, ele ignorava, sem dúvida, as nuanças da língua.
- Mas... sou dama de honra da corte. Devo mostrar-me em Versalhes.
- É esse o seu papel? E bem vão!
- Tem seus encantos, senhor apóstolo. Que quer? As mulheres não possuem as qualidades necessárias para fomentar revoluções. Exibir-se e adornar a corte de um grande rei é mais adequado para elas. De minha parte, não conheço nada que mais distraia. A vida é tão diversa em Versalhes! Cada dia traz consigo um espe-taculo novo. Saberia, por exemplo, a quem esperamos hoje?
- Ignoro-o. Um dos Cem-Suíços convocou-me na cavalariça em que estou alojado com Hospadar, para que viesse hoje à corte. Contava ter uma entrevista com o rei.
- Ele já o recebeu?
- Diversas vezes. Seu rei não é um tirano. É um amigo importante. Fornecer-me-á os recursos para libertar minha pátria.
Angélica abanava-se, olhando em torno a multidão qtíe aumentava a cada instante. Ela trazia um vestido esmeralda, adequado para a ocasião. O pequeno Aliman - um mestiço que comprara como pajem - começava a suar em bicas enquanto carregava o manto com pesados bordados em fio de prata. Disse-lhe que o pousasse um momento. Errara em adquirir;uma criança tão nova. Teria que comprar uma outra com mais idade. Ou talvez da mesma idade para ajudar Aliman a carregar a cauda. Sim, era uma ideia. Nada seria mais divertido do que um menino todo negro e outro dourado, vestidos de cores diferentes ou semelhantes. Ela faria um sucesso louco!
Notando que Rakoczi prosseguira em seu discurso, ela emendou:
- Tudo isso está córreto, mas não me informa sobre quem fomos solicitados a honrar com nossa numerosa.companhia. Falaram na embaixada moscovita...
O húngaro transfigurou-se e seus olhos reduziram-se a dois traços negros e brilhantes de ódio.
- Os moscovitas, você disse? Jamais suportarei ver a apenas alguns passos de distância os invasores de minha pátria!
- Acreditei que você não tinha ódio senão ao imperador da Alemanha e aos turcos.
- Acaso você ignora que os ucranianos ocupam Budapeste, a capital?
Angélica humildemente confessou que o ignorava e que não tinha mesmo nenhuma ideia de quem eram os ucranianos.
- Não duvido que seja particularmente ignorante - disse ela com delicadeza -, mas apostaria de bom grado cem pistolas como a maior parte dos franceses ignoram-no tanto como eu...
Rakoczi balançou a cabeça com melancolia.
- Pobres dejiós! Como estão distantes de nossas angústias os grandes povos do Ocidente para os quais volvemos os olhos com esperança. Saber falar uma língua não suprime as barreiras entre os povos. Falo bem o francês, não é fato?
- Perfeitamente bem - aprovou ela.
- No entanto ninguém me ouve entre vocês.
- O rei o ouve, estou certa disso. Está a par de tudo o que concerne às nações do mundo.
- Mas ele as pesa na balança de suas ambições. Esperemos que não me tenha achado muito leve.
Deslocaram-se, em seguida, para a frente, pois um movimento na multidão anunciava a chegada de um visitante importante.
Precedida por dois oficiais em uniforme de gala, nos quais Angélica reconheceu o Conde Czerini, tenente do primeiro regimento estrangeiro Greder alemão, e o Marquês d'Arquien, capitão da guarda suíça de Monsieur, vinha a Princesa Henriqueta, esposa de Mon-sieur, ao braço de um sexagenário pançudo e coberto de enormes diamantes. Seguiam-se-lhes o irmão do rei, seu favorito, o Cavaleiro de Lorena, e o Marquês d'Effiat. Numerosos eclesiásticos, entre os quais o núncio do papa, compunham o séquito.
A aproximação do.cortçjo, o húngaro estendeu o braço direito para o alto, levando-o errr seguida à testa, concluindo a singular saudação com uma reverência.
A alta personagem que entrava déteve-se. O semblante bastante feio e inchado pareceu subitamente abatido e envelhecido. Mas os olhos azuis, esmaecidos como neve derretida, iluminaram-se no rosto cansado e ele disse em tom baixo e profundo:
- Com que então agora me saúda, príncipe?
- Sim, sire, pois não saúdo em sua pessoa o tirano, mas o homem que soube renunciar a tudo.
A fisionomia do ancião contristou-se e enrijeceu-se.
- É verdade. Renunciei aos homens e às suas querelas. Devia antes chamar-me de senhor abade.
- Que Vossa Eminência me desculpe.
- Também não sou cardeal, meu amigo, e você não compreende que tampouco você é príncipe aos olhos de Deus. Todos esses títulos são vãos, creia-me! - concluiu com uma majestade surpreendente na aparência bonachã. O cortejo retomou a caminhada, indo colocar-se no fundo da sala. O jovem húngaro voltou para Angélica o rosto torturado.
- Não é curioso o destino? Esse homem era meu pior inimigo. Ei-lo agora despojado de tudo, até de seus inimigos.
Ele prosseguiu com voz contida e surda:
- Não podem compreender-nos: são latinos. Nós, húngaros, descendemos em linha quase direta dos getas, mas tivemos quatro séculos de ocupação pelos hunos de Átila, cujos descendentes permaneceram em nossas férteis planícies. E essa mistura de amarelos errantes e getas primitivos formou nossa raça orgulhosa e caseira, cuja divisa é "Não há vida fora da Hungria".
- Ele era seu rei? - perguntou ela.
- Claro que não! - gritou o húngaro, quase com cólera. - Disse-lhe que era nosso pior inimigo. Não reconheceu Casimiro V, rei da Polónia?
- Um rei, esse senhor gordo e pançudo, com ares de religioso?
- Repito-lhe que é o próprio João, filho de Sigismundo III da Polónia.
- Mas ele fala um francês excelente.
- Fez os estudos num colégio de jesuítas franceses. Ele próprio é jesuíta e já foi cardeal. Quando teve que suceder ao irmão, La-dislau VII, obteve uma dispensa para desposar-lhe a viúva, uma francesa, Maria de Gonzaga. Mas, após a morte desta última, ele renunciou a tudo e acaba de abandonar o trono.
- Por que disse que é seu inimigo?
- Porque os poloneses não cessam de reivindicar a Hungria ofegante.
- Todo mundo briga por ela, se bem compreendi.
- É o termo exato, de fato - disse o príncipe, tristemente. - Nosso país tem uma terra muito rica. O delta de um grande rio, o Danúbio, cobre-a com um limo negro prodigiosamente fértil. A Alemanha e a Áustria, os turcos, os poloneses, os ucranianos, impelidos pelos moscovitas, reivindicam-na, querem ao menos uma parte dela. Expulsei os reis que se aliaram a nossos inimigos. Agora, desejo erguer-me e dizer a todos: "Para trás!"
Ele alteara a voz, e seus vizinhos imediatos olharam-no com um misto de pavor e divertimento.
Nesse momento, o camarista-mor, Sr. de Gesvres, surgiu na entrada do Grande Salão, anunciando:
- Senhores, o rei!
CAPÍTULO XI
O escândalo moscovita
Ouviu-se o choque surdidas alabardas contra o chão, seguido pelo passo firme e leritó do jovem. rei.
Quando ele surgiu, em meio ao silêncio, todos os^entis-homens tiraram o chapéu e inclinarám-se, enquanto as damas ajoelhavam-se numa reverência.
- Agradeço-lhes, senhoras, e a vocês também, senhores - disse Luís XIV -, por se reunirem em tão grande número a meu pedido. Poderemos assim melhor honrar o glorioso país da Polónia, a quem a França já deu rainhas, e cuja-história encontrou-se amiúde em conjunção com a de nosso rei no ano de 1037, quando seu Rei Casimiro I, o Renovador, veio terminar seus dias em França, como padre da Ordem de Cluny. Ilustre exemplo, hoje perpetuado por nosso primo muito amado, a quem estamos felizes por acolher, antes que entre para o serviço do único Senhor de todos. Sua presença juntará um brilho particular à cerimónia para a qual lhes convidei.
Após ter assim falado, o rei começou a avançar, tendo o Rei Casimiro à sua direita, e a rainha à esquerda. Em seguida vinham 0 Sr. e a Sra. d'Orléans, o príncipe, as damas de honra conduzidas Pela Sra. de Montespan, e por fim a corte inteira numa agradável desordem de procissão.
- Que surpresa nos reservará o rei? - perguntou a Sra. De Lu-dre por trás do leque.
- Mas não foi a visita de Casimiro V?
- Pois sim, minha cara! Um rei sem coroa, um cardeal que deixou o hábito? Ora! As surpresas de Sua Majestade são geralmente mais brilhantes e originais...
O Príncipe Rakoczi permanecia ao lado de Angélica.
- A presença do Rei Casimiro tranqúiliza-me quanto aos moscovitas - disse ele. - Seu rei não ignora que os ucranianos, durante longo tempo sob jugo polonês, traíram estes últimos, estando ambos atualmente em guerra. Ele não poderia colocá-los em presença uns dos outros...
- Os moscovitas parecem causar-lhe um grande medo.
- Medo?! - murmurou Rakoczi com uma convulsão. - Medo! Por tal insulto, senhora, mereceria ser amarrada à cauda de um cavalo selvagem e arrastada pelas estepes!
Depois de um momento de reflexão, acrescentou:
- Mas é verdade que, de todos os nossos inimigos, os moscovitas são os únicos que me inquietam e intrigam a um tempo. Pois que significado teria a entrada na liça dos citas de longas barbas, por tanto tempo relegados para além de seus pântanos gelados?
Agora o sabemos: as hordas cossacas estão em Budapeste. E temo que seu rei, tão fino político, tenha se equivocado em chamá-los
a Paris, a capital do mundo... Algo está mudando no equilíbrio das forças da velha Europa. Esse povo acaba de sacudir o jugo de
uma ocupação tártara de três séculos, posterior àquela que sofremos sob os mongóis; quem sabe se não aproveitaram a mesma sabedoria dos vencidos pacientes que assimilam a força de seus vencedores, despojam-nos dela e erguem-se, de súbito, como uma
raça nova e independente... Como nós também o fazemos...
Entrementes, o Sr. de Brienne, vindo em sentido-contrário, surgiu diante deles, ofegante.
- Príncipe, Sua Majestade insiste em que apareça na primeira fila.
- Eu lhe sigo, senhor - respondeu Rakoczi, envaidecido.
Angélica aproveitou para esgueirar-se atrás dele, colocando-se, assim, nas primeiras filas da assistência. O cortejo fizera alto no meio da grande galeria.
Foi então que, dos fundos da escadaria de mármore, irrompeu uma música estranha, marcada pelo som surdo de tamborins. De ambos os lados da escadaria, surgiram músicos com longas vestes em cores berrantes e gorros de pele. Alguns dedilhavam pequenas guitarras triangulares de três cordas e som estridente, e outros, uma espécie de bandolim redondo, de notas profundas e tristes. Os tamborins eram largos e chatos, adornados com pastilhas de prata, como os dos ciganos.
Um outro grupo surgiu, subindo lentamente, e um murmúrio de admiração e certo temor percorreu a assembleia. De admiração, pelos trajes extraordinários, pesados cáftãs de brocado e veludo lavrado, em que se entrelaçavam bordados em ouro e prata. De temor, da parte das damas, pelas barbas negras, louras e brancas, muito longas e cerradas, que, juntando-se aoí enormes gorros de pele e aos longos cabelos entrançados, davam àqueles homens magníficos um aspecto feroz. Ao centro, aquele que parecia conduzir a delegação trazia uma espécie de tiara entrelaçada de pérolas. O colarinho alto e rijo, que se abria em ponta sobre um lenço de seda em relevo, era igualmente bordado de pérolas; as bandas vermelhas e as abas do tasaco de cetim verde apresentavam duas fileiras paralelas de encjrmes cabochões de rubis e esmeraldas alternados. Sobre o peito, trazia uma esmeralda grande como uma carta de baralho, engastada em pérolas e suspensa a uma golilha de ouro, que sustentava outras esmeraldas de menor tamanho, mas igualmente belas.
As bainhas dos sabres que esses bárbaros traziam à cintura eram também guarnecidas com-enormes pedras preciosas, cosidas a pequenas rosáceas em fios de ouro e prata, entre duas fileiras de pérolas.
Os casacos não chegavam até o chão. Apanhados na cintura por echarpes de seda ou cetim, rígidos como urnas pelo peso das jóias e bordados, balançavam-se acima do solo deixando entreverem-se botas de macio couro vermelho ou negro, cuja extremidade erguia-se em ponta, à maneira mongol.
Atrás deles, serviçais dispostos em quatro filas traziam os presentes. Eram precisos três homens para carregar as pesadas peles de urso. Seis, para cada um dos enormes tapetes enrolados. Numa padiola de veludo, adivinhava-se o brilho das pedras preciosas.
Atrás do papa de casula, vinha um homem gordo e sem barba, com longos bigodes que lhe acentuavam o ar mongol. O crânio estava completamente raspado, à exceção de uma enorme mecha negra, que partia do alto e cuja ponta vinha enrolar-se ao redor da orelha esquerda.
Na orelha direita, ele trazia uma pesada argola de ouro. Vestia uma camisa de seda vermelha sobre calças turcas bufantes de seda negra, e calçava botas negras. O cinto de seda amarela dava pelo menos vinte voltas na cintura. Um sabre curto e curvo na bainha de ouro e um bracelete no braço esquerdo completavam-lhe o equipamento.
Quatro homens acompanhavam-no, vestidos de modo semelhante, mas trazendo cartucheiras com cartuchos fictícios de cabeça de prata lavrada sobre o traje de seda negra.
Todos os outros homens da delegação, alguns com semblante caracteristicamente mongol, vestiam longos cáftãs que os faziam assemelhar-se a chineses.
Angélica procurou no rosto do Príncipe Rakoczi a resposta à pergunta que lhe ocorreu. Ele estava como que petrificado.
- Os moscovitas! - disse, aniquilado.
Em seguida, agarrando-a pelo punho, a ponto de esmagá-lo, inclinou para ela o alto talhe.
- Sabe quem é o homem ao centro?... Dorochenko, o hetman da Ucrânia, aquele que primeiro entrou em Budapeste.
Ela sentiu-o fremir como um cavalo em transe.
- É uma afronta... que não pode ser apagada - disse, pálido.
- Príncipe, não faça escândalo, suplico-lhe. Não esqueça de que está na corte de França.
Ele não escutava. Fixava os que chegavam como se viessem ao longe, pelas estepes, e não sob o lambris dourados de Versalhes. Súbito, recuou, e desapareceu entre os gentis-homens franceses.
Angélica deu um suspiro de alívio. Temera que aquele tresloucado transtornasse o apaixonante espetáculo. Teria também lamentado que ele se comprometesse e atraísse a cólera do rei. Este último era bastante imprudente em introduzir na corte um revolucionário. Dessa gente era possível esperar tudo.
De três em três passos, a delegação moscovita inclinava-se em profundas saudações orientais. A humildade das genuflexões contrastava com o olhar orgulhoso. Angélica não pôde impedir-se de ver nesses flexíveis movimentos de espinha a força dissimulada e pronta para o bote das feras domadas. Sentia calafrios na nuca. Rakoczi comunicara-lhe sua estranha histeria. Temia algo que viria como uma tempestade, como um raio, destruindo o Palácio de Versalhes.
Mirou o rei e tranqúilizou-se ao vê-lo impassível, majestoso, como só ele sabia ser. A peruca à embaixador estava à altura dos gorros moscovitas.
O Sr. de Pomponne avançou. Tendo sido embaixador na Polónia, falava o russo e servia de intérprete. Após os cumprimentos de praxe, a delegação apresentou os presentes trazidos da longínqua Rússia.
Três peles de urso castanho, negro e amarelo, dos Urais, peles de castor em profusão e uma imensa coberta de astracã negro, feita com quinhentas peles de cordeiros recém-nascidos, escolhidos nos rebanhos à beira do mar Cáspio.
Trouxeram também curiosos lingotes de folha de estanho contendo chá verde e vermelho, pelos quais o imperador da China pagava impostos desde Ivan, o Terrível, até o Czar Aléxis. A rainha, encantada por mostrar um pouco de conhecimento, disse que já lhe haviam falado do chá, que curava mais de vinte doenças. Ela extasiou-se sobretudo- diante das pedras preciosas, entre as quais havia uma esmeralda grande como um pão de açúcar, e um berilo azul dos Urais com o cimo em pontas de seis faces que necessitava quatro homens para ser erguido.
Desenrolaram-se os tapetes de pêlo curto de Kukhara, e os de pêlo longo de Khiva, e as sedas tingidas de amarelo e vermelho-vivo, inalteráveis ao sol. Havia também a seda ultrafina do Tur-questão e pesadas coberta"s de seda em-quadrados coloridos.
Um dos membros da delegação, ajoelhando-se diante do monarca, ofereceu-lhe pessoalmente uma enorme pepita de ouro do lago Bai-kal, sobre uma almofada de cetim branco.
Todos emitiam exclamações, maravilhados. As damas, deslumbradas, cometiam a ousadia de tocar os tapetes e sedas, mas o berilo azul gigante era o grande favorito.
Enquanto isso os moscovitas, sabedores da paixão do grande rei do Ocidente pelos animais raros, informavam ter trazido um casal de cabras do Pamir, cujo pêlo servia para a confecção de xales semelhantes aos de cashmere das índias vizinhas.
O rei agradeceu calorosamente.
Também havia um tigre branco da Sibéria, de uma espécie raríssima, aguardando no "pátio de mármore" para saudar o novo senhor que lhe destinavam ao fim de uma viagem bastante desagradável para aquele senhor das estepes nevadas.
A notícia levou o entusiasmo ao auge. Os serviçais tiveram que liberar a passagem às pressas, dobrando os presentes, e toda a corte, seguindo o rei e o embaixador moscovita, dirigiu-se para-a escada.
Foi quando o incidente aconteceu. Um animal surpreendente, negro como se vomitado do inferno, um cavalinho com cabelos longos como os de uma mulher, de pêlos até os cascos, surgiu no cimo dos degraus. O gentil-homem que o cavalgava ergueu-se nos estribos e gritou algo numa língua estrangeira, repetindo em russo e em francês:
- Viva a liberdade!
Tinha o braço erguido. Seu punhal sibilou no ar e veio cravar-se no soalho, aos pés do hetman da Ucrânia.
Em seguida, o cavaleiro deu meia-volta à bizarra montaria e desceu a escada de mármore.
- A cavalo! Ele subiu e desceu a cavalo... Não é um cavalo... Mas, sim, claro. Chamam-no pónei... Incrível! Um cavalo a galope numa escada!...
Os franceses ali viam apenas uma proeza equestre extraordinária... Os moscovitas olhavam o punhal, impenetráveis. O rei dirigiu-se com voz grave ao Sr. de Pomponne. Seu palácio, dizia, estava aberto ao povo, pois o povo tem o direito de ver seus reis. Também acolhia em França os estrangeiros. No entanto, apesar dos cuidados da polícia, sua larga hospitalidade por vezes se pagava com um incidente desagradável como o que acabava de ocorrer: loucos, iluminados, de quemnão se podia adivinhar as estranhas ideias, lançavam-se em atitudes furiosas e inexplicáveis. Graças a Deus o incidente era sem gravidade. O homem seria perseguido e aprisionado. Encerrá-lo-iam em Bicêtre, se fosse louco, ou então o enforcariam! A coisa era sem importância!
Os moscovitas observaram em tom altivo que o homem gritara em húngaro, e perguntaram seu nome.
"Eles não o reconheceram, mercê de Deus!", pensou Angélica. Tremia, nervosa, a ponto de bater os dentes. As pessoas ao seu redor achavam a história divertida. Mas o punhal lá estava, e ninguém se movia. Por fim, uma coisinha rosa e verde, cintilante como um pássaro das ilhas, esvoaçou e o punhal desapareceu. Era Aliman que, a um sinal de Angélica, havia-o subtraído.
O cortejo retomou a marcha até o pátio, onde o tigre real rosnava, dando voltas na enorme jaula, sobre uma carroça puxada por quatro cavalos.
A visão do magnífico animal apagou as contrariedades, e ele foi conduzido com grande pompa à Ménagerie.
Situava-se depois da aléia real, na direção do bosquete do Dome, esse pavilhão octogonal que se abria sobre sete pátios em forma de leque, cada qual destinado a uma espécie diferente de animal. O tigre da Sibéria seria vizinho de im leão da Numídia, enviado pelo sultão do Marrocos, e de dois elefantes das índias. O Sr. de Pomponne serviu de intérprete entre os que tratavam dos animais e os criados siberianos de olhos rasgados, que se entenderam sobre a alimentação e os cuidados com o novo pensionista, o qual adentrou de bom grado seu aposento privado.
Na volta, o rei fez visitar seus jardins.
A Sra. de Sévigné escreveu a seu primo, Bussy-Rabutin:
"Rejubile-se conosco. Hoje tivemos um grande escândalo na corte de França. Pude ver e compreender como as guerras se acendem na antecâmara dos reis. Vi o facho arder diante de meus próprios olhos. Ainda estou emocionada e quase orgulhosa. Imagine que um homem a cavalo apresentou-se em Versalhes. - É algo trivial, você dirá. - Esse homem subiu até a grande galeria, que você conhece, onde o rei recebia-a embaixada moscovita. E você ainda dirá que isso nada tem de curioso?... Pois tem, porque o homem subiu a galope, sobre o cavalo. Que acha disso? Que eu sonhei? Mas não; quinhentas pessoas testemunharam-no, como eu.
Ele lançou um punhal. Continuo não sonhando e suplico-lhe que não se inquiete com minha saúde.
O punhal ali ficou, aos pés do embaixador, e ninguém sabia o que fazer. Foi quando vi o facho da guerra começar a queimar. O pé que o apagou é bastante lesto. Pertence à Sra. du Plessis-Bellière, que você conheceu em minha casa, e por quem sentia uma paixãozinha. Portanto, este relato lhe dará redobrado prazer.
Ela teve a ideia de acenar a seu pajenzmho, um negrinho vivo que escamoteou o objeto como um ilusionista do Pont Neuf. Depois disso todos se sentiram mais à vontade. A paz retornou, com um laurel nas mãos, e nós fomos admirar os animais selvagens.
Que diz deste breve relato?
A Sra. du Plessis é uma dessas mulheres que são preciosas junto aos reis. Creio que o rei o compreendeu há bastante tempo. Tanto pior para nossa triunfante Canto, a Sra. de Montespan... Mas podemos estar certos de que esta não se deixará destronar sem combate. A coisa ainda promete muitas distrações em Versalhes".
Angélica não fora convidada para a viagem a Fontainebleau, mas não devia esquecer-se de ir consolar a Grande Mademoiselle, conforme lhe recomendara o rei. Ela voltou a Paris.
Na carruagem, tirou das dobras da saia o punhal do príncipe húngaro e contemplou-o com um misto de apreensão e contentamento. Estava feliz por ter subtraído a arma. O "revolucionário" não merecia que o punhal caísse em outras mãos, pois talvez fosse ela sua única amiga no reino.
Vendo que as senhoritas de Gilandon, a seu lado, consideravam o punhal com o interesse que lhes permitia sua indolência quase vegetal, perguntou-lhes se sabiam do paradeiro do homem do cavalinho.
As jovens excitaram-se um pouco. Como todo mundo em Versalhes, desde o último ajudante de cozinha até o camarista-mor, estavam encantadas por terem presenciado um "incidente diplomático". O revolucionário não fora detido, disseram. Após ter-se precipitado escada abaixo, viram-no fugir a galope na direção dos bosques. Os guardas lançados em seu encalço tinham voltado de mãos vazias.
"Ele conseguiu escapar. Foi melhor!", pensou Angélica.
Mas imediatamente reprovou esse pensamento. Tamanha insolência merecia ser castigada. No entanto, o gesto lhe parecera magnífico, fazendo com que experimentasse uma secreta satisfação. Luís XIV quisera brincar de gato e rato. Agradava-lhe pôr à prova a flexibilidade de seus escravos. Nesse momento, fixava-se na do Príncipe Rakoczi. E na de Lauzun. Seria Lauzun detido? E esse Ra-koczi, para onde poderia ir? Onde quer que fosse reconhecê-lo-iam, e a seu cavalinho selvagem, semelhante aos dos hunos que haviam chegado outrora às portas de Paris.
- Não foi Santa Genoveva quem impediu que os hunos entrassem em Paris? - perguntou às senhoritas de Gilandon.
- Sim, senhora - responderam polidamente.
Fazia parte de suas atribuições jamais se espantarem com coisa alguma. Seu físico e personalidade insignificantes punham a ama ao abrigo das desagradáveis intrigas das donzelas de honor muito desabusadas ou ambiciosas. E verdade que não eram das melhores companhias, mas isso não incomodava Angélica. Ela não tinha o defeito de muitas das grandes damas que não podiam ficar cinco minutos sem falar com alguém. Achar-se face a face consigo mesmas devia ser seu maior suplício, e, assim, providenciavam para que tão aborrecida conjuntura jamais se produzisse, encarregando uma acompanhante de ler até que o sono chegasse ou de fazer-lhes companhia em caso de insónia.
Angélica aproveitava o silêncio natural das senhoritas de Gilan-don para permitir-se momentos de meditação.
A carruagem atravessou com estrépito as florestas de Meudon e Saint-Cloud. A noite de inverno, fria e brumosa, mal deixava adivinharem-se, para além do círculo de luz dos carregadores de tochas, as espessas frondosidades envoltas em neblina.
Onde estaria Rakoczi? Angélica inclinou a cabeça para trás, contra a banqueta de veludo. Acometia-a, quando sozinha, uma sensação de angústia. Sentia-se com os nervos à flor da pele. Lembrou-se do líquido verde que o dissimulado Bei Bakhtiari lhe fizera beber, com a clara intenção de dissipar-lhe a frieza. Era certamente um afrodisíaco.
A esse pensamento, Angélica convenceu-se de que precisava efe um amante, senão cairia doente. Fora bastante tola em furtar-se às propostas do esplêndido persa. A que sentimentos havia obedecido? Para que senhor se guardava? Quem se preocupava com sua vida? Ainda não adquirira consciência de sua liberdade?...
Em Paris, como vinha sentindo com mais frequência, a solidão de sua bela mansão e seu quarto deserto pareceram-lhe esmagadores. Preferia as estadas em Versalhes, as noites curtas entre um fim de baile e a missa da aurora, no interior do enorme palácio apenas adormecido. A noite, as paixões e intrigas pareciam continuar a ressoar. As pessoas faziam parte de um todo. Ninguém ficava abandonado à própria sorte.
"A sua triste sorte?", pensou Angélica, dando voltas no quarto como o tigre da Sibéria em sua jaula.
Por que não fora convidada para o passeio a Fontainebleau? O rei temeria desagradar a Sra. de Montespan? Que esperava dela? Para que destino a conduzia com mão implacável e sorrateira? "Para que vida você foi criada, minha irmã Angélica?"
Postando-se no centro do quarto, disse em voz alta:
-...O rei!
O mordomo Roger veio perguntar o que a senhora marquesa desejava para a ceia. Ela olhou-o um tanto perdida. Não tinha fome. Ana Maria Gilandon veio sugerir-lhe uma tisana. Angélica surpreendeu-se diante do desejo irresistível de esbofeteá-la, como se aquela proposta inocente fosse o cúmulo de seus dissabores e humilhações. Por espírito de contradição, pediu um frasco de aguardente de ameixas. Bebeu dois cálices, gole a gole, e sentiu-se melhor. Devia ter pensado nisso antes. O álcool é soberano para dissipar disposições sombrias.
O punhal de Rakoczi estava sobre a mesa. Angélica dirigiu-se à secretária de múltiplas gavetas, de ébano com incrustações em nácar. Dali tirou um cofrezinho, que abriu para colocar a arma. Nesse cofre ela guardava diversos objetos: um pente de escamas, um anel que lhe dera o bandido Nicolau, as jóias do templo, o camafeu de granadas que usava com os trajes humildes de Sra. Bour-geaud, um par de brincos oferecidos por Audiger no dia em que inauguraram a chocolataria e uma pena aguçada do Poeta Pobre, a quem haviam enforcado. Havia também um outro punhal, o de Rodoguno, o Egípcio.
O serviçal indiscreto que desejasse conhecer os tesouros ali guardados com tanto ciúme pela Sra. du Plessis-Bellière ficaria surpreso e desapontado ao achar apenas esses pequenos objetos heteróclitos. Mas, para ela, eles tinham um outro significado: eram como conchinhas trazidas por marés sucessivas para as praias de seu passado. Muitas vezes quisera desfazer-se deles, porém jamais se decidira.
Angélica bebeu outro cálice de aguardente. A pedra azul em seu dedo luzia suavemente junto àquelas incrustadas no cabo de ouro do punhal de Rakoczi.
"Estou sob o signo da turquesa", pensou.
Dois rostos trigueiros sobrepunham-se diante de seus olhos. O do príncipe persa, coberto de opulência, e o do príncipe húngaro, despojado de tudo.
Tinha vontade de rever Rakoczi. Ele revelara-se pelo seu feito. Sua loucura não era ridícula, era entusiástica. Como não percebera, sob suas palavras, a profunda sabedoria dos heróis? Estava tão habituada a ouvir apenas tolices que não mais sabia reconhecer um homem autêntico.
Pobre Rakoczi! Onde poderia estar? Ao pensar nele, teve vontade de soluçar. Bebeu mais um cálice. Então conseguiria dormir. Como era triste dormir sozinha!
Se tornasse a Suresnes com um "Sim" noT lábios, não veria o fim de seus tormentos? Sonhou era éricontrar o esquecimento no delírio dos sentidos, habilmente exacerbados. "Afinal, não sou senão uma mulher. Por que lutar e com que objetivo?"
Gritou para o espelho:-
- Sou bela!
Enterneceu-se diante da imagem refletida.
- Pobre Angélica... Por que tão sozinha...
Bebeu mais ainda.
- Agora que estou completamente ébria... poderei dormir.
Ocorreu-lhe em seguida que, se Mademoiselle experimentava tristeza análoga, tampouco devia estar dormindo. Talvez se sentisse reconfortada em receber a visita de Angélica em plena noite. As noites são longas quando se está só!
Angélica despertou os criados, ordenou que se atrelasse a carruagem e fez-se conduzir pela noite até o Palácio do Luxemburgo.
Ela havia adivinhado. A Grande Mademoiselle não dormia. Desde que recebera o veredicto do rei, metera-se na cama, tomando apenas caldos, sem parar de chorar. Suas damas, algumas amigas fiéis, tentavam em vão acalmá-la.
A visão de tal desespero foi pretexto fácil para que Angélica desse vazão às lágrimas que retinha há dois dias, e ela irrompeu em soluços.
A Srta. de Montpensier, comovida por vê-la partilhar tão sinceramente sua dor, conchegou-a ao peito, e até o amanhacer elas permaneceram falando das qualidades de Lauzun e da crueldade do rei, segurando-se as mãos e chorando como duas fontes.
CAPÍTULO XII
O ódio da Sra. de Montespan
Quando ela explicou ao Sr. Colbert que o Bei Bakhtiari não queria vir saudar o rei porque não era recebido com suficiente aparato, o ministro ergueu os braços ao céu.
- E eu que não me canso de reprovar no rei o gosto pelo fausto e pelas despesas suntuárias!
Ao saber do fato, Luís XIV irrompera em risadas.
- Veja, Colbert, meu amigo, quanto suas admoestações são por vezes injustificadas. Despender sem economia por Versalhes não é mau negócio, como você o supunha. Isso torna o palácio tão notável que parece despertar a curiosidade e atrai uma parte das nações mais distantes... Sonhei ver essas nações nestas galerias, vestidas à maneira de seu próprio país, contemplando estas maravilhas a seu modo, e indo ver o grande príncipe cuja reputação encantou-as. Se posso exprimir-lhe meu pensamento, parece-me que devemos ser a um tempo humildes para conosco e orgulhosos e exigentes para com o lugar que ocupamos.
No dia em que a primeira embaixada persa se apresentou diante dos gradis de ouro de Versalhes (uma segunda embaixada teria lugar em 1710), milhares de flores em vasos, retiradas das estufas e replantadas nos canteiros, estendiam sob o céu de inverno um tapete matizado. Ao longo da grande galeria, pisavam-se pétalas de rosa e de flores de laranjeira.
O Bei Bakhtiari avançou entre o esplendor do mobiliário em prata dourada, cujas mais belas peças de ourivesaria, consolos, bu
fes, credencias cinzeladas, eram expostas em sua honra. Fizeram-no visitar todo o palácio, cujas douraduras e cristais podiam equiparar-se aos das Mil e uma noites. A visita terminou pela Sala Jos Banhos, onde a enorme cuba de mármore violeta destinada ao rei convenceu o persa de que os francesas não desdenhavam as abluções como ele acreditara. Os mil jatos de água do parque acabaram de ganhá-lo. '
Foi um dia de glória para Angélica, que em todos os momentos teve que vir em primeiro lugar. Com uma inconsciência talvez escondendo uma certa malícia, o Bei Bakhtiari relegava a rainha e as outras damas e dirigia-lhe todos os cumprimentos.
O tratado da seda foi assinado numa atmosfera amigável.
Na noite da data memorável, em que um grande número de cortesãos foi num último passeio admirar os efémeros jardins de um dia de inverno, um j)ajem apresentou-se à Sra. du Plessis, comunicando-lhe que qírei a convocava ao Gabinete dos Cristais.
Nesse gabinete, que fazia parte dos aposentos reais, o rei recebia com mais intimidade do que nos salões. Era uma grande honra ser para ali convidado.
Ao entrar, Angélica viu refletidos nos espelhos que ornavam as paredes os presentes do Bei Bakhtiari, amontoados numa profusão de caverna de Ali Babá.
O rei conversava com o Sr. Colbert, cujo rosto contraído distendia-se sob uma profunda satisfação interior. Ambos sorriram para a jovem.
- É chegado o momento de receber sua recompensa, senhora - disse o rei. - Peço-lhe que escolha entre estas maravilhas aquela que satisfaça seus desejos.
O rei tomou-lhe a mão, conduzindo-a diante dos presentes expostos. Para si, ele reservara a sela vermelha de botões em ouro e prata, e estribos achatados também em ouro e prata. O tabuleiro em ébano e marfim e as peças de jacquet, uma espécie de jogo de gamão, em ouro e jade iam para o tesouro real. E ele não achava que Angélica se sentiria atraída pelo curioso cachimbo persa, o narguilé de ouro cinzelado. Mas havia os xales de Beluchistão, os pratos e terrinas em ouro maciço, com trabalhos de ourivesaria representando cenas de caça às gazelas do deserto e com incrustações de turquesas, jarros para água em prata dourada com incrustações de esmalte azul antigo, um enorme tapete de Mech-hed, de pêlo longo, dois tapetes para reza de Tauris e Ispahan, de pelo curto, caçoilas com geléia de rosa e de violeta, bomboneiras com nugas de pistácios ou giazu, garrafas de vidro grosseiro mas cheias de sutis essências de rosa, jasmim e gerânio, e naturalmente pedras preciosas das mais belas do mundo.
Angélica ia de objeto em objeto, sob o olhar bonachão de Col-bert e os olhos alegres do rei. Subitamenteiela ruborizou-se e perguntou com voz perturbada o que tinha sido feito da "múmia".
- A múmia? Aquela mistura horrível e malcheirosa?
- Sim. Recomendei que a recebesse com mostras do mais profundo reconhecimento.
- E não o fiz? Assegurei a Sua Excelência que nada me rejubilava tanto quanto a posse do extraordinário elixir. Confesso que esperava tudo, menos um líquido tão nauseabundo. Fiz com que Duchesne bebesse um copo. Bontemps também tomou um dedo. Parece que tem sabor horrível. Duchesne sentiu-se mal. Confessou-me ter vomitado e tomou um pouco de eletuário, de medo de se envenenar. Pergunto-me se não haveria má intenção da parte do xá da Pérsia, ao oferecer-me esse pretenso presente.
- Não, não, certamente não - disse Angélica com precipitação, lançando-se para o canto onde acabava de reconhecer o cofre de pau-rosa incrustado de nácar que o bei lhe mostrara.
Ela abriu-o e retirou a tampa de jade que fechava o vaso de porcelana azul. O odor surpreendente encheu-lhe as narinas e ela evocou, contra a vontade, a atmosfera voluptuosa do salão do embaixador persa.
- Sire, posso pedir-lhe o grande favor de ofertar-me este cofre? Como... recordação das visitas em que tive o grande prazer de servir à glória de Vossa Majestade e... não quero nenhuma outra coisa - concluiu precipitadamente, confundindo-se um pouco.
O rei e o Sr. Colbert olharam-se com a consternação de homens inteligentes diante de um capricho de mulher.
- Há muitas coisas que me intrigaram e surpreenderam nesta embaixada - disse o rei -, mas creio que o mais surpreendente terá sido a escolha feita pela Sra. du Plessis como sua recompensa.
Angélica sorriu e tentou parecer natural.
__ Este cofre não e uma maravilha? Sonho com um destes!
- Aqui tem outros dois, ambos belos, com pastas de amêndoas e goma perfumada.
_ Francamente, prefiro este, sire. Posso mandar levá-lo?
_- Seria inútil tentar demover uma mulher ^ue colocou uma ideia na cabeça - disse o rei com um.suspiro.
Ordenou que dois criados levassem 6 cofre aos aposentos da Sra. du Plessis.
- Cuidem para não entornar o frasco - recomendou Angélica.
Quisera acompanhá-los, mas o rei reteve-a com um sinal.
Voltando-se para as sedas persas, ele afastou alguns xales de cashmere e ergueu um largo tecido, flexível e macio, num tom quente de areia.
- Sua Excelência, o embaixador, chamou-me pessoalmente a atenção para a curiosa" textura deste tecido. Parece que é feito de pêlo de camelo, resultandojieste pano chamado "feltro" ou "burka", onde a chuva desliza sem penetrar. E unia espécie de abrigo,
capaz de resistir a todas as intempéries. Os dos príncipes são brancos
ou dourados, os do povo, castanhos ou negros. Como vê, tornei-me tão conhecedor dos costumes persas como você.
Com gesto lento, cobriu-a com o manto.
- Sei que você é friorenta - disse a meia-voz, com um sorriso.
Suas mãos demoravam-se em seus ombros.
A Sra. de Montespan entrou bastante animada. Também fora convidada ao Gabinete dos Cristais para escolher um adorno. O brilho de seu sorriso diminuiu ao ver Angélica, a quem o rei amarrava os cordões de ouro do suntuoso manto.
- Ter-me-ia apressado em demasia, sire? - disse com uma voz que pretendia jovial, mas que soou estridente.
- De modo algum, minha bela. Aqui tem os tesouros à sua escolha.
- Os que a Sra. du Plessis-Bellière deixou...
- Restou um grande número deles.
O rei irrompeu em risos.
- Estaria com ciúme? A Sra. du Plessis mostrou-se tão discreta que por minha própria decisão acrescentei este manto.
- O que não impede que a tenha feito escolher primeiro - protestou Atenaís, cuja cólera e orgulho eram sempre mais fortes que a astúcia.
- A Sra. du Plessis foi minha embaixadora junto ao, embaixador. Saiba que sempre tive em mente recompensar primeiro os servidores do reino. Minhas favoritas não vêm senão em segundo lugar.
O tom era sem réplica. A Sra. de Montespan fez por se conter.
- Adoro vê-la com ciúme - retomou o rei, tomando-a pela cintura com vigor. - Parece que explodirá em chamas.
Beijou-lhe a nuca e o ponto de nascimento dos ombros com gula.
- Posso retirar-me, sire? - perguntou Angélica, esboçando uma reverência.
- Mais um instante, por favor. Tenho uma recomendação a fazer-lhe. Prometa-me não tratar a pele com essa horrível mistura que lhe agrada.
- Farei por evitá-lo, sire.
- Quem sabe as extravagâncias que podem passar pela cabeça de uma linda mulher! Enfim, não se envenene nem estrague sua tez. - Com a ponta do dedo, roçou-lhe a face numa leve carícia. - Seria pena!
"O rei acaba de assinar minha sentença de morte com esse gesto", pensou Angélica, sentindo, ao sair, o olhar da Sra. de Montespan enfiar-se como faca entre suas omoplatas.
Ela foi verificar se a "múmia" estava em lugar seguro e se não a haviam entornado ou perdido alguma gota. Não ficaria tranquila enquanto o velho Savary não estivesse de posse dela. Com o fito de tornar a Paris o mais breve possível, informou-se sobre as festividades previstas. Soube com satisfação que após a ceia todos poderiam dormir em paz, e que partiriam com a manhã para Saint-Germain.
Angélica dirigiu-se até a rainha para saber se esta necessitava de seus serviços. Não, como de hábito. O cargo junto dela era puramente honorífico, e a soberana preferia vê-la longe.
Angélica, a consciência em paz, ordenou que atrelassem a carruagem e trouxessem o cofre. O cocheiro resmungou um pouco. Era homem de uma certa idade, ligeiramente corpulento e que entrara para o serviço de Angélica quando ela ainda era a Sra. Mo-rens e apenas uma das mais importantes comerciantes de Paris.
Naquela época, ela levava a vida regrada das pessoas que não têm tempo a perder, e que sabem que a noite foi feita para dormir. O cocheiro não deixara de se rejubilar com a ascensão rápida de sua senhora na corte. Apreciara receber a "honra de carruagem", ou seja, que a equipagem tivesse o direito de genetrar e manobrar no primeiro pátio de Versalhes.
Mas deplorava, há algum tempo vê-la para cima e para baixo noite e dia, e sobretudo de noite. Mal tinha tempo de tratar dos cavalos, lavar-lhes as pernas e esçovar-lhes a crina. E por vezes a carruagem tivera que partir coberta de lama e sem estar lubrificada. O cocheiro sentia-se aviltado.
As conversas que tivera com seus colegas, quando se reuniam para beber um jarro de vinho nas cavalariças de Versalhes, mostraram que as coisas só, poderiam piorar. A mania de agitar-se tornava-se endémica nas' grandes damas, à medida que ascendiam na corte.
Com o rosto sombrio-, o cocheiro estalou o chicote e a carruagem rodou pelo calçamento do pátio principal, transpôs os portões e lançou-se na estrada de Saint-Cloud, deixando atrás de si uma Versalhes salpicada pelo sangue de um crepúsculo invernal digno dos esplendores de Luís XIV.
Às onze horas entraram em Paris. Às onze e meia na Rue de Bourtibourg, Angélica tamborilou nas janelas da loja de Mestre Savary.
O boticário ainda não havia se deitado. Triturava alguns pós num almofariz de ferro fundido. Ao ver Angélica, empalideceu e a barbicha pôs-se a tremer. Com um sorriso misterioso, Angélica fez um sinal para que os criados pousassem o cofre no balcão. O ouro e o nácar do cofre de madeira preciosa brilharam em meio ao almofariz, vasos de cobre e de madeira pintada, uma pequena balança e uma caveira.
Com mão febril, Savary abriu o cofre, destampou o vaso e aspirou-lhe o conteúdo.
Desta vez Angélica não pôde impedi-lo de prostrar-se diante dela.
- Por toda a vida - gemeu ele -, por toda a vida recordarei sua boa ação, senhora. Não apenas salvou a múmia de mãos pro-ranas como a colocou por inteiro nas minhas, nas de um sábio que saberá arrancar-lhe o segredo secular. O futuro a abençoará.
- Acalme-se, Mestre Savary - disse Angélica, afetando rancor para esconder a própria emoção. - Tem razão em agradecer-me. Por você, perdi a consideração do rei, que me acredita com a cabeça cheia de quimeras e tolices. E renunciei a magníficos presentes que me teriam interessado.
O boticário não a escutava. Precipitara-se para os fundos da loja e voltara com retortas, funis e conta-gotas. Angélica compreendeu que era demais ali e que ele nem mesmo a via. Ela puxou as abas do confortável manto que o rei lhe oferecera e ia sair quando se ouviu um estrépito na rua.
Um mensageiro desceu de um salto os três degraus que conduziam à sala.
- Graças a Deus consegui alcançá-la, senhora. O rei lançou-me em seu encalço. A senhora vinha um pouco à frente. Informando-me junto dos passantes, consegui segui-la até aqui.
Entregou-lhe um bilhete onde ela leu que devia ir com urgência a Versalhes.
- Não poderia esperar até amanhã?
- O próprio rei disse-me que era urgente, e recomendou-me que a levasse e escoltasse, à hora que fosse.
- A Porte Saint-Honoré estará fechada!
- Tenho um salvo-conduto para fazê-la abrir.
- Poderemos ser assaltados.
- Estou armado - disse o homem. - Tenho duas pistolas na sela e minha espada.
Era uma ordem do rei. Nada restava senão obedecer. Angélica voltou para a estrada, conchegando o manto que o rei tão oportunamente lhe oferecera.
Chegaram a tempo de ver o palácio emergir como um monstro azul, cheio de escuridão, da aurora rosa-pálida e cinza.
Na janela do gabinete do rei, brilhava um archote, como uma pérola nas profundezas marinhas do pátio de mármore.
Tiritante, Angélica seguiu os mensageiros, atravessando os compridos vestíbulos desertos, com suíços, de espaço em espaço, sonolentos e imóveis como estátuas.
