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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A FEBRE / J. M. G. Le Clézio
A FEBRE / J. M. G. Le Clézio

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

"Estas nove histórias de pequena loucura são ficcionais; e no entanto não foram inventadas. O seu tema foi tirado de uma experiência familiar. Todos os dias, perdemos a cabeça por causa de um pouco de temperatura, de uma dor de dentes, de uma tontura passageira. Enervamo-nos. Experimentamos prazer. Embriagamo-nos. Nada disso dura muito tempo, mas é o bastante. A nossa pele, os nossos olhos, os ouvidos e os narizes acumulam todos os dias milhões de sensações, que nunca mais se esquecem. Somos verdadeiros vulcões."
Nice, 23 de Outubro de 1964
Se querem realmente saber, eu preferia nunca ter nascido. A vida, acho-a muito fatigante. Claro, a coisa agora está feita e já nada posso alterar. Mas haverá sempre no fundo de mim mesmo esse remorso, que não chegarei a expulsar completamente e há-de estragar tudo. Agora, trata-se de envelhecer depressa, de devorar os anos o mais rápido possível, sem olhar nem para a esquerda nem para a direita. É preciso suportar todas as mordidelas da existência, procurando não sofrer demasiado. A vida está cheia de loucuras. Não passam de pequenas loucuras quotidianas, mas são terríveis se repararmos bem nelas.
Não acredito muito nos grandes sentimentos. Em vez deles, vejo um exército de insectos ou de formigas que mordem em todos os sentidos. Por vezes, estas minúsculas flechas negras reúnem-se, e a razão dos homens perde o equilíbrio. Durante alguns minutos, algumas horas, é o reino do caos, da aventura. A febre, a dor, a fadiga, o sono que chega são paixões tão fortes e tão desesperantes como o amor, a tortura, o ódio ou a morte. Outras vezes, o espírito assaltado pelas sensações sucumbe numa espécie de êxtase material. A imagem da verdade é mais ofuscante que um projector.
Vivemos num mundo muito frágil. É preciso prestar atenção onde pousamos o olhar, é preciso desconfiarmos de tudo quanto ouvimos, de tudo o que nos toca.
Estas nove histórias de pequena loucura são ficções; no entanto não foram inventadas. A matéria delas é baseada numa experiência familiar. Todos os dias perdemos a cabeça por causa dum pouco de temperatura, duma dor de dentes, duma vertigem passageira. Encolerizamo-nos. Gozamos. Embriagamo-nos. Nada disso dura muito tempo, mas é suficiente. A nossa pele, os olhos, os ouvidos, o nariz, a língua, armazenam diariamente milhões de sensações das quais nem uma só é esquecida. Eis o perigo. Somos autênticos vulcões.
Há muito tempo que renunciei a dizer tudo quanto pensava (às vezes chego a perguntar a mim mesmo se existe realmente alguma coisa que se chame um pensamento); contentei-me em escrever tudo isso em prosa. A poesia, os romances, as novelas são singulares antiguidades que já não enganam ninguém ou quase. Poemas, narrativas, para quê? A escrita, nada resta senão a escrita, apenas a escrita, que tacteia com as palavras, que procura e descreve, com minúcia, com profundidade, que se entusiasma, que trabalha a realidade sem complacência. É difícil fazer arte quando se quer fazer ciência. De certo modo gostaria de ter mais um ou dois séculos para saber.
Muito, respeitosamente vosso, J.M.G. LÊ CLÉZIO


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A Febre
Para dizer tudo, Roch era do género de tipo de omoplatas saídas; não muito alto, tinha um esqueleto que se via por toda a parte debaixo da pele, especialmente à altura do tórax onde as costelas desenhavam uma série de arcos. Ombros, cotovelos e joelhos pontiagudos, alguns músculos que se assemelhavam a tendões, e sobretudo um longo rosto famélico, nariz de papagaio, olhos encovados e faces cavadas, acentuavam um ar geral de caricatura. No entanto não era feio, com todo o rigor podia-se até achá-lo belo apesar da sua magreza singular. Quando andava, Roch balançava desajeitadamente os braços, fora de tempo, o que lhe deslocava o ritmo das pernas. Nunca ria, a não ser um leve sorriso que lhe pairava permanentemente nos lábios, como se aí houvesse um gracejo que não conseguia esquecer. Falava realmente pouco, de modo que nada se podia dizer de seguro a este propósito. Não bebia, e fumava de vez em quando um cigarro americano. Ninguém o conhecia inteiramente, nem sequer sua mulher Élisabeth, e não se lhe encontravam amigos. Trabalhava todas as tardes e noites numa agência de informações da companhia de viagens Transtourisme. Isto deixava-lhe as manhãs livres e ele aproveitava-as de diferentes maneiras conforme a estação. No Inverno dormindo, no Verão indo à praia.
Era a época em que Roch ia tomar banho todas as manhãs; naquele dia, como de costume, saiu de casa, no extremo da cidade, pegou na bicicleta e dirigiu-se para o mar. Pedalou durante muito tempo ao sol, ladeando a costa. Chegado a uma certa curva da estrada nacional, perto do cabo, parou e desceu da bicicleta. Pôs o cadeado no aro da roda da frente, saltou por cima do parapeito e desarvorou pela colina cheia de espinhos e calhaus até à beira-mar. Ao atingir o fundo, obliquou para a esquerda e passou por uma série de rochas escarpadas. Alguns metros mais adiante, havia uma espécie de enseada pequena onde flutuavam detritos. Foi lá que se banhou, muito rapidamente; para secar instalou-se numa pedra lisa, à chapa do sol. Era ainda cedo; e tão longe quanto Roch podia olhar, se se tivesse dado a esse trabalho, não havia ninguém.
O sol escaldava e as gotinhas que se lhe tinham agarrado à pele, à volta do rosto, evaporavam-se rapidamente. No seu lugar, ficava uma série de halos minúsculos, feitos de sal seco, que irritavam a epiderme. Aquilo também fazia mal; era como ter o corpo nu entregue às formigas, e sentir milhares de mandíbulas morder freneticamente a carne viva.
Roch ergueu-se e tomou banho novamente. Quando saiu da água, verificou que o vento levantara. Era um vento de este, demasiado fresco para a estação, que soprava em rajadas bruscas. Roch estendeu-se na rocha e acendeu um cigarro; o vento apagou-lhe por três vezes o isqueiro. Fumou o cigarro, depois recostou-se, e fechou os olhos. No écran das pálpebras, puseram-se a dançar bolas vermelhas e violetas. Nadavam em todos os sentidos, com curiosas derrapagens para a esquerda, ou então reuniam-se, aglomeravam-se formando figuras incertas; cabeça de cavalo, África, borboletas nocturnas, molhos de flores, polvos, vulcões, caveiras.
Quando se fartou de tudo isto, levantou-se, vestiu-se e alcançou a estrada. Ao montar na bicicleta, a sereia do meio-dia soou ao longe, por cima da cidade. Vapores misturados elevavam-se no horizonte, muito perto das montanhas, e o sol estava branco por detrás duma fina cortina de bruma.
Roch pôs-se a pedalar. De vez em quando ultrapassavam-no automóveis, com um ruído muito suave. O calor era total, invencível. Tornara o ar compacto, e Roch tinha de atravessar sem se deter espécies de toalhas viscosas, sufocantes, que avançavam em sentido inverso. Depois atravessou uma avenida de plátanos, virou à direita, subiu uma ladeira, virou à esquerda, passou uma meia dúzia de cruzamentos, dois sinais vermelhos, virou ainda à direita, numa viela ladeada por terrenos baldios, e parou defronte da casa dele.
Colocou o cadeado na roda da frente, deixou a bicicleta encostada à parede do edifício e subiu as escadas. No patamar do quarto andar, parou diante da porta da direita, tocou e esperou. Ao fim de alguns segundos, houve um ruído na fechadura da porta, uma jovem de longos cabelos pretos apareceu.
- Ah, és tu, entra.
Roch seguiu-a pelo apartamento. Fechou cuidadosamente a porta, pôs, ao passar, as chaves do cadeado numa mesa, à entrada, e dirigiu-se para a cozinha. Era um compartimento bastante grande, voltado a norte, ocupado por uma mesa de madeira mole. As portas das janelas estavam fechadas, e na penumbra via-se a luz azulada do fogão a gás que estava a cozer qualquer coisa num tacho grande. A jovem usava uma bata de nylon desabotoada. Roch passou por ela e foi lavar as mãos por cima da pia de despejos. Enquanto ele borrifava a cara para tirar o sal, a mulher disse-
- A água estava boa?
- Muito boa - grunhiu Roch -, devias ter vindo.
- com este calor...
Roch enxugou as mãos e a cara com o pano da loiça. Depois voltou à entrada da porta e procurou o jornal.
- Onde está o jornal? - gritou sem virar a cabeça.
- O quê? - perguntou ela.
- Onde é que puseste o jornal? - repetiu.
- No quarto - respondeu a mulher -; em cima da cama, no quarto. Há uma carta para ti.
Roch entrou no quarto; em cima da cama desfeita, estava o jornal e uma carta. Roch regressou à cozinha, sentou-se num banco, pôs o jornal sobre a mesa, ao lado dum prato, e abriu o envelope com a ponta duma faca.
- Vamos comer já? - perguntou ele desdobrando a carta.
- Daqui a cinco minutos - disse a mulher -; tens fome?
- Hum...
- As batatas estão cozidas dentro de cinco minutos.
Roch começou a ler a carta. Estava escrita com uma caligrafia fina, a tinta permanente, num papel aos quadrados.
Meu querido Roch, querida Élisabeth
Mando-vos uma palavrinha de Itália, onde continuo o meu périplo. Passei por Milão e Bolonha, e hoje faço uma paragem em Florença. Encontrarás, de resto, no sobrescrito, um bilhete-postal comprado em Florença. O calor, aqui, é muito grande mas a paisagem é ainda mais bela.
Visitei todos os monumentos e todos os museus e vi praticamente tudo o que há a ver aqui. É muito bonito. Espero que vocês tenham oportunidade de fazer esta viagem um destes dias, julgo que vale a pena. Escrevi outro dia à mãezinha, para lhe dar notícias. Espero que vá tudo bem pelo vosso lado e que não sofram muito com o calor. Outro dia, em Milão, encontrei o Emmanuel que estava de passagem com a mulher. Evocámos algumas recordações. Disse-me que contava passar por aí para vos ver no fim das férias, antes de regressar a Paris. Parece que trabalha agora para uma fábrica de refrigeradores e é muito bem pago. Eis as novidades. Estarei em Veneza na próxima terça-feira e ficarei lá uns dias. Não te dou a minha direcção, meu querido Roch, porque sei que não me escreverias. Até breve, beija-vos,
Antoinette.
Roch debruçou-se, procurou o sobrescrito e tirou o bilhete-postal. Na fotografia, via-se uma espécie de jardim cheio de árvores, flores vermelhas, um cedro e, um pouco por toda a parte à volta da erva, colunas amarelas que formavam arcadas. A sombra do cedro marcava o solo, sob as arcadas, com listras regulares, e o canto de céu, à esquerda da fotografia, era colorido num azul-berrante. Do outro lado do postal, por cima do local reservado à correspondência, estava escrito:
FIRENZE
Museo S. Marco - II Chiostro Musée de S. Marc - Lê Cloítre Museum of S. Marc - The Cloister Markus Museum - Der Kreuzgang
Quando Roch acabou de ler tudo, colocou o postal e a carta em cima da mesa, perto do sobrescrito. Élisabeth tirou as batatas do tacho e pô-las nos pratos; desembrulhou um papel gorduroso, pegou em duas fatias de presunto e colocou-as em cada um dos pratos, ao lado das batatas.
- Quem é? - perguntou ela.
- Ninguém... a minha irmã - respondeu Roch.
- Porque é que escreve?
- Por nada, está em Itália.
- Está? Não sabia.
- Eu também não; está em Milão, em Veneza, um sítio deste género. Vais ver, ela até enviou um bilhete-postal.
E apontou com a ponta da faca para a fotografia. A mulher pegou na carta e no postal, leu-os apressadamente, e tornou a pô-los em cima da mesa, ao lado dela.
- Está em Florença.
- Sim, é isso, em Florença - exclamou Roch.
- Deve ser bonito.
- Olá - respondeu Roch.
Ela começou a comer as batatas. Roch já tinha quase acabado.
Depois do iogurte, Roch levantou-se da mesa, pegou no jornal e foi estender-se na cama, no quarto. O calor era agora muito incómodo; o sol descia suavemente ao longo das janelas de pau fechadas, e ruídos corriam pela atmosfera como bolas. Estava tudo humedecido, as paredes, o soalho, o tecto, os lençóis da cama, o papel do jornal. Roch transpirava imperceptivelmente do peito e das costas. Nadava numa espécie de película húmida que o colava à superfície do colchão. Não o sono, mas um estado de fadiga dengoso, um abatimento de todos os membros, mantinham-no pregado ao lugar. Virava com dificuldade as páginas enormes do jornal, e os olhos saltavam-lhe com dificuldade de uma linha para a outra; isso fazia com que lesse constantemente a mesma frase, o mesmo bocado de frase, a mesma palavra, sem compreender, sem deslindar, desesperadamente; as notícias vinham dos antípodas, tinham saltado as barragens dos oceanos e das montanhas, para ele, só para ele. E nem sequer era capaz de as receber. Via as palavras, representativas de porções de terras longínquas, condensados de aventuras bizarras e misteriosas, bocados de epopeia que os homens dos quatro cantos do mundo deixavam arrastar ali, naquela folha de papel, em enigmas. Mas nunca as poderia compreender. Ficaria sempre, como prisioneiro numa banheira, perdido no meio das muralhas de vapor, isolado, escarnecido, apertado nessa tarde de canícula, os dedos colados à folha do jornal que desbota, os ouvidos cheios dos ruídos da mulher a lavar a loiça, do outro lado da divisão.
Fora dele, portanto, para lá daquelas paredes, a milhares de quilómetros, tinham-se dado acontecimentos, peripécias raras e absurdas, cujo eco chegava até ele, semelhante ao rumor da multidão encolerizada. Passavam-se oceanos, planícies, aldeias comprimidas no fundo de vales, sobrevoavam-se crateras, redes de caminhos-de-ferro, linhas de alta tensão, lagos grandes como escarros, e chegava-se aos lugares da história. Tudo fora preparado, amadurecido, e os factos eram escritos na terra como no jornal, quadrados, inseridos no meio de outros, resumindo com dor, com compaixão, as outras proezas e os outros massacres.
Em Gainsville (Geórgia) estalou uma zaragata entre clientes brancos de um café, e negros que tentavam entrar num salão de bilhar. Foram presos quatro jovens brancos. Um branco foi ferido com uma garrafa.
Mas é sobretudo em Alabama, feudo da segregação no Sul dos Estados Unidos, que as tentativas dos negros suscitam mais lutas. Se, em Birmingham, as coisas se passam relativamente bem, em Bessemer, zona industrial, as coisas passam-se de outro modo pois cinco negros foram atacados por brancos, munidos com tacos de basebol, quando tentavam ser servidos numa cafeteria, Em Selma, ainda no Alabama, onde se desenrola actualmente uma campanha integracionista, a favor do voto dos negros, foram presos nove jovens negros sob pretextos vários.
INCIDENTES
Na segunda-feira, cinquenta e cinco negros e seis brancos tinham sido presos na mesma localidade. Em Tuscaloosa, quatro brancos foram expulsos de um restaurante de negros quando tentavam ser atendidos, enquanto outros negros não encontravam oposição em dois restaurantes da cidade, e conseguiam mesmo alugar um quarto num hotel "para brancos". Em Atlanta, o tribunal mandou comparecer um branco segregacionista, porque ameaçara os negros com um revólver, quando tentavam sentar-se no seu restaurante.
A violência estalava por toda a parte, os punhos fechavam-se e batiam na carne nos sítios mais sensíveis. Narizes partidos, dentes arrancados, fontes abertas, o sangue punha-se a correr suavemente, suavemente. A pele azulava-se sob os cacetes, os cabelos eram colados por um suor mau, e nalguns peitos os corações cediam, estremeciam doidamente. Na garganta apertada o ar já não passa; longos arrepios frios sobem a coluna vertebral, e parece que todo o corpo se torna mole, flácido, desossado. As pernas fraquejam, os braços não têm força, e no interior do crânio onde soam as pancadas, as ideias estão mortas, a máquina de ideias gira sobre si própria, fanaticamente no vazio; as histórias dos crimes são terríveis, porque nada mais tem razão. Os maxilares cerrados, os olhos extremamente móveis, grupos de homens circulam pelas ruas, empunhando bandeiras. Trapos nas janelas, lanços de muralhas altos como montanhas tapam o horizonte. É tudo um labirinto, tudo se transformou em sofrimento e confusão. Corpos, milhões de corpos estendidos na lama, descarnados, em charcos ensanguentados.
E deles rebenta uma floresta virgem que estrangula a terra e rasga as carnes; uma floresta de raízes vivas que mergulha profundamente no solo, e desprende em redor um enfadonho odor de sofrimento.
Os gritos estalam por toda a parte, cadenciam uma espécie de melopeia repugnante, um canto de agonia. Dir-se-ia que todas as gargantas arquejam em conjunto, e não se ouve senão o ruído das respirações que rastejam, raspam, ensopam o imenso fosso. O mundo termina num compartimento, não, num quarto, numa divisão enorme de janelas fechadas, o leito em desordem, onde os fatos foram abandonados em cima das cadeiras e reina um odor de dias de transpiração e cigarros, qualquer coisa como uma sala comum, um dormitório de hospital, em que arde, sem cessar, com raiva, uma luz baça e cinzenta, uma lâmpada eléctrica, suspensa na extremidade de um fio.
Em toda esta desordem, no meio deste ar envenenado, as palavras do jornal decompuseram-se e escreveram, duma só vez, numa grande folha branca, como num sonho, o seguinte:
Fora do meu crânio e de meus olhos
subiam lentas procissões de homens
loucos e os seus estandartes tremiam ao vento
como murros,
tendo escrito no pano rasgado
"CÓLERA".
Caminhavam em filas cerradas, compactas,
potentes como touros, e o suor
escorria-lhes pelas frontes.
Eram feios, mas pungentes.
A cidade inteira fugira diante deles,
abandonando brutalmente casas e barracas,
deixando em silêncio tudo o que pudesse estorvá-los.
Era sempre noite, e eles caminhavam
sem interrupção, virando e virando
nas ruelas vazias.
Os estandartes brancos tremiam por cima das suas
cabeças, levando escrito "CÓLERA"
e pareciam pesados navios em ruína esmagados em terríveis
esforços de naufrágios!
Puseram a noite inteira a morrer e apesar da força dos seus peitorais nodosos
caíam uns após os outros,
com o rosto nos regatos,
as mãos enfim abertas.
Os seus olhos estúpidos continuavam a fixar
uma espécie de dia problemático, um
pouco vergonhoso, que iluminava lentamente
o veludo negro dos esgotos.
Eis
eis porque eles morreram
eles morreram por vós.
E mais longe, mais tarde, estoutro texto, fixado no papel do jornal, inapagável, e no entanto fugaz, este miserável atentado, nu, sórdido, sempre presente no mundo, e em que se participa, pouco a pouco, sem acreditar nele, como prisioneiro da sua banheira. Sim, é verdadeiro, este acontecimento, este crime, esta pulsação ínfima que sobe dentro de si, que soa, que se repercute, que faz realmente mal, antes de secar e perecer sob a forma de palavras.
AMIENS. - Acusado de assassínio e de roubo com agravantes, Roger Boquillon, de 23 anos, trabalhador do campo em Outrebois, foi condenado a prisão perpétua pelo Supremo Tribunal de Justiça de Somme.
A 22 de Janeiro último, em Ham-Hardival, pequena localidade próxima de Doullens, a senhora Marthe Morei, de 73 anos, merceeira e vendedora de bebidas, foi assaltada por um cliente que acabava de pedir um copo de vinho. O assassino rasgou a garganta da septuagenária com um punhal e o corpo foi encontrado atrás do balcão, banhado num mar de sangue. O criminoso roubou o conteúdo da gaveta, uma pequena quantia entre 20 a 30 francos, e não procurou revistar a casa onde se encontraram, num armário, as economias de senhora Morei, um maço de notas com 20 000 francos.
Detido no dia seguinte, Boquillon não levantou dificuldades para confessar a sua malvadez, exclamando simplesmente que fora dominado pelo desejo de matar a velha.
Aqui está. As velhas são mortas assim, sem dificuldade; as suas vidas, num grito rouco e dilacerante, foram suprimidas num movimento brusco que caiu sobre elas como uma vaga. Deixaram a pele, a sua velha pele seca com que foram outrora jovens e belas. E ei-las entradas no mais fundo delas próprias, nesse buraco negro que toda a gente tem no fundo das entranhas; mergulhadas no silêncio, despojadas, despidas, aspiradas.
Uma espécie de estremecimento estranho subiu pelo corpo de Roch; sentado na cama, o jornal aberto nas mãos, não se mexeu mais. com os olhos abertos, olhando a direito na sua frente, para o lado do guarda-vestidos, deixou vir a onda quente e fria ao mesmo tempo, partida da planta dos pés, alcançando rapidamente os membros, levantando de passagem florestas de pêlos, rilhando a carne e a pele; chegada à altura do tórax, a onda tornou-se abanão, estendeu-se em múltiplas ramificações, amarrou o torso inteiro à maneira de tentáculo, mordeu, sugou, queimou como um ferro em brasa. Depois o arrepio atingiu a nuca e a cabeça; abriu em estrela, renovando sem cessar a sua explosão nervosa, triturando a vida de Roch, afastando os bocados uns dos outros, destruindo tendões e músculos, esquartejando, batendo os maxilares como um sismo; agora, já não era sangue que corria nas veias, mas lava em fusão, um verdadeiro soro de dragão que fazia rebentar tudo à sua passagem. Roch contraiu-se na cama, sentiu a dor espalhar-se; os dentes batiam-lhe.
O espasmo não durou muito tempo; três segundos ao todo, talvez menos. Roch achou-se deitado de lado, arquejante. O suor saltava-lhe das costas e do rosto. O jornal caíra no chão, junto da cama.
Espantado, Roch olhou o quarto, à sua volta; nada tinha mudado. As paredes continuavam cobertas com o mesmo revestimento amarelo sujo, as portas das janelas fechadas, a mesa no seu lugar, diante da janela, e a lâmpada eléctrica na extremidade do fio, sob o quebra-luz de folha-de-flandres. Os ruídos da loiça soavam ainda na cozinha, a alguns metros. E, lá fora, o sol continuava a deslizar na pintura escamosa das persianas, semelhante a uma enorme lesma fosforescente.
Roch soergueu-se e quis levantar-se. Uma estranha fraqueza apoderou-se subitamente dele e teve de se sentar. Inclinou-se e apanhou o jornal. Mas logo o abandonou sobre os lençóis, e procurou na mesa-de-cabeceira o maço de cigarros da mulher e os fósforos. Antes de tirar um cigarro, olhou para a embalagem de cartão; eram cigarros de mentol, Consulate, ou qualquer coisa no género. Fumou durante alguns segundos, mexendo-se o menos possível, depois chamou a mulher. Ela apareceu na moldura da porta, com um pano de loiça na mão esquerda e afastando uma madeixa de cabelos com a outra. Olhou para Roch e disse:
- O que há?
- Dá-me uma aspirina - respondeu Roch -; dói-me a cabeça. Ela desapareceu por uns momentos, depois voltou com uma aspirina e um copo de água. Roch bebeu muito depressa. Restituiu o copo.
- Dói-te a cabeça? - perguntou Élisabeth.
- Sim. Sinto arrepios - disse ele. - Devo ter apanhado frio.
- com este calor?
- Havia um pouco de vento na praia. Que horas são?
- Vai dar a meia hora em breve - respondeu Élisabeth.
Roch levantou-se e deu alguns passos. As forças tinham-lhe voltado. Espreguiçou-se.
- bom. vou para o escritório. A jovem tirou a bata.
- Também vou dar umas voltas - exclamou ela -; queres que eu te vá buscar à agência, às sete horas?
- Não, não, vem directamente para casa. Encontrar-te-ei aqui.
- Tens a certeza que não queres que eu te encontre na cidade?
- Não, mais vale que nos encontremos aqui. Não tenho a certeza da hora a que sairei do escritório.
- Como quiseres - disse Élisabeth.
Roch pegou num pente, penteou-se diante do guarda-vestidos e dirigiu-se para a porta.
- Até já - exclamou.
- Até já - respondeu Élisabeth.
Ele saiu. Na rua, junto ao edifício, hesitou um momento diante da bicicleta; depois decidiu ir a pé.
A quinhentos metros, os arrepios recomeçaram. Primeiro debilmente, aflorando-lhe a pele como um sopro de ar; depois cada vez mais brutalmente, cada vez mais profundamente, arrepiando-lhe a pele com uma série de mordeduras ferozes, sacudindo-lhe os nervos, abrindo-se em caos eléctricos, com raiva, queimaduras, suadelas, avançadas fulgurantes de picadas de vespas, subidas de calor no sangue, veneno também; Roch caminhou pelo passeio, hirto, à chapa do sol. O suor recomeçou a molhar-lhe a camisa nas costas e nas axilas. Não havia nada a fazer. Era preciso avançar apesar de tudo, o espírito alerta, pronto a resistir à menor fraqueza das pernas ou da coluna vertebral.
A rua estendia-se diante dele, absolutamente branca de luz. Os carros arrumados ao longo do passeio exalavam odores bizarros de pintura escaldante e pneus derretidos. Vinham transeuntes ao seu encontro, pesadamente, sofrendo ao longo das paredes. Num cruzamento, um polícia esperava no meio da calçada com a sombra comprimida aos pés. Giravam pombos junto dos charcos, as cabeças extremamente móveis, à procura de migalhas de pão caídas de uma toalha, lá de cima, dum terceiro andar. Nalguns sítios, o passeio fora reparado com alcatrão que se pegava às solas dos sapatos. E por cima dos cubos das casas, por cima dos tectos de telhas e de zinco aquecidos, o céu era vazio, azul.
Roch virou numa rua ladeada de castanheiros. Caminhou assim durante algum tempo, do lado da sombra; depois sentiu que lhe ia ser difícil ir mais longe. Estava encharcado em suor dos pés à cabeça, o sangue escaldava-lhe nas veias, e os maxilares batiam-lhe.
Procurou com o olhar uma fonte, viu uma do outro lado do passeio, ao sol, e atravessou. O corpo tremia-lhe; teve de se apoiar com uma das mãos na fonte, enquanto se debruçava e bebia água, a boca mesmo encostada ao orifício da torneira. Bebeu muito, mais de meio litro, provavelmente. Em seguida endireitou-se, entorpecido, e olhou à sua volta.
A paisagem da cidade continuava quente; mas agora era como se saltassem faíscas eléctricas de todos os lados. Enormes faíscas violáceas que brilhavam nos ângulos das paredes, nos rebordos do passeio, junto dos candeeiros, e nos troncos das árvores. Talvez se encontrasse no centro de uma tempestade magnética, numa tormenta invencível onde os relâmpagos eram empilhados sobre ele próprio, bolas de fogo encerradas nas suas gangas, prontas a explodir a cada segundo. O Sol, do alto do céu, bombardeara com os seus raios toda esta superfície de terra, penetrara-a com as suas flechas abrasadoras; também não se escapava facilmente à fúria dos elementos; os astros tinham declarado guerra à Terra, sem dúvida; o calor acumulara-se na matéria, assim, durante dias. E agora, tudo se tornara brasa e cinza, caminhava-se sobre um grande tapete de fogo que incubava. Um vento ligeiro, de nada, podia desencadear a cada momento o incêndio, fazer saltar as chamas altas como casas, derramar nas ruas torrentes de napalm, provocar a discórdia, ou melhor, dar o sinal de partida dum cataclismo infinito, duma explosão em que todas as coisas entrariam nelas próprias, se sumiriam, desaparecendo num abismo de violências encadeadas.
Roch, cambaleando junto da fonte, olhou o Sol com inquietação. Lá no alto, sozinha no espaço, a bola redonda era terrivelmente branca; flutuava no céu, corria, e esquisitos círculos concêntricos andavam à sua volta, indefinidamente, fugindo para a periferia como ondas. O solo oferecia-se sem defesa aos seus golpes, e a avalancha de luz caía com uma espécie de frenesim irreal. Tudo o que era plano na terra, todos os telhados e todos os terraços, as ruas, as placas dos esgotos, o mar, tudo era amachucado sem piedade. Dir-se-ia que os objectos se derretiam sob este olhar deslumbrante, que pouco a pouco se liquefaziam; alguns anos mais, alguns dias, algumas horas talvez, e o solo tornar-se-ia uma toalha gasosa, um vago vapor prateado que fumegaria lentamente, que se estenderia pelos lodaçais, subiria e depois perdia-se no espaço. Era isto, estava-se a transformar pouco a pouco em nebulosa. Roch cerrou as pálpebras, mas o astro cruel ficou a marcar-lhe as retinas, continuando a cavar um buraco escuro, como uma verruma, continuando a roer o véu de sangue, no fundo da cabeça.
Era isto, a doença quotidiana; a insolação de todos os dias. Os homens e as mulheres abrigavam-se como podiam nas suas cabanas, mas, por detrás das janelas, havia sempre a ideia deste ataque que soltava as velas sobre a cidade. Um calor de rachar penetrava nos interstícios da caliça, fazia estalar os recantos de pedra e argila. A terra gretava em todos os sentidos, as árvores eram empurradas do solo, lentamente, por esta respiração de monstro. Em nenhuma parte se estava abrigado. Mesmo no fundo das águas, nos esconderijos cheios de algas, as lampreias e as raias excitavam-se, rastejavam no lodo, à aproximação dum invisível inimigo. O seu planeta frio e quente já não era seguro, doravante. Girava à volta do Sol, no vazio, e os raios de luz deslocavam-no.
Esta luz, que trouxera a vida, trazia agora a morte nas suas ondas, e em breve, dentro de alguns séculos apenas, tudo acabaria. Era isso que tornava cada tufo de erva e cada bocado de animal tão inquietantes, tão fluidos. Nada ficaria deles, nem sequer um osso ou um destroço, para contar a sua breve e minúscula história. Roch pusera-se a caminhar outra vez no passeio, e os seus olhos contemplavam tanto quanto possível os mínimos pormenores. Os pedaços de madeira, as granulações das pedras, a pele luzidia das pinturas. Os automóveis eram belos, abrasados em pleno sol, reflectindo selvaticamente os prismas de luz. As árvores, do outro lado da rua, erguiam do meio do basalto os seus troncos enrugados e montes de folhas. Um gato andava de porta em porta, com gestos flexíveis de animal selvagem, imobilizando-se às vezes um quarto de segundo, depois continuava colando-se aos cantos da parede. Andorinhas fundiam-se entre os telhados. Algures, um homem forte, calvo, dirigia-se para o escritório, uma pasta de coiro pendurada na mão direita. Uma velhinha atravessava a rua sem olhar para nenhum lado, como uma surda, e deslocava-se com dificuldade no passeio da frente.
Roch seguia agora no centro da cidade. Uma fadiga nociva apoderara-se-lhe das pernas e dos ombros, e todas as articulações lhe doíam. O rosto escorria suor, mas ninguém prestava atenção, nem ele próprio; porque tudo, à sua volta, transpirava da mesma maneira. Os prédios, as montras, a calçada, eram apenas suor. O ar era também húmido, colava-se à garganta e ao interior dos pulmões como um fato molhado. Sozinho, o sol, perfeitamente seco, continuava a sua obra de desintegração. Frente a ele, a terra era uma verdadeira montanha de pele, sobre a qual as pessoas caminhavam como bichos; e esta pele expelia a sua água.
Foi assim que Roch chegou a um grande cruzamento, cujo centro era ocupado por uma praça. com uma dificuldade espantosa, atravessou a rua e foi sentar-se num banco, no meio da praça. Perto dele havia uma espécie de jardim infantil donde vinham gritos agudos. Roch ficou prostrado alguns momentos, o tempo para retomar fôlego. Mas não conseguia restabelecer o ritmo duma respiração normal. Para cúmulo, o coração, até ali desconhecido, revelou-se-lhe subitamente, batendo como um bruto no interior do peito.
Começaram a passar névoas diante dos olhos dele, sem parar; no passeio da frente, as casas curvaram-se lentamente, como agitadas por um vento furioso. E as pessoas deslocavam-se através de um écran líquido, torcidas, ondulatórias, colunas de homenzinhos negros feitos de arame. Roch dobrou-se sobre si mesmo, cruzando os braços à altura do estômago, para afastar a tempestade que passava por ele. Líquidos quentes tentavam subir-lhe à garganta, e era preciso engolir, continuamente. Os arrepios assaltavam-lhe agora todo o corpo; partiam de todos os lados ao mesmo tempo, dos pés, dos rins, da nuca, dos cabelos. As vagas cruzavam-se-lhe na pele, desciam, tornavam a subir, iam de um lado para o outro, perturbando tudo à sua passagem.
Roch consentia. Defendia-se de qualquer maneira, contraindo o diafragma, cerrando os maxilares, tentando aguentar, na medida do possível. Não devia afrouxar, senão tudo se tornaria vago e trémulo na pele; o rosto ir-se-ia em água, o nariz, os olhos, os ouvidos, os cabelos, tudo se desmoronaria, cairia em podridão, deixá-lo-ia como creme. Quanto aos braços e às pernas, tinha a certeza que lhe cairiam no chão, se cessasse de os manter pelo espaço de meio segundo.
As pessoas que passavam não duvidavam disso. Os seus corpos eram sólidos, os membros ágeis e musculosos. Tudo ia bem neles. Podiam ter o olhar em qualquer lado, deitar o olho às mulheres, espreitar as montras; nada os impedia de se arrastarem pelos passeios, o cérebro vazio, deliciosamente vivos. E no entanto, para considerar tudo, também eles conheceriam um dia esta ignomínia; os seus ligamentos tornar-se-iam moles, os ossos partir-se-iam como vidro, e a carne, a sua carne suculenta apodreceria, nos jazigos de família, nos mausoléus de falso mármore, com orquídeas de matéria plástica, e, escrita numa placa lapidada, qualquer coisa no género de
Étienne Albert Guigonis
nascido em 12 de Janeiro de 1893
chamado a Deus em 25 de Junho de 1961.
As pessoas passeavam tranquilamente nestas ruas, ao sol; deambulavam nas suas peles de velhos, mantinham erguidas as cabeças de mortos, balançavam molemente as tíbias e os cúbitos. Passeavam diante dos anúncios, entravam nas lojas, apalpavam tecidos, papéis. Fumavam, de pé, diante da paragem dos autocarros, os olhos ocultos por óculos opacos. As suas camisas e vestidos estavam molhados em meia lua debaixo dos braços. Os pés batiam fortemente no cimento do passeio, em ritmo regular: sussurros das solas dos homens, pancadas rápidas dos tacões das mulheres. Um padre de sotaina avançava energicamente no meio da calçada, prestes a atravessar a rua, de esguelha. Mais tarde, surgiria um carro de bombeiros à entrada da praça, e começaria a girar a uma velocidade louca perto dos passeios, ziguezagueando no meio dos automóveis, tocando a sirene. Num sítio qualquer, junto das colinas, estava a arder um bocado de jardim, por causa da imprudência de um garoto que queria queimar um punhado de folhas velhas. O vento soprava um pouco, e logo, diante do terraço, o fogo se espalhara alargando o seu círculo, rapidamente, com estrondos esquisitos. A palmeira começara a arder como uma tocha, espalhando pelo céu ondas de fumo negro, quando os bombeiros chegaram ao fundo da rua.
Roch ergueu-se e recomeçou a andar. Atravessou lentamente a praça, ladeando o jardim. Nos bancos, mulheres velhas com vestidos de Verão, algumas atacadas de papeira, viram-no passar. Na outra extremidade do passeio havia um vendedor de gelados fechado numa barraquita de madeira na qual estava escrito:
ERNEST, VENDEDOR DE GELADOS
Por cima do balcão, balançava uma tabuleta:
Sabores do dia:
ananás
limão
laranja
morango
baunilha
chocolate
amêndoa
moca
melão
tutti frutti
anis
Na barraca, o homem de óculos, calvo, olhou-o. Roch continuou a andar. Antes de se enfiar na rua, parou na borda do passeio; enquanto os carros desapareciam diante dele, espalhando nuvens de fumo cinzento, levantou a cabeça e olhou novamente para o sol; a bola branca continuava no seu lugar, muito alta no céu, maltratando a terra mais do que nunca. Não havia nenhum meio de lhe escapar. Podia-se correr até perder o fôlego, correr sobre a calçada escaldante até gastar os sapatos, podia-se correr descalço, cair, sangrar, não havia nada a fazer. O Sol estaria sempre lá, brilhando no ar com a regularidade duma lâmpada eléctrica. Iluminaria tudo, mostraria tudo, sem piedade. Podia-se mesmo tentar descer debaixo da terra, escapar-se, cobrir a cabeça com cinza e pó. Em vão. Ele continuaria lá. Enfiar-se no interior dum buraco húmido, no género dum túnel. Faria fresco. Faria noite. Talvez. Mas isso não impediria o Sol de continuar no seu lugar no céu, e a luz deslizaria no interior do subterrâneo, como uma serpente, segui-lo-ia por toda a parte, sem descanso, durante horas, dias, anos, até que ele caísse no chão, vencido. Perdera de antemão. As finas lâminas dos raios tinham-se-lhe enterrado na carne, e roíam a vida célula por célula. O mundo era um animal doente, uma espécie de enorme tumor canceroso, com efervescências de líquidos, manchas esbranquiçadas, derramamentos de pus, fantásticas germinações de peles mortas que rebentavam em todos os sentidos, que inchavam, que se pareciam cada vez mais com uma cabeleira. Era preciso ir-se embora, desaparecer para sempre da face do Sol.
Que seja sempre noite, nas cidades, nas montanhas; uma noite ligeira e magnífica, uma noite sem lua nem estrelas, sem nada que pudesse subir e brilhar na sombra, nada que pudesse descongelar as coisas. Uma escuridão absoluta, nem azul nem castanho, um negro de cego; em que todas as fontes de luz tivessem sido eliminadas, as chamas dos cigarros, os fósforos a arder. Em que todas estas luzes malévolas tivessem sido sopradas. Pisados, os relógios luminosos, os pirilampos, os faróis dos carros. Pisados com raiva, mortos à cacetada, atabafados sob edredões. Passar-se-iam meses assim, a liquidar os reflectores, a arrancar os olhos dos gatos, a demolir todas estas cintilações ignóbeis, que roem, que fazem mal. Estilhaçar-se-iam mesmo os espelhos, com receio de que eles captassem algum raio escapado e o repercutissem ao longe, tolamente. Quando não restasse na terra senão este reposteiro negro, cobrir-se-ia a cabeça com ele, e ficava-se bem.
Quando acabou de olhar para o Sol e de pensar em todas estas histórias extravagantes, Roch passou para a estrada e atravessou. Alcançou o passeio do lado oposto, virou à esquerda e seguiu uma espécie de avenida muito atravancada. Passou rente às paredes durante uns bons cinco minutos, até uma espécie de jardim de praça pública ocupado no centro por um outro jardim. Roch sabia que numa das extremidades havia uma fonte. Atravessou a rua, esteve prestes a ser esmagado por um triciclo para transporte de mercadorias, e procurou a fonte. Pôs-se a andar, ao acaso, pelas áleas do jardim, pelo chão coberto de saibro. Era como num labirinto; os caminhos tinham sido traçados, parecia, sem qualquer preocupação de perspectiva, e talvez mesmo com a intenção malévola de fazer perder a cabeça às velhas que se aventurassem por eles. Maciços de loureiro, e sebes de cipreste tapavam a vista de todos os lados, e às vezes, ao fim de uma série de curvas, escadas e caramanchãos caía-se num beco sem saída.
Como que rodeado por uma nuvem de calor e tumulto, Roch caminhava ao acaso através do jardim, à procura de água. A maior parte dos bancos estavam ocupados por velhas vestidas de luto, que falavam, tricotavam, liam ou não faziam nada, vendo-o passar; mas Roch não as via. Avançava contraído, furioso, todos os sentidos despertos para encontrar a fonte. Os caramanchãos sucediam-se, a luz branca, atravessando os buracos da folhagem, fazia poças no caminho saibroso. Gritos de pássaros espalhavam mistérios, junto do relvado e, num sítio qualquer da outra extremidade do jardim, crianças berravam periodicamente, como se as degolassem uma após outra. Quando não houvesse mais nenhuma, que paz seria! Roch continuou a atravessar o jardim, a virar no carreiro sinuoso. De repente ouviu o gluglu da água que corria; parou e tentou referenciar a direcção do barulho; parecia vir da direita. Roch enfiou-se por outro caminho, andando depressa. Subiu alguns degraus duma escadaria e contornou um cipreste. Ali, o carreiro entrava num caramanchão escuro e não ia mais longe. Roch penetrou na sombra, a testa escorrendo suor, e deteve-se à entrada do caramanchão. Na outra ponta da caverna, na sombra, um homem e uma mulher abraçavam-se com violência. Estavam sentados num banco, os corpos virados um para o outro, os braços enfiados dentro dos fatos, tendo a parte de cima dos bustos, os ombros, o peito e os rostos tão apertados que não se conseguia distinguir um do outro. Contraídos nesta pose, quase não se mexiam, salvo a cabeça do homem que ele sacudia por vezes no meio dos cabelos da mulher, e as pernas de ambos que raspavam o solo em todos os sentidos, e tinham por vezes movimentos bruscos no género de reflexos de galvanismo. Roch contemplou-os um momento, de pé, à entrada do caramanchão. Não sentiu a frescura das folhas, como um tecto por cima da sua cabeça, nem o doce perfume das flores escondidas. Não ouviu a respiração rápida dos dois amantes, nem o rumor da cidade que chegava até ali, debilmente, com intervalos. Para ele o espaço daquele caramanchão tornara-se qualquer coisa como o inferno, uma cabina sufocante e suja, onde tudo fervia com um calor maligno, cheirava a suor, um bafo fedorento, e um estranho ruído monocórdico vibrava continuamente no ar, como uma sirene, um barulho intolerável que penetrava nos ouvidos e se instalava no corpo inteiro, incomodava os órgãos, enchia o estômago de ácido, fazia bater o coração a uma cadência louca.
Roch sentiu um desgosto inexprimível invadi-lo; e, no entanto, não conseguia desviar o olhar das duas silhuetas coladas. Estava de certa maneira mergulhado naquele visco como uma mosca, e o ar, tornado subitamente espesso, paralisava-lhe os membros.
O homem viu-o por fim e endireitou-se no banco; a mulher virou a cabeça para o lado dele, abriu a boca e disse qualquer coisa.
Ficaram assim um ou dois segundos, sem falar, depois o homem levantou-se e foi direito a Roch.
- Isto interessa-lhe? - perguntou.
- Eu... - disse Roch.
A mulher levantou-se também e agarrou no braço do homem.
- Anda, vamos embora.
- Nunca - respondeu o outro; chegou-se muito perto de Roch.
- Perguntei-lhe se isto lhe interessa - repetiu.
Roch tentou falar; o homem deu-lhe um encontrão e ele cambaleou.
- O que é que isto quer dizer, vir espiar as pessoas desta maneira?
- Peço-te - disse a mulher -, vamo-nos embora. Peço-te.
- Então? Não ouviu? - gritou o homem. - Desapareça imediatamente, senão...
Roch deu um passo para trás. Mas os olhos dele não conseguiam desviar-se do sítio muito quente, no fundo da sombra, onde o homem e a mulher tinham estado sentados. Bruscamente a cólera subiu-lhe pelo corpo, e uma espécie de loucura apoderou-se-lhe do espírito. Como o homem voltasse à carga, gritando cada vez mais: "Vai desaparecer, ou não?", enquanto a mulher o agarrava pela manga da camisa dizendo: "Peço-te, peço-te", Roch saltou para a frente. As suas mãos agarraram o homem pela garganta e crisparam-se furiosamente; depois começaram a bater com raiva, ao acaso, na face, no pescoço, no ventre. Caíram ambos no chão, debatendo-se no saibro. O homem defendia-se mal e, depois de ter recebido uma série de murros no nariz, começou a sangrar. Roch continuou a bater-lhe selvaticamente. Deixava escapar gritos incoerentes entre os dentes cerrados: "Ha, ha! Toma! Doente! Estou doente! Estou doente! Há! Percebes! Não há direito! Estou doente! Não há direito! Ha! Ha!" Sentiu a mulher a puxá-lo pelos cabelos, gritando com voz histérica: "Basta! Basta! Deixe-o! Deixe-o!", mas ele empurrou-a com um pontapé. Ao fim de alguns segundos, a luta terminou. Roch ergueu-se, com ar idiota, e olhou para o adversário que rastejava pelo chão; o homem tinha a camisa rasgada, perto do pescoço, as calças brancas estavam sujas de pó, os cabelos despenteados, e sangrava do nariz. O próprio Roch estava num estado lastimoso. Os botões da camisa tinham sido arrancados e, ao passar a mão pela boca, viu que tinha o lábio inferior aberto. Contemplou uma vez mais o caramanchão, depois foi-se embora sem escutar a mulher que o injuriava. Tornou a descer o caminho e perdeu-se no interior do jardim.
Um pouco mais longe encontrou a fonte; lavou as mãos e a cara, antes de beber. Em seguida sentou-se num banco, à sombra de um plátano, e descansou fumando um cigarro.
Só mais tarde, pelas quatro e meia, cinco horas, é que pensou no trabalho. Abandonou o banco, saiu do jardim, e voltou para a cidade. O calor continuava intenso, e o sol não parecia ter mudado de lugar. Nas ruas, a circulação dos automóveis era lenta, difícil. As buzinas dos carros elevavam-se no ar um pouco por toda a parte, e as carroçarias multicolores brilhavam. Nas caixas de metal, os condutores tinham a testa cheia de suor, e os termómetros deviam indicar qualquer coisa como 33?. Nos terraços dos cafés as pessoas esparramadas em cadeiras de matéria plástica bebiam cerveja. Ali, e noutros lugares ainda, voavam moscas rente ao chão, pousando nos braços, nos pés metidos nas sandálias. Nos quartos de hotel, faziam-lhes caça, pacientemente, com um prospecto dobrado na mão. De tempos a tempos, o prospecto caía com um estalo sobre uma mesa ou num lençol, e o animalzinho morria esborrachado, só de uma pancada. Nunca mais voaria sobre os crânios calvos, nunca mais andaria nos pés suados, nunca mais procuraria manchas de café com leite açucarado, nunca mais dormiria ao contrário no tecto, nunca mais se deixaria embalar pelo vento, agarrada a uma lâmpada eléctrica. Tudo isto acabara; terminara a sua vida de mosca. Nunca mais teria direito a nada, nem a campa, nem a epitáfio, nem mesmo a uma recordação. Viriam imediatamente outras moscas, em vez dela, zumbir junto às orelhas das pessoas sérias, comer nos montes de imundícies, e fazer brilhar de cobiça os olhos das aranhas. Mas elas não estavam sós. Sob os pés de Roch a rua vibrava com uma esquisita vida subterrânea. Todos se agitavam no seio das profundidades, animaizinhos escondidos, bactérias e micróbios, parasitas; dir-se-ia que tudo ondulava desesperadamente, no ar, no solo, na água; era no género de uma vida confusa, misteriosa, ligeira e breve como a das moscas, que inchava toda a superfície do mundo. As coisas segregavam, sem parar, deixavam correr líquidos escaldantes. Havia glândulas por toda a parte, bolhas invisíveis que ferviam no mais profundo da matéria. O passeio, as paredes, o céu, a pele das pessoas eram verdadeiros órgãos, parcelas vivas que estremeciam cada uma por si, tomadas pela curiosa doença. É claro que os mortos não faltavam; mas nunca eram mortos definitivos. Eram apenas descamações, desgastes de células que deixavam arrastar o refugo. E do fundo destas matérias abandonadas nasciam incessantemente larvas, cachos de ovos fermentavam tranquilamente ao calor, ameaçavam, ameaçavam, saíam da inércia, e recomeçavam a conquista do mundo com mordidelas ínfimas, pruridos de patas e mandíbulas, rilhaduras ferozes. Tal como Roch, deambulava-se com lentidão através dum mundo para comer, transportava-se consigo, sem saber, todo o peso fatal deste povo miúdo esfaimado de vida. Eram gafanhotos escondidos na erva, que arrastavam milhares de formigas, milímetro após milímetro, até à sua toca; sim, como eles, como todos eles, era-se habitado, dominado, roído até aos ossos.
Quase sem se dar conta, Roch enfiou-se numa avenida larga. De cada lado dos passeios, as casas eram altas, regulares, cheias de varandas e de portões de garagens. Seguiam em linha recta até ao fundo da cidade, onde se erguia uma montanha em forma de vulcão. Roch andou durante alguns minutos, ao sol, no passeio da esquerda; depois atravessou e passou para o lado da sombra. Quando chegou por alturas do nº 66, parou debaixo dum plátano. Do outro lado da rua, entre uma livraria e um antiquário, havia uma loja grande, clara, de montras gigantes, na qual estava escrito em letras de néon:
TRANSTOURISME
No fundo das montras tinham pregado cartazes coloridos uns ao lado dos outros, no género de "visite Portugal" "a Espanha ardente e mística", "México terra dos Deuses", "A jovem Escandinávia", etc...
A porta da entrada estava escancarada, e distinguia-se o modelo de um avião em cima de uma peanha, no átrio. Na sala, as secretárias estavam dispostas em semicírculo, e homens e mulheres afadigavam-se em todos os sentidos, sem olhar para fora. Roch, meio escondido atrás do plátano, observou durante muito tempo o estabelecimento. Olhou os cartazes, uns após outros, as maravilhosas paisagens de mar ou de montanha nas quais se podia entrar à vontade para esquecer o mundo. Circulou assim através de uma praia branca ladeada por um mar azul, onde uma bonita rapariga loira, de corpo bronzeado e em biquini, fazia sempre o mesmo gesto com o braço, como para dizer adeus a alguém que não se via. Depois andou à volta de um castelo medieval, empoleirado no alto de uma colina de abetos negros; uma bruma branca envolvia o burgo sinistro, e os cimos nevados estavam imóveis no horizonte, eram uma muralha cor-de-rosa e cinzenta. No céu viam-se suspensas letras negras: Werfen (Salzburg), Õsterreich. Algures, uma aldeia minúscula metida numa enseada secava ao sol; Roch caminhou por um atalho, ao longo de uma costa denteada. Estendeu-se num tapete de caruma e contemplou os perfis das rochas que saíam muito escuras da água violeta. Isto podia-se passar na Grécia, na Turquia, ou até na Jugoslávia.
Roch penetrou no interior de todos os desenhos. Passeou ao longo das margens, subiu degraus de escadarias em aldeias cheias de luz, em Capri ou na Sardenha. Desceu desfiladeiros, atravessou caminhos escavados em Guernesey, rolou em jipes através dos desertos, na Líbia.
Em Constantinopla viu o Bósforo, e em Tenerife o vulcão. Depois, quando se fartou de tudo isto, das Estradas dos Gigantes e dos Templos do Sol, entrou nos modelos de barcos e aviões, à ponta da montra. Terminou a sua excursão num Boeing miniatura da entrada.
Entravam e saíam pessoas continuamente; mulheres de cor carmesim com vestidos vistosos e homens com máquinas fotográficas. Lá dentro, por trás da linha de secretárias, o trabalho não parava. As máquinas de escrever tilintavam, o ruído do calçado andava de um lado para o outro. De vez em quando um telefone tocava; o barulho da campainha invadia toda a superfície do bali, repetindo-se cinco ou seis vezes. Uma mão pegava no telefone e as vozes começavam a fanhosear. No tecto, um ventilador de pás largas cortava o ar em silêncio, dissipando as volutas de fumo dos cigarros. Tudo isto era trabalho; era agitação inútil, imbecil, espécie de comédia triste que se representava no fundo das casamatas. As pessoas viviam ali, amontoadas, presas pelos rumores e pelas pancadas, sem pensarem em nada. Esqueciam os pormenores. Não viam a poeira nem as moscas, não se ocupavam das ligeiras perturbações que vinham lentamente, do mais fundo deles próprios, lembrar-lhes quem eram. Tinham-no esquecido também a ele, Roch; o lugar que ocupava todos os dias, na secretária das informações, estava vazio, mas não tinha importância. Continuavam a trabalhar, a mexer os lábios, a folhear os anuários e os livros de contas, sem pensarem em nada, sem duvidarem de nada; sem saberem que o tempo passava, rápido, muito rápido, segundo após segundo e que se aproximavam imperceptivelmente do nada, da morte. Umas centenas de dias, não mais, e cada um deles se desmoronaria sobre si próprio, no velho leito manchado, e começaria a perder a respiração. Todos eles, sem excepção, Grangier, Michel, Vanori, Butterworth, Honier, Arnassian, Berg, Dufour. Nada os preservaria, nem os óculos de tartaruga, nem os cabelos perfumados, nem a banha dos ventres. Em breve deslizariam para o fundo da impotência, sem nada terem percebido. Tentariam agarrar-se a restos, mas na hora própria tudo lhes faltaria. Não conseguiriam agarrar senão gangrena, e os dedos só poderiam deter bocados de morte.
Eis no que se tornara este escritório: numa espécie de morgue cheia de ruídos e de movimentos, uma cave sufocante, uma estufa de podridão. Roch sentiu novamente a ira invadi-lo. Na sua nuvem dolorosa concebeu injúrias e maldições por cada centímetro do escritório. Quis gritar mas nada lhe saiu da garganta seca, apenas estertores difíceis.
Inclinou-se então sobre o passeio, apoiou-se no tronco do plátano, e apanhou uma pedra grande que estava junto das raízes; conservou-a um momento na mão, deixou passar dois carros e foi colocar-se em frente da casa. Tentou falar outra vez mas em vão. Fixou com um olhar duro o vidro da montra, pensou "doente, doente, doente", e atirou o calhau com toda a força. Quando o vidro voou em estilhaços e só se via por cima dos cartazes TRANSTOU ISME, Roch desatou a correr ao longo da avenida.
Atravessou outra vez toda a cidade, todo esse dédalo sonoro cheio de dor e estremecimentos, essa espécie de abrigo de betão, asfixiante e sujo onde os corredores partiam em todas as direcções, para melhor vos enganarem, onde os quartos se pareciam todos uns com os outros, com as seteiras finas e os cantos escuros, onde se cruzavam perto do betão armado pesados odores de coisas estagnadas e de excrementos.
com o coração a bater muito depressa à medida que se deslocava para casa, Roch pensava no momento agradável em que abriria a porta do apartamento, em que encontraria imediatamente a frescura e a calma, o leito, o rosto da mulher, a mesa da cozinha, e a torneira de metal que encheria lentamente um grande copo de água.
Élisabeth falar-lhe-ia com a voz um pouco grave, afastaria aquela madeixa de cabelos que lhe caía sempre para a testa, quando se inclinava, e ele olhá-la-ia durante muito tempo, bebê-la-ia com os olhos, tocar-lhe-ia na pele: valia a pena, sem dúvida alguma, ter errado daquela maneira através das ruas da cidade, ardendo em arrepios, ter lutado com um imbecil, debaixo do caramanchão, e ter partido a montra da TRANSTOURISME, mostrando-se bem para que fosse despedido.
Quando avistou a casa, Roch atirou-se para a frente precipitadamente; não viu nada, nem a velha com quem se cruzava todas as tardes na escada trazendo o caixote de lixo, nem a bicicleta encostada à parede quente, a dois passos da porta. Acometeu impetuosamente, subiu os andares e entrou em casa.
Naturalmente, nada se passou como previra: o estreito apartamento estava deserto, numa penumbra humedecida, com qualquer coisa de imundo e vetusto nas paredes e nos tectos. Élisabeth não estava. A cama por fazer, como quando partira, os cinzeiros cheios a transbordar, e o jornal espalhado pelo chão, folha a folha. A porta da cozinha estava aberta, e Roch viu na pia de pedra um monte de pratos e caçarolas a escorrerem. As persianas fechadas em todos os lados e o sol escorria sempre em todas as fendas, babando-se como uma lesma enorme. Desanimado, Roch deixou-se cair na cama e fechou os olhos. As orelhas chiavam-lhe. Os braços e as pernas tinham cansaços esquisitos, simultaneamente cócegas e dores, não percebia bem. E na cabeça, os olhos fechados, subiam coisas regularmente, no género de mãos em que cada dedo terminasse por bolhas. Roch não esperou por nada.
