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Nós estávamos de luto por nossa mãe, que tinha morrido no outono, e ficamos eu, Kátia e Sônia o tempo todo sozinhas na aldeia.
Kátia, uma velha amiga da nossa família, era nossa governanta e foi ela que nos criou. Lembro-me dela desde que me entendo por gente e a amava muito. Sônia era minha irmã mais nova. Aquele inverno que passamos em nossa velha casa em Pokróvskoie foi sombrio e triste. Fazia frio, ventava e o vento varria a neve, formando montes mais altos do que as janelas, que ficavam quase sempre cobertas de gelo e embaçadas. Durante todo o inverno, quase não saímos para lugar nenhum, nem a pé, nem de carruagem. Raramente vinha alguém à nossa casa e, se vinha, esse alguém não trazia alegria nem diversão. Chegavam todos com caras tristes, falando baixo, como se receassem acordar alguém, e não riam, ficavam suspirando e às vezes choravam, olhando para mim e, especialmente, para a pequena Sônia no seu vestidinho preto.
Dentro de casa, parecia que se sentia a morte; uma tristeza e um pavor pairavam no ar. O quarto de mamãe estava sempre fechado; eu sentia angústia, e algo me puxava para dar uma olhada naquele cômodo frio e vazio, quando passava indo para o meu quarto.
Eu tinha então dezessete anos; mamãe, pouco antes de morrer, quis mudar-se para a cidade, para me apresentar à sociedade. A perda de minha mãe foi uma dor muito forte, mas devo reconhecer que, por causa dessa dor, surgiu também o sentimento de que eu era jovem e, pelo que todos diziam, bonita, e que aquele já era o segundo inverno que eu passava em branco, consumindo-me na solidão do campo. Ao final do inverno, a melancolia e o tédio aumentaram tanto que eu não saía mais do quarto, não abria o piano ou pegava um livro para ler. Quando Kátia tentava me convencer a ocupar-me com alguma dessas coisas, eu respondia: não tenho vontade, não consigo; e lá no fundo algo me dizia: para quê? Para que fazer alguma coisa, se meu melhor tempo está sendo desperdiçado à toa? Para quê? E essa pergunta não obtinha nenhuma resposta, além das lágrimas.
Naquele tempo as pessoas diziam que eu estava emagrecendo e ficando feia, mas isso nem me preocupava. Para quê? Para quem? Parecia que o meu destino era passar toda a minha vida naquele fim de mundo, sozinha e num tédio irremediável, do qual eu mesma não tinha forças nem ânimo para sair. Quando o inverno já estava terminando, Kátia ficou preocupada comigo e resolveu que me levaria a todo custo para fazer uma viagem ao estrangeiro. Mas, para isso, era necessário dinheiro, e nós nem sabíamos ao certo o que tinha ficado de mamãe, por isso esperávamos dia após dia a chegada do tutor, que deveria vir examinar nossa situação.
Em março, o tutor chegou.
– Graças a Deus! – disse-me Kátia, num dia em que eu, como uma sombra, sem uma ocupação, sem pensamentos, sem vontade, andava de um lado para o outro. – Serguêi Mikháilitch chegou, mandou perguntar por nós e quer vir almoçar. Então, anime-se, minha Máchetchka[1] – acrescentou ela –, senão, o que ele vai pensar de você? Ele gostava tanto de todos vocês!
Serguêi Mikháilitch era nosso vizinho e fora amigo de meu finado pai, embora fosse bem mais moço do que ele. Além do fato de que sua chegada iria modificar nossos planos e abriria a possibilidade de irmos embora do campo, desde pequena eu me acostumara a gostar dele e a respeitá-lo, e Kátia, ao mandar animar-me, adivinhava que, de todos os conhecidos, Serguêi Mikháilitch era a pessoa diante da qual eu menos gostaria de me mostrar com uma aparência desfavorável. Todos em casa, começando por Kátia e Sônia, afilhada dele, até o último dos cocheiros, já estávamos acostumados a gostar dele, mas, para mim, ele tinha um significado especial, devido a uma coisa que ouvi minha mãe dizer certa vez na minha presença: que ela desejava um marido como ele para mim. Naquela hora fiquei muito espantada e não gostei, pois meu príncipe encantado era completamente diferente: teria de ser esguio, magro, pálido e triste. Já Serguêi Mikháilitch, esse já não era mais um jovenzinho, era alto, corpulento e, segundo me parecia, estava sempre alegre; apesar disso, aquelas palavras de minha mãe me impressionaram e ficaram retidas na minha imaginação, e, seis anos antes, quando eu tinha onze anos e ele me tratava por você, brincava comigo e me chamava de menina-violeta, não sem terror eu às vezes me perguntava o que faria se de repente ele quisesse se casar comigo.
Serguêi Mikháilitch chegou pouco antes da hora do almoço, ao qual Kátia acrescentara uma torta de creme e molho de espinafre. Da janela eu o vi chegar num pequeno trenó, mas, assim que ele sumiu numa curva, corri para a sala e tentei fingir que não o estava esperando. Porém, ao ouvir o ruído de suas botas na entrada, sua voz alta e os passos de Kátia, não me contive e fui ao seu encontro. De braço dado com Kátia, ele falava alto e sorria. Ao ver-me, parou e ficou algum tempo olhando para mim, sem me cumprimentar. Fiquei sem jeito e senti que tinha ficado vermelha.
– Ah! Será mesmo a senhorita?! – disse ele com sua maneira simples e decidida, abrindo os braços e aproximando-se de mim. – Mas pode alguém mudar tanto assim?! Como a senhorita cresceu! Veja só, era uma violeta! Agora está uma verdadeira rosa!
Com sua mão grande ele pegou a minha e apertou-a com força, mas sem me causar dor. Pensei que ele beijaria minha mão e quase fiz uma reverência, mas ele a apertou uma vez mais e me fitou diretamente nos olhos com seu olhar firme e alegre.
Havia seis anos que eu não o via. Estava muito mudado, mais velho, queimado do sol e com umas costeletas que não lhe assentavam bem; mas continuavam iguais as maneiras simples, receptivas, o rosto aberto, honesto e de traços graúdos, os olhos inteligentes e brilhantes e o sorriso carinhoso, quase infantil.
Cinco minutos depois, ele já não se portava como uma visita e era tratado como uma pessoa de casa por todos, especialmente pelos criados, que procuravam servi-lo da melhor maneira possível e estavam muito contentes com sua presença.
Seu comportamento era completamente diferente do comportamento dos outros vizinhos que nos visitaram depois da morte de mamãe e que achavam que deviam ficar calados e chorando, sentados na nossa sala; ele, ao contrário, estava falante, alegre, e não disse uma palavra sobre nossa mãe, tanto que comecei a achar estranha essa indiferença, inconveniente mesmo, partindo de alguém tão próximo. Mas depois eu entendi que não se tratava de indiferença, e sim de sinceridade, e senti gratidão por isso.
À tardinha, Kátia sentou-se para servir o chá no antigo lugar na sala de visitas, como costumávamos fazer quando mamãe era viva; eu e Sônia nos sentamos junto dela; o velho Grigóri foi buscar um cachimbo que fora de papai para Serguêi Mikháilitch, e este, como antigamente, ficou andando de um lado para o outro na sala.
– Quantas mudanças terríveis ocorreram nesta casa, é até difícil imaginar – ele disse, parando.
– É verdade – disse Kátia com um suspiro, colocando a tampa no samovar e lançando-lhe um olhar lacrimoso.
– A senhorita, eu suponho, lembra-se do seu pai – disse-me ele.
– Um pouco – respondi.
– Como seria bom para vocês se ele estivesse aqui neste momento! – disse ele pensativamente e em voz baixa, fitando a minha testa. – Eu gostava muito do seu pai! – acrescentou ainda mais baixo, e me pareceu que seus olhos ficaram ainda mais brilhantes.
– Mas agora Deus a levou também! – disse Kátia, cobrindo o bule de chá com um guardanapo; e, pegando um lenço, começou a chorar.
– É, houve mudanças terríveis nesta casa – repetiu ele, virando-se. – Sônia, mostre-me seus brinquedos – disse após algum tempo e foi para o salão.
Eu olhei para Kátia com meus olhos cheios de lágrimas.
– Este é um amigo de verdade! – disse ela.
E, de fato, o interesse dessa pessoa bondosa, mesmo sendo um estranho, trouxe-me calor e bem-estar.
Da sala de visitas ouvíamos os gritinhos de Sônia e a brincadeira barulhenta dele. Mandei que lhe levassem o chá. Depois ouvimos que ele abrira o piano e batia nas teclas com os dedinhos de Sônia.
– Mária Aleksândrovna! – ouviu-se a voz dele. – Venha cá, toque alguma coisa.
Gostei que ele me desse ordens de maneira tão simples e amistosa, e fui ter com ele.
– Toque isto – disse ele, abrindo o álbum de Beethoven no adágio da sonata Quasi una fantasia[2]. – Vejamos como a senhorita o toca – acrescentou e foi com o seu copo para um canto da sala.
Por algum motivo, senti que não poderia recusar-lhe o pedido nem vir com o preâmbulo de que tocava mal; sentei-me docilmente ao piano e comecei a tocar do meu jeito, não sem temor do seu julgamento, pois sabia que ele gostava e entendia de música. O adágio combinava com aquele sentimento e com as recordações que a conversa durante o chá despertara, e acho que toquei razoavelmente bem. Mas ele não me deixou tocar o scherzo.
– Não, isto a senhorita não toca bem – disse, aproximando-se –, deixe este, mas o primeiro não estava mau. A senhorita, parece, entende a música.
Esse elogio comedido me deixou tão feliz que até corei. Para mim era uma coisa nova e agradável que um amigo do meu pai conversasse a sós comigo, com seriedade, e não mais me tratasse como criança, como antigamente. Kátia subiu para pôr Sônia na cama, e nós dois ficamos na sala.
Ele me falou sobre meu pai, contou como eles se tornaram amigos, como se divertiram muito na época em que eu ainda estava ocupada com meus livros e meus brinquedos; e, através dos relatos dele, pela primeira vez tive a ideia do meu pai como uma pessoa simples e gentil, que eu desconhecia. Ele também me interrogou sobre o que eu gostava, o que lia, quais eram os meus planos, me deu conselhos. Eu já não o via como uma pessoa brincalhona e alegre, que costumava me provocar e inventava brinquedos, mas sim como um homem sério, simples e afetuoso, e sem notar senti por ele respeito e simpatia. Sentia-me bem e à vontade, mas, ao mesmo tempo, estava tensa, medindo cada palavra, pois queria muito merecer o carinho dele, que, na minha opinião, eu recebia apenas por ser filha do meu pai.
Kátia deixou Sônia na cama, veio para junto de nós e ficou queixando-se para ele da minha apatia, sobre a qual eu não havia dito nada.
– O mais importante ela não me contou – disse ele, sorrindo para mim e me censurando com um balanço de cabeça.
– Que havia para contar? – disse eu. – Isso é uma coisa muito aborrecida, mas vai passar. (De fato, agora me parecia que não só minha melancolia iria acabar, mas também que ela nunca tinha existido.)
– Não é bom não saber suportar a solidão – disse ele –, a senhorita já não é uma moça?
– Claro que sou uma moça – respondi rindo.
– É, mas é uma moça má, que só se sente viva quando há alguém para admirá-la, e, quando se viu sozinha, murchou e já não achou graça em nada; tudo o que possui é para exibição; para si mesma, nada.
– Que bela opinião o senhor tem a meu respeito – disse eu, apenas para dizer alguma coisa.
– Não! – disse ele após um breve silêncio. – Não é à toa que a senhorita se parece com seu pai. A senhorita tem algo – e seu olhar bondoso e atento novamente me deixou orgulhosa e alegremente confusa.
Somente então eu notei, por trás do seu rosto alegre, aquele olhar próprio dele – claro no início, depois cada vez mais atento e, finalmente, um pouco triste.
– A senhorita não deve e não pode ceder à melancolia – disse. – A senhorita tem a música, é capaz de compreendê-la, tem os livros, os estudos, tem toda uma vida pela frente, e agora é o momento de se preparar para ela, senão vai se arrepender depois. Daqui a um ano já será tarde.
Ele falava comigo como um pai ou um tio, e eu sentia que todo o tempo ele se esforçava para ficar no meu nível. Por um lado, senti-me ofendida por estar sendo tratada como se fosse inferior a ele, mas, por outro, gostei de ver que ele achava necessário tentar parecer outra pessoa exclusivamente para mim.
No restante da noite, ele conversou sobre negócios com Kátia.
– Bem, então adeus, queridas amigas – disse, erguendo-se e vindo na minha direção, para pegar a minha mão.
– Quando nos veremos outra vez? – perguntou Kátia.
– Na primavera – respondeu ele, ainda segurando a minha mão. – Agora vou para Danílovka (outra aldeia nossa); vou ver como estão as coisas por lá, resolvo o que puder, depois vou a Moscou tratar de assuntos pessoais, e no verão nos veremos mais vezes.
– Por que o senhor vai demorar tanto a voltar? – disse eu com profunda tristeza; na realidade, eu estava com esperança de vê-lo diariamente, e de repente fiquei triste, apavorada mesmo, com medo de que a melancolia voltasse. Com toda a certeza, meu olhar e o tom da minha voz expressaram isso.
– Então é isso; ocupe-se mais e não fique deprimida – disse ele num tom que me pareceu excessivamente frio e impessoal. – Na primavera, serei seu examinador – acrescentou, e soltou minha mão sem me olhar.
Na antessala, aonde o acompanhamos para nos despedir, ele vestiu o casaco de peles apressadamente e mais uma vez percorreu-me com os olhos. “Não adianta ele tentar!”, pensei. “Será que ele acha que eu gosto que me olhe dessa maneira? É uma boa pessoa, muito boa... mas é só isso.”
Entretanto, nessa noite eu e Kátia ficamos muito tempo sem conseguir dormir; mas não falamos sobre ele, e sim sobre como passaríamos o verão, onde e como viveríamos no inverno. Eu já não me lembrava da terrível pergunta: para quê? Parecia-me simples e claro que se deve viver para ser feliz, e o futuro prometia muita felicidade. Era como se, de repente, a nossa velha e sombria casa de Pokróvskoie se tivesse enchido de luz e vida.
II
Nesse meio-tempo, a primavera chegou. Minha tristeza anterior havia passado e fora substituída por uma inquietude primaveril e sonhadora, de esperanças e desejos incompreensíveis. Eu já não passava o tempo como no início do inverno, pois o preenchia cuidando de Sônia, ou com a música ou a leitura. Mas muitas vezes ia para o jardim e lá ficava, vagando pelas alamedas ou sentada num banco, e só Deus sabe o que eu pensava, o que queria ou esperava. Às vezes, à noite, especialmente se havia luar, eu ficava sentada até o amanhecer junto à janela do meu quarto, ou então, escondida de Kátia, saía para o jardim vestida com uma blusa leve e corria sobre o orvalho até o açude; certa vez, fui até o campo e de noite dei a volta sozinha em todo o jardim.
Agora é difícil lembrar e compreender os sonhos que naquela época enchiam minha imaginação. Mesmo aqueles de que me lembro custa-me crer que fossem exatamente os meus sonhos, porque agora parecem estranhos e distantes da vida real.
No final de maio, Serguêi Mikháilitch voltou de sua viagem, como tinha prometido.
Pela primeira vez, chegou inesperadamente à tardinha. Estávamos na varanda tomando chá. O jardim estava de novo verde; nos canteiros cobertos de plantas, os rouxinóis já se haviam instalado para todo o verão. Os galhos cacheados dos lilases davam a impressão de que tinham sido salpicados aqui e ali com alguma coisa branca e arroxeada: eram as flores que se preparavam para abrir. Na alameda de bétulas, a folhagem parecia transparente ao pôr do sol. Havia uma sombra fresca na varanda, provavelmente devido ao orvalho da tarde que caíra sobre a relva. No quintal, atrás do jardim, ouviam-se os últimos ruídos do dia e o barulho do gado que estava sendo recolhido; o bobo Nikon passou de carroça com um barril de água pela estradinha diante da varanda, e o jorro frio do regador fazia rodas escuras na terra fofa em torno do caule das dálias e das estacas. Na varanda, sobre uma toalha branca, brilhava e fervia o samovar claro e polido; já estavam também lá o creme de leite, as roscas e os biscoitos. Com suas mãos gorduchas, Kátia dava uma segunda lavada nas xícaras. Faminta depois do banho e sem esperar o chá, eu comia pão com o creme fresco e espesso. Estava vestida com uma blusa de linho grosso, de mangas curtas, e tinha um lenço enrolado na cabeça, por cima dos cabelos molhados. Foi Kátia que primeiro o viu, através da janela.
– Ah! Serguêi Mikháilitch! – disse ela. – Acabamos de falar no senhor.
Eu me levantei e queria ir trocar de roupa, mas ele me alcançou no momento exato em que eu já estava na porta.
– O que é isso, que cerimônia é essa aqui na roça? – disse ele, olhando o lenço na minha cabeça e sorrindo. – Pelo visto, a senhorita não se acanha diante de Grigóri; pois faça de conta que eu sou igual ao Grigóri.
Mas, naquele exato momento, pareceu-me que ele me olhava de uma maneira completamente diferente da de Grigóri, e fiquei sem jeito.
– Já volto – disse, afastando-me.
– Que mal há nisso? – gritou ele para mim. – Está uma perfeita camponesinha.
“Que modo estranho de me olhar!”, pensei, trocando-me às pressas lá em cima. “Bem, graças a Deus que ele chegou, aqui vai ficar mais divertido!”
Dando uma olhada no espelho, desci a escada alegremente e, sem disfarçar a pressa, entrei ofegante na varanda. Ele falava com Kátia sobre nossos assuntos, sentado à mesa. Olhou-me, sorriu e continuou a falar. Nossos negócios, segundo ele, iam muito bem. Agora teríamos apenas de passar o verão no campo e, depois, ou iríamos para Petersburgo, para cuidar da educação de Sônia, ou para o estrangeiro.
– E se o senhor fosse conosco para o estrangeiro? – disse Kátia. – Sozinhas, vamos nos perder, como na floresta.
– Ah! Pudera eu dar a volta ao mundo com vocês! – disse ele, meio brincando, meio a sério.
– Pois então – disse eu –, vamos dar a volta ao mundo.
Ele sorriu, meneando a cabeça.
– E minha mãe? E os negócios? – disse ele. – Mas isso não importa. Conte-me como passou o tempo. Será que ficou deprimida de novo?
Quando contei que na sua ausência eu havia estudado e não sentira tédio, o que Kátia confirmou, ele me fez elogios e me acariciou com o olhar, como se eu fosse criança e ele tivesse esse direito. Achei que deveria contar-lhe detalhadamente e com toda a sinceridade tudo o que eu havia feito de bom, e também confessar tudo o que ele pudesse desaprovar.
A noite estava tão agradável que, mesmo depois de retirarem o chá, continuamos na varanda; a conversa estava tão interessante que nem notei que aos poucos os ruídos das pessoas foram silenciando ao redor. O perfume das flores por toda parte se tornou mais forte. A relva ficou mais molhada de orvalho, um rouxinol soltou um trinado ali perto, num pé de lilás, mas calou-se ao ouvir nossas vozes; parecia que o céu estrelado tinha despencado sobre nós.
Só notei que havia escurecido porque, de repente, um morcego entrou voando sem fazer ruído por baixo do toldo da varanda e estremeceu as asas perto do meu lenço branco. Encostei-me na parede e iria dar um grito, mas o morcego saiu voando silenciosamente e sumiu nas sombras do jardim.
– Como eu gosto deste lugar – disse ele, interrompendo nossa conversa. – Eu poderia ficar a vida toda sentado nesta varanda.
– Pois então fique – disse Kátia.
– Pois sim, ficar sentado – disse ele –, a vida não fica sentada.
– Por que não se casa? – disse Kátia. – O senhor daria um excelente marido.
– Isso é porque gosto de ficar sentado – disse ele, rindo. – Não, Katerina Pávlovna. Tanto a senhora como eu já não temos chance de casar. Há muito tempo que as pessoas pararam de me ver como um homem casadouro. E eu, mais que todos. E, sabe, sinto-me muito bem assim, honestamente.
Pareceu-me que ele falava com um entusiasmo excessivo e um tanto artificial.
– Maravilha! Trinta e seis anos e já está no fim da vida – disse Kátia.
– E como! – continuou ele. – Estou no fim da vida e agora só quero ficar sentado. Para casar é preciso outra coisa. Pergunte a ela – acrescentou, apontando para mim com a cabeça. Gente como ela é que precisa se casar. Quanto a nós, ficaremos felizes por eles.
Seu tom encobria certa tristeza e tensão, que não me passaram despercebidas. Calou-se por alguns instantes, e nem Kátia, nem eu dissemos uma palavra.
– Bem, imaginem – continuou ele, virando-se na cadeira –, se eu, por alguma infelicidade, de repente me casasse com uma menina de dezessete anos, digamos, com Mach... com Mária Aleksândrovna. Esse é um ótimo exemplo, gosto muito de que as coisas sejam assim, é o melhor exemplo.
Comecei a rir, sem entender por que ele tinha ficado tão satisfeito e de que coisas estava falando.
– Bem, diga sinceramente, com a mão no coração – disse ele para mim, num tom de brincadeira –, por acaso não acharia uma infelicidade unir sua vida à de um velho no fim da vida, um velho que só quer ficar sentado, enquanto a senhorita deseja sabe Deus o quê, sabe-se lá o que se passa dentro da sua cabeça?
Fiquei sem-graça e não disse nada, sem saber o que responder.
– Não a estou pedindo em casamento – disse ele, rindo –, mas diga sinceramente que não é com um noivo como eu que a senhorita sonha quando passeia sozinha à tarde pela alameda. Isso não seria uma infelicidade?
– Infelicidade, não... – comecei.
– Mas não seria bom – ele completou.
– Sim, mas eu posso estar engana...
Ele me interrompeu outra vez.
– É isso aí, ela está corretíssima, e fico-lhe grato pela sinceridade e feliz de termos tido essa conversa. E digo mais: também para mim isso seria uma tremenda desgraça.
– Como o senhor é estranho! Não mudou nem um pouquinho – disse Kátia e saiu da varanda para dar as ordens quanto ao jantar.
Depois que Kátia saiu, ficamos os dois calados; ao redor, tudo também estava silencioso. Apenas o rouxinol desatou sua cantoria para todo o jardim, mas não do modo como cantava à tarde, irresoluto e descontínuo, e sim calma e pausadamente; do fundo do vale, outro rouxinol respondeu de longe, pela primeira vez naquela noite. O que estava mais próximo calou-se, como se ficasse à escuta um minuto, e de novo desatou a cantar, dessa vez mais forte e tenso, com um gorjeio melodioso. E com majestosa calma suas vozes ecoavam naquele mundo noturno, estranho para nós. O jardineiro passou em direção à estufa, para dormir, e seus passos em botas pesadas ressoavam no caminho. Alguém deu dois assobios agudos ao pé do monte e tudo ficou novamente quieto. A folhagem agitou-se quase sem ruído, o toldo da varanda balançou, e, com a agitação do ar, um aroma espalhou-se pela varanda. Eu estava constrangida de ficar calada depois daquela conversa, mas não sabia o que dizer. Olhei para ele. Os olhos brilhantes na penumbra me fitaram.
– Como é bom viver neste mundo! – disse ele.
Por alguma razão, dei um suspiro.
– Que foi? – perguntou ele.
– Como é bom viver neste mundo! – falei, repetindo suas palavras.
Ficamos de novo calados, e de novo isso me incomodava. Eu não parava de pensar que o havia magoado, deixando-o pensar que o achava velho, e queria consolá-lo, mas não sabia como.
– Bem, adeus – disse ele, levantando-se –, mamãe está me esperando para cear. Eu quase não a vi hoje.
– Mas eu queria tocar para o senhor uma nova sonata – falei.
– Numa outra vez – disse ele, parecendo-me um tanto frio. – Adeus.
Fiquei ainda mais certa de que o tinha magoado e senti pena dele. Eu e Kátia o acompanhamos até a porta e permanecemos paradas no pátio, olhando para a estrada, onde ele desaparecera. Quando silenciou o tropel do seu cavalo, voltei para a varanda e me sentei novamente, olhando para o jardim, e na neblina orvalhada, cheia de ruídos noturnos, durante muito tempo ainda continuei vendo e ouvindo tudo o que desejava ver e ouvir.
Ele veio uma segunda vez e uma terceira, e o desconforto que fora criado por aquela estranha conversa entre nós desapareceu completamente, não voltando a acontecer. Durante todo o verão, ele vinha duas ou três vezes por semana à nossa casa; fiquei tão acostumada com isso que, quando ele passava um tempo maior sem aparecer, era-me difícil ficar sozinha, censurava-o por me abandonar e ficava com raiva. Ele me tratava como a um companheiro mais jovem e querido, fazia muitas perguntas, exigia sinceridade total, dava conselhos, estimulava-me com elogios, às vezes ralhava e refreava meus impulsos. Mas, apesar de todo o seu esforço para ficar sempre no meu nível, eu sentia que, além daquilo que eu compreendia nele, havia ainda um mundo inteiro estranho para mim, no qual ele não julgava necessário deixar que eu entrasse, e isso mantinha mais fortemente o meu respeito e me atraía para ele. Eu soube através de Kátia e de alguns vizinhos que, além dos cuidados com sua velha mãe, com quem vivia, dos seus negócios e da nossa tutela, ele exercia ainda algumas funções em órgãos representativos da nobreza, onde tivera grandes aborrecimentos; mas nunca consegui saber dele quais eram suas opiniões a respeito desses assuntos, quais eram as suas convicções, que planos e expectativas tinha. Mal eu dirigia a conversa para suas atividades, ele franzia o rosto de um jeito peculiar, como se dissesse: “Basta, por favor, isso não é assunto seu”, e passava a falar de outra coisa. No princípio, eu ficava ofendida, mas depois aceitei que só falaríamos de coisas relacionadas a mim, e já achava isso natural.
Outra coisa que não me agradava no início, mas da qual depois passei a gostar, era sua total indiferença, quase um desprezo, pela minha aparência exterior. Ele nunca deu a entender, nem por um olhar, nem por palavras, que me achava bonita e, ao contrário, fazia caretas e ria quando alguém dizia que eu era bonitinha. Até gostava de achar defeitos na minha aparência e os usava para mexer comigo. Os vestidos da moda e os penteados com que Kátia com tanto gosto me arrumava nos dias de festa despertavam nele apenas caçoadas, o que entristecia a bondosa Kátia e, no princípio, deixava-me perplexa. Kátia, que tinha metido na cabeça que ele gostava de mim, não podia entender por que um homem não gostava de ver a mulher amada em seu aspecto mais favorável. Mas eu logo entendi o que ele buscava. Ele queria se convencer de que em mim não havia vaidade e futilidade. E, quando compreendi isso, abandonei toda a vaidade com as roupas, os penteados e gestos; em compensação, surgiu, maldisfarçada, a vaidade da simplicidade, numa idade em que eu ainda não poderia ser simples. Sabia que ele gostava de mim – se como criança ou mulher, isso eu ainda não me havia perguntado; dava muito valor à sua afeição e, sentindo que ele me achava a melhor moça do mundo, desejava que ele permanecesse nesse engano. E, sem querer, eu o enganava. Mas, ao enganá-lo, eu mesma me tornava melhor. Sentia que era mais importante e mais digno exibir para ele os lados melhores da minha alma, e não do meu corpo. Meus cabelos, mãos, rosto, hábitos, quaisquer que fossem, bons ou ruins, ele já os conhecia tão bem que nada mais eu poderia acrescentar à minha aparência exterior que não constituísse um desejo de enganá-lo. Já minha alma, esta ele não conhecia. E porque ele a amava, porque naquele momento ela crescia e se desenvolvia, justamente aí eu poderia enganá-lo. E como ficou fácil lidar com ele quando percebi isso! Os constrangimentos sem motivo, a timidez nos movimentos, tudo desapareceu completamente. Eu sentia que ele me conhecia de frente ou de lado, sentada ou em pé, com o cabelo para cima ou para baixo, ele me conhecia inteirinha, e achava que gostava de mim do jeito que eu era. Penso que se, contrariando seus hábitos, ele me dissesse de repente que eu tinha um rosto maravilhoso, como outras pessoas diziam, isso não me deixaria nem um pouquinho feliz. Em compensação, meu coração ficava alegre e iluminado quando eu falava alguma coisa e ele me fitava atentamente e depois dizia com voz emocionada, à qual se esforçava para acrescentar um tom brincalhão:
– É verdade, a senhorita tem algo. É uma moça excelente, tenho de lhe dizer.
E a que devia eu esse presente, que enchia meu coração de orgulho e alegria? Ora era porque eu dissera que ficava emocionada com o amor do velho Grigóri por sua neta, ora porque eu me tinha comovido até as lágrimas com uma poesia ou um romance, ou então por eu lhe dizer que preferia Mozart a Schulhof. É espantoso que, naquela época, eu tivesse um sentido fora do comum para adivinhar o que era bom e do que precisava gostar, embora ainda não tivesse conhecimentos para saber distinguir o ruim do bom. Ele não concordava com a maior parte dos meus antigos hábitos e gostos e, antes que eu dissesse algo, bastava um mover de sobrancelhas, um olhar ou sua cara de pena para que eu imediatamente mudasse de opinião. Às vezes, ele ia me dar um conselho e eu já achava que sabia o que ele iria dizer. Ou então ele fazia uma pergunta olhando-me nos olhos, e seu olhar já extraía de mim a ideia que ele desejava. Naquela época, todos os meus pensamentos e sentimentos não eram meus, e sim dele; mas, de repente, se tornaram meus, foram transportados para a minha vida e a iluminaram. Sem que absolutamente eu notasse, comecei a ver tudo com outros olhos: Kátia, nossos empregados, Sônia, eu mesma, meus estudos e ocupações. Os livros, que antes eu pegava apenas para fugir do tédio, tornaram-se, de repente, um dos maiores prazeres da minha vida, e tudo isso apenas porque nós dois falávamos sobre eles, líamos juntos e ele os trazia para mim. Antes eu achava penoso tomar conta de Sônia e ensiná-la, uma obrigação que cumpria sem vontade, apenas pela consciência do meu dever. Ele assistiu a uma das minhas aulas e, a partir daí, para mim se tornou uma alegria acompanhar os progressos de Sônia. Antes me parecia impossível aprender uma peça musical inteira; agora, sabendo que ele iria ouvir e talvez elogiar, eu tocava umas quarenta vezes seguidas, a ponto de Kátia tapar os ouvidos com algodão, e eu já não achava isso aborrecido. Tocava agora com um fraseado novo as velhas sonatas, que saíam totalmente diferentes e muito melhores. Até Kátia, que eu conhecia e amava como a mim mesma, havia mudado aos meus olhos. Somente então percebi que ela não tinha obrigação de ser mãe, amiga e escrava, como era para nós. Compreendi toda a abnegação e a lealdade dessa criatura amorosa e o quanto eu lhe devia, e passei a amá-la ainda mais. Ele também me ensinou a ver nossos empregados, camponeses, servos e criados de maneira totalmente diferente. É engraçado, mas até os dezessete anos convivi com essa gente e era para eles uma estranha mais do que para as pessoas que eu nunca vira; nunca me viera à cabeça que eles também amam, desejam e sofrem como eu. Nosso jardim, nossos bosques, nossos campos, que eu conhecia de tanto tempo, de repente se tornaram novos e maravilhosos. Com razão, ele dizia que na vida existe apenas uma felicidade garantida – viver para os outros. Naquela época, eu achava isso estranho e não compreendia, mas essa convicção, sem muito raciocínio, penetrou em meu coração. Ele abriu para mim toda uma vida de alegrias no presente, sem modificar nada nem acrescentar o que quer que fosse além dele mesmo. As coisas já existiam silenciosamente ao meu redor desde que eu era criança, mas bastava que ele chegasse e tudo ganhava voz, e uma após a outra se convidavam para entrar em minha alma, enchendo-a de felicidade.
Naquele verão, muitas vezes eu ia para cima, para o meu quarto, deitava na cama e, em lugar da melancolia da primavera, de desejos e esperanças para o futuro, a ansiedade pela felicidade no presente tomava conta de mim. Não conseguia dormir, ia me sentar na cama de Kátia, dizia que estava completamente feliz e lembro que isso era inteiramente desnecessário, pois ela mesma podia vê-lo. Ela falava que também era muito feliz e que nada lhe faltava, e me beijava. Eu acreditava e achava necessário e justo que todos estivessem felizes. Kátia às vezes dizia que estava com sono, fingia estar zangada e me mandava embora de sua cama, adormecendo em seguida; eu ficava ainda ali durante muito tempo, repassando na mente tudo o que me fazia feliz. De vez em quando, me levantava e ia rezar; agradecia a Deus, com minhas palavras, por toda a felicidade que ele me dava. O quartinho de Kátia ficava silencioso; somente se ouviam sua respiração sonolenta e uniforme e o tique-taque do relógio ao seu lado; e eu me virava e murmurava palavras ou me persignava e beijava a cruzinha que tinha no pescoço. Ficava tudo fechado, as portas e as persianas; somente uma mosca ou um mosquito zumbiam em algum lugar. Minha vontade era de não sair desse quartinho, de que não chegasse a manhã, não queria que se dissipasse aquela atmosfera espiritual que me rodeava. Parecia que meus sonhos, pensamentos e orações eram seres vivos, que estavam ali comigo na escuridão, esvoaçando ao lado da cama ou pairando sobre mim. E cada pensamento era dele, cada sentimento – era dele. Eu ainda não sabia que isso era amor, pensava que era uma coisa que podia acontecer sempre, que esse sentimento ocorria sem motivo.
III
Certo dia, durante a colheita de cereais, eu, Kátia e Sônia fomos, depois do almoço, até o nosso banco preferido no jardim, à sombra das tílias, no alto do barranco, de onde se descortinava a vista da floresta e do campo. Já havia uns três dias que Serguêi Mikháilitch não aparecia, e naquele dia esperávamos que ele viesse, pois nosso administrador tinha dito que ele prometera vir acompanhar a colheita. Lá pelas duas da tarde, nós o vimos atravessar a cavalo o campo de centeio. Kátia mandou trazer pêssegos e cerejas, dos quais ele gostava muito, lançou-me um olhar e um sorriso, recostou-se no banco e começou a cochilar. Arranquei um ramo de tília, tão cheio de seiva que me molhou a mão, e fiquei abanando Kátia com ele, enquanto continuava minha leitura, interrompida de tempos em tempos para uma olhadela na estrada que atravessava o campo, por onde ele deveria passar. Junto à raiz de uma velha tília, Sônia construía um caramanchão para suas bonecas. Era um dia quente, com o ar parado, abafado; nuvens escuras acumulavam-se, e desde a manhã ameaçava cair uma tempestade. Eu estava inquieta, como sempre acontecia antes de um temporal. Após o meio-dia, porém, as nuvens começaram a espalhar-se, o sol apareceu no céu limpo, e apenas num ponto distante ressoavam alguns trovões; uma nuvem escura no horizonte, que se fundia com a poeira dos campos, de tempos em tempos era cortada pelos pálidos zigue-zagues dos relâmpagos. Era evidente que naquele dia não haveria tempestade, pelo menos na nossa casa. Em alguns trechos visíveis da estrada, atrás do jardim, ora passavam devagar e guinchando as carroças altas cheias de feixes de espigas recém-colhidas, ora, na direção oposta, corriam as carroças vazias, onde se sacudiam as pernas dos condutores e balançavam ao vento suas camisas. A poeira espessa não se dispersava nem baixava, ficava suspensa no ar atrás da sebe, entre a folhagem rala das árvores do jardim. Ao longe, na eira, ouviam-se as mesmas vozes, o mesmo rangido das rodas, e os feixes amarelos que passavam devagar ao longo da cerca, lá, voavam pelo ar, e diante dos meus olhos cresciam as medas no formato de casas ovais, destacavam-se seus telhados pontiagudos, sobre os quais se moviam as silhuetas dos camponeses. Mais adiante, no campo poeirento, viam-se os mesmos feixes amarelos, também se movimentavam carroças, ouviam-se distantes o seu guinchado, vozes e cantigas. De um dos lados, o restolhal ficava cada vez mais descoberto, deixando à mostra as divisas, nas quais havia crescido a artemísia. Mais à direita, abaixo, no campo recém-ceifado, que parecia feio e em desordem, mulheres em roupas coloridas amarravam feixes, inclinando-se e movimentando os braços, e, aos poucos, o solo emaranhado ia ficando limpo, surgindo por toda parte belos montes de feixes. Parecia que o verão tinha virado outono bem diante dos meus olhos. O pó e o calor estavam em toda parte, exceto em nosso lugar preferido no jardim. Por todos os lados, nessa poeira e nesse calor, sob o sol ardente, os trabalhadores falavam, faziam algazarra e se movimentavam.