Em compensação, o gabinete do rei estava lotado: além dele, viam-se os senhores Colbert e De Lionne, as feições cansadas de insónia; o confessor do rei, Sr. Bossuet, cuja bela eloquência agradava ao soberano, o qual lhe pedia amiúde conselhos e desejava ligá-lo à corte; o Sr. de Louvois, o semblante sombrio e mesmo catastrófico; o Cavaleiro de Lorena e alguns comparsas, cujos rostos re-fletiam religiosamente a contrariedade presente. Todos estavam em pé diante do rei, dando a impressão de que tinham passado assim uma parte da noite, discutindo -com Stra Majestade, pois a cera-das velas estava no fim.
Calaram-se quando a jovem entrou. O rei pediu-lhe que se sentasse, após o que, houve um silêncio prolongado. Para disfarçar a contrariedade, o rei examinou uma carta que tinha diante de si. Por fim, disse:
- Nossa embaixada persa termina de modo bem estranho, senhora. O Bei Bakhtiari tomou a estrada para o" sul, mas enviou-me uma mensagem urgerite que lhe concerne... Enfim, leia-a por si mesma.
A missiva, sem dúvida traduzida e caligrafada pelo arménio Agobian com cuidados de escriba antigo, mais uma vez agradecia ao grande monarca do Ocidente seus esplendores e suas dádivas.
Seguia uma lista precisa dos presentes que Sua Majestade o Rei Luís XIV ofertara ao embaixador persa, para seu amo, o xainxá:
um serviço de prata dourada, cunhada com motivos de flores-de-lis;
dois relógios folheados a ouro, marcando os dias do ano e as estações, mais uma dezena de relógios com estojo cunhado com flores-de-lis;
duas grandes tapeçarias dos Gobelins;
um sinete real, com o emblema persa do leão e do sol nascente em ônix;
dois grandes retratos do Rei Sol e da rainha, em trajes de gala na sala do trono;
vinte lençóis finos;
um braseiro a carvão, de ferro forjado, folheado a ouro, com dois foles acionados por um fio de-ferro;
três caixas de bolas de prata para aquecer o banho do xainxá;
seis caixas de bibelôs, conhecidos como jóias do templo, que o xá poderia distribuir entre seus serviçais ou o povo;
três vasos com pés de gerânio a serem replantados em solo persa;
uma sela de couro de Lion com cabresto de prata.
Mas a todos os presentes Sua Majestade esquecera-se de juntar a preciosíssima turquesa que Sua Excelência esperava como recompensa por seus leais serviços.
Seguia uma descrição da referida turquesa, bastante detalhada para se compreender que se tratava de uma mulher, e que essa mulher não era outra senão Angélica.
O Bei Bakhtiari acreditara que os costumes do Ocidente não lhe permitiam dispor dela antes de dar mostras de boa vontade ao proprietário de tão raro tesouro. Mas, agora que os tratados tinham sido assinados, para. contentamento de todos, e do rei de França em particular, por que a "delicadíssima marquesa", "a mais inteligente mulher do universo", "o lírio de Versalhes", "a estrela da corte de França", não se achava entre os presentes que o Sr. de Lorena e o Marquês de Torcy lhe haviam ofertado no momento da partida? Acreditando que, em atenção à discrição, ela o alcançaria à noite, com sua equipagem e carroças de bagagens, ele se pusera a caminho. Mas, na primeira parada, começou a suspeitar de que o haviam ludibriado.
Tê-lo-iam feito caminhar como o asno atrás da cenoura, que lhe é retirada mal transpõe a ponte? Seria o soberano do Ocidente homem de duas palavras? Sua velhacaria igualaria sua avareza? Deveria considerar o tratado sob o mesmo prisma enganador? Ignorar as promessas?... etc.
A longa lista de perguntas não deixava dúvida sobre a cólera do irascível Bei Bakhtiari, e mal dissimulava as ameaças de rompimento e desserviço aos franceses e cristãos, quando estivesse com seu senhor em Ispahan.
- E então? - perguntou Angélica, sem compreender.
- E então - repetiu o rei -, poderia dizer-me que conduta desavergonhada você teve em Suresnes, para que tão insolente proposta nos seja feita?
- Minha conduta, sire, foi a de uma mulher enviada junto a potentado no intento de lisonjeá-lo, para não dizer, seduzi-lo,
fim de dobrá-lo politicamente e bem servir ao rei.
__ Insinuaria que a encorajei a prostituir-se pela embaixada?
__ A intenção de Vossa Majestade pareceu-me evidente.
__ Como se pode dizer tal tolice? Uma mulher de espírito e ca-ráter como você dispõe de vinte maneiras para amansar um príncipe sem conduzir-se como uma p... E?oí então amante desse bárbaro trigueiro, um infiel, inimigo de sua religião? Responda-me!
Angélica mordeu o lábio, dissimulando um sorriso, e lançou um olhar à assembleia.
- Sire, sua pergunta deixa-me embaraçadadiante desses senho
res. Permita-me dizer que isso concerne apenas a meu confessor.
O rei soergueu-se, os olhos brilhantes. O Sr. Bossuet interpôs seu alto talhe de borgonhês e sua autoridade episcopal.
- Sire, permita-me, com efeito, lembrar-lhe de que só o padre tem direito ao segredo das Consciências.
- O rei também, Sr. Bossuet, quando as atitudes de seus súditos envolvem sua responsabilidade. O Bei Bakhtiari desgostou-me com sua insolência, mas deve-se admitir que quando um homem, persa ou não, recebe certos penhores...
- Ele não os recebeu, sire - afirmou Angélica.
- Folgo em sabê-lo - vociferou o rei, sem conseguir ocultar seu alívio.
O Sr. Bossuet disse energicamente que, fosse qual fosse o passado, era preciso considerar o presente. A pergunta era: como acalmar a cólera do Bei Bakhtiari sem levar adiante seus desejos? Todos voltaram a dar seu parecer. O Sr. de Torcy opinava que jogassem o embaixador no.fundo de uma prisão, comunicando ao xá da Pérsia que seu representante em França morrera de febre quarta. O Sr. Colbert quase saltou-lhe ao pescoço. Aqueles militares não tinham nenhuma ideia da importância do comércio nos progressos de um país! O Sr. de Lionne estimava, como o Sr. de Torcy, que não havia por que se preocupar com esses muçulmanos distantes, mas o Sr. Bossuet e o jesuíta demonstraram com eloquência que o futuro da Igreja do Oriente dependia do desfecho da embaixada. Por fim, Angélica propôs que se pedisse a opinião de um velho cheio de sabedoria, que muito viajara, e por certo acharia um meio de contornar a suscetibilidade do persa. Õ rei ordenou que o procurassem imediatamente. Angélica deveria ir ter com Mestre Savary, expor-lhe a situação e trazer a solução...
- O Sr. de Lorena a acompanhará. Retardaremos a partida da corte para Saint-Germain até a noite. Até breve, senhora. Ajude-nos a reparar os erros nos quais você tem parte da culpa. Sr. Colbert, permaneça em Versalhes. Devo vê-lo após a missa.
A carruagem encontrou-se com os primeiros operários, a pá ao ombro, que vinham para os canteiros de obra do palácio, cujas chaminés e goteiras folheadas a ouro brilhavam aos primeiros raios de sol.
Ao chegar à casa de Savary, no meio da manhã, ela teve dificuldade em arrancá-lo a suas experiências.
- Agora pedem-me ajuda - disse, sentencioso. - Deveriam ter-me solicitado conselho de início.
Magnânimo, porém, consentiu em refletir e beneficiar o reino com sua longa experiência de viajante e escravo na Barbaria.
Conduzido a Versalhes, não se mostrou impressionado diante do areópago com tão altas personagens, entre as quais o próprio rei.
Disse que havia apenas uma forma de recusa que o Bei Bakhtia-ri não tomaria por uma afronta atroz. Sua Majestade devia escrever-lhe que a seu grande pesar não podia responder aos anseios de seu caríssimo amigo etc...., pois, sendo a Sra. du Plessis "sultana bak-hi", ele compreenderia a impossibilidade de realizar seus desejos.
- Que significa "sultana bakhi"?
- É a sultana predileta, sire, eleita pelo rei, que lhe dá o governo do harém e com quem por vezes partilha suas preocupações de monarca.
- Se tal é o significado do título, não lhe parece que o Bei Bakh-tiari teria o direito de observar-me que no Ocidente a rainha representa a sultana, como disse... bakhi?
- A objeção de Vossa Majestade é plena de bom senso. Mas tranqiiilize-se. Ocorre amiúde no Oriente que um rei, por problemas de dinastia, seja obrigado a desposar uma princesa de sangue real que não escolheu. Isso não o impede de elevar uma outra à posição de favorita, a qual na realidade terá todos os poderes.
- Curiosos costumes - concluiu o rei. - Mas se você afirma que não há outro modo...
Não restava senão redigir a missiva. Savary quis compor pessoalmente o texto, que leu em seguida, em voz alta.
"...Solicite todas as outras mulheres de meu reino", concluía, "elas são suas. As mais jovens, as mais belas, as mais louras... escolha-aS) elas são suas."
- Alto lá! Calma, Sr. Savary - disse o rei. -^Você me envolve num comércio bem estranho.
- Sire, Vossa Majestade compreende que não pode apresentar uma recusa tão ultrajante sem compensações... equivalentes para aquele que tão cruelmente desilude.
- Não havia pensado nisso, palavra. Mas seu raciocínio parece-me correto - disse o rei, contente.
Todos se rejubilaram ao ver o rei sair de seu gabinete com o semblante descontraído. Durante uma parte do dia, a corte esperou por graves acontecimentos políticos: uma declaração de guerra, no mínimo. Satisfazendo os.curiosos, o rei contou com humor as últimas exigências do embaixador persa.
Sem pronunciar o nome'de Angélica, disse' apenas que o príncipe oriental, seduzido pela beleza das mulheres de França, desejava levar uma lembrança em carne e osso.
-...Sobretudo em carne - acentuou Brienne, encantado com o próprio espírito.
- A dificuldade reside emescolhê-la - continuou o rei. - Tenho vontade de encarregar o Sr. De Lauzun desse delicado recrutamento. É um conhecedor do assunto.
Péguilin agitou as mangas com desenvoltura.
- Tarefa fácil, sire. Em nossa corte não faltam amáveis p... Com o indicador, ergueu o queixo da Sra. de Montespan.
- Esta não serviria? Já provou que pode agradar aos príncipes...
- Insolente! - disse a marquesa, furiosa, repelindo-lhe a mão.
- Ou então esta - continuou Péguilin, apontando a Princesa de Mónaco, que fora sua amante. - Ela vem a calhar. Talvez seja esse o único risco que ainda não correu. Do pajem ao rei, tudo lhe parece bom... mesmo as mulheres.
O rei interveio, contrafeito:
- Um pouco de decência em suas palavras, senhor!
- Por que decência nas palavras, quando ela não existe nos atos, sire?...
- Parece-me que Péguilin se prepara para uma nova estada na Bastilha - cochichou a Sra. de Choisy a Angélica. - Mas não importa, a resposta é boa. Que história escandalosa é essa sobre o embaixador persa? Parece que você está envolvida.
- Contar-lhe-ei em detalhes, em Saint-Germain - disse graciosamente Angélica, omitindo à duquesa que ela tornava a Paris.
As carruagens punham-se em fila em meio ao estalar dos chicotes, ruído de eixos e relinchos. Por alguns dias, Versalhes fechava seus portões dourados e suas altas janelas, onde se refletia o mesmo crepúsculo vermelho da véspera.
Mestre Savary apertava ao peito com alegria uma bolsa bem cheia que o Sr. de Gesvres lhe entregara da parte do rei. "Será usado para as experiências científicas. Ah! Que grande rei, o nosso. Como sabe reconhecer um mérito!"
De passagem, o Sr. de Lionne pôs a cabeça à portinhola da carruagem:
- Podem gabar-se de obrigar-me a uma curiosa ocupação! Foi a mim que o rei encarregou de encontrar a... compensação para o embaixador persa. Que dirá minha mulher!... Enfim! Vi uma atrizinha da troupe do Sr. Molière, muito inteligente e ambiciosa... Penso que ela se deixará facilmente convencer.
- Tudo é bom quando acaba bem - concluiu Angélica com um pálido sorriso.
Ela mantinha os olhos abertos com dificuldade. Havia exatamente vinte e quatro horas seus cavalos corriam sem parar. A ideia de refazer o caminho de Versalhes a Paris, sentiu os rins em frangalhos.
No pátio principal, o cocheiro a esperava, o chapéu ao braço. Com muita dignidade, preveniu a senhora marquesa de que era a última vez que tinha a honra de conduzir sua equipagem. Acrescentou que sempre cumprira suas funções com bom senso, que Deus condenava a loucura, e que ele não era mais jovem. Concluiu dizendo que, a seu grande pesar, via-se obrigado a deixar o serviço da senhora marquesa.
CAPÍTULO, XIII
Angélica dá asilo ao proscrito,Rakoczi
Os mendigos aguardavam nos fundos da cozinha. Enquanto amarrava o avental branco, Angélica disse consigo que negligenciara em demasia seu dever, como nobre dama, de dar esmolas com as próprias mãos toda semana. Com as loucas cavalgadas entre a corte e Paris, e as eternas festas, suas paradas na Mansão do Beautreillis tinham se tornado raras. Mas precisava achar um meio de verificar suas contas.
A casa ia bem nas mãos do intendente Roger.
Bárbara lá estava para cuidar de Carlos Henrique. O Abade de Lesdiguières e Toison d'Or acompanhavam Florimond na corte. Em compensação, seus negócios e os da família Du Plessis-Bellière desapareciam numa neblina inquietante.
Fora visitar o Sieur David Chaillou, que conduzia as chocolata-rias da cidade com muito êxito. Também vira os responsáveis pelos entrepostos de produtos das ilhas.
Na volta encontrou as criadas e as senhoritas de Gilandon preparando as doações, pois na Mansão do Beautreillis era dia de esmola, e os pobres viriam até o anoitecer.
Angélica apanhou corbelhas cheias de pães redondos. Ana Mana de Gilandon seguiu-a com um cesto contendo tiras de linho e medicamentos. Dois criados trouxeram bacias de água quente.
O dia de inverno derramava uma luz cinza no semblante dos Pobres, alguns sentados em bancos ou escabelos, outros em pé ao longo da parede.
Primeiro, ela distribuiu os pães. Para as mães de família que reconhecia, fazia trazer um presunto ou salsichão, com que poderiam subsistir por alguns dias. Todos já haviam bebido uma,grande tigela de sopa. Havia rostos novos. Talvez alguns "antigos", não mais a vendo, houvessem desistido de vir. Os mendigos podiam ter desses sentimentalismos.
Ela ajoelhou-se para lavar os pés de uma mulher com uma úlcera na perna, e que trazia nos joelhos uma criança mirrada. O olhar da mulher era duro e firme, e ela comprimia os lábios de um modo que não enganava Angélica.
- Quer pedir-me algo?
A mulher hesitou. A timidez dos cachorros magros toma amiúde a forma de cólera. Ela estendeu a criança num gesto brusco. Angélica examinou-a. Tinha abscessos na base do pescoço, dois dos quais abertos.
- É preciso tratá-lo.
A mulher sacudiu a cabeça ferozmente. O velho de muletas, Pão Seco, veio em seu auxílio.
- Ela quer que o rei o toque. Você, que conhece o rei, diga-lhe como fazer para chegar até ele.
Com a ponta do dedo, Angélica acariciou pensativamente a testa e as fontes da criança. Tinha uma carinha de miséria e olhos de esquilo assustado. Fazê-lo tocar pelo rei? Por que não? Esse belo costume de curar as escrófulas não vinha sendo transmitido desde Clóvis, primeiro rei cristão de França, a seus sucessores? Deus devolvera-lhes esse poder com a unção do santo óleo trazido pela pomba milagrosa numa ampola de vidro, no dia da primeira sa-gração. Contavam depois que, tendo um escudeiro de Clóvis, Léo-nicet, sido atacado de tumores escrofulosos, um anjo em sonhos advertira o monarca para que tocasse o pescoço de seu servidor. Ao fazê-lo ele tivera a alegria de curar o fiel Léonicet.
Desde esses tempos distantes, os reis de França, herdeiros de tão extraordinário dom, viam precipitar-se à sua passagem os miseráveis cobertos de chagas.
Jamais um soberano se furtara a tal dever, e Luís XIV menos ainda. Quase todos os domingos, em Versalhes, em Saint-Germain, ou quando ia a Paris, ele recebia os doentes. Tocara em mais de mil e quinhentos somente naquele ano, e falava-se em numerosas
curas.
Angélica disse acreditar que era necessário falar com o médico do rei. Cabia a ele e a seus assistentes examinar os doentes que se apresentavam ao rei. Uma carroça os conduzia em seguida a Versalhes, onde a cerimonia ocorria com mais frequência. Ela aconselhou que a mulher voltasse na sem_aha seguinte. Até lá teria falado com o Sr. Vallet, médico do rei, que todos os dias, envergando uma veste de cetim, assistia à ceia de Sua Majestade.
Alguns mendigos que haviam acompanhado a conversa imploraram:
- Senhora, nós também queremos ser tocados pelo rei... Interceda por nós, senhora!
Ela prometeu fazer o que fosse possível. Enquanto isso, tratou-o com compressas indicadas por Mestre Savary.
O velho Pão Seco era um ""antigo". Há anos vinha regularmente à Mansão do Beautreillís. Angélica tratava de suas úlceras e lavava-lhe os pés. Ele não via utilidade naquilo, mas deixava que ela o fizesse, já que tanto o desejava. Sua voz escapava pela barba cinza emaranhada, fazendo a crónica de suas "perigrinações". Pois não se devia tomá-lo por um mendigo vulgar! Era um peregrino das santas relíquias, como o atestavam as conchas no chapéu, os numerosos terços e seu bordão. É verdade que as viagens não o levavam muito além de lie de France, mas, em compensação, conhecia os menores castelos, que, como mendigo sensato, percorria em proveitosa jornada. Os grandes senhores construíam por todo lado, desde a época em que o rei não mais quisera morar em Paris. Todos queriam, imitando o mestre, construir uma residência, fazer o traçado de um parque, abrir aléias na floresta, plantar um laranjal e lançar para o céu mil jatos de água. Bom negócio para Pão Seco! Coxeando, gemendo, mendigando, tal São Roque seguido por seu esfomeado cão amarelo, ele ia pelas estradas, aproveitando o tráfego incessante de carretas e comboios de construção para se fazer transportar. Ainda não fora a Fontainebleau, mas era um frequentador de Versalhes e Saint-Germain. Apreciava Saint-Cloud, a residência de Monsieur, onde havia esbanjamento: jogavam-se pela janela frangos assados apenas começados. O mesmo sucedia em Chamilly, na casa do príncipe. Também passava por Rueil, por
Berny, na residência do Sr. de Lionne, um epicurista que gostava da boa mesa, e Choisy, onde a Grande Mademoiselle ia fruir os prazeres da natureza. Ela controlava suas contas, mas era generosa para com os pobres.
Em compensação, Pão Seco não mais tornaria a Saint-Ouen, onde o Sr. de Boisfranc residia. Não havia sob o céu avarento maior que aquele celerado, escudeiro-mor de Monsieur, e ademais grande ladrão, blasfemador e libertino.
Pão Seco julgava os grandes da soleira de suas cozinhas. Era um ponto de vista a ser considerado, e a Angélica agradava ouvir suas crónicas.
- Que tem para contar-me, Pão Seco?
- Nesta manhã - disse Pão Seco -, eu voltava de Versalhes. A pé. Andar um pouco faz bem. Mas eis que meu cão late, e um bandido sai da floresta. Mal o vi, disse comigo: é um bandido. Eu não tive medo. Ele chegou perto e disse: "Você come pão, dê-me um pedaço e lhe darei ouro". "Primeiro mostra." Ele mostrou duas peças de ouro. Por esse preço dei-lhe o pão inteiro. Depois me perguntou o caminho de Paris. "Isso vem a calhar. Também vou para lá." Passava um mercador de vinhos com os tonéis vazios e nos trouxe na sua carreta. No caminho conversamos e contei-lhe que em Paris conhecia todo mundo. Sobretudo as pessoas de bem, enfim, todas as casas importantes. "Queria ir à casa da Sra. du Plessis-Bellière", disse ele. "Isso vem a calhar! Também vou para lá." "É minha única amiga", disse ele.
Angélica interrompeu o curativo que estava terminando:
- Exagero seu, Pão Seco. Não tenho amigos entre os bandidos da floresta.
- Não sei de nada. Repito o que ele disse. E se não acredita vem vê-lo. Ele está aqui.
- Onde?
- Naquele canto. É tímido, acho. Parece que não quer que o olhem cara a cara, o frangin!
O indivíduo que ele apontava, de fato, mais se escondia do que se apoiava a uma das colunas que sustentavam as abóbadas da cozinha. Angélica não o vira durante a distribuição dos pães. Ele cobria metade do rosto com uma das abas do casaco esfarrapado que lhe envolvia a magra silhueta. Sua aparência não inspirava confiança à senhora da casa. Ela ergueu-se e foi direto a ele. Mas subito reconheceu-o, num ímpeto de alegria e medo: Rakoczi.
- Você! - sussurrou ela.
Tomou-o maquinalmente pelos ombros e sentiu o tecido flutuar em torno do corpo magro.
- De onde vem? - cochichou.,
- Este bravo homem lhe disse da floresta!
Os olhos negros e fundos ainda tinham um brilho vivo, mas ela notou-lhe a palidez dos lábios em meio à barba crescida.
Rapidamente fez os cálculos. Mais de um, mês se passara desde a embaixada moscovita. Meu Deus! Não era possível. Em pleno inverno!...
- Não saia daqui! - disse ela. - Cuidarei de você.
Ao término da visita dos pobres, ela fez conduzir o príncipe húngaro ao confortável quarto com banhos florentinos. Rakoczi afe-tava gracejar; retesava^se, magnífico em seus farrapos, que compunha com altivez,'perguntando pela saúde e pela vida de sua hospedeira, como se estivesse ná antecâmara do rei. Mas, assim que se lavou e barbeou, desabou na cama e mergulhou em sono profundo.
Angélica chamou o mordomo.
- Roger - disse -, o homem que acabo de acolher é nosso hóspede. Não posso dizer-lhe seu nome, mas saiba que deve ter aqui um abrigo seguro.
- A senhora marquesa pode contar com minha discrição.
- A sua, sim, mas a casa é numerosa. Você deve fazer por que os domésticos compreendam, desde o cavalariço Jeannot até o escrevente que se ocupa das contas, que devem ignorá-lo como se fosse invisível. Eles não o viram. Ele não existe.
- Entendi, senhora marquesa.
- Dirá também que, se ele sair são e salvo, darei a todos uma recompensa. Mas se lhe acontecer alguma desgraça sob meu teto...
Angélica cerrou os punhos e seus olhos faiscaram.
- ...juro que porei a todos na rua... Todos, do primeiro ao último, entendeu? Fui clara?
O mordomo Roger inclinou-se. Seu serviço junto à Sra. du Plessis tnostrara-lhe que ela raramente falava por falar. No que lhe dizia respeito, ele estimava que um bom servidor, que tem seu lugar em apreço, deve ser cego, surdo e, tanto quanto possível, mudo, e esforçava-se por inculcar essas qualidades nas pessoas de libré sob sua responsabilidade. Disse que responderia por seu silêncio e que nenhum deles trocaria as vantagens em servir a senhora marquesa pelos aborrecimentos que a tagarelice lhes traria.
Quanto a isso ela se tranquilizou.
Mas abrigar Rakoczi era uma coisa. Ajudá-lo a fugir e ganhar a fronteira era outra bem diferente. Ela ignorava as ordens de Luís XIV com relação ao revolucionário. Fez então projetos, calculou o dinheiro, e de que amigos podia dispor para levar a termo a difícil empreitada. Ainda estava enfronhada em seus projetos quando o pêndulo de seu quarto deu onze horas da noite.
Ao erguer-se para se dirigir ao leito, reteve um pequeno grito. Rakoczi estava na soleira. Angélica recompôs-se.
- Como se sente, senhor?
- A maravilha.
O húngaro avançou espreguiçando o comprido corpo emagrecido, que mal preenchia os trajes emprestados por mestre Roger, embora ele mesmo fosse bastante magro.
- Sinto-me melhor agora que me livrei da barba. Tinha a impressão de estar entrando na pele de um moscovita.
- Pst! - fez ela, rindo. - Não se fala de corda em casa de enforcado.
Mas súbito estremeceu, lembrando que tentara outrora salvar o Poeta Pobre. Ela não o conseguira. A polícia do rei fora mais forte. O Poeta Pobre fora enforcado na Place de Greve.
Mas agora dispunha de outros meios. Era rica, influente. Seria bem-sucedida.
- Ainda tem fome?
- Ainda - suspirou, acariciando o estômago. - Creio que terei fome até o último suspiro.
Ela conduziu-o ao salão vizinho, onde fizera pôr a mesa para ele. Os castiçais de ouro, nas extremidades da mesa, iluminavam numa bandeja de ouro uma imensa perua recheada de castanhas, guarnecida com pastéis de maçã. Rodeavam-na terrinas com legumes quentes e frios, uma caldeirada de enguia, saladas e uma profusão de frutas numa travessa de prata. Para fazer as honras ao pobre homem da floresta, ela usara a baixela de que tanto se orgulhava. Além da bandeja, dos castiçais e da travessa, havia duas taças cinzeladas e dois gomis antigos trabalhados, de valor inestimável.
Rakoczi lançou um grito selvagem de admiração que se endereçava antes ao dourado do assado que ao das taças e bandejas.
Ele sentou-se num ímpeto e pôs-se a comer como um lobo.
Só depois de devorar duas asas e uma perna foi que apontou com um osso o lugar à sua frente.
- Coma também - disse com a boca cheia a Angélica.
Ela riu, mirando-o com simpatia. Serviu-lhe um bòrgonha numa das taças de ouro e, tomando a outra para si, sentou-se como ele lhe pedia. Estava fora de questão deixar a mínima sobra do assado. Era evidente que ele o comeria todo. Os dentes aguçados e brancos penetravam com voluptuosidade na carne tenra. Os ossos da ave estalavam. Rakoczi limpava as mãos, bebia, erguia as tampas, enchia o prato, abocanhava QS pastéis, bebia novamente, e atacava a carcaça com ambas as mãos e a boca escancarada.
Seus olhos negros, sempre cintilando com uni brilho apaixonado, erguiam-se vivamente para Angélica, contemplando-a por cima dos pratos, à luz das velas.
- Você é bela! -- disse numa breve pausa. - Via-a diante de mim, enquanto caminhava a esmo pela floresta. Uma visão de luz e de conforto... A mais bela das mulheres...-a mais terna.
- Você se refugiou na floresta?... Esse tempo todo?
O príncipe parecia saciado. Lambeu os dedos e alisou longamente os belos bigodes. Seria efeito das privações ou da luz das velas? A tez parecia amarelecida, acentuando o aspecto asiático de seus olhos rasgados. Mas seu brilho um tanto sarcástico não tinha mistério. Ele jogou para trás os longos cabelos negros, brilhantes e encaracolados como os dos ciganos.
- Sim. Aonde poderia ir?... A floresta. Ela oferecia-se como único refúgio à volta de Versalhes. Tive a sorte de atolar num charco que me levou a um lago onde chapinhei até que os cães em meu encalço me perdessem o rastro... Ouvia seus latidos e os gritos dos cnauos instigando-os... Representar o papel da caça é bem desagradável. Mas tinha Hospadar, meu pequeno pónei. Ele não quis sair da água, apesar do gelo que se formava em seus pêlos. Sabia que isso seria a nossa perdição. Com o anoitecer, compreendemos que os perseguidores haviam desistido.
- Mas como você pôde sobreviver? Onde se abrigou?
- Tive a sorte de encontrar cabanas de lenhadores abandonadas. Acendi o fogo. Depois de dois dias segui caminho. A ponto de sucumbir, avistei uma aldeola na orla da floresta. Esgueirei-me à noite e roubei um cordeiro. Assim vivi muito tempo. Hospadar nutria-se de capim e de bagas. É um cavalo das tundras. De noite, roubava comida na aldeia e de dia enfiava-me na cabana que construí com o facão afiado que sempre trago junto ao corpo. As pessoas da aldeia não se preocupavam com a fumaça que viam de vez em quando. Acusavam os lobos pelos animais roubados... Os lobos! Alguns vinham por vezes rondar nosso abrigo. Afastava-os com archotes. Um dia decidi avançar. Queria descer para o sul e sair da floresta, onde ninguém tivesse ouvido falar de nós... Mas... como explicar-lhe... A floresta é uma realidade dura para um homem das estepes. Nenhum vento ou cheiro para me guiar. A neblina de inverno, a neve velando o crepúsculo. A floresta! É um mundo fechado como o palácio dos sonhos... Um dia cheguei a uma elevação. Vi a floresta ao meu redor como o mar. Só árvores e os vazios dos pântanos. O deserto... E no centro, ao longe, uma ilha... Uma ilha branca e rosa, com um brilho aterrador. Uma ilha erguida pela mão do homem... Compreendi que havia voltado ao ponto de partida. Era Versalhes.
Ele interrompeu-se, a cabeça inclinada, e pela primeira vez ela o viu curvado sob o peso da derrota.
- Permanecemos muito tempo ao vento, contemplando-o. Compreendi que não poderia escapar da vontade do homem que construíra aquilo: Versalhes! Aos pés do palácio havia uma espécie de tapete multicolorido. Na orla dos bosques, em pleno inverno, eu via o vermelho, o malva, o azul, o amarelo.
- Eram flores - murmurou Angélica. - Era a recepção à embaixada persa.
- Pensei que fosse uma miragem causada pela fome... Estava esgotado e me senti desencorajado. Pois ali via o que já pensava antes: seu rei é o rei mais poderoso do mundo.
- No entanto, você ousou desafiá-lo de modo violento. Que gesto louco! Que insulto! Seu punhal aos pés do rei, diante de toda a corte de Versalhes!...
Rakoczi espreguiçou-se por trás da mesa com um sorriso.
- Um insulto respondeu a outro. Será que você não sentiu um pequeno prazer com meu gesto? __ Talvez... Mas veja aonde ele o levou. Sua causa sofrerá com isso. __ É verdade... Infelizmente! Nossos antepassados orientais
legaram-nos sua paixão e não sua sabedoria. Quando pensamos que é mais fácil morrer que sujeitar-se, estamos prontos para os gestos insensatos e as grandes façanhas. Ainda não parei de defrontar-me na arena com a tirania dos grandes. Então pensei subitamente em você. Ele balançou a cabeça suavemente.
- Só numa mulher um proscrito pode confiar. Alguns homem por vezes entregaram pessoas a quem deram asilo. As mulheres nunca. Decidi encontrá-la e consegui. Necessito de sua ajuda para fugir. Queria refugiar-me na Holanda. E uma república que pagou caro a liberdade. Ela oferecffboa acolhida aos perseguidos.
- Que você fez com Hospadar?
- Não podia sair da floresta com ele... Seria denunciar-me. Todos apontariam o cavalinho dos hunos. Também não podia abandoná-lo à floresta e aos lobos... Então cortei-lhe a carótida com meu facão.
- Não! - gritou Angélica, e seus olhos encheram-se de lágrimas.
Rakoczi esvaziou bruscamente a taça diante dele. Levantou-se e veio para junto dela com passo lento. Sentando-se a meio na mesa, inclinou-se e examinou-a com extrema atenção.
- Em meu país - disse em tom grave -, vi soldados jogarem crianças nas chamas, sob o olhar das mães. Outras que eram penduradas em árvores pelos pés, com suas mães ali, presenciando sua lenta agonia, tapando os ouvidos para sempre, diante dos gritos e lamentações dos pequenos mártires inocentes...
"Era a repressão conduzida pelo rei da Hungria, incentivada pelo imperador da Alemanha. Por isso peguei o archote e provoquei outros incêndios. Que significa diante disso a morte de um cavalinho fiel? Evitemos fraquezas inúteis. Disse-lhe que possuía apenas meu cavalo e meu punhal. Mas ainda era muito. Agora não me resta realmente nada!"
Ela sacudiu a cabeça, incapaz de falar. Ergueu-se e dirigiu-se à secretária. Pegou o punhal de turquesas no cofre e estendeu-o. O rosto do húngaro iluminou-se.
- Ele veio ter às suas mãos! Ah! Foi Deus quem me guiou fazendo de você minha única estrela neste país... Vejo nisso'um penhor de minha vitória. Por que está chorando, meu belo anjo?
- Não sei. Tudo isso me parece tão cruel e inelutável!
Por trás do véu de lágrimas, o rosto do estrangeiro parecia-lhe o de um sacrificado. Mas viu-lhe a mão delgada crispando-se em torno do punhal. Rakoczi reencontrava uma arma que aprendera a usar e que ainda lhe seria útil. Enfiou-o no cinto.
- Nada é inelutável no mundo, quando o homem combate para viver de acordo com seu espírito - afirmou ele.
Estirou-se bruscamente, as pernas afastadas e os braços estendidos, com intensa satisfação.
Depois de uma inacreditável provação física, poucas horas haviam bastado para que recuperasse a força e a flexibilidade. Ocorreu a Angélica que ele lhe lembrava alguém, menos pelo rosto estrangeiro que pela longa e magra silhueta, como que movida por molas de aço.
- Mas por hora tenho o espírito confuso - disse Rakoczi, os lábios arregaçados num sorriso de lobo. - Não sinto senão a avidez de meu corpo.
- Ainda está com fome?
- Sim... de você.
Ele a considerava, inclinado para ela, mergulhando os olhos brilhantes e penetrantes nos dela.
- Mulher... bela mulher de França, leve a sério meu amor. Não sou um gracejador.
- Decerto que não, você o provou - disse, comovida, sorrindo.
- Minhas palavras são sérias como meus atos. O amor que lhe tenho está enraizado em meus braços, minhas pernas, meu corpo inteiro. Se pudesse abraçá-la, eu a aqueceria.
- Mas não sinto frio!
- Sim, muito frio. Sinto seu coração perdido e gelado, e ouço seus soluços distantes... Achegue-se a mim.
Ele enlaçou-a sem violência, mas com uma força que a fez desfalecer. Os lábios de Rakoczi, em sua nuca, procuravam a parte sensível e vulnerável atrás da orelha. Ela sentia-se incapaz de repeli-lo.
Seus cabelos se confundiram. Ela sentiu os bigodes sedosos roçarem-lhe os seios, que ele beijava, debruçado, como se bebesse numa fonte de delícias.
Uma vaga profunda, quase dolorosa, despertada pela doçura, deixou-lhe a garganta seca e as mãos trêmulasvA cada segundo sentia-se mais presa àquele rijo corpo invencível. Quando ele a deixou, ela vacilou confusa, privada de apoio. Nos olhos de Rakoczi havia uma súplica exigente.
Angélica afastou-se e tornou ao quarto. Súbito, começou a despir-se, impaciente. Arrancou febrilmente o rígido corpete de cetim e deixou cair as pesadas saias. Sentiu seu corpo brotar, morno e leve, da camisa de rendas.
Ajoelhada na cama, soltou o cabelo. Invadia-a uma paixão pura, primitiva, sem sombra. Ele perdera tudo. Ela nada lhe pediria em troca. Gom voluptuosidade, deixou os cabelos deslizarem nas costas nuas. Corria os dedos por eles, "separava-os, afastava-os, inclinando a cabeça para trás, os elhos fechados.
Da soleira da peça, Rakoczi a contemplava.
A luz âmbar da lamparina de óleo, na cabeceira dâ cama, acentuava a curva de um flanco suavemente arqueado, fremente, e avivava o brilho admirável da cabeleira de ouro escuro, que lhe caía como uma capa fluida sobre os ombros roliços e os seios expostos.
Conservava no pescoço o colar de pérolas rosa.
Por entre os cílios, ela o viu avançar. Com um choque, percebeu de repente a quem ele semelhava. Sua silhueta longa e magra recordava-lhe seu primeiro esposo, o Conde de Peyrac, que fora queimado na Place de Greve. Ele era apenas um pouco mais baixo, e não coxeava.
Ela estendeu-lhe os braços, chamando-o com um gemido surdo.
De um salto, ele novamente enlaçou-a. Ela desfaleceu e se deixou curvar, abandonando-se ao cerco suave de suas carícias. Um prazer agudo e penetrante apossava-se dela.
"Como é bom um homem!", pensou.
CAPÍTULO XIV
Detenção
Era a terceira noite que ela dormia junto àquele comprido corpo masculino, no calor do leito confortável, de cortinas bem fechadas. Não se fartava de saborear a sensação recuperada de uma presença a seu lado, que desfrutava mesmo inconscientemente. E quando vinha a aurora, fazendo o sono mais leve, ela procurava o primeiro contato com sua mão imóvel, e a suavidade de seus cabelos. Quando ele se fosse, ela novamente sentiria frio e estaria só. Não perguntava a si mesma se o amava. Não importava.
Ele despertou de súbito, com a prontidão de um homem sempre à espreita. A todo instante ela se surpreendia com aquele rosto estrangeiro. Por um breve momento sentiu o temor da mulher de uma cidade invadida, que desperta no leito do invasor. Mas ele tomou-a em seus braços. Ela estava nua. Não se cansava de mostrar-se nua e submissa. Seu corpo parecia-lhe transformado pelas carícias. E aquele homem, sem imaginar que ela, tão bela e sempre cercada de gente, pudesse ter vivido tanto tempo só, surpreendia-se ao descobri-la carinhosa e apaixonada, infatigável para o prazer, reclamando e aceitando o amor com uma espécie de timidez fascinada.
- Você não cessa de revelar-se a mim - murmurou-lhe ao ouvido. - Imaginava-a muito forte, um pouco dura, muito inteligente para ser verdadeiramente sensual. Mas você possui todas as maravilhas! Vem comigo. Será minha mulher.
- Tenho dois filhos.
- Nós os levaremos conosco. Faremos deles cavaleiros das estepes e heróis.
Angélica tentava imaginar Carlos Henrique, aquele anjinho, como um mártir da causa húngara, e ria, espalhando os cabelos com negligência sobre os ombros acetinados.' Rakoxzi estreitou-a selvagemente.
-Como você é bela! Não poderia viver sem você. Longe de você, minha força se esvairá como de uma ferida. Agora, você não pode deixar-me...
Bruscamente, ergueu-se.
-Quem vem lá?
Com gesto violento, puxou as cortinas. Viu a porta abrir-se nofundo do quarto e, na soleira, Péguilin de Lauzun. Atrás dele, perfilavam-se as silhuetas de grandes penachos dos mosqueteiros do rei.
O marquês avançou, feziima saudação com a espada e disse, muito cortês:
-Príncipe, em nome do rei o senhor está preso.
Após um segundo de silêncio, o húngaro saiu dò leito sem nenhum constrangimento e saudou-o.
-Meu casaco está sobre o espaldar daquela poltrona - disse Rakoczi, muito calmo. - Passe-o a mim, por obséquio. É só o tempo de vestir-me e o seguirei, senhor!
Angélica se perguntava se não estaria sonhando. A cena era semelhante ao pesadelo que vinha tendo há três noites.
Estava petrificada, inconsciente da desordem impudica em que se achava.
Lauzun considerou-a com uma mímica admirativa, jogou-lhe um beijo com os dedos, e disse em seguida, retesando-se:
-Senhora, em nome do rei está presa.
CAPITULO XV
Maria Inês, a carmelita
Alguém bateu na porta da cela e entrou com passo macio.
Angélica, encorujada na alta cadeira de madeira carcomida, não se voltou. Mais uma freira de olhos baixos trazendo-lhe uma papa qualquer e ostentando um semblante servil... Ela esfregou as mãos entorpecidas pela umidade da peça e retomou a agulha de tapeçaria, enfiando-a com raiva no trabalho à' sua frente.
A fresca risada que ecoou junto dela fê-la sobressaltar-se. A jovem religiosa que acabava de entrar divertia-se à larga.
- Maria Inês - exclamou Angélica, erguendo-se ao reconhecer sua irmã.
- Oh! Minha pobre Angélica. Se você soubesse como é divertido vê-la assim, como prisioneira, reduzida a fazer tapeçaria!
- Gosto muito de fazer tapeçaria. Em outras circunstâncias, evidentemente!... Mas você, Maria Inês, como fez para vir até aqui? Como conseguiu entrar?
- Não tive que entrar. Esta é minha casa. Você está em meu próprio convento.
- Nas carmelitas da montanha Santa Genoveva?
- Exatamente. Bendigamos o acaso que nos aproximou. Não soube senão nesta manhã o nome da grande dama de que somos carcereiras, e minha superiora imediatamente autorizou-me a vê-la. Naturalmente, ajudá-la-ei no que puder.
- Infelizmente não sei se você pode fazer muito por mim - disse Angélica com amargura. - Depois de três dias neste local, compreendi que ordens muito severas foram dadas com relação a mim. As religiosas que me servem são tão surdas e mudas como a criadinha idiota que varre o quarto. Pedi para ver a superiora. Ainda estou esperando por ela..,
- Não é fácil para nós cumprir as ordens imperiosas de Sua Majestade, quando ele nos confia uma ovelha corrompida que deve ser mantida fora do rebanho comum.
- Agradeço-lhe pela expressão.
- Foi a que usaram para introduzi-la entre nós, ovelhas sem mácula.
Os olhos verdes, tão semelhantes aos da irmã, cintilavam no rosto pálido, adelgaçado pelas mortificações.
- Você está aqui para expiar suas grandes e múltipas faltas contra a moral.
- Que hipocrisia!_Se estou aqui por imoralidade, há muito todas as mulheres da corte-deviam estar sob ferrolhos.
- No entanto, você foi denunciada pela Companhia do Santo Sacramento.
Angélica sobressaltou-se e mirou longamente airmã.
- Você não ignora - retomou ela - que a nobre Companhia se propõe a perseguir a luxúria por toda parte. E através de seus membros que o rei obtém as melhores informações sobre a vida privada de seus súditos. Eles têm espiões por todo lado e não deixam as pessoas... como dizer?... dormirem em paz.
- Você está querendo dizer que eu teria em minha casa criados pagos pela Companhia do Santo Sacramento para mantê-la a par de minha vida privada?
- Com certeza. Nisso você está sob a mesma mira que todas as grandes personagens da corte e da cidade.
Lentamente, Angélica passou três vezes a agulha com lã vermelha por entre os fios da talagarça.
- Aí está como o rei soube que eu abrigava Rakoczi! Conseguiria informar-se sobre quem foi encarregado de denunciar-me ao rei, Maria Inês?
- E bem possível. Temos toda espécie de nomes importantes entre nossas irmãs, e que estão a par de mil segredos.
Ela voltou no dia seguinte com um sorriso astuto, cheio de promessas.
- O que se tem é o seguinte: ao que tudo indica, você foi tão rapidamente arrancada das garras do demónio graças à Sra. de Choisy.
- Que está dizendo? A Sra. de Choisy?
- Sim. É ela quem está encarregada de sua alma há bastante tempo. Procura lembrar. Essa nobre dama jamais tentou recomendar-Ihe uma criada, um lacaio?...
- Senhor! - suspirou Angélica com amargura. - Se me recomendou algum criado? Sim, três, quatro, uma meia dúzia. Em suma, toda a casa de meus filhos é composta de protegidos da Sra. de Choisy.
Maria Inês riu até perder o fôlego.
- Como você é inocente, pobre Angélica! Sempre a achei ingénua em demasia para viver na corte.
- Como poderia saber que ali se tem tanto interesse na salvação das almas?
- Ali se tem interesse por tudo. É o cadinho das paixões humanas. Deus necessita de soldados intransigentes, e a força da santa Companhia está no segredo. Eles não recuam diante de nenhum meio para salvar as almas. A pureza de suas intenções santifica o que as consciências simplistas chamariam de vilania.
- Não me diga que concorda com eles - trovejou Angélica, encolerizada -, ou nunca mais tornarei a vê-la!
A religiosa continuou a sorrir com ironia; depois baixou as pálpebras com gravidade.
- Deus é o único juiz - disse.
Ergueu-se, afirmando que faria o possível para manter a irmã a par da sorte que lhe reservavam. Não era impossível intervir em seu favor. Tudo estava nas mãos da Companhia do Santo Sacramento, e a superiora das carmelitas tinha grande influência sobre esse comité de piedosos laicos.
- Não se esqueça de que no meu caso há um elemento político - recomendou Angélica. - Rakoczi era um revolucionário estrangeiro e...
- Isso pouco importa. Aos olhos severos dos devotos, um amante é um amante. Sua personalidade não lhe serve de desculpa... a não ser que se trate do rei, evidentemente. E talvez seja isso que a salve.
Ela se foi, cáustica e sedutora sob os escuros véus. Passaram-se 0s dias. Então, Angélica teve a surpresa de ver o Sr. Solignac penetrar na cela. A personagem trazia-lhe penosas recordações, mas, como desde as primeiras palavras referiu-se à clemência do rei para com ela, deixando-a entrever uma esperança de liberdade, ela escondeu o ressentimento e escutou-o com a necessária paciência. A coisa foi demorada. Teve que suportar um verdadeiro sermão sobre os desvarios da carne, que lhe'pareceu bastante em desacordo com as três noites felizes que passara nos braços de Rakoczi. Que destino teria tido? Ela evitava perguntar-se sobre ele em demasia, a fim de não perder a coragem.
- Veio em nome do rei, senhor? - perguntou por fim.