Na outra extremidade da cidade, à chapa do sol e no meio do barulho, Élisabeth caminhava na borda do passeio. Andava rapidamente, balançando na mão esquerda um saco de pano com riscas vermelhas e amarelas. O vestido verde, apertado, fazia pregas de cada lado das ancas, alternadamente, e braceletes em marfim, ou em matéria plástica, entrechocavam-se a cada movimento do pulso direito produzindo um barulho exactamente igual ao dum lápis a cair no chão. Nos pés levava sandálias douradas, estilo italiano, cujos calcanhares batiam no passeio. Os cabelos atirados para trás flutuavam-lhe sobre as omoplatas. Assim vestida, caminhava rapidamente no passeio, no meio das reverberações do sol. Não olhava para ninguém, excepto, uma vez por outra, numa olhadela furtiva, para qualquer coxo ou cego que caminhasse na sua direcção. Olhava-o disfarçadamente, apenas um quarto de segundo, fixando sem hesitar as pupilas verdes no ponto fraco e na enfermidade; depois desviava os olhos, e mudava imperceptivelmente a marcha a fim de não ir de encontro ao obstáculo. Passava rapidamente diante dos cafés e das portas das garagens, os pés batendo cadenciadamente o macadame, a boca entreaberta para respirar. Durante momentos uma montra enorme, azulada, reflectiu-lhe o perfil, o esbelto corpo dobrado para a frente, devido ao andar. Enquanto passava pela montra, virava a cabeça para a esquerda e olhava apressadamente. E o vidro, onde havia tantas coisas, só lhe mostrava a sombra transparente, incolor, como uma fotografia em movimento que tivesse o seu nome: Élisabeth Esteve. Às vezes havia um espelho verdadeiro pregado numa coluna, junto dum quiosque de tabacos, e ela via-se então vir de longe, rosto, mãos e pernas muito pálidas sobre um fundo de céu cor-de-rosa. Homens viam-na também vir, encostados a portas de casas, com as faces cansadas e os olhos pensativos. Ela não os olhava, mas no fundo sabia que passava através deles, muito simplesmente, sem encontrões.
Depois de ela passar, eles continuavam lá, observando-a pelas costas, sem pensarem em nada; e ela esquecia-os. Élisabeth subiu a avenida principal, ao longo das lojas; um pouco antes do fim, entrou numa boutique e comprou um bocado de tecido. Examinou os rolos de pano uns após outros.
- Queria qualquer coisa mais clara, enfim, que seja menos escuro que este - disse ela à vendedora. Esta, uma mulher corpulenta, duns sessenta anos, com os cabelos pintados de ruivo, puxou com dificuldade outro rolo.
- Como este, menina?
- Não, esse é muito vivo - respondeu Élisabeth -; a cor não me interessa muito, mas queria que fosse mais claro. Não, ervilha, não, uma cor mais discreta. Não tem um como esse, mas mais claro?
- Temos o mesmo, estampado em azul-claro, mas é em tergal.
- É para uma blusa - disse Élisabeth -, preferia em algodão.
- E este, menina, é muito bonito e muito juvenil, como vê.
- É tudo o que têm?
- Também temos em nylon.
- Não, não, em algodão.
- Em algodão, é tudo o que temos - respondeu a vendedora.
- E a como é o metro?
- A oito francos.
- E este?
- O cor-de-rosa?
- Sim.
- É o mesmo preço.
- Bem, então dê-me deste.
- E quanto corto?
- Não sei bem, penso que um metro e dez deve chegar.
- Tenciona fazer gola?
- Não, é sem gola.
- E sem mangas?
- Claro, sem mangas. Quanto pensa que é preciso?
- Penso que um metro e dez é mais do que suficiente, se não fizer gola.
- Não, não faço gola.
- Então, um metro e dez.
A mulher tirou o tecido, mediu, cortou. Depois afastou-se exclamando por cima do ombro:
- É favor pagar na caixa, menina.
Dois minutos mais tarde, Élisabeth saiu da loja com um embrulho de papel. No embrulho estava impresso: FLORALIES TECIDOS; e no fundo do embrulho, o bocado de tecido macio, azul-claro com estrelas cinzentas, dormia dobrado sobre si mesmo, como uma alforreca.
Um pouco mais longe entrou numa salsicharia e comprou coisas para comer e um pacote de chips. O tempo passava depressa à sua volta; cada minuto desaparecia sem histórias, com uma sucessão de gestos e palavras: caminhar pelo passeio - ver as montras com sapatos
- mudar o saco de mão - "desculpe..." - entrar na padaria - comprar pão fino - 100 gramas de bolinhos com sal - "quanto é?" "obrigado, minha senhora, adeus, minha senhora" - campainha da porta - pôr o embrulho no saco - parar e coçar o tornozelo esquerdo com o calcanhar direito - pôr os óculos escuros - "desculpe..." olhar para o sol e espirrar - esperar diante do sinal vermelho - comprar a revista - ver o cartaz do cinema - A Prisioneira do Deserto, John Ford - andar, andar - farmácia: um frasco de rhinamide e uma caixa de aspirinas - atravessar a rua - Unipreço: ganchos para o cabelo, sabonete, papel de carta e envelopes.
Élisabeth passeava rapidamente por todas as ruas no meio dos movimentos ondulantes da multidão. Caminhava ao lado de mulheres e crianças, de homens, velhos; o seu corpo flexível mexia-se no interior do vestido verde, o peito elevava-se e baixava regularmente, conforme o ritmo da respiração, e os rins curvados transpiravam-lhe; ora ocultos pelos óculos escuros, ora visíveis, os seus olhos verdes reflectiam todos os quadrados minúsculos da paisagem da cidade. Pelas pupilas passavam-lhe carros vermelhos que se curvavam, como se as carroçarias tivessem sido amolecidas pela camada das lágrimas, e sombras negras, aquáticas, surgiam e desapareciam imediatamente. Nas boutiques as ventoinhas faziam-lhe mover os cabelos pretos, e os soalhos de linóleo ficavam com a marca incrustada dos saltos finos como se fossem tenazes. Às vezes um homem seguia-a durante alguns momentos, e, depois de tê-la olhado bem, ia-se embora; ou então abordava-a. Falava-lhe alguns segundos, caminhando a seu lado, dizendo-lhe em voz baixa coisas no género de:
- A menina anda a passear?
- Como é que se chama?
- Quer vir dar uma volta de carro comigo?
- A menina, não é italiana? Ragazza? Ragazza?
Mas ela continuava sempre em frente sem sequer olhar. E o homem perdia-se outra vez na massa das pessoas, em qualquer parte atrás dela.
Mais tarde, muito mais tarde, quando o Sol começava a desaparecer do outro lado das casas, depois de horas de andamento e passeio, Élisabeth sentou-se na esplanada dum café para contar o dinheiro que lhe restava. Pediu uma limonada, tirou o porta-moedas do saco e retirou as notas e as moedas. Ali estavam elas, espalhadas na palma da mão, bocados de papel imundos e odorantes, com um homem de chino a escrever em frente dum cenário representando uma construção e um rio. Em cima, estava escrito: BANQUE DE FRANGE, 0059807112; DIX FRANCS, e, em baixo: 67112 B.10-10-1963.B. Z.24; e do outro lado, em pequenos caracteres, via-se:
O ARTIGO 139 DO CÓDIGO PENAL PUNE com PRISÃO PERPÉTUA OS QUE IMITAREM OU FALSIFICAREM AS NOTAS AUTORIZADAS PELA LEI, ASSIM COMO AQUELES QUE FIZEREM USO DESTAS NOTAS IMITADAS OU FALSIFICADAS. OS QUE AS INTRODUZIREM EM FRANÇA SÃO PUNIDOS com A MESMA PENA
Noutra nota, esta menos suja, via-se um homem de rosto redondo e olhar inquieto, que olhava para a esquerda em frente dum arco de triunfo, e à direita diante duma cúpula. Sobre um fundo amarelo-pálido, havia por toda a parte folhas de loureiro, liras, rosáceas, frutos e várias flores. Por baixo do número 100 NF, viam-se três assinaturas; o controlador geral: ilegível. O tesoureiro geral: ilegível. O secretário-geral: ilegível.
Ali estavam desamarrotados na palma da mão, aqueles pedaços de papel sarapintado; desenhos ingénuos com cores ternas, com aquelas garatujas e aqueles algarismos. Podia-se fazer deles o que se quisesse, queimá-los, rasgá-los, ou muito simplesmente fazê-los em bolinhas. Não eram nada, e no entanto havia uma força tranquila que emanava deles; um odor familiar, rançoso, mas qualquer coisa como um sinal de respeito. Em frente das paisagens de Épinal os velhos de peruca olhavam com ironia, com manha. Estavam bem no seu mundo desenhado, tinham calor, estavam saciados, as mulheres não lhes faltavam com certeza, e, além disso, sabiam-no. Élisabeth olhou à transparência o perfil do velho; a luz revelou-lhe um fantasma de crânio em desordem, com um gorro, um rosto visto a três quartos que parecia o dum velho indiano. Presa na sua prisão aureolada, a face troçava ligeiramente, e nada podia contradizê-la; estaria sempre ali, tanto para os frangos assados como para os quilos de batatas, impenetrável, eficaz, quase triste.
Havia também as moedas: bocados de metal mais ou menos claro, rodelas douradas, outras em níquel, que não eram maiores que botões de punho. com desenhos, pequenos sinais particulares marcados nas duas faces; mulheres de cabelos flutuantes, pavoneando-se ao vento, caminhavam ao nascer ou ao pôr do Sol, não se sabia bem. O punho estendido para trás parecia congelá-los numa espécie de equilíbrio sereno, que nada viria perturbar. Do outro lado, um ramo de árvore, de loureiro, ou talvez de oliveira, saía fora do É final de FRATERNITÉ. Havia ainda outras moedas, amarelas, com uma cabeça de mulher vista de perfil; o uso polira o metal nas fontes, nas faces e na parte da frente do pescoço, e uma espécie de sombra modelava agora a cabeça, à volta dos olhos e das narinas, como se houvesse realmente osso debaixo da pele, e que uma lâmpada eléctrica brilhasse em qualquer parte, fora da moeda. Nos pontinhos do rosto, a porcaria devia acumular-se todos os dias ao contacto dos dedos e das algibeiras e os micróbios deviam viver aí aos milhões, completamente à vontade. Outras moedas tinham vivido, como aquelas, o seu tempo nas mãos dos homens. Os que as manusearam estavam mortos há anos, e as pontas de metal de redondo tinham desaparecido com eles, não importa onde, enterradas na terra, perdidas nas gavetas, acumuladas em velhas caixas de nogado. Tinham suado nas mesas, comprado vinho ou tecidos, pago mercadorias e gratificado mendigos à porta das igrejas. Os seus tinidos estavam esquecidos, e manchas de lepra esverdeada tinham-se agarrado aos desenhos moldados no metal. Atrás da cabeça de um rei bigodaças e barbudo, uma mulher com um boné em forma de capacete, sentada num monte incompreensível, segurava na mão esquerda um tridente. Todo o resto estava apagado, achatado, excepto um número, colocado em baixo: 1912. Estavam partidos, as pontas da moeda escurecidas, esbranquiçadas, cor de terra; machados de dois gumes, semideuses de perfil vertical, abelhas, palavras estranhas e insignificantes: Suomen Tasavalta. 5 Markaa. Por baixo da porca amamentando os filhos, estava escrito: Saorstãt éireann. In God We Trust. 1926. In Pluribus Unum. ONE CENT. United States of America. Umberto I ré d'Italia. Juliana Koningin Der Nederlanden. E numa larga moeda escura, suave de tocar à força de ser polida, fora duma espécie de nuvem de usura aparecia subitamente a forma terrível duma águia de asas abertas, cujas patas enormes continuavam tal como tinham sido feitas, esmagadoras, monumentais, duas verdadeiras colunas de penas sustentando um templo coberto pelo fumo de um incêndio.
Não eram nada; tinham sido criadas para aquilo; para desaparecerem um dia, para serem levadas, enterradas, afundadas pelo tempo.
Para que não restasse delas senão fragmentos de sinais, bocados de nariz e queixo, datas mutiladas. Tinham para os vivos que as apertavam nas suas bolsas sons e formas de morte; algo de pobre e de desfeito, que contava o número das suas idades e lhes dizia que também eles precisavam de passar. Havia muito tempo que estes bocados de metal caminhavam para o domínio doce da usura. As moedas de bronze, com a dupla cabeça de Jano, de um lado, do outro uma proa de navio, as dracmas, as moedas de ouro de 60 sestércios contendo nas pequenas gaiolas redondas uma águia que parecia querer voar, as imperiais gregas feitas em Cizico com a efígie de Vespasiano, as de ouro mostrando a cabeça de Augusto a sorrir, tendo escrito, dum lado Caesar, do outro Augustus, os dinheiros de Bruto e de Cássio, as libras dos Oscos, tudo isso acabara há séculos. Apostara-se com esses bocados de ferro e de bronze, fora-se rico, tivera-se casas, escravos, gado, por causa deles tinham-se feito guerras, assassinado homens. Agora eram ossos, ruínas. Não valia a pena que se falasse disso.
Na esplanada do café as pessoas tinham mudado. Outras haviam ocupado as mesas e bebiam tranquilamente as suas bebidas; cervejas, xaropes, limonadas, conversando ou olhando. Por trás, vindo do fundo da sala, um ruído vago de música misturava-se aos ruídos da circulação e do passeio. Em vários sítios, homens e mulheres fumavam cigarros, e os odores do fumo espalhavam-se seguindo mesmo as correntes de ar. Podia-se experimentar reconhecê-los ao passarem, aqui tabaco da Virgínia, ali Peter Stuyvescmt, ou Camel, acolá Gitanes com filtro; Élisabeth, direita na cadeira, tirou do saco um espelhinho e um bâton e pintou-se com cuidado. Do outro lado da rua, em frente ao café, viu, ao erguer os olhos, um homem debruçado num balcão a olhar para o chão. Tinha os dois braços apoiados na balaustrada de ferro forjado, e a cabeça inclinada para a frente, sem receio das telhas que podia receber na nuca, assim oferecida, de um momento para o outro. Mais tarde, uma mulher nova, grávida, com o vestido em farrapos, pôs-se a pedir pelas mesas do café. Parou em frente de Élisabeth, e olhou-a com dois olhos carbunculosos que brilhavam no meio do rosto sujo; depois estendeu um braço magro, onde se viam as veias, e na ponta do braço havia uma mão aberta, com suor que brilhava na palma. Da ponta dos lábios, saiu-lhe qualquer coisa de incompreensível, devia ser, "por favor, é para o bebé", e esperou. Élisabeth tirou uma das moedas de há pouco e colocou-lha na mão. A mendiga fechou-a e passou maquinalmente à mesa seguinte. Havia pessoas que recusavam com um aceno de cabeça, outras que desviavam o olhar, ou que se punham a ler o jornal. Após alguns segundos, a mulher grávida ia-se embora sem dizer nada, e parecia que um verdadeiro turbilhão de indigência e porcaria partira finalmente. Em qualquer parte dos confins da cidade, junto da fábrica de gás ou do depósito de esgotos, havia um sítio onde o turbilhão não podia ir mais longe. Instalara-se com os filhos e cães sarnosos, em cabanas de chapa, e reinava aí, reinava aí todo o tempo.
Élisabeth bebeu o resto da limonada, cerrando os dentes para não engolir os caroços; com a colher apanhou o açúcar e comeu-o. Quando colocou o copo pegou no talão e leu o preço: 1,50 serviço incluído
- tip included. Revirou a ponta do papel entre os dedos até transformá-lo numa espécie de cilindro. Em seguida desdobrou-o e pô-lo em cima da mesa, calcando-o com o cinzeiro para que não voasse.
Pouco antes de Élisabeth se levantar e partir, um homem sentou-se na mesa vizinha, à sua direita. Pediu um café, fumou durante alguns momentos, olhando em frente por detrás dos óculos. De repente, voltou-se para Élisabeth e disse-lhe:
- Gosta de pintura?
Élisabeth olhou-o, surpreendida. Ele repetiu:
- Não tem nada contra o desenho, pois não?
- Ah!... Não, mas... - disse Élisabeth.
- Chamo-me Tobias - continuou o homem -; sou pintor. Quero fazer o seu retrato.
E sem esperar, tirou duma pasta de cartão um bloco de papel e um lápis de carvão e começou a trabalhar. Élisabeth quis protestar:
- Mas eu não quero, porquê o meu retrato?
O homem não respondeu; debruçado sobre a folha de papel, fazia grandes traços com o carvão; a atenção contraía-lhe a fronte e as sobrancelhas. Ao fim de alguns segundos, ergueu a cabeça e olhou a face esquerda de Élisabeth.
- Não leva muito tempo.
- É que tenho de partir - exclamou Élisabeth. Tobias olhou-a com autoridade.
- Dentro de cinco minutos acabo. Ainda tem cinco minutos? Continuou o trabalho, a cabeça caída sobre a folha de papel;
a transpiração colando-lhe os cabelos na testa. De vez em quando, erguia os olhos, sem nada dizer, e formavam-se-lhe rugas por cima das sobrancelhas, como que traçadas a canivete. Olhava então intensamente uma parte do rosto de Élisabeth, o nariz, o queixo, a boca, ou então o cavado em forma de canal, entre as narinas e o lábio superior. Tornava a deixar cair a cabeça no papel e desenhava o que vira. Todas as vezes que ela era olhada assim, sentia-se derreter, tornar transparente, flutuando no ar, vazia de toda a carne, ossos e substância. Só lhe restava a pele, fina película cheia de gás carbónico, e que oscilava ao vento. O homem falou com frases curtas.
- Não gosta disto? - perguntou.
- Não - respondeu Élisabeth.
- Porquê?
- Porque não gosto que olhem para mim. O homem soltou um risinho de escárnio.
- As mulheres gostam que olhem para elas. Mas não gostam que
as encarem.
- Você é daqui? - perguntou Élisabeth.
- Não, não sou daqui. Sou inglês - respondeu Tobias -, e judeu.
Observou durante dois segundos o olho direito.
- E você?
- Eu sou daqui - retorquiu Élisabeth.
- Casada?
- Sim.
- Filhos?
- Não.
Durante uns momentos, não disseram mais nada. O homem arranhava o carvão na folha, com um ligeiro ruído de insecto. Élisabeth voltou-se e olhou para trás. Algumas pessoas espreitavam por cima do ombro do Tobias, furtivamente, ao passarem pelo café.
- Desenho tudo o que vejo - afirmou Tobias -, absolutamente tudo. Tenho necessidade. Tenho a impressão de que tudo o que vejo está desenhado numa enorme folha de papel. Então copio. Como vê é fácil.
- Ganha a vida assim?
- Não, não; o meu pai é rico. Felizmente não tenho necessidade de dinheiro.
- Faz exposições?
- Não, as exposições são para vender. Eu desenho, e depois dou.
- Assim nunca será conhecido - disse Élisabeth.
- Conhecido? - O homem fixou-a com ironia. - Sim. Agora, você conhece-me.
Começou a fazer traços com o carvão, do outro lado da folha; os cabelos, sem dúvida, ou a sombra do queixo.
- Conhecido, para que serve isso - observou -, visto que não quero vender?
- E viaja?
- Sim, passeio desenhando. Deixou de falar alguns segundos.
- É tudo o que sei fazer - acrescentou -; por isso é tudo o que faço.
Sombreou um risco com o indicador; Élisabeth viu-o fazê-lo com uma curiosidade crescente.
- E faz o retrato de todas as mulheres que vê, assim sem mais nem menos? - perguntou. Ele sorriu:
- De todas não. Apenas aquelas que vejo. Quero dizer, que me impressionam. Nem todos os rostos têm necessidade de ser desenhados. Você compreende.
- É casado?
- Sou viúvo - respondeu Tobias.
Sacudiu a folha de papel para fazer cair o pó do carvão. Assoprou mesmo.
- A minha mulher morreu há dois anos. Tuberculose da pele.
- Estou desolada - começou Élisabeth.
- Não tem de quê - interrompeu Tobias -; nos últimos tempos, ela sofria tanto que eu desejava que morresse. E morreu.
Bebeu uma golada de café.
- Quando a conheci, era tão bonita que jurei a mim mesmo só a desenhar a ela. Foi o que fiz durante cinco anos. Pintei-a todos os dias. Até à sua morte. Tenho milhares de desenhos dela, na minha casa de Londres. Aliás, continuei mesmo depois dela morrer. Mas era o seu fantasma que eu desenhava, compreende? Então...
- Ela era bonita?
- Muito. No fundo não sei. De começo, achava-a muito bela. Mas depois, à força de a desenhar, já não a via. É curioso, para o fim a doença estragara-a muito. A pele tornara-se como papel. Enrugada. Frágil. É horrível, a queda física.
- Isso deve ter sido terrível.
- Sim - disse Tobias.
Olhou a mão direita de Élisabeth e pôs-se a copiá-la.
- Há muito tempo que está casada?
- Três anos.
- O que é que ele faz?
- Oh!... Não tem trabalho fixo. Neste momento, está empregado numa agência de viagens.
- E você?
- Antes, era estudante de farmácia. Mas agora não faço nada.
O homem continuou a trabalhar na folha de papel, com afinco. Gotas finas de suor escorriam-lhe pelas fontes, e ao longo do nariz; limpava-as de tempos a tempos com as costas da mão direita.
- Está calor - disse Élisabeth.
- Conheci outrora um verdadeiro pintor - afirmou Tobias. - Foi há dez ou doze anos, em Nova Iorque. Eu devia ter dezasseis anos, nessa altura, ou coisa assim, talvez menos. O meu pai mandara-me para os Estados Unidos para ser educado. Foi lá que eu encontrei esse tipo, em Nova Iorque. Chamava-se Gobel, e nunca soube de onde vinha. Falava inglês muito mal, penso que devia ser arménio, ou qualquer coisa no género. Era louco, vivia como um vagabundo, arrastando-se pelos Estados Unidos. Só pintava nos passeios, com bocados de giz. Fazia assim quadros extraordinários na Rua Seis e depois sentava-se ao lado e esperava que as pessoas lhe lançassem algumas moedas. Era tudo o que queria. E fez assim os mais belos quadros do mundo. No dia seguinte, estava tudo apagado. As pessoas tinham passado por cima, chovera, ou tinham lavado o passeio. E nada ficava. Mas ele, Gobel, ria-se. Recomeçava novo quadro noutro lado e esperava que lhe lançassem algum dinheiro. - Tobias bebeu ainda um pouco de café. - Não sei o que lhe aconteceu. Deve estar em qualquer parte da América, ou noutro lado. Vi-o pintar durante todo o tempo em que estive em Nova Iorque. Quase não falava. Tenho a impressão que acabava por aborrecê-lo, ficando ali a vê-lo trabalhar todos os dias. Era uma espécie de génio, se esta palavra quer dizer alguma coisa. Gostaria de parecer-me com ele. Pobre Gobel!
A folha de papel estava agora quase no fim. Tobias deu alguns retoques rapidamente, com a ponta do carvão.
- Era um tipo muito calmo - acrescentou. - Nunca o vi encolerizado. Às vezes as pessoas passavam-lhe por cima do desenho, arrastando os pés, para o aborrecerem. Ele não dizia nada. Restaurava o apagado, como se fosse muito natural. Mas acredito realmente que era um pouco doido.
O desenho terminara finalmente. Tobias tirou da pasta de cartão um frasquinho com um vaporizador, e começou a borrifar a superfície da folha.
- É um fixador - explicou -; assim o carvão não desaparecerá rapidamente.
Entregou o papel a Élisabeth. Antes que ela tivesse podido olhar, ergueu-se e inclinou-se.
- Agradeço-lhe por ter perdido o seu tempo comigo - disse simplesmente -; adeus, minha senhora.
Élisabeth viu-o partir; depois contemplou o desenho. O seu rosto estava ali na folha, com a parte de cima do corpo e a mão direita, como se lá o tivessem colocado. Único pormenor bizarro do retrato: o homem esquecera-se de pôr as orelhas.
Roch continuava deitado na sua velha cama de casal em ferro, sem se mexer. Debaixo dele, uma espécie de charco de suor embebera os lençóis, e ele flutuava como numa cloaca. As horas tinham passado. O termómetro mantinha-se muito alto, marcando 29 ou 30. O sol continuava a atravessar as fendas das persianas, mas agora com uma bruma mais amarela. Lá fora, o céu devia estar muito branco, cheio de uma luz fosforescente. As paredes da casa com o reboco a cair continuavam a aguentar-se. Erguidas na terra com uma falsa majestade de ruína. Em cima, em baixo, à esquerda, à direita, tudo estava animado; os carros deslizavam nas ruas, os peões batiam com os pés, as crianças brincavam, as mulheres maduras caminhavam de um lado para o outro nos apartamentos, fungando e arrastando os chinelos. Mas aqui, no quarto de Roch, era a imobilidade total, absoluta, a calma mortuária e esmagadora, a fixidez. À parte, talvez, o minúsculo tremor das rodas dentadas, no interior da caixa do relógio de pulso de Roch, e a corrida do ponteiro dos segundos, que girava à volta com pequenas sacudidelas cheias de raiva.
Roch já não tremia; o calor invadira-lhe lentamente todo o corpo, instalara-se em todas as pregas da carne, apoderara-se de todos os órgãos, abafando pouco a pouco os espasmos nervosos. Nalguns sítios, havia como que bolas de fogo: fora aí que a doença se desenvolvera, sem dúvida graças a esses sóis dolorosos, na virilha, nas axilas, na base do pescoço. Uma dor instalara-se no crânio, atrás dos olhos, no occipício, perto das orelhas. Não o maltratava. Contentava-se em estar ali e apoiar-se um pouco, muito pouco, no interior da cabeça. No peito, o coração batia-lhe depressa, irregularmente. E os pulmões reclamavam ar incessantemente, ar novo, gás persistente e tépido que entrava queimando as fossas nasais e a garganta.
Era nesta caverna sufocante que Élisabeth ia entrar, de um momento para o outro. Ela não duvidava de nada; tocaria duas vezes à porta, como de costume. Depois metia a chave no buraco da fechadura e entraria no apartamento. Poria o saco no corredor, fazendo chocar as garrafas de limonada com as garrafas de leite. Iria direita à cozinha e lavaria as mãos por cima da pia de despejos. A torneira cuspiria uma ou duas vezes, por causa do ar nos canos. Em seguida, iria à retrete puxar o autoclismo. O ruído das suas sandálias italianas soaria pelo soalho. Talvez acendesse o transístor na mesa da cozinha e ouvir-se-ia uma voz de homem ler o noticiário. No género de:
Desde o dia 27 de Agosto que a morte sem rosto desvaira as famílias dos soldados italianos.
Ou então: mais tumultos raciais, um crime em Courbevoie, uma conferência de imprensa do rei do Camboja. Temperaturas registadas à sombra, hoje às treze horas. Lyon, 31?. Saint-Étienne 31?. Paris 30?. Ajaccio 29?. Limoges 29?. Dijon 29?. Valência 29?. Nice 28?. Marselha
28?. Bordéus 28?. Mónaco 28?, etc. Resultado das corridas em Longchamp. Cotações da Bolsa de Paris. Durante este tempo, os passos precipitar-se-iam, à esquerda, à direita. O movimento renasceria no pequeno apartamento, com repentes, com falhas de motor engordurado. O movimento viria. Passaria debaixo da porta e começaria a subir sorrateiramente, como um réptil, pela cama do doente.
Roch compreendeu subitamente que a imobilidade em que se encontrava, tudo aquilo, as paredes espessas, aquela bruma, os móveis de pé sobre o soalho como pedras tumulares, era um ardil. Um fingimento, uma comédia frágil que um nada podia desmascarar. Bastava que um mosquito entrasse pelas fendas da persiana e se dirigisse para ele. Daria um salto.
De facto, naquele quarto tudo fervilhava; estava cheio de vermes, de animaizinhos, espécie de fantasmas filiformes que se espalhavam por todos os lados, que flutuavam sobre a superfície das coisas. Bastava olhá-los com atenção. O tecto, por exemplo: podia-se pensar que não fazia nada, chato, acinzentado, fendido nalguns lados. Mas o tecto mexia-se. Baixava em direcção a Roch, até esmagá-lo na cama, depois, de repente, encontrava-se a cinquenta metros no ar aspirando como a abóbada de uma igreja. Ondulava também. Vagas percorriam-no de trás para diante, irritando a pintura e o gesso. Manchas bruscas estalavam, poças vermelhas, violetas, esverdeadas, castanhas, avermelhadas; depois fundiam-se todas. Em vez delas via-se uma depressão moldada, bastante profunda. No género de patas de elefante. No centro do tecto, à volta do fio da lâmpada eléctrica, formara-se, sem se saber porquê e num abrir e fechar de olhos, uma magnífica rosácea em relevo, um enorme molho de flores e anjinhos, com algumas pombas a escaparem-se. Durante momentos o tecto transformara-se em soalho e sobre as mesas colocadas ao contrário via-se uma refeição suculenta, copos de cristal cheios de vinho cor de rubi, cestos de frutos sumarentos de que alguns tinham rolado sobre a toalha.
Roch sentiu o leito arfar debaixo do corpo: o soalho devia ter seguido o exemplo do tecto; as ondas iam rebentar, sem dúvida, os móveis iam rolar confusamente, dominados por uma invisível tromba marítima. Depois seria a vez das paredes, das persianas, das cortinas, das portas. Dentro de minutos tudo seria caos e movimento. O próprio ar começaria a dançar no cubo do quarto. Os sons e as cores misturar-se-iam, quase alegremente. Em boa verdade já não haveria sons nem cores, mas longos impulsos que correriam através do ar, no qual se fundiriam sem se compreenderem. Os objectos penetrariam uns nos outros, e uma nuvem fina, inchada de metamorfose, encheria o quarto. Roch viu tudo desaparecer à sua volta, e sentiu que o levavam para uma curiosa viagem. Aragens frias e quentes ergueram-no como se fosse uma pena, correntes aquáticas fizeram-lhe andar a pele, os membros, os cabelos, à maneira duma mancha de tinta a misturar-se num papel molhado.
Soltou um terrível grito surdo, que nem sequer lhe ultrapassou os limites da garganta. Um AHHH!... de espanto, que soou durante muito tempo no interior da cabeça e fê-lo transpirar. Quando o grito parou, Roch viu a mulher que entrava no balanço geral. Ela não apareceu de uma só vez; Roch viu-lhe primeiro o corpo, muito branco e muito comprido, que flutuava no meio do ar. O corpo foi depois absorvido por um rosto imenso, tão grande que devia encher o quarto completamente. Na cabeça de gigante, os olhos abertos pareciam duas janelas profundas donde se podia ver o mar. As íris eram redondas, transparentes, com uma cristalização cor de esmeralda; das pupilas negras partiam raios finos, e estendiam-se em estrelas, recamadas duma imensidão de grãos opacos, dourados. Em volta, a esclerótica brilhava com um brilho sobre-humano. Perto das pálpebras, na massa coberta de neve, havia imitações de mármore azuladas e veiazinhas cheias de sangue, algumas das quais tinham rebentado. Preso na massa de carne, os globos oculares estavam imóveis, húmidos, dum orvalho que se evaporava no ar sobreaquecido. Estavam ali as duas máquinas de ver, as duas esferas nacaradas com cores de arco-íris. A luz exterior entrava nelas pelos postigos negros, e ficava aí encerrada, devorada em alguns segundos, absorvida pelas paredes das retinas.
Sob os olhos, as faces espalhavam a sua superfície plana, metros de pele delicada imperceptivelmente enrugada. Junto das pálpebras e das pestanas, havia uma zona curiosa, uma espécie de desnivelamento sombrio, que não repousava nos ossos. Se se continuasse a descer, chegava-se perto do nariz. Direito, mas mole, conservava-se a meio do rosto, semelhante a um monumento; as narinas eram afastadas, palpitantes, derramando regularmente correntes de gás quente e perfumado. A respiração passava vibrante pelo interior destes canais, depois espalhava-se pelo exterior formando como que uma arborescência volátil. Era neste local que a vida certamente nascia e se esgotava avidamente na atmosfera, com uma força imperiosa, secreta, quase invencível. Era ali que o ar era bebido sofregamente, que os elementos inertes eram sulcados por um vazio regular, vindo do mais profundo do peito; era ali que o seu caminho vacilante era traçado através do corpo, para alimentar, para insinuar, para empanturrar os túneis cheios de sangue.
Mais baixo, sob as narinas, a boca estava também aberta; os dois lábios carnudos entreabriam-se entre os incisivos. De cada canto da boca descia uma pequena ruga em direcção ao queixo, acabando a curvatura dos lábios. Era a máquina das palavras, em repouso, a zona fremente onde as consoantes tomavam corpo antes de explodir. As oclusivas nasciam nesta barreira de carne, as lábio-dentais eram pronunciadas suavemente, com um ligeiro som chiante. A aragem do diagrama vinha esbarrar neste obstáculo e transformava-se em bilabiais, em vogais doces ou ásperas. No interior da caverna bucal, a língua mexia também, subindo para o palato ou apoiando-se na parte de trás da garganta. As palavras eram feitas destes espasmos havia anos e tinham modificado a forma da boca, preparando-a incessantemente para o assalto das nasais ou das velares. As frases subiam assim lentamente através da garganta, numa arquitectura deslumbrante e inquieta que surgia com a rapidez dum relâmpago. Os órgãos das cordas vocais soavam neste escavado de carne e cartilagens, e depois a frase lançava-se para fora, como um bloco, como um trovão confuso de pancadas e gritos. Ou então a palavra brotava à maneira de um canto muito doce, incompreensível, flutuava como um halo à volta dos lábios móveis, e escapava-se para longe, serpenteando, desmaiando pouco a pouco nos ares. A linguagem, a deliciosa linguagem divina era mais suave que uma cabeleira, mais melodiosa que um ruído lacustre. Ela própria se esgotava em fumaradas ligeiras, modelava-se em luminosas cavidades no centro de uma noite escura. E à sua passagem, a noite cedia lentamente, a sombra separava-se e afastava-se, a escuridão era desfeita por uma água fresca em que cada gota evanescente tinha o poder de torná-la pálida.
Afastando os lábios, filtrando-se entre os incisivos frios, a voz falava; dizia coisas calmas e delicadas, contava histórias inventadas.
- Sabes, Roch, que ontem à noite tive um sonho muito esquisito. Era tão maravilhoso que eu sabia que terminaria, embora eu quisesse continuar a dormir, sem parar, durante uma semana inteira. Para que aquilo não acabasse. Lembras-te da árvore que outro dia estava a mexer diante da janela? Lembras-te, não é verdade? Tive medo, pensei que era um ladrão que se escondera na árvore e disse-te para ires ver. Afirmaste-me que não era nada, que devia ser o vento que fizera mexer o ramo, ou qualquer coisa desse género. Uma ramada podre que caíra do alto da árvore. Lembras-te de tudo isto? Aliás, afianço-te que não podia ser o vento. Porque vi muito bem, quando fui à janela, a árvore dar um esticão como se a tivessem sacudido. E era preciso que fosse qualquer coisa muito pesada. Fizeste pouco de mim e disseste que as árvores são seres vivos e que não havia razão para que elas não se sacudissem como os cães quando houvesse qualquer coisa que as raspasse. bom. Nessa noite, sonhei que passeava lá em baixo, à tardinha, e de repente a árvore começou outra vez a mexer-se. Um pássaro enorme saltou da árvore e disse-me: "Fui eu quem sacudiu a árvore outro dia." Fiquei muito contente e disse-lhe: "Ainda bem, receei que fosse algum ladrão!", e ele respondeu: "Não, não, sou sempre eu quem sacode as árvores...", tudo isto dito numa voz aflautada, verdadeiramente agradável de ouvir. E pôs-se a seguir-me por toda a parte como um cão. Entrou dentro de casa comigo, e andava de um quarto para o outro como se estivesse com uma trela. Havia pessoas na casa, e ao passar por elas, eu dizia-lhes: "É o pássaro. Era ele quem sacudia a árvore outro dia." Continuava a seguir-me por toda a parte. Não podes calcular como era curioso, ver aquele cão enorme que andava atrás de mim! Era absolutamente maravilhoso. Se tivesses visto aquele pássaro. Era imenso, com um corpo muito redondo, uma verdadeira bola! Penas curtas como penugem, patas enormes, que nunca mais acabavam, e uma cabecinha muito redonda com olhos grandes e pestanas! Era verdadeiramente único, posso assegurar-te! Sobretudo o corpo redondo como uma bola, a penugem como um pintainho, estás a ver, e depois as longas patas magras. Para onde quer que eu ia, seguia-me, olhando-me e com a sua cabecinha e os olhos com pestanas. Possuía um bico parecido com o pardal, e não tinha pescoço. A cabeça estava assente sobre o corpo enorme, e caminhava gravemente com umas pernas que deviam ter pelo menos um metro! Era verdadeiramente curioso. Tinha uma cabeça de pardal, um olho muito grande e pestanas muito compridas, um corpo de pintainho, estás a ver, muito redondo, sem asas, e penugem por todo o lado, e patas como uma garça-real. Era um pássaro verdadeiramente extraordinário! Agradava-me vê-lo seguir-me assim, eu falava-lhe ao andar e ele respondia-me com uma vozinha aguda. Gostaria de ter um pássaro assim que me seguisse por todo o lado. Tens de confessar que é um sonho realmente curioso! Mas como o pássaro era maravilhoso! Gostaria muito de tornar a vê-lo, palavra, gostaria de tornar a vê-lo um dia!
Mais baixo que a boca, o queixo era dirigido para a frente, pesado, maciço, em forma de calhau. A testa parecia-se também com uma pedra, ligeiramente saliente, dura e mate, com duas rugas verticais junto das sobrancelhas que esticavam a pele. Perto da raiz dos cabelos, tinham surgido pequenos botões traçando o caminho do suor. Debaixo da testa ficava o osso do crânio, espesso e sólido, pronto a receber pancadas, a acertar nos obstáculos. O cérebro estava bem protegido atrás desta muralha e podia ficar todo enrolado sobre si próprio como uma amêndoa, para fazer mover no seu banho tépido e mole minúsculos pensamentos sem ordem. A testa elevava-se sob a massa de cabelos pretos; mas parecia que a cabeça não era terminada por nada, que se ia esboroando assim, aberta numa floresta de filamentos que flutuavam em todas as direcções. A cabeleira muito comprida, estava dividida ao meio por um risco semicircular que atirava as ondas sombrias e brilhantes em vagas empoladas. Atrás do pescoço, os cabelos eram muito ralos, separados uns dos outros por uma repulsão eléctrica. Quando o pente descia ao longo da guedelha, ouviam-se estalidos engraçados, e uma corrente de ar começava a levantar os cabelos à sua passagem, fazendo-os flutuar um momento por cima dos ombros e das omoplatas. Eram todos independentes, talvez vivos, e portanto insensíveis. Podia-se cortá-los aos punhados, nenhuma dor dava a entender que tinham abandonado o seu corpo de origem; e eram tão numerosos! Aos milhares, aos milhões, aos milhares de milhões talvez, ocupando todos os quartos de milímetro do crânio, erguendo-se como uma vegetação animal, quentes, suaves, penetrados por um odor a palha, lustrosos de gordura e suor, terrivelmente compridos, habitados às vezes por lentos movimentos descendentes que se espalhavam em ondulações e anéis, feitos de fios inquebráveis cujas cores se misturavam umas às outras, os escuros azulados, os cinzentos, os loiros de cinza, os brancos, os ruivos, os pretos, os fulvos, os castanhos, os sépia, os terra-de-sena, os cor de avelã, os ocre amarelos, cujas formas se confundiam, se misturavam em nós onde o pente engancha e incomoda, os curtos e enrolados, os finos, os enormes, os sãos, os peliculares, os seborreicos, estes com uma, duas, ou até três bifurcações.
Roch enfiava as mãos na sua cabeleira suave, e brincava com ela, durante minutos inteiros. Escondia o rosto no centro desta floresta, e sentia os milhares de pequenos tentáculos roçarem-lhe pela pele, entrarem-lhe no interior das narinas para tentarem asfixiá-lo. Em seguida os cabelos invadiam-lhe a boca, e ele saboreava-lhes o gosto insípido, um pouco picante, respirava-lhes o perfume forte e familiar, o odor que encadeava, que nos torna escravos.
Roch continuava sozinho no seu leito encharcado em suor, e todavia sentia o corpo da mulher deslizar-lhe longamente entre os dedos. Tudo, o rosto, o torso, as ancas, as pernas finas e os braços fluidos, tudo isso corria por ele subitamente e fazia-o vibrar com uma alegria agradável. Segurava entre os dedos a carne fundente, bebia-a como um cego, com a pele, com a ponta dos nervos. E entrava em casas secretas, fundia-se nos ombros, nos seios, nas pregas do ventre e dos rins, como se fosse a alma que devia habitar aquela estátua. Porque, estrangeira apesar de tudo, sem ele morreria imediatamente, era evidente; aquele sobrescrito de pele marmórea e maleável só continha o vazio; aquele peito delicado só respirava um nada e a destruição; aquelas mãos de longos dedos frementes já estavam inanimadas e não apertavam mais nada. Estendido no leito só podia salvá-la passageiramente; ia dar-lhe vida, numa espécie de transfusão ardente e desesperada. Ia enfim amá-la.
Onde quer que os seus olhos pousassem, naquele quarto sufocante e vazio, era sobre ela que eles pousavam. A forma do rosto de Elisabeth balançava no ar enchendo o quarto todo. E o seu corpo, a sua massa de pele bem fechada, que a continha hermeticamente, estava também por toda a parte. Ele caminhava, aquele corpo insaciável, baixava-se, dormia, deslizava sobre o solo, ou então voava rente ao tecto; dançava, separava-se, era odorífero, podia-se tocar-lhe, ouvi-lo, era luz.
Era como se houvesse uma série de espelhos colocados em todas as superfícies planas, e reflectindo indefinidamente, com ângulos sempre novos, o mesmo gesto de beleza que fazia uma mulher no quarto. Mas Roch estava por assim dizer no interior dos espelhos. Sim, na verdade, era ele que reflectia o corpo da mulher, que o desirmanava e o modificava sem parar, a cada inspiração profunda do seu peito, a cada impulsão nervosa vinda do exterior, a cada rebentamento de luz dura, ao contacto de um som estridente vindo de além dos tectos. Esta imagem, mas era mais que uma imagem, derramava-se sobre ele como uma água de que tivesse sede, escorria-lhe por todo o corpo, embebia-o delicadamente com gotas de chuva e de frescura; agora, cada gesto com o braço que ela fazia, cada movimento familiar, para correr as cortinas, para abrir as persianas, para pentear os cabelos, para correr o fecho dum belo vestido branco, cada gesto puro e luminoso vinha até ele e envolvia-o num tecido húmido que lhe acalmava toda a pele.
Estas coisas deviam durar séculos, sem dúvida; nada podia detê-las. O banho divino devia continuar sem interrupção, sem fadiga. Porque os gestos se refaziam indefinidamente, como se subissem o curso do tempo e arrancassem segundos ao nada para entrarem completamente novos na zona turva, aumentando sem pressa o seu halo de fulgurante brancura. Não avançavam mecanicamente, mas com uma espécie de magia que os fazia nascer e multiplicar sem razão, para alimentar Roch, a ele somente, naquele quarto, naquele odor de doença e solidão.
Os gestos não pararam; no entanto, em alguns minutos, aproximaram-se tanto uns dos outros, tão calmos, tão longos, que foi como um único e eterno gesto de triunfo, uma fusão de braços brancos e cabelos sombrios, um fantasma radioso, visto em todas as posições imagináveis e que veio envolver Roch com o seu turbilhão imóvel. Roch recebeu assim o corpo de Élisabeth, vestiu-se sem duvidar, muito naturalmente, e viveu na frescura.
Tornara-se agora essa mulher, a paixão fizera-o girar sobre si mesmo, rompera o estado exterior e colocara-o dentro. E todavia, embora habitando a silhueta de Élisabeth, sentindo à sua volta, em vez das paredes e dos móveis, coisas que lhe não pertenciam, que nunca lhe tinham pertencido, fragmentos de mulher que flutuavam dispersos, que lhe diziam sem cessar "Estou aqui. Estou aqui. Tu estás dentro de mim", ainda que preso numa nova morada, feita de deleites, Roch experimentava ainda uma necessidade obscura, violenta, ultrajante, de dominar e destruir. Era como se aquela mulher, vinda naquela tarde, pelo calor e o isolamento, no meio da doença, tivesse Roch frente a dois abismos profundos separados por uma lâmina de sabre. Ela empurrara-o, e Roch caíra sobre a lâmina, e cada parte do seu corpo cortado caíra no poço aberto e fora engolida. Nunca, nunca poderia recolar as duas partes; era preciso que vivesse em cada um dos poços, com metade do tronco e da cabeça, um braço e uma perna. No abismo da direita, Roch vivia no mundo de Élisabeth; no da esquerda possuía um objecto suave e vivo, que tinha aspecto de um corpo de mulher, que apertava entre as suas mãos, que ia talvez estrangular, a quem ia fazer sofrer os últimos ultrajes.
Porque era isto, finalmente, habitar uma mulher; era estar perdido num universo ainda mais demente que o da doença. Era uma verdadeira cólera atacando não só os sentidos e a intuição, mas também tudo o que no espírito é vontade de ordem e compreensão. Bafos de ódio e de amor subiam simultaneamente por Roch; e, coisa terrível, estes bafos uniam-se ao subir, como se fossem da mesma natureza, formavam uma única nuvem quente e glacial, uma espécie de ciclone árido, uma esfera de tormentos, cúmulo da dor e do prazer, que afastava tudo à sua passagem e que subia, subia sempre, sempre, e o elevava com ela, arrastando-o e dissolvendo-o no seu sulco, a ele, Roch, o homem doente.
O quadro estreito do quarto rebentara agora. Neste momento, era o mundo que ela habitava, essa mulher fresca de cabelos sombrios. Era os continentes que ela habitava, a América, a Austrália, a Gronelândia. Estendida neles como um cortinado cobria-os suavemente, deixando cair sobre todos os homens as pregas do seu sudário, e era contra o mundo inteiro também que Roch lutava. com raiva, com um género de desespero tiritante, transformava-se em arma, berrava em silêncio, mortificava com todas as suas forças o enorme fardo do céu e da terra.
No entanto, homem e mulher, seriam ambos vencidos, um dia destes, não havia a menor dúvida. O rosto terno e suave, os olhos profundos, cor de esmeralda, a boca, o corpo flexível e pálido, cederiam aos seus golpes. Haveria como que uma morte quando o véu aéreo se rasgasse. Pela brecha aberta, os elementos estrangeiros poderiam então precipitar-se, derramar-se neles, afogá-los. Nem um nem outro seriam poupados. Quando Élisabeth, com o corpo esburacado, se abandonasse à terrível profanação temporal, tudo acabaria igualmente para Roch. Uma invectiva atirá-lo-ia para trás, fá-lo-ia subir a sua queda ao contrário, depressa, muito depressa, e colocá-lo-ia novamente no colchão tépido, na cama, encaixá-lo-ia no velho quarto de paredes húmidas, com o sol amarelo a ressumar do outro lado das persianas. Tudo o que era normal, que era duro, que preparava agonias, misérias, dias e noites anónimas, viera a sua casa.
Quando tudo passou, o momento de crise, de doença, de amor, ou do que quiserem, Roch saiu da cama e foi até à cozinha. Sentou-se um momento diante da mesa empilhada de loiça suja, e esperou. Por cima do fogão a gás, numa prateleira, um relógio marcava sete horas e meia. No pátio do prédio, um cão começou a ladrar, com estranhos gritos roucos, como se nunca mais conseguisse parar. A noite devia estar a chegar, provavelmente, com um belo pôr de Sol violáceo, junto das colinas. Élisabeth devia ter passado pela agência, para o encontrar. Ficaria surpreendida ao saber que ele já não fazia parte do pessoal desde o começo da tarde. Mas não era a primeira vez que Roch era despedido; trabalhava assim um pouco por todo o lado, nos correios, nos caminhos-de-ferro, numa livraria, e até num banco. com o tempo, devia estar habituada.
Roch ergueu-se e saiu do apartamento. Em baixo, tirou o cadeado da bicicleta e partiu pela cidade. Antes de chegar à avenida, olhou um momento para o céu; agora sem qualquer inquietação: o Sol desaparecera completamente, numa parte qualquer do outro lado do horizonte. Já os morcegos começavam a rodopiar entre os telhados, a uma velocidade louca, e cachos de borboletas estavam pendurados nos candeeiros, azulados. Nas ruas, tudo secara desde a tarde. Não havia uma gota de água no chão nem no telhado das casas. Uma espécie de poeira depositara-se no macadame, no género das lavas de vulcão. Era o que restava do gigantesco incêndio que danificava aqueles lugares, durante um dia inteiro: cinzas, pontas de fósforo escurecidas, beatas esmagadas. Um odor a borracha queimada libertava-se de todas as coisas, e viam-se pequenas rugas nas superfícies planas, como um sinal de velhice.
Roch circulou pelo meio destes detritos poeirentos, com a bicicleta. Ao passar numa ruela estreita, junto à parede de uma casa, apanhou na cabeça com o conteúdo de uma pá cheia de entulho. Mais adiante, uma rapariga numa bicicleta a motor passou-lhe à frente muito rígida, com o vento a entrar-lhe pela abertura da blusa. Sim, a secura era verdadeiramente total. Vivia-se numa cidade onde o sol nunca cessaria de bater, onde os raios dolorosos entravam na terra durante o dia para de lá saírem à noite. Não havia tréguas.
Roch dirigiu-se para a beira-mar. Viu as membranas escuras que cobriam o céu e a massa líquida. Ao longe, o farol acendia-se com intermitências, segundo um código misterioso. Por causa de toda esta poeira, destas placas secas e cinzentas, o rosto de Élisabeth envelhecera na cabeça de Roch. No fundo da caixa de recordações, só restava uma espécie de olho cor de ardósia que olhava sozinho em toalhas de lã. Mas podia ser também a mancha cega que o deixara nas retinas.
Roch abandonou a bicicleta e caminhou pela praia. E apesar daquele olho que o espiava com insistência, não sentiu um prazer pequeno quando mergulhou o corpo tiritante, ainda quente, no interior da água.
O dia em que Beaumont travou conhecimento com a sua dor
A primeira vez que Beaumont travou conhecimento com a sua dor, foi na cama, devia ser qualquer coisa como três horas e vinte e cinco da manhã. Virou-se no colchão, com dificuldade, e sentiu a resistência dos cobertores e dos lençóis que participavam no seu movimento de rotação, mas de uma maneira inconveniente, opondo-se-lhe. Como se qualquer mão invisível lhe tivesse torcido os tecidos à volta do tronco e das ancas imóveis. Após alguns minutos, ou alguns segundos, tentou, com os olhos fechados, libertar-se, puxando com a mão esquerda pelas pregas do pijama e pelas franjas dos lençóis. Só conseguiu ficar ainda mais preso, e, invadido pelo mau humor, mergulhou na confusão do que se devia parecer cada vez mais a um colete-de-forças. Os dois pés furaram ao mesmo tempo e surgiram na ponta da cama, lívidos, mergulhando de repente no frio. Os últimos restos da preguiça, o entorpecimento do sono, sem dúvida, mantiveram-no ainda nessa posição; mas o sentimento dum desconforto dissimulado, um mal-estar muito intelectual e todavia físico, cresceu-lhe no espírito. O cérebro recomeçava a funcionar. Imagens fugitivas, mal traçadas, iluminavam-se e apagavam-se-lhe nas retinas, ao abrigo das pálpebras juntas, como anúncios de néon. Havia uma barca de madeira que se desviava num rio brumoso e ele remava com todas as suas forças; sabia depois que se encontrava nessa barca e a história começava: naturalmente, a barca virava-se, a ilha nadava calmamente na sua direcção, e praias, e placas de lodo infiltravam-se-lhe no ventre e arrastavam-no com suaves afagos. Ou então os seus passos martelavam o passeio, cadenciadamente, com ligeireza: e outros passos, outras pernas vinham, a presença dançante duma jovem de que não conseguia surpreender o rosto, mas que devia ter longos cabelos loiro-ruivos e braços nus muito brancos, quase luminosos. Palavras de fósforo nasciam em silêncio, enterradas no mais profundo da cabeça, talvez na nuca, e essas palavras acendiam-se e apagavam-se, também, na noite do vazio pré-histórico, prontas a organizarem-se em frases, a modelarem proposições circunstanciais, conjuntivas, interrogativas. Como se reticências as tivessem ligado entre si. Quando Beaumont sentiu que essa invasão, longe de enfraquecer, aumentava a sua corrida e progredia de maneira contínua, compreendeu que não poderia dormir mais. As pálpebras tremeram-lhe de vez em quando, mas nervosamente, depois, de repente, sem que tivesse sabido como e porquê, os seus olhos escancararam-se. Contrariamente ao que lhe tinham dito sempre: é preciso um certo tempo para que a retina se habitue à escuridão e para que se distingam as coisas, Beaumont viu tudo, e duma só vez. Estava deitado para o lado direito por causa do coração, e o quarto apareceu-lhe como em pleno dia, com a diferença que a luz fora substituída pela escuridão. Era um quarto no género do negativo duma fotografia, com um alto tecto negro, quatro paredes e um soalho acinzentados, e uma noite branca que entrava às faixas pelas persianas. Beaumont continuou deitado de lado, os olhos abertos, perfeitamente imóvel nos nós e nas estrangulações dos lençóis. O barulho do relógio de pulso atingiu-o por fim, progressivamente, como se tivesse sido uma fuga no cano de água, onde cada gota se teria ligado à precedente para fabricar uma espécie de estalactite móvel inserindo-se milímetro após milímetro na matéria cinzenta. Ouviu "tic-tic, tic-tic, tic-tic, tic-tic, tic-tic" e afastou os cobertores para os pés. Acendeu a lâmpada da mesa-de-cabeceira e viu as horas: três horas e trinta e dois da manhã. Havia portanto cerca de sete minutos que travara conhecimento com a dor pela primeira vez, e não o sabia.