Kátia ressonava gostosamente no banco fresquinho, coberta com um lenço branco de cambraia. No prato, as cerejas negras, lustrosas e suculentas; nossos vestidos, limpos e frescos; a água na jarra, cristalina e convidativa, cintilando ao sol; e eu me sentindo tão bem! “Que fazer?”, pensava. “Que culpa tenho de ser tão feliz? Mas como partilhar a felicidade? Como e a quem entregar-me com toda a minha felicidade?”
O sol já se escondera atrás das copas das bétulas, na alameda; a poeira assentava no campo; com os raios oblíquos do sol via-se mais claramente a vastidão; as nuvens dispersaram-se totalmente. Na eira, atrás das árvores, viam-se as três novas coberturas das medas, por onde os camponeses desciam; as carroças se foram, provavelmente as últimas, guinchando alto; mulheres com ancinhos nos ombros e atilhos pendurados na faixa da cintura iam para casa entoando cantos em voz alta.
Entretanto, Serguêi Mikháilitch ainda não tinha aparecido, embora já tivesse passado um bom tempo desde que o vira descer a colina a cavalo. De repente, pela alameda, do lado que eu nunca esperaria, surgiu sua figura (ele havia feito a volta pelo vale). Com o rosto alegre, iluminado, tirou o chapéu e dirigiu-se a mim com passos rápidos. Ao ver que Kátia dormia, mordeu o lábio, fechou os olhos e se pôs a andar na ponta dos pés; imediatamente percebi que ele estava naquele estado de alegria sem nenhum motivo, que eu adorava nele e que nós chamávamos de entusiasmo selvagem. Parecia um aluno dispensado das aulas: todo o seu ser, da cabeça aos pés, transpirava satisfação, felicidade e vivacidade infantil.
– Boa tarde, jovem violeta, como vai? Bem? – sussurrou, aproximando-se e apertando a minha mão... – Eu estou muito bem – respondeu ele à minha pergunta –, agora tenho treze anos e tenho vontade de brincar de cavalinho e subir nas árvores.
– Está com entusiasmo selvagem? – perguntei, olhando para ele com olhos sorridentes e sentindo que o entusiasmo selvagem estava me contagiando.
– Estou – respondeu, piscando-me e contendo o riso. – Mas por que está batendo no nariz de Katerina Pávlovna?
Enquanto olhava para ele, eu não tinha notado que, ao abanar o galho, havia arrancado o lenço que cobria Kátia, e estava alisando o rosto dela com as folhas. Comecei a rir.
– Depois ela vai dizer que não dormiu – disse eu sussurrando, aparentemente para não despertar Kátia, mas, na verdade, porque me agradava sussurrar para ele.
Ele imitou o meu movimento de lábios, querendo dizer que eu estava falando tão baixo que não conseguia me ouvir. Vendo o prato com as cerejas, fingiu que o estava roubando e o levou para junto de Sônia, debaixo da tília, sentando-se em cima de suas bonecas. Sônia brigou com ele, mas logo em seguida fizeram as pazes, pois ele inventou uma brincadeira em que um de cada vez deveria comer uma cereja.
– Se quiserem, mando trazer mais – disse eu –, ou então nós mesmos vamos buscar.
Ele pegou o prato, colocou nele as bonecas e nós três fomos para o pomar coberto. Sônia corria atrás de nós rindo e puxando-o pelo paletó, para que ele entregasse as bonecas. Ele as entregou e depois se virou para mim com a cara séria.
– Ora, como a senhorita não haveria de ser uma violeta? – disse ele ainda baixinho, embora já não houvesse perigo de acordar ninguém. – Assim que cheguei, depois de toda essa poeira, calor, trabalho, senti um cheiro de violeta. Não de violeta perfumada, mas daquela primeira, escurinha, cheirando a neve derretida e a matinho de primavera.
– Então, foi tudo bem no trabalho? – perguntei, para disfarçar a alegre confusão que suas palavras me causaram.
– Foi muito bem! Essa gente é excelente, quanto mais os conhecemos, mais gostamos deles.
– É mesmo – disse eu –; há pouco, antes de o senhor chegar, do jardim eu os estava vendo trabalhar e, de repente, fiquei com tanta vergonha por eles estarem trabalhando e eu me sentindo tão bem que...
– Não use isso para tentar impressionar, minha amiga – interrompeu-me, ficando sério de repente, mas me fitando carinhosamente nos olhos –, isso é um assunto sagrado. Deus a livre de querer se exibir, vangloriando-se disso.
– Mas eu só falo disso com o senhor.
– Eu sei, claro. Então, e as cerejas?
O pomar estava trancado e não havia nenhum jardineiro por perto (ele os havia mandado para o campo, para ajudarem nos trabalhos). Sônia foi correndo buscar a chave mas ele, sem esperar, subiu numa quina do muro, levantou a tela e pulou para o outro lado.
– Quer um pouco? – soou de lá a sua voz. – Passe-me o prato.
– Não, quero colher eu mesma, vou buscar a chave – disse eu –, Sônia pode não encontrar...
Mas naquele instante me deu vontade de ver o que ele fazia lá dentro, o que olhava, como se movia quando achava que ninguém o estava vendo. Não queria perdê-lo de vista nem por um minuto. Na ponta dos pés, caminhando sobre as urtigas, rodeei o pomar e, no outro lado, que era mais baixo, subi numa grande tina vazia e me debrucei sobre o muro, que dava no meu peito. Olhei para dentro do pomar com suas árvores antigas e retorcidas, de folhas grandes denteadas, no meio das quais pendiam as bagas negras, pesadas e suculentas. Metendo a cabeça sob a tela, avistei Serguêi Mikháilitch debaixo do ramo rugoso de uma velha cerejeira. Ele certamente pensava que eu havia me afastado e que ninguém o estava vendo. Sem chapéu e de olhos fechados, sentado numa forquilha, rolava nos dedos um pedaço de resina, fazendo uma bolinha. De repente, deu de ombros, abriu os olhos e sorriu, falando alguma coisa. Nada daquilo era próprio dele e então fiquei envergonhada de o estar espionando. Tive a impressão de que ele dizia: – Macha! “Não pode ser”, pensei.
– Querida Macha! – repetiu ele ainda mais baixo e ternamente.
Mas essas duas palavras foram ouvidas nitidamente. Meu coração começou a bater forte; uma alegria assustada, como se eu estivesse fazendo algo proibido, repentinamente tomou conta de mim e tive de me agarrar ao muro para não cair, chamando sua atenção. Mas ele percebeu meu movimento, olhou assustado e, baixando os olhos de repente, ficou vermelho como uma criança. Quis dizer alguma coisa mas não conseguiu, e seu rosto ruborizou-se ainda mais. Sorriu, apesar de tudo, olhando para mim. Eu também sorri. Todo o seu rosto resplandeceu de alegria. Já não era o velho tio que me educava com carinho, era uma pessoa igual a mim, que me amava e temia, e a quem eu temia e amava. Ficamos sem dizer nada, apenas olhando um para o outro. Mas subitamente ele fechou a cara, desapareceram o sorriso e o brilho do olhar e friamente, de novo num tom paternal, ele falou comigo, como se nós tivéssemos feito algo errado e ele se tivesse dado conta disso, aconselhando-me a fazer o mesmo.
– É melhor descer daí, vai se machucar – disse ele. – E ajeite os cabelos, olhe só como está!
“Por que ele está fingindo? Por que quer me maltratar?”, pensei, magoada. E naquele instante tive um desejo incontrolável de constrangê-lo mais uma vez e testar a minha força sobre ele.
– Não, quero colher eu mesma as cerejas – disse e, agarrando um ramo mais próximo, subi no muro. Ele não teve tempo de me segurar, pois pulei para o chão dentro do pomar.
– Que tolices a senhorita faz! – disse, ruborizando-se novamente, e fingiu que estava zangado para tentar disfarçar sua atrapalhação. – Poderia ter se machucado. E como vai sair daqui?
Ele estava mais constrangido do que antes, mas agora isso já não me deixava feliz, e sim assustada. Seu constrangimento me contagiou, fiquei vermelha e, evitando o seu olhar e não sabendo o que dizer, comecei a colher cerejas, sem ter onde colocá-las. Eu me repreendia; arrependida, fiquei com medo, pensando que estava desgraçada para sempre aos olhos dele pelo que havia feito. Ficamos os dois calados, com uma sensação péssima. Foi Sônia que, trazendo a chave, tirou-nos daquela difícil situação. Muito tempo ainda ficamos sem falar um com o outro, e ambos nos dirigíamos a Sônia. Voltamos para junto de Kátia, que jurava que não havia dormido e que sabia de tudo que se passara. Eu me tranquilizei, e ele novamente se esforçou para voltar ao seu tom paternal e protetor, mas já não se saía tão bem e não me enganava.
Lembrei-me vivamente de uma conversa que nós três tivéramos alguns dias antes. Kátia havia dito que é mais fácil para o homem amar e expressar o seu amor do que para a mulher.
– O homem pode dizer que está apaixonado, mas a mulher, não – disse ela.
– Pois eu penso que o homem também não deve e não pode dizer que está apaixonado – disse ele.
– Por quê? – perguntei.
– Porque será sempre uma mentira. Que tipo de descoberta é essa, de que uma pessoa está amando? Como se, dizendo isso, alguma coisa desse um estalo: clique! – e já se está amando. Parece que, ao pronunciar essa palavra, algo fora do comum deveria acontecer, algum sinal, como todos os canhões atirando ao mesmo tempo, por exemplo. Penso – continuou – que quem pronuncia as palavras “eu te amo” ou está se enganando, ou está enganando os outros, o que é pior.
– Mas, assim, como a mulher vai saber que a amam, se não lhe dizem? – perguntou Kátia.
– Isso eu não sei – respondeu ele –, cada um tem sua maneira de se expressar. E, se um sentimento existe, ele mesmo se expressa. Quando leio romances, fico imaginando a cara desconcertada do tenente Strélski ou de Alfredo quando dizem “Amo-te, Eleonora!” e pensam que, de repente, vai acontecer algo fora do comum, e nada acontece, nem com ela, nem com ele, tudo fica igual, os mesmos olhos, o mesmo nariz.
Já então senti que havia algo sério, relacionado comigo, nessa brincadeira, mas Kátia não admitia que tratassem de maneira tão leviana os heróis dos romances e retrucou:
– Sempre com seus paradoxos. Bem, diga com sinceridade, o senhor por acaso nunca disse a uma mulher que a ama?
– Nunca disse nem fiquei de joelhos – falou ele, rindo – e nunca farei isso.
“É, não é necessário que ele diga que me ama”, pensava eu, recordando essa conversa. “Ele me ama, sei disso. E todo o seu esforço para parecer indiferente não me convencerá do contrário.”
Durante toda aquela noite, ele quase não falou comigo, mas em cada palavra sua dirigida a Kátia ou a Sônia, em cada movimento ou olhar seu, eu via amor, e disso não duvidava. Só ficava triste e aborrecida por ele achar necessário continuar fechado e fingindo frieza, quando tudo já estava tão claro, quando tudo poderia ter sido tão fácil e simples e poderíamos ser infinitamente felizes. Mas o fato de eu ter saltado para junto dele no pomar continuava a me perturbar, como se eu tivesse cometido um crime. Ainda pensava que ele tinha deixado de me respeitar por isso e que estava zangado.
Depois do chá, fui para o piano e ele me seguiu.
– Toque alguma coisa, faz tempo que não a ouço – disse ele, alcançando-me no salão.
– Era o que eu estava querendo... Serguêi Mikháilitch! – disse eu de repente, olhando-o diretamente nos olhos. – O senhor não está zangado comigo?
– Por que razão? – perguntou.
– Porque lhe desobedeci hoje à tarde – disse eu, corando.
Ele me compreendeu, balançou a cabeça e deu uma risada. Seu olhar dizia que era o caso de me passar um pito, mas que ele se sentia sem forças para isso.
– Então não houve nada, somos amigos outra vez – eu disse, sentando-me ao piano.
– Sem dúvida! – disse ele.
No salão de paredes altas, havia somente duas velas acesas sobre o piano, o restante do aposento estava na penumbra. Pelas janelas abertas via-se a clara noite de verão. Tudo estava silencioso, ouviam-se apenas os leves passos de Kátia na escura sala de visitas e os ruídos do cavalo dele, que, amarrado bem debaixo da janela, bufava e batia com os cascos nos pés de bardana. Serguêi Mikháilitch estava sentado atrás de mim, de modo que eu não o via, mas por toda a penumbra da sala, nos sons e em mim mesma, eu sentia sua presença. Cada olhar, cada movimento seu, que eu não via, repercutiam no meu coração. Toquei a sonata-fantasia de Mozart, que ele me trouxera e que eu havia estudado na sua presença e para ele. Não estava pensando nem um pouquinho no que estava tocando, mas acho que toquei bem, e pareceu-me que ele gostou. Dava para sentir o prazer que ele estava sentindo. Mesmo sem vê-lo, sentia seu olhar cravado em mim. De maneira totalmente involuntária, olhei para ele, continuando a mover os dedos inconscientemente. Sua cabeça se destacava no fundo claro da noite. Estava sentado com o rosto apoiado nas mãos e me olhava fixamente com olhos brilhantes. Sorri ao ver esse olhar e parei de tocar. Ele sorriu também e, com ar de censura, apontou com a cabeça para a partitura, para que eu continuasse. Quando terminei, a lua começou a brilhar alta no céu e sua luz prateada entrou na sala, iluminando o assoalho. Kátia veio reclamar que eu tinha interrompido a música no melhor momento e que tinha tocado mal, mas ele disse que, ao contrário, eu nunca havia tocado tão bem como naquela noite, e se pôs a caminhar pela casa, indo do salão para a sala de visitas e voltando, e a cada vez olhava para mim e sorria. Eu sorria também, até me deu vontade de rir sem motivo, de tão alegre que estava pelo que tinha acabado de acontecer. Mal ele desaparecia atrás da porta, eu abraçava Kátia, que estava de pé junto do piano, e a beijava no lugarzinho que eu mais gostava, no seu pescoço gorducho debaixo do queixo; assim que ele retornava, eu fazia uma cara séria e continha o riso com dificuldade.
– Que aconteceu com ela? – Kátia perguntou-lhe.
Mas ele não respondeu e ficou rindo de mim. Ele sabia o que havia me acontecido.
– Venham ver que noite! – disse ele na sala de visitas, parado em frente à porta aberta que dava para a sacada.
Fomos para perto dele e, de fato, eu nunca mais vi uma noite como aquela. A lua cheia estava sobre o telhado atrás de nós, de modo que não a podíamos ver, e metade da sombra do telhado, das colunas e do toldo da varanda, enviesadamente e en raccourci[3], estendia-se na estrada de areia e no gramado circular. Tudo o mais estava claro, banhado pelo prateado do orvalho e pela luz da lua. A estrada ladeada de flores, cortada obliquamente pelas sombras das dálias e das estacas, parecia clara e fria, com o cascalho irregular cintilando, e desaparecia na névoa distante. Atrás das árvores via-se o telhado claro da estufa, e do fundo do vale subia uma crescente neblina. As moitas de lilases, já um pouco desfolhadas, estavam iluminadas até nos menores galhinhos, e era possível distinguir cada flor coberta de orvalho. Nas alamedas, a sombra e a luz se mesclavam de tal modo que não pareciam árvores e estradas, e sim casas tremulantes e transparentes que balançavam. À direita, na sombra da casa, tudo estava negro, indistinto e amedrontador. Mas, em compensação, desse negrume sobressaía mais clara ainda a maravilhosa e frondosa copa do álamo que, estranhamente, parecia ter ficado suspenso por algum motivo ali, perto da casa, no alto, na claridade, em vez de voar para longe, para o céu azul escuro.
– Vamos dar uma caminhada? – disse eu.
Kátia concordou, mas me mandou calçar galochas.
– Não é preciso, Kátia – disse eu –, Serguêi Mikháilitch me dá o braço.
Como se isso evitasse que eu molhasse os pés. Mas, naquele momento, nós três achamos isso plausível e não estranhamos nada. Ele nunca me dava o braço, mas dessa vez eu mesma segurei no seu e ele não se surpreendeu. Descemos os três da varanda. Tudo lá fora, o mundo, o céu, o jardim, o ar, não era o mesmo que eu conhecia.
Olhando para a frente, na alameda por onde caminhávamos, eu tinha permanentemente a impressão de que não poderíamos ir mais adiante, de que mais à frente terminava o mundo do possível e que tudo aquilo provavelmente tinha sido congelado na sua beleza. Mas mesmo assim avançávamos, e a parede mágica da beleza se abria, dando-nos passagem. E atrás dela também eram o nosso jardim, as árvores, os caminhos, as folhas secas, como os conhecíamos. E era real que andávamos pelas estradinhas, pisávamos nos círculos de luz e sombra, era real o farfalhar de uma folha seca sob o meu pé, e um galho frio que bateu no meu rosto. E também era verdade que ele caminhava ao meu lado, segurando-me cuidadosamente pelo braço, e era realmente Kátia que andava com dificuldade ao nosso lado. E decerto aquilo era a lua, que, do céu, nos iluminava através dos ramos imóveis.
Mas a cada passo, atrás e à frente, de novo se fechava a parede mágica, e novamente me parecia que era impossível avançar, e já não acreditava no que acabara de acontecer.
– Ui! Uma rã!
“Quem disse isso e para quê?”, pensei. Então me dei conta de que era Kátia, lembrei-me de que ela tinha medo de rãs e olhei para o chão. Uma rãzinha saltou e ficou parada na minha frente, fazendo uma pequena sombra na terra clara da estrada.
– A senhorita não tem medo? – disse ele.
Olhei para ele. No ponto da alameda em que estávamos faltava uma tília, e pude ver claramente seu rosto. Estava tão maravilhoso e feliz...
Ele disse: “A senhorita não tem medo?” Mas eu ouvi: “Eu te amo, menina encantadora!” – Amo! Amo! – afirmavam seu olhar, sua mão; e a luz, a sombra, o ar também afirmavam a mesma coisa.
Demos a volta em todo o jardim. Kátia caminhava ao nosso lado com seus passinhos curtos e respirava com dificuldade, devido ao cansaço. Ela disse que já era hora de voltarmos e fiquei com tanta pena dela, pobrezinha. “Por que ela não sente o mesmo que nós estamos sentindo?”, pensei. “Por que todo mundo não é jovem, feliz, como esta noite, como ele e eu?”
Voltamos para casa, mas ele ainda ficou muito tempo lá, sem fazer menção de partir, apesar de os galos já terem cantado e de todos na casa dormirem, e de seu cavalo sob a janela estar bufando e batendo com os cascos cada vez com mais frequência. Kátia não nos lembrava de que era tarde, e ficamos sentados, conversando sobre banalidades, até as três da manhã. Ouvimos o terceiro canto do galo, e a aurora já surgia quando ele foi embora. Despediu-se como de costume, não disse nada de especial, mas eu sabia que a partir daquele dia ele era meu e que já não o perderia.
Assim que descobri que o amava, contei tudo para Kátia. Ela ficou alegre e emocionada por eu ter lhe contado, mas deixei a coitadinha dormir naquela noite, enquanto eu, durante muito tempo ainda, fiquei caminhando pela varanda, desci ao jardim e, recordando cada palavra, cada movimento, passei pelas mesmas alamedas em que juntos havíamos caminhado. Não dormi nada naquela noite e pela primeira vez assisti ao nascer do sol e às primeiras horas da manhã. E nunca mais eu vi uma noite e uma manhã como aquelas. “Mas por que ele não diz simplesmente que me ama?”, pensava eu. “Por que inventa dificuldades, diz que já é velho, quando tudo é tão simples e maravilhoso? Por que ele perde um tempo precioso que talvez não volte mais? Queria que me dissesse com todas as letras: – Eu te amo! Que tomasse a minha mão na sua, inclinasse sua cabeça para ela e dissesse: – Eu te amo! E que ficasse vermelho e baixasse os olhos diante de mim; aí então eu diria tudo a ele. Não, não diria, ficaria juntinho dele e começaria a chorar. Mas e se eu estiver enganada e na verdade ele não me ama?”, veio-me esse pensamento de repente à cabeça.
O novo sentimento deixou-me assustada – sabe Deus aonde me levaria! Lembrei-me do embaraço dele e do meu no pomar e senti um aperto no coração. Lágrimas correram dos meus olhos e comecei a rezar. Então, tive uma ideia, e uma esperança estranha e tranquilizadora surgiu. Resolvi fazer jejum a partir daquele dia e comungar no dia do meu aniversário e decidi que nesse dia ficaria noiva dele. Para quê? Por quê? Como isso iria acontecer? – eu não sabia, mas, a partir daquele momento, acreditei e soube que seria assim. O dia já estava totalmente claro, e os empregados já começavam a se levantar, quando voltei para o meu quarto.
IV
Era época do jejum que antecede o dia da Assunção, por isso ninguém na casa se admirou com minha decisão de não comer carne.
Durante toda a semana seguinte, Serguêi Mikháilitch não apareceu nem uma vez, mas não só não estranhei isso como, ao contrário, fiquei feliz, porque queria que ele viesse somente no meu aniversário. Eu levantava cedo todos os dias e, enquanto atrelavam os cavalos, ficava passeando pelo jardim, repassando mentalmente meus pecados do dia anterior e pensando no que precisava fazer para ficar satisfeita com meu dia e não cometer nenhum pecado. Nessa época, eu achava que era muito fácil nunca pecar, bastava a pessoa se esforçar um pouco. Traziam a carruagem, eu me sentava com Kátia ou com uma criada e íamos à igreja, que ficava a umas três verstas[4] de nossa casa.
Sempre que entrava na igreja, eu me lembrava de que era necessário rezar por todos e ter uma atitude humilde diante do Senhor e procurava subir os dois degraus cobertos de mato que levavam ao átrio imbuída desse sentimento. Na igreja não havia mais do que uma dezena de pessoas, camponeses e servos na maioria, que guardavam o período do jejum. Eu me esforçava para retribuir suas saudações com humildade e ia eu mesma até a caixa das velas, comprava algumas do velho zelador, um soldado aposentado, e as fincava diante do ícone, realizando assim, na minha opinião, uma façanha. Atrás da iconóstase, através das portas reais, via-se a toalha que cobria o altar e que fora bordada por minha mãe. Sobre a iconóstase havia dois anjos de madeira com estrelas, que me pareciam enormes quando eu era pequena, e uma pombinha com uma auréola amarela que antigamente me chamava muito a atenção. Atrás do coro havia uma pia batismal meio amassada, na qual tantas vezes foram batizados os filhos dos nossos empregados, dos quais eu fui madrinha, e na qual eu mesma fora batizada. O velho sacerdote entrava, vestido com uma casula feita com o forro que cobrira o caixão de meu pai, e rezava a missa com a mesma voz com que, desde que me recordo, eram rezadas todas as cerimônias religiosas na nossa casa: o batizado de Sônia, a missa fúnebre de meu pai e as exéquias de minha mãe. Do coro vinha a mesma voz meio trêmula do sacristão, e havia uma velhinha que se inclinava o tempo todo, que eu me lembrava de ver sempre na igreja em todas as ocasiões, e que ficava parada junto à parede e olhava para o ícone do coro com olhos lacrimosos, apertando um lenço desbotado com os dedos cruzados e sussurrando alguma coisa com sua boca desdentada. Eu já não olhava essas coisas com simples curiosidade nem achava que me eram familiares apenas devido às minhas recordações – aquilo tudo agora me parecia grandioso e sagrado, cheio de profundo significado. Prestava atenção a cada palavra das orações, procurava respondê-las com sentimento e, se não entendia alguma coisa, pedia mentalmente a Deus que me iluminasse ou inventava ali, na hora, uma oração, para substituir a que eu não conseguira ouvir. Quando eram recitadas as orações de mea-culpa, eu me lembrava do meu passado, e aquele passado inocente de menina me parecia negro em comparação com o estado atual da minha alma; chorava de horror por mim mesma, mas, ao mesmo tempo, sentia que tudo aquilo era perdoável e que, se eu tivesse ainda mais pecados, mais doce ainda seria para mim o arrependimento. Quando o sacerdote no final dizia: “Que Deus os abençoe”, por um instante eu tinha a impressão de uma sensação física de bem-estar. Era como se uma luz e um calor penetrassem no meu coração. Ao término da missa, o padre vinha falar comigo e perguntava se precisávamos que ele fosse à nossa casa para rezar as ave-marias, mas eu agradecia de coração àquilo que julgava ser uma deferência à minha pessoa e dizia que fazia questão de ir eu mesma à igreja.
– Quer ter ela mesma o trabalho! – dizia ele.
Eu não sabia o que responder, para não pecar por orgulho.
Depois da missa, se Kátia não estava comigo, eu dispensava a carruagem e voltava a pé, sozinha, cumprimentando com humildade todos os que encontrava pelo caminho. Tentava achar um modo de ajudar, aconselhar, fazer um sacrifício em prol de outra pessoa, ora ajudando a erguer uma carga, ora acalentando uma criança, ora cedendo a passagem na estrada, mesmo se com isso me sujasse. Certa vez, quando nosso administrador prestava contas a Kátia, eu o ouvi dizer que o camponês Semion tinha ido lhe pedir umas tábuas para fazer o caixão da filha e um rublo para o enterro, e que ele os havia dado.
– Será possível que eles sejam tão pobres? – perguntei.
– Muito pobres, senhora, falta até sal na casa deles – respondeu o administrador.
Senti um aperto no coração, mas ao mesmo tempo me alegrei ao ouvir isso. Enganei Kátia dizendo que ia passear, subi ao meu quarto, peguei todo o pouco dinheiro que tinha e, persignando-me, atravessei a varanda e o jardim e fui sozinha ao casebre de Semion, que ficava no limite da aldeia. Sem que me vissem, aproximei-me da janela, coloquei ali o dinheiro e dei umas batidinhas. A porta da casa rangeu, alguém saiu e me chamou; gelada e tremendo de medo, corri para casa como uma criminosa. Kátia quis saber onde eu andara e o que havia acontecido comigo, mas mal compreendi o que ela estava dizendo e não respondi. Tudo de repente me pareceu pequeno e sem importância. Tranquei-me no quarto e fiquei caminhando de um lado para o outro, sem conseguir fazer nada, nem pensar, e sem poder definir o que estava sentindo. Pensava na felicidade daquela família, em como eles haveriam de louvar a pessoa que deixou lá o dinheiro, e fiquei com pena de não tê-lo entregue pessoalmente. Pensei também no que diria Serguêi Mikháilitch se soubesse dessa minha ação e fiquei feliz porque ninguém nunca saberia disso. Eu sentia tanta alegria, e todos me pareciam tão maus, inclusive eu, e via a mim e a todos com tanta humildade, que a ideia da morte como sonho de felicidade veio à minha cabeça. Eu sorria, rezava, chorava, e me amava e amava a todos nesse momento com calor e paixão.
No intervalo entre as missas, eu lia o Evangelho. Compreendia cada vez mais esse livro, a história da vida do ser divino foi ficando para mim mais simples e comovente, e mais terríveis e impenetráveis ficavam a profundidade do sentimento e as ideias que eu encontrava nos seus ensinamentos. Mas, em compensação, como tudo me parecia claro e simples quando, largando esse livro, eu passava a meditar sobre o mundo que me rodeava! Parecia-me que viver mal era difícil, enquanto que amar a todos e ser amado era fácil. Todos estavam tão bons comigo, tão amáveis, até Sônia, a quem eu continuava a dar aulas, esforçava-se para entender, para me agradar e não me aborrecer. As pessoas me tratavam como eu a elas. Passando em revista meus inimigos, aos quais eu teria de pedir perdão antes da comunhão, dos estranhos só me lembrei de uma moça, nossa vizinha, de quem um ano antes eu havia zombado na frente das visitas e que por isso deixara de nos visitar. Escrevi-lhe uma carta reconhecendo minha culpa e pedindo-lhe perdão. Ela respondeu com outra carta, em que também pedia perdão e me perdoava. Chorei de alegria ao ler essas palavras simples, nas quais enxerguei um sentimento profundo e comovedor. Minha babá chorou quando lhe pedi perdão. “Por que todos são tão bons comigo? Que fiz para merecer tanto amor?” – perguntava-me.
Sem querer, lembrava-me de Serguêi Mikháilitch e ficava um longo tempo pensando nele. Não podia evitar esses pensamentos, que não me pareciam um pecado. Mas agora eu pensava nele de maneira totalmente diferente do que naquela noite em que descobri que o amava, pensava nele como em mim mesma, unindo-o, sem dar-me conta disso, a cada pensamento meu a respeito do meu futuro. Aquela sua ascendência avassaladora sobre mim, que antes eu sentia na sua presença, desapareceu da minha mente. Agora sentia-me igual a ele e, do alto desse estado de espírito em que me encontrava, eu o compreendia inteiramente. Agora estava claro para mim tudo aquilo que antes eu achava estranho nele. Finalmente entendi por que ele dizia que a felicidade só existe quando se vive para o outro, e agora eu concordava totalmente com ele. Achava que nós dois juntos teríamos uma vida tranquila e muito feliz. O que eu imaginava não eram viagens ao estrangeiro, vida mundana, suntuosidades, e sim uma vida completamente diferente, no campo, de constante abnegação, de eterno amor de um pelo outro, e com a permanente certeza de que a gentil providência nos ampararia.
Como havia planejado, comunguei no dia do meu aniversário. Ao regressar da missa naquele dia, meu coração estava tão pleno de felicidade que fiquei com medo da vida, de qualquer impressão, de tudo o que pudesse destruí-la. Mal descemos da carruagem à entrada de nossa casa, na ponte ouviu-se o ruído do conhecido cabriolé e avistei Serguêi Mikháilitch. Ele me felicitou e entramos juntos na sala de visitas. Desde que o conhecera, eu nunca tinha mantido tanta calma e independência em relação a ele como naquela manhã. Sentia que havia todo um mundo novo em mim que ele não entendia e que estava acima dele. Eu não sentia a menor perturbação ao seu lado. Ele provavelmente compreendia a razão disso e ficou especialmente terno e dócil, tratando-me com respeito religioso. Quando fiz menção de abrir o piano, ele o trancou e guardou a chave no bolso.
– Não estrague este seu estado de espírito – disse ele –, a música que tem agora na alma é melhor do que qualquer outra no mundo.
Fiquei grata a ele por isso, mas, ao mesmo tempo, fiquei um pouco despeitada por ele ter compreendido tão fácil e claramente tudo o que deveria ficar somente na minha alma, secretamente. Durante o almoço, ele disse que viera me felicitar e, ao mesmo tempo, despedir-se, porque no dia seguinte partiria para Moscou. Ele falava olhando o tempo todo para Kátia, depois me lançou uma olhadela e vi que ele temia ver alguma perturbação no meu rosto, mas eu não me surpreendi, não fiquei sobressaltada nem mesmo perguntei se ele ficaria lá por muito tempo. Eu sabia que ele iria dizer aquilo – e sabia que não partiria. Como eu sabia de tudo isso? Agora não encontro explicação, mas naquele dia memorável eu tinha a impressão de saber de tudo, o que se passara e o que ainda iria acontecer. Era como num sonho feliz, em que todos os fatos parecem já ter acontecido, em que muito antes a pessoa já sabia daquelas coisas, mas tudo ainda está para acontecer, e ela sabe que vai acontecer.
Ele quis se retirar logo depois do almoço, mas Kátia, cansada depois da missa, tinha ido deitar-se, e ele teve de esperar que ela acordasse para despedir-se dela. Batia sol na sala e fomos para a varanda. Assim que nos sentamos, imediatamente comecei a tratar, de maneira inteiramente tranquila, daquilo que iria decidir o futuro do meu amor, antes que se dissesse alguma coisa que pudesse atrapalhar o que eu tinha a dizer. Eu mesma não entendo de onde tirei tanta calma, firmeza e exatidão nas palavras. Era como se não fosse eu, e sim algo independente da minha vontade, que se expressava por meu intermédio. Ele estava sentado à minha frente, com os cotovelos apoiados na balaustrada, desfolhando um galho de lilás que puxara para si. Quando comecei a falar, ele soltou o galho e apoiou o rosto na mão. Essa postura tanto podia significar absoluta calma como preocupação.
– Por que o senhor vai viajar? – perguntei com ar sério, espaçando as palavras e o fitando de frente.
Ele demorou a responder.
– Negócios! – disse, baixando os olhos.
Compreendi como lhe era difícil mentir para mim, especialmente diante de uma pergunta feita com tanta sinceridade.
– Ouça – disse eu –, o senhor sabe o que este dia significa para mim. Ele é importante por muitas razões. Se lhe pergunto, não é simplesmente para demonstrar interesse (o senhor sabe que me acostumei à sua presença e que gosto do senhor); estou perguntando porque preciso saber. Por que vai viajar?
– É difícil para mim dizer a verdade sobre o motivo da minha partida – disse ele. – Nessa última semana, eu pensei muito na senhorita e em mim e decidi que deveria ir embora. A senhorita sabe por que e, se gosta de mim, não pergunte mais nada.
Ele passou a mão na testa e depois tapou os olhos.
– Tudo isso é muito difícil para mim... a senhorita entende.
Meu coração começou a bater com força.
– Não consigo entender – disse eu –, não consigo, o senhor me diga, pelo amor de Deus, em consideração a este meu dia, diga, que posso ouvir tudo calmamente.
Ele mudou de posição, olhou para mim e novamente puxou o galho de lilás.
– Aliás – disse ele, depois de um silêncio, com uma voz que em vão tentava mostrar firme –, embora seja tolo e impossível dizer em palavras, e, mesmo me sendo penoso, tentarei explicar-lhe – acrescentou com uma careta, como se sentisse uma dor física.
– Então? – disse eu.
– Imagine um senhor – vamos chamá-lo de A –, já velho e decrépito, e uma senhora, B, jovem, feliz, inexperiente da vida e das pessoas. Devido às relações familiares, ele gostava dela como se fosse sua filha e jamais tinha tido o receio de que poderia vir a gostar dela de outra maneira.
Ele fez silêncio, mas eu não o quebrei.
– Mas ele se esqueceu de que B era ainda muito jovem e que a vida era uma brincadeira para ela – continuou, de repente rápida e resolutamente, sem me olhar –, e que era muito fácil apaixonar-se por ela, e que ela se divertiria muito com isso. Ele cometeu esse erro e, de repente, sentiu que outro sentimento, pesado como o remorso, invadia sua alma, e assustou-se. Ficou com medo de estragar a relação de amizade que havia entre eles e decidiu partir antes que isso acontecesse.
Ao dizer isso, começou novamente a esfregar os olhos com ar indiferente e os fechou.
– Por que motivo ele tinha medo de amar de outra maneira? – disse eu tão baixo que mal se ouvia, mas controlando minha emoção e com voz firme, o que ele provavelmente interpretou como sendo um tom zombeteiro. Respondeu parecendo ofendido.
– A senhorita é jovem – disse –, eu não sou jovem. A senhorita quer brincar, eu necessito de outra coisa. Pois então brinque, só que não comigo, pois eu posso acreditar e depois sofrer, e a senhorita vai ficar com remorso. Foi o que A disse para B – acrescentou –; ah, mas tudo isso é bobagem, a senhorita sabe por que estou partindo. E não vamos mais falar sobre isso. Por favor!
– Não! Não! Vamos falar, sim! – disse eu, e as lágrimas fizeram minha voz tremer. – Ele a amava ou não?
Ele não respondeu.
– Se não a amava, por que brincou com ela como se ela fosse uma criança? – disse eu.
– Sim, sim, A foi culpado – respondeu ele, interrompendo-me apressadamente –, mas tudo acabou e separaram-se... ainda amigos.
– Mas isso é horrível! Será que não pode haver outro final? – balbuciei e me assustei com o que acabava de dizer.