- Evidentemente, senhora. Só uma decisão de Sua Majestade poderia obrigar-me a esta atitude, que pessoalmente julgo muito prematura. Em nossa opinião, seria necessário um lapso de tempo maior para que a senhora pudesse meditar...
- E quais são as intenções de Sua Majestade a meu respeito?
- A senhora está livre - admitiu Solignac, comprimindo os lábios. - Livre, bem entendido, para deixar o convento e voltar à sua Mansão do Beautreillis. Mas sob nenhum pretexto deve voltar à corte sem antes ser convidada.
- Fui então demitida de meus cargos?
- Era escusado dizer. Não preciso acrescentar que, até ser perdoada, deve levar uma vida exemplar e ter uma conduta que possa ser observada sem críticas.
-Observada por quem? - perguntou Angélica, sem rodeios.
O Sr. de Solignac declinou de responder e ergueu-se com condescendência. A jovem enfiou a lã na agulha e voltou à tapeçaria.
- Mas, senhora - disse Solignac, surpreso -, não ouviu o que acabo de dizer?
- O quê, senhor?
- Está livre.
- Agradeço-lhe, senhor.
- Estou pronto para escoltá-la até sua residência.
- Muito grata, senhor, mas para que me apressar? Não me aborreço aqui e fruirei minha liberdade quando me aprouver... e como me aprouver. Agradeça a Sua Majestade por mim. Muito grata, senhor, muito grata. Eu o abençoo.
Desconcertado com esses suaves protestos, o Sr. de Solignac acabou por despedir-se e partiu.
Angélica pegou seu estojo com objetos de toucador. Mandaria buscar o resto no dia seguinte. Não pudera, aliás, trazer muita coisa quando fora detida. Agora tinha vontade de voltar a pé, para certificar-se da liberdade reconquistada. A brincadeira de mau gosto fora breve, felizmente. Mas era preciso que não se renovasse com muita frequência. É desagradável viver à mercê de um deslize que pode nos levar para trás das grades pelo resto de nossos dias.
- Por que a Companhia do Santo Sacramento se mostra tão intransigente a meu respeito? - perguntou a Maria Inês, com quem se encontrou no locutório para as despedidas. -Já não têm o que fazer com maiores pecadores do que eu? Agora que você me abriu os olhos, percebo que sempre fui vigiada, seguida, e que não cessaram de armar-me ciladas. Recordo que em Fontainebleau a Sra. de Choisy me comunicara que deixasse o palácio por ordem do rei. Mais tarde compreendi que a ordem jamais fora dada e que, partindo, cometera um erro que poderia ter-me sido fatal. Por que essas pessoas que eu desconhecia, e a quem nada havia feito, se preocupavam em prejudicar-me?...
- Há algo em você que desperta o ódio das pessoas virtuosas - disse Maria Inês pensativamente.
Recebia a irmã por trás das grades de madeira, por não poder franquear os limites do locutório.
- Que lhe aconselhou o Sr. de Solignac? - perguntou ainda.
- Que tornasse à casa e ali vivesse de modo exemplar, longe dos prazeres da corte.
- Então faça o contrário ao menos no que diz respeito à primeira parte do programa. Vá a Versalhes o mais rápido possível e peça para ver o rei.
- Mas, se as ordens forem verdadeiras, incorrerei na cólera de Sua Majestade.
- Você pode permitir-se isso - disse Maria Inês em tom despreocupado. - Ninguém ignora que o rei está loucamente apaixonado por você. Na verdade, sua cólera, atiçada pelos comentários de uma Sra. de Choisy ou de um Solignac, foi a expressão de seu real ciúme. Ponha-se em seu lugar. Contam que você o faz esperar, que sua virtude resiste aos assédios do Rei Sol, e de repente dorme com um estrangeiro proscrito, sem um vintém, procurado nela polícia do reino. Que decepção para o rei! Que decepção para os devotos! Você engana a todos de modo desavergonhado. Em suma, você perde por todos os lados.
__ Maria Inês, a profundidade de Suas apreciações me confunde. Você me acha idiota, e com razão. Se a tivesse junto a mim, na corte, para aconselhar-me! Mas você jogaria seu próprio jogo e deixaria suas rivais para trás, ofegantes, rasgadas por suas unhas afiadas. Não consigo compreender o que faz você neste carmelo. Quando você quis voltar-se para a religião, acreditava tratar-se de um capricho. Mas você persiste nisso. E toda vez: que a encontro e escuto espanto-me por vê-la sob essas roupas de freira.
- Você se espanta?... - repetiu Maria Inês.
Ela ergueu a cabeça, e a luz amarela de um grosso círio a um canto da peça iluminou-lhe, por entre as grades, os olhos desmesuradamente abertos.
- Recorda-se de que tive vim filho, Angélica? Fui mãe uma vez, e foi você quem me ajudou anão morrer. Mase a criança? E meu filho?... Abandonei-o à adivinha Monvoisin, aquela feiticeira sinistra. E sonho amiúde com aquele corpinho inocente, saído de mim, no altar do Demónio. É o que fazem, eu o sei, em suas missas negras. As pessoas pedem-lhes amor, poder, fortuna, a morte de alguém, as honras a que aspiram. Todas-as quinquilharias do mundo, eles vão pedi-las ao Demónio. E a ignóbil paródia se realiza. Penso em meu filho... Com uma longa agulha perfuram-lhe o coração, para misturar seu sangue a imundícies, fazendo com isso uma hóstia sacrílega. E quando penso nisso, se pudesse fazer algo mais em expiação, além de dedicar minha vida ao claustro, eu o faria...
Aneél ica tremia, enquanto descia a Rue de La Montagne-Sainte Geneviève. Agora havia luzes em Paris. Diziam que o novo tenente de polícia, Sr. de La Reynie, tinha em mira fazer de Paris uma cidade limpa e clara, onde as mulheres honestas poderiam sair em segurança, com o cair da noite. De espaço em espaço, grossas lanternas encimadas por um galo, emblema da vigilância, derramavam um halo avermelhado tranquilizador.
Mas conseguiria o Sr. de La Reynie dissipar as trevas espessas do ódio e do crime espalhadas pela cidade? Angélica pensava nesse mundo que durante anos lhe correra pelas veias, com suas tentações, delícias e horrores. Que prevaleceria, a luz ou as trevas? O fogo do céu não se abateria sobre a cidade por ali não existir um único justo? A última confidência de sua irmã despertara-lhe um temor que a esmagava. Ela se sentia ameaçada por todos os lados.
Na Mansão do Beautreillis foi acolhida por alguns servidores que lhe permaneciam fiéis. Os outros haviam fugido. Diante do abandono e da desordem da moradia, ela sentiu a força do desvali-mento real, e pela primeira vez pensou com inquietação em Flo-rimond. Bárbara disse-lhe que não tinha notícias do garotinho. Tudo o que sabia era que deixara o serviço de copeiro em Versalhes.
- Tem certeza? - perguntou a jovem, aterrada.
Voltar-se-iam por ventura contra Florimond?
Malbrant Golpe de Espada e o Abade de Lesdiguières não haviam retornado. As senhoritas de Gilandon haviam deixado o local.
- Que façam bom proveito! Estou certa de que foram aquelas presumidas que me denunciaram.
O pequeno Carlos Henrique olhava para a mãe com seus grandes olhos azuis. Ela teve vontade de trazê-lo para seus joelhos e apertá-lo contra si como o único bem precioso que lhe restava. Mas recusou-se a enternecer-se. Ademais, a visão da criança a deprimia. Para que se trazem crianças ao mundo senão para multiplicar nele os tormentos e sofrer com o destino delas, ameaçado por nossa culpa?
Ela preferiu encerrar-se no quarto e destampar o frasco de aguardente de ameixa que a ajudaria a vencer o abatimento moral e cobrar forças para a luta que se anunciava.
Um pouco mais tarde, semi-embriagada, de joelhos aos pés da cama, ela fez esta estranha prece:
"O Deus, se o fogo do céu tiver que se abater sobre a cidade, tenha piedade de mim. Tire-me dela e guie-me para as verdes pastagens onde me espera meu amor..."
CAPÍTULO XVI
Entrevista na gruta de Tétis - "Um dia embarcaremos para Citera", diz o rei
Versalhes estava inundada-de luz. Um dia de abril, inesperadamente quente e primaveril,^envolvia p palácio com o vapor rosa e dourado, que parece característico das regiões com água estagnada.
- Como Versalhes é bela - disse Angélica consigo.
Voltara-lhe a coragem, e as inquietações místicas se haviam dissipado. Diante de Versalhes podia-se crer na clemência de Deus e do rei, que edificara tais maravilhas.
Mas uma coisa era certa. O Sr. de Solignac não mentira ao afirmar que Angélica estava banida de Versalhes até segunda ordem. Bontemps, a quem conseguira passar uma mensagem e que viera ter com ela próximo ao lago de Clagny, confirmou-lhe o ostracismo que a atingia.
- Por vários dias Sua Majestade não pôde suportar a simples menção de seu nome. As pessoas ainda evitam pronunciá-lo diante dele. A senhora o ofendeu gravemente... Não sabe a que ponto.
- Estou desolada, Bontemps. Não poderia ver o rei?
- Perdeu a razão, senhora. Digo-lhe que o rei não pode ouvir falar em seu nome.
- Mas se ele me visse, Bontemps, se você me ajudasse a vê-lo, não pensou que ele lhe seria... um pouquinho grato?
O primeiro criado de quarto refletia, acariciando a ponta do na-nz. Sabia mais do humor do senhor que seu próprio confessor, e ate onde podia arriscar-se sem desagradar-lhe. E tomou sua decisão.
- Está bem, senhora. Farei o possível para que Sua Majestade a encontre em segredo. Faça com que a perdoe, e ele me perdoará.
Aconselhou-a a que esperasse na gruta de Tétis. O local estava deserto, pois toda a corte se achava perto do grande canal, onde se inaugurava uma flotilha de galeotas em miniatura.
- Os barcos irão espalhar-se ao longo do caminho para o Trianon, e o rei poderá afastar-se sem chamar a atenção. E ele pode chegar à gruta de Tétis sem passar pelo palácio. Mas não tenho como precisar a hora. Deverá ter paciência, senhora.
- Tê-la-ei. Ademais, a gruta é um local delicioso, e ali ao menos não sentirei calor. Sr. Bontemps, jamais esquecerei dos serviços que hoje me presta.
O primeiro criado de quarto também assim o entendia. Inclinou-se, na esperança de estar jogando a carta certa. Jamais suportara a Sra. de Montespan..
A gruta de Tétis, construída num maciço ao norte do castelo, era uma das mais raras curiosidades de Versalhes. Angélica penetrou por uma das três portas gradeadas, onde douraduras sob a forma de raios de sol encimavam três baixos-relevos, que representavam o carro de Apolo mergulhando nas águas, pois o sol, ao final da jornada, vai repousar junto a Tétis.
O interior era um palácio de sonho. Os pilares de pedra, os nichos de nácar onde tritões sopravam em suas conchas, refletiam-se ao infinito nos espelhos engastados em conchas, criando perspectivas profundas.
Angélica sentou-se na borda de uma concha de mármore jaspea-do. Ao seu redor, amáveis nereidas brandiam castiçais aquáticos com seis braços dourados sob a forma de algas marinhas lançando jatos de água perolados. Um farfalhar de arvoredo, provocado pelos chilreios de milhares de pássaros, animava as abóbadas emba-çadas-de orvalho. Causavam admiração as graciosas criaturinhas de pérola e nácar, aves de um paraíso marinho, de penas prateadas, que pareciam divertir-se à volta, criando uma ilusão de vida com seus cantos harmoniosos. Era o resultado de um novo invento de Francinet. Órgãos hidráulicos haviam sido localizados de tal forma que ecoavam pela gruta inteira.
A jovem divertiu-se ouvindo-os e tentou distrair-se observando os belos objetos que a rodeavam. O refinamento da arte e da tecnica atingia a perfeição. Podia-se compreender o amor do rei por esse local suntuoso e singular. Quando fazia bom tempo, gostava de ali levar as damas para ouvir violinos. No ano anterior, em agosto oferecera na gruta uma bela refeição de frutas e geléias para o príncipe da Toscânia. Angélica déslizou-a mão pela água fluida, cristalina como de uma fonte. Evitava pensar. Seria inútil, e talvez nefasto, preparar frases que soariam inadequadas. Contava com sua espontaneidade. Mas, à medida que as horas passavam, ela se sentia dominar pela ansiedade. Iria ver o rei. E os temores que ele podia inspirar vinham, como rajadas, envolvê-la numa espécie de véu glacial. Ao mirar o rei, tão calmo, ponderado e afável, sentia-se por vezes dominada pela majestade assustadora que transparecia naquela máscara de homem comum. Uma espécie de temor a transpassava então como um raio, e, se nesse momento ele lhe dirigisse a palavra, ela balbuciaria, como tantos outros que eram tomados de estupor pela presença real. Lembrava-se de ter visto na frente de Flandres um rude suboficial coberto de glória e de cicatrizes que, ao se ver de'súbito diante de Luís XIV e de seu séquito, empalidecera, respondendo com palavras indistintas às perguntas que o rei lhe fazia, no entanto, com doçura.
"Se me deixar levar pelo medo, estarei perdida", disse consigo. "Não deveria sentir medo. O medo atrai a derrota... Mas meu des-.tino está nas mãos do rei." "
Ela estremeceu. Pensara ter ouvido um passo no piso de seixos rolados sob a forma de mosaico. Mas não havia ninguém. Dirigiu o olhar para a entrada principal, voltada para o poente, e que o cair da tarde tingia de rosa. Acima do dintel via-se o emblema do rei feito de conchinhas semelhando pérolas, sobre um fundo de conchas cinza, onde a coroa ornada com flores-de-lis de nácar e âmbar brilhava como ouro na penumbra.
Angélica não conseguia desviar os olhos do emblema. Sentindo uma presença junto de si, hesitou em voltar-se. Quando lentamente o fez, deparou com o rei. Ela ergueu-se e permaneceu imóvel, como que fascinada, esquecendo de fazer a reverência.
O rei entrara por uma das pequenas portas dissimuladas na gruta que davam para os jardins do norte e serviam de acesso aos domésticos em dia de recepção. Envergava um casaco de tafetá amaranto com bordados singelos, mas realçado pela beleza das ren-,
das da gravata e dos punhos. Seu semblante não augurava nada de bom.
- Com que então, senhora - disse secamente -, não receia minha cólera? Não compreendeu o que lhe fiz comunicar através do Sr. de Solignac? Quer provocar um escândalo? Será preciso que lhe diga, diante de testemunhas, que sua presença é indesejável na corte? Sabia que minha paciência está terminando? Vamos, responda...
A essas perguntas, que ele lhe enviava como balas, ela respondeu:
- Queria vê-lo, sire.
Que homem resistiria ao encanto daquele olhar esmeralda, comovente e misterioso, erguendo-se para ele na penumbra dourada da gruta de Tétis? O rei não era de molde a permanecer insensível. Viu que a emoção da jovem não era fingida e que seu corpo inteiro tremia.
A máscara severa partiu-se.
- Por quê... Oh! Por que o fez? - gritou, quase dolorosamente. - Essa traição indigna...
- Um proscrito pedia-me asilo, sire. Dai às mulheres o direito de agir com o coração e não segundo princípios políticos inumanos. Fosse qual fosse o crime desse estrangeiro, era um infeliz que morria de fome.
- Tratava-se, de fato, de política. Podia acolhê-lo, alimentá-lo, ajudá-lo a fugir, pouco importa! Mas você fez dele seu amante. Procedeu como uma prostituta.
- Seus termos são duros, sire. Recordo-me de que Vossa Majestade se mostrou mais indulgente para comigo quando do penoso incidente entre meu marido e o Sr. de Lauzun, em Fontainebleau. E eu tinha então mais culpa do que agora.
- Meu coração mudou depois disso - disse o rei.
Ele baixou a cabeça, como que esmagado.
- Não quero... Não quero que entregue a outros o que me recusa.
Pôs-se a andar de um lado para outro, tocando maquinalmente com o dedo os pássaros nacarados e os tritões de faces redondas. Com as palavras simples de um homem ciumento, confessava sua amargura, sua decepção, sua frustração. E esse soberano reservado deixava que seus planos se revelassem.
- Quis ter paciência. Quis provocá-la em sua vaidade, em sua ambição. Contava com que aprendesse a conhecer-me melhor, com que seu coração finalmente se enternecesse... não sei ao certo. Procurei o caminho pelo qual poderia fazê-la minha, e, vendo que a pressa a desagradava, deixei que o tempo agisse. Há anos, sim, há anos que a cobiço. Desde o primeiro dia.em que a vi como a deusa da primavera. Já possuía essa insolência soberba, essa negligência para com a disciplina mundana... Você se apresentava ao rei sem convite... Ah! Como era bela e audaciosa! Compreendi que você seria minha, que a desejaria loucamente. A conquista parecia-me fácil. Mas com que manobra você me repeliu? Ignoro-o. Vejo-me agora sem nada. Seus beijos não eram promessas nem confissões. Suas confidências, seus sorrisos ou palavras graves eram armadilhas onde fui o único a cair. Padeci tormentos cruéis por não poder estreitá-la em meus braços, por não ousar fazê-lo com medo de vê-la distanciax-sç ainda mais... Para que tanta paciência, tantos cuidados? Veja enrque desprezo ainda me tem, enquanto se entrega a um miseravet selvagem, dos Cárpatos. Como poderia perdoá-la?... Por que está tremendo desse modo? Está com frio?
- Não. Estou com medo.
- De mim?
- De seu poder, sire.
- Seu temor me magoa.
Ele aproximou-se e pousou as mãos em sua cintura.
- Suplico-lhe, Angélica, cesse de temer-me. Vindo de você, esse temor me é penoso. Gostaria de trazer-lhe somente alegria, felicidade, prazer. Que não faria para vê-la sorrir! Procuro em vão aquilo que possa satisfazê-la. Não trema, meu amor. Não lhe farei mal. Não poderia. O mês que findou foi um inferno. Procurava-a com os olhos por todo lado. E não cessava de imaginá-la nos braços daquele Rakoczi. Ah! Quisera tê-lo matado.
- Que fez dele, sire?
- É sua sorte que a preocupa, não é fato? - escarneceu. - Foi por ele que teve a coragem de apresentar-se diante de mim? Então tranqúilize-se, seu Rakoczi sequer está na prisão;. E veja como me julgou mal: cumulei-o de benefícios. Dei-lhe tudo o que de há muito procurava obter. Ele partiu para a Hungria coberto de ouro, para ali semear a desordem, já que tanto lhe agrada promover a discórdia entre o imperador da Alemanha, o rei da Hungria e os ucranianos. Isso arranja meus planos, pois no momento não mais preciso de uma coligação na Europa Central. Portanto, tudo caminha da melhor maneira possível.
Da última frase, Angélica não retivera senão as palavras: ele partira para a Hungria. Ela sentiu um choque. Não sabia qual a profundidade de sua ligação com Rakoczi, mas em nenhum momento pensou que não mais poderia vê-lo. E ele partira para aquelas terras selvagens e distantes que lhe pareciam pertencer a um outro planeta. O rei varrera-o bruscamente de sua vida, e ela não mais o veria. Nunca mais. Teve vontade de gritar de raiva. Queria rever Rakoczi. Porque era seu amigo. Ele era saudável, sincero, ardente. Precisava dele. Não tinham o direito de dispor de suas vidas como se fossem marionetes. A cólera ergueu um véu vermelho à sua frente.
- Ao menos lhe deu bastante dinheiro - gritou. - Ele que o use para bater-se, expulsar seus reis, libertar seu povo dos tiranos que o oprimem, e que manejam e dispõem das vidas humanas como títeres; ele que lhes dê a liberdade de pensar, de respirar, de amar...
- Cale-se!
O rei cingiu-lhe os ombros com mãos de ferro.
- Cale-se!
Falava com voz contida.
- Suplico-lhe, não me insulte, meu amor. Não poderia absolvê-la. Não me grite seu ódio. Você me faz sofrer até o sangue. Não deve pronunciar palavras perigosas que poderiam nos separar. Devemos reencontrar-nos, Angélica. Cale-se. Venha.
Ele fê-la sentar-se na borda de um tanque de mármore, onde a água tinha transparência de pérola. Ela ofegava, os dentes cerrados, a garganta oprimida. A força do rei a dominava.
Ele acariciava-lhe a testa com a mão, que ela amava, comunicando-lhe seu poder.
- Suplico-lhe, não se deixe desonrar por uma crise de nervos.
A Sra. du Plessis-Bellière não se perdoaria.
Ela cedeu com pequenos soluços. Acabrunhada, esgotada, apoiou a cabeça naquele que permanecia em pé, a seu lado. Via-o acima dela, dominando-a. Pela entrada da gruta, a luz do poente impregnava de vermelho e ouro a cabeleira do soberano. Jamais Angélica percebera a tal ponto sua força implacável.
Compreendeu que desde que estava na corte, desde a primeira manhã em que, andorinha fascinada, fora a Versalhes para ali ser coroada deusa da primavera, desde esse dia, sem que o soubesse, estava nas mãos do rei. Certamente o mais rebelde dos animais que ele já domara. Mas conseguiria. Em todas as coisas mostrava a paciência, a astúcia e a calma invencível das grandes feras à espreita. Ele sentou-se junto dela. Continuava a apertá-la calorosamente contra si, falando-lhe com doçura:
- E bem bizarro esse nosso amor, Angélica.
- Tratar-se-ia apenas de amor?
- De minha parte, sim. Se não é amor, que é então? - disse com paixão. - Angélica... Esse nome volta-mè sem cessar à memória. Quando me vejo retido pelo trabalho, fecho de súbito os olhos, uma doce vertigem me domina e o nome vem ter a meus lábios... Angélica! Jamais experimentei um tormento que a tal ponto me distraísse de meu labor. Assusta-me, por vezes, o amor que deixei penetrar em mim. Á fraqueza que provoca é como uma ferida que temo não ver curada. Só você, com seu dom, poderia curar-me. Sonho, sim, chego a sonhar... com a noite em que terei sua pele morna e perfumada contra a minha, com o olhar desconhecido que meu abraço fará nascer em seus olhos... Mas sonho com coisas ainda mais preciosas, e que somente em você me parecem inestimáveis. Com um sorriso seu. Leve, amigável, cúmplice, que me dedicaria no meio da multidão, em dia de grande embaixada, quando então não sou senão o rei descendo a Galeria dos Espelhos, com seu pesado manto e seu cetro. Com um olhar que aprovaria meus intentos. Com um momo, um amuo que me provariam seu ciúme. Com essas coisas comuns e doces que ignoro.
- Suas amantes jamais o fizeram conhecê-las?
- Eram amantes e não amigas. Eu assim o quis. Agora é diferente...
Ele contemplava-a, devorava seus traços com um olhar onde não havia somente desejo, mas um outro sentimento, feito de ternura, de admiração, de devoção, expressão tão curiosa nos olhos do rei que ela não conseguia desviar suas pupilas -das dele. Via que era apenas um homem sozinho gritando-lhe do alto da montanha deserta. Ardentemente, em silêncio, interrogavam-se com o olhar. O sussurro do órgão hidráulico, misturando o som de suas flautas ao ruído das águas num eterno concerto campestre, pairava à volta deles como uma irreal promessa de felicidade. Angélica teve medo de sucumbir. Rompeu o encantamento, voltando-se para outro lado.
- Mas que acontece conosco, Angélica? - disse o rei, baixinho. - Que nos separa? Qual o obstáculo que sinto em você e que me aflige em vão?
A jovem passou a mão na fronte, tentando rir.
- Não sei. Talvez orgulho. Talvez medo. Não reconheço em mim as dualidades suficientes para a dura ocupação de amante real.
- Dura ocupação? Você tem expressões fustigantes!
- Perdoe-me, sire. Mas deixe-me falar com toda a simplicidade enquanto há tempo. Brilhar, aparecer, suportar o peso dos ciúmes, das intrigas e... das infidelidades de Vossa Majestade, jamais se pertencer, ser um objeto de que se dispõe, um brinquedo que é rejeitado quando não mais agrada, é preciso muita ambição ou muito amor para aceitá-lo. A Srta. de La Vallière esfacelou-se em mil pedaços, e eu não tenho a têmpera da Sra. de Montespan.
Ela ergueu-se com ímpeto.
- Permaneça-lhe fiel, sire. Ela é forte como Vossa Majestade. Eu, não. Não me tente mais.
- Pois se sentiu tentada?...
Ele erguera-se e envolvia-a com seus braços, atraindo-a para si e descansando os lábios na sua cabeleira de ouro.
- Seus temores são insensatos, minha bela... Não conheceu de mim senão uma aparência. Com que mulher poderia ter-me mostrado indulgente? As ternas são chorosas e tolas. As ambiciosas têm que sentir a férula para não devorar tudo. Mas você... Você nasceu para ser sultana bakhi, como dizia aquele príncipe sombrio que queria raptá-la. Aquela que domina os reis. Aceito o título desde já. E me inclino. Amo-a de cem modos diferentes. Por sua fraqueza, sua tristeza que desejaria apagar, seu esplendor que desejaria possuir, sua inteligência que me revolta e confunde, mas que se me tornou necessária como os objetos preciosos de ouro e mármore, quase belos em demasia, em sua perfeição, e que é preciso ter junto de si como penhor de riqueza e força. Você me inspirou um sentimento desconhecido: a confiança.
Tomou-lhe o rosto entre as mãos e ergueu-o para si, não se cansando de perscrutar-lhe o mistério.
- Espero tudo de você e sei que, se consentisse em amar-me, não poderia decepcionar-me. Mas, enquanto não for minha, enquanto não ouvir sua voz queixar-se no desfalecimento do amor, terei medo. Temo em você uma traição que me espreita. Eis por que gostaria de apressar sua derrota. Pois, em seguida, não temerei mais nada, nem você nem a terra inteira... Já pensou nisso, Angélica? Você e eu juntos... Que desígnios não poderíamos realizar! Que conquistas não poderíamos empreender! Que grandezas não poderíamos esperar... Você e eu juntos... seríamos invencíveis.
Ela não respondia, como se agitada no fundo do seu ser por um vento terrível. Porém, mantinha as pálpebras fechadas e não oferecia ao rei senão um rosto extremamente pálido', onde ele nada podia decifrar. Compreendendo que o instante de graça havia passado, ele suspirou.
- Não quer responder-me sem ter meditado? Não é mostra senão de sabedoria. E sinto que me odeia muito por ter sido presa.
Muito bem, cabeça teimosa, <iou-lhe ainda oito dias de penitência para que acalme seu rancor e reflita em minhas palavras na solidão. Fique em sua mansão de Paris até domingo próximo. Nesse dia, Versalhes a verá mais bela que nunca, mais amada-, se isso for possível, e mais triunfante em meu coração, malgrado sua conduta condenável! Infelizmente você me ensinou que, mesmo sendo
rei, não se comanda o amor, nem a dedicação nem mesmo o desejo dos outros. Mas saberei ser "paciente. Não me desespero. Dia virá em que embarcaremos para Citera. Sim, minha querida, dia virá em que a levarei ao Trianon. Fiz ali construir uma casinha de porcelana para nela amar você, longe do ruído, das intrigas que a assustam, com a única cumplicidade das flores e árvores que a
rodeiam. Será a primeira a conhecê-la. Cada pedra, cada objeto foram escolhidos para você. Não proteste. Deixe-me apenas a esperança. Saberei esperar.
Ele conduziu-a pela mão até a entrada da gruta.
- Poderia pedir-lhe notícias de meu filho, sire?
O rosto do rei ensombrou-se.
- Ah! Aí está mais uma preocupação causada-por sua turbulenta família. Tive que desfazer-me dos ofícios desse pequeno pajem.
- Devido à minha desgraça?
- Decerto que não. Não tive a intenção de fazê-lo sofrer por isso. Mas sua conduta provocou meu descontentamento. Por duas vezes ele pretendeu que o Sr. Duchesne, meu primeiro mordomo, queria simplesmente envenenar-me! Afirmou ter visto esse oficial colocar um pó em minha comida e acusou-o com estardalhaço. Diante do fogo de seu olhar e da clareza de sua voz, imediatamente se percebe que herdou a audácia da mãe. "Sire, não coma desses pratos, nem beba desse vinho", pronunciou ele claramente, embora acabassem de experimentá-los. "O Sr. Duchesne deitou-lhes veneno."
- Meu Deus! - suspirou Angélica, desolada. - Não sei como exprimir-lhe meu embaraço, sire. Essa criança é exaltada e imaginativa.
- Quando a afjronta se repetiu, tivemos que usar de severidade. Não queria punir gravemente uma criança que me interessa, em razão da afeição que lhe dedico. Monsieur estava presente, e, achando-o divertido, quis tomá-lo a seu serviço. Dei-lhe minha permissão. Seu filho está, pois, em Saint-Cloud, onde meu irmão passa a primavera.
Angélica passou por todas as cores do arco-íris.
- Deixou meu filho partir para aquela pocilga!...
- Senhora - estrondeou o rei. - Novamente suas expressões intoleráveis!
Mas acalmou-se e tomou o partido de rir.
- Assim é você, e ninguém pode nada contra isso. Vamos, não aumente os perigos que ameaçam seu garotinho nessa assembleia bastante leviana, concordo. Seu mestre, o abade, está com ele, bem como seu escudeiro. Desejei ser-lhe agradável e lamentaria não consegui-lo. Naturalmente, quer correr a Saint-Cloud. Peça-me, então, a autorização, para que possa conceder-lhe algo - disse, tomando-a nos braços.
- Sire, permita-me que vá a Saint-Cloud.
- Farei mais que ;sso. Confiar-lhe-ei uma mensagem para Madame, que assim a receberá e a reterá junto dela um dia ou dois. Com isso poderá ver seu filho à vontade.
- Vossa Majestade tem muita bondade para comigo.
- Amor - disse o rei, com gravidade. - Não o esqueça, senhora, e não brinque com meu coração...
CAPÍTULO XVII
Com Madame, em Saint-Cloud - A atmosfera angustiada
Os olhos de Florimond estavam perfeitamente límpidos.
- Asseguro-lhe, min&a mãe. Não estou mentindo. O Sr. Du-chesne envenena o rei. Eu o vi repetidas vezes. Ele põe um pó branco sob a unha, que deixa cair com um piparote na taça de Sua Majestade, entre o momento em que ele próprio experimenta o vinho e aquele em que oferece ao rei.
- Vamos, meu menino, isso é impossível. Ademais, o rei não padeceu de nenhum incomodo em seguida a esses supostos envenenamentos.
- Não sei. Talvez se trate de um veneno a longo prazo.
- Você emprega termos de que ignora o sentido, Florimond. Uma criança não fala de coisas tão graves. Não se esqueça de que o rei está cercado de servidores devotados.
- Nunca se sabe! - disse Florimond, sentencioso. Ele mirava a mãe com uma indulgência um tanto condescendente, que lembrava aquela de Maria Inês. Depois de uma hora tentando fazê-lo confessar suas mentiras, Angélica sentia-se à beira de uma crise de nervos. Decididamente não estava preparada para a educação de um garoto imaginativo. Ele crescera longe"dela. Agora, ele seguia seu caminho, seguro de si, e ela possuía muitas preocupações pessoais para dedicar à questão o cuidado necessário.
- Mas, afinal, quem lhe meteu na cabeça essas ideias de veneno?
- Todo mundo fala em veneno - disse a criança candidamente. - No outro dia, a Duquesa de Vitry requisitou-me para carregar-lhe a cauda do manto. Ia até a Voisin, em Paris. Escutei atrás da porta, enquanto ela consultava a adivinha. Ela pedia um veneno para pôr no caldo de seu velho marido e também um pó para atrair o amor do Sr. de Vivonne. E o pajem do Marquês de Cessac disse-me que seu senhor fora pedir o segredo de como ganhar no jogo e, ao mesmo tempo, um veneno para seu irmão, o Conde de Clermont-Lodève, de quem é herdeiro. Pois bem, o Conde de Clermont-Lodève morreu na semana passada - concluiu Flori-mond, triunfante.
- Meu garoto, você percebe o prejuízo que causa a si mesmo, divulgando tão levianamente tais calúnias? - disse Angélica, tentando manter a paciência. - Ninguém desejará a seu serviço um pajem que tagarela assim, a torto e a direito.
- Mas não estou tagarelando - gritou Florimond, batendo o tacão vermelho contra o solo. - Estou tentando explicar-lhe. Mas creio... sim, creio verdadeiramente que você é tola - concluiu, voltando-se para o outro lado com um movimento de dignidade ofendida.
Ficou a contemplar o céu azul através da janela aberta, tentando conter o tremor dos lábios. Não iria chorar como um bebé, apesar de tudo; lágrimas de vexação ardiam-lhe nos olhos.
Angélica não mais sabia por onde surpreendê-lo. Havia naquela criança algo que não conseguia decifrar. Ele certamente mentia sem necessidade, e com uma segurança desconcertante. Com que objetivo? Em desespero de causa, voltou-se para o Abade de Les-diguières e despejou nele seu descontentamento.
- Esta criança merece ser esbofeteada; você não faz jus a meus cumprimentos.
O jovem eclesiástico enrubesceu até a borda da peruca.
- Faço o melhor possível, senhora. Florimond, devido a seu serviço, vê-se às voltas com certos segredos que acredita interpretar...
- Ensine-lhe, ao menos, a respeitá-los - disse Angélica secamente.
Ao vê-lo balbuciar, recordou que ele era um dos protegidos da Sra. de Choisy. Em que medida a espionara e denunciara?
Florimond, engolindo as lágrimas, disse que deveria acompanhar as princesinhas em seu passeio e pediu permissão para retirar-se.
Saiu pela porta-balcão com um passo que pretendia digno, mas, assim que transpôs os degraus de fora, lançou-se a galope e se pôs a cantar. Era como uma borboleta embriagada pelo belo dia de primavera. O parque de Saint-CIoud, com sua vegetação inculta, começava a estridular com o canto das cigarras.
- Sr. de Lesdiguières, que pensa de tudo isso?
- Jamais peguei Florimond ení flagrante delito de mentira, senhora.
- Quer defender seu pupilo, mas neste caso isso o conduz a apreciações bem graves...
- Nunca se sabe - disse o abadezinho, retomando a expressão do garoto.
Ele juntou as mãos com força num gesto ansioso.
- Na corte, os devotamentos mais elevados estão sujeitos a provas. Estamos cercados de espiões...
- Assenta-lhe muitojbem falar em. espiões, senhor abade, você que foi pago pela Sra. de Choisy para vrgiar-me e trair-me!
O abade tornou-se pálido como a morte. Seus olhos de menina-moça arregalaram-se. Ele pôs-se a tremer e acabou por cair de joelhos.
- Perdoe-me, senhora! É verdade. A sra. de Choisy colocou-me junto à senhora para espioná-la, mas.não a traí, juro-lhe... Não poderia causar-lhe nenhum prejuízo. Não à senhora. Perdoe-me, senhora!
Ajigélica afastou-se para olhar pela janela.
- Senhora, acredite em mim! - suplicou novamente o rapaz.
- Sim, acredito no senhor - disse ela com lassidão. - Mas diga-me, então, quem me denunciou à Companhia do Santo Sacramento? Foi Malbrant Golpe de Espada? Vejo-o mal no papel.
- Não, senhora. Seu escudeiro é um bravo homem. A sra. de Choisy colocou-o em sua casa para prestar um serviço à sua família, que é bastante honorífica, e também de sua província.
- E as senhoritas de Gilandon?
O Abade de Lesdiguières, ainda de joelhos, hesitava.
- Sei que Maria Ana foi ver sua protetora na véspera de sua prisão.
- Então foi ela. Que barata-de-sacristia! Bela ocupação, a que aceitou, senhor Abade. Não duvido de que assim continuando se tornaria bispo.
- Viver não é fácil, senhora - murmurou docemente o abade.
- Considere o que devo à Sra. de Choisy. Eu era o mais jovem de uma família de doze filhos, e o quarto menino. Nem sempre matamos a fome no castelo paterno. Sentia-me atraído pela vida eclesiástica; tinha gosto pelo estudo e pelo bem das almas. A sra. de Choisy pagou-me muitos.anos de seminário. Ao encontrar para mim um lugar no mundo, pediu-me que a informasse sobre as torpezas que pudesse testemunhar, a fim de lutar contra as forças do mal. Eu achava a tarefa nobre e engrandecedora. Mas entrei para sua casa, senhora...
Sempre de joelhos, erguia para ela os olhos de corça, e ela compadeceu-se da paixão romanesca que despertara naquele coração cândido.
Ele era dessas pessoas da baixa nobreza que crescem nos velhos castelos em ruínas, e que, sem eira nem beira, saem à procura de seu destino, não tendo para vender senão a alma ou o corpo. Era entre elas que Monsieur, o irmão do rei, recrutava seus parceiros. Mais valia, para o caçula de uma boa família, devotar-se à virtude. Essa reflexão trouxe-a de volta a outras preocupações.
- Levante-se, abade - disse bruscamente. - Perdôo-lhe, pois acredito que é sincero.
- Afeiçoei-me à senhora e amo Florimond como a um irmão. Irá separar-me dele?
- Não. Apesar de tudo, sinto-me tranquila por tê-lo ao lado dele. A corte de Monsieur era o último lugar onde desejaria vê-lo. Ninguém ignora os gostos depravados desse príncipe e dos que o cercam. Um garotinho tão belo e vivo como Florimond não está seguro aqui.
- É verdade, senhora - disse o abade, que se erguera e limpava discretamente os joelhos. - Já tive que me bater em duelo com Antoine Maurel, Sieur de Volone. É, talvez, o maior patife da casa. Rouba, blasfema, é ateu e sodomita, treina e vende garotos como cavalos e faz seu comércio na plateia do Opera. Ele pôs as vistas em Florimond e decidiu-se a pervertê-lo. Eu me interpus. Batemo-nos em duelo. Ferido no braço, Maurel abandonou a partida. Também me bati em duelo com o Conde de Beuvron e o Marquês d'Effiat. Alardeei por todo lado que a criança é protegida do rei, e que me queixaria a Sua Majestade se algo de mau lhe acontecesse. Sabem que a senhora é sua mãe e que sua influência junto ao rei não deve ser desprezada. Consegui, por fim, que ele fosse nomeado companheiro de folguedos dás princesinhas. Isso o afasta um pouco dessas estranhas companhias. Oh! Senhora, é preciso que os olhos e os ouvidos se habituem á muitas coisas. No lever de Monsieur falam de garotinhos como os apaixonados falam de suas amadas. Mas isso não é nada. As mulheres são "as piores, pois não podemos bater-nos em duelo com elas. As senhoras de Blanzac, d'Espinoy de Melun, de Grancey perseguem-me pela noite como uma hidra de cem cabeças. Não sei como livrar-me delas.
- Não vai dizer que elas perseguem Florimond?
- Não. Sou eu o alvo de suas provocações.
- Oh! Minha pobre criança! - exclamou Angélica, dividida entre a desolação e o riso'.-, meu pobre abadezinho, de que tarefa o incumbiram! É absolutamente necessário que o "tire daqui!
- Não se precupe, senhora. Compreendo que Florimond deve fazer carreira, e que só pode subir na companhia dos príncipes. Empenho-me em protegê-lo, e também em fortificar seu espírito e seu coração, para evitar uma corrupção muito profunda. Tudo é possível quando a alma i firme e se pede o auxílio de Deus. E penso ser esse o verdadeiro sentido de meu papel de preceptor, não é verdade?
- Certamente, mas não deveria ter concordado em trazê-lo para cá.
- Ser-me-ia difícil opor-me às decisões do rei, senhora. E os perigos que aqui correria me pareceram menores do que aqueles que o espreitavam em Versalhes.
- Que quer dizer?
O abade aproximou-se, após olhar em torno com cuidado.
- Estou convencido de que por duas vezes atentaram contra sua vida. _
- Agora perdeu a cabeça, meu amigo - disse Angélica, dando de ombros. - Está sendo dominado pelo«delírio de perseguição de seu pupilo. Quem poderia desejar mal a um garotinho dessa idade, o pajem mais jovem e de menor renome na corte?
- Um pajem cuja voz clara se permitiu gritar um tanto alto em demasia verdades embaraçosas.
- Não quero mais ouvi-lo, abade. Asseguro-lhe que perdeu a cabeça e se deixou influenciar por histórias inconsequentes. O Sr. Duchesne tem reputação de homem honrado.
- Todos os que vivem na corte não têm reputação de honrados, senhora? Quem poderia ser rotulado de celerado ou criminoso? Seria muito impróprio!...
- Repito-lhe que vê a coisa pelo lado pior. Não duvido de que seja o anjo guardião de Florimond, mas agradar-me-ia que se empenhasse em acalmar-lhe a imaginação, bem como a sua. Até nova ordem, não acreditarei na importância que possa ter o Sr. Florimond, último pajem da Boca do Rei. Seria ridículo.
- Um pajem que é seu filho, senhora. Ignora que tem muitos inimigos? Oh! Senhora, suplico-lhe, não feche os olhos a realidades temíveis. Também à senhora querem fazer cair num poço escuro. Faça de tudo para defender-se. Se lhe sucedesse algum mal, eu morreria de dor. ,
- Você não é falto de eloquência, meu pequeno abade - disse Angélica com gentileza. - Será preciso que fale de você ao Sr. Bos-suet. Um pouco de exaltação não compromete a arte da oratória sagrada. Estou certa de que um dia será alguém, e o ajudarei no que puder.
- Oh! Senhora, deixou-se ganhar pelo cinismo cruel das mulheres da corte.
- Não sou cínica, meu pequeno. Mas gostaria que você pusesse um pouco os pés no chão.
O Abade de Lesdiguières ainda abriu a boca para um último protesto, mas alguém entrou no locutório onde se achavam, interrompendo-os. Ele fez uma reverência e saiu à procura do pupilo.
Angélica voltou aos salões. As portas estavam abertas para o terraço arenoso, permitindo que se desfrutasse da brisa suave. Ao longe, avistava-se Paris.
Conforme o rei pressentira, Madame pediu, através do mordomo, que a Sra. du Plessis permanecesse até o dia seguinte em Saint-Cloud. A jovem concordou sem entusiasmo. A atmosfera da corte de Monsieur era, apesar de todo o encanto e luxo, demasiado ambígua e quase inquietante. O príncipe escolhia amigas tão pouco recomendáveis quanto seus pequenos. Angélica encontrou todas as figuras que em Versalhes de preferência evitava. Mulheres decididas, belas, bastante cruéis.em sua maior parte. Suas intrigas e querelas divertiam Monsieur, que se "voltava para o mexericos com uma avidez de porteiro. Ele não era falto de inteligência e mostrara coragem nas campanhas militares, mas fora de tal modo pervertido que caía sempre nas futilidades, mesquinharias e vícios. Angélica procurou com o olhar a silhueta de sua alma gémea, o Príncipe de Sodoma, "belo como uma pintura de anjo", o Cavaleiro de Lorena, que há anos se mantinha ha posição de favorito e se tornara, na verdade, o senhor do Palais-Royal e de Saint-Cloud. Ela surpreendgu-se por não o ver. Confessou-o à Sra. de Gordon Uxsley, uma-escocesa bastante simpática que fazia parte do séquito de Madame. _
- Como, então não ç soube? - exclamou ela. - Mas de onde você está vindo?... O Srr de Lorena caiu em desgraça. Permaneceu um tempo na prisão e depois foi exilado em Roma. É uma grande vitória para Madame. Há anos que batalha contra seu pior inimigo. Finalmente, o rei a ouviu.
Depois de oferecer a Angélica a hospitalidade da antecâmara onde dormia com as outras damas de honra, ela fez o relato da última escaramuça, quando enfim Madame obtivera a vitória de que já desesperava. Falou no Sr. de Lorena detido no próprio quarto do príncipe pelo Conde d'Ayen, nos guardas do corpo cercando os aposentos de Monsieur, no desespero de Monsieur gritando, urrando, chorando e levando Madame a Villers-Cotterêts para sequestrá-la. Por fim as coisas começaram a voltar a seu lugar. Monsieur continuava chorando, mas Madame mostrou-se inabalável. O rei estava com ela.
Angélica adormeceu, os ouvidos zunindo com detalhes escabrosos, preocupada por Florimond, tendo a impressão de que mil ameaças rastejavam à volta dela como serpentes.
Foi despertada, ao alvorecer, por uma leve batida na porta junto a qual se achava estendida. Ao abri-la deparou com Madame, envolta numa ampla echarpe de gaze. A princesa sorriu-lhe.
- Desejava vê-la, Sra. Du Plessis. Quer acompanhar-me em meu passeio?
- Estou às ordens de Vossa Alteza Real - disse Angélica, com a vista um tanto ofuscada.
Elas desceram as escadas do palácio silencioso, a que as silhuetas dos guardas sonolentos, apoiados em suas alabardas, conferiam um aspecto de castelo da Bela Adormecida.
O dia nascia sobre o parque úmido de orvalho. Ao longe, pesados véus de bruma escondiam Paris. Não fazia calor, mas, por felicidade, Angélica trazia o confortável manto de feltro, presente do rei.
- Adoro passear logo de manhã - disse a princesa, enveredando por uma aléia com passo vivo. - Durmo pouco. Li durante a noite toda, e, depois, pareceu-me condenável fechar os olhos quando a aurora despertava. Gosta de ler?
Angélica confessou que raramente encontrava tempo para dedicar-se às belas-letras.