Beaumont levantou-se, atravessou o corredor e os quartos sombrios, urinou, bebeu um grande copo de água gelada do frigorífico. Ao regressar ao quarto, com os dois pés descalços aplicados alternadamente no soalho húmido, sentiu verdadeiramente que se passava qualquer coisa. Desde que acordara, compreendera, de modo confuso, que havia um pormenor anormal nele, ou, então, que se lhe apoderara do espírito. Impossível saber o quê exactamente; era um pouco como a ideia duma mudança, digamos a chuva que cai bruscamente lá fora, ou a recordação do estrondo dum acidente, entre dois carros, em baixo, junto do cruzamento. E em vez de voltar para a cama, e de aproveitar o lugar quente que aí arranjara, dirigiu-se para a mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. Tremia; o pijama de baetilha era muito fino para a estação. Mas nem o frio, nem o silêncio, nem nada exterior podia decidi-lo a mexer-se. Estava preocupado com um vazio intenso, que o habitava agora inteiramente, e o mantinha nessa posição meditativa, a cabeça erguida, os dois braços apoiados na ponta da mesa. Olhava em frente, na direcção da parede, mal respirando; o cérebro transformara-se-lhe bizarramente no género dum animal esquisito, um verme, por exemplo, e esse animal voltava-se sobre si mesmo, à procura duma coisa desconhecida. O animal frio subia imperceptivelmente, depois imobilizava-se, e torcia pouco a pouco o corpo rechonchudo para olhar para trás. Não tinha olhos, mas similares de antenas, ou cornos de caracol, que saíam tranquilos para fora da massa cartilaginosa e pousavam com delicadeza na parede craniana, no objecto tapetado de meninges cor-de-rosa. Beaumont compreendeu bruscamente que o verme esponjoso que se torcia dentro da cabeça era o cérebro, a sua inteligência, era ele próprio; sentiu então um medo desconhecido invadi-lo, um sentimento precário e envergonhado, e, provavelmente, não confessaria a ninguém. com a mão direita pegou num espelho partido que estava em cima da mesa, no meio dos papéis, e contemplou-se. Viu a sua máscara anónima, trinta e cinco-quarenta anos, traços finos, faces nem gordas nem magras, onde a barba rebentara, como na cara de um morto. Afastou os lábios e viu os incisivos, enterrados nas gengivas no meio de ligeiro anel de tártaro. Depois os olhos, verosimilmente azuis, fixos na massa de carne enrugada, semelhantes a olhos de boneca. A testa fugidia, os cabelos, as orelhas, as narinas, as duas depressões simétricas em vez dos côndilos. Viu o queixo, as comissuras dos lábios, a cicatriz dum antigo sinal do rosto, e principalmente, e cada vez mais, reparou na pele, naquela extensão de pele branca, cheia de buracos, coberta de pêlos, a pele elástica e sã, a pele enrugada e lustrosa, a pele onde se formam pústulas e borbulhas, o tecido de inflamações e eczemas, esse extraordinário mapa que era a sua, e onde se perdia, semelhante a mosquito minúsculo a caminhar sobre um corpo. Quando se mexeu outra vez, foi para acender um cigarro; gostava de se ver a fumar. Por isso encostou o espelho a uma pilha de livros, em cima da mesa, e colocou lentamente um cigarro entre os lábios. Mas nessa noite, não conseguia refazer os seus gestos habituais. Não tremia, não, mas não conseguia ver-se. Tudo se passava muito depressa. Era preciso recomeçar, outra vez, outra vez ainda, repor o cigarro no maço, o maço na gaveta. Em seguida retirar o maço, muito naturalmente, estender o polegar e o indicador, em forma de pinça, escolher o cigarro que queria. Levá-lo aos lábios, com uma sequência perceptível de movimentos de elevação do antebraço, o cotovelo fixo no rebordo da mesa. Tirar um fósforo da carteira de cartão e riscá-lo de cima para baixo. Seria necessário que o fósforo acendesse, apenas uma vez, mais uma vez mesmo, definitivamente. E que queimasse a extremidade do cigarro, e se apagasse, e o cigarro começasse a deitar fumo, pela boca e pela garganta, como um belo gesto dramático. Em vez disso, tudo se fazia distraidamente, como se não fosse ele que fumasse, quem ia fumar, que fumara, mas qualquer outro, o homem do espelho, por exemplo. Beaumont deixou de olhar para o bocado de espelho partido. Deixou cair o busto para trás e apoiou-se nas costas da cadeira. Lá fora, no frio e na indiferença, na iluminação eléctrica das ruas, descia o barulho de cascata. Nuvens de ruído, rasgando o silêncio, que se estendiam ao longo dos passeios, batiam nos guarda-lamas dos carros, saltavam de parede em parede, arrancavam bocados aos anúncios. Era a chuva, ou qualquer coisa do género. Talvez um carro de regas público, talvez um algeroz roto. Beaumont respirava o fumo do cigarro, e os olhos estavam fixos no tampo da mesa. com picadas dolorosas, decifrava os objectos dispersos, os cinzeiros cheios de cinza, os lápis a trouxe-mouxe numa velha lata de conservas, dois ou três suportes de cartão, e centenas de folhas de papel amontoadas umas sobre as outras. Um folheto amarelo, em primeiro plano, chamou-lhe a atenção, e ele achou-se de qualquer maneira obrigado a ler, com uma dificuldade e um cuidado infinitos:
Nós, nós não somos nem inimigos do nosso país, nem idealistas nebulosos, mas Franceses para quem o realismo consiste em trabalhar para a paz com as armas da paz, que são a verdade, a abnegação e a amizade com todos.
Sentir-nos-íamos obrigados ao mesmo protesto para com detidos pertencendo a qualquer outro partido, classe, nação, confissão ou raça, porque a nossa acção é um testemunho de consciência.
TRINTA VOLUNTÁRIOS
Quando terminou, viu que era mais do que tempo, porque já não conseguia ler mais. Dentro da sua cabeça, enterrado no fundo das membranas vermelhas das meninges, o enorme verme inquieto torcera-se na última linha da folha amarela, e passava o tempo a contar os penteados, a apalpá-los um a um com as ventosas opacas e as antenas moles. Contava-as e recontava-as infatigavelmente, como se nada mais tivesse importância na terra senão aquela sucessão de pontos, de traços de união mais exactamente, e como à procura dum número misterioso, de que se aproximava a cada segundo, que daria enfim uma definição a toda a folha, a todos os papéis escritos ou desenhados, a todas as confissões, a todos os romances e a todas as cartas do mundo, um número puro e majestoso que paralisaria enfim o infatigável e odioso movimento das aparências. Os olhos vazios, o rosto entorpecido e estúpido, Beaumont, cabeça para a frente, o cigarro a apagar-se entre dois dedos da mão esquerda, semelhante ao homem do espelho, balbuciou em voz alta o número do algarismo:
"Quarenta e três":
E a dor de dentes parou.
Foi uma passagem absolutamente misteriosa, penso eu, um pouco quase fatal. O que fora até ali apenas nevoeiro, oscilação, desassossego como num mar encapelado, em que não se sabe se é ele ou se sois vós que sofreis em balanços, em tombos, uma náusea visual que torna ásperos e doentios quilómetros de vagas e de céu, tudo isso se iluminou, e um género de sol pontiagudo, um mal definido, pôs-se a brilhar. No rosto de Beaumont, aquilo ocupava um lugar preciso; era no queixo, ao fundo da boca, provavelmente debaixo do dente do siso ou do molar cariado, à esquerda. Nada de grave, por enquanto. Apenas uma pequena dor, seca e definida, talvez uma borbulha na gengiva, ou então uma nevralgia efémera, que o simples contacto de uma aspirina na língua bastaria para dissipar. Beaumont endireitou o tronco, esmagou o cigarro apagado no fundo de um cinzeiro de ferro. Tornou a pegar no espelho quebrado, mas desta vez com a mão direita. Abriu a boca e olhou o interior. Não era fácil, por causa do bafo; tirou um lenço sujo de cima da mesa, limpou o bocado de vidro, e, retendo a respiração, os pulmões cheios comprimindo as fossas nasais até deixar sair um ligeiro fio de ar que se escapava pelas narinas, orientou o foco da lâmpada eléctrica para o fundo da boca. Mas nada distinguiu de anormal. A maior parte dos dentes estavam chumbados, evidentemente, mas as gengivas pareciam sãs. Beaumont mudou o espelho de mão, e, com a ajuda de um lápis, começou a bater em todos os molares do lado esquerdo, a fim de descobrir a fonte exacta do seu mal.
Em vão. com a pancada, todos os dentes se revelavam igualmente sensíveis, mas nada mais. Portanto não se podia tratar de uma cárie, para falar com propriedade. Utilizando o mesmo lápis, Beaumont pôs-se a escarafunchar as gengivas, à volta do molar e do dente do siso. Igualmente em vão. Claro que a sensibilidade era maior à volta destes dois dentes, mas não se poderia classificar esta sensibilidade de dor. Era talvez a resposta normal duma dentição atacada pela piorreia alveolar, pela gengivite e por nevralgias de todo o género. Em toda o caso não tinha nada de um abcesso. Beaumont pousou o espelho, meio tranquilo. Tornou a deitar-se na cama e apagou a luz. Mas na cabeça deitada na almofada o mal despertou subitamente, com tal intensidade que ele começou a grunhir. Beaumont não hesitou; tornou a acender a luz, saltou da cama e remexeu na mesa-de-cabeceira. Tirou um tubo de aspirinas e dois soníferos. Foi à cozinha, engoliu os comprimidos, depois um grande copo de água gelada, tornou a urinar e regressou. Esperou, escondido no meio dos lençóis, que chegasse a miraculosa passagem, a fusão de todo o seu ser para um espaço líquido, o caos diluviano em forma de fanfarra, essa perfídia que lhe viraria os olhos nas órbitas e lhe mostraria ao longe, muito longe, como através da chuva, o abundante presente dos sonhos. Mas a dor, o que era uma dor, agora, aumentava sensivelmente, e logo, o rosto inquieto, um suor ligeiro molhando-lhe a palma das mãos e os lados dos pés, Beaumont sentiu abrir-se diante de si as portas de um mundo desconhecido e trágico, um mundo onde a inquietação é uma beleza, uma paisagem exacerbada que assedia a recordação de outra terra, lá onde reinam a calma e o bem-estar, os animais de olhos claros, o silêncio aquático dos nervos. Sentiu a tristeza monótona dessa viagem, o arrancamento às moradas de outrora e a cavalgada futura para um pequeno inferno de espaço reduzido; as recordações das noites muito redondas, os doces esquecimentos do tempo passado, murmuravam dentro dele lamentos nostálgicos, semelhantes a longos rios rodeados de salgueiros onde os patos bravos voam baixo, entre farrapos de fumo. Lá fora o ruído das toalhas de água avançava sempre, ao longo das ruas do cruzamento. Às vezes passava um automóvel, marcando sulcos sonoros no macadame. Ou então passos de homem martelavam o chão, tranquilos, nascidos do nada e dirigindo-se para o nada.
Beaumont atirou-se para a cama, em forma de bola; esperando, apesar de tudo, qualquer coisa não sei o quê exactamente, osmoses de ácidos, assimilações de glutetimidas, o sono, a paz, sem dúvida. Efectivãmente, o mal afastou-se; as imagens tornaram-se mais raras nas retinas; um torpor artificial, de gosto um pouco amargo, invadia Beaumont. Um prédio muito comprido começou a desfilar com todas as janelas de fora; a queda parecia eterna, ou quase. Mas, cerca de qualquer coisa como o andar três mil seiscentos e quarenta, Beaumont encontrou o passeio. A perna esquerda foi a primeira a passar e partiu-se inteiramente. Depois o resto do corpo oscilou, girando à volta dum eixo invisível. O solo bateu-lhe no flanco direito, no ombro, na cabeça. Houve ainda dois ou três décimos de segundo, como que espasmos, e tudo terminou. O sangue morto saiu pelos olhos, pelas narinas e pelas orelhas, e correu suavemente pela rua, dócil, segundo o declive da valeta.
Beaumont tornara a encontrar o seu mal. A aspirina não fizera efeito, ou mal fizera. Em meia hora a dor quintuplicara. Agora já não era num ponto preciso do queixo, à volta do dente do siso e do molar cariado, mas numa zona completa, que se estendia da orelha esquerda à ponta do queixo. Nesta zona, tudo vibrava; ondas incompreensíveis iam e vinham sem parar, semelhantes a vagas, depois quebravam-se nos seus pontos de interferência. Parecia que esta metade do queixo crescera subitamente, no escuro, empurrando tudo o que a rodeava. Uma construção barroca, feita de cimento e de barras fundidas, prolongava agora a face de Beaumont. Era um peso real que oscilava no ar do quarto, a cada movimento da cabeça, e ameaçava arrastar todo o resto do corpo para uma queda sem fundo, através dos cobertores, soalhos, andares, canalizações, crosta terrestre, etc. Era preciso portanto conservar continuamente o equilíbrio e apertar os dentes uns contra os outros, com força, com força. Beaumont abriu os olhos. Apesar da noite, apesar da dor, o quarto continuava nítido, desenhado até no mínimo pormenor. Mas, agora, parecia que cada objecto, cada móvel, cada superfície de plástico ou de madeira oferecia um aspecto novo; os ângulos eram mais firmes, as sombras e os brancos mais opostos; era isso, sim, tudo era mais evidente. Tinha tudo um cuidado maníaco, agora, uma vontade de ser até ao fim; os livros eram livros, quase caricaturais, com as capas novas e a cola da lombada brilhando brutalmente. A mesa era uma mesa imbecil, quatro pernas atarracadas suportando a placa de madeira com força muito além do necessário. A garrafa de álcool continha como nunca contivera anteriormente; só fazia isso, conter, conter. O tecto tinha graças ridículas de paquiderme, pousando com leveza a sua massa esverdeada sobre as quatro paredes, exactamente como um DC-8 ao descolar. As portas estavam fechadas por detrás das janelas, mas com que precaução, com que minúcia! E os vidros eram transparentes como um banqueiro é honesto. E o ar era o ar, oxigénio+ozono+gás carbónico+azoto. E o quarto era o quarto, nada mais, grave, sério, aplicado na sua tarefa. As leis da gravidade eram perfeitas, nada faltava, absolutamente nada, nem queda de poeiras vindas dos remates do gesso, nem compressão dos canais semicirculares, perto das trompas de Eustáquio, para se assemelhar a uma dissertação de bacharelato sobre as teorias de Newton. Beaumont, deitado de lado, olhava e apreciava tudo; trabalhava para manter em equilíbrio, no lado esquerdo do queixo, esse imóvel de betão armado, esse sumptuoso edifício de plano vulgar, como se o futuro de uma cidade inteira dependesse dele. Agora era o seu corpo que vivia nessa casa, fizera do queixo dolorido uma concha, uma habitação imensa e harmoniosa. Ia viver aí o tempo que fosse preciso, um dia, dois dias, uma semana talvez, esperando o dentista. No entanto, por causa de um excesso de perfeição, um andar a mais, uma elegância dispendiosa na estrutura dos alicerces, o imóvel desabou. Primeiro oscilou lentamente, da esquerda para a direita, depois de repente, num grito de raiva e de dor, deixou-se cair sobre a cama, esmagando os cobertores, cortando o montículo branco do travesseiro como uma chicotada. Beaumont saltou com as lágrimas nos olhos. Acendeu a luz novamente, mas desta vez a lâmpada maior. Febrilmente, abriu a gaveta da mesa, procurou um tubo de piramidona, tirou um comprimido, pô-lo na língua, tirou a rolha da garrafa de álcool, provavelmente de aguardente de ameixa ou qualquer coisa assim, e emborcou um copázio mesmo pelo gargalo. Sentou-se na borda da cama e esperou. Por trás da casa, o relógio de uma igreja deu quatro horas, com longas pancadas esguias que se espalhavam pelo quarteirão. Beaumont ergueu-se, circulou, acendeu outro cigarro. Pôs um disco no pick-up, Enrico Albicastro, Jean Chrysostome Ariaga, Thelonious Monk, ou qualquer coisa deste gosto. Ouviu as notas elevarem-se no quarto; mas não eram claras, e a harmonia que daí resultava era uma mistura repleta de nevoeiros e tristeza, um tumulto abafado que deslizava entre os móveis, todo tecido de halos e de rolos de fumo. Beaumont ouviu o disco até ao fim, sem hesitar, prostrado na sua confusão, a face esquerda apoiada na palma da mão. Quando tudo acabou, levantou-se, desligou o frick-up e saiu do quarto. Errou um momento pelo apartamento vazio, acendendo de passagem todas as luzes. Um medo sinuoso alojara-se-lhe no cérebro; um medo que julgava ter esquecido há dezenas de anos; uma angústia secreta que o agarrava diante de cada cortina, cada tapeçaria de lã, cada prega de sombra e de sujidade. Sentia subitamente vontade de se transformar em bola de pinguepongue e de saltar loucamente de um lado para o outro do apartamento, em relâmpagos esbranquiçados, impossíveis de agarrar, impossíveis de matar, ligeiro, ligeiro, muito ligeiro. Rodopiava cada vez com mais velocidade de um quarto para o outro, empurrado pela sua dor, os olhos fixos, sem o menor pensamento, sem a menor consciência, mas com esse medo infame que o fazia estremecer dos pés à cabeça ao simples roçamento de uma mosca esperta, ao simples ruído dum verme roedor afastando as camadas mortas duma moldura de madeira.
As imagens desfilavam-lhe diante dos olhos, a porta, com o ferrolho puxado, as persianas fechadas, hermeticamente fechadas, os quartos vazios, os enxugadoiros naturais, as cadeiras de braços calmas, as colchas onde ninguém se escondeu, os corredores silenciosos, onde se vê tudo. Por fim, não podendo mais, tirou o punhal hindu que servia de panóplia na casa de jantar e pô-lo à cintura do pijama. Depois, como tinha frio, enfiou sobre o pijama listrado uma espécie de impermeável. Foi então que, ao passar em frente do corredor, viu o telefone. Sem fazer mais nenhum gesto, marcou o número, levantou o telefone e pôs-se a repetir, numa voz idiota:
"Está? Está? Está? Está? Está? Está? Está? Está? Está? Está? Está?" durante minutos inteiros, enquanto a campainha zumbia do outro lado do fio. Por fim, uma voz de mulher explodiu, fanhosa.
- Está!
- Está?
- Está! com quem deseja falar?
- Está? És tu, Paule?
- Sim, sou eu. Quem?
- És tu, Paule?
- Ah... és tu? Mas o que é que tens? Estás doido? Telefonar a uma hora destas!
- Paule, Paule, se soubesses como eu sofro. Não posso mais, juro-te. Não consigo aguentar-me. Por isso é que telefonei.
- Mas o que é que tens? O que é que te dói?
- Não, sei, mas é atroz. Insuportável. Afianço-te. É nos queixos, ao fundo dos queixos, mas não sei o que é. Dói-me muito, não sei o que hei-de fazer, eu...
- Mas o que é que tens? Onde é que te dói?
- Eu... Não sei, afianço-te. No queixo, dói-me muito sem parar.
- Doem-te os dentes?
- Não, não... não é isso. Não são os dentes, não. É pior que isso. Não sei o que é mas não é exactamente dor de dentes. Isto faz-me rebentar, não podes imaginar. É absolutamente atroz, já não consigo suportá-lo.
- Olha, eu não sei, eu...
- Desculpa ter-te acordado, Paule, mas eu já não conseguia dormir, e isto doía-me tanto, era preciso que te falasse, percebes?
- Não, não tem importância, eu não estava a dormir, mas... olha, experimenta dormir apesar de tudo, experimenta descansar, acalmares. Amanhã, irás ao dentista.
- Mas agora é que era preciso eu ir ao dentista, Paule, palavra, não estou a exagerar, é intolerável.
- Eu sei, compreendo, mas espera por amanhã, que é que queres que te diga? Não se pode acordar os dentistas às... Realmente, que horas são?
- Mas digo-te francamente que não posso esperar, não posso esperar mais, é preciso fazer qualquer coisa.
- Quatro horas e dez... Sim, eu sei. Mas o que é que tu queres fazer?
- Paule...
- O que é que tu tens, exactamente? É um abcesso?
- Não sei, tu...
-Já viste as gengivas? Estão muito vermelhas?
- Não, não há nada. Asseguro-te, não sei o que é... É... Não é completamente vermelho. Dói-me por dentro, no queixo todo. Toda a cabeça me dói, agora, eu...
- Tomaste comprimidos? Toma comprimidos.
- Tomei comprimidos, um monte de porcarias, aspirina, doridene, piramidona. Não me faz nada.
- Experimentaste supositórios?
- Não, não tenho. Mas precisava de qualquer coisa de muito forte, de morfina ou qualquer coisa assim. Mas não tenho nada em casa. E o tempo aperta, Paule, não sei o que vou fazer.
- Escuta, não sei, eu... Toma os comprimidos que ainda tiveres e depois tenta dormir.
- Eu podia ir a uma farmácia de serviço, mas de qualquer maneira não tenho receita, e precisava de uma coisa como ópio.
- Sim, é preciso ter receita para isso. Espera até amanhã, verás que tudo fica melhor.
- Mas eu não posso esperar mais, Paule, juro-te. Estou arrasado.
- Eu sei, mas tem de ser. Que é que queres que te diga? Se eu conhecesse...
- Além disso sou incapaz de andar, Paule, palavra. Dói-me a cabeça toda, dir-se-ia que vai rebentar. É atroz. E há outra coisa, Paule, há... Estás a ouvir-me? Paule, estás a ouvir-me? Paule?
- Sim, estou a ouvir-te. Que é que há?
- Não sei, juro-te, é completamente idiota mas tenho... tenho medo. Sei que é completamente idiota, mas é mais forte do que eu, tenho medo. Não posso ficar sozinho, não sei o que é, mas não posso mais, não compreendo o que é, cansaço ou qualquer coisa. É como se fosse morrer de repente. Como se fosse passar um acontecimento terrível, uma catástrofe. Estou sem defesa; tenho medo, Paule.
- Escuta-me. Vai-te deitar, espera por amanhã de manhã. Não te enerves. Em breve tudo passará. Mas ouve-me, é preciso que vás deitar-te e que descanses. Amanhã tudo acabará.
- Não, não, não acabará... tenho medo, Paule, compreendes, tenho medo. Não sei o que é, é a primeira vez que me acontece, mas tenho medo. Não sei de quê, ou melhor, sim, duvido do que seja mas não consigo compreender. Tenho a impressão que há pessoas em toda a parte à minha volta. Vão-me matar. Entraram e rodopiam por todo o lado. Escondem-se atrás das cortinas, debaixo das camas, na cozinha, e se não virar a cabeça muito depressa para os ver, vão-me matar. Ou então esperam o momento em que eu já estiver deitado. Percebes, Paule? Não posso tornar a deitar-me. Se me meto na cama, eles vêm com facas e apunhalar-me-ão nas costas. Paule, juro-te, eles hão-de vir. Só esperam por isto.
- Peço-te. Deixa-te de ser criança. Acalma-te. Sabes bem que não é verdade. Deves ter febre. Provavelmente é um abcesso. Tens de te deitar e experimentar descansar. Toma soníferos. E principalmente, descontrai-te, não penses em mais nada. Hem?
- Não posso, afianço-te. Tenho medo, é mais forte do que eu. Dói-me e tenho medo.
- Escuta, vou ver-te amanhã de manhã. Mas tens de repousar. Percebes?
- Oh, Paule, amanhã não. Peço-te. Vem já.
- Mas tu sabes muito bem que não posso. Os meus pais não deixavam. Tu acordaste-os ao telefonar, e estão furiosos. Agora, tenho de te deixar. Desculpa-me, mas já te disse que me é absolutamente impossível ir agora. Prometo-te, vou amanhã de manhã, pelas oito ou nove horas.
- Não podes vir agora?
- Não, é impossível. Se pudesse, ia, mas palavra, não é possível.
- Não sei, não sei o que vou fazer, agora.
- Vai descansar, vai.
- Não sei. Eu não devia, eu não devia estar sozinho. Pensava... Durante alguns segundos não falaram. Beaumont sentara-se num
banquinho, ao lado do telefone; metade do rosto tornara-se uma espécie de pedra, de granito sem dúvida, duro e friável ao mesmo tempo, percorrida por veiazinhas empanturradas de azul, em que cada elemento parecia manter-se agarrado por causa dum canto rouco e estridente, um grito de dor e de raiva. A voz da jovem entrou-lhe novamente pelo ouvido. Qualquer coisa mudara agora no timbre; do afastamento, talvez, ou então do cansaço. Disse ela:
- Compreende-me, o que me pedes é completamente impossível, completamente impossível.
Beaumont continuava imóvel. Os olhos estavam condensados nas pálpebras, como se as lágrimas tivessem gelado. Ouvia avidamente a salmodia gritante e triste que partia dos queixos e o unia às paredes do corredor; a mão direita tirava o auscultador do ouvido, e ele sentia-se partir, massacrado, rígido de espanto.
A voz continuava, muito fanhosa:
- Escuta-me. É absolutamente impossível, juro-te. Mas irei ver-te amanhã de manhã às primeiras horas. Só tens que esquecer-me e descansar. Telefonarei ao dentista, se quiseres. Verás que tudo corre bem. Não te preocupes, descansa.
Um zumbido eléctrico cortava as palavras da mulher, intrometia-se entre as palavras como uma mosca varejeira presa entre a cortina e o vidro da montra.
- Estás a ouvir-me, hem? Estás a ouvir-me? Está? Responde-me. Peço-te, compreende. - E depois: - Está? Está? Esta lá? Está? Está? Está? Estás a ouvir-me? Está?
O braço de Beaumont pendia-lhe agora completamente ao longo do corpo. Ao longe, muito ao longe, ouvia os ruídos do telefone; mas já não tinha vontade de ouvir nem de compreender. A simples ideia de ter de levar o auscultador ao ouvido parecia-lhe asquerosa, nauseabunda. Olhava para o papel que forrava a parede do corredor com os olhos ardendo de fadiga. O canto dos queixos era mais grave, a partir de agora; vibrava com longas ondas preguiçosas, que lhe desciam pela coluna vertebral, pelos braços, pelas pernas, e terminavam a sua corrida em cada extremidade, e muito particularmente no alto da cabeça, na ponta do cérebro, numa fraca explosão sem cor que se espalhava como uma onda de gasolina. Beaumont estava submerso nessas ondas; afogava-se; muito longe ainda, ou talvez mais exactamente como vindo de trás dum tabique, ouviu o estalido do telefone que a jovem desligara longe, em casa dela, antes de apertar o roupão e a camisa de noite preta de nylon, e de encaminhar-se para o quarto, e de bichanar, pela frincha da porta entreaberta, à mãe surgida das almofadas: "Mãezinha. Não é nada. Não é nada. Boa noite."
Abandonado no banquinho, no corredor, Beaumont sentiu-se invadir por uma fúria estranha, qualquer coisa de frio e agudo, uma descarga eléctrica da mão direita, por exemplo, e que o atirou de pé, para o soalho, afastado do telefone, coberto de músculos e de tendões, como despojado subitamente não só do pijama, do impermeável e do punhal hindu, mas também da pele, da sua longa pele branca, febril e retesada. com o queixo para a frente, caminhou pelo chão, em direcção ao quarto. Uma corrente de ar, muito fina, passava-lhe pela boca aberta, descia até aos pulmões, depois tornava a sair, tépida, carregada de odores e de gás, e mergulhava no meio da atmosfera, modificando lentamente percentagens e temperaturas. Era isso, a vida, nada mais, um fenómeno uniforme e vago, tão fácil de reduzir; e a dor, essa paixão incoerente feita de vibrações e de gráficos, a dor escorria nesse fio de ar, ligava os pulmões aos objectos vizinhos. Era uma planta de duplas raízes, uma fixada nas carnes humanas, a outra tatuada na matéria, como uma flor na tapeçaria de parede. com este órgão novo, imprevisto, a crescer dentro e fora dele, Beaumont recebia a indicação da sua própria morte; sorrateiramente, mostravam-lhe a pedra e o gesso, os papéis, os tecidos e os vidros, faziam-lhe conhecê-los, empurravam-no para eles, para o calmo desumano, para a ordem misteriosa onde o tempo já não corre, onde os movimentos são imperceptíveis, as sensações, eternas. Era ele, esse plinto era ele, essa cor amarelo-sujo, esses escombros, esses móveis, esses bocados de madeira roída, essas placas de pintura doente. O leito, esse monte de farrapos, cheio de lençóis e lã onde caía agora e que lhe balançava tranquilamente o peso do corpo. Sem sequer apagar a luz, Beaumont marinhou pelo cobertor até ao travesseiro. Depois colocou a cabeça na massa fofa e fechou as pálpebras.
No escuro, o sofrimento aumentou ainda mais, se era possível. Deixou de ser multiforme, arquitectado. Tornou-se um símbolo muito direito e nítido, claro ou sombrio, uma espécie de I triunfal, no qual estava empalado inteiramente. A posição achava-se agora assegurada, e até ao fim, até ao dentista-cirurgião, ao estornatologista, etc, devia guardá-la, girando à sua volta desesperadamente; a violência vertical. Não importava o que ia fazer, o que fazia efectivamente, isto é, levantar-se novamente, sentar-se na borda da cama, olhar-se no vidro da telefonia colocada em cima da mesa-de-cabeceira, tirar um cigarro, depois atirá-lo para o chão, sem ter coragem para o acender, não cessaria de estar de pé, de pé sobre as duas pernas, rígido, paralisado, desvairado.
Pegou então na garrafa de álcool e pôs-se a beber. O queixo não o deixava, não, mas a bebedeira fazia-o recuar. Pelas quatro horas e meia, estava a cerca de dois metros do queixo; um pouco como se um grande prego lhe tivesse sido enterrado no osso e nas gengivas, e que ele tivesse de o tirar, com todas as forças, para estender a ferida e arranjar espaço. Do outro lado da janela, os rumores eram mais frequentes. A cascata de água morrera tempos antes, mas fora substituída pelo som dos pneus dos carros, por passos humanos, por estrondos de redes metálicas que se levantam. Mais umas duas horas, duas horas e meia e seria dia. Espojado na cama, Beaumont acabava a última golada de álcool. Falava sozinho, de vez em quando, não com frases, mas com palavrinhas que resmungava ao beber, no género de "ai", "ai-ai-ai", "oh", "ah mal mal", "olá, ai", "ai-ou". O líquido escorria-lhe no esófago, mas ele estava seco; à sua volta, cada centímetro quadrado despejara-se do seu conteúdo em água; o soalho, o papel, os estuques, as cinzas, tudo secara, estava deserto. Era como grandes placas de ardósia, ásperas e poeirentas, onde o ar esfregava com ruídos de papel de esmeril; semelhante a um aspirador o cubo atmosférico do quarto regurgitava de partículas, películas, cabelos, flocos, brasas, farpas, limalha, ferrugem, duma espécie de areia ríspida e erosiva que entrava por toda a parte, bloqueava rolamentos de esferas, ligava espaços, unia os elementos uns aos outros.
Beaumont estava agora sentado num monte de cascalho, e o seu corpo parecia envelhecer no género das múmias. O queixo ferido era um osso curioso, um pouco amarelo e sujo, e os nervos estavam eriçados como ervas. A pele, outrora tão viva, essa pele onde o suor e a tepidez profunda tinham habitado, era apenas uma cobertura de lã, uma velha cobertura de cavalo comida pelos mitos, usada, cheia de nós e de malha grossa. O mundo tornara-se lentamente uma esquisita sinfonia de flanelas, cinzentas umas, outras vermelhas, ou morenas, ou azuladas, que se irritavam e arranhavam mutuamente. A lã das paredes contra o cru do ar; o bordado cor de laranja, sozinho, um ponto redondo, da lâmpada eléctrica; o saco usando a malha dos postigos, ou a baetilha dos telhados; o nylon das janelas na lã das paredes; o cru do ar contra a cetineta do soalho escuro. E cobertas, outra vez cobertas, aqui e ali, lençóis, vestuário de lã, fios-de-escócia, peles, veludos espessos e endurecidos, tecidos de algodão, tergal, musselinas, pelicas, panos, mais panos, por toda a parte, polindo-se uns contra os outros em movimentos imperceptíveis que espalhavam à sua volta nuvens de pêlo e de pó, ao mesmo tempo que um canto monótono de usura, um som único e discordante onde formigavam as raspagens, os desbastes, os tracejados, sem parar, sem fim, até cobrir todos os outros ruídos da cidade. Preso nestas mandíbulas, nestas mastigações lentas, Beaumont era uma orla de tapeçaria, uma bola de lã misturada, qualquer coisa de morto e consumível, enrodilhado no algodão do pijama listrado, encerrado nos panos de tela encerada do impermeável como num sudário, e vivia ali, completamente cosido naqueles escombros de máquina de tecer, sentindo as coisas mexer à sua volta.
Foi assim que viu o dia chegar, instalar-se no quarto. A luz eléctrica ardia ainda no mesmo sítio, na pêra de vidro suspensa na ponta do fio, ali onde dormem as moscas. Os sons metálicos, o martelar dos tacões, o zunzum dos carros tinham aumentado; às vezes um grito, ainda insólito, derretia-se numa boca escancarada que chamava pelas janelas: "Jérôme". Ou então uma espécie de sino arrastava-se ao longo das fachadas, provavelmente eram as matinas.
Pelas sete horas e dez, Beaumont levantou-se; já não tinha queixos, gengivas, dente do siso, o molar desvitalizado, nada. A barba era agora mais comprida, mais espessa na face direita. Cambaleando, avançou pelo corredor; parecia empurrar qualquer coisa diante da boca, sem dúvida o hálito carregado de álcool, e que se escapava em forma de triângulo. Pegou no auscultador que pendia na ponta do fio, e marcou um número com a mão direita. 80-10-10. Esperou de pé, sem dizer nada. O telefone tocou cinco ou seis vezes, do outro lado, no estúdio frente ao mar, perto da cama branca onde estavam peças de vestuário como despojos. Mas ninguém respondeu e Beaumont desligou. Fê-lo muito simplesmente, quase sem pena, os olhos velados pela bruma.
Depois girou o indicador no disco de dez números. 89-22-81. O telefone tocava. Por cima da cabeça de Beaumont, pregada na parede, havia uma velha fotografia tirada dum livro, um homem barbudo vestido com uma sotaina branca, tendo escrito por baixo:
O Padre de Foucauld
na ermida de Beni-Abbès
À quarta vez, uma voz respondeu:
- Está?
- Está? - perguntou Beaumont, numa voz tão fraca que o outro não ouviu.
- Está? - repetiu a voz.
- Está? - tornou a dizer Beaumont. - Está, quem está ao telefone?
- Beaumont - respondeu Beaumont.
- Quem?
- Beaumont. Eu...
- Quem, Beaumont? Que deseja? - gritou a voz.
- vou explicar-lhe - disse Beaumont -; não dormi durante a noite. Tenho uma dor horrível, nos queixos. Uma dor terrível. Não consegui dormir esta noite. Tive... tive mesmo de me embebedar para poder suportá-la. Percebe? Tentei telefonar a... a uma amiga. Queria que ela me viesse ver. Percebe? Tinha medo. Por mais que eu lhe pedisse, lhe explicasse, ela não quis. Disse-me o que lhe passou pela cabeça, enfim, a primeira desculpa que lhe veio, que era muito tarde, que os pais não queriam que ela saísse à noite, et cetera, e ela...
- Mas que tenho eu com isso, e em primeiro lugar quem é você?
- Ela não quis. Eram quatro horas da manhã e tinha vontade de dormir. Percebe? Preferiu dormir. Ela disse-me....
- Escute. Quem é você? E porque é que me telefona?
- Sou Beaumont, já lhe disse. Eu...
- Não conheço nenhum Beaumont, e além disso...
- Não! Ouça-me antes de desligar. Não desligue já.
Beaumont sentiu de repente a presença do punhal hindu contra a anca. A futilidade desta arma, ou qualquer outra coisa, desconhecida, surgiu-lhe, e ele tirou-a da cintura. A faca caiu no chão, junto dos pés, no lugar onde devia ficar até ao fim. Beaumont continuou a falar, lentamente, com dificuldade; as palavras atravessavam-lhe dificilmente a zona empestada da boca, essa zona agora despovoada da face no frio.
- Está? Sim. Ouça: vou explicar-lhe, tive tanto medo, esta noite. Nunca me acontecera uma coisa assim. A solidão, sim, devia ser isso, a solidão. Estava sozinho neste apartamento imenso, era impossível de suportar. E tinha esta coisa na boca, este tumor que me torturava. Pode imaginar uma coisa semelhante, pode ao menos imaginar? Telefonei então àquela rapariga de que lhe falei, mas ela não quis vir. Agarrei numa garrafa de álcool e comecei a beber. Até agora não parei. Estou embriagado, completamente embriagado. Mas não tem importância. Tenho a impressão que acabei, que tudo acabou. Não posso fazer mais nada, juro-lhe, é a verdade, é terrível, é... Já estive doente, você compreende, não, já estive doente, na minha vida, mas não sabia. Não sabia o que era. Também já estive doente, mas não assim. Assim não. Já tive dores de dentes e tudo, mas não era assim. Você compreende. Você compreende. Não era como hoje, este vazio, este silêncio, tudo isto, este abandono. Peguei então no telefone e marquei um número, ao acaso. Agora, não sei o que hei-de fazer exactamente, mas...
- Sim - disse a voz; tudo isto era ridículo, no género de correio do coração, cartas dos leitores, com tom de voz falsa, hesitações, quase literatura.
- Eu... eu não vejo o que possa fazer por si. Lamento. Adeus.
E o outro desligou. Beaumont não ficou ofendido, nem mesmo perturbado com a ruptura. Quase sem se mexer, marcou um outro número: 88-88-88. Longe, a quilómetros de fio telefónico, um disco começou a girar, repetindo a mesma frase: "O número que pede não existe. O número que pede não existe. O número que pede não existe. O número que pede não existe. O número que pede não existe. O número que pede não existe. O número que pede não existe. O número que pede não existe. O número que pede não existe. O número que pede não existe. O número que pede não exis..."
Beaumont pousou o aparelho. Depois marcou novos algarismos,
8+0+1+1+3+3.
- Está?
- Está! Podia falar consigo?
- Sim, bem... É da parte de quem?
Talvez Beaumont estivesse enganado, mas era uma voz muito fresca e muito jovem, uma voz de rapariga, quinze-dezasseis anos, sem dúvida, que atravessava a carapaça de baquelite em acentos puros, modulados para o agudo, às vezes com doces chiares na pronunciação das oclusivas, sobretudo das dentais. Beaumont ouviu a voz repetir a pergunta, e uma espécie de tristeza calma invadiu-lhe a face, misturando-se lentamente com a coluna da sua dor. Respirou.
- Chamo-me Beaumont - disse ele -; não a conheço, telefonei-lhe ao acaso, absolutamente ao acaso. Marquei um número no aparelho e foi você quem respondeu. Já não me lembro sequer do número, mas não tem importância, não tem importância visto que, de toda a maneira, dentro de momentos tudo acabará. Consente ouvir-me, consente em ouvir-me até ao fim?
- Não compreendo, eu...
- Se não quiser, não faz mal, desligue. Só tem de ser a primeira a desligar e eu tento outro número.
- Eu quero, mas porque é que faz isto?
- Porque é que telefono assim, ao acaso?
- Sim.
- Não posso explicar-lhe exactamente, não, não posso. Porque eu próprio não o sei muito bem. Quero dizer, há coisas que eu sei... estou sozinho, estou doente, e tenho medo, você compreende, estou completamente sozinho, sinto-me completamente só, e tenho medo.
- E você...
- Sim, é isso, sabe, isto tem um ar ridículo, dizer as coisas assim, mas já não posso permitir-me, já não posso permitir-me ter medo do ridículo. De qualquer maneira não me conhece, nunca me viu, e dentro de momentos tudo acabará, será esquecido. Compreende? Não sei como hei-de dizer isto, mas estou doente. Estou verdadeiramente muito mal, quase não posso falar. Começou ontem à tarde, não, durante a noite, pelas quatro horas da manhã. Acordei com esta dor nos dentes e isto começou a inchar, a inchar. Já não sei onde estou, eu... experimentei chamar uma rapariga que conheço, queria que ela viesse ver-me, porque não podia suportar estar sozinho, assim, com a dor de dentes. Mas ela... ela não quis vir, disse que não podia, porque eram quatro horas da manhã e tudo. Não sei o que fiz então, mas era terrível. Bebi uma garrafa de aguardente de ameixa, mas não fez nada. Passei a noite assim, sentado na cama sem fazer nada. Se ao menos ela tivesse podido vir, se ao menos tivesse querido. Era necessário, você compreende, era verdadeiramente necessário. Nunca na vida tivera isto. Era a única vez, sim, juro-lhe, era a única vez da minha vida em que teria necessidade que ela estivesse aqui. Agora, é diferente. Já não tenho necessidade de ninguém, você compreende. Agora, quando quiser, poderei ir ao dentista e ele trata-me. Tirará uma radiografia e dirá: tem um abcesso debaixo do dente do siso, ou sob o molar desvitalizado, ou qualquer coisa assim. Um abcesso. Apenas um abcesso. E está tão piegas. Pior que uma mulher. E nunca compreenderá. Não saberá o que foi esta noite no meu quarto. Se eu lhe dissesse, não acreditaria. Fá-lo-ia rir. Era isto, meu velho, um abcesso, apenas um abcesso. Vamos tirar-lhe o dente. É preciso dar-lhe uma injecção, espero que suporte as injecções, hem? Está a ver? A verdade, a verdade, é horrível. Quando se começa com ela já não se pode parar. E pode-se ficar assim horas, sem fazer nada, sentado na borda da cama. É por causa disto, é por isto que lhe telefono. De começo, apesar de tudo, apesar de todo este vazio, pensava que ainda se podia fazer qualquer coisa. Pensava que se poderia parar esta máquina, esta grandessíssima máquina, falando, mexendo, bebendo scbnaps, telefonando, ou fazendo coisas deste género. Mas agora, pronto, percebi. Há um estado que nunca se deve ultrapassar, e eu ultrapasseio-o. Já não posso voltar atrás. Agora preciso da minha dor, não sou nada senão por ela. E amo-a. Há coisas que não se devem conhecer, e eu, agora, conheço-as. Esta noite. Você sabe...
- Mas porque me diz tudo isto?
A voz hesitou, parecendo construir e destruir simultaneamente, depois continuou:
- Porquê?, porque me diz isto? O que é que vai fazer, agora?
Sem a menor emoção, respirando perfeitamente entre cada proposição, Beaumont respondeu:
- Ainda não sei. Francamente não sei nada. Disse-lhe há pouco, agora é diferente, já não tenho necessidade de ninguém. Estou só, verdadeiramente só, sozinho. Ainda me dói, claro, mas já não sei. Está esquecido, já, quase esquecido. Tenho um género de paz, uma espécie de pequena calma triste e silenciosa. Para sofrer verdadeiramente, é preciso amar alguém. E eu já não conheço ninguém no mundo, tudo se tornou para mim regular, indiferente. Estou só, e ao mesmo tempo estou já por toda a parte. Sim, por toda a parte. Por todo o lado onde há pessoas, sol, gente que vai e que vem. Trabalhos, sofrimentos. Sou tudo o que se passa na terra, todos os horrores e todos os prazeres. Tudo o que se diz e tudo o que se quer. Afianço-lhe, tudo. Porque estou vazio, vazio, vazio. E tudo pode acontecer em mim. Você compreende. Como um magnetofone, exactamente como isso. Ou como um aparelho de telefone. Os ruídos das vozes humanas correm em mim, durante quilómetros, quilómetros. Compreende? As vozes dos outros vão passar em mim, e eu ficarei frio e silencioso, todo o tempo. Já não saberei nada. Nunca mais direi nada. Uma folha de papel branco, muito branco. Deixo-lhe isso. Poderá escrever-lhe o que quiser. O meu nome, por exemplo, Beaumont, Beaumont. Ou então um jardim, com pedras e ervas. E eu enterrado lá dentro, sob uma pequena placa de mármore, e coroas, e falsas orquídeas. Ou então uma janela, uma janela aberta sobre o que quiser, uma paisagem de neve, uma rua cinzenta com homens dos caixotes do lixo a passarem. Sol, chuva, mistral, pessoas que vêm do cinema, à noite, e um autocarro que parte. Está a perceber?
- Chama-se Beaumont? - perguntou a rapariga.
- Chamava-me Beaumont, sim - respondeu Beaumont calmamente.
- Pois bem, Beaumont. Eu... eu pensarei em si.
- Quando eu morrer - disse Beaumont.
- Sim, quando você morrer - retorquiu ela.
Como não havia mais nada a fazer, ou a dizer, e como era realmente de manhã, agora, Beaumont pousou o aparelho. Voltou ao quarto, lá onde reinavam os lençóis em desordem, as cobertas manchadas de cinza de cigarros, e o odor farmacêutico da aguardente. Caminhou à volta da mesa, alguns minutos, com grossas pernas pesadas de cansaço e os olhos ardendo. Por fim, sentou-se na cadeira, como fizera quatro ou cinco horas antes, no princípio da dor. A manhã existia realmente; tinha ruídos de motocicletas que arrancam, claxons, gritos de homens, luzes esbranquiçadas e deslavadas, odores de fumo que furavam as janelas fechadas. Um sudário, sim, uma espécie de sudário. Num cartão-de-visita, onde estava escrito:
PIERRE-PAUL BRACCO
de acordo para quarta-feira à mesma hora
P. S. - Cine-Clube, amanhã ã noite, às 21 h. "L'Étang tragic", Jean Renoir
desenhou uma série de espirais e garatujou algumas palavras. Eram:
Estou contente por ter conhecido estas coisas
Agora eu Amo-as...
Até breve.
Beaumont.
E voltou-se para o interior da sua gengiva.
As pancadas do coração, no fundo do peito, levavam-no em ritmo através das artérias. Cada pancada seca que soava vinda do mais profundo do corpo fazia mover uma vaga larga de sangue espesso, e a vaga rechaçava nele próprio; num ponto desconhecido, muito pequeno, situado no extremo do queixo, e que levava todos os sinais da vida. Beaumont tornava-se minúsculo, como uma luva que se eclipsasse à medida que a virassem. Os pés e as mãos entravam-lhe no dente, pelo esmalte aberto, e filtravam-se para o fundo, em aspirações revestidas de borracha. Depois as pernas, os braços, o tronco, desapareceram por sua vez. Os ombros e a nuca seguiriam depois, lentamente e metodicamente. Os olhos fundiram-se, as orelhas achataram-se e aniquilaram-se, como que apagadas a borracha; os cabelos, despenteados, e a testa, e o nariz, e a boca, os lábios beiçudos, as maçãs do rosto, as faces riscadas de barba, todo o rosto se apagava. A carne e os ossos eram digeridos por uma espécie de serpente desarticulada, uma verdadeira boa de seis metros, um intestino vivo que vivia escondido no queixo dele; o rosto era apenas uma pasta informe, móvel, que fugia para baixo, para o orifício, à maneira de uma água de lixívia desaparecendo pelo escoadouro aberto dum lavabo.
Quando se instalou no dente, no centro duma área polposa cheia de sono e de tristeza, Beaumont sentiu-se extraído da sua dor; estava longe e flutuante, prisioneiro numa gaiola de marfim, e ávido de estar sofrendo no sofrimento. Era a harmonia perdida no dia do seu nascimento, e subitamente reencontrada sem desejo, sem inquietação, como se tivesse sido condenado por um tribunal de homens e animais; um género de inverno branco e triste, mas onde tudo era elegante, infinito, majestoso. Os cantos claros já não lhe habitavam as orelhas; já não tinha orelhas, e era ele a canção. Estava orgulhoso do seu novo corpo, o de dentro-do-dente; divertia-se a movê-lo em todos os sentidos, pelo único prazer de descobrir do que era capaz; ia sem parar pelos géneros mais diversos, da ópera cómica ao negro-espiritual; era o clarim, o clarinete, o saxofone-alto, ou então o estalido seco duma unha que se parte. Muito alto e maquinal como Albinoni, ou então seco e curvado como Shelly Manne. Sons de gongo, chiando brutalmente em superfícies inteiras planas, tubuladuras, ou ainda ribombos, gorgolejes, soluços. Apenas um assobio agudo, no género das pilecas sozinhas na noite. O ritmo mole e duro simultaneamente do contrabaixo, cortando o silêncio em duplos sons, Charlie Mingus, continuado sem parar um sobre o outro, mexendo, arranjando escalas, uma barragem, depois o tempo da valsa, e uma chuva de notas descendo ao mesmo tempo por duas cordas diferentes, e sopro, sopro de pulmões que se desdobram, até à união, até à junção, o ponto A, onde, sombriamente, duros, muito duros, dolorosos, os pares de estrondos escoam-se duma assentada, com um miar ridículo que se espalha como um duche. Estes gritos e estes tumultos, que ele escolhera, eram do género duma felicidade bizarra; qualquer coisa de infinito, e no entanto de desesperado, de que não tinha o domínio senão contra vontade.
Beaumont, sentado no dente, no quente, mesmo na dor, as duas pernas encaixadas nas ranhuras das raízes, era embalado por outro movimento; o da recordação do sol, por exemplo, ou do tempo que passa depressa. Havia no centro da sua canção multiforme como um animal particular um verme de patas que não podia morrer. Tinha com ele o mundo dos rumores e das luzes, dos ruídos e do pó, das ruas esventradas, do frio, do derramamento dos esgotos. E os magotes dos primeiros homens da manhã, caminhando para os escritórios, metidos nos impermeáveis.
Beaumont abandonou a cadeira, a cama, os cinzeiros e o quarto; andou um bocado pelo telhado da casa que conseguira alcançar graças à mansarda do patamar do último andar. Contornou o algeroz e atingiu a zona que o nascer do Sol batia com os raios. Devia ser qualquer coisa como oito horas, oito horas e meia. O vento, bastante frio, vinha de frente e chapeava contra ele o impermeável e o pijama de riscas. Beaumont viu a rua debaixo dele, e a casa em frente; as portas das janelas estavam ainda quase todas fechadas. No passeio, ao lado da farmácia, uma rapariga ergueu a cabeça e olhou na sua direcção. Beaumont para disfarçar instalou-se na inclinação do telhado. Depois, com o cansaço, sentou-se sobre os calcanhares, agarrando-se com a mão direita a uma ranhura de telha para não cair. Ficou assim, durante muito tempo, ao sol, sentado no telhado entre os excrementos dos pássaros.
Parece-me que o barco se dirige para a ilha
Outro dia, sentia frio em casa e desci à rua para andar um bocado. Não gosto lá muito de andar por andar; devo mesmo dizer que acho isso um pouco ridículo, a posição vertical. Não sei balançar normalmente os braços ao longo do corpo, ao inverso do movimento das pernas. Mas visto que é preciso fazê-lo, faço-o, o melhor possível, e tento assemelhar todas as minhas forças a uma espécie de grande pássaro equatorial que saísse da água, com todas as penas coladas à pele traçando para o futuro pegadas de patas fossilizadas. É assim que eu ando.
A rua onde moro dá para um bairro popular, e foi para lá que eu fui naturalmente, sem motivo aparente. No entanto não fui logo para ali, porque não gosto de me encontrar bruscamente num sítio que me agrada sem estar preparado. O meu sonho seria morar nos arredores da cidade, nas colinas cheias de jardins e escadas. Assim teria de andar alguns quilómetros, a pé, antes de chegar ao centro da cidade, e teria tempo de me adaptar ao longo do caminho. Ao princípio não encontraria ninguém, e não haveria quase habitações. Apenas campos felpudos, velhos muros apodrecidos, e montes de lixo de longe em longe, na borda dos taludes. Veria tudo isto, cheiraria todos os odores ainda não misturados. Quando tivesse necessidade, parava uma vez por outra na entrada e dava pontapés nas caixas velhas de conservas. Depois passaria por um cemitério abandonado, cruzaria por acaso com uma ou duas velhas de luto, talvez até com um carteiro. E continuaria a descer a colina. Seguiria por atalhos através cios campos, passaria por vivendas onde não haveria nenhum barulho. Mais abaixo faria ladrar os cães.
Descia então uma grande escadaria coberta de folhas mortas e passava entre sebes de pimenteiras e acácias. Pelo 223º degrau, encontrava uma coluna de formigas em êxodo. E não percebia o que as tinha levado a fugir da vivenda da esquerda, a fome ou os insecticidas, para irem para a vivenda da direita. Encontrava também um papel amarrotado numa valeta, no qual uma mão de estudante escrevera:
On the 12th ofjuly 1588 Drake was playing bowls at Plymouth with some of bis offícers.
A Mancha separa a França da Inglaterra.
Parece-me que o barco se dirige para a ilha.
Ouviu falar do acidente?
Nos carros ingleses o volante é normalmente à direita.
Napoleão não pôde desembarcar em Inglaterra porque a frota francesa fora destruída em Trafalgar.
e vários montes de cigarros. No fim da escada, veria alguns garotos a brincar, e carros parados. O Sol brilharia muito baixo, rente ao mar, quase a apagar-se. Mas no último momento, o sino da missa das oito horas, a saída dos alunos, ou qualquer coisa deste género, obliquaria para a direita, desapareceria atrás do campo de aviação. Mais abaixo, sempre mais abaixo, os homens e as mulheres seriam mais numerosos, as vivendas cada vez mais juntas, até fazerem apenas um bloco de prédios, andares, janelas e balcões, elevadores, telhados tão altos que não se pode saber se são de telha ou de cimento, garagens, passeios, cruzamentos, bocas de esgoto, um parque cheio de mulheres e de landós, vários cães, tudo cada vez mais apertado, cada vez mais cidade, até que insensivelmente deixo de caminhar na terra para andar sobre alcatrão e areia.
Ao fundo, parei na borda do passeio e olhei os carros a moverem-se. Havia muitos, em todos os sentidos. Era um cruzamento esquisito, sem o menor tufo de verdura no centro, com uma boa meia dúzia de luzes de sinalização que se acendiam uma de cada vez. A certa altura, um carro alemão chocou com uma camioneta; os donos desceram e olharam para os pára-choques durante alguns segundos, sem dizerem nada. Iam começar a discutir, mas, atrás deles, começaram a tocar e tiveram de partir para arrumarem mais longe. Acendi um cigarro, sem dizer nada também, e esperei a continuação. Era um pouco como se eu tivesse estado a uma janela, nos arredores a olhar uma rua. Havia movimento, muito movimento, em todos os sentidos, e no entanto tinha tudo um ar tranquilo. Era talvez um ritmo, ou o contrário de um ritmo. O chão era completamente liso, sem a menor aspereza, onde o olhar pudesse deter-se, um joelho a raspar e a sangrar. Um pouco no género de um cartão brilhante com caracteres impressos na lustração. Os carros rodavam sem ruído, sem choques, quase sem se mexerem. Depois desapareciam nas ruas, numa fuga suave que fazia pensar em gotas de água num vidro. As pessoas passavam também muito depressa, mas quanto a elas fazia pensar de preferência num espelho que não reflectisse nada. Era tudo líquido. As coisas estavam colocadas umas sobre as outras, completamente, e o conjunto era harmonioso. No entanto, estava longe de ser perfeito; havia qualquer coisa que me aborrecia naquilo; qualquer coisa que me tornava vagamente inquieto. Era o que é que eu vinha fazer, eu, o que é que eu podia fazer no meio de todas estas coisas, nesta história?
E, além disso, estava frio. Acabei de fumar o cigarro, atirei-o para a calçada, exactamente para debaixo da roda da frente dum camião que passava. Levantei a gola do casaco e comecei a calcorrear a rua. Olhei as montras das lojas, umas a seguir às outras. Numa exposição de sapatos, havia uma vendedora. Para dizer qualquer coisa, perguntei-lhe:
- A como é que são as pantufas?
- As forradas?
- Sim.
- Quinze francos.
- Obrigado.
Dei seis vezes a volta ao quarteirão de casas. À sexta, conhecia quase tudo: os dois cafés, um com um quiosque de tabaco + a drogaria + uma sapataria + dez candeeiros esverdeados + posto da polícia e objectos achados + uma loja de cerâmica da Étoile + calçado André + 56 carros estacionados + 11 scooters + 7 bicicletas + 1 vélosolex + farmácia da esquina + uma loja da Guilde + cintas e soutiens + vendedor de jornais e livraria + os anúncios + uma relojoaria-joalharia Massena + uma reparação do passeio, perto do ângulo sul + vinhos alcoólicos e meio alcoólicos + barbearia + um quiosque da lotaria nacional + "Florence" de Paris + um tudo a 1 franco + um oculista + outro barbeiro para homens e senhoras + Jean Leclers cirurgião-dentista + uma pastelaria + a entrada da garagem, escura e gordurosa + "Automatic" + uma loja Singer + portas + rés-do-chão + janelas com grades + desenhos nas paredes + manchas + proibido estacionar + campainhas + chá Lipton + um mendigo sentado no chão + janelas + janelas + janelas, todas essas aberturas e todas essas escavações rentes ao chão esburacavam as paredes de todos os lados; à sexta vez, no entanto, tive de parar; gostaria de ter continuado assim, durante horas, ou mais, mas os polícias de serviço à entrada do posto da Polícia começavam a olhar-me com um olhar esquisito, e pensei que mais valia não tornar a passar diante deles.