– Sim, pode – disse ele, destapando seu rosto emocionado e me olhando de frente. – Há dois finais diferentes. Apenas não me interrompa, pelo amor de Deus, e tente me entender com calma. Alguns dizem – começou ele, erguendo-se com um sorriso triste e sofredor –, alguns dizem que A enlouqueceu, apaixonou-se perdidamente por B e lhe confessou isso. Mas ela apenas riu. Para ela, tudo não passava de diversão; para ele, tratava-se da própria vida.
Estremeci e quis interrompê-lo, para dizer que não ousasse falar por mim, mas ele me conteve, colocando sua mão sobre a minha.
– Espere – disse ele com voz trêmula –, outros dizem que ela teria ficado com pena dele, imaginando, pobrezinha, ela, que não conhecia nada da vida, que poderia amá-lo, e concordou em ser sua esposa. E ele, louco, acreditou; acreditou que sua vida iria recomeçar, mas ela mesma percebeu que o estava enganando, e que ele a enganara... Não falemos mais nisso – encerrou ele, sem forças para continuar, e ficou caminhando em silêncio na minha frente.
Quando ele disse: “Não falemos mais nisso”, percebi que com toda a força de sua alma ele esperava uma palavra minha. Quis falar, mas não pude, pois algo me apertava o peito. Olhei para ele, estava pálido e seu lábio inferior tremia. Tive pena dele. Fiz um esforço e, de repente, quebrando o silêncio que me paralisava, falei com uma voz baixa, profunda, temendo que a qualquer momento ela sumisse.
– E o terceiro final – disse eu e parei, mas ele ficou calado –, e o terceiro final: ele não a amava e a fez sofrer muito, muito; e pensou que era correto ir embora e até achou que isso era motivo para se orgulhar. O senhor, e não eu, se diverte; eu o amei desde o primeiro dia, eu o amei – repeti, e, quando disse “amei”, minha voz, sem eu querer, passou de baixa e profunda a um grito selvagem que me assustou. Ele ficou pálido, parado na minha frente, seu lábio tremia cada vez mais forte, e duas lágrimas desceram pela sua face.
– Isso não é justo! – eu disse, quase gritando e sentindo que ficaria sufocada com as lágrimas de raiva que reprimira. – Que foi que eu fiz? – disse e levantei-me para fugir dele.
Mas ele não me deixou. Deitou a cabeça nos meus joelhos, beijou minhas mãos ainda trêmulas e molhou-as com suas lágrimas.
– Meu Deus! Se eu soubesse! – disse ele.
– Que foi que eu fiz? – eu repetia, mas dentro de mim já havia felicidade, a felicidade que quase se fora para sempre e que voltara.
Cinco minutos depois, Sônia subiu correndo para chamar Kátia, gritando para a casa toda que Macha queria casar com Serguêi Mikháilovitch.
V
Não havia motivo para adiar nosso casamento; nem ele, nem eu desejávamos isso. É verdade que Kátia queria ir a Moscou fazer compras e encomendar o enxoval, e que a mãe dele no início exigiu que antes de se casar ele comprasse uma carruagem e mobília nova e mandasse trocar o papel das paredes, mas nós insistimos em deixar tudo isso para depois, caso fosse tão necessário, e que o nosso casamento fosse dali a duas semanas, sem estardalhaço, sem enxoval, sem convidados, padrinhos, jantares, champanhe e todas as coisas convencionais. Soube por ele que sua mãe estava muito desgostosa porque nosso casamento não teria música nem um monte de baús e a reforma total da casa, ao contrário do casamento dela, que custara trinta mil rublos, e que ela, às escondidas dele, andava remexendo nos guardados e trocava ideias com sua governanta Mariúchka a respeito de certos tapetes, cortinas e bandejas indispensáveis para a nossa felicidade. Em minha casa, Kátia fazia a mesma coisa com nossa babá Kuzmínichna, e ai de mim se fizesse alguma piada a respeito disso. Ela estava firmemente convencida de que nós dois, quando conversávamos sobre o nosso futuro, apenas trocávamos ternuras e fazíamos tolices, como é típico de pessoas na nossa situação, mas que nossa felicidade iria depender mesmo era de saber cortar e costurar uma camisa e fazer bainhas em toalhas de mesa e guardanapos. Entre Pokróvskoie e Nikólskoie diariamente eram trocadas informações secretas sobre endereços onde se fazia isso ou aquilo, e, embora exteriormente as relações entre Kátia e a mãe de Serguêi parecessem as mais carinhosas, já era possível perceber entre as duas uma diplomacia fina, porém levemente hostil. A mãe dele, Tatiana Semiônovna, que eu passei a conhecer melhor, era uma mulher afetada, dona de casa exigente e típica senhora do século passado. Ele a amava, não só como um filho deve amar, mas com um sentimento sincero de admiração, pois a considerava a mulher mais inteligente, mais carinhosa e melhor do mundo. Tatiana Semiônovna tinha sido sempre boa conosco, especialmente comigo, e ficou muito feliz porque o filho resolveu se casar, mas quando, já na qualidade de sua noiva, fui visitá-la, tive a impressão de que ela queria que eu soubesse que eu não era tão bom partido assim para ele e que não seria demais eu me lembrar sempre disso. Eu a compreendi muito bem e concordei com ela.
Ele e eu nos vimos diariamente nessas duas últimas semanas. Ele vinha à hora do almoço e ficava até a meia-noite. Mas, apesar de dizer – e eu sabia que era sincero – que não podia viver sem mim, ele nunca passou um dia inteiro comigo e continuava a cuidar de assuntos de trabalho. Até o dia do casamento, nossas relações continuaram as mesmas de antes; tratávamos um ao outro por o senhor, a senhorita, ele não beijava nem mesmo a minha mão, e não só não procurava como até evitava ficar a sós comigo. Parecia que temia seus próprios arroubos de ternura e a enorme paixão que tinha dentro de si. Não sei se foi ele que mudou ou se fui eu, mas já me sentia inteiramente igual a ele, não via mais nele aquele esforço para descer ao meu nível, que tanto me desagradava, e muitas vezes vi, com prazer, não o homem que me infundia medo e respeito, e sim uma criança dócil e desorientada de tanta felicidade. “Era só isso que havia nele!”, pensava eu. “Ele é uma pessoa igualzinha a mim, não é melhor que eu.” Agora eu achava que o conhecia inteiramente, e tudo o que descobrira era tão simples e tão de acordo comigo! Até os seus planos para nossa vida a dois eram os meus planos; ele apenas os expressava melhor.
Nesses dias o tempo estava ruim e ficávamos quase sempre dentro de casa. As melhores conversas, as mais íntimas, passavam-se no canto da sala, entre o piano e a janela. No negro da vidraça refletia-se a chama das velas, no vidro brilhante às vezes caíam e escorriam alguns pingos de chuva. A água tamborilava no telhado, caía em borbotões na poça embaixo da calha, e a umidade penetrava pela janela, o que fazia com que nosso cantinho parecesse ainda mais claro, quente e alegre.
– Sabe, há muito quero dizer-lhe uma coisa – disse ele certa vez, quando estávamos sentados tarde da noite naquele cantinho. – Estive pensando nisso enquanto a ouvia tocar.
– Não diga nada, eu sei de tudo – disse eu.
Ele sorriu.
– Está certo, não vamos falar disso.
– Não, fale, o que é? – perguntei.
– É o seguinte. Lembra-se de quando eu lhe contei a história de A e B?
– Como não iria me lembrar daquela história boba? Ainda bem que já acabou...
– Minha felicidade quase foi destruída por mim mesmo. A senhorita me salvou. Mas o mais importante é que naquele dia eu estava mentindo o tempo todo e estou arrependido; eu queria terminar aquele assunto agora.
– Ah, por favor, não faça isso.
– Não tenha medo – disse ele sorrindo. – Eu só queria me justificar. Naquele dia, quando comecei a falar, eu pretendia argumentar.
– Para que argumentar? – disse eu. – Isso nunca é necessário.
– É verdade, argumentei mal. Depois de todas as minhas desilusões e erros ao longo da vida, ao voltar dessa vez para o campo eu havia dito a mim mesmo que bastava de amor para mim, que me tinham ficado apenas as obrigações, para as quais eu viveria o resto dos meus dias. Por causa disso, demorei em dar-me conta da natureza da minha afeição pela senhorita e aonde ela poderia me levar. Tinha e não tinha esperanças, pois ora me parecia que a senhorita estava brincando comigo, ora eu lhe acreditava – e não sabia o que fazer. Mas, depois daquela noite – lembra-se, quando passeamos pelo jardim? –, eu me apavorei, a felicidade que sentia me parecia exagerada e achei que ela era impossível. Pois o que seria de mim se me permitisse aquela esperança e depois me decepcionasse? É claro que estava pensando somente em mim, pois sou um egoísta nojento.
Ele se calou, olhando para mim.
– Mas não falei só bobagem naquele dia – disse ele. – Eu tinha o direito e o dever de ter receio. A senhorita me dá tanta coisa, e eu posso lhe dar tão pouco! E é ainda uma criança, uma flor em botão, que ainda vai se abrir, está amando pela primeira vez, e eu...
– Então, diga-me com toda a sinceridade – comecei a falar, mas de repente me deu medo de ouvir sua resposta. – Não, não precisa – acrescentei.
– Se já amei antes? É isso? – disse ele, adivinhando meu pensamento. – Isso eu posso lhe dizer. Não, não amei. Nunca senti nada semelhante a este sentimento... – mas, de repente, foi como se uma recordação dolorosa tivesse passado pela sua mente. – Portanto, só mesmo um coração como o da senhorita para fazer com que eu me sentisse no direito de amá-la – disse com tristeza. – Eu não deveria refletir antes de dizer que a amo? O que posso lhe dar? É verdade que posso lhe dar amor.
– Será que isso é pouco? – disse eu, olhando-o nos olhos.
– É pouco, minha amiga, no seu caso é pouco – continuou. – É bonita e jovem! Eu agora quase não durmo de noite de felicidade e não paro de pensar na nossa vida em comum. Já vivi muito e parece que encontrei o que é necessário para ser feliz: uma vida pacata, na solidão do nosso lugarejo, podendo fazer o bem para as pessoas ao redor, pois é tão fácil fazer o bem a essas pessoas tão carentes; e, depois, há o trabalho, que traz tantos benefícios; e o descanso, a natureza, os livros, a música, o amor ao próximo – é essa a minha felicidade, nunca sonhei com nada maior que isso. E agora, para coroá-la, uma amiga como a senhorita, uma família, talvez isso seja tudo o que um homem pode desejar.
– É verdade – disse eu.
– Sim, mas isso é verdade para mim, que já deixei para trás a mocidade, e não no seu caso – continuou. – A senhorita ainda não viveu, talvez queira procurar a felicidade noutra coisa e talvez a encontre. Parece-lhe que está feliz somente porque me ama.
– Não, esta vida tranquila em família é o que sempre amei e desejei – disse eu. – O senhor só está dizendo aquilo que sempre pensei.
Ele sorriu.
– É apenas sua impressão, minha amiga. Isso não lhe basta. É jovem e bonita – repetiu ele, pensativamente.
Irritei-me com o fato de ele não acreditar em mim e, segundo me parecia, de me recriminar por ser jovem e bonita.
– Mas, então, por que o senhor gosta de mim? – disse, zangada. – Pela minha juventude ou por mim mesma?
– Não sei, mas gosto – respondeu ele, fitando-me com seu olhar atento e cativante.
Nada respondi, sem poder desviar meus olhos dos dele. De repente, algo estranho me aconteceu: inicialmente, deixei de ver o que estava ao redor; depois, o rosto dele desapareceu da minha frente e somente seus olhos brilhavam diante dos meus; depois, me pareceu que seus olhos estavam dentro de mim, e tudo ficou turvo, eu não via mais nada e tive de piscar com força para escapar daquela sensação de prazer e medo que me causava o seu olhar...
Na véspera do casamento, à tarde, o tempo melhorou. Depois das chuvas de verão, aquela era a primeira tarde de outono, luminosa, brilhante e fria. Tudo estava molhado, fresco, claro, e, pela primeira vez, no jardim surgiu aquela amplidão outonal, com seu colorido e as árvores perdendo as folhas. O céu estava límpido, gelado e pálido. Fui dormir feliz com a ideia de que no dia seguinte, no dia do nosso casamento, o tempo estaria bom.
Na manhã seguinte, acordei com o sol. Ao me dar conta de que o dia do casamento finalmente chegara, fiquei espantada e assustada. Fui para o jardim. O sol acabara de nascer e brilhava fragmentado através das tílias meio desfolhadas e amareladas da alameda. O caminho estava coberto de folhas farfalhantes. Os ramos encurvados das sorveiras estavam vermelhos de frutos, com algumas raras folhas retorcidas pelo frio; as dálias murcharam e escureceram. A geada pela primeira vez cobriu de prata a relva verde e as bardanas pisadas perto da casa. No céu claro e frio não havia uma única nuvem.
“Será verdade mesmo que é hoje?”, perguntava-me, duvidando da minha felicidade. “Será verdade que amanhã vou acordar não aqui, e sim numa casa estranha, naquela casa cheia de colunas de Nikólskoie? Será possível que não vou esperá-lo mais, e de tarde e de noite não vamos mais ficar conversando com Kátia? Não vamos mais ficar sentados junto ao piano, aqui na sala de Pokróvskoie? Não vou me despedir dele e temer por ele nas noites escuras?” Então, veio-me à mente que na véspera ele havia dito que hoje viria pela última vez, e lembrei que Kátia estava insistindo para que eu provasse o vestido de noiva, dizendo: “É para amanhã”; e por um momento acreditei que era verdade, mas depois novamente duvidei. “Será verdade que de agora em diante vou morar com minha sogra, sem a Nadejda, sem o velho Grigóri, sem Kátia? Não vou beijar a babá à noite e ouvi-la dizer, como de costume, ‘Boa noite, mocinha’, depois de me abençoar? Não vou mais dar aulas para Sônia e brincar com ela, nem dar batidinhas na parede de manhã para ouvir suas risadas? Será possível que agora vou me transformar numa pessoa estranha para mim mesma e que uma vida nova, a concretização de minhas esperanças e desejos, está se abrindo diante de mim? E será que essa nova vida vai durar para sempre?” Eu o esperava com impaciência, pois era difícil ficar sozinha com esses pensamentos. Ele chegou cedo e só então acreditei inteiramente que daí em diante seria sua mulher, e meu medo acabou.
Antes do almoço, fomos à nossa igreja assistir a uma missa pela alma de meu pai.
“Ah! Se ele fosse vivo agora!”, pensava eu quando voltávamos para casa; e, calada, eu me apoiava no braço do homem que tinha sido seu melhor amigo. Durante a oração, encostando a testa na pedra fria do chão da capela, vi com tanta clareza meu pai na minha imaginação que acreditei que sua alma me compreendia e abençoava minha escolha, que ela estava ali, sobrevoando-nos, e senti em mim a sua bênção. Recordações, esperanças, felicidade e tristeza se misturavam em mim, num único sentimento solene e agradável, que combinava com o ar fresco e imóvel, com o silêncio, a nudez dos campos e o céu pálido, de onde caíam raios de luz claros, porém impotentes para aquecer a minha face. Parecia-me que aquela pessoa que caminhava comigo compartilhava esses meus sentimentos. Ele ia calado e tranquilo, seu rosto, para o qual eu dava uma olhada de vez em quando, também expressava com gravidade a mistura de tristeza e de alegria que estava na natureza e no meu coração.
De repente, ele se virou para mim e vi que queria dizer-me alguma coisa. “E se ele não falar sobre o que estou pensando?” – perguntei-me. Mas ele falou do meu pai, sem nem mesmo dizer o nome dele.
– Certa vez ele me disse brincando: “Case-se com minha Macha!”
– Como ele ficaria feliz hoje! – disse eu, apertando com mais força o braço em que me apoiava.
– Pois é, a senhorita era ainda uma criança – continuou ele, fitando-me –; eu beijava seus olhos porque eram parecidos com os dele e não pensava que me seriam tão caros por si mesmos. Nessa época, eu a chamava de Macha.
– Trate-me por “você” – disse eu.
– Estava mesmo querendo tratá-la por “você” – disse ele –, pois só agora me parece que você é completamente minha – e pousou em mim seu olhar calmo, feliz, cativante.
E continuamos a andar pela trilha pouco frequentada, através do restolhal amassado; só ouvíamos nossos passos e nossas vozes. Num dos lados, através do vale e chegando até o distante bosque sem folhas, estendia-se o restolhal castanho-avermelhado, onde um camponês com o arado traçava silenciosamente uma faixa negra, que ficava cada vez mais larga. Alguns cavalos, espalhados junto ao sopé do monte, davam a impressão de estar próximos. No outro lado e na nossa frente, chegando até o nosso jardim, atrás do qual se via a casa, descortinava-se o campo negro e degelado, já com a semeadura do inverno, onde começavam a despontar algumas listras verdes. O sol fraco banhava tudo isso; por toda parte estendiam-se longos fios de teias de aranha, que voavam pelo ar, caíam sobre o restolhal ressequido, nos nossos olhos, cabelos e roupas. Nossas vozes ressoavam e pairavam sobre nós no ar imóvel, como se fôssemos os únicos seres neste mundo, sob o céu azul, onde cintilava e tremeluzia um sol morno.
Também eu queria tratá-lo por você, mas estava com vergonha.
– Por que você está andando tão depressa? – falei rápido, quase sussurrando, e corei.
Ele andou mais devagar e olhou para mim com uma expressão ainda mais carinhosa, alegre e feliz.
Quando chegamos à minha casa, já encontramos sua mãe e algumas pessoas que não podíamos deixar de convidar, e não pude mais ficar a sós com ele até o momento de subir na carruagem e ir para Nikólskoie.
A igreja estava quase vazia, avistei apenas a mãe dele, de pé sobre um tapetinho perto do coro, e Kátia com uma touca cheia de fitas lilases e as faces molhadas de lágrimas, e ainda uns três criados, que me observavam com curiosidade. Eu não olhava para Serguêi Mikháilitch, mas sentia sua presença junto de mim. Prestava atenção às palavras das orações e as repetia, mas nada repercutia na minha alma. Não conseguia rezar e olhava aparvalhada para os ícones, as velas, para a cruz bordada nas costas da casula do sacerdote, para a iconóstase, para a janela, sem compreender nada. Apenas sentia que estava acontecendo algo de extraordinário comigo. Depois, o padre virou-se para nós segurando a cruz e felicitou-nos, dizendo que havia me batizado e que, pela vontade de Deus, coube a ele também celebrar o meu casamento. Kátia e a mãe dele vieram beijar-nos, e ouviu-se a voz de Grigóri chamando a carruagem. Aí eu me espantei de que tudo já tivesse terminado e de que nada fora do comum tivesse acontecido no meu coração, nada que pudesse corresponder ao sacramento que acabara de se realizar. Nós dois nos beijamos, mas aquele beijo foi estranho, sem nada daquilo que sentíamos um pelo outro. “Isso é tudo”, pensei.
Saímos para o átrio, o ruído das rodas ecoou debaixo do teto da igreja, sentimos o vento fresco no rosto. Serguêi colocou o chapéu e ajudou-me a subir na carruagem. Pela janela vi a lua redonda e fria com um círculo em volta. Ele sentou-se ao meu lado e fechou a portinhola. Senti um baque no coração. A maneira firme com que fez isso me pareceu ultrajante. Ouvi a voz de Kátia mandando-me cobrir a cabeça. As rodas ressoaram nas pedras, depois seguimos por uma estrada de terra. Encolhida num canto, eu olhava pela janela os campos distantes e a estrada que ia ficando para trás, iluminada pela luz fria da lua. Sem olhar, sentia que ele estava ali ao meu lado. “Foi só isso que me proporcionou o momento pelo qual tanto esperei?”, pensava; e me parecia ofensivo e humilhante estar a sós com ele e tão junto dele. Virei-me com a intenção de dizer-lhe algo, mas as palavras não saíam, como se já não houvesse em mim a antiga ternura, somente medo e a sensação de ter sido ofendida.
– Até este instante eu não acreditava que isso seria possível – disse ele baixinho, respondendo ao meu olhar.
– É verdade, mas, não sei por que, estou com medo.
– Com medo de mim, minha amiga? – disse ele, pegando minha mão e recostando sua cabeça nela.
Minha mão jazia sem vida sobre a dele, e meu coração doía de frio.
– Sim – murmurei.
Mas então meu coração começou a bater mais forte, minha mão tremeu e apertou a mão dele; fiquei com calor, busquei os seus olhos na penumbra e, de repente, percebi que já não tinha medo dele, sentia amor, um amor novo e ainda mais terno e forte do que antes. Senti que eu era dele e fiquei feliz porque ele tinha poder sobre mim.
VI
Dias, semanas, dois meses inteiros de vida de recolhimento na aldeia passaram sem que notássemos, mas os sentimentos, as preocupações e a felicidade que experimentamos nesse tempo seriam suficientes para a vida toda. Nossos sonhos de como seria nossa vida na aldeia resultaram em algo totalmente diferente do que esperávamos. Mas nossa vida não era pior do que nos nossos sonhos. Não havia nenhum trabalho rígido nem a exigência de sacrifícios ou de viver para os outros, como eu imaginava quando estava noiva. Ao contrário, o que havia era um sentimento egoísta de amor correspondido, o desejo de sermos amados, uma alegria constante e sem motivo, e o esquecimento de tudo o mais no mundo. Serguêi às vezes ia trabalhar no seu escritório, outras vezes ia à cidade tratar de algum assunto, ou saía para ver como iam os trabalhos na propriedade, mas eu percebia como lhe era difícil separar-se de mim. Ele próprio depois reconheceu que, quando eu não estava presente, tudo lhe parecia pequeno e sem sentido, e ele não entendia como conseguia se concentrar no trabalho. Comigo se passava o mesmo. Dedicava meu tempo à leitura, à música, à mãe dele e à escola, mas o fazia somente porque essas atividades estavam relacionadas com ele e mereciam sua aprovação. Mas eu não encontrava ânimo para as coisas que não tinham relação com ele, e até achava engraçado que existissem outras coisas no mundo além dele. Pode ser que esse sentimento fosse ruim e egoísta, mas me trazia felicidade e fazia com que me sentisse superior, acima de tudo o mais no mundo. Para mim, só ele existia na terra; ele era a pessoa mais maravilhosa e perfeita do mundo, por isso só conseguia viver para ele. De sua parte, ele também me considerava a mulher mais maravilhosa do mundo, detentora de todas as virtudes, e eu tentava ser essa mulher aos olhos do melhor homem do universo.
Certa vez, ele entrou no quarto num momento em que eu estava rezando. Olhei-o e continuei minha oração. Ele sentou-se à mesa e abriu um livro, tentando não me interromper, mas tive a impressão de que estava olhando para mim e voltei-lhe o rosto. Ele sorriu; comecei a rir e não pude continuar a oração.
– Você já rezou hoje? – perguntei.
– Sim. Mas continue, eu vou embora.
– Mas você costuma rezar, espero.
Ele não respondeu e quis sair, mas insisti.
– Querido, por favor, venha rezar comigo.
Ele ficou de pé ao meu lado, sem jeito, com os braços caídos e uma cara séria. Tropeçando nas palavras, começou a rezar e de vez em quando olhava para mim em busca de aprovação e ajuda. Quando terminou, dei uma risada e o abracei.
– Ah, só mesmo você! Parece que tenho dez anos outra vez – disse ele, corando e beijando minhas mãos.
A velha casa em que vivíamos tinha sido a residência de várias gerações da mesma família, que ali viveram, amando e respeitando-se uns aos outros. Havia uma atmosfera honrada, de boas recordações familiares, que não demorei em considerar também como minhas. Como fazia antes, Tatiana Semiônovna cuidava da arrumação e da ordem na casa. Nem tudo era muito elegante e bonito, mas havia abundância de móveis, empregados e comida, e tudo era muito limpo, sólido, caprichado e respeitável. Na sala de visitas, os móveis ficavam dispostos simetricamente, nas paredes havia retratos e, no chão, tapetes e passadeiras feitos em casa. Na sala de estar, havia um velho piano de cauda, cômodas de dois estilos diferentes, divãs e mesinhas com detalhes em latão e incrustações. No meu gabinete, que Tatiana Semiônovna se empenhara em decorar, estavam os melhores móveis, também de diferentes séculos e estilos; havia inclusive um espelho antigo, diante do qual no início eu ficava envergonhada, mas que depois passei a considerar um velho e querido amigo. Não se ouvia a voz de Tatiana Semiônovna, mas tudo na casa funcionava como um relógio, embora houvesse criados em excesso. Todos andavam com botas macias sem saltos, porque a velha senhora não suportava passos barulhentos dentro de casa. Os criados pareciam ter orgulho de sua condição e prazer no que faziam; tremiam diante da dona da casa e tinham para comigo e com meu marido uma atitude carinhosamente protetora. Todos os sábados, o assoalho da casa era lavado e os tapetes eram sacudidos. No primeiro dia de cada mês, rezavam-se ofícios de ação de graças e benzia-se a água. Nos dias dos santos homônimos de Tatiana Semiônovna e de seu filho, davam-se banquetes para toda a vizinhança (também para mim fizeram isso naquele outono, pela primeira vez). Tudo acontecia do mesmo modo como se fazia desde quando Tatiana Semiônovna era pequena.
Meu marido não se metia em assuntos domésticos e cuidava somente dos trabalhos no campo e de administrar os camponeses, o que já era muito. Levantava-se cedo até no inverno, e, ao acordar, eu já não o encontrava. Voltava geralmente para o chá, que tomávamos a dois, e, quase sempre, depois das preocupações e aborrecimentos de um dia de trabalho, ele voltava para casa naquele estado de espírito especialmente alegre que nós apelidáramos de entusiasmo selvagem. Às vezes, eu lhe perguntava o que tinha feito pela manhã e ele dizia tantas tolices que nós dois morríamos de rir. Se eu insistisse para que falasse com seriedade, ele fazia um relato pormenorizado, disfarçando um sorriso. Eu ficava olhando para os seus olhos e seus lábios, sem entender nada, mas feliz de vê-lo e ouvir sua voz.
– Então, que foi que eu disse? Repita – dizia ele. Mas eu não conseguia repetir nada. Achava engraçado ouvi-lo falar de coisas externas a nós, como se alguma coisa além de nós pudesse ter importância. Somente muito mais tarde comecei a entender um pouco as suas preocupações e a me interessar por seu trabalho.
Tatiana Semiônovna não aparecia antes do almoço, tomava chá sozinha e nos cumprimentava através de emissários. No nosso mundinho extravagante e feliz, a voz que vinha da outra ala da casa, onde imperava a gravidade e a ordem, soava estranha. Eu não conseguia conter o riso quando a arrumadeira se postava com uma mão sobre a outra e dizia que Tatiana Semiônovna mandara perguntar como tínhamos passado a noite após o passeio da véspera, e que ela não dormira bem por causa da dor no lado e dos latidos de um cachorro estúpido na aldeia. Mandara perguntar também se havíamos gostado dos biscoitos, que não tinham sido feitos por Tarás, e sim por Nikolacha, como experiência, e que ela os achara bons, especialmente as rosquinhas, embora ele tivesse deixado queimar as torradas.
Quase não ficávamos juntos antes do almoço. Eu tocava piano ou lia sozinha, ele ficava escrevendo ou tornava a sair. Mas à hora do almoço, às quatro horas da tarde, nos reuníamos na sala de estar, mamãezinha saía do seu quarto e apareciam também umas duas ou três senhoras da nobreza empobrecida, que viajavam em peregrinação religiosa e minha sogra as hospedava. Todos os dias meu marido, como de hábito, oferecia o braço à sua mãe, mas ela exigia que ele me desse seu outro braço, e tínhamos sempre de nos espremer comicamente para passar pela porta. Quem presidia às refeições era a mãe, e as conversas tinham um tom elegante, inteligente e um tanto solene. As palavras simples que eu trocava com meu marido quebravam agradavelmente a formalidade daquelas reuniões. Mãe e filho às vezes punham-se a discutir e a fazer troça um do outro, o que me agradava muito, pois eu via nisso um amor forte e terno, que os unia.
Depois do almoço, maman sentava-se numa grande poltrona na sala de visitas e picava tabaco ou abria as páginas de um novo livro, enquanto nós líamos em voz alta ou íamos para a sala de estar tocar piano. Muito líamos juntos naquele tempo, mas a música era nossa diversão preferida. Ela sensibilizava cada vez mais nossos corações e dava ensejo a que nos conhecêssemos melhor. Quando eu tocava suas músicas favoritas, ele ia se sentar num divã bem longe, onde eu mal pudesse vê-lo e, envergonhado, tentava disfarçar os sentimentos que a música lhe despertava; mas eu me levantava de repente e ia até ele procurar sinais da emoção, como os olhos úmidos e brilhantes, que em vão ele tentava esconder de mim. Sua mãe muitas vezes tinha vontade de dar uma espiada em nós; porém, provavelmente por receio de nos inibir, apenas passava de vez em quando pela sala de estar, desviando os olhos e com um ar falsamente sério e indiferente; mas eu sabia que ela não tinha necessidade nenhuma de passar por ali, para voltar pouco depois.
Era eu que servia o chá da noite na grande sala de visitas, onde se reuniam novamente todas as pessoas da casa em torno da mesa. Aquela reunião solene em redor do samovar brilhante como um espelho, a distribuição das xícaras e dos copos, tudo aquilo durante muito tempo me deixou encabulada, pois eu não me considerava ainda digna dessa honra. Achava-me jovem e leviana demais para abrir a torneira daquele imenso samovar, colocar o copo numa bandeja e ordenar a Nikita que o servisse a Piotr Ivânovitch ou a Mária Mínitchna, e para perguntar “Está bom de açúcar?”, e mandar servir pedacinhos de açúcar à babá e às pessoas importantes. “Muito bom, muito bom”, dizia-me meu marido, “parece gente grande”, e isso me deixava ainda mais encabulada.
Após o chá, maman jogava paciência, ou então Mária Mínitchna lia a sorte para ela; depois ela nos beijava e nos abençoava, e íamos para os nossos aposentos. Costumávamos ficar acordados conversando até depois da meia-noite, e esses eram os nossos momentos mais felizes. Ele me falava sobre o seu passado, construíamos planos e até filosofávamos, fazendo um esforço para falar baixo, para que lá de cima não nos ouvissem e fossem depois contar a Tatiana Semiônovna, pois ela fazia questão de que dormíssemos cedo. Às vezes nos dava fome, íamos ao bufê e, com a cumplicidade de Nikita, conseguíamos uma ceia fria e a comíamos à luz de uma vela, no meu gabinete. Nós dois vivíamos como estranhos naquela velha e grande mansão, sob uma atmosfera rígida e antiquada, onde Tatiana Semiônovna reinava absoluta. Não apenas ela, mas também as outras pessoas, as solteironas, até os móveis e quadros, todos me impunham respeito, medo e a consciência de que nós dois estávamos meio fora do nosso lugar e que deveríamos agir com muito cuidado e atenção. Agora, revendo minhas lembranças, vejo que muitas coisas – aquela ordem rígida que nos tolhia, aquela multidão de pessoas desocupadas e curiosas na nossa casa –, tudo aquilo era difícil de suportar e incômodo. Mas, naquela época, até a nossa falta de liberdade tornava nosso amor ainda mais intenso e vivo. Nem eu, nem ele deixávamos transparecer quando alguma coisa nos desagradava, e ele até parecia querer esconder-se das coisas ruins. Por exemplo, Dmítri Sídorov, o criado de Tatiana Semiônovna, adorava fumar um cachimbo e, regularmente, depois do almoço, quando estávamos na sala de estar, entrava no escritório de Serguêi e retirava tabaco da caixa. Meu marido fazia uma cara de medo e alegria e vinha na ponta dos pés, piscando um olho, mostrar-me o que o criado fazia quando achava que não o estavam vendo, e me fazia sinal com o dedo para que eu ficasse quieta; e, quando Dmítri Sídorov ia embora sem nos notar, ele ficava feliz de que tudo houvesse acabado bem, dizia que eu era maravilhosa e me beijava. Às vezes, essa calma, essa condescendência e uma certa indiferença a tudo me incomodavam, e eu achava que era fraqueza dele, sem notar que eu era igual. “É como uma criança que não tem coragem de expressar sua vontade!” , pensava eu.
– Ah, minha querida – falou-me ele uma vez em que lhe disse que sua fraqueza me espantava –, será que alguém pode ficar descontente com alguma coisa, se é tão feliz como sou agora? É mais fácil ceder do que tentar dobrar os outros, estou convencido disso há muito tempo. Não existe situação em que não se possa ser feliz. E nós estamos tão bem! Não consigo ficar zangado; para mim não existem coisas ruins, apenas coisas engraçadas ou coisas dignas de pena. O principal é – le mieux est l’ennemi du bien[5]. Você acredita que fico com medo quando ouço o som da sineta, ou recebo uma carta, ou simplesmente quando acordo? Tenho medo de viver, de que alguma coisa mude, pois melhor do que agora é impossível.
Eu acreditava no que ele dizia, mas não o entendia completamente. Embora me sentisse bem e aceitasse que as coisas teriam de ser daquela maneira, e até achasse que o mesmo acontecia com todo mundo, ainda assim me parecia que em algum lugar deveria existir outro tipo de felicidade, ainda que não necessariamente maior.
E assim dois meses se passaram, e o inverno chegou com suas friagens e nevascas. Apesar de estar sempre junto dele, comecei a me sentir solitária, a achar que a vida estava repetitiva, que nada acontecia de novo, nem comigo, nem com ele. Parecia que estávamos andando para trás, para uma vida antiga. Serguêi passou a ocupar-se cada vez mais dos seus negócios, distante de mim, e novamente me veio a sensação de que ele tinha um mundo interior particular, onde não me deixava entrar. Sua tranquilidade constante irritava-me. Eu não o amava menos, e o amor dele continuava a me fazer feliz como antes. Mas o meu amor tinha parado de crescer e, além dele, outro sentimento inquietante e novo começou a insinuar-se em minha alma. Depois da felicidade que eu experimentara ao me apaixonar por ele, já não me bastava estar amando. Eu queria movimento, não aquela vida que deslizava tranquila. Queria emoções, perigos e autossacrifício. Havia em mim excesso de energia, que não encontrava aplicação naquela nossa vidinha sossegada.
Às vezes eu caía em profunda melancolia, mas procurava esconder isso dele como se fosse algo ruim; outras vezes, entrava num estado eufórico, transbordante de alegria e ternura, que o deixava assustado. Ele foi o primeiro a notar o meu estado e sugeriu que fôssemos para a cidade, mas lhe pedi que não fizesse isso, que não mudasse nosso modo de viver, para não destruir nossa felicidade. Na verdade, eu era feliz, mas atormentava-me a ideia de que isso não me custava nada, nenhum trabalho, nenhum sacrifício, pelos quais a minha alma ansiava. Amava meu marido e sabia que era tudo para ele, mas queria que vissem o nosso amor, que houvesse empecilhos, para que eu pudesse demonstrar ainda mais o meu afeto. Minha mente e meu coração estavam ocupados, mas havia outras coisas – juventude, necessidade de movimento – que não encontravam satisfação na nossa tranquila existência. Para que foi ele dizer que poderíamos nos mudar para a cidade, quando tudo o que eu queria era isso? Se não o tivesse dito, talvez eu compreendesse que o sentimento que me amargurava não passava de insensatez. Fui culpada de não ter percebido que o sacrifício que eu tanto desejava estava lá, diante dos meus olhos: a necessidade de sufocar aquele sentimento.
Sem que eu quisesse, frequentemente me vinha à cabeça a ideia de que só poderia escapar da melancolia indo para a cidade, mas, ao mesmo tempo, dava-me pena e remorso a ideia de afastá-lo de tudo o que ele amava, só para me satisfazer. O tempo passava, a neve formava montes junto às paredes da casa, e nós permanecíamos ali, solitários, embora um com o outro continuássemos os mesmos. Mas em algum lugar havia brilho e barulho, multidões de pessoas sentiam, sofriam e se alegravam, sem pensar em nós e na nossa existência, que entretanto ia passando.