- Mesmo na prisão? - perguntou Henriqueta da Inglaterra, com um risinho entendido.
Mas o gracejo não era maldoso. Antes, de desencanto.
- Conheço aqui poucas pessoas que tenham gosto pela leitura. Veja meu cunhado, o rei. Ficaria contrariado se um fabulista ou um homem de teatro não lhe apresentasse a primeira edição de suas obras. Mas não se anima a ler-lhes a primeira palavra. Eu leio por gosto. E escreveria de bom grado... Sentamo-nos um pouco?
Tomaram assento no banco de mármore de uma rotunda. A princesa em nada mudara, desde o tempo em que Angélica frequentava sua roda de jogo, no Louvre.
Pequena, com a graça de um elfo e uma tez de pétala, sentia-se que era uma massa mais fina que os Bourbons-Habsburgos de sua família. Desprezava-lhes abertamente o enorme apetite, a ignorância, e aquilo que chamava de sua lentidão. É verdade que comia como um pássaro, dormia menos ainda, e que seu interesse pelas letras e pelas artes não era fingido. Fora a primeira a encorajar Molière, e começava a patrocinar o delicado Racine. Angélica, a par de uma certa admiração pela inteligente princesa, achava-a demasiado estranha. Junto dela, as pessoas sentiam-se pesadas. A própria sedução de Madame tecera a solidão ao seu redor. Ela não tinha disso consciência, mas sofria com o fato. Suas pupilas azuis mostravam um certo desvario.
-Senhora - retomou após ummomento de silêncio -, dirijo-me a você porque tem a fama de ser uma mulher rica, obsequiosa e discreta. Poderia emprestar-me quatro mil pistolas?
Angélica teve que esforçar-se para reter um estremecimento.
- Preciso dessa soma para minha viagem à Inglaterra - continuava a Princesa Henriqueta. -Estou crivada de dívidas, já penhorei uma parte de minhas jóias e,é "inútil protestar miséria junto ao rei. No entanto, é por ele que^vou à Inglaterra. A missão de que me encarregou é de suprema importância. Trata-se de impedir que meu irmão Carlos se junte à liga dos holandeses, espanhóis
e teutos. Devo brilhar, seduzir, embair, fazer com que amem a França, e isso não será fácil se ali chegar com um vestido muito apertado nas cavas. É um modo de falar. Você me compreende, minha cara. Sabe o que são as embaixadas. E preciso que o ouro corra a mancheias, para comprar consciências, boa vontade, assinaturas. Se me mostrar ayara-, não conseguirei. E necessito ser bem-sucedida.
Falava com volubilidade, uma chama nàs faces, mas seu desembaraço escondia seu constrangimento. Foi esse acanhamento, nela tão raro, que levou Angélica a mostrar-se generosa.
- Que vossa Alteza me perdoe por não poder corresponder a todos os seus desejos. Teria muita dificuldade em conseguir rapidamente quatro mil pistolas. Mas posso prometer-lhe com certeza a soma de três mil.
- Minha cara, que alívio me traz! - exclamou Madame, que visivelmente não contava com tanto. - Pode tranqúilizar-se. Eu lhe devolverei o dinheiro assim que retornar. Meu irmão me ama, certamente me ofertará presentes. Se você soubesse como isso é importante para mim! Prometi ao rei ser bem-sucedida. Devo-lhe isso, pois ele já me pagou adiantado.
Ela tomara as mãos de Angélica, e apertava-as, agradecida. As suas eram frias e delgadas. O nervosismo punha-a à beira das lágrimas.
-Seria terrível se fracassasse. Não obtive o exílio do Cavaleiro de Lorena senão em troca desta contrapartida. Se eu fracassasse, ele voltaria. Não mais poderia suportar a vida com esse libertino reinando em minha casa. Certamente não sou um anjo. Mas a objeção de Monsieur e dos seus ultrapassava todos os limites. Eu já não podia mais com isso. A aversão que havia entre nós transformou-se em ódio. Esse estado de coisas é obra do Cavaleiro de Lorena. Pensei, outrora, poder manobrá-lo. Sentia o perigo que ele representava. Se fosse então mais rica, talvez houvesse conseguido. Mas Monsieur oferecia-lhe somas enormes, apanágios que o rei permitia de bom grado. Eu não podia ser a mais forte. Sem nenhum constrangimento ele decidiu-se contra mim, e aceitou Monsieur, a vergonha e o dinheiro.
Angélica não tentou deter esse fluxo de palavras. Viu que a princesa estava sob o domínio de uma reação nervosa. Devia ter-se sentido bastante angustiada com relação ao empréstimo, e duvidado até o último momento de que poderia obtê-lo. Suas melhores amigas haviam-na habituado antes às traições e abandonos do que à generosidade.
- Você me promete que poderei dispor dessa soma antes da minha partida? - perguntou, novamente inquieta.
- Dou-lhe minha palavra, Alteza. Será preciso que consulte meu intendente, mas dentro de oito dias três mil pistolas lhe serão entregues.
- Como você é boa! Me devolveu a esperança. Já não mais sabia para onde me voltar. Monsieur está tão irritado comigo desde a partida do cavaleiro! Trata-me como a última das criaturas...
Ela prosseguiu em suas confidências com frases entrecortadas. Sem dúvida, lamentá-lo-ia mais tarde: a experiência ensinara-lhe que sempre empregava mal sua confiança. Diria consigo que a Sra. du Plessis era perigosa ou néscia. Naquele momento, fruía a sensação rara de ter junto de si um ouvido amigo. Narrava a longa luta sustentada durante anos para tentar tirar, ela própria, seu casamento e sua casa do atoleiro onde afundavam. Mas as coisas haviam começado mal. Jamais deveria ter desposado Monsieur.
- Ele tem ciúme de meu espírito, e o medo que sente de que
me amem ou estimem trar-me-á aborrecimentos a vida inteira.
Ela esperara ser rainha de França. Isso, não o confessou. Era um dos surdos agravos de que acusava Monsieur: que ele não fosse o irmão. E o modo como falava do rei vinha tingido de amargura.
- Se não fosse o temor que ele tem de que meu irmão Carlos se alie à Holanda, eu jamais conseguiria alguma coisa. Meu pranto, minha vergonha, minha dor, pouco lhe importam. Ele vê sem aborrecimento a degradação do irmão.
- Vossa Alteza Real não estaria exagerando no ressentimento? O rei não pode rejubilar-se com...
- Pode sim, eu o conheço bem. É bastante vantajoso para aquele que reina ver os que lhe estão ligados pelo nascimento afundar no vício. Sua grandeza e firmeza de espírito se vêem, então, realçados. Os pequenos de meu esposo não ameaçam o poder real. Não precisam senão de ouro, presentes, cargos lucrativos. O rei concorda generosamente. O Sr. de Lorena obtinha dele tudo o que desejava. Era fiador da fidelidade de Monsieúr. O rei não necessitava temer que ele se revoltasse como seu tio, Gastão d'Orléans. Mas desta vez falei mais alto. Como deveria passar por mim, passariam por onde eu quisesse. Lembrei a todos que sou filha de rei e que, se me maltratassem, tinha um irmão rei que me vingaria.
Ela respirou profundamente e pôs a mão no coração para controlar as palpitações.
- Vejo-me, enfim, vitoriosa, e no entanto não posso impedir-me de temer. Estou cercada por tanto ódio! Monsieúr ameaçou repetidamente envenenar-me.
Angélica teve um sobressalto.
- Senhora, não se abandone a ideias mórbidas.
- Não sei se são ideias mórbidas ou; ao contrário, uma visão lúcida dos fatos. As pessoas morrem tão facilmente em nossos dias!
Angélica pensou em Florimond e nas exortações do Abade de Lesdiguières, e bruscamente o medo ergueu-se nela como um réptil glacial.
- Se tal é a convicção de Vossa Alteza, seria necessário fazer tudo para defender-se, e comunicar suas suspeitas à polícia, para que a proteja.
Madame olhou-a como se ela acabasse de fazer a afirmação mais incongruente do mundo, e depois irrompeu em risadas.
- Você tem reações comuns que vindas de sua pessoa me espantam! A polícia? Fala dessas grosseiras personagens comandadas pelo Sr. de La Reynie, como aquele Desgrez, que foi encarregado de prender meu conselheiro, Cosnac, o bispo de Valência? Ora, minha cara, conheço-os muito bem, e não serão eles que virão intrometer-se em nossos negócios.
Ela ergueu-se e alisou o vestido de faille azul-claro com gesto ágil. Tinha estatura menor que a de Angélica, mas contemplava esta última com um porte de rainha que a fazia mais alta.
- Lembre-se de que na corte não temos outros recursos senão defendermo-nos sozinhos ou... morrer - disse tranquilamente.
Elas voltaram em silêncio. O parque era bem bonito, com o gramado verde e as árvores de essências raras que o vento balançava. Nada havia ali da rigidez suntuosa dos jardins de Versalhes. Madame impusera o gosto inglês, e talvez fosse esse o único que Mon-sieur partilhasse com ela. Quando o rei vinha a Saint-Cloud, sofria com aquilo a que chamava "essa desordem".
Os lábios da jovem princesa esboçaram um sorriso melancólico. Nada mais a distraía do medo vago que povoava seus dias.
- Se você soubesse - disse ainda. ~ Queria tanto, tanto, permanecer na Inglaterra e nunca mais voltar para cá!
- Senhora - protestavam os mendigos -, senhora, quando iremos até o rei para que ele nos toque as escrófulas?
Eles comprimiam-se em grande número nos locutórios da Mansão do Beautreillis. Ter Angélica como intermediário já lhes parecia um penhor de cura. Ela prometeu-lhe que no domingo seguinte participariam da cerimonia. Já se informara sobre como deveriam proceder, mas, estando muito ocupada com os preparativos para seu retorno à corte, lembrou-se da Sra. Scarron e foi até ela para pedir-lhe o obséquio de conduzir seu pequeno rebanho ao médico do rei. Isso fê-la refletir que de há muito não via a jovem viúva. A última vez... Mas fora durante a festa em Versalhes, em 1668. Dois anos! Que sucedera a Francisca desde então? Sentindo remorsos, Angélica fez deter a cadeirinha diante da porta da casa humilde em que a Sra. Scarron, há anos, escondia sua pobreza.
Ela tamborilou em vão. No entanto, pequenos indícios davam-lhe a impressão de que havia alguém na casa. Talvez uma criada? Mas então por que não abria? Cedendo ao cansaço, Angélica desistiu. No cruzamento seguinte, um ajuntamento de carruagens obrigou os carregadores a se deter. Lançando maquinalmente um olhar para a rua que acabava de deixar, Angélica teve a surpresa de ver a porta da casa da Sra. Scarron se abrir, deixando sair a jovem viúva em pessoa. Estava mascarada e cuidadosamente envolvida numa manta escura, mas a amiga reconheceu, sem nenhuma,4'vida, a silhueta graciosa da bela índia.
_. Mas isso é muito estranho! - exclamou, saltando da cadeirinha.
Disse aos lacaios que voltassem sem ela à Mansão do Beautreil-i - e cobrindo-se com a capucha lançou-se no encalço da Sra. Scar-ron. A jovem caminhava rapidamente, malgrado os dois pesados cestos que levava sob a manta. Farejando um mistério, Angélica decidiu-se a segui-la. Ao chegar à Cite, a Sra. Scarron alugou nos degraus do palácio uma daquelas modestas cadeirinhas de rodas, puxadas por um único homem, e a que chamavam "' vinaigrette"'. Após hesitar, Angélica decidiu prosseguir a espionagem a pé. Uma "vinaigrette" nunca ia muito rápido. Mas ela teve tempo de lamentar sua decisão. A caminhada não acabava mais. Após transporem o Sena, enveredaram por uma rua interminável que se ia transformando num caminho precário, quase chegando ao campo, dos lados de Vaugirard. Obrigada a diminuir o passo, Angélica perdeu o veículo de vista por um momento. E teve a decepção de ver a "vinaigrette" passar vazia na volta de uma ruela.
Mas ninguém diria que ela viera tão longe para nada. Correu na direção do homem e pôs-lhe um escudo na mão. Por essa régia importância o outro não hesitou em indicar-lhe a morada onde vira entrar sua cliente.
Era uma dessas casinhas novas que cada vez mais se construíam nos arrabaldes, entre os canteiros de couves dos hortelões e os taludes reservados aos carneiros. Angélica ergueu a aldrava de bronze. Ao cabo de um longo momento abriam o postigo e a voz de uma criada perguntou o que desejavam.
- Queria ver a Sra. Scarron.
- A Sra. Scarron? Não é aqui... Não sei quem é - respondeu a mulher, fechando o postigo.
Todos esses mistérios espicaçaram a curiosidade de Angélica. "Você não me conhece, minha cara, se pensa que vou abandonar a partida", disse consigo.
Não havia senão um modo de obrigar Francisca a mostrar-se, e ela o empregaria...
CAPITULO XVIII
O segredo da Sra. Scarron - A Sra. de Montespan cospe seu ódio
Ela voltou a tamborilar com insistência, até que o postigo se abriu de novo.
- Repito-lhe que não há nenhuma Sra. Scarron aqui - gritou a criada.
- Há, sim. Diga-lhe que venho da parte do rei.
A mão na grade hesitou. Depois de um longo momento, ouviu-se um ruído de cadeias e ferrolhos, e a porta entreabriu-se. Ela esgueirou-se para o interior. Francisca Scarron, no alto da escada, inclinava um rosto ansioso.
- Angélica, por misericórdia, que acontece?
- Você não parece muito contente em ver-me! No entanto, foi uma dificuldade chegar até você. Como está?
Subiu com alegria e abraçou a amiga. Mas esta permanecia na defensiva.
- Foi o rei quem a enviou? Por que você? Houve mudança nas últimas instruções?
- Penso que não - respondeu Angélica ao acaso -, porém você me recebe de modo bem estranho. Talvez me queira mal por tê-la negligenciado por tanto tempo. Mas acabaremos por nos entender. Entremos aqui.
- Não, não - gritou a Sra. Scarron vivamente, interpondo-se com os braços estendidos diante da porta do quarto que Angélica queria adentrar -, não, fale primeiro.
__ Não vamos ficar empoleiradas nesta escada, Francisca. Que se passa com você? Não mais a reconheço. Se tem aborrecimentos, não acredita que eu possa partilhá-los?
A Sra. Scarron não queria ouvir.
- Que lhe disse o rei, exatamente?
- Confesso que o rei nada tem a Ver com isso, Francisca. Queria vê-la, e o nome dele serviu-me de senha.
A Sra. Scarron velou a face com ambas as mãos.
- Meu Deus, é terrível! Você penetrou aqui! Estou perdida...
Percebendo que do vestíbulo os criados erguiam olhos curiosos, ela acabou por empurrar Angélica para a'saleta.
- Entre, então! Já que chegamos a este ponto...
A primeira coisa que a visitante avistou foi um berço junto à janela, que parecia ocupado. Aproximou-se e deu com um pimpolho de alguns meses, que lhe dirigiu um amável sorriso.
- Cá está, então, seu segredo, minha pobre Francisca! Ele é encantador e você não tem que martirizar-se por minha causa: pode contar com minha discrição.
Com que então a virtude intransigente da jovem viúva acabara por sucumbir... Ela, que construíra sua vida baseada na reputação, devia estar bastante mortificada.
- Você deve ter passado por dias penosos. Por que não se fiou nas amigas? Tê-la-íamos ajudado.
Francisca Scarron sacudiu a cabeça com um pálido sorriso.
- Não, Angélica. Não é, de modo algum, o que você pensa. Mire bem a criança e compreenderá.
O bebé fixava nela as pupilas de um azul de safira, que lhe pareciam, de fato, familiares. "Os olhos azuis como o mar", pensou. Subitamente compreendeu. Tinha diante de si o filho da Sra. de Montespan e do rei.
- Sim, é isso - disse a Sra. Scarron com um movimento de cabeça afirmativo. - Veja a minha situação! Se o rei não mo tivesse pedido pessoalmente, jamais teria aceitado. Devo ocupar-me desta criança em segredo, e que ninguém jamais suspeite de sua existência. Legalmente, o Marquês de Montespan poderia reclamá-lo. Ele seria bem capaz disso. Imagine o escândalo! Enfim, não
vivo mais...
Ela levou Angélica para um canapé. Passada a primeira contrariedade, sentia-se no fundo aliviada por poder conversar um pouco. Contou como Louvois a recomendara ao rei, por ocasião do nascimento do bastardo real, quando o problema era achar uma governanta tão capaz quando discreta. Nos termos da lei, sendo o rei casado, e a Sra. de Montespan também, o filho desta última pertencia ao marido. De Pardaillan, já se sabia, podia-se esperar o pior. Era preciso não apenas criar aquele inocente, mas escondê-lo e protegê-lo com o maior cuidado. Para a pesada incumbência requeria-se um devotamento total, inteligente, sagaz, inalterável. Sondada, a Sra. Scarron aceitara.
- O rei estava um tanto reticente a meu respeito. Creio que não gosta muito de mim: ele viu-me em demasia.
Mas o Sr. de Louvois e Atenaís foram insistentes. De há muito, Atenaís e eu estamos ligadas. Ela sabe o que pode esperar de mim, e, depois de tudo o que,recebi dela, seria ingrato esquivar-me. Desde então, vivo mais apartada do mundo que se tivesse tomado o véu. Se ao menos houvesse encontrado a paz! Mas devo ocupar-me desta casa, vigiar a ama-de-leite, a embaladeira, os criados, que ignoram quem sou e quem é a criança. E continuar, no entanto, a aparecer, a mostrar-me, a viver em minha casa para que em nada suspeitem de minha nova situação. Entro por uma porta, saio por outra às escondidas, e quando vou ver as amigas cuido de me fazer sangrar para não enrubescer ao responder com mentiras às perguntas que me fazem. Que Deus me perdoe! Mentir! Não é o menor dos sa-crifícos que o serviço do rei reclama.
Falava com o humor costumeiro com que sempre soubera tornar mais leves suas queixas. Ocorreu a Angélica que, no fundo, ela devia estar encantada com sua importância. Malgrado as dificuldades, o posto era invejável e conferia-lhe um papel preeminente na vida do rei.
Como a criança desse um pequeno grito, Francisca foi até ela. Alisou as cobertas e o travesseiro com os gestos precisos de boa dona de casa que imprimia a tudo. Como muitas mulheres que viveram sós e distantes do mundo infantil, tinha atitude ponderada em relação ao pupilo. Não era levada a se enternecer pelo encanto do bebé e deixava essas ninharias à ama-de-leite. Mas sabia-se que ele receberia todos os cuidados necessários para o desenvolvimento de seu corpo, seu espírito e sua alma. Era a governanta perfeita.
- Sua saúde deixa a desejar - explicou a Angélica. - Mire, ele nasceu com um pé ligeiramente disforme. Teme-se que venha a ser coxo. Falei com o médico do rei, que também partilha o segredo. Ele crê que as águas de Barêges-podem prevenir essa deformidade, e no verão deverei levá-lo;até lá. Como vê, a tarefa não me deixa um instante livre. Sem contar que não deve se tornar mais leve, ao contrário. Breve terei duas responsabilidades a assumir, em vez de uma.
- Então têm fundamento os rumores de uma nova gravidez da Sra. de Montespan?
- Infelizmente!
- Por que infelizmente?
- Atenaís confirrnou-mo com desespero.
- Devia rejubilar-se.-Nãó é mais uma prova gritante de seu favor junto ao rei?
- Infelizmente! - repetiu a Sra. Scarron mirando Angélica, que desviou os olhos.
Francisca baixou os seus. Houve um momento de silêncio.
- Seu estado é terrível - retomou a jovem viúva. - Ela vem aqui a toda hora, não para ver o filho, mas para confiar-se a mim e despejar sua cólera. Em Versalhes é obrigada a manter-se firme. Não é segredo para ninguém que o rei ama outra pessoa.
Voltou a encará-la.
- ...Que a ama, Angélica.
Angélica afetou indiferença.
- Não é segredo para ninguém que o rei determinou minha prisão. Bela prova de amor!
A Sra. Scarron balançou a cabeça. Não lhe desagradaria saber mais da história. Mas nesse momento ouviu-se do lado de fora um ruído de eixos de carruagem. Houve batidas impacientes na porta e pouco depois a voz imperiosa de Atenaís ressoou no vestíbulo. Francisca, muito pálida, quis esconder Angélica num roupeiro. Mas esta protestou. A casa era exígua e faltavam-lhe recantos.
- Não sejamos ridículas. De que tem medo? Explicar-me-ei com ela. Mesmo porque, nunca houve hostilidade declarada entre nós.
Ela afastou-se um pouco. A Sra. de Montespan entrou, esbaforida. Com violência, lançou sobre uma cómoda à sua frente o leque, a bolsa, uma caixa de pastilhas, as luvas e até o relógio.
- E demais - disse. - Acabo de saber que ele encontrou-se com ela no outro dia, na gruta de Tétis...
Ao voltar-se, viu Angélica. Sem dúvida a imagem da rival estava nitidamente gravada em seu espírito, pois, durante alguns segundos, percebia-se que ela se acreditava vítima de uma alucinação. Angélica aproveitou para tomar a ofensiva.
- Devo-lhe mil desculpas, Atenaís. Ao entrar nesta casa, ignorava estar forçando sua porta. Queria ver Francisca, cujas idas e vindas me intrigavam, e segui-a até aqui.
A Sra. de Montespan tornara-se púrpura. Seus olhos chispavam e ela queimava de raiva contida.
- Creia-me - insistiu Angélica - quando afirmo que a Sra. Scar-ron tudo fez para impedir-me de conhecer seu segredo. Ele está em boas mãos. Sou a única culpada.
- Oh! Acredito em você - gritou Atenaís com riso estridente. - Francisca não é tão tola a ponto de cometer equívocos desse género.
Deixou-se cair numa poltrona e estendeu para a viúva os pés calçados de cetim rosa.
- Tire-os! Estão me torturando.
A Sra. Scarron ajoelhou-se diante dela.
- Faça com que tragam uma bacia com água de benjoim morna.
Seus olhos voltaram-se para a intrusa.
- Quanto a você... sabemos quem é sob esses ares de hipócrita. Curiosa como um porteiro, a ponto de bisbilhotar e espionar por todo lado. Demasiado vulgar para pagar um lacaio para esses pequenos trabalhos. Retornou à ocupação de medianeira que exerceu outrora em sua chocolataria.
Angélica voltou-se em direção à porta. Já que Atenaís recorria às injúrias, era melhor que rompessem. Não a temia, mas tinha horror às cenas em que as mulheres se lançam em mil acusações, verdadeiras ou falsas, que deixam marcas envenenadas.
- Permaneça aqui!
A voz imperiosa deteve-a. Era difícil resistir ao tom Mortemart. A própria Angélica sentia-se dele vassalo. Mas retesou-se. Se a outra desejava cruzar ferros, cruzá-los-iam. A situação ficaria mais clara. Esperou, muito calma, cobrindo com o olhar verde impenetrável a Marquesa de Montespan, a quem a Sra. Scarron acabava de tirar as meias de seda. Nos olhos de Angélica havia uma nuança de desprezo, e, em sua postura, uma graça distante, apartada de tudo, que só a ela pertencia. '
A Sra. de Montespan de rubra tornou-se pálida. Sabia que de nada lhe adiantaria rebaixar a rival. Sua voz alterou-se.
- "A inTCom-pa-rá-vel dignidade da Sra. du Plessis-Bellière" - disse com voz surda. - "Assim devem caminhar as rainhas. E o mistério que a cerca e parece isolá-la de nós...", eis como o rei fala em você. "Você notou", disse-me ele, "como ela raramente sorri? E no entanto ela pode ser alegre como uma criança. Mas a corte é um lugar triste!" A corte é um lugar triste!..'. Veja as tolices que você faz o rei dizer. Aí está como o seduziu: com seu ar ausente, sua ingenuidade, sua expressão desgostosa. Seu mistério,
disse-lhe um dia, é o de ter-sê arrastado por não se sabe onde antes do casamento com Du Plessis, e de ter vendido seus encantos em espeluncas inomináveis. Sabe o que ele fez? Esbofeteou-me.
Ela irrompeu num riso histérico.
- Era bem o momento de esbofetear-me. No dia seguinte encontraram-na deitada com aquele bandido asiático de longos bigodes. Ah! Como eu ri... Ah! Ah! Ah!
O pimpolho real acordou com um sobressalto e pôs-se a berrar. A Sra. Scarron tirou-o do berço e levou-o à ama-de-leite. Quando retornou, a Sra. de Montespan vertia quentes lágrimas no lenço; seu riso degenerara em soluços.
- Tarde demais! - disse com voz entrecortada. - Seu amor resistiu a esse golpe, que eu acreditava fatal. Ao puni-la ele se punia, e tive que suportar o contragolpe de seu humor execrável. Parecia que os negócios do reino não podiam caminhar sem você.
"Gostaria de pedir conselho à Sra. du Plessis", dizia a todo instante. Da parte dele, isso é intolerável. Ele menospreza as mulheres, não leva em conta suas opiniões... Preocupa-se ao máximo com que não digam que fez isto ou aquilo por recomendação de uma mulher. Quando ele me concede um favor, um adiantamento a um meu protegido, oferece-me essa satisfação como um adorno em paga de meu título de amante real, e não porque creia em meu discernimento. Ao passo que a ela ele pediu opinião sobre questoes políticas... de política internacional - urrou a Sra. de Mon-tespan, como se este último adjetivo agravasse tudo. - Ele trata-a com a um homem.
- Isso deveria tranquilizá-la - disse Angélica com frieza.
- Não, pois você é a única mulher que ele já tratou desse modo.
- Tolice! Madame não acaba de ser encarregada de uma importante missão diplomática na Inglaterra?
- Madame é filha de rei e irmã de Carlos II. Aliás, mesmo que o rei se sirva dela e se mostre grato por vê-la defender seus proje-tos, não lhe tem senão antipatia. Madame imagina que assim fazendo conquistará sua amizade, e talvez seu amor. Engana-se grosseiramente. O rei serve-se dela, porém mais e mais a despreza por ser tão inteligente. Ele não gosta da inteligência nas mulheres.
A Sra. Scarron interveio, com o fito de aliviar a atmosfera.
- Qual é o homem que admira a inteligência nas mulheres? - suspirou. - Caríssimas, vocês se disputam sem razão. O rei, como todos os homens, necessita de variedade. Deixe-lhe ao menos esse capricho universal. Com uma prefere conversar, com outra, calar-se. Seu lugar é invejável, Atenaís. Não o menospreze. Quem deseja tudo arrisca-se a tudo perder, e você acordará um dia com a surpresa de ver o rei deixá-la... por uma terceira sedutora que não havia previsto.
- E verdade - conveio Angélica jovialmente. - Não esqueçamos, Francisca, que será você quem o rei desposará um dia. Assim o previu a adivinha. E nos acharemos bem tolas, Atenaís e eu, por termos trocado palavras equivocadas.
E concluiu com calma, compondo o manto para se dirigir à escada.
- Paremos por aqui, senhora. Fomos amigas em outros tempos.
Atenaís de Montespan ergueu-se como se impulsionada por uma mola. Com dois pulos achou-se junto de Angélica e tomou-lhe os punhos.
- Não pense que o que acabo de dizer é uma confissão de derrota, e que lhe deixarei a vitória. O rei é meu. Ele me pertence.
Jamais o terá! Arrancar-lhe-ei esse amor do coração. E, se não o conseguir, arrancarei a você da vida. Ele não é um homem que
ame o fantasma de uma morta.
Ela enfiava as unhas nos antebraços da jovem, e, sob o impacto da dor lancinante, Angélica deparou com o ódio de modo brutal. Vira por vezes, ao seu redor, os efeitos destrutivos desse sentimento corrosivo, mas jamais fora odiada a tal ponto. A repulsa que inspirava na Sra. de Montespan espirrou como lava ardente e provocou-lhe uma vergonha, uma amargura profunda que se transformaram em furor. Desprendendo um dos braços, esbofeteou num amplo movimento a amante do rei. Esta gritou. A Sra. Scarron lançou-se entre elas.
- Parem! Senhoras, vocês se degradam - disse. - Lembrem-se de que somos da mesma província. Somos, as três, do Poitou.
Sua voz tinha uma autoridade surpreendente.- Ela dominava-as pela gravidade, pela sabedoria e pelas pupilas negras e serenas. Angélica jamais soube por que essa alusão à terra natal abatera sua cólera de um golpe. Afastqu-se, tremendo, e precipitou-se para a escada. As garras da fúria haviam deixado em sua carne profundas marcas violeta onde perolavam gotas de sangue. Ela deteve-se no vestíbulo para limpá-las. A Sra. Scarron alcançou-a, bastante diplomata para deixar partir desse modo aquela que poderia ser a nova favorita de Versalhes.
- Angélica, ela a odeia! - murmurou. - Acautele-se. E saiba que estou com você.
- Uma louca - repetiu Angélica, para acalmar-se. Mas a coisa era pior. Ela sabia que não se tratava de uma louca, mas de uma mulher muito lúcida, capaz de tudo e que a odiava. E ela jamais fora odiada. Por Filipe, talvez, nos breves intervalos em que ele lutava contra a atração que ela lhe inspirava; mas não era esse ódio sufocante, multiplicado, que a rodeava como flores venenosas. E, no vento que revolvia os outeiros arenosos de Vaugirard, ela parecia ouvir a triste voz do pajem:
"A rainha compôs um buque
De flores-de-lis com beleza,
E o perfume desse buque
Levou a morte a. marquesa".
CAPITULO XIX
Ameaças de morte a Angélica e Florimond - A missa negra
No domingo seguinte, após a missa, o rei foi tocar as escrófulas.
O cortejo saiu da capela, atravessou o Salão de Diana, a Grande Galeria, o Salão da Paz, e ganhou os jardins.
Os doentes esperavam ao pé da escada do laranjal, assistidos por médicos de longas vestes e alguns confessores.
Angélica seguia com as damas. Por felicidade, a Sra. de Montes-pan estava ausente. A rainha também. A Srta. de La Vallière veio colocar-se a seu lado e disse-lhe do seu prazer em revê-la. A pobre jovem voltava a oferecer sua confiança no momento em que tudo anunciava que ela não era merecida. Ninguém se enganara com o sorriso e o olhar que o rei dedicara à Sra. du Plessis-Bellière. A corte inteira compreendera que a desgraça de ontem se apagava diante do triunfo de hoje...
O azul do vestido de Angélica semelhava o do céu, um pouco esverdeado como na primavera na lie de France. Suas faces tinham um brilho dourado primaveril. Mulher atingida pelo amor do Sol, escolhida, distinguida por um deus, mulher cercada de ódio, inveja e ciúme, ela parecia a todos estranhamente bela e quase intimidante. As pessoas hesitavam em abordá-la.
O rei desceu lentamente a escada de mármore, precedendo a multidão de senhores e damas.
O palácio, atrás deles, erguia sua fachada cintilante. Abaixo, à direita, no terrapleno do laranjal viam-se tremular as palmeiras, cujas folhas exóticas alternavam-se com os vasos de prata das laranjeiras, todos eles belos arbustos dispostos ao sol, junto a tanques transparentes num encantamento de oásis.
Os pobres escrofulosos estavam, à esquerda, junto aos gradis de ouro. O sol não conseguia aquecer-lhes a pele-seca e acinzentada, e só fazia tornar mais horrendas as chagas vivas e os casacos descorados. Quando o rei se aproximou, caíram de joelhos, os olhos cheios de júbilo.
O rei tirou a luva da mão direita, estendendo-a ao camarista-mor. Aproximou-se do primeiro doente, uni rapaz apoiado em duas muletas, a quem o médico segurava a cabeça. Ele descreveu-lhe uma cruz no rosto, da testa ao queixo e de uma orelha à outra, dizendo:
- O rei te toca, Deus te cura.
Havia um grande número de doentes naquele dia. Os cortesãos tiravam seus lenços de rendas, abanando-se para afastar os miasmas e os odores pútridos. Eles davam pouco valor a cerimónia. O rei, em compensação, entregava-se a ela com desvelo e benevolência. A seu lado, seu médico, verboso, falava-lhe sobre os sintomas e causas da moléstia, devida segundo ele ao ar fétido, aos alimentos estragados e também à lua cheia, quando as feridas adquiridas nessa época tornavam-se malignas.
O rei não desdenhava de fazer perguntas, de informar-se sobre as condições de vida do paciente e sobre seu nome. Aos que vinham de longe fazia entregar uma pequena soma pelo confessor.
Angélica reconheceu a mendiga com a criança. Viu também Pão Seco e alguns outros que costumavam ir à Mansão do Beautreillis. Ela sorriu-lhes. O padre que os acompanhava disse que eram pobres recomendados pela Sra. du Plessis-Bellière, e o rei imediatamente ordenou que lhes fosse dado o dobro da soma habitual e que lhes ofertassem roupas novas. Os protegidos de Angélica entoaram um coro de agradecimentos. A mãe quis beijar-lhe a fímbria do vestido azul.
- Veja, nobre dama, meu pequeno já estácom aparência melhor. Estou certa de que irá curar-se. O rei tocou em meu pequeno. O rei tocou nele...
O velho Pão Seco, com seus olhos remelentos de peregrino, que haviam visto junto às igrejas e na beira dos caminhos atarem-se e desatarem-se muitos destinos, mirava a nobre dama com seus fabulosos atavios e no fundo do cérebro enevoado sobrepunha-lhe uma outra imagem, um nome:
- Marquesa dos Anjos.
Estava longe o tempo em que assim a chamavam. Ele confundia-se um pouco, não recordava bem. Era uma outra mulher, sem dúvida. Ela trazia os pés nus e uma faca na cintura, onde agora havia jóias, um reloginho de ouro e chaves de -prata dourada. É assim a vida: caminhamos apoiando-nos em muletas, em busca da ração diária, até o dia em que o paraíso se abra com uma chave de prata dourada e Deus nos ponha na cabeça uma coroa de príncipe.
Ao cabo de várias horas, dois pajens apresentaram um gomil de ouro, e o rei deteve-se para lavar as mãos. A cerimonia estava terminada. Durara toda a manhã. Os pobres partiram claudicando para seus pardieiros nos arrabaldes, ou casebres nos campos, conversando sobre as maravilhas entrevistas, e tendo feito sua provisão de esperanças. O rei decidiu visitar os pomares. A ideia pareceu-lhe excelente. O odor delicado das espaldeiras floridas dissiparia o penoso bolor da triste humanidade. O rei conversou minuciosamente sobre cada broto de árvore com os jardineiros. O Sr. Le Nôtre tomava parte no passeio. Angélica amava esse grande artista dos jardins, que, como aqueles que se curvam para o solo, permanecia indiferente às vaidades.
Ela ouviu o rei perguntar-lhe, no intento de torná-lo nobre, o que desejaria como brasão, e Le Nôtre responder, rindo:
- Bastar-me-ão três caracóis e um coração de repolho, sire.
Mas tinha também a obstinação dos homens do campo. A horta e o pomar estavam apenas indiretamente sob sua jurisdição. Seu domínio era o parque. Ele insistiu para que o rei viesse opinar sobre uma aléia onde haviam sido plantados quatro renques de tílias e onde se deviam instalar termas de mármore branco.
Em seguida a companhia inteira dirigiu-se para a beira do Grande Canal. O rei voltou a atenção para a encantadora flotilha de recreio onde desejava ter em miniatura os barcos mais curiosos então em uso. Viam-se modelos provençais e flamengos ao lado de chalupas biscainhas. Um burgo para os marinheiros e carpinteiros encarregados de montá-los e conduzi-los estava sendo edificado não longe dali.
Por fim circulou o rumor de que refrescos e uma colação esperavam pela corte no bosquete do Marais. Todos enveredaram pela aléia real.
Angélica viu a Sra. de Montespan chegar sob um guarda-sol de tafetá rosa e azul guarnecido de rendas de ouro e prata, carregado por seu negrinho, que lhe vinha atrás. Ela estava bastante sorridente. Convidou, com vivacidade, Jodo mundo a segui-la. O bosquete do Marais era o de sua predileção. Fora ela quem criara os detalhes e orientara o arquiteto.
Todos os cãezinhos da rainha desciam a escada de Latona com latidos agudos. Atrás vinham os anões, tristes e feios. Em seguida, a rainha, triste e feia também. Estava furiosa por não ter, com aquele sol escaldante, um guarda-sol como o da Sra. de Montespan.
O bosquete do Marais, entre as árvores primaveris, oferecia uma sombra repousantê. Ao.centro erguia-se uma árvore de bronze, cujas folhas de metal vejtiam jatos de água numa ampla curva. A volta, a água jorrava de ramalhetes de caniços de prata, no centro dos quais repousavam quatro cisnes de ouro. -
Na espessura das sebes havia duas grandes mesas redondas de mármore branco, tendo no centro uma corbelha de bronze dourado repleta de tulipas, cravos e jasmins. Bufes em degraus de mármore vermelho e branco" completavam o conjunto, oferecendo travessas, copos e taças com sorvetes, frutas, vinhos e bebidas geladas. As pessoas sentaram-se às mesas, e aqueles que desejavam um pouco mais de calma ganharam as banquetas de relva dissimuladas entre a vegetação. Angélica tinha a seu lado a Sra. de Brien-ne, que a enfadava com sua tagarelice. Do lugar onde se achava, via o espetáculo da corte reunida num circo de verdura. Esses bos-quetes, destinados aos prazeres de uma sociedade que não cessava de representar para si mesma, sabiam servir à encenação de um bale fabuloso e bem regrado. Violinos e oboés combinaram-se em meio à frondosidade, e a música acompanhou suavemente as libações e os risos. O sol, filtrando-se pelos ramos, punha manchas de luz nos trajes luxuosos.
Ela buscou o rei com os olhos. Ele conversava com o Marquês de La Vallière. Era um de seus talentos sorrir, conforme as circunstâncias, para aqueles que mais detestava. A Srta. de La Vallière ainda não fora repudiada. Ele manobrava o pequeno marquês, cujos roubos no exército provocavam escândalos.
- Onde está Lauzun? - surpreendeu-se Angélica. - Ainda não o vi.
- Como, não o sabe? Ele está na prisão. Passou dos limites com o rei e a Sra. de Montespan. Já não sei mais devido a que cargo que lhe recusaram, e pelo qual ela prometera interceder, ele dirigiu-Ihe pesadas injúrias, insultou-a, foi até o rei, e partindo a espada disse que não mais desejava servi-lo.
- Moral da história: nova estada na Bastilha.
- Desta vez é mais grave. Comentam que vai ser levado para uma fortaleza do Piemonte, em Pignerol. Estará em boa companhia. Com o famoso intendente, você sabe qual era mesmo seu nome?
- Fouquet - disse o Sr. de Louvois, que comia uma tortinha, apoiado no cotovelo. - Sim... a coisa já é velha. Começam a esquecê-la e no entanto o esquilo ainda está vivo em sua jaula.
Angélica sentia um mal-estar sempre que o nome de Fouquet vinha ter a seus ouvidos. Jamais vira aquele homem que no entanto reinava como um génio mau sobre a catástrofe de sua vida. Aquilo estava distante, mas não podia ser apagado. A visão sombria do velho Pão Seco, resmungando através da barba emaranhada, a perseguia.
- Marquesa dos Anjos.
Assim a chamavam na Tour de Nesle.
- Marquesa dos Anjos! - escarnecia Barcarola, o anão da rainha, balançando os guizos.
Ele saltara sobre uma das mesas de mármore e pusera-se a dançar entre os pratos, fazendo rir a rainha e as damas.
A Srta. de Brienne afastou-se.discretamente. O Sr. de Louvois, como bom cortesão, fez o mesmo. Haviam visto o rei dirigir-se para o local onde estava Angélica. Luís XrV sentou-se a seu lado, mas ela não o notou. Havia fechado as pálpebras, a cabeça inclinada para trás. Revia os pobres escrofulosos, ajoelhados na luz da manhã, a pele cor de mástique para sempre friorenta, as roupas cor de miséria. Também ela carregara, em meio à indiferença geral, um filho semimorto contra o seio. Lágrimas molharam-lhe os cílios. O rei estremeceu.
- Bela, por que essas lágrimas?
Ela sacudiu a cabeça suavemente, cobrando consciência do lugar onde se achava. Observados por todos, embora deles apartados, não podiam se permitira outros gestos senão aqueles da conversação mundana. Ela tocou os olhos com a ponta do lençinho de rendas.
- Pensava nos pobres, sire. Qual é seu lugar no reino?
- Pergunta estranha! Que quer dizer?
- Vossa Majestade não me disse um dia que todos ao seu redor contribuem para a manutenção da monarquia?
- Certamente. É assim que a coisa se apresenta. O lavrador fornece com seu trabalho o alimento para esse grande corpo. O artesão dá os objetos que servem para a comodidade do público, enquanto os comerciantes reúnem produtos diferentes para fornecê-los aos particulares,'quando estes deles necessitam. Os financistas recolhem os fundos pára a subsistência do Estado. Os juízes, aplicando a lei, mantêm a segurança entre os homens. Os eclesiásticos, instruindo os povos sobre religião, atraem as bênçãos do céu.
- E os pobres, sire? Os pobres tão numerosos... tão numerosos...
A visão voltava, apagava, as luzes do cenário encantador, silenciava o eco da pastoral nas moitas. Ela pensava.
"... Eu fui drenada na vaga purulenta. Atravessei o rio do inferno e não sei por que milagre, tendo chegado à margem dos esplendores terrestres, consigo lembrá-lo.
"Os pobres que não sabem aonde ir nem que fazer, os pobres que as guerras geram, e que as exações e injustiças multiplicam, ali está meu segredo, o selo misterioso que trago na fronte, sob as jóias.
"Poderiam um dia esquecer as gargalhadas dos mendigos nas profundezas de Paris, gargalhadas mais terríveis que soluços ou prantos e que atrairão o fogo do céu?..."
Ela abriu os olhos e viu que o rei a fixava com intensidade.
- Seu rosto! - murmurou. - Não há rosto de mulher como o seu.
Ele não se movia, atento para não se trair diante dos olhos incisivos da corte, o que no entanto dava mais emoção à sua voz pausada.
- De onde você vem?... Para onde caminha, senhora? Quanta coisa inscrita em seu rosto! Toda a beleza... Toda a dor do mundo!
Os anões da rainha faziam grande algazarra. Barcarola conduziu-os numa sarabanda grotesca por entre os cortesãos encantados, alguns mais, outros menos, com a mascarada. Seus gritos dissonantes e risos escarninhos cobriam o som dos violinos.
O rei mirava Angélica, como que fascinado.
- Contemplá-la é por vezes uma felicidade, por vezes um sofrimento. Vejo seu pescoço alvo como neve, onde pulsa uma veia delicada. Queria nele pousar os lábios e a fronte. Tudo em mim reclama o calor de sua presença. Sua ausência envolve-me em solidão como um manto glacial. Preciso de seu silêncio, sua voz, sua força. E, no entanto, queria vê-la fraquejar. Queria vê-la adormecida junto a mim, com lágrimas nos cílios, esgotada por uma ter na luta. E vê-la despertar com um ardor renovado, que parece brotar de seu íntimo como de uma fonte secreta, tingindo seu rosto sob os dedos da aurora. Você enrubesce facilmente e parece vulnerável. Mas é mais dura que o diamante. Por muito tempo amei sua violência escondida. Agora tremo ao pensar que talvez seja ela que um dia a arranque de mim... O meu coração! O minha alma!
Um sorriso pairava nos lábios de Angélica. O rei continuou.
- Por que sorri?
- Pensava naquele jovem poeta a quem Vossa Majestade tem em afeição, Jean Racine. Ele costuma dizer que deve ao rei o melhor de sua inspiração. Agora, ao ouvi-lo, compreendo seu pensamento...
Ela interrompeu-se, pois o Sr. Duchesne inclinava-se diante deles acompanhado de três oficiais de boca. Estenderam ao rei e a Angélica evanescentes maravilhas rosa, verdes e amarelas, salpicadas de cerejas e coroadas de melancia, em frágeis taças de porcelana. Em seguida afastaram-se com quatro reverências.
- Você falou de Racine - retomou o rei - e me fazia um fino cumprimento. Mas creio que é justo, no que respeita ao fato de os poetas só serem poetas por saberem mostrar os homens de seu tempo e de todos os tempos. Cada homem traz em si o cenáculo fechado do amor. Mas, quando se sabe cercado de criaturas indig nas, é melhor que o mantenha fechado ao longo de sua vida, recusando-se a penetrá-lo. No entanto, por você, Angélica, talvez um dia ousasse entreabri-lo...
Um violento choque interrompeu-os. A taça que Angélica levava aos lábios oscilou. O sorvete foi derramado no chão, a porcelana estilhaçou-se e o creme escorreu em fios coloridos pelo yestido azul.
Um salto mal calculado do Sieur Barcarola acabava de projetá-lo sobre a jovem.
- Que a peste carregue com esses pitorras! - exclamou o rei, furioso, apanhando seu bastão e dando uma.sova nas costas do desajeitado, que fugiu aos gritos.
A rainha quis tomar a defesa do seu protegido, mas foi vivamente colocada em seu lugar. Um dos cãezinhos precipitou-se para lamber os restos do sorvete.^
Entrementes, não umà^porém.vinte damas correram para Angélica com um guardanapo e um gomil nas mãos, para apagar do vestido as malfadadas manchas. Seu favor, hoje, fora por demais evidente. Conveio-se que o sol logo prevalecia sobre o estrago, e, de comum acordo, toda a companhia deixou a sombra em dire-ção aos terraços, para aproveitar os últimos raios de sol.