Segui então em linha recta, ao longo da rua principal. Tinha sensivelmente menos frio; ao fim da rua havia uma espécie de sol de Inverno muito baixo, que parecia imóvel. Ao andar, olhei-o durante um momento, e tive vontade de saber de repente o que é que podia passar-se com as pessoas que viviam 5000 quilómetros mais longe. Para eles, o Sol devia estar muito mais alto no céu. Ou talvez uma toalha de nuvens tapasse o calor, misturando os doces raios com gotas de chuva. Mas de lá onde eu estava, no Inverno, era muito difícil saber. Comecei a andar muito calmamente, colocando primeiro os tacões no alcatrão frio com os dois olhos fixos na bola branca que se afogava perto do horizonte. O que era estranho, ofuscante, era que eu me sentia viver, na mais profunda evidência, e que ao mesmo tempo me parecia ter tornado transparente à luz. As vibrações do clarão passavam através de um bloco de ar, e faziam-me ondular suavemente de cima para baixo. Todo o meu corpo, todo o meu corpo vivo era atraído invencivelmente pela fonte luminosa, e eu entrava longamente no céu aberto; era bebido pelo espaço, em pleno movimento, e nada podia parar essa ascensão. Estava como que construído, tijolo, sobre tijolo, num alto edifício, numa muralha circular que se estendia secamente até ao mais profundo dos céus. A minha carne estava cimentada neste relevo do mundo, e eu sentia-a nascer e crescer, estalando, esticada, preguiçosa para o sol, no género de um eucalipto. Era a liberdade, ou qualquer coisa assim. Cruzava com homens e mulheres na rua, e distinguia-os muito nitidamente, cortados em sombras chinesas no fundo branco do horizonte; ou ainda com obstáculos, animais, lampadários, velhos caminhando na ponta do passeio vinham ao meu encontro; mas no último instante pareciam fundir-se como ramagens e eu continuava sempre a entrar no céu vazio.
Caminhei assim durante muito tempo, sem me dar conta. Depois a rua deu uma curva, e a luz faltou-me. Encontrei-me junto de uma parede de betão, uma cerca de terreno baldio, uma paliçada duma demolição ou qualquer coisa de semelhante. Encontrei-me assim, bruscamente, na sombra, nu, arrefecido, e foi-me necessário olhar intensamente vários objectos, e algumas pessoas, para tornar a ser pequeno e anónimo.
Alguns minutos mais tarde, o Sol pôs-se. Não o vi desaparecer, mas compreendi por certas coisas à minha volta que isso se dera muito simplesmente. Uma meia tonalidade de cor mudara, na rua, e nas fachadas das casas. Passara-se discretamente da sombra à falta de luz. E, quase ao mesmo tempo, os revérberos acenderam-se, uns a seguir aos outros. Olhei um momento a estrela azulada que aumentava no interior das lâmpadas, voltava ao verde, depois ao esbranquiçado, depois novamente ao azul, mas mais cru; achava isto divertido e familiar, estas luzes que progrediam assim suavemente nas ruas da cidade. Senti de repente vontade de estar muito alto no céu, num helicóptero, ou então no cimo de uma colina, para poder seguir o rastejo dos pontos brancos. A cidade seria desenhada por mim, em relevo, e eu pensaria em todas estas casas e em todas estas ruas onde a vida humana estava em acção; pensaria em todos os desejos que se podem fazer seguindo com o bico do lápis as séries de penteados. Pensaria em montes de camas, de quartos quentes, de mesas, de cadeiras, de carros, de carroças com legumes. Estaria aqui, ou ali, ou em qualquer lado, tomando de cada vez uma luz como ponto de referência. Ou então pensaria ser a própria cidade, e sentiria no meu corpo chato, cheio de inchaços e de verrugas, as picadas agudas destas luzes, como o ponteado de uma máquina de coser invisível.
Quando tudo estava completamente escuro, com os pontos brancos das janelas e dos revérberos, tornei a pôr-me a caminho. Acendi outro cigarro, e fumei-o enquanto andava. Reparei nas caras das pessoas com quem cruzava na rua, ou por quem passava, ou que passavam por mim. A luz alterava-lhes os ângulos, e tão depressa eram olhos, com pesadas bolsas debaixo das pálpebras, como cabelos iluminados como auréolas, como mãos, pernas móveis, fatos tornando-se rugosos à luz do néon, silhuetas escuras deslocando-se na sombra, junto das paredes. Caminhei assim durante algum tempo fazendo grandes círculos pela cidade. Passei pela periferia, longe do mar, num quarteirão de fábricas de gás e terrenos baldios. Era deserto e fazia frio. Depois fui dar a uma praça, uma enorme praça em forma de gôndola, cobrindo o leito do rio, onde não havia nada, nem uma árvore, nem uma casa, um vendedor de gelados ou de jornais, nada a não ser carros parados. Atravessei o parque a todo o comprimento. Vi centenas de vidros escuros, carroçarias, preto, azul, cinzento, vermelho, verde, branco, pneus, pára-choques, faróis, limpa-vidros. Também aqui estava tudo deserto. De tempos a tempos, do meio deste mar de carros, sob a chuva suja dos revérberos, emergia um homem sozinho, vestido de gabardina, ou então um casal, equilibrando-se num capote; libertava-se de todas estas máquinas paradas uma espécie de rumor confuso, que já não era ruído mas ainda não era silêncio. Como se o bramido contínuo dos dois rios paralelos das ruas enquadrando o parque penetrasse nestas massas de ferro congelado e as fizesse soar surdamente, com uma música cheia de óleo sujo e de afastamento.
Eu era de qualquer maneira alimentado por este rumor. Entrava-me pelas orelhas e por toda a pele e instalava-se-me no interior do corpo, destravando mecanismos desconhecidos, rodas dentadas. Ao fim de algum tempo tornara-me uma espécie de carro, uma máquina de ocasião sem dúvida; a pele endurecera-se-me, tomara tons metálicos, e, no mais fundo dos meus órgãos, era uma mecânica dançante que se descarregava, à direita, à esquerda, à direita, à esquerda. Saltavam pistões, fugiam bielas, e no interior duma dobra de carne sólida, no género do traseiro, uma respiração quente e forte acendia-se muito depressa, e apagava-se no seu próprio brilho, repelindo vagas de fumo cheias de fuligem, pesadas e largas como toalhas de sangue. Preso pelo movimento e pelo automatismo, encontrava-me perdido no centro deste labirinto de carroçarias deslumbrantes. Tropeçava nos pára-choques cromados, era fuzilado pelos feixes dos faróis, entalado, esmagado no chão por pares de rodas que passavam por cima de mim e desenhavam os motivos dos pneus na minha pele. Mexia-me sem parar, introduzia-me entre as filas de carros. Ao passar, nomes agarravam-se a mim e ficavam fixos nas retinas, De Soto, Pontiac, Renault. Ondine, Panhard, Citroen, Ford. Sem correr, andava em ziguezague no macadame, contornava as formas obesas, os ângulos dos guarda-lamas, os pára-brisas, as malas, as rodas sobresselentes. Rastejava debaixo dos camiões, raspava as costas nos veios de transmissão, em claros-escuros cheios de odores de gasolina e óleo. Na sombra gordurosa e entre os pneus. Eram para mim quartos minúsculos, atabafantes, com paredes de borracha, e cujo tecto, muito baixo, formigava em tubuladuras e fios. E eu instalava-me nestes quartos, muito perto do chão, e habitava-os inteiramente, como um quadrúpede. Era isso, eu era uma espécie de cão assustado pelos barulhos e pelas luzes e rastejava durante todo o tempo sob o ventre dos carros.
Quando saí do parque, ao passar por debaixo de um Berliet, vi um jardim público, e, por trás, uma praça enorme rodeada por arcadas; foi lá que caminhei durante vinte minutos. As pessoas começavam a olhar-me com estranheza, porque, como andara por debaixo dos carros, manchara o fato com óleo e rasgara as calças no joelho direito. Caminhei para a parte mais densa da multidão e deixei-me levar pelo movimento sem dizer nada. Quando fiquei cansado, escolhi um banco à beira do passeio e sentei-me. Fumei um cigarro vendo os carros passarem. Momentos depois, como não sabia o que havia de fazer e como nunca gostei de olhar as coisas de frente durante muito tempo, comecei a gravar letras nas costas do banco, com uma pedra aguçada. Deu qualquer coisa como
AXEIANAXAGORASEIRA
Vi uma miúda que se esforçava por patinar só com um patim. Tomava balanço, depois atirava-se para a frente, os dois braços no ar, e deslizava só num pé. Mas perdia imediatamente o equilíbrio e todas as vezes esteve quase a cair. Caiu mesmo duas ou três vezes. Mas isso não parecia desencorajá-la, e recomeçava sempre, incansavelmente; houve um momento em que passou muito perto do banco e agarrou-se-lhe para parar. Olhei-a e disse-lhe:
- Não tem medo de cair?
Mas ela não me respondeu. Um minuto mais tarde, como voltasse junto do banco, tornei a fazer-lhe a mesma pergunta. Respondeu-me:
- Precisava de ter os dois patins, assim não cairia. Perguntei-lhe porque é que não tinha os dois patins. Reflectiu um
momento, depois respondeu:
- Foi Ivan. O meu irmãozinho. É ele quem tem o outro patim. Compreende, os patins são dele, por isso só me empresta um.
Deu uma ou duas voltas, ao pé-coxinho, evitando os transeuntes, depois voltou junto do banco.
- E mais. Se me emprestasse o patim direito seria fácil. Mas ele só me empresta o patim esquerdo, por isso...
Disse-lhe que não sabia haver esquerdo e direito nos patins com rodas, pensava que eram intermutáveis.
- Geralmente são. Mas estes são patins especiais. Está a ver - disse ela mostrando-me o pé -; como vê, tem uma espécie de bota. Em geral, só têm correias. Mas nestes patins há uma espécie de bota para pôr o pé; são especiais; é para que não nos aleijem.
Eu disse que era uma parvoíce que não se pudesse pôr o patim esquerdo no pé direito, e que devia ser muito difícil manter-se assim na perna esquerda, excepto, claro, para os canhotos. Ela olhou para mim com um ar um pouco condoído e explicou-me:
- Canhotos, isso é nas mãos, nos pés não é conhecido.
Por mais que eu tentasse dizer-lhe que havia pessoas que eram canhotas tanto dos pés como das mãos, não quis acreditar-me. Disse-me que era idiota, completamente idiota. Contentei-me então em repetir que devia ser muito complicado patinar com o pé esquerdo. Ela gritou-me:
- É uma questão de hábito.
E recomeçou a correr. Desta vez foi para muito longe, e um grupo de pessoas que passava ocultou-ma. Esperei um momento que ela aparecesse, porque queria pedir-lhe que me emprestasse o patim para dar uma volta; mas ela não voltou, e, como começava a sentir frio novamente, parti também.
Nos arredores da estação, encontrei uma amiga de infância; chama-se Germaine, Germaine Salvadori. Há muito tempo que não avia, por causa da viagem que eu fizera à Bulgária. Falámos vagamente, de coisas insignificantes, de pé, na beira do passeio. Disse-me que era casada, agora, e que tinha uma filha, chamada Élodie. Eu disse que era um nome curioso, etc., mas na realidade era falso, achava aquele nome pretensioso e cabotino. Ela propôs-me ir tomar um copo, provavelmente em recordação do tempo em que eu saíra com ela. Tinha sede e aceitei. Ouvi tudo o que ela me disse, a sua viagem a Espanha, o casamento, o nome do marido, o filho, a educação, o ofício, tudo apaixonadamente, como se fosse a verdade. Havia qualquer coisa que eu não compreendia, uma espécie de drama que me escondia tudo. Desejava intensamente descobri-lo, afastar quantidades de muralhas, esgotar todas as vias do labirinto, metodicamente, uma a uma, abrir um buraco com a cabeça no obstáculo do esquecimento. Era exaustivo. Depois de uma hora doía-me o interior do cérebro, atrás dos olhos, e as luzes e os ruídos do café moviam-se à minha volta como pessoas. Sentia-me couraçado, hermeticamente fechado contra não sei o quê e impermeável aos fogos-de-artifício dos outros homens e desta mulher. Disse-me ela:
- Soube do teu êxito com a peça de teatro. Li nos jornais, e isso lembrou-me o tempo de estudantes. Como é que se chama a tua peça? Já não me lembro...
- Avant-Propos.
- Ah sim, Avant-Propos. Lembrava-me que era em duas palavras, mas só encontrava Abat-jour, ou Ex-voto, ou Segunda-intenção ou qualquer coisa assim. Enfim, a coisa correu bem, estás contente?
- Sim, finalmente, estou contente - disse eu.
- Não a li, mas falaram muito dela nos jornais, no momento em que saiu. É sobre o problema da paixão, não é?
- Sim, é isso. É sobre o problema da paixão.
- E agora, o que é que vais fazer?
- Queres dizer sobre o ponto de vista teatral?
- Sim.
- Oh, não sei. Espero.
- Deves ter ideias interessantes, não?
- Sim, mas prefiro esperar mais um pouco.
- Ah sim, deixas vir a inspiração.
- Sim, é isso, penso que vale a pena esperar mais um pouco.
- Olha, estou a lembrar-me de um ensaio que tu fizeste, recordas-te? Um ensaio sobre o Bateau Ivre? Tu tinhas ideias muito originais, nessa altura, tenho a impressão. Ultrapassava nitidamente o nível da turma, não acreditas? Aliás, Berthier não te reprovara esse ano no exame. Toda a gente julgava que eras um trapaceiro, mas eu sabia que tu eras alguém. Francamente, não é verdade, sabia que farias qualquer coisa.
Sorri humildemente, acabei o copo de cerveja, e disse que era melhor partir, agora, por causa dum encontro importante. Se eu lhe dissesse de uma assentada que estava farto de estar ali, àquela mesa, naquele café, no meio das pessoas, em frente dela, não teria percebido; mas desculpando-me com um encontro importante, tinha a certeza que ela não protestaria. Chamou o criado, pagou as bebidas e levantou-se. Saímos juntos, e, à entrada da porta, dissemos adeus um ao outro. Vi-a ir para a esquerda, depois perder-se na multidão, entre um quiosque de jornais e uma montra de jóias cheia de um néon brutal.
Começava a ser tarde, naquela altura, nove ou dez horas. Já se percebiam através da cidade os sinais de silêncio que viriam. O sono entrava em todas as coisas e enrolava-se lentamente. Uma matéria gelada e calma, que não vinha de parte alguma, talvez do fundo do céu, ou desse ponto do horizonte, dessa mancha escura e profunda no sítio oposto onde desaparecera o Sol. Como animais habitados por estranha inquietação, exactamente como um voo de pombos ou de moscas, os homens e as mulheres rodavam ao longo dos passeios, tão depressa escuros como iluminados pela luz baça de uma loja. E os candeeiros começavam a arder sozinhos na noite compacta.
Quando vi estas coisas espalhadas por toda a parte, sobre os meus olhos, senti uma grande tristeza clara e nítida apoderar-se-me do espírito. Compreendi que tudo era evidente, puro e gelado, consumindo-se eternamente sem calor nem cintilação, como estrelas no vazio. Compreendi que o tempo passava, estava na terra e que cada dia me esgotava mais, sem esperança mas sem desespero. Compreendi que quando volta ciclicamente o Outono, já não sou nada.
Voltei atrás e tomei a avenida que conduz ao rio. Desci os degraus de uma escadinha e caminhei pelo leito seco do rio. Passei por cima de seixos, entre bocados de mato e charcos de água podre; ao fundo, à esquerda, havia a corrente de água suja que deslizava tranquilamente. As vezes, entre os montes de pedras, viam-se regos de lama onde flutuavam raminhos. O ar era escuro e por placas, cheirava a fumo. Ao lado de montes de imundícies, braseiros e caixas despregadas atestavam a presença duma vida humana secreta. Mais abaixo, na direcção do centro da cidade, o rio passava sob uma praça coberta e os vagabundos viviam lá todos juntos. Quando vinha o Inverno, à medida que o frio avançava recuavam para o interior do abrigo; às vezes uma cheia súbita engrossava o rio e afogavam-se todos ou quase todos.
Errei um momento assim, através do depósito de esgotos; tinha muita sede, e bebi água num dos charcos de lama. Se apanhar febre tifóide tanto melhor; é um fim como qualquer outro. Sentei-me depois num monte de pedras e fumei um cigarro. Olhei a cidade ainda mais uma vez e descobri um divertimento. Agarrei com as duas mãos muitas pedras e atirei-as a uma caixa de conservas que estava no alto dum montículo. Quando acabei, estendi-me de costas, nas pedras frias, e olhei o céu escuro. Não sei porquê lembrei-me de repente de um poema que o meu irmão Eddie escrevera antes de partir, há uns seis ou sete anos. Recitei-o em voz alta, para mim e para os mendigos. Era assim:
Amargo
Retiro os meus desejos
Deixo correr a minha glória
Entreabro a porta ao não
Estou-me nas tintas que os pássaros voem.
Já não gosto do vermelho
O destino é um escadote Para os incapacitados.
Amanhã tomo o comboio
Para a capital das borbulhas nas folhas das árvores.
Depois fiquei durante muito tempo estendido nas pedras. Nunca senti o frio nem os odores. De mim só ficou um espaço, pousado ligeiramente como uma folha morta. Mais nada. E agora, venho rever todas as noites, do alto da balaustrada sobre o leito seco do rio, entre os calhaus, as ervas e as imundícies, o sítio donde desapareci.
Atrás
Hoje, 15 de Abril do ano XXV depois do meu nascimento. Antes, andar. O comboio corre por mim sozinho na noite e os vidros tremem e batem. A velocidade penetrou sem dúvida em cada roda, em cada placa de aço gorduroso, e tudo vibra, perdidamente. Eu mexo-me e vibro também, em qualquer parte no fundo do meu corpo, e a vibração sobe o edifício dos meus órgãos, electricamente, com formigueiros, com pulsações, exactamente como uma invasão de micróbios. Sou apenas isto, vibração, e as ondas curtas e secas percorrem-me os segmentos, os ossos, os montes de nervos. A velocidade sólida. Qualquer coisa sai de mim, excessiva, pura, fria, semelhante a uma longa lâmina de faca. E eu espero. Antes disto, acidar sempre. O meu rosto está, talvez, mais mole, é já mais mole. Sinto os fémures e as tíbias encarquilhados, a pele do ventre fazendo pregas. Ainda nada... vou mais longe: o coração, agora; o coração, que bate sensivelmente mais depressa, sensivelmente menos forte. Os pulmões são apertados de repente. E a velocidade, sempre a velocidade, que sai de mim. Imagens complicadas, vãs, arquitectam-se. Sons muito longos, roncos, semelhantes talvez ao ruído da deslocação de ar num incêndio. É isso: estou frente a um incêndio gigante, que abrasa metade da cidade. O incêndio passa, torna a passar, e eu não me mexo. Estou ainda numa espécie de comboio, sem dúvida. 20, 19, 18, 17, 16, 15... Qualquer coisa decresce, decresce depressa, não consigo deter. Sou como que sorvido, como que aspirado por uma digestão voraz, não me defendo, ou mal, nada é possível. O comboio sou eu. Compreendo agora, que posso fazer?
Pode-se lutar contra um comboio? O sopro poderoso, os carris terrivel mente compridos, rectilíneos, entrados em mim com uma violência que rasga tudo, as rodas, os eixos que chiam, os foles, os vidros escancarados sobre quadrados negros de noite e ar, sobre o gelo, o céu imóvel, a máquina que puxa, em frente, em frente, que reboca o seu fardo, sem esforço, através do campo nu, tudo isso sou eu, eu que escavo, eu furioso, eu feroz, eu como um búfalo louco. Passo por cidades, séries de cidades onde as luzes brilham e mudam de lugar. Correm fios diante de meus olhos, elevando-se, descendo, elevando-se, descendo. Etc. O frio entrou no meu corpo com o movimento, e eu tornei-me horizontal, achatado na terra, estendido nela como uma toalha de água. E deslizo por toda a parte. Nada mais me retém. Invado os buracos, ataco e cubro as elevações, espalho-me, flutuo, tenho ondas.
Os mesmos números sempre, contados ao contrário, escapam-se de mim. São segundos, sem dúvida, inefáveis vãos segundos que partem todas as coisas, fazem traços, depois apagam, cortam paisagens, frases, palavras, cartas. E nunca há mais nada. Uma voz que eu oiço, mas que não conheço, soletra assim o meu nome e deforma-o, apouca-o, contrai-o. E enquanto esta voz fala do meu nome só, sinto que vou para qualquer parte; não sei ainda para onde, mas é um ponto preciso, situado no exterior, e que me atrai irresistivelmente com o seu esgotante movimento de força. Aspira, devora.
"Henri Pierre Toussaint"
"Henri Pierre Toussaint"
"Henri Pierre Toussaint"
ri ouss"
" rier Toussaint"
er Touss" "Toussaint" "Touss" "Touss" "ouss" "ss"
Eis no que me tornei. Fui sacudido como um verdadeiro monte de gelatina. E muitas coisas me escapam, saem fora de mim, esvaziam-me; parece-me que sou o casco dum grande navio, e que os homens e os ratos fogem de mim, se dispersam atacados de terror, enquanto eu deslizo pesadamente para o interior do mar. vou transformar-me num deserto, no canal dum poço aéreo, partido de parte nenhuma e dirigindo-se para um abismo.
O meu corpo perdeu muito, agora. Vi-o dobrar-se nesta espécie de juventude, e fazer-se pequeno. Não há músculos já, ou quase. As minhas mãos são curtas, quadradas, e as veias tornaram a entrar na pele branca, como tinham saído. Tudo bule mais depressa, tudo é liso, agradável. O número decrescendo despojou-me mais, e eu vou recuando, recuando, recuando, ainda mais longe, para trás, para trás, em plena queda horizontal. Gritos que eu não conhecia rodeiam-me. Formas também, num conjunto gelado e delicado. Esta evaporação faz-se lentamente, sem calor, sem força, e a água que sai de mim deixa a nu partículas sem ângulos, redondas e limpas como dentes. É ainda a velocidade, a acção que está dentro de mim? Agora, já não vejo o comboio, nem carris nem nenhuma direcção. Pelo contrário, parece-me que estou imóvel, enterrado até à cintura no centro duma praia de lodo. E afundo-me. A cintura, os punhos. As costas. O peito, os ombros. A base do pescoço, o pescoço, a nuca, a garganta. Depois o queixo. A boca, a boca. As narinas mergulham na areia como dois alçapões que se fecham. Tudo me esmaga. E eu deslizo ainda, caio neste escoadoiro, nesta fossa séptica que me dissolve ardentemente, friamente, à medida da sua massa muito vibrante e colorida por estrume orgânico, de animal vivendo no acerado intestino grosso. As faces. Os olhos, os meus olhos que se fecham sobre o mundo saibroso.
E esqueço. O tempo ainda passa, retira de mim os seus movimentos de pêndulo. A voz continua a contar, ao contrário: 15, 14, 13, 12,
11... Tudo isto se tornou tão estreito, tão branco. Estou sentado numa cadeira de palha, no meio de uma eira de sol. Os sons entram-me na boca e misturam-se, irregulares, caóticos. Formam-se palavras, deformam-se, dobram-se em duas, fundem-se.
"Cigarro. ALTERE: FUIR: ÉPINE. NATTES. HUER. NALES. RENTE. LINT: RAT.
AFGHAM. SETTAN. um. Americano. 5 KARRES: 15%. Literatura. AURRLS. E mA." Nada as solicita. E no entanto vêm, entram, estão ali, provenientes do exterior, de campos largos e obscuros. Vindos do mundo, de superfícies de terra molhada, de grandes terrenos baldios atravancados de cisco. Deve ser daí que eu venho. Deve ter sido isso que me alimentou.
Os meus pais, se os tiver, é aí nesses montes que devem ser procurados.
Recuar, recuar outra vez. Nos meus olhos há agora uma delgada película opaca, qualquer coisa que me toma a vista espessa como óculos de hipermetrope.
Assisto às últimas metamorfoses do meu nome: "Henri! Henri!" "Ri!" "Ri! Ri! Ri!" É o meu nome que as pessoas gritam. A boca aberta, um riso louco anda aos encontrões ao longo da garganta, rola como o ribombar de um trovão, cai, levanta-se, ultrapassa os lábios e canta no ar, afastando as cortinas invisíveis do ar. Depois este riso transforma-se em dor, numa grande dor, nascida no compartimento dos pulmões comprimidos, vinda do diafragma paralisado, longo tétano interior, que expulsa, que afasta, que expulsa, que me extirpa a alma do corpo.
Olha! Tornei a encolher. Não posso dizer quanto, os objectos parecem-me de repente gigantescos. Eu era alto e eis que a mesa me dá agora pelo nariz.
Mas não estou espantado, deixo-me manejar assim pelo tempo. Circulo apenas pelo meio das coisas como através de uma floresta: as mesas, as cadeiras, as cómodas, as camas, os bancos são árvores. Os seus fustes são imensos e eu muito pequeno.
Depois vem a maré das coisas muito antigas. Há um momento já que não sou eu. Não sei como dizer, mas os gritos, os apelos dançam. As mãos. A confusão reina por toda a parte e esta espécie de vazio entrou-me no crânio, pelos olhos, pela boca, pelas orelhas, pelo nariz aberto, e correu-me por todo o corpo como água, como água, 10, 9, 8, 7... Estou preso aterra por uma coluna, por mármore. Pertenço-me. Ou talvez eu esteja deitado, glacial, de barriga para baixo, sobre uma fotografia. Sim, é isso: num cais, perto duma mulher, à beira da água, o cotovelo pousado num marco. com montanhas atrás das minhas costas, e um rectângulo perfeito de céu sem nuvens por cima da cabeça. A face inteiramente lisa, agora, os cabelos rapados e os olhos pisados. Já não respiro, ou quase. É isso: entrei no meu universo, esse espectáculo petrificado, os automóveis parados, os transeuntes interrompidos na sua marcha, os pássaros caçados em pleno voo, tudo isso, muito plano, pousado, uniforme, condenado, polido, parado, intocável.
E sempre, no entanto, a mesma coisa que se vai, que se escapa, esse animal que desaparece, que foge, que se refaz. Dir-se-ia que já não recuo. Não, a evasão terminou. A acção que há pouco se fazia ao contrário regressou, após um tempo de espera, em que amontoou sobre ela própria, agachada no escuro, depois bruscamente ressalta, torna a partir, recomeça, e desta vez leva-me realmente. Depois nada afrouxa. Sou livre, totalmente livre. Já não espero nada, e a minha carne não levanta obstáculos. Desço, baixo à sepultura aberta na nova estrada, muito direita, virgem, no grande caminho muito branco e calmo. Eis a verdadeira velocidade. Nada me deterá. Oiço o barulho cadenciado dos segundos que se estendem, as pancadas surdas do meu coração-bomba e os números passam trepam, constroem.
101 102 103 104 105 106 107 108 109 110
111 112 113 114 115 116 117
Lá onde estou já não há dia, nem noite, nada. São as fotografias que desfilam, fotografias sem data, silenciosas, que não mostram nada, que não representam ninguém. Não se vêem cabeças, nem objectos, nenhuma paisagem. Grandes folhas de cartão cinzento, onde entro muito depressa e que abandono mais depressa ainda. Um verdadeiro corredor de mil portas onde caminho pomposamente.
Mais baixo, agora. Sim, muito mais baixo. De gatas. Os turbilhões existem por toda a parte e eu sou também um. O quente, o frio. Dor. As picadas, as titilações. A língua enrola-se-me na boca, a respiração passa debilmente. As palavras, onde estão elas? Desapareceram. Só há espécies de auréolas, sim, é isso, espécies de auréolas à volta das coisas. Impulsos que erguem o corpo todo e o fazem deslizar para alvos, o lançam para o centro de materiais, e amassam o conjunto. Sou um anão. Já não tenho forças, tremo com todos os meus nervos. O medo: que me deixem ali, esquecido no meu buraco, não sou digno que se lembrem de mim, que, se inclinem para mim, que me olhem. Esqueçam-me. É tudo tão grande, anguloso; as luzes são contundentes; às vezes passam rapidamente, outras longamente, arrastando-me pelas retinas eternos vestidos brancos, nacarados. Relâmpagos, sóis eléctricos. À esquerda, à direita, rangidos de dentes, chiadeiras de madeira descascada. Estou preso numa extensão de mata-borrão, e a poeira move-se no meio de ásperos odores de tinta. E tudo sobe em mim.
Vagos ácidos libertam-se do meu ventre, afastam as paredes das membranas mucosas, e sobem, sobem, sobem. Vomito o mundo por toda a parte. Sou inundado; depois chamado, arrancado, sacudido. Embalado, balanceado. Surgem então novas toalhas, véus de gaze, hipnóticos, que pousam voltejando suavemente na minha cabeça e a tapam, um após outro, como escórias.
Que número??? 2? 1?, menos ainda?...
O pântano é realmente muito grande. Daqui e dali saem fumos, um pouco de toda a parte, e os odores adocicados ou picantes rodam, giram. Animais muito lentos surgem da lama, as carapaças escuras brilhando à luz, gotas perlando nas pústulas. Os animais tiram os pescoços do pântano, com longos esticões de vértebras e os seus olhos abertos penetram a couraça de lama. Num céu cheio de vapores, há sinais pesados: barras espessas, carbunculosas, que se esboroam pouco a pouco no vento. Nalguns sítios o frio é tão intenso que se vêem os cristais formarem-se mesmo na almofada de ar, como num vidro. Noutros sítios é o contrário, o calor, um Verão húmido e acabrunhante, e desenham-se espirais nas poças de terra fundida. As bolhas entrechocam-se, lutam, e depois rebentam projectando à sua volta salpicos de lama sujos. Tudo ferve, tudo bate. Ondas surdas viajam a quilómetros de profundidade, e imperceptíveis estremecimentos da crosta terrestre marcam os itinerários. A fome. A sede. Enrodilhado, banhanclo-se no suor. A febre, a febre? A garganta aberta, a garganta estendida, para sugar o ar e a vida, líquidos alimentícios, a frescura, para acalmar o fogo devorador que arde nas entranhas, para pacificar a cor vermelha, as gretas, para inundar as pregas de pele seca, para respirar, para irrigar, para entrar inteiramente vivo na atmosfera, e nadar, voar, subir, flutuar, estender-se, crescer, viver, viver! E o grito rouco, estridente, dobrado por um outro grito, por um "hem!" de partidor de pedras, estes dois gritos reunidos sobem juntos, continuam a subir em direcção ao tecto.
E depois, a caminho em direcção à morte. Ano Zero.
O homem que anda
Pode-se perder o essencial duma vida a andar sem se ser no entanto um homem que anda. É evidente. E, inversamente, pode-se ter andado pouco, ter tido pouco interesse pelo andar, nunca ter sabido andar e ser-se incontestavelmente um homem que anda. Tal é a lei de toda a vida profunda, para quem os seres e as coisas só existem por um desenho próprio, um cumprimento fora de toda a ponderação, de todo o limite, e sem apelo. É um testemunho a história que aconteceu a J.-F. Paoli.
Às onze horas da manhã, Paoli saiu dum longo sono sufocante e tórrido, acabrunhante, que provocara nove horas antes com a ajuda duma dose muito forte de hipnógenos. Levantou-se, abriu as portas das janelas e circulou em pijama através do estúdio. O Sol, já alto no céu, aquecia a parede da fachada este. Quando acabou de se lavar e vestir, ferveu água numa caçarola e preparou uma chávena de café. Bebeu sentado num banquinho da cozinha, e ficou aí um momento sem fazer nada, embrutecido, esperando Deus sabe o quê. A luva-esponja que pendurara num prego, por cima da pia de despejo, gotejava mecanicamente numa bacia de ferro voltada ao contrário. As gotas caíam regularmente, uma após outra, ou às vezes as duas ao mesmo tempo, segundo um ritmo que ele procurava compreender. Ao virar-se para ver, reparou que da luva-esponja se escapavam duas fontes de água, uma à direita, outra ao centro. A do centro, mais fornecida, corria mais depressa. Por cada cerca de cinco gotas vindas da direita, caíam onze a doze gotas vindas do meio. As gotas, aliás, não caíam no mesmo sítio: as do centro batiam na ponta da bacia, junto da zona de soldadura, com um ruído agudo, distinto; as da direita batiam no centro do recipiente, e o barulho do impacto tinha qualquer coisa de gongo, uma qualidade de som surdo e profundo, uma nota grave, subterrânea, que vibrava o tempo de duas gotas agudas, aproximadamente. Todavia, devido a acelerações misteriosas no processo do escoamento, vibrações de ar, pancadas nas canalizações, união brusca de dois rios minúsculos no cume do tecido-esponja, o ritmo de cada fonte era variável. Podia-se muito bem ter de repente, por surpresa, uma série de três "bongk onde não intervinha nenhum "tic!". Ou, inversamente, em metralhadora, podia haver uma continuação de dez a onze "tic!" sem o menor "bong!". No entanto, apesar destas flutuações, o ritmo continuava preciso, violentamente regulado, e se fosse preciso transcrevê-lo, podia-se chegar à composição seguinte:
tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic bong bong bong bong bong bong
Paoli, sentado no banquinho, ouvia o tinido das gotas de água cada vez mais gritante. Entrara-lhe muito simplesmente pelas orelhas escancaradas, e agora estava ali, instalado na sua cabeça, uma verdadeira torneira a fugir, a enchê-lo sorrateiramente, gota a gota. Era possuído; era como um punção, como uma espécie de rastilho que avançava milímetro após milímetro e o repelia para as trevas. Ou então como um animal minúsculo, no género dum rato, e que saltava, tornava a saltar, escapava-se para longe dele e arrastava-o, com pequenos solavancos da espinha, com reflexos atrofiados, atraía-o para o seu esconderijo, para o buraco ao canto duma parede, onde ele seria abandonado, deixado no silêncio e na prisão do seu corpo demasiado grande.
J.-F. Paoli tinha medo de ser abandonado pelo animalzinho mecânico; por um esforço de vontade, chegou a esquecer a presença dessa criatura maligna. Mal acabara de apagar a forma do corpo, firme e cinzento, quando surgiu outra coisa. Era música, desta vez. Não importa que música, a composição viera naturalmente, simplesmente, da alternação ritmada das graves e das agudas. Mas o tema, normal no fim de contas, não se formara mais cedo do que se multiplicaria, dividira, construíra até ao infinito, repercutira, recambiara, refeito em todos os sentidos, em todas as velocidades. Agora, cada gota que caía da luva-esponja partia-se em mil, em duas mil, em cem mil outras gotas, todas semelhantes, que tornavam a cair em chuva, à trouxe-mouxe, e martelavam os ouvidos com um rufo obscuro e estridente de estalidos dos sussurros dos tinidos da folha-de-flandres, até ao infinito. Estava tudo misturado e eterno, porque cada novo desmembramento duma gota caindo na bacia virada tomava por sua vez vida e continuava o seu ritmo de alteração das graves e das agudas, e fazendo isto dividia-se por seu turno em outras gotinhas, que se tornavam outras parcelas, depois outros chuviscos, e chuvas, duches, nevoeiros, fumos, céus enevoados, vapores de ruídos, todos perceptíveis, todos precisos, rigorosos, inevitáveis, ligados às suas próprias harmonias, entrançando nos tímpanos de Paoli uma esquisita sinfonia de êxtase, um abismo absoluto e intransgredível, que vos levava, vos sentava no seu palanquim, debaixo dum dossel, e vos encaminhava lentamente, regiamente, para os domínios da loucura.
Foi essa música, não a outra, que pôs J.-F, Paoli de pé, e o fez andar, na força das martelagens e das fugas, que o fez, se se quiser, romper o silêncio dos músculos, e penetrar mais longe, mais profundo no espaço novo, com as duas pernas móveis, os rins estendidos, os braços flutuantes, a respiração cadenciada.
Caminhava. Abandonava o estúdio, o paralelepípedo de paredes pintadas de branco, onde reinava a inércia, onde a força da acção estava sentada e abafava sozinha. Descia os degraus da escada; primeiro um a um, depois mais depressa, a dois e dois, mais depressa ainda, a quatro e quatro, a cinco e cinco, a mão agarrada ao corrimão, a seis e seis, e, chegado ao último patamar antes da rua, saltava-os todos, os catorze degraus, duma vez, saltava dum só balanço, dum só embate, até à rua aberta para o céu. Depois punha-se a caminho, sem saber onde ia, o coração um pouco apertado à ideia de tudo o que ia ver, de tudo o que lhe era necessário ver nessa simples jornada, de todas as raparigas com quem ia cruzar no caminho, de todas as mulheres com andar flexível e calmo de feras, de todos os velhos coxos, enfermos, de toda essa multidão onde ia sem dúvida passar, e que ia tratá-lo com aspereza.
Estava decidido. Esquecia tudo. Até o seu nome, a sua família, e história. Nada era importante, nada valia a pena que se falasse. Esquecia, também, a história, com Jeanne. Ela partira ontem, à tarde, depois de uma discussão de nada; esquecia ainda. E as palavras que ela garatujara à pressa, a lápis vermelho, na agenda:
Sábado 16 de Maio de 1964 S. Honorato
Sol: nasce às 4.09 horas
põe-se às 19.25 horas Lua: nasce às 8.23 horas
põe-se às 23.49
Pane da manhã:
encontro às 11.30 horas
comjonas.
Preparar a factura para Citroen.
Parte da tarde-.
Não me quer. Mais vale que nos separemos por algum tempo. Não serve
de nada continuarmos assim. Até um dia destes, talvez.
Jeanne.
Isto não existia muito a sério. Era preciso andar, andar, por cima, espezinhar, não deixar nenhum traço. Aqui, no passeio, a aventura existia, a verdadeira aventura de J.-F. Paoli. Não estava só. Tinha quilómetros e quilómetros, construções, lojas, ruas, plátanos, carros, os outros peões. Paoli cruzou com uma jovem que vinha em sentido contrário, muito direita, balançando um saco na ponta do braço. Depois com outra, de cabelos meio compridos, castanho-claros, com os olhos escondidos por óculos de sol em forma de borboleta. Mais duas ainda, acompanhadas por um tipo de blue-jeans, e que falavam e riam muito alto. Muito bem, tudo isto. Muito bem. Continuem. Paoli não estava só; caminhava com os outros, estava vivo, encontrava montes de raparigas que andavam como ele. Talvez mais longe, num cruzamento, encontrasse uma jovem que fosse no mesmo sentido que ele, sensivelmente à mesma velocidade, um pouco menos depressa apesar de tudo, que poderia abordar polidamente, a quem poderia dizer com humor: "Desculpe-me, posso acompanhá-la? Não a incomoda que eu a acompanhe um momento? Aonde é que vai? Passeia muitas vezes por aqui? Mora no quarteirão, sem dúvida? Etc."; e seria salvo.
Paoli atravessou assim uma série de ruas, umas à sombra, outras ao sol. Uma força misteriosa alojara-se nele, inchara-lhe os músculos e os tendões, e atirava-o para a frente, sobre o cimento sonoro. Era um pouco como se tivesse sido habitado por uma mecânica perfeita, onde nada fora deixado ao acaso, onde todos os movimentos se encadeavam naturalmente, pelo simples jogo das bielas girando sobre eixos, de válvulas comandadas por sistemas complicados e decisivos de engrenagens, de rodas lisas ou dentadas, de esferas, de cavilhas de aço, de parafusos sem fim. No seu cérebro nada era claro. Nenhuma ideia, nem o mais pequeno pensamento se conseguia formar. Era uma extensão de bruma, que reinava duma ponta à outra do crânio, e donde não emergia nada, excepto o rochedo, o grito estendido da vontade. Uma espécie de corda tensa a romper-se, que avançava na sua frente, até ao horizonte e mesmo mais longe, e que seguia sem compreender. Um grito, sim, um grito muito liso e monótono, um grito como uma estrada, um longo e estridente iiiiiiiiiiiiii que o aspirava para a frente, lhe modelava todo o corpo numa forma aerodinâmica, o atirava, apoiava no acelerador, o fazia fundir, em frente, avião supersónico, ao assalto dos pontos fugidios em que se unem as perspectivas.
Chegou lentamente ao centro da cidade; uma nuvem delgada, em forma de animal, deslizara diante da bola do Sol, e a luz que filtrava parecia mais branca, dum branco deslumbrante, uma neve omnipresente. Não havia vibrações nem calor de cor amarela. Tudo era uma fonte de luz, como se as paredes das casas, os quadrados do passeio, as montras e até as peles dos homens fossem espelhos. A luz cortante estava por toda a parte, vinha de todo o lado, saturava. Ao mesmo tempo, uma espécie de calor húmido e atabafante começara a reinar na cidade, e Paoli sentia as gotas de suor que corriam ao longo dos flancos.
O calor, talvez, a luz, começaram a decuplar o poder dos olhos das pessoas, à sua volta. Não eram mais brilhantes, não, mas a agressividade da iluminação obrigava as pálpebras a baterem, continuamente, e podia-se, a cada pestanejo, ser apanhado em estado de inferioridade, de humilhação. Para lutar, muito mais do que para se esconder, J.-F. Paoli tirou os óculos escuros do bolso superior da camisa e pô-los.
E além disso a cidade estava cheia de olhares indiscretos, de espiões que, com o pretexto de venderem jornais, se encafuavam em guaritas, na borda dos passeios, e, com olhos penetrantes escondidos atrás de buracos negros, espiavam, espiavam durante todo o tempo; outros, ocultos atrás de persianas meio fechadas, viam-vos passar do alto das casas, filmavam todos os vossos movimentos na câmara escura e quente dos crânios. Passavam cães e observavam-vos às escondidas, ou então gatos, pássaros nas suas gaiolas, crianças erguidas nos seus carrinhos, moscas insolentes, pombos que voltejavam por cima da vossa cabeça em voos barulhentos, pesados. Escondidos atrás das montras, os vendedores reconheciam-vos, viam-vos, estuclavam-vos, e vocês não viam nada, passavam, andavam, os vidros são opacos. Mais longe, crianças ainda, polícias, algumas velhas, de olhos pesados, mas que sabem ver. Junto às paredes, nos velhos cantos apodrecidos, há vagabundos que dormem, que têm ar de dormir, mas mentem, olham, deixam escapar das pálpebras inchadas um fino raio de luz que vos penetra, que vos dá uma picada. Há mendigos espalhados à vossa passagem, mas quando chegam são vocês os mendigos, são vocês que se vêem deambular, rígidos, desajeitados, procurando um caminho numa área de insultos, afastando uma verdadeira cortina de porcaria. E sem parar, infatigavelmente, os transeuntes, todos, homens, mulheres, crianças, cães, sombras que vão e vêm, que giram, que são vertigem, medo, cólera. A cidade era assim, claramente, muito dura, com centenas, milhares de buracos em todos os lados, no fundo dos quais brilhavam como berlindes os olhos excitados. Paoli, a respiração ofegante, preso no meio destes olhares, deste enxame de abelhas, sentia uma estranha moleza invadi-lo. Os músculos das pernas continuavam firmes, os nervos deixavam passar a vibração quase eléctrica da vontade, e no entanto, em qualquer parte do seu corpo havia agora um ponto terno, inofensivo, um coração amargurado, humedecido, que o tornava cobarde.
Deixara de andar depressa há alguns minutos. O seu ritmo estendera-se, se quisermos, e ao mesmo tempo aviltara-se. Perdera a música inicial, sim, era isso, deixara escapar o tinido das gotas de água sobre a bacia virada, essa arquitectura sonora que ele engolira de uma vez para sempre antes de deixar o apartamento, e que lhe devia ser qualquer coisa no género dum talismã, a sua acção própria, a sua ordem de marcha.
Os espiões tinham-no na mão. Tinham-no na mão os seres disformes, os gordos galhofeiros, os magrizelas desconfiados, as crianças, os cães coléricos, as matronas com sacos cheios de legumes. Fora apanhado. Mantinham-no naquela superfície de ruas, de avenidas, de portas-cocheiras, de garagens, de botequins-tabacarias. Pertencia às pessoas. Era seu escravo, seu escravo-caminheiro. Era seu criado, das multidões cambaleantes, dos homens imóveis alinhados na ponta do passeio. Era o servo de todos eles, um absolutamente nada, o cão dos cães, um fantasma que deslizava entre as suas mãos, que saltava no dardo cios seus olhares, que se apagava a cada palavra, que desaparecia, fugia, era arrastado, eliminado, devorado, espezinhado, calcado como um quadrado de chão e pó.
Já não andava muito direito. Como se o peso da cidade inteira, da cidade monstro vivo de calor, dessa pesada cisterna de água estagnada onde corriam os ácaros e os mosquitos, tivesse poisado sobre os seus ombros, J-F. Paoli avançava, metro após metro, o coração oprimido, os pulmões apertados, a nuca dobrada. Os ombros caídos para a frente, os braços flutuando ao longo do corpo, sem encontrar ponto de apoio, circulava através da multidão cada vez mais densa. Desejava parar, afrouxar, imobilizar-se também ao longo das valetas; e fingir outra coisa, não ser ele, por exemplo, e fumar um cigarro ao sol, ser um pacóvio. Mas não podia fazer isso. Tinha uma carga terrivelmente pesada atrás dele, uma espécie de carroça com ferragens e que o empurrava para a frente, o fazia descer, subir a ladeira da rua, o empurrava. Aqui, um grupo de cinco velhos, emboscados na curva duma rua, projectava-o para a esquerda; cinco tranquilos velhos, um homem e quatro mulheres, vestidos de preto, com bengalas e que falavam cochichando muito alto. Paoli estava em cima deles; ia atravessá-los; as vozes velhas e cantantes barravam a passagem; e era como uma nuvem de tempestade, em que os relâmpagos e as grossas gotas de chuva ziguezagueavam. As palavras saltavam-lhes aos pés, estendiam-se a toda a largura do passeio.
"Já ali, por ali", ouvia ele; "pois sim, faz muito calor, muito calor, minha senhora", diziam eles. "vou regressar ao campo - Diz-se que Sim sim acho isso - Parece que o Sr. Thomaz morreu, sim, sim." As frases escorriam, arrastavam-se, caíam inteiramente. E Paoli viu que estava só, todo nu, quase todo nu, perdido naquele solo de cimento onde giravam e tornavam a girar os grupos de velhos. Mais longe, formavam-se outros grupos, apertavam-se círculos, e as formas vacilavam, raspavam os sapatos grossos no asfalto, batiam nas paredes com as bengalas, tossiam muito, o rosto escondido entre as mãos. Um cego veio lentamente ao seu encontro, o rosto carmesim dos restos duma antiga queimadura, os olhos extintos sob grossos óculos opacos. O homem vinha, calmo e ameaçador, com um bastão branco na mão direita, e na esquerda um bilhete da lotaria nacional. Paoli viu-o aproximar-se na sua direcção, tacteando, mecânico e poderoso como um navio, depois sentiu-o passar, roçá-lo, apenas a alguns centímetros, e outras palavras chegaram fanhosas, uma espécie de melopeia triste e indolente:
- São as últimas... Esta noite anda a roda... As últimas cautelas premiadas... Esta noite anda a roda...
Paoli continuou a descer a rua principal, assim, empurrado pela sua carga. Tinha agora febre e os membros tremiam-lhe. Às vezes, no interior dos óculos escuros, na zona aturdida em que os seus olhos estavam abertos, livres, desciam auréolas luminosas, estranhas manchas esbranquiçadas, ainda mais pálidas que a rua e o céu, e que lhe desapareciam sob as faces.
As mãos nuas, entregues a elas próprias, abriam-se e fechavam-se sem que ele pudesse controlá-las. Por fim, fazendo um esforço terrível, conseguiu deixar escorregar uma para dentro da algibeira das calças. Restava a outra: pô-la também num bolso, mas devido aos movimentos de vaivém dos ombros ela saiu imediatamente. Felizmente, Paoli tivera tempo de fazê-la agarrar, de passagem, o isqueiro, e, agora, estava crispada nesse objecto de ferro, podia apertá-lo, tinha um peso!
Na garganta de Paoli continuavam os mesmos aborrecimentos: o calor da atmosfera, o andar a pé, a corrente de ar, a respiração contraída tinham-na posto seca. Ao nível da campainha da garganta havia um minúsculo nó de corda, que arranhava, que apertava. Paoli tentou engolir, mas em vão. As glândulas salivares estavam paradas, sem dúvida; o nó descia-lhe na garganta, depois subia, e vinha bloquear a passagem de ar. A respiração era sibilante, e Paoli escutava-a caminhando. Tentou mesmo para-la um momento, tanto o barulho daquele fole o incomodava, tanto o achava aborrecido para os outros. Conseguiu não respirar durante cerca de quatro segundos, e começava já a triunfar, dizendo para consigo que nunca ninguém tentara, que se podia muitíssimo bem passar sem aquele trabalho subjugante, que com um pouco de vontade uma pessoa se desembaraçaria facilmente desse ridículo hábito, quando, de repente, o ar que ele recusara um momento afastou as paredes apertadas das fossas nasais, as almofadas dos lábios, e mergulhou-lhe nos pulmões com a violência duma estaca. Vacilou um momento, ébrio, com lágrimas de dor ao canto dos olhos. Depois tudo recomeçou como antes, como sempre, e ele teve de se resignar a aspirar, expirar, aspirar, expirar, assim até ao fim dos tempos, a pôr os pés um à frente do outro, acompanhado do ruído familiar, da espécie de rrrrh chchc chch odioso de locomotiva.
O caminho era traçado por ele e não o conduzia a nenhum lado. Por toda a parte era a secura, a árida inclinação dos passeios e das paredes, os lanços de cimento granulosos, os quadrados de poeira rangente, os odores a gasolina. O Sol batia, verticalmente, no crânio dele e no chão. Batia como se doesse, e os raios cravavam-se no chão, direitos, extensões de ervas altas e endurecidas. Paoli caminhava através delas, sem as afastar, sem as sentir; mas ouvia cair os grandes raios de luz, rebentarem junto aos pés, com minúsculas explosões violentas, gotas animadas duma velocidade prodigiosa, pesadas, balas de metralhadora, vindas de cerca de 150 000 000 de quilómetros.
Ladeava agora uma série de casas marginadas por uma vedação de ferro forjado. À entrada das casas, mulheres velhas sentadas ou de pé olhavam e falavam. Cães, provavelmente maus, estavam a dormir enrodilhados na erva. Nas gaiolas, periquitos e canários cantavam; os seus silvos rompiam o resto do barulho, subiam, desciam, apertavam-se infatigavelmente. Paoli, ao andar, via as gaiolas penduradas nas persianas abertas, e, no fundo das gaiolas, as bolinhas de penas cinzentas ou amarelas, os monstrozinhos de gritos estridentes. Alguns metros mais longe, era o altifalante dum posto de rádio que derramava ondas de música e de vozes humanas. No interior dos quartos, que se adivinhavam através dos buracos escancarados das janelas, vindos do escuro e do oculto, surgiam os clamores dos aparelhos, e as lâmpadas brilhavam num tom avermelhado, fervendo de calor. Era preciso contar com eles. Estavam ali. Era preciso retirar-se com eles para um quarto cheio duma penumbra sagrada, deitar-se numa cama, e ali, jogar, jogar a todo o custo, ao jogo do ser: com uma caixa de fósforos, por exemplo:
a) no interior da caixa. b) em cima da caixa.
c) debaixo da caixa.
d) à esquerda, à direita da caixa.
e) contendo a caixa.
f) sendo a caixa.
g) no interior e contendo a caixa.
h) no interior, contendo, à esquerda e à direita da caixa.
i) sendo a caixa contida, contendo, e em cima, e debaixo, e à esquerda,
à direita, e pela caixa. j) sem a caixa.
Ou então era preciso andar, como se anda em casa, em ruas-corredores, em avenidas-salas de jantar, através de praças-quartos, de becos-banheiras, de cais-cozinhas, à volta de casas-mesas, de casas-camas, de imóveis cadeirões, de jardins-tapetes, de fontes-wc, de quiosques-malas. Porque era a única maneira de circular independente numa cidade.
Na extremidade desta série de habitações, havia uma rua para atravessar, uma rua como outras. Paoli atravessou a rua. Enfiou-se pelo pavimento, entre dois carros, subiu o asfalto ligeiramente abaulado, depois desceu-o, evitou um buraco, chegou à valeta oposta, ergueu a perna esquerda, içou o corpo para o passeio e continuou o caminho. Contornando uma outra série de casas, deixou deslizar a mão pelo gradeamento, para lhe tocar, para fazer sons. Os dedos saltaram-lhe sobre uma dúzia de grades, depois apareceu uma parede, e a pele arrancou-se-lhe. Paoli não disse nada, nem sequer fez caretas, mas doeu-lhe. Olhou a mão, e viu as falanges do indicador e do médio onde um grande arranhão sujo sangrava. Sem parar, pegou no lenço e enrolou-o em parte à volta da ferida, guardando o resto do tecido franzido na mão.
Uma jovem morena esperava qualquer coisa, as costas apoiadas no gradeamento. Paoli viu-a chegar de longe, e desviou-se alguns centímetros, a fim de contornar o obstáculo. Quando estava muito perto, ela virou o rosto para ele, e olhou-o. Tinha um rosto pálido, cansado, e os dois olhos negros pousaram nele, inactivos, indiferentes. Paoli, enquanto andava, fixou-lhe o olhar, primeiro nas pernas, depois nas ancas, no ventre, no peito, no pescoço, no queixo, na boca, no nariz, nos olhos, nas sobrancelhas, na testa, nos cabelos. Ela viu-o, observou-o placidamente com os olhos cansados e ternos, e quando ele passou perto dela, virou a cabeça e continuou a observá-lo, desta vez de costas. Em seguida abandonou-o, e olhou para um camião que vinha a chegar.
Paoli seguia ao longo dum telheiro de demolições. Desajeitadamente passou por uma série de vigas e de tábuas espalhadas pelo passeio. Um grupo de operários, em pé no meio do passeio, discutia com animação. Paoli passou perto deles, envergonhado, sem os olhar. Ouviu-lhes as vozes, mas não conseguiu compreender uma só palavra.
À sua frente, uma mulher nova empurrava um carrinho. Tinha as mãos vermelhas apertadas na barra de ferro, e empurrava com um movimento regular e suave dos rins, e a cabeça dela era animada a cada empurrão por um vaivém de galináceo. No carrinho preto, dormia uma criança toda enrolada. Paoli contemplou a criança de mama, e a estranha face balofa, engelhada, entrou-lhe na cabeça como uma recordação. Ultrapassou o carro progressivamente, e, em voz alta, para si próprio, ou para os outros, disse estas palavras:
- O mundo está tão velho. O mundo é um velho.
Em seguida atravessou uma outra rua. O mar estava agora perto. O ar que soprava com intermitências era mais fresco, e, como dizer?, sentia-se a presença da toalha de água, muito próxima, adivinhava-se a extensão imóvel e chata, o ritmo respiratório do fluxo e do refluxo, o fim da terra, o líquido, o elemento oco, fugitivo, subtil, redondo, de algum modo perfeito.
Nenhuma escolha consciente atraíra J.-F. Paoli para a beira-mar. Há muito tempo já que não gozava esse prazer, se alguma vez o gozara. Há muito tempo que fora absorvido pela cidade e pelos homens, que não se podia satisfazer senão com eles, e que não podia fazer mais nada senão a sua vontade, a sua absoluta vontade. Já não havia autonomia nem luta. Era preciso ser levado, caminhar sobre os ombros deles, ser enrolado, derramado como água de esgoto. Se qualquer outra coisa além do acaso o conduzira ali, para aquela espécie de fronteira, só podia ser a inclinação do chão, das ruas, a descida suave dos passeios para nível zero. E agora que a sabia ali, dissimulada ainda por um ou dois quarteirões de casas, mas tão presente, desfazia o andamento, descia a grande escada invisível, ia para o banho.
Paoli passou diante da esplanada dum café onde havia muita gente sentada. Viu mesas redondas, à sua direita, copos de cerveja e chávenas de café, mãos brancas colocadas em cima das toalhas, pulsos gordos, braceletes de ouro que brilhavam. Havia também muito barulho, um sussurro confuso que não saía, que ficava espalhado na zona do café. Mas não havia palavras, nunca havia palavras: gritos, interjeições apenas. "Ah!", "h!", "ui!", "ah-ah?", "olá-ohk Mas a multidão tornava-se compacta, e Paoli devia prestar atenção aonde punha os pés; olhava também para as caras, para os braços, deslizava entre os grupos, ultrapassava, afrouxava, tornava a partir. De vez em quando parava, batia com os pés, ou então descia do passeio para evitar uma onda de transeuntes, apagava-se numa esquina e esperava alguns segundos. Já se via o mar ao fim da rua, uma espécie de mancha azul sujo que servia de horizonte.