O que eu achava pior era a sensação de que a cada dia os hábitos aprisionavam nossa vida de uma determinada forma, e que nossos sentimentos já não eram livres, estavam subordinados ao curso monótono e impassível do tempo. De manhã, habitualmente estávamos alegres; na hora do almoço, ficávamos solenes; à noite, tornávamo-nos amorosos. “Não há dúvida”, pensava eu, “é bom viver honestamente e fazer o bem, como ele diz; mas nós teremos muito tempo para isso. Entretanto, há outras coisas para as quais só tenho forças agora”. Não era daquela vida que eu precisava, fazia-me falta lutar. Queria que os sentimentos nos guiassem na vida, e não que a vida que levávamos determinasse os nossos sentimentos. Às vezes me dava vontade de ir com ele até a beira de um precipício e dizer: “basta um passo e eu me atiro, basta um movimento e eu morro”, para que ele, empalidecendo, me tomasse nos seus braços fortes, me suspendesse sobre o abismo até meu coração gelar e depois me levasse para onde quisesse.
Tal estado de espírito começou a refletir-se na minha saúde e nos meus nervos. Numa manhã em que me sentia pior do que de costume, ele voltou do escritório do administrador aborrecido, coisa que não lhe acontecia com frequência. Percebi logo seu mau humor e perguntei-lhe o que tinha acontecido. Mas ele não quis dizer, alegando que era coisa sem importância. Depois vim a saber que o chefe de polícia, que não gostava do meu marido, havia intimado alguns dos nossos camponeses e exigido deles, sob ameaças, o pagamento ilegal de multas. Serguêi não tinha ainda digerido tudo aquilo para que o fato passasse a ser apenas divertido ou digno de pena; estava ainda muito irritado e por isso não queria conversar comigo. Mas fiquei com a impressão de que ele não queria falar comigo por achar que eu era uma criança, incapaz de compreender as coisas que o preocupavam. Dei-lhe as costas, calada, e mandei pedir a Mária Mínitchna, nossa hóspede, que viesse tomar chá comigo. Terminei um pouco apressadamente o chá e levei a hóspede para a sala de estar, onde ficamos conversando em voz alta a respeito de coisas sem importância, que não me interessavam em absoluto. Meu marido pôs-se a caminhar pela sala, lançando de vez em quando umas olhadelas para nós. Isso estimulou ainda mais minha vontade de falar e até de dar risadas, e eu achava graça em tudo o que falávamos. Sem dizer nada, ele foi para o seu escritório e lá se trancou. Na ausência dele, toda a minha alegria desapareceu de repente, o que chamou a atenção de Mária Mínitchna, que, espantada, perguntou o que havia comigo. Não respondi e sentei-me no divã, com vontade de chorar. “O que será que ele está remoendo?”, pensava eu. “Deve ser alguma bobagem que ele acha importante; se ele tentasse me dizer, eu provaria que tudo não passa de ninharia. Mas não. Ele precisa achar que sou incapaz de compreender, tem necessidade de me humilhar com sua calma majestosa e de estar sempre com a verdade. Mas também tenho razão se acho tudo vazio e tedioso, se quero vida, movimento, e não isso de ficar parada no mesmo lugar, vendo o tempo passar. Eu quero andar para a frente, quero que aconteça algo de novo a cada dia, a cada hora, mas ele quer ficar parado e me fazer parar junto com ele. E não lhe custaria nada! Não seria necessário mudarmos para a cidade, bastaria que ele fosse como eu, que não se dobrasse, não se reprimisse e vivesse com simplicidade. Vive me dizendo para eu fazer isso, mas ele mesmo não é simples. É assim que as coisas são!”
Eu sentia que as lágrimas estavam a ponto de me sufocar e que estava muito irritada com ele. Fiquei assustada com a minha irritação, fui ao seu escritório e o encontrei sentado, escrevendo. Ao ouvir meus passos, lançou-me um olhar breve e indiferente e continuou a escrever com toda a calma. Aquele olhar não me agradou. Em vez de me aproximar, fiquei parada perto da mesa, folheando um livro. Ele interrompeu novamente seu trabalho e olhou para mim.
– Está de mau humor, Macha? – perguntou.
Olhei-o com frieza, como querendo dizer: “Não precisa se dar ao trabalho de perguntar! Por que a gentileza agora?” Ele balançou a cabeça com um sorriso tímido e terno, mas pela primeira vez não retribuí seu sorriso.
– Que aconteceu hoje com você? – perguntei. – Por que não me contou o que lhe aconteceu?
– Foi uma bobagem! Tive um pequeno aborrecimento. Mas posso contar agora. Dois camponeses foram conduzidos à cidade...
Mas eu não o deixei terminar.
– Por que não me contou na hora do chá, quando lhe perguntei?
– Eu poderia ter falado alguma besteira, estava furioso naquele momento.
– Era nessa hora que eu precisava saber.
– Para quê?
– Por que você pensa que não posso ajudá-lo em nada?
– Mas como eu pensaria uma coisa dessas! – disse ele, largando a pena. – O que eu realmente penso é que não posso viver sem você. Você não só me ajuda em tudo, é você quem faz tudo. Não percebe? – disse rindo. – Você é a minha vida. Só sinto prazer no que faço porque você está aqui, ao meu lado, e...
– É, eu sei: sou uma menina boazinha, que precisa ser acalmada – disse eu num tom que o surpreendeu, tanto que me olhou como se estivesse me vendo pela primeira vez. – Não quero calma, já basta a sua, é mais do que suficiente – acrescentei.
– Então, o que aconteceu foi isso – interrompeu-me bruscamente, com medo do que eu ainda poderia dizer –, e como você avaliaria o fato?
– Agora não quero conversar – respondi e, embora tivesse muita vontade de ouvi-lo, estava gostando de destruir sua tranquilidade. – Eu não quero brincar de viver, quero é viver, como você – disse eu.
Seu rosto, que sempre refletia bem tudo o que ele sentia, tomou de repente uma expressão de dor e de atenção concentrada.
– Quero viver com você, em pé de igualdade, quero estar junto... – comecei, mas não pude terminar, tal a tristeza que se estampou no rosto dele. Durante algum tempo, ele não disse nada.
– Por que é que você acha que não vivemos em pé de igualdade? – disse ele. – É porque sou eu, e não você, que tem de lidar com o chefe de polícia e com camponeses bêbados...
– Ora, não é só isso – cortei-o.
– Pelo amor de Deus, minha querida, compreenda-me – continuou –, eu sei como essas preocupações podem causar dor a uma pessoa; já vivi muito e sei disso. Eu a amo e por isso não posso deixar de querer livrá-la das amolações. Amá-la é tudo para mim; por isso, não me impeça de viver.
– Você sempre tem razão! – disse eu, sem olhar para ele.
Estava aborrecida porque, como sempre, na mente dele tudo estava claro e tranquilo, enquanto eu estava irritada e com um sentimento parecido com o arrependimento.
– Macha! Que há com você? – disse ele. – Não se trata de quem está com a razão. O problema é outro: o que você tem contra mim? Não precisa responder já, pense um pouco e diga tudo o que tem pensado. Você está descontente comigo e provavelmente tem razão. Mas deixe-me entender do que sou culpado.
Mas como eu poderia abrir minha alma para ele? O fato de ele me ter compreendido tão de pronto, de eu novamente me portar como uma criança diante dele, de não poder fazer nada que ele já não tivesse previsto e entendido antes, deixou-me ainda mais perturbada.
– Não tenho nada contra você – eu disse. – Simplesmente me sinto entediada e gostaria de não me sentir assim. Mas você está dizendo que tem de ser assim e outra vez você está certo.
Terminei de falar e olhei para ele. Tinha conseguido meu objetivo: sua calma tinha desaparecido, ele estava com uma cara de dor e de sofrimento.
– Macha – disse ele em voz baixa e emocionada –, o que estamos fazendo não é uma brincadeira. Nosso destino vai ser decidido agora. Não diga nada e apenas ouça-me. Por que você quer me torturar?
Mas eu o interrompi.
– Eu já sei que você vai estar com a razão. É melhor não dizer mais nada, você tem razão – disse eu friamente, como se não fosse eu, e sim um espírito mau que falasse através de mim.
– Se você tivesse alguma noção do que está fazendo! – disse ele com a voz trêmula.
Comecei a chorar e me senti aliviada; ele ficou sentado perto de mim, em silêncio. Tive pena dele, fiquei desgostosa e com vergonha do que havia feito. Não tinha coragem de encará-lo, pois achava que ele devia estar me olhando com raiva ou com perplexidade. Arrisquei uma olhadela: um olhar humilde, terno, como se me pedisse perdão, estava fixo em mim. Peguei na mão dele e disse:
– Perdoe-me! Eu mesma não sei o que estava dizendo.
– É, mas eu sei o que você estava dizendo, você estava dizendo a verdade.
– Qual é a verdade? – perguntei.
– Que nós precisamos ir para Petersburgo. Não temos mais nada a fazer aqui.
– Como você quiser – disse eu.
– Perdoe-me – disse ele –, eu sou culpado diante de você.
Naquela noite, eu toquei muito tempo para Serguêi, e ele ficou andando pela sala, murmurando alguma coisa, como era seu costume. Às vezes eu lhe perguntava o que estava murmurando, ele pensava um pouco e depois respondia. Na maioria das vezes ele recitava poesias, mas às vezes vinha com uma coisa tão disparatada que eu imediatamente percebia como estava seu humor.
– Que está murmurando? – perguntei.
Ele parou, pensou e, sorrindo, recitou dois versos de Lérmontov:
...E ele, louco, pede tormenta,
Como se na tormenta houvesse paz![6]
“Não, ele é mais do que um homem; ele sabe tudo!”, pensei. “Como é possível não amá-lo?”
Levantei-me, peguei na sua mão e fiquei caminhando com ele, procurando andar no seu passo.
– Sim? – perguntou ele, sorrindo e olhando para mim.
– Sim – respondi num sussurro. Fomos tomados por uma alegria súbita; ríamos com os olhos, nossos passos foram ficando cada vez maiores e, no final, estávamos andando na ponta dos pés. Para grande desgosto de Grigóri e espanto de minha sogra, que jogava paciência na sala de visitas, nós percorremos com essas passadas todos os cômodos até a sala de jantar, onde paramos e ficamos olhando um para o outro e dando risadas.
Duas semanas depois, antes das festas de fim de ano, estávamos em São Petersburgo.
VII
Nossa viagem para Petersburgo, a semana que passamos em Moscou, as visitas aos nossos parentes, a mudança para o novo apartamento, estradas, cidades desconhecidas, gente estranha – tudo isso passou como num sonho. Era tudo tão variado, novo, divertido, tudo iluminado e aquecido pela presença de Serguêi e pelo seu amor, que a vida calma da aldeia já me parecia algo remoto e sem importância. Para grande espanto meu, não vi o frio orgulho mundano que esperava encontrar nas pessoas, pois todos me receberam com sincera alegria e carinho, e não apenas os parentes, os estranhos também. Parecia até que já pensavam em mim antes e só esperavam a minha chegada para poderem se sentir bem. Outra grande surpresa foi a quantidade de pessoas que meu marido conhecia, inclusive na mais alta sociedade, das quais ele nunca tinha me falado. Eu achava estranho e não gostava quando o ouvia criticar severamente algumas delas, que me pareciam tão bondosas. Não entendia por que ele as tratava com frieza nem por que evitava fazer amizade com certos indivíduos, cujo interesse em nós me parecia lisonjeiro. Para mim, quanto mais pessoas boas alguém conhece, melhor, e eu achava que todas eram boas.
– Você vai ver quando estivermos instalados lá – disse Serguêi, antes de partirmos da aldeia –; aqui somos pequenos monarcas, mas lá seremos bastante pobres, por isso só podemos ficar até a Semana Santa, e vamos evitar a alta sociedade, senão teremos dificuldades. Inclusive, eu não gostaria que você...
– Para que precisamos da alta sociedade? – respondi. – Quero ir ao teatro e à ópera, visitar os parentes, ouvir boa música, e antes da Semana Santa, estaremos de volta.
Mas, assim que chegamos a Petersburgo, esses planos foram esquecidos. Eu me vi de repente num mundo tão maravilhoso e novo para mim, estava tão feliz, havia tantas coisas interessantes a descobrir que logo, ainda que inconscientemente, reneguei todas as minhas convicções passadas e todos os meus planos. “Até agora, tudo não passou de brincadeiras, a vida ainda não havia começado; esta, sim, é a verdadeira vida! E o que virá ainda?” , pensava eu. Aquela inquietação, aquele início de melancolia que me afligiam na aldeia de repente desapareceram completamente, como por encanto. O amor pelo meu marido tornou-se mais tranquilo, e nunca mais me veio à cabeça a dúvida: será que ele está me amando menos? Não havia por que duvidar do seu amor, pois qualquer pensamento meu era imediatamente compreendido, os sentimentos eram compartilhados e os meus desejos eram atendidos. Na cidade, aquela sua placidez desapareceu, ou então já não me irritava. Além do mais, eu sentia que, além de me amar como antes, lá ele também me admirava. Depois de uma visita, ou de ter feito nova amizade, ou de uma festinha no nosso apartamento, ocasião em que eu tremia de medo de cometer algum erro ao cumprir a função de dona da casa, era comum ele dizer: “Mas que menina! Está ótima! Não precisa ficar com medo, saiu tudo bem. De verdade.” E isso me deixava muito feliz. Algum tempo depois de nossa chegada, ele escreveu uma carta para sua mãe e me chamou para escrever-lhe também algumas linhas. Ele não queria que eu lesse o que havia escrito, mas eu exigi e ele cedeu. “A senhora não vai reconhecer nossa Macha, pois eu mesmo já não a reconheço. Não sei de onde ela tirou essa encantadora autoconfiança, graça, afabilidade, essa desenvoltura em sociedade, essa polidez. E ela consegue tudo isso agradavelmente, com simplicidade e de coração aberto. Todos estão encantados com ela, e eu mesmo não me canso de admirá-la. Gostaria de amá-la ainda mais, se isso fosse possível.”
“Ah! É assim que eu sou!”, pensei. Fiquei alegre, sentindo-me muito bem, e até me pareceu que passara a amá-lo ainda mais. De maneira nenhuma eu esperara fazer tanto sucesso junto aos nossos novos conhecidos. De todos os lados eu ouvia comentários: ou um certo tio tinha gostado muito de mim, ou titia tinha se apaixonado por mim, ou alguém tinha afirmado que, se eu quisesse, poderia ser a mulher mais sofisticada da sociedade. Em especial uma prima de Serguêi, a princesa D., uma dama de meia-idade, caiu de amores por mim e não parava de me elogiar, o que me deixava quase tonta. Certa vez, ela me convidou para ir com ela a um baile e pediu a permissão do meu marido. Quando, com um sorriso maroto, ele veio me perguntar se eu queria mesmo ir, fiz que sim com a cabeça e corei.
– Ela diz o que quer como se estivesse confessando um crime – disse ele, rindo com ar bonachão.
– Mas você não havia dito que não podemos frequentar a sociedade? Além do mais, você não gosta dessas coisas – falei rindo e com um olhar suplicante.
– Se está com muita vontade, nós iremos – respondeu.
– Talvez seja melhor não irmos.
– Mas você quer muito ir? – tornou a perguntar-me.
Não respondi.
– A vida em sociedade não é o pior dos males, mas desejos mundanos não realizados, isso sim é mau e feio – disse ele. – Não podemos deixar de ir, e nós iremos – decidiu.
– Para dizer a verdade, ir a esse baile era a coisa que eu mais queria no mundo – eu disse.
Fomos ao baile, e o prazer que tive superou todas as minhas expectativas. Ali, mais ainda me parecia que tudo girava em torno de mim, que era especialmente para mim aquele imenso salão iluminado, assim como a música e a multidão de admiradores ali reunida. Começando pelo cabeleireiro e pela camareira, até os cavalheiros com quem dancei e os velhos que cruzavam o salão, todos pareciam dizer que me queriam bem. A opinião geral sobre mim naquele baile, que eu soube depois através da prima de Serguêi, foi de que eu era completamente diferente de todas as outras moças, que eu tinha um quê interiorano, simples e encantador. Fiquei tão lisonjeada com meu sucesso que disse francamente ao meu marido que gostaria de ir a mais uns dois ou três bailes, ainda naquela temporada.
– Isso é para que eu fique totalmente saciada – disse eu, com certa hipocrisia.
Meu marido concordou de boa vontade. No início, ele me acompanhava com evidente prazer e ficava feliz com meu sucesso, parecendo haver esquecido o que dissera antes. Porém, no decorrer do tempo ele começou a se entediar e a incomodar-se com aquele modo de vida. Mas não me importava com isso e, se ele me olhava com expressão séria e indagadora, eu não entendia o motivo. Estava tão ofuscada por aquele súbito amor que todos, inclusive os estranhos, pareciam me dedicar, pela suntuosidade, pelas diversões e novidades que antes me eram desconhecidas, que de repente desapareceu a influência moral avassaladora de Serguêi sobre mim. Eu me sentia muito bem pelo fato de poder, naquele mundo novo, não só sentir-me igual a ele, mas até mesmo superior, e com isso poder gostar dele mais livremente e até mais do que antes, e não entendia o que ele via de inconveniente para mim na vida em sociedade. Um sentimento novo de orgulho e presunção me dominava quando entrava no baile e todos os olhares se fixavam em mim, enquanto ele, aparentemente constrangido de admitir perante a multidão que era o meu dono, não tardava em se afastar, sumindo no meio dos fraques pretos. “Espere!” – eu pensava, procurando com o olhar a sua figura apagada e entediada. “Espere! Em casa você vai ver e entender para quem quero ficar bonita e brilhar, e do que é que eu realmente gosto – tudo isto que me rodeia nesta festa.” Eu acreditava sinceramente que meu sucesso só me deixava feliz porque eu o dedicava a ele, somente para ter o que sacrificar por ele. O único perigo que eu julgava existir na vida mundana era que pudesse me apaixonar por algum dos rapazes que conhecera, despertando com isso ciúmes no meu marido; mas ele confiava tanto em mim, parecia tão tranquilo e indiferente, e os rapazes pareciam tão insignificantes se comparados a ele, que deixei de temer que isso acontecesse. Apesar disso, a atenção de tantos homens me agradava e aumentava minha autoestima, fazendo-me pensar que havia mérito no meu amor por meu marido, e passei a tratá-lo com mais autoconfiança e menos atenção.
– Eu o vi conversando muito animadamente com N. – disse-lhe certa vez, quando voltávamos de um baile, ameaçando-o com o dedo e mencionando uma das mulheres mais conhecidas de Petersburgo, com quem ele realmente estivera conversando naquela noite. Meu propósito era despertá-lo, pois ele estava muito calado e aborrecido.
– Ah, por que está dizendo isso? Logo você, Macha! – disse ele entre dentes, com cara de sofrimento. – Isso não combina com você nem comigo! Deixe isso para os outros, as falsidades podem estragar nossa relação verdadeira, que, espero, voltará a ser como antes.
Fiquei envergonhada e não disse nada.
– Será que voltará a ser como antes, Macha? Que você acha?
– Nossa relação nunca se estragou, e isso não vai acontecer – disse eu, acreditando sinceramente no que dizia.
– Deus a ouça, senão seria hora de voltarmos para a aldeia – disse ele.
Essa foi a única vez que ele me falou dessa maneira, pois o resto do tempo ele parecia tão feliz e alegre como eu. Se uma vez ou outra ele ficava entediado, eu me consolava com o pensamento de que por ele eu também me aborrecia na aldeia. E se nossa relação estava diferente, tudo iria mudar quando voltássemos no verão para a casa de Tatiana Semiônovna em Nikólskoie, onde seríamos só nós três.
E assim o inverno terminou e quase não notei. Contrariando nossos planos, a Semana Santa nós passamos também em Petersburgo. A volta foi marcada para depois da Páscoa. Quando tudo já estava preparado para a partida, e Serguêi, que estava carinhoso e de bom humor, já tinha comprado presentes, flores e outras coisas para levarmos para a aldeia, inesperadamente sua prima veio à nossa casa e pediu que ficássemos até o sábado, para irmos a um sarau na casa da condessa R. Ela dizia que a condessa insistira muito em que eu fosse, pois o príncipe M., que estava de passagem por Petersburgo, no último baile manifestara desejo de me conhecer, dizendo que eu era a mulher mais bonitinha da Rússia, e que ele iria ao sarau somente por minha causa. A prima disse ainda que toda a cidade iria estar lá e que não tinha cabimento nós não irmos.
Meu marido estava no outro lado da sala, conversando com alguém.
– Então, Marie, você vai? – perguntou-me a prima.
– Nós queríamos ir para a aldeia depois de amanhã – respondi indecisa e olhei para Serguêi. Ele também olhou para mim e nos deu as costas bruscamente.
– Vou tentar convencê-lo a ficar – disse a prima –, e no sábado vamos nos divertir à larga. Que você acha?
– Isso iria alterar nossos planos, já fizemos as malas – respondi, começando a ceder.
– Acho que Macha faria melhor se fosse hoje à noite à recepção ao príncipe e o cumprimentasse lá – disse Serguêi do outro lado da sala, num tom irritado, mas contido, que eu nunca tinha ouvido dele antes.
– Ah, ele está com ciúmes, nunca o tinha visto assim – disse a prima, rindo. – Mas, Serguêi Mikháilovitch, não é só pelo príncipe, é por todos nós que estou tentando convencê-la. A condessa R. insistiu tanto...
– Depende dela, então – disse ele com frieza, saindo da sala.
Percebi que ele estava mais perturbado do que das outras vezes. Fiquei aflita com isso e não prometi nada à sua prima.
Assim que ela se foi, fui procurá-lo. Ele estava pensativo, andando de um lado para o outro, e não viu quando entrei no quarto na ponta dos pés. “Ele já deve estar imaginando-se na sua querida casa de Nikólskoie”, pensei, olhando para ele. “O café de manhã cedo na sala clara, suas terras, os camponeses, as noites na sala de estar e nossas ceias secretas à meia-noite. Não! Não troco sua alegria tímida e seu carinho sereno por nenhum baile no mundo nem pelas lisonjas de príncipe nenhum”, resolvi comigo mesma. Ia dizer-lhe que não iria ao sarau, quando ele se virou e, vendo-me, fechou a cara, fazendo desaparecer do seu rosto a expressão tímida e pensativa de segundos antes. Novamente seu olhar exprimia perspicácia, sabedoria e serenidade paternal. Não queria que eu o visse como um ser humano comum. Diante de mim, tinha necessidade de estar sempre num pedestal, como um semideus.
– O que é, querida? – perguntou ele, virando-se para mim calma e displicentemente.
Não respondi. Fiquei aborrecida porque ele escondia o que realmente estava sentindo e não queria continuar a ser o homem que eu amava.
– Você quer ir ao sarau no sábado? – perguntou-me.
– Vontade eu tenho, mas isso não lhe agrada. Além disso, a bagagem já está pronta – disse eu.
Nunca ele havia olhado ou falado comigo com tanta frieza.
– Não vou partir antes de terça-feira e vou mandar desfazer as malas – disse ele –; por isso, você pode ir, se quiser. Faça-me esse favor, vá. Eu não irei.
Ele caminhava nervosamente pelo quarto, como fazia quando estava preocupado.
– Definitivamente, não o compreendo – eu disse, parada no mesmo lugar e seguindo-o com os olhos –, você diz que está sempre calmo (ele nunca dissera isso). Por que está falando comigo desse jeito tão estranho? Estou disposta a fazer um sacrifício por você não indo a esse sarau, e você, com esse jeito irônico, como nunca falou comigo antes, está exigindo que eu vá?
– Pois então, você se sacrifica, e eu também me sacrifico, o que pode ser melhor? Será uma batalha entre duas generosidades – disse ele com ênfase na palavra sacrifica. – Que mais se pode querer, em se tratando de felicidade conjugal?
Era a primeira vez que ouvia dele palavras tão furiosas e irônicas. Mas sua ironia não me fez ficar envergonhada, e sim ofendida, e sua fúria não me intimidou; ao contrário, contagiou-me. Logo ele, falando comigo daquela maneira, ele, que tinha tanto cuidado com as palavras e era sempre tão franco e simples? E por que motivo? Porque eu queria sacrificar por ele um prazer no qual não via mal algum. E um minuto antes eu o compreendia tão bem e o amava! Nossos papéis estavam trocados: ele evitava palavras diretas e simples, enquanto eu as procurava.
– Você mudou muito – disse eu com um suspiro. Que foi que fiz de errado? Não é por causa do sarau, faz tempo que você guarda alguma coisa contra mim. Por que a falta de sinceridade? Não era você que tinha medo dela antes? Diga abertamente o que tem contra mim.
“Ele vai dizer alguma coisa”, pensava eu, lembrando-me pretensiosamente de que eu não havia feito nada naquele inverno que pudesse ser motivo de recriminação. Fui para o meio do quarto, para que ele tivesse obrigatoriamente de passar por mim, e fiquei olhando para ele. “Ele vai se aproximar e me abraçar, e tudo isso acabará”, pensei, e cheguei a lamentar que não teria oportunidade de demonstrar-lhe como estava errado. Mas ele permaneceu num canto do quarto e me fitou.
– Você ainda não entendeu? – disse ele.
– Não.
– Então vou lhe dizer. Tenho nojo do sentimento que tenho agora e que não posso evitar – e parou, talvez assustado pelo tom desagradável de sua própria voz.
– Mas o que é? – perguntei, chorando de indignação.
– Tenho nojo, porque o príncipe disse que você é bonitinha e por isso você vai correndo ao encontro dele, esquecendo-se do seu marido e de sua própria dignidade de mulher, e não quer compreender que seu marido deve fazer isso por você, uma vez que lhe falta amor-próprio. Ao contrário, você vem dizer ao seu marido que vai se sacrificar, ou seja, “exibir-me para sua alteza é uma grande felicidade para mim, mas me privarei disso como um sacrifício”.
Quanto mais ele falava, mais se inflamava pelo som da própria voz, que soava áspera, grosseira e venenosa. Nunca o vira nem esperava vê-lo assim; o sangue afluiu ao meu coração, fiquei com medo, mas ao mesmo tempo uma sensação de vergonha imerecida e o amor-próprio ultrajado me deixavam aturdida e com vontade de vingar-me.
– Já esperava por isso havia muito tempo – disse eu. – Continue, continue.
– Não sei o que você esperava – continuou ele –, eu podia prever o pior, vendo você diariamente nessa sujeira, ociosidade e ostentação estúpida da alta sociedade. E aconteceu... Agora sinto vergonha e dor como nunca senti, dor por mim, dor porque sua amiga com as mãos sujas se insinuou no meu coração e começou a falar de ciúme, disse que eu estava com ciúme. Ciúme de quem? De uma pessoa que nem eu nem você conhecemos. E você, como que de propósito, não quer me entender e quer fazer-me um sacrifício? Sinto vergonha por você, pela sua humilhação! Sacrifício! – repetiu.
“Ah! Então é este o poder do marido!”, pensei. “Ofender e humilhar sua mulher inocente. Isso pode ser direito do marido, mas não vou me submeter.”
– Não, não vou fazer nenhum sacrifício por você – disse eu, sentindo que minhas narinas se dilatavam e o sangue fugia do meu rosto. – Irei ao sarau no sábado, sem falta!
– Deus queira que você se divirta bastante, mas só que entre nós está tudo acabado! – gritou ele num acesso de raiva que já não podia controlar. – Mas você não vai mais me atormentar. Fui tolo em... – quis continuar, mas seus lábios tremeram e ele fez um visível esforço para não terminar o que iria dizer.
Naquele instante, eu o temia e odiava. Queria dizer-lhe muitas coisas e vingar-me pelas ofensas que ele me fizera, mas, se abrisse a boca, iria começar a chorar e me rebaixaria diante dele, por isso calei e saí do quarto. Porém, mal deixei de ouvir seus passos, horrorizei-me com o que tínhamos acabado de fazer. Fiquei apavorada de pensar que para sempre se rompera a nossa relação, que toda a minha felicidade estava acabada, e quis voltar atrás. “Será que ele já se acalmou o suficiente para me entender, quando eu lhe estender a mão e fitá-lo nos olhos?” – eu pensava. “Será que ele compreenderá como estou sendo generosa? E se ele achar que minha dor é fingida? Ou, então, se ele, certo de que tem razão, aceitar meu arrependimento com altivez e serenidade e me perdoar? E por que ele, que eu amava tanto, ofendeu-me de maneira tão cruel?”
Mas, em vez de ir ter com ele, fui para o meu quarto e lá fiquei muito tempo chorando e lembrando, horrorizada, cada palavra daquela nossa conversa, substituindo as palavras ditas por outras e acrescentando palavras suaves não ditas, e novamente recordando tudo com horror e sentimento de humilhação. À tarde, apareci para o chá, ao qual estava presente nosso hóspede S., e, quando encontrei com meu marido, senti que a partir daquele dia um abismo estava aberto entre nós. S. perguntou-me quando iríamos para a aldeia, mas eu não tive tempo de responder.
– Na terça-feira – respondeu meu marido –, nós ainda vamos ao sarau da condessa R. Você vai, não é? – perguntou-me.
Assustou-me o som daquela simples voz, e olhei para ele timidamente. Seus olhos estavam fixos em mim, seu olhar era cruel e zombeteiro; sua voz, serena e fria.
– Sim – respondi.
À noite, quando ficamos a sós, ele se aproximou e estendeu-me a mão.
– Esqueça, por favor, o monte de coisas que eu lhe disse hoje – disse ele.
Peguei a mão dele, sorri com um tremor nos lábios e com as lágrimas prestes a correr, mas ele retirou sua mão como se temesse uma cena sentimental e sentou-se numa poltrona bem longe de mim. “Será possível que ele ainda ache que está com a razão?”, pensava eu. E minhas explicações, acompanhadas do pedido para que não fôssemos ao sarau, ficaram presas na minha garganta.
– Preciso escrever para mamãe avisando que nós adiamos a partida, senão ela vai ficar preocupada – disse ele.
– E quando você está pensando em ir? – perguntei.
– Na terça-feira, passado o sarau – respondeu.
– Espero que não seja por minha causa – disse eu, olhando-o diretamente. Mas os olhos dele me fitavam sem transmitir nada, como se uma barreira os separasse de mim. De repente, seu rosto pareceu-me envelhecido e desagradável.
Fomos ao sarau. Aparentemente nossas relações eram de novo boas, amistosas, mas, na realidade, estavam totalmente diferentes.
Durante o sarau, eu estava sentada entre as senhoras quando o príncipe se aproximou de mim, forçando-me a levantar para falar com ele. Nesse momento, sem querer busquei com os olhos meu marido. Do outro lado do salão, ele me observava e, quando olhei para ele, deu-me as costas. Aquilo me mortificou, deixou-me perturbada, fiquei corada até o pescoço e, ainda por cima, com vergonha por estar passando por aquele sofrimento diante do príncipe. Mas era obrigada a ficar ali de pé e ouvir o que ele me dizia, enquanto me olhava de cima a baixo. Nossa conversa foi curta, não havia ali perto lugar para sentarmos, e ele provavelmente notou que eu estava muito constrangida na sua presença. Falamos sobre o baile anterior, sobre o lugar onde costumo passar o verão e outras coisas do gênero. Ao se afastar, ele manifestou desejo de conhecer meu marido; mais tarde eu os vi conversando no outro lado do salão. Provavelmente o príncipe dissera alguma coisa sobre mim, porque olhou para o meu lado e sorriu.
De repente, meu marido ficou vermelho, fez uma reverência profunda e deu as costas ao príncipe. Fiquei envergonhada do conceito que o príncipe deveria estar fazendo de mim e, principalmente, dele. Tinha a impressão de que todos haviam notado minha timidez e embaraço enquanto conversava com o príncipe, e também a atitude estranha de Serguêi. Sabe Deus como eles iriam interpretar isso, pois ninguém sabia da minha conversa anterior com meu marido. Na volta, a prima acompanhou-me até meu apartamento e pelo caminho fomos conversando sobre ele. Não pude conter-me e contei-lhe tudo o que acontecera por causa daquele infeliz sarau. Ela tentou tranquilizar-me, dizendo que tudo não passava de uma desavença insignificante e que não haveria nenhuma consequência; disse o que ela achava da personalidade do meu marido e que ele tinha mudado bastante, tinha se tornado pouco comunicativo e orgulhoso. Concordei com ela, e naquele momento, achei que o entendia melhor e com mais serenidade.
Mas depois, quando fiquei a sós com ele, esse julgamento que nós duas fizéramos dele pesava na minha consciência, como um crime, e senti que o abismo entre nós tinha ficado ainda mais profundo.
VIII
A partir daquele dia nossa vida e nosso relacionamento mudaram radicalmente. Já não nos sentíamos tão bem a sós, como antes. Havia perguntas que evitávamos, e era mais fácil conversar na presença de uma terceira pessoa do que a sós os dois, entre quatro paredes. Bastava o assunto se voltar para a vida na aldeia ou para bailes que nossos olhos pareciam se turvar e ficávamos constrangidos de nos olharmos diretamente. Era como se sentíssemos onde estava o abismo que nos separava e temêssemos nos aproximar dele. Eu já me havia convencido de que ele era orgulhoso e irascível e de que precisaria ter mais cuidado para não provocar seu ponto fraco. De sua parte, ele havia metido na cabeça que eu já não podia passar sem a vida em sociedade, que eu não suportava a aldeia e que ele teria de sujeitar-se a esse meu gosto infeliz. E assim evitávamos discutir abertamente essas questões, continuando a fazer juízos errados um do outro. Já não nos víamos mutuamente como as melhores pessoas do mundo, fazíamos comparações com outras pessoas e secretamente tecíamos nosso juízo um sobre o outro.
Fiquei adoentada na véspera da partida e, em vez de irmos para a aldeia, nos transferimos para a casa de verão, de onde meu marido foi sozinho visitar sua mãe. Eu já tinha melhorado o suficiente para poder acompanhá-lo, mas ele me convenceu a ficar, aparentemente temendo pela minha saúde. Tive a impressão de que o temor dele, na realidade, era de que não nos sentíssemos bem na aldeia. Não insisti e fiquei. Sem ele me senti vazia e só, mas, quando retornou, notei que a presença dele já não acrescentava nada à minha vida como antes. Aquela nossa antiga relação, no tempo em que eu achava que deveria contar a ele tudo o que se passava comigo, o que eu sentia ou pensava, pois me sentiria uma criminosa se não o fizesse, não existia mais; e também nas atitudes dele já não via exemplos de perfeição, já não ríamos sem motivo, olhando um para o outro, pelo simples prazer de rir. Tudo isso foi desaparecendo sem que notássemos. Agora cada um tinha seus próprios interesses e preocupações, que não procurava compartilhar com o outro. Passamos a aceitar com naturalidade que cada um tivesse seu próprio mundo, onde o outro não tinha lugar. Acostumamo-nos tanto com essa situação que nossos olhos já não se turvavam quando olhávamos um para o outro. E desapareceram também os acessos de alegria de Serguêi, suas criancices, sua condescendência e indiferença a tudo, que antes me irritavam tanto. Desapareceu aquele olhar profundo, que em outra época me deixava confusa e feliz; já não rezávamos juntos, não nos encantávamos com nada. Passamos a nos ver raramente, pois ele estava sempre viajando e já não tinha pena nem receio de me deixar sozinha. E eu estava constantemente nas rodas sociais, onde ele era dispensável.
Cenas e brigas já não ocorriam entre nós; eu fazia tudo para agradá-lo, ele satisfazia todos os meus desejos, e dávamos a impressão de nos amarmos. Quando ficávamos a sós, o que raramente acontecia, eu não sentia nem alegria, nem perturbação, nem constrangimento, como se ele não estivesse ali. Eu sabia muito bem que aquele era o meu marido, não era nenhum estranho, que ele era uma boa pessoa, que eu o conhecia tão bem como a mim mesma. Estava certa de saber tudo o que ele fazia, o que iria dizer, sua maneira de olhar; e, se ele agia ou olhava de maneira diferente da que eu esperava, parecia-me que ele tinha se enganado. Não esperava nada dele. Em síntese, ele era o meu marido e nada mais. Parecia-me que era assim que deveria ser, que não poderia haver outro tipo de relacionamento entre nós, e que até mesmo nunca existira outro tipo. Em especial nos primeiros tempos, eu tinha medo e me sentia muito só quando ele viajava e percebia com mais força o que significava para mim o seu apoio; quando ele voltava, atirava-me ao seu pescoço morrendo de alegria. Mas, duas horas depois, já tinha esquecido completamente essa alegria e não tinha mais assunto para conversar com ele.