Durante longo tempo o cãozinho agonizou na relva. Com o local deserto, Barcarola voltara, trazendo Angélica, e se debruçava sobre o animalzinho sacudido por terríveis convulsões.
- Viu? Agora espero que tenha compreendido, Marquesa dos Anjos, espero que tenha enxergado!... Ele vai morrer por ter comido o creme que lhe era destinado. Oh! É claro, não teria um efeito tão fulminante sobre você. A esta hora começaria a sentir um mal-estar. Mas a noite seria atroz e, com a aurora, você estaria morta.
- Barcarola, você diz coisas inimagináveis. As bastonadas do rei viraram-lhe a cabeça.
- Você não me crê? - inquiriu o anão, cujo rosto franziu-se numa expressão feroz. - Imbecil! Então não viu que o cão lambia o sorvete no chão?
- Confesso que não. Estava preocupada com meu vestido. E, mesmo que assim tenha sido, o cão pode ter morrido de outra coisa.
- Não me crê - repetiu Barcarola, agitado - porque não quer crer em mim.
- Mas, afinal, quem poderia desejar algum mal a minha vida?
- Que pergunta! E a outra, aquele de que você toma o lugar junto ao rei, crê que ela lhe traga no coração?
- A Sra. de Montespan? Não, Barcarola, é impossível. Ela é dura, má, usa de calúnias, mas não ousaria chegar a tal ponto!
- Por que não? Aquilo que tem entre suas garras ela o segura bem.
Pegou o cãozinho, que acabava de exalar o último suspiro, e jogou-o longe, entre as moitas.
- Foi Duchesne quem preparou o golpe. E Naaman, o negrinho da Montespan, quem me preveniu. Ela não suspeita dele. Por ter um acento esquisito quando fala, ela pensa que ele não compreende o francês. Ele dorme a um canto, sobre uma almofada, e ela não faz mais caso dele que de um cão. Ele estava ontem em seu gabinete, quando ela recebeu Duchesne, sua alma gémea. Foi ela quem o colocou como mordomo junto ao rei. Naaman ouviu-os pronunciar seu nome. Ele prestou atenção porque a conhece. Você o comprou primeiro, e ele amava Florimond, com quem brincava, e que lhe dava pralinas. Ela disse a Duchesne: "É preciso que amanhã esteja tudo acabado. Durante a festa, você mesmo achará o momento de levar-lhe uma bebida, onde derramará isto". E deu-lhe uma pequena retorta. Duchesne perguntou:
"Foi a Voisin que o preparou?" A Montespan respondeu: "Sim. E o que ela fabrica é eficaz". Naaman não sabia quem era a Voisin, mas eu sei. Ela foi minha madrinha. Oh! Oh! Ela sabe de segredos para enviar as pessoas para o outro mundo.
Na cabeça de Angélica os pensamentos formavam um turbilhão, semelhando pedaços soltos de um quebra-cabeça assustador.
- Se você diz a verdade, então Florimond não mentiu. Ela tentaria também envenenar o rei?... Com que intento?
O anão teve um momo de dúvida.
- Envenená-lo? Não creio. Mas ela faz com que coloquem pós mágicos em sua comida para enfeitiçá-lo. Isso não tem nenhum efeito sobre o rei, ao que parece. Ele sempre procurará sua fortuna onde bem quiser. Agora, escapemos daqui. Duchesne pode voltar com seus lacaios.
Fora do bosquete, a aléia inundada pela noite abria-se ao longe sobre um céu acobreado. De espaço em espaço, tanques de bronze sustentados por sátiros de pés bifurcados derramavam água num fresco murmúrio.
Barcarola caminhava com seu passinho apressado, sombra disforme, ao lado de Angélica.
- E agora, que vai fazer, marquesa?"
- Não sei.
- Espero que empregue os altos;meios.
- Que quer dizer com altos meios?
- Defender-se do mesmo modo. Olho por olho, dente por dente, como se diz. Para a Montespan, atira-lhe a munição na sopa, já que é esse o seu método. Quanto a Duchesne, uns bons chanfa-lhos dos frangins darão conta dele, qualquer noite, no Pont Neuf. Você não tem senão que ordenar.
Angélica guardou silêncio. A bruma do crepúsculo caía-lhe sobre as espáduas nuas,'fazendo-a tremer. Ainda queria duvidar.
- Não há outra coisa a fazer, marquesa - sussurrou Barcarola. - Senão você está perdida. Pois elâ" quer conservar o rei, e palavra de Mortemart, como ela o diz, o diabo em pessoa a ajudará.
Alguns dias mais tarde, uma festa reuniu a família real no parque de Versalhes. As casas de Monsieur e de Madame estavam presentes, aumentando o -fausto da criadagem. Florimond, acompanhado por seu preceptor, foi saudar a mãe, que conversava com o rei junto ao tanque de Latona. O garotinho sentia-se perfeitamente à vontade para saudar os grandes. Sabia que seu ros-tinho agradável, emoldurado por anéis castanhos, e seu luminoso sorriso eram sempre bem acolhidos. Muito garboso num traje de veludo carmesim, a perna sob a meia negra com frisos de ouro, numa postura arqueada, ele fez a reverência ao rei e beijou a mão da mãe.
- Cá está o trânsfuga - disse o rei com benevolência. - Está satisfeito com seu novo cargo, minha criança?
- A casa de Monsieur é agradável, mas eu preferia Versalhes, sire.
- Sua franqueza me comove. Pode-se saber o que, de Versalhes, mais lhe fez falta?
- A presença de Vossa Majestade... E as fontes e jatos de água.
A escolha era feliz. Nada era tão caro a Luís XIV como suas fontes e a admiração que suscitavam. Embora vinda de um pajem de onze anos, a lisonja agradou-lhe.
- Prometo que reverá as fontes no dia em que aprender a não mais mentir.
- A calar-me, talvez - disse Florimond com audácia -, mas mentir, não, pois nunca menti.
Angélica e o Abade de Lesdiguières, que se mantinham modestamente a alguns passos, esboçaram o mesmo movimento de inquietação. O rei, com o cenho franzido, observava o rostinho altivamente erguido para ele.
- Esta criança, que tão pouco se lhe semelha, é bem seu filho em seu modo de erguer a cabeça quando bem lhe apraz. Poder-se-ia duvidar da filiação, que seu queixo erguido logo a denunciaria. Só você e ele miram o rei deste modo em toda a corte.
- Peço perdão a Vossa Majestade.
- E inútil. Não está de modo algum pesarosa, nem por ele nem por si mesma. Mas então, que diabo! - prosseguiu preocupado -, já não sei o que pensar deste caso. Diz-se comumente que a verdade sai da boca das crianças. Por que duvidaria desta? Devo interrogar Duchesne... e pedir informações a seu respeito. Foi-me recomendado pela Sra. de Montespan, mas isso é saber muito pouco de um homem.
No momento em que o rei pronunciava essas palavras, um criado, de joelhos, estendia-lhe uma corbelha de frutas. Não para servi-lo, pois o rei não comia senão rodeado de oficiais, mas para que as admirasse. O rei louvou a beleza das enormes maçãs de casca rugosa verde e castanha, das pêras cor de mel, dos pêssegos rosados. Essas maravilhas iriam tomar lugar em longas mesas, com toalhas ofuscantes como neve, nos jardins do norte. Não foi senão mais tarde que Angélica se recordou desse criado com as frutas. O dia continuou magnífico sob o sol agradável. A noite ainda estava bastante amena, com uma multidão de pessoas nos jardins e terraços dominados pelo palácio, quando uma pequena mão agarrou a de Angélica, que mirava a grande cruz de ouro, desenhada entre as pradarias malva do crepúsculo pelo Grande Canal.
- Senhora! Senhora Plessis!
Ela baixou os olhos e reconheceu o negrinho Naaman, num casaco azul-real, turbante e calções abóbora. De seu rosto, na penurnbra crescente, não se viam senão os olhos brancos, revirando como bolas de ágata.
- Senhora, seu filho vai morrer! Seu filho vai morrer!
Mas, devido ao acento com que pronunciava essas palavras, ela não as compreendia bem.
- Messire Florimond! Tudo mau para ele. Tudo mau. Morrer.
Ao ouvir o nome de Florimond; ela compreendeu, e pôs-se a sacudir o negrinho pelos ombros.
- Que acontece? Que acontece? Florimond! Mas fala!
- Não sei, senhora! Não sei. Tudo mau,para ele. Angélica pôs-se a correr na direção dos jardins do norte, onde avistara havia pouco o Abade de Lesdiguières.
Ele ainda lá estava, ao pé de um dos grandes vasos de mármore com gerânios que bordejavam o terraço, aturando as impertinências das senhoras de Gramont e de Montbazon.
- Abade - gritou-lhe ofegante -, onde está Florimond?
- Acabou de passar, Senhora. Preveniu-me de que o encarregaram de correr até as cozinhas, e que logo estaria de volta. Sabe que adora correr e ser útil.
- Sim! Sim! - confirmou Naaman, balançando o turbante de penachos. - Ele disse: "Enviei o jovem Florimond pelo caminho que você conhece. Agora-podemos ficar tranquilos. O pequeno tagarela não falará mais".
- Ouviu: o pequeno tagarela não falará mais - repetiu Angélica, sacudindo o Abade de Lesdiguières. - Oh! Pelo Céu, diga-me, por onde ele passou?
- Eu... ele disse-me - gaguejou -, às cozinhas... Que ele passaria pela escada de Diana para ir mais depressa...
Naaman lançou um grito de macaco caindo numa armadilha, mostrando a língua rosada até o palato. Ergueu ambas as mãos com os dedos afastados num gesto trágico.
- A escada de Diana? Oh! Tudo mau! Tudo mau!
Ele correu para o palácio com quantas pernas tinha, seguido pelo Abade de Lesdiguières e por Angélica. A angústia maternal dava asas à jovem, pois, malgrado o pesado vestido, os sapatinhos de salto fino e o pajem que tropeçava no manto, ela acompanhou-lhes o passo, juntando-se a eles quando parlamentavam com um guarda a postos no vestíbulo que precedia os aposentos da ala do ' Midi.
- Um pajenzinho vestido de vermelho? - dizia o guarda. - Sim, eu o vi passar há pouco, o que me espantou, pois ninguém mais passa por aqui desde que demoliram a escada do Midi para trabalhos de ampliação.
- Mas, mas... - balbuciou o Abade de Lesdiguières -, antes... quando estávamos aqui, passávamos com frequência por essa escada de Diana. Subíamos, passávamos por uma galeria e depois pela escada do Midi que descia exatamente nas cozinhas.
- Não mais agora, é o que lhes digo. Abateram todo um paredão para a ampliação da ala. A escada de Diana está abandonada. Não há senão andaimes por lá.
- Florimond não sabia, Florimond não sabia - repetia o abade como um autómato.
- Não estão querendo dizer que o garoto subiu por ali - exclamou o guarda com uma imprecação. - Bem lhe gritei que parasse, mas ele corria tanto!
Já Naaman, o Abade de Lesdiguières e Angélica precipitavam-se de novo. A escada de Diana surgiu-lhes erguendo os degraus" de mármore para uma escuridão tão profunda que não se podia adivinhar os andaimes em que terminava. Os operários, àquela hora, já haviam deixado a obra. Era para esse tenebroso desconhecido, sulcado de armadilhas, que Florimond se lançara aos saltos. Angélica subiu. As pernas fugiam-lhe.
- Esperem - gritou o guarda - que lhes leve esta pequena tocha. Arriscam-se a cair no vazio. Há uma passarela, mas é preciso conhecê-la.
Angélica avançava, tateando no amontoado de vigotas e entulho. O guarda alcançou-a.
- Alto! - gritou. - Mirem!
A chama iluminava a dois passos uma cratera com a profundidade de dois andares.
-A passarela! - disse o guarda. - Retiraram a passarela.
Os joelhos de Angélica dobraram-se. Ela desmoronou, debruçada sobre a escuridão que engolira seu filho.
- Florimond!
Chamava-o com voz perdida, que não parecia sair dela mesma.
O vazio enviava-lhe um sopro de caverna e de pedra molhada. Só o eco do palácio em construção lhe respondia.
- Florimond!
O guarda tentava sondar as trevas com sua débil chama.
- Não se vê nada. Se ele caiu, está no fundo. Seria preciso buscar escadas e cordas, e luz. Segure-a, abade, senão ela também cairá. Venha, senhora. Não fique aqui. Vamos segurá-la.
Devorada por uma dor insana, ela desceu a escada maldita titubeando.
"Mataram meu filho... Meu filho, meu prgulho... O pequeno tagarela não falará mais... Florimond não sabia..."
O guarda e o Abade de Lesdiguières ajudaram-na a sentar-se numa banqueta, no vestíbulo invadido pela noite. Os dois negrinhos piavam como pássaros de mau agouro.
Pelo corredor perpendicular que dava para o Pátio de Mármore, vinha uma criada com um castiçal de seis braços. Ela aproximou-se.
- Sente-se mal, senhora? Trago um frasco de sais em meu bolso.
- Seu filho caiu dos andaimes - explicou o guarda. - Quede-se aqui com suas velas, minha filha. Vou buscar socorro.
Mas Angélica erguera-se subitamente.
- Escute - disse.
Sua expressão era tal que os negrinhos se calaram. Ouviu-se, então, ao longe, um galope rápido, o galope de tacõezinhos vermelhos avançando a toda a brida. Do corredor por onde viera a criada, Florimond surgiu como uma bala. Teria passado sem vê-los, se o guarda não tivesse a presença de espírito de interpor a alabarda.
- Deixe-me! Deixe-me! - gritou Florimond, debatendo-se. - O Sr. de Carapert pediu-me que fosse às cozinhas e estou atrasado.
- Detenha-se, Florimond! - exclamou o Abade de Lesdiguières, tentando segurá-lo com mão trémula -, essa escada é perigosa. Você estaria morto se...
O abade empalideceu e desmoronou sobre a banqueta, ao lado de Angélica. Houve um momento de confusão em que temeram que Florimond, em seu zelo, se precipitasse para a morte sob seus olhos. O guarda reteve-o pelo colarinho com mão sólida.
- Calma, fedelho! Disseram-lhe-que é perigoso.
- Mas estou atrasado.
- Nunca estamos atrasados quando nos arriscamos a encontrar a camarde, a morte. Acalme-se, bichinho, e agradeça à Virgem e a seu bom anjo.
Florimond, ainda ofegante, explicou o que sucedera. Ele chegava justamente ali quando encontrara... Monseigneur, o Duque d'An-jou, terceiro filho do rei, com sua gola de rendas, o Cordão de São Luís desenhando-se sobre a veste de veludo negro. Escapara às amas e vagava, uma maçã na mão, pequeno deus perdido no dédalo de seu grande palácio.
Florimond, que era a própria obsequiosidade, tomou a gorda boneca real nos braços para levá-la ao aprisco. Os aposentos do delfim e de seus irmãos eram distantes. A hora êm que Angélica se debruçava desfalecida, sobre o abismo sinistro, Florimond recebia os agradecimentos comovidos das governantas, amas-de-leite e embaladeiras de Monseigneur. Depois, enquanto elas se congratulavam, partiu a toda pressa para cumprir sua missão.
Angélica trouxe-o para os joelhos e abraçou-o fortemente. Pensamentos incoerentes assaltavam-na:
"Se também ele me tivesse deixado, como Cantor, não poderia viver... Tudo o que me liga a você, meu amor, teria desaparecido. Oh! Quando voltará para salvar-me?..."
Já não sabia a quem se dirigia no fundo do coração transtornado. Nunca mais esqueceria o crepúsculo de Versalhes, de suavidade enganadora, em que as mãozinhas negras de um escravo a puxavam pelo vestido: "Senhora, seu filho vai morrer..."
Procurou Naaman com os olhos. Ele se afastara. Agora que Florimond estava são e salvo, devia encontrar sua dona, a outra. Sem dúvida levaria algumas bofetadas da mão cheia de anéis como paga por sua ausência.
A criada fora à cata de vinho e de copos. Angélica obrigou-se a beber, embora tivesse a garganta oprimida por soluços nervosos.
- Bebam, vocês todos, também - disse. - Beba, bravo militar. Sem você e seu lume todos teríamos caído lá do alto.
O guarda bebeu de um gole o vinho que lhe estendiam.
- Não é de se recusar, pois ainda estou confuso. O que não compreendo é que a passarela tenha sido retirada. Será preciso que o observe a meu capitão, para que o comunique ao mestre-de-obras.
Angélica deu três peças de ouro a ele e outras três à criada.
Seguida pelo abade e por seu pajem, e trazendo Florimond firmemente pela mão, ela ganhou seus aposentos, onde voltou a desabar.
"Quiseram matar meu filho!"
A frase impunha-se a ela.
- Florimond, quem o enviou às cozinhas?
- O Sr. de Carapert, um oficial da Boca do Rei. Conheço-o bem. A jovem passou a mão na fronte úmida.
"Saberei, um dia, a verdade?"
No salão vizinho, ela ouviu René de Lesdiguières contar o incidente em voz baixa e apavorada a Malbrant Golpe de Espada.
- O Sr. de Carapert não lhe observou que a escada de Diana era perigosa, e que ninguém passa por ali há muito tempo?
- Não.
- Deve ter-lhe -avisado, jnas você não o escutou.
- Não é verdade - protestou Florimond, ultrajado. - Ele disse mesmo: "Passe pela escada de Diana. Você conhece o caminho. Assim chegará mais rápido às cozinhas".
"Como saber se ele mente para desculpar-se?", perguntou a si mesma.
Mas a obsessão permanecia. "Quiseram matar meu filho. A passarela foi retirada." -
Que fazer? Que pensar?
Nessa hora de dúvida e medo, não tinha para guiá-la e protegê-la senão criados de imaginação simplista, dois negrinhos e um anão. O pequeno mundo de Versalhes, agitando-se à sombra dos grandes, parecia erguer-se para murmurar-lhe: Acautele-se! e ela sentia-se tentada a confiar nessa intuição animal.
- Que se deve fazer? - perguntou, erguendo os olhos para o escudeiro Malbrant.
Era ao menos um homem de certa idade e experiência. Os cabelos brancos davam-lhe um ar de sabedoria que devia ter custado a adquirir. As sobrancelhas cerradas estavam franzidas, depois do relato de Lesdiguières.
- Devemos tornar a Saint-Cloud, senhora. Na casa de Monsieur, o pequeno estará protegido.
Angélica escarneou com um gesto lasso.
- Quem diria que um dia... Enfim, assim é. Creio que você tem razão.
- É preciso que ele não torne a cair nas patas desse Duchesne.
- Acredita que o golpe vem dali?
- Ponho minha mão no fogo. Mas ele não perde por esperar. Um dia picá-lo-ei em pedaços!
Florimond começava a compreender que escapara de um atentado e estava extremamente orgulhoso.
- Foi porque disse ao rei que não menti quanto ao Sr. Duches-ne. Picard, o criado com as frutas, deve tê-lo ouvido, e repetido ao Sr. Duchesne.
- Mas foi o Sr. de Carapert quem o enviou às cozinhas.
- O Sr. de Carapert obedece a Duchesne. Ah! Ele começa a temer-me, o severo Sr. Duchesne!
- Quando então você compreenderá que não deve falar a torto e a direito? - perguntou Angélica, que após cobri-lo de beijos continha-se para não esbofeteá-lo. - Percebeu que a esta hora você poderia estar com os membros quebrados sob um andaime?...
- Estaria morto - disse Florimond, filosófico. - Ora, isso acontece a todo mundo. Eu iria ao encontro de Cantor.
Após um instante de reflexão, ele reconsiderou.
- Não, pois Cantor não está morto.
Duas criadas, Teresa e Javotte, entraram trazendo a roupa da senhora para o baile.
- Leve-o - disse Angélica ao preceptor. - Tenho os nervos abalados. Já não sei onde estou. Vele por ele, não o deixe.
Mal a criança saíra, ladeada pelo abade e o escudeiro, ela quis chamá-los de volta. "Estou ficando louca. Se ao menos tivesse uma certeza..." Pediu a Teresa que lhe servisse um copo de aguardente. Hesitou em beber. Se estivesse envenenada? No entanto, após beber, a situação pareceu-lhe mais clara. "Se tivesse uma certeza saberia fazer frente à situação." As sugestões de Barcarola voltavam-lhe à mente. Suprimir Duchesne seria fácil. Malbrant Golpe de Espada se encarregaria disso, ou, em sua falta, bandidos bem pagos. E, se conseguisse ganhar uma das criadas da Sra. de Montespan, estaria ao menos a par dos perigos que a rodeavam. Pensou em Desoeillet, em quem Atenais tinha grande confiança, jovem que diziam venal e que ela surpreendera trapaceando no jogo.
Graças a um segundo copo de aguardente, ela pôde dançar e fazer boa figura; quando mais tarde, porém, após a ceia da rainha, ela tornou a seus aposentos, o medo se lhe acentuou até tornar-se intolerável. Parecia-lhe que não estava mais só no quarto. Voltou a cabeça e quase gritou de pavor. Dois olhos muito negros fixavam-na na sombra de um nicho. Uma forma atarracada ali estava escondida, como um gato à espreita.
- Barcarola!
O anão mirava-a intensamente e quase com crueldade.
- O feiticeiro está em Versalhes com sua madrinha - sussurrou com voz rouca. - Vem, frangine. Há coisas que você deve saber se tem sua pele em apreço.
Ela seguiu-o pela porta dissimulada que Bontemps lhe revelara em outros tempos. Barcarola nãa trazia vela. Enxergava na escuridão como os animais. Angélica tropeçava e chocava-se contra as paredes estreitas do corredor clandestino. Ela caminhava encurvada, tateando, com uma impressão de sufocamento, de estar sendo emparedada viva.
- É aqui - disse Barcarola.
Ela ouviu seus dedos procurando algo nos lambris.
- Como você é das nossas, frangine, eu lhe mostrarei. Mas acautele-se. Suceda o que suceder, o que possa ouvir ou ver, não deve dar um grito.
- Confie em mim.
- Mesmo se testemunhar um crime?... O crime mais horrível que possa imaginar?...
- Não fraquejarei.
- Se fraquejar, é sua morte e a minha.
Houve um clique imperceptível, e o contorno luminoso de uma porta desenhou-se nas trevas. Angélica colou o olho na fresta entreaberta. A princípio nada distinguiu. E)epois, pouco a pouco, emergindo de vapores estranhos de odor penetrante, percebeu o mobiliário de um quarto onde brilhavam três grossos círios. Depois ouviu cantos semelhantes a cantos sacros. Sombras se moviam. Um homem sentado sobre tacões entoava salmos a alguns passos deles, com um grosso missal nas mãos, balançando-se para a frente e para trás. Tinha um voz de sacristão embriagado. Atravessando a nuvem de fumigações vindas de caçoulas borbulhantes sobre réchauds, um homem de alta estatura avançou. Angélica sentiu um suor glacial colar-se-lhe na camisola.
Jamais em sua vida, pensou, vira um ser humano tão aterrador. Era um padre, pois trazia uma espécie de casula branca, bordada com pinhas negras. Bastante idoso, malgrado o talhe espigado, a velhice traía-se por uma espécie de podridão interior que lhe aflorava ao rosto inchado, cor de borra de vinho, com veias aparentes entrecruzando-se nas faces. Dava a impressão de um corpo em decomposição, que se erguera do túmulo, ousando misturar-se ao mundo dos vivos. Sua voz, de sonoridade cavernosa e úmida, quebrava-se num tremor senil, que não lhe tirava, no entanto, uma estranha autoridade. Tinha um olho vesgo, a pupila dançante loucamente à espreita, parecendo tudo ver, e penetrar todos os segredos.
Ao reconhecer numa das mulheres ajoelhadas diante dele a adivinha Monvoisin, Angélica apreendeu o sentido da cena.
Recuou, desfalecendo, e teve que se apoiar à parede.
Barcarola apertou-lhe a mão com força e cochichou:
- Vamos, não tema nada. Eles não podem saber que você está aqui.
- O Demónio saberá; é u,m espírito... - balbuciou Angélica, batendo os dentes.
- O Demónio partiu. Olha, a cerimonia está quase terminada.
Uma outra mulher avançou e ajoelhou-se. Ela ergueu o véu, e
Angélica reconheceu a Sra. de Montespan. O estupor fez com que esquecesse o medo por um momento. Como Atenaís, tão inteligente, tão orgulhosa, ousava perder seu corpo de deusa nessa sinistra paródia?
O padre estendeu-lhe um livro, no qual a marquesa pousou as mãos brancas, de anéis cintilantes. Com voz tremula de escolar, recitou uma prece:
"Em nome de Astora e Asmodeu, príncipes da Amizade: peço a amizade constante do rei e de Monseigneur o delfim, que a rainha seja estéril, que o rei deixe seu leito e sua mesa por mim, que minhas rivais pereçam..."
Angélica mal a reconhecia. Era uma mulher perdida, arrastada pela paixão nos meandros de uma horrível aventura, de que nem mesmo via o verdadeiro sentido.
Os vapores azulados adensaram-se, de envolta com o acre perfume de incenso, e depois dissiparam-se em jiuvens que se afilavam, acolchoando os semblantes e -conferindo às expressões vaporosas a inconsistência dos pesadelos.
O chantre silenciara. Havia fechado o livro e erguera-se. Aguardava a partida da assembleia, coçando os flancos.
A voz da Sra. de Montespan interrogou:
- Tem a camisola?
- É verdade, a camisola! - disse a Voisin, erguendo-se. - Certamente cuidamos para não esquecê-la, senhora, pelo preço que nos pagou. Mas é um belo trabalho, nos dirá depois. Confiei-a a minha filha, numa. cesta. Margot, traz a cesta.
Uma garota de uns dez" anos surgiu da bruma e pousou uma cesta no tapete, dela tirando, com mil precauções, uma camisola rosa com bordados de prata aracnídeos.
- Cuide para não lhe pores muito os dedos - disse a mãe. - Use as folhas de plátano que preparei...
Angélica, em seu esconderijo, mordeu o punho até sangrar. Acabava de reconhecer, nas mãos da perigosa menina, uma de suas camisolas preferidas.
- Teresa! - chamou uma voz.
A criada de Angélica apresentou-se, tendo no rosto de morena arrogante a expressão compenetrada dos imbecis que representam um grande papel.
- Pegue isto, minha filha - disse a Voisin. - Use de precaução. Tome também estas folhas de plátano para segurá-la; isso a protegerá... Não feche a cesta, Margot, vamos colocar-lhe... aqui lo que sabes.
Ela foi para os fundos da peça e voltou com um pacotinho de roupa-branca, do qual brotavam estrelas de sangue.
Angélica crispou as pálpebras, as mãos fechadas contra o peito, para conter os gritos de horror que lhe subiam aos lábios: "Assassinos! Miseráveis! Monstruosos assassinos!" As confidências de Maria Inês inscreviam-se em letras de fogo.diante de seus olhos... "Com uma longa agulha eles perfuraram-lhe o coração..."
Ela não tinha mais forças para olhar. Ouviu que alinhavam, numa agitação de sacristia, os círios apagados e os vasos de prata, que se entrechocavam.
Com seu timbre sepulcral e rachado o padre disse:
- Cuide para que as sentinelas não olhem na cesta.
A Voisin respondeu-lhe, escarnecendo:
- Não há perigo. Com todas as proteções que aqui tenho, os guardas antes se curvam ao me ver passar.
Um silêncio reinou subitamente. Angélica abriu os olhos para a escuridão. Barcarola fechara a porta.
- Já sabemos o suficiente. E você não seria capaz de suportar mais. Fujamos, antes que sejamos agarrados por aquele rato do Bontemps, que vasculha todos os cantos, com a noite.
De volta aos aposentos de Angélica, ele alçou-se na ponta dos pés para alcançar um frasco de aguardente de ameixas, servindo dois copos.
- Beba isto. Você está da cor da lua. Não está habituada como eu. Durante dois anos fui porteiro da Voisin. Conheço-a bem.
Conheço-os todos. Oh! Ela não é má mulher. Tem muita ciência, principalmente sobre quiromancia e fisiognomonia; estudou-as desde a idade de nove anos. Dos que a procuram para ler a mão, ela diz que a maior parte acaba confessando querer livrar-se de alguém. No começo, ela respondia que as pessoas de que queriam se desfazer morreriam quando aprouvesse a Deus. Então diziam-lhe que ela não era muito sábia. Agora mudou seus métodos. E ficou rica! Ah! Ah!
Barcarola estalou a língua após beber e serviu-se de novo.
- O que me inquieta é essa história da camisola. Ela é sua, não?
- Sim.
- Foi o que pensei. A visão de Teresa, sua criada, nesse sabá, deixou-me com a pulga atrás da orelha. E mais do que certo que a Montespan continua a querer enviar-lhe para um lugar de onde você não tornará. Ela voltou a pagar a Voisin para fabricar um medicamento para você. Sei que, não faz muito tempo, a adivinha foi ao Auvergne e à Normandia, para obter os segredos de envenenar sem dar na vista.
- Agora que estou prevenida, evitarei a armadilha. Aliás, sei com quem aconselhar-me.
Ela bebeu com aplicação um segundo copo.
- O outro, o padre, quem era?
- O Abade Guibourg. Está na paróquia de Saint-Marcel, em Saint-Denis. Ele já-fez muitas coisas pelo Demónio! E ele quem imola as crianças para beber-lhes o sangue...
Angélica reuniu suas forças para dizer-lhe baixinho:
- Cale-se!
- Há um forno na casa de Voisin onde ela queimou não menos de duas mil crianças prematuras ou imoladas.
- Cale-se!
- Um belo mundo, não é verdade, marquesa? E que tem belas relações! Viu aquele que esganiçava salmos? Era Lesage, o "grande ator" da feiticeira. Parece que a Sra. de La Roche-Guyon é madrinha de sua filha. Uh! Uh! Uh!
- Cale-se - gritou Angélica, fora de si.
Apanhou uma estatueta no consolo e lançou-a na direção dele. A estatueta espatifou-se contra a parede. Barcarola fez uma cabriola e dirigiu-se para a porta, sempre escarnecendo. Ela ouviu-lhe o riso ululante decrescer no corredor.
Quando, no dia seguinte à noite, Teresa entrou no quarto trazendo a camisola rosa, Angélica estava de penhoar, junto ao toucador.
Acompanhou pelo espelho a criada depositar a camisola na cama com precaução, e preparar o travesseiro e os lençóis para a noite.
- Teresa!
- Senhora marquesa?
- Sabe que estou muito contente com seus serviços, Teresa? A jovem estremeceu e bamboleou-se com um sorriso falso.
- A senhora marquesa me deixa contente.
- Queria também dar-lhe um presentinho, você o merece. Como é coquete, dar-lhe-ei essa camisola que acaba de trazer. Pegue-a.
Houve um silêncio. Angélica voltou-se. O rosto da jovem em palidecera numa terrível confissão.
Um sobressalto de cólera e indignação pôs Angélica de pé.
- Pegue-a - repetiu com voz surda, os dentes cerrados. - Pegue-a.
Aproximou-se dela e seus olhos faiscaram como esmeraldas.
- Não quer pegá-la? Não quer pegá-la? Eu sei por quê? Abra as mãos, maldita!
Teresa, desvairada, deixou cair as folhas de plátano que apertava entre os dedos.
- As folhas de plátano! As folhas de plátano... - gritou Angélica esmagando-as com o salto.
Esbofeteou a jovem duas, três vezes, com violência.
- Vá-se embora! Vá-se embora! Estáexpulsa daqui. Vá juntar-se a seu mestre, o Diabo!
Com um gemido aflito, Teresa precipitou-se para fora, os braços sobre o rosto.
Angélica continuou ali, o corpo inteiro tremendo.
Javotte, que se apresentou alguns instantes depois trazendo numa bandeja a colação da noite, encontrou-a ainda em pé no centro da peça, os olhos.parados.
Em silêncio, a jovem dispôs sobre a mesa a geléia, os pãezinhos de Gonesse e o frasco de xarope refrescante.
- Javotte - perguntou Angélica, de súbito -, você ainda ama David Chaillou?
A pequena enrubesceu, e seus olhos cinzentos e doces se arregalaram.
- Já faz muito tempo que não nos vemos, senhora marquesa.
- Mas ainda o ama, não é?
Javotte baixou a cabeça com um suspiro.
- Sim. Mas ele mal me olha, senhora marquesa. Tornou-se um grande senhor com o restaurante e a chocolataria. Dizem que vai desposar a filha de um notário.
- A filha de um notário? Para que precisa disso o imbecil? E de uma mulher como você que ele necessita. Você o desposará.
- Não sou bastante rica para ele, senhora.
- Você o será, Javotte. Terá um dote. Dar-lhe-ei quatrocentas libras de renda. E um enxoval. Terá vinte e seis lençóis, camisolas de batista de Cambrai, toalhas adamascadas... Será tão bom partido que esse jovem reconsiderará o encanto de suas faces rosadas e de seu lindo nariz. Sei que ele não lhe é insensível.
A criadinha ergueu para ela o olhar deslumbrado.
- Faria isso por mim, senhora?
- Que não faria por você, Javotte? Você deu de comer a meus filhinhos quando a ama-de-leite de Neuilly deixava-os morrer de fome.
Ela passou os braços nos ombros roliços sob o fichu de musseli-na, encontrando conforto em apertar contra si aquele corpo adolescente.
-Você permaneceu casta, Javotte?.'
__ Fiz o melhor possível, senhora. Orei à Virgem Maria. Mas a senhora sabe como é... Com todos esses lacaios insolentes e esses belos senhores com seus olhares melosos, há vezes em que é difícil... Deixei-me abraçar, certamente... Porém, jamais cometi o pecado.
Angélica estreitou-a mais ainda, com admiração pela coragem daquela órfã, perdida na imensa corrupção de Versalhes.
- Recorda-se, Javotte, daquela noite em que nos mudamos para a casinha da Rue des Francs-Bourgeois? Oh! Como éramos felizes! Eu dera a Florimond um cavalo de madeira, e a meu pequeno Cantor... um pião, creio.
- Não. Um ovo de madeira pintada com outros dentro.
- É isso. Fizemos panquecas. E, quando o campainheiro dos mortos passou, joguei-lhe um jarro de água na cabeça para que não perturbasse nossa festa com suas lamentações.
Ela deu um risinho, mas seus olhos estavam cheios de lágrimas.
- Felizmente isso não veio de você, Javotte. Felizmente isso não veio de você! Não o teria suportado. Agora vai, minha pequena. Amanhã irei a Paris visitar o Sieur David Chaillou, e em breve você se casará.
- Devo ajudar a senhora a despir-se? - perguntou Javotte com um movimento para a camisola rosa.
- Não, deixe. Vá, vá, quero ficar sozinha.
Javotte se foi docilmente, não sem antes lançar de passagem um olhar discreto à garrafa de aguardente, para verificar se o conteúdo não baixara bruscamente. Havia algum tempo, aquilo vinha acontecendo amiúde à senhora marquesa.
CAPÍTULO XX
Francisco Desgrez, tenente de polícia
Francisco Desgrez, tenente de polícia, adjunto ao tenente-general, Sr. de La Reynie, não mais residia no Petit-Pont, e sim numa das novas mansões do Faubourg Saint-Germain.
Angélica bateu numa porta severa mas opulenta, e após atravessar um pátio onde pateavam dois cavalos selados, foi introduzida num pequeno salão de espera. Viera de cadeirinha para não ser reconhecida. Aproveitava a ausência da corte, que acompanhara Madame até Flandres, devido à sua partida para a Inglaterra. Angélica fora convidada, mas pedira que o rei a dispensasse da viagem. Ele estava na fase do amor em que se concede tudo à pessoa amada, mesmo que isso faça sofrer. Livre, ela contava organizar sua defesa.
Era uma longa tarde de primavera, com andorinhas riscando o céu de Paris. O dia que findava punha pinceladas de ouro no salão. Mas a serenidade da natureza não conseguia desfazer a ansiedade de Angélica. Suas mãos pousavam sobre um pequeno pacote em seus joelhos.
Ela teve que aguardar um longo tempo. Por fim, os visitantes que a precediam partiram. Ela ouviu vozes no vestíbulo e depois de um silêncio um criado veio procurá-la, fazendo-a subir até o andar onde se situava o escritório do policial.
Angélica havia perguntado a si mesma que atitude observar para com o velho amigo que não revia há longos anos. No impulso de pânico que a impelia para ele, quisera jogar-se a seu pescoço, mas refletira em que tal comportamento não mais ficava bem em sua
posição de marquesa, diante de um homem que arrastara o casaco surrado entre a escória de Paris. Uma cortesia um tanto distante seria mais apropriada. Ela cuidara no traje: sóbrio, mas custoso.
Quando Desgrez se ergueu por trás da comprida mesa de trabalho, ela compreendeu que estava fora de questão jogar-se ao pescoço de um funcionário de peruca, impecável do no da gravata muito bem-feito até a fivela dos sapatos. Envergando um casaco de pano tabaco, ele parecia um pouco mais gordo, mas sempre um belo homem, tendo perdido o ar desengonçado de esfomeado para uma atitude comedida, por trás da qual sentia-se, contudo, o vigor de outrora. Ela estendeu-lhe a mão. Ele inclinou-se sem beijá-la.
Sentaram-se, e Angélica imediatamente abordou o motivo de sua visita, com o fito de afastar algumas lembranças demasiado íntimas que teimavam em esyoaçar sobre eles.
Disse que uma amiga a advertira de um complô contra ela, e de que seus inimigos haviam feito "preparar" uma camisola que causaria sua perda. Não sabendo que crédito dar a tais frivolidades, vinha pedir-lhe conselho. Desgrez abriu o pacote com mão rápida. Pegou uma espécie de pinça de sobre a secretária e desdobrou a camisola, que se estendeu langorosamente à luz quente das velas que acabavam de ser trazidas.
- Você deve ficar encantadora dentro disto - disse, com o sorriso e a antiga entonação dó policial Desgrez.
- Prefiro não me ver nela - respondeu Angélica.
- Não deve ser a opinião de todo mundo.
- De meus inimigos em particular.
- Não aludia a seus inimigos. Esta camisola parece-me perfeitamente inofensiva.
- Digo-lhe que esconde uma armadilha.
- Boatos! Sua amiga deve ter muita imaginação. Se você mesma tivesse visto ou ouvido algo, o caso seria diferente.
- Mas eu...
Conteve-se a tempo. Não queria ser levada a citar nomes, a aludir à própria amante do rei. O escândalo podia atingir muitas personagens importantes. Não poderia contrapór-se a elas. Foi então que a corte se lhe mostrou como um mundo fechado, e que os Policiais, aqueles rabugentos de baixa extração, em nada tinham que se envolver com esses dramas, tanto quanto com os acertos de contas da matterie. Ela errara em romper com essa convenção tácita. Devia defender-se sozinha ou morrer. Madame fizera com que o compreendessse, certa manhã, em Saint-Cloud. Mas era de-masiado tarde para recuar. Despertara a curiosidade de Desgrez. Percebeu-o diante do brilho particular de seu olhar sob as pálpebras abaixadas. Disse com esforço:
- Bem! Talvez tenha razão, afinal. Meus temores não repousam em nada de muito preciso. E tolice minha.
- Não, senhora! Temos o hábito de jamais negligenciar a mais ténue fumaça. As feiticeiras possuem estranhos segredos. E uma casta vil de que gostaríamos muito de livrar Paris. Farei examinar esta coisa encantadora.
Com uma presteza de ilusionista, embalou a camisola e fê-la desaparecer. Um sorriso indefinível brincava em seus lábios.
- Você teve aborrecimentos com a Companhia do Santo Sacramento em outros tempos. Sua vida desavergonhada indignava esses poderosos devotos. Juraram por sua perda. Então não são seus únicos inimigos?
- E o que parece.
- Em suma, você encontrou um meio de entalar-se entre Deus e o Diabo?
- Exatamente.
- Vindo de você, isso não me espanta. Jamais procedeu de outro modo.
Angélica contristou-se. Desabituara-se de ver as pessoas de um meio inferior ao seu dirigirem-se a ela com tal familiaridade. Ela disse:
- Isso é comigo. Tudo o que desejo saber é se algum perigo me ameaça, e de que natureza.
- Os desejos da senhora marquesa serão atendidos - afirmou Desgrez, dobrando-se em dois.
Quinze dias mais tarde ele fez com que lhe entregassem um bilhete em Versalhes. Angélica encontrou certa dificuldade em deixar o local. Assim que lhe foi possível, atendeu à convocação.
- Então - perguntou, ansiosa -, trata-se de uma brincadeira?
- Talvez. Mas o mínimo que se pode dizer é que é maldosa. O policial apanhou um relatório de sobre a mesa e leu:
-..."Tendo sido experimentada a camisola, constatou-se que, por estar impregnada de uma substância venenosa invisível e desconhecida, destinada a entrar em contato com as partes mais íntimas do c0rpo, nelas desenvolveu uma doença de aparência venérea, que logo ganhou o sangue, provocando chagas purulentas em toda a pele, e subiu ao cérebro acarretando delírio, inconsciência e morte. O desenvolvimento dos sintomas é extremamente rápido, e a morte sobrevêm num lapso de tempo que não ekcede uma dezena de dias". Assinado por um dos médicos juramentados do hospital de Bicêtre. A jovem, a boca aberta, os olhos arregalados, ficou paralisada de estupor.
- Quer dizer que... - gaguejou. - Mas como puderam constatar esses efeitos? Não está querendo dizer que fez vestir a camisola numa mulher viva?
Desgrez desprezou o detalhe com um movimento da mão.
- Há loucas em Bicêtre que não têm muito que perder. Não se choque. Saiba apenas que o fim de uma dessas infelizes atesta a virulência de seus inimigos, e aT-sorte que lhe estaya reservada: deveria morrer num prazo rápido, após uma agonia horrível e ignominiosa.
Ele deixou que um certo tempo se escoasse. Angélica estava aterrada. Não achava o que dizer e, ademais, de que valia falar? Ergueu-se maquinalmente. Desgrez contornou a mesa, colocando-se diante dela.
- Quem é sua inimiga ou quem é a feiticeira por ela paga?
- Francamente, ignoro-o.
- Está errada.
O tom metálico e cortante do policial chocou-a. Ela era a vítima e não a culpada.
- Sr. Desgrez, sua obsequiosidade foi-me de grande utilidade. Naturalmente, pagarei as despesas de investigação.
O rosto de Desgrez distendeu-se num sorriso cáustico, que não lhe ganhava os olhos.
- Não sei ainda qual a taxa para uma vida humana e oito dias de agonia. Farei um cálculo. Enquanto isso, senhora, deve à polícia um gesto de consideração. O Sr. de La Reynie encarregou-me de dizer-lhe que deseja muito vê-la.
- Falarei com ele quando for o momento.
- Este é o momento - disse Desgrez, que com duas pernadas alcançou uma porta.
O Sr. de La Reynie entrou. Angélica já se encontrara com o tenente-general de polícia. Estimava o magistrado, que diziam homem de grande virtude e grande capacidade. Ele não chegara aos quarenta anos. O olhar traía uma inteligência lúcida, forte e ponderada. E havia bondade na boca sombreada por um leve bigode castanho. Mas o passado tenebroso de Angélica ensinara-lhe a desconfiar da bondade dos policiais. Era do que mais desconfiava. O Sr. de La Reynie pareceu-lhe um adversário.mais temível que Desgrez.
Ele beijou-lhe a mão e conduziu-a, pressuroso, para a poltrona que ela acabava de deixar. Sentou-se ele próprio no lugar de Desgrez, que permaneceu em pé, apoiando-se à mesa com ambas as mãos, sem desviar o olhar da jovem.
- Senhora - disse o magistrado -, estou profundamente transtornado com a ideia do atroz atentado de que quase foi vítima. Faremos de tudo para protegê-la. Se for necessário, referirei o caso ao rei, para que ele me dê plenos poderes.
- Não! Por piedade, não vá enfadar o rei com essa história.
- Sua vida está em jogo, senhora. O rei me odiaria se eu não conseguisse descobrir seus inimigos. Diga-me como as coisas se passaram.
Angélica forneceu com indiferença a mesma explicação que já dera a Desgrez.
- Qual o nome da pessoa que a avisou?
- Não posso dizer-lhe o nome.
- E indispensável que a interroguemos.
- A Sra. du Plessis-Bellière não pode dizer-lhe o nome porque essa pessoa não existe - disse Desgrez com suavidade. - A Sra. du Plessis foi avisada do perigo porque viu ou ouviu coisas precisas, que não quer nos contar.
- Que interesse teria em calar-se, senhora? - ponderou La Reynie. - Pode contar com nossa discrição.
- Eu nada sei, senhor tenente-general, e a pessoa que me avisou, não estou certa de poder reencontrá-la. Ignoro onde ela reside...
- A senhora marquesa mente - disse Desgrez. - Ela tem a língua seca.
Ele buscou uma bandeja com dois copos e um frasco. Angélica, desconcertada, aceitou contudo o copo de álcool, que sabia necessário para cobrar o sangue-frio. Bebeu sem pressa, mirando a reverberação do licor dourado no fundo do copo. Ela refletia. Os policiais aguardavam com paciência.
__ E minha vez, senhor tenente-general, de perguntar-lhe que interesse teria em calar-me se maissoubesse sobre o mal que me desejam?