Passou ainda por um bar, desta vez sem esplanada, e viu o interior do antro, os banquinhos de pele de toupeira púrpura, as luzes joeiradas, e os vultos obscuros de pé perto do balcão. Meio escondida no fundo bar, uma juke-box, um verdadeiro polvo à espreita, uma massa de carne irisada, medusa, anémona, uma máquina a sangrar como um ventre aberto, dava música. Paoli recebeu a música de passagem, a pesada e lenta melodia vinda ainda de mais baixo, o animal rastejante e triste que vinha para ele e não o seguiria.
Paoli caminhou para o fim da rua, com uma espécie de alegria intensa. Era preciso ser libertado, sem dúvida, ia ser abençoado inteiramente pela assimetria do espectáculo, dum lado a terra, as praias, o passeio ladeado de palmeiras, do outro lado a massa do mar. Precisou de cerca de cinco minutos para atingir a margem. Desembocou de repente no estendal aberto, saiu do caos da multidão e dos carros como se subisse de ascensor. Sentia-se maior, agora, a coluna vertebral muito direita, a cabeça a tocar quase no cimo das árvores. Atravessou o pavimento e os terraplenos do passeio, e chegou ao outro lado, junto da balaustrada, os olhos fixos no líquido. Obliquou então para a direita, e começou a atravessar a praia, sem saber muito bem como é que tudo aquilo acabaria.
No passeio o ar soprava com mais força; a camisa de Paoli pegou-se-lhe imediatamente às costas e ficou lá colada, por causa do suor. O Sol estava em frente, e via-se ao longe a linha violácea das colinas, a ponta plana do campo de aviação, e o monte de casas, irregular, pequeno. Paoli começou a andar em direcção do aeroporto, num passo rápido, balançando os dois braços. Durante um momento teve a ilusão de que tudo se tornara puro, fácil. O passeio era largo, podia-se escolher o itinerário que se queria, viam-se grupos de vultos virem de muito longe, podia-se escolher aqueles com quem cruzar, a quem evitar. Em rigor, podia-se esquecer tudo. E deixar-se ir para a frente, com moleza, em repouso, na infinita possibilidade dos movimentos e dos gestos, deixar-se deslizar sobre os carris, sem se restringir, sem pensar nas rodas. Era-se uma vaga, ou antes um ritmo, uma espécie de dupla curva cujo balanço alongado e calmo era um prazer sem limites, um prazer em que se afogava, onde se era apenas vida, pulmões regulares, impulso e retrocesso sem choques, tranquilidade, arrebatamento, coesão. Eis como avançava Paoli, ainda durante alguns segundos, dois passos para a frente um para trás, embalado, lançado, apanhado na dança imensa de tudo o que o rodeava, oscilando majestosamente com as casas, as pessoas, os carros, o vento, as árvores, e principalmente o mar.
Mas, pouco a pouco, e sem que saiba porquê, sem dúvida por causa do hábito que tinha, as ondas limitaram o campo de acção, o movimento de pêndulo que animava todas as coisas acelerou, e tudo se baralhou. Num instante, Paoli foi submergido por uma floresta de linhas e fracturas; os grupos de pessoas vinham ao seu encontro, agressivamente, com nervosidades, com gestos turbulentos. As linhas do passeio cruzavam-se-lhe diante dos passos, enredavam-se-lhe à volta dos pés, fazendo-o vacilar, passando-lhe rasteiras. Chispas de luz saltavam das carroçarias dos carros e ofuscavam-no. Gritos, urros ferozes e desumanos escavavam o ar como pássaros, e esbofeteavam-no de passagem. Ao largo, no lado oposto do mar, era a linha contínua de casas brancas de doze andares, que balançava, se estendia, se dobrava até à náusea.
Paoli era atacado e tinha medo. À medida que subia o passeio, frente ao sol escaldante, a multidão de homens e mulheres tornava-se mais compacta. As silhuetas obscuras, gordas, iluminadas pelas costas, titubeavam na sua direcção, negras, os olhos escondidos atrás de óculos escuros, as mãos vazias, os ombros quadrados. À esquerda e à direita do passeio, três filas de poltronas e cadeirões eram ocupadas por massas humanas, de caras largas, máscaras meio iluminadas pelo branco da luz, de peitos respirando, pernas espessas, pesadas, provavelmente varicosas, estendidas pelo passeio. No centro desta carne suada, garrida, variegada, viviam olhos, com uma vida quase independente, animaizinhos glaucos e vorazes. J.-F. Paoli passava em revista, no meio desta espécie de avenida, e o inferno de há pouco recomeçava. Mas desta vez sem remédio. Estava cercado por muralhas de vivos, preso fixamente no meio do passeio, atacado de todos os lados, sujeito a todas as espécies de homens, os que andam, os que estão sentados, os que riem, os que falam, os que estão por trás, os que olham, os que dormem.
Em frente deles, J.-F. Paoli fugia. Passava entre as filas como um longo palhaço ridículo, a camisa de nylon colada às omoplatas magras, as pernas mexendo-se rapidamente debaixo das calças de caqui, o rosto encharcado em suor, os olhos extremamente móveis atrás dos óculos de sol, os braços animados por movimentos desarticulados, uma das mãos vazia, a outra crispada num lenço manchado de sangue; no fundo das algibeiras, um isqueiro, chaves, moedas, batiam a cada passo com um tinido de ferragem.
Andava. Andava sempre, indubitavelmente; mas as alucinações, as vertigens continuavam, toldavam-lhe a vista, faziam-lhe zunir os tímpanos. Era devido a esse famoso ritmo, ao ritmo do princípio, as gotas de água caindo na bacia virada, na cozinha do estúdio, e que deixara escapar-se sem prestar atenção. O seu ritmo respiratório, doravante sem apoio, desordenara-se também. Impossível respirar normalmente: tão depressa o ar lhe entrava duma só vez nos pulmões e permanecia lá dez segundos antes de poder sair, como no seguimento duma contracção incompreensível do diafragma, tudo se bloqueava, a garganta, a úvula, as narinas, a boca, tudo ficava fechado, colado, e o gás carbónico acumulava-se-lhe no tórax, tornando o coração louco, fazendo nascer a angústia, provocando a eclosão, e nas retinas flutuavam-lhe, formigavam-lhe minúsculas bolas gasosas, cor de laranja. Era preciso que parasse um momento, que se sentasse num desses cadeirões frente ao mar, no meio das pessoas, e que olhasse também, e respirasse, cabeça inclinada, boca aberta, que engolisse litros e litros de ar, de ar fresco, calmo. Mas ele não podia parar. As filas de espectadores estavam ali, por mais longe que olhasse, e não deixariam escapar a presa, isso era certo, tinham-no seguro, sem piedade, sem esquecimento.
Mais longe, a álea do meio livre de cadeiras contraía-se ainda; era o ponto central do passeio, o ponto de reunião e as cadeiras ocupavam a quase totalidade da passagem. Só havia, no meio do passeio, um corredor estreito, uma espécie de atalho sinuoso onde era necessário caminhar sozinho, andar dolorosamente, com sacrifício. Paoli viu de longe por onde devia passar; perante a dificuldade, hesitou um momento e pensou mesmo em voltar para trás. Mas havia testemunhas à sua volta e não podia oferecer-lhes o espectáculo vergonhoso do homem que dá meia-volta. Assim as pernas levaram-no para a frente, para o corredor ignóbil, para a massa efervescente de corpos sentados, para os que o esperavam há muito tempo, que iam magoá-lo, manchá-lo, mutilá-lo para sempre, sem dúvida. Entrou.
Os rostos desfilaram perante ele, apertados uns contra os outros; os olhos salientes, as bocas com sorrisos, as mãos estendidas, as testas e os cabelos luzidios. Havia-os por toda a parte; era impossível não os ver, nem que fosse um segundo: estavam ali, ocupavam todo o espaço. Em cima, em baixo, à direita, à esquerda, atrás, à frente, os rostos estavam erguidos, os olhos olhavam, as pálpebras baixavam. Paoli tentou correr, fugir. Levantaram-se formas à sua passagem e barravam-lhe o caminho. Surgiam troncos de toda a parte, e bloqueavam as saídas, lentamente, sem ter o ar de o fazer, sem nunca lhe tocar. Às vezes, verdadeiras rolhas de corpos humanos estendidos em cadeirões obrigavam a passar por cima, ou a fazer um desvio. O Sol iluminava Paoli inteiramente de frente, e parecia-lhe estar nu, despojado de todas as vestes, oferecido sem recurso como uma estátua viva sob a luz crua de milhares de projectores. Atabafava. Caminhou então alguns segundos de olhos fechados, ao acaso, a cabeça a escaldar, talvez com a esperança fútil de se encontrar, quando tornasse a abrir as pálpebras, sozinho numa extensão de deserto e silêncio. Depois chocou com alguém, de passagem, e tudo recomeçou. A álea central tornara-se mais larga, entretanto. Mas passara efectivamente pelo inferno e isso não se podia esquecer.
A cerca de dois metros e de cada lado, filas de basbaques. J.-F. Paoli colocou-se num eixo, bem no centro, e, costas dobradas, respirando com dificuldade, o corpo todo molhado de suor, continuou o caminho, o caminho imenso, o caminho de todos os tempos.
Tomado, agora, por uma espécie de frialdade, contemplou as faces enquanto andava. Faces de mulheres de uma certa idade, peles queimadas, olhos brilhantes, cabeleiras secas e pintadas. Faces de homens mais velhos, faces cheias, caídas, engelhadas, de narizes caricaturais, crânios calvos. Face de jovem, narinas dilatadas, bigode preto, maxilares rectangulares. Braço tatuado. Face de mulher, ar inquisidor e malicioso, postura flexível, animal, sorriso. Faces de velhas, cinzentas, resmungonas. Faces de homens maduros, recuados, sobrancelhas espessas, risos inaudíveis. E as cabeças, os braços, os troncos desfilavam sem interrupção. Paoli, os olhos cravados em todos, avançava com o seu passo automático, sem pensar em nada; sabia que não era ele o dono, oh não, sabia que era a eles que pertencia, de corpo e alma, e a um de cada vez. Cada olhar que encontrava, ao progredir ao longo do passeio, cada nova ruga de rosto, cada face, cada orelha lançava um atilho, ou atirava na sua direcção um furtivo pseudópode que o ligava, que o esvaziava da sua substância, da sua vida. E passava assim de tentáculo em tentáculo, apalpado, rilhado, digerido, como uma presa num corredor de morte; como um alimento semelhante a uma bola de carne descendo suavemente ao longo do esófago, no tapete vivo de células ciliadas.
A vida, era isso, essa descida contínua para o nada, essa onda que corria ao longo dum cano escuro, essa bola que descia para o desconhecido, e que era a sua própria fuga, o seu desaparecimento. Tudo caía, o universo era um imenso, um estático desaparecimento. As coisas eram as suas perdas, e tudo se retirava de tudo, lentamente, inexoravelmente, à medida. Era como se tivesse havido outrora, há tanto tempo já que ninguém sabia nada, um ponto muito alto, um cume, em qualquer parte, uma espécie de plataforma de arranha-céus donde as coisas partiam, atiradas por uma explosão misteriosa, e tinham começado a sua vertiginosa avalancha, o seu eterno apagamento. E depois, o universo ficava em andamento, em queda, numa espécie de porosidade infatigável. Não se duvidava. Não se sabia nada. E no entanto, deslizava, escorria sem parar, dispersava-se, desfazia-se, e não havia nada fora deste emudecimento, as coisas e os seres só existiam à sua passagem, pelo seu longo caminho degradante. Era isso: era a podridão que triunfava, a decomposição interna, o verme que roía minuciosamente os órgãos, a espécie de doença que minava, que apagava. No género dum cadáver, duma carcaça fétida enterrada no fundo da terra e que partia.
Caminhando, por exemplo, como J.-F. Paoli. Podia-se transformar à vontade num ser muito grande, num gigante alto como uma montanha; caminhar-se-ia então sobre continentes inteiros, patinhar-se-ia até aos joelhos nos oceanos. O Mediterrâneo seria um frasquinho cinzento, uma pequena mancha que se poderia pôr na palma da mão e deitar fora. Os habitantes de Sibenik ou de Antipaxos, para só falar destes, veriam chegar dias de verdadeiro terror. Uma forma escura, tão alta que se perderia para lá das nuvens, oscilaria no horizonte, e viriam cataclismos como trombas, muralhas de água levantando-se contra o céu e cobrindo a luz do Sol. Uma noite desordenada cairia sobre os pedaços de terra e às vezes estilhaços dilacerantes de brancura abrir-se-iam, depois tornavam a fechar-se, e abrir-se-iam novamente. A terra e a água misturadas começariam a chover a cântaros sobre as suas cabeças, as árvores arrancar-se-iam sozinhas, abismos medonhos avançariam de todos os lados, a uma velocidade extraordinária. Uma nuvem espessa e pesada, sanguínea, substituiria o céu, e as coisas oscilariam. Coisas grandes como vulcões, largas como países inteiros. Em seguida o vento começaria a soprar, o furacão, a fúria de quilómetros cúbicos de ar batendo uns contra os outros como animais com cio. Algumas vezes, subitamente, cruzar-se-ia no meio do céu uma bolsa de vazio gigantesca, e tudo na terra seria sorvido por este abismo, num estrondo excessivo de milhares de hectares rasgados todos ao mesmo tempo. Explosões sem nome ocupariam todo o espaço, explosões duma violência tal que as ondas sonoras se propagariam através do globo inteiro, fazendo ondular a crosta terrestre como uma superfície líquida, cada vez mais depressa, cada vez mais longe, cada vez mais profunda, até que, quebrada pelas interferências, no centro, no coração, a terra se desloca e se esquarteja numa imensa sinfonia de toalhas de fogo, de relâmpagos vermelhos, de corolas de magma efervescente, escarlate, fundindo eternamente. Mas podia-se aumentar ainda, aumentar, aumentar, abandonar este planeta como uma pobre poeira, e atirar-se para a frente, encher o cosmos inteiro. Franquear o cabo da galáxia, crescer ainda, dilatar-se sem parar. Ser fuga perdida, tempo cada vez mais vasto, atingir as dimensões vizinhas do perfeito, na velocidade, na criação. E passar os limites da própria fuga, vencer a zona de expansão do universo, as galáxias mais longínquas, as novae, as quase-stellae. Despojado então de toda a velocidade, de toda a acção, penetrar-se-ia no campo do vazio total, na área fria e nua onde nada existe, nem mesmo o infinito. E criar-se-ia, enquanto se caminhava assim, o seu espaço e tempo próprios, ser-se-ia verdadeiramente o dono, e a matéria nasceria à sua volta, suavemente, imperceptivelmente, enquanto se fugiria sempre, na sua nuvem, na sua auréola de existência... O infinito, o infinito não existe, só existe para o que é finito. E para lá? E mais longe? Não há mais longe; mais longe não existe, lá onde não estais. Não existe mesmo nada, isto não existe, não se deve pensar.
Mas podia-se ir igualmente noutro sentido; tornar-se numa espécie de anão, grande como uma criança primeiro, e é complicado viver-se quando se tem esta altura. Ou então grande como uma boneca, e o mundo já se torna monstruoso. Os panos mais suaves, mais sedosos, são verdadeiras grosas, e as peles das mulheres mais belas epidermes de rinocerontes, imundas e cabeludas. Mas pode-se apertar ainda mais, pode-se ter a estatura dum fósforo, ou mais pequena ainda, o tamanho dum pequeno mosquito. Que maravilha, então, a terra! Caminha-se, caminha-se muito depressa numa extensão acidentada, grãos de pó grossos como casas caem-vos sobre a cabeça, e no menor buraco, na menor greta, formigam animais estranhos, espantosamente feios, cheios de antenas, de mandíbulas e patas. Por vezes, nestas planuras imensas, nestas superfícies lunares, onde ronca incessantemente um rolamento impetuoso e surdo, vêem-se curiosas esferas brilhantes, sólidas, lisas como metal ou como vidro. Estão ali, fixas pela base, ligeiramente esmagadas, e às vezes tremem, vibram como se fossem pôr-se a rodar. São gotas de água. Mas desgraçado do mosquito inexperiente que quer tocar nestas belezas rutilantes: é com dificuldade que conseguirá deslocar-se, tão grande é a força destes monstros, e tão grande o seu apetite das coisas minúsculas. O mundo é enorme, imenso. Não se vê mais nada: à esquerda, à direita, em baixo, em cima, só há placas gigantescas, abismos sem fundo, ou alturas terríficas. Não se deve sequer olhar, se não se quer correr o risco de ser desencorajado por tanta superfície e relevo, de ficar cheio de pavor. Seria tão fácil, então, o desespero: abandonar-se-ia tudo, deixar-nos-íamos seguir pelo solo rugoso, e esperaríamos pelo fim, os enxames de insectos inquietos que surgiriam de todos os lados para vos devorar, ou então o esmagamento brutal, sob uma massa escura descida do céu e larga como uma cidade inteira. Não, seria preciso debater-se, sobreviver, activar todas as patas, alisar as asas, estar sempre pronto para fugir, a uma velocidade louca, através do ar muito brumoso de partículas.
Mais pequeno, estava-se simplesmente perdido. Via-se uma caverna larga, onde se entrava; e ficava-se no poro duma pele. Ou então não se via absolutamente nada, flutuava-se em rios estranhos, de coloridos variados, entre amibas e micróbios. E o tempo tornava-se tão curto, neste caos, que era com dificuldade que se podia distinguir. A unidade era da ordem de 1/1 000 000 000 de segundo, ou qualquer coisa de parecido. Silêncio total. Espaço infinito. Tempo por pequenos saltos, por pequenos sobressaltos. Os líquidos, as células, os leucócitos, as marés em que tudo era definido, separado como que por fronteiras, mas onde já nada tinha relevo. Viajava-se no liso, e as coisas eram muito diferentes e todavia muito semelhantes, como desenhos numa folha de papel. E, se se olhasse mais para baixo, para lá desta ordem, sentia-se um formigueiro indefinível, uma espécie de febrilidade inquietante, como um rumor, que subia de tudo e de si próprio, e se propagava à maneira eléctrica. Porque mais baixo, no domínio proibido e glacial, era novamente o cosmos, as bolas de energia, a protomatéria que girava, que fugia, que se perdia, que fabricava o infinito. E se uma pessoa se aventurasse neste universo, era tomado de qualquer maneira pela secura do abstracto, desapareceria por sua vez, não se era mais do que um monte de energias diversas, do que uma onda, uma fase, uma vaga, um halo furtivo e fantasmal, e desfazia-se, apagava-se, perdia-se fora de todo o tempo e de todo o espaço, em trânsito para esse ponto inexistente, de que nunca se deveria falar, e que é suposto divino, porque lá tudo pára.
Entretanto, Paoli saíra da multidão dos espectadores. Ainda havia algumas cadeiras de braços e algumas poltronas, por aqui e por ali, mas agora o conjunto do passeio tornara-se largo, livre. Era uma extensão imensa de cimento chato, ladeado por uma balaustrada pintada de azul-marinho. O passeio continuava em frente de Paoli, arqueando insensivelmente, e, ao longe, na extremidade da curva, distinguia-se a ponta de um campo de aviação. Os carros passavam muito depressa junto do passeio, todos iguais, contendo a sua carga de personagens escondidas, encarquilhadas na carapaça de metal, e olhavam vagamente através dos vidros. O ruído era muito denso, muito monótono, e podia-se também esquecê-lo. Já não restava nada, nada mais senão este espectáculo largamente aberto, largamente desenrolado, onde as coisas deslizavam, tão grande era, numa continuação de movimentos microscópicos. Era como se se dominasse tudo, do alto dum balcão dum sexto andar, e se olhasse pensativamente, fumando um cigarro.
Ao fundo, na extremidade do passeio, um avião descolou subitamente, com um ruído de dilaceração. Depois elevou-se no céu, virando pesadamente, e passou por cima da cabeça de Paoli. Ele seguiu-o com os olhos um momento, com a esperança secreta de o ver incendiar-se, talvez, e cair no mar. Mas o avião continuou o seu voo e em breve desapareceu no meio do ar, confundido entre os pululamentos de pontos cinzentos e brancos que nasciam nas retinas fascinadas. As nuvens mexeram-se, o Sol ficou novamente visível; estava agora baixo, e iluminava Paoli pouco mais ou menos horizontalmente, juntando-se ao sentimento de vazio e estupefacção.
Havia ainda pessoas, de vez em quando, que desembocavam junto de Paoli ou que caminhavam lateralmente. Mas tudo isso tornara-se de qualquer maneira calmo, indiferente. A emoção, a febre tinham-no abandonado, e haviam-no deixado despido, caminhando pelo passeio deserto.
Os raros rostos que via ainda, por acaso, eram como rostos fotografados, amostras colocadas diante dele brevemente, nada vivas, e que só ofereciam o brilho dum segundo de vida, dum segundo quebrado, gelado, incapaz de aumentar. Paoli viu assim vários rostos de raparigas, todos desconhecidos, meio ocultos por sombras. Sentado num banco, frente ao mar, um corpo de mulher continuava imóvel, petrificado, rodeado pelo Sol num halo que se misturava ao tecido branco do vestido. Paoli viu os cabelos despenteados, os braços cruzados no peito, as ancas largas, de esguelha, as longas pernas embrulhadas na sombra e na luz. Mais longe um homem erguido, com um pé colocado na balaustrada, fumava olhando para a praia, onde duas mulheres, uma acocorada, a outra em equilíbrio numa perna, se vestiam. Mais longe ainda, um rapazito falava com uma jovem, sentado na borda da balaustrada de costas para o mar. Paoli contemplou o rosto da rapariga; ao andar, olhou friamente a massa da face bronzeada, o nariz correcto de narinas finas, a boca mal feita, entreaberta, e os olhos profundos, húmidos, que não olhavam para nada. Viu, durante dois ou três segundos, toda esta figura humana, e sentiu uma emoção estranha subir por ele. Nunca, nunca tornaria a ver isto: era uma suspeita, um género de suspeita, nem amarga nem doce, uma mistura suave mas que não o irritava, qualquer coisa de tranquilo, de pessoal, de ínfimo, que parecia dar perfeitamente com ele e com a paisagem; qualquer coisa de semelhante a uma emoção estética, sim, a impressão envelhecida de uma harmonia encontrada num jardim, no gorgolejo duma cascata artificial, no caramanchão de rosas frescas, nos canteiros, nos cantos dos pássaros, no odor da flor de laranjeira, e até na estatueta de gesso representando um deus bolachudo e sorridente. E no entanto, era mais grave do que isto, era nostálgico.
Paoli meteu pelo campo de aviação; mas era já menos sensível ao andamento, do que ao que subia calmamente nele, ao que nascera do rosto daquela rapariga. Viu ainda seis ou sete pessoas, um velho puxando um cão, duas mulheres novas acompanhadas por um garoto, uma velha, e talvez dois rapazes com bicicletas a motor. Depois disto, não viu mais nada; as figuras humanas, as silhuetas das casas, tudo isso, carros, barcos, nuvens, colinas, desapareceu como por encanto, engolido num espaço interior mal definido.
E nada mais ficou para J.-F. Paoli a não ser a estrada em que seguia, e a luz eterna do Sol que lhe chovia no rosto. Atingira sem dúvida o ponto exacto, misterioso, em que, a acção pode realizar-se sozinha, sem luta, sem choques, e sem necessidade, em que todo o ser desliza fora de si mesmo, esquecido, derrubadas todas as barreiras, todos os desejos de uma pessoa, o ponto de incoerência suprema onde a realidade vai virar, o verdadeiro deleite com a matéria, em que as sensações já não têm de ser interpretadas, em que o mundo já não aparece, mas onde tudo existe, onde se é tudo, indissoluvelmente, indizivelmente. Caminhava, já sem se apressar, os olhos escuros atrás do resguardo dos óculos de sol, a respiração reduzida ao mínimo, um fio de água tão grande como um cabelo, que se lhe enrolava na boca, na garganta, e até nos pulmões. Cada passo que dava para a frente era semelhante a uma pulsação orgânica, o solo dilatando-se subitamente e batendo-lhe nervosamente na planta do pé; o cimento do passeio tornara-se um coração vivo, uma espécie de víscera ardendo de febre, que lhe batia sem parar nas solas, que o recalcava infatigavelmente como um jacto de sangue pesado e potente. Estava agora verdadeiramente ligado às coisas, fazia parte delas, sem as sentir, sem as compreender.
No entanto não deixava de ser uma criatura viva, era sempre um homem, J.-F. Paoli, nascido em qualquer parte, alimentando-se regularmente, perpetuando até, às vezes, a sua espécie. Para falar francamente, se tivessem esquadrinhado no mais fundo do seu cérebro, teriam encontrado, sem dúvida alguma, qualquer coisa de comprometedor, uma espécie de pensamento, uma associação de ideias e de imagens que não chegara a extinguir-se. E se lhe tivessem visto o pulso, teriam verificado que o coração batia sempre debilmente, é claro, mas batia. Os estremecimentos desabridos, no centro do corpo, faziam subir sempre o líquido espesso aos quatro cantos dos órgãos, e as ondas percorriam sempre a rede dos seus nervos, em rastejos eléctricos, em dissimulados galvanismos; era sempre o mesmo, em suma, J.-F. Paoli, o homem, e pouco faltava para que estivesse morto.
Mas então, quem era? Simplesmente isto: J.-F. Paoli, quase sem o saber, tornara-se a pouco e pouco, neste passeio onde caminhavam tantos outros desocupados sãos e salvos, num homem que anda. O caminho estava traçado na sua frente, a vida transformara-se num movimento, num movimento perpétuo, num movimento inefável, fitas infinitas de macadame esbranquiçado, pancadas surdas de tacões no chão, apoio dos dedos dos pés, equilíbrio, flexão dos jarretes, ressalto nervoso das coxas, deslizamento das rótulas, oscilação da coluna vertebral, para a frente, para trás, e restabelecimento automático da simetria, da grande simetria dos bípedes: para a esquerda, para a direita, esquerda, direita, esquerda, direita, esquerda, direita, é preciso conservar o eixo, à esquerda, à direita, conservar o eixo, conservar a linha central, e progredir, caminhar, vencer a inércia do ar e dos obstáculos, mergulhar, forçar as barragens, fazer um buraco na muralha da atmosfera, cavar fundo, fazer-se túnel, um corredor muito longo e muito puro que se abriria um dia sobre domínios paradisíacos.
Paoli ultrapassou o campo de aviação. Na sua frente continuava sempre o magnífico feixe de estrada branca, luminosa, em que o sol reinava em perpetuidade. Os carros passavam agora muito perto dele, roçavam-no tocando as buzinas. Mas Paoli não ouvia nada, não via nada além daquele tapete real e brilhante que se lhe desenrolava diante dos pés. De repente, pareceu-lhe ouvir detonações, em qualquer lado do fundo da cabeça; aquilo saía lentamente, e caía regularmente, com uma alternação de graves e de agudos. A alegria invadiu então Paoli, e, com entusiasmo febril, pôs-se a gritar, só para si, para ninguém mais do que ele:
- É o ritmo! É o ritmo! Encontrei o ritmo!
Era o ritmo do começo da jornada, o ruído matemático das pancadas da água na bacia virada, lá, no fundo do estúdio, e que reencontrava agora, na estrada. com uma felicidade crescente, pôs-se a caminhar seguindo o ritmo das gotas, seguindo o corredor imaculado, brilhante, absolutamente deserto. Os carros afrouxavam para o evitar, enquanto ele avançava, sozinho, no meio da estrada; mas as buzinadelas e os palavrões evitavam-no também, como se nunca tivessem deixado de pertencer à realidade universal, nunca desprezível, ao gigantesco conserto de ruídos e cores, à sinfonia eternamente calma, eternamente viva, da verdade colocada inteiramente no mundo, como se não tivessem sido senão uma parcela móvel, como ele, como os outros, uma poeira minúscula flutuando no corpo infinitamente exótico, infinitamente divino da matéria.
Martin
Durante os anos que se seguiram ao seu nascimento, os Torjmann consagraram todos os seus esforços e muito dinheiro para fazerem do filho uma espécie de génio. Hoje, apesar de tudo, Martin Torjmann é aos doze anos um belo espécime de hidrocéfalo. Mas havia muitas outras coisas a dizer, a este propósito. Muitos acontecimentos de toda a espécie, que se tinham mais ou menos harmoniosamente combinado, amadurecido, no interior dessa tina em que estava a cidade. Um calor profundo, especialmente, um calor terrível, que reinara naqueles lugares durante muito tempo, até modificar, no dizer de pessoas de idade, o aspecto interior dos homens e dos animais. Uma certa lentidão, uma certa doçura tinham pouco a pouco substituído a secura de antigamente; as raparigas tinham agora rostos calmos, com grandes rosetas, e estranhas peles bistres, não luminosas, que se via serem húmidas ao tocar. As crianças tinham não sei quê de feroz, e ao mesmo tempo de ajuizadas, e os homens adultos recusavam-se sistematicamente ao jogo. Pretendia-se que isso era o resultado duma implantação insidiosa de qualquer povo estrangeiro, italiano, ou norte-africano. Mas aquilo assemelhava-se mais a uma mudança de clima, a uma metamorfose da própria natureza. Às vezes chovia, outras fazia calor. Quando o vento soprava, era um vento de sudeste, uma suave deslocação de quilómetros de ar, em bloco, no género duma tempestade calma.
O H. L. M.* estendia-se em semicírculo pela orla da cidade, no centro de um terreno betumado onde passavam de vez em quando pequenas nuvens de poeira cinzenta e suja. O sol batia na face sul do imóvel, uniformemente, e o cimento das paredes brilhava com qualquer coisa de gorduroso e desbotado que se assemelhava à transpiração. Nesta parede iluminada pelo sol da tarde, havia janelas inumeráveis, regulares, abertas; e de cada uma das janelas escapava-se uma série de sons que se misturavam em ziguezague ao rumor da auto-estrada vizinha. Para alguém que se colocasse de pé, no meio do pátio deserto, os ruídos parecer-se-iam com uma grande estrela cujos raios se tivessem dardejado em todas as direcções, fixos e monótonos. Nada se teria mexido, nada se teria alterado. Tudo isto faria uma explosão imóvel, um centro de gravidade à volta do qual tudo fora construído.
A música de acordeão dos transístores, os odores a alho e fritos, as cintilações e as fascinações, tudo terminaria ali, no domínio da companhia, ao centro, no solo nu do pátio, e poder-se-ia morrer esmagado, como que atingido no interior do crânio pelo cubo vertiginoso da insolação. Ou então tudo acabaria numa espécie de grande grito, de grito único e terrível, saído directamente de uma boca aberta, e repercutindo-se indefinidamente pelos corredores indo de encontro aos tabiques, derretendo de cima a baixo ao longo dos caixotes de lixo e das caixas de elevador, espalhando-se pelos terraços e pelos telhados, subindo, entrando por toda a parte, encerrando-se nas canalizações e nos esgotos, até atingir o coração das massas de betão armado, o órgão de matéria sonora, as obras vivas, muito vibrantes e secas, e tornar-se silêncio.
Martin vivia ali, sentado imóvel num cadeirão de verga, em frente à janela; pontificava. Dos lados, o pai, vestido com umas calças de pano azul real e uma camisa com as mangas arregaçadas por cima dos cotovelos, e a mãe, imponente, de avental cinzento. O pai fumava, de pé, e de vez em quando virava-se para dizer algumas palavras à mulher, sentada ligeiramente atrás. Do trio, apenas Martin tinha os
* H. L. M. - Habitation à Loyer Modere, habitação de renda económica ou bairro social.
olhos fixos nas janelas; para lá da janela. Sem se mexer, sem falar, olhava o espaço do céu vazio onde resplandecia o Sol. Gotas de suor corriam-lhe lentamente ao longo do pescoço e pelos lados da testa enorme. O barulho dos transístores escapava-se de todos os alvéolos do imóvel e reunia-se em qualquer parte junto dele, talvez nele, firmando um nó doloroso e palpitante. Se se olhasse Martin de frente, sem desprezo, não obstante a sua figura mole e branca, o nariz fino de narinas apertadas, os cabelos escuros, espessos, luzidios, atirados para trás, os óculos grossos de míope colocados em frente do olhar como uma indefinível, hipócrita zona de protecção, talvez se tivesse sentido todo o trágico desse ponto estridente, enfiado no centro da cabeça, talvez se tivesse distinguido a fraca dilatação das pupilas a cada batimento dessa música concentrada. A riqueza dos agudos, a lenta ondulação dos graves, e o ritmo, louco, carnal, aritmético, toda essa paixão que viera do exterior e se encerrara ali, e que nenhuma lágrima nem nenhuma cólera podiam libertar. Os olhos de Martin, globulosos à medida dos seus desejos, injectados de sangue pelas glândulas lacrimais, viviam com segurança, atrás dos vidros opacos; aumentados, redondos de sofrimento, e totalmente vazios, quase inertes sob as pancadas acumuladas da luz do Sol e das pulsações da música.
- Marta - disse o pai Torjmann -, devia-se adiar tudo. Passar a conferência de Martin para mais tarde. Penso que seria melhor para ele, para nós e para toda a gente. O que é que dizes, Marta?
Perguntara isto sem sequer se voltar para a mulher, monopolizado como estava pela pose que ele próprio escolhera alguns minutos antes, ao levantar-se da mesa: uma perna estendida suportando o peso do corpo, a outra atirada para a frente, o busto inclinado, um braço apoiado nas costas do cadeirão onde estava sentado Martin, o outro erguido, a fim de conservar permanentemente à altura da boca uma beata meio apagada. A mulher ouvira a pergunta, mas não respondeu. Foi preciso que Torjmann continuasse:
- Martin não anda bem, neste momento; há meses que tem muito que fazer. Mais valia adiar tudo para mais tarde. Isso permitia-lhe descansar alguns dias.
- Não é possível, bem sabes.
- E porquê? Porque é que não é possível? Hem? Porque deve vir aí a televisão, a rádio, o jornalista da Life? É por causa disso que dizes que não é possível?
- Sim.
- E achas realmente que não se pode adiar toda essa canseira para mais tarde?
- Como? Sabes bem que dentro de duas semanas Martin deve partir para os Estados Unidos, onde ficará dois meses completos. E como é que queres que seja recebido lá se a conferência não se realizar?
- Eu sei, eu sei - continuou o pai. - Mas queres que ele se mate nestas coisas? Bem vês como está actualmente fatigado. Emagreceu, não come nada, e quando acabar as conferências, será com dificuldade que nos dirige a palavra. Já não diz nada, fica sentado durante horas, num canto, a olhar em frente. Sei que não é o seu estado normal.
A mãe teve uma espécie de encolher de ombros; olhou para Torjmann, com os seus olhos grandes pesados pelo cansaço e pela idade. Começou:
- É verdade, Martin está cansado. Mas pensas que eu gosto da vida que ele leva? E no entanto, é a vida dele, a sua, a que escolheu. O que não fizer hoje terá de fazê-lo amanhã...
- Escuta, Marta - interrompeu o pai -, penso que devíamos tentar atrasar a data desta conferência uma semana. Iremos uns dias para o campo com Martin e, no regresso, já repousado, poderá recomeçar o ciclo de conferências e partir em forma para os Estados Unidos. Hem? O que é que dizes?
- Ele não quererá - disse a mãe.
- E porquê? - perguntou Torjmann. - Afianço-te, sou eu quem tem razão, no entanto. - Deixou o posto junto do cadeirão e foi direito à mulher. Apagou a beata de passagem, e atirou-a para o caixote do lixo, sob a pia. - Tenho a certeza que é a melhor solução. Martin poderá descansar e nós também. Aliás, tu também tens grande necessidade disso. E depois Martin nunca poderá tornar a fazer uma conferência como a de 10 de Maio, no estado em que está actualmente. O professor Hertz só me disse isso ontem. Quando viu que Martin não respondia, estás a ver, quando fazia aquelas perguntas sobre Pascal, e Martin continuava no seu canto sem dizer nada, excepto para pedir todos os cinco minutos que lhe trouxessem um copo de água. Disse-me que valia mais parar tudo por uns tempos. E eu acho que ele tem razão, Marta.
- Sabes exactamente o que o professor Hertz pensa das experiências de Martin?
- Sim, sei, mas não é isso que conta. Desta vez, tem razão.
- Hertz gostava que Martin estivesse uns tempos numa colónia de férias! Disse não sei quantas vezes que, segundo ele, Martin não passava dum impostor, um...
- Sim, eu sei, eu sei! Mas no que diz respeito ao repouso, acho que tem razão.
- O nosso filho está tão estranho de há um tempo para cá - suspirou a mãe.
- É porque não anda bem - disse Torjmann -; além disso, três emissões por semana, sendo uma na televisão, as conferências, os debates, as entrevistas, em todas as línguas, e depois as prédicas, as assinaturas, as discussões com o professor Hertz, com Maisonneuve, com o doutor Mercier, com Stephen Schaeffer, Manzoni, Tillois. Sem contar o trabalho que tem todos os dias, as lições de chinês, as meditações sobre os textos de Ruysbroek, a análise da Bíblia e do Mundaka Upanishad, e os exercícios espirituais, tudo isso fatigou-o terrivelmente. Precisa que o deixem tranquilo.
A mãe parecia reflectir. Por fim disse:
- Ele não quererá. Tenho a certeza.. E... achas que ele pode... achas que ele pode realmente ficar tranquilo?
- Como, se eu acho...?
- Sim. Achas que o nosso filho pode realmente descansar, agora? Tenho a impressão que ele não consegue. Fica imóvel, como neste momento, sentado sem fazer nada, no cadeirão, com ar de não ver nem ouvir nada, mas será verdade? Descansará ele? Tenho a impressão que ele vê tudo, que ouve tudo, e que isso lhe trabalha na cabeça, lhe trabalha mais do que nunca, que pensa em montes de coisas, em montes de coisas que nunca compreenderemos. Tenho a impressão, percebes, tenho a impressão que ele muda. Que muda. Que já não é Martin, mas outro, que eu não conheço e que já não nos conhece. Tenho mesmo a impressão de que ele nunca foi Martin, que vai odiar-nos, ou qualquer coisa do género, odiar-nos... Em todo o caso, como vês, mudou realmente de há uns meses. Já não nos fala. Antes, à mesa, explicava-nos montes de coisas. Dizia-nos em que pensara durante o dia, o que aprendera, o que descobrira. Dizia-nos isto tudo. Lembras-te do dia em que ele descobriu o carácter divino da linguagem? Explicou-nos isso, gritando, com transes de alegria, durante todo o serão. Estava tão feliz, tão contente do nosso orgulho, tão feliz. Falava. Agoira, agora mal abre os dentes para nos dizer a que horas deve vir o doutor Mercier, ou os jornalistas. É com dificuldade que nos fala dos psicotestes, ou dos debates com Hertz. Já nunca nos fala do dia 22 de Novembro. É como se tivesse vergonha. Porquê? Tenho a impressão de que se passou qualquer coisa...
- Tu imaginas coisas - retorquiu simplesmente Torjmann. Martin está cansado, é tudo. - Mas a dúvida assaltara-o também. Voltou para o cadeirão de vime, enquadrado na área iluminada da janela, e debruçou-se sobre o filho.
- Martin? Eh, Martin? Ouviste isto? Devias, talvez, acalmar a tua mãe?
Inclinado sobre o rebordo do assento, o corpo pesado da mãe esperou a resposta que lhe tornaria a dar esperança. Em vão. Sempre mudo, Martin pontificava sem dizer uma palavra, sem responder aos apelos do pai, sem ver a face ansiosa que lhe soprava o bafo no rosto; o suor continuava a escorrer-lhe ao longo do pescoço, e, nos lados da testa enorme, os vidros dos óculos estavam brancos de vapor de água, e, no exterior, o Sol avançava, avançava ainda.
O homem e a mulher deixaram Martin na cozinha; era preciso deixá-lo sozinho com a sua meditação obstinada, era como uma ordem vinda de fora, de todas as janelas do H. L. M., por exemplo, uma ordem confusa, nunca claramente exprimida, mas que respeitavam quase instintivamente, sem pensar nisso. A mãe saiu para fazer algumas compras no supermercado da esquina. O pai ficou na sala de jantar, e preparou a vinda dos jornalistas. Verificou o magnetofone, colocou o microfone no centro da sala, orientando-o para o cadeirão de madeira onde o filho tinha o costume de se sentar. Depois preparou uma pilha de livros com cuidado, e, exactamente à ponta da mesa, colocou duas capas com folhas de papel. Uma continha as notas de Martin, a outra, páginas brancas. Entre as duas, colocou uma lapiseira de metal, daquelas que têm três cores.
Mais tarde, a mãe voltou, tocou quatro vezes. O homem foi abrir, pegou no saco das compras e colocou-o num canto do corredor. Cautelosamente, a mãe entreabriu a porta da cozinha e deitou uma olhadela. Depois fechou a porta sem fazer barulho, e foi sentar-se na sala de jantar, ao lado de Torjmann.
- Que está ele a fazer? - inquiriu o pai.
- Continua a meditar - respondeu ela -; tem papéis ao lado. Deve ter estado a escrever.
- Os jornalistas não devem tardar - disse Torjmann.
-Já cá deviam estar. Passa meia hora.
Cinco minutos mais tarde, houve o primeiro toque de campainha.
A mãe foi abrir a porta e mandou entrar um homem duns quarenta
anos, baixo, muito calvo, que trazia uma pasta de couro. Apresentou-se. Georges Joffré. Depois chegaram sucessivamente dois homens, Simon Berrens, Bernard Ratto, e uma mulher, Édith Schmidt. Quando os quatro se sentaram à mesa da casa de jantar, a mãe dirigiu-se para a porta da cozinha, bateu, entrou, e aproximou-se do filho.
- Martin, já chegaram - disse ela suavemente.
Martin não se sobressaltou; levantou tranquilamente a cabeça, bocejou, e ergueu-se espreguiçando-se. - Todos? - perguntou.
- Sim, todos - respondeu a mãe. Entraram juntos na sala de jantar.
Feitas as apresentações, cada um sentou-se no seu lugar; Martin, como estava previsto, ocupou o cadeirão de madeira, à direita da mesa, enquanto os jornalistas estavam reunidos do lado esquerdo. O homem que chegara primeiro pediu autorização para tirar algumas fotografias. Martin fez sinal que sim com a cabeça, e a mulher puxou duma máquina fotográfica. Tiraram ambos alguns instantâneos de Martin, sozinho em frente da mesa. Em seguida a mulher pediu aos pais que se
pusessem atrás do filho, e tiraram outras fotografias. Mandaram pôr a mão da mãe no ombro do filho, e depois a do pai. Mas quando pediram a Martin para se pôr de pé para que vissem que usava calças curtas, ele zangou-se e recusou. A mulher e o homem tiraram então novas fotografias, durante alguns segundos, depois agradeceram e sentaram-se. Os pais regressaram ao lugar, ao fundo da sala de jantar, e o diálogo começou:
- O curso dos liceus aos doze anos.
- Tem doze anos, não é?
- Sim, tenho doze anos - disse Martin.
- Pode dizer-nos como vão os seus estudos?
- Interrompi-os há três meses; estive um período doente, e como estava nas minhas possibilidades pedi para me passarem imediatamente o diploma elementar.
-E obteve-o?
- Claro, passaram-mo sem dificuldade... Neste momento, estou a preparar a primeira parte do curso final dos liceus. Pedi outra dispensa ao Ministério e espero a resposta.
- E pensa que lhe darão essa dispensa? O curso dos liceus aos doze anos?
- Porque não? - disse simplesmente Martin -; já me deram a dispensa para o diploma, e nessa altura eu nem sequer tinha doze anos...
- Seria realmente excepcional - afirmou Bernard Ratto -; penso que não há um exemplo semelhante na história do ensino.
- Quanto a mim, não vejo nada de excepcional - disse Martin -; os estudos escolares não representam nada de extraordinário para um cérebro humano, pelo contrário. O que é preciso é saber trabalhar, e compreender. Eu penso que se podia ensinar tudo o que se ensina actualmente a um homem, em dois anos, digamos. Se os educadores soubessem agarrar-se a isso, e se os alunos tivessem verdadeiramente vontade de progredir, de fugirem à lentidão da infância, de compreenderem depressa, muito depressa o que se passa à sua volta. Claro que é preciso uma certa maturidade de espírito, mas isso, penso que se tem absolutamente aos dez, doze anos. O resto é uma questão de método.
- E você...
- E além disso, deste ponto de vista, considero que estou atrasado nos meus estudos. Mas isso é culpa da rotina e da cegueira do ensino. Puseram-me continuamente entraves nas rodas em vez de me facilitarem a progressão.
O que vou fazer dos estudos? Nada.
- E que pensa fazer mais tarde?
- O que entende por "mais tarde"?
- Bem, mais tarde, quero dizer, quando tiver acabado?
- Acabado o quê?
- Bem, os seus estudos, por exemplo?
- Mas eu nunca acabarei! Já lhe disse que para mim os estudos eram um meio de ganhar tempo, de mostrar oficialmente o que sou. Uma maneira de me fazer respeitar. O que quero fazer deles? Nada. Aliás não há nada a fazer com a sabedoria tal como se compreende aqui, na Europa. E provavelmente, noutros sítios também. Se compreendi bem a sua pergunta, deve ser, talvez, qualquer coisa como, "que conta fazer mais tarde quando for grande?"
- Não, o que eu...
- Sim. Sim. Porquê negá-lo? Não é a pergunta normal que se costuma fazer a uma criança de doze anos? E tu, o que é que queres fazer, quando fores grande? Cortador. Arquitecto. Aviador. Piloto. E fica-se contente com o homenzinho que sabe tão bem o que quer ser, que já tem a febre do trabalho em sociedade, que achará supérfluo o que os outros lhe ensinaram, que conservará a nossa sociedade materialista, tão plena, tão bela, com o que se chama "a Vocação"! É isso o que queria dizer? Pois bem, tenho medo de o desiludir: eu nunca serei "grande", não farei nada do que sei, não servirei para nada na terra. compreende, eu penso que aos doze anos se é um homem, um homem feito, sem nada mais para aprender.
- Não tem então vocação? Não tem esperança?
- Não tenho esperanças terrestres. Se tiver uma vocação, é mais como uma palavra de ordem divina: rezar, pregar, sofrer.
- E a sociedade?
- Não a considero. Para mim, o homem é apenas uma transição.
Como um príncipe.
- É um revoltado?
- Isso é ainda uma palavra. Serve à maioria das pessoas para qualificar o estado de descontentamento que sente um indivíduo quando verifica que foi enganado. Mas...
- Quem o enganou?
- Ninguém na realidade. Devo dizer-lhe, pelo contrário, que toda a gente foi muito simpática comigo. Aclamaram-me, fizeram-me recepções, admiraram-me. Fui tratado como um príncipe, e às vezes até como um pequeno profeta. Mas tudo isso era falso, falso em si mesmo, podre por dentro como um fruto estragado. Compreende, trata-se dum conjunto, dum todo, a sociedade, e, podre, é que é preciso contar com ela ao mesmo tempo que se não deve contar. Quer dizer, é como um conjunto estável, composto por elementos instáveis. Ora é impossível viver no interior, sem sofrer essa instabilidade, esse monte de mentiras. Surge então o medo de utilizar o mínimo pormenor que participe dessa instabilidade. É a revolta. Você duvida do valor das palavras, dos gestos, do que representam as palavras, das ideias, das simples associações de ideias, dos sonhos e até da realidade, das sensações mais claras, mais agudas. Você duvida mesmo da sua dúvida, da organização que toma, da forma que adopta. Não lhe fica nada, nada. Já não é nada, é um camaleão, um eco, uma sombra. Isso é obra da sociedade, compreende?
- É misantropo?
- Não. Porque havia de sê-lo? De facto é mais grave do que isso, visto que aceito ser homem.
-Já pensou na política? A política é um meio de empenhar o homem na sociedade.
- Um meio, sim... e um dos mais puros que existem. Mas penso que neste ponto tenho ainda caminho a percorrer; no fundo, crer em Deus, é talvez já fazer política. Mas eu tenho coisas a esquecer...
- A esquecer?
- Sim, a lucidez, por exemplo.
- Tem o sentimento de ter perdido a infância?
- A infância? Não sei.
- Quando é que começou a trabalhar?
- Aos dois anos.
- O que é que aprendia então?
- Latim, grego e outras línguas.
- E depois?
- Foi tudo.
- E mais tarde?
- Aos três anos, comecei a ler os filósofos gregos e os alemães. Comecei também a estudar literatura, mas achava-a confusa, e para mim só podia ser exemplos, apenas exemplos. As ciências, a química, a álgebra, o desenho, tudo isso veio muito mais tarde. Tinha eu... sim, tinha uns seis ou sete anos.
O Elmen.
- E nunca deixou de...
- Os sete anos foram a idade crítica para mim. Você compreende, eu tinha assimilado muito, mas demasiado depressa. Era preciso decantar esse conhecimento, era necessário que tudo me pertencesse. E além disso eu não tinha nenhuma experiência prática, qualquer coisa como um método crítico. Vivia exclusivamente para saber. Saber incessantemente novas coisas, alimentar-me de sabedoria. Mas a partir dos sete anos comecei realmente a compreender. Sabia que tudo o que fazia era a minha vida, a minha própria vida, o meu bem. Pus-me então a reflectir, a escrever.
- O que é que escrevia?
- Tudo e nada. Arranjava folhas de papel, as maiores que fosse possível, e cobria-as de letras, quase sem prestar atenção, quase ao acaso. Mas não era nenhum género literário, era simplesmente escrita.
- Que fez das folhas?
- Guardei-as durante muito tempo, com a ideia de que me poderiam servir um dia. Depois, há dois anos, atirei-as para o caixote do lixo. Nem poesia, nem ensaios, nem romances, apenas escrita no estado bruto. Por prazer, ou melhor, pela necessidade desse prazer. De facto, desde que comecei a organizar o acto de escrever, fiquei desiludido. Mas esse período entre os sete e nove anos foi o meu grande período. Era o meu primeiro pensamento, pensamento no estado puro, se quiser, um pensamento ainda não separado do acto do pensamento, qualquer coisa de custoso e no entanto extremamente agradável. Um tactear, uma vontade de conseguir descascar qualquer coisa dentro de mim. Aliás, isto parecia-se mais com o desenho do que com a escrita. As palavras não eram ligadas entre si, eram puros conceitos, livres, vinham em grupo, a uma velocidade caótica semelhante à do ritmo da vida e da matéria; as frases quase não tinham estrutura gramatical.
- Escrita automática, de certa maneira?
- Não, muito pelo contrário. A escrita automática é mais o esforço para encontrar um mundo para lá dos conceitos, por meio das palavras. Por imagens. O que eu fazia, era antes uma tentativa para passar do domínio da leitura ao domínio da escrita. Mais tarde, tentei encontrar essa fase de passagem inventando uma língua. Chamei-lhe Elmen. O Elmen era uma língua em que as palavras nunca eram duas vezes as mesmas. Um homem, ou uma mesa, podia-se dizer Bagoo, depois Stirnk, depois Ex, Tiplan, Azaz, Willahotosgueriynn, etc., e assim indefinidamente, segundo o momento, o contexto. E era uma língua, visto que pelo menos para uma pessoa no mundo havia um significante e um significado. Isto fazia com que nunca houvesse duas palavras semelhantes, ou duas palavras exprimindo a mesma coisa. Uma mesa nunca era uma mesa, como é bem evidente na realidade. Escrevi também páginas em Elmen. Mas como era impossível tornar a lê-las, e era escrita pura, depressa as abandonei. Mas lamentei sempre esse tempo em que escrever não significava nada, em que era apenas uma continuação de aproximações; agora, acho as línguas humanas muito pobres.
- Até que idade leu os filósofos?
- Ainda os leio.
- E a metafísica?
- Pelos oito-nove anos, tive o meu ciclo científico. Os algarismos. Os números são ideogramas e, neste sentido, encontrava-me muito mais atento. A abstracção da álgebra e da trigonometria era para mim qualquer coisa de grande, com que uma pessoa se podia satisfazer. Passei alguns meses assim, a aprender os teoremas e a aplicá-los. Mas por fim, compreendi que se tratava apenas dum simples mecanismo, e depressa me aborreci. No entanto conservei duma maneira geral um certo gosto pela abstracção.
- E as ciências práticas? Você tem...
- Também me interessaram. A química, a zoologia, a física. Mas faltavam-me meios de experiência. Há dois ou três anos, ninguém consentiria na minha presença num laboratório. E agora, é demasiado tarde. Já não tenho vontade de me lançar no ensaio experimental, de participar eu próprio na investigação. Embora sinta na realidade profundamente a que ponto a noção do progresso é exclusivamente científica. Mas prefiro olhar, ficar isolado. Observar. Agir sem ser dominado.
- E para que é que está orientado, agora?
- Como?, para que é que estou orientado?
- Sim, como é que vê o seu futuro?
-Já lhe respondi: não vejo nada. A observação é um dom gratuito. Porque quer que faça dela uma profissão?
- Porque aceitou então arriscar tudo de uma vez?
- Oh, isso... isso passou-se há muito tempo. Foi um erro. Nesse momento, não sabia até que ponto pode ser degradante, aviltante, uma pessoa servir-se do cérebro para divertir um público de circo. Os meus pais tinham necessidade de dinheiro e eu estava submetido a essa pressão afectiva. Mas lamentei-o.
- Foi então isso que lhe permitiu...
- Permitiu o quê? Ser célebre? Fazer conferências? Pensa realmente que isso seja o mais importante para mim? Não, não, visto que as coisas se passaram assim, tanto pior, nada tenho a dizer, mas passaria bem sem a glória e sem dinheiro.
- Tem a certeza?
- Nasci acreditando.
- Quando é que lhe veio a fé?
- Ela nunca veio... creio poder dizer, tanto quanto me lembro, que sempre tive fé. Nasci acreditando.
- Teve períodos de confusão, de dúvida?
- Nunca. Tomei consciência da religião, e da possibilidade de ficar irreligioso, pelos oito-nove anos. Qualquer coisa me marcara; nesse tempo, frequentava uma igreja muito bonita onde a missa era maravilhosamente cantada. E, é curioso, não foi um sentimento de injustiça que me fez compreender a realidade do espírito irreligioso, mas um sentimento de perfeição, de beleza, de elevação. Eu estava mergulhado vivo num universo divino, nadava na alegria, e era na terra um homem, nada mais que um homem, pequeno, mesquinho, sem infinito! Essa contradição aparente é que me fazia principalmente sofrer. Como era possível sentir tão totalmente o que era Deus, e continuar um homem. Mas esse sentimento nunca me levou a duvidar. Até ali, contentara-me em ler as escrituras sagradas, e os livros de fé. Mas parara sobretudo em Ruysbroek o Admirável. Scotus Eriugena espantara-me também. Mas foi principalmente Ruysbroek quem me formou, religiosamente.
- O misticismo?
- Sim, o misticismo como única forma possível de religião. Naturalmente, não tardei em esbarrar com Pascal. E retrospectivamente, encontrei-me assim em estado de heresia pura em relação a Santo Agostinho ou ao tomismo. Foi nesse momento que, se quiser, tive qualquer coisa de parecido com uma crise. Mas era sempre no interior da fé, e não tinha nada duma dúvida. Para mim, Descartes ou Malebranche nunca tinham deixado de representar mundos estranhos, os da razão e da dialéctica. Lia-os, compreendia-os, mas se era necessário pôr qualquer coisa em dúvida, eram eles, era a sua espantosa pretensão de tudo regularizar, de construir um mundo novo sobre os alicerces da linguagem humana, essa linguagem tão pobre, tão imprópria. Compreende, o pensamento dividido em duas partes, porque a frase se divide em duas partes, a causa chama a consequência, o tema o predicado, a principal a subordinada. Si Deus est bónus est.1 Tudo me parecia pueril,
1 Em latim, no original: "Se Deus existe é bom." (N. do T.).
pequeno, cego. Era necessário outra coisa. Era preciso qualquer coisa que transbordasse, que se despejasse, uma calma completa, uma inocência total frente à realidade.
- Era o que lhe oferecia Ruysbroek?
- De maneira nenhuma! Ruysbroek também fez dialéctica. Mas era um teólogo, e na sua época, no século XIV, ninguém teria aceitado a experiência mística em estado puro como base de elevação espiritual. Era mesmo perigoso ser um místico, na sua época. Os transes eram mal vistos. Eram precisos quadros, exegese, argumentos sérios e determinantes. E além disso a linguagem não era a mesma, e não lhe permitia exprimir-se livremente. No fundo, a nossa época parece-me perfeita para o êxtase. Podemos mesmo tentar escrevê-la!