Era somente nos instantes de ternura serena, comedida, que às vezes tínhamos, que eu percebia que algo não era normal. Sentia uma dor no coração, e nos olhos dele eu pensava ver a mesma coisa. Eu sentia que havia entre nós um limite para a ternura, o qual ele não queria e eu não podia ultrapassar. Às vezes ficava triste com isso, mas não tinha tempo de refletir sobre o que quer que fosse e procurava esquecer a mágoa pelas mudanças, ainda incompreendidas, com as diversões, que estavam sempre prontas, à minha espera. A vida mundana, que me inebriava no início por seu brilho e afagos à minha autoestima, logo dominou todo o meu ser, tornou-se um hábito e me aprisionou, passando a ocupar na minha alma o lugar que deveria ser dos sentimentos. Eu nunca ficava sozinha comigo mesma e tinha medo de pensar sobre minha situação. Todo o meu tempo, do final da manhã até altas horas da noite, estava ocupado e não me pertencia, mesmo que ficasse em casa. Não achava isso nem divertido, nem aborrecido; achava que as coisas deveriam ser assim mesmo.
Dessa maneira, passaram-se três anos, e nossas relações permaneceram as mesmas, como se tivessem congelado e não pudessem melhorar nem piorar. Nesses três anos, aconteceram para nós dois fatos importantes, mas que não mudaram minha vida. Um deles foi o nascimento do meu primeiro filho, o outro foi a morte de Tatiana Semiônovna. Quando meu filho nasceu, no início o sentimento maternal me dominou intensamente, despertando de repente em mim uma emoção tão forte que pensei que se iniciaria uma vida nova. Porém, dois meses depois, quando voltei a sair, esse sentimento foi aos poucos diminuindo, acostumei-me a ele e, para mim, tudo aquilo já não passava de um dever, que eu cumpria friamente. Meu marido, ao contrário, desde o nascimento do nosso filho voltou a ser o mesmo homem manso, pacato e caseiro de antigamente, transferindo sua alegria e ternura para a criança. Muitas vezes eu entrava no seu quartinho para dar-lhe a bênção, já vestida para o baile, e encontrava lá Serguêi, que me fitava atentamente, com tanta censura no olhar que me deixava envergonhada. Às vezes eu mesma ficava horrorizada com minha indiferença em relação ao meu filho e me perguntava: “Será que sou pior do que as outras mulheres? Mas o que posso fazer? Eu amo meu filho, mas não consigo passar o tempo todo ao lado dele, acho enfadonho; e não há nada no mundo que me faça fingir.”
A morte da mãe trouxe para Serguêi uma grande dor, e ele achava penoso viver em Nikólskoie sem ela. Para mim, contudo, embora eu sentisse sua morte e partilhasse a dor dele, viver na aldeia era agora mais agradável e tranquilo. Esses três anos nós passamos praticamente na cidade, fomos uma só vez para a aldeia, onde ficamos dois meses; no terceiro ano fomos para o exterior.
Passamos o verão numa estação de águas, em Baden. Eu estava então com 21 anos e pensava que tínhamos uma ótima situação financeira. E nada exigia da minha vida familiar além do que ela já me dava; todas as pessoas que eu conhecia pareciam gostar de mim, minha saúde era boa, em todo o balneário meu guarda-roupa era o mais elegante, não tinha dúvidas de que era bonita, o tempo estava maravilhoso e uma atmosfera de beleza e requinte me envolvia. Sentia-me, portanto, muito feliz e alegre. Mas não tinha a alegria que tinha em Nikólskoie, quando sentia que era feliz por mim mesma, porque merecera sê-lo e aspirava a uma felicidade ainda maior. Agora era diferente, mas naquele verão estava me sentindo bem. Não desejava nem esperava nada, não tinha medos, minha consciência estava tranquila e parecia-me que minha vida estava completa.
Nenhum dos homens presentes naquela estação de águas me chamou a atenção; nem mesmo o príncipe K., nosso idoso cônsul, que me fazia a corte. Quanto aos demais, um era jovem, outro era velho, havia um inglês louro e um francês com uma barbicha. Para mim, eram todos iguais, necessários apenas porque seus rostos inexpressivos ajudavam a compor a atmosfera alegre que me rodeava. Somente um italiano, o marquês D., destacou-se pela maneira ousada com que manifestava a admiração que tinha por mim. Ele não perdia nenhuma oportunidade de estar perto de mim, tirava-me para dançar, cavalgava comigo, seguia-me no cassino. E o tempo todo dizia que eu era linda. Da janela eu o vi várias vezes parado em frente ao meu hotel, e seus olhos brilhantes, desagradavelmente cravados em mim, faziam-me corar e desviar os olhos. Ele era jovem e elegante, mas o mais importante era que seu sorriso e formato da testa lembravam Serguêi, embora o italiano fosse muito mais bonito. Essa semelhança me impressionava, mas os lábios, o olhar, o queixo comprido e todo ele revelavam algo grosseiro, animalesco, em lugar da maravilhosa expressão de bondade e de ideal serenidade do meu marido. Eu supunha que o italiano estivesse apaixonado por mim e às vezes pensava nele com pena, mas com altivez. Tentei algumas vezes acalmar sua paixão, tratando-o como se entre nós existisse somente confiança e amizade, mas ele repudiava vigorosamente minhas tentativas e continuava desagradavelmente a me constranger com sua paixão ainda não declarada, mas que poderia sê-lo a qualquer momento. Embora não reconhecesse, eu temia aquele homem e, sem querer, pensava nele. Meu marido o conhecia e o tratava com uma frieza e uma altivez acima do normal.
No fim da temporada, fiquei doente e não saí de casa durante duas semanas; e, quando finalmente saí à tarde para ouvir música, fiquei sabendo da chegada de uma certa lady S., famosa por sua beleza, e que vinha sendo ansiosamente aguardada. Quando cheguei ao local da música, logo se juntou ao meu redor uma roda alegre e acolhedora, mas um grupo ainda maior estava formado em torno da famosa leoa. O assunto geral das conversas girava em torno dela e de sua beleza. Ela era realmente lindíssima, mas fiquei chocada com seu ar de presunção e comentei a esse respeito. Naquele dia, não achei graça em nada daquilo que antes me divertia.
No dia seguinte, lady S. organizou uma excursão a um castelo, mas não quis participar. Quase ninguém ficou comigo, e uma mudança radical ocorreu no meu modo de ver as coisas. Tudo e todos de repente me pareceram tolos e aborrecidos, tinha vontade de chorar, de terminar logo a estação de águas e voltar para a Rússia. Tinha na alma um sentimento mau, mas ainda não admitia isso. Dizia que estava me sentindo fraca e não comparecia aos lugares em que a sociedade se reunia. Saía somente pela manhã, para tomar água mineral, ou então passeava pelos arredores na companhia de L. M., uma russa minha conhecida. Meu marido estava ausente, tinha ido passar alguns dias em Heidelberg e aguardava o final do meu tratamento para voltarmos para casa, vindo somente de vez em quando me visitar.
Certo dia, lady S. conseguiu levar toda a sociedade para uma caçada e eu saí com L. M., depois do almoço, para visitar o castelo. A carruagem subia devagar a estrada sinuosa ladeada de castanheiros seculares, por entre os quais se vislumbravam os elegantes subúrbios de Baden iluminados pelo sol poente. Durante o percurso, conversamos de maneira séria, como nunca havíamos conversado antes. L. M. pareceu-me, então, uma mulher bondosa e inteligente, com a qual se podia falar de tudo e cuja amizade era agradável. Falamos sobre família, filhos, sobre a vida vazia no balneário, dissemos que gostaríamos de voltar para a Rússia, para a aldeia, e nos sentimos bem, embora tristes. Nesse estado de espírito entramos no castelo. Lá dentro estava escuro e frio. No alto, as ruínas estavam iluminadas pelo sol, e de lá se ouviam passos e vozes. Emoldurada pela porta, via-se a maravilhosa paisagem de Baden, que para nós, russos, parece um pouco fria. Sentamo-nos para descansar e em silêncio ficamos admirando o pôr do sol. As vozes tornaram-se mais fortes e pareceu-me ouvir meu sobrenome. Apurei os ouvidos e distingui todas as palavras. As vozes eram familiares: uma era do marquês D., a outra, de um francês amigo dele, que eu também conhecia. Falavam sobre mim e sobre lady S. O francês fazia uma comparação entre nós duas, analisando a beleza de cada uma. Não dizia nada ofensivo, mas senti um aperto no coração ao ouvi-lo. Ele explicava detalhadamente o que havia de bonito em mim e em lady S.: eu já tinha um filho, enquanto lady S. tinha só dezenove anos; minha trança era mais bonita, mas em compensação a inglesa tinha um corpo mais gracioso; a lady era uma grande dama, enquanto a “sua” é uma dessas princesinhas russas que estão aparecendo cada vez mais por aqui. Ele concluiu dizendo que eu fazia muito bem em não tentar competir com ela e que minha carreira em Baden estava definitivamente enterrada.
– Tenho pena dela. A menos que ela queira se consolar com você... – disse o francês com uma risada alegre e impiedosa.
– Se ela for embora, irei atrás dela – disse o marquês com seu áspero sotaque italiano.
– Homem feliz! Ainda consegue amar! – disse rindo o francês.
– Amar! – falou o italiano, calando-se em seguida. – Não posso deixar de amar, sem isso não há vida. Transformar a vida num romance é a única coisa boa que existe. Um romance meu nunca se interrompe no meio. Este também eu levarei até o fim.
– Bonne chance, mon ami[7] – disse o francês.
Não ouvimos mais nada, porque eles dobraram uma esquina. Depois, ouvimos seus passos vindo do outro lado. Eles desceram a escada, saindo por uma porta lateral, e se espantaram muito ao ver-nos. Fiquei vermelha quando o marquês D. aproximou-se e senti um pavor quando ele me ofereceu o braço, ao sairmos do castelo. Mas não pude recusar e, atrás de L. M., que ia na companhia do francês, dirigimo-nos para a carruagem. Estava ofendida com o que o francês dissera de mim, embora no íntimo concordasse com ele. Já as palavras do marquês, elas me surpreenderam e perturbaram pela sua rudeza. Incomodava-me pensar que eu ouvira suas palavras e, mesmo assim, ele não se intimidara. Dava-me repugnância senti-lo tão próximo de mim e eu não olhava para ele nem respondia às suas perguntas. Esforçando-me para manter-me afastada dele o mais possível, para não ouvi-lo, eu tentava alcançar L. M. e o francês. O marquês dizia algo relacionado com a belíssima paisagem, com a inesperada felicidade de me encontrar e outras coisas mais, mas eu não lhe prestava atenção. Naquele momento, eu pensava no meu marido, no meu filho, na Rússia. Sentia vergonha, desgosto, desassossego, queria chegar o quanto antes ao hotel para, na solidão do meu quarto, refletir sobre o que se passava na minha alma. Mas L. M. caminhava devagar, e a carruagem ainda estava longe. Meu cavalheiro me dava a impressão de andar mais devagar propositalmente, para forçar-me a parar. “Não pode ser!”, pensei, e resolutamente comecei a andar mais depressa. Mas ele de fato queria me atrasar e até apertou o meu braço. L. M. desapareceu numa curva da estrada e ficamos completamente a sós. Fiquei com medo.
– Desculpe – disse friamente, tentando soltar meu braço, mas a renda do meu punho prendeu-se num dos seus botões. Ele inclinou o dorso na minha direção e tentou desvencilhar o botão, e sua mão sem luva tocou a minha. Uma sensação nova, um misto de medo e prazer, percorreu a minha espinha como uma onda gelada. Encarei-o para mostrar-lhe todo o meu desprezo e indiferença, mas meu olhar exprimia, na verdade, embaraço e susto. Seus olhos úmidos e ardentes, bem próximos do meu rosto, fitavam com paixão meu pescoço, meu seio. Suas mãos deslizavam pelo meu braço e sua boca entreaberta pronunciava palavras, ele dizia que me amava, que eu era tudo para ele. Seus lábios se aproximavam cada vez mais do meu rosto, e suas mãos apertavam meu braço e pareciam queimar-me. Senti um fogo percorrendo minhas veias, minha vista escureceu e as palavras que eu pretendia dizer para acalmá-lo ficaram presas na minha garganta. De repente, senti um beijo na minha face e, gelada e tremendo, parei e olhei para ele. Terrificada, sem forças para falar ou andar, esperava e desejava não sabia o quê. Isso não durou mais do que um instante, mas foi horrível! Foi então que eu o vi tal qual era realmente: a testa proeminente, semelhante à do meu marido, aparecia debaixo do chapéu de palha; o nariz bonito e reto, com narinas dilatadas; longos bigodes com pontas finas untadas com pomada; a barbicha; as bochechas bem escanhoadas; o pescoço bronzeado. Nada nele tinha a ver comigo, eu sentia ódio e medo dele, mas naquele momento fiquei sob a influência do arroubo apaixonado de um estranho que eu detestava! Sentia um desejo irrefreável de entregar-me aos beijos daquela boca bonita e brutal e de deixar-me envolver por seus braços e suas mãos brancas com veias azuis e muitos anéis. Alguma coisa me empurrava para que eu me lançasse sem refletir naquele abismo de prazeres proibidos que se abrira de repente.
“Sou tão infeliz! Que caiam mais e mais desgraças sobre a minha cabeça”, pensei.
Ele passou um braço ao meu redor e inclinou-se para o meu rosto. “Que caia mais vergonha e pecado sobre a minha cabeça.”
– Je vous aime – murmurou ele, com uma voz muito parecida com a de Serguêi.
Vieram-me à lembrança meu marido e meu filho, na forma de pessoas que muito tempo atrás eu amara, mas com as quais não tinha mais nada. Porém, nesse momento ouvi a voz de L. M., que me chamava. Despertei do estado em que me encontrava, soltei minha mão e, sem olhar para ele, fui quase correndo para a carruagem. Sentamo-nos, e só então o olhei. Ele tirou o chapéu e fez-me sorrindo uma pergunta, sem compreender que o que eu sentia por ele naquele minuto era uma aversão indescritível.
Minha vida me pareceu tão infeliz, não via esperança no futuro, e o passado era tão negro! No caminho, L. M. conversava comigo, mas eu não entendia o que ela estava dizendo. Achei que ela falava comigo porque estava com pena de mim, para disfarçar o desprezo que eu lhe provocava. Eu via desprezo e dó em cada palavra e em cada olhar dela. Sentia vergonha e aquele beijo queimava minha face, e não suportava a lembrança do meu marido e do meu filho.
Ao ficar sozinha no meu quarto, esperava poder meditar sobre a minha situação, mas a solidão me apavorou. Não terminei meu chá e, sem ideias muito claras, comecei a arrumar as malas apressadamente, a fim de tomar o trem noturno para Heidelberg e encontrar-me com Serguêi.
Acomodamos-nos, eu e a criada, no vagão vazio, e o trem partiu. Senti o vento fresco que entrou pela janela e só então caí em mim e comecei a perceber mais claramente o meu passado e o meu futuro. Comecei a ver sob nova luz toda a minha vida de casada desde o momento da mudança para Petersburgo, e aquilo me pesava na consciência como uma censura. Pela primeira vez, vieram-me vivamente à lembrança nossos primeiros tempos na aldeia, os planos que fazíamos. Pela primeira vez me ocorreu a pergunta: que alegrias ele teve durante todo esse tempo? Comecei a sentir-me culpada em relação a ele. “Mas por que ele não me fez parar, por que me tratava com hipocrisias, por que evitava explicações, por que me ofendia?”, eu me perguntava. “Por que não usou o poder do amor comigo? Ou será que ele não me amava?” Mas, por mais que a culpa fosse de meu marido, continuava sentindo o beijo de outro homem na minha face. À medida que nos aproximávamos de Heidelberg, mais claramente eu via a figura de meu marido e me apavorava com aquele encontro iminente. “Vou contar tudo a ele, vou pagar tudo o que fiz com lágrimas de arrependimento, ele vai me perdoar.”
Assim que entrei no quarto e vi seu rosto calmo, embora surpreso, senti que não tinha nada para dizer a ele, nem para confessar ou pedir perdão. A dor e o arrependimento não expressos teriam de permanecer dentro de mim.
– Que ideia foi essa? Eu estava querendo ir amanhã visitá-la – disse ele. Mas, olhando mais de perto, pareceu ficar assustado. – Que você tem? Aconteceu alguma coisa? – perguntou.
– Não é nada – respondi, mal contendo as lágrimas. – Vim de vez. Gostaria de voltar amanhã mesmo para a Rússia.
Ele me fitou atentamente durante um certo tempo, em silêncio, depois perguntou:
– Mas fale, o que aconteceu com você?
Sem querer, baixei os olhos, ruborizada. Seus olhos lampejaram de cólera e indignação. Fiquei com medo do que ele poderia pensar e, com uma dissimulação que eu mesma desconhecia em mim, falei:
– Não aconteceu nada, eu simplesmente estava me sentindo triste e aborrecida, sozinha lá, e estive pensando muito sobre a nossa vida e sobre você. Há muito tempo que eu sou culpada diante de você. Por que você me acompanha nas viagens contra a sua vontade? Eu sou culpada diante de você – repeti, e meus olhos se encheram de lágrimas. – Vamos voltar para a aldeia, desta vez para sempre.
– Ah, minha cara, poupe-me de cenas sentimentais – disse ele com frieza. – Que você queira ir para a aldeia é maravilhoso, pois o dinheiro está curto; mas que será para sempre, isso não passa de um sonho. Sei que você não se acostumará. Tome um chá, vai lhe fazer bem – disse ele, levantando-se para chamar o criado.
Fiquei imaginando o que ele poderia estar pensando de mim, sentia-me insultada pelo que eu deduzia da maneira incrédula e meio injuriosa como ele me olhava. “Não! Ele não quer nem pode me compreender!”
Disse então que iria ver meu filho e saí do seu quarto. Queria ficar só e chorar, chorar, chorar...
IX
A velha mansão de Nikólskoie, onde há muito tempo as lareiras estavam apagadas, reviveu novamente, mas não com o que antes havia nela. A mamãe já não estava, e ficamos sozinhos um diante do outro. Agora, porém, já não sentíamos necessidade de ficar a sós, como antes; ao contrário, a solidão nos constrangia. Meu primeiro inverno foi difícil, estive doente e só me recuperei depois do nascimento do meu segundo filho. As relações com meu marido continuavam amigavelmente frias, como no tempo em que passamos na cidade, mas, na aldeia, cada tábua do assoalho, cada parede, cada divã me faziam recordar como Serguêi tinha sido em outra época e o que eu havia perdido. Era como se existisse entre nós uma ofensa não perdoada e ele estivesse me castigando por algum motivo, mas fingindo que não se dava conta disso. Não havia motivo para eu pedir perdão nem misericórdia: o castigo consistia apenas em não se dar todo para mim, não entregar sua alma, como fazia antigamente. Mas, por outro lado, ele também não a dava a ninguém nem a nada, como se já não tivesse mais alma. Às vezes eu pensava que aquilo era só fingimento para me fazer sofrer, que o amor antigo ainda estava vivo, e fazia tudo o que podia para despertá-lo, mas Serguêi sempre evitava abrir seu coração, como se não confiasse em mim e tivesse medo de parecer sentimental e ridículo. Seu olhar e seu tom diziam: “Sei de tudo, sei de tudo. Não é preciso dizer nada. Sei até o que você está querendo dizer. Sei também que você diz uma coisa e faz outra.”
A princípio aquele seu medo da sinceridade me deixava ofendida, mas depois me acostumei com a ideia de que o que havia de fato era simplesmente falta da necessidade de sinceridade. Agora eu já não moveria a língua para dizer que o amava, ou para pedir que rezasse comigo, ou para convidá-lo a me ouvir tocar. Eu sentia que entre nós estabeleceram-se convenções para que as aparências fossem mantidas. Cada um vivia a sua vida, ele com seus assuntos, dos quais eu já não queria nem necessitava participar, e eu com minha ociosidade, que já não o insultava e entristecia como antes. As crianças eram ainda muito pequenas para que pudessem nos unir.
Entretanto, chegou a primavera. Kátia e Sônia vieram passar o verão na aldeia. Começou a reforma de nossa casa de Nikólskoie e nos mudamos para Pokróvskoie, que continuava igual, com sua varanda, sua mesa elástica, o piano no salão claro, o meu antigo quarto com cortinas brancas e com meus sonhos de menina que, pelo visto, eu esquecera lá. Havia duas camas no meu quarto. Numa delas, que tinha sido minha, eu à noite dava a bênção ao meu gordinho Kokochka, ali esparramado; na outra, menor, via-se a carinha de Vânia[8] no meio dos cueiros. Muitas vezes, depois de abençoá-los, eu parava no meio do quarto silencioso e, de repente, de todos os cantos, das paredes e das cortinas, surgiam antigas visões juvenis, havia muito esquecidas. Velhas vozes começavam a cantar canções de menina. Onde foram parar aquelas visões e as belas e doces canções? Tudo o que confusamente eu ousara sonhar na meninice afinal se realizara, mas a realidade havia se tornado aquela vida pesada, difícil, sem alegria.
E tudo continuava da mesma maneira: o mesmo jardim que se avistava da janela, o mesmo pátio, a estradinha, o mesmo banco no alto do morrinho, o mesmo canto do rouxinol, os lilaseiros em flor, a mesma lua sobre a casa... Mas agora tudo aquilo parecia terrivelmente diferente e frio, tudo que poderia ser tão caro e familiar! Como antigamente, Kátia e eu sentávamos e juntas conversávamos, e o assunto frequentemente era Serguêi. Mas Kátia, agora mais magra e envelhecida, com a pele amarelada e cheia de rugas, já não ficava com os olhos brilhando de esperança e alegria, agora o que havia neles era tristeza e compaixão. Já não nos referíamos a ele com admiração, como antigamente, e sim o criticávamos. Já não nos perguntávamos, admiradas, por que éramos tão felizes nem tínhamos desejo de contar para todo mundo o que se passava pela nossa cabeça, e, como conspiradoras, em surdina nos perguntávamos pela centésima vez por que tudo havia mudado de maneira tão triste.
Serguêi Mikháilovitch quase não mudara, apenas a ruga entre as sobrancelhas estava mais acentuada, seu cabelo estava mais branco nas têmporas, e seu olhar profundo e atento ficava constantemente enevoado em minha presença. Eu continuava a mesma, mas já não havia em mim amor nem vontade de ser amada. Não tinha necessidade de trabalhar e não estava satisfeita comigo. E pareciam tão distantes e impossíveis os arroubos religiosos, o meu amor por Serguêi, a sensação de plenitude de antigamente! Eu achava sem sentido aquilo que antes me parecia claro e verdadeiro: viver para os outros. Por que para os outros, se não tenho vontade de viver nem para mim mesma?
Desde que fomos para Petersburgo, eu tinha abandonado totalmente a música, mas agora estava novamente tomando gosto pelo velho piano e pelas partituras.
Certo dia estava indisposta e fiquei em casa sozinha; Kátia e Sônia tinham ido a Nikólskoie com Serguêi, para ver como ia a reforma da casa. Na hora do chá, eu desci. A mesa já estava posta, mas resolvi esperá-los e sentei-me ao piano. Abri o álbum na Sonata quasi una fantasia e comecei a tocá-la. Não havia ninguém, as janelas estavam abertas para o jardim. As notas familiares, solenes e tristes, ecoavam na sala. Quando terminei a primeira parte, virei-me inconscientemente, seguindo o velho hábito, para o canto onde ele costumava sentar-se para me ouvir. Mas não havia ninguém. A cadeira continuava imóvel no mesmo lugar, no jardim viam-se os lilases à luz clara do poente, na sala entrava o frescor da tarde. Apoiei os dois cotovelos no piano e tapei o rosto com as mãos. Fiquei ali muito tempo refletindo, dolorosamente recordando o passado perdido e imaginando timidamente um futuro. Mas era como se para a frente não houvesse nada, como se eu não tivesse desejos e esperanças. “Será possível que minha vida acabou?”, pensava. Assustada, ergui a cabeça e, para esquecer aqueles pensamentos, pus-me novamente a tocar o Andante. “Meu Deus!”, pensei. “Perdoe-me se sou culpada. Devolva-me tudo o que havia de maravilhoso na minha alma ou mostre-me o que tenho de fazer, como devo viver daqui para a frente.”
Ouvi o ruído de uma carruagem e, depois, de passos cautelosos que me eram familiares, na entrada e na varanda, mas eles não despertaram em mim os mesmos sentimentos de antigamente. Quando terminei de tocar, senti alguém caminhar atrás de mim e pousar a mão no meu ombro.
– Fez bem em tocar essa sonata – disse ele.
Eu não disse nada.
– Já tomou chá? – perguntou.
Fiz que não com a cabeça e não me virei, para que ele não percebesse sinais de emoção no meu rosto.
– Elas vão chegar logo; o cavalo empacou e as duas resolveram vir a pé da estrada até aqui – disse ele.
– Vamos esperar por elas – falei e saí para a varanda, imaginando que ele me seguiria; mas perguntou pelas crianças e foi vê-las. Novamente, sua presença, sua voz simples e bondosa me fizeram duvidar de que eu havia perdido algo. Que mais eu poderia desejar? Ele era bondoso, pacífico, bom marido, excelente pai, eu mesma não sabia o que me faltava. Sentei-me sob o toldo, no mesmo banco em que eu estivera no dia em que nos declaramos. O sol já se havia posto, começava a escurecer, uma nuvenzinha primaveril pairava sobre a casa e o jardim e somente ao longe, atrás das árvores, via-se uma faixa de céu limpo, onde acabava de surgir a estrela vespertina. Uma sombra cobria tudo e parecia que cairia uma chuvinha de primavera. Não havia vento, nenhuma folha ou relva se mexia. Chegava até ali o perfume dos lilases e das flores das cerejeiras, como se o ar todo estivesse florido, inundando o jardim e a varanda, e vinha em ondas, ora mais forte, ora mais fraco. Dava vontade de tapar os olhos e os ouvidos e ficar somente sentindo esse aroma doce. Nas laterais dos caminhos, nos canteiros de terra fofa e negra, os pés de dálias e as roseiras, ainda sem flores, estavam imóveis e eretos, como se naquele momento estivessem crescendo agarrados às suas estacas. As rãs em coro coaxavam com toda a força no fundo do vale, como se quisessem aproveitar os últimos instantes antes da chuva que as empurraria para o lago. Um ruído delicado e constante de água corrente destacava-se do coro das rãs. Os rouxinóis trocavam trinados e, inquietos, mudavam de lugar. Também nessa primavera um rouxinol tentou fazer o ninho no arbusto sob a janela e, quando eu saí, ele voou para a alameda, onde soltou um gorjeio e ficou esperando alguma coisa.
Em vão eu tentava me acalmar: estava à espera de algo que me angustiava. Serguêi veio lá de cima e sentou-se ao meu lado.
– Acho que elas vão se molhar – disse ele.
– É mesmo – concordei, e ambos ficamos calados.
A nuvem estava cada vez mais baixa; o ar estava parado e cheio de aromas, a natureza emudecera. De repente caiu uma gota na lona do toldo, outra gota espatifou-se no cascalho da estradinha, a relva foi chicoteada por pingos grossos, refrescantes, e a chuva foi ficando cada vez mais forte. Os rouxinóis e as rãs calaram-se completamente, o único som que se ouvia era o da água correndo, mais distante por causa do ruído da chuva, e também o canto de um pássaro que se escondera debaixo das folhagens, perto da varanda, e regularmente soltava seu canto de duas notas.
Serguêi levantou-se para sair.
– Onde você vai? – perguntei, retendo-o. – Está tão agradável aqui!
– É preciso mandar alguém com guarda-chuvas e galochas para elas – disse ele.
– Não precisa, a chuva já vai passar – disse eu.
Ele concordou e ficou comigo junto à balaustrada da varanda. Apoiei-me no parapeito molhado e pus a cabeça para fora. Chuviscos frios caíam no meu pescoço e nos meus cabelos. A nuvem já estava mais clara e fina e se afastava de nós. Cessou o ruído uniforme da chuva, e somente alguns pingos grossos caíam do céu e das árvores. Novamente se ouviu o coaxar das rãs no fundo do vale e o canto dos rouxinóis, que, nos arbustos molhados, chamavam-se de todos os lados.
– Como é bom aqui! – disse ele, sentando-se no parapeito e passando a mão nos meus cabelos molhados.
Esse simples carinho teve em mim o efeito de uma censura e tive vontade de chorar.
– De que mais um homem precisa? – disse ele. – Eu estou tão satisfeito agora que não preciso de nada, estou completamente feliz!
“Não era assim que você falava antigamente a respeito de sua felicidade”, pensei. “Você dizia que, por maior que ela fosse, você sempre desejaria mais alguma coisa. Agora você está aí tranquilo e satisfeito, enquanto eu me sinto como se dentro de mim houvesse um arrependimento não confessado e lágrimas não choradas.”
– Também me sinto bem – disse eu –, mas sinto ao mesmo tempo uma tristeza quando vejo tudo tão maravilhoso ao meu redor. Parece que dentro de mim falta algo, que há alguma coisa solta, incompleta, enquanto aqui fora é tudo tão belo e calmo! Você não sente também um prazer misturado com nostalgia quando contempla a natureza, não sente um desejo por alguma coisa impossível e um pesar por algo que já passou?
Ele retirou a mão da minha cabeça e ficou uns instantes calado.
– Isso acontecia comigo antes, especialmente na primavera – disse ele, como se estivesse se lembrando de algo. – Passei noites sem dormir, pensando nos meus desejos e esperanças. Foram belas noites! Mas, naquela época, tudo ainda estava por vir, e agora tudo já é passado. Agora me dou por satisfeito com o que tenho e me sinto muito bem – concluiu de maneira tão segura e indiferente que, por mais doloroso que fosse para mim ouvir aquilo, acreditei na sua sinceridade.
– Você não tem nenhum desejo? – perguntei.
– Não desejo nada que seja impossível – respondeu, adivinhando o que eu estava sentindo. – Você molhou os cabelos – continuou, acariciando minha cabeça como se eu fosse uma criança –, tem inveja das folhas porque estão molhadas de chuva, você gostaria de ser folha, relva e chuva. Mas eu fico contente de admirá-las apenas, como também a tudo no mundo que seja belo, jovem e feliz.
– E você não lamenta nada do passado? – continuei a perguntar, sentindo que meu coração se apertava cada vez mais.
Ele ficou novamente pensativo, e percebi que queria dar uma resposta totalmente sincera.
– Não! – respondeu laconicamente.
– Não é verdade! Não é verdade! – exclamei, virando-me e olhando-o nos olhos. – Não lamenta nada do passado?
– Não! – repetiu. – Sou grato ao passado e não lamento nada.
– Mas você não gostaria que ele voltasse?
Ele se virou e ficou olhando o jardim.
– Não, não gostaria, assim como não gostaria que nascessem asas em mim – disse ele. – É impossível.
– Você não corrigiria o passado, se pudesse? Não culpa a você mesmo ou a mim?
– Nunca! Tudo o que aconteceu foi para melhor.
– Escute – disse eu, tocando a sua mão para que ele me olhasse. – Diga-me, por que você nunca me disse o que queria que eu fizesse, para que eu vivesse da maneira que você queria, por que me deu uma liberdade que eu não saberia usar, por que parou de me ensinar? Se você quisesse, se tivesse me conduzido de outra maneira, nada teria acontecido – disse eu com uma voz que, cada vez mais, expressava um frio ressentimento e censura, em lugar do antigo amor.
– Mas que coisa é essa que não teria acontecido? – perguntou ele surpreso, virando-se para mim. – Não aconteceu nada. Está tudo bem. Muito bem mesmo – acrescentou com um sorriso.
“Será possível que ele não entende? Ou, o que é pior, não quer entender?”, pensei, e lágrimas vieram aos meus olhos.
– Vou lhe dizer o que não aconteceria: eu não estaria sendo castigada com a sua indiferença e até com seu desprezo, sem nenhuma culpa – disse eu de repente. – Você não teria tirado de mim, de uma hora para outra, tudo o que me importava, de mim, que não sou culpada de nada!
– O que você está dizendo, meu amor?! – disse ele, como se não me compreendesse.
– Não, deixe-me terminar... Você me tirou sua confiança, seu amor, até o respeito; agora eu não acredito que você me ame, depois do que aconteceu. Não, preciso dizer de uma vez tudo o que me atormenta há muito tempo – insisti. – Por acaso é culpa minha que eu não soubesse nada da vida e que você tenha deixado que eu descobrisse sozinha? Por acaso sou culpada de que agora, quando eu mesma já compreendi o que é necessário e há quase um ano luto para reconquistá-lo, você me rejeite, como se não entendesse o que eu quero? E fazendo-o de uma maneira que é impossível censurá-lo, enquanto eu fico sendo a culpada e a infeliz. Parece que você quer me atirar novamente naquela vida que poderia nos tornar infelizes outra vez.
– O que foi que eu fiz para você pensar assim? – perguntou ele, verdadeiramente assustado.
– Ainda ontem você não disse, aliás, você o diz constantemente, que eu não conseguirei viver na aldeia, que no inverno devemos ir novamente para Petersburgo, cidade que eu detesto? E como você poderia me apoiar, se evita qualquer conversa franca, amigável ou compreensiva comigo? Mais tarde, quando eu me desgraçar definitivamente, você vai me acusar e alegrar-se com minha desgraça.
– Pare com isso! – disse ele sério e frio. – Você não deveria dizer essas coisas. Somente demonstra que você está hostil comigo, que você não...
– Que eu não o amo? Diga! Diga! – completei, com lágrimas nos olhos.
Sentei-me no banco e cobri o rosto com o lenço. “É assim que ele entendeu o que eu disse!”, pensava, tentando segurar os soluços que me sufocavam. “Acabou, acabou o nosso amor” – dizia uma voz no fundo do meu coração.
Ele não se aproximou para me consolar. Estava ofendido com o que eu dissera e sua voz era pausada e seca.
– Não sei do que você me acusa – começou –, se é de eu não te amar mais como antes...
– Amar! – disse eu através do lenço, e mais lágrimas amargas correram dos meus olhos.
– O culpado disso é o tempo e nós mesmos. Em cada fase da vida há um tipo de amor... – disse ele e calou-se por um momento. – Devo dizer toda a verdade? Já que você quer franqueza... No ano em que nos conhecemos, eu passava as noites em claro, pensando em você, e construí eu mesmo aquele amor, que foi crescendo no meu coração. Da mesma forma, em Petersburgo e no estrangeiro eu não dormia, passei noites horríveis estraçalhando e destruindo aquele amor que me torturava. Mas não o destruí inteiramente, destruí somente a parte que me fazia sofrer. Fiquei tranquilo e agora eu a amo, mas com outro tipo de amor.
– Você chama isso de amor, mas na verdade é uma tortura – disse eu. – Para que você permitiu que eu frequentasse a sociedade, se em sua opinião ela é tão destrutiva que você deixou de me amar por causa dela?
– Não foi a sociedade, minha querida – disse ele.
– Por que não usou o poder que tem – continuei –, não me amarrou, não me matou? Agora eu estaria melhor, era preferível isso a me privar de tudo o que constituía minha felicidade. Eu estaria bem agora, não estaria sentindo vergonha.
Comecei a soluçar e tapei o rosto com o lenço. Nesse momento Kátia e Sônia entraram na varanda alegres e molhadas, rindo e falando alto. Ao ver-nos, porém, calaram-se e saíram.
Ficamos muito tempo em silêncio. Depois de chorar, senti-me mais aliviada. Olhei para ele: estava sentado com o rosto apoiado nas mãos, e quis dizer alguma coisa em resposta ao meu olhar, mas apenas soltou um profundo suspiro. Aproximei-me dele e tomei a sua mão. Ele me olhou pensativo.
– É... – começou a falar, como se seguisse o fio de seus pensamentos. – Todos nós, especialmente vocês, mulheres, precisamos viver todo o absurdo da vida, para podermos voltar à vida verdadeira. É impossível acreditar nos conselhos e avisos dos outros. Você estava longe de ter vivido seu belo sonho, e era tão encantadora que até me dava prazer admirá-la. E eu deixei você viver sua vida, pois sentia que não tinha o direito de proibi-la, mas, para mim, o tempo disso já havia passado.
– Mas por que você convivia comigo e me deixava levar aquela vida absurda, se gostava de mim? – perguntei.
– Porque você haveria de desejar tudo aquilo e não acreditaria em mim. Você teria de descobrir sozinha, e descobriu.
– Você pensava muito e me amava pouco – disse eu.
Ficamos novamente em silêncio.
– O que você disse é cruel, mas é verdade – disse ele, levantando-se para caminhar pela varanda. – Sim, isso é verdade. Eu fui culpado! – acrescentou, parando na minha frente. – Ou eu não deveria ter me permitido gostar de você, ou deveria tê-la amado de um modo mais simples. É isso.