- O interesse de não trazer à luz as torpezas com que se envolveu e que sua consciência reprova -adisse Desgrez duramente.
- Senhor tenente-general, seu subordinado abusa de seus direitos. Estou bastante indignada com a acolhida que encontro junto a vocês. Penso que o senhor não ignora minha posição na corte e a estima em que me têm Suas Majestades.
La Reynie observava-a em silêncio e em seu olhar direto lia-se um profundo conhecimento da alma humana. Também ele não acreditava nela.
- Que sabe? - repetiu ele docemente.
- Saber é tarefa sua - gritou ela com raiva.
Apertou nervosamente ántre as palmas o cálice de álcool, bebendo de um gole. Desgrez encheu-o imediatamente. Malgrado sua perturbação, ela não ousava levantar-se.
- Surpreende-me que dê razão a essa grosseira personagem que o assiste, Sr. de La Reynie. Queixar-me-ei disso ao rei.
O magistrado emitiu um profundo suspiro.
- O rei incumbiu-me de uma tarefa bem pesada, mas que cumprirei o melhor possível. Fazer reinar a ordem não somente na cidade, mas em seu reino, perseguir o crime onde ele se esconde. Ora, houve um crime, ou ao menos intenção criminosa. Vi a horrível prova. Fui, em pessoa, a Bicêtre. Deve ajudar-nos, senhora, como estamos prontos a ajudá-la. Repito-o: sua vida está em jogo.
- E se lhe dissesse que isso pouco me importa?
- Não tem esse direito... Menos ainda de fazer por si mesma justiça.
Houve um pesado silêncio.
- As pessoas falam muito em feiticeiras - retomou La Reynie. - Até agora eu não queria ver nessas adivinhas e feiticeiros e naqueles que os consultam senão vagabundos extorquindo dinheiro de curiosos desocupados, lendo a mão e outras tolices do género. Mas começo a suspeitar de que é. preciso dar-lhes um outro nome, a uns e outros...
Ele murmurou com voz surda:
- Talvez sejam assassinos! Monstruosos assassinos!
Angélica sentiu que um suor frio lhe molhava as fontes..Passou os dedos trémulos no rosto, e, no olhar patético que lançou aos dois homens, eles leram o reflexo de uma visão atroz.
- Fale, senhora - disse La Reynie com doçura.
- Não. Não direi nada.
- Há então algo a dizer.
Ela calou-se, e Desgrez voltou a encher o cálice.
- Não importa - disse La Reynie com severidade. - A senhora não quer falar, outros falarão. Um dia ergueremos o véu...
Angélica jogou a cabeça para trás numa espécie de riso metálico e desencantado.
- Impossível, Sr. de La Reynie, impossível!...
Alguns anos mais tarde, o Sr. de La Reynie entraria no gabinete do rei, levando a mão aos olhos e dizendo:
- Sire, esses crimes me apavoram.
Abriria o dossiê que a história chamaria de "O caso dos venenos", e todos os grandes nomes de França surgiriam, espirrando a lava do inferno nos degraus do trono. Com mão implacável, o austero magistrado despojaria de sua armadura dourada as almas sanguinárias e os corações apodrecidos. Mas devia recuar diante de um nome, o nome que hoje Angélica silenciava, o da Sra. de Montespan.
Talvez, então, revisse essa mulher um tanto desvairada, de riso desencantado, que lhe gritava "Impossível!"
Ela ergueu-se titubeando. Aquela bebida era terrivelmente forte, mas Desgrez enganara-se pensando que ela soltar-lhe-ia a língua. O álcool deixara-a taciturna e entontecida.
Apoiou-se à mesa. A língua estava pastosa.
- Maquiavel disse, senhores... Sim, Maquiavel disse: "Se os homens fossem bons, você também podia ser bom e seguir em tudo os preceitos da Justiça; mas, como são maus, mesmo você deve ser mau amiúde..."
O tenente de polícia e o adjunto trocaram um olhar.
- Deixemo-la - disse o Sr. de La Reynie a meia voz.
Inclinou-se diante de Angélica, que não o viu. Ela caminhava vacilando para a porta. Desgrez acompanhou-a, guiando-a no vestíbulo escuro, depois que ela se chocou contra um consolo e uma porta fechada.
_ Tenha cuidado nos degraus.
Ela agarrou-se à balaustrada e voltou-se para ele.
__ Sua atitude é revoltante, Sr. Desgrez. Vim até você como a um amigo e você me sujeitou a um interrogatório insultante, co-m0 se me julgasse culpada. De quê?... - "
- De solidarizar-se com os que procuram sua morte. Pensa que a polícia não deve se envolver em seu mundo. Umacriada é paga para introduzir veneno na xícara de uma rival, um lacaio, para esperar numa esquina certo inimigo que a embaraça...
- Suspeita-me capaz de tais gestos?
- Se não é você, são os seus, como diria o amávelfabulista La Fontaine, que apadrinha.
- E crê que, à força de viver entre eles, serei como eles?
Retificou mentalmente, de.lmediate: "Já sou como eles". Não conjeturava ganhar uma criada para espionar a Montespan? Enviar Malbrant Golpe de Espada para assassinar Duchesne na saída do Opera?
O olhar de Desgrez era uma acusação. Ela viu-se, de repente, como ele a via, com seu traje e seus adornos, que sozinhos custavam um ano de vida de uma família de artesãos. Era a belíssima Marquesa du Plessis, mas talvez"já marcada por um imperceptível emurchecimento pelas noites sem dormir e a excitação das festas, as pálpebras ardendo de mulher que bebe em demasia, os carmins e pós que por força do hábito se acentuavam a cada dia, até não serem mais que uma máscara artificial de ator, a arrogância que se tornava natural, a voz que se alteava e endurecia...
Ela desceu a escada cerrando os lábios sobre suas queixas.
"Desgrez, meu amigo Desgrez, acuda-me! Acuda-me, meu passado! Acuda-me, minha alma perdida... Ninguém terá pena de mim, que tudo possuo! Não é possível que me vá assim, com o peso de minhas jóias nas mãos e nos ombros, e no coração o peso mortal da solidão..."
Ela voltou-se para o policial num ímpeto de angústia e quase caiu para o outro lado. Por pouco ele não a segurava.
-Decididamente você está bêbada como um peru. Não a deixarei continuar. Chegaria lá embaixo em pedaços.
Sustendo-lhe o braço com autoridade, fê-la subir os poucos degraus e introduziu-a à força num quarto. Ela balbuciou:
- E sua culpa, policial sujo, com esse aguardente que me fez beber.
Desgrez pegou do isqueiro para acender duas velas. Aproximou a luz do rosto de Angélica, examinando-o com curiosidade. As comissuras dos lábios fremiam-lhe como se contivesse um súbito desejo de sorrir. Angélica, a mão na boca, lutava contra um incoercível soluço.
- Bela linguagem, marquesa - disse o policial a meia voz. - Com que, então, estamos começando a recordar o passado.
Angélica sacudiu a cabeça furiosamente.
- Não acredite que me fará falar como naquele dia - repetia Angélica. - Não direi uma palavra... uma palavra.
Desgrez plantou o castiçal no consolo como se ali plantasse um punhal, e pôs-se a caminhar de um lado para outro com agitação.
- Sei muito bem que não dirá uma palavra... Sob o cavalete, sob a roda, não diria uma palavra. Mas então, como fazer?... Como fazer para defendê-la? O tempo que levarmos para achar a pista e preparar as armadilhas já terá passado para o outro mundo. Seria ao menos o primeiro atentado a que escapa? Não, não é fato?... Que acontece?... Que tem você?
- Oh! Queria vomitar - gemeu Angélica, desfalecendo.
O policial segurou-a energicamente, sustentando-lhe a fronte.
- Vamos! Far-lhe-á bem. Pouco importa o tapete.
- Não - protestou ela, conseguindo dominar-se.
Desprendeu-se e apoiou-se à parede, pálida, os olhos fechados.
- Oh! Queria vomitar! - repetiu em voz baixa -, queria vomitar minha vida. Querem matar-me? Muito bem, que me matem. Ao menos poderei dormir, repousar, não pensar em mais nada.
- Isso não - disse Desgrez.
Ele comprimiu o maxilar, adquirindo um ar feroz. Aproximando-se dela, sacudiu-a pelos braços.
- Você não o fará, hein? Não a deixarei abater! Você mesma se defenderá. Senão estará perdida, bem o sabe.
- Pouco se me dá!
- Não tem esse direito. Não você. Não tem o direito de morrer. E sua força, que fez dela? Seu gosto pelas batalhas, suas pe_
quenas ideias acertadas, seu furor de viver e triunfar. Que fez deles? Será que eles também lhe foram tomados na corte?
Sacudiu-a, como se quisesse despertá-la de um pesadelo, mas ela se abandonava, abatida e inerte, a cabeça baixa. Ele recuou alguns passos, contemplando-a, irado.
- Bom Deus! - gritou -, aí está o que fizeram da Marquesa dos Anjos. Um belo trabalho, em verdade, eles têm de que se orgulhar. Arrogante, obstinada, e apesar de tudo isso...
A cólera de Desgrez cercava-a de eflúvios bizarros, que lhe traziam, através da depressão na qual mergulhava, uma corrente nova, uma impressão indefinível de alegria. Era o antigo Desgrez explodindo com sua verve, seu caráter abrupto, o espírito cáustico e independente que não pertencia senão a ele.
Voltou a caminhar de um lado para outro, desaparecendo na escuridão da peça, para reaparecer subitamente à luz, sempre fora de si.
- E isto? - disse, aproximando-se para tocar os colares de diamantes e o cordão de pérolas que adornavam o pescoço e o colo de Angélica. - Como é possível erguer a cabeça com semelhante traste no dorso? Isto pesa cem libras! Não é de se espantar que as pessoas verguem a espinha, arrastem-se de joelhos, deitem-se no chão... Tire-os. Não quero mais vê-la com isso.
Suas mãos pousaram-lhe Jia nuca, buscando o fecho do colar, que lançou sobre a cómoda. Tirou o cordão, desarranjando-lhe um pouco os cabelos. Tomou-lhe os punhos, retirando, um a um, os braceletes e lançando-os sobre o amontoado brilhante de colares. A operação acalmou-lhe a cólera e começou a diverti-lo.
- Pelo Pai Eterno, protetor dos faladores de gíria, sinto-me com a alma de um ladrão de Paris. Que preciosidade, meus mions. Avante para a colheita!
Quando ele lhe roçou a face para desatarraxar os brincos, ela sentiu o odor de tabaco de suas mãos fortes. Os longos cílios, que Angélica mantinha baixos, fremiram. Ela ergueu os olhos e viu bem próximo o olhar vermelho do policial Desgrez, que se acendia do tundo do passado, levando-a de volta para o-dia de outono em que, na casinha do Pont Notre-Dame, ele soubera, de modo bem curioso, tira-la do desespero e reanimar-lhe a esperança. As mãos masculinas, quentes, um tanto rudes, alisaram-lhe longamente as espáduas nuas.
- Pronto! Assim ficou mais leve, não é verdade?
Angélica sentiu um súbito calafrio, o frémito de um animal que desperta após longa imobilidade. As mãos cingiram-na com mais força.
- Nada posso fazer para defendê-la - disse Desgrez, em voz baixa e rouca -, mas posso ao menos tentar devolver-lhe a coragem. E creio não haver ninguém mais no mundo que seja capaz disso. E minha especialidade, se me lembro bem.
- De que adiantaria? - disse ela com lassidão.
Estava cansada, e o mundo inteiro a atemorizava.
- Fomos amigos, outrora. Agora, não mais o conheço, nem você me reconhece mais.
- Podemos voltar a nos conhecer.
Ele ergueu-a pela cintura e sentou-se em uma poltrona, colocando-a sobre os joelhos como uma boneca na corola aberta da pesada saia.
Aquele olhar vago, que não o fixava, deixava-o doente.
"Quanto estrago!", pensou. E no entanto ela ali estava, por trás dos anos perdidos, e ele a reencontraria.
Por trás desses anos perdidos que jamais deveriam ter-se interrompido. Por que ela voltara? Ele chamou-a, sob o impulso de um sentimento inconfessado que dilatava seu coração de homem.
- Minha criança.
Esse grito voltou a despertar Angélica, trazendo-a para a superfície, e ela ergueu a cabeça para examinar aquele rosto. Desgrez sacrificando-se à ternura! Desgrez entregando as armas! Impensável! Ela viu-lhe o olhar brilhante e negro próximo ao seu.
- Somente uma hora - sussurrou ele - por uma única mulher, em toda uma vida, poderia permitir-se isso, policial? Ser fraco e estúpido por apenas uma hora?
- Oh! Sim - disse ela de súbito -, oh! sim, faça-o, suplico-lhe.
Ela lançou-lhe os braços ao redor do pescoço, apoiando a face contra a dele.
- Como me sinto bem ao seu lado, Desgrez! Oh! Como me sinto bem!
-...raras foram as rameiras que me entoaram esse refrão - resmungou, Desgrez. - Elas prefeririam estar em outro lugar. Mas você, você jamais foi como as outras!
Ele procurava tenazmente o contato com a face morna, respirando de olhos fechados o perfume refinado que emanava de sua pele e das sombras suaves no centro do corpete.
- Então não me esqueceu, Desgrez?
- Como é possível esquecê-la?
- Você aprendeu a desprezar-rne.
- Talvez. E, mesmo que assim fosse, o que isso poderia mudar? E sempre você quem está aí, Marquesa dos Anjos, sob a seda, o cetim, os berloques de ouro e diamante tão pesados.
Ela jogou a cabeça para trás como se voltasse a sentir suas cadeias. O mal-estar persistia, e ela respirava mal, oprimida por um peso que talvez fosse o das lágrimas que não conseguia verter. Levou a mão ao rígido corpete e queixou-se.
- O vestido também é pesado.
- Será tirado - disse..ele, tranqúilizando-a.
Os braços à sua volta fechavam-na num círculo de segurança. O pesadelo distanciava-se. Agora ninguém mais podia atingi-la.
- É preciso cessar de ter medo - murmurou Desgrez -, o medo atrai a derrota, você é tão forte como os outros. Você pode tudo. Que mais pode fazer-lhe medo, a você, que matou o Grande Coésre, rei dos mendigos? Não pensa que seria uma pena abandonar a partida para "eles"? Será que "eles" valem a pena? Serão dignos de se oferecerem a morte de uma Marquesa dos Anjos? Cáspite! Isso me espantaria. Carcaças de rendas, eis o que são, e você o sabe bem. Não devemos abandonar-nos a inimigos dessa espécie.
Falava-lhe baixinho, como a uma criança com quem se argumenta, segurando-a com uma das mãos enquanto com a outra tirava ordenadamente os alfinetes do plastão e desatava os atilhos das saias. Ela reencontrava seus gestos seguros de camareira que, se muito revelavam da diversidade das aventuras amorosas do policial Desgrez, davam ao menos às mulheres a reconfortante impressão de estar nas mãos de alguém competente.
Ela começava a se perguntar, num lampejo de lucidez, se devia abandonar-se, quando se viu seminua entre seus braços. Um espelho na parede enviou-lhe a visão da brancura de seu corpo, emergindo da barreira de veludo azul e de rendas que formavam as vestimentas jogadas a seus pés.
- Cá está a bela de outrora!
~ Ainda sou bela, Desgrez?
- Ainda mais bela, para minha desgraça. Mas seu narizinho está frio, seus olhos, tristes, sua boca, rígida. Não a beijaram o suficiente.
Beijou-lhe levemente os lábios. Não a brutalizava, sentindo-a esgotada, desacostumada do amor por tormentos obsedantes; mas à medida que ela se tranquilizava ele acentuava a ousadia das carícias, rindo ao vê-la perder a expressão abatida, enquanto um sorriso hesitante aflorava-lhe no rosto. Sob o calor de sua mão, ela contraía os rins, recostando-se suavemente em seus ombros.
- Não mais tão orgulhosa como há pouco, hein, marquesa? Que resta, quando se retiram os belos adornos? Uma pequena gata de olhos verdes brilhantes que suplicam. Uma pequena perdiz rechonchuda, nutrida à mesa do rei... Outrora você era mais magra.
Sentiam-se os ossos sob a pele... Agora está toda roliça. Tenra... Pequena perdiz! Pombinha! Arrulha um pouco. Está morrendo de vontade de fazê-lo.
Desgrez era sempre Desgrez. O tecido do belo casaco escondia o mesmo coração, o mesmo peito vigoroso que o casacão surrado de antes. As mãos eram sempre as mesmas, autoritárias e atentas, sabendo o que queriam obter, e procurando-o insidiosamente, até que ela se visse contra ele como que paralisada, invadida docemente pelo prazer.
Era o mesmo olhar de ave de rapina, um pouco trocista, que espreitava sua rendição, divertindo-se com sua impaciência, sua excitação amorosa, suas confissões balbuciadas, de que mais tarde enrubesceria.
Levou-a, por fim, até a alcova no fundo da peça, longe dos castiçais, e ela amou a sombra onde ele a encerrava, o frescor do leito, o anonimato do corpo viril que ao dela se juntava. Ela achou, ta-teando, seu dorso aveludado, reencontrou um odor esquecido, e, no delírio em que soçobraria, recordou que Desgrez fora o único amante que não a respeitara, e que também nessa noite não a respeitaria. Já mostrava essa intenção. Ela não se defendeu. Por um paradoxo que não procuraria analisar, percebia que, se o homem por vezes a assustara e revoltara, o amante inspirava-lhe confiança infinita. Com ele sentia-se à vontade. Somente ele possuía a arte inimitável de pôr o amor e as mulheres no devido lugar. Um bom lugar, onde suas amantes, nem menosprezadas nem idolatra-
das, sentiam-se as alegres companheiras de folguedos saborosos, de gozos pagãos que tornam o sangue quente, o corpo bem vivo e a cabeça leve.
Ela abandonou-se sem reticências à vaga de sensualidade que a invadia. Deixou-se rolar no fluxo embriagador. Com Desgrez podia permitir-se ser vulgar. Podia gritar,,delirar^ dizer qualquer coisa, rir ou chorar tolamente.
Ele conhecia todas as maneiras de despertar e estimular o desejo e a voluptuosidade de uma mulher, era nisso um mestre. Sabia mostrar-se ora exigente, ora encorajador. Angélica, em seu poder, perdia a noção do tempo. Ele não a deixou, senão quando ficou exausta, suplicante e inebriada a um tempo, um pouco aborrecida, um pouco envergonhada, e no fundo maravilhada com seus próprios recursos.
- Desgrez! Desgrez! - repetia, com a voz enrouquecida que o comovia -, naó posso mais... Oh! Que horas são?
- Muito tarde, semidúvida.
- Minha equipagem me espera, embaixo!
- Os domésticos devem ter-se ocupado disso.
- Devo partir.
- Não. Deve dormir.
Reteve-a contra ele, sabendo que um curto sono varreria os últimos miasmas de seu medo.
- Dorme! Dorme! Você é muito bela!... Sabe fazer de tudo: amar e escarnecer dos policiais... Tem o rei de França a seus pés... E a vida diante de si. Sabe bem que há algo que a espera no fundo de sua vida... Não renunciará a isso. Bem sabe que é você a mais forte...
Ele falava e ouvia-lhe a respiração leve e regular, no sono profundo em que mergulhara como uma criança. Então ele moveu-se um pouco, conchegando a fronte dura sobre seu peito, entre os seios mornos e intumescidos.
"Somente uma hora, por uma única mulher, em toda uma vida", pensou, "pode permitir-se apaixonar-se, policial? Era melhor para você que ela estivesse morta, e você fhê devolveu a vida, imbecil!..."
CAPÍTULO XXI
Para salvar sua vida, Angélica suborna uma das damas da Sra. de Montespan
- E agora, Desgrez, que é preciso fazer?
- Você sabe tão bem como eu.
As primeiras luzes da aurora empalideciam a chama das velas, enquanto ele a ajudava a vestir-se.
- Que é preciso fazer? Pagar a criada para envenenar, a dama de companhia para espionar, o lacaio para assassinar.
- Você me dá estranhos conselhos, policial.
Com expressão enfurecida, ele defrontou-a, mirando-a nos olhos.
- Porque você está com a razão - disse. - A justiça não pode penetrar onde você vive. O lugar é muito alto para a justiça! O Sr. de La Reynie também o sabe. Somos chamados para a paródia. Seríamos antes incumbidos de deter as pessoas honestas, como o bravo Bispo Valence, conselheiro de Madame, que devia ser punido por sua boa influência sobre Monsieur. Um dia chegaremos até lá, e a justiça atingirá a todos. Mas ainda não é chegada a hora. Por isso lhe digo: você está com a razão. Num mundo mau é preciso sermos maus. Mata, e mata outra vez se for preciso. Não quero que você morra.
Ele segurou-a contra si, olhando com fixidez para além da cabeça loura.
- É preciso ser como os outros. Você tem ideia do que faria medo a essa dama? Do que ela teme?
- Como você sabe que é uma mulher? - perguntou Angélica, os olhos arregalados de medo.
- A história da camisola é ideia de uma mulher. E não vejo por que um homem desejaria eliminá-la. Ela não está só, por certo, mas é ela quem comanda. Você sabe por_que ela a odeia, e o que teme, essa meretriz. Deve provar-lhe que é tão forte como ela, domá-la, fazer com que compreenda que deve cessar de brincar com o crime. É perigoso. Um dia a coisa se volta contra ela.
- Creio que tive uma ideia - disse Angélica.
- Bravo!
Ele foi para trás da jovem, para atar a terceira saia.
- Aí está como uma mulher torna-se perigosa - disse ele com seu sorriso cáustico. - E como se faz um carneirinho de um homem coriáceo. Que mais é preciso para o serviço da senhora marquesa? Que conselhos ainda devo dar? Que tolice cometer?
Cercava-a com gestos de alfaiate mundano, tufando o manto em relevo com um piparote, retificando uma prega aqui e ali, contrastando a mímica amaneirada com o semblante enfurecido.
- Salve ao menos sua vida. Com perdão de mim' mesmo.
Angélica encarou-o e ele viu, no fundo das pupilas transparentes, acender-se uma luz, sua força de mulher precavida e indomável.
- Salvá-la-ei, Desgrez. Prometo-o.
- Está bem. Não terei então perdido inteiramente meu tempo neste caso. Agora, ao colar.
As mãos hábeis puseram-lhe os adornos ao redor do pescoço, ataviaram-lhe os punhos e braços.
- E toe! E toe! - concluiu prendendo os brincos. - Eis a égua real ajaezada.
Ela deu-lhe um pequeno golpe com o leque, recusando-se a aborrecer-se.
- Policial insuportável!
Mas ela erguia o busto sob a carga suntuosa, voltando a sentir-se grande dama. Assim poderia enfrentar a Sra. de Montespan. Quando o desejava, sabia que seu porte dê" cabeça e seu andar podiam ser tão intimidantes como os da Mortemart. E tinha o amor do rei, e já a submissão pressurosa de uma corte que não desejava senão agradar ao monarca, e que rejeitaria de um golpe o ídolo anterior. Os olhos azuis seriam obrigados a abaixar-se diante do brilho dos olhos verdes.
Angélica ergueu o queixo e caminhou para a porta. Desgrez reteve-a, pondo pesadamente as mãos morenas e musculosas em seus ombros.
- Agora escute - disse. - O que tenho a dizer-lhe é sério, e jamais voltarei a dizê-lo. Não quero mais vê-la... Nunca mais. Já fiz o que podia por você. Agora é sua vez. Recusou a ajuda da polícia, e é melhor assim. Não quer meu comprido nariz em seus negócios, e talvez tenha razão. Mas chega de correr ao amigo Desgrez quando a coisa explode. Entendido?
Ela mirou-o e leu nos olhos1 escuros a confissão que aquele homem endurecido e bom jamais lhe faria. Um pouco pálida, balançou a cabeça afirmativamente.
- Tenho meu' caminho traçado e preciso de cabeça fria para segui-lo - retomou Desgrez. - Fará com que eu cometa tolices. Não quero mais vê-la... Quando tiver revelações para a polícia, dirija-se ao Sr. de La Reynie. Está mais qualificado para receber as grandes damas da corte.
Ele inclinou-se e, tomando-a, nos braços, deu-lhe um beijo brutal, cruel, mas que se fez apaixonado, saboreando a boca adorada com desespero.
"Desta vez está acabado. Entendido", pensou ela. "Adeus, farsante. Adeus, meu amigo!"
Teria que avançar sozinha ou morrer. No entanto, o viático que recebera não fora dado em vão.
Os conselhos de Desgrez acenderam-lhe uma luz. "Dominá-la pela ameaça."
O acaso serviu-a já no dia seguinte, quando ia de carruagem de Paris a Saint-Germain. Um fiacre tombara num fosso, e, ao aproximar-se, Angélica reconheceu na jovem que aguardava impaciente no talude de urzes uma das damas da Sra. de Montespan, a Srta. Désoeillet. Parou e acenou-lhe amigavelmente.
- Ah! Senhora, em que dificuldade me vejo - exclamou a jovem. - A Sra. de Montespan enviou-me em viagem urgente. Não devia atrasar-me, e cá estou, há meia hora, imobilizada. O cocheiro imbecil não viu uma grande pedra no meio do caminho...
- Vai a Paris?
Sim... quer dizer, a meio caminho de Paris. Tenho um enntro no Carrefour du Bois-Sec com uma pessoa que deve entregar-lhe uma mensagem para a Sra. de Montespan. E se me atrasar em demasia a pessoa pode ir-se embora. A Sra. de Montespan ficará terrivelmente contrariada.
- Suba, então. Farei voltar os cavalos.'
- E muito boa, senhora.
- Não posso deixá-la neste aperto, e alegra-me prestar um serviço a Atenaís.
A Srta. Désoeillet arrepanhou as saias e instalou-se respeitosamente na extremidade da banqueta. Parecia perturbada e inquieta. Muito bela, tinha o quê de ousadia que a Sra. de Montespan sabia comunicar aos que a cercavam. Suas damas faziam-se reconhecer pela bela linguagem, espírito e gosto. Fazia-as mulheres do mundo à sua imagem, desenvoltas e sem escrúpulos.
Angélica observava-a com p canto do olho. Já pensara em aliar--e a uma das companheiras dà inimiga, e em particular a essa Désoeillet, de quem percebera a fraqueza: era uma jogadora impeni-ente e que trapaceava. Era preciso um olho adestrado para recebê-lo. Com seus velhos conhecidos do Pátio dos Milagres, ngélica aprendera outrora certos truques comumente usados nas as de jogo. A Srta. Désoeillet servia-se deles sem sombra de dúvida.
- Ah! Chegamos - disse a jovem colando o nariz à vidraça.
Deus seja louvado! A garota ainda está aí.
Baixou o vidro enquanto Angélica gritava ao cocheiro que arasse.
Uma garota de uns doze anos, que aguardava nos limites da flo-esta, destacou-se do quadro verdejante e caminhou para a carruagem. Vestia com simplicidade e trazia uma touca branca. Estendeu m pacotinho à Srta. Désoeillet, que parlamentou um instante com ela a meia voz, entregando-lhe uma bolsa com escudos de ouro rilhando por entre suas malhas. Angélica calculou o que a bolsa deria conter. O resultado fez-lhe alçar as sobrancelhas.
"Que conteria o pacotinho para merecer tão bom preço?", erguntou-se, espreitando o objeto que a Srta. Désoeillet escon-ia na esmoleira, acreditando ver nele um frasco.
- Podemos partir, senhora - disse a jovem, com visível alívio por bem cumprir sua missão.
Enquanto a carruagem dava a volta no cruzamento, Angélica olhou maquinalmente para a garota, cuja touca branca destacava-se no verde da floresta.
"Onde terei visto essa menina?", pensou com mal-estar.
Ela guardou silêncio por um momento, enquanto a carruagem tomava o caminho de Saint-Germain. A,medida que o tempo passava, mais se persuadia de que devia aproveitar a ocasião para ganhar a jovem. De repente deu um pequeno grito.
- Que acontece, senhora? - perguntou a Srta. Désoeillet.
- Nada! Nada! Um alfinete soltou-se.
- Quer que a ajude...
- Não, não, por favor, não é nada.
Angélica enrubescia e empalidecia. Subitamente lembrara. Vira o rosto da menina à luz de dois círios, numa noite sinistra. Era a filha da Voisin, a que trazia "a cesta".
- Posso ajudá-la, senhora? - insistiu a jovem.
- Bem, sim, pode ajudar-me a desatar a saia.
A jovem voltou-se, solícita. Angélica agradeceu e sorriu.
- Você é muito gentil. Saiba que sempre admirei sua habilidade de açafata junto a minha amiga Atenaís... e sua paciência.
Foi a vez da Srta. Désoeillet sorrir. Angélica pensou que, se a pequena vagabunda estava a par dos odiosos projetos de sua patroa, devia divertir-se com os cumprimentos. Quem sabe se não teria na esmoleira o veneno destinado à Sra. du Plessis-Bellière, que a acompanhava com tanta amabilidade? O destino tem desses golpes de humor negro. Tem do que rir à socapa. Mas ela não perdia por esperar!
- O que mais admiro em você - disse Angélica com suavidade-é sua habilidade no jogo. Observava-a na segunda-feira, quando bateu o Sr. Duque de Chaulnes. Ele ainda está pasmo, o pobre homem. Onde aprendeu a trapacear tão bem?
O sorriso dulcoroso da Srta. Désoeillet apagou-se. Foi sua vez de enrubescer e empalidecer.
- Senhora, que disse? - balbuciou. - Trapacear? Eu... Mas é impossível. Jamais me permitiria...
- Não comigo, minha pequena - disse Angélica, com uma ponta de vulgaridade propositada.
Tomou-lhe a mão e voltou-a, tocando-lhe delicadamente as pontas dos dedos.
- Sabe-se para que servem, extremidades com pele tão fina. Vi-a desgastando-as numa pele de cachalote, para melhor sentir as cartas marcadas que usa. Marcadas para serem apenas reconhecidas por mãos como as suas. Decerto os grossos dedos do Duque de Chaulnes ver-se-iam em dificuldade para achar-lhes algo de suspeito... salvo se lho observassem.
O verniz da jovem partiu-se, e ela achou-se reduzida a uma aventureirazinha de origem obscura que via desmoronarem seus sonhos ambiciosos. Sabia que, na corte, as únicas coisas com que não se brincava, e que podiam tornar-se trágicas, eram a etiqueta e o jogo. O Sr. Duque de Chaulnes, vexado por ter sido batido por uma donzela de baixa extração e de dever-lhe mil libras, jamais engoliria a afronta dé ter sido enganado. Se as manobras fossem desvendadas, a culpada seria ignominiosamente expulsa da corte.
Angélica teve que retê-la quando já se ajoelhava no chão oscilante da carruagem para uma súplica.
- A senhora me viu e pode destruir-me.
- Erga-se. Que interessctenho em destruí-la? Trapaceia muito bem. São precisos olhos precavidos como os meus para percebê-lo, e creio que poderá continuar por muito tempo com seus ganhos... se eu fechar os olhos, claro.
A jovem passou por todas as cores do arco-íris.
Perdera o acento "Mortemart" e mostrava na voz sua origem dos arrabaldes.
Angélica olhou com frieza para fora. A jovem pôs-se a chorar e relatou sua vida. Era filha natural de um grande senhor, de quem ignorava o nome, mas que se ocupara de sua educação por terceiros. Sua mãe, de início camareira, acabara como gerente de casa de jogo, de onde a outra face de sua educação. Confiada, ora aos exemplos que ali via, ora às religiosas de um-pensionato, ela soubera interessar por seu caráter espontâneo, beleza e laivos de cultura, pessoas da boa sociedade que a ajudaram a progredir. Atenaís, que primava em reconhecer um caráter com sua própria têmpera, tomara-a a seu serviço. Agora estava na corte, mas não pudera desfazer-se por completo de certos hábitos. Havia o jogo...
- A senhora sabe o que é ser dominado por ele. E não posso perder, sou pobre em demasia. Ora, todas as vezes em que jogo honestamente, perco. Estou crivada de dívidas. Meu ganho do outro dia sobre o Sr. Duque de Chaulnes mal deu para saldá-las, e não ouso falar com a Sra. de Montespan. Ela pagou amiúde por mim, mas há alguns dias disse estar cansada.
- Quanto você deve?
A jovem disse uma cifra desviando os olhos. Angélica lançou-lhe uma bolsa aos joelhos. A Srta. Désoeillet pousou-lhe a mão tremula, mas as cores lhe voltaram.
- Senhora, que serviço posso prestar-lhe? Com o queixo, Angélica indicou a esmoleira.
- Mostre-me o que aí tem.
Depois de muito hesitar, Désoeillet estendeu-lhe um frasco de cor escura.
- Sabe se a mistura me é destinada? - perguntou Angélica, após contemplá-lo por um momento.
- Que quer dizer, senhora?
- Creio que você não ignora que sua patroa já tentou por duas vezes envenenar-me. Por que não tentaria uma terceira? Pensa que não reconheci na pequena que o vendeu a você a filha da adivinha Monvoisin?
A dama de companhia lançou um olhar atemorizado ao seu redor. Por fim, disse que nada sabia. A Sra. de Montespan encarregava-a de buscar em segredo remédios preparados pela adivinha. Mas não sabia para quê.
- Então trate de sabê-lo - disse Angélica com rispidez -, pois conto doravante com você para avisar-me dos perigos que me espreitam. Abra os ouvidos e conserve-me a par de tudo o que surpreender a meu respeito.
Ela revirava a retorta entre os dedos. A Srta. Désoeillet quis pegá-la com mão tímida.
- Não, deixe-a.
- É impossível, senhora. Que dirá minha patroa se eu chegar sem o frasco? Falará com a Voisin, e, sejam quais forem minhas explicações, minha traição acabará por vir à luz. Bastaria que soubesse que me acompanhou de carruagem...
- É verdade... Preciso, no entanto, de uma prova, qualquer coisa.
Você deve ajudar-me - disse, enfiando as unhas nos punhos da jovem -, ou então prometo destruir sua vida. Será expulsa, destruída, rejeitada por todo lado; não precisarei 3e muito tempo para isso.
Sob esse olhar de gata encolerizada, Désoeillet procurava com desespero um meio de justificar a indulgência que solicitava.
- Creio saber de algo...
- Sim, que sabe?
- O remédio que busquei é inofensivo, pois destina-se ao rei. A Sra. de Montespan também se dirige à Voisin para pedir-lhe filtros que avivem a chama de seu amante, com relação a ela...
-...e que Duchesne lhe verterá na taça...
- Mas então sabe de tudo, senhora? É assustador. A Sra. de Montespan disse-nos que a acreditava feiticeira. Ouvia-a dizer, com uma raiva terrível, a Duchesne": "Ou essa mulher é feiticeira ou a Voisin nos engana. Talvez até nos traia, se a outra lhe pagar mais..." Sei que falavam da senhora. "Não é mais possível continuar, é preciso acabar com isso", disse a Duchesne. Foi nesta manhã mesmo. Ela convocara-o e nos fizera sair, pois queria falar-lhe em absoluto segredo. Só que... -
- Escutou atrás da porta?
- Sim, senhora.
- Que ouviu?
- De início, não muito. Mas aos poucos minha patroa alteou a voz, tal sua cólera. Foi quando disse: "Essa mulher é feiticeira, ou a Voisin nos engana... Todas as tentativas fracassaram. Ela parece ser prevenida misteriosamente. Por quem?... É preciso acabar com isso, você procurará a Voisin e fará com que veja que a brincadeira já durou bastante. Foi muito bem paga... Deve achar um meio eficaz, ou então ela é quem pagará. Mas quero escrever-lhe, eu mesma, sobre meus intentos. Isso a impressionará." A Sra. de Montespan foi até a secretária e redigiu urríà missiva para a Voisin, entregando-a a Duchesne: "Você lhe mostrará o bilhete. Quando ela tiver lido, e estiver convencida de minha cólera, queimará o papel... Não a deixará enquanto não lhe der o que é preciso...
Aqui tem um lenço, que pertence a quem você sabe. O pajem que o apanhou entregou-mo pensando ser meu... Não é mais possível ganhar as criadas depois que aquela Teresa fugiu como se tivesse o Diabo em seu encalço... Além do que, 'ela' tem poucas criadas, nenhuma dama de companhia. Mulher bizarra. Não sei o que o rei lhe vê de extraordinário... A parte sua beleza, é claro..." Ela falava a seu respeito, senhora.
- Entendi. E quando Duchesne deve avistar-se com a Voisin?
- Esta noite mesmo.
- A que horas? Em que local?
- A meia-noite, na tasca da Corne d'Or. É um local pouco frequentado, entre as muralhas e o Quartier Saint-Denis. A Voisin virá a pé de sua casa em Villeneuve, que não é distante.
- Muito bem, você foi-me útil, pequena. Tratarei de esquecer por algum tempo que tem as mãos muito finas. Chegamos a Saint-Germain. Você descerá aqui. Não quero que nos vejam juntas. Coloque um pouco de carmim e pó. Está pálida de dar medo.
A Srta. Désoeillet procurou rapidamente colorir o rosto descomposto e, balbuciando agradecimentos e protestos de devoção, lançou-se para fora da carruagem, e fugiu, silhueta ligeira de vestido rosa sob o deslumbrante sol primaveril.
Angélica, pensativa, viu-a distanciar-se. Depois, recompondo-se, pôs a cabeça à portinhola gritando ao cocheiro:
- Para Paris.
CAPITULO XXII
Visita ao Grande Coêsre
Após vestir uma sólida saia e um corpete de fustão, e amarrar os cabelos com um ficríu de cetim.negro como as jovens pequeno-burguesas, ela chamou Majbrant Golpe de Espada. Passara em Saint-Cloud para solicitar os serviços do escudeiro'. Deixando Florimond sob a guarda do Abade de Lesdiguières e a duvidosa proteção da corte de Monsieur, trouxera Malbrant a Paris.
Apresentando-se em seus aposentos, e não vendo senão uma mulher de aparência simples, ele espantou-se ao vê-la dirigir-lhe a palavra com a voz da Sra. du Plessis-Bellière.
- Você me acompanhará, Malbrant.
- Está bem disfarçada, senhora.
- Seria inadequado ataviar-me para o local aonde vamos. Você tem sua espada. Tome também seu espadagão e uma pistola. Procurará em seguida por Flipot e me esperará na ruela atrás da mansão. Sairei pela porta do laranjal.
- Às suas ordens, senhora.
Pouco mais tarde, Malbrant Golpe de Espada chegava com Angélica à garupa aos limites do Faubourg Saint-Denis. Flipot acompanhara-os correndo. Detiveram-se na taberna tosca Três Companheiros.
- Deixe aqui seu cavalo, Golpe de Espada. Com um escudo para que o taberneiro lhe dê umas espiadelas, senão arriscamo-nos a não tornar a vê-lo. Os cavalos se roubam facilmente nestas paragens.
O escudeiro executou as ordens e seguiu-a; não fazia perguntas, contentando-se em mordiscar o bigode branco e resmungar contra o orçamento desigual e a lama que, malgrados o sol, estagnava nas ruelas sórdidas.
Talvez as paragens não fossem tão desconhecidas do antigo criado gladiador, que em sua vida de biscateiro devia ter-se arrastado um pouco por todo lado.
Não longe dali, em um nicho de madeira sobre um monte de lixo, erguia-se, pintada de vermelho, a estátua do Pai Eterno, pro-tetor dos faladores de gíria. Flipot protestou-lhe devoção com júbilo. Sentia-se em casa. No fundo do inverossímil palácio de taipa e pedra, encontraram o Grande Coésre, Traseiro de Pau. Achava-se, como de hábito, em seu estrado de aleijado. Seus esbirros lá estavam em grande número, para transportá-lo, segundo sua vontade, para uma cadeira em desuso, cujo tecido florido e douradu-ras ressaltavam sob uma camada de gordura. Mas Traseiro de Pau não gostava de deslocar-se. A escuridão do antro era tal que as lamparinas de óleo permaneciam acesas em pleno dia. Ali, Traseiro de Pau se achava à vontade. Não gostava de claridade nem de agitação. Não era fácil chegar até ele. Vinte vezes indivíduos de rosto patibular se lhes interpuseram perguntando com voz rouca que "vinham aqueles burgueses fazer ali". Flipot dizia a senha.
Angélica achou-se, por fim, em sua presença. Trouxera-lhe uma bolsa bem recheada, mas Traseiro de Pau lançou-lhe um olhar de desdém.
- Já não é sem tempo - disse -, não é sem tempo!
- Não parece contente, Traseiro de Pau. Não lhe enviei sempre o que era preciso? Os criados não lhe trouxeram o frango de leite grelhado no Ano-Novo, e a perua e três barris de vinha para a Mi-Carême?
- Criados! Criados! Para que preciso ver os criados? Pensa que não tenho mais que fazer senão beber, tomar sopa e comer carne? Tenho quanta comida quiser, e o dinheiro sempre volta. Mas você não é sempre que aparece. Muito ocupada em enfeitar-se e abrir a cauda, hein? Assim são as jovens... Não sabem o que é o respeito.
A vexação do rei dos faladores de gíria era profunda. Acusava Angélica menos de desdém que de negligência. Achava normal que uma grande dama da corte viesse chafurdar em camadas de imundícies e arriscar a vida entre os bandidos para saudá-lo, como não se arrependeria em ver a carruagem do rei de França deter-se diante do casebre fantasmagórico para visitá-lo. Entre reis, não é o mesmo... Era o rei de Thunes e conhecia o terrível poder de sua soberania.
- Podíamos entender-nos com o Franc-Ripault, o rei, se ele quisesse. Por que nos lança esses tiras no.s'calcanhares? Será que quer a polícia em sua casa? A polícia é para os burgueses. Para os imbecis, ora. Um imbecil tem que ser honesto. Devia compreender isso. Nós temos que trabalhar. Senão, de que viver? A prisão! A prisão! A corda! A corda! Prendo-o e ponhoro na cadeia! E as galeras para os ladrões, o Hôpital General para o mendigos. E que mais? É o extermínio que ele quer, esse malfadado La Reynie.
Ele desfilava suas lamentações. Os belos dias do Pátio dos Milagres haviam se acabado, desde que o Sr. de La Reynie tomara o título de tenente de polícia e que se haviam acendido lanternas em Paris.
- E esse - disse por Jim apontando Malbrant Golpe de Espada com a boquilha do cachimbo -, quem é?
- Um amigo. Pode confiar. Chamam-no Golpe de Espada. Preciso dele para uma pequena comédia. Mas ele não pode representar sozinho. Preciso de mais três ou quatro.
- Que entendam de comédia... com uma espada ou um cacete? Pode-se arranjar.
Ela expôs seu plano. Um homem devia entregar uma carta à adivinha Monvoisin numa tasca atrás das muralhas de Villeneuve. Deviam esperá-lo depois de ver a feiticeira. Fora, espadachins à espreita saltariam sobre ele...
- E zás! - disse Traseiro de Pau, passando a mão no pescoço.
- Não. Não quero sangue. Não quero crime. Quero apenas que confesse. Malbrant se encarregará disso.
O escudeiro aproximou-se, o olhar cinza esperto.
- O nome do homem?
- Duchesne, primeiro oficial de copo. Você o conhece. - Malbrant bateu nos peitorais com satisfação- Aí está uma tarefa que me agrada bastante. Mais de uma vez quis ter uma conversa com ele.
- Não é tudo. Preciso de um cúmplice que acompanhe a Voisin e que esteja ao seu lado quando Duchesne lhe entregar a carta. Alguém um pouco astuto e principalmente bastante hábil com as mãos para apoderar-se do papel antes que o queimem.
- Pode ser feito - disse Traseiro de Pau após reflètir.
Fez chamar um tal de Fogo-Fátuo, vadio pálido, de cabelos de fogo, sem igual para remexer os bolsos mais profundos e esconder as coisas roubadas nas mangas. Mas a cabeleira o marcava, e após múltiplas estadias no Châtelet e algumas sessões no cavalete do carrasco, que o deixaram disforme e coxo, não mais sabiam em que usá-lo. Para ele, subtrair uma carta no nariz de toda uma companhia seria brincadeira.
- Preciso da carta - insistiu Angélica. - Pagarei a peso de ouro.
Para os bandidos, não era uma dificuldade intransponível chegar a Voisin, e acompanhá-la num encontro secreto. Tinham na própria casa da adivinha numerosos cúmplices. Citaram o Picard. que lhe servia de criado, e o Cossaco, apaixonado por sua filha. Através deles, podia oferecer-se para carregar-lhe um archote ou sua bolsa. Mesmo tendo galgado os escalões da sociedade, a adivinha conservava um pé na matterie. Sabia ser útil a aliança com o Grande Coesre. Quando era possível, dava sua contribuição.
- Não foi só ela a compreender, não é fato? - disse Traseiro de Pau, lançando um olhar entendido a Angélica. - Entre nós, quem fraqueja morre. Os falsos irmãos não escapam.
Ergueu o busto enorme, cingido por um gibão militar com ala-mares dourados, apoiando-se nos punhos peludos, como um gorila com seu rosto nodoso e olhar terrífico.
- O poder dos ladrões é eterno - bramiu. -Jamais o vencerá, franc-ripaulú Ele sempre renascerá do calçamento da cidade.
Angélica aconchegou a manta. Sentia-se empalidecer. A luz difusa das lamparinas de óleo, o rosto do Grande Coesre, sob o chapéu de plumas de avestruz, parecia-lhe marcado pela danação. Via inclinarem-se sobre ela carantonhas barbudas entre as quais sobressaía-se a máscara baça do ruivo Fogo-Fátuo.