- No entanto, vê em Ruysbroek, e mais geralmente no misticismo, o essencial da virtude religiosa? Porquê?
- Não há nisso uma razão verdadeira. Prefiro pôr um apríorí: a fé é um transe, e tudo o que está próximo deste transe participa da fé.
- Mas é perigoso o que diz, não importa que transe.
- "Não importa que transe" não me interessa.
- É então uma categoria de transe?
- Não inteiramente. O estado de transe é um estado quase normal no ser humano; basta muito pouco para provocá-lo. Uma coisa de nada, um pouco de álcool no sangue, um pouco de droga, excesso de oxigénio, a cólera, o cansaço. Mas este estado é interessante na medida em que é orientável. Trata-se de um balanço, mas esse lança mão das regiões desconhecidas do nosso espírito. De facto, não há fundamentalmente nenhuma diferença, entre um homem intoxicado pelo álcool e um santo que se entregue ao êxtase. E no entanto há apesar de tudo uma diferença: a da interpretação. O momento de loucura é preparado por uma etapa onde o assunto é mergulhado numa espécie de vacilação da consciência, de excitação cerebral violenta. É esse momento que fabrica verdadeiramente o êxtase e lhe dá o sentido. Enquanto o êxtase em si mesmo é cego. É o vazio total, sem ascensão nem queda. A calma plana. Tanto quanto se possa dizer que o santo nunca conhecerá Deus. Aproxima-O, depois regressa. E estas duas etapas são as que são. Entre as duas, é o nada. O vazio, a amnésia completa. No momento X do êxtase, o santo e o intoxicado são semelhantes, estão no mesmo local. Habitam o mesmo paraíso vazio e terrífico.
-É importante que Deus não exista?
- Qual é a sua religião?
- Não tenho verdadeiramente religião. Não sou contra o princípio da religião, porque é o único que organiza o sentimento de religiosidade. Mas penso que na maior parte dos casos o espírito religioso passa antes da organização em religião. Quero dizer que o espírito de ascensão pura e verídica para Deus é essencial, enquanto a federação, quero dizer, o conjunto de regras que constitui uma religião como o catolicismo é uma simples contingência. Ora, o que censuro nas diferentes religiões, tanto no cristianismo como no budismo, é que o conjunto ritual impeça o total desabrochamento do indivíduo num Deus que lhe seja próprio. Ela dirige, fabrica proibições, faz-se moral, quando é bem evidente que Deus está além de toda a moral.
- Deus não é bom?
- Não, para falar com propriedade, Deus não é bom: é. bom, mau, são pobres palavras que se aplicam a um conjunto de regras respeitantes a alguns pormenores da nossa vida material. Porque é que Deus seria limitado pelas nossas pobres palavras e valores? Não, Deus não é bom. É mais do que isso. É a forma mais rica, mais completa, mais poderosa do ser, de qualquer maneira. Torna concreta a abstracção mesmo da forma do ser. E penso que o "envisagement" do ser não podia ser possível se Deus não lhe tivesse dado anteriormente o seu estado. Deus é a criação. É pois um princípio inextinguível, não orientado, a própria vida. Lembrem-se das palavras: "Eu sou Aquele que sou." Nenhuma outra palavra humana compreendeu e relatou melhor a forma divina. Intemporal, não, nem sequer intemporal e infinita. O princípio. O facto de que há qualquer coisa no lugar onde não havia nada.
- Mas então, Deus não tem necessidade...
- E até mesmo para lá de toda a expressão. Se quiser, eu sou Deus. Não há dúvida a sustentar, pergunta a fazer. Você existe. Portanto é Deus. Você não pode existir de outro modo. Se você não fosse Deus, não existiria.
- Um panteísmo, de certa maneira?
- Não, porque não se trata de louvar Deus em todas as coisas. Deus é exterior, e se eu lhe dizia que você é Deus, que eu sou Deus, não era para lhe dar a ideia que, segundo eu, Deus é uma espécie de corpo no interior do qual nós vivemos. Não, eu queria apenas insinuar uma espécie de analogia entre as duas palavras da frase, agir no ser determinando-o, por Deus. Sendo o Ser de certa maneira uma dimensão própria, tão relativa mas tão real como o tempo e o espaço. E Deus sendo o absoluto desta dimensão, como o infinito é o absoluto do espaço, e o eterno o absoluto do tempo. De facto, o absoluto do Ser é também o absoluto do espaço e o absoluto do tempo. Eis porque Deus é neste ponto inimaginável para os pobres espíritos dos homens.
- Mas então Deus não dá ordens aos homens? Os homens são livres?
- São livres, sim. Mas a vida do santo faz pouco caso desta liberdade. O que importa é o conhecimento mais perfeito possível da dimensão divina. Os homens estão condicionados por essa natureza divina que trazem em si pelo facto de estarem vivos. O bem e o mal não passam de miseráveis contingências humanas. A polícia existe para que estas contingências sejam observadas. Mas aquilo a que todo o homem é obrigado, e que nada obriga, é caminhar para Deus. A subir mais alto, a fixar a vontade e o desejo no seu próprio estado de existência, e a apertar, sim, de qualquer maneira, a apertar, a estreitar, a estar cada vez mais próximo do centro, do ponto de origem, a multiplicar pela adoração e pela santidade o poder único da vida, a desenvolver, assim, sem ver, cegamente, com uma fé e uma densidade, uma vontade de ser cada vez maior, e assim sem parar, o mais directamente, o mais cuidadosamente do mundo, até à aproximação da verdade primeira, da vontade inicial, do centro de irradiação e de calor, até ao pensamento concreto, semelhante à acção, da existência total.
Aqui, Martin hesitou um pouco, pela primeira vez, e, com a voz ligeiramente mais baixa, deixou escapar estas palavras apenas pelo magnetofone:
- E, chegado a este ponto, sim, é importante que Deus não exista? Pergunto, é importante, realmente, é importante?
No dia seguinte, por causa do calor e do barulho dos transístores, Martin descera ao pátio do imóvel. Eram cerca de três horas e meia da tarde. Não se via ninguém. Na caixa quadrada, no nono andar, o pai e a mãe mexiam-se como insectos. O céu estava dum azul pungente, e o sol nadava na praça, fazia um buraco branco por cima da terra, parecendo recuar e encafuar-se no fundo do espaço, indefinidamente. Martin caminhava no pátio, ao longo das portas das garagens. No centro do pátio, havia um terrapleno de areia, para as crianças. Martin começou a dar volta ao terrapleno, círculos cada vez mais estreitos. Por fim, viu-se obrigado a passar a borda do cimento e depois a caminhar na praceta, pela areia. Restringiu mais os círculos, patinhando na areia, enterrando-se a cada passo, até aos tornozelos. Quando chegou ao meio, ficou de pé um momento, imóvel. Depois levantou a cabeça para o céu e olhou as muralhas habitadas que o rodeavam. Não havia ninguém às janelas. Os buracos escancarados estavam vazios, escuros, inumeráveis. As vezes, pendurados em cordéis, agitavam-se ao vento pontas de cintas, camisas, ou soutiens. A música era quase imperceptível neste local do pátio. Era mesmo uma espécie de silêncio que reinava ali, que pesava; qualquer coisa de comparável ao ruído de morte das águas profundas, ao zumbido surdo de várias atmosferas a rebentar tímpanos.
Em seguida o céu pareceu descer-lhe sobre a testa, esmagando-o à maneira dum gigantesco martelo. Tudo se derramou, duma assentada, e ele achou-se pedra que cai, entontecido, tornado velocidade pura. Flutuava no espaço, prisioneiro da gravitação, e algo de largo e plano vinha ao seu encontro, ameaçando, fazendo-se enorme, coberto de cidades e árvores, sulcado de estradas e vias férreas, com sombras estranhas que avançavam de esguelha, e que a cada segundo se aproximavam mais, colocando-o, a ele, numa linha direita, indefinidamente rígida, perfeitamente vertical, onde reinava um vento destruidor que cortava a respiração. Caía em direcção ao céu, como a uma espécie de terra. Quando o choque se deu, Martin rolou sobre si mesmo no monte de areia e ficou, esmagado, estendido sobre o ventre.
Passou uma meia hora sem que pudesse fazer um gesto. Depois, o calor do Sol, os rumores dos carros que passavam de escape aberto de cada lado do prédio, a poeira da areia levemente levantada pela brisa, tudo isso agiu pouco a pouco sobre ele e chamou-o à vida. Martin começou a rastejar pela areia. Avançava imperceptivelmente, deslizando sobre o ventre, a face enterrada na massa movediça e suja. As mãos dele mergulhavam na areia, escavavam, nadavam, trituravam, e puxavam o melhor que podiam o resto do corpo, como patas de tartaruga. Por vezes, tacteando, encontravam objectos insólitos abandonados ali há semanas: cascas de laranja, bombons velhos meio chupados, bocados de pentes, espécies de ancinhos torcidos e selos esburacados, caixas de fósforos cheias de areia, papéis gordurosos, cabos de chupetas ou de gelados, e até um sapatinho de bebé que o uso e os grãos de areia roeram completamente.
Ao caminhar assim na areia, Martin respirava forte, arquejava com gritinhos, "a-ha", "a-ha". Tudo lhe havia penetrado no vestuário, enchido o couro cabeludo e as narinas, e transformara-o num estranho animal rastejante, uma espécie de minhoca ou caracol, uma toupeira que devia sofrer para se escapar, descolando milímetro a milímetro o corpo enfezado de matérias viscosas. A areia cobrira os vidros dos óculos com uma espécie de bafo cinzento, e ele devia andar pouco mais ou menos ao acaso. Apenas as mãos sabiam verdadeiramente onde andavam; apalpavam o solo em todos os lados, os cledos erguidos por vezes como antenas; eram movimento, e uma alegria furiosa nascia tremendo no centro das palmas, do simples contacto com as camadas vivas de areia, uma alegria eléctrica e friável que se espalhava através dos punhos, dos cotovelos, dos ombros, e enchia todo o corpo. As mãos tinham-se tornado seres independentes, animais ágeis de cinco patas, que arrastavam atrás de si o peso de todo um monte de carne inerte.
Quando atingiu o rebordo da platibanda, Martin levantou-se. Pôs-se primeiro de joelhos, as costas redondas, a cabeça caída para o chão. Depois sentou-se na areia, apoiou-se nas duas mãos e ficou quieto, os olhos vagos.
Ao levantar a cabeça para o cimo do imóvel, viu, debruçados numa varanda, muito pequenos, do tamanho de moscas, o pai e a mãe, que o olhavam. A mãe agitou a mão, e ele adivinhou as palavras que se formavam nos lábios, as palavras que caíam sobre ele, precisas e insensíveis, como o excedente dum vaso de gerânios.
- Digo-te que está a brincar! Olha para o Martin, digo-te que está a brincar! Está no monte de areia e diverte-se. Diverte-se como uma criança. O nosso filho está a brincar na areia!
No pátio, a sombra cor de violeta caminhava lentamente na direcção oposta ao sol.
Martin esqueceu as silhuetas dos arames, debruçadas lá em cima das varandas, e contemplou a marcha da sombra. Passava com lentidão sobre a superfície do pátio, semelhante a uma nuvem delicada. Pouco a pouco com continuações partidas por saltos minúsculos, ocupava o espaço todo, infiltrava-se nas ranhuras, subia ao longo dos obstáculos, depois descia de repente, sem que se soubesse verdadeiramente como; deslizava magicamente no fundo dos buracos; entrava nos respiradouros e nos esgotos à maneira duma serpente, ultrapassava as linhas desenhadas no solo, fazia abrir tudo à sua volta. As pedras, o cascalho, os duros bocados de sílex misturavam-se entre si, tornavam-se permeáveis. Eram como água, como o fluxo azulado duma estranha maré cheia, que rompia os limites, que partia bruscamente os cernes dos objectos com uma pancada de milímetro cinzento-ferro. O sol e a luz tinham feito aquele pátio branco, imaculado, cheio de coisas e de seres resplandecentes na sua independência: e eis que agora a sombra passava por eles, desfazia-os um a um, sem poupar nenhum. Círculos quebrados, a substância corria e espalhava-se pelo solo, enchendo o tanque do pátio do imóvel com um estranho líquido glauco onde nadavam detritos.
No seu pedestal de areia, Martin transformara-se num náufrago, num habitante duma ilha deserta. Estava de qualquer maneira refugiado ali, preservado da liquefacção por um raio de sol que descia até ele suavemente, passando pela abertura oeste do imóvel. Mas a sombra caminhava sempre, e o próprio Sol declinava. Em breve estaria no termo da queda; cairia ainda alguns minutos ao longo do corredor vertical, entre os dois quarteirões de casas. Pássaros voariam através da sua face eléctrica, enormes pássaros negros que se balançariam no ar da esquerda para a direita, da direita para a esquerda. Depois, sem luta, na verdade completamente natural, o céu tornar-se-ia vazio dele. Só ficaria a terra coberta de pedra e de metal, a terra ainda vibrante de calor, lisa como um longo espelho, e o mar cor de mercúrio, e a luz continuaria a mexer no meio das partículas, a enxamear na atmosfera invisível, com inatingíveis volutas de relâmpagos esbranquiçados desmaiando molemente no fundo de esconderijos como impressões retinianas. Quando tudo tivesse acabado, uma pessoa sentir-se-ia bem sozinha na terra; não teria mais nada que fazer senão esconder-se, talvez mesmo tremendo, a face contra o solo, e respirar baixinho, a boca mergulhada num buraco, entre duas raízes, as últimas lufadas da vida, os últimos sopros do delicioso calor.
A sombra da casa caminhava sempre em direcção a Martin. Este, com os olhos arregalados atrás dos vidros dos óculos, via a sombra avançar. Quanto mais baixo o Sol estava no corredor vertical, mais depressa a sombra caminhava. Cada salto que dava, agora, era praticamente consumido antes de ter sido visto. Era por dezenas de centímetros, por metros inteiros que a decomposição líquida ganhava terreno. E, facto notável, cada uma destas avançadas, por mais rápida que fosse, apagava totalmente a que a precedera. Tudo se passava como se a mudança da luz em sombra não fosse uma passagem, mas uma espécie de metamorfose absoluta e incompreensível. Lá, o cimento do solo era branco. Aqui, era negro. Como um jogo. Exactamente como um jogo, um tabuleiro gigantesco onde as casas se deslocariam a elas próprias, uma a uma, mecanicamente, não oferecendo nada mais senão o avesso escuro e uniforme.
Mas lá onde reinava a noite, o nada, como era grande a riqueza, a força dos odores e das estruturas, o bulício das coisas sujas, a vaga das visões enredadas, dos esplendores! Era-se embalado, levado, embarcado num barco invisível, e correntes endurecidas mantinham-nos apertados, serviam-nos de membros. Era assim. Mergulhava-se subitamente num espectáculo maravilhoso, entrava-se num quadro profundo, deslumbrante, nocturno, primeiro com a cabeça num bocal, e descobriam-se os covis, os segredos da vida envilecida em acção, um verdadeiro caldo de cultura, uma zona de fermentação em que os elementos evaporados, indistintos, subiam lentamente, sob a forma de pesadas flâmulas de nuvens e se cruzavam entre si incessantemente. Era no género duma noite, não calma, não silenciosa, em que tudo era marcado no fundo da alma pelo signo da ferocidade; uma cólera de fera, surgida sem dúvida do passado, e que subia lentamente, perigosamente, o curso do tempo. Era o domínio da ausência total, uma espécie de pôr do Sol sem Sol e sem horizonte, e a calma e a destruição perpetuavam-se mecanicamente, começando as suas acções no fundo do cérebro de Martin, depois ganhando, ganhando, espalhando-se através da pele e dos órgãos, ganhando sempre, correndo pelo chão como um sangue humano, mas um sangue invadido por qualquer veneno de víbora das areias, um sangue gelado, saburrento, paralisante.
Martin estava agora à sombra. Como que regressado ao interior de si mesmo, a cabeça novamente no pescoço e olhando para o fundo do corpo, para a obscuridade estranha que lhe rolava nas entranhas. Era o seu desejo secreto há tantos anos; viver no seu próprio corpo, viver só de si, em si, fazer-se caverna e aí habitar. Sentado no seu pedestal de areia, os braços estendidos para trás e enterrados como estacas até acima dos pulsos, fora lentamente coberto por uma fina poeira cinzenta, delgada película arenosa que o vento fraco fizera chover sobre ele. A sombra, ao passar, ofuscara-o ainda mais. Já nada brilhava; estava tudo cinzento, o fato, os cabelos, a pele, os olhos, os óculos, os botões da camisa, e até o fio de ouro que trazia à volta do pescoço. E no entanto, via. Pensava ainda em qualquer coisa, imaginava longos caminhos muito rígidos traçados mesmo na superfície plana do pátio de cimento. Era como se a consciência da deliquescência total desse universo reduzido, a morte, não se pudesse fazer senão graças à presença, atrás dele, à sua volta, para além das muralhas do imóvel, duma explosão extraordinária de vida e de luz. Não a recordação do sol e do calor, mas um género de combate último e desesperado que se travava ainda na terra. Os limites refaziam-se infatigavelmente, construíam-se paredes à medida que eram destruídas, tornavam-se a traçar linhas, depois apagavam-se e tornavam a aparecer. O mundo esfolado renovava as suas escamas, e a sombra, passando pelas asperezas, pelos picos, pelos sinais gravados no duro, lavava, lavava sem parar, inundava com o seu suave movimento de fluxo e refluxo, como uma mão invisível, ou melhor, como uma imperecível erosão que balançava a superfície inteira do solo, que a fazia praia longa e mole, estendida por planuras de lodo em que se reflectia o infinito do céu.
Martin mexeu-se novamente. Começou a brincar com a areia. Gostaria de ter baldes, pás, poder fazer castelos, bolos. Todo o seu espírito estava concentrado naquele jogo minúsculo. Havia como que uma bola no seu cérebro, uma esfera eléctrica que ressoava esta única frase:
- É preciso cavar um buraco muito fundo no solo.
Martin começou a cavar. Mas dava-se isto que fazia parte do jogo: à medida que os dedos de Martin tiravam areia, no centro do buraco, as paredes muito abruptas desmoronavam-se e enchiam novamente a pequena caverna, tão bem que era quase impossível ir mais fundo que uma dezena de centímetros. Mas as mãos de Martin não se ocupavam deste pormenor: era um jogo, um joguinho de nada, e era preciso cavar um buraco muito fundo no solo. Aliás, minutos depois, Martin, começou a descobrir as subtilezas do seu trabalho. Bastava cavar rapidamente alguns centímetros, sem fazer caso do resto. Em seguida, delicadamente, tirar a areia por pequenas pitadas, centímetro após centímetro. Logo que se tivesse atingido o ponto preciso onde, por experiência, se sabia que tudo ia desmoronar, era preciso prestar muita atenção. Retendo a respiração, estudando o ar, a direcção e a intensidade da brisa, procedia-se com a ponta dos dedos, lentamente, lentamente. Tirava-se a areia do centro do buraco, quase grão a grão. Ganhava-se em profundidade, um milímetro, dois milímetros, três, quatro, cinco, seis, sete milímetros. Os flancos do buraco mexiam um pouco; avalanchas microscópicas desencadeavam-se ao longo das falésias, e grãos de pó rolavam de cima para baixo, trazendo atrás de si um rasto de outros grãos ainda mais pequenos. Um sopro de ar, ao passar, ou as vibrações dum cilindro compressor na avenida vizinha faziam cair paredes inteiras. Mas o buraco continuava ali, perfeitamente, cónico, ameaçando, desafiando o resto do deserto. Então, quando se gozara com ele, quando se estava farto de ser feliz, de o ver, recomeçava-se a cavar lentamente. com a ponta do dedo indicador, tirava-se mais um, dois milímetros. Afastavam-se alguns grãos, e depois, duma assentada, sem que se tivesse tempo de ver, a catástrofe produzia-se: a areia fechava-se sobre a mão de Martin como um alçapão, e em vez do buraco havia apenas um vago desnivelamento no solo imóvel, onde nem sequer o rumor surdo da queda era ouvido.
Martin brincou assim várias vezes seguidas. Era bom, porque praticamente não tinha que se mexer. Apenas as mãos agiam, ágeis e precisas como insectos esquadrinhando na areia, escolhendo as partículas ao acaso, afastando os obstáculos, os raminhos. O jogo era cada vez mais pequeno, cada vez mais imperceptível, e parecia de certa maneira que nada o podia deter. Foi então que passando entre duas camadas de areia, os dedos de Martin sentiram um pequeno objecto redondo, resistente, que se encontrava ali. Tendo-o trazido à superfície, Martin viu que segurava entre o polegar e o dedo indicador da mão direita uma espécie de grão preto, tão grosso como areia. O objecto era mate, esférico. Ao pô-lo na palma da mão esquerda, Martin verificou que o objecto era um animal, um insecto; um gorgulho, sem dúvida, ou qualquer coisa muito próxima. Um escaravelho anão, talvez, se se reflectisse que os gorgulhos não se encontram senão nos sacos de farinha. A menos que fosse um gorgulho perdido, um desses gorgulhos que tomam os grãos de areia por grãos de trigo. Martin inclinou-se para o animal imóvel na palma da mão e contemplou-o durante muito tempo. Viu o corpo redondo, escuro, a ranhura dos élitros, a cabeça e as antenas. Fazendo-o saltar na mão, virou-o ao contrário e reparou no abdómen cinzento; nas patas encarquilhadas, finas, terminadas por minúsculos ganchos peludos. O animal não se mexia, e podia-se imaginá-lo morto há vários dias, seco na sua posição inerte. Mas Martin não se enganou; compreendeu imediatamente que o gorgulho estava vivo, e que fingia de morto para que o deixassem tranquilo. Viu isso logo à primeira olhadela, por causa do cuidado que o animal tinha em ficar enrolado sobre si mesmo, e talvez também por causa do imperceptível movimento de vibração das antenas dobradas. O medo era isso, esse pequeno grão de poeira, essa pobre pevide de fruto, muito preta, morta sobre si mesma, o tempo parado, o corpo ao contrário, as patas comprimidas no abdómen onde a vida palpitante se escondia.
Martin manteve a mão à altura dos óculos um longo momento, olhando intensamente o insecto. Pensamentos espantosos nasciam-lhe no cérebro; primeiro uma vontade feroz de fazer o animal mexer-se, de fazê-lo fugir, correr ao longo da sua linha de vida, escalar as almofadas dos músculos da mão, e desaparecer, em direcção ao punho, para as profundidades atabafantes da manga da camisa. Pareceu a Martin que os olhos e os óculos se tinham tornado lâminas de aço, e que a vontade se derramava ao longo do metal, e desfraldava com uma violência implacável na bolinha seca e escura. Qualquer coisa como palavras, verbos no estado puro, MEXER MEXER MEXER MEXER. Projécteis que caíam no centro do abdómen, entre as patas crispadas, e que iam animar o corpo do insecto, romper a morte aparente, e provocar a fuga desvairada, o pânico móvel. Mas nada vinha. O tempo continuava sempre parado, no interior da carapaça. Talvez o insecto se tivesse tornado cego, tivesse realmente morrido subitamente, se tivesse tornado pequena pedra que nada pode tocar. Mas onde estava ele, então? Onde desaparecera, esse que fora o insecto? Martin procurava desesperadamente compreender o que se tinha passado. Estivera um momento muito próximo de ser um verdadeiro deus; chegara aos limites dum estado sublime; e agora não podia fazer nada para lutar: era a fuga, o abandono; parecia que o seu espírito descia os degraus duma grande escadaria, cada vez mais depressa, sem ver, sem querer, a quatro e quatro, mergulhando a cada passo cada vez mais na sua queda. Ia cair, desintegrar-se, nada mais restaria dele, e isto por causa dum insecto minúsculo, duma espécie de gorgulho incompreensível que se obstinava em ficar bloqueado na palma da mão. Era preciso agir, depressa, antes que fosse demasiado tarde. Martin, o coração oprimido, sentiu a noite vir, a sombra que caminhava, que avançava, algo gelado e de opaco que se espalhava nele. Sentiu chegar a maré negra e volátil. Esboroavam-se coisas nele por toda a parte, inexprimíveis castelos de areia que se desfaziam em silêncio. Uma inquietação imensa vinha em vagas. Como um incêndio escuro, correndo ao vento, aumentando sem cessar o seu círculo de nada. Sentiu mesmo a vida, a pobre vida escapar-lhe, retirar-se dele, despejar os lugares. Era preciso agir antes que ficasse imóvel, antes que fosse estátua.
Martin inclinou um pouco mais a cabeça para a palma da mão esquerda. Os óculos estavam tão perto do gorgulho que já não podia vê-lo distintamente. O animal imóvel era uma mancha carbunculosa, vaga, no meio da massa de carne rosada. Quando o rosto não estava a mais de uma dezena de centímetros do animal, Martin arredondou lentamente os lábios e soprou. O hálito malcheiroso envolveu todo o insecto; este esteve quieto alguns segundos, depois, sufocando, dobrou pelo ventre e começou a andar. Martin triunfara. com uma repulsa instintiva deixou o insecto em cima da areia e olhou-o mover-se. Qualquer coisa de baixo e doloroso subiu-lhe ao espírito; Martin murmurou "Anima... Anima..."1 e desatou a rir.
Mais tarde, Martin tornou a pôr o animal entre os dedos, fez um buraco na areia e pô-lo no meio. O gorgulho, sem hesitação, começou a subir o declive. Mas a areia escorregava-lhe continuamente debaixo das patas e ele tornava a cair no fundo do buraco. Ficava ali um momento, como que aturdido pela queda, ou fingindo-se morto, sem razão, depois recomeçava a subir ao longo da muralha fria. As patitas agitavam-se a uma velocidade louca, a cabeça enfiava-se entre os grãos, as antenas palpitavam-lhe febrilmente em todos os sentidos. Martin contemplou o manejo do insecto com uma extrema atenção; não podia separar-se do corpo escuro, como se toda a vida do mundo tivesse sido colocada no fundo daquele buraco, sem esperanças de sair dele. Às vezes, durante a escalada, o gorgulho provocava uma avalancha de areia, por cima dele. Uma parede inteira desmoronava-se e caía em cima do insecto, e os grãos de poeira tapavam-no completamente; imobilizava-se então alguns segundos, as patas agarradas à areia. Passada a avalancha, continuava a ascensão, trabalhava, progredia, subia, subia. Moviam-se-lhe blocos debaixo das patas e ele caía para trás. Mas nada o fazia desanimar, nada o detinha. Subia outra vez, tornava a subir. Chegado a cerca de um terço da falésia, de repente, o chão não se lhe segurava debaixo das patas; continuava a moirejar desesperadamente, mas era no vazio. A parede cedia toda, e, subitamente, era a queda, misturada com camadas de areia. Martin julgava todas as vezes que ele ia desistir, que ia entregar o corpo à infelicidade: um corpo tão débil, tão ligeiro, um corpo que não valia nada, certamente, perante a morte. Mas o insecto não desistia. Mal tocava o fundo do abismo tornava a partir imediatamente, atacando quase sempre o mesmo lado da muralha. Havia portanto também um deus para os insectos, um messias para os coleópteros e para os artrópodes, um salvador
1 Alma... Alma... (N. do T.).
todo negro, coberto com um caparazão, cheio de antenas e patas, e que dera para sempre a sua ordem mágica! Um deus para cada um destes monstros, para os escaravelhos-rinocerontes e para os dinastas Hércules, para os estafilinos e para as pirálides das vinhas, para os grandes pavões da noite e para as escolopendras! Ou não havia ninguém para este mundo, para este buraco cavado na areia? Toda a terra era como este pedestal onde Martin estava sentado: pequenos Saaras, grandes Saaras. Buracos, derrocadas. Patas que andam, antenas que apalpam, e muito quente, no interior das carapaças crepitantes, órgãos apertados, pregas frementes duma raiva misteriosa.
Martin deixou de olhar para o gorgulho que iniciava a 264.a escalada, e observou a mão direita aberta na sua frente. Moveu os dedos, uns após outros, o polegar, o indicador, o anelar, o médio, novamente o polegar. Fechou a mão. Reabriu-a. Enterrou-a na areia, fechou as falanges e retirou-a. Ficara areia presa no interior da mão. Martin abriu os dedos: a areia deslizou, lentamente. Martin endireitou-se e ajoelhou. A noite estava a chegar. O céu apresentava nuvens espessas, vítreas, que deviam ter absorvido toda a luz.
As coisas eram assim. Era preciso estar vivo, sentir-se vivo até à parte mais esquecida, no crepúsculo, naquela cidade, naquele espaço de terra habitada, no centro de um pátio, espécie de troglodita do H. L. M. Era preciso sentir todo o corpo e toda a alma, simultaneamente, solitário no centro dum deserto de betão, e correndo lentamente com todo o resto do universo. Um corpo como uma fonte, única e espalhando-se em volta, um corpo como uma folha, colocado ali, ao mesmo tempo disperso, um verdadeiro apartamento de paredes regulares, dividido em compartimentos, cozinha, casa de banho, armários metidos na parede, com portas e janelas, inteiramente oferecido. A noite podia vir então, os candeeiros e os faróis acender-se-iam tranquilamente uns a seguir aos outros. A multidão daria encontrões nas ruas para alcançar os domicílios, os bares iluminar-se-iam, as lojas barricadas pestanejariam, altifalantes começariam a transmitir músicas monótonas. Algo de misterioso escorregaria por toda a parte, uma espécie de sono habitual, e os animais chegariam aos seus abrigos para dormirem. Tudo isso se ia passar em breve, sem dúvida. Estava escrito nos corpos, nos nervos, nas fibras, no centro das carnes. Estava desenhado por toda a parte, nos passeios, ao longo das paredes, no interior das lâmpadas eléctricas, dormir, dormir, como uma pequena cruz invisível, a marca da vida.
Martin, de joelhos na areia, escutava à sua volta os apelos multiplicados que se cruzavam no ar. Ouvia os gritos roucos das crianças, as buzinas dos carros, os apitos dos comboios, as pancadas surdas que estremeciam o solo, os tumultos graves dos aparelhos de televisão, discórdias, estalidos, borborigmo, todas as vozes fundentes que se respondiam duma ponta à outra da cidade, e que não significavam nada de preciso, apenas talvez o mesmo inefável estremecimento vindo do profundo de si próprio, que envolvia lentamente o corpo inteiro, que subia, irradiava, e pouco a pouco se fazia alegria, alegria certa, suavidade, cantata de alegria ruidosa.
Quando o céu ficou completamente escuro e coberto de nuvens, a chuva começou a cair em cima de Martin, mas ele não prestou atenção. Continuou de joelhos no terrapleno, os braços pendentes ao longo do corpo, a ponta dos dedos tocando na areia. A chuva caía em gotas grossas, no crânio, nos ombros, nas pernas. As gotas batiam-lhe na pele com violência, projectando à sua volta um delicado vapor fresco. Martin não se mexia; tinha agora os olhos fixos num ponto distante, na linha chata da parede e nas cortinas das garagens. À direita das garagens, ao lado da estrumeira, havia uma abertura no imóvel, por onde entravam os roncos da circulação e as buzinadelas.
Foi de lá que viu aproximar a silhueta pesada duma mulher de impermeável e guarda-chuva, que se dirigiu para ele. Era a mãe. Aproximou-se do terrapleno e parou a cerca de um metro. Martin reparou que ela trazia um fato debaixo do braço. Encarou a mãe de frente, através dos vidros dos óculos onde a água começava a escorrer. Ela olhou-o também durante um momento, com uma espécie de timidez ou de tristeza. Depois deu alguns passos em frente.
- Martin? - disse ela.
Martin continuou a olhar para ela. A mãe repetiu:
- Martin?
Estendeu a vestimenta; era um impermeável.
- Martin, trouxe-te isto. Está a chover.
- Sim - disse Martin. - Obrigado. - Colocou o impermeável ao lado dele, na areia.
Ela aproximou-se outra vez. Martin viu-lhe o rosto fatigado, quase balofo. Os cabelos grisalhos, o corpo de ancas pesadas. O impermeável cinzento-azulado que ela trazia, e o guarda-chuva, um enorme guarda-chuva preto que lhe oscilava lentamente por cima da cabeça, e no qual gotas de água crepitavam muito depressa. Reparou que havia em toda aquela silhueta um não sei quê de infantil, de trágico, rugas à volta da boca, olhos embaciados, o nariz vermelho, fealdades e velhices sem número, que não se podiam olhar sem curiosidade.
Ela aproximou-se mais, até ao degrau de pedra que delimitava o terrapleno.
- Martin - disse ela hesitando. - Martin, não devias ficar. Está a chover muito, bem vês. Vais ficar doente. Veste o impermeável que eu te trouxe.
Martin não respondeu. Pegou no impermeável e enfiou-o rapidamente, sem o abotoar. Depois sentou-se no rebordo do terrapleno e maquinalmente pegou na areia com as mãos.
- O que é que fizeste todo este tempo? - perguntou ela. - Há mais de duas horas que estás sentado neste monte de areia. Agora devias voltar para casa.
Hesitou, depois mudou o guarda-chuva para a outra mão.
- Vem - disse. - O jantar está pronto há um bom bocado. Não queres comer?
Martin abanou a cabeça:
- Não, ainda não.
-Já é de noite. Devias vir.
- Não posso ir já - disse Martin.
- Porquê? Está a chover, vais apanhar frio.
- Não, não tenho frio. É preciso que eu... que fique aqui mais um bocado.
- Não tens fome?
- Não - respondeu Martin. - É preciso que eu... ainda tenho de reflectir numas coisas. E estou bem aqui. Não tenho frio, posso ficar.
- Não queres vir para casa? Podias trabalhar, lá em cima.
- Não. Não seria capaz. Preciso de ficar aqui.
- Isso não é razoável - acrescentou a mãe. - Digo-te que farias melhor entrar em casa. Daqui a pouco vai chover muito. É tarde. Sabes que horas são?
- Tanto me faz - replicou Martin. - Tenho de ficar aqui.
- Vais ficar encharcado.
Martin olhou para a areia no fundo da mão; já estava toda molhada, escura, e os grãos tinham-se coagulado numa espécie de lama.
- O que é que fizeste durante todo este tempo? - perguntou a mãe.
- Oh, nada - retorquiu Martin.
- Ficaste aqui muito tempo, muito tempo mesmo - disse a mãe com ar sonhador. - Perguntava a mim mesma o que é que podias estar a fazer, quero dizer, em que pensavas, e... E de repente, vi-te pela janela.
- Viste-me?
- Sim, vi-te, há bocado. Até te fiz sinal. Tinhas ar... tinhas ar de quem se estava a divertir...
- Sim, divertia-me - disse Martin.
- É verdade? E não pensavas em nada?
- Não, em nada.
Ela afastou uma madeixa de cabelos grisalhos que se lhe colara à testa.
- Gostava tanto - começou ela. Depois parou. Hesitou ainda durante alguns segundos, e quando recomeçou a falar, foi com outras palavras: - Tu... tu não estás, cansado?
- Não.
- Tens a certeza que não tens frio?
- Não.
- Pois bem, eu...
Durante um minuto não disse mais nada. Ficaram os dois imóveis, em silêncio, apenas com o ruído das gotas de água batendo no guarda-chuva. A chuva caía também na areia, atrás de Martin, mas com um ruído silencioso. Odores esquisitos libertavam-se da terra à medida que a água a penetrava, odores a raízes, fosfato, velhas folhas apodrecidas.
- Cheira a papel molhado - afirmou Martin.
A mãe bamboleou-se nas pernas. Olhou para o alto do prédio; as janelas estavam todas iluminadas, e, por momentos, sombras chinesas passavam diante dos caixilhos. Ouviam-se gritos humanos e também gritos de loiça e de cozinha. As refeições terminavam, lá em cima, nos covis sufocantes.
- Não queres vir agora? - perguntou ela. Martin abanou a cabeça.
- Dá-me esse prazer, vem.
- Não. Já te disse, tenho de ficar aqui um pouco. É preciso. Pensei em muitas coisas, esta tarde...
- Depois nos dirás isso.
- Sim, talvez... dir-vos-ei... se valer a pena.
- Porquê, se valer a pena? Não é...
- Não, e aliás ainda não acabei completamente. É por isto. Tenho de ficar ainda aqui uns cinco ou dez minutos. Até que acabe. Não preciso de mais tempo. Irei logo a seguir.
A mãe hesitou ainda uma vez. Marcou um pé no chão, em frente de Martin. Usava sapatos grossos de couro, de tacões rasos e solas de crepe, que se colavam ao cimento molhado com cómicos ruídos de sucção. Depois a mãe, arranhando a garganta, disse: - bom, está bem, vou-te deixar, visto que... visto que ainda queres ficar um pouco. Mas não fiques muito tempo.
Martin sossegou-a:
- Oh, não, apenas... apenas cinco ou dez minutos, não mais.
Ela voltou-se e fez menção de se ir embora; depois voltou para trás e estendeu o guarda-chuva a Martin:
- Toma, pega o guarda-chuva. Assim não te molharás muito.
- Obrigado - disse Martin. E abrigou-se debaixo do guarda-chuva.
Ao longe, muito para lá dos limites da cidade, ouviu-se o barulho dum trovão. A mãe levantou a cabeça:
- Estás a ver - disse -, está a chegar.
Quando viu que Martin não a escutava, afastou-se deveras. Gritou uma última vez:
- Fico a tua espera! Dentro de cinco minutos! Hem!
E depois desapareceu no interior do imóvel. Martin ficou sozinho no pátio sentado sob o guarda-chuva sonoro.
Doze dias mais tarde, Martin terminara a sua grande conferência. O êxito fora considerável, e vários jornais falavam já de Martin Torjmann como dum chefe religioso com quem era preciso contar. Tinham estado presentes representantes de todos os países, as entrevistas tinham-se multiplicado, e a palavra torjmannismo ficara mesmo definida. Mas para Martin a surpresa maior fora a presença duma multidão bastante considerável, vinda à saída da sala de conferências para o aplaudir. Graças a um altifalante arranjado à pressa, Martin pudera responder a essa honra improvisando uma arenga onde exortava os homens, sem distinção de raça, de religião, de nacionalidade, a unirem-se num espírito de santidade. Terminara o discurso por uma espécie de oração pela humanidade onde eram saudados os nomes de Augusto Comte e de Swedenborg. A época moderna estava, segundo ele, situada exactamente entre duas inocências, a do humanismo e a do misticismo. Na véspera da sua partida para os Estados Unidos, uma tal popularidade não podia deixar de ser bem-vinda.
No dia seguinte a esta conferência, Martin sentiu novamente desejos de descer ao pátio do H. M. L. Eram cerca de três horas da tarde, e já não havia vestígios da chuva que conhecera naquele lugar. O Sol estava muito redondo no céu, e o calor descia sobre a terra por vagas. Martin começou a andar no pátio cimentado. Observava o solo de muito perto, notando de passagem os mínimos pormenores: fendas cheias de pó, desenhos a giz mais ou menos obscenos, manchas de toda a espécie, caixas, detritos, cisco. Perto duma garagem, encontrou um bocado de papel amachucado, sujo de óleo, onde um pneu de carro deixara uma série de cruzes acastanhadas. Debaixo da camada de gordura, podia-se ler isto:
Aníbal salva a sua fortuna da cupidez dos Cretenses
Após a derrota de Antíoco, Aníbal dirigiu-se a Creta, para Cortina. Este homem, o mais subtil, viu que corria um grande perigo por causa da cupidez dos Cretenses. com efeito, levava com ele uma grande fortuna. Por isso encheu várias ânforas com chumbo cobrindo a parte superior com ouro e prata. Em seguida, na presença dos notáveis colocou-as no templo de Diana, fingindo confiar a fortuna à lealdade deles. Depois de os induzir em erro, encheu com o seu dinheiro todas as estátuas de bronze que trazia consigo, e deixou-as ao abandono em frente da casa. Entretanto, os habitantes de Cortina guardavam o templo com o maior cuidado, com medo que Aníbal, sem eles saberem, tirasse e levasse todo o dinheiro. Foi assim que o cartaginês salvou a sua fortuna, e, troçando de todos os cartagineses, conseguiu chegar ao Ponto Euxino, entre as Prússias.
Martin dobrou cuidadosamente o papel e pô-lo na algibeira. Depois, continuou a ronda pelo pátio. Passou através das zonas de sol e de sombra, andou ao longo das paredes do prédio, olhou para o interior das janelas no rés-do-chão. Um quarto de hora mais tarde voltou ao pátio e sentou-se no rebordo do terrapleno. A areia, atrás dele, estava seca e poeirenta. Martin tirou um punhado com a mão esquerda e examinou-a. Contemplou os minúsculos cristais de rocha, uns a seguir aos outros. Seria preciso contá-los todos, durante horas, dias, anos, sem esquecer nenhum: cada um deles teria um nome, um nome de algarismo, uma palavra sonora, no género de 334652, ou 8075241, que o assentaria na existência. Seria preciso arrancá-los, soletrando-os lentamente a meia-voz, na perturbação ignóbil da indeterminação. Chamá-los à vida, fazê-los objectos fora dessa eterna noite do inominável. Mas era já demasiado tarde. Havia muito tempo que para Martin o mundo se tornara uma extensão impalpável, imensa, flutuante. Um mar, um oceano glauco e compacto onde tudo se misturava para nunca mais acabar, onde tudo escapava à opressão, às ordens, ao conhecimento. Martin, meio voltado, procurou com os olhos o sítio do monte de areia onde abandonara o gorgulho, doze dias antes. Mas não o encontrou. Os microssismos tinham passado por ali, e mudado a fisionomia daquela parcela da natureza, e o pequeno insecto poeirento devia estar esquecido, também, em qualquer lado, à flor da superfície, enterrado seco entre duas camadas de rocha triturada; enfim morto, partido para sempre do corpo minúsculo, confundido com o duro silêncio do reino do inanimado.
Foi ao levantar a cabeça que Martin viu o grupo de crianças que entrava no pátio do imóvel. Eram cerca de meia dúzia, raparigas e rapazes, todos desconhecidos. Martin viu primeiro o chefe do grupo, um garoto de uma dúzia de anos vestido com uns blue-jeans e um sweater branco. Tinha o rosto pálido, manchado de sardas e cabelos ruivos. Caminhava lentamente, arrastando os pés pelo chão, e olhando de lado, como se nada do que o rodeava lhe pudesse realmente dizer respeito. Atrás dele, o grupo de miúdos avançava sem dizer nada. Às vezes, um garoto mais novo que os outros dava uma escapadela e corria um momento em ziguezague através do pátio imitando o barulho dum motor. Assim, descontraidamente, o grupo foi direito ao terrapleno onde Martin estava sentado. Quando chegaram, primeiro ignoraram completamente a presença de Martin, fingindo brincar na areia. Uns correram para o centro soltando gritos selvagens, outros sentaram-se à volta no rebordo de pedra, não longe de Martin. O mais velho, esse, ficou de pé, de costas voltadas, continuando a raspar os pés. De vez em quando olhava para as janelas da casa com ar indiferente. Foi então que, subitamente, por trás, Martin apanhou com um punhado de areia. Voltou-se e viu um dos rapazes, de cerca de dez anos, em pé atrás dele. Tinha um sapato enterrado no terrapleno e entretinha-se a atirar areia para a frente, mecanicamente. Martin pediu-lhe explicações. Nesse momento todo o grupo saiu do monte de areia e fez um círculo à volta de Martin. O mais velho do grupo virou-se negligentemente e foi colocar-se em frente dele. Ficaram todos silenciosos durante alguns segundos, depois o chefe do grupo começou a falar; continuava a raspar o cimento do pátio com a ponta da alparcata, e tinha as mãos enfiadas no fundo dos bolsos.
- Como é que te chamas? - perguntou.
- Martin - respondeu Martin.
- Martin quê?
- Martin Torjmann.
O outro hesitou um instante. Depois teve um movimento de queixo em direcção às janelas do H. L. M.
- Moras ali?
- Moro. Porquê?
O rapaz ignorou a pergunta.
- Eu chamo-me Pierre - disse com lentidão. Depois fez outro movimento com o queixo, desta vez semicircular. - Eles estão comigo - explicou. - O tipo que te atirou a areia é Bobo. O outro é Frédéric, irmão dele. Ao lado está Sophie, o pai dela é chui. Roger, Max, Annie, Philippe, e o mais pequeno, aquele, é meu irmão. Édouard. Mas chamam-lhe Donald. Donald Duck, porque anda como um pato. Topaste? E tu, Cabeça de Sino, como é que disseste que era o teu nome?
- Eu não me chamo Cabeça de Sino - respondeu Martin. - Chamo-me Martin Torjmann.
- Vocês ouviram isto?
Foi um delírio; começaram todos a rir às gargalhadas e a saltar, dando gritos de animais. Martin quis levantar-se para se ir embora. Mas um dos rapazes, que tinha o cabelo cortado rente, atirou-o para trás.
- Deixa-te estar sentado, Cabeça de Sino.
Continuaram a rir e a dançar. Por fim, o que dissera chamar-se Pierre fez um sinal e todos se calaram. Em seguida chegou-se muito perto de Martin.
- Olha lá, Zarolho - disse lentamente -, nunca te disseram que tinhas uma cabeça muito grande?
Os risos recomeçaram; Martin quis levantar-se novamente. Desta vez Pierre empurrou-o com o pé, e ele caiu de costas no monte de areia. Martin endireitou os óculos.
- Deixem-me passar.
- Deimxem-me panssar - fanhoseou um cios garotos.
- Então, não ouviste? - continuou Pierre -; perguntei-te se nunca te tinham dito que tinhas uma cabeça muito grande?
- É claro que a mãezinha nunca lhe disse isso - exclamou Bobo.
- Deixem-me passar, imbecis - gritou Martin. Começava a ter medo; a cólera invadiu-o e quis levantar-se novamente. Dois garotos rodearam-no imediatamente e mantiveram-no no rebordo do terrapleno. O mais velho continuou a raspar o sapato no chão, muito perto dos pés de Martin.
- Ele não pode responder. Nunca se olhou ao espelho. Não é verdade, Zarolho?
- Eu nunca vi uma cabeça tão grande, palavra - afirmou Roger.
- Nem mesmo no circo.
- Uma autêntica cabeça do Carnaval - atirou Frédéric.
- Deixem-me - exclamou Martin -; ou chamo o meu pai.
- Está bem, chama-o - disse Pierre -; nós não pedimos coisa melhor, não é, rapazes? Pode ser que ele tenha uma cabeça ainda maior!
Os rapazes apertaram o círculo e puseram-se a rir e a gritar com mais força. Martin tentou libertar-se, mas os garotos mantinham-no seguro pelos braços e eram mais fortes do que ele.
- Tens uns lindos óculos - exclamou Pierre. E arrancou-os do nariz de Martin. Fê-los rodar na mão direita.
- Vês melhor agora, Cabeçudo?
- Dêem-me isso! Dêem-me os óculos! - gritou Martin, tremendo de raiva.
- Caluda! Se gritas partimos-te os óculos, estás a ouvir?
- Passa-mos - disse Bobo.
Pegou nos óculos e enfiou-os no nariz. Depois fingiu andar no pátio, as costas dobradas, as pernas tortas. Os outros desataram a rir, e experimentaram os óculos, um de cada vez, aumentando as caretas. Martin viu a cena através dum écran de névoa, silhuetas torcidas e obscuras agitando-se diante dele como gnomos. Continuou sentado no rebordo do terrapleno, os olhos dilatados, os pulmões comprimidos, incapaz de falar. Quando acabaram, o mais velho tornou a pegar nos óculos e fê-los rodar diante do rosto de Martin.
- Gostavas de ter os teus óculos, hem, Cabeçudo?
- Parte-lhos, Pierre - disse uma das raparigas. - Para ele aprender.
- Não, tenho uma ideia - gritou Donald Duck. - Sabem o que vamos fazer? Vamos escondê-los na areia e ficamos a vê-lo procurar.
Começaram-se todos a rir.
- Sim, sim, vamos a isso, vamos esconder os óculos na areia!
O mais velho aprovou:
- De acordo. Vamos esconder os óculos na areia. Mas ele não pode ver onde é.
- A gente mantém-no voltado para aqui - disse Bobo.
- De qualquer maneira, ele não consegue ver nada sem óculos afirmou Donald Duck.
Martin tentou lutar.
- Não, não, dêem-me os meus óculos! Imbecis! Entreguem-me os óculos!
Mas os dois rapazes mantinham-no seguro. Para maior segurança, uma das raparigas juntou-se a eles e apertou-lhe as pernas.
- Vamos, cavem um buraco fundo! - ordenou Pierre. E subiu para cima do rebordo do terrapleno.
Os outros começaram todos a escavar na areia, no centro. Em poucos minutos arranjaram um buraco bastante fundo. No momento de pôr lá os óculos, Pierre mudou de ideias. Fez sinal aos outros para se aproximarem e cochichou em voz baixa.
- Tenho uma ideia melhor. Vamos fazer com que o Cabeçudo acredite que metemos lã os óculos, e eu guardo-os no bolso. Assim, cavará para nada. - Os outros rebentaram a rir, depois taparam o buraco e saíram do terrapleno, que rodearam como uma arena.
Pierre subiu de novo para o rebordo do terrapleno; virou-se para Martin e disse calmamente:
- Vamos. Cava!
Martin não respondeu. Os outros tinham-no soltado e mantinham-se na sua frente com ar ameaçador. Olhou para as janelas, mas os seus olhos míopes não conseguiam ver nada além duma massa confusa de céu e cimento.
O chefe do grupo raspou a sola na borda do terrapleno.
- Então? De que estás à espera, Cabeçudo? Vai procurar os teus óculos!
Martin não se mexia. Um dos rapazes que o mantivera sentado, anteriormente, aproximou-se bruscamente e atirou-o para trás. Martin caiu pesadamente de costas na areia, e os miúdos desataram todos a rir. As piadas e os gracejos rebentaram ao mesmo tempo, elevando-se do círculo dos pitorras, animando-se, e caindo sobre ele, à trouxe-mouxe, na areia, fazendo-o rastejar. Martin caminhou de gatas para o meio do terrapleno, os olhos glaucos, a garganta apertada, os pulmões sufocantes. A raiva e o medo tinham entrado nele, tomado posse daquele espaço delimitado, monte de areia, círculo de moinantes, pátio de imóvel. Tudo era silencioso e baço, trágico, apenas as pancadas do seu coração batendo imensamente em toda a superfície do solo. Explodindo profundamente, como vindas debaixo da terra, de minas, de dinamite enterrada. Avançava com dificuldade, os joelhos arrastando-se pelos grãos de areia, as mãos enterradas até aos pulsos na matéria movediça e dura, a cabeça tornada subitamente tão pesada, tão grande, que era com dificuldade que conseguia mantê-la acima da terra. Os gritos dos garotos atravessavam-no cada vez mais depressa, ferindo-o de cada vez numa nova parcela da sua carne, como flechas, exactamente como flechas. Era o animal perseguido, espécie de elefante grande surpreendido no centro duma clareira, picado por setas.
- Vamos, procura!
- Cava! Cava!
- Vamos! Vamos!
- Vamos! Procura, Médor, procura! Ouah! Ouah!
- Mais longe! Mais longe!
- Cava! Escava a areia! Vamos!
- Ouah! Ouah! Procura! Procura! Sniff! Sniff! Ouah! Ouah!
- Vamos, Cabeçudo!
- Não, à esquerda! À esquerda! Cava mais fundo!
- Vamos, coragem!
- Cava! Cava! Cava!
- Mais depressa, Cabeçudo! Mais depressa!
- com o nariz, Cabeçudo! Agora com o nariz!
- Vamos, mais depressa! Mais depressa!
- Busca, Médor!
- Eh! Quente! Quente!
- É aí! Busca! Procura aí!
- Vamos, Toupeira! Busca! Cava! Cava! Cava!
- Ouah! Ouah!
Martin caíra agora de barriga na areia. E cavava. Primeiro, lentamente, raspando debilmente com as mãos na matéria líquida e poeirenta. Depois mais depressa, escavando com os braços, fazendo saltar para a cara pazadas de poeira odorante. Por fim, com frenesim, todo o corpo transformado em máquina de cavar, insecto debatendo-se, torcendo-se no meio do terrapleno, furando buracos por toda a parte, com os braços, as pernas, os ombros, as ancas, a cabeça mesmo. Enfiava o queixo na areia, depois as ventas, comia, dava respostas tortas, respirava areia, sufocava, impacientava-se, afundava-se! O delírio dominara-o totalmente e era como um abismo sem fundo, como um poço tornado cada vez maior à medida que caía. Estava instalado na queda, no eixo do próprio abismo, era a sua própria caverna, cada vez mais caverna, e nada podia detê-lo. O tempo passara, fizera-o vítima incoerente dessa metamorfose, e nada podia fazê-lo voltar para trás.
As forças faltaram-lhe. Ficou estendido no centro da arena, de barriga para baixo na areia, quase não mexendo os membros. Apenas um ligeiro estremecimento dos braços indicava que ele continuava vivo. O sol inundava-lhe o corpo imóvel, e misturava-se à areia que lhe cobria a pele e o vestuário. Martin estava todo cinzento, agora, cinzento como uma velha pele de lagarto, dum cinzento terno e sujo que parecia arrancá-lo ao mundo dos vivos.
Quase instintivamente, os garotos calaram-se. Ficaram agrupados à volta do terrapleno, olhando a espécie de cadáver de Martin. Em seguida, Pierre pôs a ponta da alparcata no interior do terrapleno e, com um movimento seco do tornozelo, atirou um jacto de areia para cima de Martin. A areia caiu sobre o corpo inerte, um pouco por toda a parte, pelos cabelos enredados, pela nuca, pelos ombros, pelas orelhas. Quando ele viu que Martin não se mexia, tirou os óculos do bolso e atirou-os para a areia, para junto do corpo estendido; depois desceu para o meio dos companheiros. Não teve necessidade de dizer qualquer palavra: o sinal foi compreendido imediatamente; os garotos fugiram a correr e abandonaram o pátio.
Cinco minutos mais tarde, Martin ergueu-se do monte de areia. Olhou à volta, embotado, sentindo rios de grãos de areia que deslizavam delicadamente ao longo do fato, no interior da roupa e pela pele. Caminhou de joelhos, no interior do terrapleno. Depois encontrou a haste dos óculos e colocou-os maquinalmente no nariz. O mundo tornou-se de repente claro, nu, duro e brilhante com todas as forças, cheio de objectos quadrados, de linhas direitas e decisivas, de cores enlambuzadas como toalhas de compota. O céu estava muito bonito, muito branco e fixo, no género duma janela aberta brutalmente sobre as retinas. Estava tudo tão calmo, e tão brilhante que devia ser imutável, eterno, cheio para sempre duma velhice incomparável. Por trás dos óculos, os olhos de Martin tornaram-se novamente turvos. Lágrimas, seriam realmente lágrimas? Aquilo vinha do mais profundo dele próprio, corria facilmente e sem vergonha à maneira dum líquido natural, aquilo era efectivamente água, fonte do seu ser, a sua própria vida que se derramava tranquilamente e se espalhava no exterior.
- Deus, oh Deus! - exclamou Martin. - Blasfemei de ti, demasiado! Se estás aí, se é isso o que queres, vem, toma a minha vida! Leva-me! Leva-me!
O mundo está vivo
Eis o que é preciso fazer: partir para o campo, como um pintor de domingo, com uma grande folha de papel e um lápis. Escolher um sítio deserto, num vale encaixado entre as montanhas, sentar-se num rochedo e olhar durante muito tempo à sua volta. E depois, quando se olhou bem, pegar na folha de papel e desenhar com palavras o que se viu. Compreendem, é preciso inscrever a paisagem, peça por peça, sem esquecer nada; longamente, metodicamente, é preciso fazer a carta deste bocado de mundo, indicar o mínimo calhau, o mínimo tufo de erva, fazer o esquema das visões e dos odores, escrever tudo, desenhar tudo. Depois de se acabar, e vir a noite, pode-se regressar a casa. Na folha, ali, naquele rectângulo de papel de 21 x 27, garatujou-se uma parcela da terra. Fez-se o retrato de alguns quilómetros de luz, de ruídos e cheiros. Achataram-se como num postal, muito facilmente. E agora, pertencem-vos, esses quilómetros já não apodrecerão no esquecimento; ficarão, martelados com pequenos sinais, na vossa cabeça até à eternidade. Ou, pelo menos, o tempo que viverem.