– Vamos esquecer tudo isso – disse eu, timidamente.
– Não, o que passou já não volta mais. Ninguém o faz voltar – e sua voz estava mais branda ao dizer isso.
– Mas já voltou tudo – disse eu, colocando minha mão no seu ombro.
Ele tomou a minha mão e apertou-a na sua.
– Não, eu não falei a verdade quando disse que não lamentava o passado – disse ele. – Lamento e sofro pelo amor que tivemos e que não voltará. Quem foi o culpado disso? Não sei. Restou um amor, mas não aquele; o lugar dele ficou, mas o amor não tem força, não tem seiva, restaram lembranças e sentimento de gratidão, e...
– Não fale assim... – interrompi. – Vamos deixar que tudo volte a ser como antes... Isso é possível, não é? Não é? – perguntei, olhando-o nos olhos. Mas, embora claros e tranquilos, seus olhos não revelavam profundidade ao me fitar.
Ao mesmo tempo em que eu dizia aquilo, percebia que o que estava pedindo era impossível. Ele sorriu com brandura, com um jeito de velho.
– Como você é jovem, e como estou velho! Em mim não existe mais o que você procura. Para que se enganar? – disse ele com o mesmo sorriso.
Permaneci de pé em silêncio perto dele e comecei a ficar mais calma.
– Não vamos tentar repetir a vida – continuou ele –, não vamos mentir para nós mesmos. E vamos dar graças a Deus por não termos mais as inquietações e ansiedades de antigamente. Não há o que buscar e por que se angustiar. Já achamos o que queríamos e fomos contemplados com uma boa fatia de felicidade. Agora devemos retirar-nos e abrir caminho para aquele ali – disse, apontando para a porta, onde a ama de leite estava parada com meu filhinho Vânia no colo. – É assim que deve ser, minha querida – concluiu, movendo minha cabeça para si e beijando-a. E não foi o amante, e sim o velho amigo, que me beijou.
Do jardim vinha um aroma cada vez mais forte da umidade noturna, os sons e o silêncio foram ficando mais solenes e surgiam mais e mais estrelas no céu. Olhei para ele e de repente senti uma leveza na alma. Foi como se tivesse sido retirado de mim aquele nervo moral que me fazia sofrer. Compreendi de repente, com clareza e serenidade, que os antigos sentimentos tinham passado definitivamente, da mesma forma que o tempo, e que fazê-los voltar agora não só era impossível, como isso seria penoso e constrangedor. E teria sido tão bom assim aquele tempo, como me parecia agora? Pois, afinal, tanto tempo havia passado!
– Mas é hora do chá! – disse Serguêi Mikháilovitch, e fomos para a sala de estar. Junto à porta ainda estava a ama de leite com Vânia, que dormia. Peguei a criança no colo, cobri seus pezinhos rosados, apertei-o contra o meu peito e beijei-o de leve. Ele sacudiu as mãozinhas abertas de dedinhos enrugados, como se estivesse sonhando, depois abriu os olhinhos meio turvos, como se procurasse ou recordasse alguma coisa. De repente, aqueles olhinhos se fixaram em mim e uma centelha de pensamento brilhou neles, e sua boquinha rechonchuda abriu-se num sorriso. “Você é meu, meu, meu!”, pensei, apertando-o contra o peito com o corpo todo tenso de felicidade, e mal me continha para não machucá-lo. Pus-me a beijar seus pezinhos frios, a barriguinha, os braços e a cabecinha sem cabelos. Meu marido se aproximou, eu cobri rapidamente o rosto da criança, mas em seguida destapei-o.
– Ivan Serguêievitch! – disse ele, tocando o queixinho do bebê com o dedo. Mas tornei a tapar rapidamente o rosto de Ivan Serguêievitch. Ninguém, além de mim, deveria ficar olhando muito tempo para ele. Olhei para o meu marido, seus olhos sorriam, fitando os meus. Pela primeira vez, depois de muito tempo, eu pude olhar para eles com alegria e leveza na alma.
A partir daquele dia, terminou meu romance com meu marido. O antigo sentimento tornou-se uma recordação preciosa, mas impossível de renascer. Um novo sentimento, de amor aos meus filhos e ao pai deles, deu início a uma nova vida, uma vida feliz mas diferente, que ainda estou começando a viver...
[1] Macha, Máchetchka, Máchenka são todos apelidos de Mária ou Maria; Kátia é apelido de Katerina ou Iekaterina; e Sônia é apelido de Sofia. (N.T.)
[2] Em forma de fantasia. (N.A.)
[3] Em tamanho reduzido. (N.A.)
[4] Antiga medida russa, equivalente a 1, 067 quilômetro. (N.T.)
[5] O melhor é inimigo do bom. (N.A.)
[6] Nos versos de Mikhail I. Lérmontov, em vez da palavra louco, está rebelde, insubmisso. A troca que Tolstói fez pode ter sido proposital. (N.T.)
[7] Boa sorte, meu amigo. (N.A.)
[8] Vânia é apelido de Ivan; quanto a Kokochka, não foi possível estabelecer se é apelido de algum nome e de qual. Pode ser que seja de Kólia (de Nikolai) ou Kóstia (de Konstantin). (N.T.)
O DIABO
Eu, porém, vos digo que todo aquele que olhar
para uma mulher cobiçando-a já cometeu adultério
com ela em seu coração.
E se teu olho direito te serve de escândalo,
arranca-o e lança-o para longe de ti, porque é
melhor para ti perderes um dos teus membros do
que todo o teu corpo ser lançado no inferno.
E se a tua mão direita te serve de escândalo,
corta-a e lança-a para longe de ti, porque é
melhor para ti perderes um dos teus membros do
que todo o teu corpo ser lançado no inferno.
Mateus, V, 28-30
I
Evguêni Ivânovitch Irtênev tinha uma brilhante carreira pela frente. Ele tinha tudo para isso: excelente educação em casa, conclusão brilhante do curso de direito na Universidade de São Petersburgo, amizades importantes que seu finado pai havia feito nas altas esferas da sociedade, tinha até arranjado um emprego num ministério, tendo como padrinho o próprio ministro. Possuía fortuna, grande até, mas incerta. O pai vivia no estrangeiro e em Petersburgo, e dava seis mil rublos anuais a cada um dos filhos: a Evguêni e ao mais velho, Andrei, que servia na Guarda de Cavalaria. O pai e a mãe sempre gastaram excessivamente. O pai ia para sua herdade somente no verão, passando lá dois meses, mas não se interessava pelos negócios e deixava tudo por conta de um ganancioso administrador, que tampouco administrava a propriedade, mas gozava da total confiança do patrão.
Após a morte do pai e ao fazer a partilha dos bens, os irmãos verificaram que havia tantas dívidas, que o encarregado do inventário até chegou a aconselhá-los a renunciar à propriedade e ficar apenas com a herdade da avó, que valia cem mil rublos. Mas um dos vizinhos, também proprietário, que tinha feito negócios com o pai deles, ou, melhor dizendo, possuía uma promissória dele e por esse motivo tinha ido a São Petersburgo, disse-lhes que, apesar das dívidas, era possível salvar a situação e manter uma fortuna considerável. Para isso bastava vender o bosque e algumas parcelas de terra improdutiva, ficando com o mais valioso – a aldeia de Semiônovskoie, com uns quatro mil hectares de terras negras, a usina de açúcar e uns duzentos hectares de prados irrigáveis. Era necessário também estabelecer-se na aldeia, dedicar-se à propriedade e administrá-la com economia e competência.
Então, na primavera (o pai havia morrido na Páscoa), Evguêni foi à herdade, examinou tudo, resolveu pedir demissão do emprego, mudar-se com a mãe para o campo e ficar lá cuidando dos negócios, a fim de salvar o que havia de mais valor. Ao irmão, de quem não era muito próximo, ele fez uma proposta: ou mandar-lhe quatro mil rublos por ano, ou dar-lhe de uma só vez oitenta mil rublos, e nesse último caso o irmão deveria renunciar à sua parte na herança.
Assim ele fez. Mudou-se com a mãe para a grande casa senhorial e começou a dedicar-se ao trabalho com entusiasmo, mas também com cautela.
As pessoas geralmente pensam que os velhos são mais conservadores e os jovens, inovadores; mas isso não é inteiramente verdade. Os conservadores são comumente os jovens, porque estes querem aproveitar a vida e não têm tempo de pensar em como devem viver, e, assim, tomam como exemplo a seguir o modo de vida antigo.
Evguêni não era exceção. Ao estabelecer-se na aldeia, seu sonho e seu ideal eram fazer renascer a forma de vida que existia não quando seu pai era vivo, pois seu pai fora um mau proprietário, mas sim quando seu avô era vivo. Agora, na casa, no jardim, na administração dos negócios, ele se esforçava para reconstituir aquilo que era característico do avô, adaptando-se, evidentemente, às mudanças de sua época: queria abundância de tudo e que todos em volta estivessem satisfeitos; queria também conforto e organização. Para alcançar isso, havia muito trabalho pela frente: era preciso atender às exigências dos credores e dos bancos e, para tanto, vender as terras e adiar os pagamentos. Precisava também conseguir empréstimos para tocar os negócios na fazenda, contratar empregados temporários e permanentes para realizar os trabalhos na imensa propriedade de quatro mil hectares de lavouras e na usina de açúcar; era preciso ainda cuidar da casa e do jardim, para que não houvesse a impressão de abandono e decadência.
Havia muito trabalho a fazer, mas Evguêni tinha energia de sobra, tanto física como mental. Ele tinha 26 anos, altura mediana, compleição forte, musculosa devido à ginástica; era do tipo sanguíneo, corado, de dentes claros e cabelos finos, macios e ondulados. Seu único defeito físico era a miopia, que ele mesmo provocara usando óculos e agora não podia ficar sem seu pincenê, que já havia feito um sulco no alto do nariz. Assim era ele fisicamente. Quanto ao caráter, era o tipo de pessoa que quanto mais se conhece, mais se gosta. Sempre fora o preferido de sua mãe, e agora, depois da morte do pai, ela passou a concentrar nele toda a sua ternura e fez dele a sua razão de viver. Mas não era só a mãe que o amava tanto assim. Os colegas do ginásio e da universidade não só gostavam muito dele como lhe tinham muito respeito. Ele provocava reação semelhante também nos estranhos. Era impossível duvidar do que ele dizia, era impossível supor que alguém com um rosto e um olhar que transmitiam tanta sinceridade e honestidade pudesse enganar ou mentir.
Toda a sua personalidade ajudava-o muito nos negócios. O emprestador que a um ou outro negasse crédito nele confiava. Um administrador, um chefe da aldeia ou um camponês capaz de agir mal ou enganar alguém se esquecia de fazer isso com ele, devido ao agradável relacionamento com uma pessoa tão simples, bondosa e, principalmente, aberta.
Era final de maio. Evguêni, com jeito, conseguira na cidade levantar a hipoteca sobre os terrenos improdutivos e em seguida vendeu-os a um comerciante. Depois, tomou empréstimo desse mesmo comerciante para renovar seu plantel de cavalos e bois, comprar carroças e, o mais importante, começar as obras necessárias na fazenda. As coisas iam bem. Trouxeram madeira, os marceneiros já estavam trabalhando, oitenta carroças transportavam esterco, mas até então tudo isso estava por um fio.
II
Quando todo esse trabalho já estava na metade, aconteceu um fato que, embora não fosse importante, preocupou Evguêni. Anteriormente, ele vivia como vivem todos os jovens solteiros saudáveis, ou seja, tinha relações com todo tipo de mulher. Não era depravado, mas também não era um monge, como ele mesmo costumava dizer. Mantinha essa prática, segundo suas palavras, apenas para garantir sua saúde física e independência mental. Ele o fazia desde os dezesseis anos e até então tudo tinha corrido bem, ou seja, não se entregara à depravação, não se apaixonara nem pegara nenhuma doença. Em São Petersburgo, inicialmente frequentou uma costureira, depois ela caiu na vida e ele deu outro jeito. Esse lado de sua existência estava bem resolvido e não lhe causava problemas.
Mas eis que já fazia dois meses que ele estava na aldeia e não sabia como proceder. A continência involuntária começava a ter nele reflexos negativos. Será que teria de ir à cidade por causa disso? E aonde? Como? Estava ficando preocupado e, como estava convencido de que se tratava de uma necessidade real, sentiu-se de fato impelido a resolver esse assunto. Sentia-se tolhido e sem querer começou a acompanhar com os olhos toda jovem que passasse na sua frente.
Mas não achava correto arranjar uma amante entre as mulheres ou moças do povo na sua própria aldeia. Sabia, de ouvir dizer, que seu pai e seu avô nunca se permitiram namoricos com servas em sua casa, ao contrário da maioria dos outros proprietários, e decidiu que ele também não faria isso. Mas depois, sentindo-se cada vez mais atado e imaginando coisas horríveis que poderiam acontecer com ele na cidadezinha próxima, e ainda levando em conta que a servidão já tinha sido abolida, decidiu que a solução poderia estar ali mesmo, na aldeia. Apenas ninguém deveria saber, e fazia aquilo não por libertinagem, dizia a si mesmo, mas apenas para manter sua saúde. Porém, ao tomar essa resolução, ficou ainda mais inquieto. Quando conversava com o chefe da aldeia, com algum camponês, com o marceneiro, sem querer puxava a conversa para as mulheres e, se a conversa já era sobre elas, procurava esticar o assunto o mais possível. E seu olhar demorava-se cada vez mais sobre as mulheres que passavam.
III
Mas tomar uma decisão era uma coisa, pô-la em prática era outra. Não poderia abordar ele mesmo uma mulher. E qual delas? Onde? Era necessário um intermediário. Mas quem?
Certa vez aconteceu-lhe de ir beber água na cabana do guarda florestal, que tinha sido caçador de seu pai. Evguêni ficou ali conversando com o guarda, que contou velhas histórias das farras durante as caçadas. Veio à sua cabeça que ali, no bosque ou na cabana do guarda, seria um bom lugar para resolver seu assunto. Não sabia ainda como nem se o velho Danila se prestaria a fazer isso. “Pode ser que ele fique horrorizado com a minha proposta e então ficarei desmoralizado, mas pode ser que simplesmente concorde”. Isso ele pensava enquanto ouvia as narrativas de Danila, que contava que eles ficavam num campo distante, na casa da esposa do diácono, e que ele uma vez trouxera uma mulher para Priánitchnikov.
“Posso falar com ele”, pensou Evguêni.
– Seu pai, que Deus o tenha, não participava dessas tolices – disse Danila.
“Não posso falar com ele”, pensou Evguêni; mas, para se certificar, disse:
– Mas como você se metia nessas coisas feias?
– O que há de mal nisso? A mulher ficava feliz, e o senhor Fiódor Zakhárytch ficava mais do que satisfeito. E me dava um rublo. Senão, como ele ia fazer? Era de carne e osso, como todo mundo.
“É, posso falar com ele”, pensou Evguêni, passando à ação.
– Sabe, Danila – ele sentiu que estava vermelho como um tomate –, sabe, eu estou passando por uma tortura.
Danila sorriu.
– Eu não sou um monge, já estava acostumado.
Ele percebia a tolice que estava dizendo, mas ficou feliz porque Danila o apoiou.
– Ora, o senhor devia ter dito antes... Tudo se resolve, é só o senhor dizer que tipo de mulher prefere.
– Ah, isso não importa. Claro, desde que não seja horrorosa e seja saudável.
– Entendi! – exclamou Danila e ficou pensativo por um instante. – Bem, tenho uma coisinha muito boa para o senhor – e novamente Evguêni enrubesceu. – Acho que o senhor deveria dar uma olhada, casaram-na no outono – Danila pôs-se a sussurrar –, mas o marido não consegue nada dela. É um pitéu para os bons apreciadores.
Evguêni fez uma careta, envergonhado.
– Não, não – disse –, não é disso que eu preciso. Ao contrário (o que poderia ser contrário?), ao contrário, eu só faço questão de que seja sadia e que não me traga problemas. Talvez uma mulher de soldado ou algo do gênero...[9]
– Estou entendendo. Pois então vou lhe apresentar a Stepanida. O marido vive na cidade, ela é como se fosse mulher de soldado. É bonita, limpa. O senhor vai gostar. Há pouco tempo, eu até falei com ela sobre isso e ela...
– Mas quando seria?
– Pode ser amanhã mesmo. Vou buscar tabaco e passo na casa dela. Venha amanhã na hora do almoço, aqui ou atrás da horta, perto da casa de banho. Não há ninguém. Na hora do almoço, todo mundo dorme.
– Está bem.
Evguêni voltou para casa preocupadíssimo: “Como será ela? Como será uma camponesa? E se de repente ela for horrível, monstruosa? Não, não, elas são bonitas”, pensava, lembrando-se das que haviam chamado sua atenção. “Mas o que vou dizer, como vou agir?”
Ficou inquieto o dia inteiro. No dia seguinte, ao meio-dia, ele se dirigiu à cabana do guarda florestal. Danila estava parado à porta e fez um sinal com a cabeça na direção do bosque. Evguêni sentiu o coração bater mais forte e caminhou para a horta. Ninguém. Foi para a casa de banho. Ninguém. Deu uma olhada lá dentro, saiu e, de repente, ouviu o estalo de um galho quebrando-se. Buscou com o olhar e a viu de pé, perto das árvores, sobre um pequeno barranco. Precipitou-se para lá, descendo pela depressão, na qual havia urtigas que ele não notara. As urtigas queimaram-no, ele deixou cair o pincenê do nariz e subiu correndo pela escarpa do lado oposto. Com um avental branco bordado caindo sobre a saia rústica castanho-avermelhada, um lenço vermelho vivo na cabeça, descalça, jovem, forte, bonita, ela estava ali, de pé, e sorria timidamente.
– Aqui em volta há uma trilha, o senhor poderia ter rodeado – disse ela. – Nós chegamos já faz um tempão.
Ele se aproximou e, olhando em volta, tocou-a.
Após quinze minutos, eles se separaram, ele encontrou seu pincenê e foi para a cabana de Danila. Quando este perguntou se tinha ficado satisfeito, em lugar de responder Evguêni deu-lhe um rublo e foi para casa.
Ele estava satisfeito. Ficara encabulado somente no princípio, depois passou. E tudo tinha saído bem. O mais importante era que agora se sentia leve, calmo e bem-disposto. Quanto à moça, nem tinha reparado direito nela. Lembrava-se de que era asseada, jovem, bonita e simples, sem complicações. “De que família será ela?”, pensava. “Danila disse que o sobrenome dela é Pétchnikova. De qual Pétchnikov? Pois há duas famílias Pétchnikov[10]. Deve ser nora do velho Mikhail. Com toda a certeza. Ele tem um filho que mora em Moscou. Qualquer hora dessas eu pergunto ao Danila.”
A partir desse dia foi afastada aquela circunstância desagradável da sua vida na aldeia – a abstinência involuntária. Não havia mais obstáculos para que ele pudesse pensar livremente e ocupar-se dos seus trabalhos.
E a tarefa que se tinha proposto não era nada fácil. Às vezes ele achava que não daria conta e que no final teria de vender a propriedade, e que todo o trabalho teria sido em vão. Mas o que achava pior era que ficasse provado que ele não conseguira, que não tivera capacidade para completar o que havia iniciado. E tinha razão em se preocupar, pois, mal tapava um buraco, logo surgia outro.
Durante todo esse tempo continuavam a aparecer novas dívidas do seu pai, as quais ele desconhecia. Pelo visto, nos últimos tempos seu pai tomara dinheiro emprestado a torto e a direito. Em maio, durante a partilha, Evguêni achou que já sabia de tudo relacionado aos negócios do pai. No meio do verão, porém, recebeu inesperadamente uma carta do advogado comunicando-lhe que havia ainda uma dívida de doze mil rublos para com a viúva Iéssipova. Não havia promissórias, apenas um simples recibo que, nas palavras do advogado, seria possível contestar. Mas a cabeça de Evguêni não admitia deixar de pagar uma dívida do seu pai simplesmente porque era possível contestar um documento. Ele desejava apenas ter certeza de que aquela dívida existia mesmo.
– Mamãe, quem é uma tal de Kaléria Vladímirovna Iéssipova? – perguntou ele durante o almoço.
– Iéssipova? É uma protegida do seu avô. Por quê?
Evguêni contou à mãe sobre a carta.
– Admira-me a falta de vergonha dela. Seu pai lhe deu tanto dinheiro!
– Mas nós estamos devendo algo a ela?
– Bom, não sei como dizer. Dívida, propriamente, não, mas seu pai, com sua imensa bondade...
– É, mas papai considerava isso uma dívida.
– Não sei o que dizer. Não sei. Só sei que você já tem tantos problemas!
Evguêni percebeu que Mária Pávlovna não sabia mesmo de nada e que estava ela própria tentando extrair alguma coisa dele.
– Está me parecendo que devemos pagar – disse o filho. – Amanhã irei à casa dela e tentarei conseguir um adiamento.
– Ah, como tenho pena de você! Mas, sabe, assim é melhor. Diga-lhe que ela deve dar um prazo – disse a mãe, tranquilizada e orgulhosa com a decisão do filho.
A posição de Evguêni era ainda mais difícil, porque sua mãe, que morava com ele, não compreendia nem um pouco a situação que estavam vivendo. Toda a vida ela se acostumara a ter tudo, com fartura, e não podia nem mesmo imaginar o que o filho estava passando, e que, de um dia para o outro, se os negócios dessem errado, eles poderiam perder o que tinham e Evguêni teria de sustentá-la com um salário de no máximo uns dois mil rublos por ano. Ela não entendia que só poderiam escapar dessa situação cortando gastos em tudo, e achava estranho que Evguêni economizasse até em ninharias, nas despesas com jardineiros, cocheiros, criados e mesmo na comida. Além disso, como a maioria das viúvas, ela tinha um sentimento de veneração em relação à memória do falecido marido, muito diferente do que sentia por ele quando vivo, e não admitia a ideia de que algo que ele tivesse feito ou estabelecido pudesse ser mau ou devesse ser modificado.
Evguêni, com muito esforço, conservava o jardim e a estufa com o auxílio de dois jardineiros, e a estrebaria, também com dois cocheiros. Mas Mária Pávlovna ingenuamente pensava que já estava fazendo todo o sacrifício que uma mãe pode fazer para ajudar o filho ao não se queixar da comida, que era preparada por um velho cozinheiro, nem de que as estradinhas do parque não estavam sempre varridas, e de que, em vez de bons criados, ela tinha apenas um garoto. Assim, nessa nova dívida que surgira, que para Evguêni foi um golpe certeiro em todas as suas iniciativas, Mária Pávlovna viu apenas uma oportunidade para que seu filho demonstrasse sua nobreza. Havia ainda outra razão para que ela não se preocupasse muito com a situação material de Evguêni: estava convencida de que ele faria um ótimo casamento, que consertaria tudo. E de que não lhe faltariam partidos brilhantes. Ela conhecia uma dezena de famílias que ficariam felizes em casar suas filhas com ele. E seu desejo era arranjar isso o quanto antes.
IV
Evguêni também sonhava com o casamento, mas não da mesma forma que a mãe: repugnava-lhe a ideia de fazer do casamento um meio de consertar seus negócios, e queria casar-se honestamente, por amor. Examinava as moças com quem travava conhecimento, imaginava-se vivendo com elas, mas sua sorte não se decidia.
Entretanto, a despeito de qualquer expectativa, seu relacionamento com Stepanida prosseguia e até tomou um caráter estável. Evguêni era alheio à libertinagem, era-lhe difícil fazer as coisas secretamente, sentia que estava agindo mal, por isso não se sentiu à vontade e, logo depois do primeiro encontro, até mesmo esperou nunca mais ver Stepanida. Mas aconteceu que, passado algum tempo, começou novamente a sentir aquele desassossego, que atribuía à abstinência. E dessa vez o desassossego não era sem rosto: ele imaginava aqueles olhos negros brilhantes, aquela voz grave dizendo “um tempão”, aquele cheiro de algo fresco e forte, aqueles seios altos, que arfavam sob o avental, e tudo isso no bosque de aveleiras e bordos, em plena luz do dia. Apesar de muito envergonhado, recorreu novamente a Danila. E outra vez marcaram um encontro no bosque, ao meio-dia. Dessa vez Evguêni observou-a melhor e achou-a muito atraente. Tentou falar com ela, perguntou sobre seu marido. Tratava-se realmente do filho de Mikhail, e trabalhava como cocheiro em Moscou.
– Mas, então, como você... – Evguêni queria perguntar como ela conseguia trair o marido.
– Como o quê? – perguntou ela, que, pelo visto, era inteligente e esperta.
– Bom, como você vem se encontrar comigo?
– Ora, essa é boa! – disse ela, alegremente. – Ele decerto se diverte por lá. Por que eu também não posso?
Via-se que ela se dava ares de desenvoltura e até de bravata, o que Evguêni achou encantador. Contudo, ele não marcou novo encontro. Mesmo quando ela sugeriu que dispensassem a intermediação de Danila, de quem não gostava muito, ele não concordou, esperando que aquele encontro fosse o último. Ela lhe agradava, e ele achava que aquele tipo de relacionamento, em que não via nada de ruim, era-lhe indispensável. Mas, lá no fundo, ele tinha um juiz mais severo, que não apoiava esse comportamento e esperava que fosse a última vez. Ou, se não esperava, pelo menos não queria participar desse assunto nem preparar com antecedência a sua repetição.
Assim ia passando o verão, durante o qual ele a viu umas dez vezes, sempre por intermédio de Danila. Houve uma vez em que ela não pôde encontrar-se com ele porque o marido havia chegado, e Danila sugeriu outra pessoa, mas Evguêni recusou, indignado. Quando o marido foi embora, os encontros continuaram, a princípio através de Danila; mas depois este passou a marcar a hora e ela vinha com sua amiga Prókhorova, porque as mulheres não podiam andar sozinhas. Certa vez, Mária Pávlovna recebeu a visita de uma família que trazia a filha, com a qual ela estava planejando casar Evguêni. As visitas chegaram exatamente na hora em que estava marcado um encontro com Stepanida, e ele não pôde sair. Assim que conseguiu desvencilhar-se, fez parecer que estava indo para a eira coberta e dirigiu-se pela trilha ao ponto do encontro, no bosque. Mas, no lugar habitual, o que encontrou foi uma porção de galhos de cerejeiras e aveleiras quebrados; havia até um bordo jovem derrubado. Fora ela que, cansada de esperar, havia ficado ansiosa e com raiva e, por diversão, deixou-lhe aquela lembrança. Ele ficou lá muito tempo, depois foi procurar Danila, para pedir-lhe que a chamasse para o dia seguinte. Ela veio e se portou como sempre fizera.
E assim o verão ia terminando. Os encontros eram sempre no bosque; somente uma vez, já perto do outono, encontraram-se nos fundos da casa dela, no galpão do celeiro. Na cabeça de Evguêni não passava a ideia de que aquele relacionamento pudesse ter alguma importância, pois nem ao menos pensava nela, apenas dava-lhe dinheiro e nada mais. Ele não sabia nem fazia ideia de que toda a aldeia já sabia do caso, que tinham inveja dela, que os parentes tomavam seu dinheiro e a incentivavam, e que a ideia que ela tinha de pecado, pela influência do dinheiro e dos familiares, se dissolvera completamente. Ela pensava que, se tinham inveja, era porque o que estava fazendo era bom.
“É somente para a saúde e é necessário”, pensava Evguêni. “Vá lá que não seja uma coisa boa e que, embora ninguém diga, todos ou boa parte sabem. A mulher que vem com ela sabe. E, se sabe, com certeza contou para outros. Que posso fazer? Estou agindo de maneira infame, mas que posso fazer? E, depois, não vai ser por muito tempo.”
O que mais causava constrangimento a Evguêni era o marido. Sem saber por que, no princípio ele imaginava que o marido dela deveria ser um traste, o que em parte justificaria manter um caso com ela. Mas, certa vez, ele o avistou na aldeia e ficou perplexo. Era um rapagão alinhado, nem um pouco pior que ele, talvez até melhor. Assim que se encontrou com ela, contou-lhe que havia visto o marido e ficara admirado de que ele fosse um rapagão tão bem-apessoado.
– Não há outro igual na aldeia – disse ela, orgulhosa.
Evguêni ficou pasmo, e a lembrança do marido passou a torturá-lo ainda mais. Um dia, ele estava conversando com Danila e este lhe disse sem rodeios:
– Há pouco tempo Mikhail me perguntou se a mulher do filho dele está saindo com o senhor. Eu disse que não sabia e disse ainda que era melhor que fosse com o senhor do que com um camponês.
– E o que ele disse?
– Ele disse que ela que espere, que vai procurar saber e vai dar uma surra nela.
“Bom, se o marido voltar, eu a deixo”, pensou Evguêni. Mas o marido permanecia na cidade, e sua relação com ela por enquanto continuava. “Quando for necessário, termino tudo e não restará nada” , pensava.
Quanto a isso ele não tinha dúvida, porque no verão uma série de atividades deixava-o ocupado todo o tempo: a organização da nova fazenda, a colheita, as construções e, acima de tudo, os pagamentos das dívidas e a venda das terras improdutivas. Essas atividades absorviam-no por completo, ele pensava nisso noite e dia. Essa era a sua verdadeira vida. Os encontros com Stepanida – ele nem chamava isso de relacionamento – eram algo sem nenhuma importância. É verdade que às vezes o desejo de vê-la surgia com tal força que ele não conseguia pensar em mais nada, mas isso não durava muito. Marcava-se um encontro, e ele a esquecia novamente por uma semana ou até por um mês.
No outono, Evguêni passou a ir com frequência à cidade e fez amizade com a família Ánnenski. Eles tinham uma filha que terminara o colégio recentemente. E então, para grande desgosto de Mária Pávlovna, Evguêni, como dizia sua mãe, não soube se valorizar: apaixonou-se por Liza Ánnenskaia e a pediu em casamento.
A partir daí cessaram suas relações com Stepanida.
V
Não existem explicações para Evguêni ter escolhido Liza Ánnenskaia, assim como é impossível explicar por que um homem escolhe uma determinada mulher, e não outra. Havia montes de razões, tanto positivas como negativas. Uma delas era que a moça não era muito rica, como as que sua mãe tentava arranjar para ele. Outra razão é que ela era ingênua e infeliz no relacionamento com a própria mãe e, ainda, embora não fosse feia, não era nenhuma beldade capaz de atrair as atenções. Mas o determinante mesmo foi que Evguêni a conheceu numa ocasião em que já estava maduro para o casamento. Ele se apaixonou porque tinha consciência de que iria se casar.
Ao se conhecerem, Liza caiu-lhe no agrado, apenas isso. Mas, quando tomou a decisão de casar-se com ela, o sentimento se tornou mais forte e ele sentiu que estava apaixonado.
Liza era alta e esbelta. Tudo nela era comprido: o rosto, o nariz, embora não fosse pontudo, os dedos das mãos e os pés. A cor de sua pele era clara e delicada, com uma tonalidade amarelada e levemente corada; os cabelos compridos, de um louro escuro, eram macios e ondulados. Ele ficou particularmente impressionado com seus olhos e, quando pensava nela, via diante de si aqueles olhos maravilhosos, claros, doces, confiantes.
Assim era Liza fisicamente. Quanto ao seu espírito, ele nada sabia. Somente via os seus olhos, e eles, na sua opinião, diziam-lhe tudo que precisava saber. Mas havia outro significado naqueles olhos.
Desde os quinze anos, ainda no colégio, Liza se enamorava de todos os homens bonitos que conhecia e só ficava animada quando estava apaixonada. Terminado o colégio, ela continuou a cair de amores por todos os rapazes que encontrava e, naturalmente, apaixonou-se por Evguêni assim que o viu. A paixão é que dava aos seus olhos aquela expressão que tanto cativou Evguêni.
Naquele mesmo inverno, já estivera apaixonada por dois rapazes ao mesmo tempo. Ficava agitada e vermelha não somente quando eles entravam na sala, mas também à simples menção de seus nomes. Mas depois, quando sua mãe insinuou que Evguêni Irtênev parecia ter intenções sérias, sua paixão por ele cresceu tanto que ela ficou quase indiferente aos dois anteriores. Quando Evguêni passou a frequentar sua casa, a ir com ela a bailes e reuniões, a dançar com ela mais do que com outras e a dar mostras de que desejava saber apenas se ela o amava, sua paixão por ele tornou-se quase doentia. Ela começou a sonhar com ele, dormindo ou acordada no seu quarto escuro, e todos os outros rapazes deixaram de existir para ela. Depois que ele pediu a sua mão e lhes deram a bênção e, já noivos, eles se beijaram, ela não pensou em mais nada além dele. Tudo o que desejava era estar com ele, amá-lo e ser amada por ele. Orgulhava-se dele e se derretia na sua presença; enternecia-se consigo mesma e com seu amor, a ponto de tornar-se lânguida. Ele, por seu lado, quanto mais a conhecia, mais a amava. Ele nunca havia esperado encontrar um amor como aquele e ficava cada vez mais apaixonado.
VI
Pouco antes da primavera, Evguêni voltou a Semiônovskoie para ver como iam as coisas e dar algumas ordens. Principalmente, queria ver como andavam os preparativos para o casamento.
Mária Pávlovna estava descontente com a escolha do filho, não só porque ele não arranjara um partido brilhante, como merecia, mas também porque não gostara de sua futura sogra, Varvara Aleksêievna. Ela ainda não sabia se acaso se tratava de uma pessoa boa ou má, não tinha ainda uma opinião formada, mas, desde o primeiro encontro, percebeu que a mãe de Liza não tinha classe, não era uma pessoa comme il faut, uma lady, como costumava dizer, e isso a aborrecia muito. Por formação, Mária Pávlovna dava muito valor à boa educação e sabia que Evguêni era também muito sensível a essas coisas, e previu que ele acabaria tendo aborrecimentos. Entretanto, gostara da moça, acima de tudo porque ela agradara ao filho. Era preciso amá-la, e Mária Pávlovna estava disposta a isso, de todo o coração.
Evguêni encontrou a mãe alegre e satisfeita. Ela estava cuidando da arrumação da casa e tinha decidido ir embora quando a jovem esposa chegasse. Mas Evguêni tentava persuadi-la a ficar, questão que ainda não fora resolvida. De noite, após o chá, como de hábito ela jogava paciência e ele a estava ajudando, sentado ao seu lado. Era nesses momentos que eles tinham as conversas mais sinceras. Mária Pávlovna terminou um jogo e, antes de começar outro, olhou para Evguêni e, hesitando um pouco, disse:
– Eu queria lhe dizer uma coisa, Gênia[11]. É claro que eu não sei de nada, mas queria lhe dar um conselho. Antes de se casar, você deveria terminar definitivamente todos os seus casos de solteiro, para que nada venha depois preocupar a você nem, que Deus o livre, à sua esposa. Está me entendendo?
De fato, Evguêni compreendeu no mesmo instante que Mária Pávlovna tinha em mente sua relação com Stepanida, que já estava terminada desde o outono, e, como sempre fazem as mulheres solitárias, ela atribuía àquelas relações importância maior do que realmente tinham. Evguêni enrubesceu, não tanto de vergonha, como principalmente de aborrecimento, porque a bondosa Mária Pávlovna – por amor, é verdade – estava se metendo onde não devia, em assuntos que não compreendia nem podia compreender. Disse-lhe então que não tinha nada a esconder e que sempre se portara de modo a não ter nada que prejudicasse seu matrimônio.
– Está muito bem, querido. Não fique ofendido com o que eu disse – falou a mãe, confusa.
Mas Evguêni percebeu que ela ainda não tinha terminado e que não dissera tudo o que queria. Passados alguns instantes, ela começou a contar que, enquanto ele estivera ausente, pediram-lhe para ser madrinha de uma criança na casa dos... Ptchélnikov.
Dessa vez Evguêni ficou vermelho, já não de aborrecimento nem mesmo de vergonha, mas de um estranho pressentimento da importância do que iria ser dito, de uma tomada de consciência involuntária que não combinava com suas racionalizações. E, de fato, o que veio a seguir foi o que ele esperava: Mária Pávlovna, fingindo estar interessada apenas em conversar, contou que naquele ano estavam nascendo somente meninos; pelo visto, para irem para a guerra. Foi assim na casa dos Vássin e na dos Ptchélnikov, onde uma jovem teve seu primeiro filho, também menino. A velha senhora pretendia apenas tocar de leve nesses assuntos, mas ela mesma ficou envergonhada quando viu o rubor no rosto do filho e como ele tirava e recolocava o pincenê, fumando nervosamente um cigarro. Ela se calou. Ele também permaneceu calado, sem conseguir pensar em algo para interromper aquele silêncio. Ficou claro para ambos que estavam se compreendendo muito bem.