Ela conhecia a maioria dos espadachins que Traseiro de Pau escolhera entre seus guardas: Peônia, o bêbado inveterado; Mata-Rato, o Espanhol; outros de que esquecera o nome; e um recém-chegado, Caveira, de maxilar inteiramente descarnado, pois a Companhia do Santo Sacramento fizera cortar-lhe os lábios como blas-femador. Em verdade, não tremia de medo, pois conhecia as regras do jogo para comunicar-se com esse mundo sórdido.
A matterie não perdoava os traidores, mas não traía os seus. Triunfantes ou miseráveis, o frangiu ou a frangine que mostrassem lealdade e fizessem o juramento dos mendigos à pegre de Paris teriam sempre direito à ajuda de;seus pares. Se fossem pobres, teriam a escudela de sopa, se poderosos, os chanfalhos se ergueriam contra seus inimigos.
O liame era indestrutível. Barcarola provara-o. Traseiro de Pau não se esquivava. Não, Angélica não os temia. Sua crueldade de lobos de longas presas atemorizava-a menos do que a de certas personagens refinadas; seus farrapos fétidos desagradavam-lhe menos do que os belos atavios escondendo atrozes vilanias. Mas a voz tonitruante do Grande Coésre, seus bramidos de concha maldita despertavam assustadoras-recordações. Angélica sentia a vertigem de uma queda mortal, a impressão de precipitar-se do fausto a que se alçara para a desesperança sem fundo do inferno.
"Sempre terei que voltar até aqui", pensou.
Parecia-lhe que carregava entre as dobras do manto o odor indelével da miséria e do passado. Um mistério que não podia ser apagado. Todos os perfumes do mundo, todos os diamantes do mundo, toda a glória do rei sobre ela não poderiam apagá-lo.
Ao voltar-se para o palácio do Grande Coésre, que erguia suas empenas e arcos em ruínas sob o céu vermelho do entardecer, teria ela a visão de um outro crepúsculo que veria o Sr. de La Rey-nie nessa mesma praça, a cavalo entre seus arqueiros armados? Os cadáveres dos vagabundos juncariam o solo pela cidade heteróclita de velhas carruagens, velhos edifícios, conventos abandonados, a cidade tanto tempo proibida do Faubourg Saint-Denis, tomada de assalto em uma suprema e feroz batalha. Diante do bastião do Grande Coésre, um arauto, após tocar a trombeta, desenrolaria um pergaminho para declamar:
- Escutem-me, malandrins aí enterrados. Da parte do rei fica anunciado que será concedida a graça aos que se renderem. Mas os doze últimos a serem presos serão enforcados.
Mercado terrível. Ninguém quereria estar entre os doze últimos. Como bichos-de-contas, os marcandiers, os capons, os convertis,
os drilles e os narquois, os piètres e os malingreux, os coquillardi e os polissons, os sabouleux e os franc-mitons, os marauds e os mercelets fugiriam, fundindo-se nas primeiras sombras da noite.
No fundo de seu antro encontrariam Traseiro de Pau, o homem tronco, sozinho e bramindo, e um arqueiro lhe transpassaria a garganta com uma espada.
"Assim terminaria, numa noite sangrenta de 1680, o Pátio dos Milagres de Paris, a luta secular entre o rei de Thunes e o rei de França.
De volta a casa, Angélica sentou-se à secretária. A visita ao Fau-bourg Saint-Denis fazia-a sofrer mais que a ideia da partida que se jogaria nessa noite, nas paragens da colegiada de Villeneuve. Com os detalhes acertados, só restava esperar, evitando ao máximo pensar. Às dez horas, Malbrant Golpe de Espada veio ao seu encontro. Trazia uma máscara de loup cinza e envolvia-se num manto cor de muralha. Ela falou-lhe baixinho, como se pudessem ouvi-la no silêncio do quarto suntuoso, onde acolhera outrora o amor de Rakoczi.
- Você sabe tão bem como eu o que desejo obter de Duches-ne. Eis por que o escolhi. Que ele revele os projetos daquela que o envia, que cite os nomes dos que poderiam prejudicar-me... Mas o principal é a carta. Espreite pela janela da tasca. Se ele tiver a expressão de quem vai desfazer-se dela antes que o Fogo-Fátuo a subtraia, precipite-se com seus homens. Trate de obter também as misturas, os venenos que a Voisin lhe confiará...
Ela esperou.
Às duas horas da manhã chegou-lhe novamente o ruído distante da pequena porta dissimulada, pela qual Malbrant Golpe de Espada deixara a mansão, e seu passo rápido e pesado de mercenário no lajedo do vestíbulo.
Ele entrou e, à luz de um archote, pousou na cómoda junto dela alguns objetos. Ela viu um lenço, um frasco, um saquinho de couro e um pequeno quadrado de papel branco: a carta.
A caligrafia da Sra. de Montespan saltou-lhe aos olhos, enquanto uma selvagem impressão de triunfo a invadia. Os termos do bilhete eram terríveis, esmagadores:
"...Você me enganou", escrevia a nobre marquesa com sua bela caligrafia e ortografia fantasista, pois sua educação fora bastante negligenciada... "A peçoa continua bem viva, e o rei a cada dia se liga mais a ela... Suas promeças não valem o dinheiro que lhe dei. Mais de mil escudos até oge... para poções que não trasem nem o amor nem a morte... Saiba que poço desfaser seu crédito e faser com que a corte não mais a receba..> Confie o que for neceçário a meu mençajeiro. Desta vez é preciso dar certo..."
- Magnífico! Maravilhoso! - exclamou Angélica, ofegante.
Não se reconhecia nas gargalhadas que dava.
- Ah! Ah! Desta vez é preciso dar certo, sim, minha bela Atenaís. E dará certo comigo. Nada mais valerá com esta arma em minhas mãos.
Ao pé da página havia uma mancha vermelha que se fazia marrom; mas ao pousar-lhe o dedo, Angélica encontrou-a ainda úmi-da. Sua excitação se abateu e ela ergueu um olhar interrogador para o escudeiro.
- E o oficial? Duchesne? Que fez dele? - perguntou em voz abafada. - Onde está?
Malbrant Golpe de Espada desviou os olhos.
- Por minha fé, se a corrente for forte deve achar-se em algum lugar à jusante para os lados de Grenelle.
- Malbrant, que você-fez? Disse-lhe que não queria crime.
- É preciso desfazer-se de uma carcaça que fede - disse o homem, com as pálpebras sempre baixas.
Bruscamente, encarou-a com seu olhar castanho-escuro, que tão curiosamente contrastava com os longos cabelos brancos.
- Escute-me, senhora - disse, inclinando-se para ela -, escute-me: o que lhe direi parecerá estranho vindo de um bruto, vagabundo e que não é bom para nada, como eu. Mas afeiçoei-me ao pequeno, seu filho. Assim é. Fiz de tudo na vida, coisas inúteis,
prejudiciais, para mim e para os outros. Tudo o que conheço são as armas, à força de tê-las manejado. Mas rechear minha escarcela, isso jamais o soube. A idade veio, a carcaça começou a fatigar-se; a Sra. de Choisy, que conhece minha santa tia, minha piedosa ir
mã e o cónego do meu irmão, disse-me: "Malbrant, menino mau, que diria de ganhar boa casa e boa comida ensinando o ofício das
armas a dois pequenos senhores abastados?" Disse, então, comigo: "Por que não? Descansa um pouco as velhas cicatrizes, Mal-brant". E entrei para o seu serviço, senhora, e o de seus filhos... Eu talvez tenha tido filhos. É provável, mas isso nunca me interessou, confesso. Com Florimond, no entanto, foi diferente. Talvez não saiba, senhora, embora seja sua mãe, mas essa criança nasceu com uma espada na mão direita. Empunha o gládio como o próprio Arcanjo São Miguel. E quando um velho espadachim como eu encontra esse dom para as armas, esse génio, essa força, bem, então... Foi quando percebi que fracassara na vida e estava só no mundo, senhora. E vi no pequeno o filho que talvez tenha tido em algum lugar, que jamais conhecerei e a quem não ensinarei a manejar as armas. Há coisas como essas que ignoramos em nós, e que se põem a viver.
Ele inclinou-se mais ainda, até bafejar-lhe o rosto com seu hálito acre de velho fumador de cachimbo.
- E aquele Duchesne quis matar nosso Florimond.
Angélica fechou os olhos, sentindo-se empalidecer.
- Porque antes - retomou o escudeiro - podia-se dizer: não há certeza. Mas agora há. Ele confessou-o, ele berrou quando foi forçado. "Decerto queria livrar-me do pequeno crápula, que bradava, perdia-me diante do rei, despertava suspeitas... arruinava nossos projetos. A Sra. de Montespan ameaçava afastar-me por falta de habilidade."
- É então verdade que jogava pós na beberagem do rei?
- A favorita encarregava-o disso. É tudo verdade. E que ameaçou Florimond com a morte se continuasse a denunciá-lo. E que colocou veneno no sorvete que lhe era destinado. E que a Montespan procurava a Voisin para encontrar um meio de fazê-la perecer. Carapert, um dos oficiais carregadores de assados, era seu cúmplice. Foi ele quem enviou o menino às cozinhas passando pela ala em construção. "Quinze toesas de andaimes", gritei-lhe, "quinze toesas de andaimes sobre um solo de pedras na escuridão! Muito bem, salte então, imundície, você quis tomar a vida de uma criança!..."
Malbrant Golpe de Espada parou e enxugou a fronte. A cólera dava-lhe calor. Olhou de soslaio para Angélica, que tinha o rosto paralisado.
- É preciso desfazer-se de uma carcaça que fede - repetiu mais baixo. - De qualquer modo, ele não era bonito de se ver. E que teríamos ganhado em poupar-lhe a vida? Um inimigo a mais, encarniçado contra nós. Já existem em número suficiente, creia-me. Essas coisas, senhora, quando se começa, deve ir até o fim.
- Eu sei.
Os outros também estavam de acordo. Não FTavia outro modo de concluir a tarefa. Bons companheiros, fizeram bem o trabalho. O ruivo Fogo-Fátuo entendeu-se com o criado da adivinha para ser admitido como carregador de archote. O criado apresentou-o como idiota, surdo e mudo. Ela fez com que a acompanhasse durante a entrevista. Isso ajudou. Por vezes, ela diz que não gosta de ir sozinha a encontros secretos. Um rapaz surdo e mudo, mas capaz de manejar a faca se preciso, era o que procurava, dissera j a seu criado. Enfim, Fogo-Fátuo conveio-lhe e ela levou-o. Nós espreitávamos fora. Num dado momento, vi que a coisa já não ia bem entre Duchesne e a-Voisin. Era a carta, que eles não mais achavam. Então entramos km ação. A Voisin escapuliu sem pedir o que lhe deviam. Fogo-Fátuo fez que a defendia. Depois, ocupamo-nos do bom homem. Não foi fácil... Coriáceo. Eis o que pudemos tirar-lhe com os grandes meios: este lenço, o frasco, este saquinho no qual parece haver pós mágicos e as poucas confidências que lhe contei.
- Está bem. '
Angélica levantou-se, foi até a secretária e abriu o cofrezinho, de onde tirou uma bolsa cheia de peças de ouro.
- Aqui tem, Malbrant. Você me prestou um bom serviço.
O escudeiro fez desaparecer a bolsa com gesto pronto.
- Jamais digo não aos escudos. Obrigado, senhora. Mas creia-me, se digo que um dia acabaria por fazê-lo por nada. O pequeno abade o sabia. Nós nos perguntávamos: que fazer? A senhora sozinha no mundo, não é verdade? Acertou ao confiar em mim.
Angélica baixou a cabeça. Chegara a hora de comprar as cumplicidades, pagar os silêncios que deveriam durar toda uma vida. Entre ela e esse aventureiro que mal conhecia haveria sempre os gritos de um Duchesne assassinado, o "pluf""de um corpo jogado no Sena.
- Meu silêncio? Eu o guardei por muitas pessoas que não o mereciam como a senhora. Mesmo no fundo de uma garrafa não torno a encontrar o que quis esquecer para sempre. Há uma pedra em cima. É tudo.
- Agradeço-lhe, Malbrant. Enviá-lo-ei, ainda amanhã, ao Faubourg Saint-Denis com o dinheiro combinado. Depois você tornará a Saint-Cloud. Quero que Florimond esteja sob sua guarda. Pode ir, agora vá descansar.
O homem saudou à mosqueteiro, como tão bem sabia fazer. Os vestígios de uma educação senhorial misturavam-se aos modos ríspidos que adquirira de tasca em tasca, de duelo em duelo, ao longo de uma existência em que não soubera encontrar seu lugar. Homem de guerra frustrado, alegre companheiro que não via passar os anos, vivendo de golpes de espada e copos de vinho, jamais totalmente bandido ou totalmente honesto, em uma palavra, preguiçoso, eis que se voltava para o tempo que se escoara. Que restava dele? Nada! O que sabia agora era o que não queria perder: a presença de um garotinho que erguia para ele seus olhos negros dizendo: "Mostre-mo, Malbrant", e a égide da belíssima dama, que, sem mostrar desdém, ou familiaridade, usava da medida certa para que diante dela se sentisse um homem e não um serviçal.
Antes de girar a maçaneta da porta para retirar-se, ele mirou-a com um misto de admiração e temor. Não que ela lhe fizesse medo. Bem ao contrário. Tinha medo por ela. Temia vê-la fraquejar. Há vagabundas que caminham sobre um colchão de cadáveres sem pestanejar. Ele as conhecia. "A outra", por exemplo. Mas esta não era da mesma espécie, embora soubesse bater-se.
Ele viu-a pegar o manto após ter encerrado em um cofrezinho os objetos e a carta que ele trouxera há pouco.
- Aonde vai, senhora?
- Devo sair.
- É perigoso. Que a senhora marquesa permita que a acompanhe.
Ela aquiesceu com um sinal.
Fora ainda era noite, mais escura que nas outras horas da noite, pois as grossas velas para cinco horas haviam acabado de arder e as lanternas estavam apagadas.
Angélica não teve que caminhar muito. Pouco depois, ela erguia a aldrava de bronze de uma alta porta-cocheira da Rue de Que-ronalle, e, quando o suíço sonolento pôs o nariz à janela gradeada da guarita, ela pediu para ver o Sr. de La Reynie.
CAPITULO XXIII
A Sra. de Montespan se rende
O rei ainda não saíra da missa quando Angélica se misturou à multidão de cortesãos, aguardando no Salão de Mercúrio em Versalhes os soberanos, que haviam chegado no dia anterior. Nas mudanças de residência entre Saint-Germain e Versalhes, Angélica contava com que sua ausência tivesse passado despercebida. Chegara em uma hora bastante conveniente, e em seu rosto cuidadosamente pintado nada se lia das fadigas e angústias da noite. Começava a adquirir a incrível resistência das mundanas, semelhante à das atrizes, que lhes permitia "passar para uma outra pele" sem esforço, fazendo de uma mulher esgotada por uma noite em claro e quatro horas de carruagem uma dama de tez lisa, pálpebras apenas azuladas, sorriso resplandecente. Ela saudou à esquerda e à direita, perguntando por uns e outros. Ainda se comentavam as maravilhas da viagem a Flandres, quando Madame passara para a Inglaterra em visita a seii irmão, Carlos II. Cercas línguas espantavam-se de que Angélica não tivesse ido. Comentavam também que Madame logo retornaria e que as negociações estavam bem encaminhadas. A encantadora e opulenta bretã, Srta. de Kerouaille, que a princesa levara na bagagem, não era o menor dos recursos políticos para convencer p jovem Carlos II a renunciar à tripla aliança e estender a mão amigável ao cunhado Luís XIV. Riam um pouco recordando que, se a Srta. Kerouaille tinha belos traços, sua constituição desagradaria a algumas pessoas. Mas Madame conhecia bem os gostos do monarca inglês que, ao que parecia, não se jactava de delicadeza e preferia a substância ao sentimento.
Oficiais da Boca do Rei passaram com quatro terrinas de prata dourada contendo quatro compoteiras de doces cristalizados e três de frutas, e que chamavam "a pequena refeição de caça do rei".
Angélica ouviu um deles mostrar espanto pela ausência do Sr. Duchesne, primeiro inspetor de copo.
Ela afastou-se dos grupos e veio apoiar-se a uma das janelas da grande galeria. Fazia bom tempo. Dos canteiros subia um ruído de mil ancinhos manejados pelos jardineiros, e ela recordou a primeira manhã em que, ao lado de Barcarola, vira o dia nascer sobre Versalhes, onde cada qual está mais só e ameaçado que em nenhum outro lugar da terra!
Ela ergueu a cabeça e com passo firme atravessou a Grande Galeria, ganhando a Ala do Midi. Após abrir diversas portas, penetrou num aposento com vista para os jardins.
A Sra. de Montespan estava ao toucador, em seu quarto de vestir, em meio ao encantador cenário elaborado pelo irmão de Angélica, Gontran, o pintor. As damas movimentavam-se à sua volta, tagarelando. Ao ver Angélica, silenciaram.
- Minha cara Atenaís, bom dia - disse jovialmente.
A favorita voltou-se por inteiro sobre o tamborete de seda lavrada.
- Oh! Sim - disse -, a que veio, minha cara?
Há algum tempo haviam ultrapassado estágio de paz armada. Nem uma nem outra se davam ao trabalho de fingir, mesmo em público. O olho azul de Atenaís de Montespan atravessou a rival. Certamente a amabilidade desta última escondia algo de inusitado.
Angélica sentou-se tufando as saias em um sofazinho forrado com a mesma seda do tamborete e do porta-livros. Os móveis eram encantadores, mas ela disse consigo que seus buques azuis não combinavam com os caniços de ouro verde que cobriam as paredes. Era preciso mudá-los.
- Trago-lhe novidades interessantes.
- Realmente?
A Srta. Désoeillet empalideceu. O grande pente de escamas com pérolas engastadas que tinha na mão começou a tremer sob a cabeleira loura da patroa. As outras jovens lançavam olhares curiosos. A Sra. de Montespan voltou-se para o espelho.
- Estamos escutando-a - disse secamente.
- E muita gente. Bastaria que você me escutasse.
- Quer que dispense as damas? Impossível.
- Talvez, mas é preferível.
A Sra. de Montespan voltou-se vivamente. Devia ver no rosto de Angélica algo que jamais suspeitara ali achar, pois sua voz hesitou.
- Não estou pintada nem penteada,'e o rei irá esperar-me para um passeio no jardim.
- Não seja por isso. Posso continuar a penteá-la enquanto coloca o pó - disse Angélica levantando-se.
Avançou obsequiosamente para trás da Sra. de Montespan e pegou com mão hábil a pesada cabeleira cor de trigo maduro.
- Comporei a última criação de Binet, que certamente lhe assentará à maravilha. Dê-me isso, pequena - disse, tomando com um suave sorriso o pente das mãos da petrificada Srta. Désoeillet.
Atenaís dispensou a todas.
- Vão-se, senhoras!
Angélica, com gestos lentos, estendeu a capa sedosa, da cabeleira de perfume sutil, passou-lhe o pente, dividindo-a ao meio, e com mão segura fez uma trança espessa, com reflexos de puro ouro, levando-a para o alto da cabeça. Que maravilha! Seus próprios cabelos pareciam castanhos perto daquela cabeleira. Lúcifer, em seus tempos celestes, devia possuir uma igual.
- Passe-me dois grampos, por favor.
A Sra. de Montespan observava pelo espelho a rival, cada vez mais bela, e de uma beleza perigosa, pois mais original que a sua. Sua tez resistente punha-a ao abrigo dos pequenos aborrecimentos que castigam as carnações de lis e de rosas: botões e pontos vermelhos. Parecia estar sempre empoada, e a luminosidade do narizinho perfeito resistia à abundância de bons vinhos e aos pratos picantes. Essa tez, que poderia enfeiá-la, era sua força, e fora criada para seus olhos verdes, como o ouro para o engaste das pedras preciosas. Seus cabelos, que poderiam ser mais louros, redimiam-se por ondulações naturais, de ricare "vivas nuanças de pelagem animal.
"Nenhum homem pode olhar para esses cabelos sem querer acariciá-los", disse Atenaís consigo, roída de inveja.
Pelo espelho, Angélica fixou o olhar azul da inimiga. Sem deixar de olhá-la, inclinou-se e disse a meia voz:
- O Sr. Duchesne, primeiro oficial do copo da Boca do Rei, morreu esta noite, assassinado.
Adn r >u-se de que a Sra. de Montespan mal estremecesse e conseguisse conservar a expressão insolente e tranquila.
- Ora veja! Ninguém ainda me trouxera a novidade.
- Ninguém o sabe ainda. Apenas eu. Interessar-lhe-ia saber como a coisa se passou?
Com os dedos afastados ela dividia as mechas evanescentes e luminosas, enrolando-as uma a uma num bastão de marfim.
- Ele vinha de um encontro com a adivinha Monvoisin, a quem levara uma mensagem e de quem recebera em troca um saquinho, um pequeno frasco... Isso ninguém jamais o saberá... a menos que você não se importe... Cuidado, minha cara, coloque o carmim de través.
- Pequena vagabunda! - disse a Montespan, os dentes cerrados. - Pequena p...! Pequena imundície!... Ousou... Ousou chegar a esse ponto!
- E você?
Com gesto vivo, Angélica jogou o pente e o bastão sobre o toucador. Suas mãos crisparam-se sobre os ombros brancos e redondos, um pouco carnudos, que o rei gostava de beijar, e enfiou-lhe as unhas sob o efeito de uma cólera terrível.
- E você, quanto não ousou? Quis matar meu filho...
Ofegantes, ambas se confrontaram no reflexo do espelho de Veneza...
- Quis fazer-me parecer de modo atroz e ignominioso!... Chamou sobre mim os malefícios do Demónio! Mas o Demónio se volta contra você. Escute-me bem. Duchesne morreu. Ele não mais falará. Ninguém jamais saberá com quem ia encontrar-se esta noite, o que procurava e de quem era a carta que entregou à Voisin.
A Sra. de Montespan amoleceu de súbito.
- A carta - disse com voz alterada -, a carta, ele queimou-a?
- Não!
Angélica recitou a meia voz:
- "A pessoa continua bem viva e o rei a cada dia se liga mais a ela. Suas promessas não valem o dinheiro que lhe dei. Mais de mil escudos até hoje para poções que não trazem nem o amor nem morte..."
Atenaís empalideceu. Mas reagiu como a mola impiedosa que a comandava e desprendeu-se com arrogância das garras de Angélica.
- Deixe-me, fúria!... Você me massacra.-
Angélica tornou a pegar o pente. A Sra. de Montespan apanhou uma pequena borla e passava-a em meio a uma nuvem de pó no decote pisado.
- Que devo fazer para você me devolver a carta?
- Jamais a devolverei a você - disse Angélica. - Acredita que eu seja a última das tolas? Essa carta e as bugigangas de que lhe falei estão nas mãos de um alto magistrado. Perdoe-me por não lhe dizer o nome. Mas saiba que tem amiúde oportunidade de aproximar-se do rei... Quer fazer o obséquio de passar-me os grampos com cabeça de pérolas para que fixe o coque? A Sra. de Montespan passou-os.
- No dia de minha morte, mal chegue a triste notícia do fim súbito e inexplicável da Sra.' du Plessis-Bellière aos ouvidos desse magistrado, ele irá até o rei e lhe entregará os objetos e a carta de que é depositário. Não duvido que Sua Majestade reconheça sua caligrafia e sua brilhante ortografia...
A favorita não mais procurou fingir. Sufocava, o peito erguendo-se em soluços espasmódicos. As mãos febris abriam potes e frascos, espalhavam cremes a torto e a direito sobre as fontes, as faces e as pálpebras.
- E se sua chantagem não me atingisse - gritou de repente -, se preferisse tudo arriscar, mas vê-la... morta!
Ela ergueu-se, cuspindo chamas de ódio, os punhos cerrados.
- Morta - repetiu. - É só o que conta para mim. Vê-la morta! Pois viva, você me tomará o rei. Eu o sei. Ou será ele quem o fará. É a mesma coisa. Ele a quer ferozmente. Suas manobras de coquete que se recusa agitam-lhe o sangue, fazem-no perder a cabeça. Eu não mais importo. Breve ele me detestará, pois é você quem deseja ver em meu lugar, aqui, neste aposento que fez instalar em meu intento. E sendo certa a minha desgraça, com você morta ou viva... então, ao menos que seja morta, que esteja morta!...
Angélica permanecia impassível diante desse ímpeto de fúria.
- Entre uma desgraça passageira, em que o rei sentiria alguns remorsos com relação a você, e que a deixaria, quem sabe a esperança de reconquistá-lo, e o horror que lhe inspiraria se soubesse de seus crimes, o exílio ou a prisão que lhe infligiria até o fim de seus dias, há uma diferença, e não duvido de que uma Morte'mart saiba fazer a escolha adequada.
Atenaís torceu as mãos. O transbordamento de sua raiva e de sua impotência chegava a uma certa ingenuidade.
- A esperança de reconquistá-lo - repetiu. - Não. Se o tiver sob seu domínio, será para toda a vida. Eu o sei. Você não o conhece como o conheço. Eu era toda-poderosa sobre seus sentidos. Mas você é toda-poderosa sobre seu coração. E é algo, creia-me, ser toda-poderosa sobre o coração de um homem que, por assim dizer, não o tem.
Mirou a rival como se a visse pela primeira vez e percebeu-lhe, através da beleza perigosa e serena, uma arma desconhecida, de que não suspeitara. E essa orgulhosa teve uma palavra surpreendente:
- Não sou de ânimo forte.
Angélica deu de ombros com frieza.
- Não se faça de vítima, Atenaís. Isso não assenta em você. Sente-se, antes, para que termine seu toucado.
A Sra. de Montespan deu um salto, como uma gata encolerizada.
- Não me toque. Dá-me horror.
- Está procedendo mal. O toucado assenta-lhe muito bem, mas seria pena deixá-lo em cachos de um lado, e em mechas do outro.
Atenaís, os nervos à flor da pele, lançou-lhe o pente como a uma criada.
- Termine! E apresse-se.
Angélica enrolou no dedo um longo cacho de ouro que fez descer pelo pescoço num leve movimento, até repousar no colo nacarado, à altura do decote do corpote. Mirava o efeito pelo espelho e encontrou os olhos tempestuosos da inimiga. Domada! Mas por quanto tempo?
- Deixe-me o rei - disse Atenaís bruscamente, com voz surda -, deixe-me o rei. Você não o ama.
- E você?
- Eu? Ele me pertence. Fui criada para ser rainha.
Angélica enrolou mais dois cachos e trouxe para a fonte uma leve mecha, mais loura que as outras, semelhando um filete de seda pálida. Binet não faria melhor.
-Minha cara Atenaís - disse por fim -, apelará em vão para ímeus bons sentimentos. Não os tenho com relação a você. Eu lhe propus um negócio. Ou me deixa em paz, cessando de querer atentar contra minha vida, e contando com ;minha"discrição quanto às suas relações com a adivinha e os demónios, ou prossegue em sua vindita, desencadeando, você mesma, os raios que deverão aniquilá-la. Não pense tampouco que poderá contornar o problema procurando prejudicar-me de outro modo, minando minha reputação, destruindo meu crédito, erguendo à minha volta os mil obstáculos de uma guerrinha sorrateira que me tornaria a vida intolerável. Sempre saberei de onde vêm os golpes e creia que não esperarei estar morta para livrar-me de você... O rei me ama, você diz. Pense em sua cólera, quando souber que tentou fazer-me morrer. O alto magistrado que está de posse de meus segredos examinou, ele próprio, a camisola que você preparou em minha intenção. Ele testemunhará diante do rei os males que quiseram causar-me. Ainda um conselho, minha cara. Você está penteada à maravilha, mas sua pintura é um desafio ao bom senso. Está um desastre. Em seu lugar, eu recomeçaria.
Assim que saiu, as damas de companhia entraram ansiosas, e rodearam com precaução a patroa ao toucador.
- Está chorando, senhora!
- Sim, suas tolas! Não vêem como estou pintada?
Engolindo os soluços, a Sra. de Montespan contemplou ao espelho o rosto manchado de vermelho, branco e preto que as lágrimas diluíam. Um profundo suspiro se lhe escapou.
- Ela tem razão, aquela meretriz - murmurou. - Está um desastre. É preciso recomeçar tudo.
Durante o passeio do rei, não escapou a ninguém a nova expressão da Sra. du Plessis-Bellière. Uma luz emanava dela. No modo como erguia a cabeça sentia-se uma força quase intimidante. A impressão que a Sra. de Montespan havia pouco experimentara comunicou-se a todos. Tinham sido logrados. A marquesinha, bela, certamente, possuía muitas máscaras. Era preciso render-se à evidência e tudo temer. Os que pensavam ser fácil conquistar-lhe as boas graças compreenderam que ela não seria uma La Vallière.
Os que haviam apostado na vivacidade da Sra. de Montespan para afastar a "provinciana" sentiram a fé vacilar diante do olhar altivo que ela lhes dedicou, e o sorriso que teve para o rei. A atitude deste último concluiu a derrota. Ele nem mesmo procurava fingir. Não tinha olhos senão para ela.
A Sra. de Montespan estava ausente. Ninguém se melindrou, e todos achavam natural ver Angélica, ao lado do rei, descer a aléia de Minerva até o bosquete da colunata, e, após franquear os pórticos de mármore branco, voltar para o castelo admirando as maravilhas da aléia de água.
Na volta, o rei fez chamar a jovem a seu gabinete de trabalho: ele assim procedia, por vezes, quando necessitava de sua opinião sobre o problema comercial de que estava tratando com seus ministros. Mas desta vez ela viu o escritório vazio, e, assim que a porta se fechou, ele veio até ela e tomou-a nos braços.
- Bela - disse -, não posso mais! Quando fará cessar meu suplício? Você me subjugou esta manhã, me enfeitiçou. Eu nada via senão a você. Era para mim como o sol, o astro que não podia atingir, a água fresca sobre a qual não posso me debruçar. Você está aqui. Você me cerca com seu brilho, seu perfume, e não posso tocá-la. Por quê? Por que tanta crueldade?
Ele estreitava-a com um desejo ardente que não conseguia dominar e que se transformava em cólera.
- Não acredite que possa brincar por tanto tempo comigo. Terá que acabar por ceder. Obrigá-la-ei, se for preciso. Acredita que não possa vencer sua resistência pela força?
Ela sentia-lhe os músculos de caçador esmagando-a, comprimindo-a contra um torso rijo como pedra.
- Far-me-ia sua inimiga.
- Não tenho tanta certeza. Errei em acreditar que seu coração despertaria se me mostrasse paciente. Você não é uma sentimental. Quer conhecer seu senhor, antes de ligar-se a ele. Quando ele a possuir, você lhe será devotada. Quando tiver penetrado sua carne, penetrarei seu coração.
Ele disse em voz baixa, como numa súplica:
- Ah! Os segredos de seu corpo me atormentam.
Angélica tremeu. Sentiu-se, dos pés à cabeça, tomada por uma langorosa vertigem. "Eu também não posso mais", disse consigo, abandonando-se a uma espécie de esgotamento.
- Quando você for minha - dizia o rei -, quando a tiver possuído, por bem ou à força, sei que não me deixará mais, pois você e eu fomos feitos para estar juntos e reinar sobre o mundo como Adão e Eva.
- A Sra. de Montespan manifesta uma certeza semelhante - observou Angélica com um sorriso pálido.
- A Sra. de Montespan! Que poderá imaginar? Que me controla? Pensa que sou cego? Que ignoro seu coração mau, suas intrigas de porteiro, seu orgulho desmedido e cansativo? Tomo-a pelo que é: bela... e divertida quando é preciso. É sua presença que lhe faz medo? Saiba que varrerei todos os que lhe forem indesejáveis. Se me pedir hoje que afaste a Sra. de Montespan, amanhã ela terá deixado o palácio.-
Angélica afetou encarar-a coisa com humor.
- Esse abuso de poder apavora-me, sire.
- Não tem que o temer. Entrego-lhe meu cetro: Sei que está em mãos dignas. Está vendo, ainda uma vez conseguiu desviar o curso de minha violência e novamente confio-me a sua sabedoria para escolher o dia e a hora em que obterei seu favor. Deixarei que o tempo acalme suas apreensões com relação a mim. Não acredite, no entanto, que poderíamos, ambos, entender-nos?
Sua voz era agora humilde, enquanto lhe segurava a mão.
- Acredito-o, sire.
- Então um dia, minha beldade, deixará que a leve para Cite-ra, a ilha dos amores... um dia... prometa-mo.
Vencida, sob seus beijos, ela disse num sopro:
- Prometo.
Um dia ela se ajoelharia diante dele e lhe diria: "Cá estou..." E ela pousaria a fronte em suas mãos reais. Sabia que caminhava para esse instante de modo inelutável, e agora que afastara os perigos que ameaçavam sua vida a espera diante do- amor pesava-lhe e enchia-a ora de medo, ora de triunfo. Seria amanhã? Seria mais tarde? Dela dependia a resposta, e no entanto ela esperava, como se deixasse a escolha ao destino.
E o destino pronunciou-se. Um terrível acontecimento, que enlutou a corte de França e assustou o mundo, deveria apressar a rendição de Angélica.
Ela acabava de passar três dias em Paris, tratando de negócios com o Sr. Colbert, e, depois de demorar-se naquela noite junto ao ministro, tornava a sua residência.
Diante da Mansão do Beautreillis, a silhueta de um mendigo claudicava na sombra azul das noites de junho sem lua. Reconheceu Pão Seco, quando ele se aproximou da portinhola.
- Vá a Saint-Cloud! Vá a Saint-Cloud - disse com sua voz rouca.
Ela quis abrir a portinhola, mas ele empurrou-a.
- Vá a Saint-Cloud, estou lhe dizendo. Ali estão acontecendo coisas... Venho de lá pela carreta'do vinagreiro... Há ali distração para esta noite. Vá então até lá...
- Não fui convidada para Saint-Cloud, meu velho Pão Seco.
- Há outra que não foi convidada, e que lá está, no entanto... É a camarde... A festa é mesmo em sua honra. Vá até lá para ver...
Angélica pensou de súbito em Florimond e seu sangue gelou.
- Que acontece? Que sabe você?
Mas o velho vagabundo já se distanciava resmungando. Angélica, indecisa, e perdendo a cabeça, gritou ao cocheiro que partisse para Saint-Cloud. Tendo servido junto à Duquesa de Che-vreuse, o novo cocheiro possuía bem mais filosofia que seu predecessor. Ele teve, no entanto, um pequeno sobressalto e observou-lhe o perigo de atravessar os bosques, sem escolta, àquela hora da noite. Sem descer do carro ela mandou acordar três lacaios e o mordomo Roger. Bem armados, e a cavalo, eles ladearam a carruagem, que manobrou na direção da Porte Saint-Honoré.
CAPÍTULO XXIV
Madame está morrendo! Madame está morta!
No calor intenso do parque, o canto das cigarras subia estridente pela noite, acentuando a ^exasperação de Angélica. Era um canto longo e contínuo, com jlgo de cruel, de enfurecido. Ela tapou os ouvidos. Súbito surgiu, ha volta de uma aléia, a casa de campo do Sr. d'Orléans, com todas as janelas iluminadas, por. trás das quais corriam archotes. Inúmeras carruagens paravam nos jardins. As portas estavam totalmente abertas.
Algo ocorria, de fato, mas não era uma festa.
Ela saltou tremula do carroe correu até a entrada. Aquela hora, nenhum pajem se apresentou para que lhe deixasse o manto ou dissesse o que desejava. Mas o vestíbulo estava lotado de pessoas que iam e vinham com ar transtornado, falando a meia voz. Angélica viu passar a Sra. de Gordon-Huxley.
- Que acontece? - gritou-lhe.
- Madame está morrendo - respondeu a escocesa com um gesto vago e apavorado, desaparecendo por trás de uma tapeçaria.
Angélica deteve um criado pelo braço.
- Madame está morrendo?...Impossível. Ainda ontem gozava de perfeita saúde. Via-a dançar em Versalhes.
- Infelizmente! Hoje, às quatro horas, Sua Alteza ainda ria e conversava alegremente. Mas depois tomou'um copo de chá de chicória e logo começou a sentir-se mal.
Sobre um canapé num quarto de vestir, a Sra. Desbordes, camareira da princesa, aspirava sais, recuperàndo-se de um desmaio.
- É o sexto esta tarde, pobre mulher - disse a Sra. de Gamaches.
- Mas que tem ela? Também bebeu chá de chicória?
- Não,-mas foi quem o preparou e acusa-se de ter provocado o horrível incidente.
A Sra. Desbordes voltou a si, dando verdadeiros gritos histéricos.
- Acalme-se - suplicou a Sra. de Gamaches -, em nada é culpada. Lembre que se preparou o chá, fui eu quem o trouxe e a Sra. de Gordon quem o apresentou em sua taça particular.
Mas a pobre mulher não queria ouvir e balánçava-se, gemendo queixumes.
- Madame está morrendo! Madame está morrendo...
- Já foi bastante dito - protestou Angélica -, mas Madame ao menos viu um médico?
- Ela os viu a todos - gritou Desbordes. - O rei enviou seu próprio médico. Estão todos aqui. Todo mundo está aqui. Made-moisellé está aqui. Monsieur está aqui. A rainha...
- Oh! Por piedade - interrompeu a Sra. de Gamaches à beira de uma crise de nervos.
Entrementes, avistaram Monsieur, vindo dos aposentos de Madame, e escoltado pela Srta. de Montpensier, veemente.
- Meu primo, é tempo de pensar que Madame está morrendo e que é preciso falar-lhe de Deus...
- Mas ela está com seu confessor - protestou molemente Filipe d'Orléans.
Ele retificou uma prega da gravata com enfado. De todos os presentes, era decerto o que parecia menos afetado. Mas seu caráter abandonava-se sem defesa à energia da Grande Mademoiselle, vendo-se obrigado a escutá-la. Ela ergueu os ombros com fúria.
- Seu confessor! Ver-me-ia em apuros se tivesse que me apresentar diante de Deus afiançada por tal nulidade. Seu confessor!
Era bom para fazer-lhe as honras na carruagem, para que o povo soubesse que tinha um confessor. Você sabe como eu que esse capuchinho não se recomenda senão por uma das mais belas barbas do reino. E é tudo... Mas para morrer... Refletiu no que significa morrer, meu primo?
Monsieur olhou para as unhas com um suspirozinho enervado.
- Pois saiba que também passará por ela - gritou a Grande Mademoiselle, irrompendo em soluços -, e será bem o momento de tratar das unhas. Ah! Minha pobre querida - retomou, ao notar Angélica.
Atraiu-a com um gesto desolado e deixou-se abater sobre uma banqueta.
- Se visse o mortificante espetácíilo, todas essas pessoas que vão e vêm à volta de Madame conversando é tagarelando como se esperassem por uma comédia! E seu confessor que nada mais sabe fazer senão acariciar a barba e dizer" trivialidades...
- Acalme-se, minha prima - disse Filipe d'Orléans, conciliador. - Quem seria apropriado citar na Gazette pór ter assistido Madame em seus últimos momentos?... Ah! achei: o Abade Bos-suet. Madame conversava às vezes com ele, e é o preceptor do delfim. Mandarei buscá-lo.
Ordenou imediatamente que enviassem um correio à procura do Abade Bossuet.
- Mas, enquanto esperamos, o tempo urge: quem sabe se Madame estará com vida quando o Sr. Bossuet chegar. Não há ninguém em Saint-Cloud?
- Você é insaciável, palavra!
Uma das damas de honra recomendou o Reverendo Padre Feuillet, um cónego de Saint-Cloud de conhecido mérito.
- E conhecido mau-caráter - retorquiu o irmão do rei em tom seco. - Chame-o, se lhe parece adequado-, mas eu me vou. Aliás, já dei meu adeus a Madame.
Piruetando nos altos tacões, dirigiu-se para a escada com as pessoas de seu séquito. Florimond, que estava entre elas, avistou a mãe e veio beijar-lhe a mão.
- Caso bem triste, não é fato, minha mãe? - disse em tom compassado. - Envenenaram Madame..
- Suplico-lhe, Florimond, cesse de ver envenenamentos por todo lado!
- Mas ela foi envenenada! Todos o dizem e, aliás, eu próprio lá estava. Monsieur queria ir a Paris e descemos ao pátio com ele. Encontramos a Sra. de Mecklembourg, que chegava naquele momento. Monsieur saudou-a e dirigiu-se corrf eíâ até Madame, que também vinha ao seu encontro. Foi quando a Sra. de Gordon lhe apresentou a taça de chá de chicória gelado que sempre bebe a essa hora. Assim que bebeu, levou a mão ao lado gritando: "Ah, que pontada! Ah, que dor! Não posso mais!" Primeiro ficou vermelha, depois pálida. Disse então: "Carregue-me, não consigo suster-me..." Ela caminhava encurvada... Eu o vi.
- O pajem tem razão - apoiou uma das jovens damas da Princesa Henriqueta. - Assim que Madame foi colocada no leito, ela disse-nos da convicção de ter sido envenenada, e pediu um contra-veneno. O primeiro criado de quarto de Monsieur trouxe-lhe pó de víbora, mas as horríveis dores só fizeram aumentar. É por certo um veneno terrível e desconhecido.
- Ah! Não diga tolices - atalhou a Grande Mademoiselle. - Quem teria interesse em envenenar uma jovem tão encantadora? Madame não tinha inimigos.
Calaram-se, mas era o que pensavam, sobretudo a Srta. de Mont-pensier. Um nome estava em todos os lábios, o do marido da vítima, ou então o do favorito afastado. Mademoiselle abanou-se febrilmente; em seguida fòi ao encontro do Padre Feuillet, que acabava de ser introduzido no local.
- Sem mim, senhor abade, a pobre princesa partiria para o ou tro mundo como uma herética. Venha, acompanhá-lo-ei.
A Sra. de Gamaches contou a meia voz por que Monsieur não gostava do Padre Feuillet. Era um religioso íntegro e severo, a quem se aplicava um versículo de um dos salmos: "Falei aos reis de teus preceitos e não enrubesci". Convidado na Quaresma para uma colação na casa do irmão do rei, aquele perguntara-lhe, pegando um biscoito: "Não seria romper o jejum, não é fato"? - "Coma um boi e seja cristão", respondera o cónego.
A jovem dama de honra deu uma gargalhada. Um burburinho vindo dos aposentos da princesa fez com que as damas se erguessem com expressão solene.
O rei partia, acompanhado pelos médicos, com quem conversava. A rainha vinha em seguida, assoando-se, e depois a Condessa de Soissons, a Srta. de La Vallière, a Sra. de Montespan e a Srta. de Montpensier.
Ao passar, o rei viu Angélica. Ele imediatamente voltou sobre seus passos e atraiu-a para um nicho sem se preocupar com os olhares que os seguiam.
- Não há mesmo esperança, sire? Os médicos...
- Os médicos repetiram durante horas que era um mal-estar sem importância, para de súbito perderem a cabeça, sem saberem o que fazer. Tentei pôr-lhe as ideias no lugar. Não sou médico, mas sugeri pelo menos trinta remédios; disseram-me que era preciso esperar. São uns asnos - concluiu, lançando um olhar sombrio na direção dos práticos de bonés pontudos, que, agrupados, continuavam a discutir em voz baixa.
- Mas como tal incidente pôde ocorrer? Madame parecia com excelente saúde. Voltara da Inglaterra tão feliz!
Ele mirou-a com intensidade, em silêncio, e ela leu-lhe nos olhos a dúvida terrível que atenazava. Ela baixou a cabeça sem saber o que dizer. Queria tomar-lhe a mão, mas não ousava.
- Desejava solicitar-lhe um serviço, Angélica - murmurou. - Fique aqui até... até o fim, e em seguida venha avistar-me em Versalhes. Virá, não é mesmo? Preciso de você... minha querida.
- Irei, sire.
Luís XIV emitiu úm lcjngo suspiro.
- Agora é preciso que; eu parta. Os-príncipes não devem morrer. É a norma. Quando eu também morrer, minha família abandonará o palácio e ficarei sozinho... Folgo em saber que Madame tem junto de si esse religioso de grande mérito, o Sr. Feuillet. Não é mais hora das palavras cortesãs e tranquilizadoras dos confessores mundanos. Ah! Eis o bispo de Condom, Sr. Bossuet. Madame apreciava-o muito.
Ele caminhou ao encontro do prelado, conversando um momento com ele. Em seguida, a família real partiu, e o Sr. Bossuet ganhou o quarto da moribunda. Fora, ouvia-se o bater das portinholas e o patear dos cavalos.
Angélica sentou-se numa banqueta para aguardar. Florimond corria por todo lado, com a excitação das crianças envolvidas num drama que não as atinge. Ele confiou-lhe que Monsieur deitara-se e dormia um sono profundo. Pouco antes da meia-noite, a Sra. de La Fayette, que permanecia ao lado da princesa, veio avisar Angélica de que Madame soubera de sua presença em Saint-Cloud e desejava vê-la.