Neste sítio, as montanhas tinham aparecido por toda a parte, não importa como; ocupavam todo o horizonte, com altas massas duras e barrancos, cristas agudas que surgiam em todas os sentidos. Em baixo, a planí de apertava-se bruscamente, em forma de triângulo, e o caos começava. O leito do rio, uma espécie de deserto de calhaus cortado em dois por um delgado fio de água, estava semeado de pedras enormes, caídas ali durante uma avalancha velha de mil anos. Entre as pedras, os seixos estavam colocados por vagas, modelando as correntes e os turbilhões da última cheia. Do outro lado do rio, havia uma montanha abrupta, mais alta do que as outras, que se mantinha de pé à entrada do desfiladeiro, como uma parede.
Chegava-se junto dela à velocidade dum avião, e pouco a pouco, os pormenores aclaravam-se, as asperezas inumeráveis, os cortes de arbustos encostados mesmo à rocha, os regatozinhos secos, os buracos, os montões de destroços; a parede erguia-se direita ao longo do vale, com uma altura de qualquer coisa como 500 metros, a pique, nua e maciça. A montanha estava imóvel, pesada, sozinha contra o céu azul onde se arrastavam nuvens em farrapos. Era assim. A linha da montanha subia suavemente para o norte, depois a inclinação tornava-se mais rígida, transformava-se em falésia; o primeiro pico tinha dois cumes, separados por um declive. Atrás do segundo pico, o sol fazia brilhar um objecto esquisito, pintado de branco, que tinha todo o ar dum crucifixo. Mais um declive, arredondado este, e chegava-se ao segundo cume; menos elevado que o primeiro, era composto por uma série de rochedos partidos que se encaixavam uns nos outros. Depois, o desenho da montanha descia numa espécie de garganta, e tornava a subir numa inclinação suave em direcção ao cume mais alto. Este era feito só dum pico, uma espécie de obelisco largo, com os flancos cobertos de árvores que emergiam da silhueta maciça como uma série de pequenas molas. Do outro lado do pico, depois de se passar esta zona deserta e gelada, este ponto careca que culminava sem cessar, era a descida quase vertical para o vale. No entanto, a meio caminho, a queda era parada por uma ramificação da montanha, uma torção do corpo que corria para a direita e a ligava a um outro bloco de pedra. Tal como o pescoço dum animal gigantesco, a massa rochosa dobrava-se longamente, num movimento sinuoso e pesado, e a aresta superior desta parede disforme parecia continuamente estendida num esforço medonho, digno dum cataclismo.
E, de facto, ainda lá estavam os traços do cataclismo antigo que modelara a terra. As rochas tinham surgido como foguetões, no meio de torrentes de lama ardente, lagos grandes como mares tinham-se derramado através cias fendas, e as cavernas subitamente cavadas, verdadeiros vulcões ao contrário, tinham engolido milhões e milhões de metros cúbicos de pedra e lodo. Via-se ainda a catástrofe tal como fora petrificada séculos antes; o caos repousava ali, tranquilo, esmagado debaixo da própria força, rostos de mortos surgindo desesperadamente da onda que escorre da vida: florestas de arbustos ondulantes, doce e sinuoso rio de águas turvas, monte de poeira e areia cobrindo as arestas primitivas. O mundo estava meio enterrado no lodo em acção, mas podia-se saber que estivera lá. Que explodira outro rã, que rebentara com todas as forças dos seus ossos vivos, empurrando tudo à sua volta, ao assalto do céu.
Ao norte, a montante do rio, o circo das montanhas apertou-se. O espaço tornou-se demasiado estreito, e os blocos de pedra impeliram-se uns contra os outros. O rio teve de passar através dum desfiladeiro incómodo, cheio de sombra, e os cimos alinharam-se, acavalando-se.
Na margem esquerda, há outra montanha, informe, que desapruma a estrada. O seu ventre está cheio por cima do rio, e os magros arbustos avidamente agarrados aos seus flancos torcem desesperadamente os ramos para poderem crescer na vertical.
O circo termina a juzante pela fuga das montanhas para as colinas, das colinas para as planícies, e das planícies para o mar.
Mas é no interior do circo que as coisas se passam. Nessa caverna talhada na terra, onde corre suavemente um rio entre bosques de oliveiras, nessa goela cheia de calma e cores, é preciso descer. Em frente da montanha como de uma parede, contra os tufos de arbustos agarrados à rocha macilenta; sentir os dentes de serra contra o céu, e o movimento rotativo das nuvens que avançam, que avançam... Escutar os ruídos e determiná-los; aspirar os odores; sentir dores duma picada de moscardo; ver os desenhos dos calhaus e das ervas, e não os esquecer; e principalmente, encarar a paisagem.
Ao pé das montanhas, há um rio; largo à entrada do circo, vai adelgaçando à medida que sobe a vertente da terra, com muitos meandros. De começo, a água é clara, quase cinzenta. Corre infatigavelmente para o mar, com um barulho igual e chiante, sem movimentos aparentes à superfície. Desliza assim, só numa peça, ao mesmo tempo opaca e translúcida, não reflectindo nada, no meio duma planí de de seixos. Outros canais foram traçados no seu leito, onde estagnam espécies de charcos lamacentos, refúgio dos mosquitos. Nos calhaus nada mexe; talvez a água deslize também em profundidade, com difíceis infiltrações entre cada seixo, gotas claras que caem e tornam a cair incessantemente, em silêncio. Os seixos, à superfície, são acamados por longas estrias em diagonal, umas cinzentas rosadas, outras cor de malva, outras ainda cor de ardósia. Sob as estratificações de calhaus, no mais profundo, é sempre rocha. A superfície milenária que corre ao longo da terra, e que a caminhada imperceptível da massa do rio usa, sem descanso. Porque o rio avança, é claro, água e pedras, como um corpo, como uma boa em migalhas. As partes superiores dos seixos são arrastadas pela corrente do rio, e esfregam as partes médias, que esfregam nas inferiores, que por sua vez esfregam a parede rochosa. Toda esta fricção é lenta, muito lenta. Mas uma força sobrenatural anima o rio, e a água rebenta todo o tempo, não dá tréguas, arranca pó à terra, esmaga, despeja, corta. Eterna, a água corre, vive à superfície, gota a gota em profundidade; depois de correr, o sol bate nos seixos e evapora-a. Sobe então ao céu, arrasta-se em longas nuvens brancas; depois o vento acumula as nuvens, fá-las cinzentas, morenas, azuis, negro de tinta, e então, subitamente, o céu rebenta e a água cai na terra, corre para o rio, penetra-lhe no leito, imbebe tudo, e nasce novamente, usa outra vez, rasga como um maxilar.
Mais a montante, o rio é apertado entre os lados da montanha; ali, a erosão ainda não alargou as massas de rocha, e os seixos são raros. As margens têm dum lado terrenos com caniços e do outro a parede é abrupta e nua. A água corre junto destes muros, profunda, azul. A rocha entra direita no rio, sem praias, apenas com um cerne escuro que corre por cima do nível das águas; a marca musgosa das cheias, sem dúvida, quando o rio é inchado pelas chuvas do Outono e rola grinaldas de turbilhões ao longo da montanha.
Na outra margem, no entanto, a rocha, menos resistente, cedeu. Ou talvez seja a força excêntrica da corrente, por causa da curva do rio, que atirou toda a água para a outra parede. À beira do rio, perto do meandro, na terra viscosa, instalaram-se caniços e ervas. O vento, ao passar, agita-os debilmente, e o sol aqueceu-lhes os caules durante todo o dia. Pássaros furam piando e sobem ao ar em ziguezague. Ali, naquele solo esponjoso, a vegetação soube rebentar. As raízes vivas cresceram na terra, e a água alimentou-as. Entre as ervas e os caniços, a parede de frente é visível, mais nua do que nunca. Mais longe, mais baixo, no sítio onde o rio alarga e as planuras de seixos começam, grandes árvores tristes, agarradas, não se sabe como, à rocha, estão inclinadas na direcção do leito do rio. E debaixo das suas folhagens caídas, há esconderijos negros; animais, serpentes, sapos, habitam, talvez, aí. Os buracos sombrios devem cheirar a podre, a folhas mortas, e o ar é certamente frio. Quem sabe se estes buracos não dissimulam um cadáver infecto, todo branco e azul, a pele cortada por cem golpes de faca?
Na proximidade dos terrenos arenosos onde crescem os caniços, começa a colina; em declive ligeiro, com campos de milho, terrenos vagos, velhos cepos, e, mesmo em destroços, sobe até à entrada. Os últimos metros de terra são em espaldeiras, plantados com oliveiras; os insectos são aí numerosos. Andam no ar, com ridículos ruídos chiantes, besouros, moscas-varejeiras, moscardos, libélulas, mosquitos, zangãos, vespas obreiras, e grandes formigas de asa cujo corpo palpita nervosamente. Rente à terra, entre os grãos, os seixos e as ervas secas, uma serpente rasteja lentamente; pára de vez em quando e o pescoço baloiça-lhe. As plantas são eriçadas, imóveis. Dir-se-ia que as coisas esperam um acontecimento grandioso. Mas nada se produz.
Plantadas rígidas nos terraços de terra, as oliveiras secam. Uma força surda e misteriosa existe nelas; mantém-nas fixas ao solo, sobe pelos ramos torcidos, espalha-se-lhe nas fibras. Uma vontade de ser árvore, talvez, uma dureza implacável, intensa, perfeitamente inanimada. No interior das cascas, nas pregas cerradas da madeira, trabalha na sua obra vertical, perfuma, sustenta, curva suavemente as cercaduras das folhinhas envernizadas. Está também na terra, na terra sugada que sobe nelas pelas raízes, e que faz betão armado das suas ramagens, cimento seco e áspero que estende os dedos inumeráveis bem alto para o zénite. Os pés das folhas estão erguidos muito direitos, como que estendidos para um sol invisível, e parece que a árvore se liga assim ao seio das nuvens eléctricas para receber delas um maná fulminante.
À beira da estrada, entre os blocos de pedra, nasceram flores. Um pé fino, alto, coberto duma espécie de penugem prateada, tendo em cima uma acumulação de rebentos e botões, e em baixo uma raiz em forma de Z donde partem vários pêlos. Ao longo da erva, as folhas abriram-se, oferecendo as cavidades minúsculas à poeira e ao vento. Entre dois braços que partem de cada lado do corpo, terminados por uma folha gigante, há uma rosácea de folhas recentemente nascidas, e de flores ainda não desabrochadas. É como um coração microscópico, amolgado, dobrado sobre si mesmo, onde nada é claro. Algo de delicado e suave, uma bolinha verde e cinzenta, semelhante a um rosto ínfimo, que vive amontoado sobre si próprio esperando a hora de se abrir. No cimo da erva, na ponta dum fio curvo, uma série de florinhas brancas, estrelas de cinco pétalas cujo centro é vagamente pintado de amarelo, agarra-se em cacho. A vida deve também surgir dali, desses ninhos peludos e odoríferos. Uma vida surda e mole, que vos faz viver a mudança das estações, a continuação regular dos dias e das noites, as horas frescas, as horas quentes, as horas cor-de-rosa, as horas de luz, assim, sem impaciência, sem desejo.
À volta da erva, o mundo é circular, gelado, invisível; as coisas existem sem fenómenos, ou com fenómenos de tal maneira pequenos que nem sequer vale a pena falar deles. As coisas estão ali por blocos, por ilhotas; estão longe; nada vem em direcção à erva, nada entra nela de modo diferente que não seja pelas fibras das folhas ou pelos filamentos das raízes. Nada comunica. E no entanto, não é a morte, muito pelo contrário. É a vida heteróclita, sem ligações com o resto do mundo. É a parcela da vida comum, o bastão pequeno colocado na terra, sem laços nem cadeias. É a verdade isolada e serena, a majestade de ser, nu e solitário, de ser uma migalha da realidade e de não se saber sequer que se é essa migalha. Como para as oliveiras, moitas, silvas, cardos, o tempo não existe, o barulho não existe, a acção não existe; e este nada que é tão pleno, tão intenso, é a verdade inicial e vitoriosa da matéria, da coisa mergulhada no todo, viva nem contra nem em direcção às outras, mas para si, para si somente.
No vale, esta força vegetal instalara-se por toda a parte; fazia estalar as carapaças da crosta da terra, deslocava os coágulos para o mais profundo do solo, rastejava, cavava, procurava a sua saída. As vias que ela abria assim lentamente no elemento poeirento eram as provas da sua vida e do seu poder. Nada as detinha. O mundo estava verdadeiramente à mercê das plantas e das raízes. Há séculos que não cessavam de trabalhar esse domínio inerte, de roer os rochedos, dissolver o fosfato, sem piedade, em feixes de forças miúdas. Mundo sem dor e sem alegria, mundo tranquilo e mortífero, tão próximo da morte e no entanto tão vivo.
Através das florestas de folhas e ervas, os insectos raros mexiam-se: uma escolopendra passou perto duns restos de madeira podre; uma formiga gigante, com três centímetros de comprimento, pelo menos, passeava no rebordo de uma parede. Corpo avermelhado, rechonchudo, e uma grande cabeça negra de mandíbulas fortes. A formiga caminhou pelas pedras do muro, afastando com as patas os grãos de pó; aproximou-se de uma mosca, que imediatamente levantou voo, apalpou uma palhinha, parou, depois, de repente, tomada de um pânico incompreensível, começou a correr doidamente e desapareceu no interior duma greta.
Na estrada, nos ramos das árvores, caminhavam outras formigas; o movimento dos seus corpos zumbia incessantemente, com uma espécie de fúria meticulosa, plena de patas e antenas, no género de caminhos animados.
Tufos de erva dura tinham conseguido furar o revestimento de alcatrão, e viviam rente à terra, inextermináveis, apesar das pancadas repetidas dos pneus dos carros.
O vento tépido, estridente por momentos, passa; segue os degraus da colina, avança ao longo do vale, ultrapassa placas de frescura, enruga a superfície da água nos charcos infectos, afasta uma vespa, mergulha num buraco da montanha. Vai continuar assim, muito longe, até à origem do rio. Porque o ar também está vivo: mexe suavemente, pára, depois sopra com mais força. No gás transparente, odorífero, tão depressa frio como quente, são transportadas as bactérias; animais minúsculos, de corpo redondo, viajam em grupos na poeira. Caem grãos de uma árvore, ou chovem dum dente-de-leão. Irão para a terra, juntar-se às gotas de água e às larvas, e ali, apodrecerão lentamente na ganga do calor, no seio do secreto inchado de torpor; chegado o momento, rebentarão, e uma nova cabeça de folha procurará com doçura, com força, a sua via particular.
Aqui, no circo rodeado de montanhas, tudo estava presente: animais inumeráveis, rios, riachos, riachos de riachos, terras da raiz das plantas, vegetais, nada faltava; vivia-se numa série de mundos concêntricos, que se encaixavam uns nos outros: o mundo das formigas gigantes, o mundo dos escaravelhos, o mundo das astrâncias, o mundo dos caniços, o mundo das oliveiras, dos pinheiros, ou do sílex cortado; o mundo do corpo de água, das minhocas, das moscas; o mundo das serpentes, dos homens, das formigas anãs. E no entanto isto não passava de uma aparência. Porque, em verdade, o mundo era só um, e todos o habitavam juntos. Mas não devia haver repartição. A realidade estava para lá, sempre para lá. Vasta, multiforme, esférica. A paz deste vale era uma tortura inexorável, um mal que desafiava cada criatura na sua autonomia. Não havia paz. Não podia haver paz. Pelo contrário, havia qualquer coisa de raivoso, de demente, de duradouramente cruel, que reinava no interior dos seres. Nem dor nem gozo, mas um enfartamento terrível, um abrasamento indizível, uma subida em tempestade, cheia de vertigens e excitação. O sentimento violento de ser, sem dúvida; como o medo, que vos despejava e enchia ao mesmo tempo. A ideia de habitar, de ser um habitante, ali, naquele vale, naquele sítio tão duro, e de nunca poder deixar de sê-lo; um habitante, na sua pele, em frente do lugar que habita; um ocupante, com todas as suas forças, apesar de tudo; muito para além de si, quase no futuro. E nunca poder fazer outra coisa. A maldição infinita de ser apenas um habitante.
Muito perto da água, vê-se o grande movimento silencioso que desce para o mar com um ruído de fonte. A água é profunda, espessa, cor de aço. Desliza ao longo da praia de seixos, em bloco, semelhante a uma massa de gelo. No interior, peixes, talvez; peixes de olhos vítreos, olhando o seu universo glauco. Na água vão detritos à deriva, bocados de erva arrancados às margens, talas de madeira, raízes. A terra faz-se em migalhas, também, imperceptivelmente, em silêncio; não se vê separar-se, mas sabe-se que está ali, misturada com a água, dissolvida em fina substância cinzenta.
Nas bordas da margem, o rio infiltrou-se, às vezes, fazendo uma espécie de pequenas ilhas lamacentas; nos golfos, a vida pulula: mosquitos roçam a superfície, ácaros, vespas, aranhas de água. E destas poças de água, há-as aos milhares ao longo do rio. Os calhaus também não faltam. Repousam em montes, uns sobre os outros, de todas as cores, de todas as formas; alguns são rodeados por um fino círculo branco incrustado na pedra; outros têm traços de pancadas, estão cheios de buracos. Polidos pelo tempo, usados pelo rio, desceram do mais alto das muralhas. Vão-se fazendo em migalhas, cada dia mais. Dentro de mil séculos, talvez antes, a superfície da terra não será mais que areia.
O vento sopra e afasta as folhas mortas da estrada, as moitas estalam. Lagartos correm rente às pedras chatas, depois imobilizam-se, e só as gargantas lhes palpitam. Os picos das plantas são muito rígidos, agudos como unhas, e esperam. Nas matas espessas, a selvajaria é extrema; as ramagens misturam-se, as folhas rangem, e amargos odores sobem pelo claro-escuro; odores de seiva insípida, de incêndios rebentando, de polpa esmagada. Os caules são verdes, deslumbram. Teias de aranha tapam as cavidades, entre os raminhos, e a sombra é povoada de bolas felpudas, olhos trágicos, que espreitam sem cessar. O cansaço é pesado, roda junto da terra, entre os pés das silvas. E uma espécie de cor de leite invade progressivamente as membranas vegetais, curva os delgados pés de passagem, fende a pele estriada dos velhos loureiros.
Alto no céu, gira um busardo, sem se apressar. A terra vista de relance é um imenso caos desolado, feito de ruínas, onde deslizam torrentes brancas delgadas como escarros. Um grito salta dum arbusto, e não se vê nada; um "rak-rak-rak-rak" desconhecido que aperta a garganta e levanta nuvens de inquietação.
Ainda mais alto no céu, na abóbada chata pintada de azul, as nuvens continuam a nadar. Uma delas é muito comprida, com uma espécie de cauda filiforme que se funde no éter. Mudam constantemente de forma, com insensíveis metamorfoses; fazem-se e desfazem-se, agrupam-se, separam-se, giram à volta dos picos, desfiam-se, são absorvidas.
Na outra extremidade do vale, onde o rio desaparece, há dois picos verticais em cada margem, no género de couceiras de porta. Depois deles é o desconhecido. O rio deve continuar o seu caminho sinuoso, e os taludes devem ser verdes, sem dúvida, com oliveiras e caniços.
Mas aqui, neste canto encastrado, dir-se-ia que tudo foi pintalgado; o ar tão límpido, a frescura, a sombra, o vento, tudo isso é nu, incrivelmente nu. O relevo é fixo, quase envernizado. Entre as paredes das montanhas, cruzam-se linhas, umas finas, outras pesadas, para sempre. Nada se mexerá, nada mudará. Os rochedos estão impassíveis, em equilíbrio, as árvores e as ervas estão plantadas direitas no solo, e o silêncio povoado reina. É uma trapalhada de tecedura, com nós, cores misturadas, pastas escuras. É preciso viver lá dentro, ser uma mancha entre outras, um pequeno ponto de tinta que mostra uma flecha. No coração do espectáculo, insecto deste lugar, verdadeiro gafanhoto ajoelhado e meditativo. Ver tudo. Viver tudo.
Um vazio minúsculo é o vosso domínio: à vossa volta, o horizonte é limitado por taludes gigantescos, onde nascem troncos cabeludos. Junto do chão áspero, o ar é quente, carregado de perfumes, e eleva-se cambaleando. Impossível ver mais alto: a atmosfera, a alguns centímetros do solo, torna-se de repente opaca, percorrida por bolhas como uma superfície líquida. Não se vê mais alto que a poeira, um peso terrível encadeia ao nível da crosta terrestre. Ah, se se tivesse asas! Mas não há nada a fazer, é preciso rastejar pelos blocos de húmus que se desmoronam. E aqui não há repouso: o solo vive, ferve sem parar, geme, abre-se e fecha-se como uma boca; empolas vêm rebentar debaixo dos vossos pés, vibrações lentas e harmoniosas estremecem pesadamente a crosta da terra, e as vagas de ar passam gritando entre as colunas de caniços. A vegetação é tão espessa que o sol não atinge o solo com os seus raios. Os animais que andam são pálidos, cegos, hesitantes. São as presas dos outros animais alados que voam por cima das suas cabeças esquadrinhando os cantos sombrios com olhos vorazes enterrados em carapaças luzidias. A terra é verdadeiramente terrível quando a gente a conhece bem. Os monstros não são raros, não, os monstros não são raros.
A sul, o vale vai descendo ao longo da vertente, o rio das águas cinzentas corre para o mar, tranquilamente; a inclinação do solo é quase insensível, as montanhas fundem-se no horizonte numa espécie de ondulação de curvas delicadas. Ao fundo, muito perto do mar, o céu ganhou tonalidades amarelas e cor-de-rosa, e as nuvens estão completamente dissolvidas na atmosfera. Apenas uma cortina de bruma, cor de nácar, recorda que a humidade existe no ar, que as gotas de água pulverizadas flutuam como poeiras, a quilómetros de altura.
Longe dos cubos deslocados das montanhas, é o sítio onde habitam os homens; construíram as suas casas nos flancos da colina, em frente à embocadura do rio, e vivem ali, cozinham as suas refeições, fazem lume no meio de terrenos baldios. As estradas insinuam-se através dos bosques, seguem os meandros dos cursos de água, cruzam-se e tornam a cruzar-se incessantemente. Nestes pequenos caminhos brancos, os carros seguem uns atrás dos outros, semelhantes a colunas de insectos. As oliveiras são mais numerosas, e por vezes, de muito alto, descobrem-se espécies de hexágonos de terra, onde crescem carreiros de milho. Os homens moram na extremidade da grande inclinação do rio. Levam vidas atarefadas, debruçados devido ao declive do solo, nos espaços abertos em que o sol brilha de manhã à noite. Em casa deles, não há nuvens nem paredes de rocha. Tudo é suave, agitado por uma febre tranquila, e o tempo passa depressa. As árvores devem ser belas, não enfezadas como aqui; árvores fortes e fecundas, pesadas de frutos e folhas, com ramos regulares como as pontas duma forquilha. Os ruídos e os odores devem multiplicar-se, e deve reinar continuamente um ar cheio de promessas para os seres humanos, cheio de inquietação e de ódio para os animais selvagens.
Aqui neste circo feito de crateras e promontórios, ao mesmo tempo atabafante e livre, os animais nada têm a recear. A terra e os rochedos pertencem-lhes, e podem entregar-se aos seus jogos cruéis e insignificantes. A luz não os ilumina; as formigas não têm de recear o sol terrível do meio-dia que as desidrata e seca num calhau liso. Só as rodeiam a água fria e a sombra.
O sol é raro: passa por trás dos cumes, aparecendo e desaparecendo consoante o recorte das montanhas. Dir-se-ia que a luz não vem dele; parece saltar da abóbada do céu, e precipitar-se em avalancha furiosa no buraco do vale. Ali, repercute-se como um eco contra as paredes abruptas, salta e voa em todos os sentidos, vai de encontro aos picos das rochas, bate como uma besta na entrada das cavernas e nas placas de seixos. Na superfície trémula do rio, desliza, cortada, e não penetra. Cobre tudo à sua passagem, gela, reveste. As pedras e os taludes tornam-se brancos, e as carapaças herméticas saturadas dessa luz sem piedade. Parece que nada consegue parar esta chuva descorante: é que mesmo a sua origem é desconhecida. Não há sol a estender-se, nem lua a tapar as nuvens. A luz faz parte da violência da paisagem, e a terra, submissa, só se lhe pode oferecer, estender-lhe a pele enrugada e dolorosa.
No chão, pedrinhas vermelhas brilham como diamantes, e fogos desbotados saltam em faíscas para fora dos seixos alinhados ao longo do rio. As cores ardem, umas contra as outras; o verde das folhas, o róseo do leito do rio, o azul do céu, o negro das silvas, o ocre da montanha, o branco das pétalas das flores. Tudo é duro, rígido, possuído. Mas é realmente aquilo a que se chama luz? É que os sons e os odores parecem penetrados por ela, as vespas voam com um zumbido direito como um risco de lápis, e as agulhas dos pinheiros soltam um perfume em ziguezague, áspero, profundo, pleno de pontas e cola.
À esquerda, à direita, em frente, atrás, as montanhas estão de pé; foram elas que modificaram a vida neste vale. São as responsáveis desta aspereza e deste mistério. Porque as montanhas são seres vivos; têm corpo, olhos e respiram. As suas cúpulas imensas são ventres, os cimos transportam os traços grandiosos das ordens que deram, uma vez por todas, ao que as rodeia: sejam duros, sejam duros. No silêncio, no vazio, sejam duros. Erguem as suas massas inchadas, agudas, para os quatro cantos do céu; algumas parecem mesmo fixas num equilíbrio vertiginoso, sentadas, imutáveis, e no entanto inclinadas de tal modo que deviam ter caído há séculos, esmagar-se molemente sobre elas próprias e reduzirem-se a escorregamentos de areia. Rebentaram segundo um plano incoerente, largas rugas de lava em fusão, vagas de magma petrificado em pleno desfraldar. E depois ficaram assim, tal como a terra acalmada as deixou, grotescas, inacessíveis. A harmonia do silêncio está já no interior das suas contorções. A sua vida agora já não é uma vida de movimento e vulcão, mas um peso de simples calma e ameaça. Toneladas, milhões de toneladas de mutismo e grandeza, uma cólera paralisada que esmaga tudo, que tudo mantém sob o seu soco.
Entre as pirâmides, a outra vida, a do rio e a do vale, defende-se como pode; rilha, esboroa, lentamente, ano após ano, século após século. Mas apesar de tudo é vencida pela eternidade. A rocha continuará, ainda que os rios se tenham evaporado e que os ossos dos animais sejam aniquilados. Quando o planeta não for mais que um caroço seco, onde caem os aerólitos, haverá então paredes de rochedos, falhas, abismos, colunas de força implacável. Haverá ainda montanhas.
É preciso saber isto; nada desta vida sinuosa e devorante, nada desta usura, na prisão do vale, é estranho ao poder da rocha. Mesmo a areia, os pedaços lisos que se soltam dos flancos da montanha, na estação das chuvas, estão cheios duma força de vencedor. Aqui a vida não é uma guerra: é muito simplesmente um movimento natural das coisas, que faz com que cada pedaço da paisagem seja aspirado pela matéria rochosa e se confunda com ela. Há uma corrente de ar frio que conduz ao minério, e os objectos tremem pelo desejo louco de entrarem vivos na pedra. Por exemplo, a água do rio: parece secar as muralhas que o rodeiam. E no entanto, a sua vida é a mesma; a água é apenas rocha, forma de rocha, eternidade desconhecida da montanha. O ar é feito também de rochas, construído com largos prismas de matéria ilimitada cujo poder é durar; que importam as diferenças de natureza, de aspecto, de finalidade? Na terra, no céu, nas águas, tudo é pedra, porque tudo é infinito, eternidade gloriosa da matéria, indissolubilidade do que é e nunca mais poderá ser.
A montanha ergue a sua parede vertical, tão alto que parece impossível não se esmagar sobre ela. De cada pico desce para o vale uma espinha quase direita, donde partem outras linhas oblíquas, cortando o pano das rochas em prismas irregulares. No meio da montanha, fugindo à curva de um desfiladeiro, uma ravina cai de escantilhão pelo declive com ondas de calhaus e compridos sulcos negros cheios de uma sombra detestável. Na face desta parede gigantesca, rebentaram arbustos aos tufos, semelhantes a algas agarradas a uma rocha submersa. A pedra é cinzento-branca, as algas são verde-escuras, algumas vezes vermelhas. Ocupam toda a superfície da montanha, e há grandes possibilidades de poderem rebentar também nas superfícies que não se vêem; manchas regulares, ásperas, torcidas em direcção aos cumes a fim de sobreviverem. As raízes correm à flor da rocha, visíveis, espalhadas em estrela como presas de aves de rapina. A chuva e os despejos devem filtrar entre as ramagens magras, e o sol do levante, quando ilumina a fachada deve fazer subir, colhido directamente na parede abrupta, um selvagem calor eléctrico através das fibras de madeira verde. A vegetação falta em alguns sítios: na base da montanha, à esquerda, foi cavado um triângulo de terra amarela.
Outras ravinas vêm do alto da montanha; as chuvas do Outono ou da Primavera marcaram-nas, finas nervuras serpenteiam como estradas, prodigiosas correntes de pó e pedra que a secura endureceu durante meses.
As massas de rochedo ergueram-se por toda a parte, amolgadas, estaladas, velhas de milhões de anos; as costas pesadas e toscas, as silhuetas elefantescas onde fervilha a vida. As árvores e os animais são parasitas, as suas raízes e garras esquadrinham incessantemente a rocha. Às vezes a trovoada instala-se num cimo, e os assaltos multiplicados dos trovões estremecem os picos, enquanto a chuva e a lama lhes rolam pelos flancos, semelhantes a toalhas de lágrimas vorazes.
Nas cavidades, nos buracos das ravinas, não há uma alma, só resta a pedra e o ar desertos, os únicos em contacto um com o outro. O vento frio desliza vibrante; a rocha não se mexe. O silêncio, ali, é quase total, e o movimento fechou-se em cristais muito duros; não há nada em cima da pedra, nem por baixo, um animal, um verme, uma erva. No ar não freme um perfume. A terra é ausente, e a areia que se forma, um grão todos os seis meses, evapora-se logo, não se sabe para onde. Pobreza, extraordinária pobreza da pedra, da pedra nua, imóvel, serena, fria no tempo. Na vertical, também não há nada; é preciso talvez percorrer milhões de anos-luz antes de encontrar outra coisa.
Todas as toalhas de rochedo foram feitas no mesmo molde: toneladas de matéria dura, coberta de escamas, raiada de estrias oblíquas. Toneladas de frio e calor, colocadas ali, para a frente umas sobre as outras; entre elas, por vezes, há vales, lagos, casinhas com telhados de telha onde os homens vivem, rodeados por campos de oliveiras de suaves cores cinzentas. Aquilo é possível. Estradas, igrejas, com aldeias à volta, nomes de lugares, Marie, Saint-Dalmas-le-Selvage, Lês Baux. Currais de vacas, prados verdes, tanques, riachos habitados por peixes. Aqui e ali, pode haver doçuras e perfumes delicados. Mas não é nada ao lado dos quilómetros de selvajaria e de calma, não é nada ao lado desses muros imensos, erguidos para o céu puro, dessas montanhas pálidas onde nada está tranquilo, desses dardos lançados para o infinito, mudos, desses blocos de pedra cobertos de ângulos e de estrias, onde uma espécie de raiva soa sem fim, sem razão, como um mistério de violência muito antiga, que seria a natureza própria da sua saída para fora dos pântanos efervescentes da terra.
O cordão de montanhas, se estava vivo, tinha esta vida; esta força sem igual que o fizera erguer-se e combater o desgaste mole do tempo.
Como uma cratera, derramando à sua volta todo o vigor do mundo em expansão, a montanha levantara de uma vez por todas a sua respiração de gigante. Estava de pé, toda a matéria utilizada até à última extremidade, contra o nada, contra o reino do vazio. Projectava à sua volta, com sombra, o feixe de linhas quebradas, e fazia-o saltar em todos os sentidos, movida por uma fúria majestosa. Intervinha por toda a parte. De frente batia como um obstáculo, repelia; a fronte branca saltava na vossa direcção, espancava-vos. Dos lados, apertava-vos o peito e atabafava-vos lentamente, estreitando-os no seu torno. Era fria, vertigem. E atrás, pendia, esmagava-se sob os vossos pés. Mais do que vertical, caía sobre vós; estrangulava-vos a nuca, e o fardo deslumbrante, pior que um hálito de gelo, fazia-vos transpirar suavemente a testa, desenrolava perante os vossos olhos transtornados as visões de terror que só os vencidos têm. Tudo ia cair; os montões de destroços iam desencadear-se, as avalanchas desembocar com um barulho de trovão, submergindo tudo sob toneladas de escombros; a montanha tão alta que não se via o fim era catástrofe inimaginável, fundindo de todo o lado como uma morte activa de que necessitava ser a vítima. Não se era nada. Era-se uma migalha, uma débil silva curvada, uma velha caixa de conservas enferrujada que um calhau achataria.
Melhor ainda: a montanha não caía; caía-se. Estava-se derramado, mergulhado no nível dum abismo sem fundo; vencido no fim dum poço negro onde reinavam o luar molhado de faíscas e o acre odor das rochas que incomodam.
com o rosto no chão, via-se a dureza chata a surgir; a rocha desfazendo-se no lugar, não em pó, mas em placas ásperas, rangentes, espécie de armas cortantes prontas a decepar a carne, a sepultar, tudo o que não fosse elas. Era tudo defenestração.
E no entanto, desta paisagem tão bela e tão poderosa elevava-se uma paixão inversa, que vos esquartejava e erguia para o céu. A força bruta, pesada como cimento, entrava em vós e transformava-se nos vossos membros, e de repente éreis penetrados por uma embriaguez exaltante, directa, arquitectural, um verdadeiro voo em direcção às altas camadas da atmosfera, e vós continuaríeis a subir, empanturrados de oxigénio. Diante da muralha, correndo como uma flecha. Uma vontade de agarrar tudo, de ter tudo nos braços. No silêncio, no frio. Uma vontade de comer. De ter pedra no estômago.
As árvores e os animais já não eram visíveis. Em seu lugar estendia-se uma verdadeira paisagem lunar, cheia de crateras e picos, coberta de falhas e estriamentos, um mar de pirâmides. Estendido na superfície inteira do solo, sois de repente abertos como um cálice, sustentais a abóbada do céu com os vossos braços erguidos.
Vós mesmos já não existis. Deixastes de viver. Vivestes apenas? Aqui nada mais conta que a rocha, a rocha impassível, a rocha colocada sobre a rocha, a pedra disfarçada, serena, vitoriosa. Os anos podem passar. A água pode escorrer, as folhas podem raspar o chão ao passar. É a vossa pele, é sobre o vosso corpo que se anela. O vento pode cavar a ureia, junto das falésias em doces formas arredondadas. Não é nada. Ganhareis. O tempo é vosso. Endurece nos cristais de mineral, no tempo outrora tão líquido. No espaço definitivamente aberto, onde o ar está como vitrificado, a pureza da lentidão reina. Majestade. Demora de minutos, demora de segundos. Anos. Séculos. Dia, noite; noite, dia. Pequenos estalidos, como nas vértebras. Pequenos deslizes. Não é nada. Aqui o tempo é mármore bruto. Os impulsos sentidos nunca se resolvem. Param antes, porque a paragem é a forma completa da sua existência. Lentidão das rochas. Virtude das rochas. Calhaus pequenos e calhaus enormes. A vida é cúbica.
Doutra vez, estava-se de pé em frente do mar, num pôr de Sol imenso. A noite vinha lentamente, com lentas contracções de cores: mergulhariam uma atrás da outra no horizonte, seguindo o caminho da bola de fogo. Tons acinzentados punham-se a cobrir o céu, e as sombras tornavam-se azuis, depois malvas, depois escuras. O cabo avançava pelo mar, e a baía iluminava-se subitamente de revérberos. Uma espécie de paz fazia-se ouvir ali também: tinha ruídos de raspagem, de vagas sobre os seixos, de contactos de asas de morcegos, de crepitação monótona dos postes eléctricos.
O mar era liso, largo. Raios de luz, vindos não se sabe donde, batiam na crista das ondas e faziam-nas brilhar. O horizonte era nu, rígido, e estranhos halos vermelhos ficavam suspensos a oeste, rente à atmosfera.
Sob o mar, debaixo da extensão esverdeada, as grutas e os recifes eram inumeráveis. Rasgavam silenciosamente as camadas de água, devoravam o espaço; mas uma espécie de paralisia opaca envolvia-as, deslizava-lhes nas gretas, imiscuía-se nas feridas e mantinha-as imóveis. Ali, a centenas de metros de profundidade, num langor surdo, a vida também tinha as suas raízes. Vogavam peixes cegamente, junto dos orifícios das cavernas. Para eles, era sempre noite. Nunca o Sol se punha no meio de nuvens incendiadas. Nunca a Lua brilhava com um brilho fixo no centro da noite. A luz e a sombra tinham-se misturado sob a superfície líquida, e reinava perpetuamente uma espécie de clarão turvo, vindo de nenhuma parte, e que nunca iluminava nada.
Mas na terra não se duvidava disto. De pé numa rocha escorregadia, a alguns centímetros da franja do mar, só se viam massas de matéria negra penetrando a esfera líquida. A toalha de silêncio era violácea, mexendo imperceptivelmente as suas rugas minúsculas; ondulava sem choques, avançava no mesmo sítio, partia-se, voltava, espalhava-se como uma mancha de óleo, recuava um pouco, depois avançava novamente, sem cansaço, sem fim, com uma espécie de obstinação melancólica, adocicada, impenetrável.
Não era um movimento; as vagas vinham para a terra do mais longe do horizonte, mas por assim dizer sem se mexerem. Era o movimento no coração da imobilidade, o ruído do silêncio, a agressão das zonas lisas e letárgicas, nada mais.
À esquerda, a baía terminava por uma língua de terra, quase transparente no meio da fluidez da atmosfera, que se enfiava em declinação suave para o interior da água. No cabo, havia pinheiros guarda-sóis, projectando as suas silhuetas confusas no céu ligeiro. Ao longo do rio, as enseadas eram invisíveis, escondidas no escuro, e outras brilhavam debilmente à luz dos revérberos, atravancadas de barcas encalhadas e de cabanas.
Enquanto a noite caía, a sombra fazia-se mais densa, parecia que o calor se concentrava nas toalhas líquidas, à volta da baía. Largas manchas cor de borra de vinho, semelhantes a poças de sangue, flutuavam entre duas águas não longe do rio. Outras bolhas, toalhas de resíduos, charcos de petróleo ou óleo seguiam à deriva, mudando constantemente de forma, brilhando ou apagando-se ao passarem, com moles gesticulações de medusas. Cardumes de peixes fendiam a superfície, e alguns ventres cintilavam brevemente. Um odor pesado, poderoso, ácido e doce ao mesmo tempo, subia das ondas abandonadas. O vento trazia-o por lufadas até à margem, e pensar-se-ia ser um hálito de animal. A noite, não havia dúvida, enfiara-se no interior do mar; despertava impulsos maravilhosos, trabalhava a carne flácida das lampreias, dilatava as bocas das anémonas. Ouvia-se sempre o mesmo sussurro; e no entanto, prestando atenção, podia-se distinguir todo um clamor confuso que surgia do fundo das águas, um canto grave e fanhoso, estalidos de bolhas, assobios de brânquias, abertura de conchas; os objectos aumentavam certamente, sob o peso da sombra. O calor, armazenado todo o dia, podia escapar-se enfim das profundidades, e o tumulto invisível enchia a matéria líquida como uma maré.
Na terra, os últimos clarões avermelhados estavam a apagar-se no horizonte. Três rochedos alinhados, perto da praia, traziam ainda na fronte uma minúscula estrela púrpura. Os três reflexos húmidos iam brilhar sozinhos alguns minutos na noite, depois, de repente, apagar-se-iam e não haveria mais nada.
Ao longo da baía aberta, e apesar dos penteados brancos dos revérberos, a sombra continuava a sua progressão. Tirava continuamente o colorido das coisas; na praia, os grãos de areia, outrora multicolores, tornavam-se cinzentos; fundiam-se uns nos outros, liquefaziam-se, gaseificavam-se. A terra fora dura e ardente sob o sol; agora, ia misturar-se ao ar. A água ia subir as inclinações, invadir o cavado das dunas, correr ao longo dos valezinhos; o líquido rico, salgado, harmonioso, infiltrar-se-ia nos campos. Subiria aos ramos das árvores, penetraria nas casas apagadas. Iria mesmo até à garganta dos homens, invadir-lhes-ia as veias e os músculos, alimentá-los-ia suavemente no seu sonho, sem que nada soubessem.
Perto do cabo, rodeado por um muro alto de pedra e sebes de ciprestes, um cemitério repousava no escuro. Num túmulo de mármore, mausoléu soberbo erigido à memória dum desconhecido, uma coruja fez o ninho; velava ali todas as noites, respirando com um ritmo rouco, regular, de peito adormecido, e os homens tinham todos uma lenda para ela; história sinistra de enterrado vivo, de vampiro ou de necrófago.
Longe, no ponto oposto à superfície do mar, as colinas subiam docemente para o céu. Invisíveis na noite, elevavam os seus caos de vinhas e pinhais. Entre os cumes, as concavidades eram de cor de violeta, silenciosos, e o ar frio subia ao longo dos emaranhados traçando caminhos de orvalho. Na erva alta, em qualquer lado no centro do cabo, um grito louco lançava os seus apelos separados. Um cão ladrava no jardim duma vivenda, com gritos discordantes que se repercutiam longamente em redor.
Devido ao bafo do mar, os ramos desordenados dos loureiros contraíam-se pouco a pouco, e as flores incolores tornavam a fechar as pétalas. A letargia subia de todos os pontos da terra, uma delicadeza segura que penetrava no interior de todas as folhas e as mantinha rígidas. E no entanto não era o sono; o sono aqui não tinha duração.
Os seres e as coisas punham-se a estalar, a mexer, por toda a parte. A terra mergulhada na obscuridade tremia imperceptivelmente, numa espécie de tremura de bicharia a trabalhar. Os clamores não tinham número; os odores negros multiplicavam-se em todos os cantos: saíam das covas, dos esconderijos debaixo de tapetes de folhas, como tantos répteis.
O espectáculo regular do dia fora destruído. Já não havia linhas, nem cores, nem relevo. A baía mudava constantemente de forma, tão depressa longa que não se via o fim, como curta, fechando a curva como um círculo. O cabo avançava ao longe até meio do mar, ou então recuava até ser um ridículo coto. As silhuetas das árvores dançavam. As redondezas das colinas, a perder de vista, deslocavam-se sem cessar, encrespavam-se; às vezes, três montículos desapareciam ao mesmo tempo, perto do horizonte, e via-se um grande buraco negro cavado na terra.
O mar era por momentos tão liso e tão deserto que enjoava; noutros erguia-se duma assentada no horizonte, em vertical, semelhante a uma muralha; ou então tinha o aspecto duma chapa ondulada, e reflexos de cores brilhavam miraculosamente, cachos de rubis, irisações douradas, profundas pupilas violetas olhando.
A paisagem tremia assim, fazendo-se e desfazendo-se infatigavelmente. A beleza calma, estática da terra era feita destas orgias e destas metamorfoses. Não se podia fazer nada. Era preciso contentar-se em olhar, avidamente, com os olhos bem abertos. De pé neste pequeno promontório, com o ruído da ressaca aos pés, era necessário compreender tudo, amar tudo, no espaço dum segundo. A curva imensa da baía. O cabo. As colinas e as montanhas. O céu indelével. Os reflexos dos revérberos, e a luz vermelha do farol, apagando-se, acendendo-se, apagando-se, acendendo-se, apagando-se, acendendo-se. O odor surdo e os véus da sombra. Os gritos selvagens dos animais. As cintilações das casas. Os tufos ameaçadores das árvores onde se escondem dois ou três mistérios. O ar invisível. A respiração asmática da coruja necrófaga no cemitério. As camadas de terra gordurosa, povoadas de insectos entorpecidos. O voo dos morcegos cegos. O resplendor das estrelas, milhões de estrelas enterradas no céu, tão longe que nem vale a pena pensar nisso. As rugas que caminham sozinhas pela água profunda, pela água escura, pela água abismo horizontal onde se perde o espírito vertiginoso dos homens, pelo líquido sem limite, segredo dos abismos, pela grande superfície eterna, tão lisa, deserta, onde a noite e o dia são misturados como duas qualidades de grãos diferentes.
Eis. O mundo está vivo, assim, em minúsculas invectivas, escorregadelas, escorrimentos. Nos arbustos, nas grutas, na confusão inextricável das plantas, canta com a luz ou com a sombra, alimenta-se duma vida explosiva, sem descanso, pesada de cataclismos e assassínios. É preciso viver com ele, assim, todos os dias, deitados de cara no chão, o ouvido à escuta, pronto a ouvir todos os galopes e todos os rumores. Os nervos mergulhados na terra como raízes, e alimentar-se da sua força guerreira, incoerente; é necessário beber durante muito tempo na sua fonte de vida e morte, e ficar invencível.
Então poderei encontrar a paz e o sono
Olhei bem o quarto antes de fechar os olhos. As quatro paredes, a porta, as duas janelas; olhei a lâmpada eléctrica que pende na ponta do fio, no centro do tecto. O revestimento das paredes, cinzento-escuro, e os objectos mergulhados no escuro. Vi a mesa, e não longe, uma silhueta maléfica, com uma espécie de bico fendido por um riso trocista, a cadeira com roupas, sem dúvida. A luz que entra em estrias através das persianas fechadas, e os faróis dos carros que fazem mover auréolas ao longo do tecto. Vi tudo isto. Depois fechei os olhos.
Agora, nos meus olhos fechados, linhas brancas continuam marcadas e navegam-me nas retinas: as riscas das persianas, o ângulo do tecto, a massa da mesa e a silhueta inquietante, o fio eléctrico com a lâmpada na ponta.
Ouço o barulho dos carros entrar no quarto. Derrapam ao fazerem a curva que passa por baixo do prédio. O roncar dos motores vem, passa, depois extingue-se progressivamente misturando-se com outros ruídos.
Nas minhas retinas, tudo é quadrado; quadrado.
O silêncio vem por momentos, e então pode-se escutar o tremor dum cano de esgoto onde a água brota sem parar. Um pouco de música sobe do bar de baixo. Tacões de mulher batem no corredor, muito depressa.
Vejo passar em frente uma espécie de caixilho esbranquiçado, nascido provavelmente da recordação do cubo do quarto, como um cardume de peixinhos vermelhos e azuis. Correm torcendo-se, são inúmeros.
Manchas, formas escuras movem-se no fundo dum espaço moreno. Dir-se-iam silhuetas humanas.
Tic tic tic tic tic tic tic. O meu relógio, na mesa-de-cabeceira. Bate regularmente no vazio, e depois, bruscamente, o barulho aumenta, alarga-se, dilata-se. Acelera, afrouxa. Torna-se agudo, soa surdamente, estala, desliza. Tem ecos. Não percebo. Quem é que pretende que o mecanismo dum relógio é sempre o mesmo?
O cheiro dos cigarros esmagados no cinzeiro que deve estar também na mesa-de-cabeceira. O cheiro torna-se rapidamente nauseabundo, azedo. Tenho a impressão de ter cinza enchendo-me a garganta. Um outro ruído, é o bater do sangue contra o meu tímpano esmagado pelo travesseiro.
Uma toalha vermelha de sangue estende-se-me nos olhos. Cachos cor de laranja salpicam tudo, derivam para baixo. Tento olhá-los, quase torcendo os olhos, mas desfazem-se logo. Em vez deles, há uma espécie de estratos de cores variáveis que se assemelham a montanhas.
Uma motocicleta vem de longe, do outro lado da cidade. Ouço-a vir, passar os cruzamentos, mudar de velocidade. O ruído do motor pára bruscamente: deve estar a virar atrás dum prédio.
Tenho um gosto esquisito a dentífrico na boca. Gostava de cuspir.
Formam-se-me pensamentos estranhos como que vindos de trás da cabeça. Pensamentos, bocados de pensamentos. As palavras correm à sua volta, mas nenhuma consegue agarrar-se, fazer ninho. Não são pensamentos; são desejos. O que é curioso, é que há imagens que desfilam paralelamente. Mas os desejos e as imagens não se misturam. Penso, andamento, correr, deitado, altura. E as imagens são: homem com um chapéu, luta à faca, foguetão, crocodilo, arenas, rosto que ri. Há mesmo ainda outras coisas: bocados de frases que nascem, palavras que soam, claramente, perfeitamente audíveis; e por cima de tudo, há como que uma voz que conta uma história, que diz, por exemplo: "Vai tudo bem. Depois é preciso voltar, desfazer todo o caminho. Não, assim não. Regressa ao sítio donde vens. Sim, vais meter pela primeira rua à direita e continuar até à igreja. Quando vires o zimbório, tens de virar à esquerda. Etc."
Mas mal ouvi, senti, vi tudo isto, a consciência fez surgir o tempo e todo o edifício se desagrega. A voz está adiantada em relação às palavras, as imagens chegam antes que os desejos terminem, e continuam durante muito tempo depois deles desaparecerem. É a consciência que termina tudo. Esmaga-me no leito, alcança-me no voo e coloca-me no travesseiro, transforma tudo numa espécie de recordação.
Sem parar, o perigo da dispersão existe. Parece-me que tudo se separa dentro da minha cabeça, e que estou a dissolver-me no vazio. Então, com uma força firme, o espírito retesa-se. Petrifica-se. E a coesão reforma-se. Os pensamentos tornam a ser compreensíveis. As imagens, as palavras, os bocados de frases, tudo se ordena. Como partículas magnetizadas, agregam-se à volta da linha direita do impulso, e servem, falam, constróem todo o tempo.
Por vezes, sou tomado por bolsas de vazio. Começo por flutuar por cima do colchão, o corpo tão ligeiro, tão cheio duma delicada volatilidade, que deixo de viver como um corpo. Torno-me diáfano, rodo a meio caminho do espaço, semelhante a uma cortina de fumo. Já não tenho ossos nem carne. Evaporo-me no ar, tenho membranas, e nada mais me retém. Ascensão ou queda, não sei. Mas nos meus órgãos nada mais luta. O sangue já não sobe com dificuldade, os tendões já não sustém, as cartilagens separam-se e deixam de reter. A prisão vertical está vencida. Enfim, nunca mais combater, nunca mais ter de crescer, nunca mais se erguer para o céu desesperadamente... Então, no espírito, tudo segue também em liberdade. As toneladas, as toneladas de movimentos elevam-se, descem, passeiam à minha volta. Parece-me mesmo que os pensamentos se espalham no exterior, que me saem pelo nariz e pelas orelhas e vogam no espaço, arranjam-me uma cama. Os desejos formam bolhas não longe de mim. No fundo duma caverna escura, um impulso palpita, isolado, visível por mim. Posso tocar nas minhas palavras, nas minhas visões. E eu, o que se chama eu, já não sou nada. Despejado, aliviado, a minha cabeça imensa abandona-me. Sou enfim livre. Sou enfim livre. Já não tenho nome, já não falo, não passo dum nada. Pertenço à vida, à morte, aniquilada, transfigurada pelo esplendor da retirada. Um sopro. Já não tenho pensamentos, a minha alma é um objecto. Jazo.
As pálpebras abriram-se durante um décimo de segundo; e a noite, há pouco tão escura, transformou-se numa chuva de luz deslumbrante que entra na sombra do meu cérebro e bate como um relâmpago. Uma imagem de neve e de cristal saltou e escondeu-se no fundo de mim; uma imagem pura, cruel, nítida, de desenhos finos como uma asa de morcego, de linhas semelhantes a teias de aranha. Fica ali, imóvel, verdadeiro Sol que se adiantou, disco gigantesco que enche o horizonte duma ponta à outra. É o meu quarto, reconheço-o, com os seus móveis despojados, as paredes, o tecto. A lâmpada eléctrica pende no centro, da imagem, mas não é ela que arde, não é ela que ilumina assim o espaço. Nunca o Sol, mesmo no mês de Agosto, me deu uma tal luz. Nenhuma lâmpada, nenhum braseiro, nenhuma incandescência decuplicada por centenas de espelhos, por lentes, nenhuma fornalha salda como um vulcão do seio das trevas desfraldou uma brancura tão fixa; insustentável, a luz penetrou todos os elementos do ar, flutua, dança, emana, dissolve, queima e rompe, devora-me as retinas. A dor surge sob as suas pancadas, sob os seus dardos ininterruptos, de tal maneira próximos que fazem uma larga muralha de peso terrível. Sou fuzilado pela luz, caio, bato com o rosto no chão, vibro com todo o corpo, e o influxo, espécie de música lancinante, entra em mim, ergue-me, constrói através da minha carne o seu edifício maravilhosamente abstracto, onde cada dor, cada pancada, cada nervosiclade é uma pedra, uma obra de arte, um tema harmonioso que trabalha.
Depois a luz apaga-se; extingue-se progressivamente, passando do branco ao amarelo, do amarelo ao cobre, do cobre ao púrpura; violenta, azul, sombrio, escuro. Quando já não há nada da gravura, sobem outras formas. Pescoços de cavalos, manchas escuras que flutuam vagamente, que atormentam. De repente, enquanto uma força indizível se apodera do que há de sensível e de delicado no meu cérebro, uma força autêntica que agarra os bocados de carne nervosa, mais abaixo, no fundo de mim, desenha-se uma figura caricatural. Um corpo de velho, magro como uma águia de brasão, o pescoço movendo-se sozinho, erguendo no ar uma cabeça eriçada, aguda, de ricto ignóbil. A cabeça e o pescoço são móveis, deslizam, erguem-se suavemente por cima do corpo descarnado. Olho intensamente. Neste espaço profundo, onde uma parte de mim sofre uma força desconhecida, o olhar repercute-se e volta para mim incessantemente. A consciência vira-se sobre ela própria, vai, vem, salta, e estou verdadeiramente perdido.
Atrás do corpo do velho, enquanto a cabeça e o corpo continuam a subir, duas asas gigantescas abrem-se longamente.
Novamente me bato com alguém; muito depressa, sem que eu saiba porquê, a paisagem desenrolou-se à volta do lugar do combate. Montanhas, riachos, florestas. O Sol brilha no céu. Ao longe, a entrada das gargantas. Por toda a parte o deserto, a areia, os calhaus áridos. Luto. Bato. Salto. E ao mesmo tempo, ouço uma voz sem palavras que descreve a batalha.
Tudo degenera novamente: as cenas toldam-se, e parece-me que no interior dos meus olhos transtornados, voltados para cima, agitam-se coisas com fúria, como guizos.
Espero.
Perco montes de imagens. Fundem-se com uma rapidez extrema, e, naturalmente, escapam-se-me. Ou então nascem simultaneamente, mil sensações explodindo juntamente, sim, exactamente, no mesmo segundo. Mil linguagens que me disseram todas alguma coisa, isso sei-o, mas o quê? Que me disseram essas falas, quem me apaixonou, e quem esqueci tão depressa? E as páginas escritas: vi páginas escritas, li-as, achei isso muito belo. Que havia nestas páginas? Que história profunda e vasta, que nobre canto de verbos que ressoam? Que havia? Havia apenas qualquer coisa escrita? Ou não passavam de continuações de sinais sem significação, que despertaram em mim a recordação da beleza?
A ilusão é diabólica. Sofro. Dói-me no fundo de mim.