– Na aldeia deve haver justiça, para que não haja favoritos, como no caso do seu tio.
– Mãezinha – disse Evguêni de repente –, eu sei por que a senhora está dizendo isso. Está se preocupando à toa. Para mim, minha futura vida conjugal é tão sagrada que não a destruiria de maneira nenhuma. E da minha vida de solteiro tudo está definitivamente terminado. Nunca tive compromisso com ninguém, e ninguém tem direito algum em relação a mim.
– Então fico feliz – disse a mãe. – Eu conheço suas ideias nobres.
Evguêni interpretou essas palavras de sua mãe como merecido tributo a ele e ficou calado.
No dia seguinte, ele foi à cidade, pensando na noiva e em tudo o mais no mundo, menos em Stepanida. Mas, como se de propósito para fazê-lo lembrar-se dela, começou a encontrar pessoas conhecidas da aldeia, que vinham da igreja a pé ou de carroça. Ele cruzou com o velho Matvei, que ia ao lado de Semion, com alguns garotos e mocinhas e, depois, com duas mulheres, uma mais velha e outra em roupa de festa, com um lenço vermelho vivo na cabeça, que lhe pareceu familiar. Essa última caminhava animadamente, com agilidade, e levava um bebê nos braços. Quando se encontraram, a mais velha parou e curvou-se profundamente, à moda antiga, mas a jovem com o bebê apenas fez um aceno de cabeça, e debaixo do lenço brilharam uns olhos alegres, que ele conhecia bem.
“É ela, mas está tudo acabado e não há por que ficar olhando. E essa criança pode ser minha”, passou-lhe de relance pela mente. “Não, que absurdo. Ela tem marido, eles se davam bem.” Ele nem se deu ao trabalho de fazer contas. Para ele estava decidido que o que tinha havido era necessário para sua saúde, que ela recebera dinheiro e isso foi tudo. Não existiu qualquer ligação entre os dois, e não poderia nem deveria existir. Não que ele estivesse sufocando a voz de sua consciência – sua consciência não lhe dizia absolutamente nada. E ele não se lembrou dela nem mais uma vez depois da conversa com a mãe e do encontro na cidade. Tampouco a encontrou outras vezes depois disso.
No início da primavera, logo depois da Páscoa, Evguêni casou-se na cidade e foi imediatamente para a aldeia com a jovem esposa. A casa estava preparada para os recém-casados, segundo os costumes. Mária Pávlovna queria partir, mas Evguêni e principalmente Liza convenceram-na a ficar. Ela ficou, mas transferiu-se para uma ala anexa.
E assim teve início uma nova vida para Evguêni.
VII
O primeiro ano de casado foi difícil para Evguêni, pois os negócios que vinha adiando durante o noivado de repente desabaram todos juntos sobre ele, depois do casamento.
Era impossível desvencilhar-se das dívidas. A casa de veraneio foi vendida, as dívidas mais urgentes foram pagas, mas ainda restavam algumas e não havia dinheiro. A fazenda dera um bom lucro, mas era necessário mandar a parcela do irmão e economizar para o casamento, de modo que não sobrou capital para tocar a usina de açúcar, que ficou parada. Uma maneira de sair daquela situação seria usar o dinheiro da esposa. Liza, que compreendeu a situação do marido, tomou a iniciativa de exigir que ele fizesse isso. Evguêni concordou, desde que se assinasse um contrato de venda de metade da propriedade, tendo a esposa como beneficiária. E assim foi feito, não tanto pela esposa, que se sentia ofendida com isso, mas pela sogra.
Esses assuntos, com suas constantes reviravoltas – ora sucesso, ora fracasso –, eram uma das coisas que estragavam a vida de Evguêni no primeiro ano de casado. Outra coisa era a falta de saúde de sua esposa. Sete meses após o casamento, no outono, aconteceu-lhe uma desgraça. Ela saíra de charabã[12] para encontrar-se com o marido, que voltava da cidade, e o cavalo, normalmente manso, empinou-se e ela, assustada, saltou para fora do veículo. O pulo foi até certo ponto feliz – ela poderia ter prendido o pé na roda, o que não aconteceu –, mas estava grávida e, naquela mesma noite, começou a sentir dores e acabou sofrendo um aborto. Depois disso, levou muito tempo para se restabelecer. A perda do filho esperado, a doença da mulher, as consequências de tudo isso na vida do casal e, principalmente, a presença da sogra, que veio assim que Liza adoecera – tudo isso tornou aquele ano ainda mais difícil para Evguêni.
Apesar de todas essas circunstâncias difíceis, ao final do primeiro ano Evguêni sentia-se muito bem. Primeiro, porque a ideia que lhe era mais cara ao coração estava se concretizando, embora devagar e com muito trabalho: a reconstituição de sua fortuna e da vida na sua propriedade tal como ela tinha sido nos tempos do avô, porém modernizada. Agora já não tinha mais sentido falar em vender toda a propriedade para pagar as dívidas. A fazenda principal, embora estivesse no nome da esposa, estava salva, e, se houvesse uma boa colheita de beterraba e os preços fossem bons, no ano seguinte aquela situação de economia e tensão iria dar lugar a uma completa satisfação.
Em segundo lugar, havia uma coisa que ele encontrou em Liza e que nunca pensara em encontrar, embora esperasse o melhor de sua esposa. Cenas de amor, arroubos apaixonados não havia, ou eram muito mornos, apesar de ele tentar promovê-los. Mas surgira outra coisa, alegre e agradável, que tornava a vida mais leve. Ele não sabia a origem dessa coisa, mas ela acontecia.
O fato era que, logo após o casamento, Liza decidira que Evguêni Irtênev estava acima de todas as pessoas no mundo, que ele era mais inteligente, mais puro, mais nobre do que qualquer um; por isso, era obrigação de todos servi-lo e tornar sua vida mais agradável. Mas, como não era possível obrigar todo mundo a tanto, pelo menos ela deveria fazê-lo, na medida do possível. E assim ela procedia, de modo que todas as suas energias foram direcionadas para descobrir, adivinhar os gostos dele e executá-los, quaisquer que fossem e por mais que isso custasse.
Ela possuía aquilo que constitui o principal encanto na convivência com uma mulher apaixonada: graças ao amor pelo marido, tinha perspicácia para entender sua alma. Pressentia – frequentemente melhor do que ele próprio, achava Evguêni – todos os estados de sua alma, qualquer nuance de seus sentimentos, e agia de acordo com isso, nunca ferindo sua sensibilidade. Ela procurava atenuar os sentimentos dolorosos e reforçar os agradáveis. E entendia não apenas seus sentimentos, mas também suas ideias. Imediatamente compreendia qualquer assunto de que ele tratava, por mais desconhecido que lhe fosse, seja ligado à agricultura, à usina, à avaliação do pessoal. E não era somente uma boa interlocutora. Muitas vezes, como ele mesmo dizia, era uma conselheira útil e insubstituível. Ela via as coisas, pessoas e tudo no mundo pelos olhos dele. Apesar de amar a mãe, ao ver que Evguêni não gostava de que a sogra se intrometesse na vida deles, tomou tão resolutamente o partido do marido que ele teve de contê-la.
Além de tudo isso, nela havia uma grande dose de bom gosto, tato e, principalmente, silêncio. Fazia tudo sem que se percebesse, mas os resultados eram perceptíveis, ou seja, a limpeza, a ordem e o capricho estavam em toda parte. Liza compreendeu logo qual era o ideal de vida do marido e procurava satisfazê-lo; e conseguia com a arrumação da casa aquilo que ele desejava. Só faltava um filho, mas para isso havia esperança. No inverno eles foram a São Petersburgo e consultaram um obstetra, que lhes assegurou que ela estava completamente bem de saúde e que poderia ter filhos.
E esse desejo se realizou. No final do ano ela engravidou novamente.
A única coisa que poderia ameaçar a felicidade deles, embora não chegasse a envenenar sua relação, era o ciúme dela, ciúme que ela não demonstrava, procurava refrear, mas que a fazia sofrer. Evguêni não só não podia gostar de ninguém, porque não havia no mundo mulheres dignas dele (se ela era digna dele ou não, ela nunca havia se perguntado), como também nenhuma mulher poderia ousar amá-lo.
VIII
A vida deles transcorria da seguinte maneira: ele se levantava sempre cedo e ia administrar a fazenda, ia à usina e às vezes ia ao campo. Às dez horas, voltava para o café. Tomava café na varanda, na companhia de Mária Pávlovna, de um tio que estava hospedado com eles e de Liza. Depois das conversas, que costumavam ser muito animadas, separavam-se até a hora do almoço. Almoçavam às duas horas. Depois do almoço, passeavam a pé ou davam uma volta de carruagem. À noite, mais tarde, quando ele chegava do escritório, tomavam chá. Às vezes ele lia em voz alta e ela fazia algum trabalho manual, ou promoviam uma sessão de música, ou, se tinham visitas, conversavam. Quando ele viajava a negócios, correspondiam-se diariamente. Às vezes ela o acompanhava nas viagens, e essas ocasiões eram muito alegres. Nos aniversários de ambos, reuniam-se convidados, e ele ficava muito satisfeito de ver como ela sabia organizar tudo de modo que todos se sentissem bem. Percebia que as pessoas a admiravam, ouvia comentários de que ela era uma dona de casa jovem e encantadora, e passou a amá-la ainda mais. Tudo ia às mil maravilhas. Ela estava suportando bem a gravidez, e os dois começaram timidamente a pensar em como iriam educar a criança. A maneira de educar, os métodos, tudo isso era decidido por Evguêni; ela apenas desejava cumprir docilmente sua vontade. Ele, por sua vez, passou a ler um monte de livros de medicina e tinha intenção de educar a criança seguindo à risca os preceitos da ciência. Ela, evidentemente, concordava com tudo e se preparava, costurando cobertas para o frio e para o calor e arrumando o berço. E assim chegaram o segundo ano de sua vida de casados e sua segunda primavera.
IX
Às vésperas do dia da Santíssima Trindade, Liza, que estava no quinto mês de gravidez, estava alegre e ativa, embora se cuidasse muito. As duas mães, a dela e a dele, estavam morando com eles sob o pretexto de que precisavam vigiá-la e protegê-la, mas apenas conseguiam deixá-la nervosa com seus bate-bocas. Evguêni estava muito envolvido com o trabalho na fazenda, especialmente com um novo método de cultivo de beterraba em grande escala.
Na véspera do dia santo, Liza decidiu que era necessário fazer uma boa faxina na casa, que não se fazia desde a Páscoa, e, para ajudar seus empregados, chamou duas diaristas que deveriam lavar os assoalhos, as janelas, tirar o pó dos móveis e dos tapetes e colocar forros nas cadeiras. As duas mulheres chegaram de manhã cedo, puseram os baldes de água para esquentar e começaram a trabalhar. Uma delas era Stepanida, que tinha desmamado recentemente seu menino e pedira a um empregado do escritório, com o qual ela estava saindo, que lhe conseguisse trabalho como limpadora de chão. Tinha vontade de ver de perto a nova senhora. Levava a mesma vida de antes, sem o marido, e divertia-se, como fizera com o velho Danila, que a pegara roubando lenha, depois com o dono da terra e agora com o jovem empregado do escritório. Já não pensava mais no patrão. “Ele agora tem uma esposa. Mas eu tinha vontade de ver como é a senhora, como ela cuida da casa; dizem que é muito bem-arrumada”, pensou.
Desde que a encontrara com a criança nos braços, Evguêni não a tinha visto mais. Ela não costumava trabalhar como diarista por causa do bebê, e ele passava raramente pela aldeia. Naquela manhã, na véspera do dia da Santíssima Trindade, Evguêni levantou-se cedo, às cinco horas, e foi para o campo, onde estava programada a aplicação de fosforita. Saiu de casa antes de as mulheres entrarem, pois ainda estavam ocupadas com as panelas no fogão.
Mais tarde, alegre, satisfeito e faminto, ele voltou à casa para o café da manhã. Apeou do cavalo junto ao portão, entregou-o ao jardineiro que passava e encaminhou-se para casa, chicoteando o mato crescido e repetindo em voz alta uma frase, como frequentemente acontecia. A frase era: “As fosforitas justificarão”. Justificarão o que e a quem, isso ele não sabia nem imaginava.
No gramado em frente à casa, estavam sacudindo os tapetes, e os móveis tinham sido colocados do lado de fora.
“Minha nossa! Que faxina Liza está fazendo! As fosforitas justificarão. Isso é que é dona de casa! Ah, patroazinha! É minha patroazinha”, pensava ele, imaginando-a nitidamente na sua longa bata branca e com o rosto radiante de alegria, como quase sempre estava quando ele olhava para ela. “Hum, preciso trocar de botas, senão as fosforitas justificarão, ou melhor, elas estão cheirando a esterco, e a patroazinha está em estado interessante. Por que ela está nesse estado? Porque dentro dela está crescendo um novo e pequeno Irtênev. É, as fosforitas justificarão.” E, sorrindo aos próprios pensamentos, estendeu a mão para empurrar a porta do seu quarto.
Mas não chegou a tocar na porta, pois ela mesma se abriu e ele deu de cara com uma mulher que vinha em sentido contrário, com um balde na mão, descalça e com as mangas e a barra da saia arregaçadas. Ele chegou para um lado, para lhe dar passagem, e ela fez o mesmo, ajeitando com as costas da mão molhada o lenço que despencara da cabeça.
– Passe, passe, não posso passar se a senhora... – começou ele, mas, reconhecendo-a, parou de repente.
Com os olhos sorridentes, ela olhou alegremente para ele. E saiu pela porta, puxando para baixo sua saia.
“Que absurdo é esse?... Que aconteceu?... Não pode ser”, pensava Evguêni, franzindo a testa e sacudindo-se como se estivesse enxotando moscas. Ele não estava gostando de encontrá-la, mas, ao mesmo tempo, não conseguia desgrudar os olhos do seu corpo, do seu caminhado ágil e forte, dos pés descalços, das suas mãos e ombros, do belo franzido da blusa e da saia vermelha, da barra arregaçada deixando à mostra a alvura das panturrilhas.
“Mas o que estou olhando?”, pensou ele, baixando os olhos para não vê-la. “De qualquer maneira, preciso entrar para apanhar outras botas.” E deu meia-volta para entrar no quarto, mas, nem bem deu cinco passos, sem saber como e por ordem de quem virou-se novamente para olhá-la. Ela estava quase desaparecendo atrás de um ângulo da casa, mas naquele mesmo instante também se virou para vê-lo.
“Ah, que estou fazendo”, pensou aflito. “O que ela vai pensar? Aliás, já deve ter pensado.”
Evguêni entrou no seu quarto molhado. Outra mulher, mais velha e magra, ainda estava lá esfregando o chão. Ele caminhou na ponta dos pés pelas poças de água suja, foi até o armário onde estavam as botas e quis sair, mas a mulher também saiu.
“Esta saiu, agora vai vir a outra, Stepanida – e sozinha”, pensou alguém dentro dele.
“Meu Deus! O que estou pensando, que estou fazendo!” Agarrou as botas e correu para o vestíbulo, calçou-as, escovou a poeira da roupa e foi até a varanda, onde as duas mães já estavam sentadas tomando café. Pelo visto, Liza estava à espera dele e entrou na varanda ao mesmo tempo, por outra porta.
“Meu Deus, se ela soubesse! Ela, que me acha tão honesto, puro, inocente!”, pensou ele.
Liza veio ao seu encontro com o rosto radiante, como sempre. Mas naquele dia ele a achou particularmente pálida, amarelada, débil e comprida.
X
Naquele dia, durante o café, transcorria aquele tipo muito frequente de conversa feminina em que não há ligações lógicas, mas que, ao que parece, encadeia-se de alguma forma, pois prosseguia sem interrupções. As duas senhoras espicaçavam-se mutuamente, e Liza bordejava entre ambas com maestria.
– Estou tão aborrecida por não terem conseguido terminar de limpar seu quarto antes que você chegasse – disse ela ao marido. – Mas é que eu queria tanto fazer uma arrumação geral.
– E você, dormiu depois que eu saí?
– Dormi, estou bem.
– Como uma mulher na situação dela pode estar bem neste calor insuportável, com o sol batendo em todas as janelas! – disse Varvara Aleksêievna. – E sem venezianas ou toldos. Na minha casa sempre tivemos toldos.
– Mas aqui faz sombra depois das dez horas – disse Mária Pávlovna.
– Por isso se tem febre. Por causa da umidade – disse Varvara Aleksêievna, sem notar que estava contradizendo o que acabara de falar. – Meu médico sempre dizia que não é possível determinar uma doença sem se conhecer o caráter do doente. E ele deve saber o que diz, pois é um doutor de primeira e cobra cem rublos por consulta. Meu finado marido não confiava em médicos, mas, se era para mim, nunca tinha pena de gastar.
– E como um homem pode ter pena de gastar com a mulher, se a vida dela e da criança pode depender...
– É, quando há recursos, a esposa pode não depender do marido. A boa esposa obedece ao marido – disse Varvara Aleksêievna –, mas Liza ainda está muito fraca depois de sua doença.
– Mas que nada, mamãe. Estou me sentindo muito bem. Mas por que não serviram à senhora creme de leite cozido?
– Não é preciso, eu como cru mesmo.
– Eu perguntei a Varvara Aleksêievna, mas ela recusou – disse Mária Pávlovna, como que se justificando.
– Não, não, agora eu não quero mesmo – e, como se quisesse encerrar uma conversa desagradável cedendo magnanimamente, Varvara Aleksêievna dirigiu-se a Evguêni:
– Então, aplicaram a fosforita?
Liza correu para buscar o creme cozido.
– Liza! Liza! Mais devagar – disse Mária Pávlovna. – Esses movimentos bruscos não são bons para ela.
– Nada faz mal, se existe paz de espírito – disse Varvara Aleksêievna, como se estivesse insinuando alguma coisa, embora ela mesma soubesse que suas palavras não poderiam se referir a nada.
Liza voltou com o creme. Evguêni tomava seu café e escutava com a cara amarrada. Estava acostumado a conversas como aquela, mas, naquele dia especialmente, irritava-o a sua falta de sentido. Ele queria meditar sobre o que lhe acontecera e o falatório atrapalhava. Terminando seu café, Varvara Aleksêievna, aborrecida, saiu da varanda. Ficaram apenas Liza, Evguêni e Mária Pávlovna, que continuaram conversando de maneira simples e agradável. Mas Liza, cujo amor tornava-a sensível, notou logo que algo preocupava seu marido e perguntou-lhe se tivera alguma contrariedade. Ele não estava preparado para essa pergunta e, hesitando um pouco, respondeu que não acontecera nada. Essa resposta deixou Liza mais desconfiada ainda. Que algo o estava torturando, e muito, era tão evidente para ela como uma mosca no leite, mas ele não queria dizer o que era.
XI
Depois do café, cada um foi para o seu lado. Evguêni, seguindo uma regra que ele mesmo criara, foi para o seu escritório. Não pegou nada para ler nem para escrever, simplesmente sentou-se, ficou fumando um cigarro atrás do outro e pensando. Estava terrivelmente surpreso e aborrecido pelo inesperado surgimento daquele sentimento sórdido, do qual se considerava livre desde que se casara. Desde então, nem uma vez ele tivera tal sentimento, nem com relação àquela mulher, nem a qualquer outra, exceto sua esposa. Muitas vezes ele intimamente se alegrou por sua libertação e, de repente, aquela casualidade aparentemente insignificante o fez ver que não estava livre. O que o torturava agora não era o fato de estar novamente prisioneiro daquele desejo – nisso não queria nem pensar –, e sim que o sentimento estava vivo nele e era preciso estar alerta. No seu íntimo, não tinha nenhuma dúvida de que o sufocaria.
Ele tinha uma carta para responder e um papel para preencher. Sentou-se à mesa e pôs-se a trabalhar. Ao terminar, já esquecido do que o preocupara, saiu para ir à estrebaria. E novamente, para sua desgraça, por um acaso infeliz ou de propósito, assim que ele saiu pela porta da frente, de trás de um canto da casa surgiram a saia e o lenço vermelhos, e ela passou junto dele requebrando e balançando os braços. E não apenas passou, ela correu, desviando-se dele como se estivesse brincando, e alcançou sua companheira.
De novo o claro sol do meio-dia, as urtigas, os fundos da cabana de Danila, o rosto sorridente dela à sombra dos bordos, seu jeito de mordiscar as folhas – tudo isso voltou à sua memória.
“Não, isso não pode ficar assim”, disse para si mesmo e, dando um tempo para que as mulheres sumissem de sua visão, foi para o escritório da fazenda. Era hora do almoço, e ele tinha esperança de encontrar o administrador. Dito e feito. O administrador acabara de acordar e estava de pé no escritório, espreguiçando-se, bocejando e olhando para o vaqueiro, que lhe dizia algo.
– Vassíli Nikoláievitch! – disse Evguêni.
– Que o senhor ordena?
– Quero falar com o senhor.
– Mas o que o senhor ordena?
– Termine seu assunto primeiro.
– Será que você não consegue trazer? – disse Vassíli Nikoláievitch ao vaqueiro.
– É pesada, Vassíli Nikoláievitch.
– De que estão falando? – perguntou Evguêni.
– Uma vaca pariu no campo. Pode deixar, vou mandar atrelar um cavalo. Mandei Nikolai Lyssukha atrelar na carroça mesmo.
O vaqueiro se foi.
– Sabe o que é... – começou Evguêni, sentindo que ruborizava. – Sabe, Vassíli Nikoláievitch, enquanto eu estava solteiro, cometi aqui meus pecados... Talvez o senhor tenha ouvido a esse respeito...
Vassíli Nikoláievitch, com olhos sorridentes e evidente pena do patrão, disse:
– Está falando da Stepachka[13]?
– É, estou. O que eu quero é o seguinte: por favor, por favor, não a mande para trabalhar na minha casa como diarista. O senhor compreende, é muito desagradável para mim...
– De certo foi o Vânia, nosso empregado, que organizou isso.
– Então, veja isso, por favor... Mas e então, vão aplicar o adubo no restante do terreno? – disse Evguêni, para disfarçar seu constrangimento.
– Vou ver isso agora mesmo.
E assim terminou esse assunto. Evguêni tranquilizou-se, na esperança de que, como ele vivera um ano sem encontrá-la, dali para a frente não seria diferente. “Além disso, Vassíli dirá isso ao empregado Vânia, que falará para ela, e ela vai entender que não quero tal coisa” – dizia ele para si, feliz por ter decidido falar com Vassíli, por mais difícil que tenha sido. “Qualquer coisa é melhor do que essa dúvida, do que essa vergonha.” E sentiu um calafrio à simples recordação daquele crime que ele praticava em pensamento.
XII
O esforço moral que fizera para vencer a vergonha e falar com Vassíli Nikoláievitch deixou Evguêni tranquilo. Parecia-lhe que tudo havia terminado. Liza também notou que ele estava completamente calmo e até mais alegre do que o normal. “Provavelmente ele se aborreceu com o bate-boca das duas mães. É realmente difícil, principalmente para ele, tão nobre e sensível, ficar ouvindo essas indiretas maldosas e de mau gosto”, pensava Liza.
O dia seguinte era o da Santíssima Trindade. Fazia um tempo maravilhoso, e as camponesas caminhavam pelo bosque, como de hábito nesse dia, colhendo ramos para tecer grinaldas. Elas vieram para a frente da casa senhorial e ficaram ali cantando e dançando. Mária Pávlovna e Varvara Aleksêievna saíram da casa com roupas de festa e sombrinhas e se aproximaram da roda. Saiu também o tio que estava passando o verão com eles, um senhor obeso, beberrão e libertino, vestido com um casaco chinês.
Como sempre, no centro havia uma roda multicor de jovens camponesas solteiras e casadas, com roupas de cores vivas, e ao redor, como planetas e satélites que tivessem se desprendido e girassem em torno delas, caminhava sem direção uma pequena multidão. Eram meninas de mãos dadas, que faziam farfalhar seus novos vestidos de chita, ou moleques que fungavam e corriam por todos os lados, em perseguição uns aos outros, ou rapazes de camisas vermelhas e casacos curtos franzidos na cintura, azuis ou pretos, com quepes da mesma cor, que sem parar cuspiam cascas de sementes de girassol, ou empregados da casa e até estranhos, que ficavam olhando de longe a dança de roda. As duas senhoras chegaram até a roda. Logo atrás delas vinha Liza, de vestido azul-claro e fitas da mesma cor nos cabelos, com mangas largas de onde se viam seus longos e alvos braços e seus cotovelos angulosos.
Evguêni não tinha vontade de sair, mas ficaria estranho se ele se escondesse. Então saiu e ficou na entrada da casa, fumando um cigarro e cumprimentando os camponeses jovens e adultos, e até entabulou uma conversa com um deles. Enquanto isso, as mulheres gritavam a plenos pulmões uma animada música de dançar, estalavam os dedos, batiam palmas e bailavam.
– A patroa está chamando – disse um criadinho, aproximando-se de Evguêni, que não ouvira o chamado da esposa. Liza queria que ele fosse assistir à dança, especialmente à de uma das mulheres, que lhe agradou mais do que as outras. Era Stepacha. Ela estava de vestido amarelo e colete de pelúcia, com um lenço de seda na cabeça, cheia de energia, ampla, corada e alegre. Certamente, dançava muito bem. Ele não ficou olhando.
– Já vi, já vi – disse, tirando e colocando o pincenê. – Já vi. “Pelo que estou vendo, é impossível livrar-me dela”, pensou.
Não a olhava porque temia a atração que ela exercia, e, precisamente por isso, o pouco que viu já lhe pareceu bastante atraente. Além disso, notou, por uma olhadela que ela lhe lançou, que ela o estava vendo e que percebia sua admiração. Evguêni ficou ali o tempo necessário para manter as aparências e, ao ver que Varvara Aleksêievna a chamava e lhe dizia alguma coisa, num tom descabido e falso, chamando-a de queridinha, virou-se e regressou à casa. Ele se afastou para não vê-la, mas, chegando ao andar superior, sem saber como nem por que se aproximou da janela e, durante todo o tempo em que as mulheres permaneceram na frente da casa, ficou lá, olhando-a e regalando-se com sua visão.
Ele desceu correndo, antes que alguém pudesse vê-lo, e caminhou sem ruído até a sacada. Ali, fumou um cigarro e, como se estivesse dando um passeio, atravessou o jardim na direção que ele a vira tomar. Não tinha dado dois passos pela alameda quando por trás das árvores viu de relance o colete de pelúcia, o vestido amarelo[14] e o lenço vermelho. Ela caminhava ao lado de outra mulher. “Será que elas estão indo a algum lugar?”
De repente ele se sentiu arder com um desejo terrível e parecia que uma mão estava apertando seu coração. Como se obedecesse a um comando alheio, olhou ao redor e caminhou na direção dela.
– Evguêni Ivânytch, Evguêni Ivânytch! Eu estava indo pedir um favor ao senhor – disse atrás dele uma voz. Olhou e viu que era Samókhin, um velho que estava furando um poço para ele. Recobrando o domínio de si, virou-se bruscamente e foi ao encontro de Samókhin. Durante a conversa com o velho, ele se postou meio de lado e viu que as duas mulheres tinham descido a encosta, provavelmente para irem ao poço, ou usando isso como pretexto, e, depois de permanecerem um pouquinho ali, voltaram à roda da dança.
XIII
Terminada a conversa com Samókhin, Evguêni voltou para casa abatido, como se tivesse cometido um crime. Motivos não lhe faltavam. Em primeiro lugar, ela o estava entendendo muito bem e achava que ele queria vê-la, o que ela também queria. Em segundo lugar, a outra mulher, Anna Prókhorova, evidentemente sabia de tudo.
Mas o principal era que sentia que estava derrotado, que não estava no comando, que havia uma força impulsionando-o. Naquele dia, salvara-se por um feliz acaso, mas, mais dia, menos dia, estaria perdido.
“Sim, perdido”, era assim que ele se via. “Trair a própria esposa jovem e amorosa, na aldeia, com uma camponesa, à vista de todos, não será isso uma perdição, uma terrível perdição, após o que será impossível continuar vivendo? Preciso, necessito fazer alguma coisa.”
“Meu Deus, meu Deus! Mas o que posso fazer? Será que esse vai ser mesmo o meu fim?”, dizia para si mesmo. “Não há nada que se possa fazer? É necessário fazer alguma coisa. Não pense nela!”, ordenava a si mesmo. “Não pense!”, mas, na mesma hora, já estava novamente pensando nela e a vendo diante de si, à sombra dos bordos.
Ele se lembrou de que havia lido a respeito de um velho monge que, para evitar a tentação de uma mulher na qual deveria tocar com a mão para curá-la, havia colocado a outra mão num braseiro e deixado seus dedos queimarem. Evguêni lembrou-se disso. “É, prefiro queimar meus dedos a desgraçar-me.” Deu uma olhada para certificar-se de que estava só e acendeu um fósforo, colocando o dedo na chama. “E então? Pense nela agora”, disse ele com ironia. Ao sentir dor, retirou o dedo da chama, jogou fora o fósforo e ficou rindo de si mesmo. “Quanta bobagem! Não é isso que é preciso fazer. É preciso tomar alguma providência para não encontrá-la mais – ou ir-me embora daqui, ou conseguir que ela se vá. É isso, ela que se vá! Quem sabe oferecer dinheiro ao marido para que ele se mude para a cidade ou para outra aldeia. Se as pessoas ficarem sabendo, vão comentar. Que falem, qualquer coisa é melhor do que esse perigo constante. É isso que é preciso fazer”, dizia para si mesmo, sem tirar os olhos dela. “Para onde ela foi?”, indagou-se de repente. Teve a impressão de que ela o avistara na janela e depois, lançando-lhe uma olhadela, dera a mão a uma mulher e dirigira-se para o jardim balançando animadamente o braço. Sem que ele mesmo soubesse a razão ou a finalidade, simplesmente movido por seus pensamentos, saiu para o escritório do administrador.
Vassíli Nikoláievitch estava de casaca de festa, com brilhantina no cabelo, e tomava chá com sua esposa e uma visitante com um lenço adamascado.
– Queria dar-lhe uma palavrinha, Vassíli Nikoláievitch.
– Claro! Por favor, sente-se. Nós já terminamos.
– Não, seria melhor o senhor vir comigo.
– Agora mesmo, deixe-me só pegar meu quepe. Tânia, coloque a tampa no samovar – disse Vassíli Nikoláievitch, saindo com ar alegre.
Evguêni teve a impressão de que ele estava meio alto, mas que fazer! Talvez fosse melhor assim, ele se colocaria mais facilmente no seu lugar.
– Eu vim, Vassíli Nikoláievitch, falar daquele mesmo assunto, daquela mulher – disse Evguêni.
– Não se preocupe, eu já dei ordem para não contratá-la mais.
– Não, não é isso. Eu estava pensando no caso e queria pedir sua opinião. Não seria possível fazer com que ela e toda a família fossem embora daqui?
– Mas mandá-los para onde? – disse Vassíli, num tom que pareceu a Evguêni aborrecido e irônico.
– Bem, eu havia pensado em dar dinheiro a eles, ou até mesmo um pedaço de terra em Koltóvski, para que ela se vá definitivamente daqui.
– Mas mandá-los embora como? Para onde eles iriam, longe de suas raízes? E para que o senhor precisa disso? No que ela o está incomodando?
– Ah, Vassíli Nikoláievitch, o senhor há de compreender que será horrível para minha esposa se ela souber disso.
– Mas quem iria contar isso a ela?
– Como posso viver com essa ameaça? E, de todo modo, essa situação é penosa.
– Para falar a verdade, não entendo por que preocupar-se tanto. Quem gosta de desenterrar o passado não merece consideração. E quem nunca pecou diante de Deus, quem não é culpado diante do tsar?
– Mas, de qualquer modo, é melhor afastá-la. O senhor não pode conversar com o marido?
– Mas nem sei o que dizer a ele! Ora, Evguêni Ivânytch, para que isso? Tudo já passou e ficou esquecido. Essas coisas acontecem. E quem há de falar mal do senhor? O senhor é uma pessoa importante.
– De qualquer modo, fale.
– Está bem. Vou falar.
Embora sabendo de antemão que nada se resolveria, aquela conversa tranquilizou um pouco Evguêni, principalmente porque ele sentiu que, devido ao seu estado de nervos, estava exagerando um pouco quanto ao perigo.
Será que ele estava procurando um encontro com ela? Não, impossível. Ele estava simplesmente passeando no jardim, e ela casualmente deu uma fugida até lá.
XIV
Naquele mesmo dia da Santíssima Trindade, depois do almoço, Liza foi dar uma volta pelo jardim e pelo campo, conduzida por seu marido, que queria mostrar-lhe a plantação de trevos[15]. Ao atravessar uma pequena vala, ela pisou em falso e caiu. Caiu suavemente, de lado, mas soltou um ai e no seu rosto o marido viu dor, além do susto. Quis erguê-la, mas ela afastou sua mão.
– Não, espere um pouco, Evguêni – disse ela, sorrindo debilmente e olhando-o de baixo para cima com uma expressão que lhe pareceu culpada. – Foi uma simples torcida no pé.
– Estão vendo o que eu sempre digo? – disse Varvara Aleksêievna. – Será possível isso? Ficar saltando valetas na sua condição?
– Ora, não é nada, mamãe. Já vou me levantar.
Tentou levantar-se com o auxílio do marido, mas no mesmo instante empalideceu e seu rosto tomou uma expressão de susto.
– Não estou me sentindo bem – e cochichou alguma coisa para a mãe.
– Ah, meu Deus, que foram fazer! Eu disse para não caminhar – gritava Varvara Aleksêievna. – Esperem, vou buscar ajuda. Ela não deve andar. É preciso carregá-la.
– Você não tem medo, Liza? Vou carregar você – disse Evguêni, enlaçando-a com o braço esquerdo. – Passe os braços ao redor do meu pescoço. Isso mesmo.
Abaixou-se, passou o braço direito por baixo das pernas dela e a ergueu. Depois disso, ele jamais esqueceria a expressão de sofrimento e felicidade estampada no rosto dela.
– É pesado para você, querido – dizia ela sorrindo. – Lá vai a mamãe correndo, chame-a.
Ela o abraçou e beijou. Era evidente que queria que a mãe o visse carregando-a.
Evguêni gritou para Varvara Aleksêievna que ela não precisava correr, porque ele levaria Liza no colo. A sogra parou e começou a gritar mais alto ainda.
– Você vai jogá-la no chão, vai deixá-la cair. Está querendo matar a menina. Você não tem consciência.
– Eu a estou carregando muito bem.
– Mas eu não quero, não posso ficar vendo você torturar assim a minha filha – e correu, sumindo numa curva da alameda.
– Não ligue, isso passa – disse Liza, sorrindo.
– Só desejo que não haja consequências, como da outra vez.
– Não é disso que estou falando, isso não é nada, estou falando da maman. Você está cansado, descanse um pouco.
Mas, embora estivesse pesada para ele, Evguêni levou sua carga com orgulhosa alegria até a casa e não a entregou para a arrumadeira e o cozinheiro, que Varvara Aleksêievna havia enviado ao encontro deles. Carregou-a até o quarto e colocou-a na cama.
– Agora você pode ir – disse ela, puxando a mão dele e a beijando. – Eu e Ánnuchka nos arranjamos.
Mária Pávlovna veio correndo de sua ala na casa. Trocaram a roupa de Liza e a colocaram na cama. Evguêni ficou esperando, sentado na sala de estar com um livro nas mãos. Varvara Aleksêievna passou por ele com uma cara tão sombria e cheia de acusações que ele ficou deveras assustado.
– E então, como ela está? – perguntou ele.
– Como? Precisa perguntar? Está do jeito que o senhor queria que ela ficasse, obrigando-a a saltar fossos.
– Varvara Aleksêievna! – exclamou ele –, isso é insuportável. Se a senhora deseja torturar as pessoas e envenenar a vida delas... – ele queria dizer: “então vá-se embora para algum lugar”, mas se conteve. – Como a senhora não percebe isso?
– Agora é tarde.
E se dirigiu para a porta, sacudindo a touca com ar triunfante.