O quarto estava lotado, mas a presença do Padre Feuillet e do Sr. Bossuet imprimira-lhe um pouco de decência. As pessoas falavam em voz baixa. A cabeceira do leito, dois eclesiásticos afastaram-se para que Angélica se acercasse. Ela pensou a princípio que uma outra pessoa, desconhecida, ali repousava, tal era a mudança que se operara em Madame. Pela camisola, desatada no pescoço e braços, entrevia-se um corpo ceroso, cuja magreza acentuara-se, tornando-se esquelética em poucas horas. As maçãs do rosto estavam salientes, o nariz, afilado. Tinha profundas olheiras, e os olhos dilatados por tormentos indizíveis.
- Senhora - disse Angélica a meia voz -, como está sofrendo! Que lástima vê-la sofrer assim!
- Você é boa em dizer-mo. Todos repetem que exagero meu estado. No entanto, se não fosse cristã, matar-me-ia, tais são as dores que sinto.
Ela respirou com dificuldade e retomou:
- Mas é bom que sofra, senão nada terei a apresentar a Deus além de uma vida bem vã. Sra. du Plessis, alegra-me que tenha vindo.
Não esqueço do serviço que me prestou e de minha dívida para com.você. Trouxe da Inglaterra...
Ela fez um leve sinal ao Sr. de Montaigu, embaixador da Inglaterra,, que se aproximou. A princesa conversou com ele em inglês, e Angélica compreendeu que ela o encarregava de entregar-lhe, após sua morte, as três mil pistolas que lhe devia.
O inglês estava consternado. Previa o desespero de seu senhor, Carlos II, ao saber da morte da irmã, sua pequena Ninette, que sempre amara ternamente. Ele perguntou à moribunda se ela suspeitava de alguma intenção criminosa, pois entendera a palavra veneno, de pronúncia semelhante nas duas línguas. O Padre Feuillet interveio:
- Senhora, não acuse ninguém e ofereça o sacrifício de sua morte a Deus.
A princesa aquiesceu com as pálpebras e permaneceu silenciosa por um longo momento, os olhos fechados. Angélica pensou em retirar-se, porém a mão de Henriqueta da Inglaterra ainda apertava a sua de modo imperceptível, e ela não ousou tirá-la. Madame voltara a abrir os olhos. As pupilas azuis estavam como que descoradas, mas ela fixava o semblante de Angélica, inclinado para ela, com uma atenção cheia de sagacidade.
- O rei - disse ela. - Estava com a rainha, a Sra. de Soissons, a Srta. de La Vallière e a Sra. de Montespan...
- Sim.
Madame calou-se, continuando a olhá-la com intensidade. Angélica pensou, de repente, que Madame amara o rei. O flerte fora tão longe que, para desviar as suspeitas da rainha-mãe, ainda viva, ocorrera aos dois cúmplices usar como pára-ventp uma das donzelas de honor de Madame, que não era outra senão Luísa de La Valliere. O resto era conhecido. A orgulhosa princesa destronada pela humilde dama de companhia. Demasiado orgulhosa, ela chorara em segredo nos braços de sua melhor amiga, a Sra. de Mon-tespan... que por sua vez ocupara o lugar. Há pouco, à sua cabeceira, la vira o rei, sua mulher e suas três amantes, as duas antigas e nova, num estranho resumo de seu sonho de amor ambicioso, erseguido em vão e voltado a fracassos humilhantes.
- Sim - voltou a dizer Angélica, com doçura.
E sorriu-lhe com tristeza. Madame não tivera somente qualida-Jes. Mas seus defeitos não eram mesquinhos, e sempre se mostra-a graciosa, ardente e inteligente. Demasiado inteligente. Morria odeada de inimigos ou indiferentes.
Seu olhar velou-se. Ela disse com voz imperceptível:
- Quisera, por ele, que ele a amasse... a você... porque...
Não conseguiu concluir. Teve um gesto lasso e a mão caiu sobre o lençol. Angélica afastou-se. Saindo do quarto, tornou à banqueta do vestíbulo, onde voltou a esperar, esforçando-se por rezar. Pelas duas horas da manhã, o Sr. Bossuet deixou por um momento a princesa, sentando-se afastado para repousar um pouco. Um criado trouxe-lhe uma xícara de chocolate.
Florimond, correndo como uma andorinha, veio pousar junto de Angélica, cochichando-lhe que Madame estava tomada pelo soluço da morte. O Sr. Bossuet ouviu-o e, pousando a xícara, tornou à cabeceira da penitente.
Em seguida, a Sra. de Gordon-Huxley passou gritando:
- Madame está morta!
Conforme prometera ao rei, Angélica imediatamente preparou-se para ganhar Versalhes. Quisera levar Florimond, para arrancá-lo àquelas idas e vindas fúnebres, mas encontrou o garotinho sentado numa arca na entrada, segurando a mão de uma garotinha de nove anos.
- É a Petite Mademoiselle - explicou. - Ninguém dela se ocupa. E preciso, pois, que lhe faça companhia. Ela ainda não entendeu que sua mãe morreu. Pois era uma princesa, mas era sua mãe, não é mesmo? Quando entender, chorará. Devo ficar 'para consolá-la.
Angélica felicitou-o, acariciando-lhe os cabelos bastos. Era próprio de um bom vassalo partilhar a dor de seus príncipes e apoiá-los no sofrimento. Ela própria ia para junto do rei. Com lágrimas nos olhos, abraçou a princesinha, que de fato, não parecia muito atingida pela perda de uma mãe que conhecia pouco e que quase não se ocupara dela.
Outras carruagens já rodavam pela estrada de Versalhes. Angélica fez com que as ultrapassassem a galope. Quando chegou ao palácio, a noite ainda era profunda. O rei velava em seu gabinete, onde ela foi introduzida.
- Então?
- Está acabado, sire. Madame está morta.
Ele inclinou a cabeça, nada deixando transparecer dos sentimentos que o agitavam.
- Crê que foi envenenada? - perguntou por fim. Angélica teve um gesto vago.
- Todo mundo o crê - retomou o rei. - Mas você, que é mais sensata, dê-me sua opinião.
- De há muito Madame temia morrer envenenada. Ela mo confessara.
- Ela temia? A quem temia? Disse nomes?
- Ela sabia que o Cavaleiro de Lorena a odiava e não a perdoava por seu exílio.
- E o que mais?.,. Fale... Fale, pois. Se não falar quem me falará face a face?
- Madame dizia que Monsieur, em sua cólera, ameaçara-a amiúde. O rei emitiu um profundo suspiro.
- Se meu irmão... - murmurou. Ele ergueu a cabeça.
- Ordenei que me trouxessem Maurel, inspetor da Boca em Saint-Cloud. Penso que esse oficial não tardará. Ah! Ouço passos.
São eles, sem dúvida. Quisera que você assistisse à nossa conversa. Fique atrás desta tapeçaria.
Angélica foi para trás da cortina que ele lhe indicava. A porta abriu-se e o dito Maurel entrou, introduzido por Bontemps e um tenente da guarda. Era um homem de traços duros que, apesar do acentuado servilismo profissional, não era falto de arrogância. Mantinha o sangue-frio, a despeito de estar sendo preso. O rei acenou para que o criado de quarto ficasse. O.tenente retirou-se
- Mire-me - disse o rei gravemente' - e conte com a vida salva se for sincero.
- Direi a exata verdade, sire.
- Lembre-se dessa promessa: se faltar a ela, seu suplício é coisa feita... Depende de você sair vivo ou morto deste palácio.
- Sire - retomou com calma o inspetor -, depois de sua sagrada palavra, eu seria um imbecil se ousasse mentir.
- Bem... responda agora. Madame morreu envenenada?
- Sim, sire.
- Quem a envenenou?,. - O Marquês d'Effiat f eu. O rei vacilou.
- Quem o incumbiu da horrível missão, e com-quem obteve o veneno?
- O cavaleiro de Lorena é a causa e o primeiro instrumento desse atentado; foi ele quem nos enviou de Roma a droga venenosa, que preparei e que Effiat jogou na beberagem de Sua Alteza Real.
O timbre do rei baixou bruscamente:
- E meu irmão... - ele fez por cobrar a firmeza na voz - meu irmão tinha conhecimento do complô?
- Não, sire.
- Afirmá-lo-ia sob juramento?
- Sire, juro-o diante de Deus, a quem ofendi... Monsieur nada soube do segredo... Não podíamos contar com ele... Ele nos teria perdido.
Luís XIV retesou-se.
- Era o que importava saber... Vá, miserável, deixo-lhe a vida, mas saia de meu reino e saiba que, se franquear novamente as fronteiras, será um homem morto!
Maurel saiu acompanhado por Bontemps. O rei ergueu-se e deixou seu lugar atrás da mesa de trabalho.
- Angélica!
Ela ouviu-lhe o chamado, como de um ferido que vacilasse. Correu para ele. Ele apertou-a contra o peito a ponto de esmagá-la. Ela sentia em seu ombro o peso daquela fronte real abatida.
- Angélica, meu anjo!...
- Estou aqui!
- Quantos horrores - murmurou -, quantas almas vis e enganosas!
E no entanto ele não sabia de tudo. Um dia saberia. "Um dia levantaremos o véu", dissera La Reynie. E ele se ergueria sozinho num mar de opróbrios, de crimes inconcebíveis.
- Não me deixe só!
- Estou aqui!
- Para onde volte o olhar, não há ninguém em quem possa confiar.
- Estou aqui...
Ele pareceu, por fim, entender, e erguendo a cabeça, mirou-a longamente, com uma interrogação apaixonada.
- É verdade, Angélica? Não me deixará mais?
- Não.
- Será minha amiga... Será minha?
Ela fez que "sim" com a cabeça e muito suavemente ergueu a mão, pousando-a naquela face, naquela fonte que a hora matinal tornava rugosa.
- É verdade! - repetiu ele. - Oh! É como...
Ele procurou a palavra para traduzir seu deslumbramento; viu o novo dia que punha um traço rosa na fímbria das cortinas.
- Como a aurora... Um penhor de vida, de força... que me oferece após esta terrível noite, tocada pela morte. Oh! Minha alma...
Você será minha! Minha! Eu possuirei este tesouro...
Estreitou-a com paixão violenta. Ela sentia que sua força intrépida se comunicava a ele, e, como ele, partilhava a certeza de que sua união os tornaria invencíveis diante do mundo. Os inimigos fugiriam, os demónios se afastariam. Ao cabo de uma longa luta, eles viam o problema desenredar-se e seus espíritos esgotados sentiam uma paz súbita e vivificante.
Bontemps teve que bater na porta muitas vezes.
- Sire, está na hora.
Angélica desprendeu-se dos braços vigorosos que se recusavam a libertá-la.
- Sire, está na hora - repetiu ela.
- Sim. E preciso que volte a ser rei. Mas temo que novamente você escape, se a deixar partir.
Ela sacudiu a cabeça com um sorrisinho triste e cansado. A fadiga da noite angustiante marcava suas pálpebras, e o leve desalinho da cabeleira conferia-lhe um semblante de amante esgotada. O rei empalideceu.
- Amo-a - disse com voz surda. - Oh! Meu anjo, amo-a, não me deixe mais!
Após o cerimonial costumeiro do lever. do rei, os cortesãos dirigiram-se, como em todas as manhãs, à missa do rei. Este, o semblante impassível, ganhou seu lugar. Ouviam-se soluços sufocados. O Sr. Bossuet subiu lentamente ao púlpito. A luz dourada que se derramava dos vitrais, viram-no erguer o rosto sólido, de tez corada, e a alta" estatura em murça negra e sobrepeliz de renda.
Ele deixou planar uiji longo silêncio, e depois sua mão tombou pesadamente, enquanto a voz forte ressoava sob as abóbadas da capela real:
- O noite funesta! O noite assustadora em que estrondeou como um trovão a espantosa notícia: Madame está morrendo! Madame está morta... Madame passou da manhã para a noite como a erva dos campos. De manhã ela florescia, com que graças, vocês o sabem; à noite vimo-la secar... quanta diligência! Em nove horas a obra estava concluída... O vaidade das vaidades...
CAPITULO XXV
Embarque para Citera
Ancorada no canal, em meio à agitação de chalupas, ao lado de dois pequenos navios ingleses, de um falucho napolitano e de uma galera biscainha, a grande nau balançava-se como uma borboleta pousada junto ao tapete verde.
Era uma fragata em miniatura, guarnecida de pequenos canhões de bronze cujo casco, adornado de flores-de-lis, buques, conchas e divindades marinhas, cintilava em ouro. O cordame era em seda aurora ou carmesim, as bandeiras e tapeçarias, de damasco e brocado, guarnecidas de franjas de ouro e prata. No equipamento e nos mastros, pintados de azul e ouro, flutuavam pavilhões, flâmulas, estandartes, bandeirolas, numa alegre sinfonia colorida onde luziam por todo lado, em ouro e prata, as armas e as iniciais do rei.
Daquela jóia, daquele brinquedo cintilante, Luís XIV fazia, naquele dia, as honras à corte. Um pé sobre a escada de madeira dourada, ele voltou-se para as damas. Quem seria escolhida para inaugurar o passeio aos campos do Trianon?... Vestido de cetim azul-real, o rei se harmonizava com o belo dia de verão. Ele sorriu e estendeu a mão a Angélica. Diante dos olhos de toda a corte ela subiu os degraus e instalou-se sob o tendelet de brocado. O rei sentou-se a seu lado. Depois deles tomaram lugar os convidados da grande nau. A Sra. de Montespan não estava entre eles. Ela presidia - honra que não a enganava e deixava-a pálida de raiva - à assembleia de passageiros da grande galera. A rainha estava no falucho napolitano. O restante dos cortesãos dividia-se entre as chalupas. A música do rei acomodou-se em uma barcaça forrada de damasco listrado de vermelho e branco.
E suavemente, ao som dos violinos e oboés, a flotilha deslizou pela superfície lisa do grande canal. O cruzeiro pareceu muito curto. As pessoas fruíam o frescor das águas sob a pesada canícula. Grossas nuvens, de um branco cru, começavam a manchar o céu muito azul.
- Anuncia-se tempestade - observou Angélica, procurando iludir sua apreensão com uma conversa banal.
- Você te me.naufragar? - perguntou o rei, observando-a com paixão.
- Talvez...
A companhia desembarcou no gramado verde, onde estavam armadas tendas e bufes. As pessoas dançaram, conversaram, jogaram. Numa brincadeira de esconde-esconde, Angélica teve os olhos vendados e foi arrastada pelo Sr. de Saint-Aignan num turbilhão, que a fez perder o senso de orientação. Quando ele se deteve e deixou-a, afastando-se na' ponta dos pés, o silêncio à sua volta pareceu insólito.
- Não me abandone - gritou, rindo.
Ela aguardou um pouco, espreitando os ruídos em torno de si. Um passo aproximou-se pela grama e mãos desataram a venda.
- Oh! - fez ela, deslumbrada.
Já não estava na campina, de onde vinham os risos distantes da corte, que se divertia, mas no limite de uma cortina de sebes. No alto de uma elevação constituída por três terraços floridos que ascendiam num suave aclive, um pequeno palácio desconhecido acabava de surgir.
Construído em faiança branca, e precedido por um peristilo de mármore rosa, destacava-se contra o fundo verde de um bosque de acácias, cujo odor inebriante perfumava o ar muito quente.
- É o Trianon - disse o rei.
Ele estava só, a seu lado. Tomou-a pela cintura e lentamente subiram até a casa.
- Era mister que chegasse esta hora entre nós, não é mesmo, Angélica? - disse o rei, baixinho. - Era mister que acabássemos por nos encontrar.
Ele tinha a voz sufocada, e ela sentia-lhe os dedos autoritários tremerem contra seu flanco. Ele jamais conseguira livrar-se por completo de sua timidez para com as mulheres. No instante de concluir a conquista, o temor o invadia.
- Meu belo amor! Meu belo amor!...
Angélica não lutava mais. O pequeno palácio oferecia-lhe o abrigo de seu silêncio. A força que a atraía não era das que podiam ser repelidas. Nada podia romper o cerco que os aprisionava, feito de flores, isolamento, penumbra.
Uma porta envidraçada fechara-se sobreeles. A peça forrada de brocado florido era de gosto delicado. Angélica, perturbada, via apenas que era encantadora, e que em uma alcova havia um grande leito com as cortinas erguidas.
- Tenho medo! - murmurou ela.
- Nada tema, meu amor.
A cabeça abandonada contra seu ombro, ela permitiu que ele lhe beijasse os lábios, que desacolchetasse o corpete, que descobrisse as curvas tenras dos seios, exaltando-se ao contato da carne morna e secreta, que se revelava. Ele atraiu-a docemente, comovido e como que magoado pela violência de seu desejo.
- Vem, vem! - suplicava-lhe baixinho.
Sua sensualidade era selvagem e primitiva. Uma torrente, uma tempestade, arrastava-o para a mulher que desejava, e o arrebatamento cego do homem era perturbador diante da mestria serena do monarca.
Angélica, sobre o leito, abriu os olhos. O rei se lhe abandonaria, sem pensamentos, e ela sentia-se bastante forte, e maternal, e sábia, para recebê-lo nos braços e acalmar com carícias o inefável tormento daquele corpo vigoroso.
Mas foi apenas um lampejo. Ela enrijeceu-se, as pupilas dilatadas sob a escuridão que invadia o local.
- A tempestade! - murmurou.
Uma trovoada distante se fazia ouvir. O rei viu-lhe o ar assustado.
- Não é nada. De que tem medo?
Mas ele não mais sentia nos braços senão uma forma rija e in-submissa. Ela escapou e correu para a janela, apoiando a fronte febril contra o frescor dos vidros.
- Mas que acontece? - perguntou.
Sua voz vibrava de cólera contida.
- Já não se trata de pudor. Sua hesitação revela uma partilha que de há muito suspeitava. Há um homem entre nós!...
- Sim.
- Seu nome? - estrondeou.
Ela voltou-se, subitamente alterada, os punhos cerrados, os olhos verdes queimando como carbúnculos.
- Joffrey de Peyrac, meu marido, a quem você fez queimar vivo na Place de Greve!
Angélica levou lentamente as mãos até o rosto. Com a boca entreaberta, parecia procurar o ar que lhe faltava:
- Joffrey de Peyrac - repetiu.
Suas pernas dobraram-se e ela tombou de joelhos, falando a meia voz, com incoerência:
- Que você fez daquele cantor, daquele génio, daquele grande louco coxo que dominava Toulouse com sua magia inocente? Como poderia eu esquecer Toulouse? Ali cantamos, ali amaldiçoamos. Ali lançamos flores; e anátemas. Toulouse, a cidade mais severa
e a mais terna, a cidade de Joffrey de Peyrac, a quem você fez queimar vivo na Place de Greve!...
Não tinha diante de si senão a visão da enorme flor vermelha de uma fogueira extinguindo-se num crepúsculo de inverno. Já não havia diante dela senão o Fogo e a Noite.
Ela teve um soluço breve, desvairado, e seus olhos tornaram-se baços.
- Suas cinzas foram espalhadas ao vento do Sena, seus filhos não têm mais nome, seus palácios foram arrasados, seus amigos desviaram-se dele, seus inimigos o esqueceram, nada subsiste do Gaia Ciência, onde a vida era tão alegre. Você lhe tomou tudo...
Mas não terá tudo Não terá a mim, sua mulher...
No exterior a chuva começou a jorrar. A tempestade cobria a natureza com uma noite breve e atormentada pelas borrascas.
- Talvez não mais se recorde - retomou ela a meia voz. - Que é um homem, afinal, para um monarca tão poderoso como Vossa Majestade? Uma poeira cujas cinzas foram levadas pelo Sena. Mas recordo-me sempre e sempre me recordarei. Fui suplicar-lhe no Louvre, mas você me repeliu. Você o sabia inocente, mas queria condená-lo. Porque temia sua influência sobre o Languedoc. Porque era mais rico que você!... Porque não se arrastava aos seus pés. Pagou os juízes para que o veredicto fosse contra ele. Fez assassinar a única testemunha que podia salvá-lo. Deixou que o torturassem. Você o deixou morrer. E eu... deixou que,o abandono e a miséria me engolissem, com meus dois filhos... Como poderia esquecer tudo isso?
Ela emitia pequenos soluços, sem lágrimas, revivendo terrores sem nome, mágoas inesquecíveis, tão lamentável e desvairada em seu vestido suntuoso, como a pobre Angélica da escória de Paris.
O rei, a alguns passos dela, parecia um homem atingido por um raio.
Os minutos prolongaram-se, intermináveis. Falar? Calar-se? Nem as palavras, nem o silêncio teriam o poder de afastar o passado. Pesadamente, com um ruído surdo de desmoronamento, o passado punha entre eles uma barreira intransponível.
Quando o sol voltou a surgir nas janelas, o rei lançou um olhar para os jardins. Com passo comedido, alcançou o chapéu numa cadeira e cobriu-se com ele. Depois voltou-se para Angélica, que permanecia imóvel.
- Venha, senhora. A corte deve estar à nossa espera. - Como ela não se movesse, ele insistiu: - Venha. Não é preciso que nos demoremos mais. Já falamos em demasia.
A jovem sacudiu a cabeça.
- Não em demasia. Era mister que isso fosse dito.
Ela sentia-se acabrunhada, mas esforçou-se por imitar a dignidade do rei. Erguendo-se, foi até o espelho, concertando a cabeleira e as roupas. Tinha em si um grande vazio.
Seus passos sob o peristilo de mármore rosa ressoaram lado a lado e no entanto estranhos, separados para sempre!
CAPÍTULO XXVI
Revelações sobre o passado e a execução do Conde de Peyrac
"Que acontecerá agora?", perguntava-se Angélica.
O dia seguira seu curso habitual. Retorno a Versalhes, após a tempestade. Baile, leve ceia, jogos. Angélica interrogava-se. Devia afastar-se, fugir ou esperar um sinal do rei? Era impossível que as coisas ficassem como estavam. Mas quando e como ele reagiria? Com a manhã, as horas escoaram-se em novos prazeres. O rei não se mostrou. Ele trabalhava. Angélica estava rodeada de pessoas. Na véspera, seu desaparecimento è o do rei não passaram despercebidos e pareceram a todos significativos. A Sra. de Mon-tespan ausentara-se de Versalhes para esconder sua cólera. Angélica esquecia os perigos que a rival a fazia correr, na apreensão de um perigo mais imediato. Se o rei lhe retirasse seu valimento, que aconteceria a Florimond, que aconteceria a Carlos Henrique?
Ela aceitou partilhar uma mesa de jogo e perdeu mil pistolas em uma hora. Essa perda pareceu-lhe a imagem do transtorno que semeara à sua volta. Ao rejeitar o amor do rei, ela jogara todas as cartas, abandonara todos os trunfos. Mil pistolas... Eis aonde levava a mania estúpida de viver com um copinho de dados nas mãos. Não tinha paixão pelo jogo, mas não havia um dia em Versalhes em que não se visse obrigada a participar de uma partida. Ali estava como as pessoas se viam aos poucos reduzidas a mendigar favores ou cargos para rechear uma bolsa sempre vazia! De obrigação em obrigação, passavam o tempo a se arruinar e se recuperar, a penhorar jóias para fazer parte de uma viagem, a tomá-las de volta para brilhar em um baile, a suputar suas possibilidades diante deste ou daquele cargo lucrativo, a compor petições.
Melhor seria que se empenhasse em depreciar a vida na corte, já que ia deixar Versalhes. Pois disso tinha certeza! Vivia suas últimas horas em Versalhes!...
Em pé diante de uma das janelas da grande galeria, recordou-se da primeira manhã em que, ao lado de Barcarola, vira despertar o parque de Versalhes, de que poderia ter sido a rainha. Versalhes e suas fontes, aléias, sebes, sua população de estátuas e seus bos-quetes abrigando adoráveis festas. Ao longe, no fim da aléia real, perfilavam-se no horizonte os mastros, as velas e o cordame da pequena flotilha que em meio aos campos e bosques da lie de France parecia ser um misterioso convite a viagens distantes e fabulosas...
Bontemps encontrou-a mergulhada em seu sonho. Ele murmurou-lhe que o rei desejava vê-la e a aguardava. A hora havia soado.
O rei estava calmo, como de hábito. Em seus traços nada transpareceu da emoção que o atingiu ao vê-la entrar. Sabia no entanto que se jogaria uma partida cujo firtal era sem preço aos seus próprios olhos. Jamais desejara, com tanta violência, uma vitória. E jamais tivera de antemão a certeza tão decepcionante da derrota. "Ela irá embora", pensou, "e cobrirá meu coração de cinzas."
- Angélica - disse em voz alta, assim que ela se sentou -, você proferiu ontem, contra mim, dolorosas e injustas acusações. Passei uma parte da noite, e deste dia, revendo o dossiê desse antigo processo e recolhendo todas as peças. É verdade que muitos detalhes se me haviam apagado da memória. Mas não o caso propriamente dito. Como a maior parte dos atos definitivos que tive de executar ao longo de meu reinado, este permanece fortemente gravado em minha lembrança. Ele tomou lugar no tabuleiro onde eu jogava uma difícil partida e em que se apostavam minha coroa e meu poder...
- Meu marido jamais ameaçou sua coroa e seu poder. Apenas a inveja...
- Não recomece com as injúrias - disse com doçura, mas num tom que a gelou. - E sustemos imediatamente a querela apresentando os dados do problema. Afirmo que o Conde de Peyrac ameaçava minha coroa e meu poder por ser um dos meus mais poderosos vassalos. Ora, os poderosos sempre foram, e continuam a ser, meus piores inimigos. Você não é tola, Angélica. Não há paixão que possa afastar por completo seu bom senso. Não lhe apresento desculpas, mas razões para fazê-la reconsiderar seu julgamento. Tenho que descrever-lhe o estado de coisas à época: agitações terríveis em todo o reino, antes e depois de minha maioridade, uma guerra estrangeira onde as perturbações domésticas fizeram com que a França perdesse inúmeras vantagens, um príncipe de meu sangue, o próprio irmão de meu pai, Gastão d'Orléans, à testa de meus inimigos! Um nome poderosíssimo: o Príncipe de Conde aliando-se a ele; muitas cabalas no Estado. Parlamentares revoltados contra seu rei. Em minha corte, bem ppuca fidelidade desinteressada, causando-me embaraço e fazendo-me temer os súditos mais submissos na aparência, tanto quanto os rebeldes. Como únicos sustentáculos fiéis, minha mãe, desprezada e caluniada, e o Cardeal de Mazarino, universalmente odiado: Ambos estrangeiros, aliás: o cardeal era italiano, como você não o ignora. Minha mãe permanecera espanhola de coração e costumes. Os franceses mais bem-intencionados suportavam com dificuldade seu modo de ser. Pode-se adivinhar o que faziam os mal-intencionados. Em meio a tudo isso, uma criança, eu, investida de um poder esmagador, mas sabendo-se demasiado fraca e ameaçada" por todo lado.
- Você não era uma criança quando fez prender meu marido.
- Abandone essa expressão obstinada, por piedade! Você seria, como todas as mulheres, incapaz de ver um problema em seu conjunto? Por mais dolorosas que lhe sejam as consequências da prisão e da morte do Conde de Peyrac, não são senão um pequeno episódio no vasto quadro de revolta e de combates que tento expor-lhe...
- Tendo sido o Conde de Peyrac meu esposo, aceite que sua sorte me seja mais importante que todo o conjunto de seu quadro.
- A história pouco importam as opiniões da Sra. de Peyrac - ironizou o rei -, e "meu" quadro é o do_mundo inteiro.
- A Sra. de Peyrac pouco importa a história do mundo inteiro - retorquiu ela, feroz.
Ela soerguera-se, um fogo de revolta nas faces, e ao contemplá-la o rei sorriu com melancolia.
- Uma noite, não faz muito tempo, nesta mesma peça, você pousou suas mãos nas minhas e renovou o velho juramento dos vassalos ao rei de França. Palavras que ouvi muitas vezes, seguidas das mesmas atitudes de traição e abandono. A raça dos grandes nobres estará sempre pronta a erguer a cabeça, a reivindicar, a voltar-se de um mestre que julgar demasiado severo para outro. Eis por que os quero todos em Versalhes, sob meus olhos. Isso fixa o abscesso e drena as febres infecciosas. Quanto a mim, já não tenho nenhuma ilusão. Nem quanto a você. Sempre senti em você, malgrado a atração que lhe inspirava, algo de irredutível e glacial para comigo. Era isso, então.
Ele retomou após um instante de meditação:
- Não tentarei inspirar-lhe piedade pelo pequeno rei acuado que eu era à época. As coisas estão bem assim. Prometi-me inspirar o temor é a obediência. Entre minha privação de outrora e meu poder de hoje, o caminho foi longo e tormentoso. Vi meu Parlamento erguer um exército contra mim e Turenne aceitar comandá-lo, o Duque de Beaufort e o Príncipe de Conde organizarem a Fronda, a Duquesa de Chevreuse aplicar-se em trazer os exércitos estrangeiros do Arquiduque da Áustria e do Duque de Lorena a Paris. Vi Condé, depois de ter sido meu salvador, partir batendo a porta e proferindo vis ameaças. Mazarino fê-lo prender. Então a Duquesa de Longueville, sua irmã, sublevou a Normandia, a Princesa de Conde, a Guiana, enquanto a Duquesa de Chevreuse convidava desta vez os espanhóis a invadirem a França. Vi meu primeiro-ministro fugir, vencido, os franceses baterem-se entre si sob os muros de Paris, e minha prima, a Grande Made-
moiselle, fazer atirar o canhão da Bastilha em minhas próprias tropas. Permita-me ao menos as circunstâncias atenuantes de ter sido educado na escola da total desconfiança e traição. Decerto soube esquecer quando era preciso, mas não as lições de tão amarga experiência!
Angélica deixava-o falar, as mãos juntas, o olhar distante. Ele sentia-a afastada de si, e era mais sensível a essa deserção que a todas as que já sofrera. Ela disse, no entanto, a esmo:
- Pelo que se queixa, em suma? Para quê? Luís XIV considerou-a com altivez.
- Por minha reputação! O conhecimento incompleto que você tem dos acontecimentos que me guiaram ievou-a a traçar uma imagem falsa e insultante do rei. Um rei que abusasse de seu poder para satisfazer os sentimentos mais mesquinhos não seria digno do título sagrado que recebeu de Deus em pessoa, e de seus grandes antepassados. Arruinar a vida de um homem unicamente •por inveja ou ciúme seria desprezível, e inconcebível da parte de um verdadeiro soberano. Fazer o mesmo com a convicção de que a condenação de um só pouparia as maiores desordens a um povo §esgotado, que já as suportara em demasia, era um ato de sabedoria.
- Mas de que modo meu marido teria ameaçado a ordem em Bseu reino?
- Com sua simples presença.
- Com sua simples presença?
- Mas escute-me! Eu era maior, afinal, com a maioridade dos Ireis, que não é aquela sob a qual os simples particulares começam la governar livremente seus-negócios. Tinha quinze anos! Não co-fnhecia por inteiro senão o tamanho do fardo, sem poder conhecer bem minhas próprias forças. Encorajava-me dizendo a mim mesmo que não fora posto e conservado no trono com tanto empenho em acertar, sem que pudesse achar os meios adequados paira tal. Eles me foram dados. Meu primeiro ato na maioridade foi o de fazer prender o Cardeal de Retz. Assim "comecei a arrumação" da casa. Em alguns anos decidi do destino daqueles que durante tanto tempo haviam embaraçado o meu. Meu tio Gastão f d'Orléans foi relegado a Troyes. Outros foram anistiados, entre eles Beaufort e La Rochefoucauld. O Príncipe de Conde passara-fc se para os espanhóis. Condenei-o à morte por contumácia. Quando de meu casamento, os espanhóis negociaram seu perdão. Eu lo concedi. O tempo havia passado. Outras preocupações me solicitavam: de um lado, a crescente preponderância de meu Superintendente Fouquet nos negócios. De outro, a obstinação de uma província por muito tempo rival do feudo da lie de France, a Aquitânia. Você era então sua rainha, minha cara. Falavam das maravilhas de Toulouse, e de como sua beleza ressuscitaria a bela Eleonora da Aquitânia. Não me escapava que essa província era de uma civilização diferente e como que estrangeira. Cruelmente domada pela Cruzada dos Albigenses, depois inglesa durante longo tempo e quase inteiramente atraída para crenças heréticas, ela não podia suportar senão com constrangimento a tutela da coroa de França. O simples título de Conde de Toulouse já o fazia um devotado perigoso, sem mesmo antes levar-se em conta a personalidade do homem. Mas que homem sob esse título! Um ser de inteligência grandiosa, de caráter excêntrico e sedutor, rico, influente e sábio. Vi-o e fiquei obsedado de inquietação. Sim, era mais rico que eu, e isso não o podia admitir, pois em nosso século o dinheiro subordina o poder, e cedo ou tarde esse poder seria levado a medir-se com o meu.
"Desde então não tive outro objetivo: destruir essa força que se desenvolvia fora de mim, criando em meu flanco um outro Estado, e breve, antes, um outro reino. Creia quando lhe afirmo que não queria opor-me ao homem em primeiro lugar, mas apenas diminuir as prerrogativas do conde, retalhar seu poder. Mas ao estudá-lo descobri uma falha na existência do Conde de Peyrac, que me permitiria encarregariam outro da difícil tarefa. Seu marido tinha um inimigo. Jamais consegui discernir por que, mas Fouquet, o onipotente Fouquet, jurara perdê-lo."
Angélica escutava, torcendo as mãos. Sofria até o âmago, revivendo o passado que enterrara sua radiosa felicidade. Esteve a ponto de explicar ao rei o motivo do ódio de Fouquet, mas que importava doravante? As tagarelices não podiam reconstruir o que fora destruído. Ela sacudiu repetidamente a cabeça. Suas fontes estavam úmidas.
- Estou lhe fazendo sofrer - disse o rei a meia voz -, meu amor, meu pobre amor!
Calou-se, oprimido um instante pelo peso de um destino que, após fazê-los inimigos, reaproximara-os até a beira da paixão. Depois emitiu um profundo suspiro.
- Desde então, confiei o caso a Fouquet - retomou -, na certeza de que seria bem conduzido. E o foi. O manhoso soube servir-se da vindita do arcebispo de Toulouse. Confesso ter observado com interesse os métodos de meu superintendente. Também ele tinha dinheiro, influência. Também ele não estava longe de acreditar-se senhor do país. Paciência! Sua vez chegaria e não me desagradava vê-lo, antes disso, ocupar-se em subjugar meus inimigos com o mesmo procedimento indireto que eu utilizaria mais tarde contra ele próprio. Relendo há pouco as peças do processo compreendi melhor o sentido de sua indignação. Você falou no assassinato de uma das testemunhas da defesa, o Reverendo Padre Kirchner. Infelizmente, é exato. Tudo estava nas mãos de Fouquet e seus agentes, e Fouquet desejava a morte do Conde de Peyrac. Certamente era ir um pouco longe. Quando-ele o conseguiu, eu intervim.
O rei devaneou um instante.
- Você veio suplicar-me por ele no Louvre. Disso também me recordo. Como no dia em que a vi pela primeira vez em Saint-Jean-de-Luz, deslumbrante em seu vestido de ouro. Não me acredite demasiado esquecido. Tenho boa memória para fisionomias, e seus olhos não são dos que se esquecem facilmente. Quando anos mais tarde você apareceu em Versalhes, reconheci-a de imediato.
Sempre soube quem era. Mas você se apresentou conduzida pelo braço de seu segundo marido, o Marquês du Plessis-Bellière, e parecia ansiar por que nenhuma alusão fosse feita ao passado. Acreditei então corresponder a seus desejos, concordando com a anistia que me pedia. Equivoquei-me em fazê-lo?
- Não, sire. Eu lhe agradeço - disse Angélica docemente.
- Devo pensar que já tinha em mente uma vingança cruel e refinada? A de me fazer pagar, com os tormentos do coração que hoje me inflige, aqueles que o rei lhe infligiu no passado?
. - Não, sire, não, não me acredite capaz de tal baixeza, ademais tão inútil - disse Angélica recobrando as cores. O rei deu um leve sorriso.
- Estou reconhecendo-a nesse protesto. A vingança é, de fato, estéril, e você não é mulher de despender esforços por um objetivo vão. Mas se o atingiu, no entanto: deixou-me cem vezes magoado, cem vezes punido.
Angélica desviou os olhos.
- -Que posso contra o destino? - disse ela debilmente. - Quisera, sim, confesso-o em segredo, quisera esquecer. Eu amava tanto a vida! Sentia-me jovem em demasia para ligar-me a um morto. O futuro sorria-me e atraía-me com mil seduções. Mas os anos passaram-se, e dou-me conta de que nada posso, nunca poderei nada contra essa realidade: Ele era meu maridol Amava-o com todo o meu ser, com o coração e com o espírito, e você o fez queimar vivo na Place de Greve.
- Não! - disse o rei sombriamente.
- Ele foi queimado na fogueira - repetiu Angélica com fúria. - Quer o tenha desejado ou não. Por toda a vida ouvirei o crepitar do fogo que o consumiu por ordem sua.
- Não - repetiu a voz de Luís XIV, como se golpeasse o soalho com o bastão.
Desta vez ela escutou-o e mirou-o com espanto.
- Não - repetiu o rei pela terceira vez, quase num sopro -, ele não foi queimado. Não foi a ele que o fogo consumiu naquele final de janeiro de 1661, mas o cadáver de um condenado estrangulado, que fora colocado em seu lugar. Por ordem minha - ele acentuou as palavras -, por ordem minha, o Conde Joffrey de Peyrac foi subtraído no último momento à sua sorte ignominiosa. Cuidei pessoalmente de instruir o carrasco sobre os detalhes práticos para observar estrito segredo, pois não desejava conceder-lhe a graça de modo espetacular. Mesmo se queria salvar Joffrey de Peyrac, eu não deixava de condenar o Conde de Toulouse. O caráter clandestino da empresa ofereceu mil dificuldades. Acabamos por concertar um plano que a situação particular de uma loja na Place
de Greve tornava possível. Era uma taberna cujo porão comunicava-se com o Sena por um subterrâneo. Na manhã da execução, meus agentes, mascarados, ali se instalaram e trouxeram o cadáver, coberto com uma veste branca. Pouco depois o cortejo chegou. O carrasco, sob pretexto de ministrar-lhe um cordial, fê-lo entrar na taberna, e a substituição pôde ser realizada longe dos olhos da multidão. Enquanto o fogo-consumia um cadáver anónimo coberto com uma cogula, o Conde de Peyrac era conduzido pelo subterrâneo até o rio, onde um barco o esperava...
Então era verdade. Os rumores, os pressentimentos, a lenda que se formava aos poucos em torno da morte do Conde de Peyrac, as confidências extraordinárias do charcuteiro da Place de Greve, as esperanças e os sonhos confusos de Angélica... Diante do semblante branco e petrificado, o rei franziu o cenho.
- Não quis dizer com isso que esteja vivo. Afaste essa esperança, minha cara. O conde está morto e bem morto, mas não nas condições sob que me responsabilizou. Direi mesmo que está morto por sua própria culpa. Concedi-lhe a vida, mas não a liberdade.
Mosqueteiros conduziram-no a uma fortaleza onde seria aprisionado. Mas numa noite, durante a viagem, ele evadiu-se do barco. Louca imprudência! Fraco em demasia para lutar contra a corrente ele afogou-se, e seu corpo, trazido pelo rio, foi encontrado e reconhecido alguns dias mais tarde.
"Cá estão os papéis que atestam o quelhe afirmo. Os relatórios do tenente dos mosqueteiros, entre QS quais os que falam de sua fuga e do reconhecimento do corpo... Senhora! Não me fite com essa expressão perturbada. Como podia saber que ainda o amava a tal ponto? Não se ama um homem desaparecido, morto há anos. Assim são as mulheres. Sempre embarcando ém quimeras! Pensou ao menos na marcha do tempo? Se o reencontrasse hoje, não o reconheceria, como ele não a reconheceria. Você se tornou uma outra mulher, como ele teria se tornado outro homem. Não podia imaginá-la tão insensata...
- O amor é insensato, sire. Posso pedir-lhe uma graça? Confie-me os papéis que se referém à sua prisão e à sua fuga.
- Que quer fazer corri eles?
- Lê-los com vagar para acalmar minha dor.
- Sua hipocrisia não me ilude... Tem alguma nova loucura em mente. Escute-me bem: proíbo-a entendeu?, proíbo-a de deixar Paris até segunda ordem, ou incorrerá em minha cólera.
Angélica baixou a cabeça. Apertava o maço de papéis junto ao peito como um tesouro.
- Permite-me a liberdade de examiná-los, sire? Afianço-lhe que os farei remeter às suas mãos em alguns dias.
- Está certo. Pensando bem, fique com eles. Concedo-lhe esse direito, pois fui o primeiro a envolvê-la no assunto. Possa a leitura deles fazê-la compreender que o passado não pode ressuscitar. Olhe para o futuro, é uma atitude mais serena. Você irá chorar, gemer, mas depois recobrará a razão... Talvez essa crise lhe seja salutar.
Ela parecia ausente, e os longos cílios projetavam uma sombra em suas faces.
- Como você é mulher! - murmurou eTe. - Com esse lado pueril e obstinado das apaixonadas, e esse poder de amar insondável como o oceano. Pena não ter sido criada para mim! Vá sonhar, caríssima. Adeus. Deixe-me agora.
Angélica levantou-se e saiu, esquecendorse de fazer a reverência, e sem ver que ele se retesava e continha o gesto de estender suas mãos para ela, enquanto um apelo sufocado morria em seus lábios:
- Angélica!
Ela atravessou o parque com o crepúsculo. Necessitava caminhar para acalmar a agitação. Caminhava, os papéis apertados contra o peito, falando a meia voz. Os casais, que passeavam à luz amarelada das aléias, acreditaram-na louca ou ébria. Nem por isso deixaram de saudar profundamente a Sra. du Plessis-Bellière, a nova favorita. Ela não os via, nem às árvores, nem às estátuas, nem às flores. Caminhava apressada, em busca de silêncio e solidão. Em um bosquete onde a água aos borbotões florescia com nenúfares sobre a superfície de um tanque negro, ela por fim se deteve. O coração em descompasso fazia-a ofegar.
Angélica sentou-se em um banco de mármore. Tencionava ler os documentos que o rei lhe entregara, mas a claridade havia diminuído. Permaneceu então imóvel, refletindo.
O instinto profundo que as mulheres trazem no coração despertava nela uma certeza. Se ele não morrera na fogueira, então ainda vivia! Se a sorte o arrancara tão milagrosamente ao fogo, era para devolvê-lo a Angélica e não para roubar-lhe novamente a vida, pregando-lhe uma partida alguns dias depois. Nisso não podia acreditar. Em algum lugar do vasto mundo, em um ponto desconhecido da terra, ele vivia, ele a esperava. E, mesmo que tivesse de percorrer cada parcela da terra com os pés sangrando, ela o procuraria e o encontraria. Haviam-na separado dele, mas sua vida não estava acabada. Pois chegaria o dia em que ela o alcançaria, esgotada, caindo em prantos sobre seu peito, e eles voltariam a ser dois. Ela não evocava nem seu semblante, nem sua voz, nem mesmo seu nome, mas estendia-lhe os braços através das trevas da ausência e do esquecimento. E com os olhos erguidos para o céu escuro, onde as grandes árvores balançavam seus cimos como algas levadas pelas correntes da noite, ela gritou, com delírio, com exaltação: "Ele não morreu! Ele não morreu.!"
Que poder tem o amor para levar uma mulher a desprezar as maiores glórias com uma única recusa!
Ao desdenhar a paixão do mais poderoso monarca do Ocidente, e com ele todas as honrarias que acompanhavam a graça de ser a favorita do rei, Angélica sabia que jogava uma partida decisiva contra o destino. Apenas por uma vaga certeza que a intuição lhe dava, ela abria mão de tudo que conseguira conquistar. Sonhos realizados depois de anos de sofrimento foram jogados pela janela - mas agora nada mais importava: ela iria até o fim do mundo, se necessário, em busca do homem a quem jurara amor eterno!
Em Angélica e o Pirata, a indomável Marquesa dos Anjos desafiará a tudo e a todos para atingir seus objetivos. Fugindo à perseguição amorosa do rei enciumado, procurará as pistas de seu amado desaparecido Com a ajuda de amigos e contando apenas com a sorte, partirá para aventuras imprevistas por águas traiçoeiras e terras exóticas do Oriente, entre piratas ferozes, aventureiros, saqueadores e inescrupulosos mercadores de escravos.
ANNE E SERGE GOLON
OS AUTORES:
ANNE E SERGE GOLON
Serge Golonbikoff nasceu em Bukhara (URSS) em 1903 e Simone (Anne) Changeuse, em Toulon (Fiança), em 1928. Çonheceiam-se e casaram-se na África, para onde Arme, com o dinheiro de um prêmio literário, viajara como jornalista. Serge era uma celebridade na época: formado em geologia, mineralogia e química, cruzara o misterioso continente em busca de ouro e diamantes, acabando por participar da descoberta de estanho em Katanga (Zaire). Atraída por sua fama, Anne resolveu entrevistá-lo.
De volta à França, em 1952, já casados, tiveram a idéia de escrever uma novela histórica ambientada no século XVII: Serge colhendo as informações no Arquivo de Versalhes e Anne exercitando um talento para as letras manifestado já na infância.
O sucesso de Angélica, Marquesa dos Anjos, lançado em 1959, foi imediato, animando os autores a produzirem novos volumes. Estes, traduzidos para vários idiomas e transpostos para o cinema, fizeram da heroína uma das personagens mais famosas do mundo.
Anne e Serge Golon
O melhor da literatura para todos os gostos e idades