Às vezes, que maravilha! Uma imagem, um som, uma frase surge desta balbúrdia e ressuscita o que já estava morto, esquecido. Vivera isso, esses cubos de cor, esses desfiles de círculos, esses fogos, esses corpos de mulher rolando-se pelo chão, mas não o soubera. E a consciência, despeitada por uma forma ocasional, duma assentada, faz-me reconhecer o tempo ao contrário. As imagens vêm em monte, fulminam brevemente, com uma certa ordem, e eu vejo-as: mas pertencem ao passado. Porque aqui, neste espaço fechado, o sentimento da vida é reversível. Não há verdade, não há direcção; o tempo e o espaço são ecos, eternos ecos, sempre disponíveis, arrancados ao caos da simultaneidade, e que o gasto nunca atingirá. Estou como que mergulhado numa esfera estanque, nado entre os elementos do pensamento e da imaginação. Voltam sempre, perfuram-me infatigavelmente, são círculos, sem começo, sem fim, imóveis e móveis ao mesmo tempo, são embriaguez de roda, indecifrável movimento de parafuso sem fim que me faz conhecer a eternidade.
E eu, no meu leito, com os olhos fechados esperando dormir, vivo num mundo semelhante. Nos papéis da minha mesa as datas demoram-se: 1864-1964, 13 de Abril de 1940, 5687; Ivan o Terrível, 1.a e 2.a partes (1943-45), fita de S. M. Eisenstein. Os nomes estão escritos, os desenhos traçados. Nos mapas estão indicados lugares, Viareggio, Capo Promontore, Tárgul-Jiu, Gora Dshumaya, Xanthé, Sinop, Peterborough, Charolles, Vyazma, Alatyr. Nomes que existem, eternas e cantantes sílabas que marcam estes sítios de terra e pedra, estas árvores, estes vales, estes montões de materiais inabaláveis. Nada, nada disto passará. As vidas dos homens virão sem cessar assediar-nos como espectros, e as coisas continuarão a fazer-se, a acrescentar-se. Os ruídos e os silêncios serão os mesmos. As flores, os insectos durarão. Porque aqui, foi tudo apanhado num turbilhão líquido de movimento cheio de loucura. Nós não esqueceremos. E mesmo se esquecêssemos, tudo continuaria eternamente presente, porque isso foi, porque fora mesmo antes de ser. Eis a força perpétua que nenhuma linguagem possuirá. O que nenhum homem pôde inventar. A perenidade, a doce, a virtuosa perenidade da existência.
Na minha frente, está agora uma barra horizontal na qual giram dúzias de hélices. Param quando eu quero. Mas há sempre uma que continua a rodar apesar da minha vontade. Quando eu conseguir para-las todas, sem excepção, então poderei encontrar a paz e o sono.
Um dia de velhice
Na manhã fria, não iluminada pelo sol, o campo era muito tranquilo. Era um género de arrabalde, cheio de vivendas baixas, com ruas pobres, sem lojas, onde o alcatrão fora arrancado por placas. Se houvesse por ali uma colina donde se pudesse ter uma vista geral, distinguir-se-ia um lugar cinzento e terno, insignificante, semeado de árvores poeirentas, jardins pelados, casas sujas. Riachos, mas também podiam ser esgotos, atravessavam os pedaços de terra em todos os sentidos. A sul, começava sem dúvida a cidade, com altos prédios brancos e espécies de avenidas muito direitas. A norte, o campo raso. Entre os dois, era isto, este parque sachado, estragado, habitado por homens que não se viam.
As ruelas atravessavam as propriedades, ladeavam os velhos muros de cascalho, juntavam-se formando cruzamentos tristes onde brincavam uma ou duas crianças, às vezes um cão. Mimosas sem flor, pimenteiros, arbustos irreconhecíveis nasciam aqui e ali nos jardins. Ouvia-se, vindo não se sabe donde, um grito lancinante, desumano, lançado sem dúvida por um papagaio acorrentado. No chão poeirento, onde o frio da noite se instalara com pequenos cristais, animaizinhos caminhavam dificilmente. Nas concavidades da rocha, por cima das portas das garagens, as salamandras dormiam. Havia casulos por toda a parte, e os buracos eram ocupados por bolas de neve, opacas, que tinham retido as gotas de orvalho. Muito longe, na outra extremidade do arrabalde, o barulho dum comboio vinha lentamente, afastava-se, aproximava-se, desaparecia completamente, depois saía do fundo das brenhas entre as casas. De vez em quando, partiam homens para o trabalho, montados em bicicletas a motor.
Nas casas, as pessoas agitavam-se; rádios berravam diante das janelas abertas. O gemido contínuo dum aspirador espalhava-se no ar. Deslizando atrás das nuvens, o Sol subia para o alto do céu. Quando atingisse o cimo, a sirene do meio-dia tocaria; as mesas das cozinhas carregar-se-iam de pratos, e os homens voltariam do trabalho para comer. No bosque das árvores estalaria um doce calor, as aranhas caminhariam nos covis. Gatos magros viriam rodar pelos jardins, à procura dum osso ou dum talo de couve. Era simples, a vida naquele tempo. Muito calma e muito discreta. Não havia gritos de guerra, nem algazarras nem assassínios. Podia-se ficar horas sem mexer, no meio das ruas e das casas, vendo uma erva nascer. A terra tinha todo o ar dum parque, e o tempo era uma miniatura. Quadrados de pó e de calor desmaiado, caminhadas imperceptíveis de caracol. Odores adocicados, fogos por toda a parte, e a extensão maravilhosamente longínqua das camadas de cor malva.
Nada a recear, a terra não era dos tigres nem dos lobos; pertencia aos ratos, aos mosquitos, aos lagartos; passeavam por ela, todo o tempo, saltando de esconderijo em esconderijo; de noite, rilhavam. Pequeno povo de roedores; cor de areia, gestos prontos, o coração minúsculo batendo até estalar.
Numa cozinha forrada a plástico, um rapaz estava sentado na ponta dum banquinho. Em frente dele, na outra ponta da mesa de madeira branca, estava sentada também uma velha, num cadeirão de verga. Não se mexia, e debaixo do vestido-avental de cores desbotadas, o peito respirava lentamente, dificilmente. A pele do rosto era branca, enquadrada por madeixas de cabelos cinzentos, e um pouco de sangue correra-lhe ao longo do sulco duma ruga, à esquerda da boca. Os olhos turvos, imóveis nas pálpebras entreabertas, não viam nada. Nas longas mãos secas, trabalhadas pelos anos, as veias eram aparentes, serpenteando no meio dos ossos como raízes. Para quem a visse assim, não havia dúvida que a velha estava a morrer. Lentamente, há horas já, a vida escapava-se dela; abandonava célula após célula e, em seu lugar, só deixava vazio.
Quando Joseph, o rapaz, entrara em casa uma hora antes, trazendo-lhe um saco de compras, encontrara-a estendida no soalho da cozinha, meio inconsciente. com dificuldade, içara o pesado fardo flácido para o cadeirão e falara-lhe. Ela recuperara o conhecimento; e, coisa estranha, imediatamente o medo a assaltara. Começara a falar tremendo, julgando no seu desvario que fora Joseph quem lhe batera para lhe roubar o dinheiro. Ameaçara-o gritar por socorro se não se fosse embora imediatamente. Depois suplicara-lhe que fosse buscar um médico, uma enfermeira, um padre, uma vizinha, enfim não importa quem, porque pensava ter fracturado o crânio. Falara e tremera assim durante uma boa meia hora, depois, fatigada, calara-se. Os seus movimentos eram mais raros, os olhos tinham-se afogado numa espécie de névoa de lágrimas, e a boca ligeiramente aberta, donde escorria um pouco de sangue, só pronunciava palavras confusas.
Joseph olhara a velha durante um longo momento, de pé, sem dizer nada. Colocara o olhar na face amedrontada, cheia de sofrimento, como se tentasse fixá-la numa pose fotográfica, imperecível, sob a qual pudesse escrever um dia um belo nome de família, próprio e majestoso, a alma viva deste corpo desmaiado.
MENINA. MARIA VANONI
Sentara-se então em frente dela, naquele banquinho de cozinha; com uma voz hesitante fizera-lhe perguntas. Falara-lhe suavemente, perguntando-lhe onde lhe doía, se tinha sede, se desejava beber um copo de água ou qualquer coisa. Ela fizera sinal que sim com a cabeça, e Joseph trouxera-lhe um grande copo de água, que segurara delicadamente enquanto ela bebia. Depois, tirara as compras do saco e estendera-as em cima da mesa, diante dela. Eram: uma lata de ervilhas médias; três ovos; meio litro de leite; um pãozinho fino; 200 gramas de gruyère; três tomates, e outros legumes; uma caixa de fósforos; um rolo de papel higiénico; uma caixa de molas para a roupa.
Joseph estava agora novamente sentado no banquinho, em frente da velha; olhava-a com todas as suas forças à medida que o tempo passava. Olhava avidamente os olhos claros perdidos ao longe, a boca meio sorridente, as faces atravessadas por rugas tão finas que se passaria certamente meses a contá-las. O corpo pesado, rígido, quase um móvel debaixo do tecido escuro do avental. As pernas como colunas, os pés enfiados nas massas incompreensíveis de meias para as varizes, de peúgas, de pantufas de lã. O rosto, talvez belo, talvez feio, apoiado atrás no espaldar do cadeirão, como oferecido à superfície impávida do tecto. Um odor insinuante de fósforo saía lentamente do corpo da mulher, envolvia-a como uma protecção, instalava-se na atmosfera. Pela janela da cozinha, vinham outros odores do jardim, entravam no quarto e lutavam com o perfume da velha: cheiros de terra e erva, odores de folhas queimadas, de vento, de árvores. Tentavam penetrar na pele, procuravam o ponto fraco, sem se apressarem. Se o encontrassem, acabava tudo para sempre; instalar-se-iam no seu corpo, enchê-lo-iam, aterrá-lo-iam; quando emanassem novamente da mulher, já não seria uma mulher, mas uma espécie de monte abandonado de terra e ramos secos.
Joseph inclinou-se no banquinho. Em voz baixa, quase inaudível, disse:
- Tem... Tem medo da morte, menina Maria?
Os olhos glaucos moveram-se na fenda das pálpebras. Joseph repetiu:
- Tem medo de morrer?
A velha fez ouvir um gemido.
- Sim, sim, vou morrer... Eu...
Recomeçou a tremer. Joseph continuou muito depressa, para a tranquilizar.
- Não, vai ver, isso vai melhorar. vou buscar o médico. Isso vai melhorar, vai ver. vou tratar de si. Tem dores? Quer beber mais um pouco?
Ela abanou a cabeça.
- Deve ter muitas recordações, não é verdade? - perguntou Joseph.
Os olhos brilharam-lhe um pouco.
- Qual é a sua recordação mais antiga? - perguntou Joseph. Se tentar recordar-se, o mais recuado possível, o que é que vê?
Maria ergueu um pouco a cabeça.
- Recordo-me de tudo - murmurou ela -; de tudo. E não é tão longe como isso.
- Que idade tinha?
- Não sei - respondeu Maria -, quatro ou cinco anos talvez. Talvez menos. Estava com a minha irmã... no jardim da nossa casa... Havia uma trovoada terrível, com relâmpagos por toda a parte. O meu pai veio, e disse-nos: entrem. Entrem senão um relâmpago cai-vos em cima... E o relâmpago caiu no jardim... Num grande eucalipto ao fim do jardim. Vi uma luz branca. E fui atirada por terra. Um tiro de canhão, houve um tiro de canhão... Tinha medo.
Moveu a mão.
- Chovia tanto... - murmurou ela.
- Isso devia ser terrível - exclamou Joseph.
Durante um instante não disseram mais nada. Depois recomeçou a falar.
- A minha irmã morreu, também... Há dez anos... Já...
- Era mais velha que você?
- Não... Era eu a mais velha...
- Como se chamava ela?
- A minha irmã? Ida... Chamava-se Ida... Foi viver para Itália, mais tarde... Para Verona...
Suspirou.
- E agora, é a minha vez. Joseph quis acalmá-la de novo.
- Não, não, vai ficar melhor, verá, você...
Mas ela interrompeu-o com uma espécie de veemência.
- Não, não é verdade. Não é verdade, sei que vou morrer. Não há nada a fazer, chegou a minha hora, sei-o.
Endireitou um pouco mais a cabeça; madeixas de cor cinzento-sujo caíram-lhe na testa e o sangue correu-lhe da boca.
- Tenho medo - disse ela -; tenho medo... E tenho frio...
- Em que pensa? - perguntou Joseph.
- Nada... É ali... Em frente de mim... Sei que deve vir...
- Dói-lhe?
- Sim, sim, dói-me. Aqui, na cabeça... Como um animal que me rói... E nos... nos rins... Nas pernas... Ah.
- Tente lembrar-se outra vez. Qualquer coisa, da sua infância...
- Não. Não, não quero...
- O seu primeiro livro de leitura, os seus brinquedos. Lembre-se.
- Os meus brinquedos. Sim...
- Como eram?
- Como...
- Sim, os seus brinquedos. O que é que tinha como brinquedos? Bonecas?
- Sim... Bonecas.
- Como eram? Tente lembrar-se.
- Havia... Uma loira. Eu chamava-lhe Nani. E também uma morena. Chamava-lhe Sarah...
- E depois? Que mais?
- Havia... um gato... Era o meu gato, recordo-me... Gostava muito dele... E depois, quando ele morreu... Enterraram-no. Recordo-me, ficou aqui, gravado na minha cabeça. Nunca mais pude esquecê-lo... Ficou na minha cabeça... Gravado para sempre...
HISTÓRIA DO GATO BRANCO E PRETO
Quando o gato branco e preto começou a morrer, a menina tomou-o nos braços e levou-o para o fundo do jardim. Fora um belo gato, no seu tempo, grande e gordo, de pêlo luzidio, patas macias, com uma cabeça enorme onde brilhavam os olhos verdes, longos bigodes muito tesos, e uma mancha escura exactamente por cima do focinho. Quando caminhava pelas ervas altas do jardim, dir-se-ia que era um leão, ou qualquer coisa no género: forte, musculado, ágil, verdadeiramente temível. Caminhava em silêncio para os lagartos, e de repente, num relâmpago, a sua pata de garras afastadas surgia, e o sáurio caía feito uma bola, com a coluna vertebral partida. Ou então dormia no terraço, ao sol, as patas da frente estendidas e a cabeça alta, hierática, belo como uma esfinge. Nos períodos de cio, ia procurar os outros gatos o mais longe que podia, e lutava com eles. Às vezes voltava com largas feridas no lado da cabeça, e a menina tratava-o. Durante o dia, estava sempre deitado na pedra e não se mexia. Excepto, talvez, de vez em quando, a extremidade da cauda negra e branca que se torcia nervosamente no chão. Debaixo das patas tinha umas almofadas engraçadas, e os caninos eram tão compridos que levantavam o canto dos beiços como um ricto. Enfurecia-se, às vezes, e toda apele se lhe eriçava pouco apouco, pêlo após pêlo. Os seus olhos verdes lançavam faíscas, as unhas saíam e entravam na ponta das patas, andava à volta, respirando fortemente, a cauda chicoteando-lhe os flancos. À noite, saía de casa e rodava durante horas pelo jardim, sem razão. Os olhos brilhavam-lhe então na sombra com uma luz estranha e inquieta, como se coisas subissem nele com o escuro, instintos febris, velhos de milhões de anos, todo o medo e toda a crueldade dos animais selvagens sozinhos na natureza oferecida como presa. Naquela noite, antes de morrer, lançou dois gritos pungentes. A menina levou-o nos braços para o fundo do jardim; escondeu-se no interior do velho galinheiro desocupado, e olhou para o gato. Ouviu-lhe a respiração soluçante, sentiu os longos estremecimentos dolorosos que subiam pela pele. O gato, de goela aberta, tentava morder as mãos da criança. Mas já era muito tarde; os grandes olhos verdes, fosforescentes, já não viam nada, o focinho não aspirava os odores. O vazio viscoso, sujo, entrara-lhe por toda aparte. Baralhara as íris, e o olhar vencido não passava duma pasta. No interior do saco flutuante do corpo, os órgãos, os músculos, o coração, os pulmões, estava tudo misturado. A menina olhou para o gato sem chorar, depois acariciou-o onde ele gostava, atrás da cabeça, na nuca, na cova dos rins. Soprou-lhe para dentro das orelhas. Em seguida pô-lo numa grande caixa de madeira, no meio dum lenço de seda. Num lado da caixa, contra a cabeça minúscula, colocou um crucifixo de madeira, presente duma madrinha, sem dúvida. Não fechou logo a tampa e ficou-se a contemplar o monte de pele amarrotada, com as suas manchas branco-sujo epreto-sujo. Olhou-o atentamente para não o esquecer. Depois foi para casa e não disse nada a ninguém. E todos os dias, em segredo, vinha ao galinheiro levantar a tampa da caixa. Ao fim de quinze dias,
foi o cheiro horrível que advertiu os pais. Não disseram nada, mas regaram a caixa com gasolina e atiraram-lhe um fósforo para cima.
- Que idade tinha?
- Quinze anos. Era velho para um gato.
- Devia ser um gato bonito.
- Sim. Oh, sim. Era um bonito gato...
A velha descansou a cabeça no espaldar do cadeirão.
- Há muito tempo que penso que hei-de morrer, sabe... - disse ela.
- Eu também... - exclamou Joseph.
- Oh, não, você, não é a mesma coisa... Você é muito novo... Não está a pensar verdadeiramente nisso.
- Eu...
- Não deve meter-lhe medo, com certeza... Enquanto eu...
- Porquê ter medo?
- Porque está ali, muito perto... Não há nada a fazer, compreende? Nada. Porque está em mim, e sinto que vem, muito lentamente, muito lentamente, sem ter ar disso.
Fechou os olhos.
- Porque vejo-a por toda a parte, por toda a parte, por toda a parte. Tudo o que vejo é velho, usado... Velho como eu.
- Tente esquecer.
- Tentar esquecer... Impossível. Não posso.
- Porquê?
- Quando fecho os olhos vejo coisas. Coisas estranhas. Terríveis. Crânios, vejo crânios... E diabos que vêm para mim e me dizem... É a tua vez... É a tua vez...
- Você... Você acredita em Deus, portanto?
- Porquê... Porque diz isso?
- Acredita na vida eterna, não é verdade?
A velha ergueu a cabeça com dificuldade. Murmurou:
- Sim, sim. Acredito em Deus. Mas penso às vezes, quando tenho medo... Penso, e se não fosse verdade? E se não houvesse nada? Absolutamente nada? Toda esta vida, tudo isto... Para nada... Tenho medo...
- Não tem confiança?
Olhou para Joseph com uma espécie de cólera:
- Não! Não! Não tenho confiança! Não tenho confiança! Recomeçou a tremer.
- Se eu tivesse confiança... Se eu tivesse realmente confiança, não teria medo. Mas sinto... Parece-me, eu... Sinto que não há lá nada para onde vou. Nada me espera. Sinto isso. Tenho tanto frio. É que não há nada...
Ela tentou sorrir, mas não conseguiu fazer senão uma careta.
- Eu não sou muito corajosa, não é verdade? Joseph olhou-a com emoção.
- Sim. Você é corajosa - afirmou ele. Ela fez um esforço para falar.
- Outrora... Julgava que era fácil morrer. Mas é difícil. Não quero... Não quero sentir-me partir. Não quero não poder respirar. Debater-me com a morte... com ela... Ficar, quero ficar. Tenho medo de ter dores. De não poder...
Olhou para Joseph com os olhos turvos.
- Como o gato... Queria morder-me... Morder-me, eu... Ajudem-me... Ajudem-me. Não, vão-se embora! Vão-se embora!
Pôs-se a respirar com mais força. A cabeça caiu-lhe para trás e os olhos fixaram o tecto; uma espécie de suor molhou-lhe a testa, perto das madeixas cinzentas, e o tecido da pele, à volta dos ombros.
- Ouço o coração... - disse ela. - Bate. Bate com força. Não quero que pare. Bate tão depressa. Quero ficar eu... Não desaparecer. Não, não desaparecer... Não é preciso...
Joseph ergueu-se e foi buscar um copo de água; depois voltou junto da mulher que respirava dolorosamente, e deitou-lhe um pouco de água entre os lábios. Ela bebeu avidamente.
- É bom... Obrigada... - murmurou.
- Acalme-se - disse Joseph. Ela olhou-o debilmente. -( b
- Porque fica? - balbuciou.
- Você... Você quer que eu me vá embora? - perguntou Joseph.
- Não, não... Fique - respondeu ela -; creio que passou. Isto agora vai melhor.
- Descanse. Não pense em nada - disse Joseph.
- Sim... Estou muito cansada, agora. Já não posso.
- Descanse.
- Sim, vou descansar...
- Durma, tente dormir.
- Talvez, sim... vou tentar...
Fechou os olhos; a respiração encontrara uma cadência vizinha da normal, e o seu rosto enrugado, há pouco descomposto, parecia reconstruir-se. Joseph caminhou um momento pela cozinha, sem fazer barulho. Olhou pela janela, entre as cortinas de matéria plástica, e viu o grande plano de céu azul, límpido, no qual corriam grossas nuvens brancas e cinzentas. No jardim, um pássaro gritava com intermitências. As árvores eram direitas, e as folhas giravam e tornavam a girar sobre elas próprias, ao vento, como pequenos cata-ventos de metal.
O rapazito saiu para o terraço; caminhou um pouco pelo chão de mosaico. Num canto, um caixote de lixo cheio foi assaltado pelas formigas. Uma vassoura fora encostada à parede, com a palha para cima; os pêlos da escova estavam cheios duma espécie de penugem de algodão e cabelos. Joseph apanhou do chão as tâmaras caídas da palmeira e atirou-as para o jardim, uma após outra.
Quando voltou à cozinha, reparou que a velha continuava com os olhos fechados. Aproximou-se dela.
- Está a dormir? - perguntou.
Ela respondeu sem abrir as pálpebras:
- Não.
No quarto de paredes sem reboco, pintadas de cor creme, havia manchas por todo o lado: no soalho, nos móveis, na porta, no tecto. Esquisitas manchas esbranquiçadas, com largos círculos incolores. O odor da morte impregnava estes lugares. Primeiro a calma, uma calma soberana, que apertava a garganta; perfumes também, formas subtis que tinham deixado de andar no ar, e haviam-se virado todas para o corpo da mulher, e que a acabrunhavam.
Tudo se passava ali, no interior; não havia nada no exterior, nada que viesse e espantasse. Era uma fuga contínua, o retiro dos órgãos e dos ossos, um apagamento progressivo, manhoso. Joseph mantinha-se de pé, debruçado sobre o cadeirão da velha, e dos olhos fechados, dos lábios secos e apertados, agitados debilmente num gesto de sucção, de todo aquele corpo abandonado no seu vestido-avental, recebia na própria face como que pancadas, profundas, cruéis. O rosto largo, cheio de cartilagens e carne, com a pele lívida, fechava-se no centro, à maneira duma anémona-do-mar. As mãos, as pernas, o busto curvado, tudo parecia aspirado por uma boca feroz, por uma ferida em forma de estrela cujos lábios enrugados se apertavam um contra o outro, com terríveis esforços de cicatrização. Só havia mesmo esta boca, ou este ânus, que se retraía, se dobrava, velha pele de serpente, sufocava-se sobre ela própria, devorava-se sem repugnância. Era preciso fazer como ela, sem dúvida; viver no interior, mergulhar a cabeça no interior do corpo, alimentar-se da própria carne, consumir-se totalmente, criminosamente, até ao esquecimento. Se o tempo se despejasse das suas drogas, distinguia-se a extensão escura, uma verdadeira sala luzindo por buracos, em que as palavras e as dores não têm onde se agarrar, onde tudo é nu, engolido, sufocado. Ouvia-se, às vezes, no fundo desta estufa, o passo de vidro da eternidade, música que lambe o sono. Assim. Lascivamente. Indolentemente. Para si.
Joseph tocou na mão da velha.
- Está a dormir, agora? - perguntou docemente. Como há pouco, não abriu os olhos e respondeu:
- Não...
- Não quer dormir um pouco?
- Não... Estou bem, agora. -Já não tem medo?
- Não... Estou bem.
- Quer... quer que vá buscar o doutor, agora?
- Não, não. Agora, não vale a pena. Estou bem... Estou muito bem... -Já não tem medo de morrer?
- vou morrer, sim...
- E já não tem medo?
- Não... Estou bem...
-Já não tem dores?
- Não... Tenho frio, mas não faz mal...
- Quer um cobertor?
- Não, não, é... É no interior, que tenho frio...
- Tem sede? Quer que eu lhe traga um copo de água?
- Não, não...
- Em que pensa?
- Estou bem... Verdadeiramente.
- Porque está bem?
- Não sei... Parece-me... Vejo coisas tão belas...
- Vê coisas? O que são?
- É belo...
- Mas com que é que se parecem? Diga-me.
- Não sei... Nuvens, talvez... Cavalos...
- E que mais? Que mais?
-... Sim, cavalos... Homens armados... Dourados... Numa chuva de oiro... E grandes, tão grandes que têm a cabeça nas nuvens... É curioso... Montanhas brancas, também. Neve por toda a parte... Têm capacetes...
- Que mais há?
- Fogo. Vejo fogo. Imóvel... Arde sem parar... Em todos os sentidos... As chamas vêm na minha direcção... Saltam... É belo...
- O que é que arde? Casas?
- Sim... Dir-se-ia... dir-se-ia que arde no fundo da água... com grandes bolhas. Grandes bolhas escuras. Fumo.
- O que é que vê mais, menina Maria?
- Há também um homem muito alto... Aproxima-se... Muito branco, flutua... Sorri... Estende os braços em cruz... E fala... Jesus... É Jesus...
- Como é?
- ... Está a rezar... Não... Ri... ri muito alto. Tenho vontade de rir também... Não percebo... Não percebo porque é que Jesus ri... Na minha frente... É cómico... com o rosto tão branco... Como o meu pai... E os braços em cruz... O suor escorre-lhe pela testa... As gotas de sangue escorrem-lhe pela testa... Continua a rir... Há pessoas à sua volta... Mulheres...
- Mulheres?
- Sim, Marta, Maria... Vejo-as... Elas riem também... E Jesus... Tem um capacete... Tem armas que brilham como ouro... Os seus cientes brilham como ouro... Como ouro...
- Que faz ele, agora?
- Não sei... Desapareceu... Não, volta... com colunas, à volta dele... As mulheres tocam-lhe na roupa... Ouço o coração dele abater... Tudo sobe... É fumo. Há varandas... Crianças. Portas... E janelas... com luz...
- E Jesus? Que faz?
- ... Canta... Eu canto com ele... com ele...
- Ouve-o?
- Sim, sim... Ouço-o... Para mim... Ele canta... com a minha voz...
- Que mais há?
- As mãos dele sangram... E o sangue cai em pedras preciosas... Em rubis... Cintilam por toda a parte... Posso pegar-lhes com as mãos... Está quente... O vermelho... É... Quente... Rubis... Topázios... Ali, na água... E as flores, e... o ouro, o ouro, que corre... Pelas janelas... com o exército... Cavaleiros... De branco... As cruzes, as cruzes... Os pilares na erva... O ouro por todo o lado, por todo o lado... Sobe... Queima-me... Quero... rir... com Jesus... Outra vez... Ah... Ah...
A voz da velha apagou-se numa espécie de lamento; o murmúrio doce e triste entrou na cabeça de Joseph e paralisou-o. O coração batendo, as mãos húmidas de transpiração, só podia ouvi-lo, ouvi-lo sem parar, sem defesa. O rumor pregou-o assim no mesmo lugar, ainda durante alguns segundos. Depois parou, o silêncio saltou no interior da cozinha e separou tudo.
Tinham passado horas, e Joseph caminhava pela cidade. Primeiramente arrastara-se pelas ruas, à volta da casa sem reboco onde a velha estava sozinha, dormindo no seu cadeirão de verga. Não encontrara ninguém excepto grupos de crianças a brincarem, e dois ou três operários árabes que trabalhavam numa obra. Hesitara um momento em entrar em casa para encontrar os pais. Depois continuara a passear pelas ruas, as mãos nos bolsos, sem pensar em nada. Uma espécie de angústia menor ocupava-lhe o espírito; fazia-lhe ver as coisas claramente, os mínimos pormenores da paisagem, as asperezas do solo, as contorções das casas de janelas abertas. Olhava para tudo isto com os olhos ardentes e vazios, e era como se caminhasse no interior dele próprio, sem ruído, sem cor, sem raiva, ao longo duma estrada fechada numa caixa de vidro, por atalhos sem fim onde as pernas mergulhavam e ficavam prisioneiras.
Talvez já não fosse ele próprio, agora; talvez, com efeito, que já nada significasse ter o nome de Joseph Charon, filho de Frédéric Charon, agente imobiliário, e de Gertrude Charon, nascida Ciabarelli. Ser alto, ou baixo, magro, gordo, olhos azuis, olhos castanhos, que importa? Unido aos sinais móveis duma velha, duma impotente, ligado ao seu olhar glauco e triste, despojado da força pela recordação dos músculos relaxados, das peles flácidas, invadido traiçoeiramente por todo aquele corpo abandonado, no frio e no vertigem, no silêncio, Joseph era por assim dizer vivido por ela. Vivia como uma imagem, no género dum reflexo molhado, oferecido a cada segundo ao aniquilamento e à evaporação. Era isso, o verdadeiro perigo. Em qualquer parte, atrás dos lotes de terreno e das casas baixas, numa cozinha, uma velha podia abandonar o mundo quase sem se aperceber disso.
Passaria facilmente, no meio dum estremecimento, e com ela partiriam todos os segredos, todas as esperanças, os mistérios odiosos da vida. Os que era preciso conhecer. Os que custavam caro.
Joseph chegou à estrada larga; virou à esquerda e pôs-se a atravessar o talude. Corriam carros em grupos de três ou quatro, a grande velocidade. Ao passarem por um montículo, as rodas saltavam com um barulho de ferro-velho. Chegados em frente da curva, mudavam de velocidade, porque depois havia uma rampa. Joseph ao caminhar olhava para eles; viu vermelhos, azuis, pretos, cinzentos; de todas as marcas; de todos os feitios; alguns tinham frisos na carroçaria, geralmente dos lados. No interior das conchas herméticas, os homens seguiam encaixados, a cabeça ligeiramente caída para a frente. Num relâmpago, viam-se-lhes as faces pálidas, os óculos escuros, as mãos postas nos volantes. Alguns lançavam uma breve olhadela de lado, na direcção de Joseph, depois continuavam em frente, como se fossem levados por carris. O ruído dos motores decrescia rapidamente antes de atingir a curva, ao fundo, na extremidade da rua. Havia qualquer coisa de duro, de maléfico, enquanto os carros seguiam sempre em frente na estrada chata; uma obstinação, uma força rígida, quase dolorosa. Sem se interromper, a onda passava, com grupos de três e quatro, e barulhos que não ficavam. As garupas de metal arredondado afastavam-se brilhando, derrapando constantemente, semelhantes a enormes insectos pesadões. Os bólides duros atravessavam a paisagem, roçavam Joseph, viravam. Sem deixar traço, sem cavar o menor sulco. Um fenómeno limpo, deslizante, cheio de maldade e de caos. Cada um em sua casa, virando para os seus domínios, com tempo e espaço seus, e aquelas toalhas de estrada engolidas, descidas ao ventre. No interior das minúsculas prisões de vidros abertos, a paisagem corria ao mesmo tempo que o vento. Nada estacionava; era tudo cavalgada, avançada, descida inexorável que não levava provavelmente a nada. Cada um trazia a morte em si, o pilão brutal que fenderia a crosta de metal e iria esquadrinhar o homem até ao coração, até ao fundo do peito esquartejado, rápido, muito rápido, o tempo apenas de abrir a boca e soltar um grito logo parado. Era certo. Cruel e firme como o medo. Para as pessoas, para os homens gordos enfiados nos seus fatos de lã, só havia a fuga dos minutos e do dinheiro, assim, até ao último instante da sua pobre vida, sem coesão, sem razão.
Uma pedrinha entrou no sapato direito de Joseph e foi deslizar para baixo da planta do pé. Ao andar, o rapaz sentiu que lhe penetrara na meia e lhe esfolava a pele. Continuou durante alguns metros, coxeando um pouco, tentando em vão afastar a pedrinha para a ponta do sapato, dobrando o dedo grande e sacudindo o pé. Depois, quando compreendeu que o bocadito de pedra continuaria ali, e se não prestasse atenção uma ferida supurante, enorme, ocupar-lhe-ia em breve o espírito, parou na ponta do passeio e descalçou-se; pôs o sapato ao contrário, e com uma pancada breve a pedra caiu na valeta, desaparecendo no meio dum mar de entulho, todo igual. Joseph calçou-se e recomeçou a andar.
Atingiu o começo da curva. Havia uma mercearia onde pessoas faziam bicha; em frente da loja, no passeio, tinham colocado vasos enormes de terra com gerânios. Joseph deteve-se e ficou de pé, as costas encostadas à parede da mercearia. Era à sombra; o passeio, a estrada, as casas em frente estavam cheias duma tristeza bizarra, que flutuava pelas paredes pintadas de branco, pelas superfícies de betão áspero, pelos vidros sem cortinas apenas com um reflexo escuro completamente imóvel. Não se sabia o que se devia fazer. Havia poeira por toda a parte, e entre os ruídos dos carros a mudar de velocidade, ouviam-se lufadas de música fanhosa, de acordeão ou então de harmónica. Os postes de electricidade estavam erguidos muito rígidos em direcção ao céu cheio de nuvens, os aviões passavam muitas vezes por cima dos telhados. Não havia meio de adivinhar as horas; nada engatava, nada parava. Era tudo nu, rápido, pobre. Cimento; cubos de cimento misturados uns nos outros, tendo nalguns sítios uma espécie de crateras terrosas onde os arbustos tentavam nascer. Joseph olhava o espectáculo sem fazer um movimento. De repente, sem avisar, o ar pôs-se a mexer. Vindo do fundo da estrada, o vento começou a soprar; um vento muito frio, contínuo, que descia para a cidade e se quebrava nos objectos. Assobiou nas orelhas do rapazito, desaparecendo em frente na sua direcção teimosa, colando os fatos ao corpo, fazendo tremer a carne.
Despenteou cabelos, levantou poeiras e atirou-as para os olhos, provocando lágrimas ardentes imediatamente evaporadas. A sua presença invisível cobriu as superfícies planas da terra, enchendo sem parar todas as covas e desnivelamentos. Sem barulho, ou quase, apenas com aquele longo silvo que parecia penetrar a própria substância das coisas, misturar-se-lhe até que não houvesse mais nada de seguro, de dissociável, entre esse vazio e esse pleno, o vento soprava, avançava, deslizava como uma toalha de água, indeciso por vezes, depois estalando em bruscas rajadas, indo buscar ao mais profundo das carnes o que havia de frio e de estúpido, para o trazer à superfície e vencer.
Joseph, encostado sempre à parede da mercearia, viu a paisagem transformar-se lentamente em deserto; sentiu o movimento contínuo do ar entrar-lhe nos pulmões, introduzir-se até ao mais secreto dos órgãos. Brisas geladas começaram-lhe a soprar no interior do corpo; os ossos tornaram-se fracos, os músculos deixaram de responder. Como se fosse um espantalho, o vestuário flutuava-lhe como farrapos e as mãos de dedos marmóreos abriram-se e fecharam-se várias vezes, não apertando senão o vazio. O vento soprava-lhe também na cabeça; concentrara-se numa bola glacial, agitada, tumultuosa, que espalhara todas as ideias. No interior do crânio, a paisagem entrara inteira, um grande espectáculo feito de nudez e frieza, onde a rua jazia imóvel, rodeada de casas brancas, onde os passeios eram ocupados por jarros de terra cujos gerânios estremeciam com vibrações minúsculas, onde cada coisa, móvel, calma e feroz, os automóveis, os vidros de reflexos escuros, o céu transparente, os postes de cimento, a estrada, estavam fixos ali como para uma eternidade, imutável, desordenada, esmagadora de peso e de silêncio, estável e selvagem no corredor onde enfiava o vento.
O vazio entrara completamente no espírito de Joseph; o rapaz podia ficar ali, as costas apoiadas na parede da loja, os olhos fixos na sua frente, durante um ano inteiro, sem dúvida. Confundido com a muralha cinzenta, exposto no meio das crostas de pintura, mais invisível que uma mancha, poderia ter olhado, olhado tudo até se fartar. Nada se moveria, porque o seu olhar teria de certo modo paralisado a paisagem; neste lugar coberto de pó, de neve, talvez, o tempo abominável não encontraria uma presa. Porque o olhar teria passado além, ao coração verdadeiramente, teria procurado no seio das coisas o que se chama a imagem, a fotografia imperecível e serena, a natureza em pessoa, nem viva nem morta, onde o mundo desenha apenas um único e majestoso movimento de nascimento, de execução, e ali o olhar teria parado, teria deixado de ser olhar, tornar-se-ia também acto de gozo completo, deleitável fusão de dois seres sem objecto.
Mas ainda não era a hora para Joseph. Para ele, a vida devia ser ainda comprida; um fardo sem futuro e sem alegria, que ia arrastar provavelmente uma boa cinquentena de anos. Ainda não era o momento de infinito; o tempo ia ser comprido, o corpo ávido de alimento e movimento. As coisas fúteis esperavam, as profissões de homem, as trocas de palavras vãs, o dinheiro, as mulheres, tudo isso, tudo isso, toda essa hedionda fadiga que se acumulava na sua frente. Era preciso retesar-se, arrancar os olhos à fascinação da paisagem vazia, fechar todo o corpo ao vento que começara a entrar.
Joseph abandonou o apoio da parede e retomou o andamento. Desceu a estrada em direcção à cidade. Passou a andar ao lado de pessoas. A terra era decididamente muito povoada; viam-se por toda a parte silhuetas móveis, rostos, pernas em acção. Nada repousava. À entrada dos cruzamentos, luzes pestanejantes funcionavam com um ronrom eléctrico. As casas eram todas desiguais, umas altas, doze ou treze andares, outras atarracadas, pintadas de bege, e outras ainda antigas, com uma espécie de colunas. As lojas eram numerosas, e multidões apertavam-se ao longo das montras. O barulho saltava de toda a parte ao mesmo tempo, caos, apertos, e odores saíam de todas as portas, minúsculas parcelas vivas que se tinham soltado dos objectos quentes, expostos para venda: salsichas, brioches, tecidos, flores, laranjas, frangos, café, livros, peixes, carros. As cores também incomodavam; brilhavam nas paredes, nos fatos, no fundo das lojas. Azuis, amarelas, ouros, brancos leitosos. A luz do céu saltava nas camadas cobertas de laca, penetrava-vos os olhos, enfiava-se-vos na cabeça; nasciam frases sob os seus impulsos familiares, frases estéreis, apenas formadas. Os ecos tinham uma potência mágica, que perturbava tudo, que vos fazia homem para sempre. Não havia meio de lhes escapar: estavam ali, misturadas a cada segundo que passava, sujeitavam-vos ao tempo e ao espaço. Palavras fixas, gravadas na memória, prisioneiras da mesma forma, indeléveis, indecifráveis. Cantavam. Ou então iluminavam-se letra após letra, sem cansaço, o. L. i. v. E. T. T. i. Traçavam febrilmente nos cartões os seus sinais desgrenhados, agressivos, que não hesitavam. Era-se propriedade deles, ouvíamo-los falar, nunca se lhes recusava nada. KODAK. Aspro, a dor desaparece. Se quiser
Aspro, a dor desaparece. Se quiser Regalar
Os seus amigos Não esqueça Ofereça-lhes Um Martini.
Philips, é melhor.
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Dubo, Dubon, Dubonnet.
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É Shell que eu amo!
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Lâminas Gilette Sorria com Gibbs!
TELEFUNKEN The Astorians
Persil lava mais branco.
Adelshoffen
Honda
State Express Filter Kings
Eterna, ma tic
Triunfo da dor. Traição dos olhos, dos ouvidos, da pele. É preciso caminhar, toda a vida, no meio deste deserto. Ver, ouvir. Ouvir, ver. Comer. Rir. Falar, fumar, beber. Cheirar. Procriar. Escrever. Respirar. Ter dores. Sangrar, tremer. Encolerizar-se. Sofrer. Gritar, dormir, esperar. O cansaço está em todo o lado. Não há meio, não, não há meio de lhe escapar. É preciso sofrer, ter calor, ter frio. Acariciar. Gozar. Compreender, compreender sem parar. Todos os dias. Assim, todos os dias, sem excepção. Urinar. Saborear. Deixar-se levar pelas palavras inúteis, adoptar os ritmos, os hábitos. Procurar as frases, estender os ouvidos e os olhos, estender a pele. Fingir amar, amar, talvez. Tudo isto, mesmo por nada; porque nem sequer há meio de poder recorrer a para determinar a vida; o homem não está sozinho: coisas comuns e gritantes habitam-no, dão-lhe a sua forma. Não há meio de poder julgar. Não há absurdo, porque não há somente divórcio entre o que é e o que devia ser. Deus, se existe, precisa de plenos poderes: não, nunca se saberá verdadeiramente até que ponto o homem não passa dum vermezinho.
A estrada, através da cidade, tornara-se uma avenida. Em descida suave, conduziu Joseph até ao mar; naquele sítio não havia praia, mas uma espécie de falésia que estava fora de prumo. Joseph apoiou-se na balaustrada de ferro e olhou o precipício. E eis que subitamente uma outra fascinação surgiu e se lhe apoderou do espírito. O abismo tornou-se um poço, estreito, profundo, absolutamente deserto. No fundo, a água semelhante a uma poça minúscula brilhava ao sol; um movimento ínfimo animava a superfície, misturava o reflexo do céu; pequenas vagas iam e vinham em todos os sentidos, cruzavam-se, misturavam-se como as ondas do vento numa extensão de ervas. À ponta da gruta, espessos rochedos negros estavam postos uns encostados aos outros; de vez em quando, uma vaga mais forte que as outras inchava a superfície do mar e cobria-lhes as garupas; o líquido transparente espalhava-se pelas massas arredondadas, enchia as cavidades, saltava ao longo dos sulcos, nadava à maneira de fumo. Depois a vaga retirava-se, e estranhas bocas escuras se cavavam, se fechavam, fervendo com bolhas; em breve, e na sua vez, ao longo dos rochedos brilhantes, só restava uma franja de espuma, uma placa de espuma retalhada e suja, que seguia à deriva pelo mar em forma de escarro.
Joseph contemplou durante muito tempo o fundo do abismo. A cabeça caída para a frente, por cima da balaustrada, sentiu-se invadir pouco a pouco por uma perigosa vertigem; a queda abrupta do rochedo, o formigueiro liso da água, como um cano de esgoto, o rumor da ressaca lançaram os seus apelos. Deixou o corpo curvar-se para a frente, como que puxado por um buraco de ar invencível. Viu a sua própria queda, a ascensão ao contrário na direcção do centro da terra. Os olhos, fixos, enormes, estavam já colocados no lugar do impacto; apalpavam já a superfície dura e ondulada do mar, fundiam-se no meio de turbilhões como grandes algas descuidadas.
No momento em que ia talvez cair realmente, saltar por cima do gradeamento de ferro e transformar-se em pedra, alguém lhe tocou no braço. Joseph virou-se e viu um homem que o olhava. Ouviu uma voz que lhe fazia uma pergunta e o arrancava do sonho. A voz repetiu:
- Isso não vai bem?
O homem olhava para ele com uma espécie de luz cruel nos olhos; Joseph viu a silhueta muito distintamente; fato de tweed, óculos de aros dourados, crânio calvo, rugas à volta da boca e na testa. A mão continuava pousada no braço, ejoseph reparou num anel de metal no qual estavam gravadas duas iniciais: X. C.
com um movimento brusco, separou-se. O homem, com cerca de cinquenta anos, perguntou com voz hesitante:
- Isso não vai bem? - Joseph murmurou:
- Sim. Sim, vai...
E afastou-se rapidamente.
Mais longe, ao passar numa escola, viu as horas no relógio: 2 h e 1/2.
Olhou também para uma espécie de monumento aos mortos, uma placa enorme de mármore branco onde estavam nomes gravados. O solo pertencia-lhes realmente. Os rochedos, as oliveiras, as praias, as extensões de vinha, eram os seus bens. Podia-se fingir não saber, mas eles, com os nomes gravados, com os seus nomes tranquilos instalados nas placas, possuíam tudo, eram os donos. Estavam vigilantes, escondidos debaixo da terra, observavam tudo através das vigias dos túmulos; eram os juizes secretos, e nada lhes escapava.
Joseph continuou o seu caminho. Não tinha fome, e não sabia o que havia de fazer. Entrou num cinema de sessões contínuas e viu duas ou três vezes o filme. Era Quando a Marabunta rói, sete horas antes da fronteira, ou qualquer coisa deste género.
Quando Joseph saiu do cinema, já não era dia. O céu estava coberto de nuvens cinzentas, e nas ruas as pessoas apressavam-se para chegarem a casa. O rapaz hesitou um momento diante da porta do cinema. Depois foi para a esquerda e seguiu em direcção aos arrabaldes. Caminhou durante muito tempo, enquanto as sombras se acentuavam e as primeiras lâmpadas de néon se acendiam nas montras. Os homens e as mulheres eram sempre os mesmos por toda a parte; nas suas faces pálidas, os traços não se mexiam, os narizes continuavam fixos, e as rugas não se multiplicavam. E no entanto, estavam em movimento, viviam de maneira ininterrupta. Os seus passos secos no passeio contavam os segundos, os minutos, as horas. Mesmo que se não visse passar nada, não se devia ter ilusões; as suas peles esfregavam-se, os corações consumiam-se, lentamente, a cada gesto, a cada ocasião. Por vezes, à volta deles, corriam os filhos, esses bocadinhos de carne e osso saídos deles próprios, que um dia seriam velhos. Os homens e as mulheres podiam escapar a todos os massacres e a todas as guerras, podiam sair indemnes das poliomielites e dos acidentes de caminho-de-ferro, mas não escapariam aos filhos. Era essa a verdade, o que era preciso saber de uma vez para sempre. Dentro de quarenta anos, antes talvez, estas palavras terão sido escritas por um morto. E dentro de cem anos, em todo o caso, nada do que existiu hoje, nada deste segundo continuará ainda vivo. Quando lerdes estas linhas é preciso, é necessário que afasteis o vosso olhar destes infames gatafunhos. Respirem, respirem forte e fundo, estejam vivos até ao êxtase. Porque em breve, na verdade, não restará grande coisa de vocês.
Joseph parou à ponta do passeio, perto de uma paragem de autocarros. À esquerda do poste de metal, no qual estava escrito l-A, algumas pessoas esperavam. Duas mulheres de impermeável, um homem de fato castanho, um estudante, um operário, e mais três mulheres com sacos. Joseph olhou-os sem pressa, uns a seguir aos outros. Tinham rostos indiferentes, feios, marcados pelo cansaço dum dia de trabalho. O homem de fato castanho fumava uma beata; o estudante tinha livros e batia no chão com a ponta da sola do pé direito; as duas mulheres da primeira fila viam passar os carros sem dizer nada; o operário tinha as mãos nos bolsos do fato-macaco; as três últimas mulheres conversavam, duas com animação, a terceira acrescentando uma palavra de vez em quando. Mal o autocarro viesse, partiriam com ele, sem olhar para trás. Desceriam mais longe no limite da cidade, e entrariam em casa para fazer as refeições. As casas seriam quentes, barulhentas, com um aparelho de rádio ou uma televisão a falarem sozinhos contra a parede duma sala de jantar.
Joseph percorreu o mínimo pormenor destes rostos, como se quisesse fazer a caricatura deles. Narizes compridos, cabelos hirtos ou demasiado frisados, olhos pisados, botões, penugens, rugas em pés de galinha, bocas gretadas. Porque será preciso que tudo mude? As coisas não estavam bem assim? Uma tristeza doce emanava destes seres; auréolas de recordações subiam de todos os ângulos das suas faces. Este momento preciso, esta reunião dum nariz e dum lábio, duma madeixa de cabelos e do moldado da face, não existia. Era portanto isto, a realidade! Uma passagem, uma queda, um enterramento. Porque os dias de infância tinham passado também. Os corpos de crianças, os risos claros, os olhos limpos. E sucumbira igualmente o tempo de infância das mães, os vestidos compridos e as tranças. Tudo mergulhara uns nos outros, sob camadas e camadas de imundícies, de excrementos, de esquecimento. Estes rostos de mulher, tão nítidos na aparência, tão firmes que pareciam esculpidos em bronze, no fundo não existiam; eram gelatina, escorregadelas de lodo, podridão, abcesso, gangrena!
Um camiãocisterna subiu lentamente a avenida; Joseph viu-o de longe, grunhindo como um porco, as chapas vibrando ao longo dos flancos, os vidros da cabina rutilantes de reflexos sombrios. O camião, demasiado carregado sem dúvida, avançava com dificuldade junto ao passeio. Parecia arrancar bocados de asfalto, tanto o esforço era visível. Na parte da frente estava escrita, como em letras de fogo, uma palavra mágica:
TOTAL
Joseph viu aproximar-se a palavra, o sinal ao mesmo tempo irrisório e soberbo. Sentiu qualquer coisa mexer no interior dele próprio, o medo, ou talvez a submissão. Olhou para as rodas do camião, e a vertigem de há pouco voltou-lhe. As superfícies ventrudas giravam sobre elas próprias, progredindo pesadamente ao longo da calçada, e espécies de desenhos traçados na borracha dos pneus pareciam ziguezaguear descendo em direcção ao solo. Tudo desaparecia sob o peso do camião-cisterna; a massa elástica esmagava-se contra a superfície de calhaus, e a roda continuava a rodar, a avançar, sem repentes, sem paragens, como uma goela gigantesca de animal devorador. Um odor a vulcanização flutuava no ar, misturado às nuvens de gás; diante, atrás, de cada lado, era certamente o silêncio. Porque toda a violência parecia ter-se concentrado no ventre da máquina, do monstro de chapa trepidante que trazia escrita à frente a palavra mágica, enquanto de cada asa aberta, como duma boca, caía a onda contínua das rodas, das cascatas de borracha preta marcada com um Z que arrancavam o peso à terra imóvel, que o puxavam para a frente, com dificuldade, com majestade, trabalhando quase no mesmo sítio de tal maneira o movimento era vagaroso.
Por um momento, Joseph foi assaltado pelo desejo de se atirar para debaixo dos enormes pneus, de se fazer roda, e sentir os desenhos da borracha incrustarem-se-lhe no interior da pele. Foi uma tentação no género da que recebera, dois ou três anos antes, quando tinha treze anos. Uma noite tirara o punhal indígena duma panóplia do salão, e, sozinho no quarto, encostara a ponta contra o peito. com inquietação, ouvira as vibrações surdas do coração subirem a lâmina do punhal, até à mão apertada no cabo. Experimentou encostar um pouco mais, para rasgar a pele. Mas, mais do que a dor, o pavor provocado pelas pancadas muito vibrantes do coração fizeram-no retirar o punhal. Nunca esqueceria isto: a incómoda embriaguez de sentir que a vida e a alma podem ser esvaziadas com uma simples picadela, como uma pele cheia de vento.
O camião-cisterna passou junto ao passeio, a alguns centímetros do jovem que não se mexeu; depois, buzinando, afastou-se para o exterior da cidade. Joseph, depois de ter lançado uma última olhadela às mulheres e aos homens que continuavam a esperar, foi-se também embora.
Na penumbra que aumentava na cozinha, a velha continuava sentada no cadeirão de verga. Nada se alterara. As cortinas de matéria plástica pendiam das janelas, as paredes e os tectos tinham as mesmas manchas pálidas, e, em cima da mesa, as compras estavam ainda espalhadas tal como tinham rolado para fora do saco. Joseph deu alguns passos no quarto, cavando a sombra com o olhar. Viu o corpo abandonado no assento, informe no tecido do vestido. Os pés estavam completamente assentes no chão, cada um virado numa direcção. O rosto caído para trás no espaldar do cadeirão não exprimia nada. Pálpebras fechadas, narinas apertadas, lábios cerrados, estava ligado ao resto do corpo como um bloco de pedra cinzenta, quase sem necessidade. Tinha-se a impressão que se podia levá-lo e pousá-lo em qualquer lado, como se fosse uma almofada.
A noite que chegava cobrira tudo com uma espécie de aranhas esbranquiçadas, poeirentas, que flutuavam à superfície das coisas e se acumulavam nos cantos. A luz imprecisa do céu continuava a passar pela janela, mas já não iluminava: pelo contrário, tirava cores e desenhos ao conteúdo da cozinha. Semelhante a água, a uma água suja por ter lavado milhares e milhares de vezes, a sombra turvava os relevos vivos, e ia procurar ao rosto da velha o que havia de decrépito, de apagado. Joseph teve a impressão durante alguns segundos que ela estava realmente morta. Na ponta dos pés aproximou-se do cadeirão e cochichou:
- Menina Maria? Menina Maria?
Ao inclinar-se para o rosto cor de cinza, distinguiu os sinais débeis da vida: palpitação das narinas, respiração sibilante, um pouco gorgolejante, movimentos dos olhos no interior das pálpebras fechadas. com a mão, tocou no ombro da velha e repetiu outra vez:
- Menina Maria?
- Menina Maria?
Ela pareceu ouvir; as pálpebras tremeram-lhe, os lábios entreabriram-se. Da boca amarela e seca, onde o sangue coalhara, saiu um som bizarro:
- Ah. Ah. Ah. Ah. Ah.
- Tem dores? - perguntou Joseph.
Os olhos apareceram entre as pálpebras inchadas; dois olhos glaucos, transparentes, sem nenhuma lágrima. A voz esforçou-se por falar:
- Ah. Ali. Já não vejo. Ah. Ah. Já não vejo nada. Ah. Ah. Ah.
Mas as palavras não vinham. Em qualquer parte, no cérebro, tinham ficada escondidas com as toneladas de imagens e de recordações, e já não podiam sair da sua prisão. Em breve, dentro de algumas horas apenas, as palavras apodreceriam debaixo da terra e apagar-se-iam como páginas de dicionário. Tinham acabado os cantos e os poemas. As palavras não passavam de reflexos, de efémeros reflexos cobertos facilmente pela sombra. As ideias, as belas frases, os monumentos, eis as quimeras. Nem um dentre eles produziria vida, nenhum escaparia à ordem que tentavam combater. E se é preciso dizê-lo, não há um templo de arcadas de mármore, uma ferramenta, um livro que valha o mais pequeno mosquito perdido no mundo.
Joseph escutou durante uns momentos os murmúrios, que tentavam franquear a barreira da boca. Depois pôs-se a falar:
- Está a ouvir-me, menina Maria? Está a ouvir-me, não é verdade? O rosto escuro aquiesceu.
- Eu queria... Eu queria que não morresse. Não sei como hei-de dizer... Percebe? Tente falar-me. Tente dizer-me qualquer coisa. Como há pouco. O que vê. Porque vê coisas, não é verdade? Vê coisas? Gostaria tanto... Diga-me o que vê. Como há pouco, como há pouco, lembra-se?
Os lábios fremiam, mas nenhum som conseguiu sair. Estava tudo seco na garganta, sem dúvida. com uma espécie de desespero, Joseph sentiu que tudo lhe ia escapar. O momento que tanto desejara, o inefável instante em que o espírito oscila e junta-se à matéria ia perder-se ao longe. Toda uma vida, setenta e cinco anos de cansaço e gozo, de paz e infelicidade, ir-se-iam em fumo, inúteis, abandonados. Joseph debruçou-se sobre o rosto da velha, e olhou-a com uma vontade implacável. Mas nada vinha. De repente teve uma iluminação: se ela não podia já falar, talvez pudesse escrever? com gestos nervosos, Joseph arrancou um bocado de papel que servira para embrulhar feijões verdes; meticulosamente, colocou um lápis entre os dedos inertes, e, segurando a folha de papel, disse muito depressa:
- Menina Maria? Está a ouvir-me, não é verdade? Escreva. Escreva o que sente. Quero-o. Escreva. vou ajudá-la a escrever. Quer? Está, a ouvir-me? Escreva. Escreva, peço-lhe.
A velha mão pôs-se em movimento, hesitando; com uma lentidão desajeitada, o lápis traçou letras, uma após outra, letras maiúsculas. Quando terminou, a mão caiu para trás, e balançou um momento na ponta do braço, os dedos abertos. Na folha de papel acinzentado, estavam colocadas a preto umas letras bizarras. Diziam: TENHO FRIO

 

 

                                                                  J. M. G. Lê Clézio

 

 

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