A queda de fato tinha sido grave. Liza torcera o pé desajeitadamente e havia risco de abortar. Todos sabiam que não havia o que fazer, além de ela ficar de repouso tranquilamente, mas ainda assim resolveram chamar um médico.
“Prezado Nikolai Semiônovitch”, escreveu Evguêni ao médico, “o senhor foi sempre tão bom para nós que, espero, não se recusará a vir examinar minha esposa. Ela está...” etc. Terminada a carta, ele foi à cocheira dar ordens para prepararem os cavalos e a carruagem. Seriam necessários alguns cavalos para trazer o doutor e outros para levá-lo de volta. Para uma propriedade de pequenas dimensões, isso era difícil de resolver assim, de uma hora para outra, e foi necessário pensar bem. Evguêni resolveu pessoalmente o problema, despachou o cocheiro e voltou para casa às dez da noite. Sua esposa continuava deitada, dizia que estava ótima e não sentia nenhuma dor, mas Varvara Aleksêievna estava lá, sentada atrás de um abajur, cujo reflexo era separado de Liza por partituras musicais, usadas como anteparo, e tricotava uma grande coberta vermelha; sua atitude dizia claramente que, após o que acontecera, não haveria mais possibilidade de paz. “Façam os outros o que fizerem, eu pelo menos cumpri com minha obrigação.”
Evguêni percebeu isso, mas, para fazer de conta que não estava notando, esforçou-se para aparentar alegria e despreocupação. Contou como ele havia reunido os cavalos e que a égua Kavuchka marchara muito bem no cambão esquerdo.
– Mas claro, esse é o melhor momento para adestrar cavalos, quando se precisa de ajuda. Provavelmente vão jogar o doutor na valeta também – disse Varvara Aleksêievna, olhando por baixo do pincenê para o tricô, que trouxera para bem perto da lâmpada.
– Mas era preciso mandar alguém. Eu fiz o melhor possível.
– É, eu me lembro muito bem de como seus cavalos dispararam comigo e por pouco não fomos parar debaixo do trem.
Aquilo era uma história antiquíssima, criada pela imaginação dela, e naquele instante Evguêni teve a imprudência de dizer que o fato não tinha se passado exatamente assim.
– Não é à toa que digo sempre, e disse muitas vezes ao kniaz[16], meu marido, que o mais difícil de tudo é viver com pessoas insinceras, mentirosas; eu suporto tudo, menos isso.
– Mas, se alguém está sofrendo mais do que os outros, esse alguém evidentemente sou eu – disse Evguêni.
– Isso se vê.
– Que disse?
– Nada, estou contando os pontos.
Evguêni estava de pé junto à cama, e Liza olhava para ele; ergueu uma das mãos úmidas, que estavam caídas sobre o cobertor, pegou na mão dele e a apertou. “Aguente por mim. Ela não pode impedir o nosso amor”, dizia seu olhar.
– Não vou dizer mais nada. É assim que vai ser – sussurrou ele, beijando sua mão comprida e úmida, depois os olhos meigos, que se fechavam quando ele os beijava. – Será que vai acontecer de novo? – disse ele. – Como está se sentindo?
– Tenho medo de dizer, para não me enganar, mas sinto que ele está vivo dentro de mim e que vai viver – disse ela, olhando para a barriga.
– Ah, dá medo só de pensar.
Apesar da insistência de Liza para que ele saísse, Evguêni passou a noite junto dela, dormindo com um olho só, pronto para acudi-la. Mas ela passou bem a noite e, se não tivessem chamado o médico, teria se levantado.
O médico chegou na hora do almoço e, como era de se esperar, disse que, embora uma segunda vez possa causar preocupações, estritamente falando não existiam sinais objetivos, mas, como tampouco havia sinais que indicassem o contrário, tanto se podia admitir uma hipótese como a outra. Por isso era melhor continuar deitada e tomar o remédio que ele iria receitar, embora não gostasse de fazê-lo. Além disso, o doutor deu a Varvara Aleksêievna uma aula de anatomia feminina, durante a qual ela baixava significativamente a cabeça. Depois de receber seus honorários, colocados, como de hábito, na parte mais posterior da palma de sua mão, o doutor foi embora, e a paciente ficou deitada, com a instrução de repousar durante uma semana.
XV
Evguêni permanecia a maior parte do tempo junto ao leito da esposa, servindo-a, conversando com ela, lendo em voz alta e, o que era mais difícil, aguentando sem se queixar os ataques de Varvara Aleksêievna, conseguindo até mesmo fazer piadas a respeito deles.
Mas não podia ficar indefinidamente dentro de casa. Primeiro, porque a própria esposa mandava-o sair, dizendo que ele iria adoecer se ficasse o tempo todo ao lado da sua cama; segundo, porque os trabalhos na propriedade exigiam a toda hora sua presença. Ele não podia ficar em casa e passava o tempo no campo, no bosque, no jardim, no celeiro, e por toda parte a imagem viva de Stepanida o perseguia de tal maneira que ele raramente se esquecia dela. Mas isso ainda não era o pior. Ele talvez conseguisse superar aquele sentimento, o pior mesmo é que antes ele passava meses sem vê-la, e agora constantemente a encontrava. Era evidente que ela percebera seu desejo de reativar a antiga relação e fazia tudo para estar sempre no seu caminho. Nenhuma palavra fora dita nem por ele, nem por ela, por isso nenhum dos dois marcava abertamente um encontro, apenas procuravam a oportunidade de se encontrar.
Um lugar onde poderiam se encontrar era o bosque, aonde as mulheres iam com sacos em busca de ervas para as vacas. Evguêni sabia disso e por essa razão diariamente passava ao lado desse bosque. E diariamente ele dizia a si mesmo que não iria mais, mas acabava dirigindo-se para lá e, ao ouvir vozes, ficava escondido atrás de uma moita, espiando ansiosamente para ver se era ela.
Para que ele precisava saber se era ela? Não sabia responder. Se fosse ela e estivesse sozinha, não iria ao seu encontro, e sim fugiria – era o que ele pensava. Mas tinha necessidade de vê-la. Viu-a certa vez: no momento em que ele entrava no bosque, ela estava saindo com duas outras mulheres, com um pesado saco de ervas às costas. Um minuto antes, talvez os dois tivessem se esbarrado dentro do bosque. Agora ela não poderia, na frente das outras, voltar e encontrar-se com ele. Apesar de ter consciência disso, ele ficou muito tempo ali, atrás da moita de aveleiras, arriscando-se a atrair a atenção das outras mulheres. Evidentemente, ela não voltou, mas ele ficou lá muito tempo. Ah, santo Deus, com que encanto a sua imaginação a pintava! E isso não aconteceu uma vez só, e sim umas cinco ou seis vezes. E quanto mais o tempo passava, pior ficava. Ela nunca lhe havia parecido tão atraente. Mas não era apenas isso: ela nunca o havia dominado daquela maneira.
Evguêni sentia que estava perdendo o domínio de si e que estava ficando quase louco. Ele continuava tão severo consigo mesmo como antes, via toda a baixeza dos seus desejos e até dos seus atos, pois as idas ao bosque, para ele, eram atos. Ele sabia que bastava topar com ela em algum lugar, chegar perto dela no escuro que, se houvesse possibilidade de tocá-la, sucumbiria aos próprios desejos. Estava ciente de que apenas a vergonha diante das pessoas, diante dela e de si mesmo, o fazia conter-se. E sabia que estava procurando as condições em que essa vergonha não fosse notada – a escuridão ou um contato físico em que a vergonha fosse abafada pela volúpia animal. Por tudo isso, sabia que era um criminoso abominável e se desprezava e se odiava com todas as forças de sua alma. Ele se odiava porque continuava a não se entregar. Todos os dias rezava e pedia a Deus que lhe desse forças e o salvasse da desgraça, todos os dias decidia que não daria mais nenhum passo, que não iria olhar para ela, que a esqueceria. Todos os dias inventava meios de escapar daquela alucinação, e punha em prática esses meios. Mas era tudo em vão.
Um dos meios era manter-se constantemente ocupado; outro, aumentar a carga de trabalhos físicos e fazer jejum; o terceiro, imaginar claramente a vergonha que desabaria sobre sua cabeça se todos soubessem daquilo – a esposa, a sogra e as demais pessoas. Tudo isso ele fazia e lhe parecia que estava vencendo, mas chegava a hora, meio-dia, hora dos primeiros encontros, e, depois, hora em que ele a encontrara colhendo ervas, e ele se encaminhava para o bosque.
Assim se passaram cinco dias de martírio. Ele a via apenas de longe e nunca chegou perto dela.
XVI
Liza pouco a pouco ia melhorando, levantava-se da cama e se preocupava com a mudança que se passara com seu marido, que ela não entendia.
Varvara Aleksêievna se fora temporariamente, e dos hóspedes restava apenas o tio. Mária Pávlovna, como sempre, ficava em casa.
Evguêni estava naquele estado semidemente quando, como acontece com frequência após as tempestades de junho, choveu torrencialmente durante dois dias. A chuva interrompeu o trabalho de todos. Tiveram de suspender até o transporte de estrume, devido à água e à lama. Todos tiveram de ficar trancados em casa. Os pastores passaram o maior trabalho com o gado e finalmente conduziram-no para as casas. Vacas e ovelhas andavam pelo pasto e se espalharam pelos quintais. Mulheres cobertas com xales e descalças, chapinhando na lama, corriam atrás das vacas que se dispersavam. Nas estradas, por toda parte a água corria como riachos; as folhagens e a relva estavam encharcadas, das calhas desciam sem parar jorros de água, que caíam nas poças borbulhantes. Evguêni ficou em casa com a esposa, que tinha se tornado bastante aborrecida e lhe perguntava a toda hora qual era o motivo de sua insatisfação. Ele respondia, contrariado, que não havia nada. Ela então parou de perguntar, mas ficou magoada.
Estavam todos sentados na sala de estar após o café da manhã. O tio contava pela centésima vez histórias imaginárias de seus conhecidos da alta sociedade. Liza tricotava um casaquinho e suspirava, queixando-se do tempo e de dor nos quadris. O tio aconselhou-a a se deitar e pediu vinho. Evguêni estava achando tudo muito tedioso, devagar e enfadonho dentro de casa. Lia um livro e fumava, mas não entendia nada do que lia.
– Preciso ir ver os novos trituradores que chegaram ontem – disse ele. Levantou-se e saiu.
– Leve um guarda-chuva.
– Não, eu tenho o casaco de couro. E vou só até a usina.
Colocou as botas e o casaco e foi para a usina. Mas não tinha dado vinte passos e à sua frente surgiu ela, com a saia arregaçada acima das panturrilhas. Caminhava segurando o xale, que lhe cobria a cabeça e os ombros.
– Que faz aqui? – perguntou ele, não a reconhecendo imediatamente. Mas, quando reconheceu, já era tarde. Ela parou e ficou muito tempo olhando para ele e sorrindo.
– Estou procurando um novilho. Aonde o senhor está indo neste temporal? – perguntou ela, como se o visse todos os dias.
– Vá até a cabana – disse ele de repente, sem mesmo saber como. Era como se outra pessoa dentro dele tivesse falado aquilo.
Ela mordeu a ponta do xale, baixou os olhos concordando e correu para onde estava indo, para o jardim, e de lá para a cabana. Ele continuou seu caminho, com a intenção de contornar a moita de lilases e ir para lá também.
– Senhor – ouviu uma voz atrás de si. – A senhora está chamando, pede que o senhor entre um minutinho.
Era Micha, o criado.
“Meu Deus! É a segunda vez que você me salva”, pensou Evguêni. E voltou imediatamente. A esposa lembrou-lhe que ele havia prometido levar, na hora do almoço, um remédio para uma mulher que estava doente, e pediu-lhe que o pegasse de uma vez. Na busca do remédio, passaram-se cinco minutos. Depois, ao sair, ele decidiu não ir para a cabana, temendo que o vissem da casa. Mas, tão logo se viu fora do alcance da visão deles, dirigiu-se imediatamente para lá. Na sua imaginação, ele já a via dentro da cabana, sorrindo para ele alegremente. Mas ela não estava na cabana, e não havia nada que demonstrasse que estivera ali. Pensou, então, que ela não viera, que não ouvira ou não entendera suas palavras, pois ele havia apenas murmurado, como se no fundo temesse que ela as ouvisse. “Ou quem sabe não quis vir? E de onde saiu essa ideia de que ela iria se jogar nos meus braços? Tem marido; o único canalha sou eu, que tenho esposa, e uma boa esposa, e fico correndo atrás da mulher de outro.” Ele pensava isso, sentado dentro da cabana, onde uma goteira pingava através da palha. “Mas que felicidade se ela tivesse vindo! Nós dois sozinhos aqui na chuva. Se pudesse abraçá-la pelo menos mais uma vez... e, depois, que acontecesse o que tivesse de acontecer. Ah, é mesmo!”, lembrou-se. “Se ela esteve aqui, é possível que haja rastros.” Foi examinar a terra batida perto da cabana e a trilha limpa de relva, e encontrou uma marca recente de um pé descalço. “É, ela esteve aqui. Mas agora terminou a brincadeira. Está decidido, irei atrás dela onde quer que a encontre. Irei procurá-la à noite.” Ele ficou ainda muito tempo na cabana e saiu de lá exausto e abatido. Entregou o remédio e voltou para casa, indo em seguida deitar-se, enquanto esperava o almoço.
XVII
Antes do almoço, Liza foi procurá-lo e, ainda imaginando o que poderia ser a causa de sua insatisfação, disse-lhe que receava que ele estivesse aborrecido porque estavam querendo levá-la para Moscou, para dar à luz, e que ela então decidira permanecer ali. Não iria para Moscou por nada neste mundo. Ele sabia como ela receava o parto e que a criança pudesse nascer com problemas, por isso ficou muito comovido ao ver que ela prontamente decidira fazer um sacrifício por amor a ele.
Tudo era tão bom, alegre e limpo dentro de casa, mas dentro dele havia sujeira, infâmia, horror. Evguêni passou toda a tarde sofrendo, porque sabia que, apesar da sincera aversão que tinha pela própria fraqueza, apesar da firme intenção de pôr um fim naquilo, na manhã seguinte começaria tudo de novo.
– Não, isso não pode continuar – dizia para si mesmo, andando de um lado para o outro no seu quarto. – Deve haver alguma saída. Meu Deus! Que vou fazer?
Alguém bateu à porta à maneira estrangeira. Ele adivinhou que era o tio.
– Entre – disse ele.
O tio se autoproclamara embaixador de Liza.
– Se quer saber, também estou notando que você está diferente – disse o tio –, e compreendo como isso está fazendo Liza sofrer. Entendo como é difícil para você abandonar os trabalhos que começou, trabalhos magníficos, por sinal, mas o que você quer, que veux tu? Eu o aconselharia a viajar. Vai ser mais tranquilo para você e para ela. E o meu conselho é que vão para a Crimeia. O clima de lá é um parteiro maravilhoso. E vão chegar exatamente na época das uvas.
– Titio – disse de repente Evguêni –, o senhor pode guardar um segredo meu, um segredo terrível, vergonhoso?
– Desculpe-me, mas será possível que não confie em mim?
– Titio, o senhor pode me ajudar! Ajudar, não, o senhor pode me salvar.
A ideia de que confiaria seu segredo a um tio que não respeitava, de que iria se mostrar para ele da forma mais desfavorável, que iria se rebaixar diante dele, dava-lhe prazer. Sentia-se execrável, cheio de culpa, e queria se castigar.
– Fale, meu amigo, você sabe que me afeiçoei a você – disse o tio, pelo visto muito contente por existir um segredo, e vergonhoso ainda por cima, que lhe seria confiado, e porque ele poderia ser útil.
– Antes de mais nada, devo lhe dizer que sou um patife, um miserável, um canalha. Isso mesmo, um canalha.
– Ora, o que está dizendo – começou o tio, estufando o pescoço.
– Mas sou. Como não seria um canalha, se eu, marido de Liza (veja bem, de Liza!, o senhor conhece sua pureza e sabe como ela me ama), se eu, seu marido, quero traí-la com uma camponesa.
– Mas como é isso, como você quer? Você ainda não a traiu?
– Sim, ou melhor, é o mesmo que ter traído, porque não dependeu de mim. Eu estava decidido a trair. Fui impedido, senão eu estaria agora... eu estaria agora... Não sei o que teria feito.
– Mas, desculpe, explique-me...
– Bem, foi assim. Quando era solteiro, fiz a besteira de ter um caso com uma mulher aqui da aldeia. Ou melhor, eu me encontrava com ela no bosque, no campo...
– Era bonitinha? – perguntou o tio.
Evguêni fez uma careta ao ouvir essa pergunta, mas estava necessitando tanto da ajuda de outra pessoa que fez de conta que não ouviu.
– Mas então eu achava que bastava pôr um ponto final e tudo estaria terminado. Rompi com ela ainda antes de me casar e passei quase um ano sem vê-la e sem pensar nela (Evguêni estava achando estranho ouvir a si mesmo, ouvir-se descrevendo sua situação), depois, de repente, não sei por que (é verdade que às vezes a gente começa a acreditar em feitiço), eu a vi, e um verme penetrou no meu coração e está me corroendo. Eu me censuro, consciente de todo o horror do meu comportamento, daquilo que a qualquer momento posso fazer, mas mesmo assim eu vou atrás dela, e, se ainda não cometi o erro, foi porque Deus me salvou. Eu estava indo me encontrar com ela, quando Liza me chamou.
– Mas como? Naquela chuvarada?
– Foi. Estou esgotado, tio, por isso resolvi me abrir com o senhor e pedir sua ajuda.
– É evidente que aqui, na sua propriedade, isso não é bom. Vão ficar sabendo. Compreendo que Liza é frágil, é preciso poupá-la. Mas por que tem de ser na sua propriedade?
Novamente Evguêni procurou não ouvir o que o tio dizia e passou logo ao que interessava.
– Quero que o senhor me salve de mim mesmo. É isso que lhe peço. Hoje eu fui impedido por acaso, mas, amanhã, pode ser que nada me impeça. E ela agora está sabendo. Quero que o senhor nunca me deixe só.
– Admitamos que sim – disse o tio. – Mas será possível que esteja assim tão apaixonado?
– Ora, é completamente diferente. Não é paixão, é uma força que tomou conta de mim e me domina. Não sei o que fazer. Talvez eu fique mais forte quando...
– Está vendo!? Está tudo dando certo, como eu queria! – disse o tio. – Vamos para a Crimeia!
– Então vamos, vamos, sim; mas por enquanto vou ficar perto do senhor e vou lhe contando tudo.
XVIII
Ter confiado ao tio seu segredo e, principalmente, aquele drama de consciência e o sentimento de vergonha, que o atormentavam depois daquele dia chuvoso, fez com que Evguêni ficasse novamente lúcido. A ida para Ialta foi decidida para dali a uma semana. Naquele meio-tempo, ele foi à cidade conseguir dinheiro para a viagem, passou instruções aos empregados na sua casa e no escritório, readquiriu sua alegria, ficou mais próximo da esposa e renasceu moralmente.
E assim, sem encontrar nem uma vez Stepanida depois da chuva, ele partiu com a esposa para a Crimeia. Lá eles passaram dois meses maravilhosos. Foram tantas as impressões novas que o passado parecia estar completamente apagado da sua memória. Encontraram antigos conhecidos, de quem ficaram muito amigos; além disso, fizeram novas amizades. A vida na Crimeia era uma festa permanente para Evguêni e, ademais, fora-lhe instrutiva e útil. Fez amizade com um antigo alto funcionário do governo de sua província, um homem inteligente, liberal, que gostou dele e lhe ensinou muita coisa, atraindo-o para o seu lado. No final de agosto, Liza deu à luz uma bela menina, e seu parto foi surpreendentemente fácil. Em setembro, voltaram para casa quatro pessoas, pois trouxeram com eles uma ama de leite, uma vez que Liza não podia amamentar. Completamente livre dos antigos terrores, ele regressou à casa feliz e sentindo-se um novo homem. Depois de passar por tudo o que os maridos passam durante o parto de suas esposas, ele começou a amar a sua ainda mais. O sentimento em relação à criança, quando ele a segurava nos braços, era novo, engraçado e muito agradável, como se alguém lhe fizesse cócegas. Outra novidade na sua vida era que, agora, além do trabalho, graças à aproximação com Dúmtchin (o antigo alto funcionário), surgiu nele o interesse pelo zemstvo[17], em parte por ambição, em parte por consciência do dever. Em outubro haveria uma assembleia extraordinária na qual ele deveria ser eleito. De volta à casa, ele saiu uma vez para ir à cidade e outra para visitar Dúmtchin.
O sofrimento da tentação e a luta que travara estavam esquecidos. Já não pensava nisso e tinha até dificuldade de reconstituí-los na memória. Tudo agora lhe parecia um acesso de loucura de que fora acometido.
Sentia-se a tal ponto livre daquilo que não teve medo nem mesmo de interrogar o administrador, na primeira oportunidade em que ficaram a sós. Uma vez que já havia falado naquele assunto com ele, não teve vergonha de perguntar.
– E então, o Sídor Ptchélnikov continua vivendo fora de casa? – perguntou Evguêni.
– Continua. Passa o tempo todo na cidade.
– E a mulher dele?
– Ah, que mulherzinha fútil! Está de caso com Zinóvi. Agora anda de mão em mão.
“Ótimo”, pensou Evguêni. “É surpreendente como não estou nem me importando e como estou mudado.”
XIX
Tudo o que Evguêni desejava se realizou. Manteve a posse da propriedade, a usina estava funcionando bem, a produção de beterraba açucareira foi excelente, o lucro esperado era grande; a esposa teve um parto feliz, a sogra foi-se embora e ele foi eleito por unanimidade.
Depois da eleição, ele deixou a cidade e estava voltando para casa. Recebia cumprimentos e precisava agradecê-los. Almoçou e bebeu umas cinco taças de champanhe. Agora começavam a surgir na sua mente planos de vida inteiramente novos. No caminho de casa, ele pensava sobre isso. Era época do veranico. A estrada estava excelente, o sol brilhava. Já quase chegando em casa, pensava que, em consequência de sua eleição, iria ocupar na população o lugar com que sempre sonhara, ou seja, uma posição em que poderia servir ao povo não apenas com a produção, que criava empregos, mas podendo influir mais diretamente na vida deles. Atravessando a aldeia, ele imaginava como, dali a três anos, os camponeses, empregados seus ou não, iriam julgá-lo. “Esse aí, por exemplo”, pensava, vendo um camponês e uma camponesa que caminhavam carregando uma tina pesada e quase cruzaram a estrada na sua frente. Eles pararam para lhe dar passagem. O homem era o velho Ptchélnikov e a mulher, Stepanida. Evguêni reconheceu-a e notou com alegria que ficara completamente calmo. Ela continuava bonita, mas isso não o afetou absolutamente.
Quando chegou em casa, sua mulher veio encontrá-lo na entrada. A tarde estava maravilhosa.
– E então, podemos felicitá-lo? – perguntou o tio.
– Podem, fui eleito.
– Mas é maravilhoso! Precisamos beber a isso!
Na manhã seguinte, Evguêni foi dar um giro para ver como iam os trabalhos, que ele havia deixado um pouco de lado. Uma debulhadora nova estava em funcionamento na eira coberta. Examinando seu trabalho, ele caminhava entre as camponesas e tentava não notá-las, mas, apesar de seus esforços, por duas vezes não lhe escaparam os olhos negros e o lenço vermelho de Stepanida, que carregava palha. Roçou nela umas duas vezes e sentiu alguma coisa novamente, mas não pôde avaliar na hora o que era. Só no dia seguinte, quando voltou à eira e lá ficou duas horas, absolutamente sem necessidade, acariciando incessantemente com os olhos a figura graciosa da jovem, foi que ele teve consciência de que estava completa e irremediavelmente perdido. Novamente aquele martírio e todo aquele medo e horror. Não haveria salvação.
E o que esperava aconteceu. No dia seguinte, à tarde, sem saber como, foi parar atrás do quintal dela, diante do galpão de feno, onde uma vez no outono eles tiveram um encontro. Fazendo de conta que estava passeando, parou ali e pôs-se a fumar um cigarro. Quando já estava voltando, uma vizinha avistou-o e ele a ouviu dizer para alguém:
– Vai lá, ele está esperando. Está quase morrendo. Está lá parado. Vai, sua boba!
Ele viu uma mulher correndo para o galpão – era ela –, mas não pôde dar meia-volta porque avistou um camponês vindo na sua direção, e foi para casa.
XX
Quando entrou na sua sala de estar, tudo lhe pareceu absurdo e artificial. Levantara de manhã bem-disposto, decidido a largar aquilo e esquecer, a não se permitir aqueles pensamentos. Mas, sem mesmo saber por que, passou a manhã sem conseguir interessar-se pelo trabalho e ansioso para ficar livre dele. Não estava dando importância nem àquelas coisas que antes o empolgavam. Fazia de tudo, inconscientemente, para se livrar dos afazeres. Achava que precisava livrar-se deles para poder refletir. Livrou-se e ficou sozinho. E, assim que ficou sozinho, saiu a vagar pelo jardim e pelo bosque. Mas esses lugares estavam todos contaminados pelas lembranças, lembranças que se apossavam dele. Percebeu que estava andando pelo jardim, dizendo a si mesmo que pensaria numa solução, mas não estava pensando em nada, e sim, como um louco, sem nenhuma razão, estava esperando que ela por um milagre entendesse que a desejava e por conta própria decidisse vir até ele, ou a qualquer outro lugar em que ninguém pudesse vê-los, ou então que à noite, sem lua, quando ninguém, nem ela mesma, pudesse ver, que numa noite assim ela viesse e então ele tocaria o seu corpo...
“É, você realmente rompeu quando quis”, dizia para si mesmo. “Foi nisso que deu ter um caso com uma mulher limpa e saudável para manter sua saúde! Mas, pelo visto, com ela não se pode brincar assim. Pensei que a havia conquistado, mas foi ela que me conquistou e não quer me largar. Pensei que estava livre, mas não estava. Enganei a mim mesmo quando me casei. Foi tudo um absurdo, um erro. Desde que a conheci, senti algo novo, o que um marido realmente deve sentir pela esposa. É, eu deveria ter ido viver com ela.”
“Duas vidas são possíveis para mim; uma, a que comecei com Liza: trabalho, fazenda, criança, respeito das pessoas. Se for essa a minha vida, então é preciso que Stepanida não fique aqui. É preciso mandá-la embora daqui, como eu havia dito, ou eliminá-la, para livrar-me dela. A outra vida – seria aqui mesmo. Tomá-la do seu marido, dar a ele dinheiro, esquecer a vergonha e a desonra e viver com ela. Mas, nesse caso, é preciso que Liza não esteja aqui nem Mimi. Não, a criança não atrapalha, mas Liza não poderia ficar, ela teria de ir embora. Teria de saber de tudo, amaldiçoar-me e ir embora. Saber que eu a troquei por uma camponesa, que sou traidor e canalha. Não, isso é terrível demais! Não posso fazer isso. Sim, mas pode acontecer de outro jeito – continuou a pensar –, pode ser assim: Liza adoece e morre. Ela morre e tudo fica maravilhoso.”
“Maravilhoso! Ah, como você é infame! Não, se alguém tem de morrer, então que seja ela. Se ela morresse, seria tão bom! É assim que esposas ou amantes são envenenadas ou assassinadas. Basta pegar um revólver e ir chamá-la, e, em vez de um abraço, um tiro no peito. E está tudo acabado.”
“Ela é o diabo. É o próprio diabo. Pois ela se apossou de mim contra a minha vontade. Matá-la? Sim. Só há duas saídas: ou matar minha esposa, ou matá-la. Porque é impossível viver dessa maneira[18]. É impossível. É preciso pensar bem e prever: se permaneço assim, como estou agora, o que pode acontecer?”
“O que vai acontecer é que direi novamente que não quero, que a largarei de vez, mas serão apenas palavras, pois à noite estarei rondando o fundo do seu quintal e ela vai saber e virá. Então ou as pessoas saberão e contarão à minha mulher, ou eu mesmo farei isso, porque não posso mentir, não posso viver assim. Não posso. Isso se espalha. Todos saberão, a Parácia, e o ferreiro também. Pois bem, é possível viver assim?”
“Não, não é possível. Só há duas saídas: matar minha mulher ou matá-la. Ou ainda... Ah, é verdade, existe uma terceira alternativa: matar-me” – disse ele baixinho, e sentiu um frio percorrer sua pele. “É isso mesmo, matar-me, assim não preciso matá-las.” Ficou apavorado, porque sentiu que essa era a única saída possível. “O revólver eu tenho. Mas será possível que vou me matar? Eis uma coisa em que eu nunca havia pensado. Como isso vai ser estranho!”
Voltou para o seu quarto e abriu o armário onde estava o revólver. Mas nesse instante sua esposa entrou.
XXI
Jogou um jornal sobre o revólver.
– Novamente aquilo – disse ela assustada, olhando para ele.
– Aquilo o quê?
– A mesma expressão horrível de antes, quando você não quis me contar. Guênia, querido, conte para mim. Vejo que você está sofrendo. Conte para mim, você vai se sentir melhor. Qualquer que seja o motivo, é melhor do que esse seu sofrimento. Eu sei que não pode ser nada de mau.
– Sabe mesmo? Por enquanto.
– Diga, diga, diga. Não o largo se não disser.
Ele deu um sorriso triste.
“Dizer? Não, isso é impossível. E não há nada a dizer.”
Talvez ele tivesse contado, mas nesse momento entrou a ama perguntando se poderia dar um passeio. Liza saiu para vestir a criança.
– Você vai me contar. Eu já volto.
– É, pode ser...
Liza nunca pôde esquecer o sorriso de sofrimento com que ele disse isso. Ela saiu.
Sorrateiramente, como um assaltante, ele apanhou às pressas o revólver e o tirou do coldre. “Está carregado, mas faz muito tempo. E falta uma bala. Seja o que Deus quiser.”
Encostou o cano na têmpora, teve um início de hesitação, mas bastou lembrar-se de Stepanida, da sua decisão de não voltar a vê-la, da sua luta interior, das tentações, da sua queda, e novamente da luta, e estremeceu de horror. “Não, prefiro isto.” E apertou o gatilho.
Quando Liza entrou no quarto (ela acabara de descer da sacada), encontrou-o caído de bruços no chão. Da ferida corria um sangue escuro e quente, e o corpo ainda estremecia.
Abriram inquérito. Ninguém pôde entender e explicar o motivo do suicídio. Nem mesmo passou pela cabeça do tio que a causa tinha alguma relação com a confissão que Evguêni lhe fizera dois meses antes.
Varvara Aleksêievna repetia que ela sempre previra aquilo, que era possível perceber no modo como ele discutia. Liza e Mária Pávlovna não podiam de modo algum compreender por que aquilo acontecera, mas tampouco acreditaram nos médicos, que disseram que ele sofria das faculdades mentais. Com isso elas não podiam concordar, porque sabiam que ele tinha muito mais bom-senso do que centenas de pessoas que elas conheciam.
E, de fato, se Evguêni Irtênev era doente mental, então todas as pessoas são também doentes mentais; porém, mais doentes ainda são, sem dúvida, aqueles que veem nos outros sinais de loucura que não veem em si mesmos.
VARIANTE DO FINAL DA NOVELA O DIABO
“Pois ela é o diabo. Sem dúvida é o diabo. Pois ela se apossou de mim contra a minha vontade. Matá-la? Sim. Só há duas saídas: ou matar minha esposa, ou matá-la. Porque é impossível viver dessa maneira”, disse ele a si mesmo. Aproximando-se da mesa, tirou da gaveta um revólver, examinou-o – faltava uma bala – e o colocou no bolso da calça.
– Meu Deus! Que estou fazendo? – exclamou de repente e, juntando as mãos, começou a rezar. – Senhor, ajude-me, salve-me. Você sabe que não quero o mal, mas sozinho não consigo. Ajude-me – dizia, fazendo o sinal da cruz diante da imagem.
“Mas eu posso me controlar. Vou dar uma volta para pensar.”
Foi para o vestíbulo, colocou o casaco, as galochas e saiu. Sem que se desse conta, seus passos o conduziram por fora do jardim, pela estrada que passava pelo campo e dava na fazenda. A debulhadora continuava a trabalhar, emitindo um ruído agudo, e se ouviam os gritos dos meninos que tocavam os animais. Evguêni entrou na eira. Ela estava lá. Ele logo a viu. Ela estava amontoando espigas e, ao vê-lo, ágil, alegre, com os olhos sorridentes, correu pelas espigas espalhadas no chão, juntando-as com rapidez. Embora não quisesse, Evguêni não pôde deixar de olhar para ela, mas só se deu conta disso quando ela sumiu da sua vista. O administrador veio informar que eles estavam terminando de debulhar as espigas que se haviam amassado e que por isso era mais demorado e a produção era menor. Evguêni aproximou-se do tambor, que de tempos em tempos estalava, quando passavam por ele feixes mal-esticados, e perguntou ao administrador se havia muitos feixes amassados.
– Devem ser uns cinco carroções.
– Então vamos fazer o seguinte... – começou Evguêni, mas não terminou. Ela se aproximou do tambor e pôs-se a puxar e amontoar as espigas que estavam debaixo dele, e incendiou-o com seu olhar sorridente.
Aquele olhar falava do amor alegre, despreocupado, que eles tiveram, afirmava que ela sabia que ele estivera perto do seu galpão e a desejava e que ela, como sempre, estava disposta a viver e divertir-se, sem pensar em condições ou consequências. Evguêni sentiu que ela o estava dominando, mas não queria se entregar. Lembrou-se da oração que fizera e tentou repeti-la. Ficou rezando silenciosamente, mas logo percebeu que isso era inútil.
Um único pensamento agora o absorvia: como marcar um encontro com ela sem que ninguém notasse?
– Se terminarmos agora, o senhor dá ordem para começar uma nova meda, ou deixamos para amanhã?
– Sim, sim – respondeu Evguêni, dirigindo-se sem vontade própria para o monte de espigas que ela e outra mulher estavam fazendo.
“Será possível que não consigo me dominar?”, dizia para si mesmo. “Será que estou acabado? Meu Deus! Ora, não existe nenhum Deus, existe é o diabo. E é ela. O diabo se apossou de mim. Mas eu não quero, não quero. É o diabo, sim, o diabo.”
Ele chegou bem perto dela, tirou o revólver do bolso e deu um, dois, três tiros no meio das suas costas. Ela correu e caiu sobre um monte de palha.
– Meu Deus! Ô gente, o que aconteceu? – gritavam as mulheres.
– Não, não foi acidente. Eu a matei de propósito – gritava Evguêni. – Mandem chamar o chefe de polícia.
Ele foi para casa e, sem dizer nada à esposa, trancou-se no seu escritório.
– Não entre aqui – gritou para a mulher por trás da porta –, você vai saber de tudo.
Uma hora depois, tocou a campainha e disse ao criado que o atendeu:
– Vá perguntar se Stepanida está viva.
O criado já estava ciente de tudo e informou que ela morrera uma hora atrás.
– Melhor assim. Agora deixe-me. Quando o chefe de polícia ou o juiz chegarem, avise.
O chefe de polícia e o juiz de instrução vieram na manhã seguinte. Evguêni despediu-se da mulher e da criança e foi levado para a prisão.
Foi julgado. Isso foi nos primeiros tempos de funcionamento do tribunal do júri. Consideraram que ele estivera temporariamente privado das faculdades mentais e o condenaram apenas à penitência religiosa.
Evguêni ficou nove meses na prisão e um mês num mosteiro.
Começou a beber ainda na prisão e continuou no mosteiro. Voltou para casa debilitado e transformado num alcoólatra irresponsável.
Varvara Aleksêievna afirmava todo o tempo que ela sempre previra aquilo. Via-se na maneira como ele discutia. Liza e Mária Pávlovna nunca entenderam por que a tragédia havia acontecido. Contudo, não podiam crer nos médicos, que diziam que Evguêni sofria das faculdades mentais, que era um psicopata. Com isso elas não podiam concordar, porque sabiam que ele tinha muito mais bom-senso do que centenas de pessoas que elas conheciam.
E, de fato, se Evguêni Irtênev estava mentalmente enfermo quando cometeu seu crime, então todas as pessoas são também doentes mentais; porém, mais doentes ainda são, sem dúvida, aqueles que veem nos outros sinais de loucura que não veem em si mesmos.
Leâo Tolstoi
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